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DADOS DE ODINRIGHT

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Table of Contents
1. Folha de rosto
2. Créditos
3. Parte 1 - A vastidão
1. Capítulo um
2. Capítulo dois
3. Capítulo três
4. Capítulo quatro
5. Capítulo cinco
6. Capítulo seis
7. Capítulo sete
8. Capítulo oito
9. Capítulo nove
4. Parte 2
1. Capítulo dez
2. Capítulo onze
3. Capítulo doze
4. Capítulo treze
5. Capítulo catorze
6. Capítulo quinze
7. Capítulo dezesseis
5. Parte 3
1. Capítulo dezessete
2. Capítulo dezoito
3. Capítulo dezenove
4. Capítulo vinte
5. Capítulo vinte e um
6. Capítulo vinte e dois
6. Agradecimentos
7. Sua opinião é muito importante
título original Everything Leads to You
Copyright © 2014 by Nina LaCour
Originally published by Dutton Books, an imprint of Penguin Group (USA) LLC. Published by
arrangement with Pippin Properties Inc. through Rights People, London. Publicado originalmente
por Dutton Books, um selo da Penguin Group (EUA) LLC. Publicado mediante acordo com
Pippin Properties Inc. mediado por Rights People, Londres.
Esta edição é baseada na edição de Everything Leads to You publicada em 2022 pela Dutton
Books, nos Estados Unidos.
© 2023 VR Editora S.A.

Plataforma21 é o selo jovem da VR Editora

direção editorial Marco Garcia


edição Thaíse Costa Macêdo

assistência editorial Andréia Fernandes


preparação Marina Constantino
revisão Vic Vieira Ramires
diagramação Balão Editorial e Pamella Destefi

design de capa Kristie Radwilowicz

adaptação de capa Natália Tudrey


arte de capa © 2021 by Adams Carvalho

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

LaCour, Nina
Tudo me leva até você [livro eletrônico] / Nina LaCour; tradução Regiane Winarski. – Cotia,
SP: Plataforma21, 2023.
ePub
Título original: Everything leads to you.
ISBN 978-65-88343-65-4

1. Ficção juvenil 2. Ficção norte-americana 3. LGBT – Siglas I. Título.

23-179033 CDD-028.5

Índices para catálogo sistemático:


1 . Ficção: Literatura juvenil 028.5
Tábata Alves da Silva – Bibliotecária – CRB-8/9253

Todos os direitos desta edição reservados à


VR EDITORA S.A.
Via das Magnólias, 327 – Sala 01 | Jardim Colibri
CEP 06713-270 | Cotia | SP
Tel.| Fax: (+55 11) 4702-9148
vreditoras.com.br | editoras@vreditoras.com.br
Capítulo um

Tem cinco mensagens de texto me esperando quando saio da prova de


inglês. Uma é de Charlotte dizendo que ela terminou mais cedo e
decidiu se encontrar com nossa chefe e que me vê na casa do Toby
mais tarde. Uma é de Toby, dizendo 19h: não esquece! E tem três de
Morgan.
Essas eu não leio ainda.
Saio do campus e ando alguns quarteirões até onde estacionei o
carro, uma tentativa de evitar o congestionamento diário de fim das
aulas. Mas é claro que o lado do motorista não destranca quando eu
giro a chave, então tenho que ir até o lado do passageiro, abrir a porta
e me esticar por cima do assento para abrir a tranca do outro lado,
depois fechar a porta do passageiro e contornar o carro até o lado do
motorista de novo… e quando termino esse processo de vinte
segundos, os carros já estão enfileirados no sinal. Então embico o
carro para a rua, pego o celular e leio o que Morgan escreveu.
Vc está bem?
Vc vem ao estúdio mais tarde?
Estou com saudades.
Não respondo. Eu vou direto para o cenário, mas não para vê-la.
Preciso medir o vão entre um piano e uma estante para ver se a estante
de partitura que encontrei no Abbot Kinney Boulevard ontem vai
abarrotar demais o ambiente. A estante de partitura é linda. Tão linda
que, se não couber, vou arrumar outra estante de livros ou vou
rearrumar os móveis por completo, porque aquilo é exatamente o que
eu teria na minha sala de ensaio se soubesse tocar um instrumento. E
se pudesse comprar uma estante de partitura de novecentos dólares.
Quando o sinal abre e eu passo com o carro devagar pelo
cruzamento, estou tentando ignorar as mensagens de Morgan e pensar
só na estante de partitura. Essa estante é um milagre. É exatamente o
que eu nem sabia que estava procurando. A parte onde vai a partitura
é de um verde oxidado perfeito. Quando enviei para a minha chefe
uma foto da estante, ela respondeu Do caralho!!!! Um palavrão e quatro
exclamações. E quando mandei uma mensagem para Morgan dizendo
que era a última vez que eu me permitiria levar um fora dela, que
terminar e voltar seis vezes já era loucura e que não havia
possibilidade de eu a aceitar de volta uma sétima vez, ela respondeu
com Eu não sei o que fazer! Indecisa e só um pouco empática. Tão
típico.
Mas a estante de partitura, a estante de partitura.
Quando viro à direita em La Cienega, meu celular toca e é
Charlotte.
– Você precisa vir aqui – diz ela.
– Aonde?
– Ginger me trouxe pra uma venda de imóvel.
– Boa?
– Você tem que vir.
– Alguém famoso?
– É – diz ela.
– Parece divertido, mas eu preciso tirar medidas pra estante de
partitura.
– Emi – diz ela. – Confia em mim. Você precisa vir pra cá agora.
Anoto o endereço, faço o retorno e sigo na direção de Hollywood
Hills. Dirijo pela Sunset e abro todas as janelas, em parte porque o ar-
condicionado não está funcionando e está fazendo 32 graus, mas mais
porque estou passando por palmeiras e centenas de salões de beleza e
food trucks vendendo tacos e restaurantes de rosquinhas e lojas de
roupas e casas noturnas, e gosto de observar tudo e pensar que Los
Angeles é o melhor lugar do mundo.
Eu entro onde meu telefone me diz para entrar e começo a subir a
colina, onde as vias ficam mais estreitas e as casas ficam mais caras.
Sigo para mais alto do que já fui, até que as casas não só se tornam
muito maiores e mais bonitas do que as casas já grandes e bonitas
abaixo, mas também mais espaçadas. E, por fim, entro num caminho
que tenho certeza que nunca viu um carro velho com trancas que não
funcionam.
Estaciono sob os galhos de árvores velhas e lindas que estão cheias e
verdes apesar da chegada do verão, saio do carro, me encosto no para-
lama e olho a casa. Meu trabalho me levou a muitas casas
ridiculamente bonitas, mas esta se destaca. É mais velha e mais
grandiosa, mas tem algo a mais nela. É diferente. Mais importante.
Não estou pensando em Morgan, estou pensando em quem pode ter
sido o dono da casa. Devia ser alguém velho, o que é bom, porque esse
tipo de venda de propriedade significa que alguém morreu, e é triste
remexer em coisas de pessoas de trinta anos e pensar no futuro que
poderiam ter tido.
A porta dupla da frente se abre e Charlotte sai para a luz do sol. Ela
usa a calça jeans dobrada até os tornozelos e o cabelo louro preso em
marias-chiquinhas, e o rosto está meio sério, meio exaltado.
– Adivinha – diz.
Tento pensar em quem morreu nas últimas semanas. Penso
primeiro na avó do nosso professor de física, mas duvido muito que
ela morasse numa casa como aquela. Penso em outra pessoa, mas não
digo nada porque é uma ideia louca. Essa morte é uma coisa
impactante. Do tipo que aparece na primeira página. Do tipo que está
sendo noticiada cada vez que ligo o rádio.
Mas tem a casa, que obviamente é uma casa importante, e as
árvores antigas e lindas, e a boca de Charlotte, que está tremendo com
o esforço gigantesco de não sorrir.
Além do mais, não está lotada de gente, o que significa que é algum
tipo de prévia para a qual Ginger foi convidada porque ela é uma
designer de produção famosa e sempre é chamada para coisas assim
primeiro.
– Puta merda – digo.
Charlotte começa a assentir.
– Você não está falando sério.
As mãos dela voam até o rosto porque ela está eufórica, com a
risada delirante de quem passou a última hora na casa de um homem
que supostamente foi o ator mais emblemático do cinema americano.
Clyde Jones. Ícone dos filmes americanos de Velho Oeste.
Ela se encosta na casa, se curva para a frente, desliza até o piso de
mármore. Permito que ela tenha um dos raros ataques de riso
histéricos enquanto absorvo tudo. Não consigo pensar em expletivas
suficientes para capturar o momento com perfeição. Eu precisaria de
uma tonelada de pontos de exclamação. Então, só fico olhando
boquiaberta, pensando no homem que morava ali.
A histeria de Charlotte passa, e em pouco tempo ela está de pé,
recomposta, novamente a mulher excepcional que vai se formar em
museologia.
– Entra – diz ela.
Eu paro na entrada colossal. Do lado de fora está claro e quente, um
dia lindo de Los Angeles. Dentro está mais escuro. Sinta o ar
condicionado escapando. Apesar de ser uma oportunidade
maravilhosa que nunca vai se repetir, não sei se devo avançar mais. A
questão é a seguinte: eu e meu irmão, Toby, falamos o tempo todo
sobre o que os filmes fazem. Eles conversam com os nossos desejos,
que nunca são pequenos. Permitem que escapemos e sonhemos e
olhemos em olhos enormes e de beleza inacreditável. Quando se mora
em Los Angeles e se trabalha com filmes, acaba-se vivenciando o
colapso de uma parte dessa fantasia. Percebemos que os olhos brilham
assim por causa de luzes posicionadas em um ângulo específico e
vemos as atrizes de perto, e, sim, elas são lindas, mas parecem tão
humanas e imperfeitas como todos nós.
Mas aquilo é diferente.
Porque mesmo que se saiba um pouco demais sobre como filmes
são feitos, sempre há coisas desconhecidas. É possível se agarrar ao
mito que cerca os atores; é possível ser puxada para a história.
O lugar de Clyde Jones é no Velho Oeste. O lugar dele é debaixo das
estrelas, fumando cigarros caseiros e ouvindo o vento. Em Muito tempo
até amanhã, ele morava em um chalé de madeira. Em Terras baixas, ele
morava em uma picape verde e dormia na beira da estrada poucas
horas de cada vez, procurando uma mulher do passado.
Clyde Jones é o salvador. O homem bom e descomplicado. O caubói
perfeito. Mas, assim que eu passar por aquela porta, ele será um ator
que passou a vida em uma mansão de Los Angeles. O colapso final da
fantasia.
– Em? – diz Charlotte. Ela chega para a esquerda e sinaliza para que
eu vá atrás dela. Não consigo resistir. Um momento depois, estou no
saguão de Clyde Jones, a porta fechada atrás de mim, olhando para
um dos objetos mais bonitos que já vi: um lustre que paira baixo,
geométrico, prateado e brilhante.
Clyde Jones não era nenhum caubói, mas sua sensibilidade estética
era incrível.
Ainda estou enlouquecida por causa da casa do Clyde quando
Ginger passa por mim.
– Ah, que bom, Emi, você chegou. – Eu e Charlotte a seguimos até a
sala.
– É – digo, parada sob o teto alto com vigas brancas, ao lado do que
só pode ser um par de cadeiras Swan originais, colocadas debaixo de
uma paisagem pastoral enorme com céu claro tão monumental
quanto o céu dos filmes dele. – Acho melhor eu não ir para o estúdio
hoje.
– Esses copos – diz Ginger, apontando, e Charlotte anda até um
minibar reluzente e pega uma bandeja de copos altos. – Por que você
não deveria ir ao estúdio? Ah, vou adivinhar: Morgan.
– Ela terminou comigo.
– De novo?
– Foi alguma coisa sobre não ficar presa. As vastas possibilidades da
vida.
– “As vastas possibilidades da vida.” Que baboseira – diz Charlotte,
colocando os copos ao lado de um grupo de outros objetos lindos que
Ginger já deve ter escolhido.
Digo “É”, mas só porque é o que Charlotte precisa que eu diga.
Charlotte é o tipo de amiga que automaticamente odeia todo mundo
que já me fez mal. Na primeira vez que voltamos depois que Morgan
terminou comigo, Charlotte se esforçou muito para superar e ser legal
com ela. Mas lá pela terceira vez, Charlotte ficou grosseira. Parou de
dizer oi. Parou de sorrir perto dela. Agora, Charlotte não consegue
nem ouvir o nome Morgan sem contrair a mandíbula.
Ginger me lança um olhar solidário.
– Está tudo bem – digo para ela. – Não quero mais saber de gente de
cinema.
E aí, nós todas rimos, porque imagina. Que coisa ridícula de se
dizer.

Quando Ginger termina de escolher o que quer, deixa que eu e


Charlotte exploremos por um tempo para ver se encontramos alguma
coisa que queremos comprar. Vamos parar no escritório de Clyde, que
deve ser do tamanho do apartamento inteiro do meu irmão. Tem pé-
direito alto sustentado por vigas grossas de madeira e uma parede
inteira com portas de vidro deslizantes que dão para o terreno nos
fundos. De todos os aposentos, esse é o que mais tem a atmosfera
Velho Oeste. Tem uma mesa rústica enorme que ele devia usar como
escrivaninha e uma coleção de poltronas de couro organizada em
semicírculo virada para uma lareira enorme. Prateleiras cobrem uma
parede de fora a fora, e sobre elas há centenas de prêmios, inclusive
quatro Oscars junto com objetos dos filmes dele: chapéus de caubói,
armas e fivelas de cinto feitas de prata.
A maioria das pessoas da nossa idade não conhece o Clyde ou não
liga muito para ele. A carreira dele acabou há muito tempo. Os seus
personagens raramente eram sofisticados ou inteligentes; não há
grandes atrativos para a minha geração. Mas o meu irmão tem um
gosto eclético, e quando ele ama algo, fica quase impossível não amar
junto. Por isso, ao longo dos anos, fui me apaixonando pelo momento
em que Clyde aparece no horizonte, no saloon ou cavalgando pela
grama alta na direção da mulher que ele ama.
Estar no escritório dele agora é ao mesmo tempo inesperado e
inevitável. E, mais do que tudo, é significativo. Como todas as entradas
de Clyde. Como se, sem saber, tudo que eu fiz estivesse convergindo
naquele momento.
– Você está bem? – pergunta Charlotte.
Eu só faço que sim, pois como poderia descrever esse sentimento de
uma forma que fizesse sentido? Não há lógica por trás dele.
Pego uma das fivelas de cinto. É mais pesada do que achei que seria,
e mais bonita de perto: a silhueta lisa de um cavalo empinando com
uma montanha e a lua minguante ao fundo.
– Vou ver quanto estão pedindo por isso – digo.
Charlotte inclina a cabeça.
– Você está escolhendo uma fivela de cinto?
– É para o Toby – digo, e Charlotte fica vermelha, porque ela sempre
foi apaixonada pelo meu irmão. Isso me lembra de olhar o celular e
vejo que temos que nos encontrar com ele em menos de duas horas.
Charlotte está olhando discos. Ela pega um de Patsy Cline.
– Eu não consigo botar isso na cabeça – diz. – Clyde Jones se sentava
nessas poltronas e ouvia este disco.
Encontramos Ginger assinando um recibo de cartão de crédito de
mais de vinte mil dólares, o que pode explicar por que, quando
mostramos ao corretor a fivela de cinto e o disco de Patsy Cline, ele
sorri para nós e diz:
– Presente meu pra vocês.
– Charlotte, você pode ligar para o Harrison?
Charlotte faz isso e entrega o telefone para o homem marcar a
coleta, e aí voltamos para o caminho quente que leva à saída da casa
de Clyde, nos afastando da casa dele para sempre.

Toby mora em um apartamento clássico com pátio de Los Angeles,


como o que aparece no filme Cidade dos sonhos, do diretor David
Lynch, que prefere se concentrar no lado mais sombrio da indústria
do cinema, e também o que aparece em Melrose, que era uma série de
televisão dos anos ١٩٩٠ que se passava em West Hollywood, sobre a
qual meu pai dá aula no curso de Cultura Pop de Los Angeles na ucla.
O pátio de Toby tem um gramado verdejante bem cuidado e um
chafariz bonito, e da lateral do chalé dele dá para ver um pedacinho
do mar. Nós entramos, e lá estão as coisas dele arrumadas, esperando
ao lado da porta. Um conjunto de malas combinando que parece
muito adulto.
Ele abraça nós duas. Eu primeiro, por muito tempo, Charlotte em
seguida, mais rápido. Então fica de frente para nós e nos olha, meu
irmão bronzeado com o sorriso torto e o cabelo preto sempre caindo
nos olhos. Fico triste, mas afasto a tristeza por causa do que tenho para
lhe contar.
– Toby – digo. – Nós passamos a tarde na casa do Clyde Jones.
– Você está de sacanagem – diz ele, os olhos arregalados.
– Não – diz Charlotte. – De jeito nenhum.
– A casa dele era cheia de coisas incríveis… – começo a dizer, mas
Toby coloca as mãos sobre os ouvidos.
– Nãocontanãocontanãoconta – diz.
– Tudo bem.
– O colapso da fantasia – diz ele.
Eu sei, digo só com movimentos labiais, tudo muito exagerado para
ele entender.
– Eu amo Clyde Jones – diz ele, abaixando as mãos.
Eu faço que sim.
– Nem mais uma palavra sobre o assunto – digo. – Mas tenho uma
coisa pra você. Fecha os olhos.
Meu irmão faz o que eu mandei e estica as mãos em concha. Finjo
que não reparo em Charlotte olhando para ele e coloco a fivela de
cinto nas mãos dele. Ele abre os olhos. Não diz nada. Eu me pergunto
se escolhi o objeto errado, e aí percebo que há lágrimas surgindo.
– Ah, por favor – digo.
– Puta. Merda. – Ele pisca rapidamente para se recompor. Aí, corre
até a estante cheia de dvds e pega um. Está murmurando sozinho
enquanto liga a televisão e espera que a seleção de capítulos apareça
na tela. – Porta do saloon… Eu sou um homem da lei, mas isso não me
torna honesto… Por essas partes… Isso!
Ele encontrou a cena e nos esprememos no antigo sofá dos meus
pais, eu no meio agindo como amortecedor para a tensão sexual entre
o meu irmão e a minha melhor amiga.
Toby aperta o play e aumenta o volume. Reconheço como sendo Os
estranhos, mas só vi esse filme duas vezes e esqueci muito do que
acontece. A cena começa com um tiro na porta do saloon. Ouvimos as
vozes das pessoas lá dentro, mas a câmera não se vira para elas.
Quando uma pessoa importa tanto assim, tudo o que se pode fazer é
esperar sua chegada. As botas aparecem embaixo da porta, um chapéu
acima. A porta de vaivém se abre e ali está Clyde Jones.
A tela é tomada do close de um rosto jovem cheio de sabedoria,
protegido por um chapéu de caubói. Ele passa os olhos pelo salão até
encontrar o xerife, bebendo a uma mesa com um dos bandidos. A
câmera desvia para as botas de caubói dele pisando no chão de
madeira gasta na direção do xerife e do amigo, que se levantam da
mesa e puxam as armas assim que veem Clyde.
Sem se abalar, Clyde diz: “Eu achava que você era um homem da
lei”.
Xerife: “Eu sou um homem da lei, mas isso não me torna honesto”.
O caubói malvado não diz nada, mas tem uma expressão quase
maníaca quando aponta a arma para Clyde.
Clyde diz: “Por essas partes, a ilegalidade é uma doença. Eu tenho
uma leve desconfiança de que sei como curá-la”.
A câmera desce até o coldre, e Toby grita “Olhem!” e aperta o pause.
Ali está a fivela do cinto: o cavalo, a colina, a lua.
– Que incrível! – diz Charlotte.
– Toby. Estou preocupada de verdade com você. De todos os filmes
de Clyde Jones e de todas as fivelas de cinto, como você sabia que essa
fivela era dessa cena desse filme? – digo.
Mas Toby está fazendo uma dança pela sala, me ignorando,
adorando a glória da sua nova posse.
– Obrigado, obrigado, obrigado – cantarola.
Depois de um tempo, Toby se acalma o suficiente para podermos
ver o resto do filme, que passa rapidamente. Clyde mata todos os
bandidos. Fica com a garota. Fim.
– Tudo bem – diz Toby. – Eu chamei vocês duas aqui por um motivo.
Venham até a mesa.
Estou tentando me agarrar à sensação boa da última hora, mas a
verdade é que estou ficando triste de novo. Toby está prestes a ir passar
dois meses pesquisando locações pela Europa para um filme que vai
começar a ser rodado em breve. É idiotice minha; são só dois meses, e
para ele é uma promoção enorme. Mas Toby e eu passamos muito
tempo juntos e parece um grande problema. Além do mais, ele vai
perder a minha formatura, uma coisa que não devia me incomodar
porque já superei o ensino médio há muito tempo. Mas eu me importo
um pouquinho.
Toby abre a porta da cozinha para o pátio e o ar da noite entra. Ele
serve o chá gelado que compra em um restaurante etíope da esquina.
As pessoas de lá o conhecem e vendem o chá em uma jarra de plástico
que ele leva de volta para reencher a cada dois dias. Eles não fazem
isso para mais ninguém, só para Toby.
Quando nos sentamos em volta da mesa redonda da cozinha, ele
diz:
– Lembram que eu botei um anúncio para sublocar a minha casa?
Então, recebi um monte de respostas. Tinha gente disposta a gastar
uma grana absurda só pra morar aqui por dois meses
– Claro – digo. Afinal, está na cara. A casa dele é pequena, mas é
adorável. É uma mistura agradável dos móveis velhos e gastos da
mamãe e do papai e descartes de produções nas quais eu trabalhei e
coisas que pegamos em bazares de jardim de Beverly Hills, onde as
pessoas ricas vendem coisas caras por um preço baixo. Fica a poucos
quarteirões de Abbot Kinney e mais alguns quarteirões da praia.
– É – diz ele. – Pareceu que ia dar certo. Mas aí, tive uma ideia
melhor.
Ele toma um gole do chá. O gelo tilinta. Charlotte se inclina para a
frente na cadeira. Eu, no entanto, me encosto. Sei que o meu irmão, o
mestre das boas ideias, está esperando o momento certo para revelar
seu plano mais recente.
Por fim, ele diz:
– Eu vou deixar vocês ficarem aqui.
– O quêêêêêê? – digo.
Charlotte e eu nos viramos uma para a outra, como se para
confirmar que nós duas ouvimos a mesma coisa. Balançamos a cabeça,
maravilhadas. E não consigo evitar: penso na terceira vez que Morgan
terminou comigo, quando o motivo dela foi eu ser mais nova (só três
anos!) e morar com meus pais. Faria diferença para ela se eu morasse
ali? Ou será que desta vez é sobre a vastidão ou sei lá o quê?
– Você está falando sério? – diz Charlotte.
Toby sorri e diz:
– Totalmente. É meu presente de formatura para vocês duas. Mas
tem uma condição.
– Claro – digo, mas ele me ignora.
– Eu quero que vocês façam alguma coisa com a casa. Alguma coisa
épica. E não estou falando de dar uma festa. Estou falando que
alguma coisa grandiosa precisa acontecer aqui enquanto eu estiver
fora.
– Tipo o quê? – pergunto.
Estou um pouco preocupada, mas também empolgada. Toby é o
tipo de pessoa cuja grandiosidade faz os outros quererem subir o
sarrafo. Tudo que ele faz acaba sendo um espetáculo, e foi assim que
ele conseguiu passar de um bico de verão como funcionário de
estacionamento para um emprego em tempo integral como assistente
do gerente de locação. E aí, no mês passado, aos 22 anos, ele se tornou
o mais jovem produtor de locação na história recente do estúdio.
– Isso é tudo que vou dizer sobre o assunto – diz ele. – O resto é com
vocês.
Tentamos fazer mais perguntas, mas ele só se recosta e sorri.
Portanto, a conversa muda para A agência, o filme para o qual ele vai
procurar locações. Eu vou trabalhar no design de um cômodo para o
filme, que vai ser meu maior trabalho até agora. É um filme de grande
orçamento com um elenco jovem: Charlie Hayden, Emma Perez e
Justin Stark, todos jovens atores importantes. É uma aventura de
espionagem, mas o quarto que eu vou criar é o de uma das garotas
quando ela ainda está no ensino médio, antes de todos se tornarem
espiões e começarem a viajar pelo mundo. Acho que o filme vai ser
meio idiota, mas ainda assim estou empolgada. Algumas semanas
atrás, Toby e eu fomos a uma festa com o diretor e todo o elenco e a
equipe. Eu estava na companhia de estrelas cujo rosto está em
pôsteres por todo o mundo. Esse é só um exemplo dos tipos de coisa
que me acontecem por causa do Toby.
Cedo demais, há uma batida na porta de Toby, a porta que agora vai
ser minha por dois meses, e o motorista do estúdio carrega as malas
dele para o porta-malas e leva meu irmão junto. Toby balança as
chaves pela janela, olha para mim e diz:
– Épico.
O carro vai embora e nós acenamos, ele dobra a esquina e some. E
eu e Charlotte ficamos no meio-fio em frente ao prédio.
Eu me sento no concreto ainda quente.
– Épico – digo.
– Nós vamos pensar em alguma coisa – diz Charlotte, se sentando
ao meu lado.
Ficamos em silêncio por um tempo, ouvindo os vizinhos. Eles falam
e riem, e logo uma música começa a tocar. Estou tentando afastar o
sentimento pesado que está surgindo agora, que tem surgido com
tanta frequência nos últimos tempos, mas estou tendo dificuldade.
Alguns meses atrás, parecia que o ensino médio duraria para sempre,
parecia que os planos para a faculdade eram para um futuro distante
indistinto. Eu podia passar o tempo com Charlotte sem sentir um
adeus se aproximando, podia curtir cada plano impetuoso com meu
irmão, podia sair à noite para dirigir por Laurel Canyon com Morgan e
me deitar debaixo de cobertores na caçamba da picape dela sem
pensar que seria a última vez. Mas agora, a Universidade de Michigan
vai tirar minha melhor amiga de mim em pouco mais de dois meses e
meu irmão está indo para a Europa hoje e quem sabe para onde mais
depois disso. Morgan está livre para beijar qualquer garota que queira.
Eu esperava que a formatura desse uma sensação de liberdade, mas na
verdade estou me vendo um pouco perdida.
Meu celular vibra. Por que você não veio trabalhar? Escondo o nome
de Morgan na tela e ignoro o olhar indagador de Charlotte.
– Ei, a gente devia ouvir aquele disco que você pegou – digo.
– Bom jeito de evitar a pergunta – diz Charlotte.
– Patsy Cline parece o jeito perfeito de encerrar a noite – digo, o que
é uma grande mentira. Não sei por que Charlotte gosta desse tipo de
música.
Mas finjo entusiasmo quando ela tira o disco da capa e o coloca no
toca-discos de Toby e abaixa a agulha. Nós nos deitamos no tapete
branco peludo do Toby (comprei em um bazar de jardim impecável de
Beverly Hills para o 21o aniversário dele, junto com uns copos de
coquetel decorados) e escutamos Patsy cantar transbordando emoção.
Cada música dura aproximadamente um minuto, e nós ficamos
ouvindo uma música tocar atrás da outra. De verdade? Até que eu
gosto. É tanta sofrência! Patsy sabia sobre o que estava cantando,
certeza. Parece que ela sabe que no meu bolso há um celular com
mensagens de uma garota que eu queria mais do que tudo que me
amasse de verdade. Patsy está me dizendo que entende como é difícil
não responder às mensagens de Morgan. Ela pode até estar dizendo: A
dignidade é superestimada. Sabe o que pisa na dignidade? Beijar.
E eu posso estar fazendo promessas silenciosas para Patsy que se
parecem com algo assim: Na próxima vez que Charlotte se levantar para ir
ao banheiro, eu vou enviar uma mensagem rápida. Uma bem curtinha.
– Que música boa foi essa – diz Charlotte.
– Ah – digo. – É.
Mas não prestei muita atenção, porque Patsy e eu estávamos
ocupadas, e eu juro que a música durou só uns seis segundos.
– Queria saber quem escreveu – diz ela se levantando e se
espreguiçando e indo ver a capa do disco, que está encostada na caixa
de som.
Acho que esse é o meu momento. Ela vai olhar a lista de músicas e
obter a resposta e aí vai ao banheiro, e eu vou escrever uma coisa bem
curta tipo: Vamos conversar amanhã ou Eu ainda te amo.
– Hank Cochran e Jimmy Key – diz. – Eu amo esses versos: “Se
ainda te amar significa que sou fraca, então eu sou fraca.”
– Uau – digo. Parece até que Patsy está me dando permissão de
ceder aos meus sentimentos. – Tem a letra impressa? – pergunto, me
sentando.
– Tem. Aqui. – Charlotte se aproxima e me entrega a capa do disco.
Quando eu a pego, algo cai de dentro dela. Recolho o que caiu no
tapete.
– Um envelope. – Verifico se está fechado. Está. Eu o viro e leio a
frente. – “Na ocasião da minha morte, entregar em mãos para Caroline
Maddox, na avenida Ruby, 726, apartamento F, Long Beach, Califórnia.”
– O quê? – diz Charlotte.
– Ah, meu Deus – digo. – Você acha que o Clyde escreveu isso?
Nós estudamos a caligrafia por um tempo. É uma caligrafia de
homem velho, cursiva e meio trêmula, mas caprichada. Considerando
que: 1) Clyde morava sozinho, e 2) o disco pertencia a Clyde e, 3) Clyde
era um velho que devia ter caligrafia de homem velho, concluímos que
a resposta à minha pergunta é Definitivamente Sim.
A sensação que tive no escritório do Clyde volta. O envelope na
minha mão é importante. Esse momento é importante. Não sei por
quê, mas eu sei que é verdade.
– A gente tem que ir lá agora – digo.
– Pra Long Beach? A gente devia avisar ao corretor, você não acha?
Devia mesmo ser a gente que vai fazer isso?
Balanço a cabeça.
– Eu não quero dar isso pra ninguém – digo. – Pode parecer loucura,
mas lembra quando você me perguntou se eu estava bem mais cedo?
– Lembro.
– Eu tive uma sensação de que, sei lá, de que havia alguma coisa
importante envolvida na minha presença lá na casa do Clyde Jones.
Fora o fato de ter sido uma sorte incrível.
– Tipo destino? – pergunta ela.
– Talvez – digo. – Não sei. Talvez destino. Pareceu.
Charlotte me observa.
– Vamos só tentar – digo.
– Bom, já passa das dez. Seriam quase onze quando a gente
chegasse lá – diz Charlotte. – A gente não pode ir hoje.
Eu sei tão bem quanto Charlotte que não podemos aparecer à porta
de alguém às onze da noite com um envelope de um homem morto.
– Minha prova final de física é ao meio-dia e meia – digo. – E a sua?
– Meio-dia e meia – diz ela.
– Eu não posso ir depois porque eu tenho que ir buscar aquela
estante de partitura e depois ir para o set. Acho que a gente vai ter que
ir de manhã.
Charlotte assente e nós pegamos o celular para ver quanto tempo
vai demorar pra chegar em Long Beach. Sem trânsito, seriam quase
quarenta minutos, mas sempre tem trânsito, principalmente em uma
manhã de dia de semana, o que significa que pode levar bem mais de
uma hora, e nós temos que dar tempo para Caroline Maddox nos
contar a história de vida dela, e temos que garantir que vamos voltar
antes do início das provas, o que significa que temos que sair…
– Antes das sete? – digo.
– É – diz Charlotte.
Não ficamos muito animadas, mas tudo bem. Nós vamos entregar
em mãos uma carta de um ator icônico falecido para uma mulher
misteriosa chamada Caroline.
Capítulo dois

Pegamos a estrada às 6h55 com copos cheios do chá gelado de Toby,


porque era isso ou um kombucha caseiro que nenhuma das duas teve
coragem de experimentar. Toby faz ioga, come muita comida crua. É
uma das áreas da vida em que nós divergimos, o que deve ser bom,
porque somos parecidos em quase todos os outros jeitos: o amor pelo
cinema, o amor por garotas, o nível de energia que as outras pessoas às
vezes acham difícil de tolerar por períodos prolongados.
Eu e Charlotte passamos um tempo no trânsito arrastado da 405.
Permito que Charlotte escute a rádio pública por vinte minutos, e
quando estou de saco cheio das notícias, coloco The Knife, porque
acredito piamente que os momentos importantes da vida ficam
melhores com uma trilha sonora, e esse sem dúvida vai ser um desses
momentos.
– Quem você acha que ela é? – pergunto, entrando na pista da
direita. Charlotte está segurando o envelope de Clyde, estudando o
nome de Caroline escrito na caligrafia cuidadosa.
– Uma ex-namorada, talvez? – diz. – Ela deve ser velha.
Tento pensar em outras possibilidades, mas Clyde Jones é famoso
por ser meio recluso. Ele teve alguns casos famosos quando era jovem,
mas isso é passado antigo, e todo mundo sabe que ele morreu sem
família. Sem parentes no radar, não consigo pensar em muitas boas
respostas.
Saímos da rodovia e pegamos a avenida Ruby.
– Estou ficando nervosa – digo.
Charlotte assente.
– E se for traumático pra ela? Talvez não tenha sido uma ideia muito
boa fazer isso antes das nossas provas finais. E se Caroline precisar de
nós ou desmaiar de choque ou alguma outra coisa assim?
– Duvido que isso vá acontecer – diz Charlotte.
Nenhuma das duas já esteve na avenida Ruby, e não sabemos o que
esperar. Mas, quando vamos nos aproximando do endereço, vai
ficando mais claro que, quem quer que seja Caroline Maddox, ela não
tem o mesmo tipo de vida que Clyde tinha. O número 726 é um
daqueles prédios tristes que parecem motéis, dois andares com portas
enfileiradas. Paramos na rua e olhamos para o apartamento pela
janela aberta do meu carro.
– Talvez ela acabe sendo alguém que ele não conhecia tão bem.
Tipo a garçonete de um restaurante ao qual ele ia muito. Ou talvez ele
tivesse uma filha sobre quem ninguém sabia. Fruto de um caso,
alguma coisa assim.
– É, talvez – diz Charlotte.
Saímos do carro.
Depois de subir pela escada preta de metal até o segundo andar e
bater na porta do apartamento F, eu sussurro:
– Você acha que a gente pode perguntar o que tem dentro? Tipo
pedir pra ela abrir na nossa frente?
Charlotte balança a cabeça dizendo que não.
– Então como a gente vai saber? A gente vai falar com ela depois?
– Psiu – diz ela.
Quem abre a porta é um homem sem camisa, segurando um bebê
apoiado no quadril.
– Oi – diz Charlotte, profissional, mas simpática. – Por acaso
Caroline está em casa?
O homem olha para mim e para Charlotte, passa o bebê para o
outro quadril. Ele tem cabelo meio comprido, um colar de concha. Um
surfista que foi parar a quilômetros da praia.
– Desculpa – diz ele. – Não tem nenhuma Caroline aqui.
Charlotte olha para o endereço no envelope.
– Aqui é o número 726, não é?
– É. Apartamento F. Mas somos só nós três. A pequena June, eu e
minha esposa, Amy.
– Você se importa se eu perguntar há quanto tempo mora aqui? –
pergunta Charlotte.
– Há uns três anos.
– Você sabe se uma Caroline morava aqui antes de você?
Ele faz que não.
– Acho que era um cara chamado Raymond. A gente recebe
correspondência dele às vezes.
Eu me viro para Charlotte.
– Pode ser que ela tenha deixado um endereço com o senhorio.
Ela se vira para o surfista.
– O síndico mora no prédio?
Ele faz que sim.
– Esperem um pouco – diz ele, desaparece por um momento e volta
sem o bebê. Calça chinelos e se junta a nós do lado de fora. – É difícil
descrever. Vou levar vocês lá.
Nós o seguimos escada abaixo.
– O tempo está ótimo – diz ele.
– É verdade. Aqui é Los Angeles – digo.
– Verdade – diz ele.
Seguimos por um caminho na lateral do prédio até chegarmos a um
chalé isolado. Ele bate na porta. Nós esperamos. Nada.
– Hum – diz ele. – Frank e Edie. Eles são velhos. Quase sempre estão
em casa. Hoje deve ser dia de mercado.
Ele tira um celular do bolso.
– Eu posso dar o número deles pra vocês – diz, passando alguns
nomes na tela, e Charlotte anota no celular.
~

Quando estamos andando de volta para o carro, eu digo:


– Se a gente não conseguir encontrar Caroline, será que a gente
pode abrir o envelope?
– A gente devia tentar encontrar ela.
– Eu sei. Mas se a gente não conseguir.
– Talvez – diz ela. – Provavelmente.
Entrego a chave para Charlotte e ela destranca a porta do lado dela,
entra, se estica e destranca o meu lado. Ligo o carro e olho a hora.
– A gente podia ter dormido mais uma hora – diz Charlotte.
– Vamos ligar para os síndicos agora – digo. – Talvez eles estivessem
dormindo.
Mas ela liga e é a secretária eletrônica que atende.
– Bom dia – diz ela. – Meu nome é Charlotte Young. Estou tentando
fazer contato com uma antiga inquilina de vocês. Espero que tenham
informações de contato. Se vocês puderem me ligar, eu agradeceria.
Ela deixa o número e desliga.
Às vezes, ela fala de um jeito tão profissional que não consigo
acreditar que a garota que está falando também é a minha melhor
amiga. No trabalho, desde que eu faça minha função direito, eu não
preciso falar como uma adulta porque sou da equipe criativa. Mas
Charlotte ajuda com a logística e chamadas telefônicas e
planejamento de agenda e em garantir que as pessoas apareçam na
hora que elas têm que aparecer.
– Espero que eles retornem a ligação – digo, reparando em uma leve
diminuição do trânsito e fazendo um retorno no meio do quarteirão.
– Eu vou ligar de novo se eles não retornarem – diz Charlotte.
– Mas, se a gente não conseguir falar com eles, e se a gente não
conseguir encontrar Caroline, a gente vai abrir a carta, certo?
– Talvez – diz ela. – Mas a gente vai tentar mesmo encontrar a
Caroline.

Depois da prova final de física e da parada em Abbot Kinney, dirijo até


o estúdio com o estômago embrulhado. É horrível ficar de coração
partido. Muito horrível. Eu queria poder ouvir músicas tristes sozinha
no carro até sentir que a superei. Mas não consigo nem conversar
sobre isso com Charlotte, e tenho que terminar o design da sala no
qual estou trabalhando, apesar de saber que Morgan vai estar no
estúdio com as mangas arregaçadas e a calça jeans apertada e o cabelo
curto todo descabelado e perfeito. Embico na entrada do estúdio. O
guarda me faz sinal para entrar e passo pela picape azul vintage de
Morgan e estaciono algumas vagas depois, tentando não pensar na
primeira vez que me sentei no banco macio do passageiro e em todas
as vezes que se seguiram.
Morgan está em um canto distante do set, mas eu a vejo antes de
tudo e passa a ser tudo que eu vejo. Preenchendo tudo. Estou
carregando a estante de partitura e a coloco no aposento, mas apesar
de estar olhando para ela e passando as mãos pela base lisa de
madeira, eu mal a registro.
Ginger diz alguma coisa e eu respondo. Ela ri e eu finjo rir e aí movo
um quadro emoldurado alguns centímetros para o lado, mas trago de
volta. E aí, Morgan está ali perto me perguntando se eu recebi as
mensagens dela, me tocando na cintura da forma que faz meu
estômago parecer um pano sendo torcido.
Faço que sim. Sim. Recebi.
– Sinto sua falta – diz ela.
Eu não digo nada porque nós fizemos isso muitas vezes antes e
prometi a mim mesma que não faria de novo. Ela não pode terminar
comigo e agir como quem estivesse sofrendo. Eu só quero flertar com
ela no set, andar na picape bonitinha dela o dia todo, dançar com ela
em festas e me deitar ao lado da piscina do prédio dela e a beijar.
Todas as coisas que nós fazíamos. Todas as coisas que poderíamos
estar fazendo agora se ela não estivesse ocupada se perguntando se o
mundo tem coisas melhores a lhe oferecer do que eu.
– Que blusa bonita – diz ela, mas eu não digo nada, só me dobro
para ajeitar a beira do tapete estampado colorido em que estamos.
Hoje de manhã, experimentei sete combinações até decidir usar
aquele short verde fofo e o top branco de alça revelador. Achei que
parecia um visual veranil e divertido e, admito que ficava bem em
mim. Mas agora estou pensando que deveria ter vestido alguma coisa
que sempre uso, para que Morgan não reparasse que eu estava
diferente e, portanto, não parecesse que eu estava tentando parecer
diferente.
Eu me curvo para ajeitar o tapete de novo e fica bem bonito mesmo:
o verde da estante de partitura destaca as cores da estampa, e me vejo
capaz de pensar em alguma coisa que não seja ela até ela dizer:
– Emi, você não vai mais falar comigo?
Eu me levanto e respondo:
– Não, não, não é isso.
Porque não é. Não estou tentando ser infantil nem distante. Não
estou tentando ser cruel. Mas não posso dizer para ela que não estou
falando porque tenho medo de chorar se abrir a boca. A humilhação
após seis términos é brutal. E, realmente, talvez não haja muita coisa
pior do que trabalhar com tantas pessoas cujo respeito você quer
conquistar enquanto seu primeiro amor verdadeiro diz que você está
bonita porque ela quer que você se sinta um pouco menos arrasada
por ela não corresponder ao seu amor.
Forço um sorriso e digo:
– Olha só essa estante. Não é perfeita? – Eu sei que ela vai gostar
quase tanto quanto eu.
– É – diz ela. – A sala toda está muito, muito boa.
Dou um passo para trás e olho para ela. Morgan está certa. A sala é
o espaço no porão que uma adolescente geek fascinada por bandas
chamada Kira usa para ensaiar. Ela não tem uma grande relevância no
filme, mas há uma cena importante que acontece naquela sala, e este é
o primeiro cenário que criei sozinha. Eu comecei com coisa de criança.
Troféus achados em brechós que poli para que parecessem quase
novos. Pôsteres de shows de algumas bandas populares cujos
integrantes tocam trompete, que é o instrumento que a personagem
toca. Tantas partituras que não cabem nas prateleiras e estão
empilhadas em todas as superfícies disponíveis. Todas essas coisas
normais, mas algumas extravagâncias também, porque é cinema. Um
lustre branco de bolhas de vidro que emite uma luz suave linda; um
trompete muito brilhante e muito caro; um tapete tecido a mão. E
agora, a estante de partitura. Sinto um orgulho sufocante de mim
mesma por ter feito isso e uma paixão completa pela indústria do
cinema.
– Agora você só está esperando o sofá?
Eu me viro para a última parede vazia, onde o sofá vai ficar, e faço
que sim.
– Alguma ideia?
Balanço a cabeça. Não.
– Precisa ser perfeito – digo.
No começo do filme, Kira perde a virgindade. É com um cara que
não a ama, mas ela ainda não sabe disso. Eles transam, não no quarto
dela, mas no sofá naquela sala de ensaios, a sala que estou decorando,
e sei que a cena vai ser perturbadora porque o segredo está claro para
todo mundo, menos para Kira, de que não vale perder nada para
aquele cara. Estou tentando encontrar o sofá desde que recebi a
incumbência. Eu sei o que eu quero. Sei que vai ser de um verde
intenso, com um tecido macio. A cena vai ser sofrida, mas o sofá vai
ser um consolo. Precisa estar gasto e parecer meio datado porque é a
sala de ensaios que fica no porão; é para onde vai a mobília descartada
depois de ser substituída por coisas novas e melhores. Mas também
precisa ser bem especial para ter sido guardado.
Do outro lado do estúdio, um cara chama Morgan e faz uma
pergunta sobre gesso. Morgan é cenógrafa, o que significa que ela
constrói os elementos decorativos dos cenários antes de gente como eu
chegar e ocupá-los. Ela consegue transformar paredes brancas e vazias
nas laterais arruinadas de um castelo. Consegue transformar um
espaço interno em jardim. Ela é uma artista. Dói estar perto assim
dela.
– Tenho que ir dar uma ajuda pra ele – diz ela. – Mas a gente pode
jantar depois. Conversar. Vou passar aqui antes de ir embora, tá?
Eu faço que sim.
Ela sai andando.
Envio uma mensagem de texto para Charlotte: Intervenção
necessária.
Por sorte, Charlotte está no terreno, trabalhando a alguns prédios
de distância. Ela me diz para me encontrar com ela no estacionamento
às seis horas em ponto.

Depois de algumas horas mexendo na minha sala e ajudando alguns


dos assistentes de cenografia, eu me despeço de Ginger (que me diz
pela vigésima vez que tudo está lindo) e encontro Morgan do lado de
fora com as mãos cobertas de gesso.
– Charlotte precisa da minha ajuda e eu não vou poder jantar. Nós
estamos no meio de um mistério maluco – digo.
Espero que ela pergunte o que é. Eu me preparo para dizer Estamos
tentando realizar o último desejo de Clyde Jones, para ver o espanto surgir
no rosto dela. Mas ela só diz:
– Tudo bem. Outra hora.
Outra hora. Um ponto-final, não de interrogação. Como certo que eu
direi sim.
Dou ré com o carro até emparelhar com o de Charlotte, para que,
com as janelas do motorista abertas, a gente possa conversar sem sair.
– Obrigada – digo.
– Sempre que eu puder te salvar de cometer outro erro terrível com
aquela garota, me avisa – diz ela. É um pouco ríspido, mas algo que eu
provavelmente mereço.
– Os velhinhos te ligaram? – pergunto.
– Não. Estava te esperando para tentar de novo.
Eu saio do carro e vou até o dela. Ela coloca o telefone no viva-voz e
liga. Está tocando. Nós esperamos. E esperamos. E aí, a voz alta de um
idoso diz alô.
– Alô – diz Charlotte. – Desculpe incomodar. Eu deixei uma
mensagem hoje de manhã. Meu nome é…
– Ei, Edie! – grita o homem. – É aquela garota de hoje de manhã!
Ligando de novo!
Charlotte e eu arregalamos os olhos, achando graça.
– Olha – diz Frank –, eu não consegui entender o número do
telefone na mensagem. É! A garota de hoje de manhã! Vou ver se consigo
encontrar o que anotei. Pode repetir o número?
Charlotte repete.
– Ah – diz ele. – Dois, quatro, três. Eu achei que você tivesse dito
“Dois, quatro, seis”.
– Na verdade, é dois, quatro, seis.
– Dois, quatro, três, sim.
– Na verdade…
– E seu nome qual é mesmo, meu bem?
– Charlotte Young. Eu queria saber se você teria alguma
informação…
– Sim, querida! Nós anotamos errado! E o nome dela é Charlotte!
Estou me esforçando para não rir, mas vejo Charlotte ficando séria.
Ela tira do viva-voz e leva o aparelho ao ouvido.
– Frank? Senhor? – pergunta ela. – Vocês vão ficar em casa agora?
Tenho algumas perguntas que talvez seja melhor eu fazer em pessoa.
Eu espero.
– Tudo bem. Sim. Oi, Edie. Meu nome é Charlotte. Charlotte. Sim, é
um prazer falar com você também.

Frank e Edie estão nos esperando na varanda quando chegamos no


carro da Charlotte. Demoramos um pouco mais de uma hora para
chegar e eu me pergunto se eles estavam esperando o tempo todo,
paralisados em posição de expectativa.
– Qual de vocês duas é a Charlotte? – pergunta Frank.
– Não respondam! – diz Edie. – Não digam uma palavra, garotas. Eu
sou uma ótima avaliadora de pessoas. Vou adivinhar.
Ela nos observa. O cabelo dela é uma nuvem roxa, parecendo
algodão doce. Não sei se era para ser castanho ou se a terceira idade a
deixou ousada.
– Você – diz ela para mim. – Você é Charlotte.
Eu faço que não.
– Emi – digo, e estendo a mão.
Ela faz um ruído de desprezo.
– Você tem cara de Charlotte. – Mas os olhos dela estão com um
certo brilho de diversão.
Frank é bem mais alto do que ela e nos observa por óculos grossos.
– Entrem, garotas – diz. – Entrem.
Lá dentro, nós nos sentamos no sofá marrom coberto de plástico
com revistas People empilhadas ao nosso lado, biscoitos e limonada na
mesa de centro. Esse casal idoso nos recebendo na sala, servindo um
lanchinho com o ventilador no máximo e a porta de tela batendo… é
tão fofo que quase me tira Morgan da cabeça.
– Espero que vocês gostem de gingersnaps – diz Edie. Ela aponta
para Frank. – Ele comprou biscoitos de gengibre. Eu falei pra comprar
o sem recheio.
– Não tinha do sem recheio.
– Como pode não ter do sem recheio?
– Você estava comigo, querida – diz ele. – Limão. Oreo. Bordo.
Gengibre. Nada de sem recheio.
Ela balança a cabeça.
– Bosta – diz. E pega um biscoito e come. – Bosta – fala de novo. E
pega outro.
– Vocês moram aqui no bairro? – pergunta Frank.
– Eu moro em Westwood – diz Charlotte.
– Santa Monica – digo.
– Santa Monica! – diz Edie. – Nosso filho, Tommy, mora em Santa
Monica. Pode ser que você o conheça. Tommy Drury?
Balanço a cabeça.
– Não – digo. – Não me parece familiar.
– Ele é um amor de garoto – diz Edie.
– Ele acabou de fazer sessenta anos! – diz Frank. – Ele não é um
garoto!
– Ele é o meu garoto. Você faz compras no Vons de Wilshire?
– Hum – digo. – Acho que sim. Quer dizer, meus pais fazem.
– É um Vons bom – diz Frank.
– Tem uma parte de delicatéssen boa – concorda Edie. – Mas é
cheio demais.
Charlotte elogia a limonada (“Direto da caixinha!”, confidencia
Edie) e diz:
– Estamos procurando uma antiga inquilina de vocês. Caroline
Maddox.
– Quem? – Frank se vira para Edie, e só nessa hora reparo no
aparelho auditivo.
– Caroline Maddox – grita Edie.
– Ah, sim, Caroline. – Frank assente.
– Vocês se lembram dela? – pergunta Charlotte.
– Sim, claro! – diz Edie. – Ela era uma garota ótima. Muito legal.
Mas tinha problemas. As drogas e os homens e aquela bebê. – Ela
balança a cabeça. – Que pena.
– É mesmo. Vocês podem ter notado que as cercas vivas ladeando o
caminho estão grandes demais – diz Frank como quem pede
desculpas. – Caroline cuidava disso pra gente. Foi anos atrás, quando
eu trabalhava durante o dia e cuidava das coisas do prédio à noite. A
Caroline nos ajudava com algumas das tarefas.
– Por um desconto no aluguel – acrescenta Edie.
– Vocês sabem onde ela está? – pergunta Charlotte. – Ou pra onde
se mudou quando saiu daqui?
– Ih – diz Edie.
– Ih – ecoa Frank. – Odeio ter que dizer, mas Caroline morreu.
– Quando? – pergunta Charlotte.
Frank balança a cabeça.
– Eu sou péssimo com datas – diz.
– Eu sei – diz Edie. – Foi em outubro de 1995. Eu lembro porque os
Dodgers perderam na eliminatória. Os Braves ganharam de três a zero.
Três a zerinho. Foi horrível! Eu me lembro de ter pensado O que poderia
ser pior do que isso? E aí, alguns dias depois, encontramos Caroline no
apartamento.
Frank olha para o lado, os olhos brilhando, e Edie pega um biscoito,
mas não come. Ficamos em silêncio por um tempo e Edie começa a
contar fofocas de celebridades. Conto sobre nosso trabalho com
cinema e ela fica impressionada, principalmente com A agência,
porque ela já tem lido sobre o filme, apesar de as filmagens só
começarem daqui a alguns meses. Mas Charlotte fica em silêncio, e
entendo por quê. Estávamos esperando encontrar Caroline, uma
pessoa viva, que receberia um envelope das nossas mãos e, com sorte,
nos contaria o que havia dentro dele e o que ela era de Clyde. Mas
acabamos descobrindo que Caroline está morta. E é meio perturbador
saber que o que Clyde queria dar para ela nunca foi e nunca será
recebido.

Está escuro quando voltamos para o carro.


Charlotte suspira.
– A gente fez tudo que podia.
– Então a gente vai abrir?
Ela faz que sim, mas não pega a bolsa.
Eu a recolho no banco de trás e procuro o envelope. É tão fino. E
percebo uma coisa que não tinha registrado antes: está velho,
amarelado. Fico me perguntando quanto tempo tem. Bastante tempo
para Caroline morrer e um cara chamado Raymond se mudar para o
apartamento e sair e a família do surfista ir para lá. Talvez seja até mais
velho do que isso.
Charlotte pega as chaves no colo e abre o envelope com muito
cuidado.

Querida Caroline,

Confesso que foi otimista da minha parte pensar que nosso almoço
pudesse transformar uma vida de distância em uma espécie de
relacionamento. Mas não acho que tenha sido otimista pensar que
poderia ter sido um tipo de começo, mesmo que fosse o começo de algo
insuficiente. Um oi casual de vez em quando. Um contato. Mas estou
tentando falar com você há vários meses. Minhas cartas foram
devolvidas. Os poucos números de telefone que consigo encontrar com
seu nome estão todos desativados. Não estou descartando a
possibilidade de mudar de ideia, mas por ora, pelo menos, vou desistir.
Havia coisas que eu queria te contar naquela tarde que não consegui
falar. Eu disse para mim mesmo que foi porque eu esperava que
fôssemos Eu e Você, mas acabou sendo Eu e Você e Lenny. E, assim,
acabei acompanhado de dois estranhos em vez de uma. Só que isso pode
ter sido apenas uma desculpa. Você é minha única filha e eu nunca fui
como um pai para você. Não sei como um pai deve dizer coisas
emocionadas ou expressar arrependimento ou fazer um elogio.
Então aqui vai, no papel, o que não parece tão assustador assim.
Eu não estava ciente da sua existência quando você nasceu. Depois
que soube de você, tinha a intenção de ser um bom pai. Para dizer de
forma clara, sua mãe tornou isso impossível.
Ela não aceitou dinheiro. Não quis considerar uma amizade. Eu
passei uma década tentando fazer as pazes com ela, mas a verdade é que
eu tinha bem pouco a dizer. Nós dois tivemos nossos motivos para o que
aconteceu naquela noite e nas poucas semanas seguintes. Não vou
presumir saber os dela, mas, em minha defesa, eu não fiz nenhuma
promessa nem a enganei intencionalmente. Ela teve o que muitas
pessoas desejam, alguns minutos de fama nos braços de uma pessoa
famosa. Ela nem me conheceu e eu nunca a conheci. Gostaria de pensar
que nós dois recebemos algo de que precisávamos em um período
específico das nossas vidas, mas temo que a reação da sua mãe aos meus
gestos repetidos tenha dito o contrário.
Pode parecer injusto da minha parte falar assim de uma mulher que
não está mais neste mundo para se defender. Não desejo ser cruel. Outra
coisa que eu queria fazer (mas não fiz) era oferecer minhas condolências
a você. E queria dizer que sei como é ser órfão. É possível que você se
sinta sozinha no mundo. Eu também entendo um pouco disso. Acho que
pensei que poderíamos nos aproximar por causa das nossas tragédias
específicas, mas acabei falando dos meus cachorros e do tempo, e você
ficou olhando para os ovos e nem tocou neles.
Você é minha única filha. Queria que você soubesse algumas coisas
sobre mim. É verdade que eu sempre uso chapéu de caubói, mas não sou
o homem estoico e sério que tantas vezes interpretei. Eu gosto de
caminhar nas colinas que ficam atrás da minha casa. Eu amei
profundamente, mas tive esperança de conseguir um tipo de amor
diferente.
Há uma conta bancária em seu nome no Northern West Credit
Union. Vá até lá e procure Terrence Webber. Ele vai te dar acesso a essa
conta. Se você não quiser o dinheiro, dê para Ava. Pode parecer
insensibilidade dar tanto a você. Não pense nisso como uma tentativa de
comprar seu amor ou seu perdão. Apesar da noção idealista de que
dinheiro não compra felicidade, ele pode abrir portas. Eu espero, minha
filha (se você me permitir te chamar assim só desta vez), que as portas
se abram para você durante toda a sua vida.
Com carinho,
Clyde

– Então você tinha razão – diz Charlotte. – Caroline Maddox era


filha dele.
– Que tragédia – digo.
– Tão amargo – diz Charlotte.
– Tão arrependido.
Charlotte assente.
– Parece que ele quer contar tudo para ela, mas não diz nada.
– É mesmo. Eu uso chapéus de caubói? Gosto de caminhar? – Pego a
carta de novo. A caligrafia dele é cuidadosa e trêmula e tudo é
caprichado, como se ele tivesse feito vários rascunhos. – Quem é
Lenny? Quem é Ava?
Charlotte balança a cabeça.
– Não sei.
No fim do quarteirão, dois homens saem gritando de uma loja de
bebidas. Eles riem, entram no carro e vão embora.
– Ele nem soube que ela tinha morrido – digo.
Nós voltamos para o estúdio para buscar meu carro e seguimos uma
atrás da outra até o apartamento do Toby, onde nossos pais nos
deixaram ficar de novo hoje, e onde pretendemos ficar pelo tempo que
Toby estiver longe.
Enquanto dirijo sozinha, não consigo deixar de pensar em como o
dia está triste. Toby viajou, Morgan não me ama, Clyde Jones teve uma
filha chamada Caroline que cuidava do jardim de Frank e Edie e tinha
problemas com homens e drogas e nunca recebeu a carta do pai nem
todo o dinheiro que a poderia ter ajudado.
E eu tinha certeza de que tudo aquilo significaria alguma coisa para
mim também. Que vagar pela casa de Clyde havia resultado em algo,
da nossa descoberta acidental. Mas agora é só mais uma coisa que
chegou ao fim.
E só mais tarde, depois de ver Terras baixas, com a brisa quente
entrando pela porta da cozinha e nossos copos pela metade com o chá
etíope de Toby, é que Charlotte diz:
– O que foi que Edie disse? As drogas e os homens e aquela bebê?
Será que Ava é a neta do Clyde?
Capítulo três

Charlotte e eu estamos sentadas em bancos no pátio da escola de


shorts curtos e top, conectadas na rede da escola, procurando Ava.
Começamos tentando encontrar o obituário de Caroline, porque
não sabemos o sobrenome de Ava, nem se Ava é mesmo filha de
Caroline. Mas procuramos no arquivo on-line do Los Angeles Times,
depois no do Long Beach Press-Telegram, e nenhum dos dois chega aos
anos 1990.
– Vamos pesquisar Ava Maddox – digo.
Não parece que Caroline fosse casada, e pelo que Edie disse, todos
aqueles homens, também não parece que ela tinha um relacionamento
sério.
Charlotte digita o nome dela e um momento depois descobrimos
que há nove Ava Maddox listadas no país, e uma delas por acaso mora
em Los Angeles, na avenida Waring, que não é tão perto, mas também
não tão longe. Talvez a uma distância de vinte minutos de carro pela
cidade na direção nordeste.
– Será que a gente devia ir lá? – pergunto.
Ela clica em um ícone que promete nos contar mais sobre Ava, mas
descobrimos que querem nos cobrar por isso.
– Quarenta dólares? – digo. – Não, obrigada. Vamos logo.
– Tudo bem – diz Charlotte. Nós nos levantamos e ela coloca o
notebook na pasta e depois na bolsa. Combinamos de nos encontrar
no meu carro depois de terminarmos nossas provas, as últimas do
semestre, as últimas da nossa vida no ensino médio.
A caminho da aula de matemática pela última vez, sinto uma
batidinha no ombro e me viro. Dou de cara com Laura Presley me
oferecendo seu anuário.
– Pode assinar? – pede, toda sedutora e fofa e meio nervosa.
Eu forço um sorriso e digo que claro.
– Mas como eu vou pegar de volta com você?
A melhor amiga dela, que é da minha turma de matemática, diz:
– Emi pode me dar quando ela acabar?
– Perfeito! – diz Laura, como se fosse uma ideia nova e não um
plano que elas tivessem elaborado antes de me abordar.
Pego o anuário com ela e entro na aula, apesar de saber que não vou
assinar. Eu nunca gostei tanto da escola e não ligo para esses livros
feitos para celebrá-la, e se Laura quer algum tipo de encerramento,
nós podemos nos encontrar e rir sobre as coisas um dia. Houve uma
época em que eu acharia que não havia motivo para rir, mas faz muito
tempo que as coisas entre nós terminaram.
Foi Laura que me fez jurar que não ficaria mais com garotas do
ensino médio. A versão resumida é que eu sempre amei beijar. Beijei
mais garotos no fundamental do que consigo contar. (De um jeito
puramente inocente, aliás. Nunca passou disso.) E aí, beijei Tara
Ryland atrás do prédio de ciências no nono ano. Quando nossas bocas
se afastaram, ela ficou me olhando com cara de Quê? E eu fiquei
olhando para ela com cara de Meu Deus do céu. Mas estávamos
reagindo a coisas diferentes. Tara estava chocada porque em um
momento nós estávamos recolhendo amostras de terra para medir a
mineralidade do solo e no seguinte ela estava beijando uma garota.
Mas para mim foi diferente. Eu passei por cima da noção de que ela
era uma garota e só pensei A sensação é pra ser essa? Porque não foi só o
fato de ela beijar bem (e ela beijava bem), foi o fato de que o beijo me
deixou trêmula, e àquelas alturas eu já estava quase imune a beijos. E
aí, as garotas começaram a fazer fila para me beijar. Aquilo deixou
Charlotte louca. Ela revirou os olhos por um ano inteirinho. No meio
disso tudo, só por uns dois meses, eu surpreendi todo mundo saindo
com Evan Haas. O que posso dizer? Ele tinha alguma coisa.
E aí, Laura desceu do pedestal das pessoas populares. Ela queria
beijar e ficar de mãos dadas nos corredores. Queria sair do grupo dela
para se sentar comigo e Charlotte no almoço, mas de preferência só
eu. Queria ficar de amasso comigo nas festas, em banheiras de
hidromassagem, enquanto os outros olhavam. E, tudo bem, foi
divertido por um tempo sim, mas eu estava começando a me
apaixonar por ela e não queria que virasse um espetáculo.
Então agora, em meio a problemas de matemática, dou uma pausa
para a minha mão que não parava de escrever números e penso
naquelas noites e naqueles dias com a Laura. Nos últimos meses, todo
mundo anda ficando sentimental com o fim do ensino médio, e acho
que essa é a minha versão disso. No fim da prova, estou repassando a
tarde em que íamos de carro até a praia passar um tempo lá e ela disse:
– Ou a gente pode ir à festa do Alex. Vai ser uma loucura. – Ela falou
isso enquanto segurava meu quadril e me puxava para perto, bem na
frente do Alex e dos amigos dele. Eu afastei a mão dela e dei um passo
para trás.
– Vamos esquecer isso tudo – falei.
Eu estava falando dos planos para aquele dia. Eu estava falando dos
raros momentos em que de fato parecíamos estar em um
relacionamento. Eu estava falando do total desespero das garotas de
ensino médio que não sabiam o que queriam.
Isso foi no segundo ano, e, alguns meses depois, quando o terceiro
começou e Laura ainda sorria para mim de um jeito triste todas as
vezes que nos encontrávamos no corredor, eu falei para Charlotte:
– Estou achando que ela talvez tenha mesmo gostado de mim.
– Claro que ela gostava de você – disse Charlotte. – Ela só não sabia
o que fazer com isso.
Àquela altura, eu já tinha conhecido Morgan e estava passando todo
o tempo acordada tentando fazer com que ela reparasse em mim,
então registrar isso sobre a Laura acabou sendo uma coisa pequena,
mas uma coisa mesmo assim.
Duas horas e 65 problemas depois, vou até a frente da sala e entrego
a prova para o professor. Ele está curvado sobre a mesa, vendo vídeos
em silêncio no notebook. De volta à minha carteira, surpreendo a mim
mesma pegando uma caneta vermelha na mochila e abrindo o
anuário da Laura em uma das primeiras páginas. Não vou escrever
nada sentimental, mas posso dar algo a ela em nome da nostalgia.
Então escrevo em letras grandes: Te beijar foi muito divertido. Eu
desenho um coração ao lado do nome dela.
E saio da escola para procurar Ava.

– O que a gente vai dizer quando chegar lá? – pergunto a Charlotte.


Estamos a poucos quilômetros, percorrendo o trânsito lentamente,
torcendo para não fechar o cruzamento quando o sinal ficar vermelho.
– Vamos só perguntar se Ava está.
– E se estiver?
Ela morde o lábio, um sinal familiar de que ela está ponderando.
Costuma ser seguido por alguma coisa brilhante, então eu só dirijo e
deixo que ela pense.
– Nós sabemos que ela era um bebê em ١٩٩٥, então ela pode ter a
nossa idade. Se for mais velha, vamos dizer que é a Ava errada e vamos
embora. Mas, se ela for da nossa idade…
– E se ela não souber que é adotada?
– Eu acho que ela vai saber. O sobrenome dela é igual ao da mãe. E
acho que as pessoas não guardam mais segredo sobre isso.
– Espero que não – digo –, porque seria bem estranho. Esta é a
Waring, à esquerda.
Encontramos a casa, pequena e azul, com suculentas no jardim da
frente. Estacionamos e tiramos os cintos de segurança, mas nenhuma
de nós se mexe para sair do carro. Eu me encosto. O para-brisa reflete
a árvore acima de nós: galhos e folhas e o asfalto pelo vidro.
– Se ela for da nossa idade – diz Char –, vamos perguntar se o nome
da mãe dela era Caroline. Se ela disser que sim, ela sabe mais da
história do que nós, e podemos dizer que temos uma coisa que
pertence a ela, entregar o envelope e dizer que ela pode nos ligar se
tiver perguntas.
– Aí a gente vai embora? – pergunto.
Ela faz que sim.
– Se ela disser que não, que Caroline não era o nome da mãe dela, a
gente agradece e vai embora.
– Mas e se ela disser não porque não sabe sobre Caroline ou porque
não sabe quem nós somos nem porque estamos perguntando essas
coisas? E se nós acharmos que é a Ava errada, mas for a certa?
Charlotte morde o lábio de novo.
Por fim, diz:
– Não sei. A gente vai ter que ver o que acontece hoje e improvisar a
partir daí.
Ela abre a porta do carro e eu faço o mesmo, e a sigo pelo caminho
até a entrada. Charlotte bate e nós duas esperamos até ouvirmos uma
voz de criança do outro lado, perguntando quem é.
– Charlotte e Emi – diz Charlotte. Ela me olha pedindo ajuda, mas o
que mais nós podemos dizer?
– Nós estamos procurando Ava? – digo, mas sai como uma pergunta.
Uma fresta da porta se abre e uma garota espia antes de a abrir por
inteiro. Ela tem cabelo escuro comprido preso em marias-chiquinhas e
uma expressão intrigada.
– Sou eu – diz ela.
– Você é Ava? – pergunta Charlotte.
– Sou.
– Quantos anos você tem?
– Oito.
– Dez anos nova demais – murmura Charlotte.
– Desculpa – digo. – Parece que encontramos a Ava errada.
A pequena Ava dá de ombros.
– Tudo bem – diz. – Tchau.
A porta se fecha.
– Bom – diz Charlotte quando nos viramos e descemos os degraus
na direção do carro esperando na sombra. – A gente tem que ir à
biblioteca.
– Biblioteca?
– Tem coisas que não dá pra achar on-line, por mais dinheiro que a
gente gaste.
– Mas sério? Você acha que a gente consegue encontrar respostas na
biblioteca? – Estou duvidando, mas Charlotte tem muita fé na coleção
e preservação de coisas, e se ela quer ir à biblioteca, eu vou com ela.

Acontece que 1995 é praticamente a pré-história. Antiguidade a ponto


de termos que passar folhas marrons de filme exibindo obituários de
jornal em uma máquina primitiva e depois inserir moedas de 25
centavos para fazer a tela se acender. Com ajuda de um bibliotecário
gatinho e tatuado chamado Joel que a faz corar quando se inclina
sobre ela para mexer na máquina, Charlotte começa pelo dia 1o de
outubro no Los Angeles Times. Joel me coloca em uma máquina ao lado
de Charlotte e me dá o Los Angeles Herald-Examiner, que logo percebo
que é o jornal inferior.
– Nem é mais jornal – digo quando Joel volta para o balcão de
informações. – Está na cara que sou a ajudante nesta investigação. Vou
me dedicar altruisticamente ao Herald-Examiner enquanto você
encontra a resposta no Times e leva toda a glória.
Charlotte sorri e muda de slide.
Estou apenas no dia 5 de outubro quando o tempo comprado pela
minha moeda acaba e minha tela fica escura.
– Eu achava que as bibliotecas ofereciam informações sem cobrar –
sussurro.
Charlotte me ignora. Eu procuro eternamente. Deveria haver um
jeito mais eficiente de fazer isso.
– Por que a gente tem que procurar por data? Devia dar pra
procurar por nome.
– Jornais não funcionam assim – diz Charlotte, e percebo que ela
está ficando cansada de mim.
Uma hora depois, ela passou por outubro inteiro e suspira,
derrotada.
– Minha mãe quer que eu vá para casa hoje – diz. – Ela está
reclamando sobre eu ficar na casa do Toby o tempo todo antes de ir
pra faculdade.
– É compreensível – digo. Meus pais não estão preocupados demais
com isso, mas eu vou fazer faculdade em Los Angeles mesmo,
morando com eles para economizar. Charlotte vai mesmo embora. –
Vou ver se meu pai pode nos ajudar.
Charlotte parece cética.
– Estou com a sensação de que chegamos em um beco sem saída –
diz ela. – Não sei se vamos encontrá-la.
– Você está com essa sensação porque acabou de ler centenas de
obituários. É deprimente. Mas a gente vai encontrar ela – digo. – Só
precisamos abordar isso por um novo ângulo.
A mãe de Charlotte a busca, mas eu continuo procurando,
colocando filmes na máquina e inserindo moedas. Percorro setembro
e termino sem nada para recompensar minha paciência e a fé de
Charlotte na antiguidade. Eu ainda tenho o trabalho do estúdio para
fazer, então vou até Joel e peço o jornal do dia, que, felizmente, é no
formato normal, de papel. Sento-me à mesa comprida e reluzente e
começo a tarefa semanal de mapear minha agenda matinal de sábado
de bazares de garagem e venda de propriedades.

Meus pais pediram comida do Garlic Flower, e eu beijo minha mãe na


bochecha enquanto ela fala ao telefone com um colega, pego um prato
e um garfo e empilho arroz e frango com alho no prato. Meu pai está
vendo um reality show sobre mulheres ricas. É o tipo de coisa ridícula
que se faz por dinheiro quando se é professor de cultura pop.
– Pai? – digo. – Preciso desabafar. A mamãe está no telefone.
Ele coloca a televisão no mudo.
– Sua mãe acabou de ler um artigo da New Yorker sobre cineastas
afro-americanos emergentes e está tentando convencer todos a
falarem na aula dela no mestrado – diz meu pai. – Fala comigo.
Minha mãe também é professora, de estudos negros e estudos de
gênero, o que basicamente significa que enquanto meu pai observa
tudo de cultura pop com alegria palpável, minha mãe observa e
oblitera tudo com a teoria que melhor se adequa ao tópico dela. E,
considerando o sujeito que estou prestes a abordar, talvez o ícone mais
branco, mais hétero e mais conforme os padrões normativos de gênero
de todo o cinema americano, meu pai parece ser a melhor opção
mesmo.
– Tudo bem – digo. – Começa com Clyde Jones.
– Estou intrigado.
Conto para ele a história desde o começo: a ligação de Charlotte,
que aconteceu no momento perfeito porque significou que eu não
veria Morgan; todas as coisas legais na casa dele, a fivela de cinto do
Toby e Patsy Cline; e, por fim a carta; e Frank e Edie; e a biblioteca e
todos aqueles obituários de todos os jornais.
– Você sabe quantos jornais tem em Los Angeles? – digo.
– Eu sei de alguns – diz ele. – Então Clyde Jones tinha uma filha
chamada Caroline, que morreu em um apartamento na avenida Ruby.
E você precisa saber mais sobre ela pra encontrar alguém chamada
Ava, que pode ou não ser filha dela.
– Exatamente – digo. – E por que é tão difícil? Por que eu não posso
simplesmente procurar “Caroline Maddox” e encontrar um obituário?
Meu pai coça a barba de um jeito pensativo que é tão
cinematográfico que preciso me esforçar para não rir.
– Por que você quer encontrar a filha?
– Pode ainda ter dinheiro naquela conta que pertence a ela.
Ele ergue uma sobrancelha e eu tento de novo.
– Pareceu ser uma coisa importante para o Clyde.
Ele continua não parecendo convencido.
– Tudo bem – digo. – Olha. É importante pra mim. Eu sinto que é
importante.
Ele parece satisfeito com essa resposta.
– E como você sabe que Caroline morreu em setembro ou outubro
de 1995? – pergunta.
– Edie falou alguma coisa sobre os Dodgers perderem na fase
eliminatória.
– Isso mesmo – diz ele. – Três a zero.
– Você tinha que ouvir essa mulher falar – digo. – Ela é ótima. “Eu
disse que queria o sem recheio” – imito. Ele ri e eu continuo. – “Você faz
compras no Vons de Wilshire? Tem uma parte de delicatéssen boa.
Mas é cheio demais.” – Ele ri de novo. – “Os Braves ganharam de três a
zero. Três a zerinho. Foi horrível!”
– Espera – diz ele. – Os Braves?
Eu como uma garfada do jantar e faço que sim enquanto mastigo.
– Eles perderam para os Braves em 1996. Não 1995.
Engulo.
– Tem certeza?
– Tenho. Os Dodgers perderam de três a zero nas eliminatórias em
1995 para os Reds e de novo por três a zero para os Braves em 1996.
Parece que Edie confundiu os anos.
Eu paro de mastigar. Fico olhando para ele.
– Tem certeza?
– Emi – diz ele, batendo com o dedo na cabeça. – Tem todo um
mundo da história de Los Angeles aqui. Eu tenho certeza absoluta.
Mesmo assim, corro para o computador para verificar. E, momentos
depois, encontro no site da Major League Baseball. Dodgers contra
Braves, três a zero, 1996.
Solto um grunhido segurando a cabeça nas mãos.
– Por que a gente não verificou isso antes de passar o dia todo na
biblioteca?
– Ei, pelo menos você tem uma direção nova – diz meu pai.
– Pra você é fácil falar. Você gosta dessa coisa de pesquisa.
– Verdade – diz ele.
Pego o celular e mando uma mensagem para Charlotte.
Os Braves venceram os Dodgers em 1996. Biblioteca de novo às 14h?
Capítulo quatro

Depois de sete semanas, 52 bazares de garagem e dezesseis visitas a


propriedades, o impossível acontece: eu encontro o sofá.
Está no andar de cima de uma casa em Pasadena, minha quarta e
mais distante parada da manhã, em um closet adjacente ao quarto
principal.
Passo em meio aos montes de pessoas para chegar à mulher
responsável e digo que vou comprar.
– O do quarto de vestir?
– É – digo.
– Hum. – Ela franze o rosto. – Aquele está reservado.
Dou uma risada porque o universo deve estar fazendo uma
pegadinha comigo. Mas ela não abre nem um sorrisinho e eu fico
séria.
– Não havia indicação de estar reservado – digo.
– Eu sei, mas uma das minhas clientes declarou interesse na prévia.
– Declarou interesse? Isso não é reservar. Ela pagou depósito?
– Não.
– Então eu posso comprar. Posso pagar agora.
– Por que você não vem ver de tarde?
– Eu pago o dobro – digo.
– Tudo bem – diz ela. – Mas preciso que seja tirado daqui
imediatamente. Não quero que esteja aqui quando ela vier mais tarde.
Assim, posso botar a culpa em outra pessoa. Você tem transporte?
Faço um ruído de deboche, como se fosse uma pergunta ridícula. É
um ruído que diz Claro.
Enquanto os assistentes dela descem com o sofá, ligo loucamente
para todos os compradores cujos números estão salvos no meu celular.
Mas só cai em uma caixa postal atrás da outra e começo a entrar em
pânico. Os assistentes me perguntam onde está o transporte, e eu digo
que ele está chegando.
– Podem deixar aqui – digo, e eles o colocam na grama seca do
jardim, perto da calçada.
Eu me sento no estofado e tento o número seguinte. Assim, se a
mulher chegar, vou simplesmente me recusar a me levantar. Vou estar
pronta para canalizar Clyde Jones. Se quiser o sofá, vai ter que passar por
cima de mim primeiro.
Mas logo os números acabam. Acho que ninguém quer trabalhar
num sábado, mas, fora os compradores de estúdio, só conheço uma
pessoa com veículo capaz de transportar um sofá. Escuto Charlotte me
dizendo que preferiria alugar uma picape a me ver ligando para pedir
a ajuda de Morgan, e ela estaria certa de dizer isso, mas não posso
correr riscos com esse sofá. É tudo que eu esperava que fosse, só que
melhor: de um verde intenso e macio, com umas folhas douradas
bordadas, tão delicadas que não reparei logo quando o vi do outro
lado da sala. Na primeira cena na sala de música, quando a filha está
ensaiando, vai parecer bonito e simples. Mas, mais tarde, quando ela
estiver deitada sob o peso do garoto e houver closes das mãos ou pés
ou do rosto deles, as pessoas vão ver os fios e as folhas. Consigo
imaginar o cabelo da garota caindo pela lateral, se misturando com o
dourado, como se ela estivesse no meio de uma floresta. Tem algo de
contos de fadas nisso, o que é perfeito, porque contos de fadas têm a
ver com inocência e maldade e a inevitabilidade de coisas terríveis.
Têm a ver com o momento em que a garota deixa de ser quem ela era
antes, e, com isso em mente, abro mão de todas as dúvidas e o que me
restava de dignidade e ligo para Morgan.
Ela atende no terceiro toque.
– Encontrei um sofá – digo. – É perfeito. Por favor, me diz que
consegue me ajudar a levar para o estúdio.
– Onde você está?
– Pasadena – digo.
– Pasadena?
– É – digo. – Desculpa. Mas o sofá é incrível. É um sofá único, o
melhor sofá da história, o…
– Tudo bem. Estou num brunch com um pessoal. Estou pagando a
conta. Me manda o endereço por mensagem.
Eu desligo e mando a mensagem, depois me deito no sofá e olho
para o céu limpo. O tempo passa e as pessoas passam, carregando os
resquícios da vida de uma mulher morta. Eu me permito imaginar
Morgan me dizendo que me quer de volta. Tento limitar essa fantasia
específica a duas ou três vezes por dia, senão fica difícil prestar
atenção às pessoas e às coisas ao meu redor. Tive sorte de ter a busca
pelo sofá e Caroline Maddox como distrações, mas agora eu tenho o
sofá e estou começando a concordar com Charlotte que Ava talvez seja
causa perdida, e onde é que eu fico nisso? A resposta é simples: vou
ficar com momentos demais como aquele, deitada em algum lugar,
minha mente ocupada pelo som de Morgan dizendo Eu te quero de
volta (uma frase que não é difícil de imaginar porque já aconteceu
cinco vezes na vida real), colocando as mãos na minha cintura e me
puxando para perto, me beijando daquele jeito apaixonado que diz Eu
nunca achei que poderia te beijar de novo, e agora que eu tenho você, não vou
te largar mais.
Estou absorta nesses pensamento quando o rosto de Morgan
aparece acima de mim. Ao lado dela tem uma mulher que não
reconheço.
Eu me sento.
– Não é ainda mais maravilhoso do que você pôde imaginar?
– É lindo – diz Morgan. – Vai ficar ótimo nos closes.
Apesar de ela estar dizendo as coisas certas, eu quase desejo que
não estivesse. Outra pessoa poderia ver isso ao ar livre em uma manhã
de sábado ensolarada de Los Angeles e pensar que é só um sofá, o que
restou de uma venda de propriedade, nem mais nem menos especial
do que um outro sofá qualquer. Mas Morgan entende que é ainda
mais especial.
– Esta é minha amiga Rebecca.
– Oi, Rebecca. – Eu canalizo Charlotte e estico a mão como uma
profissional, tentando não me perguntar se Rebecca tem alguma
relação com a vastidão.
– Morgan me falou de você – diz Rebecca.
– Ah.
– Coisas boas – diz ela.
– Que bom.
Fico confusa demais para dizer qualquer outra coisa. Morgan falou
de mim para ela porque ela é a namorada nova? Falou que eu sou
ótima por pena?
– Vocês devem ter coisas pra fazer – digo, e pego um dos braços
lindos do sofá. Eu me sinto muito jovem e muito boba e desesperada.
Queria ter um suprimento infinito de amigos com picapes. Queria não
precisar dela. Queria ter ligado para Charlotte, para que ela pudesse
ter alugado um veículo. Esse é o trabalho de Charlotte, afinal:
providenciar coisas. Por que eu não deixei que ela fizesse o trabalho
dela?
Nós três carregamos o sofá para a caçamba da picape azul de
Morgan e o erguemos com toda nossa força. Empurramos o sofá para
dentro.
– Vou seguindo vocês – digo, e me viro e entro no meu carro antes
que elas possam dizer alguma outra coisa para mim.

~
No caminho até o estúdio, tento pensar nas vastas possibilidades da
vida. Não para me torturar, porque não sou esse tipo de garota. Mas
como meio de tentar superar Morgan. A vida é vasta. Muitas coisas são
possíveis. Morgan estava certa sobre isso. Então, mesmo que ela esteja
saindo com Rebecca agora, talvez o mundo não tenha acabado para
mim. Ainda há Ava Maddox para serem encontradas e cenários para
serem criados e garotas para serem beijadas e faculdades para serem
frequentadas. É possível que um dia eu escute uma música de Patsy
Cline e a dor no coração passe quase despercebida. Vai ser uma
sensação distante, sufocada. Eu não vou lembrar como já doeu.
Quando chegamos, estou determinada a entrar e sair do estúdio
sem chorar. Paro mais perto da entrada do que o de costume porque
não tem quase ninguém lá, e ignoro as risadas residuais de Morgan e
Rebecca quando elas saem da picape. Abaixo a porta de trás e começo
a puxar o sofá, que é incrivelmente fofo e macio. Quando o colocamos
na sala de música, essa sala que eu criei, torna-se oficial: aquela é a
sala perfeita, com o sofá perfeito, o cenário perfeito para um coração
partido.
Morgan recua e analisa, mas Rebecca anda pelo local, prestando
atenção às partituras e porta-retratos e pôsteres e troféus e tapetes.
– Você fez isso? – Ela toca no alto da estante de partituras.
Faço que sim.
– O sofá combina muito com a sala. Parece autêntico. Como você
encontrou?
– Eu procurei por muito tempo – digo. – Fui a 52 bazares de garagem
e visitei dezesseis propriedades.
– Você deve ter visto muitos sofás bonitos.
– Vi – falei. – Mas eu sabia o que queria.
Rebecca se vira para Morgan e abre um sorriso que diz alguma
coisa. Não é uma língua que eu conheça, mas não parece pena, então
não deixo que me abale.
– Vou ligar para o Theo – diz ela para Morgan. – Foi muito legal te
conhecer – diz para mim. Ela me encara. Aperta a minha mão de novo.
Reparo que ela é alguns anos mais velha do que Morgan, mas isso, em
si, não quer dizer nada.
Ela se afasta e eu pergunto:
– Quem é Theo?
– Namorado dela – diz Morgan. – Por quê?
– Por nada – digo, olhando para o rosto dela pela primeira vez no
dia. Ela me olha também. Percebo que gosta do que vê.
– Quer ver em que estou trabalhando? – pergunta, indicando o lado
mais distante do cenário, onde ela está construindo o quarto do
irmãozinho.
Eu pego o celular; já deu uma e meia.
– Queria poder – digo –, mas tenho que me encontrar com
Charlotte na biblioteca.
Ela ri como se soubesse que eu estou bancando a difícil, e tenho que
admitir que a sensação de dizer não para ela é boa.

Às ١٦h٤٦, com Charlotte na máquina ao meu lado revirando o Los


Angeles Times, eu encontro o obituário de Caroline Maddox no Long
Beach Press-Telegram.
O nome dela aparece ao lado de uma fotografia pequena e
granulada.
– Char – digo, e deve haver algo no jeito como falo que lhe revela
que eu encontrei, porque ela suspira e diz:
– Até que enfim.
Ela puxa a cadeira para perto de mim. Nós lemos juntas.
Caroline Rose Maddox faleceu no dia 7 de outubro de 1996.

Nascida em Beverly Hills em 1974, ela passou a vida sonhando em

ser atriz. Fez pequenas pontas em dezenas de filmes, incluindo A


inquietação, dirigido por Scott Bennings, no qual fez uma garçonete
na cena de clímax. Além de atuar, Caroline era uma talentosa

jardineira e amiga compassiva e legal. Ela deixa uma filha de quatro

meses, a melhor amiga, Tracey Wilder, e as centenas de pessoas

cuja vida ela abrilhantou com sua presença.

– Isso é muito triste – digo.


– Essa coisa de atuar?
– Tudo. O fato de ela ter morrido, acho. E a parte de atuar.
– Todo mundo morre – diz Charlotte.
– Bom, é verdade.
– Desculpa. É que a parte de atuar me parece o pior. Ela era
figurante. A personagem dela nem tinha nome, mas foi a maior
realização dela.
– Espero que ela tenha sentido orgulho disso – digo. – A gente devia
procurar o filme. A inquietação? Eu nunca ouvi falar.
Charlote pega o notebook e transcreve o obituário palavra por
palavra.
– O nome da Ava nem aparece – digo. Eu leio de novo. – Quem você
acha que escreveu?
Charlotte morde o lábio.
– Eu diria que Tracey Wilder – diz. – É a única pessoa citada pelo
nome.
– Ei – digo. – A gente deveria procurar Ava Wilder. Faria sentido,
não faria? Se eu tivesse uma filha e morresse, você a adotaria, né?
– Acho que seus pais ou o Toby provavelmente…
– Mas se eu não tivesse pais nem irmão. Se Clyde Jones fosse meu
pai, mas você nem soubesse disso. Se, até onde você soubesse, eu não
tivesse ninguém além de você. Você a adotaria, né?
– Claro – diz ela, começando a procurar Ava Wilder.
Três nos Estados Unidos. Uma em Leona Valley, uma cidade quase
no deserto.
Olhamos a tela.
– Procura a Tracey – digo.
As mãos de Charlotte voam no teclado.
Vinte e uma Tracey Wilders nos Estados Unidos. Charlotte começa
a descer a lista e eu vejo antes dela.
– Ah, meu Deus – digo, e Charlotte solta um ruído de espanto
quando percebe: Tracey Wilder, Leona Valley, Califórnia. Ao lado do
nome dela tem um número de telefone.
– Vamos ligar pra ela.
– Tracey ou Ava? – pergunta Charlotte.
– Ava – digo. – Definitivamente. Clyde queria que a carta fosse
entregue para Caroline, mas disse que ela podia dar o dinheiro para
Ava. Tracey não tem nada a ver com isso.
Pegamos nossas coisas e Charlotte devolve o microfilme para Joel, o
bibliotecário gatinho, e andamos apressadas para a saída.
– Você liga – digo.
– Tudo bem – diz ela –, mas vamos para o carro para ter silêncio.
Na garagem, não temos sinal, e eu tenho que dirigir para a rua; e
apesar de a habilidade de Charlotte de ter uma conversa telefônica
bem-sucedida não exija minha atenção total, eu paro em uma zona de
carga e descarga porque estou nervosa demais para dirigir.
Ela liga para o número e eu chego perto o suficiente a ponto de
ouvir a voz de um garoto dizer oi.
– Oi – diz ela. – Meu nome é Charlotte. Ava por acaso está em casa?
Há uma pausa e o garoto diz:
– Não está.
– Você pode anotar um recado?
– Ava, hum… quer dizer, até posso. Mas não sei quando ela vai
receber.
– Ah – diz Charlotte.
– Ela não mora mais aqui.
– Tem algum outro jeito de falar com ela? Outro número?
– Eu não sei onde ela está – diz ele.
Charlotte morde o lábio.
– Eu posso anotar seu número e, se falar com ela, passo pra ela, mas
não sei quando ela vai receber – diz ele.
– Tudo bem – diz Charlotte, e deixa o número com ele.
– Eu passo pra ela. Se ela ligar, claro.
– Tudo bem – diz Charlotte de novo. Percebo que ela não quer
desligar e eu também não quero que ela desligue.
– Tchau – diz o garoto.
Ela não diz nada, mas logo há um clique.
E agora, somos só Charlotte e eu, estacionadas num local proibido
no centro de Los Angeles, todas as respostas perdidas na vastidão.
Capítulo cinco

Na segunda-feira, vou direto para o quarto em que Morgan está


trabalhando. Tem um limite até onde posso bancar a difícil. Na
verdade, eu sou bem fácil. E fico pensando que ela dirigiu até
Pasadena para pegar o sofá, e que ela fica dizendo coisas legais sobre
mim para a Rebecca que tem namorado, e que ela quer me mostrar o
espaço em que está trabalhando, porque gosta do trabalho e sabe que
eu também gosto e que estamos alinhadas nisso da mesma forma que
em tantas outras coisas.
Ela está de costas para mim quando entro no cenário. Ela está
colocando papel de parede, passando a esponja nos cantos de um
painel para alisá-lo.
– Que lindo – digo, porque é mesmo. O papel tem estampa de um
céu noturno, painel atrás de painel, com estrelas brilhantes formando
constelações. É perfeito para o garotinho, que tem interesse em
ciências e cujo quarto aparece principalmente em cenas noturnas.
Ela se afasta e sorri para mim. Permito-me notar como os braços
dela estão bonitos aparecendo no top, bronzeados e fortes, mas ainda
inconfundivelmente são os braços de uma garota. E porque a sala de
música está pronta e eu sabia que não faria nada muito manual hoje,
vesti uma saia e uma blusinha para exibir minha feminilidade
também.
– Eu estou fazendo pequenas tarefas hoje – digo. – Mas queria dar
uma olhada. Porque não deu pra ver no sábado.
– Isso mesmo – diz ela. – Você e Charlotte tinham uma festa na
biblioteca.
– A gente foi fazer uma coisa bem interessante – digo.
– Posso imaginar. – Ela volta ao trabalho, e vejo as mãos dela
esticarem as espirais e as estrelas.
À direita tem um beliche feito de madeira clara.
– Você fez isso? – pergunto, e ela assente.
Subo a escada e me sento na cama de cima. Seria tão fácil esquecer
que ao nosso redor as pessoas estão trabalhando, levando caixas com
árvores plantadas para ficar do lado de fora das janelas, pintando
cenários e montando móveis, supervisionando e analisando e tendo
conversas. Tão fácil porque aqui tem uma cama de beliche com o
lençol bagunçado, aqui tem um modelo de balão pendurado no teto,
aqui tem uma parede branca ficando cada vez menos branca conforme
Morgan vai aplicando tiras de papel de parede azul-escuro. É tudo
fantasia, então é fácil se perder nela por alguns minutos.
– Sempre quis saber como seria estar na cama de cima – digo,
apesar de a ideia nunca ter passado pela minha cabeça.
– E aí?
– É ótimo – digo. – Tão confortável. Você não subiu aqui?
– Não desde que terminei de construir.
– Por que você não vem?
Ela sorri e faz que não.
– O que você vai fazer mais tarde? – pergunto, tentando ignorar a
reprovação inevitável de Charlotte. Eu já tive que me explicar sobre o
encontro de sábado de manhã.
– Tenho planos – diz Morgan.
– Que tipo de planos?
– Hum – diz ela. – Não sei se você vai querer saber.
– Ah – digo, e o mundo glorioso de beliches de garotinho e mãos
alisando estrelas e braços lindos e saias curtas se desintegra.
Dispenso a escada e desço com um pulo.
– Bom, divirta-se.
– Em – diz ela. – Sinto muito se isso é difícil.
– Tudo bem.
– Não, sério. – Ela coloca a esponja de lado e se apoia na cama
enquanto me olha. – Eu gosto mesmo de você; só não posso me
prender agora.
– Que coisa mais clichê de se dizer – falo para ela. – Se eu visse isso
num roteiro, eu riria.
Ela dá de ombros.
– É como me sinto agora. Quando você estiver pronta pra sair
comigo como amiga, eu vou adorar.
Meu celular vibra e eu olho a tela. É Charlotte: O sofá não era verde?
– Charlotte chegou – digo. – Tenho que ir.
– Tudo bem – diz Morgan. – Obrigada por passar aqui. E minha
amiga Rebecca talvez queira falar com você. Eu dei seu número pra
ela. É sobre uma coisa boa.
– Claro – murmuro, e sigo para a sala de música.
Vejo Charlotte assim que dobro a esquina.
– Claro que é verde – digo. – Eu chamaria de cruzamento entre
verde-floresta e verde-bandeira. Como você chamaria?
– Hum – diz ela. – De cinza-claro? – Ela se vira para olhar a sala e eu
me viro com ela.
Meu sofá sumiu.
Giro para longe dela e saio do prédio até estar no sol forte com
Charlotte atrás de mim dizendo:
– Emi, vamos conversar sobre isso por um segundo. Vamos parar
um momento pra você se acalmar.
Mas só consigo dizer “Clyde Jones do caralho”, porque é o sofá dele
no lugar do meu sofá perfeito.
Ando pelos grupos de pessoas sorridentes e pessoas sérias e pessoas
falando nos celulares e segurando copos do Starbucks e entro no
prédio de Ginger e passo pela secretária e entro na sala dela. Ela está
ao telefone e ergue um dedo para que eu espere. Fico ali parada, na
sala perfeitamente decorada dela, adornada com pôsteres de todos os
filmes famosos em que ela trabalhou, até que ela desliga e diz:
– Deve ser por causa da sala de música.
– O que aconteceu com o meu sofá? Você viu? Não era perfeito?
– Era um sofá bonito. Mas compramos tantas coisas lindas naquele
dia, juntas, lembra? Você e eu e Charlotte.
– Claro que eu me lembro daquele dia – digo. – O que tem a ver com
a minha sala de música?
Ela suspira como se estivesse ocupada demais e eu fosse insensata
demais.
– Emi, primeiro que não é a sua sala de música. Você fez um
trabalho lindo, mas você é a estagiária e eu sou a designer de
produção.
– Sim – digo. – Estou ciente de nossas respectivas posições.
– Opa – diz Charlotte, entrando na sala depois de, aparentemente,
ter ficado parada do outro lado da porta. – Acho que seria uma boa
ideia que Emi e eu tirássemos a tarde de folga, se isso não for um
problema pra você, Ginger. Ela está trabalhando demais e não dormiu
muito ontem e, você sabe, as coisas com Morgan ainda estão meio
tensas, então…
– Tudo bem – diz Ginger. – Vão. Emi, amanhã você vai ver que o
sofá complementa lindamente seus esforços. – Mas ela fala com frieza,
com mais rispidez do que jamais ouvi na voz dela, e começo a me
preocupar com tudo, porque ela vai ser minha chefe em A agência
também, e eu sei que sou só uma estagiária. Facilmente substituível.
Talvez haja centenas de gênios da decoração adolescentes. Talvez meu
nicho não seja tão especial.
Sigo Charlotte para fora da sala e do prédio e na direção do carro
dela. Ela abre a porta do passageiro para mim e eu entro.
– Eu só preciso terminar umas coisinhas – diz. – Depois eu volto.
Não vá a lugar nenhum, está bem?
– Está bem.
– Eu não acredito que você falou com ela daquele jeito.
– Eu sei. Eu também não.
Ela assente, satisfeita, e fecha a porta.
Eu pego meu celular e tento falar com Toby.
Depois de um momento, a voz dele surge acima de muitas outras
vozes e música ao fundo.
– Oi, maninha.
– Oi. Onde você está?
O rosto dele aparece na minha tela, mas a imagem está escura e
granulada e eu mal consigo ver os contornos.
– Em um café – diz ele. – Em Londres.
– Londres. Que longe.
– É – diz. Ele chega mais perto da câmera. O rosto aumenta e
consigo vê-lo melhor. – Falam de um jeito engraçado aqui. – Ele sorri e
chega para trás.
– Volta – digo. – Chega mais perto.
Ele faz isso.
– Ei, algum problema?
Faço que sim e sinto meus olhos se encherem de lágrimas e desejo
tanto que isso não acontecesse. Mas é Toby, e eu sei que se alguém é
capaz entender, vai ser ele.
– Meu sofá – digo, e balanço a cabeça porque preciso me controlar.
Ele espera. Se eu conseguisse ver o rosto dele melhor, sei que veria
preocupação, e odeio o fato de ele estar tão longe, e odeio Morgan ter
um encontro à noite, e odeio Los Angeles ser cheia de tantos
quilômetros e tantos bares e tanta gente para estar com ela em vez de
mim.
– Ah, cara – diz ele antes de eu explicar. – Escolheram outra coisa?
– É horrível – digo. – Moderno. E cinza.
– Mas, Em, você ama coisas modernas.
– Não pra isso. Não é certo.
– Cinza – diz ele. – Tudo bem. Podia ser pior. Que tal jogar umas
almofadas nele?
– Não – digo. – Eu não quero jogar almofadas nele. Eu entendo essa
cena. Entendo por que é importante e como deveria ser a sensação, e
sei o que deveria aparecer na câmera para passar a sensação certa. E
eu encontrei. Eu procurei tanto. Eu encontrei.
– Você ainda tem o resto da sala, né? Aquele pôster do Neutral Milk
Hotel? Você ainda tem isso, né? E os troféus. São clássicos.
– Eu não quero que você tente me fazer me sentir melhor – digo. –
Só quero que você escute.
Vejo pessoas se levantando de uma mesa atrás dele, pessoas em toda
parte, se movendo no escuro.
– Toby – digo. – Não sei se ainda quero fazer A agência.
– O quê? Não, espera aí. Você está chateada agora. Eu entendo isso.
Mas se permite sentir isso por um tempo e depois segue em frente.
Sabe quantas vezes eu encontrei locações que sabia que eram perfeitas
e depois o gerente de locações disse que queria algo diferente? É um
saco. Eu sei que é. Mas é assim que funciona.
– É a Ginger – digo. – Ela diz que confia em mim e que eu posso
fazer o que quiser, e quando eu não estou, sem nem falar comigo, ela
muda e estraga tudo.
– Não tudo.
– Eu não quero continuar trabalhando com ela. Quero trabalhar
sozinha.
Toby limpa a garganta. Ele se encosta na cadeira.
Por fim, diz:
– É assim que funciona. Você dá o sangue. Nem tudo fica como você
quer e, depois de um tempo, você chega a esse ponto. Você passa a ser
quem toma as decisões e as pessoas vão querer a sua aprovação para o
trabalho delas.
– É – digo. – Eu sei.
– Você vai crescer no estúdio – diz ele. – Eu sei que você consegue.
Só precisa segurar essa sua língua e não deixar que ela te veja tão
chateada.
– Ela já viu.
– Bom, mostra que você superou.
Eu faço que sim.
– Vai até o fim desse projeto. Vai até o fim de A agência. Aí você vê
como se sente.
– Tudo bem – digo, mas não é de coração. Há uma distância entre
nós, e não posso contar para ele tudo que estou pensando, que é que
eu não sei se quero crescer no estúdio se trabalhar para o estúdio for
assim. Se for pra passar meses e meses procurando tudo em tantos
lugares e ver todo o trabalho ser desfeito em um instante.
Charlotte aparece na janela do motorista.
– Charlotte vai me levar embora do estúdio – digo.
– Foi tão ruim assim?
– Foi – diz Charlotte, colocando o cinto. – Ela disse para Ginger que
estava “ciente das respectivas posições delas”.
– Caramba – diz Toby com uma expressão que é metade sorriso,
metade careta. – Dá uma animada nela, tá?
– Vou fazer o possível – diz Charlotte.

Enquanto Charlotte dirige para fora do estúdio, ela diz:


– Vou te levar para os canais.
– Boa ideia – digo. – Eu adoro os canais.
Os canais são o motivo do bairro de Venice se chamar assim, em
referência à cidade de Veneza, mas pouca gente sabe da existência
deles. A maioria das pessoas de fora vai para Abbot Kinney comer e
fazer compras, ou à praia. Mas os canais são lindos. Foram criados
pelo próprio Abbot Kinney, e são alinhados com as casas, então andar
ao lado dos canais significa basicamente andar pelos pátios da frente
das casas das pessoas.
Nós estacionamos e atravessamos uma ponte de pedestres e
começamos nossa caminhada pelo labirinto de canais.
À nossa esquerda, água; à nossa direita, salas e cozinhas iluminadas
dos insanamente ricos e estilosos.
– Eu não conseguiria morar aqui – diz Charlotte. – Essas pessoas
são tão desprendidas.
É nisso que Charlotte e eu divergimos, porque eu moraria ali sem
problemas. Qual é o sentido de decorar a casa se ninguém puder ver?
Mas em uma noite como esta, eu entendo o que Charlotte quer dizer,
porque desejo mais do que tudo encontrar um lugar escuro e
silencioso longe da civilização.
– Clyde Jones do caralho – digo.
– É – diz ela. – Lamento não ter chegado a tempo de ver a sala como
você tinha planejado.
– Eu nem tirei foto! – reclamo com um gemido. – Fica tão ridícula
com aquele sofá.
– Não fica ridícula. É um sofá legal. Mas também não parece um
móvel descartado.
– Não – digo –, não parece mesmo. Parece um sofá Adrian Pearsall
de quatro mil dólares, porque é isso que ele é. Pensei que o filme era
pra ser sobre uma família normal de classe média.
– Pelo menos Kira vai perder a virgindade em um móvel bem
bacana.
– Não importa – digo. – Muda todo o clima. Ginger pode ter a cena
de sexo adolescente com mobília dos anos 1950. Eu ia dar a ela um
conto de fadas.
Nós atravessamos outra ponte e preciso parar e olhar para dentro da
casa à nossa frente, porque é incrível. Toda a lateral é de vidro. Tem
uma escada em espiral da sala para um quarto no andar de cima. Na
cozinha prateada reluzente, a poucos metros de nós, um homem está
preparando o jantar.
– Estou morrendo de fome – digo.
– Eu também – diz Charlotte.
Nós andamos mais.
– Morgan tem um encontro hoje.
Charlotte suspira.
– E como você sabe disso?
– Eu meio que esbarrei nela hoje. Acho que a minha vida talvez
esteja desmoronando.
– Um pouco.
– Ela fica flertando comigo.
– Ela é uma pessoa horrível.
– Eu não acho.
– Esse é o problema.
– E o que você vai fazer a respeito do meu irmão?
Juro que ela tropeça de leve quando falo isso.
– O que quer dizer?
– Você deveria dizer o que sente.
– Em – diz ela. – Isso tem muito tempo.
– Boa tentativa – digo.
Ela está se referindo à ocasião no sexto ano em que ela escreveu um
bilhete para mim na terceira aula dizendo que um garoto mais velho
era o crush dela. Ela estava tentando ser sutil, mas eu já sabia. Tudo
que Charlotte sente é óbvio para todo mundo. Eu escrevi um bilhete
que dizia Por acaso ele está no primeiro ano do ensino médio? Por acaso ele
compartilha do meu dna?, o que eu achei inteligente, considerando que
estávamos na aula de ciências na hora.
Ela corou e nunca respondeu.
– Eu ando pensando muito – digo. – A vida é curta. As pessoas
morrem. Pensa em quantos obituários a gente leu. Pensa em Clyde e
Caroline. Você devia falar com Toby. Ele não tem namorada há um
tempo. Deve estar esperando você se formar, e agora você se formou.
– Eu estou com muita fome.
– Só pensa nisso – digo.
– Não tenho dinheiro, senão ia querer uns tacos.
– Eu não me importaria, sabe – digo. – Não tornaria as coisas
estranhas entre nós. Eu tive uns seis anos pra me acostumar com a
ideia.
– Tudo bem – diz ela.
– Que bom. Eu também não tenho um centavo, mas tem umas
coisas que a gente pode preparar lá no apartamento.

Preparamos o jantar na casa de Toby. Ou o estresse emocional do dia


nos afetou, ou nos permitimos ficar com tanta fome que só
conseguimos pensar em comida, porque nossa capacidade de
conversa se reduz a isto:
– Você acha que eu devia colocar alho aqui?
– Você lavou a alface?
– Acha que esse queijo é muito velho?
– Tem alho demais aqui?
Finalmente, Charlotte pega os pratos e eu a sigo lá para o pátio,
rumo à noite quente e à música ranchera que vem do apartamento ao
lado.
Os vizinhos do Toby estão falando alto em espanhol, gritando e
rindo, e eu queria conseguir acompanhar, mas fiz aulas de francês no
ensino médio.
– De que eles estão falando? – pergunto.
– Cortes de cabelo – diz Charlotte.
– O que sobre corte de cabelo?
– Se o corte de cabelo de alguém está fora de moda ou não.
– Está?
– O cara que fala alto acha que sim. A mulher com voz mais suave
acha que é um corte atemporal.
O cara que fala alto diz uma coisa bem alto e todos riem.
Eu sorrio. Eles parecem tão felizes.
– O que ele disse?
– Eu não entendi.
– Ah.
– Por que você não está comendo?
Um momento antes, eu estava faminta, mas agora não consigo me
imaginar comendo nem um pedacinho. A dor vem em ondas e essa é
do tipo que engole.
– Vou guardar pra depois – digo.
– É pela garota ou pelo sofá? – pergunta Charlotte.
– A verdade? – digo. – Pela garota.
Charlotte balança a cabeça e come o macarrão enquanto eu mexo
no meu prato. Ela não diz nada, mas por mim tudo bem, porque eu
não conseguiria fingir interesse em nenhum assunto sobre o qual
Charlotte quisesse conversar. Fico me perguntando com quem
Morgan vai sair e o que a garota tem que eu não tenho. Apartamento
próprio? Idade para beber?
– Aquela garota é tão…
– Para – digo. – Não é disso que eu preciso agora. Não ligo se ela é
horrível. Não ligo se você a odeia.
– Tudo bem – diz Char, a voz suave. – Vamos deixar o que eu sinto
em relação a Morgan de fora disso.
– Obrigada.
– Mas eu tenho uma coisa a dizer.
Enfio uma garfada na boca. Obrigo-me a mastigar.
– Acabou – diz Charlotte.
Eu a encaro. Engulo.
– Hum – digo.
– Está na hora de você aceitar. Ela foi seu primeiro amor. Isso é
importante pra caramba. E sei quanto ela é importante pra você, e que
não é fácil aceitar que acabou. Mas é verdade. Acabou.
As lágrimas escorrem sem aviso.
– Tudo bem, eu retiro o que disse – digo. – Prefiro só ouvir quanto
você a odeia.
– Em – diz ela. – Você se saiu muito bem a amando. Aguentou todas
as merdas dela. Você foi uma namorada ótima. E, agora, está na hora
de encontrar alguém que vai te amar de volta.
Ela chega mais perto de mim e segura a minha mão. Espera que eu
olhe para ela.
– Desculpa ter feito você chorar – diz. – Mas você precisa muito
ouvir isso.
Concordo com a cabeça.
– Acabou – diz ela de novo. – Está bem?
– Está bem – sussurro, mas não sei com que estou concordando.
Charlotte coloca meu prato sobre o dela e os tira da frente, mas
nenhuma de nós se levanta. Eu poderia ficar ali em silêncio a noite
toda, coisa que admito que é rara para mim. Não quero pensar no fato
de que Morgan nunca me amou, apesar de eu saber que Charlotte está
certa. E não quero pensar nas decisões de que vou escapar de ter que
tomar amanhã. Estou dividida entre a autopreservação e me sentir
injustiçada, entre pedir desculpas para Ginger e pedir demissão.
Nenhuma das duas opções me parece boa. Então só quero ouvir o som
da conversa dos vizinhos e a música animada, com palavras que eu
não entendo.

O celular de Charlotte toca e ela entra para atender, e uma música


muito boa começa. Eu queria descobrir qual era para poder encontrar
de novo.
Ouço Charlotte dizer alô.
E a ouço dizer:
– Ava.
Eu me viro e ela está de olhos arregalados, apontando para o
telefone encostado na orelha.
– Obrigada por ligar – diz. – Eu sei que você não me conhece…
Ela faz expressão de quem está confusa.
– Padaria La Cienega? – pergunta. – Não, eu não sei nada sobre isso.
– Viva-voz! – falo com movimentos labiais, e ela assente e muda.
Uma voz rouca diz:
– Ah, tá. Eu me candidatei a um emprego lá um tempo atrás e
pensei… Não importa. Então quem é você?
– Sou Charlotte. Minha amiga Emi também está aqui.
– Oi – digo.
– Pode parecer estranho, mas nós estamos com uma coisa que era
para ser de Caroline Maddox.
Ava fica em silêncio do outro lado, e eu vejo que o celular está
tremendo na mão de Charlotte quando olho para ele.
– Caroline? – repete Ava por fim, a voz falhando.
– Nós estamos com uma carta para ela e tentamos encontrá-la, mas
descobrimos que ela morreu e estamos juntando os pontos e
acabamos encontrando você…
– Vocês estão com uma carta pra Caroline? – pergunta Ava.
– É uma história meio longa. Seria melhor conversar pessoalmente
se tudo bem por você.
– O que vocês estão fazendo agora?
– Agora? – pergunta Charlotte. – Nós estamos em casa.
– Em Venice – acrescento.
– Posso chegar aí em vinte minutos.
– Ah – diz Charlotte. – Tudo bem.
Dou o endereço para ela e nós desligamos.
Eu olho para Charlotte. Ela me olha.
Passo os olhos pela sala. Tem coisas de Clyde Jones para todo o lado.
A tela do computador do Toby está cheia de janelas de busca de
Caroline e Tracey e Ava, assim como o notebook de Charlotte, aberto
na mesa de centro.
– Merda – digo, e começamos a fechar telas e guardar dvds do Clyde
Jones, porque a gente não quer parecer que estava coletando todas as
informações existentes sobre a garota que está prestes a entrar pela
porta e possivelmente ficar um tempo por aqui.
E em algum lugar no frenesi de recolher provas e lavar a louça do
jantar, a gravidade do momento me captura. Sinto uma câmera
percorrendo a sala como se eu estivesse nos observando de longe.
Uma bancada cheia de cascas de alho e tábuas de corte e migalhas de
pão. A porta que leva ao pátio entreaberta. Duas garotas em uma sala
colorida e habitada. Elas não sabem o que está a caminho, mas uma
delas, a que está com expressão distante e cabelo comprido, cujos
olhos revelam que ela não anda dormindo bem, já está sentindo há
um tempo que está à beira de algum acontecimento.
E quando elas ouvem uma batida na porta, é essa garota que
atravessa a sala para abri-la. Ela gira a maçaneta, e ali está, como
Clyde aparecendo no horizonte ou surgindo em meio à grama alta,
uma ruiva na entrada de um apartamento térreo de Venice. Com olhar
curioso, ela dá uma passada hesitante para dentro. A curva da boca
quando ela sorri, o timbre rouco da voz quando diz oi.
Capítulo seis

Assim que abro a porta, desejo que tivéssemos tido mais alguns
minutos, porque Ava está parada na entrada com a beleza de uma
estrela de cinema, com a beleza de Clyde Jones, e eu estou olhando para
ela usando uma blusa com uma mancha vermelha de molho de
tomate no peito, o cabelo em um rabo de cavalo bagunçado,
percebendo que, apesar de todo o nosso planejamento, não tenho
ideia de como dar a notícia que a convocamos para ouvir.
– Oi. Entra – digo, mas estou lutando contra a vontade de lhe dizer
para deixar para lá.
Charlotte e eu nos metemos nas vidas de outras pessoas de um jeito
que me deixa pouco à vontade de repente. Como se houvesse uma
placa de propriedade particular na entrada da casa de uma família e
nós não só a invadimos, como entramos na garagem, remexemos em
todas as caixas particulares, olhamos os álbuns de fotografia e os
diários e descobrimos dezenas de segredos que não eram para ser
revelados.
Mas Ava está ali, no meio da sala aconchegante de Toby, graças à
sorte e ao destino e à nossa disposição de a encontrar. Charlotte lhe
oferecendo o que resta do nosso chá gelado etíope e ela aceita. Ela tira
a bolsa surrada de couro marrom do ombro e pede desculpas.
– Por quê? – pergunta Charlotte.
– Eu devo ter sido difícil de encontrar – diz. – Vocês devem ter tido
trabalho.
– A gente levou um tempo – digo, servindo o chá em um copinho
azul.
– É – diz ela. – Bom, o ano está estranho.
Ela tenta dizer isso com naturalidade, como se o ano dela estivesse
sendo estranho de uma forma normal, o que não encaixa com o garoto
no telefone que não tinha ideia de onde ela estava nem se ela voltaria
a ligar para casa.
Eu lhe entrego o copo. A ponta dos dedos dela roçam nos meus.
Ela toma um gole de chá e olha para nós com expectativa. Ela quer
respostas, obviamente, quer saber os motivos de a procurarmos, quer
saber as informações que temos. Mas só consigo ficar olhando para ela
porque sua semelhança com Clyde é impressionante. Mais ainda do
que o cabelo ruivo e os olhos verdes, as feições dela são assim: a
inclinação das maçãs do rosto e o nariz delicado, o sorriso levemente
torto enquanto nos olha sem entender. Essas são feições que, apesar
da bravata de Clyde, o faziam parecer sempre um pouco vulnerável,
faziam com que sempre nos preocupássemos com ele e torcêssemos
para que ele sobrevivesse às trocas de tiro e ficasse com a garota.
Ava prende uma mecha de cabelo atrás da orelha e reparo que ela
está até um pouco vestida como Clyde. Tudo que ela está usando
parece vintage: botas de couro marrom e um short jeans de cintura
alta, um cinto de couro com fivela de metal fosca.
– Isso está muito gostoso – diz Ava, quebrando o silêncio. – Eu
nunca tomei um chá gostoso assim.
– Que bom que você gostou – responde Charlotte, e me pergunto se
ela está pensando o mesmo que eu. Com seu dom para interações
sociais e a minha tendência de contar coisas demais, nós não
costumamos sofrer silêncios constrangedores assim. Tento me
controlar.
– É etíope, de um restaurante dobrando a esquina – digo. E começo
a dar uma explicação sobre o carisma de Toby e aquele apartamento e
o pedido que ele nos fez, e, enquanto falo, percebo que estou me
afastando cada vez mais do motivo para ela estar ali com a gente agora.
– Ele disse que nós temos que fazer algo épico – digo. – Se você tiver
alguma ideia, pode ficar à vontade pra sugerir.
Sei que estou falando sobre algo que não tem importância para ela,
mas não consigo parar de falar. A neta de Clyde Jones está na nossa
cozinha tentando minimizar algum tipo de consternação, algo que a
manteve longe de casa por muito tempo.
Ainda sinto o local onde os dedos dela roçaram nos meus.
E nós temos uma carta que vai mudar a vida dela.
– Como vocês conectaram Caroline a mim? – pergunta ela quando
eu calo a boca.
– Foi na biblioteca – diz Charlotte.
– Biblioteca?
– Né? Foi ideia da Charlotte.
– Nós encontramos o obituário da Caroline no jornal e nele tinha o
nome de Tracey Wilder. Emi supôs que Tracey Wilder talvez fosse sua
mãe… Sua mãe adotiva. Isso foi o que pensamos – diz Charlotte.
– Caroline e Tracey eram melhores amigas. Tracey me adotou
quando Caroline morreu. Eu era um bebê.
Ava leva a mão à boca e morde a unha curta sem esmalte. Reparo
nas sardas que pontilham as bochechas e o nariz dela. Ela repara e eu
desvio o olhar. Que burrice. Eu devia ter sorrido.
– E o que vocês têm? – pergunta ela. – Pra Caroline?
Olho para Charlotte, torcendo para que ela saiba como levar as
coisas dali em diante. Não sou nada boa nisso. Sou muito melhor com
pessoas imaginárias e vidas imaginárias.
– Não sei qual é a melhor forma de dizer isso, então vou mostrar o
que a gente encontrou.
Ela vai até a sala de estar e pega a carta na mesa de centro. Não
consigo nem olhar para Ava de tão nervosa que estou. Charlotte
entrega o envelope para ela e Ava pega a carta. Vou me sentar no sofá
para esperar. Eu sairia do apartamento e daria algumas voltas no
quarteirão se pudesse.
Ava fica em silêncio por muito tempo, parada na cozinha. Ouço o
barulho do papel. Ela deve ler a carta várias vezes. Charlotte vem se
sentar ao meu lado, mas nós não dizemos nada.
Finalmente, ouço Ava vindo até nós. Ela se senta na poltrona laranja
de Toby.
– Eu entendi direito?
Charlotte e eu fazemos que sim.
– Esse é o Clyde…?
– Jones – digo. – É.
– Clyde Jones era meu avô?
Nós fazemos que sim de novo.
– Eu sei que é o que parece, mas não consigo parar de ler. Pode
haver outra explicação.
– Sim – diz Charlotte. – Pode haver.
– Mas tudo leva a você – digo. – Todos os nomes e datas de tudo.
– Quem é Lenny?
– Não sabemos.
Ava estuda a carta de novo.
– Então a mãe da Caroline morreu muito tempo atrás, mas o pai
dela estava vivo esse tempo todo. Acho que eu simplesmente supus
que os dois tinham morrido, senão minha mãe teria me contado sobre
eles.
– Pode ser que Tracey não soubesse sobre Clyde – digo.
– É possível – diz ela. – Como vocês encontraram esta carta?
Nós contamos sobre nós e nossos empregos na indústria do cinema.
– Espera – diz ela. – Vocês elaboram cenários pra filmes de verdade?
Quantos anos vocês têm?
– Dezoito – digo.
– Eu não crio cenários – diz Charlotte. – Eu faço ligações e pequenas
tarefas. Emi é o gênio.
Eu reviro os olhos apesar de amar elogios.
– Mas mesmo que você seja um gênio – diz Ava –, isso não é um
trabalho importante? As pessoas estudam pra isso, né?
– Eu não faço o design – digo. – Meu nome provavelmente nem vai
sair nos créditos. Meu irmão arrumou um estágio não remunerado pra
mim dois anos atrás e eu fui crescendo a partir dali. Ainda sou
estagiária e mal ganho salário-mínimo, mas minha chefe me deixou
enviar uma proposta pra um aposento de uma garota de dezesseis
anos e adorou, e agora estão gostando de mim não sei bem por quê, e
por isso eu tenho um outro trabalho encaminhado.
Decido deixar de fora os eventos infelizes daquela tarde. Até eu sei
que a noite devia girar em torno de Ava e não de mim, e fico hesitante
em mencionar que o avô dela (sem ele saber, claro) teve parte na
destruição da minha sala e, indiretamente, pode levar a um
encerramento precoce da minha carreira se Ginger decidir me vetar
por ter falado com ela daquele jeito.
– É um emprego tão legal – diz ela. – Eu fiz teatro na escola, no nono
ano e no primeiro do ensino médio. Eu amava ficar depois dos ensaios
vendo as pessoas pintarem os cenários. Claro que eu sei que não é a
mesma coisa. Eram só peças escolares. Os cenários nem eram bons,
mas era divertido ver tudo tomando forma. Às vezes, os cenários de
fundo tinham dois lados. Um lado parecia uma sala e, ao ser virado,
era uma cena de calçada. – Ela fica vermelha. – Sei que não se
compara com o que vocês fazem mas só me fez pensar…
Ela para de falar e percebo que ela está sem graça, e Charlotte deve
perceber também, porque se apressa em perguntar:
– Você atuava?
Ava assente.
– Eu comecei a gostar muito, mas Tracey me fez parar.
– Por quê? – pergunto.
– Ela alegava que os ensaios me faziam ficar na rua até tarde e que
minhas notas estavam caindo. – Ela dá de ombros. – Eu nunca me
esforcei tanto na escola. O teatro era a única coisa de que eu gostava.
– Acho que está no sangue – digo.
Ava olha para a carta como se a tivesse esquecido por um momento.
– Você percebe como isso é importante? – digo. – A vida de Clyde
Jones sempre foi um mistério. As pessoas só sabiam que ele era
mulherengo quando jovem e depois virou recluso, que nunca se casou
e teve filhos. E agora, aqui está você, e, no fim das contas, até o pouco
que a gente achava que sabia dele não era verdade. Você – digo,
fazendo uma pausa para dar efeito, tomando cuidado para que ela
entenda de verdade –, é a neta secreta do ator mais icônico da história
dos filmes americanos.
Ava balança a cabeça, confusa. Olha para baixo e sorri. Fico aliviada
e feliz, com a sensação de que não estamos invadindo nada com essa
informação, de que não é invasão de privacidade. Que o que a gente
fez foi tipo colher flores e deixar na porta de uma estranha, uma coisa
selvagem e linda pronta para ser descoberta.
– Eu nunca nem vi um filme de Clyde Jones – diz ela.
– Você está de brincadeira, né?
– Eu consigo vê-lo de chapéu de caubói e tudo, mas não.
Balanço a cabeça.
– Que loucura.
– Não é tanta loucura, Emi – diz Charlotte. – Nem todo mundo
cresce em um lar como o seu.
– Bom, você veio ao lugar certo – digo para Ava. – Nós temos a
coleção completa. Você tem algum compromisso?
O relógio em formato de sol acima da televisão de Toby mostra que
são quase onze da noite. Vejo-a olhar para ele.
– Eu tenho tempo – diz. – Só tenho que fazer uma ligação rápida.
– Que ótimo! Char e eu vamos escolher um.
Ela vai até a cozinha pegar o celular.
– Estou feliz de ela não ter surtado – sussurro enquanto Charlotte e eu
nos posicionamos na frente da coleção extensa de dvds de Toby.
– É, ela parece bem calma – diz Charlotte.
Nós escolhemos Muito tempo até amanhã porque é um clássico de
Clyde. Terras baixas é o meu favorito, mas Ava pode conhecê-lo depois
de ter obtido ao menos um conhecimento básico da carreira dele, para
poder apreciar as formas pelas quais ele se afasta do papel de sempre
nesse filme. Ouço trechos da conversa dela. A casa de Toby é pequena
e ela não está tentando fazer segredo.
– Eu dirijo – diz ela. – Sim, de verdade. Tudo bem, te vejo na
cozinha à uma e quinze.
Ela está falando com alguém próximo, mas não diz nada sobre o
que acabou de descobrir. Se fosse comigo, estaria ligando para todo
mundo. Eu estaria em êxtase, mas ela só parece estar curiosa.
Ela volta e se senta.
– Desculpa – diz ela. – Precisava ligar para o meu amigo, Jamal. Vou
dar uma carona até o trabalho pra ele.
– Onde vocês trabalham? – pergunto.
– Numa loja de materiais de construção – diz ela.
– Sério?
– É esquisito? – pergunta.
– Eu não consigo te imaginar com um daqueles uniformes ou, tipo,
ajudando pessoas a cortarem peças de mdf do tamanho certo.
– Nós trabalhamos no turno de estoque, de madrugada. Não
ajudamos clientes. É um emprego legal e Jamal é meu melhor amigo, e
isso ajuda.
Eu faço que sim, e Charlotte pergunta:
– Vocês se conhecem há muito tempo?
– Quase um ano. Mas ficamos melhores amigos tipo uma semana
depois de a gente se conhecer. As coisas acontecem rápido quando não
se tem mais ninguém.
Fico abalada com a verdade simples dessa declaração, mas
concordar com ela seria desonestidade. Não posso nem fingir saber
como seria ser tão sozinha. E ela não parece estar esperando resposta.
Está acomodada na poltrona, olhando para a tela, esperando o filme
começar.
– Bom – digo, de volta à realidade. – Vamos começar com Muito
tempo até amanhã. O primeiro papel principal de Clyde. Em 1953. Lee
Dodson é o diretor. Foi esse o filme que fez de Clyde Jones o Clyde
Jones, se é que você me entende.
Ela faz que sim.
– Pronta? – digo.
– Pronta.
Aperto o play e a música vibrante começa. Charlotte se senta no
tapete branco, Ava está na poltrona laranja e eu estou no sofá. As
primeiras cenas passam. Charlotte ri do diálogo empolado e eu
examino os cenários, escassos e rústicos.
Com doze minutos de filme, Ava começa a chorar.

Ela chora por um tempo, os joelhos encostados no peito, os soluços


que parecem que nunca vão parar.
Charlotte e eu ficamos oferecendo cobertores e canecas de chá de
hortelã, mas ela continua dizendo que vai ficar bem.
– Será que a gente liga pra sua mãe? – pergunto a Charlotte, porque
a mãe dela é terapeuta e fala com uma voz suave e convincente que eu
nunca vou conseguir imitar.
– Se ela não parar, sim – diz ela.
Mas Ava acaba parando.
– Isso é tão constrangedor – diz, forçando uma risada. – Que
idiotice.
– Não – digo. – De jeito nenhum.
– Quer conversar? – pergunta Charlotte.
– Eu nem saberia por onde começar – diz ela, e percebo que
Charlotte está pronta para deixar para lá, mas eu não. Não é só que eu
seja xereta, e admito que sou. É que eu acredito nesse tipo de coisa. Se
você encontra uma carta na casa de um homem famoso, carta essa que
acaba pertencendo à filha que morreu antes de ter a chance de a
receber, e você passa dias procurando pistas falsas para chegar à neta
e, quando a encontra, ela não está onde deveria estar e você se resigna
a um futuro sem resposta, mas aí (de repente, por incrível) a resposta
aparece na sua sala, chorando em uma poltrona laranja, não é possível
deixar para lá.
Eu digo para Ava:
– Nós temos tempo. Pode começar por onde quiser. – Ela enfim
aceita a caneca de chá de hortelã e começa.
– Eu fugi um ano atrás – diz ela.
– Por quê? – pergunto.
– Por alguns motivos. Mas a minha mãe, Tracey, foi o principal. Ela
tornou minha permanência impossível. – Ela faz que não. Não quer
nos contar.
– Pode pular isso – diz Charlotte. – Então você não está em casa.
Ela assente.
– Primeiro, eu fiquei morando no meu carro, mas acabei
encontrando um abrigo no centro.
– Você mora lá agora? – pergunta Charlotte.
Ava assente.
– Ah, meu Deus – digo.
– Não, tudo bem. Os terapeutas são legais. É só uma casa grande
cheia de adolescentes que vivem juntos, e nós temos tarefas e nos
ajudam a conseguir emprego. Foi lá que eu conheci o Jamal. É bom.
Mas é que passei tanto tempo tentando me acostumar a viver sem
família, e agora vocês me mostram esta carta, e de repente estou vendo
meu avô em um filme. E nunca pensei nos meus avós, eu só sabia que
estavam mortos, e não sei nada sobre quem Caroline era, nem como
era a vida dela.
Ela toma um gole de chá, olha para a caneca.
– Eu sei tão pouco das minhas origens – diz.
– Tracey não te contou? – pergunto.
– Eu perguntava muitas coisas, mas desisti. Ela gosta de
desenvolvimento pessoal. Tipo se reinventar, sabe? Esse tipo de coisa.
Diz que não adianta ficar presa ao passado, então é como se tudo isso,
Caroline, minha vida quando criancinha, tivesse desaparecido.
– Que forte – digo.
Ela ainda parece estar à beira das lágrimas, mas ri mesmo assim.
– Forte é uma palavra boa pra descrever a minha mãe. Tudo que eu
sei sobre Caroline, tive que descobrir sozinha, mas não consegui
descobrir muito. – Ela força um sorriso. – Acho que eu devia ter ido à
biblioteca.
– Eu anotei o obituário de Caroline – diz Charlotte. – Quer ler?
Ava diz que sim, e Charlotte se levanta para pegar o computador. Eu
observo a tela da televisão, onde Clyde está congelado de perfil com
uma paisagem desolada ao fundo, e digo:
– Você se parece com ele.
– Fiquei pensando isso enquanto a gente estava assistindo. Minha
mãe e meu irmão, eles são tão parecidos. Eu nunca fui parecida com
ninguém.
– Seu irmão? – pergunto. – Foi ele que atendeu o telefone quando a
gente ligou?
Ela faz que sim.
– Ele é filho da Tracey. Ela foi casada por alguns anos com um cara
da igreja. Não durou.
Charlotte coloca o notebook na mesa de centro, e Ava se senta no
tapete para ler sobre Caroline.
– Ela trabalhou em filmes? – diz ela quando termina.
– Parece que ela era basicamente figurante – digo. – Mas sim.
– Eu não tinha ideia. – Os olhos dela se enchem de lágrimas de
novo, mas a vejo piscando, lutando contra elas. Depois de um tempo,
diz: – Talvez seja por isso que Tracey não queria que eu atuasse.
– É, pode ser – digo.
Juntas, Charlotte e eu contamos para Ava tudo que descobrimos
sobre Clyde e Caroline. Todas as perguntas que fizemos, todas as
respostas que conseguimos. Ela ama ouvir sobre a pequena Ava e ri
das minhas imitações de Frank e Edie, mas fica séria quando
chegamos ao que eles disseram sobre “as drogas e os homens e aquele
bebê”, e tudo parece diferente agora, porque “aquele bebê” é a garota
sentada ali com a gente, descobrindo tantos segredos do seu passado.
E aí, no meio de tudo, quando parece que logo vamos retomar o
filme e continuar a noite, Ava diz:
– O relógio.
Ela aponta para o relógio de Toby que parece o sol.
– A hora está certa?
– Está – digo.
– Então tenho que ir.
Olho para Charlotte, torcendo para ela ter um plano do que fazer
em seguida, um motivo por que vamos precisar nos ver de novo, mas
Ava já está no meio da sala.
Os olhos dela ainda estão vermelhos, o rosto inchado do choro, mas
quando para na porta para se despedir, ela se parece com Clyde Jones,
com o sorriso arrogante e de lado, o brilho encantador no olhar.
– Obrigada por me encontrarem – diz. – Nem todo mundo teria
feito isso.
Ela desaparece na noite.
Capítulo sete

Na manhã seguinte, bato na porta entreaberta da sala de Ginger.


Ela ergue o rosto da mesa e não fica muito animada de me ver.
– Vim pedir desculpas – digo, e ela assente e faz sinal para eu entrar.
Eu tenho um discurso preparado, que Charlotte e eu ensaiamos no
café de manhã, e o recito. Envolve um pouco de bajulação, um pouco
de elogios, um tanto de autodepreciação e uma boa quantidade de
arrependimento. Termina com uma concessão:
– Apesar de não ser o que eu visualizei pra sala, é um móvel bonito
pra uma cena tão importante, e tenho certeza de que terá grande apelo
sem sacrificar o estilo.
– Que bom que você acha isso.
– Acho mesmo – digo. – Tem mais algumas mudanças que eu
gostaria de fazer no resto do cenário pra trazer coerência pra essa nova
direção.
– Estou ouvindo – diz ela.
– Primeiro, acho que os pôsteres não funcionam mais. Agora que é
uma sala mais arrumadinha, acho que deveríamos procurar arte com
mais cara de profissional. Pensei em um pôster emoldurado de Miles
Davis. – Mostro uma imagem no meu celular para ela.
– Sim, eu aprovo. O que mais?
– A estante de partituras – digo, tentando não parecer amarga. – Sei
que nós duas adoramos, mas…
– A estante de partituras fica. Emi, sei que você acha que eu mudei
todo o seu conceito da sala, mas não foi assim. Podemos encontrar um
equilíbrio entre o estilizado e o naturalista. Você consegue. Tira a
tarde pra fazer as mudanças que quiser e eu dou uma olhada no fim
do dia.
Passo a tarde fazendo isso.
Enquanto trabalho na sala, diminuindo as pilhas de partituras,
rearrumando os objetos decorativos, fico pensando na saída de Ava.
Ela desapareceu tão rapidamente quanto meu sofá, e sem nem dizer
nada. Achei que conseguiríamos ao menos o número de telefone dela,
mas Charlotte me disse que aparecia como bloqueado, o que significa
que só ela pode fazer contato com a gente se quiser nos ver de novo. E
por que ela faria isso? Somos só duas garotas aleatórias que por acaso
encontraram uma coisa que pertencia a ela. Agora, ela tem a carta, e se
decidir descobrir mais, ela pode. Não precisa de nós. Tento me
convencer a ficar feliz de termos um pequeno papel em algo tão
interessante. Algo que era parte da vida real.
Mas, deixando a ilusão de lado, não aguento a ideia de isso ter
acabado.
Portanto, quando o telefone vibra no meu bolso, apesar de ela não
ter meu número e de isso ser quase impossível, sou tomada por uma
esperança irracional e elétrica de ser ela.
– Alô – digo.
– Emi? – diz uma mulher. Não sei quem é, mas a voz dela não tem a
rouquidão da de Ava, e me sinto idiota por ter tido esperança. – Aqui é
a Rebecca. Nos conhecemos outro dia. Sou amiga da Morgan.
– Sim, claro – digo. – Oi.
– Estou ligando pra te oferecer um emprego.
– Ah, é?
– Eu gostaria de conversar se você tiver tempo.
– Claro – digo. – Por mim tudo bem. Quando você gostaria?
– Hoje às cinco, se você puder.
Dou um passo para trás e olho a sala. Está boa, e acho que está
como Ginger quer que esteja.
– Eu posso – digo. – Acabei meu trabalho por hoje e estou livre.
~

Encontro Rebecca e o namorado, Theo, em um café em Silver Lake.


Eles estão sentados do lado de fora, na frente de azulejos azuis
brilhantes que eu adoro, tomando cappuccinos iguais.
– Obrigada por vir tão em cima da hora – diz Theo, falando com um
sotaque proeminente que tenho quase certeza de que é sul-africano. –
Rebecca não para de falar de você.
– Ah, é?
– É. – Ela faz que sim e sorri para mim, com linhas pequeninhas
fofas se formando ao lado dos olhos.
– Você tinha que ouvir como ela falou do sofá – diz Theo.
– Acabaram não usando.
– O quê? – Rebecca faz um ruído de surpresa. – Ah, não.
– Não é? – digo. – Aquela ida até Pasadena foi à toa.
– Bom, talvez não seja bem assim – diz ela. – Mas o que você fez?
– A verdade? Eu surtei. E hoje passei a tarde tentando pensar em
como deixar a sala boa com as escolhas da minha chefe.
– Mas estava melhor antes, imagino – diz Theo. – Do jeito que você
imaginou.
– Definitivamente – digo. – Mas o filme não é meu, sabe? Eu não
tomo as decisões. Eu sei como funciona e consigo entender o ponto de
vista da minha chefe.
Estou entrando no modo entrevista agora, porque não sei o que eles
vão me oferecer, mas sei que Morgan e os amigos fazem projetos
legais, e Rebecca e Theo tem aquela coisa que algumas pessoas têm
que faz querer estar com eles, não importa o que estejam fazendo. Eu
tenho um portfólio para montar e experiência a ganhar, e se Rebecca
viu o que eu fiz e gostou, talvez ela me deixe fazer mais disso em que
sou boa.
– Sim, mas e se você tivesse uma situação em que soubesse que a
escolha que fez era a certa. Digamos então que alguém te diga para
trocar por algo horrível. E digamos que a pessoa tomando a decisão
nem fosse do departamento de arte. Não soubesse nada do assunto. O
que você faria?
Não sei qual é a resposta certa para essa pergunta. Talvez seja
pegadinha porque ele odeia quando as pessoas que trabalham para
ele são desafiadoras, ou talvez ele queira alguém que consiga bater o
pé. Então, respondo com honestidade.
– Acho que eu pararia pra pensar primeiro. E consideraria o ponto
de vista da pessoa. E aí, se ainda tivesse certeza de estar certa, eu diria
que não – digo. – Eu explicaria o motivo.
– E se a pessoa dissesse “Faz mesmo assim”?
– Eu tentaria explicar de novo.
– E se a pessoa dissesse “Eu sou o chefe e você tem que obedecer”?
– Você disse que a pessoa não é do departamento de arte?
– Isso mesmo.
Hesito. Penso no que Ginger faria se o diretor do filme ou um
produtor tentasse mudar um dos conceitos dela depois de ela ter se
esforçado muito para conceitualizar e planejar tudo. Depois de tudo
ter sido aprovado. Ela não deixaria ninguém fazer isso, por mais
poderosa ou intimidante que a pessoa pudesse ser.
– Eu diria que houve um motivo pelo qual fui contratada, e que esse
motivo era porque eu sei o que estou fazendo e sou boa nisso – digo. –
Eu insistiria, acho. Insistiria para ficar daquele jeito enquanto outras
pessoas cuja visão artística eu respeitasse também concordassem que
estava bom.
Theo se encosta e sorri.
– Gostei de você – diz.
– Viu? – Rebecca cutuca o ombro dele. – Ele estava com medo de
você ser nova demais.
Dou de ombros.
– É, eu entendo.
– Mas Morgan disse que você era determinada. Ela tem muita
confiança em você. A gente tentou contratá-la. Ela participou de um
curso que eu dei quando eu estava no mestrado, e eu sempre amei o
trabalho dela. Mas a agenda dela está lotada. Então pedi uma
recomendação e ela falou de você.
– Estou fazendo essas perguntas porque preciso de alguém que não
tenha medo de mim – diz Theo.
– Você é o diretor?
– Sou. Rebecca vai produzir.
– E você precisa de…?
Eu não quero fazer papel de boba se eles estiverem procurando uma
estagiária e o que eu disser for algo bem mais prestigioso. Tenho
esperança de que eles digam que é trabalho de cenógrafa. Eu levaria
anos para conseguir essa posição em um estúdio, mas talvez seja
possível que um filme pequeno aposte em alguém como eu.
– Designer de produção – diz Rebecca.
– O quê? – digo.
– Bom – diz Theo –, basicamente o seu trabalho seria ser o
departamento de arte.
– Você pode contratar uma pessoa pra te ajudar – acrescenta
Rebecca. – Mas eu sei que não é muito. É um trabalho pesado. E o
salário é um horror, e nós começamos a filmar em quatro semanas.
– Quatro semanas?
– Infelizmente. Mas nós te daríamos muita liberdade criativa.
– Aqui – diz Rebecca. – Toma o roteiro. Dá uma lida e vê se te diz
alguma coisa.
Eu nem digo nada. Só pego o roteiro das mãos dela e abro na folha
de rosto. Sim e sim, de Rebecca Golden e Theo Fitzgerald. E ver o nome
deles ali me enche de gratidão. Fico emocionada. É o filme deles, o
dinheiro deles, o esforço de amor deles, e eles estão dispostos a confiar
tanta coisa a mim se eu disser sim.
– Vou ler – digo. – Vou ler hoje à noite.
– Espero que você goste – diz Rebecca.
– Claro que ela vai gostar – diz Theo. – Você não está vendo? Ela é
gente como a gente. Ela tem o amor.

Por algum motivo, não conto para Charlotte. Assim que entro no
apartamento, coloco a bolsa com o roteiro no canto da sala de Toby e
me junto a ela no pátio, onde ela está olhando para a tela do
computador.
– O que você está fazendo?
– Estou me matriculando em matérias – diz ela.
– O que você vai fazer?
– Um monte de coisas do ciclo básico. Mas também Introdução à
Museologia.
– Que divertido – digo.
Mas eu realmente achava que Charlotte mudaria para cinema
quando consegui o emprego para ela no estúdio. Achei que “o amor”,
como Theo dizia, seria contagioso, principalmente porque Char é tão
boa no que faz e tem a mente perfeita para o aspecto da produção dos
filmes. Mas acho que a atenção dela a detalhes e a desenvoltura social
impecável vão ser boas no mundo dos museus.
– Você já está se matriculando?
– Eu vou daqui a um mês e meio.
– Não me lembra.
– Você não precisa escolher suas matérias logo?
– Provavelmente. – Dou de ombros.
– Você deveria saber quando é a data de matrícula.
– É, eu vou pesquisar.
Tudo parece menos urgente para mim porque vou estudar em Los
Angeles, e agora, com a fantasia de um emprego de design de
produção ao meu alcance, a faculdade quase parece desnecessária.
Mas eu sei que não é. Sei que vai abrir as portas do mundo de um jeito
novo. Logo vou poder me sentar para ver televisão com meus pais com
o conhecimento de todas as teorias críticas deles. Vai ser bom poder
acompanhar. E eu vou aprender muito mais sobre a história do
cinema e sobre design de produção. Eu não sou tão ingênua a ponto
de imaginar que sei tudo o possível sobre como os filmes são feitos.
Mesmo assim, não quero que o verão acabe tão cedo.
– Você já pensou no que deveríamos fazer com o apartamento? –
pergunto.
– Já – diz ela. – Mas não consigo pensar em nada épico o bastante.
– Sei bem como é – digo. – Uma droga. Vamos comprar tacos e ficar
na praia.
Depois que Charlotte termina as coisas da faculdade, vamos até
nosso food truck favorito e seguimos em direção ao mar, desviando de
patinadores e skatistas e ciclistas, tirando as sandálias na areia e
seguindo até uma área aberta e convidativa para comer vendo o sol se
pôr no mar.
– O que tem no Michigan, afinal – digo. – Lagos? E daí.
– Eu também vou sentir a sua falta – diz ela.
Ouvimos um zumbido e nós duas pegamos os celulares. Morgan
não me manda mensagem há três dias. Minha tela está apagada.
– Olha – diz Char, e mostra o dela para mim.
Aqui é a Ava. Você e Emi estão livres amanhã? Tenho uma coisa pra
mostrar pra vocês!
– Fala que sim – digo.
– Pedimos pra ela vir pra Venice de novo?
– Claro – concordo. Mas mudo de ideia. – Não, pensando melhor…
Vamos marcar no Marmont!
Charlotte ri e balança a cabeça.
– No Marmont. Certo. Algo me diz que não é o tipo de lugar que Ava
frequenta.
Pego o celular de Charlotte e digito Nos encontramos no Chateau
Marmont. Esquina da Sunset com Havenhurst. Hollywood.
Charlotte olha por cima do meu ombro.
– Você sabe a esquina de cor?
– Claro – digo, devolvendo o celular dela. – É estranho eu me sentir
aliviada agora? Foi meio ruim pensar que tinha acabado.
– Eu acho que não acabou – diz Charlotte. – Tem tanta coisa que a
gente ainda não sabe. Sinto que só vai acabar se ela não nos pedir
nada, mas é possível que ela precise de ajuda pra descobrir bem mais
a respeito, e se for esse o caso a gente devia ajudar.
– Espero que ela peça – digo. – A neta de Clyde Jones não deveria
estar morando em um abrigo e trabalhando de madrugada numa loja
de materiais de construção. É tipo contra as leis do universo.
Charlotte ri.
– Eu gostei muito dela – falo.
– Aposto que sim – diz Charlotte.
– Não, sério – digo. – Não só por ela ser linda a ponto de partir
corações. Ela nos contou coisas da vida dela. Queria ficar lá com a
gente. Ela nem nos conhece. Não é qualquer um que faria isso.
– É, eu também gostei dela – admite Charlotte. – Vamos ver o que
vai acontecer amanhã.
O sol paira baixo sobre a água, as nuvens em volta se tornam rosa e
violeta.
– Estive pensando – digo. – Sabe aquilo que eu falei na noite em que
a gente encontrou a carta? Que eu sentia que havia algo de
significativo nela?
– Lembro, sim. Foi a única vez que você disse algo assim.
– Andei pensando que talvez Ava seja alguém que eu precisava
conhecer.
– Conhecer?
– Não é só por ela ser tão bonita. Nem por causa do Clyde. Eu sei
que parece maluquice, mas juro que tem uma coisa nela. Tenho a
sensação de que eu tinha que conhecer Ava.
Charlotte faz círculos na areia com o dedo.
– Você não acha que ela se interessaria por mim – digo.
– Não estou dizendo isso.
– É, mas não está dizendo nada. Isso diz muito.
– Você devia se dar um tempo pra esquecer Morgan. Começar
devagar.
– Por que você precisa ser tão prática?
– Uma de nós tem que ser. A gente pode acabar sendo amiga da Ava.
– Vou precisar de mais amigos quando você for embora.
– Eu não vou “embora”. Vou estar na faculdade.
– Mas aí, vai saber. Você vai acabar sendo uma diretora de museu
maravilhosa em algum lugar. Pode ir parar em Nova York. Pode ir
parar em Chicago. Essa pode ser nossa última vez juntas aqui na praia.
Depois disso, tudo vai ser diferente. Você vai esquecer seu amor por
palmeiras e seu medo de neve. Vai passar todo o seu tempo em um
escritório chique mandando nas pessoas e encontrando esculturas
roubadas do século xvii.
Eu tenho muito mais a dizer, mas Charlotte está me empurrando
para a areia.
Tento continuar, apesar da agressão dela:
– Você vai ser recrutada pelo Louvre. Vai morar em Paris e se casar
com um parisiense lindo que é, sei lá, meio francês e meio marroquino
e é a cara do meu irmão, e quando chegar a hora de renovar o
passaporte, você vai dizer: Quem precisa de les États-Unis? Tem areia
no meu olho! – digo, ofegante.
Ela para de me empurrar e se levanta.
– Vamos – diz ela. – Você é ridícula e eu tenho coisa pra fazer.
Eu me levanto e vou atrás dela.
– Você vai começar a dizer que os filmes americanos são idiotas, só
espetáculo sem substância, ignorando completamente as centenas de
filmes lindos e introspectivos que os Estados Unidos produzem todos
os anos, sem falar que os de puro entretenimento são, por si só,
incríveis.
Charlote para de andar e se vira para mim. Coloca as mãos nos
meus ombros.
– Eu vou pra Michigan porque é a melhor faculdade na área que
quero estudar. Eu não sei pra onde vou quando acabar. Mas você
sempre vai ser minha melhor amiga e eu nunca vou ser o tipo de
esnobe que diz que todos os filmes americanos são idiotas. Se um dia
eu fizer uma generalização absurda como essa, aponta pra mim e ri até
eu me sentir humilhada o bastante.
– Tudo bem – digo, e sinto um nó na garganta. Ela sorri para mim,
um sorriso de solidariedade e de tristeza que ela sente também.
Eu nem pretendia que fosse um momento emotivo, mas acho que
eu preciso disso. É horrível perder a melhor amiga, mesmo que só
para a distância. Mesmo que não seja perder de verdade.

~
Começo a ler às onze e meia, quando Charlotte já está dormindo.
Estou deitada no sofá à luz de um abajur de metal (tirado da garagem
do meu avô), para que ela não acorde. Na média, os roteiros tem entre
90 e 120 páginas, uma página por minuto de tela. Esse tem 111, o que
significa que vou conseguir ler tudo esta noite, ou pelo menos ter uma
boa noção para saber se quero aproveitar a oportunidade louca.
Na página três, já estou apaixonada.
Sim e sim tem dois personagens principais, Juniper e George, que
trabalham em um mercadinho de Los Angeles. George tem quarenta e
poucos anos e, com o desenrolar da trama, descobrimos que ele estava
morando no Oregon, mas voltou para Los Angeles, onde passou a
infância, para cuidar do pai doente, que acaba morrendo e deixando o
mercado para George. Agora, ele está em um impasse. Ainda está
morando na casa onde cresceu, apesar de os pais terem morrido, e
trabalhando no mercado, algo que ele nunca pretendeu fazer.
Juniper, que faz vinte anos durante a história, quer ser botânica. Ela
está conciliando aulas na faculdade comunitária com o trabalho no
mercado e sofrendo muito desde que o chefe idoso ficou doente e
morreu. Ele a tratava como filha e ela precisava disso, porque é uma
pessoa solitária e meio frágil.
O momento em que tudo começa é este: uma mulher, Miranda,
entra no mercado, pega uma cesta, começa a andar pelos corredores.
Pega uma toranja, um pacote de aveia, uma barra de chocolate. Juniper
está colocando papinha de bebê nas prateleiras a centímetros quando,
sem aviso, Miranda cai no chão e tem uma convulsão. Juniper deixa
um pote de papinha de bebê cair, e o pote se quebra. George corre de
seu posto no caixa. Um cliente liga para os paramédicos e, enquanto
eles esperam as sirenes se aproximarem, Juniper e George ficam
sentados ao lado dela, ambos envolvidos e com medo.
Juniper e George não se apaixonam. Eles ficam amigos. A
experiência os une e, quando eles estão sentados se perguntando
quem Miranda é de verdade com um fervor que beira a obsessão,
estão falando na verdade sobre como imaginaram a própria vida e
que, na verdade, ela não chega perto do que queriam. Eles aprendem
sobre si mesmos e sobre o outro.
No final, Miranda volta ao mercado. Ela nem dá atenção para eles, o
que faz sentido, porque, apesar de ter sido um momento importante
para Juniper e George, Miranda estava tendo uma convulsão. Ela não
se lembra deles. Compra frutas e vai embora, e eles ficam perplexos e
se sentem desprezados, mas nós já sabemos que o ponto central não
era Miranda. Eram os dois o tempo todo.
– Charlotte – sussurro às duas da manhã. – Acorda. Eu preciso te
contar uma coisa.
Ela abre os olhos.
– Qual é o problema?
– Nada – digo. – Tenho uma coisa maravilhosa pra contar. Uma
coisa incrível aconteceu comigo de tarde.
Ela se senta e esfrega o rosto.
– Eu estava com você mais cedo – diz.
– É, foi antes. Eu recebi uma oferta de emprego como designer de
produção.
– Acende a luz.
Eu acendo e ela aperta os olhos.
– Você está falando dormindo? – pergunta.
– Não – digo, me sentando ao lado dela. – Eu recebi uma proposta
de trabalho de uma conhecida de Morgan da faculdade de cinema:
Rebecca, lembra, que estava com ela quando elas foram buscar o sofá?
– Sei.
– É um filme que ela escreveu com o namorado. Acabei de ler o
roteiro.
– Sei.
– Eu vou aceitar o trabalho. É uma história linda. Não tem como
você chamar de idiota. Quer ler?
– Agora?
– É – digo. – Por favor. Eu sei que são duas da manhã.
– Por que você não me contou mais cedo?
– Eu estava com medo de ser um filme ruim. Pensa bem: eu?
Designer de produção? Achei que seria piada. Não queria ficar
empolgada por uma coisa que provavelmente seria horrível.
Ela sai da cama.
– Faz café.
– Sério? Você vai ler agora?
– Minha melhor amiga recebeu uma proposta de trabalho muito
importante em um projeto que ela acha lindo. Claro que eu vou ler
agora.
Ela se senta na poltrona laranja, e eu faço café para nós duas, e ela
lê. Ela toma o café, vira as páginas. Em determinado momento, ela se
levanta para ir ao banheiro, mas volta logo em seguida. Eu me obrigo a
não olhar por cima do ombro dela nem perguntar o que ela acha.
Começo então a pensar em ideias para os cenários. Vamos precisar da
casa do George e do apartamento de Juniper; do mercado; de um
parque. É muita coisa para montar em quatro semanas, mas eu só vou
ter que trabalhar em uma locação de cada vez.
Muitas das cenas são no mercado, então faço uma lista de todos os
mercados em que consigo pensar, de vendinhas a mercados maiores
que ainda têm uma atmosfera de cidade pequena. Grande parte do
trabalho dessa parte vai ser encontrar um lugar que tope nos deixar
filmar lá. As casas de George e Juniper vão ser mais complexas, porque
precisam refletir quem eles são.
É isso que amo no design de produção. Os roteiristas imaginam a
história, nos contam onde as pessoas estão e o que fazem e dizem. Os
atores incorporam os personagens, dão rosto e voz a eles. Os diretores
e produtores transformam uma ideia em algo real. Mas o
departamento de arte, nós fazemos o resto. Quando os espectadores
veem os quartos deles e descobrem que eles amam uma certa banda,
ou que colecionam conchas ou penduram as roupas respeitando um
intervalo regular entre cada camisa perfeitamente passada ou têm
pilhas de papéis na mesa ou uma semana de louça suja na pia e sutiãs
pendurados em maçanetas… tudo isso somos nós.
O departamento de arte cria o mundo. Ao entrar na casa de alguém
e ver todas as coisas dela, a arrumação ou a bagunça, os objetos que
estão expostos, é nessa hora que passamos a conhecer alguém de
verdade. Talvez haja um cara que você ache que é seu amigo, mas aí
você vai à casa dele e descobre que as paredes estão cobertas de
animais empalhados e troféus e você nem sabia que ele caçava. Talvez
seja sinistro, talvez as cabeças nas paredes pareçam decrépitas, não
preservadas do jeito certo. Ou talvez sejam perfeitas e você perceba
que ele tem orgulho, que é bom em alguma coisa. Seja como for, isso o
torna mais interessante. Tudo isso é importante, e muitas vezes não
está no roteiro; é uma coisa que o departamento de arte imagina.
Rebecca e Theo descreveram o apartamento de Juniper como
pequeno e humilde e com muitas plantas, e minha função é decidir
todo o resto. Ela é organizada ou bagunceira? As plantas ficam
enfileiradas nos parapeitos das janelas ou estão por toda a parte,
cobrindo todas as superfícies com terra? Há quadros nas paredes? A
resposta é sim. Ela tem quadros nas paredes, talvez algo científico.
Visualizo o apartamento dela em azuis e verdes, basicamente; ela é
meio melancólica.
George também é melancólico, mas enquanto o apartamento de
Juniper precisa refletir quem ela é, ele mora em uma casa que não
decorou, um lugar que está igual há muito tempo. Ele está sofrendo
pela morte dos pais. Em uma cena, ele faz um ovo, come e lava a louça
logo em seguida, o que parece um ritual. Como se fosse assim que a
mãe o ensinou a fazer as coisas. Ele deixa tudo arrumado, exatamente
como estavam antes de eles terem morrido. Vou precisar criar um
cenário que pareça datado, mas bem-cuidado. Ele precisa parecer um
hóspede lá.
Coral. O esquema de cor vai ser coral e rosa e talvez amarelo, como
se a casa estivesse tentando consolá-lo.
Ele vai comer o único ovo triste em um prato delicado com borda
recortada e desenho de flores.
Faço listas longas e curvas. Desenho esboços das duas casas.
Trabalho nas cenas que lembro porque Charlotte está com a minha
cópia do roteiro e eu não quero tirá-la da história. Pego meu notebook
e procuro imagens para mostrar a Rebecca e Theo, para eles terem
uma noção do que quero criar. Em blogs de design, encontro alguns
móveis que quero procurar para o cenário, pesquiso e anoto de onde
vieram, e encontro um papel de parede meio coral lindo para a
cozinha da casa de George, e o endereço de uma loja em West
Hollywood que tem vários tipos de plantas exóticas.
Ouço um suspiro e levanto o olhar. É Charlotte. Ela está fechando o
roteiro. Não diz nada de primeira, e sinto que parei de respirar
enquanto espero, e ela diz:
– Você tem razão. É tão comovente. Amei os personagens. O ritmo é
perfeito.
– Você quer fazer comigo? – pergunto. – Eles disseram que eu posso
contratar um assistente. Preciso de alguém que me ajude a manter a
sanidade.
Nós basicamente já terminamos o projeto atual no estúdio, e como
Charlotte vai para a faculdade em breve, também é o último projeto
dela por lá. Ainda assim, tem uma boa chance de ela querer passar as
últimas semanas em casa sem fazer nada, se preparando para a
faculdade e passando tempo com a família. Por isso, estou preparada
para suplicar.
Mas ela não me obriga a fazer isso.
– Claro – diz. – Você me faria trabalhar à beça de qualquer jeito.
Melhor receber por isso.
– Então eu devo aceitar – digo. – Né?
Eu só quero ouvi-la dizer sim.
– Sim.
Capítulo oito

No dia seguinte, ao meio-dia, eu me encontro com Theo e Rebecca na


casa deles, a dois quarteirões do café onde tivemos nossa primeira
reunião. O quintal deles parece uma selva em miniatura. Há uma
mesa branca de ferro com água com gás, limonada e três copos,
ladeada de plantas tropicais.
Antes de me sentar, dou uma olhada nos detalhes. Trepadeiras se
enroscam na cerca e, em um ponto, Theo e Rebecca penduraram
objetos nos galhos: várias máscaras entalhadas à mão, alguns
mosaicos feitos de peças coloridas de cerâmica.
– Essas coisas devem ser do lugar de onde você veio – digo para
Theo, e ele assente. – África do Sul?
– Isso. Cidade do Cabo.
– Você deve ter passado muito tempo ao ar livre. E ainda passa,
obviamente.
Ele inclina a cabeça.
– Como isso pode ser óbvio? Você está certa, mas…
– A maioria das pessoas não decora espaços externos assim – digo. –
Colocam móveis e alguns acessórios decorativos, claro, mas não
deixam almofadas que parecem ter sido feitas à mão nas cadeiras, por
exemplo, nem porta-retratos com fotos da família penduradas nas
paredes de fora.
Theo e Rebecca têm as duas coisas. Eles também têm uma coleção
de vasos e canecas esmaltadas que contêm suculentas bem-cuidadas.
Pego uma das canecas para mostrar a eles.
– Umas assim ficariam ótimas na casa de Juniper – digo, e Rebecca
estaca no caminho até a mesa com uma tábua de corte cheia de frutas
e queijos na mão.
– Então você leu? – diz ela.
– Li.
– E? – pergunta Theo.
– Eu amei – digo. – É lindo. E ficaria honrada em ser a designer de
produção. Não ligo se paga pouco.
Pela manhã, pensei em ser meio blasé, mas mudei de ideia; isso não
é o meu forte.
Eles sorriem e nós nos sentamos à mesa.
– Tenho um monte de ideias – digo, pegando e abrindo meu
notebook para mostrar as imagens que reuni. Citei todas as partes do
roteiro que me levaram às decisões que tomei sobre os personagens, e
Theo e Rebecca fazem perguntas e dizem coisa como: Sim, azuis e
verdes! E Theo diz: Coral? Tipo um rosa alaranjado? Que brilhante! E
Rebecca diz para ele: Eu não te falei? E, para mim: Sua estética é
exatamente o que queremos. Essas ideias são perfeitas. Em algum
momento, acontece uma coisa entre nós.
O filme passa a ser nosso em vez de só deles.
Nós falamos do orçamento, que é quase inexistente. Tem dinheiro
suficiente para pagar uma quantia pequena pelas locações, mas não
sobra quase nada.
– Podemos economizar dinheiro para a decoração se pudermos usar
locações gratuitas – digo. – Eu tenho um lugar em mente para o
apartamento de Juniper.
– Ah, é?
– A casa do meu irmão. Ele está fora, não seria problema. É
iluminado e muito do que já tem lá funcionaria para Juniper. Nos
daria uma boa base, pelo menos.
– Excelente – diz Theo, e digo que vou mandar fotos mais tarde, e
eles dizem que seria ótimo ver fotos em algum momento, mas que
confiam na minha visão, então não tem pressa.
– Em que pé estamos com o elenco? – pergunto entre pedaços de
pêssego fatiado.
– Conseguimos Benjamin James – diz Theo.
– Para o George?
Ele faz que sim.
– Não acredito que vocês não me contaram isso ontem!
Rebecca sorri.
– A gente achou que poderia usar hoje se você fosse uma
negociadora difícil.
– Certo – digo. – Bom, teria dado certo. Quem mais?
– Lindsey Miller – diz Rebecca. – Ela vai fazer a mulher que tem a
convulsão.
– Lindsey Miller? Que incrível.
– Sim, tivemos uma sorte danada – diz Theo.
– Ela é nossa amiga – explica Rebecca. – O agente dela é durão, mas
ela conseguiu convencê-lo a permitir que ela participasse desde que a
gente filme todas as cenas dela em dois dias.
– Essas datas estão marcadas?
Eles fazem que sim, e eu pego o celular e começo a marcar no
calendário. Os dias são no fim da agenda da produção, o que significa
que as cenas do mercado vão ser as últimas a serem filmadas, o que
deve ser bom considerando que o mercado talvez seja a locação mais
difícil de arranjar. Nós debatemos alguns mercados para abordar.
– Quem vai fazer a Juniper? – pergunto.
Theo suspira e Rebecca massageia a testa.
– Não se preocupa – diz ela. – Nós vamos encontrar alguém.
Mas está claro que ela está preocupada, e, com apenas quatro
semanas antes do início das gravações, eu entendo o motivo.
– A gente tinha a Sarah Williams – diz Theo. – Ela é o motivo de
termos atrasado toda a agenda de gravação. Mas depois do aceno no
Oscar, ela passou a ser muito solicitada. Teve que desistir.
– Que droga – digo. – Mas faz sentido.
E faz mesmo. Sarah Williams é a nova garota em voga, nova demais
na cena para ser odiada, estabelecida o bastante para agraciar as capas
de todas as revistas da moda. Mas embora pudesse ser incrível tê-la
como nossa protagonista, tem uma ideia diferente surgindo em minha
mente.
– Vocês estão fazendo teste com outras pessoas?
Rebecca ri e Theo levanta a mão.
– Em minha defesa…
– Mais de cem outras pessoas – diz Rebecca.
– Por favor. Em minha defesa. Esse é o papel mais importante do
filme todo. Se não tivermos uma Juniper forte, nosso filme não vai
valer nada.
– Ela é baseada na irmã dele – explica Rebecca. – Ninguém é boa o
bastante.
– Sarah Williams era boa o bastante – murmura Theo. – Mas nós
vamos ver um grupo novo de garotas na semana que vem. Nosso
agente de elenco está gravando testes pra nós.
– Qual cena vocês estão pedindo que elas leiam?
– A quarenta e dois – diz Rebecca. – Quando ela…
– Fala do florista. Conta aquela história para George. Eu amo essa
parte.
Eles me encaram.
– Eu não decorei tudo – digo. – Mas anotei muitas coisas sobre essa
cena. É a primeira vez que estamos na salinha de descanso, e tem
várias coisas que quero incluir na cena. Tipo caixas de vinho pra eles
se sentarem, ganchos pra pendurar aventais, um quadro com a escala
da semana… Esse tipo de coisa.
– Originalmente, nós a escrevemos pra ser flashback – diz Rebecca.
– Pra mostrar o estande de flores e toda a ação enquanto Juniper conta
a história. Foi uma das coisas que tivemos que cortar considerando o
orçamento. Mas desde que tenhamos ótimas atuações, acho que os
atores conseguem executar a cena.
Eles querem saber mais das minhas ideias, mas eu desvio a conversa
para Juniper assim que consigo.
– Nós temos um elenco top – digo. – Isso significa que vocês
precisam de uma estrela para o papel dela?
– Nós já conversamos muito sobre isso – diz Rebecca. – Primeiro
achávamos que sim, mas mudamos de ideia.
– Foi por desespero, na verdade – acrescenta Theo. – Nenhuma
estrela que queria o papel era a pessoa certa. Mas já temos nomes
conhecidos com Benjamin e Lindsey.
– Então vocês considerariam uma desconhecida?
– Desde que fosse a desconhecida certa – diz Theo. – Aí sim.

Mesmo depois de ter ido embora, não quero parar de planejar. Eu


nunca me senti tão desperta.
Assim que volto para o apartamento, eu me acomodo no pátio de
Toby com meus óculos de sol e meu notebook e reviro a internet atrás
de quadros para as paredes de Juniper. Quero cenários exuberantes e
cheios de vida para esse filme. Nada modesto demais nem moderno
demais.
Duas horas depois, encontro o que estou procurando no site de uma
loja de antiguidades de Minneapolis. Oito gravuras botânicas de um
livro publicado em 1901. As gravuras estão amareladas de um jeito que
faz com que pareçam valiosas e raras, e os desenhos das plantas são
tão bonitos, cheios de flores delicadas e folhas e estruturas de raízes.
São tão perfeitas para Juniper que só hesito um momento quando vejo
o preço. Sim, são um terço do orçamento que alocamos para todo o
apartamento de Juniper, mas tenho certeza de que vou conseguir
suplicar para pegar quase todo o resto emprestado, então pego meu
cartão de crédito.

Ava aparece na porta do bar do Marmont, nos procurando lá dentro, e


fica claramente aliviada quando me vê acenar.
– Desculpa o atraso – diz ela enquanto desce para a área iluminada
e rebaixada onde pegamos uma mesa. – Eu não tinha ideia de por que
porta entrar! E fiquei achando que estava em um lugar onde não
deveria estar e que alguém ia perceber e me expulsar. Que lugar é esse?
Ela coloca a bolsa no carpete vermelho gasto e puxa uma cadeira de
costas altas forrada de veludo. Hoje o cabelo está preso no alto, com
grampos e meio desgrenhado, e ela está usando o mesmo shorts e o
mesmo cinto que da última vez, hoje com uma camisa branca de
botões solta abotoada com as mangas dobradas.
– É um hotel – digo.
– Um hotel caríssimo – acrescenta Charlotte. – Para celebridades e
pessoas desesperadas para verem celebridades. – Ela vê alguma coisa
no pátio. – E para mulheres que me deixam morrendo de medo de
envelhecer.
Nós seguimos o olhar dela até onde duas mulheres idosas estão se
levantando, bambas com suas pernas de palito de fósforo e saltos, os
peitos enormes e falsos, a pele no rosto maquiado demais repuxada
por muitas cirurgias. Os lábios estão tão inchados que deve doer. Eu
afasto o olhar.
– O Marmont é mais do que isso – digo. – Tem muita história. Clyde
Jones vinha aqui, por isso eu achei que seria o lugar perfeito pra
encontrar a neta dele.
– Ele vinha?
– Todos os astros e estrelas da época vinham. E, claro, muita gente
vem aqui só pra ser vista, mas as pessoas trabalham de verdade aqui.
Tipo a Annie Leibovitz, sabe? Ela tirou alguns dos retratos mais
famosos dela aqui. Já teve gente que escreveu romances aqui. Sofia
Coppola gravou um filme inteiro aqui. E houve muitas tragédias
também.
– Emi adora uma tragédia – diz Charlotte.
– Isso porque as melhores histórias são trágicas.
– Tragédias tipo o quê? – pergunta Ava.
– São tantas. Você ouviu falar de John Belushi?
Ela faz que não.
– Ele era comediante, parte do elenco original de Saturday Night
Live. Ele morreu aqui em 1982. Tinha só 33 anos, e naquela noite estava
na farra com várias outras celebridades, Robin Williams, Robert De
Niro e várias outras pessoas, e aí teve uma overdose. Ele foi encontrado
no quarto. O Bangalô Três.
– Que horrível.
– É, muito triste – digo. – Está com fome?
Ela faz que sim e entrego o cardápio para ela. Quase na mesma
hora, ela franze a testa, e sei que deve ser porque tudo custa bem mais
do que deveria. Não dá nem para tomar uma sopa por um preço
decente. Por isso mesmo, quando o garçom chega, eu me adianto e
peço um monte de coisas.
– Está bom pra vocês? – pergunto a elas. – Pensei em pedir umas
coisas pra gente dividir.
Ava assente, mas parece preocupada.
– Por nossa conta – acrescenta Charlotte.
Quando o garçom se afasta, Ava diz:
– Eu pago a gorjeta.
Char e eu tentamos descartar a ideia.
– Não. Eu insisto – diz ela.
– Você queria mostrar uma coisa pra gente? – pergunta Charlotte.
Eu nem lembrava dessa parte do motivo de estarmos ali, mas agora,
quando Ava assente e enfia a mão na bolsa, estou doida pra saber o
que é.
– É só uma fotografia – diz. – Eu percebi, depois que mandei a
mensagem, que deveria ter falado isso. Vocês talvez tenham achado
que era alguma coisa muito importante, mas…
Estico a mão e ela coloca a foto na minha palma. Charlotte se
inclina para olhar mais de perto.
– É a minha mãe – diz Ava.
– Caroline – digo.
Quando olho para a foto, Caroline se torna real de um jeito que não
era quando era só um nome em uma carta encontrada na mansão de
um homem morto. Ela está com o cabelo preso de um jeito parecido
com o que Ava usa o dela agora, com uma mecha caindo no rosto. O
estilo é um grunge dos anos 1990 perfeito, despojado: calça jeans
rasgada e camisa de flanela abotoada sobre uma camisetinha de alça,
as mangas enroladas até os cotovelos. O braço está em um borrão de
movimento, como se prestes a tirar os fios de cabelo do rosto. Ela está
no sol no que parece ser uma rua de Long Beach. Ela é pálida e ruiva
de olhos verdes, e foi capturada em um momento comum, casual e
feliz.
– Ela é linda – diz Charlotte, e é verdade.
– É incrível como vocês são parecidos – digo. – Você, Caroline e
Clyde. Que genes fortes.
Eu paro aí. Não pergunto o que quero perguntar, sobre a sensação
de ver uma conexão biológica tão forte considerando que eles não se
conheceram. Eu me pergunto o que Ava sente quando olha para a
fotografia, se há algum reconhecimento, alguma coisa aninhada em
uma memória distante que registra aquela mulher como mais do que
alguém que tem as mesmas feições que Ava. Se a declaração É a minha
mãe é apenas factual ou se, de alguma forma, ela ainda sente a
conexão.
– Andei pensando – diz Ava. – Quando vocês conheceram o casal de
idosos do apartamento… – Ela estica a mão em direção à fotografia e
eu a devolvo. Ela a observa e respira fundo. – Por acaso eles contaram
como ela morreu?
– Não – digo. – Não contaram.
– Só que eles a encontraram no apartamento – acrescenta Charlotte.
Ava assente. Ela guarda a fotografia em um envelope, coloca o
envelope dentro de um livro e guarda o livro na bolsa.
– Eu tive uma fase quando tinha cinco anos – diz. – É quando me
lembro de Tracey mudar, se afastar de mim. Tive a sensação de que a
minha vida estava de repente toda errada. Eu passei muito tempo
pensando em como Caroline podia ter morrido.
O garçom chega seguido por outro homem e eles colocam batata
frita e ovos apimentados e bruschetta na mesa. Ele pergunta se
queremos mais alguma coisa e nós dizemos que não e eu espero que
Ava continue quando ele vai embora.
Charlotte e eu não dizemos nada, e Ava retoma a história.
– Por algum motivo, eu sempre a imaginei de vestido lilás, apesar de
só ter visto esta foto dela. Às vezes, eu imaginava frascos de
comprimidos perto dela. Às vezes, um buraco de bala. Às vezes, não
havia nenhuma prova, e era como se ela tivesse se deitado no tapete
em posição fetal e pegado no sono.
Ela pega o guardanapo e o abre no colo. E olha pela janela.
– Eu sempre imaginei com tapete – diz ela. – Acho que eu queria
que ela estivesse no macio.
– Eu ainda acho estranho a Tracey não te contar as coisas – digo. –
Parece errado te fazer adivinhar.
– Nós tivemos muitas brigas por isso. Por um tempo, achei que
podia ser por achar que ela era a minha mãe, e que talvez eu estivesse
a fazendo sofrer ao falar em Caroline.
– Talvez seja verdade – diz Charlotte.
– Não. Quer dizer, talvez fosse quando eu era bem pequena. Ela
dizia uma coisa o tempo todo: “Não faz isso com a gente.” Ela dizia isso
pra funcionários de hotel ou senhorios quando eles tentavam nos
despejar, ou para os chefes dela quando eles diziam que ela não podia
mais me levar para o trabalho.
Charlotte franze a testa.
– Que coisa horrível precisar dizer algo assim.
– É, mas não parecia horrível. Acho que eu só me concentrava na
parte do “a gente”. Nunca era assustador quando eu era pequena,
mesmo quando a gente tinha que passar a noite no carro, porque a
gente sempre estava junta. Mesmo quando ela tinha namorados, ela
me levava em todos os encontros. Se os caras não fossem legais
comigo, ela ia embora.
Ela estica a mão e pega uma batata frita com dedos finos. Antes de
colocá-la na boca, diz:
– Um deles me deu uma daquelas camas elásticas pequenas. Do
tipo em que só uma pessoa pode pular de cada vez, sabe? Ficava na
sala. Tracey conseguia tocar no teto quando pulava.
Ela sorri ao se lembrar disso, e quase consigo visualizar: uma garota
com vinte e poucos anos em um apartamento com poucos móveis, à
noite. O brilho de um abajur comprado usado e dos postes de luz
entrando por uma janela sem cortina. Uma ruiva de quatro anos
deitada no tapete, vendo a garota pular repetidamente, impressionada
com o contato de mãos no teto, tomada de espanto porque um dia vai
ficar grande, pela promessa de um dia crescer.
Mas a história tem uma reviravolta, claro. Ava nos conta que foi na
época que ela começou a frequentar o jardim de infância. Ela via
como Tracey olhava para os outros pais. Eles eram um pouco mais
velhos; eram muito confiantes; se reuniam em grupos animados no
parquinho depois da escola, as alianças cintilando no sol. Ofereciam
conselhos uns aos outros e se lamentavam e riam com a cabeça
inclinada para trás e a boca aberta, segurando bebês apoiados nos
quadris, elogiando e consolando e disciplinando os filhos uns dos
outros como se fossem deles.
– De repente, Tracey começou a agir de um jeito diferente. Ela me
deixava em casa sozinha. Reclamava de me levar na escola e ter que
me buscar e fazer o jantar. Eu não entendia direito na época, mas acho
que ela estava se dando conta de que não era uma vida que ela tinha
escolhido por si própria, sabe? Ela não queria uma filha aos vinte
anos. Nunca me contou como tudo aconteceu, mas meu palpite é que
foi de forma impulsiva, que Caroline, a melhor amiga dela, morreu e lá
estava eu, o que tinha restado dela, e eu tenho certeza de que Tracey
me amava e não conseguiu imaginar me perder também. Mas isso não
quer dizer que ela quisesse mesmo ser mãe. Nem que estivesse pronta
pra isso.
Eu me vejo inclinada adiante por cima da mesa, ansiosa pela
história, e me obrigo a me encostar e tomar meu chá gelado e engolir
todas as minhas perguntas. Deixo que Ava coma em paz por um
minuto enquanto uma subcelebridade passa por nós em direção ao
pátio e as pessoas tentam não reparar, enquanto um silêncio se
espalha e, gradualmente, as conversas são retomadas ao nosso redor.
A verdade é que eu não conheço ninguém que tenha levado o tipo
de vida que Ava levou. Passo o tempo entre um mundo de famílias
relativamente ajustadas e uma escola particular e o mundo do cinema,
onde as histórias costumam ser cheias de tudo isso, mulheres jovens e
perturbadas, rejeição e morte e amor, mas são claramente construídas
e controladas, sendo o destino de todo mundo já determinado.
– Charlotte não está totalmente certa sobre mim – digo. – Eu adoro
uma tragédia, mas o que amo mesmo é redenção.
– Desculpa. Eu perdi alguma coisa? – pergunta Charlotte com um
sorrisinho.
Ava inclina a cabeça e me observa. Eu me vejo sem saber o que dizer
agora, porque o que estou pensando é que filmes são divididos em
cenas, e que essas cenas são filmadas fora de ordem. Não se começa a
filmar no começo e termina no final. Tem a ver com as locações e as
disponibilidades. Às vezes, as últimas cenas são filmadas primeiro,
então sabemos que o casal se reconcilia, ou que o herói mata os
alienígenas, ou que o adicto se livra das drogas. Sabemos que tudo vai
ficar bem, então quando é hora das cenas iniciais e perturbadoras, é
possível se deixar envolver por elas com segurança. Deixar que elas te
destruam e permitir que o sentimento seja bom.
Eu quero um final feliz para Ava. Quero ter aquela sensação de paz,
para que todos os detalhes tristes da vida dela se tornem parte de uma
jornada que termina bem. Estar no Marmont é um bom começo,
mesmo ela ainda não sabendo que ali é o lugar dela. Mas não pode ser
só por quem o avô dela era e o dinheiro que com sorte ela vai obter. A
fama por associação é uma coisa muito vazia.
Enfio a mão na bolsa e pego o roteiro de Sim e sim.
– Eu acabei de começar a trabalhar em um novo filme. Tem um final
lindo – digo. – E sei que é totalmente um tiro no escuro, mas acho que
você devia fazer um teste pra um dos papéis.
Ava ergue as sobrancelhas de surpresa, mas não nega. Ela estica a
mão e pega o roteiro.
– Eu sei que atuar em peças da escola não é a mesma coisa que
atuar em um filme, mas você disse que gostava muito, e achei que
valeria a pena tentar. Tem alguma coisa na personagem que me faz
pensar em você.
Eu não continuo, porque, se tivesse que identificar o que Juniper
tem que me lembra Ava, minha resposta seria que as duas parecem
solitárias, as duas parecem meio perdidas no mundo.
Sinto Charlotte me olhando enquanto mostro para Ava a cena que
leria para a audição, e não sei dizer se ela aprova ou não. Ela olha o
relógio, diz que já volta. Quando se afasta, Ava lê a cena em silêncio e
chego mais com a cadeira para ler com ela, e fico impressionada de
novo com quanto eu amo o roteiro, como sinto orgulho do projeto.
Ela sorri quando termina, os olhos verdes brilhando.
– Quando nós faríamos isso? – pergunta ela.
– Temos que enviar a fita com a audição logo. Tipo depois de
amanhã, provavelmente. Nós podemos filmar no apartamento do meu
irmão.
Ela faz que sim.
– Eu tenho que trabalhar hoje, mas tenho amanhã de folga e posso
praticar durante o dia.
Charlotte aparece à mesa.
– Nós estamos fazendo um plano? – pergunta ela, o que é um alívio,
porque eu sei que, se ela reprovasse a ideia, não diria nada
encorajador.
– Audição daqui a duas noites – diz Ava. – Eu tenho um monte de
coisas pra fazer.
– Melhor a gente deixar você começar então.
– E a conta?
– Ah, eu resolvi isso quando subi. O atendimento aqui é horrível.
Teriam nos deixado esperando eternamente e Emi e eu temos uma
reunião.
Ava pega a carteira.
– Pelo menos me deixa te dar uns dólares.
– Quando você receber o dinheiro do Clyde, você pode nos levar pra
comemorar – diz Charlotte.
Ava hesita.
– Você está supondo que o dinheiro ainda está me esperando. Pode
não ter sobrado nada.
– Eu acho que vai estar lá – digo. Como poderia não estar? Quem
mais teria sacado?
– Posso pegar isto emprestado? – pede Ava, ainda segurando o
roteiro. – Quero ler ele inteiro. Me ajudaria a entender Juniper melhor.
Abro um sorriso para ela, porque é exatamente o que ela deveria
fazer. E eu tenho que controlar a animação na caminhada, tentar não
sorrir tanto quando vamos embora.
Ava vai ficar na minha vida por pelo menos mais alguns dias.
Capítulo nove

Uma hora depois, eu e Charlotte estamos sentadas no chão na sala de


Rebecca e Theo com o resto da equipe, todos reunidos pela primeira
vez: Charlie, o diretor de fotografia, silencioso, com óculos de lentes
grossas; o cara do som, Michael, com o irmãozinho/assistente que não
parece ser muito mais velho do que eu; os figurinistas, Grant e Vicki,
que estão cobertos de penas e franjas. Todos nós estamos fazendo o
que equipes inteiras fariam em uma produção de estúdio, tipo Grant e
Vicki, que costumam cuidar só do figurino, mas vão ficar encarregados
também de cabelo e maquiagem. Quando Rebecca nos entrega cópias
do cronograma de produção e vejo como isso precisa ser organizado
com rapidez, começo a me dar conta da enormidade do trabalho que
acabei de aceitar. Todo mundo está sobrecarregado nesse projeto, mas
mesmo com a ajuda de Charlotte, eu estarei fazendo o trabalho
acumulado de pelo menos sete pessoas. Eu sou a designer de
produção e cenógrafa, compradora e supervisora, decoradora e
carregadora e continuísta e assistente. Charlotte é minha diretora de
arte, mas, fora ela, estou sozinha.
Estou tentando ouvir o que Rebecca está dizendo, mas a lista de
tarefas não para de passar pela minha cabeça e logo fico enjoada.
Acho que fica claro, porque Charlotte se inclina para mim e sussurra:
– Pode surtar, mas só depois, quando estivermos no carro.
Faço que sim e engulo em seco, e Vicki me entrega um prato cheio
de queijos e frutas e pequenas fatias de pão, mas passo para Charlotte
sem pegar nada. Fico pensando que foram sete semanas, 52 bazares de
garagem e dezesseis vendas de propriedade; foi isso que eu levei para
encontrar um sofá. E agora, tenho menos de quatro semanas até nosso
primeiro dia de filmagem, quando o apartamento de Juniper precisa
estar pronto e a casa de George precisa estar encaminhada.
E estou me perguntando o que estou fazendo sentada aqui quando
deveria estar em West Hollywood implorando para pegar plantas
emprestadas, ou procurando arte para pendurar nas paredes de Toby,
ou encomendando papel de parede para a cozinha do George. Eles
estão falando em alugar luzes, de que tipo de luzes vão precisar, em
que dia deveriam buscá-las. Estão falando sobre a câmera e as lentes e
o estilo de fotografia. Nada disso tem a ver comigo, e só consigo pensar
que mal terei dinheiro para comprar o papel de parede, o que significa
que eu mesma vou ter que colocar, e que, se fizer besteira, não vou ter
dinheiro para comprar mais.
A porta se abre e, como uma resposta a todas as minhas
preocupações, Morgan entra.
– Ah, você conseguiu – diz Rebecca, e sinto Charlotte enrijecer ao
meu lado, e pela primeira vez não estou me perguntando se Morgan
me quer de volta e sim quantas coisas vou conseguir que ela faça para
mim.
Morgan se senta na beira do sofá.
– Me dá um? – pede, e Rebecca entrega o cronograma para ela. Ela
olha e assente.
– Morgan vai nos ajudar quando puder – diz Rebecca. – Em geral,
ela vai te ajudar, Emi.
Faço que sim e fico vermelha, porque perto dos outros eu posso agir
como se soubesse o que estou fazendo, mas Morgan sabe como sou
inexperiente. Não sei por que ela me recomendou para o trabalho.
Quando a parte formal da reunião acaba, Charlotte vai saber de
alguns detalhes com Rebecca: como vamos transportar móveis, se
podemos agradecer às pessoas que doaram objetos para o cenário nos
créditos, esse tipo de coisa.
Eu pergunto a Morgan se podemos conversar lá fora e ela diz claro e
me segue até o quintal cheio de plantas.
– Em que eu me meti? – pergunto a ela.
– É assim que você agradece? – diz Morgan.
– Obrigada – digo –, mas isso é loucura.
– O roteiro é excelente. Esse grupo é absurdamente talentoso.
Charlie fez um filme que foi pra Toronto ano passado. Grant e Vicki
trabalharam em filmes muito importantes. Saia-se bem neste e você
vai ter reconhecimento de verdade.
– Está bem – digo. – Só preciso saber como me sair bem.
– Você já sabe. Só vai ter que ir mais rápido. Eu tenho muito
trabalho de pré-produção pra fazer pra A agência e não posso me
comprometer com Theo e Rebecca, mas vou te ajudar o máximo que
puder. Só me diz de que você precisa.
– Vou precisar de papel de parede.
– Fácil.
– Vou precisar de vasos pendurados no teto de um jeito que não
cause dano permanente.
– Eu consigo fazer isso.
– Talvez precise estofar algumas coisas.
Ela sorri.
– É bem mais rápido assim.
– Cinquenta e dois bazares de garagem mais rápido. Eu deveria ter
me dado conta.
Ela balança a cabeça.
– Você vai aprender essas coisas. Me mostra o que tem em mente.
Conto o que já tenho e ela faz cara séria enquanto escuta, e quando
eu termino ela diz:
– Foi por isso que eu recomendei você.
Essa frase? Ela é tão boa quanto Eu te quero de volta.
– O filme vai ser um acontecimento. Você já sabe do elenco, tenho
certeza. Benjamin James, Lindsey Miller…
Ouvi-la citar essas estrelas faz tudo parecer ao mesmo tempo mais
real e mais um sonho.
– Eu sei – digo. – Não consigo acreditar.
– As pessoas estão dispostas a se matar de trabalhar por
praticamente nada quando o material é bom – diz Morgan.
– Por que você está sendo tão legal comigo? – pergunto. – É por
pena?
– Não. – Ela faz um ruído de deboche. – Você merece. Como eu não
podia pegar o trabalho, quis que você pegasse. E assim eu posso ficar
envolvida.
Ela olha para o celular.
– Olha, preciso ir – diz ela. – Mas me liga pelo motivo que for. Estou
falando sério. E me avisa quando você começar a comprar os materiais
e aí vou ver quando posso ajudar a arrumar tudo.
Do lado de dentro, Charlotte está digitando no notebook enquanto
Theo fala com ela.
– Essa garota sabe o que está fazendo – diz ele quando me junto a
eles. – Talvez precise pegá-la emprestada com você de vez em quando.
Uma hora atrás, talvez chorasse com essa perspectiva, mas Morgan
me deixou confiante, e digo:
– Seria egoísmo meu não a compartilhar.
– Tenho que ver umas coisas com a Rebecca – diz Charlotte. – Pode
me chamar quando você estiver pronta.
Pego o celular para olhar a hora e, na tela, vejo uma mensagem de
Ava: Na metade do roteiro!
Respondo: Tá amando?
Ela diz: Sim.
Eu me junto a Rebecca e Charlotte e escuto elas conversarem sobre
o orçamento. Basicamente, vamos tentar adquirir a maior parte das
coisas de que precisamos, mas vamos economizar uma grana usando o
apartamento de Toby como sendo o de Juniper.
– Theo – chamo, e se aproxima. – Você tem alguma sugestão pra
casa do George e para o mercado ou tenho que procurar esses lugares?
– Tenho alguns lugares em mente pra casa do George – diz ele. –
Vou marcar umas visitas. Mas, enquanto isso, se você encontrar
opções, pode marcar também. Vamos olhar juntos.
Quando chegamos em casa, eu e Charlotte vemos um pacote
apoiado na porta do apartamento de Toby. Antes mesmo de
entrarmos, já estou rasgando o papel. Cada folha tem o desenho de
uma planta, verdes e brancos e marrons sutis pintados à mão, com o
nome em latim impresso em letras pequenas embaixo.
As gravuras botânicas de Juniper, ainda mais perfeitas ao vivo.

À noite, recebo uma ligação de Morgan.


– Adivinha onde eu estou – diz.
– Hã?
– Na Sala de Projeção Cinco. Sabe Harvey? O projetista? Ele está
preparando o material filmado de hoje para os executivos virem
amanhã.
– Harvey parece ser um bom amigo de se ter.
A cada dia, os executivos e chefes de departamento recebem
convites para ver as filmagens do dia anterior. Reuniões em pequenas
salas de projeção para ver tomadas múltiplas das mesmas cenas de
vários ângulos e pontos de vista pode parecer tedioso para algumas
pessoas, mas sou doida para um convite desses desde que comecei a
estagiar. O espaço é limitado, e eu nunca consegui ir.
– Tem mais – diz Morgan. – Hoje foram filmadas as cenas 8 e 22.
Estou tão mergulhada em Sim e sim que levo um momento para
lembrar que cenas eram essas. Mas só um breve momento.
– Puta merda – digo. – Como ficou?
– É a sua sala – diz Morgan. – Eu não começaria sem você.
Vinte e cinco minutos depois, estou entrando em uma sala de
projeção que estaria vazia não fosse a presença de Morgan e do novo
amigo dela, Harvey, um sujeito de uns sessenta anos que usa óculos
grossos e cabelo penteado para trás, por cima da cabeça calva. Quando
agradeço por nos deixar assistir, ele diz que só está fazendo o trabalho
dele, mas está claro que ele ama nos ter como plateia. Duvido que ele
costume fazer as coisas com a calma como está fazendo agora.
– Eu faço as projeções diárias quase todas as noites há quarenta
anos – diz. E começa a me contar quarenta anos de história. Todos os
filmes famosos dos quais viu todas as tomadas, todas as estrelas que
precisaram de uma dezena de tomadas para acertar alguma coisa.
– Você já fez alguma exibição de filme do Clyde Jones? – pergunto.
– Claro. Estribos de prata. Não foi o melhor dele, mas foi o último. Ele
deveria ter parado quando estava por cima. Antes desse teve Rio da
meia-noite. Esse sim seria parar no auge. Mas mesmo em Estribos de
prata ele só precisava de umas duas tomadas por cena. Era profissional
de verdade.
Depois disso, Harvey sobe a escada para a sala de projeção e me
deixa sozinha com Morgan.
– Clyde Jones? – pergunta ela. – Você passou a gostar de faroeste de
repente?
Só dou de ombros. Não fico tentada a dizer nem algo evasivo como
Estou perguntando pra uma garota ou Ele me lembra alguém. Mesmo
sabendo que dizer essas coisas seria verdade, tem algo na forma como
estou me sentindo agora que me faz querer ficar quieta sobre isso.
Algo que quero proteger em Ava. Cada vez que algo me lembra dela,
parece que estou guardando um segredo. Não só sobre o avô famoso,
mas sobre o sorriso torto e a voz rouca que ela tem. Sobre as
hesitações e confissões e os pensamentos particulares cheios de
concentração.
Morgan está indo para os assentos do meio e eu a sigo e me
acomodo no veludo vermelho macio. Algumas das pessoas mais
influentes do mercado já se sentaram naquela sala de projeção,
provavelmente naquele mesmo assento. Olho o console entre nós e
vejo que, com o toque de um botão, eu poderia chamar Harvey e pedir
que ele repetisse alguma coisa ou acelerasse outra.
Uma cena começa, mas ainda não é a da sala de música.
A voz de Harvey sai pelo alto-falante:
– Tenho que passar pela cena 68 antes de chegar às que vocês
vieram ver. Mas é rápida, então segurem o fôlego.
Morgan ri.
– Esse cara é incrível – diz ela.
Eu me viro para ver o rosto dela, iluminado pela tela.
– Gostei dele – digo.
– É. – Ela sorri para mim. – Eu também gosto.
– Eu não sabia se você estava sendo sarcástica.
– Você tinha que ouvir as outras histórias dele. Eu e Katy acabamos
em um bar com ele algumas semanas atrás. Ele fechou o lugar.
Na tela, o pai está entrando apressado na sala da casa. As primeiras
imagens seguem o rosto dele de perto. Mas a seguinte mostra a sala.
Reconheço os copos altos de Clyde em um carrinho de bar reluzente.
O sofá e os tapetes e as cadeiras são todos em tons neutros, e
espalhados pela sala há pontos de cor: rosas vermelhas em um vaso,
retratos coloridos da família nas paredes, um globo quase todo
turquesa.
É fácil ver o que Ginger queria quando planejou aquela sala. Cada
detalhe em que reparamos é importante. As flores, um lembrete do
aniversário de casamento do casal. O globo, uma indicação da
distância prestes a se instaurar entre eles. Os retratos exibindo a
família feliz, de forma a sabermos quanto eles perdem pelo infortúnio
prestes a acometê-los.
Mesmo antes de a cena mudar para a sala de música, entendo por
que Ginger trocou meu sofá verde e dourado pelo cinza de Clyde. A
claquete aparece na tela, Cena 8, Tomada 1, e ali está a minha sala,
maior do que o mundo inteiro, e meu corpo todo é tomado pelos meus
erros.
Ginger usou a mesma estratégia naquela sala. Quase tudo é neutro,
exceto pelas partes importantes: a estante de partituras, para nos
mostrar o talento da filha; os troféus, para mostrar a juventude e
inocência dela. Meu sofá teria exigido atenção demais para o conceito
de Ginger, e enquanto as escolhas dela não são as que eu teria feito,
entendo por que fazem sentido. Elas funcionam bem para esse filme.
Muito bem para o filme, na verdade.
Meu sofá teria ficado incrível se a sala estivesse isolada, mas ela é
parte de um filme em que todas as cenas terão coesão. Quando Ginger
me disse que era a designer de produção, ela não devia estar apenas
querendo mostrar quem mandava. Devia estar tentando me dizer que
era ela quem tinha a visão do filme, que sabia todos os aspectos dos
cenários e locações. Como estagiária, eu conhecia apenas uma fração.
Eu achava que a sala de música era minha, mas sempre foi dela.
– O que você acha? – pergunta Morgan.
Fico constrangida de saber que estava errada, de me lembrar das
coisas que eu falei e como devo ter parecido ridiculamente jovem para
Ginger. E fico triste de ver o que aquela sala poderia ter sido se eu
tivesse tido controle total sobre ela. Como chega perto da minha visão
de perfeição. Mas, de alguma forma, também sinto orgulho. Eu podia
ser só uma estagiária, realizando a visão de outra pessoa, mas eu fiz de
um jeito que foi meu. É possível que mais ninguém tivesse escolhido
aquela estante de música específica ou aquele pôster. As partituras
ainda estão espalhadas e adoro a bagunça delas, por deixarem o local
parecendo habitado e mais autêntico do que a sala de estar.
E tem a pura e simples emoção de ver meu primeiro trabalho na
telona em uma sala de projeção particular dentro de um grande
estúdio.
Respiro fundo, atordoada por tudo aquilo. O que sinto é complicado
demais para explicar para Morgan, então sorrio e deixo que ela
interprete como quiser.

Quarenta minutos depois, estamos no estacionamento, paradas entre


nossos respectivos veículos, tentando dissipar o constrangimento de
ter visto incontáveis tomadas de uma garota perdendo a virgindade.
Morgan se encosta na lateral da picape, e, como estou parada do lado
do passageiro do meu carro, decido que nunca é cedo demais para
começar o processo de destrancá-lo.
Quando saio do lado do passageiro, ela pega a minha mão. Indo
contra tudo que sei que é certo, eu deixo. Sinto o aperto familiar em
um ponto abaixo do estômago quando penso em todas as vezes que
ela me tocou. Talvez eu deva me aproximar dela agora, como em
tantas outras vezes quando ela segurou a minha mão. Talvez a gente
deva se beijar, os corpos encostados na picape. Mas eu só olho para a
minha mão na dela até recuperar a voz.
– O que você está fazendo?
– Você vai me fazer pedir?
– Pedir o quê, exatamente?
Ela sacode a cabeça para tirar a franja dos olhos e me olha de
verdade.
– Pra você voltar. Eu quero você de volta.
Fecho os olhos e, quando os abro de novo, tomo o cuidado de estar
olhando para outra coisa que não seja ela.
Essa conversa não é tão diferente das cinco outras que tivemos antes
de voltar. Mas parece diferente, porque querer alguém não é o mesmo
que amar, e agora eu entendo que Morgan não me ama. Quando a
gente ama alguém, a gente tem certeza. Não precisa de um tempo para
decidir. Não diz para e começa repetidamente, como se fosse algum
esporte. A gente sabe a imensidão do que tem e protege aquilo. Por
isso, encaro Morgan e digo:
– Eu não posso mais fazer isso.
– Ah – diz ela, soltando a minha mão. – Eu achei que você quisesse.
Nunca fiquei naquele estúdio até tão tarde. A maioria dos prédios
está completamente escuro, com poucos escritórios acesos. Eu conheci
Morgan alguns prédios adiante, perto de um cenário de um programa
de televisão, e estava claro e quente e eu era uma versão mais nova e
mais confiante de mim mesma. Eu era a garota que as pessoas
queriam beijar. Não sabia como era não ser desejada.
– Pra você, eu fui só uma namorada de uma longa série de
namoradas – digo. – Mas foi diferente pra mim.
– Você teve namoradas antes de mim.
– Não é isso que eu estou dizendo.
Quase consigo ouvir Charlotte me dizendo que Morgan foi meu
primeiro amor, me dizendo que acabou. E se for preciso, vou repetir
essas duas coisas para Morgan, para que tudo fique claro e encerrado.
Mas logo ela diz que tudo bem e não me pede mais nada. Acho que ela
já sabe. Meu amor unilateral devia ser óbvio para todo mundo o
tempo todo.
Ela suspira e sorri. E apesar de o sorriso ser mais uma prova de que
não sou tão importante assim para ela, eu fico aliviada. Não sinto
nenhum sinal da satisfação que achei que viria quando eu a recusasse.
Só me sinto cansada e meio triste.
– O que vai acontecer com você agora? – pergunta ela. – Tem outra
pessoa?
– Não sei – digo. – Talvez.
– Isso me parece um sim.
– Não – digo. – Não mesmo. Não aconteceu nada. Vai ser um choque
se acontecer alguma coisa.
– Aí serão 50 por cento de nós chocadas.
Ela chega para a frente e passa os braços em volta de mim. É uma
despedida, e eu a abraço também, sentindo o cheiro do xampu de
tangerina que vou associar a ela para sempre, lembrando que
tomávamos banho juntas no banheirinho de ladrilhos azuis depois de
dias passados na piscina, e que, no começo, quando as coisas ainda
pareciam fáceis e certas, abraçá-la assim, debaixo da água, na luz do
sol, nas horas tranquilas da madrugada, era a melhor sensação da
vida.
Quando ela liga a picape, dou partida no carro. Mas depois que o
carro dela desaparece, eu desligo o motor. Fico muito tempo sentada
no carro, no estacionamento, nada além de imobilidade e escuridão
pelas janelas.
Ligo para Charlotte.
– Tudo bem – digo quando ela responde.
– Tudo bem? – pergunta ela.
– É – digo. – Tudo bem.
Desta vez, sei exatamente o que eu quero dizer.
– Ah – diz ela depois de alguns segundos de silêncio. – Que bom.
Capítulo dez

– Eu li duas vezes – diz Ava, deixando a bolsa no sofá de Toby e se


sentando no braço. – Nunca tinha lido um roteiro e levei um tempo
pra me acostumar. Mas quando consegui, a história decolou. Todos os
personagens parecem tão reais.
– Parecem, né? – digo.
– Gosto como tudo se concentra nos pequenos detalhes. Tipo o pote
de papinha de bebê que cortou a orelha da Miranda.
– A gente estava pensando que você podia se sentar na poltrona
laranja – diz Charlotte, prendendo a câmera que pegou emprestada
com a mãe no tripé.
Ava se senta quando eu digo que concordo.
– É tipo uma espiada íntima na vida por meio de tantos detalhes, e,
em parte, é por isso que os cenários são tão importantes, ainda mais
do que em outros filmes, porque tanto de como esses personagens
veem o mundo é por meio desses pequenos objetos e observações que
as outras pessoas não fariam.
– Está bom assim – diz Charlotte, e quando me junto a ela atrás da
câmera, descubro que “bom” é eufemismo. Talvez ela esteja falando da
luz e do enfoque no rosto de Ava, mas conforme Ava vai lendo as falas,
eu me vejo cativada. Algumas pessoas que são lindas na vida real não
ficam bem na tela. A beleza não aparece. Mas Ava fica ainda mais
bonita na câmera. Mesmo sem maquiagem, apesar de ela não estar
ciente de nós no momento em que vira as páginas do roteiro, ela está
luminosa.
Mas a pergunta paira na sala: Ela sabe atuar?
– Vamos passar tudo? – pergunto.
– A gente pode gravar algumas vezes, né?
– Claro – diz Charlotte.
– Então vamos começar. Ensaiei muito hoje e quero mergulhar de
cabeça. Se não for problema.
– Claro, tudo bem – digo. – Vou ler as falas do George daqui. E
quando você erguer o rosto, olha pra mim e não diretamente pra
câmera.
Ela respira fundo. Coloca o roteiro no colo.
– Estou pronta.
Charlotte aperta um botão, e a luz vermelha da câmera começa a
piscar. Ela assente para Ava.
– Meu nome é Ava Garden Wilder e estou lendo para o papel de
Juniper.
Ela se ajeita na poltrona laranja de Toby e se senta um pouco mais
ereta. Olha para o roteiro. Fecha os olhos. Abre-os de novo.
Ela começa.

JUNIPER

Escuta só. Eu não acho besteira. Acho que às vezes as pessoas

querem tanto uma coisa que a manifestam. Ou pelo menos tentam.

GEORGE

É gentileza sua.

JUNIPER

Não. Não é gentileza minha. É só o que penso.

(Pausa)

Está bem. Vou te contar uma coisa que me aconteceu uma vez.

Nunca contei isso pra ninguém.

GEORGE

Tudo bem.

JUNIPER
Isso foi uns dois anos atrás. Eu estava fazendo Botânica I e nós

estávamos estudando ranunculáceas e eu estava obcecada por essa

planta. Era a única coisa que eu queria olhar. Eu estava andando pra

casa, subindo a Divisidero em direção ao meu quartinho alugado de

merda, e passei por um quiosque de flores, e havia um buquê. Com

umas flores lindas. Não eram baratas e eu estava quase sem grana.

Era escolher entre o jantar e as flores, e escolhi as flores, porque era

uma época sombria da minha vida e meu quarto era horrendo e

meu coração estava partido e eu precisava de alguma coisa bonita.

A florista era imigrante, devia ter uns trinta anos, e o inglês dela

não era muito bom. Eu falei que queria as flores e ela assentiu e

disse uma coisa que eu não entendi. E disse: “Eu te amo, tá?”

GEORGE

É sério?

JUNIPER

É. E ela repetiu. “Eu te amo, tá?”, disse. E aconteceu uma coisa. De

repente tive a sensação de que tudo ia ficar bem, de que eu ia ficar

bem. Podia parecer que o mundo estava desmoronando. Eu podia

estar totalmente sozinha e sem grana e com todos os meus

relacionamentos ferrados, mas aquilo podia acontecer. Aquela

florista conseguiu ver alguma coisa em mim que a fez dizer isso. Eu

não precisava entender como ela chegou àquela conclusão; podia só

aceitar. Então, eu falei “Obrigada”. E sorri para ela. E ela pareceu

confusa por meio segundo, mas a confusão passou e ela pegou as

flores e as embrulhou e eu entreguei o dinheiro pra ela. Ela disse

tchau, e eu pensei: Que incrível. Dizer que me ama e seguir com o

trabalho.

GEORGE
Que história ótima. Não tem nada de constrangedor nela.

JUNIPER

Eu não terminei. Saí andando pra casa. Estava chovendo e eu fiquei

pensando na florista. Fiquei pensando de que país ela era, quanto

tempo tinha durado a viagem dela até a Califórnia, quem ela tinha

deixado pra trás e quem trouxera junto. A chuva não estava fria e os

pedintes não estavam mendigando. Eu parei e me olhei no reflexo

de um café. Me lembro de ter pensado que eu parecia o tipo de

pessoa que eu ia querer conhecer se por acaso esbarrasse comigo.

Pode não parecer grande coisa pra você, mas…

GEORGE

Não. Eu entendo por que seria importante.

JUNIPER

De repente, tudo ficou tão bonito. A chuva, a calçada reluzente, o

contorno da cidade. E principalmente meus ranúnculos. Eu os ergui

para olhar.

(Pausa)

Estavam embrulhados com um papel de seda horrível com “Eu te

amo” escrito em uma letra cursiva brega cor-de-rosa pelo papel

todinho.

GEORGE

(Baixinho)

Ah.

JUNIPER

É. Ela não estava pedindo a minha permissão pra me amar. Só

supôs que as flores eram presente pra alguém que eu amava. E que,

supostamente, me amava também.


GEORGE

E o que você fez?

JUNIPER

(Pausa)

Joguei as flores fora.

Nós ficamos em silêncio. Charlotte desliga a câmera. Ava coloca o


roteiro ainda aberto na cena ao seu lado na poltrona. Olho em direção
ao pátio, em direção ao mar, e tento identificar o sentimento que
tomou conta de mim.
É uma dor. Uma tristeza pesada. Do tipo que é gerado por um
coração partido e perpetuado por tudo que faz lembrar que está
partido. Do tipo que parece impossível de se livrar ou esconder. Mas
tem outro sentimento surgindo, e logo descubro que é o tipo que faz o
coração partido se tornar quase algo a ser saboreado, de tão simples e
verdadeiro que é. Como a música de Patsy Cline na noite em que tudo
começou. Como os roteiros mais lindamente escritos. Como as
encenações mais graciosas.
Sinto que abro um sorriso, e quando me viro, vejo que Charlotte
também está sorrindo.
A resposta é sim. Ava sabe atuar.
– Vamos tentar de novo – diz Ava. – Quero fazer uma pausa maior
antes de dizer “Joguei as flores fora”.
– Por mim tudo bem – diz Charlotte. – Mas você fez um ótimo
trabalho.
– É – digo. – Me pareceu perfeito.
E a atuação dela não é a única coisa perfeita na situação. Tudo o que
estávamos planejando está acontecendo. Aqui está ela: o legado de
Clyde Jones. E enquanto vejo Ava repassar a cena mais três vezes, a
cada vez capturando a emoção de um jeito que imagino ser ainda
melhor do que Theo e Rebecca estão imaginando, tenho mais e mais
certeza de que estamos testemunhando uma coisa importante.
Não é só que Sim e sim vai ser um grande filme, mas tem o potencial
de apresentar o mundo a Ava Garden Wilder e Ava Garden Wilder ao
mundo.
Quando Ava fica satisfeita e nós terminamos de gravar, nos
sentamos para assistir a tomadas diferentes e escolhemos a melhor.
– Quando você vai entregar para o Theo? – pergunta Ava.
– Vou enviar hoje – diz Charlotte. – Mas não sei quando ele vai
assistir. Pode levar alguns dias.
– A pergunta é: devemos dizer a ele quem você é logo de cara ou
devemos deixar pra depois que ele tiver visto e estiver selecionando as
pessoas – digo.
Ava inclina a cabeça.
– Quem eu sou? – pergunta.
– Neta do Clyde Jones – digo.
Ava puxa a barra desfiada do short cortado.
– Não sei – diz depois de uma pausa. – É que…
– O quê? – pergunta Charlotte já que ela não continua.
– Eu não fui bem o suficiente? – pergunta ela.
– Como assim? – pergunto. – Você foi ótima.
– É que eu acho que não quero que saibam – diz Ava. – Se é pra ser
escalada pra esse filme, quero que seja porque acham que eu sou a
pessoa certa para o papel. Se eu conseguir, quero que seja porque sou
boa.
Apesar de isso não ser o que eu esperava, digo para ela que entendo
porque sei como ela se sente.
– Eu sempre me pergunto se consigo trabalhar nos projetos legais
por causa do Toby – digo. – A maioria dos estagiários nem chega a
palpitar sobre o cenário, que dirá criar um aposento. Costumo não me
preocupar muito com isso, mas de vez em quando começo a duvidar
de mim mesma.
– Mas agora você tem esse filme – diz Ava. – Você já deve ter
provado o seu valor.
Dou de ombros.
– É basicamente a mesma coisa. Eu consegui esse trabalho graças a
Morgan.
– Morgan?
– Alguém do passado – diz Charlotte com desdém.
– Alguém do passado que por acaso é brilhante em cenografia e tem
muito mais experiência do que eu.
Charlotte revira os olhos.
– De que você está duvidando? – pergunto. – O nível de experiência
é fato concreto.
– O brilhantismo é questionável.
– Não é. Você precisa aprender a separar o trabalho do artista.
Ava solta uma risada incômoda.
– Talvez eu devesse mudar de assunto – diz ela.
– Obrigada! – digo.
– Estive pensando. Tudo bem se eu for trabalhar com você qualquer
hora dessas? Eu adoraria ver como são os bastidores. Quer eu consiga
o papel ou não.
– Pode ser chato. Muito tempo olhando livros e revistas e fazendo
compras e tentando convencer pessoas a me darem coisas de graça.
– Tem até idas ao lixão às vezes – acrescenta Charlotte. – Pode ser
bem nojento.
– E idas a bazares de quintal e vendas de propriedade na hora do
fechamento pra ver se conseguimos desconto nas coisas.
Ava sorri.
– Nada disso me parece chato.
Mas é difícil acreditar que a neta do Clyde Jones, que acabou se
revelando uma ótima atriz, quer ir me acompanhar enquanto ralo
nesse projeto. Ainda assim, ela parece estar sendo sincera, então digo
que depois de amanhã pode ser um dia divertido. Vou em busca de
uma locação para ser a parte externa do apartamento de Juniper,
porque a área externa do apartamento de Toby é bonita demais para
uma garota solteira de vinte anos que ainda estuda e trabalha por
meio período em um mercado.
– Adorei! – diz ela. E posso jurar que a vejo ficar vermelha.
Ela pega a bolsa, me devolve o roteiro e deixa o apartamento. Vou
para o pátio e escuto a porta do carro dela fechar, a partida do motor, o
som dela se afastando, e volto para dentro, onde Charlotte está
trabalhando no notebook e provavelmente vai continuar por horas, e
apesar de os pratos estarem espalhados na bancada e eu ter que
implorar com comerciantes e revisar planos, eu boto o pijama. Ignoro
a surpresa de Char. Lavo o rosto e escovo os dentes e vou para a cama,
pensando o tempo todo na voz de Ava recitando aquelas falas, o
cabelo caindo nos ombros e os olhos arregalados e esperançosos. No
jeito como a entrada dela nas nossas vidas foi tão arrebatadora quanto
a da heroína de um filme grandioso. No jeito como ela me olha às
vezes, que eu acho que é diferente do jeito como ela olha para outras
pessoas.
Tenho quase certeza de que é diferente.
– Boa noite – digo para Charlotte, e ignoro-a quando ela responde:
– Sério?
Encosto o rosto no travesseiro. Fecho os olhos. Porque eu só quero
oito horas para sonhar com Ava Garden Wilder.
~

Na tarde seguinte, em uma loja de tecidos do bairro das confecções,


enquanto me decido entre um tecido azul e um verde para a cortina do
apartamento de Juniper, meu telefone toca e é ela.
– Eu sei que a gente marcou de se ver amanhã – diz. – Mas eu estava
pensando se você pode me fazer um favor hoje.
– Claro – digo. – Quando?
– Bom, agora. Vai levar umas horas. Você está ocupada?
– Estou terminando – minto. Não estou nem perto de terminar, mas
estou ocupada daquele jeito que parece eterno, daquele jeito em que
não dá para dizer Vou acabar em algumas horas porque a verdade é que
o trabalho não vai acabar nunca.
– Quer que eu te encontre em algum lugar? – pergunto.
– Posso te pegar em Venice.
– Tudo bem. Chego lá em vinte minutos.
– Muito obrigada. Eu explico tudo no caminho.
– No caminho?
– Pra Leona Valley – diz. E aí, como se estivesse com medo de eu
mudar de ideia se continuarmos no telefone, ela se despede e desliga.
Escolho o azul. Um azul submarino, ciano.
– Boa escolha – diz a gerente, e eu agradeço de novo por me dar um
bom desconto em troca de um agradecimento nos créditos.
– Sim e sim – diz ela. – Certo?
Eu faço que sim.
– Você vai ouvir falar dele. Vai ser um filme lindo.
Do lado de fora, penso no que fazer com Charlotte. Sei que ela está
ocupada com uma coisa da família hoje, mas seria uma grande
omissão não mencionar que vou para o deserto com Ava. Pego o
celular e aviso a ela. Hummmm, escreve ela em resposta. Seguido de
um !!! E, finalmente: Lembra: devagar.
Capítulo onze

Quando embico na entrada de Toby, encontro Ava sentada no capô do


carro, lendo um livro grosso. Ela pula dali quando me vê e diz pelo vão
da minha janela:
– Talvez seja uma ideia melhor ir com o seu carro se não houver
problema.
Ela está sorrindo, mas percebo que está nervosa. Há uma
preocupação por trás dos olhos dela.
Eu nem desligo o carro. Só digo que tudo bem e ela entra. Ela está
um pouco diferente hoje, com uma linha fina de delineador dourado
que deixa os olhos dela mais verdes. Rosa fraco meio espalhado nos
lábios. Ela me vê olhando.
– Tenho a tendência de passar maquiagem quando fico nervosa –
diz. – E aí eu não gosto de como fica e acabo tirando a maior parte.
– Por que você está nervosa? – pergunto, pensando no rubor no
rosto dela ao ir embora na noite passada. Ele volta agora, e ela enrola
uma mecha de cabelo ruivo no dedo antes de responder.
– Alguns motivos, acho – diz. – Voltar a Leona é um deles. Levar
você lá comigo é outro. Jamal acabou pegando um turno duplo e não
pôde vir comigo.
– Fico feliz de ajudar.
– Você sabe chegar lá?
– Suponho que seja pela 405 primeiro – digo.
Eu já fui atrás de móveis em quase todas as cidades do sul da
Califórnia e conheço bem a área metropolitana. As cidades tristes que
se dizem parte de Los Angeles, apesar de serem distantes; os bairros
violentos, planos e sujos; os subúrbios estéreis com gramados
perfeitamente aparados; as colinas ricas, misteriosas, inalcançáveis. Eu
nunca me aventurei pelo deserto, mas quando se precisa sair de Los
Angeles, a 405 é o caminho.
Ela faz que sim. Saio da garagem e pego a rua.
Suponho que ela vai explicar por que estamos indo, o que vamos
fazer quando chegarmos lá. Estou tentando ser paciente e deixar que
ela toque no assunto em algum momento, mas ela me conta sobre
Marilyn Monroe.
– O livro estava na caixa de donativos do abrigo, e pensei em você na
mesma hora. Dá pra ser mais trágico do que isso?
Ela folheia o livro, e vejo agora que é o tipo de biografia que deixaria
meu pai de cabelo em pé, cheio de teorias da conspiração e ditas
revelações explosivas.
– Tem uma parte sobre ela imaginar que Clark Gable era pai dela
porque a mãe mostrou a foto de um homem que se parecia com ele,
apesar de o pai supostamente ser outro cara.
– Tão deprimente – digo.
– É – diz ela.
Estamos na rodovia agora, e é uma daquelas tardes raras em que o
trânsito está livre e podemos andar na velocidade da via, e estou indo
na direção do deserto executar um favor desconhecido.
– Então – digo. – Leona Valley.
Ela assente.
– Você quer saber o que a gente vai fazer – diz.
– Eu estou meio curiosa mesmo… – Eu dou de ombros como se não
fosse nada de mais.
– Eu preciso pegar minha certidão de nascimento.
– Em casa?
– As tardes de quinta são uma hora boa. Tracey tem grupo de tricô e
Jonah tem aula de violão. Não que fosse ruim se Jonah aparecesse em
casa. Eu quero vê-lo, mas não sei…
– Eu entendo – digo. – Você sente saudade, mas talvez ainda não
esteja pronta pra vê-lo.
Ela assente.
– E onde eu entro nisso?
Ela sorri para mim.
– Patrulheira – diz ela. – Motorista de fuga.
– Uau. Quando você disse que queria um favor, achei que você ia
querer que eu lesse falas com você ou te ajudasse a pintar o quarto, sei
lá.
Ela ri, mas me sinto insensível por brincar sobre tinta quando ela
nem tem o próprio quarto. E apesar de ela não parecer se importar,
tudo só piora quando ela me conta por que precisa da certidão.
– Lembra que o Clyde citou o cara do banco na carta?
– Claro – digo. – O dinheiro.
Apesar de o dinheiro sempre ter sido parte de tudo aquilo, nunca
chegou a ser muito real para mim. Não tão real do jeito que o
sentimento que tomou conta de mim no escritório de Clyde. Aquilo foi
uma coisa em que consegui acreditar, mas o dinheiro me parecia mais
abstrato. Acho que é fácil ignorar a promessa de fortuna se o dinheiro
não é para você, e se não precisa dele porque mora em uma casa boa
em uma rua segura e arborizada na melhor cidade do mundo, e seus
pais têm dinheiro guardadinho para pagar pela sua faculdade e
provavelmente mais, para casamentos e coisas nas quais você ainda
nem pensou porque nunca precisou se preocupar com finanças.
– Eu liguei para o banco e ele ainda estava lá – disse ela. – Todo
mundo morreu, menos Terrence.
– Ele te disse alguma coisa?
Ela faz que sim.
– Fui lá ontem à tarde e me encontrei com ele em uma sala
particular. Mostrei a carta e minha habilitação, e ele me disse que
havia uma conta com o nome de Caroline e o meu, mas como meu
nome agora é diferente do que era quando Clyde soube de mim, tenho
que mostrar a certidão de nascimento.
– Quanto tem lá? – pergunto, e me apresso para dizer: – Não estou
falando da quantia em dólares. Só uma estimativa. O suficiente pra
tirar férias ou o suficiente pra mudar sua vida?
– Ele ainda não pode me dizer – diz ela. – Mas eu perguntei se seria
o suficiente para alugar um apartamento pra mim por alguns meses
até arrumar um emprego que pague bem e o rosto dele se contorceu
todo, como se ele estivesse tentando não sorrir, e ele disse que sim.
– Definitivamente sim – digo.
Ela assente.
– Que ótimo. Que incrível.
– Eu preciso sair daquele abrigo – diz ela. – Eu gosto muito de
Venice, sabe. Acho que vou procurar um lugar lá. Nossa saída é essa.
Eu saio da rodovia, já me imaginando com Ava no apartamento
novo dela em Venice, decorando os aposentos, passando tempo juntas.
Nós passamos por alguns restaurantes, uns terrenos sujos e tratores,
e Ava me faz virar à esquerda em uma rua residencial. Nós passamos
por uma casa dos anos 1990, marrom e bege.
– Agora dá meia-volta – diz ela.
– Estamos no caminho errado?
– Eu só queria ver se não tinha mesmo ninguém em casa. É aquela
pela qual a gente acabou de passar.
Paro diante da casa dela. As janelas da frente estão fechadas; tem
folhetos de propaganda saindo pela caixa de correspondência ao lado
da porta. Alguns vasinhos de flores cor-de-rosa acompanham o
caminho até a porta, cercado por um gramado verde vivo.
Desligo o carro.
– Olha só – diz Ava. – O carro de Tracey é uma perua branca. Ela
tem cabelo comprido que deve estar preso em uma trança. Se você a
vir chegando, me liga.
– Entendi.
– Eu posso sair pela porta dos fundos quando ela entrar e vir te
encontrar.
– Me parece uma boa ideia.
– Mas ela só deve chegar daqui a umas duas horas. O grupo de tricô
vai até às oito e ela costuma ficar até mais tarde, conversando.
– Entendi.
– Mas não tenho certeza. As coisas mudam o tempo todo, acho, e
tem tempo que eu fui embora.
Ela está olhando para a porta sem se mexer.
– Que bom que a gente tem um plano – digo. – Acho que não vamos
precisar, mas, se ela chegar, vou te ligar assim que ela dobrar a
esquina.
Ela morde a unha.
– Estou pronta – diz.
– Tudo bem – digo. – Boa sorte.
Um minuto silencioso se passa e ela sai do carro.
Eu a vejo tentar destrancar a porta, mas ela está com dificuldade.
Ela fica olhando a chave e tentando de novo. Ela abandona a porta,
pega o vaso mais próximo de flores cor-de-rosa e anda até a lateral da
casa. Não consigo mais vê-la, mas ouço um estrondo de vidro
quebrando, e é aí que fico nervosa. Porque ser a motorista de fuga de
uma garota que só quer evitar a mãe é uma coisa; é bem diferente
quando existe invasão de propriedade envolvida.
Eu me pergunto se devo ligar o carro só para o caso de termos que
sair rapidamente dali. Abro o contato de Ava no celular para poder
ligar para ela sem perder tempo, tentando não afastar o olhar da rua.
Não sei de que direção Tracey viria.
É difícil ficar vigiando duas direções opostas ao mesmo tempo, mas
eu me esforço.
Há uma batida vindo da casa.
É Ava, saindo. Ela atravessa o gramado de mãos vazias.
– Preciso de ajuda – diz na janela. – Não consigo encon­trar nada.
E eu achava que meus batimentos já estavam aceleradíssimos.
– Que tipo de ajuda?
– Preciso que você procure comigo. Tem tanta merda pra todo lado.
Não consigo olhar tudo.
– E quem vai vigiar se a Tracey chega?
– Ela não vai chegar agora. Eu estava sendo paranoica. Ela tem o
grupo de tricô às quintas há anos. Por metade da minha vida. Vem! –
Ela começa a andar na direção da porta e eu juro, aquela garota deve
ser mágica, porque esse não é o tipo de coisa em que me envolvo.
Mas, momentos depois, estou dentro da casa de Tracey.
– Vamos olhar aqui primeiro – diz Ava, e atravessa o tapete até a
área da sala com a mesa de jantar e um armário. Eu a sigo mais
devagar porque estou na casa onde Ava morou até um ano atrás e seria
impossível pelo menos não relancear o que tem dentro. Pouca luz
entra pelos frisos da janela, mas mesmo depois que Ava acende o
lustre baixo sobre a mesa, a sala mal se ilumina. Ao nosso redor há
paredes com painéis de madeira, adornadas com pinturas cuidadosas
de paisagens e animais. Eu chego mais perto e Ava confirma meu
palpite.
– Pintura por números. Tracey ama arte que vem com instruções.
A mesa está coberta por uma toalha amarela passada com esmero.
Há um vaso de cerâmica no meio, cheio de flores de papel.
– Essas flores são bem bonitas – digo, tocando em uma pétala de
papel vermelha.
– Obrigada – diz, olhando para as flores. – Eu que fiz. Eram para ser
uma oferenda de paz, acho, mas ela nunca as deixou expostas quando
eu morava aqui.
– Talvez tenha colocado porque sente saudades.
Ela se vira.
– Acho que não.
Ela se ajoelha no tapete perto de um armário gigante e começa a
trabalhar, abrindo gavetas até estarem todas para fora, lotadas de
papéis que voam pelos ares e envelopes que caem no chão.
– Olha só tudo isso – diz. – Papelada que chega pelo correio. Uns
cinco anos de papelada. Merda. – Ela esconde o rosto nas mãos.
– O que aconteceu na porta? – pergunto. – Você trouxe a chave
errada?
– Não – diz Ava. – Acho que ela trocou a fechadura.
– Entendi. – Imagino Charlotte conosco, assumindo o controle. –
Nós temos que ser estratégicas – digo.
Ava me olha e assente.
– Quais são todos os lugares onde devemos olhar? Me mostra.
– Bom, esse é o primeiro.
– Vamos esquecer esse. Podemos voltar depois se não encontrarmos,
mas acho que não estaria com a papelada de propaganda por
correspondência – digo.
– Tem mais do que lixo…
– Vocês tinham isso antes de se mudarem pra cá?
– Não, ela comprou alguns anos atrás.
– Então sua certidão de nascimento é mais velha. Ela deve ter
trazido quando vocês se mudaram pra cá. Não faria sentido encontrar
um lugar novo pra ela tanto tempo depois.
Ava se levanta.
– O quarto dela – diz, e me leva pelo corredor até um quarto coberto
de papel de parede de rosas com um conjunto de cama e mobília estilo
country. Se eu tivesse mais tempo, tiraria fotos e usaria como
inspiração para uma parte da casa do George. Mas nós vamos direto
para o armário, onde as roupas de Tracey estão penduradas em
cabides de metal acima de um mar de caixas e abaixo de uma
prateleira com mais caixas ainda.
– Parece que Tracey odeia jogar coisas fora – digo.
Ava assente.
– Eu queria que houvesse etiquetas – digo.
– Seria ótimo. – Ela ri, e apesar de ser uma risada tensa, é boa de
ouvir. Fico esperançosa.
Pegamos caixas e começamos a revirá-las. Estou tentando ser
cuidadosa: tirando as coisas uma a uma até que não sobre nada,
botando a pilha de volta, fechando a caixa. Mas Ava está jogando e
espalhando tudo no chão, deixando coisas por todo o lado, pegando
outra caixa. Ela está indo mais rápido do que eu, mas acho que o
objetivo não é velocidade.
Ela quer fazer estrago. Quer que a mãe volte do grupo de tricô e
encontre a janela quebrada e a casa revirada.
Não sei o suficiente sobre a história de Ava e Tracey para decidir
exatamente o que acho disso, mas o que eu acho não parece
importante no momento. Nem deixar algumas caixas em ordem
enquanto o resto está sendo esmagado pelas botas de Ava quando ela
se levanta para pegar mais.
Eu paro de tomar cuidado.
– Eu te entrego – digo, e ela assente. Pego uma caixa atrás da outra e
ela despeja tudo: luvas velhas e cachecóis e livros e cds e fitas de vídeo.
Tantos papéis e fotografias e envelopes. Nós poderíamos levar
semanas para ver tudo.
Quando todas as caixas estão fora do armário, nós ficamos de
joelhos no tapete rosa, cercadas de papel de parede com estampa de
rosas, e mexemos em todos os pertences particulares de Tracey.
Jogamos as roupas e livros e badulaques na cama impecavelmente
arrumada da Tracey até só restarem papéis e pastas cheias de mais
papéis e cartas com endereços diferentes.
Ava pega duas caixas e diz:
– Coloca tudo aqui. Você tem razão, deve estar no meio dessas
coisas velhas.
– Tudo? – digo.
– Não temos tempo de olhar tudo.
– As cartas também?
– Também – diz ela.
Ela está pegando punhados de papéis e jogando na caixa. Vejo-a
percorrer algumas pilhas, descartar alguns papéis e jogar outros nas
caixas, até que ela abre uma pasta verde e fica paralisada. Ela não me
olha, mas percebo: ela encontrou.
Não consigo ver o papel, mas ela não está tentando escondê-lo de
mim. Ela pega duas folhas da pasta e as coloca na cama: as certidões
de nascimento de Tracey e Jonah. Em seguida, atravessa o quarto e
guarda a pasta na bolsa.
Espero que a descoberta encerre nossa busca ali, mas Ava volta e
continua a encher caixas com fotografias e cartas de Tracey.
Eu olho para as pilhas no tapete. Quando enfim olho para Ava, ela
está chorando em silêncio, ainda trabalhando rápido. Ela sente o meu
olhar, acho, porque alguns minutos depois diz:
– Eu não sei nada sobre a minha própria vida.
Ignoro como isso parece errado e a ajudo a empacotar tudo que ela
quer levar.
Depois que terminamos, levamos as primeiras caixas para fora e as
colocamos ao lado do carro, e voltamos para pegar as duas últimas.
Quando estamos saindo da casa, digo:
– Você não quer pegar nada das suas coisas antigas? Do seu quarto?
Eu sei que, se saísse de casa às pressas, haveria dezenas de coisas de
que sentiria falta. Quero ver onde ela morava e dormia e fazia o dever
de casa. Eu ainda não consigo encaixá-la naquela casa.
– Eu não posso entrar lá.
– Por quê?
Ela não responde. Só balança a cabeça.
Apesar de ser quase oito da noite, nós saímos pela porta da frente.
Estou atrás de Ava e faço menção de fechar a porta, mas ela diz:
– Deixa aberta.
Eu deixo.
Tem algumas pessoas na rua. Um homem a duas casas de distância
está molhando o gramado, mas não olhamos para ele e ele não parece
nos notar.
Destranco o carro o mais rápido que consigo e jogamos as caixas no
banco de trás. Sinto-me como Thelma e Louise sem o marido e o
namorado. Como Bonnie e Clyde sem as armas e o assassinato. A noite
está quente e ainda está claro, e quando faço a curva, Ava abre a janela
e nos afastamos como se não tivéssemos feito nada de estranho.

– Charlotte vai surtar quando eu contar sobre isso – digo.


Agora que acabou, estou tremendo. Ava repara em mi­nhas mãos.
– Você está bem?
– Estou – digo. – Está tudo bem. Está tudo bem. Isso foi loucura.
Não consigo acreditar que a gente fez aquilo.
Breco em uma placa de pare alguns quarteirões depois da casa da
Tracey, e como não tem mais ninguém na rua, eu me permito ficar
parada e inspirar algumas vezes, até conseguir respirar direito de novo.
Em pouco tempo, acontece.
O calor permanece, mas a luz do dia está sumindo rápido. E apesar
de eu ter acabado de bagunçar a casa de uma mulher, ter deixado que
a porta ficasse aberta, ter ajudado no roubo dos pertences dela, sinto
que cumpri uma obrigação. Eu escolhi seguir a carta de Clyde. Poderia
ter ouvido Charlotte e a entregado para o corretor, mas não fiz isso.
Talvez eu soubesse desde o começo que aquilo complicaria a minha
vida de alguma forma.
E aqui está Ava, bem ao meu lado, me agradecendo a cada olhar que
lança na minha direção.
É simples: ela faz a incerteza valer a pena.
Tiro o pé do freio e sigo na direção das colinas.
– Vira à direita aqui – diz Ava suavemente. – Tem mais um lugar
aonde eu quero ir.
Deixo que ela me instrua, subo uma colina e paro debaixo de uma
árvore perto de um pomar de cerejeiras. Quando saímos do carro, Ava
pula a cerca. Eu fico do outro lado, olhando para ela.
– É época de cerejas – diz. – Você já comeu cereja direto do pé?
Faço que não.
– A feira de Santa Monica é o mais perto que eu chego da natureza.
Sinto que estou sorrindo, e logo estamos tirando cerejas de galhos
até estarmos com as mãos cheias, andando para um gramado com o
cair da noite.
Nós comemos em silêncio, olhando para o céu, deitadas próximas,
mas sem nos tocar.
– Eu quero explicar – diz ela.
– Não precisa – digo.
– Mas eu quero que você saiba que eu não costumo ser assim.
– Ah, é? Você não costuma jogar vasos de flores pela janela?
Ela sorri.
– Não – diz. – Eu não costumo jogar vasos de flores pela janela. Não
roubo coisas nem reviro a casa de ninguém. E, já que estamos falando
disso, tenho que dizer que não costumo chorar na frente das pessoas,
principalmente na noite que as conheço.
– Aquela noite foi território desconhecido pra todas nós. Não
costumamos procurar garotas misteriosas e as chocar com os segredos
sobre sua origem.
– Tinha sido um dia difícil.
– Por quê?
Ela suspira.
– Eu achava que tinha fugido, mas não tinha.
– Como assim?
– Tracey me dizia o tempo todo que queria que eu fosse embora,
mas eu não acreditava que ela estivesse falando sério. Quando enfim
fui embora, eu não liguei o celular por quase um mês, porque achava
que, se ligasse, alguém poderia rastreá-lo. Eu mudava o carro de lugar
o tempo todo porque tinha medo de a polícia estar me procurando,
mas não dirigia por longas distâncias. Jamal e eu íamos de ônibus para
o trabalho todas as noites. Nós levávamos uma hora pra ir e outra pra
voltar.
– Duas horas de ônibus todos os dias?
Ela assente.
– Mas tudo bem. Foi assim que ficamos tão amigos. Primeiro, eu
achei que a gente não faria amizade, apesar de a gente trabalhar
juntos. Ele tinha um jeito seco no começo, e achei que ele não estava
interessado em me conhecer, uma garota branca chata do deserto. Mas
tivemos muito tempo pra nos conhecer nos trajetos de ônibus.
Estou prestes a dizer que ela pode ser tudo menos chata, mas ela
não me dá oportunidade.
– Mesmo depois que me mudei para o abrigo, morria de medo de
Tracey me encontrar e me obrigar a voltar pra casa. Eu sentia saudade
de Jonah, mas esperei pra ligar só no meu aniversário de 18 anos,
porque aí eu ficaria livre.
– Foi quando ele te deu nosso número?
– Foi. Eu liguei pra vocês logo em seguida.
– Era seu aniversário?
Ela assente.
– Quando Jonah atendeu, ele gritou comigo. Ele falou “Por que você
não me ligou? Por que seu telefone estava desligado?” Falei que tive
que deixar desligado porque tive medo de rastrearem. Perguntei sobre
o carro, se Tracey tinha feito alguma denúncia, anunciado o meu
desaparecimento, se eles estavam me procurando. Ele ficou em
silêncio por muito tempo. E, depois, disse que não. Disse que ela não
tinha feito nada daquilo. Foi aí que eu soube que não tinha fugido, não
de verdade. Ela queria que eu fosse embora. Ela não queria mais saber
de mim.
– Ava, que coisa horrível – digo.
Ava se senta e aponta.
– A primeira pessoa que eu amei mora naquela casa – diz.
– É mesmo?
Ela separa uma cereja do cabinho com os dentes e assente.
Eu me sento.
Abaixo de nós tem uma casa estilo térrea em formato de L, as
janelas brilhando no anoitecer.
E, antes que ela fale algo, eu antecipo. Pela energia que está vindo
dela para mim. Pelo tremor na voz dela e pelo jeito como ainda
consigo sentir o ponto na palma da minha mão onde os dedos dela
tocaram quando me entregou as cerejas. Pelo jeito como ela corou e
pela cara dela agora, a testa franzida, os olhos brilhantes.
A pessoa que ela amava é uma garota.
– O nome dela é Lisa – diz Ava. – Durante todo o verão nós fomos ao
aqueduto. Ficamos bêbadas. Falamos em fugir.
– O que houve?
– Ela tinha medo de as pessoas descobrirem sobre nós – diz depois
de uma longa pausa. – Então, ela confessou para os pais.
– Confessou? Não estamos nos anos 1950.
– Ah, bom, também não estamos em Los Angeles. O reverendo da
igreja dela culpa as pessoas gays por tudo. Tipo toda tempestade e
tragédia nacional é uma manifestação da ira de Deus. Esse tipo de
coisa.
– Que loucura.
– Tracey frequenta a mesma igreja.
Com essa frase, a vida de Ava com Tracey ganha foco. É como o
toque final em um cenário, quando mobílias aleatórias e objetos
dispostos de repente viram uma sala numa casa onde pessoas
poderiam morar.
– E Tracey descobriu sobre vocês também?
Ava assente.
– Houve muita gritaria. Coisas foram quebradas. – Ela faz uma
pausa. – Eu quebrei algumas coisas. Peguei umas roupas e livros e
esperei a casa ficar silenciosa, e quando ficou saí pela janela e fui
embora de carro.
– E não voltou mais?
– Só hoje – diz ela. Ela se vira para me olhar. – Só com você.
Se o momento fosse outro, eu seguiria o que estou sentindo e a
beijaria. Estamos sentadas lado a lado, a boca está tão perfeita demais
e tão próxima demais. Mas até eu sei que não devo beijar uma garota
quando ela está me contando coisas assim. Não é esse tipo de
intimidade que ela quer, por mais calorosa e próxima e convidativa
que Ava esteja agora, por mais que ela me faça questionar como posso
já ter ficado mal por outra pessoa.
Então peço para ela me contar mais sobre Lisa.
– A versão resumida é a seguinte – diz. – Eu me apaixonei por uma
das minhas melhores amigas. Tenho quase certeza de que ela se
apaixonou por mim. Algumas semanas pareceram mágicas, mas acho
que eu sabia o tempo todo que terminaria.
Ela olha para a casa com intensidade.
– Eu passava muito a noite lá. Com ela.
– Os pais dela não sabiam?
– Eles achavam que eu dormia no colchão inflável.
– Ah.
– Durou cerca de um mês. Eu nunca fiquei tanto tempo sem dormir
direito.
Eu abro um sorriso, mas sinto um aperto no estômago, não sei bem
por quê. Provavelmente por muita coisa. Como o fato de que eu
poderia dizer a mesma frase com sinceridade sobre as poucas noites
que pude passar com Morgan dizendo para os meus pais que estava
em outro lugar.
Mas também é possível que o aperto seja um pouco esperançoso,
um pouco por causa de Ava e da possibilidade de nós duas passamos a
noite em claro juntas um dia. É um pensamento que afasto, no
entanto, porque estou começando a entender a hesitação de Charlotte.
Ela não quer que eu sofra de novo, e vamos falar a verdade: eu sou
uma parte pequena do possível caminho de Ava para o estrelato. Já
estive próxima de atrizes jovens suficientes para saber que uma
designer de produção amadora, uma estagiária, na verdade, jamais
manteria a atenção dela por muito tempo.
Eu tento me afastar das fantasias de futuro, de volta ao chão ainda
quente e ao ar fresco da noite e ao céu limpo e às estrelas brilhantes e
à companhia de uma garota que está me contando uma parte de sua
história de vida.
– Foi uma coisa muito estranha. Uma manhã, eu acordei na cama da
Lisa e tive aquela sensação que sentia toda hora: de que nosso tempo
juntas acabaria. Em pouco tempo, teríamos que vestir as roupas e ir,
uma de cada vez, ao banheiro. Nós não sentaríamos perto demais uma
da outra no café da manhã. Nunca nos olharíamos por tempo demais,
mesmo quando fôssemos as duas únicas pessoas na sala, porque a
qualquer momento, sem aviso, alguém poderia entrar e ver a nossa
cara e nos pegar. A luz estava entrando pelas cortinas e era cedo
demais. Eu não estava pronta pra deixar a cama com ela ainda. Então,
levantei o lençol pra cobrir nossas cabeças e falei que achava que a
gente devia contar pras pessoas. “Contar o que para as pessoas?”,
perguntou Lisa. Eu deveria ter sabido que era um mau sinal. Contar o
que para as pessoas. Mas não percebi. Só falei: “Sobre nós. Nós não
devíamos ter que esconder”. O sol estava subindo rápido; nem as
persianas e o lençol conseguiam mantê-lo longe, e eu via os cílios de
Lisa e a curva da orelha dela. Eu a via acordada sem me responder. Ela
acabou se afastando de mim, e eu estiquei a mão para pegar a calça de
pijama dela e o lençol escorregou e nós estávamos ali, no quarto
ensolarado, e tudo estava claro. Ela contou aos pais naquela noite, mas
não do jeito que eu esperava. Ela contou que eu estava dando em cima
dela, que tinha sido enganada e seduzida por mim.
– E eles acreditaram?
Ava suspira.
– Eu contribuí pra que as pessoas acreditassem em coisas ruins
sobre mim – diz. – É uma coisa que os terapeutas do abrigo me
ajudaram a entender. Eu dei a Tracey todos os motivos pra ela me
rejeitar, pra que eu pudesse parar de me sentir tão impotente.
Eu espero, mas ela não me diz mais nada.
– Bom, Lisa vai se arrepender – digo. – Quando souber de você. É
provável que te queira de volta.
– Duvido.
– Não – digo. – Você não entende. Sua vida pode mudar no
momento que você quiser. Você só precisa dizer pras pessoas quem é, e
logo Lisa vai estar na fila do mercado e vai te ver na capa da Vanity
Fair. Ela vai comprar a revista e vai ler a entrevista e vai descobrir junto
com o resto do mundo. A entrevista vai ser sobre Clyde e Caroline, e
seus próximos filmes futuros e almoços com pessoas famosas no pátio
do Chateau Marmont. Você será fotografada por Annie Leibovitz
vestindo Yves Saint Laurent ou algo parecido. Vai estar tão distante
deste lugar que Lisa vai se perguntar se você se lembra dela.
Ava não responde de primeira, mas está pensando de verdade no
assunto. O rosto dela está sério ao luar, os olhos fixos em mim,
absorvendo cada palavra.
– Pode ser – diz ela, mas não sei se está falando sério.
Eu continuo.
– Mesmo se a gente deixar Clyde e os filmes de fora – digo. – Ainda
tem essa coisa que acontece depois de um término. Quase não demora
nada pra funcionar. Basta você continuar com a vida e aí você se vê em
um local com ela de novo e vai se sentir uma pessoa diferente. Talvez a
sua postura esteja um pouco mais confiante. Talvez sua risada esteja
mais alta. Você está usando um perfume que ela nunca sentiu e tem
um jeito novo de prender o cabelo. Você nem precisa dizer nada,
porque só a sua presença basta para dizer Olha quem eu sou sem você.
Ela sorri.
– Esse cenário me parece mais realista – diz.
Deixamos uma pilha de caroços de cereja na grama, pulamos a
cerca de novo e voltamos para o meu carro. O espaço entre nós parece
carregado de eletricidade, cada respiração é algo que estamos
compartilhando. Quando pegamos a estrada, à nossa frente só há
colinas escuras e o céu, e dirigimos em silêncio e eu nem ligo o rádio
até chegarmos a Los Angeles, com centenas de faróis traseiros se
prolongando até o infinito à nossa frente, o amontoado de estradas e
rodovias que poderia nos levar a qualquer lugar.
Capítulo doze

Acho que a percepção de que Ginger estava certa sobre o sofá abalou
minha confiança, porque esta manhã estou no quintal de Theo, tendo
pedido uma reunião para falar sobre o meu progresso. Reconhecer o
conceito de Ginger deixou minha visão para este filme mais clara. Eu
não quero nada estilizado, quero natural. Em vez de chamar a atenção
do público para alguns objetos significativos, quero que tudo seja
significativo.
– Eu quero que os lugares pareçam habitados – digo para Theo
agora.
– Sim.
– Quero pratos na pia e um suéter jogado numa cadeira.
– Amei.
– E estou tentando pensar em como deixar tudo coeso. O
apartamento de Juniper vai ser bem diferente da casa de George, mas
preciso fazer com que pareçam ser do mesmo mundo. Tipo
emocionalmente.
Theo assente e reparo que ele está disfarçando que está achando
graça, e percebo que estou parecendo muito jovem de novo. Claro que
os cenários diferentes precisam ser coesos de alguma forma. Deve ser
uma coisa que as pessoas aprendem na primeira aula de design de
produção, mas eu não fiz nenhuma aula, e apesar de ser provável que
seja algo que eu sabia por instinto, eu não entendia por completo até
Morgan e eu assistirmos às cenas do dia.
Paro de falar sobre as coisas que eu já devia saber e mostro para
Theo o que planejei até ali. Refinei alguns dos esboços, e agora que
sabemos que vamos usar o apartamento de Toby como o apartamento
de Juniper, consegui entender o que temos que fazer para causar mais
impacto. E paro de me sentir muito jovem e começo a me sentir
brilhante de novo, porque tudo que mostro a ele o deixa cada vez mais
animado. O tom de azul que eu escolhi para a cortina faz com que ele
coloque a mão no peito.
– Não é incrível – diz ele –, o que um tom de azul pode fazer? Como
pode fazer alguém se sentir?
– E eu encontrei também umas gravuras botânicas lindas.
Eu as estava guardando para o final da reunião porque tenho
certeza de que ele vai amá-las. Mas antes mesmo de olhar para a tela
do meu notebook, onde abri uma fotografia, o tom dele muda.
– Hum. – Ele semicerra os olhos e balança a cabeça.
– O quê?
– Nada de botânica.
Eu empurro a tela para mais perto dele. Ele deve ter uma ideia
diferente de como devem ser gravuras botânicas.
Mas ele olha a imagem e diz:
– São lindas. Maravilhosas. Mas não vão funcionar.
Eu o encaro. Não entendo. São perfeitas para ela. Cus­taram caro.
– Por quê?
– Juniper ama plantas, sim. Mas você cobriu isso com plantas de
verdade no apartamento. Ela é mais do que só uma estudante de
botânica. Nós temos que ver um lado diferente dela.
– Tudo bem – digo. – O que você tem em mente?
Ele sorri e aponta para mim.
– Esse é o seu trabalho. Eu não sei o que ela deve ter nas paredes,
mas sei que não são coisas botânicas. Eu sei que você estava
planejando procurar locações para a área externa do apartamento de
Juniper hoje, mas eu dormi mal a noite toda por causa de pesadelos
em que não encontrávamos o mercado. Os figurinos e os
equipamentos estavam todos prontos, mas percebemos que não
tínhamos pra onde ir.
– Então vou procurar mercados hoje – digo, tentando me recuperar
do choque da rejeição botânica. – Pode deixar.

Theo está certo. De forma muito clara e dolorosa, mas certo.


Vou embora me sentindo amadora outra vez. As gravuras botânicas
são a escolha óbvia, o primeiro impulso que precisa dar lugar a um
melhor. Preciso contar uma história melhor com o cenário de Juniper,
mas ainda não sei que história deveria ser.
Charlotte manda uma mensagem dizendo que vai se juntar a mim
na busca pelo mercado depois que sair de uma reunião de produção
com Rebecca, então dirijo até o café Silver Lake e fico perambulando
por ali, debaixo de fios telefônicos, passando por casas grandiosas com
grades nas janelas, esperando que a reunião acabe.
– Emi – diz Rebecca, aparecendo atrás de mim na calçada com
Charlotte ao lado. – Que bom que te encontrei. Me diz que você ainda
não tem planos para as cinco da manhã de domingo.
– Hã, dormir conta como plano?
– Consegui acesso vip para a feira do Rose Bowl. Posso te subornar
com um cappuccino?
– Acesso vip ao Rose Bowl já é um suborno. Te encontro na sua casa?
– Perfeito. A gente se vê domingo.
No caminho até o primeiro mercado da lista que Theo me deu,
conto para Charlotte o que Ava me falou sobre Lisa e sobre ter fugido,
e descrevo também nossa ida a Leona Valley. Ela fica menos chocada
do que achei que ficaria.
– Você não está nem um pouco impressionada? – pergunto. – Ava
jogou um vaso com flores pela janela. Nós reviramos a casa e roubamos
coisas.
– Tracey merece – diz Charlotte. Ela parece distraída, e eu pergunto
em que ela está pensando. – Estou com a sensação de que estamos
deixando passar alguma coisa importante. Pode ser que Ava consiga
respostas ao ler as coisas de Tracey.
– Provavelmente. Ela pegou muita coisa.
– Mas eu queria poder falar com alguém que conhecia todos os
envolvidos.
– É. Eu também.
– Tinha o nome do pai na certidão?
– Dizia “desconhecido”.
– Isso não nos dá nada com que trabalhar.
– Eu sei – digo. – E a gente ainda não sabe quem é Lenny.
Nós passamos por cinco mercados até encontrar um que eu
consideraria usar. Não queremos que pareça de rede ou uma loja de
bebidas, e como Charlie, o diretor de fotografia, filma usando quase
que só luz natural, precisamos de um espaço relativamente pequeno
com muitas janelas. O Great Foods Market é exatamente o que
estamos procurando. Fileiras de hortaliças coloridas ocupam a maior
parte da loja, com poucas prateleiras de não perecíveis. É iluminado e
arejado, mas pequeno o suficiente para ter cara de ser um mercadinho.
Charlotte e eu nos aproximamos da registradora juntas e penso no
jeito como Toby entrega o cartão para o dono do negócio, mostra o
nome do estúdio e tudo se torna legítimo imediatamente. Nós vamos
precisar explicar mais quem nós somos, como será o filme. Pelo menos
temos estrelas para citar. Uma garota da nossa idade vai até os fundos
chamar o dono, e logo aparece um cara branco de uns sessenta anos,
corpulento, com cabelo esticado com gel. Primeiro, ele parece incerto,
mas quando cito Benjamin James e Lindsey Miller, a postura dele
muda.
– Sim – diz ele. – Eu talvez possa fazer isso.
Abro um sorriso para ele.
– Seu mercado vai servir tão bem. É um espaço muito bom. Estou
tão feliz que o descobrimos.
– Fico feliz de você ter gostado, meu bem. Meu palpite é que você
gostaria de ter uns dias inteiros pra filmar. Sem clientes, fora o que vai
ter de filmagem à noite.
– Seria incrível – digo. – Será que dá?
– É possível, é possível. – Ele faz sinal para nos aproximarmos dos
não perecíveis e vamos atrás dele. – Vocês devem querer mudar umas
coisas de lugar, né? Estão vendo, as estantes daqui parecem presas no
chão, mas podem ser empurradas. Não é impossível.
Eu balanço a cabeça em descrença feliz. Vai ser bem melhor do que
eu achei que seria. Olho para Charlotte, mas ela não compartilha do
meu entusiasmo. Ela está olhando para o dono com ceticismo.
– Quanto você quer por isso? – pergunta.
Ele faz uma pausa, se empertiga um pouco.
– Dez mil por dia – diz.
Charlotte ri.
Sinto que levei um soco. Como pude não perceber que aquele cara
só queria o nosso dinheiro? Sei que deve haver lendas por aí de
quantias que donos de loja receberam para que suas lojas fossem
transformadas em locação de filmes.
Com tristeza, digo:
– Não é esse tipo de filme.
– Eu poderia aceitar cinco – diz ele.
Charlotte faz que não. Ela tira a lista do meu bolso puxando-a pelo
canto aparecendo e desdobra o papel. Estica-se sobre o balcão, pega
uma caneta e risca o nome e o endereço do Great Foods Market.
– A próxima parada é na rua Figueroa – diz.
~

Nós voltamos sem nada.


– Está tudo bem, Emi – diz Theo. – Vamos continuar procurando.
Charlotte desaparece em outra sala com Rebecca e eu saio e me
sento nos degraus diante da casa. Em pouco tempo ela vai terminar e
nós vamos embora.
Mas, agora, eu ligo para Ava. Não consigo me controlar.
– Eu consegui – diz ela assim que atende, a voz baixa e urgente. – A
inquietação.
– Nós temos que ver – digo, feliz pela distração.
– Eu sei.
– Quer ir lá em casa?
– Quero.
– Nós estamos em Echo Park, mas vamos voltar daqui a pouco. Nos
dá uma hora?
– Posso levar o Jamal comigo?
– Pode, claro – digo.
Charlotte me encontra do lado de fora e vamos embora de Echo
Park, passando pelos bares e cafés e butiques de Silver Lake, em
direção ao centro com os prédios altíssimos até a rodovia.
– Isso deve significar alguma coisa, né? – pergunto depois de contar
tudo.
– O quê?
– Ela querer ver com a gente? Ela deve gostar de nós. Nós temos
uma conexão.
– Acho que a gente devia se preparar pra outra noite emotiva – diz
Charlotte.
– Acho que nós fazemos bem pra ela. Acho que ela gosta de ficar
perto de nós. Somos exatamente o que ela precisa agora.
Charlotte se vira para mim do banco do passageiro. Sinto a
desaprovação dela mesmo entrando na rodovia e sem olhar para ela.
– O quê? – pergunto.
– Ela foi expulsa de casa e está sozinha há um ano, praticamente
sem teto, e está prestes a ver a mãe, basicamente pela primeira vez sem
ser em foto, fazendo uma ponta em um filme obscuro. Eu acho que a
gente faz bem pra ela, e espero que seja só nisso que você esteja focada.
– Mas você não a acha ótima?
– Sim, eu a acho ótima.
– Você não acha que o jeito como ela rói as unhas é encantador?
– Acho.
– Eu amo cabelo ruivo. Nunca tinha pensado em cabelo ruivo antes,
mas é tão bonito.
– Emi.
– Tá. Eu não vou fazer nada, só acho que ela…
– É ótima – diz Charlotte. – Eu sei. Ela é ótima mesmo.

Acontece que o que ela arrumou é uma fita vhs. Eu abro a porta e ali
está ela, parada ao lado de Jamal, segurando a fita nas mãos como o
objeto raro e precioso que é.
– Oh-oh – digo, e toda a empolgação dela desaparece do rosto.
– Imaginei – diz Jamal para ela, e estica a mão para me
cumprimentar.
– Jamal – diz.
– Emi – digo, e ele sorri e assente como quem diz E aí? Começo a
gostar dele na mesma hora.
– Eu achei que você teria. Você tem um monte de discos, coisas
velhas… – diz Ava.
– É – digo. – Toca-discos são nostálgicos. Já os aparelhos de
videocassete nem tanto. Mas tudo bem. Só significa que vamos ter que
ir pra casa dos meus pais.
– O que pode ser uma coisa boa – diz Charlotte, aparecendo atrás de
mim. – Porque eles vão nos dar comida.
Charlotte está sem gasolina e pegamos meu carro, e Jamal tem um
ataque de riso pela questão da tranca.
– Ei, pelo menos eu tenho carro – digo.
– O que te faz pensar que eu não tenho carro? – Ele me lança um
olhar fingindo que está ofendido. O rosto dele passa de simpático a
hostil, e é tão súbito e calculado que apesar de ele estar brincando,
tenho um vislumbre de como a vida dele deve ter sido antes do abrigo.
Mas afasto o pensamento e digo:
– Ouvi relatos sobre os longos trajetos de ônibus para o trabalho.
– Então você está revelando meus segredos agora? – pergunta Jamal
a Ava.
– Quais segredos? – diz Ava. Para nós, ela acrescenta: – Eu conto
tudo da minha vida pra ele e ele me conta muito pouco.
– O que posso dizer? Eu sou um bom ouvinte.
Ava revira os olhos e nós começamos o trajeto curto entre Venice e
Westwood, subindo o Venice Boulevard, passando pela Venice High e
por uma loja de aluguel de figurinos e vários salões de beleza.
Charlotte liga para os meus pais para avisar que estamos a caminho e,
quando desliga, ela se vira para Ava.
– Nós contamos pra eles sobre Clyde e você e tudo o mais – diz. –
Então, não fica surpresa se eles ficarem empolgados de te conhecer.
Mas empolgação é eufemismo.
Assim que passamos pela porta minha mãe passa direto por mim e
por Charlotte e basicamente pousa sobre Jamal e Ava como uma águia
mãe salvando os filhotes perdidos da natureza.
– Ava – diz ela, colocando as mãos nos ombros da garota. – As
meninas me contaram tudo a seu respeito. Você é uma jovem forte e
bonita. Não deixe que ninguém te diga que não. E qual é seu nome,
meu jovem? Jamal: bonito, gracioso. Bem-vindos, os dois, à nossa casa.
Querem água? Chá? Perrier?
Fico morrendo de vergonha, mas tento ignorá-la e me junto ao meu
pai na cozinha para olhar cardápios de restaurantes que entregam
comida enquanto Charlotte fica com nossos novos amigos, com sorte
pronta para tirá-los das garras da águia se o aperto ficar forte demais.
Meu pai e eu olhamos sete cardápios e acabamos escolhendo o Garlic
Flower, como sempre fazemos, e ele finge consultar o menu antes de
pedir todos os pratos que sempre pedimos.
Quando desliga o telefone, ele vai para a sala, mas fica rodeando.
Ele é um cara bem extrovertido. É estranho ele não estar se
apresentando, principalmente porque a minha mãe está falando com
Jamal sobre a história rica e tumultuada da cidade dele e Ava está
sentada na beira do sofá, parecendo pouco à vontade apesar de
Charlotte estar sentada com ela.
– Pai – digo. – Vem conhecer a Ava.
Meu pai dá dois passos na direção dela e estica a mão.
– Um p-prazer te conhecer, Ava – gagueja.
É aí que percebo o que o estava impedindo. Meu pai está intimidado
por uma estrela.
– Oi – diz Ava, se levantando para apertar a mão dele.
– Eu sou muito fã do trabalho do seu avô – diz meu pai. – Meu
trabalho de conclusão de curso foi sobre o papel essencial dele em
criar a mitologia do Velho Oeste americano.
– Chega, pai. – Dou uma risada.
Ava parece nervosa.
– Eu não o conheci – diz. – Mas Emi e Charlotte me mostraram um
dos filmes dele. Bom, parte de um filme.
– Você tem o nariz dele – diz meu pai. – E as sardas.
– Eu não sabia que ele tinha sardas – digo.
– A maioria das pessoas não sabe – diz ele. – Os estúdios achavam
que as sardas o deixavam muito adolescente e escondiam com
maquiagem pesada. Em 1966, quando ele recebeu o Oscar de melhor
ator por O estranho, o público as viu pela primeira vez. Saiu em todas
as colunas de fofoca.
Ava inclina a cabeça e o cabelo cai sobre um dos ombros.
– É mesmo? – pergunta. – Foi material de coluna de fofoca?
– Foi. Na verdade – diz meu pai –, tenho uma coleção de colunas de
Dorothy Manners no meu escritório. Tem uma em que ela fala sobre a
“aparência juvenil dele no Oscar na segunda passada”. Quer dar uma
olhada?
Ava assente e se levanta e vai atrás do meu pai pelo corredor, e
Charlotte e eu ficamos juntas no sofá enquanto minha mãe está
dizendo:
– Sério? Você não aprendeu sobre os tumultos de Watts na escola?
Em Watts? O que te ensinaram no lugar disso? Você precisa saber a
história do seu lugar de origem. Tudo bem, começou assim…
– Estou me sentindo meio mal de todos nós chegarmos para
atrapalhar a noite tranquila deles só porque a gente queria que eles
pagassem o jantar, mas acho que a gente fez a noite deles.
Charlotte assente.
– É um sonho realizado no lar Miller-Price.
Finalmente nosso amigo entregador toca a campainha.
Ele acena para mim do outro lado da porta de vidro quando eu a
abro.
– Oi, Eric – digo.
– Oi, Emi – diz ele. – Pedido grande hoje.
– Nós temos convidados – explico, e, quando minha mãe se junta a
nós com um artigo que ela recortou da Times de domingo para ele,
digo um Tchau com movimentos labiais e levo a comida para a
cozinha.
Charlotte, Jamal e eu pegamos pratos e talheres.
– Ei – diz Jamal. – Acho que sua mãe gostou de mim.
– É, provavelmente – digo. – Por quê?
– Ela me chamou de bonito e gracioso.
– Ela estava te dizendo o significado do seu nome – diz Charlotte.
– Meu nome significa “bonito e gracioso”?
– Ao que parece, sim – digo.
Ele ri.
– Eu nem sabia que você tinha ascendência negra – comenta.
– Tenho – digo. – Meu avô é negro, então eu sou 25 por cento negra.
Ele se inclina para a frente para me olhar melhor.
– É, dá pra ver – diz ele. Ele vai até a geladeira e olha as fotografias
que estão lá. – Quem é esse? – pergunta, apontando para uma
fotografia de Toby comigo. Nós estamos vestidos para a estreia de um
documentário em que meu pai apareceu, e agora vejo a foto da forma
como Jamal deve estar vendo: Toby tem a pele bem mais escura do que
a minha, o cabelo mais denso e mais encaracolado. Os olhos dele são
castanho-escuros; os meus âmbar.
– Meu irmão – digo.
– Mesmo pai?
Faço que sim. Eu poderia contar a ele sobre todos os professores
que primeiro deram aula para Toby e tentaram disfarçar a surpresa
quando descobriram que eu era irmã mais nova dele. Ou as vezes em
que estranhos acharam que minha mãe era minha babá quando eu
era pequena.
Mas decido agora simplificar.
– Os mistérios da genética. – Dou de ombros.
– Pior que é – diz ele. E, um momento depois: – Você tem uma
família legal.
Não sei o que responder. Não sei nada sobre a vida do Jamal, mas o
fato de ele morar no abrigo com Ava deve significar que a vida com
sua família estava longe do ideal. De repente, me sinto muito fútil por
ficar constrangida quando eles entraram. Tem coisa bem pior em pais
do que ficarem superinteressados nos amigos da filha, do que ficarem
empolgados o bastante para contar coisas talvez desconhecidas sobre
eles mesmos.
Eu só sorrio e digo “Obrigada”, e meu pai e Ava reaparecem vindos
do escritório dele carregando duas biografias do Clyde Jones e alguns
livros de faroeste.
– Vamos botar a mesa? – pergunta meu pai.
– Na verdade – digo –, nós viemos assistir a uma fita, então acho que
é melhor a gente comer na mesa de centro da sala de tevê.
– Vocês têm uma sala de tevê? – pergunta Jamal.
Eu faço que sim, e minha mãe, agora de costas para nós, une as
mãos e diz:
– Um filme!
Charlotte e eu trocamos olhares.
– Pessoal – digo para os meus pais. – Eu não quero ser grosseira,
mas…
– Ah, tudo bem – diz meu pai.
– É mesmo – diz minha mãe. – Nós não queremos nos meter. Gary, a
gente pode ver um só nós dois. Parece divertido, né?!
Se Ava Garden Wilder fosse a estrela do seu próprio filme, a cena
durante a qual ela vê a mãe que já morreu interpretar um papel
pequeno em um filme seria mais ou menos assim:
Ava se acomoda em uma sala pequena e escura sozinha. Senta-se

perto da tela e, quando sua mãe aparece, aumenta o volume para

ouvir a voz dela melhor. Quando a cena acaba, ela rebobina a fita e

a mãe dela reaparece. Ela toca na tela, incapaz de substituir a

mulher que ela queria ter conhecido. Ela rebobina e aperta o play.

Rebobina e aperta o play. Tudo fica azulado pela luz da tela; o rosto

dela está banhado em lágrimas.

Mas não estamos em um filme, estamos na vida real, e ouço Ava


dizer:
– Por mim, tudo bem se vocês quiserem ver com a gente.
– Que filme é? – pergunta meu pai.
– Se chama A inquietação.
– Ah, sim – diz ele. – Scott Bennings. Eu não vejo desde que saiu
em… Quando mesmo? 1992? 1993?
– Você sabe tudo? – pergunta Jamal.
– Não encoraja o sujeito – digo.
– Tem certeza, Ava? – pergunta Charlotte.
Eu explico para os meus pais que Caroline Maddox, mãe biológica
da Ava, tem um papel pequeno no filme.
– De garçonete – diz Ava. – Em uma cena importante. Eu não quero
ver sozinha. Não tem problema se for um momento emotivo pra mim,
né? Eu não preciso de privacidade.
– Ah, meu bem – diz minha mãe. – Fica à vontade. Bota pra fora se
doer. Gary e eu ficamos honrados, honrados de você nos incluir nesse
momento.
Meu pai está assentindo, concordando e preocupado, mas vejo
outro tipo de fagulha nos olhos dele.
– Vou tentar adivinhar o que você está pensando, pai. Você está
pensando: estou prestes a ver a filha de Clyde Jones em um filme e
nenhum dos meus colegas e nenhum crítico de cinema sabe que ela é
filha do Clyde, nem que Clyde Jones teve uma filha.
Meu pai franze a testa.
– Claro que não – diz. – Eu estou pensando em Ava e como isso deve
ser importante pra ela.
– Você pode pensar nas duas coisas – diz Ava, sorrindo. – Tudo bem.
Tenho vontade de mandar uma mensagem secreta para Charlotte,
que está do outro lado da sala, falando como Ava é maravilhosa, mas
não faço nada. Minha força de vontade de repente ficou mais forte do
que nunca.
– Tudo bem – admite meu pai. – Estou pensando as duas coisas.
Nós levamos nossos pratos pelo corredor cheio de fotos da família
até a sala de tevê, que basicamente é um templo dos interesses
ecléticos dos meus pais. Onde mais seria possível encontrar um
folheto emoldurado de um protesto de 1963 contra o espancamento
selvagem que a ativista de direitos civis Fannie Lou Hamer recebeu da
polícia pendurado ao lado de um pôster emoldurado de Barrados no
baile autografado por todo o elenco da temporada de 1993?
Mas uma das poucas áreas onde as paixões profissionais dos meus
pais se cruzam é a música, em especial a respeito da ascensão do
gangsta rap da Costa Oeste. Eles são capazes de falar por horas sobre
isso, analisando a evolução dos videoclipes, da parceria de baixo
orçamento entre Snoop Dogg e Dr. Dre em Nuthin’ But a “G” Thang,
que celebra Long Beach e Compton tendo como pano de fundo festas
caseiras humildes, ao cenário opulento à luz de velas regado a
champanhe de 2 of Amerikaz Most Wanted, lançado só três anos depois.
Eu ligo o videocassete, Ava me passa a fita e logo a tela (que fica
pendurada na parede ladeada de fotografias originais de N.W.A e
Tupac à esquerda e os muitos diplomas emoldurados à direita) exibe
os créditos de abertura de A inquietação.
Uma luz azul e neve em Chicago. Uma trilha de jazz.
A história é bem simples de acompanhar. É uma pequena
homenagem ao gênero noir, com um protagonista solitário misterioso
tentando solucionar um assassinato antes da polícia. O enredo é bem
previsível, mas a tensão na sala é enorme de qualquer jeito, porque
nós não sabemos quando Caroline Maddox vai aparecer. Nós só
sabemos que ela é uma garçonete na cena mais importante, e supomos
que ela não vai aparecer até, pelo menos, a metade do filme.
Apesar de a espera ser inevitável, ninguém come muito depois dos
primeiros cinco minutos de filme, e Ava não come nada. Ninguém se
mexe ou faz algum comentário, e como é o caso com muitas das
minhas ideias, começo a ter medo de que ir até ali tenha sido uma das
ruins.
Ava e Jamal estão sentados em um sofá de dois lugares, meus pais e
Charlotte no sofá grande. Estou sozinha em uma poltrona de onde
tenho visão periférica de todos, e todo mundo está tenso e nervoso.
Tantas coisas podem dar errado. Talvez Caroline Maddox nem fale.
Talvez a gente só a veja do pescoço pra baixo, uma mão e um braço
enchendo uma xícara de café em primeiro plano enquanto nosso
detetive reflete no balcão. Ou, pior ainda, e se nós a virmos e ela for
uma péssima atriz? E se Ava ficar com vergonha e nós nos apressarmos
para dizer que Caroline não foi tão mal, mas ela perceber que estamos
mentindo?
Uma hora e cinco minutos depois, começo a passar mal. Tenho que
lembrar a mim mesma de respirar. Não tenho ideia do que está
acontecendo no filme, só que, em determinado momento, a ação vai
passar para o interior de um restaurante e eu vou implodir.
E aí, aparece.
A câmera mostra a parte externa de um restaurante especializado
em carnes e de repente estamos dentro dele. O detetive está sentado,
esperando sozinho uma mulher loura que pode ou não ser sua filha.
– Quer uma bebida? – pergunta uma voz feminina, e a câmera
revela Caroline Maddox.
Nós todos fazemos um ruído, porque não há dúvida de que é ela,
nem para os meus pais, que não viram a foto. Ela tem o mesmo cabelo
ruivo de Ava, o mesmo nariz perfeito.
E tenho uma sensação. Como quando somos criancinhas e
montamos um forte de cadeiras e cobertores tirados de todas as camas
da casa, e quando estamos lá dentro a luz é diferente, e nos deitamos
em travesseiros no chão e precisamos de uma lanterna para ler apesar
de ainda ser o meio do dia. Parece que as pessoas aqui nesta sala são as
únicas pessoas do mundo. Como se toda a vida lá fora devesse estar
parada e em silêncio, nos dando esses momentos.
A câmera fica no rosto de Caroline enquanto ela espera a resposta.
Eu estava esperando que ela fosse a garçonete atrevida que projeta o
quadril e masca chiclete e parece distraída ou irritada pelos clientes,
mas não é o caso. Quando ela pergunta se o detetive quer uma bebida,
é com sinceridade.
– Uísque – diz ele, e nós fazemos um ruído de novo, porque a
câmera está de volta nele e seria doloroso demais, cruel demais, se
aquilo fosse tudo que nós veríamos de Caroline. Tem alguma coisa
acontecendo. Ele bate no bolso e pega uma caixa de fósforos e
semicerra os olhos. Algo foi resolvido, mas não sei o quê. Ele gesticula
e, graças a Deus, Caroline aparece de novo.
– Está pronto pra pedir? – pergunta.
– Mudança de planos – diz ele. – Vou ter que cancelar aquela
bebida.
– Ah. – A cortesia agradável e profissional dela é substituída por
confusão, mas é mais do que isso. É preocupação. Ela prende uma
mecha de cabelo atrás da orelha. A câmera fica nela por mais tempo
do que provavelmente deveria, considerando que é um momento
importante não relacionado a ela.
– Olha só. Se uma loura vier aqui, você pode dar um re­cado meu?
Caroline assente.
– Diz que ela me enganou, mas que eu estou atrás dela. Diz que a
minha filha não andaria por aí com os garotos do Mack.
– Tudo bem, eu falo – diz Caroline. – Tem certeza de que você não
tem tempo pra aquele uísque?
– Vamos fazer assim. Se eu sobreviver a esta noite, volto pra
comemorar.
De repente, quero que o detetive fique vivo.
– Como é mesmo o nome desse cara? – pergunto.
– Max – diz Jamal.
– Quero muito que Max fique vivo – digo, e todo mundo murmura
concordando.
Infelizmente para todos nós, Max morre cinco minutos depois, a
loura nunca vai ao restaurante e o filme acaba.
– A gente pode ver a cena dela de novo? – pergunta Ava, e eu volto a
fita e encontro a parte e aperto play. Meu pai se levanta primeiro para
se aproximar da tela, e logo Ava o segue e então minha mãe e
Charlotte e Jamal ao mesmo tempo, até estarmos todos a uma curta
distância, olhando o rosto de Caroline na altura dos nossos olhos.
– Ela é linda – diz meu pai.
– Que rosto gentil – diz minha mãe.
E eu faço que sim, mas enquanto todos estão olhando para
Caroline, eu estou olhando para Ava, o cabelo se espalhando do rabo
de cavalo, a mão levantada até a boca, os olhos verdes grudados na
tela, sem piscar, absorvendo a imagem da mãe.
Capítulo treze

Às ٤h٤٠ da manhã de domingo, paro na frente da casa em Echo Park e


mando uma mensagem para Rebecca avisando que cheguei. Quando
levanto o olhar da tela, vejo a picape de Morgan na entrada de carros,
o que é uma possibilidade que eu devia ter considerado. Não tem
motivo para que vê-la devesse ser mais constrangedor do que nas
semanas anteriores; poderia até ser menos agora que sabemos em que
pé estamos. Mas ainda assim estou decepcionada de ver a picape. Eu
queria me sentir a especialista do departamento de arte dessa
excursão, e sempre que estou com Morgan, fica claro que ela é mais
experiente.
Rebecca aparece, fecha a porta e vem carregando duas canecas
térmicas e a chave de Morgan.
– Bom dia – diz ela pelo vão da minha janela. – Eu peguei a picape
de Morgan emprestada.
A 110 nunca esteve tão vazia quanto agora, antes das cinco da manhã
em um domingo, mas quando chegamos ao Rose Bowl, já tem pessoas
fazendo fila para entrar. Estou acostumada com a versão agitada e
simpática dessa feira de coisas usadas, a versão das onze da manhã,
quando todo mundo está indo passear, entrando e saindo de barracas
e parando para comer burritos nos food trucks. Mas às cinco da manhã
não tem ninguém passeando. Todos estão com olhares de águia, de
olho em barracas específicas, inspecionando os móveis vintage, roupas
e objetos de decoração e os colocando em carrinhos de metal gigantes
ou colocando placas de vendido sobre eles e seguindo para a próxima
coisa. Essas pessoas são donas de lojas de segunda mão, prontas para
vender o que conseguirem ali pelo dobro ou triplo do preço, ou são
decoradores que vão mobiliar as casas de clientes, ou são de
departamentos de arte de estúdios de cinema. Assim como eu, elas
estão procurando o que vai fazer o cenário transcender uma invenção
artificial, a adição que vai fazer o público acreditar que o que estão
vendo é real.
Rebecca pega as paletas de cores que fiz para ela e sai em busca de
tapetes para as casas de Juniper e George. Eu vou para as barracas que
vendem arte, ainda sem saber o que deveria estar procurando. Ontem
à tarde eu me deitei no meio da sala de Toby e olhei para a parede por
uma hora, pensando que talvez a resposta pudesse aparecer se eu não
ficasse procurando em revistas e lojas virtuais. Mas só tive um branco e
liguei para Ava, me sentindo mais nervosa do que nunca ao esperar a
resposta dela. Sei que Charlotte está certa e que eu não deveria estar
esperando nada mais do que amizade. Mas as coisas que desejo
raramente estão sob o meu controle.
– O que você acha que Juniper penduraria nas paredes? – perguntei
a ela.
– Não sei. Umas imagens floridas? Por causa da botânica.
– Já tentei isso.
– Preciso pensar.
Eu a ouvi respirando no intervalo entre as frases roucas. Tentei
visualizá-la no quarto do abrigo, mas não sabia como era, e não
conseguia mesmo imaginar Ava Garden Wilder morando em um lugar
desses.
– Fotografias da família – disse ela. – O roteiro não fala da família
dela, mas ela parece o tipo de pessoa que sentiria saudade deles.
Alguma coisa nisso me pareceu certa, mas a não ser que eu
encontrasse modelos para posarem como sendo da família dela, seria
praticamente impossível de executar. E não é a estética que estou
querendo. Quero um cenário que pareça romântico, emotivo. Um
lugar onde alguém sonharia com um tipo de vida diferente.
Agora, vasculhando centenas de peças de arte, encontro uma coisa:
uma pintura de uma mulher com o pescoço comprido e um sorriso
suave.
Retratos.
Remete à sensação em que Ava estava pensando, mas tem o
potencial para ser mais bonito. Juniper vai ter desenhos e pinturas de
estranhos na parede, coisas velhas encontradas em feiras de coisas
usadas e brechós. Ela se cerca de imagens de pessoas para se sentir
menos sozinha.
Rebecca me manda uma foto de três tapetes com um ponto de
interrogação. Eu respondo Sim, Não, Sim. E vou a quatro barracas de
quadros e encontro seis retratos que amo.
Na volta, às oito, com alguns tapetes e uma cômoda na caçamba da
picape e meus retratos empilhados no meu colo, Rebecca diz:
– Nós vimos todas as audições ontem à noite.
– Ah, é?
Ela assente.
– Sua amiga é boa.
– É mesmo.
Eu espero.
– Quanto ela é boa? – pergunto.
Rebecca sorri.
– Vamos ver – diz ela.

Ava me encontra num galpão de coisas usadas em Hollywood. Há


brechós de que gosto mais, espaços menores com curadoria cuidadosa
de itens, mas nós precisamos de arte suja e barata, e estou disposta a
revirar as pilhas atrás delas.
– Retratos – digo para ela quando chegamos ao canto onde ficam os
quadros. – O apartamento é basicamente composto de azuis e verdes,
então se alguma coisa combinar com esse esquema de cores, vamos
pegar. Mas umas duas peças podem se destacar, principalmente se
forem boas; se você encontrar algumas peças vermelhas, pode mandar
ver.
– Variedade de tamanhos? – pergunta ela.
Faço que sim.
– Vão estar todas penduradas em uma parede, juntas. Estou
pensando em estilos e tamanhos variados. Já tenho seis, mas preciso
de pelo menos mais dez.
Nós começamos a trabalhar, revirando tudo, de pôsteres de banda
emoldurados a pinturas a óleo amadoras. Ava começa a formar uma
pilha e vou colocando mais coisas nela, e descubro que gosto de
trabalhar com Ava. O jeito como ela não fica me perguntando o que
penso do que ela encontrou, de como está sendo rápida e eficiente,
sabendo que vamos olhar tudo juntas quando terminarmos.
– Metade desses retratos são de Jesus – diz ela. – Estou supondo que
tudo bem pular esses.
– Isso daria outra impressão sobre Juniper.
– É de manhã. Juniper para na frente de uma parede com
aproximadamente dezesseis Jesus de vários tamanhos e estilos.
Dou uma risada e Ava sorri para as pilhas de quadros, voltando ao
trabalho, e preciso me forçar a não olhar para ela.
Theo vai convocar as selecionadas das novas audições hoje, e, a
cada hora que passa sem notícias, fico tomada de esperança e medo.
Esperança porque sei que Ava tem uma boa chance, apesar de ser uma
desconhecida, apesar de ele não saber sobre Clyde. Ela foi boa assim.
E por que Rebecca tocaria no assunto se a notícia fosse ruim? Mas eu
sei que Theo teve que escolher entre muitas atrizes desta vez, e quero
muito isso para Ava. Nós não precisamos de outro revés agora que as
coisas estão indo tão bem.
Olho algumas paisagens, uma pintura abstrata em tons de marrons,
um pôster de circo antigo. Encontro um retrato de caneta-tinteiro de
um homem idoso e o acrescento à pilha.
– Emi – diz uma voz que reconheço, e vejo Laura Presley quando me
viro.
– Ah, oi – digo.
E aí me lembro do que escrevi no anuário dela e me sinto meio
constrangida, porque, quando escrevi aquilo, não esperava vê-la de
novo.
Ela está olhando para Ava e eu a apresento.
– Que pilha vocês fizeram – diz Laura, os olhos indo de Ava até
mim. Ela está segurando uma jaqueta de camurça com franjas e um
par de óculos de sol cor-de-rosa.
– É pra um filme em que eu estou trabalhando – digo.
– Legal – diz ela. Percebo que ela quer ver, mas não tenho tempo
para mostrar e explicar tudo, então só concordo e sorrio e espero que
ela vá embora.
– Ótimos achados – diz Ava para ela. – Adorei as franjas.
Laura olha para a jaqueta como se tivesse se esquecido dela.
– Obrigada – diz para Ava. E, para mim: – Eu não te vi na formatura.
– É, Charlotte e eu fomos embora logo depois da cerimônia.
– Você não é muito sentimental, né?
– Só com algumas coisas. – Espero que ela responda, mas ela não
diz nada, então eu digo: – Bom, foi legal te ver.
Ela ri como se tivesse entendido.
– Tudo bem, Emi – diz. Ela olha para Ava mais uma vez, se despede
e vai embora.
Eu me viro para os quadros e balanço a cabeça para Ava.
– Ela estava me olhando de um jeito estranho? – pergunta Ava.
– Ela deve achar que a gente está namorando – digo. – Laura e eu
saímos por um tempo no segundo ano.
– Ah – diz ela, e fica ainda mais corada do que o habitual.
– O que foi? – pergunto.
– Eu não sabia que você gostava de garotas. Bom, eu achei que
talvez gostasse, mas não tinha certeza.
– Não tinha? – pergunto, mas acho que eu não deveria ficar tão
surpresa. As pessoas falam sobre sair do armário como se fosse um
grande evento único. Mas, na verdade, a maioria das pessoas precisa
ficar saindo do armário sem parar, basicamente com cada novo
conhecido. Eu só tenho 18 anos e já estou exausta disso.
– Desculpa – digo. – Eu achei que você soubesse.
Ela faz que não.
– Vejamos – diz ela. – Quando se cresce no deserto e as únicas
pessoas com quem você pode andar são as pessoas da igreja da sua
mãe, e a garota que você acha que ama não está apaixonada por você,
há uma tendência de se sentir meio sozinha no mundo.
– Mas eu mencionei Morgan.
– Morgan nem sempre é nome de mulher – diz ela.
Ela me encara e o rubor some. Há uma confiança na forma como
ela está me olhando que torna difícil saber o que fazer ou dizer em
seguida. Principalmente porque todas as coisas que eu quero fazer e
dizer são coisas que eu não deveria.
– Ah, bom, essa Morgan é mulher – digo, lembrando trechos dessa
conversa, fingindo que estamos falando de Morgan e não o que
Morgan representa sobre mim. – Nós tivemos um relacionamento com
muitos términos e voltas no último ano, e ela não queria terminar, mas
ao mesmo tempo queria sair com outras pessoas e foi tudo muito
confuso.
– Ah. – Ava assente como quem entende e balança a cabeça em
solidariedade, o olhar interrompido, o rubor de volta, todos os traços
de confiança sumindo.
E percebo que o que falei faz parecer que quero voltar com Morgan,
mas eu não quero. Principalmente agora, com Ava ao meu lado no
galpão, com uma pilha de retratos aos seus pés, o cabelo repuxado em
um rabo de cavalo, uma mecha fina caindo no pescoço gracioso, os
olhos grandes e vulneráveis, claramente constrangida por supor que
eu a acharia atraente só porque gosto de garotas.
Na conversa que não estamos tendo, a que não é sobre Morgan e
sim sobre mim e Ava, eu diria Quando você me olha assim, só tenho
vontade de te beijar. Eu diria Talvez eu soubesse que você achava que eu era
hétero. Talvez eu achasse mais seguro assim. Diria Será que pode ser uma
boa ideia, você e eu?
Mas o que digo é:
– Só que eu enfim a superei.
Ava, olhando para o cesto de quadros pequenos e não para mim,
pergunta:
– Você a vê com frequência?
– Vejo. Ela está trabalhando no filme. Foi ela que meio que
conseguiu o trabalho pra mim.
– Como você consegue? Não sei o que eu faria se tivesse que ver a
Lisa de novo.
Eu dou de ombros.
– Você ainda deve estar apaixonada pela Lisa – digo. E também: –
Eu estou pronta pra uma coisa nova. Uma pessoa nova, quer dizer.
Ela enfia a mão no cesto, empurra alguns quadros para o lado. Vejo
um sorriso repuxar os cantos da boca dela, mas ela continua sem me
olhar. Levanta um retrato pequeno de uma mulher com uma moldura
verde fina.
– Eu não estou apaixonada pela Lisa – diz.
Há um zumbido na bolsa dela. Ela coloca o retrato sobre a pilha e
pega o celular.
– Alô – diz, e se vira para mim, a mão voando até a boca. – Sim –
responde. – Oi, Theo.
Eu arregalo os olhos para ela, sem respirar até ela dizer:
– Sim, claro que ainda estou interessada. Sim, eu posso ir agora.
Ela desliga.
– Eles querem que eu vá ler para o papel. Não acredito.
– Você é perfeita pra esse papel.
Ela ri com incredulidade.
– Eu tenho que ir. Mas espera! Vamos tirar uma foto primeiro.
Quem teria imaginado que minha vida poderia mudar enquanto eu
remexo em cestos de arte num galpão de usados?
Ela enfia a mão na bolsa, dizendo de novo que não consegue
acreditar que isso está acontecendo. Mas eu consigo. É o que deveria
acontecer, o que precisa acontecer. É um dos passos que leva ao final
feliz que imaginei para ela no Chateau Marmont, a personagem
fazendo o que não sabia que era capaz de fazer, um sinal precoce de
que o filme a que está assistindo é do tipo otimista.
E estou mergulhada em pensamento nas cenas que vêm em
seguida: Ava no set dando vida a Juniper. As coletivas e almoços de
trabalho. O tapete vermelho e as primeiras exibições. Alguns
pequenos entraves para compensar os triunfos, momentos de calmaria
e de agitação. Ela é a pessoa perfeita para ser escalada para essa vida:
tão bonita e gentil, tão triste por trás da fachada charmosa. Ava está
segurando o celular na nossa frente, não só comemorando um
momento, mas tornando-o uma cena do jeito que um personagem
perfeito faria.
Mas.
A personagem de um filme não te sobressalta com um aperto forte
na cintura quando você imaginava que ela seguraria com mais
suavidade; ela não tem um cheiro matinal nem encosta o rosto macio
no seu, tão perto que dá pra sentir os cílios dela na sua bochecha
enquanto vocês posam juntas para uma fotografia, inclinando o
telefone para pegar a melhor luz, afastando-o ainda mais para pegar o
ambiente, trabalhando na composição para que a bagunça da loja
emoldure a foto, mas, juntas, no centro, estão vocês duas.
Capítulo catorze

– Nós precisamos de um jantar de verdade? – pergunta Ava quando


aparece à minha porta algumas horas depois. – Estou com vontade de
fazer um bolo.
Está apoiando uma sacola de mercado no quadril. Olho dentro dela:
farinha, azeite, ovos, fermento, morango.
– Um bolo comemorativo – acrescenta ela, sorrindo.
– É oficial?
– Fui a única chamada.
– Eu sabia!
Dou um passo para trás e deixo que ela entre enquanto digo:
– Bolo é a escolha perfeita pra um jantar de comemoração.
– Fico tão feliz que você concorda.
– Me conta como foi – digo quando vamos para a cozinha.
– Eu nem sei o que dizer. Eu só preenchi alguns papéis, e mesmo
assim foi uma das tardes mais emocionantes da minha vida. Pensa
bem. Menos de duas semanas atrás eu estava batendo na sua porta
sem a menor ideia de por que estava aqui. Agora, vou atuar em um
filme com gente famosa. Eu posso me filiar ao sindicato. – Ela balança
a cabeça. E olha o apartamento de Toby. – Eu tenho amigos – diz ela. E
mais baixinho: – Tenho a sensação de que aqui é meu lugar.
– É porque é mesmo – digo. – Atuar está no seu sangue.
– Ainda parece ser mentira.
Ela vai até a pia e abre a água quente. Lava a mão devagar, os olhos
distantes de um jeito que torna fácil olhar para ela sem medo de ser
pega. O cabelo ainda está preso no rabo de cavalo lateral, mas desta
vez cada fio está perfeitamente alinhado. Eu me pergunto o que Theo
pensou quando ela entrou pela porta, se ela lhe pareceu tão luminosa
como parece agora para mim.
– Antes de eu ir embora de Leona Valley, quando visualizava minha
vida ideal, esse tipo de coisa jamais me passava pela cabeça.
– O que você imaginava? – pergunto, me encostando na bancada da
cozinha enquanto ela lava os morangos.
– Bom, eu estava tentando ser prática. Achei que poderia conseguir
um emprego em Los Angeles e continuar morando lá por alguns
meses até ganhar o suficiente pra alugar um quarto em algum lugar
por aqui.
– Fazer o trajeto vindo de Leona Valley?
– É. Um trajeto longo, mas seria só por alguns meses. Aí eu me
mudaria do jeito certo, com dinheiro na conta bancária e um emprego
em tempo integral. Talvez com alguns amigos aqui.
– E o que aconteceu?
– Bom, eu pensei em arrumar um emprego em uma confeitaria,
porque sou boa em fazer bolos. E o horário seria maluco: os turnos
começam muito cedo. Pensei que assim pouparia tempo de
deslocamento e seria uma boa maneira de fugir, porque já estaria fora
de casa antes de Tracey acordar.
Ela colocou todos os ingredientes arrumados de um lado da
bancada de Toby e está agora procurando xícaras e colheres
medidoras.
– Me avisa se precisar de ajuda – digo.
– Tem alguma forma de bolo?
Faço que sim e encontramos uma comprada no Rose Bowl alguns
anos antes. Nós a compramos porque era de uma cor cobre linda, não
porque tínhamos intenção de usá-la. Espero que sirva, porque é a
única que Toby tem.
– Perfeito! Deixa comigo.
Eu me sento na bancada, longe da área de trabalho dela.
Ela fica quieta por um momento, avaliando tudo que tem, e me
ocorre que ela está fazendo o bolo sem receita, que é uma coisa que eu
nem sabia que era possível.
Ela quebra o primeiro ovo em uma tigela de vidro com um
movimento rápido.
– Eu pesquisei um monte de confeitarias e pensei em uma forma de
me provar considerando que eu era uma adolescente sem experiência
formal. Escolhi sete e fiz sete bolos de chocolate com cobertura de
nozes. Fui até elas e entreguei todos os bolos, e, uma a uma, as pessoas
que trabalhavam lá me olharam como se eu fosse louca.
– Por quê? – pergunto. – Parece uma ótima ideia pra impressionar as
pessoas.
Ela dá de ombros.
– Eu achei que era, mas o fato de que a maioria dos lugares aonde
eu fui não tinha bolos tradicionais também não ajudou. Era tudo
muito gourmet. Tipo com bourbon e sal marinho, ou bolos clássicos
com alguma alteração, tipo Red Velvet feito com beterraba. Muitos
bolos feitos com azeite, coisa de que eu nunca tinha ouvido falar, mas
agora amo. Só uma confeiteira comeu uma fatia do meu bolo na
minha frente. Foi a dona da La Cienega Bakery, que estava lá
trabalhando, e quando ela experimentou, me disse que estava
delicioso, mas que eles não estavam contratando. Eu mantive a
esperança de alguém pedir demissão e ela ter uma vaga. Eu achei que
vocês podiam ser de lá quando Jonah disse que uma mulher tinha me
ligado. Achei que seria um presente de aniversário perfeito receber
uma proposta de emprego.
– Mas éramos nós.
Ela sorri.
– Quando me imaginava com amigos aqui, eu nos via enfiados em
um apartamentinho. Imaginava garçonetes falando de aulas em
faculdade comunitária ou aspirantes a chefs trabalhando como
auxiliares de cozinha. Achei que nós moraríamos em um bairro
esquisito e juntaríamos dinheiro pra fazer um jantar de comida
chinesa em casa.
– Está decepcionada?
– Não. Não me entenda mal; esse tipo de vida parecia incrível. Mas –
diz ela, me olhando –, o que poderia ser melhor do que isso?

Quarenta minutos depois, o bolo está no forno. Estou colocando os


retratos que compramos no chão para determinar como devem ser
pendurados e Ava está lendo a cópia dela do roteiro, uma caneta na
mão.
Charlotte entra.
– Obrigada, Ava. O que quer que seja está com um cheiro delicioso e
eu estou morrendo de fome – diz, colocando a bolsa do computador
no sofá.
– Por que não “Obrigada, Emi”? – pergunto.
– Porque você só sabe fazer macarrão e ovo mexido.
– E torrada.
– É, mas normalmente você queima.
– Não é verdade – digo. – É uma questão de preferência. Eu só gosto
da minha torrada escura.
– Mesmo assim – diz ela. – Não tem como esse cheiro maravilhoso
ser graças a você.
– Ela que arrumou a forma de bolo – diz Ava, rindo.
Ela está achando graça, mas eu não, porque não quero que ela
pense que sou uma otária que não sabe torrar pão. Quero que ela
pense que sou a garota divertida que faz biscoitos numa noite de terça
ou sopa de cebola no dia da queda da Bastilha.
– Não fica com raiva – diz Charlotte. – Você precisa deixar alguns
talentos para os outros.
Ela sorri para mim e não consigo não retribuir, porque é uma coisa
bem legal de se dizer.
– Tudo bem. – Dou de ombros. Viro-me para Ava. – Segredo
revelado: eu não sei cozinhar.
– Eu não sei decorar – diz ela.
– Isso não me incomoda – digo, e sai em tom de flerte, e tenho
vontade de continuar, então digo: – Eu sou péssima em matemática.
– Eu sou ruim de ortografia.
– Eu não sei nem a tabuada.
– Eu não consigo fazer flexão de braço.
– Eu queria aprender espanhol, mas não consigo fazer aquele r.
– Uau – diz Charlotte. – Que interessante.
Isso é uma dica para parar, mas eu poderia continuar para sempre,
listando todos os meus defeitos em ordem, do mais inócuo ao menos.
Eu tenho medo de aranha… eu me apaixono com facilidade… eu
duvido muito de mim mesma em alguns momentos. Porque, em nossa
conversa implícita, o que estamos dizendo de verdade é Eu sou uma
pessoa imperfeita. Esses são meus defeitos. Você me quer mesmo assim?
– Eu quero saber tudo de tudo – diz Charlotte para Ava.
– Ela pode se filiar ao sindicato – digo.
– Eu sei. Eu estava lá quando eles assinaram a papelada. Rebecca e
eu estamos refazendo o orçamento pela terceira vez. O que você achou
do Benjamin?
– Ah, ele estava lá? – pergunto, surpresa porque Ava não o
mencionou de cara.
Ela assente.
– Ele foi… legal – diz ela.
Charlotte e eu rimos.
– Você não precisa gostar dele só porque ele é famoso – digo. – Nem
por ele ser seu parceiro de filme.
– Não é que eu não goste dele. Como eu falei, ele parece legal. É só
que nos filmes ele é tão sexy. Eu não costumo achar muitos homens
atraentes assim, mas até eu entendo o apelo. Tipo o papel dele em Me
liga ontem, sabe? Quando ele fica todo aborrecido, sentindo-se mal
compreendido? Mas hoje ele estava só…
– Ah, a gente entende – diz Charlotte.
– É o colapso da fantasia – acrescento.
Ava inclina a cabeça.
– Aplica-se a quase tudo. Sabe aquela cena de Me liga ontem que
acontece na sala dos fundos de uma escola?
– Sei.
– Lembra que é superescura e claustrofóbica?
Ela faz que sim.
– Aquela sala não tinha teto e só tinha duas paredes. É em um
armazém gigante. Não tem nada de claustrofóbico ali. E sabe aquela
cena de briga em que Benjamin está sem camisa e suado? Eu aposto
que entre as tomadas ele vestiu um roupão e bebeu Perrier. Você vai
ver como tudo acontece. A gente rala pra criar uma ilusão e fazer
parecer real. Mas, pra nós, quanto mais a gente sabe o que acontece
por trás das cena, mais difícil é manter a fantasia.
– Estraga um pouco as coisas? – pergunta ela.
– Você só precisa de um pequeno esforço pra esquecer.
– O que não funciona em muitas ocasiões – diz Charlotte. – Ver um
filme com a Emi é como ter um tutorial de como os filmes são feitos.
Olha aquela tomada! Devem estar usando luz natural. Aquele fundo é tão
falso.
– Eu não sou tão chata.
– É bem chata.
– Mas quando um filme é bom, é fácil esquecer.
Charlotte assente.
– Isso é verdade.
Ava fecha o roteiro e olha a capa.
– Acho que nosso filme vai ser muito bom. Vocês não acham?
Eu faço que sim, e esse momento parece quase uma premonição.
Aqui estamos nós, na sala onde vamos filmar as primeiras cenas, com
a garota que vai interpretar Juniper estudando as falas e o começo do
cenário tomando forma. Os retratos são tudo que eu queria que
fossem; já consigo visualizar como vão ficar nas paredes de Toby. E
apesar de nós ainda não termos a casa do George nem o mercado,
apesar de eu estar começando a acordar no meio da maioria das noites
preocupada com tudo que preciso fazer, tem uma calma naquele
aposento que me garante que estamos exatamente onde devíamos
estar.
Capítulo quinze

Theo e eu temos hora marcada em cinco locações em potencial para a


casa de George.
A primeira está infestada de ratos. A segunda tem um cheiro
horrível não identificável e eu acabo tossindo tanto que Theo diz:
– Vamos sair daqui. Salve-se quem puder!
A terceira tem cômodos tão espremidos que seria impossível fazer
caber todo mundo com as luzes e as câmeras. A quarta é moderna
demais, com pé direito alto e aço inoxidável para todo lado.
Estamos desesperados quando chegamos à quinta.
Nós estacionamos e nos aproximamos. Faixas grossas de tinta estão
descascando da parede, mas tentamos manter o otimismo.
– Acho que não daria pra uma imagem de fachada – digo.
– Não – diz Theo. – De jeito nenhum.
– Mas podemos usar outra casa pra isso.
– Podemos. Não é nada de mais.
Uma mulher de meia-idade chega em um carro sujo e permanece
ali por um momento, remexendo em uma bolsa enorme.
– Você acha que é ela? – pergunta Theo.
– Provavelmente – digo, mas ela não olha para nós nem parece estar
com pressa.
Por fim acaba saindo do carro e atravessa a rua na nossa direção.
– Patricia? – pergunta Theo. – Oi.
– Você tem sotaque. Está morando aqui legalmente? – pergunta
Patricia, escrutinando o rosto dele.
– Sim, estou. Mas, como falei ao telefone, nós só estamos
procurando uma locação de uma semana para um filme.
Ela me olha antes de se voltar para ele.
– Quantos anos ela tem? Eu não posso alugar pra menores.
Dou uma risada, mas Theo se esforça para manter a compostura,
apesar de aquela mulher desconfiar de seu envolvimento em
imigração ilegal e estupro estatutário.
– Essa é a Emi. Ela tem dezoito anos. Mas não importaria, porque
ela não está interessada em alugar o espaço. O aluguel seria para mim
e só por uma semana, para um filme.
– Você tem seguro?
– Sim. Eu tenho seguro.
– É pornografia? Não posso permitir filmagem de pornografia aqui.
Theo parece à beira de um ataque, mas passa a mão pelo cabelo e
sorri para ela.
– Não é pornografia – diz ele com uma voz que é em parte educada
e em parte ameaçadora.
Patricia suspira e destranca o portão de ferro e a porta da frente.
– Podem entrar – diz ela. – Eu tenho umas ligações pra fazer.
Damos uma volta rápida pela casa: tapetes sujos, pareces
manchadas de uma infiltração que deve ter sido por conta de um
encanamento estourado, luz péssima na maioria dos aposentos. Qual é
a dificuldade de encontrar uma casa humilde e decente?
Espero que Theo diga que temos que seguir em frente, mas ele diz:
– Bom, Emi, o que você acha?
– Seria uma interpretação meio sombria – digo. – É isso que você
quer?
– Não é exatamente o que eu tinha em mente, mas estou
desesperado. A diária é boa.
– Isso é verdade.
Sei como é importante que o preço seja bom, e também é meu
trabalho pegar o que conseguimos e transformar em algo que a gente
queira. Dou outra volta, procurando como fazer dar certo desta vez.
Quando volto para o lugar onde Theo está, digo:
– Vamos pegar.
Eu já sei algumas coisas que posso fazer para melhorar o espaço. Se
houver um amontoado de quadros por cima da mancha de infiltração
na sala, por exemplo, a casa não pareceria à beira de desmoronar.
Morgan poderia grudar papel de parece coral em um compensado que
poderíamos apoiar nas paredes da cozinha. Eu poderia implorar por
mais cortinas. Poderia fazer com que desse certo.
Conto algumas das minhas ideias e ele diz sim várias vezes, com
muito fervor.
– Emi – diz. – Você é um milagre.
Eu saboreio a frase, me permito curtir a sensação. Espero que possa
reavivar uma parte da minha confiança perdida. E aí, sigo-o pelos
degraus de entrada até onde Patricia nos espera, uma camada nova de
batom rosa vibrante nos lábios.
– Cem dólares por dia, você disse? – pergunta Theo.
– Isso vale até as três da tarde.
– De que dia?
– Todos os dias. Vou precisar dela depois pras visitas.
– Três é bem cedo.
– E se alguém alugar antes disso, o acordo está cancelado.
– Como assim?
– Se alguém assinar um contrato de aluguel.
– Não foi isso que você disse no telefone – diz Theo.
– Se coloca na minha posição. Eu preciso de alguém que alugue. E
se eu encontrar alguém que pague um ano de aluguel, mas a pessoa
precisar da casa imediatamente? Vou dizer que não só porque você
precisa dela por uma semana?
As mãos de Theo voam até a cabeça. Ele é bem mais alto do que ela.
– Por favor. Faça uma gentileza. Se coloca na minha posição. Como
eu posso aceitar um acordo que significa que, mesmo se eu estivesse
no meio da semana de filmagem, poderia ser obrigado a sair da
locação. Eu teria metade das cenas que precisam acontecer nesta casa,
mas ainda não teria a outra metade. O que eu faria?
Patricia não se abala pela estatura impressionante dele nem pelo
argumento.
– Eu tenho que ganhar a vida. Cem por dia é uma pechincha. Posso
cobrar pela diária, não mais do que isso.
– Então você está dizendo que tenho que decidir se essa suposta
pechincha que você está me oferecendo vale por uma casa de merda
com infiltração e tapetes manchados com o risco de perder dias de
filmagem por causa de um inquilino hipotético?
Agora ele está gritando, e a boca rosa de Patricia está aberta, e eu
tento aliviar as coisas dizendo:
– Bem, parece que a gente então vai continuar a busca, né, Theo? –
Eu falo de um jeito meio alegre e despreocupado, cantarolado.
Como não há resposta, vou até o carro e espero ao lado da porta do
passageiro.

Depois de reclamar por meia hora conforme seguimos pela 405, Theo
por fim fica em silêncio. Deixo que ele tenha alguns minutos e digo:
– É seguro mudar de assunto?
– Muda, por favor – diz ele.
Eu pergunto sobre a cena 42, a cena que Ava leu para o teste, porque
ando pensando no que eles me disseram no dia em que aceitei o
trabalho, que eles tinham visualizado toda a ação acontecendo
enquanto Juniper conta a história: a banca de flores e a florista, a rua
da cidade.
– Certo – diz ele. – Nós ficamos sem dinheiro. Foi uma das coisas
mais fáceis de cortar. Mas mesmo com uma Juniper espetacular, é
muito tempo pra segurar a atenção do público.
– Eu andei pensando em jeitos de criar a ilusão de um cenário.
Estou assumindo um risco enorme ao tocar nesse assunto porque o
que eu estou sugerindo de verdade é uma decisão de direção e não
quero ultrapassar nenhum limite. Também é um afastamento do estilo
que mostrei para ele e eu não quero que ele duvide de mim. Mas ele
me diz para falar, então eu me arrisco.
– Bom, tem a possibilidade de imagens bem fechadas, closes de
mãos, flores, do papel de seda, do rosto de Juniper e do rosto da
florista. Nós poderíamos filmar basicamente em qualquer lugar ao ar
livre porque não se veria muito do fundo.
– Interessante – diz Theo.
E apesar de eu saber que interessante pode ser um eufemismo para
“ideia terrível que eu vou descartar imediatamente”, alguma coisa na
forma como ele fala me faz pensar que não é o que ele quer dizer, que
o conceito realmente o interessa, então continuo.
– Acho que pode funcionar porque as lembranças costumam ser
assim mesmo. São particulares, e filmá-las assim de perto daria a
impressão de intimidade.
Theo passa a mão no cabelo castanho ondulado. O telefone dele
toca e vejo que é Charlie, o diretor de fotografia, mas Theo hesita antes
de atender e decide ignorar.
– Continua – diz ele.
– A essência da cena, ao menos para mim, é Juniper finalmente
tentando se conectar com alguém. Em vez de passar o tempo todo
obcecada por causa de uma pessoa desconhecida, ela percebe que
fazer uma conexão real com uma pessoa real, não só uma ilusão de
como alguém poderia ser, é um risco que vale a pena. Então ela conta
uma história que tem o potencial de envergonhá-la. Ela compartilha
uma lembrança. É um momento muito importante no filme e não
daria certo se o estilo mudasse. Não seria nem tão bom quanto
mostrar uma cena ampla de Juniper na floricultura porque ficaria
igual a todo o resto. Essa cena deve parecer e dar a sensação de uma
lembrança, e a gente pode conseguir isso, você pode conseguir isso,
com cortes entre ela sentada na sala de descanso contando a história
para George e as imagens de close que nos ajudam a sentir a história.
– Estou gostando disso – diz Theo, e o telefone dele toca e é Charlie
de novo, e ele me diz que tem que atender. – Vamos trabalhar nesse
conceito – diz antes de atender. – Pensa em algumas coisas pra me
mostrar.
Enquanto ele acalma Charlie de alguma crise sobre lentes, eu penso
no que eu poderia incluir na cena para transmitir a ideia de lembrança
e tristeza, e em pouco tempo estou pensando no cenário que eu criaria
se fosse um filme sobre mim. Se eu estivesse tentando mostrar para as
pessoas como eu me sentia estando com Morgan, eu mostraria a água
azul cintilante da piscina do prédio dela e o varal que ela pendurou no
quintal porque o apartamento dela tem uma máquina de lavar, mas
não tem espaço para uma secadora. Um monte de tops e calcinhas
coloridas no sol. Seria uma nostalgia suave, um romance desbotado.
Mas a cena de Sim e sim não pode só passar tristeza; precisa passar
um anseio também.
Anseio é uma garota ruiva sentada no capô do sedã prateado dela,
lendo sobre Marilyn Monroe. Um pomar de cerejeiras à noite, luzes de
casas ao longe. É a organização rígida de um pôr do sol de pintura por
números, uma carta amarelada segurada entre dedos graciosos, um
passo cauteloso para o saguão ensolarado de um hotel famoso.
É como me sinto cada vez que penso em Ava.
Em pouco tempo estou sentindo a mesma dor que surgiu depois da
audição, seguida por um desespero parecido de saboreá-la. Pela janela,
o centro de Los Angeles aparece, aquela área de prédios altos atrás de
uma suave neblina, as pessoas longe demais para se ver. Em cerca de
um ano, algumas daquelas pessoas podem ir a um cinema para ver o
nosso filme. As luzes vão se apagar, permitindo que elas se fechem em
si mesmas pela duração do filme. E se eu escolher flores com o tom
perfeito de vermelho, papel de seda com palavras sutis o bastante para
elas não perceberem de primeira e depois com clareza suficiente para
ficarem constrangidas, elas podem acabar se sentindo como eu me
sinto agora. Nós todos vamos ter pena de Juniper, mas na verdade é
pena de nós mesmos, pela sensação horrível de estar de coração
partido, de estar só, e talvez, se dermos sorte, sentiremos como é estar
pronto para se reabrir para a esperança frágil de algo novo.

Charlotte ri por uma eternidade quando conto sobre Theo e Patricia.


– Ele disse isso tudo? Não acredito.
– Disse – digo. – Ele teve um mini colapso. Achei que ia começar a
chutar coisas.
– Coitado. Nós temos que encontrar o lugar perfeito.
– Eu tenho uma ideia – digo para ela. – Pensei quando estávamos
voltando, mas Theo estava furioso de novo e eu não estava com
vontade de falar. Sabe quando você tenta alegrar alguém, mas está na
cara que a pessoa não está no clima? Que ela quer se lamentar por um
tempo? Ele estava fazendo isso. Enfim. E se a gente pedir a Frank e
Edie?
– É uma ótima ideia.
– Eu sei. Não sei porque eu não pensei nisso antes. Acho que me
deixei levar pelo filme e me esqueci deles por um tempo, mas a
casinha deles é meio que perfeita.
– É – diz Char. – É uma casa de gente velha, mas é bonita. É coral?
– Eu posso deixá-la coral. Isso não é problema. Eu só não sei se Edie
concordaria. Ela pareceu estar bem acostumada a fazer as coisas do
jeito dela.
– A gente pode comprar uns biscoitos e aparecer por lá.
– Brilhante. Biscoitos sem recheio.

Uma hora depois, estamos armadas com uma dúzia de biscoitos em


uma caixa cor-de-rosa a caminho de Long Beach.
– Eu estava aqui pensando se Frank e Edie sabem quem é Lenny –
diz Charlotte.
– A gente devia perguntar. Será que a gente devia ligar pra Ava e ver
se tem mais alguma coisa que ela quer que a gente descubra?
Charlotte abre um sorrisinho.
– O quê? – pergunto. – É sobre a família dela que nós estamos
tentando descobrir.
– Você tem razão. Quer que eu ligue?
– Claro.
Ava atende a ligação de Charlotte, e eu a escuto explicar por que
estamos indo pra casa de Frank e Edie.
– A gente pensou em perguntar sobre Lenny – diz ela. – Só para o
caso de eles se lembrarem dele. Tem alguma coisa que você queira
saber? É, Long Beach. Avenida Ruby. Hã… Tá, acho que tudo bem.
Está certo, pode deixar. A gente se vê daqui a pouco.
– Ela vai? – pergunto
Charlotte faz uma careta.
– Não é o gesto mais profissional do mundo da nossa parte.
– Não é mesmo – digo, saindo da rodovia e entrando à direita na
avenida Ruby. – Mas tudo bem. Nós conhecemos Frank e Edie em
circunstâncias estranhas. Não precisamos nos tornar
superprofissionais com eles de uma hora pra outra. E pelo menos
agora ela faz parte do filme.
Vemos o carro na entrada quando chegamos à casa; a porta da
frente está aberta.
– Oi, Frank e Edie – grito na direção da casa. – Somos nós, Emi e
Charlotte.
– Tem alguém aí? – grita Frank.
Vejo que ele está se levantando da poltrona e andando na nossa
direção.
– Garotas, oi! – diz ele no meio da sala. Logo ele está parado na
porta, nos dando as boas-vindas, convidando-nos para entrar.
– Nós trouxemos biscoitos pra vocês – digo.
– Dos sem recheio – diz Charlotte.
– Edie vai ficar animada – diz Frank. – O lanche da tarde perfeito.
Ela está fazendo o cabelo agora. Gretchen, nossa nora, a leva ao salão
toda terça. Ela é uma garota muito fofa.
Nós os seguimos até a sala, que parece ainda mais certa para o filme
do que eu lembrava. O sofá marrom com cobertura plástica, as pilhas
de revistas arrumadas. Frank está com a televisão com caixa de
madeira ligada em um jogo dos Dodgers, uma mesinha alta vintage
com pernas de metal montada na frente de uma poltrona verde-clara.
Tudo é velho, mas está em excelente estado. Dou uma olhada melhor
na mesinha. O tampo tem um desenho de cestos de frutas com uma
paleta fosca em dourado e… sim, coral.
– Frank – digo –, estou aqui com um pedido.
– Ah, é?
– Na última vez que estivemos aqui, acho que te contamos com o
que trabalhamos.
– Sim, vocês contaram. Toda vez que Edie lê alguma coisa sobre A
agência, ela fala sobre vocês. É muito incrível. E vocês duas são tão
jovens.
– Nós começamos a trabalhar em um filme novo. É uma produção
pequena, mas nós esperamos que seja escolhido por um estúdio
grande depois que estiver pronto.
– Chama-se Sim e sim – diz Charlotte. – O roteiro é mui­to bonito.
– Eu sou designer de produção – digo, e fico tão emocionada ao
falar que chego a ficar arrepiada. Frank nos observa dar a informação
de forma paciente, nos olhando com aqueles olhos sábios de homem
velho, virando a orelha um pouquinho na nossa direção quando nós
falamos para que o aparelho auditivo funcione.
– Eu queria saber se a gente pode usar a casa de vocês no filme –
digo. As sobrancelhas brancas e peludas sobem de surpresa.
Ele vira a cabeça para observar a sala, como se estivesse esperando
ver que está em outro lugar de repente.
– Aqui? – pergunta ele.
– É – digo. – Infelizmente, nosso orçamento é muito limitado e nós
só poderíamos oferecer cem dólares por dia, mas temos uma equipe
muito respeitosa e só precisaríamos de cinco dias. E talvez seja bem
legal ver a sua casa num filme, não é?
– Por que a nossa casa? – pergunta ele, e eu explico o personagem
para ele e consigo ver que ele gosta da ideia, porque fica olhando em
volta com assombro, dizendo “Quem poderia imaginar” e sorrindo. –
Vou falar com Edie – diz. – Por mim tudo bem, mas vocês sabem quem
manda aqui.
Ele pisca, e bem quando pisco de volta, Ava diz oi na porta.
– Não consigo me lembrar da última vez que tivemos tanta visita
inesperada – diz Frank.
– Essa é Ava – diz Charlotte.
– Entra – diz Frank.
E quando Ava entra, fico arrepiada de novo, mas por um motivo
completamente diferente. O cabelo dela está preso com grampos, ela
está usando uma camisetinha estilo camisola, de um cetim verde-claro
que deixa os olhos dela ainda mais brilhantes e me faz querer ficar
mais perto dela.
– Oi – diz ela para todos nós, e a voz rouca basta para me fazer ficar
tonta.
Mas aí lembro por que ela está ali e que não tive tempo de dar
nenhum aviso a Frank.
– Frank, lembra que a gente estava procurando Caroline Maddox da
última vez que estivemos aqui e vocês disseram que ela tinha um
bebê?
Ele faz que sim.
– Nós a encontramos. É a Ava.
Em vez de se virar para a Ava, ele olha para mim com mais
intensidade. Primeiro, achei que ele podia não ter me ouvido, mas aí
percebo que ele está levando um momento para processar a notícia, e
sinto um pouco do que senti ao abrir a porta para Ava naquela
primeira noite. Como se eu estivesse invadindo de novo.
– Espero que eu ter vindo não seja um problema – diz Ava.
Ele enfim se vira para ela.
– De jeito nenhum, querida. De jeito nenhum. Venha para a sala.
Vamos comer uns biscoitos desses.
Ele desliga a televisão, e eu me sinto ainda pior, porque está claro
que ele só queria ver os Dodgers em paz, e nós estragamos tudo.
Charlotte coloca a caixa rosa na mesa de centro ao lado de todas as
revistas e abre a tampa. Os biscoitos reluzem para nós. Frank pega um.
– Você deve querer ouvir a história toda.
– Se não for um problema – diz Ava. – A mulher que me adotou
nunca me contou o que aconteceu.
– Que pena.
Frank, tira os óculos, esfrega os olhos.
– Eu não gosto de pensar nessas coisas – diz ele. – Quando eu era
jovem, eu me imaginava filósofo. Gostava de pensar nas tragédias da
vida. Eu pensava muito nas coisas, até fazer todo o sentimento sumir.
Mas não mais.
– Desculpa, Frank – digo. – A gente não queria te incomodar. A
gente devia ter ligado antes de vir. É que eu tive a ideia de usar a sua
casa para o filme e…
– Tudo bem – diz ele. – Eu fiquei chateado, e daí? É a sua vida. – Ele
olha para Ava e assente. – Se você tem o direito a alguma coisa nessa
vida, é o de saber sobre a sua história.
Ele dá uma mordida no biscoito, não se apressa para mastigar e
engolir. Ficamos em silêncio, esperando.
– O que aconteceu foi o seguinte – diz. – Quando Caroline se
mudou para cá, ela pegava no meu pé por causa do estado do jardim.
“Pavoroso”, dizia ela. “Você acha que pode fazer melhor?”, eu
perguntei, e, bom, ela me mostrou. Em questão de semanas, ela
arrumou tudo, deixou tudo florescendo. Nós tínhamos longas
conversas às vezes, enquanto trabalhávamos lá fora. Ela era uma
sonhadora. Vivia imaginando um futuro extravagante. Uma cobertura
com vista para o mar. Era o que ela queria um dia. Mas, naquele
momento, fizemos um acordo sobre as flores. Ela tinha que mantê-las
podadas e regadas, e nós ajudaríamos com o aluguel. Ela fez isso por
um tempo. Mas aí algo mudou. Era claro só de olhar pra ela. Em
pouco tempo, o jardim estava alto de novo e as flores estavam
começando a murchar. Nós não vimos Caroline por alguns dias. Eu
comecei a ficar preocupado. Edie queria que eu tirasse a
responsabilidade dela, mas eu sabia que ela não podia pagar o aluguel
integral, principalmente com a bebê. Com você.
“Eu andava ligando pra ela, sabe? Ligando e ligando, e ela não
atendia. Mas sabia que ela estava em casa. O carro estava na garagem e
à noite ela dava festas. Alguns dos vizinhos reclamavam e, de vez em
quando, Edie ia até lá, mas eu nunca queria me meter. Eu gostava
muito dela. Achava que ela era uma garota muito doce. Ela só me
mostrou o lado doce dela. Talvez tenha sido por isso que fingi que não
vi quando ela atrasou em alguns dias o aluguel e não cuidou do jardim
como deveria. Eu estava chegando ao ponto em que teria que ceder à
minha esposa, entende, e aumentar o aluguel da Caroline.
“Eu liguei naquela manhã, mas não fiquei surpreso de ela não
atender. Mais tarde, no começo da tarde, nós ouvimos sirenes. Não é
muito incomum nessa área, mas aí foram ficando mais altas e pararam
lá fora. E aí eu saí, perguntei aos paramédicos o que estava
acontecendo. Falei que nós éramos os proprietários do prédio. Eles
disseram que receberam uma ligação sobre uma pessoa do
apartamento F e eu falei ‘Vou buscar a chave’. Eu corri para buscá-la,
eu não era um homem tão velho na época, sabe? E abri a porta e eles
me deixaram ir junto. O bebê estava chorando. Você estava chorando.
Eu percebi que tinha alguma coisa errada. E ali estava ela, a sua mãe,
Caroline, e não houve dúvida, ela já estava morta.
Ficamos em silêncio por um minuto. Ava está pálida. Tenho
vontade de esticar a mão e segurar a dela, mas algo me detém.
– Você descobriu quem fez a ligação? – pergunta Charlotte.
– Não – diz Frank. – Nós nunca descobrimos. Mas foi feita do
apartamento.
– Então tinha alguém lá vivo depois da morte de Caroline? –
pergunta Charlotte.
– Foi o que entendi.
– Talvez tenha sido Tracey – diz Charlotte.
– Ou Lenny – digo.
– Lenny? O nome não é familiar. – Frank balança a cabeça. – Mas
poderia ter sido qualquer pessoa. Eu não conhecia os amigos dela. Na
verdade, tem uma coisa que eu posso verificar.
Ele se inclina para a frente. Charlotte vai até a poltrona dele e lhe
oferece o braço.
– Obrigado – diz ele, e ela o ajuda a se levantar.
– Nós temos uns arquivos aqui. De todos os nossos inquilinos
antigos. Todo mundo precisa dar o nome de alguém pra fazermos
contato em caso de emergência. Nós nunca fomos bons em jogar fora
os dados antigos.
Ele abre a gaveta de um armário preto de metal e, apesar de o
momento ser distinto, tomo uma nota mental de que vamos ter que
tirar da sala quando formos filmar. É um móvel legal, mas tem cara
demais de escritório e é da cor errada.
– Lá vai – diz ele, e nos inclinamos para a frente para ouvi-lo. Pode
nos levar a Lenny, quem quer que ele seja, ou pode nos levar a uma
pessoa completamente diferente, alguém que conhecia todos eles e
pudesse responder a nossas perguntas.
Ele ajeita os óculos. Aperta os olhos.
– Tracey Wilder – diz ele. – Querem que anote o telefone e
endereço?
Nós suspiramos.
– Não precisa – diz Ava. – Eu já a conheço.
Frank volta para a poltrona. Desta vez, sou eu que o ajudo a se
sentar.
– Eu poderia me acostumar com esse tipo de tratamento – diz ele
com uma piscadela.
– Ao seu dispor – digo. – Mas é melhor a gente ir, deixar que você
veja seu jogo.
– Vocês não querem esperar Edie? Aí vocês podem perguntar sobre
o filme.
– Tudo bem – digo. – Mas a gente pode assistir enquanto espera.
– Se vocês não se importarem… – Ele pega o controle remoto e
sintoniza o jogo de novo.
– Posso perguntar outra coisa? – diz Ava quando há um comercial.
Frank assente.
– Onde ela estava quando você a encontrou? Como estava?
– Como estava? – pergunta Frank. – Olha, meu bem, eu lamento
dizer, mas ela estava morta. Não sei de que outra forma descrever.
– Ela estava na sala?
Eu me preparo para a resposta, lembrando o que ela nos contou no
Marmont, que a imaginava no tapete.
– Não – diz ele. Os olhos dele estão úmidos. – Ela estava no chão do
banheiro com uma agulha enfiada no braço. Não tinha nada de bonito
na imagem. Desculpa.
Um momento depois, a porta se abre e Edie entra usando um
terninho vermelho e sapatos pretos baixos, o cabelo encaracolado e
seco e bem mais próximo de castanho do que de roxo.
– Ora! – diz ela, apertando os olhos para nos ver. – Nós temos visita?
Ah, são Emi e Charlotte. Vocês voltaram pra nos ver! E quem
trouxeram desta vez?
– Querida – diz Frank. – Ela é a bebê. A bebê da Caroline.
Edie fica chocada.
– Minha nossa – diz ela. – Ah, caramba, é mesmo? Vem aqui. Eu
quero te olhar.
Ava atravessa a sala e para junto de Edie em uma área ensolarada.
Edie bota a mão no coração, estica o braço e segura a mão de Ava.
– Coitadinha – diz.
Ava tenta sorrir, mas o sorriso não dura.
– Frank estava nos contando sobre o dia em que vocês a
encontraram – diz Charlotte.
– Foi um dia horrível. – Edie assente. – Mas olha só você. Tão linda.
– Um dia horrível – ecoa Frank.
– É – diz Edie, sem tirar o olhar do rosto de Ava. – Mas olha. Você
cresceu mesmo assim.
Capítulo dezesseis

Meu celular toca às 2h23 da madrugada, um número de Los Angeles


que não reconheço. Atendo com o coração na boca, despreparada para
a notícia ruim que pode chegar.
– Oi, é o Jamal.
Minha mente já estava cheia de policiais me contando que algo
tinha acontecido aos meus pais, com recepcionistas de hospital
dizendo Venha imediatamente.
– Desculpa ligar tão tarde. É a Ava… ela está com você? – diz ele.
– Não – respondo. – Ela não está no abrigo?
Ele hesita.
– Ela foi expulsa hoje.
– Por quê?
– Ela estava chateada e… sei lá, acho que eu não deveria me meter.
– A gente devia tentar procurar ela?
Charlotte está acordada, parada na porta.
– O que está havendo? – pergunta. Conto o que Jamal me disse e me
ofereço para ir buscá-lo.
– Ah, cara – diz ele. – As coisas aqui estão tensas agora.
Charlotte inclina a cabeça para mim, esperando resposta.
Eu dou de ombros, mas Jamal diz:
– Ah, porra, que se foda, vem me buscar. – Ele me dá o endereço. –
Não vem até a porta – acrescenta. – Só encosta o carro e eu corro até
você.
Cinco minutos depois, Charlotte e eu já trocamos os pijamas por
calças jeans, pegamos a chave do meu carro e nossas bolsas e estamos
saindo da casa de Toby a caminho do centro de Los Angeles. As ruas
de Venice estão desertas e não há trânsito na via expressa. Quando
saímos dela, os arranha-céus nos cercam, uma janela iluminada aqui e
ali, brilhando como uma cidade fantasma parcialmente habitada.
Nós seguimos as instruções do meu celular e logo estamos em um
quarteirão meio comercial, meio residencial, e algo corre para a rua e
eu meto o pé no freio e descubro que essa coisa é Jamal, agora
correndo até a porta de trás e entrando.
– Sério? – pergunto. – Você achou que seria uma boa ideia correr na
frente do carro comigo dirigindo?
– Você estava indo um pouco mais rápido do que eu esperava. Achei
que você tivesse me visto.
Ficamos em silêncio por um minuto enquanto tento fazer meus
batimentos voltarem ao normal. Jamal diz:
– Se você puder sair logo, seria ótimo. Eu não devia estar fazendo
isso agora.
Dobro a esquina.
– Onde a gente deve procurar? – pergunto.
– Sinceramente? – diz Jamal. – Eu não faço ideia. Só consegui
pensar na sua casa.
– Talvez ajude se você nos contar o que aconteceu – diz Charlotte.
– Não sei. Eu me sinto mal com isso. Ela gosta muito de vocês e eu
não quero mudar o que vocês acham dela. Ela é uma garota ótima.
– A gente sabe que ela é ótima – digo.
Charlotte abre um sorrisinho para mim.
– Nós já tivemos essa conversa – diz. – Sobre como ela é ótima.
– Tudo bem. – Ele faz uma pausa. – Foi assim. Eu não sei o que
vocês fizeram hoje, mas ela estava péssima quando voltou pra cá.
– Péssima como? – pergunto.
– Jogando coisas pelo quarto, dizendo coisas que eu não entendi. O
que aconteceu?
– Nós tivemos que ir até o prédio onde Caroline morava – digo. – Foi
por causa do filme, mas Ava quis ir junto pra fazer perguntas e nós
deixamos.
– Ela queria saber sobre a morte da mãe – diz Charlotte.
– E contaram?
– Contaram.
– E aí?
– Ela foi embora e nós ficamos pra falar do filme. Os senhorios vão
nos deixar usar a casa deles como locação, mas Edie, a esposa, ela
tinha um milhão de perguntas pra nós.
– Deixa ver se eu entendi direito – diz Jamal. – Estão me dizendo
que Ava foi lá e descobriu como a mãe morreu e vocês deixaram que
ela voltasse sozinha?
Nenhuma de nós diz nada.
– Como se não fosse nada de mais? – pergunta Jamal.
– Merda – digo.
– Eu devia ter ido com ela – diz Char.
– Mas ela parecia bem – digo, mas a verdade é que eu não estava
prestando muita atenção. Edie estava lá e queria saber sobre o filme, e
tenho tanta coisa pra fazer que deixei a conversa seguir essa direção.
Eu só disse “Tudo bem, a gente se fala em breve” quando Ava disse
que tinha que ir.
– Por onde a gente começa? – pergunta Charlotte. – Lá na casa do
Frank e da Edie?
– É, faz sentido. Ela pode ter decidido voltar ao apartamento
sozinha.
– Tudo bem – diz Jamal. – Vamos.
Na 405, eu pergunto:
– Por que ela foi expulsa?
– Ela agiu de um jeito louco. Os psicólogos tentaram falar com ela,
mas ela bateu a porta na cara deles. Eu falei pra eles que ela precisava
de um tempo, mas eles estão acostumados com coisas sérias, sabe?
Ficavam dizendo que ela podia se colocar em perigo. Eu falei “Que
nada, vocês não conhecem a Ava. Ela não é assim.” Eu sabia que ela só
precisava de um tempinho, mas eles forçaram a entrada. Ela estava
com uma garrafa de vodca na mesa.
– Ela foi expulsa por isso? – pergunto.
– A política lá é de tolerância zero.
Nós saímos na avenida Ruby pela segunda vez no dia.
– Parece irresponsável expulsar alguém consternado assim – diz
Charlotte. – Estou me sentindo mal por termos deixado que ela fosse
embora de tarde, mas a gente não sabia que ela estava chateada.
– Iam deixar que ela passasse a noite – diz Jamal. – Mas ela não quis
ficar. Ela tem problemas com essas coisas, sabe.
Quando chegamos à casa de Frank e Edie, não vemos o carro dela
por perto. Nós estacionamos e seguimos pela longa entrada de
veículos, mas o único carro lá é a perua bege. Nós damos a volta no
quarteirão. Nada de carro prateado.
– Pra onde agora? – pergunto.
– Eu não tenho a menor ideia, cara – diz Jamal.
Ele soa preocupado, e entendo o porquê. As ruas estão desertas.
Quando encontramos alguém, não é o tipo de pessoa com quem
gostaríamos de encontrar sozinhos na rua no meio da noite.
– Ela estava bebendo antes de ir embora? – pergunta Charlotte.
Jamal fica quieto.
– É possível – diz ele. – Não sei.
– Estou me sentindo um cu – digo. – Por que a gente nem ligou pra
ela quando fomos embora?
– Vamos encontrá-la – diz Charlotte. – E a casa do Clyde?
– Clyde? – pergunta Jamal.
– Se ela está pensando na família, por que ela não iria lá?
– Faz sentido – digo. – Acho que ela nunca foi lá, mas é um endereço
fácil de descobrir.
Sigo para a via expressa na direção de Hollywood Hills, sentindo
uma esperança que beira a certeza. Consigo visualizá-la, sentada nos
degraus olhando para as luzes cintilantes da cidade. Nós vamos
aparecer e ela vai ficar grata pela nossa companhia. Vamos andar pela
propriedade, olhar por todas as janelas, nos deitar no fundo da piscina
vazia como os adolescentes de Juventude transviada, mas,
diferentemente de James Dean e Sal Mineo e Natalie Wood, nós
vamos encerrar a noite nos sentindo melhor.
Enfio o pé no acelerador, e meu carro sobe a colina sinuosa e entra
no caminho da casa.
A rotatória à entrada está vazia. Ela não está ali.
Eu paro o carro na frente da casa.
– E agora? – pergunto, tentando não parecer tão derrotada quanto
me sinto.
Jamal abre a porta e olha em volta.
– Será que ela pode ter estacionado em outro lugar? – pergunta.
– Acho que não – digo.
– Vou dar uma voltinha rápida. Só pra ter certeza.
Charlotte e eu também saímos. Ficamos encostadas no carro
olhando para a casa onde tudo aquilo começou até ele voltar.
– Nada – diz ele.
Nós todos entramos no carro de novo.
– Você ligou pra ela, né?
– Um milhão de vezes. Cai direto na caixa postal.
– Pode ser que a bateria dela tenha acabado – diz Charlotte.
– Eu me sinto péssimo – diz Jamal.
– Eu também – digo.
– Nós compramos a garrafa de vodca juntos. Semanas atrás. E
bebemos a maior parte juntos. Eu nem tive a chance de dizer que era
em parte minha culpa ela ter a garrafa. Ela foi embora.
– E a casa dela? – pergunto. – E se ela voltou pra ver a Tracey?
– É – diz Charlotte. – Ela tinha mais perguntas. Talvez tenha achado
que Tracey as daria.
– Sei lá – diz Jamal. – Ela diz que não quer voltar nunca mais.
Nós ficamos em silêncio por um tempo e me pergunto se estamos
prestes a desistir.
– Mas, em um momento de fraqueza, quem sabe, né? – diz Jamal. –
Vamos dar uma olhada.
Nós quase não falamos no trajeto até Leona Valley. Saio no mesmo
lugar de antes, mas erro a rua e tenho que voltar alguns quarteirões.
Entro na rua sem esperar ver o carro dela, mas tem um sedã
prateado parado no meio do quarteirão, bem em frente à casa da mãe
dela.
– É aquele? – pergunto.
– É – diz Jamal. – É aquele.
Paro atrás do carro dela e abro a porta. Não consigo imaginá-la ali.
Foi mais um desejo do que um palpite, então vou até lá só para ter
certeza de que é mesmo o carro dela.
Ela está dentro, deitada no banco de trás, com os grampos caindo do
cabelo, o moletom como travesseiro. Sei que deveria afastar o olhar,
mas não consigo. Tem algo meio comovente em ver alguém dormindo,
eu sempre achei isso. Mas aquilo. Parece algo mais importante. Como
se eu fosse capaz de entender muito mais Ava se pudesse ficar
suspensa ali por um tempinho. Como se pudesse olhar dentro do
coração dela.
Alguns segundos depois, Jamal e Charlotte aparecem ao meu lado.
– A gente acorda ela? – sussurro.
– Não – diz Jamal.
– Tem certeza? – pergunto. – Ela parece tão solitária.
– Ela sabe onde nos encontrar quando quiser – diz ele. – Eu só
precisava saber que ela estava bem.
Eu olho para Charlotte e ela assente, então me obrigo a dar as costas
para Ava e voltar para o meu carro. O sol começa a nascer quando
pegamos a via expressa, e, quando deixamos Jamal, está quase claro.
– Me liga se tiver notícias dela? – peço.
– Ligo – diz ele. – Você também, tá?
– Tá.
– Valeu. Desculpa se fui duro com vocês mais cedo.
– A gente entende – diz Charlotte.
Ele assente e olha para o abrigo.
– Olha só – diz. – Se não for problema, vamos guardar segredo
sobre essa pequena aventura. Não é nada de mais. Ela só ficaria
constrangida se vocês soubessem o que aconteceu hoje. Ela gosta
muito de vocês.
– De nós? – digo. – Ela é Ava Garden Wilder.
Jamal ergue a sobrancelha.
– Sim, esse é o nome dela – diz ele.
Tenho vontade de dizer que é mais do que só um nome. É de onde
ela vem, quem ela é, mas, antes que eu possa falar mais, ele diz:
– Tchau, pessoal. – Ele sobe os degraus correndo.
Nós dirigimos de volta em silêncio.
– O que ele quis dizer com “Esse é o nome dela”?
– Você sabe o que ele quis dizer – diz Charlotte.
– Não sei, não.
– Ele está dizendo que ela é Ava Garden Wilder. Criada em Leona
Valley, que fez teatro no ensino médio, fugiu de casa, trabalha numa
loja de materiais de construção. Ele está dizendo que ela é só uma
garota.
– Nós estamos em Hollywood – digo. – Qualquer um pode ser quem
quiser. Norma Jeane Mortenson se tornou Marilyn Monroe, Archibald
Leach se tornou Cary Grant. O primeiro nome do Spike Lee é Shelton.
Ava é Ava Garden Wilder desde sempre. Ela só precisa abraçar isso.
Quando chegamos em casa, já são quase seis da manhã, e nós
desabamos na cama e dormimos por uma hora, depois fazemos café
como zumbis e vamos trabalhar.
Capítulo dezessete

O apartamento de Juniper é introduzido assim:


int. apartamento de juniper - dia

Um espaço pequeno e luminoso cheio de plantas e livros.

Eu usei plantas e livros como ponto de partida e escolhi todo o resto


com base nisso.
Naquela manhã, Charlotte e eu reviramos pilhas de livros de arte
antigos em brechós e no Sunset Boulevard. Sem as sobrecapas, eles
são de tecidos castanhos e rosados e verdes desbotados. Vou empilhá-
los em cantos da sala, usá-los como mesas improvisadas. Estamos
tirando os livros de história do cinema e os dvds da estante do Toby,
mas vou deixar os livros de ficção. Juniper leria ficção.
Meu sonho é criar a impressão de plantas penduradas em uma viga
no teto, mas Toby não é o tipo de cara que tem plantas em casa, e
duvido que o senhorio dele fosse gostar de buracos enormes nas
paredes. Não tenho ideia de como isso vai funcionar, mas estou
olhando uma loja de West Hollywood mesmo assim, escolhendo as
plantas que quero enquanto Charlotte negocia um empréstimo com o
dono. Estou contando com Morgan para criar uma daquelas ilusões
perfeitas dela.
– O acordo foi o seguinte – diz Charlotte, vindo em minha direção
depois de sair do escritório. – Ele nos deixa alugar até trinta plantas
por 15 dólares por dia, mas nós temos que mantê-las saudáveis, senão
ele vai nos obrigar a comprar. Que tal?
– Está bom.
– Escolhe o que você quiser e coloca neste carrinho, aí eu cuido da
papelada com ele e pego instruções de quando molhar cada uma
enquanto você vai pegar os vasos do outro lado da rua.
– É por isso que eu preciso de você – digo.
– Nós ainda temos três outras tarefas na nossa lista do dia.
Eu faço que sim e seleciono minhas trinta plantas de vários
tamanhos e texturas e tons de verde. Escolho uma com flores amarelas
para colocar em um lugar proeminente, e deixo Charlotte resolvendo
as questões burocráticas enquanto começo a procurar vasos. Mas só
encontro alguns que servem, porque Juniper não teria conjuntos; ela
teria o que conseguisse encontrar na ocasião.
Convenço a mulher do caixa a me dar um desconto e volto quando
Charlotte está colocando as plantas no banco de trás do meu carro.
Meu telefone toca. Ava.
– Oi – diz ela. – Adivinha. Tudo deu certo. Estou com acesso à conta
bancária.
– Que ótimo – digo, colocando os vasos no banco de trás. – Ficou
rica?
– Acho que fiquei. Acabei de comprar um almoço de quarenta
dólares. – Ela ri. – E fui à manicure.
– Que beleza – digo.
– Agora eu preciso encontrar um lugar pra morar.
Eu espero, mas ela não fala que foi expulsa, então digo:
– Nós temos umas coisas pra fazer agora, mas você pode ir lá pra
casa depois pra gente começar a procurar.
– Eu tenho uma ideia melhor. Vou pegar um quarto no Marmont.
Me encontra lá quando acabar?
– Ao que parece, Ava ganhou um dinheirão – digo para Charlotte
quando ela fecha o porta-malas. – Ela vai se hospedar no Marmont
hoje à tarde.
Ela arregala os olhos.
– Por muito tempo?
– Acho que não. Só até conseguir um lugar pra morar.
– Mesmo assim – diz ela. – É caro.
– Muito.
– Ela falou alguma coisa sobre ontem?
– Não. Acho que ela não sabe que a gente foi atrás dela.
Ligo para Jamal e aviso que tive notícias dela.
– É – diz ele. – Ela me deixou um recado enquanto eu estava no
trabalho. Disse que ia pegar um quarto num hotel chique. Vocês vão
lá?
– Vamos, um pouco mais tarde.
– Legal. E lembra de guardar segredo sobre a noite de ontem, se não
houver problema.
– Claro, tudo bem.
– Eu não quero que ela se sinta esquisita.
– Faz sentido – digo. – Não foi nada de mais.
– Tudo bem então. A gente se vê depois.

Quando chego ao Marmont, encontro Ava encostada na parede


externa de um bangalô perto da piscina, usando óculos de sol com
armação dourada no formato dos óculos do John Lennon, o cabelo
cascateando pelos ombros em ondas soltas. Ela ainda está com a
blusinha verde e o short jeans cortado do dia anterior, mas está
descalça. Eu nunca tinha visto os pés dela. São finos e graciosos, como
se não fossem usados nem para andar.
Ela me leva para dentro, onde vejo as botas espalhadas pelo chão e a
bolsa pendurada em uma cadeira. Ela não tem nenhuma mala, e
apesar de eu não perguntar o motivo, ela diz:
– Jamal vem trazer minhas coisas mais tarde.
Ela para no centro de um tapete vermelho. Uma luz laranja entra
pelas janelas; a silhueta dela reluz.
– Foi isso que você imaginou? – pergunta ela.
Não sei o que ela quer dizer. Mas, não, eu jamais poderia ter
imaginado algo tão glamouroso assim. Ela está quase luminosa
demais para observar.
– Quando você me trouxe aqui na primeira vez. Você achou que eu
poderia voltar. Não é?
– Ah – digo. – Sim. Acho que sim.
– Quando estava me hospedando, eu perguntei ao cara onde o
Clyde ficava. Ele disse que era aqui, então foi o que eu escolhi. Vem
aqui – diz ela, se sentando na beira da cama. – O Clyde dormia aqui.
Tantos anos atrás. Dá pra acreditar?
Tiro as sandálias e me junto a ela na cama, sem saber no que aquilo
vai dar.
– Queria saber quantas mulheres ele trouxe pra este quarto – diz
ela.
Nossos corpos estão tão próximos. Vejo-a trazer a mão para mais
perto, até os dedos, com as unhas curtas e perfeitamente lisas, estarem
quase tocando a parte macia de trás do meu joelho.
E, se ela está tentando me seduzir agora, admito que está
funcionando. Meu coração bate forte e rápido. Não consigo olhar para
a boca de Ava sem imaginá-la na minha.
Esse é o momento em que eu deveria me inclinar. É onde tudo
começa. Mas não consigo. De repente, Ava parece uma estranha. E é
culpa minha. Eu achei que convidá-la para ir ali algumas semanas
antes era a ideia perfeita, que criar um futuro glamouroso para ela
seria uma coisa legal. Eu até achei que era generosidade minha tirar
um tempo para mostrar o hotel, contar sobre Clyde. Mas acho que eu
sempre me visualizei ali, com ela. Se for para ser totalmente sincera,
eu tinha esperanças de ter essa chance: me envolver com a neta de
uma lenda em um bangalô do Chateau Marmont. Ficar com ela
quando ela ainda era um segredo, antes de o mundo tomar posse dela.
Que coisa idiota para se desejar. Alguns dias de emoção. Uma boa
história para contar depois. Como o que Clyde escreveu na carta para
Caroline quando estava falando sobre a mãe dela: alguns minutos de
fama nos braços de uma pessoa famosa.
Ava está fazendo exatamente o que eu esperava que ela fosse fazer,
mas agora, quando nos imagino juntas, nós estamos deitadas em um
pomar de cerejeiras ou eu estou a observando fazer um bolo ou
estamos caçando tesouros em brechós. A lembrança dela encolhida no
banco de trás do carro velho no deserto, totalmente alheia à minha
presença, basta para fazer meu peito doer. Mas não reconheço a Ava
que passei a conhecer na garota ao meu lado agora. Procuro no rosto
dela, mas ela ainda está de óculos escuros e não consigo encontrá-la.
Só há uma chance de acertar no primeiro beijo. Não consigo afastar
a sensação de que, se eu a beijar agora, não vai ser a versão certa dela
que estarei beijando.
Por isso, eu digo:
– Eu trouxe meu notebook. Que bairros você tem em mente? West
Hollywood? Beverly Hills?
Ela se empertiga, se afasta um pouquinho de mim, mas nem hesita.
– Na verdade – diz –, eu estava pensando em Venice. Algum lugar
com vista para o mar.
Eu me levanto da cama, me perguntando se estou cometendo um
erro ao deixar o momento passar. Meu notebook está frio e pesado
quando volto a me sentar. Eu abro o navegador e entrego o notebook
para ela.
– Ah – diz Ava, olhando a tela. – A internet está travada ou algo
assim.
– A gente só precisa de uma senha. A recepção vai dar pra gente.
Ava se levanta e pega a chave.
– Pode ligar pra eles.
Eu vou até a mesa, pego o telefone e disco zero.
– Oi – digo. – Qual é a senha da internet?
Dito a senha para Ava e ela a digita. Ela sorri.
– Sucesso – digo para o homem do outro lado. – Obrigada.
Ela procura por apartamentos em Venice e, depois de dez minutos
de pesquisa, diz:
– Encontrei.
– Rápido assim?
– Tem vista para o mar. Acho que é exatamente o que Caroline teria
escolhido. Quer ver?
Estou sentada à escrivaninha agora e não sei se confio em mim
mesma para voltar para a cama com ela.
Eu faço que não.
– Prefiro esperar pra ver – digo. – Me surpreende.
Ela tira o celular do bolso, liga para o corretor e marca uma visita
para dali a duas horas.
– Eu tenho que fazer jus ao papel, né? – diz ela quando desliga. –
Onde a gente deve fazer compras?
– Eu tenho uma reunião na casa da Rebecca e do Theo – digo. – Mas
você devia ir ao Beverly Center.
– Beverly Center. Tá.
– Fica perto daqui. Pega a Sunset até La Cienega, depois fica na La
Cienega até chegar a Beverly.
Ela acena com a cabeça.
– Pode deixar – diz ela.
– Os apartamentos em Venice são difíceis. Vai ter concorrência. Se
as roupas não funcionarem sozinhas, você sempre pode dar a cartada
do Clyde.
Ela está de pé agora, pegando a chave, pendurando a bolsa no
ombro.
Ela sorri para mim.
– Vamos ver o que eu consigo.

Charlotte e eu chegamos à Brooks Avenue um pouco depois das nove,


paramos perto da praia e andamos por entre skatistas e punks e
turistas que parecem com um certo medo de onde foram se meter.
Pego o celular e verifico o endereço que ela nos deu.
É um prédio bonito. Muito bonito: tijolos pintados de branco com
decoração art déco. A porta do prédio está trancada e apertamos um
botão, e logo a voz de Ava soa pelo alto-falante dourado pequeno.
– São vocês?
– Sim, somos nós.
– Peguem o elevador! Cobertura! Três vinte e três!
– Cobertura? – diz Charlotte.
Arregalo os olhos como quem diz Né?
Há um zumbido que nos permite entrar no saguão. No elevador,
escolhemos C sabemos bem de quê. Uma tela pede que digitemos um
código, e apertamos 3-2-3 e a porta se fecha e nós subimos. Quando o
elevador se abre, nos vemos no terraço, de frente para o mar, o píer de
Santa Monica à nossa direita, a roda-gigante iluminada, silhuetas de
palmeiras contra o céu escuro.
Nós nos viramos e saímos em um apartamento feito de vidro.
Ava está na porta, com uma calça branca de cintura alta e uma blusa
azul e branca de bolinhas. Está de batom vermelho e um par de
sapatos de salto vermelhos e brilhantes, um fio comprido de pérolas
no pescoço.
– São de verdade? – pergunto.
– Claro que são. Eu tinha que parecer uma garota que tem o direito
de morar numa cobertura.
Charlotte e eu rimos, e Ava se senta em um sofá externo que deve
ter vindo com o apartamento. Ela apoia o pé em um pufe, cruza os
tornozelos. Eu quase não a reconheceria.
– Eu fui a uma loja de departamentos e falei pra mulher me deixar
parecendo rica.
– Deu certo – digo.
Um momento depois, Jamal aparece ao lado dela, com um short
caqui meio largo e uma regata cinza de ribana que exibe o corpo
musculoso. Eles não poderiam estar mais incongruentes: ela está
vestida para um almoço de negócios em um restaurante chique e ele
está vestido para um dia na praia.
– Finalmente – diz, segurando uma garrafa de champanhe pelo
gargalo. – A gente pode abrir isso.
– A gente estava com vontade de comemorar – diz Ava.
– Entendo bem por quê – digo.
– Mas não tem copo – diz Jamal. – Eu tive que ir a cinco lojas de
bebidas até encontrar uma que não pedisse minha identidade, e todo
esse tempo nem pensei em comprar copos.
Charlotte e eu temos garrafas de água, e depois que Jamal joga sem
querer a rolha quicando para o telhado, ele enche nossas garrafas e ele
e Ava ficam passando o resto na garrafa de um para o outro.
– Como você conseguiu este lugar? – pergunta Charlotte. – Não
precisou de um histórico de aluguel e referências?
Ava toma um gole do gargalo.
– Clyde tinha razão – diz ela.
– Como assim? – pergunta Charlotte.
Mas eu sei o que ela quer dizer.
– O dinheiro pode abrir portas – digo.
Ela assente.
– Eu falei para o corretor que podia fazer um cheque com o valor do
ano inteiro adiantado, e aí ele foi ao banco, depositou o dinheiro, me
ligou e disse que o apartamento era meu. Foi no momento certo.
Terrence e eu terminamos a documentação hoje de manhã no banco.
– Conta bancária de manhã, Chateau Marmont de tarde, cobertura
à noite – digo.
– É. Se Terrence estiver vigiando meu dinheiro, ele vai ficar
impressionado – diz ela. – Mas eu não tinha muita escolha.
Não confio em mim mesma para dizer Por que não? de uma forma
que seja remotamente convincente.
Então, eu digo:
– Mostra como é lá dentro.
Ela nos leva para conhecer a cobertura. Uma a uma, ela acende as
luzes. Posso imaginar como deve parecer de cima: uma casa de vidro,
iluminada e brilhando na noite. Dentro, parece que brotou das
páginas das revistas Dwell ou Architectural Digest. Um quarto com um
closet do tamanho do antigo alojamento universitário do Toby. Um
banheiro com hidromassagem e um chuveiro que ocupa metade do
aposento e não tem porta. Uma cozinha moderna e arejada aberta
para a sala.
– Não é a melhor cozinha que você já viu?
Eu faço que sim, mas gosto mais da cozinha da minha casa e até da
cozinha pequenininha do Toby. Entendo que aquela é cheia de
eletrodomésticos melhores e mais caros, mas, sem panelas e travessas,
tábuas de corte e canecas variadas, tigelas de frutas e ímãs na
geladeira, parece estéril demais.
– Se vocês precisarem de mais alguma locação pra filmagem – diz
Ava –, pode usar o aposento que quiser. – Ela está parada no meio da
sala enorme debaixo de vigas de madeira clara e do brilho amarelo da
iluminação indireta.
– É gentileza sua – digo, mas a verdade é que o local não tem alma.
Eu não vi uma única tábua arranhada no piso.
– Você não achou lindo? – pergunta Ava um pouco na defensiva, e
não quero que ela fique na defensiva, afinal, ela não merece aquilo?
Depois de tudo que passou, ela não deveria acabar com uma casa dos
sonhos na cobertura de um dos prédios mais exclusivos de Venice?
– É mais do que lindo – digo para ela. – Nós só precisamos mobiliar.
Vamos ver a vista de novo.
Lá fora, tudo parece menos triste. Os skatistas estão fazendo
manobras na rua lá embaixo; a roda-gigante no píer de Santa Monica
gira e gira; de algum lugar ao longe vem uma gargalhada.
– Dá pra acreditar? – pergunta Ava. – Ontem à noite eu estava
morando em um abrigo. Alguns meses atrás eu vivia no carro,
dormindo debaixo de viadutos, torcendo pra ninguém me encontrar.
– Você estava à deriva – diz Jamal.
– É – diz ela. – Acho que sim. Eu nunca pensei em usar essa
expressão.
– Marcy usou comigo – diz ele. – Eu também nunca tinha pensado
nela.
– Quem é Marcy? – pergunta Charlotte.
– Uma das psicólogas do abrigo.
– A única legal – diz Ava.
– Não a única legal. A menos rigorosa. A mais jovem.
– Não importa – diz Ava. – A gente nunca vai precisar voltar.
– Então você também vai morar aqui? – pergunto para Jamal.
– Não – diz ele. – Ela quer, mas não está nos meus planos.
Ele sorri quando fala, olha para o mar. Só o questiono depois,
quando Ava pegou no sono em um dos sofás externos e Charlotte se
sentou do outro lado do terraço para mandar um e-mail sobre alguma
coisa para um dos futuros professores. Jamal e eu estamos sentados
juntos a alguns metros de Ava, ainda olhando para o mar.
– Me explica uma coisa – digo. – Você pode morar num abrigo ou
pode morar aqui, mas está escolhendo o abrigo?
– Este lugar é legal demais – diz ele –, mas não seria real pra mim.
– Mas você poderia morar aqui de graça, né? Largar seu emprego? O
que você ia querer fazer se pudesse fazer qualquer coisa?
Ele dá um sorrisinho. Balança a cabeça.
– O que foi?
– Nem todo mundo é como você – diz ele.
– O que isso quer dizer?
– Não vai se chatear.
– Não estou chateada.
– Nós somos amigos agora, né? Eu posso falar abertamente.
– Pode, sim – digo, tentando não ficar magoada por antecipação.
– Nem todo mundo sabe o que quer. Nem todo mundo tem o estágio
e a faculdade planejada e o cartão de crédito dos pais.
– Eu não tenho o cartão de crédito dos meus pais. Eu ganho o meu
dinheiro.
– Pra algumas coisas, sim – diz ele. – Mas nem todo mundo tem
salas de tevê com fotos do gueto emolduradas na parede.
– Não é assim – digo. – Falando assim parece horrível. Meus pais se
importam com essas coisas, eles passam muito tempo ensinando as
pessoas sobre aquilo. Meu avô…
Jamal levanta a mão. Eu paro.
– Eu gosto da sua família – diz. – Sua mãe me contou sobre muita
coisa que eu não sabia.
– E te chamou de bonito e gracioso.
– Verdade – diz ele. – E sempre vou amá-la por isso. Mas o que
quero dizer é que nem todo mundo tem irmãos que arrumam
empregos legais pra gente em estúdios de cinema.
– Entendo – digo. E entendo mesmo. Mas continuo não querendo
ouvir, não quero pensar na conversa que ele e Ava devem ter sobre
mim quando não estou por perto para me defender.
– O que estou dizendo é o seguinte: o abrigo me conseguiu o
emprego. E eu finalmente fui promovido e até posso trabalhar em um
horário decente, na loja, não cuidando de estoque. O acordo é eu
trabalhar lá até ter dinheiro suficiente guardado pra ter onde morar, e
aí o abrigo me arruma um apartamento. Eu fico no emprego, pago
parte do aluguel e o abrigo paga outra parte. Não é algo de que eu
esteja tentando escapar. Não é só pelo dinheiro, apesar de que eu
preciso do dinheiro. Eu vi o prédio onde eu vou morar. É legal. Perto
do centro, em uma rua tranquila. Eu preciso começar a minha vida e
não pode ser aqui. Olha só. Isso aqui pode ser bom pra Ava, mas eu
ainda sou um garoto que só foi à praia uma outra vez na vida.
– Você quer dizer Venice Beach?
– Não – diz ele. – Eu quero dizer o mar. Quero dizer isso. – Ele estica
o braço em direção ao litoral. – Isso.
– Mas você cresceu aqui – digo. – Por que só veio uma vez?
– Se você tivesse ido ao lugar onde eu cresci, não chamaria de
“aqui”.
– Como é?
– Cheio de lojas de penhores. Lojas de empréstimo. Lojas de
bebidas.
– Claro – digo, porque isso está em toda parte.
Ele levanta a mão como quem diz Me deixa terminar e eu calo a boca,
olho para o céu escuro e escuto.
– Prédios vazios – diz ele. – Caras na rua o dia todo. Campos
cobertos de lixo. Placas de trânsito cheias de buracos de bala. Janelas
cobertas com madeira. Pessoas que parecem décadas mais velhas do
que são. Avós que aceitam todas as tragédias como se fosse esperado,
recebem mais um garoto em casa e agem como se o local já não
estivesse lotado, como se não fosse um fardo alimentar mais um.
– Entendi – digo. Uma concessão. Ele está falando como se estivesse
em transe, como se pudesse continuar por séculos, mas também como
se o machucasse.
– Armas – diz ele. – Armas por toda parte. Eu ganhei minha
primeira arma com doze anos. Presente do meu primo. Nós fomos pra
rua e eu disparei para o alto. Tudo ficou silencioso.
– O que aconteceu? – pergunto. – Por que você foi embora?
– Minha avó morreu. Eu já tinha passado pelo sistema de adoção,
antes de ela conseguir minha guarda, e não queria voltar de jeito
nenhum. Tinha muitos jeitos de eu ganhar a vida no bairro, mas eu
não queria que ela olhasse lá de cima e balançasse a cabeça de
desgosto.
– E o resto da sua família? Sabem que você está aqui?
– Meu avô está preso. Minha mãe morreu.
– A minha também – diz Ava.
Não sei quando ela acordou, mas ela está sentada agora, puxando
um moletom por cima das pernas, e Charlotte está voltando na nossa
direção e se senta ao lado dela.
Jamal se vira para Ava, as sobrancelhas erguidas em dúvida, mas ela
não elabora.
– Tudo bem – diz Jamal. – Pode ser assim. Mas também é do outro
jeito.
– Como assim? – pergunta Ava.
– Caroline morreu, mas Tracey está viva. Isso é difícil, mas você
ainda tem uma mãe.
– Mas ela não me quer.
– Não sei não – diz ele. – Vamos dar um tempo. Ver daqui a pouco,
sabe?
– Quando a gente quer muito encontrar alguém, não é tão difícil. Eu
deveria ter sabido o tempo todo que ela não estava me procurando. Eu
me sinto tão burra.
– Não tem nada de burrice em querer ser amada – diz ele. – Pode
acreditar.
Nós ficamos ali mais um pouco, mas logo Charlotte e eu nos
levantamos para voltarmos para casa.
– Você vai me ajudar a decorar a casa, né? – pergunta Ava. – A
decidir o que comprar? Depois que a filmagem acabar, claro. Eu fui a
um lugar tentar comprar um colchão hoje, mas não sabia o que
queria, e teria levado uns dias pra entregarem mesmo, então acabou
parecendo sem sentido. Fui embora sem comprar nada.
– Claro – digo. – Vou adorar.
– Nós temos a leitura amanhã – lembra Charlotte.
– Certo – digo. – Ava, você está preparada?
Ela assente.
– A gente se vê lá – digo.
Antes de Charlotte e eu entrarmos no elevador, eu me viro para dar
uma última olhada neles naquela noite: dois jovens que antes não
tinham onde morar, sentados em frente a uma cobertura inabitada
com uma garrafa vazia de champanhe.
Capítulo dezoito

Eu acordo nervosa.
Hoje é o dia em que todos os atores se reúnem na casa do Theo e da
Rebecca e leem o roteiro, da primeira cena à última. Isso costuma
acontecer mais cedo na programação de pré-produção, mas como Ava
entrou tarde no projeto, vai ser agora, duas semanas antes de a
filmagem começar.
Eu devia ter contado a Ava o que esperar do dia. Devia ter contado
como é importante. Começo a ter medo de ter exagerado com todo
aquele papo do Clyde. E se ela levar a glória da ascensão de pobreza
em riqueza longe demais? O que ela estava usando ontem foi o traje
perfeito para conseguir uma cobertura, mas hoje não é para ser
atuação. Como protagonista desconhecida, ela tem muito a provar.
– Ela vai se sair bem – diz Charlotte quando saímos do carro.
– Mas e se ela aparecer de ressaca, sei lá?
– Ela nem ficou bêbada ontem. Como isso seria possível?
– Eu não sei como seria possível. Só sei que meu estômago está
doendo por causa dela.
– Só relaxa e se concentra no seu trabalho. Deixa que o estômago da
Ava doa por si mesmo. Ou, melhor ainda, confia que ela vai se sair
bem. Nós não temos motivo pra duvidar dela.
Quando chegamos lá, vejo que Charlotte, como sempre, está certa.
Ava está conhecendo todo mundo tendo Rebecca como guia. Ela
está oferecendo a mão para cumprimentar as pessoas, confiante e
modesta, profissional e calorosa.
Os atores estão reunidos à mesa enquanto pessoas da equipe
encontram lugares para se sentar em volta. Charlotte e eu já
arrumamos duas cadeiras quando Rebecca e Ava chegam em nós.
– Não é preciso apresentar ninguém no caso de vocês – diz ela.
Apesar de termos nos visto ontem de dia e à noite, ver Ava naquele
contexto faz meu coração disparar. Ela sorri para nós e arregala os
olhos de forma quase imperceptível, mas o suficiente para revelar o
segredo de que ela está meio nervosa. Vejo-as seguirem para ela
conhecer Grant e Vicki, que pedem desculpas pela inconveniência,
mas pegam a fita métrica mesmo assim.
– Nós ainda temos todo o seu figurino pra resolver – diz Grant
enquanto Vicki mede a cintura de Ava. – Blusa bonita, aliás –
acrescenta ele.
O traje dela é enganosamente simples: uma calça jeans apertada e
uma blusa de seda azul-marinho que deixa os ombros dela incríveis.
Ela usa pulseiras em um dos braços e brincos delicados de ouro
aparecem cada vez que ela tira o cabelo do rosto. Quando ela se afasta,
reparo nas botas de sempre e penso nelas caídas no chão do Marmont,
quando estávamos tão perto uma da outra.
E me pergunto de novo se cometi um erro.
Charlote e eu pegamos nossos roteiros e canetas. É só a segunda vez
que sou incluída em uma leitura, e na primeira vez me surpreendi
com quanto deixei passar quando li sozinha, apesar de ter estudado
cada cena. Por isso, estou preparada para ser inspirada, para ser
lembrada, para encontrar novas oportunidades de dar vida aos
cenários.
Atrás de mim, ouço Ava dizer:
– Oi, Morgan. É um prazer te conhecer.
Não consigo evitar. Eu me viro para olhar para elas.
Rebecca é quem está falando, mas Morgan está olhando para Ava, e
só posso imaginar as coisas que ela está pensando. Quando ela me
contou sobre a vastidão, tenho certeza de que as Avas do mundo eram
o que ela estava imaginando: talentosas e lindas, totalmente livres e
meio selvagens. Mas, quando Morgan olha para Ava, Ava se vira para
me olhar, e desconfio que as Morgans do mundo não são o que Ava
gostaria de ter.
Pelo menos é o que eu espero. Eu me permito acreditar que Ava não
vai querer uma pessoa paqueradora e instável. Que, mais do que
convites para festas em Hollywood e brunches em Silver Lake, Ava
quer alguém que a ame.
– Muito bem, pessoal. – A voz do Theo se espalha pelo ambiente,
um trovão feliz e festivo. – Se acomodem, por favor.
Em pouco tempo, a falação morre; as pessoas ocupam seus lugares.
– Olha só vocês – diz Theo.
Nós enchemos o ambiente, e todo mundo está sorrindo.
Todos os atores de todos os papéis com falas, de Juniper e George ao
cliente sem nome com uma fala só, estão sentados à mesa de jantar,
Ava, Benjamin e Lindsey lado a lado em uma das cabeceiras. Nós da
equipe ocupamos a sala adjacente. Charlie e os operadores de câmeras
voluntários e o contrarregra chegaram cedo e pegaram o sofá. Michael
e o irmão estão sentados no chão. Eles chegaram mais tarde porque
Kim, o aluno da usc que é assistente de direção, só se lembrou de
avisá-los da reunião poucas horas antes.
– Todo mundo sempre esquece o cara do som – resmungou Michael
quando entrou, mas até ele parece feliz agora.
Com o passar das semanas, a notícia sobre o projeto se espalhou.
Em vez de uma equipe mínima, nós agora temos um supervisor de
roteiro e um fotógrafo, que estão de mãos dadas à porta da sala de
jantar. Nós temos um diretor de iluminação e um câmera assistente e
três técnicos que vão montar toda a iluminação e cuidar dos
equipamentos; eles estão sentados ao lado do bufê comendo biscoitos
e lançando olhares para Ava e Benjamin. Tem outras pessoas: uma
garota com cabelo louro-claro que parece ter a minha idade, um cara
com um bigode icônico. Não sei ainda o que eles vão fazer, mas eles
estão com cadernos em mãos e parecem prontos para trabalhar.
– Estão sentindo a energia deste lugar? – pergunta Theo. – Meu
Deus, que coisa linda. A maioria de vocês está fazendo isso de graça.
Os que estão sendo pagos não vão receber nem perto do que merecem.
Sei disso e agradeço. Sinceramente. Eu agradeço. Não consigo
imaginar um grupo de pessoas melhor. Se eu tivesse dez milhões de
dólares pra fazer esse filme, eu escolheria vocês de qualquer jeito.
Estou falando sério.
Ele respira fundo e estica os braços para as pessoas na mesa.
– Esses atores – diz ele –, estão prestes a nos embasbacar com seu
talento. Vamos começar.
Ele e Rebecca dividem uma namoradeira, cada um com sua cópia
do roteiro.
Rebecca começa a ler.

“Cena um. Ambiente interno. Um mercadinho de Los Angeles. A

luz forte do verão entra pelas janelas. Juniper, 19 anos, coloca potes

de papinha de bebê em um corredor. George, cerca de 40 anos, está

no caixa olhando pela janela. Entra Miranda, de vestido azul. Ela

pega uma cesta vermelha de plástico, uma toranja, uma caixa de

aveia, uma barra de chocolate. Ela cai. Juniper deixa um pote de

papinha de bebê cair. Fim da cena.

“Cena dois. Ambiente interno. Mercado. Juniper está atrás da

registradora. George coloca limões em uma cesta perto da janela.”

Ava tem a primeira fala. Sinto todos no apartamento prendendo a


respiração.
– O vidro cortou a orelha dela – diz Ava. Ela está com o roteiro
aberto na mesa, mas não está lendo.
Já Benjamin James está com os olhos grudados na página quando
responde:
– Cortou? Eu não reparei.
Ava toca na orelha direita.
– Bem aqui – diz.
E com essas poucas palavras ela já provou seu valor. Ela é discreta,
melancólica, tudo que tem que ser. Theo e Rebecca trocam olhares de
satisfação, e eu me viro para o meu roteiro, o estômago sem doer
nadinha, e sigo acompanhando conforme a cena continua.

GEORGE

A saia dela era azul, assim.

(aponta para uma revista)

JUNIPER

Mais clara, acho.

GEORGE

Talvez, mas não muito.

Silêncio.

GEORGE

Sabia que antigamente, quando alguém tinha uma convulsão,

acreditava-se que a pessoa estava possuída por demônios?

JUNIPER

Que ridículo. Como você sabe disso?

George dá de ombros.

JUNIPER

O que você quer dizer com “antigamente”?

GEORGE

Antigamente. As pessoas na Babilônia, essas coisas.


JUNIPER

Babilônia? Você leu isso em algum lugar?

GEORGE

Não lembro. É só algo que sei.

JUNIPER

Como a gente sabe que ela teve uma convulsão?

GEORGE

O que mais pode ter sido?

JUNIPER

Pode ter sido só uma reação estranha a alguma coisa ou um ataque

de ansiedade, sei lá. A gente não sabe.

GEORGE

Tudo bem! Sei lá. Foi o que foi.

Uma pessoa entra no mercado. Eles olham; não é ela.

GEORGE

Eu não estava sugerindo que ela estava possuída por demônios.

Obviamente.

JUNIPER

Você não estava sugerindo nada. Eu sei.

Estou com uma bolsa de lona cheia de revistas de design de interiores


e catálogos, quatro tacos do meu food truck favorito e uma garrafa
grande de refresco para dividir. Felizmente, tem um homem saindo do
prédio de Ava quando eu chego e ele segura a porta para mim. Aperto
o botão do elevador com o cotovelo, depois o C, depois 3-2-3. A porta se
fecha e me leva até Ava.
Estou chegando sem avisar.
Quero fazer uma surpresa.
Nós não nos falamos desde a leitura e eu nem tive a oportunidade
de dizer como ela foi incrível porque Morgan me pegou logo depois
que terminou para conversar sobre as próximas etapas do cenário. E
agora, dois dias se passaram, o que me deixa mais perto do prazo para
o apartamento de Juniper estar pronto.
Mas não consigo parar de pensar em Ava.
Por isso, aqui estou, colocando o suco rosa no chão para bater na
porta, armada com tudo de que preciso para ajudá-la a pensar em
ideias de decoração.
Ela abre a porta com uma calça de pijama xadrez e uma camiseta
fina e tento não olhar para o jeito lindo como delineia o corpo dela.
– Surpresa! Venho trazendo o almoço e ideias de decoração – digo.
– E eu ainda de pijama ao meio-dia – diz ela.
Mas ela sorri e me deixa entrar mesmo assim.
Ela olha o que está vestindo, cora e diz:
– Vou só, hã… Já volto.
– Claro – digo, e sai andando pelo corredor.
Eu me vejo sozinha por um momento na casa da Ava. Apesar de só
alguns dias terem se passado desde a mudança e de o ambiente ainda
estar basicamente vazio, ela encheu um canto, debaixo de uma
claraboia, com as coisas dela. E percebo que nunca vi como Ava vive.
Eu nunca entrei no abrigo. Ela não me deixou ver o antigo quarto dela.
Não tinha nada dela no Marmont, e na única outra vez que estive na
cobertura, não havia nada.
Atravesso a sala até a cozinha e coloco os tacos e o suco na bancada.
Vejo que ela comprou algumas coisas:
Duas frigideiras vermelhas pesadas, uma grande e uma pequena.
Três livros de receitas: um sobre fazer pão, um sobre fazer geleias,
um de sobremesas francesas.
Uma panela de cobre funda que é quase linda demais para ser
usada para cozinhar.
Uma tigela amarela cheia de pêssegos.
Reparo em um som baixo de música e vozes. Vem do outro lado da
área de estar, e vou até o canto debaixo da claraboia, onde Ava colocou
um cobertor colorido. No cobertor tem uma televisão velha com
videocassete, exibindo A inquietação com o volume baixo. Ao lado está
a papelada do aluguel. Eu não tinha visto a assinatura dela ainda. É
simples, firme: um A, um G e um W fortes seguidos por linhas fluidas.
O roteiro de Sim e sim também está lá, aberto na cena do teste. Ao lado
da fala “Joguei as flores fora”, Ava escreveu “Lembrar: pausa longa”.
E tem a fotografia de Caroline na rua ensolarada, com o jeans
rasgado e a camisa de flanela, colocada ao lado da carta do Clyde. Eu a
tiro do envelope. Ao relê-la agora, as frases passam uma sensação
diferente.
um tipo de começo…
a possibilidade de mudar de ideia…
Não sei como um pai deve dizer coisas emocionadas ou expressar
arrependimento ou fazer um elogio…
É possível que você se sinta sozinha no mundo…
É como se de repente elas significassem mais, e não consigo
terminar de ler porque fico com medo de chorar.
Um lápis perfeitamente apontado e um marca-texto rosa estão ao
lado de uma lista de tarefas. Ensaiar falas. Comprar pratos, copos,
talheres. Decidir sobre caixas. Encontrar um bom café. Terminar carta para
Jonah. Voluntariado num abrigo de animais?
Ouço passos vindo detrás. Eu me viro e vejo Ava pronta para o dia, o
cabelo preso em um rabo de cavalo, a boca mais rosada do que o
habitual, como se ela tivesse passado batom e depois tivesse mudado
de ideia.
– Eu sempre desejo que houvesse uma última imagem do rosto de
Caroline. Que a câmera ficasse nela olhando pela janela, esperando
para ver se Max volta – diz.
Mas a tela fica escura e a música dos créditos começa.
– Eu ainda não comprei pratos. Não encontrei nenhum que me
parecesse certo. E como estou começando do nada, quero que tudo
tenha algum significado. Talvez a gente possa encontrar alguma coisa
aí.
Ela indica minha bolsa cheia de revistas no caminho até a cozinha.
Apesar de eu ter escolhido tudo com cuidado e levado só as minhas
revistas favoritas, agora percebo que não quero usar nada do que há
nelas. Não da Anthology, com as páginas duplas cheias de casas
calorosas e luminosas dos criativos e afortunados, não da Apartamento,
com o toque internacional e a sensação naturalista.
Não quero abrir nenhuma delas. Não quero desviar do que Ava já
colocou na casa dela.
Meus olhos lacrimejam de novo e não sei por quê. Não estou nem
pensando na carta do Clyde. Não entendo o que acontece.
Até que Ava volta com o saco de tacos e a bebida e dois guardanapos
de pano listrados de cinza e branco. Ela se senta na beira do cobertor,
diante das poucas coisas que tem.
– A gente pode fingir que é normal comer sem pratos e garfos, né?
Piquenique debaixo da claraboia – diz ela.
E eu entendo o que aquilo é.
É o oposto do colapso da fantasia.
É o que acontece quando a ilusão perde o brilho em comparação
com a verdade. Estou vendo-a pela primeira vez. Não Ava Garden
Wilder, a neta de Clyde Jones que foi da pobreza à riqueza. Não uma
heroína trágica e romântica.
Só Ava.
E estou completamente apaixonada.

– Eu sempre espero pra ver o nome dela – diz Ava, olhando para a tela.
Eu me sento ao lado dela, agradecida por ela estar olhando para
outra coisa e não para mim.
Não consigo comer. Sinto a proximidade dela. A luz do sol forma
um quadrado no joelho dela. Um diamante ilumina o rosto dela.
Eu me obrigo a olhar para os nomes passando.
Sempre fico impressionada quando penso em quantas pessoas
trabalham em um filme, ainda mais nas produções dos grandes
estúdios, e tento me distrair com os créditos. Eu nem entendo quais
são todas as funções. Os nomes vão passando, e o de Caroline passa,
mas eu ainda não afasto o olhar. Os créditos de Sim e sim vão ser tão
curtos, e meu nome vai estar no começo, sozinho no centro da tela, e
estou pensando nisso enquanto vejo o nome de todos aqueles
estranhos e me pergunto o que estão fazendo agora, se conseguiram os
trabalhos que queriam, ou, se não for o caso, o que aconteceu com
eles, e vejo um nome que salta na minha cara, mas some em um
momento, e Ava diz:
– Desculpa, você não deve ter muito tempo.
– Não tem problema – digo, e tento afastar a sensação de que eu
talvez tenha visto algo importante.
– Esses tacos estão uma delícia – diz ela.
Ela dá uma última mordida e eu preciso afastar o olhar. Até isso é
tão lindo que dói.
– Vamos sentar lá fora – diz ela. – Pra olhar o que você trouxe. Você
viu a vista quando subiu? É totalmente diferente de dia.
– Ótima ideia – consigo dizer.
Ela se levanta primeiro e estamos na porta quando eu digo
subitamente:
– Eu vi uma coisa nos créditos que não tinha notado antes.
Ela se vira para mim.
– Um segundo assistente de direção chamado Leonard.
Ela arregala os olhos.
– Não deve ser nada – digo.
Mas ela já está voltando para o canto da sala. Ela se ajoelha no
cobertor e rebobina e nós vemos os créditos de novo.
– Quando é? – pergunta.
– Mais pra frente.
– Mas você disse direção.
– O segundo assistente de direção pega café pras pessoas. Não é
nada importante.
O nome da Caroline passa.
– Daqui a pouco – digo. – Aí!
Ava aperta o pause. O nome vibra no alto da tela: Leonard Pine.
Pego o celular e pesquiso o nome dele.
– Apareceu uma coisa – digo, abrindo o primeiro link que aparece, e
não digo que não está escrito Leonard, está escrito Lenny, porque não
suporto a ideia de decepcioná-la se não for a pessoa certa. – Ele é
produtor agora.
– Tem o número dele?
– Tem do escritório – digo.– Não sei se…
– Qual é? – pergunta Ava.
Eu digo e ela liga.
– Nós não sabemos se é ele – digo. – É um tiro no escuro.
– Posso falar com Leonard? – diz ela ao telefone. Ela espera um
momento. – Ava Garden Wilder. Sim, tudo bem.
Ela me olha e balança a cabeça.
– Ela nunca vai passar essa ligação. A gente vai ter que ir lá.
– Vamos ver o que acontece. Pode ser que eu consiga encontrar
alguém que o conhece.
– Sim – diz ela ao telefone. – Sim, Ava Garden Wilder. É o Leonard?
Lenny?
Os nós dos dedos da mão ficam de agarrar o celular, e ela estica a
mão e aperta meu ombro com a outra quando diz:
– Isso, o nome dela era Caroline. Eu posso ir agora, sim.
E eu sei que é um grande acontecimento. Sei que eu só devia estar
pensando em Lenny e o que ele vai nos contar. Mas o que penso é que
a mão dela apertando meu ombro parece um beijo.
Ela me solta.
Toca em mim de novo, tenho vontade de dizer. Mas não digo.
Capítulo dezenove

– Encontramos o Lenny – digo para Charlotte assim que ela atende.


Ava está tirando o carro velho da garagem chique e estou sentada ao
lado dela no banco do passageiro, apesar de ter que voltar ao trabalho
em vinte minutos.
– Você está brincando? – pergunta Charlotte.
– Não. E sei que a gente tem que arrumar os quadros, mas estou
indo para o centro agora.
– A gente pode arrumar de noite – diz ela. – Não tem problema. Que
coisa incrível. Como foi?
– Eu te conto tudo assim que a gente acabar.
– Vai ter que contar – diz ela. – Não acredito que estou perdendo
isso.
– Pois é – digo.
– Mas tudo bem. Vou fazer o máximo que puder sozinha. Vou dizer
pra Rebecca que você teve uma ideia incrível e foi fazer a magia
acontecer.
– Eu te amo – digo.
– Eu sei – diz ela. – Me liga assim que acabar.
E logo paramos em um estacionamento que cobra vinte dólares por
hora, subimos em um elevador prateado até o 37o andar de um prédio
moderno e saímos em um saguão com tapete branco impecável.
– Com que frequência você acha que eles precisam trocar isso? – sussurro,
mas Ava não está olhando para baixo. Ela vai direto até o cara da
recepção e diz que Lenny está esperando por nós. Uma porta se abre e
um homem alto com cabelo castanho ralo e camisa de linho branco
aparece. Ele olha para nós duas, mas logo o olhar se desvia apenas
para Ava. Um sorriso leve surge e some no rosto anguloso, e ele nos
convida a entrar. Nós o seguimos por um corredor até um escritório de
canto com uma vista de Los Angeles que não conhecia, tão diferente
da vista de Ava, do alto de apenas três andares. Dali, seria fácil
esquecer que existe vida ali embaixo.
Lenny se senta na cadeira de escritório. Deixo a cadeira em frente a
ele para Ava e me sento no sofá atrás dela, um pouco distanciada, mas
ainda perto o suficiente para ouvir tudo que ele diz.
– Essa é minha amiga Emi – diz Ava. – Ela me trouxe.
Não é verdade, mas faço que sim e digo oi, porque entendo esse tipo
de mentira assim como entendi, logo que ela disse que iria direto para
lá, que eu iria com ela. Algumas coisas são impossíveis de se fazer
sozinha.
– Emi – diz ele. – Oi.
Ele dá um aceno fraco e eu levanto a mão em resposta, ciente de que
essas são as primeiras palavras trocadas entre nós.
Por fim, Ava diz:
– Eu tenho algumas perguntas.
– Sim, claro – diz Lenny.
Essa não é a resposta que eu teria esperado. A filha de uma mulher
morta que ele conhecia aparece de repente no escritório dele quase
duas décadas depois e ele sabe que ela tem perguntas?
Mas ele levanta as mãos acima da cabeça em um gesto de rendição,
e o suor surge no rosto barbeado e, cada vez que olha para Ava, desvia
os olhos como se ela fosse coisa demais para os olhos dele.
Ele começa a falar do passado como se soubesse que aquele
momento chegaria um dia e tivesse preservado a história em um canto
de acesso fácil em sua mente. E o momento chegou. E nós estamos ali.
E ele conta tudo.
Acontece que Lenny e Caroline se conheciam havia muito tempo,
cresceram no mesmo quarteirão.
– O que você sabe dos pais dela? – pergunta ele.
– Eu sei que a mãe dela morreu. Sei que Clyde Jones era pai dela.
– Como você descobriu?
– Pela Emi – diz ela.
– Minha amiga e eu encontramos uma carta escondida em um disco
de Patsy Cline – digo. – Nós compramos o disco na venda da
propriedade dele.
– Que louco. Acho mesmo que além da mãe e da própria Caroline…
bom, e do Clyde, claro, eu fui a única pessoa a saber disso por muito
tempo. A sra. Maddox, Valerie, era uma mulher muito amarga. Eu
nunca conheci uma mulher tão amarga, e, pode acreditar, eu conheci
muitas mulheres.
Dou uma risada e digo:
– Tudo bem.
Mas Ava não parece achar graça. Ela está igual à primeira vez que
estivemos no Marmont, quando me perguntou se eu sabia como
Caroline tinha morrido: focada e atenta, se preparando para as
respostas que passou a vida quase toda procurando. E ali, enfim, se
encontra alguém que pode falar sobre a vida dela. A única pessoa que
pode e está disposta, já mencionando Clyde e Caroline como se
fossem só pessoas, não pistas em um mistério, não personagens
elusivos em uma vida cinematográfica.
– A casa da Valerie estava sempre escura e ela andava de roupão o
dia todo, e a pobre Caroline… ela só queria ser feliz. Ela jantava na
minha casa na maioria das noites, mas aí a sra. Maddox ficava com
raiva e a deixava presa em casa por uma semana. Depois de um tempo,
Caroline podia voltar, mas sempre tinha que passar um tempo em
casa, naquela casa horrível, escura e empoeirada, com a mãe andando
de um lado para o outro enquanto fumava e pensando no homem que
a traiu. Por anos, ela nem contou para Caroline que Clyde era pai dela.
Caroline acabou descobrindo por uma carta que chegou quando a
mãe não estava em casa. Parece que Clyde tentou enviar dinheiro e
cartas por anos, e Valerie devolvia tudo. Descobri isso depois, alguns
meses depois que Valerie morreu. Caroline e eu tínhamos vinte e
poucos anos e nos encontramos com Clyde em um restaurante.
Não me considero uma pessoa que confia nos outros com facilidade,
mas tudo que Lenny está contando bate com o que já sabemos, e tem
algo no jeito como fala que faz com que eu acredite nele.
– Caroline estava grávida de você – diz.
– Então foi assim que ele descobriu o meu nome – diz Ava.
– Não. Ela não contou. Ela ficou chateada de vê-lo. Foi difícil demais
pra ela. É difícil acreditar, mas aquela foi a primeira vez que eles se
viram. Ele nos explicou naquele dia. Ele e a mãe de Caroline tiveram
um rolo, que só durou uma ou duas semanas, e ele apenas descobriu
que ela tinha engravidado porque um amigo em comum contou pra
ele. Até Caroline ler aquela carta, aos onze anos, ela não tinha ideia de
quem podia ser o pai dela; e aí, quando ela descobriu, a mãe poluiu a
mente dela com acusações: de que ele era obcecado pela fama. Jamais
admitiria que Caroline era filha dele. O dinheiro era enviado como
suborno pra que elas ficassem de boca calada. Acho que era a palavra
dela contra a do Clyde, mas o homem que eu conheci naquele dia não
pareceu nenhuma das coisas que Valerie dizia que ele era. Ele pareceu
triste e perdido e meio desesperado. Mas Caroline não soube como
reagir a tudo. Ela não contou que nome estava pensando em te dar. Ela
não falou quase nada.
“Ele sabia seu nome porque me encontrou de algum jeito. Uma
noite, recebi uma ligação dele, algumas semanas depois que você
nasceu. Ele queria saber de você, mas, mais do que tudo, queria seu
nome. Eu falei “Ava Garden” e ele riu. Falou alguma coisa tipo
“Caroline é mais parecida comigo do que eu gostaria de acreditar”,
que preferi interpretar como um comentário sobre família e rejeição.
Sobre ela preferir inventar um sobrenome a dar continuidade a outro.
Que todos eles eram sem raízes: Clyde, Valerie, Caroline e, agora, Ava.
Clyde foi criado por parentes, sabe. Uma tia e um tio por um tempo,
uma avó, foi passando de uma pessoa a outra na família grande.”
– Eu não sabia disso – diz Ava. – Ele mencionou na carta que era
órfão, mas eu não sabia dos detalhes.
Mas eu sabia, e não sei por que não me ocorreu dizer isso antes.
– É – diz ele. – Muita gente teoriza que esse era o motivo de ele
gostar tanto de privacidade. Mas sempre fiquei tocado por aquilo. Por
ele só querer saber o seu nome.
– Foi pra uma conta bancária – diz Ava.
Lenny parece surpreso, mas aí balança a cabeça.
– Talvez ele quisesse saber pra conta, mas também queria saber por
saber. Pode acreditar. Ouvi isso na voz dele. Eu nunca contei a
Caroline sobre a ligação. Ela achava que se encontrar com ele tinha
sido um erro e a vida dela estava saindo do controle. O cara que a
engravidou foi um encontro casual, e ela estava sozinha e com medo.
Ele parece abalado por um momento.
– Espero que você não estivesse querendo encontrar seu pai – diz
ele. – Caroline nunca nem soube o sobrenome dele, mas ela não teria
tentado encontrá-lo de qualquer jeito.
– Por quê? – pergunta Ava.
– Não era o caso. Caroline o escolheu pra se divertir por uma noite,
não pra ser o pai da filha dela. E aí nós meio que estávamos juntos
quando nos encontramos com Clyde. Eu nunca me envolvi com o tipo
de vida que ela levava. As drogas não me faziam muito bem. Pra ser
sincero, elas me deixaram doido, e não do jeito que era pra ser. Mas eu
teria feito qualquer coisa por Caroline, e estava começando a parecer
que o único jeito de poder continuar com ela era vivendo seu estilo de
vida. Eu fiquei por um tempo. Mas aí, um dia…
Ele vira a cadeira para longe de nós, na direção da vista majestosa,
mas está encolhido para a frente, da forma que algumas pessoas ficam
quando vão desmaiar e alguém manda colocar a cabeça entre os
joelhos. Depois de um tempo, ele se vira para nós.
– Olha – diz. – Ufa! Eu preciso dizer isso. Estou carregando isso
comigo há anos. Por toda a sua vida. Puta merda. Tudo bem.
Primeiro Ava, depois Frank, depois Edie e agora Lenny. Não sei
quando tantos estranhos vão voltar a chorar na minha frente em
sucessão tão rápida e com tamanha intensidade. Tento não afastar o
olhar porque está claro: ele está nos dando aquele momento. Eu nem
sei o que ele vai dizer, mas já sei que ele sente remorso.
– Um dia, ela parou de atender às minhas ligações. Eu tinha ido lá
na noite anterior. Junto com um monte de gente. Fui embora antes do
fim da festa e quis ligar pra ela antes de voltar na manhã seguinte
porque não queria encontrá-la com outra pessoa. Eu era fiel, mas por
conta própria, pra poder fingir que a gente tinha alguma coisa de
verdade. Caroline foi a mulher mais honesta que eu já conheci. Uma
vez, ela disse que podia me amar, mas não podia ser verdadeira
comigo. Eu falei: Onde está o compromisso nisso? E ela disse: Essa é a
questão: não existe compromisso. E essa foi a última conversa que tivemos
sobre isso. Mas eu nunca quis pegá-la com outro homem, por isso
gostava de avisar quando estava indo pra lá. Eu liguei e liguei e ela não
atendeu, então eu fui. Tentei abrir a porta, mas estava trancada, então
usei a chave que ela tinha me dado e entrei. Ela não estava na sala e eu
soube que algo horrível tinha acontecido, porque a agulha do toca-
discos estava girando e girando, mas não havia nenhum som vindo do
aparelho porque o disco tinha acabado. E a bebê estava chorando. Você
estava chorando. E não era aquele choro forte de bebê gritando Me
pega ou Me dá de mamar, mas um som mais fraco e desesperado. Eu
segui pelo corredor e a encontrei no banheiro. Eu me obriguei a tocar
nela, apesar de saber na mesma hora que ela não estava mais viva.
“Eu preciso dizer: naquele momento, pareceu que minha infância
toda se desfez. Todos os jantares que minha mãe fez pra nós. Todos os
jogos que jogamos. O tanto que crescemos juntos. Todo o sexo que
fizemos. Todas as conversas que pareceram importantes. Tudo isso foi
obliterado. Tudo isso sumiu. Eu estava sozinho no mundo e o mundo
era um lugar feio e brutal. Fui até o telefone e liguei pro socorro e,
quando atenderam, eu disse que o bebê e a mãe precisavam de ajuda e
dei o endereço, depois deixei o telefone fora do gancho e sumi de lá.”
Ele para de falar e a sala cai em um silêncio doloroso. Esse tipo de
perda que ele está descrevendo… Basta uma olhada para o rosto de
Ava para saber que ela também já sentiu isso.
Quero confessar. Achei que a história dela era composta de cenas.
Achava que a tragédia podia ser glamourosa e a dor dela podia ser
desfeita por um futuro mais brilhante. Achei que podíamos marcar
eventos dramáticos em uma linha do tempo e chamar isso de vida.
Mas eu estava enganada. Não há cenas na vida, só minutos. E não dá
para pular nenhum deles e todos levam ao seguinte. Houve o minuto
em que Caroline colocou Ava deitada e o minuto que ela levou se
injetando. Houve o minuto em que Caroline morreu e todos os
minutos antes de Lenny as encontrar. O minuto em que ele deixou Ava
ali, ainda chorando, e os minutos antes de a ambulância chegar. E
todos os minutos que vieram depois, aonde quer que ela tenha ido,
quem quer que a tenha segurado, tantas lacunas na memória que
deviam ter sido preenchidas por algo importante. Quero pedir
desculpas por não perceber antes que o que senti no escritório do
Clyde não foi o começo de um mistério ou de um projeto. Ela nunca
foi uma coisa a ser desvendada. Tudo que ela é, tudo que ela sempre
foi, é uma pessoa tentando viver a vida.
~

– Depois, eu tentei fazer contato com você – diz Lenny. – Você


provavelmente não vai acreditar. Eu poderia ter me esforçado mais,
tenho certeza. Eu comprei uma cama elástica quando você era
pequena – diz. – Você se lembra disso?
– Foi você?
O rosto dele se ilumina, um momento de felicidade em meio ao
nervosismo suado e lacrimoso.
– Mas – diz Ava –, o cara que me deu a cama elástica estava com a
Tracey.
– Tracey – diz ele. – Certo. Foi uma época estranha na minha vida.
– Você teve um relacionamento com ela também?
Ele assente com certa vergonha.
– Tracey sempre teve uma quedinha por mim – diz. – Não quero me
gabar, mas é verdade. Ela cresceu junto com a gente. Caroline a
conheceu antes de me conhecer. Depois que encontrei Caroline
morta, eu perdi a noção de realidade por um tempo. Saí da cidade.
Não achei que eu fosse ser suspeito nem nada, mas eu tinha certeza de
que seria interrogado. Tinha pesadelos com detectores de mentiras.
Estava com medo de ser humilhado. Eu fiquei… fiquei péssimo. E sua
mãe – diz ele, se inclinando para mais perto de Ava –, ela foi o amor da
minha vida. Se você repetir isso pra minha esposa, eu vou negar. Mas
ela foi. Meu Deus, que mulher especial. Ela poderia ter sido uma
grande atriz. Poderia ter sido uma ótima mãe se não estivesse tão
absurdamente fodida da vida.
Ele se recosta na cadeira e se vira para a janela. Por alguns
momentos, observamos a vista estonteante de Los Angeles.
– Ela era louca por você – diz. – Não tem como ela ter feito aquilo de
propósito.
Mas ele fala como se estivesse tentando convencer a si mesmo, e fica
claro que é mais uma coisa que jamais vamos saber. Se Caroline sabia
que estava usando mais drogas do que o corpo era capaz de aguentar.
Por que motivo Clyde não pôde ser um pai melhor. Como teria sido a
vida da Ava se Tracey não tivesse se tornado a mãe dela.
– Mas voltando à Tracey – diz Lenny. – Eu tive alguns anos por aí.
Viajei por todo o mundo. Estava ficando sóbrio, me encontrando.
Tentei virar budista, mas não consegui fazer todos os sacrifícios. Eu
tinha um limite. Voltei pra Los Angeles, pra recomeçar minha carreira
de onde ela tinha parado. Por sorte, eu ainda tinha amigos na
indústria e eles me deram trabalho. Eu pensava muito em você. Queria
saber como você estava. Eu tinha te abandonado. Sabia que a
ambulância chegaria e que levariam você, mas isso não é absolvição.
Eu sei disso. Agora que tenho filhos, mal consigo acreditar em como
fui covarde. Mas, como eu estava dizendo… Voltei pra cá e procurei
Tracey. Não foi fácil encontrá-la, mas acabei conseguindo, e ela me fez
ir até um hotel horroroso onde vocês estavam morando, e nós
passamos muito tempo nos lamentando. Ela era a única, além de vocês
agora, que sabia o que eu tinha feito. Eu confessei pra ela naquela
noite, mas ela já desconfiava que tinha sido eu a ligar pra polícia. Nós
acabamos dormindo juntos. Você tem idade pra saber disso. Eu
acordei com você me olhando, parada no pé da cama. Você já estava
dormindo quando eu cheguei lá na noite anterior. Você é tão parecida
com a Caroline. Já era na época. Eu pensei: vou ver até onde isso com
Tracey pode ir. Nós tínhamos Caroline em comum. Tínhamos você em
comum. Você e eu nos divertimos por um tempo. Tracey e eu, nem
tanto. Nós dois acabamos percebendo que não éramos compatíveis.
Ela ainda tinha uma vida difícil e eu tinha mudado. Eu perguntei se
ainda podia passar tempo com você e ela disse sim, mas acompanhá-la
não foi fácil.
– Nós nos mudávamos muito – diz Ava.
– “Muito” não chega nem perto. Parece que a Tracey arrumava um
namorado novo a cada duas semanas. Em determinado momento,
quando eu comecei a me irritar, perguntei se ela deixaria você ficar
comigo por um tempo, enquanto ela se reestruturava, mas ela disse
não.
– Por quê? – pergunto. Não consigo evitar.
Ele me olha antes de se voltar de novo para Ava.
– Você a fazia se sentir segura – diz. – Foi o que ela me disse. Ela
disse que nunca iria longe demais enquanto você estivesse com ela.
Ela me disse que você salvou a vida dela de mais formas que ela
conseguiria explicar.
Ava balança a cabeça. Vejo que está lutando contra as lágrimas.
– Não é como ela se sente agora.
– Bem, não. Isso foi antes de todas as transformações dela. Acho que
o aa, algum guru de autoajuda ou Jesus é que salva a vida dela agora.
Ava parece surpresa com o amargor na voz dele.
– É – diz. – Exatamente. Por que isso aconteceu?
Ele se inclina para a frente, esconde a cabeça nas mãos. Por fim, se
encosta.
– Eu não sei todos os detalhes. Nós perdemos contato por cerca de
um ano, e ela me ligou e perguntou se eu podia me encontrar com ela
pra almoçar. Você estava na escola, acho. Ela estava usando muita
maquiagem porque alguém tinha batido nela. Ficou bem feio, eu
lembro, mesmo com o esforço para esconder. Ela queria dinheiro.
Precisava consertar o carro e ficar com você na casa dos pais dela, em
Arcadia, por um tempo. Eu dei o dinheiro e ela foi pra casa dos pais
uns dias depois.
– Eu me lembro de ter ficado lá. Eles tinham um quintal e muitos
livros.
– Isso. Vocês ficaram lá uns dois meses. Ela estava em recuperação e
achava que daria certo daquela vez. Ela estava se esforçando, e fiquei
aliviado de saber que você estava com os pais dela. Aí ela conheceu
um cara que disse que poderia ajudá-la e se mudou de lá. Pra Leona
Valley.
– Ela ainda está lá.
– Nossa – diz ele. – Acho que eu já sabia disso. Só não queria que
fosse verdade. Eu me casei sete anos atrás. No nosso primeiro ano de
casados, minha esposa se empolgou. Ela queria distribuir cartões de
Natal. Nós tiramos foto com gorro de Papai Noel e posamos com o
cachorro. Incrível, né? As coisas que a gente faz por amor. Ela me
pediu uma lista de endereços, e eu pensei em vocês. Dei seu nome e
endereço e ela enviou o cartão. Eu não sabia se você se lembraria de
mim, mas tinha esperanças de que sim. Mas aí a carta voltou. Alguém
tinha escrito “devolver ao remetente”, e tentei me convencer de que
não era a letra da Tracey, que era a caligrafia de um estranho, mas
acho que sabia. Secretamente, era o que eu esperava.
Ele olha para o relógio.
– Droga – diz. – Eu atrasei uma reunião pra ver vocês, mas não
consigo adiar mais.
Ava se levanta e eu também.
– Olha – diz ele, nos levando pelo corredor rumo ao saguão. – Eu sei
que pra você eu sou só uma lembrança distante. Talvez menos do que
isso. Mas pode manter contato comigo? Só de vez em quando. Me dá
seu endereço, minha esposa vai te mandar um cartão de Natal.
– Ela vai estar na sua indústria em breve – digo.
– Ah, é?
– Consegui um papel em um filme – diz ela. – Um filme pequeno.
– Não tão pequeno.
– Você puxou a sua mãe – diz Lenny. – Das melhores formas.
– Foi assim que nós te encontramos – digo.
Estamos no saguão agora, e Lenny faz o gesto de “um minuto” para
um grupo de jovens ávidos. Ele se vira para mim.
– Em A inquietação – digo.
Ele inclina a cabeça.
– Eu vi seu nome e nós demos um tiro no escuro.
– Caroline é a melhor coisa daquele filme – diz ele. – Vocês não
acham?
Nós concordamos e ele agradece e sorri para Ava, ainda com
arrependimento no rosto, antes de nos dar as costas e levar os homens
para dentro. Ele fecha a porta e estamos de volta no elevador prateado,
descendo para a rua.
Capítulo vinte

Preciso compensar o tempo perdido. Falo com Toby de manhã, conto


tudo sobre Sim e sim. Ele fica empolgado, mas percebo que também
fica em dúvida. Não conto sobre os atores famosos que vão participar.
Não conto que vou usar o apartamento dele. Mas conto minhas ideias,
e ele não parece tão incerto a respeito disso. Ele me dá parabéns.
Deseja sorte. Mostra algumas fotos das locações que encontrou em
Londres, e parecem opulentas e enormes, como deveriam mesmo ser.
Nós nos despedimos, eu fecho o computador e começo a guardar as
coisas dele.
Charlotte guarda dvds e livros; eu recolho os quadros das paredes,
os porta-retratos e souvenirs das viagens e lembranças dos filmes das
prateleiras. Charlotte tira fotos para nós sabermos onde colocar tudo
quando acabarmos de filmar. Empurro o sofá e enrolo o tapete peludo,
pronta para trocá-lo pelos que Rebecca encontrou no Rose Bowl. A
poltrona laranja fica, mas vou cobri-la com um cobertor de
padronagem geométrica em tons terrosos para aplacar um pouco a
cor.
Charlotte e eu embrulhamos a louça de Toby, que é moderna
demais para Juniper. Vamos usar os pratos e tigelas e canecas de
Rebecca e Theo, que foram feitos à mão e vieram de São Francisco.
São caros demais para Juniper, mas isso é cinema, afinal, e a sensação
de simplicidade que passam é perfeita.
– Ei – diz Charlotte. – Ava te ligou?
Ela está olhando para o celular e percebo que não sei onde está o
meu, o que só acontece quando estou concentrada nesse tipo de
projeto. Encontro-o embaixo de uma pilha de almofadas no sofá.
– Ligou – digo. – Duas vezes.
– Pra mim também – diz ela.
– Ela deixou recado?
– Não.
– Nem pra mim.
– A gente pode ligar pra ela depois – diz Charlotte, e coloco o
celular de lado e volto ao trabalho.
Alguns minutos depois, há uma batida na porta e Morgan entra.
– Você veio! – digo, e sinto a reprovação da Charlotte pelo meu
entusiasmo, mas não consigo me controlar. Morgan veio trabalhar no
aparato que vai deixar as plantas penduradas; aplicar papel de parede
em painéis removíveis. Em outras palavras: ela veio fazer meu sonho
virar realidade.
Mas só alguns deles.
– Você duvidou de mim? – Ela ri.
– Não – digo.
– Apesar de ter mil motivos pra duvidar – diz Charlotte.
– Oi, Charlotte – diz Morgan, ignorando o comentário dela.
Contrariada, Charlotte diz oi também.
Mostro a Morgan meus planos para o apartamento. Ela é a pessoa
perfeita para me ajudar porque ela já fez esse tipo de coisa um monte
de vezes. Ela sabe, por exemplo, como as plantas devem ser
penduradas para aparecerem em muitas cenas.
– Uma vez trabalhei em um cenário em que fiz um monte de
aplicações na parede perto do teto – diz. – Primeiro, eu botei um
molde e o pintei de dourado e azul. Ficou bem intrincado. E aí,
quando o filme saiu, nem apareceu. A câmera não chegou tão alto.
Uma coisa que você precisa fazer durante a montagem da cena é ir pra
junto do Charlie e olhar o monitor. Diz pra ele quando você quer que
algo apareça em cena, quando julgar importante.
– Eu posso fazer isso?
– Ah, pode – diz Morgan. – Esperam que você faça isso. E esteja
preparada pra ele te consultar sobre mudanças. Tipo, se ele estiver
tentando conseguir uma certa imagem, mas precisar que seja mais
simples, ou se houver um objeto na frente.
– Que bom que você está me dizendo isso.
– Tem mais – diz. – Mas, primeiro, vamos falar sobre o que você
quer pendurar.
Mostro os vasos que comprei, explico que vou pegar outros na casa
dos meus pais e no quintal selvagem do Theo e da Rebecca. Muitos
vão ficar na mesa baixa de madeira, no lugar da televisão do Toby, mas
quero um amontoado pendurado perto da janela, à direita, sem
bloquear a luz, mas capturando-a. Mostro a ela uma cordinha
vermelha que encontrei.
– Quero isso enrolado nos vasos, como se estivessem pendurados
em um gancho no teto.
– Vai contrastar bem com os verdes.
– E quero que fiquem em alturas variadas, e que sejam muitos, pelo
menos uns doze. Tem aquela cena em que ela está molhando as
plantas e chorando, lembra? Quero que as plantas não acabem nunca.
– Mas sem buracos no teto – diz ela.
– É possível?
– Tudo é possível.
Ela tira algumas medidas, rabisca algo e me diz que vai buscar
material.
– Nós temos um amigo que pode conseguir um desconto – digo. –
Me deixa ver se ele está trabalhando.
Volto a pegar o celular e vejo que tem uma mensagem de Ava: Vou
procurar a certidão de óbito da Caroline. Me encontra no centro?
Eu respondo: Hoje não posso. Te ligo de noite.
Mando uma mensagem para conferir se Jamal está no trabalho. Ele
está. Alguma chance de você poder compartilhar seu desconto?, escrevo.
Não posso perder esse emprego, responde ele. Mas vou adorar oferecer
um atendimento incomparável.
Eu falo para ele esperar aguardar Morgan; falo para Morgan pedir
para ser atendida por Jamal.
– Tá bom – diz ela. – Vou comprar tudo de que preciso e volto pra
cá. Mas, primeiro, vem até a picape. Eu tenho uma coisa que você
talvez queira.
Charlotte me olha do canto onde está embrulhando pratos em
exemplares velhos do LA Weekly. Ela acha que é uma tramoia de
Morgan pra ficar comigo sozinha, mas eu a ignoro e vou lá fora de
qualquer jeito.
Morgan está dizendo:
– Eu pensei nisso depois que você descreveu suas ideias para o
apartamento da Juniper, mas não quis falar nada caso não rolasse. Só
que aí, hoje de manhã, eu recebi uma ligação e…
E lá está o meu sofá: verde e dourado e macio, na caçamba da
picape da Morgan.
– Você pode usar? Não é problema levar de volta se você não puder.
– Sim – digo. – Eu definitivamente posso usá-lo.
Ela abaixa a porta traseira e nós carregamos o sofá juntas para a
casa de Toby, deixando-o na sala, e eu agradeço como se não fosse algo
muito importante. Como se fosse só uma coisa legal que qualquer um
faria.
Meu celular vibra com uma nova mensagem de texto: Eu tenho que
esperar duas horas! Queria que você estivesse aqui comigo.
Ah, não! Também queria estar aí, escrevo.
– Volto mais ou menos em uma hora – diz Morgan.
– Tudo bem – digo. – A gente se vê. – Mas estou distraída, pois
percebi que não sei o que Ava está procurando lá no lugar burocrático
onde está esperando.
Me avisa quando conseguir, escrevo, apesar de não saber por que ela
precisa da certidão de óbito da Caroline. Talvez ela só queira mais
encerramento do que Lenny pôde dar.

– Vamos pendurar os vasos – diz Morgan horas depois, quando já


voltou da loja de materiais, depois que já terminei umas dez pequenas
tarefas e ela construiu o dispositivo de pendurar no pátio e o instalou
na sala.
Nós penduramos as plantas, uma a uma, em vasos de argila e
porcelana e latão, laranja e branco e prateado, recheados com aquelas
plantas verdes folhosas. Ela abre a corda vermelha e eu coloco as
plantas dentro.
– Te ver trabalhar é incrível – diz ela. – Não consigo acreditar como
isso está ficando lindo.
– Eu não teria conseguido sem você.
Ela balança a cabeça.
– Você é muito melhor nisso do que eu.
– Não é verdade – digo.
– É sim – diz. – Eu tenho as habilidades, mas você tem a visão. Se eu
tivesse aceitado esse trabalho, esse apartamento pareceria um
apartamento normal, mas você está fazendo com que pareça um
mundo próprio. Se alguém acabar vendo esse filme, você será
celebrada por isso.
E não respondo em tom de flerte; falo de forma direta. Olho nos
olhos dela e agradeço. Porque, por mais que fôssemos ruins como
casal, como colaboradoras somos uma dupla perfeita.
Mas, por melhor que seja estar com ela agora, quando Ava chegar
mais tarde vai ser ainda melhor. Quero que ela veja o que eu fiz. Quero
ouvir sobre o dia dela. Quero ver o que existe entre nós agora que
desvendamos o mistério tanto quanto possível.

Mas quando Ava entra pela porta mais tarde, ela nem olha em volta.
– Não quiseram me dar uma cópia do atestado de óbito, mas eu
pude dar uma olhada – diz ela. – Em causa da morte diz
“envenenamento por drogas”, e eu perguntei o que quer dizer
exatamente, mas eles não sabiam.
Ela solta a bolsa e um monte de papeis e livros na mesa onde
estamos, e tento não ficar decepcionada por ela não notar, porque dois
dias antes era uma mesa chata que eu comprei por quinze dólares em
um bazar de quintal, mas agora eu botei ladrilhos verdes e azuis lindos
no tampo.
– Aí eu fui pra biblioteca pesquisar.
– Biblioteca – digo, sorrindo, pensando que isso a vai lembrar da
noite em que nos conhecemos, quando Charlotte e eu contamos que
foi na biblioteca que conseguimos as pistas que nos levaram a ela.
– É, e eu descobri uma lista de causas de morte, e um monte de
livros sobre causas de morte, mas são todos livros médicos e jurídicos,
então é impossível entender o que significam.
– Mas “envenenamento por droga” não quer só dizer overdose? –
pergunto.– Foi o que Frank e Lenny contaram. Né?
– É, mas olha todas essas variações.
Ela pega um livro e o folheia, coloca na pilha e pega outro,
murmurando coisas sozinha sobre saber que está em algum deles, e eu
me pergunto se ela ficou assim no abrigo depois que saiu da casa do
Frank e da Edie, o que devo fazer para tentar acalmá-la.
– Aqui! – diz. – Olha só. Quando uma overdose de drogas é a causa
da morte, às vezes está escrito “envenenamento por drogas não
intencional” e às vezes “envenenamento por drogas acidental”, mas o
da Caroline não tem essas palavras. É ambíguo. Pode ter sido
acidental. Talvez não tenha sido.
– Tudo bem – digo.
– O que você acha que quer dizer? – pergunta ela. – O que devo
fazer agora? Devo ligar pro Lenny de novo? Ele poderia me dar uma
lista das pessoas com quem eles andavam, gente que poderia ter
estado lá naquela noite. E eu poderia tentar encontrá-las e descobrir
quem esteve lá por último.
– O que você ia querer perguntar pra elas?
– Tem tanta coisa que a gente não sabe – diz ela. – Talvez tenha sido
acidental, ou talvez ela tivesse a intenção, mas e se alguém deu muito
pra ela de propósito? Eu devia ligar pro Lenny, né?
– Não sei – digo.
– Você não sabe se eu devia ligar pra ele ou não sabe o que eu devo
fazer agora?
Eu paro um momento. Poderia deixar rolar, dizer É, liga pro Lenny,
fingir que quero saber que segredos ela vai descobrir agora. Ela está
tão ansiosa que as mãos dela estão tremendo, e tenho vontade de dizer
o que ela quer ouvir.
Mas não posso.
– Eu não sei o que você está tentando descobrir – digo. – Não sei
aonde você espera chegar depois que tiver todas as respostas.
Há dor evidente no rosto bonito.
Estico a mão para pegar no braço dela, bem acima do cotovelo.
– Você acha que estou agindo como louca – diz ela.
– Não – digo. – É que nós já descobrimos tanto sobre ela.
Ela desvia o olhar para o meu, e sinto uma mudança entre nós. O
rosto dela está próximo e eu só precisaria colocar a mão no cabelo dela
e não haveria volta.
– Você não quer me beijar? – diz ela.
Os olhos dela estão grudados nos meus, convidativos, mas também
com raiva, e eu solto o braço dela e dou um passo para trás.
– Quero, sim – digo. – Quero. – Mas, quando ela coloca a mão na
minha cintura para me puxar para perto, eu digo: – Mas não agora.
Ela se retrai.
– Ah – diz ela, dando voltas, pegando as coisas dela. – Desculpa. Eu
não me encaixo bem na sua vida perfeita? Que burra – diz. – Eu fui tão
burra. Quando seu pai me levou para o escritório dele pra me mostrar
as coisas do Clyde Jones, deve ter sido pra ele se divertir. E tudo que
sua mãe disse naquela noite foi por pena. E você e Charlotte… vocês
estavam só desvendando um mistério. Você conseguiu suas respostas e
pronto. Acabou.
– Ava – digo. – Para.
Ela está tentando enfiar tudo na bolsa, mas é coisa demais. Está
tremendo e xingando e jogando um livro que não cabe com força no
chão. Mas desiste e fica de joelhos, e tenho vontade de chegar mais
perto dela, mas não sei se deveria.
Mas quero.
E é bem no momento que dou um passo na direção dela que
Charlotte abre a porta. Ela vê Ava encolhida no chão e fica paralisada
na entrada.
– O que está acontecendo?
– Eu estava indo embora – diz Ava.
Charlotte me olha, mas não digo nada porque não con­sigo falar.
Ava junta nos braços o que não conseguiu guardar.
Atravesso a sala para pegar o livro que ela jogou. Caiu aberto e as
páginas estão dobradas. Quando o entrego para ela, ela desvia o olhar.
Recupero a voz o suficiente para dizer:
– Acho que você não deveria dirigir agora. – Ela sai baixa e dócil. Eu
quase não a reconheço.
– Eu estou bem – diz ela. A raiva sumiu, mas ela parece tão cansada.
– Eu posso te levar – digo.
– Não, obrigada.
– Eu quero.
Ela faz que não e anda até a porta.
– Eu te levo – diz Charlotte, ainda junto à porta com a bolsa no
ombro. Esse é um dos motivos por que a amo. Ela não faz nenhuma
pergunta, e quando coloca alguns dos livros debaixo de um braço e
passa o outro em volta dos ombros de Ava, eu sei que ela está fazendo
aquilo por mim.
– A gente pode ir no seu carro – diz ela para Ava. – Em, vai me
buscar daqui a pouco.

Eu ando de um lado para o outro. Vou ao banheiro e lavo o rosto. Olho


meu reflexo no espelho por um minuto. Obrigo-me a ficar parada e
olhar.
E então dirijo até a casa de Ava e paro na rua. Pouco depois,
Charlotte entra no banco do passageiro.
– Ela está bem?
Ela dá de ombros.
– Jamal está lá?
– Eu liguei pra ele. Ele está a caminho.
– Vamos esperar aqui – digo. – Até ele aparecer.
Nós esperamos por muito tempo, sem falar, até que um ônibus para
e ele desce e vai correndo até a porta.
No curto trajeto de volta, conto o que aconteceu.
– Eu só quero ir pra casa dormir, mas tenho tanta coisa pra fazer –
digo.
Paro na vaga de Toby, mas estou cansada demais para fazer outra
coisa.
Charlotte estica a mão até a chave, desliga o motor. Sai do carro, vai
até o meu lado e abre a porta.
– Vem – diz. – Eu tenho que responder a uns e-mails e aí te ajudo
com alguma coisa. Você queria encher os potes da cozinha, né? Vamos
fazer isso juntas.
Eu me obrigo a sair do carro e a voltar para o apartamento, onde
Charlotte me diz como a mesa está linda e a engenhoca de pendurar
vasos também.
– Morgan está mesmo te ajudando – diz ela, e é a coisa mais legal
que ela disse sobre Morgan em mais de um ano.
Faço que sim.
– Fico me perguntando o que será que ela quer – acrescenta ela.
Quando Charlotte liga o notebook e vai para o banheiro, eu pego
farinha, feijão e cerejas desidratadas nos armários de Toby e pego um
conjunto de potes que compramos. Estou tirando as dobradiças e
portas dos armários da cozinha e enchendo as prateleiras de potes
para obter cor e luz.
Sei que eu devia lavar os potes, mas não consigo me obrigar a fazer
nada. Fico pensando em Ava dizendo Você não quer me beijar? Eu estava
querendo um momento daqueles, desejando que acontecesse, mas
nunca imaginei que também haveria raiva. Nunca achei que ela usaria
minha vida contra mim como uma espécie de arma.
E não achei que fosse dizer algo que a magoasse tanto quanto a
magoei hoje.
Charlotte sai do banheiro, me vê parada ali sem fazer a mais simples
das tarefas que tenho que fazer. Encosta-se na bancada ao meu lado.
– Eu mal a conheço – digo. – Mas ainda assim.
– Vem cá – diz ela e me dá um abraço. Fico por um segundo, apoio o
queixo no ombro dela.
Quando sinto que foi o suficiente, digo:
– Bom, vou lavar os potes.
Ela me solta.
Capítulo vinte e um

Quase uma semana se passa sem que eu tenha notícias de Ava.


Enquanto ela passa os dias ensaiando, eu mergulho nas vidas confusas
de faz de conta. Juniper e as plantas e a saudade. George e a
melancolia de cor coral. Compro coisas e pego coisas emprestadas e as
conserto. Trabalho com Charlotte e Morgan, depois perco Morgan
para A agência e Charlotte para Rebecca, que precisa dela cada vez
mais para todas as tarefas urgentes de última hora.
Na noite de sábado, na nossa última reunião técnica oficial antes de
as filmagem começarem, Charlotte liga para Ava para marcar um
ensaio. Atravesso para longe da sala para não ter que ouvi-las
conversando, me ocupo em separar as notas fiscais do dia e verificar
tarefas na minha lista de afazeres do tamanho da Bíblia. Faltam uns
toques finais, mas o apartamento de Juniper está completo, o que é
uma coisa boa, porque começamos a filmar em dois dias. Estou
mexendo nas coisas do cenário de George agora, que é bem mais
difícil do que o de Juniper, porque pude trabalhar no apartamento de
Toby sempre que queria, mas preciso fazer a maior parte da
preparação na casa de Frank e Edie sem passar a viver nela.
Estou riscando “porta-retratos pras fotos” quando Charlotte bate no
meu ombro, me entrega o celular e se afasta.
– Alô – digo.
– Quero pedir desculpas – diz Ava.
É possível superar uma voz dessas? Um dia, eu gostaria de poder
ouvi-la falar uma frase no telefone sem ter vontade de desligar, entrar
no carro e dirigir quantos quilômetros forem necessários para beijá-la.
– Não precisa – consigo dizer.
– Por favor, aceita meu pedido de desculpas – diz ela, rouca e doce
de um jeito inacreditável. – Você estava certa de achar que eu estava
agindo como uma louca. E não fez nada pra merecer nenhuma das
coisas que eu falei naquela noite.
– Tudo bem – digo. – Desculpas aceitas.
– Eu também quero dizer que não ando muito bem.
Eu faço que sim, mas ela não está me vendo.
– Você me conheceu em um momento difícil – diz ela.
– Acho que eu sou parcialmente responsável por isso.
– Talvez – diz ela. – Mas você também é parcialmente responsável
por torná-lo melhor.
Não pergunto o que ela quer dizer com isso porque tenho medo que
ela fale do dinheiro, ou que sabe um pouco mais da mãe, ou que ela
está a um anúncio de distância de se tornar uma celebridade
instantânea se decidir revelar que é descendente de um ator
conhecido por não ter descendentes. Em outras palavras, tenho medo
de que ela se refira a tudo o que eu queria para ela e nada a ver
comigo.
– Te vejo em breve – diz ela. – Não acredito que vamos filmar na
segunda.
– É – digo. – Todo mundo está empolgado com você.
– Espero que esteja tudo bem por você. Eu estar no filme.
– Claro.
O que quero dizer é o seguinte: Não importa que você esteja no filme; eu
estaria pensando em você o tempo todo de qualquer jeito. Eu tenho vontade
de dizer: Tudo me leva até você. Não só a carta e o obituário, os artigos e sua
data de nascimento. Mas também esse momento específico da minha vida. O
coração partido e a arte e tudo o que eu desejo. Tenho vontade de dizer:
Cada vez que acrescento um detalhe no apartamento, imagino você nele.
Mas o que digo é:
– Você vai ser uma Juniper maravilhosa.
– Então te vejo na segunda? – diz ela.
– Isso. Nos vemos na segunda – digo.
Eu arrasto Charlotte para fora de casa, dizendo:
– Nós temos tanta coisa pra fazer, nós temos que ir.
Quando estamos no carro, ela pergunta:
– O que foi aquilo?
– Você tem que contar para o Toby – digo.
– O quê?
– Você tem que contar pra ele o que sente. Precisa contar agora.
– Mas ele está na Inglaterra.
– Não quero nem saber.
Cada respiração minha parece áspera. Qualquer coisa poderia me
fazer chorar.
– Eu reli a carta do Clyde quando estava na casa da Ava. Lembra
que nós achamos que ele não disse nada? Não é verdade. Eu também
entendi isso errado. Ele diz tanto naquela carta. É sobre o perigo de
deixar as coisas não ditas. É sobre fracasso. Como ele pode se
encontrar com Caroline e não lhe dizer tudo que queria dizer? Nós
ficamos com tanto medo. Nós temos que ter coragem.
Eu sabia que um coração partido era uma coisa horrível, mas nunca
soube que podia sentir isso por uma garota que nem tinha beijado
ainda.
– Não sei o que eu deveria ter feito – digo. – Talvez naquele dia na
casa dela, depois que tive certeza do que sentia por ela, eu devesse ter
falado.
Eu me inclino para a frente e apoio a cabeça em cima do porta-
luvas. Não quero ser dramática, mas não consigo evitar.
– De que adianta esperar o momento certo se esse momento pode
nunca chegar? – digo. – E se o momento escapar na fração de segundo
que você se concentra em outra coisa?
Estico a mão para a bolsa de Charlotte e encontro o celular dela
dentro de um bolsinho.
– Meu Deus – digo. – Você é tão organizada.
Ela está me encarando com os olhos arregalados. Eu lhe entrego o
celular.
– Liga pra ele – digo, e saio do carro e deixo que ela faça tudo
sozinha.
Um minuto depois, ela bate na janela e eu entro de novo.
– Eu deixei uma mensagem.
– O que você disse?
– Eu disse que, sem pressão, mas que quero deixar registrado que
ele é meu crush desde o sexto ano. E que agora que eu me formei no
ensino médio, quem sabe a gente poderia sair qualquer hora dessas.
Dou uma risada e limpo as lágrimas que começaram a me trair e
descer pelo meu rosto.
– Emi – diz ela. – Me desculpa. Acho que te dei conselhos ruins.
Não consigo nem responder. Eu nunca soube que Charlotte poderia
estar errada, mas acho que ela pode ter errado nisso.
– Pareceu rápido demais, depois de tudo entre você e a Morgan. E
pareceu que Ava realmente precisava de amigos – diz Charlotte. – Mas
você ainda pode ser amiga dela, mesmo se for mais do que isso. E você
tinha razão. Ela é incrível. É divertida e interessante e inteligente e
legal. E linda. E talentosa. Eu assisti à gravação do ensaio dela outro
dia. Ela é muito talentosa.
– E sabe fazer bolos – digo, a porcaria das lágrimas ainda descendo
pelo meu rosto. – E eu acho que ela gosta de mim.
– Então vai atrás dela – diz. – Não precisa acabar ainda.
– Mas já está tudo tão complicado – digo. – E no telefone pareceu
que ela estava tentando resolver tudo pra gente poder seguir em
frente, trabalhar no filme juntas. Pras coisas não ficarem tão estranhas.
Tinha tanta coisa que eu queria dizer, mas não disse.
– Liga pra ela e diz.
– Não – digo. – Seria demais.
– Então liga pra ela e diz alguma coisa. Alguma coisa que abra o
canal entre vocês. Você pode ir devagar, mas devia se mexer.
Ela abre a porta do carro.
– Está bem?
Faço que sim e ela fecha a porta.
Eu ligo para o número de Ava.
– Oi – diz ela, e parece surpresa e feliz de me ouvir.
– Oi. Tem mais uma coisa que eu queria dizer.
– Ah, é?
– Quer dizer, tem muitas coisas. Espero que a gente tenha tempo de
conversar quando a filmagem acabar e tivermos voltado ao normal.
– Espero que sim – diz ela.
– Mas agora eu queria dizer o seguinte: eu quero saber quem você é.
Fora tudo isso que a gente está passando. Sem o mistério e o Chateau
Marmont. Eu achava que todo mundo ia querer aquele tipo de história
grandiosa e romântica se tivesse chance. Mas não era uma história, era
sua vida. E quando cheguei ao seu apartamento no dia que
encontramos Lenny e vi você e como você vivia, foi nessa hora que
entendi de verdade que, mesmo sem todas as pistas que juntamos e a
nova identidade que tínhamos feito pra você, você já seria alguém que
eu ia querer conhecer. É como o sofá! As melhores coisas não são
planejadas de forma perfeita. Não são ilusões. Não são maiores do que
a vida. Elas são a vida. Parte de mim sabia disso o tempo todo, mas
mesmo assim entendi errado. O que estou tentando dizer é que eu só
quero conhecer você. Você não precisa estar no seu melhor momento.
Não dá pra estar no melhor momento o tempo todo. Mas – repito – eu
só quero conhecer você.
Escuto-a respirando do outro lado da linha, o que me lembra que
ela está lá, que está ouvindo. Espero que tenha falado de um jeito
romântico e não de um jeito meio maluco. Eu ficaria de coração
partido se ela achasse que o que falei não faz sentido, então não dou
tempo para ela reagir.
– Eu preciso ir agora – falo e aí desligo.
Paro um momento para respirar e bato no para-brisa, mas Charlotte
não se vira.
Bato de novo com mais força, e ela levanta a mão para me dizer para
esperar um minuto, e vejo que está apertando o celular ao ouvido com
a outra mão. Quando ela se vira e desliga um minuto depois, ela está
sorrindo.
– Era ele? – pergunto.
Ela assente.
– O que ele disse?
– Ele disse que esperou por todo o ensino médio até eu me formar.
– Você está brincando?
– Não – diz ela, e aí se encosta na porta do carro e tem um ataque
histérico de risadas comparável apenas àquele na venda da
propriedade do Clyde Jones.
– Uau – digo. – Você e o Toby. Que fantástico.
– Não vem com sarcasmo – diz ela entre fôlegos. – Foi você que me
forçou a fazer isso.
Quando recupera a compostura, ela pergunta:
– Como foi com você?
– Não sei – digo. – Mas eu abri uma coisa. Ao menos, tentei.
– Isso é bom – diz ela.
Nós nos sentamos uma ao lado da outra e ficamos olhando pelo
para-brisa.
– Charlotte – digo. – Nós duas fizemos coisas importantes.
Precisamos comemorar, não acha?
– Champanhe! – diz ela.
– Sim! Mas como?
– A gente pode sair dirigindo por aí até encontrar alguém que venda
pra gente – diz ela, mas está claro pelo tom que a perspectiva não é
muito animadora. E me parece péssima também.
– Ah, porra – digo. – Vamos comprar sidra sem álcool.
Charlotte para em fila dupla em frente a uma loja na Abbot Kinney
enquanto eu corro lá dentro. Encontro a sidra em uma geladeira,
tristemente posicionada na prateleira embaixo do champanhe, mas
não deixo que isso me desanime. Vou até o balcão como se estivesse
carregando Veuve Clicquot em vez de Martinelli’s, e o homem paternal
atrás do balcão sorri aprovando minha escolha.
Ele abaixa a caneta e uma página do Times no balcão, e olho
esperando ver palavras cruzadas, mas vejo as listas de estreias do fim
de semana.
Ele me diz quanto devo, mas não consigo afastar o olhar da lista. Ele
circulou vários filmes de caneta vermelha.
– Por que você está circulando horários de filmes? – pergunto a ele.
– Estou planejando meu fim de semana – responde, com um
sotaque que não consigo identificar.
– Você vai ver todos esses?
– Vou.
Eu entrego o dinheiro.
– É tipo um fim de semana especial de cinema pra você?
– Não, é minha rotina. Lá de onde eu venho, a gente tinha que
esperar meses, às vezes anos pra ver filmes americanos. Agora, eu vejo
no fim de semana de estreia.
Abro um sorriso lento e estudo o rosto dele. Está iluminado com o
amor pelo cinema. Eu me viro devagar e olho o mercado em que devo
ter estado mais de dez vezes, mas no qual nunca reparei. No início
daquele projeto, eu provavelmente o teria descartado. Não é nada
romântico. Não tem nada de bonito nele. Mas a luz é boa. As
hortaliças são frescas e coloridas, os corredores amplos e carregados. É
grande o suficiente para a equipe, mas pequeno o suficiente para
parecer íntimo, e consigo ver como aproveitar os charmes humildes
dele.
– Meu nome é Emi – digo para ele.
– Hakeem – diz ele para mim.
– Quero te contar sobre o filme no qual eu estou trabalhando. – E
dez minutos depois, entro no carro de Charlotte com mais um motivo
para comemorar.

Na manhã de domingo, meu telefone toca. É Ava.


– Lembra que você disse que eu podia ligar quando precisasse de
um favor?
– Lembro – digo.
– Ainda está valendo?
– Jamal está trabalhando? – brinco, e fico aliviada quando ela ri.
– Não – diz ela. – Mas ele também vem. Isso é um sim? Posso te
pegar às quatro?
– Pode – digo.
– Charlotte está com você?
– Não, cada uma dormiu na própria casa esta noite. O apartamento
é território proibido até terminarmos de gravar.
– Tudo bem então – diz ela. – Vou ligar pra ela agora.
Passo um tempo no apartamento, à tarde, regando as plantas,
rearrumando pilhas de livros, escrevendo uma lista de compras para
prender na geladeira, algumas anotações de botânica em cadernos
que espalho pela sala. Os melhores designers de produção são os que
fazem o set parecer tão real que, se não soubéssemos que não,
acharíamos que os personagens continuaram morando lá mesmo
depois das gravações.
Às quatro, Ava e Jamal param na frente da minha casa e entro no
banco de trás. Dou instruções para irmos à casa de Charlotte, e nós
quatro pegamos a via expressa, e reconheço a direção na qual estamos
indo.
– Um pedido – digo. – Nada de violar a lei na véspera do início das
filmagens.
– Combinado – diz Ava. – Falando em filmagem, eu vi umas fotos do
apartamento. Está lindo.
– Obrigada.
– Se der tempo antes de rodarmos, você pode me levar lá e explicar
tudo? Eu quero saber o que vou estar vendo. Tipo aquelas fotos presas
no quadro de cortiça perto das plantas penduradas, sabe? Quem são
aquelas pessoas? Coisas assim.
– Claro – digo. – Vai ser ótimo. Eu te explico tudo.
Quando saímos da 405 e entramos na estrada estreita que leva ao
deserto, Ava diz:
– Isso provavelmente não vai ser muito divertido. Mas vocês não
precisam fazer nada. Só fiquem comigo.
Todos nós dizemos que tudo bem, e meu coração está batendo
muito forte porque estou preocupada por ela.
Momentos depois, paramos na frente da casa de Tracey e saímos do
carro, quatro portas batendo. Não chegamos a andar muito porque
Tracey está do lado de fora, molhando o gramado.
Ela nos vê e seu rosto fica sério. Ela parece mais jovem do que eu
esperava, vestindo calça jeans e uma regada rosa de gola alta, o cabelo
castanho preso em um rabo de cavalo e uma luva de jardinagem em
uma das mãos. Ao seu lado, a água jorra da mangueira até a grama.
Ela atravessa o gramado sem dizer nada e desliga a água.
Jamal, Charlotte e eu ficamos na calçada ao lado do carro e Ava vai
até o porta-malas do carro e pega duas caixas. Reconheço que são as
de Tracey. Estão lacradas, amarradas com fios de flores de papel.
Ela as coloca na grama e dá alguns passos na direção de Tracey,
paralisada no caminho ao lado dos vasinhos de flores cor-de-rosa.
Estão organizadas de forma regular agora, um pouco mais espaçadas
do que antes para compensar o vaso que Ava quebrou.
– Oi – diz Ava.
Tracey olha por cima do ombro dela, para nós.
– Quem são essas pessoas? – pergunta ela.
– Meus amigos – diz Ava.
Tracey fecha os olhos e balança a cabeça.
– O quê? – diz Ava.
Eu também estou confusa. Nós estamos usando roupas normais.
Parecemos normais, na minha opinião.
Tracey fica balançando a cabeça sem parar.
– Sério, mãe? – diz Ava. Tracey não está olhando para ela, e Ava
chega para a direita e se coloca na linha de visão da mulher.
– Você invadiu a casa – diz Tracey.
– Eu tentei usar a minha chave.
– Você remexeu nas minhas coisas. As minhas coisas pessoais.
– Eu precisava de uma coisa.
– De quê?
– Da minha certidão de nascimento.
– Mas você levou um monte de coisas.
– Eu queria saber sobre Caroline.
Tracey balança a cabeça de novo e eu desejo poder fechar os olhos
para não ter que ver. Achei que Tracey pudesse sentir algum
arrependimento.
– Eu tinha tantas perguntas – diz Ava, deixando a voz lenta e
regular, tentando falar como alguém que as pessoas escutam. – Você
nunca me dava respostas, e eu tentei me convencer de que não eram
importantes. Mas claro que é importante. Caroline me amava. Você me
amava. Eu li seu diário. Você disse que eu era um presente.
Mesmo de longe, vejo o corpo de Tracey se contrair por inteiro.
– Você não tinha o direito de remexer nas minhas coisas.
– Você disse que eu salvei a sua vida.
– De que você está falando?
– Eu encontrei o Lenny.
As mãos de Tracey voam para o rosto. Quando ela as abaixa, os
olhos estão arregalados, fora de si.
– Você não tem o direito – sibila. – Você tem que deixar o passado
no passado.
– Eu tenho o direito. É a minha vida – diz Ava. E me lembro dos
olhos cansados e tristes de Frank e de que ele foi a primeira pessoa a
contar a Ava a verdade sobre o que tinha acontecido.
– Eu preciso deixar o passado pra trás – diz Tracey baixinho.
– Mas eu tenho o direito de saber a minha origem – diz Ava. – Estou
descobrindo um monte de coisas que nunca soube. Uma coisa que eu
queria fazer era te agradecer por me acolher. Sei em parte pelo que
você passou. Sei que foi uma coisa muito difícil.
– Eu não quero falar sobre isso. Era a minha vida antiga.
– Mãe – diz Ava. – Por favor. Nós só temos uma vida. Esta vida.
Tracey se vira, como se fosse entrar em casa.
– Mãe – diz Ava. – Eu não transei com Malcolm. A gente nem estava
na sala da escola dominical. Estávamos do lado de fora. E nós só
conversamos.
Tracey não olha para ela, mas Ava continua falando mesmo assim. E
me lembro do que ela me disse quando estávamos pegando cerejas,
que ela deu a Tracey motivos para rejeitá-la.
– Eu não furtei nada da farmácia. Sabe aquela maquiagem que você
encontrou no meu banheiro? Foi a Jessica que me deu. E sabe aquela
noite em que você foi me procurar no meu quarto? Eu estava com
amigos no cinema. Não estava fazendo nada que falei que estava
fazendo.
– Por que você me torturou daquele jeito? – pergunta Tracey. – Você
foi tão cruel comigo.
– Eu estava te dando motivos pra não me amar – diz Ava. Eu não
sabia na época, mas agora entendo.
Espero que Tracey ceda nessa hora, que garanta a Ava que a ama,
mas ela não diz nada. Só fica olhando para a filha parada ali, chorando
e tentando se explicar.
A porta se abre e um garoto aparece.
– Jonah! – diz Ava, e dá um passo na direção dele, mas Tracey se vira
e berra:
– Volta lá pra dentro!
Jonah fica paralisado, olhando para a mãe e para a irmã, e por um
momento eu acho que ele talvez a desafie, que ele mostre para Ava
que é da família dela, mas ele recua e a porta se fecha devagar, mas
não toda.
– Eu não seduzi a Lisa – diz Ava. – O que aconteceu entre nós
aconteceu porque nós duas quisemos.
Tracey balança a cabeça.
– Como se isso fosse tornar alguma coisa melhor – diz ela.
– Você não vai acreditar nisso, mas eu descobri que tinha um avô, e
ele deixou um monte de dinheiro pra mim. Eu estou bem. Você não
precisa se preocupar comigo. – Ela está se esforçando para não chorar
e é muito sofrido olhar para ela. – E vou participar de um filme. Eu fiz
um teste. Muitas outras pessoas queriam o papel, mas sabe de uma
coisa? Me escolheram.
Tracey está balançando a cabeça. Balançando, balançando.
– Acho que você tem medo por mim. Talvez você ache que eu vou
cometer os mesmos erros que você cometeu. Mas eu não vou. Eu estou
muito bem. Só sinto falta de ter uma família.
A porta se abre de novo e Jonah sai, lágrimas descendo pelo rosto, e
ele anda até Ava, chega perto, mas não toca nela. Por um momento, ele
fica entre Tracey e Ava, como se quisesse ser uma ponte. Ele abraça
Ava rapidamente, mas com força, e volta para dentro de casa,
fechando a porta completamente desta vez.
– Mãe – diz Ava quando consegue voltar a falar –, você passou por
muitas coisas difíceis quando era criança. Tudo bem. Fez muita coisa
boa também. Você me acolheu. Teve Jonah. E olha só pra nós. Nós
estamos bem. As coisas estão bem.
– Você está enganada – diz Tracey. – As coisas não estão bem. – Ela
solta um soluço e cobre o rosto. – Talvez eu esteja sendo punida.
– Eu me esforço para ser uma boa pessoa – diz Ava. – Eu queria que
isso pudesse ser suficiente pra você.
Mas Tracey se vira e entra em casa sem nem olhar para trás, sem se
despedir.
Ava se vira e anda na nossa direção, entorpecida. Ela passa por nós
ali parados e entra no banco da frente. Quando dá a partida, nós
entramos também. Ela dirige pelo quarteirão, dobra a esquina, e Jamal
interrompe o silêncio.
– Olha – diz ele. – Eu não gosto de falar mal sobre as famílias das
pessoas, mas preciso tirar esse peso das costas. A sua mãe tem
problemas sérios. Sabe? Você não acredita em Deus do mesmo jeito
que ela. E daí? Você gosta de garotas. E daí, porra? Ela precisa acordar
e entender que não pode decidir tudo sobre você. Quem perde é ela,
cara – diz. – Desculpa, mas eu tinha que falar. Quem perde é ela,
porra.
Sem aviso, Ava para no acostamento. Puxa o freio de mão e se
inclina na direção de Jamal e esconde o rosto no ombro dele. O corpo
treme. Ela treme e treme, e quando enfim chora, o som nem se parece
com um choro. Não parece aquela noite na nossa sala com Clyde Jones
olhando-a pela tela. Não parece uns minutos antes, no gramado da
Tracey. Não chega nem perto. São os ofegos que fazem eu e Charlotte
darmos as mãos, que me fazem lutar para não chorar. A tragédia não é
minha. Não sou eu que neste momento tenho certeza de que estou
sozinha no mundo. Ela tem a nós, eu sei, mas mesmo com tanta gente
falando que amigos são como família, eu sei que, na verdade, não são.
Pelo menos não com dezoito anos. Não quando às vezes você precisa
da sua mãe.
Eu não sei o que fazer, mas ela nos trouxe para estarmos com ela
nesse momento, então, sem pensar demais, sem me perguntar se vai
ser bom, eu me estico entre os assentos e coloco a mão nas costas dela
enquanto ela chora. E aí, logo em seguida, Charlotte coloca a mão no
ombro dela.
Sei que é só um gesto, mas espero que seja alguma coisa.
E, depois de um tempinho, eu digo:
– Me deixa dirigir pra casa. A gente pode pedir comida do Garlic
Flower.
Ava funga.
– Eu nem tenho pratos suficientes – diz ela. – E o seu apartamento é
um cenário de filme.
– A gente pode ir pra casa dos meus pais – digo. – Vamos pra lá.
Ela faz que sim, abre a porta e nós trocamos de lugar.

~
Charlotte liga para o restaurante enquanto estou dirigindo pelo
deserto de volta para a cidade, e chegamos em casa na mesma hora
que Eric.
– Sincronização perfeita – diz ele. Entrego o dinheiro e ele me passa
uma sacola cheia de comida quentinha, sopa de ovo e mu shu e
macarrão. Isso me aquece o coração.
Meus pais não estão em casa, então levamos tudo para a sala
quando abro a porta.
– Vamos ver televisão – diz Jamal. – Alguma série. Algo brega.
Nós comemos vendo Melrose, nos perdemos na moda horrenda dos
anos 1990, nas provações diárias dos personagens jovens adultos que
nadam e trabalham e espiam os vizinhos. Ava não está rindo, mas está
comendo. Considerando tudo, ela parece bem.
Olho para a tela, mas só consigo pensar em nós. Nós estávamos à
beira de ficar juntas, depois à beira de sermos estranhas de novo. Mas
o que somos agora?
Acho que eu estava torcendo por uma história de amor de cinema.
Tipo Clyde a cavalo galopando na direção da garota entre uma nuvem
de poeira e espinheiros. “Ora, oi.” O sorrisinho arrogante. A garota
apertando os olhos em direção ao sol depois de ter esperado um
tempão para ser descoberta.
Mas nosso filme teria sido mais noir moderno do que faroeste: duas
garotas em Los Angeles solucionando um mistério. Uma estrela
falecida e enigmática. Uma mulher bonita, drogas e sexo. Nós
nadaríamos na piscina do Marmont, dirigiríamos pelo Sunset
Boulevard, o cabelo voando na brisa dos carros passando. Um caso
secreto de amor, beijos no trailer da Ava entre a gravação das cenas,
desviando dos paparazzi. Tudo parecia incrível e tão pouco era real.
Mas isto é.
Isto é.
Eu achava que poderia ter uma história de cinema, e tive em partes.
Mas sentada aqui na casa dos meus pais, com Ava tão próxima de
mim, comendo chow fun e vendo Melrose, percebo que todos os
cenários e adereços e interpretações, os roteiros que levam anos para
serem escritos; os ângulos de câmera perfeitos e a iluminação
complicada, os diretores que pedem tomada atrás de tomada até ficar
certo, as projeções nas telas enormes de cinema, tão mais majestosas e
mais barulhentas do que a própria vida, tudo é feito na esperança de
retratar o que estou sentindo agora.
Por mais que eu quisesse uma história de amor de filme, eu sei
agora que os filmes apenas tentam capturar esse tipo de amor.

Jamal vai embora, volta para o abrigo no horário que precisa.


Charlotte vai para casa ficar com a mãe.
– Eu sei que você está cansada – digo para Ava. – E você pode dizer
que não. Mas eu tenho que ir ao cenário mais uma vez e adoraria que
você fosse comigo.
Ela me segue até a casa de Toby. Estacionamos lado a lado e
atravessamos o pátio e chegamos juntas à porta dele. Eu sabia desde o
começo que queria que o apartamento da Juniper parecesse um lugar
habitado e tentei fazer com que parecesse legítimo. Mas nem as pilhas
de livros e a cestinha ao lado da porta com a correspondência toda são
suficientes.
Ava se vira para mim, os olhos rosados, cansada demais até para o
sorriso habitual.
– Não precisamos nos demorar – digo. – Nós nem precisamos falar.
Eu só estava pensando que talvez você pudesse passar um tempo aqui.
Tipo, morar aqui. Alguns minutos já ajudariam.
Ela assente. Deixa a bolsa cair no chão.
Eu me sento em uma cadeira de canto que Morgan forrou com
tecido verde-limão e vejo Ava dar uma volta lenta pelo espaço. Na
cozinha, ela pega uma jarra branca esmaltada que pertence a Theo e
Rebecca e a enche na pia. Uma a uma, ela rega as plantas e, quando a
jarra está vazia, ela a coloca na beira de uma prateleira, ao lado de
uma samambaia pendurada.
Ela olha os livros e coleções de poesia e pega um. Twenty-one Love
Poems, de Adrienne Rich, tirado, como a maioria dos outros livros, das
estantes do escritório da minha mãe. Ela tira os sapatos, se senta no
sofá e lê por vinte minutos. Coloca o livro aberto virado para baixo na
mesa de centro. Faz uma xícara de chá, contemplando alguma coisa no
interior da caneca de cerâmica. Quando coloca o saquinho de chá na
pia, algumas gotas caem na bancada. Ela não as limpa. Atravessa a sala
e, enquanto bebe, observa os retratos. Olha por muito tempo para um
em especial. Eu o encontrei sozinha no Rose Bowl quando estava
procurando coisas para a casa do George. É um desenho de um jovem
feito com carvão, e algo na expressão dele me lembrou de quando
Clyde era muito jovem. Quando ela passa o dedo na borda da
moldura, o retrato fica torto, só um pouquinho.
Ela toma um último gole de chá e coloca a caneca na pia. A bolsa de
couro está esperando na entrada.
– Tchau – diz para mim, e sai descalça pela porta.
Capítulo vinte e dois

Nós filmamos hoje.


Acordo na minha cama bem antes de o alarme tocar. Todo mundo
vai se reunir na casa do Theo e da Rebecca para tomar café e fazer
uma revisão final das cenas que queremos rodar, mas tive permissão
do Theo para escapar da reunião e ir direto para o apartamento.
Quero percorrê-lo uma última vez para ver se tudo está em ordem
mesmo.
Na cozinha, minha mãe está cozinhando de terno.
– Você precisa tomar um café da manhã reforçado, querida. É um
dia tão importante pra você!
Ela está fazendo sua receita de panqueca, as melhores panquecas
do mundo.
– Eu te amo – digo para ela.
– E eu te amo, minha filha forte e talentosa.
Quando eu era pequena, às vezes a minha mãe me mandava fazer
afirmações antes da escola. Ela queria me incutir uma crença feroz no
meu próprio potencial. Então eu ficava me olhando no espelho e
repetia as coisas absurdas que ela dizia para mim. Mas quem sabe?
Talvez tenha feito algum bem. Eu como e conto para os meus pais um
pouco do que aconteceu com Ava e muito sobre o filme.
– Nós estamos sentindo a sua falta – diz meu pai. – É bom ter você
em casa de novo.
– É – digo. – É bom.
Eles me atrasam um pouco, mas sou a primeira a chegar mesmo
assim. Estaciono, destranco a porta e entro, novamente impressionada
com a diferença de uma semana antes, e pelo fato de que, mesmo sem
dinheiro e com pouca ajuda e pouca experiência, eu consegui deixá-lo
exatamente como queria que ficasse. Em pouco tempo, ouço outro
carro parar. Uma batida de porta. Passos. Eu só queria um tempinho
sozinha antes de todo mundo chegar, mas acho que estão todos
empolgados e nervosos e prontos para começar.
Há uma batida suave antes de a porta ser aberta. Não é todo mundo.
É Ava.
– Oi – diz ela. – Eu queria achar você antes de a gente começar. – Ela
respira fundo. – Obrigada de novo por ter ido comigo ontem.
– Obrigada por querer que eu fosse.
Ela assente, tira uma mecha de cabelo do rosto.
– Como você está? – pergunto. – Depois de tudo?
– Bom, eu não dormi muito – diz ela. – Fiquei a noite toda acordada,
pensando.
– Na Tracey?
– É – diz ela. – Mas também em você. Naquela noite em que eu vim
aqui, depois que eu vi a certidão de óbito da Caroline, você me
perguntou o que eu esperava tirar de tudo isso. E doeu, porque estava
óbvio, não estava?
Eu faço que não.
– Não sei – digo. – Eu devo estar deixando alguma coisa passar,
porque não é óbvio pra mim.
– Eu fiz aquilo por você – diz ela. Ela prende o cabelo atrás da
orelha. Respira fundo. – Eu tenho tão mais do que já tive em toda a
vida – diz ela. – Sei de onde eu venho. Tenho um apartamento meu e
tenho Jamal, que sei que vai ser meu amigo pra sempre. Tenho
dinheiro. Tenho este filme, e todas as portas que podem se abrir se eu
for bem. Mas mesmo assim. É difícil deixar pra trás o que por um
tempo eu fui pra você. Eu nunca tinha sido o grande mistério de
alguém. Duvido que volte a ser. Não é nem que eu queira isso pra
mim, mas foi incrível ser tão especial por um tempo. Você me achar
especial.
– Mas você foi mais do que isso pra mim – digo. – O mistério foi só o
início.
– Eu sei disso agora. Mas entrei em pânico. Nós vimos Lenny e ele
explicou todas aquelas coisas sobre as quais eu sempre conjecturei,
mas eu só conseguia pensar que não estava pronta ainda. Eu não
queria que acabasse pra você.
E então as palavras saem mais rápidas, mais urgentes:
– Olha, eu não sei o que você sente. Mas só quero dizer uma coisa, e
talvez eu pareça extremamente egoísta ou irracional, mas vou falar
mesmo assim.
Sinto que paro de respirar.
Ela respira fundo.
– Eu não consigo parar de pensar em você. Não quero parar de
pensar em você. E você é uma pessoa incrível que faz um monte de
coisas maravilhosas. Você tem um trabalho que eu nem sabia que
existia e todo mundo fala de você como se você fosse um gênio. Você
tinha que ouvir o pessoal hoje de manhã falando sem parar sobre este
cenário, e é tudo tão merecido. Hoje eu só preciso ser razoável, porque
esta sala sozinha é suficiente pra partir corações. E você tem uma vida
maravilhosa com seus pais e seu irmão mais velho gente boa e
Charlotte e todos os seus filmes e discos e conhecimento surreal sobre
a cidade. Quando eu me comparei a você daquele jeito, quando falei
sobre a sua vida perfeita, o que eu estava tentando dizer era que eu
queria me sentir à sua altura. O problema era que eu não me sentia
assim. Mas apesar de só ter se passado uma semana, eu entendi. Pode
parecer loucura, mas apesar de você ser uma garota incrível, artística e
genial, eu me sinto merecedora de alguém como você.
Eu balanço a cabeça, pois não acredito que ela esteja dizendo essas
coisas.
– Claro – digo. – Claro que você é.
Tudo parece embaçado. Como se houvesse uma vibração em volta
de mim, e não é possível que ela esteja me dizendo essas palavras, mas
aqui está ela, dizendo-as, olhando para mim com aqueles olhos verdes
dentro dos quais eu ando tentando não me perder desde que nos
conhecemos.
– Mas espera – digo. – E se você ficar famosa?
Ela balança a cabeça e ri.
– Eu não sei de que você está falando.
– Quando todo mundo souber sobre Clyde e…
– Eu não vou contar sobre o Clyde. Eu obtive algumas respostas e
tenho a herança, e sempre serei grata por essas coisas. Mas não quero
tirar mais nada disso. Não quero o mundo falando dele e da minha
mãe.
– Tudo bem, mas esse filme vai estourar. Eu sei que vai. E aí, como é
que eu fico? Mesmo tirando o Clyde, você vai sair na capa da Vanity
Fair, e eu vou ficar nos bastidores enquanto o mundo todo se apaixona
por você.
– Digamos que eu saia na Vanity Fair – diz ela. – Provavel­mente não
vai acontecer, mas vamos fingir que vai. Estamos supondo o quê?
Daqui a um ano?
Faço que sim.
– Tudo bem. Daqui a um ano. E a entrevistadora se aproxima e
estamos lá, juntas. E ela começa dizendo algo do tipo: Ava Garden
Wilder e a namorada dela, a designer de produção Emi Price, estão
tomando limonada no terraço da cobertura dela.
Eu nem sei o que responder.
– Soa bem, né?
Eu faço que sim. Soa bem.
– Na última vez que fiz isso, eu estava me sentindo péssima, e não
fui muito gentil e não estava preparada pra amar ninguém. Você estava
certa de dizer não e vou entender se disser não de novo, mas espero
que não diga.
Ela se aproxima um passo de mim.
– Você não quer me beijar? – pergunta.
Ela sorri só um pouco, um sorriso esperançoso e doce, mas junto
dele há aquela confiança que acaba comigo.
Eu digo sim e ela diz sim? E eu assinto e ela pega na minha cintura
com uma das mãos e eu toco o rosto dela com a minha, naquele lugar
em que a luz do sol pousou no dia em que a vi de verdade.
Não nos beijamos na mesma hora. Por um momento só nos
olhamos, o momento em que, se estivéssemos em um filme, a música
começaria. E, cercadas de todos os meus detalhes cuidadosos, tudo
ainda um pouquinho mais perfeitamente organizado do que estaria
na vida – as plantas que cascateiam pela parede nos vasos
encantadores, as cortinas azul-marinho e os potes coloridos, o sofá de
conto de fadas com as vinhas douradas e almofadas macias –, e o rosto
de estrela de cinema da Ava, o nariz do Clyde Jones e as sardas e os
olhos verdes lindos, isso poderia ser uma cena em um filme que todo
mundo deseja ver. O momento em que o que se deseja se torna o que é
seu.
Quando inclinamos o rosto cada um para um lado, fazemos do jeito
perfeito dos filmes: sem reposicionamento desajeitado, sem narizes
esbarrando. Eu juro: dá para ouvir o volume da música aumentando.
Mas aí.
Nossos lábios se tocam. A música imaginária emudece. A sala é só
uma sala e nós somos os milagres. Ela tem a boca quente e humana e
macia, a mão dela aperta com força e insistência as minhas costas, os
seios pressionam os meus. Minha mão passa de leve pelo contorno
delicado da mandíbula dela; sinto o sussurro do cabelo dela nos meus
dedos quando nos beijamos com mais intensidade.
Nós amamos filmes porque eles nos fazem sentir alguma coisa. Eles
conversam com nossos desejos, que nunca são pequenos. Eles nos
permitem fugir e sonhar e encarar olhos lindos e enormes demais.
Eles nos enchem de vontades.
Mas também.
Eles nos dizem para lembrar, eles nos lembram da vida. Lembrem,
dizem eles, como um coração partido pode doer. Lembrem a morte e o
sofrimento e as complexidades de viver. Lembrem como é amar
alguém. Lembrem como é ser amado. Lembrem o que estão sentindo
neste momento. Lembrem isso. Lembrem isso.
Do lado de fora, carros estão se aproximando, motores sendo
desligados, um atrás do outro. E há portas batendo e um monte de
vozes familiares, e todos parecem empolgados e ansiosos e também
felizes. Logo eles estão entrando, e Ava e eu não estamos mais
sozinhas, mas a sala está cheia do entusiasmo de um começo.
Nós nos afastamos e Ava sorri, e o rosto dela está corado e sinto um
nó de euforia no estômago quando percebo que vou poder beijar esse
rosto de novo quando o expediente acabar.
Eu vou poder segurar a mão dela.
Vou poder falar com ela sempre que quiser.
Vou poder querê-la sem questionar se ela também me quer.
Ava é levada por Grant e Vicki, e reparo que Charlotte está me
observando do outro lado da sala. Ela olha de Ava para mim e eu faço
que sim. E viver é lindo. E ela sorri, porque ela sabe.
As luzes já estão montadas. A câmera do Charlie está no tripé, a
cena de abertura enquadrada. No quarto, Grant está maquiando Ava
enquanto Vicki está um pouco afastada, avaliando. Começo os últimos
detalhes para deixar o set perfeito. Olho no monitor do jeito que
Morgan me explicou, e nossa primeira cena está como eu desejava.
Preparo os primeiros adereços: um dos pratos de cerâmica com um
pedaço de torrada, uma caneca de cerâmica com chá de hortelã.
Minha torrada fica um pouco escura demais, e quando Ava a vê,
alguns minutos depois, ela sorri.
O cabelo dela está alisado, caindo sobre os ombros. Os olhos estão
destacados com delineador marrom cintilante e os lábios estão
brilhando.
Vou poder fazer torrada para ela de manhã.
Vou me esforçar para acertar.
– Pronto – diz Theo. – Ava, lembra, podemos levar o tempo que for
pra acertar essa cena. E não precisa pensar demais. É só Juniper
existindo no apartamento dela. Estamos começando a conhecê-la
pelas ações dela e pelo ambiente, então, se você puder, é só agir como
se estivesse em casa.
Ava assente. Eu a vejo pelo monitor. Queria poder dizer para Theo
que o conceito de casa nem sempre é simples. Não é a direção
reconfortante que ele pretendia. Mas, na tela, vejo Ava olhando em
volta do cenário que criei para ela. Ela vai de um lugar para outro,
pegando os objetos de uma garota imaginária. E me olha.
– É – diz ela. – Estou sentindo isso.
– Ótimo.
Ava se senta à mesa com ladrilhos. Ela está com um livro de poesia.
Está com a torrada e o chá.
– Muito bem – diz Theo. – Estamos prontos?
– Estamos – diz Michael, segurando o equipamento de som.
– Ahã – diz Charlie atrás da câmera.
– Certo – diz Theo. – Câmera.
– Câmera rolando.
– Som. Cena três. Tomada um. Ação.
A sala prende a respiração. Ava vira uma página e lê em silêncio.
Em poucas semanas, Toby vai voltar para casa e vai dizer E aí, me
conta o que vocês fizeram. E eu vou mostrar essa filmagem, e vai estar tão
profissional, tão linda. Pode ser que ele demore alguns segundos para
reconhecer que os retratos de estranhos estão nas paredes dele. Que
seja a mesa dele, escondida debaixo de uma toalha amarela vibrante.
As janelas com cortinas azuis em vez das persianas de sempre.
Ele vai sorrir, vai dizer Você fez um filme, claro, que perfeito. E eu vou
dizer Não, não é isso. Ele vai inclinar a cabeça, esperando mais. Eu vou
levar o tempo que precisar, vou deixá-lo imaginando.
E vou dizer Eu me apaixonei.
Agradecimentos

Apesar de sentir interesse há algum tempo em escrever uma história


de duas garotas se apaixonando, foi só quando eu fui a Minnesota, no
outono de 2011, que decidi com certeza que faria isso. Eu estava
passando alguns dias em um subúrbio de Minneapolis, visitando uma
escola de ensino médio que tinha escolhido meu primeiro livro, Hold
Still, como leitura escolar. Como parte da minha visita eu me reuni
com a Gay Straight Alliance [grupo estudantil voltado para a discussão
de temas de interesse dos membros LGBTQIA+ do corpo discente] da
escola. Sentados em um círculo grande na biblioteca, os alunos me
contaram sobre suas vidas e pediram para ouvir a minha história. Eles
me ensinaram como é importante compartilhar histórias sobre amor e
esperança, uma lição pela qual eu agradeço à GSA de Champlin Park;
aos alunos da Champlin Park High School; a Terry Evans, especialista
em mídia extraordinário; e a todos os membros do comitê do RHRR
do passado e do presente.
Katie Byron não só é minha designer de produção favorita, mas é
alguém a quem eu tenho muito que agradecer por este livro. Amiga
próxima da minha querida amiga Vanessa Micale, foi Kate que
procurei quando percebi qual seria a vocação da Emi. Em uma série
de e-mails apaixonados e esclarecedores, Katie descreveu cada função
do departamento de arte de um filme. Ela me contou os extremos a
que tinha chegado trabalhando em filmes de baixo orçamento, os
desafios, as estratégias e “o amor”. Eu achei que estava procurando
Katie para obter orientação técnica sobre um aspecto pequeno da
história, mas o que ela compartilhou comigo alterou a trajetória de
todo o livro. Sei que errei ao descrever muitas coisas técnicas, mas
espero ter capturado o espírito do trabalho.
Minha prima Danielle Diego teve a generosidade de me oferecer
um tour particular no estúdio da Fox. Ao andar pelos cenários de
programas de televisão, depois por uma fachada de prédios que
tinham sido usados em muitos filmes diferentes, percebi como fazer
filmes consiste em uma série de ilusões elaboradas. E depois, ao parar
para admirar as fotografias de estrelas do passado que cobrem as
paredes do escritório de Danielle, eu fiquei impressionada pelo
glamour histórico de tudo. Essas impressões viraram os temas
principais do livro, e tenho que agradecer a Danielle por todos eles,
assim como por um ano de respostas às minhas perguntas
subsequentes.
Entre versões deste livro, Kristyn Stroble, Amanda Krampf e eu
decidimos transformar Hold Still em filme. Nós levantamos uma
pequena quantia no Kickstarter. Muitos dos nossos colaboradores
eram amigos e familiares, e muitos eram colegas e leitores. Faço um
agradecimento imenso aos nossos colaboradores, assim como aos
nossos atores e membros da equipe, a maioria voluntários, sendo que
todos abordaram o projeto com o nível de dedicação e saber artístico
que me deixou emocionada e inspirada. Tenho muito orgulho do
trabalho que fizemos juntos, e agradeço pelas formas que isso
influenciou esta história.
Enquanto Mia Nolting estava fazendo uma residência artística na
África do Sul, ela me ofereceu seu lindo apartamento em Portland,
Oregon, como local para uma residência de escrita particular. Eu
estava tentando desesperadamente produzir uma primeira versão
integral, mas descobri que longas sequências de dias cinzentos e
chuvosos combinados com uma abundância de solidão não me caíam
bem. Entre seções enlouquecedores de escrita, eu fazia chá no
bulezinho esmaltado dela, ouvia o disco dela de Patsy Cline e trocava
e-mails com ela sobre o cineasta sul-africano por quem ela estava se
apaixonando rapidamente, e com quem acabaria se casando logo em
seguida. (Oi, Paddy!). Apesar de ter ido embora com menos palavras
escritas do que gostaria, os dias passados lá certamente enriqueceram
este livro.
Compartilhar rascunhos é sempre apavorante e animador. Jessica
Jacobs, com quem compartilho meu trabalho há uma década, e Gayle
Forman, que leu uma versão durante uma turnê de divulgação que
fizemos juntas, me ofereceram conselhos iniciais valiosos, assim como
minha esposa e minha mãe. Mandy Harris, Amanda Krampf, Peter
Thompson e Kathy Kallick também participaram perto do final do
processo com visões valiosas. Meu grupo de escrita antigo e sempre
inspirador (Lizzie Brock, Laura Davis, Teresa Miller e Carly Anne
West) me deu feedback por meio de revisões múltiplas e me manteve
motivada e produtiva durante uma época de grandes mudanças.
Sara Crowe é minha agente dos sonhos e defensora há muitos anos.
Lembro-me bem da emoção que senti quando ela me disse que
gostaria de me representar, e minha gratidão e confiança nela só
cresceram desde então. Ela me ajudou a superar os primeiros estágios
confusos deste livro e ofereceu alento ao longo do caminho. Tenho
muita sorte de tê-la ao meu lado. Agradeço também a Rachel Ridout
pelo processo ágil em um momento de dúvida.
Sou tremendamente grata às pessoas talentosas e comprometidas
da Penguin Books for Young Readers. De Theresa Evangelista, que faz
capas lindas para os meus livros, a Eileen Kreit que dá a eles uma
segunda vida em formato brochura, a Anna Jarzab, que espalha a
notícia virtualmente. Agradeço a Anne Heausler e Rosanne Lauer
pelo conhecimento, e a Elyse Marshall e sua equipe de publicitários
por fazerem mágica. Agradeço a Melissa Faulner, que foi à Dutton
antes da correria deste livro até a publicação e com quem é um prazer
trabalhar. E, claro, agradeço à minha editora, Julie Strauss-Gabel, cujo
dom para descobrir o coração de uma história engrandece tanto os
meus livros. Se eu fosse aplicar a famosa citação de E. L. Doctorow a
mim mesma – em que ele compara escrever um livro a dirigir pela
neblina à noite –, Julie seria os meus faróis.
Originalmente, eu não pretendia que este livro tivesse tanto a ver
com família, mas no final a família se tornou uma parte importante
dele. Apesar de os meus pais não serem os pais da Emi, eles me
criaram com esse mesmo espírito, em um lar estimulante cheio de
arte, música, filmes e livros, e com amor incondicional, apoio e crença
em mim. E apesar de o meu irmão não ser o Toby, nós estamos
separados por um oceano já há alguns anos, e amo ver o rosto dele na
tela do meu computador. Obrigada a todos vocês por serem meus.
Agradeço também à minha linda família estendida, próxima e
distante, principalmente minha avó, que eu amo muito.
Por fim, agradeço a Kristyn Stroble, minha patrulheira e motorista
de fuga. Escrever este livro me fez lembrar como era ter dezenove anos
e estar apaixonada por você. Doze anos depois, eu sinto a mesma
coisa.
SUA OPINIÃO É MUITO IMPORTANTE

Mande um e-mail para opiniao@vreditoras.com.br


com o título deste livro no campo “Assunto”.

1ª edição, dez. 2023

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