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Rio de Janeiro – RJ
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sem prévia autorização escrita pela autora.
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 18
Capítulo 19
Capítulo 20
Capítulo 21
Capítulo 22
Capítulo 23
Capítulo 24
Capítulo 25
Capítulo 26
Capítulo 27
Capítulo 28
Capítulo 29
Capítulo 30
Capítulo 31
Capítulo 32
Capítulo 33
EPÍLOGO
Agradecimentos
dedicatória
Sobre a autora
“Ao abrir este livro,
Você só o lerá
Se cumprir o requisito.
Não basta querer,
Tem que poder.
O que você quer daqui?
Seria capaz de morrer
Para o segredo proteger?
Amor não é o bastante
Apesar de ser importante!
Você abriu este livro,
Mas só o leu
Se cumpriu o requisito.”
Prólogo
Joseph levou a taça aos lábios, saboreando calmamente a boa safra, assim
como saboreava mentalmente seu plano. Havia esperado quatorze anos e, enfim, as peças podiam
ser jogadas como numa patética partida de xadrez. Ninguém o vencia, jamais. Nem no xadrez,
nem na vida. Não depois daquele dia.
Mirou o espelho sobre o aparador daquela grande sala de reuniões. Ali, de frente para aquele
retângulo de vidro, ele podia ver a si mesmo, sem feitiços, sem disfarces. Um jovem ainda.
Gostava disso, apesar de seus olhos azuis esverdeados o jogarem para um mar de lembranças
ruins. Escutou os passos no corredor e seguiu apressadamente para a mesa, a qual se sentou em
uma poltrona acolchoada, estilo presidente. Pensava no quanto era engraçado dois bruxos se
encontrando em uma sala usada para acordos humanos em um dos únicos prédios na cidade de
Melas.
Seu convidado entrou de forma imponente e não mudou seu olhar ao encarar Joseph, ou aquilo
no que Joseph se transformara com o feitiço de Glamoury. Um senhor inofensivo, debilitado,
arrasado. Compreendeu por que o rapaz carregava tamanha fama e porque lhe havia sido tão bem
recomendado. Um ladrão de almas. O senhor Joseph indicou o vinho, sugerindo que o homem a
sua frente se servisse, contudo, o gesto foi rapidamente recusado. Assim como ele não se deu ao
luxo de sentar-se também.
—Prefiro ir direto aos negócios — informou, mantendo-se na mesma posição ofensiva,
aguardando os termos. — Não pode ser um homem tão gentil se contrata meus serviços.
Apesar de uma aparência agradável, o ladrão de almas não parecia nada simpático. Fazia mais o
estilo de poucos amigos.
—Certo. Sem cerimônias. — Joseph se levantou e deslizou suas mãos sobre a mesa, fazendo
surgir fotografias reais e já levemente manchadas pelo tempo. — Preciso da neta de Júlia West.
A mais nova. Há um feitiço escondendo-a, de modo que nenhum ritual de localização a encontra.
— Moveu suas mãos mais uma vez, alterando as fotos por algumas mais recentes de uma
senhora com uma criança. — Essa é a Júlia. Pelas fotos já dá para perceber a semelhança entre as
duas, neta e avó. Mesmo quando ainda era criança. Seu nome é Kate.
—Quer que eu roube a alma dela assim que a encontrar? — questionou sem pestanejar, não
expressando qualquer emoção.
—Não ouse fazer isso — Joseph respondeu com pressa, quase deixando de lado sua carapuça de
fragilidade. —Eu a quero. Você deve trazê-la para mim. E, então, você entenderá por que escolhi
você e não um detetive.
Capítulo 1
A campainha tocou uma, duas, três vezes, e continuou sem parar. Era
como se alguém tivesse simplesmente largado o dedo sobre o botão sem se preocupar com mais
nada, demonstrando, no entanto, a sua urgência em ser atendido. Os instantes nos quais fiz essas
análises foram suficientes para me despertar do décimo quinto sono no qual estava inserida.
Afastei meu edredom azul de balões — é, mesmo sendo verão, eu usava cobertor — e levantei da
cama, deixando os chinelos de lado. Caminhei o mais rápido que pude na direção das escadas,
ainda com os olhos um pouco embaçados, quando o barulho cessou. Do segundo andar, espiei a
porta sendo aberta.
O que minha avó está fazendo aqui tão tarde? Ou tão cedo, se você for daqueles que consideram
a madrugada como manhã.
—Mãe, está tudo bem?
Escondi-me na parede entre o segundo e o primeiro andar, onde a escada fazia uma pequena
parada. E vi quando minha mãe encarou a mala da minha avó largada sobre o tapete, do lado de
fora da nossa casa. Notei a estranheza em seus olhos, refletidas também nos meus. Se minha avó
estivesse vindo ficar conosco, a mala teria sido carregada com ela para dentro. Se estava fora...
—Você precisa me prometer que contará tudo a ela — suplicou minha avó, apesar de sua voz
conter uma ordem implícita.
—A senhora sabe que não o farei. Não sou capaz e fiz de tudo, durante esses anos, para que ela
pudesse viver em paz e longe disso. Não vai ser agora que mudarei de opinião. — Minha mãe foi
categórica; no entanto, seus olhos não saíam da bagagem sobre o tapete.
—Fiz o máximo que pude — comentou minha avó, chorosa. —Mas temo que não serei capaz de
fazer mais. Sabe que vai chegar a hora dela. — Minha mãe enfiou os dedos por entre seus
cabelos castanhos volumosos, bagunçando-os por completo.
—Isso é uma maldição...
—Sim, minha filha — minha avó a interrompeu e lhe deu um abraço forte. — Está nas suas
mãos se ela andará por uma corda bamba com os olhos vendados ou não. Pense nisso.
Estava tão apreensiva com aquela conversa atípica que nem me dei conta do momento exato no
qual as duas se afastaram e minha avó começou a caminhar na direção da escada. Ela tinha que
percorrer ainda a sala de estar, concedendo-me uma distância boa para que eu retornasse a minha
cama sem ser notada.
Deitei-me embaixo do edredom, presente de Júlia, a minha avó que entrava no quarto no exato
instante em que eu fechava meus olhos, simulando meu sono. Meu coração batia mais rápido que
o normal devido a minha fuga de volta para o quarto e, talvez, ela notasse. Minha avó era a
pessoa mais perspicaz que eu conhecia. Nada lhe escapava.
Senti seu corpo sentando sobre a cama, perto de mim, sua mão sobre meus cabelos. Seus dedos
já enrugados da idade avançada, sua pele frágil roçando delicadamente na minha testa. Sentia-me
mal por não abrir os olhos, por mentir para ela. Mas eu não queria ter sido indiscreta, não queria
ter ouvido aquela conversa. Muito menos que elas soubessem do meu testemunho.
“Adeus, Kate”, minha avó sussurrou segundos antes de depositar um beijo em minha cabeça.
Senti sua mão empurrando algo para debaixo do meu travesseiro com certa dificuldade. Virei
para o lado oposto, tentando facilitar sua tentativa e, logo depois, senti seu peso sumir da cama,
ouvi seus delicados passos na direção do corredor e o baque surdo da porta sendo fechada.
Abri os olhos e observei discretamente ao redor. Sem me movimentar. Minha avó realmente
tinha saído. Sentei na cama e tateei embaixo do travesseiro. Era um envelope e, com a pouca luz
da lua entrando pela minha janela, consegui notar que era amarelo. Era uma carta? Mala, carta,
um pedido. O que estava acontecendo?
O envelope estava lacrado com sua letra, um J, assim como ela me ensinara a fazer em todas as
correspondências que eu escrevia quando criança. Eu era a única menina na sala que enviava
cartas lacradas com a letra K. Até o dia em que fui pega e não havia escapatória, qualquer um
saberia que a carta era minha. Acendi o abajur na mesinha de cabeceira, retirei o lacre e puxei o
papel.
Sua herança
Vai chegar.
Aceite a mudança
Quando 21 primaveras completar.
☐
S.D.
Encarei o bilhete por alguns segundos. Ou minutos. Eu não estava realmente contando até o
instante em que uma chama inexplicavelmente surgiu no papel, consumindo-o rapidamente.
Num rápido reflexo, eu apenas tive a brilhante ideia de soltá-lo... sobre a cama. O envelope
também começou a queimar. E eu me levantei, assustada com a proporção que o fogo estava
ganhando, apesar de cientificamente não ser possível.
As chamas se alastraram pelos lençóis, ganhando vida. Parecia que alguém as estava cutucando,
instigando-as. Consegui afastar a nuvem de perplexidade que me cegava e corri na direção do
banheiro para pegar uma vasilha com água enquanto era tempo...
O que as minhas irmãs estavam fazendo deitadas no meu quarto?
Nós não dividíamos o quarto há anos. Kiara tinha ido embora desde a morte do meu pai, e
Melissa há uns três, quando decidiu estudar Artes em uma faculdade estrangeira. Ainda assim,
nós só dividimos o quarto quando éramos crianças. Não sabia muito bem o que estava
acontecendo, no entanto, eu precisava acordá-las. Aproximei-me da cama de Melissa, que ficava
perto da porta do banheiro do meu quarto, e inclinei-me para chamá-la quando minha mão
atravessou seu corpo, transformando-o em uma fumaça. Uma névoa branca que se dissipou até a
cama de Kiara, sumindo com ela também.
O fogo havia corrido pelos lençóis e alcançava o carpete. A fumaça começava a incomodar meus
pulmões e foquei no que precisava ser feito. Corri até o banheiro e enchi um pote de manteiga, o
mesmo que usávamos para limpar o cômodo, e voltei ao quarto. Mas, o que era um pote de
margarina diante de chamas que consumiam o carpete e as cortinas?
Talvez fosse mais fácil abandonar a casa e fugir com minha mãe. Talvez minha avó ainda
estivesse lá embaixo. Será que elas não estavam sentindo o cheiro? Passei rapidamente ao redor
da cama e fui na direção da porta...
ONDE ESTAVA A PORTA DO MEU QUARTO?!
Era um pesadelo. Só podia ser. A porta não existia mais. Ela havia desaparecido como num passe
de mágica. E mágica não existe. Por isso, eu só podia estar sonhando. Ou alucinando. Talvez eu
tivesse sido drogada. Eu precisava sair dali. Mais do que nunca.
Comecei a socar o concreto na exata posição onde a porta deveria estar, crendo que talvez eu não
a pudesse ver, mas ela ainda existisse. Bati muitas vezes. Talvez minha mãe me ouvisse. Bati
mais vezes. Senti meu pulso doer, arder pelo atrito com a parede. Chutei.
Contudo, quanto mais eu gastava energia socando, mais fraca eu me sentia. A fumaça já havia
preenchido meus pulmões, tornando o meu fôlego cada vez mais escasso. Sentia como se meu
corpo estivesse em chamas devido ao forte calor que emanava das labaredas. Deslizei pela
parede, sentindo-me exausta. Bati minha mão mais algumas vezes contra a parede, e até mesmo
pensei na janela, mas ela também havia sumido. Ou estava longe demais. Ou talvez fossem os
meus olhos lacrimejando e ardendo que me impedissem de ver muita coisa. Relaxei minha
cabeça contra a parede.
Fechei os olhos por alguns segundos, tentando me concentrar em acordar, em sair daquela
situação; talvez apenas para descansar, quando senti meu corpo quente, quase febril, ser agarrado
por duas mãos fortes. Seus dedos seguraram meus braços, levantando-me, para em seguida me
repousar em seu colo, de encontro ao seu corpo largo, aninhando-me em seu peito que se
movimentava rapidamente.
Eu não tinha muitas opções, a não ser aceitar aquela ajuda milagrosa. Olhei para cima, tentando
descobrir quem era, tentando descobrir quem era o responsável por me fazer sentir segura em
meio ao caos, porém, somente consegui ver o azul de seus olhos. As chamas refletiam sobre eles.
E eu queria poder observar melhor, contudo, a ardência me impedia.
Como o herói dos olhos azuis iria me ajudar era um verdadeiro mistério. A porta não havia
sumido? Talvez ele me jogasse pela janela. Ou se jogasse comigo. Afastei meus incessantes
pensamentos ao ouvir a porta ranger. A PORTA. Sim, ela estava lá.
O homem me colocou sentada sobre o chão do corredor, e ajeitou seu capuz preto. Estava zonza,
fraca, desgastada, e encostei na parede mais próxima, aguardando que ele tomasse outra medida.
Deveria tentar fazer algo por mim mesma, eu gostaria, mas era impossível. Observei quando ele
colocou as mãos sobre a maçaneta da porta do meu quarto. Será que não estava quente demais?
Seu rosto virou na minha direção, antes de entrar. Rastejei na direção dele, sussurrei pedindo que
saísse, tentando impedi-lo, quando o fogo o consumiu.
Não! Não!
Tentei gritar, como se aquilo pudesse mudar a cena a minha frente. Em meio a escuridão do
quarto, parcamente iluminado pelas chamas enlouquecidas, eu podia vislumbrar o homem sendo
consumido pelo fogo. Por que me salvar para se entregar a morte em seguida? Por algum motivo,
eu o assisti ser dominado pelo fogo. Pude observar de forma cruel todos os detalhes que minha
visão embaçada me permitia ver. E quando ele desapareceu, sendo consumido por completo, a
porta fechou com violência.
Sentei na cama, rápida como uma serpente dando o bote, e joguei para longe o meu edredom
azul enquanto sentia o suor escorrer pelas minhas costas. Meu corpo estava quente, minha
garganta doía um pouco, e meus olhos ardiam. Resquícios dos chamados pesadelos reais.
Desde pequena, eu tinha a habilidade de sonhar com situações ruins e sair delas ilesa, até
completar 21 anos em novembro, quando passei a ter o mesmo pesadelo: minha avó aparecendo
na porta da nossa casa com uma mala e me deixando um bilhete que pegava fogo. Contudo, até
aquele dia, eu sempre conseguira apagar as chamas com a água de um copo na mesinha de
cabeceira. Até aquele dia, eu nunca tinha lido o conteúdo do bilhete. E nunca tinha sido salva por
um desconhecido.
Lola passou a mão na frente do meu rosto, como se eu fosse um peixe dormindo de olhos
abertos. Jane ainda esfregava o rosto, tentando se manter acordada. Elas sabiam do meu
problema com pesadelos e das consequências que eles traziam e, mesmo assim, Lola parecia
aterrorizada. Jane, no entanto, não dava nem mais tanta importância; acostumada, eu
classificaria.
—Alguma consequência? — Lola contorceu o rosto ao perguntar.
—Ardência nos olhos, queimação na garganta e muito calor — falei pausadamente, e ela logo se
inclinou para pegar minha garrafa de água.
—Você sonhou com fogo? — Jane sugeriu, mais como se estivesse chutando uma alternativa do
que realmente ciente do que falava.
—Sua capacidade de raciocínio assim que acorda é impressionante, nunca vi igual — brinquei,
bebendo a água em seguida. — Sinto muito por tê-las acordado antes da hora.
Não era o bastante pedir desculpas, ainda que soubesse que também não era necessário. Jane e
Lola eram minhas amigas e, mesmo tendo a possibilidade de dormirem em suas casas, elas
continuavam ali uma vez ou outra, mais preocupadas em fazer aquilo parar do que em terem uma
boa noite de sono.
Eu deveria saber a resposta para parar com aquilo. Minha avó tinha me ensinado inúmeras
coisas, desde ervas a velas e significados de sonhos, no entanto, eu tinha apenas a teoria e não as
lia desde que ela partira.
Nunca mais pisei em sua casa, desde a sua morte. Desde o seu acidente de carro. Desde que ela
foi encontrada no lago entre a parte antiga e a nova da cidade de Melas. No meu pesadelo, após
tê-lo repetidas vezes, eu conseguia compreender a mala, o pedido, a despedida. Mas como minha
avó poderia saber que sofreria um acidente de carro? Por que saber e não fazer algo para
impedir? Por que estava indo para a parte antiga da cidade? Eram inúmeras perguntas as quais
me deixavam cada vez mais com vontade de voltar a sua casa. E talvez por este motivo eu não
tenha, de fato, procurado uma forma de me livrar dos sonhos. Eu queria respostas, mesmo que a
minha mãe negasse veementemente a vinda da minha avó a nossa casa antes de morrer.
Saí da cama e parei de frente para o espelho sobre a cômoda, no qual eu colara várias fotos.
Estava distraída, pegando minhas roupas para a faculdade, quando me deparei com os olhos
amendoados de Lola no reflexo.
—Kate... qual foi o sonho desta vez? — Ela enrolou os longos cabelos loiros e ondulados num
coque. Em seguida, esfregou os olhos, demonstrando o quanto ainda estava com sono.
Eu não queria incomodar. Eu não queria contar que o sonho tinha se prolongado pela primeira
vez. Eu não queria contar sobre o cara. A minha boca se recusava a abrir.
—Na festa eu conto. — Fechei a gaveta e abri minha caixinha de madeira para pegar meus
brincos. — Prometo. — Se eu não prometesse, ela não desistiria..
—Vou me alongar na sala. — Jane pulou da cama enquanto eu entrava no banheiro da suíte. —
Não demora uma eternidade no banho.
Tranquei a porta e anotei no meu celular todos os detalhes novos do pesadelo, para que eu não
me esquecesse de nada. Segundo minha avó dizia, os sonhos desaparecem assim que você toca
nos seus cabelos. E era verdade. Eu já havia testado. Ou era a minha mente pregando uma peça.
Por isso, tomei todo o cuidado para não cometer esse erro.
Anotei a mensagem do bilhete. Incluindo as iniciais que o assinavam. Por que deixar um recado
assinado por outra pessoa em um dos seus envelopes colecionáveis e com seu lacre
personalizado?
Cada dia mais, eu tinha a impressão de que minha avó estava encontrando uma forma de se
comunicar comigo. De me avisar alguma coisa. Era muita coincidência que o recado falasse
sobre 21 primaveras e que os pesadelos tivessem começado exatamente após eu completar 21
anos. O que minha avó queria me dizer?
Capítulo 2
A tenda era vermelha por fora e por dentro. Descobri quando empurrei os
panos para os lados e entrei, tentando parecer calma. Completamente vermelha, acrescentei
mentalmente quando meus olhos varreram o local com mais foco. A toalha de mesa, a roupa de
Morgana, o batom, suas unhas. E a cadeira na qual sentei-me de imediato, de frente para
Morgana que não se dera ao luxo de levantar.
Enquanto embaralhava as cartas com destreza, a cigana não se deu ao luxo de me olhar. Seus
olhos esverdeados estavam focados no que fazia e de seus lábios uma canção discreta era
entoada. Pelo menos parecia uma canção, pois tinha um ritmo calmo, mas poderia ser uma
oração.
Estava desconfortável e, por isso, tentei não focar no barulho das cartas se chocando, meus olhos
fugiram para o pequeno incenso numa mesinha na lateral da tenda, para as velas iluminando a
tenda, e depois para um baú enfeitado com pedras amareladas, talvez fossem âmbar, a pedra
utilizada por reis e rainhas para afastar energias negativas.
O monte de cartas foi colocado sobre o centro da mesa com força. E eu comecei a enrolar os
meus cachos na ponta do cabelo, tornando-os mais intensos. O baralho era alaranjado, no
entanto, no centro dele havia o desenho de três luas. Aquele não era um conhecimento comum
para a maioria das pessoas, no entanto, eu sabia que se tratava de uma triluna. Um símbolo que
representa o poder da Deusa, representa as transformações da mulher.
A cigana pediu que eu separasse o monte em três partes, e de imediato avisei que queria saber
somente sobre o âmbito profissional. Morgana concordou sem reclamações ou hesitações.
Parecia doutrinada para dar aquilo que lhe pediam.
—Preciso do dinheiro antes de interpretar as cartas para você — dispôs as mãos sobre a mesa,
aguardando.
—Claro. — O dinheiro já estava no bolso da minha calça, separado. — Desculpe.
Coloquei as duas notas sobre a mão dela, e me ajeitei na cadeira como se aquilo fosse me
acalmar de alguma forma. Morgana virou a primeira carta de cada monte para cima, revelando
uma mulher, um trono, e um coração sangrando.
—As cartas não concordam com você sobre falar apenas do âmbito profissional — comentou,
parecendo se divertir com aquela revelação. — Prefere que eu ignore essas e vire novamente? —
Balancei a cabeça afirmativamente, sem certeza da minha resposta. Com medo de me render ao
que o baralho queria me dizer.
Morgana retirou as cartas já viradas e as colocou na lateral da mesa. Em seguida, puxou cada
carta de cada monte novamente, revelando as mesmas cartas de antes. A mulher, o trono e o
coração sangrando. Seus olhos verdes, com um pingo de amarelo, semicerraram na minha
direção e, depois, para a lateral, onde as cartas retiradas ainda estavam.
—É algum tipo de truque? Acha engraçado desafiar uma cigana? — Estalou a língua, retirando
as cartas de cima dos montes e virando as seguintes.
A cada virada, os vincos na testa de Morgana iam desaparecendo, dando lugar a um olhar
brilhante e satisfeito. Um sorriso se formou em seu rosto conforme ela via mais três vezes o
trono, a mulher e o coração sangrando. Por que ela não estava mais me encarando com raiva?!
—Por favor, me diga então o que estas cartas significam — berrei, fazendo-a parar de supetão e
dar uma gargalhada.
—Que você é a mulher aguardada para o trono, porém, seu coração sangrará para sempre com
essa escolha. — Tá, eu senti vontade de pegar meu dinheiro de volta com aquela palhaçada.
Qualquer um que se passasse por um cigano diria exatamente aquilo.
—Isso eu acho que poderia deduzir sozinha, né? — Cruzei os braços. — Mas você está vendo
algum tipo de coroa sobre a minha cabeça? Ou um reino do lado de fora desta tenda? — A falsa
cigana jogou a cabeça para trás, rindo novamente, como se eu fosse a palhaça do seu circo.
Sem me dar qualquer resposta, a charlatã embaralhou as cartas mais uma vez, desta vez sem
entoar sua canção, e dispôs três delas sobre a toalha vermelha. Fogo. Uma mulher. Morte. E eu
me levantei rapidamente, deixando a cadeira cair para trás. Infelizmente, aquela disposição de
cartas me assustou muito mais que ver as outras três serem repetidas várias vezes. Porque
aquelas me faziam recordar do pesadelo. E se, de repente, eu não conseguisse me salvar? E se,
por um acaso, o cara encapuzado de olhos azuis não existisse?
—Eu sou uma bruxa. Meu baralho nunca tem cartas iguais, a cada jogada ele muda. — Ela se
levantou também. — E eu sabia que quando todo o meu baralho se repetisse para uma pessoa, eu
a teria encontrado. A maldição da herdeira.
Morgana saiu de trás da mesa despreocupadamente e enfiou a mão dentro do decote, puxando de
lá um objeto metálico. E eu não pensei duas vezes antes de correr na direção do lado por onde
havia entrado. Corrigindo: tentar correr. Eu dei uns três passos antes de ficar completamente
congelada no meio da tenda. Como naqueles sonhos em que você desperta e tenta se mexer ou
falar e não consegue. Era exatamente assim, apesar de eu ainda conseguir falar.
—Por que você gostou de me encontrar? — Morgana fez meu corpo girar, de modo que eu
pudesse vê-la. Certo. Eu estava me coçando mentalmente por pensar que Morgana estava
realmente mandando no meu corpo sem me tocar, mas eu não tinha outras palavras ou uma
teoria cientifica para negar o que estava acontecendo.
—Uma herdeira que não sabe o próprio valor. Por isso me perguntou se eu via a coroa na sua
cabeça. — O objeto metálico visto anteriormente era um canivete que, naquele instante, rasgava
a palma da mão direita da cigana, bruxa, charlatã, sei lá como deveria chamá-la.
—Herdeira de quê? — questionei, tentando ganhar tempo, pensando que em algum momento
minhas amigas acabariam por me procurar.
—De um trono que, pelo visto, vai custar seu amor, querida. —Sorriu, olhando bem nos meus
olhos enquanto se aproximava. — Não chore. — Seus dedos ensanguentados afagaram meu
rosto, como se eu realmente estivesse chorando.
—Então, você deve ser muito imbecil. Eu não tenho um amor. — Cuspi em seu rosto, sentindo
nojo do seu sangue em minha bochecha.
E paguei o preço. Morgana estalou os dedos bem na frente do meu rosto enquanto eu presenciava
seu sorriso se desfazer em uma linha reta e os vincos retornarem a sua testa. Senti meus
neurônios travando uma luta. Minha visão imediatamente embaçou e vi duas ciganas, talvez três,
vi muitas velas, vi as chamas bruxuleando mais que o normal e vi as cartas levitarem na direção
do teto. Ela parou de me encarar para observar o show das cartas no teto e, por um instante, eu
senti a magia sobre mim diminuir. Minha mente recobrou um pouco a lucidez quando vi a
cortina vermelha balançar, dando lugar a um homem escondido por uma jaqueta jeans com um
capuz. Seus passos eram calmos e determinados, apesar de a minha mente estar velejando e me
causando náuseas. Ele?!
—Veio reclamar a herdeira? Acabei de fazer a comunicação às águias noturnas — comentou
tranquilamente, caminhando na direção da mesa e se sentando. — Sente-se, me diga o que tem a
oferecer por ela.
—Em quanto tempo você acha que a Corte chega, Morgana? — sua voz não hesitou nem por um
instante. Observei quando se inclinou sobre a mesa, de costas para mim. O barulho das suas
mãos se chocando contra a mesa pareceu quintuplicado nos meus ouvidos, aumentando a náusea
a tal ponto que vomitei. — Ela é minha, a partir de agora, e duvido que seja capaz de me dizer o
contrário.
—Por que está traindo as águias, Eric? — A cigana se levantou e, com a minha visão levemente
recuperada, pude notar que sua expressão não era mais de ira. Morgana parecia surpresa, curiosa,
com seus olhos verdes levemente arregalados. — Eu não abrirei mão dela. — Morgana se
encheu de força, esboçando um singelo sorriso enquanto fechava sua mão, fazendo mais sangue
pingar sobre o chão.
—Admiro a sua ousadia em me enfrentar. — O encapuzado estendeu a mão na direção dela,
fazendo Morgana abrir os lábios, temerosamente.
—Você não seria capaz... — ela falou cada palavra lentamente, parecendo se sentir realmente
traída.
—Eu não teria vindo até aqui, se não fosse. Considere como um ato de misericórdia. — A mão
direita de Eric abriu na direção do peito da cigana que começou a perder a cor.
—Eu não pensei que você fosse ser capaz, Eric. Por favor, —seus lábios vermelhos rogaram pela
própria vida, enquanto ela juntava as mãos para suplicar. — Por favor, eu não quero ir para o
reino da morte, por fav...
—Pare — berrei, chamando a atenção do encapuzado, que direcionou o rosto para mim. Seus
olhos eram azuis, exatamente como no pesadelo. E exatamente como no pesadelo, o tal Eric
parecia estar salvando a minha vida. — Não a mate, pelo amor de Deus.
Morgana se aproveitou do momento, do fato de Eric ter parado de prestar atenção nela para me
olhar, para estalar seus dedos sobre a mente dele, como fizera outrora comigo. Contudo, sobre
ele, aparentemente o feitiço não surtiu efeito. E enquanto o sangue da mão dela pingava sobre o
chão, Eric continuou com sua mão estendida. Morgana suplicando. E eu assistindo.
—Eu não a estou matando — explicou, apesar de seu tom ser gelado como a neve. — Mas,
espero que você esteja ciente de que ela estava tentando barganhar você com os seres mais
perigosos da nossa sociedade. — Eric se apressou em segurar o corpo da cigana no momento em
que ela perdeu todas as forças, desfalecendo. Embora ele dissesse que não.
—Eu sabia que ela estava tentando me vender — retruquei enquanto o observava repousar o
corpo da cigana no chão. Tinha sido reduzida a uma mera espectadora da minha própria vida. —
E também sei que você veio me comprar, não é mesmo?
Eric optou por não me responder de imediato. Não que eu tivesse realmente feito uma pergunta,
o deboche no meu tom de voz indicava isso. No entanto, seu comportamento era um enigma para
mim. Se Morgana tinha comunicado os seres, faça uma pausa nesta palavra enquanto minha
mente a compreende, mais perigosos da nossa sociedade, e Eric havia aparecido, isso o tornava
um deles, correto? E, então, por que ele estava me salvando?!
Pensando nisso, acabei por me dar conta de que o feitiço sobre mim havia sido desfeito. Não
estava mais congelada. Talvez pelo fato de que Morgana não mais existisse. Se ela não estava
morta, eu não sabia o que ela estava, e também não sabia o que Eric considerava morte. De
qualquer forma, decidi que a tenda não era o melhor lugar para raciocinar sobre o que tinha
acontecido, assim, ajeitei minha bolsa para dar o pé. E, obviamente, não foi como planejei.
—Sim, eu vim comprar você — suas palavras fizeram meus passos cessarem antes de a sua mão
segurar de modo gentil o meu antebraço —, sim, talvez eu seja um dos piores seres da nossa
sociedade.
—Eu não estou à venda. — Puxei meu braço da mão dele, irritada, no entanto, Eric não cedeu.
Pelo contrário, ele virou meu corpo na sua direção, congelando-me novamente. — Por que não
congela logo a minha boca também?
Vislumbrei um discreto sorriso de divertimento antes de ele abaixar a cabeça, deixando a franja
de seu cabelo escuro como a noite esconder seus olhos. Eric coçou a garganta e puxou da jaqueta
jeans acolchoada um frasco vazio. Em seguida, suspendeu sua mão esquerda na direção do meu
rosto, e eu juro que me debati internamente, que tentei me soltar daquele feitiço imbecil. Seus
dedos gelados encostaram na minha pele com calma, e ele os deslizou sobre a minha bochecha. E
eu relutei por dentro e o xinguei algumas vezes até seus olhos se levantarem na direção dos
meus, até sua mão direita posicionar o frasco logo abaixo da maçã do meu rosto. E, de repente,
eu não estava mais congelada.
—Você desfez o feitiço — as palavras pareciam estar brincando em seus lábios, dançando a
frente dos meus olhos.
—Eu?! — Encarei-o completamente confusa. Como eu tinha desfeito o feitiço?!
—De algum modo, você conseguiu canalizar todos aqueles xingamentos. — Afastou o frasco do
meu rosto e o guardou de volta na jaqueta. — Significa que você poderia ter me parado antes
mesmo de eu ter tocado seu rosto. — Um sorriso convencido brotou em seu rosto. Eric estava se
divertindo com aquilo, estava insinuando que eu queria seu toque, e eu reagi sem pensar.
Levantei a mão para acertar um tapa em seu rosto, mas ele a segurou com firmeza, sem piscar
antes de o fazer. Eric agarrou meu pulso, puxando-me em sua direção sem qualquer dificuldade,
fazendo eu me sentir uma formiga facilmente amassada.
—Você me deve um favor por ter salvo a sua vida — depositou as palavras a milímetros de mim
e, diferente do pesadelo, naquele instante eu podia ver os seus olhos azuis nos mínimos detalhes.
Talvez no modo como eles eram mais claros no centro e escureciam gradativamente. Talvez no
modo como ele não piscou ao falar comigo, ou no modo como ele parecia muito certo do que
dizia. — E eu voltarei para cobrar. Até mais, Kate.
Eric estalou os dedos da mão desocupada e a tenda começou a pegar fogo. Em segundos, o azul
dos seus olhos se transformou num breu.
Ainda estava tudo escuro quando senti um líquido escorrer pelos meus lábios, trazendo-
me de volta a realidade. Minha garganta estava seca, dolorida, e num rápido instinto abri minha
boca para tentar absorver a água, mesmo sem saber sua procedência.
A cada gota de água, eu sentia o alívio me preencher, como se eu estivesse à beira da
inconsciência e estivesse recobrando minha lucidez. Lembrei-me da tenda pegando fogo, abri os
olhos e me sentei em um pulo. E a primeira coisa que avistei foram seus olhos, mas não eram
azuis, eram da cor do outono, das folhas alaranjadas que cobriam o portal da festa. Olhos como
eu nunca havia visto. Ele enroscou a tampinha na garrafa de água em suas mãos.
—O que aconteceu?! — Tirei meus olhos dos dele, focando ao meu redor. Ainda estávamos no
parque, apesar de ele estar praticamente às moscas. Como eu tinha ido parar quase na entrada
do evento? Tão longe da tenda?
—Sua primeira pergunta não deveria ser o meu nome? — O dono dos olhos de outono levantou
o canto direito dos lábios de forma simpática, revelando uma linha de expressão que o tornava
charmoso. — Houve um incêndio na tenda da cigana, e eu a encontrei aqui largada na grama.
Aparentemente você desmaiou com o susto.
A última coisa que eu faria era desmaiar com sustos. Não que eu não me assustasse, o problema
era que eu havia sido acostumada a manter a calma nas horas difíceis. A minha família perdia
facilmente o controle nas situações complicadas, e eu me doutrinei a absorver a calma que elas
não possuíam.
—Os bombeiros já contiveram o fogo e estão examinando algumas pessoas. As demais correram
o mais rápido que podiam — ele continuou após o meu silêncio.
—E por que você ficou? — Muito altruísta, pensei em completar, mas não quis parecer ingrata.
Pelas suas roupas, bombeiro com certeza ele não era, ainda que a camisa branca com gola V
revelasse um porte bem atlético.
—Estou acostumado com o fato de as pessoas não acreditarem na minha capacidade de ajudar os
outros sem querer nada em troca — respondeu à pergunta que eu não havia esboçado, e eu me
assustei. Não que eu achasse que poderia me assustar com mais alguma coisa, para ser sincera,
eu estava custando a acreditar no que havia acontecido na tenda.
Aquele cara na minha frente tinha o mesmo dom compartilhado entre eu e minha avó? Ler os
pensamentos? Ok. Sei que pareço uma aberração tendo pesadelos reais, lendo as mãos das
minhas amigas e lendo pensamentos. No entanto, você precisa entender que eu fui criada assim.
Desde pequena, minha avó falava:
“Todos temos dons. A diferença entre todos e você é se vai exercitá-los ou não.”
E ela me ajudou a trabalhar em cada um dos dons que descobríamos em mim. Minha avó era
como uma amiga para mim, e eu nunca superaria a sua partida, a sua ausência física na minha
vida. Ler pensamentos é como ler a linguagem corporal. Nós nem percebemos, mas entregamos
tudo que pensamos nos movimentos de nosso corpo. E após anos e anos praticando, havia me
tornado profissional na leitura dos outros, ao ponto de quase ouvi-los sussurrar na minha mente.
Ao ponto de eu me assustar e achar que podia não ser apenas um dom ou uma habilidade
trabalhada, que podia ser algo sobrenatural.
—Sinto muito. Eu não queria ter sido tão... — Sincera? Direta? Objetiva? Eu nem havia
falado...
—Natural? — sugeriu num tom baixo e doce, como não se importasse nem um pouco com a
minha desconfiança a respeito dele.
—Sim — balbuciei, um pouco desconcertada pela precisão com que definiu minha atitude. Sua
habilidade era melhor que a minha, pelo visto. — Alguém se feriu? — Procurei minha bolsa,
mas ela havia sumido na confusão. Levantei-me, percebendo que ainda estava sentada na grama
de frente para o rapaz que eu não sabia o nome.
—A cigana morreu. O fogo pegou quase todo o corpo dela. — Oi?! Eric não havia dito que ela
estava viva? E que estava concedendo a ela um voto de misericórdia?! Grande mentiroso.
Com muita elegância, o rapaz levantou-se também, no entanto, o fato de seus olhos estarem tão
fixos em mim, como se ele estivesse deslumbrado por me conhecer, deixou-me completamente
constrangida. Será que ele podia parar de me olhar daquele jeito? Eu não sou nenhuma deusa
ou artista famosa para tanto.
Como se tivesse acabado de matar uma charada, ele abriu os lábios, formando mais uma vez
aquela linha de expressão. E ele simplesmente parecia alguém tão confiável, tão tranquilo, tão...
Não sei. Seu olhar se afastou na direção do lago que rodeava o parque enquanto eu me sentia tão
à vontade que pensava em estupidamente comentar sobre a leitura de pensamentos.
—Olha, eu devo pedir desculpas. — Estendeu as mãos compridas em sinal de paz. — Sei que a
estou deixando confusa, Kate...
Pare. Volte duas casas.
—Eu não me apresentei. Como pode saber meu nome se estou há todo esse tempo pensando em
você como um rapaz desconhecido? — questionei, aproximando-me involuntariamente, como se
eu pudesse retirar aquela informação com as minhas próprias mãos.
—Pediram que eu a encontrasse. — Ele se aproximou mais um pouco, não parecendo intimidado
pela minha aproximação inicial, e estendeu a mão na direção do meu rosto. Estava pronta para
dar o meu segundo tapa do dia, para afastá-lo de mim, quando seus lábios sussurraram: — Você
é neta de Júlia West, e eu preciso levá-la até uma pessoa.
Capítulo 4
Domingo era um dia que minha mãe ficava o tempo todo em casa, então, eu não tive a
oportunidade de entrar no depósito, onde ela guardava coisas antigas nossas e algumas caixas da
minha avó, que foram retiradas da sua casa por abrigarem documentos importantes.
Antigamente, eram apenas caixas e documentos como escrituras, certidões de nascimento, de
casamento, entre outros papéis corriqueiros de gente normal. Atualmente, eu olhava para aquela
porta como se ela fosse uma passagem secreta para Hogwarts, a plataforma 9 ¾. Contudo, eu não
teria a oportunidade de entrar lá antes do meu encontro com Téo, por isso, nos trancamos no meu
quarto e foquei nos meus estudos com Jane. Não, ela não estava estudando de verdade, apenas
copiando.
A segunda-feira enfim amanheceu. Chuvosa. E não foi muito difícil para mim escolher usar as
minhas botas de sempre. De resto, apenas coloquei uma calça e uma blusinha de manga. Era
quase um uniforme porque eu não ligava muito para roupas. Tinha o costume de gastar meu
dinheiro com livros, cadernos, canetas; roupas não.
Seguimos para a aula de Medicina Legal, uma matéria opcional no curso de Direito, e que eu e
Jane decidimos fazer juntas para nos ajudarmos com o material de estudo. A aula seria teórica e,
por isso, não levamos nossos jalecos naquele dia. Entramos na sala, onde o professor Carlos já
estava fazendo umas breves anotações no quadro — ele não era muito de escrever, era mais de
falar —, quando estaquei na porta.
Por que Téo estava sentado em uma cadeira encostada no canto da sala? Era como se eu tivesse
voltado no tempo, e o professor tivesse colocado Téo sentado ali porque ele era o melhor aluno e
ninguém poderia colar as questões dele. Isso acontecia quando eu estava no ensino fundamental.
Na faculdade, os professores pouco se importam se você não estudou, o problema será seu na
hora de exercer a profissão.
Téo estava com a cabeça ligeiramente abaixada, anotando algo em seu notebook. Podia vê-lo de
perfil, e observá-lo com mais calma não me fez começar a andar. Seus traços eram elegantes. A
linha do maxilar inclinando perfeitamente na direção do queixo, o nariz fino e harmônico. Os
fios loiros e curtos de seu cabelo estavam levemente arrepiados por causa da chuva. Seus olhos
subindo na direção dos meus foram o gás que as minhas pernas precisavam para andarem.
Caminhei na sua direção, aproveitando-me de que o professor ainda estava escrevendo e de que
os alunos ainda estavam se acomodando.
—Você está me seguindo?! — sussurrei assim que encostei meu corpo na sua mesa.
—Eu falei que precisava levá-la ao encontro de uma pessoa. —Ele apoiou as mãos sobre a mesa,
parecendo relaxado, apesar do modo como eu o abordara.
—E eu marquei um encontro para mais tarde — retruquei, ainda sentindo-me estranha com a
presença dele na sala.
—Eu não podia imaginar que a encontraria no parque sexta-feira. Do contrário — Téo diminuiu
seu tom de voz —, não teria dado um jeito de conseguir essa vaga.
—Kate West, vejo que já conhece meu estagiário, Senhor Dáman, por gentileza, apresente-se ao
restante da turma.
Corei. Não sou uma pessoa que se envergonha facilmente, no entanto, eu não tinha percebido
que a turma já tinha se preparado para a aula, tampouco que o professor havia terminado suas
anotações. Eu não queria ter chamado a atenção. Ainda mais de como as coisas soaram na boca
do professor.
Dei alguns passos para trás, observando Téo se levantar com toda sua calma e passos calculados.
Ele, deliberadamente, roçou a lateral do seu corpo no meu ao passar por mim na direção do
centro da sala. E meu coração acelerou. Estupidamente eu me peguei pensando no fato de que
Téo quis encostar em mim. Balancei a cabeça discretamente e levei minha dignidade para a
cadeira ao lado de Jane.
—Puta que pariu... — Jane sussurrou tão logo eu me sentei enquanto eu ainda tentava restaurar a
ordem dos meus batimentos. — Se eu soubesse que seria achada por ele no parque, eu
desmaiaria todos os dias. — Ri como uma idiota, tentando não chamar atenção.
Mantive minha cabeça baixa, arrumando minhas coisas na bancada e ouvindo o início de seu
discurso. Téo falava como se fosse um expert em palestrar, como se fosse um rei discursando
para seus súditos. E eu me recusava a olhá-lo e me permitir concordar com Jane. Seu toque ainda
estava me incomodando. Sua determinação em me levar ao encontro da tal pessoa. Sua elegância
e diplomacia me surpreendiam.
“Eu trabalho há três anos no Departamento de Polícia da parte antiga da cidade. Nos casos
mais sérios e complicados. E o supervisor achou que eu poderia contribuir dividindo minhas
experiências com vocês e também aprendendo um pouco mais com esse grande mestre que está
ao meu lado”.
—Ele olhou para cá num total de... dez vezes?! — Jane sussurrou. — E você o ignorou num total
de dez vezes também. Talvez eu deva usar essa tática com o Henrique, porque, sério, esse cara
parece interessado em você.
—Acabamos de nos conhecer, Jane. Por favor, você não é a Lola —reclamei, começando a
anotar as coisas no notebook.
—Justamente por isso você deveria me levar a sério. Eu não acho que ele esteja apaixonado, mas
que ele quer experimentar, ele quer.
Experimentar?! Tenho certeza de que corei novamente, sentindo um calor ridículo. Mantive
meus olhos na tela do computador.
—Quando você falou experimentar, eu tive certeza de que não era mesmo a Lola—debochei.—
Você prefere chocolate ou morango quando for experimentada pelo Henrique?
—Amiga, se eu for experimentada pelo Henrique, nem precisa de chocolate e morango. — Ela
ligou o gravador do seu celular quando o professor começou a falar sobre o assunto do dia. — Eu
sou apenas prática. E, se ele olhar mais uma vez para cá, eu juro que vou ceder minha cadeira.
Levantei meus olhos na direção de Téo. Se ele era tão hábil em ler pensamentos, eu me
concentrei em usar o meu corpo para passar o recado de que não queria que continuasse a me
olhar. Jane estava falando sério, ela seria plenamente capaz de se levantar e fazer alguma
gracinha. A faculdade não é como a escola. As pessoas não ficam ligando muito para a fofoca do
momento. Então, se ela fizesse qualquer coisa do tipo, poucos notariam. O estagiário pareceu
entender, porém, de uma forma estranha, quando ele inclinou a cabeça para o lado, franzindo sua
testa na minha direção, eu escutei algo sendo sussurrado na minha mente:
Por que me ignorou o tempo todo? Fiz algo de errado?
Comprimi meus olhos na sua direção, tentando entender se era sério aquilo. Se eu realmente o
tinha ouvido. Tinha quase certeza de que havia sido a sua voz. E, então, querendo me garantir
disso, ele repetiu sua pergunta. Na minha mente.
Como você faz isso?
Um ponto de interrogação formou-se na minha testa.
Exatamente como você fez agora. Basta pensar.
Você pode ouvir todos os meus pensamentos?!
Seus lábios grossos se abriram em um sorriso divertido e discretamente convencido.
Apenas quando você os direciona para mim. Como está fazendo. Não podia ouvir o que estava
falando com a Jane, por exemplo. Nem seus motivos para ter me ignorado durante a minha
apresentação. Fique tranquila, caso tenha pensado algo que julgue constrangedor.
Olhei em sua direção novamente e sorri. Téo parecia sincero. Parecia estar sempre disposto a
responder meus questionamentos. E, de alguma forma, aquilo me confortou. Era como se eu não
estivesse sozinha na ampulheta na qual minha vida se transformara. Téo parecia possuir
informações e conhecimentos os quais eu desconhecia. Nossa comunicação, sem o uso da voz,
tinha me dado a certeza de que a minha habilidade de ler pensamentos não era apenas uma leitura
de linguagem corporal. Nós pouco nos mexemos. Tentamos ser o mais discretos possível. E eu
não seria capaz de escutar palavra por palavra. A constatação era terrível, mas talvez fosse
mesmo algo sobrenatural.
Quando as três horas seguidas de aula teórica acabaram, eu decidi simplesmente ignorar a
presença de Téo. Não havíamos nos comunicado mais, eu realmente havia me concentrado na
matéria, e ele fora chamado algumas vezes para dar exemplos de casos nos quais já trabalhara.
Estávamos seguindo com nossas vidas, como era antes de eu completar 21 anos. Amarrei meu
cabelo em um coque, joguei a bolsa transversal no meu corpo e me misturei a turma, ao lado de
Jane. Não havia sentido em parar para conversar com ele. Não éramos amigos, íntimos, nem
nada parecido. Seria até esquisito eu ir até sua mesa e falar algo. E nem sabia por que estava
pensando em tantas hipóteses, justificativas e alternativas. Paramos em nossos armários no
corredor, e enquanto eu pegava o material para estudar na biblioteca, Jane se despediu. Quanto
antes chegasse ao trabalho na sorveteria, antes sairia. Seu lema era: “antes tarde, que mais tarde
ainda”.
—O destino quis que nos encontrássemos duas vezes. — Téo relaxou o corpo sobre o armário ao
lado, escondido pela porta aberta do meu. Mantive-a aberta, acalmando-me do susto. —Devo
considerar isso como um sinal? — A porta do meu armário foi pouco a pouco sendo fechada por
sua longa mão.
—Levando em conta que você — passei a sussurrar — se esforçou muito para conquistar a vaga
de estagiário, eu diria que não há nenhum sinal. Mas cada um enxerga o que quer ver. —
Terminei de fechar o armário e coloquei o cadeado.
—Mas eu não fiz por onde encontrá-la no parque. —Não tinha percebido que ele estava tão
próximo até o armário ser de fato fechado. —Bem, eu marquei com a pessoa às 19h30, conforme
me pediu.
—Sugiro desmarcar. — Agarrei o livro entre meus braços e comecei a andar na direção da saída
do prédio. — Eu marquei com você, não com a pessoa que nem conheço. Você não acha mesmo
que vou sair da faculdade com você, né?
Téo caminhou rapidamente e me alcançou, passando a andar ao meu lado. O corredor estava
cheio ainda, com muitos alunos indo e vindo das aulas, professores circulando de modo
apressado. Descemos alguns degraus e, após passarmos por um pátio cheio de jovens
conversando, flertando, namorando, saímos na área aberta da faculdade.
—Na verdade, eu realmente achava. — Téo parou na minha frente, bloqueando meu caminho. —
O que eu preciso fazer para que você vá comigo? — Suspirou pesadamente, seu maxilar
enrijecendo. Téo parecia desesperado e realmente capaz de fazer qualquer coisa que eu
escolhesse. Essa constatação me assustou. Por que precisava tanto que eu fosse?
—Téo... —Eu queria fugir. Téo estava me obrigando a pensar nos meus problemas com mais
constância do que eu pretendia. Ele me parecia um problema desenhado ali na minha frente.
—É um bom sinal. Você já está usando meu nome. — Sorriu, e seus sorriso chegou aos olhos.
Merda.
—Você iria comigo se fosse o contrário?
—Claro. Eu sei que não vou fazer nenhum mal a você. —Ele estava fugindo da reflexão que eu o
havia induzido. —Eu a entendo, já disse isso. Me peça alguma coisa, Kate. Qualquer coisa que
faça você repensar sua decisão.
—Ok. Quero respostas para todas as minhas perguntas. Agora. Na biblioteca. — Fiz menção de
dar a volta nele para seguir meu caminho, no entanto, Téo estendeu o braço, impedindo-me.
Mais um passo e meu corpo encostaria no dele.
—Você é um pouco mandona — refletiu e, apesar de essa característica ser muitas vezes
considerada um defeito, Téo não parecia pensar do mesmo modo. O olhar divertido em seu rosto
me mostrava isso. — Eu aceito sua condição. Aceito até mesmo dar as respostas para as coisas
que você não perguntar, mas não na biblioteca. Você precisa me dar ao menos esse voto de
confiança. Preciso de um local mais reservado. — Arqueei minha sobrancelha, sentindo que
estávamos voltando ao mesmo problema. — No laboratório de Medicina Legal. Eu tenho as
chaves e ainda estaremos na faculdade.
Parecia razoável. Parecia ainda mais razoável e surreal o esforço ao qual ele estava aceitando se
submeter para me levar ao tal encontro. Téo parecia não ser nem um pouco orgulhoso. Era como
aqueles homens que não medem esforços para terem o que querem. E a verdade é que ele era o
único a fim de me explicar alguma coisa. Podia não ser nada relevante para a minha vida ou para
as minhas dúvidas, contudo, eu também não estava em condições de ficar recusando a oferta.
Aceitei.
Capítulo 6
Minha mãe saía logo cedo para trabalhar na confeitaria da mãe de Lola
e, por isso, eu propositalmente me atrasei para a faculdade. Demorei mais no banho, enrolei com
o café da manhã, e fiz de tudo para não dar tempo de acompanhá-la e que ela saísse antes de
mim. Poderia invadir o depósito de madrugada, mas com ela em casa sempre seria arriscado.
Jane percebeu meu plano e aceitou se atrasar comigo ou, do contrário, não pareceria real.
—O que você está aprontando? — sussurrou quando paramos em frente à porta do depósito.
—Preciso encontrar um documento da minha avó. Um bilhete que ela deixou pra mim e, por
engano, veio parar aqui. — Girei a maçaneta apenas para constatar o óbvio.
—Você acha que sou idiota, né? — Ela se afastou na direção da mesa da sala de jantar. — Só um
pouquinho idiota. Por que você precisaria entrar aí escondido por um bilhete que POR ENGANO
se perdeu? —Ok. Não é que eu tivesse subestimado a inteligência de Jane, eu apenas pensei que
ela não fosse dar atenção a isso.
—Só me ajuda a encontrar as chaves. Sei lá. A entrar — supliquei, já andando ao redor da sala e
fuçando coisa por coisa.
—A sua sorte, Kate, é que eu sempre perco minhas chaves. Do armário, da bicicleta, do diário...
Então, eu me obriguei a aprender a abrir coisas sem a chave. Passou a ser uma utilidade privada,
já que só uso para mim — explicou com superioridade, gabando-se por sua habilidade com
potencial ilícito. — E eu já tenho os grampos prontinhos na minha carteira.
Caminhou na direção da porta embaixo da escada, onde ficava o pequeno aposento com
entulhos. Me aproximei, curiosa para saber como ela faria aquilo. Ela enfiou um grampo de
cabelo com uma curva na ponta.
—Para qual lado a chave giraria? — Indiquei a esquerda.
Jane começou a movimentar o grampo de um lado para o outro, com calma e cuidado, porém,
tive a impressão de que ela havia feito uma leve pressão no início. Me perguntei se eu poderia
abrir aquela porta com feitiço afinal, se eu era mesmo uma bruxa, Jane não precisaria estar
fazendo aquilo. Eu poderia simplesmente... Não. Eu não podia pensar naquelas coisas. Foquei
em Jane que, naquele momento, inseria o segundo grampo. Ela o movia para cima e para baixo
ao mesmo tempo em que segurava o outro. Fez o movimento algumas vezes, contudo, seu rosto
não tinha uma expressão positiva. Ela estava franzindo suas sobrancelhas quase platinadas de tão
loiras.
—Estranho. Já consegui vencer o pino mais resistente — reclamou.
Minha mente deu a resposta: minha mãe deve ter colocado um feitiço na porta. Bufei de raiva,
chateada por aquela situação. Eu precisava abrir aquela porta de qualquer jeito, precisava
confrontar a minha mãe com a verdade, eu não podia mais ficar no escuro, como minha avó
dissera. E eu não queria chegar até a avó do Téo, caso eu realmente fosse, de mãos abanando.
Comecei a andar de um lado para o outro, sentindo meu estresse se elevar consideravelmente.
—Abriu.
Jane sussurrou, parecendo surpresa. Acho que nem ela mesma acreditava mais na possibilidade
de abrirmos aquela porta. Girou a maçaneta e entramos no minúsculo cômodo cheio de caixas e
prateleiras em uma das três paredes. Puxei a cordinha da lâmpada e, para minha decepção, ela
estava queimada.
—Acho que não vamos à faculdade hoje — ela brincou. — Estamos literalmente no escuro com
uma, duas, três, quatro caixas para vasculharmos e um motivo real para tudo isso, o qual você
deve me contar enquanto estivermos em busca do tesouro.
—Ainda bem que você não sofre de alergia porque eu já sei que vou ficar espirrando pelas
próximas quarenta e oito horas — reclamei, sentando-me ao lado de uma caixa. Jane fez o
mesmo.
Ligamos as lanternas de nossos celulares e agendamos o alarme para dali a três horas, o máximo
que podíamos permanecer sem o risco de sermos pegas em flagrante. Minha mãe, às vezes,
voltava para almoçar em casa. De qualquer forma, pedi a Lola que ficasse de olho durante seu
turno na loja da mãe. Ela trabalhava lá de manhã e ia para a faculdade de Dança no período da
tarde.
—Minha mãe mentiu sobre o meu pesadelo — comecei explicando para Jane enquanto abria a
primeira caixa.
Ela e Lola sabiam do teor dos pesadelos, exceto pela parte do bilhete que havia sido acrescentada
no sonho mais recente e sobre o qual ainda não tínhamos tido tempo de conversar. Falei que
havia conseguido provas de que minha avó estivera mesmo em nossa casa antes de morrer e
havia deixado o bilhete. Enquanto eu contava, tentando não me distrair e falar demais, ia
encontrando coisas da nossa família. Álbuns de fotografias, certidões, extratos de bancos,
realmente as coisas comuns. A primeira caixa não era da minha avó. Ignorei e passei para a
seguinte. E quase dei um berro de felicidade. Encontrei o herbário dela. Um pequeno livro com
capa almofadada verde musgo. Seu nome estava cravado na frente com costura. Eu amava
aprender sobre as propriedades das ervas, sobre como elas podiam curar, como elas podiam ser
usadas naquilo que chamávamos de simpatias, mas que, em virtude das atuais circunstâncias,
começava a pensar que tivessem outros nomes. Rituais? Feitiços? Poções?
Abri o herbário e o virei para baixo. Minha mãe não ia largar um bilhete no meio da caixa,
provavelmente o teria escondido entre os objetos. Nada. Coloquei-o no chão, ao lado da caixa,
pois levaria comigo. Se eu realmente era uma bruxa, precisaria dele mais cedo ou mais tarde.
Continuei a procura. Encontrei desenhos de símbolos diferentes. Desenhos de pessoas. Um
caderninho com encomendas de joias. Sim. Minha avó desenhava joias para algumas joalherias e
usava pedras diferentes e bem bonitas, as quais também possuíam propriedades. Isso é comum
para qualquer pessoa. Uma lojinha com ervas ou pedras. Todo mundo compra uma vez na vida.
Até mesmo quem não acha que é bruxa, como eu.
—Sua herança vai chegar, aceite a mudança quando 21 primaveras completar — era a voz de
Jane, e eu agarrei uma pedra recém encontrada na caixa, assustada ao ouvir aquelas palavras na
boca dela. — Sua herança vai chegar, aceite a mudança quando 21 primaveras completas. Sua
herança vai chegar, ACEITE! — não era mais a voz de Jane.
Deixei a pedra cair e corri na direção de Jane, mas congelei na metade do pequeno caminho. Jane
segurava o bilhete, igualzinho o do meu pesadelo, um pouco já mofado pelos anos, suas mãos
brancas e as unhas pintadas de azul. Contudo, o modo como encarava o papel me dizia com cem
por cento de certeza que não era a minha amiga ali. Ela não faria aquela expressão séria e como
se estivesse vendo algo do qual não gostava. E eu simplesmente não sabia o que fazer.
Eu tinha resolvido fuçar meu passado, descobrir mentiras e segredos. E havia carregado Jane. Eu
estava sendo metida a corajosa, no entanto, nem tinha as armas necessárias para me proteger,
para proteger as pessoas ao meu redor. Como eu a salvaria? Quão irresponsável eu era?!
—Por favor, apenas deixe minha amiga em paz — pedi em um sussurro.
—A senhorita Dylan nem se lembrará do ocorrido. Apenas a estou usando como um portal. —
Estava um pouco cansada das pessoas conhecerem a mim e aos meus amigos sem nos
apresentarmos antes. Tá certo que ela era uma fantasma, e essa era a única explicação para saber
o sobrenome de Jane. — Por mais que você tenha se livrado do sangue da cigana e a tenha
queimado, conseguimos acessar resquícios da memória dela. Eu nunca a teria encontrado,
senhorita West. Precisamos marcar um encontro para discutirmos assuntos de seu interesse.
A pessoa que usava o corpo de Jane se levantou e caminhou na minha direção. Estendeu a mão
com o bilhete, oferecendo-me. Peguei-o rapidamente, com medo de que ela mudasse de ideia e o
fizesse desaparecer. Não que ela não o pudesse roubar enquanto eu estivesse dormindo afinal, ela
era um fantasma. Então notei como sua mão estava gelada, tão gelada quanto um iceberg. Credo.
—Apenas deixe a minha amiga e eu me encontrarei com você — prometi.
—Eu já a deixaria, senhorita West. Não se preocupe com isso. Nós estamos do mesmo lado, eu
não lhe causaria nenhum transtorno desnecessário. — Levando em conta a subjetividade do
termo “desnecessário”, ela não estava me garantindo nada. — Tomei conhecimento de que
Samantha Dáman quer lhe encontrar. São as iniciais dela neste bilhete em suas mãos. Podemos
nos reunir na casa dela?
—Meu Deus... — Como eu podia concordar? A casa nem era minha. E se ela possuísse a avó do
Téo, como estava fazendo com a Jane?! Mas eu precisava ver a Jane bem, saudável, viva. E para
isso, aquela louca precisava ir embora o mais rápido possível. — Ok. Desde que você não possua
ninguém.
—Não será necessário, senhorita. — Ela arqueou as sobrancelhas de Jane, parecendo chocada
com alguma coisa. — Posso não usar o corpo de ninguém afinal, nossa conversa será breve.
O fantasma da mulher fez uma mesura na minha direção, como se eu fosse uma pessoa da
nobreza, e abandonou Jane sem dó, nem piedade. Minha amiga deu um suspiro e caiu nos meus
braços. Fria como se estivesse enterrada na neve há algumas horas. Carreguei-a para o sofá da
sala e corri para buscar algumas cobertas. Rapidamente a envolvi nos panos e fui buscar o café.
Eu ainda não sabia muito bem o que fazer; a única coisa que tinha certeza era de que precisava
aquecê-la. Jane bebeu o café pouco a pouco, e conforme os minutos passavam, suas cores
voltavam ao rosto. Ela parecia terrivelmente fraca. E eu terrivelmente culpada.
Capítulo 10
—Não estão caçando animais, estão me caçando provavelmente. — Ele aproximou o rosto para
tentar captar o que os meus olhos tinham acabado de ver. — Fênix da justiça. Eles acham que eu
posso ter informações sobre a herdeira.
Fênix da justiça? Herdeira? Tá. A cigana havia me falado sobre eu ser a herdeira. Sobre uma
maldição. Mas só havia uma herdeira? Quantas pessoas não tinham perdido entes queridos e
estavam esperando alguma herança?
—O quão perigosos eles são? — indaguei, tentando afastar meus pensamentos.
—Sabe aquele lema de o que importa é o objetivo?— Balancei a cabeça afirmativamente,
antevendo a sua resposta: — Funciona com eles. Estou tentando descobrir mais coisas, mas
algum bruxo está bloqueando a minha mente.
Ok. Não havia mais volta. Se eu tinha um resquício de esperança de seguir com a minha vida
ignorando a existência de seres sobrenaturais e fingindo não ser uma bruxa, ele havia morrido ali
mesmo. Eu havia criticado minha mãe por sua proteção excessiva me deixar perdida, e eu estava
fazendo o mesmo.
—Se eles estão caçando você, fique aqui. — Comecei a andar de cócoras para fora da mesa. —
Não posso deixar minhas amigas lá fora, expostas.
Téo segurou meu pulso com firmeza, impedindo-me de seguir adiante. Não dava para ver muito
seus olhos ou seu rosto, devido ao escuro que se instalara na casa.
—Eu estava aqui para proteger você, Kate. Não sou o tipo de homem que se esconde embaixo da
mesa. — Ele largou meu braço e se levantou, antecipando-se. — Mas não sugiro que você vá.
Ouvimos um grito. Era Jane. Ela berrava o nome da Lola. Desesperada, chorosa, horrorizada.
Senti meu corpo gelar por completo e me levantei imediatamente, ignorando o pedido de
prudência de Téo. Eu não era prudente. Eu nunca tinha sido. Eu sempre fui imprudente e
impulsiva. A minha maior prudência na vida era não me apaixonar. De resto, faltava.
Saí da casa em passos inquietos. Estava tudo um breu. Apenas a lua era responsável por enviar
alguma iluminação sobre nós. Puxei meu celular do bolso da calça e acionei a lanterna. Ciente de
que era uma bruxa e estava usando um artifício científico, eu me odiava por ser tão imbecil. Que
tipo de bruxa eu era?!
Jane estava ajoelhada no chão, tremendo de tanto chorar. Perto dela um rastro de sangue seguia
até minha lanterna o perder de vista. Não havia mais ninguém por ali. Nem Henrique, nem
Gustavo, nem Sofia. Apenas Jane, eu e Téo que estava a alguns passos atrás de mim. E o sangue
que muito provavelmente era da Lola.
—O que está acontecendo, Jane? Por favor, me diga. —Caminhei na sua direção e me agachei
perto dela.
—Umas quatro pessoas encapuzadas surgiram no acostamento e começaram a atirar umas
flechas na gente. —Sua voz tremia, transformando-se em alguns instantes num sopro. —A Lola.
Ela foi atingida enquanto fugíamos para a floresta. —Jane se levantou e começou a olhar ao
redor, o braço esticado girando para várias direções diferentes, como se tentasse lembrar onde
Lola poderia estar, mas ela estava perdida. As duas estavam. — Ela simplesmente sumiu.
Sangrando por aí.
Levantei rapidamente. Eu não podia permitir que Jane continuasse ali. Ela estava completamente
abalada e desestruturada, e se ela se perdesse também, a gente teria mais uma pessoa para salvar.
—Téo, leve ela embora. Por favor — pedi enquanto dava uns passos na direção do rastro de
sangue.
—Você vai entrar na floresta sozinha?! — Ele começou a caminhar na minha direção, e eu
estendi a mão, pedindo que parasse. — Você já me conhece e sabe que é da minha natureza
respeitar as vontades dos outros, mas não posso deixar de dizer o quanto isso é loucura. — Ele
acabou com toda a distância entre nós em poucos passos, segurando-me de forma apreensiva,
como se tivesse medo de nunca mais poder fazer aquilo. — Você não os conhece como eu. Eles
estão me procurando, Kate.
—Não. A cigana falou que eu sou a herdeira. Eles estão procurando você por minha causa. —
Coloquei minha mão sobre o peito, reforçando minhas palavras. — A Lola está machucada por
minha causa. Apenas faça o que pedi.
—Você não pode simplesmente sair por aí sozinha no meio da floresta. Tampouco podemos ficar
aqui esperando, precisamos ir embora, Kate.
Ele estava tenso, sua testa estava cheia de vincos enquanto suas mãos me seguravam como se eu
fosse uma importante obra de arte em um museu. Valiosa demais. Eu o beijei e acariciei seu
rosto, afastando-me em seguida.
—É a minha amiga, Téo. Vá logo, aproveite que eles não estão por aqui agora. Encontro vocês
na casa da Lola.
Olhei para a floresta e dei os passos necessários para me embrenhar nela. Escutei os lamentos de
Téo, suas reclamações. Ele estava respeitando a minha decisão, no entanto, não concordava.
Nem eu, afinal.
Capítulo 12
—Você está indo além do que falei. — Téo retirou as mãos dos bolsos, mas não as direcionou
para mim, parecia sem saber muito o que fazer com elas. — Estamos nos conhecendo, eu gosto
de você, e após essa discussão, achei importante deixar claro que respeito você e desejo ser
respeitado nas minhas decisões.
—Em nenhum momento eu questionei a sua decisão. Pelo contrário, eu sou grata por você ter
trazido a Jane em segurança, por ter me ouvido e tirado esse medo dos meus ombros. — Olhei
para o céu novamente, pois por algum motivo ele parecia mais bonito do que o que estava
acontecendo entre nós dois. — Por que disse que sentia muito?
—Porque eu sei que você estava correndo risco, sei que Eric tem a razão dele, embora isso não
mude a minha opinião. E sinto muito pelo que eu deveria fazer, sendo o cara que está saindo com
você. — Coçou a garganta, recuperando minha atenção para ele. Em seguida, agarrou a minha
cintura com rapidez e me puxou para seu peito. — Não quero parecer rude, não quero parecer
autoritário. Você não sabe, mas eu sou líder de um povo escravizado e que depende de mim. Eu
não poderia arriscar a vida deles, depositada em mim, por causa dos meus sentimentos por você.
Sinto muito, sinto muito mesmo.—Repousou o queixo sobre a minha cabeça, enquanto deslizava
as mãos pelas minhas costas de maneira reconfortante.—Eric está certo. Eu precisava ser claro
com você sobre isso.
E eu apenas me permiti ficar ali, dentro dos seus braços, acolhida pela sua maturidade, pela sua
serenidade e pela firmeza que ele jamais usaria para me proteger. Não é que eu quisesse ser
salva, tampouco que tivesse sonhado em ser a princesa a ser incansavelmente defendida pelo
príncipe. Até porque eu não planejava ter príncipes na minha vida. Entretanto, Téo havia sido
mais claro do que imaginava.
Não havia um sentimento avassalador entre nós. Daqueles que param o tempo, que fazem tudo
ao redor desaparecer, que mexem com cada partícula do seu corpo. Como eu havia lido nos
inúmeros livros de romance clichê. Se houvesse, obviamente ele não pensaria duas vezes antes
de me salvar, antes de me proteger. Não seria uma escolha, não seria tão fácil abrir mão.
E, então, ele pareceu perfeito para mim. Incapaz de quebrar o meu coração. E eu apenas rezei
para que a minha suposição estivesse correta. Para que Téo não estivesse tão sufocado pelo seu
cargo de poder que não conseguisse mais respeitar seus próprios sentimentos.
—Sinto muito pelo seu povo e por tudo mais que eu nem sei — retomei a conversa, afastando-
me pouco a pouco de seu abraço. — Você já deve ter percebido que eu menti. Eu não sei
absolutamente nada sobre bruxaria, sobre o meu passado, sobre mim. — Enfiei as mãos nos
cabelos, já parecendo desesperada. — Não sei por qual razão eu pensei que seria capaz de
sustentar essa mentira, mas eu não queria parecer fraca.
—Você nunca me pareceu fraca, nem mesmo agora — as palavras saíram de seus lábios em um
instante, e me pareceram sinceras. — Você é muito corajosa, Kate.
A pequena distância que eu havia criado tinha sido em vão. Téo estava recuperando a nossa
proximidade, mantendo contato, e me perguntei se ele realmente não sentia algo ao menos
intenso por mim. Qual a necessidade que ele tinha de delicadamente repousar suas mãos longas
no meu rosto? Ou de levantar meu queixo para que nossos olhos ficassem frente a frente? E
nossas bocas tão próximas de modo que eu pudesse sentir seu hálito?
—Você continua procurando respostas, indo atrás de informações e defendendo as pessoas que
ama, mesmo se sentindo fraca, mesmo sem saber quase nada de bruxaria. Consegue enxergar que
a última coisa que você é neste mundo é fraca? — Seus dedos deslizaram carinhosamente pela
minha bochecha, e eu me senti revigorada, protegida. Ele parecia ter razão ou eu apenas queria
que ele tivesse.
—Gosto de como os seus olhos me enxergam — sussurrei, um tanto perdida pelo seu carinho,
como se eu fosse um gato sendo acariciado e não quisesse dar o braço a torcer.
—Você sempre pode usá-los quando os seus estiverem embaçados.
E, dessa vez, seu olhar estava sério, compenetrado, fixo em mim. O modo como ele encarava os
meus lábios fez o meu coração disparar. Seus dedos, ao redor do meu rosto, já não eram mais tão
carinhosos. Pouco a pouco, eles ficaram firmes, puxando-me discretamente na direção dele. Seu
nariz encostou no meu e deslizou pelo meu rosto, aspirando meu cheiro, sentindo-me e
mentalmente eu chutei o balde. Estava rasgando todas as amarras naquele instante e assumindo
os riscos, enquanto torcia fervorosamente que aquilo não passasse de uma atração. E quando seus
lábios tocaram os meus delicadamente, eu nem lembrava mais o que estava me impedindo.
Capítulo 14
Não sei dizer muito bem depois de quantos minutos aconteceu, mas como
se eu tivesse recuperado a minha lucidez, eu interrompi o beijo. Lucidez não seria a palavra mais
adequada, talvez eu apenas tivesse me dado conta de a ter perdido por tempo demais. Sei o
quanto parece confuso, afinal, eu estou confusa.
Assim que Jane abriu a porta para mim, ele partiu com o carro. E estava tudo normal do lado de
dentro. Ataque na floresta?! Não havia qualquer cogitação sobre, e eu agradeci mentalmente a
Eric por isto. Agradeci mais ainda quando notei o pequeno machucado na perna da Lola. Poderia
ter sido muito pior. E eu não as abracei por apenas três motivos: Jane não gostava de abraços,
levantaria suspeitas, e elas estavam bêbadas.
—Téo falou que ia embora, mas vocês ficaram se pegando aí fora, né? — Jane implicou tão logo
eu me sentei a mesa.
—Não foi bem assim... — respondi, deixando meus cabelos cobrirem o rosto quando o olhar
inquisidor de Henrique recaiu sobre mim.
—Eu vi o carro dele saindo agora, se soubesse eu tinha fuxicado antes pela janela — debochou,
colocando uma carta de sua mão sobre a mesa e fazendo uma dancinha na direção de Henrique,
aparentemente zombando por ter ganhado.
Era estranho olhar para elas e notar que estavam em uma vida tão diferente da minha, como se
estivéssemos em uma estrada até aquele momento e, então, as bifurcações começassem a surgir.
Conseguia visualizá-las concluindo suas faculdades, casando, tendo filhos, tendo empregos
estáveis e fazendo viagens de férias. Entretanto, nenhuma daquelas projeções parecia ser mais
possível para mim. Demorei para aceitar, talvez menos que minha mãe, mas ser bruxa parecia a
dominante na minha vida. E não conseguia me imaginar curtindo férias enquanto um grupo
chamado fênix da justiça me perseguia com dardos.
—Bem, como eu ganhei a partida, quero uma leitura de mãos — Jane agarrou meu braço,
inclinando desajeitadamente seu corpo sobre o meu. — E eu apostei que o Henrique também
participaria, se perdesse, Kate — falou perto do meu rosto, entregando todo o seu cheiro de
bebida.
Procurei Lola com os olhos para um daqueles momentos “hora de salvar nossa amiga da
vergonha”, mas ela estava quieta demais. Sentada em uma das pontas da mesa, Lola apenas
encarava as cartas com atenção. Seus olhos estavam estáticos, fixos no baralho, dispersos para o
mundo ao redor. E, estranhamente, meu coração se apertou.
—Como um defensor da ciência, eu devo dizer que não acredito nessas coisas. É só por
divertimento, né? — Henrique comentou, afastando-me da análise, e virou o resto da cerveja em
sua boca.
—Por que não dá uma oportunidade a ela? — Jane sugeriu, aproveitando para tocar em
Henrique. — Vai, seja o primeiro. — Pegou a mão dele, que facilmente cedeu, e repousou-a
sobre a mesa. Só eu notei as bochechas dela coradas?
Jane, embriagada, se ofereceu para buscar as velas, e nem mesmo assim Lola reagiu. Pigarrei,
tentando buscar sua atenção, e avisei que iria até a cozinha; ela apenas concordou balançando a
cabeça. Naquele instante, eu simplesmente corri para a cozinha, olhei para o céu pela janela
corrediça e prometi que eu me afastaria se o universo devolvesse a minha amiga. Se todo aquele
brilho sonhador e fantasioso voltasse aos seus olhos, se os seus desejos românticos e inspiradores
retornassem, se ela voltasse a ser a Lola. Eu desejava fervorosamente ter o número de celular do
Eric, desejava saber como contatá-lo para que ele pudesse me ensinar a salvá-la, a corrigir
aquilo.
Retornei para a sala com três velas brancas, sentei na cadeira com almofada verde e dispus as
velas no formato de um triângulo. Por favor, não me pergunte a razão, eu simplesmente via a
minha avó fazer. Puxei a mão de Henrique, deixando-a aberta sobre a mesa e repousei a minha
sobre a dele. Fechei os olhos. Respirei fundo, pedindo a ele que se concentrasse sobre sua vida,
tentando afastar os meus próprios pensamentos. Respirei novamente e relaxei, sentindo-me fora
de mim como sempre me sentia a cada leitura de mão. Um terreno no qual estava acostumada a
passear. Não.
Por que eu estava vendo o Eric tirar sua jaqueta jeans escura e jogar sobre uma cama de casal?
“Porque você não deve mais fazer leituras. Sua energia passa para a mão da outra pessoa e
você pode ser rastreada. Como se fosse uma droga sendo farejada por um cachorro. Então, toda
vez que você fizer isso, verá a mim. No momento atual”.
Ele puxou a camisa pela cabeça, deixando a parte de cima do seu corpo desnuda. As linhas de
musculação desciam pela sua pele de forma discreta, nada exagerado, indicando que malhar não
era um vício seu. Mas elas eram bonitas. E havia uma cicatriz. Um pouco abaixo do seu peito.
“Caso continue segurando a mão dele, você me verá tomando banho”.
Desafivelou o cinto da calça e eu abri os olhos, gritando como se estivesse voltando de um
pesadelo. Puxei o ar, o qual eu estava prendendo e nem sabia. Larguei a mão de Henrique
imediatamente, e sua testa franziu em preocupação.
—O que você viu foi tão ruim assim? — Lola pareceu ter despertado do ‘coma’, talvez assustada
com a minha reação.
—Não. Foi bom. Não. — Que droga! Levei as mãos à cabeça, sentindo-me mais perdida e
confusa do que antes. — Eu sinto muito, eu não vi nada. Talvez seu ceticismo tenha me
impedido. — Empurrei a cadeira com pressa, como se nas mãos de Henrique existisse um
veneno, e quase caí. — Eu preciso ir. Me desculpem.
Por mais bêbadas ou estranhas que as minhas amigas estivessem, elas vieram atrás de mim. Elas
sempre viriam porque a amizade é assim, não importa o quão estejamos mal. Não tinha nem dez
minutos que eu tinha entrado no meu quarto e revirava minhas gavetas a procura de um bom
pijama para dormir. A verdade é que eu não estava encontrando porque a minha mente estava
perdida.
O quanto eu podia falar para elas? O quanto eu podia ser sincera? Tá certo que nunca me
imaginei sendo uma bruxa, mas também não tinha deixado de assistir diversas séries ou filmes
sobre o assunto. E um x em comum entre eles era: uma bruxa não deve revelar aos humanos sua
bruxaria. Eu estaria colocando minhas amigas em perigo?! Certeza. Já estava tendo pequenas
demonstrações disso, sem nem ao menos contar. Há poucos minutos, Lola não era exatamente a
Lola, e eu não podia atribuir sua melhora a outra coisa senão a minha promessa de afastamento.
E eu a honraria.
E, então, eu tinha aproximadamente cinquenta assuntos diferentes para debater, no entanto,
estava procurando outros cinquenta para justificar a minha saída brusca, para mentir. E acabei
suscitando um assunto um tanto ridículo, ainda mais para mim.
—Conheci dois caras nas últimas semanas. Beijei o Téo, mais de uma vez... —Fechei a primeira
gaveta da cômoda e relaxei meu corpo contra ela, encarando minhas amigas.
—Você andou fazendo alguma simpatia? Tomou algum banho? — Jane debochou, deslizando o
corpo pelo pequeno sofá que ocupava o espaço da minha janela.—Será que o segredo é não
querer se envolver?
—Mas ela não disse que conheceu outro cara no sentido romântico da coisa — Lola deduziu. —
Ou é?
—Ele é o cara dos meus pesadelos. Eu tenho quase certeza. — Sentei no banquinho entre a
cômoda e a porta do banheiro.
—Tem certeza que quis dizer pesadelos? Não seriam sonhos? — Jane inquiriu de forma lenta e
um tanto enrolada.
—Calma! Você está falando daqueles pesadelos com a visita da sua avó? — Lola parecia
completamente sóbria perto de Jane. Balancei a cabeça afirmativamente. — Você não comentou
que havia um cara. — Seus olhos pararam de encarar os meus, passando a fitar suas próprias
mãos sobre os joelhos.
—Ele apareceu uma única vez e, desde lá, não tivemos tempo para conversar sobre a evolução
do pesadelo. — Comecei a enrolar as pontas dos meus cabelos, sentindo uma vontade louca e
sufocante de contar tudo.
Lola e Jane eram as minhas melhores amigas, as pessoas com as quais eu desabafava
simplesmente tudo e, num passe de mágica, eu precisava olhar para elas e me calar e guardar
todas as minhas aflições. Meu peito parecia lotado de gritos, segredos e mentiras. E uma angústia
tomou conta de mim.
—Você descobriu que a visita foi real. Agora você encontra o cara que apareceu no mesmo
pesadelo. O que está acontecendo? — Jane roncou, distraindo um pouco as nossas mentes
daquele emaranhado que vinha se desenhando diante de nossos olhos.
—Talvez, por algum motivo, eu o conheça. E, sei lá...— Abaixei a cabeça, encarando minhas
botas. — Assim como eu sonho com a visita porque ela existiu; talvez eu o conheça de algum
lugar. — Lola balançou a cabeça, parecendo concordar com a minha teoria.
—Como você pretende ter certeza de que é ele? Aliás, o que ele fazia no pesadelo? — Lola
deitou na cama, de lado, de modo que pudesse me olhar. Era visível o seu cansaço e, ainda
assim, estava disposta e interessada em me ouvir. Eu sentiria falta da sua amizade.
—Ele me salvava e morria depois...
O ding dong da campainha fez nós duas pularmos de nossos lugares enquanto nos olhávamos.
Jane não se mexeu nem um pouco e imaginei que minha mãe também não tivesse acordado. Mas,
se o barulho persistisse, isso mudaria. Meu coração estava terrivelmente acelerado, eu precisaria
de uma terapia urgentemente. Diferente de mim, Lola recuperou a calma e caminhou na direção
da porta, quando eu a segurei num instinto protetor.
—O que é isso, Kate?! Quer me matar do coração? — Colocou a mão longa sobre o peito, rindo
em meio a uma respiração um tanto rápida. — Deve ser o Henrique.
—Não acho que seja o Henrique — sussurrei, sentindo-me em um filme de terror, onde a casa
estava prestes a ser invadida por bandidos. — Não sei se devemos atender.
—Está acontecendo alguma coisa que eu não sei? — Seus olhos diminuíram na minha direção.
— No que você se enfiou, Kate? Está em perigo? — Enfiou a mão na bolsinha transversal que
carregava e tirou o celular de lá. — Vamos ligar para o Henrique antes de abrirmos.
Consenti com a cabeça e caminhei para o corredor, de onde eu podia ver a porta de entrada da
casa. A campainha não tocara mais, como se alguém estivesse brincando de tocar nas casas e sair
correndo. Teria sido um engano?! Não. Ninguém se engana em Forecast porque todo mundo
sabe onde todo mundo mora. Mas por que tocar apenas uma vez? Pelo horário, a gente poderia
até mesmo nem ter escutado.
—Não é o Henrique. Ele falou que está vindo, porém, está muito bêbado. Pode chegar aqui só
amanhã — bufou. — Estamos juntas.—Pegou minha mão. — Vamos pegar umas armas na
cozinha e abrimos a porta. Vai dar tudo certo.
Por um momento, eu pensei em ler a mão de Lola. Pensei que assim eu poderia me comunicar
com Eric afinal, ele estava disposto a salvar a minha vida, não é mesmo? Em troca do favor.
Mas, eu nem mesmo sabia se estava em perigo, tampouco sabia se aquilo era uma porta de
comunicação, eu apenas o tinha visto e, muito provavelmente, ele já estivesse dormindo. E,
apesar de eu não ter nascido para ficar sendo protegida por homem, tinha juízo de que naquele
instante eu era inútil para me defender ou defender as minhas amigas e a minha mãe.
Como duas estranhas e paranoicas, pegamos as maiores facas na cozinha — cientes de que não
as saberíamos usar adequadamente se fosse preciso —, e seguimos para a porta. Talvez se fosse
um bandido, já tivesse arrombado, né? Mas e se, como os vampiros, ele precisasse de permissão
para entrar? Precisasse que nós abríssemos? Checamos o olho mágico e não havia nada.
Puxamos discretamente as cortinas que tampavam os vidros laterais da porta e também não
vimos nada. Girei a chave e abri a porta após contarmos até três.
Nada.
—Ei — Lola cochichou, abaixando para pegar um envelope branco largado simetricamente
sobre o tapete.
Segurou o envelope e começou a puxar um lacre vermelho e redondo com a letra J. Sem êxito.
Reconheci de imediato o adesivo usado pela minha avó, assim como a letra. Outro bilhete?! Por
que não entregou o primeiro da mesma forma? Ela sabia que minha mãe esconderia, então, por
que deixou que isso acontecesse?! Puxei Lola para dentro de casa e tranquei a porta.
—Não vamos dar chance para o inimigo — expliquei. — Conseguiu abrir?
—Não. E olha que minha unha está grande.—Ela olhou para as unhas pintadas de rosa e voltou a
cutucar o adesivo. — Tente você.
Claro. Peguei o envelope, sentindo meu coração se aquecer. Aquele era mais um pedacinho da
minha avó. Puxei o lacre, no entanto, ele não saiu. Tentei das mais variadas formas, contudo,
nenhuma funcionou.
—A gente pode pegar uma tesoura e cortar a lateral — sugeriu Lola, já andando pela sala à
procura do instrumento.
—Não. Eu vou tentar amanhã, com mais calma. Não quero correr o risco de rasgar.—Encostei-o
em meu peito, escondendo um sorriso contente.—Depois de todo esse susto, acho que devemos
descansar. Amanhã ainda não é final de semana.
—Você ainda tem que me contar em que enrascada se enfiou. Não pense que esqueci — ela
reclamou enquanto subíamos as escadas. — Aliás, qual o nome do carinha do seu pesadelo?
Entramos no quarto e apagamos logo as luzes para que Jane pudesse descansar tranquilamente. A
cama ao lado da janela era bem confortável e não precisaríamos acordá-la para que trocasse para
a outra. Ainda assim, pelo tanto que havia bebido, a ressaca era uma certeza.
—Eric — sussurrei enquanto pegava o primeiro pijama na gaveta.
—Eric?!—Parei com a mão na maçaneta do banheiro, assustada com o tom de voz de Lola.—
Qual o sobrenome dele?
—Daren. Eric Daren — reforcei, ainda segurando a maçaneta e observando o rosto dela se
contorcer de maneira desgostosa, como se tivesse provado algo muito cítrico.
—Qual a chance de o cara dos seus pesadelos ser o cara pelo qual estou apaixonada?!
Capítulo 15
Não sabia como era ser reanimada por um desfibrilador, mas imaginava
que fosse algo parecido com o que eu estava sentindo. A minha mente estava completamente
offline e, de repente, um choque a iluminou. Mexi a cabeça, um impulso ao retornar, e senti uma
enorme pressão na minha testa.
—Faça poucos movimentos agora — ele sugeriu, ganhando a minha atenção. Virei lentamente
meu rosto na sua direção e descobri de onde vinha o choque. Sua mão segurava a minha com
firmeza. Ele era o desfibrilador.
—Foi isso que você quis dizer com “seu cérebro vai desligar”? — questionei com dificuldade,
sentindo o efeito de cada palavra no meu cérebro, ao qual ele apenas afirmou balançando a
cabeça. — É bem estranho.
—É normal, você não está acostumada com tanta explosão de poder. — Jogou a cabeça para trás,
repousando-a no encosto do carro, mas não havia nada de relaxado em sua aparência. Eric
parecia tenso dos pés à cabeça. Levou as mãos ao rosto. — Não dá para negar que é imprudência
demais terem deixado você tanto tempo sem usar magia — e sem me dar oportunidade para
questionar, Eric emendou: — você vai sentir uns efeitos parecidos com ressaca. Não sei se faz
seu estilo ter ressaca, mas isso inclui dor de cabeça, náusea, ânsia de ...
—Você acha que sou o quê? Uma moça recatada e do lar? —perguntei enquanto massageava
minha cabeça e me ajeitava no banco do carona. Notei que ele havia retirado a habitual jaqueta.
—Se estiver se referindo ao uso de magia, você é sim. Agora sobre sua vida pessoal...
—Você está sangrando. Tem noção disso? — Sua blusa cinza, antes escondida pela jaqueta,
estava com uma mancha rubra na lateral. Abri minha bolsa, retirei uma toalha e a molhei com
minha garrafinha de água. Em câmera lenta porque a cada movimento eu me sentia capaz de
vomitar no tapete do carro.
—Sim, eu sei. O calor está irradiando e, agora, eles estão acessando as minhas últimas memórias.
— Socou o volante.
Sua reação me preocupou e assustou um pouco. Mas a minha mente ainda estava lerda, como se
meus neurônios estivessem pouco a pouco se reconectando. Inclinei meu corpo para perto do
dele e notei que ele fingiu não perceber minha aproximação, não até chegar um pouco para frente
e deitar o corpo sobre o volante, dando-me espaço. Levantei sua camisa com cautela, com medo
de machucá-lo e estremeci ao ver o furo em sua pele. Dava para notar que conforme o sangue
esvaía, o buraco ia cicatrizando em um pedaço. Repousei o pano sobre sua pele e o senti tremer
com o choque térmico, eu o ouvi suspirar discretamente de alívio.
—Suas últimas memórias são desagradáveis, Senhor Daren? —sussurrei e me surpreendi com
sua reação. Seu olhar estava repleto de sentimentos, os quais eu não conseguia identificar, apesar
de transbordarem. Era intenso, profundo, como um imã, puxando-me involuntariamente na
direção de seus segredos. Engoli em seco.
—Péssimas, elas incluem a herdeira salvando a minha vida mais de uma vez.
E, então, para variar um pouco, a raiva cegou minha razão. Apertei o pano molhado
involuntariamente enquanto digeria suas palavras tentando ser o mais racional possível, mas
racional não era algo que eu era muito capaz de ser.
—Você tem noção do que falou, né? Ou é algum efeito dos dardos no seu cérebro?
—Eles apenas acessam minhas memórias, as palavras ainda são minhas — respondeu sem pensar
duas vezes.
—Eu salvo a sua vida e é assim que me agradece?! — Joguei o pano em seu rosto, enfurecida,
sentindo ainda um pouco do efeito da tal ressaca de poder.
Eric agarrou o pano um pouco manchado de sangue e me encarou como se eu fosse louca. Talvez
eu fosse, não estava ligando para isso. Estava me importando com o fato de que estávamos juntos
fugindo de uns guardas e, de repente, eu era uma lembrança ruim.
—Estávamos salvando você, Kate —retrucou —, estávamos retirando você da igreja. Eu me
coloquei em risco para que você pudesse se salvar. — Afastou o corpo do volante, fazendo a
camisa voltar ao normal e me olhando nos olhos. —Nunca pense em me salvar, eu não preciso.
—Você é um babaca, idiota e imbecil — o rádio do carro ligou e eu senti uma pontada na testa
—; e tem até domingo para cobrar a droga do seu favor e sumir da minha vida.
—Como você pretende realizar meu favor se acabou de ligar o rádio do carro com raiva? Ainda
não sabe canalizar seus poderes. — Olhou para o teto do carro. — Você não sabe o quanto eu
gostaria de fazer o que me pediu, mas ainda não dá.
Sem mexer nem uma parte de seu corpo, as travas do carro foram desligadas, indicando que eu
estava liberada para sair, para seguir meu caminho pela faculdade. Estava sim. Mas só eu sabia o
quanto queria ficar e bater em Eric. Queria enchê-lo de tapas, e eu nem sabia quando havia me
tornado um ser tão agressivo. Imbecil, ingrato, infeliz. AH! Que ódio. Tudo bem. Saí do carro e
bati a porta com força. Seria capaz de abri-la novamente apenas pelo prazer de bater mais uma
vez, porém, seria ridículo demais. Ódio.
Capítulo 18
A raiva permaneceu em meu corpo por todo o caminho para casa. Não
importava que eu tivesse descido do ônibus alguns metros antes, a energia não tinha se dissipado
e, por isso, eu vinha fazendo feitiços involuntários pelo trajeto. Fiz as luzes de um automóvel se
apagarem, fiz um semáforo piscar, a janela da casa da Lola bater, e o portão da minha abrir.
Ninguém perceberia, eram efeitos colaterais que podiam ser facilmente explicados com razões
naturais.
Pelo menos para os moradores de Forecast. Já a minha mãe se assustou quando eu entrei em casa
e as luzes da sala começaram a piscar freneticamente.
—Que estranho! Está ruim o tempo? — Ela se empertigou na poltrona em que estava sentada,
tentando olhar para o céu pela janela mais próxima.
—Está. Péssimo. Um temporal. — Larguei as chaves na cômoda e subi as escadas batendo os
pés até me trancar no quarto.
Eu tinha milhões de perguntas a fazer ao Eric. Eu tinha um livro na bolsa sobre o qual eu não
sabia absolutamente nada. E ele tinha feito o favor de surtar! Sem mais, nem menos. Me joguei
na cama tentando relembrar o que eu tinha feito de errado. Não. Eu não tinha feito nada de
errado, eu o tinha salvo. E ele, em seu pedestal de orgulho e ego, não admitia ser defendido por
uma mulher. Só podia ser isso. A luminária de estrela pendurada na parede caiu. Ok. Eu
precisava virar a página.
Puxei o livro da bolsa e mais uma vez apreciei o Gricem. Não era meu sobrenome, tampouco de
alguém da minha família. A não ser que tivéssemos adotado o West para fugir de algum perigo.
Decidi virar a página sobre aquilo também afinal, ficar encarando o nome não faria a minha
mente descobrir a resposta. Segurei a capa e a puxei lentamente, ouvindo o barulho da primeira
folha colada a ela desgrudar-se um pouco. Era como se estivesse guardado há anos. Óbvio.
Realmente devia estar no mínimo há quatorze anos guardado, do contrário, não teria sido
entregue em nome da minha avó. Assim que repousei a capa sobre a minha cama, deixando o
livro aberto, algo diferente aconteceu. Uma frase começou a ser escrita em letra cursiva. A letra
da minha avó.
Não confie nela.
E assim como surgiu, sumiu. Rápido e discreto. Cheguei a duvidar de mim mesma. Teria sido
real? Não é que eu achasse impossível uma frase ser escrita num livro sem que alguém estivesse
de fato escrevendo afinal, já havia superado o susto com a magia na minha vida. Mas, como num
piscar de olhos, a mensagem apareceu. E, com mais um piscar, ela sumiu. Passei a mão pela
página, exatamente onde eu vislumbrei o aviso. Estava quente. Enfim, compreendi o recado:
bastava que eu guardasse aquele aviso na minha mente. Para minha avó, era suficiente. E para
mim também seria. Restava descobrir a quem ela se referia.
A avó do Téo? Foi a primeira pessoa que veio a minha cabeça. Não havia outra mulher na minha
vida que tivesse importância nessa jornada como bruxa. Bem, eu pensei na minha mãe, no
entanto, achei exagerado que minha própria avó falasse isso dela. Ainda mais sem me dar provas
suficientes. Não que eu não confiasse na minha avó, mas convenhamos que se fosse a minha
mãe, eu colocaria aquele aviso numa balança, né? Apesar da mentira da minha mãe, compreendia
as razões dela e estas razões eram exatamente me proteger. Por que não confiar nela?! Não. Não
podia ser a minha mãe. Restava-me Samantha. A moça da igreja estava morta.
Bufei. Sentei no chão e, então, como se um interruptor tivesse sido ligado no meu cérebro
comecei a criar teorias da conspiração.
A primeira tese era sobre o momento da gravação da mensagem. Se tinha sido feita há quatorze
anos, minha avó necessariamente se referia a alguém sabidamente do meu círculo mais próximo.
Isso me levava a Samantha. (A minha mãe também, mas eu prefiro ignorar). Se a mensagem
pudesse ser gravada em tempo real e outras viessem a aparecer, minha avó poderia estar se
referindo a moça da igreja. Poderia estar querendo me dizer que Mercedes comunicara nossa
localização, assim como a cigana fizera, e que depois simulou nos ajudar. Sua morte podia ser
uma queima de arquivo.
O problema desta última teoria era que Eric se importara com a morte de Mercedes e, sendo ela
culpada, me levaria a duvidar dele também. E por qual razão minha avó gastaria tempo gravando
uma mensagem sobre alguém que morrera?
Aliás, aqueles guardas tinham sido mandados por quem? Pelo tal homem que me procurava? E
qual a real função de Mercedes? Eric a conhecia e nitidamente oferecia favores sexuais em troca
de ter suas infrações ocultadas. O que levava Mercedes a um posto de importância, alguém que
relatava ilegalidades. Alguém de confiança para um outro alguém. Quem?
E, então, não sabia ao certo a razão, minha mente decidiu que minha avó realmente se referia a
Mercedes. Talvez pela esperança de que aquele livro fosse uma porta de comunicação entre nós,
de onde quer que ela estivesse. Talvez porque não queria supor que Samantha não tivesse sido
sua amiga como eu havia visto na viagem ao passado. Talvez porque eu quisesse contar com a
ajuda de Samantha para entender a minha vida. Havia muitos motivos por trás da minha decisão
e, para mim, era suficiente.
Tentei focar o resto da quinta e o começo da sexta nos meus estudos. Não, não foquei nos meus
estudos da faculdade. Foquei no herbário da minha avó e — eu sei, vai parecer idiota — nas
consultas sobre magia que fiz no Google. O livro que ela deixara com a mensagem enigmática
estava em branco e eu ainda não tinha descoberto sua real utilidade. Tinha feito ligações entre o
herbário e as minhas pesquisas e não estava tão diferente assim. Obviamente as informações
passadas pela minha avó eram mais completas, pois contavam com experiências de uso das
ervas.
Apenas não dormi sobre o notebook e sobre o herbário porque não queria correr o risco de minha
mãe invadir o quarto e sumir com o livro mais uma vez. Jane nem percebera meus estudos,
ocultos pelo livro de Direito.
Por volta das seis horas da noite, conforme o combinado, Téo estacionou seu carro na porta da
minha casa. E eu simplesmente saí. Sempre dizem que devemos oferecer aos outros o que
recebemos, no entanto, doía meu coração ser como os outros. Em regra, eu teria dado satisfações
a minha mãe, teria falado sobre o Téo. Mas eu precisava agir diferente, precisava que ela notasse
a minha mágoa. E, tentando magoá-la, eu apenas me magoava mais ainda. Porque a gente não
pode fugir da nossa essência. E a minha era ser sincera.
Téo estava encostado no carro, uma perna cruzada na frente da outra, totalmente relaxado. Mexia
em seu celular e, por isso, não notou de imediato quando eu saí de casa. Em compensação, eu
pude notar mais uma vez o quanto ele era belo. Téo era como uma brisa de verão. Refrescante,
alegre, inspirador. Fechei a porta e desci os degraus da varanda quando seus olhos de outono
subiram na minha direção. Senti meu sorriso, vi o dele.
Aproximei-me lentamente, tentando decidir sobre meus sentimentos. Eu não deveria estar
levando aquilo adiante, era a verdade. Mas eu não me sentia apaixonada. Ou com medo. Eu
apenas me sentia bem ao lado dele. E gostava da sensação. Por isso, assim que a distância entre
nós terminou, eu repousei minha mão em seu rosto e o beijei. Senti suas mãos tocarem minha
cintura e, apesar da minha blusa, seus dedos conseguiam tocar minha pele. Sutilmente.
—Não pretende me apresentar seu namorado, Kate West?
Minha mãe tinha notado a minha falta de informações. Num minuto, nos afastamos e Téo deu
um passo à frente, ajeitando sua jaqueta branca, e estendendo a mão para ela.
—Téo Dáman. Perdão não ter vindo falar com a senhora antes — respondeu, não parecendo nem
um pouco constrangido. Pelo contrário, Téo parecia muito bem com a situação.
—Dáman, você disse? — Minha mãe apertou sua mão de volta e, em seguida, cruzou os braços.
—Sim, senhora. —Ele pegou minha mão, entrelaçando nossos dedos. — Conhece minha
família?
—Minha mãe tinha uma colega com esse sobrenome.
Minha mãe estava me passando uma informação sobre a minha avó? De livre e espontânea
vontade?! Onde estava a minha mãe e o que tinham feito com ela?
—Sim, ela me contou sobre a Júlia. Uma coincidência eu e Kate termos nos conhecido — ele
acrescentou.
—Vocês já se conheciam — minha mãe revelou com a maior naturalidade. — Vocês brincavam
juntos na casa da Júlia. Como você não lembra, se era mais velho? A Kate tinha cinco anos, mas
você tinha nove.
—A senhora tem certeza?! — Téo indagou parecendo genuinamente surpreso. — Eu deveria
mesmo me recordar. Já tinha passado da primeira infância.
—Sim, você deveria. Ou se lembra e, por algum motivo, omitiu — minha mãe o acusou
tranquilamente, não parecendo nem um pouco preocupada que fosse prejudicar meu suposto
namoro.
E, então, eu compreendi que ela não estava me concedendo uma informação a troco de nada. Ela
deduziu que havia sido Téo quem confirmara a visita de minha avó na noite de sua morte e
tentava mostrar a possibilidade de ele ser um mentiroso. Tentava obter também informações a
respeito dele. Ela não era boba.
—Mãe, nós temos um compromisso e precisamos ir.— Apertei a mão de Téo e o puxei devagar
na direção do carro.
Téo olhou para mim e depois para ela, repetindo o movimento algumas vezes, parecendo pronto
para dar uma resposta ou se justificar para ela, no entanto, respeitou a minha decisão de
encerrarmos a discussão. Abriu a porta para mim, como um verdadeiro cavalheiro, despediu-se
dela e entrou no carro em seguida.
—Eu juro que contaria se lembrasse — confessou tão logo fechou a porta, restando apenas nós
dois. Sua voz estava carregada de um sentimento ruim, estranho, algo que ainda não tinha ouvido
de seus lábios.
—Sei disso, Téo. — Peguei sua mão sobre o volante e a abracei com a minha, apesar da
diferença gritante de tamanho. — Eu deveria estar do lado da minha mãe, sei que pode parecer
estranho para você, mas sabe que ela mentiu para mim. Por que não estaria mentindo mais uma
vez?! — Abaixei a cabeça, sentindo uma faca apunhalar meu coração a cada palavra cuspida
para a minha boca.
—Não, Kate. — Sua mão segurou meu queixo, levantando meu rosto para que nos olhássemos.
—Eu não mentiria para você, mas também não quero que duvide da sua mãe. Não por mim. Não
aumente sua mágoa com ela. Até porque eu acho que ela pode estar certa.—Acariciou meu rosto,
contudo, seus olhos ainda estavam distantes.
Seu celular tocou e interrompeu nosso momento. Interrompeu a pergunta sobre ele achar que
minha mãe podia estar certa sobre sua acusação. Como assim, Téo? Como assim?
Capítulo 19
Passei a mão no rosto para limpar a água que escorria pela minha
bochecha para o meu ouvido. De novo. De novo. Que saco. Desde quando tinha goteira no porão
da Lola?! E pensando nisso minha mente despertou. Não havia a possibilidade de ter goteira num
porão, até porque o banheiro nem ficava sobre nós na planta da casa. Abri os olhos.
Oi?!
Se não fossem pelos vagalumes pairando ao meu redor, o local estaria um breu. Aliás, aqueles
bichinhos tornavam a noite encantadora. A água pingou novamente sobre a minha bochecha.
Olhei para cima. E me sentei em um pulo. Não era água, era sangue. E eu não estava na casa da
Lola.
Eu estava sentada embaixo de uma escada e sobre ela repousava um corpo pingando sangue.
Havia uma marca enorme na camisa, bem abaixo do coração, de onde o líquido escorria. Eu não
conseguia ver seu rosto, estava escondido por um pano preto, mas ele ainda estava vivo e me
mandou correr até o lago.
Levantei-me apressadamente, contudo, hesitei. Eu não parecia a mesma pessoa que acabara de
dormir na casa da amiga. Havia um sentimento estranho no meu peito, um sentimento que não
me deixava ter medo da situação ou do sangue. Um sentimento que me fazia querer ficar ao lado
daquele corpo até seu último suspiro. E, então, enquanto involuntariamente eu me aproximava,
ele mais uma vez sussurrou com firmeza: Vá para o lago.
As lágrimas borraram meus olhos, contudo eu corri. Apressei meus passos na direção leste de
onde estávamos, como se eu soubesse o caminho para o lago. Como a Branca de Neve, eu pulava
troncos, era arranhada por galhos e, pasmem, usava um vestido longo. Estaquei. Por que eu
estava vestida de noiva?!
Meu vestido também estava sujo de sangue. Provavelmente eu havia encostado no homem caído
sobre a escada... Ele era o meu noivo?! E agora estava prestes a morrer?! Levantei as minhas
mãos. Uma aliança do lado direito, nenhuma do lado esquerdo. Meu coração parecia ter se
rasgado e perdi o equilíbrio.
Não podia deixá-lo à própria sorte. Sozinho. Passar os últimos minutos de sua vida sem amor.
Levantei rapidamente e dei meia-volta quando escutei meu nome. Venha, Kate. Aqui. Comigo.
Era a minha avó. Ela segurava um lampião grande e que iluminava boa parte do caminho até lá.
Sua mão acenava para que eu fosse em sua direção. Mas eu estava dividida. Precisava voltar.
Talvez eu pudesse levá-lo até a minha avó e pudéssemos salvá-lo. Voltei a correr.
Nada que você faça o trará de volta, Kate.
Sua voz parecia estar sendo jogada ao vento e suas palavras sendo repetidas pelas árvores ao meu
redor. Como num feitiço.
Mas se você vier comigo, nada disso acontecerá.
Meu coração apertou. Confiava na minha avó de olhos fechados e, se ela dizia que aquilo seria
possível, eu acreditava. Ainda assim, não podia evitar o mal-estar por abandoná-lo, como se a
minha vida importasse mais que a dele. Era estranho para mim, mas eu tinha certeza de que
morreria ao lado dele sem pensar duas vezes. Uma lágrima escapou do meu olho, e caminhei
vagarosamente na direção da minha avó. Eu deveria estar feliz. Ia reencontrá-la após tanto
tempo.
Passei por um túnel de galhos entre duas árvores enormes. Nele estavam pendurados pequenos
lampiões das mais diversas cores. Apesar de ainda estar sofrendo, a cada passo eu sentia uma
energia diferente, como se o ambiente para o qual eu estava indo fosse completamente diferente
do anterior. Comecei a ser bombardeada com alegria, saudade, tranquilidade. Não parecia mais a
quase viúva.
Até que enfim, querida.
Minha avó passou os braços ao redor de mim, abraçando-me depois de quatorze anos. Agarrei-a
com todas as minhas forças, chorando em seu ombro pelo reencontro, pela saudade, pelas
inúmeras dúvidas em minha mente. Júlia acariciou meu cabelo como fazia quando eu era apenas
uma criança inocente. Beijou minha bochecha, completamente molhada pelo choro.
A chave no gato branco.
Uma luz forte e branca preencheu a minha visão, como se a minha avó estivesse se
transformando em um espectro luminoso. A claridade foi tanta que me cegou. Mentia quem dizia
que apenas o escuro impedia a visão, a luz era tão capaz quanto. Porque o culpado era o excesso
de um ou de outro. Nada pode ser absoluto.
Nem mesmo a verdade.
Capítulo 24
Tentei ligar para Téo mais algumas vezes, porém, seu celular continuava
sem sinal ou desligado. Eu não queria parecer a ex obsessiva que persegue o cara, pois não
supera o término. Então, deixei uma mensagem em seu whatsapp e ele retornaria assim que
possível. Pelo menos eu acreditava que sim.
Melissa estava empolgada com o fato de eu ter de fato me tornado uma bruxa, ou seja, por eu
saber que tinha poderes e que podíamos usá-los para um monte de coisas. Por isso, sentamos no
chão do meu quarto, como as duas adolescentes que deveríamos ter sido, e abrimos nossos
grimórios. Em determinado momento, minha mãe enfiou a cara no quarto para dizer que não
podíamos fazer feitiços proibidos para que não fossemos punidas pela Corte.
Confesso que nesse momento a minha mente ficou congelada por uns segundos tentando
compreender a informação. Se eu era a próxima Presidente da Corte, quem seria o responsável
por me punir? Perguntei a Mel.
—Há um grupo de conselheiros que representam a presidente até que ela de fato assuma seu
cargo. Eles são divididos em várias áreas, mas não ache que há uma descentralização do poder, a
Presidente é como uma rainha, e eu nunca entendi por que usar um termo tão democrático,
quando isso não representa nossa Corte.
Mel continuou a folhear seu grimório naturalmente, como se não estivesse falando sobre uma
CORTE que comandava nossas vidas. A verdade é que, no final das contas, eu devia satisfações
a dois locais diferentes: a lei dos humanos e a dos bruxos. É verdade que todo bônus acompanha
um ônus.
—Você precisa fazer sua oração logo para proteger as informações que está anotando aí. — Mel
manteve seus olhos vidrados no livro, parecendo ter encontrado o que procurava. — Achei.
Ceromancia. Está preparada para brincar de oráculo com as velas?
A Mel é exatamente essa pessoa. A que você está pensando. Aquela que o mundo está
desabando, que sabe o quanto você precisa aprender sobre rituais de proteção, mas prefere se
divertir com o oráculo das velas. Eu não a julgava. Estava tão empolgada quanto para
experimentar a Ceromancia afinal, era algo completamente novo para mim. Precisava aceitar que
no mundo dos bruxos, eu era como um bebê conhecendo o espaço ao redor.
—As velas são uma fonte ótima de energia, sabia? — Pôs-se de pé em um pulo. — E eu senti sua
aura fragilizada, talvez seja bom. Vou buscar algumas no depósito.
Ok. Acenei com a cabeça confirmando e me deitei sobre o chão, pensando nos últimos
acontecimentos. Sei que tinha prometido a mim mesma não ligar para o Téo novamente, mas a
culpa estava me corroendo. Apesar de nos conhecermos há tão pouco tempo, sabia o quanto ele
era compreensivo, no entanto, compreensão não impede a tristeza. Eu posso compreender algo,
contudo, ainda assim, eu posso me sentir triste pelo mesmo motivo. Olhei o whatsapp e a
mensagem estava com os dois v, ou seja, ele estava com o celular ligado. E não tinha me
retornado, tampouco respondido. Fiz a chamada convencional e no quarto toque ele atendeu.
—Ei... — respondeu, parecendo sem jeito.
—Eu sinto muito. — Sentei apressadamente para poder conversar melhor, ainda que
estivéssemos longe um do outro. —Por tudo. Pela sua avó, por eu não ter ido, e por ter sumido.
Sei que eu sou a última coisa na sua lista de preocupações no momento, e isso não é drama, é a
verdade. Mas, eu, de forma egoísta, precisava tirar essa culpa dos meus ombros.
Era a verdade. Eu o estava incomodando única e exclusivamente para me livrar da culpa. Da
culpa por saber que Téo provavelmente havia esperado mais de mim, havia esperado que eu
vencesse todas as barreiras para estar ao seu lado num dos momentos mais difíceis da sua vida,
que eu tivesse ao menos me preocupado em ligar para que ele não se sentisse só.
—Você só ligou mesmo para tirar a culpa dos seus ombros?! — Téo pareceu muito surpreso e
havia uma rusga de dor em sua voz. — Achei que...
—Não. Eu quis dizer que liguei de forma tão insistente por esse motivo. Se eu não me sentisse
culpada, teria respeitado o seu tempo sem ser invasiva.
Pude ouvi-lo soltar a respiração do outro lado. Como quem se recupera de uma lesão.
—Não foi invasiva — respondeu de forma carinhosa. — Se você não tivesse sido tão sincera, eu
juraria que a razão de tantas ligações era saudade. Mas, aí, eu estaria sendo egoísta. Querendo
isso quando vim procurar a minha suposta noiva.
Escutei uns barulhos ao fundo, como se algumas pessoas o estivessem cumprimentando com
demasiada alegria. Aparentemente sua mão tampou o telefone rapidamente, enquanto eu
permanecia em silêncio.
—Perdão pela interrupção.
—Téo, a minha irmã sabe apagar a memória e, talvez, ela possa ajudar — comentei bem no
instante em que Mel surgiu na porta com cinco velas. —Poderíamos tentar. O que acha?!
Ele sorriu. Sim. Um sorriso tão gostoso que eu acabei sorrindo também. Podia enxergá-lo com os
lábios estendidos de orelha a orelha, os olhos de outono brilhando com certa alegria. É... Talvez
eu estivesse com saudade. Ou com medo de não o ter por perto. Téo parecia um porto seguro.
Em vários sentidos.
—Você está sugerindo isso para tirar a culpa dos seus ombros por alguma outra coisa? — sua
voz soou mais próxima do telefone, como se a conversa tivesse se tornado íntima. Eu ri.
—Não, mas estou sendo novamente egoísta ao atrapalhar a sua busca — comentei, pensando um
pouco sobre minha atitude.
—O seu egoísmo estranhamente me deixa apaixonado, Kate. Porque ele me requisita, ele está me
dizendo que você me quer de volta, e que não quer que eu continue a busca — suspirou,
parecendo realmente apaixonado. — Sabe o quão é difícil abrir mão de você por alguém de
quem eu não me recordo? Ainda mais depois dessa sua sugestão?!
O que eu estava fazendo?! Eu tinha arruinado a determinação dele em encontrar a noiva.
—Eu quero ajudar. Quero estar ao seu lado nessa busca. Mesmo que apenas como amiga —
confessei. — Por favor, não me entenda errado.
Por alguns instantes a ligação permaneceu em silêncio. Algo que eu havia falado deixara Téo
sem palavras imediatas para me oferecer. Eu o queria de volta, queria que estivesse perto de
mim, mas eu não me sentia pronta para denominar o meu sentimento como paixão. Eu apenas
conseguia nomear como egoísmo. Porque a culpa por me meter numa situação tão importante
quanto aquela era gigante e me impedia de ver qualquer sentimento.
—Preciso resolver umas coisas por aqui, como líder dos peregrinos, mas acho que consigo voltar
até o próximo sábado —aproximou a boca do telefone, de modo que pude ouvir sua respiração
próxima de mim: — e vejo o que sua irmã pode fazer. Se cuida.
—Você também.
Téo encerrou a ligação, e eu me joguei no chão novamente. Que droga eu estava fazendo com a
minha vida?! Levei as mãos ao cabelo, nervosa, e Mel parou ao meu lado, em pé, encarando-me
com seus olhos esverdeados e esbugalhados.
—A magia despertou o seu lado romântico, foi?! — Sentou-se ao meu lado. — Anda, senta logo.
E abre o bico.
—Saco, nem eu sei —bufei, encostando meu corpo na cama.
—Esse é o ex que você falou da memória. Ele é o carinha de mais cedo que veio te trazer em
casa?
Contorci o rosto sem graça pela pergunta. Como dizer que não?! Que eram homens diferentes e
que eu conseguia sentir coisas estranhas pelos dois, em proporções diversas.
—Não creio! Dois caras, Kate?! — Ela largou as duas velas entre nós e bateu as mãos nas coxas,
animada. —Meu sonho ter dois homens me disputando. — Riu, como se isso fosse divertido.
—Eles não estão exatamente me disputando. Eles nem se conhecem direito. Não surta, Mel —
reclamei.
—Mas eles conhecem você, e obviamente uma hora eles vão se conhecer bem. — Melissa riu
novamente, achando realmente muito divertida a minha situação. — Pensa só comigo, qual a
chance de você manter um oculto do outro numa cidade tão pequena?!
—Melissa West! — chamei sua atenção, e ela riu mais um pouco antes de conseguir se controlar.
— Eu estava com o Téo, no entanto, rolaram umas coisas esquisitas com o Eric. E eu não estou
com os dois. Aliás, me deixe testar uma coisa.—Puxei sua mão com as unhas devidamente
pintadas de azul bebê, e a apertei, imaginando a troca de energia.
—O que está fazendo? — Ela franziu o cenho, encarando nossas mãos. Podia sentir a nossa
energia sendo trocada. — Sabe que pode roubar energia da vela, né? Eu não quero ficar com
sono, tenho um encontro mais tarde.
Soltei sua mão imediatamente, preocupada de prejudicá-la. E, afinal, meu teste já havia sido
feito. Nem de perto a troca de energia entre nós duas havia sido tão intensa quando a minha troca
com Eric. Eu não havia sentido nem metade, parecia que apenas estávamos recebendo uma
transfusão, sem a parte da dor, ou qualquer parte emocional.
—Eu troquei energia com o Eric ontem. Ele estava muito fraco, por isso, eu estou um pouco
debilitada. Mas, o que você sabe sobre troca de energia? Porque o máximo que senti com você
foi um choque inicial e depois mais nada.
—E com ele não?! — Ela parecia chocada e um sorriso malicioso surgiu em seus lábios.
Balancei a cabeça, indicando que com ele havia sido diferente, mas já receosa se deveria ter sido
sincera. Mel riu novamente, contudo, controlou-se rapidamente ao ver a minha expressão séria.
—Só significa que vocês têm tesão um pelo outro. Sendo curta e objetiva. A intensidade do tesão
reflete na intensidade do que você sentiu. Bruxos têm esse lance bom que apimenta a relação
sexual. — Ela corou um pouco, e eu comecei a corar junto.
—Eu ainda nem tive relações sexuais, assim não estou preocupada em apimentar nada —
comentei pausadamente, já querendo me levantar e desistir da Ceromancia.
—Pelo visto não precisa se preocupar mesmo, já está garantido que vai ser explosivo. Acho
melhor começar com outro cara primeiro, né? Porque se você é virgem, o negócio pode pegar
fogo, e ele pode, sem querer, perder o controle e machucar você.
Levantei. Engoli em seco. E me afastei. Que porcaria. Mel estava enfiando na minha mente
imagens que eu não queria. Estava me obrigando a imaginar como seria se um beijo tivesse
acontecido. Como seria se fizéssemos mais coisas que apenas um beijo. Porque a sensação da
energia era prazerosa, enlouquecedora e forte. Eu podia sentir o meu corpo reagindo apenas ao
pensar um pouco sobre aquilo, sobre os sentimentos despertados.
—Está pensando, né?! — Mel cutucou minha perna, e eu dei um pulo, tamanha a minha
concentração nas imagens indesejadas.
—Vou devolver você para a barriga da nossa mãe — respondi, sentando-me de frente para ela
novamente. —Olha o conselho que você me dá. Se ele é só tesão, eu devo então ignorar. Não
usar a minha primeira vez com ele, né, Mel?! — Cruzei os braços, indignada.
—Você sabe que eu não vejo sexo dessa forma. Pra mim é apenas prazer. — Mel pegou uma
vela rosa, outra vermelha e me entregou. — E eu nunca disse que o cara era somente tesão. Eu
nem conheço a história de vocês dois. Tenho certeza do tesão, do resto, só você pode saber. Mas,
com certeza, esse daí com quem você estava falando não é nem de longe somente tesão.
—Gosto de estar com ele — sussurrei, confessando bem baixo para mim mesma e mais baixo
ainda para minha irmã. Gostar de alguém não era algo comum no meu vocabulário. E, por um
instante, eu desejei nunca o ter conhecido. — Vamos focar nas velas?
Mel concordou com a cabeça e passou a me explicar que antes de acendermos uma vela,
devemos intencioná-la para nossas vontades. Apenas energia? Ritual? Ceromancia? Não era
legal e nem funcionava cem por cento, tentar direcionar uma vela depois de acesa. Melissa tinha
subido com várias cores de vela e acabou por escolher rosa e vermelho, já que eu estava em
dúvida entre dois homens, então, poderia ser do meu interesse saber qual dos dois seria amor e
qual seria paixão. No entanto, eu não queria perguntar sobre eles. Por isso, fiquei com a única
vela branca que Melissa havia trazido.
—Você faz uma pergunta e a gente pinga a cera nessa bacia de água. — Mel estalou os dedos e
sua vela rosa se acendeu. —Faça você também.
—Mas toda vez que eu estalar os dedos vai aparecer uma chama? — perguntei, sentindo-me um
pouco preocupada com a possibilidade de causar um incêndio.
—Não. Você está nitidamente direcionando seu estalar de dedos para a vela, pensando na chama.
É diferente se você estalar durante uma conversa normal.
Olhei para minha vela branca e pensei na chama, inclusive, pensei em todas as vezes em que
precisei usar o isqueiro para acender as velas de aniversário. As incontáveis vezes nas quais o
vento a apagava e eu precisava insistir, quando tinha a chama num estalar de dedos. Uma vida de
mentiras. Estalei, sentindo uma confiança me dominar quando a chama surgiu.
—Você não precisa me falar sua pergunta. Pode só mentalizar, virar a vela para que a cera caia
um pouquinho mais rápido e aguardar o desenho. Eu explico o que ele significa e você interpreta.
Vou começar. — Mel pegou sua vela rosa na ponta de baixo. — Vou gostar do carinha de hoje?
Inclinou a vela e, pouco a pouco, a cera foi descendo e pingando na tigela. Após um tempo,
conforme a cera foi se juntando para formar a imagem, Melissa repousou a vela novamente sobre
um pratinho e aguardamos. Na minha concepção, aquilo parecia uma cobra. Mel estalou os
dedos novamente e as páginas de seu grimório passaram rapidamente, até pararem em uma cheia
de desenhos.
—Proteja-se do inimigo. — Ela olhou para o desenho e para mim. — É uma cobra, né?! —
Confirmei. — Vai ver que ele tem outra. Que loucura. Vai você.
Segurei minha vela branca.
—Devo chamar o Téo para o baile de sábado? — Inclinei a vela sobre a tigela e repeti o processo
de Mel. Quando a cera começou a se unir, eu devolvi a vela ao prato.
Aguardamos. E um chapéu se formou. Mel fuxicou seu grimório, onde havia o desenho e ao seu
lado a explicação.
—Você deve mudar o local. Talvez você deva chamá-lo para outro lugar e não para o baile —
ela sugeriu, tentando interpretar o desenho. — Ei. A cera está se movimentando.
—Isso é normal?
—Acontece. Há mais de uma resposta para a sua pergunta —ela explicou. Gradativamente uma
bruxa se formou na cera. — Perigo.
—Que perigo? Téo é perigoso?! Mas por que mudar o local?
Comecei a gesticular enquanto falava, nervosa com a situação. Era para aquele momento entre
irmãs ser divertido, mas, como de costume, nada na minha vida vinha sendo normal e agradável.
Tudo tinha uma carga pesada. Assoprei minha vela e levantei.
—Calma, Kate. Não dá para saber exatamente o que a vela quis dizer, a não ser que façamos
mais perguntas — ela argumentou, levantando-se também. — Podemos ir perguntando até
encontrarmos a explicação.
—Estou um pouco assustada, Mel. E se a cada pergunta, eu descobrir coisas que não quero
saber? Eu não gosto de saber sobre o futuro. Ele me obriga a pensar que meu destino está escrito,
independentemente das minhas escolhas. Como se eu fosse uma marionete. E eu gosto de pensar
que sou como a Pocahontas e que tenho duas opções por onde guiar minha canoa.
—A vela está nos dando a oportunidade de justamente mudar seu destino. Consegue
compreender? Ela está sugerindo um local diferente e alertando sobre um perigo. Perigo no
baile? Téo é perigoso? A explicação é mudança de local, mas e se for mudança de par? Não
temos essa opção aqui, né?!
A campainha tocou, e não pude tomar a decisão de tentar mais uma vez. A sentença da vela tinha
sido mesmo aquela. Troca de local e perigo. O que queria dizer, eu somente saberia praticando
Ceromancia novamente ou no dia do baile.
Capítulo 29
Segui os conselhos da minha mãe. Sempre fui uma filha predisposta a ouvir a mãe, ponderar
sobre suas opiniões e, após aquela conversa tão sincera e transparente, eu não tive outra saída a
não ser acatar sua recomendação. Por isso, decidi faltar à faculdade na segunda-feira para ficar a
madrugada inteira estudando magia.
Mil havia me ensinado sobre as propriedades das pedras, como eu devia limpá-las antes de usar,
e havia me entregue uma para proteção, impedia que minha mente fosse acessada por outros
bruxos, salvo os que eu permitisse. Era tipo a verbena de The Vampire Diaries. Seu nome era
obsidiana. Era preta e brilhosa, sem qualquer ranhura que alterasse ou atrapalhasse sua
homogeneidade. Minha professora sugeriu que eu procurasse uma joalheria e a transformasse em
um colar. Faria isso naquela semana mesmo, obviamente se eu não fosse soterrada por novos
acontecimentos e acabasse me esquecendo daquele compromisso. Algo bem comum na minha
vida nas últimas semanas.
Os primeiros raios de sol invadiram a sala quando comecei a dar meus cochilos no sofá. Em
nenhuma das vezes, Mil ousou me acordar. Tenho certeza disso porque meus olhos abriam
sozinhos e assustados quando minha cabeça pendia para um lado, para o outro ou para frente. E
ela estava lá, natural, tranquila e fingindo não perceber minha ausência temporária. Devia ser a
décima vez quando entreguei os pontos e subimos para nossos quartos.
Fechei a porta e puxei as cortinas, uma de encontro a outra, para garantir que no meu quarto
ainda fosse noite. Deitei na cama e olhei para o teto. Revisei cada uma das informações sobre
pedras, ervas, poções, e sobre o ponto comum em cada uma dessas lições: energia. Um elemento
como uma pedra está puro em sua forma e natureza, mas você deve limpá-lo e carregá-lo com as
energias para o fim que almeja. Assim, eu acabei pensando no meu grimório e na recomendação
de que ele deveria ter uma oração protegendo-o.
Peguei-o no meu armário, escolhi uma caneta e me sentei na cama. Não foi muito difícil; eram
como se as palavras simplesmente tivessem se alinhado na minha mente depois de tanta reflexão,
de tanto aprendizado. A magia parecia estar correndo por mim e flutuando ao meu redor. Sim, eu
parecia respirá-la. Parecia fazer parte de um mundo diferente, mais do que eu pertencia ao
mundo dos humanos.
No entanto, a frase da minha avó “não confie nela” insistia em macular a minha intenção de
fingir que estava tudo bem e que eu poderia ser uma bruxa ou uma humana com uma vida
normal.
Capítulo 31
Na faculdade, dificilmente os professores fecham a porta da sala. Talvez pelos alunos que
sempre chegam atrasados, talvez pelos que assistem a aula (fingem) do corredor ou por aqueles
que saem mais cedo. Como eu naquela terça-feira. Avisei a Jane onde estava indo, peguei minhas
coisas e desci as escadas apressadamente. Não sei se preciso comentar, mas precisei me controlar
para não rir quando ela sussurrou: “esse é o momento em que eu dou cobertura para você salvar
o mundo? Tipo o Homem-Aranha?”. Há coisas no mundo que somente a Jane é capaz de fazer
mesmo. Falar, na verdade.
Mexi na tela do meu celular novamente e nenhuma notificação. Nem mesmo do Téo. Parei em
frente à sala 105, que também estava com sua porta aberta. Os alunos estavam sentados e
concentrados no professor parado no canto direito da sala. Ele usava sua habitual jaqueta jeans
escuro e gesticulava apontando para o quadro com empolgação, com entusiasmo. Falava algo
sobre um massacre numa floresta até que, poucos segundos depois, seu rosto mirou o meu e
congelou na minha presença. Seus olhos diminuíram de tamanho, parecendo confusos com a
minha aparição.
Sei que não deveria estar interrompendo o trabalho dele — na verdade, eu não havia
interrompido, eu iria esperar —, mas Inês já era morta. Eric percorreu a distância necessária para
acabar com a distância entre nós. Porém, ele não estava vindo me perguntar o que eu queria, ele
simplesmente pegou minha mão e me carregou para dentro da sala, diante da turma. Merda. O
que ele ia aprontar daquela vez?
—Kate, eu estava contando aos alunos sobre as dezessete mortes na floresta que hoje é nossa
reserva. É o local onde alguns religiosos se reúnem. Podem ser chamados de xamãs ou
peregrinos — sussurrou a última palavra. — Eles foram encontrados com manchas no braço —
Eric pegou meu braço e rabiscou um x no meu pulso —, bem assim. Manchas azuladas. Veneno.
Alguém envenenou dezessete pessoas na reserva florestal há quase cem anos.
Em seguida, ele encerrou a aula, liberando seus alunos e fechando a porta. Continuei parada
fitando a mancha azul no meu pulso e tentando raciocinar sobre a informação propositadamente
dita no meu ouvido, como um segredo que queria ser revelado.
—O que é dessa vez? — questionei, sentando-me sobre a mesa dele sem muita cerimônia.
Tínhamos rompido algumas barreiras rápido demais, isso era um fato.
—Achei que você deveria saber o motivo pelo qual os peregrinos vivem em guerra com as
bruxas — Eric falou cada palavra pausadamente, com calma, como se quisesse ter certeza de que
não seria necessário repetir — e por qual razão política Téo poderia ter interesse em se casar com
você. Não que ele não queira se casar com você por você, deixando claro. — Estendeu as mãos
em sinal de inocência, parando a minha frente e me encarando com certo sarcasmo no sorriso.
—Casar?! Sério que você falou casar? — Não pude impedir meu riso surpreso. — A gente não
tava cogitando casar. E me surpreende que você tenha esses pensamentos tão românticos —
provoquei, puxando meu celular do bolso. —Bem, pra variar, eu tenho um problema.
—Não precisa ficar inventando problemas para esconder a vontade de me ver — debochou,
sentando-se ao meu lado com um sorrisinho convencido, — para esconder que não parou de
pensar em como teria sido se eu a tivesse beijado. Porque eu não parei.
Olhei de lado para ele e jurava que encontraria o mesmo sorriso convencido de antes, mas não.
Eric estava sério, suas palavras sussurradas como se fosse algo íntimo entre nós, como se ele
precisasse que o mundo não soubesse disso. Que ficasse ali para nós dois. As rugas em sua testa
e seu maxilar enrijecido me davam a impressão de que nem mesmo ele conseguia compreender o
que acabara de falar, como se tivesse evitado muito dizer aquilo. No entanto, os seus olhos azuis
e concentrados em mim davam a certeza de que ele não voltaria no tempo para recolhê-las, se
assim pudesse.
E, sem a necessidade de qualquer feitiço, eu simplesmente me mantive inerte, como se estivesse
congelada. Eric aproximou seu corpo do meu sobre a mesa, deixando algo em torno de 10
milímetros entre nós. Talvez tenha sido menos. Sou péssima com dimensões. O tecido da sua
jaqueta roçou na pele do meu braço, causando uma sensação estranha. Ela parecia confortável e
ao mesmo tempo inquietante. Mas, nada poderia superar o que viria a seguir. Eu podia sentir seu
ombro tocando no meu, quase me empurrando, podia perceber sua pele bem perto, seu cabelo
tocando o meu, e o palpitar imbecil que se espalhou meu corpo.
—O quê?! — reclamou, sem se afastar ou pestanejar. A voz abafada e baixa como um ronronar
dos gatos. — Agora a gente vai fingir que não rola nada aqui? — Moveu sua cabeça de mim para
ele e vice-versa. — Não é possível que você não note a energia entre nós dois, Kate. E eu sei que
eu deveria apenas estar cobrando meu favor, e depois protegendo você, mas está ficando
realmente difícil. E não é uma declaração romântica. É apenas uma constatação de que eu estou
muito interessado em beijar você há alguns dias.
Engoli em seco algumas vezes. E a minha falta de resposta deu espaço para Eric tirar o celular da
minha mão calmamente e puxá-la na direção do seu pescoço. ELE REPOUSOU A MINHA
MÃO NO PESCOÇO DELE. Isso mesmo. E eu fui obrigada a sentir o seu cabelo liso por baixo
da minha palma, fui obrigada a sentir sua nuca embaixo dos meus dedos. Seu corpo estava
inclinado sobre o meu desde o instante em que puxou o celular de mim e o largou atrás dos
nossos corpos, ainda sobre a mesa. E sua mão direita repousou sobre o meu rosto, emoldurando-
o como se tivessem sido desenhados um para o outro. E fui traída por mim mesma.
Involuntariamente eu observei seus lábios se aproximando dos meus. E depois eu observei cada
detalhe: o modo como o azul dos seus olhos ia aumentando de tom do centro para a ponta. Do
mais claro, quase como um mar límpido, até um azul como o anoitecer. Notei como suas
bochechas eram ligeiramente rosadas e as singelas rugas de expressão abaixo dos seus olhos. E
todos esses detalhes e observações desaparecem no instante em que seus lábios roçaram nos
meus.
Em seguida, sua boca se abriu sobre a minha com urgência. E a minha correspondeu. Eric
respirou fundo quando nossas bocas se encontraram verdadeiramente, e eu me senti febril
naquele instante. Seu lábio inferior deslizou sobre o meu superior, decorando o caminho, e eu me
assustei com a avalanche de imagens que vieram na minha cabeça. Surpreendi-me quando meus
dedos começaram a se fechar no pé do seu cabelo, agarrando-o. E, então, como Mel previra: foi
uma explosão.
Quando percebi, seu braço agarrou a minha cintura, levando meu corpo para cima do seu com a
maior facilidade do mundo, como se eu fosse um mero travesseiro. Nossas bocas aumentaram a
intensidade do beijo como se ainda fosse possível. E eu pensei em como eu me esqueceria
daquilo depois. Perdi o equilíbrio e acabei deitando-o sobre a mesa. Mas nada disso foi suficiente
para nos separar. E eu pensei que nada seria, até eu escutar a porta sendo batida contra a parede
após alguém entrar apressadamente. E até eu escutar um “Ai, meu Deus, apaga da minha visão
essa cena”.
Nós dois apenas viramos nossos rostos na direção da porta, já com nossas bocas afastadas. No
entanto, a mão dele ainda repousava sobre a minha lombar, e eu ainda estava sobre ele. Que
situação, era o que a minha mente estava sussurrando quando meus olhos encontraram Lola,
Jane e Gustavo parados logo na entrada da sala.
—Não é como se vocês nunca tivessem feito algo parecido —Eric comentou, parecendo já ter
recuperado sua estabilidade emocional. E, em seguida, eu pulei para longe do seu corpo e da
tentação que ele representava.
Eu estava numa sala de aula, deitada sobre um professor. Mais um pouco, e eu seria deserdada.
Não, Kate. Péssima comparação, levando em conta que você é a herdeira e se for deserdada,
morre. Ok.
—Eu não sei onde você está com a cabeça, Kate — Lola concluiu com um tom crítico. E, então,
pela primeira vez, eu me irritei com a situação. Não era como se eu estivesse matando alguém.
—Será que é crime beijar outra pessoa? — questionei enquanto Eric parava ao meu lado após me
devolver meu celular.
—Você sabe as minhas razões — Lola respondeu entredentes, mas Gustavo, a pessoa inesperada
naquela equação, interrompeu o rumo da conversa.
—Temos assuntos mais importantes, Lola, ou não estaríamos aqui com tanta urgência. — Ele se
aproximou de mim, a mochila jogada apenas sobre um ombro, parecendo realmente preocupado.
— Eu sei que você é bruxa.
Capítulo 32
Entendia que Sofia não gostasse de mim, que sentisse ciúmes de seu
irmão, entendia qualquer motivo para nossa relação nunca ter sido boa, contudo, eu jamais
entenderia como ela tinha sido capaz de sequestrar a minha irmã.
Quando vi o corpo da Melissa sendo arrastado pelos braços, no chão, com um pouco de sangue,
eu senti a barreira se desfazer sob as minhas mãos. Os instantes mais desesperadores da minha
vida. Senti-me impotente por tê-la deixado sozinha, por tê-la deixado na mão de estranhos e por
não ter seguido a minha intuição de imediato. Escutei o choro de Lola e as preces de Jane. Vi
Gustavo suspirar. E Eric fechar o rosto.
—Nosso último encontro não foi agradável — Joseph iniciou e notei os demais participantes da
revolta se amontoarem na porta, lutando por um vislumbre da discussão política, — eu me
excedi. Você precisa compreender o quão difícil foi encontrá-la. Os feitiços feitos pela sua mãe
foram muito eficientes. E quando descobri sobre você e Téo, fui ao cemitério, mas vocês dois
ficaram na defensiva, obrigando-me a ser rude. Hoje venho com oferta de paz. Querem...
—Paz? Isso é o que você chama de paz? Sequestrar a minha irmã? — Saí do círculo, notando o
olhar surpreso e desapontado de Eric.
—Considere a sua irmã como um incentivo pela paz. — Ele colocou as mãos atrás do corpo e
ficou parado de forma elegante. — Ela está viva e sendo razoavelmente cuidada, não se preocupe
agora.
—Que tal a gente pular toda essa ladainha direto para as reivindicações? — Eric sugeriu,
caminhando na direção da barreira, bem aonde eu estava, tentando me impedir de caminhar na
direção de Melissa porque era óbvio que eu faria isso. — Creio que sejam urgentes, já que
estamos perturbando a rotina normal dos humanos.
—Você foi nomeado porta voz da nossa majestade? — o escárnio escorria pelos lábios de Sofia
como baba durante o sono, principalmente ao usar o termo “majestade”.
—Não estou vendo nenhuma rainha por aqui — olhou ao redor, fingindo procurar —, o que vejo
é uma bruxa a assumir sua função na CORTE.
—Eric, não precisa se preocupar tanto com a nossa Presidente — Joseph pediu —, tem a minha
palavra que não a machucarei. Quando contratei você, frisei que a queria viva, lembra? Fique
tranquilo.
—Contratou? — aquela notícia foi a gota d’água que faltava no meu copo. Ele inundou,
derramando-se por mim, a tal ponto que meus olhos já marejados ao ver minha irmã daquele
jeito, lacrimejaram.
—Ah, eu imaginei que você não soubesse — Joseph comentou, aparentemente massageando seu
ego pela suposição correta. — Contratei Eric para encontrá-la e me entregar sua identidade e
paradeiro, mas percebi que havia algo de errado quando a avó do Téo foi mais rápida.
—Bem, não pode ter sido tão errado assim se aqui estamos, não é mesmo? — retruquei,
afastando-me da barreira, no instante em que ele agarrou meu pulso.
—Pelo amor dos deuses, Kate, não caia na deles — Eric clamou desesperadamente.
—É mentira? — Puxei meu pulso da mão dele e cruzei meus braços, encarando-o.
—Não importa agora, apenas não me exclua. É o que eles querem, não consegue enxergar que
até hoje eu nunca a machuquei? — ponderou, aproximando-se de novo. — Sumo da sua vida
depois, se assim quiser. Prometo — sussurrou, e abaixei a cabeça para esconder a lágrima que
deslizou do meu olho direito.
Às vezes a vida não dá uma pausa para você chorar, para você lamber as suas feridas até que elas
cicatrizem. Às vezes, você precisa respirar fundo, levantar a cabeça e seguir porque não há outra
opção. Eu sentia meu coração em pedaços por ter confiado tão facilmente no Eric, por ele nunca
ter me contado que havia sido contratado para me entregar. Por ele nunca ter sido realmente
sincero comigo.
—Combinado — disse com toda a convicção do mundo, após levantar a cabeça. Decidida.
Firme. Forte. No entanto, senti a dor sufocar minha garganta quando as pálpebras dele sumiram
com os azuis por alguns segundos. Não era como um piscar de olhos. Não. Era: estou me
desligando para digerir isso sem demonstrar emoções. Obriguei-me a ignorar os meus
sentimentos e os dele. — Bem, se temos...
Téo apareceu na sala. Do nada. Dentro da barreira. E senti quando os braços de Eric me
agarraram e me jogaram para dentro do círculo. No exato instante em que Sofia levantou uma
adaga e direcionou para o peito de Melissa. Gritei como nunca havia feito na minha vida e uma
enorme bolha se formou ao meu redor, empurrando para longe tanto Téo quanto Eric. Em
seguida, ela murchou, transformando-se em pequenas gotas até desaparecer por completo.
—A minha condição para essa conversa é que Téo leve embora as minhas amigas e a minha
irmã. Depois disso, eu ouço todas as reivindicações — berrei, sentindo as lágrimas rolarem
desenfreadamente pelo meu rosto.
—Ela ainda acha que pode impor condições. — Sofia riu, cruzando os braços. — Apenas as
amigas. Sua irmã fica como garantia. Já está rendida, mais fácil. Ou prefere que eu machuque a
bondosa Lola? — Sofia deu uns passos para frente, na nossa direção, e eu estendi a mão,
ordenando que parasse.
—Não. Deixe que os três saiam ilesos. — Olhei para Téo, que estava entre Lola e Jane, já com as
mãos nas delas. Ele me encarou e balançou a cabeça.
“Eu as protegerei”.
Como o príncipe que sempre foi, um verdadeiro líder, Téo acatou o meu pedido e desapareceu
com Lola e Jane. Os corpos delas restaram na sala, dentro da barreira, parecendo duas estátuas de
cera. Sem emoção, sem movimentos, sem vida. Temporariamente. Se ele me amasse, teria
partido? Se eu fosse o Téo, eu teria partido e deixado a pessoa que gosto à mercê dos inimigos?
Se ela me pedisse? Balancei a cabeça, tentando afastar a confusão em minha mente, e passei a
me aproximar de Joseph e Sofia.
—Estamos a sós agora, acho que podemos começar nossa reunião —avisei, tentando realmente
incorporar a imagem de uma presidente, de uma líder de um povo.
—Nenhuma reunião com a presidente é feita sem a destituição temporária dos poderes — Eric
comunicou. — Ela não vai discutir nada, se vocês não deixarem 70% da magia de vocês no ar.
Empurrou com as mãos quatro cadeiras na direção da mesa, onde há poucos minutos nós dois
nos beijávamos. Quando digo com as mãos, me refiro a magia. Como ele sabia de tantas coisas?!
Eu jamais teria pensado naquela ameaça. Joseph e Sofia cochicharam entre eles e acataram a
decisão. Uma nuvem se formou acima da cabeça de cada um. A de Joseph era enorme, cinza e
com uns rasgos vermelhos. Já a de Sofia era do tamanho de um coelho, azulada e sem outros
tons.
—Quais são as reivindicações?—Aproximei-me da cadeira colocada na lateral da mesa.
—Você está prestes a assumir seu posto, Kate. Creio que precise conhecer o estado em que seu
povo se encontra. Sabemos que você viveu à margem da bruxaria durante toda a sua vida e que,
por isso, desconhece os ditames que vem causando dor e sofrimento aos seus governados por
séculos — Joseph explicou, antes de se sentar. — Você precisa saber quem é Maya Gricem...
Minha visão nublou repentinamente enquanto levava as mãos à minha barriga. Conseguia ver a
sala, conseguia ouvir Eric gritando, e consegui observar uma mulher ruiva tirando o capuz na
multidão da porta. Mil repousou um arco sobre seu ombro direito, após ter atirado algo em mim.
Perdi as forças e minhas pernas fraquejaram. Os braços de Eric foram o meu porto seguro, ele
me agarrou contra seu corpo e me colocou sobre a mesa da sala.
—Salve a Melissa — sussurrei, orando para que tivesse me ouvido.
—Não! Você vai salvá-la... Kate, Kate...
O professor batia levemente no meu rosto, e aos poucos a minha visão escurecia mais. Naquele
momento, eu só conseguia ver os azuis de seus olhos. Eu só conseguia ver como eles estavam se
transformando em ondas de sofrimento. Um mar tempestuoso e revoltado. A fraqueza foi mais
forte e eu não consegui mais lutar. Entreguei-me, fechando os meus olhos para o azul, para a
sala, para o mundo.
EPÍLOGO
Nascida e criada no Rio de Janeiro, Katerine Grinaldi já visitou lugares que não estão nos mapas convencionais. Isso graças ao
seu amor pela literatura, tanto no ato de ler como no de escrever. Encantada com histórias que fazem pensar e por personagens de
apaixonar, Katerine decidiu criar outros mundos para que leitores – como ela - pudessem visitar.
Advogada e graduanda em PSICANÁLISE, ela não abandona um de seus maiores prazeres: escrever.
Katerine é editora-chefe da Sinna e procura levar aos leitores antologias com temas voltados para as causas sociais, como
Cinderelas que trata da violência contra a mulher.
Atualmente, Katerine divide seu tempo de escritora e editora com a divertida e honrosa missão de ser mãe da pequena Elena.
Mora de favor na casa de seus 8 gatos e 2 cachorros.
@katerinegrinaldi
Email: sagaaherdeira@gmail.com