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A feiticeira de São Judas

Tadeu dos Milagres

Isa Prospero
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CAPA Dante Luiz


LEITURA SENSÍVELVic Vieira
REVISÃO Giovana Bomentre
Dona Simone afastou a cortina e espiou pela porta de vidro. O rapaz
usava um uniforme azul e um boné dos Correios, mas o pessoal dos Correios
sempre deixava a correspondência na caixinha fora do portão. Além disso, o
moço não trazia cartas, mas uma caixa de madeira toda riscada, entalhada e
enfaixada com fitas de várias cores. Ela não tinha encomendado nada – mas
ele a viu atrás da porta e ergueu uma mão em cumprimento, de modo que
Simone não teve escolha. Abriu o pega-ladrão de cima, o pega-ladrão de
baixo e girou a chave três vezes.
— Sim? — perguntou por uma fresta.
— Simone Almeida dos Santos?
— Sou eu.
— Entrega para a senhora.
— Eu não tava esperando nada não, fio.
— É uma situação especial, senhora. — O moço pareceu
constrangido. — Eu venho do Departamento de Extravios. Nós fazemos
entregas atrasadas ou perdidas por períodos extensos. A senhora devia ter
recebido esse pacote quando sua tia Heloísa faleceu.
Simone franziu o cenho. Heloísa – aí estava um nome que ela não
escutava havia muito tempo. Uma mulher estranha, que nunca casou e não
tinha muito contato com o resto da família. Tinha morrido longe e o pai de
Simone só ficara sabendo por telefone.
Ela tomou um susto quando lembrou quando isso tinha acontecido.
— Mas a tia Lisa morreu quando eu era moça!
— Exatamente — confirmou o rapaz. — O pacote estava perdido há,
hm, 65 anos.
— Nossassenhora!
— Os Correios sentem muitíssimo — prosseguiu o entregador — e
agradecem sua compreensão. Pode assinar aqui?
Ele estendeu uma folha azul coberta com letrinhas tão pequenas que
nem com óculos ela conseguiria enxergar. Atordoada, Simone assinou o
papel com uma mão trêmula, fechou a porta e se viu recipiente da caixa de
madeira.
Levou-a para a sala, arrastando os chinelos pelo chão de taco até sua
poltrona preferida, que tinha sido o lugar cativo do marido por três décadas.
Nos 65 anos desde que fora enviado, o pacote aparentemente tinha passado
por maus bocados, e ela passou um longo tempo arrancando fitas até
encontrar o fecho e conseguir abri-lo. Dentro, havia alguns objetos
escondidos debaixo de um tecido delicado e, por cima deles, uma carta.
Apesar do tempo, o papel estava branquinho. Ela desdobrou a folha
com delicadeza. Querida sobrinha, começava a carta, numa letra bonita e
rebuscada. Escrevo para informá-la que você é uma bruxa.
Dona Simone soltou uma exclamação e a carta, que caiu ao chão.
Então se benzeu e, com dedos trêmulos de idade e susto, pegou o papel outra
vez, empurrando os óculos para cima do nariz. Tia Heloísa continuava:
Provavelmente será uma surpresa, mas não se alarme. Nossa família
tem uma longa tradição de bruxas e bruxos. Os objetos desta caixa são nossa
herança há gerações e cabe a mim repassá-los a um novo guardião. Sempre
pressenti talento mágico em você e tenho certeza de que fará bom proveito
deles.
Dois são artefatos de imenso poder que me acompanharam por
muitas aventuras: uma bússola, que a guiará até os destinos que deseja
alcançar, e uma adaga, que a protegerá de seus inimigos. Ninguém mais
poderá usá-los enquanto você viver. Por fim, encontrará um livro onde
nossos antepassados registraram seus grandiosos feitos e nos quais ratifiquei
esta herança. Tenho certeza de que o preencherá com muitas realizações e
que encontrará nobres herdeiros com os quais deixá-los.
Com carinho,
Tia Heloísa.
Simone leu a carta seis vezes, cada vez mais espantada. Uma bruxa!
Heloísa sempre fora a ovelha negra da família e Simone nunca entendeu bem
por quê – o pai dizia apenas que não era moça direita. Mas bruxaria?
Ela pôs a carta de lado e levantou o tecido rendado, revelando uma
bússola de cobre com uma rosa dos ventos desbotada e uma adaga com cabo
de marfim entalhado enfiada numa bainha de couro. O livro estava por baixo;
tinha uma capa de couro e folhas grossas e amareladas.
Talvez tia Lisa fosse apenas louca. Talvez por isso não tivesse casado.
Era mais provável do que ser de fato uma bruxa, não era?
Simone tocou de leve no cabo da adaga. Várias coisas aconteceram ao
mesmo tempo, um tempo rápido como um piscar de olhos e lento como um
sonho: um arrepio a percorreu da cabeça aos pés; as cortinas da janela, que
esvoaçavam até um momento antes, pararam infladas em pleno ar; e o canto
dos sabiás, que vinham bicar as frutinhas no jardim, silenciou subitamente.
Ela soltou o ar e afastou os dedos. Os sons se ergueram de novo e as
cortinas voltaram lentamente ao lugar.
— Jesus amado — sussurrou Simone na casa vazia.

Quando o pacote tinha sido enviado, ela era uma moça de 18 anos.
Casou-se poucas semanas depois e cuidou do marido a vida inteira, até ele ser
levado (que Deus o tivesse) trinta anos depois. Não conseguia imaginar o que
teria feito se a caixa tivesse sido entregue na hora certa. Aquela parecia outra
vida. O que ela gostava de fazer quando menina? Brincadeiras de criança,
traquinagens com os primos, encenações com bonecas. Teve receio de casar,
mas o Luís era um homem bom – e as coisas não eram como nos tempos
atuais, em que as moças escolhiam fazer carreira, morar sozinhas ou até sair
pelo mundo.
Agora, aos 83 anos, dona Simone era viúva, mãe de cinco filhos, avó
de catorze e bisavó de dois. A visão estava se anuviando, a audição já não era
a mesma, as mãos vacilavam e as pernas lutavam contra as varizes. A última
coisa que faria era sair em aventuras.
Mas aqueles objetos eram presentes, e os mortos não se despreza.
Tirou os artefatos da caixa e os levou à saleta onde ficava o velho piano,
dispondo-os atrás de porta-retratos que exibiam casamentos, batizados e
aniversários, em tons que iam do preto e branco às cores intensas das câmeras
digitais. Um mar de rostos dos Almeida em que faltava um membro: tia
Heloísa, finalmente representada.
Pronto, ela pensou. O que quer que pudesse ter feito com aquelas
coisas 65 anos antes não importava mais. O que uma velha como ela faria
com uma bússola e uma adaga, afinal? Aventura era coisa de jovens. Ela ia
deixar os presentes quietos.

O problema era que os presentes não queriam ser deixados quietos.


Simone se pegava visitando a saleta do piano com muito mais frequência do
que fazia normalmente, sentindo como se as peças a chamassem. E não
parava por aí – um dia sonhou que estava na proa de um navio, com as velas
estalando atrás de si e o vento agitando os cabelos enquanto verificava os
movimentos da bússola. Outra noite, foi tomada por visões daquela adaga de
cabo de marfim e uma perseguição numa cidade desconhecida, com chão de
paralelepípedos e lampiões a gás. Acordou afobada, achando que estava
morrendo. Na idade dela, qualquer emoção forte podia ser a última.
— Tá tudo tranquilo — disse no telefone para a filha Júlia na noite
seguinte. Não sabia como explicar a situação para os filhos; era capaz de
acharem que estava de miolo mole. — Não se preocupa com a mãe.
— A gente vai visitar a senhora no domingo — disse Júlia. — Os
meninos estão com saudades.
Simone duvidava disso. Criança não tinha paciência para velho. O
primeiro garoto dela (Pedro? Paulo?) não parava quieto, e o mais novo
(Marcos? Lucas?) era um menino casmurro, que se vestia todo de preto e não
olhava as pessoas nos olhos. A filha sempre se lamentava dos adolescentes e
Simone tentava lembrá-la que ela também não tinha sido muito fácil, mas os
pais às vezes esqueciam que já foram jovens.
De toda forma, ela esperava que os parentes, que costumavam vir de
São Paulo para São Judas Tadeu dos Milagres nos fins de semana, a
distraíssem daquelas coisas que pareciam sussurrar quando ela passava e
invadiam seus pensamentos dia e noite.
E como precisava de uma distração! Naquela noite mesmo, como se
pressentissem seus pensamentos traidores, os objetos não a deixaram em paz
até que ela se levantou, atravessou o corredor e entrou na saleta, iluminada
apenas pelo luar que atravessava a janela de vidro fosco. A pressão no canto
da mente e o zumbido fraco nos ouvidos amainou à medida que se
aproximava e estendia uma mão para o canto do piano – mas Simone errou o
lugar, desalojou um porta-retratos e ouviu um som alto quando alguma coisa
caiu no chão e se estilhaçou.
Procurou o interruptor na parede e preencheu a saleta de luz. Lá
estava a bússola, com o vidro quebrado e a agulha solta no chão. Resmungou
baixinho enquanto abaixava com dificuldade para catar os cacos, mas por
algum motivo, em vez fazer isso, pegou a agulha. Não era daquelas com duas
pontas; um dos lados terminava em um buraco circular. Quase como uma
agulha de costura, pensou Simone.
Encarou a agulha, então a mão que a segurava. Estava
surpreendentemente firme. A ideia veio não soube de onde e, sem pensar
muito, ela deixou os cacos no chão e foi sentar em sua poltrona. Ao lado,
esperava a cesta com os projetos de bordados para a família – abandonados
desde que as mãos ficaram tão instáveis que ela acabava se picando mais do
que acertando o ponto. Tirou as peças uma a uma, gorrinhos, xales, até luvas,
porque estava chegando o inverno e os filhos sempre diziam que o frio em
São Paulo era mais forte que no interior. Ergueu a agulha e passou o fio.
Para cada filho e neto, fez um detalhe diferente. Ela podia não se
lembrar do nome de todos, mas seus rostinhos estavam marcados no seu
coração. Para Júlia, um cachecol com a flor preferida, orquídea. Pensou na
dificuldade da filha com o ex-marido, um traste que não pagava pensão, e
desejou que ela encontrasse um homem melhor. Para Luísa, um gorro com
passarinhos – ela ia precisar, se tivesse mesmo que ir para a quimioterapia.
Para Jorge, detalhes discretos em um pulôver. Tinha sido demitido dois
meses antes e ainda não encontrara emprego. Simone lhe dizia para ter calma,
mas o filho sempre tinha sido ansioso.
E assim foi, seus dedos se movendo com uma agilidade que mal
lembrava de já ter tido. Percebeu que o tempo tinha passado só quando o sol
suplantou a lâmpada e encheu a sala de luz. Uma pilha de peças terminadas
se erguia ao seu lado. Tinha passado a noite acordada e nem reparado! Ela
encarou a agulha com uma pontada de cautela. Certamente não tinha feito
nada de mal…
Coletou os restos da bússola do chão e guardou-os com a agulha no
cantinho do piano. Não ia mais pensar nisso.
Já sabia o que ia distraí-la: cozinhar. Fazia tempo que não tentava,
mas a noite de bordados tinha lhe devolvido a confiança nas mãos – e, ao
contrário do que seria de esperar, não estava nem um pouco cansada.
Pegou o leite, a farinha, os ovos. Faria um bolo – com cobertura e
recheio – para a família toda. A atividade era relaxante, reconfortante;
quantas vezes já não cozinhara para eles? Só precisava do abridor de latas,
que não se encontrava em lugar nenhum. A moça que limpava a casa era tão
organizada, onde tinha ido parar o negócio? A lata esperava na pia enquanto
a massa assava. Ela precisava daquilo sem falta. Pegou uma faca, tentou,
forçou e nada – o metal duro não cedia. Todas as lâminas da cozinha
pareciam ter ficado cegas do dia para a noite. Só se ela tentasse…
Foi até o piano, envolveu os dedos no cabo de marfim e puxou a
bainha. A lâmina cintilou bronzeada, captando a luz refletida dos azulejos na
parede. Simone não encostou nela. Sabia só de olhar que era a coisa mais
afiada que já tinha segurado na vida. Voltou à cozinha e fez uma leve pressão
na lata de leite condensado…
O metal cedeu como manteiga. Que delícia de faca! Tinha um aspecto
um pouco amedrontador, era verdade, com uns entalhes de crânios meio
esquisitos no cabo, mas fatiava que era uma beleza. Não queria mais largá-la.
O negócio não ficava engordurado e separou as metades do bolo
perfeitamente na hora de rechear. Sem dúvida não fazia mal em usá-la; ela
não estava realizando nenhum tipo de feitiçaria, afinal. Não tinha inimigos
contra quem se proteger e não sonharia em empunhar uma arma mesmo se a
casa fosse invadida por ladrões. Não, não ia fazer mal.
Guardou-a na gaveta de talheres. No dia seguinte, a usou para fatiar o
bolo para as visitas.

*
A casa cheia a transportava para outros tempos. Só quando olhava
mais de perto a ilusão se desfazia: os filhos crescidos ficavam tentando ajudar
em vez de ser ajudados, enquanto os netos mantinham a cara enfiada em
celulares ou outros aparelhos que ela nem conhecia. Mas o zumbido das
vozes confortava seu coração e, quando se sentou na poltrona para entregar
os presentes, sentiu o calor da familiaridade que só existe no lar.
Um dos netos se aproximou depois de um cutucão da mãe. O menino,
como sempre, estava vestido todo de preto e tinha os olhos circulados com
uma sombra escura. Até brinco ele usava! Dona Simone não entendia as
modas dos jovens, mas cada dia eles inventavam alguma coisa.
— João — ela tentou. — Marcos…
— Lucas, vó — ajudou o garoto.
— Lucas. Você… — Ela hesitou. O garoto usava um colar com um
pingente prateado, uma estrela dentro de um círculo. Ela se inclinou para a
frente e estendeu uma mão para a peça. O menino congelou, assustado. — O
que é isso?
— Um, ééé, pentagrama.
— E o que faz?
— É só um amuleto.
— Um amuleto mágico?
Lucas relanceou para os lados. Os parentes estavam todos ocupados,
conversando, comendo e bebendo, e ele se virou de novo para ela.
— Sim?
— Ô, fio. Vem cá. — Ela se inclinou ainda mais para a frente na
poltrona. — Você entende muito de magia?
— Por quê, vó? — O garoto estreitou os olhos, cruzando os braços e
se afastando um pouco. — O que minha mãe disse pra senhora? Já falei mil
vezes que não sou satanista, ela é que é exagerada! A magia é uma tradição
milenar de conexão com o cosmos e a natureza. Não tem nada a ver com
rituais macabros.
Dona Simone pensou por um momento.
— Não tem?
— Não.
— Olha só… — Ela perdeu o fio da meada. Lucas esperava com o
cenho franzido. — Sua mãe não disse nada, não, fio. A vó só estava curiosa.
— Tá — respondeu o garoto, com um tom de dúvida. Então pigarreou
e pegou o presente das mãos dela. Luvas de lã preta. — Brigado, vó.

Duas semanas depois, Simone estava tirando o pó do topo das janelas


quando a campainha soou. Sentia-se rejuvenescida; tinha dispensado a
diarista e cuidava dos próprios afazeres agora. As pernas funcionavam como
se tivessem 30 anos a menos, os olhos não precisavam mais dos óculos e os
dedos se moviam com agilidade de aranha para tecer bordados e assar
quitutes. Ela desceu da escadinha e foi à porta.
Era o neto. Felipe? Não. Lembrou-se de repente, a memória estalando
como um elástico e trazendo a informação.
— Lucas! O que tá fazendo aqui, garoto? É dia de semana. Não tem
aula?
— Posso entrar, vó?
Ela o deixou passar.
— Sua mãe sabe que você tá aqui?
— Não. E acho melhor ela não saber… por nós dois. — O garoto
andou pela sala, examinando os cantos como se procurasse alguma coisa. Viu
a escada apoiada na parede e se virou para ela. — A senhora tá fazendo
faxina?
Dona Simone tentou disfarçar. Foi difícil, com o pano de pó ainda
sobre o ombro.
— Só um pouquinho.
— Eu sabia! — exclamou o garoto. Ele tirou a mochila das costas e
puxou algo de dentro: as luvas que ela tinha lhe dado. — A senhora é uma
bruxa, não é?
Ela levou uma mão no peito.
— Quê?
— Nem tente negar! A senhora fez alguma coisa com esses presentes!
Eles estão… mudando tudo. Tá todo mundo se dando bem nas últimas
semanas. Quer dizer, eu tirei dez em Física! O que foi que a senhora fez?
Desde quando pratica magia?
Simone raciocinou, alarmada. Dois dias antes, Júlia tinha ligado para
contar que conhecera um homem ótimo que adorava crianças. Jorge estava
todo contente porque tinha recebido uma oferta de emprego. E Luísa tinha
ligado às lágrimas: os médicos diziam que sua recuperação tinha sido
milagrosa.
— Jesus! — exclamou Simone. — Fui eu!
— A-há!
— Foi sem querer!
Os olhos do menino reluziam.
— Me conta tudo.
Simone levou-o ao piano. Mostrou-lhe a carta, as peças da bússola e o
livro com capa de couro, então tirou a adaga do bolso do vestido, fazendo o
neto dar um pulo para trás.
— Foi isso — concluiu ela. — Eu não queria fazer feitiço nenhum!
Não sei o que deu em mim.
Lucas lia e relia a carta de sua tia-avó Heloísa. A boca estava aberta
fazia vários minutos. A voz do garoto saiu num sussurro:
— Minha avó é uma bruxa. Eu não acredito. O pessoal vai pirar!
— Do que você tá falando, menino?
— Vó, eu faço parte de um grupo de estudos de magia — ele contou,
as palavras se atropelando de tanta animação. — Quer dizer, nenhum de nós é
um bruxo exatamente, mas a gente sabe que eles existem, tem muitas provas
por aí. E muitos objetos mágicos, como esses da tia Heloísa. Agora eu sei que
é tudo verdade! Isso é incrível!
— Ah, que bom, Luquinha. — O garoto precisava de amigos. Júlia
ficaria feliz.
— O que a gente vai fazer? — Lucas parecia quase falar consigo
mesmo. — Precisamos, sei lá, estudar essas coisas. Não sei. Vou ter que
perguntar no fórum.
— Fórum?
— É, na MagicWeb. — Quando ela franziu as sobrancelhas, ele
acrescentou: — É uma rede social para entusiastas do sobrenatural. Na
internet? Deixa pra lá.
Mas ela entendeu o suficiente.
— Não sai por aí falando dessas coisas, menino! Não vou mais usar
nada disso.
Ela sentiu uma pontada de arrependimento assim que as palavras
saíram: sentiria falta da adaga e da agulha que pareciam agilizar suas mãos.
Tudo bem que até então os objetos só tinham ajudado sua família e que o
neto tinha dito que não eram coisa do demônio, mas como saber o que
podiam fazer no futuro? E se esse tal grupo de bruxos tentasse se aproveitar
de Lucas – ou até roubar os artefatos?
Ela teria que instalar mais uma fechadura na porta.
— Mas vó…
— Nem pensar! As coisas ficam aqui.
O menino cruzou os braços.
— Uma hora vão ter que passar pra alguém, como a carta dizia! — ele
exclamou, então ficou encabulado. — Quer dizer, não tô dizendo que...
— Eu vou morrer logo, é verdade. Mas até lá ninguém vai mexer
nisso. Esquece esse assunto. É perigoso brincar com coisa que a gente não
entende.
Ele insistiu, mas ela tinha criado cinco filhos e não se deixava levar
por pedidos, lágrimas ou recriminações. Não ia mais usar os objetos e ponto.
Estava decidido.
Sua carreira de bruxa estava terminada.

Quando viu a silhueta por trás da cortina, dona Simone achou que o
neto a tinha desobedecido. A pessoa aparentava ter a idade de Lucas e usava
calça jeans e um moletom preto largo. O rosto era queimado de sol, o cabelo
castanho cortado rente à cabeça e a única bijuteria que usava era um colar
parecido com o de Lucas, mas com uma estrela de sete pontas. Simone
deixou cair a cortina e ficou bem quieta, encolhida perto da parede. A
campainha tocou outra vez, então começaram batidinhas no vidro.
— Tem alguém em casa?
Depois de alguns segundos disso, Simone respirou fundo e destrancou
a porta. As batidas pararam enquanto ela abria uma fresta mínima, só o
suficiente para espiar por um olho.
— Sim, querida?
Os olhos do outro lado se estreitaram.
— Meu nome é Heitor.
— Ah — foi tudo que disse dona Simone, reparando mais de perto em
como o desconhecido estava vestido. Sua visão não era mais tão boa como
antigamente. De toda forma, não era educado questionar visitas. — Perdão.
Querido.
— Estou procurando a feiticeira que mora neste local — anunciou
Heitor.
— Ai, eu sabia que o Lucas ia dar com a língua nos dentes!
Heitor franziu as sobrancelhas.
— Quem é Lucas?
— Meu neto.
— Eu não faço a menor ideia de quem é o seu neto. Posso entrar?
Mas o rapaz já estava empurrando a porta e passando por ela. Simone
seguiu atarantada. Se Heitor não conhecia Lucas, como sabia que ela era uma
bruxa?
— Eu sou um mago — anunciou o jovem em tom severo como que
em resposta à pergunta silenciosa. — Um alquimista, mais especificamente.
E sei que há uma feiticeira neste local.
— Não quer sentar? — Simone convidou, conduzindo-o para longe da
saleta do piano.
Ele continuou em pé e virou-se para ela.
— Recebi uma profecia que diz que ela vai me afastar do meu
caminho. — A cara do rapaz ficou ainda mais sombria. — E não posso
permitir que isso aconteça. Então estou procurando esta feiticeira… para
impedi-la. Custe o que custar.
— Misericórdia!
— Não se alarme, senhora. Apenas me diga onde a bruxa se esconde.
— Ele olhou ao redor, perscrutando a sala como se esperasse alguém pular de
trás de uma poltrona.
Dona Simone pigarreou, retorcendo as mãos. Ela sabia – desde que
aquela caixa chegou, sabia que não vinha coisa boa dali. Agora isso? Ela ia
morrer nas mãos de um mago da idade do neto por causa de uma profecia que
nem fazia sentido?
Heitor esperava uma resposta, inflexível.
— Sou eu — ela disse baixinho.
— O quê?
— Só eu moro aqui. Eu sou a feiticeira da casa.
Os olhos de Heitor se arregalaram. O rapaz deu um passo para trás e
levou uma mão às costas, como se estivesse prestes a puxar uma arma.
— Pois então, prepare-se para um duelo!
— Duelo? — Simone ergueu as mãos. — Eu não sei duelar!
— Não? — Ele hesitou. A outra mão, que tinha estendido em defesa,
foi baixando devagar até cair de vez. — Há quanto tempo a senhora é bruxa?
— Duas semanas.
— Duas semanas? Isso não pode estar certo. Será que errei de casa?
Mas os cálculos apontavam pra esse lugar… Eu vim lá de Pernambuco… —
Ele bufou, esfregando a cabeça. — Tem que ser a senhora. Quantas bruxas
pode haver nesse fim de mundo do interior de São Paulo? E não posso deixar
que atrapalhe meus planos. Como os conhece?
— Quem?
— Lino Barbosa, Bruno da Costa e Vitor Pereira — ele recitou os
nomes num fôlego só, como se Simone devesse reconhecê-los. — Da capital.
Conhece um dos três, não é? É por isso que vai tentar me impedir de fazê-los
pagar por seus crimes?
— Não conheço esse pessoal, não — ela disse depressa. — Menino,
você vai me machucar?
Heitor pareceu constrangido.
— Se a senhora diz que não os conhece…
— Só conheço meus netos lá de São Paulo, mais ninguém.
— Então eu devo ter errado o lugar… Profecias são um saco! —
explodiu o garoto de repente. — Custava dar um endereço, umas
coordenadas? Não, é tudo em código! Posição da lua aqui, as estrelas girando
pra lá! E agora, pra achar a bruxa certa?
O garoto repuxou os cabelos, tão curtos que não conseguia agarrar um
punhado. Apesar de todo aquele papo de violência, Simone tinha experiência
com adolescentes e eles tendiam a ser dramáticos. A frustração de Heitor
estava clara. Só havia uma coisa a fazer.
— Quer um bolinho? — ela perguntou. Heitor a encarou com as mãos
ainda no cabelo. — Tem uma broa gostosa na cozinha, fiz ontem. Vem com a
vó.
Heitor estremeceu quando ela fechou uma mão ossuda ao redor do seu
braço, mas se deixou ser levado até a cozinha. Simone começou a empilhar
comida em um prato e passou um café. O garoto olhou a fartura com olhos
desconfiados, mas por fim provou um bocado.
E outro. E mais um.
— Você é lá do Nordeste, então?
Ele balançou a cabeça em negativa.
— Nasci no Rio. Mas vivo… por aí.
— Ah, é? E dorme onde?
O rapaz deu de ombros.
— Eu me viro.
Simone deu uma espiada na mochila enorme que ele tinha apoiado em
uma cadeira. Estava estufada, de roupas talvez. Até caberia um cobertor.
— Seus pais não ficam preocupados?
Aquele mesmo olhar de quando Simone o chamara de querida.
— Meus pais não se importam com o que acontece comigo. Dizem
que não têm um filho.
Ele encarou Simone como se a desafiasse a duvidar da afirmação, mas
a verdade estava toda ali, na dureza dos ombros e no modo exageradamente
casual como jogara a frase sobre a mesa. Simone balançou a cabeça. Não
conseguia entender coisas assim. Filhos eram sagrados. Deus sabia que os
dela nem sempre seguiram os caminhos que ela tinha sonhado – era cada
decisão precipitada, escolha equivocada, relacionamento fracassado… E os
netos, então, que ela mal entendia? Mas não precisava entendê-los para amá-
los. Eram família, e seu papel era estar ao lado deles.
Ela observou Heitor devorar o lanche que tinha servido e continuou
oferecendo comida até o garoto erguer uma mão para pará-la. Seu rosto
estava um pouco mais tranquilo agora. Encher crianças de comida era um
ótimo jeito para fazê-las sossegar o facho.
— Vem — disse Simone, se levantando —, você pode ficar no quarto
do Jorge.
— O quê? Passar a noite aqui?
— Dormir na rua é que não vai!
Seu tom não admitia questionamentos e Heitor apanhou a mochila e a
seguiu pela casa onde ela tinha criado cinco filhos. O quarto de Jorge, o mais
velho, era o maior, e ela sempre mantinha lençóis no armário caso alguém
viesse passar a noite. Alguns pôsteres de banda da época de adolescência do
filho ainda estavam colados na parede e uma caixa com suas tralhas –
brinquedos e jogos de tabuleiro e camisetas velhas – estava enfiada num
canto do armário.
— Mas é só até eu descobrir onde está a bruxa que eu preciso derrotar
— disse Heitor depressa, antes que ela fechasse a porta.
— Certo, certo — cedeu Simone, conciliadora. — Agora vá dormir.
Deus abençoe.

Em comparação com os filhos, Heitor era quase um fantasma de tão


quieto. O rapaz se esgueirou pela casa no primeiro dia e Simone quase teve
um treco quando virou um canto e deu de cara com ele saindo do banheiro.
Fora isso, o alquimista ficou enfurnado no quarto o dia todo. Quando Simone
bateu na porta, descobriu que o lugar tinha virado um laboratório. Folhas de
papel rabiscadas, mapas colados nas paredes, uma série de frascos com
substâncias coloridas e borbulhantes sobre a escrivaninha. Deixou-o lá. As
crianças precisavam se entreter. Quem sabe assim o menino não esquecia
aquela história de bruxa?
A cada três horas, ela batia para oferecer comida, e às vezes até
conseguia tirar Heitor lá de dentro. Nos dias seguintes, conseguiu descobrir
algumas coisas:
Que Heitor era o nome do tio preferido dele, que tinha morrido dois
anos antes.
Que ele tinha adotado o nome pouco tempo depois e sido expulso de
casa.
Que ficara na casa de uma tal de Ana, uma garota que conhecera
numa boate e lhe apresentara à magia, e depois de um tempo saíra em busca
de conhecimentos por todo o país.
E que na comunidade mágica era mais conhecido como Zósimo de
Paraty.
— Porque o Zósimo foi um grande alquimista e vinha de um lugar
chamado Panóplia — explicou ele. — E eu nasci em Paraty, sacou? Bom… é
um trocadilho meio de nicho. Muitos de nós temos pseudônimos — ele
acrescentou. — A senhora não quer um? Afinal, é uma bruxa.
— Outro nome? Na minha idade? Ah, não, não ia me acostumar com
isso… e não sou bruxa. Parei com essas coisas.
Heitor ergueu uma sobrancelha.
— Uma vez bruxa, sempre bruxa — sentenciou.
Só havia uma história que dona Simone não ouviu: o que aqueles três
jovens da cidade grande tinham feito e o que Heitor pretendia fazer com eles.
Ela decidiu dar tempo ao garoto, mas começou a se preocupar quando Lucas
ligou certa noite.
O neto entrava em contato com frequência desde o último encontro
deles, pedindo para estudar seus artefatos ou insistindo para que Simone
continuasse praticando feitiçarias, de modo que pudessem testar seus efeitos.
Dizia que ela não podia simplesmente ignorar o que era.
— Você tá parecendo o Heitor, menino — disse ela no telefone.
— Quem?
— Um outro bruxo que apareceu aqui.
— Como assim, vó?!
— Ele me confundiu com outra pessoa, e agora tá ficando no quarto
do Jorge até descobrir o erro. Disse que os outros magos conhecem ele como
Só… Como é que era mesmo? Zó…
— Zósimo?! — Lucas completou.
— Esse mesmo!
Ouviu uma inspiração profunda do outro lado da linha. A voz de
Lucas tornou-se um sussurro urgente.
— Vó, pelo amor de Deus, esse cara é perigoso! Dizem que ele
envenena pessoas por aí! Ele não fez nada contra a senhora, fez?
— Claro que não! Bem, no primeiro dia ele queria me matar, mas é
um bom menino.
—Vó! — O grito foi abafado do outro lado, como se Lucas tivesse
batido a mão na boca. — Use a adaga pra se proteger! Não coma nem beba
nada que ele te der!
— Que me proteger o quê! Ele só está num momento complicado. E
quem faz a comida aqui sou eu. O garoto não sabe nem fritar um ovo.
Mais tarde, no entanto, ela deu um leitinho com chocolate ao
alquimista e o fez sentar na varanda. A brisa fazia as samambaias farfalharem
e os sininhos pendurados tilintarem uns contra os outros. O céu do interior
estava cheio de estrelas do jeito que o da capital nunca ficava. Heitor –
Zósimo – as observava distraído, e de vez em quando seu rosto se contraía
como se estivesse se lembrando de alguma coisa desagradável.
— Essa tal bruxa que vai entrar no seu caminho — Simone disse com
cuidado. — O que você quer fazer com ela?
— Só incapacitá-la enquanto cumpro a minha missão.
— Ai, Jesus.
— Não precisa se preocupar, dona Simone.
— Como não? Você vai atacar aqueles rapazes, não vai? Não é
seguro! Eles são três! E você… — Ela não terminou a frase. Não queria
deixar o menino bravo.
Ele entendeu mesmo assim e seus olhos reluziram de fúria – mas,
dessa vez, não com ela.
— Vou ficar bem, prometo. Acha que vou me lançar numa missão
suicida? Não, pelo contrário. Eu não sou presa fácil. — E como Simone ainda
o olhava horrorizada, acrescentou: — A senhora não sabe o que eles fizeram.
— Então me explica!
— Não quer saber, acredite.
— Menino, eu já vivi oitenta e três anos. Pensa que aqui no interior a
gente é besta?
— Não, mas tem coisas que… — Heitor procurou a palavra. — São
ruins.
— E você acha que não tem gente ruim aqui também?
Ele a encarou por alguns segundos, então apoiou a xícara na mesinha
de centro.
— Tá bom, então — concordou, virando-se para ela. — A senhora
lembra da amiga que eu mencionei? A Ana?
— A que te abrigou quando você saiu de casa?
Ele fez que sim.
— Ela mesma. Quando a conheci, eu… eu nem sabia o que ia fazer da
vida. Ela que me deu esperança. Tinha passado pela mesma coisa que eu,
com a família dela, sabe? — Simone assentiu, compreendendo. Heitor
continuou, agora olhando para a frente e não para ela. — Bom, ela estudava
na mesma faculdade que esses caras. Já tinha ouvido histórias sobre eles,
sabia que não eram flor que se cheire. Então, numa festa, eles tentaram beijar
uma amiga dela que estava bêbada. A Ana os interrompeu e brigou com eles.
Os três ficaram fulos da vida. Começaram a chamá-la de tudo que você puder
imaginar, mas ela já estava acostumada com homem falando merda e não era
de se assustar com pouco. Quase estourou uma briga de verdade, mas
chegaram umas pessoas pra intervir e foi cada um pro seu lado antes que
alguém se machucasse.
Heitor parou de repente, como se a história tivesse ficado entalada na
garganta.
— Não parou por aí, não é? — perguntou Simone.
— Não. — Ele balançou a cabeça. — Eu pensei que os malditos iam
deixá-la em paz, mas não, viviam fazendo ameaças veladas e nem tão veladas
sempre que a viam. Como eu disse, ela não era de se assustar, mas também
não podia fazer muita coisa. O pai de um dos caras era juiz e os outros tinham
grana suficiente pra se safar de qualquer acusação. Ela pagava as próprias
contas e ainda me ajudava, imagina se ia conseguir se defender desses
desgraçados legalmente! Me dizia que tinha sorte de eles não terem
denunciado ela por agressão, porque era capaz de se ferrar nessa. Mas
também odiava que os três estivessem livres por aí, então começou a avisar
as meninas da faculdade pra ficarem longe deles. Uma hora eles ficaram
sabendo e decidiram… fazê-la parar. — A voz dele ficou mais baixa. Os
dedos entrelaçados estavam brancos de tanto se apertar. — Armaram uma
emboscada pra ela uma noite, fora de um bar. Fiquei sabendo quando ela
mandou uma mensagem do hospital. E adivinha? Não aconteceu nada com
eles. Pior: disseram que da próxima vez iam terminar o serviço. — Ele soltou
o ar devagar, o corpo vibrando com uma raiva fresca. — Nessa época eu já
estava viajando e aperfeiçoando minha arte. Então decidi que não ia deixar
esses malditos machucarem minha amiga. Nem mais ninguém.
— Menino…
Ele respirou fundo e enxugou uma lágrima que tinha escapado.
Quando falou de novo, sua voz estava dura como aço.
— Pra responder à sua pergunta, dona Simone, o que eu vou fazer é o
seguinte: preparar uma bebida especial pra eles. Uma bebida que não vão
esquecer pelo resto da sua vida miserável. Não que vá ser longa.
Ele se ergueu e saiu da varanda. Um momento depois, ela ouviu a
porta do quarto bater.

Os santos e santas estavam enfileirados sobre o criado-mudo, uma


coleção respeitável. Um dos relicários ela comprou para o marido. Outros os
filhos trouxeram como lembrancinhas de viagens. Vários ela adquirira ao
longo da vida, e alguns eram mais antigos, passados de geração em geração.
Além do padroeiro da cidade São Judas Tadeu, havia Antônio, Agostinho,
Gregório, Sebastião e uma série de Nossas Senhoras, segurando Jesus
menino. Quantas vezes ela já não pedira ajuda a eles?
— Não deixem o menino se desviar — ela orou. — Ele é um bom
rapaz, eu sei.
Mas determinado. E ela nem podia culpá-lo – o menino tinha sofrido
muito na vida curta. Além de ser rejeitado por quem devia amá-lo, havia
presenciado crueldades e injustiças e queria que os responsáveis pagassem
por suas ações. Em seu olhar havia a certeza de que estava fazendo a coisa
certa, protegendo a amiga e talvez outras pessoas. Mas Simone sabia que esse
não era o melhor jeito de abordar a situação. Cometer violências deixava um
rastro na alma que nenhuma magia podia remover.
O que fazer? Rezou aos santos por auxílio, mas depois de um tempo
outra ideia surgiu na cabeça. Ela tinha jurado que largaria a bruxaria – mas,
se pudesse ajudar o menino, não valia a pena? Não tinha que tentar tudo que
pudesse? Só que não sabia como proceder. A bússola não ia ajudar em nada,
se o caminho que Heitor queria seguir era fazer justiça com as próprias mãos.
E a adaga podia protegê-lo, mas não evitar que ele cometesse violência contra
outras pessoas.
O livro. Ela sequer tinha aberto o livro! Talvez algo ali pudesse lhe
dar uma luz. Devagar, passou pela porta fechada de Heitor, que ainda estava
acordado (seus frascos tilintavam de leve), e foi até a saleta do piano.
Removeu o volume grosso com capa de couro de trás dos porta-retratos e o
levou para o quarto, onde se acomodou na cama.
Abriu o livro com cuidado. As páginas eram amareladas e
esfarelavam nas bordas. Também eram uma confusão dos diabos: repletas de
caligrafias diferentes, incluindo alguns garranchos incompreensíveis, traziam
relatos de bruxos e antepassados remontando ao século XVI, mas alguns não
tinham datas ou locais precisos. Alguns autores escreviam longas páginas
sem interrupção detalhando suas vidas inteiras, enquanto outros eram
sucintos até demais.
4 de maio de 1687. Eu, Bartholomeo Afonso de Piza, na província de
Goyaz, sucedi em transformar um rapaz em boi.
Isso não a ajudava em nada. Simone forçou a vista,
consideravelmente melhor desde que praticara suas magias acidentais, e
folheou as páginas. Nomes de homens e mulheres, narrações de feitos
mágicos, registros de genealogias, mas nada que se assemelhasse ao seu
dilema.
— O que eu preciso é um jeito de ajudar o menino! — resmungou
baixinho. No instante seguinte, a janela entreaberta bateu contra a parede,
deixando entrar um vento repentino que assoprou as páginas do livro. Simone
pôs uma mão no coração. A noite estivera absolutamente parada, sem
qualquer brisinha no ar, e o vento súbito morreu assim que passou por ela, a
janela lentamente retornando para o lugar com um rangido das dobradiças.
Ela olhou para baixo. O livro estava aberto em uma página preenchida
com uma caligrafia longa e elegante. Letra de mulher, pela assinatura –
Thereza de Santos Almeida, que começara a escrever no dia 3 de outubro de
1843. Seu relato se estendia por várias páginas, seguindo-a ao longo dos
anos, desde a juventude até a meia-idade. Casou-se cedo e teve filhos para
cuidar. Simone conseguia imaginar sua vida.
Não há como dedicar-me à magia, reclamava Thereza em 1852,
quando meus filhos não me dão um minuto de sossego.
Simone puxou o ar com força. A resposta apresentou-se com a clareza
de um dia de verão: se não podia convencer nem impedir Heitor de
prosseguir com o plano, podia garantir que ele não tivesse tempo de realizá-
la. Tinha apenas que mantê-lo ocupado.
Ela deu um sorrisinho. Se tinha uma coisa em que velhos eram
ótimos, era precisar de ajuda.

— A senhora tem certeza disso?


Heitor encarava a porta aberta com trepidação. Simone tinha
apanhado a bolsa e agora fechava o casaquinho. Deu uma bambeada nas
pernas e Heitor se apressou para segurar seu braço.
— Ai, fio, ajudaria tanto a vó — ela disse. Será que a voz estava
trêmula o bastante? — Faz tanto tempo que não vou à missa.
Era verdade: antes da chegada da herança, as pernas não permitiam
mais que ela desse suas voltinhas, de modo que aquilo não era uma mentira.
Ah, não, Deus me livre de mentir.
Heitor mordeu o lábio, passando uma mão pelo cabelo curto.
— Hm, sim, mas é que… — Ele respirou fundo. — Bem, dona
Simone, é que é igreja, sabe, e às vezes o pessoal não gosta de me ver lá.
Quando minha mãe me levava… — A frase ficou no ar, incompleta com
lembranças desagradáveis.
Simone franziu o cenho. Na sua paróquia ninguém ia deixar o menino
desconfortável. Pelo menos ela esperava que não. Ai deles se dissessem
alguma coisa.
— Não precisa se preocupar, porque você vai estar comigo. — E todo
mundo ali sabia que Simone não aceitava que mexessem com seus filhos ou
netos. E Heitor era… bem, algo do tipo. — Mas se não quiser mesmo…
O alquimista deu uma risada encabulada.
— Não, tudo bem. Então tá. Vamos… vamos lá.
A missa foi bonita. Ela e Heitor receberam alguns olhares de
esguelha, que ela retribuiu na mesma moeda, então Simone o levou ao centro
da cidade comprar uns presentes. Seguiram para o lar dos velhinhos, onde
deixou algumas doações, e depois ao mercado, onde fez compras para o
almoço. Heitor ajudou na cozinha quando voltaram para casa – ou tentou,
pelo menos. Ela não entendia como alguém que mexia com frascos e tubos o
dia todo não sabia nem cortar uma cebola.
— Eu como mais na rua — ele se justificou, fatiando com
concentração. — Tipo, em fast food.
Simone bufou.
— Essas porcarias só têm açúcar.
— Mas é barato, sabe…
— Só açúcar!
A essas horas, ele devia estar em casa, comendo uma refeição decente
com os pais. Dona Simone se considerava uma pessoa tranquila, mas toda
vez que pensava na situação ficava transtornada. Imagina se um filho dela ia
ficar morando na rua, comendo besteira o dia todo, fazendo poções mágicas e
perseguindo criminosos?
Depois do almoço, ela pediu a ajuda de Heitor para limpar a casa,
embora já estivesse limpa, e então convocou-o para tirar umas caixas que
ficavam no quartinho dos fundos e tinham se acumulado ao longo de mais de
meio século. Tinha de tudo lá: objetos do seu tempo de solteira, roupas velhas
do falecido marido, livros da sua época de escola, todo tipo de tralha dos
cinco filhos…
— Puta que o pa… — Heitor tossiu, limpando a garganta. Ela não
sabia se era vergonha ou a poeira que pairava no ar. — Tem muita coisa aqui,
hein? E a senhora quer arrumar tudo isso?
— É que está tão bagunçado! — Simone explicou. — E eu queria
tanto encontrar o relógio antigo do Luís…
Para sua própria surpresa, encontraram o objeto algumas horas depois.
A luz minguava lá fora e foi preciso acender a lâmpada antiga e amarelada do
quartinho. As coisas se espalhavam ao redor deles, mais do que ela
imaginava ter. Quando se tranca tudo num espaço pequeno, Simone refletiu,
a gente nem imagina o que vai emergir quando abrir a porta.
Ela ficou feliz ao ver que Heitor começou a se interessar pelos objetos
— que ele chamou de “antiguidades”, o que provavelmente era verdade do
seu ponto de vista — e o presenteou com algumas roupas de Luís que o
garoto chamou de vintage. Mandou-o para a cama e ficou satisfeita ao não
ouvir o som de frascos borbulhando.
Continuaram o trabalho no dia seguinte, mas formavam uma dupla
eficiente até demais e o quarto logo estava arrumado. Em breve, ela não
saberia mais o que inventar para deixá-lo ocupado.
E não poderia mantê-lo sempre ao seu lado. Não era uma solução
muito permanente – nem o que ele mais precisava, a companhia de uma
idosa. Quando saíram para andar no dia anterior, ela tinha reparado na
expressão dele ao passar pelo campinho de futebol da cidade, onde garotos
jogavam bola e grupos de adolescentes conversavam. Foi só um olhar de
relance, mas Heitor não conseguiu disfarçar o que se passava por trás dos
olhos.
A verdade era que ele precisava de jovens da sua idade com quem
conversar. Jovens que…
Ah. Você é uma besta quadrada, Simone.
— Amanhã é domingo — ela disse — e meus filhos vêm me visitar.
Heitor estava no chão, lixando a lombada de um livro com mais meia
dúzia à sua frente. Não ergueu os olhos do trabalho.
— Entendo. — Lixada, lixada. — Já fiquei demais mesmo. Quer
dizer, melhor já ir pra São Paulo, né? — Passou a lixa com tanta força que a
poeira se ergueu no ar. — Não é como se fosse encontrar algo aqui que…
— Ah, não, menino, não é pra ir embora! — Ela tirou o livro das
mãos dele. — Só estou falando porque a gente vai precisar fazer o almoço.
— A gente?
— Sim. Quero que conheça meus netos.
— Quantos a senhora tem?
— Catorze.
— Caraca!
— Não vêm todos amanhã, mas tem um em especial que eu quero que
você conheça. — Ela tentou parecer casual. — Ele gosta dessas coisas de
magia também.
Heitor ergueu uma sobrancelha.
— Se a senhora tá dizendo…
Mas Simone viu a boca do rapaz se curvar um pouco para cima.

— A senhora enlouqueceu?
As palavras de Lucas saíram num sussurro nervoso. A mãe do garoto
e seu irmão estavam na sala, tomando um suquinho e vendo TV. Júlia tinha
ficado alarmada quando ela contou sobre Heitor (que estava na cozinha, de
olho no bolo), mas calou-se quando ela impôs sua vontade. Simone sabia ser
teimosa quando queria.
O neto a puxara para um canto logo em seguida.
— O Zósimo tá morando aqui? Depois de tentar matar a senhora?
— Já falei que não foi nada! Quero que conheça ele, Luquinha. Acho
que vão ser bons amigos.
— Vó, ele participava do mesmo fórum que eu e foi banido porque
ficava falando de criar poções maléficas. É legal ele ter ajudado a senhora a,
sei lá, guardar os pratos e tal, só que às vezes a pessoa já escolheu o lado
sombrio da Força, entende? — Ela não entendia. — O que quero dizer é que
ele claramente está planejando alguma coisa. Alguma coisa terrível. Tipo
transformar a senhora num sapo e fugir com seus artefatos mágicos.
— Eu nunca machucaria a dona Simone.
Lucas deu um pulo. Heitor tinha surgido silenciosamente ao lado
deles. Usava um avental onde se lia Melhor vó do mundo amarrado ao redor
da cintura e seu tom era desdenhoso.
A boca de Lucas se abriu sozinha. O neto encarou o alquimista.
— Você é o Zósimo?
Heitor empinou o queixo.
— Sou.
— Mas… mas você é…
Simone cutucou-o com a adaga mágica, que de alguma forma sempre
ia parar no bolso do seu vestido.
— Ai, vó!
— Vocês gostam das mesmas coisas. Por que depois do almoço não
vão no quarto da vó e dão uma olhada naquele livro que ganhei da tia
Heloísa? Tem um monte de história de bruxaria.
Os olhos de Lucas se arregalaram. Heitor ergueu uma sobrancelha. Os
dois falaram ao mesmo tempo:
— Sério?
— Mesmo?
— Vocês vão adorar.
— Eu pedi quinhentas vezes pra ler o livro e a senhora não deixou! —
Lucas protestou.
— Eu também — acrescentou Heitor, com uma cara desconfiada.
Olhou para Lucas como se tentasse entender o que ela estava aprontando.
Então perguntou: — Você é mesmo um aprendiz de mago?
Lucas limpou a garganta.
— Hmm, não aprendiz exatamente, mas eu sou um grande entusiasta
das artes mágicas.
— Entendo. — Ele não parecia impressionado.
— Mas um dia serei um mago — afirmou Lucas, empinando o
queixo. — E não preciso de magia pra proteger minha vó.
— Que isso, Luquinha! — exclamou dona Simone. — Não preciso de
proteção contra o Zó. — Afagou o cabelo curto de Heitor e lhe deu um beijo
na bochecha que desfez sua carranca.
— Claro que não — Heitor murmurou. E para Lucas: — Bom, acho
que você pode me ajudar a solucionar uma profecia. Se quiser.
Os olhos de Lucas ficaram grandes como luas por um segundo, então
ele se esforçou para parecer indiferente.
— Uma profecia? — Ele encolheu os ombros. — Ééé, acho que tenho
um tempo livre.
Simone sorriu. A única coisa sobre o neto que entendia depois das
últimas semanas era que não deixaria Heitor em paz antes de aprender tudo
que ele sabia.

Algumas semanas depois, quando Simone estava ensaiando uns


passinhos de valsa (Heitor era capaz de recuperar as músicas de sua
juventude no celular e, se isso não era magia, ela não sabia o que era!), o
garoto entrou pela porta da frente. Tinha ido encontrar Lucas em São Paulo,
algo que fazia com frequência agora. Viu Simone dançando sozinha e não
abriu nem um sorrisinho. Foi isso que a fez parar, preocupada.
— O que foi?
Ele fechou a porta e entrou na sala. Apontou para a poltrona de
Simone.
— A senhora devia se sentar. Precisamos conversar. — Ele próprio
tomou o sofá, largando a mochila e entrelaçando os dedos no colo.
Simone caiu na poltrona.
— Não mata a vó de susto!
— A senhora nem é minha vó! — Mas ele abaixou os olhos ao dizer
isso e limpou a garganta. — É o seguinte. Eu e Lucas estivemos investigando
a minha profecia, como a senhora sabe. E chegamos a uma conclusão.
— Ai, senhor.
Ela esperava que Heitor tivesse esquecido aquela história, mas ele
ergueu os olhos e anunciou:
— A profecia, sem dúvida alguma, se refere à senhora.
O coração de Simone, que tinha resistido mais de oito décadas,
titubeou. Chegou a minha hora, pensou ela, mas antes que pudesse morrer o
garoto continuou:
— E tem mais uma coisa. Talvez seja um choque. — Heitor se
empertigou no sofá, parecendo ainda mais nervoso do que antes. O que podia
ser pior? Simone esperou e ele inspirou fundo antes de anunciar: — O Lucas
e eu estamos namorando.
— Graças a Deus! — ela exclamou.
O alquimista a encarou de testa franzida.
— A senhora não se opõe?
— Não, não. — Jovens que namoravam tinham menos tempo para
pensar em feitiçaria. — E a profecia?
— Eu decidi que… não vou seguir com o meu plano. — As palavras
saíram num resmungo um tanto contrariado. — O Lucas me fez ver que…
bem, que eu não gosto de machucar as pessoas. Sou um mago, não um
carrasco, e devia pensar como mago. — Simone nem suspeitava da
sensibilidade do neto, teria que lhe tricotar um casaquinho novo. Heitor
continuou: — E também que… talvez… a Ana não fosse querer que eu me
transformasse num assassino. Na verdade, o Lucas meio que me fez contar
meu plano pra ela, e ela quase me matou. Então, é isso. Nada de poção
mortífera. Mas eles não vão se safar tão fácil — Heitor acrescentou. —
Estamos bolando um jeito de ficar de olho neles e impedir que machuquem
outra pessoa. Se sequer pensarem em sair da linha, vão se arrepender. — Ele
abriu um sorrisinho. — É incrível o que a magia pode fazer, dona Simone,
uma hora te ensino a vigiar aquela sua vizinha que rouba suas flores. Enfim,
eles podem até contornar a justiça, mas de nós não escapam. Só que sem
mortes. Não pela minha mão.
Simone soltou um suspiro aliviado.
— Os santos nunca decepcionam — sentenciou. Teria que orar a São
Judas Tadeu naquela noite.
Heitor balançou a cabeça.
— Sabe o que é o pior de tudo?
— O quê? — ela perguntou.
— A profecia estava certa.

As mãos não tremem, a vista está clara. Mas não há magia capaz de
fazer o tempo voltar.
Ela abre o caderno de registros com cuidado. Pega a caneta preferida
de Luís, herdada do pai e do avô dele e só usada em ocasiões especiais.
Simone não toca nela desde a morte do marido – mas, se isto não for especial,
nada jamais será.
Simone dos Santos. Fui filha, esposa, mãe, avó e bisavó por 83 anos e
bruxa por 2 meses. Não tive tempo de realizar grandes feitos. Só de escolher
meus sucessores.
Sobre a autora
Isa Prospero nasceu em Piracicaba e mora em São Paulo, onde traduz,
revisa e acumula livros. É coautora do romance juvenil Volto quando puder
(2016) e publicou histórias de ficção especulativa nas antologias Mitografias
e nas revistas Trasgo, Mafagafo, Superinteressante, The Fantasist, entre
outras. Para conhecer seus trabalhos, visite o site: www.isaprospero.com.

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