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Título Original: A Herdeira

Copyright © 2024 por Katerine Grinaldi

3a edição - Volume 1 – Saga A Herdeira

Rio de Janeiro – RJ

Capa: Mirella Santana

Preparação de texto: Beatriz de Castro

Revisão: Karen Gueraldi

Literatura nacional, Ficção, Romantasia.

Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução ou transmissão de qualquer parte deste livro
sem prévia autorização escrita pela autora.

Obra registrada na Biblioteca Nacional.


Índice:
Prólogo

Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 18
Capítulo 19
Capítulo 20
Capítulo 21
Capítulo 22
Capítulo 23
Capítulo 24
Capítulo 25
Capítulo 26
Capítulo 27
Capítulo 28
Capítulo 29
Capítulo 30
Capítulo 31
Capítulo 32
Capítulo 33
EPÍLOGO
Agradecimentos
dedicatória
Sobre a autora
“Ao abrir este livro,
Você só o lerá
Se cumprir o requisito.
Não basta querer,
Tem que poder.
O que você quer daqui?
Seria capaz de morrer
Para o segredo proteger?
Amor não é o bastante
Apesar de ser importante!
Você abriu este livro,
Mas só o leu
Se cumpriu o requisito.”
Prólogo

Joseph levou a taça aos lábios, saboreando calmamente a boa safra, assim
como saboreava mentalmente seu plano. Havia esperado quatorze anos e, enfim, as peças podiam
ser jogadas como numa patética partida de xadrez. Ninguém o vencia, jamais. Nem no xadrez,
nem na vida. Não depois daquele dia.
Mirou o espelho sobre o aparador daquela grande sala de reuniões. Ali, de frente para aquele
retângulo de vidro, ele podia ver a si mesmo, sem feitiços, sem disfarces. Um jovem ainda.
Gostava disso, apesar de seus olhos azuis esverdeados o jogarem para um mar de lembranças
ruins. Escutou os passos no corredor e seguiu apressadamente para a mesa, a qual se sentou em
uma poltrona acolchoada, estilo presidente. Pensava no quanto era engraçado dois bruxos se
encontrando em uma sala usada para acordos humanos em um dos únicos prédios na cidade de
Melas.
Seu convidado entrou de forma imponente e não mudou seu olhar ao encarar Joseph, ou aquilo
no que Joseph se transformara com o feitiço de Glamoury. Um senhor inofensivo, debilitado,
arrasado. Compreendeu por que o rapaz carregava tamanha fama e porque lhe havia sido tão bem
recomendado. Um ladrão de almas. O senhor Joseph indicou o vinho, sugerindo que o homem a
sua frente se servisse, contudo, o gesto foi rapidamente recusado. Assim como ele não se deu ao
luxo de sentar-se também.
—Prefiro ir direto aos negócios — informou, mantendo-se na mesma posição ofensiva,
aguardando os termos. — Não pode ser um homem tão gentil se contrata meus serviços.
Apesar de uma aparência agradável, o ladrão de almas não parecia nada simpático. Fazia mais o
estilo de poucos amigos.
—Certo. Sem cerimônias. — Joseph se levantou e deslizou suas mãos sobre a mesa, fazendo
surgir fotografias reais e já levemente manchadas pelo tempo. — Preciso da neta de Júlia West.
A mais nova. Há um feitiço escondendo-a, de modo que nenhum ritual de localização a encontra.
— Moveu suas mãos mais uma vez, alterando as fotos por algumas mais recentes de uma
senhora com uma criança. — Essa é a Júlia. Pelas fotos já dá para perceber a semelhança entre as
duas, neta e avó. Mesmo quando ainda era criança. Seu nome é Kate.
—Quer que eu roube a alma dela assim que a encontrar? — questionou sem pestanejar, não
expressando qualquer emoção.
—Não ouse fazer isso — Joseph respondeu com pressa, quase deixando de lado sua carapuça de
fragilidade. —Eu a quero. Você deve trazê-la para mim. E, então, você entenderá por que escolhi
você e não um detetive.
Capítulo 1

A campainha tocou uma, duas, três vezes, e continuou sem parar. Era
como se alguém tivesse simplesmente largado o dedo sobre o botão sem se preocupar com mais
nada, demonstrando, no entanto, a sua urgência em ser atendido. Os instantes nos quais fiz essas
análises foram suficientes para me despertar do décimo quinto sono no qual estava inserida.
Afastei meu edredom azul de balões — é, mesmo sendo verão, eu usava cobertor — e levantei da
cama, deixando os chinelos de lado. Caminhei o mais rápido que pude na direção das escadas,
ainda com os olhos um pouco embaçados, quando o barulho cessou. Do segundo andar, espiei a
porta sendo aberta.
O que minha avó está fazendo aqui tão tarde? Ou tão cedo, se você for daqueles que consideram
a madrugada como manhã.
—Mãe, está tudo bem?
Escondi-me na parede entre o segundo e o primeiro andar, onde a escada fazia uma pequena
parada. E vi quando minha mãe encarou a mala da minha avó largada sobre o tapete, do lado de
fora da nossa casa. Notei a estranheza em seus olhos, refletidas também nos meus. Se minha avó
estivesse vindo ficar conosco, a mala teria sido carregada com ela para dentro. Se estava fora...
—Você precisa me prometer que contará tudo a ela — suplicou minha avó, apesar de sua voz
conter uma ordem implícita.
—A senhora sabe que não o farei. Não sou capaz e fiz de tudo, durante esses anos, para que ela
pudesse viver em paz e longe disso. Não vai ser agora que mudarei de opinião. — Minha mãe foi
categórica; no entanto, seus olhos não saíam da bagagem sobre o tapete.
—Fiz o máximo que pude — comentou minha avó, chorosa. —Mas temo que não serei capaz de
fazer mais. Sabe que vai chegar a hora dela. — Minha mãe enfiou os dedos por entre seus
cabelos castanhos volumosos, bagunçando-os por completo.
—Isso é uma maldição...
—Sim, minha filha — minha avó a interrompeu e lhe deu um abraço forte. — Está nas suas
mãos se ela andará por uma corda bamba com os olhos vendados ou não. Pense nisso.
Estava tão apreensiva com aquela conversa atípica que nem me dei conta do momento exato no
qual as duas se afastaram e minha avó começou a caminhar na direção da escada. Ela tinha que
percorrer ainda a sala de estar, concedendo-me uma distância boa para que eu retornasse a minha
cama sem ser notada.
Deitei-me embaixo do edredom, presente de Júlia, a minha avó que entrava no quarto no exato
instante em que eu fechava meus olhos, simulando meu sono. Meu coração batia mais rápido que
o normal devido a minha fuga de volta para o quarto e, talvez, ela notasse. Minha avó era a
pessoa mais perspicaz que eu conhecia. Nada lhe escapava.
Senti seu corpo sentando sobre a cama, perto de mim, sua mão sobre meus cabelos. Seus dedos
já enrugados da idade avançada, sua pele frágil roçando delicadamente na minha testa. Sentia-me
mal por não abrir os olhos, por mentir para ela. Mas eu não queria ter sido indiscreta, não queria
ter ouvido aquela conversa. Muito menos que elas soubessem do meu testemunho.
“Adeus, Kate”, minha avó sussurrou segundos antes de depositar um beijo em minha cabeça.
Senti sua mão empurrando algo para debaixo do meu travesseiro com certa dificuldade. Virei
para o lado oposto, tentando facilitar sua tentativa e, logo depois, senti seu peso sumir da cama,
ouvi seus delicados passos na direção do corredor e o baque surdo da porta sendo fechada.
Abri os olhos e observei discretamente ao redor. Sem me movimentar. Minha avó realmente
tinha saído. Sentei na cama e tateei embaixo do travesseiro. Era um envelope e, com a pouca luz
da lua entrando pela minha janela, consegui notar que era amarelo. Era uma carta? Mala, carta,
um pedido. O que estava acontecendo?
O envelope estava lacrado com sua letra, um J, assim como ela me ensinara a fazer em todas as
correspondências que eu escrevia quando criança. Eu era a única menina na sala que enviava
cartas lacradas com a letra K. Até o dia em que fui pega e não havia escapatória, qualquer um
saberia que a carta era minha. Acendi o abajur na mesinha de cabeceira, retirei o lacre e puxei o
papel.
Sua herança
Vai chegar.
Aceite a mudança
Quando 21 primaveras completar.

S.D.
Encarei o bilhete por alguns segundos. Ou minutos. Eu não estava realmente contando até o
instante em que uma chama inexplicavelmente surgiu no papel, consumindo-o rapidamente.
Num rápido reflexo, eu apenas tive a brilhante ideia de soltá-lo... sobre a cama. O envelope
também começou a queimar. E eu me levantei, assustada com a proporção que o fogo estava
ganhando, apesar de cientificamente não ser possível.
As chamas se alastraram pelos lençóis, ganhando vida. Parecia que alguém as estava cutucando,
instigando-as. Consegui afastar a nuvem de perplexidade que me cegava e corri na direção do
banheiro para pegar uma vasilha com água enquanto era tempo...
O que as minhas irmãs estavam fazendo deitadas no meu quarto?
Nós não dividíamos o quarto há anos. Kiara tinha ido embora desde a morte do meu pai, e
Melissa há uns três, quando decidiu estudar Artes em uma faculdade estrangeira. Ainda assim,
nós só dividimos o quarto quando éramos crianças. Não sabia muito bem o que estava
acontecendo, no entanto, eu precisava acordá-las. Aproximei-me da cama de Melissa, que ficava
perto da porta do banheiro do meu quarto, e inclinei-me para chamá-la quando minha mão
atravessou seu corpo, transformando-o em uma fumaça. Uma névoa branca que se dissipou até a
cama de Kiara, sumindo com ela também.
O fogo havia corrido pelos lençóis e alcançava o carpete. A fumaça começava a incomodar meus
pulmões e foquei no que precisava ser feito. Corri até o banheiro e enchi um pote de manteiga, o
mesmo que usávamos para limpar o cômodo, e voltei ao quarto. Mas, o que era um pote de
margarina diante de chamas que consumiam o carpete e as cortinas?
Talvez fosse mais fácil abandonar a casa e fugir com minha mãe. Talvez minha avó ainda
estivesse lá embaixo. Será que elas não estavam sentindo o cheiro? Passei rapidamente ao redor
da cama e fui na direção da porta...
ONDE ESTAVA A PORTA DO MEU QUARTO?!
Era um pesadelo. Só podia ser. A porta não existia mais. Ela havia desaparecido como num passe
de mágica. E mágica não existe. Por isso, eu só podia estar sonhando. Ou alucinando. Talvez eu
tivesse sido drogada. Eu precisava sair dali. Mais do que nunca.
Comecei a socar o concreto na exata posição onde a porta deveria estar, crendo que talvez eu não
a pudesse ver, mas ela ainda existisse. Bati muitas vezes. Talvez minha mãe me ouvisse. Bati
mais vezes. Senti meu pulso doer, arder pelo atrito com a parede. Chutei.
Contudo, quanto mais eu gastava energia socando, mais fraca eu me sentia. A fumaça já havia
preenchido meus pulmões, tornando o meu fôlego cada vez mais escasso. Sentia como se meu
corpo estivesse em chamas devido ao forte calor que emanava das labaredas. Deslizei pela
parede, sentindo-me exausta. Bati minha mão mais algumas vezes contra a parede, e até mesmo
pensei na janela, mas ela também havia sumido. Ou estava longe demais. Ou talvez fossem os
meus olhos lacrimejando e ardendo que me impedissem de ver muita coisa. Relaxei minha
cabeça contra a parede.
Fechei os olhos por alguns segundos, tentando me concentrar em acordar, em sair daquela
situação; talvez apenas para descansar, quando senti meu corpo quente, quase febril, ser agarrado
por duas mãos fortes. Seus dedos seguraram meus braços, levantando-me, para em seguida me
repousar em seu colo, de encontro ao seu corpo largo, aninhando-me em seu peito que se
movimentava rapidamente.
Eu não tinha muitas opções, a não ser aceitar aquela ajuda milagrosa. Olhei para cima, tentando
descobrir quem era, tentando descobrir quem era o responsável por me fazer sentir segura em
meio ao caos, porém, somente consegui ver o azul de seus olhos. As chamas refletiam sobre eles.
E eu queria poder observar melhor, contudo, a ardência me impedia.
Como o herói dos olhos azuis iria me ajudar era um verdadeiro mistério. A porta não havia
sumido? Talvez ele me jogasse pela janela. Ou se jogasse comigo. Afastei meus incessantes
pensamentos ao ouvir a porta ranger. A PORTA. Sim, ela estava lá.
O homem me colocou sentada sobre o chão do corredor, e ajeitou seu capuz preto. Estava zonza,
fraca, desgastada, e encostei na parede mais próxima, aguardando que ele tomasse outra medida.
Deveria tentar fazer algo por mim mesma, eu gostaria, mas era impossível. Observei quando ele
colocou as mãos sobre a maçaneta da porta do meu quarto. Será que não estava quente demais?
Seu rosto virou na minha direção, antes de entrar. Rastejei na direção dele, sussurrei pedindo que
saísse, tentando impedi-lo, quando o fogo o consumiu.
Não! Não!
Tentei gritar, como se aquilo pudesse mudar a cena a minha frente. Em meio a escuridão do
quarto, parcamente iluminado pelas chamas enlouquecidas, eu podia vislumbrar o homem sendo
consumido pelo fogo. Por que me salvar para se entregar a morte em seguida? Por algum motivo,
eu o assisti ser dominado pelo fogo. Pude observar de forma cruel todos os detalhes que minha
visão embaçada me permitia ver. E quando ele desapareceu, sendo consumido por completo, a
porta fechou com violência.
Sentei na cama, rápida como uma serpente dando o bote, e joguei para longe o meu edredom
azul enquanto sentia o suor escorrer pelas minhas costas. Meu corpo estava quente, minha
garganta doía um pouco, e meus olhos ardiam. Resquícios dos chamados pesadelos reais.
Desde pequena, eu tinha a habilidade de sonhar com situações ruins e sair delas ilesa, até
completar 21 anos em novembro, quando passei a ter o mesmo pesadelo: minha avó aparecendo
na porta da nossa casa com uma mala e me deixando um bilhete que pegava fogo. Contudo, até
aquele dia, eu sempre conseguira apagar as chamas com a água de um copo na mesinha de
cabeceira. Até aquele dia, eu nunca tinha lido o conteúdo do bilhete. E nunca tinha sido salva por
um desconhecido.
Lola passou a mão na frente do meu rosto, como se eu fosse um peixe dormindo de olhos
abertos. Jane ainda esfregava o rosto, tentando se manter acordada. Elas sabiam do meu
problema com pesadelos e das consequências que eles traziam e, mesmo assim, Lola parecia
aterrorizada. Jane, no entanto, não dava nem mais tanta importância; acostumada, eu
classificaria.
—Alguma consequência? — Lola contorceu o rosto ao perguntar.
—Ardência nos olhos, queimação na garganta e muito calor — falei pausadamente, e ela logo se
inclinou para pegar minha garrafa de água.
—Você sonhou com fogo? — Jane sugeriu, mais como se estivesse chutando uma alternativa do
que realmente ciente do que falava.
—Sua capacidade de raciocínio assim que acorda é impressionante, nunca vi igual — brinquei,
bebendo a água em seguida. — Sinto muito por tê-las acordado antes da hora.
Não era o bastante pedir desculpas, ainda que soubesse que também não era necessário. Jane e
Lola eram minhas amigas e, mesmo tendo a possibilidade de dormirem em suas casas, elas
continuavam ali uma vez ou outra, mais preocupadas em fazer aquilo parar do que em terem uma
boa noite de sono.
Eu deveria saber a resposta para parar com aquilo. Minha avó tinha me ensinado inúmeras
coisas, desde ervas a velas e significados de sonhos, no entanto, eu tinha apenas a teoria e não as
lia desde que ela partira.
Nunca mais pisei em sua casa, desde a sua morte. Desde o seu acidente de carro. Desde que ela
foi encontrada no lago entre a parte antiga e a nova da cidade de Melas. No meu pesadelo, após
tê-lo repetidas vezes, eu conseguia compreender a mala, o pedido, a despedida. Mas como minha
avó poderia saber que sofreria um acidente de carro? Por que saber e não fazer algo para
impedir? Por que estava indo para a parte antiga da cidade? Eram inúmeras perguntas as quais
me deixavam cada vez mais com vontade de voltar a sua casa. E talvez por este motivo eu não
tenha, de fato, procurado uma forma de me livrar dos sonhos. Eu queria respostas, mesmo que a
minha mãe negasse veementemente a vinda da minha avó a nossa casa antes de morrer.
Saí da cama e parei de frente para o espelho sobre a cômoda, no qual eu colara várias fotos.
Estava distraída, pegando minhas roupas para a faculdade, quando me deparei com os olhos
amendoados de Lola no reflexo.
—Kate... qual foi o sonho desta vez? — Ela enrolou os longos cabelos loiros e ondulados num
coque. Em seguida, esfregou os olhos, demonstrando o quanto ainda estava com sono.
Eu não queria incomodar. Eu não queria contar que o sonho tinha se prolongado pela primeira
vez. Eu não queria contar sobre o cara. A minha boca se recusava a abrir.
—Na festa eu conto. — Fechei a gaveta e abri minha caixinha de madeira para pegar meus
brincos. — Prometo. — Se eu não prometesse, ela não desistiria..
—Vou me alongar na sala. — Jane pulou da cama enquanto eu entrava no banheiro da suíte. —
Não demora uma eternidade no banho.
Tranquei a porta e anotei no meu celular todos os detalhes novos do pesadelo, para que eu não
me esquecesse de nada. Segundo minha avó dizia, os sonhos desaparecem assim que você toca
nos seus cabelos. E era verdade. Eu já havia testado. Ou era a minha mente pregando uma peça.
Por isso, tomei todo o cuidado para não cometer esse erro.
Anotei a mensagem do bilhete. Incluindo as iniciais que o assinavam. Por que deixar um recado
assinado por outra pessoa em um dos seus envelopes colecionáveis e com seu lacre
personalizado?
Cada dia mais, eu tinha a impressão de que minha avó estava encontrando uma forma de se
comunicar comigo. De me avisar alguma coisa. Era muita coincidência que o recado falasse
sobre 21 primaveras e que os pesadelos tivessem começado exatamente após eu completar 21
anos. O que minha avó queria me dizer?
Capítulo 2

O pesadelo foi desvanecendo gradativamente conforme eu ocupava a


minha mente com as coisas da faculdade. Eu não tinha muito tempo para descansar porque
estávamos na semana de provas e, durante o período da tarde, eu costumava ter o núcleo de
prática jurídica, no qual precisava atender clientes de baixa renda. Além de lidar com o meu ex-
relacionamento aberto, Gustavo. Sentia vontade de revirar os olhos só de pensar no nome dele.
Pois é... Gustavo não conseguia entender como eu não queria namorar o deus grego de cabelos
loiros cacheados e olhos esverdeados. Parecia um crime alguém em sã consciência não desejar
um relacionamento sério com o cara mais bonito de Forecast. Tá, o bairro é pequeno, a cidade
também, e eu não estava muito interessada em olhar todos os homens para confirmar, porém,
podia apostar que existiam outros mais bonitos. Além do que, a arrogância em se achar o melhor,
deixava-o feio.
Não sou alguém viciada em amor, aquela mocinha que se apaixona perdidamente, que se declara
e se sacrifica. Exatamente o contrário. Eu fujo. Meus pais formavam o casal mais lindo do
mundo até que ele morreu, e o coração dela se quebrou em tantos pedaços que sou capaz de
ainda pisá-los, andando pela nossa casa. E não me acho forte o suficiente para superar uma dor
como a dela. Se não fosse a mãe de Lola, arranjando um emprego para minha mãe, eu não sei
como ela estaria atualmente. Não sei se estaria.
E o meu erro foi ter cedido às investidas de Gustavo. Éramos amigos desde que nos entendíamos
por gente, mais ou menos aos sete anos, e entre uma saída e outra, acabamos nos beijando uma,
duas, três vezes até que os beijos se tornaram comuns em nossos encontros em grupos, até que os
sentimentos se confundiram. Eu ainda queria apenas a amizade; Gustavo me queria. E havia
perdido a sua amizade. Além de ter comprado uma inimizade com Sofia, sua irmã.
Assim, quando a aula encerrou, colei em Juliana e Raquel, duas colegas do curso, e pegamos
juntas o ônibus para o evento beneficente organizado mês a mês pela Prefeitura e pela nossa
faculdade, a única da cidade. A arrecadação da festa daquele mês seria doada para um abrigo de
animais.
Descemos uns vinte minutos depois, bem na entrada do parque de Forecast e logo nos
separamos. Parecíamos estar indo a lugares diferentes. Enquanto elas estavam super maquiadas,
eu havia apenas retocado a base e contornado os meus olhos com o lápis. Enquanto elas estavam
com vestidos próprios para uma boate ou algo parecido, eu usava uma blusa de manga curta rosa,
uma calça preta justa e minhas botas sem salto preferidas. E, analisando o modo como elas
saíram andando pelo gramado do parque, podia ter quase certeza de que a minha escolha era a
mais confortável.
O clima estava migrando do verão para o outono, já estávamos no final de março, e por isso as
chuvas vinham se tornando mais constantes como tinha acontecido nas primeiras horas do dia.
Assim, minhas botas tinham muito mais resistência diante da grama molhada e que afundava um
pouquinho conforme andávamos sobre ela.
Passei pelo portal decorado com folhas alaranjadas, fiz uma pose rápida e despretensiosa para a
fotógrafa, e segui à procura da barraquinha de doces, onde marquei de encontrar Jane e Lola.
Não seria difícil de achar, pois havíamos ajudado em muitas tarefas por ali em troca de horas
complementares em nossos cursos. A faculdade sempre dava uma forma de nos ensinar como
ajudar voluntariamente — só que não. Bem, eu ajudaria de qualquer forma.
Jane estava na fila, elegante como toda a vida. Os cabelos estavam presos em um coque,
deixando pequenos fios escaparem como se não tivesse sido de propósito. E usava um macacão
social verde, daqueles com tecido mais chique para festas. Jane tinha uma adoração por essa cor.
Às vezes, eu achava que era pelo fato de ela não ter herdado os olhos verdes do pai. Embora,
secretamente — não tão secretamente assim —, eu achasse seus olhos cor de mel muito mais
bonitos. E eu apostava minhas fichas de que ela estava apenas comprando uma fatia de torta.
Nada de comer muito, mesmo depois de ter passado o dia todo estudando e trabalhando.
—A gente devia ter marcado na barraquinha de salgados — comentei, parando ao seu lado. —
Estou morta de fome.
—A fome que você está sentindo não é tão real assim. Você pode enganá-la com um pouco de
água. — Ela puxou sua carteira, já se preparando para ser atendida.
—Vou me lembrar disso da próxima vez que pegar você quase desmaiando — reclamei. — Você
precisa parar de se escravizar por rótulos. Um dia esse rótulo vai custar caro — avisei, embora
no fundo torcesse para que isso não fosse acontecer.
—Estão brigando por causa de comida novamente? — Lola se aproximou, colocando-se entre
nós duas. — Vou querer duas fatias de torta de maçã. Não é todo mês que como essa delícia.
Jane revirou os olhos enquanto nós duas ríamos com nossa provocação. Lola pegou um casaco
na mochila e colocou sobre seu vestido rodado e cheio de corações. Sim, Lola era exatamente o
meu oposto. A eterna apaixonada. Não duvide muito, ela é capaz de se apaixonar até na fila para
comprar um pão e sonhar com o casamento, sem nem mesmo saber o nome dele. Nós três
formávamos um trio oposto e semelhante ao mesmo tempo. Cada uma tinha um pouquinho da
outra, e era exatamente isso que tornava nossa amizade tão forte.
—Quando eu preenchi o formulário, estava despretensiosa, — Lola começou — mas eles
colocaram uma barraquinha para tarot. — Ela quase pulou de alegria.
—Você morre de medo quando a Kate lê as nossas mãos — Jane debochou. — Por que quer ir
na cigana?
—Porque, felizmente ou não, todas as leituras que a Kate fez ocorreram. — Deu uma risada
estranha, e eu me contraí pela lembrança de quando vi seu pai arrumando as malas e
abandonando a família. — E na cigana eu não tô realmente acreditando. — Parou na nossa
frente, enfiando o último pedaço da segunda fatia de torta. — Fica no final desse corredor.
Continuei a comer minha fatia e a beber minha garrafinha de água enquanto percorríamos até a
tenda da cigana. Havia três pessoas na nossa frente. E, na minha frente, mais duas, pois eu iria
depois de Jane e Lola. Eu tinha receio de ver a minha sorte ou o meu destino estampado nas
cartas. Não gostava de saber meu futuro porque a vida não é recheada apenas de coisas boas, ela
é um meio a meio de momentos felizes e tristes. E eu não queria antecipar nada. Preferia sentir as
coisas quando precisasse, de fato, senti-las.
Fomos conversando enquanto esperávamos e percebemos que quem entrava na tenda, saía pelo
outro corredor, pois não retornava pela fila. Por isso, combinamos de nos esperarmos do outro
lado. Meu celular estava já com a bateria bem fraca, e Lola nos daria uma carona para casa. As
obras no dormitório da faculdade estavam quase sendo finalizadas, então, por enquanto ainda
precisávamos dormir em nossas próprias casas. Como Jane morava na parte antiga da cidade, ela
vinha dormindo no meu quarto.
Lola entrou primeiro. Ela estava realmente ansiosa para saber se, enfim, encontraria seu príncipe
encantado. Sério, ela disse que perguntaria apenas sobre o amor, como se fosse algo bobo e
simples, incapaz de causar danos. O amor era tão capaz de matar quanto uma doença terminal.
Então, eu só estava decidida a entrar para acompanhar minhas amigas. A verdade é que eu
pediria apenas para saber sobre minha vida profissional.
Cada cliente da cigana Morgana, seu nome estava na placa do lado de fora da tenda, levava em
média uns vinte minutos lá dentro. Quando Jane entrou, e eu fiquei sozinha, acompanhada
apenas pelos estranhos atrás de mim à espera de seus futuros dispostos nas cartas, é que passei a
prestar atenção nos detalhes. A consulta custava alguns trocados, os quais cacei na bolsa com
calma. Li também que Morgana tinha whatsapp e, caso você gostasse muito, poderia se consultar
em outras oportunidades. Estava tocando OneRepublic na caixinha de som do parque e me
permiti, por alguns instantes, movimentar minhas botas ao ritmo da música. Preciso confessar
que odiava ficar parada sozinha. Era como se eu estivesse deslocada.
Próximo.
A cigana chamou de dentro da tenda, no tempo esperado, e eu me permiti demorar alguns
míseros segundos ainda ao som da música, preparando-me para entrar. Por que mesmo eu aceitei
isso? E por que eu estou com tanto medo se eu mesma poderia ler o meu futuro? Tá. Ok. Eu não
conseguiria dizer naquele instante o que aconteceria na minha vida dali a dois anos, mas eu
sonhava com o meu futuro constantemente. Tinha previsões de coisas estranhas sobre as pessoas.
E conseguia, de fato, ler a mão das minhas amigas.
O que me assustava na cigana Morgana era a possibilidade de ela desvendar o que minha avó
vinha tentando me falar. Ou se vinha mesmo tentando. Me assustava que a cigana Morgana fosse
realmente uma cigana e me dissesse coisas para as quais eu não estava preparada. Mas, no final
das contas, nenhuma pessoa estaria preparada para o que ia acontecer.
Capítulo 3

A tenda era vermelha por fora e por dentro. Descobri quando empurrei os
panos para os lados e entrei, tentando parecer calma. Completamente vermelha, acrescentei
mentalmente quando meus olhos varreram o local com mais foco. A toalha de mesa, a roupa de
Morgana, o batom, suas unhas. E a cadeira na qual sentei-me de imediato, de frente para
Morgana que não se dera ao luxo de levantar.
Enquanto embaralhava as cartas com destreza, a cigana não se deu ao luxo de me olhar. Seus
olhos esverdeados estavam focados no que fazia e de seus lábios uma canção discreta era
entoada. Pelo menos parecia uma canção, pois tinha um ritmo calmo, mas poderia ser uma
oração.
Estava desconfortável e, por isso, tentei não focar no barulho das cartas se chocando, meus olhos
fugiram para o pequeno incenso numa mesinha na lateral da tenda, para as velas iluminando a
tenda, e depois para um baú enfeitado com pedras amareladas, talvez fossem âmbar, a pedra
utilizada por reis e rainhas para afastar energias negativas.
O monte de cartas foi colocado sobre o centro da mesa com força. E eu comecei a enrolar os
meus cachos na ponta do cabelo, tornando-os mais intensos. O baralho era alaranjado, no
entanto, no centro dele havia o desenho de três luas. Aquele não era um conhecimento comum
para a maioria das pessoas, no entanto, eu sabia que se tratava de uma triluna. Um símbolo que
representa o poder da Deusa, representa as transformações da mulher.
A cigana pediu que eu separasse o monte em três partes, e de imediato avisei que queria saber
somente sobre o âmbito profissional. Morgana concordou sem reclamações ou hesitações.
Parecia doutrinada para dar aquilo que lhe pediam.
—Preciso do dinheiro antes de interpretar as cartas para você — dispôs as mãos sobre a mesa,
aguardando.
—Claro. — O dinheiro já estava no bolso da minha calça, separado. — Desculpe.
Coloquei as duas notas sobre a mão dela, e me ajeitei na cadeira como se aquilo fosse me
acalmar de alguma forma. Morgana virou a primeira carta de cada monte para cima, revelando
uma mulher, um trono, e um coração sangrando.
—As cartas não concordam com você sobre falar apenas do âmbito profissional — comentou,
parecendo se divertir com aquela revelação. — Prefere que eu ignore essas e vire novamente? —
Balancei a cabeça afirmativamente, sem certeza da minha resposta. Com medo de me render ao
que o baralho queria me dizer.
Morgana retirou as cartas já viradas e as colocou na lateral da mesa. Em seguida, puxou cada
carta de cada monte novamente, revelando as mesmas cartas de antes. A mulher, o trono e o
coração sangrando. Seus olhos verdes, com um pingo de amarelo, semicerraram na minha
direção e, depois, para a lateral, onde as cartas retiradas ainda estavam.
—É algum tipo de truque? Acha engraçado desafiar uma cigana? — Estalou a língua, retirando
as cartas de cima dos montes e virando as seguintes.
A cada virada, os vincos na testa de Morgana iam desaparecendo, dando lugar a um olhar
brilhante e satisfeito. Um sorriso se formou em seu rosto conforme ela via mais três vezes o
trono, a mulher e o coração sangrando. Por que ela não estava mais me encarando com raiva?!
—Por favor, me diga então o que estas cartas significam — berrei, fazendo-a parar de supetão e
dar uma gargalhada.
—Que você é a mulher aguardada para o trono, porém, seu coração sangrará para sempre com
essa escolha. — Tá, eu senti vontade de pegar meu dinheiro de volta com aquela palhaçada.
Qualquer um que se passasse por um cigano diria exatamente aquilo.
—Isso eu acho que poderia deduzir sozinha, né? — Cruzei os braços. — Mas você está vendo
algum tipo de coroa sobre a minha cabeça? Ou um reino do lado de fora desta tenda? — A falsa
cigana jogou a cabeça para trás, rindo novamente, como se eu fosse a palhaça do seu circo.
Sem me dar qualquer resposta, a charlatã embaralhou as cartas mais uma vez, desta vez sem
entoar sua canção, e dispôs três delas sobre a toalha vermelha. Fogo. Uma mulher. Morte. E eu
me levantei rapidamente, deixando a cadeira cair para trás. Infelizmente, aquela disposição de
cartas me assustou muito mais que ver as outras três serem repetidas várias vezes. Porque
aquelas me faziam recordar do pesadelo. E se, de repente, eu não conseguisse me salvar? E se,
por um acaso, o cara encapuzado de olhos azuis não existisse?
—Eu sou uma bruxa. Meu baralho nunca tem cartas iguais, a cada jogada ele muda. — Ela se
levantou também. — E eu sabia que quando todo o meu baralho se repetisse para uma pessoa, eu
a teria encontrado. A maldição da herdeira.
Morgana saiu de trás da mesa despreocupadamente e enfiou a mão dentro do decote, puxando de
lá um objeto metálico. E eu não pensei duas vezes antes de correr na direção do lado por onde
havia entrado. Corrigindo: tentar correr. Eu dei uns três passos antes de ficar completamente
congelada no meio da tenda. Como naqueles sonhos em que você desperta e tenta se mexer ou
falar e não consegue. Era exatamente assim, apesar de eu ainda conseguir falar.
—Por que você gostou de me encontrar? — Morgana fez meu corpo girar, de modo que eu
pudesse vê-la. Certo. Eu estava me coçando mentalmente por pensar que Morgana estava
realmente mandando no meu corpo sem me tocar, mas eu não tinha outras palavras ou uma
teoria cientifica para negar o que estava acontecendo.
—Uma herdeira que não sabe o próprio valor. Por isso me perguntou se eu via a coroa na sua
cabeça. — O objeto metálico visto anteriormente era um canivete que, naquele instante, rasgava
a palma da mão direita da cigana, bruxa, charlatã, sei lá como deveria chamá-la.
—Herdeira de quê? — questionei, tentando ganhar tempo, pensando que em algum momento
minhas amigas acabariam por me procurar.
—De um trono que, pelo visto, vai custar seu amor, querida. —Sorriu, olhando bem nos meus
olhos enquanto se aproximava. — Não chore. — Seus dedos ensanguentados afagaram meu
rosto, como se eu realmente estivesse chorando.
—Então, você deve ser muito imbecil. Eu não tenho um amor. — Cuspi em seu rosto, sentindo
nojo do seu sangue em minha bochecha.
E paguei o preço. Morgana estalou os dedos bem na frente do meu rosto enquanto eu presenciava
seu sorriso se desfazer em uma linha reta e os vincos retornarem a sua testa. Senti meus
neurônios travando uma luta. Minha visão imediatamente embaçou e vi duas ciganas, talvez três,
vi muitas velas, vi as chamas bruxuleando mais que o normal e vi as cartas levitarem na direção
do teto. Ela parou de me encarar para observar o show das cartas no teto e, por um instante, eu
senti a magia sobre mim diminuir. Minha mente recobrou um pouco a lucidez quando vi a
cortina vermelha balançar, dando lugar a um homem escondido por uma jaqueta jeans com um
capuz. Seus passos eram calmos e determinados, apesar de a minha mente estar velejando e me
causando náuseas. Ele?!
—Veio reclamar a herdeira? Acabei de fazer a comunicação às águias noturnas — comentou
tranquilamente, caminhando na direção da mesa e se sentando. — Sente-se, me diga o que tem a
oferecer por ela.
—Em quanto tempo você acha que a Corte chega, Morgana? — sua voz não hesitou nem por um
instante. Observei quando se inclinou sobre a mesa, de costas para mim. O barulho das suas
mãos se chocando contra a mesa pareceu quintuplicado nos meus ouvidos, aumentando a náusea
a tal ponto que vomitei. — Ela é minha, a partir de agora, e duvido que seja capaz de me dizer o
contrário.
—Por que está traindo as águias, Eric? — A cigana se levantou e, com a minha visão levemente
recuperada, pude notar que sua expressão não era mais de ira. Morgana parecia surpresa, curiosa,
com seus olhos verdes levemente arregalados. — Eu não abrirei mão dela. — Morgana se
encheu de força, esboçando um singelo sorriso enquanto fechava sua mão, fazendo mais sangue
pingar sobre o chão.
—Admiro a sua ousadia em me enfrentar. — O encapuzado estendeu a mão na direção dela,
fazendo Morgana abrir os lábios, temerosamente.
—Você não seria capaz... — ela falou cada palavra lentamente, parecendo se sentir realmente
traída.
—Eu não teria vindo até aqui, se não fosse. Considere como um ato de misericórdia. — A mão
direita de Eric abriu na direção do peito da cigana que começou a perder a cor.
—Eu não pensei que você fosse ser capaz, Eric. Por favor, —seus lábios vermelhos rogaram pela
própria vida, enquanto ela juntava as mãos para suplicar. — Por favor, eu não quero ir para o
reino da morte, por fav...
—Pare — berrei, chamando a atenção do encapuzado, que direcionou o rosto para mim. Seus
olhos eram azuis, exatamente como no pesadelo. E exatamente como no pesadelo, o tal Eric
parecia estar salvando a minha vida. — Não a mate, pelo amor de Deus.
Morgana se aproveitou do momento, do fato de Eric ter parado de prestar atenção nela para me
olhar, para estalar seus dedos sobre a mente dele, como fizera outrora comigo. Contudo, sobre
ele, aparentemente o feitiço não surtiu efeito. E enquanto o sangue da mão dela pingava sobre o
chão, Eric continuou com sua mão estendida. Morgana suplicando. E eu assistindo.
—Eu não a estou matando — explicou, apesar de seu tom ser gelado como a neve. — Mas,
espero que você esteja ciente de que ela estava tentando barganhar você com os seres mais
perigosos da nossa sociedade. — Eric se apressou em segurar o corpo da cigana no momento em
que ela perdeu todas as forças, desfalecendo. Embora ele dissesse que não.
—Eu sabia que ela estava tentando me vender — retruquei enquanto o observava repousar o
corpo da cigana no chão. Tinha sido reduzida a uma mera espectadora da minha própria vida. —
E também sei que você veio me comprar, não é mesmo?
Eric optou por não me responder de imediato. Não que eu tivesse realmente feito uma pergunta,
o deboche no meu tom de voz indicava isso. No entanto, seu comportamento era um enigma para
mim. Se Morgana tinha comunicado os seres, faça uma pausa nesta palavra enquanto minha
mente a compreende, mais perigosos da nossa sociedade, e Eric havia aparecido, isso o tornava
um deles, correto? E, então, por que ele estava me salvando?!
Pensando nisso, acabei por me dar conta de que o feitiço sobre mim havia sido desfeito. Não
estava mais congelada. Talvez pelo fato de que Morgana não mais existisse. Se ela não estava
morta, eu não sabia o que ela estava, e também não sabia o que Eric considerava morte. De
qualquer forma, decidi que a tenda não era o melhor lugar para raciocinar sobre o que tinha
acontecido, assim, ajeitei minha bolsa para dar o pé. E, obviamente, não foi como planejei.
—Sim, eu vim comprar você — suas palavras fizeram meus passos cessarem antes de a sua mão
segurar de modo gentil o meu antebraço —, sim, talvez eu seja um dos piores seres da nossa
sociedade.
—Eu não estou à venda. — Puxei meu braço da mão dele, irritada, no entanto, Eric não cedeu.
Pelo contrário, ele virou meu corpo na sua direção, congelando-me novamente. — Por que não
congela logo a minha boca também?
Vislumbrei um discreto sorriso de divertimento antes de ele abaixar a cabeça, deixando a franja
de seu cabelo escuro como a noite esconder seus olhos. Eric coçou a garganta e puxou da jaqueta
jeans acolchoada um frasco vazio. Em seguida, suspendeu sua mão esquerda na direção do meu
rosto, e eu juro que me debati internamente, que tentei me soltar daquele feitiço imbecil. Seus
dedos gelados encostaram na minha pele com calma, e ele os deslizou sobre a minha bochecha. E
eu relutei por dentro e o xinguei algumas vezes até seus olhos se levantarem na direção dos
meus, até sua mão direita posicionar o frasco logo abaixo da maçã do meu rosto. E, de repente,
eu não estava mais congelada.
—Você desfez o feitiço — as palavras pareciam estar brincando em seus lábios, dançando a
frente dos meus olhos.
—Eu?! — Encarei-o completamente confusa. Como eu tinha desfeito o feitiço?!
—De algum modo, você conseguiu canalizar todos aqueles xingamentos. — Afastou o frasco do
meu rosto e o guardou de volta na jaqueta. — Significa que você poderia ter me parado antes
mesmo de eu ter tocado seu rosto. — Um sorriso convencido brotou em seu rosto. Eric estava se
divertindo com aquilo, estava insinuando que eu queria seu toque, e eu reagi sem pensar.
Levantei a mão para acertar um tapa em seu rosto, mas ele a segurou com firmeza, sem piscar
antes de o fazer. Eric agarrou meu pulso, puxando-me em sua direção sem qualquer dificuldade,
fazendo eu me sentir uma formiga facilmente amassada.
—Você me deve um favor por ter salvo a sua vida — depositou as palavras a milímetros de mim
e, diferente do pesadelo, naquele instante eu podia ver os seus olhos azuis nos mínimos detalhes.
Talvez no modo como eles eram mais claros no centro e escureciam gradativamente. Talvez no
modo como ele não piscou ao falar comigo, ou no modo como ele parecia muito certo do que
dizia. — E eu voltarei para cobrar. Até mais, Kate.
Eric estalou os dedos da mão desocupada e a tenda começou a pegar fogo. Em segundos, o azul
dos seus olhos se transformou num breu.

Ainda estava tudo escuro quando senti um líquido escorrer pelos meus lábios, trazendo-
me de volta a realidade. Minha garganta estava seca, dolorida, e num rápido instinto abri minha
boca para tentar absorver a água, mesmo sem saber sua procedência.
A cada gota de água, eu sentia o alívio me preencher, como se eu estivesse à beira da
inconsciência e estivesse recobrando minha lucidez. Lembrei-me da tenda pegando fogo, abri os
olhos e me sentei em um pulo. E a primeira coisa que avistei foram seus olhos, mas não eram
azuis, eram da cor do outono, das folhas alaranjadas que cobriam o portal da festa. Olhos como
eu nunca havia visto. Ele enroscou a tampinha na garrafa de água em suas mãos.
—O que aconteceu?! — Tirei meus olhos dos dele, focando ao meu redor. Ainda estávamos no
parque, apesar de ele estar praticamente às moscas. Como eu tinha ido parar quase na entrada
do evento? Tão longe da tenda?
—Sua primeira pergunta não deveria ser o meu nome? — O dono dos olhos de outono levantou
o canto direito dos lábios de forma simpática, revelando uma linha de expressão que o tornava
charmoso. — Houve um incêndio na tenda da cigana, e eu a encontrei aqui largada na grama.
Aparentemente você desmaiou com o susto.
A última coisa que eu faria era desmaiar com sustos. Não que eu não me assustasse, o problema
era que eu havia sido acostumada a manter a calma nas horas difíceis. A minha família perdia
facilmente o controle nas situações complicadas, e eu me doutrinei a absorver a calma que elas
não possuíam.
—Os bombeiros já contiveram o fogo e estão examinando algumas pessoas. As demais correram
o mais rápido que podiam — ele continuou após o meu silêncio.
—E por que você ficou? — Muito altruísta, pensei em completar, mas não quis parecer ingrata.
Pelas suas roupas, bombeiro com certeza ele não era, ainda que a camisa branca com gola V
revelasse um porte bem atlético.
—Estou acostumado com o fato de as pessoas não acreditarem na minha capacidade de ajudar os
outros sem querer nada em troca — respondeu à pergunta que eu não havia esboçado, e eu me
assustei. Não que eu achasse que poderia me assustar com mais alguma coisa, para ser sincera,
eu estava custando a acreditar no que havia acontecido na tenda.
Aquele cara na minha frente tinha o mesmo dom compartilhado entre eu e minha avó? Ler os
pensamentos? Ok. Sei que pareço uma aberração tendo pesadelos reais, lendo as mãos das
minhas amigas e lendo pensamentos. No entanto, você precisa entender que eu fui criada assim.
Desde pequena, minha avó falava:
“Todos temos dons. A diferença entre todos e você é se vai exercitá-los ou não.”
E ela me ajudou a trabalhar em cada um dos dons que descobríamos em mim. Minha avó era
como uma amiga para mim, e eu nunca superaria a sua partida, a sua ausência física na minha
vida. Ler pensamentos é como ler a linguagem corporal. Nós nem percebemos, mas entregamos
tudo que pensamos nos movimentos de nosso corpo. E após anos e anos praticando, havia me
tornado profissional na leitura dos outros, ao ponto de quase ouvi-los sussurrar na minha mente.
Ao ponto de eu me assustar e achar que podia não ser apenas um dom ou uma habilidade
trabalhada, que podia ser algo sobrenatural.
—Sinto muito. Eu não queria ter sido tão... — Sincera? Direta? Objetiva? Eu nem havia
falado...
—Natural? — sugeriu num tom baixo e doce, como não se importasse nem um pouco com a
minha desconfiança a respeito dele.
—Sim — balbuciei, um pouco desconcertada pela precisão com que definiu minha atitude. Sua
habilidade era melhor que a minha, pelo visto. — Alguém se feriu? — Procurei minha bolsa,
mas ela havia sumido na confusão. Levantei-me, percebendo que ainda estava sentada na grama
de frente para o rapaz que eu não sabia o nome.
—A cigana morreu. O fogo pegou quase todo o corpo dela. — Oi?! Eric não havia dito que ela
estava viva? E que estava concedendo a ela um voto de misericórdia?! Grande mentiroso.
Com muita elegância, o rapaz levantou-se também, no entanto, o fato de seus olhos estarem tão
fixos em mim, como se ele estivesse deslumbrado por me conhecer, deixou-me completamente
constrangida. Será que ele podia parar de me olhar daquele jeito? Eu não sou nenhuma deusa
ou artista famosa para tanto.
Como se tivesse acabado de matar uma charada, ele abriu os lábios, formando mais uma vez
aquela linha de expressão. E ele simplesmente parecia alguém tão confiável, tão tranquilo, tão...
Não sei. Seu olhar se afastou na direção do lago que rodeava o parque enquanto eu me sentia tão
à vontade que pensava em estupidamente comentar sobre a leitura de pensamentos.
—Olha, eu devo pedir desculpas. — Estendeu as mãos compridas em sinal de paz. — Sei que a
estou deixando confusa, Kate...
Pare. Volte duas casas.
—Eu não me apresentei. Como pode saber meu nome se estou há todo esse tempo pensando em
você como um rapaz desconhecido? — questionei, aproximando-me involuntariamente, como se
eu pudesse retirar aquela informação com as minhas próprias mãos.
—Pediram que eu a encontrasse. — Ele se aproximou mais um pouco, não parecendo intimidado
pela minha aproximação inicial, e estendeu a mão na direção do meu rosto. Estava pronta para
dar o meu segundo tapa do dia, para afastá-lo de mim, quando seus lábios sussurraram: — Você
é neta de Júlia West, e eu preciso levá-la até uma pessoa.
Capítulo 4

Seus dedos tocaram em um ponto abaixo do meu nariz, mais


precisamente no canto dos meus lábios, causando-me desconforto. Não pelo seu toque, tampouco
por qualquer semelhança com o estalar de dedos de Morgana. Parecia a dor causada por um
ferimento e, inexplicavelmente, sua mão, que há poucos segundos, causava um leve incômodo,
passava a me trazer alívio. Como se ele estivesse curando algum machucado meu.
—Você fez algum esforço? Seu nariz sangrou um pouco. — Seu dedo estava deslizando
calmamente sobre o meu rosto, enquanto seus olhos fitavam o local com atenção. Confesso que
estava sem reação, e nem mesma me reconhecia. Por que eu ainda não tinha tirado a mão dele
dali? Seria uma espécie de feitiço também? — Desculpe a intimidade, mas eu tenho um dom de
curar pequenos machucados. Sou Téo Dáman. Para você não continuar me chamando de “rapaz
desconhecido”. — Seus dedos se afastaram do meu rosto, e idiotamente eu senti a ausência.
Havia algo nele. Em Téo. Algo que trazia paz.
—Você sai contando para todo mundo que tem esse dom? —Não era uma crítica, menos ainda
uma chateação. Era admiração. Téo simplesmente me contara aquilo como se estivesse me
falando que tinha habilidade em fazer comida.
—Você não é todo mundo, Kate. Você é neta da Júlia. Presumo que possa compreender melhor
que qualquer pessoa a minha habilidade — sua voz estava tranquila, apesar de seus olhos
semicerrarem conforme eu não conseguia esconder a minha cara de interrogação. — Você não
sabe que é uma bruxa?
Ok. Os passos que eu havia dado de forma inconsciente na direção de Téo foram os mesmos
passos que recuei no momento em que ele me fez aquela pergunta. Os acontecimentos da noite
caíram sobre mim como um choque de realidade, como se eu estivesse escondida por debaixo de
um véu e, naquele instante, ele tivesse sido levantado.
Fazia todo sentido. As magias de Morgana. O fato de ela ter tocado o meu corpo sem de fato usar
as mãos. Eric ter movimentado as cartas, ter falado sobre seres, ter mencionado com todas as
letras: “feitiço”. Claro. Eu sou uma bruxa.
—Sinto muito, não foi a minha intenção. — Téo se aproximou novamente, tentando manter a
conversa entre nós o mais baixa possível, ainda que poucas pessoas passassem por ali naquele
instante. — Não queria que descobrisse assim. — Escondeu as mãos nos bolsos da sua calça
jeans e, ainda assim, seus olhos se mantiveram nos meus.
A verdade era que Téo havia apenas transformado em palavras aquilo que estava bem a minha
frente, e eu vinha me recusando a enxergar. Primeiro, todos os ensinamentos da minha avó; sobre
os quais eu mesma cheguei a duvidar que pudessem ser sobrenaturais. Depois, os pesadelos. E,
por último, a situação na tenda. Ele não tinha culpa por eu não saber daquilo. Mas eu também
não o conhecia o suficiente para simplesmente entregar de bandeja as minhas fraquezas.
—Somente fiquei surpresa por você me confiar seu dom tão rapidamente — desabafei, optando
por contar apenas a parte verdadeira e omitir a parte sobre saber ou não a respeito da bruxaria.
—Não é um dom tão extraordinário assim dentro do nosso mundo — refletiu, alargando seus
lábios em um sorriso divertido. — Pelo menos não para mim, que não sou bruxo...
—Kate!
Eu conhecia aquela voz desde muito nova e senti um enorme alívio preencher meu coração.
Sentia-me um tanto abandonada no parque com um desconhecido que, enfim, tinha nome, e com
habilidades estranhas de me fazer conversar com ele como se nos conhecêssemos há anos.
—Não sabia que você estava por aqui ainda.
Henrique parou a nossa frente e somente assim percebi o quão próxima de Téo eu estava.
Precisei recuar alguns passos, na tentativa de não deixar o irmão de Lola à parte. De qualquer
forma, o estrago já estava feito. Os olhos amendoados do socorrista, muito parecidos com os de
Lola, passeavam discretamente de mim para Téo, enquanto um sorriso ousava despontar em seu
rosto. Eles sabiam da minha preferência por relacionamentos abertos e adoravam implicar
comigo quanto a isso. Podia imaginar como ele estava se coçando para me zoar.
—Perdi minha bolsa. Lola e Jane já foram embora, né? — Não sabia se deveria apresentar um ao
outro, porque não veríamos o Téo novamente...
—Prazer, sou Téo. — Por qual motivo eu perdi meu tempo pensando nisso mesmo?! Téo
estendeu a mão para o socorrista que retribuiu de imediato, apesar de não ter retribuído a
apresentação.
—Elas não estão entre os feridos leves, nem fatais — o modo frio, sério e dedicado dele de falar
ainda me causava certo incômodo apesar de tantos anos de convivência. Eu não conseguiria unir
a minha irmã e as palavras feridos fatais na mesma frase sem me emocionar. — Estamos já
finalizando a ocorrência, vou ver se encontraram sua bolsa. Vá para casa logo — avisou, antes de
começar a se retirar.
—Ric, pode me dar uma carona? — Seus passos frearam, e Henrique me olhou por cima do
ombro. Não. Ele olhou para mim e para o Téo, com bastante atenção, procurando identificar em
algum ponto o motivo pelo qual eu estava com um cara e estava pedindo carona para ele. Sua
posição, antes levemente relaxada, deu lugar a uma postura protetora. E, por um momento, eu me
arrependi.
Não queria ter passado uma impressão errada do Téo. Tinha acabado de conhecê-lo, não que eu
quisesse encontrá-lo mais vezes... A questão era que Téo não me apresentara qualquer risco,
ainda que em suas palavras repousassem assuntos assustadores.
—Claro — Henrique respondeu, parecendo ter finalizado sua busca pelo motivo. — Estou
finalizando meu plantão, podemos ir juntos para casa. Quer vir procurar sua bolsa comigo? —
sugeriu, tentando me dar a oportunidade de sair dali naquele instante, quando tive a certeza de
que aquela era a minha chance de me redimir.
—Se puder ver para mim, agradeço. Ainda estamos conversando — expliquei, passando o peso
do meu corpo de um pé para o outro, sem jeito e culpada pela situação desnecessária. Eu só
queria saber que tinha alguém a quem recorrer, que ele voltaria para me encontrar, e que eu não
precisaria continuar ouvindo as verdades que Téo portava.
Henrique balançou a cabeça em anuência, não sem lançar um olhar sério para Téo antes de se
afastar. Desde sempre, éramos como irmãos. Por ser mais cinco anos mais velho e ter tido um pai
relapso, ele havia se colocado muito cedo na posição de chefe da casa, cuidando da mãe e da
irmã com afinco. E, para minha sorte, eu estava inclusa nessa seleta lista.
—Seu amigo saiu pensando que sou um mal à solta na sociedade. — O sorriso agradável e
charmoso de antes desaparecera, dando espaço para um semblante sério. — Mas eu entendo
você. Cheguei do nada dizendo que a conheço e que vim a mando de alguém. No seu lugar, eu
estaria no mínimo receoso com a minha presença. É sempre bom ter alguém com quem contar.
Por um momento, um mísero instante, cogitei que sua mudança de expressão indicasse chateação
pela impressão que eu havia causado a respeito dele. No entanto, as suas palavras me diziam algo
diferente. Me mostravam real compreensão. Me mostravam o quanto ele era mestre em estudar e
identificar as reações das pessoas. E naquele mísero instante eu o admirei novamente. Ainda
mais do que antes.
—Sinto muito por ter passado uma impressão ruim de você, mas eu não tinha outra opção. —
Voltei a enrolar os cachos dos meus cabelos. Pedir desculpas não é exatamente o meu forte. Não
com estranhos. — Não posso confiar assim em você, tão facilmente.
Cruzei os braços, tentando lutar contra mim mesma e a vontade de passar a noite inteira
bombardeando Téo com perguntas, mas eu não podia. Eu não devia. Eu estava confusa demais
com tantas informações, surpresa com a ideia de ser uma bruxa. Precisava ao menos conseguir
lidar com aquilo, precisava tentar lidar com a minha mãe e com as cada vez mais aparentes
mentiras dela. Ou omissões. Seria uma conversa infrutífera.
—Preciso ser sincero. — O sorriso não brotou em seus lábios, mas em seus olhos, que se
iluminaram como se o sol tivesse ofuscado a lua. — Eu não esperava que fosse ser tão difícil,
mas eu entendo que você não detém informações importantes para essa decisão. Eu pensei que já
as tivesse.
—Sim, eu preciso de respostas, preciso entender algumas coisas. — Olhei para o céu, tentando
não pensar demais naquilo, tentando não demonstrar a minha fraqueza.
—Eu me prontifico a responder o que julgar necessário. Quando você quiser. — A firmeza em
sua voz despertou de volta a atenção dos meus olhos para ele. Téo não parecia um homem
comum, não parecia com ninguém que eu já tivesse conhecido.
—Segunda-feira. Na porta da faculdade. Às sete horas.
Capítulo 5

O quão estúpida eu tinha sido de marcar para segunda-feira um encontro


urgente?! Eu somente tinha pensado que precisava de um tempo para descobrir se minha mãe
realmente mentia para mim, para lidar com as informações estranhas como o fato de eu ser uma
bruxa. Mas a terrível verdade é que eu apenas queria dois dias para fingir que ainda era uma
pessoa normal, dentro das minhas anormalidades habituais, e para fingir que eu possuía o
controle sobre alguma coisa.
Henrique deu com a língua nos dentes tão logo chegamos na casa de Lola, onde as duas me
esperavam apreensivas, após terem ligado para o meu celular mais de cinquenta vezes.
Realmente a minha bolsa tinha desaparecido, com meus documentos, celular, dinheiro, cartões.
Toda a minha vida nas mãos de um qualquer. Passei o sábado e o domingo tentando recuperar o
máximo possível de coisas: adquirindo um celular novo, registrando o sumiço dos meus
documentos e solicitando novos cartões. E pensando no meu encontro com o misterioso dono
dos olhos de outono. Pensando, irracionalmente, se minha bolsa estaria com o Eric, afinal eu
estava com ela quando ele estalou a porcaria dos dedos. Mas, por quê?
—Pode prestar atenção em mim? — Lola estalou os dedos na frente dos meus olhos perdidos em
devaneios. Um gesto tão simples como um estalar de dedos havia se transformado em uma coisa
assustadora.—O cara do parque deve ser realmente incrível, você nunca ficou tão distraída.—Ela
lambeu seu sorvete de baunilha, fazendo eu me lembrar do meu.
—Serei obrigada a concordar, Kat. — Jane se debruçou sobre a mesa da lanchonete e me
encarou esperançosa. — Terá a maldição do relacionamento aberto quebrado?
Gargalhei. A capacidade de Jane em gostar de filmes de princesas me deixava espantada porque
ela sempre fazia questão de manter uma pose de adulta, madura e elegante. Contudo, quando
ficávamos sozinhas, e ela tinha o controle da televisão nas mãos parava nos canais de animação
infantil. Jane queria ser uma princesa da Disney. Eu estava mais para as vilãs. Adorava as
versões que contavam seus motivos para tais atos cruéis. Porque as pessoas nunca são uma cor
só, elas são um misto de tonalidades, um misto de sentimentos que culminam em atos tão
coloridos quanto.
—Pare de rir. Você nem está prestando atenção no fato de Lola ter finalmente encontrado o amor
da vida dela.
Lola se recostou na cadeira de metal e olhou para o teto, parecendo completamente apaixonada.
Eu falei que ela era capaz de se apaixonar na fila da padaria. E me senti mal por realmente não
estar dando a devida atenção, mesmo que existisse uma grande possibilidade de esse amor
desaparecer tão rápido quanto aparecera. Como em todas as outras vezes.
—Desculpa, eu realmente estava pensando no Téo — confessei sem nenhuma dificuldade.
Porque era mentira. Doeria muito assumir estar pensando nele, se fosse a verdade. Eu hesitaria,
poderia até mesmo gaguejar.
Era mais fácil ocultar a realidade. A realidade de que eu me lembrava de Morgana movendo meu
corpo sem me tocar, a realidade de que eu estava sendo vendida e que devia favores ao Eric. A
realidade de que Téo me conhecia antes mesmo de eu saber seu nome. A realidade estava me
assustando, pois eu odiava o desconhecido. Odiava não ter controle sobre as coisas. E era mais
fácil ocultar a verdade das minhas melhores amigas pela primeira vez porque eu tinha medo, um
instinto esquisito de que poderia ser perigoso envolvê-las. Tão perigoso quanto invocar os seres
ruins de uma sociedade que eu não conhecia. Além do que eu me sentia extremamente ridícula
ao me imaginar dizendo: sou uma bruxa. Talvez porque, para mim, não parecesse tão ridículo.
Parecesse até mesmo natural. E, por isso, soava tão vergonhoso.
—O que você disse?! — As duas se debruçaram na minha direção incrédulas.
—Que estou pensando no Téo. — Sorri. — É besteira. Ele só é diferente dos outros caras. Pode,
agora, por favor, me falar do amor da sua vida?
—Não será nenhum sacrifício — Lola começou. — Vou contar tudo porque você não ouviu
nada. Nós estávamos na barraquinha de bilhete da sorte, em frente à tenda, quando as chamas
surgiram. Foi horrível, Kate. A gente tentou entrar de todas as formas, mas era tudo pano. E pano
sendo consumido pelo fogo. Jane se afastou para ligar para a emergência enquanto eu gritava e
corria para pegar água. Queria dar um jeito de apagar o fogo. — Segurei suas mãos, já vazias do
sorvete finalizado, e entrelaçadas de nervoso. — Quando eu voltei, com duas inúteis garrafas
grandes de água, ele estava parado do lado de fora. Logo em seguida, a emergência chegou e
começou a nos espantar, enquanto nos microfones alguém ordenava que fossemos embora. Eu
avisei que você estava lá dentro para os socorristas. Nenhum deles era o Henrique. Ele teria me
ouvido. Mas só quem me ouviu foi o amor da minha vida. — Jane revirou os olhos, e eu ri
discretamente.
—Ele se compadeceu do nosso desespero. Realmente foi uma atitude louvável — Jane
acrescentou. — Avisou que uma mulher tinha saído andando e, pelas características, era você.
Por isso, aceitamos a carona dele e ligamos para você mais de quinhentas vezes.
Oi?! Soltei a mão de Lola imediatamente e, não querendo chamar a sua atenção, fingi que ia
mexer no meu novo celular. O amor da vida de Lola estava mentindo. Como eu diria isso a ela?
E por que ele havia inventado que eu saíra andando? Eu teria saído andando e não era capaz de
me lembrar? Precisava descobrir se isso era possível antes de destruir o novo romance da minha
melhor amiga. Ao mesmo tempo que eu desejava que aquele amor fosse efêmero como os
outros, eu desejava, de forma egoísta, que não. Precisava conhecê-lo. Precisava saber os seus
motivos.
—A Lola já o convidou para o baile daqui a duas semanas. —Jane podia ter falado mais coisas
enquanto eu divagava sobre o quanto a minha vida estava parecendo uma ampulheta, sendo
virada de um lado para o outro a cada segundo. —Você vai, né?
Eu tinha um péssimo hábito de não querer ir a bailes porque não gostava de ter que ficar de salto
por quatro horas seguidas e nem de ter que dançar enfiada em vestidos elegantes e
desconfortáveis, mas eu costumava ceder a vontade das duas.
—Eu tenho opção, Jane?! — impliquei.
—Ainda bem que você aprendeu — ela retrucou com um sorriso de orelha a orelha. — Espero
que leve o Téo.
—Quem sabe você não deva convidar o Henrique?
—Os homens é que devem convidar as meninas, e ele ainda não descobriu que sou o amor da
vida dele. — Rimos.
Jane tinha uns costumes conservadores, e estava perdendo uma boa oportunidade de tentar.
Podíamos ir ao baile as três acompanhadas. Apesar dos meus planos e da minha confirmação de
presença, o meu destino não concordava com as minhas escolhas e eu não iria ao baile.

Domingo era um dia que minha mãe ficava o tempo todo em casa, então, eu não tive a
oportunidade de entrar no depósito, onde ela guardava coisas antigas nossas e algumas caixas da
minha avó, que foram retiradas da sua casa por abrigarem documentos importantes.
Antigamente, eram apenas caixas e documentos como escrituras, certidões de nascimento, de
casamento, entre outros papéis corriqueiros de gente normal. Atualmente, eu olhava para aquela
porta como se ela fosse uma passagem secreta para Hogwarts, a plataforma 9 ¾. Contudo, eu não
teria a oportunidade de entrar lá antes do meu encontro com Téo, por isso, nos trancamos no meu
quarto e foquei nos meus estudos com Jane. Não, ela não estava estudando de verdade, apenas
copiando.
A segunda-feira enfim amanheceu. Chuvosa. E não foi muito difícil para mim escolher usar as
minhas botas de sempre. De resto, apenas coloquei uma calça e uma blusinha de manga. Era
quase um uniforme porque eu não ligava muito para roupas. Tinha o costume de gastar meu
dinheiro com livros, cadernos, canetas; roupas não.
Seguimos para a aula de Medicina Legal, uma matéria opcional no curso de Direito, e que eu e
Jane decidimos fazer juntas para nos ajudarmos com o material de estudo. A aula seria teórica e,
por isso, não levamos nossos jalecos naquele dia. Entramos na sala, onde o professor Carlos já
estava fazendo umas breves anotações no quadro — ele não era muito de escrever, era mais de
falar —, quando estaquei na porta.
Por que Téo estava sentado em uma cadeira encostada no canto da sala? Era como se eu tivesse
voltado no tempo, e o professor tivesse colocado Téo sentado ali porque ele era o melhor aluno e
ninguém poderia colar as questões dele. Isso acontecia quando eu estava no ensino fundamental.
Na faculdade, os professores pouco se importam se você não estudou, o problema será seu na
hora de exercer a profissão.
Téo estava com a cabeça ligeiramente abaixada, anotando algo em seu notebook. Podia vê-lo de
perfil, e observá-lo com mais calma não me fez começar a andar. Seus traços eram elegantes. A
linha do maxilar inclinando perfeitamente na direção do queixo, o nariz fino e harmônico. Os
fios loiros e curtos de seu cabelo estavam levemente arrepiados por causa da chuva. Seus olhos
subindo na direção dos meus foram o gás que as minhas pernas precisavam para andarem.
Caminhei na sua direção, aproveitando-me de que o professor ainda estava escrevendo e de que
os alunos ainda estavam se acomodando.
—Você está me seguindo?! — sussurrei assim que encostei meu corpo na sua mesa.
—Eu falei que precisava levá-la ao encontro de uma pessoa. —Ele apoiou as mãos sobre a mesa,
parecendo relaxado, apesar do modo como eu o abordara.
—E eu marquei um encontro para mais tarde — retruquei, ainda sentindo-me estranha com a
presença dele na sala.
—Eu não podia imaginar que a encontraria no parque sexta-feira. Do contrário — Téo diminuiu
seu tom de voz —, não teria dado um jeito de conseguir essa vaga.
—Kate West, vejo que já conhece meu estagiário, Senhor Dáman, por gentileza, apresente-se ao
restante da turma.
Corei. Não sou uma pessoa que se envergonha facilmente, no entanto, eu não tinha percebido
que a turma já tinha se preparado para a aula, tampouco que o professor havia terminado suas
anotações. Eu não queria ter chamado a atenção. Ainda mais de como as coisas soaram na boca
do professor.
Dei alguns passos para trás, observando Téo se levantar com toda sua calma e passos calculados.
Ele, deliberadamente, roçou a lateral do seu corpo no meu ao passar por mim na direção do
centro da sala. E meu coração acelerou. Estupidamente eu me peguei pensando no fato de que
Téo quis encostar em mim. Balancei a cabeça discretamente e levei minha dignidade para a
cadeira ao lado de Jane.
—Puta que pariu... — Jane sussurrou tão logo eu me sentei enquanto eu ainda tentava restaurar a
ordem dos meus batimentos. — Se eu soubesse que seria achada por ele no parque, eu
desmaiaria todos os dias. — Ri como uma idiota, tentando não chamar atenção.
Mantive minha cabeça baixa, arrumando minhas coisas na bancada e ouvindo o início de seu
discurso. Téo falava como se fosse um expert em palestrar, como se fosse um rei discursando
para seus súditos. E eu me recusava a olhá-lo e me permitir concordar com Jane. Seu toque ainda
estava me incomodando. Sua determinação em me levar ao encontro da tal pessoa. Sua elegância
e diplomacia me surpreendiam.
“Eu trabalho há três anos no Departamento de Polícia da parte antiga da cidade. Nos casos
mais sérios e complicados. E o supervisor achou que eu poderia contribuir dividindo minhas
experiências com vocês e também aprendendo um pouco mais com esse grande mestre que está
ao meu lado”.
—Ele olhou para cá num total de... dez vezes?! — Jane sussurrou. — E você o ignorou num total
de dez vezes também. Talvez eu deva usar essa tática com o Henrique, porque, sério, esse cara
parece interessado em você.
—Acabamos de nos conhecer, Jane. Por favor, você não é a Lola —reclamei, começando a
anotar as coisas no notebook.
—Justamente por isso você deveria me levar a sério. Eu não acho que ele esteja apaixonado, mas
que ele quer experimentar, ele quer.
Experimentar?! Tenho certeza de que corei novamente, sentindo um calor ridículo. Mantive
meus olhos na tela do computador.
—Quando você falou experimentar, eu tive certeza de que não era mesmo a Lola—debochei.—
Você prefere chocolate ou morango quando for experimentada pelo Henrique?
—Amiga, se eu for experimentada pelo Henrique, nem precisa de chocolate e morango. — Ela
ligou o gravador do seu celular quando o professor começou a falar sobre o assunto do dia. — Eu
sou apenas prática. E, se ele olhar mais uma vez para cá, eu juro que vou ceder minha cadeira.
Levantei meus olhos na direção de Téo. Se ele era tão hábil em ler pensamentos, eu me
concentrei em usar o meu corpo para passar o recado de que não queria que continuasse a me
olhar. Jane estava falando sério, ela seria plenamente capaz de se levantar e fazer alguma
gracinha. A faculdade não é como a escola. As pessoas não ficam ligando muito para a fofoca do
momento. Então, se ela fizesse qualquer coisa do tipo, poucos notariam. O estagiário pareceu
entender, porém, de uma forma estranha, quando ele inclinou a cabeça para o lado, franzindo sua
testa na minha direção, eu escutei algo sendo sussurrado na minha mente:
Por que me ignorou o tempo todo? Fiz algo de errado?
Comprimi meus olhos na sua direção, tentando entender se era sério aquilo. Se eu realmente o
tinha ouvido. Tinha quase certeza de que havia sido a sua voz. E, então, querendo me garantir
disso, ele repetiu sua pergunta. Na minha mente.
Como você faz isso?
Um ponto de interrogação formou-se na minha testa.
Exatamente como você fez agora. Basta pensar.
Você pode ouvir todos os meus pensamentos?!
Seus lábios grossos se abriram em um sorriso divertido e discretamente convencido.
Apenas quando você os direciona para mim. Como está fazendo. Não podia ouvir o que estava
falando com a Jane, por exemplo. Nem seus motivos para ter me ignorado durante a minha
apresentação. Fique tranquila, caso tenha pensado algo que julgue constrangedor.
Olhei em sua direção novamente e sorri. Téo parecia sincero. Parecia estar sempre disposto a
responder meus questionamentos. E, de alguma forma, aquilo me confortou. Era como se eu não
estivesse sozinha na ampulheta na qual minha vida se transformara. Téo parecia possuir
informações e conhecimentos os quais eu desconhecia. Nossa comunicação, sem o uso da voz,
tinha me dado a certeza de que a minha habilidade de ler pensamentos não era apenas uma leitura
de linguagem corporal. Nós pouco nos mexemos. Tentamos ser o mais discretos possível. E eu
não seria capaz de escutar palavra por palavra. A constatação era terrível, mas talvez fosse
mesmo algo sobrenatural.

Quando as três horas seguidas de aula teórica acabaram, eu decidi simplesmente ignorar a
presença de Téo. Não havíamos nos comunicado mais, eu realmente havia me concentrado na
matéria, e ele fora chamado algumas vezes para dar exemplos de casos nos quais já trabalhara.
Estávamos seguindo com nossas vidas, como era antes de eu completar 21 anos. Amarrei meu
cabelo em um coque, joguei a bolsa transversal no meu corpo e me misturei a turma, ao lado de
Jane. Não havia sentido em parar para conversar com ele. Não éramos amigos, íntimos, nem
nada parecido. Seria até esquisito eu ir até sua mesa e falar algo. E nem sabia por que estava
pensando em tantas hipóteses, justificativas e alternativas. Paramos em nossos armários no
corredor, e enquanto eu pegava o material para estudar na biblioteca, Jane se despediu. Quanto
antes chegasse ao trabalho na sorveteria, antes sairia. Seu lema era: “antes tarde, que mais tarde
ainda”.
—O destino quis que nos encontrássemos duas vezes. — Téo relaxou o corpo sobre o armário ao
lado, escondido pela porta aberta do meu. Mantive-a aberta, acalmando-me do susto. —Devo
considerar isso como um sinal? — A porta do meu armário foi pouco a pouco sendo fechada por
sua longa mão.
—Levando em conta que você — passei a sussurrar — se esforçou muito para conquistar a vaga
de estagiário, eu diria que não há nenhum sinal. Mas cada um enxerga o que quer ver. —
Terminei de fechar o armário e coloquei o cadeado.
—Mas eu não fiz por onde encontrá-la no parque. —Não tinha percebido que ele estava tão
próximo até o armário ser de fato fechado. —Bem, eu marquei com a pessoa às 19h30, conforme
me pediu.
—Sugiro desmarcar. — Agarrei o livro entre meus braços e comecei a andar na direção da saída
do prédio. — Eu marquei com você, não com a pessoa que nem conheço. Você não acha mesmo
que vou sair da faculdade com você, né?
Téo caminhou rapidamente e me alcançou, passando a andar ao meu lado. O corredor estava
cheio ainda, com muitos alunos indo e vindo das aulas, professores circulando de modo
apressado. Descemos alguns degraus e, após passarmos por um pátio cheio de jovens
conversando, flertando, namorando, saímos na área aberta da faculdade.
—Na verdade, eu realmente achava. — Téo parou na minha frente, bloqueando meu caminho. —
O que eu preciso fazer para que você vá comigo? — Suspirou pesadamente, seu maxilar
enrijecendo. Téo parecia desesperado e realmente capaz de fazer qualquer coisa que eu
escolhesse. Essa constatação me assustou. Por que precisava tanto que eu fosse?
—Téo... —Eu queria fugir. Téo estava me obrigando a pensar nos meus problemas com mais
constância do que eu pretendia. Ele me parecia um problema desenhado ali na minha frente.
—É um bom sinal. Você já está usando meu nome. — Sorriu, e seus sorriso chegou aos olhos.
Merda.
—Você iria comigo se fosse o contrário?
—Claro. Eu sei que não vou fazer nenhum mal a você. —Ele estava fugindo da reflexão que eu o
havia induzido. —Eu a entendo, já disse isso. Me peça alguma coisa, Kate. Qualquer coisa que
faça você repensar sua decisão.
—Ok. Quero respostas para todas as minhas perguntas. Agora. Na biblioteca. — Fiz menção de
dar a volta nele para seguir meu caminho, no entanto, Téo estendeu o braço, impedindo-me.
Mais um passo e meu corpo encostaria no dele.
—Você é um pouco mandona — refletiu e, apesar de essa característica ser muitas vezes
considerada um defeito, Téo não parecia pensar do mesmo modo. O olhar divertido em seu rosto
me mostrava isso. — Eu aceito sua condição. Aceito até mesmo dar as respostas para as coisas
que você não perguntar, mas não na biblioteca. Você precisa me dar ao menos esse voto de
confiança. Preciso de um local mais reservado. — Arqueei minha sobrancelha, sentindo que
estávamos voltando ao mesmo problema. — No laboratório de Medicina Legal. Eu tenho as
chaves e ainda estaremos na faculdade.
Parecia razoável. Parecia ainda mais razoável e surreal o esforço ao qual ele estava aceitando se
submeter para me levar ao tal encontro. Téo parecia não ser nem um pouco orgulhoso. Era como
aqueles homens que não medem esforços para terem o que querem. E a verdade é que ele era o
único a fim de me explicar alguma coisa. Podia não ser nada relevante para a minha vida ou para
as minhas dúvidas, contudo, eu também não estava em condições de ficar recusando a oferta.
Aceitei.
Capítulo 6

O laboratório de Medicina Legal ficava no terceiro andar do prédio pelo


qual havíamos acabado de sair. Após ser convencida, demos meia-volta e seguimos em silêncio
pelas escadas. O movimento já estava bem menor porque a maior parte das pessoas já tinha se
enfiado em uma sala de aula ou ido embora. Téo pegou a chave dentro do bolso da sua calça
jeans clara e abriu o laboratório para nós dois. Assim que passei, ele ficou parado com a mão na
maçaneta.
—Você sabe que eu preciso trancar, né? E que não vamos acender as luzes, vamos nos aproveitar
da luz solar... —O desconcerto dele ao me explicar aquilo tudo me fez sorrir. E, embora eu
quisesse esconder a minha reação, foi impossível.
—Eu dei um voto de confiança. Faça logo, antes que você perca o seu estágio. — Ele sorriu de
volta, parecendo surpreso, e seguiu minhas ordens. Eu era assim tão mandona?
—Sente-se mais pro fundo — avisou quando eu fiz menção de escolher uma das primeiras
bancadas. — Teremos mais privacidade. — Ele se referia, claramente, ao pequeno retângulo de
vidro na porta que permitiria a uma pessoa passando pelo corredor nos enxergar, caso ficássemos
muito na frente.
Segui sua recomendação e escolhi a bancada na parede da porta e no fundo da sala. Larguei
minha bolsa e meu livro sobre ela, e relaxei sobre a cadeira. Téo rapidamente ocupou o assento
ao meu lado, virando seu corpo parcialmente para que pudéssemos conversar face a face.
—O que você precisa saber? — Apoiou seus pés no metal da cadeira e notei o quanto ele era
alto, quase não cabendo no espaço.
Distraí-me momentaneamente e o observei com calma novamente. Téo estava com os olhos bem
abertos, encarando-me à espera da pergunta preciosa. Infelizmente, Jane tinha razão. Havia uma
beleza estonteante nele. Talvez nem fosse o conjunto físico, mas o modo como ele olhava para as
pessoas ou o modo como abriu os lábios parecendo confuso com a minha falta de palavras. Tá
certo que eu não sou a Lola para me apaixonar atravessando o sinal da rua, mas também não sou
freira.
—Eu estava pensando por onde começar — justifiquei e não o encarei para analisar se havia
acreditado na minha desculpa. —Por que essa pessoa pediu a você para me levar e não veio
pessoalmente me procurar?
—Talvez por que ela seja uma idosa? Creio que não seja muito divertido ficar procurando uma
pessoa da nossa idade por aí enquanto você tem oitenta anos. — Ele relaxou o corpo e olhou para
o teto. — Imagino que você vá perguntar o motivo desse encontro, por isso, eu já adianto que
desconheço.
—Você simplesmente acatou o pedido? — Encostei meu corpo na parede, encarando-o.
—Eu fui criado assim. Se minha avó pede algo e não me explica a razão, eu não devo questionar.
Uma forma de respeito com os mais velhos.
—Sua avó?
—Sim. A minha avó. Ela disse que lhe escreveu um bilhete há muitos anos. — Continuava
olhando para o teto. — Confesso que fiquei me perguntando por qual motivo você se lembraria
de um bilhete escrito há muitos anos.
Téo tinha razão. O bilhete teria que ser muito especial e, geralmente, bilhetes especiais vem de
pessoas já especiais em nossas vidas. Não. Eu não me recordava de nenhum.
—Qual o nome da sua avó?
—Samantha Dáman, mas você teria reconhecido meu sobrenome. Não faz sentido algum para
mim...
—E mesmo assim você quer me levar a esse encontro... — Téo baixou os olhos de outono do
teto na minha direção imediatamente. Calei-me e mantive seu olhar.
—Apesar de desconhecer os motivos, minha avó não seria capaz de lhe causar qualquer mal. —
Levantou-se, e eu senti o impacto do seu afastamento. Pelo pouco que havia conhecido de Téo,
ele somente recuaria em um caso muito sério. Eu havia ofendido sua avó. Segurei seu antebraço,
antes que fosse embora.
—Sinto muito. Não foi o que quis dizer. — Levantei também. —Você simplesmente consegue
entender que eu posso não gostar do teor desse encontro, mesmo que ele não me represente um
“mal”?
Téo ficou de frente para mim, observando-me como se eu fosse uma alienígena. Sua testa franziu
e voltou ao normal por algumas vezes, parecendo raciocinar sobre minhas palavras. Somente me
dei conta que ainda segurava seu antebraço quando ele pegou minha mão, como havia feito no
parque. Não sabia se era para me afastar e ir embora, pelo menos foi o que eu imaginei, embora
tivesse sido totalmente sincera. Mas não. Téo desceu seus dedos para o meu pulso.
—Tenho uma proposta —sua voz tornara-se rouca, parecendo um sussurro, embora eu não
entendesse por que ele falava mais baixo. — Somente a levarei ao encontro da minha avó
quando descobrirmos os motivos, certo? — Comprimi meus olhos na sua direção, esperando o
que ele iria querer em troca. Podia imaginar um sorriso percorrendo seus lábios, mas Téo
manteve-se sério, encarando-me fixamente. —Nunca foi tão difícil ganhar a confiança de uma
pessoa, por isso, eu quero mais do que nunca fazer você acreditar em mim. — Ele tinha dado
mais uns passos, diminuindo nossa distância, e eu me perguntei a razão e me esqueci do que ele
havia falado. — Posso levá-la para um passeio ao passado?
—Você quer me levar ao museu?!
Teríamos respostas em um museu? Fiquei confusa, mas, percebi que não era de um museu que
Téo estava falando quando um riso divertido dominou seus lábios e sua alma. Sua mão segurou a
minha com firmeza, enquanto ele ria e me encarava. Não estava debochando de mim, estava...
Estava me observando novamente.
— Não. O museu não é a única forma de visitar o passado.
Aproximou-se mais um pouco, seu corpo já quase colado ao meu, e senti medo. Não dele. De
mim. Havia algo de muito errado acontecendo dentro de mim. Meu coração estava acelerado
novamente, apenas com toques e aproximações. E eu achava bonito o modo como ele sorria, o
modo como estava relaxado na minha presença, por mais defensiva que eu tivesse sido. Engoli
em seco.
—Fui abençoado com a possibilidade de visitar o passado de uma forma bem mais divertida. —
Não sabia o motivo, no entanto, seus olhos de outono estavam analisando meu rosto com
ansiedade. — E você tirou a sorte grande ao me conhecer...
—Agora você vai dizer que sou a primeira a compartilhar desse seu dom único — brinquei, e me
dei conta de que também já estava sussurrando, compartilhando aquele segredo apenas para nós
dois.
—Você vai entender que não é do meu hábito mentir, então, não. Você não é a primeira. — Uma
linha triste tomou conta dos seus lábios. Eu estou prestando muita atenção nos lábios dele ou ele
que os usa muito durante nossa conversa? — Mas todas as outras me pagaram para isso, ou eu
tive meus motivos profissionais. Nenhuma delas foi por vontade minha. — Seus dedos estavam
brincando com os meus carinhosamente e percebi que estava à vontade com Téo. E isso podia
ser ruim. Péssimo.
A primeira regra para não se apaixonar é apenas analisar o físico do pretendente. Sinta tesão. Em
hipótese alguma: amor ou paixão. A segunda regra é não permitir comportamentos carinhosos
como, por exemplo, os dedos dele acariciando os meus. A terceira regra é não compartilhar
segredos ou procurar a pessoa nos momentos difíceis. E eu estou rompendo as três com o Téo.
Prometi a mim mesma que iria visitar o tal passado com ele, decidir sobre a visita a sua avó e
não nos veríamos mais. Era o correto a se fazer. Puxei minha mão, cortando nosso contato
enquanto era tempo.
—Então, Aladdin, me apresente seu tapete mágico.
—Sim, Jasmine, mas eu preciso disso de volta. —Pegou minha mão novamente. — Escolha um
momento do passado que queira ver mais uma vez. Seu ou de alguém.
Balancei a cabeça incrédula. Sabia que minha vida nunca tinha sido normal com todos os dons
que minha avó fez questão de intensificar em mim. E, mais cedo, havia descoberto que a
habilidade de ler pensamentos não era apenas leitura corporal. No entanto, eu não conseguia
entender onde Téo queria me levar e como. Sinceramente, eu estava passando por três reações
distintas: Téo era completamente maluco, eu estava em coma há uns três dias ou alucinando, e a
terceira era uma vontade de rir por tudo aquilo ser tão esquisito e improvável.
—Esse é o segundo voto de confiança que estou dando a você —comentei, não seguindo
nenhuma das três hipóteses em minha mente.
—Serei obrigado a discordar. — Ele abriu minha mão, deixando meus dedos esticados. — Esse é
o meu voto de confiança. Estou compartilhando o segredo mais importante da minha vida e, de
quebra, estou lhe dando a oportunidade de descobrir alguma verdade. — Posicionou minha mão
sobre seu tórax e pressionou a dele sobre a minha.
Pisquei. Incrédula. Surpresa. E, infelizmente, contente. Conhecia Téo há quatro dias e, para a
minha completa ruína, nós parecíamos extremamente conectados, conversando sobre tantas
coisas e fazendo tantas reflexões que não conseguia simplesmente entender como havíamos
chegado aquele ponto.
—Ok. Quero ver a minha avó. No dia da sua morte. Quero saber se ela passou na minha casa,
antes de sofrer o acidente na estrada... — Abaixei os olhos, recusando-me a pensar, a reviver.
Téo estava me olhando, podia sentir seus olhos sobre mim.
—Você não quer ver o acidente, né? Porque, se for isso, eu me negarei. — A pressão da sua mão
sobre a minha diminuiu e seu corpo ficou rígido, ereto, parecendo na defensiva.
—Não. Não sou sádica, Téo. — Ele deu um suspiro aliviado enquanto eu puxava sua mão de
volta.—Pode compartilhar seu dom comigo?
Téo pressionou minha mão novamente e pediu que fechássemos os olhos assim que terminasse a
contagem até três. Em seguida, começou a passar as instruções. Mantenha seus olhos fechados o
tempo todo. Respire fundo e relaxe pouco a pouco. Esqueça esta sala, exceto por mim. Não se
esqueça de mim. Eu sou sua âncora. Confie em mim e continue respirando. Mentalize a sua avó
e a visita dela. O que sua avó faz?
—Bate na porta várias vezes. Ela está apressada.
—Quem atende?
—Minha mãe.
—E onde você está?
—Na escada, escondida.
—Onde você gostaria de estar, Kate?
—Ao lado da minha avó, vendo o que ela vai fazer depois de passar na minha casa.
—Sente alguma coisa?
—A chuva. Está me molhando.
Sim. Os pingos da chuva caiam sem piedade sobre mim. Minha avó estava parada do lado de
fora da minha casa, a mala sobre o tapete de entrada, minha mãe do lado de dentro, segurando a
porta.
—Conte a ela que estive aqui — minha avó pediu e pegou a pequena bagagem de mão. —
Adeus, filha.
Minha mãe não respondeu. Seu rosto endureceu, seus dedos ficaram brancos nos pontos onde
segurava a porta com todas as suas forças. Parecia ter envelhecido dez anos de repente, após o
pedido e a despedida da minha avó. Como num piscar de olhos, ela estava desgastada.
—Ela nunca será encontrada. Fiz o feitiço. E eu sinto muito, mas não contarei sobre a sua visita.
Eu sinto muito por decepcioná-la, mãe — suas palavras saíram sussurradas, e eu não tinha
certeza se minha avó as tinha ouvido.
Júlia colocou sua bagagem no banco do carona e saiu com seu carro sem olhar para trás.
Diferente do que foi relatado na perícia, o automóvel não aparentava nenhum defeito. Estávamos
no banco de trás. Eu e Téo. E minha avó dirigia sem dificuldades, como se fosse um dia como
outro qualquer. Percorremos uns vinte minutos em silêncio acompanhando seu trajeto pela
vizinhança. Passamos pela casa da família da Lola, pelo parque, e chegamos à zona nobre do
bairro, onde ficavam as casas caras. Uma senhora de idade parecida com a da minha avó
aguardava com a porta aberta, embaixo de um pequeno toldo.
Minha avó desligou a ignição, respirou fundo e abriu sua mala. Sem muita dificuldade,
parecendo se lembrar exatamente de onde havia guardado o que procurava, ela puxou algo e se
retirou. Num impulso, eu meti a mão na alavanca para abrir a porta, não querendo perder um
segundo, mas Téo fez pressão no meu pulso, o qual ele vinha segurando desde o início da
viagem. Estava chamando a minha atenção para si.
—Aquela senhora ali — apontou para a mulher que sorria para Júlia — é a minha avó. Que
porra é essa?!
Capítulo 7

Téo parecia preocupado e irritado, no entanto, deixamos isso para mais


tarde. Saímos do carro com discrição; segundo Téo, elas não podiam nos ver, mas poderiam nos
ouvir. Percorremos o caminho de pedras silenciosamente, sendo protegidos pelos pingos da
chuva incessantes sobre o tecido do toldo e sobre o telhado da casa. Àquela altura, eu já
conseguia ver que Júlia carregava um pequeno embrulho de papel pardo e que o entregou tão
logo chegou perto da avó de Téo.
—Tenho poucos minutos. Pelas minhas contas, em torno de trinta. —Minha avó olhou no seu
relógio de pulso dourado. Ela amava aquele relógio, mesmo que desse defeito vez ou outra,
porque meu avô havia dado a ela. — Obrigada por toda a ajuda, Samantha. Ajude-a. Faça-a
aceitar. Não se esqueça disso. Mas não a deixe no escuro.
—Você sabe o que vai acontecer quando eu tentar contar a verdade a ela — Samantha acariciou
o embrulho muito bem feito, sem qualquer amassado ou dobra. — Nós sabemos. Mas eu dei o
meu sangue e honrarei nossa amizade.
—Entregue isto a ela. Esse embrulho não a deixará perdida. E será suficiente. Não tente contar a
verdade. Proteja-se. Proteja o segredo. — Júlia segurou a mão vazia da amiga e as duas se
olharam com cumplicidade, com os olhos marejados. — Ela fez o feitiço. Você não a encontrará
facilmente.
—Você sabe que nunca desisto de uma coisa, Júlia. Fique tranquila. Farei de tudo para garantir
que Kate fique segura após nosso encontro. Deixou o bilhete com as minhas letras?
—Claro. Mas a Vânia com certeza vai descobrir e tirá-lo de lá a tempo. — Júlia abaixou a cabeça
momentaneamente Observei uma lágrima escapar pelo seu rosto. Meu peito se apertou e senti
um vazio. — Deixei o feitiço do sonho pronto. Você precisa ativá-lo em novembro de 2014, após
o aniversário de 21 anos dela. Aí dentro também estão os ingredientes necessários para o feitiço.
Amo você, Samantha. Sei que vou embora, mas com a missão cumprida.
—Obrigada pela sua amizade por todos estes anos, minha querida. Honrarei nosso acordo.
Sempre. Enquanto sangue correr pelas minhas veias.
Não foi uma nem outra que tomou a iniciativa, as duas simplesmente caminharam para se
abraçarem. Para o último abraço. Sussurraram algumas palavras, as quais não consegui decifrar,
embora me parecesse serem de despedida. Assim que se afastaram, Samantha limpou as lágrimas
que escorriam pelas suas bochechas rosadas. Parecidas com as de Téo. Júlia se afastou na direção
do carro.
É agora. É agora que ela vai morrer. Que seu carro terá uma falha mecânica e cairá no lago. O
cinto não soltará, apesar das tentativas, e minha avó morrerá afogada. Terá os piores minutos
da sua vida. Corri na direção dela. Minha querida avó. Prestes a morrer, e eu não podia ficar
assistindo. Toquei seu braço, e ela olhou para o lado. Na minha direção. Parou de andar, olhando
de modo surpreso, e retornou logo em seguida. Ela não tinha me visto?! Escutei os passos de
Téo. Senti sua mão segurando meu braço. Puxando-me para seu peito.
—Respire. Respire. A chuva está aqui também, batendo na janela do laboratório de Medicina
Legal. Você está aqui. Em pé. Com a mão no meu peito. Sinta minha mão sobre a sua. Me
escute. Abra seus olhos.
Abri os olhos no instante em que desabei, revivendo o luto pela morte da minha avó. Téo me
agarrou em seus braços, aninhando-me contra seu corpo, protegendo-me da descida emocional.
Da impotência de não poder salvá-la. Deslizou as mãos pelas minhas costas várias vezes
enquanto eu chorava compulsivamente. Relaxou a cabeça contra a minha, repetindo através de
sussurros que eu não tinha culpa e que eu não podia fazer nada. Que estava tudo bem com a
minha avó, onde quer que ela estivesse. E, acabei saindo da minha bolha, para perceber que ele
parecia exausto. Sua respiração estava ofegante. Não era fácil, porém, guardei a minha tristeza
numa gavetinha do meu coração e prometi que a abriria mais tarde. Tentei não pensar nas
inúmeras perguntas rondando meus pensamentos, na dor em não ter podido abraçá-la.
—Você parece cansado, Téo. — Afastei-me dos seus braços para observá-lo com mais atenção.
Algumas gotas de suor escorriam da sua testa, bem abaixo do seu cabelo raspado.
—Você a tocou... — sussurrou enquanto tentava regularizar sua respiração. — Eu gasto muita
energia fazendo isso e quando tocamos em algo, mais ainda. É uma limitação. Nenhum poder é
concedido sem uma contrapartida nossa. — Seus dedos deslizaram sobre a minha testa. — Não
precisa ficar se culpando, dá para ver pela sua testa franzida e pelos seus olhos assustados.
—Sinto muito. — Peguei sua mão, ainda acariciando minha testa, e a segurei na minha. —
Obrigada pelo seu tapete mágico. Eu não sabia que seria tão especial, apesar de todo o
sofrimento e das inúmeras perguntas que surgiram na minha mente. — Sua mão era larga, firme,
e agradável de segurar. Ele fechou os dedos ao redor da minha pele.
—Sem querer, descobrimos o motivo para a minha avó querer esse encontro. Vou remarcar com
ela... — eu o interrompi imediatamente.
—Por favor, ainda não. Preciso pensar sobre tudo que descobrimos. Preciso digerir as
informações. Me dê um tempo — implorei.
—Sem problemas. — Apesar de sua resposta ter sido objetiva, eu podia ver em seus olhos algo
como: todo o tempo do mundo. Téo movimentou o corpo na minha direção, recuperando a
distância pequena que eu havia criado ao sair dos seus braços. Seus dedos limparam o caminho
que as lágrimas haviam feito no meu rosto. E seus olhos encararam os meus. — Nossa próxima
aula juntos é na segunda, isso significa que não nos veremos por uma semana. — Um sorriso
tímido surgiu em seus lábios, como se ele não acreditasse no que dizia. Mas havia algo sobre
Téo, algo sobre o sorriso dele, sobre seus olhos. Eu via ingenuidade e pureza. Como se ele ainda
fosse um menino cheio de esperanças no mundo. E era bonito quando ele reservava para mim
esse olhar, essa esperança. — E eu não gostaria que fosse assim. Sinto que temos muitas coisas
para conversar, surgiram muitas dúvidas para...
—Não precisa inventar um monte de desculpas para me chamar para sair, Téo, apesar de eu
considerar seus motivos justificáveis. — Ele apertou ainda mais a minha mão, sorrindo de orelha
a orelha.
—Desculpa, mas você é uma pessoa difícil de esquecer. Aposto que daqui a duas horas, estarei
pensando nas suas respostas ou perguntas desafiadoras. — Dessa vez, fui eu quem sorriu,
satisfeita com o elogio. Téo não estava admirado com meu rosto ou com meus atributos físicos,
estava admirado com minha personalidade. Meu alerta apitou de novo. Afastei-me.
—Quarta-feira nós temos o hábito de nos reunir na casa do lago. Você pode aparecer lá para
conversarmos. — Puxei minha bolsa da bancada e a coloquei sobre meu corpo novamente. Tá
certo que eu estava afastando meu corpo, minha mente dele, mas eu o estava convidando para
um encontro com meus amigos. Ladeira abaixo era para onde eu estava indo. — Você está
melhor?
—Sim. Nada que uma boa noite de sono não resolva. — Colocou as mãos nos bolsos da calça.
— Está com pressa?
Você não imagina, eu pensei.
—Preciso estudar na biblioteca. — Téo chegou para o lado para que eu pudesse passar.
—Um dos efeitos colaterais do meu tapete mágico é a rapidez com que o tempo passa na nossa
dimensão. São oito horas da noite, e a biblioteca já está fechada. — Caminhou na direção da
porta, passando por mim calmamente quando eu imobilizei com sua informação. — Até quarta,
Kate West.
Téo destrancou a porta para que eu passasse. Pensei que ele fosse averiguar o corredor antes me
deixar sair tão facilmente, mas não. Talvez ele soubesse que mais ninguém estaria por ali naquele
momento. Peguei meu celular dentro da bolsa enquanto descia as escadas sem olhar para trás, e
encontrei várias ligações de Jane. Ela já devia ter chegado na minha casa. Corri para o ponto e
peguei o primeiro ônibus que passou.
Capítulo 8

Escolhi um assento no qual não tinha ninguém ao lado, assim eu poderia


ficar à vontade. Sentei e, como o ônibus estava relativamente vazio, coloquei minha bolsa na
cadeira ao lado, minimizando assim a chance de que alguém quisesse sentar ali.
Relaxei a cabeça contra o banco e tentei focar na paisagem que passava pela janela. Queria
conseguir prestar atenção apenas nas casinhas comerciais próximas à faculdade, ou na entrada do
parque, ou nas pequenas vilas com residências bonitas e caras. No entanto, a minha mente não
parava de gritar “bruxa”.
Aquela ideia estava a cada dia sendo repetida por pessoas ou fatos diferentes. Parecia haver um
letreiro piscando “VOCÊ É BRUXA!” por onde eu passasse, no entanto, a minha credulidade
nos conceitos científicos da vida me impedia de acreditar, de aceitar aquela possibilidade. Mas
como eu poderia ter ouvido a palavra feitiço tantas vezes e não acreditar? Como eu poderia ter
viajado no tempo e me negar a acreditar que havia um mundo além do que meus olhos podiam
ver?
Eu quase podia falar para mim mesma. Sou uma bruxa. Porém, apenas nos meus pensamentos.
Minha boca ainda se recusava a expressar aquela inevitável constatação. Minha mãe havia feito
um feitiço. Minha avó fizera vários. Por que as duas mentiram para mim por tanto tempo?
Meu coração explicava que as duas haviam tomado suas decisões por amor. Minha avó
potencializara vários dons meus de uma forma sutil, não querendo passar por cima da minha
mãe, que se negava a aceitar a minha realidade, a realidade da nossa família. E minha mãe
parecia temer algo, parecia temer pela minha vida ao me permitir conhecer a verdade.
E o pior de tudo é que, no final das contas, as únicas coisas boas das quais eu conseguia me
lembrar do dia, ou sobre as quais eu conseguia esboçar um sorriso tinham a ver com o Téo. E eu
tinha medo de que, como Jane sugerira, a maldição do relacionamento aberto estivesse rachando.
Peguei meu celular e deixei uma mensagem para Mel: “Preciso que você volte, mas não comente
com a mamãe”.
Sim. Jane já estava na minha casa quando cheguei. Provavelmente deitada na minha cama
assistindo série. Sabia disso porque minha mãe estava sentada na poltrona vermelha na qual meu
pai adorava descansar. E ela somente se sentava ali quando se sentia no dever de ser pai e mãe ao
mesmo tempo, era uma forma de torná-lo presente. E se ela se sentia assim é porque sabia que
nem mesmo minha melhor amiga tinha notícias do meu paradeiro.
—Boa noite, mãe. — Larguei o molho de chaves sobre o buffet ao lado da porta de entrada e a
encarei pelo espelho quando não recebi uma resposta. — Algum problema?
—Não se faça de boba, Kate. Porque sabemos que você não é. — Ela cruzou os braços e as
pernas. — O que estava fazendo de tão importante que não atendeu Jane? Nem Lola. Nem a
mim. — Ajeitou seus óculos.
—Por que tanta preocupação, mãe? — Virei de frente para ela e senti as palavras na ponta da
minha língua. Eu queria lhe dar a chance de ser verdadeira comigo, mas tinha medo de que ela
sumisse com as coisas da minha avó. Primeiro eu daria um jeito de encontrar o bilhete. — Estava
estudando e deixei o celular na vibração. — Comecei a caminhar na direção da escada.
—Você faz isso sempre e nunca deixou de atender as ligações. — Minha mãe se levantou,
parecendo enfurecida. —Não terminei de falar, mocinha.
—Mãe, você está fazendo uma tempestade em copo d’água. Estou dizendo a verdade, lamento
que não consiga acreditar na sua filha. — Subi as escadas em silêncio, e minha mãe acabou
desistindo.
Provavelmente ela estava com medo. Medo de que seu feitiço não tivesse dado certo e que eu
estivesse em perigo. Sabe se lá qual era o perigo que eu corria, ou que ela pensava que eu corria.
Era nítido no modo como se sentira mal ao negar o pedido da minha avó e como assumira uma
postura defensiva. E eu confiava nela, apesar de não concordar com sua proteção.
—Até que enfim. — Jane caçou o controle sobre a cama e desligou a televisão. — Não invente
que estava estudando. Eu passei na biblioteca, meu bem, e a Mônica nem atendeu você hoje. —
Ela se sentou com as pernas cruzadas, parecendo muito ansiosa. — Estava com o Téo?
Joguei minha bolsa sobre ela. Sem usar muita força. Apenas para implicar. Fui até a cômoda e
separei meu pijama para tomar um banho, mas dei meia volta e me joguei na cama, com a cabeça
perto das pernas dela, de modo que pudéssemos nos olhar.
—Estava. E estou preocupada — sussurrei. — Coloca uma música no seu celular para abafar
nossa conversa — pedi.
Jane acatou rapidamente e colocou uma canção romântica. Às vezes eu me perguntava se ela não
era mesmo emotiva ou se escondia seu lado fofo e apaixonado. Eu não podia contar sobre meus
segredos com o Téo, mas eu queria conselhos amorosos.
—Pronto. Por que está preocupada? Vocês já transaram? — Revirei meus olhos.
—Claro que não, Jane. Nós passamos a tarde toda no laboratório de Medicina Legal,
conversando. — Sorri e me assustei.
—Puta que pariu. Nem um beijo? — Queria ter uma almofada para tacar nela, mas não havia
nenhuma por perto. —Tá certo. Eu parei. Apenas me fale porque está tão preocupada.
—Muito obrigada, Jane — debochei. — Porque eu senti muitas coisas. Ele tocou na minha mão,
no meu rosto, e eu quero sentir de novo. Eu quero ouvi-lo mais uma vez. Quero ouvir quando ele
não se estressa com os meus foras, quando ele não perde a paciência comigo, quando ele sempre
usa sua elegância para me responder.
—É. — Jane fez um beiço, indicando que estava pensando sobre as minhas confissões. —Eu
nunca ouvi você falar que queria estar com alguém, tampouco elogiar tantas coisas. Acho que
talvez você deva beijá-lo. O tesão da imaginação é maior que o da realidade. Talvez você queira
beijá-lo e está reprimindo isso com tanto ímpeto que está gerando o efeito reverso.
Sentei na cama e a encarei como se fosse uma louca. Sério. Jamais imaginei que Jane fosse me
responder algo tão profundo e me dar um conselho que parecesse tão congruente. Eu a agarrei,
dando-lhe um abraço.
—Você sabe que só está feliz porque eu te autorizei a beijá-lo sem medo, né? — Retribuiu meu
carinho, porém, suas palavras jogaram água no argumento anterior.
—Você será uma excelente advogada. Terá argumentos tanto para a defesa quanto para a
acusação. — Levantei e peguei minha roupa sobre a cômoda. — Obrigada pela ajuda assim
mesmo.
Entrei no banheiro.
Capítulo 9

Minha mãe saía logo cedo para trabalhar na confeitaria da mãe de Lola
e, por isso, eu propositalmente me atrasei para a faculdade. Demorei mais no banho, enrolei com
o café da manhã, e fiz de tudo para não dar tempo de acompanhá-la e que ela saísse antes de
mim. Poderia invadir o depósito de madrugada, mas com ela em casa sempre seria arriscado.
Jane percebeu meu plano e aceitou se atrasar comigo ou, do contrário, não pareceria real.
—O que você está aprontando? — sussurrou quando paramos em frente à porta do depósito.
—Preciso encontrar um documento da minha avó. Um bilhete que ela deixou pra mim e, por
engano, veio parar aqui. — Girei a maçaneta apenas para constatar o óbvio.
—Você acha que sou idiota, né? — Ela se afastou na direção da mesa da sala de jantar. — Só um
pouquinho idiota. Por que você precisaria entrar aí escondido por um bilhete que POR ENGANO
se perdeu? —Ok. Não é que eu tivesse subestimado a inteligência de Jane, eu apenas pensei que
ela não fosse dar atenção a isso.
—Só me ajuda a encontrar as chaves. Sei lá. A entrar — supliquei, já andando ao redor da sala e
fuçando coisa por coisa.
—A sua sorte, Kate, é que eu sempre perco minhas chaves. Do armário, da bicicleta, do diário...
Então, eu me obriguei a aprender a abrir coisas sem a chave. Passou a ser uma utilidade privada,
já que só uso para mim — explicou com superioridade, gabando-se por sua habilidade com
potencial ilícito. — E eu já tenho os grampos prontinhos na minha carteira.
Caminhou na direção da porta embaixo da escada, onde ficava o pequeno aposento com
entulhos. Me aproximei, curiosa para saber como ela faria aquilo. Ela enfiou um grampo de
cabelo com uma curva na ponta.
—Para qual lado a chave giraria? — Indiquei a esquerda.
Jane começou a movimentar o grampo de um lado para o outro, com calma e cuidado, porém,
tive a impressão de que ela havia feito uma leve pressão no início. Me perguntei se eu poderia
abrir aquela porta com feitiço afinal, se eu era mesmo uma bruxa, Jane não precisaria estar
fazendo aquilo. Eu poderia simplesmente... Não. Eu não podia pensar naquelas coisas. Foquei
em Jane que, naquele momento, inseria o segundo grampo. Ela o movia para cima e para baixo
ao mesmo tempo em que segurava o outro. Fez o movimento algumas vezes, contudo, seu rosto
não tinha uma expressão positiva. Ela estava franzindo suas sobrancelhas quase platinadas de tão
loiras.
—Estranho. Já consegui vencer o pino mais resistente — reclamou.
Minha mente deu a resposta: minha mãe deve ter colocado um feitiço na porta. Bufei de raiva,
chateada por aquela situação. Eu precisava abrir aquela porta de qualquer jeito, precisava
confrontar a minha mãe com a verdade, eu não podia mais ficar no escuro, como minha avó
dissera. E eu não queria chegar até a avó do Téo, caso eu realmente fosse, de mãos abanando.
Comecei a andar de um lado para o outro, sentindo meu estresse se elevar consideravelmente.
—Abriu.
Jane sussurrou, parecendo surpresa. Acho que nem ela mesma acreditava mais na possibilidade
de abrirmos aquela porta. Girou a maçaneta e entramos no minúsculo cômodo cheio de caixas e
prateleiras em uma das três paredes. Puxei a cordinha da lâmpada e, para minha decepção, ela
estava queimada.
—Acho que não vamos à faculdade hoje — ela brincou. — Estamos literalmente no escuro com
uma, duas, três, quatro caixas para vasculharmos e um motivo real para tudo isso, o qual você
deve me contar enquanto estivermos em busca do tesouro.
—Ainda bem que você não sofre de alergia porque eu já sei que vou ficar espirrando pelas
próximas quarenta e oito horas — reclamei, sentando-me ao lado de uma caixa. Jane fez o
mesmo.
Ligamos as lanternas de nossos celulares e agendamos o alarme para dali a três horas, o máximo
que podíamos permanecer sem o risco de sermos pegas em flagrante. Minha mãe, às vezes,
voltava para almoçar em casa. De qualquer forma, pedi a Lola que ficasse de olho durante seu
turno na loja da mãe. Ela trabalhava lá de manhã e ia para a faculdade de Dança no período da
tarde.
—Minha mãe mentiu sobre o meu pesadelo — comecei explicando para Jane enquanto abria a
primeira caixa.
Ela e Lola sabiam do teor dos pesadelos, exceto pela parte do bilhete que havia sido acrescentada
no sonho mais recente e sobre o qual ainda não tínhamos tido tempo de conversar. Falei que
havia conseguido provas de que minha avó estivera mesmo em nossa casa antes de morrer e
havia deixado o bilhete. Enquanto eu contava, tentando não me distrair e falar demais, ia
encontrando coisas da nossa família. Álbuns de fotografias, certidões, extratos de bancos,
realmente as coisas comuns. A primeira caixa não era da minha avó. Ignorei e passei para a
seguinte. E quase dei um berro de felicidade. Encontrei o herbário dela. Um pequeno livro com
capa almofadada verde musgo. Seu nome estava cravado na frente com costura. Eu amava
aprender sobre as propriedades das ervas, sobre como elas podiam curar, como elas podiam ser
usadas naquilo que chamávamos de simpatias, mas que, em virtude das atuais circunstâncias,
começava a pensar que tivessem outros nomes. Rituais? Feitiços? Poções?
Abri o herbário e o virei para baixo. Minha mãe não ia largar um bilhete no meio da caixa,
provavelmente o teria escondido entre os objetos. Nada. Coloquei-o no chão, ao lado da caixa,
pois levaria comigo. Se eu realmente era uma bruxa, precisaria dele mais cedo ou mais tarde.
Continuei a procura. Encontrei desenhos de símbolos diferentes. Desenhos de pessoas. Um
caderninho com encomendas de joias. Sim. Minha avó desenhava joias para algumas joalherias e
usava pedras diferentes e bem bonitas, as quais também possuíam propriedades. Isso é comum
para qualquer pessoa. Uma lojinha com ervas ou pedras. Todo mundo compra uma vez na vida.
Até mesmo quem não acha que é bruxa, como eu.
—Sua herança vai chegar, aceite a mudança quando 21 primaveras completar — era a voz de
Jane, e eu agarrei uma pedra recém encontrada na caixa, assustada ao ouvir aquelas palavras na
boca dela. — Sua herança vai chegar, aceite a mudança quando 21 primaveras completas. Sua
herança vai chegar, ACEITE! — não era mais a voz de Jane.
Deixei a pedra cair e corri na direção de Jane, mas congelei na metade do pequeno caminho. Jane
segurava o bilhete, igualzinho o do meu pesadelo, um pouco já mofado pelos anos, suas mãos
brancas e as unhas pintadas de azul. Contudo, o modo como encarava o papel me dizia com cem
por cento de certeza que não era a minha amiga ali. Ela não faria aquela expressão séria e como
se estivesse vendo algo do qual não gostava. E eu simplesmente não sabia o que fazer.
Eu tinha resolvido fuçar meu passado, descobrir mentiras e segredos. E havia carregado Jane. Eu
estava sendo metida a corajosa, no entanto, nem tinha as armas necessárias para me proteger,
para proteger as pessoas ao meu redor. Como eu a salvaria? Quão irresponsável eu era?!
—Por favor, apenas deixe minha amiga em paz — pedi em um sussurro.
—A senhorita Dylan nem se lembrará do ocorrido. Apenas a estou usando como um portal. —
Estava um pouco cansada das pessoas conhecerem a mim e aos meus amigos sem nos
apresentarmos antes. Tá certo que ela era uma fantasma, e essa era a única explicação para saber
o sobrenome de Jane. — Por mais que você tenha se livrado do sangue da cigana e a tenha
queimado, conseguimos acessar resquícios da memória dela. Eu nunca a teria encontrado,
senhorita West. Precisamos marcar um encontro para discutirmos assuntos de seu interesse.
A pessoa que usava o corpo de Jane se levantou e caminhou na minha direção. Estendeu a mão
com o bilhete, oferecendo-me. Peguei-o rapidamente, com medo de que ela mudasse de ideia e o
fizesse desaparecer. Não que ela não o pudesse roubar enquanto eu estivesse dormindo afinal, ela
era um fantasma. Então notei como sua mão estava gelada, tão gelada quanto um iceberg. Credo.
—Apenas deixe a minha amiga e eu me encontrarei com você — prometi.
—Eu já a deixaria, senhorita West. Não se preocupe com isso. Nós estamos do mesmo lado, eu
não lhe causaria nenhum transtorno desnecessário. — Levando em conta a subjetividade do
termo “desnecessário”, ela não estava me garantindo nada. — Tomei conhecimento de que
Samantha Dáman quer lhe encontrar. São as iniciais dela neste bilhete em suas mãos. Podemos
nos reunir na casa dela?
—Meu Deus... — Como eu podia concordar? A casa nem era minha. E se ela possuísse a avó do
Téo, como estava fazendo com a Jane?! Mas eu precisava ver a Jane bem, saudável, viva. E para
isso, aquela louca precisava ir embora o mais rápido possível. — Ok. Desde que você não possua
ninguém.
—Não será necessário, senhorita. — Ela arqueou as sobrancelhas de Jane, parecendo chocada
com alguma coisa. — Posso não usar o corpo de ninguém afinal, nossa conversa será breve.
O fantasma da mulher fez uma mesura na minha direção, como se eu fosse uma pessoa da
nobreza, e abandonou Jane sem dó, nem piedade. Minha amiga deu um suspiro e caiu nos meus
braços. Fria como se estivesse enterrada na neve há algumas horas. Carreguei-a para o sofá da
sala e corri para buscar algumas cobertas. Rapidamente a envolvi nos panos e fui buscar o café.
Eu ainda não sabia muito bem o que fazer; a única coisa que tinha certeza era de que precisava
aquecê-la. Jane bebeu o café pouco a pouco, e conforme os minutos passavam, suas cores
voltavam ao rosto. Ela parecia terrivelmente fraca. E eu terrivelmente culpada.
Capítulo 10

A mulher realmente estava certa. Jane havia se esquecido de tudo,


inclusive que havíamos fuçado o depósito em busca de um bilhete da minha avó. Ok. Não havia
necessidade de que eu lhe repassasse toda a história, tampouco que lhe deixasse inteirada do fato
de ter sido possuída, algo que ignorava completamente.
Obviamente matamos a aula naquele dia. A explicação é que Jane tinha tido um leve mal-estar e
quase caído da escada. Era como ela se lembrava dos fatos. Então, eu passei o dia inteiro a
mimando e tentando amenizar assim a minha culpa. Até mesmo chamei Henrique para examiná-
la, fiz questão de que ele fosse até a minha casa apenas para ver se estava tudo bem. Claro que eu
queria mesmo saber se ela estava bem, no entanto, sabia que Jane ficaria feliz ao vê-lo, ao ser
tocada por ele. Era o único momento em que a via corar. Ou ele sabia e não queria nada ou era
mesmo muito lesado.
Tentei não focar nos meus problemas, em como eu já não tinha mais dúvidas de que era uma
bruxa. Um fantasma queria conversar comigo sobre assuntos do meu interesse. Ok. Cheguei a
cogitar ser como um dos personagens do filme “Os outros” — pule esta parte se você não viu o
filme —, e estar morta, mas aí já era surreal demais até mesmo para mim.
No final das contas, não prestei atenção a nenhum dos filmes aos quais assistimos, tampouco nas
nossas conversas, eu só queria encontrar o Téo e conversar sobre nossas coisas em comum, sobre
nossas vidas tão parecidas e estranhas. Pelo menos até a minha mãe voltar do trabalho e a Jane
dormir.
Desci as escadas decidida e sem qualquer hesitação, como se eu estivesse indo fazer um lanche
na cozinha. Eu havia esperado demais por aquela conversa, havia titubeado, mas um fantasma
tinha possuído a minha amiga e eu não podia mais ficar esperando as pistas se jogarem no meu
caminho.
Minha mãe estava sentada na mesa de jantar fazendo as contas do mês. Nós tínhamos um nível
bom de vida, não nos faltava o necessário e, às vezes, sobrava para alguns luxos. Claro que isso
se devia ao fato de a minha mãe se preocupar com as finanças, como estava fazendo naquele
momento. Ela soube administrar bem a herança da minha avó e o seguro que meu pai nos
deixara.
Puxei a cadeira de madeira escura e me sentei ao seu lado. Seus olhos levantaram rapidamente na
minha direção, surpresos por eu estar ali, mas logo retornaram às contas. Minha mãe não era
dada a carinhos ou sentimentalismos. Ela era mãe. Que briga, que educa, que coloca no caminho.
Sem essa novidade de ser amiga da filha, além de ela achar isso um erro. Assim, nunca fomos de
conversar sobre assuntos muito íntimos como beijos, garotos ou sexo. Contudo, nunca pensei que
minha mãe fosse capaz de mentir para mim. Eu nunca havia mentido, não até o dia anterior,
sobre o Téo. Eu apenas omitia assuntos constrangedores entre nós duas.
—Está tudo bem? — apesar de não estar me olhando, seu tom de voz denotava uma genuína
preocupação.
—Não exatamente. —Como se eu tivesse encontrado o pote de dinheiro no final do arco-íris, ela
levantou o rosto num impulso, assustada. Estiquei as mãos sobre a mesa escura como a cadeira e
mostrei o bilhete. A cópia dele. Eu havia tirado uma xerox na minha impressora. — Realmente
espero que me conte a verdade agora. — Encarei-a, secretamente implorando para ouvir da sua
boca a real versão para a noite da morte da minha avó.
—Não entendi, Kate. Está me chamando de mentirosa? — Seu rosto abandonou o meu, voltando
para o caderno. Óbvio, não conseguia me olhar nos olhos e mentir. Ao menos isso. Ela se
importava.
—Não. Você não é mentirosa, mãe. Mas mentiu sobre a vinda da minha avó aqui. São coisas
diferentes.
—Esse papel não significa nada. Não está escrito aí que a minha mãe esteve aqui na noite em
que faleceu para trazer isso. Está?! — Seus olhos se fixaram em mim com firmeza, como se
tivesse feito uma charada impossível de ser decifrada. Sim, minha mãe era muito inteligente,
ótima em argumentos e muito sagaz. Ela estava certa.
—Sim, mãe. Você tem razão. Este bilhete não diz nada disso. Juridicamente falando, ele não
serviria de prova. Eu tiraria um zero na prova. — Puxei o bilhete de volta. —Mas, nós sabemos
que eu sonhei com isso, que eu sonhei com ele. Então, para mim, é uma prova de que você
mentiu e continua mentindo sem se preocupar com os meus questionamentos, com os motivos
pelos quais preciso das respostas. — Puxei o bilhete de volta e me levantei.
—Você não pode acreditar em tudo que sonha, Kate. Esse bilhete pode ter estado na casa da sua
avó e você se lembra dele de outro modo. — Fechou seu caderno e juntou seus papéis
bruscamente, com raiva. — Não estou mentindo e você deveria parar de insistir neste assunto.
Certas coisas devem ficar guardadas. E a única prova que esse bilhete me dá é que você entrou
no depósito sem me pedir a chave.
Levantou-se bastante chateada, deixando-me para trás. Com minhas dúvidas e meus medos. Sem
se preocupar. Ou se preocupando tanto, a tal ponto que estava cega para perceber o quanto sua
preocupação extrema me deixava desprotegida. Eu estava abalada, derrotada, decepcionada. Não
havia qualquer chance de o tapete mágico de Téo ter me levado para uma ocasião inventada pela
minha mente. Eu não poderia ter imaginado sua avó, ter imaginado o que acontecia depois que a
minha avó havia partido da minha casa. Congelei, agarrando o bilhete. E se, por acaso, Téo
tivesse plantado todas aquelas imagens na minha mente?
Ele queria me levar até a avó. Desde o início. Precisava me convencer. E qual o melhor jeito de
conseguir isso se não fazendo a minha avó encontrá-la? A minha avó pedir que eu fosse ao
encontro de Samantha? Eu havia determinado o passado para o qual queria ser levada. Era fácil
ligar os pontos, perceber o quanto minha avó era importante, ainda mais para Téo que tinha uma
ótima habilidade de ler pensamentos.
Não podia ser. Eu estava perdida numa escura estrada cheia de curvas, sem uma bússola para me
guiar. Sem alguém me esperando do outro lado, alguém capaz de me segurar ou apenas me
abraçar caso eu caísse, caso eu escolhesse a curva errada.
Meu celular apitou no bolso da minha calça de ginástica.
“Estou chegando no final de semana, maninha”.
Capítulo 11

Desolada e confusa eram as minhas características naquela quarta-feira. O


bilhete da minha avó, dentro da minha bolsa, gritava algo que eu estava me negando a ouvir.
Algo que eu estava tentando deixar guardado como minha mãe sugerira. No entanto, certos
sentimentos não podem ser controlados. Eles rompem barreiras, quebram muros, inundam,
afogam.
O BILHETE TINHA AS INICIAIS DA AVÓ DE TÉO.
O BILHETE REALMENTE EXISTIA E MINHA MÃE O TINHA ESCONDIDO.
Eu tinha dois argumentos comprovados e negativos na conta da minha mãe e nenhum na de Téo.
Por isso, eu estava tentando, porém, estava sendo quase impossível continuar mentindo para mim
mesma, continuar me obrigando a defender a minha mãe quando isso me colocava em risco.
—Você não vai dizer o que está acontecendo? — Lola deitou a cabeça no meu ombro enquanto
seguíamos para a casa do lago no carro de Henrique.
—Se eu começar a contar agora, não vai dar tempo de terminar.—Relaxei minha cabeça contra a
dela.— Resumindo, eu descobri que era tudo mentira da minha mãe. Minha avó realmente esteve
na minha casa.
Lola levantou o rosto imediatamente, encarando-me com espanto. Seus cabelos levemente
ondulados adornavam de modo gracioso suas feições extravagantes naquele momento.
—Não acredito que a tia Vânia esteja fazendo isso. Ela sempre foi uma mãe tão boa...
—Sim. É o que mais dói. Não poder confiar na pessoa mais importante da minha vida... — parei
de falar, obrigando-me a não chorar.
Quando você chora, você libera suas emoções. Você tira um pouco daquilo de si e joga para o
mundo. E, automaticamente, a carga de dor diminui, dando uma falsa sensação de que está tudo
bem. E isso leva ao perdão. Se eu chorasse, se eu me entregasse as minhas emoções, eu estaria a
um passo de perdoar minha mãe ou de procurar outros argumentos para defendê-la.
Sabia o quanto estava indo contra todas as recomendações da terapeuta que eu frequentara após a
morte do meu pai. Mas não era a minha intenção. Eu choraria. Em algum momento. Porém,
precisava ser um momento reservado, um momento meu, no qual eu conseguiria me
conscientizar de que não a desculparia sem a verdade. No qual eu separaria todos os meus
sentimentos em pequenos potinhos, identificando-os perfeitamente. Ali, com a Lola, eu apenas
desabaria. Sem critérios.
Lola me abraçou. Puxou-me para seu corpo, passando o braço ao redor do meu ombro. E não
falou nada. O silêncio reconfortante do seu abraço foi bom. Apenas me causou uma sensação de
companheirismo, de afeto, de que eu ainda tinha alguém. E eu não chorei.
A casa do lago ficava exatamente na metade do caminho entre a parte antiga e a parte nova da
cidade. À esquerda da estrada ficava apenas o lago, tão próximo que quando chovia muito, era
necessário interditar a via. E à direita, a floresta com a casa do lago.
Sempre que os moradores queriam se divertir sem gastar muito dinheiro, lá era o local escolhido.
A casa era composta apenas de um quarto, sala, cozinha e banheiro. Sem chaves. Qualquer um
podia entrar. Mas a verdade é que a gente ficava a maior parte do tempo do lado de fora.
Sentados ao redor de uma fogueira.
Nós três estávamos arrumando a mesa da sala com petiscos e bebidas, enquanto Henrique estava
preparando a fogueira, quando ouvimos o barulho do cascalho. Um carro estava estacionando.
Meu coração acelerou de uma maneira bem idiota e eu me odiei por isso. Puxei meu cardigan
preto, tentando me fechar ali, me esconder.
—Putz, nos esquecemos de cancelar com o Gustavo e a Sofia. Eles chegaram agorinha — Lola
praticamente berrou; sua voz ecoando na casa quase vazia.
—Isso é uma merda — conclui. — Nós sempre fizemos assim. Às quartas, última semana do
mês, na casa do lago. É tão comum que até nos esquecemos dos dois — deduzi.
—Sempre disse que ele era um babaca. É o primeiro encontro do ano na casa do lago, o primeiro
encontro depois de vocês romperem oficialmente algo que nem havia começado. Custa ter um
pouco de noção e não aparecer? — Jane cruzou os braços, recostando-se ao lado de Lola perto da
janela.
—Bem, ele pode ter vindo pelos nossos muitos anos de amizade. Talvez seja um bom sinal. —
Peguei os copos de plástico e os distribuí sobre a mesa.
—Nem você acredita nisso. É óbvio que ele veio para encher o seu saco. Para tentar embebedá-
la, para tentar reatar. Eu vou bater nele. — Lola começou a andar na direção da porta, e eu nem
tive tempo de impedi-la. A porta foi aberta antes.
Gustavo entrou. Estava com seu típico conjunto de macho: uma camisa justa no peitoral e uma
calça jeans. Os cabelos ainda molhados do banho, provavelmente. Em suas mãos um prato com
doces. A chance de eles estarem batizados era enorme, tendo em vista o último encontro em
dezembro no qual ele se fingiu de amigo e me ofereceu vários.
—Espero que gostem — comentou, deixando o prato na mesa, bem ao meu lado. Bem ao meu
lado mesmo. Revirei os olhos.
—Com certeza depois do décimo a gente vai estar achando tudo lindo — debochei, virando de
frente para ele e fixando meus olhos nos seus. Eu ainda não havia escutado seu pedido de
desculpas por ter me enganado.
—Sou inocente dessa vez. Eu realmente não estava sabendo superar o seu distanciamento, Kate.
Prometo que vim em sinal de paz e rendição. — Levantou as mãos, mostrando-me que seus
dedos não estavam cruzados. E, em seguida, repousou uma delas na mesa, roçando quase que
sutilmente sua pele no meu corpo. Inclinando-se discretamente na minha direção. — Sério. Ao
menos me dê a chance de ser seu amigo.
Levando em conta que quando me virei para encará-lo, nós já estávamos próximos, naquele
instante então eu já podia praticamente sentir seu hálito doce de bala no meu rosto. Podia
também sentir Jane e Lola bufando e doidas para surtarem com ele.
—Gustavo, você não precisa disso. — Cruzei meus braços. —Sabe muito bem que eu nunca
deixei de ser sua amiga, então, me poupe do seu papo...
A porta abriu novamente. E se antes eu havia sentido meu coração acelerar é porque
provavelmente eu não sabia o que era acelerar. Perdi a fala. E fechei meus olhos por alguns
segundos, refletindo sobre a enrascada na qual eu estava me enfiando de livre e espontânea
vontade. Uma enrascada com aproximadamente 1,80 de altura, olhos cor de outono, cabelos
claros e curtos, arrepiados, com uma camisa bem diferente da social usada na faculdade ou no
parque. Uma camisa branca com gola v e completamente folgada em seu corpo largo e
comprido. Eu estava perdida.
—Sou o Gustavo. — Acordei para a realidade e me deparei com Gustavo estendendo a mão na
direção de Téo. — Estou na sua turma de Medicina Legal.
—Oi, Gustavo. — Téo apertou a mão dele e o deixou para trás, seguindo na minha direção. —
Boa noite — falou para as minhas amigas e se aproximou cada vez mais. Eu estava
acompanhando cada passo seu com ansiedade e desespero. —Rolo mal resolvido?
—Você tem que parar com essa mania de descobrir as coisas antes de perguntar — debochei
enquanto enchia meu copo de cerveja. — Quer beber alguma coisa? — A porta da casa bateu
com força, indicando a saída de Gustavo.
—Não precisa de muita habilidade para notar isso — explicou enquanto se servia de cerveja. —
Ele se apresentou para mim. Ficou nítido. — Viramos de frente um para o outro enquanto
bebíamos nossas cervejas e, de rabo de olho, observei as meninas saírem silenciosamente,
deixando-nos a sós.
—É porque eu não me apaixono — avisei. — Ele queria ser meu namorado. Ou quer ainda. —
Olhei-o nos olhos, esperando descobrir sua reação sobre a minha revelação.
—Então quer dizer que você tem controle sobre seus sentimentos? Como faz para não se
apaixonar? Porque talvez eu deva aprender — pediu, no entanto, não manteve seus olhos nos
meus. O outono encarou-me de um modo diferente, como se estivesse preocupado, e depois
olhou para a mesa novamente.
—Você se apaixona muito fácil? — questionei, sentindo-me realmente curiosa sobre os motivos
pelos quais ele gostaria de aprender tal habilidade. Não sabia se curiosa seria o termo correto.
—Não. — Ele fixou seus olhos nos meus novamente. Eles esquadrinharam meu rosto até
encontrarem o ponto sobre o qual desejavam se demorar: os meus lábios. Eu tinha certeza de que
ele estava encarando a minha boca com bastante atenção. — Na verdade, meu currículo é quase
deserto nesta habilidade. — Escutei o copo sendo largado sobre a mesa, um leve estalo do
plástico já mole do uso, enquanto notava seu tórax largo e musculoso se aproximar de mim.
Posso ser facilmente esmagada por ele. —Mas, eu tenho uma habilidade que julgo bem rara: a
sinceridade.
Engoli em seco, inerte pela sua aproximação. Surpresa, eu diria. Com medo da sua sinceridade.
Com medo de ter mentido sobre minha habilidade porque eu seria incapaz de explicar a ele como
não se apaixonar quando parecia estar fazendo exatamente o contrário. Meu coração disparou
quando suas mãos largas e compridas repousaram sobre a minha cintura. Firmes. Fortes.
Segurando-me com vontade. Eu não estava preparada para aquele tipo de sinceridade.
—E a verdade é que eu deveria adquirir a sua habilidade, embora não queira — confessou em
um tom baixo de voz, quase um sussurro. Não havia necessidade de falar alto quando nossos
rostos estavam tão próximos. Seu corpo parecia cada vez mais perto. Sua respiração estava
acelerada. Ou era a minha?! — Eu deveria porque tenho quase certeza de que estou a ponto de
me apaixonar. Mas não quero porque prefiro fazer você perder essa habilidade.
Seus lábios rapidamente tocaram os meus. Talvez não tenha sido tão rápido. Talvez ele tenha me
olhado um pouco após falar aquelas coisas capazes de incendiar qualquer um. Talvez as minhas
batidas estivessem tão aceleradas que tivessem acelerado os minutos também. Sua boca era
macia. E, sem nem pensar, eu retribuí. Nossos lábios se comunicaram imediatamente, parecendo
estar desejosos daquele momento. Suas mãos subiram pelas minhas costas, puxando-me com
fervor na direção do seu corpo. Chegando a minha nuca e aprofundando o beijo.
Seu corpo parecia aconchegar o meu, como se eu fosse sumir ali dentro. Parecia pequena perto
dele. Seus dedos delicadamente seguraram o meu cabelo, movimentando meu rosto para cima, de
modo que nosso beijo pudesse ser mais intenso. Subi timidamente uma mão por seus braços,
alisando-o com desejo. Passei por seu ombro e não tinha notado, até então, o quanto ele era
definido. Cheguei ao seu pescoço, e Téo suspirou entre os meus lábios.
Téo acolheu meu corpo contra o seu, interrompendo cedo demais nosso beijo quando as janelas
da casa se abriram com violência. Ou quando os vidros delas racharam por completo, caindo em
vários pedaços sobre o chão. Isso enquanto conseguíamos enxergar porque, em seguida, as luzes
se apagaram. E eu deixei meu copo de cerveja cair. Que merda está acontecendo?!
Como se o universo quisesse me responder, algo entrou veloz pela janela quebrada, atingindo
uma garrafa que rolou e caiu. Nos agachamos e nos enfiamos embaixo da mesa, nos
aproveitando do escuro e da largura dela. Téo olhava para o lado de fora, parecendo tentar
identificar o que estava acontecendo e um facho de luz percorrendo a casa iluminou algo caído
sobre o chão. Além da garrafa. Estiquei meu braço e o peguei. Um dardo.
—Estão atirando dardos — sussurrei. — Isso não me parece normal, as pessoas não caçam por
aqui — comentei enquanto analisava o objeto de cima a baixo. No pedaço de madeira que o
compunha havia uma fênix bem pequena, desenhada em preto.

—Não estão caçando animais, estão me caçando provavelmente. — Ele aproximou o rosto para
tentar captar o que os meus olhos tinham acabado de ver. — Fênix da justiça. Eles acham que eu
posso ter informações sobre a herdeira.
Fênix da justiça? Herdeira? Tá. A cigana havia me falado sobre eu ser a herdeira. Sobre uma
maldição. Mas só havia uma herdeira? Quantas pessoas não tinham perdido entes queridos e
estavam esperando alguma herança?
—O quão perigosos eles são? — indaguei, tentando afastar meus pensamentos.
—Sabe aquele lema de o que importa é o objetivo?— Balancei a cabeça afirmativamente,
antevendo a sua resposta: — Funciona com eles. Estou tentando descobrir mais coisas, mas
algum bruxo está bloqueando a minha mente.
Ok. Não havia mais volta. Se eu tinha um resquício de esperança de seguir com a minha vida
ignorando a existência de seres sobrenaturais e fingindo não ser uma bruxa, ele havia morrido ali
mesmo. Eu havia criticado minha mãe por sua proteção excessiva me deixar perdida, e eu estava
fazendo o mesmo.
—Se eles estão caçando você, fique aqui. — Comecei a andar de cócoras para fora da mesa. —
Não posso deixar minhas amigas lá fora, expostas.
Téo segurou meu pulso com firmeza, impedindo-me de seguir adiante. Não dava para ver muito
seus olhos ou seu rosto, devido ao escuro que se instalara na casa.
—Eu estava aqui para proteger você, Kate. Não sou o tipo de homem que se esconde embaixo da
mesa. — Ele largou meu braço e se levantou, antecipando-se. — Mas não sugiro que você vá.
Ouvimos um grito. Era Jane. Ela berrava o nome da Lola. Desesperada, chorosa, horrorizada.
Senti meu corpo gelar por completo e me levantei imediatamente, ignorando o pedido de
prudência de Téo. Eu não era prudente. Eu nunca tinha sido. Eu sempre fui imprudente e
impulsiva. A minha maior prudência na vida era não me apaixonar. De resto, faltava.
Saí da casa em passos inquietos. Estava tudo um breu. Apenas a lua era responsável por enviar
alguma iluminação sobre nós. Puxei meu celular do bolso da calça e acionei a lanterna. Ciente de
que era uma bruxa e estava usando um artifício científico, eu me odiava por ser tão imbecil. Que
tipo de bruxa eu era?!
Jane estava ajoelhada no chão, tremendo de tanto chorar. Perto dela um rastro de sangue seguia
até minha lanterna o perder de vista. Não havia mais ninguém por ali. Nem Henrique, nem
Gustavo, nem Sofia. Apenas Jane, eu e Téo que estava a alguns passos atrás de mim. E o sangue
que muito provavelmente era da Lola.
—O que está acontecendo, Jane? Por favor, me diga. —Caminhei na sua direção e me agachei
perto dela.
—Umas quatro pessoas encapuzadas surgiram no acostamento e começaram a atirar umas
flechas na gente. —Sua voz tremia, transformando-se em alguns instantes num sopro. —A Lola.
Ela foi atingida enquanto fugíamos para a floresta. —Jane se levantou e começou a olhar ao
redor, o braço esticado girando para várias direções diferentes, como se tentasse lembrar onde
Lola poderia estar, mas ela estava perdida. As duas estavam. — Ela simplesmente sumiu.
Sangrando por aí.
Levantei rapidamente. Eu não podia permitir que Jane continuasse ali. Ela estava completamente
abalada e desestruturada, e se ela se perdesse também, a gente teria mais uma pessoa para salvar.
—Téo, leve ela embora. Por favor — pedi enquanto dava uns passos na direção do rastro de
sangue.
—Você vai entrar na floresta sozinha?! — Ele começou a caminhar na minha direção, e eu
estendi a mão, pedindo que parasse. — Você já me conhece e sabe que é da minha natureza
respeitar as vontades dos outros, mas não posso deixar de dizer o quanto isso é loucura. — Ele
acabou com toda a distância entre nós em poucos passos, segurando-me de forma apreensiva,
como se tivesse medo de nunca mais poder fazer aquilo. — Você não os conhece como eu. Eles
estão me procurando, Kate.
—Não. A cigana falou que eu sou a herdeira. Eles estão procurando você por minha causa. —
Coloquei minha mão sobre o peito, reforçando minhas palavras. — A Lola está machucada por
minha causa. Apenas faça o que pedi.
—Você não pode simplesmente sair por aí sozinha no meio da floresta. Tampouco podemos ficar
aqui esperando, precisamos ir embora, Kate.
Ele estava tenso, sua testa estava cheia de vincos enquanto suas mãos me seguravam como se eu
fosse uma importante obra de arte em um museu. Valiosa demais. Eu o beijei e acariciei seu
rosto, afastando-me em seguida.
—É a minha amiga, Téo. Vá logo, aproveite que eles não estão por aqui agora. Encontro vocês
na casa da Lola.
Olhei para a floresta e dei os passos necessários para me embrenhar nela. Escutei os lamentos de
Téo, suas reclamações. Ele estava respeitando a minha decisão, no entanto, não concordava.
Nem eu, afinal.
Capítulo 12

A minha lanterna do celular era como a varinha do Harry Potter. O meu


único objeto de defesa no meio daquela floresta. A diferença é que a varinha tinha mil utilidades
enquanto a minha lanterna só servia mesmo para não me deixar no escuro. Eu nem sabia aonde
estava indo, de verdade. Se tem uma coisa na qual eu sou péssima é localização. Eu poderia dar a
mesma volta centena de vezes e nem perceberia e, se percebesse, não conseguiria mudar esta
realidade. E, então, eu já sabia que a chance de me perder na floresta escura e enorme era de cem
por cento.
Mas essa era a minha única certeza. Qualquer coisa diferente disso era quase como uma bomba.
E foi. Eu decidi não chamar pela Lola. As teorias de Téo me fizeram pensar que sair gritando
pela floresta, onde poderia haver um homem me procurando, somente aumentariam as chances
de ele me encontrar. Por isso, optei por caminhar em silêncio e com calma. Mirando a lanterna e
procurando mais sangue. Era quase impossível, Jane tinha razão. Lola havia sumido como num
passe de mágica. Era como se ela tivesse entrado em um portal, pois nem mesmo havia mais
sangue por onde eu passava.
E quando a coisa fora do esperado aconteceu, eu gritei. Sem som, pois ele foi abafado por uma
mão gelada. Meu corpo tinha sido agarrado por alguém que me empurrava na direção da árvore
mais próxima. Eu continuava gritando em vão, até sentir minhas costas tocarem o tronco de
madeira e a lua iluminar o rosto do meu raptor. Não podia ser.
Após me encurralar, o homem relaxou o corpo contra o meu, impedindo-me de fugir, e levou a
mão desocupada a boca, indicando que eu não deveria gritar. Assenti, pois eu não sabia fazer
outra coisa a não ser encarar seus olhos. Azuis. Como os do meu pesadelo. Realmente não podia
ser. Ele era real?!
—Péssima hora para cobrar seu favor — debochei, remexendo meu corpo numa tentativa de
ganhar alguma liberdade, ao menos um espaço entre nossos corpos.
—O quão estúpida você é? — sua voz rouca sussurrou bem perto do meu rosto, palavra por
palavra, mantendo o silêncio da floresta.
Oi?! Era sério que ele estava me ofendendo?
—Você não percebeu que está em perigo? Vá embora agora. — Seus olhos se fixaram em mim
sem pestanejar, e eu só conseguia pensar, de maneira estúpida, que ele havia mentido para mim
sobre a cigana, que ele havia sobrevivido após me salvar. Que talvez o meu pesadelo estivesse
errado em alguma parte.—Eu falei para ir embora, por que não está se mexendo?
—Porque eu não vou — respondi entredentes. —Não posso deixar a minha amiga para trás. E
você não manda em mim. —Cruzei os braços, conseguindo enfim afastá-lo um pouco.
—Escute uma coisa.—Como se tivéssemos alguma intimidade, Eric colocou suas mãos sobre o
meu rosto, impedindo que eu não o olhasse nos olhos. E eu não as retirei pelo simples fato de
que ele havia me pego de surpresa, pois Eric não estava usando nem um milésimo de força. —
Eu já encontrei a sua amiga, ela estava ferida, e já a salvei. Então, para sua sorte, nós vamos
embora neste exato momento.—A firmeza com que dizia aquelas palavras me dava a entender
que ele não tinha qualquer dúvida de que iriamos mesmo embora.
—Você salvou a Lola?! — Ele levantou as sobrancelhas, parecendo incomodado. — Assim
como disse que não estava matando a cigana? — Bati o pé, impaciente com suas mentiras.
—Eu.não.a.matei — retrucou pausadamente, como se eu fosse alguma idiota. — E, se eu
quisesse, eu mentiria para você sem qualquer problema. Sinta-se honrada por eu estar sendo
sincero. — Seus lábios se alargaram em um sorriso malicioso e sedutor, como se a sua
sinceridade comigo fosse realmente um prêmio.
A soberba era tamanha que preenchia suas palavras. Eric se achava alguém muito forte, temido e
que não devia satisfações aos outros. E eu só sentia vontade de largar a minha mão na cara dele,
tamanha a raiva que despertava em mim. Descruzei meus braços e comecei a empurrá-lo,
enquanto falava as coisas mais sem sentido da minha vida.
“Sai. Eu não quero sua ajuda. Posso sair sozinha. Vá embora, seu imbecil arrogante. Minta se
quiser, eu não me importo”. Falei muitas abobrinhas enquanto continuava a bater em seu peito,
tentando afastá-lo. Eric não parecia se importar, na verdade, eu observei até mesmo um discreto
sorriso, o que me enraiveceu ainda mais e me deu mais gás para continuar. E essa atitude tão
idiota quanto a soberba dele durou até o dardo cravar a madeira da árvore sobre as nossas
cabeças.
—Chega de papo — foi a única coisa que ele resmungou, antes de me pegar pelas pernas e me
colocar sobre seu ombro.
Estava assustada demais para demonstrar toda a minha fúria por ele estar me tratando igual os
homens das cavernas faziam. O dardo poderia simplesmente ter entrado na cabeça dele, que
estava a minha frente. Ele poderia ter... sei lá... morrido?!
Um círculo verde surgiu ao nosso redor conforme caminhávamos para fora da floresta. Na
verdade, enquanto ele caminhava e eu era carregada de cabeça para baixo. Além do tal círculo eu
só conseguia ver as costas dele escondidas pela mesma jaqueta jeans com capuz. Estendi meu
braço para tocar o círculo, curiosa, e percebi que minha mão era incapaz de atravessá-lo. Ele
parecia uma barreira, protegendo-nos do mundo externo. No caso, o mundo externo era qualquer
coisa além de nós dois. Eu também seria capaz de fazer uma?
Sem qualquer dificuldade, Eric nos levou até um carro esportivo e preto estacionado no
acostamento próximo a casa do lago. Não havia mais sinal de Téo ou Jane, e eu rezei para que
não estivessem ali porque ele havia acatado o meu pedido. O automóvel de Eric fez um bipe e ele
me colocou no chão. Abri a porta do carona imediatamente, enquanto ele mantinha o círculo para
me proteger. Ele está me protegendo. E, a minha mente pifou por uns segundos. Ele poderia
simplesmente ter me largado ali e caminhado para seu assento de motorista, mas ele aguardou. E
foi nesse interim que um dardo atingiu nosso círculo.
Eric parecia forte, durão e tudo mais, no entanto, eu vi quando seus olhos se fecharam por alguns
segundos logo após o dardo fazer um singelo furo no círculo. Aquilo era uma extensão do seu
corpo? Fiz menção de retornar para ajudá-lo, para ver se estava bem, contudo, ele segurou meu
braço imediatamente, indicando que eu deveria entrar. E, sim, ele tinha razão, pois assim que eu
fechei a porta, outro dardo o atingiu.
Me inclinei dentro do carro e abri a porta do motorista enquanto ele dava a volta para entrar.
Confesso que seu olhar inquisidor e um tanto surpreso com a minha atitude me deixou sem
graça. Contudo, ele não falou nada, apenas levantou a mão e o cinto prendeu meu corpo no
assento, arrancando um suspiro assustado da minha boca. Pensei no quanto eu queria ser como o
Eric, apesar de eu não ter as exatas palavras que o descreveriam adequadamente.
—Você está bem para dirigir? — questionei, observando o modo como ele acelerou o carro para
sairmos dali o mais rápido possível.
—Está preocupada que a gente bata na próxima curva? — retrucou, virando seu rosto
rapidamente na minha direção.
—Não, imbecil... Talvez. Mas eu posso dirigir se você estiver com dor — avisei, preferindo olhar
para o teto do carro a encará-lo com seu sorriso debochado. E menos ainda para as árvores que
pareciam voar em consonância a velocidade com que ele dirigia.
—O círculo é uma parte de mim e, neste momento, o feitiço presente nos dardos está entrando na
minha pele e capturando as informações que desejam, mas não estou sentindo nada. — Este
parecia um momento no qual Eric mentia sem se arrepender. Dava para notar que ele repuxava a
mão do volante de vez em quando, como se estivesse sofrendo. Seria como um veneno?
—Você está mentindo para parecer durão ou para não me preocupar? — Abaixei a cabeça assim
que o carro diminuiu a velocidade, chegando à parte nova da cidade, se aproximando de
Forecast, onde eu morava.
E, o que parecia ser um hábito de Eric, não obtive resposta de imediato.
—Eu já diminuí a velocidade, não precisa se preocupar — comentou, mantendo o foco da sua
atenção na direção do automóvel. Ele não parecia mais estar se divertindo com as minhas
irritações, tampouco jogando com as palavras.
—Você está repuxando o braço, como se sentisse dor. Não acha melhor parar no hospital? Eu
posso pegar um táxi de lá — argumentei, não me preocupando em ser sincera. Eric havia salvado
a minha vida duas vezes, e o mínimo que eu poderia fazer era tentar obrigá-lo a cuidar daquele
ferimento.
Passamos pelo parque e, caso ele virasse à direita, significava que ouvira a minha sugestão. Se
seguisse à esquerda, estaria me levando para casa. Aliás, eu não havia passado o endereço. O
carro entrou à esquerda, e eu me revoltei, e estava prestes a iniciar uma discussão mais parecida
com um monólogo quando ele tomou a palavra para si.
—Você precisa parar de colocar os outros acima de si mesma —sugeriu em uma voz baixa, bem
diferente do seu tom costumeiramente irônico e provocador.—É imprudente demais. E não se
acostume com o fato de eu sempre aparecer para resgatá-la porque, em algum momento, isso
pode não acontecer.
Eric não estava me olhando. Desde que eu falara algo estranho para ele, seus olhos
permaneceram focados no caminho e não se destinaram a me provocar por nem um instante. Em
poucos minutos, entraríamos na rua onde eu morava; na rua onde também ficava a casa de Lola,
e as minhas chances de enchê-lo de perguntas encerraria até que eu me envolvesse novamente
em uma situação perigosa ou que ele viesse me cobrar o tal favor.
—Eu concordo que é imprudente — refleti, relaxando a cabeça contra o banco enquanto ele
virava, enfim, o rosto permeado de incredulidade na minha direção. — Não tem como negar que
você está certo, Eric, mas eu não posso mudar quem eu sou. Esses são os meus princípios, os
meus valores, e, acima de tudo, são pessoas pelas quais eu tenho uma amizade de anos. Somos
família.
—Apesar dos motivos, continua sendo imprudente. Uma coisa não anula a outra só porque você
tem razões louváveis.—Eric diminuiu mais ainda a velocidade quando entramos na minha rua.—
Quando a pessoa tem que morrer, não adianta o que você faça, acontecerá. Não se engana a
morte.
Ele estacionou o carro atrás do de Téo e na frente do de Henrique, o que me indicava que ambos
estavam são e salvos. E que, possivelmente, Lola também. E, ao pensar nisso, eu me recordei de
que ela havia sido atingida pelo dardo. O mesmo dardo que capturava memórias.
—A Lola não é uma bruxa. Qual o efeito do dardo nela? — questionei, retirando o cinto e
virando na direção de Eric, numa tentativa de mostrar que eu não sairia sem a resposta.
—Não faz diferença se é bruxa ou não. As memórias dela foram capturadas, ao menos as mais
recentes.—Eric desligou a ignição e, ignorando a minha tentativa de prolongar a conversa, saiu
do carro e caminhou na direção da minha porta. Antes que eu passasse a vergonha de ser expulsa
de seu carro, abri sozinha a porta e levantei. Eric estava chegando à porta no exato momento em
que eu saí e parei a sua frente. Encarando-o.
—Educação é algo que você não gosta de usar, né?— reclamei, sentindo vontade de socá-lo
novamente.
—Sei que você nunca mais sairia do meu lado, se pudesse, mas este não é o momento de
ficarmos juntos...
É o quê?! Eu estava com raiva, mas depois daquilo, eu senti o dobro. Podia sentir o calor
subindo pelo meu corpo, uma vontade louca de gritar e bater nele por três dias seguidos. E a
única coisa que aconteceu, já que eu ainda possuía controle sobre mim, foi que os vidros do carro
dele explodiram na nossa direção. E ELE RIU. E eu senti que aquilo seria algo sem fim. Ele me
provocava, eu ficava irada, ele se divertia e começava tudo de novo.
—Agora você me deve um favor e vidros novos — provocou e, em seguida, fez um sinal com a
mão para um homem encapuzado esperando do lado de fora da casa da Lola. — Eu retirei o
dardo dela rapidamente, então, fique tranquila. Eles não vão obter muita coisa. E seus amigos
nem se lembram disso, apenas que começou a chover muito e a festa precisou ser cancelada.
Mantenha a mentira. — Ele seguiu até o carro e começou a analisar o estrago nos vidros.
—Se eu quiser, eu mantenho, Eric. — Dei alguns passos, esbarrando propositalmente nele com
toda a minha força e raiva, e segui na direção da casa da Lola. — Aliás, vê se não me salva mais.
Não quero ver a sua cara nem tão cedo — esbravejei enquanto andava de costas para a casa da
minha amiga.
—Treine bastante para não quebrar mais os meus vidros e, então, eu poderei cobrar o meu favor.
O idiota tinha virado única e exclusivamente para me encarar com aquele sorriso besta e
debochado. E senti que eu poderia quebrar todo o carro com a minha magia recém destravada.
Sério, vó? Por que justo esse cara nos meus pesadelos?! Ah, claro. Eram pesadelos. Só podia
mesmo ser ele. E quando eu parei de olhar para ele e virei para frente, prestes a tocar a
campainha, dei de cara com Téo.
Capítulo 13

Téo estava de braços cruzados, numa postura rígida e firme, esperando-


me sobre a entrada da casa da minha melhor amiga, com a porta fechada. Eu me senti como uma
filha que sai escondido de madrugada e chega pela manhã. E, por um instante, eu me irritei.
—Estou um pouco confuso — comentou, mantendo seus olhos fixos em Eric, que aparentemente
não tinha mais pressa em ir embora. — Você não estava sozinha? Eu estava olhando de minuto
em minuto pela janela, esperando você chegar.
Olhei para seu rosto que não parecia confuso, como alegara, parecia um tanto desapontado. Seus
olhos estavam inertes, apenas aguardando uma boa resposta para que voltassem a se iluminar. E
me senti péssima por ter tirado, ainda que sem querer, o brilho bonito de esperança que habitava
ali.
—Não fui eu que o chamei. Ele simplesmente aparece, do nada, como se fosse um coelho saindo
da cartola — expliquei, gesticulando idiotamente com as mãos algo como surgir no ar. — Eric,
você já pode ir — aumentei um pouco o tom de voz, de modo que ele pudesse escutar e que eu
não acordasse os vizinhos e nem despertasse a atenção das minhas amigas.
Mas, como se eu falasse grego, Eric se afastou do carro sobre o qual estava relaxado observando
a minha DR, e começou a se aproximar com calma e naturalidade. Apesar de toda a raiva que eu
sentia, de todo o modo irônico e babaca dele, não dava para negar que Eric desfilava beleza. Até
o seu modo de andar era atraente. Parecia leve, como um gato que em instantes está do outro
lado da casa. E sua postura era forte, como se ele fosse capaz de enfrentar o chefão de um
videogame.
Téo desceu do pequeno degrau na porta da casa da minha amiga e tomou a minha frente,
parecendo antever algo que eu não notei por estar distraída observando o que não devia.
—Eric, para de caçar briga e vamos embora? — o rapaz, que havia baixado o capuz revelando
sua careca e sua expressão enfezada, chamara o amigo, numa tentativa de contê-lo.
—Você não acha que é um pouco feio dizer que ficou olhando de minuto em minuto preocupado
quando você a deixou lá? — Eric parou AO MEU LADO, fazendo a antecipação de Téo perder o
sentido.
—Ele apenas acatou o meu pedido, você não deveria estar se metendo assim, Eric. Isso faz parte
do favor que devo? —questionei, incomodada com a sua intromissão e preocupada que os
ânimos se aflorassem.
—Eu respondo você em outro momento, Kate. A sós. Seu namorado não vai gostar de ouvir —
retrucou, voltando seus olhos azuis para o Téo.
—Eu não devo satisfações a você — Téo respondeu com calma e paciência, parecendo estar
apenas esperando a briga entre eu e Eric encerrar. — E você não me parece superior quando a
salva apenas porque quer algo em troca.
Enquanto Téo estava pleno em sua posição, sem qualquer ruga de estresse, Eric saiu do meu lado
num pulo, como se realmente fosse um felino. Os dois ficaram cara a cara. E nenhum deles
parecia estar hesitante quanto aquela situação.
—Pelo menos, eu nunca menti sobre querer o favor. Enquanto você poderia ter retornado para
procurá-la quando chegou aqui e viu que estavam todos bem. — O rapaz careca começou a se
aproximar com cautela. — Isso não é uma disputa pela Kate. É apenas a constatação de que você
não serve para ser namorado dela.
—Então você está me dizendo que ela não sabe se salvar sozinha. — Téo parecia gostar do jogo
de palavras como se trabalhasse com elas sempre, como se para ele, as palavras fossem bolas nas
mãos de um equilibrista.
—Nós três sabemos que ela não está preparada para o que está enfrentando. — O rapaz pegou o
braço de Eric, puxando-o para longe, mas foi rejeitado com raiva. — E eu não vejo isso como
demérito. Constatar fraquezas pode tornar você forte, se souber o que fazer com elas. Pense
nisso, Kate.
Se afastou de Téo, de mim, e seguiu com o amigo para seu carro com os vidros quebrados. Eu
fiquei observando cada movimento, contando os passos, e pensando no que ele havia falado.
Enquanto Téo era um equilibrista de palavras, Eric era um dominador delas, porque elas haviam
entrado no meu coração e feito moradia ali.
E, aparentemente, haviam causado impacto em Téo também, pois o silêncio reinou entre nós
dois. Eric entrou no carro, saiu, sumiu do nosso campo de visão e nenhuma palavra foi
pronunciada. Eu não me sentia na obrigação de justificar, Eric tinha sido bem claro. Não havia
uma disputa por mim, apesar de eles estarem brigando. Havia apenas um conflito sobre: devo
salvar a Kate ou não? E, por mais que fraquezas não fossem um demérito, segundo Eric, eu me
sentia um pouco para baixo por precisar dos outros.
De qualquer forma, ficar de braços cruzados na rua, olhando para o céu, não mudaria essa
questão. Por isso, dei meia volta para entrar e encontrar minhas amigas. Sabia que elas estavam
bem, não era mais uma dúvida, eu apenas queria poder observá-las e sorrir secretamente por isso.
—Sinto muito — as duas palavras romperam o silêncio, fazendo-me olhar por cima do ombro e
avistar um Téo relaxado, com as mãos enfiadas nos bolsos da calça. Ele estava olhando para a
rua, e não para mim. — Eu preferiria que você tivesse vindo comigo, que tivesse evitado esse
risco, mas, ao mesmo tempo, compreendo os motivos que a levaram a ser tão corajosa. E o
respeito é um dos princípios que levo como lema na vida. E gosto da recíproca.
O quê?! Talvez eu tivesse uma mania de entender coisas de maneira negativa, talvez pela minha
mania de absorver cada palavra de uma frase e a entonação utilizada nelas. E Téo parecia sério
demais, conciso demais ao dizer que gostava de respeito recíproco. E eu surtei para variar. O que
ele tinha de diplomacia, eu tinha de estresse.
—Por um acaso você está querendo dizer que eu não fui recíproca? — Larguei a maçaneta, que
já tinha chegado a segurar, e retornei para perto de Téo. — Em algum momento, eu questionei a
sua atitude ou foi o Eric quem fez isso?! — Parei em frente a ele, nossos rostos virados um para
o outro.

—Você está indo além do que falei. — Téo retirou as mãos dos bolsos, mas não as direcionou
para mim, parecia sem saber muito o que fazer com elas. — Estamos nos conhecendo, eu gosto
de você, e após essa discussão, achei importante deixar claro que respeito você e desejo ser
respeitado nas minhas decisões.
—Em nenhum momento eu questionei a sua decisão. Pelo contrário, eu sou grata por você ter
trazido a Jane em segurança, por ter me ouvido e tirado esse medo dos meus ombros. — Olhei
para o céu novamente, pois por algum motivo ele parecia mais bonito do que o que estava
acontecendo entre nós dois. — Por que disse que sentia muito?
—Porque eu sei que você estava correndo risco, sei que Eric tem a razão dele, embora isso não
mude a minha opinião. E sinto muito pelo que eu deveria fazer, sendo o cara que está saindo com
você. — Coçou a garganta, recuperando minha atenção para ele. Em seguida, agarrou a minha
cintura com rapidez e me puxou para seu peito. — Não quero parecer rude, não quero parecer
autoritário. Você não sabe, mas eu sou líder de um povo escravizado e que depende de mim. Eu
não poderia arriscar a vida deles, depositada em mim, por causa dos meus sentimentos por você.
Sinto muito, sinto muito mesmo.—Repousou o queixo sobre a minha cabeça, enquanto deslizava
as mãos pelas minhas costas de maneira reconfortante.—Eric está certo. Eu precisava ser claro
com você sobre isso.
E eu apenas me permiti ficar ali, dentro dos seus braços, acolhida pela sua maturidade, pela sua
serenidade e pela firmeza que ele jamais usaria para me proteger. Não é que eu quisesse ser
salva, tampouco que tivesse sonhado em ser a princesa a ser incansavelmente defendida pelo
príncipe. Até porque eu não planejava ter príncipes na minha vida. Entretanto, Téo havia sido
mais claro do que imaginava.
Não havia um sentimento avassalador entre nós. Daqueles que param o tempo, que fazem tudo
ao redor desaparecer, que mexem com cada partícula do seu corpo. Como eu havia lido nos
inúmeros livros de romance clichê. Se houvesse, obviamente ele não pensaria duas vezes antes
de me salvar, antes de me proteger. Não seria uma escolha, não seria tão fácil abrir mão.
E, então, ele pareceu perfeito para mim. Incapaz de quebrar o meu coração. E eu apenas rezei
para que a minha suposição estivesse correta. Para que Téo não estivesse tão sufocado pelo seu
cargo de poder que não conseguisse mais respeitar seus próprios sentimentos.
—Sinto muito pelo seu povo e por tudo mais que eu nem sei — retomei a conversa, afastando-
me pouco a pouco de seu abraço. — Você já deve ter percebido que eu menti. Eu não sei
absolutamente nada sobre bruxaria, sobre o meu passado, sobre mim. — Enfiei as mãos nos
cabelos, já parecendo desesperada. — Não sei por qual razão eu pensei que seria capaz de
sustentar essa mentira, mas eu não queria parecer fraca.
—Você nunca me pareceu fraca, nem mesmo agora — as palavras saíram de seus lábios em um
instante, e me pareceram sinceras. — Você é muito corajosa, Kate.
A pequena distância que eu havia criado tinha sido em vão. Téo estava recuperando a nossa
proximidade, mantendo contato, e me perguntei se ele realmente não sentia algo ao menos
intenso por mim. Qual a necessidade que ele tinha de delicadamente repousar suas mãos longas
no meu rosto? Ou de levantar meu queixo para que nossos olhos ficassem frente a frente? E
nossas bocas tão próximas de modo que eu pudesse sentir seu hálito?
—Você continua procurando respostas, indo atrás de informações e defendendo as pessoas que
ama, mesmo se sentindo fraca, mesmo sem saber quase nada de bruxaria. Consegue enxergar que
a última coisa que você é neste mundo é fraca? — Seus dedos deslizaram carinhosamente pela
minha bochecha, e eu me senti revigorada, protegida. Ele parecia ter razão ou eu apenas queria
que ele tivesse.
—Gosto de como os seus olhos me enxergam — sussurrei, um tanto perdida pelo seu carinho,
como se eu fosse um gato sendo acariciado e não quisesse dar o braço a torcer.
—Você sempre pode usá-los quando os seus estiverem embaçados.
E, dessa vez, seu olhar estava sério, compenetrado, fixo em mim. O modo como ele encarava os
meus lábios fez o meu coração disparar. Seus dedos, ao redor do meu rosto, já não eram mais tão
carinhosos. Pouco a pouco, eles ficaram firmes, puxando-me discretamente na direção dele. Seu
nariz encostou no meu e deslizou pelo meu rosto, aspirando meu cheiro, sentindo-me e
mentalmente eu chutei o balde. Estava rasgando todas as amarras naquele instante e assumindo
os riscos, enquanto torcia fervorosamente que aquilo não passasse de uma atração. E quando seus
lábios tocaram os meus delicadamente, eu nem lembrava mais o que estava me impedindo.
Capítulo 14

Não sei dizer muito bem depois de quantos minutos aconteceu, mas como
se eu tivesse recuperado a minha lucidez, eu interrompi o beijo. Lucidez não seria a palavra mais
adequada, talvez eu apenas tivesse me dado conta de a ter perdido por tempo demais. Sei o
quanto parece confuso, afinal, eu estou confusa.
Assim que Jane abriu a porta para mim, ele partiu com o carro. E estava tudo normal do lado de
dentro. Ataque na floresta?! Não havia qualquer cogitação sobre, e eu agradeci mentalmente a
Eric por isto. Agradeci mais ainda quando notei o pequeno machucado na perna da Lola. Poderia
ter sido muito pior. E eu não as abracei por apenas três motivos: Jane não gostava de abraços,
levantaria suspeitas, e elas estavam bêbadas.
—Téo falou que ia embora, mas vocês ficaram se pegando aí fora, né? — Jane implicou tão logo
eu me sentei a mesa.
—Não foi bem assim... — respondi, deixando meus cabelos cobrirem o rosto quando o olhar
inquisidor de Henrique recaiu sobre mim.
—Eu vi o carro dele saindo agora, se soubesse eu tinha fuxicado antes pela janela — debochou,
colocando uma carta de sua mão sobre a mesa e fazendo uma dancinha na direção de Henrique,
aparentemente zombando por ter ganhado.
Era estranho olhar para elas e notar que estavam em uma vida tão diferente da minha, como se
estivéssemos em uma estrada até aquele momento e, então, as bifurcações começassem a surgir.
Conseguia visualizá-las concluindo suas faculdades, casando, tendo filhos, tendo empregos
estáveis e fazendo viagens de férias. Entretanto, nenhuma daquelas projeções parecia ser mais
possível para mim. Demorei para aceitar, talvez menos que minha mãe, mas ser bruxa parecia a
dominante na minha vida. E não conseguia me imaginar curtindo férias enquanto um grupo
chamado fênix da justiça me perseguia com dardos.
—Bem, como eu ganhei a partida, quero uma leitura de mãos — Jane agarrou meu braço,
inclinando desajeitadamente seu corpo sobre o meu. — E eu apostei que o Henrique também
participaria, se perdesse, Kate — falou perto do meu rosto, entregando todo o seu cheiro de
bebida.
Procurei Lola com os olhos para um daqueles momentos “hora de salvar nossa amiga da
vergonha”, mas ela estava quieta demais. Sentada em uma das pontas da mesa, Lola apenas
encarava as cartas com atenção. Seus olhos estavam estáticos, fixos no baralho, dispersos para o
mundo ao redor. E, estranhamente, meu coração se apertou.
—Como um defensor da ciência, eu devo dizer que não acredito nessas coisas. É só por
divertimento, né? — Henrique comentou, afastando-me da análise, e virou o resto da cerveja em
sua boca.
—Por que não dá uma oportunidade a ela? — Jane sugeriu, aproveitando para tocar em
Henrique. — Vai, seja o primeiro. — Pegou a mão dele, que facilmente cedeu, e repousou-a
sobre a mesa. Só eu notei as bochechas dela coradas?
Jane, embriagada, se ofereceu para buscar as velas, e nem mesmo assim Lola reagiu. Pigarrei,
tentando buscar sua atenção, e avisei que iria até a cozinha; ela apenas concordou balançando a
cabeça. Naquele instante, eu simplesmente corri para a cozinha, olhei para o céu pela janela
corrediça e prometi que eu me afastaria se o universo devolvesse a minha amiga. Se todo aquele
brilho sonhador e fantasioso voltasse aos seus olhos, se os seus desejos românticos e inspiradores
retornassem, se ela voltasse a ser a Lola. Eu desejava fervorosamente ter o número de celular do
Eric, desejava saber como contatá-lo para que ele pudesse me ensinar a salvá-la, a corrigir
aquilo.
Retornei para a sala com três velas brancas, sentei na cadeira com almofada verde e dispus as
velas no formato de um triângulo. Por favor, não me pergunte a razão, eu simplesmente via a
minha avó fazer. Puxei a mão de Henrique, deixando-a aberta sobre a mesa e repousei a minha
sobre a dele. Fechei os olhos. Respirei fundo, pedindo a ele que se concentrasse sobre sua vida,
tentando afastar os meus próprios pensamentos. Respirei novamente e relaxei, sentindo-me fora
de mim como sempre me sentia a cada leitura de mão. Um terreno no qual estava acostumada a
passear. Não.
Por que eu estava vendo o Eric tirar sua jaqueta jeans escura e jogar sobre uma cama de casal?
“Porque você não deve mais fazer leituras. Sua energia passa para a mão da outra pessoa e
você pode ser rastreada. Como se fosse uma droga sendo farejada por um cachorro. Então, toda
vez que você fizer isso, verá a mim. No momento atual”.
Ele puxou a camisa pela cabeça, deixando a parte de cima do seu corpo desnuda. As linhas de
musculação desciam pela sua pele de forma discreta, nada exagerado, indicando que malhar não
era um vício seu. Mas elas eram bonitas. E havia uma cicatriz. Um pouco abaixo do seu peito.
“Caso continue segurando a mão dele, você me verá tomando banho”.
Desafivelou o cinto da calça e eu abri os olhos, gritando como se estivesse voltando de um
pesadelo. Puxei o ar, o qual eu estava prendendo e nem sabia. Larguei a mão de Henrique
imediatamente, e sua testa franziu em preocupação.
—O que você viu foi tão ruim assim? — Lola pareceu ter despertado do ‘coma’, talvez assustada
com a minha reação.
—Não. Foi bom. Não. — Que droga! Levei as mãos à cabeça, sentindo-me mais perdida e
confusa do que antes. — Eu sinto muito, eu não vi nada. Talvez seu ceticismo tenha me
impedido. — Empurrei a cadeira com pressa, como se nas mãos de Henrique existisse um
veneno, e quase caí. — Eu preciso ir. Me desculpem.

Por mais bêbadas ou estranhas que as minhas amigas estivessem, elas vieram atrás de mim. Elas
sempre viriam porque a amizade é assim, não importa o quão estejamos mal. Não tinha nem dez
minutos que eu tinha entrado no meu quarto e revirava minhas gavetas a procura de um bom
pijama para dormir. A verdade é que eu não estava encontrando porque a minha mente estava
perdida.
O quanto eu podia falar para elas? O quanto eu podia ser sincera? Tá certo que nunca me
imaginei sendo uma bruxa, mas também não tinha deixado de assistir diversas séries ou filmes
sobre o assunto. E um x em comum entre eles era: uma bruxa não deve revelar aos humanos sua
bruxaria. Eu estaria colocando minhas amigas em perigo?! Certeza. Já estava tendo pequenas
demonstrações disso, sem nem ao menos contar. Há poucos minutos, Lola não era exatamente a
Lola, e eu não podia atribuir sua melhora a outra coisa senão a minha promessa de afastamento.
E eu a honraria.
E, então, eu tinha aproximadamente cinquenta assuntos diferentes para debater, no entanto,
estava procurando outros cinquenta para justificar a minha saída brusca, para mentir. E acabei
suscitando um assunto um tanto ridículo, ainda mais para mim.
—Conheci dois caras nas últimas semanas. Beijei o Téo, mais de uma vez... —Fechei a primeira
gaveta da cômoda e relaxei meu corpo contra ela, encarando minhas amigas.
—Você andou fazendo alguma simpatia? Tomou algum banho? — Jane debochou, deslizando o
corpo pelo pequeno sofá que ocupava o espaço da minha janela.—Será que o segredo é não
querer se envolver?
—Mas ela não disse que conheceu outro cara no sentido romântico da coisa — Lola deduziu. —
Ou é?
—Ele é o cara dos meus pesadelos. Eu tenho quase certeza. — Sentei no banquinho entre a
cômoda e a porta do banheiro.
—Tem certeza que quis dizer pesadelos? Não seriam sonhos? — Jane inquiriu de forma lenta e
um tanto enrolada.
—Calma! Você está falando daqueles pesadelos com a visita da sua avó? — Lola parecia
completamente sóbria perto de Jane. Balancei a cabeça afirmativamente. — Você não comentou
que havia um cara. — Seus olhos pararam de encarar os meus, passando a fitar suas próprias
mãos sobre os joelhos.
—Ele apareceu uma única vez e, desde lá, não tivemos tempo para conversar sobre a evolução
do pesadelo. — Comecei a enrolar as pontas dos meus cabelos, sentindo uma vontade louca e
sufocante de contar tudo.
Lola e Jane eram as minhas melhores amigas, as pessoas com as quais eu desabafava
simplesmente tudo e, num passe de mágica, eu precisava olhar para elas e me calar e guardar
todas as minhas aflições. Meu peito parecia lotado de gritos, segredos e mentiras. E uma angústia
tomou conta de mim.
—Você descobriu que a visita foi real. Agora você encontra o cara que apareceu no mesmo
pesadelo. O que está acontecendo? — Jane roncou, distraindo um pouco as nossas mentes
daquele emaranhado que vinha se desenhando diante de nossos olhos.
—Talvez, por algum motivo, eu o conheça. E, sei lá...— Abaixei a cabeça, encarando minhas
botas. — Assim como eu sonho com a visita porque ela existiu; talvez eu o conheça de algum
lugar. — Lola balançou a cabeça, parecendo concordar com a minha teoria.
—Como você pretende ter certeza de que é ele? Aliás, o que ele fazia no pesadelo? — Lola
deitou na cama, de lado, de modo que pudesse me olhar. Era visível o seu cansaço e, ainda
assim, estava disposta e interessada em me ouvir. Eu sentiria falta da sua amizade.
—Ele me salvava e morria depois...
O ding dong da campainha fez nós duas pularmos de nossos lugares enquanto nos olhávamos.
Jane não se mexeu nem um pouco e imaginei que minha mãe também não tivesse acordado. Mas,
se o barulho persistisse, isso mudaria. Meu coração estava terrivelmente acelerado, eu precisaria
de uma terapia urgentemente. Diferente de mim, Lola recuperou a calma e caminhou na direção
da porta, quando eu a segurei num instinto protetor.
—O que é isso, Kate?! Quer me matar do coração? — Colocou a mão longa sobre o peito, rindo
em meio a uma respiração um tanto rápida. — Deve ser o Henrique.
—Não acho que seja o Henrique — sussurrei, sentindo-me em um filme de terror, onde a casa
estava prestes a ser invadida por bandidos. — Não sei se devemos atender.
—Está acontecendo alguma coisa que eu não sei? — Seus olhos diminuíram na minha direção.
— No que você se enfiou, Kate? Está em perigo? — Enfiou a mão na bolsinha transversal que
carregava e tirou o celular de lá. — Vamos ligar para o Henrique antes de abrirmos.
Consenti com a cabeça e caminhei para o corredor, de onde eu podia ver a porta de entrada da
casa. A campainha não tocara mais, como se alguém estivesse brincando de tocar nas casas e sair
correndo. Teria sido um engano?! Não. Ninguém se engana em Forecast porque todo mundo
sabe onde todo mundo mora. Mas por que tocar apenas uma vez? Pelo horário, a gente poderia
até mesmo nem ter escutado.
—Não é o Henrique. Ele falou que está vindo, porém, está muito bêbado. Pode chegar aqui só
amanhã — bufou. — Estamos juntas.—Pegou minha mão. — Vamos pegar umas armas na
cozinha e abrimos a porta. Vai dar tudo certo.
Por um momento, eu pensei em ler a mão de Lola. Pensei que assim eu poderia me comunicar
com Eric afinal, ele estava disposto a salvar a minha vida, não é mesmo? Em troca do favor.
Mas, eu nem mesmo sabia se estava em perigo, tampouco sabia se aquilo era uma porta de
comunicação, eu apenas o tinha visto e, muito provavelmente, ele já estivesse dormindo. E,
apesar de eu não ter nascido para ficar sendo protegida por homem, tinha juízo de que naquele
instante eu era inútil para me defender ou defender as minhas amigas e a minha mãe.
Como duas estranhas e paranoicas, pegamos as maiores facas na cozinha — cientes de que não
as saberíamos usar adequadamente se fosse preciso —, e seguimos para a porta. Talvez se fosse
um bandido, já tivesse arrombado, né? Mas e se, como os vampiros, ele precisasse de permissão
para entrar? Precisasse que nós abríssemos? Checamos o olho mágico e não havia nada.
Puxamos discretamente as cortinas que tampavam os vidros laterais da porta e também não
vimos nada. Girei a chave e abri a porta após contarmos até três.
Nada.
—Ei — Lola cochichou, abaixando para pegar um envelope branco largado simetricamente
sobre o tapete.
Segurou o envelope e começou a puxar um lacre vermelho e redondo com a letra J. Sem êxito.
Reconheci de imediato o adesivo usado pela minha avó, assim como a letra. Outro bilhete?! Por
que não entregou o primeiro da mesma forma? Ela sabia que minha mãe esconderia, então, por
que deixou que isso acontecesse?! Puxei Lola para dentro de casa e tranquei a porta.
—Não vamos dar chance para o inimigo — expliquei. — Conseguiu abrir?
—Não. E olha que minha unha está grande.—Ela olhou para as unhas pintadas de rosa e voltou a
cutucar o adesivo. — Tente você.
Claro. Peguei o envelope, sentindo meu coração se aquecer. Aquele era mais um pedacinho da
minha avó. Puxei o lacre, no entanto, ele não saiu. Tentei das mais variadas formas, contudo,
nenhuma funcionou.
—A gente pode pegar uma tesoura e cortar a lateral — sugeriu Lola, já andando pela sala à
procura do instrumento.
—Não. Eu vou tentar amanhã, com mais calma. Não quero correr o risco de rasgar.—Encostei-o
em meu peito, escondendo um sorriso contente.—Depois de todo esse susto, acho que devemos
descansar. Amanhã ainda não é final de semana.
—Você ainda tem que me contar em que enrascada se enfiou. Não pense que esqueci — ela
reclamou enquanto subíamos as escadas. — Aliás, qual o nome do carinha do seu pesadelo?
Entramos no quarto e apagamos logo as luzes para que Jane pudesse descansar tranquilamente. A
cama ao lado da janela era bem confortável e não precisaríamos acordá-la para que trocasse para
a outra. Ainda assim, pelo tanto que havia bebido, a ressaca era uma certeza.
—Eric — sussurrei enquanto pegava o primeiro pijama na gaveta.
—Eric?!—Parei com a mão na maçaneta do banheiro, assustada com o tom de voz de Lola.—
Qual o sobrenome dele?
—Daren. Eric Daren — reforcei, ainda segurando a maçaneta e observando o rosto dela se
contorcer de maneira desgostosa, como se tivesse provado algo muito cítrico.
—Qual a chance de o cara dos seus pesadelos ser o cara pelo qual estou apaixonada?!
Capítulo 15

Não conseguia copiar a matéria escrita no quadro branco, tampouco


prestar atenção no que o professor de Direito Civil dizia. A culpa era do sol que estava
ultrapassando a janela bem na minha direção. Talvez a culpa não fosse dele realmente, mas eu
precisava colocá-la sobre alguma coisa que não fosse a minha conversa com Lola na noite
anterior.
Já estava dando tudo errado desde que não podia contar as minhas mais recentes descobertas
sobre bruxas, viagens ao passado, feitiços e comunicação com mortos. Mas, conseguiu piorar
quando chegamos à conclusão de que o cara dos meus pesadelos era o cara pelo qual ela estava
apaixonada. A conversa rondava minha cabeça como rato roendo roupa.
—Qual a chance de o cara dos seus pesadelos ser o cara pelo qual estou apaixonada?!
—Tendo o mesmo nome e sobrenome, bem grande, eu diria — conclui, tirando as minhas botas
para parecer que não estava me importando com o assunto.
—Isso significa que esse meu romance não tem a mínima chance de dar certo. Eu apenas fui a
chave de conexão para vocês dois. — Sentou-se na cama parecendo derrotada.
Lola tinha muito dom para o drama e nós nunca sabíamos quando ela estava verdadeiramente
sofrendo. Usávamos critérios subjetivos para chegar a tal conclusão e, naquele caso, por
exemplo, o meu critério era que ela havia conhecido Eric há muito pouco tempo e tido poucos
encontros com ele — se não me enganava apenas um — para estar devastada. No entanto, eu não
queria parecer rude, levando em conta que eu supostamente estava roubando o cara da vida dela.
—Lola, — peguei suas mãos — por favor. No pesadelo eu não ficava com ele, nem nada do tipo.
Ele apenas estava lá. Como disse, pode ser alguém que preciso conhecer por qualquer motivo.
—Ninguém morre para salvar o outro se não estiver, no mínimo, apaixonado — ela argumentou
de modo incisivo, encarando-me com um olhar atrevido, como se tivesse ganhado aquela
disputa. Mas a verdade é que ganhar aquela disputa, a tornava perdedora na hipotética disputa
pelo Eric.
—Ninguém disse que ele morria por sacrifício, Lola — reclamei, afastando-me na direção do
banheiro, já com as roupas no braço.
—Ninguém arriscaria morrer por nada, Kate. Ele não assumiria o risco, se não a amasse... — ela
falava sem parar, quase não tomando fôlego entre as palavras.
—Chega. Eu não estou interessada. Acho que isso é o bastante.
E entrei no banheiro para tomar meu banho, encerrando o assunto. O que era uma mentira. O
assunto não tinha como ser encerrado. Não mesmo. Porque seu argumento estava batucando na
minha mente de forma desagradável. Paixão? Amor? Lola estava dizendo para mim que eu e
Eric nos apaixonaríamos e que ele seria capaz de morrer para me salvar. Como se o meu
pesadelo fosse uma visão do futuro. Mas como seria algo do futuro se ele me mostrava a visita
da minha avó antes de morrer?
E os meus planos de seguir normalmente com a minha vida tinham ido por água abaixo. Eu não
queria mais estar ali, aprendendo Direito, quando toda a minha vida parecia uma grande mentira
a ser desmascarada. Arrumei meus materiais e saí da sala. Jane não tinha ido por causa da
ressaca, liberando-me de uma justificativa para minha saída.
Fui até o corredor de armários no primeiro andar e larguei todo o material que não seria mais
usado naquela semana. Peguei minha bolsa e tirei o envelope branco de lá. Algo me dizia, por
experiências recentes, que talvez sozinha eu o conseguisse abrir. Cutuquei o adesivo com minha
unha preta e, voilà. Aberto.
Na igreja. Terceiro banco. Do altar para a saída.
Júlia West.
Havia apenas duas igrejas na cidade; uma na parte antiga e outra na nova. Levando em conta a
distância de onde eu morava para a parte antiga da cidade, eu preferi deduzir que minha avó me
mandaria para a mais próxima. Por isso, guardei o bilhete de volta, peguei minha bolsa e fechei o
armário.
Fui ao banheiro rapidamente e ao retornar vi as portas das salas sendo abertas, indicando que as
aulas tinham terminado. O meu senso de responsabilidade agradeceu com essa constatação,
afinal significava que eu não tinha matado tanto tempo de aula. Tá certo que eu queria chutar o
balde, no entanto, eu ainda estava ali dentro daquele caos.
—Matando aula, Kate West? — Não.
Eu estava andando naturalmente na direção da saída, ainda passando pelo corredor de salas no
primeiro andar, quando a voz dele surgiu ao meu alcance. Confesso que a partir daquele
momento eu desejei ter apressado meus passos.
—Eu acho que não deveria conversar com o cara que usou minha melhor amiga para me
conhecer — retruquei, não pensando muito antes de despejar toda a minha raiva.
Seus passos, assim como a sua voz, já tinham rapidamente me alcançado, por isso, virei-me de
modo que ficássemos frente a frente. De modo que eu pudesse analisar sua reação a minha
acusação. Sua testa franziu lentamente enquanto um sorriso estranho se formava em seu rosto.
Por que ele estava sorrindo se eu tinha acabado de o acusar?!
—Você está sendo um pouco convencida, não acha? — Seus olhos semicerraram na minha
direção enquanto Eric caminhava a distância que eu julgava ausente entre nós. — Analise um
pouco — sussurrou como um predador prestes a atacar —, eu precisaria ter conhecido a Lola
para ter salvado você ontem?
—Claro. Para saber aonde eu estava. — Cruzei os braços, um pouco incomodada com sua
proximidade. Eric estava tão perto que eu podia sentir seu perfume amadeirado. Ele riu.
—Você é tão ingênua, Kate. — Balançou a cabeça demonstrando incredulidade enquanto
estalava a língua. — Conheci você primeiro.
O quê?! Meus braços cederam e tenho certeza de que mexi todo o meu corpo em resposta a sua
afirmação. Não seria possível que Eric fosse me falar do pesadelo. Ou de algum encontro
passado. Eu me lembraria dele, não lembraria? Como eu poderia esquecê-lo se quando sonhei
apenas uma vez não o esqueci?!
—Você está mentindo — acusei-o mais uma vez.
—A mentira é tão subjetiva, Kate. Você só a conhece quando tem a possibilidade de desmascará-
la, então, compreenda: estou dizendo a verdade — suspirou.
—Até que se prove o contrário... — refleti. — Advogado você?
—Professor de História.
—Presumo que devo acreditar nisso também, apesar de nunca o ter visto por aqui. — Retomei
meu caminho na direção da saída enquanto Eric me acompanhava.
—Este é o momento no qual deveria ser convencida. Arranjei esse emprego para poder vigiar
você. E, sim, você deve presumir que é verdade — debochou, não em tom pejorativo, parecia
mais uma brincadeira.
—Imagino que o favor que lhe devo seja muito valioso para tamanho sacrifício... — a palavra
rastejou pelos meus lábios como um veneno entrando pouco a pouco e me torturando.
—Não é nenhum sacrifício, gosto de lecionar. — Chegamos ao portão principal.
—Vejo que estou certa sobre o favor — concluí afinal, sobre isso Eric não havia apresentado
qualquer contestação.— Preciso ir agora.
—Para onde vamos? — Escondeu as mãos nos bolsos de sua calça preta, assumindo uma postura
de defesa.
—Vamos?! Eu e você?
—Levando em conta a sua predisposição a se enfiar em situações perigosas e que você está indo
embora da faculdade antes do horário, creio que eu deva ir para manter a segurança do meu
favor.
Sério. Eu ri. Não sabia se pelo apelido carinhoso pelo qual ele secretamente devia me chamar —
meu favor — ou pela sua audácia em dizer que iríamos juntos sem ter sido convidado. Eric não
se importou com a minha reação, esboçando um total de zero expressões faciais ou corporais.
Suas mãos se mantiveram no lugar e sua postura ainda era defensiva.
—Eu poderia estar indo encontrar meu namorado — aproximei-me dele, sem nem mesmo
perceber —, você não acha que essa sua atitude invade a minha privacidade? Eu não quero um
segurança.
—Eu nem mesmo deveria deixar você a sós com seu namorado. — Cruzou os braços, enfim
parecendo irritado. —Que tipo de cara deixa você sozinha na floresta? Depois de ouvirem tiros?
É isso que você quer para a sua vida? Um cara que não se importa com a sua segurança?! — Seu
tom de voz havia elevado consideravelmente, embora ainda não estivesse gritando.
—Eric, seu conceito está errado. Ele se importa, mas respeita a minha decisão de tentar
conseguir as coisas por minha conta — encarei-o de modo intimidador, confiante das minhas
palavras —, somente assim eu posso evoluir como pessoa. Se ele fizer tudo por mim, eu não
serei nada sem ele, concorda?
—Obviamente — ele percorreu toda a distância que nos separava, parando a exatos milímetros
do meu rosto, sua voz tornou-se um sussurro: — o problema, Kate, é que aquele não era o
momento de deixar você evoluir. E se ele a amasse, ele saberia essa diferença sem nem mesmo
precisar pensar duas vezes.
Congelei. Suas palavras me atingiram como um soco no estômago, daqueles que você demora
alguns minutos para recuperar o fôlego e poder falar novamente. Um misto de coisas me impedia
de reagir, de argumentar, de defender a minha visão. A forma como Eric falara, cheio de
propriedade, cheio de certeza. A profundidade com que mencionara amor. E a certeza de que se
Eric me amasse, ele se sacrificaria por mim, exatamente como Lola dissera. E aquilo me
assustou. Pelo amor, pelo sacrifício e pela morte.
—Você já amou alguém? — gaguejei as palavras.
—Amor não é só nesse sentido, Kate. — Puxou seu celular do bolso, ocultando seu rosto com a
franja que insistia em cair quando abaixava a cabeça. — Tenho em torno de quarenta minutos
para ajudar você a evoluir, podemos então?
Capítulo 16

Demos a volta no prédio da faculdade e entramos no carro de Eric, no


qual eu estava entrando pela segunda vez. Mas, se ele quisesse matar o seu favor, já o teria feito,
não? Eu não estava dificultando isso nem um pouco. E, ainda assim, a minha maior preocupação
era explicar para Lola por que nós dois havíamos saído juntos da faculdade até a igreja. Eu não
queria que ela soubesse por um terceiro.
A igreja ficava a poucos metros da faculdade, mais ou menos uns quinze minutos de carro, no
entanto, eu teria demorado bem mais se tivesse ido a pé ou de ônibus. E, não, eu não estava
justificando o fato de ter aceitado sua carona. Primeiro: Eric não me dera muitas opções afinal,
estava bem claro como água que entraria no ônibus ou que caminharia ao meu lado até lá.
Segundo: eu tinha mesmo aceitado e ponto final. Embora, secretamente, tivesse prometido a mim
mesma que o obrigaria a cobrar logo seu favor e sumir da minha vida. Eu não queria mais
motivos para perder minha melhor amiga.
—O que estamos vindo fazer na igreja? — indagou assim que estacionou o carro em frente ao
templo. — Você não matou aula assim apressadamente para rezar, né? — Saiu do carro enquanto
eu fazia o mesmo.
—E se fosse?! Eu avisei que você não precisava vir — debochei, mantendo oculto o meu sorriso.
—Pelos deuses. Qual pecado tão grave você cometeu? — havia divertimento e algo a mais em
suas palavras. Algo que eu entendi como malicioso.
Ignorei. Era melhor. A igreja estava praticamente às moscas, como eu realmente imaginava. Não
era um horário habitual para os moradores estarem ali. Tinha em torno de quatro pessoas
ajoelhadas ou sentadas, aparentemente orando. Caminhei na direção do altar e escutei Eric
sussurrar mais uma vez que não estava acreditando que eu tinha mesmo ido rezar. Terceiro
banco. Ninguém sentado, por sorte. Adentrei a fileira e ele me acompanhou. Ajoelhei no
almofadado e relaxei meus braços ao lado do corpo para que ninguém notasse o que eu estava
fazendo. Havia uma pessoa sentada na diagonal do meu banco, com ampla visão para nós.
—Ajoelhe-se ao meu lado — pedi, encarando-o com urgência.
Eric balançou a cabeça negativamente e olhou para a entrada da igreja, antes mesmo de ouvirmos
os saltos. Notei que o senhor sentado na minha diagonal estava se levantando, e aproveitei para
fuçar o banco à procura da razão para minha avó ter me levado até ali.
—Você precisa se levantar — Eric avisou entredentes, num sussurro aparentemente desesperado
demais para alguém como ele.
Tateei o chão e meus dedos tocaram algo levemente macio. Não era como um tecido, parecia
couro. De boa qualidade. Puxei. Verde escuro com o meu nome bordado em um tom de limão.
Não. Não era meu nome. Estava escrito Kate Gricem. Gricem?!
—Essa igreja há muito tempo não é tão bem frequentada — uma voz de mulher falou em alto e
bom tom, pouco se importando se aquilo era uma igreja.
Guardei o livro na minha bolsa apressadamente e olhei para Eric. Oi?! A mulher estava parada
há centímetros — seriam milímetros? — dele e uma de suas mãos repousava sobre a lapela de
sua jaqueta. Levantei-me e os olhos escuros dela voltaram na minha direção.
—Acompanhado, senhor Daren? — sua voz rastejou pelo recinto como uma cobra sibilando. A
mulher não parecia nem um pouco satisfeita ao me ver. Voltou a falar com ele, ignorando a
minha presença.—Sabe que precisarei reportar a sua presença aqui, não sabe? A não ser que me
ofereça algo em troca como nos velhos tempos...
—Prazer, Ka... — Estendi a mão na direção da moça ruiva, mas Eric rapidamente segurou meu
braço e me puxou na direção do seu corpo, abraçando-me como se fossemos namorados.
—Estou acompanhado, Mercedes. Espero que ignore a nossa visita em nome dos velhos tempos
— havia ironia na voz dele.
—Eu não sou nenhuma idiota, Eric. Por que você não deixou que ela se apresentasse? — Olhou
para mim com atenção, como se em seus olhos existisse um raio-x capaz de indicar a ela o
motivo pelo qual Eric tomara aquela atitude. No entanto, estranhamente, ela abaixou um pouco a
cabeça e colocou a mão na orelha. — Guardas. Estão procurando a sua garota. Não são do
governo. No que você se enfiou, cara?!
Barulhos de botas pisando no assoalho da igreja foram ouvidos. Pareciam orquestrados,
caminhando e fazendo sons ao mesmo tempo. Um zunido. Dois. Não eram balas, eram dardos.
Percebi quando um encontrou o banco de madeira ao nosso lado. A ruiva ordenou que
corrêssemos na direção da sacristia, enquanto ela também nos acompanhava, dando-nos
cobertura.
Conhecia pouco o Eric, no entanto, ele não me parecia uma pessoa capaz de se esconder de
inimigos; ele parecia o cara que os enfrenta. Então, por que ele estava realmente me empurrando
para a sacristia?! Os dardos continuavam a passar por direções diferentes, chegando a atingir
uma estátua que se destroçou aos nossos pés. A poucos centímetros da porta, Eric estendeu a
mão e a abriu. Sua mão nas minhas costas terminou de me empurrar para dentro, mas eu segurei
a porta antes que fosse tarde demais.
—Você não vai abrir para ninguém — ele avisou, colocando a mão sobre a maçaneta, um pouco
abaixo de onde a minha estava parada.
—Você não vai enfrentar eles sozinho. — Suas sobrancelhas franziram na minha direção ao
ponto de sua testa se enrugar.
—Preciso que fique aí dentro, Kate, até eu voltar — repetiu em um tom mais baixo que o
anterior, não soando mais como uma ordem e sim como um pedido.
—Eu fico. — Eric relaxou consideravelmente os ombros, aumentando a pressão sobre a
maçaneta. — Mas você fica comigo.
Eric não estava preparado e, por isso, não reagiu quando agarrei a lapela de sua jaqueta e o puxei
para dentro da sacristia comigo. Soltamos a porta e, bem, Eric ainda não estava exatamente
reagindo ao fato de eu o estar ‘agarrando’ no meio da igreja, por isso, usei o peso do seu corpo
para empurrar a porta da sala do padre. E o meu para empurrá-lo e fechá-la. E, então, me dei
conta de que estava encurralando Eric com meu corpo na porta da sacristia de uma igreja. Fechei
meus olhos rapidamente, pedindo perdão.
—Você acha que não sou capaz de atacá-los e acabar com um por um em instantes? —
questionou em um sussurro enquanto seus olhos encaravam os meus procurando a verdade.
—Não tenho um pingo de dúvida — mantive seu olhar —, mas você não precisa fazer isso por
mim, enquanto eu fico aqui como uma donzela em perigo. Pare de me salvar, pare de se arriscar
por minha causa.
Eric piscava parecendo incrédulo com as minhas palavras. Seu olhar estava baixo, não tão vivo
como sempre, parecia perdido demais. Seus lábios se abriram, mas fecharam rapidamente.
Palavras que não foram ditas e não seriam.
—Sei que é por causa do favor, mas então cobre-o logo para se ver livre dessa situação. Não
quero que morra por minha causa, nem se machuque.
Ele nada respondeu, seus olhos me encarando como se eu fosse um ser vindo de outro planeta, e
então afastei pouco a pouco meu corpo do dele, pensando no quanto eu queria direcionar minha
energia para trancar a sala e impedir que ele não acatasse o meu pedido.
Eric relaxou o corpo sobre a porta enquanto observava eu me afastar e passou a mão pelos
cabelos, respirando pesadamente. Olhou para o teto e, enfim, afastou-se da porta, caminhando na
minha direção. E eu fiquei parada. O professor de História puxou a minha mão e a repousou
sobre a sua.
—Se eu disser que não vou morrer e que você pode confiar na minha palavra, você ficaria mais
tranquila? — sua voz era doce, tranquila, diferente daquela cheia de vigor que ele costumava
usar.
—Você tem algum pacto? — Seus dedos se fecharam ao redor da minha mão no instante em que
cogitei me afastar. —Não pode me garantir esse tipo de coisa.
—Na verdade, eu posso, e sim, você pode chamar de pacto. Só não com o demônio. — Eric deu
um sorriso divertido, leve, e por um momento eu pensei que o mundo estava sendo destruído do
lado de fora e nós estávamos conversando ao ponto de ele sorrir.
—Você não pode morrer?!
A porta da sacristia foi aberta e a postura leve e relaxada dele desapareceu como mágica. Eric
virou de costas para mim, tampando parcialmente a minha visão ou escondendo-me de quem
quer que fosse. Mas era a moça ruiva. E ela estava sangrando.
Mercedes fechou a porta atrás de si e escorregou pela parede ao lado da porta, manchando-a com
sangue. Eles não estão usando dardos para captar memórias? Eric estendeu a mão e trancou a
porta com magia, seguindo imediatamente para perto da moça.
Ela me parecia muito mal, suas mãos estavam sobre a barriga como se a dor viesse dali, mas o
sangue escorria mesmo era de seu peito, um buraco de bala logo acima de seu seio. Engoli em
seco e puxei o celular. Talvez Henrique pudesse salvá-la, mas como eu o levaria para uma igreja
em perigo?!
Estava escolhendo uma vida pela outra. Que absurdo.
—Se está pensando em chamar a emergência, não vai adiantar — Eric avisou enquanto se
ajoelhava na frente de Mercedes. — Estão usando balas de sorveira? Mas não é só a guarda do
governo que as possui?
Ele conversava com Mercedes enquanto mantinha a mão estendida sobre o ferimento dela. Não
parecia ser capaz de doer mais, no entanto, aparentemente o algo que Eric fazia estava causando
mais sofrimento nela. Ainda assim, eu conseguia ver que era uma tentativa de salvá-la. Teria sido
assim com a cigana?! De um ângulo completamente leigo, ele parecia matá-la, mas e se na
verdade ele a estivesse mesmo ajudando?!
—A triquetra. Não acredito que condenaram você à eternidade. — Eric abaixou a mão de
imediato, fechando seus dedos com raiva. Não sabia dizer se ele estava assim pela relação
próxima com ela, ou se pelo que havia acontecido. Talvez pelas duas coisas? — Sinto muito por
ter metido você nesta confusão.
Em um gesto inesperado, assisti Eric levantar a mão e com magia cobrir o corpo de Mercedes
com uma aura azul. Pouco a pouco, os tremores no corpo dela foram perdendo a intensidade e
seus olhos, antes cheios de vitalidade, cediam à fraqueza. Escutei quando ela sussurrou, cuspindo
um pouco de sangue, que Renato era o responsável por sua morte. E observei como Eric
balançou a cabeça, como se tivesse recebido uma ordem, e fosse um soldado capaz de cumpri-la.
Quando suas pálpebras cerraram de modo definitivo, condenada à eternidade, eu senti o peso
sobre os meus ombros e a angústia me sufocar. Eu era indiretamente culpada por aquela morte.
Eu tinha prendido Eric comigo, de forma egoísta, e pensado apenas em nós dois, quando ele seria
capaz de derrotar todos os inimigos e salvar Mercedes. A morte dela era minha responsabilidade
e cabia a mim descobrir quem era Renato.
—Bem, eles vão acabar invadindo isso aqui — Eric resmungou enquanto se levantava. —
Precisamos dar o fora.
Olhou para as janelas da sacristia com determinação e estendeu as duas mãos na direção de uma
delas, a que ficava acima de uma escrivaninha lotada de livros religiosos. Eric recitou umas
palavras enquanto usava sua mão direita para quebrar os vidros da janela. Eu já tinha quebrado
vidros, contudo, não de forma controlada e intencional. Ele devia mesmo ter muita energia para
gastar na quebra de uma janela. Eu simplesmente jogaria dois livros daqueles.
A questão mais interessante é que com a mão esquerda, Eric aparentemente capturou o som dos
vidros. Não houve qualquer ruído dos cacos, eles caíram para fora da janela sem deixar pistas.
Então, em seguida, Eric correu para a mesa e espionou para ver se podíamos sair sem problemas.
Moveu sua mão, pedindo que eu passasse sua frente. Ele se afastou para que eu pudesse me
agachar ao seu lado sobre a mesa, contudo, ao se mover, Eric derrubou os livros do padre. E
eram livros grossos.
—Vá, antes que eles arrombem. — Eric colocou a mão na minha cintura, pressionando-a para
que eu saísse logo, e eu o fiz. Erroneamente.
Assim que coloquei os pés sobre a grama ao redor da igreja, dando espaço para que Eric fizesse
o mesmo, a porta da sacristia foi arrombada. Não sei muito bem como tudo ocorreu, meu coração
acelerou desesperadamente e, depois disso, eu perdi um pouco a noção dos detalhes.
Três ou mais guardas adentraram a sala e, para minha surpresa, Eric não hesitou. Ele
impulsionou seu corpo para fora da sacristia enquanto eles disparavam suas armas cheias de
dardos. Por que dardos para nós e balas para Mercedes? Quando eu disse corpo, eu quis dizer
metade dele porque eu vi quando os dardos voaram na direção das costas do professor. Vi
quando um deles passou de raspão por sua cabeça. Naquele instante, em contrapartida ao meu
coração, as imagens passaram em câmera lenta, como se eu as tivesse congelado.
Eric se pôs de pé a minha frente, sobre a grama, contudo, três dardos ficaram imóveis a
centímetros da janela quebrada. Um homem trajando um uniforme cinza capaz de cobrir
praticamente todo seu corpo, exceto pelo rosto, olhou para mim como se fosse um robô gravando
as imagens. Ele não parecia vivo. E, seguindo o seu trabalho, levantou a arma para tentar mais
uma vez nos acertar. Eu, diferente dele, não tinha o hábito de lidar com este tipo de situação e
fiquei sem reação. O robô moveu a arma na direção do peito de Eric no instante em que o
professor puxou meu braço e começou a correr por nós dois.
A extensão da igreja não era tão grande e não demoramos muito para alcançar a sua entrada.
Havia dois guardas parados entre a porta e o carro de Eric, como se estivessem assegurando que
não fugiríamos. Entendi que me queriam, assim como foi na floresta. Só que daquela vez era um
grupo chamado fênix da justiça e, desta, segundo Mercedes não eram do governo, mas eram
guardas. Por que todo mundo estava me procurando de repente?!
—Você precisa fazer aquilo de novo... — Eric sussurrou.
—Aquilo o quê? — perguntei em tom baixo, mantendo meus olhos focados nos guardas.
—Congelar. Mas agora você precisa congelar o tempo por alguns segundos.
Eu congelei alguma coisa?! Senhor do céu, se eu nem sabia que tinha congelado como eu faria
novamente? Eric estava completamente louco se achava que eu seria capaz de fazer aquilo.
Precisávamos de um plano B, que poderia ser chamar a polícia, né?!
—Eu não sei fazer isso...
—Tenho certeza de que sabe —respondeu no exato instante em que soltou a minha mão e
começou a andar tranquilamente na direção de seu carro.
O que aquele idiota estava pensando em fazer? Uma tentativa de suicídio?! Ok. Eram dardos.
Mas e se usassem as balas usadas em Mercedes? Misericórdia. Ele era um louco, surtado, e eu
tive certeza disso quando os guardas viraram na direção dele e levantaram suas armas antes
camufladas pelo uniforme. Eric abriu os braços, deixando o peito livre e eu gelei. Eles me
queriam. E não seriam capazes de atirar em mim. E nele também não, se eu estivesse na frente do
seu corpo. Corri como uma idiota e, estupidamente, abracei seu corpo como a Pocahontas com o
John Smith. Aff... Desde quando eu faço referências românticas?! Eu faria isso por qualquer ser
humano em perigo. Certeza.
—Você é louca... — Eric falou sobre a minha cabeça, mas seu tom de voz era atraente demais.
Sexy, rouco, baixo. Como se pertencesse apenas a mim. — Eu disse que você seria capaz.
Olhei ao redor e o mundo havia sido congelado. Exceto por nós dois, nada na rua se
movimentava. Nem mesmo os guardas. E os dardos nem chegaram a sair de suas armas.
Olhei para Eric novamente, em seus olhos, e sem querer eu sorri. Eu tinha conseguido congelar o
tempo como me fora pedido, tinha conseguido a nossa libertação. Não que eu soubesse como o
tinha feito, mas havia muito poder em mim.
—Precisamos ir ou você terá um desgaste. — Suas mãos tocaram meus braços, acariciando-os
com cuidado, aparentemente contente com o resultado. Bem, em seu lugar eu também estaria,
né?
—Você não precisa cuidar de mim o tempo todo— retruquei, chateada por ele estar
interrompendo aquele momento especial em minha vida.
—Eu preciso e quero. — Eric levantou sua mão direita e tocou a pele abaixo do meu nariz.
Quando seu dedo se afastou, pude notar o contraste entre sua pele branca e a mancha de sangue.
— Mais um pouco e seu cérebro desligará — seus olhos me encararam com atenção —, e eu
serei muito egoísta se me importar apenas com o que eu quero. Embora seja difícil não ser...
Numa velocidade sobrenatural, sua mão segurou meu rosto, pegando-me de surpresa. Sabe
quando você fica na frente da turma para apresentar um trabalho e sente seu rosto esquentando
pouco a pouco? Então... quando os dedos dele roçaram a minha pele, não houve gradação; como
numa explosão senti o fervor dominar poro por poro. Com cautela, mantendo seus olhos nos
meus, embora eu parecesse cada vez mais distante, Eric deslizou os dedos para trás da minha
orelha, prendendo-me a ele, numa teia em um mundo congelado por mim.
Merda... Eric gemeu enquanto seu rosto se contorcia em uma careta. Ele estalou os dedos e ouvi
o bipe de seu carro soar, indicando que as portas haviam sido abertas. Eu não estava entendendo
muito bem o que estava acontecendo, e ele não parecia disposto a explicar, pois entrara num
modo objetivo e concentrado.
—Entre no carro — ordenou enquanto movia o braço para trás de si mesmo e puxava para frente
um dardo. Olhei ao redor e entendi: o feitiço tinha perdido a eficácia. Os guardas se
movimentavam.
—Qual a necessidade de me ordenar este tipo de coisa se sabe que não a farei?! — Segurei sua
jaqueta e o puxei na direção do carro. — Já entendi que estão me procurando — direcionei
minha atenção para os guardas, tentando falar o mais alto possível —, mas eu estou muito
ocupada agora.
—Se der mais um passo, ele morre — um dos guardas, próximo o bastante de Eric, ameaçou. E
ele não tinha uma arma de dardos na mão, ele tinha um revólver, provavelmente com o mesmo
tipo de bala que determinara o destino de Mercedes.
Eric olhou para mim e, ainda que eu o conhecesse pouco, consegui perceber que a morte
realmente não lhe assustava. Não tanto quanto a minha possível morte. E, sem qualquer
formação em Psiquiatria, concluí que ele era completamente louco ou que sua vida dependia do
favor que eu lhe devia. Afastei os pensamentos intrometidos e fiz o que devia. Dei mais um
passo com Eric.
O guarda levantou sua arma na direção do professor, mirando-o com precisão e profissionalismo
e, quando ele apertou o gatilho, nós já tínhamos dado uns três passos. Vi a bala se projetar do
cano e flutuar para o corpo de Eric, concentrei-me nela e comecei a pensar no estrago que ela
causaria. Os sentimentos devastadores acenderam em mim como uma fogueira, e o tempo
congelou. Peguei a bala de sorveira parada a centímetros de nós e a guardei na minha bolsa. Em
seguida, entramos no carro, e assim que eu sentei no banco do carona, perdi a força. O mundo
apagou como num blecaute.
Capítulo 17

Não sabia como era ser reanimada por um desfibrilador, mas imaginava
que fosse algo parecido com o que eu estava sentindo. A minha mente estava completamente
offline e, de repente, um choque a iluminou. Mexi a cabeça, um impulso ao retornar, e senti uma
enorme pressão na minha testa.
—Faça poucos movimentos agora — ele sugeriu, ganhando a minha atenção. Virei lentamente
meu rosto na sua direção e descobri de onde vinha o choque. Sua mão segurava a minha com
firmeza. Ele era o desfibrilador.
—Foi isso que você quis dizer com “seu cérebro vai desligar”? — questionei com dificuldade,
sentindo o efeito de cada palavra no meu cérebro, ao qual ele apenas afirmou balançando a
cabeça. — É bem estranho.
—É normal, você não está acostumada com tanta explosão de poder. — Jogou a cabeça para trás,
repousando-a no encosto do carro, mas não havia nada de relaxado em sua aparência. Eric
parecia tenso dos pés à cabeça. Levou as mãos ao rosto. — Não dá para negar que é imprudência
demais terem deixado você tanto tempo sem usar magia — e sem me dar oportunidade para
questionar, Eric emendou: — você vai sentir uns efeitos parecidos com ressaca. Não sei se faz
seu estilo ter ressaca, mas isso inclui dor de cabeça, náusea, ânsia de ...
—Você acha que sou o quê? Uma moça recatada e do lar? —perguntei enquanto massageava
minha cabeça e me ajeitava no banco do carona. Notei que ele havia retirado a habitual jaqueta.
—Se estiver se referindo ao uso de magia, você é sim. Agora sobre sua vida pessoal...
—Você está sangrando. Tem noção disso? — Sua blusa cinza, antes escondida pela jaqueta,
estava com uma mancha rubra na lateral. Abri minha bolsa, retirei uma toalha e a molhei com
minha garrafinha de água. Em câmera lenta porque a cada movimento eu me sentia capaz de
vomitar no tapete do carro.
—Sim, eu sei. O calor está irradiando e, agora, eles estão acessando as minhas últimas memórias.
— Socou o volante.
Sua reação me preocupou e assustou um pouco. Mas a minha mente ainda estava lerda, como se
meus neurônios estivessem pouco a pouco se reconectando. Inclinei meu corpo para perto do
dele e notei que ele fingiu não perceber minha aproximação, não até chegar um pouco para frente
e deitar o corpo sobre o volante, dando-me espaço. Levantei sua camisa com cautela, com medo
de machucá-lo e estremeci ao ver o furo em sua pele. Dava para notar que conforme o sangue
esvaía, o buraco ia cicatrizando em um pedaço. Repousei o pano sobre sua pele e o senti tremer
com o choque térmico, eu o ouvi suspirar discretamente de alívio.
—Suas últimas memórias são desagradáveis, Senhor Daren? —sussurrei e me surpreendi com
sua reação. Seu olhar estava repleto de sentimentos, os quais eu não conseguia identificar, apesar
de transbordarem. Era intenso, profundo, como um imã, puxando-me involuntariamente na
direção de seus segredos. Engoli em seco.
—Péssimas, elas incluem a herdeira salvando a minha vida mais de uma vez.
E, então, para variar um pouco, a raiva cegou minha razão. Apertei o pano molhado
involuntariamente enquanto digeria suas palavras tentando ser o mais racional possível, mas
racional não era algo que eu era muito capaz de ser.
—Você tem noção do que falou, né? Ou é algum efeito dos dardos no seu cérebro?
—Eles apenas acessam minhas memórias, as palavras ainda são minhas — respondeu sem pensar
duas vezes.
—Eu salvo a sua vida e é assim que me agradece?! — Joguei o pano em seu rosto, enfurecida,
sentindo ainda um pouco do efeito da tal ressaca de poder.
Eric agarrou o pano um pouco manchado de sangue e me encarou como se eu fosse louca. Talvez
eu fosse, não estava ligando para isso. Estava me importando com o fato de que estávamos juntos
fugindo de uns guardas e, de repente, eu era uma lembrança ruim.
—Estávamos salvando você, Kate —retrucou —, estávamos retirando você da igreja. Eu me
coloquei em risco para que você pudesse se salvar. — Afastou o corpo do volante, fazendo a
camisa voltar ao normal e me olhando nos olhos. —Nunca pense em me salvar, eu não preciso.
—Você é um babaca, idiota e imbecil — o rádio do carro ligou e eu senti uma pontada na testa
—; e tem até domingo para cobrar a droga do seu favor e sumir da minha vida.
—Como você pretende realizar meu favor se acabou de ligar o rádio do carro com raiva? Ainda
não sabe canalizar seus poderes. — Olhou para o teto do carro. — Você não sabe o quanto eu
gostaria de fazer o que me pediu, mas ainda não dá.
Sem mexer nem uma parte de seu corpo, as travas do carro foram desligadas, indicando que eu
estava liberada para sair, para seguir meu caminho pela faculdade. Estava sim. Mas só eu sabia o
quanto queria ficar e bater em Eric. Queria enchê-lo de tapas, e eu nem sabia quando havia me
tornado um ser tão agressivo. Imbecil, ingrato, infeliz. AH! Que ódio. Tudo bem. Saí do carro e
bati a porta com força. Seria capaz de abri-la novamente apenas pelo prazer de bater mais uma
vez, porém, seria ridículo demais. Ódio.
Capítulo 18

A raiva permaneceu em meu corpo por todo o caminho para casa. Não
importava que eu tivesse descido do ônibus alguns metros antes, a energia não tinha se dissipado
e, por isso, eu vinha fazendo feitiços involuntários pelo trajeto. Fiz as luzes de um automóvel se
apagarem, fiz um semáforo piscar, a janela da casa da Lola bater, e o portão da minha abrir.
Ninguém perceberia, eram efeitos colaterais que podiam ser facilmente explicados com razões
naturais.
Pelo menos para os moradores de Forecast. Já a minha mãe se assustou quando eu entrei em casa
e as luzes da sala começaram a piscar freneticamente.
—Que estranho! Está ruim o tempo? — Ela se empertigou na poltrona em que estava sentada,
tentando olhar para o céu pela janela mais próxima.
—Está. Péssimo. Um temporal. — Larguei as chaves na cômoda e subi as escadas batendo os
pés até me trancar no quarto.
Eu tinha milhões de perguntas a fazer ao Eric. Eu tinha um livro na bolsa sobre o qual eu não
sabia absolutamente nada. E ele tinha feito o favor de surtar! Sem mais, nem menos. Me joguei
na cama tentando relembrar o que eu tinha feito de errado. Não. Eu não tinha feito nada de
errado, eu o tinha salvo. E ele, em seu pedestal de orgulho e ego, não admitia ser defendido por
uma mulher. Só podia ser isso. A luminária de estrela pendurada na parede caiu. Ok. Eu
precisava virar a página.
Puxei o livro da bolsa e mais uma vez apreciei o Gricem. Não era meu sobrenome, tampouco de
alguém da minha família. A não ser que tivéssemos adotado o West para fugir de algum perigo.
Decidi virar a página sobre aquilo também afinal, ficar encarando o nome não faria a minha
mente descobrir a resposta. Segurei a capa e a puxei lentamente, ouvindo o barulho da primeira
folha colada a ela desgrudar-se um pouco. Era como se estivesse guardado há anos. Óbvio.
Realmente devia estar no mínimo há quatorze anos guardado, do contrário, não teria sido
entregue em nome da minha avó. Assim que repousei a capa sobre a minha cama, deixando o
livro aberto, algo diferente aconteceu. Uma frase começou a ser escrita em letra cursiva. A letra
da minha avó.
Não confie nela.
E assim como surgiu, sumiu. Rápido e discreto. Cheguei a duvidar de mim mesma. Teria sido
real? Não é que eu achasse impossível uma frase ser escrita num livro sem que alguém estivesse
de fato escrevendo afinal, já havia superado o susto com a magia na minha vida. Mas, como num
piscar de olhos, a mensagem apareceu. E, com mais um piscar, ela sumiu. Passei a mão pela
página, exatamente onde eu vislumbrei o aviso. Estava quente. Enfim, compreendi o recado:
bastava que eu guardasse aquele aviso na minha mente. Para minha avó, era suficiente. E para
mim também seria. Restava descobrir a quem ela se referia.
A avó do Téo? Foi a primeira pessoa que veio a minha cabeça. Não havia outra mulher na minha
vida que tivesse importância nessa jornada como bruxa. Bem, eu pensei na minha mãe, no
entanto, achei exagerado que minha própria avó falasse isso dela. Ainda mais sem me dar provas
suficientes. Não que eu não confiasse na minha avó, mas convenhamos que se fosse a minha
mãe, eu colocaria aquele aviso numa balança, né? Apesar da mentira da minha mãe, compreendia
as razões dela e estas razões eram exatamente me proteger. Por que não confiar nela?! Não. Não
podia ser a minha mãe. Restava-me Samantha. A moça da igreja estava morta.
Bufei. Sentei no chão e, então, como se um interruptor tivesse sido ligado no meu cérebro
comecei a criar teorias da conspiração.
A primeira tese era sobre o momento da gravação da mensagem. Se tinha sido feita há quatorze
anos, minha avó necessariamente se referia a alguém sabidamente do meu círculo mais próximo.
Isso me levava a Samantha. (A minha mãe também, mas eu prefiro ignorar). Se a mensagem
pudesse ser gravada em tempo real e outras viessem a aparecer, minha avó poderia estar se
referindo a moça da igreja. Poderia estar querendo me dizer que Mercedes comunicara nossa
localização, assim como a cigana fizera, e que depois simulou nos ajudar. Sua morte podia ser
uma queima de arquivo.
O problema desta última teoria era que Eric se importara com a morte de Mercedes e, sendo ela
culpada, me levaria a duvidar dele também. E por qual razão minha avó gastaria tempo gravando
uma mensagem sobre alguém que morrera?
Aliás, aqueles guardas tinham sido mandados por quem? Pelo tal homem que me procurava? E
qual a real função de Mercedes? Eric a conhecia e nitidamente oferecia favores sexuais em troca
de ter suas infrações ocultadas. O que levava Mercedes a um posto de importância, alguém que
relatava ilegalidades. Alguém de confiança para um outro alguém. Quem?
E, então, não sabia ao certo a razão, minha mente decidiu que minha avó realmente se referia a
Mercedes. Talvez pela esperança de que aquele livro fosse uma porta de comunicação entre nós,
de onde quer que ela estivesse. Talvez porque não queria supor que Samantha não tivesse sido
sua amiga como eu havia visto na viagem ao passado. Talvez porque eu quisesse contar com a
ajuda de Samantha para entender a minha vida. Havia muitos motivos por trás da minha decisão
e, para mim, era suficiente.
Tentei focar o resto da quinta e o começo da sexta nos meus estudos. Não, não foquei nos meus
estudos da faculdade. Foquei no herbário da minha avó e — eu sei, vai parecer idiota — nas
consultas sobre magia que fiz no Google. O livro que ela deixara com a mensagem enigmática
estava em branco e eu ainda não tinha descoberto sua real utilidade. Tinha feito ligações entre o
herbário e as minhas pesquisas e não estava tão diferente assim. Obviamente as informações
passadas pela minha avó eram mais completas, pois contavam com experiências de uso das
ervas.
Apenas não dormi sobre o notebook e sobre o herbário porque não queria correr o risco de minha
mãe invadir o quarto e sumir com o livro mais uma vez. Jane nem percebera meus estudos,
ocultos pelo livro de Direito.
Por volta das seis horas da noite, conforme o combinado, Téo estacionou seu carro na porta da
minha casa. E eu simplesmente saí. Sempre dizem que devemos oferecer aos outros o que
recebemos, no entanto, doía meu coração ser como os outros. Em regra, eu teria dado satisfações
a minha mãe, teria falado sobre o Téo. Mas eu precisava agir diferente, precisava que ela notasse
a minha mágoa. E, tentando magoá-la, eu apenas me magoava mais ainda. Porque a gente não
pode fugir da nossa essência. E a minha era ser sincera.
Téo estava encostado no carro, uma perna cruzada na frente da outra, totalmente relaxado. Mexia
em seu celular e, por isso, não notou de imediato quando eu saí de casa. Em compensação, eu
pude notar mais uma vez o quanto ele era belo. Téo era como uma brisa de verão. Refrescante,
alegre, inspirador. Fechei a porta e desci os degraus da varanda quando seus olhos de outono
subiram na minha direção. Senti meu sorriso, vi o dele.
Aproximei-me lentamente, tentando decidir sobre meus sentimentos. Eu não deveria estar
levando aquilo adiante, era a verdade. Mas eu não me sentia apaixonada. Ou com medo. Eu
apenas me sentia bem ao lado dele. E gostava da sensação. Por isso, assim que a distância entre
nós terminou, eu repousei minha mão em seu rosto e o beijei. Senti suas mãos tocarem minha
cintura e, apesar da minha blusa, seus dedos conseguiam tocar minha pele. Sutilmente.
—Não pretende me apresentar seu namorado, Kate West?
Minha mãe tinha notado a minha falta de informações. Num minuto, nos afastamos e Téo deu
um passo à frente, ajeitando sua jaqueta branca, e estendendo a mão para ela.
—Téo Dáman. Perdão não ter vindo falar com a senhora antes — respondeu, não parecendo nem
um pouco constrangido. Pelo contrário, Téo parecia muito bem com a situação.
—Dáman, você disse? — Minha mãe apertou sua mão de volta e, em seguida, cruzou os braços.
—Sim, senhora. —Ele pegou minha mão, entrelaçando nossos dedos. — Conhece minha
família?
—Minha mãe tinha uma colega com esse sobrenome.
Minha mãe estava me passando uma informação sobre a minha avó? De livre e espontânea
vontade?! Onde estava a minha mãe e o que tinham feito com ela?
—Sim, ela me contou sobre a Júlia. Uma coincidência eu e Kate termos nos conhecido — ele
acrescentou.
—Vocês já se conheciam — minha mãe revelou com a maior naturalidade. — Vocês brincavam
juntos na casa da Júlia. Como você não lembra, se era mais velho? A Kate tinha cinco anos, mas
você tinha nove.
—A senhora tem certeza?! — Téo indagou parecendo genuinamente surpreso. — Eu deveria
mesmo me recordar. Já tinha passado da primeira infância.
—Sim, você deveria. Ou se lembra e, por algum motivo, omitiu — minha mãe o acusou
tranquilamente, não parecendo nem um pouco preocupada que fosse prejudicar meu suposto
namoro.
E, então, eu compreendi que ela não estava me concedendo uma informação a troco de nada. Ela
deduziu que havia sido Téo quem confirmara a visita de minha avó na noite de sua morte e
tentava mostrar a possibilidade de ele ser um mentiroso. Tentava obter também informações a
respeito dele. Ela não era boba.
—Mãe, nós temos um compromisso e precisamos ir.— Apertei a mão de Téo e o puxei devagar
na direção do carro.
Téo olhou para mim e depois para ela, repetindo o movimento algumas vezes, parecendo pronto
para dar uma resposta ou se justificar para ela, no entanto, respeitou a minha decisão de
encerrarmos a discussão. Abriu a porta para mim, como um verdadeiro cavalheiro, despediu-se
dela e entrou no carro em seguida.
—Eu juro que contaria se lembrasse — confessou tão logo fechou a porta, restando apenas nós
dois. Sua voz estava carregada de um sentimento ruim, estranho, algo que ainda não tinha ouvido
de seus lábios.
—Sei disso, Téo. — Peguei sua mão sobre o volante e a abracei com a minha, apesar da
diferença gritante de tamanho. — Eu deveria estar do lado da minha mãe, sei que pode parecer
estranho para você, mas sabe que ela mentiu para mim. Por que não estaria mentindo mais uma
vez?! — Abaixei a cabeça, sentindo uma faca apunhalar meu coração a cada palavra cuspida
para a minha boca.
—Não, Kate. — Sua mão segurou meu queixo, levantando meu rosto para que nos olhássemos.
—Eu não mentiria para você, mas também não quero que duvide da sua mãe. Não por mim. Não
aumente sua mágoa com ela. Até porque eu acho que ela pode estar certa.—Acariciou meu rosto,
contudo, seus olhos ainda estavam distantes.
Seu celular tocou e interrompeu nosso momento. Interrompeu a pergunta sobre ele achar que
minha mãe podia estar certa sobre sua acusação. Como assim, Téo? Como assim?
Capítulo 19

Samantha havia ligado para saber se estava confirmado nosso jantar e, em


seguida, Téo ligou o carro, levando-nos para a verdadeira mansão na qual a avó dele morava. O
assistente de Medicina Legal me relatou que Samantha havia servido ao Exército, como
enfermeira, e por isso tinha conquistado um bom patrimônio. Entramos na garagem, que estava
vazia, e seguimos pela casa por uma pequena porta de ferro.
—Ela vai chegar em mais ou menos meia hora — avisou assim que fechou a porta e que pisamos
no piso acarpetado da casa dela. — Vem comigo.
Téo segurou minha mão com firmeza, puxando-me pelo espaço retangular. O carpete abafava os
nossos passos, em especial os da minha bota, o que era uma novidade para mim afinal, eu curtia
muito o som delas sobre o chão. Passamos por algumas portas e percebi que nos aproximávamos
da entrada habitual da casa, dava para ver uma enorme porta de madeira e um enfeite de parede
ao lado para que deixassem as chaves. Além de um sofisticado alarme. Mas Téo não foi naquele
direção, girando a maçaneta da última porta no corredor.
—O quarto que minha avó insiste em manter para mim — brincou, orgulhoso por ser o
queridinho de Samantha. — Ela nunca deixou que eu não me sentisse amado, mesmo depois de a
minha mãe ter abandonado o meu pai. Após ter me abandonado.—Larguei meu corpo contra o
portal, surpresa com sua confissão.
Quando alguém desabafa conosco uma perda ou uma dor não importa o que falemos ou façamos:
a cicatriz continuará lá. Assim, com o tempo, eu aprendi que um “sinto muito” ou um abraço
sincero era mais que suficiente. Porque o mais importante sobre o desabafo é que a pessoa
escolheu você para ouvir. Escolheu você para dividir aquele sentimento. E você só precisar estar
lá. Ser a pessoa para a qual ela decidiu contar.
—Sinto muito —soltei as palavras e entrei, fechando a porta em seguida. Téo levantou o rosto ao
ouvir o barulho, parecendo não esperar que eu fosse nos fechar lá dentro, mas em seguida voltou
a fuçar sua estante de livros.
—Não sinta. Eu já compreendi que ela não podia lidar com a carga emocional de ser minha mãe
— confessou enquanto puxava um livro, como se não estivéssemos realmente falando do
abandono da mãe dele.
Não tinha tido a oportunidade de conhecer aquele Téo, o que varria os sentimentos para debaixo
do tapete com maestria. Cada palavra pontuava a dor que ainda sentia pelo abandono e mandava
para longe toda a diplomacia de um rei que ele aparentava ser diariamente. Naquele momento,
Téo não parecia tranquilo, tampouco alegre; Téo não era mais uma brisa de verão. Ele era como
seus olhos. Uma folha de outono. Morta, caindo para dar lugar a algo mais belo.
—Ei... — Segurei seu braço quando começava a se afastar na direção da cama. — Não finja que
não foi nada.
Seu maxilar movimentava-se visivelmente. A força que fazia para não desabar ainda era grande.
Olhou para o teto, evitando me entregar seus reais sentimentos.
—Não me entenda mal. Eu quero o seu consolo, mas antes preciso mostrar algo.
Sentou-se na cama de casal coberta por um edredom bem fofo e branco e pediu que eu o
acompanhasse. Em seguida, colocou o livro sobre as minhas pernas e começou a folhear,
mostrando para mim que aquele era seu álbum de fotos quando tinha nove anos. A idade
mencionada pela minha mãe. E olhamos de cabo a rabo. Realmente não havia uma foto minha.
Tampouco da minha avó e menos ainda da casa dela.
Não conhecia tão bem os poderes de Téo para saber se ele seria capaz de à distância remover as
fotos do álbum; parecia algo difícil para alguém que estava conversando comigo durante todo o
trajeto. No entanto, quem era eu no mundo da magia para dizer o que era difícil ou fácil, não é
mesmo?
O fato de as fotos não estarem lá, também não indicavam uma mentira da minha mãe. Elas
podiam ter sido removidas por uma terceira pessoa e tanto minha mãe quanto Téo serem
inocentes naquela questão. Mas, para variar um pouco (só que não), por que alguém queria
ocultar nossa relação com a família dele? O que ganhariam com isso?
—Precisava mostrar a você que não estava mentindo — revelou enquanto eu fechava o álbum.
—Eu não precisava ver para acreditar em você, Téo — declarei, não em tom de reclamação.
Coloquei o álbum sobre a cama e, assim como ele fizera antes comigo, virei seu rosto na direção
do meu. — Não precisa esconder a sua mágoa. Eu estarei aqui, se precisar desabafar de novo.
Os olhos de outono estavam baixos, tristes, mas também intensos. Fixos nos meus lábios. Juro
que se eles estivessem falando, eu teria ouvido “estou apaixonado por você”, e meu coração
acelerou com a declaração silente. Tive medo de magoá-lo, de pisar em seu coração e abandoná-
lo como a mãe fizera. Mas eu fui egoísta. Pensei apenas em mim quando seu rosto se aproximou
pouco a pouco do meu. Mantive-me inerte quando sua boca dominou a minha com desejo ou
quando suas mãos seguraram meu pescoço com medo de que eu escapasse. Sua língua deslizou
sem pressa pelos meus lábios, provando-os, decorando-os, e então ele o mordeu antes de
aprofundar o beijo novamente.
Dane-se, foi o que meu corpo berrou nos meus ouvidos e, por isso, levei a outra mão até o rosto
dele. Deslizando pela linha do seu maxilar, subindo por sua pele macia e lisa até tocar seus
cabelos raspados que espetavam meus dedos de uma forma sedutora. Téo tirou a jaqueta branca
e, em seguida, tocou meu pescoço, descendo pelo meu ombro e afastando meu casaco, enquanto
deixava meus lábios para experimentar outros pontos do meu corpo. Perdi o equilíbrio e caí
sobre a cama, puxando-o comigo.
Os olhos de outono encararam os meus. Perdidos, admirados, desejosos. Seu corpo estava sobre
o meu, o peso dele mantido por seus braços musculosos e expostos pela ausência da jaqueta.
Senhor do céu, eu o queria.
—Você...—falou pausadamente enquanto tentava controlar sua respiração. — Eu não quero que
se arrependa, Kate.
Até aquele instante, eu não tinha percebido o quanto ele era enorme perto de mim. Estávamos a
milímetros um do outro, nossas respirações sendo compartilhadas, e o desejo de um era o do
outro. Mas sua pergunta me desconcertou.
Sempre evitei relacionamentos sérios e acabei mantendo o Gustavo por bons anos da minha vida,
apenas com rápidas saídas e zero de envolvimento. Gustavo era a definição completa de um
amigo o qual eu era capaz de beijar. Só isso. Nunca avançamos tanto quanto aquele momento
com Téo. Eu nunca nem dava oportunidade de ficarmos sozinhos. Não havia tesão suficiente da
minha parte. Da dele, eu não podia saber. E não é que estivesse me guardando, tampouco
preocupada em ceder tão rapidamente. O problema era o grau de envolvimento entre nós dois.
Eu e Téo estávamos compartilhando muitas coisas. Tinha medo de quem eu seria se me
entregasse a ele daquele jeito. Ainda conseguiria controlar meus sentimentos?
—Você está pensando demais... — ele concluiu e se deitou ao meu lado. — Confesso que o fato
de termos menos de meia hora estava pesando um pouco na minha consciência. Queria tê-la sem
pressa — sussurrou no meu ouvido e depositou um beijo em minha orelha.
Aninhei-me em seu corpo, satisfeita pela decisão sábia dele. Por não ter precisado nem mesmo
colocar em palavras a minha negação. Eu falaria, se necessário fosse, no entanto, o fato de ele ter
tanto controle e respeito durante a situação me deixou segura ao seu lado. Eu jamais teria
dividido uma cama com Gustavo.
Seus dedos emaranharam-se nos meus cabelos, acariciando delicadamente minha cabeça
enquanto mantínhamos o silêncio. Observei cada detalhe do seu quarto. A estante lotada de
livros de Medicina, Medicina Legal e de Direito, além de obras ficcionais. Um notebook sobre a
escrivaninha abaixo da janela. Uma ampulheta com areia laranja.
—Eu já disse que ainda não é o momento. Sabemos que ela foi rastreada esta semana e está
sendo espionada. Estão averiguando se é realmente ela. Você sabe disso. Estragaria todo o
plano. Não coloque a carroça na frente dos bois.
Confesso que estava num estado de relaxamento ao lado de Téo, porém, tinha certeza das
palavras que ouvi. Uma por uma. E, pelo repentino cessar do carinho em meus cabelos, Téo
também tinha ouvido. Diante do meu atual contexto de vida, tinha convicção de que falavam
sobre mim. Sim, eu sabia que o mundo não girava ao redor do meu umbigo, mas o termo
“espionada” não era comum quando não se está em um filme de ação ou em um livro policial.
Sentamos na cama.
—Você realmente tem certeza de que posso confiar na sua avó? Por favor, não é sobre ela. É
sobre mim.
—É a minha avó. —Ele se levantou e colocou uma das mãos na cabeça. — Como eu posso dar
uma resposta diferente de sim?! Mas, se acaso eu estiver errado, estarei do seu lado. Eu a
protegerei.
—Não me faça esse tipo de promessa. — Levantei da cama, aproximando-me dele. — Não quero
que coloque sua vida em risco pela minha. Jamais. Apenas seja sincero. Isso é o suficiente.
Lembre do seu povo.
Téo não respondeu, parecia pensar sobre a possibilidade de sua avó estar do lado errado da força.
Percebi que seus olhos estavam focados em um porta-retrato da família: ele, provavelmente o pai
e Samantha. E acabei concluindo que seu pensamento ia muito mais longe; descobrir aquilo
arruinaria a única coisa que ele conhecia como família.
—Isso você deve prometer — pedi, interrompendo seus possíveis pensamentos ruins. Sua testa
franziu na minha direção enquanto seus olhos se arregalavam.
—Não. Da minha boca você nunca ouvirá esse tipo de promessa. Não pretendo morrer agora —
pausou, sorrindo de maneira incrédula — e, aliás, espero que nossas vidas não estejam em jogo
desta forma. Mas, eu a trouxe aqui, e a tirarei em segurança. — Pegou seu celular sobre a cama e
abriu a porta.
—Tudo bem, isso significa que também arriscarei minha vida por você, se assim for necessário
— retruquei, entrelaçando meu braço ao dele.
—De onde você está tirando essas ideias tão perigosas?
Seguimos direto para a sala, onde Samantha estava sentada no sofá, segurando o celular nas
mãos. Olhava para o aparelho pensativa. E me assustei com sua aparência. Eu a tinha conhecido
na viagem ao passado, ou seja, tinha visto como Samantha era há quatorze anos, contudo, ela não
havia mudado. Talvez uma ruga ou outra, mas nada significativo. Seus cabelos eram loiros como
os de Téo, contudo, não pareciam ser pintados para esconder o grisalho. Seria coisa de bruxa?!
—Enfim, Kate West — Samantha levantou-se do sofá prontamente e descobri de quem Téo
havia herdado os olhos. — Estou feliz por ter sido tão difícil trazê-la, teria sido assim com a sua
avó também, e nós sempre soubemos o quanto eram parecidas.
A senhora, que devia ter uns setenta anos, aproximou-se de nós dois, e confesso que estava
tímida. Eu não sabia exatamente o que dizer para uma pessoa que se sentia íntima, mas com a
qual eu não estava me sentindo à vontade ainda. Ser educada era a solução mais prática.
—Prazer, Samantha. — Estendi a mão após ela depositar um beijo na cabeça de Téo.
—Bruxas não se cumprimentam com apertos de mão, meu bem — alertou. —Sua mão é um
condutor de energia e você não quer que as pessoas descubram sua força.
Sei que não estava duvidando de Eric, mas a explicação dela reforçava a razão dele sobre não
fazer leitura de mãos. Certo. Dica anotada. Puxei meu braço de volta, sem-graça por estar sempre
cometendo gafes que inundavam os outros com a minha incapacidade de ser bruxa, contudo,
feliz por ter sido com ela. Mesmo que minha avó supostamente tenha dito para não confiar em
Samantha ou até mesmo após aquela conversa, ela tinha sido amiga da minha avó em algum
momento.
—Também fico feliz por pularmos a parte na qual eu teria que explicar que você é uma bruxa.
Eu e sua avó sempre nos perguntamos como faríamos você descobrir — ela riu e começou a
andar na direção da mesa de jantar, para a qual Téo nos encaminhou também. — Mas a verdade
é que nada do que planejamos na vida dá certo. Somos incapazes de prever as linhas pelas quais
um destino seguirá.
—Então você queria me conhecer para me contar que sou bruxa? — perguntei, não conseguindo
esconder meu desapontamento. Téo puxou uma das oito cadeiras para mim e se sentou ao meu
lado.
—Não. — Samantha começou a destampar as bandejas de comida. —Fiz algo simples, espero
que goste. Sua avó falava que você adorava nhoque e de sobremesa uma torta de morangos com
chocolate.
Minha avó realmente sabia como me agradar — confessei, sentindo certa dor pela saudade, pelas
lembranças.
A verdade é que minha avó era a única pessoa no mundo com a qual eu podia contar para
qualquer coisa mesmo. Não existiam segredos, mentiras ou julgamentos. Éramos neta e avó, mas
também grandes amigas, apesar da minha pouca idade. Gostaria de tê-la comigo para dividir tudo
que vinha acontecendo.
—Já sei quem procurar quando quiser agradar você — Téo brincou, dando um sorriso largo e
afastando-me dos pensamentos tristes.
—O relacionamento de vocês não estava nas cartas — Samantha confessou enquanto se sentava
após pegar um pouco de nhoque. E nós dois nos assustamos com seu choque de realidade.
—Vó, a senhora acabou de falar que a vida não segue as linhas planejadas — Téo comentou de
um modo leve, não querendo gerar desconforto, apesar de ter sido firme.
—É verdade. O amor não segue as linhas planejadas. Às vezes ele se perde, pega atalhos, se
escora, se esconde, mas ele encontra. Encontra o destino dele, encontra o lar aonde ele se abriga.
—E por que não poderia sermos nós dois? — perguntei.
Eu sei, eu seria a última pessoa a perguntar sobre amor ou a insistir num relacionamento e,
apesar de ser estranho, o ponto da minha pergunta não era esse. Era que, talvez, de algum modo,
Samantha estivesse me dizendo que haveria um amor na minha vida. Um amor capaz de abrigar,
algo intenso e assustador.
—Não digo que não pode ser — ela levantou o rosto para me encarar, estava sentada bem a
nossa frente —, digo que as cartas dizem que não é.
—Eu traço o meu destino. — Téo repousou o garfo sobre a mesa.
—Isso não precisa se tornar uma briga, meu neto—Samantha serviu um pouco de vinho em sua
taça dourada —, estou apenas confusa sobre as suas escolhas. Quando pedi que procurasse a
Kate, você me perguntou quem era ela. Você já a conhecia.
Téo cruzou os braços, parecendo irritado dessa vez. Confesso que as emoções dele estavam tão
fortes que comecei a me sentir mera espectadora, adormecendo os meus sentimentos para não
tornar a situação ainda mais caótica.
—Se eu a conhecesse, por que eu perguntaria, vó? Você está me deixando confuso. — Téo se
levantou e levou as mãos à cabeça, como se sentisse dor. Passou a andar de um lado para o outro.
—Consegue observar como está nervoso? Você sabe que não estou mentindo. Há uns cinco
meses, você chegou aqui com um anel. E me disse: “estou apaixonado, vó, e vou pedi-la em
casamento”. Duas semanas depois, você retornou e me entregou o anel, dizendo: “acho que
levei seu anel de casamento por engano nas minhas coisas”. Desde lá, eu venho tentando
descobrir o que aconteceu.
Capítulo 20

Estava nítido que aquela conversa em família não estava no script de


Samantha ao me chamar para um jantar. Tanto ela quanto Téo estavam transbordando emoções
diferentes. Ela, apreensiva; ele, surtado. Téo afastara-se de nós na direção da janela da sala e
estava lá parado há mais ou menos cinco minutos. A cabeça recostada no vidro, ora olhando para
o céu, ora para o chão. Eu queria abraçá-lo, mas, se ele não precisasse ficar sozinho, não teria se
afastado.
Téo tinha uma noiva há cinco meses. E há cinco meses ele não a tinha mais também. E,
aparentemente, não se recordava disso. Conseguia imaginar o que se passava dentro dele naquele
instante, contudo, eu jamais conseguiria sentir o que ele sentia.
—Foi a igreja por esses dias? — Samantha rompeu o silêncio, falando baixo apenas para que eu
ouvisse.
—Sim, cons...
—Fico feliz que continue rezando — interrompeu-me apressadamente.
—Sim, não pretendo abandonar — concordei, e ela sorriu satisfeita por eu ter compreendido seu
recado.
—Vou lhe mostrar algo.
Samantha se afastou até uma estante cheia de livros sem menções na lombada. Não dava para
saber do que se tratavam até que se visse a capa e, para mim, isso não seria possível. Suas
lombadas eram de cores diferentes, algumas fazendo lembrar edições antigas e clássicas. Ela
puxou um na terceira prateleira e, em seguida, sentou-se à minha frente mais uma vez. Verde
escuro, com um nome bordado em tom de limão. Exatamente igual ao que eu encontrara na
igreja, no entanto, na frente estava o nome da minha avó. Com o mesmo sobrenome estranho.
—Por que esse sobrenome? — cuspi a pergunta, sentindo a necessidade de gritar para Samantha
inúmeros questionamentos.
—Vamos com calma — ela deu um sorriso agradável, fazendo eu me sentir acolhida —, este é
um grimório. O livro das sombras que pertencia a sua avó. Nele as bruxas guardam feitiços,
nomes de ervas, experiências mágicas, pedras, rituais, resumindo: o que você julgar importante
na sua jornada como bruxa. O que funciona para você não funciona para mim, por exemplo. E
isso é muito importante; que você se conheça. Bruxas estão ligadas à natureza, ao belo, a
essência, e, para sentir sua energia e canalizá-la, você precisa se aceitar em todas as suas
imperfeições.
Não parecia ser tão fácil ser uma bruxa. Não era como eu via nas séries, onde as protagonistas de
repente começavam a levitar objetos e soltar bolas de fogo. Quantos anos eu levaria até ser uma
bruxa em sua totalidade? Afinal, eu não me conhecia. Eu vivia varrendo meus sentimentos para
debaixo do tapete. Não me permitia sentir nada intenso. E para mim isso era um personagem,
uma mentira. Quantas vezes pedi conselhos as minhas amigas sobre como lidar com sentimentos
estranhos e diferentes? Conselhos sobre como matá-los? Samantha colocou a mão sobre a minha
e senti um choque.
—Não era para eu ter feito isso, mas você me pareceu muito desanimada. — Afastou a mão da
minha e a colocou sobre o grimório da minha avó. — Quer me contar seus pensamentos?
—Estou confusa sobre como lidar com as minhas imperfeições. Eu tenho medo de... — pausei,
envergonhada pela confissão — me apaixonar. De me entregar. E eu fujo toda vez que as coisas
ficam intensas... Não quero que me entenda mal. A senhora é avó do Téo. Eu não estou
brincando com ele, eu apenas me afasto quando sinto que não posso controlar. Isso seria uma
imperfeição? Posso continuar a ser assim?
Samantha suspirou e relaxou contra a cadeira.
—Sinto falta de ter a sua idade. Meu bem, você pode continuar a ser assim. — Soltei o ar que
vinha prendendo há uns quinze dias. — Porque, como eu disse, vocês dois não são o futuro um
do outro. E é justamente por isso que você consegue evitar, consegue ser assim. Quando você
estiver com a pessoa certa, será impossível fugir e estará liberta e pronta para ser uma bruxa por
completo.
É aquela coisa. Todo bom discurso começa lhe dando a razão, para depois tirá-la sem chance de
argumentação. Como quando você puxa a toalha da mesa e derruba todas as taças. Eu era as
taças. E talvez até mesmo a toalha. Naquele momento, eu queria fugir para a janela da sala como
Téo fizera. Contudo, o ranger das madeiras sob o carpete anunciavam o seu regresso.
—Você precisa criar uma oração para proteger seu grimório. — Téo colocou as mãos atrás da
minha cadeira, de modo que eu podia sentir seus dedos tocando sutilmente os meus ombros. —
Assim, somente aqueles que querem o seu bem poderão abri-lo. Ou poderá restringir para que
somente você o abra. Não há uma regra. Você precisa se conectar com ele e deixar que as
palavras venham.
—Posso procurá-la, caso eu tenha alguma dúvida? — indaguei ansiosa para que ela dissesse sim,
e um tanto envergonhada por incomodar.
—Infelizmente isso não será possível. —Samantha se levantou e começou a caminhar na direção
da porta de entrada da casa. Cheguei a movimentar os lábios, confusa sobre seus motivos para
me negar ajuda, mas Téo precisava mais da avó.
—Vó, por que você não me contou isso antes?—Senti a pressão que suas mãos faziam sobre a
cadeira. — Por que não me alertou? Por que me deixou viver numa mentira por cinco meses? —
Téo não estava exatamente brigando com a avó, era perceptível em sua voz a mágoa e o medo
pela situação. Era nítido o amor incondicional de um pelo outro e, por isso, não havia espaço
para o ódio.
—Téo, quando você retornou e me falou sobre o anel, eu pensei que tivesse sofrido algum
acidente e perdido sua memória recente. E fui investigar. Quando você não se recordou da Kate,
eu tive certeza de que alguém havia apagado algumas memórias suas — ela parecia pensar sobre
suas palavras, sobre quais usaria para explicar a situação sem margens para dúvidas. — Mas
você é o líder dos peregrinos, Téo. Sua posição política o torna alvo de muitos inimigos. Eu
precisava ser discreta. Não tinha coragem de colocá-lo em tamanho risco. E quando vocês
demonstraram estar juntos hoje, eu entendi. Consegue imaginar quantas pessoas teriam interesse
num casamento seu com a Kate? Interesse em sumir com qualquer pessoa que desejasse
recuperar a memória da sua noiva? Jogue melhor que seus inimigos, Téo. Mostre porque você é
o líder e se mantenha vivo.
Que droga. Casamento. Líder. Política. Ok. O negócio era pior do que eu vinha imaginando. Eu
não era simplesmente uma bruxa, eu parecia uma peça de xadrez sobre a qual o povo do Téo
possuía grande interesse. Qual interesse? Eu seria capaz de me casar com ele?!
—Eu sei, não está tudo bem — Téo sussurrou enquanto sua avó voltava a caminhar na direção da
porta. —Você tinha razão sobre termos evitado esse jantar. — Ele segurou meu braço e me
puxou vagarosamente na direção do seu corpo.
—Não. Eu estava errada — confessei, escondendo meu rosto em sua blusa, agarrando-me a ele
de um jeito que nem eu mesma conhecia. — Não poderíamos ter evitado isso. São as verdades, e
elas mais cedo ou mais tarde emergiriam dos nossos tapetes, Téo.
Ele apenas balançou a cabeça afirmativamente e me abraçou com mais força, repousando sua
cabeça no meu ombro. Havia algo entre nós dois. Como um vaso quando quebra e você tenta
colar os cacos, mas eles não se encaixam novamente. Não como antes. E alguém vai notar que se
quebrou, e não terá conserto. E, talvez, você possa continuar usando, se aceitá-lo quebrado.
Apenas assim.
Não tinha parado para pensar nas razões de Samantha para se aproximar da porta de entrada até
que uma mulher apareceu no meu campo de visão. Seu rosto era belíssimo. Emoldurado por uma
trança longa de cabelos castanhos. Ela parecia mais nova do que eu, no entanto, pelo seu modo
de andar e sua expressão séria, isso me pareceu impossível.
—Kate, agora você vai conhecer a sua herança. Essa é Maya Gricem, a primeira Presidente da
Corte da Magia e da Ordem.
Capítulo 21

Maya Gricem agradeceu a hospitalidade de Samantha e, em seguida,


fomos para a sala de estar, onde cada um escolheu seu assento como lhe agradava. As duas se
sentaram em duas poltronas separadas apenas por uma mesinha com um vaso de flores
vermelhas, bem perto da lareira. Eu e Téo nos sentamos no sofá, lado a lado, no entanto, sem
toques.
O sobrenome dela martelava na minha cabeça, passando-me uma razão clara para que o meu
grimório e o de minha avó tivessem grafado esse nome em suas capas. Nós éramos herdeiras da
Maya de alguma forma.
—Seria possível que nós duas ficássemos a sós? — Maya repousou as mãos jovens e delicadas
sobre a saia de seu longo vestido cinza.
—Não há nada que você vá me falar que eu não vá repassar ao Téo — respondi, incomodada por
ela ter acabado de aparecer e pedir privacidade. Além de um ódio acumulado por ter possuído a
minha amiga.
—São assuntos confidenciais, senhorita, que dizem respeito ao governo do nosso povo e que não
devem ser compartilhados de maneira leviana. — Os lábios de Maya formaram uma linha fina,
não havia qualquer sentimento perceptível nela.
—Leviana?! — Cruzei os braços, fuzilando-a com o olhar. Téo estendeu o braço e tocou meu
joelho, levantando-se em seguida.
—Sou o líder dos peregrinos, Kate. É justo que ela não queira confidenciar assuntos políticos na
minha presença. —Inclinou-se na minha direção, ocupando meu campo de visão de modo que
não via Maya naquele instante e, então, aproximou seus lábios do meu ouvido. — Estarei no meu
quarto. — E beijou meu rosto delicadamente.
Téo e Samantha se retiraram calmamente, cada um em uma direção da casa. Esperava que eles
conversassem sobre a perda de memória, contudo, esse não parecia ser o desejo dos dois.
—Sinto que ainda está com raiva pelo ocorrido com a sua amiga. Eu sinto muito. São
pouquíssimos os dias durante o mês nos quais consigo usar meu corpo novamente. E exatamente
por este motivo, minha visita aqui será breve.
Como uma boa dama da sociedade, Maya manteve sua postura ereta, seu rosto levemente
levantado, e as mãos repousadas sobre o vestido. Quantas aulas de etiqueta ela devia ter feito
para toda aquela postura forçada e nada natural? Agradeci mentalmente por esses costumes terem
sido deixados de lado.
—A senhorita precisa ocupar seu cargo como Presidente da CORTE DA MAGIA E DA
ORDEM. — Seus olhos verdes encaravam-me sem piscar. E havia algo por trás deles. Algo que
ela tentava manter oculto. Talvez os seus sentimentos, tão bem escondidos por aquele
personagem elegante.
—Eu precisarei ser como você? Ou os costumes da presidência já se adequaram aos dias atuais?
— Inclinei meu corpo sobre os joelhos, apoiando meus braços nas pernas.
—Confesso estar desapontada pela senhorita estar mais preocupada com regras de etiqueta do
que com a presidência do seu povo — Maya, pela primeira vez, pareceu demonstrar um
sentimento: soberba. Dava para notar em seu modo de falar como ela se sentia superior por ter
me rebaixado a alguém fútil. Como se fútil fosse um termo pejorativo.
—Lamento que tenha interpretado errado. Mas eu me referia ao fato de não poder expressar
emoções.
—Bem, senhorita, um governante deve se pautar em leis previamente estabelecidas e, para isso,
emoções são desnecessárias. Além deste fator, o povo precisa de um presidente com estabilidade
emocional; alguém sujeito a rompantes assusta. — Maya se levantou e a saia pesada de seu
vestido fez barulho. Caminhou até a lareira e fitou as chamas. — Contudo, não vejo necessidade
que se paute na minha postura para doutrinar a sua. Um mínimo de elegância é o suficiente, e a
senhorita terá alguém para treiná-la.
—Me decepciona o fato de ter alguém para treinar a minha postura como presidente e, até o
momento, eu não ter recebido ninguém interessado em treinar meus supostos poderes. —
Levantei-me também, numa intenção ainda que aparentemente inútil, de enfrentar Maya.
—Não entendo as razões para a senhorita estar agindo desta maneira. Cheia de raiva e ironia. —
Maya se virou na minha direção, continuando a falar pausadamente, como se as palavras fossem
seu objeto de trabalho e ela as soubesse usar com profissionalismo. — Eu não sou o inimigo.
Estamos do mesmo lado na busca por justiça e por melhorias para nosso povo bruxo. Eles
precisam de você, como precisaram de mim e da sua avó.
Maya uniu as mãos à frente do corpo, aguardando pela minha resposta e, para minha surpresa,
notei um vislumbre de ansiedade. A Presidente parecia desejar a minha resposta, a minha
anuência, como se dependesse daquilo para viver. Como ela estava morta, eu precisava pensar
em outra equação. Como se dependesse daquilo para permanecer no mundo dos vivos. Não. O
nosso bem maior é a vida ou a vida de alguém, então, quais motivos Maya teria para vir me pedir
pessoalmente que assumisse a presidência?!
—O que você ganha com isso? Apenas saciar o seu desejo de justiça e melhorias para o povo
bruxo? — Encarei-a com curiosidade, não conseguindo esconder que eu tinha supostamente
descoberto seu calcanhar de Aquiles.
—Eu não ganho nada. Estou aqui apenas cumprindo minha função como a primeira Presidente
da Corte da Magia e da Ordem. Precisei fazer isto com todas as herdeiras desde a minha partida.
É apenas uma burocracia. — Maya manteve seus olhos nos meus. Obviamente ela havia
estudado linguagem corporal também. Era mentira. Se fosse apenas uma burocracia, ela não
estaria na expectativa. A não ser que ela fosse a louca das burocracias.
—Eu aceito conhecer mais sobre a minha herança, sobre as leis, sobre a presidência e, em
seguida, tomar uma decisão sobre ocupar ou não o cargo. — Comecei a caminhar na direção da
porta, esperando que ela entendesse o recado sobre nossa conversa ter terminado. Maya não era
alguém de confiança, ela tinha acabado de mentir, tinha possuído minha amiga. Então, não era a
ela que eu faria as trocentas perguntas em minha mente.
—Ótimo, senhorita. Mandarei alguém a sua casa o mais rápido possível para lhe auxiliar com os
poderes, ensinamentos e as regras. Assim como responder as dúvidas que surgirem. No entanto,
temos menos de sete meses para que aceite sua herança.
—E se eu não aceitar?
—A senhorita morrerá ao completar vinte e dois anos. — Maya alcançou a distância que eu já
havia percorrido e me ultrapassou no instante em que congelei meus próprios passos. Abriu a
porta. — A sua identidade como herdeira da Corte não deve ser revelada a ninguém, exceto
aqueles que sejam capazes de morrer para proteger o segredo. Tenha uma boa noite, senhorita
West.
Capítulo 22

Sabe quando você recebe um diagnóstico de uma doença terminal? E o


médico diz que você tem um número limitado de meses ou anos? Pois bem. Eu me sentia o
paciente, e Maya a médica. Ela tinha acabado de alertar com todas as letras que eu tinha apenas
sete meses, caso não aceitasse a herança. Eu evaporaria? Ela estalaria seus dedos e eu sumiria do
mundo? Seria caçada até a morte? Seria amaldiçoada? A única coisa que não era novidade para
mim: a cada vez que eu fuçava mais a minha história, mais questionamentos surgiam. Como uma
boneca russa que você nunca para de abrir.
Após a saída de Maya, despedi-me de Samantha, e Téo avisou a avó que me levaria em casa e
retornaria em seguida. Eu não contaria sobre o aviso da Presidente. Na verdade, eu não contaria a
ninguém. Não queria me sentir na obrigação de aceitar a herança ao ouvir as pessoas me dizerem
que era a minha única opção. Não queria que elas se preocupassem comigo ou que vivessem
aqueles sete meses como se fossem os últimos. Queria que, para elas, a vida continuasse igual.
Que fizessem o que quisessem sem pautar suas atitudes na possível despedida.
A minha cabeça estava lotada de medos e dúvidas. A de Téo, tão quanto. Tinha certeza de que
ele não parava de pensar em suas memórias e para onde elas tinham ido. E eu não o culpava e
nem a mim pelo silêncio no carro. Nossas mentes estavam trabalhando a mil por hora, afogadas
num mar de pensamentos bons e ruins. Ele desligou o carro após estacionar na frente da minha
casa. Sinal de que o silêncio estava prestes a ser rompido.
—Eu, Téo Dáman, não sei por onde começar — falou alto, como se estivesse gritando consigo
mesmo. — A esta altura, eu imagino que saiba que não me aproximaria de você se soubesse da
minha noiva — bufou.
—Téo... Claro que sei. Qualquer pessoa que conheça você um pouco saberia disso — respondi,
alcançando sua mão tensa sobre a perna e entrelaçando meus dedos nos dele. Não sabia bem se
podia tocá-lo afinal, ele era comprometido.
—Não que eu não fosse me interessar por você, Kate. Digo mais pelos meus princípios. —
Olhou nossas mãos juntas e, em seguida, me olhou de lado até que finalmente conseguiu manter
seu rosto na direção do meu. —Sinto que me interessaria por você umas mil vezes... —Notei
suas pálpebras baixas, fracas, começando a perder uma disputa para a tristeza que ganhava
espaço para marejar seus olhos.
Aquela situação, dentro do carro dele, era algo atípico na minha vida. Estava acostumada a
experimentar sensações profundas com a minha família, com as minhas amigas, no entanto,
naqueles instantes, eu desejava arrancar a dor de seu coração. A dor que parecia transformar seu
outono em inverno. Téo não parecia merecer aquilo. Como eu podia aceitar tamanha injustiça?!
—Sinto muito que não se lembre dela — sussurrei, sem saber ao certo se eu realmente sentia
muito.
Tinha certeza de que me sentia mal por ele estar sofrendo, contudo, apesar de não ter pensado em
nós dois como um verdadeiro casal, o fato de ele amar outra pessoa me incomodava. Não era
como se eu soubesse explicar; talvez eu tenha me deixado levar por ele mais do que imaginava.
Talvez fosse apenas o fato de nunca ter passado por uma situação parecida.
—Eu também sinto muito. Por não saber quem ela é, por não saber se está me esperando, se teve
suas memórias removidas também... Muitas coisas. Mas ter me envolvido com você não é uma
delas. — Téo soltou minha mão, tirou o cinto enquanto eu observava cada movimento, e, então,
repousou suas mãos no meu rosto, aproximando-se de mim. Como sempre, havia algo em seu
toque, algo capaz de me relaxar, de me trazer paz. Sentia vontade de fechar meus olhos. — O
problema, Kate, é que ninguém vai tirar você da minha memória novamente. Eu terei você
sempre comigo. Posso pegar um pouco da sua magia?
Eu deveria dizer não, deveria ter me lembrado das palavras de Eric ou de Samantha sobre o
compartilhamento. Mas eu estava quase num estado de hipnose quando balancei a cabeça
afirmativamente. A paz foi sugada da minha alma no segundo em que Téo retirou suas mãos do
meu rosto. Despertei daquele momento de tranquilidade para acompanhar seus movimentos. Ele
agarrou uma caneta perto do freio de mão e eu vi. Vi uma luz percorrer seus dedos na direção da
caneta, até sua ponta, de modo que ela parecia uma pequena chama.
Sem mais, nem menos, Téo começou a desenhar sobre seu pulso com aquela pequena chama. Ele
estava colocando a minha magia em seu corpo, gravando-a em sua pele, e meu coração acelerou
de medo. O que poderia acontecer? Podia imaginar Eric aparecendo do lado da janela e
esbravejando sobre o quanto eu era imprudente. Pouco a pouco, o desenho de uma âncora surgia
em sua pele outrora lisa. Téo não pareceu sentir qualquer tipo de dor, ao contrário, a minha
magia parecia encher o peito dele.
—A partir de hoje, independentemente das minhas memórias a serem resgatadas, os nossos
momentos jamais serão esquecidos. — Guardou a caneta novamente. — Não importa o tempo
que tenham durado ou o tempo que venham a durar; foi muito importante para mim conhecer
você. E, agora, infelizmente, vem a parte em que eu preciso me afastar, que eu preciso dar um
tempo nos nossos momentos em respeito ao meu passado.
Não importava quantas palavras ele usasse; todas significariam uma mesma coisa: estávamos nos
despedindo sem uma data de reencontro. E despedidas não eram o meu forte, pelo contrário, elas
eram o meu calcanhar de Aquiles. Assim, como uma pessoa que vê o monstro que assombra seus
sonhos se materializar, eu fui atingida. As lágrimas começaram a rolar pelo meu rosto
copiosamente e liberaram as dele, mais contidas.
Estava lidando com o meu medo, de uma forma mais branda, sem nenhum preparo emocional.
Sentir que Téo partiria da minha vida e que eu não sentiria mais as sensações que ele despertava
em mim era estranho e vazio. Eu não poderia mais tocá-lo, não poderia mais ter meus
pensamentos invadidos, nem viajar sem um tapete mágico. Ali, naquele momento, estávamos
traçando um infinito de nãos.
—Você precisa reencontrá-la, precisa recuperar suas memórias. — Acariciei seu rosto,
deslizando meus dedos calmamente sobre suas lágrimas, limpando-as.—Você precisa disso para
decidir seu futuro. Eu sentirei a sua falta... — Fechei os olhos para não chorar mais.
—Eu não queria ir. Não sem você. Podíamos descobrir juntos, eu podia compartilhar meus
conhecimentos com você, mas como líder dos peregrinos não posso levar uma bruxa para o
nosso lar. Menos ainda a herdeira. — Fechou os olhos por alguns segundos, respirando fundo e
tentando controlar suas lágrimas.
—Seria um tanto constrangedor encontrar a sua noiva com você — comentei, quebrando o clima
de tristeza no carro. —Você precisa fazer isso, Téo. — Segurei sua nuca com firmeza, sentindo
os fiapos de seu cabelo espetarem a palma da minha mão. —Eu estarei aqui para o que precisar.
Não é um fim, é apenas uma pausa. E, por mais curiosa que eu esteja sobre seu povo, posso
sempre pesquisar no google. — Sua mão tocou o meu rosto, acariciando minha boca enquanto
ele abria um sorriso, aquele sorriso que combinava com ele, que iluminava seu rosto.
—Vou guardar essas palavras comigo. Antes de darmos uma pausa, eu poderia ter mais um
beijo?
Puxei seu rosto na direção do meu com rapidez, ciente de que eu queria aquele beijo tanto quanto
ele. Qual a chance de Téo decidir que era apaixonado por mim quando encontrasse sua noiva?
Ninguém decide se casar sem amor, espero eu. E amor não podia competir com paixão. Ela era o
amor; eu, a paixão. Sua boca dominou a minha com intensidade, seu corpo já inclinado sobre o
meu. Sua mão descia pelo meu pescoço, pelo meu ombro, enquanto eu acariciava seu rosto,
pensando em decorar cada detalhe do homem pelo qual eu cheguei mais perto de ter um
envolvimento sério. Sua outra mão segurou minha cintura, apoiando-se em mim, enquanto ele se
aproximava mais e mais. Podia já sentir seu peito encostado ao meu. Téo diminuiu a intensidade
e se afastou.
—Eu volto.
Seus olhos de outono diziam que sim, que ele realmente voltaria. Eu podia ver o sim pintado ali.
Podia ver a certeza em seus lábios, ainda abertos, recuperando o fôlego. Mas Téo não era dono
do futuro, apesar de viajar no tempo. E o meu coração dizia que aquele beijo não se repetiria.
Talvez fosse o meu cérebro me protegendo. Abri a porta e saí. Não podia olhar para trás.
Jane não estaria na minha casa naquele dia. Era sexta-feira e ela ia ficar com os pais aos finais de
semana. Eu não queria ficar sozinha com meus pensamentos. Dei meia volta e comecei a
caminhar para a casa de Lola. Téo deu ré com o carro e me acompanhou até que ela abrisse a
porta e me levasse para dentro, para longe da visão dele. Para sempre?!
Henrique estava sentado na sala, com alguns livros de Medicina espalhados sobre a mesa de
jantar. E eu estava com a maquiagem borrada das lágrimas. Assim que entrei, ele se levantou
num pulo, pronto para me defender, como sempre. O problema é que não havia um monstro a ser
derrotado, não havia nada além da vida seguindo seu rumo. Apenas acenei que estava tudo bem,
e Lola me carregou para o porão. Sim, ela tinha feito o local de quarto, assim podia ouvir música
até mais tarde e treinar suas coreografias.
Sentei na cama de casal e joguei minha bolsa no chão. Eu não conseguia falar, a despedida tinha
gerado gatilhos em mim. Olhava para ela e já imaginava a despedida dali a sete meses.
Imaginava que seria mais triste ainda do que havia sido o término com Téo. Lola estendeu um
copo de água para mim.
—Não sei exatamente por onde começar. A minha vida está de cabeça para baixo. O Téo acabou
de terminar comigo, e eu nem sabia que tínhamos realmente começado.
—Ele não te levou para conhecer a avó? Como isso pode ter dado tão errado? — Lola ligou o
rádio bem baixinho com uma música animada, tentando melhorar meu humor. Era uma canção
que estávamos acostumadas a dançar e que me traria boas lembranças, ela sabia disso.
—Porque ele descobriu que perdeu a memória e que estava prestes a se casar.
Lola abriu a boca em espanto e ficou imóvel. Seus olhos amendoados apenas passeavam de um
lado para o outro, como se ela estivesse tentando assimilar a novidade antes de emitir qualquer
opinião.
—Haveria a hipótese de ele ter mentido sobre essa perda de memória? E ter sido um cafajeste
desde o início? — Ela cruzou os braços enquanto seu rosto se franzia e ela formava um bico,
parecendo chateada.
—Ele não é esse tipo de cara — defendi e coloquei o copo já vazio sobre a mesinha de cabeceira.
—É. Você tá apaixonada, e eu devo ter um desconto porque nunca precisei consolar minha
melhor amiga por causa de um cara. Você não me ensinou a fazer isso. —Lola se sentou ao meu
lado e passou o braço ao redor do meu ombro. — Ele terminou para encontrar a noiva?
—Sim, ele precisa descobrir quem ela é. O que aconteceu. Não podíamos ficar juntos assim. —
Relaxei a cabeça contra seu corpo. — Eu gostaria de ter pedido que ele não fosse, mas eu estaria
sendo muito egoísta.
—Não acho. Você apenas estaria sendo sincera, ué. Mas eu entendo a sua decisão, acho que faria
o mesmo. Vocês não podiam ficar juntos com uma noiva parando entre vocês e podendo
aparecer a qualquer momento.—Relaxou a cabeça contra a minha. — Mas eu não iria se fosse
ele.
—Oi?! — Virei meu rosto para encará-la.
—Sei lá. Não tem como ele simplesmente colocar os sentimentos por você de lado. O máximo
que o Téo vai fazer é descobrir a verdade, depois disso eu acho desnecessário. Só vai causar mais
sofrimento. — Ela se levantou. — Pensa comigo. Ele não a ama mais. E vai encontrá-la para
dizer isso? Oi, você é a minha noiva, mas eu queria terminar porque gosto de outra?! Devia
deixar a moça quieta. Imagina o que ela já não sofreu por ele ter sumido?
Não tinha pensado por esse viés e deduzia que Téo também não, apesar de ele ser líder de um
povo, o que deveria fazer dele um estrategista, alguém capaz de pensar em inúmeras
possibilidades. E fazia todo sentido, ao mesmo tempo que não fazia. A decisão dele me parecia
muito sensata. Quem em seu lugar não iria querer descobrir sobre sua noiva? Descobrir quem
tirou suas memórias? E como estava a noiva atualmente. No entanto, encontrá-la de fato somente
causaria mais dor.
—Eu não acho que ele esteja fazendo por mal — comentei, ainda pensando sobre as
consequências daquela busca.
—Isso eu não posso saber, não o conheço. Mas tenho certeza de que ele vai voltar para você. —
A música no rádio acabou e Lola caminhou até lá para colocar outra. — A questão é: você sabe
que não o quer como ele a quer. Você aceitaria ser noiva dele?—Virou para me encarar após
colocar outra música que amávamos.
—Nós acabamos de nos conhecer...—pausei, procurando as palavras. Havia muitas justificativas
na minha mente. — Eu sou muito nova para casar, nem terminei a faculdade...
E então o aviso de Maya piscou a minha frente. Sete meses para que a minha vida mudasse
bruscamente. Sete meses para que eu decidisse viver ou morrer e o quanto aquela decisão
poderia ofender meus princípios. Eu não me venderia para agradar Maya, para ser presidente,
pela minha vida. E, assim, eu não me achei mais tão nova para casar. E percebi que eu era o meu
pior medo. A pessoa que se apaixonasse por mim sofreria caso eu morresse, assim como eu tinha
medo de sofrer caso amasse alguém que viesse a morrer antes de mim.
—Você está cheia de justificativas e pensamentos, Kate. — Lola estalou a língua e suspirou em
seguida. — Por um momento, eu pensei que fosse ele, amiga. Vocês ficavam lindos juntos. Mas
não é. Você só tá apaixonada, talvez apenas pela companhia dele. Se você o amasse, não haveria
um motivo sequer para não ser noiva dele. E a outra aceitou. Você precisa deixá-lo ir.
Lola abaixou e segurou as minhas mãos, olhando-me com determinação. Tinha sorte por tê-la.
As pessoas tinham uma falsa impressão de que amigos devem nos apoiar em tudo, até mesmo
quando estamos errados. Amigos devem abrir nossos olhos para quando estamos fazendo
besteira. E Lola estava garantindo que eu fosse uma boa pessoa. Ela tinha razão. Eu estava
apegada ao Téo e ao que ele representava na minha vida. Tinha até mais ciência disso do que ela
afinal, Lola não sabia do lance da bruxaria. E apego não é amor. Apesar de desejar estar com ele,
eu não deveria fazer isso.
Toc, toc.
O rosto de Henrique surgiu no último degrau da escada, entre a pequena fresta da porta.
—Estou indo atender um chamado lá na parte rica da cidade. Vítima com queimaduras. Tudo
certo aqui? — Ele me olhou com atenção e depois para a irmã.
—Sim. Tome cuidado. — Lola mandou um beijo para o irmão, e Henrique saiu.
A parte rica da cidade era onde Téo morava. Nós a chamávamos assim pelas mansões que
existiam lá, fato comprovado por mim naquela noite. Um sentimento ruim tomou conta do meu
coração. Será que Téo estava bem? Não. Eu só estava arranjando um pretexto para ligar para ele.
Eu precisava deixá-lo. Ignorei e deitei na cama, sentindo a exaustão me dominar.
Capítulo 23

Passei a mão no rosto para limpar a água que escorria pela minha
bochecha para o meu ouvido. De novo. De novo. Que saco. Desde quando tinha goteira no porão
da Lola?! E pensando nisso minha mente despertou. Não havia a possibilidade de ter goteira num
porão, até porque o banheiro nem ficava sobre nós na planta da casa. Abri os olhos.
Oi?!
Se não fossem pelos vagalumes pairando ao meu redor, o local estaria um breu. Aliás, aqueles
bichinhos tornavam a noite encantadora. A água pingou novamente sobre a minha bochecha.
Olhei para cima. E me sentei em um pulo. Não era água, era sangue. E eu não estava na casa da
Lola.
Eu estava sentada embaixo de uma escada e sobre ela repousava um corpo pingando sangue.
Havia uma marca enorme na camisa, bem abaixo do coração, de onde o líquido escorria. Eu não
conseguia ver seu rosto, estava escondido por um pano preto, mas ele ainda estava vivo e me
mandou correr até o lago.
Levantei-me apressadamente, contudo, hesitei. Eu não parecia a mesma pessoa que acabara de
dormir na casa da amiga. Havia um sentimento estranho no meu peito, um sentimento que não
me deixava ter medo da situação ou do sangue. Um sentimento que me fazia querer ficar ao lado
daquele corpo até seu último suspiro. E, então, enquanto involuntariamente eu me aproximava,
ele mais uma vez sussurrou com firmeza: Vá para o lago.
As lágrimas borraram meus olhos, contudo eu corri. Apressei meus passos na direção leste de
onde estávamos, como se eu soubesse o caminho para o lago. Como a Branca de Neve, eu pulava
troncos, era arranhada por galhos e, pasmem, usava um vestido longo. Estaquei. Por que eu
estava vestida de noiva?!
Meu vestido também estava sujo de sangue. Provavelmente eu havia encostado no homem caído
sobre a escada... Ele era o meu noivo?! E agora estava prestes a morrer?! Levantei as minhas
mãos. Uma aliança do lado direito, nenhuma do lado esquerdo. Meu coração parecia ter se
rasgado e perdi o equilíbrio.
Não podia deixá-lo à própria sorte. Sozinho. Passar os últimos minutos de sua vida sem amor.
Levantei rapidamente e dei meia-volta quando escutei meu nome. Venha, Kate. Aqui. Comigo.
Era a minha avó. Ela segurava um lampião grande e que iluminava boa parte do caminho até lá.
Sua mão acenava para que eu fosse em sua direção. Mas eu estava dividida. Precisava voltar.
Talvez eu pudesse levá-lo até a minha avó e pudéssemos salvá-lo. Voltei a correr.
Nada que você faça o trará de volta, Kate.
Sua voz parecia estar sendo jogada ao vento e suas palavras sendo repetidas pelas árvores ao meu
redor. Como num feitiço.
Mas se você vier comigo, nada disso acontecerá.
Meu coração apertou. Confiava na minha avó de olhos fechados e, se ela dizia que aquilo seria
possível, eu acreditava. Ainda assim, não podia evitar o mal-estar por abandoná-lo, como se a
minha vida importasse mais que a dele. Era estranho para mim, mas eu tinha certeza de que
morreria ao lado dele sem pensar duas vezes. Uma lágrima escapou do meu olho, e caminhei
vagarosamente na direção da minha avó. Eu deveria estar feliz. Ia reencontrá-la após tanto
tempo.
Passei por um túnel de galhos entre duas árvores enormes. Nele estavam pendurados pequenos
lampiões das mais diversas cores. Apesar de ainda estar sofrendo, a cada passo eu sentia uma
energia diferente, como se o ambiente para o qual eu estava indo fosse completamente diferente
do anterior. Comecei a ser bombardeada com alegria, saudade, tranquilidade. Não parecia mais a
quase viúva.
Até que enfim, querida.
Minha avó passou os braços ao redor de mim, abraçando-me depois de quatorze anos. Agarrei-a
com todas as minhas forças, chorando em seu ombro pelo reencontro, pela saudade, pelas
inúmeras dúvidas em minha mente. Júlia acariciou meu cabelo como fazia quando eu era apenas
uma criança inocente. Beijou minha bochecha, completamente molhada pelo choro.
A chave no gato branco.
Uma luz forte e branca preencheu a minha visão, como se a minha avó estivesse se
transformando em um espectro luminoso. A claridade foi tanta que me cegou. Mentia quem dizia
que apenas o escuro impedia a visão, a luz era tão capaz quanto. Porque o culpado era o excesso
de um ou de outro. Nada pode ser absoluto.
Nem mesmo a verdade.
Capítulo 24

Sentei-me na cama de pronto e meus olhos, num instante, reconheceram a


parede roxa do quarto de Lola. O alívio me invadiu, diminuindo a velocidade do meu coração de
forma gradativa e reconfortante. Embora não o bastante para me fazer esquecer do sonho e da
carga depositada sobre os meus ombros. Pensando no fato de que sonhei com Eric e ele
supostamente se tornou real, qual era a possibilidade de aquele novo pesadelo também
acontecer? Mais uma vez, minha avó usava o sonho para me mandar uma mensagem.
Peguei meu celular para anotar: chave, gato branco no grupo de whatsapp onde só existia o meu
número, contudo, travei ao encontrar cinco ligações perdidas de Téo. Ele nunca havia me ligado
tantas vezes e isso me deu a certeza de que havia algo errado. Retornei, mas a mocinha da
gravação informou que o aparelho se encontrava sem sinal ou desligado. Talvez eu devesse ir até
a casa dele. Peguei minha bolsa no chão no momento em que Lola entrou no quarto e fez meu
coração bater muito mais rápido do que com o pesadelo.
Sua expressão facial era terrível, como se ela tivesse vindo de um enterro. Seus olhos
amendoados tinham dificuldade de me encarar por mais de dois segundos e havia tantas rugas de
preocupação espalhadas por sua pele que eu seria incapaz de contar em menos de um minuto.
—A avó do Téo morreu queimada — comunicou Lola como quem prefere arrancar o band-aid
de uma só vez ao invés de usar água. Eu sabia o quanto estava sendo difícil para ela ser a
responsável por me dar aquela notícia pelo modo como contorcia suas mãos.
E eu nem tinha resposta ou reação para esboçar. Levantei da cama e andei de um lado para o
outro sentindo a tristeza me dominar enquanto refletia. Samantha era bruxa e morrera queimada.
Inquisição?! A culpa tinha sido minha? Assim como aconteceu com a cigana e com Mercedes.
Quem seria a próxima? Meus olhos recaíram sobre Lola com receio. Não bastava eu estar com a
minha vida ameaçada?
—O Henrique foi atender ao chamado. Ele falou com o Téo. A cerimônia será agora pela manhã
na capela. Sinto muito, amiga.
—Eu não atendi as ligações. Ele deve estar péssimo, — comecei a falar, sentindo-me culpada —
com certeza ele está devastado. Ela o criou como mãe. Coitado. Pode ir comigo?
—Claro. Eu dirijo.
Demoramos uns vinte minutos para nos aprontarmos e seguimos no carro de Lola para a capela
do cemitério de Forecast, que ficava próximo à divisa entre a parte antiga e nova da cidade de
Melas. Só havia um cemitério e esse era o lado bom de se morar em um local pequeno. O ruim é
que todo mundo fica sabendo, mesmo que você não queira.
Lola passou pelos portões de entrada, cumprimentou o porteiro, pegou um ticket, e procurou o
estacionamento referente ao espaço 10, no qual estaria a família Dáman. A construção era
dividida em pequenos ambientes, de modo que todos davam para o local onde estacionávamos os
carros. A única diferença era saber se você andaria mais ou menos, dependendo da vaga
escolhida. O que era uma escolha significativa, levando em conta que estava chovendo e não
havíamos nos lembrado de pegar guarda-chuva.
O mais perto que encontramos foi no espaço 9 afinal, não era como se tivessem dez mil vagas
num cemitério. Ela desligou o carro e saímos. De onde estávamos não dava para ver o Téo; não
havia nem sinal dele. E saber que o encontraria em poucos segundos com sua alma destroçada
por aquela perda tão trágica me fez derramar algumas lágrimas. A morte de Samantha se tornaria
desagradavelmente real, a dor dele também. Se eu não sabia muito bem o que dizer quando ele
mencionou o abandono da mãe, quem diria com a morte da avó. Eu quase podia debochar da
minha inaptidão para consolar os outros.
Estava tão concentrada em meus pensamentos, me embrenhando entre os carros para chegar mais
rápido, que levei um susto quando Lola agarrou meu braço com força, como se estivesse caindo
ou com medo de algo. Era algo como: pare. Mas o susto me fez despertar e perceber que jamais
aquela seria a mão da minha amiga. Ela não podia ser tão grande e forte. Virei-me.
—Você não pode entrar — sussurrou. As gotas de chuva escorriam sobre a pele dele, mais
branca que o habitual.
—Eric?! — Lola perguntou surpresa. — O que está fazendo aqui?
—Longa história — limitou-se, sem tirar os olhos de mim. —Peça que a Lola vá prestar as
condolências. Você.não.pode.entrar — reforçou, ainda segurando meu braço. Não era uma
intimidação, parecia com: eu não vou desistir tão fácil.
Ok.
—Eu preciso ir, Eric. Não posso pedir a alguém para ir no meu lugar, não é a mesma coisa. —
Fixei meus olhos nele com atenção, havia algo errado. Eric parecia abatido, doente. — Você está
se sentindo bem?
—Você tem certeza de que é normal? — perguntou de uma maneira natural, como eu ainda não
tinha visto nele. Seu rosto relaxou, e um singelo sorriso apareceu em seus lábios um tanto
pálidos. Ainda assim, preparei-me para a torrente de ofensas. — Como pode se preocupar
comigo, se está prestes a ser caçada? Não consegue senti-lo, Kate? — questionou, aproximando-
se de mim.
Acabei indo para trás e batendo minhas costas no automóvel mais próximo. Eric não hesitou.
Seus passos acompanharam os meus. E estupidamente meu coração acelerou. Não. Ele parou de
bater por uns dez segundos, antes de voltar. É, talvez eu não fosse normal mesmo. Lola coçou a
garganta.
—Não sei muito bem o que está acontecendo — ela começou —, mas confesso que estou me
sentindo envergonhada por vocês estarem tão próximos em um ambiente sagrado.
Para variar era um ambiente sagrado, né? Parecia um carma. Eric piscou algumas vezes, e
pensei que ele fosse desmaiar. Eu não aguentaria segurá-lo. Em seguida, afastou-se alguns
centímetros de mim, soltando meu braço. Pude, enfim, me recompor e olhar para a minha amiga.
Lola tinha se transformado em uma mágoa ambulante. Em seu lugar, estaria do mesmo modo.
—Eu vou indo na frente. Vai ficar tudo bem, né? — Lola se aproximou um pouco para olhar
bem nos meus olhos e ter certeza de que eu não estava em perigo. Não. Acho que a última coisa
que eu estava era em perigo. Quer dizer, dependendo do que estava em perigo. Esquece.
Balancei a cabeça afirmativamente. Assim que ela se afastou, voltei a nossa conversa.
—Eric, eu preciso entrar. Você consegue entender que eu não posso deixar de falar com ele? —
argumentei, não entendendo muito bem por que estava tentando convencê-lo a me deixar ir,
como se eu precisasse de sua autorização. Talvez fosse pelo fato de ele parecer realmente
empenhado em manter a minha segurança.
—Consigo entender, mas não consigo deixar.—O professor recostou o corpo no carro em frente
ao qual eu estava. Olhou para o céu chuvoso, como se procurasse suas respostas lá, como se
precisasse de um sinal. — Deixa eu explicar uma coisa: isso é um cemitério, Kate. Aqui os
feitiços não são rastreáveis. Ele pode pegar você e não poderemos fazer nada.
Eu estava cansada. Exausta de receber informações pela metade, de escutar ordens ou pedidos
porque simplesmente não sabia como contestar. Quem era esse homem? Por que estava sendo
caçada? Segurei as rédeas da minha vida por alguns segundos sem hesitar.
Afastei-me do carro no qual estava e parei em frente a Eric. Coloquei minha mão sobre seu rosto
gelado e senti seu modo relaxado ir embora. Emoldurei seu maxilar, fazendo-o abaixar a cabeça
de modo que pudéssemos nos olhar nos olhos. Ele abaixou as pálpebras enquanto respirava com
dificuldade até os azuis reaparecem para mim.
—Por que você se importa tanto? Que diferença faria na sua vida se eu sumisse? Por que está
aqui, tentando salvar a minha vida, quando a sua parece terrivelmente mal?
Eric levantou o braço e sua mão tocou a minha. Mas eu não deveria tocar a mão dele, deveria?
Ainda assim, eu estava tocando. Meus dedos estavam sobre a sua pele e, sim, ele era real. Não
era mais apenas o cara do meu pesadelo.
—Por causa do favor. — Seu rosto endureceu novamente. —Você não tem ideia do quanto eu
esperei para encontrar a resposta que só você pode me dar.
—É mesmo? Está praticamente sacrificando a sua vida pela minha. Olha o seu estado, Eric! —
Afastei minha mão gesticulando sem parar, como se isso o fizesse entender meu raciocínio. —
Como pretende cobrar o favor se cair duro aqui? Para quem está mentindo? Para mim ou para si
mesmo? — Encarei-o novamente, esperando a resposta que ele procurou no céu há poucos
minutos. Mas ela não veio. —Se não é isso, você está refém deste favor, você está entregando
sua vida por ele. E isso não combina com o pouco que conheci de você. Vou chamar uma
ambulância.
Eric fechou os olhos e pude ouvir sua inspiração profunda e acelerada. Talvez eu tivesse sido
muito direta, mas não consegui conter minhas palavras. Peguei o celular na bolsa e o deixei cair
lá dentro de volta no instante em que Eric socou a lataria do carro onde estava encostado. Ainda
bem que ele não estava em seu melhor dia, pois não foi o suficiente para amassar.
—Podia ter um alarme aí, é assim que você quer proteger o seu...
Ele me encurralou no carro em frente ao que socou em dois passos largos, e eu engoli em seco.
Eu não sabia sobre seus planos, eu vivia em perigo ultimamente, mas a última coisa que senti foi
medo. Secretamente e, talvez, de forma irresponsável, eu tinha certeza de que ele não me
machucaria.
—Você não deveria me ler com tanta facilidade, mas isso é assunto para outra hora. Vamos
embora.—Ele agarrou meu braço, não com a firmeza de sempre e começou a me puxar. Havia
algo diferente na urgência dele.
—Chega, Eric. Por favor.—Pressionei meus pés contra o chão, impedindo-o de continuar. Eu
deveria simplesmente ir. Eu estava em perigo, não era? Por que estava sendo tão difícil também?
Porque não era certo ir sem falar com Téo. —Eu preciso ao menos falar com o Téo.
Percebi que seu corpo estava dando uns pequenos tremeliques, como se estivesse tendo calafrios.
Ele se virou calmamente na minha direção, as mãos escondidas nos bolsos da calça escura. O
cabelo escondendo seus olhos parcialmente, até que levantou a cabeça.
—Joseph...
Ele estava me dando o nome do cara?
—Eric — Uma voz masculina e grossa chamou pelo professor. Seu corpo retesou por completo
e, pela primeira vez, vi um Eric sem vida, sem movimentos, inerte. Ainda que tenha durado
pouco. Em seguida, ele recuperou sua postura ofensiva. — Não sabia que conhecia Samantha.
Mas era de imaginar.
Os passos do homem sobre as poucas folhas de outono caídas indicavam sua aproximação. Acho
que ele ainda não tinha notado a minha presença afinal, estava atrás do carro. Eric caminhou para
frente, de modo que o senhor não ultrapassasse o limite de espaço onde eu estava. Por quê? Se
bem que ele também havia me defendido na igreja, impedindo-me de revelar minha identidade a
Mercedes. Mas não deu tempo. Notei quando o homem de terno e gravata cinzas apareceu no
meu campo de visão.
—Ah, está acompanhado.
Fechei os olhos, sem saber ao certo o que fazer. Virei meu corpo de lado, de modo que pudesse
cumprimentá-lo e ao mesmo tempo mantivesse meu rosto escondido. Contudo, não funcionou.
Eric mantinha-se em silêncio.
—A senhorita é a neta de Júlia West — o senhor comentou com empolgação e fez menção de se
aproximar, mas Eric rapidamente tirou a mão esquerda do bolso e estendeu o braço, como se
fosse um pedágio.
—Estamos indo embora, Joseph — ele avisou entredentes. —Ela está debilitada com a morte da
Samantha, amiga da avó dela. Você sabe. Se puder nos dar licença.
—Claro. — Eric se afastou, sem lhe dar as costas, e agarrou minha mão, levando-me com ele. —
Kate, eu gostaria muito de conversar com você sobre a sua avó. Eric sabe como me encontrar. É
do seu interesse.
Estávamos nos afastando, a mão de Eric passara para as minhas costas, guiando-me na direção
de seu carro, porém, em algum momento, ele cedeu. Senti seus dedos deslizando sutilmente pelo
meu corpo até perceber, de rabo de olho, que ele levara a mão ao peito. Parecia sentir muita dor.
O professor ajoelhou-se no chão. Agachei-me em frente a ele, segurando seus braços para que
não caísse.
—Não deu tempo. Pegue meu carro e vá... — falou com dificuldade, a respiração fraca, sua pele
cada vez mais sem cor.
Ouvi as folhas de outono mais uma vez sendo pisadas, indicando a aproximação do senhor.
Tentei simplesmente ignorar, mas meu coração acelerou consideravelmente com o medo. Pelo
comportamento de Eric, tive a impressão de que não nos queria perto, não queria que ele se
aproximasse de mim. E quando as coisas ao nosso redor congelaram e o nublado do céu se
tornou noite, eu compreendi os seus motivos.
Capítulo 25

As árvores não balançavam mais. As gotas de chuva não escorriam mais


sobre nós. E as luzes dos postes não se acenderam quando Joseph fez anoitecer. Era como se
estivéssemos inseridos em uma bolha à parte do mundo. No entanto, eu ainda podia ouvir o crec
crec das folhas sendo pisadas com a sua aproximação. Também podia ver Eric perdendo o
equilíbrio, quase inconsciente.
Segurei seu corpo e o deitei sobre o chão. Nem em meus sonhos, eu conseguiria carregá-lo até o
carro. Seus olhos estavam esquisitos. Pareciam revirar por alguns instantes e voltar em seguida.
Ele tossiu bastante e notei um filete de sangue em seus lábios. Dei uma leve batida em seu rosto.
—Eric, por favor... — Ele agarrou a minha mão.
—A chave. Meu carro. — Começou a tatear o bolso do casaco jeans escuro. Segurei sua mão de
volta.
—Eu não vou a lugar nenhum.
As folhas de outono pararam de fazer barulho. A silhueta de Joseph, em meio ao escuro, estava
parada ao nosso lado. Olhei para cima, tentando captar sua fisionomia. Mas sem luz era
praticamente impossível. Contudo, a minha inabilidade para controlar meus poderes era bem-
vinda naquele instante, quando ela fez o poste mais próximo começar a piscar.
—Isso é algo que não estava nos meus planos — ele comentou tão logo parou ao nosso lado.
Um senhor de idade, roupas elegantes, cabelo grisalho. Seus óculos com armação larga e preta
me impediam de ver seus olhos com atenção. Estava de braços cruzados, observando-nos. Não
havia qualquer sinal de compaixão, sequer de preocupação. Eric tossiu novamente.
—Seus planos...—o professor tentou falar, mas era impossível.
Eu precisava salvá-lo de alguma forma. E se eu transmitisse energia pelas minhas mãos? Ele
havia dito que havia troca na leitura, por que não poderia haver se eu quisesse? Respirei fundo,
tentando me acalmar. Mas como eu podia me acalmar com Joseph parado ao meu lado?!
—Avancei o tempo. Assim não temos mais seus amigos por aqui. — Ele começou a andar ao
nosso redor, e eu decidi que era a minha única oportunidade. Concentrei-me em transferir
energia para Eric. — Téo deve estar decepcionado por você não ter vindo.
Eu podia sentir o veneno escorrendo das palavras de Joseph. Ele estava feliz por Téo estar
decepcionado, e isso me preocupou um pouco. No entanto, decidi que não o responderia.
Precisava ganhar tempo e deixá-lo falar era a melhor forma. Aliás, ele conhecia o Téo?!
—Por que está perdendo seu tempo o salvando? — Joseph parou perto da cabeça de Eric e deu
um leve chute no ombro do professor, mostrando para mim o quanto estávamos vulneráveis. Não
respondi, mas no instante em que olhei para ele com raiva, senti uma fraqueza dominar minha
cabeça. Como se eu estivesse zonza. — Resposta errada. Eu esperava ouvir amor.
—Amor pelas pessoas. Serve?! — reclamei enquanto levava a mão à cabeça, devido a dor, mas
parei no meio do caminho, concluindo que Joseph não poderia perceber minha fraqueza. Eric
tossiu novamente e, em seguida, pareceu recuperar o ar.
—Não. Amor pelas pessoas não gera sacrifício. — Ele puxou uma adaga do terno. — Entretanto,
acho que você está negando seus próprios sentimentos. Por que estaria doando sua própria
energia para uma pessoa qualquer? Quando está comigo aqui, seu suposto inimigo. Eu somente
faria isso por uma pessoa nesse mundo, e é justamente por isso que o machucarei.
Joseph havia parado ao lado da cintura de Eric e lançou sua adaga com magia na direção do peito
do professor. Não. Eu gritei e levantei minha mão, congelando-a. Senti minha cabeça latejar,
como se vários pedreiros estivessem trabalhando lá dentro. Minha visão turvou e perdi o
equilíbrio. Sangue começou a escorrer do meu nariz. Eu soube quando tocou os meus lábios e
senti o gosto amargo.
—Estamos no ponto certo, senhorita Kate. Está pronta para mim. — Joseph puxou sua adaga de
volta e a guardou no terno.
—Não está não — Eric falou com dificuldade, mas com determinação.
Não estava enxergando muita coisa, entretanto, tinha certeza de ter visto Eric abrindo os braços e
de ter surgido uma luz verde ao nosso redor. Por algum motivo, aquela luz me aqueceu e me
reconfortou. Escutei quando Joseph praguejou e quando as gotas de chuva começaram a pingar
sobre algo acima de nós. Aquele barulhinho bom de chuva no telhado. Eric agachou e me pegou
em seus braços. Meu pesadelo estava acontecendo. Aonde ele iria me largar? Aonde ele iria se
enfiar para morrer em seguida?
Uma forte claridade invadiu meus olhos e eu os abri. Sentei-me assustada. Onde eu estava? Eu
não conhecia aquela cortina branca, tampouco aquela janela, menos ainda as árvores que
compunham a vista. Afastei o lençol para o lado e me preparei para levantar quando ele surgiu na
porta do quarto. Relaxou o corpo sobre o portal e cruzou os braços, deixando um sorriso surgir
em seu rosto. Um sorriso que, sei lá por qual razão, me fez corar. Talvez porque ele parecesse
direcionado a mim, ou talvez porque ele nunca tenha existido até o momento. E isso o tornava
especial. Parei de me mexer.
—Se sente melhor? — sua voz ainda era rouca e firme, contudo, amigável. Sem a necessidade de
se impor. E, ainda assim, ele se impunha. Será que sabia desse poder?!
—Minha cabeça ainda dói um pouco. — Olhei para a janela novamente, encabulada, e me dei
conta do horário. — Ele não transformou o dia em noite? Como estamos de dia novamente?
—Hum... — Eric contorceu o rosto e estendeu os lábios em um sorriso amarelo, como se sua
resposta fosse ser um problema. —Ele transformou o dia em noite. E você dormiu até amanhecer
novamente.
—Como? — Levantei-me em um pulo. Eu tinha dormido fora de casa. E na cama do Eric?! —
Calma. Eu dormi na sua cama?!—Olhei para a cama enorme que ele tinha e em como o lençol
parecia bagunçado.
—Isso é tão ruim assim? —O sorriso divertido e espontâneo voltou para o seu rosto, e eu me
esqueci do que estava pensando. Era como se eu estivesse passando por breves instantes de
inconsciência. Balancei a cabeça e olhei para a árvore. — Se quer a minha opinião, apesar do seu
ronco, foi tranquilo observá-la dormindo.
Juro que eu estava tentando, porém, eu perdi e ri. Discretamente, mas ri. E levei minhas mãos ao
cabelo, pensando que precisava respirar em um local onde ele não estivesse. Porque eu
simplesmente não conseguia não olhar para o seu sorriso. E eu devia. Devia não olhar,
obviamente.
—Preciso ir embora — avisei, puxando o ar, e começando a procurar minhas coisas.
Encontrei minha bolsa sobre a poltrona perto da cama e andei apressadamente até ela. Puxei-a,
coloquei no meu ombro e virei. Eric. Ele havia se transformado numa muralha há alguns
centímetros de mim. Sua mão direita repousou no meu braço esquerdo e eu senti um treco
estranho. Uma energia preenchendo minha pele, subindo pelo meu corpo.
—Nós precisamos conversar — Eric falou seriamente, e eu agradeci por ele ter escondido o
sorriso. — Passamos por uma situação perigosa, e você precisa obter todas as informações que
eu puder lhe passar. Estou disposto a passar o domingo inteiro com você, respondendo suas
indagações sobre o mundo bruxo.
Pisquei. Estava chocada. Surpresa. Sem palavras. Será que eu tinha batido a cabeça? Ou cedido
muita energia? Será que aquilo ali era um sonho? Ou um pesadelo? Eric não me parecia uma
pessoa disposta a compartilhar informações, tampouco uma pessoa sorridente, menos ainda
alguém tão... Ele estava revelando para mim o seu verdadeiro eu?! Era isso?!
—Ok. Eu vou me deitar novamente e acordar. — Larguei a bolsa sobre a poltrona. — Tenho
certeza de que estou sonhando ainda.
—Você é divertida — comentou, reforçando seu aperto no meu braço no instante em que cogitei
realmente me deitar. —Agora vamos. Você precisa tomar um café, o desgaste de energia ontem
foi muito alto.
Eric olhou-me por alguns instantes e, em seguida, começou a caminhar na direção da porta.
Peguei minha bolsa de volta e o acompanhei. Sua casa era enorme. No corredor contei umas
quatro portas até chegarmos à sala que era duas vezes o tamanho da minha. Com certeza minha
mãe odiaria, ela não gostava de casas grandes, pois dá mais trabalho para limpar. Eric faria as
faxinas com magia? Ele não me parecia alguém que tirava a poeira dos móveis, tampouco
alguém que contratava alguém para entrar em sua casa.
—Preciso dizer que estamos temporariamente ligados, pelo fato de você ter transferido muita
energia para mim — avisou enquanto puxava uma cadeira para se sentar à mesa. —Achei
importante avisar, caso esteja pensando em coisas libidinosas comigo. —Um sorriso malicioso
surgiu em seu rosto, e a vontade costumeira de bater nele retornou em mim.
—Oh, Eric... Você voltou. — Puxei uma cadeira e me sentei. —Agora tenho certeza de que não
é um pesadelo. Antes que comecemos a aula de bruxaria, professor, eu gostaria de fazer algumas
ligações.
Desbloqueei meu celular já quase descarregado e encontrei algumas ligações perdidas. Téo, Lola,
Jane, minha mãe e Mel. Claro. A minha irmã retornava de viagem na noite anterior, a mesma
noite na qual eu havia dormido na casa do Eric. Mandei uma mensagem rápida para minha mãe,
e retornei para o Téo. Caixa postal. De novo. Caixa postal. De novo. E nada. Liguei para Lola.
—Kate?! Sabe o quanto estamos preocupadas com o seu sumiço?! Henrique estava aguardando
vinte e quatro horas para chamar a polícia.
—Eu estou bem — respondi, tentando falar baixo. — Desculpa. Pode tranquilizar a minha mãe?
—Claro. Ela me liga de dez em dez minutos. Não será muito difícil. Você está chegando?
—Depende. Você falou com o Téo? — Eric empurrou a bandeja com pães para mim.
—Ele entendeu o fato de você não ter ido. Mas a procuramos no estacionamento e nada. E hoje
ele apareceu aqui. Disse que ligou para o seu celular, mas não conseguiu falar. É verdade. Eu
também não consegui — ela bufou. — Téo parecia decepcionado, amiga. Ele disse que está indo
viajar e que queria ter falado com você de novo. Pediu licença da faculdade por duas semanas.
Eu não sou exatamente fã dele, depois das novidades, mas fiquei sensibilizada.
—Não era a minha intenção magoá-lo — comentei.
—Mas você não anda sabendo muito o que faz — ela retrucou. — Você podia ter me contado
que tinha se aproximado do Eric... — a interrompi.
—Eu volto mais tarde para casa e conversamos...—continuei falando baixo.
—Você está com ele?! Por isso está falando baixo o tempo todo?! — Mesmo sem vê-la, eu podia
chutar que estava levando a mão à boca naquele instante. — Não acredito que você dormiu com
ele!
—Lola, por favor, não tire conclusões precipitadas. Eu explico quando voltar.
Desliguei e me dediquei ao café da manhã, evitando o olhar inquisidor de Eric. Ficamos em
silêncio por alguns minutos enquanto eu colocava manteiga no meu pão e enchia meu copo com
café e leite. Assim que finalizei o último pedaço, o professor abriu a boca.
—Sabe que não vai explicar, né?! — Cruzou os braços e relaxou na cadeira. —Espero que tenha
notado como coloca suas amigas em perigo e como estar com elas, também a coloca em risco.
Joseph só precisava saber que você se arriscaria para salvar alguém. E pronto. Ele já sabe como
pegá-la. Como atrai-la. Como pretende manter todos seguros?
—Sabe o quanto a sua explicação soa abusiva, né? Você é o único no mundo com quem estarei
segura. Isso?— retruquei, incomodada com o fato de ele insistir em me separar delas.
—Infelizmente, sim. Eu sou o único no mundo com quem você estará segura. Na verdade, eu
espero que com a sua família também. Mas seus amigos humanos não. — Ele bebeu alguns goles
de seu café puro. — Eu sinto muito. Você pode chamar de abusivo ou de qualquer outra coisa,
mas quando você estiver chorando sobre o túmulo de uma delas, não diga que não avisei. Eu não
vou pintar o mundo de rosa para que as coisas fiquem mais fáceis. Lamento, Kate. Eu descobri,
na pele, o quanto não há essa possibilidade. Prefiro que você aprenda ouvindo, do que na prática.
Engoli em seco. Com certeza, revelar para mim como havia descoberto na pele não estava em
seus planos. Eric estava disposto a me ajudar e não a dividir comigo seus segredos. Isso seria
muito. Não ousei perguntar. Não porque tivesse medo da resposta, mas porque sabia qual seria.
—Você simplesmente se afastou de todos os seus amigos humanos? —indaguei, não para o
atacar; era para encontrar consolo em alguém com mais experiência.
—Seu caso é diferente, Kate. Você foi criada como humana e, assim, rodeou-se de humanos. —
Inclinou-se sobre a mesa, fixando seus olhos azuis em mim. — Pelo feitiço na sua casa, acho que
sua mãe estava tentando te proteger.
Eric se levantou da mesa, parecendo satisfeito com o rumo da conversa. Não sabia muito bem se
era por ali que eu queria enveredar as minhas perguntas, contudo, eu estava tão perdida que
qualquer informação era bem-vinda, como um viajante no deserto se satisfaz com qualquer pingo
de água. Sabia que isso me tornava vulnerável, uma pessoa sedenta por migalhas, entretanto, eu
não estava ligando para isso.
—Sua casa nunca tem a mesma localização para quem não é humano. Entenda por não humano
aqueles que não têm poderes afinal, nós somos humanos. — Virou seu copo de café e continuou
andando pela sala. — Assim, sua mãe impediu que qualquer bruxo, peregrino, entre outros,
encontrasse você com magia. Se alguém quisesse achar Kate West, neta de Júlia, e herdeira da
Corte, deveria encontrar com os próprios pés. Vou dar um tempo para que raciocine sobre a
informação.
Eric parecia agitado, movimentando os braços e o corpo como se estivesse empolgado ao me
relatar tudo aquilo. Como se fosse uma de suas aulas. Ele não havia mentido quando revelara
gostar de lecionar. Enquanto isso, eu apenas pensava que minha mãe não parecia tão cruel assim
diante daquele feitiço. A visão de que ela havia mentido para mim parecia ridícula perto da visão
dela fazendo um feitiço tão inteligente quanto aquele. Parecia uma mãe desesperada tentando
proteger a filha.
—Mas você sabia meu endereço. Não precisei dizer.
—O maior tesouro não é a casa, é você, Kate. Depois que a achei, precisei apenas segui-la. Logo,
ninguém pode achá-la. — Ele pressionou a mão sobre um painel na parede e um quadro branco
surgiu. Eric começou a fazer uns rabiscos com um pilot. — Mas como sua mãe pretendia manter
você oculta numa cidade pequena e com apenas uma faculdade?!
Pude ver uma casa torta onde ele escreveu faculdade. Em seguida, acrescentou uns cinco
bonecos de palito, daqueles que a gente faz no jardim de infância e virou para me olhar.
—Trocando o sobrenome de vocês. — Escreveu Gricem e colocou um x em cima, então
escreveu West. — Um feitiço simples e ninguém nunca se lembrou de que um dia vocês foram as
Gricem. A verdade é que as destinadas a serem as herdeiras fazem toda a família mudar de
sobrenome. Desse modo, quando sua avó nasceu, West desapareceu da certidão. E todas que
vieram depois mantiveram o Gricem. Caso a herança não permanecesse na sua família, o
sobrenome desaparecia na descendência imediata da sua avó, ou seja, sua mãe teria voltado a ser
West.
Meu cérebro deu um nó. Levei alguns segundos tentando compreender. E, sem sucesso, decidi ir
até o quadro e desenhar o que ele havia me falado. Roubei o pilot de sua mão e aderi aos bonecos
de palito, fazendo a minha avó com o nome West, substituído por Gricem. Em seguida, minha
mãe com o sobrenome West também substituído.
—Então, quando a minha irmã mais velha nasceu, também com a obrigação do sobrenome
Gricem, minha mãe soube que a herança permanecia na nossa família — concluí, chocada.
—Devo dizer que sua mãe é muito inteligente. Ela pensou em tudo para manter você escondida.
E teria dado certo, se não fosse a semelhança. — Eric parou de olhar para o quadro e direcionou
seus olhos azuis para mim. — Seus cabelos, seus olhos, seu nariz e até mesmo a sua boca são
parecidos com as feições da sua avó. Assim, qualquer um que tivesse conhecido Júlia como a
herdeira, soubesse que o sobrenome se mantivera na sua família e encontrasse você, saberia.
—Foi assim para você? Conheceu minha avó?— questionei, confusa, não sabendo se ainda era
possível haver um pouco de coerência na minha mente. —Você não foi apaixonado pela minha
avó, né?
As sobrancelhas de Eric se contraíram, enrugando toda a sua testa. E eu me senti louca. Bem
esquisita por ter feito uma pergunta como aquela.
—O quão velho você acha que eu sou, Kate? — Ele cruzou os braços, parecendo levemente
ofendido.
—Não é por isso. Você não parece velho, talvez uns oito anos a mais do que eu. Mas, pelo modo
como você falou das feições dela — comentei, sentindo-me envergonhada pela análise
apressada.
—Estava falando das suas feições—respondeu sem pestanejar, mantendo seus olhos sobre o meu
rosto. — Acho que você precisa de uma pausa. — Largou o pilot sobre o apoiador do quadro e
começou a se afastar. — Aliás, obrigado por ontem.
Capítulo 26

Sei que havia passado os últimos dias ou semanas desejando


informações, tinha até mesmo chamado minha irmã. Entretanto, a minha cabeça estava
explodindo com todas as coisas que Eric havia me falado. Não conseguia mais pensar nas
mentiras da minha mãe como uma traição. Não me sentia mais magoada. Como num passe de
mágica, eu pude compreender os motivos que a levaram até aquele ponto. Joseph era realmente
perigoso. E a pausa fora bem-vinda.
—Você condena alguém por um único ato ou perdoa se os demais forem bons? — Eric ressurgiu
na sala, após ter me deixado sozinha por uns quinze minutos. Seu sofá era bem confortável,
permaneceria deitada nele por mais alguns instantes.
—Que profundo você — brinquei, sentando-me. — Sua pergunta não me parece aleatória. Você
é a pessoa a quem eu devo perdoar?
—Sabe o que acabou de me revelar, né? — Parou a minha frente e estendeu a mão. Revirei os
olhos. — Que eu tenho muitos atos bons. Responda, Kate.
—Você está me assustando um pouco — sussurrei, encarando-o. —Até o momento, não me
lembro de nenhum ato seu tão ruim assim. Você me salvou várias vezes.
—Ótimo. Porque, em algum momento, eu com certeza magoarei você e saber que será capaz de
me perdoar é importante.—Balançou a mão, reforçando o convite. Aceitei, e ele rapidamente me
puxou do sofá na direção do seu corpo. Nossos rostos ficaram a milímetros um do outro.
—Está sendo presunçoso ao deduzir que é capaz de me magoar. Eu deveria me importar muito
com você para tal sentimento, não acha? — Mantive meus olhos nos dele, debochando do
momento no qual me acusara de ser convencida.
—Você não teria doado sua energia para mim e arriscado a sua vida, se não se importasse ao
menos um pouquinho comigo — retrucou, seu hálito doce sendo jogado sobre os meus lábios.
Seus olhos se afastaram dos meus e miraram a minha boca, sem discrição. Meu coração parou
enquanto eu sentia seu tórax se chocar contra o meu peito, sua respiração mais rápida que o
normal. — Não faça isso de novo.
—Você não pode me dar ordens, Eric — respondi com firmeza.
—Não é uma ordem. É um pedido.
Sua mão direita subiu até o meu rosto e aninhou-se entre o meu cabelo e a minha orelha. Seu
dedo deslizou rapidamente sobre a minha bochecha, enquanto ele semicerrava os olhos na minha
direção, parecendo um tanto perdido e confuso.
Ah, meu coração já tinha voltado a bater. Precisei avisar antes de dizer que ele estava
demasiadamente acelerado. Tanto que eu não sabia explicar ao certo se eu deveria me manter
perto do Eric ou me afastar completamente. Tinha certeza de que era a troca de energia do dia
anterior ou o meu cansaço. Era por isso que eu estava com os lábios abertos puxando o ar. Ou era
por isso que eu sentia vontade de relaxar meu rosto sobre a mão dele e descansar.
—Me afaste — ele pediu com a voz fraca. — Me afaste ou eu a beijarei, Kate.
O quê?! Seus olhos passeavam rapidamente pelo meu rosto, parecendo tentar decorar cada
detalhe. Cada feição. Até que ele abaixou as pálpebras, escondendo os azuis.
—Estou treinando sua magia. Pensei que ameaçá-la com um beijo fosse funcionar, mas até agora
você não me afastou. — Sua mão tornou-se mais firme sobre a minha nuca. — Você quer que eu
a beije, Kate? — Seus olhos se abriram novamente.
—Você está o quê?! Simulando sentimentos para me obrigar a fazer magia? — Empurrei sua
mão para longe e comecei a bater nele, até que meu corpo congelou.
—Quando eu disse que estava simulando sentimentos?! — Ele cruzou os braços e me manteve
congelada. — Anda, Kate. Desfaça o feitiço ou eu realmente beijarei você.
—Você não vai me beijar coisa nenhuma — gritei, sentindo a raiva me dominar na mesma
frequência com que eu sentia a minha respiração faltando há poucos minutos. Meu braço
começou a se movimentar na direção dele. Agarrei sua camisa e, não sei exatamente como, mas
minhas mãos o fizeram se afastar na direção da parede.
—Veremos.
Eric rapidamente voltou a andar na minha direção e levantou apenas uma de suas mãos,
empurrando-me de encontro ao sofá. Por pouco eu não caí sobre o móvel, e a iminente queda
apenas aumentou consideravelmente a minha ira. Metido, arrogante, estúpido. Talvez eu tenha
pensado alto. Tanto fazia, estávamos ligados e ele saberia as qualidades que eu apreciava em seu
caráter. Levantei minhas mãos novamente no instante em que o professor havia recuperado a
distância e decidi pensar para qual lado eu o queria empurrar. Olhei rapidamente a sala e, antes
que ele conseguisse de fato me alcançar, fiz com que deslizasse até a mesa de jantar. Eric sorriu
maliciosamente no momento em que suas costas bateram no móvel de madeira. O que ele estava
pensando?!
Comecei a deslizar, no entanto, desta vez, o professor estava me puxando em sua direção. Como
se houvesse uma corda amarrada em minha cintura, calmamente ele me arrastava até seu corpo.
Precisava reagir. Instintivamente, eu forcei os pés no chão. Não. Eu precisava usar magia.
Levantei minhas mãos mais uma vez e pensei na mesa. Ela começou a balançar, fazendo Eric
perder o equilíbrio e parar de me puxar. Como se eu não tivesse acabado de o derrubar no chão,
Eric começou a rir e se levantou em seguida. Não perdi tempo e o empurrei para o quadro branco
onde desenhávamos há pouco.
—Parece que estou ganhando, senhor Daren—comentei, roubando seu sorriso malicioso para
mim. — Devo encerrar a aula agora?!
Comecei a caminhar na sua direção calmamente, como uma cobra prestes a dar a mordida. E me
surpreendi. Eric ficou sem reação, apenas observando-me andar. Eu me sentia forte, capaz de
fazer magia, revigorada, e estranhamente sedutora. A última parte era provocada pelo seu olhar
vidrado e indiscreto sobre mim. Ele esboçou um sorriso.
—Parabéns. Você conseguiu —sua voz saiu pausadamente.
—Lamento que tenha ficado sem o seu beijo — provoquei, rindo internamente da situação
atípica e me deliciando com o prazer que a magia estava fazendo correr no meu corpo.
E notei quando sua mão esquerda se levantou apenas um pouco. Porém, não deu tempo de me
defender. Sem magia ou algo parecido, Eric puxou-me pelo braço rapidamente e trocou de lugar
comigo, encurralando-me no quadro onde ele estava há segundos. Balançou a cabeça, parecendo
não acreditar no que estava fazendo. Seu coração estava tão acelerado que eu pensei que ele
fosse mesmo morrer era naquele momento. Mas o problema nem era esse. Era o modo como ele
havia me prendido contra a parede. Sua mão esquerda colocou meu braço direito para cima e a
sua mão direita... Ela estava repousando com muita vontade sobre a minha cintura, ligeiramente
me apertando, como se ele quisesse fazer muito mais além daquilo, mas estivesse se controlando.
Engoli em seco quando ele começou a aproximar seu rosto na direção do meu, seus olhos fixos
nos meus, intensos. Seus lábios repousaram sobre a minha bochecha, raspando sutilmente a
minha boca. E eu cheguei a tremer. Sim, eu idiotamente tremi. E, sim, eu queria ir embora. Eu
queria ir embora para longe do Eric. Para outro país. Para outro mundo, no qual ele não existisse.
—Não me provoque, Kate — avisou com sua voz rouca após deslizar seu rosto pelo meu até seus
lábios chegarem no meu ouvido. — Eu nunca disse que seria um beijo na boca, então, eu acabei
de ganhar. Mas agora é melhor eu levar você para casa ou nem eu mesmo serei capaz de me
parar.
O professor rapidamente se afastou de mim. Contudo, eu permaneci parada no quadro. Um braço
para cima, o qual eu tratei de descer assim que meus neurônios voltaram a funcionar. Havia algo
muito errado em mim, nele, na situação. Meu coração estava latejando em todas as partes do meu
corpo, e eu nunca tinha ouvido as batidas dele pela minha pele. Não até ser encurralada num
quadro branco pelo professor de História. Precisava da pessoa que Maya mandaria urgentemente
ou eu não resistiria a mais uma aula de magia com Eric. Não, isso não ia acontecer novamente.
Jamais.
Capítulo 27

O trajeto da parte antiga de Melas, onde ficava a casa de Eric, para a


minha foi consideravelmente rápido. O trânsito de domingo é quase inexistente e a maior parte
do caminho era composto pela estrada sobre o lago, o que facilitava ainda mais a direção. O
professor mantivera-se concentrado durante o percurso, respeitando meu silêncio. Na verdade, eu
achava que o silêncio era de nós dois e, por isso, o respeito. Concordávamos sobre ficarmos
quietos porque, aparentemente, não sabíamos muito bem o que falar. Essa era a minha
conclusão da situação, eu nunca saberia o que se passava na cabeça dele de fato.
No entanto, quando entramos na rua da minha casa, ainda olhando para frente, Eric pareceu ter
recuperado sua língua.
—Não sei se deixei muito claro o quanto você está em perigo — afirmou com um tom de alerta.
— Não faça nada imprudente, Kate. Você ainda não sabe quase nada de magia — sua voz não
indicava crítica e, sim, preocupação.
—Fique tranquilo. Seu favor tentará se manter seguro — retruquei, tentando irritá-lo, tentando
dissolver aquele clima suspenso entre nós. Um clima ao qual eu não sabia dar um nome.
—Você tinha me dado até hoje para cobrar meu favor, lembra? — Seus olhos repousaram sobre
mim enquanto eu balançava a cabeça afirmativamente. — Vejamos, eu não cobrei e ainda estou
aqui.
Meu tiro tinha saído pela culatra. Eric parecia muito mais experiente na arte de me irritar porque
a sua resposta era apaziguadora. Ela me dizia, nas entrelinhas, que ele não havia me pedido para
tomar cuidado por causa do favor. Era por mim mesma. Ok. Eu precisava sair do carro
urgentemente.
Não sem antes tentar uma coisa.
—Você ainda não me disse o que teve ontem. Por que estava tão mal? — indaguei e soltei o
cinto.
—Nada com que deva se preocupar. — Ele levou as mãos à lapela do casaco para ajeitá-lo e,
assim que começou a baixá-las, para repousar em suas pernas, eu interceptei uma. Sinceramente
eu havia sido possuída porque há dois segundos eu estava querendo sair do carro e naquele
instante eu estava pegando a mão dele. Coerência zero.
—Você não confia em mim?
Talvez eu fosse capaz de segurar a mão de um amigo e simplesmente fechar meus dedos ao redor
dela como sinal de conforto, como uma mensagem implícita de “estou aqui”. E sei que tinha
rolado uma coisa esquisita entre nós dois durante o treinamento, contudo, era culpa da troca de
energia. Podíamos ser amigos. Eu estava repetindo isso para mim mesma enquanto sentia a troca
se refazer naquele exato momento. Como algo involuntário, podia sentir nossa temperatura se
fundindo em uma só, e um choque percorrendo dos meus dedos para o meu braço. Podia ver
também os seus olhos azuis assustados com a minha mão sobre a dele. Eric suspirou
profundamente, relaxou a cabeça contra o banco e olhou para frente.
—Você só não precisa se preocupar, Kate. Já está cheia de problemas e coisas a resolver. E a
última coisa que quero fazer é ser mais uma incógnita acrescentada nessa sua soma.
—Melhor soma que subtração —argumentei, tentando tirar um sorriso de seus lábios. Talvez
aquele sorriso.
—Uma soma de negativos não é vantagem alguma. Se precisar de mim, eu estarei aqui. Para
qualquer coisa.
Eric largou a minha mão e segurou o volante, indicando que eu deveria ir. Ok. Ele não estava
disposto a compartilhar comigo a sua vida pessoal, os seus problemas. E, em outras
circunstâncias, eu teria sentido muita raiva e atirado minha bolsa sobre ele, contudo, consegui
sentir o quanto Eric se sentia pesado por se julgar um negativo, por se julgar um problema. E
respeitei. Em algum momento, ele se abriria.
Saí do carro e abri o pequeno portão da frente no exato instante em que Melissa abriu a porta de
casa e que o professor deu partida.
—Até que enfim, minha irmã desagradável apareceu — debochou, correndo na minha direção
com aquele seu jeito fofo e espevitado de sempre. Como eu tinha sentido falta dela.
Eu sentia falta da minha vida. Daquela época na qual eu apenas me preocupava em estudar para a
faculdade, sair com as minhas amigas e ficar com o Gustavo de vez em quando. Sentia falta das
coisas seguindo seu rumo normal, sem fortes emoções ou perigos. Porque a vida parecia
controlável daquele jeito e, no meu contexto do momento, eu estava que nem uma louca
procurando o controle até mesmo debaixo da cama.
Abracei minha irmã com força, sentindo-me feliz por estarmos juntas novamente. Havia algo
entre eu e Melissa que era inexplicável. Nós conversávamos através de olhares, brigávamos com
bastante frequência e virávamos feras se alguém maltratasse uma ou outra. Apesar de termos
uma diferença de oito anos, nossa mentalidade era muito parecida, e nosso gosto para homens
completamente diferente.
—Nem se importou com a minha chegada, — dramatizou enquanto entrávamos em casa — mas
agora falando sério: mamãe está enlouquecida. Desde quando você anda dando dor de cabeça
para ela?! Pensei que eu fosse a problemática.
—Desde quando descobri alguns segredos, como esse: — levantei a mão na direção da porta pela
qual havíamos acabado de passar e a fechei, sem toques. Apenas com a minha magia. — Que,
aliás, você também omitiu, né?
—Não foi bem uma opção, desde que a nossa mãe praticamente ameaçou me matar, se eu
contasse ou a deixasse descobrir — Mel retrucou, jogando-se no sofá.
—Você sabia que ela não seria capaz.—Sentei-me na poltrona.
—De me matar não, mas de apagar a sua memória sim. E eu não queria que, por um acidente,
você se esquecesse dos seus amigos ou de coisas importantes — desabafou. — Apagar a
memória dos outros é um feitiço muito difícil e com alto risco de erro. Somente os bruxos mais
experientes fazem e, no caso da mamãe, os mais desesperados. Por isso, ela ficava me treinando
o tempo todo.
—O quê?! — Levantei e comecei a andar de um lado para o outro. — Você sabe apagar a
memória dos outros?
—Meu bem, qualquer bruxo pode apagar a memória de outra pessoa. A diferença tá em fazer
sem sequelas ou não. —Riu, sentando-se para me encarar, e perdendo o divertimento ao notar
minha expressão preocupada. — Que merda aconteceu?!
—O meu... ex... longa história, ele teve a memória apagada. Você saberia recuperar ou ajudar de
alguma forma? — Repousei minhas mãos na poltrona dela, ansiosa.
—Posso tentar...—Mel estourou uma bolha de chiclete rosa. — Sob a condição de que nos
perdoe. A mim e a mamãe.
—Eu entendo vocês, mas a decisão dela de vendar os meus olhos foi pior. — Voltei a andar pela
sala. — Fico procurando informações com pessoas que conheço há pouco tempo, mal sabia usar
magia, e mesmo assim fui convocada a assumir a minha herança. Ela não cogitou que isso
aconteceria de uma forma ou de outra?!
—Na verdade, eu sabia que aconteceria mais cedo ou mais tarde, mas mãe nunca perde a
esperança — minha mãe respondeu. Assustei-me afinal, não sabia que estava ouvindo nossa
conversa. — Mães se agarram a preces, crenças, fés, qualquer fiapo de esperança capaz de fazê-
las acreditar que será diferente. Mesmo que contrarie toda a lógica. Não tínhamos como fugir.
Mas, pelo menos eu posso dizer que dei o meu máximo.
Ela parou na porta da cozinha enquanto mexia nas próprias mãos. Parecia emocionada. Mel
pulou do sofá e me abraçou no instante em que comecei a chorar. Triste por nossas vidas terem
tomado aquele rumo de planos engenhosos para fugirmos de um homem perigoso. Minha mãe se
aproximou e nos abraçamos. As três. Juntas. E, apesar do futuro esquisito que me aguardava, eu
me sentia feliz por termos superado as mentiras, os segredos, e estarmos abraçadas de coração.
Por saber que dali pra frente, também estaria segura com a minha família. Por me sentir forte
com aquela união ao ponto de entender que nenhuma missão é dada àquele que não possa
suportá-la. Se eu havia sido escolhida como a herdeira, era porque eu seria capaz de ser uma.
Capítulo 28

Tentei ligar para Téo mais algumas vezes, porém, seu celular continuava
sem sinal ou desligado. Eu não queria parecer a ex obsessiva que persegue o cara, pois não
supera o término. Então, deixei uma mensagem em seu whatsapp e ele retornaria assim que
possível. Pelo menos eu acreditava que sim.
Melissa estava empolgada com o fato de eu ter de fato me tornado uma bruxa, ou seja, por eu
saber que tinha poderes e que podíamos usá-los para um monte de coisas. Por isso, sentamos no
chão do meu quarto, como as duas adolescentes que deveríamos ter sido, e abrimos nossos
grimórios. Em determinado momento, minha mãe enfiou a cara no quarto para dizer que não
podíamos fazer feitiços proibidos para que não fossemos punidas pela Corte.
Confesso que nesse momento a minha mente ficou congelada por uns segundos tentando
compreender a informação. Se eu era a próxima Presidente da Corte, quem seria o responsável
por me punir? Perguntei a Mel.
—Há um grupo de conselheiros que representam a presidente até que ela de fato assuma seu
cargo. Eles são divididos em várias áreas, mas não ache que há uma descentralização do poder, a
Presidente é como uma rainha, e eu nunca entendi por que usar um termo tão democrático,
quando isso não representa nossa Corte.
Mel continuou a folhear seu grimório naturalmente, como se não estivesse falando sobre uma
CORTE que comandava nossas vidas. A verdade é que, no final das contas, eu devia satisfações
a dois locais diferentes: a lei dos humanos e a dos bruxos. É verdade que todo bônus acompanha
um ônus.
—Você precisa fazer sua oração logo para proteger as informações que está anotando aí. — Mel
manteve seus olhos vidrados no livro, parecendo ter encontrado o que procurava. — Achei.
Ceromancia. Está preparada para brincar de oráculo com as velas?
A Mel é exatamente essa pessoa. A que você está pensando. Aquela que o mundo está
desabando, que sabe o quanto você precisa aprender sobre rituais de proteção, mas prefere se
divertir com o oráculo das velas. Eu não a julgava. Estava tão empolgada quanto para
experimentar a Ceromancia afinal, era algo completamente novo para mim. Precisava aceitar que
no mundo dos bruxos, eu era como um bebê conhecendo o espaço ao redor.
—As velas são uma fonte ótima de energia, sabia? — Pôs-se de pé em um pulo. — E eu senti sua
aura fragilizada, talvez seja bom. Vou buscar algumas no depósito.
Ok. Acenei com a cabeça confirmando e me deitei sobre o chão, pensando nos últimos
acontecimentos. Sei que tinha prometido a mim mesma não ligar para o Téo novamente, mas a
culpa estava me corroendo. Apesar de nos conhecermos há tão pouco tempo, sabia o quanto ele
era compreensivo, no entanto, compreensão não impede a tristeza. Eu posso compreender algo,
contudo, ainda assim, eu posso me sentir triste pelo mesmo motivo. Olhei o whatsapp e a
mensagem estava com os dois v, ou seja, ele estava com o celular ligado. E não tinha me
retornado, tampouco respondido. Fiz a chamada convencional e no quarto toque ele atendeu.
—Ei... — respondeu, parecendo sem jeito.
—Eu sinto muito. — Sentei apressadamente para poder conversar melhor, ainda que
estivéssemos longe um do outro. —Por tudo. Pela sua avó, por eu não ter ido, e por ter sumido.
Sei que eu sou a última coisa na sua lista de preocupações no momento, e isso não é drama, é a
verdade. Mas, eu, de forma egoísta, precisava tirar essa culpa dos meus ombros.
Era a verdade. Eu o estava incomodando única e exclusivamente para me livrar da culpa. Da
culpa por saber que Téo provavelmente havia esperado mais de mim, havia esperado que eu
vencesse todas as barreiras para estar ao seu lado num dos momentos mais difíceis da sua vida,
que eu tivesse ao menos me preocupado em ligar para que ele não se sentisse só.
—Você só ligou mesmo para tirar a culpa dos seus ombros?! — Téo pareceu muito surpreso e
havia uma rusga de dor em sua voz. — Achei que...
—Não. Eu quis dizer que liguei de forma tão insistente por esse motivo. Se eu não me sentisse
culpada, teria respeitado o seu tempo sem ser invasiva.
Pude ouvi-lo soltar a respiração do outro lado. Como quem se recupera de uma lesão.
—Não foi invasiva — respondeu de forma carinhosa. — Se você não tivesse sido tão sincera, eu
juraria que a razão de tantas ligações era saudade. Mas, aí, eu estaria sendo egoísta. Querendo
isso quando vim procurar a minha suposta noiva.
Escutei uns barulhos ao fundo, como se algumas pessoas o estivessem cumprimentando com
demasiada alegria. Aparentemente sua mão tampou o telefone rapidamente, enquanto eu
permanecia em silêncio.
—Perdão pela interrupção.
—Téo, a minha irmã sabe apagar a memória e, talvez, ela possa ajudar — comentei bem no
instante em que Mel surgiu na porta com cinco velas. —Poderíamos tentar. O que acha?!
Ele sorriu. Sim. Um sorriso tão gostoso que eu acabei sorrindo também. Podia enxergá-lo com os
lábios estendidos de orelha a orelha, os olhos de outono brilhando com certa alegria. É... Talvez
eu estivesse com saudade. Ou com medo de não o ter por perto. Téo parecia um porto seguro.
Em vários sentidos.
—Você está sugerindo isso para tirar a culpa dos seus ombros por alguma outra coisa? — sua
voz soou mais próxima do telefone, como se a conversa tivesse se tornado íntima. Eu ri.
—Não, mas estou sendo novamente egoísta ao atrapalhar a sua busca — comentei, pensando um
pouco sobre minha atitude.
—O seu egoísmo estranhamente me deixa apaixonado, Kate. Porque ele me requisita, ele está me
dizendo que você me quer de volta, e que não quer que eu continue a busca — suspirou,
parecendo realmente apaixonado. — Sabe o quão é difícil abrir mão de você por alguém de
quem eu não me recordo? Ainda mais depois dessa sua sugestão?!
O que eu estava fazendo?! Eu tinha arruinado a determinação dele em encontrar a noiva.
—Eu quero ajudar. Quero estar ao seu lado nessa busca. Mesmo que apenas como amiga —
confessei. — Por favor, não me entenda errado.
Por alguns instantes a ligação permaneceu em silêncio. Algo que eu havia falado deixara Téo
sem palavras imediatas para me oferecer. Eu o queria de volta, queria que estivesse perto de
mim, mas eu não me sentia pronta para denominar o meu sentimento como paixão. Eu apenas
conseguia nomear como egoísmo. Porque a culpa por me meter numa situação tão importante
quanto aquela era gigante e me impedia de ver qualquer sentimento.
—Preciso resolver umas coisas por aqui, como líder dos peregrinos, mas acho que consigo voltar
até o próximo sábado —aproximou a boca do telefone, de modo que pude ouvir sua respiração
próxima de mim: — e vejo o que sua irmã pode fazer. Se cuida.
—Você também.
Téo encerrou a ligação, e eu me joguei no chão novamente. Que droga eu estava fazendo com a
minha vida?! Levei as mãos ao cabelo, nervosa, e Mel parou ao meu lado, em pé, encarando-me
com seus olhos esverdeados e esbugalhados.
—A magia despertou o seu lado romântico, foi?! — Sentou-se ao meu lado. — Anda, senta logo.
E abre o bico.
—Saco, nem eu sei —bufei, encostando meu corpo na cama.
—Esse é o ex que você falou da memória. Ele é o carinha de mais cedo que veio te trazer em
casa?
Contorci o rosto sem graça pela pergunta. Como dizer que não?! Que eram homens diferentes e
que eu conseguia sentir coisas estranhas pelos dois, em proporções diversas.
—Não creio! Dois caras, Kate?! — Ela largou as duas velas entre nós e bateu as mãos nas coxas,
animada. —Meu sonho ter dois homens me disputando. — Riu, como se isso fosse divertido.
—Eles não estão exatamente me disputando. Eles nem se conhecem direito. Não surta, Mel —
reclamei.
—Mas eles conhecem você, e obviamente uma hora eles vão se conhecer bem. — Melissa riu
novamente, achando realmente muito divertida a minha situação. — Pensa só comigo, qual a
chance de você manter um oculto do outro numa cidade tão pequena?!
—Melissa West! — chamei sua atenção, e ela riu mais um pouco antes de conseguir se controlar.
— Eu estava com o Téo, no entanto, rolaram umas coisas esquisitas com o Eric. E eu não estou
com os dois. Aliás, me deixe testar uma coisa.—Puxei sua mão com as unhas devidamente
pintadas de azul bebê, e a apertei, imaginando a troca de energia.
—O que está fazendo? — Ela franziu o cenho, encarando nossas mãos. Podia sentir a nossa
energia sendo trocada. — Sabe que pode roubar energia da vela, né? Eu não quero ficar com
sono, tenho um encontro mais tarde.
Soltei sua mão imediatamente, preocupada de prejudicá-la. E, afinal, meu teste já havia sido
feito. Nem de perto a troca de energia entre nós duas havia sido tão intensa quando a minha troca
com Eric. Eu não havia sentido nem metade, parecia que apenas estávamos recebendo uma
transfusão, sem a parte da dor, ou qualquer parte emocional.
—Eu troquei energia com o Eric ontem. Ele estava muito fraco, por isso, eu estou um pouco
debilitada. Mas, o que você sabe sobre troca de energia? Porque o máximo que senti com você
foi um choque inicial e depois mais nada.
—E com ele não?! — Ela parecia chocada e um sorriso malicioso surgiu em seus lábios.
Balancei a cabeça, indicando que com ele havia sido diferente, mas já receosa se deveria ter sido
sincera. Mel riu novamente, contudo, controlou-se rapidamente ao ver a minha expressão séria.
—Só significa que vocês têm tesão um pelo outro. Sendo curta e objetiva. A intensidade do tesão
reflete na intensidade do que você sentiu. Bruxos têm esse lance bom que apimenta a relação
sexual. — Ela corou um pouco, e eu comecei a corar junto.
—Eu ainda nem tive relações sexuais, assim não estou preocupada em apimentar nada —
comentei pausadamente, já querendo me levantar e desistir da Ceromancia.
—Pelo visto não precisa se preocupar mesmo, já está garantido que vai ser explosivo. Acho
melhor começar com outro cara primeiro, né? Porque se você é virgem, o negócio pode pegar
fogo, e ele pode, sem querer, perder o controle e machucar você.
Levantei. Engoli em seco. E me afastei. Que porcaria. Mel estava enfiando na minha mente
imagens que eu não queria. Estava me obrigando a imaginar como seria se um beijo tivesse
acontecido. Como seria se fizéssemos mais coisas que apenas um beijo. Porque a sensação da
energia era prazerosa, enlouquecedora e forte. Eu podia sentir o meu corpo reagindo apenas ao
pensar um pouco sobre aquilo, sobre os sentimentos despertados.
—Está pensando, né?! — Mel cutucou minha perna, e eu dei um pulo, tamanha a minha
concentração nas imagens indesejadas.
—Vou devolver você para a barriga da nossa mãe — respondi, sentando-me de frente para ela
novamente. —Olha o conselho que você me dá. Se ele é só tesão, eu devo então ignorar. Não
usar a minha primeira vez com ele, né, Mel?! — Cruzei os braços, indignada.
—Você sabe que eu não vejo sexo dessa forma. Pra mim é apenas prazer. — Mel pegou uma
vela rosa, outra vermelha e me entregou. — E eu nunca disse que o cara era somente tesão. Eu
nem conheço a história de vocês dois. Tenho certeza do tesão, do resto, só você pode saber. Mas,
com certeza, esse daí com quem você estava falando não é nem de longe somente tesão.
—Gosto de estar com ele — sussurrei, confessando bem baixo para mim mesma e mais baixo
ainda para minha irmã. Gostar de alguém não era algo comum no meu vocabulário. E, por um
instante, eu desejei nunca o ter conhecido. — Vamos focar nas velas?
Mel concordou com a cabeça e passou a me explicar que antes de acendermos uma vela,
devemos intencioná-la para nossas vontades. Apenas energia? Ritual? Ceromancia? Não era
legal e nem funcionava cem por cento, tentar direcionar uma vela depois de acesa. Melissa tinha
subido com várias cores de vela e acabou por escolher rosa e vermelho, já que eu estava em
dúvida entre dois homens, então, poderia ser do meu interesse saber qual dos dois seria amor e
qual seria paixão. No entanto, eu não queria perguntar sobre eles. Por isso, fiquei com a única
vela branca que Melissa havia trazido.
—Você faz uma pergunta e a gente pinga a cera nessa bacia de água. — Mel estalou os dedos e
sua vela rosa se acendeu. —Faça você também.
—Mas toda vez que eu estalar os dedos vai aparecer uma chama? — perguntei, sentindo-me um
pouco preocupada com a possibilidade de causar um incêndio.
—Não. Você está nitidamente direcionando seu estalar de dedos para a vela, pensando na chama.
É diferente se você estalar durante uma conversa normal.
Olhei para minha vela branca e pensei na chama, inclusive, pensei em todas as vezes em que
precisei usar o isqueiro para acender as velas de aniversário. As incontáveis vezes nas quais o
vento a apagava e eu precisava insistir, quando tinha a chama num estalar de dedos. Uma vida de
mentiras. Estalei, sentindo uma confiança me dominar quando a chama surgiu.
—Você não precisa me falar sua pergunta. Pode só mentalizar, virar a vela para que a cera caia
um pouquinho mais rápido e aguardar o desenho. Eu explico o que ele significa e você interpreta.
Vou começar. — Mel pegou sua vela rosa na ponta de baixo. — Vou gostar do carinha de hoje?
Inclinou a vela e, pouco a pouco, a cera foi descendo e pingando na tigela. Após um tempo,
conforme a cera foi se juntando para formar a imagem, Melissa repousou a vela novamente sobre
um pratinho e aguardamos. Na minha concepção, aquilo parecia uma cobra. Mel estalou os
dedos novamente e as páginas de seu grimório passaram rapidamente, até pararem em uma cheia
de desenhos.
—Proteja-se do inimigo. — Ela olhou para o desenho e para mim. — É uma cobra, né?! —
Confirmei. — Vai ver que ele tem outra. Que loucura. Vai você.
Segurei minha vela branca.
—Devo chamar o Téo para o baile de sábado? — Inclinei a vela sobre a tigela e repeti o processo
de Mel. Quando a cera começou a se unir, eu devolvi a vela ao prato.
Aguardamos. E um chapéu se formou. Mel fuxicou seu grimório, onde havia o desenho e ao seu
lado a explicação.
—Você deve mudar o local. Talvez você deva chamá-lo para outro lugar e não para o baile —
ela sugeriu, tentando interpretar o desenho. — Ei. A cera está se movimentando.
—Isso é normal?
—Acontece. Há mais de uma resposta para a sua pergunta —ela explicou. Gradativamente uma
bruxa se formou na cera. — Perigo.
—Que perigo? Téo é perigoso?! Mas por que mudar o local?
Comecei a gesticular enquanto falava, nervosa com a situação. Era para aquele momento entre
irmãs ser divertido, mas, como de costume, nada na minha vida vinha sendo normal e agradável.
Tudo tinha uma carga pesada. Assoprei minha vela e levantei.
—Calma, Kate. Não dá para saber exatamente o que a vela quis dizer, a não ser que façamos
mais perguntas — ela argumentou, levantando-se também. — Podemos ir perguntando até
encontrarmos a explicação.
—Estou um pouco assustada, Mel. E se a cada pergunta, eu descobrir coisas que não quero
saber? Eu não gosto de saber sobre o futuro. Ele me obriga a pensar que meu destino está escrito,
independentemente das minhas escolhas. Como se eu fosse uma marionete. E eu gosto de pensar
que sou como a Pocahontas e que tenho duas opções por onde guiar minha canoa.
—A vela está nos dando a oportunidade de justamente mudar seu destino. Consegue
compreender? Ela está sugerindo um local diferente e alertando sobre um perigo. Perigo no
baile? Téo é perigoso? A explicação é mudança de local, mas e se for mudança de par? Não
temos essa opção aqui, né?!
A campainha tocou, e não pude tomar a decisão de tentar mais uma vez. A sentença da vela tinha
sido mesmo aquela. Troca de local e perigo. O que queria dizer, eu somente saberia praticando
Ceromancia novamente ou no dia do baile.
Capítulo 29

Melissa ficou no quarto para ocultar os rastros de magia enquanto eu


descia para abrir a porta. Muito provavelmente era a Jane para irmos juntas no dia seguinte para
a faculdade, e isso me levava a Lola e ao fato de não termos tido uma conversa decente desde o
ocorrido com Eric no cemitério. Olhei para o relógio digital sobre o buffet perto da porta: oito
horas da noite. Ainda dava tempo de conversar com ela.
Puxei a cortina ao lado da porta, que cobria os pequenos vidros, afinal, eu não conseguia mais
viver tranquila depois de ter encontrado Joseph. Ou depois de Samantha ter morrido, e eu nem
mesmo sabia as circunstâncias exatas de sua morte. E, bem, não era a Jane. Dei um discreto pulo
para trás quando olhos opacos me encararam do lado de fora. Rapidamente uma mecha ruiva
cobriu minha visão e a campainha tocou novamente. Mel surgiu no andar de cima, gritando
porque eu não havia aberto ainda.
—Quem é?! — perguntei do lado de dentro.
—Desculpe. Sou Kamille, a Maya me mandou para treinar você — ela emendava uma palavra na
outra, como se estivesse com pressa.
—Às oito horas de um domingo?! — retruquei enquanto Mel se aproximava e sussurrava: “você
pode colocar sua mão sobre a porta sempre que quiser saber quem está do outro lado”.
—A Maya não tem muita noção do que é adequado quando tem um propósito, sinto muito —
Kamille explicou, parecendo realmente sem jeito enquanto parecia também achar um pouco de
graça do comportamento de Maya.
“Ela está falando a verdade”. Melissa avisou após estender a mão sobre a madeira. Soltei a
respiração e abrimos a porta. Ok. Eu não sou lésbica, aliás, eu ando até mais ocupada com
homens do que gostaria, mas beleza era algo que não faltava em Kamille. E eu não precisava
gostar de mulheres para saber disso. Ela parecia uma deusa. Cabelos ruivos e compridos,
provavelmente naturais, um rosto elegante como de uma modelo. Sua pele era tão branca que eu
podia ver algumas veias. E um pouco mais alta que eu e minha irmã. Havia um ar mágico ao
redor dela, como se ela fosse um ser encantado que flutuaria na minha frente sem qualquer
problema.
—Entre, por favor — pedi, chegando para o lado e dando passagem a Kamille. No entanto,
jamais imaginei que ela fosse puxar uma mala de rodinhas. Duas, na verdade.
—Vai morar aqui?! — Melissa foi mais rápida e, pra variar, deselegante também.
—O treinamento será intensivo, então, sim. — Kamille riu da nossa cara, porém, ela não parecia
ter se sentido ofendida com a pergunta, ela estava muito tranquila com a situação. — Quanto
antes acabarmos, melhor. Não acha? Aliás, pode me chamar de Mil. Com nossa convivência,
você vai notar que vivo a mil por hora, então o apelido pegou. Falo muito rápido, às vezes sem
parar, e sempre tenho assuntos diferentes e conversas paralelas...
—Se você não dissesse, eu não perceberia — brinquei, retirando mais um riso dela. Mil só sabia
rir?!
—Vejo que ironia é uma das suas características. Deixarei anotado mentalmente — comentou e
olhou ao redor. — Eu queria ao menos instalar minhas coisas em um canto antes de começarmos.
—A gente vai começar hoje mesmo então? — Olhei para o relógio mais uma vez, apenas para ter
certeza de que tinha visto a hora corretamente. — Eu tenho aula amanhã cedo... —Mil me
interrompeu.
—Gostaria muito de poder compreender o seu lado, mas, infelizmente, eu preciso começar hoje.
A sua coroação precisa acontecer o mais rápido possível, antes que Joseph tenha a oportunidade
de encontrar você, e para isso eu preciso fazer você ter certeza do quanto será maravilhoso ser a
presidente da nossa CORTE. A nossa presidente. — Sim, leia sem nenhuma pausa porque ela
não parou para respirar.
Fiquei em silêncio digerindo as palavras desenfreadas de Mil e me aproveitei dessa característica
dela para fingir que havia ficado confusa. Mas eu não havia ficado. Apesar da rapidez com que
Mil falava, eu pude notar que sua escolha de palavras era precisa. Ela precisava me fazer ter
certeza. Ela precisava que eu aceitasse o cargo. Maya obrigara Mil a me mostrar apenas o lado
bom de ser presidente, isso estava implícito na sua explicação. Bem, eu teria um trabalho
tentando extrair o lado ruim.
—Por que Joseph não poderia me encontrar antes da coroação? Ele pode encontrar depois então?
Não consegui entender. — Sentei na poltrona, já aceitando a realidade de que precisaria ter aula
naquele mesmo dia.
—Joseph é um homem extremamente perigoso, capaz de qualquer coisa para alcançar seus
objetivos. E um bruxo é capaz de obrigar com magia um outro bruxo a fazer qualquer coisa, se
ele dominar a arte da manipulação. — Mil descia e subia a alça de uma das malas, distraída com
ela. — Joseph domina. No entanto, apenas uma pessoa não pode ser alvo desse feitiço. A
Presidente da CORTE DA MAGIA E DA ORDEM. Assim, enquanto você não assumir seu
cargo — Mil levantou os olhos opacos na minha direção —, Joseph pode facilmente manipular
você a matar o amor da sua vida.
—Ele terá dificuldades nesse quesito. Nem ela mesma sabe quem é o amor da vida dela, está em
dúvida...—A almofada que estava no sofá ao lado estranhamente voou no rosto da minha irmã
tagarela.
—Uma pena você ter descoberto seus poderes, antes você era mega caolha — Mel reclamou,
zombando da minha aptidão para perder em guerra de travesseiro. Sou capaz de acertar tudo,
menos o alvo. —Vem comigo, eu te mostro o quarto de hóspedes. Preciso me arrumar para sair
com um carinha. — Mel entrelaçou seu braço ao de Mil e cada uma carregou uma mala. — Você
já usou aquele aplicativo de namoro bruxo? É ótimo.
—Sou comprometida — comentou com orgulho.
—Conheceu como? Talvez eu precise das suas dicas — Mel continuou indagando.
Mel e Lola eram iguais no quesito homens. Viciadas. No entanto, o que Lola tinha de interesse
romântico e esperança em encontrar seu amor eterno, minha irmã tinha por sexo. Para ela,
homem somente servia para esse intuito; dar prazer. E nesse ponto nós tínhamos algo em
comum: dificilmente Mel conseguia se envolver amorosamente com alguém por muito tempo.
—Ele foi à CORTE para negociar algumas coisas, várias vezes. Então, acabamos nos
apaixonando.
Aos poucos, a conversa ficava longe e eu precisava me esforçar muito para ouvir. Abandonei a
tentativa e aguardei Mil descer novamente, já livre de suas malas. Ela se sentou, após eu
autorizar, na poltrona em frente à minha e sem hesitar começou a falar.
—É a primeira vez que dou aula para a herdeira, então, confesso que estou um pouco nervosa.
Preciso convencer você a aceitar o cargo mais importante da CORTE...
—Calma, eu tenho algumas perguntas. Por que você precisa me convencer? — não custava nada
tentar. Ela seria sincera comigo?
—Você quer morrer?! — Levei o dedo à boca, indicando que ela deveria falar baixo. Mil
assentiu.
—Não, eu não quero — respondi.
—Nem eu — Mil exclamou, e eu fiquei na dúvida.
—Você também vai morrer? — Fiz uma anotação mental para que controlasse minhas emoções
da próxima vez e não acabasse falando alto novamente.
—Sim! Para cada herdeira, há um grupo de pessoas destinadas à CORTE. Para cada herdeira, há
uma observadora. Eu sou a sua. E se você recusar ou não aceitar no prazo, nós morremos. — Ela
acariciava o dedo da mão de uma maneira esquisita.
—Como?! Sou responsável pelo seu destino? — Levantei em um pulo.
Não bastava eu ter que lidar com a minha própria sentença, eu também era responsável por
aquela moça. Responsável pelo futuro dela. Se ela se casaria, se teria filhos, se seria bem
sucedida, se seria simplesmente feliz. Eu estava carregando em meus ombros a vida dela e das
outras pessoas da CORTE. Estava carregando a tristeza das pessoas que os amavam e que
sofreriam caso eu não aceitasse.
—Não é esse o ponto. — Mil fez um coque no cabelo. — Por sermos as escolhidas para esses
cargos, nós tomamos conhecimento de muitas informações sigilosas e que colocariam em risco
toda a sociedade sobrenatural se reveladas. Por isso, a sua avó morreu.
Você já deve saber que eu estava andando de um lado para o outro, ouvindo a explicação de
Kamille, quando simplesmente congelei. A minha mente processou a mensagem e começou a
criar teorias. Mil tinha noção do que acabara de me dizer? Que minha avó havia assumido o risco
de morrer para não aceitar.
—Quer dizer que minha avó preferiu morrer? — Encarei Mil, um pouco chocada. — Sabe o que
acabou de me dar a entender, né? Quando você deveria estar me convencendo.
Mil simplesmente deu de ombros e cruzou as pernas debaixo do corpo, sentindo-se relaxada e
tranquila. Um sorriso despontou em seu rosto enquanto suas sobrancelhas arqueavam.
—Isso é tão relativo. Você está compreendendo como lhe parece conveniente — explicou com
calma como se fosse uma professora de jardim de infância e estivesse me ensinando a usar a
tesoura. — Sua avó aceitou a herança afinal, ela morreu bem velhinha, certo? No entanto, em
determinado ponto, ela achou que não compensava mais manter seu cargo. E não podia
simplesmente renunciar. Não é assim que funciona. Uma herdeira deve seguir até o final de sua
vida no poder. Assim, ela precisou morrer. Deste modo, — Melissa bateu à porta do quarto —
estou lhe dizendo que ela aceitou.
Em segundos, minha irmã estava parada a nossa frente com uma roupa sexy e que a deixava
ainda mais linda. Seus cabelos loiros estavam lisos e soltos sobre os ombros. Uma pequena bolsa
transversal.
—É domingo, vocês deviam ir beber no bistrô. Não estar aqui conversando sobre a CORTE DA
MAGIA E DA ORDEM — sugeriu, dando uma última olhada no espelho. — Não há nada
melhor para criar vínculo do que ficar bêbadas juntas.
—Claro. Porque, em dois segundos, eu seria sequestrada— debochei.
—Se ele quisesse mesmo pegar você, não acha que já o teria feito?! — Mel retrucou, parecendo
saber de algo que eu desconhecia. — Uma pessoa realmente empenhada assim, Kate, já teria
conseguido. Pare com isso e vá se divertir. A vida é uma só.
Tudo bem. Sei que Melissa é bem louquinha, do tipo aproveitar cada momento, sem neuras ou
estresse. Mas naquele momento ela estava exagerando. Minha mãe não teria me cercado de tanta
segurança, de mentiras, segredos e planos se o homem não estivesse tão empenhado em me
pegar, não é?! No entanto, suas palavras me indicaram algo: se Joseph havia me encontrado com
Eric, por que não podia simplesmente ter nos seguido? Ele já não saberia meu endereço? Até
mesmo sabia sobre Téo. Por que, então, Joseph ainda não havia me sequestrado?!
Capítulo 30

Surtei. Assim que Melissa se despediu e trancou a porta, Mil voltou a


falar e eu simplesmente não sei metade do que foi dito. Minha mente tinha travado na sugestão
da minha irmã, como quando você tem uma palavra na ponta da língua e fica matutando até que
ela seja despejada. Porque, na realidade, Mel parecia muito sensata na sua colocação.
—Não posso continuar hoje. Preciso fazer uma coisa — avisei, levantando-me da poltrona. —
Pode ficar à vontade.
As tábuas de madeira rangiam conforme eu andava apressadamente procurando minha mãe.
Subi, desci e nada. E restava-me apenas o porão, contudo, até onde eu sabia, ele era inutilizado.
Minha mãe dizia que uma infiltração destruíra o teto dele e era perigoso ficar lá. Pensando nessa
explicação naquele momento, eu a achava ilógica, contudo, eu nunca havia tido o interesse de
descobrir se era verdade. Por qual motivo eu ia querer entrar no porão? Somente por que ela me
proibia?! Não, não sou o tipo de pessoa que faz algo apenas por ser proibida de fazer. Melissa é.
Desci as escadas com a mesma pressa de antes e a encontrei debruçada sobre uma mesa grande
de madeira. Entretanto, meus olhos rapidamente se distraíram com o verdadeiro escritório de
bruxaria que minha mãe montara no aposento. Armários com velas de diversas cores, livros, um
quadro com símbolos, ervas, um hexagrama no chão.
—Entendo por qual razão o porão era perigoso — comentei quando superei certa admiração e
comecei a andar na direção dela. Minha mãe pretendia responder, porém, eu não podia permitir
que uma nova informação me fosse passada e eu acabasse me esquecendo do propósito da minha
ida até ali. — Já superamos a fase na qual eu não sei que somos bruxas ou que fez inúmeros
feitiços para me proteger. Mas agora eu preciso saber de quem e o motivo.
Estendi a mão e trouxe uma cadeira de madeira até a mesa para que pudesse me sentar à sua
frente. Havia uma vela queimando bem perto de nós, e umas ervas picadas num potinho de
madeira.
—Você não deveria e nem pode ficar usando sua magia para coisas insignificantes como
movimentar uma cadeira, Kate. — Ela fechou o livro, que parecia um grimório, bruscamente.
—Infelizmente, eu preciso recuperar os vinte e um anos perdidos — debochei, chateada pela
conversa estar tomando um rumo oposto ao que eu pretendia. — Quem e por quê?
—Eu fiz a mesma pergunta a sua avó quando era jovem. — Minha mãe pegou o pote e voltou a
bater as ervas lá dentro. —Quando ela apareceu machucada pela primeira vez. Eu queria saber
quem tinha acertado uma faca no braço dela, e queria saber por que ela não estava indo à polícia
ou à CORTE e, então, eu entendi. Não havia o que ser feito.
Minha mãe largou o pote sobre a mesa e começou a andar de um lado para o outro — é, eu havia
herdado a mania dela —, seus cabelos castanhos batiam no início de suas costas, volumosos e
bonitos. Minha mãe era forte, apesar da idade, apesar dos problemas e das despedidas.
—A verdade é que eu estava tentando proteger você da herança. De que você fosse convocada e
do preço que pagaria quando isso acontecesse. Joseph é apenas uma parte da equação. Ele a quer.
— Parou em frente ao armário de velas e livros e apoiou as mãos ali, como se estivesse perdendo
suas forças. — Mas, há muito mais, Kate. Ele não é o único inimigo, ele não é o pior. E, se você
quiser que eu continue aqui por mais alguns anos, tentando auxiliá-la em alguma coisa, não me
peça para contar. Não insista que eu revele mais do que posso.
Ela virou para me encarar. O rosto enrugado por uma dor entranhada nela, uma dor pela qual
minha mãe aparentemente nunca teve muito tempo para sofrer. Eu me senti mal, por tê-la
pressionado. Por estar a obrigando a reviver os momentos ruins com minha avó. Por ter se
lembrado da facada e da sua impotência em não ter feito nada para salvar ou ajudar a própria
mãe. Quanto sofrimento.
—Sei que você não pode recusar ou morrerá. Não precisa esconder isso de mim, ou da sua irmã
— comentou, com a voz embargada. — Você deve aceitar, Kate. Sua avó acreditava em você,
acreditava que você seria capaz de começar uma nova era para nós, capaz de suportar todos os
males no caminho, e ela se enfiou em um monte de feitiços e rituais para garantir que isso
acontecesse. Que você fosse ser de fato A HERDEIRA. — Sim, minha mãe tinha enfatizado o
termo a herdeira como se ele estivesse em letra maiúscula. — Eu também acredito, no entanto,
você é minha filha e eu tentei evitar que isso fosse necessário. Eu prefiro você a essa nova era.
Levantei em um pulo e abracei minha mãe o mais forte que podia. A abracei, despejando-me dos
momentos nos quais senti raiva pelas mentiras e segredos, pelas mágoas por achar que ela não
confiava em mim, guardando entre nós apenas o amor de mãe e filha.
—Por que ele ainda não veio me encontrar? Por que esses inimigos tão perigosos não
apareceram, mãe? — Afastei-me para olhar em seus olhos, suplicando por apenas essa resposta.
Rezando aos céus para que ela pudesse me dizer isso. — Eles poderiam ter me seguido. Como
pessoas normais, não como bruxos ou outros seres.
—Sim. Mas a verdade é que essa é uma guerra política, Kate. E guerras políticas são travadas no
silêncio da noite, são calculadas friamente como a próxima peça de xadrez a ser movimentada,
para que quando o bote seja dado, ele seja fatal. Pessoas influentes e poderosas não se sujam,
elas movimentam os outros em seus lugares. — Ela segurou as minhas mãos com firmeza, mas
em seguida acariciou meu rosto como há muito não fazia. — Então, a gente pode estar sendo
espionada nesse exato instante. Nossos passos decorados para que sejamos pegas no momento
mais oportuno.
—E o que eu devo fazer? — Confesso ter me sentido em uma sala fechada, sem janelas ou
portas, e na qual as paredes caminhavam na minha direção.
—Jogar as suas peças. Aceitar a herança e nunca ficar desprevenida. Aprenda magia. — Minha
mãe mantinha os olhos nos meus, fixos, passando firmeza e força. — Aproveite esta menina que
a CORTE mandou e tire o máximo que puder.

Segui os conselhos da minha mãe. Sempre fui uma filha predisposta a ouvir a mãe, ponderar
sobre suas opiniões e, após aquela conversa tão sincera e transparente, eu não tive outra saída a
não ser acatar sua recomendação. Por isso, decidi faltar à faculdade na segunda-feira para ficar a
madrugada inteira estudando magia.
Mil havia me ensinado sobre as propriedades das pedras, como eu devia limpá-las antes de usar,
e havia me entregue uma para proteção, impedia que minha mente fosse acessada por outros
bruxos, salvo os que eu permitisse. Era tipo a verbena de The Vampire Diaries. Seu nome era
obsidiana. Era preta e brilhosa, sem qualquer ranhura que alterasse ou atrapalhasse sua
homogeneidade. Minha professora sugeriu que eu procurasse uma joalheria e a transformasse em
um colar. Faria isso naquela semana mesmo, obviamente se eu não fosse soterrada por novos
acontecimentos e acabasse me esquecendo daquele compromisso. Algo bem comum na minha
vida nas últimas semanas.
Os primeiros raios de sol invadiram a sala quando comecei a dar meus cochilos no sofá. Em
nenhuma das vezes, Mil ousou me acordar. Tenho certeza disso porque meus olhos abriam
sozinhos e assustados quando minha cabeça pendia para um lado, para o outro ou para frente. E
ela estava lá, natural, tranquila e fingindo não perceber minha ausência temporária. Devia ser a
décima vez quando entreguei os pontos e subimos para nossos quartos.
Fechei a porta e puxei as cortinas, uma de encontro a outra, para garantir que no meu quarto
ainda fosse noite. Deitei na cama e olhei para o teto. Revisei cada uma das informações sobre
pedras, ervas, poções, e sobre o ponto comum em cada uma dessas lições: energia. Um elemento
como uma pedra está puro em sua forma e natureza, mas você deve limpá-lo e carregá-lo com as
energias para o fim que almeja. Assim, eu acabei pensando no meu grimório e na recomendação
de que ele deveria ter uma oração protegendo-o.
Peguei-o no meu armário, escolhi uma caneta e me sentei na cama. Não foi muito difícil; eram
como se as palavras simplesmente tivessem se alinhado na minha mente depois de tanta reflexão,
de tanto aprendizado. A magia parecia estar correndo por mim e flutuando ao meu redor. Sim, eu
parecia respirá-la. Parecia fazer parte de um mundo diferente, mais do que eu pertencia ao
mundo dos humanos.

“Ao abrir este livro,


Você só o lerá
Se cumprir o requisito.
Não basta querer,
Tem que poder.
O que você quer daqui?
Seria capaz de morrer
Para o segredo proteger?
Amor não é o bastante
Apesar de ser importante!
Você abriu este livro,
Mas só o leu
Se cumpriu o requisito.”

No entanto, a frase da minha avó “não confie nela” insistia em macular a minha intenção de
fingir que estava tudo bem e que eu poderia ser uma bruxa ou uma humana com uma vida
normal.
Capítulo 31

Jane chegou no final da tarde , quase anoitecendo. Não se aprofundou no


fato de eu ter matado aula mais cedo afinal, eu já havia justificado com uma dor de cabeça.
Copiei a matéria perdida, contudo, apesar de tentar me concentrar e de tentar ouvir Jane falando
sobre como Henrique tinha aparecido na faculdade para prestar primeiro atendimento a uma
aluna por causa de um pequeno incêndio no núcleo de Direito, eu não conseguia parar de pensar
na mensagem de Melissa.
“Parece que o sexo foi bom, vou passar o dia com ele. Meu celular está descarregando, não se
desespere’.
Podia ser paranoia minha, influência dos últimos acontecimentos, entretanto, ainda que aquele
texto parecesse ter sido escrito pela minha irmã, havia algo de errado nele. Discretamente, eu
mantinha o celular desbloqueado para poder reler a mensagem.
—Você não está prestando atenção em mim — Jane estalou os dedos diante dos meus olhos,
fazendo-me dar um discreto pulo na cadeira.
—Não — tirei as mãos do teclado do notebook e relaxei na cadeira, pronta para desabafar
quando Jane voltou a falar.
—Tem alguma coisa de errada acontecendo com você. Nada de relacionamentos, aí aparece o
Téo e você se envolve mais do que deveria. Depois aparece o cara da Lola e você dorme na casa
dele. Isso sem a gente nem saber se você estava ou não com o Téo. Mas o pior disso tudo
mesmo... — fez uma pausa antes de finalizar seu discurso de maneira triunfal e impactante — é
que eu não sei em qual momento deixamos de ser amigas.
Fiquei alguns segundos encarando Jane com a boca aberta, cheia de palavras, porém, tentando
selecionar as melhores. Na verdade, de imediato eu estava tentando escolher as desculpas mais
coerentes, as justificativas mais razoáveis. Resumindo: eu estava bolando a mentira mais
confiável.
—Ok. Sou uma bruxa enfiada em uma aparente disputa de poder e que tem em torno de sete
meses de vida garantidos.
Jane franziu a testa. Depois, ela arqueou as sobrancelhas, arregalando os olhos, em seguida,
contorceu o rosto e começou a rir. Fiquei calada esperando o surto passar e observando cada uma
das suas reações inesperadas. Por fim, ela se sentou na cama e eu virei a cadeira mais um pouco
para que pudéssemos ficar frente a frente.
—Eu suspeitei de drogas para tamanha mudança de comportamento — ponderou, e foi a minha
vez de rir.
—Só você mesma para me fazer rir de tudo que acabei de dizer. — Levantei, fechei o notebook e
me sentei ao seu lado. — Não, meus sete meses de vida garantidos não são por causa do vício em
drogas. É verdade, Jane. — Levantei o braço e hesitei um pouco antes de prosseguir. Será que eu
podia?! Ao menos para provar. Pensei e, em instantes, consegui fazer os livros da minha estante
flutuarem na frente dela.
—Ai.Meu.Deus — ela agarrou minhas mãos e me encarou encantada, ainda parecendo um tanto
incrédula —, não acredito que vamos dominar o mundo. — E me abraçou. — No meu
aniversário, eu quero o Henrique de presente.
Abracei-a de volta e fechei os olhos, satisfeita e rindo internamente. Jane, às vezes, parecia uma
criança de cinco anos: ingênua, feliz e inocente. Eu não tinha certeza de que ela se lembraria
daquilo, tampouco que levaria a sério. Talvez ela achasse que tinha sonhado. Eu só conseguia
rezar para que não a tivesse colocado em perigo. E decidi aguardar que Melissa voltasse. Ela
tinha dito que ficaria apenas mais um dia com o cara bom de cama.

Na faculdade, dificilmente os professores fecham a porta da sala. Talvez pelos alunos que
sempre chegam atrasados, talvez pelos que assistem a aula (fingem) do corredor ou por aqueles
que saem mais cedo. Como eu naquela terça-feira. Avisei a Jane onde estava indo, peguei minhas
coisas e desci as escadas apressadamente. Não sei se preciso comentar, mas precisei me controlar
para não rir quando ela sussurrou: “esse é o momento em que eu dou cobertura para você salvar
o mundo? Tipo o Homem-Aranha?”. Há coisas no mundo que somente a Jane é capaz de fazer
mesmo. Falar, na verdade.
Mexi na tela do meu celular novamente e nenhuma notificação. Nem mesmo do Téo. Parei em
frente à sala 105, que também estava com sua porta aberta. Os alunos estavam sentados e
concentrados no professor parado no canto direito da sala. Ele usava sua habitual jaqueta jeans
escuro e gesticulava apontando para o quadro com empolgação, com entusiasmo. Falava algo
sobre um massacre numa floresta até que, poucos segundos depois, seu rosto mirou o meu e
congelou na minha presença. Seus olhos diminuíram de tamanho, parecendo confusos com a
minha aparição.
Sei que não deveria estar interrompendo o trabalho dele — na verdade, eu não havia
interrompido, eu iria esperar —, mas Inês já era morta. Eric percorreu a distância necessária para
acabar com a distância entre nós. Porém, ele não estava vindo me perguntar o que eu queria, ele
simplesmente pegou minha mão e me carregou para dentro da sala, diante da turma. Merda. O
que ele ia aprontar daquela vez?
—Kate, eu estava contando aos alunos sobre as dezessete mortes na floresta que hoje é nossa
reserva. É o local onde alguns religiosos se reúnem. Podem ser chamados de xamãs ou
peregrinos — sussurrou a última palavra. — Eles foram encontrados com manchas no braço —
Eric pegou meu braço e rabiscou um x no meu pulso —, bem assim. Manchas azuladas. Veneno.
Alguém envenenou dezessete pessoas na reserva florestal há quase cem anos.
Em seguida, ele encerrou a aula, liberando seus alunos e fechando a porta. Continuei parada
fitando a mancha azul no meu pulso e tentando raciocinar sobre a informação propositadamente
dita no meu ouvido, como um segredo que queria ser revelado.
—O que é dessa vez? — questionei, sentando-me sobre a mesa dele sem muita cerimônia.
Tínhamos rompido algumas barreiras rápido demais, isso era um fato.
—Achei que você deveria saber o motivo pelo qual os peregrinos vivem em guerra com as
bruxas — Eric falou cada palavra pausadamente, com calma, como se quisesse ter certeza de que
não seria necessário repetir — e por qual razão política Téo poderia ter interesse em se casar com
você. Não que ele não queira se casar com você por você, deixando claro. — Estendeu as mãos
em sinal de inocência, parando a minha frente e me encarando com certo sarcasmo no sorriso.
—Casar?! Sério que você falou casar? — Não pude impedir meu riso surpreso. — A gente não
tava cogitando casar. E me surpreende que você tenha esses pensamentos tão românticos —
provoquei, puxando meu celular do bolso. —Bem, pra variar, eu tenho um problema.
—Não precisa ficar inventando problemas para esconder a vontade de me ver — debochou,
sentando-se ao meu lado com um sorrisinho convencido, — para esconder que não parou de
pensar em como teria sido se eu a tivesse beijado. Porque eu não parei.
Olhei de lado para ele e jurava que encontraria o mesmo sorriso convencido de antes, mas não.
Eric estava sério, suas palavras sussurradas como se fosse algo íntimo entre nós, como se ele
precisasse que o mundo não soubesse disso. Que ficasse ali para nós dois. As rugas em sua testa
e seu maxilar enrijecido me davam a impressão de que nem mesmo ele conseguia compreender o
que acabara de falar, como se tivesse evitado muito dizer aquilo. No entanto, os seus olhos azuis
e concentrados em mim davam a certeza de que ele não voltaria no tempo para recolhê-las, se
assim pudesse.
E, sem a necessidade de qualquer feitiço, eu simplesmente me mantive inerte, como se estivesse
congelada. Eric aproximou seu corpo do meu sobre a mesa, deixando algo em torno de 10
milímetros entre nós. Talvez tenha sido menos. Sou péssima com dimensões. O tecido da sua
jaqueta roçou na pele do meu braço, causando uma sensação estranha. Ela parecia confortável e
ao mesmo tempo inquietante. Mas, nada poderia superar o que viria a seguir. Eu podia sentir seu
ombro tocando no meu, quase me empurrando, podia perceber sua pele bem perto, seu cabelo
tocando o meu, e o palpitar imbecil que se espalhou meu corpo.
—O quê?! — reclamou, sem se afastar ou pestanejar. A voz abafada e baixa como um ronronar
dos gatos. — Agora a gente vai fingir que não rola nada aqui? — Moveu sua cabeça de mim para
ele e vice-versa. — Não é possível que você não note a energia entre nós dois, Kate. E eu sei que
eu deveria apenas estar cobrando meu favor, e depois protegendo você, mas está ficando
realmente difícil. E não é uma declaração romântica. É apenas uma constatação de que eu estou
muito interessado em beijar você há alguns dias.
Engoli em seco algumas vezes. E a minha falta de resposta deu espaço para Eric tirar o celular da
minha mão calmamente e puxá-la na direção do seu pescoço. ELE REPOUSOU A MINHA
MÃO NO PESCOÇO DELE. Isso mesmo. E eu fui obrigada a sentir o seu cabelo liso por baixo
da minha palma, fui obrigada a sentir sua nuca embaixo dos meus dedos. Seu corpo estava
inclinado sobre o meu desde o instante em que puxou o celular de mim e o largou atrás dos
nossos corpos, ainda sobre a mesa. E sua mão direita repousou sobre o meu rosto, emoldurando-
o como se tivessem sido desenhados um para o outro. E fui traída por mim mesma.
Involuntariamente eu observei seus lábios se aproximando dos meus. E depois eu observei cada
detalhe: o modo como o azul dos seus olhos ia aumentando de tom do centro para a ponta. Do
mais claro, quase como um mar límpido, até um azul como o anoitecer. Notei como suas
bochechas eram ligeiramente rosadas e as singelas rugas de expressão abaixo dos seus olhos. E
todos esses detalhes e observações desaparecem no instante em que seus lábios roçaram nos
meus.
Em seguida, sua boca se abriu sobre a minha com urgência. E a minha correspondeu. Eric
respirou fundo quando nossas bocas se encontraram verdadeiramente, e eu me senti febril
naquele instante. Seu lábio inferior deslizou sobre o meu superior, decorando o caminho, e eu me
assustei com a avalanche de imagens que vieram na minha cabeça. Surpreendi-me quando meus
dedos começaram a se fechar no pé do seu cabelo, agarrando-o. E, então, como Mel previra: foi
uma explosão.
Quando percebi, seu braço agarrou a minha cintura, levando meu corpo para cima do seu com a
maior facilidade do mundo, como se eu fosse um mero travesseiro. Nossas bocas aumentaram a
intensidade do beijo como se ainda fosse possível. E eu pensei em como eu me esqueceria
daquilo depois. Perdi o equilíbrio e acabei deitando-o sobre a mesa. Mas nada disso foi suficiente
para nos separar. E eu pensei que nada seria, até eu escutar a porta sendo batida contra a parede
após alguém entrar apressadamente. E até eu escutar um “Ai, meu Deus, apaga da minha visão
essa cena”.
Nós dois apenas viramos nossos rostos na direção da porta, já com nossas bocas afastadas. No
entanto, a mão dele ainda repousava sobre a minha lombar, e eu ainda estava sobre ele. Que
situação, era o que a minha mente estava sussurrando quando meus olhos encontraram Lola,
Jane e Gustavo parados logo na entrada da sala.
—Não é como se vocês nunca tivessem feito algo parecido —Eric comentou, parecendo já ter
recuperado sua estabilidade emocional. E, em seguida, eu pulei para longe do seu corpo e da
tentação que ele representava.
Eu estava numa sala de aula, deitada sobre um professor. Mais um pouco, e eu seria deserdada.
Não, Kate. Péssima comparação, levando em conta que você é a herdeira e se for deserdada,
morre. Ok.
—Eu não sei onde você está com a cabeça, Kate — Lola concluiu com um tom crítico. E, então,
pela primeira vez, eu me irritei com a situação. Não era como se eu estivesse matando alguém.
—Será que é crime beijar outra pessoa? — questionei enquanto Eric parava ao meu lado após me
devolver meu celular.
—Você sabe as minhas razões — Lola respondeu entredentes, mas Gustavo, a pessoa inesperada
naquela equação, interrompeu o rumo da conversa.
—Temos assuntos mais importantes, Lola, ou não estaríamos aqui com tanta urgência. — Ele se
aproximou de mim, a mochila jogada apenas sobre um ombro, parecendo realmente preocupado.
— Eu sei que você é bruxa.
Capítulo 32

Eu sei que você é bruxa. Certo. Eu fiquei na dúvida se eu deveria


confirmar, negar ou fingir demência. No entanto, eu não tive muita oportunidade para pensar
nisso, pois Eric assumiu uma postura um pouco ofensiva ao meu lado. Deu para perceber quando
ele cruzou os braços sobre o peito e passou a encarar Gustavo fixamente. E, assim, meu ex tratou
logo de explicar.
—Não sou só eu que sabe. E não sei só isso. Joseph procurou minha irmã e contou que você é a
herdeira da CORTE — Gustavo revelou palavra por palavra com um pesar, como se eu já
estivesse dada como morta. Meu coração até mesmo apertou. — E eles estão armando uma
revolta para obrigar você e a CORTE a aceitarem as propostas de mudanças.
Eu ainda nem era a Presidente, eu nem mesmo sabia usar meus poderes direito, e eu já tinha uma
reivindicação do meu povo. Ótimo. Além de tudo, Lola tinha acabado de saber meu segredo de
forma indireta. E eu entendia por que as duas estavam sentadas atrás da porta, desesperadas,
como se o mundo fosse ruir sobre suas cabeças.
—Então você também é bruxo? — questionei, tentando montar uma linha de raciocínio. Gustavo
apenas balançou a cabeça, confirmando a suspeita.
—Quando digo revolta, Kate, e quando entro assim nessa sala, é porque não é algo pacífico. —
Ele se aproximou ainda mais e pude ver tristeza em seu olhar. Eric bufou.
—E por que você está traindo sua própria irmã? — O professor inquiriu, parecendo, como de
praxe, não confiar na generosidade de Gustavo. Notei quando ele deu alguns passos para frente,
assumindo uma posição de proteção. — Pelos anos em que foram ficantes?
—É que nem todo mundo precisa ser escroto, cara. Eu não conseguiria seguir adiante sabendo
que algo aconteceu com ela e eu não fiz nada para evitar — explicou com raiva, antes de
direcionar seus olhos novamente para mim. — Aliás, me surpreende que você tenha trocado o
líder dos peregrinos pelo líder dos negócios escusos — comentou sem qualquer cerimônia,
jogando aquela informação que eu recebi meio sem saber o que fazer com ela.
Dessa vez, Eric não foi tão sutil assim ao dar seus passos para frente. Ele simplesmente voou no
pescoço do Gustavo, segurando-o pela camisa e o suspendendo do chão. Aquilo era algo com
que não estava acostumada, e confesso que fiquei surpresa ao ver o macho alfa titubear por uns
instantes.
—Quer uma medalha de herói do ano? — Eric perguntou seriamente, ainda segurando-o. —
Estou analisando se o considero burro ou imbecil por desafiar o líder dos negócios escusos.
Corri na direção dos dois, após passado o susto, e agarrei o braço de Eric, puxando-o.
—Ele acha que eu sou um imbecil. Só pode — Eric vociferou, mantendo suas mãos firmes na
camisa de Gustavo, que não dava um pio.
—Kate, pelo amor de Deus, — Lola berrou — faça o Eric parar antes que o Gustavo se mije.
—Por que você não está falando nada?! — questionei. Tá certo que Eric o estava segurando,
mas, em seu lugar, eu estaria chutando, berrando e falando um monte de coisas.
—Não quero correr o risco de ter a minha alma sugada pelo matador de aluguel mais experiente
do mundo oculto. — Eric acertou um soco bem no seu nariz, e eu uni todas as minhas forças para
afastá-los, até que consegui puxar Eric para o outro lado e me pus a sua frente.
Sua respiração subia e descia apressadamente, e seu rosto estava para baixo, o pequeno fiapo de
cabelo escondendo seus olhos de mim. Eric era um matador de aluguel experiente. Com fama.
Que sugava almas. Ok. E ele não tinha nem coragem de me olhar nos olhos após aquela
revelação. Olhei para o teto da sala, preocupada, sem saber muito bem o que fazer.
—Eu falei que ia magoar você... — sua voz era fraca. E, por algum motivo idiota, eu senti sua
tristeza em mim.
—Tivemos muitos momentos para essa conversa, Eric, e agora eu infelizmente preciso de você
para salvar as minhas amigas. Para nos tirar dessa situação. Pode ser? — pedi, certa de que ele
me ajudaria custasse o que custasse. Era engraçado, mas eu tinha a certeza de que poderia contar
com ele para qualquer coisa. Era para ele que eu correria em qualquer dificuldade.
—Você sabe que nem precisava me pedir para salvar você — respondeu, parecendo contrariado.
— Preciso que chame o Téo. A sua sorte é que como um bruxo sábio e experiente, eu sempre
usei o armário da sala para guardar elementos para urgências.
Eric estendeu a mão enquanto se direcionava para o centro da sala. Alguns objetos como velas,
pedras, cálice e um giz de cera o seguiram até o local, onde ele começou a desenhar um
hexagrama. O símbolo mais forte da bruxaria, comumente confundido com a Estrela de Davi. A
diferença, além de seus usos obviamente, é que no hexagrama as estrelas são entrelaçadas e na
outra, sobrepostas. Ao redor, ele desenhou um círculo. Eric parou antes de completá-lo.
—Entrem — ordenou, sem olhar para ninguém, a cabeça ainda baixa.
Lola e Jane me encararam, meio sem saber se deveriam ou não acatar a ordem, e eu queria
explicar tudo com calma, queria poder chegar lá e conversar com elas nos mínimos detalhes, no
entanto, eu tinha jogado fora todas as oportunidades para aquilo. E só me restava salvá-las acima
de qualquer coisa. Balancei a cabeça, pedindo que aceitassem a ordem dele, e as duas correram
comigo para dentro do círculo como se lá fora existisse um monstro. Gustavo também entrou,
porque ele não era burro, apesar de Eric ter suspeitado disso.
E foi quando ele deu um passo para dentro do círculo que as janelas da sala estilhaçaram,
jogando seus cacos sobre nós. Agachamos, tentando nos proteger. E, em seguida, as luzes
desligaram. O sol ainda permitia que nos víssemos e enxerguei quando Eric empurrou Gustavo
para dentro e fechou o círculo.
—Que porcaria você pensa estar fazendo?! — esbravejei, ao ver que ele não havia entrado.
—Eu preciso ver algumas coisas ainda — explicou, porém, não senti firmeza. Não era verdade.
— Chame o Téo. Agora, Kate.
Ele levantou o rosto e notei um rasgo em sua testa. Um dos cacos tinha feito um corte logo acima
da sua sobrancelha, de onde escorria um filete de sangue.
—Ele precisa se desconectar do corpo dele, onde estiver, aparecer aqui e levar vocês. Depois
disso, o mais importante estará protegido: o espírito de vocês. E, então, a revolta perde o
objetivo.
—Quanto de energia você acha que ele tem para carregar cinco pessoas? — Gustavo ponderou.
— Ele precisará de mais peregrinos e duvido muito que eles aceitem ajudar a Kate. Não sem um
acordo político, e ela não tem tempo hábil...
A porta começou a ser socada, no entanto, não parecia haver um humano fazendo isso. Era como
se uma tempestade estivesse tentando entrar, testando as dobradiças, eu podia até mesmo ouvir o
silvo.
—Esse plano não vai dar certo — concluí, enquanto Jane e Lola ligavam para Téo —, eles já
estão na porta. E todos esses alunos do lado de fora? Vamos colocá-los em risco? —Caminhei na
direção do círculo, mas não consegui sair. —Me tira daqui, Eric.
—Não — afirmou categoricamente. — Eu não sei mais quem eu sou ou o que estou fazendo,
Kate. — O sibilo do vento continuava a preencher nossos ouvidos, tornando-se cada vez mais
alto e forte, atrapalhando nossos raciocínios. — Mas, neste instante, eu só consigo ter a certeza
de que vou proteger você de qualquer coisa.
—Eu não pedi para ser salva, eu posso fazer alguma coisa —gritei, socando o ar. — Eu sou a
herdeira, droga! — Ajoelhei no chão e comecei a chorar.
—Cara, depois falam que eu que sou abusivo — Gustavo comentou. — Você está mantendo a
garota trancada num ritual!
—Por que ele está mesmo no círculo? — Eric perguntou e, em seguida, levantou a mão
arrastando Gustavo para longe. — Não vou gastar minha energia para manter você salvo. A
partir de agora, será nosso refém, nossa moeda de troca.
Eu não ia admitir. Não ia aceitar aquela determinação. Eu não podia permitir que Eric fizesse
tudo sozinho, que mantivesse um ritual como aqueles para salvar nós três. E acabasse morrendo
por causa disso.
MEU PESADELO.
Claro. Era isso. Era exatamente isso. Ele me salvava e morria. Droga. Respirei fundo,
direcionando a minha vontade de socar a barreira mais vezes para criar uma saída nela. Levantei
minhas mãos discretamente enquanto ouvia Jane dizer que Téo estava dentro do plano e que já
estava negociando ajudas. Que Téo faria a viagem, mesmo que nenhum peregrino o ajudasse.
Encostei as palmas na barreira invisível e comecei a mentalizar, tentando não me distrair com
nada.
Eu não era aquela pessoa. Aquela donzela no alto do castelo que espera a ajuda para ser salva.
Que não tenta sair por si mesma, que não tenta fugir, que aceita as condições impostas pela vida.
Não. Eu era a bruxa que lutava contra a inquisição, que usava todas as suas forças para proteger
os outros, inclusive dos preconceitos. E eu encontrei a brecha no momento em que a porta abriu
e que por ela entrou Joseph acompanhado por Sofia e por mais dois rapazes sem camisa e com
um animal tatuado em seus peitos. Eles carregavam um corpo. O corpo da minha irmã.
Capítulo 33

Entendia que Sofia não gostasse de mim, que sentisse ciúmes de seu
irmão, entendia qualquer motivo para nossa relação nunca ter sido boa, contudo, eu jamais
entenderia como ela tinha sido capaz de sequestrar a minha irmã.
Quando vi o corpo da Melissa sendo arrastado pelos braços, no chão, com um pouco de sangue,
eu senti a barreira se desfazer sob as minhas mãos. Os instantes mais desesperadores da minha
vida. Senti-me impotente por tê-la deixado sozinha, por tê-la deixado na mão de estranhos e por
não ter seguido a minha intuição de imediato. Escutei o choro de Lola e as preces de Jane. Vi
Gustavo suspirar. E Eric fechar o rosto.
—Nosso último encontro não foi agradável — Joseph iniciou e notei os demais participantes da
revolta se amontoarem na porta, lutando por um vislumbre da discussão política, — eu me
excedi. Você precisa compreender o quão difícil foi encontrá-la. Os feitiços feitos pela sua mãe
foram muito eficientes. E quando descobri sobre você e Téo, fui ao cemitério, mas vocês dois
ficaram na defensiva, obrigando-me a ser rude. Hoje venho com oferta de paz. Querem...
—Paz? Isso é o que você chama de paz? Sequestrar a minha irmã? — Saí do círculo, notando o
olhar surpreso e desapontado de Eric.
—Considere a sua irmã como um incentivo pela paz. — Ele colocou as mãos atrás do corpo e
ficou parado de forma elegante. — Ela está viva e sendo razoavelmente cuidada, não se preocupe
agora.
—Que tal a gente pular toda essa ladainha direto para as reivindicações? — Eric sugeriu,
caminhando na direção da barreira, bem aonde eu estava, tentando me impedir de caminhar na
direção de Melissa porque era óbvio que eu faria isso. — Creio que sejam urgentes, já que
estamos perturbando a rotina normal dos humanos.
—Você foi nomeado porta voz da nossa majestade? — o escárnio escorria pelos lábios de Sofia
como baba durante o sono, principalmente ao usar o termo “majestade”.
—Não estou vendo nenhuma rainha por aqui — olhou ao redor, fingindo procurar —, o que vejo
é uma bruxa a assumir sua função na CORTE.
—Eric, não precisa se preocupar tanto com a nossa Presidente — Joseph pediu —, tem a minha
palavra que não a machucarei. Quando contratei você, frisei que a queria viva, lembra? Fique
tranquilo.
—Contratou? — aquela notícia foi a gota d’água que faltava no meu copo. Ele inundou,
derramando-se por mim, a tal ponto que meus olhos já marejados ao ver minha irmã daquele
jeito, lacrimejaram.
—Ah, eu imaginei que você não soubesse — Joseph comentou, aparentemente massageando seu
ego pela suposição correta. — Contratei Eric para encontrá-la e me entregar sua identidade e
paradeiro, mas percebi que havia algo de errado quando a avó do Téo foi mais rápida.
—Bem, não pode ter sido tão errado assim se aqui estamos, não é mesmo? — retruquei,
afastando-me da barreira, no instante em que ele agarrou meu pulso.
—Pelo amor dos deuses, Kate, não caia na deles — Eric clamou desesperadamente.
—É mentira? — Puxei meu pulso da mão dele e cruzei meus braços, encarando-o.
—Não importa agora, apenas não me exclua. É o que eles querem, não consegue enxergar que
até hoje eu nunca a machuquei? — ponderou, aproximando-se de novo. — Sumo da sua vida
depois, se assim quiser. Prometo — sussurrou, e abaixei a cabeça para esconder a lágrima que
deslizou do meu olho direito.
Às vezes a vida não dá uma pausa para você chorar, para você lamber as suas feridas até que elas
cicatrizem. Às vezes, você precisa respirar fundo, levantar a cabeça e seguir porque não há outra
opção. Eu sentia meu coração em pedaços por ter confiado tão facilmente no Eric, por ele nunca
ter me contado que havia sido contratado para me entregar. Por ele nunca ter sido realmente
sincero comigo.
—Combinado — disse com toda a convicção do mundo, após levantar a cabeça. Decidida.
Firme. Forte. No entanto, senti a dor sufocar minha garganta quando as pálpebras dele sumiram
com os azuis por alguns segundos. Não era como um piscar de olhos. Não. Era: estou me
desligando para digerir isso sem demonstrar emoções. Obriguei-me a ignorar os meus
sentimentos e os dele. — Bem, se temos...
Téo apareceu na sala. Do nada. Dentro da barreira. E senti quando os braços de Eric me
agarraram e me jogaram para dentro do círculo. No exato instante em que Sofia levantou uma
adaga e direcionou para o peito de Melissa. Gritei como nunca havia feito na minha vida e uma
enorme bolha se formou ao meu redor, empurrando para longe tanto Téo quanto Eric. Em
seguida, ela murchou, transformando-se em pequenas gotas até desaparecer por completo.
—A minha condição para essa conversa é que Téo leve embora as minhas amigas e a minha
irmã. Depois disso, eu ouço todas as reivindicações — berrei, sentindo as lágrimas rolarem
desenfreadamente pelo meu rosto.
—Ela ainda acha que pode impor condições. — Sofia riu, cruzando os braços. — Apenas as
amigas. Sua irmã fica como garantia. Já está rendida, mais fácil. Ou prefere que eu machuque a
bondosa Lola? — Sofia deu uns passos para frente, na nossa direção, e eu estendi a mão,
ordenando que parasse.
—Não. Deixe que os três saiam ilesos. — Olhei para Téo, que estava entre Lola e Jane, já com as
mãos nas delas. Ele me encarou e balançou a cabeça.
“Eu as protegerei”.
Como o príncipe que sempre foi, um verdadeiro líder, Téo acatou o meu pedido e desapareceu
com Lola e Jane. Os corpos delas restaram na sala, dentro da barreira, parecendo duas estátuas de
cera. Sem emoção, sem movimentos, sem vida. Temporariamente. Se ele me amasse, teria
partido? Se eu fosse o Téo, eu teria partido e deixado a pessoa que gosto à mercê dos inimigos?
Se ela me pedisse? Balancei a cabeça, tentando afastar a confusão em minha mente, e passei a
me aproximar de Joseph e Sofia.
—Estamos a sós agora, acho que podemos começar nossa reunião —avisei, tentando realmente
incorporar a imagem de uma presidente, de uma líder de um povo.
—Nenhuma reunião com a presidente é feita sem a destituição temporária dos poderes — Eric
comunicou. — Ela não vai discutir nada, se vocês não deixarem 70% da magia de vocês no ar.
Empurrou com as mãos quatro cadeiras na direção da mesa, onde há poucos minutos nós dois
nos beijávamos. Quando digo com as mãos, me refiro a magia. Como ele sabia de tantas coisas?!
Eu jamais teria pensado naquela ameaça. Joseph e Sofia cochicharam entre eles e acataram a
decisão. Uma nuvem se formou acima da cabeça de cada um. A de Joseph era enorme, cinza e
com uns rasgos vermelhos. Já a de Sofia era do tamanho de um coelho, azulada e sem outros
tons.
—Quais são as reivindicações?—Aproximei-me da cadeira colocada na lateral da mesa.
—Você está prestes a assumir seu posto, Kate. Creio que precise conhecer o estado em que seu
povo se encontra. Sabemos que você viveu à margem da bruxaria durante toda a sua vida e que,
por isso, desconhece os ditames que vem causando dor e sofrimento aos seus governados por
séculos — Joseph explicou, antes de se sentar. — Você precisa saber quem é Maya Gricem...
Minha visão nublou repentinamente enquanto levava as mãos à minha barriga. Conseguia ver a
sala, conseguia ouvir Eric gritando, e consegui observar uma mulher ruiva tirando o capuz na
multidão da porta. Mil repousou um arco sobre seu ombro direito, após ter atirado algo em mim.
Perdi as forças e minhas pernas fraquejaram. Os braços de Eric foram o meu porto seguro, ele
me agarrou contra seu corpo e me colocou sobre a mesa da sala.
—Salve a Melissa — sussurrei, orando para que tivesse me ouvido.
—Não! Você vai salvá-la... Kate, Kate...
O professor batia levemente no meu rosto, e aos poucos a minha visão escurecia mais. Naquele
momento, eu só conseguia ver os azuis de seus olhos. Eu só conseguia ver como eles estavam se
transformando em ondas de sofrimento. Um mar tempestuoso e revoltado. A fraqueza foi mais
forte e eu não consegui mais lutar. Entreguei-me, fechando os meus olhos para o azul, para a
sala, para o mundo.
EPÍLOGO

Gritos e mais gritos me fizeram recobrar a consciência. É estranho, mas eu


sou tão agitada que não consigo desligar facilmente, nem mesmo quando durmo ou quando
desmaio. Estava meio grogue ainda quando me levantei e me apoiei na parede azul da faculdade.
Eu me recordava da ordem de Maya para que eu fosse encontrar a Kate ali, para que eu
convocasse os guardas, para que eu a protegesse. Claro.
Comecei a andar apressadamente na direção da sala 105. Não me recordava de como descobri o
número da sala, e essa confusão mental me fez titubear. Até que observei, por detrás dos
armários, um guarda atirando uma flecha embebida no líquido da memória em uma moça
escondida por baixo de uma capa preta. Qualquer um sabia que os guardas vestidos de azul
pertenciam ao governo e que aqueles que usavam a capa preta pertenciam à oposição — os
chamados fênix da justiça.
Eu não me permitia emitir qualquer juízo de valor a respeito do grupo, pois tinha medo de que
minha mente fosse acessada pela Maya. Tinha medo de que ela pudesse pensar que estava
traindo o governo e que pudesse me punir mais uma vez. Não. Eu já havia perdido muito, não
arriscaria jogar fora o que já tinha alcançado. Estava perto demais de reaver.
Caminhei lentamente, ciente de que estava ocorrendo uma luta entre o governo e a oposição no
meio do corredor da universidade. E, conforme eu andava, flechas voavam em seus alvos,
enquanto os de capa preta enfiavam facas em nossos guardas. Obviamente eles não tinham
orçamento suficiente para investir em flechas enfeitiçadas. E eu tinha sido treinada para ignorar
lutas, para cumprir meus objetivos enquanto vários caiam ao meu redor. E quando cheguei a sala
105, pulando corpos desmaiados, desejei não ter chegado.
O cenário era trágico e caótico. Havia um hexagrama com velas no centro da sala e, dentro dele,
as amigas de Kate imóveis. Estavam em uma viagem do tempo, a qual, pelas minhas estimativas,
já estaria durando mais do que o adequado. O peregrino envolvido poderia morrer se
continuasse. Mas o pior mesmo estava do outro lado. Na mesa, o corpo dela se encontrava, como
a Bela Adormecida.
As mãos segurando um dardo preso em seu abdômen. O rosto levemente inclinado para a
esquerda, os cabelos longos repousando sobre a mesa e emoldurando sua pele sem cor. Lágrimas
manchavam o pouco de maquiagem usada. Lágrimas pingavam sobre seu peito. E não havia mais
ninguém ali, além daquele homem chorando sobre a Kate.
Aproximei-me mais um pouco e notei que ele havia criado um muro ao redor dos dois.
Provavelmente para escapar das flechas. Abandoná-la teria sido mais fácil. Abandonar as amigas
dela teria sido mais fácil, mas ele estava sustentando duas barreiras ao mesmo tempo. E eu não
dava mais do que uma hora para que ele caísse ao chão dominado pela exaustão. Sangue escorria
de sua testa, de seu nariz e seus olhos estavam avermelhados.
—Tenho certeza de que a Kate não aprovaria o seu estado deplorável, Eric Daren ou senhor
procurado incessantemente pelo governo — iniciei a conversa, tentando ser amiga afinal, quem
em sã consciência tentaria contrariar o cara mais procurado pelos guardas da CORTE?! Sem
resposta. — Bem, você sabe que vai ser preso, não é? Não tem como você fugir levando um
corpo — justifiquei, ajeitando meu capuz laranja sobre o cabelo.
—Eu pareço estar me preocupando com isso?! — rosnou, sem me direcionar seu olhar.
—Você pareceu se preocupar com isso durante todos esses anos. Em fugir dos guardas da
CORTE — comentei, tentando iluminar um pouco a sua mente. — Bem, preciso do nome do
peregrino que está mantendo as meninas fora. Ele precisa parar. Se elas não saírem daqui antes
que os guardas finalizassem a luta com os fênix, elas terão suas memórias apagadas. A Kate
nunca terá existido para elas.
—O líder do peregrinos. Téo Dáman — respondeu, respirando fundo, e puxando seu celular do
bolso. Ele parecia estar armando algo, contudo, eu realmente não prestei muita atenção desde o
momento em que ele citou o líder dos peregrinos. Como o líder estava violando as regras de seu
povo e auxiliando a herdeira?!
Retirei o bipe cedido pelo governo para comunicações oficiais e comecei a alertar Téo sobre a
irregularidade de sua conduta, entretanto, parei ainda no início da mensagem. Puxei meu celular
do bolso da calça e mandei uma mensagem extraoficial. Se eu acionasse pelo bipe, ele poderia
ser chamado para um interrogatório, e Maya não deixaria a oportunidade de chantagear o líder
dos peregrinos passar de mão beijada.
Caminhei ao redor do muro construído por Eric, analisando o quão fácil os guardas furariam a
magia. Estava lotado de buracos ensanguentados. Ele já estava demasiadamente fraco, por isso,
seu próprio sangue inundava trechos da barreira. Bastava uma flecha ali e ele cairia, fazendo toda
sua magia desaparecer.
O choro de Lola me tirou do devaneio. Elas haviam voltado e ainda estavam tocando em seus
próprios corpos para terem certeza de que estavam vivas. Téo parou no meio delas, apenas seu
espírito, contudo tão real como se fosse o corpo dele. E seu semblante fechou imediatamente.
—Kate?!
Seu questionamento despertou a atenção das amigas dela e fez Eric abandonar uma das barreiras.
Apenas uma. A que cercava o corpo e o próprio professor manteve-se intacta, exceto pelas
brechas ensanguentadas. Os três seguiram na direção da mesa, ignorando completamente a
minha presença. Por que Kate era tão amada?!
—Você precisa levar o corpo dela. Eu li que os peregrinos conseguem carregar corpos — Eric
pediu, tão logo Téo se aproximou do muro. Ele espalmou a mão contra a barreira.
—Abaixe essa droga, agora! — ordenou, parecendo extremamente revoltado enquanto as duas
meninas choravam abraçadas.
Eric permitiu que os três entrassem. Téo rapidamente se inclinou sobre a herdeira. E eu dei a
volta para observar melhor a sucessão de acontecimentos. As meninas seguravam as mãos dela
desesperadamente, clamando para que retornasse. Ele simplesmente deslizou seu dedo pelo rosto
da Kate, parecendo fazer uma prece silenciosa, parecendo admirá-la como a uma deusa. Eric
colocou a mão sobre o ombro dele e os dois se estranharam.
—Você vai entregar o corpo no endereço que eu passar. — Segurou a camisa de Téo com força,
olhando-o nos olhos. Os dois estavam sérios, compenetrados, decididos.
—Ele não pode fazer isso — reclamei. — Tem noção de que pode morrer? Peregrinos só
carregam corpos em bandos. Sozinhos não. E você já gastou um monte de energia. Eu mesma o
prenderei, Eric — esbravejei, caminhando na direção da porta e chamando os guardas.
Três uniformes azuis entraram na sala e apontaram seus arcos para mim. Obviamente eles se
assustaram com o meu chamado e quando dessem por si, entenderiam que eu estava com a manta
laranja. A manta laranja da Observadora. Mas não, eles mantiveram suas armas apontadas para
mim. Levantei as mãos, deixando meu celular cair no chão, assustada por estar sendo acuada
pelo meu próprio governo.
—Kamille Fay, a senhorita está presa por ter atentado contra a vida da nossa Presidente.
Agradecimentos
Começo este agradecimento pela minha filha, Elena, que compreende e respeita a minha
necessidade e prazer em trabalhar, que me “divide” ainda que seja tão pequena. Ela é o meu
colorido e a minha melhor amiga.
Em seguida, preciso agradecer a mim mesma por ter iniciado uma jornada terapêutica e ter me
permitido o autoconhecimento, ter passado a me amar do jeito que eu sou e me respeitando
acima de tudo. Sem a busca pelo amor próprio, outrora perdido, eu não conseguiria finalizar este
volume, tampouco ter iniciado diversos projetos.
Agradeço ao meu marido por ter me convencido a assistir filmes de romance e despertado em
mim a necessidade de colocar tantas coisas para fora. Se não fosse isso, este livro ainda estaria
engavetado. Obrigada por ser meu suporte emocional e por me amar. Te amo.
Agradeço a minha espiritualidade e a Deus por me manter no caminho da terapia, por me manter
no trilho do autoconhecimento e da busca por uma vida mais sábia e amorosa.
Agradeço a Wélley, minha amiga para todas as horas, até mesmo quando nem eu me suporto.
São mais de 7 anos de uma amizade começada através deste livro, que me deu, inclusive, um
afilhado.
Agradeço ao meu sobrinho Gabriel, por vender o meu peixe em eventos, por ser meu 190 e por
ser um garoto tão incrível.
Agradeço a minha mãe por ter me trazido ao mundo, por ter me ensinado valores e princípios,
por sempre me dar suporte quando preciso.
Agradeço a minha irmã Kelly e ao meu sobrinho Enzo Miguel por me fazerem rir em momentos
difíceis.
E a você, que leu este livro. Meu muito obrigada, é você quem torna isto real e recompensador.
dedicatória
Dedico este livro ao meu filho de quatro patas: JOSH.
Sabia que o dia da sua partida chegaria, a morte é sempre uma certeza; mas eu nunca estaria
preparada, esta era outra certeza. Ter que devolver você aos céus doeu muito; foi e é um
processo difícil de compreensão. Entender que Deus é o senhor de tudo acalenta meu coração,
mas não diminui a minha saudade e a sensação de injustiça que me assola por ter perdido você
da forma como perdi. Você foi, é e sempre será meu filho, o qual eu amava e defendia com toda
a minha força. Você tatuou meu coração para toda a eternidade.
Sobre a autora

Nascida e criada no Rio de Janeiro, Katerine Grinaldi já visitou lugares que não estão nos mapas convencionais. Isso graças ao
seu amor pela literatura, tanto no ato de ler como no de escrever. Encantada com histórias que fazem pensar e por personagens de
apaixonar, Katerine decidiu criar outros mundos para que leitores – como ela - pudessem visitar.
Advogada e graduanda em PSICANÁLISE, ela não abandona um de seus maiores prazeres: escrever.
Katerine é editora-chefe da Sinna e procura levar aos leitores antologias com temas voltados para as causas sociais, como
Cinderelas que trata da violência contra a mulher.
Atualmente, Katerine divide seu tempo de escritora e editora com a divertida e honrosa missão de ser mãe da pequena Elena.
Mora de favor na casa de seus 8 gatos e 2 cachorros.

@katerinegrinaldi
Email: sagaaherdeira@gmail.com

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