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Copyright © 2019 by Ann Patchett
TÍTULO ORIGINAL
The Dutch House
PREPARAÇÃO
Fernanda Machtyngier
REVISÃO
Wendell Sussuarana
Eduardo Carneiro
PINTURA DA CAPA
Noah Saterstrom
DESIGN DE CAPA
Robin Bilardello
REVISÃO DE E-BOOK
Laura Zúñiga
GERAÇÃO DE E-BOOK
Joana De Conti
E-ISBN
978-85-510-0660-3
1a edição
Folha de rosto
Créditos
Mídias sociais
Sumário
Dedicatória
Parte um
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Parte dois
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Parte três
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 18
Capítulo 19
Capítulo 20
Sobre a autora
Leia também
Este livro é para Patrick Ry
parte um
1
– Foi você quem disse que devíamos dar uma carona a ela –
disse Maeve. – Minha lembrança em relação a isso é
perfeitamente clara. Nós íamos cear com os Gooches e eu
precisava ir para casa fazer a torta, e você disse que tinha
conhecido essa menina no trem e prometido a ela que eu a
levaria para casa.
– Mentira deslavada. Você nunca fez uma torta na vida.
– Eu precisava ir até a padaria buscar a torta que tinha
encomendado.
Balancei a cabeça.
– Eu sempre pegava o trem das 4:05. A padaria já estaria
fechada quando eu chegasse.
– Você quer parar? Só estou dizendo que Celeste não é
minha culpa.
Estávamos no carro dela, rindo. O Volkswagen já não
existia havia anos, substituído por uma perua Volvo com
bancos aquecidos. Aquele carro moía a neve.
Mas nesse dia específico só estava frio, não nevava. As
luzes da Casa Holandesa já estavam acesas na escuridão.
Isto era parte de uma nova tradição que veio anos mais
tarde: após Celeste e eu termos namorado e terminado e
voltado a namorar, após termos casado e após May e Kevin
terem nascido, após eu ter me tornado médico e deixado de
ser médico, após todos tentarmos durante anos passar o
Dia de Ação de Graças juntos de maneira civilizada e
desistirmos. Todo ano Celeste e as crianças e eu íamos da
cidade até Rydal na quarta anterior ao Dia de Ação de
Graças. Eu deixava os três na casa dos pais dela e ia jantar
com minha irmã. No Dia de Ação de Graças, Maeve servia
almoço aos sem-tetos com um grupo da igreja, e eu voltava
para comer com a família enorme e sempre em expansão
de Celeste. À noite, eu e as crianças voltávamos para ver
Maeve em Jenkintown. Levávamos potes cheios de sobras e
fatias de torta que a mãe de Celeste havia feito. Comíamos
a comida fria enquanto jogávamos pôquer valendo centavos
à mesa de jantar. Minha filha, cuja natureza dramática já era
evidente na infância, gostava de dizer que era pior do que
ter pais divorciados – ficar indo para lá e para cá. Eu dizia
que ela não fazia ideia do que estava falando.
– Queria saber se Norma e Bright ainda vêm para casa
comemorar o Dia de Ação de Graças – disse Maeve. – Queria
saber se elas casaram com pessoas que Andrea odeia.
– Ah, devem ter casado – disse, e por um instante
consegui imaginar como tinha acontecido. Senti pena
daqueles homens que jamais conheceria. – Que pena dos
coitados trazidos à Casa Holandesa.
Maeve balançou a cabeça.
– É difícil imaginar quem seria considerado bom o
bastante para aquelas meninas.
Lancei um olhar sarcástico à minha irmã, pensando que
ela entenderia a piada, mas ela não entendeu.
– O quê?
– Isso é o que Celeste sempre diz de você – contei.
– O que Celeste sempre diz de mim?
– Que você acha que nenhuma mulher teria sido boa o
bastante para mim.
– Eu nunca disse que nenhuma era boa o bastante para
você. Disse que você poderia ter encontrado alguém melhor
do que ela.
– Ah – disse, e levantei a cabeça. – Fácil.
Minha esposa fazia comentários maldosos sobre minha
irmã e minha irmã fazia comentários maldosos sobre minha
esposa, e eu ouvia as duas, porque era impossível evitar.
Durante anos tentei fazer com que rompessem com esse
hábito, defender a honra de uma para a outra, e tinha
desistido. Ainda assim, havia limites até onde podiam ir, e
as duas sabiam disso.
Maeve olhou pela janela em direção à casa.
– Celeste tem filhos lindos – disse Maeve.
– Obrigado.
– Eles não têm nada a ver com ela.
Ah, se sempre tivéssemos vivido em um mundo no qual
todo homem, mulher e criança viessem equipado com um
dispositivo que registrasse áudios, fotografias e filmes
curtos. Adoraria ter provas mais irrefutáveis que minha
própria memória, uma vez que nem minha irmã nem minha
esposa me apoiavam nisto: foi Maeve quem escolheu
Celeste; e foi Maeve quem Celeste amou primeiro. Eu
estava lá naquela carona na neve entre a estação 30th
Street e a casa dos pais da Celeste em Rydal, em 1968, e
Maeve foi calorosa a ponto de derreter o gelo das estradas.
Celeste estava no banco de trás, apertada entre nossas
malas, os joelhos para cima porque não havia espaço no
banco de trás daquele Fusquinha. Os olhos de Maeve
ficavam desviando para o retrovisor enquanto enchia
Celeste de perguntas: Onde ela estudava?
Celeste estava no segundo ano na Thomas More.
– Digo a mim mesma que é Fordham.
– É para onde eu teria ido. Queria estudar com os
jesuítas.
– Onde você estudou? – perguntou Celeste.
Maeve soltou um suspiro.
– Barnard. Ofereceram uma bolsa de estudos, e isso
resolveu a questão.
Pelo que eu sabia, nada nessa história era verdade.
Maeve certamente não tinha sido bolsista.
– O que você está estudando? – perguntou a ela.
– Vou me formar em Língua Inglesa – respondeu Celeste.
– Estou fazendo Poesia Americana do Século XX este
semestre.
– Poesia era minha disciplina favorita! – As sobrancelhas
de Maeve se ergueram de espanto. – Não acompanho como
deveria. Essa é a verdadeira tristeza de se formar. A gente
nunca tem tanto tempo para ler quando não tem ninguém
para nos obrigar.
– Quando você fez uma disciplina de poesia? – perguntei
à minha irmã.
– Tão triste, a casa – disse Maeve. – Como a deixam, se
mantém, moldada no aconchego do último que sai, como
que para tê-lo uma vez mais. Contudo, sem gente a quem
agrade, ela decai; não tem coragem de esquecer o roubo.
Ao ter certeza de que Maeve tinha parado, Celeste
continuou o verso em uma voz mais suave.
– Nem se lembra do que foi muitos anos atrás, o alegre
ensaio do que deveria ser, há muito malogrado. Vê-se o que
era a casa olhando os quadros que estão lá. Cada talher. As
músicas no banco do piano. O vaso.
– Larkin – as duas gritaram juntas.
As duas podiam ter se casado bem ali, Maeve e Celeste.
Tamanho foi o amor entre elas naquele momento.
Olhei para Maeve com espanto.
– Como você sabia disso?
– Não submeti meu currículo à aprovação dele – Maeve
riu, inclinando a cabeça na minha direção, e Celeste riu
também.
– Em que você se formou? – perguntou Celeste.
Quando virei para trás, ela era um mistério completo para
mim. As duas eram.
– Contabilidade. – Maeve diminuiu a marcha com um tapa
da mão aberta enquanto descíamos uma colina coberta de
neve deslizando suavemente. Atravessamos o rio e a
floresta. – Muito chato, muito prático. Eu precisava ganhar a
vida.
– Ah, claro – assentiu Celeste.
Mas Maeve não se formara em Contabilidade. Não havia
Contabilidade em Barnard. Ela se formara em Matemática. E
foi a melhor aluna da turma. Contabilidade era o que ela
fazia, não o que tinha estudado. Contabilidade era o que era
capaz de fazer com a mão nas costas.
– Aquela igrejinha episcopal é muito bonita. – Maeve
diminuiu a velocidade na Homestead Road. – Fui a um
casamento ali uma vez. Quando eu era criança, as freiras
quase teriam um ataque se soubessem que tínhamos
colocado os pés em uma igreja protestante.
Celeste assentiu, sem ter ideia de que aquilo tinha sido
uma pergunta. Thomas More era uma faculdade jesuíta,
mas isso não significava necessariamente que a menina no
banco de trás do carro fosse católica.
– Nós frequentamos a St. Hilary.
Ela era.
A casa em frente à qual estacionamos era
consideravelmente menos grandiosa que a Casa Holandesa
e consideravelmente mais grandiosa que o apartamento no
terceiro andar sem elevador onde Maeve ainda morava
naquela época. A casa de Celeste era uma respeitável casa
colonial de madeira amarela com detalhes brancos, com
dois bordos sem folhas tremendo no jardim, um deles com
um balanço de corda; o tipo de casa que levava a imaginar
uma infância feliz, o que era verdade no caso de Celeste.
– Vocês foram tão gentis. – Celeste começou a dizer, mas
Maeve a interrompeu.
– Vamos levá-la até lá.
– Mas vocês não…
– Viemos até aqui – disse Maeve, desligando o carro. – O
mínimo que podemos fazer é acompanhá-la até a porta.
Eu tinha de descer de qualquer forma. Puxei o banco e
me inclinei para dentro do carro a fim de ajudar Celeste a
sair, depois peguei sua mala. O pai dela ainda estava no
consultório restaurando cáries, tinha ficado até mais tarde
porque o consultório estaria fechado no Dia de Ação de
Graças e no dia seguinte. As pessoas voltavam para casa
durante as festas com dor de dente que vinha sendo
adiada. Seus dois irmãos mais novos estavam assistindo à
televisão com amigos e gritaram para Celeste, mas não se
deram ao trabalho de largar o programa. Houve uma
saudação muito mais calorosa de um labrador preto
chamado Pelota.
– Quando filhote, o nome dele era Larry, mas ele foi
ficando meio empelotado – disse Celeste.
A mãe de Celeste pareceu amigável e apressada, estava
preparando um jantar para vinte e dois parentes que
chegariam no dia seguinte ao meio-dia. Não era de admirar
que tivesse esquecido de buscar a terceira filha na estação.
(Eram cinco irmãos Norcross no total.) Após as
apresentações, Maeve fez com que Celeste anotasse seu
telefone em um pedaço de papel, dizendo que de vez em
quando ia até a cidade e poderia dar-lhe uma carona, talvez
até prometesse o banco da frente da próxima vez. Celeste
agradeceu e a mãe também, mexendo uma panela de
oxicocos no fogão.
– Vocês deviam ficar para o jantar. Estou lhes devendo um
grande favor! – disse a mãe de Celeste, percebendo seu
erro. – O que estou dizendo? Você também acabou de
chegar em casa. Columbia! Seus pais devem estar
morrendo de vontade de vê-lo.
Maeve agradeceu pelo convite e aceitou um breve abraço
de Celeste, que apertou minha mão. Minha irmã e eu
descemos a entrada coberta de neve. Parecia que todas as
luzes de todas as casas estavam acesas, subindo e
descendo a rua, dos dois lados. Todos em Rydal estavam em
casa para o Dia de Ação de Graças.
– Desde quando você fez uma disciplina de poesia? –
perguntei quando ela entrou no carro.
– Desde que ela enfiou um livro de poesia na mala. –
Maeve aumentou a temperatura do aquecedor inútil do
carro. – Qual é o problema?
Maeve nunca tentava impressionar ninguém, nem mesmo
o advogado Gooch, por quem eu desconfiava que ela nutria
uma paixão secreta.
– Por que você quer que a Celeste pense que você lê
poesia?
– Porque mais cedo ou mais tarde você vai encontrar
alguém, e prefiro que você encontre uma católica de Rydal
do que uma budista de, sei lá, do Marrocos.
– Você está falando sério? Está tentando me arranjar uma
namorada?
– Estou tentando defender meus próprios interesses, só
isso. Não leve tão a sério.
Não levei.
9
© HEIDI ROSS