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Table of Contents
1. Folha de rosto
2. Créditos
3. Parte 1 - A vastidão
1. Capítulo um
2. Capítulo dois
3. Capítulo três
4. Capítulo quatro
5. Capítulo cinco
6. Capítulo seis
7. Capítulo sete
8. Capítulo oito
9. Capítulo nove
4. Parte 2
1. Capítulo dez
2. Capítulo onze
3. Capítulo doze
4. Capítulo treze
5. Capítulo catorze
6. Capítulo quinze
7. Capítulo dezesseis
5. Parte 3
1. Capítulo dezessete
2. Capítulo dezoito
3. Capítulo dezenove
4. Capítulo vinte
5. Capítulo vinte e um
6. Capítulo vinte e dois
6. Agradecimentos
7. Sua opinião é muito importante
título original Everything Leads to You
Copyright © 2014 by Nina LaCour
Originally published by Dutton Books, an imprint of Penguin Group (USA) LLC. Published by
arrangement with Pippin Properties Inc. through Rights People, London. Publicado originalmente
por Dutton Books, um selo da Penguin Group (EUA) LLC. Publicado mediante acordo com
Pippin Properties Inc. mediado por Rights People, Londres.
Esta edição é baseada na edição de Everything Leads to You publicada em 2022 pela Dutton
Books, nos Estados Unidos.
© 2023 VR Editora S.A.
LaCour, Nina
Tudo me leva até você [livro eletrônico] / Nina LaCour; tradução Regiane Winarski. – Cotia,
SP: Plataforma21, 2023.
ePub
Título original: Everything leads to you.
ISBN 978-65-88343-65-4
23-179033 CDD-028.5
Querida Caroline,
Confesso que foi otimista da minha parte pensar que nosso almoço
pudesse transformar uma vida de distância em uma espécie de
relacionamento. Mas não acho que tenha sido otimista pensar que
poderia ter sido um tipo de começo, mesmo que fosse o começo de algo
insuficiente. Um oi casual de vez em quando. Um contato. Mas estou
tentando falar com você há vários meses. Minhas cartas foram
devolvidas. Os poucos números de telefone que consigo encontrar com
seu nome estão todos desativados. Não estou descartando a
possibilidade de mudar de ideia, mas por ora, pelo menos, vou desistir.
Havia coisas que eu queria te contar naquela tarde que não consegui
falar. Eu disse para mim mesmo que foi porque eu esperava que
fôssemos Eu e Você, mas acabou sendo Eu e Você e Lenny. E, assim,
acabei acompanhado de dois estranhos em vez de uma. Só que isso pode
ter sido apenas uma desculpa. Você é minha única filha e eu nunca fui
como um pai para você. Não sei como um pai deve dizer coisas
emocionadas ou expressar arrependimento ou fazer um elogio.
Então aqui vai, no papel, o que não parece tão assustador assim.
Eu não estava ciente da sua existência quando você nasceu. Depois
que soube de você, tinha a intenção de ser um bom pai. Para dizer de
forma clara, sua mãe tornou isso impossível.
Ela não aceitou dinheiro. Não quis considerar uma amizade. Eu
passei uma década tentando fazer as pazes com ela, mas a verdade é que
eu tinha bem pouco a dizer. Nós dois tivemos nossos motivos para o que
aconteceu naquela noite e nas poucas semanas seguintes. Não vou
presumir saber os dela, mas, em minha defesa, eu não fiz nenhuma
promessa nem a enganei intencionalmente. Ela teve o que muitas
pessoas desejam, alguns minutos de fama nos braços de uma pessoa
famosa. Ela nem me conheceu e eu nunca a conheci. Gostaria de pensar
que nós dois recebemos algo de que precisávamos em um período
específico das nossas vidas, mas temo que a reação da sua mãe aos meus
gestos repetidos tenha dito o contrário.
Pode parecer injusto da minha parte falar assim de uma mulher que
não está mais neste mundo para se defender. Não desejo ser cruel. Outra
coisa que eu queria fazer (mas não fiz) era oferecer minhas condolências
a você. E queria dizer que sei como é ser órfão. É possível que você se
sinta sozinha no mundo. Eu também entendo um pouco disso. Acho que
pensei que poderíamos nos aproximar por causa das nossas tragédias
específicas, mas acabei falando dos meus cachorros e do tempo, e você
ficou olhando para os ovos e nem tocou neles.
Você é minha única filha. Queria que você soubesse algumas coisas
sobre mim. É verdade que eu sempre uso chapéu de caubói, mas não sou
o homem estoico e sério que tantas vezes interpretei. Eu gosto de
caminhar nas colinas que ficam atrás da minha casa. Eu amei
profundamente, mas tive esperança de conseguir um tipo de amor
diferente.
Há uma conta bancária em seu nome no Northern West Credit
Union. Vá até lá e procure Terrence Webber. Ele vai te dar acesso a essa
conta. Se você não quiser o dinheiro, dê para Ava. Pode parecer
insensibilidade dar tanto a você. Não pense nisso como uma tentativa de
comprar seu amor ou seu perdão. Apesar da noção idealista de que
dinheiro não compra felicidade, ele pode abrir portas. Eu espero, minha
filha (se você me permitir te chamar assim só desta vez), que as portas
se abram para você durante toda a sua vida.
Com carinho,
Clyde
~
No caminho até o estúdio, tento pensar nas vastas possibilidades da
vida. Não para me torturar, porque não sou esse tipo de garota. Mas
como meio de tentar superar Morgan. A vida é vasta. Muitas coisas são
possíveis. Morgan estava certa sobre isso. Então, mesmo que ela esteja
saindo com Rebecca agora, talvez o mundo não tenha acabado para
mim. Ainda há Ava Maddox para serem encontradas e cenários para
serem criados e garotas para serem beijadas e faculdades para serem
frequentadas. É possível que um dia eu escute uma música de Patsy
Cline e a dor no coração passe quase despercebida. Vai ser uma
sensação distante, sufocada. Eu não vou lembrar como já doeu.
Quando chegamos, estou determinada a entrar e sair do estúdio
sem chorar. Paro mais perto da entrada do que o de costume porque
não tem quase ninguém lá, e ignoro as risadas residuais de Morgan e
Rebecca quando elas saem da picape. Abaixo a porta de trás e começo
a puxar o sofá, que é incrivelmente fofo e macio. Quando o colocamos
na sala de música, essa sala que eu criei, torna-se oficial: aquela é a
sala perfeita, com o sofá perfeito, o cenário perfeito para um coração
partido.
Morgan recua e analisa, mas Rebecca anda pelo local, prestando
atenção às partituras e porta-retratos e pôsteres e troféus e tapetes.
– Você fez isso? – Ela toca no alto da estante de partituras.
Faço que sim.
– O sofá combina muito com a sala. Parece autêntico. Como você
encontrou?
– Eu procurei por muito tempo – digo. – Fui a 52 bazares de garagem
e visitei dezesseis propriedades.
– Você deve ter visto muitos sofás bonitos.
– Vi – falei. – Mas eu sabia o que queria.
Rebecca se vira para Morgan e abre um sorriso que diz alguma
coisa. Não é uma língua que eu conheça, mas não parece pena, então
não deixo que me abale.
– Vou ligar para o Theo – diz ela para Morgan. – Foi muito legal te
conhecer – diz para mim. Ela me encara. Aperta a minha mão de novo.
Reparo que ela é alguns anos mais velha do que Morgan, mas isso, em
si, não quer dizer nada.
Ela se afasta e eu pergunto:
– Quem é Theo?
– Namorado dela – diz Morgan. – Por quê?
– Por nada – digo, olhando para o rosto dela pela primeira vez no
dia. Ela me olha também. Percebo que gosta do que vê.
– Quer ver em que estou trabalhando? – pergunta, indicando o lado
mais distante do cenário, onde ela está construindo o quarto do
irmãozinho.
Eu pego o celular; já deu uma e meia.
– Queria poder – digo –, mas tenho que me encontrar com
Charlotte na biblioteca.
Ela ri como se soubesse que eu estou bancando a difícil, e tenho que
admitir que a sensação de dizer não para ela é boa.
Assim que abro a porta, desejo que tivéssemos tido mais alguns
minutos, porque Ava está parada na entrada com a beleza de uma
estrela de cinema, com a beleza de Clyde Jones, e eu estou olhando para
ela usando uma blusa com uma mancha vermelha de molho de
tomate no peito, o cabelo em um rabo de cavalo bagunçado,
percebendo que, apesar de todo o nosso planejamento, não tenho
ideia de como dar a notícia que a convocamos para ouvir.
– Oi. Entra – digo, mas estou lutando contra a vontade de lhe dizer
para deixar para lá.
Charlotte e eu nos metemos nas vidas de outras pessoas de um jeito
que me deixa pouco à vontade de repente. Como se houvesse uma
placa de propriedade particular na entrada da casa de uma família e
nós não só a invadimos, como entramos na garagem, remexemos em
todas as caixas particulares, olhamos os álbuns de fotografia e os
diários e descobrimos dezenas de segredos que não eram para ser
revelados.
Mas Ava está ali, no meio da sala aconchegante de Toby, graças à
sorte e ao destino e à nossa disposição de a encontrar. Charlotte lhe
oferecendo o que resta do nosso chá gelado etíope e ela aceita. Ela tira
a bolsa surrada de couro marrom do ombro e pede desculpas.
– Por quê? – pergunta Charlotte.
– Eu devo ter sido difícil de encontrar – diz. – Vocês devem ter tido
trabalho.
– A gente levou um tempo – digo, servindo o chá em um copinho
azul.
– É – diz ela. – Bom, o ano está estranho.
Ela tenta dizer isso com naturalidade, como se o ano dela estivesse
sendo estranho de uma forma normal, o que não encaixa com o garoto
no telefone que não tinha ideia de onde ela estava nem se ela voltaria
a ligar para casa.
Eu lhe entrego o copo. A ponta dos dedos dela roçam nos meus.
Ela toma um gole de chá e olha para nós com expectativa. Ela quer
respostas, obviamente, quer saber os motivos de a procurarmos, quer
saber as informações que temos. Mas só consigo ficar olhando para ela
porque sua semelhança com Clyde é impressionante. Mais ainda do
que o cabelo ruivo e os olhos verdes, as feições dela são assim: a
inclinação das maçãs do rosto e o nariz delicado, o sorriso levemente
torto enquanto nos olha sem entender. Essas são feições que, apesar
da bravata de Clyde, o faziam parecer sempre um pouco vulnerável,
faziam com que sempre nos preocupássemos com ele e torcêssemos
para que ele sobrevivesse às trocas de tiro e ficasse com a garota.
Ava prende uma mecha de cabelo atrás da orelha e reparo que ela
está até um pouco vestida como Clyde. Tudo que ela está usando
parece vintage: botas de couro marrom e um short jeans de cintura
alta, um cinto de couro com fivela de metal fosca.
– Isso está muito gostoso – diz Ava, quebrando o silêncio. – Eu
nunca tomei um chá gostoso assim.
– Que bom que você gostou – responde Charlotte, e me pergunto se
ela está pensando o mesmo que eu. Com seu dom para interações
sociais e a minha tendência de contar coisas demais, nós não
costumamos sofrer silêncios constrangedores assim. Tento me
controlar.
– É etíope, de um restaurante dobrando a esquina – digo. E começo
a dar uma explicação sobre o carisma de Toby e aquele apartamento e
o pedido que ele nos fez, e, enquanto falo, percebo que estou me
afastando cada vez mais do motivo para ela estar ali com a gente agora.
– Ele disse que nós temos que fazer algo épico – digo. – Se você tiver
alguma ideia, pode ficar à vontade pra sugerir.
Sei que estou falando sobre algo que não tem importância para ela,
mas não consigo parar de falar. A neta de Clyde Jones está na nossa
cozinha tentando minimizar algum tipo de consternação, algo que a
manteve longe de casa por muito tempo.
Ainda sinto o local onde os dedos dela roçaram nos meus.
E nós temos uma carta que vai mudar a vida dela.
– Como vocês conectaram Caroline a mim? – pergunta ela quando
eu calo a boca.
– Foi na biblioteca – diz Charlotte.
– Biblioteca?
– Né? Foi ideia da Charlotte.
– Nós encontramos o obituário da Caroline no jornal e nele tinha o
nome de Tracey Wilder. Emi supôs que Tracey Wilder talvez fosse sua
mãe… Sua mãe adotiva. Isso foi o que pensamos – diz Charlotte.
– Caroline e Tracey eram melhores amigas. Tracey me adotou
quando Caroline morreu. Eu era um bebê.
Ava leva a mão à boca e morde a unha curta sem esmalte. Reparo
nas sardas que pontilham as bochechas e o nariz dela. Ela repara e eu
desvio o olhar. Que burrice. Eu devia ter sorrido.
– E o que vocês têm? – pergunta ela. – Pra Caroline?
Olho para Charlotte, torcendo para que ela saiba como levar as
coisas dali em diante. Não sou nada boa nisso. Sou muito melhor com
pessoas imaginárias e vidas imaginárias.
– Não sei qual é a melhor forma de dizer isso, então vou mostrar o
que a gente encontrou.
Ela vai até a sala de estar e pega a carta na mesa de centro. Não
consigo nem olhar para Ava de tão nervosa que estou. Charlotte
entrega o envelope para ela e Ava pega a carta. Vou me sentar no sofá
para esperar. Eu sairia do apartamento e daria algumas voltas no
quarteirão se pudesse.
Ava fica em silêncio por muito tempo, parada na cozinha. Ouço o
barulho do papel. Ela deve ler a carta várias vezes. Charlotte vem se
sentar ao meu lado, mas nós não dizemos nada.
Finalmente, ouço Ava vindo até nós. Ela se senta na poltrona laranja
de Toby.
– Eu entendi direito?
Charlotte e eu fazemos que sim.
– Esse é o Clyde…?
– Jones – digo. – É.
– Clyde Jones era meu avô?
Nós fazemos que sim de novo.
– Eu sei que é o que parece, mas não consigo parar de ler. Pode
haver outra explicação.
– Sim – diz Charlotte. – Pode haver.
– Mas tudo leva a você – digo. – Todos os nomes e datas de tudo.
– Quem é Lenny?
– Não sabemos.
Ava estuda a carta de novo.
– Então a mãe da Caroline morreu muito tempo atrás, mas o pai
dela estava vivo esse tempo todo. Acho que eu simplesmente supus
que os dois tinham morrido, senão minha mãe teria me contado sobre
eles.
– Pode ser que Tracey não soubesse sobre Clyde – digo.
– É possível – diz ela. – Como vocês encontraram esta carta?
Nós contamos sobre nós e nossos empregos na indústria do cinema.
– Espera – diz ela. – Vocês elaboram cenários pra filmes de verdade?
Quantos anos vocês têm?
– Dezoito – digo.
– Eu não crio cenários – diz Charlotte. – Eu faço ligações e pequenas
tarefas. Emi é o gênio.
Eu reviro os olhos apesar de amar elogios.
– Mas mesmo que você seja um gênio – diz Ava –, isso não é um
trabalho importante? As pessoas estudam pra isso, né?
– Eu não faço o design – digo. – Meu nome provavelmente nem vai
sair nos créditos. Meu irmão arrumou um estágio não remunerado pra
mim dois anos atrás e eu fui crescendo a partir dali. Ainda sou
estagiária e mal ganho salário-mínimo, mas minha chefe me deixou
enviar uma proposta pra um aposento de uma garota de dezesseis
anos e adorou, e agora estão gostando de mim não sei bem por quê, e
por isso eu tenho um outro trabalho encaminhado.
Decido deixar de fora os eventos infelizes daquela tarde. Até eu sei
que a noite devia girar em torno de Ava e não de mim, e fico hesitante
em mencionar que o avô dela (sem ele saber, claro) teve parte na
destruição da minha sala e, indiretamente, pode levar a um
encerramento precoce da minha carreira se Ginger decidir me vetar
por ter falado com ela daquele jeito.
– É um emprego tão legal – diz ela. – Eu fiz teatro na escola, no nono
ano e no primeiro do ensino médio. Eu amava ficar depois dos ensaios
vendo as pessoas pintarem os cenários. Claro que eu sei que não é a
mesma coisa. Eram só peças escolares. Os cenários nem eram bons,
mas era divertido ver tudo tomando forma. Às vezes, os cenários de
fundo tinham dois lados. Um lado parecia uma sala e, ao ser virado,
era uma cena de calçada. – Ela fica vermelha. – Sei que não se
compara com o que vocês fazem mas só me fez pensar…
Ela para de falar e percebo que ela está sem graça, e Charlotte deve
perceber também, porque se apressa em perguntar:
– Você atuava?
Ava assente.
– Eu comecei a gostar muito, mas Tracey me fez parar.
– Por quê? – pergunto.
– Ela alegava que os ensaios me faziam ficar na rua até tarde e que
minhas notas estavam caindo. – Ela dá de ombros. – Eu nunca me
esforcei tanto na escola. O teatro era a única coisa de que eu gostava.
– Acho que está no sangue – digo.
Ava olha para a carta como se a tivesse esquecido por um momento.
– Você percebe como isso é importante? – digo. – A vida de Clyde
Jones sempre foi um mistério. As pessoas só sabiam que ele era
mulherengo quando jovem e depois virou recluso, que nunca se casou
e teve filhos. E agora, aqui está você, e, no fim das contas, até o pouco
que a gente achava que sabia dele não era verdade. Você – digo,
fazendo uma pausa para dar efeito, tomando cuidado para que ela
entenda de verdade –, é a neta secreta do ator mais icônico da história
dos filmes americanos.
Ava balança a cabeça, confusa. Olha para baixo e sorri. Fico aliviada
e feliz, com a sensação de que não estamos invadindo nada com essa
informação, de que não é invasão de privacidade. Que o que a gente
fez foi tipo colher flores e deixar na porta de uma estranha, uma coisa
selvagem e linda pronta para ser descoberta.
– Eu nunca nem vi um filme de Clyde Jones – diz ela.
– Você está de brincadeira, né?
– Eu consigo vê-lo de chapéu de caubói e tudo, mas não.
Balanço a cabeça.
– Que loucura.
– Não é tanta loucura, Emi – diz Charlotte. – Nem todo mundo
cresce em um lar como o seu.
– Bom, você veio ao lugar certo – digo para Ava. – Nós temos a
coleção completa. Você tem algum compromisso?
O relógio em formato de sol acima da televisão de Toby mostra que
são quase onze da noite. Vejo-a olhar para ele.
– Eu tenho tempo – diz. – Só tenho que fazer uma ligação rápida.
– Que ótimo! Char e eu vamos escolher um.
Ela vai até a cozinha pegar o celular.
– Estou feliz de ela não ter surtado – sussurro enquanto Charlotte e eu
nos posicionamos na frente da coleção extensa de dvds de Toby.
– É, ela parece bem calma – diz Charlotte.
Nós escolhemos Muito tempo até amanhã porque é um clássico de
Clyde. Terras baixas é o meu favorito, mas Ava pode conhecê-lo depois
de ter obtido ao menos um conhecimento básico da carreira dele, para
poder apreciar as formas pelas quais ele se afasta do papel de sempre
nesse filme. Ouço trechos da conversa dela. A casa de Toby é pequena
e ela não está tentando fazer segredo.
– Eu dirijo – diz ela. – Sim, de verdade. Tudo bem, te vejo na
cozinha à uma e quinze.
Ela está falando com alguém próximo, mas não diz nada sobre o
que acabou de descobrir. Se fosse comigo, estaria ligando para todo
mundo. Eu estaria em êxtase, mas ela só parece estar curiosa.
Ela volta e se senta.
– Desculpa – diz ela. – Precisava ligar para o meu amigo, Jamal. Vou
dar uma carona até o trabalho pra ele.
– Onde vocês trabalham? – pergunto.
– Numa loja de materiais de construção – diz ela.
– Sério?
– É esquisito? – pergunta.
– Eu não consigo te imaginar com um daqueles uniformes ou, tipo,
ajudando pessoas a cortarem peças de mdf do tamanho certo.
– Nós trabalhamos no turno de estoque, de madrugada. Não
ajudamos clientes. É um emprego legal e Jamal é meu melhor amigo, e
isso ajuda.
Eu faço que sim, e Charlotte pergunta:
– Vocês se conhecem há muito tempo?
– Quase um ano. Mas ficamos melhores amigos tipo uma semana
depois de a gente se conhecer. As coisas acontecem rápido quando não
se tem mais ninguém.
Fico abalada com a verdade simples dessa declaração, mas
concordar com ela seria desonestidade. Não posso nem fingir saber
como seria ser tão sozinha. E ela não parece estar esperando resposta.
Está acomodada na poltrona, olhando para a tela, esperando o filme
começar.
– Bom – digo, de volta à realidade. – Vamos começar com Muito
tempo até amanhã. O primeiro papel principal de Clyde. Em 1953. Lee
Dodson é o diretor. Foi esse o filme que fez de Clyde Jones o Clyde
Jones, se é que você me entende.
Ela faz que sim.
– Pronta? – digo.
– Pronta.
Aperto o play e a música vibrante começa. Charlotte se senta no
tapete branco, Ava está na poltrona laranja e eu estou no sofá. As
primeiras cenas passam. Charlotte ri do diálogo empolado e eu
examino os cenários, escassos e rústicos.
Com doze minutos de filme, Ava começa a chorar.
Por algum motivo, não conto para Charlotte. Assim que entro no
apartamento, coloco a bolsa com o roteiro no canto da sala de Toby e
me junto a ela no pátio, onde ela está olhando para a tela do
computador.
– O que você está fazendo?
– Estou me matriculando em matérias – diz ela.
– O que você vai fazer?
– Um monte de coisas do ciclo básico. Mas também Introdução à
Museologia.
– Que divertido – digo.
Mas eu realmente achava que Charlotte mudaria para cinema
quando consegui o emprego para ela no estúdio. Achei que “o amor”,
como Theo dizia, seria contagioso, principalmente porque Char é tão
boa no que faz e tem a mente perfeita para o aspecto da produção dos
filmes. Mas acho que a atenção dela a detalhes e a desenvoltura social
impecável vão ser boas no mundo dos museus.
– Você já está se matriculando?
– Eu vou daqui a um mês e meio.
– Não me lembra.
– Você não precisa escolher suas matérias logo?
– Provavelmente. – Dou de ombros.
– Você deveria saber quando é a data de matrícula.
– É, eu vou pesquisar.
Tudo parece menos urgente para mim porque vou estudar em Los
Angeles, e agora, com a fantasia de um emprego de design de
produção ao meu alcance, a faculdade quase parece desnecessária.
Mas eu sei que não é. Sei que vai abrir as portas do mundo de um jeito
novo. Logo vou poder me sentar para ver televisão com meus pais com
o conhecimento de todas as teorias críticas deles. Vai ser bom poder
acompanhar. E eu vou aprender muito mais sobre a história do
cinema e sobre design de produção. Eu não sou tão ingênua a ponto
de imaginar que sei tudo o possível sobre como os filmes são feitos.
Mesmo assim, não quero que o verão acabe tão cedo.
– Você já pensou no que deveríamos fazer com o apartamento? –
pergunto.
– Já – diz ela. – Mas não consigo pensar em nada épico o bastante.
– Sei bem como é – digo. – Uma droga. Vamos comprar tacos e ficar
na praia.
Depois que Charlotte termina as coisas da faculdade, vamos até
nosso food truck favorito e seguimos em direção ao mar, desviando de
patinadores e skatistas e ciclistas, tirando as sandálias na areia e
seguindo até uma área aberta e convidativa para comer vendo o sol se
pôr no mar.
– O que tem no Michigan, afinal – digo. – Lagos? E daí.
– Eu também vou sentir a sua falta – diz ela.
Ouvimos um zumbido e nós duas pegamos os celulares. Morgan
não me manda mensagem há três dias. Minha tela está apagada.
– Olha – diz Char, e mostra o dela para mim.
Aqui é a Ava. Você e Emi estão livres amanhã? Tenho uma coisa pra
mostrar pra vocês!
– Fala que sim – digo.
– Pedimos pra ela vir pra Venice de novo?
– Claro – concordo. Mas mudo de ideia. – Não, pensando melhor…
Vamos marcar no Marmont!
Charlotte ri e balança a cabeça.
– No Marmont. Certo. Algo me diz que não é o tipo de lugar que Ava
frequenta.
Pego o celular de Charlotte e digito Nos encontramos no Chateau
Marmont. Esquina da Sunset com Havenhurst. Hollywood.
Charlotte olha por cima do meu ombro.
– Você sabe a esquina de cor?
– Claro – digo, devolvendo o celular dela. – É estranho eu me sentir
aliviada agora? Foi meio ruim pensar que tinha acabado.
– Eu acho que não acabou – diz Charlotte. – Tem tanta coisa que a
gente ainda não sabe. Sinto que só vai acabar se ela não nos pedir
nada, mas é possível que ela precise de ajuda pra descobrir bem mais
a respeito, e se for esse o caso a gente devia ajudar.
– Espero que ela peça – digo. – A neta de Clyde Jones não deveria
estar morando em um abrigo e trabalhando de madrugada numa loja
de materiais de construção. É tipo contra as leis do universo.
Charlotte ri.
– Eu gostei muito dela – falo.
– Aposto que sim – diz Charlotte.
– Não, sério – digo. – Não só por ela ser linda a ponto de partir
corações. Ela nos contou coisas da vida dela. Queria ficar lá com a
gente. Ela nem nos conhece. Não é qualquer um que faria isso.
– É, eu também gostei dela – admite Charlotte. – Vamos ver o que
vai acontecer amanhã.
O sol paira baixo sobre a água, as nuvens em volta se tornam rosa e
violeta.
– Estive pensando – digo. – Sabe aquilo que eu falei na noite em que
a gente encontrou a carta? Que eu sentia que havia algo de
significativo nela?
– Lembro, sim. Foi a única vez que você disse algo assim.
– Andei pensando que talvez Ava seja alguém que eu precisava
conhecer.
– Conhecer?
– Não é só por ela ser tão bonita. Nem por causa do Clyde. Eu sei
que parece maluquice, mas juro que tem uma coisa nela. Tenho a
sensação de que eu tinha que conhecer Ava.
Charlotte faz círculos na areia com o dedo.
– Você não acha que ela se interessaria por mim – digo.
– Não estou dizendo isso.
– É, mas não está dizendo nada. Isso diz muito.
– Você devia se dar um tempo pra esquecer Morgan. Começar
devagar.
– Por que você precisa ser tão prática?
– Uma de nós tem que ser. A gente pode acabar sendo amiga da Ava.
– Vou precisar de mais amigos quando você for embora.
– Eu não vou “embora”. Vou estar na faculdade.
– Mas aí, vai saber. Você vai acabar sendo uma diretora de museu
maravilhosa em algum lugar. Pode ir parar em Nova York. Pode ir
parar em Chicago. Essa pode ser nossa última vez juntas aqui na praia.
Depois disso, tudo vai ser diferente. Você vai esquecer seu amor por
palmeiras e seu medo de neve. Vai passar todo o seu tempo em um
escritório chique mandando nas pessoas e encontrando esculturas
roubadas do século xvii.
Eu tenho muito mais a dizer, mas Charlotte está me empurrando
para a areia.
Tento continuar, apesar da agressão dela:
– Você vai ser recrutada pelo Louvre. Vai morar em Paris e se casar
com um parisiense lindo que é, sei lá, meio francês e meio marroquino
e é a cara do meu irmão, e quando chegar a hora de renovar o
passaporte, você vai dizer: Quem precisa de les États-Unis? Tem areia
no meu olho! – digo, ofegante.
Ela para de me empurrar e se levanta.
– Vamos – diz ela. – Você é ridícula e eu tenho coisa pra fazer.
Eu me levanto e vou atrás dela.
– Você vai começar a dizer que os filmes americanos são idiotas, só
espetáculo sem substância, ignorando completamente as centenas de
filmes lindos e introspectivos que os Estados Unidos produzem todos
os anos, sem falar que os de puro entretenimento são, por si só,
incríveis.
Charlote para de andar e se vira para mim. Coloca as mãos nos
meus ombros.
– Eu vou pra Michigan porque é a melhor faculdade na área que
quero estudar. Eu não sei pra onde vou quando acabar. Mas você
sempre vai ser minha melhor amiga e eu nunca vou ser o tipo de
esnobe que diz que todos os filmes americanos são idiotas. Se um dia
eu fizer uma generalização absurda como essa, aponta pra mim e ri até
eu me sentir humilhada o bastante.
– Tudo bem – digo, e sinto um nó na garganta. Ela sorri para mim,
um sorriso de solidariedade e de tristeza que ela sente também.
Eu nem pretendia que fosse um momento emotivo, mas acho que
eu preciso disso. É horrível perder a melhor amiga, mesmo que só
para a distância. Mesmo que não seja perder de verdade.
~
Começo a ler às onze e meia, quando Charlotte já está dormindo.
Estou deitada no sofá à luz de um abajur de metal (tirado da garagem
do meu avô), para que ela não acorde. Na média, os roteiros tem entre
90 e 120 páginas, uma página por minuto de tela. Esse tem 111, o que
significa que vou conseguir ler tudo esta noite, ou pelo menos ter uma
boa noção para saber se quero aproveitar a oportunidade louca.
Na página três, já estou apaixonada.
Sim e sim tem dois personagens principais, Juniper e George, que
trabalham em um mercadinho de Los Angeles. George tem quarenta e
poucos anos e, com o desenrolar da trama, descobrimos que ele estava
morando no Oregon, mas voltou para Los Angeles, onde passou a
infância, para cuidar do pai doente, que acaba morrendo e deixando o
mercado para George. Agora, ele está em um impasse. Ainda está
morando na casa onde cresceu, apesar de os pais terem morrido, e
trabalhando no mercado, algo que ele nunca pretendeu fazer.
Juniper, que faz vinte anos durante a história, quer ser botânica. Ela
está conciliando aulas na faculdade comunitária com o trabalho no
mercado e sofrendo muito desde que o chefe idoso ficou doente e
morreu. Ele a tratava como filha e ela precisava disso, porque é uma
pessoa solitária e meio frágil.
O momento em que tudo começa é este: uma mulher, Miranda,
entra no mercado, pega uma cesta, começa a andar pelos corredores.
Pega uma toranja, um pacote de aveia, uma barra de chocolate. Juniper
está colocando papinha de bebê nas prateleiras a centímetros quando,
sem aviso, Miranda cai no chão e tem uma convulsão. Juniper deixa
um pote de papinha de bebê cair, e o pote se quebra. George corre de
seu posto no caixa. Um cliente liga para os paramédicos e, enquanto
eles esperam as sirenes se aproximarem, Juniper e George ficam
sentados ao lado dela, ambos envolvidos e com medo.
Juniper e George não se apaixonam. Eles ficam amigos. A
experiência os une e, quando eles estão sentados se perguntando
quem Miranda é de verdade com um fervor que beira a obsessão,
estão falando na verdade sobre como imaginaram a própria vida e
que, na verdade, ela não chega perto do que queriam. Eles aprendem
sobre si mesmos e sobre o outro.
No final, Miranda volta ao mercado. Ela nem dá atenção para eles, o
que faz sentido, porque, apesar de ter sido um momento importante
para Juniper e George, Miranda estava tendo uma convulsão. Ela não
se lembra deles. Compra frutas e vai embora, e eles ficam perplexos e
se sentem desprezados, mas nós já sabemos que o ponto central não
era Miranda. Eram os dois o tempo todo.
– Charlotte – sussurro às duas da manhã. – Acorda. Eu preciso te
contar uma coisa.
Ela abre os olhos.
– Qual é o problema?
– Nada – digo. – Tenho uma coisa maravilhosa pra contar. Uma
coisa incrível aconteceu comigo de tarde.
Ela se senta e esfrega o rosto.
– Eu estava com você mais cedo – diz.
– É, foi antes. Eu recebi uma oferta de emprego como designer de
produção.
– Acende a luz.
Eu acendo e ela aperta os olhos.
– Você está falando dormindo? – pergunta.
– Não – digo, me sentando ao lado dela. – Eu recebi uma proposta
de trabalho de uma conhecida de Morgan da faculdade de cinema:
Rebecca, lembra, que estava com ela quando elas foram buscar o sofá?
– Sei.
– É um filme que ela escreveu com o namorado. Acabei de ler o
roteiro.
– Sei.
– Eu vou aceitar o trabalho. É uma história linda. Não tem como
você chamar de idiota. Quer ler?
– Agora?
– É – digo. – Por favor. Eu sei que são duas da manhã.
– Por que você não me contou mais cedo?
– Eu estava com medo de ser um filme ruim. Pensa bem: eu?
Designer de produção? Achei que seria piada. Não queria ficar
empolgada por uma coisa que provavelmente seria horrível.
Ela sai da cama.
– Faz café.
– Sério? Você vai ler agora?
– Minha melhor amiga recebeu uma proposta de trabalho muito
importante em um projeto que ela acha lindo. Claro que eu vou ler
agora.
Ela se senta na poltrona laranja, e eu faço café para nós duas, e ela
lê. Ela toma o café, vira as páginas. Em determinado momento, ela se
levanta para ir ao banheiro, mas volta logo em seguida. Eu me obrigo a
não olhar por cima do ombro dela nem perguntar o que ela acha.
Começo então a pensar em ideias para os cenários. Vamos precisar da
casa do George e do apartamento de Juniper; do mercado; de um
parque. É muita coisa para montar em quatro semanas, mas eu só vou
ter que trabalhar em uma locação de cada vez.
Muitas das cenas são no mercado, então faço uma lista de todos os
mercados em que consigo pensar, de vendinhas a mercados maiores
que ainda têm uma atmosfera de cidade pequena. Grande parte do
trabalho dessa parte vai ser encontrar um lugar que tope nos deixar
filmar lá. As casas de George e Juniper vão ser mais complexas, porque
precisam refletir quem eles são.
É isso que amo no design de produção. Os roteiristas imaginam a
história, nos contam onde as pessoas estão e o que fazem e dizem. Os
atores incorporam os personagens, dão rosto e voz a eles. Os diretores
e produtores transformam uma ideia em algo real. Mas o
departamento de arte, nós fazemos o resto. Quando os espectadores
veem os quartos deles e descobrem que eles amam uma certa banda,
ou que colecionam conchas ou penduram as roupas respeitando um
intervalo regular entre cada camisa perfeitamente passada ou têm
pilhas de papéis na mesa ou uma semana de louça suja na pia e sutiãs
pendurados em maçanetas… tudo isso somos nós.
O departamento de arte cria o mundo. Ao entrar na casa de alguém
e ver todas as coisas dela, a arrumação ou a bagunça, os objetos que
estão expostos, é nessa hora que passamos a conhecer alguém de
verdade. Talvez haja um cara que você ache que é seu amigo, mas aí
você vai à casa dele e descobre que as paredes estão cobertas de
animais empalhados e troféus e você nem sabia que ele caçava. Talvez
seja sinistro, talvez as cabeças nas paredes pareçam decrépitas, não
preservadas do jeito certo. Ou talvez sejam perfeitas e você perceba
que ele tem orgulho, que é bom em alguma coisa. Seja como for, isso o
torna mais interessante. Tudo isso é importante, e muitas vezes não
está no roteiro; é uma coisa que o departamento de arte imagina.
Rebecca e Theo descreveram o apartamento de Juniper como
pequeno e humilde e com muitas plantas, e minha função é decidir
todo o resto. Ela é organizada ou bagunceira? As plantas ficam
enfileiradas nos parapeitos das janelas ou estão por toda a parte,
cobrindo todas as superfícies com terra? Há quadros nas paredes? A
resposta é sim. Ela tem quadros nas paredes, talvez algo científico.
Visualizo o apartamento dela em azuis e verdes, basicamente; ela é
meio melancólica.
George também é melancólico, mas enquanto o apartamento de
Juniper precisa refletir quem ela é, ele mora em uma casa que não
decorou, um lugar que está igual há muito tempo. Ele está sofrendo
pela morte dos pais. Em uma cena, ele faz um ovo, come e lava a louça
logo em seguida, o que parece um ritual. Como se fosse assim que a
mãe o ensinou a fazer as coisas. Ele deixa tudo arrumado, exatamente
como estavam antes de eles terem morrido. Vou precisar criar um
cenário que pareça datado, mas bem-cuidado. Ele precisa parecer um
hóspede lá.
Coral. O esquema de cor vai ser coral e rosa e talvez amarelo, como
se a casa estivesse tentando consolá-lo.
Ele vai comer o único ovo triste em um prato delicado com borda
recortada e desenho de flores.
Faço listas longas e curvas. Desenho esboços das duas casas.
Trabalho nas cenas que lembro porque Charlotte está com a minha
cópia do roteiro e eu não quero tirá-la da história. Pego meu notebook
e procuro imagens para mostrar a Rebecca e Theo, para eles terem
uma noção do que quero criar. Em blogs de design, encontro alguns
móveis que quero procurar para o cenário, pesquiso e anoto de onde
vieram, e encontro um papel de parede meio coral lindo para a
cozinha da casa de George, e o endereço de uma loja em West
Hollywood que tem vários tipos de plantas exóticas.
Ouço um suspiro e levanto o olhar. É Charlotte. Ela está fechando o
roteiro. Não diz nada de primeira, e sinto que parei de respirar
enquanto espero, e ela diz:
– Você tem razão. É tão comovente. Amei os personagens. O ritmo é
perfeito.
– Você quer fazer comigo? – pergunto. – Eles disseram que eu posso
contratar um assistente. Preciso de alguém que me ajude a manter a
sanidade.
Nós basicamente já terminamos o projeto atual no estúdio, e como
Charlotte vai para a faculdade em breve, também é o último projeto
dela por lá. Ainda assim, tem uma boa chance de ela querer passar as
últimas semanas em casa sem fazer nada, se preparando para a
faculdade e passando tempo com a família. Por isso, estou preparada
para suplicar.
Mas ela não me obriga a fazer isso.
– Claro – diz. – Você me faria trabalhar à beça de qualquer jeito.
Melhor receber por isso.
– Então eu devo aceitar – digo. – Né?
Eu só quero ouvi-la dizer sim.
– Sim.
Capítulo oito
JUNIPER
GEORGE
É gentileza sua.
JUNIPER
(Pausa)
Está bem. Vou te contar uma coisa que me aconteceu uma vez.
GEORGE
Tudo bem.
JUNIPER
Isso foi uns dois anos atrás. Eu estava fazendo Botânica I e nós
planta. Era a única coisa que eu queria olhar. Eu estava andando pra
umas flores lindas. Não eram baratas e eu estava quase sem grana.
A florista era imigrante, devia ter uns trinta anos, e o inglês dela
não era muito bom. Eu falei que queria as flores e ela assentiu e
disse uma coisa que eu não entendi. E disse: “Eu te amo, tá?”
GEORGE
É sério?
JUNIPER
florista conseguiu ver alguma coisa em mim que a fez dizer isso. Eu
trabalho.
GEORGE
Que história ótima. Não tem nada de constrangedor nela.
JUNIPER
tempo tinha durado a viagem dela até a Califórnia, quem ela tinha
deixado pra trás e quem trouxera junto. A chuva não estava fria e os
GEORGE
JUNIPER
para olhar.
(Pausa)
todinho.
GEORGE
(Baixinho)
Ah.
JUNIPER
supôs que as flores eram presente pra alguém que eu amava. E que,
JUNIPER
(Pausa)
Acho que a percepção de que Ginger estava certa sobre o sofá abalou
minha confiança, porque esta manhã estou no quintal de Theo, tendo
pedido uma reunião para falar sobre o meu progresso. Reconhecer o
conceito de Ginger deixou minha visão para este filme mais clara. Eu
não quero nada estilizado, quero natural. Em vez de chamar a atenção
do público para alguns objetos significativos, quero que tudo seja
significativo.
– Eu quero que os lugares pareçam habitados – digo para Theo
agora.
– Sim.
– Quero pratos na pia e um suéter jogado numa cadeira.
– Amei.
– E estou tentando pensar em como deixar tudo coeso. O
apartamento de Juniper vai ser bem diferente da casa de George, mas
preciso fazer com que pareçam ser do mesmo mundo. Tipo
emocionalmente.
Theo assente e reparo que ele está disfarçando que está achando
graça, e percebo que estou parecendo muito jovem de novo. Claro que
os cenários diferentes precisam ser coesos de alguma forma. Deve ser
uma coisa que as pessoas aprendem na primeira aula de design de
produção, mas eu não fiz nenhuma aula, e apesar de ser provável que
seja algo que eu sabia por instinto, eu não entendia por completo até
Morgan e eu assistirmos às cenas do dia.
Paro de falar sobre as coisas que eu já devia saber e mostro para
Theo o que planejei até ali. Refinei alguns dos esboços, e agora que
sabemos que vamos usar o apartamento de Toby como o apartamento
de Juniper, consegui entender o que temos que fazer para causar mais
impacto. E paro de me sentir muito jovem e começo a me sentir
brilhante de novo, porque tudo que mostro a ele o deixa cada vez mais
animado. O tom de azul que eu escolhi para a cortina faz com que ele
coloque a mão no peito.
– Não é incrível – diz ele –, o que um tom de azul pode fazer? Como
pode fazer alguém se sentir?
– E eu encontrei também umas gravuras botânicas lindas.
Eu as estava guardando para o final da reunião porque tenho
certeza de que ele vai amá-las. Mas antes mesmo de olhar para a tela
do meu notebook, onde abri uma fotografia, o tom dele muda.
– Hum. – Ele semicerra os olhos e balança a cabeça.
– O quê?
– Nada de botânica.
Eu empurro a tela para mais perto dele. Ele deve ter uma ideia
diferente de como devem ser gravuras botânicas.
Mas ele olha a imagem e diz:
– São lindas. Maravilhosas. Mas não vão funcionar.
Eu o encaro. Não entendo. São perfeitas para ela. Custaram caro.
– Por quê?
– Juniper ama plantas, sim. Mas você cobriu isso com plantas de
verdade no apartamento. Ela é mais do que só uma estudante de
botânica. Nós temos que ver um lado diferente dela.
– Tudo bem – digo. – O que você tem em mente?
Ele sorri e aponta para mim.
– Esse é o seu trabalho. Eu não sei o que ela deve ter nas paredes,
mas sei que não são coisas botânicas. Eu sei que você estava
planejando procurar locações para a área externa do apartamento de
Juniper hoje, mas eu dormi mal a noite toda por causa de pesadelos
em que não encontrávamos o mercado. Os figurinos e os
equipamentos estavam todos prontos, mas percebemos que não
tínhamos pra onde ir.
– Então vou procurar mercados hoje – digo, tentando me recuperar
do choque da rejeição botânica. – Pode deixar.
Acontece que o que ela arrumou é uma fita vhs. Eu abro a porta e ali
está ela, parada ao lado de Jamal, segurando a fita nas mãos como o
objeto raro e precioso que é.
– Oh-oh – digo, e toda a empolgação dela desaparece do rosto.
– Imaginei – diz Jamal para ela, e estica a mão para me
cumprimentar.
– Jamal – diz.
– Emi – digo, e ele sorri e assente como quem diz E aí? Começo a
gostar dele na mesma hora.
– Eu achei que você teria. Você tem um monte de discos, coisas
velhas… – diz Ava.
– É – digo. – Toca-discos são nostálgicos. Já os aparelhos de
videocassete nem tanto. Mas tudo bem. Só significa que vamos ter que
ir pra casa dos meus pais.
– O que pode ser uma coisa boa – diz Charlotte, aparecendo atrás de
mim. – Porque eles vão nos dar comida.
Charlotte está sem gasolina e pegamos meu carro, e Jamal tem um
ataque de riso pela questão da tranca.
– Ei, pelo menos eu tenho carro – digo.
– O que te faz pensar que eu não tenho carro? – Ele me lança um
olhar fingindo que está ofendido. O rosto dele passa de simpático a
hostil, e é tão súbito e calculado que apesar de ele estar brincando,
tenho um vislumbre de como a vida dele deve ter sido antes do abrigo.
Mas afasto o pensamento e digo:
– Ouvi relatos sobre os longos trajetos de ônibus para o trabalho.
– Então você está revelando meus segredos agora? – pergunta Jamal
a Ava.
– Quais segredos? – diz Ava. Para nós, ela acrescenta: – Eu conto
tudo da minha vida pra ele e ele me conta muito pouco.
– O que posso dizer? Eu sou um bom ouvinte.
Ava revira os olhos e nós começamos o trajeto curto entre Venice e
Westwood, subindo o Venice Boulevard, passando pela Venice High e
por uma loja de aluguel de figurinos e vários salões de beleza.
Charlotte liga para os meus pais para avisar que estamos a caminho e,
quando desliga, ela se vira para Ava.
– Nós contamos pra eles sobre Clyde e você e tudo o mais – diz. –
Então, não fica surpresa se eles ficarem empolgados de te conhecer.
Mas empolgação é eufemismo.
Assim que passamos pela porta minha mãe passa direto por mim e
por Charlotte e basicamente pousa sobre Jamal e Ava como uma águia
mãe salvando os filhotes perdidos da natureza.
– Ava – diz ela, colocando as mãos nos ombros da garota. – As
meninas me contaram tudo a seu respeito. Você é uma jovem forte e
bonita. Não deixe que ninguém te diga que não. E qual é seu nome,
meu jovem? Jamal: bonito, gracioso. Bem-vindos, os dois, à nossa casa.
Querem água? Chá? Perrier?
Fico morrendo de vergonha, mas tento ignorá-la e me junto ao meu
pai na cozinha para olhar cardápios de restaurantes que entregam
comida enquanto Charlotte fica com nossos novos amigos, com sorte
pronta para tirá-los das garras da águia se o aperto ficar forte demais.
Meu pai e eu olhamos sete cardápios e acabamos escolhendo o Garlic
Flower, como sempre fazemos, e ele finge consultar o menu antes de
pedir todos os pratos que sempre pedimos.
Quando desliga o telefone, ele vai para a sala, mas fica rodeando.
Ele é um cara bem extrovertido. É estranho ele não estar se
apresentando, principalmente porque a minha mãe está falando com
Jamal sobre a história rica e tumultuada da cidade dele e Ava está
sentada na beira do sofá, parecendo pouco à vontade apesar de
Charlotte estar sentada com ela.
– Pai – digo. – Vem conhecer a Ava.
Meu pai dá dois passos na direção dela e estica a mão.
– Um p-prazer te conhecer, Ava – gagueja.
É aí que percebo o que o estava impedindo. Meu pai está intimidado
por uma estrela.
– Oi – diz Ava, se levantando para apertar a mão dele.
– Eu sou muito fã do trabalho do seu avô – diz meu pai. – Meu
trabalho de conclusão de curso foi sobre o papel essencial dele em
criar a mitologia do Velho Oeste americano.
– Chega, pai. – Dou uma risada.
Ava parece nervosa.
– Eu não o conheci – diz. – Mas Emi e Charlotte me mostraram um
dos filmes dele. Bom, parte de um filme.
– Você tem o nariz dele – diz meu pai. – E as sardas.
– Eu não sabia que ele tinha sardas – digo.
– A maioria das pessoas não sabe – diz ele. – Os estúdios achavam
que as sardas o deixavam muito adolescente e escondiam com
maquiagem pesada. Em 1966, quando ele recebeu o Oscar de melhor
ator por O estranho, o público as viu pela primeira vez. Saiu em todas
as colunas de fofoca.
Ava inclina a cabeça e o cabelo cai sobre um dos ombros.
– É mesmo? – pergunta. – Foi material de coluna de fofoca?
– Foi. Na verdade – diz meu pai –, tenho uma coleção de colunas de
Dorothy Manners no meu escritório. Tem uma em que ela fala sobre a
“aparência juvenil dele no Oscar na segunda passada”. Quer dar uma
olhada?
Ava assente e se levanta e vai atrás do meu pai pelo corredor, e
Charlotte e eu ficamos juntas no sofá enquanto minha mãe está
dizendo:
– Sério? Você não aprendeu sobre os tumultos de Watts na escola?
Em Watts? O que te ensinaram no lugar disso? Você precisa saber a
história do seu lugar de origem. Tudo bem, começou assim…
– Estou me sentindo meio mal de todos nós chegarmos para
atrapalhar a noite tranquila deles só porque a gente queria que eles
pagassem o jantar, mas acho que a gente fez a noite deles.
Charlotte assente.
– É um sonho realizado no lar Miller-Price.
Finalmente nosso amigo entregador toca a campainha.
Ele acena para mim do outro lado da porta de vidro quando eu a
abro.
– Oi, Eric – digo.
– Oi, Emi – diz ele. – Pedido grande hoje.
– Nós temos convidados – explico, e, quando minha mãe se junta a
nós com um artigo que ela recortou da Times de domingo para ele,
digo um Tchau com movimentos labiais e levo a comida para a
cozinha.
Charlotte, Jamal e eu pegamos pratos e talheres.
– Ei – diz Jamal. – Acho que sua mãe gostou de mim.
– É, provavelmente – digo. – Por quê?
– Ela me chamou de bonito e gracioso.
– Ela estava te dizendo o significado do seu nome – diz Charlotte.
– Meu nome significa “bonito e gracioso”?
– Ao que parece, sim – digo.
Ele ri.
– Eu nem sabia que você tinha ascendência negra – comenta.
– Tenho – digo. – Meu avô é negro, então eu sou 25 por cento negra.
Ele se inclina para a frente para me olhar melhor.
– É, dá pra ver – diz ele. Ele vai até a geladeira e olha as fotografias
que estão lá. – Quem é esse? – pergunta, apontando para uma
fotografia de Toby comigo. Nós estamos vestidos para a estreia de um
documentário em que meu pai apareceu, e agora vejo a foto da forma
como Jamal deve estar vendo: Toby tem a pele bem mais escura do que
a minha, o cabelo mais denso e mais encaracolado. Os olhos dele são
castanho-escuros; os meus âmbar.
– Meu irmão – digo.
– Mesmo pai?
Faço que sim. Eu poderia contar a ele sobre todos os professores
que primeiro deram aula para Toby e tentaram disfarçar a surpresa
quando descobriram que eu era irmã mais nova dele. Ou as vezes em
que estranhos acharam que minha mãe era minha babá quando eu
era pequena.
Mas decido agora simplificar.
– Os mistérios da genética. – Dou de ombros.
– Pior que é – diz ele. E, um momento depois: – Você tem uma
família legal.
Não sei o que responder. Não sei nada sobre a vida do Jamal, mas o
fato de ele morar no abrigo com Ava deve significar que a vida com
sua família estava longe do ideal. De repente, me sinto muito fútil por
ficar constrangida quando eles entraram. Tem coisa bem pior em pais
do que ficarem superinteressados nos amigos da filha, do que ficarem
empolgados o bastante para contar coisas talvez desconhecidas sobre
eles mesmos.
Eu só sorrio e digo “Obrigada”, e meu pai e Ava reaparecem vindos
do escritório dele carregando duas biografias do Clyde Jones e alguns
livros de faroeste.
– Vamos botar a mesa? – pergunta meu pai.
– Na verdade – digo –, nós viemos assistir a uma fita, então acho que
é melhor a gente comer na mesa de centro da sala de tevê.
– Vocês têm uma sala de tevê? – pergunta Jamal.
Eu faço que sim, e minha mãe, agora de costas para nós, une as
mãos e diz:
– Um filme!
Charlotte e eu trocamos olhares.
– Pessoal – digo para os meus pais. – Eu não quero ser grosseira,
mas…
– Ah, tudo bem – diz meu pai.
– É mesmo – diz minha mãe. – Nós não queremos nos meter. Gary, a
gente pode ver um só nós dois. Parece divertido, né?!
Se Ava Garden Wilder fosse a estrela do seu próprio filme, a cena
durante a qual ela vê a mãe que já morreu interpretar um papel
pequeno em um filme seria mais ou menos assim:
Ava se acomoda em uma sala pequena e escura sozinha. Senta-se
ouvir a voz dela melhor. Quando a cena acaba, ela rebobina a fita e
mulher que ela queria ter conhecido. Ela rebobina e aperta o play.
Rebobina e aperta o play. Tudo fica azulado pela luz da tela; o rosto
Depois de reclamar por meia hora conforme seguimos pela 405, Theo
por fim fica em silêncio. Deixo que ele tenha alguns minutos e digo:
– É seguro mudar de assunto?
– Muda, por favor – diz ele.
Eu pergunto sobre a cena 42, a cena que Ava leu para o teste, porque
ando pensando no que eles me disseram no dia em que aceitei o
trabalho, que eles tinham visualizado toda a ação acontecendo
enquanto Juniper conta a história: a banca de flores e a florista, a rua
da cidade.
– Certo – diz ele. – Nós ficamos sem dinheiro. Foi uma das coisas
mais fáceis de cortar. Mas mesmo com uma Juniper espetacular, é
muito tempo pra segurar a atenção do público.
– Eu andei pensando em jeitos de criar a ilusão de um cenário.
Estou assumindo um risco enorme ao tocar nesse assunto porque o
que eu estou sugerindo de verdade é uma decisão de direção e não
quero ultrapassar nenhum limite. Também é um afastamento do estilo
que mostrei para ele e eu não quero que ele duvide de mim. Mas ele
me diz para falar, então eu me arrisco.
– Bom, tem a possibilidade de imagens bem fechadas, closes de
mãos, flores, do papel de seda, do rosto de Juniper e do rosto da
florista. Nós poderíamos filmar basicamente em qualquer lugar ao ar
livre porque não se veria muito do fundo.
– Interessante – diz Theo.
E apesar de eu saber que interessante pode ser um eufemismo para
“ideia terrível que eu vou descartar imediatamente”, alguma coisa na
forma como ele fala me faz pensar que não é o que ele quer dizer, que
o conceito realmente o interessa, então continuo.
– Acho que pode funcionar porque as lembranças costumam ser
assim mesmo. São particulares, e filmá-las assim de perto daria a
impressão de intimidade.
Theo passa a mão no cabelo castanho ondulado. O telefone dele
toca e vejo que é Charlie, o diretor de fotografia, mas Theo hesita antes
de atender e decide ignorar.
– Continua – diz ele.
– A essência da cena, ao menos para mim, é Juniper finalmente
tentando se conectar com alguém. Em vez de passar o tempo todo
obcecada por causa de uma pessoa desconhecida, ela percebe que
fazer uma conexão real com uma pessoa real, não só uma ilusão de
como alguém poderia ser, é um risco que vale a pena. Então ela conta
uma história que tem o potencial de envergonhá-la. Ela compartilha
uma lembrança. É um momento muito importante no filme e não
daria certo se o estilo mudasse. Não seria nem tão bom quanto
mostrar uma cena ampla de Juniper na floricultura porque ficaria
igual a todo o resto. Essa cena deve parecer e dar a sensação de uma
lembrança, e a gente pode conseguir isso, você pode conseguir isso,
com cortes entre ela sentada na sala de descanso contando a história
para George e as imagens de close que nos ajudam a sentir a história.
– Estou gostando disso – diz Theo, e o telefone dele toca e é Charlie
de novo, e ele me diz que tem que atender. – Vamos trabalhar nesse
conceito – diz antes de atender. – Pensa em algumas coisas pra me
mostrar.
Enquanto ele acalma Charlie de alguma crise sobre lentes, eu penso
no que eu poderia incluir na cena para transmitir a ideia de lembrança
e tristeza, e em pouco tempo estou pensando no cenário que eu criaria
se fosse um filme sobre mim. Se eu estivesse tentando mostrar para as
pessoas como eu me sentia estando com Morgan, eu mostraria a água
azul cintilante da piscina do prédio dela e o varal que ela pendurou no
quintal porque o apartamento dela tem uma máquina de lavar, mas
não tem espaço para uma secadora. Um monte de tops e calcinhas
coloridas no sol. Seria uma nostalgia suave, um romance desbotado.
Mas a cena de Sim e sim não pode só passar tristeza; precisa passar
um anseio também.
Anseio é uma garota ruiva sentada no capô do sedã prateado dela,
lendo sobre Marilyn Monroe. Um pomar de cerejeiras à noite, luzes de
casas ao longe. É a organização rígida de um pôr do sol de pintura por
números, uma carta amarelada segurada entre dedos graciosos, um
passo cauteloso para o saguão ensolarado de um hotel famoso.
É como me sinto cada vez que penso em Ava.
Em pouco tempo estou sentindo a mesma dor que surgiu depois da
audição, seguida por um desespero parecido de saboreá-la. Pela janela,
o centro de Los Angeles aparece, aquela área de prédios altos atrás de
uma suave neblina, as pessoas longe demais para se ver. Em cerca de
um ano, algumas daquelas pessoas podem ir a um cinema para ver o
nosso filme. As luzes vão se apagar, permitindo que elas se fechem em
si mesmas pela duração do filme. E se eu escolher flores com o tom
perfeito de vermelho, papel de seda com palavras sutis o bastante para
elas não perceberem de primeira e depois com clareza suficiente para
ficarem constrangidas, elas podem acabar se sentindo como eu me
sinto agora. Nós todos vamos ter pena de Juniper, mas na verdade é
pena de nós mesmos, pela sensação horrível de estar de coração
partido, de estar só, e talvez, se dermos sorte, sentiremos como é estar
pronto para se reabrir para a esperança frágil de algo novo.
Eu acordo nervosa.
Hoje é o dia em que todos os atores se reúnem na casa do Theo e da
Rebecca e leem o roteiro, da primeira cena à última. Isso costuma
acontecer mais cedo na programação de pré-produção, mas como Ava
entrou tarde no projeto, vai ser agora, duas semanas antes de a
filmagem começar.
Eu devia ter contado a Ava o que esperar do dia. Devia ter contado
como é importante. Começo a ter medo de ter exagerado com todo
aquele papo do Clyde. E se ela levar a glória da ascensão de pobreza
em riqueza longe demais? O que ela estava usando ontem foi o traje
perfeito para conseguir uma cobertura, mas hoje não é para ser
atuação. Como protagonista desconhecida, ela tem muito a provar.
– Ela vai se sair bem – diz Charlotte quando saímos do carro.
– Mas e se ela aparecer de ressaca, sei lá?
– Ela nem ficou bêbada ontem. Como isso seria possível?
– Eu não sei como seria possível. Só sei que meu estômago está
doendo por causa dela.
– Só relaxa e se concentra no seu trabalho. Deixa que o estômago da
Ava doa por si mesmo. Ou, melhor ainda, confia que ela vai se sair
bem. Nós não temos motivo pra duvidar dela.
Quando chegamos lá, vejo que Charlotte, como sempre, está certa.
Ava está conhecendo todo mundo tendo Rebecca como guia. Ela
está oferecendo a mão para cumprimentar as pessoas, confiante e
modesta, profissional e calorosa.
Os atores estão reunidos à mesa enquanto pessoas da equipe
encontram lugares para se sentar em volta. Charlotte e eu já
arrumamos duas cadeiras quando Rebecca e Ava chegam em nós.
– Não é preciso apresentar ninguém no caso de vocês – diz ela.
Apesar de termos nos visto ontem de dia e à noite, ver Ava naquele
contexto faz meu coração disparar. Ela sorri para nós e arregala os
olhos de forma quase imperceptível, mas o suficiente para revelar o
segredo de que ela está meio nervosa. Vejo-as seguirem para ela
conhecer Grant e Vicki, que pedem desculpas pela inconveniência,
mas pegam a fita métrica mesmo assim.
– Nós ainda temos todo o seu figurino pra resolver – diz Grant
enquanto Vicki mede a cintura de Ava. – Blusa bonita, aliás –
acrescenta ele.
O traje dela é enganosamente simples: uma calça jeans apertada e
uma blusa de seda azul-marinho que deixa os ombros dela incríveis.
Ela usa pulseiras em um dos braços e brincos delicados de ouro
aparecem cada vez que ela tira o cabelo do rosto. Quando ela se afasta,
reparo nas botas de sempre e penso nelas caídas no chão do Marmont,
quando estávamos tão perto uma da outra.
E me pergunto de novo se cometi um erro.
Charlote e eu pegamos nossos roteiros e canetas. É só a segunda vez
que sou incluída em uma leitura, e na primeira vez me surpreendi
com quanto deixei passar quando li sozinha, apesar de ter estudado
cada cena. Por isso, estou preparada para ser inspirada, para ser
lembrada, para encontrar novas oportunidades de dar vida aos
cenários.
Atrás de mim, ouço Ava dizer:
– Oi, Morgan. É um prazer te conhecer.
Não consigo evitar. Eu me viro para olhar para elas.
Rebecca é quem está falando, mas Morgan está olhando para Ava, e
só posso imaginar as coisas que ela está pensando. Quando ela me
contou sobre a vastidão, tenho certeza de que as Avas do mundo eram
o que ela estava imaginando: talentosas e lindas, totalmente livres e
meio selvagens. Mas, quando Morgan olha para Ava, Ava se vira para
me olhar, e desconfio que as Morgans do mundo não são o que Ava
gostaria de ter.
Pelo menos é o que eu espero. Eu me permito acreditar que Ava não
vai querer uma pessoa paqueradora e instável. Que, mais do que
convites para festas em Hollywood e brunches em Silver Lake, Ava
quer alguém que a ame.
– Muito bem, pessoal. – A voz do Theo se espalha pelo ambiente,
um trovão feliz e festivo. – Se acomodem, por favor.
Em pouco tempo, a falação morre; as pessoas ocupam seus lugares.
– Olha só vocês – diz Theo.
Nós enchemos o ambiente, e todo mundo está sorrindo.
Todos os atores de todos os papéis com falas, de Juniper e George ao
cliente sem nome com uma fala só, estão sentados à mesa de jantar,
Ava, Benjamin e Lindsey lado a lado em uma das cabeceiras. Nós da
equipe ocupamos a sala adjacente. Charlie e os operadores de câmeras
voluntários e o contrarregra chegaram cedo e pegaram o sofá. Michael
e o irmão estão sentados no chão. Eles chegaram mais tarde porque
Kim, o aluno da usc que é assistente de direção, só se lembrou de
avisá-los da reunião poucas horas antes.
– Todo mundo sempre esquece o cara do som – resmungou Michael
quando entrou, mas até ele parece feliz agora.
Com o passar das semanas, a notícia sobre o projeto se espalhou.
Em vez de uma equipe mínima, nós agora temos um supervisor de
roteiro e um fotógrafo, que estão de mãos dadas à porta da sala de
jantar. Nós temos um diretor de iluminação e um câmera assistente e
três técnicos que vão montar toda a iluminação e cuidar dos
equipamentos; eles estão sentados ao lado do bufê comendo biscoitos
e lançando olhares para Ava e Benjamin. Tem outras pessoas: uma
garota com cabelo louro-claro que parece ter a minha idade, um cara
com um bigode icônico. Não sei ainda o que eles vão fazer, mas eles
estão com cadernos em mãos e parecem prontos para trabalhar.
– Estão sentindo a energia deste lugar? – pergunta Theo. – Meu
Deus, que coisa linda. A maioria de vocês está fazendo isso de graça.
Os que estão sendo pagos não vão receber nem perto do que merecem.
Sei disso e agradeço. Sinceramente. Eu agradeço. Não consigo
imaginar um grupo de pessoas melhor. Se eu tivesse dez milhões de
dólares pra fazer esse filme, eu escolheria vocês de qualquer jeito.
Estou falando sério.
Ele respira fundo e estica os braços para as pessoas na mesa.
– Esses atores – diz ele –, estão prestes a nos embasbacar com seu
talento. Vamos começar.
Ele e Rebecca dividem uma namoradeira, cada um com sua cópia
do roteiro.
Rebecca começa a ler.
luz forte do verão entra pelas janelas. Juniper, 19 anos, coloca potes
GEORGE
JUNIPER
GEORGE
Silêncio.
GEORGE
JUNIPER
George dá de ombros.
JUNIPER
GEORGE
GEORGE
JUNIPER
GEORGE
JUNIPER
GEORGE
GEORGE
Obviamente.
JUNIPER
– Eu sempre espero pra ver o nome dela – diz Ava, olhando para a tela.
Eu me sento ao lado dela, agradecida por ela estar olhando para
outra coisa e não para mim.
Não consigo comer. Sinto a proximidade dela. A luz do sol forma
um quadrado no joelho dela. Um diamante ilumina o rosto dela.
Eu me obrigo a olhar para os nomes passando.
Sempre fico impressionada quando penso em quantas pessoas
trabalham em um filme, ainda mais nas produções dos grandes
estúdios, e tento me distrair com os créditos. Eu nem entendo quais
são todas as funções. Os nomes vão passando, e o de Caroline passa,
mas eu ainda não afasto o olhar. Os créditos de Sim e sim vão ser tão
curtos, e meu nome vai estar no começo, sozinho no centro da tela, e
estou pensando nisso enquanto vejo o nome de todos aqueles
estranhos e me pergunto o que estão fazendo agora, se conseguiram os
trabalhos que queriam, ou, se não for o caso, o que aconteceu com
eles, e vejo um nome que salta na minha cara, mas some em um
momento, e Ava diz:
– Desculpa, você não deve ter muito tempo.
– Não tem problema – digo, e tento afastar a sensação de que eu
talvez tenha visto algo importante.
– Esses tacos estão uma delícia – diz ela.
Ela dá uma última mordida e eu preciso afastar o olhar. Até isso é
tão lindo que dói.
– Vamos sentar lá fora – diz ela. – Pra olhar o que você trouxe. Você
viu a vista quando subiu? É totalmente diferente de dia.
– Ótima ideia – consigo dizer.
Ela se levanta primeiro e estamos na porta quando eu digo
subitamente:
– Eu vi uma coisa nos créditos que não tinha notado antes.
Ela se vira para mim.
– Um segundo assistente de direção chamado Leonard.
Ela arregala os olhos.
– Não deve ser nada – digo.
Mas ela já está voltando para o canto da sala. Ela se ajoelha no
cobertor e rebobina e nós vemos os créditos de novo.
– Quando é? – pergunta.
– Mais pra frente.
– Mas você disse direção.
– O segundo assistente de direção pega café pras pessoas. Não é
nada importante.
O nome da Caroline passa.
– Daqui a pouco – digo. – Aí!
Ava aperta o pause. O nome vibra no alto da tela: Leonard Pine.
Pego o celular e pesquiso o nome dele.
– Apareceu uma coisa – digo, abrindo o primeiro link que aparece, e
não digo que não está escrito Leonard, está escrito Lenny, porque não
suporto a ideia de decepcioná-la se não for a pessoa certa. – Ele é
produtor agora.
– Tem o número dele?
– Tem do escritório – digo.– Não sei se…
– Qual é? – pergunta Ava.
Eu digo e ela liga.
– Nós não sabemos se é ele – digo. – É um tiro no escuro.
– Posso falar com Leonard? – diz ela ao telefone. Ela espera um
momento. – Ava Garden Wilder. Sim, tudo bem.
Ela me olha e balança a cabeça.
– Ela nunca vai passar essa ligação. A gente vai ter que ir lá.
– Vamos ver o que acontece. Pode ser que eu consiga encontrar
alguém que o conhece.
– Sim – diz ela ao telefone. – Sim, Ava Garden Wilder. É o Leonard?
Lenny?
Os nós dos dedos da mão ficam de agarrar o celular, e ela estica a
mão e aperta meu ombro com a outra quando diz:
– Isso, o nome dela era Caroline. Eu posso ir agora, sim.
E eu sei que é um grande acontecimento. Sei que eu só devia estar
pensando em Lenny e o que ele vai nos contar. Mas o que penso é que
a mão dela apertando meu ombro parece um beijo.
Ela me solta.
Toca em mim de novo, tenho vontade de dizer. Mas não digo.
Capítulo dezenove
Mas quando Ava entra pela porta mais tarde, ela nem olha em volta.
– Não quiseram me dar uma cópia do atestado de óbito, mas eu
pude dar uma olhada – diz ela. – Em causa da morte diz
“envenenamento por drogas”, e eu perguntei o que quer dizer
exatamente, mas eles não sabiam.
Ela solta a bolsa e um monte de papeis e livros na mesa onde
estamos, e tento não ficar decepcionada por ela não notar, porque dois
dias antes era uma mesa chata que eu comprei por quinze dólares em
um bazar de quintal, mas agora eu botei ladrilhos verdes e azuis lindos
no tampo.
– Aí eu fui pra biblioteca pesquisar.
– Biblioteca – digo, sorrindo, pensando que isso a vai lembrar da
noite em que nos conhecemos, quando Charlotte e eu contamos que
foi na biblioteca que conseguimos as pistas que nos levaram a ela.
– É, e eu descobri uma lista de causas de morte, e um monte de
livros sobre causas de morte, mas são todos livros médicos e jurídicos,
então é impossível entender o que significam.
– Mas “envenenamento por droga” não quer só dizer overdose? –
pergunto.– Foi o que Frank e Lenny contaram. Né?
– É, mas olha todas essas variações.
Ela pega um livro e o folheia, coloca na pilha e pega outro,
murmurando coisas sozinha sobre saber que está em algum deles, e eu
me pergunto se ela ficou assim no abrigo depois que saiu da casa do
Frank e da Edie, o que devo fazer para tentar acalmá-la.
– Aqui! – diz. – Olha só. Quando uma overdose de drogas é a causa
da morte, às vezes está escrito “envenenamento por drogas não
intencional” e às vezes “envenenamento por drogas acidental”, mas o
da Caroline não tem essas palavras. É ambíguo. Pode ter sido
acidental. Talvez não tenha sido.
– Tudo bem – digo.
– O que você acha que quer dizer? – pergunta ela. – O que devo
fazer agora? Devo ligar pro Lenny de novo? Ele poderia me dar uma
lista das pessoas com quem eles andavam, gente que poderia ter
estado lá naquela noite. E eu poderia tentar encontrá-las e descobrir
quem esteve lá por último.
– O que você ia querer perguntar pra elas?
– Tem tanta coisa que a gente não sabe – diz ela. – Talvez tenha sido
acidental, ou talvez ela tivesse a intenção, mas e se alguém deu muito
pra ela de propósito? Eu devia ligar pro Lenny, né?
– Não sei – digo.
– Você não sabe se eu devia ligar pra ele ou não sabe o que eu devo
fazer agora?
Eu paro um momento. Poderia deixar rolar, dizer É, liga pro Lenny,
fingir que quero saber que segredos ela vai descobrir agora. Ela está
tão ansiosa que as mãos dela estão tremendo, e tenho vontade de dizer
o que ela quer ouvir.
Mas não posso.
– Eu não sei o que você está tentando descobrir – digo. – Não sei
aonde você espera chegar depois que tiver todas as respostas.
Há dor evidente no rosto bonito.
Estico a mão para pegar no braço dela, bem acima do cotovelo.
– Você acha que estou agindo como louca – diz ela.
– Não – digo. – É que nós já descobrimos tanto sobre ela.
Ela desvia o olhar para o meu, e sinto uma mudança entre nós. O
rosto dela está próximo e eu só precisaria colocar a mão no cabelo dela
e não haveria volta.
– Você não quer me beijar? – diz ela.
Os olhos dela estão grudados nos meus, convidativos, mas também
com raiva, e eu solto o braço dela e dou um passo para trás.
– Quero, sim – digo. – Quero. – Mas, quando ela coloca a mão na
minha cintura para me puxar para perto, eu digo: – Mas não agora.
Ela se retrai.
– Ah – diz ela, dando voltas, pegando as coisas dela. – Desculpa. Eu
não me encaixo bem na sua vida perfeita? Que burra – diz. – Eu fui tão
burra. Quando seu pai me levou para o escritório dele pra me mostrar
as coisas do Clyde Jones, deve ter sido pra ele se divertir. E tudo que
sua mãe disse naquela noite foi por pena. E você e Charlotte… vocês
estavam só desvendando um mistério. Você conseguiu suas respostas e
pronto. Acabou.
– Ava – digo. – Para.
Ela está tentando enfiar tudo na bolsa, mas é coisa demais. Está
tremendo e xingando e jogando um livro que não cabe com força no
chão. Mas desiste e fica de joelhos, e tenho vontade de chegar mais
perto dela, mas não sei se deveria.
Mas quero.
E é bem no momento que dou um passo na direção dela que
Charlotte abre a porta. Ela vê Ava encolhida no chão e fica paralisada
na entrada.
– O que está acontecendo?
– Eu estava indo embora – diz Ava.
Charlotte me olha, mas não digo nada porque não consigo falar.
Ava junta nos braços o que não conseguiu guardar.
Atravesso a sala para pegar o livro que ela jogou. Caiu aberto e as
páginas estão dobradas. Quando o entrego para ela, ela desvia o olhar.
Recupero a voz o suficiente para dizer:
– Acho que você não deveria dirigir agora. – Ela sai baixa e dócil. Eu
quase não a reconheço.
– Eu estou bem – diz ela. A raiva sumiu, mas ela parece tão cansada.
– Eu posso te levar – digo.
– Não, obrigada.
– Eu quero.
Ela faz que não e anda até a porta.
– Eu te levo – diz Charlotte, ainda junto à porta com a bolsa no
ombro. Esse é um dos motivos por que a amo. Ela não faz nenhuma
pergunta, e quando coloca alguns dos livros debaixo de um braço e
passa o outro em volta dos ombros de Ava, eu sei que ela está fazendo
aquilo por mim.
– A gente pode ir no seu carro – diz ela para Ava. – Em, vai me
buscar daqui a pouco.
~
Charlotte liga para o restaurante enquanto estou dirigindo pelo
deserto de volta para a cidade, e chegamos em casa na mesma hora
que Eric.
– Sincronização perfeita – diz ele. Entrego o dinheiro e ele me passa
uma sacola cheia de comida quentinha, sopa de ovo e mu shu e
macarrão. Isso me aquece o coração.
Meus pais não estão em casa, então levamos tudo para a sala
quando abro a porta.
– Vamos ver televisão – diz Jamal. – Alguma série. Algo brega.
Nós comemos vendo Melrose, nos perdemos na moda horrenda dos
anos 1990, nas provações diárias dos personagens jovens adultos que
nadam e trabalham e espiam os vizinhos. Ava não está rindo, mas está
comendo. Considerando tudo, ela parece bem.
Olho para a tela, mas só consigo pensar em nós. Nós estávamos à
beira de ficar juntas, depois à beira de sermos estranhas de novo. Mas
o que somos agora?
Acho que eu estava torcendo por uma história de amor de cinema.
Tipo Clyde a cavalo galopando na direção da garota entre uma nuvem
de poeira e espinheiros. “Ora, oi.” O sorrisinho arrogante. A garota
apertando os olhos em direção ao sol depois de ter esperado um
tempão para ser descoberta.
Mas nosso filme teria sido mais noir moderno do que faroeste: duas
garotas em Los Angeles solucionando um mistério. Uma estrela
falecida e enigmática. Uma mulher bonita, drogas e sexo. Nós
nadaríamos na piscina do Marmont, dirigiríamos pelo Sunset
Boulevard, o cabelo voando na brisa dos carros passando. Um caso
secreto de amor, beijos no trailer da Ava entre a gravação das cenas,
desviando dos paparazzi. Tudo parecia incrível e tão pouco era real.
Mas isto é.
Isto é.
Eu achava que poderia ter uma história de cinema, e tive em partes.
Mas sentada aqui na casa dos meus pais, com Ava tão próxima de
mim, comendo chow fun e vendo Melrose, percebo que todos os
cenários e adereços e interpretações, os roteiros que levam anos para
serem escritos; os ângulos de câmera perfeitos e a iluminação
complicada, os diretores que pedem tomada atrás de tomada até ficar
certo, as projeções nas telas enormes de cinema, tão mais majestosas e
mais barulhentas do que a própria vida, tudo é feito na esperança de
retratar o que estou sentindo agora.
Por mais que eu quisesse uma história de amor de filme, eu sei
agora que os filmes apenas tentam capturar esse tipo de amor.