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DADOS DE ODINRIGHT

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Ficha Técnica

Título: Como se Fôssemos Vilões

Título original: If We Were Villains

Autor: M.L. Rio

Tradução: Ana Saldanha

Revisão: Rita Almeida Simões

Capa: Maria Manuel Lacerda

Imagem da capa: IStock

ISBN: 9789892354231

Edições ASA II, S.A.

uma editora do grupo Leya

Rua Cidade de Córdova, n.º 2

2610-038 Alfragide – Portugal

Tel. (+351) 21 427 22 00

Fax. (+351) 21 427 22 01

©© 2017, M. L. Rio

© 2022, Edições ASA II, S.A.

Todos os direitos reservados de acordo com a legislação em vigor.

Este livro segue o Novo Acordo Ortográfico de 1990.

www.leya.pt
Índice

Capa
Ficha Técnica
ATO I
PRÓLOGO
CENA 1
CENA 2
CENA 3
CENA 4
CENA 5
CENA 6
CENA 7
CENA 8
CENA 9
CENA 10
CENA 11
CENA 12
ATO II
PRÓLOGO
CENA 1
CENA 2
CENA 3
CENA 4
CENA 5
CENA 6
CENA 7
CENA 8
CENA 9
CENA 10
ATO III
PRÓLOGO
CENA 1
CENA 2
CENA 3
CENA 4
CENA 5
CENA 6
CENA 7
CENA 8
CENA 9
CENA 10
CENA 11
CENA 12
CENA 13
CENA 14
CENA 15
CENA 16
CENA 17
CENA 18
ATO IV
PRÓLOGO
CENA 1
CENA 2
CENA 3
CENA 4
CENA 5
CENA 6
CENA 7
CENA 8
CENA 9
CENA 10
ATO V
PRÓLOGO
CENA 1
CENA 2
CENA 3
CENA 4
CENA 5
CENA 6
CENA 7
EPÍLOGO
Exeunt omnes
Nota da Autora
Agradecimentos
Para os muitos atores estranhos e maravilhosos

a quem tenho tido a sorte de chamar meus

amigos. (Juro que o livro não é sobre vocês.)


ATO I
PRÓLOGO

Estou sentado com os pulsos algemados à mesa e penso: Se não me

fosse proibido / contar os segredos da minha prisão, / Desvendar-te-ia

uma narrativa cuja mais leve palavra / Te retalharia a alma. O guarda,

de pé junto à porta, a vigiar-me, parece estar à espera de que aconteça

alguma coisa.

Entra em cena Joseph Colborne. É agora um homem grisalho, com

quase cinquenta anos. É uma surpresa, de algumas em algumas

semanas, ver o quanto envelheceu – e tem envelhecido um pouco mais,

de algumas em algumas semanas, ao longo destes dez anos. Senta-se

em frente a mim, une as mãos e diz:

– Oliver.

– Joe.

– Ouvi dizer que a audiência da condicional correu a teu favor.

Parabéns.

– Agradecia-lhe, se pensasse que estava a ser sincero.

– Sabes que não penso que o teu lugar seja aqui.

– Isso não significa que pense que sou inocente.

– Não. – Suspira e olha para o relógio de pulso (o mesmo que usa

desde que nos vimos pela primeira vez), como se eu estivesse a maçá-

lo.

– Então, porque está aqui? – pergunto. – Pela mesma razão quinzenal

de sempre?

As suas sobrancelhas desenham uma linha reta negra.

– É mesmo típico de ti, porra, dizeres «quinzenal».

– Pode-se tirar o rapaz do teatro, mas não se pode tirar o teatro do

rapaz, ou coisa do género.

Ele abana a cabeça, simultaneamente divertido e irritado.

– Bem? – digo.

– Bem o quê?

– A forca é bem feita. Mas porque é que é bem feita? Porque faz bem

aos que fazem o mal – respondo, decidido a merecer a sua irritação. –


Porque está aqui? Já devia saber que não vou contar-lhe nada.

– De facto – diz ele –, penso que desta vez talvez consiga fazer-te

mudar de ideias.

Sento-me mais direito na cadeira.

– Como?

– Vou sair da polícia. Passei para a concorrência, aceitei um lugar

numa empresa de segurança privada. Tenho de pensar nos estudos dos

meus filhos.

Por um momento, limito-me a fitá-lo. Sempre imaginei que a única

maneira de fazer Colborne abandonar o seu cargo seria abatê-lo como

um rafeiro velho e doente.

– Como é que isso havia de me persuadir? – pergunto.

– Tudo o que digas será estritamente off the record.

– Então, para quê dar-se ao trabalho?

Ele volta a suspirar e todas as rugas do seu rosto ficam mais

vincadas.

– Oliver, já não me interessa aplicar punições. Alguém cumpriu a

pena, e raramente temos esse grau de satisfação no nosso ramo. Mas

não quero largar a farda e desperdiçar os próximos dez anos a

perguntar-me o que aconteceu realmente há dez anos.

Inicialmente, não digo nada. Agrada-me a ideia, mas não confio

nela. Lanço um olhar à minha volta, aos horríveis blocos de cimento,

às minúsculas câmaras de vigilância pretas que espreitam de cada

canto, ao guarda com o seu queixo espetado. Fecho os olhos, inspiro

profundamente e imagino a frescura do tempo de primavera no Illinois,

como será sair para o ar livre depois de respirar a custo o ar viciado da

prisão durante um terço da minha vida.

Quando solto o ar, abro os olhos e vejo que Colborne me observa

com atenção.

– Não sei – digo. – Eu vou sair daqui, de uma maneira ou de outra.

Não quero arriscar-me a voltar. Parece mais seguro não despertar os

cães.

Tamborila a mesa nervosamente.

– Diz-me uma coisa – pede. – Alguma vez ficas deitado na tua cela a

fitar o teto e a perguntares-te como vieste dar aqui, e não consegues

dormir porque não consegues parar de pensar naquele dia?


– Todas as noites – respondo, sem sarcasmo. – Mas a diferença é

esta, Joe. Para si, foi só um dia, e depois voltou tudo à normalidade.

Para nós, foi um dia e todos os dias que se seguiram. – Inclino-me para

a frente apoiado nos cotovelos, com o meu rosto a uns centímetros do

dele, para que ouça cada palavra quando baixo a voz. – Deve roê-lo por

dentro, não saber. Não saber quem, não saber como, não saber porquê.

Mas o Joe não o conhecia.

Está agora com uma expressão estranha, enjoada, como se eu me

tivesse tornado indizivelmente feio e horrendo de se ver.

– Guardaste os teus segredos este tempo todo – diz. – Isso

enlouqueceria qualquer pessoa. Porquê fazê-lo?

– Porque queria.

– Ainda queres?

Sinto o coração pesado no peito. Os segredos pesam como chumbo.

Recosto-me na cadeira. O guarda olha-nos impassível, como se

fôssemos dois estranhos a falarem noutra língua, numa conversa

distante e incompreensível. Penso nos outros. Em tempos que já lá vão,

nós. Fizemos coisas malvadas, mas também necessárias – ou assim

pareceu. Olhando para trás, anos depois, não tenho tanta certeza de

que fossem necessárias, e pergunto-me agora: poderia explicar tudo

aquilo ao Colborne, as pequenas voltas e reviravoltas e êxodos finais?

Examino o seu rosto inexpressivo e aberto, os olhos cinzentos ladeados

agora por rugas, mas límpidos e brilhantes como sempre.

– Está bem – digo. – Eu conto-lhe uma história. Mas tem de

compreender algumas coisas.

Colborne permanece imóvel.

– Estou a ouvir.

– Em primeiro lugar, só começarei a falar depois de sair daqui, não

antes. Em segundo lugar, isto não pode ter repercussões nem para mim

nem para mais ninguém... nada de dupla incriminação. E, por fim, não

é um pedido de desculpa.

Aguardo uma reação dele, um aceno de cabeça ou uma palavra, mas

só pestaneja, silencioso e estoico como uma esfinge.

– Então, Joe? – digo. – Consegue aceitar isso?

Esboça um sorriso frio.

– Sim, penso que consigo.


CENA 1

Tempo: setembro de 1997, o meu quarto e último ano no

Conservatório Clássico Dellecher. Lugar: Broadwater, no Illinois, uma

pequena cidade quase sem importância. O outono estava a ser quente,

até ao momento.

Entram em cena os atores. Éramos sete nessa altura, sete almas

fulgurantes com futuros prodigiosos à nossa frente, embora não

víssemos mais longe do que os livros diante dos nossos rostos.

Estávamos sempre rodeados por livros e palavras e poesia, todas as

paixões ferozes do mundo em papel fino entre capas de carneira.

(Atribuo em parte a culpa do que aconteceu a esse facto.) A biblioteca

do Castelo era uma sala octogonal arejada, forrada a estantes,

atravancada com peças de mobiliário antigas e sumptuosas, e mantida

a uma temperatura que provocava sonolência, por um monumental

fogão de sala quase constantemente aceso, independentemente da

temperatura no exterior. O relógio na prateleira por cima da lareira deu

as doze badaladas, e nós mexemo-nos, um a um, como sete estátuas a

ganharem vida.

– É noite alta – disse Richard. Estava sentado no cadeirão maior

como se fosse um trono, com as suas longas pernas estendidas e os pés

apoiados na grelha do fogão. Três anos a desempenhar papéis de reis e

conquistadores tinham-no ensinado a sentar-se assim em todas as

cadeiras, em palco ou fora dele. – E até às oito horas amanhã tornar-

nos-emos imortais. – Fechou o livro abruptamente.

Meredith, enroscada como um gato numa ponta do sofá (enquanto eu

estava estendido como um cão na outra), pôs-se a brincar com uma

madeixa do seu cabelo castanho-arruivado e perguntou: – Aonde vais?

Richard: – Exausto da jornada, corro à cama...

Filippa: – Poupa-nos.

Richard: – Tenho de me levantar cedo.

Alexander: – Diz ele, como se isso o preocupasse.

Wren, sentada de pernas cruzadas em cima de uma almofada junto à

lareira e alheia à implicância dos outros, disse: – Já todos escolheram

os textos? Não consigo decidir-me.


Eu: – E se escolhesses Isabella? A tua Isabella é excelente.

Meredith: – A Medida é uma comédia, seu tolo. A nossa audição é

para o Júlio César.

– Não sei porque nos damos ao trabalho de fazer audições. –

Alexander, tombado em cima da mesa, a desfrutar do escuro na parte

de trás da sala, estendeu a mão para a garrafa de whisky escocês que

estava junto do seu cotovelo. Voltou a encher o copo, bebeu um

enorme gole e fez-nos um esgar. – Eu seria capaz de atribuir os papéis

todos da porcaria da peça agora mesmo.

– Como? – perguntei. – Eu nunca sei onde vou acabar por ficar.

– Isso é porque te escolhem sempre em último – disse Richard –, no

papel que tiver sobrado.

– Então, então – disse Meredith. – Esta noite somos Richard ou


1
somos Dick?

– Ignora-o, Oliver – disse James. Estava sentado sozinho no canto

mais afastado, relutante em levantar os olhos do seu bloco de

apontamentos. Sempre fora o aluno mais aplicado no nosso ano, o que

(provavelmente) explicava porque era também o melhor ator e

(indubitavelmente) porque ninguém lhe guardava rancor por isso.

– Aqui está. – Alexander tinha tirado um maço de notas de dez

dólares do bolso e estava a contá-las em cima da mesa. – São

cinquenta dólares.

– Para quê? – perguntou Meredith. – Queres uma dança erótica?

– Porquê, estás a praticar para depois de acabares o curso?

– Não me lixes.

– Pede-me com bons modos.

– Cinquenta dólares para quê? – perguntei, desejoso de interromper a

conversa. Meredith e Alexander eram de longe os mais malcriados de

nós os sete e tinham um orgulho perverso em se insultarem. Se os

deixássemos, não parariam toda a noite.

Alexander bateu na pilha de notas de dez dólares com o seu dedo

comprido.

– Aposto cinquenta dólares em como sou capaz de dizer a lista do

elenco neste preciso momento sem me enganar.

Cinco de nós trocaram olhares curiosos; Wren ainda franzia a testa

fitando o lume.
– Está bem, vamos lá ouvi-la – disse Filippa, com um suspiro débil,

como se a sua curiosidade tivesse levado a melhor.

Alexander afastou do rosto os seus caracóis pretos rebeldes e disse:

– Bem, obviamente o Richard vai ser César.

– Porque secretamente todos queremos matá-lo? – perguntou James.

Richard arqueou a sua sobrancelha escura.

– Et tu, Brute?

– Sic semper tyrannis – disse James, e passou a ponta da sua

esferográfica pelo pescoço como um punhal. Assim sempre aos tiranos.

Alexander apontou de um deles para o outro.

– Exatamente – disse. – O James vai ser Bruto, porque é sempre o

bonzinho, e eu vou ser Cássio, porque sou sempre o mauzão. O

Richard e a Wren não podem ser casados, porque isso seria inaceitável,

portanto ela vai ser Pórcia; a Meredith, Calpúrnia; e Pip, tu vais acabar

por fazer de travesti outra vez.

Filippa, a quem era mais difícil atribuir um papel do que a Meredith

(a femme fatale) ou Wren (a donzela inocente), era obrigada a vestir-se

de homem sempre que ficávamos sem papéis bons para mulheres, uma

ocorrência comum no teatro de Shakespeare.

– Matem-me – disse ela.

– Esperem lá – disse eu, provando efetivamente a hipótese de

Richard de que, no processo de escolha dos atores, eu ficava sempre

com as sobras –, onde é que isso me deixa?

Alexander observou-me com os olhos semicerrados, passando a

língua pelos dentes.

– Provavelmente, vais ser Otávio – decidiu. – Não te vão dar o papel

de António; sem ofensa, mas não és suficientemente conspícuo. Vai ser

aquele insuportável do terceiro ano, como é que se chama?

Filippa: – Ricardo II?

Richard: – Hilariante. Não, o Colin Hyland.

– Espetacular. – Baixei os olhos para o texto de Péricles que estava a

ler pelo que me parecia ser a centésima vez. Tendo só metade do

talento de qualquer um dos outros, parecia condenado a desempenhar

sempre papéis secundários na história de outra pessoa. Perguntara-me

já demasiadas vezes se era a arte a imitar a vida ou a vida a imitar a

arte.
Alexander: – Cinquenta dólares em como vai ser esse exato elenco.

Quem quer apostar?

Meredith: – Eu não.

Alexander: – Porque não?

Filippa: – Porque isso é precisamente o que vai acontecer.

Richard soltou uma gargalhada e levantou-se do cadeirão.

– A esperança é a última a morrer. – A caminho da porta, inclinou-se

para beliscar a bochecha de James. – Boa noite, doce príncipe...

James enxotou a mão de Richard com o seu bloco de apontamentos e

depois voltou a desaparecer ostensivamente por trás dele. Meredith

ecoou a gargalhada de Richard e disse:

– Não há sujeito que ferva mais do que tu em Itália!

– Malditas, as vossas duas casas! – murmurou James.

Meredith espreguiçou-se, com um pequeno gemido sugestivo, e

levantou-se do sofá.

– Vens para a cama? – perguntou Richard.

– Vou. O Alexander fez com que todo este trabalho pareça bastante

inútil. – Deixou os seus livros espalhados sobre a mesa baixa em frente

à lareira, o seu copo de vinho vazio junto a eles, com um crescente de

batom estampado na borda. – Boa noite – disse à sala em geral. – Que

Deus vos acompanhe.

Desapareceram juntos pelo corredor abaixo.

Esfreguei os olhos, que começavam a arder-me com o esforço de ler

horas a fio. Wren atirou com o seu livro para trás, por cima da cabeça,

e sobressaltei-me quando ele aterrou ao meu lado no sofá.

Wren: – Diabo para isto.

Alexander: – É assim mesmo.

Wren: – Vou só ler a parte de Isabella.

Filippa: – Vai só mas é para a cama.

Wren levantou-se lentamente, piscando os olhos, a dissipar deles os

vestígios da luz da lareira.

– O mais provável é ficar deitada sem dormir toda a noite, a recitar

falas – disse.

– Queres vir fumar? – Alexander tinha acabado o seu whisky (outra

vez) e estava a enrolar um charro na mesa. – Talvez te ajude a relaxar.


– Não, obrigada – respondeu ela, saindo para o corredor. – Boa

noite.

– Como queiras. – Alexander empurrou a cadeira para trás, com o

charro a despontar do canto da boca. – Oliver?

– Se te ajudar a fumar isso, vou acordar afónico amanhã.

– Pip?

Ela empurrou os óculos para o cabelo e tossiu levemente, a testar a

garganta.

– Meu Deus, és uma péssima influência – disse. – Está bem.

Ele acenou com a cabeça, já meio fora da sala, com as mãos

enterradas nos bolsos. Fiquei a vê-los afastarem-se, com um pouco de

ciúme, e depois voltei a recostar-me contra o braço do sofá. Esforçava-

me por me concentrar no texto, tão agressivamente anotado que quase

já não era legível.

PÉRICLES: Antíoco, adeus! A prudência ensina-me que os homens

a quem as ações mais negras do que a noite não fazem corar de

rubor,

nada poupariam para que tais ações fossem ocultadas.

Um crime, sei-o perfeitamente, traz outro;

o assassinato anda ligado à concupiscência, como a chama ao

fumo.

Murmurei os dois últimos versos em voz baixa. Sabia os versos de

cor, sabia-os há meses, mas o receio de esquecer uma palavra ou uma

frase a meio da minha audição atormentava-me. Lancei um olhar para

o outro lado da sala, a James, e disse:

– Alguma vez te perguntas se Shakespeare sabia estes discursos tão

bem como nós?

Ele desviou a atenção dos versos que estava a ler, fossem eles quais

fossem, olhou para cima e disse:

– Constantemente.

Esbocei um sorriso, a sentir-me justificado, só o suficiente.

– Bem, desisto. Não estou de facto a fazer nada.

Ele viu as horas.


– Não, acho que eu também não.

Icei-me do sofá e segui James pelas escadas de caracol até ao quarto

que partilhávamos – que ficava diretamente por cima da biblioteca, o

mais alto dos três quartos numa pequena coluna de pedra normalmente

chamada a Torre. Em tempos, fora usado como sótão, mas em finais da

década de 1970 limparam as teias de aranha e a tralha para criar

espaço para mais alunos. Vinte anos depois, alojava-nos a mim e a

James, a duas camas com colchas azul-Dellecher, a dois velhos guarda-

fatos monstruosos e a um par de estantes desirmanadas, demasiado

feias para a biblioteca.

– Achas que vai ser como diz o Alexander? – perguntei.

James tirou a T-shirt, o que lhe despenteou o cabelo.

– Se queres saber a minha opinião, é demasiado previsível.

– Quando é que eles alguma vez nos surpreenderam?

– O Frederick anda sempre a surpreender-me – disse ele. – Mas a

Gwendolyn vai ter a última palavra, tem sempre.

– Por ela, o Richard desempenhava todos os papéis masculinos e

metade dos femininos.

– O que deixaria a Meredith a desempenhar o resto dos papéis. –

Pressionou a base das mãos contra os olhos. – Quando é a tua vez de

ler amanhã?

– Logo a seguir ao Richard. A Filippa é depois de mim.

– E eu sou depois dela. Meu Deus, sinto pena dela.

– Eu também – disse. – É espantoso que ainda não tenha desistido.

James franziu a testa pensativamente enquanto despia as calças de

ganga.

– Bem, ela é um pouco mais resiliente do que o resto de nós. Talvez

seja por isso que a Gwendolyn a atormenta.

– Só porque ela consegue aguentar? – perguntei, deixando as minhas

roupas numa pilha no chão. – Isso é cruel.

Encolheu os ombros.

– É a Gwendolyn.

– Se eu mandasse, virava tudo de pernas para o ar – disse eu. –

Punha o Alexander a fazer de César e o Richard a desempenhar o papel

de Cássio.

Dobrou a manta da cama para trás e perguntou:


– E eu continuo a ser o Bruto?

– Não. – Atirei-lhe uma meia. – Tu és o António. Por uma vez, eu

desempenho o papel principal.

– Chegará a tua vez de seres o herói trágico. Espera só pela

primavera.

Ergui os olhos da gaveta em que estava a remexer.

– O Frederick andou a contar-te segredos outra vez?

Deitou-se e uniu as mãos por trás da cabeça.

– Talvez tenha mencionado Tróilo e Créssida. Tem a ideia fantástica

de a encenar como uma guerra dos sexos. Todos os troianos homens,

todos os gregos, mulheres.

– Isso é uma loucura.

– Porquê? A peça é tanto sobre sexo como sobre guerra – disse ele. –

A Gwendolyn vai querer que o Richard seja Heitor, claro, mas isso faz

de ti Tróilo.

– Porque é que não serias tu o Tróilo?

Ele mudou de posição, arqueou as costas.

– Talvez eu tenha mencionado que gostaria de ter um pouco mais de

variedade no meu currículo.

Fitei-o, sem saber bem se devia sentir-me insultado.

– Não olhes assim para mim – disse ele, com uma nota baixa de

reprimenda na voz. – Ele concordou que todos precisamos de sair da

caixa. Estou farto de desempenhar papéis de tolos apaixonados como o

Tróilo, e tenho a certeza de que tu estás farto de desempenhar o papel

de parceiro secundário.

Atirei-me de costas para cima da cama.

– Sim, és capaz de ter razão. – Por um momento, deixei vaguear os

pensamentos, e depois soltei uma gargalhada.

– É alguma piada? – perguntou James, estendendo o braço para

apagar a luz.

– Tu vais ter de ser a Créssida – disse-lhe eu. – És o único de nós

suficientemente bonito.

Ficámos ali no escuro a rir até adormecermos, e dormimos

profundamente, sem maneira de saber que a cortina estava prestes a

descerrar-se para dar início a um drama da nossa própria invenção.


CENA 2

O Conservatório Clássico Dellecher ocupava cerca de oito hectares

de terreno na zona limítrofe de Broadwater, para leste, e as fronteiras

dos dois sobrepunham-se tantas vezes que se tornava difícil dizer onde

terminava o campus e começava a cidade. Os alunos do primeiro ano

ficavam alojados num grupo de edifícios de tijolos na cidade, enquanto

os alunos do segundo e do terceiro anos se apinhavam no Dellecher

Hall e os poucos alunos do quarto ano eram despachados para cantos

isolados do campus, aqui e ali, ou se desenvencilhavam sozinhos. Nós,

os alunos de Teatro do quarto ano, vivíamos no lado mais afastado do

lago, num edifício conhecido como o Castelo (não era realmente um

castelo, mas um pequeno edifício de pedra que por acaso tinha uma

torre, em tempos o alojamento do feitor da propriedade).

Dellecher Hall, uma extensa mansão de tijolos vermelhos, ficava no

topo de uma colina alta, sobranceira à água escura e parada do lago. Os

dormitórios e o salão de baile ficavam nos quarto e quinto andares, as

salas de aulas e os gabinetes no segundo e no terceiro, enquanto o rés

do chão estava repartido pelo refeitório, a sala de música, a biblioteca e

o jardim de inverno. Havia uma capela destacada da fachada na ponta

oeste do edifício e, a dado momento na década de 1960, o Archibald

Dellecher Fine Arts Building (geralmente chamado FAB, por mais do


2
que uma razão) foi construído no lado leste da mansão, com um

pequeno pátio e um favo de passadiços misulados encaixado entre os

dois edifícios. O FAB albergava o Teatro Archibald Dellecher e a sala

de ensaios e, por conseguinte, era onde passávamos a maior parte do

nosso tempo. Às oito da manhã no primeiro dia de aulas, estava

excecionalmente silencioso.

Eu e Richard saímos juntos do Castelo, embora a minha audição

fosse só daí a meia hora.

– Como te sentes? – perguntou ele quando subíamos a encosta

íngreme até ao relvado.

– Nervoso, como me sinto sempre. – O número de audições que já

fizera não importavam; a ansiedade nunca me abandonava

verdadeiramente.
– Não há necessidade – disse ele. – Tu nunca és tão horrível como

julgas. Só não te ponhas a mudar demasiadas vezes o peso do corpo de

um pé para o outro. És mais interessante quando ficas imóvel.

Olhei-o com a testa franzida.

– O que queres dizer com isso?

– Refiro-me a quando te esqueces de que estás em palco e te

esqueces de te sentires nervoso. Escutas realmente os outros atores,

ouves realmente as palavras como se fosse a primeira vez que as ouves.

É maravilhoso contracenar contigo e maravilhoso de se ver. – Abanou

a cabeça ao ver a expressão consternada no meu rosto. – Não devia ter-

te dito. Não fiques constrangido. – Deu-me uma palmada no ombro

com a sua enorme mão, e eu estava tão distraído que fui projetado para

a frente e as pontas dos meus dedos roçaram a relva húmida do

orvalho. O riso atroador de Richard ecoou no ar da manhã e ele

agarrou-me o braço para me ajudar a equilibrar-me. – Estás a ver? –

disse. – Mantém os pés plantados no chão e vais-te sair bem.

– Tu não prestas para nada – disse eu, mas com um sorriso relutante.

(Richard tinha esse efeito nas pessoas.)

Assim que chegámos ao FAB, ele deu-me mais uma palmada

animadora nas costas e desapareceu para a sala de ensaios. Pus-me a

andar para a frente e para trás no passadiço, a pensar, intrigado, no que

ele dissera e a repetir as falas de Péricles para comigo como se

recitasse uma série de ave-marias.

As audições do nosso primeiro semestre determinavam os papéis que

desempenharíamos na produção do outono. Nesse ano, era Júlio César.

As tragédias e as peças históricas estavam reservadas para os alunos do

quarto ano, enquanto os alunos do terceiro ano eram relegados para as

peças românticas e as comédias, e todos os papéis secundários eram

desempenhados por alunos do segundo ano. Os alunos do primeiro ano

trabalhavam nos bastidores, estudavam as matérias de base e

perguntavam-se em que diabo tinham vindo meter-se. (Todos os anos,

os alunos cujo desempenho fosse considerado insatisfatório eram

excluídos do curso – muitas vezes, metade deles. Sobreviver até ao

quarto ano era prova de talento ou de pura sorte. No meu caso, de

sorte.) As fotografias das turmas dos últimos cinquenta anos estavam

penduradas em duas filas ordenadas ao longo da parede do passadiço.


A nossa era a mais recente e indubitavelmente a mais sexy, uma

fotografia publicitária da produção teatral do ano anterior de Sonho de

Uma Noite de Verão. Parecíamos mais jovens.

Fora ideia de Frederick encenar o Sonho como uma festa de pijama.

Eu e James (Demétrio e Lisandro, respetivamente) estávamos de

boxers às riscas e camisolas interiores brancas a olharmos furiosos um

para o outro, com Wren (Hérmia, com uma camisa de noite curta cor-

de-rosa) encurralada entre nós os dois. Filippa encontrava-se à minha

esquerda, com a camisa de noite azul mais comprida de Helena,

agarrada à almofada com que ela e Wren tinham batido uma na outra

no terceiro ato. No centro da fotografia, apareciam Alexander e

Meredith enroscados como um par de serpentes – ele um Oberon

sedutor e sinistro, com um roupão de seda sinuoso, ela uma Titânia

voluptuosa com rendas pretas reveladoras. Mas Richard era o mais

impressionante, destacando-se entre os outros rudes artesãos com um

pijama de flanela apalhaçado e umas orelhas de burro enormes a

despontarem do seu farto cabelo preto. O seu Nick Bottom era

agressivo, imprevisível e doido varrido. Aterrorizava as fadas,

atormentava os outros atores, assustava de morte o público e – como

sempre – captava todas as atenções.

Nós os sete tínhamos sobrevivido a três «purgas» anuais, porque

cada um de nós era de algum modo indispensável à companhia teatral.

No decurso dos quatro anos, fomos transformados de pandilha de

atores de segunda em pequena trupe dramática meticulosamente

treinada. Alguns dos nossos trunfos teatrais eram óbvios: Richard era

puro poder, com o seu metro e noventa esculpido em betão, olhos

pretos penetrantes e uma voz grave empolgante que abafava qualquer

outro som numa sala. Desempenhava papéis de senhor da guerra e

déspota e de qualquer outra personagem com que a audiência tivesse

de ficar impressionada ou que devesse temer. Meredith estava

singularmente concebida para a sedução, um sonho ambulante de

curvas graciosas e pele como cetim. Mas havia algo implacável no seu

sex appeal – olhava-se para ela quando se movia, fosse o que fosse que

estivesse a acontecer ao mesmo tempo e quer se quisesse quer não.

(Ela e Richard estavam «juntos» em todos os sentidos típicos da

palavra desde o semestre da primavera do nosso segundo ano.) Wren –


prima de Richard, embora não pudesse adivinhar-se olhando para eles

– era a donzela inocente, a miúda da vizinhança, uma gaiata franzina

com cabelo sedoso da cor do trigo e olhos redondos de boneca de

louça. Alexander era o vilão de serviço, magro e enxuto, com cabelo

comprido e escuro aos caracóis e caninos afiados que o faziam parecer

um vampiro quando sorria.

Eu e Filippa éramos mais difíceis de categorizar. Ela era alta,

morena, vagamente arrapazada. Havia algo calmo e camaleónico nela

que a tornava igualmente convincente como Horácio ou Emília. Eu,

por outro lado, era mediano de todas as maneiras imagináveis; não

especialmente bem-parecido, não especialmente talentoso, não

especialmente bom em nada, mas suficientemente bom em tudo para

poder apanhar quaisquer restos que os outros deixassem. Estava

convencido de que sobrevivera à purga do terceiro ano porque James

teria ficado temperamental e amuado sem mim.

A sorte bafejara-nos no nosso primeiro ano, quando eu e ele nos

vimos encafuados juntos num quarto minúsculo no último andar dos

dormitórios. Quando abri a nossa porta pela primeira vez, ele ergueu

os olhos da mala que estava a desfazer, estendeu a mão e disse:

– Eis que chega o Senhor Olívio. Fostes bem-recebido, espero.

Era o tipo de ator por quem todas as pessoas se apaixonavam assim

que pisava o palco, e eu não fui exceção. Mesmo nos nossos primeiros

tempos em Dellecher, sentia-me protetor e até possessivo em relação a

ele quando outros amigos se aproximavam demasiado e ameaçavam

usurpar o meu lugar como «melhor» – um acontecimento tão raro

como uma chuva de meteoritos. Algumas pessoas viam-me como o

papel que Gwendolyn me atribuía sempre: simplesmente o leal

parceiro secundário. James era tão essencialmente um herói que isso

não me incomodava. Era o mais bem-parecido de todos nós (Meredith

comparou-o certa vez a um príncipe da Disney), mas mais encantador

do que isso era a profundidade dos seus sentimentos, como a de uma

criança, quer no palco quer fora dele. Ao longo de três anos, desfrutei

da superabundância da sua popularidade e admirei-o intensamente,

sem inveja, embora ele fosse o favorito óbvio de Frederick, da mesma

maneira que Richard era o favorito de Gwendolyn. É claro, James não


tinha o ego ou o mau feitio de Richard e toda a gente gostava dele, ao

passo que Richard era odiado e amado com igual ferocidade.

Era habitual assistirmos à audição que se seguisse à nossa (atuar sem

ser observado era a compensação por atuar primeiro), e continuei a

andar agitadamente de um lado para o outro no passadiço, a desejar

que James pudesse ter sido o meu espectador. Mesmo quando não era

sua intenção, Richard era um observador intimidativo. Eu ouvia-lhe a

voz vinda da sala de ensaios, atravessando as paredes.

Richard: – Por isso vede bem como empenhais nossa pessoa,

Como acordais a nossa adormecida espada.

Em nome de Deus, ordenamos que atenteis bem,

Pois nunca dois reinos assim lutaram

Sem grande derrame de sangue cujas gotas

Inocentes – cada uma uma flor – são queixas

Dolorosas contra quem afia as espadas,

Que tanto devastam esta vida breve.

Embora já o tivesse visto fazer aquele discurso duas vezes, a

repetição não o tornava menos impressionante.

Às oito e meia em ponto, a porta da sala de ensaios rangeu ao

entreabrir-se. O rosto familiar de Frederick, enrugado e divertido,

apareceu na fresta.

– Oliver? Estamos prontos para ti.

– Ótimo.

A minha pulsação acelerou – um estremecimento, como de asas de

aves pequenas presas entre os meus pulmões.

Senti-me pequeno ao entrar na sala de ensaios, como me sentia

sempre. Era uma sala cavernosa, com um teto alto abobadado e

janelões com vista para os terrenos do conservatório. De cada lado das

janelas pendiam umas cortinas de veludo azul, com as bainhas

pousadas em montinhos poeirentos no soalho de madeira. A minha voz

ecoou quando disse:

– Bom dia, Gwendolyn.

A senhora ruiva e magra como um espeto sentada à mesa das

audições ergueu a cabeça e olhou-me de relance, a sua presença na sala

desproporcionalmente enorme. O batom de um cor-de-rosa forte e o

lenço de cabeça estampado com cornucópias faziam-na parecer uma


espécie de cigana. Fletiu os dedos em jeito de saudação e as pulseiras

tilintaram-lhe no braço. Richard estava sentado na cadeira à esquerda

da mesa, de braços cruzados, a olhar-me com um sorriso animador. Eu

não tinha potencial para protagonista e, portanto, não constituía

concorrência. Fiz-lhe um breve sorriso e depois tentei ignorá-lo.

– Oliver – disse Gwendolyn. – Prazer em ver-te. Emagreceste?

– Engordei, na verdade – respondi, a sentir o rosto ficar quente.

Quando parti para as férias de verão, ela aconselhara-me a «ganhar

alguma corpulência». Passei horas no ginásio todos os dias em junho,

julho e agosto, com a esperança de a impressionar.

– Hum – disse ela, com o seu olhar a descer devagar do topo da

minha cabeça para os meus pés, a examinar-me friamente, como uma

traficante de escravos num leilão. – Enfim. Começamos?

– Com certeza.

Recordando o conselho de Richard, finquei os pés no chão e resolvi

não fazer nenhum movimento sem ter uma boa razão.

Frederick voltou a sentar-se no seu lugar ao lado de Gwendolyn,

tirou os óculos e limpou as lentes à fímbria da camisa.

– O que nos trazes hoje? – perguntou.

– Péricles – respondi. Ele sugerira essa peça no período anterior.

Fez-me um pequeno aceno de cabeça com ar conspirativo.

– Perfeito. Quando estiveres pronto.

CENA 3

Passámos o resto do dia no bar – uma espelunca com pouca luz e

painéis de madeira nas paredes onde o pessoal conhecia a maior parte

dos alunos do Dellecher pelo nome, aceitava tanto os documentos de

identidade falsos como os genuínos e não parecia estranhar que alguns

de nós tivéssemos vinte e um anos há três anos. Os alunos do quarto

ano tinham acabado as suas audições ao meio-dia, mas Frederick e

Gwendolyn tinham outros quarenta e dois alunos para avaliar e – tendo

em conta os intervalos para o almoço e o jantar e o período de

deliberação – provavelmente as listas do elenco não seriam afixadas


antes da meia-noite. Seis de nós estávamos sentados no nosso poiso

habitual no Bore’s Head (uma piada tão esperta quanto Broadwater era
3
capaz de inventar) e os copos vazios iam-se acumulando em cima da

mesa. Todos bebíamos cerveja exceto Meredith, que estava a emborcar

vodkas com água mineral, e Alexander, que bebia whisky e o bebia

puro.

Era a vez de Wren esperar no FAB que a lista do elenco fosse

afixada. Já todos tínhamos cumprido essa tarefa em ocasiões

anteriores, e se ela aparecesse de mãos a abanar voltaríamos ao início

do turno. O sol já se pusera há horas, mas ainda não tínhamos acabado

de dissecar as nossas audições.

– Eu lixei totalmente a minha – disse Meredith, provavelmente pela

décima vez. – Disse «desmembrar» em vez de «dissimular», como uma

perfeita idiota.

– No contexto daquela fala, pouco importa – disse Alexander num

tom fatigado. – A Gwendolyn se calhar nem reparou, e o Frederick se

calhar não quis saber disso para nada.

Antes de Meredith ter tempo para responder, Wren entrou a toda a

pressa com uma folha na mão.

– Já saiu! – disse, e todos nos pusemos de pé de um salto. Richard

conduziu-a à mesa, sentou-a e arrancou-lhe a lista da mão. Ela já a

tinha visto e não se importou de ser afastada para um canto enquanto

nós nos debruçávamos sobre a mesa. Ao fim de uns instantes de leitura

silenciosa e intensa, Alexander levantou-se de um salto.

– O que é que eu vos disse? – Bateu com a mão na lista, apontou

para Wren e gritou: – Estalajadeiro, deixe-me pagar uma bebida a esta

senhora!

– Senta-te, Alexander, seu parvalhão absurdo – disse Filippa,

agarrando-lhe o cotovelo para o puxar de novo para a mesa. – Não

acertaste em tudo!

– Acertei, pois.

– Não, o Oliver vai fazer o papel de Otávio, mas também o de Casca.

– Vou? – Tinha parado de ler depois de ver a linha traçada entre o

meu nome e o de Otávio, e inclinei-me para ver a lista uma segunda

vez.
– Vais, e eu tenho três: Décio Bruto, Lucílio e Titínio. – Fez-me um

sorriso estoico, o seu colega persona non grata.

– Porque fariam isso? – perguntou Meredith, mexendo o que restava

da sua vodka e sugando as últimas gotas pela palhinha vermelha. –

Têm bastantes alunos do segundo ano a quem dar esses papéis.

– Mas os do terceiro ano vão levar à cena a Fera – disse Wren. – Vão

precisar de todas as pessoas.

– O Colin vai andar muito atarefado – comentou James. – Olhem,

puseram-no a desempenhar os papéis de António e Tránio.

– Fizeram-me o mesmo no ano passado – disse Richard, como se

não o soubéssemos já todos. – Fui Nick Bottom com vocês todos e o

Ator-Rei com os do quarto ano. Estava em ensaios oito horas por dia.

Por vezes, os alunos do terceiro ano eram escolhidos para

desempenhar um papel que não podia ser confiado a um aluno do

segundo numa peça levada à cena pelo quarto ano. Essa opção

significava ter aulas das oito da manhã às três da tarde, de seguida um

ensaio com um elenco até às seis e meia, e depois um ensaio com o

outro elenco até às onze da noite. Secretamente, eu não invejava

Richard ou Colin.

– Não desta vez – disse Alexander com um sorrisinho maroto. – Só

vais ter ensaios metade da semana... morres no terceiro ato.

– Bebo a isso – disse Filippa.

– Quantos insensatos se fazem escravos do ciúme! – declarou

Richard.

– Oh, cala-te – disse Wren. – Vai-nos buscar mais uma rodada e

talvez te aturemos mais algum tempo.

Ele levantou-se do lugar e disse:

– Trocava toda a minha fama por uma caneca de cerveja! –

enquanto se dirigia para o balcão.

Filippa abanou a cabeça e disse:

– Quem dera.

CENA 4
Deixámos as nossas coisas no Castelo e corremos loucamente por

entre as árvores, descendo as escadas na encosta até à beira do lago.

Ríamos e berrávamos uns aos outros, com a certeza de que não

seríamos ouvidos e demasiado toldados para nos importarmos se

fôssemos. A doca estendia-se da casa do barco, onde uma série de

ferramentas velhas se esboroava e enferrujava, para dentro da água.

(Não havia barco na margem sul do lago desde que o Castelo fora

transformado em residência de estudantes.) Passávamos muitas noites

quentes e algumas das noites frias a fumar e a beber na doca, com os

pés pendurados sobre a água.

Meredith, que estava de longe em melhor forma e era muito mais

veloz do que o resto do grupo, correu, com o seu cabelo a adejar como

uma bandeira atrás de si, e chegou lá primeiro. Parou e cruzou os

braços por cima da cabeça, deixando visível uma faixa pálida das

costas acima do cós das calças.

– Como dorme sereno o luar nesta encosta! – Virou-se e agarrou as

minhas mãos, porque eu era o que estava mais perto dela. – Vamo-nos

sentar aqui, deixar que os sons da música / Nos subam aos ouvidos; a

noite e o sossego / São acordes da doce harmonia. – Fingi protestar

quando ela me arrastou até à ponta da doca, e os outros desceram as

escadas para virem ter connosco, um a um. Alexander vinha atrás de

todos, ofegante.

– Vamos para a água nus! – disse Meredith, já a descalçar-se. – Não

nadei em todo o verão.

– A virgem mais cautelosa é pródiga de mais – avisou James – se

desvendar sua beleza à Lua.

– Por amor de Deus, James, não és nada divertido. – Meredith bateu-

me na parte de trás das coxas com um dos seus sapatos. – Oliver, vens

para a água comigo?

Como eu não confiava nada naquele sorriso maroto, respondi:

– Na última vez em que fomos nadar, caí na doca nu em pelo e passei

o resto da noite de barriga para baixo com o Alexander a tirar-me

farpas do rabo.

Os outros riram-se à farta à minha custa, e Richard soltou um longo

assobio.

Meredith: – Vá lá, alguém venha nadar comigo!


Alexander: – Não consegues resistir mais de vinte e quatro horas à

tentação de te despires, pois não?

Filippa: – Se o Rick conseguisse mantê-la satisfeita, talvez ela não

fosse a galdéria que é quando está connosco.

Mais gargalhadas, mais assobios. Richard lançou um olhar

sobranceiro a Filippa e disse:

– Parece-me que a dama afirma de mais.

Ela revirou os olhos e sentou-se ao lado de Alexander, que estava

ocupado a esboroar erva para uma mortalha.

Inspirei e mantive nos pulmões tanto tempo quanto podia o ar doce,

a madeira. Um verão abrasador nos subúrbios em Ohio deixara-me

impaciente por regressar a Dellecher e ao lago. A água ficava negra à

noite e de um azul-esverdeado forte, como jade, durante o dia.

Rodeava-o uma floresta densa a toda a volta menos na margem norte,

onde as árvores eram mais escassas e uma faixa de praia de areias

brancas cintilava como pó de diamantes ao luar. Na margem sul,

estávamos suficientemente longe das luzes do Hall para haver pouco

perigo de sermos vistos e ainda menos de sermos ouvidos. Nessa

altura, agradava-nos o nosso isolamento.

Meredith deitou-se para trás, de olhos fechados, a cantarolar

tranquilamente. James e Wren estavam sentados no lado oposto da

doca, a olharem na direção da praia. Alexander acabou de enrolar o

seu charro, acendeu-o e passou-o a Filippa.

– Dá uma passa. Não temos nada para fazer amanhã – disse, o que

não era totalmente verdade. Tínhamos o nosso primeiro dia de aulas a

sério e reunião-geral ao fim da tarde. Mesmo assim, ela aceitou o

charro e puxou uma passa longa antes de mo dar. (Todos fumávamos

só em ocasiões especiais, exceto Alexander, que andava sempre

ligeiramente pedrado.)

Richard suspirou, um som de profunda satisfação que roncou no seu

peito como o ronronar de um felino de grande porte.

– Vai ser um ano bom – disse. – Sinto-o.

Wren: – Será por teres ficado com o papel que querias?

James: – E metade das falas que nós temos para aprender?

Richard: – Parece-me justo, depois do ano passado.

Eu: – Odeio-te.
Richard: – O ódio é a forma mais sincera de lisonja.

Alexander: – A imitação é que é, seu burro.

Alguns de nós riram-se sarcásticos, ainda com uma agradável moca.

As nossas pequenas discussões eram bem-humoradas e normalmente

inofensivas. Como sete irmãos, tínhamos passado tanto tempo juntos

que já víramos o melhor e o pior uns dos outros e nem uma coisa nem

a outra nos impressionavam.

– Dá para crer que é o nosso último ano? – disse Wren, quando a

pausa depois das nossas gargalhadas já perdurava há tempo suficiente.

– Não – respondi. – Parece que foi ontem que o meu pai se pôs a

berrar comigo por eu querer desperdiçar a minha vida.

Alexander resfolegou.

– O que te disse?

– «Vais recusar uma bolsa de estudo na Case Western e passar os

próximos quatro anos maquilhado e com collants, a declarares-te a

uma moçoila à janela?»

A expressão «Escola de Artes», por si só, era o suficiente para

provocar o meu pai, um homem rigidamente prático, mas o mais

frequente era que a perigosa exclusividade de Dellecher fosse a causa

de sobrancelhas erguidas. Por que motivo alunos inteligentes e

talentosos haviam de arriscar ser expulsos do seu curso ao fim de cada

ano e terminarem os estudos sem sequer um grau académico

tradicional para provar a sua sobrevivência? Do que a maior parte das

pessoas que viviam fora da estranha esfera da educação num

conservatório não se apercebia era de que um diploma de Dellecher era

como um dos bilhetes dourados de Willy Wonka – uma garantia que

concedia ao seu portador o direito de admissão às irmandades

artísticas e filológicas de elite que sobreviviam fora do mundo

académico.

O meu pai, opondo-se à ideia ainda mais fortemente do que a

maioria das pessoas, recusou-se a aceitar a minha decisão de

desperdiçar os meus anos de universidade. Atuar era mau, mas algo tão

exclusivo e antiquado como Shakespeare (em Dellecher, não fazíamos

mais nada) era exponencialmente pior. Com dezoito anos e vulnerável,

eu sentira pela primeira vez o temor extraordinário de querer

desesperadamente algo e vê-lo escapar-me por entre os dedos, portanto


decidi correr o risco de lhe dizer que, se não fosse para Dellecher, não

iria para mais nenhum lugar. A minha mãe persuadiu-o a pagar as

minhas propinas – depois de semanas de ultimatos e discussões

circulares – com base no facto de a minha irmã mais velha estar prestes

a chumbar na universidade estatal do Ohio e eles contarem comigo

para ser o filho de quem se gabariam nos jantares de festa. (Por que

motivo não depositavam esperanças maiores na Leah, a filha mais nova

e a mais promissora, era um mistério.)

– Quem me dera que a minha mãe tivesse ficado assim tão furiosa –

disse Alexander. – Ela ainda julga que estou a estudar no Indiana. – A

mãe de Alexander dera-o para adoção em tenra idade e quase não fazia

esforço por se manter em contacto com ele. (Tudo o que se dignara

contar-lhe sobre o seu pai foi que o homem ou era de Porto Rico ou da

Costa Rica – não se lembrava de qual dos dois – e não fazia ideia de

que Alexander existia.) As propinas dele eram custeadas por uma bolsa

de estudo extraordinária e um pequeno pecúlio que lhe fora deixado

por um avô, que só o fizera para despeitar a sua própria prole

perdulária.

– O meu pai só ficou desiludido por eu não ser poeta – acrescentou

James.

O professor Farrow dava aulas sobre os poetas do romantismo na

Universidade de Berkeley e a sua mulher, muito mais jovem do que ele

(escandalosamente, uma ex-aluna) era, ela própria, poeta até sofrer um

colapso nervoso ao estilo do de Silvia Plath quando James andava na

primária. Eu tinha-os conhecido havia dois verãos, quando visitei

James na Califórnia, e as minhas suspeitas de que eram pessoas

interessantes mas pais desinteressados foram inequivocamente

confirmadas.

– Os meus pais não querem saber – disse Meredith. – Andam

ocupados com botox e evasão fiscal, e os meus irmãos estão a olhar

pela fortuna da família. – Os Dardennes repartiam o seu tempo entre

Montreal e Manhattan, vendiam relógios de pulso fantasticamente

caros a políticos e celebridades e tratavam a sua única filha mais como

um animal de estimação raro do que como membro da família.

Filippa, que nunca falava sobre os pais, não disse nada.


– Mais do que parente e menos do que filho – disse Alexander. –

Meu Deus, as nossas famílias são uma desgraça.

– Bem, nem todas – disse Richard. Os pais dele e os de Wren eram

três atores tarimbados e um encenador que viviam em Londres,

aparecendo frequentemente nos teatros do West End. Encolheu os

ombros. – Os nossos pais estão encantados.

Alexander soprou o fumo e atirou o charro para a água.

– És um sortudo – disse, e empurrou Richard da doca.

Ele bateu na água com um chape monstruoso, projetando um jorro

que nos molhou a todos. As raparigas soltaram gritinhos e puseram os

braços por cima da cabeça, e eu e James, apanhados de surpresa,

demos um berro. Daí a um instante, estávamos todos encharcados, a rir

e a aplaudir Alexander, demasiado alto para ouvir Richard praguejar

quando a sua cabeça rompeu a superfície do lago de novo.

Ficamos à beira-lago cerca de mais uma hora até, um a um,

iniciarmos a lenta subida de regresso ao Castelo. Eu fui o último

homem na doca. Não acreditava em Deus, mas pedi a quem quer que

estivesse a ouvir que não permitisse que a previsão de Richard nos

enguiçasse. Um bom ano era tudo o que eu queria.

CENA 5

Oito da manhã era demasiado cedo para Gwendolyn.

Estávamos sentados num círculo irregular, de pernas cruzadas como

índios de livros infantis, a bocejar e com canecas de café trazidas do

refeitório. O Estúdio Cinco – o covil de Gwendolyn, decorado com

tapeçarias coloridas e cheio de velas aromáticas – ficava no segundo

andar do Hall. Não havia propriamente peças de mobiliário, antes uma

generosa coleção de almofadas no chão, que só fazia aumentar a

tentação de nos estendermos e dormirmos.

Gwendolyn chegou quinze minutos depois da hora, como era seu

costume («um atraso chique» como nos dizia sempre), envolta num

xaile com lantejoulas, e, brilhando nos seus dedos, anéis de ouro


grossos como soqueiras. Parecia mais luminosa do que o pálido sol

matinal lá fora e era quase doloroso olhar para ela.

– Bom dia, meus queridos – chilreou. Alexander grunhiu uma

espécie de saudação, mas mais ninguém respondeu. Ela parou, ficando

a pairar sobre nós, com as mãos nas ancas ossudas. – Bem, isto é

simplesmente vergonhoso. É o vosso primeiro dia de aulas, deviam

estar com um brilho nos olhos e cheios de energia. – Ficámos a olhar

para ela, até que ergueu as mãos e disse: – Todos de pé! Vamos lá!

A meia hora seguinte foi dedicada a uma série de posições de ioga

dolorosas. Gwendolyn, para uma mulher dos seus sessenta e tal anos,

era perturbadoramente flexível. Quando o ponteiro dos minutos se

aproximava das nove, ela endireitou-se da sua Posição de Rei Pombo

com um suspiro extasiado que não me deve ter embaraçado só a mim.

– Não está melhor assim? – disse ela. Alexander grunhiu-lhe

novamente. – Tenho a certeza de que todos sentiram a minha falta ao

longo do verão – continuou ela –, mas, como vamos ter tempo

suficiente para pôr a conversa em dia depois da reunião geral, vou

direta ao assunto e informo-vos de que as coisas vão funcionar de uma

maneira um pouco diferente este ano.

Pela primeira vez, a turma (além de Alexander) deu sinais de vida.

Mexemo-nos, sentámo-nos mais direitos e começámos a prestar

realmente atenção.

– Até agora, têm estado na zona segura – disse Gwendolyn. – E sinto

que é justo avisar que esses tempos acabaram.

Olhei de relance para James, que franziu a testa. Eu não conseguia

perceber se Gwendolyn estava a ser teatral como era seu costume ou se

tencionava realmente fazer alguma alteração.

– Nesta fase já me conhecem – disse. – Sabem como trabalho. O

Frederick recorre à persuasão e a lisonjas o dia todo, mas eu sou mais

de empurrões. Tenho-vos empurrado e voltado a empurrar, mas –

ergueu um dedo – nunca demasiado longe.

Eu não concordava totalmente. Os métodos de ensino de Gwendolyn

eram implacáveis, e não era incomum os alunos saírem em lágrimas da

sua aula. (Os atores eram como ostras, explicava ela quando alguém

pedia uma justificação para aquela brutalidade emocional. Tinha de se


lhes quebrar a concha e abri-los para encontrar a pérola preciosa lá

dentro.)

Ela continuou sem papas na língua.

– Este é o vosso último ano e vou pressionar-vos tanto quanto tiver

de ser. Sei do que são capazes, e diabos me levem se não vos arranco

cá para fora tudo isso até ao dia em que deixem este lugar.

Partilhei mais um olhar nervoso, dessa vez com Filippa.

Gwendolyn endireitou o xaile, passou a mão pelo cabelo e disse: –

Ora bem, quem sabe dizer-me qual é o nosso maior impedimento a um

bom desempenho?

– O medo – respondeu Wren. Era um dos muitos mantras de

Gwendolyn: Em palco, deve-se ser destemido.

– Sim. O medo de quê?

– Da vulnerabilidade – respondeu Richard.

– Precisamente – disse Gwendolyn. – Encarnamos apenas cinquenta

por cento de uma personagem. O resto somos nós, e receamos mostrar

às pessoas quem realmente somos. Receamos parecer tontos se

revelarmos a força total das nossas emoções. Contudo, no mundo de

Shakespeare, a paixão é irresistível, não embaraçosa. Portanto!... –

Bateu palmas, e o som fez metade de nós dar um salto. – Banimos o

medo, começando já hoje. Como não podem fazer um bom trabalho se

estiverem a esconder-se, vamos deitar cá para fora toda a fealdade.

Quem quer ser o primeiro?

Deixámo-nos ficar sentados num silêncio surpreendido por uns

segundos, até que Meredith disse:

– Posso ser seu.

– Perfeito – disse Gwendolyn. – Levanta-te.

Olhei ansiosamente para Meredith, a vê-la pôr-se de pé. Ficou no

centro da nossa pequena roda, mudando o peso do corpo de um pé

para o outro até se equilibrar e prendendo o cabelo por trás das orelhas

– o seu método habitual de se concentrar. Todos tínhamos um, mas

poucos de nós conseguiam fazê-lo parecer tão fácil e natural.

– Meredith – disse Gwendolyn, sorrindo-lhe. – A nossa cobaia.

Respira.

Meredith balouçava-se no mesmo sítio, como se empurrada e puxada

por uma brisa, de olhos fechados, lábios ligeiramente entreabertos. Era


estranhamente relaxante de se ver (e, ao mesmo tempo, estranhamente

sensual).

– Ora bem – disse Gwendolyn. – Estás pronta?

Meredith acenou com a cabeça e abriu os olhos.

– Ótimo. Comecemos por algo fácil. Qual é o teu ponto mais forte

como atriz?

Meredith, normalmente tão autoconfiante, hesitou.

Gwendolyn: – O teu ponto mais forte.

Meredith: – Suponho que...

Gwendolyn: – Nada de suposições. Qual é o teu ponto mais forte?

Meredith: – Penso que...

Gwendolyn: – Não quero saber o que tu pensas, quero ouvir o que tu

sabes. Não me importa que pareças convencida, importa-me no que és

boa, e, como atriz, tens de ser capaz de mo dizer. Qual é o teu ponto

mais forte?

– Sou física! – disse Meredith. – Sinto tudo com o corpo todo e não

tenho medo de o usar.

– Não tens medo de o usar, mas tens medo de dizer o que queres

realmente dizer! – Gwendolyn estava quase a berrar. Eu olhava de uma

para a outra, alarmado com a rapidez da escalada da situação. – Andas

com pezinhos de lã à volta disso, porque estamos todos aqui sentados a

olhar para ti. Ora bem, deita cá para fora. Cá para fora.

A elegância fácil de Meredith tinha desaparecido, e ela estava com as

pernas paralisadas e os braços a penderem-lhe rígidos ao lado do

corpo.

– Tenho um corpo fantástico – disse. – Porque me esforço para

caraças para o ter. Adoro ter este aspeto e adoro que as pessoas olhem

para mim. E isso torna-me magnética.

– Tens toda a razão, torna-te mesmo. – Gwendolyn sorriu-lhe, toda

satisfeita. – És uma rapariga linda. Parece presunçoso, mas sabes que

mais? É verdade. Mais importante do que isso, é honesto. – Apontou

para ela com um dedo espetado. – Isso foi honesto. Ótimo.

Filippa e Alexander mexeram-se ambos no seu lugar, evitando olhar

Meredith nos olhos. Richard fitava-a como se quisesse arrancar-lhe as

roupas ali mesmo, e eu não fazia ideia de para onde olhar. Meredith
acenou com a cabeça e fez menção de voltar a sentar-se, mas

Gwendolyn disse:

– Ainda não acabaste. – Meredith imobilizou-se. – Já abordámos os

teus pontos fortes. Agora quero ouvir-te falar sobre os teus pontos

fracos. Do que tens mais medo?

Meredith ficou de pé, a olhar furiosa para Gwendolyn, que, para

minha surpresa, não interrompeu o silêncio. Sentados no chão,

lançávamos olhares furtivos a Meredith com um misto de

compreensão, admiração e embaraço.

– Todas as pessoas têm um ponto fraco, Meredith – disse

Gwendolyn. – Até tu. A coisa mais forte que podes fazer é admiti-lo.

Estamos à espera.

Na pausa insuportável que se seguiu, Meredith permaneceu

impossivelmente imóvel, com os seus olhos em chamas de um verde

ácido. Estava tão exposta que fitá-la parecia invasivo, obsceno, e

debati-me com o impulso de lhe berrar que dissesse alguma coisa,

merda.

– Tenho medo – disse ela, depois do que pareceu um ano, falando

muito devagar – de ser mais bonita do que talentosa ou inteligente e de

que, por causa disso, ninguém alguma vez vá levar-me a sério. Como

atriz ou como pessoa.

De novo um silêncio de morte. Forcei-me a baixar os olhos, olhei de

relance à minha volta, para os outros. Wren estava sentada com uma

mão sobre a boca. A expressão de Richard era mais meiga do que

alguma vez lha vira. Filippa parecia ligeiramente nauseada; Alexander

tentava conter um sorriso nervoso. À minha direita, James fitava

Meredith com um interesse vivo e crítico, como se ela fosse uma

estátua, uma escultura, algo moldado há mil anos para representar uma

divindade pagã. O seu desafivelar da máscara era duro, hipnótico, de

algum modo cheio de dignidade.

Com estranheza e perplexidade, compreendi que aquilo era

exatamente o que Gwendolyn pretendia.

Sustentou o olhar de Meredith durante tanto tempo que parecia que o

próprio tempo tinha parado. De seguida, expirou uma enorme

quantidade de ar e disse:

– Ótimo. Senta-te. Ali.


Os joelhos de Meredith dobraram-se mecanicamente e ela sentou-se

no meio da roda, de coluna direita e hirta como um poste.

– Muito bem – disse Gwendolyn. – Vamos lá conversar.

CENA 6

Ao fim de uma hora a interrogar Meredith sobre as suas inseguranças

(de que havia mais do que eu alguma vez adivinharia), Gwendolyn deu

a aula por terminada, com a promessa de que todos os outros alunos

seriam sujeitos ao mesmo interrogatório cerrado ao longo das duas

semanas seguintes.

Quando íamos a subir as escadas até ao terceiro andar, com alunos

de Arte do segundo ano a passarem por nós a caminho do

conservatório, James pôs-se ao meu lado.

– Aquilo foi implacável – disse eu em voz baixa. Meredith ia alguns

passos à nossa frente, com o braço de Richard à volta dos seus ombros,

embora não parecesse ter reparado nisso. Avançava com determinação,

evitando estabelecer contacto visual com qualquer pessoa.

– Mais uma vez – segredou James –, é típico da Gwendolyn.

– Nunca pensei vir a dizer isto, mas estou cheio de vontade de ficar

fechado na galeria durante duas horas inteirinhas.

Gwendolyn ensinava os elementos mais viscerais da profissão de ator

– voz e corpo, o coração a dominar a cabeça –, ao passo que Frederick

ensinava os pormenores íntimos dos textos de Shakespeare, tudo, da

métrica ao contexto histórico. Livresco e tímido como eu era, preferia

de longe as aulas de Frederick às de Gwendolyn, mas era alérgico ao

giz que ele usava no quadro negro e passava a maior parte do tempo na

galeria a espirrar.

– Vamos – disse James em voz baixa –, antes que os Meredick nos

roubem a mesa. (Filippa tinha cunhado aquele termo no final do nosso

segundo ano, quando Meredith e Richard estavam recentemente

apaixonados e na sua fase mais abominável.) Meredith mantinha uma

expressão absorta quando passámos por eles nas escadas. O que quer

que Richard lhe tivesse dito para a consolar, não resultara.


Frederick preferia dar aulas ao quarto ano na galeria a dá-las na sala

que era obrigado a usar para as turmas mais numerosas do segundo e

do terceiro anos. Era uma sala estreita e com um pé direito alto que em

tempos ocupava todo o comprimento do terceiro andar, mas fora

dividida sem cerimónia em salas mais pequenas e estúdios quando o

conservatório abriu. A Galeria Longa tornou-se a Galeria Curta, com

menos de seis metros de uma ponta à outra, emparedada em dois lados

com estantes e pontuada aqui e ali com retratos de primos e prole de

Dellecher há muito falecidos. Havia um sofá pequeno e outro maior e

bastante baixo um em frente ao outro sob o estuque complicado do

teto, e uma pequena mesa redonda e duas cadeiras recebiam a luz da

janela com vidros em forma de losango no lado sul da sala. Sempre

que tomávamos chá com Frederick (o que acontecia duas vezes por

mês no nosso terceiro ano e diariamente durante a aula no quarto),

James e eu dirigíamo-nos para a mesa. Ficava mais longe do execrável

pó de giz e proporcionava uma vista cintilante do lago e do bosque à

sua volta, com o telhado cónico da Torre empoleirado no topo das

árvores como um chapéu preto de fantasia.

Frederick já estava na sala quando chegámos, a empurrar o quadro

negro para fora de uma pequena alcova entre uma estante e busto sem

nariz de Homero ao fundo da sala. Espirrei ao mesmo tempo que

James disse:

– Bom dia, Frederick.

Ele ergueu os olhos do quadro negro.

– James – disse. – Oliver. É um prazer ter os dois de volta. Ficaram

satisfeitos com os vossos papéis?

– Absolutamente – respondeu James, mas havia uma nota de

melancolia na sua voz que me intrigou. Quem poderia ficar

dececionado por lhe ser atribuído o papel de Bruto? Mas recordei o

seu comentário duas noites antes, sobre querer um pouco mais de

variedade no seu currículo.

– Quando é o nosso primeiro ensaio? – perguntou ele.

– No domingo. – Frederick piscou-lhe o olho. – Achámos melhor

dar-vos uma semana para voltarem a instalar-se.

Como os alunos de teatro do quarto ano viviam sem supervisão no

Castelo e tinham uma famosa tendência para excessos, era geralmente


esperado que dessem uma espécie de festa de pontapé de saída no

início do ano. Estávamos a planeá-la para sexta-feira. Frederick e

Gwendolyn, e provavelmente até o reitor Holinshed estavam a par

disso, mas alinhavam, fingindo que não sabiam de nada.

Richard e Meredith entraram finalmente e James e eu apressámo-nos

a pousar as nossas coisas na mesa. Voltei a espirrar, limpei o nariz a

um guardanapo e espreitei pela janela. Os jardins estavam embebidos

em luz do Sol, a superfície do lago suavemente ondulada com o toque

da brisa. Richard e Meredith sentaram-se no sofá mais pequeno,

deixando o outro para Alexander e Filippa partilharem. Já não se

davam ao trabalho de deixar espaço para Wren, que

(encantadoramente, como uma criança ansiosa pela hora do conto)

preferia sentar-se no chão.

Frederick pôs-se a servir o chá no aparador, e a sala cheirava, como

sempre, a giz e limão e chá de Ceilão. Depois de ter enchido oito

chávenas – beber chá na aula de Frederick era obrigatório; adoçá-lo

com mel era encorajado, mas o leite e o açúcar eram produtos de

contrabando –, virou-se para nós e disse:

– Bem-vindos de volta. – Os seus olhos cintilaram como um

pequeno Pai Natal livresco. – Gostei das vossas audições ontem e estou

ansioso por trabalhar de novo convosco este semestre. – Passou a

primeira chávena de chá a Meredith, que a passou a Richard, que a

passou a James e assim sucessivamente até a chávena ir parar às mãos

de Wren.

– O quarto ano. O ano da tragédia – disse Frederick num tom

grandiloquente quando o tabuleiro do chá ficou vazio e todas as

pessoas tinham já uma chávena e um pires. (Beber chá em canecas,

era-nos frequentemente recordado, era como beber um bom vinho por

um copo de plástico.) – Não vos recomendarei que levem as tragédias

mais a sério do que as comédias. De facto, pode argumentar-se que, se

a comédia não for mortalmente séria para as personagens, não será

cómica para o público. Mas essa é uma conversa para outra ocasião. –

Pegou na sua chávena do tabuleiro, bebeu um gole delicadamente e

voltou a pousá-la. Frederick nunca tivera uma secretária ou um atril,

preferindo andar lentamente de um lado para o outro em frente ao

quadro negro enquanto dava aulas. – Este ano, dedicaremos a nossa


atenção às peças trágicas de Shakespeare. O que poderá esse programa

incluir, na vossa opinião?

Espirrei como se em resposta à sua pergunta, e houve uma breve

pausa antes de começarmos a sugerir tópicos.

Alexander: – Material das fontes.

Filippa: – Estrutura.

Wren: – Imagística.

Meredith: – Conflito, interno e externo.

Eu: – O destino em oposição à responsabilidade pessoal.

James: – O herói trágico.

Richard: – O vilão trágico.

Frederick ergueu uma mão a mandar-nos parar.

– Ótimo. Sim – disse. – Todas essas coisas. É claro que abordaremos

cada uma das peças, incluindo Tróilo e Créssida e outras peças

problemáticas, mas, naturalmente, começaremos por Júlio César. Uma

pergunta: porque não consideramos Júlio César uma peça histórica?

James foi o primeiro a responder, com um caraterístico entusiasmo

académico.

– As peças históricas estão confinadas à história inglesa.

– Efetivamente – disse Frederick, e pôs-se de novo a andar de um

lado para o outro. Funguei, mexi o chá e recostei-me na cadeira para

ouvir. – A maioria das tragédias inclui algum elemento de história, mas

o que escolhemos chamar peças «históricas», como disse o James, são

na verdade peças sobre a história inglesa e todas têm como título o

nome de monarcas ingleses. Por que outras razões? O que faz de Júlio

César em primeiro lugar e acima de tudo uma tragédia?

Os meus colegas trocaram olhares de curiosidade, nenhum deles

disposto a sugerir a primeira hipótese e arriscar-se a errar.

– Bem – aventurei-me eu, quando mais ninguém falou, com a voz

empastada com a congestão nasal –, no final da peça, a maior parte das

personagens principais morre, mas Roma continua de pé. – Parei de

falar, a tentar articular a ideia. – Penso que é mais sobre as pessoas e

menos sobre a política. É decididamente política, mas, se olharmos

para ela ao lado de, não sei, o ciclo de Henrique VI, em que todos

estão só a lutar pelo trono, Júlio César é mais pessoal. Tem que ver

com as personagens e com quem elas são, não apenas com quem está
no poder. – Encolhi os ombros, sem saber ao certo se conseguira

explicar o meu argumento.

– Sim, penso que o Oliver está no caminho certo – disse Frederick. –

Permitam-me que faça outra pergunta: o que é mais importante, que

César seja assassinado ou que seja assassinado pelos seus amigos

íntimos?

Como não era o tipo de pergunta que requeresse resposta, ninguém

respondeu. Frederick olhava para mim, apercebi-me, com o afeto

orgulhoso e paternal que habitualmente reservava para James – que me

fez um sorriso ténue mas encorajador quando lancei um olhar para o

outro lado da mesa.

– É aí – disse Frederick – que reside a tragédia. – Olhou à volta, para

todos nós, com as mãos unidas atrás das costas e a luz do sol do meio-

dia a refletir-se nos seus óculos. – Então. Começamos? – Virou-se para

o quadro, pegou num pau de giz do tabuleiro e começou a escrever. –

Ato I, cena 1. Uma rua. Inicia-se com os tribunos e os populares. O

que acham que é significativo nisso? O sapateiro trava uma batalha

verbal com Flávio e Marulo e, após mais perguntas, apresenta o herói

tirano que dá nome à peça...

Vasculhámos as nossas mochilas à procura de blocos de

apontamentos e esferográficas e, enquanto Frederick continuava a falar,

anotámos quase todas as suas palavras. O sol aquecia-me as costas e o

aroma agridoce do chá preto evolava-se para o meu rosto. Olhava

furtivamente para os meus colegas enquanto eles escreviam e

escutavam e ocasionalmente faziam perguntas, consciente da sorte que

tinha por estar entre eles.

CENA 7

A reunião-geral realizava-se tradicionalmente na sala de música

recamada de dourados, no dia 9 de setembro, o dia de anos de Leopold

Dellecher. (Ele mudara-se de Chicago para o Norte e mandara

construir a casa na década de 1850. Só seria transformada num

estabelecimento de ensino daí a meio século, quando a sua manutenção


se revelou demasiado onerosa para a família Dellecher, que estava a

reduzir-se rapidamente.) Se o velho Leopold tivesse conseguido de

algum modo escapar à morte, faria 187 anos. Um bolo enorme com

esse número exato de velas aguardava no salão de baile no andar de

cima, para ser cortado às fatias e distribuído aos estudantes e ao

pessoal a seguir ao discurso de boas-vindas do reitor Holinshed.

Estávamos sentados no lado esquerdo da coxia, no meio de uma

longa fila ocupada por alunos do segundo e do terceiro anos. Os alunos

de teatro, sempre os mais ruidosos e os mais propensos ao riso,

ficavam sentados atrás dos alunos de música instrumental e coral (que

na sua maioria eram reservados, ao que parecia decididos a perpetuar o

estereótipo de que eram os mais autocomplacentes e os menos afáveis

das sete disciplinas do Dellecher). Os da dança (um grupo de seres

subalimentados com ar de cisnes) sentavam-se atrás de nós. Do lado

oposto da coxia estavam sentados os alunos de arte (facilmente

identificáveis pelos seus cortes de cabelo extravagantes e pelo vestuário

sempre manchado com tinta e estuque), os alunos de línguas (que

falavam quase exclusivamente em grego e latim uns com os outros e

por vezes com outras pessoas) e os alunos de filosofia (que eram de

longe os mais estranhos, mas também os mais divertidos, com

tendência para verem em todas as conversas uma experiência social e

debitarem palavras como «hilozoísmo» e «compossibilidade», como se

fossem tão facilmente compreensíveis quanto «bom dia»). O pessoal

docente estava sentado numa longa fila de cadeiras no palco. Frederick

e Gwendolyn, instalados lado a lado como um velho casal,

conversavam em voz baixa com os vizinhos. A reunião-geral era uma

das raras ocasiões em que nos misturávamos todos, um mar de pessoas

no que todos conhecíamos como «azul-Dellecher», porque ninguém

queria chamar-lhe «azul-pavão». As cores do estabelecimento de

ensino não eram obrigatórias, evidentemente, mas quase todas as

pessoas traziam a mesma camisola azul, com o brasão cosido no peito,

do lado esquerdo. Havia uma versão maior do brasão da família numa

faixa por trás do pódio – um sautor branco num campo azul, uma

chave dourada comprida e uma pena preta aguçada cruzadas como

espadas em primeiro plano. Por baixo, aparecia o lema: Per aspera ad


astra. Eu já ouvira uma série de traduções, mas a que preferia era: Por

entre os espinhos, para as estrelas.

Como sempre, foi uma das primeiras coisas que Holinshed disse na

reunião geral.

– Boa tarde a todos. Per aspera ad astra. – Tinha aparecido no palco

vindo das sombras da coxia de cena, com um foco no seu rosto a

remeter-nos todos ao silêncio. – Mais um novo ano. Aos alunos do

primeiro ano, dou simplesmente as boas-vindas e digo que nos

sentimos encantados por vos receber. Aos alunos do segundo, do

terceiro e do quarto anos, bem-vindos de volta e parabéns. – Holinshed

era um homem estranho, alto mas corcovado, calmo mas contundente.

Tinha um nariz grande e adunco e cabelo ralo da cor do cobre, e usava

uns pequenos óculos quadrados com lentes tão grossas que lhe

aumentavam os olhos para três vezes o seu tamanho real. – Se estão

sentados nesta sala esta tarde – disse –, significa que foram aceites na

conceituada família Dellecher. Aqui farão muitos amigos e talvez

alguns inimigos. Não deixem que esta segunda perspetiva vos assuste;

se não fizerem inimigos na vida será por viverem com demasiada

cautela. E é isso que eu gostaria de desencorajar. – Fez uma pausa,

mastigou as palavras por um momento.

– Está a ser pouco convencional – murmurou Alexander.

– Bem, tem de reciclar os discursos pelo menos de quatro em quatro

anos – segredei. – Quem poderia criticá-lo?

– Em Dellecher, encorajo-vos a viverem com audácia – continuou

Holinshed. – A fazerem arte, a cometerem erros e a não terem

arrependimentos. Vieram para Dellecher porque valorizam algo acima

do dinheiro, acima da convenção, acima do tipo de educação que pode

ser avaliada numa escala numérica. Não hesito em vos dizer que são

notáveis. Contudo – a sua expressão ensombrou-se –, as nossas

expectativas ajustam-se ao vosso enorme potencial. Esperamos que

sejam dedicados. Esperamos que sejam determinados. Esperamos que

nos ofusquem. E não gostamos de ser desiludidos. – As suas palavras

atroavam a sala e pairavam no ar como um vapor pungente, invisível

mas impossível de ignorar. Deixou que o silêncio pouco natural

persistisse demasiado tempo e depois, abruptamente, recuou do pódio

e disse: – Alguns de vós vieram juntar-se-nos no final de uma era e,


quando partirem, sairão não só para uma nova década e um novo

século, mas também para um novo milénio. Planeamos preparar-vos

para isso o melhor que podemos. O futuro é amplo e imprevisível e

cheio de promessas, mas é também precário. Agarrem todas as

oportunidades que se vos deparem e não as larguem, porque elas

podem voltar a ser arrastadas para o mar alto.

O seu olhar pousou inconfundivelmente em nós, os sete alunos de

teatro do quarto ano.

– Há uma maré nos negócios dos homens / Que, apanhada na

subida, os leva à fortuna – disse. – É nessa maré alta que agora

navegamos; / Aproveitemos a corrente enquanto ela ajuda, / Ou

perderemos todo o nosso investimento. Senhoras e senhores, nunca

desperdicem um momento. – Holinshed sorriu sonhadoramente e

depois olhou para o relógio. – E, ainda no tópico do desperdício, há um

enorme bolo no andar de cima que precisa de ser devorado. Boa noite.

E desapareceu do palco antes sequer de a assistência começar a

aplaudir.

CENA 8

Só daí a uma semana aconteceu algo realmente interessante. Depois

da aula de Frederick (onde um debate sobre a linha ténue entre

homossocial e homoerótico na famosa «cena da tenda» nos deixara

todos a vacilar entre a diversão e o embaraço), descemos as escadas

juntos, a queixar-nos de fome. O refeitório – em tempos a grandiosa

sala de jantar da família Dellecher – estava apinhado ao meio-dia, mas

a nossa mesa do costume encontrava-se vazia e aguardava-nos.

– Porra, estou a morrer de fome – declarou Alexander, atacando o

seu prato antes ainda de nós nos sentarmos à mesa. – Beber aquela

porcaria daquele chá todo faz-me sentir enjoado.

– Se tomasses o pequeno-almoço, talvez isso não acontecesse – disse

Filippa, vendo-o, com repugnância, enfiar garfadas de puré na boca.

Richard chegou tarde, com um envelope na mão, que já tinha aberto.


– Há correio – disse, e sentou-se na ponta da mesa entre Meredith e

Wren.

– Para nós todos? – perguntei.

– Suponho que sim – respondeu, sem olhar para cima.

– Eu vou lá – disse eu, e alguns dos outros murmuraram um

agradecimento quando me pus de pé. As nossas caixas do correio

ficavam ao fundo do refeitório, e dei primeiro com o meu nome na

parede de pequenos cubículos de madeira. O de Filippa era o que

ficava mais perto do meu, a seguir o de James e os restantes iam-se

estendendo progressivamente até às últimas letras do alfabeto. O

mesmo envelope quadrado aguardava em cada uma das nossas caixas

do correio, com o nosso nome escrito na parte da frente na letra miúda

e elegante de Frederick. Levei-os para a mesa e distribuí-os.

– O que é? – perguntou Wren.

– Não sei – respondi. – Não pode estar já a marcar-nos trabalhos

para as provas do meio do período, pois não?

– Não – disse Meredith, já a rasgar o seu envelope. – É o Macbeth.

O resto do grupo parou imediatamente de falar, e abrimos os nossos

envelopes.

Realizava-se todos os anos um punhado de representações

tradicionais em Dellecher. Quando o tempo estava quente, os alunos de

artes visuais recriavam o quadro Noite Estrelada, de van Gogh, com

giz no chão. Em dezembro, os alunos de línguas faziam uma leitura de

«Era a noite Antes do Natal» em latim. Os alunos de filosofia

reconstruíam o seu navio de Teseu em janeiro todos os anos e

realizavam um simpósio em março, enquanto os alunos de música

coral e instrumental levavam à cena Don Giovanni no Dia de São

Valentim e os bailarinos dançavam A Sagração da Primavera, de

Stravinsky, em abril. Os alunos de teatro representavam cenas de

Macbeth no Halloween e cenas de Romeu e Julieta na mascarada do

Natal. Como os alunos do primeiro, segundo e terceiro anos quase não

eram envolvidos em nenhuma dessas atividades, eu não fazia ideia de

que papéis lhes seriam atribuídos.

Quebrei o lacre do meu envelope e tirei dele um cartão que ostentava

cinco linhas na letra pequenina de Frederick:


Solicita-se a sua comparência no início do trilho,

à meia-noite menos um quarto, no dia do Halloween.

Venha preparado para o Ato I, Cena 3, e para o Ato IV, Cena 1

Desempenhará o papel de BANQUO.

Apresente-se na loja dos adereços às 12:30

no dia 18 de outubro para provar o seu fato.

Não fale deste assunto com os seus pares.

Fitei a mensagem, perguntando-me se teria havido algum erro

administrativo. Verifiquei novamente o envelope, mas dizia,

inequivocamente, Oliver. Lancei um olhar a James para ver se ele tinha

reparado em algo fora do comum, mas o seu rosto estava impassível.

Eu antecipava que fosse ele a desempenhar o papel de Banquo,

contracenando com Richard no papel de Macbeth.

– Bem – disse Alexander, parecendo vagamente intrigado –, suponho

que não devemos falar sobre isto.

– Não – disse Richard. – É a tradição. A mascarada do Natal é a

mesma coisa, não é suposto que saibamos quem desempenha que papel

antes do espetáculo.

Esquecera-me momentaneamente de que ele desempenhara o papel

de Teobaldo no ano anterior.

Tive dificuldade em interpretar as expressões das raparigas. Filippa

não aparentava surpresa. Wren parecia empolgada. Meredith,

ligeiramente desconfiada.

– Ensaiamos alguma vez? – perguntou Alexander.

– Não – disse Richard de novo. – Vais receber um texto das tuas

deixas na caixa do correio amanhã. Depois, simplesmente aprendes as

falas e apareces no dia. Desculpem. – Empurrou a sua cadeira para trás

e saiu da mesa sem mais uma palavra. Wren e Meredith trocaram um

olhar intrigado.

Meredith: – O que se passa com ele?

Wren: – Estava bem há meia hora.


Meredith: – Queres ir tu ou vou eu?

Wren: – Vai tu.

Meredith levantou-se da mesa com um suspiro, deixando o seu

empadão de carne a meio. Alexander, que tinha acabado o seu, teve a

delicadeza de esperar três segundos inteiros antes de dizer:

– Acham que ela vai voltar para comer isso?

James empurrou o prato na direção dele.

– Come-o tu, seu selvagem.

Lancei um olhar por cima do ombro. Ao canto, junto às máquinas do

café, Meredith alcançara Richard e estava a ouvi-lo falar, com um

vinco fundo na testa. Tocou-lhe no braço, disse alguma coisa, mas ele

encolheu os ombros e saiu do refeitório, com uma expressão de

perplexidade a pairar como uma sombra sobre os seus olhos. Meredith

ficou a vê-lo afastar-se e depois regressou à nossa mesa para nos dizer

que ele estava com uma enxaqueca e ia voltar para o Castelo.

Aparentemente sem se dar conta de que o seu prato desaparecera,

voltou a sentar-se.

Enquanto o almoço se arrastava, fui comendo e ouvindo os outros

conversarem, lamentando o número de versos que tinham de aprender

de cor para Júlio César antes do dia em que teriam de os dizer sem o

livro à frente, que seria daí a uma semana. O envelope parecia-me um

peso no colo. Olhei para James, sentado à minha frente. Também

estava em silêncio, e não escutava realmente a conversa. Olhei dele

para Meredith e dela para a cadeira vazia de Richard, e não consegui

deixar de sentir que, de algum modo, o equilíbrio de forças se alterara.

CENA 9

A aula de combate era a seguir ao almoço, na sala de ensaios.

Arrastámos do armário uns tapetes azuis já muito gastos, estendemo-

los no chão e começámos a fazer alongamentos sem grande

entusiasmo, à espera de Camilo. Camilo – um tipo chileno jovem cuja

barba escura e argola de ouro na orelha o faziam parecer um pouco

pirata – era o nosso coreógrafo de lutas, personal trainer e instrutor de


movimento. As aulas de movimento no segundo e no terceiro anos

eram dedicadas à dança, aos movimentos de palhaços e animais e a

toda a ginástica básica de que um ator pode necessitar. O primeiro

semestre do quarto ano era dedicado ao combate corpo a corpo, o

segundo semestre à esgrima.

Camilo chegou à uma hora em ponto e, como era segunda-feira, pôs-

nos todos em fila para sermos pesados.

– Ganhaste dois quilos e meio desde o início do período – disse ele

quando subi para a balança. Ele ficara contente com os meus

progressos durante o verão, mesmo que Gwendolyn não tivesse ficado.

– Estás a seguir à risca o programa que te dei?

– Estou – respondi, o que era quase totalmente verdade. Eu devia

correr, levantar pesos, comer bem e não beber demasiado. Ignorávamos

unanimemente a política de Camilo de ser responsável e beber com

moderação.

– Ótimo. Continua a levantar pesos, mas não te excedas. – Inclinou-

se para mim, como se para partilhar um segredo. – O Richard pode

parecer o Hulk, mas, francamente, tu não tens o metabolismo

adequado para isso. Continua a ingerir bastantes proteínas e vais

acabar por ter um aspeto enxuto e duro.

– Fantástico. – Desci da balança e deixei Alexander (que era mais

alto do que eu, mas sempre demasiado magricela, porque não

conseguia parar de fumar ou acordar a tempo de tomar o pequeno-

almoço) ocupar o meu lugar. Fitei o meu reflexo nos espelhos

compridos na parede em frente às janelas. Estava em forma, mas

queria um pouco mais de peso, um pouco mais de músculo.

Espreguicei-me e lancei um olhar a James, que era o mais pequeno dos

rapazes – quase não chegava ao metro e setenta e sete, magro mas não

magricela. Havia algo quase felino nele, uma espécie de agilidade

primitiva. (Para os movimentos de animais, Camilo atribuíra-lhe o

leopardo. Ele passou um mês a rondar pelo nosso quarto às escuras

antes de se sentir suficientemente imbuído do papel para me saltar em

cima quando eu estava a dormir. Passei a meia hora seguinte à espera

de que o coração parasse de me martelar o peito enquanto lhe garantia

que, sim, o meu grito de terror fora inteiramente genuíno.


– O Richard não vem hoje? – perguntou Camilo quando Alexander

desceu da balança.

– Não se sente bem – disse Meredith. – Está com uma enxaqueca.

– Que pena – disse Camilo. – Bem, temos de avançar sem ele. –

Ficou a olhar para nós os seis, sentados como patinhos numa fila

ordenada na beira do tapete. – Com o que é que terminámos na semana

passada?

Filippa: – Bofetadas.

Camilo: – Sim. Recorda-me as regras.

Wren: – Assegura-te de que não estás demasiado perto. Estabelece

contacto visual com o teu parceiro. Vira o corpo para esconder o

truque do efeito sonoro.

Camilo: – E?

James: – Usa sempre a mão estendida e aberta.

Camilo: – E?

Meredith: – Tem de parecer realista.

Camilo: – Como?

Eu: – Os efeitos sonoros são os mais convincentes.

– Perfeito – disse Camilo. – Penso que estamos prontos para

experimentar algo com um pouco mais de força. E se aprendêssemos o

revés? – Pigarreou, estalou os nós dos dedos. – O revés, que,

dependendo do efeito que pretendam, podem fazer com o punho ou a

mão aberta, é diferente de uma bofetada normal, porque nunca devem

cruzar o corpo.

– O que quer dizer com isso? – perguntou Meredith.

– James, posso exemplificar contigo? – pediu Camilo.

– Com certeza. – James pôs-se de pé e deixou que Camilo o

posicionasse de modo a ficarem frente a frente. Camilo estendeu o

braço, ficando com a ponta do seu dedo médio quase a tocar a ponta do

nariz de James.

– Quando dás uma bofetada a alguém, tens de mover a mão

cruzando o meio do corpo da pessoa. – Moveu a mão em frente ao

rosto de James em câmara lenta, sem tocar nele. James virou a cabeça

na mesma direção. – Mas, com uma bofetada de revés, não deves fazer

isso. A minha mão vai subir diretamente ao lado do corpo do James. –

A mão direita de Camilo, fechada em punho, moveu-se verticalmente


da sua anca esquerda até acima do topo da cabeça de James. – Estão a

ver? Uma linha longa e direita. Não devem de maneira nenhuma cruzar

a cara da pessoa ao fazer isto, porque podem praticamente dar cabo

dela. Mas o segredo é só este. Experimentamos à velocidade normal?

James, quero que faças o efeito sonoro.

– Está bem.

Olharam-se nos olhos e James fez um pequeno aceno de cabeça a

Camilo. O braço de Camilo atravessou o espaço entre eles e ouviu-se

um estalido forte quando James bateu na sua própria coxa e guinou a

afastar-se. Aconteceu tão depressa que foi impossível saber se tinham

estabelecido contacto físico.

– Excelente – disse Camilo. – Falemos sobre quando ou porque

poderiam querer usar este golpe. Alguém?

Filippa foi a primeira a responder. (Na aula de Camilo, era

frequentemente a primeira a responder.)

– Como não estamos a cruzar o corpo da outra pessoa, podemos

ficar mais perto uma da outra. – Inclinou a cabeça, olhando de Camilo

para James como se estivesse a rebobinar e a passar o filme da bofetada

na cabeça. – O que torna o gesto quase íntimo e especialmente

chocante, precisamente por ser tão íntimo.

Camilo acenou com a cabeça.

– É incrível como o teatro, e Shakespeare em particular, pode

anestesiar-nos para o espetáculo da violência. Mas não é só um truque

de palco. Quando a cabeça de Macbeth é decepada, a língua de Lavínia

cortada ou os conspiradores banham as mãos no sangue de César, isso

deve afetar-nos, quer sejamos a vítima, o agressor ou um espectador

acidental. Alguma vez viram uma luta a sério? É uma coisa feia. É

visceral. Mais importante ainda, é emocional. No palco, temos de ter o

controlo da situação para não magoarmos os outros atores, mas a

violência tem de vir de um sentimento violento, caso contrário o

público não acreditará nela. – Olhou para cada um de nós até os seus

olhos pousarem em mim. Perpassou um sorriso sob o seu bigode. –

Oliver, queres vir juntar-te a nós?

– Com certeza. – Pus-me de pé e tomei o lugar de Camilo em frente

a James.
– Ora bem – disse Camilo, pousando uma mão no ombro de James e

a outra no meu –, toda a gente sabe que vocês são bons amigos, não é?

Sorrimos um ao outro.

– James, vais tentar o revés no Oliver. Não o digas em voz alta, mas

quero que penses no que ele teria de fazer para te levar a agredi-lo. E

não movas um músculo até sentires esse impulso.

O sorriso de James desvaneceu-se e ele pôs-se a olhar para mim com

uma expressão atenta e perplexa, sobrancelhas franzidas por cima da

cana do nariz.

– Oliver, quero que faças o oposto – disse Camilo. – Imagina que

provocaste este ataque e, quando ele acontecer, deixa que o sentimento

te atinja, embora o punho dele não te toque.

Pisquei os olhos, já confuso.

– Quando estiverem prontos – disse ele, e recuou. – Demorem o

tempo que for preciso.

Ficámos ali imóveis, a fitar-nos. Os olhos de James eram de um

cinzento brilhante e intenso, mas assim tão perto eu via um anel de

ouro à volta de cada pupila. Algo estava a mover-se, a entrar em ação

na sua mente – acompanhado por uma contração dos maxilares, um

espasmo nervoso do seu lábio inferior. James nunca se sentira furioso

comigo, que eu soubesse. Fascinado com a estranheza daquilo,

esqueci-me completamente da minha parte do exercício e deixei-me

ficar a ver a pressão aumentar, com os seus ombros a erguerem-se, as

mãos cerradas em punho ao lado do corpo. Fez-me um aceno de

cabeça rápido e seco. Eu sabia o que vinha aí, mas um qualquer reflexo

incongruente fez-me debruçar-me para a frente, inclinar-me para ele. A

sua mão cortou o ar na direção da minha cabeça, mas não reagi, não fiz

o efeito sonoro nem me virei, só estremeci quando algo aguçado

passou na minha face.

A sala ficou estranhamente parada e silenciosa. James olhou-me de

testa franzida, com o transe de animosidade quebrado.

– Oliver? Tu não... Oh! – Pegou no meu queixo e virou-me a cabeça,

passou levemente a mão pelo lado do meu rosto. Sangue. – Meu Deus,

desculpa.

Agarrei-me ao cotovelo dele, para me equilibrar.

– Não, tudo bem. Tem mau aspeto?


Camilo afastou James do seu caminho.

– Deixa ver – disse. – Não, é só um arranhão, foi a aresta do relógio

dele. Estás bem?

– Estou – respondi. – Não sei o que aconteceu, senti-me um bocado

entorpecido e inclinei-me para o ataque. – Encolhi os ombros,

embaraçado, subitamente consciente de que ele e os meus quatro

colegas de turma, de quem me tinha esquecido, estavam a fitar-me. – A

culpa é minha. Não estava pronto.

James, não esquecido – como poderia sê-lo? –, olhava para mim com

um ar de tão profunda preocupação que quase me ri.

– A sério – disse eu –, estou bem.

Contudo, ao voltar para o meu lugar quase cambaleei, tão estonteado

como se ele me tivesse realmente agredido.

CENA 10

O primeiro ensaio já sem o texto não correu bem.

Era também o nosso primeiro ensaio naquele espaço. O Teatro

Archibald Dellecher tinha capacidade para quinhentas pessoas e estava

decorado com toda a modéstia de um teatro de ópera barroco. Os

lugares estavam forrados com o mesmo veludo azul da grandiosa

cortina do palco e o lustre era tão impressionante que algumas pessoas

sentadas no balcão passavam mais tempo a fitá-lo do que a ver a peça

que ali as levara. Como ainda haveria mais seis semanas de ensaios,

nenhuns dos adereços ou das plataformas tinham sido montados, mas

estavam todos indicados com fita-cola no palco. Parecíamos estar num

puzzle gigante.

Eu sabia as minhas falas de Casca, mas não passara igual tempo a

decorar as de Otávio, já que ele só entrava no quarto ato. Acocorado

num lugar na terceira fila, relia furiosamente as minhas falas enquanto

Alexander e James avançavam aos solavancos na cena a que tínhamos

começado a chamar «cena da tenda», que, nessa fase, era em parte

estratégia marcial e em parte briga de namorados.

James: – Teria eu respondido assim a Caio Cássio?


Quando Marco Bruto se tornar tão avaro

Que aferrolhe dos amigos umas míseras moedas,

Preparai-vos, deuses, com todos os vossos raios

Para o fazer em pedaços.

Alexander: – Nada te recusei!

James: – Recusaste!

Alexander: – Não recusei. Foi um imbecil

Que te trouxe a minha resposta. Bruto destroçou-me o coração.

Um amigo devia tolerar as fraquezas dos amigos,

Mas Bruto torna as minhas maiores do que elas são.

Ficaram a fitar-se com uma expressão furiosa durante tanto tempo

que lancei um olhar na direção da mesa do ponto antes de James piscar

os olhos e dizer:

– A minha deixa.

Senti uma pontada de embaraço solidário. Richard, à espera na coxia

para entrar em cena como fantasma de Júlio César, mudou o peso do

corpo de um pé para o outro, com os braços cruzados sobre o peito.

– Não o faço, quando não as utilizas contra mim – disse Gwendolyn

do fundo da plateia. Percebi, pela sua ênfase exagerada na métrica, que

estava a ficar cansada de atrasos.

James: – Não o faço, quando não as utilizas contra mim.

Alexander: – Não gostas de mim.

James: – Não gosto dos teus defeitos.

Alexander: – Os olhos de um amigo não deviam nunca reparar

nesses defeitos.

James: – Os de um adulador, não, nem quando são tão grandes

Como o alto Olimpo.

Alexander: – Vem, António, e tu jovem Otávio, vinde,

Vingai-vos os dois em Cássio,

Porque Cássio está farto deste mundo... Deixa?

Gwendolyn: – Odiado por alguém a quem ama...

Alexander: – Odiado por alguém a quem ama; desafiado pelo seu

irmão;

Repreendido como um escravo; todos os seus erros observados,

Anotados num caderno... Que diabo. Deixa?

Gwendolyn: – ... estudados e aprendidos de cor...


Alexander: – Certo, desculpe lá, estudados e aprendidos de cor

Para mos atirar à cara! Oh pudesse eu chorar

A minha alma pelos olhos!

Alexander empunhou uma espada imaginária (ainda não tínhamos

adereços) e abriu o colarinho da camisa com um gesto exagerado.

– Aqui está o meu punhal – exclamou. – E aqui, meu peito nu;

dentro dele, um coração / Mais precioso do que... Não, desculpa, mais

rico... Está correto? Que merda. Deixa? – Olhou na direção da mesa do

ponto, mas, antes de Gwendolyn ter tempo de lhe dizer a sua fala,

Richard saiu para a luz no palco vindo da coxia esquerda de cena.

– Desculpem lá – disse, com a sua voz forte ressoando no auditório

quase vazio. – Vamos passar a noite toda com esta cena? Claramente,

eles não sabem as falas.

No silêncio de resposta, fitei James, de boca aberta, com receio de

me virar. Ele e Alexander fulminavam Richard com o olhar, como se

ele tivesse dito algo obsceno, enquanto Meredith ficara paralisada onde

estava, sentada no chão da coxia, com uma perna esticada para

distender o tendão. Wren e Filippa viraram o pescoço para espreitar

para a escuridão por cima do meu ombro. Eu arrisquei-me a lançar um

olhar para trás de mim. Gwendolyn estava de pé; Frederick estava

sentado ao lado dela, com as mãos unidas, a fitar o chão com a testa

franzida.

– Richard, já chega – disse Gwendolyn num tom ríspido. – Faz um

intervalo e volta só quando estiveres mais calmo.

Richard não reagiu de imediato, como se não tivesse compreendido,

mas de seguida rodou sobre os calcanhares abruptamente e saiu pela

coxia de cena sem uma palavra.

Gwendolyn olhou para James e Alexander.

– Vocês os dois façam também um intervalo, passem os olhos pelas

vossas falas e voltem prontos para trabalhar. Já agora, façam todos um

intervalo. Vão lá. – Como ninguém se mexeu, ela sacudiu as mãos a

enxotar-nos do auditório, como se fôssemos galinhas indesejadas. Eu

deixei-me ficar até James passar por mim e depois segui-o lá para fora,

para a zona de descargas. Alexander já se encontrava ali, a acender um

charro.
– Aquele filho da mãe – disse. – Tem metade das linhas que nós

temos e tem a lata de interromper o nosso primeiro ensaio sem texto?

Merda para ele. – Sentou-se, deu uma passa sôfrega no charro e depois

deu-o a James, que puxou uma passa rápida e lho devolveu.

– Não estás errado – disse ao exalar, com uma nuvem de fumo

branco a sair-lhe dos lábios. – Mas ele também não.

Alexander ficou com uma expressão rebelde.

– Bem, merda para ti também.

– Não faças beicinho. Nós devíamos saber melhor as nossas linhas.

O Richard chamou-nos a atenção para isso, é tudo.

– Sim – disse eu –, mas foi um grande parvalhão na maneira como o

fez.

Um canto da boca de James contraiu-se num quase sorriso.

– É verdade.

A porta abriu-se e Filippa apareceu, de braços cruzados sobre o

peito, a proteger-se do frio da noite.

– Então, pessoal, estão bem?

Alexander deu mais uma longa passa e deixou ficar a boca aberta,

com o fumo a sair num fluxo comprido e lento.

– Está a ser uma noite longa – disse James, num tom inexpressivo.

– Se te faz sentir melhor, a Meredith acabou de desancar o Richard.

– Porquê? – perguntei.

– Por ele ser um burro – disse ela, como se fosse óbvio. – Lá porque

ela dorme com ele não quer dizer que não consiga ver quando ele é um

pulha.

James: – Estou confuso. É um burro ou um pulha?

Filippa: – Sinceramente, acho que o Richard talvez seja as duas

coisas.

Eu: – Pelo menos, não vai fazer sexo durante algum tempo.

Alexander: – Pois. Ótimo. Isso vai torná-lo muito mais cooperante.

– De facto, ele pediu desculpa – disse Filippa. – À Meredith, pelo

menos. Disse que era uma infantilidade e que já estava arrependido.

– A sério? – disse Alexander, com o fumo a encaracolar-se à volta da

sua cabeça como se ele estivesse prestes a entrar em combustão. –

Então, não só é um filho da mãe de um burro pulha e grande

parvalhão, mas também já pediu desculpa? – Atirou o charro para o


cimento e calcou-o a apagá-lo. – Isso é simplesmente perfeito, agora

nem sequer podemos ficar zangados com ele. A sério, merda para ele.

– Acabou de esmagar o charro e ergueu os olhos para nós. Estávamos

em círculo à sua volta, com os lábios comprimidos, a tentar manter um

ar sério. – O que foi?

Filippa olhou para mim e desatámos ambos a rir.

CENA 11

O tempo tem ritmos diferentes para diferentes pessoas. Connosco,

andou a passo, trotou e galopou ao longo de todo o mês de outubro.

(Nunca permaneceu imóvel até à manhã de 22 de novembro, e, pelo

menos a mim, dá a impressão de não se ter movido realmente desde

então.)

Já tínhamos acabado de catalogar os nossos pontos fortes e fracos há

muito tempo. Alexander foi a seguir a Meredith, e declarou com

bastante orgulho a sua capacidade de assustar as pessoas, mas

confessou a preocupação de que fosse o vilão na história da sua própria

vida. Wren apresentou uma lâmina de dois gumes: estava em contacto

íntimo com as suas emoções, mas, por consequência, era demasiado

sensível para um ambiente artístico muito competitivo. Richard disse-

nos o que todos já sabíamos – que tinha uma autoconfiança

inesgotável, mas o seu ego fazia com que fosse difícil trabalhar com

ele. Filippa fez a sua declaração sem qualquer vestígio de embaraço.

Era versátil, mas, como não se encaixava num «tipo», ficaria

condenada a desempenhar papéis secundários para sempre. James –

falando lentamente, concentrado nos seus pensamentos, parecendo

nem sequer ver o resto do grupo – explicou que se embrenhava

completamente em cada personagem que encarnava, mas que por vezes

não conseguia deixá-las para trás e aprender a ser de novo ele mesmo.

Quando chegou a minha vez, já estávamos tão anestesiados em relação

às inseguranças uns dos outros que o facto de eu dizer que era a pessoa

menos talentosa do nosso ano não pareceu surpreender ninguém. Não


consegui pensar em nenhum grande ponto forte que tivesse e admiti-o,

mas James interrompeu-me e disse:

– Oliver, tu fazes com que todas as cenas em que entras sejam sobre

as outras pessoas que participam nelas. És a pessoa mais simpática e o

ator mais generoso aqui, o que, provavelmente, é mais importante do

que o talento, de qualquer maneira.

Fechei imediatamente a boca, convencido de que ele era o único a

pensar assim. Estranhamente, mais ninguém se manifestou.

No dia 16 de outubro, ocupámos os nossos lugares habituais na

galeria. Lá fora, um dia perfeito de outono pusera as árvores à volta do

lago em chamas. Aquela conflagração de cores – laranja-fulvo,

amarelo-sulfuroso, vermelho-sangue – cintilava invertida na superfície

da água. James espreitou pela janela por cima do meu ombro e disse:

– Parece que a Gwendolyn mandou as turmas de artes visuais

prepararem sangue falso para espalhar pela praia toda.

– Vai ser divertido.

Ele abanou a cabeça, com um canto da boca erguido, e deslizou para

a cadeira em frente à minha. Empurrei uma chávena com o pires na

direção dele e fiquei a vê-lo levar a chávena aos lábios, ainda a sorrir.

Os outros iam entrando, e o período de tranquilidade lânguida

desvaneceu-se no ar como vapor.

Oficialmente, tínhamos acabado as aulas sobre Júlio César e

avançáramos para Macbeth, mas as palavras familiares de Júlio César

saltavam prontas aos lábios, e com elas uma espécie de tensão

agressiva. Semanas de ensaios difíceis e de manipulações psicológicas

de Gwendolyn tinham tornado a neutralidade impossível. Nesse dia, o

que começou como um simples debate sobre a estrutura trágica

transformou-se rapidamente numa discussão.

– Não, não é o que estou a dizer – disse Alexander, a meio da aula,

afastando com impaciência o cabelo do rosto. – O que estou a dizer é

que a estrutura trágica está à vista em Macbeth; faz com que Júlio

César pareça uma telenovela.

Meredith: – Que merda é que isso quer dizer?

Frederick: – Tento na língua, por favor, Meredith.

Wren sentou-se mais direita no chão, voltando a pôr a chávena em

cima do pires que tinha entre os joelhos.


– Não – disse –, eu compreendo.

Richard: – Então, explicas-nos, se fazes favor?

Wren: – Macbeth é o típico herói trágico.

Filippa: – Defeito trágico: a ambição.

Eu: – [espirro]

– E Lady Macbeth é uma típica vilã trágica – acrescentou James,

olhando de Wren para Filippa, a solicitar a sua concordância. – Ao

invés de Macbeth, não tem nenhum escrúpulo moral em assassinar

Duncan, o que prepara o caminho para todas as outras coisas

criminosas que eles fazem.

– Então qual é a diferença? – disse Meredith. – É o mesmo em Júlio

César. Bruto e Cássio assassinam Júlio César e preparam o terreno

para um desastre.

– Mas não são vilões, pois não? – perguntou Wren. – Cássio talvez,

mas Bruto faz o que faz por um objetivo superior, o bem de Roma.

– Não que eu amasse menos César, mas amava Roma ainda mais –

recitou James.

Richard fez um som de impaciência e disse:

– Onde queres chegar, Wren?

– Ela quer chegar onde eu quero chegar – disse Alexander, chegando-

se para a frente e empoleirando-se na beira do sofá, com as suas pernas

altas dobradas de tal modo que os joelhos ficaram quase ao nível do

peito. – Júlio César não pertence à mesma categoria de tragédia que

Macbeth.

Meredith: – Então, a que categoria pertence?

Alexander: – Merda, sei lá.

Frederick: – Alexander!

Alexander: – Desculpe.

– Penso que estás a complicar demasiado a questão – disse Richard.

– Júlio César e Macbeth têm a mesma estrutura. Herói trágico: César.

Vilão trágico: Cássio. Intermediário chocho: Bruto. Acho que poderia

equiparar-se a Banquo.

– Espera – disse eu. – O que torna Banquo...

Mas James interrompeu:

– Achas que Júlio César é o herói trágico?

Richard encolheu os ombros.


– Quem mais poderia ser?

Filippa apontou para James.

– Hum, é óbvio.

– Tem de ser Bruto – disse Alexander. – António deixa-o bem claro

no quinto ato, cena cinco. É a tua deixa, Oliver, o que é que ele diz?

Eu: – Este foi o mais nobre romano deles todos.

Todos os conspiradores [espirro] fizeram o que fizeram

Por inveja do grande César; ele não.

Só se lhes juntou, com honesta intenção

Em nome do bem comum.

– Não – insistiu Richard. – Bruto não pode ser o herói trágico.

James ficou indignado.

– Porque não?

Richard quase se riu ao ver a expressão dele.

– Porque tem, tipo, catorze defeitos trágicos! – disse. – Um herói só

deve ter um.

– O de Júlio César é a ambição, tal e qual como Macbeth – disse

Meredith. – É simples. O único defeito trágico de Bruto é que é

suficientemente estúpido para dar ouvidos a Cássio.

– Como é que Júlio César pode ser o herói? – perguntou Wren,

olhando de um para o outro. – Morre no terceiro ato.

– Sim, mas o título da peça é o nome dele, não é? – disse Richard,

com as palavras e a sua respiração a saírem juntas num jorro de

exasperação. – É assim que funciona em todas as outras tragédias.

– A sério? – disse Filippa, numa voz inexpressiva. – Vais basear o

teu argumento no título da peça?

– Ainda estou à espera de ouvir quais são esses catorze defeitos –

disse Alexander.

– Não quis dizer que são exatamente catorze – disse Richard num

tom forçado. – O que queria dizer era que seria impossível isolar um

que o leva a trespassar-se com a própria espada.

– Não poderia argumentar-se que o defeito trágico de Bruto é o seu

amor insuperável por Roma? – perguntei, olhando para James, que se

encontrava do outro lado da mesa e observava Richard com os olhos

semicerrados. Frederick estava de pé em frente ao quadro preto, de

lábios cerrados, a escutar.


– Não – disse Richard –, porque, além disso, há também o seu

orgulho, a sua presunção de superioridade moral, a sua vaidade...

– Esses defeitos são todos essencialmente o mesmo, como tu, logo

tu, devias saber. – A voz de James interrompeu a de Richard e o resto

do grupo ficou em silêncio, sobressaltado.

– O que é que disseste? – perguntou Richard. James cerrou os

maxilares e eu soube que não fora sua intenção dizer tudo aquilo em

voz alta.

– Tu ouviste-me.

– Sim, merda, ouvi-te – disse Richard, e o tom cortante da sua voz

eriçou-me os pelos da nuca. – Estou-te a dar uma oportunidade de

corrigir o que disseste.

– Cavalheiros. – Quase me esquecera de que Frederick estava ali.

Falou em voz baixa, delicadamente, e por um momento perguntei-me

se o choque daquilo o faria desfalecer. – Já chega.

Richard, que estava inclinado para a frente como se pudesse saltar do

sofá a qualquer momento e atirar-se a James, voltou a recostar-se nas

almofadas. Uma das mãos de Meredith pousou no seu joelho.

James desviou os olhos.

– Richard, desculpa. Não devia ter dito aquilo.

O rosto de Richard permaneceu inexpressivo no início, mas depois a

fúria desapareceu e deixou-o com um ar abatido.

– Suponho que o mereci – disse. – Nunca cheguei a pedir desculpa

em condições pelo meu pequeno acesso no primeiro ensaio sem o

texto. Tréguas, James?

– Sim, claro. – James voltou a olhar para cima, e os seus ombros

afundaram-se uns centímetros com o alívio. – Tréguas.

Após uma pausa ligeiramente embaraçada, na qual troquei uns

rápidos olhares de perplexidade com Filippa e Alexander, Meredith

disse:

– Isto acabou mesmo de acontecer? Por amor de Deus, é só uma

peça de teatro.

– Bem. – Frederick suspirou, tirou os óculos e começou a limpá-los

à fralda da camisa. – Já se travaram duelos por menos.

Richard ergueu uma sobrancelha, olhando para James.

– Espadas atrás do refeitório ao amanhecer?


James: – Só se o Oliver for o meu padrinho.

Eu: – Tenho esperança de viver e estou preparado para morrer.

Richard: – Muito bem, a Meredith pode ser a minha madrinha.

Alexander: – Obrigado pelo voto de confiança, Rick.

Richard riu-se, ao que parecia tudo perdoado. Regressámos ao nosso

debate e prosseguimos com civilidade, mas eu observava James de

soslaio. Sempre tinha havido pequenas rivalidades entre nós, mas

nunca uma demonstração tão explícita de hostilidade. Bebendo um

gole de chá, convenci-me de que estávamos todos simplesmente a

reagir de forma exagerada. Os atores são por natureza voláteis – seres

alquímicos compostos por elementos inflamáveis, emoção, ego e

inveja. Quando aquecidos e combinados, pode por vezes obter-se ouro.

Outras vezes, um desastre.

CENA 12

O Halloween aproximava-se como um tigre a coberto da noite, com

um suave ronco de aviso. Durante toda a segunda metade do mês de

outubro, os céus mostraram-se contundidos e tempestuosos, e

Gwendolyn saudava-nos todas as manhãs com as palavras:

– Que tempo horrivelmente escocês estamos a ter!

À medida que o dia de mau agouro se aproximava, ia-se tornando

impossível ignorar um ambiente de excitação crescente entre os alunos.

Na manhã do dia 31, os murmúrios perseguiam-nos no refeitório

enquanto nos servíamos de café. O que – toda a gente queria saber –

aconteceria na praia varrida pelo vento nessa noite? Estávamos

demasiado excitados para nos concentrarmos nas aulas, e Camilo

mandou-nos sair mais cedo, com a ordem de «irmos preparar os nossos

encantamentos». Já no Castelo, evitávamo-nos uns aos outros, enfiados

pelos cantos, e murmurávamos as nossas falas para connosco, como

doentes de um hospital psiquiátrico. Quando chegou a hora, partimos

pelo bosque, um a um.

A noite estava estranhamente quente, e senti dificuldade em seguir o

caminho tortuoso da floresta numa escuridão tão sumptuosa como


veludo. Raízes que não via estendiam-se para me agarrar os tornozelos,

e a certa altura escorreguei e caí ao chão, com o cheiro húmido da

tempestade que se avizinhava a inchar-me as narinas. Sacudi-me e

avancei mais cautelosamente, com os batimentos do coração mais

rápidos e superficiais, como a pulsação de um coelho nervoso.

Quando cheguei ao início do trilho, receei por um momento ter

chegado tarde. A minha indumentária (calças, botas, camisa e casaco

num estilo militar culturalmente ambíguo) não incluía relógio de pulso.

Deixei-me ficar junto às árvores, olhando para trás, pela colina acima,

na direção do Hall. Brilhavam umas luzes fracas em três ou quatro

janelas, e imaginei os poucos alunos demasiado cautelosos para se

atreverem a ir à praia a espreitarem timidamente por elas. Um galho

quebrou-se nas sombras e virei-me.

– Está alguém aí?

– Oliver? – Era a voz de James.

– Sim, sou eu – respondi. – Onde estás?

Ele saiu de entre dois pinheiros pretos, o seu rosto uma oval pálida

nas trevas. Estava vestido mais ou menos como eu, mas nos seus

ombros brilhavam umas dragonas prateadas.

– Tinha a esperança de que fosses o meu Banquo – disse ele.

– Suponho que devo dar-te os parabéns, Barão de Tudo.

Com as minhas suspeitas confirmadas, senti uma leve pontada de

orgulho. Contudo, ao mesmo tempo, despertou em mim algo como

uma premonição, um desassossego indistinto. Não admirava que

Richard não tivesse ficado contente no dia da atribuição de cenas.

Meia-noite: o ribombar baixo do relógio da capela soou no silêncio

noturno e James agarrou-me o braço com força.

– Este sino é um convite – disse, e as suas palavras soavam leves e

ofegantes com a excitação. – Duncan, não escutes este dobre de

finados / Que te chama para o Céu, ou talvez para o Inferno. – Soltou-

me o braço e desapareceu para as sombras do matagal. Segui-o, mas

não demasiado de perto, receando voltar a tropeçar e arrastar-nos aos

dois para o chão.

A fileira de árvores entre o Hall e a margem norte era densa, mas

estreita, e pouco depois uma luz mortiça cor de laranja começou a

infiltrar-se por entre os ramos. James – eu via-o já claramente, ou pelo


menos os seus contornos – parou, e aproximei-me por trás dele, pé

ante pé. A praia estava apinhada com centenas de pessoas, algumas

sentadas em filas compridas nos bancos, outras juntas em pequenos

grupos no chão, as suas silhuetas pretas contra o clarão fulgente da

fogueira. Uns trovões ao longe abafavam o som das ondas a baterem na

areia e o crepitar das chamas. Ergueram-se murmúrios excitados dos

espectadores quando o céu, pintado a óleo em tons agourentos de

violeta, se iluminou com o branco dos raios. De seguida, a praia voltou

a ficar em silêncio, até uma voz alta e estridente dizer:

– Olhem!

Uma forma negra e sólida aproximava-se na água, uma cúpula

comprida e redonda, como uma bossa do Monstro do Loch Ness.

– O que é aquilo? – perguntei em voz baixa.

– São as bruxas – respondeu James lentamente, com a luz da

fogueira refletida como faíscas vermelhas nos seus olhos.

À medida que se aproximava, a forma animalesca foi-se tornando

lentamente mais distinta, o suficiente para eu conseguir ver que era

uma canoa virada ao contrário. A avaliar pela altura do casco na água,

só haveria espaço suficiente para um pouco de ar por baixo. O barco

vogou para os baixios e por um momento a superfície do lago ficou lisa

como vidro. De seguida, houve uma ondulação, um estremecimento, e

emergiram três figuras. Ouviu-se um arquejo coletivo do público.

Inicialmente, as raparigas pareciam mais fantasmas do que bruxas,

com o seu cabelo a pender-lhes liso e molhado sobre o rosto, vestidos

brancos transparentes a derreterem das suas pernas, a rodopiarem em

espirais atrás delas. Quando se ergueram da água, as pontas dos seus

dedos pingavam e o tecido das vestes estava tão colado aos seus corpos

que eu conseguia identificá-las, embora permanecessem de cabeça

baixa. À esquerda, Filippa, com as suas inconfundíveis pernas

compridas e ancas estreitas. À direita, Wren, mais pequena e mais

franzina do que as outras duas. No meio, Meredith, com as suas curvas

definidas e perigosas sob a veste branca fina. Sentia o sangue martelar-

me os ouvidos. Por um momento, eu e James esquecemo-nos um do

outro.

Meredith ergueu o queixo apenas o suficiente para o seu cabelo se

afastar do rosto.
– Quando voltaremos a encontrar-nos? – perguntou, numa voz baixa

e cheia no ar ameno. – Entre raios e trovões ou sob chuva?

– Quando terminar o bélico alarido – respondeu Wren, matreira. – E

se achar um vencedor e um vencido.

A voz de Filippa, rouca e confiante:

– Será antes do sol-pôr.

Soou um tambor de algures entre as árvores e o público estremeceu,

encantado. Filippa olhou na direção de onde vinha o som, para o

caminho onde eu e James estávamos escondidos nas sombras.

– Oiçam, oiçam os tambores! Eis que chega Macbeth.

Meredith ergueu as mãos e as outras duas aproximaram-se para as

agarrar.

TODAS: – De mãos dadas, as Irmãs,

Vão correndo todo o orbe,

Dando voltas e mais voltas:

Três por mim e três por ti,

Com mais três, que fazem nove.

Juntaram-se formando um triângulo e ergueram as mãos, de palmas

abertas na direção do céu.

– Paz! – disse Meredith. – E já pronto é o feitiço.

James inspirou de súbito, como se se tivesse esquecido de respirar

antes, e saiu para a luz.

– Nunca vi um dia como este, tão belo e horrível – disse, e todas as

cabeças se viraram para nós. Eu seguia-o de perto, já sem receio de

tropeçar.

– Falta muito para Forres? – disse eu, e estaquei. As três raparigas

estavam lado a lado, a fitar-nos. – Quem são estas / Criaturas

enfezadas e de aspeto tão bravio? / Não parecem habitante deste

mundo / muito embora nele estejam. – Descemos mais lentamente.

Seguiam-nos mil olhos, quinhentos pares de pulmões sustinham a

respiração.

Eu: – Vida tendes, ou sois algo

Que se possa interrogar? Pareceis compreender-me...

James: – Dizei-me se puderdes.

Meredith acocorou-se em frente a nós.

– Salve, Macbeth, que és barão de Glamis.


Wren veio ajoelhar-se ao seu lado.

– Salve, Macbeth, que és barão de Cawdor.

Filippa não se moveu, mas disse numa voz límpida e sonante:

– Salve, Macbeth, que um dia serás rei.

James estremeceu e recuou. Agarrei-lhe os ombros e disse:

– Mas porque estremeceis, senhor, porque pareceis temer / Suas

palavras, tão amenas?

Olhou-me de soslaio e soltei-o, relutante. Após um momento de

hesitação, passei por ele, desci do último degrau coberto de areia e

pus-me entre as bruxas.

Eu: – Em nome da verdade, Criaturas,

Sois fantásticas, ou sois o que de facto

Pareceis? Saudastes o meu nobre companheiro

Plo seu título atual e predissestes

Grandes honras, esperanças realengas,

Que o deixaram a pensar. De mim nada dissestes.

Mas se tendes acesso às sementes do futuro

E podeis antedizer o que irá, ou não, nascer,

Dirigi-vos a quem nunca demandou ou receou

As vossas graças, nem temeu o vosso rancor.

Meredith pôs-se de pé num instante.

– Salve! – disse, e as outras raparigas imitaram-na. Precipitou-se

para a frente, aproximou-se demasiado, com o rosto a poucos

centímetros do meu. – Menor que Macbeth, mas maior.

Wren apareceu por trás de mim, tamborilou a minha cintura e mirou-

me com um sorriso travesso.

– Menos feliz; no entanto, mais feliz.

Filippa continuava a manter-se à distância.

– Filhos teus serão reis, embora tu não o sejas – disse, indiferente,

quase com tédio. – Assim sendo, salve, Macbeth e Banquo.

Wren e Meredith continuaram a fazer-me carícias e a tocar-me,

puxando-me as roupas, explorando as linhas do meu pescoço e dos

meus ombros, puxando-me o cabelo para trás. A mão de Meredith

vagueou até à minha boca e traçou com as pontas dos dedos o meu

lábio inferior, até James, que tinha estado a observar a cena com uma

espécie de repulsa arrebatada, falar de repente. As raparigas viraram a


cabeça para ele e eu vacilei, de pernas bambas com a perda da atenção

delas.

James: – Esperai, ó imperfeitas profetizas, dizei mais:

É verdade que pla morte de meu pai eu sou barão de Glamis,

mas porque me chamais barão de Cawdor,

Se esse nobre cavaleiro é inda vivo e de saúde?

Improvável me parece vir a ser um dia rei.

Elas limitaram-se a abanar a cabeça, levar um dedo aos lábios e

esgueirar-se de volta para a água. Depois de desaparecerem

completamente debaixo da superfície e de nós termos recuperado

quase toda a compostura, virei-me para James, de sobrancelhas

erguidas na expectativa.

– Vossos filhos serão reis – disse ele.

– E vós também.

– E barão de Cawdor, não foi isso que disseram?

– Foram essas as palavras, tal e qual. – Aproximaram-se passos das

árvores e olhei na direção de onde vinha o som. – Quem vem lá?

O resto da cena era breve e, quando eu não estava a falar, mantinha

um olhar atento na água. Estava novamente parada, refletindo o

tempestuoso céu púrpura. Quando chegou o momento, eu e os

felizardos dos dois alunos do terceiro ano que desempenhavam o papel

de Ross e o de Angus saímos para a direita, afastando-nos da luz da

fogueira.

– Já está – segredou um deles. – Muita merda.

– Obrigado. – Enfiei por trás do barracão junto à praia. Como ele era

bastante pequeno, se espreitasse da esquina podia ver a fogueira, a

canoa pousada na água, o areal onde James estava agora só.

– Mas que vejo à minha frente? Um punhal, / Com o cabo dirigido

para mim? – Tateou o ar vazio à sua frente. – Vou agarrá-lo.

Era um discurso que nunca esperara ouvi-lo pronunciar. Ele era

demasiado imaculado para falar de sangue e de homicídio como

Macbeth, mas, no clarão vermelho da fogueira, já não parecia assim

tão angélico. Estava formoso, da mesma maneira que se pensa no diabo

como formoso – ameaçadoramente.

James: – Ó segura, firme Terra, não escutes os meus passos,

Onde quer que eles me levem, pois receio


Que as tuas próprias pedras me delatem a presença,

E me privem do horror deste momento, tão propício.

Mas, enquanto o ameaço, ele continua a respirar;

As palavras arrefecem o ardor da investida.

Vou lá, e fica feito.

Condenou Duncan mais uma vez e de seguida escapuliu-se para ir ao

meu encontro junto à fogueira enquanto as pessoas do público

aguardavam, segredando umas com as outras, que começasse a cena

seguinte.

– E agora? – disse eu quando ele já estava suficientemente perto para

me ouvir.

– Penso que... espera. – Recuou, esbarrou em mim.

– O que foi?

– Hécate – segredou ele.

Antes de eu ter tempo de apreender a substância da palavra,

Alexander irrompeu da água. Ergueram-se uns gritinhos de surpresa

entre o público quando as ondas voltaram a quebrar-se em seu redor.

Estava todo molhado, em peito nu, os seus caracóis soltos e

despenteados à volta do rosto. Atirou a cabeça para trás e uivou ao céu

como um lobo.

– Literalmente brutal – disse eu.

As raparigas emergiram novamente da água, e assim que Meredith

disse: «Porque pareces, Hécate, tão zangada?», Alexander agarrou-a

pela parte de trás do pescoço, lançando água para todos os lados.

– E não tenho bons motivos, suas bruxas – rosnou ele. –

Descaradas! Como foi que se atreveram / A ter tratos e comércio com

Macbeth / Em arcanos e matérias de morte?

James agarrou-me o braço.

– Oliver – disse ele. – Já que Banquo, / De cabelo ensanguentado, os

acompanha e me sorri.

– Oh. Oh, merda.

Ele empurrou-me à bruta para dentro do barracão, e a porta rangeu

traiçoeiramente atrás de nós. Dentro, o chão estava coberto de remos e

coletes de salvação, mal deixando espaço para nós os dois ficarmos de

pé face a face. Um balde de cinco litros aguardava numa prateleira

baixa.
– Jesus Cristo – disse eu, desabotoando à pressa o casaco. – De

quanto sangue julgaram que íamos precisar?

– De imenso, ao que parece – disse-me James, inclinando-se para

tirar a tampa. – E fede. – Um odor adocicado a podre encheu o espaço

enquanto eu tirava as botas. – Acho que vamos ter de lhes dar pontos

pela autenticidade.

O meu braço estava embaraçado na manga da camisa. – Merda

merda merda, estou preso, ai, que caramba... James, ajuda-me...!

– Cala-te! Espera aí. – Pôs-se de pé, pegou na minha camisa pela

fralda e puxou-ma por cima da cabeça. Fiquei com a cabeça presa no

colarinho, e esbarrei com toda a força contra ele. – Pode-se pôr sangue

nessas calças? – perguntou ele, segurando-me pelo cós das calças para

me equilibrar.

– Bem, não vou pôr-me nu.

Estendeu a mão para o balde.

– Está bem. Fecha a boca.

Cerrei a boca e os olhos e ele verteu o sangue sobre a minha cabeça,

como uma espécie de batismo pagão perverso. Engasguei-me e tossi

quando o líquido me escorreu pelo rosto.

– Mas que merda é esta?

– Não sei. E não sei quanto tempo tens. – Agarrou-me a cabeça. –

Não te mexas. – Espalhou-me o sangue no rosto, no peito e nos

ombros, enfiou os dedos pelo meu cabelo para o pôr de pé. – Já está. –

Por uma fração de segundo, ficou a fitar-me, parecendo cheio de

admiração e de repulsa ao mesmo tempo.

– Que tal estou?

– Absolutamente incrível – disse ele, e depois empurrou-me na

direção da porta. – Agora vai.

Saí a cambalear do barracão e corri por entre as árvores, a praguejar

quando as pedras aguçadas e as agulhas dos pinheiros me picavam os

pés. Era indubitavelmente sinistro, aparecer à meia-noite sem fazer

ideia de quem encontraríamos no escuro, mas era também irritante.

Como eu só estava a par das minhas partes, não podia saber ao certo

quanto tempo me restava até entrar em cena no papel de fantasma de

Banquo. Um ramo açoitou-me o rosto, mas ignorei-o e trepei pela

encosta, por cima de raízes e penedos e heras. Mais um arranhão na


face não importaria; eu já estava coberto de sangue. Sentia a pele

pegajosa a arrefecer no ar cortante da noite e o meu coração batia de

novo com força – em parte devido ao esforço de trepar até ao trilho, em

parte por receio de não entrar em cena a tempo.

Afinal, cheguei à fila de árvores com bastante tempo. A minha

chegada foi lenta e desajeitada, com galhos a quebrarem-se debaixo

dos meus pés, mas o público estava a assistir à segunda conversa de

James com as bruxas com uma atenção ansiosa e não me prestou

atenção. Deixei-me ficar debaixo de um ramo baixo, com o aroma

intenso dos pinheiros a sobrepor-se ao fedor a podre do sangue falso na

minha pele.

Wren: – Sinto nos polegares um formigueiro:

Um malvado se aproxima plo sendeiro.

James: – Bruxas negras e noturnas, encobertas,

Que fazeis neste lugar?

As raparigas dançavam numa roda à volta da fogueira, com o cabelo

solto e emaranhado e algas verdes do lago agarradas às saias. De vez

em quando, uma delas atirava uma mancheia de pó cintilante para a

fogueira e uma nuvem de fumo colorido explodia acima das chamas.

No meu esconderijo, eu mudava o peso do corpo de um pé para o

outro, à espera. Seria o último numa série de visões, mas como

apareceriam elas? Procurei rostos familiares na multidão de

espectadores, mas estava demasiado escuro para divisar muitos traços

distintivos. Avistei a cabeça loura de Colin no lado esquerdo da

assistência, e a luz da fogueira incidiu num caracol acobreado que

pensei que poderia pertencer a Gwendolyn. Não podia deixar de me

perguntar: onde raio estaria Richard?

Uma gargalhada estridente e sinistra de Wren atraiu a minha atenção

para a praia.

Meredith: – Fala!

Wren: – Pergunta!

Filippa: – E nós responderemos.

Meredith: – Queres ouvi-lo da nossa boca, ou preferes

Que chamemos nossos mestres?

James: – Quero vê-los.


As vozes das raparigas ergueram-se numa toada aguda e discordante.

James ficou ali a olhá-las, pensativo e indeciso.

Meredith: – Para as chamas atirai sangue de porca,

Que comeu seus nove filhos, e gordura

De assassino recolhida num patíbulo.

TODOS: – Ó espíritos do alto e do profundo,

Aparecei e exibi as vossas artes.

Filippa atirou algo para a fogueira e as chamas rugiram acima das

cabeças delas. Uma voz berrou do outro lado da praia, tremenda e

aterradora como a de um deus primordial. Inconfundivelmente,

Richard.

– Macbeth. Macbeth. Macbeth. Atenção a Macduff.

Não se via em lado nenhum, mas a sua voz pressionava-nos vinda de

todos os lados, tão alta que chocalhava nos meus ossos. James não

estava menos alarmado do que eu ou do que qualquer outra pessoa, e

tropeçou nas palavras ao falar:

– Quem quer que sejas tu, agradeço-te o aviso, / Acertaste em meu

receio; diz-me apenas...

Richard interrompeu-o, ensurdecedor.

Richard: – Sê cruel, audacioso e resoluto; escarnece

do poder de qualquer homem, pois nenhum

que de mulher seja nascido poderá prejudicar-te.

James: – Vive, então, Macduff; se em nada me ameaças.

Richard: – Sê brioso, qual leão;

e não cuides de rebeldes, descontentes, conjurados:

pois vencido não serás enquanto o bosque

de Birnam não avançar ao teu encontro,

em Dunsinam.

James: – Impossível. Pois quem pode

Recrutar uma floresta, ou fazer com que uma árvore

Se solte do seu solo? Oh, que amenas profecias!

Mortos insurretos, não vos levanteis

Até que o bosque de Birnam também o faça.

E o nosso coroado Macbeth desfrutará

Da sua vida, pagando à Natureza o aluguer,

E morrendo no seu dia, duma morte habitual.


Mas treme-me no peito uma questão:

Diz-me se a progénie de Banquo reinará

Para sempre neste reino.

As bruxas gritaram todas ao mesmo tempo:

– Não procures saber mais!

James: – Tereis de mo dizer. Se mo negais,

Que uma eterna maldição em vós recaia. Vá, falai.

TODAS: – Mostrai-lhe, que o aflija essa imagem!

Apareçam, como sombras de passagem.

Oito figuras envoltas em mantos ergueram-se na última fila da

assistência. Uma rapariga sentada ao lado delas soltou um guincho de

surpresa. Elas deslizaram na direção da coxia central e começaram a

descer (mais alunos do terceiro ano, pensei) enquanto James as fitava

com os olhos esbugalhados de terror.

– Mas – disse ele – irá esta linhagem acabar no fim do mundo?

O coração saltou-me para a garganta. Saí para a luz pela segunda

vez, com o sangue viscoso e brilhante na minha pele. James fitou-me

boquiaberto e o público virou-se todo ao mesmo tempo. Uns gritos

sufocados esvoaçaram na superfície do silêncio.

– Oh, horror! – disse James numa voz débil. Comecei de novo a

descer as escadas, erguendo o braço para apontar para as oito figuras

envoltas em mantos e as reclamar como minhas. – Vejo agora que é

verdade; já que Banquo, / De cabelo ensanguentado, os acompanha e

me sorri / Apontando-os como descendentes seus.

Baixei de novo a mão e as figuras desapareceram, dissolvendo-se nas

sombras à volta como se nunca tivessem existido. Eu e James

estávamos a dez passos de distância, diante da fogueira. Eu brilhava,

carmesim, chocante e ensanguentado como um recém-nascido,

enquanto o rosto de James estava branco como o de um fantasma.

– Será isso? – disse ele, ao que parecia dirigindo-se a mim. Seguiu-

se um estranho silêncio, que se intensificou. Ambos nos inclinámos

para a frente sem mexer os pés, à espera de que acontecesse alguma

coisa. E então Meredith pôs-se entre nós os dois.

– É verdade, Macbeth – disse ela, e arrastou o olhar de James de

mim para ela. – Qual o espanto?


Ele deixou-se levar, de volta à fogueira e às atenções tentadoras das

bruxas. Eu subi ao cimo dos degraus, parei e fiquei ali, a assombrá-lo.

Por duas vezes os seus olhos se desviaram na minha direção, mas o

público estava a olhar de novo para as raparigas. Elas dançavam à volta

da fogueira, soltando risadas, de olhos postos no céu tempestuoso, e

começaram a cantar mais uma vez. James ficou a olhar por um

momento, horrorizado, e de seguida virou-se e fugiu da fogueira.

TODAS: – Dobram, dobram as canseiras,

Tudo ferve no caldeiro.

Pó de bruxa embalsamada,

Três escamas de dragão,

Goelas de tubarão...

Enquanto Meredith e Wren continuavam a dançar, com movimentos

desvairados e violentos, Filippa ergueu uma taça que fora escondida

num buraco fundo na areia. Um líquido vermelho e viscoso chapinhava

contra os lados da taça, o mesmo sangue falso que me picava a pele.

TODAS: – Dobram, dobram as canseiras,

Tudo ferve no caldeiro.

Arrefeçam-no com sangue de babuíno,

Se pretendem que o feitiço fique fino.

Filippa virou a taça. Ouviu-se o som repelente de um líquido a

escorrer e tudo ficou às escuras. O público pôs-se de pé num rugido de

encanto e confusão. Voltei a correr para o meu esconderijo entre as

árvores.

Quando as luzes da margem do lago se acenderam – lâmpadas cor de

laranja com uma luz fraca tremeluzindo estranhamente na orla do areal

–, a praia ganhou vida com berros e risos e aplausos. Dobrei-me pela

cintura na escuridão fresca da floresta, com as mãos nos joelhos, a

respirar pesadamente. Era como se tivesse conseguido fugir a correr de

um desabamento de terras. Só queria encontrar os outros alunos do

quarto ano e partilhar um suspiro de alívio.

Mas uma comemoração tranquila não teríamos. O Halloween exigia

uma festa digna de uma bacanal, e pouco demorou a começar. Logo

que o corpo docente e os alunos do primeiro e segundo anos mais

timoratos se foram embora, apareceram barris como se por alguma

magia que tivesse persistido, e começou a ribombar música das


colunas que tão assustadoramente tinham amplificado a voz de

Richard. Alexander foi o primeiro do nosso grupo a aparecer, saindo

da água a cambalear como um homem afogado que tivesse sido

reanimado. Rodearam-no admiradores e amigos de outras disciplinas

(havia muitos do primeiro grupo, poucos do segundo), e ele divertiu-os

com a história empolgante de ter estado na água por mais de uma hora.

Aguardei um pouco mais na segurança das árvores, consciente de que

estava coberto de sangue e de que seria impossível não chamar a

atenção sobre mim. Foi só quando avistei Filippa que me aventurei a

voltar à praia.

Assim que a luz incidiu em mim, as pessoas começaram a berrar-me

as suas felicitações, a estenderem a mão para me darem palmadas nas

costas e despentearem antes de se darem conta de como eu estava

pegajoso. Quando por fim cheguei junto a Filippa, já me tinham sido

metidos à força nas mãos dois copos de plástico com a espuma da

cerveja a transbordar.

– Toma – disse eu, e passei-lhe um. – Feliz Halloween.

Os seus olhos desviaram-se do meu rosto ensanguentado para os

meus pés descalços todos sujos e de novo para o meu rosto.

– Bela fatiota.

Belisquei-lhe a manga do vestido, que ainda estava húmido e

bastante transparente.

– Prefiro a tua.

Ela revirou os olhos.

– Achas que vão tentar pôr-nos a todos completamente nus este ano?

– Há sempre a mascarada de Natal.

– Oh, meu Deus, nem lembres tal coisa.

– Viste os outros?

– A Meredith anda por aí à procura do Vozeirão. Não faço ideia

quanto ao James e à Wren.

Alexander despediu-se do seu público e veio meter-se entre nós os

dois, pondo um braço à volta dos nossos pescoços.

– Correu tão bem quanto poderia esperar-se – disse. – E depois: –

Mas que merda? Oliver, estás imundo.

– Não, sou Banquo. – (Ele tinha estado debaixo do barco durante as

minhas duas cenas.)


– Cheiras a carne crua.

– E tu cheiras a água do lago.

– Touché. – Sorriu e esfregou as mãos. – Vamos começar esta festa?

– Que propões? – perguntou Filippa.

– Beber, berrar, curtir. – Apontou-lhe um dedo a fazer de pistola. – A

não ser que tenhas uma ideia melhor.

Ela pôs as duas mãos no ar num gesto de rendição e disse:

– Mostra o caminho.

O Halloween parecia trazer à tona uma espécie de histeria sibarítica

nos alunos de Dellecher. O que recordava dos meus três anos

anteriores fora rapidamente esquecido, já que ser do quarto ano era

quase como ser uma celebridade. Pessoas que eu não conhecia, que

mal conhecia, que mal reconhecia, enchiam-nos de elogios, a mim e a

todos os outros, perguntavam quanto tempo tínhamos ensaiado e

exprimiam um espanto apropriado quando ficavam a saber que, pura e

simplesmente, não tínhamos ensaiado. Durante cerca de uma hora,

aceitei bebidas e passas em charros e cigarros, mas a proximidade de

tantas pessoas depressa começou a sufocar-me. Procurei entre a

multidão um dos meus colegas atores do quarto ano. (Tinha sido

separado de Alexander e Filippa, embora nesse ponto já não recordasse

quando ou como.) Sacudi uma rapariga do segundo ano que estava a

atirar-se desesperadamente a mim, dizendo-lhe que precisava de outra

bebida, encontrei-a e afastei-me para uma zona menos iluminada.

Respirei um pouco mais livremente, contentando-me com assistir ao

deboche durante algum tempo sem participar nele. Fui bebendo goles

lentos da minha cerveja até sentir uma mão no braço.

– Ora viva.

– Meredith. – Ela tinha-se afastado de um grupo de rapazes de artes

visuais (que, provavelmente, estavam a suplicar-lhe que posasse para

eles numa aula de desenho) e seguiu-me até à periferia da festa. Ainda

trazia o seu vestido de bruxa e, no meu estado um pouco toldado, era-

me impossível não a fitar na sua roupa transparente.

– Estás farto de ouvir dizer como és fabuloso? – perguntou.

– Querem principalmente tocar no sangue.

Ela sorriu e passeou os dedos do meu cotovelo até ao meu ombro.


– Os tarados dos esquisitóides. – Decididamente, tinha estado a

beber, mas aguentava o álcool melhor do que nós. – Por outro lado,

talvez só queiram uma desculpa para tocar em ti. – Lambeu uma pinta

de sangue falso da ponta de um dedo e piscou-me o olho, com as suas

pestanas espessas e negras como leques de penas de avestruz. Aquilo

era insuportavelmente sexy, o que, por alguma razão, me irritou. –

Sabes – disse ela –, o estilo peito nu e coberto de sangue fica-te bem.

– O estilo sem soutien e vestida com um lençol fica-te bem – disse

eu, sem pensar, e só em parte sarcástico. Um filme em câmara lenta de

Richard a pregar-me um pontapé nos dentes passou-me na cabeça, e

acrescentei alto e bom som: – Onde está o teu namorado? Acho que

ainda não o vi.

– Está amuado, a tentar fazer com que nem eu nem ninguém nos

divirtamos. – Segui o olhar dela até à praia, onde Richard estava

sentado sozinho num banco, com uma bebida na mão e a olhar para os

foliões como se achasse a sua folia profundamente ofensiva.

– Qual é o problema dele agora?

– Que importa isso? É sempre alguma coisa. – Puxou-me os dedos e

disse: – Anda daí. O James está à tua procura.

Soltei a mão, mas segui-a obedientemente, bebendo a maior parte da

minha bebida de um só gole. Conseguia sentir que Richard me fitava

furioso.

Alguém deitara mais achas na fogueira, e James e Wren estavam ao

lado dela, a falar um com o outro e a ignorar todas as outras pessoas.

Quando estávamos a aproximar-nos, ele ofereceu-lhe o seu casaco; ela

apertou-o à volta dos ombros e depois olhou para baixo e riu-se. O

casaco chegava-lhe aos joelhos.

– Como diabo é que vocês os quatro couberam debaixo daquela

canoa? – perguntou James, quando eu já estava suficientemente perto

para o ouvir.

– Bem, ficámos muito aconchegados – disse ela. – Devo ter quase

beijado o Alexander acidentalmente umas cinco vezes.

– Fantástico. Dá-lhe mais umas bebidas e ele vai dizer a toda a gente

o quanto o desejas.

Wren virou-se para nós e soltou um pequeno arquejo, agarrando a

gola do casaco de James com ambas as mãos.


– Oliver, assustaste-me! Continuas a parecer medonho.

Eu: – Adorava lavar-me, mas aquela água parece-me muito fria.

Wren: – Não é insuportável, depois de se entrar até à cintura.

Eu: – Diz a rapariga que está junto à fogueira com o casaco de outra

pessoa.

– Wren – disse Meredith, olhando por cima do ombro na direção dos

bancos –, fazes-me o favor de ir falar com o Richard? Estou farta dele.

Wren esboçou um sorriso pálido ao resto do grupo e disse:

– O meu gentil primo.

James ficou a vê-la abrir caminho por entre a multidão. Meredith

olhou para dentro do copo meio vazio dele, tirou-lho e estendeu a mão

para o meu.

– Vocês os dois fiquem aqui – disse. – Eu volto com mais bebidas.

– Oh, ótimo – disse eu. – Mal posso esperar.

Quando ela se afastou, James virou-se para mim e perguntou:

– Está tudo bem?

– Sim – respondi. – Ótimo.

Via pelo seu sorriso cético que não acreditava em mim, mas

felizmente optou por mudar de assunto.

– Sabes, estás mesmo com um aspeto medonho. Pregaste-me um

susto de morte quando saíste das árvores assim.

– James, foste tu que me fizeste isto.

– Sim, mas no escuro, naquele barracão minúsculo, não é a mesma

coisa. Com a luz a incidir em ti e aquela tua expressão...

– Bem – disse eu –, o sangue pede sangue.

– Bem, tenciono nunca te antagonizar.

– Digo o mesmo – respondi. – Encarnas um vilão

surpreendentemente convincente.

Encolheu os ombros.

– Antes eu que o Richard. Ele tem um ar mesmo assassino.

Lancei de novo um olhar na direção dos bancos. Richard e Wren

estavam sentados lado a lado, com as cabeças inclinadas e juntas. Ele

franzia a testa com uma expressão sombria enquanto falava, a olhar

para as mãos. Aquele meu desassossego meio enterrado voltava de

novo à superfície. Disse para comigo que era só uma dor de estômago,

demasiado álcool bebido demasiado depressa.


– Som e fúria – disse eu –, mas que nada significa. Não lhe ligues.

Passou mais uma hora, ou talvez duas ou três. O céu estava tão

escuro que era impossível dizer como os minutos corriam a não ser que

os medíssemos pelo número de bebidas tomadas. Perdi-lhes a conta

depois da sétima, mas a minha mão nunca estava vazia. Os alunos mais

novos retiraram-se para o Hall, avançando por entre as árvores, a rir e a

praguejar quando tropeçavam em raízes protuberantes e derramavam

sobre si mesmos o que restava da sua cerveja. Os alunos do quarto ano

de todos os cursos e alguns mais precoces do terceiro ano iam-se

deixando ficar. Alguém decidiu que a noite não podia terminar sem

todas as pessoas ficarem encharcadas, e começaram umas lutas

escorregadias e vacilantes, em que um aluno se punha às cavalitas de

outro e tentava derrubar um elemento da equipa adversária.

Ao fim de uma dúzia de assaltos, Alexander e Filippa foram os

campeões confirmados. Pareciam mais um ser do que dois, com as

longas pernas de Filippa tão apertadas à volta dos ombros de

Alexander que poderiam ser um par aterrador de gémeos siameses. Ele

estava metido na água até à cintura, quase sem vacilar e a agarrar os

joelhos dela. Ao invés de Meredith, a embriaguez dele era óbvia, mas

só parecia torná-lo invencível.

– Quem se segue? – berrou. – Invencíveis, é o que nós somos.

– Se alguém vos vencer, dás a noite por terminada? – perguntou

James. O resto do grupo estava sentado na areia, com os pés descalços

à beira da água, bebidas esquecidas a penderem pesadas das pontas

dos nossos dedos. A temperatura estava extraordinariamente amena

para outubro, mas as ondas frias mordiscavam-nos os dedos dos pés,

um aviso do inverno que se aproximava.

Alexander inclinou-se para a esquerda e largou a perna de Filippa

para apontar para nós: ela tentou agarrar-se à sua outra mão para não

cair.

– Têm de ser vocês, pessoal – disse ele.

Abanei a cabeça a James. Não nos tínhamos importado de gritar e

torcer por eles quando estavam a dizimar os alunos do terceiro ano

ainda restantes.

Meredith: – Bem, eu não vou entrar na água.


Filippa: – O que se passa, Mer? Tens medo de uma brincadeira mais

à bruta?

Os cerca de trinta mirones riram-se e assobiaram.

Meredith: – Sei o que estás a fazer. Estás-me a provocar.

Filippa: – Claro. Está a resultar?

Meredith: – Podes crer, sua cabra. Anda cá.

As pessoas desataram aos vivas e Filippa sorriu, trocista. Meredith

pôs-se de pé, sacudiu a areia do traseiro e chamou por cima do ombro:

– Rick! Vamos dar uma lição a estes idiotas.

Richard, que se dignara descer à praia, mas estava sentado cerca de

um metro atrás de nós, disse:

– Não. Dá tu espetáculo se quiseres. Eu vou manter-me seco.

Outra rodada de gargalhadas, mais maldosas dessa vez. (Meredith

era muito admirada, mas também muito invejada, e qualquer passo em

falso que desse era ciosamente saboreado por pelo menos algumas

pessoas.)

– Tudo bem – disse ela, calmamente. – É o que vou fazer. – Agarrou

na saia e atou-a num nó acima da anca. Entrou para a água, virou-se e

disse: – Vens, Oliver?

– O quê, eu?

– Sim, tu. Alguém tem de me ajudar a afundar estes idiotas, e tenho

a porra da certeza de que o James não o vai fazer.

– Ela tem razão – disse James, com indiferença. – Tenho a porra da

certeza de que não vou mesmo. – (Ao invés do resto de nós, que nos

sentíamos todos atraídos por Meredith de uma forma biológica,

inevitável, James parecia achar o seu sex appeal explícito algo

repulsivo.) Sorriu-me trocista. – Diverte-te.

Eu e Meredith fitámo-nos por um momento, mas a intensidade da

expressão dela fez com que a recusa não parecesse uma opção viável.

Pessoas que nem sequer conhecia puseram-se a gritar-me palavras de

encorajamento até eu me pôr de pé um pouco tropegamente.

– Isto é uma má ideia – disse eu, principalmente a mim mesmo.

– Não te preocupes. – Wren acotovelou James. – Eu obrigo-o a lutar

contra os vencedores comigo.

James protestou, mas não ouvi o que disse, porque Meredith tinha-

me agarrado o braço e estava a arrastar-me para a água.


– Põe-te de joelhos – ordenou-me.

– Aposto que ela diz isso aos rapazes todos – disse Alexander. – Não

tens modéstia nem vergonha, / Nem ponta de timidez?

Fulminei-o com o olhar quando me acocorei na água. O frio quase

me cortou a respiração, apoderando-se da minha barriga e do meu

peito como uma placa de gelo.

– Jesus Cristo! – exclamei. – Despacha-te, salta para cima de mim.

– Aposto que ele diz isso às raparigas todas – disse Filippa, com uma

piscadela de olho. – Tenho de confessar / Que te cria de nobre

coração.

– OK – disse eu a Meredith, com mais gargalhadas lascivas a

borbulharem aos meus ouvidos. – Vamos dar cabo deles.

– Assim é que é. – Ela passou uma perna por cima do meu ombro,

depois a outra, e quase a deixei cair. Não era pesada, mas eu estava

bêbedo e não me tinha apercebido de quão bêbedo estava até àquele

momento. Ela enganchou os pés debaixo dos meus sovacos e

endireitei-me lentamente. Houve alguns aplausos quando tentei

equilibrar-me, a desejar que a água parasse de me puxar e empurrar.

Algum do sangue falso soltou-se da minha pele e começou a

serpentear-me pela barriga até ao cós das calças.

Colin, o nosso jovem e arrogante António, parecia fazer o papel de

árbitro. Estava sentado a cavalo em cima da canoa, com um copo de

plástico em cada mão.

– Minhas senhoras, recolham as garras – disse. – Nada de arrancar

olhos, por favor. O primeiro par a atirar uma rapariga à água ganha.

Esforcei-me por me focar em Alexander, perguntando-me como o

derrubar. Com as coxas de Meredith molhadas e a brilharem aos lados

do meu rosto, era difícil concentrar-me.

– Fora, fora! – disse Filippa, encantada. – Tu, impostora, tu,

fantoche, fora!

– É então esse o jogo? – disse Meredith. – Quão baixa sou, mastro

pintado? Fala!

– Oh! Quando zangada, ela é viva e astuta – respondeu Filippa. –

Era uma víbora nos tempos da escola. – Mais risos escandalizados.

– Porque permites que ela me escarneça? – disse Meredith. – Vou

chegar-lhe.
E arremessámo-nos para eles. Eu vacilava sob o peso de Meredith, a

tentar a custo manter-me de pé. As raparigas lutavam violentamente e a

água revolta e as gargalhadas tresloucadas de Alexander eram ruidosas

e desorientavam. Meredith desequilibrou-se e o seu movimento puxou-

me com força para trás.

Lancei o corpo na direção oposta e embati em Alexander. Filippa

quase me deu um pontapé no rosto e todo o mundo vacilou, mas

ocorreu-me uma ideia nesse preciso momento. Precipitei-me de cabeça

para Alexander mais uma vez e, quando vi o clarão branco do pé de

Filippa, arrisquei-me a soltar a perna de Meredith para o agarrar.

Inclinámo-nos com força para o lado, mas eu berrei:

– Meredith, agora!

Puxei o pé de Filippa para cima e Meredith deu-lhe um valente

empurrão. Ela inclinou-se imediatamente para trás, levando Alexander

consigo, e, após um breve momento suspenso, com os braços como pás

de moinho ao lado do corpo, ambos caíram de chapa na água.

Meredith e eu afastámo-nos para a direita e voltei a cravar a mão que

tinha livre na coxa dela. Os espectadores aplaudiam e berravam, mas

eu quase não os ouvia, porque Meredith estava a apertar-me a cabeça

com as pernas e a agarrar-me o cabelo com a mão. Virei-me,

estonteado, e tentei sorrir.

Filippa e Alexander vieram à tona, engasgados e a bufar.

– Ora bem – disse Alexander. – Alguém me dê um copo, para mim

acabou.

– Acho que acabou para todos – disse Filippa.

– Oh não – disse Meredith, para minha consternação. – A Wren

disse que jogava contra o vencedor.

Colin bateu no lado da canoa.

– Apoiado!

– Eu alinho, se o James alinhar – disse Wren.

Limpei a água dos olhos e olhei para ele. Estava sentado na areia, a

mexer-se, nervoso e com um esboço de sorriso embaraçado. De

repente, apeteceu-me que ele entrasse no jogo.

– Vá lá, James – disse. – Vamos lá pôr-te a fazer má figura para

podermos ir todos para casa.


– Vá lá, dá-nos a desforra – disse Filippa, de pé na praia, a torcer a

saia para lhe tirar a água.

– Está bem – disse ele –, se tem de ser.

Wren pôs-se de pé e estendeu a mão a James para o ajudar a

levantar-se. Atou a saia com um nó mais modesto do que o de

Meredith e dirigiu-se para a água. Alguns dos espectadores tinham-se

afastado, mas restavam ainda uns dez, que gritavam palavras de

incentivo. Como Meredith começara a pesar-me nos ombros, empurrei-

a um pouco mais para a frente. Ela afastou-me o cabelo dos olhos com

as pontas dos dedos e disse:

– Estás bem aí em baixo?

– Estou demasiado bêbedo para isto.

– És o meu herói.

– Tudo o que eu sempre quis.

Wren avançou pela água até onde nós estávamos e disse:

– Meu Deus, está fria!

– Está uma noite desgraçada para se ir nadar. – James estremeceu

ao entrar na água atrás dela. – Deixa-me ajudar-te a subir para os meus

ombros. – Acocorou-se como eu tinha feito, pegando numa das mãos

de Wren quando ela passou a perna por cima do ombro dele.

Contudo, antes de ela ter tempo de se encavalitar nele, uma voz que

quase não tínhamos ouvido em toda a noite disse:

– De facto, penso que já basta desta brincadeira.

Virei-me, de um modo lento e cuidadoso. Richard estava de pé na

praia, com cara de poucos amigos.

– Tu não quiseste jogar – disse Meredith. – Porque é que hás de ter

opinião?

– É só para nos divertirmos – disse Wren. Tinha trepado apenas até

meio e estava empoleirada, como um papagaio, no ombro de James. Os

olhos dele estavam pregados em Richard.

– É uma estupidez do caraças e alguém se vai magoar. Desce daí.

– Vá lá, Rick – disse Alexander, de onde se encontrava esparramado

na areia com outra bebida. – Não vai acontecer nada à Wren.

– Cala-te – disse ele. – Estás bêbedo.

– E tu não? – disse Filippa. – Acalma-te, é só um jogo.

– Vai à merda, Filippa, isto não tem nada a ver contigo.


– Richard! – disse Wren. Filippa lançou-lhe um olhar furioso, com a

boca entreaberta com a surpresa.

– OK, penso que o espetáculo terminou – disse Colin, deslizando da

canoa. – Vá lá, pessoal, dispersem. – As poucas pessoas que ainda ali

se encontravam resmungaram, desiludidas, e começaram a ir embora

aos poucos. Colin hesitou, olhando de Richard para o resto de nós,

como se não tivesse a certeza de se ainda precisávamos de árbitro.

– Podem parar com essa palhaçada? – disse Richard, com a voz a

projetar-se da praia como se tivesse mais uma vez sido magicamente

amplificada.

– Oh, estou a ver – disse Meredith. – Não suportas que nos

estejamos a divertir porque estás ocupado a fazer beicinho? Porque,

por uma vez, não foste tu a receber os últimos aplausos? – O rosto de

Richard ficou branco, lívido, e apertei os joelhos de Meredith com

força, a tentar avisá-la de que não devia dizer mais nada. Ela não

sentiu a minha pressão, não a compreendeu ou não quis saber. – Que se

lixe isso – disse. – Nem tudo gira sempre à tua volta.

– Essa é boa, vinda de uma puta sempre a reclamar as atenções de

todo o mundo.

– Richard, mas que diabo? – Um acesso de fúria fez-me sentir a

cabeça subitamente quente. Agarrei as pernas de Meredith com mais

força, por reflexo. O instinto de a defender foi inesperado, injustificado,

mas não tive tempo para me sentir perplexo com ele. Ela ficou

perigosamente calada.

Richard começou a dizer mais alguma coisa, mas James

interrompeu-o.

– Já chega – disse, e havia um tom cortante na sua voz que eu nunca

lhe ouvira. – E se fizesses uma pausa e voltasses quando estiveres mais

calmo?

Os olhos de Richard arderam, negros.

– Tira as mãos da minha prima e eu...

– E tu o quê? – Wren desceu dos ombros de James para a água, mas

permaneceu perto dele. – Que se passa contigo? É só um jogo.

– Sim, OK – disse Richard, entrando em grandes passadas na água. –

Vamos jogar um jogo. Wren, afasta-te, é a minha vez.


– Richard, não sejas idiota – Meredith tirou uma perna do meu

ombro e eu agarrei-a pela cintura para a ajudar a descer. Sem o seu

peso extra, era como se estivesse cheio com hélio. Pisquei os olhos

com força, tentando desanuviar a cabeça.

– Não, eu quero jogar – disse Richard outra vez. Quanto teria

bebido? Estava a falar claramente, mas os seus movimentos eram

soltos e impetuosos. – Wren, sai-me da frente.

– Vá lá, Richard, ele não fez nada – disse eu.

Ele virou-se para mim.

– Oh, não te preocupes... já trato de ti daqui a um minuto.

Inclinei-me para trás. Não tinha grande hipótese, se ele estava

decidido a começar uma briga com alguém.

– Deixa-o em paz – disse James, rispidamente. – Ele só jogou

porque tu não quiseste jogar, e estava a tentar ser simpático.

– Sim, todos sabemos como o Oliver é simpático.

– Richard – disse Meredith. – Não sejas parvo.

– Não sou, quero jogar agora. Vá lá, julguei que querias um último

jogo. – Contornou Wren e empurrou James para trás. Ouviu-se um

ligeiro chapinhar quando ele caiu à água.

– Richard, para! – disse Wren.

– Qual é o problema? – perguntou ele. – Mais um jogo! – Voltou a

empurrar James, mas ele sacudiu-lhe o braço.

– Richard, estou-te a avisar...

– O que foi? Quero jogar.

– Mas eu não vou entrar no jogo – disse-lhe James, com todos os

músculos no seu corpo contraídos e rígidos. – Não voltes a fazer isso,

merda.

– Então, tu jogas com as raparigas e o Alexander e o Oliver, mas

comigo não? – perguntou Richard. – VÁ LÁ!

– Richard, para! – Gritámos todos juntos, mas esperáramos

demasiado tempo. Ele voltou a empurrar James, e não havia

brincadeira alguma no gesto. James caiu de chapa na água, batendo

com os braços na superfície, a tentar equilibrar-se. Logo que voltou a

pôr-se de pé, arremessou-se contra Richard atingindo-o com todo o seu

peso e empurrando-o para trás. Mas Richard estava a rir-se enquanto a

água borbulhava à volta deles – era tão maior do que James que seria
impossível uma luta justa entre os dois. Eu estava a avançar na direção

deles, a arrastar as pernas, quando a gargalhada de Richard se

transformou num rosnado e ele mergulhou James na água, de cara para

baixo.

– RICHARD! – berrei.

Talvez ele não me tenha ouvido, com o ruído de James a debater-se

na água, ou talvez simplesmente tenha fingido que não me ouvia.

Segurava-o debaixo de água, com um braço à volta do seu pescoço.

James bateu com o punho no lado do corpo de Richard, mas eu não

conseguia ver se estava a dar luta ou só a tentar soltar-se. As raparigas

e Colin e Alexander lançaram-se à água na direção deles, mas eu

cheguei primeiro. Richard arredou-me e a água fria esbofeteava-me,

saltava-me para a boca e o nariz. Voltei a arremessar-me a ele, agarrei-

me como um parasita.

– PARA! ESTÁS A SUFOCÁ-LO... – O ombro dele atingiu-me o queixo e

mordi a língua com força. Colin apareceu de lado nenhum e pendurou-

se no braço que estava a segurar James debaixo de água enquanto eu

gritava: – VAIS AFOGÁ-LO, MERDA, PARA!

Meredith agarrou o pescoço de Richard, Filippa o seu cotovelo, e

quando ele finalmente soltou James estávamos todos emaranhados,

com a água a revolver-se à nossa volta, gelada e malévola.

James veio à tona com um arquejo, e eu segurei-o antes que voltasse

a afundar-se.

– James – disse. – James, estás bem? – Ele segurava-se ao meu

pescoço com um braço, sufocado, com água e bílis a saírem juntas da

sua boca e a escorrerem-lhe pela frente do corpo.

Meredith estava a bater com os punhos no peito de Richard, a berrar-

lhe, a forçá-lo a sair da água para o areal.

– Perdeste o juízo? Podias tê-lo matado!

– Mas qual é o teu problema? – berrou Wren, com a voz embargada

e lágrimas a escorrerem-lhe pelas faces.

– James? – Eu amparava-o de pé o melhor que podia, com os braços

num arco desajeitado à volta das costelas dele. – Consegues respirar?

Ele acenou debilmente com a cabeça e voltou a tossir, com os olhos

fechados com força. Eu sentia um nó na garganta, apertado como um

nó cego.
– Jesus Cristo – disse Colin, em voz baixa. – Mas que diabo foi

aquilo?

– Não sei – respondeu Filippa, de onde se encontrava, entre nós,

pálida e a tremer. – Vamos tirá-lo da água.

Eu e Colin ajudámos James a chegar à praia, onde ele tombou na

areia, deitado de lado. O cabelo caía-lhe sem vida e molhado para os

olhos, todo o seu corpo tremia quando respirava. Acocorei-me ao lado

dele e Filippa pairava sobre nós. Alexander parecia estupefacto. Colin,

absolutamente aterrado. Wren chorava baixinho, com uns pequenos

soluços a fazerem os seus ombros sacudirem-se e estremecerem. Eu

nunca vira Meredith tão furiosa, com as faces em chamas mesmo à luz

fraca da Lua. E Richard estava ali parado, perplexo.

– Richard – disse Alexander, num tom cauteloso. – Aquilo foi

mesmo uma cena marada.

– Ele está bem, não está? O James?

James fitou-o do chão, com os olhos brilhantes e duros como aço.

Instalou-se um silêncio, e ocorreu-me a ideia sem sentido de que nós e

tudo à nossa volta éramos feitos de vidro. Receava respirar, receava

mexer-me, receava que algo se quebrasse.

– Só estávamos a brincar – disse Richard com um sorriso pálido. –

Era só um jogo.

Meredith deu um passo para se pôr entre Richard e o resto de nós.

– Vai-te embora – disse. Ele abriu a boca para responder, mas ela

interrompeu-o. – Volta para o Castelo e vai para a cama antes que faças

alguma coisa suficientemente estúpida para seres expulso. – Parecia

furiosa, olhos incandescentes, cabelo a pender-lhe em cordas molhadas

e emaranhadas à volta dos ombros. – Vai-te embora. Já.

Richard fitou-a furioso, olhou para nós e depois deu meia-volta e

afastou-se pela praia acima. Senti-me inundado por uma sensação de

alívio que me fez sentir estonteado, como se o sangue tivesse voltado a

correr num membro até aí insensível.

Assim que ele desapareceu de vista, desvanecendo-se nas sombras

das árvores, Meredith foi-se abaixo.

– Jesus. – Dobrou-se pela cintura, pressionou a base das mãos contra

os olhos, com a boca torcida como se tentasse não chorar.

– James. Lamento imenso.


Ele ergueu-se e ficou sentado na areia de pernas cruzadas.

– Está tudo bem – disse.

– Não está tudo bem. – Ela ainda tinha as mãos a cobrir o rosto.

– A culpa não é tua, Mer – disse eu. A ideia de Meredith chorar era

tão bizarra, tão perturbante que me achei incapaz de o testemunhar.

– Não és responsável por ele – disse Filippa. Lançou um olhar a

Wren, que tinha os olhos pregados no chão e lágrimas a escorrerem-lhe

pelo rosto, a agarrarem-se ao seu queixo antes de caírem para a areia. –

Nenhum de nós é.

– Que ventosa foi a noite – disse Alexander, significativamente mais

sóbrio do que meia hora antes. – Meu Deus, que merda de espetáculo.

Meredith baixou finalmente as mãos. Os seus olhos estavam secos,

mas tinha os lábios rachados e sem cor, como se estivesse prestes a

vomitar. – Vocês não sei, mas eu quero lavar-me e ir para a cama e

fingir durante pelo menos oito horas que isto não aconteceu.

– Acho que um sono seria bom para todos – disse Filippa, e houve

um murmúrio de concordância.

– Vão indo, pessoal – disse James. – Eu... eu vou daqui a pouco.

– Tens a certeza? – perguntou Colin.

– Sim. Estou bem, só preciso de um momento.

– Está bem.

Lentamente, subimos pela praia num grupo desgarrado. Meredith

partiu primeiro, depois de um último olhar a James, a pedir-lhe

desculpa – e, por alguma razão, a mim. Filippa foi a seguinte, com um

braço à volta dos ombros de Wren. Colin e Alexander subiram o trilho

juntos. Eu deixei-me ficar, a pretexto de ir buscar o resto da minha

indumentária ao barracão. Quando saí, James estava sentado onde o

deixáramos, a olhar para o lago.

– Queres que eu fique? – perguntei. Não queria deixá-lo ali sozinho.

– Sim, por favor – respondeu, numa voz débil. – Simplesmente não

me senti capaz de lidar com os outros, durante algum tempo.

Atirei as minhas coisas para a areia e sentei-me ao lado dele. A dado

momento durante a festa, a tempestade tinha passado. O céu estava

límpido e calmo, as estrelas fitavam-nos com curiosidade de uma vasta

cúpula azul-anil. Também o lago estava calmo, e pensei: que

mentirosos são, o céu e a água. Parados e calmos e límpidos, como se


tudo estivesse bem. Não estava bem e, na realidade, nunca mais

voltaria a estar bem.

Umas gotas de água teimosas agarravam-se às faces de James. De

alguma maneira, ele não parecia o James que eu conhecia. Parecia tão

frágil que eu receava tocar-lhe. Começou a dizer alguma coisa – talvez

o meu nome – mas só lhe saiu um som fantasmagórico, e parou e

pressionou as costas da mão contra a boca. Doía-me o peito, mas a dor

era mais do que de músculo e osso, era como se uma coisa afiada o

tivesse trespassado, rasgando em mim um pequeno buraco. Atrevi-me a

estender a mão na sua direção. Ele soltou um ligeiro suspiro trémulo e

depois respirou mais facilmente. Ficámos sentados lado a lado sem

falar durante muito tempo, com a minha mão no ombro dele.

O lago, a extensão de água negra, espreitava em segundo plano em

todas as cenas em que entrámos depois disso – como um cenário de

uma peça que tivéssemos levado à cena em tempos, arrumado para a

parte de trás da sala dos adereços, onde teria sido rapidamente

esquecido se não tivéssemos de passar por ele todos os dias. Algo

mudou irrevogavelmente, naqueles minutos sombrios em que James

esteve submerso, como se a falta de oxigénio tivesse alterado o

posicionamento de todas as nossas moléculas.

11. O diminutivo de Richard, Dick, pode também ser usado como termo pejorativo (idiota,

parvo) a que anda associado o seu outro sentido, de pénis. (N. da T.)

22. Edifício de Belas-Artes Archibald Dellecher. A sigla em inglês, FAB, é também a

abreviatura de fabulous, fabuloso. (N. da T.)

33. O nome do bar explora a homofonia de bore (maçador/maçadora) e boar ( javali). «Cabeça

de Javali» seria um nome provável para um pub. (N. da T.)


ATO II
PRÓLOGO

Na primeira vez em dez anos que saio da prisão, o Sol é um disco

branco ofuscante num céu cinzento da cor de água em que foi lavada

louça. Esqueci-me de como é enorme o mundo exterior. Inicialmente,

sinto-me paralisado com a sua vastidão, como o peixinho-vermelho de

alguém lançado inesperadamente ao oceano. Depois, vejo Filippa,

encostada ao lado do seu carro, com a luz a refletir-se nos seus óculos

de sol à aviador. Quase não resisto ao impulso de correr para ela.

Abraçamo-nos com força, como irmãos, mas mantenho-a nos meus

braços mais tempo do que seria o normal nesta situação. Ela é sólida e

familiar e é o primeiro contacto humano afetuoso que tenho há muito,

muito tempo. Enterro o rosto no seu cabelo. Cheira a amêndoas, e

inalo tão profundamente quanto posso, pressionando-lhe as costas com

as mãos espalmadas para sentir os batimentos do seu coração.

– Oliver. – Suspira e belisca-me a nuca. Por um momento louco,

penso que vou desatar a chorar, mas quando a solto ela está a sorrir.

Não parece nada diferente. É claro, tem vindo visitar-me de duas em

duas semanas desde que fui preso. Além de Colborne, foi a única a

fazê-lo.

– Obrigado – digo.

– Porquê?

– Por estares aqui. Hoje.

– Meu pobre prisioneiro – diz ela, pousando a mão na minha face. –

Sou inocente como tu. – O seu sorriso desvanece-se e ela retira a mão.

– Tens a certeza de que queres fazer isto?

Por um ou dois segundos, penso realmente se quero. Mas é só o que

tenho feito desde a última visita de Colborne, e já me decidi.

– Sim. Tenho a certeza.

– Está bem. – Ela abre a porta do lado do condutor. – Entra.

Entro para o lugar do passageiro, onde se encontram, muito bem

dobradas, umas calças de ganga de homem e uma T-shirt. Passo-as

para o colo e ela liga o motor.


– São do Milo?

– Ele não se importa. Pensei que não ias querer aparecer com as

mesmas roupas com que partiste.

– Estas não são as mesmas roupas.

– Sabes o que quero dizer – diz ela. – Não te ficam bem. Dá a ideia

de que engordaste uns dez quilos. A maior parte das pessoas não perde

peso na prisão?

– Não se quiserem sair inteiras – digo-lhe. – Além disso, não há

muito com que ocupar o tempo.

– Então fazias exercício incessantemente? Pareces a Meredith.

Receando estar a corar, dispo a camisa, com a esperança de que ela

não note. Os seus olhos parecem postos na estrada, mas os óculos de

sol são espelhados, portanto não sei ao certo.

– Como está ela? – pergunto, enquanto procuro a etiqueta na outra

camisa.

– Com dificuldades é que não está. Não falamos muito. Já nenhum

de nós se fala muito.

– E o Alexander?

– Ainda está em Nova Iorque – diz ela, o que não é a resposta à

pergunta que fiz. – Envolveu-se com uma companhia qualquer que faz

umas coisas imersivas realmente intensas. Neste momento, está a fazer

de Cleópatra num armazém cheio de areia e cobras vivas. Muito

Artaud. Vão levar à cena A Tempestade a seguir, mas talvez seja a

última peça dele.

– Porquê?

– Bem, querem levar à cena Júlio César e ele recusa-se a voltar a

entrar nessa peça. Acha que foi a que nos lixou a todos. Ando sempre a

dizer-lhe que está enganado.

– Achas que foi Macbeth que nos lixou?

– Não. – Para num semáforo vermelho e lança-me um olhar. – Acho

que já estávamos todos lixados desde o princípio. – O carro ronca a

ganhar vida de novo, engrena a primeira velocidade, depois a segunda.

– Não sei se isso é verdade – digo, mas nem eu nem ela continuamos

a falar do assunto.

Seguimos em silêncio durante algum tempo, e depois Filippa liga a

aparelhagem. Está a ouvir um audiolivro, O Mar, o Mar, de Iris


Murdoch. Li-o na minha cela há uns anos. Além de fazer exercício

físico e ter a esperança de passar despercebido, é com o que um

aspirante a estudioso de Shakespeare se ocupa na prisão. A meio da

minha pena de dez anos, fora recompensado pelo meu bom (isto é,

discreto) comportamento com um trabalho a arrumar livros em

prateleiras em vez de a descascar batatas.

Como conheço a história, quase não ouço as palavras. Pergunto a

Filippa se posso baixar o vidro, e penduro a cabeça de fora como um

cão. Ela ri-se de mim, mas não diz nada. O ar fresco do Illinois saltita-

me no rosto, leve e fugidio. Olho para o mundo com os olhos

semicerrados, alarmado com o seu brilho, mesmo neste dia nublado.

Os meus pensamentos vagueiam estrada abaixo para Dellecher, e

pergunto-me se o reconhecerei. Talvez tenham demolido o Castelo,

cortado as árvores para criar espaço para dormitórios a sério e erigido

uma vedação para impedir que os miúdos vão para o lago. Talvez agora

pareça um campo de férias infantil, estéril e seguro. Ou talvez, como

Filippa, quase não tenha mudado. Ainda consigo vê-lo, luxuriante e

verde e selvagem, de certa maneira encantado, como o bosque de

Oberon ou a ilha de Próspero. Há coisas que não nos dizem sobre esses

lugares mágicos – que são tão perigosos quanto belos. Porque haveria

Dellecher de ser diferente?

Passam duas horas, e depois o carro é estacionado no longo caminho

de acesso ao Hall, que está vazio. Filippa sai primeiro e sigo-a

lentamente. O Hall propriamente dito está igual, mas olho

imediatamente para lá dele, para o lago, resplandecente sob o sol

exangue. A floresta à sua volta continua tão densa e selvagem como a

recordo, com as árvores a apunhalarem ferozmente o céu.

– Estás bem? – perguntou Filippa. Fiquei parado ao lado do carro.

– Este é o mais estranho labirinto que alguém jamais pisou.

O pânico esvoaça suavemente à volta do meu coração. Por um

momento, tenho de novo vinte e dois anos e, com partes iguais de

entusiasmo e de terror, vejo a minha inocência escapar-se-me por entre

os dedos. Dez anos a tentar explicar Dellecher, em toda a sua

magnificência equivocada, a homens com fatos-macacos beges que

nunca andaram no ensino superior ou nunca sequer terminaram o

ensino secundário fez-me compreender aquilo a que, como aluno, fui


deliberadamente cego: que Dellecher era não tanto uma instituição de

ensino, quanto uma seita. Quando entrámos pela primeira vez por

aquelas portas, fizemo-lo sem saber que pertencíamos agora a uma

estranha religião fanática onde qualquer coisa poderia ser desculpada

desde que fosse oferecida no altar das Musas. Loucura ritual, êxtase,

sacrifício humano. Estaríamos enfeitiçados? Ter-nos-iam feito uma

lavagem ao cérebro? Talvez.

– Oliver? – diz Filippa, mais delicadamente. – Estás pronto?

Não respondo. Nunca estive pronto.

– Anda daí.

Sigo-a. Preparei-me para o choque de ver Dellecher de novo – igual

ao que era ou não – mas do que não estava à espera era da súbita dor

no peito, como a saudade de uma antiga amada. Senti a sua falta,

desesperadamente.

– Onde é que ele está? – pergunto, quando alcanço Filippa.

– Queria esperar no Bore’s Head, mas eu não tinha a certeza se

devias voltar já.

– Porque não?

– Metade das pessoas ainda trabalha lá. – Encolhe os ombros. – Não

sabia se estarias pronto para as ver.

– Preocupa-me mais que elas não estejam prontas para me ver a mim

– digo, porque sei que é nisso que ela está realmente a pensar.

– Sim – diz ela. – Isso também.

Conduz-me pela porta da frente – com o brasão dos Dellecher, a

Chave e a Pena, a fitar-me reprovador, como que a dizer: Já não és

bem-vindo aqui. Não perguntei a Filippa quem mais sabe que estou de

volta. É verão, e os alunos já partiram, mas é frequente o pessoal ficar

mais tempo. Será que ao virar de uma esquina vou dar de caras com

Frederick? Com Gwendolyn? Que Deus não o permita, com o reitor

Holinshed?

O Hall encontra-se estranhamente, assustadoramente, vazio. Os

nossos passos ecoam nos corredores largos, normalmente tão

apinhados que qualquer pequeno som é espezinhado por todos os pés.

Espreito com curiosidade para o auditório de música. Uns panos

brancos compridos pendem das janelas e a luz incide em listas largas e


pálidas nos lugares vazios. Tem o ar assombrado de uma catedral

abandonada.

Também o refeitório está quase vazio. Sentado sozinho a uma das

mesas de alunos, com uma caneca de café entre as mãos e parecendo

distintamente deslocado, encontra-se Colborne. Levanta-se à pressa e

estende a mão. Agarro-a sem hesitação, estranhamente contente por o

ver.

Eu: – Chefe.

Colborne: – Já não. Entreguei o crachá na semana passada.

Filippa: – Porque mudou de rumo?

Colborne: – Foi principalmente ideia da minha mulher. Ela diz que,

se é para arriscar levar um tiro todos os dias, devia pelo menos ser bem

pago por isso.

Filippa: – Que comovente.

Colborne: – Ia gostar dela.

Filippa ri-se e diz:

– Provavelmente.

– E como está a Filippa? – pergunta ele. – Ainda por aqui? – Lança

um olhar às mesas vazias e ergue os olhos para o teto decorado com

estuque, como se não tivesse bem a certeza de onde se encontra.

– Bem, vivemos em Broadwater – diz ela. «Nós», deduzo, refere-se a

ela e Milo. Não sabia que tinham começado a viver juntos. Ela é um

mistério quase tão grande para mim agora como era há dez anos, mas

não gosto menos dela por isso. Sei, mais do que a maioria das pessoas,

como é querer desesperadamente guardar segredos. – Não vimos cá

muito durante o verão.

Colborne acena com a cabeça. Pergunto-me se ele se sente

embaraçado na presença dela. Conhece-me – conheceu-nos a todos,

em tempos – mas agora? Será que olha para ela e vê uma suspeita?

Observo-o atentamente e espero não ter de lhe lembrar o nosso acordo.

– Não deve ter grande razão para vir cá – diz ele, num tom

razoavelmente amistoso.

– Temos de decidir a temporada do próximo ano, mas podemos fazer

isso na cidade.

– Já têm algumas ideias?


– Estamos a pensar em Noite de Reis para os alunos do terceiro ano.

Temos dois que efetivamente partilham algum ADN, pela primeira vez

desde... bem, desde a Wren e o Richard. – Há uma pausa breve e

desconfortável antes de ela continuar a falar. – E não fazemos

realmente ideia do que levar à cena com os alunos do quarto ano. O

Frederick quer diversificar e tentar O Conto de Inverno, mas a

Gwendolyn anda a insistir em Otelo.

– Têm um bom grupo este ano?

– Tão bom como sempre. Por uma vez, escolhemos mais raparigas

do que rapazes.

– Bem, isso não deve ser mau.

Trocam um sorriso rápido, e depois Filippa olha intencionalmente

para mim. Ergue as sobrancelhas, quase impercetivelmente. Agora ou

nunca.

Viro-me para Colborne, imito a expressão dela. Ele olha para o

relógio.

– Vamos dar um passeio?

– Como queira – respondo.

– Está bem – diz-me ele. E depois, a Filippa: – Vem?

Ela abana a cabeça, a franzir a testa e a sorrir ao mesmo tempo.

– Não há necessidade – diz. – Eu estava lá.

Colborne semicerra os olhos. Imperturbada, ela toca-me no braço e

diz:

– Vejo-te esta noite – e sai do refeitório, com as perguntas por fazer

de Colborne a pairarem no ar atrás dela.

Ele fica a vê-la afastar-se e depois pergunta:

– Quanto é que ela sabe?

– Sabe tudo. – Ele franze a testa, com os olhos quase a

desaparecerem por baixo das suas sobrancelhas grossas. – As pessoas

esquecem-se sempre da Filippa – acrescento. – E mais tarde desejam

não se terem esquecido.

Ele suspira, como se não tivesse energia para se sentir realmente

afrontado. Contempla a sua caneca de café por um momento e depois

deixa-a ficar em cima da mesa.

– Bem – diz. – Indica o caminho.

– Para onde?
– Sabes melhor do que eu.

Fico em silêncio, a pensar. Depois sento-me. É um lugar tão bom

como qualquer outro.

Colborne solta uma risada relutante.

– Queres um café?

– Não digo que não.

Desaparece para a cozinha, onde se encontram duas máquinas de

café a um canto. (Estão ali há pelo menos catorze anos e sempre

cheias, embora eu – mesmo quando era aluno – nunca tenha visto

quem as enchia.) Volta com uma caneca, pousa-a à minha frente. Olho

para o leite a rodopiar à superfície enquanto ele volta a sentar-se na

cadeira de que acabou de se levantar.

– Por onde quer que eu comece? – pergunto.

Ele encolhe os ombros.

– Por onde achares que é melhor. Oliver, eu não quero só saber o que

aconteceu. Quero saber o como e o porquê e o quando. Quero

compreender o que aconteceu.

Pela primeira vez em muito tempo, aquele pequeno rasgão no meio

de mim, a nódoa negra na minha alma que se esforça por sarar há

quase uma década, começa a latejar. Sentimentos e sensações antigos

acorrem discretamente todos juntos. Doçura amarga, discórdia e

confusão.

– Se fosse a si, não contava com isso – digo a Colborne. – Já

passaram dez anos e continuo a não conseguir compreender.

– Então talvez isto seja bom para ambos.

– Talvez.

Bebo o café pensativamente. É bom – tem sabor, ao invés da mistela

acastanhada que bebíamos na prisão, que só vagamente me recordava

café, mesmo nos melhores dias. O calor da bebida acalma a dor que me

incha no peito, por um momento.

– Então – digo, quando me sinto pronto. A caneca aquece-me as

palmas das mãos e as recordações inundam-me como uma droga,

nítidas, cristalinas, caleidoscópicas. – Semestre do outono, 1997. Não

sei se se lembra, mas o outono foi quente nesse ano.


CENA 1

Duas semanas antes da estreia, tiraram-nos fotografias publicitárias,

e o FAB estava um autêntico manicómio. Para tirarmos as fotografias

precisávamos de indumentárias, e toda a gente andava a correr de um

lado para o outro, dos camarins para a sala de ensaios, a mudar de

gravata e de camisa e de sapatos até Gwendolyn se dar por satisfeita.

As eleições do ano anterior tinham inspirado Frederick a levar à cena

Júlio César como uma corrida presidencial, portanto estávamos todos

vestidos como candidatos à Casa Branca. Nunca na minha vida tinha

usado um fato que me assentasse realmente bem, e o meu reflexo nos

espelhos surpreendeu-me mais do que uma vez. Pela primeira vez,

passou-me pela cabeça a ideia de que poderia ser bonito, se me

esforçasse o suficiente. (Antes, considerava-me atraente, mas só de

uma maneira esquecível, inofensiva – uma ideia reforçada pelo facto de

que as poucas raparigas com quem me tinha envolvido pareciam

inevitavelmente aperceber-se de que gostavam mais de mim no palco

como António ou Demétrio do que fora dele enquanto discreto Oliver.)

Evidentemente, entre os meus colegas de turma, eu bem podia ser

invisível. Alexander parecia um mafioso com o seu fato cinzento-

escuro brilhante, um alfinete de gravata com um ónix a cintilar-lhe no

peito. James, imaculado num fato de um azul escuro como tinta, podia

ser o herdeiro de alguma pequena monarquia europeia. Mas Richard,

com um fato cinza-pérola e uma gravata de um vermelho-sangue, era o

que, de todos nós, fazia melhor figura.

– É de mim ou aquele fato fá-lo mesmo parecer mais alto? –

perguntei, espreitando pela porta da sala dos ensaios, onde tinham

montado uma tela preta para ser o nosso pano de fundo. Queriam

Richard primeiro, para a «foto do cartaz da campanha», como

Gwendolyn lhe chamava.

– Acho que é o ego dele que o faz parecer mais alto – disse James.

Alexander estendeu o pescoço para olhar entre nós os dois.

– Talvez sim. Mas não podem negar que o tipo tem um aspeto

mesmo fixe. – Lançou-me um olhar e acrescentou: – E tu também

terias, se aprendesses a dar um nó Windsor em condições.


Eu: – Continua torto?

Alexander: – Já te viste ao espelho?

Eu: – Arranja-mo só, está bem?

Alexander inclinou-me o queixo para cima para me endireitar o nó

da gravata e continuou a segredar a James.

– Sinceramente, ainda bem que temos uma noite de folga sem

ensaios para fazer isto. De cada vez que fazemos a merda da cena da

tenda com os comentários da Gwendolyn, só me apetece atirar-me para

o chão e morrer.

– Pode argumentar-se que é assim que te deves sentir.

– Eu conto sentir-me emocionalmente exausto depois de um

espetáculo, mas ela faz aquela cena parecer tão real que olho para ti

fora do palco e não consigo decidir se quero beijar-te ou matar-te.

Soltei uma gargalhada resfolegada e Alexander puxou-me a gravata.

– Para quieto.

– Desculpa.

Filippa apareceu atrás de nós, vinda do camarim das raparigas.

(Tinha pelo menos três indumentárias; naquele momento específico era

um fato de calça e casaco às riscas que não a favorecia.)

– Do que estamos a falar? – segredou.

Alexander: – Sou capaz de curtir com o James amanhã.

James: – Que sortudo que eu sou.

Filippa: – Podia ser pior. Lembras-te do Sonho, quando o Oliver me

deu uma cabeçada na cara?

Eu: – Em minha defesa, tentei beijar-te com bons modos, mas não

conseguia ver, porque o Puck esguichou-me o filtro de amor dele

diretamente para o olho.

Alexander: – Há tantos sentidos implícitos nessa frase que nem sei

por onde começar.

Do outro lado da sala, Gwendolyn bateu palmas e disse:

– Bem, não me parece que consigamos melhor do que isso. O que se

segue? Os casais? Ótimo. – Virou-se para nós e disse: – Filippa, vai

chamar as outras raparigas, vais?

– Porque não me querem aqui por mais nenhuma razão – resmungou

Filippa, e desapareceu de novo para dentro do camarim.


– Francamente – disse James, abanando a cabeça –, se não lhe derem

um papel em condições na primavera, vou boicotar o espetáculo.

Quando as outras raparigas apareceram, tornou-se imediatamente

óbvio que o guarda-roupa passara mais tempo com elas. Wren trazia

um vestido azul-marinho de bom gosto, enquanto Meredith usava uma

peça vermelha que se lhe colava às curvas como uma camada de tinta e

trazia o cabelo penteado com todo o volume, como a juba de um leão.

– Onde nos querem? – perguntou Meredith.

– Na página central, imagino – disse Alexander, olhando-a de alto a

baixo. – Tiveram de coser isso à tua volta?

– Tiveram – disse ela. – E vou precisar de cinco pessoas para me

sacarem de dentro do vestido. – Parecia mais irritada do que

presunçosa.

– Bem – disse James –, tenho a certeza de que não faltarão

voluntários. – Não fez com que soasse a razão para ela se sentir

presunçosa.

– James! – berrou Gwendolyn. – Preciso de ti e das raparigas aqui,

para ontem.

Atravessaram a sala, com Meredith a andar cuidadosamente nas

pontas dos pés nos seus sapatos de verniz brilhante entre os cabos

emaranhados das extensões elétricas.

– Então – disse Filippa –, eu nem sequer conto como rapariga agora.

– Sem ofensa – disse Alexander –, mas nessa indumentária não, não

contas.

– Silêncio na sala, por favor! – ordenou Gwendolyn, sem sequer se

virar.

Filippa fez um esgar como se tivesse acabado de morder uma maçã

podre.

– Meu Deus, poupem-me – disse. – Vou fumar um cigarro.

Não se explicou, mas não precisava. Enquanto Gwendolyn e o

fotógrafo dispunham Richard, Meredith, James e Wren sob as luzes,

era impossível ignorar a demonstração clara de favoritismo. Suspirei,

pouco incomodado, e olhei para James – quase sem consciência da

presença da máquina fotográfica, involuntariamente encantador –,

quando Gwendolyn o empurrou para junto de Wren. Estava a prestar


pouca atenção, quando Alexander se inclinou para a minha orelha e

disse:

– Estás a ver o que eu estou a ver?

– Como?

– OK, presta atenção e depois diz-me se vês o que eu vejo.

Inicialmente, não fazia ideia do que ele estava a falar. Mas depois vi

de facto algo – só um espasmo no canto da boca de Meredith quando a

mão de Richard lhe roçou as costas. Estavam lado a lado, virados

ligeiramente um para o outro, mas Meredith não parecia bem

Calpúrnia, a perfeita esposa do político, amorável a um ponto

extraordinário. A sua mão estava pousada na lapela de Richard, mas

parecia rígida e pouco natural ali. Seguindo a indicação do fotógrafo,

ele pôs o braço à volta da cintura dela. Meredith ergueu quase

impercetivelmente o braço para que os seus cotovelos não se tocassem.

– Problemas no paraíso? – sugeriu Alexander.

Depois do «incidente» do Halloween, prosseguíramos todos, em

grande medida, como se nada fora do comum tivesse acontecido,

enjeitando o que se passara como uma brincadeira estúpida, fruto de

bebedeira, que tinha ido demasiado longe. Richard apresentou a James

um pedido de desculpa por mera formalidade, que foi aceite com uma

falta de sinceridade equivalente, e, a partir desse momento, passaram a

tratar-se com uma cordialidade rígida. O resto do grupo fez um esforço

louvável (embora condenado ao fracasso) por voltar à normalidade.

Meredith foi a inesperada exceção: nos primeiros dias de novembro,

recusou-se terminantemente a falar com Richard.

– Não estão a dormir no mesmo quarto outra vez? – perguntei.

– Não desde ontem à noite.

– Como sabes?

Encolheu os ombros.

– As raparigas contam-me coisas.

Olhei-o de soslaio.

– Alguma coisa interessante?

Olhou-me rapidamente de alto a baixo e disse:

– Oh, nem fazes ideia.

Via que ele queria que lhe perguntasse o quê, portanto não o fiz.

Voltei a espreitar pela porta, esperando chegar a uma conclusão sobre o


estado das coisas com Meredith, mas outro pequeno movimento

distraiu-me. Seguindo a instrução de Gwendolyn, Wren inclinou a

cabeça para a pousar no ombro de James.

– Não parecem mesmo o casal americano perfeito? – comentou

Alexander.

– Parecem. – O flash disparou. James estava a brincar distraidamente

com uma madeixa do cabelo de Wren, mas na nuca dela, onde eu tinha

quase a certeza de que o fotógrafo não o captaria. Franzi a testa e

semicerrei os olhos, a fitar o outro lado da sala.

– Alexander, estás a ver o que eu estou a ver?

Ele seguiu o meu olhar com uma vaga aparência de curiosidade.

James continuava a enrolar uma madeixa do cabelo de Wren à volta do

dedo. Eu não percebia se um ou o outro se davam sequer conta de que

ele estava a fazer aquilo. Wren sorriu – talvez para a objetiva – como se

tivesse um segredo.

Alexander lançou-me um olhar esquisito, triste.

– Só estás a ver isto agora? – disse. – Oh, Oliver. Andas tão alheado

como eles.

CENA 2

O ensaio geral na noite seguinte era o nosso primeiro num cenário

terminado. Doze grandiosas colunas toscanas formavam um

semicírculo na plataforma de cima, e um lanço de degraus brancos

baixos conduzia àquilo a que chamávamos a Taça: um disco raso com

chão a imitar mármore, dois metros e quarenta de diâmetro, onde o

infame assassínio ocorreria. Por trás das colunas, o pano de fundo

brilhava suavemente, passando por um espectro completo de cores

celestiais, do púrpura escuro do lusco-fusco ao rubor laranja do nascer

do sol.

Um cenário novo apresentava sempre desafios que não tínhamos

previsto em ensaios anteriores, e todos regressámos ao Castelo de mau

humor e doridos. Eu e James subimos imediatamente para a Torre.


– Sou só eu, ou aquele ensaio demorou dez horas? – perguntei,

atirando-me de costas para a cama. O colchão magoou-me e eu gemi.

Passava da meia-noite, e estávamos a pé desde as cinco da manhã.

– É a sensação que dá. – James sentou-se na beira da cama dele e

passou as mãos pelo cabelo. Quando voltou a levantar a cabeça,

parecia despenteado e cansado, até mesmo um pouco doente, sem cor

suficiente no rosto.

Apoiei-me nos cotovelos.

– Estás bem?

– Porquê?

– Pareces mesmo, não sei, arrasado.

– Não tenho andado a dormir bem.

– Há alguma coisa a preocupar-te?

Fitou-me, a piscar os olhos, como se não tivesse compreendido a

pergunta, e depois disse:

– Não. Não é nada. – Pôs-se de pé e tirou os sapatos.

– Tens a certeza?

Virou-me as costas enquanto desabotoava as calças de ganga e as

deixava escorregar para o chão.

– Estou bem.

A sua voz soava monocórdica, errada, como se alguém tivesse

tocado uma nota falsa num piano. Levantei-me da cama e atravessei

lentamente para o seu lado do quarto.

– James – disse –, não leves a mal, mas... não acredito em ti.

Ele lançou-me um olhar por cima do ombro.

– Nunca na vida ouvi / Lançar um desafio com maior modéstia.

Conheces-me demasiado bem. – Dobrou as calças de ganga e atirou-as

para os pés da cama.

– Então conta-me o que se passa.

Hesitou.

– Tens de me prometer que vais guardar segredo.

– Sim, claro.

– Não vais querer fazê-lo – avisou-me.

– James – disse eu, com um sentido de urgência maior –, do que é

que estás a falar?


Não respondeu – limitou-se a despir a camisa e a ficar ali em roupa

interior sem falar. Fitei-o, perplexo e inexplicavelmente ansioso. Uma

dúzia de perguntas emaranhou-se-me na boca antes de o embaraço me

fazer olhar para baixo e eu perceber o que ele queria mostrar-me.

– Oh, meu Deus. – Agarrei-lhe os pulsos e puxei-o para mim, com o

acanhamento do instante anterior esquecido. Umas equimoses de um

azul cru e vívido manchavam-lhe as partes interiores dos braços até

aos cotovelos. – James, o que é isto?

– Marcas de dedos.

Soltei-lhe o braço esquerdo como se tivesse sido eletrocutado.

– O quê?

– A cena do homicídio – disse ele. – Quando o apunhalo a última

vez, ele tomba de joelhos e agarra-me os braços e... bem.

– Ele já viu isto?

– É claro que não.

– Tens de lhe mostrar – disse eu. – Talvez nem saiba que te está a

magoar.

James ergueu os olhos para mim com um lampejo de irritação.

– Quando foi a última vez que deixaste uma marca como esta em

alguém sem saberes que o fazias?

– Nunca deixei uma marca como essa em ninguém, jamais.

– Exatamente. Saberias se o tivesses feito.

Apercebi-me de que continuava a segurar-lhe um dos pulsos e soltei-

o abruptamente. Ele cambaleou para trás, desequilibrado, como se eu

tivesse estado a puxá-lo para a frente. Passou os dedos no lado interior

do braço, mordendo com força o lábio inferior como se receasse abrir a

boca, como se receasse o que podia sair dela.

De repente, senti-me furioso, com a pulsação a latejar levemente nos

meus ouvidos. Queria provocar dez nódoas negras em Richard por

cada uma que ele provocara em James, mas não tinha a mínima

hipótese de o magoar, não daquela maneira, e a minha própria

ineficácia enfurecia-me mais que tudo.

– Tens de contar ao Frederick e à Gwendolyn que ele anda a fazer

isto – disse eu, mais alto do que tencionava.

– Fazer queixinhas? – disse James. – Não, obrigado.

– Só ao Frederick, então.
– Não.

– Tens de dizer alguma coisa!

Ele empurrou-me um passo para trás.

– Não, Oliver! – Desviou o olhar, para um canto vazio do quarto. –

Prometeste-me que não dirias uma palavra, portanto cumpre a

promessa.

Senti uma pequena alfinetada de dor, como se tivesse sido picado.

– Diz-me porquê.

– Porque não quero dar-lhe essa satisfação – disse James. – Se ele

souber que consegue magoar-me com tanta facilidade, o que vai fazê-

lo parar? – Os seus olhos dardejaram de novo para o meu rosto, um

brilho de cinzento. Implorante e apreensivo. – Ele desiste, se pensar

que não está a resultar. Portanto, promete-me que não vais dizer nada.

As minhas entranhas contraíram-se como se alguém me tivesse dado

um pontapé na barriga. O que eu queria dizer era esquivo, inacessível,

estava fora do alcance. Agarrei o varão da cama mais perto de mim e

encostei-me a ele. Sentia a cabeça pesada com confusão, fúria e outra

coisa violenta que não conseguia identificar.

– James, isto é tão lixado.

– Eu sei.

– O que vamos fazer?

– Nada. Por enquanto.

CENA 3

Durante o ensaio geral na noite seguinte, não tirei os olhos de

Richard, mas, por acaso, quando ele foi demasiado longe eu não era o

único a observá-lo.

Tínhamos acabado a primeira cena do segundo ato, que incluía a

conversa de Bruto com os conspiradores, a sua conversa com Pórcia e a

outra com Ligário. (Não fazia ideia de como James conseguia dizer

bem todas as suas falas.) Wren e Filippa tinham saído do palco pela

direita e espreitavam com curiosidade por trás da cortina. Eu, James e

Alexander tínhamos saído pela esquerda e esperávamos inquietos, na


escuridão densa da coxia de cena, pela nossa entrada seguinte em

palco: Ato III, Cena 1, o assassínio.

– Quanto tempo acham que tenho? – perguntou Alexander num

murmúrio rouco por cima do ombro.

– Para fumar? – disse eu. – O suficiente, se fores já.

– Se me atrasar a voltar, empata para me dar tempo.

– Como é que hei de fazer isso?

– Faz de conta que te esqueceste de uma fala ou coisa do género.

– E provocar a fúria da Gwendolyn? Não.

No lado oposto do palco, Wren pôs o dedo nos lábios, e James

acotovelou Alexander.

– Para de falar. Conseguem ouvir-te no outro lado.

– Em que cena estamos? – perguntou Alexander, em voz mais baixa.

Richard já tinha entrado – sem gravata nem casaco – e estava a falar

com um serviçal, papel desempenhado por um dos nossos inexauríveis

colegas do segundo ano.

– Calpúrnia – murmurei.

Como se de algum modo a tivesse convocado, Meredith apareceu

entre as duas colunas centrais, descalça, com um roupão de banho

curto de seda e de braços cruzados sobre o peito.

Alexander assobiou baixinho.

– Olhem-me só para aquelas pernas. Suponho que é uma maneira de

vender bilhetes.

– Sabes? – disse James. – Para um rapaz que gosta de outros rapazes,

fazes muitos comentários heterossexuais.

Alexander: – Talvez abrisse uma exceção para a Meredith, mas ela

teria de vestir aquele roupão.

James: – És nojento.

Alexander: – Sou adaptável.

Eu: – Calem-se, quero ouvir isto.

James e Alexander trocaram um olhar, que não compreendi e optei

por ignorar.

– Que é isso, César? Pensas sair? – perguntou Meredith, depois de o

serviçal sair. – Hoje não sais de casa. – Estava com uma mão na anca

e uma expressão sombria e crítica. A cena sofrera alterações desde a

última vez que eu a vira; Meredith desceu para a Taça, e, ao descrever


o seu sonho, este pareceu mais ameaça do que aviso. Richard, a avaliar

pela expressão no seu rosto, não estava pelos ajustes.

– Bem – disse Alexander –, no lugar dela eu não contava que ele

ficasse em casa.

O serviçal voltou a entrar, claramente aterrado por estar sequer no

mesmo palco que os outros dois.

Richard: – Que dizem os áugures?

Serviçal: – Gostariam que não saísseis hoje.

Ao tirarem as vísceras a uma vítima,

Não puderam encontrar o coração do animal.

Richard virou-se para Meredith.

Richard: – Os deuses fazem isso para envergonhar a covardia:

César seria um animal sem coração

Se ficasse hoje em casa com medo.

Não, César não fica.

Agarrou os ombros de Meredith e ela torceu-se, presa nas suas mãos.

– Aquilo é o bloqueio? – perguntei. Nem James nem Alexander me

responderam.

Richard: – O perigo sabe muito bem

Que César é mais perigoso do que ele.

Somos dois leões paridos no mesmo dia,

Mas o mais velho e mais terrível sou eu...

Meredith debatia-se e soltou um grito de dor. Do lado oposto,

Filippa olhou-me nos olhos e abanou a cabeça, quase

impercetivelmente.

– E César – berrou Richard – vai sair! – Arredou Meredith de si tão

bruscamente que ela se desequilibrou e caiu para trás nas escadas.

Estendeu os braços para se segurar e ouviu-se um estalido seco quando

o seu cotovelo bateu na madeira. Aquele mesmo reflexo vingativo que

eu sentira no Halloween fez-me lançar-me para a frente – para fazer o

quê, não sabia –, mas Alexander agarrou-me o ombro e segredou:

– Calma, tigre.

Meredith afastou o cabelo do rosto e fitou Richard com olhos

esbugalhados e furiosos. O auditório ficou em silêncio por uma fração

de segundo, excetuando o zunido baixo das luzes, e depois ela disse:

– Desculpa lá, mas que merda é que acabou de acontecer?


– Parem! – berrou Gwendolyn do fundo do auditório, numa voz

estridente e distante.

Meredith pôs-se de pé e bateu no peito de Richard com as costas da

mão.

– O que foi aquilo?

– O que foi o quê? – Ele, por alguma razão incompreensível, parecia

ainda mais furioso do que ela.

– Aquilo não foi a manobra de bloqueio!

– Olha, é um momento importante, deixei-me levar...

– E decidiste atirar-me pela merda das escadas?

Gwendolyn vinha a correr pela coxia central, a gritar:

– Parem. Parem com isso!

Richard agarrou o braço de Meredith e puxou-o com força para tão

perto de si que poderia beijá-la.

– Vais mesmo fazer uma cena agora? – disse ele. – Se fosse a ti, não

fazia isso.

Contive uma praga, sacudi a mão de Alexander do meu ombro e

corri para o palco com o James logo atrás de mim. Mas Camilo chegou

primeiro, saltando da fila da frente da plateia para o palco.

– Eh lá – disse ele. – Parem com isso. Vá, acalmem-se. – Meteu um

braço entre os dois e arrancou Meredith a Richard.

– O que se passa aqui? – perguntou Gwendolyn quando chegou à

beira do palco.

– Bem, o Dick decidiu improvisar uma espécie de manobra de

bloqueio – disse Meredith, empurrando Camilo, a afastá-lo de si.

Estremeceu quando a mão dele roçou no seu braço, e baixou os olhos;

havia uma gota de sangue a serpentear para fora da manga do seu

roupão. O meu sentimento de ultraje em nome de outros – sobreposto e

confuso, metade por James, metade por Meredith – rugiu-me no peito,

e cerrei os dentes, a lutar contra um impulso suicida de atirar Richard

para o fosso da orquestra.

– Estou a sangrar – disse Meredith, fitando as pintas vermelhas na

ponta dos seus dedos. – Seu filho da mãe. – Virou-se e afastou as

cortinas, ignorando Gwendolyn, que dizia:

– Meredith, espera!
A fúria de Richard tremeluziu e apagou-se como uma lâmpada

avariada e deixou-o com um ar inquieto.

– Façam todos uma pausa de dez minutos – disse Gwendolyn ao

resto do grupo. – Que diabo, de um quarto de hora. Vamos fazer um

intervalo agora. Vão lá.

Os alunos do segundo e do terceiro anos foram os primeiros a

obedecer, saindo do auditório aos pares, a segredarem uns aos outros.

Senti que Alexander pairava atrás de mim e inspirei fundo, a preparar-

me.

– Camilo, vais ver se ela está bem? – pediu Gwendolyn. Ele acenou

com a cabeça e saiu pelo fundo do palco. Ela virou-se para Richard. –

Vai pedir desculpa àquela rapariga – ordenou – e não voltes a pregar

mais nenhuma partida como aquela, senão, e Deus é minha

testemunha, ponho o Oliver a aprender as tuas falas e tu podes ficar a

assistir na primeira fila na noite da estreia.

– Desculpe.

– Não me peças desculpa a mim – disse ela, mas a sua fúria estava já

a desvanecer-se e a transformar-se em exasperação.

Richard acenou com a cabeça – quase com humildade – e ficou a vê-

la voltar lentamente para o fundo do auditório. Só quando se virou

pareceu aperceber-se de que nós os cinco estávamos ali parados, a

fulminá-lo com o olhar.

– Oh, descontraiam – disse ele. – Não a magoei mesmo. Ela só está

zangada.

James, ao meu lado, tinha fechado as mãos em punho com tanta

força que os braços tremiam-lhe. Mudei o peso do corpo de um pé para

o outro, demasiado agitado para permanecer imóvel. Alexander

inclinou-se para a frente, como se pronto a atirar-se entre nós os dois e

Richard, se tivesse de o fazer.

– Por amor de Deus – disse Richard ao ver que ninguém lhe

respondia. – Vocês todos sabem como ela é teatral.

– Richard! – disse Wren.

Ele pareceu culpado, mas só por um momento.

– A sério – disse –, também tenho de pedir desculpa a vocês?

– Não, é claro que não – disse Filippa numa voz calma e controlada

que me distraiu do som da minha pulsação nos ouvidos. – Porque o


farias? Só interrompeste o nosso ensaio, deste cabo das manobras de

bloqueio definidas pela Gwendolyn, obrigaste o Milo a impedir uma

luta, possivelmente deste cabo de uma indumentária, és capaz de ter

danificado o cenário e magoaste uma das nossas amigas... e não pela

primeira vez. O Oliver pode ter de aprender as tuas falas todas e

desempenhar o teu papel e salvar o espetáculo quando tu

inevitavelmente lixares tudo outra vez. E tens a lata de atirar as culpas

para a teatralidade da Meredith? – Os seus olhos azuis estavam frios

como gelo. – Sabes, Rick, as pessoas não estão dispostas a aturar as

tuas merdas muito mais tempo.

Virou-lhe as costas sem lhe dar tempo de responder e desapareceu

entre as dobras da cortina. Dissera o que todos queríamos dizer, e,

muito ligeiramente, a tensão diminuiu. Respirei fundo; James abriu as

mãos.

– Não, Richard, nem tentes – disse Wren, quando ele voltou a abrir a

boca. Ela abanou a cabeça, com uma expressão contraída e tensa não

muito diferente de repugnância. – Simplesmente não digas mais nada.

– E seguiu Filippa.

Richard fungou e depois perguntou-nos a mim, a James e a

Alexander:

– Mais alguma coisa?

– Não – respondeu Alexander –, penso que ela apanhou tudo. –

Lançou um olhar de aviso a mim e a James antes de sair pela coxia de

cena, já a procurar as mortalhas nos bolsos.

Ficámos só os três. Eu, James e Richard. Rastilho, pólvora, fogo.

Richard e James fitaram-se por um momento, como se eu não

estivesse ali, mas nem um nem o outro falaram. O silêncio entre eles

era instável, precário. Esperei, perguntando-me para que lado penderia

aquilo, com a apreensão a fazer com que todos os músculos sob a

minha pele se contraíssem. Por fim, James fez um sorrisinho quase

impercetível a Richard – um vislumbre de triunfo trivial – e depois

virou-se e seguiu Alexander lá para fora.

Os olhos de Richard pousaram em mim, e pensei que poderiam

trespassar-me com o seu fogo.

– Não comeces já a aprender as minhas falas – disse ele.


E deixou-me no palco sozinho. Fiquei em silêncio. Imóvel. Na minha

própria estimativa, inútil. Um rastilho sem fogo e sem nada para

detonar.

CENA 4

Quando terminámos o ensaio (felizmente sem mais nenhum

incidente), evitei os camarins. Rondei o átrio até me parecer que toda a

gente se tinha ido embora e depois atravessei o teatro. Como as luzes

tinham sido apagadas, avancei a tatear por entre os assentos, sentindo

as mãos dormentes e gemendo quando, no escuro, os braços das

cadeiras me batiam nos joelhos.

As luzes do passadiço zuniram quando entrei no camarim dos

homens, e senti-me aliviado quando vi que estava vazio. Numa das

paredes, os espelhos mostravam-me o meu reflexo, e à outra estava

encostado um varão com roupas, cheio com duas ou três indumentárias

para cada um dos doze atores. Os resíduos do teatro estavam

espalhados em todas as superfícies – peças de roupa esquecidas, pentes

e gel do cabelo, lápis dos olhos partidos.

Comecei a despir a minha indumentária, por uma vez sem acotovelar

os outros quatro rapazes. Normalmente, ter-me-ia agradado o luxo do

espaço, mas ainda não recuperara totalmente do desastre do segundo

ato e só me sentia vagamente aliviado por não ter de partilhar o

camarim com Richard. Pendurei cuidadosamente a camisa, o casaco e

as calças num cabide e depois arrumei os sapatos por baixo do varão.

As minhas roupas tinham ficado espalhadas pelo camarim;

provavelmente, alguém tinha pegado nelas por engano e rejeitou-as

durante o frenesim que se seguiu ao quinto ato, quando todas as

pessoas se apressaram a vestir-se para ir para casa. Encontrei as minhas

calças de ganga amarrotadas a um canto e a camisa a pender de um

espelho. Uma das meias estava escondida debaixo do balcão, mas a

outra nunca chegou a aparecer. Caí pesadamente numa cadeira e tinha

acabado de calçar os sapatos – que se danasse a meia – quando a porta

rangeu a abrir-se.
– Ah, estás aqui – disse Meredith. – Não sabíamos para onde tinhas

ido.

Ela continuava de roupão. Arrisquei um olhar na sua direção, e

depois concentrei-me intensamente em apertar os cordões dos sapatos.

– Só precisava de espaço para respirar – disse eu. – Estou bem.

Levantei-me e dirigi-me para a porta, mas ela bloqueava-me a saída,

encostada à ombreira da porta com uma perna encolhida como um

flamingo, o joelho perfeitamente encaixado no arco do pé. Havia algo

introspetivo e indeciso na sua expressão, mas o seu rosto estava corado,

como se o calor da fúria não a tivesse abandonado completamente.

– Meredith, precisas de alguma coisa?

– De uma distração, talvez. – Esboçou-me um sorriso, a contar que

eu compreendesse o que queria dizer.

Compreendi, com um pequeno choque como de eletricidade, e

inclinei-me para trás, afastei-me.

– Não me parece boa ideia.

– Porque não? – Parecia genuinamente perplexa, quase impaciente;

recordei a mim mesmo que ela era uma atriz por natureza.

– Porque é o tipo de jogo de que as pessoas saem magoadas – disse

eu. – Não gosto particularmente do Richard neste momento, mas não

quero ser uma delas.

Ela piscou os olhos, e a impaciência dissipou-se, substituída por algo

mais suave, menos cheio de autossegurança.

– Eu não te magoo – disse. Aproximou-se cautelosamente, como se

receasse sobressaltar-me. Eu fiquei paralisado, a ver a seda mover-se

como água na sua pele. Via-se uma equimose já a inchar abaixo da sua

clavícula, e não pude deixar de pensar nas mãos de Richard e nos

danos que elas poderiam causar.

– Ocorre-me uma pessoa que talvez me magoe – disse eu.

– Não quero pensar nele. – Na sua voz havia um tom cru, terno, que

não reconheci imediatamente: vergonha.

– Certo, queres ser distraída.

– Oliver, não é assim.

– A sério? Então como é? – Era uma pergunta desesperada. Não

sabia com que intenção: se dissuadi-la, tentá-la ou desafiá-la; levá-la a


admitir o seu bluff, forçá-la a ir a jogo, pedir para ver as suas cartas.

Talvez tudo ao mesmo tempo.

A única coisa que não fiz foi dissuadi-la. Ela continuava a olhar para

mim, mas de uma maneira como nunca tinha olhado, com algo

impulsivo a brilhar nos seus olhos da cor de vidro polido pelo mar.

– É assim – disse ela.

Senti as suas mãos no meu peito, as palmas quentes através do tecido

fino da minha camisa. O meu coração gaguejou ao sentir o toque, e

perguntei-me de repente se ela traria alguma coisa vestida por baixo do

roupão. Uma parte de mim queria arrancar-lho e descobrir a resposta,

outra parte sentia vontade de lhe bater com a cabeça contra a parede

para lhe meter algum juízo. Ela encostou-se a mim e a pressão do seu

corpo arredou todas as minhas objeções lógicas. As minhas mãos

moveram-se automaticamente, sem a minha permissão, erguendo-se

para encontrar a curva da sua cintura, alisando a seda contra a sua pele.

Sentia o seu perfume, doce e luxuriante e tentador, a fragrância de uma

qualquer flor exótica. Os seus dedos, suavemente insistentes na minha

nuca, puxavam-me o rosto para o seu. A minha pulsação soava-me em

crescendo nos ouvidos, a minha imaginação avançava traiçoeiramente

a toda a velocidade.

Virei abruptamente a cabeça e a ponta do meu nariz roçou a sua

face. Se a beijasse, o que se seguiria? Não confiava que fosse capaz de

parar.

– Meredith, porque estás a fazer isto? – Não conseguia olhar para ela

sem lhe fitar a boca.

– Porque quero.

Toda a minha fúria latente se ergueu a borbulhar como um ácido.

– Porque queres – disse eu. – Porquê? Porque o James recusa tocar-te

e o Alexander não gosta de mulheres? Porque queres enfurecer o

Richard e eu sou a maneira mais fácil de o conseguires? – Empurrei-a,

para que os nossos corpos já não se tocassem. – Sabes como ele é

quando está furioso. És encantadora, mas não vales esse risco.

Aquelas últimas palavras saíram-me da boca antes de eu poder

contê-las, antes mesmo de me aperceber de como eram horríveis. Ela

fitou-me por um instante, imóvel. A seguir, virou-se e abriu a porta

com força.
– Sabes, acho que tens razão – disse. – As pessoas podem mesmo

magoar-se.

Quando a porta se fechou nas suas costas, senti-me transportado ao

nosso primeiro dia na aula de Gwendolyn, dois meses antes. Era

enlouquecedor, como Meredith era linda – mas esse facto tornava o

resto dela menos real? Passei a mão pelo rosto, a sentir-me nauseado.

– Que diabo – disse em voz baixa. Foi tudo o que consegui dizer.

Recolhi as minhas coisas, pus a mochila ao ombro e saí do edifício,

já furioso comigo e com ela. Quando cheguei ao Castelo, parei à porta

dela na subida para a Torre. Um verso desgarrado passou-me pela

cabeça. Coragem, homem; o ferimento não deve ser profundo.

Sabia que não podia acreditar nisso.

CENA 5

Na manhã seguinte, James arrastou-me da cama um pouco depois

das sete para irmos correr. As equimoses nos seus braços tinham-se

desvanecido um pouco e eram agora de um verde podre, mas ele trazia

vestida uma sweatshirt com as mangas puxadas para baixo até aos

pulsos. O tempo já estava suficientemente frio para que não parecesse

estranho.

Corríamos frequentemente nos trilhos estreitos que serpenteavam

pelo bosque no lado sul do lago. O ar estava frio e cortante, o céu

nublado, a respiração saía-nos da boca em longas plumas brancas.

Mantivemos um bom ritmo juntos durante uma volta de três

quilómetros, conversando em breves sequências entrecortadas.

– Aonde foste ontem à noite? – perguntou ele. – Não consegui

encontrar-te depois de cair o pano.

– Não queria ter de lidar com o Richard, portanto esperei no átrio.

– A Meredith montou-te uma emboscada?

Franzi a testa, olhando para ele.

– Como sabes?

– Achei que talvez fosse capaz de fazer isso.

– Porquê?
– Só por causa da maneira como tem andado a olhar para ti

ultimamente.

Tropecei numa raiz e fiquei um pouco para trás, mas estuguei o

passo para o alcançar.

Eu: – Como é que ela tem andado a olhar para mim?

James: – Como se fosse um tubarão e tu, um lobo-marinho alheado.

Eu: – Porque é que toda a gente anda a usar essa palavra para me

descrever?

James: – Quem mais te chamou lobo-marinho?

Eu: – Não essa. Mas adiante.

Olhei para o chão por um momento, a pensar. A dor surda no meu

lado esquerdo intensificava-se sempre que eu inspirava. O ar cheirava a

terra e a vegetação e ao inverno que se aproximava.

– Então, vais contar-me o que aconteceu? – perguntou James.

– O quê?

– Com a Meredith. – Disse aquilo num tom ligeiro, a provocar-me,

mas também havia apreensão na sua voz. A sensação de culpa

aqueceu-me mais o rosto do que o exercício.

– Não aconteceu nada – disse eu.

– Nada?

– A sério que não. Eu disse-lhe que não estava interessado em

tornar-me o próximo saco de pancada do Richard e ela foi-se embora.

– Essa é a única razão? – Pelo seu tom de voz, compreendi que não

estava convencido.

– Quer dizer, não sei. – Ficara deitado sem dormir a maior parte da

noite, a repetir a cena na cabeça, a torturar-me por causa daquelas

últimas palavras, a pensar em mil e uma coisas que devia ter dito em

vez delas, a desejar que tivesse corrido de outra maneira. Não podia

fingir que era imune a Meredith; sempre a admirara, mas do que

pensava ser uma distância segura. Aproximando-se de mim, ela

confundiu-me. Eu não acreditava que me desejasse realmente, só que

era o alvo mais fácil. Mas não podia admitir isso a James – porque me

envergonhava e porque receava estar enganado.

Ele olhava-me, à espera de que eu me explicasse.

– É como o Alexander disse no outro dia – prossegui. – Não

conseguia decidir se queria beijá-la ou matá-la. – Continuámos a


correr num silêncio embaraçado, suavizado pelo chilrear de umas aves

tontas que ainda não tinham voado para sul para escaparem ao inverno.

Passámos pelo trilho que nos levaria ao Castelo e começámos a subir a

encosta íngreme na direção do Hall. A meio da subida, perguntei:

– O que achas?

– Sobre a Meredith?

– Sim.

– Sabes o que sinto em relação à Meredith – disse ele, num tom

terminante que desencorajava mais perguntas. Mas não era realmente

uma resposta; havia algo por dizer, algo preso por trás dos seus dentes.

Eu queria saber no que ele estava a pensar, mas não sabia como

perguntar, e continuámos a subir a colina sem dizer mais nada.

Sentia as barrigas das pernas a arderem quando aterrámos no vasto

relvado por trás do Hall, dobrados em dois, a respirar a custo.

Enquanto os nossos corpos arrefeciam, o ar gélido de novembro foi-se

infiltrando. Eu tinha a T-shirt colada às costas e bagas de suor a

deslizarem-me pelo cabelo e pelas têmporas. O rosto e o pescoço de

James brilhavam num tom febril de vermelho, mas o resto da sua pele

estava pálida devido à falta de sono, e o contraste fazia-o parecer

distintamente doente.

– Queres água? – disse eu. – Não estás com bom aspeto.

Assentiu com a cabeça.

– Quero.

Arrastámo-nos pela relva molhada até ao refeitório. Às oito de uma

manhã de sábado, estava quase vazio. Havia alguns professores e

estudantes madrugadores sentados a ler em silêncio, com canecas de

café e pratos do pequeno-almoço à sua frente. A uma mesa, um grupo

de bailarinos vestidos com fatos pretos de elastano estendiam as suas

longas pernas. A outra, estava sentada uma aluna de música coral a

inalar o vapor de uma taça de cereais cheia com água quente, talvez

com a esperança de neutralizar os efeitos de uma aparente ressaca

monumental nas suas cordas vocais. Fora-se juntando um pequeno

grupo misto no outro lado do refeitório, onde ficavam as caixas do

correio.

– Do que se trata, na tua opinião? – perguntei.

James fez um esgar.


– Faço uma ideia bastante razoável.

Segui-o, e a pequena multidão abriu alas para nos deixar passar –

talvez por estarmos corados e transpirados, mas talvez não.

No meio da parede havia um quadro comprido de cortiça reservado

para anúncios gerais do campus. Normalmente, estava coberto com

folhetos de discotecas e anúncios de explicadores, mas nesse dia tudo o

resto estava escondido por trás de um enorme cartaz de campanha de

Richard. Num tom monocromático de vermelho, ele fitava com um

olhar fulminante quem o olhasse, e as suas feições bonitas pareciam

mais definidas pelas fortes sombras negras. Por baixo do nó imaculado

da sua gravata, mas acima do texto em letras mais pequenas com a

informação sobre a produção, umas letras maiúsculas brancas

proclamavam

SEREI SEMPRE CÉSAR

James e eu ficámos a fitar aquele cartaz por tanto tempo que a maior

parte das outras pessoas que tinham vindo investigar perdeu o interesse

e foi-se afastando.

– Bem – disse ele –, é inevitável que atraia a atenção das pessoas.

Eu ainda estava a olhar fixamente para o cartaz, irritado por James

não parecer mais irritado.

– Que se lixe isto – disse. – Não o quero a olhar para mim como o

Big Brother de todas as paredes nas próximas duas semanas.

– Ele cavalga o nosso estreito mundo / Como um colosso! –

comentou James. – E nós, pequeninos, / Caminhamos debaixo das

suas grandes pernas, / Vasculhando, para mais não encontrar que

desonrosas tumbas.

– Isso que se lixe também.

– Pareces o Alexander.

– Desculpa lá, mas depois da noite passada acho que a probabilidade

de o Richard me arrancar a cabeça aumentou, tipo, cem por cento.

– Tem isso em mente na próxima vez que a Meredith se atirar a ti.

– Não foi bem assim – disse eu, e desejei imediatamente não ter

falado.
– Tem cuidado, Oliver – disse ele com ar sabido, como se

conseguisse ler-me a mente. – Confias demasiado. Ela também me fez

isso, no primeiro ano. Éramos parceiros na aula de voz, naquela coisa

esquisita em que tínhamos de zumbir. Lembras-te?

– Espera, ela fez o quê?

– Decidiu que me queria e presumiu que eu a queria a ela, porque

toda a gente a quer, não é? Quando eu lhe disse que não, mudou de

ideias. Comportou-se como se aquilo nunca tivesse acontecido e foi

atrás do Richard.

– Estás a falar a sério?

Lançou-me um olhar irónico em resposta.

– Meu Deus. – Desviei os olhos, relanceei-os à volta do refeitório,

curioso por saber que tipo de segredos toda a gente andava a esconder.

Quão pouco nos perguntávamos sobre as vidas interiores das outras

pessoas. – Porque não me contaste?

– Não me pareceu importante.

Pensei nele a enrolar uma madeixa do cabelo de Wren à volta do

dedo e perguntei:

– Há mais alguma coisa que eu deva saber, já agora?

– Não. Sinceramente. – Se estava a esconder-me alguma coisa, a sua

expressão de à-vontade, inocente, não o traía. Talvez Alexander tivesse

razão e James e eu andássemos igualmente alheados.

Mudei o peso do corpo de um pé para o outro. Dava-me a impressão

de que Richard estava a olhar para mim, o cartaz era uma mancha

vermelho-berrante na minha visão periférica. Virei-me, suspirei a olhar

para ele e disse:

– Suponho que a boa notícia é que, depois do drama de ontem, ele

vai ter de parar de tentar partir-te os braços no terceiro ato.

– Achas que sim?

– Tu não?

Abanou a cabeça de maneira triste e preocupada.

– É demasiado esperto para isso.

– Então... o que achas que vai fazer?

– Vai-se conter, mas só nos próximos dias. Vai esperar pela noite da

estreia. A Gwendolyn não vai correr para o palco e interromper a peça.


– James percorria o cartaz com os olhos. Por um momento, talvez se

tivesse esquecido de que eu estava ali.

James: – Então, em nome de todos os deuses,

Que carne alimentou o nosso César

Para se tornar tão grande?

Fiquei em silêncio por algum tempo e depois disse a minha fala em

resposta, sem saber exatamente de onde viera.

Eu: – Toma a minha mão:

Organiza um grupo para reparar estes agravos

E o meu pé irá tão longe como o daquele

que for na dianteira.

Os olhos cinzentos de James brilharam dourados quando me fitou e

disse:

– O pacto está feito. – Havia algo estranho no seu sorriso, uma

alegria feroz que me fez sentir ao mesmo tempo entusiasmado e

ansioso. Retribuí o sorriso o melhor que podia e segui-o até à cozinha

para beber um copo de água. Sentia a boca insuportavelmente seca.

CENA 6

O rosto de Richard assombrou-me durante o resto da semana, mas o

seu não era o único. Também apareceram cartazes com James – o dele

num azul forte, com a expressão Alma de Roma. Outras fotografias

publicitárias – em que figuravam Alexander; Wren e Meredith; e

depois eu próprio, Colin e o nosso Lépido juntos – apareceram no átrio

do FAB e no jornal da escola. No campus começou a haver de novo um

zunzum de expectativa pela produção teatral que se avizinhava.

Na noite da estreia, não havia um só lugar vazio no auditório. A

qualidade das produções de Dellecher era lendária, e a perspetiva ver o

próximo grande ator, artista ou virtuoso antes de a fama o levar

embora atraía mais do que o grupo óbvio de alunos e professores. A

sala estava lotada com fãs locais do Bardo, alunos em viagens de

estudo e assinantes da temporada. (Na primavera, os melhores lugares

seriam reservados para uma série de agentes de Nova Iorque


convidados para virem ver-nos atuar.) As luzes acenderam-se,

revelando um grupo de alunos do segundo ano todos empolgados, os

romanos comuns, estonteados com a perspetiva de pisar o palco em

Dellecher, pela primeira vez. Nós, mais experientes e só com metade

da excitação deles, aguardávamos nos bastidores.

A tensão da peça foi aumentando ao longo dos primeiros dois atos

até se tornar tão forte que todo o auditório parecia conter a respiração.

O assassinato foi rápido e violento, e, assim que James ordenou aos

conspiradores que dispersassem, saí a cambalear do palco, com um

tinido nos ouvidos.

– Merda! – desabafei contra as pesadas cortinas pretas no lado

esquerdo do palco. Alguém me agarrou pelos ombros e me conduziu

para os bastidores enquanto os conspiradores secundários passavam

por nós a caminho dos camarins. Por todo o auditório ecoava o

solilóquio emocionado de António sobre o corpo de César.

Colin: – Oh, perdoa-me, pedaço de terra ensanguentada,

O veres-me submisso e brando com estes carniceiros.

a ruína do mais nobre homem

Que na maré dos tempos já viveu.

Maldita a mão que derramou tão raro sangue!

Tateei no escuro à procura da parede, com a outra mão sobre o

ouvido. A mesma pessoa que me agarrara pelos ombros virou-me para

eu não cair de chapa nas cordas.

– Estás bem? – segredou Alexander. – O que aconteceu?

– Ele atingiu-me mesmo na orelha!

– Quando? – Era a voz de James.

– Quando o apunhalei, virou-se e deu-me uma cotovelada com força!

– Um acesso de dor tão lancinante que parecia sólida alojara-se no meu

crânio como um prego. Empoleirei-me no varão do sistema de

aparelhamento, inclinando-me para a frente sobre os joelhos. Uma mão

quente pousou na minha nuca; não sabia de quem era.

– Isso não é a manobra de bloqueio – disse Alexander.

– É claro que não é, porra – disse James. – Respira, Oliver.

Descerrei os maxilares e inspirei. A mão de James deslizou para o

meu ombro.

– Ele voltou a tentar partir-te os pulsos? – perguntei-lhe.


– Voltou. – Lançou um olhar na direção da luz que incidia entre as

cortinas na coxia de cena. Colin terminara o seu discurso e estava a

conversar com um serviçal.

– Ele anda a fazer essa merda de propósito? – perguntou Alexander.

– Arrancou-me praticamente a cabeça quando o apunhalei, mas pensei

que se tinha simplesmente deixado levar outra vez.

– Já viste os braços do James?

James mandou-me calar, mas desapertou o botão do punho da manga

esquerda e arregaçou-a. Mesmo na penumbra das traseiras do palco,

víamos manchas azuis e roxas na sua pele. Alexander soltou um

chorrilho de palavrões sem parar para respirar.

James sacudiu a manga, a baixá-la.

– Exatamente.

– James – disse eu –, temos de fazer alguma coisa.

Virou-se, com a luz do palco a dar ao seu rosto um tom amarelado

doentio, de malária. Eram quase horas do intervalo.

– Está bem – disse ele. – Mas deixamos o Frederick e a Gwendolyn

fora disto.

– Como?

Havia um rosnado na voz de Alexander quando disse:

– Se quer luta, vamos dar-lhe luta.

Puxei o lóbulo da orelha. Um tinido ténue e estridente importunava-

me como um mosquito.

– Alexander – disse eu –, isso é suicídio.

– Não vejo porquê.

– Ele é maior do que nós todos.

– Não, Oliver, seu idiota. Ele é maior do que cada um de nós. –

Lançou-me um olhar muito incisivo.

As luzes no palco apagaram-se subitamente e o público irrompeu em

aplausos. De repente, havia pessoas a passarem por nós a toda a pressa.

No escuro, era impossível ver de quem se tratava, mas sabíamos que

uma delas devia ser Richard. Alexander empurrou-me e a James contra

o sistema de aparelhamento, e as cordas pesadas balouçaram e

gemeram por trás de nós como o cordame de um navio. A sua mão era

um torniquete no meu ombro, o público atroava-me os ouvidos.


– Ouçam – disse ele –, o Richard não pode dar luta a nós três ao

mesmo tempo. Amanhã, se ele tentar mais uma das suas, em vez de o

assassinar enchemo-lo de pancada.

– Eis a minha mão – disse James, depois de uma fração de segundo

de hesitação –, a ação é meritória.

Hesitei também, uma fração de segundo mais.

– O mesmo digo.

Alexander apertou-me o braço.

– E eu. E já que nós três o decidimos..., que o estúpido do cabrão

faça o seu pior.

Soltou-nos abruptamente quando as luzes da sala se acenderam e o

público se pôs de pé ruidosamente do outro lado da cortina. Alguns

técnicos do primeiro ano, vestidos de preto, já se tinham apressado a

entrar no palco e estavam a arrumar o caos deixado depois do

assassínio. Nós os três olhámo-nos com uma expressão sombria e não

dissemos mais nada, limitando-nos a ir em fila para o camarim. Segui

James, com um formigueiro nos membros resultante do mesmo estado

de agitação da semana anterior, simultaneamente entusiasmo e

ansiedade.

CENA 7

Além da brutalidade desnecessária de Richard, a noite de estreia

tinha corrido bem, e na manhã seguinte fomos inundados de elogios

nos corredores. Os alunos de música coral e orquestral mantinham-se

distantes – pouco impressionados com qualquer pessoa que não tivesse

a disciplina necessária para algo tão refinado como a música –, mas os

outros fitavam-nos de olhos esbugalhados, com admiração. Como

havíamos de explicar que estar num palco e dizer as palavras de outra

pessoa como se fossem nossas é menos um ato de coragem do que uma

tentativa desesperada de compreensão mútua? Uma tentativa de forjar

um elo ténue entre falante e ouvinte e comunicar alguma coisa, seja o

que for, que tenha substância. Sem conseguirmos articular essa ideia,
limitávamo-nos a aceitar os elogios e os parabéns deles com a

humildade apropriada (e, em alguns casos, inteiramente fingida).

Nas aulas, distraíamo-nos facilmente. Quase não ouvi a palestra de

Frederick, e a minha mente vagueou para tão longe durante um dos

exercícios de equilíbrio de Camilo que deixei que Filippa me

derrubasse de costas. Alexander lançou-me um olhar de impaciência

que claramente significava Não te vás abaixo, pá. Logo que as aulas

acabaram, retirei-me para a Torre com uma caneca de chá e Teatro da

Inveja, de René Girard, com a esperança de me distrair de uma dúzia

de premonições perturbantes sobre a noite que se avizinhava. Nessa

altura, não sentia nenhuma simpatia por Richard – o antagonismo

constante e abrangente que ele praticara ao longo das últimas semanas

deixara uma marca mais funda do que três anos de uma amizade

plácida –, mas sabia que nenhuma retaliação da nossa parte passaria

sem castigo. Qualquer observador imparcial teria considerado que

aquilo não era mais do que um confronto grandiloquente de rancor,

mas, quando eu tentava persuadir-me de que não passava disso mesmo,

a voz de Frederick recordava-me calmamente que já se tinham travado

duelos por menos.

A perspetiva do ajuste de contas com Richard, embora pairasse

gigantesco no horizonte, não era a única coisa a pesar-me na mente. A

noite de sexta-feira era a noite da festa do elenco; uma hora depois da

última chamada ao palco, a maior parte dos alunos de teatro de

Dellecher, e os mais audazes de outros cursos, invadiria o primeiro

andar do Castelo para comemorar uma boa estreia e brindar à última

representação da peça. Meredith e Wren, que não entravam em cena

após o segundo ato, tinham acedido graciosamente a voltar à socapa

para o Castelo entre o intervalo e a última chamada ao palco para

prepararem tudo para uma noite de celebração de arromba. Quando

nós chegássemos, não teríamos mais nada a fazer senão agradecer a

Dionísio e desfrutar.

Às seis e meia, fechei o livro e desci as escadas para a sala de jantar.

A mesa e as cadeiras já tinham sido retiradas para criar espaço

suficiente para uma pista de dança. Umas colunas sonoras, sub-

repticiamente pedidas de empréstimo à cabina de som, estavam

empilhadas a um canto, com os cabos ao longo dos rodapés na direção


das tomadas mais próximas. Saí do Castelo e iniciei a longa caminhada

para o FAB com uma sensação de nervosismo e ansiedade que se ia

transformando em temor a cada minuto que passava.

Devia aparentá-lo no rosto quando abri a porta do camarim, porque

Alexander agarrou-me a frente do casaco, arrastou-me para a zona de

descargas e enfiou-me um charro aceso na boca.

– Não fiques nervoso – disse. – Vai correr tudo bem.

(Não sei se alguém alguma vez se enganou tanto.)

Dei umas passas, obedientemente, até restar cerca de um centímetro

no charro. Alexander pegou nele, fumou-o até só sobrar uma ponta,

atirou-a para o chão e conduziu-me para dentro. Os meus receios

desvaneceram-se e transformaram-se numa vaga paranoia em segundo

plano na minha cabeça.

O tempo avançava lentamente enquanto eu aplicava a maquilhagem,

vestia a minha indumentária e fazia os exercícios de aquecimento das

cordas vocais. Eu, James, Alexander, Wren e Filippa encostámo-nos à

parede no passadiço, com as mãos estendidas sobre o diafragma, a

entoar: «Ai, ai, ai, ai! Ó vós, homens de pedra.» Quando apareceu um

aluno do primeiro ano com auscultadores a dizer-nos que faltavam

cinco minutos para ocuparmos os nossos lugares, o meu sentido

pessoal do tempo desmoronou-se e tudo começou a mover-se como se

acelerado.

Os alunos do segundo ano saíram dos camarins e foram numa

correria ocupar os seus lugares nas coxias de cena, abotoando à pressa

camisas e punhos ou saltando ao pé-coxinho pelo corredor a tentar

apertar os atacadores. Filippa atirou-me para uma cadeira no camarim

das raparigas e atacou-me com um pente e um tubo de gel do cabelo no

momento em que as luzes do palco se acenderam e as primeiras falas

da peça soaram pelas colunas de som dos bastidores.

Flávio: – Fora daqui! Preguiçosos! Vão trabalhar!

É dia santo?

Filippa deu-me uma palmadinha na testa:

– Oliver!

– Merda, o que foi?

– Já estás pronto, sai daqui – disse ela, olhando-me carrancuda e

com uma mão na anca. – O que se passa contigo?


– Desculpa – disse eu, levantando-me. – Obrigada, Pip.

– Estás pedrado?

– Não.

– Estás cheio de merdas?

– Estou.

Comprimiu os lábios e abanou a cabeça, mas não continuou a

repreender-me. Eu não estava completamente sóbrio, mas também não

estava totalmente pedrado, e ela devia saber que Alexander era o

principal culpado. Saí do camarim das raparigas e deixei-me ficar no

passadiço até Richard avançar por ali, fazendo tanto caso de mim como

fazia da tinta nas paredes. Segui-o de perto, saí para as luzes

ofuscantes e disse, com tanta sinceridade quanta consegui arranjar:

– Paz, oh! César vai falar.

O primeiro e o segundo atos passaram, não muito diferentes da

primeira frente de chuva de um furacão. Houve ribombos e rajadas e

uma sensação de perigo iminente, mas tanto nós como o público

sabíamos que o pior estava por vir. Quando Calpúrnia entrou em palco,

fiquei a assistir da coxia de cena. Richard e Meredith pareciam ter

ultrapassado as suas dificuldades, ou pelo menos tinham-nas

suspendido durante a representação da peça. Ele estava a ser um pouco

bruto com ela, mas não violento; ela, impaciente com ele, mas não

provocadora. Quando eu menos contava, James pousou a mão no meu

ombro, sacudiu-me e segredou:

– Vamos lá.

O terceiro ato abria com a silhueta das arcadas contra o pano de

fundo, que brilhava escarlate – um amanhecer cru, perigoso. Richard

encontrava-se entre as duas colunas centrais, o resto de nós dispostos

num círculo à sua volta, com Metelo Cimbro ajoelhado na Taça a

implorar pelo irmão. Eu era o que estava mais perto, tão perto que

conseguia ver o latejar quase impercetível de um nervo no maxilar de

Richard. Alexander, aguardando com uma paciência felina de predador

no lado oposto do círculo, olhou-me nos olhos e entreabriu o casaco, a

revelar o corta-papéis enfiado no seu cinto. (Eram mais adequados ao

tema do que punhais, mas não menos ameaçadores.)

Richard: – Podia demover-me se fosse como vós.

Se ousasse suplicar para demover,


As súplicas poderiam demover-me.

Mas sou tão certo como a estrela do norte,

Que em firmeza e constância não tem igual no firmamento.

Olhou à sua volta para nós com uns olhos vivos e brilhantes,

desafiando-nos a que o contradisséssemos. Mudámos o peso do corpo

de um pé para o outro e tocámos nas nossas lâminas estreitas, mas

mantivemos o silêncio.

Richard: – Os céus são esmaltados por incontáveis lumes,

Todos são fogo e todos brilham,

Mas só um mantém o seu lugar.

Assim também no mundo: está bem provido de homens,

E os homens são carne e sangue, e têm entendimento;

Mas entre todos só conheço um

Que, inatingível, mantém o seu lugar,

Alheio a qualquer movimento. E esse sou eu!

A sua voz enchia todos os cantos do auditório, como uma fenda a

abrir-se na crosta terrestre, com o ribombar e o tremor de um sismo. À

minha direita, Filippa ergueu o queixo, quase impercetivelmente.

Richard: – Deixai que o demonstre até neste caso:

Fui inflexível quando foi preciso banir Cimbro,

Sou inflexível para assim o manter.

Cina começou a objetar, mas eu não o ouvi. Os meus olhos estavam

pregados em James e Alexander. Eles espelhavam os movimentos um

do outro, virando-se ligeiramente para a frente do palco para que o

público visse o aço que brilhava nos seus cintos. Lambi o lábio

inferior. Tudo parecia demasiado perto, demasiado real, como se

estivesse sentado na primeira fila no cinema. Fechei os olhos com

força, fechei a mão à volta do cabo do meu punhal, à espera das

palavras fatais que me poriam em ação.

Richard: – Não é em vão que Bruto se ajoelha?

Abri os olhos e só vi James, um joelho dobrado em genuflexão, a

fitar Richard com um desprezo patente no rosto.

– Falem, mãos, por mim! – berrei e saltei sobre Richard, enfiando a

minha lâmina debaixo do seu braço que o público não via. Os outros

conspiradores ganharam vida de repente e rodearam-nos como um

enxame de vespas. Richard fulminou-me com o olhar, a mostrar os


dentes e a rangê-los. Arranquei o meu punhal e fiz menção de recuar,

mas ele agarrou-me pelo colarinho, apertando tanto o tecido à volta do

meu pescoço que eu não conseguia respirar. Deixei cair o punhal e

agarrei-lhe o pulso com ambas as mãos, ao mesmo tempo que o

polegar dele comprimia a minha artéria carótida.

Já estava com a visão toldada quando Richard me soltou, com um

rugido de dor – Alexander tinha-o agarrado pelo cabelo e puxara-o

para trás com força. Caí pesadamente sobre o cóccix, a levar a mão ao

pescoço. Alguém tinha dobrado o braço de Richard atrás das suas

costas e a outra meia dúzia de conspiradores precipitava-se para ele

para o apunhalar, toda a coreografia abandonada. Na confusão, ele

esbracejava e esperneava descontroladamente e acertou em cheio na

barriga de Filippa, com força suficiente para a derrubar. Ela aterrou nas

escadas – eu conseguira pôr-me de pé a tempo de a ver cair, e um som

inarticulado de ultraje ficou-me preso na garganta. Arredei Cina para o

lado e tombei de joelhos ao lado de Filippa. Ela ergueu a cabeça,

agarrada à barriga, a engolir em seco e respirando a custo.

De repente, todo o pandemónio acalmou, e dei meia-volta, ajoelhado

junto a Filippa, que estava imóvel, mas agarrava com força a minha

perna. Richard estava rodeado por conspiradores ofegantes, com os

braços imobilizados aos lados do corpo e o punho de Alexander ainda

fechado no seu cabelo. James encontrava-se fora do alcance dele, com

o fato amarrotado e o punhal agarrado firmemente na mão.

As palavras de Richard soaram cheias de ódio:

– Et tu, Brute?

James deu um passo em frente e encostou a lâmina do punhal ao

pescoço dele.

Richard: – Cai então, César.

O rosto de James estava desconcertantemente inexpressivo. Fez

deslizar o punhal com rapidez para a frente – Richard emitiu um breve

som sufocado e depois deixou tombar a cabeça para o peito. Alexander

e o resto dos conspiradores soltaram-no um a um, e ele caiu no chão.

Quando o endireitaram de novo, os alunos do segundo e do terceiro

anos olharam de mim para James e para Alexander, de olhos

esbugalhados, penosamente conscientes da presença do público e do

facto de a cena se ter descontrolado completamente. Uma das raparigas


tinha uma fala, mas deve ter-se esquecido, porque ninguém disse nada.

Alexander esperou tanto quanto podia, e depois disse-a por ela.

– Liberdade! Liberdade! Está morta a tirania! – Deu um empurrão

ao aluno do segundo ano mais perto de si. – Agora correi, proclamai,

gritai isto pelas ruas. – Os outros moveram-se, respiraram, aliviados.

Filippa arquejou, com o ar a entrar-lhe de novo em golfadas nos

pulmões. Ajudei-a a sentar-se enquanto Alexander continuava a berrar

ordens: – Vão às tribunas públicas e gritem, / Liberdade, liberdade e

alforria!

– Povo e senadores, não temais – disse James aos conspiradores, e a

sua calma pareceu sossegá-los. – Não fujam! Serenai! Está paga a

dívida da ambição.

Descontraímo-nos, voltando ao texto como se nada de pouco usual

se tivesse passado. Porém, quando Filippa e eu nos pusemos de pé, não

pude deixar de lançar um olhar a Richard. Jazia imóvel, excetuando o

estremecimento furioso das suas pálpebras e de uma veia saliente e

latejante no pescoço.

CENA 8

A minha cabeça ficou desanuviada quando o golpe de Bruto e Cássio

se desmoronou. Richard desaparecera porta fora durante o intervalo e

ninguém voltou a vê-lo até ao quarto ato, quando regressou como

fantasma de César – uma aparição duplamente sinistra devido à sua

solenidade pétrea. A última chamada ao palco foi às dez e meia, e,

embora eu sentisse o corpo dorido de fadiga, o drama da cena do

assassínio e a expectativa da festa mantinham-me desperto e alerta.

Depois de lavar a cara, despir a indumentária e voltar a vestir-me, a

maior parte dos alunos do segundo e do terceiro anos já tinha ido

embora. James e Alexander estavam à espera no passadiço, já com

quatro charros grossos enrolados (um para cada um de nós e outro para

Filippa, que voltara ao Castelo, para mudar de roupa). Saímos do FAB

e descemos lentamente o caminho pelo bosque, com as mãos nos


bolsos. Não aludimos ao incidente na primeira cena do terceiro ato,

exceto quando Alexander disse, simplesmente:

– Espero que ele tenha aprendido a lição.

Quando estávamos a uns dez metros do Castelo, a luz quente da festa

começou a embeber as sombras espessas das árvores. Parámos para

acabar de fumar e pisámos as beatas na camada húmida de agulhas de

pinheiro no solo. Alexander virou-se para nós e disse:

– Tivemos uma semana muito longa. Planeio ter uma noite longa e se

vocês os dois não estiverem fodidos até à meia-noite, vou encarregar-

me de que fodam mesmo, de uma maneira ou outra, até ao amanhecer.

Compreendido?

Eu: – Fazes com que soe a ameaça de violação.

Alexander: – Façam o que vos digo e não vai chegar a isso.

James: – Vocês os dois vão parar ao inferno.

Alexander: – Diretamente.

Eu: – Sem demora.

Alexander: – Todos triunfalmente as festejem, uns com danças,

outros com fogueiras, cada qual com aqueles divertimentos e folgares

que a sua inclinação lhes indicar. Vão lá.

Obedientemente, fomos.

A porta da frente abriu-se e rebentou uma onda de ruído a receber-

nos. O Castelo estava cheio de pessoas, algumas a beberem, outras a

dançarem, cintilantes nas suas roupas de festa. (Os rapazes não

pareciam muito diferentes do habitual – só mais bem vestidos, mais

bem arranjados –, mas as raparigas pareciam quase irreconhecíveis. A

noite caíra, e com ela apareceram vestidos curtos e justos e rímel

escuro e batom acetinado, transformando-as de meras raparigas num

bando de seres noturnos enfeitiçadores.) As boas-vindas atroadoras

inundaram-nos; estendiam-se mãos a agarrar-nos as roupas e a

arrastar-nos, impotentes, para dentro.

Havia dois barris de cerveja na banheira do andar de baixo, cheia de

gelo e garrafas de água. Pilhas de copos de plástico atravancavam a

bancada da cozinha, e as garrafas de rum, vodka e whisky baratos

estavam dispostas numa pirâmide em cima do fogão (na sua maior

parte pagas pela mesada exorbitante de Meredith, com contributos

mais modestos do resto de nós). As bebidas de boa qualidade estavam


escondidas no quarto de Alexander. Assim que chegámos, Filippa deu

uma saltada ao andar de cima e regressou com um whisky com água

gaseificada para cada um de nós. Logo a seguir, James e Alexander

desapareceram, engolidos pela multidão. A maior parte dos alunos de

teatro juntara-se na cozinha, onde falavam e riam duas vezes mais alto

do que era necessário, ainda a atuarem, observados por um público

menos ofensivo dos cursos de artes visuais, línguas e filosofia. Os

alunos de música coral e orquestral, desejosos de criticar a seleção

musical, e os bailarinos, ansiosos por exibirem os seus dotes, enchiam

a sala de jantar, tão fracamente iluminada que eles só faziam uma vaga

ideia de com quem estavam a dançar, ou simplesmente não queriam

saber. A música ribombava pelas traves do soalho, com cada nota de

baixo a parecer um minúsculo tremor de terra, o passo de um

dinossauro a aproximar-se lentamente. A superfície da minha bebida

estremecia e vibrava, até Filippa atirar umas pedras de gelo para dentro

dela.

– Obrigado – disse eu. – A expressão dela era distante, preocupada. –

Estás bem?

– Ótima – disse ela, com um sorriso algo dorido. – Tenho uma nódoa

negra horrível, mas não onde alguém a possa ver.

– A mim pareces-me bem – disse eu, pouco convincente. Ela trazia

uma peça de vestuário azul bastante curta, a mostrar as suas pernas

compridas. Felizmente, não estava excessivamente maquilhada e

continuava a parecer humana.

– Acontece, de vez em quando – disse ela, expirando, a permitir-se

relaxar. – Onde estiveste?

– Lá fora. O Alexander enrolou-te um charro, se o quiseres.

– Deus abençoe o hedonista de um raio. Onde é que ele está?

– Na pista de dança – disse eu – à caça de alunos do primeiro ano

que ainda não saibam que são gay.

– Onde mais poderia estar? – disse ela, e saiu da cozinha, abrindo

caminho por entre as pessoas que, junto à bancada, lutavam pelas

bebidas para misturar com o álcool e que estavam a desaparecer a

olhos vistos. Bebi um longo gole de whisky com água mineral, a

perguntar-me quanto tempo demoraria a recuperar completamente a

audição. Colin e vários outros alunos do terceiro ano pararam a


caminho do exterior – onde as pessoas estariam a fumar e a conversar

e à espera de que os seus tímpanos deixassem de latejar – para me

darem os parabéns por um bom espetáculo. Agradeci-lhes, e, quando

os outros saíram, Colin parou na soleira da porta. Inclinei a cabeça

para mais perto da dele, para o ouvir.

– A primeira cena do terceiro ato descarrilou hoje – disse ele. – Está

tudo bem?

– Penso que sim – respondi. – A Pip apanhou um safanão, mas

aguenta. Viste o Richard?

– Está lá em cima, a emborcar whisky como se precisasse dele para

se manter vivo.

Trocámos um olhar que era em parte de desdém e em parte de

preocupação. Ambos nos lembrávamos muito bem do que tinha

acontecido na última vez em que Richard bebera demasiado.

– E a Meredith? – perguntei, pensando se ela seria um fator a

contribuir para o mau-humor de Richard ou se eu, James e Alexander

éramos os únicos culpados.

– Está a dar audiências no jardim – disse Colin. – Pendurou as luzes

todas lá fora. Acho que está a vigiar, para se certificar de que ninguém

as arranca.

– Deve ser isso.

Colin sorriu. (Embora inicialmente o tivéssemos comparado a

Richard, a comparação não se mantivera válida. Ele desempenhava os

mesmos papéis bombásticos, mas fora de palco a sua arrogância era

mais encantadora do que irritante.) – Queres vir lá fora fumar? –

perguntou.

– Já fumei um, mas és capaz de encontrar a Pip no pátio.

– Ótimo – disse ele, e saiu à procura dos amigos. Virei-me para ver

quem se encontrava na cozinha, perguntando-me onde estaria James.

Durante cerca de uma hora, talvez mais tempo, vagueei de divisão

em divisão, de conversa em conversa, aceitando bebidas e parabéns

com um desinteresse polido. A música na sala de jantar estava tão alta

que eu quase não conseguia ouvir o que as pessoas diziam. A luz

vermelha baça e o movimento constante dos corpos exacerbavam o

meu estado de embriaguez, e quando comecei a sentir-me estonteado,

aventurei-me a sair para o caminho da casa. Assim que pus o pé no


exterior, a rapariga namoradeira da festa do Halloween avistou-me. Dei

meia-volta abruptamente e escapei pela parte lateral da casa, para o

jardim.

O jardim – não propriamente um jardim, mais um pequeno relvado

rodeado em três lados por árvores – não estava tão cheio de gente

como a casa. Havia pessoas em grupos de três ou quatro, a

conversarem e a rirem ou a fitarem as luzes que tinham sido

penduradas com todo o cuidado de árvore em árvore. O jardim

cintilava como se várias centenas de pirilampos prestáveis tivessem

decidido vir à festa. Meredith estava sentada em cima da mesa no

meio, com as pernas cruzadas, uma bebida numa mão e um palito

espetado em duas azeitonas na outra. (Ao que parecia, bebia martínis

enquanto as outras pessoas todas se remediavam com bebidas

alcoólicas baratas misturadas com coca-cola.) Indeciso, deixei-me ficar

na berma do pátio. Não tínhamos trocado mais do que umas palavras

desde o incidente no camarim, e eu não sabia bem em que pé

estávamos. Não tardei a dar comigo a olhar fixamente para as pernas

dela. As suas barrigas das pernas estreitavam-se perfeitamente para uns

tornozelos finos rematados por uns sapatos pretos com saltos de dez

centímetros. Pensei na hipótese de ela estar sentada em cima da mesa

por não conseguir manter-se de pé no chão mole sem se afundar nele.

Quando se apercebeu da minha presença, sorriu – sem

ressentimento, ao que parecia. (O rapaz ao seu lado – tocava

violoncelo com os alunos de música orquestral, embora eu não

soubesse de que ano era – continuou a falar, sem se dar conta de que a

atenção dela se tinha desviado.) Percorreu-me uma pequena onda de

alívio. Ela virou-se de novo para o violoncelista, mas olhou para a sua

bebida, mexendo-a lentamente com as azeitonas.

Preparava-me para voltar para dentro de casa, quando senti um braço

passar-me à volta da cintura.

– Olááá – disse Wren, com o afeto carinhoso de gatinha que exibia

sempre que bebia. Trazia um vestido verde-pálido vaporoso que fazia

com que parecesse a Sininho.

Despenteei-lhe o cabelo.

– Olá. Estás a divertir-te?

– Imenso, só que o Richard está a ser um ranhoso.


– Não me digas.

O seu nariz ficou enrugado quando franziu a testa. Ainda estava a

abraçar-me pela cintura, e pensei vagamente se ela conseguiria

aguentar-se de pé sozinha.

– Não sei o que lhe deu – disse ela, com uma ponta de azedume na

voz que eu nunca lhe ouvira. – Ele sempre foi um bocado cabrão, mas

agora está... não sei. Mau.

Era uma palavra tão inocente que senti um leve sentimento protetor,

de irmão mais velho. Apertei-a contra o lado do meu corpo e disse:

– Não sei se «mau» lhe faz justiça.

– Porque não?

– Não sei, não é só mau... é sádico. Ele tem andado a desancar-nos

no palco. Na noite de estreia, quase me rebentou o tímpano, a Filippa

tem uma nódoa negra do tamanho da Austrália e o James... – Parei de

falar, recordando demasiado tarde a minha promessa de guardar

segredo. Os meus filtros verbais e visuais não estavam a funcionar em

condições.

– O que fez ao James? – perguntou ela, com uma espécie de

incerteza receosa. Estava a tentar manter-se controlada, mas o whisky

não lho permitia.

– Eu disse que não contava a ninguém. Mas ele conta-te, se lhe

pedires. – Pensei em James a enrolar no dedo uma madeixa do cabelo

de Wren, e ocorreu-me a ideia de que ele faria praticamente tudo o que

ela lhe pedisse. Algo se contraiu desconfortavelmente no meu peito.

Wren franziu novamente a testa. Os seus braços à minha volta

tinham-se soltado, como se ela se tivesse esquecido de que estavam ali.

– Sabes, por vezes ele assusta-me.

– O James? – perguntei, perplexo.

Abanou a cabeça.

– O Richard. Receio que faça realmente mal a alguém, ou a si

mesmo. Ele é simplesmente... imprudente, sabes?

Não era a palavra que eu teria escolhido, mas acenei com a cabeça,

de qualquer maneira.

– Devias dizer-lhe isso. Provavelmente, és a única pessoa a quem ele

dará ouvidos.
– Talvez. Mas vai ter de esperar até de manhã. Neste momento, ele

está completamente bêbedo.

– Bem – disse eu –, se está demasiado bêbedo para se ter de pé, esta

festa é capaz de ser boa.

Tive um pressentimento estranho, desanimador, nesse momento.

Richard, por muito que bebesse, nunca ficara completamente

incapacitado com o álcool. Só o tornava, usando a palavra de Wren,

imprudente.

Meredith deslizou da mesa e pediu desculpa aos seus admiradores

(que já eram quatro nessa altura). Atravessou o jardim com um

equilíbrio surpreendente, inclinou a cabeça e disse:

– Mas que belo par de jarras.

Ao perto e no meu estado menos do que lúcido, não conseguia parar

de a fitar. Trazia um vestido preto justo, com um ombro nu e uma alça

de minúsculas pedras de azeviche no outro. Com aqueles sapatos, era

quase tão alta como eu.

– O jardim está com um aspeto incrível, Mer – disse Wren.

– Sim. – Sorriu, olhando para as luzes. – Detesto deixá-lo. E eu

tenho de perder / Dois dos mais doces companheiros que há no

mundo. – Piscou o olho. A sombra dos olhos, um púrpura escuro de

ameixa, de alguma maneira tornava-lhe os olhos ainda mais verdes.

– Aonde vais? – perguntou Wren.

– Lá dentro, buscar outra bebida. – Ergueu o seu copo vazio. – Vai

mais uma?

Wren soluçou.

– Acho que já tenho a minha conta.

– Também acho – disse Meredith, não propriamente ralhando, quase

como uma irmã. Virou-se para mim. – Uma azeitona, Oliver? – Ergueu

o palito, com uma última azeitona espetada na ponta.

– Come-a tu – disse eu, sem conseguir conter um sorriso. – Se eu a


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comesse, seria canibalismo.

Lançou-me um olhar de tal modo penetrante que a minha

temperatura disparou em flecha, depois trincou a azeitona, tirando-a do

palito, e desapareceu para dentro de casa. Fiquei a vê-la afastar-se e

fitei, pasmado, a entrada vazia até Wren falar.

– Ela não parece estar a sofrer lá muito.


– O quê?

– Ela e o Richard estão «a dar um tempo» – disse, fazendo o gesto de

aspas com os dedos de uma mão. – Julguei que sabias.

– Hum, não. Não sabia.

– A ideia foi da Mer. O Richard não está propriamente encantado,

mas sabes como ele é, recusa-se a pedir desculpa seja pelo que for. –

Fez um esgar. – Se ele engolisse o orgulho, talvez ela mudasse de

ideias.

– Oh.

Wren bocejou, pôs as costas da mão contra a boca.

– Que horas são?

– Não sei – disse eu. – É tarde. – Sentia as pálpebras um pouco

pesadas.

– Vou saber as horas.

– Eu não quero saber.

Ela soltou-me, afastando-se do meu lado para se endireitar.

– OK, eu não te digo.

Fez-me uma festa no braço, como se eu fosse um cão, e depois

serpenteou pelos degraus acima com um pedaço da saia seguro entre

dois dedos.

O jardim fora ficando praticamente vazio durante a nossa conversa.

As pessoas voltavam para dentro do Castelo ou (esperava eu) para casa.

Aventurei-me a ir para o meio da nossa pequena clareira e fechei os

olhos. O ar da noite estava frio, mas isso não me incomodava.

Acalmava a minha pele quente como um bálsamo, limpava o fumo dos

meus pulmões, expulsava a sombra aveludada de Meredith da minha

cabeça. Quando abri os olhos, fiquei surpreendido ao ver uma nesga de

azul entre os topos escuros das árvores, uma lasca branca da Lua a

sorrir-me lá de cima. Um súbito desejo de ver o céu todo instou-me a

seguir o trilho até ao lago. Mas, quando ia pôr-me a caminho, a voz de

James deteve-me.

– Bem brilhado, Lua! De verdade, a Lua brilha de boa vontade. –

Virei-me e vi-o de pé atrás de mim, com as mãos nos bolsos.

– Onde tens estado toda a noite?

– Queres mesmo saber?

– Sim.
– Andei de grupo em grupo durante um pedaço, mas foi demasiado

para mim e escapuli-me lá para cima para ler.

Ri-me.

– Seu totó rematado. O que te trouxe cá abaixo outra vez?

– Bem, já passa da meia-noite, e não posso desiludir o Alexander.

– Por esta altura, duvido que ele se lembre sequer de nos ter dito

aquilo.

– Provavelmente não. – Inclinou a cabeça para admirar o céu. –

Parece mais longe quando há tão pouco à vista.

Durante algum tempo, deixámo-nos ficar ali, de rostos virados para

cima, sem falar. O ruído do Castelo era um ribombar surdo em pano de

fundo, como o clamor de motores de automóveis numa estrada à

distância. Um mocho piou baixinho, algures. Ocorreu-me a ideia (pela

primeira vez, penso) de como ficávamos sozinhos quando o Castelo

estava vazio, quando não havia uma festa e os outros alunos se

encontravam a quase um quilómetro de distância, no Hall. Éramos só

nós – nós, os sete, e as árvores e o céu e o lago e a Lua e, claro,

Shakespeare. Ele vivia connosco como um oitavo colega de casa, um

amigo mais velho, mais sábio, perpetuamente fora de vista mas nunca

fora dos nossos pensamentos, como se tivesse acabado de sair da

divisão onde nos encontrávamos. É muita, a força da divina poesia.

Houve uma espécie de leve silvo da eletricidade; as luzes de

Meredith tremeluziram e apagaram-se. Olhei para o Castelo no escuro.

Como as luzes da cozinha continuavam acesas e a música era audível,

deduzi que não se tinha queimado um fusível.

– O que terá acontecido?

James não se sentia suficientemente curioso para arrancar os olhos

do céu.

– Olha – disse.

Com as luzes apagadas, víamos as estrelas, minúsculas alfinetadas

brancas espalhadas à volta da Lua e brilhantes como lantejoulas. O

mundo ficou perfeitamente imóvel por um precioso instante. De

seguida, ouviu-se um estrondo, um berro e algo lá dentro se estilhaçou.

Inicialmente, nem eu nem o James nos mexemos. Ficámos a fitar-nos,

com a esperança – silenciosa, desesperada, inútil – de que alguém

tivesse simplesmente derrubado uma garrafa da bancada da cozinha,


escorregado nas escadas ou alguma outra coisa trapalhona, inocente.

Porém, antes que um ou o outro pudesse voltar a falar, soaram vozes lá

de dentro, a gritar.

– O Richard – disse eu, já com o coração na garganta. – Aposto o

que quiseres. – Corremos de volta para o Castelo, tão a direito quanto

conseguíamos.

A porta estava aberta, mas as pessoas tinham-na bloqueado

completamente, enchendo o espaço. James e eu empurrámo-las para o

lado para entrarmos na cozinha, onde pelo menos uma dúzia de outras

pessoas formara um círculo à volta da divisão. James foi o primeiro a

quebrar o círculo, arredando do seu caminho dois estudantes de línguas

do segundo ano. Eu não estava suficientemente sóbrio para avaliar as

distâncias e esbarrei nele quando parou, mas o grande número de

pessoas apinhadas ali impediu-nos de cair.

O violoncelista que estivera a conversar com Meredith lá fora estava

sentado no chão, todo amarfanhado, com uma mão a tapar o rosto e

sangue a gotejar por entre os dedos. Filippa estava acocorada a seu

lado, empoleirada nos dedos dos pés, por entre um caos cintilante de

vidros partidos. Meredith e Wren estavam de pé, de frente para

Richard, e os três gritavam ao mesmo tempo, com as suas palavras a

sobreporem-se e indistintas, enquanto a música e as gargalhadas

continuavam a jorrar da divisão ao lado. Alexander pairava à entrada

por trás de Richard, mas encostado a Colin e, como não se encontrava

num estado que lhe permitisse intervir, eu e James avançámos para

servir de árbitros.

– O que aconteceu? – perguntei, berrando, para me fazer ouvir com

aquele barulho todo.

– Foi o Richard – respondeu Filippa, lançando-lhe um olhar de

desprezo por cima do ombro. – Veio cá abaixo e deu-lhe um murro

sem ele contar.

– Mas que diabo? Porquê?

– Ele estava a ver o jardim, da janela do andar de cima.

– Acalmem-se todos! – ordenou James. Wren remeteu-se ao silêncio,

mas Richard e Meredith ignoraram-no.

– Tu estás descontrolado! – berrou ela. – Precisas de ser metido

numa camisa de forças.


– Bem, talvez pudéssemos partilhar uma.

– Isto não tem piada, merda! Podias ter-lhe partido os dentes!

O rapaz que estava por terra gemeu e inclinou-se para a frente, com

um longo trilho de sangue e saliva a pender-lhe do lábio inferior.

Filippa levantou-se rapidamente e disse:

– Pois, acho que o Richard é capaz de ter feito isso mesmo. Ele

precisa de ir à enfermaria.

– Eu levo-o – disse Colin. Deixou Alexander encostado à ombreira

da porta e passou ao largo de Richard ao atravessar a cozinha. Eu, ele e

Filippa pusemos o violoncelista de pé e passámos-lhe o braço pelos

ombros de Colin. Ainda nem tinham saído da cozinha quando Richard

e Meredith retomaram a sua discussão em altos berros.

Meredith: – Estás contente?

Richard: – E tu, estás?

– Vocês os dois, parem! – A voz de Wren tinha atingido um tom

perigosamente alto. – Simplesmente parem, pode ser?

Richard virou-se para Wren, ameaçador, e ela recuou um passo, a

medo.

– O problema não é teu, Wren.

– Pois não – disse Filippa rispidamente –, tu tornaste-o um problema

de toda a gente.

– Não sejas uma cabra, Filippa...

Eu e James avançámos ao mesmo tempo, mas Meredith falou

primeiro e Richard ficou paralisado, com todos os músculos entre os

seus ombros encolhidos e salientes.

– Não fales assim com ela. Vira-te e olha para mim – disse ela. –

Deixa de intimidar as pessoas todas como um pirralho e olha para

mim.

Ele virou-se e arremessou-se na direção dela tão de repente que

todas as pessoas recuaram, mas Meredith não se moveu um milímetro

– ou era corajosa ou estava louca.

– Cala essa boca... – começou ele a dizer, mas ela não o deixou

terminar.

– Ou quê? Também me partes os dentes? – perguntou. – Força.

Desafio-te!

Concluí que talvez corajosa e louca não se excluíssem mutuamente.


– Meredith – disse, com cuidado.

Richard virou-se na minha direção e James e Filippa aproximaram-

se de mim, a cerrar fileiras.

– Não me tentes – disse ele. – A ti, mando-te para a enfermaria em

pedaços.

– Para trás! – Meredith empurrou-o, ambas as mãos batendo no seu

peito com um murro surdo; antes de ela ter tempo de recuar de novo,

ele agarrou-a pelo pulso. – Não tem que ver com ele. Estás a fazer com

que tenha que ver com ele, porque não podes bater-me a mim e estás

simplesmente desesperado por bater em alguém!

– Gostavas disso, não gostavas? – disse Richard, puxando-a com

brusquidão. Ela torceu o braço, a tentar soltar-se, até a sua carne ficar

branca. – Que eu te desse uns safanões, desse às pessoas alguma coisa

para onde pudessem olhar embasbacadas? Todos sabemos como gostas

que toda a gente olhe para ti. És uma galdéria.

Entre nós os seis, já tínhamos chamado a Meredith alguma versão de

«galdéria» mil vezes, mas isto era horrivelmente diferente. Tudo

pareceu tombar em silêncio, apesar da música que ribombava na

divisão ao lado.

Richard pegou no queixo dela, inclinando-lhe o rosto na sua direção.

– Bem. Foi divertido por algum tempo.

O meu último vestígio de hesitação desvaneceu-se. Arremessei-me a

ele, mas Meredith estava mais perto. As pessoas começaram a gritar

quando ela lhe deu uma bofetada com as costas da mão – nada como

na aula de Camilo, não um gesto preciso ou controlado, mas uma

pancada descomandada e selvática destinada a provocar tantos danos

quanto possível. Richard praguejou obscenamente, mas, sem lhe dar

tempo para responder ao ataque, James e Alexander desabaram sobre

ele como um par de defesas no futebol americano. Nem mesmo o peso

combinado dos dois foi suficiente para o derrubar, e ele continuou a

berrar pragas e a estender a mão para agarrar qualquer parte de

Meredith ao seu alcance. Eu agarrei-a pela cintura, mas ele já tinha

uma mecha do cabelo dela na mão, e ela gritou de dor quando ele o

puxou. Levantei-a em peso do chão e arranquei-a às mãos dele,

esmagando-a contra o meu peito, quando perdi o equilíbrio e

cambaleei contra Filippa. Richard, James e Alexander caíram para trás


contra os armários, e meia dúzia de pessoas apressaram-se a ampará-

los antes que tombassem por terra.

Afastei o cabelo de Meredith da minha cara, com um braço bem

preso à volta do seu corpo, sem saber se estava a tentar protegê-la,

controlá-la ou as duas coisas.

– Meredith – disse, mas ela deu-me uma cotovelada na barriga e

empurrou-me. Filippa agarrou a minha camisa quando cambaleei e

segurou-me, como se receasse o que eu faria se me largasse. Meredith

fitava Richard sem fazer caso de nós, com os braços hirtos ao lado do

corpo e o peito arfante. Lentamente, ele pôs-se de pé. James já tinha

recuado, e as poucas pessoas que ainda seguravam Richard removeram

as mãos a toda a pressa. Alexander praguejou em voz baixa, levando a

ponta dos dedos ao lábio ensanguentado. Os olhos de todas as outras

pessoas estavam pregados em Meredith, mas não era o tipo de olhar a

que ela fora habituada. Tudo o que sentia estava estampado no seu

rosto – vergonha, fúria, uma incredulidade paralizante.

– Seu cabrão – disse ela. Virou-se e abriu caminho entre mim e

Filippa, fazendo debandar uns alunos do primeiro ano aterrados, ao

avançar para a escadaria.

Richard e eu ficámos de frente um para o outro, como esgrimistas

sem espadas. Entrevia Alexander na minha visão periférica, a pegar

num guardanapo para limpar a boca. Ouvia Wren gemer, mas o som

parecia distante. James encontrava-se por trás de Richard, como uma

sombra, a olhar-me com uma expressão de choque, metade temor,

metade indignação. A fúria eriçava-se-me na pele, ali presa pelo tecido

da minha camisa justa ao corpo. Queria magoar Richard como ele

magoara Meredith, como magoara James, como magoaria qualquer um

de nós, se lhe déssemos o mínimo de razão. Lancei um olhar a Filippa,

porque confiava tão pouco em mim para resistir ao impulso de atacar

Richard quanto ela.

– Eu vou – disse eu, rigidamente. Ela acenou com a cabeça e soltou-

me a camisa, e eu não esperei. A multidão afastou-se tão facilmente

para mim como se afastara para Meredith. Virei para o corredor entre a

cozinha e a sala de jantar e encostei-me à parede, a respirar lentamente

pelo nariz até deixar de sentir a cabeça andar à roda. Já nem sequer

sabia de onde vinha a minha embriaguez – do whisky e da erva e da


raiva extrema. Respirei fundo uma última vez e depois enfiei pela porta

para as escadas.

– Meredith – disse eu, pela terceira vez. Ela era a única pessoa ali, a

meio das escadas. A música vibrava nas paredes, meio abafada. Uma

luz cor-de-rosa quente escoava-se da cozinha.

– Deixa-me em paz.

– Ei. – Subi os primeiros três degraus atrás dela. – Espera.

Ela parou, com uma mão trémula pousada no corrimão.

– Para quê? Estou farta da merda desta festa, deles todos lá em baixo.

O que queres?

– Só quero ajudar.

– Ai sim?

Fitei-a – com o seu vestido amarrotado, os braços cruzados, o rosto

corado – e senti um baque minúsculo e doloroso no fundo do

estômago. Ela era demasiado teimosa.

– Esquece – disse eu, e virei-me para descer as escadas.

– Oliver!

Cerrei os dentes, virei-me.

– Sim?

Ela não disse nada de início, limitando-se a fulminar-me com o

olhar. Tinha o cabelo emaranhado e preso nos brincos, onde Richard o

agarrara. Aquele pequeno rasgão no meio do meu corpo abriu-se mais

e ardia – em carne viva e sensível, vermelho e inflamado.

– Queres realmente ajudar? – perguntou ela. Era uma pergunta quase

indireta, a medo, desconfiada da resposta.

– Sim – disse eu de novo, com demasiada intensidade, picado pela

dúvida dela.

Aquela mesma expressão descarada e destemida que ela me lançara

no camarim passou-lhe no rosto. Num gesto impulsivo, desceu os três

degraus que nos separavam e beijou-me, prendeu-me, com as duas

mãos em concha apertadas na minha nuca. Eu fiquei sobressaltado mas

imóvel, alheio a tudo menos ao calor inesperado da sua boca na minha.

Afastámo-nos uns centímetros e fitámo-nos com os olhos

esbugalhados e indefesos. Nada nela alguma vez fora simples, mas ela

estava a sê-lo, nesse momento. Simples e próxima e linda. Um pouco

desgrenhada, um pouco danificada.


Beijámo-nos de novo, com um maior sentido de urgência. Ela

forçou-me a abrir os lábios, roubou-me a respiração da boca,

empurrou-me para trás até eu bater contra o corrimão. Agarrei-lhe as

ancas e puxei-a contra o meu corpo, pronto a sentir cada centímetro

dela.

Uma voz desconhecida interrompeu o ruído espesso da música que

atravessava a parede:

– Oh, merda.

Ela soltou-se, afastou-se, e quase perdi o equilíbrio na súbita

ausência do seu corpo. Ao fundo das escadas, estava um aluno

qualquer do primeiro ano, com uma bebida na mão. Os seus olhos

deslizaram de mim para Meredith com uma surpresa baça, desfocada.

– Oh, merda – repetiu, e dirigiu-se a cambalear para a cozinha.

Meredith estendeu a mão para a minha.

– O meu quarto – disse.

Eu tê-la-ia seguido para qualquer lugar, e não me importava quem

soubesse, Richard (que merecia muito pior do que uma traição assim

tão mesquinha) ou qualquer outra pessoa.

Subimos as escadas a toda a pressa, à toa, embaraçados pelos saltos

altos dela, pela minha embriaguez e pela nossa recusa tonta de não

continuarmos a tocar um no outro. Avançámos pelo corredor no

segundo andar, embatendo na parede e voltando a colar os lábios antes

de entrarmos cambaleantes no quarto dela. Meredith fechou a porta e

correu o ferrolho. Colidimos, mais do que nos abraçámos, com toda a

cena febril perpassada por instantes de dor – ela enclavinhou os dedos

no meu cabelo, prendeu-me o lábio inferior entre os seus dentes,

estremeceu quando a barba áspera do meu queixo lhe raspou o

pescoço. Os sons surdos da sala de jantar lá em baixo ressoavam sob

tudo, como uma espécie de rufar de tambores de uma tribo selvagem.

– Estás linda, foda-se – disse eu, na fração de segundo em que pude

falar, quando ela me tirava a camisa pela cabeça.

Atirou-a para o outro lado do quarto.

– Pois, eu sei.

O facto de ela saber era de certo modo mais sexy do que fingir que

não sabia. Tateei à procura do fecho no lado do seu vestido e disse:

– Ótimo, só estava a confirmar.


O resto das nossas roupas foi despido e descartado à toa, tudo menos

a roupa interior dos dois e os sapatos dela. Beijávamo-nos e arfávamos

e agarrávamo-nos um ao outro como se tivéssemos medo de nos soltar.

Sentia a cabeça andar à roda, o chão oscilava e inclinava-se debaixo de

mim sempre que eu fechava os olhos. Passei a mão da nuca até ao

fundo das costas dela, e a pele parecia elétrica sob a ponta dos meus

dedos. O toque quente e sedoso dos seus lábios na minha orelha fazia-

me gemer e abraçá-la com mais força – delirante, viciado, furioso por

alguma vez ter fingido não a querer.

Estávamos a meio caminho da cama, quando um murro ressoou na

porta e a fez abanar na sua moldura. Seguiu-se outro murro, e outro,

pancadas como de um aríete. – ABRE A PORTA! ABRE A MERDA DA

PORTA!

– O Richard! – Recuei, mas Meredith agarrou-se rapidamente ao

meu pescoço.

– Ele pode bater à porta toda a noite, se quiser.

– Vai deitá-la abaixo – disse eu, e as palavras desapareceram entre os

lábios dela antes sequer de saírem dos meus e o pensamento ficou

esquecido antes de eu o terminar. A minha pulsação estava

descontrolada.

– Ele que tente. – Ela empurrou-me para cima da cama, e não ofereci

resistência.

Tudo depois disso pareceu desconexo e confuso. Richard martelava a

porta, berrando pragas e ameaças que eu mal conseguia ouvir, e a sua

voz era apenas uma parte de um ritmo pesado: «EU MATO-VOS, EU

MATO-VOS, JURO POR DEUS QUE VOS MATO AOS DOIS.» Era impossível

escutar, com Meredith entre mim e ele, tangível, inebriante, a sua mais

pequena inspiração de ar suficiente para abafar o alarido dele. A voz

desvaneceu-se, como o final de uma canção medíocre, e eu não sabia

se ele tinha ido embora ou eu ficara surdo a tudo menos a Meredith.

Sentia a cabeça tão leve que, sem o peso dela em cima de mim, o meu

corpo talvez tivesse flutuado. Centímetro a centímetro, o meu cérebro e

o meu corpo restabeleceram a ligação. Deixei-a fazer o que queria por

mais algum tempo e depois virei-a de barriga para cima e prendi-lhe os

braços, não querendo ser inteiramente submisso.


Quando caí ao seu lado no colchão, os meus músculos tremiam

debaixo da pele. Estávamos demasiado quentes para nos tocarmos, e

ficámos deitados só com as pernas entrelaçadas. A nossa respiração

arfante tornou-se mais prolongada, mais profunda, e o sono puxou-me

rapidamente para baixo, como a gravidade.

CENA 9

Não dormi durante muito tempo, e dormi como um homem numa

jangada, com as ondas a rolarem debaixo de mim – mais mareado do

que bêbedo. Os meus olhos abriram-se antes de me dar conta de que

estava acordado, e fitei um teto que não conhecia. Meredith estava

deitada de lado, com uma mão debaixo da face, o outro braço

encostado ao peito. Aparecera uma ruga minúscula entre as suas

sobrancelhas, como se o que estava a sonhar a perturbasse.

Do candeeiro na mesa de cabeceira escorria sobre a cama uma luz

cor de laranja aguada. Passei cuidadosamente o braço por cima dela

para desligar o candeeiro, mas parei, com o braço estendido. A

respiração de Meredith esvoaçava contra as costas da minha mão. Eu

não conseguia deixar de a fitar – por uma vez, não por ela ser linda,

mas porque as pequenas manchas escuras no seu corpo, que no meu

fervor embriagado julgara serem sombras e efeitos de luz, não se

tinham desvanecido. A linha delicada do seu pulso estava desfigurada

por pequenos pontos roxos, como violetas a florir na sua pele. Umas

marcas mais antigas, agora ténues como aguarelas, mostravam onde

uma mão mais pesada do que a minha tocara nela, onde dedos

fantasmagóricos tinham apertado com demasiado força: na nuca, na

curva do joelho. Ela estava tão cheia de equimoses como James. Senti

uma náusea, mas essa sensação instalou-se no meu peito em vez de no

estômago.

Arrisquei-me a afastar-lhe uma madeixa de cabelo da face e depois

apaguei a luz. O quarto encolheu à minha volta, com a escuridão

sôfrega a invadir finalmente o espaço. Levantei o lençol e pousei os pés

no chão. Precisava desesperadamente de água, para me acalmar a


garganta seca e desanuviar a cabeça. A meio do quarto, vesti a roupa

interior.

Antes de abrir a porta, encostei o ouvido. Seria Richard

suficientemente louco para esperar toda a noite à porta que um de nós

saísse? Como não ouvi nada, entreabri a porta. O corredor estendia-se

vazio e escuro em ambas as direções. As luzes e a música lá em baixo

tinham-se apagado e toda a casa dava a sensação de ser um esqueleto,

uma concha vazia onde algum ser mole sem espinha costumasse viver.

Dirigi-me pé ante pé para a casa de banho, perguntando-me se seria a

única pessoa acordada. Evidentemente não – a porta do quarto de

Alexander estava aberta e a sua cama, vazia. Movia-me sem fazer

barulho, esperando não acordar ninguém. Sabia que era inevitável

algum confronto, mas não queria encará-lo mais cedo do que tivesse de

ser. Não antes de conseguir convencer-me de que tudo aquilo

acontecera de facto – a minha recordação da festa tinha a qualidade

esfumada e quimérica de um sonho. Em parte, queria acreditar que era

só isso.

Supondo que um dos foliões embriagados tinha deixado a luz acesa,

abri a porta da casa de banho sem bater. No instante que demorei a

ajustar os olhos, uma figura acocorada ergueu-se de um salto do chão.

– Jesus!

– Chiu, Oliver, sou eu! – James estendeu o braço, contornando o

meu corpo, para fechar a porta. O seu braço roçou na minha barriga e

estremeci ao sentir a humidade da sua pele. Ele recuou um passo, nu e

todo molhado. O chuveiro tamborilava suavemente em pano de fundo.

– O que estás a fazer?

Puxou o autoclismo e a água rodopiou na sanita ao mesmo tempo

que ele limpou a boca.

– Estive a vomitar – respondeu.

– Estás bem?

– Estou. Bebi demais. O que estás a fazer a pé?

– Precisava de beber água – disse, desviando os olhos. Partilhávamos

um quarto há três anos e James nu não era nada que eu não tivesse

visto, mas surpreendera-o, e, de certa maneira, parecia uma invasão da

sua privacidade.
– Importas-te que volte para o duche? – A sua mão ergueu-se por um

instante do lado do corpo, um gesto solto e frustrado na direção do

chuveiro. – Sinto-me asqueroso. Detesto vomitar.

– Força. – Passei por ele para chegar ao lavatório e bebi água fria das

mãos em concha enquanto ele subia para a banheira. A água atingiu-

lhe a pele com um som sibilante e ele semicerrou a cortina.

– Então – disse ele, um pouco demasiado casualmente. – Acabaste

de vir do quarto da Meredith?

– Hum. Sim.

– Achas que é uma boa ideia?

– Não especialmente.

O meu reflexo no espelho mostrava-me enxovalhado, desgrenhado.

Sub-repticiamente, limpei uma mancha de batom do canto da boca.

Pelo espelho, via James encostado à parede do chuveiro, com água a

gotejar-lhe do nariz e do queixo.

– Suponho que toda a gente sabe – disse eu. Deitei água no rosto,

com a esperança de que a minha pele arrefecesse.

– Um dos alunos do primeiro ano veio da escadaria e basicamente

anunciou-o à sala toda.

– Detesto mesmo os alunos do primeiro ano. – Fechei a torneira e

depois baixei o tampo da sanita e sentei-me.

– Então. Que tal foi?

Olhei para ele, com a ansiedade a picar-me dolorosamente a pele.

– Tu estás consciente de que o Richard me vai matar?

– Parecia ser esse o plano dele.

James virou o rosto para a água, fechando os olhos com força. Eu

sentia os braços e as pernas pesados e inúteis, como se os músculos e

os ossos se tivessem dissolvido e sido substituídos por cimento mal

misturado. Passei os dedos molhados pelo cabelo e perguntei:

– Onde é que ele está, afinal?

– Não sei. Desapareceu para o bosque com uma garrafa de whisky

depois de a Pip e o Alexander o impedirem de deitar abaixo ao pontapé

a porta do quarto da Meredith.

– Jesus Cristo. – Baixei a cabeça por um instante e depois forcei-me

a pôr-me de pé, antes de começar a sentir-me demasiado pesado para

me mexer.
– Vais voltar para o quarto dela? – perguntou James. Estava de costas

para mim, com a água a serpentear-lhe entre as espáduas em dois

carreiros estreitos (por um momento, acalentei a ideia de que talvez lhe

lavasse as equimoses como se elas fossem tinta).

– Não quero simplesmente deixá-la lá, como se fosse um caso de

uma noite só.

– E não é?

Não me lembrava de alguma vez me ter sentido furioso com James.

Esse sentimento irrompeu inesperadamente, amplo e vulnerável, em

carne viva como uma queimadura.

– Não – respondi, demasiado alto.

Ele lançou um olhar por cima do ombro e franziu a testa com

perplexidade.

– Oh?

– Olha, sei que ela não é tua favorita, mas também não é uma

rapariga qualquer.

Piscou os olhos.

– Suponho que não – disse, e virou-me as costas mais uma vez.

– James – disse eu, sem ideia do que tencionava dizer a seguir.

Ele desligou a água e deixou a mão pousada na torneira. Algumas

gotas minúsculas agarravam-se às suas pestanas e rolavam-lhe pelo

rosto como lágrimas.

– Que foi? – perguntou, com um ligeiro atraso.

Esforcei-me por formar palavras – sentia a sua forma, mas não a sua

substância –, mas uma mancha na face dele desconcentrou-me.

– Eu... Tens um bocado de vómito na cara – saiu-me.

A sua expressão permaneceu neutra enquanto apreendia a estranha

frase, e de seguida corou até à raiz do cabelo.

– Oh.

De súbito, sentíamo-nos ambos embaraçados (o que parecia absurdo,

depois dos últimos cinco minutos de conversa íntima e nudez casual).

– Desculpa, isso é um nojo – disse ele.

– Não tem mal. – Baixei-me para pegar na toalha dele do chão. –

Toma. – Ambos tínhamos estendido o braço para a toalha e, quando

me ergui, as nossas cabeças quase chocaram. Recuei, extremamente


consciente do meu corpo e de como era desastrado. Ele parecia muito

desperto, quase alarmado. Senti um calor alastrar-me no rosto.

Gaguejei um «boa noite», passei-lhe a toalha para as mãos e saí a

toda a pressa da casa de banho.

CENA 10

Daí a cerca de uma hora acordei de novo, com o som de alguém a

bater à porta com força. Havia uma voz também – de mulher. Não de

Richard. Soergui-me e Meredith mexeu-se ao meu lado. Quem quer

que fosse, bateu de novo, mais insistentemente.

– Oliver, sei que estás aí dentro – disse Filippa. – Levanta-te.

A sua voz soava cava, como uma gravação de má qualidade. Como

não queria que acordasse Meredith, deslizei da cama e abri a porta sem

me dar ao trabalho de procurar as calças de ganga e as vestir.

O rosto de Filippa estava contraído e pálido.

– Veste-te – disse. – Vistam-se os dois. Têm de vir lá abaixo à doca.

Imediatamente.

Afastou-se em passos rápidos, de cabeça baixa. Fiquei à porta por

um momento, surpreendido por ela não ter feito nenhum comentário

mordaz. Passava-se algo de errado – suficientemente errado para que o

facto de eu ter acordado déshabillé no quarto de Meredith não ter

importância. Fechei de novo a porta e comecei a pegar nas minhas

roupas do chão.

– Meredith – disse, num tom de urgência. – Acorda.

Descemos juntos até à doca, com os olhos turvos de sono e a

sentirmo-nos perplexos.

– Mas que merda é que se está a passar? – perguntou ela. – Ainda

nem sequer é dia.

– Não sei – respondi. – A Filippa parecia perturbada.

– Com o quê?

– Não disse.

Descemos quase às escuras e aos tropeções a escada de madeira

pouco estável construída no lado da encosta. Sentia à minha volta um


frio suave e abafado, como um manto de neve, e tremi, embora tivesse

vestido uma sweatshirt e um casaco. Os degraus estavam cheios de

seixos e de galhos, e o perigo de tropeçar era tão grande que mantive

os olhos pregados nos pés até ao último degrau ao nível do chão, e só

finalmente olhei para cima. Algumas estrelas persistentes espreitavam

de um céu pouco mais claro do que os ramos pretos irregulares das

árvores. Parei, com os olhos a ajustarem-se ao mundo sem sol, de

penumbra. As formas das sombras solidificaram-se, revelando James,

Alexander, Wren e Filippa – todos ali de pé na doca, a fitarem a água.

– O que foi? – perguntei. – Pessoal?

Alexander foi o único que se virou na minha direção, e limitou-se a

abanar a cabeça – um movimento quase impercetível, a custo.

– O que se passa? – perguntou Meredith. Havia finalmente uma nota

de preocupação na sua voz.

Furei entre James e Wren, e a vasta extensão do lago abriu-se à

minha frente, com a neblina a esfumar a linha das margens. Umas

ondas minúsculas murmuravam à volta de uma forma pálida grotesca,

em parte submersa onde a água devia ser como vidro e lisa. Richard

flutuava de costas, com o pescoço torcido de um modo nada natural, a

boca aberta, o rosto paralisado numa máscara grega de agonia. O

sangue rastejava, escuro e pegajoso, pelo seu rosto desde a massa

esmagada de pele e carne e osso que antes era a cavidade ocular, a

maçã do rosto – agora fendidas e abertas como a casca de um ovo.

Ficámos atordoados e em silêncio na doca, com a terra a deixar de

girar no seu eixo. Uma quietude terrível sustentava os nossos seis

corpos quentes e vivos e o de Richard – uma coisa imóvel, inanimada –

no mesmo feitiço inquebrável. De seguida, ouviu-se um som, um

gemido baixo; Richard estendeu a mão debilmente na nossa direção, e

todo o mundo se precipitou. Wren sufocou um grito e James agarrou-

me o braço.

– Oh, Deus. – Engasgou-se com a palavra. – Ainda está vivo.

44. O jogo de palavras só se compreende em inglês. «Azeitona» é olive, e o nome da

personagem, Oliver, é muito semelhante. (N. da T.)


ATO III
PRÓLOGO

Eu e Colborne saímos para o exterior ao início da tarde. O dia parece

primevo, pré-histórico, com o Sol brilhante e ofuscante por trás de uma

camada fina de nuvens. Nem um nem outro temos óculos de sol, e

fazemos um esgar à luz, como bebés relutantes, recém-nascidos.

– Para onde, agora? – pergunta ele.

– Gostava de andar à volta do lago.

Começo a atravessar o relvado e ele caminha ao meu lado. Tem

estado quase sempre em silêncio, só a ouvir-me. De vez em quando, o

seu rosto reage a algo que digo – com um erguer subtil das

sobrancelhas ou um espasmo no canto da boca. Fez algumas perguntas,

pequenas coisas como: «Isso foi quando?» Embora a cronologia esteja

clara na minha cabeça, explicá-la a outra pessoa é uma tarefa curiosa,

simples em teoria mas trabalhosa na prática, como montar uma longa

linha de pedras de dominó. Um acontecimento leva inevitavelmente ao

seguinte.

Percorremos a distância até ao bosque sem falar. As árvores são mais

altas do que recordava – já não tenho de baixar a cabeça para evitar os

ramos. Penso em quanto uma árvore crescerá em dez anos e estendo a

mão para a roçar nas cascas dos troncos, como se cada um, com os

seus nós, fosse o ombro de um velho amigo em que toco quando passo

por ele, sem pensar. Reconsidero essa ideia: não tenho velhos amigos,

exceto Filippa. Como é que os outros pensam em mim agora? Não os

tenho visto. Não sei.

Saímos do bosque para a praia, que parece exatamente igual. Areia

branca e grossa como sal, filas e filas de bancos degradados pelo

tempo. O pequeno barracão onde James espalhou sangue por mim

abaixo no Halloween está ligeiramente inclinado para o lado – uma

Torre de Pisa em ponto pequeno.

Colborne tem as mãos escondidas nos bolsos e olha para o lago.

Conseguimos ver vagamente a margem oposta, uma linha esfumada

traçada entre as árvores e os seus reflexos. A Torre desponta da floresta


como uma torre num conto de fadas. Conto três janelas até à que ficava

ao lado da minha cama, uma ranhura estreita e preta na parede de

pedra cinzenta.

– Fazia frio naquela noite? – pergunta Colborne. – Não me lembro.

– Bastante frio. – Pergunto-me se haverá ainda uma nesga visível de

céu sobre o jardim ou se os ramos se emaranharam todos para o

ocultar. – Pelo menos, penso que sim. Tínhamos todos estado a beber,

e bebíamos sempre demasiado, como se fosse óbvio que o fizéssemos.

O culto do excesso: álcool e drogas, sexo e amor, orgulho e inveja e

vingança. Nada com moderação.

Abana a cabeça.

– Todas as sextas-feiras à noite fico acordado na cama a perguntar-

me que coisa estúpida vai fazer um miúdo bêbedo qualquer de que eu

vou ter de tratar na manhã seguinte.

– Já não.

– Pois não. Agora só tenho os meus filhos com que me preocupar.

– Com que idade estão?

– Catorze – diz ele, como se quase não conseguisse acreditar. –

Entram para o secundário no outono.

– Vai correr tudo bem – digo-lhe.

– Como é que sabes?

– Têm pais melhores do que nós tivemos.

Sorri, sem saber ao certo se estou a troçar dele. De seguida, acena

com a cabeça na direção do Castelo.

– Queres ir até à margem sul?

– Ainda não. – Sento-me na areia e ergo a cabeça, a olhar para ele. –

Esta história é longa. Há muita coisa que ainda não sabe.

– Tenho o dia todo.

– Vai ficar de pé até cair a noite?

Faz um esgar, mas flete os joelhos para se sentar ao meu lado, e

sopra uma brisa do lago.

– Então – diz. – Quanto do que me contaste sobre aquela noite era

verdade?

– Tudo – digo –, de uma maneira ou de outra.

Uma pausa.

– Vamos jogar a esse jogo?


– Naquilo que sou falso sou leal; mas, para ser verdadeiro,

verdadeiro não sou – digo.

– Julguei que te tinham tirado essas tretas do sistema na cadeia.

– Foi graças às tretas que me aguentei. – Uma coisa que tenho a

certeza que Colborne nunca compreenderá é que necessito da

linguagem para viver, como de comida; os lexemas e os morfemas e os

nacos de significado nutrem-me com a noção de que sim, existe uma

palavra para isto. Outra pessoa qualquer sentiu-o antes de mim.

– Porque não me contas simplesmente o que aconteceu? Sem teatro.

Sem poesia.

– Para nós, tudo era teatro. – Sou apanhado de surpresa por um

pequeno sorriso privado e olho para baixo, esperando que ele não o

tenha visto. – Tudo era poesia.

Colborne fica calado por um momento e de seguida diz:

– Venceste. Conta à tua maneira.

Olho para o outro lado do lago, para o topo da Torre. Uma ave

grande – um falcão, talvez – voa em longos círculos indolentes sobre as

árvores, um bumerangue preto elegante contra o céu prateado.

– A festa começou por volta das onze da noite. À uma da

madrugada, já estávamos todos perdidos de bêbedos, o Richard mais

do que o resto. Partiu um copo, deu um murro na boca a um rapaz. As

coisas começaram a ficar feias e confusas e descontroladas, e às duas

da madrugada eu estava lá em cima, na cama com a Meredith.

Sinto o seu olhar no lado do meu rosto, mas não ergo a cabeça.

– Era essa a verdade? – pergunta ele, e suspiro, exasperado com a

nota de surpresa na sua voz.

– Não houve testemunhas suficientes?

– Vinte miúdos podres de bêbedos numa festa, e só um deles viu de

facto alguma coisa.

– Bem, não era cego.

– Então, havia alguma coisa entre vocês os dois.

– Sim – respondo. – Havia alguma coisa.

Não sei como continuar. É claro que eu estava à mercê de Meredith.

Como Afrodite, ela exigia louvores e idolatria. Mas qual era a sua

atração por mim, manso e pouco importante como eu era? Um

mistério.
Enquanto conto a história a Colborne, a culpa contorce-se, qual

minhoca, no fundo do meu estômago. A nossa relação era um ponto de

interesse significativo, mas Meredith recusou-se a depor no meu

julgamento, insistindo teimosamente que não se recordava do que toda

a gente queria saber. Passou algumas semanas a ser perseguida pelos

media, uma atenção que se revelou excessiva até mesmo para ela.

Depois de eu ser condenado, ela voltou para o apartamento de

Manhattan e, durante cerca de um mês, não saiu à rua. (O seu irmão,

Caleb, apareceu nas notícias antes dela, quando partiu o maxilar a um

paparazzo com a sua pasta de executivo. Depois disso, os abutres

perderam o interesse, e eu passei a sentir mais consideração por

Caleb.)

Meredith acabaria por chegar à televisão – é agora uma das estrelas

de um drama jurídico vagamente baseado no ciclo de Henrique VI. A

série era popular na prisão, não por causa das fontes shakespearianas,

mas porque ela passa muito tempo a pavonear-se vestida com camisas

de noite coladas ao corpo que lhe deixam ver as formas. Veio visitar-

me – só uma vez – e, quando começou a circular que eu tinha tido uma

espécie de caso com ela, o boato granjeou-me um respeito sem

precedentes entre os outros prisioneiros. Se pressionado para revelar

pormenores, só lhes contava o que poderia ser encontrado na Internet

ou era óbvio: que ela era naturalmente ruiva, tinha um pequeno sinal

de nascença na anca, não era tímida no que dizia respeito ao sexo. As

verdades mais íntimas guardava para mim mesmo: que fazer amor com

ela fora tão doce quanto selvagem; que, apesar de ela normalmente

dizer muitos palavrões, os únicos sons que emitiu na cama foram para

me murmurar ao ouvido «Oh, Deus, Oliver»; que talvez nos tenhamos

até amado, por um ou dois minutos.

Só forneci a Colborne os pormenores triviais.

– Sabes, ela veio ver-me uma noite – diz ele, enterrando os tacões

dos sapatos na areia. – Tocou à campainha até nos acordar, e quando

abri a porta ela estava ali no alpendre com um vestido ridículo,

brilhante como uma árvore de Natal. – Quase se ri. – Julguei que

estava a sonhar. Ela entrou sem cerimónias e disse que precisava de

falar comigo, disse que não podia esperar, que havia uma festa e era o

único momento em que vocês todos não dariam pela falta dela.
– Quando foi isso?

– Na mesma semana em que te prendemos. Na sexta-feira, acho eu.

– Então, foi aí que ela foi. – Ele lança-me um olhar e encolho os

ombros. – Eu dei pela falta dela.

Tombamos em silêncio – ou no silêncio possível, com os gritos

distantes das aves, o murmúrio do vento entre as agulhas dos

pinheiros, o marulhar quase impercetível das ondas a enrolar na areia.

A história alterou-se; ambos o sentimos. Acontece tal e qual como

aconteceu há dez anos: encontramos Richard na água e sabemos que

nada voltará a ser como dantes.

CENA 1

Richard estendeu o braço para nós e desengonçou o mundo do seu

eixo. Tudo se inclinou, se precipitou para a frente. Assim que aquelas

três palavras – Ainda está vivo – lhe saíram da boca, James desatou a

correr para a ponta da doca.

– Richard! – disse Wren em voz rouca, um som involuntário e

compulsivo, como tosse. O seu primo jazia na água, em convulsões,

com sangue de um vermelho-vivo a borbulhar-lhe nos lábios e a mão a

tatear na nossa direção.

– James! – A voz de Alexander, estridente e frenética, trespassou a

escuridão. – Oliver, agarra-o!

Precipitei-me aos tropeções, com os pés a martelarem as pranchas

molhadas da doca, dominado pelo medo irracional de que James se

atirasse à água e deixasse que Richard o puxasse para baixo.

– James! – Os meus dedos roçaram-lhe a parte de trás do casaco,

fecharam-se sobre coisa nenhuma. – Para! – Fiz uma última tentativa

desesperada e agarrei-o desajeitadamente à volta da cintura. Ele perdeu

o equilíbrio e caiu para a frente com um grito de surpresa. Por um

terrível momento, a água subiu ao nosso encontro, mas, quando eu já

estava a suster a respiração, a preparar-me para mergulhar, James bateu

de chapa na doca e eu desabei em cima dele. A dor uivava, trespassava-


me os membros, mas não o larguei, esperando que o meu peso bastasse

para o manter ali.

Wren tentou chamar-nos de novo, mas engasgou-se e engoliu a voz.

– Ele consegue ouvir-nos? – perguntou Alexander. – Jesus, ele

consegue sequer ouvir-nos?

A minha cabeça pendia da beira da doca, a pulsação martelava-me a

fronte entre as têmporas, os meus olhos estavam arregalados. Richard,

a poucos centímetros do meu alcance, engoliu em seco, a tentar livrar-

se do limo espesso de sangue na sua boca. Tinha os membros torcidos

e dobrados à volta do corpo, como as asas partidas de uma ave –

empurrada demasiado cedo do ninho, ainda não pronta a voar. Hamlet

veio-me à memória. Existe uma providência especial, diz ele, até na

queda de um pássaro.

– Ele não está morto! – James contorcia-se debaixo de mim. – Ele

não está morto, sai-me de cima!

– Não – disse Alexander, rispidamente. – Espera...

A voz de Filippa soou-me aos ouvidos, mais perto do que a de

Alexander.

– Oliver! – Senti as suas mãos nos meus ombros, a arrastar-me da

borda. – Levanta-te – disse ela –, afasta-o daí...

– James, vá lá! – Icei-o para trás, puxei-o para cima. Ele resistia

debilmente contra os meus braços, e receei por um momento ter-lhe

fraturado as costelas. Atrás de nós, Wren estava de joelhos, a gemer, e

Meredith acocorada ao seu lado, com o rosto lívido e uma expressão

menos de terror, mais de raiva.

– Larga-me! – disse James, a tentar sem grande empenho empurrar-

me de si. – Larga...

– Não, se vais fazer alguma loucura – disse Alexander. – Espera só

um minuto...

– Não podemos esperar, ele está a morrer...

– E nós vamos fazer o quê, saltar para a água e salvá-lo? Todos ao

molho e fé em Deus? Cala-te e pensa por um minuto, merda!

– Pensar em quê? – perguntei, ainda a segurar James, mas sem saber

bem porquê.

– Quer dizer, como é que isto aconteceu sequer? – perguntou

Alexander, a ninguém em particular.


– Bem, ele caiu – disse Filippa, imediatamente. – Deve ter...

– Simplesmente caiu? – disse eu. – Pip, olha para a cara dele...

– Então, bateu com a cabeça em alguma coisa – disse Meredith. –

Depois da quantidade de álcool que bebeu, surpreende-te?

– Meu Deus, Richard – disse Wren de novo, mas agora a ferver de

raiva, a limpar furiosamente os olhos. – Richard, seu idiota...

– Ei! Para com isso. – Alex puxou-a para cima com força, a levantá-

la de onde estava ajoelhada. – Não chores por ele, a culpa é dele,

merda...

– Estão todos loucos? – rosnou James, olhando desvairado para cada

um. Deixara de resistir às minhas mãos, como se se tivesse esquecido

de que estava a segurá-lo. – Temos de o ajudar!

– Temos? – perguntou Alexander, rodando sobre os calcanhares e

dando um passo impulsivo na direção dele. – Quer dizer, temos

mesmo?

– Alexander, ele ainda está vivo...

– Pois, exatamente.

– O quê? – disse eu, mas nem um nem o outro pareceram ouvir-me.

– Não podemos simplesmente ficar parados a discutir sobre como

aconteceu, temos de fazer alguma coisa... – começou a dizer James,

mas Alexander interrompeu-o.

– Olha, sei que tens uma necessidade doentia de desempenhar o

papel de herói, mas neste momento precisas de parar e de te perguntar

se isso é realmente o melhor para todos.

Fitei-o, abismado.

– O que estás a dizer? – perguntou James, numa voz quase inaudível,

como se já soubesse a resposta.

Alexander estava de pé, com os seus braços compridos colados ao

lado do corpo, a estremecer com uma espécie de energia potencial

tresloucada. Lançou um olhar à água por cima do ombro. A última

convulsão de Richard parara, e ele jazia ali, preocupantemente imóvel,

como se estivesse a fingir-se morto. A água estava lisa e escura como

veludo, exceto o estremecimento débil das suas exalações, que o

traíam. Se é agora, pensei, não vai ser depois.

– Só estou a dizer que não devemos fazer nada antes de pensarmos

bem no assunto – disse Alexander, com o suor a brilhar-lhe na testa


apesar do frio gélido de novembro. – Quer dizer, não se lembram de

como ele tem sido nestas últimas semanas? A desancar-nos em palco,

andamos cobertos de nódoas negras, quase te afogou no Halloween, e a

noite passada? – Olhou para mim. – Tu e a Meredith? – Senti uma dor

aguda, uma facada no peito. – O Richard perdeu completamente a

cabeça. Não o ouviste falar, desvairado, do que ia fazer quando te

pusesse as mãos em cima. Se ele não estivesse agora na água, o mais

certo era estares tu.

– Tivemos de o impedir de arrombar a porta – disse Filippa.

Esquecera-me de que ela estava perto de mim, com uma mão nas

minhas costas, até falar e eu sentir a vibração da sua voz. – Atirou o

Alexander contra a parede com tal força que ele quase a furou.

– Esquece o meu caso, e a Wren? – disse Alexander, mas apelava a

James, não a ela. – Tu estavas lá, tu viste.

– O que é que ele fez? – perguntou Meredith, quando James não

respondeu. Wren fechou os olhos com força. – O que é que ele lhe fez?

– Ela tentou impedi-lo de se ir embora todo desatinado – disse

Filippa, falando em voz baixa, num murmúrio, como se Richard

pudesse ouvi-la. Como se receasse acordá-lo. – Atirou-a para o outro

lado do jardim. Podia ter-lhe partido todos os ossos do corpo.

– Julgam que tudo isso vai parar? – perguntou Alexander, com uma

pulsação de medo na voz. – Pensam que vamos tirá-lo da água e ele

fica bem e voltamos a ser todos amigos?

Respondeu-lhe um silêncio esfarrapado. Se não for depois, será

agora.

Alexander forçou a sua mão nervosa a meter-se no bolso e encontrou

uma beata. O isqueiro acendeu-se e ele pôs a mão em concha à volta

da chama, como se ela fosse algo incrivelmente precioso. Com a

primeira passa, estremeceu, e, depois de soltar uma baforada, falou em

voz mais baixa, embora não totalmente firme.

– Não o digam alto se não quiserem. Mas, há cinco minutos, quando

julgávamos que estava morto, o que sentiram?

O rosto de Filippa estava pálido, mas inescrutável. Uns trilhos

prateados de lágrimas brilhavam nas faces de Wren. A seu lado,

Meredith estava muito direita e imóvel como uma estátua. James

continuava suspenso entre mim e ela, com a boca aberta num horror
abjeto, como o de uma criança. Ao nosso redor, as silhuetas negras e

eriçadas das árvores perfilavam-se fantasmagóricas, direitas e imóveis,

e umas nuvens finas alastravam como fumo no céu leitoso. O mundo já

não estava escuro; aparecera uma luz fria, que se acocorava na linha do

horizonte, a rondar a terra de ninguém entre a noite e o dia. Forcei-me

a olhar para baixo, para Richard. Se estava a respirar, eu não conseguia

ouvi-lo, mas mesmo naquele silêncio parecia rosnar, de dentes

arreganhados e debruados a sangue. Senti-a na ponta da língua, a

compulsão de confessar que, naquele instante perigoso em que pensei

que ele estava morto, só sentira alívio.

– Então – disse Meredith, e parecia, de algum modo, falar por todos

nós. A sua vivacidade calorosa desaparecera, e a forma como parecia

friamente sóbria e firme fez-me sentir calafrios na espinha. – O que

sugeres que façamos?

Alexander encolheu os ombros, e houve algo terrivelmente

importante naquele gesto simples e sem sentido.

– Nada.

Durante muito tempo, ninguém falou. Ninguém protestou. Senti-me

atordoado com a reticência deles, até me aperceber de que eu próprio

também não falava.

A voz de James finalmente despertou no ar morto.

– Temos de o ajudar. Temos mesmo.

– Porquê, James? – perguntou Meredith em voz baixa, num tom de

reprovação, como se, de alguma maneira, ele a tivesse traído. – Tu,

mais do que qualquer outra pessoa, devias compreender... Nós não lhe

devemos nada.

James desviou os olhos – talvez numa atitude de desafio, talvez de

vergonha – e Meredith assestou o seu olhar de górgona em mim. Todas

as pequenas intimidades da noite anterior voltaram a insinuar-se na

minha mente; os seus lábios na minha pele e as marcas dos dedos de

Richard na dela, ambas igualmente persuasivas. Engoli um nó apertado

na garganta. Se não for agora, será a qualquer hora.

Alexander estava irrequieto, a preparar-se para a interromper, mas

fechou a boca quando eu fiz um movimento e me pus entre James e os

outros. Ele estremeceu ao sentir o peso das minhas mãos nos seus

ombros.
– Como ninguém possui aquilo de que se despede, que importa

deixá-lo mais cedo ou mais tarde? – disse eu. Ele olhou para mim com

uma desconfiança insuportável, como se eu fosse um estranho, alguém

que não reconhecia. Puxei-o um pouco mais para mim, a tentar

comunicar-lhe de uma maneira impossível que, mais do que querer

Richard vivo, queria que ele e os outros não sofressem nenhum mal

nem tivessem medo, e que já não podíamos ter ambas as coisas. –

James, por favor. Deixa acontecer.

Ele fitou-me um instante mais e depois deixou tombar a cabeça de

novo.

– Wren? – disse, virando-se só o suficiente para poder vê-la pelo

canto do olho. Ela parecia impossivelmente jovem, encolhida entre

Meredith e Alexander, com os braços cruzados com força sobre o

estômago, como se eles se recusassem a descruzar-se. Mas parecia ter

esgotado com as lágrimas toda a suavidade dos seus frios olhos

castanhos. Não falou, nem sequer abriu a boca – limitou-se a assentir

com a cabeça, lentamente. Sim.

Algo desgraçadamente semelhante a uma gargalhada escapou dos

lábios de James.

– Façam-no então – disse. – Deixem-no morrer.

Esse ópio execrável, o alívio, percorreu-me de novo as veias – agudo

e lúcido na picada inicial, antes de tudo ficar anestesiado. Ouvi

suspirar um dos outros, talvez Filippa, e soube que não era o único a

senti-lo. A indignação moral que devíamos ter sentido foi

discretamente abafada, suprimida, como um boato desagradável antes

de ter oportunidade de ser ouvido. Fizéssemos o que fizéssemos – ou,

mais crucialmente, não fizéssemos –, parecia que, desde que o

fizéssemos juntos, os nossos pecados individuais poderiam ser

atenuados. Não há melhor conforto do que a cumplicidade.

Alexander tentou dizer alguma coisa, mas um som chapinhado e

engasgado fez-nos olhar na direção do lago. A cabeça de Richard tinha

tombado para um lado, suficientemente baixa para a água lhe bater no

nariz e na boca e deixar uma nuvem vermelho-escura de sangue à volta

do rosto. Todo o seu corpo se inteiriçou, se contraiu, os músculos do

pescoço e dos braços salientes como cabos de aço, embora ele não

parecesse capaz de mover as pernas. Assistíamos àquilo num estado de


paralisia rígida. Ouviu-se um gemido distante, com o som preso de

alguma maneira dentro do corpo dele, incapaz de encontrar uma saída.

Perpassou-o um último pequeno espasmo, e a mão que em vão se

estendera para o som das nossas vozes abriu-se como uma flor. Os

dedos fletiram-se, fecharam-se de novo, encolheram-se na direção da

palma da mão. De seguida, tudo ficou imóvel.

Por fim, Alexander rodou os ombros para a frente e todo o fumo que

estivera a conter nos pulmões se derramou ao mesmo tempo.

– Bem – disse-nos, subitamente calmo e plácido como o lago que se

estendia atrás dele. – E agora?

A pergunta era tão absurda e a maneira como a disse tão

teatralmente casual que tive de cerrar os dentes para reprimir um

impulso psicótico de me rir. Os meus colegas moveram-se à minha

volta, virando-se para dentro, uns para os outros, de costas para o lago.

Os seus rostos estavam relaxados, impassíveis, com o pânico de há um

minuto esquecido. Já não havia razão para alvoroço. Não havia pressa.

Não pude deixar de me perguntar se a minha expressão seria assim tão

calma, se seria melhor ator do que sempre julgara e nenhum deles

suspeitava de que havia uma risada doentia e silenciosa presa na minha

garganta.

Filippa: – Precisamos de decidir o que dizer à polícia sobre o que

aconteceu.

Alexander: – O que lhe aconteceu? Quem sabe? Eu nem sequer sei

onde estive metade da noite.

Meredith: – Não podes dizer isso. Alguém morreu, e tu não sabes

onde estiveste?

Eu: – Por Deus, não foi um de nós que fez isto.

Filippa: – Não, é claro que não...

Eu: – Ele estava bêbedo. Bebeu até ficar podre de bêbedo e depois

foi às cegas para o bosque.

Wren: – Vão querer saber porque é que um de nós não foi atrás dele.

Alexander: – Porque ele é um doido violento de merda e te atirou

para o outro lado do jardim?

Meredith: – Ela não pode dizer isso, seu idiota; parece um motivo.

James: – Então é melhor tu também não dizeres onde estavas.


Falou tão baixo que quase não o ouvi. Olhou para Meredith sem

acrescentar mais nada, com o rosto branco e rígido como um molde de

gesso.

– Desculpa lá – disse ela –, mas que motivo tenho para matar o meu

namorado?

– Bem, o que recordo da noite passada é o teu namorado te chamar

galdéria à frente de toda a gente e tu correres para o andar de cima

para comeres o Oliver por vingança. Ou esqueci-me de alguma coisa?

– James olhou dela para mim, e aquela dor no meu peito regressou,

como se ele tivesse agarrado um punhal invisível e o torcesse entre as

minhas costelas.

– Olha, ele tem razão – disse Filippa, antes de Meredith ter tempo de

argumentar. – Não sabemos o que aconteceu ao Richard, mas não faz

sentido tornar isto mais difícil para nós. Quanto menos dissermos,

mais depressa passa tudo.

– OK, mas não podemos não falar sobre a briga na cozinha, porque

metade da escola estava lá – disse Alexander, e depois apontou de

Meredith para mim. – E alguém viu estes dois idiotas a curtirem nas

escadas.

– Ele estava bêbedo – retorquiu Meredith. – Mais bêbedo do que tu,

e tu nem sabes onde estiveste.

Filippa sobrepôs a voz à deles.

– Estivemos todos a beber, portanto, qualquer pergunta a que não

queiramos responder, basta dizermos que não nos lembramos.

– E o resto? – perguntou James.

– Como assim, o «resto»? – perguntou Wren.

– Tu sabes. Antes.

Filippa, como sempre, foi a mais rápida a compreender.

– Nem uma palavra sobre o Halloween – disse. – Ou a cena do

assassínio ou outra coisa qualquer.

– Então, como é? – disse Alexander. – Antes da noite passada, estava

tudo bem?

O rosto de Filippa estava perfeitamente impassível, e eu já conseguia

imaginá-la sentada em frente a um qualquer agente da polícia novato,

de costas direitas, joelhos unidos, pronta a responder a qualquer

pergunta que ele lhe lançasse.


– Sim, precisamente – disse ela. – Antes da noite passada, estava

tudo bem.

Wren bateu com as pontas dos pés contra a doca, desviando o olhar,

a evitar os olhos de todos nós.

– E hoje de manhã? – perguntou, em voz muito baixa.

– Nunca vem cá ninguém além de nós os sete – disse Alexander. –

Portanto, dizemos que simplesmente demos com ele.

– E o que é que, supostamente, estivemos a fazer até agora? –

perguntei.

– Estivemos a dormir – disse Meredith. – Ainda nem nasceu o sol. –

Porém, enquanto falava, o canto estridente de uma ave ecoou entre as

árvores e tivemos a noção de que não faltava muito. Olhei de relance

para a ponta da doca, onde Richard se encontrava imóvel na água, sem

conseguir arredar da mente o pobre pardal caído de Hamlet. O que é

preciso é estar preparado.

Alexander disse o mesmo, por outras palavras:

– Que horas são? Temos a certeza de que ele... se foi?

– Não – disse Filippa. – Mas, antes de chamarmos a polícia, temos

de ter a certeza.

Outro silêncio, apenas suficientemente longo para que o medo que

tínhamos esquecido por um breve momento voltasse a insinuar-se.

– Eu faço-o – disse Meredith. Enfiou os dedos no cabelo e depois

deixou os braços caírem ao lado do corpo de novo. Já a vira fazer

aquilo mil vezes: afastar o cabelo do rosto, preparar-se e avançar para a

luz da ribalta. Contudo, vê-la desaparecer na água gelada era mais do

que eu poderia suportar.

– Não – disse. – Eu vou.

Todos menos Meredith olharam para mim como se tivesse perdido o

juízo. Perpassou-lhe no rosto uma espécie de gratidão desesperada, tão

rapidamente que quase não a vi.

– Está bem – disse ela. – Vai.

Acenei com a cabeça, principalmente para comigo mesmo. Falara

pensando só nela, não no que teria de fazer na sua vez. Os outros

afastaram-se, deixando um caminho estreito para eu percorrer até ao

fim da doca. Fiquei como se anestesiado, imóvel por um ou dois

segundos, e depois dei um passo em frente. Três passos lentos


deixaram-nos a todos para trás. Parei, baixei-me para descalçar os

sapatos. Mais três passos. Puxei o fecho do blusão e atirei-o para a

doca, despi a sweatshirt pela cabeça. O ar frio picou-me a pele nua e

fiquei com pés de galinha do couro cabeludo à espinha e aos braços e

às pernas, até todos os pelos do meu corpo ficarem eriçados. Mais três

passos.

O lago nunca me parecera tão enorme, tão escuro ou tão profundo.

Richard estava quase submerso, como uma estátua derrubada, e apenas

surgiam à tona uns fragmentos marmóreos – três dedos frouxamente

curvados, a inclinação de uma clavícula, a torção sensual do pescoço.

A desgraça esculpida em pedra. Uma película fina de carmesim colava-

se à sua pele, demasiado viva, demasiado berrante para aquele lugar de

cinzentos de neblina e verdes perenes. O medo cravou as suas garras

no meu coração e esmagou-o, transformando-o num caroço pequeno e

duro como o de uma cereja.

Fitei Richard até me parecer que o meu sangue congelaria se não me

mexesse. Olhei para os outros, para lhes dizer que não era capaz de

fazer aquilo – que não conseguia aproximar-me mais, mergulhar

naquela água preta, sondar o seu pescoço torcido à procura de sinais de

pulsação. Mas vê-los todos juntos, encolhidos, como cinco crianças

com medo do escuro, a olhar para mim e à espera de algum tipo de

tranquilização, fez o meu próprio medo parecer egoísta.

Sustive a respiração, fechei os olhos e saltei da doca.

CENA 2

Daí a duas horas, ainda não tinha parado de tremer. Encontrávamo-

nos sentados em fila contra a parede num corredor no terceiro andar,

onde o ar estava mais do que suficientemente quente. Tinham-me dado

um cobertor e um par de calças de ganga secas, mas não tivera tempo

para tomar duche. Pior do que a sensação persistente de frio era a da

água do lago e do sangue de Richard a infiltrar-se na minha pele,

queimando e causando um prurido em cada centímetro do meu corpo.

Filippa, sentada desconfortavelmente perto à minha esquerda, ergueu


uma mão sem olhar para mim e pousou-a tão levemente na parte

interna do meu pulso que eu quase não a sentia. Ela, James, Alexander

e Wren já tinham prestado declarações. Meredith estava no gabinete a

prestar a sua, enquanto eu esperava, num estado de ansiedade

catatónica, a minha vez.

A porta abriu-se, raspando pesadamente no chão, e Meredith

reapareceu. Tentei que olhasse para mim, mas sem conseguir, e de

seguida ouvi Holinshed dizer:

– Oliver Marks.

A mão de Filippa deslizou do meu braço. Levantei-me e dirigi-me

para a porta com os movimentos sacudidos e mecânicos do Homem de

Lata de O Feiticeiro de Oz. Parando na soleira, lancei um olhar aos

meus colegas de curso. Estavam sentados, todos com o rosto virado

para o outro lado, a olharem para tudo menos para mim ou uns para os

outros – exceto Alexander, que me fez um aceno de cabeça secreto

quase impercetível. Baixei a cabeça e entrei no gabinete.

Era maior do que contava, como a galeria, mas com o teto mais

baixo, e menos soalheiro. As janelas davam para a avenida ampla e

comprida na frente do Hall, com o monumental portão de ferro

reduzido a umas barras pretas espinhosas à distância. Estremeci

quando a porta se fechou com um estrondo atrás de mim. Havia quatro

outras pessoas no gabinete: Frederick, de pé ao canto junto à janela;

Holinshed, encostado à enorme secretária com pés de garra, com o

queixo encostado ao peito; Gwendolyn, sentada à secretária, com a

cabeça entre as mãos; e um homem mais novo, de ombros largos e

cabelo da cor de areia, envergando um blusão de couro castanho por

cima de uma camisa e gravata. Já o vislumbrara no Castelo, antes de

nos arrebanharem para o Hall.

– Bom dia, Oliver. – Estendeu-me a mão, que apertei com os dedos

húmidos, apercebendo-me de que devia parecer vagamente ridículo,

com um cobertor comido pela traça sobre os ombros, como um manto

de algum rei deposto e na miséria.

– Este senhor é o detetive Colborne – disse Holinshed. Olhou-me

por cima dos óculos com uma expressão implacável e severa. – Vai

fazer-te algumas perguntas sobre o Richard.

Gwendolyn soltou um pequeno gemido e tapou a boca.


– OK – disse eu. A minha língua dava-me a sensação de ser uma

lixa.

– Não há necessidade de estares nervoso – disse Colborne, e aquele

mesmo riso histérico de duas horas antes ecoou-me no cérebro. – Só

preciso que me contes o que aconteceu, e, se não te lembrares, não tem

mal dizeres-me que não te lembras. É melhor não ter informação

nenhuma do que ter informações erradas.

– OK.

– Porque não te sentas? Talvez torne as coisas mais fáceis. – Apontou

para a cadeira atrás de mim. Havia outra diante da secretária de

Holinshed, de frente para mim, vazia.

Baixei-me lentamente, perguntando-me se a cadeira desapareceria

antes de chegar a ela e se eu cairia por terra. Naquele momento, nada

parecia certo ou sólido – nem sequer o mobiliário. Colborne sentou-se

à minha frente na outra cadeira, e meteu a mão ao bolso. A mão voltou

a aparecer com um pequeno gravador preto, que ele colocou atrás de si,

na beira da secretária de Holinshed. O gravador já estava ligado, com

uma pequena luz vermelha a fulminar-me.

– Importas-te que grave isto? – perguntou Colborne delicadamente,

mas eu sabia que não poderia recusar. – Se não tiver de anotar tudo,

poderei prestar mais atenção ao que disseres.

Acenei com a cabeça e endireitei o cobertor. A dignidade não era

relevante, e eu não sabia que mais fazer com as mãos.

Colborne inclinou-se para a frente e disse:

– Então, Oliver. Não te importas que te chame Oliver e te trate por

tu?

– Claro que não.

– E és aluno do quarto ano de teatro.

Como não sabia se devia responder, disse, com um atraso de meio

segundo:

– Sim.

Colborne não pareceu reparar, limitando-se a fazer outra não-

pergunta.

– O reitor Holinshed diz-me que és do Ohio.

– Sim – respondi, de novo demasiado tarde.

– Tens saudades de casa? – perguntou ele, e senti-me quase aliviado.


– Não. – Podia ter-lhe dito que, para mim, Dellecher era a minha

casa, mas não queria dizer mais do que era obrigatório.

Colborne: – De que tamanho é a tua cidade?

Eu: – De tamanho médio, suponho. É maior do que Broadwater.

Colborne: – Estudaste teatro no secundário?

Eu: – Sim.

Colborne: – Gostaste? Que tal era?

Eu: – Era razoável. Não como aqui.

Colborne: – Porque aqui é...?

Eu: – Melhor.

Colborne: – São próximos? Vocês os seis.

Soava estranho. Nós os seis. Sempre tínhamos sido sete.

– Como irmãos – respondi, e arrependi-me imediatamente, sem

saber ao certo com que rapidez a palavra «rivalidade» viria à mente.

– Partilhas um quarto com o James Farrow – disse Colborne, mais

baixo. – Foi lá que dormiste ontem à noite?

Assenti com a cabeça, não confiando totalmente que conseguisse

falar sem me trair. Decidíramos que James confirmaria o meu

paradeiro. O facto de um aluno do primeiro ano que estava bêbedo me

ter visto nas escadas com Meredith não significava que tivéssemos de

admitir o que acontecera a seguir.

– E a que horas foste para a cama? – perguntou Colborne.

– Às duas? Duas e meia? Por aí.

– OK. Descreve-me o que aconteceu na festa e sê tão específico

quanto possível.

Os meus olhos saltaram de Colborne para Frederick e de Frederick

para Holinshed. Gwendolyn continuava sentada a fitar o tampo da

secretária, com o cabelo escorrido e ar cansado.

– Não existem respostas erradas – acrescentou Colborne. A sua voz

era um pouco arranhada, o que o fazia soar mais velho do que era.

– Certo, sim. Desculpe. – Agarrei o cobertor com mais força,

querendo muito parar de transpirar das mãos. – Bem. Eu e o James e o

Alexander descemos do FAB pouco depois das dez e meia, e não

estávamos com pressa, portanto somos capazes de ter chegado ao

Castelo por volta das onze. Bebemos e depois cada um foi para seu
lado. Eu, não sei, só andei por ali durante algum tempo. Alguém me

disse que o Richard estava no andar de cima, a beber sozinho.

– Fazes alguma ideia da razão por que ele não estava a conviver com

as outras pessoas? – perguntou Colborne.

– Realmente não – respondi. – Calculei que desceria quando

estivesse disposto a isso.

Acenou com a cabeça.

– Continua.

Olhei na direção da janela, para a longa estrada sinuosa que partia de

Dellecher e desaparecia na bruma.

– Fui lá para fora. Falei com a Wren. Falei com o James. Depois,

houve uma... uma data de barulho, acho eu, vindo lá de dentro.

Portanto, entrámos para ver o que se passava. Éramos só eu e o James

nessa altura. Não sei para onde foi a Wren.

– E estavam no jardim, é isso?

– Sim.

– Quando entraram, o que aconteceu?

Mexi-me na cadeira. Duas recordações lutavam pelo domínio: a

verdade e a versão que concordáramos contar.

– Estava uma confusão – disse, sentindo algum conforto passageiro

com a honestidade daquelas três palavras. – A música estava alta e toda

a gente falava ao mesmo tempo, mas o Richard tinha agredido alguém,

não me lembro do nome dele. O Colin levou-o à enfermaria.

– O Allan Boyd – disse Holinshed. – Também falaremos sobre isto

com ele.

Colborne não acusou a interrupção, com a sua atenção fixada em

mim.

– E depois, o que aconteceu?

– Os Meredick... quero dizer, o Richard e a Meredith... estavam a

discutir. Não sei sobre o quê exatamente. – Mais precisamente, não

sabia ao certo quanto Meredith lhes contara.

– Os outros deram a entender que o Allan prestou um pouco mais de

atenção à Meredith do que o Richard achava aceitável – disse

Colborne.

– Talvez. Não sei. O Richard estava bêbedo... quer dizer, para lá de

bêbedo. Truculento. Disse algumas coisas bastante desagradáveis. A


Meredith ficou incomodada e foi para o andar de cima, para se afastar

de toda a gente. Eu fui atrás dela, só para me assegurar de que estava

bem. Ficámos a conversar no quarto dela... – Alguns momentos

vívidos de Meredith lampejaram na minha mente: fios de cabelo ruivo

colados ao seu batom, riscos pretos de seda na raiz das suas pestanas, a

alça do vestido a deslizar-lhe do ombro. – Ficámos a conversar no

quarto dela e o Richard foi lá acima e começou a bater à porta com

força – disse eu, demasiado depressa, esperando que Colborne não

reparasse em como o meu rosto e o meu pescoço tinham ficado

quentes. – Ela não queria falar com ele, e disse-lho, mas pela porta,

porque tivemos medo de a abrir, e ele acabou por se ir embora.

– A que horas foi isso?

– Meu Deus, não me lembro. Tarde. Uma e meia, talvez?

– Quando o Richard se foi embora, sabes para onde foi?

– Não – respondi, respirando um pouco mais facilmente. Mais um

pedaço da verdade. – Só saímos daí a algum tempo.

– E quando saíram?

– Toda a gente se tinha ido embora, na realidade. Eu fui para a cama.

O James já estava no quarto, mas ainda não estava a dormir. – Tentei

imaginá-lo a virar-se de lado para me segredar do outro extremo do

quarto. Mas só conseguia ver a luz amarela fraca da casa de banho, o

vapor e a água quente a distorcerem os seus traços no espelho. – Disse-

me que o Richard tinha ido para o bosque com uma garrafa de whisky.

– E foi a última vez que soubeste dele?

– Até o Alexander o encontrar? – As recordações prismáticas da

noite anterior desvaneceram-se e o frio da manhã insinuou-se em mim.

Sentia a água na pele, no cabelo, debaixo das unhas. – Foi.

– Muito bem – disse Colborne. Falava delicadamente, como se fala

com cavalos assustados e pessoas loucas. – Agora, lamento pedir-te

isto, mas preciso que me contes o que viste esta manhã.

Ainda conseguia vê-lo. Richard suspenso à tona da vida,

ensanguentado, arquejante – e nós simplesmente a olhar, à espera de

que o pano caísse. Uma tragédia de vingança, senti vontade de dizer. O

próprio Shakespeare não poderia tê-lo feito melhor.

– Vi o Richard – disse-lhe. Não propriamente um homem morto, não

realmente a flutuar. – Só, tipo, ali parado. Mas partido e esmagado,


como se tudo estivesse torcido de uma maneira errada.

– E tu... – Pigarreou. – Entraste na água. – Era a primeira vez que ele

hesitava.

– Sim. – Apertei o cobertor ao corpo, como se, de alguma maneira,

ele pudesse descongelar-me, escudar-me da sensação da água fria a

montar-me cerco. Sabia, sentado ali no calor seco do gabinete de

Holinshed, que nunca esqueceria a forma como os meus pulmões

tinham encolhido tão subitamente que pensei que iam estilhaçar-se,

como eu arquejava, mais em choque do que por falta de oxigénio. O

rosto de Richard, demasiado perto, branco como a cal. O cheiro azedo,

a ferro, do sangue. Aquele impulso louco de rir estava de volta, tão

forte como a vontade de vomitar, e por um momento arrepiante pensei

que ia vomitar na carpete aos pés de Colborne. Engoli em seco de

novo, sufoquei tudo. Ele tomou o meu acesso de náusea por emoção e

aguardou respeitosamente que eu me recompusesse.

Por fim, consegui dizer:

– Alguém tinha de o fazer.

– E ele estava morto?

Podia descrever-lhe a sensação de estender a mão para o pescoço de

Richard e encontrar a carne fria, aquela veia, que em tempos inchava e

latejava com fúria, lisa e finalmente imóvel. Em vez disso, limitei-me a

dizer:

– Sim.

Ele fitou-me, com uma expressão algo rígida, deliberadamente

neutra, como a de um jogador de póquer a fazer bluff de uma maneira

pouco convincente. Sem me dar tempo de adivinhar o que não queria

que eu visse, piscou os olhos, recostou-se na cadeira.

– Bem, não pode ter sido fácil. Lamento.

Assenti com a cabeça, sem saber ao certo se devia agradecer-lhe ou

se as condolências faziam parte dos seus deveres profissionais.

– Só mais uma pergunta, se te sentires em condições de responder.

– O que precisar.

– Fala-me sobre as últimas semanas – disse ele de forma vaga, como

se fosse apenas uma formalidade. – Têm estado todos sob muita

pressão, o Richard talvez mais do que todos. Ele andava a comportar-se

de um modo estranho?
Outro mosaico de recordações ganhou forma como um vitral

colorido, estilhaços de cor e luz. O reflexo da luz branca da Lua na

água na noite do Halloween, as equimoses roxas nos braços de James,

o vermelho-vivo do sangue a escorrer da manga de seda do vestido de

Meredith. O meu estômago, cheio de nós e contraído um momento

antes, descontraiu-se inesperadamente. O ritmo da minha pulsação

abrandou.

– Não – respondi. As palavras de Filippa ecoavam-me suavemente

na cabeça. – Antes da noite passada, tudo estava bem.

Colborne olhou-me de perto com curiosidade.

– Penso que é tudo por agora – disse, depois do que deu a sensação

de ser uma pausa demasiado longa. – Vou dar-te o meu contacto. Se te

lembrares de mais alguma coisa, por favor não hesites em dizer-me.

– É claro – disse eu. – Assim farei.

Mas é claro que não o faria. Não até passarem dez anos.

CENA 3

No quinto andar do Dellecher Hall havia uma série secreta de

quartos reservados para os convidados mais ilustres da escola. Este

apartamento peculiar dispunha de três quartos, uma casa de banho e

uma sala de estar grande no meio, onde havia uma lareira, uma coleção

de elegantes peças de mobiliário vitoriano e um piano de meia cauda.

Hallsworth House (como se chamava, tomando o apelido dos sogros

abastados de Leopold Dellecher) foi onde a direção da escola decidiu

esconder os seis alunos do quarto ano restantes, enquanto a margem

sul do lago pululasse de polícias.

O reitor Holinshed convocara uma assembleia de emergência no

auditório de música para esse fim de tarde, mas decidiu que não

devíamos estar presentes. Não queria, explicou, submeter os alunos à

tentação de trocar mexericos. Por isso, enquanto o resto da escola

ficava sentada num silêncio atordoado quatro andares abaixo, eu,

Wren, Filippa, James, Alexander e Meredith estávamos prisioneiros

junto à lareira em Hallsworth House. Como a ideia de nos deixar


completamente sozinhos não agradava a Frederick e a Gwendolyn,

uma das enfermeiras da enfermaria fora colocada de sentinela à porta

que dava para o resto do quinto andar, onde ficou sentada a fungar para

um lenço de papel, enquanto fazia umas palavras cruzadas com pouco

entusiasmo.

Agucei os ouvidos naquele silêncio sufocante, agudamente

consciente dos nossos colegas, todos reunidos sem nós. O exílio era

intolerável. Dava uma sensação algo precária e ameaçadora, de um

período de julgamento suspenso, de condenação iminente por um júri

dos nossos pares. (Oh, minha alma profética.) O nosso alívio

mercenário por Richard já não se encontrar entre nós estava a tornar-se

rapidamente amargo. Eu já descobrira mil coisas a recear. E se um de

nós deixasse escapar algo? Se falássemos no sono? Se nos

esquecêssemos de como a história supostamente se desenrolava? Ou

talvez tivéssemos de viver com medo para o resto da vida, à espera de

que o fio rebentasse, de que o machado caísse.

Alexander devia estar infetado pela mesma ansiedade.

– Achas que vão dizer a toda a gente que estamos aqui em cima? –

perguntou, fitando fixamente a carpete como se, de repente, pudesse

desenvolver visão de raio X e ver o que se passava lá em baixo.

– Duvido – respondeu Filippa. – Não querem que venha alguém por

aí acima espreitar. – Os vincos em ambos os lados da sua boca estavam

profundos e escuros, como se tivesse envelhecido dez anos em outras

tantas horas.

Os outros guardavam silêncio, em vão à escuta de um som lá de

baixo. James estava sentado com os joelhos muito juntos e os braços

cruzados sobre o peito, como se tivesse frio. Wren parecia letárgica,

mole, com as pernas dobradas no cadeirão em ângulos estranhos e

desengonçados, como os de uma boneca tombada. Meredith estava

sentada no sofá ao lado dela, de pernas cruzadas, punhos cerrados,

com a tensão a tornar duras e angulares todas as linhas elegantes do

seu corpo.

– O que acham que eles vão fazer quanto ao Júlio César? –

perguntou Alexander, quando já não conseguia suportar o silêncio.

– Vão cancelar o espetáculo – disse Filippa. – Seria de mau gosto

substituir o Richard.
– Lá se vai aquela coisa de «o espetáculo tem de continuar».

Tentei – por um momento frustrado – imaginar uma pessoa,

qualquer outra pessoa, a assumir o papel de Richard. A ameaça que

Gwendolyn fizera de me mandar aprender as falas dele e tomar o seu

lugar ecoaram na minha memória, e estremeci, rejeitei a ideia.

– Francamente – disse, receando gritar se não fizesse outra coisa

com a minha voz –, querem voltar ao palco sem ele?

Alguns abanaram a cabeça; ninguém falou. Mas então...

– Sou só eu – disse Alexander –, ou este é o dia mais longo da vida

de todos?

– Bem – disse James –, certamente não da vida do Richard.

Alexander fitou-o boquiaberto, de olhos esbugalhados com uma

expressão indignada.

– James – disse Meredith. – Mas que merda?

Filippa expirou sibilante, a esfregar a testa.

– Nós não vamos fazer isso – disse, e depois ergueu a cabeça,

olhando para todos. – Não vamos brigar e chatear-nos uns com os

outros... não por causa disto. O que não tem remédio / É preferível

esquecer. O que está feito, feito está.

Alexander soltou uma gargalhada fraca e sem humor que não me

agradou nada.

– Para o leito, para o leito, para o leito! – disse. – Meu Deus,

preciso de fumar. Quem me dera que não tivessem posto a enfermeira

ali fora. – Pôs-se de pé, rodou nos calcanhares, movendo-se daquela

maneira rápida e irrequieta típica de quando se sentia perturbado. Pôs-

se a vaguear pela sala num ziguezague sem objetivo, tocou umas notas

ao acaso no piano e depois começou a abrir armários e a remexer nas

estantes.

– Que estás a fazer? – perguntou Meredith.

– Estou à procura de álcool – disse ele. – Deve haver alguma coisa

escondida aqui. O último convidado que tiveram foi o tipo que

escreveu o livro sobre Nietzsche, e aposto que é alcoólico.

– Como podes querer beber agora? – perguntei. – Ainda sinto as

entranhas como líquido, de ontem à noite.

– É a melhor maneira de curar a ressaca. Aha! – Saiu de um armário

na parte de trás da sala com uma garrafa de algo de cor âmbar na mão.
– Alguém quer um brandy?

– Pode ser – disse Filippa. – Talvez alivie um bocado a pressão.

Ouviram-se copos a tilintar, enquanto ele vasculhava o fundo do

armário.

– Mais alguém quer?

Wren não respondeu, mas, para minha surpresa, tanto James como

Meredith disseram «Sim, por favor» ao mesmo tempo.

Alexander voltou com a garrafa numa mão, quatro copos empilhados

e inclinados na outra. Serviu-se de uma quantidade suficiente de

brandy para incendiar o Hall e depois passou a garrafa a Filippa.

– Não sei quanto queres – disse. – Pessoalmente, planeio beber até

adormecer.

– Não sei se alguma vez voltarei a dormir – disse eu. O rosto meio

esmagado de Richard, grotesco como uma máscara de carnaval,

saltava-me à mente de cada vez que fechava os olhos.

James, fitando o lume, a roer uma unha, disse:

– Pareceu-me ouvir dizer: «Não durmas.»

– Onde vamos dormir? – perguntou Meredith, ignorando-o. – Só há

três quartos.

– Bem, a Wren e eu podemos partilhar – disse Filippa, com um olhar

de lado para Wren. Ela não deu sinal de ter ouvido.

– Quem quer partilhar comigo? – perguntou Alexander. Esperou por

uma resposta, mas não a obteve. – Não se levantem de um salto todos

ao mesmo tempo.

– Eu fico aqui – disse eu. – Não me importo.

– Que horas são? – perguntou Meredith. Levou o copo aos lábios,

com uma expressão sofrida, como se aquele simples movimento fosse

monumentalmente árduo.

Filippa fitou de olhos semicerrados o relógio que estava em cima da

mesa ao seu lado.

– Nove e um quarto.

– Só? – disse eu. – Dá a sensação de já ser meia-noite.

– Dá a sensação de ser o Dia do Juízo Final. – Alexander emborcou

um enorme gole de brandy, cerrou os dentes enquanto engolia e

estendeu a mão de novo para a garrafa. Encheu o copo quase até cima e

pôs-se de pé, agarrando-o com força. – Vou para a cama – anunciou. –


Se alguém decidir que não quer acampar aqui na sala de estar, bem,

todos sabemos que não sou esquisito quanto a parceiros de cama. Boa

noite.

Saiu da sala com uma pequena inclinação rígida do corpo. Vi-o sair

e pousei a cabeça na mão, nada surpreendido por a sentir tão pesada. A

exaustão corria-me letargicamente nas veias, amortecendo tudo o resto.

Na escuridão crua da madrugada, sentira alívio mais do que

consternação perante o espetáculo da morte de Richard, e agora que o

escuro voltara – depois de tudo o que tínhamos feito e dito durante as

longas horas hipnóticas entre essas duas partes do dia – estava

demasiado cansado para sentir tristeza ou compaixão. Talvez esses

sentimentos estivessem ausentes porque eu ainda não acreditava

mesmo que aquilo acontecera. Quase esperava que Richard irrompesse

pela porta, a limpar sangue falso do rosto e a rir-se cruelmente por nos

ter enganado.

Filippa acabou a bebida e o som do seu copo a tocar na mesa fez-me

erguer a cabeça.

– Também vou para a cama – disse ela, pondo-se de pé. – Só quero

deitar-me um bocado, mesmo que não durma. Wren? E se viesses para

a cama?

Wren permaneceu imóvel por um momento e depois reanimou-se e

levantou-se do cadeirão, de olhos sonolentos, desfocados. Aceitou a

mão que Filippa lhe estendia e seguiu-a sem protestar.

– Vais dormir aqui? – perguntou Meredith, depois de elas saírem.

Falou comigo como se James não estivesse ali. Ele não reagiu nem

disse nada, como se não a tivesse ouvido.

Assenti com a cabeça.

– Fica com o outro quarto.

Ela endireitou-se – lentamente, a medo, como se lhe doesse o corpo

todo.

– Vais dormir? – perguntei.

– Vou – disse ela. – Espero nunca mais acordar.

A primeira pontada real de tristeza cravou-se em mim como uma

agulha, mas não tinha nada que ver com Richard, não propriamente.

Queria dizer alguma coisa, mas não consegui encontrar uma só palavra

que fosse adequada e portanto deixei-me ficar sentado e imóvel no sofá


enquanto também ela saía da sala, deixando metade do seu brandy por

beber. Quando a porta se fechou nas suas costas, senti que me

esvaziava, e afundei-me contra as almofadas arrastando as mãos pela

cara.

– Ela não fala a sério – disse James.

Franzi a testa por trás dos dedos.

– A intenção é reconfortar-me ou criticar?

– A intenção não é nenhuma – disse ele. – Não te zangues comigo,

Oliver. Não consigo suportar isso neste momento.

Suspirei e tirei as mãos do rosto.

– Desculpa. Não estou zangado. Só estou... Não sei. Esgotado.

– Devíamos dormir.

– Podemos tentar.

Deitámo-nos – eu num dos sofás, James no outro –, mas não nos

demos ao trabalho de ir à procura de lençóis ou almofadas de cama.

Espalmei uma almofada decorativa debaixo da cabeça e pus uma

manta a tapar as pernas. No outro sofá, James fez o mesmo, com uma

pausa para terminar o seu brandy e o que restava do de Meredith.

Depois de ele ficar instalado, apaguei o candeeiro que estava na mesa

ao meu lado, mas a sala continuava saturada com a luz da lareira. As

chamas tinham-se reduzido a pequenos rebentos amarelos a

bruxulearem entre as achas.

Enquanto via a madeira enegrecer e esboroar-se e cair, os meus

pulmões começaram a constringir-se, a recusar-se a receber ar

suficiente. Como tudo tinha dado para o torto tão depressa, tão de

repente. Onde começara sequer? Não comigo e Meredith, disse a mim

mesmo, mas meses antes... Com Júlio César? Com Macbeth? Era

impossível identificar o Ponto Zero. Contorci-me, sem conseguir

arredar a ideia de que algum enorme peso invisível me esmagava como

um pedregulho. (Era aquele enfadonho demónio acocorado, a Culpa.

Nessa altura, não o reconheci, mas nos meses que se seguiram ele

trepava para o meu peito todas as noites e ficava ali sentado a rosnar,

um pesadelo horrendo, digno de ser pintado.) O lume foi ficando

reduzido a cinzas e a sua luz foi-se retirando lentamente da sala,

esvaindo-se pelas frestas. Com falta de oxigénio, a sentir-me atordoado,


deslizei para um estado inconsciente, e foi mais como sufocar do que

como adormecer.

Um murmúrio trouxe-me de volta à vida.

– Oliver.

Sentei-me e pestanejei, a tentar ver James na penumbra, mas não

tinha sido ele a falar.

– Oliver.

Meredith tinha aparecido, uma sombra pálida no vazio escuro da

porta do seu quarto. A sua cabeça tombou contra a ombreira como um

botão de flor a desabrochar com a chuva, e por um estranho momento

perguntei-me qual seria o peso do seu cabelo, se ela o sentiria a

pender-lhe pelas costas abaixo.

Afastei a manta e atravessei a sala nas pontas dos pés, lançando

outro olhar furtivo a James. Ele estava deitado de costas, com a cabeça

virada para o lado oposto a mim. Não percebi se estava ferrado no sono

ou a tentar a todo o custo fazer de conta.

– O que foi? – segredei quando estava suficientemente perto dela

para que me ouvisse.

– Não consigo dormir.

A minha mão tremeu na direção dela, mas não chegou longe.

– Foi um dia mau – disse, sem convicção.

Ela suspirou e acenou-me debilmente com a cabeça.

– Queres entrar?

Inclinei-me para trás, a afastar-me dela, recordado à força daquela

noite no camarim em que recuara exatamente da mesma maneira. Ela

era capaz de tentar qualquer pessoa, mas o Destino não parecia um

bom alvo. Já tínhamos uma baixa.

– Meredith – disse eu –, o teu namorado está morto. Morreu esta

manhã.

– Eu sei – disse ela. – Não é isso. – Os seus olhos estavam vidrados,

sem remorsos. – Só não quero dormir sozinha.

Aquela pequena alfinetada de tristeza penetrou-me, tocou-me fundo.

Tinha sido bem treinado para desconfiar de Meredith. E por quem? Por

Richard? Por Gwendolyn? Lancei um olhar por cima do ombro a

James, mais uma vez. Só via um tufo do seu cabelo a despontar por

trás do braço do sofá.


Não importava realmente onde eu dormisse, decidi. Nada importava

muito depois daquela manhã. As nossas duas almas – se não todas as

seis – estavam perdidas.

– Está bem – disse.

Ela acenou com a cabeça, só uma vez, e voltou para o quarto. Segui-

a, fechei a porta atrás de mim. Os cobertores na cama estavam

enrodilhados, afastados com os pés, numa confusão. Enfiei-me entre os

lençóis, de calças de ganga vestidas. Dormiríamos. Só isso.

Não nos tocámos, nem sequer falámos. Ela meteu-se na cama e

deitou-se de lado, com um braço dobrado debaixo da almofada. Ficou

a olhar para mim enquanto eu me instalava, empurrava a minha

almofada um pouco mais para cima. Quando parei de me mexer, ela

fechou os olhos – mas não antes de algumas lágrimas escorrerem

deles, deslizarem entre as pestanas. Tentei não a sentir tremer contra o

colchão, mas era como o tiquetaque do relógio no lintel da lareira no

Castelo: baixo, persistente, impossível de ignorar. Depois do que talvez

tenha sido uma hora, levantei o braço, sem olhar para ela. Aproximou-

se de mim, encostou a cabeça ao meu peito. Passei o braço à volta dela.

– Meu Deus, Oliver – disse, em voz baixa e abafada, a comprimir a

boca com a mão para se conter.

Alisei o cabelo dela contra as suas costas.

– Pois é – disse. – Eu sei.

CENA 4

Tudo foi cancelado. As restantes representações de Júlio César e

todas as aulas normais antes do Dia de Ação de Graças. Tomámos chá

com Frederick duas vezes em Hallsworth House, e Gwendolyn jantou

connosco uma vez, mas durante os dois dias que faltavam para as férias

não vimos mais ninguém. Na terça-feira, regressámos ao Castelo para

ir buscar as nossas coisas. A morte de Richard fora oficialmente

declarada acidental, mas essa revelação fez surpreendentemente pouco

para atenuar a nossa ansiedade. Nesse fim de tarde, esperava-se de nós

que assistíssemos ao serviço em sua memória, onde veríamos os outros


alunos – e seríamos vistos por eles – pela primeira vez desde a noite de

sábado.

O Castelo estava vazio, mas algo tinha mudado no bosque ao seu

redor. Havia um cheiro estranho no ar, a produtos químicos e

equipamento, borracha e plástico, os vestígios dos odores de uma dúzia

de estranhos que não estavam à vista. Os degraus que davam para a

doca estavam cortados por um xis amarelo-vivo de uma fita da polícia.

Lá em cima na Torre, arrastei a minha mala de debaixo da cama e meti

nela as minhas coisas sem prestar atenção, empilhando camisas e

calças em cima de sapatos desirmanados e de meias e cachecóis

enrolados. Pela primeira vez, senti-me cheio de vontade de passar

algum tempo em casa no período do Dia de Ação de Graças.

Normalmente, eu, Filippa e Alexander ficávamos no campus durante as

férias, mas o reitor Holinshed informara-nos de que a escola estaria

encerrada, pela primeira vez em vinte anos.

Levei a minha mala pela escada em caracol até ao segundo andar, a

praguejar e a bufar quando as rodas me pisavam os dedos dos pés e os

meus dedos das mãos se esmagavam contra o corrimão. Entrei na

biblioteca, a transpirar e irritado, a arrastar a mala atrás de mim. Os

outros já se tinham ido embora, menos Filippa, que estava de pé em

frente à lareira com o atiçador de latão na mão apontado para o soalho,

como uma espada. Ergueu a cabeça quando eu entrei, e atirei-me para

uma cadeira – evitando deliberadamente a que se encontrava mais

perto, que, de alguma maneira, ainda considerava como pertencendo a

Richard.

– O lume tem estado aceso este tempo todo? – perguntei.

– Não – respondeu ela, erguendo o atiçador para avivar as duas achas

pequenas. – Acendi-o eu.

– Porquê?

– Não sei. Parecia-me errado não estar aceso.

– Tudo parece errado – disse eu.

Assentiu com a cabeça distraidamente.

– Vens connosco para o aeroporto?

– Vou – disse ela.

Camilo oferecera-se para levar de carro os alunos do quarto ano ao

aeroporto O’Hare. Aí, Meredith apanharia o avião para Nova Iorque,


Alexander para Filadélfia, James para São Francisco. Wren iria de

carro com o tio e a tia e depois apanharia um avião para Londres com

eles. (Tinham chegado no dia anterior, e Holinshed reservara-lhes um

quarto no único hotel bom de Broadwater, visto que Hallsworth House

estava ocupada.) Eu ia para o Ohio. Quando questionada com

insistência, Filippa dizia às pessoas que era de Chicago, mas eu não

fazia ideia se ela tinha família lá.

– E depois disso? – perguntei, tentando em vão soar casual.

Ela não respondeu, ficando a fitar o lume, com os olhos escondidos

pelo reflexo das chamas nos seus óculos.

– Pip, juro que não estou a tentar intrometer-me...

Ela espicaçou as brasas mais uma vez, um pouco agressivamente.

– Então não o faças.

Mexi-me na cadeira. O que queria dizer-lhe parecia ilogicamente

importante.

– Sabes que podes vir comigo para minha casa se quiseres, certo? –

disse eu, abruptamente. – Não estou a dizer que o faças ou que devas

fazê-lo, só que... se precisares de algum sítio para onde ir. Quer dizer,

eles iam passar-se, porque nunca levei uma rapariga lá a casa, e iam

interpretar tudo mal, mas só... para o caso de ser preciso. É tudo,

desculpa lá. Eu calo-me.

Ela virou-se de costas para o lume e senti-me aliviado por ver que

não estava de testa franzida. Em vez disso, olhava-me com uma

expressão triste e perturbada. Apoderou-se de mim a estranha ideia

infundada de que ela estava a pensar se devia ou não dizer Amo-te.

Mas a diferença entre nós era que ela presumia que as pessoas

simplesmente sabiam esse tipo de coisa, enquanto a mim me

preocupava sempre que não soubessem.

– Oliver – foi o que ela disse de facto. Suspirou o meu nome como se

fosse uma golfada de algo quente e doce, e depois encostou-se ao lintel

da lareira, talvez demasiado cansada para se ter de pé sem se apoiar. –

Estou cheia de medo. – Disse aquilo com um sorriso irónico, como se

fosse de alguma maneira embaraçoso.

– De quê? – perguntei, não porque não houvesse nada de que ter

medo, mas por haver tantas coisas assustadoras.

Encolheu os ombros.
– Do que vai acontecer agora. – Nem um nem o outro voltámos a

falar antes de o relógio no lintel da lareira começar a badalar. Filippa

ergueu os olhos. – São cinco horas.

A cerimónia em memória de Richard estava marcada para as cinco e

meia.

– Meu Deus – disse eu. – Pois é. Devíamos ir. – Icei-me da cadeira

com grande relutância, mas Filippa não se mexeu. – Vens?

Ela piscou os olhos com uma expressão de perplexidade vácua,

como se tivesse acabado de acordar de um sonho que já não conseguia

recordar.

– Vai andando. – Sacudiu a parte da frente da camisola, que estava

com riscos de fuligem. – Eu devia mudar de roupa.

– Está bem. – Parei meio dentro meio fora da sala. – Pip?

– Sim?

– Não estejas com medo. – Era egoísta dizer aquilo. Se ela perdesse a

calma, eu não conseguia imaginar o que seria dos outros todos. Ela era

a única de nós que nunca vacilava.

Esboçou um sorriso tão débil que eu talvez o tenha imaginado.

– OK.

CENA 5

Fui dar com James no topo do trilho, parado, a fitar o caminho até lá

abaixo como se não conseguisse dar nem mais um passo. Se me ouviu

aproximar, não reagiu, e esperei por trás dele no silêncio do lusco-

fusco, sem saber o que fazer. Um mocho piou algures no topo das

árvores – talvez o mesmo mocho da noite de sábado.

– Achas que é um pouco mórbido? – perguntou ele, sem nenhum

preâmbulo, sem sequer se virar. – Fazer a cerimónia em memória dele

na praia.

– Suponho que o auditório daria uma sensação demasiado... festiva –

disse eu. – Aqueles dourados todos.

– Seria de esperar que o fizessem o mais longe possível do lago.


– Sim. – Lancei um olhar para trás, na direção do Hall. Poderia ser

de novo Halloween, eu e James espreitando como sombras entre as

árvores, mas o ar estava demasiado frio, pressionava-me a pele como

uma lâmina de aço. – Já não confio nele.

– O que queres dizer com isso?

– Primeiro o Halloween, agora isto – disse eu, com um encolher de

ombros que ele não viu. – É como se o lago se tivesse virado contra

nós. Como se houvesse alguma náiade lá em baixo que nós chateámos.

Talvez a Meredith tivesse razão e devêssemos ter nadado em pelota no

início do período. – Só me apercebi de que aquilo soava estúpido

quando me saiu da boca.

– Como uma espécie de ritual pagão? – perguntou James, virando a

cabeça de modo que eu lhe via o lado do rosto, a curva da face. – Por

Deus, Oliver. Dorme com ela se tem de ser, mas não deixes que se

meta na tua cabeça.

– Não ando a dormir com ela. – Vi que ia protestar e acrescentei: –

Não figurativamente.

– Não importa realmente, pois não? – perguntou ele, e virou-se para

me fitar, com um movimento deliberadamente casual, nada

convincente.

– O quê?

– Se é figurativo.

– Não compreendo.

Ergueu a voz, que trespassou o silêncio suave da floresta como uma

lâmina.

– Não, não deves compreender, porque não acredito realmente que

sejas esse tipo de idiota.

– James – disse eu, demasiado perplexo para me sentir realmente

zangado –, do que estás a falar?

Desviou o olhar.

– De ti – disse, a fitar as árvores. – De ti e dela. – Fez um esgar,

como se dizer aquelas palavras juntas lhe deixasse um mau gosto na

boca. – Não compreendes o aspeto que dá, Oliver? Não importa se

andas ou não a dormir mesmo com ela... dá mau aspeto.

– Que te interessa o aspeto que dá? – perguntei, forçando o ar de

indignação, mais desanimado do que outra coisa. O seu sarcasmo era


cáustico, incaracterístico.

– Não me interessa – disse ele. – Realmente não me interessa. Mas

preocupo-me contigo e com o que pode acontecer se continuares a

comportar-te dessa maneira.

– Eu não...

– Sei que não compreendes, nunca compreendes. O Richard morreu.

Lancei novamente um olhar por cima do ombro para o Hall, a

silhueta quadrada no cimo da colina.

– Não é propriamente como se o tivéssemos matado.

– Não sejas ingénuo, Oliver, por uma vez na vida. Ele está morto há

dois dias e a namorada dele já dorme contigo todas as noites? –

Abanou a cabeça, com os pensamentos a saírem num jorro espontâneo

e implacável. – Isso não vai agradar às pessoas. Vão falar, é inevitável.

– Pôs a mão em concha por trás de uma orelha e disse: – Abri os

ouvidos, pois quem há de tapar / A entrada à audição se o sonoro

Boato fala?

Fiquei com a voz presa na garganta, seca como giz.

– Porque estás a falar como se o tivéssemos matado?

Agarrou a frente do meu casaco como se quisesse estrangular-me.

– Porque é o que parece que podemos ter feito, merda! Achas que as

pessoas não vão pensar que alguém pode tê-lo empurrado para o lago?

Continua a dormir com a Meredith e vão pensar que foste tu.

Fitei-o, com a surpresa a imobilizar-me. A sua mão era a única coisa

sólida, a força da sua fúria assestada no meu peito sob a forma de um

punho.

– James, a polícia... eles disseram que foi um acidente. Ele bateu

com a cabeça – disse eu. – Ele caiu.

Deve ter visto o medo no meu rosto, porque as linhas duras à volta

dos seus olhos e da sua boca desvaneceram-se, como se alguém tivesse

cortado o fio certo para o desativar antes de ele explodir.

– Sim, é claro que foi isso que aconteceu. – Olhou para baixo, largou

o meu casaco e passou a mão pela frente dele, a alisar as rugas. –

Desculpa lá, Oliver. Ficou tudo descontrolado.

Encolhi os ombros com embaraço, ainda meio preso numa paralisia

nervosa.

– Não tem mal.


– Perdoas-me?

– Sim – respondi, uma fração de segundo demasiado tarde. –

Sempre.

CENA 6

As minúsculas luzes de mil velas bruxuleavam na praia. Metade dos

presentes segurava círios brancos finos em recipientes de cartão, e

pairavam lamparinas no fim de cada fila, como pequenos arrumadores

espectrais. Os alunos de música coral do quarto ano estavam juntos

num bando compacto no areal, a cantarem baixinho, e as suas vozes

cintilavam da água como se as nossas sereias caprichosas estivessem

de luto. Ao seu lado na praia estavam um velho pódio de madeira e um

cavalete coberto. Desabrochavam lírios na base de cada um deles, a sua

fragrância ténue demasiado delicada para disfarçar o cheiro terroso do

lago.

Eu e James percorremos a coxia central por entre um exército de

murmúrios que abria alas com relutância para nos dar passagem. Wren,

os pais de Richard, Frederick e Gwendolyn estavam sentados no

primeiro banco à direita – Meredith e Alexander à esquerda. Sentei-me

junto deles, James ao meu lado, e, quando Filippa chegou, eu e

Alexander afastámo-nos para lhe dar lugar entre nós. Porque nos

tinham posto nos lugares da frente, onde todas as outras pessoas

poderiam olhar para nós? As filas de bancos davam a impressão de

serem a galeria de uma sala de tribunal, com centenas de olhos a

queimarem a minha nuca. (Essa sensação acabaria por se tornar

familiar. É um tipo singular de tortura para um ator, ter a atenção total

de uma assistência e virar-lhe as costas por vergonha.)

Lancei um olhar para o banco do outro lado da coxia. Wren estava

sentada junto do tio, que se parecia tanto com Richard que não

consegui deixar de o fitar embasbacado. O mesmo cabelo preto, os

mesmos olhos pretos, a mesma boca cruel. Mas o rosto familiar era

mais velho e tinha rugas, e uns fios prateados tinham-se insinuado nas

suíças. Aquilo, não me restavam dúvidas, era no que Richard se teria


tornado daí a uns vinte anos. Mas não havia agora nenhuma hipótese

de tal acontecer.

Ele deve ter sentido o meu olhar, da mesma maneira que eu sentia o

olhar de todas as outras pessoas, porque se virou de repente na minha

direção. Desviei os olhos, mas não suficientemente depressa – houve

um momento de contacto, um choque de eletricidade que me sacudiu

de dentro para fora. Inspirei fundo, com as luzes das velas a bailarem

na minha visão periférica. Porquê todos estes raios?, pensei. Porquê

estes fantasmas errantes?

– Oliver? – segredou Filippa. – Estás bem?

– Estou. – respondi. – Ótimo. – Não acreditei em mim, nem

acreditou Filippa, mas, antes que ela pudesse dizer mais alguma coisa,

o coro ficou em silêncio e o reitor Holinshed apareceu na praia. Estava

todo vestido de preto, excetuando o cachecol (no azul de Dellecher,

com a chave e a pena bordadas numa das pontas) que lhe pendia mole

do pescoço. Além dessa fita de cor, ele era uma figura sombria e

imponente, com o seu nariz adunco a lançar-lhe uma sombra feia no

rosto.

– Boa noite. – Havia um tom murcho e fatigado na sua voz.

Filippa entrelaçou os dedos nos meus. Apertei-lhe a mão, grato por

ter algo a que me agarrar.

– Estamos aqui – disse Holinshed – para honrar a memória de um

jovem notável que todos conhecíeis. – Pigarreou, uniu as mãos atrás

das costas e, por um momento, olhou para o chão. – Como melhor

recordar o Richard? – perguntou. – Ele não é o tipo de pessoa que em

breve se desvanecerá das vossas recordações. Era, pode dizer-se, maior

do que a vida. Não parece exagerado pensar que é maior do que a

morte também. Quem vos recorda isto? – Fez nova pausa, mordeu o

lábio. – É impossível não pensar em Shakespeare quando se pensa no

Richard. Ele pisou o nosso palco muitas vezes, em muitos papéis. Mas

há um papel que nunca tivemos oportunidade de o ver desempenhar.

Aqueles de entre vós que o conheciam melhor provavelmente

concordarão que ele teria dado um admirável Henrique V. Falando por

mim, sinto-me defraudado.

As pulseiras de Gwendolyn tilintaram quando ela levou a mão à

boca. Rolaram lágrimas pelo seu rosto, arrastando riscos longos de


rímel borratado com elas.

– Henrique V é um dos heróis de Shakespeare mais amados e mais

problemáticos, tal como Richard era um dos nossos. Serão lamentados

de igual modo. – Holinshed meteu a mão ao bolso fundo do sobretudo,

à procura de algo. Enquanto o fazia, disse: – Antes de ler isto, tenho de

pedir aos atores colegas de Richard que me perdoem. Nunca me

arvorei em ator, mas desejo prestar a minha homenagem e espero que,

dadas as circunstâncias, tanto vós como ele tenham a bondade de me

perdoar a fraca prestação. – Houve um murmúrio contido de riso.

Holinshed desdobrou o papel que tirara do bolso. Ouvi um roçagar de

tecido e olhei para o lado. Alexander tinha pegado na outra mão de

Filippa. Olhava em frente, com o queixo espetado.

Holinshed: – Toldem-se os céus de luto, e venham as trevas

substituir a claridade!

E vós, cometas, que precedeis as mudanças que transtornam os

tempos e os Estados,

sacudi no firmamento as vossas tranças de cristal,

e fustigai com elas as estrelas rebeldes

que consentiram a morte de Henrique!

A Inglaterra nunca perdeu um rei de tal valor.

Franziu a testa, amarrotou o papel e meteu-o ao bolso.

– Dellecher nunca perdeu um tal aluno – disse ele. – Recordemos

Richard bem, como ele teria querido. É meu privilégio desvendar para

vós o seu retrato, que a partir de hoje ficará pendurado no átrio do

Teatro Archibald Dellecher.

Estendeu a mão para tirar o pano preto mole do cavalete. O rosto de

Richard surgiu de trás dele – o seu retrato para Júlio César, como era

antes de as suas cores e a sua dimensão serem alteradas – e o coração

saltou-me para a garganta. Senti-me de novo a saltar da doca, a

mergulhar na água gélida do lago. Ele fitava-nos furioso do outro lado

da praia – imperioso, enraivecido, vivo, de uma maneira abominável.

Apertei a mão de Filippa com tanta força que os nós dos seus dedos

ficaram brancos. Holinshed estava errado: Richard não queria ser bem

lembrado – nunca fora tão clemente como isso. Queria provocar

devastação no resto de nós.


– Só posso dizer isto sobre o Richard – prosseguiu Holinshed, mas

quase não o ouvi. – Não tive o privilégio de o conhecer tão bem como

muitos de vós. Portanto, afastar-me-ei agora e deixarei que alguém

mais próximo e mais querido fale.

Terminou sem mais nenhum gesto grandioso e retirou-se do pódio.

Lancei um olhar consternado pelo banco, mas Meredith permanecia

imóvel. Estava sentada, pálida, com a mão esquerda de Alexander no

colo, apertada com força entre as suas. Nós os quatro estávamos

ligados, como bonecos recortados numa tira de papel. Sentia a

pulsação de Filippa entre os meus dedos e afrouxei a pressão.

Um sussurro discreto fez-me olhar para o outro lado. Wren estava de

pé e a dirigir-se para o pódio. Quando chegou lá, quase não era visível,

um rosto pálido e cabelos louros finos pairando logo acima do

microfone.

– Como o Richard e eu nunca tivemos irmãos, éramos mais

chegados do que a maior parte dos primos – disse ela. – O reitor

Holinshed teve razão ao dizer que ele era maior do que a vida. Mas

nem todas as pessoas gostavam disso nele. De facto, sei que muitos de

vocês não gostavam nada dele. – Ergueu a cabeça, mas não olhou para

nenhum de nós. Falava em voz baixa e trémula, mas os seus olhos

estavam secos. – Para ser perfeitamente sincera convosco, por vezes eu

também não gosto... não gostava dele. O Richard não era uma pessoa

de quem fosse fácil gostar. Mas era uma pessoa que era fácil amar.

No banco do outro lado da coxia, Mrs. Stirling chorava em silêncio,

com uma mão a agarrar a gola do seu casaco. O marido estava sentado

com as mãos fechadas em punho entre os joelhos.

– Oh, meu Deus – murmurou Alexander. – Não consigo aguentar

isto.

Meredith enterrou as unhas no pulso dele. Mordi a língua, cerrei os

dentes com tanta força que pensei que iam partir-se.

– A ideia de eu ter de... prescindir dele antes de estarmos velhos e a

cair aos pedaços nunca me passou pela cabeça – continuou Wren,

escolhendo as palavras uma a uma, como uma criança a saltar de pedra

em pedra para atravessar um ribeiro. – Mas não sinto só que perdi um

primo. Sinto que perdi uma parte de mim. – Soltou uma espécie de

gargalhada trágica.
James agarrou a minha mão tão repentinamente que me sobressaltei,

mas ele não parecia ver-me. Olhava para Wren com um certo desespero

na expressão, engolindo em seco repetidamente, como se fosse vomitar

a qualquer momento. Do meu outro lado, Filippa tremia.

– Ontem à noite, como não conseguia dormir, pus-me a reler Noite

de Reis – disse Wren. – Todos sabemos como é o final, feliz, é claro,

mas também há ali tristeza. Olivia perdeu um irmão. Assim como

Viola, mas lidam com isso de maneiras muito diferentes. Viola muda

de nome, altera toda a sua identidade e, quase imediatamente,

apaixona-se. Olivia fecha-se, afasta-se do mundo e recusa deixar entrar

o amor. Viola tenta desesperadamente esquecer o seu irmão. Oliva

talvez o recorde excessivamente. Então, o que fazer? Ignorar a dor do

luto ou ceder-lhe? – Ergueu os olhos da areia e deu connosco, e o seu

olhar vagueou de rosto em rosto. Meredith, Alexander, Filippa, eu e,

finalmente, James. – Todos sabem que o Richard recusa ser ignorado –

disse ela, dirigindo-se a nós e a mais ninguém. – No entanto, todos os

dias em que deixamos a dor do luto entrar, talvez deixemos também

sair um pouco dela, e por fim conseguiremos respirar de novo. Pelo

menos, é como Shakespeare contaria a história. Hamlet diz: Adia um

pouco mais a felicidade. Mas só um pouco mais. O espetáculo ainda

não terminou. Assim um nobre coração hoje se quebra. Boa noite.

Nós, os que ficámos, teremos de continuar.

Parou, recuou do pódio. Alguns sorrisos hesitantes e devastados

tinham aparecido na assistência, mas não em nenhum de nós.

Apertávamos as mãos uns dos outros com tanta força que já não

conseguíamos senti-las. Wren voltou para o seu lugar em passos

vacilantes. Afundou-se entre a tia e o tio, permanecendo direita por um

ou dois segundos, e de seguida tombou sobre o colo do tio. Ele

debruçou-se sobre ela, protetor, tentando escudá-la com os braços, e

daí a pouco tempo começaram ambos a tremer tanto que eu não

consegui perceber qual dos dois soluçava.

CENA 7
Fez-se um velório de improviso no pub The Bore’s Head. Estávamos

todos a necessitar desesperadamente de beber, e nenhum de nós queria

regressar ao isolamento de Hallsworth House. A nossa mesa parecia

desoladoramente vazia. O lugar habitual de Richard estava desocupado

(ninguém queria sequer olhar para o espaço vazio onde ele devia ter

estado), Wren ia já a caminho do aeroporto e a maior parte das outras

pessoas só ficou o tempo suficiente para expressar as suas condolências

e fazer um brinde à memória de Richard antes de partir. Não falávamos

muito. Alexander pagara uma garrafa inteira de Johnnie Walker Black,

que estava aberta no meio da mesa, com o seu conteúdo a diminuir

lentamente até só restar um dedo de líquido.

Alexander: – A que horas é que o Camilo vem buscar-nos?

Filippa: – Daqui a pouco. Alguém tem um voo antes das nove?

Todos abanámos a cabeça ao mesmo tempo.

Alexander: – James, a que horas chegas?

James: – Às quatro da manhã.

Filippa: – E o teu pai vai-te buscar a essa hora?

James: – Não. Vou apanhar um táxi.

Meredith: – Alexander, para onde é que tu vais?

Alexander: – Vou ficar com o meu irmão adotivo em Filadélfia. Não

faço puto ideia de onde está a minha mãe. E tu?

Ela inclinou o copo, ficou a ver os restos aguados do whisky

gotejarem à volta dos cubos de gelo que estavam a derreter.

– Os meus pais estão em Montreal com o David e a mulher dele –

disse. – Portanto, vamos ser só eu e o Caleb no apartamento, isto se ele

vier para casa do trabalho.

Queria reconfortá-la de alguma maneira, mas não me atrevia a tocar-

lhe, não em frente aos outros. Sentia um aperto no peito, como se todo

o choque e o horror dos últimos dias tivessem exercido uma pressão

excessiva sobre o meu coração.

Eu: – Temos os planos de férias mais deprimentes de todos os

tempos.

James: – Penso que os da Wren devem ser piores.

Alexander: – Fogo, vai à merda por sequer dizeres isso.

James: – Só estava a ver a coisa de outra perspetiva.

Meredith: – Acham que ela volta depois das férias?


O silêncio abateu-se com força sobre a mesa.

– O quê? – disse Alexander em voz alta.

Meredith recostou-se, lançou um olhar à mesa ao lado.

– Quer dizer, pensem no assunto – disse, com um quarto do volume

da voz de Alexander. – Ela vai para casa, vai ao funeral do primo, tem

três dias de luto e depois atravessa o oceano e regressa para fazer

exames e ir a audições outra vez? O stress podia matá-la. – Encolheu

os ombros. – Talvez não volte. Talvez acabe o curso no próximo ano ou

nunca. Não sei.

– Ela disse-te alguma coisa? – perguntou James.

– Não! Ela só... eu não havia de querer voltar imediatamente se

estivesse no lugar dela. Tu querias?

– Jesus Cristo. – Alexander passou as mãos pelo rosto. – Nem sequer

tinha pensado nisso.

Além de Meredith, ninguém tinha pensado naquilo. Fitámos as

nossas bebidas, com as faces coradas com vergonha.

– Ela tem de voltar – disse James, olhando de mim para Meredith,

como se um de nós pudesse de algum modo tranquilizá-lo. – Tem de

voltar.

– Isso pode não ser o melhor para ela – disse Meredith. – Talvez

precise de algum tempo afastada daqui. De Dellecher, e... de todos nós.

James ficou imóvel por um momento e depois levantou-se e saiu da

mesa sem mais uma palavra. Alexander ficou a vê-lo afastar-se,

sombrio.

– E então sobraram quatro – disse.

CENA 8

A casa da minha família no Ohio não era um lugar que eu gostasse

de visitar. Era uma de doze casas quase idênticas (todas revestidas a

painéis de madeira pintados em tons quase iguais de bege) numa

pacata rua suburbana. Cada uma das casas era completada por uma

caixa do correio preta, um caminho de acesso à garagem cinzento e um


relvado verde-esmeralda salpicado com pequenos arbustos redondos,

alguns dos quais estavam já envoltos em luzes de Natal brancas.

O jantar do Dia de Ação de Graças (tradicionalmente um tédio, só

animado pela abundância de vinho e de comida) foi excecionalmente

tenso. A minha mãe e o meu pai estavam sentados em lados opostos da

mesa, vestidos com as roupas que eu considerava as suas «roupas de

igreja»: calças pretas e camisolas verde-ervilha embaraçosamente

iguais. As minhas irmãs acotovelavam-se num dos lados da mesa e eu

estava sentado sozinho no outro, a perguntar-me quando Caroline tinha

ficado tão magra e quando, já agora, Leah fizera o oposto e

desenvolvera curvas. Ambas as mudanças pareciam ter-se tornado

motivos de discórdia na minha ausência – o meu pai disse a Caroline

para «parar de brincar com o jantar e comer» mais do que uma vez e os

olhos da minha mãe estavam sempre a desviar-se para o decote de

Leah, como se a sua profundidade a deixasse incrivelmente

desconfortável.

Alheia à atenção da mãe, Leah disparara-me várias perguntas sobre

Dellecher desde que tínhamos aberto o vinho. Por alguma razão,

parecia muito interessada na minha via alternativa de estudos,

enquanto Caroline nunca mostrara o menor interesse por ela. (Eu sabia

que não valia a pena sentir-me ofendido. Caroline raramente mostrava

interesse por alguma coisa que não estivesse relacionada com exercício

físico frenético ou o seu fetiche da moda dos anos 1960.)

– Já sabes que peça vão fazer no semestre da primavera? – perguntou

Leah. – Nós acabámos de ler Hamlet na disciplina de Literatura

Mundial.

– Duvido de que seja essa – disse eu. – Levaram-na à cena no ano

passado.

– Quem me dera ter-te visto em Macbeth – continuou ela, a toda a

pressa. – O Halloween aqui foi uma seca incrível.

– Não estás demasiado crescida para te disfarçares?

– Fui a uma festa absolutamente horrível disfarçada de Amelia

Earhart. Acho que era a única rapariga lá que não estava vestida com

alguma espécie de lingerie.

A palavra «lingerie», vinda da sua boca, era um pouco alarmante. Eu

não tinha vindo muito a casa nos últimos quatro anos e ainda pensava
nela como muito mais nova do que os seus dezasseis anos. – Enfim –

disse eu. – Isso é... enfim.

– Leah – disse a minha mãe. – Durante o jantar não.

– Mãe, por favor.

(Quando começara ela a falar naquele tom? Estendi a mão para o

meu copo de vinho e esvaziei-o a toda a pressa.)

– Tens fotografias de Macbeth? – insistiu Leah. – Adorava vê-las.

– Não lhe metas ideias na cabeça, por favor – disse o meu pai. – Já

basta um ator na família.

Interiormente, concordava com ele. A ideia de a minha irmã usar só

uma camisa de noite e ser mirada por todos os rapazes de Dellecher

fazia-me sentir ligeiramente nauseado.

– Não te preocupes – disse Carolina, afundada na cadeira e a puxar

um fio solto no punho da sweatshirt. – A Leah é demasiado esperta

para isso.

As faces de Leah incendiaram-se num tom rosa.

– Porque me chamas sempre isso como se fosse uma coisa horrível?

– Meninas – disse a minha mãe. – Agora não.

Caroline sorriu, trocista, e ficou em silêncio, a espalhar puré de

batata no prato com o garfo. Leah bebeu um gole de vinho (era-lhe

permitido meio copo, e só meio copo), ainda corada. O meu pai

suspirou, abanou a cabeça e disse:

– Oliver, passa-me o molho.

Uma penosa meia hora depois, a minha mãe empurrou para trás a

cadeira e pôs-se de pé para levantar a mesa. Leah e Caroline

começaram a levar coisas da sala de jantar, mas, quando fiz menção de

me levantar, o meu pai disse-me que ficasse onde estava.

– Eu e a tua mãe precisamos de falar contigo.

Sentei-me mais direito, à espera. Mas ele não disse mais nada,

limitando-se a voltar a atenção para o prato, a debicar os pedacinhos de

massa da tarte que tinham ficado. Servi-me de um quarto copo de

vinho com mãos desajeitadas, nervosas. Teriam ouvido a notícia de

Richard, de alguma maneira? Eu passara dois dias a rondar a caixa do

correio e pegara no boletim de Dellecher mal ele chegou, com a

esperança de evitar precisamente isso.


Só daí a cinco minutos a minha mãe voltou para a sala. Sentou-se ao

lado do meu pai na cadeira que Leah tinha ocupado durante o jantar e

sorriu, um espasmo nervoso do seu lábio superior. O meu pai limpou a

boca, pousou o guardanapo no colo e olhou diretamente para mim.

– Oliver – disse. – Precisamos de falar contigo sobre algo difícil.

– Está bem, o quê?

Virou-se para a minha mãe (como fazia sempre que era preciso dizer

«algo difícil»).

– Linda?

Ela estendeu o braço por cima da mesa e pegou na minha mão antes

de eu ter tempo de a retirar. Contrariei o impulso de me debater para

me soltar.

– Não há uma maneira fácil de dizer isto – começou ela, já com

lágrimas nos olhos. – E, provavelmente, vai ser uma surpresa para ti,

porque tens estado ausente tanto tempo.

A sensação de culpa percorreu-me a espinha como uma aranha.

– A tua irmã... – Soltou um pequeno suspiro estrangulado. – A tua

irmã não está nada bem.

– A Caroline – disse o meu pai, como se não fosse óbvio a qual delas

a minha mãe se referia.

– Não vai voltar para a escola neste semestre – continuou a minha

mãe. – Tem andado a tentar a todo o custo acabar, mas o médico acha

que será melhor para a saúde dela se fizer uma pausa.

Olhei dela para o meu pai e disse:

– OK. Mas o que...

– Não interrompas, por favor – disse ele.

– Tudo bem. Desculpem.

– Estás a ver, meu querido, a Caroline não vai voltar para a escola,

mas não vai ficar aqui – explicou a minha mãe. – Os médicos acham

que ela precisa de ser mais vigiada do que nos é possível, já que

estamos fora a trabalhar todos os dias.

Caroline era a que tinha menos senso comum de nós os três, mas o

facto de os meus pais falarem sobre ela como se não pudesse ser

deixada sozinha era mais do que só um pouco preocupante.

– O que quer isso dizer? – perguntei.


– Quer dizer que ela vai... ausentar-se por algum tempo, para ficar

com pessoas que podem ajudá-la.

– O quê, tipo um centro de reabilitação?

– Não estamos a chamar-lhe isso – resmungou o meu pai, como se eu

tivesse dito uma obscenidade.

– OK, então o que estamos a chamar-lhe?

A minha mãe pigarreou delicadamente.

– Chama-se um centro de recuperação.

Olhei dela para o meu pai e de novo para ela antes de dizer:

– De que diabo é que ela está a recuperar?

O meu pai fez um som de impaciência e disse:

– Com certeza reparaste que ela não está a comer bem.

Soltei a mão. A minha mente estava vazia, emperrada, incapaz de

processar aquela informação. Bebi mais um gole de vinho e depois

pousei as mãos no colo, fora do alcance da minha mãe.

Eu: – Certo. Isso é... horrível.

O meu pai: – Sim. Mas agora temos de falar sobre o que significa

para ti.

Eu: – Para mim? Não compreendo.

A minha mãe: – Bem, já vou chegar aí.

O meu pai: – Por favor ouve só, está bem?

Cerrei os molares e pus-me a olhar para a minha mãe.

– O centro de recuperação é caro – disse ela. – Mas queremos que

ela tenha o melhor tratamento possível. E o problema é... o problema é

que não temos posses para o centro de recuperação e a tua escola ao

mesmo tempo.

O meu corpo inteiro ficou dormente tão depressa que me senti

atordoado.

– O quê? – disse, como se não a tivesse ouvido.

– Oh, Oliver, lamento muito. – As lágrimas tinham-lhe saltado dos

olhos e faziam manchas escuras na toalha da mesa, como gotas de cera

de uma vela. – Temo-nos debatido com isto, mas a verdade é que, neste

momento, precisamos de ajudar a tua irmã. Ela não está bem.

– E se ela estudasse em casa? Acabaram de dizer que saiu da

escola... e se fizessem isso?

– Não é suficiente – disse o meu pai, com rispidez.


Olhei dele para ela, de boca aberta, com a incredulidade a enregelar-

me o sangue nas veias. Latejava e escorria-me lentamente do coração

para o cérebro.

– Falta-me um semestre para acabar – disse. – O que hei de fazer?

– Bem, vais ter de falar com a escola – disse o meu pai. – Pensar em

contrair um empréstimo de última hora se realmente queres acabar o

curso.

– Se quero... Porque não havia de querer acabar o curso?

Encolheu os ombros.

– Não consigo imaginar que um diploma faça realmente grande

diferença para um ator.

– Eu... O quê?

– Ken – disse a minha mãe, desesperadamente. – Por favor, vamos

só...

– Deixem-me ver se percebi bem. – A acha de fúria acesa no fundo

do meu estômago devorava rapidamente os pequenos galhos de

incredulidade. – Estão a dizer-me que tenho de desistir de Dellecher

porque a Caroline precisa que um qualquer médico das celebridades

lhe dê a sopa à boca?

O meu pai bateu com a mão aberta na mesa.

– Estou a dizer-te que precisas de começar a pensar em alternativas

monetárias, porque a saúde da tua irmã é mais importante do que nós

pagarmos vinte mil dólares para tu brincares ao faz de conta!

Fitei-o furioso por um momento, numa indignação estupefacta, e

depois empurrei a cadeira para trás e saí da mesa.

CENA 9

No dia seguinte, passei quatro horas fechado no escritório do meu

pai, a falar ao telefone com o pessoal administrativo de Dellecher.

Passaram-me a chamada para Frederick, para Gwendolyn e, por fim,

até para o reitor Holinshed. Todos eles pareciam exaustos, mas todos

me garantiram que alguma coisa se arranjaria. Foram sugeridos

empréstimos, juntamente com a modalidade de trabalhador-estudante e


candidaturas tardias a uma bolsa de estudos. Quando finalmente

desliguei, retirei-me para o meu quarto, deitei-me na cama e pus-me a

fitar o teto.

Inevitavelmente, os meus olhos vaguearam para a secretária (cheia

de fotografias e programas de antigas produções), para a estante

(atulhada de livros de bolso em mau estado, comprados por um dólar

ou menos nos alfarrabistas e nas vendas em bibliotecas) e de cartaz em

cartaz, colados nas paredes, uma galeria das minhas tentativas teatrais

escolares. A maior parte era de peças de Shakespeare: Noite de Reis,

Medida por Medida, até um panfleto que restara de uma produção

terrivelmente inapropriada de Cimbelino, cuja ação decorria no Sul dos

Estados Unidos no período anterior à Guerra Civil, por nenhuma razão

que o encenador alguma vez tivesse conseguido explicar

satisfatoriamente. Suspirei com uma tristeza estranha e afetuosa,

perguntando-me que diabo ocupara os meus pensamentos antes de

Shakespeare. O meu primeiro encontro atabalhoado com ele aos onze

anos tornara-se rapidamente uma verdadeira idolatria do Bardo.

Comprei um exemplar das obras completas com a minha preciosa

semanada e andava com ele para todo o lado, muito contente por poder

ignorar a realidade menos poética do mundo exterior. Nunca na minha

vida tinha tido a experiência de algo tão inegavelmente empolgante e

importante. Sem ele, sem Dellecher, sem a minha companhia de

colegas de turma loucos por teatro, o que seria de mim?

Decidi – calmamente, sem hesitação – que preferiria assaltar um

banco ou vender um rim a deixar que tal coisa acontecesse. Relutante

em matutar na possibilidade dessa desgraça, tirei o exemplar de Teatro

da Inveja da mochila e continuei a ler.

Pouco depois das sete, a minha mãe bateu à porta do meu quarto e

disse-me que o jantar estava pronto. Ignorei-a e deixei-me ficar onde

estava, mas arrependi-me dessa decisão daí a duas horas, quando o

meu estômago começou a roncar. A caminho da cama, Leah trouxe-me

um sanduíche cheio com restos do almoço do Dia de Ação de Graças.

Empoleirou-se na beira do meu colchão e disse:

– Suponho que já te disseram.

– Já – disse eu, com a boca cheia de peru, pão e molho de mirtilo.

– Lamento muito.
– Vou arranjar o dinheiro em algum lado. Não posso não voltar para

Dellecher.

– Porquê? – Fitou-me com curiosidade nos seus olhos de um azul de

porcelana.

– Não sei. É só que... não quero estar em mais lado nenhum. O

James e a Filippa e o Alexander e a Wren e a Meredith são como

família. – Omitira Richard sem intenção. O pão tornou-se uma pasta

pegajosa na minha boca. – Melhor do que a família, realmente –

acrescentei depois de conseguir engolir. – Não como aqui.

Ela puxou a ponta da manta da minha cama e disse:

– Nós costumávamos dar-nos bem. Tu e a Caroline gostavam um do

outro.

– Não, não gostávamos. Tu eras demasiado nova para compreender. –

Como me olhou de testa franzida, expliquei-me melhor. – Não te

preocupes. Eu amo-a, tal como é suposto. Só não gosto lá muito dela.

Mordiscou o lábio inferior, embrenhada em pensamentos. Nunca me

recordara tanto Wren como naquele momento; o pesar e o afeto

invadiram-me inesperadamente, os dois ao mesmo tempo. Senti

vontade de a abraçar, de lhe apertar a mão, de fazer alguma coisa, mas

como família nunca fôramos de manifestações físicas, e receei que lhe

parecesse estranho.

– Gostas de mim? – perguntou.

– É claro que gosto de ti – disse eu, surpreendido com a pergunta. –

És a única cá em casa que vale alguma coisa.

– Ainda bem. Não te esqueças disso. – Sorriu com relutância e

deslizou da minha cama. – Promete que sais do quarto amanhã.

– Só se o pai não andar por aí.

Revirou os olhos.

– Eu aviso-te quando a costa estiver desimpedida. Vai dormir, totó.

Apontei para ela, de seguida para mim.

– Roto. Nu.

Ela deitou-me a língua de fora antes de desaparecer pelo corredor,

deixando a porta do meu quarto aberta. Talvez ainda não tivesse

crescido tanto como isso.

Voltei a deitar-me para acabar de ler o livro de Girard, mas, pouco

depois, algumas palavras desconfortavelmente evocativas esgueiraram-


se pela barreira mental que eu tinha construído para manter Richard do

lado de fora: Esta mimese do conflito significa mais solidariedade

entre os que podem combater o mesmo inimigo juntos e que prometem

uns aos outros fazê-lo. Nada une mais os homens do que um inimigo

comum. Na página seguinte, o nome de Casca fez-me estacar tão

subitamente como se fosse o meu próprio nome, e fechei o livro com

força. Richard era o nosso inimigo, então? Parecia um exagero

grosseiro, mas que outra coisa poderíamos chamar-lhe? Bati com o

polegar contra as páginas, a maravilhar-me por termos necessitado de

tão pouca persuasão para concordarmos com o Nada de Alexander. À

distância de alguns dias daquele momento, o meu horror perdera o viço

e o calor, mas perguntei-me de novo o que me levara a fazer aquilo.

Seria algo tão defensável como o medo, ou uma vingança mesquinha,

inveja, oportunismo? Toquei na beira do marcador do livro. Fora

escrito impetuosamente nas suas costas um número em tinta vermelha.

No aeroporto, depois da cerimónia em memória de Richard, eu tinha

levado uma das malas de Meredith até ao controlo de segurança, e,

quando lha entreguei (fora do alcance dos ouvidos de James e de

Alexander), ela sugeriu que fosse visitá-la a Nova Iorque antes de

voltarmos para a escola. Richard fora-se. O que me impediria de o

fazer?

A sensação de culpa era como um prurido na minha pele.

Recrudescia sempre que roçava mentalmente em Richard e desvanecia-

se, tornando-se um desconforto surdo, quando conseguia esquecer-me

dele, por uma ou duas horas. Pior do que a culpa era a incerteza. Estou

cheia de medo, dissera-me Filippa, do que vai acontecer agora. Ali

deitado no passado, no meu quarto da secundária, o futuro nunca me

parecera tão turvo. Pensei nele em termos de estrutura dramática,

porque não conhecia nenhuma outra maneira de pensar. A morte de

Richard dava menos a sensação de desfecho do que de uma peripécia

do segundo ato, o acontecimento catalisador que punha tudo o resto em

marcha. Como Wren dissera, o espetáculo não tinha terminado. Era o

final desconhecido que me aterrava.

Pressionei a base das mãos contra os olhos. A exaustão que se

infiltrara nos meus ossos em Hallsworth House continuava colada a

mim, a lassidão que persiste depois de uma febre alta passar. Não
tardei a adormecer em cima dos cobertores, a atravessar um sonho em

que eu e os outros alunos do quarto ano – só nós os seis – nos

encontrávamos metidos até à cintura num pântano nebuloso cravejado

de árvores, a dizermos todos ao mesmo tempo, uma e outra vez:

Afogou-se no regato: bastar-vos-á olhar para o encontrardes.

Daí a cerca de uma hora, acordei com um estremecimento. As barras

de céu visíveis entre as tábuas da persiana na janela estavam pretas

como o pez e sem estrelas. Apoiei-me nos cotovelos, perguntando-me

o que me teria acordado. Um baque surdo vindo do andar de baixo fez-

me sentar mais direito, à escuta. Sem ter a certeza de se ouvira

realmente alguma coisa, passei as pernas pelo lado da cama e fui abrir

a porta. Os meus olhos ajustaram-se lentamente à semiescuridão

enquanto descia o corredor nas pontas dos pés, mas já tivera bastante

prática de andar à socapa pela casa depois do cair da noite e não era

provável que tropeçasse. Quando cheguei ao fundo das escadas, parei,

de orelhas espetadas, segurando o corrimão. Havia algo a mover-se no

alpendre, demasiado grande para ser um gato da vizinhança ou um

guaxinim. Outro baque. Estava alguém a bater à porta.

Atravessei o vestíbulo nas pontas dos pés e espreitei cautelosamente

pelo postigo ao lado da porta. A surpresa saltou-me em cima, e

desaferrolhei a porta atabalhoadamente.

– James!

Ele estava no alpendre, com um saco almofadado aos pés, o seu bafo

uma nuvem branca no ar gélido da noite.

– Não sabia se ainda estarias a pé – disse, como se tivesse

meramente chegado atrasado para uma reunião combinada, e não

completamente inesperado.

– O que estás a fazer aqui? – perguntei, fitando-o com um ar

sonolento, sem saber ao certo se ainda estaria a sonhar.

– Desculpa – disse ele. – Devia ter telefonado.

– Não, tudo bem... entra, está frio. – Com a cabeça fiz-lhe sinal de

que saísse do alpendre, e ele entrou rapidamente, pegando no saco.

Fechei a porta e aferrolhei-a novamente.

– Está toda a gente a dormir? – perguntou, num murmúrio.

– Está. Sobe, podemos falar no meu quarto.


Seguiu-me pelas escadas acima e pelo corredor, lançando um olhar

aos quadros nas paredes, aos bibelôs que atravancavam as consolas.

Nunca estivera na minha casa, e eu sentia-me constrangido,

embaraçado por causa dela. Estava dolorosamente consciente do facto

de não termos um número suficiente de livros.

O meu quarto era menos abertamente questionável – ao longo dos

anos isolara-me do resto da casa (do resto da vizinhança, do resto do

Ohio) com camadas de tinta e papel e poesia, qual esquilo a forrar o

ninho. James seguiu-me e ficou parado a olhar à sua volta com uma

curiosidade óbvia quando fechei a porta. Pela primeira vez, o quarto

parecia pequeno.

– Olha, dá-me cá isso. – Estendi a mão para o seu saco e pousei-o no

espaço estreito entre a cama e a parede.

– Gosto do teu quarto – disse ele. – Parece um espaço habitado.

O quarto de James na Califórnia parecia um cenário para

bibliotecários ricos tirado de uma revista de decoração de interiores.

– Não é grande coisa. – Sentei-me aos pés da cama e vi-o absorver o

que o rodeava. Parecia deslocado, mas não de uma maneira

inteiramente desagradável; como um aluno que tivesse entrado por

acaso na sala de aulas errada e achasse a nova disciplina intensamente

interessante. Ao mesmo tempo, eu não podia ignorar como parecia

esgotado. Tinha os ombros descaídos, os braços pendiam-lhe sem vida

aos lados do corpo. Via-se um mapa caótico de vincos na camisola,

como se tivesse dormido com ela. Não se tinha barbeado, e a ténue

sombra de barba no seu queixo era incongruente, estranha.

– É perfeito – disse ele.

– Bem, és muito bem-vindo. Mas... e não me interpretes mal, não

fazes ideia de como me sinto contente por te ver... por que carga de

água estás aqui?

Encostou-se à beira da secretária.

– Precisava de sair de casa – disse. – Andar aos tombos por aquela

casa sozinho durante o dia, andar nas pontas dos pés à volta dos meus

pais à noite.. simplesmente não consegui aguentar. Como não podia

voltar para Dellecher, apanhei o avião para Chicago, mas aquele

movimento todo era igualmente mau. Pensei em apanhar um autocarro


para Broadwater, mas não havia, portanto vim para cá. – Abanou a

cabeça. – Desculpa, devia ter telefonado.

– Não sejas ridículo.

– A tua amizade dá-nos novas forças.

– Sem ofensa, mas não parece – disse-lhe eu. – Estás com ar

arrasado, na verdade.

– Foi uma noite muito longa.

– Vamos lá meter-te na cama, então. Podemos conversar mais de

manhã.

Acenou com a cabeça, e os seus olhos cansados tinham uma

expressão calorosa de gratidão. Fitei-o, de mente vazia, mas ainda

assim perguntando-me se ele alguma vez olhara para mim daquela

maneira.

– Onde me queres? – perguntou.

– O quê? Oh. Porque não dormes aqui e eu amanho-me no sofá lá

em baixo?

– Não te vou expulsar da tua própria cama.

– Tu precisas mais de dormir do que eu.

– Não, porque é que nós simplesmente... Podemos partilhar a cama,

não podemos?

As minhas sinapses chisparam e apagaram-se de novo. A sua

expressão era em parte perplexa e em parte expectante, e tão

absolutamente de garoto que, naquele instante, se parecia mais com ele

próprio do que há semanas. Mexeu-se, desviou os olhos na direção da

janela, e dei-me conta de que estava à espera de uma resposta.

– Não vejo porque não – disse eu.

Na sua boca começou a aflorar um sorriso.

– Não somos companheiros de cama assim tão estranhos.

– Não.

Fiquei a vê-lo baixar-se para desapertar os cordões dos ténis e depois

tirei as meias e despi as calças de fato de treino. Lancei um olhar ao

relógio que estava em cima da minha mesa de cabeceira. Passava

bastante das duas da manhã. Franzi a testa, calculando quanto tempo

ele tinha passado no autocarro. Cinco horas? Seis?

– De que lado queres ficar? – perguntou ele.

– O quê?
– Na cama. – Apontou para ela.

– Oh. Tanto faz.

– OK. – Pendurou as calças de ganga nas costas da cadeira da

secretária e depois despiu a camisola pela cabeça. As marcas ténues de

equimoses ainda lhe manchavam de verde os pulsos e os antebraços.

Sentei-me cautelosamente na beira da cama e dei comigo a pensar,

inesperadamente, no verão que tínhamos passado na Califórnia – à vez

ao volante do velho BMW que pertencera em tempos ao pai de James,

subindo toda a costa até uma qualquer praia parda e esbatida pelo

nevoeiro, onde nos embebedámos com vinho branco, nadámos nus e

adormecemos na areia.

– Lembras-te daquela noite em Del Norte – disse eu –, quando

desmaiámos na praia...

– E, quando acordámos de manhã, as nossas roupas todas tinham

desaparecido?

Disse-o tão prontamente que também devia ter estado a pensar

naquilo. Quase me ri e, quando me virei, dei com ele a afastar o

cobertor para trás, com os olhos mais brilhantes do que antes.

– Ainda me pergunto o que terá acontecido – disse eu. – Achas que

pode ter sido a maré?

– Mais provavelmente, alguém com sentido de humor e passos muito

leves gostou da ideia de termos de voltar para o carro todos nus.

– É um milagre não termos sido presos.

– Na Califórnia? Seria preciso mais do que isso.

De repente, a velha história – a água e a manhã cinzenta e o

comentário de James, Seria preciso mais do que isso – parecia

demasiado familiar, demasiado desconfortavelmente próxima de

recordações mais recentes. Ele desviou os olhos e eu soube que ainda

estávamos a pensar a mesma coisa. Metemo-nos na cama, arranjámos

as almofadas e fingimos pôr-nos confortáveis num silêncio

desconcertado. Deitei-me de costas, abismado por os dez ou quinze

centímetros entre nós darem subitamente a sensação de serem cento e

cinquenta quilómetros. Os meus pequenos receios da cerimónia em

memória de Richard estavam confirmados – a morte não o ia impedir

de nos atormentar.

– Posso apagar a luz? – perguntou James.

É
– É claro – respondi, contente por os seus pensamentos e os meus já

não vaguearem na mesma direção.

Estendeu a mão para o candeeiro e a escuridão tombou do teto. Com

ela veio um pânico suave, sem sentido – eu já não conseguia ver o

James. Lutei contra o impulso de tatear a cama até lhe encontrar o

braço. Falei alto, só para o ouvir responder.

– Sabes no que estou sempre a pensar? Quando penso no Richard,

isto é.

Demorou a responder, como se não quisesse realmente saber.

– No quê?

– No pardal, de Hamlet.

Senti que se mexia na cama.

– Sim, tu disseste. Deixa acontecer.

– Nunca compreendi aquela fala – disse eu. – Quer dizer,

compreendo-a, mas não faz sentido. Depois de tentar durante tanto

tempo ajustar contas e restaurar alguma espécie de ordem, de repente o

Hamlet é um fatalista.

O colchão moveu-se sob ele de novo. Talvez se tivesse virado para

mim, mas estava demasiado escuro para eu ver.

– Penso que compreendes perfeitamente. Também nada faz sentido

para ele. Todo o seu mundo está a desmoronar-se, e, quando se

apercebe de que não pode detê-lo ou consertá-lo ou mudá-lo, só resta

uma coisa a fazer.

Os meus olhos ajustaram-se lentamente, irritantemente.

– O quê?

A sua sombra encolheu os ombros na penumbra.

– Absolver-se. Atribuir a culpa ao destino.

CENA 10

Na manhã seguinte, regressei gradualmente a um estado consciente,

flutuando à tona do sono, de olhos ainda fechados. Algo estremeceu

contra o meu ombro e recordei: James. Ao invés das poucas noites que
passara deitado ao lado de Meredith em Hallsworth House, senti-me

instantaneamente e agudamente consciente da sua presença.

Abri um olho, sem saber se devia mexer-me, mas relutante em

arriscar-me a acordá-lo. Ele virara-se para mim a dado momento da a

noite, e tinha a cabeça encostada ao meu ombro, com o seu hálito a

percorrer-me o braço sempre que ele respirava. O estranho e súbito

pensamento de que eu não queria mexer-me surgiu-me com a lucidez

surpreendente de um raio de sol a incidir diretamente nos meus olhos.

O seu peso quente e sonolento na cama ao meu lado dava-me a

sensação de ser natural, confortável, comme il faut. Deixei-me ficar

deitado impossivelmente imóvel, perguntei-me do que estava à espera,

e aos poucos voltei a adormecer.

Não dormi por tempo suficiente ou tão profundamente que sonhasse.

Ao fim do que pareceram segundos, acordei, vagamente consciente de

vozes abafadas ali perto. Os murmúrios tomaram forma, num

crescendo até uma gargalhadinha escapar e ser bruscamente sufocada.

Soergui-me na cama; James mexeu-se ao meu lado, mas não acordou

por completo. Pisquei furiosamente os olhos, e, quando consegui ver à

luz crua da manhã, fulminei as minhas irmãs com um olhar. Estavam

ambas de pijama, a atravancar a entrada do meu quarto. Leah enfiou o

lábio inferior debaixo dos dentes e continuou a rir silenciosamente.

Caroline encostou-se à ombreira da porta, sorrindo-me com ar

malicioso, com as suas pernas magricelas a despontarem como um par

de palitos da enorme sweatshirt com Ohio State estampado na frente.

– Saiam, as duas – disse eu.

Leah desfez-se em risadas audíveis. James abriu os olhos, fitou-me e

seguiu o meu olhar até à porta.

– Bom dia – disse.

Caroline: – Quem é o teu namorado, Oliver?

Eu: – Vai à merda, Caroline.

James: – Sou o James. Prazer em conhecer as duas.

Leah achou aquilo hilariante.

Caroline: – Vais-te assumir à mãe e ao pai?

Eu: – A sério, saiam do meu quarto.

Caroline (para James): – O que é que vês nele?


James: – Não gozes. O Oliver anda com a rapariga mais sexy do

nosso ano.

Caroline: – A ruiva?

James: – Essa mesma.

Uma pausa.

Caroline: – Tretas.

Leah: – Não posso. Julguei que ela andava com o Richard!

Caroline: – Pois era, o que lhe aconteceu?

Eu: – Não lhe aconteceu nada, OK? Saiam.

Afastei o cobertor com um pontapé, desci da cama e enxotei-as para

o corredor. Leah mirou-me como se nunca me tivesse visto.

– Oliver – disse, num murmúrio teatral de má atriz. – Oliver, tu e a

Meredith realmente...

– Para com isso, não vou falar sobre o assunto.

Empurrei-a na direção das escadas e ela começou a descê-las

contrariada, mas Caroline deixou-se ficar no cimo para dizer:

– A mãe quer saber se tu e o teu namorado vêm tomar o pequeno-

almoço connosco.

– Porque não o comes tu por nós?

O seu sorriso azedou, transformou-se numa expressão carrancuda.

Arrependi-me imediatamente do comentário, mas não pedi desculpa.

Ela murmurou qualquer coisa que soou a «parvalhão de merda» e

desceu as escadas sem fazer barulho. Arrastei-me de volta para o

quarto. James já se tinha levantado e estava a remexer no seu saco.

– Então, aquelas são as tuas irmãs – disse ele. Se estava embaraçado,

não o mostrava.

– Desculpa lá.

– Tudo bem – disse ele. – Eu nunca tive irmãos.

– Bem, não percas muito tempo a desejar tê-los tido. – Lancei um

olhar na direção da porta, pensando pela primeira vez em como era

arriscado tê-lo ali em casa. Não me importava muito o que a minha

família pudesse pensar de James, mas importava-me o que ele pensaria

dela. Comparadas com o meu pai, as minhas irmãs eram inofensivas. –

Queres tomar o pequeno-almoço?

– Não vou dizer que não. Gostava de conhecer o resto da tua família.

– Não assumo a responsabilidade por nada do que eles te digam.


– Não vens para baixo?

– Sim – disse eu. – Vou, daqui a um minuto. Achas que consegues

encontrar o caminho?

Enfiou a cabeça pela gola de uma camisola azul limpa.

– Cá me arranjo.

Depois de ele sair do quarto, enfiei rapidamente uma T-shirt lavada e

as mesmas calças de fato de treino da noite anterior. Tirei o marcador

do livro Teatro da Inveja e meti-o ao bolso. No patamar, pus-me à

escuta de vozes vindas do andar de baixo. Pelo que ouvia, dava a

impressão de que Leah estava a bombardear James com perguntas

sobre a Califórnia. A minha mãe mal conseguia dizer uma palavra,

mas, quando tinha essa oportunidade, de alguma maneira conseguia

soar delicada, perplexa e ligeiramente desconfiada, tudo ao mesmo

tempo. Aliviado por, ao que parecia, o meu pai já ter saído, fui à

socapa pelo corredor até ao escritório dele, entrei e fechei a porta. Era

uma divisão pequena e feia, onde um gigantesco monitor de

computador estava pousado na secretária a zunir como um animal pré-

histórico em hibernação. Peguei no telefone, segurei-o entre a orelha e

o ombro e tirei o marcador do bolso. Depois do desastre do almoço do

Dia de Ação de Graças, pusera a hipótese de desertar e ir passar o fim

de semana a Manhattan. Era um plano audacioso, mas a perspetiva de

Meredith e de um apartamento de luxo vazio – independentemente do

que acontecesse lá – era muitíssimo mais atraente do que passar mais

três dias fechado no meu quarto da secundária, a esconder-me dos

meus pais e de Caroline. Mas depois James apareceu no alpendre,

como uma espécie de intervenção divina.

O telefone tocou alto ao meu ouvido. Apertei o auscultador com um

pouco de força excessiva, em parte com a esperança de que ela não

atendesse.

– Estou?

Talvez fosse da distância ou da qualidade da ligação telefónica, mas

ela soava atordoada, desorientada, como se tivesse acabado de acordar.

Aquela nota baixa da sua voz fez com que uma fagulha voltasse a

acender-se no fundo do meu estômago. Lancei um olhar na direção da

porta, para me assegurar de que estava fechada.


– Meredith, olá. Sou... é o Oliver – disse. – Ouve, o James apareceu

cá em casa ontem à noite. Não fazia ideia de que ele vinha, mas não

posso simplesmente deixá-lo aqui. Acho que Nova Iorque não vai

acontecer.

Houve um silêncio breve, superficial, e depois ela disse:

– É claro.

CENA 11

O primeiro dia de dezembro estava soalheiro e revigorante e gélido.

As aulas iam recomeçar no dia seguinte e, quando chegámos ao

campus, foi-nos dito que teríamos autorização para voltar para o

Castelo às quatro da tarde. Alexander e Filippa instalaram-se na nossa

mesa do costume no The Bore’s Head, a aquecerem as mãos com

canecas de sidra com especiarias, enquanto James tomava chá com

Frederick. Meredith estava no aeroporto de La Guardia à espera do seu

voo atrasado. Não sabíamos nada de Wren.

Carreguei com os meus sacos pelas escadas acima até ao terceiro

andar do Hall para um breve encontro com o reitor Holinshed, onde ele

me apresentou a solução para a minha súbita falta de fundos: uma

combinação de empréstimos, dólares de bolsas de estudo que não

tinham sido usados e trabalho em part-time. Escutei-o e assenti com a

cabeça e agradeci-lhe profusamente e, quando ele me dispensou, pus a

mochila ao ombro e comecei a percorrer o trilho por entre as árvores.

Um dos meus trabalhos, explicou Holinshed, seria encarregar-me da

limpeza e da manutenção do Castelo. Nem sequer me ocorreu a ideia

de me sentir humilhado. Estava tão desesperadamente contente por não

ter de sair de Dellecher que teria esfregado todas as casas de banho no

Hall, se ele mo tivesse proposto.

A casa encontrava-se no mesmo caos de quando a tínhamos deixado.

Decidi começar pela cozinha, onde os detritos da desastrosa festa da

peça estavam espalhados por todas as superfícies. Os produtos de

limpeza, fora-me dito, encontravam-se debaixo do lava-louça – um

lugar que nunca me dera ao trabalho de explorar. Mas, antes, acendi a


lareira na biblioteca. Fazia um frio terrível no Castelo, como se o

inverno se tivesse insinuado entre as pedras e instalado ali na nossa

ausência. Amarrotei algumas folhas de jornal que tirei do cesto

pousado na pedra da lareira e meti-as por baixo de duas achas novas,

sem limpar as cinzas. Alguns minutos a riscar fósforos resultaram

numa chama pequena mas persistente, e esfreguei as mãos ao seu calor

até voltar a senti-las.

Quando estava a endireitar-me, ouvi uma porta abrir-se lá em baixo.

Fiquei paralisado, à espera. Alexander teria entrado à socapa três horas

antes da hora prevista? Amaldiçoei-o mentalmente e desci as escadas

nas pontas dos pés, esperando enxotá-lo da cozinha e puxando pela

cabeça à procura de uma desculpa plausível para eu já estar ali. (Não

queria sobrecarregá-lo, nem aos outros, com o meu drama familiar. Já

tínhamos drama nosso que bastasse.)

Uma voz desconhecida deteve-me a dois degraus do fundo das

escadas.

– Recorda-me de novo porque estamos aqui.

– Porque quero dar uma vista de olhos antes de aqueles miúdos todos

voltarem a mudar-se para cá.

– Como queiras, Joe.

Acocorei-me no último degrau e espreitei pela porta. Estavam dois

homens na sala de jantar, de costas para mim. Reconheci o mais alto –

ou antes, reconheci o seu blusão de couro castanho. Colborne. O mais

baixo trazia um casaco acolchoado azul e um cachecol amarelo grosso

que tinha sido quase com certeza tricotado à mão. Uma trunfa de

cabelo ruivo dava a impressão de que a sua cabeça estava em chamas.

(Vim a saber que se chamava Ned Walton.) Balouçava-se para trás e

para a frente na ponta dos pés e olhava à sua volta.

– Do que estamos à procura, chefe?

– Não me chames chefe – disse Colborne, com um suspiro que

sugeria que não era a primeira vez que dava a instrução. – Não sou o

chefe. E não toques em nada.

Enquanto avançava na direção da janela, Walton descalçou as luvas,

puxando-as pelas pontas dos dedos com os dentes, e meteu-as nos

bolsos. Perguntei-me se ele conseguiria ver a doca, de onde se

encontrava.

É
Walton: – É a primeira vez que perdem um aluno?

Colborne: – Uma bailarina suicidou-se há cerca de dez anos.

Descobriu que não tinha passado para o quarto ano, foi para o quarto e

cortou os pulsos.

Walton: – Jesus Cristo.

Colborne: – Eu tinha-a visto por aí. Uma rapariga bonita. Parecia

feita de papel de seda. Os media ficaram desvairados, acusaram a

escola de «levar os alunos ao desespero».

Walton: – Foi o que aconteceu a este rapaz?

Colborne rodou nos calcanhares, com as mãos nas ancas e uma

expressão tensa, contemplativa.

– Não. Ele era a estrela do programa, ao que sei. Viste aqueles

grandes cartazes vermelhos por toda a cidade? Eu sou César?

– Vi.

– Era ele.

– Um tipo assustador – disse Walton.

Colborne acenou com a cabeça.

– Os miúdos ficaram todos de boca fechada em relação a isso, mas

tenho a sensação de que nem toda a gente gostava dele.

– Ah, não? – perguntou Walton, com uma sobrancelha ruiva a

erguer-se.

– Não.

Walton franziu a testa a Colborne, do outro lado da sala.

– É por isso que estamos aqui? – perguntou. – Pensei que tínhamos

concluído que foi um acidente.

– Sim. – Passou uma sombra no rosto de Colborne. – Tínhamos.

– OK – disse Walton, e a palavra tinha um tom interrogativo.

Encostou-se ao parapeito da janela, de braços cruzados. – Explica-me

lá então.

Colborne deu um passo lento em frente, de olhos pregados no chão.

– Há cerca de nove dias – disse –, os alunos do quarto ano e um

grupo de outros alunos de teatro estão todos num espetáculo no Fine

Arts Building. – Apontou para nordeste, na direção do FAB. Eu sentei-

me nos calcanhares e encostei a mão à parede para me segurar.

Respirava de modo leve e acelerado pelo nariz, e o ar frio ardia-me nos

pulmões. Colborne continuou a andar, pondo um pé cuidadosamente à


frente do outro e traçando um círculo amplo à volta da sala. – O

espetáculo termina por volta das dez e meia – continuou ele – e os

miúdos descem pelo bosque até aqui, onde a festa já está em pleno

decurso. Música, dança, drogas, álcool. O Richard vai-se meter na

biblioteca com uma garrafa de whisky.

– Se ele era a estrela do espetáculo, porque se foi esconder lá em

cima?

– Bem, isso é o que ninguém parece querer dizer-me. Ele estava de

mau humor, todas as pessoas concordam, mas porquê? Um dos alunos

do terceiro ano sugeriu que ele andava a ter problemas com a

namorada.

– Quem é a namorada?

– É a Meredith Dardenne, outra aluna do quarto ano.

– Porque é que esse nome soa familiar?

– A família dela faz aqueles relógios de luxo. Podiam comprar a

cidade inteira, se quisessem.

– Achas que é por isso que ninguém lhe está a apontar o dedo?

Colborne encolheu os ombros.

– Não te sei dizer. Mas, ao que parece, os dois tiveram uma

discussão do pior em frente a toda a gente, e no fim da noite ela estava

a curtir com outro tipo qualquer.

Walton emitiu um assobio prolongado, perigoso. Inclinei-me para a

frente, com as mãos nos joelhos. O sangue tinha-me subido do peito e

dos membros e nadava-me nos ouvidos.

Walton: – Quem era?

Colborne: – Ninguém quis realmente dizer, mas uma pessoa sugeriu

que foi o Oliver Marks. É outro aluno do quarto ano. Admitiu ter ido

para o andar de cima com ela, mas, segundo ele, estiveram só a

«conversar».

Walton: – Parece improvável.

Colborne: – Ainda não viste a tal rapariga. Não sabes até que ponto é

improvável.

Walton riu-se.

– O que é que ela teve a dizer sobre isso?

– Bem, a história dela condiz com a dele – disse Colborne. – Afirma

que foram para o quarto dela, onde estiveram a conversar até o Richard
subir e tentar deitar a porta abaixo. Não o deixaram entrar e ele acabou

por se ir embora, todo furioso. E é neste ponto que as coisas ficam

vagas.

– Vagas como?

Colborne parou, face a face com Walton, carrancudo, como se a sua

própria perplexidade o irritasse. – Por volta desta altura... e ninguém

parece capaz de dizer com certeza que horas eram... praticamente todas

as pessoas menos os alunos do quarto ano já foram embora. O Richard

afasta-se, todo zangado, do quarto da namorada, onde talvez ela esteja

a curtir com um amigo dos dois ou talvez só a conversar, agarra numa

garrafa de Glenfiddich e dirige-se lá para fora. Já está bêbedo... e era

um bêbedo agressivo, todas as pessoas concordam nisso... e sai aos

tropeções para o jardim, onde a prima está a conversar com o James

Farrow.

Walton: – Outro aluno do quarto ano?

Colborne: – O colega de quarto do Marks. Vivem no quarto do

sótão.

Walton: – Está bem, e depois?

– A Wren, a prima, tenta acalmá-lo, mas ele «sacode-a», nas

palavras do Farrow. Quando lhe perguntei o que queria dizer, fechou-se

em copas. Leva-me a pensar que o Richard terá sido um pouco

violento, porque nem um nem outro foram atrás dele. Seja como for, o

Farrow fica com a prima e o Richard desaparece por entre as árvores. –

O rosto de Colborne ensombrou-se e as suas sobrancelhas espessas

afundaram-se sobre os olhos. – Ninguém volta a vê-lo até à manhã

seguinte, quando o Alexander Vass, o último dos alunos do quarto ano,

vai à doca para fumar e o vê na água. Portanto, temos cerca de três

horas em que não sabemos onde o Richard esteve ou o que andou a

fazer.

Ficaram ambos em silêncio por um momento, a olharem pela mesma

janela estreita. O dia lá fora estava encharcado com uma luz do sol

branca e crua que não fazia nada para atenuar o frio cortante.

– O que revelou a autópsia? – perguntou Walton.

– Bem, houve um golpe forte na cabeça, mas a médica não soube

dizer com quê. Inicialmente, supusemos que foi essa a causa da morte.

A testa de Walton enrugou-se.


– Não foi?

– Não. – Colborne respirou pesadamente e os seus ombros

afundaram-se uns cinco centímetros. – Estava vivo quando caiu na

água. Vivo, mas sem sentidos ou demasiado atordoado para se virar. O

que quer que fosse, atingiu-o em cheio na cara, e feriu-o gravemente,

mas não devia ter sido fatal.

– Como é que ele morreu, então?

– Afogou-se – disse Colborne. – Por assim dizer. Sufocou no próprio

sangue.

Virei-me da porta e encostei-me com força contra a parede. Senti-me

atordoado, com o som da minha pulsação ténue e distante, e perguntei-

me se seria essa a sensação – a lenta perda de ar, a vida a esvair-se para

a água à volta, e o próprio sangue, espesso como um derramamento de

petróleo, a insinuar-se em cada espaço vazio até chegar aos olhos e

todo o mundo ficar vermelho. Asfixia. Falência do sistema. A imagem

a desvanecer-se e ficar preta.

A voz de Colborne soou nítida e clara da sala ao lado:

– Não bate certo. Está a escapar-nos alguma coisa.

– Encontrámos a garrafa de whisky?

– No bosque, a cerca de quinhentos metros da doca. Pensámos que

talvez ele tivesse sido atingido com ela, mas estava intacta. Vazia,

intacta, sem sangue nem impressões digitais de alguém a não ser dele.

Portanto, que diabo andou ele a fazer entre as três e as seis da manhã?

– Foi essa a hora da morte?

– Segundo o que a médica-legista pôde determinar.

Ficaram ambos em silêncio por algum tempo. Eu não me atrevia a

mexer-me no meu esconderijo.

– Que estás a pensar? – perguntou Walton, por fim.

Colborne emitiu um som baixo de impaciência. Deslizei devagar

para a frente até conseguir vê-lo de novo, a abanar a cabeça e com a

língua presa entre os dentes.

– Estes miúdos – disse ele. – Os alunos do quarto ano. Não confio

neles.

– Porque não?

– São um bando de putos atores – disse Colborne. – Podem estar

todos a mentir com quantos dentes têm, e como saberíamos?


– Jesus Cristo. – Ficaram mais uma vez em silêncio até Walton dizer:

– O que fazemos?

– Mantemo-los sob vigilância. Esperamos que um deles se vá abaixo.

– Perscrutou a sala de jantar vazia. – Eles os seis aqui metidos,

sozinhos? Não vai demorar muito tempo.

As traves do soalho rangeram quando eles avançaram na direção da

cozinha.

– Eu aposto na prima – disse Walton.

– Talvez – disse Colborne. – Veremos.

– Para onde vamos?

– Quero atravessar o bosque até onde encontrámos a garrafa, ver se

consigo descobrir como o Richard desceu de lá até à doca.

– OK, e depois?

– Não sei. Depende de se encontrarmos alguma coisa.

Walton respondeu, mas baixou tanto a voz que não consegui ouvir o

que dizia. A porta fechou-se atrás deles com um raspão e um baque.

Escorreguei para o chão, a sentir as pernas tão fracas que pareciam não

ter ossos. Richard avultava-se enorme na minha cabeça, e, se eu

pudesse ter falado, ter-lhe-ia dito: «Tivestes tal lazer, neste tempo de

morte,/ Para admirar os segredos do abismo?»

Ao que, na minha fantasia, ele respondeu: «Assim me pareceu; e

muito me esforcei / Por entregar o espírito; mas, despeitosa, / A maré

travava-me então a alma,/ Não a soltando para a vastidão do ar.»

«E não haveis despertado no meio dessa terrífica agonia?»,

perguntei-lhe.

Por fim, ele abandonou o seu Shakespeare e disse apenas: «Não.»

CENA 12

O nosso primeiro dia de aulas foi surpreendentemente calmo. Wren

não tinha aparecido, e Meredith chegou tão tarde na noite de segunda-

feira que nenhum de nós a viu e ela teve autorização para dormir mais

umas horas na terça-feira. Só com os rapazes e Filippa a assistir às

aulas, os nossos professores contentaram-se a explicar simplesmente o


que o breve período do inverno entre o Dia de Ação de Graças e o

Natal incluiria: Romeu e Julieta, a nossa introdução a armas de

combate, e falas a memorizar.

O fim desse dia encontrou-nos aos quatro na biblioteca do Castelo

(vigorosamente limpa e arrumada por mim no dia anterior), a

transcrever os nossos novos monólogos e a começar a memorizá-los.

Havia esferográficas, lápis, marcadores, blocos de apontamentos e

copos de vinho espalhados em todas as mesas. Um lume enorme

iluminava todo o espaço, mas não evitava completamente o frio.

Filippa e eu estávamos sentados no sofá, pés contra pés, com uma

manta grossa de lã a tapar-nos aos dois. As minhas pálpebras tinham

começado a descair uma hora antes, e por fim deixei-as fecharem-se.

Teria adormecido, se não fosse o movimento constante do pé de

Filippa, que se meneava persistentemente contra a minha perna

enquanto ela escrevia.

As palavras das minhas falas mais recentes andavam-me aos tombos

entre os ouvidos, desligadas e caóticas, ainda por arregimentar e

memorizar. Tinha-me sido atribuído algo surpreendentemente robusto

– o discurso de incitação à batalha de Filipe, o Bastardo, da peça Rei

João:

Régias figuras, permiti que vos conduza:

Amigos para já e depois, de mãos dadas,

Investi com toda a crueza contra a cidade.

E, tendo-as arrasado, então em mútuo desafio

Abramos para nós caminho para o céu

Ou para o inferno no tumulto do corpo a corpo.

Soergui-me quando ouvi uma vozinha dizer:

– Olá. Desculpem ter chegado tarde.

– Wren! – James saltou da cadeira.

Ela estava à porta, com uma expressão sonhadora e cansada nos

olhos e um saco de viagem ao ombro.

– Pensámos que não ias voltar – disse Alexander, disparando um

olhar hostil para o corredor na direção do quarto de Meredith.

– Já estavam fartos de mim? – perguntou Wren, ao mesmo tempo

que James lhe tirava o saco do ombro e o pousava no chão.

É
– É claro que não. Como estás? – Filippa pôs-se de pé, com os

braços já abertos.

Wren vogou para o seu abraço e apertou-a com força pela cintura.

– Melhor agora.

Segui Filippa para fora do sofá e, num momento de afeto tonto, pus

os braços à volta das duas.

– Nós também.

Alexander resfolegou.

– A sério? – disse. – Abraço de grupo? Vamos mesmo fazer isso?

– Cala-te – disse Wren, com a face esborrachada contra o ombro de

Filippa. – Não estragues o momento.

– Tudo bem. – Daí a um segundo, os compridos braços de macaco de

Alexander esmagaram-nos todos juntos, e depois James veio acoplar-se

também. Desequilibrámo-nos, vacilámos, Wren presa e a rir-se no

centro do nosso nó humano. O som estremeceu por entre todos,

movendo-se fluidamente de um corpo para o seguinte como uma

baforada de ar quente.

– Que se passa aqui?

Olhei por cima da cabeça de todos, na direção do corredor.

– Meredith.

Ela estava à porta, descalça, de rosto limpo, com leggings e uma T-

shirt comprida que eu tinha quase a certeza de que em tempos

pertencera a Richard. Estava despenteada, com os olhos ensombrados e

lentos. Não a via desde o aeroporto e senti uma ligeira falta de ar.

O nosso pequeno abraço desfez-se e cada um de nós recuou meio

passo até Wren surgir do meio. A expressão dura de Meredith

suavizou-se.

– Wren.

– Eu. – Ela fez um sorriso pálido. Meredith piscou os olhos, entrou a

cambalear na sala e desabou sobre ela. As duas abraçavam-se e riam e

caíam, tudo ao mesmo tempo, e eu e Filippa quase não conseguimos

apanhá-las antes de elas tombarem em cima da mesa de apoio aos

sofás.

Quando ficámos todos de pé novamente, doridos das colisões dos

cotovelos e das pisadelas, Meredith soltou Wren e disse:


– Já não era sem tempo. Reanimai-vos / E sede sempre para nós

bem-vinda.

Filippa: – Deves estar exausta. Quando partiste de Londres?

Wren: – Ontem de manhã. Adorava ouvi-los falar sobre o Dia de

Ação de Graças, mas não quero ofender ninguém adormecendo.

Alexander: – Não sejas parva. Deita-te e descansa, pois bem

precisas.

James: – Onde está a tua mala?

Wren: – Lá em baixo. Não me senti capaz de a trazer já para cima.

James: – Eu vou buscá-la.

Wren: – Tens a certeza?

– Deixa-o ir – disse Meredith, afastando o cabelo da testa a Wren. –

Estás com ar de quem é capaz de precisar que alguém te leve ao colo.

– Anda daí – disse Filippa. – Eu ajudo-te a instalares-te.

Afastaram-se juntas pelo corredor abaixo, enquanto James

desaparecia para as escadas. Alexander fez-me um sorriso soporífico e

disse:

– O gangue está todo cá. – Os seus olhos desviaram-se, lânguidos, de

mim para Meredith e o seu sorriso desvaneceu-se. Toda a delicadeza

de Meredith parecia ter abandonado a sala com Wren, e ela estava ali

de pé a fitar-me com um olhar duro e invulnerável. – Ora bem – disse

Alexander –, acho que vou fumar antes de ir para a cama. – Enrolou o

cachecol ao pescoço e saiu da sala a assobiar baixinho «Secret

Lovers». (Pensei em correr atrás dele e mandá-lo pelas escadas abaixo

ao pontapé.)

Meredith estava novamente em pose de flamingo, com um pé

empoleirado no lado do joelho da outra perna. Fazia com que até essa

pose parecesse graciosa. Eu não sabia onde pôr as mãos, portanto

enfiei-as nos bolsos traseiros das calças, o que dava a sensação de ser

demasiado casual.

– Que tal foi em Nova Iorque? – perguntei.

– Sabes como é, muito movimento – disse ela, secamente. – Tivemos

um desfile.

– Certo.

– Que tal foi no Ohio?

– Uma seca – disse eu. – Como sempre.


O facto de eu poder ter ido a Nova Iorque e não o ter feito pairava tão

pesadamente no ar entre nós que não havia necessidade de o

mencionar.

– Como está a tua família? – perguntei.

– Não faço ideia – respondeu ela. – Só vi o Caleb uma vez e os

outros todos estão no Canadá.

– Oh.

Imaginei-a a vaguear num apartamento vazio, sem nada para a

distrair da morte de Richard. As nossas férias não tinham sido muito

diferentes, provavelmente – horas a ler e a fitar o teto, isolados de

irmãos e pais tão pouco familiares que bem podiam ser de outra

espécie. É claro, eu recebera a benesse da companhia de James, e ela

não tivera essa sorte. Um pedido de desculpa, impossível, colava-me a

língua ao céu da boca.

Ela cruzou os braços e disse:

– Vou para a cama, a não ser que tenhas alguma coisa a dizer.

Eu não tinha. Queria desesperadamente falar, mas a minha mente

estava vazia. Para alguém que amava as palavras tanto como eu, a

frequência com que elas me falhavam era espantosa.

Ficou à espera, a olhar para mim, e quando viu que eu não dizia

nada, a sua máscara de apatia estalou por um momento e vi a deceção

silenciosa por baixo dela.

– OK – disse. – Boa noite, então.

– Eu... Meredith, espera.

– O que foi? – perguntou, num tom inexpressivo e cansado.

Mudei o peso do corpo de um pé para o outro, indeciso, inseguro,

amaldiçoando a minha falta de eloquência.

– Tu... hum... queres dormir sozinha?

– Não sei – disse ela. – Queres dormir comigo ou preferes dormir

com o James?

Desviei os olhos, com a esperança de esconder o calor que me subia

às faces. Quando voltei a olhar para Meredith, ela estava a abanar a

cabeça, com um canto da boca repuxado para cima, um ar entre a

compaixão e o desdém. Não esperou resposta, limitando-se a virar

costas e descer o corredor. Fiquei a vê-la afastar-se, enquanto a minha

mente engrenava e debitava interiormente respostas fracas e


inadequadas, até ela desaparecer de vista e ser demasiado tarde para eu

dizer fosse o que fosse.

Deixei-me ficar ao pé da lareira, a debater se ir atrás dela – entrar de

rompante no seu quarto, encostá-la à parede e beijá-la até ela ficar sem

fôlego para tais palavras duras – ou simplesmente retirar-me para a

Torre e tentar dormir. Era demasiado cobarde para a primeira opção e

sentia-me demasiado agitado para a segunda. Sem conseguir decidir-

me por uma ou outra atitude, estendi a mão para o casaco.

A noite estava tão fria que sair para o exterior foi como levar uma

bofetada. Comecei a caminhar por entre as árvores, com os ombros

encolhidos para manter as orelhas quentes, de olhos postos no chão

para ver as raízes e as pedras que poderiam fazer-me tropeçar no

escuro. Cheguei à doca quase sem me dar conta de onde estava. Os

meus pés tinham-me levado ali automaticamente, como se não

houvesse nenhum outro lugar lógico aonde ir. À noite, o lago estava

preto e parado como um espelho, com quinhentas estrelas

perfeitamente refletidas na sua superfície. Não se via a Lua – só um

pequeno espaço redondo no campo de estrelas onde ela devia estar.

Alexander estava sentado sozinho na doca, com as pernas a penderem

sobre a água.

Percorri-a até ao fim e parei ao lado dele. Deve ter-me ouvido

aproximar-me, mas não reagiu, limitando-se a ficar sentado fitando o

lago com as mãos unidas entre os joelhos.

– Posso fazer-te companhia? – perguntei, e as palavras saíram-me da

boca numa nuvem.

– É claro que sim.

Sentei-me ao lado dele, e por um momento nem um nem outro

falámos.

– Queres fumar? – disse ele, por fim.

– Quero, estou a precisar.

Ele meteu a mão dentro do casaco sem olhar, de seguida passou-me

um charro e pôs-se a procurar um isqueiro nos bolsos. Deu-me lume, e

inalei tão profundamente quanto conseguia, a sentir o fumo quente

queimar-me a garganta.

– Obrigado – disse, depois da segunda passa, e dei-lhe o charro.

Ele acenou com a cabeça, a olhar para a frente.


– Como correu?

Supus que se referia à minha conversa com Meredith.

– Nada bem.

Ficámos sentados em silêncio por algum tempo, com o fumo e o

nosso bafo a rodopiar e misturar-se ao vogarem sobre a água. Tentei

arredar Meredith da cabeça, mas não havia uma maneira segura de me

distrair os pensamentos. Em cada canto da minha mente, acocoravam-

se dúvidas e medos, prontos a saltar-me em cima e enterrar-me os

dentes à mínima provocação.

– O Colborne esteve no Castelo – disse eu, sem realmente planear

dizê-lo. Não contara a ninguém o que tinha ouvido, mas eram

informações perigosas para se terem, e não confiava em mim mesmo

para as guardar.

– Quando?

– Ontem.

– Falaste com ele?

– Não, mas ouvi-o falar com outro polícia. Um tipo novo, ruivo.

Nunca o tinha visto.

Alexander engoliu uma golfada de fumo, que lhe saiu pelas narinas

em rolos de uma maneira distintamente parecida com um dragão.

– E falaram sobre o quê? – perguntou, com uma relutância que

sugeria que realmente não queria saber.

– De... tudo isto. – Fiz um gesto amplo, pouco específico, que incluía

o lago, a doca e nós os dois.

– Achas que ele suspeita de alguma coisa? – perguntou Alexander. A

alguém que não o conhecesse tão bem como eu, ele poderia não

parecer assustado.

– Sabe que mentimos. Só não sabe sobre o quê.

– Merda.

– Pois.

Deu uma passa no charro, cuja ponta ardeu alaranjada, uma fagulha

brilhante nas profundezas desoladas do Illinois. Restava pouco mais do

que a beata. Passou-ma para as mãos. Dei uma última passa e apaguei-

a.

– Então, o que fazemos?


– Nada, suponho – disse ele, e aquela palavra vazia, «nada», fez-me

cerrar as mãos em punho dentro dos bolsos. – Mantemos a nossa

história. Tentamos não perder a presença de espírito.

– Devíamos contar aos outros. Ele só está à espera de que um de nós

se descaia.

Abanou a cabeça.

– Vão começar a comportar-se de maneira esquisita se souberem.

Pus-me a mordiscar o lábio inferior, perguntando-me até que ponto

estaríamos realmente em perigo. Pensei em quando encontrara James

na casa de banho na noite da festa. Por um qualquer acordo sem

palavras, não o tínhamos mencionado aos outros. Era trivial, pouco

importante. Mas a possibilidade de não sermos o únicos a guardar

segredos fez o meu coração bater um pouco mais acelerado. Se todos

tínhamos mentido uns aos outros como mentíramos a Colborne... Não

consegui terminar o pensamento.

– O que achas que lhe aconteceu? – perguntei. – Depois de sair do

Castelo.

– Não sei. – Ele compreendera o que eu queria dizer. – Não consigo

imaginar que tenha andado por aí aos tropeções no bosque.

– Onde estavas tu, já agora?

Lançou-me um olhar evasivo e disse:

– Porquê?

– Só por curiosidade. Perdi tudo o que aconteceu depois de, hum, de

ter ido para o andar de cima.

– Se eu te contar, tens de me jurar que não dás com a língua nos

dentes.

– Porquê?

– Porque, ao contrário de ti – disse ele num tom de superioridade –,

eu não sou de curtir e, ao mesmo tempo, assegurar-me de que toda a

escola fica a saber.

Meio curioso e meio irritado, disse:

– Com quem estiveste, parvalhão?

Desviou o olhar, com um sorrisinho todo satisfeito nos lábios.

– Com o Colin.

– O Colin? Não julguei que gostasse de homens.


O sorriso de Alexander ficou suficientemente rasgado para se verem

os seus caninos afiados.

– Nem ele.

Ri-me, com relutância, o que teria parecido impossível dois minutos

antes.

– Ide chamar o digno mestre condestável. Acabámos de descobrir a

mais perigosa luxúria que jamais se viu em nossos domínios.

– Olha quem fala.

– Merda – disse eu –, ela é que começou.

– Obviamente. Sem ofensa, Oliver, mas começar coisas não é

exatamente o teu estilo.

Abanei a cabeça, com a amargura persistente da minha conversa com

Meredith a condicionar o meu divertimento.

– Sou tão estúpido.

Alexander: – Se te faz sentir melhor, eu teria feito exatamente a

mesma coisa.

Eu: – O que é que tu és?

Alexander: – Sexualmente anfíbio.

Eu: – É a coisa mais nojenta que já ouvi na vida.

Alexander: – Devias experimentar.

Eu: – Já tive desventuras sexuais que me cheguem para um ano,

obrigado.

Suspirei e olhei para o meu reflexo na superfície da água. O meu

rosto parecia-me pouco familiar, de alguma maneira, e pisquei os

olhos, a tentar descobrir o que estava diferente. A perceção atingiu-me

como um murro no estômago: com o meu cabelo escuro um pouco

mais revolto do que o normal e os meus olhos azuis encovados pela luz

fraca das estrelas, quase parecia Richard. Por um momento nauseante,

ele fitou-me do fundo do lago. Olhei para cima de repente.

– Estás bem? – perguntou Alexander. – Por um segundo, pareceu-me

que te ias atirar ao lago.

– Oh. Não.

– Ainda bem. Não faças isso. – Pôs-se de pé. – Anda daí. Está frio

como o caraças, e não te vou deixar aqui sozinho.

– Está bem. – Pus-me de pé, sacudindo pequenos pedaços de cinza

do colo.
Alexander enterrou as mãos nos bolsos, a perscrutar a escuridão que

amortalhava a outra margem.

– Eu vinha do quarto do Colin – disse, e pareceu uma informação

aleatória até ele acrescentar –, quando dei com ele. Vim até aqui para

fumar e... ali estava ele. Nem sequer me passou pela cabeça verificar se

estava vivo, parecia tão absolutamente morto. Não me deve ter ouvido.

Eu não sabia porque me estava a contar aquilo. Talvez revivesse

aquele terrível momento de descoberta todas as manhãs, da mesma

maneira que eu sentia um peso no estômago e dava comigo metido até

ao pescoço em recordações de cada vez que fechava os olhos.

– Mas sabes o que é estranho? – disse ele.

– O quê?

– Havia sangue na água, mas não na doca.

Lancei um olhar aos meus pés. A madeira estava limpa e seca,

desbotada como um osso por anos de vento e sol e água. Nem um

salpico de vermelho. Nem uma mancha.

– E então?

– Então, a cara dele estava toda esmurrada. Se bateu com a cabeça e

caiu à água... onde diabo é que bateu?

A beata do nosso charro ia-se apagando na beira da doca. Alexander

arrastou-a com a ponta do sapato para a água. Formaram-se umas

ondinhas em círculo desde o ponto de impacto, distorcendo o reflexo

do céu de tal modo que as estrelas tremeram e piscaram, a aparecerem

e desaparecerem.

– O pássaro não me sai da ideia. – Eu nem sequer queria dizer

aquilo. Era um tique, uma compulsão, como se pudesse tirar a imagem

da cabeça se as palavras me saíssem da boca.

Ele olhou-me de lado, completamente perplexo.

– Que pássaro?

– O de Hamlet. Foi o que ele me lembrou.

– Oh – disse Alexander. – Não tenho a certeza se o vejo como um

pardal. É demasiado... delicado.

– Então que tipo de ave é que ele seria?

– Não sei. Do tipo que se arremessava contra uma janela, a tentar

agredir o seu próprio reflexo.


Foi a minha vez de o fitar com estranheza, mas, logo que os nossos

olhos se encontraram, apeteceu-me rir. Senti-me horrorizado, até me

dar conta de que também ele estava a conter o riso.

– Oh, meu Deus – disse eu, abanando a cabeça. Alexander expirou o

ar que estivera a conter nos pulmões e riu-se baixo. – Quando nos

tornámos umas pessoas assim tão terríveis?

– Talvez sempre tenhamos sido terríveis. – Encolheu os ombros e

pôs-se a ver a nuvem branca da sua gargalhada cintilar e desvanecer-se.

O seu bom humor pareceu desaparecer com ela, e quando falou

novamente a sua voz soou fraca. – Ou talvez tenhamos aprendido com

o Richard – disse.

Aquilo assustou-me mais do que Colborne me assustava.

CENA 13

Daí a uma semana, quando chegámos ao refeitório para tomar o

pequeno-almoço, encontrámo-lo a zunir com a excitação das férias.

Em todas as mesas havia pessoas a abrirem envelopes com convites e a

conversarem sobre a mascarada de Natal – que ia realizar-se como

habitualmente, apesar dos acontecimentos recentes. Aquela algazarra

era surpreendentemente revigorante, após semanas de cabeças baixas e

rostos contraídos e sérios.

– Quem quer ir buscar o correio? – perguntou Alexander, atacando

um monte de hash browns com um apetite característico. (Filippa

tinha-o forçado a levantar-se para tomar o pequeno-almoço, insistindo

que, se ele saltasse mais refeições, ficaria simplesmente reduzido a pele

e osso.)

– Porquê darmo-nos a esse trabalho? – perguntei. – Sabemos o que

diz.

Filippa soprou no seu café, a arrefecê-lo, e disse:

– Não achas que talvez seja um pouco diferente este ano?

– Não sei. Dá a ideia de que estão a tentar voltar à normalidade.

– E graças a Deus – disse Alexander. – Estou farto de que olhem

para mim.
– Podia ser pior. – Wren empurrava os ovos no prato, sem comer.

Estava magra e pálida, como se já não comesse há dias. – As pessoas

fazem como se eu não existisse.

Ficámos sentados num silêncio incómodo – evitando olhar uns para

os outros e para a cadeira vazia de Richard – enquanto os outros alunos

continuavam a tagarelar entre si sobre a mascarada de Natal, o que

vestiriam, e como o salão de baile estaria espetacular. Aquela espécie

de feitiço que nos isolava quebrou-se quando Colin apareceu junto à

nossa mesa e pousou a mão (sem que ninguém reparasse a não ser eu)

nas costas da cadeira de Alexander.

– Bom dia – disse, e depois franziu a testa. – Está toda a gente bem?

– Sim. – Alexander espetou o garfo numa salsicha, com um pouco de

violência. – Estávamos só a pensar na hipótese de criarmos uma

colónia de leprosos lá em baixo no Castelo.

– Fartam-se de olhar para vocês, não fartam? – disse Colin, lançando

um olhar à sua volta como se tivesse acabado de reparar que toda a

gente evitava a nossa mesa.

– São uns merdas duns mirones – disse Alexander, e trincou a

salsicha a meio, cerrando os dentes como uma guilhotina. – O que te

traz ao nosso exílio?

Colin ergueu um envelope familiar, pequeno e quadrado, com uns

salpicos pretos da letra de Frederick na frente.

– Foram-nos atribuídos os papéis para o Romeu e Julieta – disse. –

Achei que gostariam de saber.

– Oh? – Alexander virou-se na cadeira, olhando para o outro lado do

refeitório, para a parede onde se encontravam todas as nossas caixas do

correio.

– Querem que vá buscar?

– Não, não te incomodes. – Meredith arrastou a cadeira para trás e

atirou o guardanapo para cima dela. – Preciso de outro café. Eu vou.

Saiu da mesa e, ao atravessar o refeitório, as pessoas afastavam-se

automaticamente do seu caminho, como se receassem que o seu

infortúnio fosse contagioso. Senti uma pontada de fúria ou ansiedade

(já não era capaz de distinguir as duas; depois da morte de Richard, de

alguma maneira eram indistintas), cortei um pedaço de bacon ao meio


e desatei a esmigalhá-lo até o desfazer. Só me dei conta de que estava a

ignorar todos os outros quando Filippa disse alto:

– Oliver?

– O que foi?

– Estás a torturar o bacon.

– Desculpa, não tenho fome. Vejo-vos na aula, pessoal.

Pus-me de pé e levei o meu prato para a cozinha. Esvaziei-o para o

caixote sem me dar ao trabalho de raspar os restos e voltei a sair para a

sala do refeitório. Meredith ainda estava a recolher as cartas nas nossas

caixas do correio. Fulminei com o olhar uma mesa de alunos de

línguas fixos nela até eles baixarem de novo a cabeça sobre o seu

pequeno-almoço, segredando em grego com grande empenho.

– Meredith – disse eu, quando já estava suficientemente perto para

que só ela pudesse ouvir-me.

Ergueu a cabeça e olhou-me impassível antes de voltar a virar-se

para as caixas do correio.

– Sim?

– Olha – disse eu, sem hesitar. A minha irritação com o resto do

corpo de estudantes tornara-me de algum modo mais audaz do que o

costume. – Desculpa aquilo na outra noite, e desculpa pelo Dia de

Ação de Graças. Sou o primeiro a admitir que não sei o que andamos a

fazer. Mas quero descobrir.

Parou de vasculhar as caixas do correio, com a mão pousada na beira

da que estava identificada com Stirling, Wren. Mesmo ao seu lado

estava a caixa do correio de Richard, vazia. Não tinham retirado o

nome dele. Forcei-me a ignorá-la e olhar para Meredith. A sua

expressão era inescrutável, mas pelo menos estava a ouvir-me.

– E se fôssemos beber um copo ou coisa do género? – perguntei,

aproximando-me um pouco. – Só nós. Não consigo pensar direito com

toda a gente a olhar para nós como se fôssemos um reality show.

Cruzou os braços, disse ceticamente:

– Tipo, um encontro?

Não tinha a certeza de qual seria a resposta correta.

– Acho que sim. Não sei. Vemos o que é quando acontecer.

O seu rosto suavizou-se e, mais uma vez, sobressaltou-me o quão

bonita ela era.


– Está bem. Vamos beber um copo. – Pôs um par de envelopes na

minha mão e deixou-me sozinho junto às caixas do correio, a vê-la

afastar-se, embasbacado. Só daí a um momento me dei conta de que os

alunos de línguas estavam a fitar-me de olhos arregalados. Suspirei,

fingi que não os via e abri o meu primeiro envelope. A letra na parte da

frente era alta e rebuscada, nada como a caligrafia compacta e tombada

de Frederick. Na parte de trás, tinha sido fixada uma fita de seda azul

com um selo de lacre exibindo o brasão de Dellecher. Enfiei o dedo por

baixo da aba e abri o envelope. A mensagem era breve, e igual à dos

últimos três anos, exceto a data.

Está cordialmente convidado para a anual

mascarada de natal

Solicita-se a sua comparência no Salão de Baile Josephine Dellecher

entre as 20:00 e as 21:00 horas na noite de

sábado, 20 de dezembro.

Máscara e traje formal requeridos.

O segundo envelope era mais pequeno, menos ornamentado. Abri-o e

li rapidamente o que trazia escrito.

Solicita-se a sua comparência no salão de baile às 20:45 de 20 de

dezembro.

Venha preparado para o Ato I, Cenas 1, 2, 4 e 5;

Ato II, Cena 4; e Ato III, Cena 1.

Desempenhará o papel de BENVÓLIO

Apresente-se na loja dos adereços às 12:30

no dia 15 de dezembro para provar o seu fato.

Solicita-se a sua comparência na sala de ensaios às 15:00

no dia 16 de dezembro, para a coreografia do combate.

Não fale deste assunto com os seus pares.

Saí do refeitório sem voltar para a nossa mesa. Colin tinha ocupado o

meu lugar. Todos os envelopes tinham sido abertos, e eles lançavam


olhares uns aos outros, perguntando-se que mensagem de Frederick

dizia o quê. Pela primeira vez, decidi que não queria realmente saber.

CENA 14

O nosso horário do período de inverno era tão caótico que só daí a

cinco dias é que eu e Meredith conseguimos arranjar uns minutos

livres para nos escapulirmos do Castelo. James, Wren e Filippa

estavam fechados nos respetivos quartos – provavelmente a decorarem

as suas falas; quase não tínhamos tempo suficiente para lhes fazer

justiça – e Alexander desaparecera no princípio da noite

(provavelmente, pensei, com Colin, embora tenha guardado esse

palpite para mim). Com Romeu e Julieta e o trabalho a fazer para os

nossos discursos dos exames intercalares, andávamos todos

extremamente nervosos. A ideia de beber um copo tranquilo era

maravilhosamente apelativa, mas, mesmo quando estava a abrir a porta

do bar e a segurá-la para Meredith entrar antes de mim, não tinha a

certeza se eu ou ela podíamos realmente dispor desse tempo.

Esperava que o bar estivesse quase vazio, tendo em conta o dia

(domingo) e a quantidade de trabalho que todos tínhamos para fazer

antes do dia 20 (gigantesca). Mas The Bore’s Head estava

surpreendentemente cheio, com a nossa mesa habitual ocupada por um

bando de alunos de filosofia que discutiam em voz alta o significado do

hábito de travestismo de Euclides de Mégara.

– Porque vieram todos sair? – perguntei, conforme Meredith me

conduzia para uma pequena mesa no lado oposto do bar. – Não têm

trabalhos de casa?

– Sim, mas não têm também metade de uma peça de teatro para

decorar – disse ela. – A nossa perspetiva é um pouco distorcida.

– Deve ser – disse eu. – Vou buscar umas bebidas.

Ela sentou-se e fingiu olhar para a lista dos cocktails (como se não a

soubéssemos já de cor) enquanto eu me enfiava entre cadeiras e bancos

para chegar ao balcão. O tipo à minha esquerda – um aluno de dança

do terceiro ano, pensei – lançou-me um olhar de desprezo quando pedi


uma caneca de cerveja e vodka com água mineral e limão. Abanou a

cabeça quando paguei e levou o seu copo à boca sem uma palavra.

– Obrigado – murmurei ao empregado, e levei as duas bebidas para o

outro lado do bar, com cuidado para não derramar nada sobre mim

enquanto evitava tornozelos estendidos, pernas de cadeiras e poças no

chão. Meredith aceitou a vodka com gratidão e sugou metade antes de

dizermos uma só palavra um ao outro.

A nossa conversa foi inesperadamente embaraçada. Fizemos

comentários superficiais e tontos sobre as falas que nos tinham calhado

e a mascarada que se avizinhava, agudamente conscientes de que não

estávamos realmente sozinhos. A nossa mesa era a terceira de uma fila

de cinco, e os pequenos grupos sentados dos nossos dois lados tinham

ficado suspeitamente calados quando nos sentámos. (Eram quase todos

raparigas, reparei, e todos alunos de Dellecher. As raparigas sempre

tinham falado assim tanto, aos segredinhos? Não consegui perceber se

era um novo desenvolvimento ou algo em que eu simplesmente nunca

reparara. Tinha de admitir que nunca fora merecedor de que

segredassem sobre mim.) Meredith acabou a sua bebida e eu agarrei

com ambas as mãos a oportunidade de ir buscar-lhe outra. Enquanto

estava à espera de ser servido, pensei em pedir um shot para mim. Não

pude deixar de pensar em como a noite poderia correr de modo muito

diferente se tivéssemos de facto alguma privacidade, e decidi que,

mesmo que tudo continuasse daquela maneira horrorosa, sugeriria que

acabássemos as nossas bebidas e voltássemos para o Castelo, onde

poderíamos pelo menos fechar uma porta ou escapar para o jardim e

respirar um pouco mais livremente.

Quando voltei a sentar-me, Meredith sorriu-me com um alívio óbvio.

– É estranho, não estarmos à nossa mesa do costume – disse eu. –

Acho que nunca sequer me tinha sentado neste lado do bar.

– Não temos vindo cá muito – disse ela. – Suponho que perdemos o

direito à mesa.

Lancei um olhar por cima do ombro aos filósofos, que continuavam

a debater a obsessão possivelmente homoerótica de Euclides por

Sócrates. (Soava-me a um desejo de que essa hipótese fosse realidade.)

– Provavelmente, podemos recuperá-la – disse eu. – Se chamássemos

toda a gente cá abaixo, podíamos montar um ataque.


– Vamos ter de combinar isso. – Sorriu novamente, mas o sorriso era

incerto.

A sua mão estava pousada na mesa e, num momento de rara

coragem, estendi a minha e pousei-a em cima da dela. Quatro dos seus

dedos enroscaram-se à volta de dois dos meus.

– Estás bem? – perguntei num murmúrio teatral. – Quero dizer,

realmente bem?

Ela mexeu a bebida no copo.

– Estou a tentar. Apesar do que toda a gente pensa, também estou

farta dos olhares fixos. – Não consegui impedir-me de lançar um olhar

rápido na direção das outras mesas. – Soa insensível, mas não me

importo. Não quero continuar a ser simplesmente a namorada do tipo

que morreu.

Apeteceu-me largar imediatamente a mão dela.

– E queres ser o quê? – perguntei, sem pensar. – A minha namorada?

Lançou-me um olhar fulminante, com a surpresa a apagar-lhe

qualquer outra emoção do rosto.

– O que...

– Não sou o substituto do Richard – disse eu. – Não vou chegar-me à

frente e desempenhar o papel dele, agora que saiu de cena. Não é o que

eu quero.

– Eu também não quero isso. É exatamente o que não quero. Jesus,

Oliver. – Os seus olhos estavam duros, de um verde-garrafa, cortantes

como estilhaços. – O Richard e eu tínhamos acabado – disse. – Ele era

um cabrão e atormentava-me, a mim e a toda a gente, e eu estava farta

dele. Sei que ninguém quer recordar isso, agora que ele está morto, mas

tu devias.

Baixei a voz.

– Desculpa – disse. – Eu só... talvez seja porque tu és tu, e, quer

dizer, olha só para ti... mas não compreendo. Porquê eu? Eu não sou

ninguém.

Desviou os olhos, mordendo com força o lábio inferior, como se

estivesse a tentar não chorar ou talvez não gritar. A sua mão ficara

mole e fria debaixo da minha, como se já não estivesse ligada ao resto

do corpo. Nas mesas dos nossos dois lados, as pessoas tinham parado

de falar.
– Sabes, toda a gente te chama «simpático» – disse ela lentamente,

com uma expressão abatida e pensativa. – Mas não é essa a palavra. Tu

és bom. Tão bom que não fazes ideia de quão bom és. – Riu-se, uma

vez, uma espécie de som triste, resignado. – E és real. És o único de

nós que não está sempre a atuar, que não está simplesmente a

desempenhar o papel que a Gwendolyn te deu há três anos. – Os seus

olhos encontraram os meus novamente e o eco daquele riso continuava

a pairar-lhe à volta da boca. – Eu sou tão má como os outros. Trate-se

uma rapariga como uma puta e ela aprenderá a comportar-se como tal.

– Ergueu um pouco os ombros, não propriamente a encolhê-los. – Mas

não é assim que tu me tratas. E isso é tudo o que eu queria.

Fechei os olhos com força e depois ergui-os para o teto. Era o único

lugar seguro para onde olhar, o único lugar onde sabia que não

encontraria cinco pares de olhos a fitarem-me.

– Desculpa – disse mais uma vez, a desejar não ter dito nada, a

desejar ter tido o bom-senso de ficar ali sentado com ela a maravilhar-

me com o facto de ela quer estar ali sentada comigo, e não perguntar

porquê. Devia ser muito fácil, mas nada entre nós alguma vez seria

fácil. Se isto era o que queríamos, tínhamos feito batota para o obter.

Podíamos sair do bar e escapar aos olhares dos outros estudantes, mas

as portas fechadas não importavam quando era Richard quem nos

observava.

Meredith parecia cansada, mais do que zangada.

– Sim, bem, eu também lamento.

– Então, onde é que isso nos deixa? – perguntei, com receio de

depositar demasiada esperança na pergunta. Coragem, homem, disse-

me Romeu novamente, o cabrão do mentiroso; o ferimento não deve

ser profundo.

– Não sei. Em lado nenhum. – Recolheu a mão. – E se voltássemos

para o Castelo? Estamos melhor lá do que aqui.

Levantei-me e recolhi os nossos copos vazios num silêncio reticente.

Ajudei-a a vestir o casaco, deixando ficar a mão no seu ombro um

pouco mais de tempo. Ela não pareceu senti-la, mas na mesa ao lado

da nossa ouvi uma rapariga segredar às outras:

– É uma falta de vergonha do caraças.


Mas a vergonha queimava-me o rosto e o pescoço enquanto seguia

Meredith para a escuridão profunda de dezembro. Os primeiros flocos

de neve dançavam contra um céu negro, e dei comigo a esperar que

tombassem aos milhões, se colassem depressa e enterrassem tudo.

CENA 15

O horário dos nossos discursos do meio do período foi afixado no

quadro de avisos no passadiço, na segunda-feira. Eu seria o primeiro,

durante o habitual tempo de ensaio na tarde de quarta-feira, e Wren

seria a seguir. James e Filippa leriam na quinta-feira, às mesmas horas

que eu e Wren, e Alexander e Meredith também às mesmas horas, mas

na sexta-feira.

Nevou forte e feio desde a noite de domingo até à manhã de terça-

feira, com a neve a fazer os possíveis por realizar o desejo insensato

que eu tinha formulado ao sair do bar. Tínhamos os pés e os dedos

num estado de permanente dormência e as faces e os narizes cor-de-

rosa e o batom do cieiro tornou-se de repente um produto valioso. Na

quarta-feira, Frederick e Gwendolyn conduziram-nos para a sala de

ensaios cheia de correntes de ar, onde tirámos cachecóis, casacos e

luvas e fomos submetidos a um rigoroso exercício de aquecimento de

Gwendolyn.

Precipitei-me de cabeça para o meu discurso enquanto Wren

esperava no corredor. «Havia de visar sem descanso essas pilecas /

Mesmo que a mais aberta desolação / Os deixasse tão vulneráveis

como o simples ar», forçou-me a abrandar o ritmo, e a força das

imagens transportou-me com mais constância até «Que vos parece este

conselho louco, ó poderosos?», momento em que me senti obrigado a

acelerar novamente. No fim, sentia-me sem fôlego, mas estranhamente

empolgado, aliviado por ser alguém que não eu durante algum tempo,

mais disposto a partir para a guerra do que a defrontar os meus

próprios feios e parcos demónios.

Frederick e Gwendolyn estavam ambos a sorrir-me – a boca de

Gwendolyn era um risco vívido do seu batom escuro de inverno, a de


Frederick um pequeno arco enrugado.

– Muito bom, Oliver – disse Gwendolyn. – Um pouco apressado no

início, mas apanhaste-lhe bem o ritmo.

– Achei-o inteiramente persuasivo – disse-me Frederick. – O que

augura grande sucesso no teu papel.

– Obrigado.

– Vais receber o resto dos nossos comentários na tua caixa do

correio amanhã – disse Gwendolyn. – Mas no teu lugar não me

preocuparia. Senta-te.

Agradeci-lhes de novo e fui sentar-me ao lado da mesa deles,

bebendo grandes goles de água de uma garrafa que tinha debaixo da

cadeira enquanto esperávamos por Wren. Gwendolyn foi chamá-la ao

passadiço e quando ela apareceu senti-me alarmado ao vê-la tão

pequena e com um ar tão frágil.

– Bom dia – disse ela; a sua voz era apenas um eco na sala

cavernosa.

– Bom dia – respondeu Frederick. – Como estás?

– Estou bem – disse ela, mas não acreditei. O seu rosto e as suas

mãos estavam pálidos, e tinha olheiras escuras. – Ando um pouco

destemperada.

– Com este tempo, toda a gente anda – disse Gwendolyn, e piscou-

lhe um olho.

Wren tentou rir-se, mas foi sacudida por uma tosse forte. Lancei um

olhar preocupado a Frederick, mas não conseguia ver-lhe a expressão

por causa do reflexo dos seus óculos.

– O que tens para nós hoje? – perguntou ele. – Lady Anne, não é?

– É isso mesmo.

– Maravilhoso – disse Gwendolyn. – Quando estiveres pronta.

Wren acenou com a cabeça e fincou os pés no chão, a dez passos da

mesa. Do outro lado da sala, franzi a testa, sem saber ao certo se ela

estava a tremer ou se era da minha imaginação.

Wren: – Quisera Deus que aquele aro de metal

Que com ouro há de rodear-me a fronte

Fosse em brasa e calcinasse até ao cérebro.

Ao ser ungida, que seja com veneno

E eu morra antes que gritem: «Viva a rainha!»


As suas palavras soaram alto e bom som sob o teto abobadado, mas

também vacilantes. Prosseguiu corajosamente, com o seu pequeno

corpo a contrair-se e a ficar ainda mais pequeno sob o peso esmagador

da dor de Anne – não duvidei de que ela a sentia tão intensamente

como se fosse sua.

Wren: – Fiz este voto: «Maldito seja», disse eu,

Por me fazeres, tão nova, uma idosa viúva;

E quando casares, que a dor te assombre o leito;

Tua mulher – se alguma louca o quiser ser –

Seja mais infeliz por estares vivo do que eu sou

Por me teres matado o meu querido senhor.

Ficou com a voz alquebrada, o seu som demasiado áspero para ser a

afetação de uma atriz. Bateu com força no peito com o punho, mas eu

não saberia dizer se era uma expressão da sua dor ou uma tentativa

desesperada de desalojar o que estava a sufocá-la. Gwendolyn inclinou-

se para a frente sobre a mesa, com a testa franzida de preocupação.

Contudo, antes de ela ter tempo de dizer alguma coisa, a voz de Wren

soou novamente, um gaguejo entrecortado e desconexo. Estava quase

dobrada pela cintura, com o punho ainda no peito, a outra mão a

enterrar-se violentamente na barriga. Fiquei paralisado, a agarrar os

lados da cadeira com tanta força que as pontas dos meus dedos ficaram

dormentes.

Wren: – Ai, que antes de poder repetir tal praga,

Em breve tempo, o meu coração de mulher

Se encantou, boçal, do seu falar melífluo,

Merecendo a maldição da minha própria alma

Que até hoje negou o sossego aos meus olhos;

Nem uma hora tive eu na cama dele...

Aos poucos foi parando de falar e ficou a balouçar-se no mesmo

lugar. Piscou os olhos lentamente e a custo e murmurou: –... sono.

Adivinhei que ia cair, mas não saltei suficientemente rápido da

cadeira para a apanhar antes de ela desmoronar no chão.


CENA 16

Regressei ao Castelo uma hora mais tarde, com o frio a roer-me as

pernas mesmo enquanto subia as escadas. Ainda tremelicava (ou talvez

com tremuras, como Wren, um sintoma não relacionado com a

temperatura lá fora) quando apareci à porta da biblioteca. James e

Filippa estavam no sofá, com os narizes enfiados nos seus textos, até

me ouvirem entrar. Deviam persistir uns vestígios de choque na minha

expressão, porque ambos se puseram de pé de um salto.

Filippa: – Oliver!

James: – O que se passa?

Tentei falar, mas inicialmente não me saiu nenhum som, perdido no

clamor das recordações imediatas que me atravancavam o cérebro.

James agarrou-me pelos ombros.

– Oliver, olha para mim – pediu. – O que foi?

– É a Wren – respondi. – Simplesmente... desmaiou... no meio do

discurso dela.

– O quê? – Falou tão alto que recuei instintivamente. – O que queres

dizer com desmaiou? Ela está bem? Onde...

– James, deixa-o falar! – Filippa puxou-o para trás e disse, mais

delicadamente, mas branca como a cal: – Que aconteceu?

Contei-lhes, num monólogo cheio de paragens e pausas

embaraçadas, como Wren tinha tombado na sala de ensaios, como,

depois de uma tentativa infrutífera de a reanimar, eu a tinha levantado

em braços do chão e correra a toda a velocidade para a enfermaria,

com Gwendolyn e Frederick no encalço, a esforçarem-se por

acompanhar o meu ritmo.

– Está estável agora, foi o que disseram. Estava a abrir os olhos

quando as enfermeiras me empurraram dali para fora. Não me

deixaram ficar. – Aquela última frase disse-a, em jeito de desculpa, a

James.

Ele abriu a boca, moveu-a sem dizer nenhuma palavra, como um

homem a falar debaixo de água, e depois disse, subitamente:

– Tenho de ir.

– Não, espera... – Estendi a mão para o seu braço, mas só lhe rocei a

manga. Já estava fora do meu alcance, a dirigir-se para a porta.


Lançou-me um olhar magoado, a tentar comunicar algo que não tive

tempo de apreender, antes de se virar e desatar a correr pelas escadas

abaixo. Depois de ele se ir embora, a adrenalina esvaziou-se do meu

corpo de repente e senti as pernas bambas. Filippa levou-me até uma

cadeira, mas não a mais próxima – não a de Richard.

– Deixa-te ficar aqui sentado algum tempo e sossega – disse ela. – Já

fizeste o que podias.

Agarrei-lhe o pulso e apertei-o com demasiada força, num estranho

acesso de desespero. Wren perdera o equilíbrio e escorregara para o

chão tão depressa que não consegui apanhá-la, e agora James também

tinha desaparecido, porta fora para a noite, como água a escorrer por

entre os meus dedos. Sentia-me relutante em ficar sozinho, mais

relutante ainda em perder de vista outra amiga, como se um ou outro

pudéssemos simplesmente desaparecer. Filippa tombou no chão ao

lado da minha cadeira e pousou a cabeça no meu joelho, não dizendo

nada, simplesmente esperando até eu já não precisar dela ali.

Ao fim de uns dez minutos, soltei-a, mas foi só quando Alexander e

Meredith chegaram que senti vontade de voltar a pôr-me de pé. Contei-

lhes a história, de uma maneira mais coerente, e passámos uma hora

juntos à volta da lareira, sem falar muito, à espera de notícias.

Eu: – Acham que a mascarada se vai realizar, mesmo assim?

Filippa: – Não podem cancelá-la agora. As pessoas entrariam em

pânico.

Alexander: – Outra pessoa vai ter de aprender o papel da Wren.

Ninguém vai sequer saber que era suposto ser ela.

Meredith: – Não sei o que vocês sentem, mas eu estou farta deste

mistério todo.

Remetemo-nos ao silêncio, a olhar para o lume, e esperámos.

Já era meia-noite quando James regressou. Alexander tinha tombado

de lado no sofá e adormecera – o seu rosto macilento, a sua respiração

superficial – mas eu e as raparigas estávamos acordados, com olhos de

sono e inquietos. Quando ouvimos abrir-se a porta da frente, sentámo-

nos mais direitos, à escuta de passos nas escadas.

– James? – chamei.

Não respondeu, mas daí a um momento apareceu à porta, com neve

agarrada ao cabelo. Duas rosetas de um vermelho-vivo brilhavam-lhe


nas faces, como se lhe tivesse sido aplicado rouge por uma menina

pequena que não fazia ideia do que era excessivo.

– Como é que ela está? – perguntei, levantando-me do sofá para o

ajudar a tirar o casaco.

– Não me deixaram vê-la. – Estava a bater os dentes, o que fazia com

que as suas palavras soassem tremidas e aos sacões.

– O quê? – disse Meredith. – Porque não?

– Não sei. Outras pessoas entravam e saíam e andavam para a frente

e para trás como se aquilo fosse uma estação de comboios, mas a mim

mandaram-me sentar no átrio.

– Quem estava lá? – perguntou Filippa.

– O Holinshed e todas as enfermeiras. Chamaram um médico de

Broadwater. Os polícias também estavam lá... aquele tipo, o Colborne

e outro, chamado Walton.

Alexander acordara com a entrada de James, e olhei-o nos olhos. A

sua boca formou uma linha sombria e dura.

– O que estavam a fazer lá? – perguntou, de olhos postos em mim.

James tombou pesadamente numa cadeira.

– Não sei. Não me quiseram dizer. Só perguntaram se eu sabia o que

ela tem feito ultimamente.

– Bem, é da exaustão, não é? – disse Meredith. – Da fadiga. Ela teve

aquela terrível… experiência, e regressa e vê toda a gente esquivar-se a

ela, e ainda por cima dão-lhe quinhentos versos para decorar. É um

milagre que continuemos de pé.

Não estava a prestar-lhe toda a minha atenção. As palavras de

Walton saltitavam-me no cérebro como um flíper tresmalhado. Eu

aposto na prima. Sentei-me à mesa em silêncio e dobrei o casaco de

James e segurei-o no colo, esperando que ninguém me prestasse

atenção. Continuar a guardar segredo da investigação em curso de

Colborne já não me parecia justo, e duvidava que fosse capaz de

manter o silêncio se alguém me fizesse uma pergunta, mesmo que não

estivesse relacionada. Alexander observava-me como um falcão, e,

quando me arrisquei a erguer a cabeça e olhá-lo nos olhos, abanou a

cabeça quase impercetivelmente.

– O que fazemos? – perguntou Filippa, olhando de James para

Meredith.
– Nada – disse Alexander, antes de um dos outros dois ter tempo de

falar, e senti vontade de perguntar: Essa é a tua resposta para tudo?

Perguntei-me de quantas maneiras ele poderia usar aquela palavra, e se

a minha alma se contorceria e encolheria de cada vez que ele a

dissesse. – Continuamos como de costume, ou eles farão todo o tipo de

perguntas a que não queremos responder.

– Quem? – perguntou Meredith. – A polícia?

– Não – disse ele, rapidamente. – A escola. Chamam-nos a todos

para a merda do aconselhamento psicológico se ficarmos mais

alterados do que já estamos.

– Temos todas as razões para estarmos alterados – disse ela. – Um

dos nossos colegas de turma está morto e outra acabou de ter uma

espécie de colapso nervoso.

– E que aspeto é que achas que isso dá? – perguntou ele. – Entendo

que não podemos fingir que não estamos afetados pelo que aconteceu,

mas, se começarmos todos a comportar-nos como se tivéssemos

matado alguém, eles vão começar a perguntar-se se o fizemos.

– Nós não o matámos – disse Meredith imediatamente, furiosa.

Reconheci o reflexo, a culpa a espernear contra uma alegação

demasiado próxima da verdade.

– Não, é claro que não – disse Alexander, e fez cada palavra picar

como um ferrão. – Só o deixámos morrer.

Na altura, parecera uma distinção muito importante. Porém, nas

semanas que se seguiram, à medida que íamos recuperando da loucura

temporária daquela manhã, a diferença tornou-se cada vez mais ténue.

As palavras de Alexander cortaram o último fio desse fingimento. Já

sabíamos, tão bem como Richard soubera, que não havia nenhuma

diferença.

Alexander pôs-se de pé, incluindo todas as pessoas num olhar

reprovador ao mesmo tempo que palpava os bolsos.

– Preciso de ir fumar. Avisem-me se houver notícias. – Saiu

abruptamente da sala, com um cigarro já enfiado entre os lábios. James

ficou a vê-lo afastar-se e depois baixou os ombros e deixou a cabeça

afundar-se entre as mãos. Filippa empoleirou-se no braço do cadeirão

dele, pousando-lhe uma mão na nuca, e baixou-se para lhe dizer

alguma coisa que não consegui ouvir. Mal Alexander desapareceu de


vista, Meredith disparou-me um olhar que era um misto de indignação

e perplexidade.

– Mas que raio de problema é que ele tem?

– Não faço ideia.

CENA 17

Três dias mais tarde, estava sozinho na Torre a preparar-me para a

mascarada de Natal e para a nossa representação truncada de Romeu e

Julieta. O pessoal do guarda-roupa vestira-nos num estilo que

descreviam como «couture de carnevale» e que, ao que me parecia,

não respeitava nenhum período histórico em particular, mas requeria

muito veludo e bordados dourados. Vi o meu reflexo no espelho, virei-

me de um lado e do outro. Parecia um mosqueteiro, mas um

mosqueteiro particularmente espampanante e abastado. A meia capa

que me tinham dado estava lançada sobre um ombro e presa com uma

fita cintilante no meio do meu peito. Dei-lhe um puxão, um pouco

constrangido.

James e as raparigas já tinham saído (exceto Wren, que, tanto quanto

sabíamos, continuava de cama na enfermaria) e restavam-me poucos

minutos. Tentei puxar as botas quando me levantei, mas caí logo de

lado em cima da cama, e acabei por terminar essa tarefa aí mesmo. A

minha máscara estava pousada na mesa de cabeceira, a fitar-me com

olhos vazios. Era uma coisa linda, de encantamento – com um padrão

de linhas douradas cruzadas e diamantes em tons cintilantes de azul,

preto e prateado. (Como tinham sido feitas por medida pelos alunos de

artes visuais e não serviriam a mais ninguém, fora-nos dito que

podíamos ficar com elas.) Atei a fita de seda atrás da cabeça com

dedos desajeitados, murmurando entre dentes os primeiros versos da

minha fala, e depois lancei um último olhar ao meu reflexo no espelho

e desci as escadas a toda a pressa.

Alexander estava na biblioteca, mas não o reconheci de imediato, e

ele sobressaltou-me tanto que cambaleei para trás. Olhou para cima de

onde estava debruçado: sobre uma linha fina de pó branco na mesa de


apoio aos sofás. Os seus olhos alertas fitaram-me através de dois

buracos profundos numa máscara verde e preta, mais larga e menos

delicada do que a minha, estreitando a formar um diabólico remate

aguçado na ponta do nariz.

– O que estás a fazer? – perguntei, mais alto do que tencionava.

Ele rodou o tubo de uma esferográfica entre os dedos e disse: – Só

estou a animar-me um bocado antes do baile. Queres fazer-me

companhia?

– O quê? Não. Falas a sério?

– Estou a ser mais sério que o costume; / E assim devíeis vós estar. –

Baixou a cabeça sobre a mesa e fungou com força. Virei as costas, sem

querer ver aquilo, furioso com Alexander por uma qualquer razão

incoerente que me escapava. Ouvi-o soltar o ar e olhei de novo para

ele. A linha de pó tinha desaparecido e ele estava sentado com as mãos

nos joelhos, a cabeça inclinada para trás e os olhos semicerrados.

– Então – disse eu. – Há quanto tempo andas metido nisso?

– Vais-me ralhar?

– Seria bem justificado – disse eu. – Os outros sabem?

– Não. – Ergueu a cabeça de novo e fitou-me com uma intensidade

enervante. – E espero que se mantenha assim.

Lancei um olhar ao relógio, com a cabeça a zumbir.

– Vamos chegar atrasados – disse, rispidamente.

– Então vamos lá.

Saí da biblioteca sem esperar para ver se ele me seguiria. Já

estávamos no trilho, a meio caminho do Hall, quando finalmente me

alcançou e se pôs a andar ao meu lado.

– Vais-me olhar de lado a noite toda? – perguntou, tão casualmente

que tive a certeza de que não se importaria se eu o fizesse.

– Estou a pensar nessa hipótese, sim.

Riu-se de novo, mas havia um tom falso na sua gargalhada. Avancei

impacientemente. Queria afastar-me dele, perder-me num magote de

pessoas que não conhecia e evitar pensar no assunto por umas horas. A

capa pendia-me pesadamente dos ombros, mas o frio insinuava-se por

baixo, fustigando-me a pele através das camadas finas da camisa e do

gibão.
– Oliver – disse Alexander, e ignorei-o. Mal conseguia manter-se a

par de mim, com os pulmões a esforçarem-se por converter o ar frígido

em algo respirável. A neve estalava sob os nossos pés, quebradiça e

gelada na superfície; um pó denso por baixo. – Oliver. Oliver! – Na

terceira vez que disse o meu nome, agarrou-me o braço e puxou-me,

para o olhar de frente. – Vais realmente ser um otário em relação a

isto?

– Vou.

– Tudo bem. Olha. – Ainda estava a segurar-me o braço, com

demasiada força, os seus dedos a esmagarem-me o músculo até ao

osso. Cerrei os dentes, quase convencido de que ele nem sequer se

apercebia de que estava a fazê-lo, sem querer reconhecer a

possibilidade mais perturbadora de que sim, se apercebia. – Só preciso

de um pequeno empurrão extra para passar a época dos exames. Vou

estar limpo quando me vires em janeiro.

– É bom que estejas. Pensaste sequer no que vai acontecer se o

Colborne encontrar essa merda no Castelo? Ele só está à procura de

uma razão para abrir esta coisa toda outra vez, e se tu lhe deres uma

razão, juro que te mato.

Fitou-me, máscara a máscara, com um olhar cauteloso e desconfiado

que não reconheci bem.

– O que é que te deu? – disse ele. – Não pareces o mesmo.

– Sim, bem, tu também não pareces estar em ti. – Tentei libertar-me,

mas ele manteve os dedos fechados à volta do meu bíceps. – És mais

esperto do que isso. Não vou guardar mais segredos teus. Tira-me a

mão de cima. Vamos lá.

Sacudi o braço, a soltá-lo, e virei-lhe costas, avançando pela neve

mais funda.

CENA 18

Alexander seguiu-me como uma sombra pelos três lanços de escadas

acima. O salão de baile estendia-se para o céu, do quarto andar para o


quinto, com um varandim comprido e uma claraboia de vidro cintilante

que apunhalava a Lua.

A mascarada de Natal era tradicionalmente espetacular, e a do

inverno de 1997 não foi exceção. O chão de mármore tinha sido polido

até ficar tão brilhante que dava a sensação de que as pessoas andavam

em cima de espelhos. Umas figueiras de interior, em floreiras

quadradas em cada canto do salão, estavam ornamentadas com

minúsculas luzes brancas e fitas e arames que chispavam clarões

dourados à volta do espaço. Os lustres – pendurados em correntes

grossas que se estendiam de parede a parede três metros acima do

varandim – lançavam uma luz quente sobre o espaço cheio de pessoas.

As mesas apinhadas com taças com ponche e travessas com hors

d’oeuvres minúsculos perfilavam-se ao longo da parede no lado oeste, e

os estudantes que já tinham chegado juntavam-se à sua volta como

traças em redor de uma luz. Todas as pessoas estavam vestidas a

preceito, embora os seus rostos estivessem escondidos – o de todos os

rapazes com máscaras brancas bauta, o das raparigas com pequenas

morettas pretas. (Em comparação, as nossas máscaras eram

incrivelmente vistosas, feitas para se destacarem num mar de rostos

vácuos e anónimos.) Os estudantes de música orquestral tinham-se

juntado num dos lados do salão com os seus instrumentos, as

partituras postas em elegantes estantes prateadas. Uma valsa – leve e

linda – enchia o ar sob o teto.

Mal entrámos, viraram-se cabeças na nossa direção. Alexander

avançou imediatamente para a multidão, uma figura alta e imponente

em preto, prateado e verde-azulado. Deixei-me ficar à porta, esperei

que os olhos das pessoas se desviassem e depois comecei a andar

devagar e discretamente pelo perímetro do salão. Procurei centelhas de

cor, com a esperança de avistar James, Filippa ou Meredith. Tal como

no Halloween, não sabíamos como começaria. A expectativa vibrava

no salão como uma corrente elétrica. Tinha a mão pousada no punho

da adaga que trazia no cinto. Passara duas horas na tarde de terça-feira

com Camilo, a aprender o combate do primeiro duelo da peça. Quem

era Teobaldo, e onde se escondera? Eu estava pronto.

A orquestra silenciou-se, e quase imediatamente uma voz chamou do

varandim:
– A briga é entre os nossos amos e nós, seus criados.

Duas raparigas – ambas alunas do terceiro ano, pensei – estavam

debruçadas do varandim na parede do lado leste, com umas simples

meias-máscaras prateadas a esconderem-lhes os olhos e o cabelo muito

repuxado para trás. Estavam vestidas à rapaz, com calções, botas e

gibões.

– É uma só – disse a segunda. – Eu hei de provar que sou um tirano:

depois de me bater com os homens, serei cortês para as donzelas:

corto-lhes a cabeça!

– As cabeças das donzelas?

– Sim, as cabeças das donzelas, as flores! Toma-o como quiseres.

Soltaram gargalhadas obscenas, masculinas, em que foram

entusiasticamente acompanhadas pelo público em baixo. Ao ver aquilo,

perguntei-me qual seria a melhor maneira de entrar para interromper a

sua disputa. Mas quando Abraão e Baltazar (também raparigas do

terceiro ano) entraram no salão de baile, Gregório e Sansão passaram

as pernas por cima da parede do varandim e começaram a descer pela

coluna mais próxima, agarrando com força a folhagem enrolada à sua

volta. Mal tocaram no chão, um deles assobiou e os dois criados da

casa dos Montéquios viraram-se. Os gestos insultuosos –

acompanhados por mais gargalhadas indulgentes – transformaram-se

rapidamente em discussão.

Gregório: – Vindes armar zaragata, senhor?

Abraão: – Zaragata, senhor? Não, senhor.

Sansão: – Mas se vindes, senhor, contai comigo; sirvo um amo tão

bom como o vosso.

Abraão: – Melhor, não.

Sansão: – Sim, é melhor, senhor.

Abraão: – Mentis!

Envolveram-se num duelo trapalhão a quatro. O público (empurrado

agora para o perímetro do salão) assistia encantado, rindo-se e

aplaudindo os seus favoritos. Esperei até sentir que a escaramuça

estava pronta a ser interrompida e depois corri para a frente, saquei da

minha adaga e separei as raparigas. – Apartai-vos, seus tolos, e

embainhai as espadas! Não sabeis o que fazeis.


Recuaram, com a respiração ofegante, mas ouviu-se uma voz sonante

do outro lado do salão. Teobaldo.

– O quê? De espada em punho entre esses cobardolas? / Volta-te,

Benvólio, e vê a tua morte!

Rodei sobre os calcanhares. A multidão apartara-se à volta de Colin,

que me fitava por trás de uma máscara preta e vermelha, com os lados

cortados na zona das maçãs do rosto, angulares e reptilíneos, como

asas de dragão.

Eu: – Só quis repor a paz. Embainha a espada,

Ou usa-a para de mim estes homens apartar.

Colin: – Como? De espada, a falar de paz? Palavra odiada,

Como só o inferno, os Montéquios e a ti posso odiar.

Toma, cobarde!

Colin investiu sobre mim e chocámos como um par de galos em luta.

Atacámo-nos e aparámos os golpes um do outro até as quatro raparigas

se lançarem na refrega, apupadas pelas centenas de estudantes

mascarados que estavam a assistir. Uma cotovelada no queixo fez-me

tombar pesadamente de costas no chão. Colin saltou-me em cima num

instante, estendendo a mão para o meu pescoço, mas eu sabia que

Éscalo chegaria a tempo de evitar o meu estrangulamento. Ele – ou

antes, ela – apareceu ao cimo das escadas do varandim num esplendor

real estonteante.

– Súbditos rebeldes, inimigos da paz, / É com sangue dos vossos que

profanais o aço / Não me ouvis?

Pelo contrário, parámos todos imediatamente de peguilhar. Colin

largou-me e eu pus-me de joelhos, erguendo a cabeça para fitar

Meredith num espanto mudo. Ela não parecia menos um príncipe do

que um de nós, os rapazes, teria parecido – com o seu cabelo ruivo

preso numa longa trança, as suas pernas bem feitas escondidas em

botas de couro de cano alto, o rosto ocultado por uma máscara branca

que cintilava como se tivesse sido mergulhada em pó de estrelas. Um

manto até aos pés varria as escadas atrás dela enquanto as descia.

Meredith: – Então! Ó homens, ó animais,

Que apagais o fogo do vosso furor voraz

Com purpúreas golfadas jorrando das veias!

Sob pena de tortura, dessas mãos com sangue


Arremessai ao chão as armas destemperadas,

E do vosso Príncipe irado ouvi a sentença.

Atirámos obedientemente as nossas adagas para o chão.

Meredith: – Já três rixas civis, geradas de vãs palavras,

Três vezes agitaram o sossego destas ruas

E forçaram os veneráveis anciãos de Verona

A pôr de parte as respeitáveis vestes

Para em velhas mãos empunhar velhos ferros,

Roídos de paz, e vossos ódios corroídos apartar.

Caminhou lentamente entre nós, de cabeça bem erguida. Colin

recuou e fez uma vénia. Eu e as outras raparigas tínhamos tombado

sobre um joelho. Meredith olhou para mim e ergueu-me o queixo com

a mão enluvada.

– Se estas ruas de novo perturbardes / Com a vida pagareis o

atentado à paz. – Rodou sobre os calcanhares, e a fímbria do seu

manto roçou-me o rosto. – Desta vez, que os outros se retirem.

Colin e as raparigas baixaram-se para recolher as suas armas

descartadas e partes perdidas da indumentária. Mas o príncipe estava

impaciente.

– Repito, sob pena de morte, retirai-vos todos!

Afastámo-nos do centro do salão, que irrompeu em aplausos quando

Meredith voltou a subir as escadas para o varandim. Deixei-me ficar na

orla da multidão, a ver os seus pés nos degraus até ela desaparecer, e

depois virei-me para o folião mais próximo de mim – um rapaz, não

sabia quem, apenas com os seus olhos castanhos visíveis através dos

buracos da máscara – e disse:

– Mas onde está Romeu? – E para outro espectador: – Já o vistes

hoje? / Alegra-me ele não estar nesta peleja.

Nesse exato momento, Romeu surgiu de uma porta na parede do

lado leste, todo vestido de azul e prateado, com a sua máscara a curvar-

se delicadamente na direção das têmporas. Parecia quase uma figura

mítica, Ganimedes, numa maravilhosa fase de transição entre rapaz e

homem. Eu sabia que seria James, adivinhara-o, mas a sua aparição

não me causou menos impressão por eu o saber.

– Ele aí vem – disse eu à rapariga que estava mais perto de mim,

num tom de voz mais suave. Aquele estranho orgulho possessivo


inundou-me de novo. Todas as pessoas no salão estavam a olhar para

James – como não? – mas eu era o único que o conhecia realmente,

cada polegada dele. – Retirai-vos, por favor / A mim há de negar ou

confessar sua dor. / Bom dia, primo.

James olhou para cima, diretamente para mim. Parecia surpreendido

por me ver ali, embora eu não fizesse a mínima ideia porquê. Eu não

era sempre o seu braço-direito, o seu lugar-tenente? Banquo, Benvólio

ou Oliver – a diferença era pouca.

Discutimos ligeiramente o seu amor não-correspondido, com um

jogo a desenhar-se em que eu me atravessava no seu caminho sempre

que ele tentava ir-se embora ou evadir-se às minhas perguntas. Dispôs-

se a fazer o jogo, até que por fim disse, com mais firmeza:

– Adeus, primo.

– Espera – disse eu. – Vou contigo. / Se ora me deixas fico sentido.

– Cala-te, estou perdido, não estou aqui; / Não é Romeu, ele está

algures por aí.

Virou-se para se ir embora, e corri a barrar-lhe o caminho de novo.

A certo ponto, o meu desejo de o manter ali transcendera o

alinhamento da motivação de um ator e da sua personagem. Queria

desesperadamente que ficasse, dominado pela ideia irracional de que

se ele se fosse embora eu o perderia, para sempre.

– Fala a sério, a quem é que tu amas? – disse eu, examinando as

partes do rosto que lhe via, à procura de uma centelha de sentimento

reciprocado.

James: – A sério faz o enfermo o seu testamento:

Palavra mal azada para quem está tão doente.

É sério, primo, eu amo uma mulher.

Por um instante, esqueci-me da minha fala seguinte. Fitámo-nos, e a

multidão desvaneceu-se à nossa volta em sombras e cenários

indistintos. Num sobressalto, recordei as minhas palavras, mas não

exatamente as corretas.

– Vai por mim – disse, alguns versos demasiado cedo. – Não penses

nela.

James piscou os olhos rapidamente por trás da máscara, mas depois

recuou, indiferente, e continuou. Fiquei imóvel a vê-lo andar às voltas:

as suas palavras, os seus passos, os seus gestos – tudo agitado.


Um serviçal entrou com a notícia da festa vindoura dos Capuletos.

Mexericámos, planeámos, conspirámos, até entrar finalmente um

terceiro mascarado: Alexander.

Disse o seu primeiro verso de onde estava sentado na beira da mesa

do ponche, com os braços à volta dos ombros das duas pessoas da

assistência mais perto de si – uma das quais estava a rir-se

descontroladamente por trás da máscara enquanto a outra se encolhia a

afastar-se dele, obviamente aterrada.

– Não, caro Romeu, tens de dançar.

Deslizou da mesa tão suavemente como se fosse feito de líquido e

aproximou-se com o seu andar esgalgado de felino. Arredou-me do seu

caminho e pôs-se a andar à volta de James num pequeno círculo,

parando para o olhar de todos os ângulos intrigantes. Trocaram

palavras e gracejos entre si, fáceis e inconsequentes, até que James

disse:

– Coisa meiga, o amor? É áspero de mais, / Por demais rude, brutal,

e fere como um espinho.

Alexander soltou uma gargalhada ronronada e agarrou James pelo

peitilho do seu gibão.

Alexander: – Se o amor for rude contigo, sê rude com ele;

Fere o amor por te ferir e assim o vences.

Dai-me uma máscara para o rosto,

Uma careta para outra careta.

As testas das máscaras dos dois colidiram, com Alexander a agarrar

James com tanta força que o ouvi gemer de dor. Comecei a dirigir-me

para eles, mas, mal dei um passo, Alexander empurrou James para trás,

diretamente para os meus braços.

Alexander: – Que me importa

Se olhares curiosos virem os meus defeitos?

Que a máscara core por mim.

Endireitei novamente James e disse:

– Vamos, é bater e entrar, e uma vez lá dentro, / Que ninguém fique

de pernas paradas.

Alexander: – Vamos, que se faz dia!

James: – Não se faz nada.

Alexander (impaciente): – Bem, senhor, na vigia


Esbanjamos luzes, como que a acender o dia.

Não me julgues mal, pois a minha intenção

Cinco vezes vale o que os cinco sentidos dão.

James: – Irmos ao baile é de boa intenção,

Mas não faz sentido algum.

Alexander: – Pode saber-se porque não?

James: – Tive um sonho esta noite.

Alexander: – Eu também.

James: – Então, que sonhaste?

Alexander: – Que os sonhadores mentem muito.

James: – Dormem e sonham com verdades.

Alexander: – Ah, vejo que estiveste com a Rainha Mab!

Recuei dois passos para assistir ao desenrolar do peculiar monólogo.

O Mercúcio de Alexander era cortante, desequilibrado, quase insano.

Os seus dentes incisivos aguçados brilhavam à luz quando sorria, a sua

máscara cintilava travessa quando ele dançava à volta, primeiro

desafiando um espectador, depois outro. A voz e os movimentos dele

foram-se tornando cada vez mais sensuais e selvagens, até perder

completamente o controlo e se arremessar contra mim. Cambaleei para

trás, mas não com suficiente rapidez – ele agarrou-me pelo cabelo,

dobrou-me a cabeça para trás contra o seu ombro e rosnou-me ao

ouvido.

Alexander: – É ela a feiticeira que aperta as raparigas

Quando elas estão deitadas de costas,

E as ensina a aguentar a primeira vez,

E a fazer delas mulheres de boa rodagem.

É ela mesma...!

Eu resistia-lhe, mas a sua força era de ferro, rebuscada e nervosa, em

contradição com a delicadeza de uma ponta de dedo a traçar o bordado

no meu peito. James, que ficara a olhar, imobilizado, combateu a sua

paralisia e soltou-me de Alexander.

– Cala-te, Mercúcio, cala-te! – Tomou o rosto de Alexander entre as

mãos. – Falas de ninharias!

Os olhos distraídos de Alexander pregaram-se nos de James, e falou

mais lentamente.

Alexander: – Certo, falo de sonhos,


Que são o fruto de miolos indolentes,

Gerados somente da vã fantasia,

Substância etérea como o ar,

Mais inconstante que o incessante vento.

Quando foi a minha vez de falar de novo, pronunciei as palavras com

cuidado, perguntando-me se Alexander seria verdadeiramente fiável

naquele momento. A nossa conversa prévia nessa noite estava

demasiado próxima, era demasiado recente para eu poder ignorá-la,

como um arranhão a arder na minha pele.

Eu: – Esse vento que dizes põe-nos fora de nós;

A ceia está pronta e viemos tarde de mais.

James virou o rosto na direção do céu, semicerrando os olhos à

pirâmide de vidro que parecia tão distante, procurando no banho de luz

dos lustres o brilho secreto e longínquo de uma estrela. Pensei na noite

da festa, quando ele e eu tínhamos ficado juntos no jardim a olhar para

o céu por um buraco irregular entre as copas das árvores. O nosso

último momento isolado, inocente; a quietude que precede as rajadas e

as nuvens de uma tempestade.

James: – Talvez cedo de mais, pois pressinto

Que algum destino, suspenso ainda nas estrelas,

Nasça amargamente nesta data fatídica,

Na folia desta noite, e faça expirar

A vida desprezível fechada em meu peito

Com a vil sentença de morte prematura.

Fez uma pausa, olhando para cima com uma surpresa suave e a

tristeza como gotas de azul nos seus olhos. De seguida, suspirou e,

sorrindo, abanou a cabeça.

James: – Quem tiver o leme do meu destino

Guie o meu barco! Vamos, seus galãs!

Quase me tinha esquecido de onde estávamos – de quem éramos, até

– mas nesse momento a orquestra voltou a tocar e a realidade regressou

em torrente. Mais uma valsa arrebatadora encheu o átrio e insuflou

vida na assistência, que ficara em silêncio durante a cena anterior. O

baile dos Capuletos ficou de repente cheio de animação.

Alexander agarrou a rapariga que se encontrava mais perto dele e

arrastou-a à força para uma dança. Os outros atores apareceram das


coxias de cena improvisadas e fizeram o mesmo, escolhendo parceiros

aleatoriamente e empurrando outros dos presentes para os braços uns

dos outros. O salão não tardou a tornar-se um redemoinho de

movimento, surpreendentemente gracioso tendo em conta o número de

pares. Encontrei uma parceira ao meu lado – indistinguível de todas as

outras raparigas exceto pela fita preta que trazia atada à volta do

pescoço – e fiz-lhe uma vénia antes de começarmos a dançar.

Enquanto dávamos voltas e reviravoltas e mudávamos de lugar, a

minha atenção estava constantemente noutras partes. Vi Filippa pelo

canto do olho, com a sua máscara preta, prateada e púrpura – também

ela vestida como homem, a dançar com outra rapariga –, e perguntei-

me se seria Páris. Quando me virei, perdi-a de vista novamente.

Procurei James, procurei Meredith, mas não consegui encontrá-los,

nem um nem outro.

A melodia persistiu (na minha opinião) demasiado tempo. Quando

terminou, fiz nova vénia, à pressa, e saí do salão, dirigindo-me para as

escadas nas traseiras, que davam para o varandim. Aquele espaço

estava em silêncio, e escuro como breu. Alguns casais tinham

procurado aquele secretismo e estavam agora sem máscara, de lábios

colados, encostados às paredes. A música recomeçara, mas era mais

lenta. A intensidade das luzes diminuiu, ficou azulada, exceto um

círculo branco brilhante onde James se encontrava sozinho. Quando a

luz incidiu nele, as pessoas que dançavam à sua volta recuaram,

tombaram em silêncio.

James: – Quem é a senhora que afortuna a mão

Daquele fidalgo?

O público virou-se para ver o que ele estava a fitar. E ali, ténue e

efémera como um fantasma, encontrava-se Wren. Uma máscara azul e

branca enquadrava os seus olhos, mas era inconfundivelmente ela.

Fechei os dedos à volta da beira da balaustrada; inclinei-me para a

frente tanto quanto podia sem cair.

James: – Terá jamais o meu coração amado? Olhos meus,

Negai-o, que beleza igual nunca antes vira eu.

A música voltou a soar alta. Wren e o seu parceiro de dança rodaram

lentamente no mesmo sítio e despediram-se um do outro por gestos.

Os pés de James levaram-no até mais perto, os seus olhos pregados em


Wren como se receasse que ela simplesmente desaparecesse se a

perdesse de vista. Quando já estava suficientemente perto, pegou-lhe

na mão e Wren virou-se para ver quem tocara nela.

James: – Se a minha mão indigna profanar

Este altar sagrado, será menor pecado

Com meus lábios, rubros peregrinos, abrandar

Num beijo terno a rudeza do meu agravo.

Baixou a cabeça e beijou a palma da mão de Wren. A sua respiração

agitou o cabelo dele quando ela falou.

Wren: – Bom peregrino, injusto sois com vossa mão

Que nisto demonstra reverente devoção;

As mãos dos santos os peregrinos tocam,

E mão na mão é beijo que romeiros trocam.

A meio do discurso dela, puseram-se juntos em movimento, palma

da mão contra palma da mão, a rodopiar lentamente. Fizeram uma

pausa, trocaram de mão e avançaram juntos na direção oposta.

James: – E lábios, nem santos nem romeiros os terão?

Wren: – Sim, peregrino, lábios feitos para orar.

James: – Ó querida santa, façam lábios igual às mãos.

Fá-los orar para a fé em desespero não dar.

Wren: – Os santos nada fazem, embora as preces escutem.

James: – Nada faças, então, até que as preces resultem.

Estavam imóveis. O dedo de James roçou a face de Wren; virou-lhe

o rosto para cima, para o seu, e beijou-a, tão suavemente que ela

poderia nem sequer ter sentido o beijo.

James: – Por teus lábios se livraram os meus do pecado.

Wren: – E de teus lábios receberam os meus esse pecado.

James: – O pecado dos meus lábios? Ó doce provocação!

Devolve-me o meu pecado.

Beijou-a de novo, dessa vez um beijo longo e demorado. Eu sentia a

máscara quente e pegajosa no rosto, o estômago virado do avesso e a

doer-me como uma ferida aberta. Encostei-me pesadamente à

balaustrada, a tremer sob o peso de verdades paralelas que, até àquele

momento, conseguira ignorar: James estava apaixonado por Wren e eu

sentia um ciúme cego e selvagem.


ATO IV
PRÓLOGO

– É mais curto do que recordava – digo a Colborne, quando estamos

a olhar pela doca abaixo, na direção da água. – Naquela altura, dava a

impressão de ter quilómetros. – Atravessámos o bosque até à margem

sul do lago, a conversar em voz baixa. Colborne ouve com uma

paciência inesgotável, pesando e avaliando cada palavra. Viro-me para

ele e pergunto: – Os miúdos continuam sequer a ter autorização para

vir cá abaixo?

– Não podemos propriamente impedi-los, mas, quando se apercebem

de que não passa de uma doca e de que não há nada para ver, perdem o

interesse. Temos um problema maior com pessoas a roubarem coisas

que eram tuas.

Aquilo nunca me tinha passado pela cabeça, e olho-o pasmado.

– Como o quê?

Encolhe os ombros.

– Livros velhos, peças de indumentárias, a fotografia da tua turma no

átrio por trás do teatro. Essa recuperámo-la, mas não antes de alguém

ter riscado a tua cara. – Vê a perplexidade na minha expressão e

acrescenta: – Nem tudo é mau. Ainda recebo cartas a tentar convencer-

me de que és inocente.

– Pois – digo. – Também recebo dessas.

– Já estás convencido?

– Não. Sei a verdade.

Desço a doca e Colborne segue-me, um passo atrás de mim. Sei que

lhe devo um novo final para a nossa velha história, mas parece-me

inesperadamente difícil continuar. Até ao Natal, podíamos fingir que

estávamos razoavelmente bem – ou que ficaríamos, um dia.

Paro no fim da doca e olho para baixo, para a água. Envelheci bem,

poderia dizer-se. O meu cabelo continua escuro, os meus olhos ainda

de um azul límpido e brilhante, o meu corpo está mais firme e mais

forte do que estava antes da prisão. Agora preciso de óculos para ler,
mas, além disso e de mais algumas cicatrizes, não mudei muito. Sinto-

me mais velho do que os meus trinta e um anos.

Que idade tem Colborne agora? Não lhe pergunto, mas podia fazê-

lo. A nossa relação não se deixa inibir por expectativas de delicadeza.

Deixamo-nos ficar, com os dedos dos pés a espreitarem da beira da

doca, sem falar. O cheiro verde da água é tão familiar que sinto um nó

frouxo na garganta.

– Não vínhamos tantas vezes cá abaixo quando fazia frio – digo,

espontaneamente. – Entre o Dia de Ação de Graças e o Natal, ficámos

quase sempre no Castelo sentados à lareira, a ensaiar as nossas falas e

o ritmo delas. Quase parecia normal, exceto aquela cadeira vazia.

Penso que nunca mais vi alguém sentar-se nela depois de ele morrer.

Éramos um pouco supersticiosos, suponho; peças de teatro cheias de

bruxas e de fantasmas têm esse efeito.

Colborne acena vagamente com a cabeça. Depois, a sua expressão

altera-se, franze a testa.

– Culpas o Shakespeare de algo do que aconteceu?

A pergunta é tão improvável, tão absurda, vinda de um homem tão

sensato como ele, que não consigo conter um sorriso.

– Culpo-o de tudo o que aconteceu – digo.

Ele imita o meu sorriso, embora o seu seja hesitante, sem saber onde

está realmente a piada.

– Porquê?

– É difícil pô-lo em palavras. – Faço uma pausa, gasto um minuto a

tentar ordenar os pensamentos e continuo, sem ter ordenado coisa

nenhuma. – Passámos quatro anos, e a maior parte de nós anos e anos

antes disso, imersos em Shakespeare. Submersos. Aqui, podíamos

satisfazer a nossa obsessão coletiva. Falávamo-lo como uma segunda

língua, conversávamos em poesia e perdemos o contacto com a

realidade, um pouco. – Reconsidero o que disse. – Bem, isso é

enganador. Shakespeare é real, mas as suas personagens vivem num

mundo de verdadeiros extremos. Vão do êxtase à angústia, do amor ao

ódio, da maravilha ao terror. No entanto, não se trata de melodrama,

elas não exageram. Cada momento é crucial. – Olho-o de lado, sem

saber ao certo se estou a fazer algum sentido. Ele continua com aquele

sorriso incerto nos lábios, mas acena com a cabeça, portanto continuo.
– Um bom ator shakespeariano, um bom ator de qualquer tipo, na

realidade, não se limita a dizer palavras, sente-as. Nós sentíamos todas

as paixões das personagens que interpretávamos como se fossem

nossas. Mas a emoção de uma personagem não neutraliza a do ator;

sentem-se as duas ao mesmo tempo. Imagine ter todos os seus

pensamentos e sentimentos embaraçados com todos os pensamentos e

sentimentos de outra pessoa. Por vezes, pode ser difícil destrinçá-los.

Falo mais devagar, paro, frustrado com a minha própria incapacidade

de me exprimir (uma frustração exacerbada pelo facto de, ao fim de

dez anos, continuar a pensar em mim como um ator). Colborne

observa-me com um olhar atento, curioso. Molho os lábios com a

língua e continuo a falar, mais cuidadosamente.

– A nossa pura capacidade de sentir acabou por ser tão difícil de

gerir que cambaleávamos sob o seu peso, como Atlas com o mundo

aos ombros. – Suspiro, e a frescura do ar faz-me descarrilar. Quanto

tempo demorará, pergunto-me, a voltar a habituar-me a ele? Sinto uma

dor no peito, que talvez seja da pureza pouco familiar do ar, mas talvez

não. – O facto sobre Shakespeare é que ele é tão eloquente... Diz o

indizível. Transforma a dor e o triunfo e o arrebatamento e a raiva em

palavras, em algo que podemos compreender. Torna compreensível

todo o mistério da humanidade. – Paro de falar. Encolho os ombros. –

Podemos justificar seja o que for, se o fizermos com suficiente poesia.

Colborne baixa os olhos, fita o brilho branco do sol na água.

– Achas que o Richard concordaria?

– Acho que o Richard estava tanto sob o feitiço de Shakespeare

quanto nós.

Colborne aceita isso sem protesto.

– Sabes, é estranho – diz. – De vez em quando, tenho de recordar a

mim mesmo que nunca cheguei a conhecê-lo de facto.

– Tê-lo-ia adorado ou detestado.

– O que te leva a dizer isso?

– Era assim que ele era.

– E tu? Adorava-lo ou detestava-lo?

– Normalmente, as duas coisas ao mesmo tempo.

– Era a isso que te referias quando falaste de sentir tudo duas vezes?

– Ah – digo. – Está a ver, sempre me compreende.


O silêncio que se segue é confortável, pelo menos para mim. Por um

momento, esqueço-me de porque estamos ali e fico a ver uma folha

soltar-se de uma árvore e rodopiar na brisa até aterrar na água. Os

círculos ondeiam do centro para fora, na direção da orla do lago, mas

desaparecem antes de lá chegarem. Quase consigo ver-nos aos sete, a

corrermos ao longo da margem por entre as árvores, a arrancarmos a

roupa, a saltarmos para a água, prontos para cairmos dentro dela todos

juntos. No terceiro ano, no ano da comédia. Leve e encantador e

distante. Dias que não podemos voltar a ter.

– Bem – diz Colborne, quando já esperou o suficiente por que eu

falasse. – O que se segue?

– O Natal. – Viro-me, na direção da floresta. O Castelo está perto

agora, com a Torre a erguer-se por entre as árvores e a sua sombra

longa a projetar-se sobre a casa do barco, que está a cair aos pedaços. –

Foi quando tudo deu para o torto.

– Como é que começou? – pergunta ele.

– Já tinha começado.

– Então o que mudou?

– Ficámos separados. O James foi para a Califórnia, a Meredith para

Nova Iorque, o Alexander para Filadélfia, a Wren para Londres, a

Filippa... sabe-se lá. Eu voltei para o Ohio. Estarmos presos no Castelo

com a nossa culpa e o fantasma do Richard foi terrível, de certa

maneira. Mas estarmos separados uns dos outros, atirados para os

quatro cantos do mundo para defrontarmos aquilo sozinhos... foi pior.

– Então, o que aconteceu?

– Ficámos abalados – digo, mas aquela expressão soa errada. Não foi

tão simples nem tão decisivo como o efeito de um sismo. – Mas só nos

desmoronámos quando voltámos a ficar todos juntos.

CENA 1

O Natal no Ohio foi desastroso.

Sobrevivi aos quatro dias anteriores mantendo um estado de

embriaguez ligeira e só falando quando necessário. A véspera de Natal


decorreu sem incidentes, mas o almoço do Dia de Natal (a sequela

empolgante do almoço do Dia de Ação de Graças um mês antes)

terminou em tumulto, quando Caroline saiu da mesa por um tempo

suspeitamente prolongado e o meu pai foi dar com ela na casa de

banho a vomitar a maior parte da comida. Três horas depois, ela e os

meus pais continuavam aos berros na sala de jantar. Eu tinha-me posto

ao largo e estava já a fazer a mala, aberta no meio da minha cama

desfeita. Dobrei meia dúzia de cachecóis e outros tantos pares de meias

e atirei-os para dentro dela.

– Oliver! – Leah estava a barrar a porta, a soluçar, o que fazia já há

uns dez minutos. – Não te podes ir embora agora!

– Tem de ser. – Peguei numa braçada de livros da secretária e atirei-

os para cima dos cachecóis. – Não consigo aguentar isto. Preciso de me

pôr daqui para fora.

A voz do meu pai soou atroadora do andar de baixo, e Leah soltou

um gemido.

– Tu também devias sair daqui. – Empurrei-a para o lado e tirei o

casaco do gancho na porta. – Ir para casa de uma amiga ou coisa do

género.

– Oliver! – suplicou, e virei-me, sem conseguir olhar para ela quando

o seu rosto estava contraído como o de um bebé, molhado e brilhante

com lágrimas.

Atirei uma pilha de roupas – não fazia ideia se sujas ou limpas, e não

importava – para dentro da mala e fechei-a com força. O fecho

deslizou facilmente à volta, porque eu só tinha metido na mala metade

do que trouxera. Lá em baixo, a minha mãe e Caroline estavam a gritar

ao mesmo tempo.

Vesti o casaco e arrastei a mala da cama, quase esmagando o pé da

minha irmã.

– Vá lá, Leah – disse. – Tens de me deixar ir embora.

– Vais deixar-me, sem mais?

Cerrei os dentes, a tentar conter um acesso de culpa que me subia do

estômago como bílis.

– Lamento muito – disse, e depois arredei-a da porta e saí do quarto.

– Oliver! – gritou ela, debruçada do corrimão enquanto eu voava

pelas escadas abaixo. – Aonde vais?


Não respondi. Não sabia.

Arrastei a mala pelo caminho polvilhado com neve que parecia

açúcar em pó e esperei na berma pelo táxi que tinha chamado antes de

fazer a mala, perguntando-me que raio fazer a seguir. O campus de

Dellecher estava fechado nas férias do Natal. Eu não tinha dinheiro

para pagar um quarto de hotel em Broadwater nem um bilhete de avião

para a Califórnia. Filadélfia não ficava longe, mas sentia-me

residualmente zangado com Alexander e não queria vê-lo. Filippa teria

sido a minha melhor opção, mas não fazia ideia de onde se encontrava

ou de como entrar em contacto com ela. Pedi ao taxista que me

deixasse na estação dos autocarros, onde telefonei a Meredith de uma

cabina telefónica, explicando-lhe o que acontecera e perguntando se o

seu convite do Dia de Ação de Graças ainda se mantinha.

Como não havia autocarros na noite de Natal, enfrentei seis horas de

espera no exterior da estação, a tremer e a ter dúvidas sobre a minha

decisão. De manhã, estava tão enregelado que não me importava já se a

ideia era má, e comprei imediatamente um bilhete para Port Authority,

em Nova Iorque. Dormi quase toda a viagem, com o rosto esmagado

contra a vidraça suja. Quando chegámos, voltei a telefonar, e ela deu-

me uma morada no Upper East Side.

Os pais, o irmão mais velho e a cunhada estavam mais uma vez no

Canadá. Mesmo comigo e com ela e com Caleb (o irmão do meio,

solteiro, a entrar aos pontapés e aos berros nos seus trinta anos), o

apartamento dava a sensação de estar vazio e intocado, como um

cenário de série televisiva. O mobiliário era caro, cheio de estilo e

desconfortável, a decoração em tons ofuscantes de branco e num

cinzento baço de lousa. Na sala de estar, a estética ao estilo da revista

Architectural Digest estava estragada por indícios de ocupação: um

exemplar de A Fogueira das Vaidades com dobras nos cantos, garrafas

de vinho meio bebidas, um sobretudo Armani atirado ao acaso sobre o

braço do sofá. A única indicação de que houvera uma qualquer

festividade religiosa era uma menorá com quatro velas meio derretidas

pousada de esguelha junto à janela. («Não prestamos para nada a ser

judeus», explicou Meredith.)

O seu quarto era mais pequeno do que eu esperava, mas um teto alto

assotado evitava que desse a sensação de ser acanhado. Comparado


com o quarto dela no Castelo, estava incrivelmente arrumado, com as

suas roupas metidas em armários e gavetas, os livros ordenados por

assunto nas prateleiras. O que me chamou primeiro a atenção foi o

toucador. Estava atravancado com escovas com cerdas pretas, tubos

finos de batom e rímel, mas tinham sido coladas tantas fotografias na

moldura que o espelho propriamente dito quase não era utilizável.

Embora uma fotografia dela com os irmãos (em pequenos eram muito

atraentes, todos com cabelo castanho-arruivado e olhos verdes,

sentados em fila como bonecas russas no para-choques de um

Mercedes preto) estivesse entalada no canto superior, as restantes eram

de nós. Wren e Richard, com os rostos pintados de preto e branco para

a nossa aula de mimo do segundo ano. Alexander na galeria, a fazer de

conta que partilhava um cigarro com Homero. Meredith e Filippa de

calções com a bainha esfiapada e partes de cima do biquíni, estendidas

na água junto à margem norte do lago como se tivessem caído do céu e

aterrado ali. James, a sorrir, mas não para a objetiva, com uma mão

erguida timidamente a afastar a lente da máquina, o outro braço

enroscado à volta do meu pescoço. Eu, sem me dar conta de que

estávamos a ser fotografados, a rir-me para o longe, com uma folha de

outono de uma cor viva presa no cabelo.

Fiquei ali a fitar aquela colagem nostálgica que ela tinha criado até

sentir um nó formar-se na garganta. Quando lancei um olhar por cima

do ombro à impessoalidade imaculada do resto do quarto – a colcha

lisa sobre a cama, o soalho sem tapetes – ocorreu-me por fim que ela

estava muito sozinha. Incapaz (como sempre) de encontrar palavras

para exprimir a minha perceção tardia, não disse nada.

Durante três dias, Meredith e eu estivemos por ali – lendo,

conversando, não nos tocando –, enquanto Caleb vinha e ia, indiferente

à minha presença, raramente sóbrio, sempre ao telefone com alguém.

Tal como a irmã, era quase injustamente bonito, com as feições

semelhantes dos dois estranhamente (embora não desagradavelmente)

delicadas e femininas nele. Tinha o sorriso fácil, mas os seus olhos

eram distantes, como se a sua mente estivesse perpetuamente

preocupada com assuntos importantes, alheada. Prometeu, embora

fizesse pouca diferença para nós, uma festa de Ano Novo de arromba.

Caleb, apesar de todos os seus defeitos, era um homem de palavra.

À
Às nove e meia do dia 31 de dezembro, o apartamento já estava

apinhado com pessoas vestidas a preceito para a festa. Eu não conhecia

nenhuma delas, Meredith só conhecia algumas, Caleb um quarto, na

melhor das hipóteses. Às onze horas, toda a gente estava já bêbeda,

incluindo-me a mim e a Meredith, mas, quando as pessoas começaram

a snifar cocaína na bancada da cozinha, esgueirámo-nos discretamente

com duas garrafas de Laurent-Perrier.

Times Square, como o apartamento, transbordava de pessoas, e

Meredith agarrou-se ao meu braço para não ser levada na enxurrada.

Rimo-nos e avançámos aos tropeções e bebemos champanhe rosé pela

garrafa até ela nos ser confiscada por um agente da polícia exasperado.

A neve caía-nos como confetes na cabeça e nos ombros e colava-se às

pestanas de Meredith. Ela brilhava na noite como uma pedra preciosa –

vívida e perfeita. Disse-lho, no meu estado de embriaguez, e à meia-

noite beijámo-nos na esquina de uma rua de Manhattan, um de um

milhão de casais todos a beijarem-se ao mesmo tempo.

Vagueámos pela cidade até o efeito do champanhe passar e

começarmos a sentir o frio, e depois voltámos à toa para o

apartamento. Estava tudo às escuras e em silêncio, com os últimos

foliões estendidos em cima da mobília na sala de estar, adormecidos ou

demasiado pedrados para se irem embora. Fomos para o quarto de

Meredith nas pontas dos pés, despimos as camadas de roupa molhadas

e enroscámo-nos debaixo dos cobertores na cama. De uma forma lenta

mas previsível, a procura de calor transformou-se em mais beijos,

depois em despirmo-nos gradualmente, em carícias cautelosas e, por

fim, inevitavelmente, em sexo. De seguida, esperei que chegasse a

sensação de culpa, a compulsão de suplicar ao fantasma de Richard

que me perdoasse. Contudo, por uma vez, quando esperava abrir os

olhos e dar com ele a pairar sobre mim, ele recusou-se a aparecer. Em

vez de Richard, a silhueta que vi na parede pertencia,

inexplicavelmente, a James – que não tinha nada que estar naquele

quarto, nos meus pensamentos, naquele momento. Percorreu-me uma

sensação de fúria, mas, antes que me chegasse à cabeça, Meredith

mexeu-se, aninhou-se contra mim, interrompeu aquela ilusão. Suspirei,

aliviado ao pensar que ela me acordara de um qualquer meio-sonho

perturbado. Deixei as pontas dos dedos deslizarem do cimo dos seus


ombros até à curva interior macia da sua cintura, reconfortado com a

suavidade e a feminilidade dela. Ela tinha a cabeça pousada no meu

peito, e perguntei-me se sentiria a quietude passageira da minha alma

inquieta e perturbada.

Os três dias seguintes passaram-se mais ou menos da mesma

maneira. À noite, bebíamos um pouco de mais, tolerávamos Caleb

tanto tempo quanto podíamos e depois tombávamos juntos na cama.

De dia, vagueávamos por Nova Iorque, gastávamos tempo e o dinheiro

dos Dardennes em livrarias e teatros e cafés, a falar sobre a vida depois

de Dellecher, apercebendo-nos por fim de que seria já dali a poucos

meses. Tivéramos tantas outras coisas a ocupar-nos a mente.

– Haverá caça-talentos na peça da primavera – disse Meredith uma

tarde quando nos afastávamos da Strand, de mãos a abanar porque já

tínhamos estado ali. – E depois temos provas em maio. Ainda nem

sequer pensei no que vou ler. – Acotovelou-me. – Devíamos fazer uma

cena juntos. Podíamos ser... Oh, não sei. Margarida e Suffolk. –

Lançou a cabeça para trás e disse num tom ligeiro. – Tu andarias com o

meu coração numa caixa, como uma joia?

– Não sei. Tu andarias por aí com a minha cabeça num cesto, se eu

fosse decapitado por piratas?

Olhou-me como se eu fosse louco, mas depois – para meu alívio e

meu encanto – riu-se, um som espontâneo e adorável, como um lírio a

desabrochar. Quando o seu acesso de riso parou, lançou um olhar à

volta para as outras pessoas no passeio, que avançavam num caudal

constante para Union Square.

– Que estranho vai ser – disse, mais séria –, ter toda a gente aqui na

cidade.

– Vai ser divertido – disse-lhe, pensando se ficaríamos todos na casa

dela na semana das provas, se dormiríamos no chão como miúdos

pequenos. – Como um ensaio do futuro. No próximo ano por esta

altura, provavelmente vamos estar todos a viver aqui.

– Achas que sim?

– Bem, vamos ter de ir para algum lugar onde haja Shakespeare. Tu

vais ficar no apartamento?

– Meu Deus, não. Preciso de sair dali.


– Então suponho que vais ter de te mudar para uma espelunca

qualquer em Queens, tal como nós. – Inclinei-me para ela até os nossos

ombros se tocarem, e ela fez-me um sorriso tímido.

– Vamos viver todos uns em cima dos outros, como se estivéssemos

outra vez no Castelo?

– Não vejo porque não.

O sorriso desvaneceu-se e ela abanou a cabeça.

– Não vai ser a mesma coisa.

Pus um braço à volta do pescoço dela, puxei-a para mim e beijei-lhe

a testa. Senti que suspirava, e quando soltou a sua tristeza no ar,

inspirei-a. Não, não seria a mesma coisa. Eu não tinha argumentos

contra isso.

No domingo, ao fim do dia, fomos de avião para O’Hare, o aeroporto

de Chicago, em primeira classe – um presente de Caleb. Fomos os

primeiros a chegar ao Castelo, já que as aulas só recomeçariam na

quarta-feira. (Senti-me grato por isso. Fosse o que fosse que eu e

Meredith estivéssemos a fazer – não tínhamos conversado sobre o

assunto desde o nosso «encontro» malfadado no The Bore’s Head –, eu

não estava pronto para falar sobre isso com mais ninguém.) Arranquei

a tarjeta do aeroporto LaGuardia da mala e deixei-a aos pés da minha

cama. Fiquei parado por um instante, a fitar o canto do quarto que

pertencia a James. Com as cenas da minha família e a enorme

distração de Meredith, conseguira tirá-lo da cabeça por uma ou duas

semanas. Dissera a mim mesmo que a consternação ciumenta que se

apoderara de mim durante a mascarada de Natal era um mero

momento de loucura, um efeito secundário da magia manipuladora do

teatro. Porém, ali parado na Torre com a sua sombra no quarto, senti

que voltava a insinuar-se lentamente.

Desci as escadas em passos pouco firmes e passei mais uma noite

com Meredith – a única cura que me ocorria.

CENA 2
As audições do segundo semestre foram afixadas no quadro de avisos

logo de manhã cedo na quarta-feira.

Solicita-se a todos os alunos do quarto ano,

do segundo ano e convidados do terceiro ano

que preparem um monólogo de dois minutos para

rei lear

Os horários das audições e dos ensaios estavam afixados por baixo.

Alexander seria o primeiro a prestar provas, não observado. De

seguida, assistiria à prestação de Wren, ela à minha, eu à de Filippa,

ela à de James e ele à de Meredith.

Passámos a semana seguinte a tentar preparar novas falas para a

audição, todos surpreendidos pela escolha da peça. Nos cinquenta anos

de Dellecher, nunca se tentara produzir Lear, provavelmente porque

(como observou Alexander) pôr um jovem de vinte anos a fazer o

papel do protagonista seria inteiramente absurdo. Não éramos capazes

de adivinhar como Frederick e Gwendolyn tencionavam abordar esse

problema.

Às oito da noite do dia das audições, eu encontrava-me sentado

sozinho à nossa mesa do costume no The Bore’s Head, a atrair olhares

assassinos de grupos maiores que esperavam mesa. Meredith acabara

de partir para preparar a sua leitura, e Filippa, supus, chegaria daí a

pouco. Eu tinha assistido à sua prova – uma interpretação excelente de

Tamora – e estava ansioso por falar sobre a distribuição de papéis com

outra pessoa que já tivesse feito a sua leitura. (Alexander e Wren não se

viam em lado nenhum.) Acabei de beber a cerveja, mas não me

levantei da mesa, com a certeza de que ma roubariam, se fosse ao

balcão buscar outra bebida.

Felizmente, Filippa chegou, toda despachada, daí a cerca de cinco

minutos. O seu cabelo esvoaçava por efeito do vento e estava

emaranhado, e as suas faces tinham um brilho cor-de-rosa, fustigadas

pelas rajadas de ar frio que sopravam a neve pela rua abaixo. Quando

se sentou, perguntei:
– Queres uma bebida?

– Meu Deus, sim. Alguma coisa quente.

Levantei-me da mesa quando ela estava a empilhar ao canto as

camadas exteriores de roupa – cachecol, gorro, luvas, casaco. Voltei do

balcão com duas canecas de sidra quente, e Filippa ergueu a sua num

brinde sem palavras antes de emborcar um grande gole.

– Acho que o impossível pode ter acontecido – disse eu, a sacudir

flocos de neve que tinham caído do gorro e do cachecol dela no banco

ao meu lado.

– Só acredito quando vir a lista do elenco. – Limpou dos lábios uma

gota pegajosa de sidra. – O que achas que eles vão fazer?

– Se tivesse de adivinhar? Não faço ideia quanto ao Lear, mas

obviamente a Wren vai ser a Cordélia. Tu e a Meredith vão ser a Regan

e a Goneril. Eu, provavelmente, vou ser Albany, o James, Edgar e o

Alexander vai ser Edmundo.

– Não teria assim tanta certeza quanto a esses últimos.

– Porque não?

Mexeu-se no seu lugar e lançou um olhar à mesa ao lado, onde três

alunas de dança estavam sentadas a beber pequenos goles de vinho

branco em copos de pé alto. Quando Filippa se inclinou sobre a mesa,

instintivamente imitei-a. Ficámos tão perto um do outro que uma

madeixa do seu cabelo fez-me cócegas na testa.

– Bom, acabei de ver a prova do James – disse ela.

– O que leu? – perguntei. – Ele não me quis dizer.

– Ricardo Plantageneta, de Henrique VI, parte 2. E então, quer ele

queira quer não, obrigarei a ceder a coroa / aquele cujo governo

governado fez decair a bela Inglaterra.

– A sério? Essa fala é tão... Não sei, agressiva. Não parece realmente

o estilo dele.

– Pois não. Mal chegou a Dia virá em que Iorque há de reclamar o

que é seu, foi como se, de um momento para o outro, tivesse ficado

uma pessoa diferente. – Abanou lentamente a cabeça. – Devias ter

visto, Oliver. Assustou-me, sinceramente.

Fiquei mudo por um instante e depois encolhi os ombros.

– Fez ele bem.

Lançou-me um olhar tão profundamente cético que quase me ri.


– Pip, estou a ser sincero – disse. – Fez ele bem. Disse no início do

ano que estava farto de desempenhar um só tipo de papel, e sempre

teve aquela espécie de raiva, simplesmente nunca teve oportunidade

para a mostrar, porque esses papéis iam sempre para o Richard. Porquê

dar-se a esse trabalho? Mas agora tem uma oportunidade de fazer algo

diferente.

Suspirou.

– És capaz de ter razão. Deus sabe que eu também gostava de ter

uma oportunidade de fazer algo diferente.

– Talvez alterem as coisas desta vez. É uma dinâmica diferente. –

Acenei vagamente com a cabeça para a ponta da mesa, onde, seis

semanas antes, Richard poderia estar sentado. Tornara-se uma

perpétua obstrução na minha visão periférica, e, suspeitava, na dos

outros.

– Bem, não estás errado – disse Filippa, desviando o olhar na

direção da porta, sem o focar em nada. – De qualquer maneira, vou

ficar surpreendida se não derem o papel de Edmundo ao James.

Não depositei grande fé na previsão dela (no que fui bem tolo). A

nossa conversa mudou de rumo e passaram-se duas horas sem nenhum

incidente, até Meredith chegar, trazendo um pequeno redemoinho de

neve consigo.

– A lista foi afixada e vocês não vão acreditar – disse, pondo o papel

em cima da mesa. Não tive tempo de perguntar onde estavam os

outros.

Filippa e eu quase rachámos a cabeça um do outro ao tentarmos ver

a lista ao mesmo tempo; ela engasgou-se e cuspiu sidra para o outro

lado da mesa.

– O Frederick vai fazer o papel de Lear?

– O Camilo é Albany? – disse eu. – Mas que diabo?

– E não é tudo – disse Meredith, a ter dificuldade em desenrolar o

cachecol. – Leiam a coisa toda, é uma absoluta loucura.

Baixámos as cabeças, dessa vez com mais cuidado. Frederick e

Camilo apareciam em primeiro lugar na lista, seguidos pelos alunos do

quarto ano, abaixo deles os do terceiro e finalmente os do segundo.

O elenco de Rei Lear é o seguinte:


REI LEAR – Frederick Teasdale

ALBANY – Camilo Varela

CORDÉLIA – Wren Stirling

REGAN – Filippa Costa

GONERIL – Meredith Dardenne

EDMUNDO – James Farrow

EDGAR – Oliver Marks

BOBO – Alexander Vass

CORNWALL – Colin Hyland

Parei de ler depois do nome de Colin e olhei boquiaberto para

Meredith.

– Mas que raio é que eles fizeram?

– Não faço ideia – disse ela, ainda a desembaraçar-se do cachecol,

que estava preso no cabelo. Instintivamente, ergui a mão para a ajudar,

mas bati com o pulso contra a parte de baixo da mesa e mudei de

ideias. – É como se tivessem trocado os papéis dos rapazes todos e

depois decidissem que mexer nos papéis das raparigas era demasiado

esforço.

Filippa: – O Alexander vai ficar encantado.

Eu: – Para que conste, eu estou encantado.

Meredith: – Sinceramente, Oliver, comportas-te como se te tivessem

feito um favor. Não é propriamente como se não tivesses feito nada

para o merecer.

O seu rosto desapareceu, ao desistir de desembaraçar o cachecol, e

tirou-o pela cabeça. Filippa olhou para mim e ergueu as sobrancelhas.

Eu podia ter deitado à sidra a culpa da sensação quente e derretida que

tinha na barriga, mas a minha caneca já estava há muito tempo vazia.

Meredith voltou à tona e atirou o cachecol renitente para cima das

coisas de Filippa.

– São só vocês os dois? – perguntou.

– Fui só eu durante algum tempo – respondi. – Onde estão os outros?

– A Wren voltou para o Castelo depois da audição e foi direita para a

cama – disse Meredith. – Acho que não quer arriscar-se a ter outro

«episódio». – Era assim que começáramos a chamar ao desmaio de


Wren durante o seu discurso de Lady Anne. O que se passava

exatamente de errado com ela ninguém parecia capaz de dizer.

«Exaustão emocional» foi como o médico de Broadwater descreveu o

seu estado, mas o diagnóstico de «complexo de culpa» feito por

Alexander parecia mais provável.

– E o James? – perguntou Filippa.

– Assistiu à minha prova, mas esteve todo o tempo muito alterado –

disse Meredith. – Cabisbaixo. Tu sabes. (Aquela frase foi dirigida a

mim, embora, de facto, eu não soubesse nada.) – Perguntei-lhe se

vinha ao bar e ele disse que não, que queria ir dar uma volta.

Filippa ergueu ainda mais as sobrancelhas, tanto que quase lhe

desapareceram no cabelo.

– Com este tempo?

– Foi o que eu disse. E ele disse que queria desanuviar a cabeça e

que pouco lhe importava o que estivesse na lista do elenco; que estaria

a mesma coisa amanhã de manhã.

Olhei de Meredith para Filippa e disse, lentamente:

– OK. Onde é que para o Alexander?

Filippa: – É capaz de estar com o Colin.

Eu: – Mas... como é que tu soubeste?

Meredith: – Não é propriamente segredo.

Eu: – Ele disse que era!

Filippa: – Por favor... A única pessoa que pensa que é segredo é o

Colin.

Abanei a cabeça e lancei um olhar ao bar apinhado.

Eu: – Porque fingimos sequer que alguma coisa pode manter-se

privada por estas bandas?

Meredith: – Bem-vindo a uma escola de artes. É como a Gwendolyn

diz sempre: «Quando entras no mundo do teatro, há três coisas que

tens de deixar à porta: dignidade, modéstia e espaço pessoal.

Filippa: – Pensei que era dignidade, modéstia e orgulho pessoal.

Eu: – Ela, a mim, disse-me dignidade, modéstia e duvidar de si

próprio.

Ficámos os três em silêncio por um instante, e depois Filippa disse:

– Bem, isso explica muita coisa.

– Acham que ela diz coisas diferentes a cada aluno? – perguntei.


– Provavelmente – respondeu Meredith. – Só me surpreende que ela

tenha pensado que o meu maior problema era o espaço pessoal.

– Talvez quisesse preparar-te para seres alvo de olhares

embasbacados e apalpões e tentativas de assédio sexual em cada peça

que levemos à cena – disse Filippa.

– Ah, ah, sou um objeto, muito engraçado. – Meredith revirou os

olhos. – Juro, devia ter-me mas é dedicado ao striptease.

Filippa sorriu, a olhar para dentro da caneca, e disse:

– Toda a gente precisa de um plano B.

– Pois – disse Meredith. – Tu podias fazer uma operação para mudar

de sexo, tornares-te rapaz permanentemente e começares a chamar-te

Philip.

Olharam-se com má cara, e, numa tentativa de aligeirar o ambiente,

eu disse:

– Acho que a minha outra opção é uma crise existencial.

– Não é lá muito mau – disse Filippa. – Podes desempenhar o papel

de Hamlet.

Bebemos mais seis sidras entre nós os três, à espera, em vão, de que

um dos outros aparecesse. Nunca houvera tão pouco interesse numa

nova lista do elenco de uma peça. Mesmo enquanto bebíamos e

conversávamos e nos ríamos sem grande convicção, era impossível

ignorar o facto de que as prioridades de todas as pessoas se tinham

alterado. Wren estava demasiado frágil para fazer a caminhada habitual

do FAB até ao bar. James, demasiado preocupado. Alexander, ocupado

com outras andanças. Os caprichos que governavam o pessoal docente

de Dellecher eram igualmente enigmáticos. Porque tinham subitamente

levantado o seu boicote de meio século a Lear e encaixado Frederick e

Camilo connosco? Disse para comigo, quando peguei no casaco e nas

luvas ao fim da noite, que eles estavam simplesmente a tentar

preencher o vazio que Richard deixara. Mas outra voz insistente na

minha cabeça não parava de perguntar se haveria um motivo oculto.

Seria possível que, tal como Colborne, não confiassem em nós? Talvez

Frederick e Camilo fossem mais do que colegas de elenco e

professores. Talvez tivessem por fim começado a aperceber-se do

perigo que corríamos.


CENA 3

Quando fizemos a nossa primeira incursão no pântano trágico de Rei

Lear, pouca coisa ficou esclarecida. O que se me tornou dolorosamente

claro, no entanto, foi que tínhamos subestimado a enormidade da

ausência de Richard. Ele era mais do que um quarto vazio, um lugar

desocupado na biblioteca, uma cadeira à nossa mesa do refeitório, onde

se sentava como o fantasma de Banquo, invisível para todos menos

nós. Frequentemente, julgava vê-lo pelo canto do olho, uma sombra

passageira, desaparecendo de vista ao dobrar da esquina. À noite, ele

era uma personagem recorrente nos meus sonhos – como meu parceiro

de cena nas provas do meio do período ou companheiro silencioso no

bar – distorcendo as situações mais correntes e transformando-as em

algo escuro e sinistro. Eu não era a única vítima desses tormentos

noturnos; James começara a murmurar e a mexer-se no sono, e, nas

noites em que eu partilhava a cama com Meredith, por vezes acordava

e dava com ela a tremer ao meu lado. Por duas vezes, fomos todos

acordados por gritos e soluços vindos do quarto de Wren. Ele era um

bully na morte como fora em vida, um gigante que deixara não tanto

um espaço vazio, quanto um buraco negro, um enorme vácuo

esmagador que, mais cedo ou mais tarde, engolia tudo o que pudesse

confortar-nos.

Contudo, enquanto avançávamos cautelosamente para o mês mais

curto do calendário, o nosso conforto era principalmente da minha

responsabilidade.

Limpar o Castelo tornara-se a minha ocupação primária fora das

aulas, dos ensaios e do trabalho para casa. O meu horário de trabalho

era irregular, determinado em grande medida por quando tinha uma

hora livre e não se encontrava mais ninguém no edifício. Essas

oportunidades coincidentes eram raras e eu via-me forçado a aproveitá-

las quando surgiam, independentemente do cansaço que sentisse. O

segundo dia de fevereiro foi dar comigo de joelhos na biblioteca, a

fazer finalmente o que adiara durante semanas: uma limpeza de fundo

à lareira.
Os restos de algumas achas estavam na grelha como uma pilha de

ossos calcinados. Ergui-os delicadamente com o receio de que se

esboroassem e deixassem riscos de fuligem na carpete, e depositei-os

um a um no saco de papel de que me apropriara para esse efeito.

Apesar da friagem de inverno persistente, estava a transpirar, com

grossas gotas salgadas a tombarem-me da testa para a lareira. Com as

achas todas metidas no saco, estendi a mão para uma pá e uma

vassourinha e comecei a varrer a pilha de cinzas, que se tinham

acumulado como uma montanha contra a parte de trás da chaminé.

Enquanto varria, ia murmurando entre dentes os versos de Edgar:

Quem sofre só sofre mais com o espírito,

Deixando para trás seres livres e manifestações felizes.

Mas o espírito ignora muito sofrimento

Quando a dor tem as suas iguais e é sofrida em companhia.

Sem conseguir lembrar-me dos versos seguintes, parei e sentei-me

nos calcanhares. O que se seguia? Não fazia ideia, e portanto meti-me

ainda mais para dentro da lareira, recomeçando o discurso da

personagem quando voltei a varrer. O montinho mais denso de cinza

desabou sob o efeito da minha vassoura, mas, quando o puxei para a

frente, algo veio arrastado por baixo das cerdas. Uma tira longa e

torcida, como uma pele de cobra, tinha aparecido no chão da lareira.

Era um pedaço de tecido.

Não passava de um farrapo, com uns quinze centímetros de

comprimento por cinco de largura, encaracolado para dentro nos

bordos. Uma ponta era mais pesada, com um ponto duplo – o

colarinho de uma camisa, talvez, ou a costura de uma manga. Baixei a

cabeça sobre ele e soprei delicadamente, de modo que umas pequenas

nuvens de cinza rodopiaram no ar. Fora branco em tempos, mas estava

muito chamuscado e muito manchado com algo vermelho-escuro,

como vinho. Fitei o farrapo por um momento com consternação, e

depois fiquei paralisado onde estava ajoelhado na lareira – tão

dominado pelo horror que não ouvi a porta lá em baixo. Mas os passos

nas escadas foram-se tornando mais altos à medida que iam subindo e,

sacudido do meu torpor, peguei naquela coisa insidiosa do chão e

enfiei-a no bolso. Agarrei na pá e na vassoura e pus-me de pé de um


salto, segurando uma e a outra aos lados do corpo, como uma espada e

um escudo.

Ainda estava especado daquela maneira rígida e ridícula quando

Colborne apareceu à porta. Os seus olhos quase não se arregalaram,

ajustando-se, rapidamente, da surpresa pela minha presença ao

reconhecimento.

– Oliver.

– Detetive Colborne – disse eu, atabalhoado e entaramelado.

Apontou para dentro da sala.

– Posso entrar?

– Se quiser.

Enfiou as mãos nos bolsos das calças de ganga. O seu crachá

brilhava na anca, e a coronha de um revólver salientava-se debaixo do

seu blusão no outro lado. Pousei a pá e a vassoura na cadeira mais

próxima, à espera de que ele falasse.

– Não costumas estar nos ensaios, a esta hora? – perguntou, abrindo

as cortinas para espreitar pela janela na direção do lago.

– Só tenho aula de combate às cinco. – Vasculhei os meus arquivos

mentais à procura de um dos exercícios de controlo da respiração de

Gwendolyn, com a esperança de desanuviar a cabeça.

Ele acenou com a cabeça e fez-me um sorriso intrigado.

– E o que estás a fazer ao certo? Se não te importas que pergunte.

– Estou a limpar. – Inspirei, contando até quatro.

A sua boca estremeceu, como se houvesse um sorriso genuíno a

esconder-se sob o sorriso superficial.

– Nunca imaginei que os alunos de Dellecher fossem do tipo de se

encarregarem eles próprios da limpeza.

– E não somos, normalmente. Eu tenho uma bolsa de estudo. –

Contar até cinco e soltar o ar.

Soltou uma pequena gargalhada, como se não acreditasse.

– Então, puseram-te a limpar este sítio?

– Entre outras coisas. – A minha pulsação começou a abrandar. –

Não me importo.

– És do Ohio, não é verdade?

– Tem boa memória. Ou tem um dossiê sobre mim algures?

– Ambos, talvez.
– Devo ficar nervoso? – perguntei, mas sentia-me marcadamente

menos nervoso. Colborne era um público mais atento do que aquele a

que eu estava acostumado, mas não deixava de ser um público.

– Bem, sabes isso melhor do que eu.

Fitámo-nos. Colborne continuava com aquele sorriso de duas

camadas, e pensei que, em quaisquer outras circunstâncias, teria

gostado dele.

– É difícil uma pessoa não se sentir nervosa quando a polícia anda

dentro e fora da casa dela tantas vezes – disse eu, sem pensar. Ele não

sabia que eu escutara a sua conversa com Walton um mês antes. Se

reparou na minha gafe, não o deu a entender.

– Faz sentido. – Lançou mais um olhar pela janela e depois

atravessou a sala e sentou-se no sofá à minha frente. – Leem todos

muito ou são só para decoração? – perguntou, apontando para a estante

mais próxima.

– Lemos.

– Leem alguma coisa além de Shakespeare?

– Com certeza. Shakespeare não existe num vácuo.

– Como assim?

Não conseguia perceber se ele estava verdadeiramente interessado ou

se aquilo era alguma espécie de estratagema.

– Bem, veja-se por exemplo Júlio César – disse eu, sem saber ao

certo que tipo de informações incriminadoras ele poderia ter a

esperança de obter com aquela pergunta. – Ostensivamente, é uma

peça sobre a queda da República romana, mas é também sobre a

política dos primórdios da era moderna na Inglaterra. Na primeira

cena, os tribunos e os foliões falam sobre negócios e feriados como se

fosse Londres em 1599, embora a ação se passe no ano 44 a.C. Há

alguns anacronismos, como o relógio no segundo ato, mas na sua

maior parte resulta para os dois lados.

– Muito esperto – disse Colborne, após um momento de reflexão. –

Sabes, lembro-me de ter lido Júlio César na escola. Nunca nos

disseram nada disso, limitaram-se a arrastar-nos por aquilo. Eu devia

andar pelos quinze anos, e pensei que estava a ser castigado por

alguma coisa.
– Qualquer coisa pode dar a sensação de ser um castigo, se não for

bem ensinada.

– É verdade. Acho que só estou a perguntar-me o que faz com que

um miúdo mais ou menos dessa idade decida dedicar a sua vida inteira

a Shakespeare.

– Está a perguntar-me?

– Estou. Sinto-me intrigado.

– Não sei – respondi. Era mais fácil continuar a falar do que parar. –

Mordi o «isco» muito cedo. Quando tinha uns onze anos, a escola

secundária precisou de um miúdo para a peça Henrique V e a minha

professora de Inglês levou-me à audição... pensou que aquilo talvez me

tornasse menos tímido, acho eu... e, de algum modo, acabei por me ver

no palco com aqueles rapazes todos com espadas e armaduras, que

tinham todos o dobro do meu tamanho. E ali estava eu, a berrar «Novo

como sou, tenho observado estes três gabarolas», esperando só que as

pessoas me ouvissem. Andei aterrorizado até à noite da estreia, mas

depois disso não quis fazer mais nada. É uma espécie de vício.

Ficou em silêncio por um instante e depois perguntou:

– Faz-te feliz?

– Desculpe?

– Faz-te feliz?

Abri a boca para responder – sim parecia a única resposta possível –

mas voltei a fechá-la, indeciso. Pigarreei e falei mais cautelosamente.

– Não vou fingir que não é difícil. Estamos sempre a trabalhar e não

dormimos muito e é complicado ter amizades normais fora da nossa

esfera, mas vale a pena, só pela adrenalina que sentimos, estar em

palco e dizer as palavras de Shakespeare. É como se não estivéssemos

realmente vivos até esse momento, e depois tudo se ilumina e as coisas

más desaparecem e não há nenhum outro lugar em que queiramos

estar.

Mantinha-se sentado numa imobilidade extraordinária, com os seus

olhos cinzentos penetrantes pregados nos meus.

– Pintas uma imagem muito boa da dependência.

Tentei arrepiar caminho.

– Parece excessivamente dramático, mas é assim que somos. É como

sentimos tudo.
– Fascinante. – Colborne observava-me, com os dedos entrelaçados

entre os joelhos, uma pose casual, mas com todos os músculos do seu

corpo contraídos com a expectativa. O tiquetaque do relógio no lintel

por cima da lareira soava incrivelmente alto, batendo diretamente

contra os meus tímpanos. O farrapo que tirara da lareira dava a

sensação de ser uma bola de chumbo no meu bolso.

– Então – continuei, ansioso por mudar de assunto, desviá-lo do que

acabara de dizer. – O que o traz de volta aqui?

Recostou-se no sofá, mais descontraído.

– Por vezes, fico curioso.

– Em relação a quê?

– Em relação ao Richard – disse ele, e foi chocante ouvi-lo dizer

aquele nome tão facilmente, aquele nome que evitávamos todos como

uma praga, ainda mais blasfemo do que os palavrões e as obscenidades

que usávamos tão liberalmente – Tu não?

– Na maior parte do tempo, tento não pensar nisso.

Os olhos de Colborne percorreram-me dos pés à cabeça e da cabeça

aos pés. Um olhar de avaliação. A medir a profundidade da minha

sinceridade.

– Não consigo deixar de pensar no que aconteceu naquela noite –

disse ele, a tamborilar casualmente o braço do sofá. – Todas as pessoas

parecem recordá-lo de maneira diferente. – Havia na sua voz um

desafio subtil, enjoativo. Responde se te atreves.

– Todas as pessoas o viveram de maneira diferente, penso eu. – A

minha voz soou fria e inexpressiva, com os nervos acalmados de novo

pelo facto de ele me ter dado um papel para eu representar, e, como

encenador, não era mais imaginativo do que Gwendolyn. Eu era

periférico, um transeunte, uma testemunha involuntária que podia ser

levada a colaborar. – É como ver as notícias. Quando há um desastre,

alguém se lembra realmente do que aconteceu da mesma maneira?

Todos o vimos de diferentes ângulos, diferentes pontos de observação.

Acenou lentamente com a cabeça, a pensar na minha refutação.

– Suponho que contra isso não há argumentos. – Levantou-se do

sofá. Quando já estava de pé, balançou-se para trás nos calcanhares,

olhou para o teto. – Aquilo com que me debato, Oliver – disse, falando
mais para o candeeiro do que para mim –, é que, matematicamente,

não faz sentido.

Esperei que se explicasse. Como não o fez, retorqui:

– A matemática nunca foi o meu forte.

Franziu a testa, mas havia uma centelha de divertimento na sua

expressão.

– Surpreendente. Afinal, Shakespeare é poesia, na sua maior parte,

pelo menos, e há um certo padrão matemático na poesia, não há?

– Pode dizer-se isso.

– Em qualquer equação matemática, uma série de variáveis

conhecidas e desconhecidas combinam-se para chegar a uma solução.

– É praticamente do que me lembro da álgebra. Resolver a incógnita,

x.

– Precisamente – disse ele. – Bem, aqui temos uma equação com um

resultado conhecido, a morte do Richard. Chamemos-lhe x. E no outro

lado do sinal de igual temos os vossos relatos do acontecimento, os

relatos dos alunos do quarto ano. A, b, c, d, e e f, por assim dizer. E

depois há o relato de todas as outras pessoas. Chamar-lhe-emos y.

Nove semanas depois, temos todas as variáveis explicadas, mas

continuo a não conseguir resolver a incógnita. Não consigo fazer com

que os dois lados da equação se equilibrem. – Abanou a cabeça, um

movimento medido e deliberado. – Então, o que significa isso?

Fitei-o. Não respondi.

– Significa – continuou ele – que pelo menos uma das nossas

variáveis está errada. Faz sentido para ti?

– Até certo ponto. Mas penso que há um erro na premissa.

– Como assim? – disse ele, uma pergunta irónica, quase

provocadora.

Encolhi os ombros.

– Não se pode quantificar a humanidade. Não se pode medi-la, não

da maneira como quer. As pessoas têm paixões, defeitos e falhas.

Cometem erros. A memória desvanece-se. Os olhos enganam-nas. –

Fiz uma pausa, suficientemente longa para que ele acreditasse que eu

não tinha planeado o que dizer a seguir. – Ou, por vezes, bebem

demasiado e caem ao lago.


Colborne piscou os olhos e uma espécie de perplexidade profunda

apareceu na sua expressão – como se não tivesse a certeza de me ter

avaliado mal.

– É realmente assim que pensas que aconteceu?

– É – respondi. – É claro que foi assim. – Andávamos a dizê-lo há

semanas. Sim, ele tinha caído. É claro que tinha caído.

Colborne suspirou, uma respiração pesada no ar morno da

biblioteca.

– Sabes, Oliver, simpatizo contigo. Muito contra a minha vontade.

Franzi a testa, sem a certeza de o ter ouvido bem.

– É uma coisa estranha de se dizer.

– Bem, a verdade pode ser mais estranha do que a ficção. O que

quero dizer é que gostava de confiar em ti. Mas é pedir muito, portanto,

em vez disso vou só pedir um favor.

Como me apercebi de que ele esperava resposta, disse:

– Está bem.

– Imagino que vejas bem todos os cantos deste sítio enquanto o

limpas – disse ele. – Se encontrares alguma coisa fora do normal...

Bem, digamos só que eu não me importaria de ser mantido informado.

Seguiu-se uma pausa, como um intervalo entre falas previsto numa

encenação.

– Terei isso em mente.

Os olhos de Colborne demoraram-se em mim, e depois atravessou

lentamente a sala até às escadas, onde parou.

– Tem cuidado, Oliver – recomendou-me. – Como disse, simpatizo

contigo. E deixa que ponha isto de uma maneira que compreendas sem

sombra de dúvida: Algo está podre no reino da Dinamarca.

Dizendo essas palavras, retirou-se com um sorrisinho nos lábios, ao

mesmo tempo triste e trocista. Fiquei imóvel enquanto os seus passos

faziam ranger os degraus, e só quando ouvi a porta da frente fechar-se

nas suas costas é que abri a mão que tinha fechada no bolso. O farrapo

manchado de sangue estava amarrotado e húmido de suor.


CENA 4

Dei um avanço de cinco minutos a Colborne, porque não queria que

ele me apanhasse a sair do Castelo. Arrumei os produtos de limpeza

debaixo do lava-louças na cozinha, vesti o casaco e enfiei as luvas, e saí

pela porta das traseiras. Corri todo o caminho até ao FAB sem parar,

com o gelo a estalar debaixo dos meus pés. Quando cheguei, tinha as

pernas dormentes e lágrimas nos olhos, por causa do ar agreste de

fevereiro.

Entrei por uma porta lateral e pus-me à escuta. Os alunos do terceiro

ano estavam no auditório, atrapalhados nas falas do segundo ato de Os

Dois Cavalheiros de Verona. Esperando não esbarrar em ninguém que

andasse pelos bastidores, apressei-me a ir para as escadas e, com uma

mão a deslizar pelo corrimão, desci os degraus dois a dois para a cave.

Havia uma vasta cripta por baixo do Teatro Archibald Dellecher e de

todos os seus corredores e todas as suas antecâmaras tributárias.

Normalmente, só os elementos da equipa técnica se aventuravam

naquele labirinto de teto baixo e mal iluminado, para desenterrar

velhos adereços e peças de mobiliário há muito tempo considerados

irrelevantes e condenados a ficarem armazenados para sempre. Eu não

planeara ir lá, nem pensara sequer nisso até chegar a meio do caminho

para o FAB, inicialmente apenas desesperado por me afastar do raio do

Castelo. Contudo, depois de percorrer dois ou três corredores sombrios

apinhados com detritos teatrais, apercebi-me do meu pensamento

brilhante acidental. Ninguém poderia alguma vez encontrar fosse o que

fosse na cripta, mesmo que soubesse exatamente o que procurava.

Pouco depois, dei com um canto cheio de teias de aranha onde uma

série de armários de cacifos (provavelmente retirados do passadiço a

dado momento nos anos 1980) estava encostada à parede. A ferrugem

escorria das suas guelras como sangue seco e alastrava pelas suas

portas entreabertas com arestas vivas. Era um esconderijo tão bom

como outro qualquer.

Empurrei do meu caminho uma mesa de cavalete desconjuntada e

avancei por entre o lixo empilhado à minha frente. O primeiro armário

tinha pendurado na porta um cadeado em cuja lingueta havia manchas

de ferrugem, como um dente cariado. Tirei o cadeado, puxei com força


a maçaneta da porta e praguejei tão alto quanto me atrevia, quando a

porta se abriu e bateu contra a minha canela. O armário estava vazio,

só havia nele uma caneca esbotenada com o brasão desbotado de

Dellecher e um círculo preto de café agarrado ao fundo. Meti a mão ao

bolso para encontrar o pedaço de tecido que tirara da lareira. Olhei-o à

luz fraca da cripta e aquela ominosa mancha vermelha devolveu-me o

olhar. Nem sequer tinha a certeza de que fosse sangue, mas a minha

paranoia arrastou-me para o dia da cerimónia em memória de Richard,

quando encontrara Filippa sozinha junto à lareira. Arredei aquele

pensamento, alarmado. Não havia fechaduras nas portas da biblioteca,

portanto poderia ter sido qualquer um de nós. O ar na cripta era gélido.

Qualquer um de nós poderia ter feito o quê? De súbito nauseado e

impaciente por pôr aquela coisa fora de vista, baixei-me e encafuei-a

na caneca. Se qualquer outra pessoa encontrasse aquilo ali, só pensaria

que se tratava de um farrapo – manchado com tinta ou outra coisa

inócua. Tanto quanto eu sabia, era isso mesmo. Repreendi-me por estar

a ser histérico. Alexander tinha razão quanto a isso: se não

mantivéssemos o sangue-frio, tudo se desmoronaria. Fechei a porta

com força, mas depois hesitei. Não sabia o código do cadeado. Não

queria voltar ali, nunca mais, mas, pelo sim pelo não, deixei o cadeado

pendurado, aberto.

Voltei a empurrar a mesa de cavalete para a frente dos armários,

esperando que mais ninguém se desse ao trabalho de a tirar dali, que

ninguém alguma vez viesse sequer a saber que eu tinha estado ali.

Recuei e fiquei a olhar para a pequena roda do cadeado, para o

minúsculo espaço entre a lingueta e o buraco. Como é tremenda a

agonia de decisões não tomadas.

CENA 5

Perdi-me ao tentar sair da cave e cheguei tarde ao ensaio de combate.

James, Camilo e três alunos do segundo ano já ali estavam.

– Desculpem – disse eu. – Desculpem, perdi a noção do tempo.


– Onde estiveste? – perguntou James, com uma estranha expressão

impassível. Estava mortinho por lhe fazer a mesma pergunta, mas não

em frente a outras pessoas.

Camilo interrompeu.

– Conversamos mais tarde. Temos muito que fazer e pouco tempo

para o fazer. Vocês os dois trabalharam nisto durante o fim de semana.

Lancei um olhar a James, que disse: – Sim – antes que eu pudesse

responder. Só praticáramos o bloqueio duas vezes, porque ele tinha

estado fora do Castelo na maior parte do sábado e todo o domingo.

– Então vamos lá começar – disse Camilo. – A partir do desafio do

Edgar?

O cenário para Rei Lear tinha sido delineado no chão com fita

isoladora azul. Era um design curioso, com o proscénio a estender-se

por uma passarela que ocupava a coxia central da plateia.

Chamávamos-lhe a Ponte; a elevação estava indicada como sendo de

um metro e vinte.

Ocupei o meu lugar no segundo plano do palco, com o florete

pendurado da cintura, no lado esquerdo. James e os outros já estavam

em posição – ele à entrada da Ponte, os soldados no palco à esquerda,

Camilo e o arauto no palco à direita. Meredith também devia estar ali,

mas não fazia sentido convocá-la quando tudo o que ela faria seria

assistir.

Eu: – Quem fala em nome de Edmundo, conde de Gloucester?

James: – O próprio. Que lhe dizes?

Fulminei-o com o olhar, de punhos cerrados para controlar as voltas

que sentia na barriga. Não havia necessidade de impressionar ninguém

com emoções no ensaio de uma luta, mas eu já estava com os nervos

em franja.

Eu: – Puxa da espada,

Para que, se o que digo ofende um coração nobre,

O teu braço te faça justiça. Aqui está a minha.

Puxei da espada e James ergueu as sobrancelhas, levemente

divertido. Atravessei o palco até à entrada da Ponte.

Eu: – Apesar da tua força, posição, juventude, eminência,

Da espada de vencedor e novíssima fortuna,

Do teu valor e coragem, tu és um traidor:


Falso com teus deuses, teu irmão e teu pai,

Conspirador contra este alto e ilustre príncipe,

E do ponto mais alto da tua cabeça

Até ao mais baixo pó que pisas com teus pés,

Manchado de traição como um sapo.

A dado ponto a meio do meu discurso, a expressão divertida e

trocista de James desvaneceu-se e foi substituída por um ar frio e feio.

Quando foi a sua vez de falar, observei-o atentamente, sem saber se

estava só a representar ou se eu e ele estávamos a rilhar segredos entre

os dentes.

James: – Aquilo que eu podia com segurança e correção adiar,

Segundo as leis da cavalaria, desdenho e repudio.

Atiro-te de volta essas traições à cara!

Foi como se me cuspisse em cima.

James: – Com a odiosa mentira esmago o teu coração.

Traições que, por passarem depressa e mal magoarem,

Esta minha espada lhes dará passagem imediata

Para onde descansarão para sempre. Falai, trombetas!

Erguemos as armas e fizemos uma vénia um ao outro sem deixarmos

de nos olhar nos olhos. Ele atacou primeiro; o meu bloqueio foi

desajeitado e a sua espada deslizou ao longo da minha até ao punho

com um sibilo furioso. Rechacei-o e recuperei atabalhoadamente o

equilíbrio. Mais um golpe, outro bloqueio. Aparei outro golpe, atingi-o

no ombro esquerdo. As espadas tilintaram e os seus gumes rombos

colidiram com o chocalhar e o rufar de um tambor.

– Calma – disse Camilo. – Mais calma, agora.

Dançámos em passos rápidos pela coxia estreita entre duas longas

tiras de fita isoladora. Essa era a coreografia: eu empurrava-o até ao

fim da Ponte, onde ele tombaria, com uma mão na barriga e sangue a

desabrochar por entre os dedos. (Como isso aconteceria, ainda não

tínhamos sido informados pelo pessoal do guarda-roupa.) Lutávamos

com os corpos paralelos, as espadas a brilharem entre nós. James

cambaleou, perdeu o pé, mas, quando ergui o braço para desferir o

golpe mortal, os dedos dele enroscaram-se com mais força à volta do

punho da sua espada. O pomo e o guarda-mão acertaram-me em cheio

no rosto e umas estrelas brancas ardentes irromperam pelo meu campo


de visão, com a dor a atingir-me como um aríete. Camilo e um dos

soldados gritaram ao mesmo tempo. O florete escapou-se-me dos

dedos e tombou ao meu lado quando caí para trás sobre os cotovelos,

com sangue a jorrar-me do nariz como se alguém tivesse ligado uma

torneira.

James largou a sua arma e ficou a fitar-me com os olhos

esbugalhados.

– Que diabo julgas que estás a fazer? – berrou Camilo.

James recuou como um sonâmbulo, lentamente, hipnotizado. Os

seus dedos fletiram-se aos lados do corpo, com os nós a brilharem,

vermelhos. Tentei falar, mas tinha a boca cheia de ferro, o sangue a

escorrer-me pelo queixo, a encharcar a frente da minha camisa. Os dois

soldados soergueram-me, e a cabeça tombou-me pesadamente para a

frente, como se todos os tendões no pescoço se tivessem rompido.

Camilo continuava a berrar:

– Inaceitável! Que diabo te deu?

James olhou para ele em vez de para mim.

– Eu... – começou a dizer.

– Sai – ordenou Camilo. – Eu trato de ti mais tarde.

Os lábios de James moveram-se sem palavras. De repente, ficou com

os olhos cheios de lágrimas, e virou-se e correu para fora da sala,

deixando o casaco e as luvas e tudo o resto.

– Oliver, estás bem? – Camilo acocorou-se ao meu lado, erguendo-

me o queixo. – Não perdeste nenhum dente? – Fechei os lábios, engoli

sangue e voltei a engolir para combater o reflexo de vómito. Ele

apontou primeiro para o mais alto dos dois soldados, depois para o

outro. – Tu, ajuda-me a levá-lo para a enfermaria. Tu, vai a correr

procurar o Frederick, diz-lhe que preciso de falar com ele e com a

Gwendolyn imediatamente. Despacha-te.

O mundo andou à roda quando me içaram, e pensei que ia perder os

sentidos e nunca mais acordar.

CENA 6
Só saí da enfermaria quando já passava das onze da noite. Tinha o

nariz partido, mas não gravemente. Puseram-me uma tala sobre a cana,

para a manter direita, e por baixo dela começavam a alastrar equimoses

vermelhas; abaixo dos olhos eram roxas. Gwendolyn e Frederick

vieram ver-me, perguntaram o que tinha acontecido, apresentaram-me

as suas profusas desculpas e depois pediram-me que, tanto quanto

possível, guardasse segredo do que acontecera e dissesse que fora um

acidente, se outros alunos perguntassem. Não precisamos de mais

mexericos nem de mais problemas, disseram eles. Quando regressei ao

Castelo, ainda não decidira se lhes faria a vontade.

Fui imediatamente para o andar de cima, mas não para a Torre.

Parecia improvável que James estivesse lá, mas eu não queria arriscar.

Em vez disso, bati levemente à porta de Alexander. Ouvi fechar-se uma

gaveta e daí a um momento ele apareceu, com uma mão no puxador da

porta.

– Com um caraças, Oliver – disse ele. – A Pip contou-me o que

aconteceu, mas não julguei que fosse assim tão mau. – Tinha os olhos

injetados, os lábios secos e rachados. Não estava com um aspeto muito

melhor do que o meu.

– Não quero realmente falar sobre isso.

– Tudo bem. – Fungou, limpou o nariz à manga. – Posso ajudar-te?

– Dói-me a cabeça como tudo e neste momento preferia não sentir

nada acima do pescoço.

Abriu a porta para trás.

– Aqui o doutor trata de ti.

Não entrava com frequência no quarto de Alexander, e a sua

escuridão surpreendia-me sempre. A certa altura nas últimas semanas,

ele tinha pregado uma tapeçaria na janela. A sua cama estava enterrada

sob uma pilha de livros, que recolheu e deixou cair na secretária já

atravancada. Mortalhas amarrotadas, fósforos partidos e roupas sujas

atapetavam o chão. Apontou para a cama e eu afundei-me grato no

colchão, com a pulsação a latejar fortemente entre as têmporas.

– Posso perguntar o que aconteceu? – disse ele enquanto remexia na

gaveta de cima da sua secretária. – Não te vou fazer falar sobre o

assunto. Só quero saber se devo empurrar o James para o lago na

próxima vez que o vir.


Sem saber bem se aquele comentário era simplesmente o sentido de

humor mórbido de Alexander ou algo mais deliberado, mexi-me na

cama, atribuí-o à paranoia persistente e decidi ignorá-lo.

– Tem-lo visto muito ultimamente? – perguntei. – Dá-me a sensação

de que nunca está cá.

– Entra e sai. Tu deves saber melhor do que eu.

– Costuma chegar depois de eu ter ido para a cama e, quando me

levanto, já não está.

Alexander sacudiu uns pedacinhos de erva de uma lata de rolo

fotográfico e esboroou-os para uma mortalha.

– Se queres a minha opinião, ele está a embrenhar-se um pouco de

mais no papel que tem na peça. É a técnica do Método, sabes? Já não

sabe onde acaba ele e começa Edmundo.

– Bem, isso não pode ser bom.

Olhou para mim e para o meu nariz partido.

– Claramente. – Fez um esgar como se tivesse acabado de morder a

língua. – Deram-te analgésicos para isso?

Tirei do bolso um frasco de comprimidos brancos pequenos.

– Ótimo – disse ele. – Dá-me dois.

Entreguei-lhos. Esmagou os dois com a lata do rolo fotográfico e

polvilhou o pó resultante sobre a erva na mortalha. De seguida, voltou

a meter a mão na gaveta e tirou outro misterioso frasco de

comprimidos. Abriu-o, bateu com ele na base da mão. Outro pó

branco, mais fino. Adicionou-o ao charro sem me dizer o que era. Não

perguntei.

– Então, o que aconteceu? – perguntou, quando começou a enrolar o

charro. – Estavam a fazer o combate da cena três do ato cinco e ele

atacou-te?

– Basicamente.

– Mas que caraças. Porquê?

– Acredita que adorava saber.

Passou a língua ao longo da borda da mortalha e depois colou as

duas partes com a ponta do dedo. Torceu a ponta numa rabiosca

minúscula e passou-me o charro para a mão.

– Aí tens – disse. – Fuma-o de uma vez e não vais sentir nada

durante uma semana.


– Fantástico. – Levantei-me da cama e agarrei-me às costas da

cadeira. Sentia a cabeça latejar.

– Estás bem?

– Vou estar, daqui a uns minutos.

Não pareceu ficar convencido.

– Tens a certeza?

– Tenho – respondi. – Vou ficar bem. – Fui a tatear até à porta como

um homem cego, com as mãos a avançarem de uma peça de mobiliário

para a seguinte até chegar à parede.

– Oliver – disse ele, quando abri a porta para sair.

– Sim?

Atirou-me um isqueiro quando me virei e depois apontou para o seu

nariz e sorriu tristemente. Levei a mão ao rosto. Havia uma nova

mancha de sangue no meu lábio superior.

Em regra, não fumávamos dentro do Castelo. Saí pela porta lateral e

fiquei no caminho para a casa com o charro, a ganza, o que quer que

fosse, enfiado entre os meus lábios bem comprimidos. Inalei como

Alexander me ensinara dois anos antes, profundamente, até aos

pulmões. Fazia frio, mesmo para fevereiro, e o bafo e o fumo saíam-me

da boca juntos, numa longa espiral. Sentia os seios nasais pesados e

espessos, como se tivessem sido entupidos com barro. Perguntei-me

quando as equimoses se desvaneceriam, se o meu nariz voltaria ao

normal daí a três semanas.

Encostei-me à parede e tentei não pensar mais, convencido de que

enlouqueceria se continuasse. A floresta estava em silêncio e, ao

mesmo tempo, a transbordar com pequenos sons – o pio distante de

um mocho, o restolhar seco das folhas, uma brisa deslizando por entre

as copas das árvores. De algum modo, lentamente, o meu cérebro

desligou-se do resto de mim. Continuava a sentir dor, ainda estava nas

garras da indecisão, mas havia algo entre mim por um lado e o

pensamento, o sentimento e tudo o resto por outro – uma névoa ligeira,

um tecido fino iluminado por trás, silhuetas de um teatro de sombra

movendo-se delicadamente do outro lado. Se foi do frio ou do charro

de Alexander, não sei, mas centímetro a centímetro comecei a sentir-

me dormente.
A porta abriu-se, fechou-se. Olhei na sua direção sem expectativa ou

curiosidade. Meredith. Hesitou no alpendre por um momento, depois

desceu. Não me mexi. Tirou-me o charro da boca, atirou-o para o chão

e beijou-me antes de eu poder falar. Um latejo de dor surda subiu-me

pela cana do nariz até ao cérebro. A palma da sua mão estava quente

no lado do meu rosto, a sua boca magnética. Pegou na minha mão

como fizera tantas semanas antes e conduziu-me para dentro de casa.

CENA 7

Dormi durante a maior parte do dia seguinte, acordando apenas por

uns instantes quando Meredith deslizou para fora da cama, me afastou

o cabelo da testa e partiu para as aulas. Murmurei-lhe algo, mas as

palavras nunca chegaram realmente a tomar forma. O sono voltou a

rastejar para cima de mim como um animal de estimação a ronronar

afetuoso, e só acordei de novo daí a oito horas. Nessa altura, Filippa

estava sentada de pernas cruzadas em cima da cama ao meu lado.

Fitei-a com um olhar sonolento, a tatear por entre as recordações

confusas da noite anterior, sem saber ao certo se estava com roupa

vestida por baixo do cobertor. Ela empurrou-me para trás quando tentei

sentar-me.

– Como te sentes? – perguntou-me.

– Que tal pareço?

– Sinceramente? Horrível.

– Será coincidência? Não. Que horas são?

As janelas já estavam escuras.

– Falta um quarto para as nove – disse ela, e a sua testa enrugou-se. –

Dormiste o dia todo?

Gemi, mexi-me na cama, relutante em erguer a cabeça.

– A maior parte. Como foram as aulas?

– Muito calmas.

– Porquê?

– Bem, sem ti éramos só quatro.

– Quem mais faltou?


– Quem te parece?

Virei a cabeça na almofada e pus-me a olhar fixamente para a

parede. O movimento provocou-me um baque doloroso nos seios

nasais que me distraiu a atenção, mas só por um momento.

– Suponho que estás à espera de que eu pergunte onde ele está –

disse eu.

Ela pôs-se a puxar a ponta do edredão dobrada sobre o meu peito.

– Ninguém o vê desde ontem. Depois do ensaio de combate,

simplesmente desapareceu.

Grunhi-lhe e disse:

– Mas?

Suspirou, com os ombros a erguerem-se ligeiramente e a afundarem-

se muito mais.

– Mas já voltou. Está lá em cima na Torre.

– Nesse caso, vou ficar aqui até a Meredith me pôr fora.

A boca de Filippa formou uma linha lisa cor-de-rosa. Por trás dos

óculos (não sabia porque os tinha posto, não estava a ler nada) os seus

olhos eram de um azul sonolento de oceano, pacientes mas fatigados.

– Vá lá, Oliver – disse em voz baixa. – Não há de fazer mal ires lá

acima falar com ele.

Apontei para o meu rosto.

– Hum, ao que parece pode.

– Olha, nós também estamos furiosos com ele. Acho que a Meredith

deixou uma marca de fogo no chão onde estava parada, quando ele

entrou. Até a Wren recusou falar com ele.

– Ainda bem – disse eu.

– Oliver.

– O quê?

Encostou a face à mão e, inexplicavelmente, com relutância, sorriu.

– O quê? – repeti, mais cautelosamente.

– Tu – disse ela. – Sabes que eu nem sequer estaria aqui se tu fosses

outra pessoa qualquer.

– O que é que isso quer dizer?

– Quer dizer que tens melhores razões do que nós para lhe guardar

rancor, mas também vais ser o primeiro a perdoar-lhe.


A sensação inquietante de que Filippa conseguia ver-me à

transparência fez-me contorcer-me e afundar-me mais no colchão.

– Não me digas – respondi, mas pareceu uma resposta fraca e pouco

persuasiva, até a mim.

– Digo. – O seu sorriso desvaneceu-se. – Não podemos dar-nos ao

luxo de nos virarmos uns contra os outros neste momento. As coisas já

estão mal que chegue. – Parecia frágil, de repente. Magra e

transparente, como uma doente de cancro. A imperturbável Filippa.

Senti um estranho impulso avassalador de simplesmente a abraçar,

envergonhado por, embora muito de passagem, ter suspeitado dela.

Queria puxá-la para debaixo do cobertor e pôr os braços à sua volta.

Quase o fiz antes de me lembrar de que (provavelmente) não estava

vestido.

– Tudo bem – disse. – Eu vou falar com ele.

Acenou com a cabeça, e pensei ver o brilho de uma lágrima por trás

dos seus óculos.

– Obrigada. – Esperou um momento, apercebeu-se de que eu não ia

levantar-me e disse: – OK, quando?

– Hum, daqui a um minuto.

Piscou os olhos e todos os vestígios da lágrima, se é que tinha

havido alguma, desapareceram.

– Estás nu? – perguntou.

– Pode ser que sim.

Saiu do quarto. Levei o meu tempo a vestir-me.

Enquanto subia as escadas para a Torre, dei comigo a andar em

câmara lenta. Não me dava a sensação de ir lá acima ver James pela

primeira vez em um ou dois dias. Dava a sensação de que realmente

não o via, não falava com ele, não comunicava com ele de nenhuma

maneira significativa desde antes do Natal. A porta ao cimo das

escadas estava entreaberta. Lambi nervosamente o lábio e empurrei-a.

Ele estava empoleirado no lado da cama, com os olhos pregados no

chão. Mas não era a sua cama – era a minha.

– Confortável? – perguntei.

Pôs-se de pé rapidamente e deu dois passos.

– Oliver...

Ergui uma mão, com a palma para fora, como um polícia-sinaleiro.


– Não... fica aí, por um minuto.

Parou a meio do quarto.

– OK. Como queiras.

Sentia os pés instáveis nas traves do soalho. Engoli em seco, contive

um acesso de afeto estranho, desanimado.

– Quero perdoar-te – saiu-me. – Mas, James, neste momento era

capaz de te matar, francamente. – Estendi o braço na direção dele,

fechei a mão em punho no ar vazio. – Apetecia-me... por Deus, nem

sequer consigo explicar. Tu és como uma ave, sabias? – Ele abriu a

boca, com uma pergunta, alguma expressão de perplexidade presa na

ponta da sua língua. Eu fiz um gesto duro, deselegante, um corte com o

lado da mão, para o impedir de falar. Os pensamentos tombaram-me

dos lábios frenéticos e desorganizados. – O Alexander tinha razão, o

Richard não é o pardal, tu é que és. Tu és... não sei, uma coisa frágil,

esquiva, e sinto que se pudesse apanhar-te poderia esmagar-te.

Ele estava com uma expressão terrível, magoada, mas não tinha

direito a ela, não naquele momento. Meia dúzia de sentimentos

contraditórios ergueram-se com força em mim ao mesmo tempo, e dei

um enorme passo desajeitado para ele.

– Quero sentir-me tão furioso contigo que conseguisse fazer isso,

mas não consigo, portanto sinto-me antes furioso comigo mesmo.

Consegues sequer compreender como isso é injusto? – A minha voz

estava aguda e severa, como a de um garotinho. Como detestava isso,

pus-me a praguejar, aos berros. – Foda-se! Foda-se isto, merda para

mim, merda para ti... Com um caraças, James! – Sentia vontade de o

atirar ao chão, lutar com ele... e fazer o quê? A violência daquele

pensamento alarmou-me, e, com um som estrangulado de indignação,

peguei num livro que estava em cima da mala aos pés da cama dele e

arremessei-o, atirei-lho aos joelhos. Era um exemplar de bolso de Rei

Lear, mole e inofensivo, mas ele estremeceu quando o livro o atingiu.

Caiu no chão, a seus pés, com uma página a pender torta da lombada.

Quando ele olhou para mim, desviei os olhos imediatamente.

– Oliver, eu...

– Não! – Espetei um dedo a exigir silêncio. – Não. Deixa-me só...

só... por um minuto. – Enfiei os dedos no cabelo. Uma bola dura de dor

alojara-se por trás da cana do nariz e começavam a vir-me lágrimas aos


olhos. – O que é que há em ti? – perguntei, com as palavras

empastadas pelo esforço de manter a voz firme. Fulminei-o com o

olhar, à espera de uma resposta que sabia que não obteria. – Devia

odiar-te neste momento. E quero... meu Deus, quero mesmo... mas isso

não é suficiente.

Abanei a cabeça, completamente desnorteado. Que diabo estava a

acontecer-nos? Examinei o rosto dele à procura de um indício, de

alguma pista a que me agarrar, mas durante muito tempo a única coisa

que ele fez foi respirar, com o rosto contorcido como se respirar fosse

doloroso.

– Ao meu nome, querida santa, tenho ódio – disse ele. – Por ser teu

inimigo.

A cena da varanda. Demasiado desconfiado para tentar adivinhar o

seu significado, disse-lhe:

– Não faças isso, James, por favor... neste momento, podemos ser

simplesmente nós mesmos?

Acocorou-se, pegou no texto amarrotado do chão.

– Desculpa – disse. – É mais fácil agora ser Romeu ou Macbeth ou

Bruto ou Edmundo. Outra pessoa qualquer.

– James – repeti, mais delicadamente. – Estás bem?

Abanou a cabeça, de olhos baixos. A voz saiu-lhe da boca em passos

receosos, prudentes.

– Não, não estou.

– OK. – Passei o peso do corpo de um pé para o outro. O chão

continuava a não parecer suficientemente firme. – Podes dizer-me o

que se passa?

– Oh – disse ele, com um estranho sorriso aguado. – Não. Tudo.

– Lamento – disse eu, e a palavra soou a pergunta.

Ele avançou um passo, eliminando o pequeno espaço entre nós, e

ergueu a mão, tocou na nódoa negra que alastrara por baixo do meu

olho esquerdo. Um estilhaço de dor. Estremeci.

– Devia ser eu a lamentar – disse ele. Os meus olhos desviaram-se

de um dos seus olhos para o outro. Cinzentos como aço, dourados

como mel. – Não sei o que me fez fazer aquilo. Nunca tinha desejado

magoar-te.

As pontas dos seus dedos davam a sensação de serem gelo.


– Mas agora? – perguntei. – Porquê?

Os braços caíram-lhe sem vida aos lados do corpo. Desviou o olhar e

disse:

– Oliver, não sei o que se passa comigo. Sinto vontade de magoar o

mundo inteiro.

– James. – Peguei-lhe no braço, virei-o para mim. Antes de decidir o

que fazer a seguir, senti a sua mão no meu peito e olhei para baixo. A

palma da sua mão estava encostada à minha camisa, os seus dedos

abertos sobre a minha clavícula. Esperei que me puxasse a si ou me

empurrasse a afastar-me. Mas ele limitou-se a fitar a própria mão,

como se fosse uma coisa estranha que nunca vira.

CENA 8

Fevereiro não se demorou muito. O meio do mês chegou e passou

antes de eu ter parado de escrever janeiro em todos os meus trabalhos

por engano. Os nossos exames intercalares de representação

aproximavam-se a toda a velocidade – e, embora Frederick e

Gwendolyn tivessem sido muito mais generosos do que o costume na

sua atribuição de cenas, nós esforçavamo-nos por nos mantermos à

tona num mar de versos a memorizar, leituras a fazer, textos a

apreender e trabalhos a apresentar. Ao fim de uma tarde de domingo,

eu, James e as raparigas estávamos metidos na biblioteca a rever os

versos das cenas que íamos representar na aula na semana seguinte.

James e Filippa tinham Hamlet e Gertrudes; Meredith e Wren estavam

a ler Emília e Desdémona; eu estava à espera de que Alexander

aparecesse para ele ler Arcite para o meu Palamon.

– Francamente – disse Filippa, ao tropeçar no mesmo verso pela

quarta vez –, tinha-lhes custado muito darem-me o papel de Ofélia?

Não tenho de maneira nenhuma idade suficiente para ser tua mãe.

– Embora melhor fora que assim não fosse – disse James.

Ela soltou um grande suspiro.

– Que fiz eu para que ouses dar à língua / Com um clamor tão rude

contra mim?
– Um ato / Que embacia a graça e o rubor da modéstia.

Continuaram a discutir em voz baixa. Recostei-me no sofá, fiquei por

uns instantes a ver Meredith escovar o cabelo de Wren. Formavam um

bonito quadro, com a luz do lume a brincar suavemente nos seus

rostos, brilhando nas curvas dos lábios e das pestanas.

Wren: – Praticarias tu, pelo mundo inteiro, uma tal ação?

Meredith: – O mundo é uma coisa muito grande, e um exagerado

prémio para um pequeno crime.

Wren: – Não, não creio que sejas capaz de fazer isso.

Peguei de novo no meu bloco de apontamentos. O meu texto estava

retalhado e sublinhado em quatro cores diferentes, tão caoticamente

anotado que era difícil encontrar as palavras originais. Murmurei para

comigo mesmo por algum tempo, com as vozes dos outros a vogarem

levemente nos sussurros e estalidos do lume. Passaram quinze minutos,

depois vinte. Eu começava a ficar agitado quando a porta lá em baixo

se abriu.

Sentei-me mais direito.

– Finalmente. – Ouviram-se passos a subir depressa as escadas e eu

disse: – Já não era sem tempo. Tenho estado à tua espera a noite toda –

antes de me aperceber de que não era Alexander.

– Colin – disse Wren, interrompendo a sua cena.

Ele acenou com a cabeça, com as mãos a moverem-se pouco à

vontade nos bolsos do casaco.

– Desculpem vir incomodar.

– Que aconteceu? – perguntei.

– Ando à procura do Alexander. – As suas faces estavam rosadas,

mas eu duvidava de que tivesse muito que ver com o frio.

Filippa trocou um olhar rápido com Meredith, que disse:

– Julgávamos que ele estava contigo.

Colin acenou com a cabeça e os seus olhos dardejaram pela

biblioteca, evitando estrategicamente os nossos rostos.

– Pois é, ele disse que se encontrava comigo para beber um copo às

cinco, mas não o vi nem soube nada dele. – Encolheu os ombros. –

Começo a ficar preocupado, sabem?

– Sim. – Filippa já estava a levantar-se da cadeira. – Alguém quer ir

ver ao quarto dele? Eu procuro na cozinha, vejo se deixou algum


recado.

– Eu vou. – Colin quase correu para fora da biblioteca, claramente

desesperado por chegar ao corredor, onde não estaríamos todos a olhá-

lo fixamente.

Meredith: – O que acham que aconteceu?

Eu: – Não sei. Ele disse alguma coisa a algum de vocês?

Wren: – Não, mas tem andado um bocado estranho ultimamente.

James: – Temos andado todos.

Wren olhou-me de testa franzida. Como eu não tinha nada a

acrescentar, limitei-me a encolher os ombros. Ela abriu a boca, mas

não cheguei a descobrir para dizer o quê, porque Colin voltou a entrar

de roldão, todo o tom rosado esvaído do seu rosto.

– Está no quarto... passa-se qualquer coisa, qualquer coisa má! – A

voz falhou-lhe na última palavra e nós pusemo-nos todos de pé ao

mesmo tempo. A voz de Filippa chegou-nos da cozinha ao fundo do

corredor, aguda e nervosa, a chamar:

– Pessoal? O que se passa?

A porta bateu com força contra a parede quando Colin a abriu para

trás. Havia livros e roupas e papéis amarrotados espalhados por todo o

quarto, como os estilhaços de uma bomba. Alexander estava estendido

no chão, com os membros dobrados em ângulos estranhos, a cabeça

lançada para trás como se tivesse o pescoço partido.

– Oh, meu Deus – disse eu. – O que fazemos?

James afastou-me com um empurrão.

– Saiam da frente. Colin, senta-o, consegues?

Wren apontou para o outro lado do quarto.

– O que é aquilo tudo?

Debaixo da cama, o chão estava atapetado com frascos de

comprimidos e latas de rolos fotográficos, empurrados quase para fora

de vista, por trás de uma ponta descaída do edredão. Os rótulos de

alguns tinham sido arrancados, deixando rastos de papel branco

felpudo.

James ajoelhou-se ao lado de Alexander, apertando-lhe o pulso, à

procura da pulsação. Colin ergueu-lhe a cabeça do chão – e um

pequeno som escapou entre os seus lábios.

– Ele está vivo – disse –, tem de estar, ele só...


A voz de James soou ténue e tensa.

– Cala-te por um minuto, não consigo...

Filippa apareceu atrás de nós à porta.

– Que se passa?

Alexander murmurou alguma coisa, e Colin baixou a cabeça para o

rosto dele.

– Não sei – respondi. – Deve ter tomado uma dose excessiva de

alguma coisa.

– Oh, meu Deus. Do quê? O que é que ele andava a tomar, alguém

sabe?

– A pulsação dele está mesmo irregular – disse James, falando

depressa e em voz baixa. – Tem de ir para o hospital. Alguém vá lá

abaixo chamar uma ambulância. E alguém recolha essa merda toda. –

Apontou para os frascos de comprimidos debaixo da cama.

Colin ficou branco como a cal, com a cabeça transpirada de

Alexander no seu regaço.

– Não podes mandar essas coisas para o hospital... queres que ele

seja expulso?

– Preferes que ele morra? – perguntou James, agressivamente.

Antes que Colin pudesse responder, todo o corpo de Alexander se

contraiu, com os dentes a cerrarem-se e os músculos a estremecerem.

– Façam o que ele diz – ordenou Meredith. – Alguém vá ao telefone,

já. – Acocorou-se ao lado de James e começou a varrer frascos de

debaixo da cama. Alexander gemeu, a tatear o chão com uma mão.

Colin agarrou-a e apertou-a com força, a balouçar-se ligeiramente para

a frente. Wren recuara para um canto e acocorara-se ali, com os braços

à volta do corpo e um ar doente. O meu estômago tentava rastejar para

fora da boca.

Filippa agarrou-me o braço.

– Oliver, podes...

– Sim, eu vou, tu olha pela Wren.

Saí do quarto e voei pelas escadas abaixo, a sentir os pés dormentes

e atabalhoados. Levantei o auscultador do descanso e liguei para o

número de emergências.

Atendeu uma voz. De mulher. Indiferente. Eficiente.

– Qual é a emergência?
– Estou no Castelo, nos terrenos da escola Dellecher, e precisamos

de uma ambulância, imediatamente.

– Qual é a natureza da emergência? – Soava tão prática, tão calma.

Contrariei o impulso de lhe berrar: É uma emergência! Não significa

nada para si?

– Alguma espécie de overdose, não sei. Mande ajuda, por favor.

Deixei cair o telefone, largando-o da mão, e o fio retesou-se com um

sacão e ficou a balouçar-se como um homem morto a pender de uma

corda. Enquanto escutava a voz metálica que soava do telefone, os sons

distantes de consternação e agitação lá de cima, só conseguia pensar:

Porquê? Porquê as drogas, porquê a overdose, o que é que ele fez o que

é que ele fez o que é que ele fez? Não podia voltar lá para cima, mas

também não podia ficar onde estava, aterrorizado com o que seria

capaz de dizer quando a polícia ou os socorristas quisessem respostas.

Deixei o telefone pendurado e abri a porta para trás, sem levar o

casaco, o cachecol, as luvas, nada.

Fui ganhando velocidade ao descer o caminho da casa, com o

cascalho como pequenos pedaços de gelo sob as minhas meias.

Quando cheguei à parte com terra – sepultada debaixo de um manto

que era uma mistura de neve de há dias e agulhas dos pinheiros – já ia

a correr a toda a velocidade. O meu coração bombeava com força, a

combater o frio, e o sangue começou a correr-me nas veias e a atroar-

me os ouvidos de tal maneira que o dique nos meus seios nasais

rebentou e ele voltou a jorrar pelo nariz. Corri direto às árvores, e os

ramos e os espinhos arranhavam-me o rosto e os braços e as pernas,

mas eu quase não os sentia, minúsculos picos de dor perdidos no

tumulto e no emaranhado do pânico. Saí do trilho e embrenhei-me

mais no bosque, tanto que não sabia se seria capaz de encontrar o

caminho de volta, tanto que ninguém me ouviria. Quando julguei que o

meu coração ou os meus pulmões iam rebentar, tombei de gatas nas

folhas geladas e uivei às árvores até algo na minha garganta se quebrar.

CENA 9

É
Éramos só quatro nas aulas, na terça-feira de manhã: eu, James,

Filippa e Meredith. Alexander ainda não voltara das urgências do

hospital de Broadwater – embora já se encontrasse estável, ou assim

nos tinha sido dito. Nós tínhamos sido chamados da aula, um a um, na

segunda-feira, para sermos submetidos a uma avaliação psiquiátrica. A

psicóloga da escola e um médico de Broadwater fizeram-nos à vez

perguntas invasivas sobre nós mesmos, os outros e o nosso mau

cadastro coletivo em termos de consumo de drogas. (Cada um de nós

veio embora com um panfleto sobre os perigos do consumo de drogas e

um lembrete severo de que a frequência de uma sessão sobre os

perigos do álcool era obrigatória.) Além dos problemas óbvios de

stress e exaustão, tanto James como Wren – pelo que eu ouvira junto

ao gabinete de Holinshed quando ia a caminho da casa de banho –

exibiam sintomas de stress pós-traumático. Ela faltara mais um dia às

aulas para descansar, mas, quando sugeri que James fizesse o mesmo,

ele disse:

– Se ficar fechado no Castelo sozinho todo o dia dou em louco.

Não argumentei, mas, como veio a revelar-se, ele não estava muito

melhor no Estúdio Cinco.

– Bem – disse Gwendolyn logo que nos sentámos –, não me parece

que haja alguém disposto a receber materiais novos hoje, e, além disso

não são em número suficiente. Eu ia ter de dar a mesma aula amanhã.

– A sua solução foi trabalhar cenas problemáticas de Rei Lear que não

poderiam ser mais exaustivamente dissecadas durante o ensaio, por

questões de tempo.

James e eu ficámos a assistir durante uma hora enquanto Gwendolyn

cravava as garras em Meredith e Filippa, à procura de centelhas de

rivalidade entre irmãos na vida real para as atiçar e transformar numa

chama para o palco. Não era fácil; Meredith quase não conhecia os

seus irmãos, e Filippa dizia não os ter. (Continuo sem saber se isso é

verdade.) Gwendolyn despertou-me do meu torpor perguntando-me

pelas minhas irmãs, um assunto pelo qual eu não tinha então – nem

nunca tivera – grande predileção. Parou a tempo, antes de revelar que

eu era o novo zelador do Castelo, e, misericordiosamente, avançou para

outra. Depois de ter atazanado as raparigas, deu-nos um intervalo de


cinco minutos e ordenou a James e a Meredith que voltassem

preparados para o quarto ato, cena dois.

Quando regressámos, Gwendolyn abriu o trabalho de cena com um

sermão sobre o desempenho pouco brilhante da semana anterior.

– Quer dizer, a sério – disse. – Este é um dos momentos mais

apaixonados da peça, entre duas das pessoas mais poderosas nela.

Como o que está em jogo não poderia ser mais importante, não quero

sentir que estou a assistir a uma cena foleira de engate no bar. –

Meredith e James ouviram-na sem comentários, e, quando ela acabou

de falar, tomaram os seus lugares sem sequer darem sinal de se terem

visto. (Depois de James me ter partido o nariz, a atitude de Meredith

para com ele passou de morna a gélida, o que, indubitavelmente,

contribuía para a total ausência de química entre eles em palco.)

Filippa deu-lhes uma deixa – não era uma fala dela, mas Gwendolyn

não esteve para se incomodar – e eles seguiram o guião com uma falta

de naturalidade que me fez estremecer interiormente. As palavras

soavam monocórdicas; tocavam-se de um modo forçado e desajeitado.

Ao meu lado, Filippa via a cena desmoronar-se com uma expressão

sombria de dor, como se estivesse a ser torturada.

– Parem, parem, parem – disse Gwendolyn, acenando com a mão a

James e Meredith. – Parem. – Eles afastaram-se de bom grado, como

ímans com a mesma polaridade. Meredith cruzou os braços; James

olhou carrancudo para o chão. Gwendolyn fitou um e outro e disse: –

Mas que diabo se passa com vocês? – Meredith empertigou-se. James

pressentiu-o e retesou o corpo a imitá-la, mas não olhou para ela.

Gwendolyn pôs as mãos nas ancas e observou-os astutamente. – Hei de

chegar ao fundo da questão, seja ela qual for – disse –, mas falemos

primeiro sobre a cena. O que está a acontecer aqui? Meredith?

– Goneril precisa do auxílio de Edmundo, portanto suborna-o da

única maneira que conhece. – Parecia profundamente entediada com

aquilo.

– Com certeza – disse Gwendolyn. – É uma bela resposta, se

estiveres morta do pescoço para baixo. James? Ouçamos o que tens a

dizer. O que está a acontecer com Edmundo?

– Ele vê outra maneira de obter o que quer e joga as cartas que ela

lhe dá – respondeu, de uma maneira monocórdica e automática.


– Isso é interessante. E também é uma treta – disse Gwendolyn, e

olhei para cima, surpreendido. – Falta algo enorme a esta cena, e está

mesmo à vossa frente – continuou. – Goneril não vai matar o marido

só para poder ter um novo capitão em campo e Edmundo não vai

arriscar-se a perder o título de Regan a não ser que haja uma proposta

mais aliciante em cima da mesa. Então, porque fazem isto?

Ninguém falou. Gwendolyn rodou sobre os calcanhares e disse:

– Oh, por amor de Deus... Oliver! – tão alto que dei um salto. – Eu

sei que tu sabes. O homicídio está tão perto do quê como a chama do

fumo?

Os versos familiares de Péricles ocorreram-me imediatamente.

– Do desejo? – disse, receoso da palavra, com tanto medo de ter

razão como de estar errado.

– O desejo! – rosnou ela, e acenou com o punho a James e Meredith.

– A paixão! Se simplesmente representarem a lógica e não os

sentimentos, a cena não resulta! – Acenou de novo aos dois. –

Claramente, vocês os dois não o sentem, portanto vamos ter de

resolver isso. Como? Em primeiro lugar, põem-se de pé de frente um

para o outro. – Pegou em James pelos ombros e virou-o bruscamente,

de modo que ele e Meredith ficaram quase com os narizes a tocarem-

se. – Agora, prescindimos de toda aquela tolice do ele/ela e

começamos a falar como pessoas reais. Deixa de dizer «Edmundo»

como se ele fosse um tipo qualquer que conheceste numa festa. Não

tem que ver com ele, tem que ver contigo.

Estavam os dois a olhá-la com ar vácuo.

– Não – disse ela. – Não. Não olhem para mim. – Viraram-se e

fulminaram-se com o olhar até Gwendolyn acrescentar: – Não é para

jogarem ao sério.

– Isto não está a resultar – resmungou Meredith.

– E porque não? – perguntou Gwendolyn. – Vocês não gostam um

do outro neste momento? Mas que grande pena... – Parou, suspirou. –

É o seguinte, meninos... e sei isto porque já vivi uma vida longa e

escandalosa... a coisa do desejo é que não têm de gostar um do outro.

Alguma vez ouviram falar de sexo por ódio?

Filippa emitiu um pequeno som, de quem está com vontade de

vomitar, e eu engoli uma gargalhada nervosa.


– Continuem a olhar um para o outro, mas mandem-me calar se eu

estiver errada – continuou Gwendolyn. – James, tu não gostas da

Meredith. Porque não? Ela é linda. É inteligente. É fogosa. Acho que te

intimida, e tu não gostas de ser intimidado. Mas há mais do que isso,

não há? – Começou a andar à volta deles num círculo lento, como um

felino à caça na selva. – Olhas para ela como se te metesse nojo, mas

não penso que seja isso. Penso que ela te prende a atenção, como

prende a de todos os homens com pulsação. Quando olhas para ela,

não consegues deixar de ter pensamentos imundos, de sexo, e depois

sentes-te enojado contigo mesmo.

As mãos de James fecharam-se em punho aos lados do corpo. Vi-o

respirar cuidadosamente – com o peito a erguer-se e baixar-se num

ritmo absolutamente constante.

– E depois há a menina Meredith – ronronou Gwendolyn. – Tu não

tens medo de ser indecente e sexy, portanto o que é? Estás habituada a

que toda a gente por quem passas olhe para ti como se fosses uma

deusa, e acho que te sentes ofendida pelo facto de o James te resistir.

Ele é o único rapaz aqui que tu não podes ter. Até que ponto é que isso

te faz desejá-lo?

Ao invés de James, Meredith parecia não respirar. Mantinha-se

perfeitamente imóvel, com os lábios entreabertos, em cada face uma

viva mancha cor-de-rosa. Eu conhecia aquele olhar – era o mesmo

olhar audaz e ardente que me disparara na escadaria durante a festa da

peça Júlio César. Algo se contorceu por baixo dos meus pulmões.

– Agora – ordenou Gwendolyn –, por uma vez, quero que se

esqueçam do contacto visual e olhem para cada centímetro do corpo

um do outro. Façam isso. Não tenham pressa.

Obedeceram. Olhavam um para o outro, fitavam-se, demoravam o

olhar, e eu seguia os olhos deles, via o que eles viam – a linha do

maxilar de James, o triângulo de pele macia visível no vê do seu

colarinho. As costas das suas mãos, os ossos delicados, precisos como

linhas esculpidas por Miguel Ângelo. E Meredith – o rosa suave, como

o de uma concha de amêijoa, da sua boca, a curva do seu pescoço, a

linha dos seus ombros. A minúscula marca que eu deixara com os

dentes na base da palma da sua mão. Em todos os nervos do meu

corpo tremeluzia uma sensação de ansiedade.


– Agora, olhem-se nos olhos – disse Gwendolyn. – E façam-no com

convicção. Filippa?

Filippa lançou um olhar ao texto que tinha na mão e declamou a fala

de Oswald:

– Aquilo que mais lhe deveria desagradar parece agradar-lhe; /

aquilo que devia prezar ofende-o.

Meredith inalou o ar sofregamente, como alguém a acordar. A sua

mão aterrou no peito de James sem lhe dar tempo a afastar-se, segurou-

o à distância de um braço.

Meredith: – Então não deveis passar daqui.

É o terror cobarde de seu espírito

Que não ousa tomar iniciativas. Não considera ofensa

O que o force a reagir. Os votos que fizemos

Podem realizar-se.

Brincava com o colarinho da camisa dele, talvez distraída pelo calor

que sentia por baixo do tecido. Ele ergueu a mão para pegar no pulso

dela, traçou com as pontas dos dedos as finas veias azuis.

Meredith: – Volta, Edmundo, a meu irmão.

Apressa a mobilização e comanda as suas tropas.

Tenho de mudar os títulos em casa e entregar a roca

Às mãos de meu marido.

James observava a boca de Meredith enquanto ela falava, e ela

dobrou o braço pelo cotovelo, a convidá-lo a aproximar-se, como se

tivesse esquecido a razão por que ele devia ser mantido à distância.

Meredith: – Este fiel criado

Será o nosso contacto. Dentro em pouco ouvireis

(Se ousardes arriscar-vos em vosso próprio interesse)

A vontade de uma amante.

A mão de Meredith moveu-se para a gola da sua camisola e a de

James avançou com ela, pairando a uma distância ínfima da pele de

Meredith, até ela encontrar o lenço de mão e o tirar.

– Usai isto – disse Meredith –; não faleis. / Baixai a cabeça.

Num só gesto súbito, ele arrancou-lhe o lenço das mãos e beijou-a

com tanta força que quase a derrubou. Ela agarrou a camisa dele com

ambas as mãos como se quisesse sufocá-lo, e ouvi o soluço na

respiração dele, o pequeno arquejo em resposta. Era uma cena violenta,


agressiva; o lenço de mão e a sua delicada sedução, esmagados e

esquecidos. Se eles tivessem garras, ter-se-iam despedaçado. Sentia-me

quente, enjoado, atordoado. Queria desviar o olhar, mas não conseguia

– era como assistir a um acidente de automóvel. Cerrei os dentes com

tanta força que comecei a ver tudo andar à roda.

Meredith soltou-se, empurrou James para trás. Ficaram a quatro

passos de distância um do outro, a fitarem-se, despenteados e

ofegantes.

Meredith: – Este beijo, se ousasse falar,

Far-te-ia levantar esse espírito bem alto.

Entende-me e passa bem.

James: – Vosso sou, nas fileiras da morte.

James virou-se, saiu pelo lado errado, abandonou o estúdio. Logo

que desapareceu de vista, Meredith virou as costas ao lugar onde ele

estivera, e as suas palavras soaram ríspidas e furiosas quando disse:

– Oh, a diferença de homem para homem! / A ti são devidos os

cuidados de mulher; / O meu idiota usurpa-me o corpo.

A campainha tocou, e já não era sem tempo. Saí a toda a pressa para

o corredor, com a pele arrepiada com a horrenda sensação de todos os

olhos em mim.

CENA 10

Abri caminho pelas escadas acima, quase arremessando um

estudante de filosofia por cima do corrimão, na pressa de me afastar do

Estúdio Cinco. Deixei cair um livro, mas não voltei atrás – alguém

pegaria nele; o meu nome estava escrito na capa. Quando cheguei à

galeria, abri a porta sem bater, fechei-a atrás de mim e encostei as

costas contra ela. Começou a formar-se um espirro sob a tala no meu

nariz, e por um momento não me atrevi a respirar, com receio da dor

iminente.

– Oliver? – Frederick espreitou de trás do quadro negro, com um

pano para apagar o giz na mão.


– Sim – disse eu, respirando fundo. – Desculpe, eu só... queria um

pouco de silêncio.

– É compreensível. Porque não te sentas, e eu sirvo-te um chá?

Acenei com a cabeça, com lágrimas nos olhos devido ao esforço de

conter o espirro, e atravessei a sala para olhar pela janela. Tudo estava

sombrio e cinzento, o lago desinteressante e sem brilho sob uma

camada fina de gelo. De tão longe e tão alto, parecia um espelho

embaciado, e imaginei Deus a estender o braço para limpar o vidro

com a manga.

– Mel? – perguntou Frederick. – Limão?

– Sim, por favor – respondi, com a mente distante da boca. James e

Meredith estavam emaranhados e a lutarem na minha cabeça. Sentia o

suor picar-me o couro cabeludo e entre as omoplatas. Apetecia-me

abrir a janela de par em par, deixar que uma rajada fria de vento do

inverno atenuasse a minha febre insidiosa, me gelasse todo até eu não

conseguir sentir nada.

Frederick trouxe-me a chávena e o pires, e engoli um gole de chá.

Escaldou-me a língua e o céu da boca e não senti nenhum sabor, nem

sequer o travo ácido do limão. Frederick olhava-me, intrigado. Tentei

sorrir-lhe, mas deve ter parecido mais um esgar, porque ele bateu no

lado do seu nariz e disse:

– Que tal está?

– Tenho comichão – respondi. Uma resposta impulsiva, mas bastante

sincera.

Primeiro ficou com um ar inexpressivo, mas depois riu-se.

– Tu, Oliver, és verdadeiramente invencível.

O meu sorriso estalou como gesso.

Ele voltou para junto do aparador, para continuar a servir o chá.

Encolhi os dedos a formar os punhos mais cerrados que conseguia,

combatendo o impulso de gritar ou, talvez, de soltar finalmente aquela

gargalhada louca, embora ainda sentisse a garganta em carne viva e

dorida da noite da overdose de Alexander.

Soou o segundo toque para a entrada e olhei para Frederick, que

estava a ver as horas no seu pequeno relógio de pulso de ouro.

– Estão todos atrasados? – perguntou ele.


– Não sei. – A minha voz soou rígida, quebradiça. – O Alexander

está na clínica, e a Wren regressa amanhã, mas...

– O resto?

– Não sei – repeti, sem conseguir conter um lampejo de pânico. –

Estavam todos na aula da Gwendolyn. – A pequena parte racional do

meu cérebro cuspiu uma lista de razões para o atraso deles. Tinham

ficado abalados depois da nossa lição anterior, era o mais provável.

Cansados. A não se sentirem bem. Com stress pós-traumático.

Frederick espreitou pela porta para o corredor, olhando primeiro

para um lado e depois para o outro, como uma criança a preparar-se

para atravessar a rua. Estendi o braço para o chá, com a esperança de

que me acalmasse os nervos, mas a chávena escapou-me das mãos

trémulas. Um líquido escaldante salpicou-me a pele – soltei um grito

de dor e a chávena estilhaçou-se no chão.

Frederick moveu-se mais depressa do que alguma vez o vira fazer,

rodando sobre os calcanhares junto à porta.

– Oliver – disse, num tom de surpresa que era quase reprovador.

– Desculpe! – disse eu. – Desculpe, escorregou e eu...

– Oliver – repetiu, fechando a porta atrás de si. – Não estou

preocupado com a chávena. – Estendeu a mão para um guardanapo que

estava em cima do aparador e trouxe-mo. Sequei as mãos o melhor que

podia enquanto elas tremiam imenso e eu respirava com uns soluços

curtos e estranhos, engolindo o ar saturado de pó de giz como se ele

fosse esgotar-se. Frederick sentou-se na cadeira que era normalmente

ocupada por James. – Olha para mim, por favor, Oliver – disse, num

tom severo mas suave. Ergui os olhos. – Ora bem. Conta-me o que se

passa.

– Toda a gente está... – Abanei a cabeça enquanto rasgava o

guardanapo com as pontas dos dedos queimadas e doridas. – Estamos

todos a ir-nos abaixo.

Sabia já nessa altura como a história se desenrolaria. O nosso

pequeno drama estava a precipitar-se rapidamente para a sua crise, o

seu clímax. O que se seguiria, quando chegássemos ao precipício?

Primeiro, a hora da verdade. Depois, a queda.


ATO V
PRÓLOGO

A subida do primeiro andar para a Torre demora séculos. A minha

ascensão é lenta, como a de um homem pelos degraus para a forca, e

Colborne segue-me em passos hesitantes. O cheiro daquele lugar –

madeiras velhas e livros velhos sob uma leve camada de pó – é

avassaladoramente familiar, embora não reparasse nele dez anos antes,

quando vivia aqui. A porta está entreaberta, como se um de nós, com

vinte e poucos anos, a tivesse deixado aberta na pressa de chegar ao

teatro, ao Estúdio Cinco, ao The Bore’s Head, a qualquer lugar. Por um

instante, pergunto-me se James está à espera no outro lado.

A porta abre-se silenciosamente quando a empurro – as suas

dobradiças não enferrujaram como eu. O quarto vazio fita-me quando

piso a soleira, preparado para que a dor da recordação me atinja como

um raio. Em vez disso, há apenas um ténue murmúrio, um suspiro

como o da mais ligeira brisa do outro lado da vidraça. Avanço.

Ainda vivem aqui estudantes, ou assim parece. A camada de poeira

nas estantes vazias tem apenas semanas, não anos. As camas estão sem

roupa, e parecem nuas e esqueléticas. A minha, a de James. Estendo a

mão para uma das colunas da cama, com a sua madeira em espiral lisa

como vidro. Solto o ar que não sabia que estava a conter nos pulmões.

O quarto é apenas um quarto.

Da janela entre o meu guarda-fatos e a cama de James – estreita,

uma fresta –, vê-se o lago como por um olho semicerrado. Se esticar o

pescoço, posso ver a ponta da doca, projetada sobre a água cor de

esmeralda do verão. Pergunto-me (estranhamente, pela primeira vez) se

o teria visto acontecer daqui, se não tivesse passado a noite da festa da

peça no andar abaixo deste, no quarto de Meredith. Estava demasiado

escuro, digo a mim mesmo. Não teria visto nada.

– Este era o teu quarto? – Por trás de mim, Colborne olha para o

ponto central onde todas as vigas convergem, como os raios de uma

roda. – Tu e o Farrow.

– Sim, eu e o James.
Os olhos de Colborne baixam-se lentamente e dão com o meu rosto.

Abana a cabeça.

– Vocês os dois. Nunca compreendi.

– Nem nós. Era mais fácil não compreender.

Ele debate-se, por um momento, para encontrar palavras.

– O que eram vocês? – pergunta finalmente. Soa rude, mas é só

exasperação perante a sua própria incapacidade de formular melhor a

pergunta.

– Éramos muitas coisas. Amigos, irmãos, parceiros no crime. – A

sua expressão ensombra-se, mas ignoro-a e continuo. – O James era

tudo o que eu queria desesperadamente ser e nunca consegui:

talentoso, inteligente, experiente e sofisticado. Filho único de uma

família que valorizava a arte acima da lógica e a paixão acima da paz e

sossego. Colei-me a ele como uma lapa desde o dia em que nos

conhecemos, com a esperança de que algum do seu brilho se

transferisse para mim.

– E ele? – pergunta Colborne. – Qual era o interesse dele por ti?

– É assim tão difícil acreditar que alguém pudesse simplesmente

gostar de mim, Joe?

– De maneira nenhuma. Já te disse mais de uma vez que gosto de ti,

absolutamente contra minha vontade.

– Sim – digo, sarcástico –, e isso nunca deixa de me dar uma

sensação calorosa.

Sorri, trocista.

– Não tens de responder à pergunta, mas não vou retirá-la.

– Muito bem. Isto sou eu a deitar-me a adivinhar, claro, mas penso

que o James gostava de mim pelas razões opostas às que me levavam a

gostar dele. Toda a gente me achava «simpático», mas o que queriam

dizer realmente era «ingénuo». Eu era ingénuo e impressionável e

chocantemente vulgar. Mas era suficientemente esperto para me

manter a par dele, e por isso ele permitia-mo.

Colborne lança-me um olhar estranho, a avaliar-me.

– Só isso?

– É claro que não – digo-lhe. – Fomos inseparáveis durante quatro

anos. Não é coisa que possa explicar-se em poucos minutos.


Franze a testa, enfia as mãos nos bolsos. Os meus olhos desviam-se

automaticamente para a sua anca, à procura do brilho dourado de um

crachá de polícia, antes de me lembrar que ele mudou de emprego.

Olho de novo para o seu rosto. Mais do que envelhecer, perdeu cor,

como acontece aos cães velhos.

– Sabes o que penso que era? – pergunta ele.

Ergo as sobrancelhas, intrigado. As pessoas quiseram muitas vezes

ouvir-me explicar a minha relação com James, o que parecia

inerentemente injusto, esperar que metade de uma equação

interpretasse a totalidade, mas ninguém alguma vez ofereceu o seu

próprio diagnóstico.

– Penso que ele estava enamorado de ti porque tu estavas tão

enamorado dele.

(«Enamorado». Reparo na palavra que ele opta por usar. Não me

parece totalmente correta, mas também não está inteiramente errada.)

– É possível – digo. – Nunca perguntei. Ele era meu amigo, muito

mais do que isso, a falar verdade, e isso bastava. Eu não precisava de

saber porquê.

Ficamos a fitar-nos num silêncio que só é embaraçoso para ele. Há

outra pergunta que está cheio de vontade de fazer, mas não a fará.

Aproxima-se tanto quanto pode, começa lentamente, talvez esperando

que eu atalhe e termine o pensamento por ele.

– Quando dizes «mais do que amigos»...

Espero.

– Sim?

Abandona a tentativa.

– Suponho que não importa, mas não posso deixar de me perguntar.

Faço-lhe um sorriso suficientemente neutro para, provavelmente, ele

continuar a questionar-se – quanto àquilo, pelo menos – por bastante

mais tempo. Se tivesse tido a coragem de perguntar, eu ter-lhe-ia

respondido. O meu encantamento com James (essa é a palavra, não

«enamoramento») transcendia qualquer noção de género. Colborne – o

comum homem casado, pai de dois filhos, não muito diferente do meu

pai a alguns respeitos – não me parece o tipo de homem capaz de

compreender isto. Nenhum homem é, talvez, até ter essa experiência e

a possibilidade de a negar deixar de ser plausível.


O que éramos nós então? Em dez anos, ainda não encontrei uma

palavra adequada para nos descrever.

CENA 1

Logo que os alunos do terceiro ano terminaram Os Dois Cavalheiros

de Verona, o cenário foi arrancado com uma pressa sem cerimónias.

Três dias depois, o cenário para Rei Lear já se apossara do palco, e

atravessámos o espaço transformado pela primeira vez. Durante o que

normalmente seria a aula de combate, entrámos pelas coxias de cena,

um a um, a arrastar os pés, insensíveis à perspetiva habitualmente

empolgante de um novo cenário. (Alexander já tivera alta da clínica

nessa altura. Era o último da fila – com olhos encovados, hirto e sem

vida, um cadáver ambulante. Parecia tão absolutamente destroçado que

eu não tinha tido ainda ânimo – ou talvez coragem – para o confrontar,

em relação fosse ao que fosse.)

– Aqui está – disse Camilo, ao acender as luzes. – Desta vez,

superaram todas as expectativas.

Por um precioso instante, esqueci a minha fadiga, o peso da

preocupação constante que se abatera sobre os meus ombros. Era como

entrar por acaso numa terra de sonho.

Delineado com fita-cola no chão, o cenário era enganadoramente

simples: um palco despido e a Ponte estreita a estender-se pela coxia

central como uma passarela. Mas o design artístico apoderava-se da

imaginação como uma droga. Um enorme espelho cobria todos os

centímetros quadrados do chão, refletindo as sombras profundas para

lá das cortinas. Um outro espelho erguia-se na parede de trás do palco

onde devia estar o pano de fundo, inclinado o suficiente para que

também ele refletisse apenas negrume e vazio – não o público.

Meredith foi a primeira a aventurar-se a pisar o palco, e eu combati um

impulso ridículo de lhe agarrar o braço e a puxar para trás. A sua

gémea idêntica apareceu de pernas para o ar, refletida no chão.

– Meu Deus – disse ela. – Como é que eles conseguiram isto?

É
– É um acrílico espelhado – explicou Camilo –, portanto não racha e

é perfeitamente seguro andar em cima dele. A equipa do guarda-roupa

está a colocar uns adesivos especiais nas solas dos nossos sapatos, para

não escorregarmos.

Meredith acenou com a cabeça, fitando uma queda vertical para – o

quê? Cautelosamente, Filippa entrou no palco e aproximou-se dela.

Depois Alexander, depois Wren, depois James. Eu fiquei à espera na

coxia de cena, indeciso.

– Uau – disse Wren, num tom de voz baixo e cheio de admiração. –

Como fica com as luzes do palco acesas?

– E se vos mostrasse? – disse Camilo, virando-se para o monitor que

se encontrava no canto do ponto. – Voilà.

Wren susteve a respiração quando as luzes se acenderam. Não eram

do amarelo quente e sufocante a que estávamos habituados, mas de um

branco ofuscante. Piscámos os olhos, cegos, até eles se habituarem.

Depois, Meredith apontou para cima e disse:

– Olhem!

Por cima das nossas cabeças, entre o espelho do pano de fundo e a

grandiosa cortina (onde normalmente havia apenas algumas traves e

longos emaranhados de cordas) pendia um milhão de minúsculos

cabos de fibra ótica a brilharem num azul-vivo como estrelas. O

espelho por baixo dos pés de todos transformara-se num céu noturno

infinito.

– Avança – disse-me Camilo. – Prometo que é seguro.

Saí da coxia de cena em passos lentos e pousei o pé, com receio de

que ele furasse simplesmente o chão e eu caísse de grande altura. Mas

o espelho estava ali, enganadoramente sólido. Avancei a medo para o

meio do palco, onde os meus colegas de turma se encontravam num

pequeno grupo compacto, olhando alternadamente para cima e para

baixo, os seus queixos descaídos com o espanto.

– Até fizeram constelações – disse Filippa. – Aquela é a do Dragão. –

Apontou, e James seguiu o seu olhar. Eu olhei na direção da Ponte,

onde outra fila de fios de fibra ótica pendia do teto no auditório.

– É uma autêntica trip – murmurou Alexander.

Por baixo de nós, os nossos reflexos estendiam-se para um abismo

estrelado. O estômago deu-me uma volta desagradável.


– Demorem o tempo que quiserem – disse Camilo. – Andem pelo

palco. Habituem-se a mover-se num chão tridimensional.

Os outros dispersaram, afastando-se de mim em silêncio, como

ondas na superfície do lago. Compreendi, sentindo um pequeno e

estranho baque por trás do meu plexo solar, o que aquilo me recordava:

o lago no meio do inverno, antes de gelar, com o vasto céu preto

refletido como um portal para outro universo. Fechei os olhos, a sentir-

me mareado.

As últimas semanas tinham passado numa roda-viva, com o tempo

por vezes a mover-se tão lentamente que era insuportável, outras vezes

com tal velocidade que era impossível recuperar o fôlego. Tornáramo-

nos uma pequena colónia de sofredores de insónia. Além das aulas e

dos ensaios, Wren raramente saía do quarto, mas o mais frequente era

a luz ficar acesa toda a noite. Alexander, depois de ter alta do hospital,

passava duas horas por semana com uma enfermeira e a psicóloga da

escola, e vivia sob a ameaça de expulsão se pisasse o risco mais uma

vez. No Castelo, era constantemente observado por Colin e Filippa

enquanto sofria os efeitos da privação de drogas. Eles sofriam com ele

– vigiando-o, preocupando-se, não dormindo. Eu dormia

intermitentemente, a horas estranhas, e nunca por muito tempo.

Quando passava a noite no andar de baixo com Meredith, ela ficava

deitada calma e calada ao meu lado, mas tinha sempre uma das mãos

pousada no meu braço ou nas minhas costas ou no meu peito enquanto

lia (por vezes durante horas sem nunca virar a página), talvez só para

se assegurar de que eu estava ali. Se eu não conseguia dormir num

quarto, escapulia-me para o outro. James era uma companhia incerta.

Por vezes, ficávamos deitados nas nossas respetivas camas, num

silêncio amistoso. Outras vezes, ele dava voltas sobre voltas e falava no

sono. Em outras noites, quando ele pensava que eu já estava a sonhar,

deslizava da cama, pegava no casaco e nos sapatos e desaparecia para a

escuridão lá fora. Nunca lhe perguntei aonde ia, com medo de que ele

não me convidasse a segui-lo.

Continuava a ver Richard, quase todas as noites, na maior parte das

vezes na cripta. Escorria sangue por baixo da porta do armário, e

quando o abria dava com Richard esmagado lá dentro, com gotas

vermelhas a pingarem-lhe do nariz e dos olhos e da boca. Mas ele já


não era o único ator no meu repertório onírico; Meredith e James

tinham-se juntado à companhia, por vezes desempenhando o papel de

meus amantes, outras de meus inimigos, outras ainda em cenas tão

caóticas que eu não conseguia saber qual dos dois papéis estavam a

representar. O pior de tudo era que, por vezes, chocavam os dois e

pareciam não me ver, pura e simplesmente. Nos meus dramas

subconscientes, eles, como a violência e a intimidade, tornavam-se de

algum modo intercambiáveis. Mais do que uma vez, acordei com um

sobressalto de culpa, sem conseguir lembrar-me de em que quarto

estava, de quem era a outra respiração que agitava suavemente o

silêncio.

Abri os olhos e o meu próprio reflexo vertiginoso fitou-me. Tinha as

faces encovadas, a pele às manchas com nódoas negras a

desvanecerem-se. Ergui a cabeça, olhei de uma pessoa amiga para

outra. Alexander aproximara-se do fim da Ponte e estava sentado a fitar

o auditório vazio. Meredith encontrava-se na beira do palco, a olhar

para o fosso de orquestra, como um suicida a pensar em saltar para a

morte. Wren, uns passos atrás dela, punha um pé cuidadosamente à

frente do outro, com os braços estendidos, como se andasse na corda

bamba. Filippa retirara-se para a coxia esquerda de cena; o seu rosto

estava virado para cima, para Camilo, que se inclinara mais perto dela,

para lhe segredar algo sem interromper o silêncio.

Encontrei James de pé encostado ao pano de fundo, com um braço

estendido, a palma da mão contra a palma da mão do seu reflexo, os

seus olhos de um azul de lousa na fria luz cósmica.

Mudei o peso do corpo de um pé para o outro e os meus sapatos

chiaram no espelho. James virou-se e olhou-me nos olhos. Mas eu

fiquei onde estava, receando avançar para ele, receando perder o pé em

terreno firme, soltar-me do que me ancorara e vogar para o vazio do

espaço – uma lua vagabunda, errante.

CENA 2
A nossa primeira representação de Rei Lear correu razoavelmente

bem. Os cartazes em branco e azul-escuro tinham aparecido em todas

as paredes livres no campus e na cidade. Uma versão mostrava

Frederick com um manto branco e Wren lânguida e imóvel a seus pés.

Por baixo disso:

NÃO TE METAS ENTRE O DRAGÃO E A SUA IRA

Na outra, James estava sozinho na Ponte, com a espada ao lado do

corpo, um ponto brilhante na escuridão. Algumas das palavras sábias

do Bobo encontravam-se espalhadas entre as estrelas refletidas debaixo

dele:

NÃO CONFIES NA MANSIDÃO DO LOBO

Houve casa cheia na estreia. Quando aparecemos todos em palco

para o aplauso final, o público levantou-se numa vaga oceânica, mas a

ovação não abafou os pequenos sons de dor que tinham persistido da

cena trágica final. Gwendolyn estava sentada na fila da frente ao lado

do reitor Holinshed, com lágrimas a brilharem nas faces e um lenço de

papel entre dois dedos por baixo do nariz. Regressámos aos camarins

num silêncio sufocante.

Planeáramos fazer a festa do elenco na sexta-feira à noite, como era

costume, embora nenhum de nós, eu tinha a certeza, sentisse realmente

vontade de fazer uma festa. Ao mesmo tempo, ansiávamos por fingir

que estava tudo bem – ou algo do género – e por o provar a todas as

pessoas. Colin, que morria no final do terceiro ato, encarregara-se de

correr de volta ao Castelo antes da última chamada a palco e aprontar

tudo para quando chegássemos. Numa demonstração de respeito algo

relaxado pelas recentes medidas drásticas tomadas pela escola em

relação ao consumo excessivo de bebidas alcoólicas, só compráramos

metade do álcool que normalmente compraríamos, e Filippa e Colin

deixaram claro a potenciais convidados que, se aparecesse qualquer

substância ilegal a menos de um quilómetro e meio do Castelo – ou de

Alexander –, o culpado ver-se-ia metido em sarilhos.


Demorámos algum tempo a despir-nos depois do espetáculo, em

parte porque as nossas indumentárias eram complicadas (tinham-nos

vestido num estilo Império neoclássico, em tons de azul e cinzento e

lilás), e em parte porque, todos com problemas de sono, nos sentíamos

demasiado cansados para nos mexermos mais rapidamente. James

mudou de roupa mais depressa do que eu ou Alexander, pendurou o

seu fato no varão e saiu do camarim sem uma palavra. Quando fomos

para o passadiço, não havia sinal dele.

– Já deve ter ido para o Castelo.

– Achas?

– Para onde mais iria?

– Sei lá? Já deixei de me perguntar.

A noite estava fria, com rajadas de um vento desapiedado a soprarem

do céu. Apertámos o casaco ao corpo e estugámos o passo, de cabeça

baixa. O vento era tão ruidoso que já estávamos quase à porta da frente

quando ouvimos a música. Ao invés da festa anterior, não havia luzes

no exterior – só um ténue clarão amarelado a infiltrar-se da cozinha.

No andar de cima, uma vela derretia no parapeito de uma das janelas

da biblioteca.

Entrámos e demos com a cozinha escassamente povoada. Só tinham

sido abertas duas garrafas grandes e a maior parte da comida estava

intocada.

– Que horas são? – perguntei.

– Já é tarde – disse Alexander. – Devia haver mais pessoas aqui.

Aceitámos algumas felicitações ditas em voz baixa pelo pequeno

grupo reunido junto à bancada da cozinha, antes de Wren e Filippa

virem da sala de jantar. Tinham vestido as suas roupas de festa, mas

pareciam estranhamente desbotadas: Filippa com um vestido justo de

um cinza prateado, Wren de cor-de-rosa pálido e gélido.

– Ei – disse Filippa, erguendo a voz só o suficiente para ser ouvida,

com o som e a batida da música que vinha da sala ao lado, que dava a

sensação de ser incongruentemente animada. – Apetece-vos uma

bebida?

Alexander: – Já agora. O que temos?

Wren: – Pouca coisa. Há vodka Stoli guardada lá em cima.

Eu: – Por mim, pode ser. Algum dos dois viu o James?
Abanaram a cabeça ao mesmo tempo.

Filippa: – Julgámos que ele voltava com vocês os dois.

Eu: – Pois. Nós também.

– É capaz de ter ido dar um dos seus passeios – sugeriu Wren. –

Acho que precisa de uns minutos para se acalmar depois de representar

o papel de Edmundo, sabes?

– Pois – disse eu de novo. – Suponho que sim.

Alexander pôs-se a olhar à volta, com o pescoço esticado para ver

por cima das cabeças das pessoas, e perguntou:

– Onde está o Colin?

– Na sala de jantar – respondeu Wren. – Está a desempenhar mais o

papel de anfitrião do que nós.

Filippa tocou no cotovelo de Alexander.

– Anda daí, ele tem estado à tua espera – disse, e desapareceram

juntos para a sala de jantar.

Wren fez-me um sorriso pálido. Imitei-o sem convicção e disse:

– Suponho que não viste a Meredith.

– Está no jardim, acho eu.

– Ficas bem se te deixar sozinha?

Acenou com a cabeça.

– Fico perfeitamente.

Deixei-a, com um pouco de relutância, e escapuli-me para o exterior.

Mais uma vez, Meredith estava sentada em cima da mesa. Seria uma

visão familiar, reminescente daquela noite de novembro de má

memória, se não fosse a sensação de vazio estéril do jardim. O vento

rodopiava à minha volta, enfiava-se-me por baixo da camisa e do

casaco e provocava-me pele de galinha por todo o corpo. Meredith

estava corcovada em cima da mesa, com os cotovelos encostados ao

corpo e os joelhos unidos com força. Vestia novamente de preto, mas

parecia mais pronta para um velório do que para uma festa. O cabelo

esvoaçava-lhe num halo castanho-avermelhado à volta do rosto.

Quando atravessei o jardim, os ramos das árvores restolharam e

agitaram-se juntos, um suave estrépito sibilante nas sombras. A música

arrastava-se em cadências do Castelo, abafada pelo vento num

momento, transportada por entre as árvores como o aroma fumado e

doce do incenso no seguinte. Sentei-me na mesa, ao lado de Meredith,


e o seu cabelo prendeu-se-lhe à volta dos dedos quando ela o afastou

do rosto. Inicialmente, era difícil ver no escuro, mas a pele macia sob

os seus olhos estava brilhante, e havia pequenos borrões pretos por

baixo das suas pestanas. Uma boneca de trapos. Respirava rapidamente

pelo nariz, mas, fora isso, mantinha-se em silêncio. Não olhara para

mim desde que eu pusera o pé no jardim, e, como eu não sabia se

tocar-lhe seria reconfortante ou indesejado, não fiz nada.

– Estás bem? – perguntei, quando o vento amainou por um instante.

A mesma pergunta que fizera a James na Torre um mês antes; a

mesma, porque eu já sabia a resposta.

– Nem um pouquinho.

– Posso ajudar? – Olhei de relance para as minhas mãos, pousadas

moles e inúteis no meu colo. – Eu continuo... Quero ajudar.

O vento levantou-se de novo, atirou algumas madeixas do cabelo

dela para o meu rosto. Roçou-me os lábios, fez-me cócegas no nariz. O

seu perfume já me era familiar, âmbar e jasmim. Senti uma dor fundo

no peito. A rajada de vento passou, e o cabelo dela caiu-lhe de novo à

volta dos ombros. Ela pôs-se a mexer no bordo do copo com as unhas

curtas, roídas, o que tentara esconder com verniz da cor do vinho.

– Oliver – disse, numa voz tensa e queixosa –, tenho de te contar

uma coisa.

A dor no meu peito tornou-se mais aguda, a crosta da ferida na

minha alma ameaçava abrir-se a meio.

– OK – disse eu. Uma só lágrima soltou-se e arrastou uma linha de

preto de aguarela pela sua face. Senti vontade de lha limpar, de lhe

beijar as pálpebras, de lhe pegar nas mãos e as aquecer entre as

minhas. Em vez disso, esperei.

Ela ergueu a cabeça de repente, limpou as pálpebras inferiores e

olhou-me de lado.

– Sabes, falamos sobre isso amanhã.

– A sério? – disse eu. – Eu não...

Senti a mão dela na parte interior do meu joelho.

– Amanhã.

– Está bem. Se tens a certeza.

– Tenho a certeza – disse ela. – Vamos tentar divertir-nos um pouco

esta noite.
A dor desvaneceu-se, tornando-se uma sensação de náusea e tristeza

que se afundou no meu estômago.

– Está bem. – Apontei para o canto do meu olho. – Queres ir...?

– Sim. Deixa-me recompor-me e depois venho procurar-te. – Passou-

me para as mãos o seu copo quase vazio. – Vais-me buscar uma

bebida?

– Isso ajuda?

– Mal não faz.

Deslizou da mesa, baixando a mão do meu joelho. Fiquei a olhar

para a sua silhueta enquanto ela atravessava o jardim, com o vento a

levantar-se de novo e a fazer esvoaçar-lhe o cabelo, arrastando-o atrás

dela. Quando desapareceu para dentro de casa, as engrenagens do meu

cérebro começaram a mover-se, lentamente no princípio. O que queria

ela contar-me, tão tremendo que lhe provocara lágrimas, a ela, uma

mulher feita de mármore?

Torturara-me perguntando-me se o meu desejo egoísta de tentar

conquistá-la com impunidade teria sido um fator mais forte do que o

medo de Richard quando concordei em deixá-lo morrer. Mas nunca

pensara na possibilidade de que Meredith fosse culpada de algo

igualmente mau – ou pior. Os últimos seis meses esfarparam-se em

pequenos fragmentos aguçados de memória: a luz do lume a incidir

nos dentes de Meredith quando ela se ria, a areia e a água e um lençol

molhado colado ao seu corpo na praia. Ela, a cair no palco, com o

sangue a escorrer-lhe pelo braço para fora da manga. Os braços rígidos

ao lado do corpo enquanto berrava com Richard na cozinha. Os dedos

dele enclavinhados no cabelo dela. Um pedaço de tecido

ensanguentado na lareira. Teria sido ela? Deixara-me a dormir no seu

quarto, saíra à socapa do Castelo, descera à doca e matara Richard,

tendo-se depois despido e voltado a meter-se na cama comigo? Sentia-

me estonteado só de pensar naquilo. Mas era absurdo, quase

impossível. Eu teria acordado, com certeza.

Mais uma imagem, mais um lampejo, meio sonho, meio recordação,

apareceu espontaneamente no meu cérebro. O Estúdio Cinco. Ela.

James. Fechei os olhos com força e abanei a cabeça para dissolver a

imagem, apagá-la como um desenho na areia seca. Numa tentativa de

me distrair, levei o seu copo aos lábios, para saborear as gotas que
restavam no fundo. Vodka. Desci da mesa e entrei pela porta das

traseiras no momento em que o vento recomeçava a uivar.

Vozes e música enchiam o Castelo, presas ali pela borrasca que

varria o exterior. Na cozinha, Wren e Colin conversavam com os

alunos do segundo ano que entravam na peça. Filippa e Alexander não

se viam em lado nenhum, e também Meredith tinha desaparecido.

Esgueirei-me entre alguns alunos do primeiro ano que falavam com

pouco entusiasmo sobre os seus planos para o verão e dirigi-me para as

escadas. Wren dissera que a vodka Stoli estava guardada no andar de

cima, mas não especificara onde. Não no quarto de Alexander, que fora

declarado zona livre de substâncias psicotrópicas. A biblioteca parecia

o lugar mais provável. Entrei à socapa e parei, surpreendido por não a

encontrar vazia.

– James.

Estava de pé em cima da mesa, de costas voltadas para mim e com

as mãos nos bolsos. Abrira a janela e o vento soprava para dentro da

sala, fazendo esvoaçar as fraldas da sua camisa, que ele não se dera ao

trabalho de abotoar. Havia uma garrafa de vodka na mesa ao seu lado,

mas não vi nenhum copo.

– O que estás a fazer? – perguntei. Todas as velas (que normalmente

nunca acendíamos, dado o número de livros na biblioteca) estavam a

arder e a bruxulear ao sabor do vento, e lançavam sombras que se

perseguiam pelas prateleiras e pelo chão e o teto. Dava a ideia de que

ele estava a fazer uma espécie de sessão espírita.

– Sabes que podes ver a casa do barco, se te puseres aqui em cima.

– Ótimo – disse eu. – Desces daí? Estás a pôr-me nervoso.

Virou-se e desceu da mesa, ainda com as mãos nos bolsos. Aterrou

com uma facilidade surpreendente para alguém que tinha bebido meio

litro de vodka em menos de uma hora, e depois atravessou lentamente

a sala até ficar mesmo em frente a mim. Não tinha lavado a cara desde

o espetáculo – o pó pálido da maquilhagem e o risco esfumado junto à

raiz das pestanas da pálpebra inferior davam a impressão de que os

seus olhos estavam encovados muito dentro do crânio.

– Irmão, uma palavra – disse ele, com um sorriso estranho, torto e

lascivo.

– OK, mas podemos fechar a janela primeiro?


– Fechai as portas, senhor; está uma noite terrível.

Contornei-o, fui à janela e fechei-a.

– Estás estranho.

– Com este frio vamos todos dar em bobos e doidos.

– Para com isso. Não consigo compreender-te.

Ele suspirou e disse:

– Elas mandam-me chicotear por dizer a verdade, tu mandas-me

chicotear por mentir, e às vezes sou chicoteado por ficar calado.

– O que se passa contigo?

– Mal, sinto-me mal!

– É mais provável que estejas bêbedo.

– Por força da obediência à influência dos planetas! – disse ele,

insistentemente. – Aí vem ele, tal qual a catástrofe da velha comédia. –

Subiu de novo para a mesa e sentou-se com as pernas a penderem do

lado. Estava mais embriagado do que alguma vez o vira, e, sem saber

que mais fazer, decidi alinhar naquilo.

– Então, irmão Edmundo? – perguntei. – Em que séria

contemplação andais metido?

– Ando a pensar num presságio que li um destes dias – disse ele. – A

morte, as privações, a dissolução de velhas amizades, ameaças e

maldições, exílio de amigos, rompimentos nupciais e não sei que mais.

– Incomodais-vos com isso?

Avançou vários versos.

– Se sairdes, ide armado.

– Armado, irmão?

– Aconselho-vos da melhor maneira. Ide armado. Não seja eu um

homem honesto.

Esperei pelo «se» que devia ter-se seguido, mas não veio. Voltou a

saltar alguns versos, sem lógica.

– Contei-vos aquilo que vi e ouvi; mas de forma vaga, nada que se

pareça com o horror de tudo isso. – Saltou da mesa e correu para a

janela, abriu-a de novo. – Ele vem para cá, agora à noite, à pressa! –

Agarrou o parapeito da janela com os dedos, cujos nós ficaram

brancos, inclinou-se para fora tanto quanto podia, com os olhos a

saltitarem para a frente e para trás por entre os ramos das árvores

esbulhados como ossos. – Ele estava aqui no escuro, de espada afiada.


Pousei a mão no seu ombro, receando que ele pudesse cair se se

inclinasse muito mais, e disse:

– Mas onde está ele? – A quem estaria a referir-se? A Richard? Não

estava apenas a recitar as palavras da peça, eu via-o pela maneira como

respirava, de olhar fixo, sem pestanejar.

Passou a mão pelo rosto e disse, arquejando:

– Vede, estou a sangrar. – Brandiu a palma da mão, encostou-ma ao

rosto. Enxotei-a, com a paciência a esgotar-se rapidamente.

– Onde está o vilão, Edmundo?

Ele sorriu-me, tresloucado, e repetiu:

– Onde está o vilão, Edmundo? Uma pausa, para pontuação, sim?

Mas não a do dramaturgo... as vírgulas são obra do tipógrafo. Onde

está o vilão Edmundo? Aqui, senhor, mas não o incomodeis; perdeu o

juízo.

– Estás a assustar-me – disse eu. – Deixa-te disso.

Abanou a cabeça, com o sorriso a desvanecer-se até desaparecer.

– Por favor, ide – disse ele.

– James, fala comigo!

Empurrou-me, fazendo-me recuar um passo.

– Por favor, ponde-vos a caminho. Estou ao vosso serviço neste

assunto.

Empurrou-me para passar, dirigindo-se rapidamente para a porta.

Corri atrás dele, agarrei-lhe o braço e puxei-o para que me olhasse de

frente.

– James! Para!

– Parai! Parai! Ninguém me ajuda? O inimigo está à vista. – Estava

já a berrar, e bateu com a mão com força contra o peito nu, deixando

uma marca vermelha assanhada. Eu esforçava-me por lhe segurar o

outro pulso. – A roda deu a volta completa; eis-me aqui!

– James! – Sacudi-lhe o braço. – Do que estás a falar? O que se

passa?

– Nada menos do que tudo... e mais ainda, muito mais; o tempo há

de revelá-lo! – Soltou o braço e alisou a frente da camisa, como se

tentasse limpar as mãos. – Um pouco de sangue dará a ideia / De que

o meu ato foi mais bravo.


– Estás bêbedo. Não estás a fazer sentido nenhum – decidi, não

querendo crer no contrário. – Acalma-te só e nós...

Abanou a cabeça sombriamente.

– Já vi bêbedos / Fazerem mais do que isto por piada. – Recuou um

passo na direção das escadas.

– James! – Estendi novamente a mão para o seu braço, mas ele foi

mais rápido, com uma mão disparada para derrubar um par de velas da

prateleira mais próxima. Praguejei e saltei, a evitá-las.

– Archotes! Archotes! Adeus.

Correu para as escadas e desapareceu. Praguejei novamente e calquei

as velas, a apagá-las. O canto de um fac-símile de um fólio que estava

na prateleira de baixo tinha pegado fogo. Arranquei-o de debaixo dos

outros e apaguei as chamas com o canto do tapete. Quando ficou

extinto, sentei-me nos calcanhares e passei a manga pela testa, que

nessa altura estava com gotas de suor, apesar do frio ar de março que

soprava da janela.

– Mas que merda. Mas que merda – murmurei, e, a tremer, voltei a

pôr-me de pé. Atravessei a sala e fechei a janela, aferrolhei-a, e depois

virei-me e olhei para a garrafa de vodka em cima da mesa. Estava dois

terços vazia. Meredith e Wren e Filippa tinham bebido parte, com

certeza, mas estavam sóbrias. James nunca fora de beber muito. Até

tinha vomitado na festa da peça Júlio César, mas... mas o quê? Não

tinha bebido nem metade dessa vez.

As suas palavras desconexas ecoavam na sala vazia. As divagações

de um ator, disse para comigo. O Método com um toque de loucura.

Sem nenhum significado. Levei a garrafa aos lábios. A vodka queimou-

me a língua, mas engoli-a de uma só vez. Uma saliva aguada juntou-se

na minha garganta como se eu próprio estivesse a preparar-me para

vomitar.

Apaguei as velas a toda a pressa e depois comecei a descer as

escadas, com a garrafa na mão, decidido a encontrar James. Fá-lo-ia

marchar lá para fora, para o ar revigorante, e mantê-lo-ia ali até ele

ficar suficientemente sóbrio para fazer alguma espécie de sentido.

Quase esbarrei em Filippa ao fundo das escadas.

– Ia agora mesmo lá acima buscar a vodka – disse ela. – Meu Deus,

bebeste isso tudo sozinho?


Abanei a cabeça.

– Foi o James. Onde é que ele está?

– Meu Deus, não sei. Passou pela cozinha há um minuto.

– Certo – disse eu.

Agarrou-me a manga quando tentei passar por ela.

– Oliver, que se passa?

– Não sei. O James está descontrolado. Vou ver se consigo encontrá-

lo e descobrir que diabo se passa. Tu fica de olho nos outros.

– Sim – disse ela. – Sim, claro.

Meti a garrafa de vodka na mão dela.

– Esconde isso – disse. – Decididamente, é demasiado tarde para o

James e talvez seja demasiado tarde para a Meredith, mas mantém a

Wren e o Alexander sóbrios, se puderes. Tenho um pressentimento

estranho em relação a esta noite.

– Está bem – disse ela. – Olha, tem cuidado.

– Com o quê?

– Com o James. – Encolheu os ombros. – Tu próprio disseste que ele

não está em si. Simplesmente... lembra-te do que aconteceu na última

vez.

Fitei-a até por fim compreender que se referia ao meu nariz partido.

– Pois – disse. – Obrigado, Pip.

Passei por ela, atravessei o corredor e entrei na cozinha. As únicas

pessoas que estavam lá eram alunos do terceiro ano, na sua maioria do

curso de teatro. Pararam de falar e olharam para mim quando entrei.

Colin não se encontrava entre eles, portanto dirigi-me ao grupo em

geral, levantando a voz só o suficiente para a sobrepor à música da sala

ao lado.

– Algum de vocês viu o James?

Nove dos dez abanaram a cabeça, mas a última apontou para a porta

da frente e disse:

– Foi por ali. À casa de banho, ao que parece.

– Obrigado. – Acenei-lhe com a cabeça e segui o caminho indicado.

O átrio estava vazio e às escuras. O vento fustigava a porta da frente,

abanava as vidraças do postigo. A porta da casa de banho estava

fechada, mas entrevia-se uma luz por baixo, e abri-a sem bater.
A cena ali era ainda mais estranha, mais perturbadora do que a da

biblioteca. James estava debruçado sobre o lavatório, com o peso

apoiado nos punhos, os nós da mão direita feridos e a sangrarem. Uma

enorme rachadura no espelho estendia-se em linhas irregulares de

canto a canto, e um longo fio escuro na bancada conduzia à ponta de

uma escova de rímel. O tubo tinha caído ao chão e brilhava contra o

rodapé, um lampejo de púrpura metálico. O rímel de Meredith.

– James, que diabo – disse eu, a sentir alfinetadas pela espinha

abaixo. Ergueu a cabeça de repente, como se não tivesse ouvido a

porta, como se não soubesse que eu entrara. – Partiste o espelho?

Olhou-o de relance e depois fitou-me.

– Dá azar.

– Não sei o que se passa, mas tens de falar comigo – disse eu,

consciente dos batimentos da minha pulsação nos ouvidos e da batida

desencontrada da música que vinha do outro lado da parede,

persistente, desimpedida. – Só quero ajudar. Deixa-me ajudar, OK?

Tremia-lhe o lábio e ele meteu-o por trás dos dentes, mas os braços

também lhe tremiam, como se não conseguissem suportar o seu peso.

Uma rachadura dividia o seu rosto em quatro partes no espelho.

Abanou a cabeça.

– Não.

– Vá lá. Podes contar-me. Mesmo que seja grave, mesmo que seja

realmente grave. Arranjamos maneira de resolver a coisa. – Apercebi-

me de que estava a implorar e engoli em seco com força. – James, por

favor.

– Não. – Tentou passar por mim, mas barrei-lhe o caminho. – Deixa-

me ir!

– James! Espera...

Arremessou o seu peso contra mim, ebriamente, pesadamente.

Segurei-me com um braço contra a porta, agarrei-o pelos ombros com

o outro. Ele empurrou com mais força quando sentiu a minha mão em

si, e eu esmaguei-o contra mim, para o impedir de me desviar para o

lado com um soco ou de nos derrubar aos dois.

– Solta-me! – disse ele, com a voz abafada por ter o rosto preso na

dobra do meu braço. Debateu-se contra mim por mais um momento,

mas eu tinha-o apertado de uma maneira estranhamente forte, com os


seus braços presos entre nós os dois e as mãos a empurrarem em vão o

meu peito. Parecia tão pequeno, de repente. Quão fácil me teria sido

dominá-lo.

– Só quando falares comigo. – Senti um aperto na garganta, e receei

chorar, até me dar conta de que James já chorava, soluçava até,

inspirando e expirando à toa enormes golfadas de ar que faziam os

seus ombros estremecer e sacudir-se sob as minhas mãos. Balançámo-

nos no que se tornara de algum modo um abraço até ele erguer a

cabeça, dar com o seu rosto demasiado perto do meu. Contorceu-se

para se afastar de mim e depois cambaleou para o átrio e disse, com a

fúria petulante de uma criança:

– Não me sigas, Oliver.

Mas persegui-o cegamente, como um idiota, como um homem num

sonho que se sente compelido por uma grande força misteriosa a

avançar. Perdi-o na chusma de pessoas que dançavam na sala, com as

luzes difusas e indistintas, azuis e roxas, sombras elétricas a moverem-

se estonteantes de parede em parede. Abri caminho a tatear por entre

as pessoas, à procura do rosto de James naquela massa indistinta.

Vislumbrei-o quando ele se esgueirou para a cozinha e segui-o de

perto, quase caindo com a pressa de o alcançar.

Wren, Colin, Alexander e Filippa tinham-se juntado aos estudantes

do terceiro ano. James olhou por cima do ombro, viu-me e depois

agarrou o braço de Wren e puxou-o, a afastá-la dos outros.

– James! – guinchou ela, aos tropeções. – O que estás a...

Ele já estava a arrastá-la para fora da cozinha, na direção da escada

da torre.

– Não...! – exclamei, mas ele falou mais alto.

– Wren, vem comigo para a cama, por favor.

Ela estacou, e nós todos ficámos paralisados à sua volta, a assistir.

Mas ela só via James. Os seus lábios moveram-se sem produzir

nenhum som, e depois gaguejou:

– Sim.

Ele olhou para mim por cima da cabeça dela, com algo estranho,

amargo e vingativo na sua expressão, mas só por uma fração de

segundo. De seguida, desapareceu de vista, puxando-a para fora da


cozinha. Incrédulo, tentei segui-los, mas Alexander agarrou-me o

ombro.

– Oliver, não – disse. – Desta vez não.

Eu, ele e Filippa ficámos a fitar-nos, enquanto os estudantes do

terceiro ano, em silêncio, nos fitavam a nós. A música continuava em

vagas atrás de nós, indiferente, e o vento rugia lá fora. Fiquei

paralisado no meio da cozinha, demasiado consternado para falar ou

me mover. Para reparar, no princípio, que Meredith não estava ali.

CENA 3

Acordei sozinho no quarto de Filippa. Depois de James desaparecer

na Torre com Wren, eu passara a noite a vaguear estonteado pelo

Castelo, a perguntar-me aonde Meredith teria ido e mais preocupado

do que confessaria a alguém. Quando por fim a casa se esvaziou e

todos os outros estavam já na cama, cheguei à conclusão alarmante de

que ela não ia voltar. Às três e meia fui bater à porta de Filippa. Ela

abriu-a, vestida com uma camisa de flanela de um tamanho demasiado

grande e com meias de lã nos pés puxadas até meio da barriga das

pernas.

– Não posso ir para a Torre – disse-lhe. – A Meredith não está. Não

quero dormir sozinho. – Por fim, compreendia essa sensação.

Ela abriu a porta, aconchegou-me a roupa na cama e enroscou-se ao

meu lado, tudo sem dizer uma palavra. Quando tremi, aproximou-se

mais, passou um braço pelo lado do meu corpo e adormeceu com o

queixo empoleirado no meu ombro. Escutei a sua respiração e senti os

batimentos do seu coração contra as minhas costas e tentei levar-me a

pensar que, quando acordássemos, talvez tudo estivesse de volta à

normalidade. Mas a que tipo de normalidade regressaríamos?

De manhã, todos os outros tinham já saído. Eu não sabia para onde,

mas contariam voltar para casa, para um Castelo limpo e esfregado,

com todos os sinais da festa apagados. Eu precisava de distração como

de uma droga, algo que ocupasse e esgotasse a minha mente para a

impedir de vaguear no labirinto da memória da noite anterior.


Portanto, passei horas de joelhos, tonto por causa do cheiro da lixívia,

com as mãos quase em carne viva de tanto esfregar. Parecia-me que o

Castelo não era limpo em condições há anos, e ataquei a sujidade que

se entranhara nas ranhuras entre as traves do soalho, dominado pela

ideia de que seria capaz de purgar aquele lugar, batizá-lo, absolvê-lo

dos seus pecados e voltar a torná-lo novo.

Da cozinha passei para a casa de banho do andar de baixo, para a

sala de jantar, para o átrio. Não havia nada que pudesse fazer quanto ao

espelho partido – teria de contactar o pessoal da manutenção no Hall –,

mas limpei a mancha vermelha do sangue de James, o risco negro do

rímel de Meredith. O tubo ainda estava no chão. Peguei nele e meti-o

ao bolso, perguntando-me quando teria a oportunidade de lho devolver.

Fui subindo de gatas as escadas, com um pano e cera na mão, e

quando cheguei ao segundo andar já me doíam os joelhos. Como não

consegui remediar a marca de queimadura no tapete da biblioteca,

deixei-o como estava. Limpei a casa de banho, passei a esfregona no

corredor, limpei os vidros das janelas dos quartos e arrumei o que

podia sem mexer nos pertences das pessoas. Fiz a cama no quarto de

Filippa. Ver a cama de Wren, lisa e sem sinais de se ter dormido nela,

fez-me sentir um nó apertado no estômago. Fechei a porta do seu

quarto, não me atrevi a entrar. O quarto de Alexander estava num tal

caos que não havia muita coisa que eu pudesse fazer. Dei uma vista de

olhos debaixo da cama e nas gavetas, à procura de equipamento de

drogas, mas não encontrei nada. (Ele aprendera a lição, esperava eu.) O

quarto de Meredith estava exatamente como o deixáramos,

atravancado, mas não caótico: livros empilhados em cima da

secretária, copos de vinho vazios na mesa de cabeceira, roupas atiradas

aos pés da cama. Não vi o vestido que trazia na noite anterior.

Quando voltei a sair, a porta do quarto de Richard parecia olhar-me

lá do fundo do corredor. Alguém a fechara depois de ele morrer, e,

tanto quanto eu sabia, nenhum de nós a abrira desde então. Pisquei os

olhos, não conseguindo sequer lembrar-me de como era o quarto. Sem

me dar conta de que tinha tomado a decisão de avançar, dei comigo a

descer o corredor, a desandar a maçaneta. A porta abriu-se sem um

protesto, sem sequer um rangido. A luz do fim do dia, com laivos cor-

de-rosa do pôr do Sol, entrava pela janela e jazia, decadente, sobre a


cama. O resto do quarto encontrava-se numa sombra cinzento-azulada,

a aguardar pacientemente que a noite caísse. Muitos dos pertences dele

ainda se encontravam ali; os livros de capas duras, nus sem as suas

sobrecapas, estavam empilhados na prateleira por cima da cama, e o

seu relógio de pulso (sabia, sem querer saber, que Meredith lho dera

como presente de anos no terceiro ano) fora abandonado em cima da

secretária. Um par de luvas de boxe de couro castanho estava

pendurado sobre um canto da porta do guarda-fatos, e dentro dele via-

se uma fila de cabides, com as camisolas interiores brancas de que ele

tanto gostava penduradas ao lado de camisas com botões que, essas

sim, poderiam engelhar-se. Um afeto antigo e esquecido despertou em

mim e desviei o olhar, à procura de algo que me recordasse da razão

por que seria um tolo se, por um minuto que fosse, tivesse pena de ele

ter morrido. Uma coleção de peças de xadrez de madeira estava

disposta no parapeito da janela como uma fila de soldados a aguardar

ordens. Estavam todas de pé exceto os cavalos brancos, um dos quais

tinha caído de lado. O outro faltava no lugar onde deveria encontrar-se.

Pensando que poderia ter caído do parapeito, acocorei-me para

espreitar por baixo da cama e senti gritar a vozinha abafada da minha

consciência. Havia um par de sapatos pousados à toa onde ele os

descalçara pela última vez, com os atacadores puxados e emaranhados.

Conhecia-o suficientemente bem para saber que ele nunca os deixaria

assim, se pensasse que não ia voltar.

O desgosto apoderou-se de mim tão de repente que pensei que ia

desmaiar. Ele estava ali, naquele quarto onde tentáramos fechá-lo,

arredá-lo da nossa vista, com todos os nossos pecados mortais para lhe

fazer companhia. Pus-me de pé a cambalear, saí às cegas para o

corredor e fechei a porta com força.

Subi as escadas para a Torre, sem saber o que encontraria, mas

desesperado por pôr tanta distância entre mim e o quarto de Richard

quanto possível. À primeira vista, parecia ter o aspeto de sempre, e por

um momento fiquei vacilante à porta, esperando sentir-me

reconfortado com a sua familiaridade domesticada. O nosso pequeno

quarto no sótão, com as suas duas camas, duas estantes, dois guarda-

fatos. Quando senti as pernas suficientemente firmes, entrei. A minha

cama toda desarranjada, fi-la com um cuidado meticuloso, a adiar o


momento de cruzar para o lado do quarto que pertencia a James.

Quando já não conseguia encontrar nada para endireitar, nada para

dobrar, nada para esconder numa gaveta ou enfiar fora de vista no

guarda-fatos, passei do meu canto para o dele.

Endireitei os livros, sacudi o pó das cortinas, apanhei um lápis que

tinha rolado de uma prateleira para o chão. James era infalivelmente

arrumado, sempre fora, e não havia muito para me manter ocupado.

Finalmente, estendi a mão para a colcha da cama e estiquei-a e ao

lençol por baixo sobre o colchão, tentando não pensar nele com Wren e

em como cada ruga e vinco tinham sido feitos.

Uma ponta do lençol não estava enfiada debaixo do colchão. Baixei-

me para a endireitar, mas parei quando senti algo inesperadamente

macio entre os dedos. Ao levantar a mão, um tufo de algo branco voou

da palma da minha mão e voltou a pousar no chão. Soltei a ponta da

colcha da cama de James e dei com mais uns tufos de algodão à volta

de uma das pernas da cama, como se tivessem sido gradualmente

varridos para ali por pés passando descuidados. Dobrei a manta mais

para trás. Se houvesse percevejos ou uma mola do colchão tivesse

furado o forro, eu teria de acrescentar um colchão novo à minha lista

de pedidos a entregar ao pessoal da manutenção.

Puxei o lençol de baixo para o soltar do colchão. Havia um rasgão

irregular na ponta do colchão, como uma boca a sorrir, com uns quinze

centímetros de comprimento. Verifiquei se havia um prego nos pés da

cama, uma farpa espetada, mas não encontrei nada que pudesse ter

rasgado o tecido do forro. A abertura parecia rir-se para mim, e só me

apercebi de que me tinha aproximado quando vi uma mancha vermelha

estreita na borda do rasgão, como um traço de batom. Sentei-me a fitar

o colchão por um momento, como se tivesse ficado fundido àquele

lugar. De seguida, meti a mão no buraco.

Tateei por entre um emaranhado de molas e algodão e espuma até

sentir algo severamente, indiscutivelmente sólido. Não saía facilmente

– algo na ponta o prendia – mas, com um bom puxão, soltei-o e caiu ao

chão com um ruído. Parecia alarmantemente errado, ali tombado –

anacrónico, quase gótico, fora do seu tempo, de uma era mais

tenebrosa. Lá no fundo do meu cérebro, sabia o que era, na realidade:

um velho gancho de barco, curvado numa ponta como uma garra,


tirado da prateleira de ferramentas há muito esquecida na parte de trás

da casa do barco. A garra e o espeto tinham sido limpos à pressa, mas

o sangue ainda se agarrava às fissuras, estalado e a lascar como

ferrugem.

Os meus pulmões lutavam por ar. Peguei no gancho do barco do

chão e fugi do quarto, com uma mão a tapar a boca, receando vomitar

o coração no soalho.

CENA 4

Desatei a correr pela floresta para o FAB, como algumas semanas

antes, nessa altura com um pedaço de tecido na minha mão fechada.

Corria com o gancho do barco ao lado do corpo, como uma lança, e os

meus pés espezinhavam o solo. Quando o edifício ficou à vista, dei-me

conta do meu erro – esquecera-me das horas. Já havia pessoas a

fazerem fila no exterior para ver o espetáculo, vestidas a preceito, a

conversarem e a rirem e com o programa em papel acetinado na mão.

Acocorei-me e continuei pé ante pé ao longo do fundo da colina, de

cabeça baixa.

A porta lateral que dava para as escadas abriu-se com um rangido.

Segurei-a quando ia fechar-se com estrondo nas minhas costas, deixei

que se fechasse mais silenciosamente e depois desci as escadas para a

cave, tão depressa que quase caí. O suor picava-me o rosto quando abri

caminho à cotovelada por entre as peças de mobiliário amontoadas na

cripta. Depois de três minutos arrepiantes, encontrei de novo o espaço

com os armários, o cadeado aberto a fulminar-me como um olho de

Cíclope. Arrastei a mesa de cavalete para o lado, removi o cadeado e

abri a porta para trás. A caneca estava ali, intocada, com aquele pedaço

culposo de tecido enfiado no fundo, qual guardanapo amarrotado.

Atirei o gancho do barco para dentro do cacifo, empurrei a porta com

força e pontapeei-a até ela encaixar, sem ligar ao ruído que estava a

fazer. O cadeado raspou ao deslizar de novo pelo orifício, e enfiei a

lingueta no buraco sem hesitar. Cambaleei para trás, fitei a porta por

um momento e de seguida voltei aos tropeções para a escada, com o


pânico a subir das solas dos pés ao cocuruto da cabeça num fluxo

quente, delirante.

Voei pelos dois corredores nos bastidores, com o estrépito e os

murmúrios do público a infiltrarem-se pelas paredes. No passadiço,

dois alunos do segundo ano passaram por mim a toda a pressa para

chegar às coxias de cena, apontando e segredando quando segui, veloz.

Abri a porta do camarim com força e todas as pessoas olharam para

mim ao mesmo tempo.

– Onde raio é que estiveste? – quis saber Alexander.

– Desculpem! – disse eu. – Eu só... explico mais tarde. Onde está a

minha indumentária?

– Bem, o Timothy tem-na vestida, porque não sabíamos onde

estavas, porra!

Rodei nos calcanhares e dei com Timothy (um aluno do segundo ano

que normalmente desempenhava o papel do criado amotinado de

Cornwall) já de pé, com ar de quem vai vomitar e o texto da peça na

mão.

– Merda, desculpa lá – disse eu. – Tim, dá-me isso.

– Graças a Deus – disse ele. – Oh, graças a Nosso Senhor Jesus

Cristo, merda, estava a tentar aprender as tuas falas...

– Desculpa, aconteceu uma coisa...

Vesti as roupas à medida que ele as despia, calçando as botas com

dificuldade, pondo o cinto da espada, o casaco. As conversas do

público, que ouvíamos pelas colunas de som, tornaram-se uns estalidos

e pararam. Ouviu-se um pequeno arquejo perpassando o auditório e

adivinhei que as luzes tinham sido acesas, a mostrar o palácio celestial

de Lear.

Kent: – Pensava que o rei tinha mais afeição ao duque de Albany do

que ao da Cornualha.

Gloucester: – Sempre nos pareceu isso; mas agora, ao fazer a

divisão do reino, não se nota qual dos duques ele aprecia mais. Os

quinhões são de tal forma equilibrados que um exame minucioso por

nenhum deles pode levá-lo a preferir a parte do outro.

Kent: – Este não é o vosso filho, senhor?

Lancei um olhar a Alexander, que estava de joelhos a apertar os

atacadores das minhas botas enquanto eu tentava abotoar o colete.


– O James já está em palco? – perguntei.

– Obviamente. – Puxou os atacadores com tanta força que quase me

desequilibrei. – Está quieto, com um raio.

– E a Meredith? – Estendi a mão para o lenço de pescoço.

– Está nas coxias de cena, suponho.

– Então, está aqui – disse eu.

Ergueu-se e começou a passar-me o cinto pelas presilhas.

– Porque não estaria?

– Não sei. – Os meus dedos estavam trapalhões, trémulos, incapazes

de formar o nó familiar no lenço. – Passou a noite fora.

– Preocupa-te com isso mais tarde. Agora não é o momento. –

Apertou-me demasiado a fivela do cinto e pegou nas minhas luvas, que

estavam em cima do balcão. Olhei de relance para o espelho. Tinha o

cabelo todo despenteado, as minhas faces brilhavam com suor. – Tens

um aspeto horrível – disse ele. – Estás doente?

– Sinto-me abalado com suportar tais pensamentos – disse eu, sem

conseguir conter-me.

– Oliver, o que...

– Deixa lá – disse eu. – Tenho de ir. – Saí para o passadiço antes de

ele ter tempo de voltar a falar. A porta fechou-se pesadamente nas

minhas costas e esperei, com a mão na maçaneta, forçado a manter-me

imóvel pela enorme concentração requerida, naquele momento, até

mesmo para respirar. Fechei os olhos, com a mente vazia exceto

inspirar e expirar o ar, até o último verso da Cena I me trazer de volta à

vida. A voz de Meredith, baixa e resoluta:

– Temos de fazer alguma coisa.

Dirigi-me para a coxia de cena.

Avancei aos tropeções ao longo do sistema de aparelhamento no

escuro impiedoso dos bastidores, até os meus olhos se adaptarem ao

brilho frio do candeeiro no canto do ponto. O assistente de palco

avistou-me e ciciou ao microfone dos seus auriculares:

– Cabina? Temos o Edgar ao vivo. Não, o original. Parece um

bocado em baixo, mas está vestido e pronto a entrar em cena. – Pôs a

mão em concha sobre o microfone, murmurou: – A Gwendolyn vai

cortar-te os tomates, meu amigo – e virou a atenção para o palco.


Perguntei-me por um instante o que diria se eu lhe confessasse que a

reação de Gwendolyn era o que menos me preocupava.

No palco, James estava de cabeça baixa numa atitude de deferência

para com o pai.

Gloucester: – Já vivemos os nossos melhores tempos. Maquinações,

falsidade, traição e todas as ruinosas desordens nos seguem

desordeiramente até ao túmulo. Descobre esse vilão, Edmundo...

A boca de James contraiu-se, e recordei as suas repetições

perturbadoras na noite anterior. Gloucester terminou o seu discurso e

atravessou em grandes passadas o chão semeado de estrelas, na direção

da coxia de cena oposta.

– Eis – disse James, quando ele desapareceu –, eis a suprema

loucura do mundo: quando a nossa sorte não vai bem, muitas vezes

devido aos excessos do nosso comportamento, as culpas dos nossos

desastres vão para o Sol, a Lua e os astros; como se fôssemos vilões

por necessidade, loucos por imposição dos céus, velhacos, ladrões e

traidores por força das esferas, bêbedos, mentirosos e adúlteros por

força da obediência à influência dos planetas; e tudo aquilo que em

nós é mau o fosse por imposição divina. – Olhou na direção do céu,

fechou a mão em punho e agitou-o às estrelas. Soltou-se uma

gargalhada dos seus lábios, que soou audaz e descarada aos meus

ouvidos. – É uma desculpa admirável do putanheiro, acusar um astro

da sua inclinação para a lascívia! – Ergueu um dedo, apontou para

uma só constelação entre uma centena, e disse mais pensativamente: –

O meu pai arranjou-se com a minha mãe por baixo da cauda do

Dragão, e o meu nascimento deu-se sob o signo da Ursa Maior, daí se

segue que sou rude e lascivo. – Riu de novo, mas agora o seu riso era

amargo. Mudei o peso do corpo de um pé para o outro, sentindo todos

os pelos da nuca eriçados. – Eu havia de ser o que sou nem que a mais

casta estrela tivesse cintilado sobre a minha bastardia. Edgar...

Hesitou, se devido à dúvida de que eu aparecesse ou a outra

inquietação maior, eu não sabia. Saí para o nosso mundo de estrelas

com um passo cauteloso.

– Então, irmão Edmundo? – perguntei, pela segunda vez em dezoito

horas. – Em que séria contemplação andais metido?


Avançámos sem hesitação pela mesma conversa que tivéramos na

noite anterior, aos solavancos, pouco a pouco. O rosto de James bem

podia ser uma máscara. Dizia as suas falas com a mesma calma de

sempre, sem notar a incredulidade e o medo e a fúria que ameaçavam

rachar-me a meio de cada vez que olhava para ele. As palavras saíram-

me duras e severas quando disse:

– Algum vilão anda a prejudicar-me!

– É esse o meu receio – disse ele, lentamente, mas quando continuou

a falar adotou o mesmo tom arrastado sem esforço. Esqueci o meu

bloqueio, fiquei imóvel, com reações neutras e mecânicas.

Quando terminou de novo, eu disse, secamente:

– Terei notícias vossas em breve?

– Estou ao vosso serviço neste assunto – disse ele. Era o momento

de eu sair de cena, mas não o fiz. Esperei demasiado tempo, o tempo

suficiente para ele se ver forçado a olhar para além de Edgar e me ver a

mim. Perpassou nos seus olhos um sinal de reconhecimento, e com ele

uma centelha de medo. Virei-me para me retirar, e, quando me dirigia

para a coxia de cena, ouvi-o falar de novo, numa voz um pouco ténue.

James: – Um irmão nobre,

Cuja natureza está tão longe de fazer mal

Que não suspeita de ninguém. Tola honestidade

Que meus ardis cavalgam!

Subitamente, a sua bravata soava falsa. Ele sabia o que eu sabia. Por

ora, era o suficiente. A peça continuaria, bem ou mal.

CENA 5

Desperdicei cerca de dez cenas à espera no camarim de que o James

aparecesse. Não apareceu, mas eu sabia que não devia ir procurá-lo nas

coxias de cena. O tipo de confronto a que estávamos condenados não

podia ser confinado aos corredores e às passagens nos bastidores. O

intervalo seria a minha melhor hipótese de o apanhar antes de ele

conseguir escapulir-se. Quando a última cena do terceiro ato se

aproximava do seu clímax violento, levantei-me da cadeira e vesti um


casaco por cima do peito nu. Os meus farrapos de louco faziam-me

sentir desnudado e vulnerável.

O passadiço estava vazio, as luzes com um brilho baço de um

amarelo outonal. Estava a chegar à porta das traseiras do palco quando

Meredith apareceu na outra ponta do corredor. Não lhe pusera os olhos

em cima toda a noite, e, por um instante, fiquei paralisado. Ela parecia

uma princesa grega, envolta em chiffon e voile azul-pálido, uma fita de

ouro na testa, caracóis a tombarem-lhe soltos pelas costas. Virei-me e

dirigi-me para ela, sem saber quando voltaria a encontrá-la sozinha ou

o que o resto da noite poderia trazer. O som dos meus passos fê-la

olhar para cima e um clarão de surpresa perpassou no seu rosto antes

de eu a alcançar e a beijar, tão intensamente quanto me atrevia.

– Para que foi isso? – perguntou, quando me inclinei para trás.

Ela sabia que era linda. Eu não precisava de lho dizer.

– Sabes, assustas-me como o diabo – disse eu, agarrando o tecido

das suas vestes para a manter perto de mim.

– O quê?

– Não sei, mas é como se, quando olho para ti, de repente os sonetos

fizessem sentido. Os bons, de qualquer maneira.

O que quer que um ou outro estivéssemos à espera de que eu

dissesse, não era aquilo. Ela corou, e percorreu-me um tremor de

júbilo – improvável, inexplicável, dadas todas as outras circunstâncias

daquela noite. Mas extinguiu-se como a chama de uma vela, soprado

pela dúvida.

– Onde estiveste ontem à noite? – perguntei.

Ela desviou os olhos.

– Eu simplesmente... tinha de ir a um sítio.

– Não compreendo.

– Eu explico-te – disse ela, traçando distraidamente o contorno da

minha clavícula com a ponta de um dedo. – Esta noite. Mais tarde.

– Está bem. – Não consegui deixar de pensar se haveria tempo mais

tarde. Até o que «mais tarde» significava. – Mais tarde – concordei, de

qualquer maneira.

– Tenho de ir. – Afastou-me o cabelo da testa, um seu gesto doce e

afetuoso, nessa fase já familiar e sempre desejado por mim. Mas a

preocupação e as dúvidas tornavam-me as pernas bambas.


– Meredith – disse eu, quando ela começou a dirigir-se para o

camarim das raparigas. Ela parou à porta. – No outro dia, na aula... –

Não queria dizê-lo, mas não consegui conter-me. – Não voltes a beijar

o James assim.

Fitou-me com um ar de total incompreensão por um instante; de

seguida, a sua expressão endureceu e ela perguntou-me:

– De quem tens ciúmes? Dele ou de mim? – Fez um som baixo de

repulsa e desapareceu para dentro do camarim sem me dar tempo de

responder. Senti um nó na garganta. Qual fora sequer a minha

intenção? Protegê-la, avisá-la, o quê? Bati com a mão aberta contra a

parede, e o impacto causou-me dor.

Teria de esperar. O terceiro ato estava a chegar ao fim; através das

colunas de som, ouvia Colin falar, ofegante.

Colin: – Recebi um golpe. Segui-me, senhora.

Ponde lá fora esse vilão sem olhos. Lançai-o

Numa estrumeira. Regan, estou a sangrar muito.

Esta ferida é inoportuna. Dai-me o vosso braço.

Esperei junto à porta do lado esquerdo do palco, com as costas

contra a parede. As luzes apagaram-se e a assistência aplaudiu,

fracamente no início, depois mais entusiástica, em choque com o

arrancar horripilante dos olhos de Gloucester. Uns alunos do segundo

ano saíram das coxias de cena e passaram por mim a toda a pressa,

sem me verem. Depois Colin, depois Filippa. Depois James.

Agarrei-o pelo cotovelo e conduzi-o para longe dos camarins.

– Oliver! Que estás a fazer?

– Precisamos de conversar.

– Agora? – disse ele. – Solta-me, estás a magoar-me.

– Estou? – Agarrava-lhe o braço com uma força brutal; era maior do

que ele e, pela primeira vez, queria que ambos tivéssemos plena

consciência desse facto.

Abri a porta do corredor com um empurrão, puxando-o atrás de

mim. A zona de cargas e descargas fora a minha primeira ideia, mas

Alexander e alguns dos alunos do segundo e do terceiro anos deviam

ter ido lá fora fumar. Pensei na cave, mas não queria ver-me preso lá

em baixo. James fez mais duas ou três perguntas – todas variações do


mesmo tema; aonde íamos? – mas ignorei-as e ele remeteu-se ao

silêncio e senti a sua pulsação acelerar sob os meus dedos.

O relvado por trás do Hall era largo e plano, o último espaço aberto

antes da inclinação descendente do terreno em direção às árvores. Lá

em cima, o céu verdadeiro era enorme, fazendo com que os nossos

espelhos e as nossas luzes cintilantes do palco parecessem ridículos – a

tentativa fútil do Homem de imitar Deus. Quando já estávamos

suficientemente longe do FAB para eu ter a certeza de que não

seríamos vistos no escuro, muito menos ouvidos por alguém, soltei o

braço de James e afastei-o de mim com um empurrão. Ele tropeçou,

equilibrou-se e depois lançou um olhar nervoso por cima do ombro à

encosta íngreme por trás.

– Oliver, estamos a meio de um espetáculo – disse ele. – O que se

passa?

– Encontrei o gancho do barco. – De repente, desejei o louco vento

uivante da noite anterior. A quietude do mundo por baixo da cúpula

escura do céu era sufocante, enorme, insuportável. – Encontrei o

gancho do barco, enfiado dentro do teu colchão.

O seu rosto estava branco como a cal ao luar cru.

– Eu posso explicar.

– Podes? – perguntei. – Porque tenho de abrir o quarto ato, portanto

tens quinze minutos para me convencer de que isto não é o que penso

que é.

– Oliver... – disse ele, e desviou o rosto.

– Diz-me que não o fizeste. – Arrisquei aproximar-me um passo,

receando erguer a voz acima de um murmúrio. – Diz-me que não

mataste o Richard.

Fechou os olhos, engoliu em seco e disse:

– Não foi por querer.

Um punho de aço fechou-se no meu peito, tirando-me todo o ar. O

meu sangue dava a sensação de estar gélido, rastejando-me pelas veias

como morfina.

– Oh, meu Deus, James, não. – A minha voz rachou-se. A meio.

Sem restar nenhum som.

– Juro, foi sem querer... tens de compreender – disse ele,

aproximando-se de mim, desesperado. Cambaleando, recuei três


passos, para onde ele não poderia tocar-me. – Foi um acidente, tal e

qual como dissemos... foi um acidente, Oliver, por favor!

– Não! Não te aproximes demasiado – disse eu, forçando as palavras

a saírem da boca, embora não houvesse ar para elas. – Mantém-te à

distância. Conta-me o que aconteceu.

O mundo parecia ter parado no seu eixo, como um pião

precariamente equilibrado na ponta. As estrelas brilhavam cruelmente

lá em cima, cacos de vidro espalhados no céu. Todos os nervos do meu

corpo eram fios elétricos, a encolherem-se para evitarem o toque do

frio ar de março. James era ainda mais frio, esculpido em gelo, não o

meu amigo, nem sequer humano.

– Depois de ires para o andar de cima com a Meredith, aconteceu

alguma coisa ao Richard – disse ele. – Foi como no Halloween, mas

pior. Saiu disparado do Castelo com uma raiva... impossível de conter.

Havias de ter visto. Foi como assistir à explosão de uma estrela. –

Abanou lentamente a cabeça, com o terror e o espanto indistinguíveis

na sua expressão. – Eu e a Wren estávamos sentados à mesa. Não

fazíamos ideia do que se passava, mas depois ele simplesmente

apareceu, com uma expressão na cara de quem seria capaz de esmagar

fosse o que fosse que se lhe atravessasse no caminho. Dirigia-se para o

bosque, para fazer o quê não sei, e a Wren tentou detê-lo. – A voz

fraquejou-lhe e ele fechou os olhos com força, como se aquela

recordação estivesse demasiado próxima, fosse demasiado dolorosa,

insuportável. – Meu Deus, Oliver. Ele agarrou-a, e juro que pensei que

era capaz de a partir ao meio, mas atirou-a para a relva, para o outro

lado do jardim. E marchou para as árvores e deixou-a ali, a soluçar.

Foi horrível. Tentei recompô-la o melhor que podia, e eu e a Pip

metemo-la na cama. Mas ela não parava de chorar e estava sempre a

dizer: «Vai atrás dele, ele vai fazer mal a si mesmo.» Por isso, eu fui.

Abri a boca, incrédulo, mas ele não me deu tempo para dizer uma

palavra que fosse.

– Não precisas de me dizer que fui estúpido – disse. – Eu sei. Soube

naquele momento. Mas fui.

– E encontraste-o. – Já conseguia ver o desenrolar daquilo. Uma

discussão. Uma ameaça. Um empurrão. Demasiado.


– Não logo – disse ele. – Andei aos tropeções no escuro como um

idiota, a chamar por ele. Depois, pensei que talvez tivesse ido para a

doca. – Encolheu os ombros, e aquele gesto era tão impotente e

patético que senti afrouxar o nó no peito, só um pouco. – Desci a

encosta, mas não o vi. Fui à casa do barco, só para me assegurar de que

ele não tinha feito alguma coisa estúpida, como saltar para a água, e

quando me virei para voltar para cima, ali estava ele. Tinha andado a

seguir-me no bosque aquele tempo todo, como se fosse uma espécie de

jogo doentio. – Falava mais rapidamente nessa altura, com todas as

palavras que tinha mantido contidas durante meses a saírem em

catadupa. – E eu disse: «Ah, estás aí. Vamos voltar para cima, a tua

prima está desfeita.» E ele disse, consegues adivinhar o que ele disse,

foi: «Não te preocupes com a minha prima.» E então eu disse: «Muito

bem. Toda a gente está preocupada. Volta e resolvemos a questão.» E

ele lançou-me outra vez aquele olhar... Meu Deus, Oliver, há semanas

que sonho com ele... era como todo o ódio do mundo ao mesmo

tempo. Já alguém olhou para ti assim? – Por um instante, o mesmo

medo estupefacto pareceu apoderar-se dele, mas depois sacudiu a

cabeça e continuou. – E foi quando começou. Os empurrões. As...

provocações. – A sua voz tornou-se mais aguda e nervosa e ele

esfregou os braços, bateu com um pé no chão como se não conseguisse

manter o corpo suficientemente quente. – E ele não parava. Era outra

vez como no Halloween... Vá lá, vamos jogar um jogo. Eu não mordi o

isco, e a coisa foi de mal a pior. Porque é que não dás luta? Porque é

que te recusas a sujar as mãos? Vamos jogar um jogo, principezinho,

vamos jogar um jogo. Era só o que aquilo era para ele, mas eu sentia-

me muito assustado, e tentei, disse, mais uma vez, porque não voltas

para o Castelo e falamos com a Wren? Falamos com a Meredith,

resolvemos as coisas. E depois ele só... ele disse... – Parou de falar,

com o rosto corado, um vermelho feio, como se as palavras fossem tão

vis que ele não era capaz de as repetir.

– James, o que disse ele?

Olhou-me severamente, com a cabeça inclinada para trás, a boca

uma linha cruel e plana, os olhos escuros e enigmáticos. Parecia

Richard; soava até como ele quando falou.


– Porque é que tu e o Oliver não podem simplesmente admitir que

gostam um do outro e não deixam as minhas miúdas em paz?

Fitei-o, com um aperto na garganta e a sensação de suor frio do

temor a alastrar lentamente pelos meus membros.

– Então eu disse – continuou James, já na sua voz habitual: – não sei

quem te disse o contrário, mas tu não és dono da Meredith e é mais do

que certo que não és dono da Wren. Bebe até caíres para o lado morto,

se quiseres. Eu vou-me embora. Mas ele não me deixou ir.

– O que queres dizer?

– Queria lutar. Não me deixava ir embora sem uma luta. Tentei

passar por ele, mas agarrou-me e atirou-me contra as portas da casa do

barco. Não são sólidas, são muito velhas, e eu, tipo, fui de roldão para

dentro, caí contra as coisas todas que estavam amontoadas lá. E ele

veio para mim outra vez e eu deitei a mão à coisa mais próxima, que

era o gancho do barco.

Parou de falar e pressionou os olhos com as mãos, como se quisesse

apagar aquela recordação. Tremia-lhe o lábio. Todo o seu corpo estava

a tremer.

– E depois o que aconteceu? – Não queria perguntar, não queria

saber, não queria ouvir nem mais uma palavra.

– E depois ele riu-se – disse James numa voz fraca, por trás da mão.

Eu quase conseguia ouvir o som, a gargalhada profunda e perigosa de

Richard, a soar no escuro. – Riu-se e disse: faz isso, menino bonito,

principezinho, desafio-te. E empurrou-me outra vez. Empurrou-me até

ao fim da doca, a dizer: «Desafio-te, desafio-te, não és capaz de o

fazer.» E eu olhei para trás de mim e a água estava ali mesmo e só

conseguia pensar no Halloween, e quem evitaria que ele me afogasse

desta vez? E ele não se calava, não parava de dizer: não o fazes,

desafio-te desafio-te desafio-te, e eu... – A sua mão deslizou para baixo

para tapar a boca, e os seus olhos estavam arregalados com horror,

como se apenas naquele momento tivesse compreendido o que fizera. –

Não era minha intenção – disse, com um gemido baixo por trás da

mão. – Não era minha intenção. Mas estava tão assustado e tão

furioso.

Eu via claramente como devia ter acontecido. Um golpe à toa, por

impulso. O baque doloroso do impacto. A surpresa ao sentir os


borrifos quentes de sangue no rosto. Richard caindo em câmara lenta

para a água. O baque aterrador do corpo e o silêncio ainda mais

aterrador.

– Oliver, julguei que ele estava morto – disse James, numa voz tão

fraca que quase não o ouvi. – Juro, julguei que já estava morto. E não

sabia o que fazer, portanto simplesmente... desatei a correr. Perdi a

cabeça por um minuto. Corri de volta para as árvores e podia ter

continuado a correr toda a noite, se não tivesse esbarrado na Filippa.

Senti-me dormente, gelado, atordoado a ponto de ficar imóvel.

– Tu o quê?

Acenou com a cabeça, distraído, como se não conseguisse lembrar-

se bem de como o resto acontecera.

– Suponho que ela estava preocupada por eu não ter regressado e

veio procurar-me e eu esbarrei nela. É um milagre que não a tenha

magoado, ainda tinha a merda do gancho na mão... não sei o que me

fez trazê-lo.

– Ela sabia – disse eu, com aquele facto aos saltos e a repetir-se na

minha cabeça. – Ela sabia?

– Estava tão calma, era como se já esperasse aquilo. Nem sequer fez

perguntas, realmente, só me meteu dentro de casa e me fez subir as

escadas, de alguma maneira. Eu estava a tremer tanto que ela teve de

me ajudar a despir a roupa, mas, assim que me deixou na casa de

banho e foi queimar tudo o que tinha sangue, comecei a vomitar sem

conseguir parar até... – Calou-se abruptamente e fez um gesto estranho

na minha direção, como se eu devesse terminar a frase.

– Oh, meu Deus – exclamei. – Eu. – Meio a dormir, meio despido.

Ele. Com o coração a bater com força, acocorado no chão. – Tu não me

disseste nada. – Só me apercebi quando as palavras me saíram da boca

que isso, por si só, era pior do que tudo o resto. – Porque não me

disseste nada?

– Não queria que soubesses – respondeu. Deu mais um passo na

minha direção, e dessa vez não recuei. – A Filippa... talvez seja louca,

não sei, nada a tira do sério... mas tu? Oliver, tu... – Falhou-lhe a voz, e

na sua ausência ele apontou para mim, mas era um pensamento que eu

não podia terminar por ele.

– Eu o quê, James? Não compreendo.


Deixou a mão cair ao lado do corpo e encolheu os ombros daquela

mesma maneira impotente, sem esperança.

– Eu não queria que olhasses para mim da maneira como estás a

olhar neste momento.

E talvez houvesse uma espécie de terror na minha expressão, mas

não pelo motivo que ele pensava. Observei-o na luz fria do luar, frágil

e pequeno e assustado, e as mil perguntas que me tinham assaltado de

cada vez que olhava para ele desde o Natal misturaram-se e fundiram-

se e encolheram até haver na realidade apenas uma.

– Oliver?

– Sim – respondi, com aquela palavra singela a aceitar tudo de uma

só vez. Não conseguia lembrar-me de quando ele começara a chorar,

mas brilhavam lágrimas nas suas faces. Fitou-me, desconfiado e

confuso.

– Está tudo bem – disse eu, tanto a mim mesmo quanto a ele. Lancei

um olhar por cima do ombro na direção do FAB, de algum modo

acalmado quando ouvi Hamlet na minha cabeça de novo: Estar

preparado é tudo. – Vai ficar tudo bem – disse, embora nunca tivesse

tido menos certeza de alguma coisa. – Vamos resolver isto, mas agora

temos de voltar. – Não fazia ideia do que «isto» significava ou do que

ele pensava que significava. – Temos de voltar e de nos comportarmos

como se nada se passasse. Temos de nos aguentar esta noite, e depois

preocupamo-nos com isso. Está bem?

Alívio... esperança... algo... finalmente trouxe calor ao seu rosto.

– Estás...

– Sim, estou – disse eu, a única resposta possível para o que ele

queria saber, fosse o que fosse. – Vamos lá. – Virei-me na direção do

FAB. Ele agarrou-me o braço.

– Oliver – disse, com uma pergunta colada ao fim do meu nome.

– Está tudo bem – disse eu, novamente. – Mais tarde. Vamos resolver

isto. – Acenou com a cabeça, baixando os olhos de repente, mas senti

os seus dedos apertarem-me mais o braço. – Anda daí.

Vinha atrás de mim enquanto corríamos de volta ao teatro. Entrámos

à socapa pela porta lateral e separámo-nos quando eu fui para a coxia

de cena e ele na outra direção, para a casa de banho, para limpar todos

os indícios de angústia do rosto. Naquele breve momento, perguntei-


me de facto se «tudo bem» ou algo semelhante seria ainda possível.

Mas é assim que uma tragédia como a nossa ou como a de Rei Lear

nos parte o coração – fazendo-nos crer, até ao último minuto, que o

final ainda pode ser feliz.

CENA 6

A segunda metade do espetáculo avançava rapidamente, sem

entraves. Eu estava tão louco e incapaz de me concentrar como Tom o’

Bedlam, mas Frederick e Gloucester devem ter notado uma alteração,

porque me olhavam ambos, desconfiados, perto do final do quarto ato.

O quinto ato abriu com James a dirigir os movimentos do seu exército.

Falava com um sentido inegável de urgência – talvez tão desesperado

quanto eu por encerrar o espetáculo, nos fecharmos na Torre e

decidirmos o que fazer. Falou rispidamente a Wren, parecia não a ver,

e tratou Frederick com a mesma apatia cheia de frieza. Camilo

aproximou-se, ladeado por Filippa e Meredith – que parecia

suficientemente culpada para me levar a crer que poderia ter

envenenado alguém. Eu espreitava nas sombras na parte de trás do

palco, à espera da minha entrada e do fim da peça.

Filippa ficou rapidamente doente e estendeu a mão para o braço de

Camilo, para se segurar.

Filippa: – Mal, sinto-me mal!

Meredith (à parte): – De contrário jamais confiarei nas drogas.

James (a Camilo, atirando a sua luva ao chão):

– Eis a minha resposta! Seja o que for no mundo,

Quem me chamar traidor mente miseravelmente.

A sua voz ergueu-se para me chamar do meu esconderijo. Os arautos

foram convocados, soaram as trombetas; Filippa desmaiou e foi levada

do palco em braços por um bando de alunos do segundo ano.

Arauto (lendo): – Se algum homem de qualidade ou patente nas

fileiras do exército mantiver contra Edmundo, suposto conde de

Gloucester, que ele é um múltiplo traidor, que apareça ao terceiro

toque da trombeta. Ele está decidido a defender-se.


Respirei através do lenço que tinha atado sobre a boca e o nariz para

me disfarçar e depois avancei da parte de trás do palco, com uma mão

na espada.

Eu: – Sabei que meu nome se perdeu,

Roído até mais não pelos dentes da traição e pelos vermes.

No entanto, sou tão nobre como o adversário

Que venho enfrentar.

Camilo: – Quem é esse adversário?

Eu: – Quem fala em nome de Edmundo, conde de Gloucester?

James: – O próprio. O que lhe dizes?

Enunciei-lhe uma litania dos seus pecados e ele escutou com uma

viva e íntima atenção. Quando respondeu, foi com a sua malícia

habitual, a sua arrogância habitual. As suas palavras eram refletidas,

com uma consciência humilde da sua própria falsidade.

James: – Atiro-te de volta essas traições à cara,

Com a odiosa mentira esmago o teu coração,

Traições que, por passarem depressa e mal magoarem,

Esta minha espada lhes dará passagem imediata

Para onde descansarão para sempre.

Desembainhámos as nossas espadas, fizemos uma vénia um ao outro

e o nosso duelo final começou. Movíamo-nos quase em uníssono, com

as lâminas a lampejarem e a brilharem sob as estrelas artificiais.

Comecei a ficar em vantagem, desferindo mais golpes do que os que

recebia e manobrando James na direção da abertura estreita da Ponte.

O suor brilhava na sua testa e na cova do seu pescoço, e os seus passos

tornavam-se cada vez mais desajeitados. Forcei-o a penetrar na

escuridão hostil do auditório até ele não poder avançar mais. Com o

último tinido de aço contra aço a ecoar nos meus ouvidos, enfiei o meu

florete sob o seu braço. Ele agarrou-me o ombro, arquejou, e a sua

lâmina tombou chocalhando no chão espelhado da Ponte. Deixei cair a

minha espada também, passei um braço à volta das suas costas para o

segurar em peso e, quando olhei para baixo, vi-o a fitar para lá de mim,

para a escuridão da coxia esquerda de cena. Gwendolyn estava ali de

pé, à beira da luz, com uma expressão vazia, de choque. Holinshed

encontrava-se ao lado dela e o detetive Colborne ao lado dele, com o

crachá na anca a brilhar à luz de fibra ótica das estrelas.


As pontas dos dedos de James enterraram-se nos meus braços.

Cerrei os dentes e baixei-o lentamente até ao chão. Atrás de nós,

Meredith estava a ser conduzida da frente do palco para a coxia de

cena. Camilo viu-a afastar-se, com o rosto ensombrado com perguntas.

Meredith: – Não me perguntes o que conheço.

Camilo: – Segui-a, ela está desesperada, tomai conta dela.

Os últimos alunos do segundo ano saíram do placo. Acocorei-me e

debrucei-me sobre James. A faixa cor de violeta que usávamos para

simbolizar sangue despontara da sua camisa aberta no peito, e retirei-a

lentamente enquanto ele falava.

– Fiz aquilo de que me acusais e mais ainda – disse ele. – Muito

mais; o tempo há de revelá-lo. – Tremeu sob mim, e pousei uma mão

no seu peito para o manter imóvel. – É passado, e eu também. – Um

sorriso fatigado formou-se na sua boca. – Mas quem és tu / Que tens

esta vantagem sobre mim? Se fores nobre, / Perdoo-te.

– Caridade por caridade. – Retirei o lenço do rosto. Não havia mais

nada a fazer para o reconfortar. – O meu nome é Edgar, e sou filho de

teu pai.

Lancei um olhar para a coxia de cena, Meredith estava ao lado de

Colborne, a falar-lhe ao ouvido. Quando se apercebeu de que eu olhava

para ela, fechou os lábios e abanou lentamente a cabeça. Virei-me para

James.

– Os deuses são justos e dos vícios aprazíveis / Fazem instrumentos

que nos flagelam.

James riu-se de modo entrecortado, e senti algo profundo entre os

meus pulmões quebrar-se a meio.

– Falaste bem; é verdade – disse ele. – A roda deu a volta completa;

eis-me aqui.

Camilo falou por trás de nós, mas quase não o ouvi. A minha fala

seguinte destinava-se a ele, mas disse-a antes a James:

– Sei disso, digno príncipe.

Ele fitou-me por um instante, depois ergueu a cabeça e puxou-me

para baixo ao seu encontro. Foi um beijo quase fraternal, mas não

exatamente. Demasiado frágil, demasiado doloroso. Uns murmúrios de

surpresa e perplexidade varreram a assistência. O meu coração

latejava, e doía-me tanto que lhe mordi o lábio. Senti-o suster a


respiração e baixei-o de novo para o chão. O silêncio persistiu

demasiado tempo. Fosse qual fosse a fala de Camilo, ele esquecera-a, e

por isso falei fora da minha vez:

– Escutai uma breve história; / E, quando ela acabar, que se me

parta o coração!

Não conseguia lembrar-me do resto. Não queria lembrar-me. Camilo

interrompeu o meu discurso, talvez para compensar o seu lapso

anterior, e a voz saiu-lhe aos tropeções e incerta. James jazia mole no

chão, como se a vida de Edmundo o tivesse deixado e o que restava da

sua não fosse suficiente para ele se mover.

Camilo: – Se houver mais e mais triste, calai-o,

Pois estou prestes a desfazer-me em lágrimas.

Não voltei a falar. A minha voz estava perdida. Uma aluna do

segundo ano, dando-se conta de que nem eu nem James diríamos mais

uma palavra, entrou a toda a pressa e desfez o feitiço da quietude que

se abatera sobre o palco.

– Socorro! Oh, socorro!

Deixei que Camilo conversasse com ela. As mortes foram

enumeradas e registadas. Chegou o momento de James ser levado em

braços para fora do palco, mas nem eu nem ele nos movemos,

dolorosamente conscientes do que nos aguardava do outro lado da

cortina. Os serviçais e os arautos disseram as nossas falas em vozes

tímidas e incertas. Frederik entrou, com Wren morta nos braços.

Também ele tombou no chão, e, apesar do que alguém pudesse fazer,

morreu, esmagado sob o peso da sua dor. Camilo – o último bastião do

nosso mundo em colapso – terminou a peça o melhor que pôde, com

um discurso que deveria ter sido eu a fazer.

Camilo: – Ao fardo deste tempo triste vamos ceder,

Falar do que sentimos, não do que temos de dizer.

Os mais velhos sofreram mais; novos por enquanto,

Nós não veremos tanta coisa nem viveremos tanto.

As estrelas apagaram-se todas ao mesmo tempo. O palco ficou

mergulhado na escuridão. O público começou a aplaudir, lentamente,

sem convicção. Fiquei agarrado a James até as luzes voltarem a

acender-se e depois ajudei-o a pôr-se de pé. Wren e Frederick

reanimaram-se como mortos-vivos. Filippa, Meredith e Alexander


apareceram da coxia de cena, sem erguerem os olhos do chão. Fizemos

uma vénia hirta e esperámos que as luzes voltassem a apagar-se.

Quando isso aconteceu, dirigimo-nos em fila para a coxia de cena. A

cortina fechou-se atrás de nós, um arrastar pesado de veludo, excluindo

os ruídos humanos discretos do público – a levantar-se, a recompor-se.

As luzes dos bastidores voltaram a acender-se. Os alunos do

primeiro e do segundo anos encolheram-se e afastaram-se ao verem o

rosto desconhecido de Colborne. Ele avançou lentamente do seu lugar

ao lado do sistema de aparelhamento, olhando para James como se não

existisse mais ninguém no mundo.

– Bem – disse ele. – Não podíamos brincar ao faz de conta para

sempre. Estás pronto para me contar a verdade?

Ao meu lado, James vacilou, abriu a boca para falar. Sem lhe dar

tempo, avancei um passo, com a decisão já tomada, tomada no mesmo

instante em que surgiu como um clarão.

– Sim – disse eu. Colborne virou-se para mim, incrédulo. – Sim –

repeti. – Estou.

CENA 7

Luzes e sirenes. Lá fora, no ar insubstancial, elementos do público

com as suas melhores roupas, pessoal técnico vestido de preto e atores

com as suas indumentárias viram-me ser conduzido por Walton para a

parte de trás de um carro com as palavras Broadwater Police

Department no lado. Todas as pessoas segredavam, fitavam,

apontavam, mas eu só via os meus colegas de turma, mais uma vez

todos juntos, como naquele dia na doca. O rosto de Alexander estava

tão cheio de tristeza que não restava espaço para registar surpresa. Na

expressão de Filippa havia só uma espécie de perplexidade

desesperada. Na de Wren, um vazio. Na de Meredith, algo violento que

não consigo descrever. E na de James, desespero. Richard estava ao

lado deles, tão sólido que parecia um milagre que mais ninguém

conseguisse vê-lo, com os seus olhos negros a arderem, de algum

modo ainda insatisfeito. Olhei para as algemas que já brilhavam nos


meus pulsos e afundei-me no assento de pele estalada do carro.

Colborne fechou a porta, e no escuro confinado e silencioso debati-me

para respirar.

Passei as quarenta e oito horas seguintes em salas de interrogatório

sem janelas, com copos pequenos de água morna nas mãos, a

responder a perguntas de Colborne, de Walton e de dois outros agentes

cujos nomes esqueci assim que os ouvi. Contei a história como James

ma contara, somente com as necessárias variações. Richard,

enraivecido com a nossa traição, minha e de Meredith. Eu,

arremessando o gancho do barco à sua cabeça num acesso de medo

ciumento. Não me fizeram perguntas sobre a manhã seguinte.

Os espetáculos seguintes de Rei Lear foram cancelados. Seguindo

um mapa que desenhei nas costas do bloco de apontamentos de

Walton, Colborne liderou um grupo de cinco agentes com lanternas,

que foram à cripta, onde arrombaram o cadeado com um pé de cabra e

um alicate. Provas incriminatórias, cheias das minhas impressões

digitais.

– Agora – disse-me Colborne friamente – talvez seja o momento de

telefonares ao teu advogado.

Eu não tinha quem me defendesse, claro, portanto foi-me facultada

uma advogada. Tratava-se obviamente de um homicídio, restava

definir-lhe o grau. A nossa melhor hipótese, explicou ela, era alegar

autodefesa imperfeita, em vez de homicídio não-premeditado. Assenti

com a cabeça e não disse nada. Recusei a oferta de uma chamada

telefónica para a família. Não era com eles que queria falar. Na

segunda-feira de manhã, fui informado do meu novo estatuto como

detido a aguardar julgamento, mas não fui imediatamente enviado para

a prisão do condado. Fiquei em Broadwater, porque (segundo

Colborne) transferir-me para um estabelecimento prisional maior e

com mais prisioneiros poderia querer dizer que não chegaria vivo à

data do meu julgamento. Parecia mais provável que ele estivesse a

tentar ganhar tempo. Mesmo depois de eu entregar a minha confissão

escrita, vi que ele não acreditava totalmente nela. Afinal, fora ao FAB

esperando prender James, agindo com base em informações fornecidas

por uma «fonte anónima». Meredith, supunha eu.


Talvez aquela dúvida persistente fosse o motivo por que me deixou

receber tantas visitas. Filippa e Alexander foram os primeiros.

Sentaram-se num banco do outro lado das grades.

– Meu Deus, Oliver – disse Alexander quando me viu. – Que diabo

estás a fazer aqui?

– Só... à espera.

– Não era o que eu queria dizer.

– Falámos com a tua advogada – disse Filippa. – Ela pediu-me para

ser testemunha abonatória.

– A mim não, no entanto – acrescentou Alexander, com um pequeno

e triste sorriso trémulo. – Problemas de drogas.

– Oh. – Olhei para Filippa. – Aceitaste?

Cruzou os braços sobre o peito.

– Não sei. Ainda não te perdoei por isto.

Passei um dedo ao longo de uma das barras das grades entre nós.

– Lamento muito.

– Não fazes a mínima ideia, pois não? Do que fizeste. – Abanou a

cabeça, com um olhar duro e furioso. Quando voltou a falar, a sua voz

era a mesma de sempre. – O meu pai está na prisão desde os meus

treze anos. Vão comer-te vivo.

Eu não conseguia olhar para ela.

– Porquê? – perguntou Alexander. – Porque o fizeste?

Sabia que ele não estava a perguntar por que matara eu Richard.

Contorci-me, sentado na tarimba, debati-me com a pergunta.

– É como no Romeu e Julieta – disse, por fim.

Filippa fez um som de impaciência e disse:

– Do que estás a falar?

– Do Romeu e Julieta – repeti, e arrisquei-me a lançar um olhar aos

dois. Alexander tinha-se encostado à parede, derrotado. Filippa

fulminava-me com o olhar. – Alterarias o final, se pudesses? E se

Benvólio se apresentasse e dissesse: «Eu matei Teobaldo. Fui eu.»

Filippa baixou a cabeça, enfiou os dedos no cabelo.

– Seu tolo, Oliver – disse ela. Eu não podia argumentar contra isso.

Voltaram a visitar-me, de tempos em tempos. Só para conversarmos.

Para me contarem o que ia acontecendo em Dellecher. Para me

informarem quando a minha família ficou a saber. Filippa foi a única


com coragem suficiente para falar ao telefone com a minha mãe. Eu

próprio não tivera coragem para falar com ela. Nem o meu pai nem

Caroline me contactaram, mas eu não estava a contar com isso.

Colborne encontrou Leah à porta da esquadra uma manhã, a soluçar e

a atirar pedras ao lado do edifício. (Fugira do Ohio na calada da noite,

como eu em tempos.) Ele trouxe-a para me ver, mas ela não disse nada.

Deixou-se ficar sentada no banco, a fitar-me e a morder o lábio inferior

até ele ficar em carne viva. Passei o dia todo a pedir desculpa,

inutilmente, e nessa noite Colborne meteu-a num autocarro de regresso

a casa. Para me tranquilizar, disse-me que Walton tinha telefonado aos

meus pais para os informar do paradeiro dela.

Não vi Meredith antes do meu julgamento e só sabia notícias dela

através de Alexander e de Filippa e da minha advogada. Devia sentir-

me desesperado por uma oportunidade para me explicar, mas o que

diria? Ela já tinha a sua resposta, nessa fase, à última pergunta que me

fizera. Mas eu pensava nela com muita frequência. Com mais

frequência do que pensava em Frederick, em Gwendolyn, em Colin ou

no reitor Holinshed. Não suportava pensar em Wren. A única pessoa

que realmente queria ver era James, claro.

Ele veio visitar-me a meio da primeira semana da minha detenção.

Esperava-o mais cedo, mas, segundo Alexander, foi a primeira vez ao

fim de vários dias que ele conseguiu levantar-se sequer do chão.

Quando ele chegou, eu estava a dormir, deitado de costas na minha

tarimba estreita, preso no estonteamento permanente que persistia

desde o intervalo de Rei Lear. Pressenti que havia alguém junto à cela

e soergui-me lentamente. James estava sentado no chão em frente às

grades, pálido e de algum modo insubstancial, como se tivesse sido

alinhavado com pedaços de luz e de recordações e de ilusões, como um

boneco de trapos.

Deslizei para fora da tarimba – sentindo-me subitamente,

inesperadamente fraco – e sentei-me de frente para ele.

– Não posso deixar-te fazer isto – disse. – Não vim mais cedo porque

não sabia o que fazer.

– Não – disse eu, rapidamente. Tinha desempenhado o meu papel,

não tinha? Seguira Meredith para o andar de cima, sem pensar no que

poderia acontecer quando Richard descobrisse. Convencera James a


deixar Richard na água quando mais ninguém poderia fazê-lo.

Cometera uma boa parcela dos erros trágicos e não queria ser

absolvido. – Por favor, James – disse. – Não desfaças o que eu fiz.

A voz saiu-lhe arranhada e crua da garganta.

– Oliver, não compreendo. Porquê?

– Tu sabes porquê. – Eu estava farto de fingir.

(Penso que ele nunca me perdoou. Depois da minha encarceração,

visitava-me com frequência, no início. De cada vez que vinha, pedia-

me que o deixasse endireitar as coisas. De cada vez, recusei. Já sabia

que sobreviveria ao meu tempo na prisão, contando calmamente os

dias até todos os meus pecados serem expiados. Mas a sua alma era

mais vulnerável, afundada em culpa, e eu não tinha a certeza de que ele

fosse capaz de sobreviver à prisão. De cada vez, ele recebia a minha

recusa com um pouco mais de dificuldade. A última vez que veio

visitar-me foi seis anos depois da minha condenação, seis meses

depois da sua anterior visita. Parecia mais velho, doente, exausto.

«Oliver, suplico-te», disse. «Não aguento mais.» Quando recusei de

novo, ele puxou-me a mão por cima da mesa, beijou-a e virou-se para

ir embora. Perguntei aonde ia, e respondeu: «Para o inferno. Para Del

Norte. Para lado nenhum. Não sei.»)

O meu julgamento foi misericordiosamente breve. Filippa, James e

Alexander foram arrastados para prestar depoimentos, mas Meredith

recusou dizer uma só palavra, em minha defesa ou não, e deu a todas

as perguntas a mesma resposta inútil: «Não me lembro.» A minha

resolução fraquejava um pouco de cada vez que olhava para ela. Outros

rostos familiares, evitava-os. O de Wren e os dos pais de Richard. O de

Leah e o da minha mãe, manchados de lágrimas e distantes. Quando

chegou o momento de eu falar em minha defesa, recitei a minha

confissão escrita sem emoção ou enfeites, como um monólogo que

tivesse memorizado. No final, todas as pessoas pareciam estar à espera

de um pedido de desculpa, mas eu não o tinha para dar. O que poderia

dizer? E reconheço ser meu este fruto das trevas.

Aceitámos o homicídio não-premeditado (mais tempo por obstrução

da justiça) antes de o júri chegar a um veredicto. Uma carrinha levou-

me a uma prisão a alguns quilómetros para sul no estado. Entreguei as


minhas roupas e os meus pertences e iniciei a minha pena de dez anos

no mesmo dia em que o ano escolar em Dellecher terminou.

O rosto de Colborne foi o último rosto familiar que vi.

– Sabes, não é demasiado tarde – disse ele. – Se houver outra versão

da verdade que queiras contar-me.

Estranhamente, senti vontade de lhe agradecer por se recusar a

acreditar em mim.

– Eu próprio sou relativamente honesto – admiti. – E, mesmo assim,

posso acusar-me de tais coisas que seria melhor que a minha mãe

nunca me tivesse dado à luz. Para que serve que as criaturas como eu

se andem a arrastar entre o Céu e a Terra? Somos, todos nós, gente

perversa; não acredites em nenhum de nós.

EPÍLOGO

Sinto-me, no final da minha história, exaurido de vida, como se

tivesse sangrado abundantemente nas últimas horas em vez de ter

estado simplesmente a falar.

– Nada me pergunte – digo a Colborne. – O que sabe, sabe;

doravante não direi mais uma palavra.

Viro-me da janela da Torre e evito os seus olhos ao passar por ele, na

direção das escadas. Ele segue-me até à biblioteca num silêncio

respeitoso. Filippa está ali, sentada no sofá, com um exemplar de

Conto de Inverno aberto no regaço. Olha para cima, e a luz

evanescente do fim do dia dardeja nos seus óculos. Sinto o coração um

pouco mais leve ao vê-la.

– É quase manhã – diz ela a Colborne –, e contudo julgo que não

estais satisfeitos / Com toda a história.

– Bem, não posso pedir muito mais ao Oliver – diz ele. – Confirmou-

me algumas suspeitas de longa data.

– Vai ficar mais sossegado com menos um mistério na sua mente?

– Sinceramente, não sei. Pensei que atar algumas pontas tornasse a

coisa mais suportável, mas agora não tenho tanta certeza.


Vou à extremidade da sala e fito a marca da queimadura na carpete,

comprida e preta. Agora que contei tudo a Colborne, sinto-me

desancorado. Não tenho nada meu agora, nem sequer segredos.

O som do meu nome faz-me virar para os outros.

– Oliver, toleras uma última pergunta? – diz Colborne.

– Pode perguntar – digo. – Não prometo responder.

– É justo que assim seja. – Lança um olhar a Filippa, depois volta a

fitar-me. – O que se segue para ti? Pergunto por curiosidade. O que

acontece agora?

A resposta é tão óbvia que me surpreende que não lhe tenha

ocorrido. Hesito inicialmente, com um sentimento de proteção. Mas

depois olho Filippa nos olhos e dou-me conta de que também ela está a

fazer-se aquela pergunta.

– Está previsto que vá ficar com a minha irmã... lembra-se da Leah.

Está a fazer o doutoramento em Chicago – digo. – Não censuraria o

resto da família se não quisessem ver-me. Mas mais do que isso... deve

saber... mais do que qualquer outra coisa, preciso de ver o James.

Algo estranho acontece agora. Não vejo nos rostos deles a

exasperação com que contava. Em vez disso, Colborne vira-se para

Filippa, com os olhos arregalados com alarme. Ela senta-se mais

direita no sofá e ergue uma mão para o impedir de falar.

– Pip? – digo. – O que se passa?

Põe-se de pé lentamente, alisando pregas invisíveis na parte da frente

das suas calças de ganga.

– Há uma coisa que não te contei. – Engulo em seco, combatendo o

impulso de sair a correr da biblioteca e não descobrir o que ela

tenciona dizer a seguir. Mas fico onde estou, colado àquele sítio pelo

medo de que não saber seja pior. – Receava que, se te contasse

enquanto estavas dentro, não quisesses sair nunca mais – diz ela. –

Portanto, esperei.

– Se me contasses o quê? – digo. – Se me contasses o quê?

– Oh, Oliver – diz ela, com uma voz que é um eco distante da sua. –

Lamento muito. O James foi-se.

O mundo falha-me debaixo dos pés. Estendo a mão às cegas para a

estante ao meu lado, para algo a que possa amparar-me. Fito a marca
da queimadura na carpete, escutando os batimentos do meu coração e

não ouvindo mais nada.

– Quando? – É tudo o que consigo dizer.

– Há quatro anos – diz ela, em voz baixa. – Faz agora quatro anos.

Colborne baixa a cabeça. Porquê? Sentir-se-á envergonhado por me

ter arrancado a história sabendo o que se passara e eu não?

– Como aconteceu? – pergunto.

– Lentamente. Foi a culpa, Oliver – diz ela. – A culpa estava a matá-

lo. Porque pensas que deixou de te visitar? – Há uma nota de desespero

na voz de Filippa, mas não sinto pena dela. Não há espaço para isso.

Também não há espaço para a fúria. Só para uma catastrófica sensação

de perda. Filippa ainda está a falar, mas quase não ouço as palavras. –

Sabes como ele era. Se nós sentíamos tudo duas vezes, ele sentia tudo

quatro vezes.

– O que é que ele fez? – exigi saber.

As palavras dela são um sussurro. Quase inaudíveis.

– Afogou-se – responde. – Afogou-se. Meu Deus, Oliver, lamento

muito. Queria contar-te quando aconteceu, mas tinha tanto medo do

que pudesses fazer. – Vejo que não tem menos medo agora. – Lamento

muito.

Sinto-me desgraçado. Desamparado.

De repente, parece haver uma quarta pessoa na sala. Pela primeira

vez em dez anos, olho para a cadeira que sempre fora a de Richard e

vejo que não está vazia. Ali está ele sentado, com a sua arrogância

relaxada e leonina. Observa-me com um sorriso fino como o gume de

uma navalha, e apercebo-me de que aqui está – o dénouement, a

retaliação, o final absoluto de que ele estava à espera. Demora-se

apenas o tempo suficiente para eu ver o brilho de triunfo nos seus

olhos semicerrados; depois, também ele se vai.

– Pronto – digo, quando recupero a força suficiente para falar. –

Agora já sei.

Não volto a falar até nos despedirmos de Colborne no Hall. O dia

chegou ao fim, a noite está a tombar quando regressamos pelo bosque,

para nos selar num mundo de escuridão. Não há estrelas no céu esta

noite.
– Oliver – diz Colborne, quando por fim nos vemos na sombra do

Hall novamente. – Lamento que o dia de hoje tenha terminado desta

maneira.

– Eu lamento uma série de coisas.

– Se alguma vez puder fazer alguma coisa por ti... Bem, sabes como

me encontrar. – Olha-me de um modo diferente, como nunca me tinha

olhado, e compreendo que me perdoou finalmente, agora que sabe a

verdade. Estende-me a mão e eu aceito-a. Despedimo-nos. E, depois,

vamos cada um para seu lado.

Filippa está à minha espera junto ao carro.

– Levo-te aonde quiseres – diz. – Se prometeres que não tenho de me

preocupar.

– Não – digo. – Não faças isso. Já nos preocupámos o suficiente para

uma vida inteira, não te parece?

– O suficiente para dez.

Encosto-me ao carro ao lado dela e ficamos ali durante muito tempo,

a fitar o Hall. O brasão de Dellecher olha-nos lá do alto, com a toda a

sua grandiosidade iludida.

– Oh! Tudo esquecido? – pergunto. – A amizade da escola, a

infância pura?

Penso se Filippa reconhecerá aquela fala. Foi dela, em tempos, nos

dias fáceis do nosso terceiro ano, quando todos nos julgávamos

invencíveis.

– Nunca o esqueceremos – diz ela. – Isso é o pior.

Esgaravato a terra com a ponta do sapato.

– Há uma coisa que continuo a não compreender, no entanto.

– O quê?

– Se sempre soubeste, porque não contaste a ninguém?

– Meu Deus, Oliver, não é óbvio? – Encolhe os ombros quando não

respondo. – Vocês eram a única família que eu tinha. Eu própria teria

matado o Richard, se pensasse que isso nos manteria a todos seguros.

– Compreendo isso – digo, pensando para comigo que, se tivesse

sido ela, provavelmente teríamos escapado ilesos. E, na realidade,

poderia ter sido qualquer um de nós. – Mas a mim, Pip? Porque não

me contaste a mim?
– Conhecia-te melhor do que tu te conhecias a ti mesmo – diz ela, e

ouço dez anos de tristeza na sua voz. – Tinha um medo terrível de que

fizesses exatamente o que fizeste.

O meu martírio não é do tipo abnegado. Não consigo olhar para

Filippa, envergonhado por todos os danos que infligi – como um

homem com uma bomba atada ao peito, pronto a fazer-se ir pelos ares

sem pensar nos danos colaterais.

– Como estão o Frederick e a Gwendolyn? – digo, agarrando-me a

algo sobre que seja mais fácil falar. – Esqueci-me de perguntar.

– A Gwendolyn está como sempre – responde-me ela, com uma

sombra de sorriso trocista, que se desvanece assim que aparece. – Só

que acho que mantém os estudantes a uma certa distância agora.

Aceno com a cabeça, mas não comento.

– E o Frederick?

– Ainda dá aulas, mas está a abrandar o ritmo – diz ela. – Aquilo

afetou-o muito. Afetou-nos muito a todos. Mas não precisariam de que

eu encenasse as peças se isso não tivesse acontecido, portanto suponho

que nem tudo foi mau.

– Suponho que não – digo, um eco vazio. – E o Camilo? – Não sei

como começou, mas tenho as minhas suspeitas sobre o Dia de Ação de

Graças do nosso quarto ano. Estávamos tão distraídos, que não

reparámos.

Ela faz-me um sorrisinho culpado.

– Não mudou nada. Pergunta por ti a cada duas semanas, quando

chego a casa.

Na breve pausa que se segue, quase a perdoo. A cada duas semanas.

– Vais casar-te com ele? – pergunto. – Já passou bastante tempo.

– Ele diz a mesma coisa. Tu voltavas para isso, não voltavas? Eu

precisaria de alguém que me levasse ao altar.

– Só se for o Holinshed a casar-te.

Não é uma promessa tão firme como ela quer. Mas não a vai obter.

James foi-se, e agora não tenho a certeza de nada.

Ficamos lado a lado, sem falar, por um pouco mais de tempo.

Depois, ela diz:

– Está a fazer-se tarde. Aonde posso levar-te? Sabes que teríamos

todo o gosto que ficasses em nossa casa.


– Não – digo. – Obrigado. A estação dos autocarros seria ótima.

Entramos no carro e partimos em silêncio.

Não vou a Chicago há dez anos, e demoro muito mais tempo do que

deveria a encontrar a morada que Filippa escreveu com relutância. É

uma casa discreta mas elegante, que indicia subtilmente dinheiro e

sucesso e o desejo de não ser incomodada. Antes de bater à porta, fico

muito tempo no passeio a fitar a janela do quarto, onde brilha uma

suave luz branca. Passaram sete anos desde a última vez que a vi, na

única ocasião em que me visitou, para me dizer que eu não estava a

enganar ninguém. Pelo menos, não a ela. «Aquela camisa no armário»,

disse. «Não era tua, não dessa noite. Eu sei.»

Inspiro tão profundamente quanto posso (os pulmões continuam a

dar-me a sensação de estarem demasiado pequenos) e bato à porta.

Enquanto espero no patamar, nas sombras do verão quente, pergunto-

me se Filippa a terá avisado.

Quando abre a porta, já vem com os olhos húmidos. Dá-me uma

bofetada forte e eu aceito-a sem protestar. Mereço muito pior. Ela

emite um som baixo de satisfação magoada e depois abre a porta o

suficiente para eu entrar.

Meredith continua tão perfeita como a recordo. Tem o cabelo mais

curto, embora não muito mais. Também usa roupas um pouco mais

largas, mas não muito mais. Servimo-nos de vinho, mas não o

bebemos. Ela senta-se num cadeirão na sala de estar e eu no sofá ao

lado dele, e conversamos. Conversamos durante horas. Há uma década

de coisas que não dissemos.

– Desculpa – digo, quando se faz uma pausa suficientemente longa

para eu arranjar coragem para abordar o assunto melindroso. – Sei que

não tenho o direito de perguntar, mas... o que aconteceu entre ti e o

James na aula da Gwendolyn alguma vez aconteceu fora de palco?

Ela acena com a cabeça, sem olhar para mim.

– Uma vez, logo a seguir. Pensávamos que íamos cada um para o seu

lado, mas depois eu entrei na sala de música e ali estava ele. Quis

voltar logo a sair, mas ele agarrou-me e nós simplesmente...

Sei o que deve ter acontecido, sem ela me contar.

– Não sei o que nos levou a fazer aquilo. Eu precisava de

compreender, tu e ele e como ele te tinha tão preso na mão. Não me


ocorria nenhuma outra maneira – diz ela. – Mas acabou assim que

começou. Ouvimos vir alguém... a Filippa, claro, ela devia saber que se

passava alguma coisa... e caímos em nós. Depois, ficámos ali parados.

E ele disse: «No que estás a pensar?» E eu disse: «Na mesma coisa em

que tu estás a pensar.» Nem sequer precisámos de dizer o teu nome. –

Franze a testa, a olhar para a poça vermelha do seu vinho. – Foi só um

beijo, mas, meu Deus, doeu como tudo.

– Eu sei – digo, sem ressentimento. Qual de nós poderia atirar a

primeira pedra? Éramos tão facilmente manipulados; a confusão fez de

nós uma obra-prima.

– Pensei que tinha acabado – diz ela, numa voz tensa e indecisa. –

Mas, na noite da festa do Rei Lear, eu estava na casa de banho a retocar

a maquilhagem e senti uma mão na cintura. No início, pensei que eras

tu, mas era ele, e estava bêbedo e a falar como um tresloucado.

Empurrei-o e disse: «James, o que se passa contigo?» E ele disse:

«Não acreditavas em mim se te contasse.» Agarrou-me de novo, mas

foi um gesto violento. Doloroso. Ele disse: «Ou talvez sejas a única que

acreditaria, mas porquê objetar? O que está feito feito está, e justiça

imparcial para nós os dois.» E foi quanto bastou: adivinhei. Soltei-me a

custo. Saí do Castelo e fui direita ao Colborne. Contei-lhe tudo o que

podia. Não sobre a doca, não sobre aquela manhã, mas tudo o resto. E

queria contar-te a ti, ali mesmo no passadiço, mas tive medo de que

fizesses algo estúpido, como ajudá-lo a fugir no meio do intervalo.

Nunca pensei...

A sua voz desvanece-se.

– Meredith, lamento muito – digo. – Não pensei. Não quis saber do

que me aconteceria, mas devia ter pensado no que te aconteceria a ti.

Não olha para mim, mas diz:

– Há uma coisa que preciso de saber, agora.

– É claro. – Devo-lhe isso, pelo menos.

– Nós. Todo aquele tempo. Alguma parte foi real ou já sabias e nós

fomos uma carta para salvar o James da cadeia? – Fulmina-me com

aqueles seus olhos verde-escuros, e sinto-me nauseado.

– Meu Deus, Meredith, não. Eu não fazia ideia – digo-lhe. – Tu foste

real para mim. Por vezes, pensava que eras a única coisa real.
Acena com a cabeça, como se quisesse acreditar em mim mas

houvesse algo a atravessar-se no caminho. Diz:

– Estavas apaixonado por ele?

– Sim – digo, simplesmente. Eu e o James sentimos um pelo outro o

tipo de paixões arrebatadas de que Gwendolyn falou uma vez, júbilo e

fúria e desejo e desespero. Depois de tudo, era realmente assim tão

estranho? Já não me sinto perplexo, espantado ou embaraçado com

isso. – Sim, estava. – Não é toda a verdade. A verdade toda é que ainda

estou apaixonado por ele.

– Eu sei. – Soa exausta. – Já sabia na altura. Só fingi não saber.

– Eu também. E ele também. Lamento.

Abana a cabeça e fita a janela escura por um momento.

– Eu também lamento, sabes? Que ele se tenha ido.

Dói demasiado falar sobre isso. Doem-me os dentes. Abro a boca

para falar, mas o que sai é um arquejo, um soluço, e a mágoa que o

choque conteve varre-me como uma inundação. Inclino-me para a

frente, aquela estranha gargalhada torcida que tem estado presa na

minha garganta nos últimos dez anos rebenta finalmente. Meredith

salta do cadeirão e derruba o seu copo de vinho, mas ignora o som do

copo a estilhaçar-se. Diz o meu nome e uma dúzia de outras coisas que

quase não ouço.

Nada é tão arrasador como a angústia. Ao fim de um quarto de hora,

sinto-me completamente exausto, com a garganta arranhada e dorida, o

rosto quente e pegajoso com lágrimas. Estou deitado no chão, sem

saber como cheguei ali, e Meredith, sentada, segura-me a cabeça no

regaço como se ela fosse uma coisa frágil e preciosa que pudesse a

qualquer momento quebrar-se. Quando já estou em silêncio há mais

meia hora, ela ajuda-me a levantar-me e leva-me para a cama.

Ficamos deitados lado a lado numa escuridão solene. Só consigo

pensar em Macbeth – na minha imaginação, tem o rosto de James – a

berrar: Não durmais! Macbeth matou o sono, não durmais! Oh,

bálsamo de mentes magoadas. Quero desesperadamente o sono, mas

sem a esperança de o ter.

No entanto, acordo de manhã e pisco os olhos, com as pálpebras

inchadas, quando o sol nasce e se derrama pela janela. A certa altura


da noite, Meredith virou-se e está agora a dormir com o cabelo

estendido em leque atrás de si e a face contra o meu ombro.

Embora nunca cheguemos a falar sobre isso, decide-se de algum

modo que ficarei com Meredith por um período indefinido de tempo.

Embora a sua vida profissional esteja cheia de pessoas, a sua vida

pessoal é predominantemente solitária, com as longas horas

preenchidas com livros, palavras e vinho. Durante uma semana,

replicamos o Natal em Nova Iorque, mas mais comedidamente. Sento-

me no sofá com uma caneca de chá ao meu lado e um livro em cima do

joelho, por vezes a ler, por vezes a fitar as páginas sem as ver. No

princípio, ela senta-se à minha frente. Depois, ao meu lado. Depois,

deitada com a cabeça no meu colo e eu a enfiar os dedos pelo seu

cabelo.

Quando explico tudo isto a Leah, não consigo perceber se está

dececionada ou aliviada.

Alexander telefona e combinamos encontrar-nos para beber um copo

na próxima vez que ele venha a Chicago. Não espero falar com Wren –

Meredith diz-me que ela está em Londres, a trabalhar como

dramaturga e a viver como uma reclusa, com medo do mundo exterior.

Não voltamos a falar sobre James. Sei que, aconteça o que acontecer,

não voltaremos a falar sobre ele.

Filippa telefona e pede para falar comigo. Diz que pôs uma coisa no

correio. Daí a dois dias, ela chega, um envelope pardo com um

envelope branco mais pequeno dentro. Ver a letra de James no segundo

envelope faz-me parar o coração por um instante. Escondo-o debaixo

de uma das almofadas do sofá e decido só o abrir quando Meredith

estiver fora.

Na semana seguinte, ela vai estar em filmagens em Los Angeles.

Pousa uma chave na mesa de cabeceira, beija-me e deixa-me a dormir

na cama em que acabei por pensar – talvez prematuramente – como a

«nossa». Quando volto a acordar, vou buscar a carta de James.

Sei mais agora sobre o que aconteceu. Ele foi de carro para norte, do

pequeno apartamento onde vivia, nos arredores de Berkeley, e afogou-

se nas águas gélidas de inverno das Ilhas San Juan. No seu carro,

abandonado no cais do ferry, deixou as chaves, um frasco vazio de

Xanax e um par de envelopes quase idênticos. O primeiro não tinha


nenhuma espécie de marca nem estava fechado, e continha uma breve

despedida manuscrita, mas nenhuma explicação ou confissão.

(Respeitou, pelo menos, o último pedido que eu lhe fizera.) No

segundo, escrevera só uma palavra:

OLIVER

Abri-o com dedos desajeitados. Dez versos rabiscados no meio da

página. É a letra de James, mas mais irregular, como se tivesse sido

escrita à pressa, com uma caneta em que já restasse pouca tinta.

Reconheço o texto – um monólogo desconexo, como um mosaico,

formado com partes de uma cena no início de Péricles:

Ai de mim! O mar arremessou-me de encontro aos rochedos;

As ondas levaram-me de uma praia à outra, e não me deixaram mais

Que o alento preciso para pensar na morte próxima...

Eu trato de esquecer o que fui,

Mas o que sou força-me a pensar em mim.

Estou transido de frio; tenho as veias geladas,

E da vida só me resta o alento suficiente para vos pedir auxílio;

Se mo recusais, rogo-vos que, em atenção a eu ser homem,

me enterreis quando tiver morrido.

Li-o três vezes, perguntando-me porque escolheria ele um excerto

tão estranho e obscuro para me deixar – até me lembrar de que não

ouvia aquelas palavras desde que ele mas entoou, deitado bêbedo na

areia numa qualquer praia em Del Norte, como se tivesse sido trazido

pela maré para o meu lado. Tenho plena consciência da minha

necessidade desesperada de encontrar uma mensagem na loucura, e,

quando começa a ganhar forma, sinto-me desconfiado, receoso de ter

esperança. Mas as implicações do texto e o seu pequeno papel na nossa

história são impossíveis de ignorar, demasiado críticas para que um

intelectual tão meticuloso como James as ignorasse.

Quando já não consigo aguentar nem mais um momento de inação,

corro pelas escadas acima para o escritório, com a cabeça cheia das
que teriam sido as últimas palavras de Péricles – se ele não tivesse

pedido auxílio.

O computador na secretária crepita a ganhar vida quando toco no

rato, e, após um interminável minuto, estou na Internet, à procura de

todos os registos que consigo encontrar da morte de James Farrow no

meio do sombrio inverno de 2004. Devoro cinco, seis, dez artigos

antigos, que dizem todos a mesma coisa. Afogou-se no último dia de

dezembro e, embora as autoridades locais tenham dragado as águas

gélidas durante dias e ao longo de milhas, o seu corpo nunca chegou a

ser encontrado.
Exeunt omnes.
Nota da Autora

Na escrita deste livro, consultei um número tão elevado de edições

diferentes das obras completas e das peças individuais, que seria

impossível listá-las todas sem que a bibliografia se tornasse mais longa

do que a própria história. Contudo, destacam-se alguns volumes dignos

de menção (e da minha eterna gratidão). The Riverside Shakespeare

(2.ª edição) foi uma companhia quase constante não só na escrita deste

livro, mas também em todos os empreendimentos shakespearianos em

que embarquei desde que ele chegou à minha posse em 2010. Mais

recentemente, e especialmente no processo intricado de revisão,

apoiei-me em The Norton Shakespeare (3.ª edição), com o seu

empenho pioneiro em preservar simultaneamente «o deslumbramento

e a ressonância», como Stephen Greenblatt o descreveu na sessão de

lançamento em outubro de 2015. Tal como Riverside, tornou-se

indispensável, especialmente para percorrer o labirinto textual que é

Rei Lear. Dois outros livros que seria imperdoável não mencionar são

Speaking Shakespeare, de Patsy Rodenberg, que teve uma influência

significativa nas filosofias teatrais de Gwendolyn, e Teatro da Inveja,

de René Girard, que poderia ter evitado muito do que corre mal aos

alunos do quarto ano, se Oliver o tivesse lido um pouco mais cedo.

Devo também admitir aqui que saqueei toda a obra de Shakespeare

com uma falta de contenção estonteada. Os estudantes de teatro do

quarto ano falam uma espécie de inglês bastardo, tão saturado com

palavras, expressões e citações de Shakespeare que quase poderia

classificar-se como um dialeto novo (e, não há como o negar,

excecionalmente pretensioso). Como é um fenómeno natural e não

regulado, em alguns casos as citações pedidas de empréstimo ao Bardo

– que, a bem da clareza, aparecem em itálico, independentemente de se

são em verso ou em prosa – não são transcritas palavra a palavra. Esta


é a liberdade criativa da linguagem. Para os objetivos desta história em

particular, os textos de Shakespeare e dos seus colaboradores (quem

quer que eles possam ter sido) são sempre filtrados pela boca das

personagens e/ou pelo cérebro de Oliver, sendo por conseguinte

submetidos a pequenas transformações. As variantes da ortografia do

início da era moderna foram uniformizadas para o leitor

contemporâneo, e pontuei o texto da maneira que melhor serve quem o

diz ou a cena. Como James comenta no quarto ato, «as vírgulas são

obra do tipógrafo». No entanto, sejam quais forem as pequenas

discrepâncias que possam existir, todas as linhas de Como Se

Fôssemos Vilões foram escritas com a intenção de prestar homenagem

a William Shakespeare – que já teve difamadores, detratores e

negadores suficientes. (Senhores, que tolos são estes mortais.)


Agradecimentos

Sinto-me agradecida a Arielle Datz, que fez uma aposta arriscada

numa escritora muito jovem, a convenceu a afastar-se de vários

precipícios e a acompanhou no processo de publicação com uma

paciência inesgotável e um entusiasmo incansável. A Christine

Kopprasch, que se riu das minhas piadas mais terríveis e fez

maravilhas com o caos do meu manuscrito, com um instinto e uma

perspicácia notáveis quanto à arte da narrativa. A todas as pessoas na

Flatiron Books, cuja dedicação, criatividade e amor pelos bons livros

são uma verdadeira inspiração. A Chris Parris-Lamb, sem cuja

orientação este livro nunca teria passado do estádio da dúvida. Aos

meus colegas de mestrado em King’s College, que confirmaram a

minha convicção de que sim, algumas pessoas são mesmo

suficientemente obcecadas para terem conversas inteiras com citações

de Shakespeare. À Margaret, por dar ouvidos a todas as minhas

queixas. Às minhas primeiras leitoras (Madison, Crissy e Sophie),

todas elas subornadas com vinho, que me ofereceram opiniões de valor

inestimável em troca. Aos meus amigos em Chapel Hill (Bailey, Cary e

a família Simpson), cuja boa vontade nunca vacilou, mesmo em face

da ansiedade artística que me paralisava. Aos professores do ensino

secundário, aos encenadores e aos professores do ensino superior

(Natalie Dekle, Brooke Linefsky, Greg Kable, Ray Dooley, Jeff Cornell

e Farah Karim-Cooper) que encorajaram e facilitaram a minha paixão

por Shakespeare. À minha avó, que promoveu o meu amor pela

literatura desde tenra idade e me deixou beber todo o seu chá e a maior

parte das suas bebidas alcoólicas enquanto eu trabalhava no meu

manuscrito num canto da sua biblioteca. E aos meus pais, que me

levaram de carro a um sem-número de ensaios, assistiram a uma série

de peças verdadeiramente atrozes, leram uma pilha de rascunhos


igualmente hediondos e nunca criticaram as minhas paixões pouco

práticas. Permiti-me agradecer humildemente a todos ao mesmo

tempo.

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