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Isa Prospero
Copyright © 2019 Isa Prospero
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Quando o pacote tinha sido enviado, ela era uma moça de 18 anos.
Casou-se poucas semanas depois e cuidou do marido a vida inteira, até ele ser
levado (que Deus o tivesse) trinta anos depois. Não conseguia imaginar o que
teria feito se a caixa tivesse sido entregue na hora certa. Aquela parecia outra
vida. O que ela gostava de fazer quando menina? Brincadeiras de criança,
traquinagens com os primos, encenações com bonecas. Teve receio de casar,
mas o Luís era um homem bom – e as coisas não eram como nos tempos
atuais, em que as moças escolhiam fazer carreira, morar sozinhas ou até sair
pelo mundo.
Agora, aos 83 anos, dona Simone era viúva, mãe de cinco filhos, avó
de catorze e bisavó de dois. A visão estava se anuviando, a audição já não era
a mesma, as mãos vacilavam e as pernas lutavam contra as varizes. A última
coisa que faria era sair em aventuras.
Mas aqueles objetos eram presentes, e os mortos não se despreza.
Tirou os artefatos da caixa e os levou à saleta onde ficava o velho piano,
dispondo-os atrás de porta-retratos que exibiam casamentos, batizados e
aniversários, em tons que iam do preto e branco às cores intensas das câmeras
digitais. Um mar de rostos dos Almeida em que faltava um membro: tia
Heloísa, finalmente representada.
Pronto, ela pensou. O que quer que pudesse ter feito com aquelas
coisas 65 anos antes não importava mais. O que uma velha como ela faria
com uma bússola e uma adaga, afinal? Aventura era coisa de jovens. Ela ia
deixar os presentes quietos.
*
A casa cheia a transportava para outros tempos. Só quando olhava
mais de perto a ilusão se desfazia: os filhos crescidos ficavam tentando ajudar
em vez de ser ajudados, enquanto os netos mantinham a cara enfiada em
celulares ou outros aparelhos que ela nem conhecia. Mas o zumbido das
vozes confortava seu coração e, quando se sentou na poltrona para entregar
os presentes, sentiu o calor da familiaridade que só existe no lar.
Um dos netos se aproximou depois de um cutucão da mãe. O menino,
como sempre, estava vestido todo de preto e tinha os olhos circulados com
uma sombra escura. Até brinco ele usava! Dona Simone não entendia as
modas dos jovens, mas cada dia eles inventavam alguma coisa.
— João — ela tentou. — Marcos…
— Lucas, vó — ajudou o garoto.
— Lucas. Você… — Ela hesitou. O garoto usava um colar com um
pingente prateado, uma estrela dentro de um círculo. Ela se inclinou para a
frente e estendeu uma mão para a peça. O menino congelou, assustado. — O
que é isso?
— Um, ééé, pentagrama.
— E o que faz?
— É só um amuleto.
— Um amuleto mágico?
Lucas relanceou para os lados. Os parentes estavam todos ocupados,
conversando, comendo e bebendo, e ele se virou de novo para ela.
— Sim?
— Ô, fio. Vem cá. — Ela se inclinou ainda mais para a frente na
poltrona. — Você entende muito de magia?
— Por quê, vó? — O garoto estreitou os olhos, cruzando os braços e
se afastando um pouco. — O que minha mãe disse pra senhora? Já falei mil
vezes que não sou satanista, ela é que é exagerada! A magia é uma tradição
milenar de conexão com o cosmos e a natureza. Não tem nada a ver com
rituais macabros.
Dona Simone pensou por um momento.
— Não tem?
— Não.
— Olha só… — Ela perdeu o fio da meada. Lucas esperava com o
cenho franzido. — Sua mãe não disse nada, não, fio. A vó só estava curiosa.
— Tá — respondeu o garoto, com um tom de dúvida. Então pigarreou
e pegou o presente das mãos dela. Luvas de lã preta. — Brigado, vó.
Quando viu a silhueta por trás da cortina, dona Simone achou que o
neto a tinha desobedecido. A pessoa aparentava ter a idade de Lucas e usava
calça jeans e um moletom preto largo. O rosto era queimado de sol, o cabelo
castanho cortado rente à cabeça e a única bijuteria que usava era um colar
parecido com o de Lucas, mas com uma estrela de sete pontas. Simone
deixou cair a cortina e ficou bem quieta, encolhida perto da parede. A
campainha tocou outra vez, então começaram batidinhas no vidro.
— Tem alguém em casa?
Depois de alguns segundos disso, Simone respirou fundo e destrancou
a porta. As batidas pararam enquanto ela abria uma fresta mínima, só o
suficiente para espiar por um olho.
— Sim, querida?
Os olhos do outro lado se estreitaram.
— Meu nome é Heitor.
— Ah — foi tudo que disse dona Simone, reparando mais de perto em
como o desconhecido estava vestido. Sua visão não era mais tão boa como
antigamente. De toda forma, não era educado questionar visitas. — Perdão.
Querido.
— Estou procurando a feiticeira que mora neste local — anunciou
Heitor.
— Ai, eu sabia que o Lucas ia dar com a língua nos dentes!
Heitor franziu as sobrancelhas.
— Quem é Lucas?
— Meu neto.
— Eu não faço a menor ideia de quem é o seu neto. Posso entrar?
Mas o rapaz já estava empurrando a porta e passando por ela. Simone
seguiu atarantada. Se Heitor não conhecia Lucas, como sabia que ela era uma
bruxa?
— Eu sou um mago — anunciou o jovem em tom severo como que
em resposta à pergunta silenciosa. — Um alquimista, mais especificamente.
E sei que há uma feiticeira neste local.
— Não quer sentar? — Simone convidou, conduzindo-o para longe da
saleta do piano.
Ele continuou em pé e virou-se para ela.
— Recebi uma profecia que diz que ela vai me afastar do meu
caminho. — A cara do rapaz ficou ainda mais sombria. — E não posso
permitir que isso aconteça. Então estou procurando esta feiticeira… para
impedi-la. Custe o que custar.
— Misericórdia!
— Não se alarme, senhora. Apenas me diga onde a bruxa se esconde.
— Ele olhou ao redor, perscrutando a sala como se esperasse alguém pular de
trás de uma poltrona.
Dona Simone pigarreou, retorcendo as mãos. Ela sabia – desde que
aquela caixa chegou, sabia que não vinha coisa boa dali. Agora isso? Ela ia
morrer nas mãos de um mago da idade do neto por causa de uma profecia que
nem fazia sentido?
Heitor esperava uma resposta, inflexível.
— Sou eu — ela disse baixinho.
— O quê?
— Só eu moro aqui. Eu sou a feiticeira da casa.
Os olhos de Heitor se arregalaram. O rapaz deu um passo para trás e
levou uma mão às costas, como se estivesse prestes a puxar uma arma.
— Pois então, prepare-se para um duelo!
— Duelo? — Simone ergueu as mãos. — Eu não sei duelar!
— Não? — Ele hesitou. A outra mão, que tinha estendido em defesa,
foi baixando devagar até cair de vez. — Há quanto tempo a senhora é bruxa?
— Duas semanas.
— Duas semanas? Isso não pode estar certo. Será que errei de casa?
Mas os cálculos apontavam pra esse lugar… Eu vim lá de Pernambuco… —
Ele bufou, esfregando a cabeça. — Tem que ser a senhora. Quantas bruxas
pode haver nesse fim de mundo do interior de São Paulo? E não posso deixar
que atrapalhe meus planos. Como os conhece?
— Quem?
— Lino Barbosa, Bruno da Costa e Vitor Pereira — ele recitou os
nomes num fôlego só, como se Simone devesse reconhecê-los. — Da capital.
Conhece um dos três, não é? É por isso que vai tentar me impedir de fazê-los
pagar por seus crimes?
— Não conheço esse pessoal, não — ela disse depressa. — Menino,
você vai me machucar?
Heitor pareceu constrangido.
— Se a senhora diz que não os conhece…
— Só conheço meus netos lá de São Paulo, mais ninguém.
— Então eu devo ter errado o lugar… Profecias são um saco! —
explodiu o garoto de repente. — Custava dar um endereço, umas
coordenadas? Não, é tudo em código! Posição da lua aqui, as estrelas girando
pra lá! E agora, pra achar a bruxa certa?
O garoto repuxou os cabelos, tão curtos que não conseguia agarrar um
punhado. Apesar de todo aquele papo de violência, Simone tinha experiência
com adolescentes e eles tendiam a ser dramáticos. A frustração de Heitor
estava clara. Só havia uma coisa a fazer.
— Quer um bolinho? — ela perguntou. Heitor a encarou com as mãos
ainda no cabelo. — Tem uma broa gostosa na cozinha, fiz ontem. Vem com a
vó.
Heitor estremeceu quando ela fechou uma mão ossuda ao redor do seu
braço, mas se deixou ser levado até a cozinha. Simone começou a empilhar
comida em um prato e passou um café. O garoto olhou a fartura com olhos
desconfiados, mas por fim provou um bocado.
E outro. E mais um.
— Você é lá do Nordeste, então?
Ele balançou a cabeça em negativa.
— Nasci no Rio. Mas vivo… por aí.
— Ah, é? E dorme onde?
O rapaz deu de ombros.
— Eu me viro.
Simone deu uma espiada na mochila enorme que ele tinha apoiado em
uma cadeira. Estava estufada, de roupas talvez. Até caberia um cobertor.
— Seus pais não ficam preocupados?
Aquele mesmo olhar de quando Simone o chamara de querida.
— Meus pais não se importam com o que acontece comigo. Dizem
que não têm um filho.
Ele encarou Simone como se a desafiasse a duvidar da afirmação, mas
a verdade estava toda ali, na dureza dos ombros e no modo exageradamente
casual como jogara a frase sobre a mesa. Simone balançou a cabeça. Não
conseguia entender coisas assim. Filhos eram sagrados. Deus sabia que os
dela nem sempre seguiram os caminhos que ela tinha sonhado – era cada
decisão precipitada, escolha equivocada, relacionamento fracassado… E os
netos, então, que ela mal entendia? Mas não precisava entendê-los para amá-
los. Eram família, e seu papel era estar ao lado deles.
Ela observou Heitor devorar o lanche que tinha servido e continuou
oferecendo comida até o garoto erguer uma mão para pará-la. Seu rosto
estava um pouco mais tranquilo agora. Encher crianças de comida era um
ótimo jeito para fazê-las sossegar o facho.
— Vem — disse Simone, se levantando —, você pode ficar no quarto
do Jorge.
— O quê? Passar a noite aqui?
— Dormir na rua é que não vai!
Seu tom não admitia questionamentos e Heitor apanhou a mochila e a
seguiu pela casa onde ela tinha criado cinco filhos. O quarto de Jorge, o mais
velho, era o maior, e ela sempre mantinha lençóis no armário caso alguém
viesse passar a noite. Alguns pôsteres de banda da época de adolescência do
filho ainda estavam colados na parede e uma caixa com suas tralhas –
brinquedos e jogos de tabuleiro e camisetas velhas – estava enfiada num
canto do armário.
— Mas é só até eu descobrir onde está a bruxa que eu preciso derrotar
— disse Heitor depressa, antes que ela fechasse a porta.
— Certo, certo — cedeu Simone, conciliadora. — Agora vá dormir.
Deus abençoe.
— A senhora enlouqueceu?
As palavras de Lucas saíram num sussurro nervoso. A mãe do garoto
e seu irmão estavam na sala, tomando um suquinho e vendo TV. Júlia tinha
ficado alarmada quando ela contou sobre Heitor (que estava na cozinha, de
olho no bolo), mas calou-se quando ela impôs sua vontade. Simone sabia ser
teimosa quando queria.
O neto a puxara para um canto logo em seguida.
— O Zósimo tá morando aqui? Depois de tentar matar a senhora?
— Já falei que não foi nada! Quero que conheça ele, Luquinha. Acho
que vão ser bons amigos.
— Vó, ele participava do mesmo fórum que eu e foi banido porque
ficava falando de criar poções maléficas. É legal ele ter ajudado a senhora a,
sei lá, guardar os pratos e tal, só que às vezes a pessoa já escolheu o lado
sombrio da Força, entende? — Ela não entendia. — O que quero dizer é que
ele claramente está planejando alguma coisa. Alguma coisa terrível. Tipo
transformar a senhora num sapo e fugir com seus artefatos mágicos.
— Eu nunca machucaria a dona Simone.
Lucas deu um pulo. Heitor tinha surgido silenciosamente ao lado
deles. Usava um avental onde se lia Melhor vó do mundo amarrado ao redor
da cintura e seu tom era desdenhoso.
A boca de Lucas se abriu sozinha. O neto encarou o alquimista.
— Você é o Zósimo?
Heitor empinou o queixo.
— Sou.
— Mas… mas você é…
Simone cutucou-o com a adaga mágica, que de alguma forma sempre
ia parar no bolso do seu vestido.
— Ai, vó!
— Vocês gostam das mesmas coisas. Por que depois do almoço não
vão no quarto da vó e dão uma olhada naquele livro que ganhei da tia
Heloísa? Tem um monte de história de bruxaria.
Os olhos de Lucas se arregalaram. Heitor ergueu uma sobrancelha. Os
dois falaram ao mesmo tempo:
— Sério?
— Mesmo?
— Vocês vão adorar.
— Eu pedi quinhentas vezes pra ler o livro e a senhora não deixou! —
Lucas protestou.
— Eu também — acrescentou Heitor, com uma cara desconfiada.
Olhou para Lucas como se tentasse entender o que ela estava aprontando.
Então perguntou: — Você é mesmo um aprendiz de mago?
Lucas limpou a garganta.
— Hmm, não aprendiz exatamente, mas eu sou um grande entusiasta
das artes mágicas.
— Entendo. — Ele não parecia impressionado.
— Mas um dia serei um mago — afirmou Lucas, empinando o
queixo. — E não preciso de magia pra proteger minha vó.
— Que isso, Luquinha! — exclamou dona Simone. — Não preciso de
proteção contra o Zó. — Afagou o cabelo curto de Heitor e lhe deu um beijo
na bochecha que desfez sua carranca.
— Claro que não — Heitor murmurou. E para Lucas: — Bom, acho
que você pode me ajudar a solucionar uma profecia. Se quiser.
Os olhos de Lucas ficaram grandes como luas por um segundo, então
ele se esforçou para parecer indiferente.
— Uma profecia? — Ele encolheu os ombros. — Ééé, acho que tenho
um tempo livre.
Simone sorriu. A única coisa sobre o neto que entendia depois das
últimas semanas era que não deixaria Heitor em paz antes de aprender tudo
que ele sabia.
As mãos não tremem, a vista está clara. Mas não há magia capaz de
fazer o tempo voltar.
Ela abre o caderno de registros com cuidado. Pega a caneta preferida
de Luís, herdada do pai e do avô dele e só usada em ocasiões especiais.
Simone não toca nela desde a morte do marido – mas, se isto não for especial,
nada jamais será.
Simone dos Santos. Fui filha, esposa, mãe, avó e bisavó por 83 anos e
bruxa por 2 meses. Não tive tempo de realizar grandes feitos. Só de escolher
meus sucessores.
Sobre a autora
Isa Prospero nasceu em Piracicaba e mora em São Paulo, onde traduz,
revisa e acumula livros. É coautora do romance juvenil Volto quando puder
(2016) e publicou histórias de ficção especulativa nas antologias Mitografias
e nas revistas Trasgo, Mafagafo, Superinteressante, The Fantasist, entre
outras. Para conhecer seus trabalhos, visite o site: www.isaprospero.com.