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Título original
Az ajtó
Preparação
Gabriel Demasi
Revisão
Juliana Pitanga
Leticia Feres
Diagramação
Tanara Vieira
Design de capa
Bel Moura
Revisão de e-book
Carolina Andrade
Geração de e-book
Joana De Conti
E-ISBN
978-65-5560-220-3
1a edição
Todos os direitos desta edição reservados.
Editora Intrínseca Ltda.
Rua Marquês de São Vicente, 99, 3o andar
22451-041 — Gávea
Rio de Janeiro — RJ
Tel./Fax: (21) 3206-7400
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Sumário
[Avançar para o início do texto]
Folha de rosto
Créditos
Mídias sociais
Sumário
A porta
A contratação
Irmãos de Cristo
Viola
Relações
O espelho de Murano
Bota-fora
Polett
Política
Nádori-Csabadul
Filmagem
O momento
Jejum
Surpresa de Natal
A intervenção
Sem lenço
O prêmio
Amnésia
Sutu
Finale
Herança
A solução
A porta
Notas
Sobre a autora
Leia também
A porta
Na primeira vez em que negociamos, eu queria ver seu rosto, e ela me deixou
constrangida por não me dar nenhuma oportunidade. Ela estava em pé diante
de mim como uma estátua, imóvel, não numa posição rígida, bastante relaxada
até, eu mal via sua testa, ainda não sabia que nunca a veria sem um lenço na
cabeça a não ser em seu leito de morte. Ela sempre usava véu, como uma
católica fervorosa ou uma judia no dia do Shabat que foi impedida de se
apresentar diante do Senhor com a cabeça descoberta. Era um dia de verão,
sem nenhum motivo para se abrigar, estávamos no jardim, no começo da
noite, sob um céu tingido de violeta, e ela não combinava com as rosas ao seu
redor. Às vezes nós temos essa intuição, qual flor uma pessoa seria se nascesse
como flor. Ela, com certeza não seria uma rosa; o desabrochar quase impudico
de carmim parece bem pouco inocente. Logo senti que aquela não seria a flor
de Emerenc, mesmo sem saber nada sobre ela, menos ainda a flor que a
representaria.
O lenço que cobria seu rosto produzia uma sombra sobre os olhos, que,
mais tarde descobri, eram azuis. Queria saber de que cor eram os cabelos, mas
esses ela sempre escondeu enquanto teve consciência de si. Vivemos minutos
importantes nesse começo de noite, ambas precisávamos decidir se
poderíamos aceitar uma à outra. Morávamos haviam poucas semanas no novo
apartamento, bem maior que o anterior, que tinha apenas um quarto e era mais
fácil de limpar, eu não precisava de ajuda, mas minha carreira, congelada nos
últimos dez anos, acabara de recomeçar, e aqui, neste novo lugar, passei a ser
novamente escritora em tempo integral, com possibilidades crescentes e
inúmeras situações que me prenderiam à escrivaninha ou exigiriam minha
saída de casa.
Então, por isso estava naquele momento em pé, no jardim, diante dessa
velha emudecida, pois já ficara claro que se alguém não tomasse de minhas
mãos as tarefas da casa, mal poderia publicar tudo que armazenara nos meus
anos de silêncio nem poderia trazer à vida o que eu ainda tinha a dizer.
Quando terminamos a arrumação dos livros nas estantes e ajeitamos nossa
frágil mobília, que precisava ser manuseada com precaução, imediatamente
comecei a procurar uma empregada. Perguntei a todos os conhecidos do
bairro, finalmente uma antiga colega de escola resolveu nossos problemas, ela
disse que uma velha mantinha a casa da irmã dela havia anos, que valia mais do
que qualquer jovem, ela a indicava de todo coração, desde que estivesse
disponível. Ela garantia que essa pessoa não poria fogo na casa com seu
cigarro, não teria problemas com homens, não levava nada embora, talvez até
trouxesse coisas se gostasse de nós, porque ela adorava presentear. Nunca teve
marido nem filhos, um sobrinho vinha visitá-la regularmente, assim como um
policial, todo mundo gosta dela no bairro. Falava sobre a mulher com calor
humano e respeito, contou que Emerenc também era zeladora, portanto, era
uma personagem quase oficial, e esperava que nos aceitasse, porque se não
agradássemos a ela, não haveria dinheiro que a fizesse aceitar o trabalho.
Os primeiros passos não foram promissores, a própria Emerenc não se
mostrou nada afável quando lhe pedi que viesse, assim que possível, para
conversarmos um pouco. Eu a encontrei no pátio do prédio onde ela era
zeladora – ela morava perto de nós, tão perto que de nossa varanda eu via
onde morava. Naquele momento ela começava a lavar uma quantidade enorme
de roupas, com apetrechos antiquados, fervia a roupa de cama dentro de um
caldeirão, num fogareiro ao ar livre, e erguia os lençóis com grandes colheres
de pau, em meio a um calor que já era, por si só, insuportável. O fogo a
iluminava, era alta, ossuda, ainda forte, apesar de velha, tal qual uma Valquíria,
o lenço na cabeça amarrado de tal forma que lembrava um elmo de guerra.
Concordou em me procurar, por isso nos encontrávamos ali, em pé, no
jardim, naquele final de tarde. Ela me observava calada enquanto eu explicava
quais seriam suas tarefas na casa, e, enquanto eu falava, me dei conta de que
jamais acreditei em escritores de séculos passados, quando, em meio a um
grande romance, comparavam a expressão de um personagem a um lago.
Fiquei envergonhada, como tantas outras vezes, por ousar duvidar dos
clássicos: o rosto de Emerenc simplesmente não era comparável a nada além
da superfície lisa de um espelho de água na madrugada. Eu não sabia o quanto
minha oferta a interessava, ela não necessitava nem de emprego nem de
dinheiro, isso se percebia logo, a mim é que seria terrivelmente importante que
ela aceitasse, porém, aquele rosto lacustre, sombreado pelo lenço que parecia
um acessório ritual, demorou a expressar qualquer som. Nem quando
finalmente respondeu ela levantou a cabeça: é possível que voltemos a
conversar pois uma das casas em que trabalha se tornara um ambiente
desagradável, o marido e a mulher bebem, o filho mais velho era um
depravado, ela não quer mais ficar com eles. Se alguém nos recomendasse e
conseguisse convencê-la de que nesta casa ninguém é briguento nem bebe,
seria possível conversar sobre o negócio. Eu a ouvi, pasma, era a primeira vez
que alguém exigia referências nossas.
– Eu não lavo a roupa suja de qualquer um – disse Emerenc.
Sua voz era um soprano límpido. Já devia morar havia tempos na capital,
pois, se eu não tivesse me formado em linguística, não teria percebido em suas
vogais a provável origem das minhas próprias raízes interioranas. Perguntei se
ela também era da região de Hajdú, pensei que ficaria contente com a
pergunta, mas apenas anuiu com a cabeça, sim, ela veio de Nádor para a cidade
grande, mais exatamente do povoado de seu irmão, Csabad, mas mudou
rápido de assunto como quem quer sinalizar que não deseja falar sobre o tema.
Assim como tantas outras coisas, isso também só ficou mais claro depois de
anos, a pergunta lhe pareceu invasiva e impertinente. Emerenc não estudou
Heráclito, ainda assim sabia mais das coisas do que eu, que sempre que
possível retornava à cidade natal, procurando o que desaparecera, o
irrecuperável, a sombra das casas que tombaram em meu rosto algum dia, meu
lar perdido da infância e, claro, não encontrando nada, pois por onde correria
aquele rio cujas águas carregavam em suas gotas os cacos de minha vida?
Emerenc era mais sábia, não experimentava nada impossível, reservava sua
energia para o factível no futuro em nome do passado, mas é claro que só fui
compreender o todo mais tarde.
Naquele dia, quando ouvi pela primeira vez o nome dos dois lugarejos,
Nádor e Csabad, percebi que não deveria mais pronunciá-los, que, por algum
motivo, essas duas palavras eram tabus. Se de fato eram, falemos de coisas
mais reais. Pensei que nossa combinação seria por hora trabalhada, seria mais
vantajoso para ela, mas por enquanto ela não queria tomar decisões, me
informou. Ela decidiria quanto a pagaríamos quando já tivesse uma opinião
sobre nós, quando soubesse se éramos desleixados, bagunceiros, quanto
trabalho ela teria. Procuraria se informar a nosso respeito – não com a minha
colega de escola, ela seria suspeita –, quando conseguir, mesmo no caso de
resposta negativa, ela entrará em contato. Apenas a observei enquanto se
afastava sem pressa, houve um momento tentador em que pensei, essa velha é
tão singular, talvez fosse mais conveniente para todos se não aceitasse o
emprego, ainda não é tarde, vou chamá-la para dizer que mudei de ideia. Não a
chamei. Emerenc retornou depois de uma curta semana, é claro que a
encontrei na rua mais de uma vez, ela apenas cumprimentava e passava por
nós, como quem não quer antecipar a decisão nem fechar uma porta que
sequer fora aberta. Quando tocou a campainha, vi que estava vestida com sua
melhor roupa, logo entendi o significado de seu traje, caminhei ao seu lado,
um pé depois do outro, um pouco constrangida pela quase indecência do meu
vestido de verão. Ela usava preto, um vestido de lã de boa qualidade, de
mangas longas, sapatos de verniz e, como se retomasse a conversa de onde
tínhamos parado, informou que no dia seguinte começaria a trabalhar e lá para
o fim do mês poderia me dizer quanto seria o pagamento mensal. Enquanto
isso, olhava fixamente para meus ombros desnudos, fiquei contente que ela
pelo menos não encontraria motivos para fazer objeções ao meu marido,
sentado de paletó e gravata, debaixo do sol de trinta graus, mesmo em dias
escaldantes ele não modificava seus hábitos adquiridos antes da guerra, na
Inglaterra. Ambos, ali ao meu lado, estavam vestidos como se quisessem dar o
exemplo a um povoado originário, ao qual eu pertencia, e incutir nele respeito
pelos sinais externos de dignidade humana. Se havia alguém no mundo
parecido com meu marido no que diz respeito a certas normas, era Emerenc, e
esse foi o provável motivo pelo qual, durante muito tempo, não conseguiram
se aproximar.
A velha estendeu a mão a ambos, depois evitou qualquer contato físico
comigo, se eu fazia um gesto em sua direção, ela empurrava minha mão, como
se espantasse uma mosca, embora naquela noite ela não tivesse ido para
começar a trabalhar, isso não seria digno ou decoroso: Emerenc tinha ido
aceitar o trabalho. Ao se afastar, se despediu de meu marido nestes termos:
“Desejo boa noite ao patrão.” Ele a observou um pouco espantado, não havia
no mundo outra pessoa com a qual combinasse tão pouco essa linda palavra.
De qualquer modo, o chamou assim até a sua morte, com o tempo meu
marido se acostumou ao novo nome e passou a responder quando chamado.
Nenhum acordo estipulava sobre quantas horas Emerenc deveria trabalhar em
nossa casa, nem o seu horário de chegada. Às vezes não a víamos ao longo do
dia, e então ela aparecia às onze horas da noite e limpava a cozinha e a
dispensa até de madrugada; e também acontecia de não podermos usar o
banheiro durante um dia e meio, pois ela deixara os tapetes de molho na
banheira. Seu excêntrico horário de trabalho era compensado por seu
surpreendente desempenho, a velha trabalhava como um robô, pouco
clemente para consigo mesma, levantava móveis que ninguém mais levantaria,
havia algo sobre-humano em sua capacidade de trabalho e sua força, quase
assustador, porque, afinal, ela nem tinha necessidade de assumir tanto.
Emerenc visivelmente entregava-se inteira ao trabalho, ela gostava disso, não
saberia de que outro modo usar suas horas livres. Tudo que fazia era
irrepreensível, andava para lá e para cá pelos aposentos, quase sempre muda,
ela não apenas era nem íntima nem curiosa, mas evitava qualquer conversa
fiada. Ela pedia muito, muito mais do que eu imaginava, mas também dava
muito. Quando eu avisava que teríamos visitas, ou se alguém aparecia de
repente, ela perguntava se precisava de ajuda, mas, na maioria das vezes, eu
dispensava sua oferta. Não queria que nossos amigos soubessem que eu não
tinha nome dentro de minha própria casa, Emerenc só encontrou um nome
para meu marido, eu não era senhora nem nada, e isso durou enquanto ela não
pôde definir um lugar para mim em sua vida, enquanto ela não descobria
quem eu era para ela e como deveria me chamar. Nisso, é claro, ela também
tinha razão, porque, sem emoção, qualquer definição seria imprecisa.
Emerenc infelizmente era perfeita em tudo que fazia, às vezes
esmagadoramente, a minhas tímidas palavras de reconhecimento ela não fazia
rodeios, dizia que não esperava um reconhecimento a cada instante, que não
tínhamos que fazer elogios, ela sabia muito bem quanto valia seu trabalho.
Usava sempre a cor cinza, apenas nos feriados ou em dias especiais, preto; nos
dias comuns protegia seu vestido com um avental, que trocava todos os dias, e
detestava lenços de papel, usava lenços de algodão, brancos como neve, duros
de tão engomados. A descoberta de que ela tinha também suas fragilidades me
deu uma certa alegria, por exemplo, quando aparentemente sem nenhum
motivo, durante uma boa parte do dia, ela se mantinha em silêncio mesmo que
eu perguntasse qualquer coisa, acabei percebendo que só acontecia quando
havia raios e trovões: ela morria de medo de tempestades. Quando o tempo
fechava, largava o que tivesse nas mãos, e sem nada dizer, corria para sua casa
para se esconder.
– Não existe velha sem manias – comentei com meu marido, mas ele
balançou a cabeça.
– Esse pavor é ao mesmo tempo mais e menos do que uma mania. Parece
que tem uma razão de ser, mas, segundo ela, não é da nossa conta. Afinal,
alguma vez ela contou algum fato importante de sua vida?
Se me lembro bem: nunca. Emerenc não é de muita conversa.
Já trabalhava conosco havia mais de um ano quando pedi a ela que recebesse
em meu nome um pacote que chegaria à tarde, meu marido aplicava uma
prova na escola e meu dentista só tinha aquele horário para me atender.
Preguei um bilhete na porta, avisando a quem o portador deveria procurar em
nossa ausência, e corri até a casa de Emerenc, eu tinha esquecido de avisá-la na
hora da limpeza sobre o meu pedido, ela havia acabado de sair havia poucos
minutos, deveria estar em casa. Sua porta permaneceu indiferente às minhas
batidas, mas eu a ouvia mexendo em coisas lá dentro e, aparentemente, a
maçaneta estava estática, o que não era uma visão incomum, ninguém nunca
havia visto a porta de Emerenc aberta, nem rezando ela atendia, depois de
chegar em casa, corria o ferrolho em portas e janelas, todo mundo no bairro
estava acostumado. Gritei, por favor, depressa, porque tenho que ir e preciso
lhe pedir um favor, num primeiro momento, o mesmo silêncio inalterável
recebeu minha voz, mas quando bati na maçaneta, ela se abriu tão
bruscamente que tive medo de que me machucasse. Emerenc bateu a porta
atrás de si, gritando que eu não deveria incomodá-la depois do horário de
trabalho, não era paga para isso. Fiquei ali parada e envergonhada, corada até o
pescoço pela gritaria sem motivo, pois se por alguma obscura razão ela se
sentia ofendida com isso, eu a requisitando fora de seu território, poderia dizê-
lo com mais calma. Balbuciei meu pedido, ela nem respondeu, apenas
permaneceu ali, parada, me encarando, como se eu tivesse enfiado uma faca
em seu braço. Está bem. Eu me despedi de forma educada, fui para casa,
desmarquei o dentista, meu marido já tinha ido embora, apenas eu estava em
casa para esperar o pacote. Não tinha vontade nem de ler, zanzava pela casa,
refletia sobre o que havia feito de tão desastrado, por que essa recusa tão
violenta, deliberadamente insultante, que ainda por cima não lembrava em
nada o comportamento da velha senhora, às vezes tão formal que até nos
deixava encabulados.
Permaneci sozinha por um bom tempo. Para estragar o dia de vez, o pacote
não chegou, eu esperara à toa, meu marido também não voltou no horário de
sempre, no final da prova ficou com os alunos, eu folheava um livro de arte
quando ouvi que a chave virava na fechadura da cozinha. Não ouvi a palavra
com que nos cumprimentávamos sempre, disso deduzi que não era meu
marido. Era Emerenc, a quem nessa noite péssima eu não esperava rever de
modo algum. Ela já deve ter se acalmado, pensei, e vem se desculpar. Mas
Emerenc nem entrou na sala, não disse nada, ouvi que ela mexia na cozinha, a
fechadura da porta fechou rapidamente, ela já tinha ido. Quando meu marido
chegou, fui pegar nosso jantar de sempre na geladeira, dois potes de quefir, e
vi um prato de peito de frango rosado, cortado em fatias finas e recomposto
em seu formato original, com uma habilidade de cirurgião. No dia seguinte, ao
agradecer Emerenc pelo repasto de reconciliação e lhe devolver o prato lavado,
ela não apenas não respondeu “de nada” nem “é um prazer” como negou ter
fatiado o peito de frango e recusou o prato, eu o tenho até hoje. Muito tempo
depois, descobri por um telefonema, quando comecei a ir atrás do pacote
jamais entregue, que ficara em casa naquela tarde sem fazer nada realmente
sem motivo, o pacote estava na dispensa, na prateleira mais baixa, ela o
trouxera com o frango, pois ficou esperando do lado de fora diante do portão,
disse ao portador o que eu a instruíra a dizer, sem me avisar, recebeu a
encomenda e voltou para sua casa. Foi um episódio importante em nossa vida,
pois daquele momento em diante eu senti por muito tempo que a velha não
batia muito bem da cabeça, a partir dali teríamos que levar em conta o
funcionamento peculiar de sua mente.
Muitas coisas vieram reforçar tal conclusão, principalmente as informações
vindas do técnico de gás que morava no mesmo prédio que ela, e em suas
horas livres fazia todos os consertos do bairro, que desde que veio morar aqui,
há mil anos, nenhum morador passara do pátio de entrada da casa de
Emerenc, porque ela não deixa ninguém entrar e também a desagrada se
alguém inesperadamente a chama do lado de fora. Ela cuida de seu gato lá
dentro, também não o deixa sair, as pessoas o ouvem miando, mas ver,
ninguém viu nada do que há lá dentro, as janelas estão sempre fechadas pelas
cortinas. O que ela guarda, além do gato, ninguém é capaz de dizer, embora, se
ela realmente tem coisas de valor, não faz bem em se trancar assim, qualquer
um pode imaginar que ela esconde objetos valiosos e abordá-la para roubá-los.
Nunca sai do bairro, no máximo quando algum conhecido é enterrado ela o
acompanha em sua última viagem, mas sempre volta correndo para casa, como
se um perigo a ameaçasse o tempo todo. Mas não se deve ficar ofendido por
não conseguir entrar, mesmo seu sobrinho, filho de seu irmão Józsi, e o
tenente-coronel são recebidos em frente à porta, no inverno e no verão, eles já
sabem, são proibidos de entrar, mas apenas dão risada, já se acostumaram.
O retrato que faziam dela com palavras era bastante assustador, me tornei
ainda mais apreensiva. Como é possível viver tão reclusa? E por que ela não
deixa o gato sair, já que tem um e a casa é contornada por um pedaço de
jardim cercado? Na verdade, eu achava que ela era louca, até que uma de suas
cortejadoras, Adélka, a viúva do farmacêutico, com um discurso prolixo, me
explicou: Emerenc havia tido um gato, grande caçador, e, durante a guerra,
mudou para lá um novo morador, criador de pombos, que resolveu o
problema de modo radical, foi quando Emerenc disse a ele que o gato não era
um professor universitário que se podia convencer de algo por meio de
palavras, e infelizmente faz parte de seu temperamento que, mesmo quando
bem alimentado, goste de matar, o criador de pombos, em vez de pedir a
Emerenc que mantivesse o gato trancado em casa, resolveu ele mesmo a
questão, pendurando o caçador estrangulado na maçaneta da porta de
Emerenc. Chegando em casa, a velha deu de cara com o corpo enrijecido do
animal, e o homem ainda lhe fez um discurso formal: que ele fora obrigado a
proteger, pelo meio que ele próprio escolhera, aquilo que era o seu ganha-pão
e única fonte de renda de sua família.
Emerenc não disse uma palavra, desfez o nó de arame que prendia o gato,
pois o carrasco não usara corda, e sim arame, o gato morto era assustador,
com sua garganta escancarada, ela o enterrou no jardim, no túmulo do senhor
Szloka, que ainda não havia sido exumado, em função disso foi caluniada, e o
carrasco do gato a denunciou à polícia, mas por sorte o assunto foi abafado.
As providências policiais, de qualquer forma, não trouxeram bênçãos ao
criador de pombos, ele nem podia brigar com Emerenc, ela olhava através dele
como se fosse transparente, e se tinha algo oficial para tratar com ele, mandava
recado pelo faz-tudo, porém, como se houvesse um acordo tácito de
solidariedade entre os animais, os pombos morriam, um após o outro. Então a
polícia precisou intervir mais uma vez; o tenente-coronel que a visita de
tempos em tempos naquela época ainda era subtenente. O criador de pombos
tinha denunciado Emerenc por envenenar suas aves, mas os pombos
autopsiados não tinham veneno no estômago, conforme atestou o veterinário,
eles morreram por causa de um vírus desconhecido, outros pombos também
haviam morrido da mesma coisa, não havia motivo para incomodar vizinhos e
autoridades por uma questão como essa.
Então, os moradores se uniram contra o assassino do gato, o casal mais
distinto do prédio, os Brodarics, entregaram uma petição ao Conselho do
bairro, dizendo que aquele constante arrulho atrapalhava o sono, o faz-tudo
afirmou que a sujeira dos pombos caía sempre na sua varanda, a senhora
engenheira queixava-se de que suas manifestações alérgicas se deviam aos
pombos, o Conselho não ordenou que abatesse o pombal, mas fez uma
advertência, os moradores se sentiram traídos, desejavam uma penalidade pelo
gato enforcado de Emerenc, um verdadeiro castigo.
Pois isso também aconteceu: o carrasco sofreu outra perda, seus novos
pombos morreram do mesmo modo misterioso. O sujeito mais uma vez
tentou fazer uma denúncia, o subtenente já nem pediu um parecer do
veterinário e deu-lhe uma repreensão horrorosa por incomodar a polícia já tão
sobrecarregada, e ele finalmente entendeu a lição, se pôs a gritar na recepção
amaldiçoando Emerenc, e seu último ato foi acabar também com o novo gato
dela, mas de modo a não deixar provas, e se mudou para a periferia. Com seu
afastamento definitivo, ele passou a atormentar as autoridades com queixas
infindáveis à zeladora. Emerenc enfrentara essa perseguição com tanta
serenidade, com tanta sabedoria e tanto bom humor que o Conselho e a
polícia acabaram gostando dela, não davam continuidade a nenhuma queixa
contra ela, se acostumaram com o fato de que ela atraía as denúncias anônimas
como os para-raios aos raios. Na polícia abriram um dossiê especial para
Emerenc, no qual guardavam esse material variado, mas quando uma das
famosas cartas chegava, apenas faziam um sinal de desdém com as mãos, não
havia policial principiante que não reconhecesse o vocabulário do homem dos
pombos e seu estilo pomposo para descrever os fatos. De tempos em tempos,
um policial passava pela casa de Emerenc, para tomar um café e conversar, o
subtenente promovido a tenente-coronel, sempre quando um rapaz novo
entrava no serviço, o apresentava a ela, Emerenc preparava linguiça, pogachas,
panquecas, segundo o desejo de cada um, os guardas que vinham dos
pequenos vilarejos ali se lembravam desses lugares, de sua avó, relembravam a
família que ficara para trás, nem se incomodavam com os que lhe segredavam,
entre seus pecados, terem sido acusados também, de matar e roubar judeus na
guerra, ou terem sido espiões para os norte-americanos, ou que tratara de um
desertor em sua casa, de ter ocultado bens e esconder tesouros roubados ali.
Na verdade, depois do relato de Adélka, fiquei realmente tranquila,
principalmente depois de ter ido à polícia por ter perdido um documento. O
tenente-coronel passava naquele exato momento pela recepção, quando eu
ditava meus dados, meu nome chamou sua atenção, ele me fez sentar diante
dele enquanto o novo documento era preparado. Eu estava convencida de que
ele reconhecera meu nome por conta de meus livros, depois descobri que
estava enganada. Não queria conversar sobre nada, apenas saber de Emerenc,
como ela está se saindo, se está bem, foi ela quem lhe disse que trabalhava em
nossa casa, e queria saber também se a menininha de Józsi, irmão dela, já havia
saído do hospital. Eu nem sabia da existência dessa criança. Admito que, no
começo, tinha medo de Emerenc.
Ela cuidou de nós durante mais de vinte anos, mas nos primeiros cinco acho
que daria para medir com fita métrica a distância que ela impunha. Sou uma
pessoa amigável, gosto de conversar mesmo com estranhos, Emerenc só se
aproximava para dizer o imprescindível, voltava correndo ao trabalho,
concentrada, como se tivesse volume incontável de afazeres ou compromissos
inadiáveis. Sua vida preenchia as vinte e quatro horas, e como não permitia a
entrada de pessoas entre suas quatro paredes, as notícias passavam por ela, o
pátio em frente à sua casa parecia uma sala de telefonistas, todos vinham falar
sobre mortes, brigas, boas notícias, catástrofes. Preparar comida para os
doentes lhe dava grande alegria, por isso sempre ao ouvir dizer que alguém
estava precisando ser alimentado, lá ia ela, eu cruzava com ela na rua com uma
travessa de comadre,* que eu percebia pelo formato. Emerenc sempre sabia
quando alguém passava necessidade, quando precisavam de sua ajuda, fazia
parte de seu brilho pessoal, todos se abriam com ela e sabiam que não
receberiam nada em troca, além de lugares comuns e falsos segredos. Política
não a interessava, arte menos ainda, não entendia nada de esportes, se ouvia
comentários de alguma infidelidade constatada na vizinhança, não fazia
julgamentos, o que ela mais gostava era a previsão do tempo, certificava-se de
que não havia uma tempestade em formação, pois suas visitas ao cemitério
eram regidas por isso, além de que, como eu já disse, ela morria de medo. O
tempo determinava não apenas isso que podemos chamar de vida social de
Emerenc, mas também seu horário no outono e no inverno, quando chegavam
as verdadeiras tempestades, seu novo tirano. Era ela quem varria a neve diante
da maior parte das casas do bairro, não tinha tempo nem de ouvir rádio,
apenas tarde da noite ou de manhãzinha, quando ela estava na rua, as estrelas
mostravam como seria o tempo no dia seguinte, conhecia-as pelo nome que
seus avós lhe davam, a intensidade ou a palidez de seu brilho lhe revelavam as
mudanças de tempo que estavam por vir, mesmo quando nenhum boletim as
mencionava. Ela se responsabilizara por varrer a neve na frente de onze
prédios, quando se dedicava a essa tarefa, se punha irreconhecível, seu corpo,
sempre muito bem protegido, parecia uma boneca de trapos imensa, em lugar
dos sapatos brilhantes, trabalhava de galochas, nos invernos rigorosos a gente
pensava que ela talvez jamais fosse para casa, que vivia na rua, nem se deita,
como todos os mortais. Parece que isso de fato era assim: Emerenc nunca se
deitava, só trocava de roupa depois de se lavar, não havia cama entre seus
móveis, dormitava em um pequeno sofá tipo namoradeira, ela afirmava que lhe
vinha uma fraqueza quando deitava, que apenas sentada consegue apoio para
os quadris doloridos, quando se deita fica tonta, ela não precisa de cama.
É claro que, quando a neve cai sem parar, nem na namoradeira ela
descansa, pois quando termina com a quarta casa, a calçada da primeira já está
soterrada, então ela corria de casa em casa, com sua imensa galocha, com sua
ainda maior vassoura de galhos. Nós nos acostumamos a não contar com ela
nesses dias brancos, nunca reclamei, nem tinha por quê, os argumentos,
embora não formulados, de Emerenc, seriam impossíveis de questionar: nós
temos um teto sobre nossa cabeça, ela sempre faz uma boa limpeza, podemos
esperar até ela ter de novo um tempo, e compensará, além do mais, a mim
também não me faria mal um pouco de exercício. Quando a neve se tornava
mais humana, Emerenc reaparecia, arrumava a casa maravilhosamente e, sem
nenhuma explicação, deixava sobre a mesa da cozinha algum assado ou uma
fornada de biscoitos, e eu podia deduzir que o alimento contrabandeado era
um recado, assim como fora o peito de frango em sua primeira malcriação:
vocês foram bonzinhos, dizia aquele prato, como se ainda fôssemos crianças e
não estivéssemos todos de regime, e crianças boas e pacientes merecem
recompensa.
Como podia caber em uma única existência tanta vida, não sei, mas
Emerenc também jamais se sentava, quando não tinha uma vassoura nas mãos,
era certo que levava nas mãos uma travessa de comadre para algum lugar, ou
procurava o dono de um animal perdido, e, se não encontrasse, tentava
empurrar o rejeitado em cima de alguém, quase sempre com sucesso, caso
contrário, fosse gato ou cachorro, de repente evaporava da vizinhança, como
se nunca tivesse fuçado nas latas de lixo. Trabalhava muito, em vários lugares,
ganhava muito, mas não aceitava de nenhuma forma gorjeta, isso eu ainda
conseguia entender, mas por que ela manda devolver os presentes isso jamais
descobri. A velha só gostava de dar, se quisessem surpreendê-la com algo, não
reagia sorrindo e sim, zangada. Durante anos tentei várias vezes, quem sabe
afinal aceite algum presente meu, me informava com grosseria que não é
necessário um ganho extra pelo que faz, eu guardava o envelope
profundamente ofendida, enquanto meu marido se divertia, dizia para eu parar
de tentar seduzir Emerenc, que parasse de me esforçar no sentido de mudar a
situação dada, a ele lhe agrada essa sombra efêmera que, embora incapaz de
manter horários e regras, desempenha todas as suas tarefas e não aceita nem
mesmo uma xícara de café. Emerenc era uma ajuda ideal. Se eu julgava seu
trabalho insuficiente, se eu queria estar em harmonia com todo mundo, era
problema meu. Não foi fácil para mim reconhecer que Emerenc tinha
decidido que não queria que fôssemos próximos dela, nem nós nem ninguém
mais, naquela época.
Irmãos de Cristo
Na verdade, ela nos manteve a distância durante anos, até que meu marido
adoeceu gravemente. Como a velha aparentemente não se interessava por nada
que ocorria em casa, eu estava convencida de que o máximo de emoção que
ela manifestaria seria trazer uma travessa de comadre, se eu lhe contasse a
verdade que ela não tinha percebido, portanto não contei nada, acompanhei
meu doente ao hospital para a retirada de um abcesso no pulmão, sem que
ninguém no prédio ou no bairro soubesse, nem mesmo ela sabia aonde
estávamos indo. Ela não fazia a menor ideia do que estava acontecendo até
aquele momento, nem dos exames preparatórios, de nada, quando finalmente
cheguei em casa, Emerenc estava sentada na poltrona e em seu avental havia
uma porção de colherinhas de prata, que ela estava limpando. A operação do
meu marido durara seis horas, as quais passei olhando para a lâmpada acesa
sobre a porta da sala de cirurgia, enquanto sabia, sem que ninguém me tivesse
explicado, que precisava contar com a possibilidade de que o operado talvez
jamais acordasse novamente, então pode-se imaginar em que estado voltei para
casa. Emerenc viveu pela primeira vez a experiência de perceber que eu a havia
deixado de fora de um evento importante de minha vida, e comuniquei a ela
apenas a situação momentânea, sem nenhum detalhe. A velha me olhou: eu a
deixara de fora do meu terror de uma cirurgia, que poderia acabar em morte,
como se ela fosse uma estranha. Ela disse isso, não ofendida, mas indignada,
ao que eu respondi, minha experiência até agora é que a senhora não tem
interesse algum por nossa vida, como eu poderia saber que seus sentimentos
seriam tocados por algo que nos diz respeito, além do mais, que não se
ofendesse, mas eu desejava ficar só, quero deitar cedo hoje, não foi um dia
fácil, e tudo ainda pode acontecer. Emerenc saiu imediatamente, pensei que
talvez, para sempre, de tanto que a machuquei, mas cerca de meia hora depois
acordei de um sonho leve e confuso, ouvindo que ela zanzava pela casa, até
que apareceu com um cálice fumegante.
Trazia um objeto de arte sobre uma bandeja de metal, de vidro grosso, azul
real, com duas mãos lapidadas em meio a uma guirlanda de flores oval, no
pulso da mão feminina, uma pulseira, na mão masculina, uma manga de renda,
ambas segurando uma placa dourada com a palavra francesa TOUJOURS inscrita,
em letras esmaltadas azuis. Peguei-o pela base, segurei-o contra a luz, vi um
líquido escuro com cheiro de cravo fumegante. “Precisa beber!”, disse
Emerenc. Não queria beber, não queria nada além de silêncio.
“Precisa beber”, ela repetiu, como se falasse com uma criança malcriada e
pouco inteligente, e quando viu que eu me desfazia do copo e não abria a
boca, ela o tomou de mim, e espirrou no decote de meu vestido um pouco do
vinho quente e eu gritei. Pegou minha mão, bateu com o cálice nos meus
dentes, se não quisesse ser banhada, teria que engolir. Essa era a melhor bebida
do mundo, embora fervente, e em cinco minutos o tremor de meu corpo
cessou. Pela primeira vez na vida Emerenc sentou ao meu lado no sofá, tirou
de minha mão o copo vazio, depois ficou ali, esperando que eu me
manifestasse, que pusesse para fora aquelas seis horas contidas e o que poderia
vir em seguida. Mas eu não conseguia falar, concatenar as ideias, sobre o que
havia acontecido, o que havia sentido, do horror que antecedera o fato, a
bebida que tomei em um gole só também teve lá o seu efeito, sei disso porque
adormeci, e em certo momento acordei, e a luz permanecia acesa como
quando chegara em casa, mas o relógio mostrava duas horas da manhã. Ela
deve ter aberto a minha cama, pois uma manta de verão me protegia sobre o
sofá, a qual ela só poderia ter tirado de sob minha cama. Com sua voz de
todos os dias, sem nenhuma entonação sentimental, ela disse que era
desnecessário passar a noite envolta em maus pensamentos, que eu relaxasse,
porque não vê nada grave, ela costuma sentir a morte chegando, além disso
nenhum cachorro na região dera nenhum sinal, nenhum copo quebrou, nem
aqui nem em sua casa, é claro, tenho o direito de não acreditar no que ela diz,
se por acaso quiser recorrer ao céu, ela pode me trazer a Bíblia, não tenho a
obrigação de conversar com ela.
Sempre foi importante para mim que as pessoas com quem estabeleço uma
relação mais próxima manifestassem alegria quando nos reencontramos. A
indiferença de Emerenc no dia seguinte de manhã não atingiu minha vaidade,
mas essa necessidade que tinha guardado depois daquela noite irreal em que
ficou ao meu lado e me revelou sua faceta da infância. Adormeci de
madrugada, despreocupada e sem angústia, sentindo que a terra, apesar de
tudo, ainda é redonda, e não duvidei um minuto sequer do sucesso da cirurgia,
porque a fala de Emerenc dissolveu meu estado de pânico. Até agora, o lenço
na cabeça encobrira detalhes importantes de sua personalidade, mas ela se
tornara a personagem central de um cenário terrível, tendo atrás de si um céu
em chamas, à sua frente corpos transformados em cinzas e, sobre o poço da
fazenda, o brilho de um raio. Eu realmente pensei que algo se resolvera
definitivamente entre nós, que Emerenc não era mais uma estranha e tinha se
tornado uma amiga, minha amiga.
Não a vi em casa nem ao acordar nem quando saí para ir ao hospital, mas
seu trabalho já era visível na calçada limpa de neve em frente ao portão.
Emerenc com certeza está fazendo seu circuito nas outras casas, expliquei a
mim mesma no caminho, eu não estava ansiosa, meu coração não estava
disparado, eu sentia que no hospital me aguardavam uma porção de boas
notícias, e foi assim mesmo. Fiquei lá até a hora do almoço, cheguei em casa
com fome, tinha certeza de que ela estaria lá sentada, à minha espera, mas me
enganei. Eu estava diante de uma experiência com a qual é impossível de se
acostumar, constatar que ninguém se importa se vamos chegar com uma
notícia boa ou ruim quando chegamos em casa. O homem de Neandertal
certamente deve ter aprendido a chorar quando sentiu pela primeira vez essa
sensação de se gabar sozinho de sua caça mais importante, sem ter a quem
mostrar o resultado daquela luta, aquele imenso animal que arrastou para casa
sozinho, nem a quem mostrar suas feridas. O que me aguardava era uma casa
vazia, percorri todos os cômodos procurando por ela, até gritei seu nome, não
queria acreditar que ela estivesse em outro lugar justo nesse dia, quando nem
sabe se meu doente estava vivo ou morto; a neve havia parado, ela certamente
não tinha nada a fazer na rua. E, no entanto, Emerenc não estava em lugar
algum, fui à cozinha, fui esquentar o almoço, e de repente tinha perdido o
apetite. Meu espírito lógico me dizia que não tinha direito algum àquilo que
esperava da velha, mas o filtro da lógica não se aplica a tudo, sem dúvida não
ao súbito ataque de saudade que me invadiu nem à frustração. Naquele dia
Emerenc não veio fazer faxina, o cobertor amassado permanecia no sofá, do
jeito que eu o deixara, arrumei a casa, limpei até o chão e fui mais uma vez ao
hospital em busca de novas boas notícias. Sentindo-me segura de novo, decidi
não contar a ela nada sobre o que os médicos disseram quando a
reencontrasse, não entediá-la com meus assuntos pessoais. Ela manifestamente
não se importa com a verossimilhança do que contou na noite do vinho
quente, ela contou coisas impossíveis, uma verdadeira balada folclórica em
prosa, estou louca por me preocupar tanto com Emerenc? Ela apareceu só
tarde da noite, apenas para dizer que voltaria a nevar e que não poderia vir
amanhã, mas que irá repor assim que puder, e que o patrão está melhor, não
está? Não prestei atenção nem ao que ela informou nem ao seu comentário,
continuei folheando o livro que tinha em mãos, respondi que meu marido
segue vivo e que ela podia ir, o que ela fez de imediato, me desejando boa
noite, tomando o cuidado de não jogar no lixo o copo de quefir vazio que eu
deixara sobre a pia. Também não se encarregou do fogo da lareira, não
regressou mais tarde, aquela noite não teve nem vinho quente nem história. Só
apareceu dois dias depois, quando fez uma faxina completa, mas não
perguntou sobre o patrão, seu instinto devia ter lhe dito que ele estava
melhorando. Ela não gostava de papo furado.
Em seguida, ela passou a ficar menos tempo em nossa casa, nossa vida
girava em torno de coisas diferentes; a minha, o hospital, a dela, as nevascas.
Eu não recebia visitas, quase nem ficava em casa, meu marido voltou
finalmente perto do Natal, Emerenc o cumprimentou com educação, lhe
desejou total restabelecimento e, como sua natureza determinava, ela trouxe a
travessa de comadre própria para um convalescente. Finalmente olhava a
louça, na rua não podia tirar a travessa de sua mão. Era uma espécie de
pequena sopeira, um verdadeiro objeto de arte, assim como o cálice, era
lindamente arredondada, tinha duas alças laterais e uma pequena base redonda,
algo surpreendente, na tampa de cerâmica havia uma bandeira húngara com o
nome e o rosto de Kossuth. Ela trouxe um caldo de frango vistoso e, ao ver
que eu admirava principalmente a louça, então disse que era muito prática, ela
ganhara de uma das suas patroas, a senhora Grossmann, na época das leis
contra os judeus, ela não a usava como travessa de comadre, é claro, e sim
como cachepô, mas ela achava uma pena que servisse para colocar flores. Ela
tinha uma porção de belos objetos de porcelana e vidro, o cálice em que
trouxera o vinho também fora herança da senhora Grossmann.
Herança, uma ova, pensei com aversão, eu já estava enjoada de vê-la voltar
a conversar no tom de antes, com aquele seu jeito formal, só me faltava agora
imaginá-la embrulhando objetos na casa abandonada e saqueada de sua antiga
patroa. Atravessei os anos anteriores à Segunda Guerra em condições políticas
muito favoráveis, entre estrangeiros mais bem informados do que os próprios
húngaros do meu círculo, se algum dia eu resolver contar minha vida naquela
época, quando era mais jovem, sobre a qual quase nunca se fala, a história de
minha primeira juventude não será nada desinteressante, eu sabia muito bem o
que ia dentro daqueles vagões, de quem se tratava, para onde e com que
objetivo. Eu devolveria com prazer a travessa a Emerenc, mas seria impossível
fazê-lo sem alguma explicação, e não queria incomodar meu marido, a quem
por enquanto eu filtrava as notícias do mundo e que, mesmo semimorto, teria
pulado da cama à simples ideia de que comera de um prato que pertencera a
pessoas mortas na câmara de gás, porque Emerenc evidentemente pensava,
como tantos outros na época, que, se ela própria não pegasse as coisas, outros
o fariam. Deixei, portanto, que ele tomasse a sopa até a última colherada, e
minha vingança foi não contar a ela que pela primeira vez ele comeu com
apetite, apesar de Emerenc ficar ainda durante bastante tempo mexendo na
cozinha, e embora nunca gostasse de elogios, percebi que, excepcionalmente,
esperava pelo agradecimento. Mas não agradeci, pus a travessa vazia na sua
frente e voltei para o quarto. Senti seu olhar nas minhas costas, fiquei contente
que agora era ela quem não entendia qual era o problema. Senti-me vitoriosa,
com arrogância e certo desprezo, como se tivesse encontrado a explicação para
ela não deixar ninguém entrar em sua casa. A suspeita do faz-tudo talvez
estivesse certa, poderia haver tesouros por trás daquela porta sempre fechada,
tesouros de deportados condenados à morte, tesouros que não era
conveniente ficar mostrando, de repente alguém reconhece alguma coisa,
então Emerenc iria ver as consequências, fora inútil empacotar tantas coisas
naquele tempo, ela sequer pode vendê-las sem o risco de serem reconhecidas.
Que cena, os pobres Grossmann sem nem mesmo um túmulo, e ela juntando
dinheiro para seu Taj Mahal! E ainda por cima quer que acreditem que não
abre a porta porque deixa um gato lá trancado! Era capaz de manter um
animal prisioneiro para ter um álibi, não é nada burra, faltou apenas uma coisa
na história: a explicação da herança dos Grossmann.
Ela era mais orgulhosa do que eu, mesmo que tenha percebido alguma
mudança, não se manifestou para tentar entender por que a nossa relação de
repente esfriou. Meu marido não era sociável, particularmente não com ela, eu
já disse, e mesmo que ele nunca tenha realmente expressado, foi evidente
durante anos que a presença da velha o deixava desconfortável: Emerenc
vibrava como um elemento estranho ao ambiente, que podia ser para o bem
ou para o mal, mas era impossível deixá-la de fora da nossa vida a dois.
Inclusive, ela não nos deu mais nenhum presente. Agora eu não sentia, como
no começo, que ela estava no comando, já que eu achava que tinha descoberto
o seu segredo, também não pensava mais que era de inteligência fora do
comum, porque se tivesse sido mais sensata, depois de 1945 ela teria tido
muitas maneiras de se educar. Se depois da guerra ela se pusesse a estudar,
agora poderia ser embaixatriz, ministra, mas ela não precisava de mais cultura,
ela só pensava em fazer pacotes, e depois fazer caridade com a travessa
roubada, e, nas horas sensíveis da madrugada, me entorpecer com histórias
que pode ter ouvido em alguma feira ou encontrado num romance água com
açúcar antigo no sótão do avô. Tempestade, raios, poço, muitas dissonâncias.
A passividade política e sua oposição à religião agora também são mais claras
para mim, na verdade, era melhor mesmo ela não ter nenhum cargo público,
Budapeste não é tão pequena, talvez tenham sobrado parentes dos
Grossmann, alguém poderia ouvir falar da história da porta sempre fechada,
começar a refletir e chegar à mesma conclusão que cheguei, além disso, por
que uma pessoa assim iria à igreja, no que acreditaria uma pessoa desse tipo?
O inverno estava rigoroso, Emerenc tinha muito trabalho, a doença de meu
marido tomava todo o meu tempo, nós não nos encontrávamos muito, não
chamou nenhuma atenção o fato de que quase não tivemos mais conversas de
verdade.
Depois, encontrei um cachorro.
Meu marido voltou a poder sair, aos poucos voltou a ser ele mesmo, se bem
que ainda precisava de mim de vez em quando, ao longo de nosso casamento
de trinta e cinco anos, não foram poucas as vezes em que conseguiu
milagrosamente escapar das garras da morte, e sempre saía rejuvenescido e
vitorioso, até o fim – e vencer era extremamente importante para ele em todas
as áreas da vida. Na véspera do Natal, voltávamos da clínica onde tínhamos
ido pegar uma receita médica no sereno da noite, quando nos deparamos com
um cachorrinho enterrado até o pescoço na neve da avenida. Nos filmes de
guerra do Oriente Médio, essa era uma forma de execução nos campos,
enterravam os prisioneiros na areia até os ouvidos, até a boca, o condenado
não conseguia mais falar, apenas emitia sons com o nariz, então ele não grita,
choraminga. O cachorro também choramingava, alguém havia contado com
aquela hipótese, de que ele seria salvo, não era um mau psicólogo, afinal quem
deixaria uma criatura à morte no aniversário de Cristo? Esse foi um momento
mágico que atingiu até mesmo meu marido, nada fã de bichos. Ele não tinha
nenhum desejo de deixar entrar qualquer um em nossa casa, muito menos um
cachorro, que iria demandar não só comida, mas também afeto, no entanto,
mesmo assim, ele me ajudou a tirar o bichinho de dentro da neve. Na verdade,
não era nossa intenção adotá-lo, nós imaginávamos que alguém tomaria para si
tal tarefa, mas sabíamos que se o deixássemos ali, pela manhã já estaria morto.
Além do mais, o pobre bicho só parecia prometer transtornos, era evidente
que, mais do que comida, ele precisava de um veterinário.
– Que presente inusitado –, disse meu marido ao ver que eu o punha
dentro do meu casaco. – É raro uma verdadeira surpresa de Natal.
Seu rostinho preto lançava olhares assustados de dentro da gola de pele,
enquanto, por dentro do casaco, eu estava molhada com a neve que derretia de
suas patas e sua barriga. Emerenc provavelmente já terminara a grande faxina,
a casa estaria brilhando, no caminho ficamos pensando onde seria um bom
lugar para ele, e decidimos que seria entre os belos móveis antigos do quarto
de minha mãe, que nessa época já tinha morrido, onde nem ligávamos o
aquecimento.
– Espero que ele goste do estilo século XVIII – disse meu marido. – Eles
só mastigam as coisas até dois anos, depois param sozinhos.
Eu nem respondi, ele estava certo, mas nada poderia ser feito se o infeliz
aqui no meu pescoço de fato mastigasse a mobília. Caminhávamos, como se
fosse o misterioso cortejo de uma pequena seita pouco numerosa, carregando
a relíquia preta contra o ombro, num sábado de Natal.
Nunca antes, nem mesmo quando ela teria dado a vida por mim, por um
amor que compensava sua maternidade jamais exercida, nunca vi Emerenc
como quando ela percebeu o que trazíamos para casa. Ela estava trabalhando
na cozinha, colocando os doces natalinos sobre uma travessa, quando
entramos, mas imediatamente largou a faca e arrancou o cachorro de minhas
mãos. Pegou um pano, esfregou ele bem e o pôs sobre o piso de pedra,
observando se conseguia andar, o bichinho caiu desajeitado sobre o magro
traseiro preto, ainda tinha o corpo enrijecido pela neve e logo fez xixi de
medo, Emerenc jogou uma folha de jornal sobre a sujeira, e nós duas
procuramos no armário uma toalha de banho, a menor. Até então, eu nem
sabia se ela tinha noção de onde eu guardava as coisas, ela fazia questão de me
pedir para eu mesma guardar, dizendo que tinha horror de mexer no que não
lhe pertence. Mas, pelo jeito, ela sabe perfeitamente onde cada coisa se
encontra dentro dos armários, não mexe em nada, mas presta atenção,
fiscaliza, toma conta. Emerenc não suporta que os outros tenham segredos.
Eu peguei a toalha felpuda, ela envolveu o cachorro como um bebê,
caminhava com ele para cima e para baixo, sussurrando em seu ouvido. Eu fui
para a sala telefonar, não podíamos perder tempo se queríamos salvar o
bichinho, a televisão estava ligada, Natal, Natal, os aromas, as luzes, as músicas
natalinas nos rodeavam. Eu já tinha perdido inúmeras coisas em minha vida,
mas a atmosfera natalina, com sua poeira de estrelas, se manteve, representada
pela imagem da criança com a auréola nos braços da Virgem Maria. Emerenc
nada via nem ouvia, ela passeava com o cachorro no hall de entrada, com sua
voz rascante cantarolava alguma canção, ela festejava o nascimento de Cristo
com uma falta de jeito sentimental vesga e comovente, como uma absurda
Madona, caricatura titubeante da maternidade embalando um cachorro preto
apertado contra o colo. Deus sabe até quando ela o ninaria se o vizinho não
tivesse tocado a campainha procurando por ela, ela precisava ir para casa
imediatamente, um cano havia estourado, era preciso fazer alguma coisa, o
senhor Brodarics já telefonara para o encanador, mas ela precisa ir correndo
fechar o registro central. Com expressão assassina pôs o cachorro nos meus
braços, foi para casa escoar a água e fechar o registro, mas, a cada quinze
minutos, voltava para ver como estava o cachorro. Ele já estava nas mãos do
veterinário, um amigo nosso, que deixou de lado suas comemorações de Natal
atendendo nossa súplica, Emerenc ouvia desconfiada o seu diagnóstico, ela
considerava todos os médicos burros e desinformados, não os suportava, não
acreditava nos remédios nem na eficácia das vacinas, ela alegava que os
médicos só faziam isso para ganhar dinheiro e que espalhavam lendas sobre
raposas e gatos com raiva para aumentar sua renda.
A luta para manter o cachorro vivo durou semanas, a velha escondia os
rastros de diarreia sem nada comentar, se eu não estava em casa ela mesma
dava a medicação ao animal apesar de suas convicções, o segurava para que lhe
dessem as injeções de antibiótico, enquanto meu marido e eu o oferecíamos a
todos, mas ninguém queria ficar com ele. Nós o chamávamos por um lindo
nome francês, que Emerenc jamais pronunciou, nem o cachorro atendia a ele,
enquanto isso ele crescia a cada dia, mostrando ser uma mistura de várias
raças, e começou a exibir sua simpatia e boa índole típica de vira-lata, enquanto
sarava, e finalmente se recuperou por completo. Ele se revelou muito mais
inteligente que os cachorros de raça de nossos amigos. Não era bonito, mas
composto de características muito diferentes entre si, e quem o via, depois de
cruzar a chama incomum de seus olhos escuros, percebia que sua inteligência
quase se igualava a de um ser humano. Antes de termos de admitir que
ninguém o queria, já o amávamos. Compramos tudo o que era preciso, uma
cesta para dormir, que ele comeu em algumas semanas, espalhando seus
pedaços pela casa toda, e desdenhando qualquer cobertor ou almofada, ele
dormia em frente à porta encolhido em seu próprio pelo cada vez mais macio
e enrolado. Ele rapidamente aprendeu o vocabulário essencial, se tornou um
membro da família que participava de tudo: uma personalidade. Meu marido o
tolerava, até fazia um carinho quando ele se mostrava especialmente esperto
ou engraçado, eu gostava dele, Emerenc o adorava.
As lembranças da travessa de comadre e do cálice de vinho quente e as
ideias associadas a elas ainda estavam frescas na memória. Como são dignas de
respeito essas pessoas que amam animais, mas que, sem um suspiro, um gesto,
permitiram que fossem para longe os vagões de gado lacrados, sobre os quais
gente de má índole espalhava rumores de que transportavam pessoas! Eu
observava com ironia a paixão de Emerenc por animais, ela contava como eles,
patos, gansos, galinhas se apegavam a ela, é claro, não era fácil agarrá-los e
cortar sua garganta quando ela queria cozinhar um de seus protegidos, que ela
tinha domesticado a tal ponto que em poucos dias vinha comer de sua mão, ou
que se sentava confiantemente ao seu lado no pequeno sofá. Enquanto achei
que o apego de Emerenc pelo cachorro suscitava seus sentimentos, isso me
divertiu, mas, no dia em que me dei conta de que ela era sua verdadeira dona,
isso me deixou furiosa. O cachorro tratava cada um de nós de um modo
diferente, com três abordagens, comigo ficava à vontade, diante de meu
marido, era calmo, demonstrava boas maneiras, quando a velha chegava, ele
corria para a fresta da porta e a cumprimentava chorando de alegria. Emerenc
dava longas explicações a ele, com voz firme, articulando as sílabas com
clareza, como se conversasse com uma criança aprendendo a falar, nem fazia
segredo disso, apenas repetia sempre a lição, como se estivesse recitando, e não
estava interessada em saber o que pensávamos disso:
– Com a sua dona você faz o que quiser, pode pular em cima dela, lamber
seu rosto, suas mãos, pode dormir ao lado dela no sofá, sua dona deixa isso
tudo porque gosta de você. O patrão é silencioso como água parada, nunca se
sabe o que há no fundo, nunca remexa a água, meu cão, não irrite o patrão,
senão você será expulso daqui, você tem um bom lugar aqui, enquanto houver
lugar para um cachorro.
Com relação a ela própria, não dava instruções, mesmo assim, o animal
entendia tudo o que ela queria sem que ela precisasse dizer e já lhe dera até um
nome: Viola. Era um macho, mas isso não influenciou Emerenc. De vez em
quando, ela não ensinava, adestrava:
– Senta, Viola. Enquanto você não sentar, não ganha açúcar. Senta! Senta!
Quando vi pela primeira vez como ela o recompensava, chamei sua atenção
com certa rispidez, o veterinário disse que é proibido dar açúcar ao cachorro.
“O veterinário é burro”, ela respondeu, dando um apertão firme nas costas do
animal. “Senta, Viola. Se sentar, ganha uma coisa gostosa, um doce. Vai ganhar
açúcar. Senta Viola, senta”. E Viola sentava, primeiro por açúcar, depois por
nada, por reflexo e por ouvir a palavra com a qual fora adestrado. De vez em
quando, a velha pedia o cachorro emprestado, dizia que ficava fora de casa o
dia todo, que ele poderia vigiar sua casa, enquanto ela varria a neve. Meu
marido permitiu que o levasse, pelo menos durante esse tempo não teria que
suportar seus pulos e latidos, eu perguntei se ela não temia pelo gato, sobre o
qual ouvi falar, Emerenc respondeu que não, que iria ensiná-lo a gostar dos
outros animais, a não machucá-los. Viola era capaz de aprender tudo. Se o
cachorro faz alguma besteira, apesar de minha proibição e de sua adoração,
batia forte no animal. Ao longo dos seus catorze anos de vida, nunca bati em
Viola, mas mesmo assim, sua dona era Emerenc.
Eu bem que gostaria de ver o que fazia o animal diante das raras pessoas
que a velha deixa se aproximar de seus domínios, mas a proibição de entrar
continuava em vigor. Eu sabia que ele de fato se encontrara com um gato lá
dentro, porque voltou com pulgas, então também tínhamos as pulgas para
cuidar. O primeiro encontro deve ter sido agitado, Viola voltou para casa com
uma ferida no focinho, um profundo arranhão na orelha, a julgar pelo seu
humor, houve uma batalha, na qual ele visivelmente levara uma surra,
Emerenc recorrera a meios drásticos de fazê-lo entender que não devia
encostar no gato. Ele não parecia tomar o episódio como trágico, voltou para
casa com a feição entristecida pressionada contra o joelho de Emerenc,
acompanhando os seus passos. Em seguida, não houve mais problemas,
porque, quando eu o levava para passear, percebia seu comportamento na rua,
olhava os gatos com ar alegre, sem raiva ou sobressalto, e, se fugiam dele, se
esgueirando por muros e arbustos, visivelmente não entendia por que fugiam
dele se não tinha nenhuma má intenção. Durante todo o inverno vigiou a casa
de Emerenc, eu só o proibi de voltar lá quando, num domingo à noite, ele
voltou bêbado para casa.
Não acreditei no que estava vendo quando ele entrou, cambaleante, a
barriga parecia um barril, respirava com dificuldade e o branco dos olhos
aparecia de tanto em tanto. Ele mal ficava em pé, caía de lado, eu me agachei
ao seu lado para examiná-lo, Viola soluçava e cheirava a cerveja.
– Esse cachorro está bêbado, Emerenc – eu disse aflita.
– Bebemos um pouco – respondeu com descaso. – Não vai morrer por
causa disso, ele estava com sede, ele gostou.
– A senhora enlouqueceu – eu disse, me levantando. – E o cachorro não irá
mais à sua casa. Acabou. Não salvamos a vida dele para a senhora matá-lo
tornando-o alcóolatra.
– Porque é isso que vai matá-lo, esse tantinho de cerveja – respondeu
Emerenc com surpreendente amargura –, isso mesmo, o pato assado, que
dividi com ele, a cerveja que bebemos, que ele me suplicou, porque ele me
pediu, o que eu podia fazer, se ele já sabe dizer tudo que quer, me implorou a
comida, a bebida, esse cachorro não é como os outros. Isso vai matá-lo, é
claro, um bom almoço comigo, não morrer de fome como na casa de vocês,
onde não se pode dar a ele nada além da sua dieta em horas definidas, nunca
na sala ou na mão de alguém, mas isso que é bom, comer da sua mão e não de
uma tigela. Sou eu que vou matar ele, eu que o educo, que converso com ele,
que ensino tudo que é certo! – ela falava com toda seriedade, como uma
pedagoga ofendida em seus sentimentos mais profundos. – Talvez tenham
sido vocês que o ensinaram a sentar, a levantar, a correr, a trazer a bola de
volta, a agradecer, vocês que vivem escondidos nesta casa como duas estátuas,
que não falam um com o outro, cada um no seu quarto escrevendo em sua
máquina. Pois bem, fique com o seu Viola, vamos ver até onde vão chegar.
Depois dessa declaração, pois sempre que tinha algo importante a dizer ela
não falava, declarava, Emerenc virou as costas e saiu. Viola, enroscado em si
mesmo no chão, roncava, estava tão bêbado que nem percebeu que havia sido
abandonado.
A narrativa de Sutu era tão confusa que precisei fazê-la repetir até entender:
portanto, Emerenc vivia com alguém durante a guerra e mesmo antes também.
Então, no início não eram apenas ela e um gato, havia um sublocatário, ou seja
lá o que fosse, e em seu círculo estava um tal de senhor Szloka, que não
conseguia nem fugir nem cuidar de si mesmo, vivia completamente
abandonado por causa de um grave problema no coração, que não permitia
sequer aceitar o trabalho de fiscal de defesa aérea, e que de repente morreu
brutalmente, em um momento bastante inconveniente. Eram os tempos
turbulentos do início do século, Emerenc bateu em vão de porta em porta
para que alguém levasse embora o morto, o defunto que ficou em seus braços,
começava a festa nacional, ninguém cuidava de mais nada, no fim foi ela que
precisou enterrar o pobre coitado. Emerenc sepultou, então, o senhor Szloka
no jardim, em troca da sua bicicleta, que em seguida sumiu, inclusive,
provavelmente levada pelo companheiro dela, pois ele também desapareceu,
mas Sutu não sabe para onde. Emerenc enterrou o senhor Szloka sob o
canteiro das dálias, e lá ficou até virar pó, quando, no verão de 46, a prefeitura
decidiu enfim exumá-lo. Até lá os moradores do condomínio foram mudando
várias vezes, ela vira desfilar todas as nacionalidades, Emerenc lavara roupa
para os alemães e depois para os russos. Depois o mundo voltou ao normal,
voltou-se a viver em paz. Na verdade, as denúncias contra Emerenc não se
limitavam a histórias políticas ou ao envenenamento de pombos, ela também
foi acusada de violação de sepultura depois de enterrar o gato enforcado no
túmulo do senhor Szloka, mas quando tentou explicar ao tenente-coronel que
aquele gato era sua única família, ele respondeu que eles iam ver só, aqueles
moradores que complicavam o trabalho da polícia com esse tipo de coisa, ele
os mandaria fazer trabalho comunitário, limpar o Vérmezö, onde há pelo
menos tantos cavalos mortos quanto gente, eles que separassem os restos
mortais de cada espécie e enterrassem as pessoas em solo consagrado e os
cavalos onde houvesse lugar. Eles não tinham nada melhor a fazer, num
momento em que o país estava se esforçando para se reerguer depois da
derrota? Que sorte a deles! Se continuassem com esse assunto do gato ele
também começaria a investigar quem é o lixo humano que, por não tolerar o
gato de Emerenc Szeredás, elimina o animal como um bom fascista,
enforcando-o, e em seguida pendurando-o na maçaneta da porta, em vez de se
entender com a proprietária. Também havia leis contra a tortura de animais.
Um dia Emerenc não veio levar o cachorro para passear e também não a vi o
dia inteiro, sem nenhum motivo aparente. Era outono, ainda não havia sinal de
neve, mas ela não veio, chovia uma chuvinha fina, preguiçosa, eu passeei com
o cachorro. Viola tentou encontrá-la de manhã em sua casa, mas o faro lhe
disse que ela não estava atrás da porta trancada, então visitamos uma a uma as
casas conhecidas, o cachorro me conduziu até a feira, mas sua postura
desanimada indicava que ela também não estava ali, talvez nem mesmo no
bairro, em nenhum lugar que Viola conhecia. O animal deitou enrolado, limpei
a casa, a campainha tocava com frequência, os outros patrões de Emerenc
sempre procuravam por ela aqui quando não aparecia, os conhecidos estavam
ficando preocupados com o que teria acontecido, ela não varrera nem mesmo
as folhas da calçada, o lixo não havia sido tirado, ela não trouxera a roupa
lavada, na noite anterior não cuidara das crianças nem passou roupa. Eu abria
e fechava a porta, sem parar, aos que vinham pedir informações, Viola urrava,
mostrava os dentes, não comeu, ele estava esperando.
O espelho de Murano
Emerenc reapareceu tarde da noite, levou para passear o animal que, aliviado,
emitia sons inacreditáveis, depois bateu na porta para me pedir que fosse até a
casa dela, tinha algo a me contar que o patrão não devia ouvir. Poderíamos ter
entrado em qualquer cômodo da minha casa, mas ela insistiu para que eu a
acompanhasse, então fomos os três, ela, eu e Viola, que dançava na nossa
frente, não colocamos a coleira nele, a essa hora não havia mais perigo de
encontrar outros cães na rua. Na entrada da casa, Emerenc indicou para que
eu sentasse à mesa imaculadamente limpa, coberta com uma toalha de plástico,
me sentei. Sempre havia um cheiro forte ali, uma mistura enjoativa de cloro, de
produtos de limpeza com aromatizador de ambiente, o prédio já estava
silencioso, não havia luz acesa em nenhuma janela. Durante o dia não se
percebia, mas agora, só nós três ali, mesmo se ainda não fosse a verdadeira
hora dos fantasmas, de repente comecei a sentir a presença dos habitantes da
casa de Emerenc. Ouvimos um barulho no profundo silêncio, um barulho
macio, Viola encostou no beiral da porta e começou a suspirar; quando
desejava entrar em algum lugar, ele demonstrava com um sinal especial, que
parecia um suspiro humano ou uma profunda e irritante respiração. Era uma
noite estranha de qualquer ângulo que se olhasse, não agradável nem
harmoniosa, mas incômoda, em condições normais raramente fico refletindo
sobre as situações, mas naquele momento me ocorreu que na verdade eu não
sabia nada sobre Emerenc, a não ser sobre suas manias e as respostas evasivas
que sabia dar tão bem.
– Estou para receber uma visita – ela começou a dizer. Ela falava com a voz
irreal, distante, que temos depois de uma anestesia, quando a mente se esforça
para segurar a consciência vacilante. – Como sabe, não deixo ninguém entrar
em minha casa, mas essa pessoa que deve vir, não posso recebê-la aqui, onde a
senhora está. É impossível.
A experiência me havia ensinado a jamais lhe fazer muitas perguntas, senão
se assusta e fala ainda menos. Se ela espera a visita de alguém que não pode
receber aqui fora, mas não pode fazer entrar, certamente não é uma pessoa
qualquer, talvez ela esperasse os dois gêmeos loiros incinerados, que voltariam
como heróis épicos, pois é claro que não estavam mais vivos, ou talvez o
próprio deus, em quem Emerenc não acreditava, porque em vez de roupas de
lã lhe deu um vestido de noite. Sem dúvida era alguém mais importante do que
o filho do seu irmão Józsi ou o tenente-coronel, pois esses ela também recebia
do lado de fora.
– A senhora permitiria que eu recebesse em sua casa? Outra pessoa
comentaria com os vizinhos, mas a senhora, não. Faríamos como se a visita
fosse sua. O patrão trabalha de tarde, e se a senhora lhe pedir, ele concorda
com tudo. A senhora faria isso? Sabe que vou recompensá-la.
– Quer receber uma visita em nossa casa? – disse olhando para ela.
Mas era uma pergunta inútil, Emerenc se explicara de forma exata e precisa.
É claro que era isso que ela queria.
– Tudo que lhe peço é fazer que essa pessoa pense que moro lá também,
com vocês. Levo todo o necessário, xícaras, café, bebidas, a senhora não
precisa providenciar nada, apenas o lugar. Diga que sim, serei muito grata. Até
o patrão voltar, já teremos ido embora. Quarta-feira, às quatro. É possível?
Viola suspirava no beiral, lá fora chuviscava mansamente. A situação do
país já se normalizara havia muito tempo, mesmo se o convidado de Emerenc
fosse o presidente da França, isso não causaria complicações políticas. O
porquê de ela não poder recebê-lo aqui aprofundava só um pouco mais o
mistério que envolvia Emerenc como um xale. Eu dei de ombros, que viesse o
sujeito, só espero não precisar montar guarda, já era de bom tamanho eu
permanecer em casa, pois ela não deseja ficar a sós com ele. A caminho de
casa, me perguntava como iria expor a situação para meu marido, que odeia
mais do que tudo os assuntos obscuros, tudo que não esteja bem explicado,
explícito, seguro, mas em vez de reclamar, ele riu, concordou que havia algo de
bizarro nessa história, e isso atiçou sua imaginação de escritor. Emerenc e sua
visita, que ela recebe em nossa casa! Será que ela quer se casar, será que esse
desconhecido vem em resposta a algum anúncio de jornal e Emerenc, que
jamais abre a porta de sua própria casa, quer encontrar o sujeito em nossa
casa? Que venha, então! Estava quase lamentando não estar presente no dia.
Ele não se preocupava com nos deixar sozinhas com um desconhecido,
porque Viola destruiria em pedacinhos qualquer um que nos fizesse mal. O
cão deu uma boa lambida na sua mão quando ele pronunciou seu nome,
depois virou de costas e ofereceu a barriga: queria receber carinho. Eu não
conseguia me acostumar com a ideia de que Viola entendia tudo.
No dia combinado, Emerenc estava como uma mulher enlouquecida se
controlando com um esforço sobre-humano, e Viola, que absorvia o estado de
humor das pessoas, também não estava normal. A velha trouxera de sua casa
todo tipo de pratos e travessas cobertos com toalhas, de repente me zanguei e
perguntei se aquele banquete precisava ser tão secreto assim, por que ela tinha
que ficar carregando coisas para cima e para baixo como uma contrabandista,
ela não tem lepra, imagino que nem o visitante, podem comer com os nossos
pratos, nossos garfos, ela podia pegar o que quisesse no bufê, usar o belo
serviço de minha mãe, a prataria, ela acha que eu ficaria brava? Ela não
agradeceu, mas observou que nunca esquece nenhum gesto, nem generoso
nem mal-intencionado. Acrescentou que não era uma questão de fazer
segredo, ela apenas não gostaria que a pessoa visse que ela não tinha família,
que morava sozinha, e não desejava ter que explicar por que não abre a porta
de sua casa e por que vivia daquela forma.
Enquanto ela punha a mesa no quarto de minha mãe, senti que havia
chegado o momento de lhe dizer algo para o qual eu me preparava há muito
tempo. Ela arrumava o prato com a carne fria, a salada – ela sabia apresentar
os pratos perfeitamente –, então eu lhe perguntei se ela nunca havia pensado
em falar com algum especialista sobre aquele sintoma, que não podíamos
chamar exatamente de normal, sobre o fato de excluir o mundo do seu lar, ou
seja lá o termo médico para isso, que certamente era curável.
– Um médico? – Emerenc me olhou, enquanto limpava as taças mais
longas de champanhe para as grandes ocasiões. – Eu não estou doente, e não
causo mal a ninguém vivendo do jeito que vivo, além disso a senhora sabe que
não suporto os médicos. Me deixe em paz, não gosto quando tenta me dar
sermão. Se peço alguma coisa e a senhora concorda, que o faça sem me dizer
nada, senão, não adianta me dar.
Eu a deixei lá, entrei no meu quarto, pus um disco, para não ouvir o que
não via. Na verdade, eu já estava realmente contrariada com a visita que
Emerenc receberia em nossa casa. Algum dia ela acabará nos colocando em
algum problema, ela é de fato louca. Se não fosse o cachorro, eu estaria com
medo, afinal, quem ela está trazendo para cá, e por que diabos ela precisa de
taças de champanhe para esse encontro clandestino? Não gosto nem mesmo
dos meus próprios segredos, que dirá os dos outros.
A música que saía do toca-discos encobria tudo, havia dois quartos entre o
meu e o de minha mãe, onde Emerenc pusera a mesa. Tentei ler, tinha
folheado umas cinquenta páginas quando lembrei que ela queria me apresentar
ao desconhecido, mas onde está a visita, e o que estão fazendo em meio a
tanto silêncio, nem Viola se manifesta, será que ele veio? Quase uma hora
havia se passado do horário marcado por Emerenc quando finalmente ouvi
latidos, pensei que prático esperar alguém com uma carne fria em vez de um
prato que precisa aquecer, eu continuava ouvindo música quando de repente a
porta foi aberta e Viola entrou correndo, dançando em volta da cama,
inquieto, e visivelmente tentava me dizer alguma coisa. Isso era muito
estranho, porque se a visita tivesse medo de cachorros, Emerenc a teria
recebido em algum outro lugar, não a teria deixado entrar, o que eles estariam
fazendo lá dentro para que a velha não suporte a presença de Viola? Logo
tudo se esclareceu, porque ela mesma veio atrás do cachorro, seu rosto não
transparecia nada, ela sabia se comportar como uma surda-muda. Viola já
estava ao meu lado, deitado na cama, Emerenc nem mesmo reparou nele.
Disse que a visita não chegara nem viria mais, o faz-tudo correra até lá para
dizer que o hotel havia ligado para avisar que por razões de trabalho, em cima
da hora, a pessoa aguardada não poderia mais vir, nem estava em Budapeste,
se surgir outra oportunidade, mandará avisar em tempo.
Eu perdera inúmeros compromissos oficiais por causa de uma pessoa
esperada que não viera, não achei nada trágico o episódio, fora o fato de
Emerenc ter gastado uma pequena fortuna para nada, mas a velha se retirou
como um tufão, batendo a porta atrás de si, ouvi que ela gritava com o
cachorro que a seguia, de tal modo que levantei para verificar o que estava
acontecendo, afinal o cachorro não tinha culpa de nada. Do quarto de minha
mãe, onde ela tinha posto a mesa para sua visita, vinha um barulho enorme de
objetos sendo jogados, e pela primeira vez na vida fiquei chocada com o
vocabulário de Emerenc, xingamentos vulgares e maldições saíam de sua boca.
Abri a porta, mas parei ali mesmo, no patamar. Ela não fazia nenhum mal ao
cachorro, os xingamentos eram para outra coisa, Viola estava comendo,
sentado à mesa na cadeira de minha mãe, Emerenc colocara a travessa à sua
frente, o cachorro atacava a carne e se deliciava, uma pata apoiada na toalha,
prestes a escorregar até a bandeja de espelho de Murano que eu jamais usara,
nem nas festas mais elegantes, e no centro, o castiçal de prata de cinco braços
balançava para cá e para lá. De tempos em tempos, Viola deixava cair uns
bocados, e os recuperava no espelho manchado de gordura. Acho que jamais,
em toda minha vida, fiquei tão furiosa.
– Fora, Viola! Desce daí! O espelho de minha mãe, a porcelana dela! O que
está acontecendo aqui, Emerenc? A senhora enlouqueceu?
Nunca ouvi Emerenc chorar, nem antes nem depois, até o fim de sua vida,
mas nesse dia ela chorou aos soluços, e eu não sabia o que fazer porque o
cachorro não me obedecia em momentos críticos, a não ser que Emerenc
repetisse a ordem. Agora também, apenas continuava tranquilamente sua
refeição, enquanto Emerenc chorava copiosamente do outro lado da mesa,
Viola dava umas olhadas em sinal de compaixão, mas não conseguia parar de
comer essa delícia. Não posso dizer que Emerenc não lhe ensinara modos à
mesa, ele poderia se apresentar para o público, comia quase perfeitamente,
sentado sobre o traseiro, se apoiando ora com a pata esquerda, ora com a
direita, como um ser humano, ele apenas não se servira no prato, comia direto
da travessa e, em vez de usar as patas, usava a boca. O espetáculo era tão
absurdo e me irritara de tal maneira que simplesmente não sabia o que dizer.
Nosso cachorro, que não dá atenção às minhas ordens, comendo no quarto de
minha mãe, à mesa de minha mãe, ricamente arrumada como para uma festa,
espiando de canto de olho o bufê, onde reina um enorme bolo e perguntando
como poderia pegá-lo, e enquanto isso Emerenc chora sem parar. Ela não
deve ter gasto pouco, embora o prato estivesse quase vazio, pelas sobras se
percebia a estima pelo convidado que não viera. A raiva crescia em mim, eu
estava prestes a explodir quando Emerenc de repente limpou o rosto com as
costas das mãos, e depois, como se estivesse acordando brutalmente de uma
anestesia, se jogou sobre o cachorro, que continuava comendo feliz, e bateu
nele a torto e a direito, com o cabo do talher de servir. Chamou-o de todos os
nomes, de ingrato, infiel, mentiroso sem-vergonha, capitalista sem coração,
Viola pulou da cadeira gemendo e deitou sobre o tapete para receber a
punição incompreensível, Viola jamais fugia quando apanhava de Emerenc,
nem nunca tentava se defender. Às vezes a gente sonha com cenas de horror,
com elementos irreais, como aquela que se dava ali. Viola todo encolhido
tremia com a surra, o último bocado de comida ele não conseguira engolir,
caiu de sua boca sobre o tapete preferido de minha mãe. Pensei que ela
espetaria o cachorro com o garfo, foi tudo tão rápido, fiquei tão assustada que
comecei a gritar, mas, logo em seguida, a velha se agachou ao lado do
cachorro, levantou sua cabeça e beijou-o entre as orelhas, Viola gemeu de
alívio e lambeu a mão que o surrara.
Ah, não, isso já é demais, ela que encontre outra plateia para os seus
ataques! Virei as costas, pedi que ela catasse os escombros do quarto de minha
mãe e, se não era pedir demais, para os próximos eventos de sua vida pessoal,
que não nos escolhesse como coadjuvantes nem a nossa casa como palco. Não
exatamente nesses termos, mas disse algo assim, de modo que ela entendesse.
Ela entendeu. Do meu quarto, eu a ouvia para lá e para cá, dentro de casa, o
que estava fazendo eu não sabia, porém mais tarde descobri, os doces, o
champanhe com o qual esperava a visita e também outra travessa com carne,
intacta, estavam na geladeira, aparentemente deixados para nós; as sobras do
prato em que Viola comera, ela despejou na tigela do cachorro. O animal nem
se mexia, finalmente havia silêncio ao meu redor, pensei até que ela já
houvesse saído, mas descobri que ela estava se arrumando e colocando a
coleira em Viola. Sempre que alguma coisa atormentava o cachorro, ela o
levava para um longo passeio, mesmo se tivesse que adiar algum trabalho,
como passar roupa, ou preparar a massa para algum assado. Quando ela
entrou para avisar que eles iam dar uma volta em direção ao parque, já era a
mesma pessoa de sempre, ficou parada à porta, com o cachorro preso, e pediu
desculpas. Nunca vi ninguém pedir perdão com tanta dignidade, sem culpa
nem servidão, depois sempre ficava com a sensação de que ela estava fazendo
troça de mim, como se fosse eu a cometer um erro, e não ela. É claro que ela
não deu nenhuma explicação, e lá se foram eles.
Quando à noite contei ao meu marido como fora a tarde de Emerenc, ele
fez pouco caso. Disse que era bem feito para mim, com essa minha mania de
levar tudo e todos a sério, sempre me misturando na vida dos outros. Ela que
levasse o misterioso convidado para o seu próprio clube da varanda, esse
eminente personagem, tão superior ao tenente-coronel, para quem apenas o
quarto de minha mãe estaria à altura. E não adiantou ela preparar montanhas
de comida, o convidado não viera. Eu que levasse a comida de volta para ela,
tudo que deixara na geladeira, ele não queria comer os restos de quem não
veio, ele não é Viola.
Eu sentia que ele ao mesmo tempo tinha e não tinha razão, mas é claro que
fiz como me pediu, pus na bandeja toda a comida que aguentava carregar. Eu
também estava zangada com a velha, mas o que sentia de fato é que o
acontecido naquela tarde, fosse o que fosse, era o terror total aos olhos de
Emerenc, eu a ouvi chorar intensamente e, nas horas seguintes desde que ela
se fora, esfriei a cabeça a tal ponto que fui tomada por dúvidas: era muito mais
grave do que nossas feridas de amor próprio. O que eu vi, Viola comendo
sentado, talvez fosse apenas aparência idílica, e o banquete de Emerenc devia
representar outro sentimento mitológico, porque, pensando bem, quem estava
à mesa não eram um valente cão recompensado e sua dona, mas sim dois
convidados de um terrível banquete na mitologia grega, e a carne, que o animal
abocanhava e parecia um assado, não era comida, mas uma porção invisível de
entranhas e vísceras, uma espécie de sacrifício humano, como se Emerenc,
com suas memórias e boas intenções, alimentasse o cachorro com a pessoa
que não viera naquela tarde e se contentara em mandar um recado, e com isso
feriu Emerenc em seu ponto mais sensível, sobre o qual jamais falava com
ninguém. Viola fora o insuspeito Jasão, sob o lenço de Medeia/Emerenc ardia
a brasa do inferno. Eu não estava feliz em lhe devolver a comida, embora
também não me agradasse ser presenteada com sobras. Eu também sou do
campo, e minha sensibilidade de pessoa do campo me dizia que iria ofendê-la,
mas eu não tinha outra maneira melhor de fazê-la entender que ela realmente
ultrapassara todos os limites.
A bandeja era pesada, mal consegui abrir o portão, as pessoas me olharam
enquanto eu atravessava a rua. Não se via Emerenc em lugar algum, mas pela
sua porta trancada dava para ouvi-la se movimentando sem precaução, o que
não era habitual, ela nitidamente se entretinha com o gato, pois também
conversava com Viola o tempo todo. Eu gritei a ela que infelizmente não
poderia ficar com o seu banquete, que estava deixando do lado de fora em
cima da mesa, ela poderia pegar depois. Ela se espremeu por uma pequena
abertura da porta, para que o gato não saísse e eu não enxergasse lá dentro, ela
se esgueirou para fora, já estava vestida com sua roupa de todos os dias, tirara
a roupa de festa. Não disse uma única palavra, foi até a pequena dispensa,
trouxe uma panela bem grande e jogou tudo lá dentro, o bolo, a carne, a
salada, então levou até o banheiro e a ouvi jogar no vaso e dar descarga. Viola
pulava freneticamente, mas ela não deu nada a ele, nem o deixou chegar perto,
como se nem o conhecesse, deu até um pontapé em sua direção. Naquele
momento fiquei com medo de Emerenc de novo, medo de verdade, segurava
com força a coleira de Viola, mas sabia que, se ela me agredisse em um
inesperado ataque de fúria, não é a mim que o animal protegeria, e sim a ela.
Emerenc acabou também com as bebidas, pegava as garrafas pelo gargalo e
batia-as contra o batente da porta, o champanhe estourava, o cachorro
começou a uivar de susto, Emerenc jogou as garrafas na lata de lixo, lavou o
chão molhado de vinho e champanhe, com aquele cheiro parecia que
estávamos em uma taverna. Sutu, Adélka e Polett, que chegaram por acaso
nesse momento, viraram as costas assim que nos viram, Emerenc tingindo o
piso de vinho, o cachorro uivando, eu ali parada, como uma estátua de
madeira, nós éramos um espetáculo incompreensível que não inspirava
confiança, era melhor ficar bem longe, o que elas fizeram correndo.
A essa altura, eu tive certeza de que ocorrera de tarde, na mesa de minha
mãe, um assassinato, Emerenc usou o banquete para, simbolicamente, acertar
as contas com o convidado. Alguns anos mais tarde, conheci a vítima, uma
jovem bonita e esbelta caminhava aos tropeços ao meu lado no tumulto de
uma procissão de Dia dos Mortos, não poderia ter escolhido pior ocasião para
resolver negócios em Budapeste ou ir ao cemitério, mas mesmo assim poderia
ter feito coisas mais interessantes do que ir procurar o lugar de descanso de
Emerenc. Ela pôs as flores que trouxera no túmulo de conto de fadas sem
suspeitar que não serviriam para nada, aquelas rosas de cabo longo, na
embalagem de plástico, seriam roubadas até o final do dia. Ela expressou o
quanto lamentava não ter podido vir quando prometera, pois então ainda
poderia ter visto Emerenc, mas ela é uma mulher de negócios, ela é quem
dirige a fábrica desde que seu pai e seu tio, que também vivia no exterior, se
aposentaram, e naquela ocasião coincidiu de ter que vir a Budapeste para
fechar um negócio, mas ele foi adiado, e não haveria mais sentido para a vinda,
então ela preferiu esperar uma nova ocasião para conciliar os negócios e a
visita a Emerenc. Afinal, Nova York não fica a um pulo daqui.
Ela ficou conosco para o jantar, ou seja, o que encontrei na geladeira, onde
estavam a mesa de festa de Emerenc, as velas refletidas no espelho de
Murano? Contei a ela como a velha reagira mal à visita cancelada, ela se
surpreendeu, não entendeu como ficar tão aborrecida com uma mudança de
data, coisas assim acontecem o tempo todo no mundo dos negócios. Além
disso, percebi que no cemitério um vento úmido e gelado soprava com
intensidade sobre nós quando nos aproximamos do túmulo, como se a velha
não quisesse receber a luz da vela acesa por ela, o vento também recrudesceu
quando a jovem encostou no túmulo, agitando os galhos que derrubaram
respingos em seu pescoço, e por mais que ela reacendesse as velas, era como se
Emerenc as soprasse de volta em seu rosto com um frio invernal. E tem mais,
desde sua morte nos acontecia de sentir que ela se virava em nossa direção e
nos mostrava a língua em nossa consciência culpada ou em nossas tentativas
de reconciliação: um cristal ainda desconhecido dos seus milhões de segredos
cintilando em nossa direção.
O mais terrível é que se Emerenc pudesse escutá-la, talvez tivesse
entendido e aceitado que sua visita não queria nem magoá-la nem ofendê-la,
que não era uma recém-nascida chegada à idade adulta fazendo pouco caso de
seus preparativos febris, mas um bebê que se tornou uma mulher de negócios
tentando conciliar trabalho e vida pessoal, que foi capaz de entender com
precisão o sentimento de abandono que pode ter causado em Emerenc
naquele tempo e que sabia o quanto ela e sua família deviam à sua antiga
empregada. Sem nenhuma lembrança que a levasse às lágrimas, consumiu
nossa comida de regime, lamentou não ter reencontrado a velha, na verdade
ela a teria visto pela primeira vez, pois ela era muito pequena para se lembrar
de seu rosto, apesar do afeto que Emerenc nutria por ela. Fiquei pensando no
que teria dito essa pessoa encantadora se soubesse como fora morta
simbolicamente por aquela mulher, cega de ódio pela rejeição ao seu amor, que
momentaneamente perdeu a razão e jogou ao cão a comida, ou seja, a
menininha que antes salvara, mas que se revelou indigna: coma!
Tudo isso ainda estava longe naquela noite, horrivelmente distante, e, voltando
da casa de Emerenc, o que eu sentia, quando cheguei em casa, é que o que eu
fizera, apesar de tudo, não estava certo, era ofensivo. Eu não deveria ter
permitido que Emerenc convidasse à nossa casa uma desconhecida, eu não
deveria tê-la ajudado a criar a ilusão de que mora com uma família e não
sozinha, permitindo que se aprofundasse o mistério que a cerca, mas, já que fiz
isso, depois não deveria ter jogado em sua cara aquilo que ela menos queria ver
e com o que nos presenteou. Como somos tomados por uma arrogância tão
estúpida, às vezes! Talvez ela tivesse superado melhor sua incompreensível
crise se ficasse com a sensação de que não tinha preparado à toa pratos raros
de ver, mesmo nos restaurantes de hotéis elegantes. Eu não deveria ter levado
a comida de volta. Alguém havia magoado a velha naquele dia, com ou sem
motivo, não sei, é possível até que haja uma explicação simples e lógica, mas,
enfim, Emerenc não vê as coisas como eu, ela é capaz de não entender nada
da mesma forma como consegue captar num segundo o que ninguém
consegue entender. Por que a machuquei, eu também? Mesmo Viola, que ela
surrou tanto, não ficou zangado com ela, e no entanto esse cachorro sabe de
tudo, ele sente as coisas por vias misteriosas. Fomos dormir, eu estava de mau
humor, meu marido já estava dormindo havia muito tempo, eu não conseguia
nem dormir nem sossegar. Eu me vesti de novo, Viola, a dois cômodos para
lá, no pé da cama de minha mãe, levantou a orelha quando ouviu minha
movimentação mas não chorou, só arranhou a porta de leve, como se não
quisesse acordar meu marido. Está bem, vamos nós dois, meu cão, verdade
que é pertinho, mas não gosto de caminhar sozinha de noite.
Lá fomos nós, como os heróis da minha infância, o jovem pai generoso do
terceiro canto de A Eneida, talvez esse tenha sido o momento em nossa
relação e na vida em que algo se definiu. Ibant obscuri sola sub nocte per umbram
perque domos Ditis vacuas. Dávamos passinhos pequenos no escuro, Viola e eu, o
portão estava trancado, toquei a campainha de Emerenc, tive que esperar que
ela aparecesse, já passava bastante de meia-noite, mas vi que a luz da frente
ainda estava acesa, e Emerenc não se retira sem apagar a luz. Ela apareceu em
seguida, ficamos em pé, cada uma de um lado da grade, Viola resfolegava e
pôs as patas sobre a soleira de pedra.
– O patrão está doente? – perguntou Emerenc, num tom neutro.
Ela falava baixo, como convinha. O prédio estava adormecido.
– Não. Eu gostaria de entrar.
Ela me deixou entrar, trancou o portão de novo, ela veio lá de dentro, mas a
porta fora com certeza cuidadosamente fechada. Viola deitou no chão ao pé
da porta e deu uma fungada no vão, como se quisesse chamar o gato. Eu
queria dizer algo bonito em sinal de reconciliação, que não havia entendido o
que acontecera antes ou naquele dia, mas que sentia muito por não ter sido
mais hábil quando ela estava fora de si e, mesmo sem saber por qual motivo
ela ficara tão transtornada, queria demonstrar toda minha simpatia. Fiquei
muda, só sei dizer as coisas por escrito, na vida real sempre tenho dificuldade
em encontrar as palavras.
– Estou com fome – disse eu afinal. – Por acaso não teria sobrado alguma
comida?
Quando o tempo vira de repente, o sol sai de trás das nuvens cinzentas,
mas nunca de uma maneira assim tão inesperada, tão contrária a qualquer
lógica. Ela sorriu, e apenas nesse momento me dei conta de como ela
raramente sorri. Primeiro sumiu no lavabo, ouvi a água correndo, Emerenc
jamais tocava nos alimentos sem lavar as mãos, depois abriu a porta da
dispensa. Conforme descobri, ela guardava ali não apenas comida, mas
também o enxoval de mesa. Viola queria ir atrás dela, mas segurei a coleira, a
velha lhe deu uma ordem para ficar quieto, então ele deitou, Emerenc voltou
com uma toalha amarela adamascada, depois trouxe um prato, uma faca, e a
carne, não um pedaço do que restara daquela carne que serviria à visita, mas
uma costelinha marinada com inúmeras especiarias. O seu sabor era
absolutamente delicioso, comi com gosto. Viola ganhou o osso. Ela também
me ofereceu vinho, não de garrafa, mas direto de um garrafão, eu bebi, apesar
de não gostar de álcool, mas naquela noite eu precisava ir até o fim, ou minha
vinda teria sido em vão. Eu não sabia quem eu representava naquela mesa, mas
é claro que fazia o papel de alguém que tinha sido esperado em vão, para quem
tinha sido todo aquele trabalho, então me esforcei para dar corpo a um
desconhecido, sobre o qual ainda não sabia nada naquele momento. Nós duas
afagávamos as orelhas de Viola e brincávamos com suas patas, depois, quando
quis me retirar, Emerenc me acompanhou até em casa, como se estivesse
partindo para Köbánya a pé, de roupão e pantufas. Conversamos apenas sobre
o cachorro, como se o assunto mais importante da noite fosse seu
comportamento, suas faculdades intelectuais, seu corpo esguio, nenhuma de
nós mencionou a visita. Quando chegamos em frente de casa, Emerenc me
passou a coleira e esperou que eu entrasse no jardim; depois, devagar,
recitando as palavras, como se fizesse um juramento, sussurrou para mim
nessa noite virgiliana, onde o real e o irreal se misturaram, que ela jamais
esqueceria o que eu acabara de fazer.
Meu marido não acordou quando deitei ao seu lado, mas Viola estava tão
excitado que quase não consegui mandá-lo de volta para seu lugar. Depois, ele
também adormeceu, não no quarto de minha mãe, mas na porta do banheiro,
percebi quando finalmente sossegou, porque roncava como um homem.
Bota-fora
Penso que foi a partir desse momento que Emerenc de fato começou a me
amar, sem reservas, com seriedade, como se ela tivesse se dado conta de que o
afeto é um compromisso, uma paixão cheia de riscos e perigos. Naquele ano,
no dia das mães, ela apareceu em nosso quarto logo de manhã cedo, meu
marido acordou com dificuldade por causa dos remédios, eu acordei de
imediato e arregalei os olhos ao ver, na luz da manhã que invadiu o quarto,
Emerenc, em grande estilo, conduzindo Viola pela coleira até a cama. Na
cabeça do cachorro, um velho chapéu de feltro preto e, espetadas em sua fita,
rosas recém-cortadas, e a coleira envolvida por uma guirlanda de flores.
Daquele dia em diante, ela aparecia em cada dia das mães, cedinho, com o
cachorro, cantando uma velha canção em homenagem às mães, em nome de
Viola:
Viola parecia um louco, mais tarde percebeu que não adiantava fazer nada,
teria que se contentar conosco, dali em diante só ficava deitado, como se
tivesse sido envenenado, e como ele entendeu o significado do que o sobrinho
dissera era mais um de seus mistérios. Meu marido passou a analisar a situação,
afinal o que acontecera não era aceitável, Emerenc não podia se ofender com
o fato de desejarmos nos ver rodeados por objetos do nosso próprio gosto,
mas se era por isso que estava criando problemas, nós poderíamos viver sem
ela. Eu me sentia cansada, tão cansada, que nem parecia uma sensação real,
embora eu não tivesse nem direito nem razão para estar assim, já que eu não
tinha feito nada de cansativo, o almoço estava como sempre na geladeira, não
consegui escrever nem uma linha, é claro, mas a inspiração não depende de um
estado de graça, mesmo nos dias em que o clima está mais relaxado?
Evidentemente, foram os acontecimentos que me exauriram, a serenidade nos
mantém em forma, as contrariedades nos desgastam. Agora eu estava infeliz,
mas não era porque precisava procurar outra pessoa, o que eu tinha de fazer
era muito mais simples, eu precisava finalmente admitir para mim mesma: não
era apenas Emerenc que sentia ter um vínculo forte comigo, além de uma
simpatia normal, mas eu também gostava de Emerenc, eu, que qualquer
pessoa perspicaz já deveria ter percebido havia muito tempo, escondia por trás
de minha gentileza constante e indefectível o pavor de não conseguir ser mais
do que gentil, o número de pessoas de quem sou realmente próxima dava para
contar nos dedos da mão. Depois da morte de minha mãe, Emerenc foi a
única que permiti se aproximar de mim, me dava conta disso agora que a perdi
por causa de um cão de orelha lascada.
Foi uma noite difícil, embora meu marido tivesse feito o possível para
torná-la agradável para mim, ele levou Viola para passear, o que, eu saiba, era
uma tortura para ele, Viola o puxava, não obedecia, sempre fazia birra quando
precisava caminhar com ele. Até se sentou comigo para ver TV, embora
gostasse apenas de ouvir rádio, ele tentou realmente de tudo para me ajudar,
nenhum de nós tocou no nome de Emerenc, mas nosso silêncio ainda falava
sobre ela. Meu marido precisava de triunfos, de qualquer tipo, isso o
rejuvenescia, o reconfortava, melhorava até mesmo sua saúde, para ele o dia
em que Emerenc declarou guerra contra nós foi um dia de triunfo, na sua
atitude quase dava para ver a coroa de louros sobre sua cabeça. Viola se retirou
para dormir sem se despedir de ninguém, sua cauda caída demonstrava sua
tristeza, sua grande tristeza. Nós nos sentamos na varanda, o cachorro foi até
o quarto de minha mãe e desmoronou lá, como um ferido.
Era a segunda noite de bota-fora. Nessa época, o movimento nas ruas é
bastante grande quando a noite cai, costumamos observar os catadores de
nossa varanda, mas o sinal de que havia algo errado com Emerenc era que a
equipe que normalmente trabalhava sob sua direção agora operava sem ela. A
velha tinha fiéis visitantes, admiradores e protegidos, entre eles, alguns que
gozavam de favores especiais, como Sutu, da quitanda da esquina, que fornecia
frutas e legumes para toda a rua, Adélka, a viúva do farmacêutico, e Polett, a
passadeira, uma solteirona ligeiramente corcunda, que, segundo Emerenc,
trabalhara como governanta, mais tarde, como professora de línguas, logo, ela
já viu dias melhores, antes da decadência. Segundo o que Emerenc sabia, os
militares roubaram dela tudo o que tinha, depois da guerra ninguém podia ter
governanta nem professora de línguas, e a família para a qual trabalhara fugiu
para o Oeste, deixando-a para trás sem mesmo pagar o último salário. Era uma
vida desperdiçada a dessa jovem senhora que parecia estar sempre com fome,
os moradores a chamavam de vez em quando para passar roupa, assim ela não
ficava completamente sem ganhar nada, e ela realmente sabia falar francês,
conforme revelava o aumento gradual do vocabulário de Emerenc, em cuja
casa ia regularmente para tomar café: entre as várias qualidades da velha, tinha
a capacidade de empregar perfeitamente palavras estrangeiras, pois jamais
esquecia o que ouvia, mesmo que uma vez só. Nesta noite, apenas Sutu,
Adélka e Polett se moviam entre as sombras, cada uma com sua imensa sacola,
não se via Emerenc em lugar algum, apesar de esta ser a época mais
importante para sua caçada, eu sempre a reconhecia pelos seus movimentos,
mesmo na maior penumbra. Ela se se debruçava sobre os objetos, como uma
Dorotea de Kanizsa contemporânea, revirando os campos de batalha à
procura de algum sinal de vida entre os feridos.
Desta vez não foi Viola quem resolveu o problema de nosso enfrentamento
matinal, com seus recursos primitivos, mas eficientes. Talvez esta tenha sido a
primeira vez que percebi com força total o poder de irradiação de Emerenc: a
velha não deu um único passo em nossa direção, mas de alguma forma, com
seu radar misterioso, ela paralisou o animal. A transmissão de pensamento tem
várias formas de se expressar, essa era a mais extrema: Emerenc adorava Viola
e pretendia reconquistá-lo proibindo-o de se aproximar dela. A vida seguia, aos
trancos e barrancos, eu andava a torto e a direito atrás de alguém para ajudar
em casa, uma tal de Anna totalmente incapaz fez uma aparição de alguns dias,
sua principal atividade se revelou entrar na banheira a cada meia hora de
trabalho, brincando com o sabonete entre gritinhos, depois passeava para lá e
para cá no apartamento nua como veio ao mundo sob o pretexto de se
refrescar. Anna também foi encaminhada a nós pela magia de Emerenc, já que
eu propositalmente não contara a ninguém no bairro que eu estava sem
ajudante, mas ela deve ter ficado sabendo de uma maneira ou de outra. Anna
um belo dia simplesmente apareceu, sem nenhuma referência, eu estava cheia
de trabalho, resolvi experimentar, mas o seu papel de visita não durou mais do
que uma semana, e em princípio nem foi pelas cenas na banheira, mas por
causa de Viola, que rosnava quando a via, assim como rosnava para qualquer
pessoa que se aproximasse do aspirador de pó ou de uma flanela. Emerenc
desapareceu de nossa vida, mas paralisou o mundo todo à nossa volta, se
dissolveu no ar como as grandes figuras épicas, não a encontrávamos mais, ela
conhecia nossa rotina e se organizou para não ser vista quando estávamos ou
poderíamos estar na rua. Quando precisei recusar o terceiro trabalho por falta
de tempo, meu marido, após um jantar criminosamente malsucedido, sem
nenhum tom de drama, disse que aquele cachorro de orelhas lascadas estava
nos saindo definitivamente caro demais, muito mais do que algumas palavras
de reconciliação. Não havia por que negar, sem Emerenc não estávamos
conseguindo nos virar, era preciso voltar a estatuazinha a algum lugar de
honra, quando vierem visitas, a tiramos de lá, ela não pode me impedir de
escrever meus romances. Não conseguiríamos trabalhar, principalmente eu,
enquanto tivéssemos que cuidar da casa, é preciso dar a Emerenc a satisfação
que ela reivindicava.
Não levei Viola comigo a Canossa nem ele quis ir comigo, acho que a
magia da paralisia ainda estava em ação, nem mesmo levantou, apenas me
observou com aquela expressão humana, como se testasse se eu tinha mesmo
a coragem de ir, e, afinal, o que se escondia por trás de minha decisão, eu
queria assegurar a paz necessária para o nosso trabalho ou sentia que devia isso
à dignidade de Emerenc como ser humano? A velha não estava no pátio,
ultimamente nunca estava, primeiro bati na porta, depois fui na lateral da casa
e tentei bater na janela fechada.
– Venha aqui fora, Emerenc, precisamos conversar.
Eu pensei que ela quisesse me fazer esperar, mas abriu logo. Ficou parada
diante da porta, séria, quase triste.
– Veio pedir desculpas? – perguntou com um tom de voz perfeitamente
neutro.
Começamos bem! Eu tinha que escolher minhas palavras com cuidado para
que nós duas ficássemos dentro dos limites da razão.
– Não. Temos gostos diferentes, mas não tem importância, não
pretendíamos magoá-la. Se a senhora deseja, o cachorro de gesso fica em casa.
Não damos conta sem a senhora. A senhora pode voltar?
– A senhora aceita o cachorro de gesso?
Ela não disse em tom de confidência, mas sim como um chefe de Estado
dita suas condições.
– Aceito.
– Onde vai ficar?
– Onde a senhora quiser.
– Até mesmo no escritório do patrão?
– Já disse: onde a senhora quiser.
Nós fomos embora, Viola ainda não aparecera, apenas quando chegamos
na escada da entrada e Emerenc disse o nome dele baixinho, achei que ele
arrebentaria a porta. Emerenc deu boa noite ao meu marido educadamente,
estendeu a mão a ele, como se estivesse sendo contratada pela segunda vez, fez
um afago no ensandecido Viola e olhou em volta. O cachorro de gesso estava
sobre a mesa da cozinha, a porta aberta, com seu primeiro olhar ela deve tê-lo
visto. Olhou para nós, para a estátua, de novo para nós, e seu rosto se acendeu
com um daqueles sorrisos inesquecíveis que ela guarda para ocasiões especiais.
Pegou, limpou a peça, olhou de novo e o jogou no chão. Ninguém disse uma
palavra, nenhum barulho combinaria com aquele momento. Emerenc estava
em pé entre os cacos de gesso como uma princesa.
Vivemos anos serenos, mas também felizes, em Odessa.
Polett
Meu marido e Emerenc se entenderam, mais tarde, para espanto de ambos, até
passaram a se gostar, primeiro porque os dois faziam questão do afeto de
Viola e do meu e não desejavam se livrar desse sentimento, e depois porque
começaram a entender melhor a linguagem um do outro. Meu marido
aprendeu a ler as expressões de Emerenc, e ela passou a achar normal uma
existência que ela não entendia, que julgava até ociosa, quando, por exemplo
não era possível dizer uma palavra durante a metade do dia, porque um de nós
observava os álamos no fundo do jardim, aparentemente sem fazer nada, mas
fingindo estar trabalhando. Acho que gozávamos plenamente a vida, quem
viesse aqui pela primeira vez, vendo Emerenc andando pela cozinha, pensaria
que era uma tia ou madrinha, e eu deixaria estar, era impossível explicar o
caráter e a intensidade de nossa ligação, ou o fato de que embora não
parecesse com nossa mãe, era uma nova mãe para ambos. A velha jamais nos
incomodava com perguntas nem nós a ela, ela só contava o que desejava, mas,
na verdade, falava pouco, como uma verdadeira mãe, cujo passado é
irrelevante quando só se ocupa do futuro dos filhos. Viola, com o passar do
tempo, ficou mais sério, suas exibições diminuíram, sabia abrir a porta, trazia o
jornal ou as pantufas se pedíamos, desejava boas festas e feliz aniversário ao
meu marido. Emerenc determinava a passos calculados a margem de manobra
para cada um de nós, ao patrão ela concedia a maior liberdade, em seguida
vinha Viola, a última era eu. Ela me convocava com frequência para um café
em sua casa se no círculo de suas amigas surgisse uma necessidade,
principalmente Adélka gostava de conversar comigo sobre seus problemas.
Adélka era o tipo de mulher que imediatamente discutia um conselho dado
com duas ou três outras amigas, Emerenc sempre tinha a última palavra. Sutu
e Polett falavam menos, principalmente Polett, que foi ficando cada vez mais
silenciosa, emagrecia bastante também, e saiu de repente de nossa vida.
Sutu correu até nossa casa trazendo a notícia do suicídio, ela fazia suas
compras no mercado, de madrugada, era a primeira na rua, com exceção de
Emerenc. Não poderia ter vindo em pior hora, abri a porta de má vontade,
mas a informação mexeu comigo, fiquei abalada. Nessa época eu também já
conhecia Polett bem, os cafés na casa de Emerenc me aproximaram dela, eu
sentia que todas nós tínhamos alguma participação em sua morte, afinal ela
deve ter demonstrado de alguma forma o que pretendia fazer, mas não
prestamos atenção.
– Como contar a Emerenc? –, perguntou Sutu. – Ainda ontem almoçaram
juntas, Emerenc era a mais próxima de Polett, sabia coisas sobre ela que
ninguém mais sabia, não quero cuidar disso, a senhora precisa contar a ela,
preciso voltar para esperar a polícia, já que tive o azar de descobrir o corpo da
pobre mulher. E, quer saber?, mesmo nessa hora ela foi atenciosa, não
complicou as coisas, desaparecendo e obrigando todas nós a procurá-la, ela
escolheu se enforcar no jardim, na nogueira, nem fez isso em casa para que
não fosse necessário arrombar a porta. O mais engraçado é que antes ela
enfiou seu gorro na cabeça, não queria assustar ninguém, mas mesmo assim
era uma visão horrível vê-la ali pendurada, a cabeça coberta até o pescoço com
aquele gorro que usava em ocasiões especiais, com seus botões de cobre que vi
mil vezes.
Adélka já sabia, ela passou mal com a notícia, mas precisava correr, não
podia deixar a lojinha fechada por tantas horas. Pediu-me que fosse logo até
Emerenc, porque, se a velha não fosse informada a tempo, já sabemos o que
acontece, não é mesmo?, ela era insuportável quando ficava com raiva.
Contar uma novidade a Emerenc? Ela sabia de tudo.
Quando cheguei lá, ela debulhava ervilhas no pátio, seu rosto impassível,
parado como a superfície de um lago, virado para o prato, apenas um pouco
mais pálida que de costume, mas não deve ter tido maçãs de rosto vermelhas
nem quando jovem. Vem por causa de Polett, me perguntou num tom de voz
que poderia usar para perguntar se levei Viola para passear. Ela vira já de
madrugada quando o cachorro sinalizou, ela foi atrás, nós não tínhamos
acordado? Não. Meu marido dormia, eu realmente fiquei com o ouvido atento,
porque Viola fez muito barulho, depois da meia-noite latiu por um tempo, até
fiquei me perguntando quantas vozes diferentes tinha esse cachorro. Viola latia
para a morte, continuou a velha com a mesma voz neutra, então ela decidiu
procurar, caminhar pelas redondezas, em algum lugar talvez uma luz acesa
mostrasse o problema, ela desconfiara da velha senhora Böör, que há várias
semanas caminhava como se já tivessem tirado as medidas de sua cova, mas
não havia luz acesa em lugar algum, então passou a olhar nos jardins, foi
completamente por acaso que encontrou Polett, se não tivesse mantido aberta
a porta de sua casinha nem teria entrado, mas Polett tinha medo naquela
espécie de cabana, nunca dormia com a porta aberta, então logo pensou que
alguma coisa tinha acontecido com ela. A casa estava vazia, acendeu as luzes e
viu que não havia ninguém, a cama estava arrumada, ela voltou para sua busca,
foi então que a viu no jardim, pendurada na árvore, à luz da lua o gorro
marrom na cabeça parecia preto.
Eu não conseguia dizer nada, apenas olhava espantada para Emerenc, que
não só não manifestava tristeza como tratava o acontecimento com uma
indiferença visível.
– Sobre o gorro, não tínhamos falado –, continuou a velha enquanto catava
as ervilhas debulhadas –, mas isso não quer dizer que ela devia usá-lo,
tínhamos combinado apenas sobre o vestido e o enterro, eu dei a ela um
conjunto, ela não tinha preto. Ela estava bem engraçada com aquele gorro
enfiado até o pescoço. Os sapatos caíram, eu não vi. Acharam depois.
Então ela sabia o que Polett estava preparando, mas mesmo assim eu
precisava perguntar. Como não saberia, respondeu Emerenc enquanto rolava
as ervilhas por entre os dedos, avaliando se seria suficiente para todo mundo.
Elas até decidiram juntas que Polett não tomaria veneno. Quando ela
trabalhara com o detetive, que frequentemente cuidava de casos de suicídio, ele
lhe dissera que encontrava a maioria dos que tomaram veneno perto da porta,
como se eles se arrependessem e quisessem sair enquanto sufocavam. O
suicídio por envenenamento é doloroso, a não ser que seja alguém rico, porque
nesse caso tem acesso a outros produtos que os médicos de bairro não podem
receitar. Mas não há nada melhor do que enforcamento, é simples, ela vira
muitos aqui, em Budapeste, quando os Brancos estavam no poder, eram os
Brancos que enforcavam, depois eram os Vermelhos, antes de serem
enforcados, os condenados eram submetidos aos mesmos insultos, eles
balançavam os pés do mesmo jeito, fosse qual fosse a cor pela qual fora
executado. O enforcamento não é ruim, é melhor do que uma bala, porque o
tiro nem sempre é certo, e aí a gente fica olhando quantas vezes miram na
pessoa e, no fim, eles até se aproximam para matar com pancada ou um tiro na
nuca, se não morrer logo. Ela conhece esse tipo de execução também, já viu
bastante.
Em Micenas, diante do túmulo de Agamenon, senti a mesma coisa que
nesta manhã de junho, enquanto Emerenc girava as bolinhas de ervilha entre
seus dedos ossudos, e voltei a mente no tempo, no espaço e na História: não vi
apenas a pequena Emerenc perto do poço, envolta pela roda trágica do pai
precocemente perdido, da sua mãe bela como uma fada, do padrasto morto na
Galícia e dos gêmeos que viraram carvão, vi também a jovem que trabalhava
para um detetive, ou para vários, já que aquele que enforcava Vermelhos não
podia ser o mesmo que prendia os Brancos. Perguntei a Emerenc se ela não
tentara impedir Polett, já que sabia o que lhe passava pela cabeça.
– Nem cogitei – disse Emerenc. – Não quer se sentar? Sente-se, me ajude a
limpar as ervilhas, acho que isso é pouco para quatro. Quem quer ir embora
que vá, para que ficar? Nós lhe garantíamos sua comida, no prédio ninguém a
incomodava, deixavam que morasse naquela cabana de graça, eu oferecia até
companhia para ela, mas não éramos suficientes para ela, Sutu, Adélka e eu,
mas ouvíamos suas divagações com boa vontade, mesmo o que não
entendíamos, porque dizia em francês; na maior parte das vezes sabíamos o
que ela resmungava em língua estrangeira: sua solidão. Quem não é solitário,
me diga a senhora, mesmo quem tem alguém, apenas ainda não descobriu. Um
dia levei um gato para ela, é permitido lá onde ela morava, ela ficou zangada,
disse que não era companhia, então realmente não sei o que lhe seria
conveniente, se nem nós nem o gato éramos bons o bastante. Ele tinha um
olho azul e outro verde e olhava de um jeito que nem precisava miar, a gente
entendia o que ele queria. Mas não era bom o bastante para Polett porque não
era uma pessoa, como se todos não fôssemos animais, apenas menos perfeitos
que eles, pois eles não sabem denunciar nem caluniar, não roubam sem um
bom motivo, pois não podem ir a uma loja, a um restaurante. Pedi que ela
ficasse com o gato, mesmo se ele não fosse suficiente para aliviar sua solidão,
ele estava abandonado, algum miserável o jogou na rua, ele iria morrer sozinho
sem abrigo, era tão pequeno, mas não, não, não, ela precisava de uma pessoa.
Tá bom, então que ela comprasse na feira, porque nessas redondezas não tem
outra coisa, apenas nós e o gato. Mas agora ela não está mais só, ela tem um
compadre, a alça do caixão. Foi Sutu quem mandou a senhora aqui ou aquele
cérebro de galinha da Adélka? Que idiotas aquelas duas, nem perceberam que
Polett estava se preparando para ir embora, ela não disse nada, é verdade, mas
a mim nem precisava dizer, nem para Viola, nós sentíamos que estava prestes a
partir. Não tirei o gorro dela, não vi como ela estava, a senhora podia ver para
mim se teve uma morte tranquila ou não. Eu não vou porque ainda não a
perdoei, por mim, ela podia se enforcar, mas nós três a paparicávamos, Viola
também gostava dela, ouvíamos pacientemente seu chororô, arranjei um
bichinho para ela, ela o recusou, então se mesmo assim queria ir, para que
ficaria? Ela não tinha mais nada a fazer aqui, a barriga lhe doía sempre, não
conseguia mais trabalhar, embora passasse roupa melhor que qualquer uma de
nós, se a senhora visse o que Polett conseguia fazer numa tábua de passar.
Bom, a ervilha está pronta. A senhora vai ou fica? Se encontrar com Sutu, diga
que mandei chamá-la para vir aqui assim que fechar, porque hoje vou fazer as
conservas de cereja para o inverno.
Nos portões de Mecenas, os leões se animaram, seus olhos ganharam vida,
um verde, um azul, e também se puseram a miar os leões de Mecenas. Fui
saindo, cambaleante, rezando para não encontrar Sutu, ou melhor, preparava o
que ia dizer a ela, pois Emerenc certamente não iria poupá-la do que acabara
de me dizer. Eu precisava convencê-la a pelo menos não dizer nada disso à
polícia, o que iriam pensar dela se descobrissem que não só deixou Polett
partir para a morte como ainda deu de bom grado conselhos práticos à infeliz?
Quando finalmente saí, Emerenc já se ocupava das cerejas, carregava um
caldeirão para o pátio, similar ao que fervia os lençóis quando a conheci. Parei.
– Emerenc – disse cuidadosamente. – Não seria melhor combinarem o que
vão dizer à polícia? Sutu é capaz de deixar escapar alguma coisa que seria
melhor não dizer.
– Imagina! – ela disse, com um gesto de negação. – A senhora acha que
alguém vai perder tempo com Polett? Quem se interessaria por uma velha
solteirona que se enforca e que ainda explicou em uma carta o porquê? Acha
que eu não a orientei a escrever uma carta de despedida? Tudo tem suas regras,
a morte também. Combinei tudo com ela, a roupa, a carta, o que infelizmente
não posso garantir é que aqueles porcos não a apalpem na autópsia, nenhum
homem jamais tocou Polett, o primeiro vai ser o legista, e, para ele, no entanto,
o corpo virgem de Polett não será novidade, ele está acostumado com os
cadáveres, eu já trabalhei também para um legista.
O túmulo de Agamenon ficou mais profundo. Ninguém nunca tinha me
falado sobre médico legista.
– As pessoas que não a conhecem nem imaginam o quanto a senhora não bate
bem – continuou Emerenc –, apesar de eu repetir isso para a senhora. A
senhora pensa que a vida é eterna e vale a pena que seja assim, que sempre
haverá alguém para cozinhar, limpar a casa, e uma travessa cheia, e papel para
rabiscar, e um patrão para amá-la, e que viverão para sempre, como em conto
de fadas, e que nunca terá nenhum problema a não ser falarem mal da senhora
nos jornais, o que é uma desgraça terrível, mas então por que escolheu esse
trabalho tão deplorável, que qualquer pessoa que fique zangada pode cobri-la
de lama? Não sei como a senhora ficou famosa, porque não tem muita coisa
na cabeça, não sabe nada sobre as pessoas. Mesmo de Polett, não sabia nada, e
quantas vezes tomou café com ela? Eu não, eu conheço as pessoas.
As cerejas rolavam para dentro do caldeirão. Agora, tudo era mitológico, as
frutas sem o caroço se separavam umas das outras, o suco que começava a se
formar como sangue escorrendo de uma ferida, Emerenc de avental preto,
com o rosto sombreado pelo lenço em forma de capuz na cabeça, a
personificação da calma debruçada em seu caldeirão.
– Eu gostava de Polett. Como a senhora não entende isso? Mas isso não era
suficiente para ela. Sutu também gostava dela, isso também era pouco, até
mesmo Adél, aquela tonta, tinha respeito por ela, nós três gostávamos dela,
nós que vivemos com mais conforto do que ela, porque temos emprego, quer
dizer, Adél recebe uma pensão, e a gente se juntava e dava tudo a ela para que
não faltasse nada quando não ganhava dinheiro, ela tinha comida, tinha como
se esquentar, a gente cuidava bem dela. Mas ela queria outra coisa, ela queria
mais, eu sei lá o quê, ela não queria o animal, embora a comida dele ficaria por
minha conta, então cheguei no limite. Por que choramingava o tempo inteiro?
Quando a gente não consegue ajudar alguém, então está na hora de parar, se
ela estava cansada da vida, ninguém tinha o direito de retê-la. Eu ditei
direitinho para ela uma bela carta para a polícia, e ela escreveu: eu, Polett
Dobri, solteira, por minha livre e espontânea vontade, dou fim à vida por
motivos de saúde, velhice e principalmente de solidão. Deixo meus pertences
às minhas amigas Etelka Vámos, Adél, viúva de András Kúrt, e Emerenc
Szeredás. Ficou claro, não? Eu trouxe o ferro de passar dela ainda de
madrugada, para não brigarmos por isso. Depois disso tudo, o que mais eles
podem perguntar?
Nessa época, eu ainda fazia questão de manter as tradições dos meus tempos
de menina, então acontecia de ir à igreja duas vezes no mesmo dia, nos
feriados mais importantes, como fazia em casa e no internato. Emerenc me
olhava com ironia quando me via saindo, eu fugia do seu caminho, para não
ouvir seu eterno refrão, vai à igreja quem tem tempo, e outras coisas que não
eram verdade, porque eu não tinha tempo para nada, compensava aquelas
horas longe da máquina de escrever trabalhando à noite; a escrita não é uma
patroa afável, as frases interrompidas nunca são retomadas com a mesma
qualidade, a nova formulação foge da linha do texto, e nada mais garante que
fique firme. De todo modo, consegui convencer o reverendo de que Polett
fora uma senhora de reputação irretocável, por isso pedi que pelo menos
fizesse uma rica homenagem, já que o enterro seria entre os pobres. Inclusive,
todos que acompanharam Polett ao cemitério de Farkasrét, admiraram a última
despedida de Emerenc: bem no meio, sob a urna, entre alguns singelos
buquês, em lugar de uma coroa de flores, reinava um vaso de lindos gerânios
floridos, com um laço branco com os seguintes dizeres: Aqui não há mais solidão,
descanse em paz. Emerenc. O caixão era do modelo mais barato, o túmulo, mal
localizado, não havia quase ninguém, a cerimônia foi breve, Emerenc ainda
ficou um tempo em frente à placa enquanto visitamos nossos mortos, e
quando finalmente a encontramos caminhando lentamente em direção à saída,
ela visivelmente concluíra o seu réquiem pessoal. Seus olhos estavam
vermelhos de tanto chorar, a boca inchada, nunca a tinha visto tão abatida. De
noite, veio buscar Viola, o cachorro também não estava alegre, não ficou
pulando de alegria porque iria passear, quando foi trazido de volta, Emerenc o
mandou para o seu cobertor para dormir, ele obedeceu sem reagir. Eu estava
arrumando um armário, virei para trás quando Emerenc falou comigo:
– A senhora já matou algum animal? – perguntou.
Eu disse que não.
– Pois vai. Viola também terá que ser morto, com uma injeção, quando
chegar a hora. Aprenda, não se pode segurar aquele cuja hora já soou, porque
nada que você der a esse alguém pode substituir a vida. A senhora pensa que
eu não gostava de Polett, que para mim tanto faz que ela se cansou e desejou ir
embora? Pois muito bem, só que, além de afeto, é preciso também saber matar,
guarde bem isso, não lhe fará mal algum. Apenas pergunte ao bom Deus, com
quem a senhora parece ter uma relação tão próxima, o que Polett disse a ele
quando se encontraram.
Balancei a cabeça. Por que ela insiste em me atormentar? Não era
exatamente um bom momento para me provocar.
– Eu amava Polett – repetiu Emerenc. – Mais uma vez estou dizendo isso
para a senhora, e se não entendeu é porque é burra. Se não a amasse, eu a teria
impedido, porque quando eu subo o tom de voz, as pessoas me obedecem.
Polett tinha medo de mim, ela sabia que, se não obedecesse, ficaria em apuros.
Quem a senhora acha que conversou comigo sobre Paris, sobre o famoso
cemitério onde há um túmulo de uma mulher que está sempre florido, e sobre
o túmulo do imperador posicionado de tal modo que só se pode vê-lo de cima
para baixo, quem mais podia me contar essas histórias até encontrar algum
sentido na vida, senão Polett? Como eu poderia agradecê-la pelo tanto que me
ensinou quando vi que era impossível ajudá-la a não ser a encorajando para
que ela mesma dissesse suas últimas palavras, não outra pessoa, nem a miséria,
nem a dor na coluna cada vez pior, nem as humilhações. Sutu não gostava dela
de verdade, ela a desprezava pela sua história de vida, até agora não comentei
nada sobre isso, mas não faz mais diferença, a coitada tinha um antepassado
ladrão ou não sei bem o quê, terminou enforcado, a família dela também foi
perseguida, vieram fugidos para a Hungria. Polett não se envergonhava desse
passado, falava disso abertamente, apenas Adél perguntava que tipo de gente
era essa, não sei por que ela se orgulhava tanto, o pai dela também foi preso
por dar umas facadas em alguém e por roubo, é verdade que não o
enforcaram, mas ele também não era muito melhor que a família de Polett.
Adél zombava da decapitação, mas ela é burra como uma porta, não gostava
das histórias de Polett, não entendia nada, apesar de ela ter cortado tantos
pescoços de frango, a cabeça cai bem depressa se a acertam direito, não precisa
cortar mais vezes. Polett jurava que seu parente não tinha culpa, que foi preso
por uma questão política, eu acreditei, Sutu também, porque esse tipo de coisa
acontece, que inocentes sejam mortos, aqui também; quando eu era jovem,
estava noiva do padeiro, não cortaram a cabeça dele mas estraçalharam o
corpo todo. Não acredita em mim? A senhora que sabe. Ele foi estraçalhado
pela multidão, embora não tenha feito nada, apenas abriu a padaria, o
comandante tinha proibido o fornecimento de pão para outras pessoas além
dos soldados, mas ele tinha pena do povo, então ele distribuiu tudo o que
tinha, quando não tinha mais, não acreditaram nele, arrancaram-no da padaria,
mataram e destroçaram em pedacinhos como se fosse um pão, quando a
multidão se encarrega de acabar com alguém, não acaba em um minuto, é uma
morte lenta. Bom, eu vou indo, apenas queria dizer isso. Se eu tivesse uma
cama, hoje excepcionalmente me deitaria, mas depois de ajudarem os jovens a
fugir e cuidarem de Eva, os velhos Grossmann tomaram cianeto, fui eu que os
encontrei mortos na cama, desde então só durmo em poltrona ou na minha
namoradeira. Então, boa noite. Não dê nada a Viola, ele já petiscou bastante.
Fui me sentar na varanda que dá para o jardim, olhava distraída para as flores,
para o céu, o tempo tinha parado, a noite, os perfumes, o silêncio estavam
imóveis. Polett, o huguenote e o padeiro, o noivo se alojaram na minha
consciência junto com os avós Grossmann, que eu não conhecia, cujos nervos
não suportaram mais Hitler, junto à guilhotina, frangos espiavam como é a
morte, e reinava um forte cheiro de fermento. Emerenc nunca mais
mencionou o padeiro, quando mais tarde vi a foto no manequim, não entendi
imediatamente quem era.
Política
Emerenc nunca mais falou de Polett, como se ela nem tivesse existido, por
outro lado, ficava mais tempo em nossa casa do que antes, para dizer a
verdade, naquela época ela já gostaria de estar sempre apenas conosco. Nosso
vínculo se originava dos mesmos fatores quase indefiníveis como o amor,
mesmo que fosse preciso fazer inúmeras concessões para nos aceitarmos
mutuamente. Aos olhos de Emerenc, todo trabalho que não exigia o uso das
mãos e de força física era preguiçoso, quase charlatanismo; eu sempre admirei
as performances do corpo, mas jamais as considerei superiores às do espírito,
os anos de culto à personalidade poderiam ter me feito mudar de ideia, se em
algum momento de minha vida a filosofia de Giono teve alguma influência
sobre mim. Os livros eram a base de meu mundo, minha unidade de medida
era a palavra impressa, mas eu não era a única que eu considerava válida, ao
contrário do que pensava a velha com seus próprios padrões. Sem jamais ter
dito, sem conhecer ou usar o termo anti-intelectual, Emerenc era a própria anti-
intelectual, apenas seus sentimentos faziam raras exceções na sua imaginação,
ela forjara para si uma representação particular dos chefes de família na
chamada boa sociedade, para ela, qualquer um que não trabalhava com as mãos e
delegava o trabalho para outras pessoas automaticamente era um intelectual,
tanto antigamente quanto no novo mundo, onde os movimentos estruturais da
sociedade anunciavam a aparição de um estrato socio-plutocrata. O seu
próprio pai, que no começo do século foi um artesão bem-sucedido, ela via
como um homem que trabalhava com as mãos, tinha uma imagem dele
cercado de lascas de madeira, embora possuísse casa, terras, vigas de madeiras
nobres, ferramentas valiosas. A velha, que por nada neste mundo expressaria o
conceito bastante comprometido de burguês, vivia o sentido do que ele
representava, nos inúmeros lugares em que trabalhara, fora educada nas boas
maneiras, mas sua mentalidade nunca fora influenciada, para ela os homens
que não manipulavam ferramentas, independentemente da importância de sua
situação – com exceção, como era natural, do tenente-coronel, que mantinha a
ordem –, eram todos parasitas, e a esposa deles, que dão ordens, eram apenas
bocas inúteis, inclusive eu no começo. Cada folha de papel era suspeita para
ela, cada escrivaninha, cada brochura, cada livro, ela não só não sabia quem era
Marx, ela não lia nunca, acho que se nos olhava com desprezo, como
vagabundos crônicos, ela deve ter ficado em choque ao perceber que algo
atenuava sua antipatia assim que ela ultrapassava a nossa porta, ela
visivelmente adquiriu a convicção de que aquilo em que ficamos digitando é
uma máquina também, apesar de tudo, que havia algum mérito no nosso
ganha-pão. O seu anti-intelectualismo não a impedia de aceitar as ofertas de
trabalho que surgiam, sua atividade, que as mudanças políticas tornaram cada
vez mais rara, lhe proporcionara segurança total, ela aprendia algo de todos os
seus patrões, mas tinha suas opiniões sobre cada um deles. Só punha os olhos
sobre nossos livros para tirar a poeira deles, as lembranças de seus três anos de
escola desapareceram de sua memória com a avalanche dos anos, poema
também só sobrou um, o do dia das mães, desde o episódio do poço, a
capacidade literária de Emerenc foi reformatada pelos seus diversos
empregadores e pela própria vida. Por outro lado, aquelas décadas de história
da Hungria só a fizeram conhecer a retórica, que ela odiava, e a qual acabou
com qualquer interesse que ela poderia ter tido por poesia. Antes de poder
ouvir outras coisas, já perdera o interesse em enriquecer seu espírito, o padeiro
fora estraçalhado na revolução dos Crisântemos, conforme ela me contou mais
tarde, seu grande amor também desapareceu e seu indigno sucessor a roubou.
Emerenc nunca soube que tomara a decisão do capitão Butler de ...E o vento
levou. Assim como o inescrupuloso herói do romance, ela não queria mais pôr
o coração em risco por nada nem ninguém. Depois da Segunda Guerra, um
imenso horizonte se abriu para ela, poderia ter conseguido bem mais para si, o
que desejasse, era inteligente, dotada de um espírito friamente analítico, de
uma lógica irrepreensível, mas não desejou adquirir mais cultura nem se
destacar nem trabalhar para o interesse do coletivo, seja seguindo ordens ou se
engajando em alguma campanha, ela mesma decidiu o que faria, por quê, para
quem e em que medida, ela se limitou a um mundo de travessas de comadre e
gatos de pelagens diversas. Jornal, ela não lia, não ouvia as notícias, excluíra a
palavra política de seu universo e não lhe vinha nenhuma lágrima aos olhos
nem seu coração batia mais forte se acontecia de por acaso pronunciar o nome
Hungria.
Emerenc era a única habitante do seu reino de uma pessoa só, mais
soberana que o papa em Roma, sua postura e sua total indiferença política de
vez em quando provocavam violentas discussões entre nós, diante de
estranhos, nossos diálogos poderiam soar como cenas de uma ópera, com
minha árvore genealógica que remonta até os Árpáds, eu tentava, quase
chorando de raiva, convencer Emerenc do quanto significava para nossa pátria
o desenvolvimento que acontecia na Hungria desde o fim da guerra, a
redistribuição de terras, as possibilidades ilimitadas que se ofereciam à classe
trabalhadora – que era a dela, e não a minha –, ela respondia que conhecia o
modo de pensar dos camponeses, sua família era assim, eles não estão nem aí
para quem compra os ovos ou o creme de leite, desde que possam enriquecer,
o trabalhador não ameaça os direitos até estar no poder, para ela pouco
importava o proletariado – ela não usou esse termo, mas parafraseou –, mas
execrava particularmente as pessoas da alta sociedade, ociosos e mentirosos. O
papa é um mentiroso, o médico não sabe nada, o advogado não liga se defende
um assassino ou uma vítima, o engenheiro calcula primeiro quantos tijolos ele
pode guardar para sua própria casa, as grandes indústrias, as fábricas, as
instituições de ensino nada mais são do que quadrilhas de criminosos.
Gritávamos uma com a outra, eu, no papel de Robespierre, o representante do
poder do povo, quando justamente naqueles anos estavam tentando me
diminuir à impotência, me jogar no gueto que estava sendo reservado para
mim, junto com meu marido, já humilhado e desarmado, a menos que me
decidisse ir embora, deixar a vida, ou o país, como preferisse, só que era
justamente o ódio que me mantinha de pé, porque eu sabia que as pessoas as
quais me perseguiam estavam preocupadas apenas com sua carreira medíocre,
o país se contorcia com as dores do parto, não tinha culpa se lamentáveis
fantoches estavam ao lado da cama, se tinham tornado híbrido o mundo de
Sparafucile, e entregaram o poder para mãos tão sujas que teriam sido
amputadas no dia de São Ladislau,* porque são piores que mãos de ladrões,
elas roubaram por décadas o crédito de uma nação inteira.
Emerenc, para quem, apesar da idade avançada, todas as possibilidades
ainda estavam abertas, pelo menos quando as grandes mudanças chegaram,
acompanhava os acontecimentos com comentários irônicos e dizia aos
educadores do povo que ninguém poderia ditar o que quer que fosse para ela,
que o lugar para os sermões era a igreja, ela fora educada em sua própria casa
para cozinhar quando ainda era uma criança, não lhe perguntaram se
aguentava a tarefa, aos trezes anos já servia mesas em Budapeste, que os
visitantes voltassem para onde vieram, principalmente que saíssem do seu
pátio, porque ela vivia do trabalho de seu corpo, e não de sua boca, como os
propagandistas, e não tinha tempo para ouvir bobagens. Na verdade, foi um
milagre que ela não tenha sido presa nessa época turbulenta, seu desprezo
universal tinha algo de monstruoso. Os educadores do povo devem ter vivido
alguns dos piores momentos de sua vida quando Emerenc lhes expôs sua
teoria sobre a política, aos seus olhos, Horthy, Hitler, Rákosi e Carlos IV eram
todos farinha do mesmo saco, a certeza é que aquele que estivesse no poder
dava ordens, e, se alguém pode dar qualquer ordem a qualquer pessoa a todo
momento, é sempre em nome de algo inconcebível. Quem estava no alto, seja
lá fosse defesa do quê, mesmo se fosse para o interesse de Emerenc, era
apenas um opressor, havia dois tipos de pessoas no mundo de Emerenc, quem
varre o chão e quem não varre, e tudo parte disso, independentemente de com
que palavras de ordem ou sob que bandeira festejassem a festa nacional. Não
havia força que quebrasse Emerenc, o educador, profundamente assustado,
desapareceu para bem longe, nada podia deter Emerenc, nada resistia a ela,
não dava para se aproximar ou fazer amizade com ela nem para jogar conversa
fora, ela era corajosa, tinha uma inteligência ao mesmo tempo fascinante e
malvada, era de uma insolência desavergonhada. Ninguém conseguia
convencê-la de que, mesmo aceitando seu impossível sistema, no qual a
respeitabilidade de cada um dependia do fato de varrer ou não, só dependia
dela fazer parte dos que não varrem mas fazem os outros varrerem, porque o
Estado, em 1945, lhe dera essa chance. Quando não tinha mais nenhuma carta
na mão, ela usou como último trunfo o papel de pobre velha desligada das
coisas terrenas, contemplando a vida com um olhar sonhador e para quem
tudo chega tarde demais. “Como tarde demais, minha cara senhora? – disse
com esperança o jovem educador – todos os caminhos estão abertos para a
senhora, uma descendente de camponeses, como poderia lhe faltar algo agora,
podemos levá-la para estudar, ou mandamos alguém aqui para ajudar a lhe
inscrever, identificando suas aptidões, que, logo se vê, são excepcionais, a
senhora rapidamente irá pôr seus estudos em dia, conseguir um diploma, pode
ser uma pessoa culta.” Culta? Essa foi a tocha que incendiou o poço de
petróleo do anti-intelectualismo de Emerenc, pois, se sua inteligência
excepcional era notada imediatamente, ela não deixava de proclamar seu ódio
pelas letras, com o talento de uma verdadeira oradora.
Ela mal sabia ler, escrevia em garranchos, com enorme sacrifício, só sabia
fazer duas operações, a soma e a subtração, mas a memória funcionava como
um computador. O que ouvisse no rádio ou na televisão por uma janela aberta,
se o tom era positivo, ela logo desmentia, mas, se era negativo, elogiava, sem
ter a menor ideia de onde era esse ou aquele país estrangeiro, repetia para mim
o que tinha escutado, citando nomes sem errar a pronúncia, quer fossem
húngaros ou estrangeiros, e sempre com um comentário.
– Eles querem a paz, a senhora acredita? Eu não, porque quem compraria
as espingardas, e sob que pretexto enforcariam as pessoas ou saqueariam, e
tem mais, se até agora não teve paz mundial, por que haveria de ter agora?
Ela deixou de mau humor mais de uma militante feminista que tentaram
convidá-la a frequentar reuniões, ou pelo menos chacoalhar sua indiferença
hostil, o comitê da rua e o Conselho local a consideravam um estorvo e o
padre estava plenamente de acordo com eles: Emerenc nascera para
Mefistófeles, negava tudo. Eu disse a ela uma vez que, se ela não tivesse
brigado o tempo todo contra as oportunidades oferecidas, poderia ter sido
nossa primeira mulher embaixatriz ou primeira-ministra, sei lá por quê, ela
tinha mais bom senso e inteligência do que toda a Academia de Ciências.
– Bom – disse Emerenc –, é uma pena, não sei o que faz um embaixador.
Já não quero nada além do meu túmulo, que me deixem em paz, não venham
me fazer estudar, sei o suficiente, preferia saber menos. Cuide bem dele, esse
país que a senhora considera cheio de possibilidades, se espera algo em troca.
Não preciso de nada, de ninguém, entenda de uma vez por todas.
A verdade é que ela não precisava mesmo do país, não desejava passar para o
lado dos que mandam varrer, não reivindicava nada nem percebia que, com
sua constante negação, apesar de tudo, fazia política. Se ela se comportava
assim na época de Horthy, seus empregadores devem ter se divertido, o filho
de Józsi me revelou que ela passou alguns dias na prisão por fazer discursos
subversivos. Emerenc podia passar uma imagem terrível de qualquer fase de
sua vida, quando começava a fazer seus discursos, era mais inteligente sumir de
perto dela, qualquer um fugia ao ouvi-la comentar sobre o voo de Gagarin e
da cadela Laika. Quando a rádio transmitiu os batimentos cardíacos de Laika,
ela começou a praguejar, dizia que era tortura animal, mais tarde se consolou
dizendo que haviam posto um relógio para reproduzir aquele ruído, que
nenhum cão seria burro de entrar numa espécie de bola para dar voltinhas no
céu, quem acreditaria nisso? Quanto a Gagarin, ela tinha maus
pressentimentos, não se pode aceitar uma tarefa dessas, porque o Senhor não
presta atenção quando pedimos alguma coisa, mas, quando hesitamos, ele nos
envia na hora. Se ela conseguiu resolver o problema com o vizinho que pisara
em seu canteiro de flores, deus também haveria de acertar as contas com os
invasores, os planetas não são feitos para que alguém vá lá passear em volta
deles. No dia que Gagarin morreu, quando o mundo inteiro estava em choque,
até Adélka se fez de tonta e evitou Emerenc, que ficou no pátio de sua casa e
explicava a quem passava na rua, eu avisei que deus não ia tolerar que
ultrapassem seus poderes. Ela não usou essas palavras, mas o sentido era esse.
Ela foi a única pessoa no planeta a não sentir pena do jovem rapaz que
explodiu como uma estrela, assim como não teve pena de Kennedy ou de
Martin Luther King, considerava os dois hemisférios com a mesma falta de
compaixão, Emerenc proclamou que nos Estados Unidos também havia os
varredores e os que mandavam varrer, Kennedy era do segundo grupo, o
negro, porém, se ele não se apresentara em um circo, estava constantemente
discursando ou viajando, era um chefe entre os que mandam varrer, além
disso, todos teriam que morrer um dia, quando tivesse um tempinho, cogitaria
derramar algumas lágrimas por eles. Um dia encontrei o filho de Józsi junto ao
túmulo de Emerenc, trocamos algumas palavras sobre sua filosofia
intransigente, e o rapaz, estendendo os braços num sinal de impotência, disse
que a paz chegara tarde demais para a sua tia, seu pai avaliava os fatos com
mais racionalidade, embora lembrasse muito bem do sofrimento dos tempos
passados, ele era satisfeito, era progressista, ao contrário, os arroubos de
negatividade de Emerenc a acompanharam por toda a vida. Eu percebera sua
raiva peculiar, quase irracional, poderia ser contra Francisco José ou qualquer
outro personagem que tivesse influenciado a história do país, mesmo que de
modo positivo. Não falei sobre o filho do advogado, porém sentia que a
resposta para tudo talvez estivesse ali, no final quem deu a última palavra foi o
tenente-coronel: o que Emerenc odiava era o poder, não importa em que mãos
estivesse, se aparecesse algum homem capaz de resolver todos os problemas
dos cinco continentes, Emerenc ficaria contra ele também, simplesmente
porque seria o vencedor. Para ela, todos tinham um denominador comum,
Deus, o escriturário, o militante do partido, o rei, o executor, o secretário-geral
da ONU, e se acontecia de ela manifestar sua solidariedade com alguém em
particular, sua compaixão era universal, não apenas a quem a merecia, mas a
todos, a qualquer um, mesmo aos criminosos.
Eu teria coisas a acrescentar, mais do que qualquer um, porque ela havia feito
algumas de suas declarações na minha frente, mas eu não era louca, não ia
prestar contas de suas falas. Certa vez, ela estava tirando os pelos do cachorro
de um tapete com um pano úmido, Viola estava trocando de pelo. Sentada à
máquina, eu a ouvia discorrer, de joelhos na minha frente.
– Querido Jesus – dizia Emerenc para o pano –, eu escondi aquele alemão
porque a perna dele estava machucada, ou pelo menos o que sobrou depois do
fuzilamento, eu pensei que se o encontrassem iriam matá-lo, depois escondi o
russo lá com ele, eles se olhavam como cachorros de porcelana, trancados no
fundo do porão, isso o senhor ainda não tinha visto nem verá, mas vai ver o
que faço com o senhor se der com a língua nos dentes, quando me mudei,
ainda não morava ninguém na mansão, só o velho paralítico, o senhor Szloka,
que mais tarde enterrei, os donos já tinham fugido para a Suíça e os outros
moradores ainda não tinham mudado. Andei por toda a casa, do porão ao
sótão, vi que era possível fazer um bom esconderijo no subsolo, se conseguisse
mover o depósito de lenha com precisão, uma portinha dava para um espaço
sem janela, e ali estava, comecei a carregar as toras despretensiosamente, e
então escondia ali todas as pessoas que precisavam desaparecer. O senhor
imagina a cara daqueles dois, quando trouxe o russo, aquele provavelmente
tinha uma bala no pulmão, porque tinha espuma no sangue que ele cuspia, eles
gemiam injúrias um para o outro, embora não se entendessem, escondi as
armas dos dois, tenho até hoje, não para usar, porque são barulhentas, eu
entendo um pouco, meu patrão era oficial do exército e grande caçador. Os
dois morreram antes de se conhecerem melhor, coloquei os corpos na frente
da casa de madrugada, até hoje o pessoal da rua não entende como eles
estavam deitados um ao lado do outro. Também escondi o senhor Brodarics,
no mesmo lugar, Rákosi mandara procurá-lo, eles podiam ter me perguntado,
até parece que eu o teria entregado! Ele andava sempre de capacete quando ia
trabalhar e, quando voltava, tinha as mãos cheias de óleo. Diziam que era um
espião, uma ova, quem dizia uma coisa dessas é que era espião, então eu ia
deixar que o levassem e sua mulher ficasse sozinha?, ela passava o dia inteiro
lavando e limpando, e depois o senhor Brodarics me recompensou, quantas
vezes se agachou do meu lado, quando eu precisava acender meu caldeirão, ele
me mostrou como economizar carvão, foi ele que me ensinou os segredos do
fogo, porque tudo tem seus segredos, até a brasa. Os homens de Rákosi
vieram, eu abro o portão, eles procuram, estão vendo, ele não está aqui, eu
digo, ele foi levado por outros logo de madrugada, continuem procurando,
porque ele ainda me deve umas conservas. Ele se safou, o esconderijo ficou
vazio durante um tempo, depois enfiei ali o detetive que caiu no jardim, era um
sujeito correto, eu o conhecia, seria uma pena, veio até minha casa instalar o
varal quando quebrei o braço, por que não o teria escondido? O outro, que
recebi em seguida, não poria minha mão no fogo por ele, mas o mantive
também por uns dias, porque estava tão miserável, suava frio, parecia um
cachorro prestes a apanhar.
Eu ouvia sem dizer nada. Santa Emerenc de Csabadul, a maluca da
misericórdia incondicional que salva todo mundo, porque quem está sendo
perseguido precisa ser salvo, os Grossmann e os perseguidores dos
Grossmann, em sua bandeira, de um lado havia um varal, do outro, o capacete
do senhor Brodarics. Essa velha senhora não apenas não tem consciência
patriótica, ela não tem consciência alguma, seu espírito luminoso brilha forte,
mas na neblina. Tanta sede de tudo, tantas capacidades, para nada.
– Me diga – perguntei a ela certa vez –, a senhora só gostava de salvar as
pessoas ou também denunciou alguém?
Ela me olhou com um ar desgostoso: quem eu pensava que ela era? Ela não
denunciou nem o barbeiro, que a enganou, arrancou tudo dela, ele mentia até
dormindo, mas ela não disse nada quando ele a deixou e sumiu com seu butim,
se ele precisava, que o leve, mas, depois disso, nenhum homem se aproximou
dela, para ela eram todos como o barbeiro, e não estava disposta a entregar de
novo tudo que havia juntado, muito menos dinheiro. Ela mudara seus planos
para o futuro, nos quais não haveria nem barbeiros nem Kennedy nem
cachorros voadores, na sua vida só haveria lugar para ela e para os mortos que
deixasse entrar. De repente, ela jogou com força o que tinha nas mãos, correu,
se lembrou de um doente que precisava de um remédio e perguntou se eu
também precisava de alguma coisa. Fiquei olhando-a enquanto se afastava,
pensando por que ela faz tanta questão de mim se somos tão diferentes, não
entendia o que ela gostava em mim. Eu escrevia, ainda era jovem, não tinha
analisado a fundo como o afeto é um sentimento ilógico, mortal, imprevisível,
e no entanto eu conhecia bem a literatura grega, que não trata de outra coisa
senão das paixões, da morte, cujo machado reluzente é segurado pelas mãos
dadas do amor e do afeto.
Nádori-Csabadul
Um assunto sobre o qual jamais falava era a região em que nascera, não longe
da minha. Eu sempre falava mal do ar e da água da cidade, e, bem no princípio
da primavera, quando a neve ainda permanecia em montes na rua, mas a terra
molhada já começava a descongelar e lançar vapores no ar, eu era tomada pela
saudade, queria voltar para casa, ela jamais fez coro comigo, embora também
sentisse o aroma com o qual a primavera se anunciava, o verde que mal dava
para ver irrompendo nos galhos, ainda não um véu nem um broto, nem
mesmo uma folhinha, ainda assim, sinalizando que o trabalho na terra
começara, e lá em casa, nos nossos campos, as brincadeiras da nova luz fazem
reaparecer a criança do passado que pulava, que dançava na primavera,
despreocupada, sem pensar em nada, a criança que fui, que ela foi. Num dia
como este, no final de fevereiro, recebi um convite da biblioteca de Csabadul,
logo corri para Emerenc e perguntei, caso eu aceitasse o convite, se ela iria
comigo. Ela não precisaria me ouvir falar, apenas me acompanhar, e enquanto
eu fizesse a palestra, ela poderia ir ao cemitério ou visitar parentes. Ela me
deixou plantada, nem me respondeu, tomei como certo que era um não, mas
aceitei o convite. Oito semanas nos separavam da data determinada, depois de
um mês inteiro Emerenc retomou o assunto da viagem. Perguntou se era
necessário pernoitar, porque nesse caso nem se fala mais nisso, mas, se fosse
possível voltarmos de noite, ela poderia ir comigo. Sutu cuidaria das calçadas,
Adélka do lixo, então, se eu quisesse levá-la, ela iria comigo. No seu rosto
sempre pálido, surgiu um pouco de cor por causa da decisão inesperada, só me
pediu, quando estivermos em Csabadul, que eu não diga a ninguém o que ela
era minha. Ela me ofendeu com o pedido, afinal quem a trata como uma
funcionária, perguntei se podia apresentá-la como parente de meu marido, não
podia dizer que era minha parente, a família dela poderia desmentir, mas ela
poderia muito bem ser parente de um desconhecido de Budapeste. Ela nunca
me olhara assim, com uma mistura de perdão e ironia.
– O patrão vai ficar emocionado – ela respondeu, seca. – Não se incomode,
eu apenas queria saber se a senhora concordaria, e eu já dei minha palavra.
Sim, porque a senhora é louca, não tem sensibilidade para nada. O que a
senhora imagina que eles pensam que virei? Uma rainha? Eles me empregaram
quando eu era criança, não são idiotas. Eu vou dizer que sou zeladora, um
trabalho como outro qualquer.
Isso me deixou furiosa, na minha fúria, gritei que ela podia se fazer passar
por quem quisesse, que trabalha num curtume ou vende pele de coelho,
ninguém vai deixar de respeitá-la por tomar conta de uma mansão de vários
andares, de muitas outras casas mais a nossa; principalmente por essa última
ela será ainda mais considerada, porque, embora ela não acredite, fui convidada
a fazer uma palestra em Csabadul por causa de minha escrita, da qual ela fazia
pouco caso, e tem gente, justamente na região em que ela nasceu, que não
considera os escritores vagabundos, e não faz pouco, como ela, de escritores
como Arany ou Petöfi. Não respondeu nem mencionou mais a viagem, até o
último dia eu não sabia se ela iria ou não, mas não a pressionei, tive medo de
forçar e ela desistir.
Vivemos até o dia da palestra do mesmo jeito, Emerenc tirava o pó dos
livros, trazia a correspondência, me ouvia quando eu falava no rádio, mas sem
nenhum comentário; isso não a interessava. Tomava conhecimento de que, de
vez em quando, corríamos para uma conferência, uma reunião, alguma noite
literária, dávamos aulas de escrita, via nosso nome nos livros, ela os punha de
volta depois de tirar o pó como se fossem castiçais ou caixas de fósforos, era
indiferente, aos seus olhos era um vício perdoável, como a gula ou a bebida.
Uma ambição infantil me fazia tentar conquistar o seu interesse por aquilo que
via como um irresistível encantamento da literatura clássica húngara. Uma vez
declamei para ela o famoso poema “O frango de minha mãe”,* pensando que
o poema poderia tocá-la, já que gostava de bichos. Parou de tirar o pó, olhou
para mim com o pano na mão, emitiu um guincho e começou a rir. Que textos
incríveis eu conhecia! Ai, ai, ai! “O que é a pedra!” O que quer dizer “o que é a
pedra”? Que palavra é essa, “vós”? Ninguém fala assim. Saí da sala engasgada
de ódio.
No fim, não foi comigo a Casabadul. Ninguém teve culpa, Sutu foi
chamada a comparecer à prefeitura naquele dia, em função da licença para a
sua quitanda, na véspera da viagem correu à casa de Emerenc para avisar que
não podia fazer nada, que sentia muito, mas não poderia substitui-la, ela não
sabia quando seria chamada e quanto tempo vai demorar. A cena que se seguiu
foi de uma brutalidade inacreditável, as ofensas de Emerenc eram cada vez
mais agressivas quanto mais se dava conta de que Sutu não tinha culpa. Às
vezes alguém planeja alguma coisa para algum período do dia e mesmo assim
tudo desmorona porque outra pessoa, em algum outro lugar, planejou ao
contrário. Ela sabe, já tinha vivido essa situação inúmeras vezes. Ela sabia que
Sutu não era mais livre do que nenhum de nós, ao ser convocada, não podia
dizer que tinha outra coisa a fazer, não havia nenhuma razão para essa
discussão nem para magoar Sutu, mas mesmo assim foi o que ela fez.
Sutu se retirou como Coriolano, e levou bastante tempo para que a boa
relação voltasse a ser como era. Na madrugada de minha partida, Emerenc
passeou com Viola sonolento, por ser mais cedo do que de costume, e a partir
do momento que voltou, não saiu do meu lado enquanto eu me arrumava,
punha defeito em tudo, no meu cabelo, nas minhas roupas, eu estava quase
explodindo, nervosa com seus palpites e as instruções que me dava, como se
eu estivesse indo a um baile da Corte. Ela não voltava à sua região desde 1945,
me disse enquanto martirizava o meu cabelo, e mesmo dessa vez foi só para
uma ida e volta por causa do trem, trocou alguns serviços por provisões, mas,
em 1944 passou uma semana lá, não foi nada divertido, mas é preciso dizer
que a família dela não era exatamente jovial, o avô continuava igualmente
tirânico, e, do lado de sua mãe, os outros familiares também se inquietavam
bastante por causa do circo que se armava na época. No vocabulário de
Emerenc, o circo sempre significava um cataclismo nacional, nesse caso, a
Segunda Guerra mundial, ou qualquer situação em que as mulheres ficam
nervosas, ávidas e burras, os homens ficam brigões e ameaçam com seu
canivete, é claro que sempre com um contexto histórico. Se dependesse de
Emerenc, ela trancaria os jovens revolucionários de 1848 em um porão e lhes
teria ensinado uma profissão útil, em vez de se envolverem com literatura e
gritaria, em vez de ouvir discursos revolucionários, ela teria providenciado que
todos eles fossem tirados de seu café e enviados para trabalhar no campo ou
nas fábricas.
Só me confiou uma missão quando viu o carro oficial virando a esquina,
com o nome de sua cidade natal pintado nele: Nádori-Csabadul. Então me
pediu para olhar os túmulos familiares, em que estado estavam, e se pudesse,
que visitasse a antiga casa também, onde nasceu, na entrada de Nádori, e, se eu
tivesse tempo, também gostaria que eu fosse à estação de Csabadul e
caminhasse pelas docas das mercadorias. Isso é importante, as docas. Se
encontrasse membros da sua família – talvez ainda haja algum vivo, porque
escrevem para o filho do meu irmão Józsi, não são Szeredás, esses não existem
mais, são os Divék, do lado de minha mãe –, não manda nenhum recado, e se
me perguntarem algo, eu também não devia lhes dizer muita coisa, apenas diga
a verdade, que estava viva e com saúde. Não prometi nada, não sabia quanto
tempo livre teria, qualquer encontro dependeria não apenas das condições das
estradas, mas também do que tivessem organizado para mim. Esses eventos
nunca começam na hora certa, porque precisam esperar o público, e se a
bibliotecária organizou um almoço, seria deselegante perguntar onde ficava o
cemitério, mas disse a Emerenc que, se fosse possível, faria o que ela pediu. O
carro veio me buscar bem mais cedo do que combinamos, talvez, se me virasse
bem, poderia cumprir a missão completa.
Sutu apareceu na rua no último minuto e abriu fogo, zombando de
Emerenc por ficar em casa mesmo tendo trocado a fechadura. Mas Sutu sabia
por que ela havia feito isso, porque não confia em Sutu. Emerenc achou que
nesse único dia, como todos já sabiam que ela me acompanharia, arrombariam
sua casa, e quem seria a mais provável ladra do que ela, Sutu, que ficaria com
Viola também?
– Vá se danar – respondeu Emerenc com frieza.
Sutu emudeceu, mas ficou lá, a maldição fora inesperada e tão injusta
quanto sua suspeita, foi assim que as vi juntas, de dentro do carro, lado a lado,
Sutu com a cabeça virada, como se paralisada pelo golpe que acabara de
receber, observando Emerenc com os olhos arregalados, como se estivessem
lutando caratê. Eu me virei para dizer a Emerenc que ia fazer o possível para
voltar até meia-noite, mas que talvez estivesse cansada demais para ir até a casa
dela contar tudo.
– Cansada do quê? Cansados estarão os infelizes obrigados a ir até a Casa
de Cultura para ouvi-la, eles já alimentaram os animais, tiraram o leite das
vacas e fizeram mais cinco milhões de coisas, que a senhora nem tem ideia, e a
senhora só vai ficar lá sentada contando um monte de bobagens.
Nem me passou pela cabeça tentar explicar a energia que eu gastaria para
tentar me concentrar em pleno verão numa sala quente, sem ventilação, com as
janelas fechadas por causa do barulho que vinha da rua, então dei o sinal de
partida ao motorista. Eu me senti de certa forma decepcionada, esperava que
Emerenc excepcionalmente não zombasse de mim e me pedisse alguma coisa,
digamos, um galho de árvore de seu antigo jardim, ou sei lá o quê, quando vou
para minha cidade sempre trago um pão de dois quilos, mas não pediu nada.
Quando partimos, Viola latiu, displicente, como se quisesse me acalmar,
dizendo sei que não será uma longa separação, até de noite vamos aguentar, os
dois.
A viagem foi tranquila, não paramos nenhuma vez, eu costumava chegar
nos lugares sem ter comido nada porque sempre me oferecem algo nas
bibliotecas, e, se não dou ao menos uma beliscada, ficam ofendidos. Nádori
era um povoado bonito, não precisei perguntar onde era o cemitério, ficava
logo na entrada da cidade no lugar em que ficava a placa indicativa, fui
recebida com perfume de sálvia e de flores silvestres que vinha dos velhos
túmulos em ruínas. Pedi para pararmos, entrei, uma mulher regava as flores
junto ao muro. Ela era suficientemente idosa para ter ouvido falar nos
Szeredás ou nos Divék, mas ela não nascera aqui, veio para cá quando casou e
não sabia nada da família do carpinteiro. O cemitério visivelmente não
funcionava mais, os que estavam virando pó nesse local, quase todos estavam
sem identificação, debaixo de algum monte de terra, a maioria das pedras dos
túmulos e das cruzes de madeira foi arrancada ou roubada, e se o defunto
importava ainda para alguém, a família mandava exumar. Havia no máximo
uns vinte túmulos tão bem cuidados como aquele ao lado do qual a senhora se
abaixava, cutuquei com uma vara buracos de coelhos e de toupeiras, e fiz isso
com prazer, um cemitério abandonado, durante o verão, tem um charme, não
é triste, então passeei por ali entre os túmulos velhos cobertos com ervas
daninhas, mas não havia nada para ver. Onde conseguia decifrar algumas
poucas letras desbotadas, não era nada parecido com os nomes que procurava.
Em Csabadul, porém, tive mais sorte, quando saí do carro, na praça principal,
lá estava numa placa vermelha, bem diante de mim, o sobrenome da mãe de
Emerenc: Csaba Divék, relógios antigos e de quartzo. Ildikó Divék, née Kapros
bijuterias. Um casal jovem trabalhava na loja, mas se eu imaginei que causaria
sensação ao entrar dizendo que trazia notícias de uma parente de Budapeste,
Emerenc Szeredás, se eu estivesse no lugar certo, e a senhora Rozália Divék,
casada com Jozsef Szeredás, fosse da família deles, bem, eu estava enganada.
Eles não tinham contato com Emerenc, mas já tinham ouvido falar dela, o
relojoeiro me disse para procurar, sem falta, a madrinha dele, que é uma Divék,
prima da parente de Budapeste, elas foram meninas na mesma época, com
certeza ficaria contente em me ver, e principalmente, depois desse tempo todo,
em ter informações sobre o que aconteceu com a filha de Emerenc, que nunca
mais viu, desde que a levaram de volta para a capital.
A partir daí eu teria que tomar muito cuidado para não demonstrar que
ignorava certo número de coisas, e esta era a primeira vez que ouvia dizer que
Emerenc tinha uma filha. Tateando de leve o assunto, consegui fazê-los
relembrar o que sabiam através dos parentes mais velhos, que Emerenc, no
último ano da guerra, apareceu no vilarejo com uma menina no colo, que
deixou vivendo lá durante um ano com o bisavô. Sobre os túmulos da família,
os mais jovens não sabiam nada, mas a madrinha do relojoeiro certamente
lembra de tudo. Da loja, fui direto para a biblioteca, havia bastante tempo
ainda, não apenas até a palestra, mas até mesmo para o almoço, sugeri um
passeio à bibliotecária, que aceitou feliz meu convite. A prima de Emerenc
tinha uma casa própria, era parecida com Emerenc, o mesmo tipo físico, alta e
magra, no seu andar reconheci o mesmo porte e dignidade, mas, ao contrário
de Emerenc, mesmo na velhice, estava de bem com a vida. A casa era decorada
com bom gosto, a luz inundava todo o ambiente através de grandes janelas e
era visivelmente uma testemunha orgulhosa de sua independência material.
Ofereceu-nos doces, servidos em uma travessa que pegou em um maravilhoso
bufê antigo, contando que o móvel havia sido feito pelo pai de Emerenc, que
não era apenas carpinteiro, como eu sabia, mas também um especialista em
móveis antigos, o avô mandara trazer o bufê quando a cooperativa de Nádor
foi fundada e a marcenaria foi adaptada para ser sua sede. Ela também
começou a sondar sobre o que teria sido de Emerenc e da menina depois que
sumiram, ela não sabia o que tinha acontecido com a menina, já que o filho de
Józsi, por exemplo, jamais a vira. O avô era uma pessoa muito difícil, contou a
senhora enquanto comíamos o encorpado doce dourado e bebíamos o famoso
vinho de Alföld, ele nunca admitiu que ser uma babá em Budapeste podia ser
um trabalho arriscado, e, quando Emerenc apareceu com a criança, todos
pensaram que ele a mataria, e se não houvesse tido um derrame um pouco
antes, talvez fizesse mesmo, mas nesse momento ele não era mais o mesmo.
Hoje em dia essas coisas já não contam tanto, mesmo se a família não fica
feliz, não demonstra seus sentimentos, e as autoridades e a sociedade
protegem os jovens, a senhora já deve ter percebido. Naquela época, era
legítimo querer saber quem era o pai daquela criança, mas Emerenc não disse
nada, e não trouxera os documentos da menina, se o avô não fosse tão
respeitado, e não tivesse enchido de presentes o tabelião, poderia ter sido um
grande problema, mas o funcionário ajeitou as coisas, fizeram um papel para a
menina no lugar do que tinha ficado em Budapeste, e, como o pai era
desconhecido, ela ficou como Divék também. No fim, ele se acostumou com a
bisneta, mesmo que fosse de adoção, a menina não tinha nem a mãe nem
ninguém lá com ela. A criança se apegou ao velho, subia em cima dele,
abraçava-o, o velho Divék caiu em pranto quando Emerenc veio buscá-la e se
lamentou até a morte por ter deixado partir sua queridinha. De todo modo,
receberiam Emerenc com grande prazer quando ela quisesse, sozinha ou com
a menina, que certamente já é uma mulher, o avô, infelizmente, assim como
seu próprio marido, já morreu. Da família Divék, apenas eles vivem aqui, a
família se espalhou.
A parente de Emerenc foi muito gentil, se ofereceu para me levar ao
cemitério mesmo naquele calor de rachar, o velho e os pais dela estão
enterrados aqui, a família da prima em Nádori, no cemitério abandonado.
Nesse momento falou um pouco mais baixo, aquela história da família a
deixava constrangida, como o avô a princípio não foi favorável ao casamento
da filha com o Szeredás – embora ninguém saiba por quê, já que, enquanto
viveu, o marceneiro ganhava bem, e, no fim das contas, ele não tinha culpa
nenhuma de sua lastimável tragédia –, ele nunca deixou que o carpinteiro se
aproximasse dele, nem os gêmeos nem mesmo a própria filha, e ninguém se
orgulhava disso. O enterro foi organizado em Nádori, é lá que descansa toda a
família Szeredás ao seu lado, como se fossem todos suas vítimas, mas é
possível que ela tenha entendido errado, porque era apenas uma criança na
época e também acontece de alguém querer se manter longe do túmulo da
pessoa por tê-la amado muito. O segundo marido não tinha túmulo, decerto
Emerenc deve ter lhe contado, ele foi colocado numa cova coletiva na Galícia.
Em todo caso, se a parente de Budapeste quisesse encarar os trâmites, que não
adiasse mais, desde o ano passado as cidades de Nádori e Csabadul foram
reunidas em uma única autarquia com relação à legislação, e não vão demorar a
reinaugurar o antigo cemitério, inclusive ela não saberia dizer onde estão os
Szeredás, porque não voltou lá desde criança, mas ali poderíamos ver os
túmulos dos Divék e dos Koprok, ela é Divék de solteira, mas senhora
Koprok. Como ainda tínhamos tempo, fui ver o obelisco de granito, de muito
bom gosto, tendo gravado, acima dos nomes, as águas da Babilônia, um
salgueiro com harpas pendendo dos galhos como deve ser. A parente me deu
de presente duas fotografias, que ela procurou durante um bom tempo e
encontrou numa gaveta: a mãe de Emerenc de fato foi uma noiva linda, mas o
que mais me impressionou foi a outra foto, muito antiga e claramente feita por
um amador, com a borda cortada em ondas, na qual aparece Emerenc
segurando uma criança, a luz era muito ruim, apenas a criança estava nítida, já
nessa época a cabeça de Emerenc estava coberta com um lenço, mas as suas
roupas são menos austeras, na verdade nem lhe caíam bem, visivelmente as
tinha herdado de uma de suas patroas. Seu rosto não mudou
significativamente, apenas na expressão dos olhos, que, em vez de malignos,
transmitiam uma serena gentileza. Os Divék e os Koprok vieram todos à
minha palestra, eles certamente não tinham a intenção, mas era assim que se
devia fazer, já que os havia visitado. Havia muito pouca gente, o público
escutou sem demonstrar nenhum interesse especial, todos estávamos com
muito calor, e eu, enquanto repetia pela enésima vez a minha exposição, só
pensava em onde teria ido parar a criança longe dos braços de Emerenc.
Na saída, não me esqueci de pedir à bibliotecária para passarmos pela
estação. Se ela ficou surpresa, não demonstrou, caminhei sobre a doca como
Emerenc me pediu, era igual a todas as outras, alta, com bordas de cimento,
abandonada. No caminho de volta, o motorista parou na antiga casa de
Emerenc, descobri que até hoje é chamada assim, a casa Szeredás. Ela era
bonita sob a luz do dia que caía, foi uma daquelas noites incríveis de verão,
quando o sol some de repente em vez de retirar pouco a pouco seus raios, e
todo tipo de incandescentes cor de laranja, azuis e lilás transparecem na
penumbra. Demos uma espiada no antigo espaço, e era como Emerenc havia
descrito, a fachada pintada, as paredes, as árvores na lateral, o tamanho, a
altura, Emerenc não aumentou nem diminuiu nada, o que me surpreendeu
ainda mais, ela guardara na memória as proporções exatas, não sonhava com
sua bela casa de infância como um castelo de história infantil, ela era bonita
mesmo, do modo que Jozsef Szeredás a construíra. Ela não fora projetada com
amor, dava a impressão de ser uma declaração para a eternidade. No lugar da
antiga oficina, havia outra, equipada com uma máquina de serrar elétrica, e
cachorros imensos, presos por correntes, latiam para mim. O jardinzinho ainda
estava lá, as roseiras envelheceram e se tornaram árvores, alguém plantou
alguns bordos ao lado dos plátanos, a nogueira também crescera, crianças
brincavam em um balanço pendurado em um de seus galhos. Não vi a horta,
havia uma plantação de milho no lugar com uma promessa de boa colheita,
fiquei olhando como se enfileiravam os pés de milho como soldados e
pensando como seria a memória da terra, que encobre tanto sangue, mortos,
sonhos e fracassos. Como ela ainda é capaz de prover, com lembranças assim?
Ou seria justamente por isso? O gerente da oficina era um jovem, vira que
estacionamos o carro, que desci dele, pensou que eu vinha comprar um filhote
dos cachorros, porque ainda tinham para vender, mas eu lhe disse que já tinha
cachorro, só estou admirando a casa porque minha vizinha morou aqui. Logo
se desinteressou de mim quando viu que não queria um cachorro. Cogitei
pedir a ele uma rosa da velha roseira para dar a Emerenc, mas desisti. Como eu
poderia saber como ela reagiria às lembranças, se até agora não me contou que
tem uma filha, ou pelo menos teve. Em pé, no cenário onde se desenrolou a
época de sua vida mais inegável e fácil de checar, tentei mais uma vez
desvendar as verdadeiras coordenadas de sua existência, mas nem ali consegui.
Ali já não era seu lar, não mais do que onde mora agora, já que aquele lar era
fechado para o mundo. Nesse entardecer, cuja única claridade vinha das faixas
coloridas que vinham do crepúsculo, só uma coisa estava clara: o vilarejo não
existia mais para ela, Emerenc foi embora para a cidade, esta a aceitara, mas ela
não aceitara a cidade, já que seu único espaço real ficava escondido atrás de
uma porta fechada, e se algum dia ela o mostrou, não foi por vontade própria.
Voltei para o carro, não arranquei nem mesmo uma folha de arbusto como
lembrança, partimos de volta para casa.
Eu sabia que ela não me esperaria na minha casa, era orgulhosa demais para
admitir que queria saber o que sobrava de sua antiga vida, preferia jamais ouvir
falar disso. Cumprimentei meu marido, que me comunicou que comeu um
verdadeiro banquete com Viola, depois fui até a casa da velha, o cachorro
correu para me receber no portão, Emerenc nem se levantou, estava tomando
ar perto do tanque. Pensei, me aguarde, logo jogarei a bomba atômica, você
deve ter imaginado que em meio às conversas haveria de aparecer alguma parte
de sua vida que omitiu. Primeiro falei sobre o relojoeiro, depois enfiei a sonda
mais fundo, fui pintando o quadro de como a prima dela vive em boas
condições, que o avô deve ter sido um homem muito duro, por qual motivo
punir os mortos, que afinal já foram bastante infelizes, e não se sabia o que ele
tinha na cabeça para deixar os túmulos tão degradados, era realmente
indelicado. Emerenc olhava longe, como se visse algo na penumbra que não
cabia a mim, e eu, de repente, fiquei com vergonha, por que estou me
metendo em seus assuntos privados, o que eu esperaria dela, uma confissão?
Por tantos anos não me deixou aproximar nem um centímetro, eu não podia
exigir que ela me contasse da filha biológica, que naquela época só trazia
problemas, humilhações e preocupações. Nem perversa nem sádica. Eu
esperava que ela se vangloriasse de alguma coisa, que, para sua mente
antiquada, é um fato a ser negado? Emerenc virou de costas para o jardim, e
daquele momento em diante só olhou para mim, a cabeça de Viola em seu
colo. Pode parecer ridículo, mas naquele momento tive a impressão de que o
cachorro sempre soubera da filha dela, porque a velha contara para ele tudo
que eu queria saber.
– Eu já disse para a senhora – começou, num tom de voz coloquial –, eu
tenho o dinheiro necessário, mas decidi esperar a minha morte para que façam
o túmulo, é o filho do meu irmão Józsi que vai tomar todas as providências.
Eu não odeio o meu avô, ele era o que era, ciumento, inflexível, nunca
perdoou meu pai por ter levado minha mãe de perto dele, de mim também
não gostava, não o culpo por isso, mas, já que sua hora chegou, está bem
assim. Consegui guardar bastante, vamos ter um túmulo, a senhora vai ver,
como ninguém nunca construiu em Budapeste, vou pedir a algum pintor ou
escultor amigo da senhora que faça o desenho para mim conforme eu indicar.
Isso não seria antes porque meu avô teria medo que falassem mal da gente em
Csabadul, mas levei a menina e deixei com eles e o velho, esperto como o
diabo, sabia vergonha por vergonha, ele me daria o pior golpe ao abandonar os
túmulos, então deixou as cruzes apodrecerem, e eu morava em Budapeste, não
podia ir ao cemitério.
Graças a deus ela trouxe o assunto à tona, então posso entregar as
fotografias. Olhou as duas por um longo tempo, sem nenhuma expressão no
rosto, pensei que talvez fosse se emocionar ou corar, mas não sei por que
pensei isso, talvez ela tivesse na casa um álbum cheio de fotos da criança, eu
não sabia nada sobre a Cidade Proibida de Emerenc. Ela não olhava para a
foto como mãe, menos ainda como mãe emocionada que vê de repente
ressurgir seu passado, parecia mais um soldado que está acostumado a sempre
vencer as batalhas.
– É a Eva – explicou –, era por ela que eu estava esperando na outra noite,
ela mora nos Estados Unidos, é ela quem me manda dinheiro, os pacotes
também, deles eu acabo dando alguma coisa para um ou outro, até a senhora já
ganhou alguma coisa supérflua, os produtos de maquiagem, os cremes. Ela era
assim quando a trouxe de Csabadul para Budapeste, mas agora nem quero
mais vê-la, com nenhum de seu diversos rostos, porque não veio quando pedi.
Se a chamo, como a chamei da última vez, ela tem que vir, mesmo se o mundo
estiver entrando em colapso, porque, se não fosse por mim, teriam quebrado a
cabeça dela contra a parede ou levado para a câmara de gás.
Empurrou a fotografia na minha direção como se quisesse dizer que não a
queria.
– A senhora pensa que foi simples? – perguntou ela, visivelmente com
dificuldade para falar sobre o assunto. – Até então, todos me respeitavam, eu
era um exemplo, Emerenc Szeredás, limpa, honesta, leva uma vida respeitável,
aprendi por conta própria como são os homens, e quando aquele primeiro foi
embora, ou depois quando o barbeiro fugiu com todo o dinheiro e com todas
as coisas de algum valor que juntei a vida inteira, não tomei soda cáustica, me
reergui, como se nada disso tivesse acontecido, e disse a mim mesma que
jamais ficaria noiva de novo, que não deixaria nenhum homem chegar perto de
mim, eles que escolhessem outras mulheres para enlouquecer e roubar.
Ninguém me estendeu a mão, então imagina que foi fácil aparecer na casa de
meu avô com uma criança nos braços, dizer a ele, toma, essa aqui é minha,
alimentem ela até o fim da guerra porque eu não consigo cuidar dela em
Budapeste, não tenho tempo, ela vai acabar ficando na rua, não tenho culpa se
um malandro me aprontou essa, e agora aqui está o resultado. Eu não podia
ficar com ela em Budapeste, era perigoso demais, também não poderia deixá-la
trancada, uma criança precisava de ar e de espaço.
Os arbustos sussurravam, Viola adormeceu com a cabeça sobre o sapato de
Emerenc.
– A senhora ainda lembra das leis para os judeus, não? Os velhos tinham
tomado cianeto, os jovens fugiram, eles não podiam se embrenhar pelas
montanhas à pé com um bebê, por isso me deram ela. A senhora Grossmann
sabia o que a Eva significava para mim, o que eu era para ela, a menina
chorava quando alguém chegava perto dela, e mesmo do braço da mãe ela
desejava voltar para o meu. Nem todos os alemães eram vilões, essa mansão
era de um alemão, dono de uma fábrica, ele arranjou para os Grossmann o
atravessador de pessoas, me empregou como zeladora aqui e me confiou tudo
antes de voltar para sua terra. Combinamos que eu trabalharia e moraria na
mansão, o casal Grossmann partiria em direção à fronteira e eu levaria a
menina para o vilarejo, era melhor que pensassem que ela sumira junto com os
pais. Agora, o que eu apanhei quando cheguei lá, não me pergunte, porque não
foi normal, eu nunca levei uma surra tão grande, pensei que jamais voltaria a
andar. Me bate, me chuta, eu dizia para o meu avô, conte para todo mundo,
mas deixe a criança em paz, o dinheiro e as joias que ganhei dos Grossmann
eu dei a ele para as despesas da menina, ele pensou que eu tivesse roubado na
confusão da guerra, porque não era pouco o que levei, mas ele pegou tudo,
não se preocupe. E isso permitiu que cuidassem dela muito bem durante
pouco mais de um ano, e então os Grossmann voltaram e fui buscá-la. Eles
deveriam ter recomeçado a vida aqui, mas, depois, preferiram ir para o
exterior, e o que ainda havia restado de suas coisas, os móveis que salvei
trazendo para cá, me deram tudo por gratidão pelo que eu fiz por eles, depois
sumiram de novo, tinham medo de ficar aqui porque Rákosi estava
recomeçando o mesmo circo. A senhora andou na doca?
Eu disse que sim.
– Queria que a senhora a visse porque eu sempre a vejo nos meus sonhos,
como a vi pela última vez, quando a pobre novilha se jogou do trem por
minha causa. Nós tínhamos uma novilha de olhos aveludados, cuidei dela
desde que nasceu, e, junto com as duas crianças, era como um terceiro filho
para mim, sua pelagem era igual ao cabelo dos gêmeos, sedosa, o focinho era
cor-de-rosa, macio, e tinha cheiro de leite, como meus irmãos. Todos riam
porque ela andava atrás de mim, mas chegou a hora de vender, então me
trancaram no sótão, tiraram a escada para eu não poder correr atrás dela,
naquela época nos vilarejos não tinha isso de histeria, dava-se um tapão na
criança dizendo o que ela devia fazer, e mesmo assim se ela ainda não
entendesse, batiam na cabeça. Pode ser que hoje em dia seja diferente, que lá
também agora deixem tudo, não sei. Em mim, bateram na cabeça e trancaram
a porta, mesmo assim consegui descer, sabia que se a novilha tinha sido
vendida, iriam levá-la de trem, então corri para lá, mas quando cheguei ela já
estava embarcada com as novilhas dos outros criadores. Ela berrava lá em
cima, e eu gritei seu nome, ainda não tinham fechado as portas, quando ouviu
minha voz, ela pulou lá do alto. Criança é burra, eu não sabia o que estava
fazendo quando gritei o nome dela. Ela quebrou as duas patas dianteiras, sobre
as quais caiu, chamaram o Cigano para que a sacrificasse, meu avô xingava e
me amaldiçoava, era preferível que eu tivesse morrido, e não a valiosa novilha,
eu não tinha nenhuma utilidade, não servia para nada. Eles a abateram e a
cortaram e pedaços, e eu fui obrigada a ficar lá olhando até o fim, o que eu
senti, não me pergunte, apenas aprenda: nunca ame ninguém perdidamente,
porque, mais cedo ou mais tarde, um dia vai perder. É melhor nunca amar
ninguém, então não haverá ninguém para ser abatido, ninguém pulará de
nenhum trem. Bom, é hora de a senhora ir para casa, nós duas já falamos
demais por hoje, o animal também está exausto, leve Viola para casa. Viola. O
nome que minha mãe deu para a nossa novilha. Vão indo, ele está com sono.
O cachorro, não eu, que estive o dia inteiro em viagem, não ela, que passou
o dia limpando e varrendo, o indestrutível imago, Viola na doca ou na nossa
rua, em forma de cachorro. Fui para casa, como ela queria, senti que ela
desejava ficar sozinha com aquilo que eu tinha feito ressurgir. Agora, tudo
estava em volta dela, os Grossmann e o industrial, que não era má pessoa, a
mansão vazia, na qual morou sozinha antes de chegarem diversos moradores
que vem e que vão, primeiro uma torrente de alemães, depois soldados
húngaros, e quando estes sumiram, os da Cruz Flechada, e quando os da Cruz
Flechada vão embora, os russos se instalam, Emerenc cozinha para eles, lava
roupa, a casa vira propriedade do Estado, depois imóvel compartilhado, como
eu a conheço, e em meio a isso tudo, a ferida mais profunda, a causa de tudo, o
padeiro destroçado, o barbeiro ladrão, a vergonha em Csabadul suscitada por
Grossmann Èvike, a novilha, o gato pendurado na maçaneta e seu grande
amor.
Será que ela chamava o gato de Viola também?
Filmagem
Mas ela contou. Não quando seria lógico ou justificável, mas quando sentiu
que havia chegado a hora. Se Emerenc acreditava em alguma coisa, era no
tempo, em sua mitologia pessoal, o Tempo era o moleiro de um eterno
moinho, que peneirava os eventos da vida do saco que cada um leva para
moer. Ninguém ficava de fora, de acordo com Emerenc, mas estava
absolutamente convencida, mesmo sem entender, que o trigo dos mortos
também era moído e despejado no saco, apenas são outras pessoas que levam
a farinha nas costas e fazem pão com ela. Depois de uns três anos chegou a
vez do meu saco, quando seus sentimentos não se manifestavam apenas sob a
forma do afeto, mas também da absoluta confiança. Todo mundo confiava em
Emerenc, mas Emerenc não confiava em ninguém, ou, para ser mais exata, ela
destinava as migalhas de sua confiança a alguns poucos escolhidos, dava ao
tenente-coronel, a mim, a Polett quando ainda era viva, ao filho de Józsi e a
alguns outros, alguns recebiam isso, outros aquilo. Ela confiava a Adélka o que
ela supunha que a outra entenderia e que lhe cabia saber, contava outras coisas
ao tenente-coronel, a Sutu ou ao faz-tudo, ela tinha me contado desde o
começo de nossa relação sobre a morte dos gêmeos, mas só bem mais tarde
descobri que isso ela jamais contara ao sobrinho, que achava que ela só tivera
um único irmão, o pai dele. Como se de dentro de seu túmulo quisesse
continuar chateando a gente, ela não entregou a ninguém a totalidade da
história, devia se divertir muito à nossa custa junto aos seus vizinhos no
cemitério, enquanto tentávamos juntar os pedaços que cada um de nós sabia.
Pelo menos três informações fundamentais ela levou consigo, o que
certamente lhe daria grande satisfação se nos visse, ainda não tínhamos
explicação para todos os seus atos e, pelo que tudo indicava, nunca teríamos.
Lembro com clareza o dia que ela escolheu para levar meu saco ao moinho
mitológico, porque era Domingo de Ramos e não fiquei nada contente quando
ela me parou a caminho da igreja, fiquei preocupada em atrasar. Eu faço um
longo caminho para conversar com o Senhor, na minha querida igreja de
menina, na avenida Fasor, que ainda conserva as lembranças de minhas
incertezas e alegrias de quando cheguei em Budapeste. Emerenc varria a
calçada em frente de casa, eu sabia, isso também era um recado, ela distribuiu
o próprio trabalho de modo a estar ali na minha hora de ir à igreja, para que eu
pudesse ouvi-la repetir seu refrão, é fácil ser um adorador de deus quando seu
almoço estará pronto e servido quando volta para casa. E me disse que eu
fosse até sua casa depois do almoço, quando tivesse me livrado dos meus
pecados, ela tinha um negócio para tratar comigo. Não fiquei nada encantada
com o convite, não apenas porque o Domingo de Ramos é um de meus
feriados preferidos, mas também porque, desde que minha mãe descansava no
cemitério de Farkasrét, minhas tardes de domingo estavam ocupadas. Pediu
que eu fosse às quatro. Às três, respondi. Balançou a cabeça, às três não dá, às
três vêm um amigo e o filho de Józsi. Então às duas. Impossível. Às duas ela
tem o almoço com Sutu e Adélka, não posso incomodá-las, eu precisava ir às
quatro, e pronto. Não comunguei naquele domingo porque me faltava aquele
silêncio interior, necessário tanto para confessar os pecados quanto para a
absolvição. Emerenc me deixou irritada, em vez de voltar mais tranquila, voltei
para casa mais tensa, e logo descobri que Viola não estava, a velha o levara
dizendo que também estava convidado para o almoço.
Emerenc era capaz de despertar em mim tanto os sentimentos mais nobres
quanto os mais grosseiros, só de pensar que a amava eu conseguia ficar tão
zangada que às vezes eu mesma me espantava. Acostumada que estava a só
contar com o cachorro até um certo ponto, eu podia não ter explodido se não
tivesse ouvido esse absurdo: ela tinha convidado o cachorro para almoçar! Isso
me irritou de tal modo que, do jeito que estava vestida para a igreja, corri até a
casa dela. Certa vez uma reunião da sociedade de escritores coincidiu com um
jantar de uma embaixada ocidental, para o qual atrasamos quase uma hora,
nunca mais nos convidaram, nos festejos nacionais até se desviavam para nos
evitar. Mas o comportamento da esposa do embaixador depois do jantar
poderia ser considerado um abraço afetuoso comparado à gélida empáfia com
que Emerenc me recebeu quando apareci sem ser convidada, ela estava
sentada, mergulhada na conversa com Sutu e Adélka, diante de uma mesa
ricamente arrumada. Assim que o portão de ferro rangeu quando entrei, Viola
correu em minha direção e fez festa para mim, Emerenc sequer se levantou,
apenas me olhou de relance, e passou a servir o caldo de frango. Sutu foi
deslizando para deixar lugar para mim no banco, a velha olhou para ela
sinalizando que não, não ficaria para o almoço. Perguntou por que eu tinha
vindo. Eu estava tão zangada que não conseguia formular uma resposta. Tudo
que pude dizer foi que tinha ido buscar o cachorro.
– Fique à vontade. Mas dê comida a ele, ele ainda não almoçou.
Viola pulava, balançava o rabo ao redor da mesa, o cheiro gostoso da sopa
impregnava o ar, encobrindo o cheiro do cloro e de outros produtos.
– Vamos! – eu disse a ele.
Emerenc continuou a servir. Pensei que estava tudo bem, pois Viola
obediente me seguia, sem olhar para trás, mas foi apenas até o portão, lá ele
parou, de novo balançava o rabo, quase dizia não me incomode sem motivo,
quero comer. Não me humilhei tentando dar ordens a ele, Emerenc o havia
programado tão bem quanto um aparelho de vídeo. Ele nem hesitou, virou as
costas e voltou como uma flecha para a mesa de Emerenc. Seu
comportamento me deixou tão nervosa que, em casa, não consegui engolir
nem a sopa, deitei na varanda com um livro, mas não entendia uma única frase.
Da minha varanda, que é um pouco mais elevada, via-se o pátio da casa de
Emerenc, eu não tinha a intensão de olhar, mas enquanto folheava o livro,
mesmo sem querer, eu via o que acontecia lá. Elas comiam, com a cabeça
próxima, conversavam, depois as duas foram embora, mas apenas quando o
filho de Józsi apareceu, seguido do tenente-coronel, a esses não serviu comida,
mas trouxe um vinho e uma travessa, provavelmente com doces. O filho de
Józsi se debruçou sobre papéis, que o tenente-coronel olhava junto com ele, o
que aconteceu em seguida já não sei, porque resolvi entrar em casa e tomei a
decisão de não ir lá, por mais que tivesse me convocado para as quatro horas,
não se divertirá à minha custa. Já passara das quatro, quatro e quinze, quatro e
meia, não olhava para fora para ver o que ela fazia, às quinze para as cinco
tocaram a campainha, meu marido abriu a porta, e entrou dizendo que o nosso
vizinho do térreo informara que Viola estava deitado na frente do portão, não
se mexe, não responde ao seu chamado, está sem a coleira e sem mordaça,
sendo domingo provavelmente não haveria fiscalização da prefeitura, mas seria
mais seguro ir buscar o cachorro.
Emerenc Metternich de Csabadul, mestre em manipulação! Lá, em sua casa,
agora ela provavelmente está rindo porque sabe que, sim, eu descerei, ainda
por cima, por causa de Viola, que não sairá do lugar enquanto não me vir, ou
até receber novas ordens de Emerenc. Ela deve ter lhe dito que viesse me
buscar e me levar até ela. Enquanto eu ia, lentamente, mais uma vez me
ocorreu que sua combinação única de habilidades e sua lógica pura não a
levava a lugar algum a não ser combater suas próprias possibilidades. Eu via
mentalmente Emerenc ao lado de Golda Meir e de Margaret Thatcher, e essa
imagem não me parecia esquisita, o que não consegui entender é porque ela se
camuflava. Se desse três voltinhas, tirasse o lenço da cabeça, o avental e depois
seu rosto e anunciasse que era tudo disfarce, uma máscara que, quando nasceu,
um comando divino ordenara que usasse, mas que, de agora em diante, não
precisa mais usá-los, eu acreditaria, por que não? Viola dançava em torno dela,
ele sabia melhor que ninguém não haver perigo, como tantas outras vezes,
Emerenc venceu a batalha e eu, na verdade, já nem estava mais zangada.
Sobre a mesa, um strudel sem cravo-da-índia recém-assado, coberto com
uma toalha de renda, esperava por mim, Emerenc sabia do que eu gostava. Ela
era bem mais alta que eu, uma cabeça e meia, olhou para baixo na minha
direção, não disse uma palavra, apenas balançava a cabeça, Viola e eu
entendemos que eu havia me comportado mal, que não tinha refletido o
bastante, apesar de já ser bem grandinha para saber que nada acontece sem
motivo. Emerenc mandou Viola para dentro de casa, o cheiro forte de
desinfetante, mais forte que o do lado de fora, passou pela porta aberta e se
misturou ao odor doce do strudel, ela me mostrou onde sentar. Diante dela,
um grande seixo redondo que servia de brinquedo para Viola era usado como
peso de papel, em cima de uma folha dobrada, que ela deslizou na minha
direção. De dentro da casa, não vinha nenhum ruído, pensei, Viola deitou,
queria tanto ver onde ele dorme, dorme em cima do quê, mas apenas ele tinha
permissão para entrar no meio do segredo, eu não. Recebi um sermão.
– A senhora tem um temperamento terrível – disse Emerenc –, como o
sapo, a senhora incha tanto, um dia ainda vai explodir. Não entende nada, só é
boa em mandar seu colega no helicóptero fazer dançar as árvores, numa
enganação. A senhora nunca entende o que é simples, quer sempre entrar
pelos fundos, quando a outra porta está bem na sua frente.
Não havia resposta possível a isso. Eu nem mesmo sabia se ela não tinha
razão.
– Estraguei o seu feriado, não é? Mas é um bom momento para resolver
esse tipo de assunto. É nesses dias que deve-se informar as pessoas sobre o
que deve ser feito depois de nossa morte.
Já sabia do que tratava o papel dobrado.
– Eu poderia ter chamado o patrão para vir junto com a senhora, mas nem
sempre nos entendemos, a senhora sabe bem. Não que não seja um bom
homem, porque ele é, só que ele gosta de ficar no canto dele, e eu também. Na
verdade, não nos gostamos de verdade, e teríamos eliminado a presença um do
outro em nossa vida. Não me interrompa, sou eu que estou falando agora.
Mais uma vez, seu rosto se transformou, parecia alguém parada sobre o
topo de uma montanha, banhada pelo sol, arrepiada ao perceber o caminho
que deixou para trás e o que restava a percorrer, olha para o vale do qual veio,
e ainda traz nos ossos o cansaço da caminhada, os perigos da viagem, das
travessias de rios e glaciares. Havia também compaixão naquele rosto, como se
tivesse um sentimento de pena: pobres de vocês, que ainda não sabem como é
o caminho, apenas que os picos ficam róseos no crepúsculo.
– Eu não podia convidar a senhora para almoçar, porque é parte
interessada nesse assunto, também não chamei meu sobrinho, só quando
combinei tudo com Sutu e Adélka e elas assinaram o documento. Trabalhei
para um advogado, sei como se faz um testamento. Não é muito complicado,
ele será válido, não se preocupe.
Advogado. Nunca falou sobre isso.
– Por que está me olhando assim? Eu lhe contei que meu avô me deu aos
treze anos para ser empregada, foi o advogado que me levou. Aos Grossmann
só fui levada mais tarde quando o advogado já não podia nem queria me
manter, porque crescemos os dois, eu e o filho dele. O motivo por não chamar
a senhora para o almoço não era para poupar comida, eu sei que teria sido
educado estarmos todas juntas, eu também aprendi no catecismo que Cristo
comeu sua última refeição com os amigos. Não pule, eu sei que foi um jantar e
não no Domingo de Ramos e sim na Sexta-Feira Santa, mas Cristo tinha
bastante tempo, e eu, não. Não podia convidar nem a senhora nem meu
sobrinho, porque vocês são os herdeiros.
A última ceia de Cristo foi em algum lugar na Bethânia, talvez na casa de
Lázaro, Bethânia ainda fazia parte de Jerusalém. Não queria ver essa imagem, o
testamento em suas mãos sagradas, à direita Sutu e Adélka, à esquerda, o
sobrinho e o tenente-coronel, diante dela, eu e Viola. Não queria ver, mas vi.
– Bom, preste atenção. Combinei com meu sobrinho, o dinheiro que vou
deixar, é dele. Dos parentes, não deixo nada para ninguém, porque, como a
senhora mesmo disse, não se incomodaram com os túmulos dos meus
parentes, enquanto eles ainda estão todos lá. Até agora, o filho do meu irmão
Józsi tem se mostrado de confiança, é ele que vai reunir os meus mortos
quando a cripta ficar pronta, e mandará me levar para lá também, a construção
e o transporte dos mortos serão pagos com o dinheiro que tenho guardado na
poupança dos Correios, o resto do meu dinheiro está bem guardado, a
caderneta está em casa. A senhora herda tudo que tenho dentro de minha casa,
meu sobrinho assinou diante do tenente-coronel que aceita, conforme ordenei,
e não questionou nenhuma decisão minha. É claro, a senhora não precisa das
coisas que lhe darei, nem saberia o que fazer com aquilo tudo, já que temos
gostos muito diferentes, mas, mesmo se soubesse, terá que se contentar com o
que lhe darei. Não é pouca coisa o que herdará. Não ouse me agradecer que
vou ficar furiosa.
Eu olhava pasmada para o meu colo, tentava calcular quanto custa construir
uma cripta e quanto custa exumar, mas conhecia apenas o preço das lápides,
minha família não costumava ser enterrada em criptas. Não gastei nem um
minuto quebrando a cabeça sobre o que vou herdar, esse momento era tão
improvável quanto um sonho. Emerenc se levantou, acendeu o réchaud sob o
vidro da cafeteira, seu café era sempre melhor do que o meu. Onde teria
aprendido, com qual dos patrões ainda não mencionados?
– Como a senhora está pensando na morte agora? – finalmente perguntei. –
A senhora não está doente, não é?
– Não. Mas ouvi no rádio que morreu o filho do advogado e isso me fez
repensar em tudo isso.
Quando criança, eu gostava de observar o voo das borboletas em círculos,
com um desejo feroz de vê-las pousar, pouse, pouse, pouse logo. Eu não
queria pegá-las, apenas ver de perto.
– Há dias que choram por ele na rádio, veja depois o enterro no noticiário,
não quero ver, nem irei ao cemitério, não, senhora. É uma pena que não
tenham me perguntado nada sobre o falecido, eu teria muito a contar. Quando
listavam o nome de todos que estavam de luto, pensei, é bom que sejam tantos
mesmo, porque não farei isso, ele também não quis saber de mim, fiquei
tempo o bastante largada como morta, quase não consegui renascer, paguei
caro demais. Então é por isso que escrevi o testamento, para que dividam
meus bens como é meu desejo, e para que ninguém roube nada do que juntei.
Já me roubaram uma vez, não vou deixar que me roubem de novo, eles podem
matar outro gato meu, mas minha fortuna e minha razão ninguém me tira.
Seus olhos estavam frios e brilhavam como diamantes. Jesus, pensei,
Emerenc escondia isso também, não apenas o senhor Brodarics, não apenas o
sujeito da polícia secreta, ele também, mas como e quando? A imprensa não
fala de outra coisa, o país inteiro está de luto. Quando terá sido? Talvez por
volta da década de 1930.
– A senhora poderá ver no cinema como é a esposa. Quando procuravam
por ele, veio bater à minha porta, ainda não estava noivo, eles devem ter se
conhecido depois, quando nada mais o ameaçava. “Eu vou me esconder na sua
casa, ficar clandestino na sua casa, eu estarei seguro, você é fiel e pura como
água.” Eu não perguntei quem o perseguia, o escondi no meu quarto de
empregada, naquela época os velhos já tinham me passado para os jovens
Grossmann, e eles não tinham ideia do que estava acontecendo, a senhora
pensa que a mãe de Eva se preocupava com o que acontecia no quarto da
doméstica dela, Evike ainda não existia, eles viajavam o tempo inteiro, saíam
muito, havia uma casa separada para os empregados na mansão, vivíamos lá os
dois. Beba o seu café, não fique me olhando assim, outras pessoas também se
apaixonaram. Quando ele fugiu para o exterior, pensei que enlouqueceria, mas
teria sido uma pena, eu o vi de novo no momento mais inoportuno possível.
Ele veio de madrugada, era noite de lua cheia, embora estivesse vestido de
uma forma estranha logo o reconheci, acho que nessas horas a gente enxerga
com o coração. Pois veja só, nesse momento as árvores e os arbustos se
mexeram, eu vi, conforme a lua iluminava seu rosto, que o pinheiro atrás dele
pulava e dançava, pensei que vinha por outro motivo, depois de tanto tempo
no exterior talvez tenha se dado conta de alguma coisa e agora volta para mim,
para sempre, ou talvez me leve embora daqui, já que se deu ao trabalho de
descobrir para onde fui depois que saí da casa dos Grossmann, era a única
razão para ele me procurar, mesmo que jamais tivesse prometido nada. Ele
nunca me fez nenhuma promessa, ele não era mentiroso. Mas logo esclareceu
por que vinha: para que eu lhe desse esconderijo de novo. Seus documentos
eram falsos, identidade, talão de alimentação ele tinha, tudo, só precisava de
um lugar provisório, porque ninguém cuidaria dele melhor do que eu para que
não fosse descoberto. E assim que pôde, foi embora, me deixou aqui. Agora
está morto.
Não consegui engolir o gole de café, só olhava para ela.
– Então, por vingança, me juntei com o barbeiro. A senhora não ouviu os
rumores? Eu teria aceito o diabo se ele me convencesse de que podia ser
desejada por um homem, mas devo ter algum problema, porque aquele não
apenas me deixou como também me roubou, e eu não era feia. Tanto faz. Não
morri por isso.
Ficou em silêncio por um tempo, enquanto cheirava uma folha de menta
que tinha esmagado entre os dedos.
– A gente não morre tão fácil, aprenda isso, a gente passa por um triz, e
depois tudo aquilo pelo que passamos nos deixa tão inteligentes que a gente
até gostaria de poder voltar a ser burra, burra como uma porta. Eu, porém,
fiquei mais inteligente, mas não se espante, porque me treinavam dia e noite.
Ele viveu comigo durante dois anos no quarto de empregada dos Grossmann
e, durante algum tempo, aqui. Quando eu tinha tempo ele falava, falava, falava
sobre tudo que sabia. A senhora consegue me imaginar escutando um
educador do povo até o fim?
Agora, esse assunto também entrava em pauta, seu anti-intelectualismo, seu
desprezo pela cultura.
– Ele foi embora, e depois que a guerra terminou, ele reapareceu, não para
morar aqui, para viver comigo, apenas para dar explicações, mas não era o que
eu queria. Eu queria outra coisa. Algo que coubesse no mundo novo, na
liberdade. Então disse que ele já tinha me ensinado bastante, que deixasse para
lá, ele queria me matricular na escola, mas poderia esperar por isso sentado,
indicou meu nome para algum tipo de honraria, eu disse que ninguém nunca
tinha visto escândalo igual ao que faria se aparecesse no Parlamento, o que ele
imaginava, que as coisas arranjadas lá com os amigos dele me interessavam, eu
o amava, e ele não me amava. Eu o amava, a senhora está me ouvindo? Não
seu espírito, sua sabedoria, porque foi essa que ensinou, aquela sua enorme
cabeça sabida, cheia de ciência, mas o seu corpo, que será enterrado depois de
amanhã. Agora tanto faz. A senhora não vai acreditar, mas ele disse que falava
muito sobre mim com a esposa, ele até quis nos apresentar, mas eu disse que
não, nada disso, que ficasse bem tranquilo com ela, que reconstruísse
Budapeste, e eu ia cuidar de construir minha vida. Me juntei com o barbeiro,
ele soube, ficou zangado. E eu fiquei feliz com isso.
Ela não parecia nada feliz. Seu rosto era uma máscara, a boca, dura e reta.
– A senhora tem ideia de como fiquei feliz quando em 1950 ele foi levado
preso e deram-lhe uma boa surra sob a acusação de que era espião para os
ingleses? Pensei: isso, batam, que sofresse como um cão, como eu. Ele nem
sabia inglês, os irmãos esculápios que o educaram só ensinavam francês,
alemão e latim, eu trabalhava para a família dele enquanto ele estudava, sei
bem o que ele estudou no ginásio. Que acusação idiota! Mas fiquei contente
porque sou uma pessoa má, burra e invejosa. Agora já passou, acabou. O
enterro será com honrarias, ele terá seu travesseiro de veludo, ele ganhou todas
as condecorações enviadas possíveis, húngaras e estrangeiras. Acho que não
me mencionou na sua biografia, mas eu estive lá também.
– Ele mencionou, Emerenc – eu disse e senti um cansaço tão imenso,
como se tivesse levado uma surra. Naquele momento eu entendi melhor do
que nunca a nossa história recente. – Não o seu nome, apenas disse que
durante muito tempo várias pessoas o ajudaram a se esconder, principalmente
uma verdadeira camarada admirável. Ouvi ontem na transmissão no rádio.
– Sempre foi uma pessoa correta – respondeu, seca. – Bom, chega de
conversa – pegou de novo o testamento. – Ele era tão corajoso, cheio de vida,
alegre, como se não fosse morrer nunca. E aquele montão de livros e aquela
sabedoria infinita! Quem ia querer aprender tudo aquilo, me diga? Eu,
certamente não. Por isso não pense que ele me traiu, vou repetir: ele nunca me
prometeu nada, lembre-se bem disso. Ele fez bem de se esconder na minha
casa. Do jeito que sou tonta, se tivesse tido a coragem de tocar em mim, eu
punha ele para correr. Bom, vá para casa, já a vi o bastante por hoje.
Pegou um prato e pôs uma generosa porção de strudel.
– O patrão gosta de doce.
Levantei, mas ela me segurou, abriu a porta um pouquinho, soltou o
cachorro. De novo, senti o cheiro peculiar que vinha lá de dentro. Senti que
Emerenc me olhava, olhei de volta.
– Mais uma coisa, não vai demorar – ela disse. – Tem mais uma herança, é
preciso que saiba disso também. Minha casa está cheia de gatos, eu os confio à
senhora. Não vai poder fazer nada por eles, pois, além de mim, só conhecem
Viola, ninguém mais. Se forem soltos na rua, não sobrevivem, porque acham
que os cachorros são amigos. O seu veterinário é uma boa pessoa, que dá
vacina em Viola, mande dar uma injeção nos pobrezinhos, quando eu morrer.
O maior presente que se pode dar a alguém é impedir que sofra. É por isso
que não abro a porta, porque o que aconteceria se descobrissem que tenho
nove gatos aqui dentro, mas não vou dar nenhum, e não vai haver outro
enforcamento aqui. São prisioneiros, mas estão vivos. Essa é minha família,
outra não consegui. Vamos, vá embora agora, tenho muito que fazer. A tarde
foi longa.
Jejum
Durante vários dias não consegui pensar em outra coisa, além do que havia
acontecido. Na tarde de Domingo de Ramos, Emerenc convocou uma reunião
do seu parlamento pessoal, e sem pedir nossa opinião ou comentários, e sem
nenhum prenúncio sobre a futura reunião, deu a público o seu edital, como o
papa. O fato de que o filho de Józsi tenha telefonado para nos encontrarmos,
sinalizava que ele tinha sido atingido pela mesma onda que eu. Pediu para
conversar, ele viria até minha casa, combinamos na terça-feira seguinte, era
importante tanto para mim quanto para ele. Ele estava preocupado com
relação ao dinheiro, porque Emerenc pelo jeito era dona de uma fortuna, e não
era aconselhável manter tudo isso em duas poupanças registradas em
cadernetas em sua casa, talvez fosse mais seguro aplicar o dinheiro em outro
lugar, porque, se qualquer um puser as mãos nas cadernetas, tanto o banco
como a poupança dos Correios dariam o dinheiro ao portador. Essas
cadernetas de poupança também me preocupavam, mas por outro motivo. Se
Emerenc por algum motivo perdê-las, fico numa situação impossível, pois sou
a única pessoa que Viola deixaria entrar em sua casa, e, francamente, não
precisava da suspeita inevitável que o filho de Józsi levantaria a meu respeito,
embora não tivesse nenhuma lógica. Quebramos a cabeça sobre o que fazer, o
jovem se preocupava com o dinheiro, eu com essa inesperada responsabilidade
que desabara sobre mim, e havia um curioso toque trágico, que Viola de
repente passara a ter papel relevante na república de Emerenc, ele era o
comandante da guarda, o chefe da segurança, o tesoureiro. Quanto aos gatos,
eu tentava não pensar no assunto, não era apenas o número que me assustava,
mas a minha tarefa depois da morte de Emerenc. Quem é capaz de fazer uma
coisa dessas? Eu não sou Herodes. O sobrinho sugeriu que Emerenc abrisse
uma conta para depósito no banco, que deveríamos tocar no assunto com ela,
mas na verdade ele se sentiria mais confortável que eu e o tenente-coronel
cuidássemos disso, ele não quer parecer que está ávido pelo dinheiro, apenas
gostaria de deixá-lo em segurança, nunca se sabe o que pode acontecer. O que
aconteceria se Emerenc um dia esquecesse de fechar o gás, ou se Viola
morresse, ou o velho sistema de aquecimento desse algum problema e
causasse um incêndio enquanto ela não está em casa? Prometi que pensaria no
assunto, e combinamos de consultar também o tenente-coronel. Depois disso,
não fiz mais nada – a gente tem pudores bobos às vezes.
Eu queria ter avisado Emerenc primeiro, de um modo sutil e delicado, mas
depois do Domingo de Ramos ela visivelmente me evitava. Ela conseguia se
esconder de nós naquele pequeno espaço de alguns quarteirões, como o
Homem Invisível, entre suas inúmeras capacidades constava a de desaparecer,
ela seria a cúmplice ideal de uma conspiração. Na Sexta-feira Santa, quando
costumo começar meu dia mais cedo, porque antes da missa gosto de dar uma
passada no cemitério, ela trabalhava em frente ao nosso portão com aquela
imensa vassoura de galhos. Ela me aconselhou a doar bastante dinheiro, em
dias especiais certamente conta o dobro, e deixaria as senhoras caridosas
contentes. Então, como não queria que me deixasse com raiva de novo, a
ponto de não conseguir comungar como da outra vez, caminhei mais depressa
para me livrar dela, até disse isso a ela, eu seria grata se pelo menos nas Sextas-
Feiras Santas ela me poupasse de seu cinismo, a tortura de Cristo já é uma
tragédia, se ela visse no teatro, não conseguiria deixar de verter uma lágrima,
além disso, se é para pedir um favor, eu faço sem esperar nada em troca, então
que me deixasse em paz, e quando terminar de varrer, por favor, faça a sopa de
ameixa, as frutas estão no aparador da cozinha. Emerenc apenas me olhou,
sem dizer nada, depois me ofereceu a vassoura, dizendo que o cabo era bem
duro, se eu não queria ajudar a varrer, só para experimentar. Já que ia à igreja
para chorar e lembrar, não me faria mal também trabalhar um pouco, sofrer
um pouco varrendo, porque a vassoura é pesada, o cabo de madeira machuca
os dedos, e para ela só aqueles que conhecem o verdadeiro trabalho têm o
direito de chorar por Jesus. Nem olhei para ela, corri em direção ao ônibus, a
tristeza serena da manhã evaporou de dentro de mim, por que essa mulher
sempre me ataca tanto? Como ela podia rejeitar uma religião respeitável, todo
seu passado histórico e seu esforço para o bem, por conta de um pacote de
doação mal distribuído?
Com esses comentários sarcásticos ela compensa, comecei a refletir, mas
meu pensamento foi interrompido, porque imediatamente percebi, isso não é
verdade. Emerenc não está compensando nada, a coisa é mais complicada,
mais fascinante, Emerenc é generosa, dá suas coisas a quem necessita, é boa
pessoa, mesmo negando Deus, ela o honra com seus atos, Emerenc é capaz de
sacrifícios, coisas para as quais eu tenho que me esforçar para ela são naturais,
e também não importa que ela não tenha consciência disso tudo, a bondade de
Emerenc é nata, fui educada para seguir certas normas éticas. Emerenc algum
dia vai ser capaz de me demonstrar, sem dizer uma única palavra a respeito,
que o que eu acredito ser religião é uma espécie de budismo, um mero respeito
pela tradição, minha moral é apenas disciplina, resultado de treinamento no
pensionato, na escola, na família e meu mesmo. Meus pensamentos de Sexta-
Feira Santa foram simplesmente detonados.
Ela foi na frente, eu a segui, Viola rapidamente se enfiou pela fresta da porta.
Nos primeiros momentos, enquanto meus pés tateavam no profundo negrume
da incerteza, ela não acendeu a luz. Viola arfava, gemia, ao lado de sua voz
familiar ouviam-se pequenos ruídos, tão baixinhos que pareciam ratos
andando na pontinha dos pés de madrugada. Parei, porque não tinha coragem
de dar mais nenhum passo, eu nunca caminhara em um ambiente tão escuro.
Mais tarde, pensei nas venezianas que, desde que moramos aqui, ninguém
jamais viu abertas.
A claridade que nos inundou em seguida era crua, não amarelada, mas de
um branco estrondoso. Emerenc não economizava, a lâmpada devia ser pelo
menos de 100kw. O cômodo no qual estávamos era grande, espaçoso,
limpíssimo, recém-pintado, havia um fogão a gás, pia, uma mesa, duas cadeiras,
dois armários grandes, uma imponente poltrona estofada com tecido em tiras,
um pequeno sofá de veludo violeta que já vira dias melhores, antigamente
conhecido como namoradeira. A casa era limpa, tão limpa quanto a fileira de
copos atrás da cortina transparente do velho bufê, havia também uma
geladeira, é verdade que de modelo bem antigo, fiquei pasma, me perguntando
onde ela arranjava gelo, por aqui já não passam vendedores de gelo faz tempo.
Viola se escondeu embaixo da namoradeira, o que sinalizava que a tempestade
ainda iria piorar. O cheiro que reinava no ambiente, a habitual mistura de cloro
e outros produtos para perfumar ambientes, era sufocante, mas, fora isso, o
aspecto era de uma cozinha e sala de estar mobiliadas com amor e cuidado,
que não guardava nada de particularmente bizarro ou que precisasse ser
mantido em segredo, mesmo sendo escondida de olhares curiosos. A não ser
um elemento da decoração colocado em posição pouco usual, que separava o
cômodo que seria a sala de estar do resto: uma enorme porta de cofre, que, a
menos que os ladrões viessem em bando, ninguém conseguiria mover dali. O
antigo cofre dos Grossmann, pensei eu, e lá dentro devem estar os móveis que
deixaram para ela, mas quem consegue entrar lá? Nem mesmo ela, se não pedir
ajuda. Lá fora, o céu retumbava e chovia forte. Emerenc estava pálida, mas se
continha. Mais tarde, descobrimos que o cofre estava cheio de pequenos potes
vazios.
Olhei em volta, perplexa. Havia até um vaso com flores, sobre o piso de pedra
brilhante de tão limpo, pequenos pedaços de tapetes, como se alguém tivesse
cuidadosamente recortado o que sobrara de um velho tapete persa para
guardar o que era utilizável. Foi nesse momento que percebi o que Emerenc
escondia do resto do mundo, a fileira de tigelas e de bandejas com areia,
acessórios indispensáveis para a higiene dos gatos. Sob a pia, ao lado do bufê e
perto de um canto, nove potinhos esmaltados, alguns com sobras de comida, e
nove pequenas vasilhas, e, entre os dois armários, como uma escultura, o
manequim de provas de minha mãe. Parecia uma marechala nua, que não usa
outra coisa senão suas condecorações: estava todo coberto de fotografias
espetadas nele. Uma imagem recortada de jornal velho chamou minha atenção,
um rosto entusiasmado de um jovem, vestido à moda antiga.
– Sim, é ele – respondeu Emerenc, embora eu nem tenha perguntado. –
Quando foi embora, achei o gato malhado, que foi enforcado. Não fique com
pena de mim, não mereço. Não se deve amar tanto assim, nem gente nem
bicho.
Viola gemia em resposta a cada trovão.
– Encontrei outro gato, no bairro sempre há alguns sobrando, jogam fora,
põem para correr, primeiro ficam com eles para dar para as crianças
brincarem, quando começam a crescer levam para longe, abandonam em
algum jardim desconhecido. Como ia dizendo, arranjei um outro para
substituir o enforcado, e esse foi envenenado, provavelmente foi a mesma
pessoa que enforcou o anterior. Aí, eu não disse mais nada, entendi que meus
gatos não tinham mais que sair, então ficam aqui dentro, como cães de luxo, só
consigo preservar a vida deles entre quatro paredes. Eu não tinha tantos
animais no começo, não sou louca, querer mesmo, só queria o primeiro, o
velho, que mandei matar logo para não sofrer mais, o segundo ficou doente e
ficou vadiando aqui por um tempo, quando consegui curar, não tive coragem
de mandar embora, eles eram todos tão meigos, carinhosos, ficavam contentes
quando eu chegava, se não temos ninguém que se alegre quando voltamos
para casa, é melhor nem viver. Mas mesmo sob tortura não saberia dizer como
viraram nove. Um eu encontrei no fundo do Poço do Diabo, estava lá
gritando, tentava escalar, mas sempre caía de volta, dois me foram dados pelo
lixeiro, puseram dentro de saco plástico e jogaram no lixo, pensei que não
iriam sobreviver, mas eles se tornaram os mais bonitos, o cinza foi herança do
sujeito que conserta o aquecedor, os três brancos e pretos são filhos daquele
do Poço do Diabo, parecem palhaços. Cada nova ninhada eu mato, porque o
que mais posso fazer, mas esses três palhaços não consegui. Eles têm uma
estrela no peito, uma coisa assim não dá para enterrar.
Viola está morto faz tempo, guardo muitas fotografias, com frequência o
anoitecer me engana, no jogo de luz e sombra na rua, sinto pequenas batidas
rítmicas, quando, na verdade, só há silêncio, apenas imagino que ele está vindo
rápido atrás de mim, suas unhas estalando, ou ouço sua respiração curta e
quente. Mas sua imagem também me volta em alguns domingos, quando na
janela inteiramente aberta por causa do verão, sobre o parapeito, por trás dos
vidros de pepinos, se eleva o cheiro do caldo de carne e de alguma torta,
ninguém prestava tanta atenção à cozinha quanto ele, com tal devoção, ele
observava as transformações da matéria-prima, ninguém era capaz de tirá-lo
do lado do fogão, ninguém nem queria, porque Viola, na hora de cozinhar, era
um devoto e disciplinado observador, sempre à espera de algum bocado
excepcional. Seu desejo tinha um som especial, um quê de suspiro, qualquer
um que ficasse perto do fogão sempre se comovia com tal expressão de
tristeza e lhe jogava alguma coisa. Esses suspiros também voltam com
frequência nas minhas lembranças.
Na verdade ela tinha razão, mas mesmo assim não fazia bem ouvir aquilo tudo.
O favor que me pediu, que após sua morte eu exterminasse seu zoológico, eu
teria feito para qualquer um, embora no fundo do coração esperasse que,
quando chegasse a hora, a ménagerie já tivesse diminuído ou se dissolvido, e que
ela não fosse louca a ponto de arranjar novos animais, esses nove já me
horrorizavam o bastante. Realmente, não foi fácil, mas eu não podia fazer nada
a respeito: quem dava as cartas da nossa relação era ela, e regulava o
termostato que instalou, com economia e racionalidade. Tínhamos relações
desse tipo com casais de diplomatas, uma troca de cortesias simpática, antes de
qualquer encontro, revíamos as regras tácitas das missões diplomáticas,
contínhamos as emoções, diplomatas mudam de cidade a cada três anos, não
podem se permitir estabelecer relações para a vida toda com pessoas locais, é
preciso dosar a simpatia, mas, enquanto vivemos naquele local, aproveitemos
sua presença, já que é tão agradável estar em sua companhia.
Essa convenção diplomática foi aceita apenas por nós três, o quarto
membro da família, Viola, não aceitou. Num ataque de raiva súbito, uma vez
Viola mordeu a velha e recebeu de volta uma surra tão violenta com uma pá,
que quebrou uma costela. Viola tolerava os toques do médico ao fazer o
curativo urrando, no colo de Emerenc, e ela ia explicando a ele: “Bem-feito,
não tente me explicar que é época de cruzar, não chore, seu maldito, você teve
o que merecia. Vamos, abra essa boca medonha!” O doce que ganhou como
recompensa sumiu rapidamente entre seus dentes fortes e brilhantes. Emerenc
impunha como condição aos que a amam que ela fosse a atriz principal de sua
vida, entre as pessoas que ela julgava importantes, apenas o cachorro
considerava isso natural, e aceitava, mesmo quando a mordeu. De resto, nossa
vida em comum era mais harmoniosa quando um de nós enfrentava alguma
dificuldade, o que nunca nos faltou em casa, um de nós sempre ficava doente,
ou nosso corpo não conseguia combater um ataque, ou nosso sistema nervoso
informava que armas desleais eram usadas contra nós. Em tempos de crise,
Emerenc nos ajudava de maneira muito sensível, seus dedos atrofiados traziam
conforto e cura, não havia nada mais reconfortante do que quando, após uma
doença mais grave, ela nos banhava ou fazia massagem e nos cobria com
algum dos talcos cheirosos enviados por Eva Grossmann. Meu marido uma
vez formulou uma hipótese, nós deveríamos viver sempre à beira da morte, ou
ficar sentados numa piscina sem fundo de onde ela pudesse nos resgatar,
Emerenc viveria feliz e satisfeita. Mas, por outro lado, se algum dia
conquistássemos sucesso duradouro ou segurança relativa em nossa vida, ela
perderia o interesse, se não puder ajudar, ela não se sente necessária na vida.
Uma coisa que me agradava mas que nunca consegui entender é que, apesar de
nunca ler nada, as más notícias sobre o ambiente literário sempre chegavam a
ela, ao mesmo tempo que viravam nossa vida de cabeça para baixo, e nesses
momentos ela sempre indicava que estava a par do assunto, e nos
tranquilizava, ela se encarregara de transmitir a informação a todos da rua a
quem o assunto interessava, se ainda não soubessem, que aqueles que
conspiravam contra nós estavam agindo novamente, e exigia que seus
parceiros se movimentassem para prestar solidariedade e condenassem nossos
inimigos.
À medida que os anos passavam, nossa relação se fortalecia, Emerenc fazia
parte de nossa vida até a fronteira estabelecida por ela, continuou me
recebendo no pátio de fora de sua casa, assim como todos os outros, e nunca
mais me deixou entrar em sua casa. Seus outros hábitos também
permaneceram os mesmos, continuava a cumprir todas as suas tarefas, e
embora visivelmente já não fizesse as coisas com o mesmo empenho, não
parou nem de varrer a neve das calçadas. Às vezes eu tentava imaginar quanto
seria sua verdadeira fortuna e suspeitava que, mais do que um jazigo, o filho de
Józsi poderia construir um prédio inteiro para reunir a família. Emerenc dava
recompensas diferentes para cada um: o tenente-coronel ela admirava
profundamente, Viola ganhou seu coração, meu marido, seu trabalho
impecável – e ele também apreciava que ela mantinha minha amabilidade
interiorana dentro dos limites do razoável –, a mim, ela confiou uma tarefa
para o momento final de sua vida, que se aproximava, e legou a exigência de
que não fizesse mover os galhos com máquinas, com técnica, mas, sim, com
verdadeira paixão. Isso era bastante, um presente mais do que significativo,
mesmo assim, senti como sendo pouco, queria algo mais, queria, por exemplo,
poder abraçá-la às vezes, como fazia com a minha mãe antigamente, dizer a ela
coisas que não digo a mais ninguém, coisas que minha mãe, apesar de sua
inteligência e educação refinada, só compreendia com a sutil intuição do amor.
Mas não era assim que Emerenc precisava de mim, pelo menos era o que eu
pensava. Muito depois de Emerenc ter partido e não haver mais nenhum
rastro nem dela nem de sua casa, um dia a mulher do faz-tudo me viu levando
flores, provavelmente para o cemitério, e então me interpelou.
– A senhora era a luz de sua vida, era a filha dela – disse ela. – Pergunte a
qualquer um nas redondezas, ela lhe chamava assim: a menina. O que a
senhora acha, de quem ela falava sem parar, quando sentava para descansar um
pouco, coitada? Da senhora. Mas a senhora só via que ela tinha conquistado o
seu cachorro, separando ele da senhora, a senhora não percebia que ela passou
a ser para a senhora o que Viola era para ela.
Emerenc acompanhou a nossa vida por bons vinte anos, nesse período
passamos inúmeras semanas, às vezes meses, no exterior, ela cuidava da casa,
recebia a correspondência, atendia o telefone, recebia o dinheiro que chegava,
não levava Viola para sua casa nem por uma hora, por mais que gritasse, para
que a casa não ficasse vazia durante nossa ausência. Uma vez, quando
voltamos da Feira do Livro de Frankfurt, trouxemos para ela uma pequena
televisão. Já estávamos acostumados com seu hábito de não aceitar presentes,
mas imaginamos que, sendo um artigo que ainda não havia na Hungria, e que
levaria o resto do mundo para dentro de sua Cidade Proibida, seria tão
especial, ela certamente reagiria de outra forma: apenas ela teria um pequeno
aparelho como aquele em toda a rua. Chegamos na época do Natal, como
quando encontráramos Viola, naquela época a televisão ainda não transmitia
uma programação unicamente religiosa, preferiam encenações de manjedouras,
corais de crianças cantando músicas natalinas e, depois do horário do jantar,
passava algum filme bonito e romântico feito durante a guerra. Ela servia
nosso jantar, nós imaginávamos que ela demonstraria sua felicidade, mas ela
não correspondia a essa expectativa, só me olhava de um modo misterioso e
sério, como se quisesse dizer alguma coisa, mas que não diria. Eu me sentia
eufórica: ela aceitara nosso presente. Despediu-se, desejou boas festas e foi
embora. Foi um belo Natal naquele ano, como nos cardápios de sorvete dos
meus tempos de criança, bolas de neve grandes e macias rodopiavam lá fora.
O inverno sempre fora minha estação favorita, encantada, envolvida pela
atmosfera dos Natais de antigamente, eu fiquei à janela, imaginando Emerenc,
contente com sua televisão, agora sentada em sua casa com o coração em
festa.
Acho que tudo que aconteceu depois foi em consequência do que ocorreu
naquela noite, como se o céu tivesse jogado o presente de volta em nossa cara,
ou como se o deus de Emerenc, o qual ela sempre ofendia e negava, mas que
zelava por cada passo dela, quisesse me oferecer uma última oportunidade,
quem sabe eu o visse também, se porventura eu o olhasse. Estávamos à janela,
acima do poste de luz da rua, cuja iluminação invadia a casa mesmo durante
uma feroz tempestade de neve, observando com espanto o inverno e os flocos
de neve dançantes, quando a imagem de Emerenc entrou nadando no cenário,
ela varria, o lenço na cabeça, os ombros, a capa grossa sobre suas costas, tudo
era branco, ela varria na noite sagrada de Natal, porque a calçada não podia
ficar sem limpar.
Um rubor subiu pelo meu rosto, Emerenc vista de cima parecia o
espantalho de O Mágico de Oz. Meu bom Jesus, que nascestes agora, que tipo de
presente eu trouxe para essa velha senhora, quando ela poderia sentar em casa
calmamente, se ela é sugada pelas suas tarefas vinte e quatro horas por dia? É
por isso que nos olhara de modo tão machucado e estranho, se o tecido de sua
vida emocional não tivesse sido tramado com uma linha mais fina e mais
sensível que a minha, ela poderia ter recusado o aparelho, ou nos perguntado
se poderíamos varrer a rua por ela, ao menos de vez em quando, ou acabar de
lavar as roupas, porque, até acabar com suas obrigações e poder sentar no seu
sofá, a transmissão já teria acabado. Não tínhamos coragem de dizer nada,
meu marido percebeu a mesma coisa, já estávamos envergonhados até de olhar
pela janela, viramos as costas para a vassoura de Emerenc, Viola arranhou a
porta da varanda, queria sair, mas não deixei. Não fizemos nenhum
comentário, para quê, não era preciso falar, e sim fazer qualquer coisa, nós
voltamos para nossa televisão, e até hoje não consigo me perdoar, porque
cheguei a perceber o que deveria fazer, mas parei no pensamento. Sempre
soube filosofar, nunca tive vergonha de reconhecer meus erros, mas mesmo
sendo mais jovem e mais forte que ela, não tive a presença de espírito de
descer para varrer no lugar dela, de mandá-la entrar para assistir à televisão, e
no entanto eu sabia varrer, dancei bastante com a vassoura no interior, era eu
que mantinha a frente da nossa casa limpa quando menina. Mas não, não desci.
Era Natal, eu gostava dos doces para variar meu paladar usual de salgados, e
dos belos filmes românticos, depois de tantas produções existencialistas ou
grotescas.
A intervenção
Sim, acho que foi aí que tudo começou a desmoronar. Em algum momento
nos últimos dias de fevereiro, Emerenc pegou a gripe cujo vírus vinha se
alastrando desde o fim do outono, mas é claro que permaneceu firme e forte,
nem deu atenção, e foi um inverno com muita neve naquele ano, ela investiu
toda sua energia em manter as ruas limpas, apesar da tosse que quase a
sufocava, todos devem ter ouvido. Sutu e Adélka se revezavam para lhe dar
vinho quente com especiarias como se fosse um chá, Emerenc tomava o
álcool açucarado, e de vez em quando parava, se apoiava na vassoura, para
longas crises de tosse. Adélka cuidou dela até ela mesma cair de cama e passou
tão mal que foi levada para o hospital, Emerenc ficou visivelmente aliviada por
não vê-la mais aparecendo toda hora, Sutu era mais discreta em sua
solidariedade, mas a boca ágil de Adélka não parara de funcionar, e Emerenc
não gostava nada de escutar a rua inteira ouvir suas declarações: essa pobre
velha não dorme há dias seguidos por causa dessa maldita neve que não para
de cair, precisa voltar em algumas casas para refazer o serviço, e fica patinando
de uma casa a outra, doente desse jeito. A minha antiga colega de escola, que
foi quem me indicou Emerenc, um dia veio falar comigo, pediu que a
convencesse a ir ao médico e, principalmente, de que se deitasse e parasse de
varrer a neve, senão acabaria mal, ela ouviu a tosse, em sua opinião, não é mais
uma gripe, e sim pneumonia. Emerenc lutava para respirar, quando peguei em
seu braço para que ela finalmente parasse de varrer e prestasse atenção em
mim, gritou comigo, me deixe em paz, se quer mesmo me ajudar, cuide da
senhora e de seu marido, faça a arrumação e a limpeza, cozinhe, enquanto essa
maldita neve não parar de cair tão intensa, ela não podia deixar as ruas, ela não
queria descansar, que ideia mais idiota dizer que ela se deitasse, eu sabia muito
bem que ela não tinha cama, além disso, para que se deitar se a qualquer
momento podem chamá-la para abrir, os moradores tinham a chave, mas pode
aparecer algum oficial ou desconhecido, então, durante a noite, de qualquer
modo, era melhor ficar sentada, é a posição em que as costas lhe doíam menos,
faça o favor de não se preocupar comigo, porque isso me irrita, ninguém tem
nada a ver com isso, se ela se deita ou não e o que ela faz ou deixa de fazer, ela
também jamais me perguntara para que tanto produto de beleza no banheiro,
quando alguém já está tão velha, como eu. Minha colega de escola e o médico
que fossem se deitar, que nenhum desses miseráveis se levantasse para vir
dizer o que ela devia fazer.
O rosto de Emerenc tinha duas rosáceas na bochecha, de febre e de raiva,
ela continuou varrendo com mais ímpeto, como se tivesse um problema
pessoal com a neve que apenas ela podia resolver. Sutu e a mulher do faz-tudo
levavam comida para ela, dava para todo mundo, ela gritou atrás de mim, que
eu não ficasse preocupada, ela odeia ser vigiada. Pensando bem, ela nunca
tivera em toda sua vida um ataque de nervos, mas se agora a incomodassem
demais, talvez experimentasse como é. Ela engasgou de tanto tossir, depois me
deu as costas. Agora não queria mais que Viola ficasse perto dela, disse que
não tinha tempo de correr com ele e não era bom para o cachorro ficar ali em
pé, eu deveria levá-lo para o calor de minha casa, não queria que ele também
pegasse a gripe.
Para nós também, aquele foi um ano singular. Em seguida àquele Natal em que
demos a televisão de presente, minha vida começou a desanuviar. Logo depois
do Ano-novo, foi como se uma mão invisível voltasse a abrir aquela torneira
misteriosa, da qual escorrem as coisas boas e más para a vida das pessoas, que
às vezes são fechadas, às vezes são abertas. Naquele momento, a torneira dera
uma nova virada e fluía. Não foi nada espetacular, mas era perceptível, nunca
antes em minha vida eu tivera tantas coisas para organizar e resolver como
então, e eu não me dei conta do motivo até quase o final. Durante vários anos
fiquei restrita, por forças externas, a um círculo invisível, mas quase palpável, e
demorei para aceitar que alguma nova decisão fora tomada em algum lugar, a
barreira que esteve sempre fechada para mim estava sendo levantada, a porta,
na qual desistíramos de bater havia longo tempo, se abria por conta própria, se
eu quisesse, poderia entrar. No começo, nem mesmo tentei interpretar os
sinais, Emerenc varria, tossia, eu fazia compras, cozinhava, punha em ordem
os quartos, alimentava e levava o cachorro para passear, e ficava pensando por
quê, de repente, esta instituição ou aquela outra me pressionava tanto com
pedidos justo agora. Embora as condições de Emerenc exigissem que se
consultasse com um médico, assim que eu levantava o assunto, ela gritava
comigo, saia do meu caminho, todos têm o direito de tossir. Enquanto a neve
caísse, ela teria o que fazer na rua, chega, se estou conseguindo dar conta de
minha casa, até que ela possa voltar a trabalhar, está ótimo, mas eu não devia
incomodá-la falando de remédios e médicos, era perda de tempo. Besouros
correm assim, quando perseguidos, como eu fazia entre um afazer e outro, as
mãos hábeis de Emerenc não estavam ao meu dispor, porém todas as redações
de jornais deram para aparecer na mesma hora, fotógrafos me procuravam, me
fotografavam, e, então, comecei a perceber que alguma coisa excitante se
aproximava, se quisessem me ferir, a confusão teria outro tom, as críticas eram
todas extremamente elogiosas, o mundo nunca se interessara tanto por mim
como agora. Preciso sempre ir a algum lugar, os jornalistas me ligam a toda
hora, gente de rádio e televisão sempre está atrás de mim. O mundo virou de
cabeça para baixo. Nem quando meus colegas começaram a fazer pequenas
observações eu percebi, mas, certa manhã, depois de um telefonema de um
lugar importante, finalmente meu marido se pronunciou. Nunca, nem antes
nem nos momentos logo depois do nosso casamento, vi aquele brilho em seu
olhar, como naquele instante. O prêmio. É claro que era o prêmio. Já
estávamos no meio de março, esses sinais, principalmente o último, um
telefonema amigável que na verdade tinha outro objetivo, não falavam de outra
coisa, a notificação oficial deve chegar a qualquer momento. Eu devo ficar
feliz, muito feliz! Afinal era o fim de décadas de luta e resistência. Vamos,
sinta-se feliz!
Emerenc não abria a porta, não se manifestava, quando alguém batia na porta,
ficava irritada, gritava que não a incomodassem. Sua voz perdera a força,
mudou de algum modo, não estava velada, mas estranha, espinhosa.
Continuava não permitindo a entrada de médicos, eu sabia melhor do que
ninguém por quê. As comidas recebidas aguardavam no banco, no começo ela
recolhia, pois os pratos reapareciam lavados, mas comecei a me preocupar de
verdade quando ela não saía mais para buscar a comida, que ficava lá fora, as
travessas da rua toda, enfileiradas. Se a cutucavam respondia que não tinha
apetite e que a geladeira estava cheia. Sua fala havia perdido a modulação e era
entrecortada, pensei que talvez estivesse se tratando com muito álcool. Eu
sabia que não era verdade o que ela dizia, a geladeira dela não era elétrica e na
rua já não se vendia gelo havia muito tempo. Como na cena da varrição de rua
no Natal, de novo só assimilei uma parte do que registrei, que ela estava
mentindo, mas não parei para pensar do que estariam vivendo ela e os nove
gatos. Talvez tivesse guardado das comidas anteriores, eu torcia para isso, já
que no começo recebeu tanta coisa, talvez suas travessas estejam cheias, no
vão das janelas é bem fresco, os restos talvez se conservem aí. Não fiquei
pensando muito no assunto, sempre tinha algum lugar para correr, estavam
sempre me esperando e me procurando, ia lá diariamente à sua porta, fazia
propostas, eu posso chamar o vizinho, o professor de medicina, mas eu sabia
de antemão, ela vai me dispensar, e descobri, quando ela de fato me dispensou,
que simplesmente não cabia em minha vida nenhuma outra ação. Minha
intuição, por sorte, estava funcionando, e tentei encontrar o tenente-coronel
para que ele pelo menos soubesse o que estava acontecendo, que Emerenc
estava doente, ele não estava na polícia, estava de folga, não podiam revelar
onde passava suas férias, avisei o filho de Józsi, ele foi até lá, mas também não
conseguiu entrar, deixou no pátio limões, laranjas e uma travessa de repolho
recheado. Finalmente o senhor Brodarics veio até a nossa casa uma noite e
perguntou se eu sabia há quanto tempo a velha senhora não aparecia no pátio
de sua casa, porque já era fim de março e, se ele estava fazendo a conta certa,
fazia duas semanas que aquela porta não era aberta. Os moradores estão
aflitos, têm medo de que aconteça alguma coisa se não levarmos um médico,
algum tipo de ajuda, mesmo contra a vontade dela. O senhor Brodarics
também chamou a atenção para o fato de que só se tinha acesso ao banheiro
pelo pátio, como eu bem sei, ela mantém o lugar trancado com cadeado, mas
ela não o tem usado, a entrada da casa está toda coberta de neve, e não tem
marca de passos da porta para fora há vários dias, apenas dos passos das
pessoas que entravam para deixar comida. Como Emerenc fazia suas
necessidades? Um cheiro forte emana da casa na altura da porta da cozinha,
ele está com maus pressentimentos, não podemos tolerar sua reclusão
maníaca, é preciso fazer alguma coisa. Se ela insistir em não permitir a entrada
de algum morador ou de um médico, vão arrombar a porta. Um oficial já
tentara entrar, Adélka foi quem o levou logo cedo, mas ela o espantou,
segundo Adélka, Emerenc estava quase sem voz, e ela sussurrou que gostaria
de fazer uma queixa pois estava sendo incomodada. O senhor Brodarics me
pedia que eu por favor me juntasse a essa equipe de ajuda humanitária, e
depressa, a pobre coitada vai morrer.
Fiquei arrasada de desespero. Ninguém tinha sido admitido naquela casa sem a
permissão dela, a não ser eu, apenas aquela vez, e, se descobrir que estamos
tentando entrar à força, não podemos prever o que irá acontecer. Estava tão
assustada que finalmente pensei em uma saída, disse ao senhor Brodarics que
esperássemos até o dia seguinte, eu preciso falar com ela sozinha, olho no
olho, então eu os informaria se daria certo o que planejei, se não,
continuaremos conferenciando. De tarde, corri até lá, gritei no vão da porta,
prometi que, primeiro, manteria minha palavra e não a abandonaria, aquele
motivo pelo qual ela não queria abrir a porta, ninguém vai entrar lá, eu
entrarei, resolvo tudo que tem que ser resolvido, mas ela precisava sair de lá,
ninguém vai obrigá-la a ir ao hospital se ela não quer ir, ficará conosco, no
quarto de minha mãe, com Viola. O médico tinha sido avisado, ele viria
examiná-la, ela vai se recuperar rapidamente com os remédios. Até sua voz se
fortaleceu de tão revoltada que ficou com minha sugestão, não gaguejou mais,
gritou que se não a deixássemos em paz, assim que se recuperasse, nos
denunciaria por assédio de vizinhança; nós éramos um bando de insolentes,
infames, enxeridos, ela tem o direito de convalescer pelo tempo que for
necessário e ficar deitada ou sentada onde quiser, eu não darei um passo para
dentro de sua casa, e ninguém mais, e, se desobedecerem assim mesmo, a
pessoa deve contar com o fato de que ela tem uma arma, e matará quem
entrar. Ela me enxotou, fui para casa horrorizada, o senhor Brodarics veio em
casa com o faz-tudo, o filho de Józsi também chegou, eles decidiram arrombar
a porta, o médico esperaria do lado de fora, o sobrinho disse que não a levaria
para a sua casa porque tinha medo que ela passasse alguma coisa para sua
filhinha, mas que ajudaria a carregá-la para nossa casa. Eu só precisaria
conseguir que ela abrisse um pouquinho a porta, que a fizesse girar a chave, o
resto seria por conta deles. Meu marido não disse uma palavra contra, embora
tivéssemos decidido e planejado tudo sem consultá-lo, ele apenas não entendia
uma coisa, por que eu ficava tão devastada com o fato de quebrarem a porta,
se depois a consertariam, afinal não é novidade que a velha não vai abri-la de
jeito nenhum. Emerenc nunca foi exatamente um modelo de comportamento,
o que há de tão inusitado que ela teime em se retirar, como Aquiles? Tínhamos
que salvá-la contra a sua vontade. Traga ela para cá, se ela estiver disposta a vir,
não que ele goste quando há estranhos na casa, mas isso agora não vem ao
caso, é preciso cuidar da velha, mantê-la em lugar aquecido, quem deixá-la à
própria sorte vai se arrepender até a morte, é disso que não temos como
escapar. Mas meu pânico era irracional, afinal, eu gostava dela, por que a ideia
de trazê-la para cá por um tempo me assustava a ponto de me fazer chorar?
Não respondi, nem poderia. Apenas eu conhecia a Cidade Proibida de
Emerenc.
O médico, o senhor Brodarics e eu decidimos que esta última noite ela deveria
passar em casa, no dia seguinte, depois que o médico terminasse suas
consultas, entraríamos em ação. Não foi fácil ultrapassar a noite, as horas
passavam com dificuldade, eu, na verdade, ainda estava em dúvida, mas depois
decidi: não posso fazer outra coisa, se não receber cuidados médicos, é o fim,
só posso salvá-la desse modo, traindo-a. Emerenc tem uma saúde de ferro,
talvez não seja tarde demais, se eu for jeitosa, posso até conseguir preservar
seu segredo, apenas será um trabalho desumano, exigindo uma série de
mentiras bem concatenadas e grande energia. Fui até lá de madrugada, bati na
porta, pedi apenas que de tarde aparecesse por um minuto diante da porta,
para tranquilizar a vizinhança, não é inteligente não deixar que ninguém a veja,
ficam imaginando a situação pior do que está, ninguém podia admitir que ela
se deixasse ir embora, porque, como sabe, todos gostam muito dela. O meu
plano era que abrisse a porta, só uma nesga, o médico entra depois de mim,
pega o seu braço, a puxa para fora, e o faz-tudo, o senhor Brodarics e o filho
de Józsi, com a minha ajuda, a transportam para minha casa. Respondeu que
queria mesmo entrar em contato comigo, que não pisaria para fora da porta,
mas que eu colocasse perto dela uma caixa comprida e estreita, o gato mais
velho morreu, o castrado, que eu precisava enterrá-lo. O médico não é
necessário, ninguém pode se aproximar de sua casa, se não acreditam que ela
está viva, podem todos se enforcar, vão acreditar quando me virem trazendo a
caixa, eu que dissesse que estou levando a roupa suja, isso seria suficiente para
os vizinhos xeretas. Era difícil entender a sua fala sussurrada e mal articulada,
mas, quando entendi, de novo senti que estava enlouquecendo. Nunca em
minha vida guardei uma caixa sequer, onde encontraria agora um caixão
mortuário para um gato e, ainda por cima, cheia de afazeres até o pescoço,
como lidar com o cadáver de um animal? É claro que prometi que cuidaria
disso, chegando em casa pesquei uma velha maleta do nosso porão, meu bom
humor até voltou, a morte do gato tornou a tarefa mais fácil. Enquanto
Emerenc me entrega o corpo, a porta será aberta, o médico pode pegá-la pelo
braço, o problema agora passara a ser a sincronização do horário, o médico só
pode naquele horário, e logo em seguida eu tenho que ir para a televisão, que
fará um programa sobre mim, me pediram para estar lá às quatro da tarde, o
carro vem me buscar às quinze para as quatro, o médico não pode vir nem um
minuto antes, mas às quinze para as quatro em ponto vai estar na porta de
Emerenc. Eu a chamo, a velha abre a porta, entrego a caixa, recebo o gato,
nesse minuto o médico aparece, e os três homens a puxam pela pequena
abertura da porta, levam Emerenc para minha casa e eu poderei ir para a TV.
Eu estava verde de nervosismo, engolia os tranquilizantes como bombons,
apesar de que, naquela manhã e antes do horário do almoço, tudo parecia tão
simples, até me envergonhava que essa solução tão prática não tivesse me
ocorrido antes.
Arrumei a cama no quarto de minha mãe, acendi a lareira, jornalistas
apareciam toda hora, alguns se surpreendiam com o clima de faxina, um
quarto que não fora usado no inverno inteiro sendo arrumado e aquecido,
Viola latia sem parar. Agora já sei por que nem cogitei a possibilidade do
fracasso, pela primeira vez na vida eu estava sob holofotes que brilham ao meu
redor, essa luz me ocupava, todo o resto chegava a mim apenas parcialmente.
Na verdade, nenhuma pessoa duvidaria da execução de meu plano, todos
sabiam como Emerenc gostava de nós, o quarto de minha mãe estava
disponível, Viola ficará feliz, e a velha me conhece, nem em seus momentos
mais sombrios ela duvidaria de que, se eu prometi, ninguém entraria em sua
casa, e que se eu assumira responsabilidade pelas criaturas que ali viviam, eu
cumpriria minha palavra. Na verdade, havia um único momento que me
preocupava, quando ela descobrisse que não sou só eu, em pé ao lado da
porta, a única pessoa do mundo em cuja palavra ela acredita, mas mais alguém,
o arqui-inimigo, o médico. Isso me apavorava mais do que aparecer na
televisão, e no entanto me dá uma crise de pânico ao pensar na ideia de estar
diante da câmera, tenho tremedeira e suo frio.
Era o finalzinho de março, fazia frio, mas com uma deliciosa fragrância de
violetas, Emerenc tinha várias em seu jardim, o gramado sob sua janela estava
completamente lilás. Bati na porta, o médico, o senhor Brodarics, o faz-tudo e
o filho de Józsi estavam atentos, antes eu havia chamado a atenção deles para
ficarem bem quietos até que eu conseguisse pegar o pacote de Emerenc.
Enquanto isso, toda a rua já sabia o que estávamos preparando, não apenas os
envolvidos: como em um quadro de Bruegel, formavam grupos coloridos,
todos se conheciam, e estavam satisfeitos com o plano finalmente engendrado.
O faz-tudo chamou a atenção para o cheiro, que ontem já era assustador, hoje
estava ainda pior, se não soubesse que é impossível, pensaria que é cheiro de
cadáver, durante a guerra, depois de cada batalha, sentia esse tipo de fedor.
Pedi às pessoas que se escondessem um pouco melhor, tenho que estar
completamente sozinha à porta, alguns observadores na rua se retiraram,
apesar de que teriam pago um bom preço para assistir ao resgate de Emerenc,
que não deixaria de protestar. Quando a frente do prédio ficou totalmente
vazia, e o médico esperava pela palavra final atrás de uma saliência do canto da
parede, bati na porta. Emerenc pediu para eu não entrar, apenas que lhe desse
a caixa, mas que não me mexesse, que esperasse. O homem da TV buzinou em
frente de casa, nem pude responder, observava cada pequeno movimento da
porta e a mão de Emerenc, que apareceu, não vi nada de seu rosto, além disso
quase não havia iluminação dentro da casa, ela provavelmente tinha apagado a
luz, porque o vão da porta estava totalmente escuro. O mau cheiro que saía de
dentro me fez desejar tampar o nariz instintivamente, mas fiquei imóvel, com
o corpo em alerta, como os cães de caça, o cheiro de fato era como depois da
guerra, de podridão, de restos de seres humanos e animais que emanava das
casas, mas quem podia se ater a esses detalhes naquele momento? Entreguei a
mala, o homem da TV buzinou de novo, Emerenc fechou a porta, ouvi, lá
dentro, o clique do acender da luz. O médico espiou para fora de seu canto,
dei sinal para que ficasse lá. Com a nova manifestação do homem da TV, a
fresta da porta se abriu de novo, Emerenc não entregou a maleta, mas sim um
pacote enrolado num velho casaco, parece que a maleta era pequena para o
animal esticado, eu o segurava no braço como um bebê recém-nascido
assassinado. Ela teria fechado imediatamente a porta, mas o médico empurrou
o pé na pequena abertura, o filho de Józsi também correu à frente, se
conseguiram entrar, ou se a arrastaram para fora com a ajuda do faz-tudo,
conforme combinamos, não pude mais verificar, apenas corri com o corpo do
gato nas mãos, em direção à nossa casa, na rua, passando pelas figuras de
Bruegel, fui tomada por uma ânsia de vômito e joguei o corpo na lata de lixo.
A buzina tocava sem parar, eu como uma alucinada, corri para casa, senti que
se não me lavasse com água quente, não conseguiria emitir um som diante da
televisão, nem responder a pergunta alguma. Por que tudo foi tão
desordenado, tão confuso? Emerenc deveria estar a caminho de nossa casa,
provavelmente resistindo, sendo puxada, arrastada, eu precisaria estar lá ao
lado dela, mas é impossível, não tenho culpa.
– Você me faria um favor? – perguntei ao meu marido, que mais tarde disse
que minha voz estava irreconhecível, assim como meu rosto. – Não espere até
eles chegarem aqui, corra até lá, feche com chave a casa de Emerenc, antes que
as pessoas da rua possam olhar lá dentro. Você também, não olhe, e assim que
trouxerem ela para cima, dê a ela a chave com o seguinte recado, que eu
mesma vou cuidar de tudo lá dentro. O homem da televisão não tira o dedo da
buzina, não consigo nem ficar nem explicar nada para ela pessoalmente. Faça
isso por mim.
Ele me prometeu que faria, corri para o carro, ele em direção à casa de
Emerenc. A velha não era visível, a equipe de salvamento também não, apenas
se ouvia algum ruído que se alastrava, um som retumbante, me fingi de surda,
caí dentro do carro, saímos rapidamente da rua.
Sem lenço
Faltava isso em minha vida, aquela imagem da velha deitada em sua própria
imundice, entre carnes podres, sopas fermentadas, se recuperando lentamente
de sua paralisia, mas ainda sem poder caminhar. O filho do irmão Józsi estava
lá, apertadinho conosco no banco do hospital, e despertou uma angústia muito
real em mim: é possível que não haja ladrão cujo estômago suporte o império
de Emerenc, mas as cadernetas de poupança viraram itens fáceis de roubar, era
preciso pegá-las. Eu disse a ele:
– Vá procurar aquelas malditas cadernetas – elas foram encontradas
rapidamente, assim que o jovem começou a procurar, lá estavam as duas,
enfiadas na lateral do imundo sofá, em um vão da estrutura de madeira, ele se
lembrava onde seu pai também escondia coisas –, eu vou esperar Emerenc.
Meu marido estava lendo, ele sempre tinha um livro consigo, eu só estava lá
sentada, massageando o dedo, sentia como se meu braço esquerdo também
estivesse inerte. Quando a velha finalmente chegou, quase não a
reconhecemos sem sua roupa usual. Ela continuava muda, mas permitia que
fizessem o que queriam, mantinha os olhos fechados, os músculos em torno
da boca de vez em quando tremiam um pouco, ela estava inconsciente. Estava
recebendo medicação na veia, e eu estava tão exausta de vergonha e tristeza
que me deitaria ao seu lado com prazer. O médico pediu que fôssemos para
casa, não podíamos ajudar em nada, ela estava em estado de choque e não nos
reconheceria, ele, aliás, por enquanto, não sabe o que nos dizer, o derrame
continuava sendo reabsorvido, segundo o raio X, ela já estava praticamente
curada da pneumonia, mas o coração dela estava em tal estado que por
enquanto não se sabe o que mais vai aguentar, ou então – ele hesitou um
momento, antes de dizer – o que ainda quer suportar. Ele não podia garantir
que a cura resolveria todos os seus problemas, porque a doença e as
circunstâncias pelas quais chegou aqui, afinal, deviam ter sido para ela uma
extrema humilhação. A ciência médica já realizou alguns milagres, mas, neste
caso, ela teria que fazer um esforço particular, porque ele nunca tinha visto um
coração em tamanho estado de esgotamento.
Pela primeira vez, pela primeiríssima vez desde que entramos uma na vida
da outra, eu via Emerenc sem lenço. Lavado e cheiroso, seu cabelo branco
como a neve brilhava diante de mim, aquela cabeleira maravilhosa de sua mãe,
e eu era capaz de reconstruir as perfeitas proporções do formato da cabeça de
Emerenc, aquela que não existia mais havia tanto tempo. Mais próxima da
morte do que da vida, Emerenc magicamente se transformou em sua mãe,
sem saber. Se no nosso primeiro encontro, enquanto além das rosas eu
pensava em qual flor ela poderia ser, alguém tivesse me dito que era camélia
branca, lavanda branca ou jacinto, eu daria risada, mas agora ela não podia
mais se esconder, lá estava ela diante de nós, nada estava escondendo sua
inteligente testa arredondada, mesmo desgastada pela idade, sua beleza
radiante se oferecia aos nossos olhos. O corpo deitado na cama não estava
despido ou semivestido, mas sim, finalmente sem nenhuma fantasia, sua
vestimenta racional era a doença terminal que atingira uma soberana. Assim
mesmo, uma verdadeira dama deitada diante de nós, pura como as estrelas. Foi
então que me dei conta, afinal, do que eu poderia ter feito quando não
permaneci ao lado dela, se estivesse em casa, poderia ter usado minha recém-
adquirida e já mal usada fama para persuadir o médico a não se preocupar com
nada, apenas deixá-la comigo, eu a aceito sem desinfetar, Sutu e Adélka me
ajudariam, eu lhe daria banho, a arrumaria, a televisão pode fazer o seu
programa sem mim, é mais importante preservá-la da vergonha, impedir que
estranhos invadissem seu lar, cuja verdadeira natureza apenas eu conheci.
Quando eu estiver no Parlamento, recebendo meu prêmio, todos vão pensar
que eu conquistei o sucesso, apenas eu saberei que falhei já na primeira curva.
Pelo menos no final, nesse último trecho, tenho que fazer a coisa certa, senão,
a terei perdido para sempre. Agora preciso fazer algum milagre, me superar e
fazê-la acreditar que tudo o que aconteceu naquela tarde foi um sonho, apenas
um sonho.
O prêmio
Finalmente fui para casa, arranquei o vestido de meu corpo, como se estivesse
em chamas. Queria alimentar o cachorro, mas meu marido já havia tentado
fazê-lo comer. Viola começou uma greve de fome, na rua apenas se arrastava
ao nosso lado, logo que terminava suas necessidades nas árvores, queria ir para
casa, não latia, não bebia, a separação agora já era evidente, não podíamos
fazer nada, Viola respondia à história do seu modo. Eu também não almoçara,
no Parlamento colocaram muita coisa em meu prato, mas lá eu não conseguira
engolir nada e dava respostas sem pé nem cabeça a perguntas cujo sentido não
conseguia atinar. Durante um tempo, fiquei deitada no sofá, depois levantei em
um salto, com a sensação de que, se não estivesse lá para cuidar de Emerenc,
ela morreria, apenas eu seria capaz de lutar contra aquele terror em que nós
duas estávamos nos afogando. Corri pela entrada principal do hospital, o
médico me recebeu sorrindo, Emerenc estava lúcida, disse ele, já está um
pouco mais forte, também começou a falar, disse à enfermeira que a cobrisse
para ficar com aspecto decente, porque não tolera a nudez exposta, mais tarde
ordenou que lhe dessem um lenço, arranjaram uma touca de cirurgião, que a
deixa com um aspecto estranho, mas está calma. Ele acha que ela começa a se
alçar para fora da cova, em todo caso, seria bom trazer roupa de cama e de
vestir porque chegara sem nada. Eu mal conseguia olhá-la, não apenas por
tudo que acontecera, mas por causa dela mesmo, era uma visão inimaginável
com aquela touca, não porque não lhe caísse bem, pelo contrário, combinava
com sua cabeça, dava para ver uma possível Emerenc, como uma grande
professora, por exemplo, finalmente expressando as capacidades reais que ela
se dedicara a nunca empregar. Fiquei quieta, o que eu poderia dizer, ela não
tinha mais toalha de banho, camisola, nada daquilo que guardava no armário, e
o que ela ainda tem está molhado com o produto desinfetante, secando sobre
a grama. Se trago do meu próprio enxoval de roupa de cama e banho, ela vai
começar a suspeitar, ela conhece minhas toalhas, eu não tenho roupas de linho,
como ela. Vou ter que inventar alguma coisa.
Assim que entrei no quarto e me reconheceu, puxou uma toalha de mão
sobre o rosto, como os reis de antigamente, seguindo antigas tradições de que
a corte não poderia ver a face do rei agonizando, embora aqui não se tratasse
de morte, ela parecia mais viva do que de manhã, significava apenas, de fato,
que não queria me ver mais. Então, tudo bem. Caminhei lentamente para casa,
primeiro passei pela lojinha de Sutu, pedi que, se ela fosse ao hospital, levasse
algo que julgasse importante ter num hospital, como toalha de banho,
produtos de banho, que mentisse sobre por que ela não levava as próprias
coisas de Emerenc. Havia pessoas na loja de Sutu, os moradores da rua
tentavam se organizar, quem iria ao hospital e o que cozinhar para a doente.
Voltei para casa mais uma vez, fiquei observando quando o homem enviado
pelo tenente-coronel iria lá vedar a porta com tábuas, sabia que poderia ser a
qualquer hora, mas precisava esperar, pelo menos até ver isso concluído da
melhor maneira. Eu estava próxima do limite do que podia suportar, círculos e
linhas dançavam diante dos meus olhos, eu teria dado minha alma para que
alguém me sacudisse e dissesse “por que você está gritando, foi só um
pesadelo”. Minha sensação era de que nada disso podia ser real, tantas
experiências, com características tão distintas, não podem cair de uma vez
sobre nós como uma súbita tromba-d’água. O guarda chegou, de roupa civil,
veio bastante rápido com as tábuas; desde que eu existo, já não martelam
caixões, eles são fechados com fechaduras, mesmo assim, quando ele martelou
as quatro tábuas, aquilo agiu sobre mim como se estivesse fechando um caixão.
Essas marteladas simbolizavam vários enterros, o fim de uma existência, de
um lar e o finale da saga de Emerenc.
Estava na hora de me dirigir aos festejos no Parlamento, eu me sentia
moída como farelo de pão, mal consegui me vestir. Primeiro, liguei para o
hospital, o estado de Emerenc melhorou mais um pouquinho, deram a ela um
calmante forte, estava dormindo, toma antibiótico, havia motivos para ter
esperança. De resto, quando está acordada fala pouco, e algumas vezes,
quando visitas se aproximam de sua cama, cobre o rosto com a toalha de mão.
Muitas pessoas a visitam, um pouco demais até, estão sempre balançando o
apoio do soro.
Emerenc está viva, melhorando, então posso me arrumar para a noite mais
brilhante de minha vida. Peguei o vestido para a ocasião, não havia mestre de
maquiagem que conseguisse melhorar meu aspecto naquele dia. Quando a
primeira conhecida se aproximou, no Parlamento, e eu disse “infelizmente não
estou em bom estado hoje”, não precisei dar grandes explicações, ela logo
acreditou. Ninguém se surpreendeu quando sumi do grande salão, que naquela
noite parecia um céu estrelado de verão, as várias condecorações brilhavam,
assim como as joias, os inúmeros lustres em forma de guirlandas faiscavam em
minha direção, refletidos pelo piso que parecia um espelho. Os bailes de
antigamente provavelmente eram assim, mas eu queria apenas ir rápido para
casa e me enfiar na cama. Amanhã descobrirei mais, saberei minha sentença.
Se Emerenc morresse, então não haveria como fugir; se ela vivesse, o poder
que até agora jamais me abandonou me seguraria de novo, talvez pela última
vez, me mantendo acima do meu próprio abismo.
Amnésia
No avião, combinamos que meu marido levaria as malas para casa, e eu iria
direto para o hospital. Estava ansiosa quando entrei no elevador, fiquei
imaginando todas as possíveis mudanças que poderiam ter ocorrido, qualquer
coisa poderia ter ocorrido, e se tudo tivesse piorado e Emerenc estivesse à
nossa espera numa câmara fria, ou ainda vive, mas seria melhor que não,
porque está em estado irrecuperável, talvez a tenham removido para outro
lugar sem nossa permissão, afinal é o filho de Józsi quem tem a permissão
legal para qualquer decisão. Deixei de fora a única variação que me aguardava:
no corredor, vindo meio de longe, uma risada sonora, que reconheceria no
meio de tantas outras, a sua rara risada. As enfermeiras sorriam para mim,
comecei a correr naquela direção, alguém disse alguma coisa mais alto, mas
quem tinha tempo para prestar atenção, eu corria em direção à porta aberta, de
onde soava aquela voz. O quarto estava escuro de tanta gente, via-se que aqui
também Emerenc já fizera a sua mágica para encantar as pessoas, pois nem
costumam permitir tanta gente no quarto, havia uma meia dúzia de pessoas em
torno da cama dela, Sutu recolhia as sobras de comida, é claro que não eram
refeições típicas de um hospital, eram coisas vindas de fora, pratos
desconhecidos, canecas e travessas ocupavam o parapeito da janela. Emerenc
estava sentada de costas para a porta, encostada em almofadas, ela tinha que
perceber no rosto dos outros que chegara uma nova e interessante visita, ainda
rindo virou para trás, quase como se tivesse imaginado que era o médico.
Assim que me reconheceu, o sangue lhe subiu, seus traços relaxados
pareceram inchados, aplainou o seu rosto, eliminando todo sinal de prazer.
Agora que cheguei, ela já usa as duas mãos, antes apenas a direita agarrava a
toalha de mão, estava com a cabeça descoberta diante de todos, mas assim que
me viu, imediatamente tampou o rosto. As visitas emudeceram, foi um gesto
muito grosseiro, com essa força, poderia até ter me batido. De repente, todos
tinham afazeres urgentes, as senhoras foram pegando suas travessas, lavaram a
colher de Emerenc, se despediram com pressa, Sutu nem falou nada do
cachorro, de tão apressada, apenas balançou os dedos ao sair pela porta, eu
entendi, às seis horas ou eu vou a sua casa, ou ela vem à minha, e então
conversaremos. Nunca imaginei que as pessoas tivessem tanto tato e que
conseguissem perceber com seu sensível radar que Emerenc, durante minha
ausência, me julgou inconstante, ninguém sabe por quê, mas nem é preciso,
seja lá o que foi que aconteceu, é melhor ficar fora disso, e até mais educado
não tomar parte.
Pela primeira vez desde que a avalanche de fatos foi posta em movimento,
fui tomada por um impulso negativo e a culpa porejava de dentro de mim. Por
Deus, de que crime ela me acusa? De não a deixar morrer? Se não tivesse
recebido a transfusão e os medicamentos, já estaria morta. Não fiquei ao seu
lado porque não podia, não fui embora por prazer ou para me divertir, mas
sim, para trabalhar, afinal se tem alguém que sabe bem da minha vida, o que a
televisão representa para mim, é ela. Se ela não quer mais me ver, não precisa.
O filho de Józsi virá, o tenente-coronel, Sutu, Adélka, não precisam de mim
aqui. Nem tentei me dirigir a ela, ou tentei me explicar, eu já conhecia
Emerenc o bastante para não cair nesse erro. Então, que fique com seu lenço
na cabeça até o dia do juízo final, se era para ver isso, exausta do jeito que eu
estava, podia ter me poupado de vir correndo ao hospital, poderia estar em
casa, na minha banheira. Saí caminhando em direção ao elevador quando a
enfermeira me parou.
– Senhora escritora, por favor – começou ela, e visivelmente buscava as
palavras. – A tia não está bem, apenas parece. Ela... ela fica assim animada,
quando tem gente perto. O resto do tempo ela só fica quieta.
Muito bem, que fique quieta. A enfermeira viu em meu rosto que era
preciso dizer mais.
– A melhora é espetacular, mas superficial – tentou mais um pouco. – Da
outra vez não pudemos avaliar tudo que era necessário, hoje já podemos, os
seus membros funcionam, mas ainda não consegue caminhar. O tenente-
coronel vem todos os dias, nós nos perguntamos como isso vai evoluir.
Bem, se o tenente-coronel vem todos os dias, então eu estava livre para ir
para casa. Talvez venha também a banda dos militares e, por que não, os
escoteiros também. Eu estou me desdobrando desnecessariamente, as vizinhas
lhe dão comida e fofocas, o tenente-coronel fornece o necessário para sua
vida. Se não sou necessária, não sou necessária. Chega de oferecer favores.
– Mas seria bom se...
A enfermeira empacou. Eu entendia o que ela não conseguia verbalizar,
palavras eram o meu ofício. Não se pode tomar nada como ofensa, deve-se
engolir tudo, todos os gestos injustos de Emerenc, qualquer capricho, porque
não só ela vai ficar paralítica, mas provavelmente não viverá muito tempo. Ora,
ora! Ela vai viver para sempre, não estou preocupada. Agora, enquanto escrevo
estas linhas, eu sinto, naquele momento eu decidira pela segunda e última vez o
seu destino, porque naquele momento, eu soltei a sua mão.
– De qualquer maneira, eu telefonarei caso ela precise da senhora.
– Não, não se dê ao trabalho, ela não precisará de mim, ela não quer saber
de mim, nem materialmente nem afetivamente.
Fui para casa me arrastando, meu marido me ouviu sem dizer nada, quando
eu lhe disse o que encontrei. Demorou a responder, depois não ouvi dele o
que esperava, mas uma coisa inesperada, uma outra coisa. Deu um suspiro
profundo e disse: coitada da Emerenc.
Coitada da Emerenc! Nesse minuto me senti mais perto de Nosso Senhor,
com quem brigava tanto por causa dela.
– Às vezes você é surpreendentemente injusta – disse o meu marido. –
Como você não entende algo que está tão claro? Todos os outros entendem, o
pessoal da rua, o tenente-coronel. É tão óbvio, de acordo com o que você me
contou.
O que é óbvio? Olhava para ele, como Viola, quando minhas instruções
não estão claras e ele tenta decodificar a programação. O que fiz de novo, além
daquilo, no dia infeliz? Minha vida é um permanente complexo de culpa desde
aquele dia, não tenho um minuto em que esqueça a entrega do prêmio, aquela
noite de tremor inconsciente, Atenas foi um inferno, ou dormia, ou meus
pensamentos me cercavam como lobos.
– Emerenc se envergonha diante de você e das vizinhas, ela finge que tem
amnésia para tornar mais fácil suportar os pensamentos, que ficou ali exposta,
diante de todos, naquela imundice, com sua dignidade humana reduzida a
cacos. Preciso ensinar a você o que é a vergonha, justamente a você, que foi
quem a levou a tal circunstância? O dia da ação não foi planejado por você?
Você a entregou, a mais pura das puras, com seus segredos que você deveria
ter protegido a qualquer preço, já que você era a única pessoa no mundo que
poderia tê-la convencido a abrir a porta. Você é o Judas, você a traiu.
Judas? Era só essa que me faltava! Não basta que estou semimorta, que só
desejo descansar? Estou cheia de tudo, também não achei que era uma boa
hora para lição de moral, eu queria deitar. Sutu prometeu vir às seis, pedi ao
meu marido que, se ainda estivesse dormindo, me acordasse, me enfiei na
cama para escapar de mim mesma e de Emerenc. Pensei que a exaustão me
abateria, mas no fim não consegui me abandonar, portanto abri a porta
quando ouvi um latido e a porta sendo arranhada, ela trouxera o cachorro.
Viola estava magro, mas feliz, foi a primeira vez que se alegrou em nos ver,
como se quisesse se sentir em casa de novo, pelo menos chegou em casa e nos
encontrou, isso pode significar que em algum momento esse cataclismo vai
acabar e Emerenc também retornará. Agradeci a Sutu por ter assumido essa
responsabilidade, perguntei quanto lhe devia, ela mencionou uma quantia
bastante real, paguei. Nem lhe passou pela cabeça ir embora.
– Senhora escritora, bem – ela começou –, a senhora precisa saber de uma
coisa, se o médico ou as enfermeiras não lhe disseram. Emerenc está
melhorando, mas de um modo estranho, porque só lembra de alguns pedaços
do que aconteceu. Ela não tem ideia do que aconteceu antes, nem o machado
nem a ambulância nem o quanto lutou contra, ela perguntou para nós como
foi levada para lá, eu disse a ela que foi a senhora que organizou. O que mais a
incomoda é se fecharam a casa direito, dissemos que claro, e que a chave está
com a senhora. Emerenc só sabe do que o tenente-coronel aconselha que
digamos a ela: nós batemos em sua porta em vão, ela não respondia, então
ficamos preocupados, corremos até sua casa, não respondeu para a senhora
também, então estávamos certos de que o problema era grave, o doutor forçou
a porta – o pessoal da rua chamava meu marido de senhor doutor, tentei
imaginá-lo com um pé de cabra na mão, mas não consegui – encontramos
Emerenc desmaiada logo na entrada, o faz-tudo a pegou no colo, e a levamos
para o hospital no carro do senhor Brodarics, desde então está sendo cuidada.
Não dissemos nada sobre a equipe de desinfecção nem sobre os gatos, sobre
mais nada, nem que a senhora nesse meio tempo foi para Atenas. Se a senhora
conversar com ela, ela precisa pensar que tudo dela está lá guardado, que a
senhora logo fechou a casa, mas vai lá todo dia e cuida de tudo, ela tem tempo
para saber de toda a verdade, que não tem mais cozinha, sem contar todas as
coisas horríveis que havia lá dentro. Todos tratam ela muito bem, o tenente-
coronel mente muito bem, assim como o jovem Szeredás. Com isso que sabe,
ela pode até ficar boa. Eu só não sei como ela vai reagir se souber a verdade.
Eu ouvi em silêncio, mas percebi que ela esperava elogios, e até mereceria,
os moradores da rua passaram no exame de decência e de tato, mas eu me
ative ao meu silêncio, porque quem conhecia Emerenc bem era eu. A ideia
estava abrindo caminho na escuridão, eu comecei a ver claramente. A amnésia
de Emerenc – que absurdo! Como tolerar essa ideia ao lembrar da toalha de
mão com que ela cobria o rosto? Durante toda a sua vida, Emerenc foi
soberana, ajustando sua memória em função da sua política realista. Não me
surpreendi com o que finalmente entendi, mas fiquei aterrorizada. Quando
nos despedimos dando as mãos, Sutu observou, seus dedos estão gelados,
espero que não seja um resfriado vindo por aí.
Meu marido chegou à mesma conclusão que eu, não precisávamos discutir.
Eu me joguei na poltrona, massageava o pelo de Viola, precisava pensar no
que fazer. Liguei para o tenente-coronel, não foi ele que atendeu, mas me
prometeram que lhe diriam que liguei, telefonei para o sobrinho, esse eu
encontrei, ele vivia no mesmo estado de otimismo de Sutu, que presente
divino esse, a tia não se lembra de nada, em breve poderiam pintar a casa,
montar uma nova cozinha e um novo quarto, colocar uma nova porta, vai ser
mais fácil para a consolar.
Não era graças aos conhecimentos médicos que eu sabia mais, era por
conhecer Emerenc melhor: eu a vi quando destruiu o jantar especial preparado
inutilmente, fiquei dando voltas com ela pelos labirintos de sua memória.
Emerenc esquecendo os seus gatos? Impossível, porque nesse caso não se
preocuparia com o que acontece com sua casa, ela lembra de tudo, só não ousa
perguntar abertamente. No começo, o torpor devido aos remédios podem ter
confundido suas lembranças, mas, conforme os dias avançam, as cores
ressurgem no conturbado desfile de figuras, de sombras delineadas, e se ela
reconhece Sutu e as outras pessoas da rua, sua casa e os animais que vivem lá,
o pato não estripado, o peixe podre e tudo que estava ao redor dela no final,
quando ela estava paralisada, ainda deve estar no lugar em sua consciência, mas
ela não demonstra, porque espera escapar mais uma vez, da mesma forma que
já saiu de todos os abismos que a vida cavou diante dela. Pobre Emerenc, a
quem não dizem a verdade e que não ousa perguntar, apenas move as mãos
em direção às sombras! Por que estou sendo de novo tão sensível? O que
conta agora não é saber quem feriu quem e como, se é que uma pessoa doente
é capaz de ferir. Hora de partir, rumo ao hospital, nesse drama só há um papel,
e quem o interpreta não sou eu, mas sim, Emerenc.
Ela tinha mesmo que me agradecer por essa vida pela qual nós a salváramos?
Os gatos que povoavam sua solidão estavam soltos na rua ou mortos, suas
coisas preferidas transformadas em fumaça, a nobre oferta dos vizinhos de
dividirem suas tarefas evidentemente não era viável a longo prazo, e ela não vai
para um abrigo, nem morta, ela quer voltar para casa, mas que casa? Se ela
viesse para minha casa, ela não iria gostar, precisava das coisas dela, e, como
era a única coisa possível, como arrumar um lugar em nossa vida para uma
acamada, quando irei encontrar tempo de passar a bacia para ela, de lavá-la, de
cozinhar para ela, para evitar feridas, a enfermeira não viria todos os dias, e o
que eu faria quando precisasse sair, o que meu marido faria? Além disso, ela
viria se eu a convidasse? Ela recusará imediatamente a minha proposta, mas
para onde irá, ela não tem outro endereço. O filho do Józsi não vai ficar com
ela, o tenente-coronel casou de novo, não há outra solução, o único lugar para
onde ela pode ir é a nossa casa.
Já tinha vivido momentos assim em minha vida, é claro, como aqueles que
passei naquela tarde, a tensão era igual às horas da cirurgia de pulmão do meu
marido e às que antecederam o enterro dos meus pais. Estava deitada no lugar
que antes era da minha mãe com o impassível Viola ao lado, eram mais ou
menos seis da tarde, quando Adélka tocou a campainha e, com o rosto
perturbado me disse: a senhora não vai acreditar, mas não me deixaram entrar
no quarto de Emerenc, não sei o que aconteceu. Havia um aviso na porta
dizendo que ela não podia receber visitas, e quando pediu à enfermeira que
pegasse a sopa, ela pediu que a levasse embora, Emerenc não quer nada, visitas
estavam provisoriamente proibidas. Também não permitiram a entrada da
esposa do faz-tudo, que foi embora com uma sacola cheia. Então o machado
já caíra, pensei, posso ir. Fiz um enorme esforço para me preparar, na rua, em
frente à nossa casa – aparentemente por iniciativa própria –, Sutu varria com
tranquilidade, sem culpa, quando me viu, sua expressão ficou um pouco mais
pesada, talvez tenha ouvido de Adélka sobre as visitas proibidas, e agora se
pergunta, como quando tirou as cartas para cada uma de nós na mesa de
lanche de Emerenc, se o que aconteceu é para o seu bem ou para seu azar.
No caminho para o hospital, dois moradores vizinhos voltavam com sua
travessa de comadre. As mulheres se angustiavam, Emerenc parece que piorou,
o céu está escuro, vem uma frente fria, o vento arranca os galhos das árvores,
talvez seja isso que a está incomodando, por isso as enfermeiras acharam
melhor separá-la das pessoas. Mas elas não foram tão severas nem quando a
coitada parecia estar morrendo. Tenho que subir, a mim talvez digam a
verdade.
Ao chegar à porta, tirei a placa de aviso, uma enfermeira me viu, mas fez
que sim com a cabeça, provavelmente essa foi a instrução que recebeu.
Enquanto entrava no quarto de Emerenc, eu pensava que o tenente-coronel
afinal tinha razão, fui eu que mexi em sua vida, e se tive coragem de tirar a
tesoura das mãos de Átropos, que eu tenha a coragem de olhar em volta na
oficina das Moiras. Emerenc estava de costas para a porta, não olhou para trás,
mas conhecia tão bem o som de meus passos como o cachorro. A diferença de
sua índole entre ontem e hoje é que o rosto estava coberto, mas eu sabia que
ela sabia: sou eu.
Ficamos ambas em silêncio. Nunca houve figura mais misteriosa, mais
muda e mais impenetrável do que a dela naquela tarde, em meio à crescente
penumbra e os galhos batendo nas venezianas fechadas das janelas. Sentei-me
ao seu lado, com o aviso nas mãos.
– Quantos gatos sobraram? – perguntou ela afinal, sob o pano que a cobria.
Sua voz era tão irreal quanto seu rosto invisível.
Nesse ponto, nada mais importava.
– Nenhum, Emerenc. Três nós talvez tenhamos encontrado mortos, os
outros sumiram.
– Continuem procurando. Os que estão vivos devem estar escondidos por
ali em algum jardim.
– Está bem. Vamos procurar.
Silêncio. Os galhos batiam nos vidros das janelas.
– A senhora mentiu para mim quando disse que fez a limpeza.
– Não havia o que limpar, Emerenc. Os desinfetadores cuidaram de tudo.
– E a senhora deixou?
– Eu não podia ir contra uma ordem oficial. Nem mesmo o tenente-
coronel. Foi uma tragédia, uma infelicidade.
– Tragédia! A senhora podia ir mais tarde ou no dia seguinte ao Parlamento.
– Mesmo se eu estivesse aqui, não adiantaria nada ficar incomodando todo
mundo. Eu estou dizendo: há normas para casos assim, é assunto de saúde
pública. Não tenho como contrariar uma coisa assim.
– A senhora não estava aqui? Onde estava?
– Em Atenas, Emerenc. Tinha um congresso, a senhora esqueceu, mas eu
tinha lhe contado, faz tempo, em casa. Nós éramos os representantes da
Hungria, tínhamos que ir.
– A senhora foi embora mesmo sem saber se eu ia sobreviver?
Para isso, eu não tinha resposta. Olhava as gotas que escorriam lentamente
no vidro da janela. É isso mesmo. Fui embora.
De repente, ela arrancou o lenço do rosto, olhou para mim com os olhos
arregalados. Estava branca como cera.
– Mas que tipo de pessoas são vocês, a senhora e o tenente-coronel? O
patrão ainda é o mais decente, ele pelo menos nunca mentiu.
Para isso também eu não tinha resposta. Meu marido, de fato, jamais
mentiu, o tenente-coronel, por outro lado, é um dos homens mais respeitáveis
que conheci em toda minha vida, e eu, eu sou assim. Assim, fui para Atenas, e
teria ido mesmo se meu pai estivesse em estado crítico, porque o Ministério
das Relações Exteriores grego talvez entendesse de forma diferente se a
delegação oficial da Hungria não fosse ao encontro, porque, depois do prêmio,
tenho certo dever com relação ao país, porque sou escritora e não tenho uma
vida pessoal, e porque as coisas me acontecem exatamente como aos atores,
mesmo quando há problemas em casa, o espetáculo deve continuar.
– Vá embora – disse Emerenc, calma. – A senhora não comprou a casa,
que eu pedi, e quantos tesouros eu planejava para ela, a senhora não teve um
filho, mesmo eu prometendo que o criaria. Ponha o aviso de volta na porta,
não quero ver nenhuma daquelas pessoas que foram testemunhas da minha
vergonha. Se a senhora tivesse me deixado morrer, como eu planejei na hora
em que percebi que não seria mais capaz de trabalhar, do além-túmulo eu
ainda cuidaria da senhora, mas agora não suporto mais a senhora perto. Vá
embora.
Então ela acredita afinal no outro mundo, apenas gostava de irritar ao padre
e a mim com esse assunto.
– De agora em diante, faça como quiser. A senhora não sabe amar, e, no
entanto, acreditei que talvez um dia aprendesse. A senhora me salvou para isso,
para o que vem pela frente? E ainda me levaria para morar na sua casa e
cuidaria de mim? Idiota!
– Emerenc!
– Ora, vá embora, dê declarações na televisão, escreva um romance, ou fuja
de novo para Atenas. E que ninguém se aproxime de mim, se me levarem para
casa, Adélka deixou uma tesoura aqui, eu enfio ela em quem se aproximar. Por
que ficam todos nervosos com meu destino? Existem abrigos, nosso Estado é
o melhor de todos e eu tenho o direito de ficar dois anos doente. Foi seu
amigo que disse. Vá embora. Tenho muito que fazer.
– Emerenc, na nossa casa...
– Na sua casa! A senhora como dona de casa, como minha cuidadora! A
senhora e o patrão! Ora, vá para o inferno! Na casa da senhora só tem um ser
normal, Viola.
O jantar dela estava ao seu lado, intacto, quando se mexeu de repente,
exasperada, quase derrubou o prato, não tive coragem de me aproximar, de
medo que ela me enfiasse a tesoura. Deitou de costas, olhando para o teto,
quase não a via quando saí do quarto sem me despedir. Corri na chuva até em
casa, pensando em como eu poderia ter me expressado de outra forma, mas
nada me ocorreu.
Depois de uma hora, fiquei mais calma, acho que no meu inconsciente eu
estava preparada para uma reação bem pior, mas a ilusão de paz não durou
muito, meu marido me assustou. Ele andava para cima e para baixo dentro do
apartamento, disse que essa contenção e essa calma não são características de
Emerenc, seria mais natural se ela tivesse explodido e feito um grande
escândalo. Não pude continuar visualizando o estado de espírito de Emerenc,
porque de repente o cachorro enlouqueceu. Viola uivava, arranhava, chutava
os tapetes, se jogou no chão, saía espuma de sua boca, ele ficou em tal estado
que pensei que era seu fim. Telefonei para o veterinário, pedi que viesse logo,
ele veio, como naquela primeira noite de Natal, Viola gostava muito dele,
demonstrava seus truques até quando só ia tomar vacina. Agora só rolava, não
se levantou à voz do médico, ele é que se ajoelhou, conversava com ele
enquanto passava seus dedos magros pelo corpo de Viola, como se tocasse
piano. Levantou, tirou o pó dos joelhos, encolheu os ombros: ele não tem
nada real. Ele teve algum choque, alguma fobia, que desequilibrou o seu
sistema nervoso. Tentou dar ordens a Viola, ele não obedeceu, não sentou, não
andou, se era posto de pé, caía de lado, como se estivesse paralisado. Nós nos
despedimos marcando outra visita para o dia seguinte, de noite deveria dar a
ele glicose e uma dose de calmante para bebês. Não sabe o que aconteceu com
o cachorro. Se eu o pregasse numa cruz, ainda assim não saberia. Ele foi
embora.
Pus a mesa para o jantar, Viola ficou deitado. Pedi a ele que me mostrasse
como me ama, nem me olhou, parecia um trapo, então, deu um urro
repentino, num tom inimaginável, que me fez derrubar a bandeja cheia de
coisas, me paralisou e eu nem tinha coragem de chegar perto dele, a impressão
era de que tinha enlouquecido ou de que me morderia. Não queria acreditar
naquele som quando o fez pela segunda vez, quando meu marido já estava de
pé ao meu lado, na cozinha ao lado das sobras do jantar, ele olhou o relógio e
disse com calma: oito e quinze. Oito e quinze, repeti depois dele, como se do
fundo de minha garganta um louco desse a hora certa. Oito e quinze, oito e
quinze. Quando repeti pela terceira vez, meu marido trouxe minha capa de
chuva, emudeci, senti de repente que tudo que acontece em torno de mim não
é normal. Como um papagaio, marco a hora três vezes. O que está
acontecendo comigo, eu enlouqueci? Eu mentia para mim mesma, como se
minha vida dependesse disso, para não expressar de algum modo o mesmo
que Viola. Mas eu sabia, meu marido também. O cachorro foi o primeiro, ele
contou a nós dois. Ele chorava como uma criança.
Em casa, Viola estava passivo, quase indiferente. Eu o levei para passear, ele
passou diante da casa de Emerenc, o morador de plantão varria a calçada, e
nos cumprimentamos com amabilidade, vi também Sutu, em sua lojinha,
cercada de frutas, não parecia nem desencorajada nem triste por ninguém fazer
compras lá, comia alguma fruta e me cumprimentou educadamente. Havia
silêncio na rua, quase em nenhuma casa ouvi televisão ligada. Eu não sabia o
que fazer comigo mesma, fui até o reverendo para pagar pelo serviço do
enterro. Ele lia no jardim, não havia ninguém no escritório, mas recebeu o
dinheiro. Agradeci pela gentileza, rebateu com severidade: era minha
obrigação, informou. Agora estávamos um pouco mais próximos, mais do que
em qualquer outro momento da vida, me olhava como se de repente se desse
conta da existência de alguém que até aquele dia escapara de sua atenção.
– Ninguém assistindo à televisão – disse ele.
– Estão de luto – respondi –, muita gente aqui é do interior, esse silêncio é
um costume do campo. Como na Sexta-Feira Santa, em dia de enterro também
não se deve ouvir música.
– Mas parente mesmo ela só tinha um, e que não mora aqui. Quem está de
luto por ela?
– Todo mundo. Católicos, judeus, todos devem alguma coisa a Emerenc.
Nunca imaginei que fosse capaz disso, mas me acompanhou até a esquina,
de lá caminhamos até o prédio de Emerenc; a engenheira varria a rua em
silêncio. O reverendo olhou para mim, mas desta vez não perguntou nada. No
domingo seguinte ao enterro fui à missa como de costume, sempre tem
bastante gente, mas nunca como naquele dia. Pessoas que nem frequentam a
igreja se juntaram aos frequentadores, lá estava o verdureiro Elemér todo
vestido de preto, de quem nunca se ouviu outra coisa além de blasfêmias, o
médico evangélico, o professor católico, o tintureiro judeu, o peleteiro
unitarista, a missa foi como uma cerimônia ecumênica da qual seria
vergonhoso não participar. Apenas o faz-tudo faltou, mas ele costuma
comparecer até à escola dominical, era sua vez de varrer a rua, de madrugada
houvera uma tempestade de vento, havia folhas espalhadas em todo lugar. O
reverendo olhou nos meus olhos, quando me deu a comunhão, e eu retribuí,
em vez de manter os olhos nos três dedos simbolizando a Santíssima Trindade,
mas ele sabia que eu o estava honrando pelo seu gesto de respeito às pessoas
da rua no enterro de Emerenc.
Faltava mais uma pessoa na igreja: Sutu. Fomos para casa livres de pecados,
mas, embora não falássemos a respeito, nos sentíamos superiores a ela. Então,
provamos que ninguém precisa dela, a rua estava unida, os moradores dão
conta, até eu varri um dia, mas Adélka tirou a vassoura de minha mão, sou
muito desajeitada, me senti envergonhada, não sou útil para nada, talvez nem
mesmo para as coisas das quais entendo. Do trabalho coletivo apenas Sutu não
assumiu nada, quase não a víamos, acabou fechando a loja, do que ela
sobrevivia era um mistério, mas eu sentia que ela deveria estar em casa, à
espera de alguma coisa, mas nada indicava que estivesse ainda lá, poderia ter
ido embora. Como era verão, não saía fumaça de sua casinha. Mais tarde,
descobrimos o que ela queria, o que estava esperando.
A notícia quem trouxe algumas semanas depois foi o faz-tudo, amigo
antigo de Viola, fez carinho na orelha dele, constrangido. Começou dizendo
que o senhor Brodarics tinha um recado para mim, que o prédio não estava
dando conta sem Emerenc. Agora ainda estavam dando um jeito, porque o
tempo estava bom, mas, quando o outono chegar e as folhas começarem a
cair, não vão conseguir mais, quase não há jovens lá, e eles também trabalham
de manhã até tarde da noite.
– Não precisa continuar – eu disse. – O senhor Brodarics mandou avisar
que precisam de alguém que trabalhe o dia inteiro, um zelador, então vão
contratar alguém, ou já fizeram isso. Entendo. Fizeram um anúncio?
– Para falar a verdade, não.
Ele não olhava para mim, suas pálpebras tremiam de vergonha, Viola, com
um safanão, se afastou de mim. Não quis machucá-lo, mas sem querer apertei
seu pescoço com meus dedos nervosos.
– Veja – disse ele –, nós a conhecemos há mil anos. É limpa, ordeira,
trabalhadeira, bebe pouco, é velha demais para ficar atrás de homem. Quando
Sutu se candidatou, as coisas ainda estavam muito frescas, ficamos revoltados.
Mas depois todos esfriaram a cabeça, começamos a refletir. No fim, chegamos
a um acordo.
– Com Sutu – eu disse amargamente.
– Que nada, com Adélka. O senhor Brodarics achou melhor que lhe
contássemos, para que não se surpreenda.
Nada mais me surpreendia. Assim que o faz-tudo saiu, fui para a varanda,
de onde via o pátio de Emerenc, ao lado da mesa, lá estava Adélka sentada,
com a mesa posta bem bonita, como Emerenc gostava, e não estava sozinha,
talvez fizessem alguma coisa, porque se debruçava sobre uma travessa junto
com a mulher do sapateiro. Nenhum estranho me olhava, agora podia chorar.
Meu marido não conseguia me consolar, embora seus olhos não mostrassem
nada além de compaixão.
– Nem o prédio nem a rua conseguem viver sem Emerenc – ouvi ele dizer.
– Adélka não é má pessoa, e de fato todo mundo a conhece. Foi inteligente em
esperar, Sutu se apressou demais. Agora você chora por quê? Não pode ser
por Emerenc, o morto sempre vence. Apenas os vivos perdem.
– Eu choro por nós – respondi. – Somos todos traidores.
– Não é questão de traição. Só é muito a fazer.
Levantou, o cachorro imediatamente se levantou também, foi para o seu
lado, apertou a cabeça em seu joelho. Desde que Emerenc não estava mais
entre nós, meu marido tomou o seu lugar, e não eu, mais uma vez. Os milagres
de Emerenc não funcionavam em linha reta.
– Você está se agitando demais e, de novo, não está escrevendo, seu
trabalho está todo atrasado. Por que você não volta a sentar à máquina?
– Não sei. Estou cansada. Triste. Odeio todo mundo. Odeio Adélka.
– Você está cansada porque cozinha, limpa, vai às compras, e não consegue
arranjar ninguém que você tolere do seu lado, porque você não está
procurando alguém, mas, sim, aquela única que nunca mais virá. Não tem mais
Emerenc, entenda de uma vez, e você está amarrada a contratos, você tem que
trabalhar para você mesma e, se você não estivesse tão cansada, teria visto há
muito tempo o que deve fazer. Todo mundo na rua percebeu, os Brodarics, o
faz-tudo, só você é que não. Então faça, por Deus, o pessoal que está na casa
que foi de Emerenc também já deu o recado, ao modo deles.
Tapei os ouvidos para não ouvir. Ele esperou que eu me acalmasse, depois
pegou a coleira de Viola.
– O faz-tudo veio porque aqui todos gostam muito de você, queriam
facilitar para você decidir o que você também já decidiu, mas não tem coragem
de dizer. Até quando você vai ficar enrolando? Não tem sentido! Você ensinou
a Emerenc que nada se compara ao ato da criação, então por que você fica
envergonhada diante da pessoa que a sucederá? Ela também vai aprender.
Viola esperava com calma enquanto ele colocava a coleira nele. Não estava
feliz nem protestava, estava pronto para sair.
– Leve o cachorro, dê uma volta, e antes que outros percebam, entre num
acordo com ela.
– Não, não gosto dela. Emerenc também não gostava de Adélka, apenas
tinha dó.
– Quem falou em Adél? Adél é piegas, fraca e burra. Estou falando de Sutu.
Ela cuidou de tudo enquanto estivemos em Atenas. Sutu é correta, corajosa,
não é sentimental e, quando se trata de trabalho, é impiedosa como você.
– Emerenc.
Eu disse o nome dela com uma força que, sabia, quase independentemente
de mim, eu nunca mais poderia gritar esse nome a ninguém.
– Emerenc está morta, Sutu está viva, e ela não gosta de você nem de
ninguém, falta a ela essa capacidade, mas tem inúmeras outras qualidades para
compensar. Se você a respeitar, Sutu ajudará você até seu último dia, porque
você não representa perigo para ela. Ela não tem segredos nem porta, e, se
algum dia tiver alguma, não há canto de sereia algum que a faça abrir para
ninguém.
A porta
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Elena Ferrante