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Meus Três Namorados

Alexis Page

Anna Morris se meteu numa enorme enrascada. Normalmente ela ficaria contente
com uma visita surpresa de Joel, seu namorado fixo a três anos, mas esse não é um fim de
semana normal. Não só Peter, seu ex-quase caso, está prestes a aparecer, como ela também
tem um compromisso imperdível com Kerry Halley, sua última paixão - talvez o garoto dos
seus sonhos. Triplo desastre! Nem mesmo a romântica Anna, uma gata pra ninguém botar
defeito, sabe como lidar com três garotos ao mesmo tempo num único fim de semana. Ou
será que ela sabe?
Sumário

Prólogo: Três garotos, uma garota, um fim de semana 3


1. Novas e excitantes aventuras 6
2. Antipatia à primeira vista 11
3. A força do destino 17
4. Frio por fora, sensível por dentro 23
5. Flertando com o perigo 26
6. Que garoto insuportável! 29
7. Tempos de paz 33
8. A garota mais sozinha do mundo 39
9. Ciúmes e incertezas 44
10. Intimidade violada 48
11. Um momento inesquecível 53
12. Nuvens negras no horizonte 57
13. Com o coração partido em três 61
14. Catástrofe total! 63
15. O amor é uma caixinha de surpresas 68
16. Lágrimas de adeus 72
17.A força do destino, mais uma vez 76
Prólogo

Três garotos, uma garota, um fim de semana

- Vocês poderiam me enfiar num barril e me lançar nas cataratas - gemi, completando minha volta de
número quatrocentos e vinte e dois pela cabana de madeira que dividia com Lucky Hamilton e Samantha Lerner,
as outras monitoras do acampamento.
Fazia poucas semanas que eu chegara ao acampamento de verão de Seneca Falls, no Vale Seneca, Virgínia,
e já me encontrava em uma das piores encrencas da minha vida. Me joguei de novo no beliche, fixando as vigas
de madeira do teto com um olhar perdido. Por que eu sempre me meto nessas situações?, pensei.
Lucky, minha amiga mais antiga e companheira de quarto, riu do meu desespero.
- Sem essa, Anna. Não é pra tanto.
- Não é pra tanto, não é pra tanto... - repeti. - Pensando bem, não é mesmo. Esqueça o barril. Pode me jogar
direto nas cataratas.
Me levantei e puxei minha mochila de debaixo do beliche. Abrindo as três portas do armário ao mesmo
tempo, comecei a socar na mochila todas as minhas roupas: meias, calcinhas, uma calça jeans, duas camisetas.
- O que você está fazendo? - perguntou Lucky..
Vi de relance o reflexo de Lucky no espelho. Ela ria de novo.
- Obrigada pelo apoio moral, Lucky. Estou a um passo de uma morte trágica, e você rindo da minha cara.
Com amigas assim eu... eu...
Peguei meu diário e o guardei no bolso dianteiro da mochila.
- Anna Morris, acalme-se! - ordenou Lucky quase gritando, agarrando a mochila e jogando-a no chão.
- Sente aí e desabafe de uma vez - continuou ela, apontando para a cama.
Obedeci e tentei recuperar o fôlego. Não sabia nem por onde começar. Apesar de ter se passado
apenas um dia desde que Joel telefonara, parecia uma eternidade. E uma eternidade nada agradável. Joel
Washburn era o meu namorado de longa data: três anos. Eu o conhecera logo no comecinho do colegial, e
desde então tínhamos ficado juntos. No dia anterior ele me telefonara comunicando a surpresa: estava a
caminho do Vale Seneca para passar o fim de semana comigo no acampamento. Normalmente eu teria me
sentido eufórica com a perspectiva de tê-lo .ao meu lado, mas aquele não era um fim de semana normal.
Porque Peter Bordeaux - o cara por quem eu me derretera toda no verão anterior - também estava
vindo me visitar. E ainda pior: porque eu já tinha uma grande noitada programada para o sábado com Kerry
Halley, o cara em quem não conseguia parar de pensar fazia vários dias.
- Estou esperando, queridinha - disse Lucky, pegando uma presilha em cima da penteadeira.
Ela se inclinou para a frente e sacudiu seus cabelos castanhos e cacheados. Em seguida levantou a
cabeça e enrolou-os em um coque, que fixou com a presilha. Alguns fios encaracolados caíram na frente de
seu rosto, criando um efeito sensual.
- Bom, se você não quer se abrir, vou cuidar da minha vida. E dizendo isso abriu a porta da cabana e
saiu.
Não pude reprimir um sorriso. Lucky tinha uma habilidade especial para me tirar de qualquer tipo de
desespero.
- Tá bom, tá bom, lá vai - gritei para Lucky.
Eu tinha certeza de que ela ainda estava do outro lado da porta, esperando.
Saltei da cama, abri a porta de madeira com um puxão rápido e vi Lucky andando em pequenos
círculos no gramado em frente à nossa cabana.
- Você tem sorte de eu não ter ido muito longe - disse ela num tom zombeteiro, me seguindo de volta
para dentro da cabana.
- Andando em círculos dificilmente você teria ido muito longe - observei com sarcasmo.
Lucky grunhiu.
- Talvez devêssemos mesmo atirar você nas cataratas.
Eu ri. Nunca consigo resistir a uma boa tirada, mesmo nas situações mais desastrosas. Mas logo meu
sorriso desapareceu ao sentir a realidade desabando de novo sobre minha cabeça. Me afundei na cama e me deitei
de lado, apoiando o rosto na mão.
- Tudo bem, então vamos à análise da crise - disse Lucky, sentando-se na velha cadeira de balanço de
madeira no canto do quarto e abraçando os joelhos.
Mordi o lábio e tentei colocar os pensamentos em ordem. - Bem, a versão curta e positiva da história é que
vou à nossa festa de Quatro de Julho com Kerry.
- Ah, eu sabia que você gostava dele - exclamou Lucky, erguendo o dedo indicador no ar e saltando
entusiasmada.
Quer dizer, tentando saltar: pular de uma cadeira de balanço partindo de uma posição de cócoras não é
nada fácil, e o resultado foi que a minha velha e querida amiga acabou aterrissando de bunda no chão.
- Aaai! - gemeu ela, limpando o traseiro com as mãos e voltando para a cadeira com a máxima dignidade
de que foi capaz.
Olhei para o alto.
- Mas isso não é tudo.
- E qual é o resto? - perguntou Lucky, balançando suavemente a cadeira para a frente e para trás com as
pontas dos pés.
- O resto é que Joel está vindo de Washington pra me visitar - revelei, enquanto me levantava do beliche e
retomava o caminho que já trilhara pela cabana até gastar o assoalho de madeira.
- Opa, problemas conjugais à vista - disse Lucky.
- E recebi uma carta de Peter, que por coincidência está vindo da África especialmente pra me ver... e
também neste fim de semana - completei, parando por um segundo e olhando para a porta com uma expressão de
medo.
Voltei à minha interminável caminhada pelo quarto. Lucky arregalara os olhos.
- Peter Bordeaux? - perguntou, exagerando no sotaque francês. - Peter Pierre? O seu intelectualzinho
francês do verão passado?
A família de Peter era francesa pela parte de pai. Apesar de morarem nos Estados Unidos havia muitas
gerações, ele gostava de pensar que era um europeu. Passara algum tempo com seus parentes na França, e tinha
uma tendência pedante a exibir seu francês e sua cultura.
Lucky e Peter não tinham se dado muito bem no verão anterior. Na verdade ela o desprezava. Lucky
estudara francês na escola e não se impressionava nem um pouco com as habilidades lingüísticas dele. Dera-lhe o
apelido de "Monsieur Pierre", e gostava de mudar seu sobrenome para um tipo diferente de vinho a cada vez que
se referia a ele.
Fiz um gesto afirmativo com a cabeça.
- O próprio - confirmei, me apoiando na parede e me sentindo oprimida pela situação. - Três caras -levantei
três dedos da mão direita -, uma garota - apontei para mim mesma - e um fim de semana. É morte certa - concluí
em tom sombrio, esticando o indicador e o polegar e levando a mão direita até minha têmpora.
- Iiihh - disse Lucky. - É mesmo, tem razão. - Olhei para ela, perplexa.
- Isso é tudo o que você tem a dizer? - choraminguei. - Nenhuma reconfortante frase feita? Nenhum
conselho amigável? Nada de ditados, feitiços, promessas... Nem sequer uma piadinha?
Me aproximei do beliche e joguei a mochila de novo sobre o colchão. Afastando o travesseiro, peguei meu
pijama e o enfiei com o resto da bagagem.
- "As coisas sempre parecem melhores depois de uma boa noite de sono" - começou Lucky. - "O tempo
tudo resolve." "Respire fundo e conte até dez."
Larguei a mochila, desanimada, e me afundei na cama outra vez.
- As frases feitas não estão funcionando. Tente outra técnica. - Lucky pensou por um minuto.
- Encare as coisas da seguinte forma, Anna: pelo menos você vai ter alguma coisa fora do normal para
contar para...
- Ninguém! - terminei a frase por ela, lançando-lhe um olhar fulminante. - Ninguém pode saber
disso. Obrigada pela ajuda, Lucky.
Lucky fez uma careta.
- Só estava pensando nos seus filhos e netos.
Peguei minha nécessaire no armário e abri o zíper. Passei a mão várias vezes pelo tampo da
penteadeira, arrastando todas as minhas coisas para dentro da bolsinha plástica.
Lucky se levantou e andou até onde eu estava.
- Humm - disse ela, num tom irritantemente provocante. - Então você vai fugir? A senhora encare-o-
que-vier, a topa-tudo no fim vai engolir as próprias palavras?
- Lucky - repliquei com voz solene -, sei que há situações na vida nas quais você é testada, nas quais
é obrigada a superar o desafio. Você pode optar entre nadar ou afundar. Mas por outro lado, isso é filosofia,
e agora estamos falando da vida real. Vou dar o fora, e ponto.
Ajustei bem as alças da mochila e as enfiei nos ombros. Lucky esboçava um leve sorriso.
- Anna, você não pode fugir, e sabe disso. Cruzei os braços e bati um pé no chão.
- Por que não?
- Porque as coisas não vão ficar melhores se você desaparecer - pontificou Lucky. -Tudo o que você
conseguiria fazer seria adiar o inevitável.
- Muito pelo contrário! - argumentei. - Se eu sumir no fim de semana, fico livre. Diga a todos que
não trabalho mais aqui. Peter e Joel dão o fora, e eu escapo dessa fria. Brilhante!
- Anna, você tem de assumir a sua responsabilidade por essa situação - falou Lucky com firmeza. -
Não é justo com nenhum deles, especialmente com Joel. Isso sem falar nos campistas. O seu compromisso
é ficar aqui com eles até o fim do acampamento. Além do mais, uma hora ou outra você vai ter de escolher.
Talvez seja melhor agora.
Suspirei e larguei a minha mochila no chão. Lucky tinha razão, claro. Fugir não era a solução. Não
ajudaria nem um pouco a resolver o meu dilema. Não, eu precisava encarar a realidade de frente. Me metera
sozinha naquela encrenca, e tinha de dar um jeito de sair dela.
Dei mais alguns passos em frente à porta, refletindo profundamente. Tudo o que eu precisava era de um
estratagema. Um plano simples e eficiente, mesmo que fosse um pouco tortuoso, para aquele fim de semana. Mas
qual?
- Você precisa me ajudar, Lucky! - implorei, estendendo as mãos num gesto dramático. - Simplesmente
não sei o que fazer!
- Bom, na verdade tudo o que você tem de fazer é descobrir qual desses três caras realmente quer. E depois
dispensar os outros dois.
Segurando nos meus ombros, Lucky me virou de frente para o espelho.
- O que o seu coração diz? - perguntou, apontando para meu peito.
Pensei por um instante. O que o meu coração diz? O que o meu coração diz?
Eu não sabia.
Ou sabia?
Não. Pelo menos não com certeza absoluta.
Tudo o que eu sabia era que toda aquela confusão começara quando...
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Novas e excitantes aventuras

Dei uma última examinada em meu quarto. Era o penúltimo sábado de junho, e eu estava pronta para partir
para o acampamento de Seneca Falls, no Vale Seneca, onde trabalharia como monitora de um bando de crianças
em férias de verão. Tudo parecia estar em seus devidos lugares. A mensagem na secretária eletrônica já fora
alterada. Antes era: "Deixe suas coordenadas. Telefono mais tarde". E a nova dizia: "Anna está em suas férias de
verão, mas mesmo assim quer falar com você. Dê uma ligada para Seneca Falls, 304-555-8639".
Meus peixes tropicais tinham acabado de jantar e nadavam felizes em seu pequeno paraíso aquático dentro
de um cubo de vidro. Deixei grudado no aquário um bilhete para Marty, meu irmão menor, com instruções sobre
como alimentá-los. O aparelho de som estava desligado e minhas malas já estavam todas prontas. Mas eu ainda
tinha a nítida sensação de estar me esquecendo de algo.
- O que foi, Anna? – perguntou Jackie Knaus, minha melhor amiga em Washington.
Jackie viera para me ajudar a arrumar tudo, mas na verdade o que mais fizera fora ficar passeando pelo
quarto com sua costumeira hiperatividade, bagunçando minhas coisas.
- Você parece um pouco aérea - comentou.
Peguei o CD que Jackie rodopiava em minha mesa e o guardei na embalagem.
- Sinto como se estivesse me esquecendo de algo - respondi.
- Desencana - replicou Jackie. - Não sobrou nada no seu
armário. Você está levando até o seu vestido de formatura do primário. E todos os seus livros, sabe-se lá
pra quê.
Ela tirou um livro da minha mala, folheou as páginas e o jogou pelos ares, errando a cama e
acertando a parede. Eu o resgatei e coloquei de volta na mala.
- Você vai trabalhar como monitora, Anna. Não como professora.
Ela pegou outro CD.
- Sério, Jackie, é alguma coisa importante de que não consigo me lembrar. Que raio será que estou
esquecendo?
Jackie saltou por cima das malas e se jogou na minha cama.
- Que tal isto? - perguntou, segurando o porta-retratos dourado que ficava no meu criado-mudo.
Joel.
- Claro... - concordei, esticando a mão - Não posso esquecer a foto do meu namorado.
Jackie jogou o porta-retratos, e eu o peguei no ar. Senti uma certa nostalgia do passado ao examinar a
foto. Era um retrato de Joel montado em sua bicicleta acompanhado por Doutor J, seu cachorro. Eu a tirara
antes de ir ao Acampamento Seneca Falls no verão anterior, poucos minutos antes de prometer a Joel que
pensaria nele todos os dias.
E falara a sério.
Só que não sabia que iria conhecer Peter Bordeaux.
Eu achara Peter superatraente desde o primeiro instante em que o vira no café de Seneca Falls. Ele
não tinha o mesmo tipo de beleza de Joel - uma combinação de rebeldia, rudeza e falta de jeito. Mas era
intensamente, preocupantemente bonito e charmoso.
Joel tinha uma beleza natural e sem afetação, com seus cabelos longos e castanhos, pele bronzeada e
um grande e luminoso sorriso. Mais ou menos o protótipo de homem dos anos setenta: pacífico, relaxado,
sem encucações. Sua marca registrada eram suas calças largas de algodão e as camisetas de cores suaves.
Tinha uma presença marcante, e todos gostavam dele. Joel estaria totalmente em seu hábitat num festival de
Woodstock, por exemplo.
Peter, por outro lado, parecia ter acabado de sair de algum café de intelectuais existencialistas de
Paris. Era alto e magro, cabelos pretos ligeiramente compridos, maçãs do rosto salientes, pele branca e pálida
e penetrantes olhos castanho-escuros. Um nova-iorquino típico, um ano mais velho do que eu e mais sofisticado
que a maioria dos garotos da minha escola.
Peter tinha sempre uma expressão torturada, como se estivesse tentando desvendar os mistérios da
existência. Ele fora o assistente do cozinheiro-chefe do acampamento no último verão. Preparara alguns pratos
incríveis para mim e me contara histórias fascinantes sobre suas viagens pela Europa e Ásia. Mesmo sabendo que
seu hábito de soltar eventuais frases em francês era um bocado pedante, eu não podia evitar um friozinho de
prazer no estômago cada vez que ele dizia: "Je t'aime, Anna" - como diriam os garotos normais, "Eu te amo,
Anna".
Peter me perseguira insistentemente durante todo o verão.
Não se importava por eu ter um namorado em Washington, nem se preocupava com a perspectiva de não
nos vermos mais quando o verão acabasse. "A gente tem de aproveitar o presente, o aqui e agora", ele repetia
sempre. Apesar de toda aquela sua bajulação me agradar e afagar o meu ego, eu conseguira resistir à tentação.
Com exceção de uma vez...
Fechei os olhos, me lembrando da última vez em que ficara a sós com Peter. Ele preparara um delicioso
piquenique para nós dois e me levara a um recanto escondido perto das cataratas. Comêramos baguetes com
queijo de cabra e tomate enquanto admirávamos as quedas d'água. E ele me contara sobre uma ocasião em que
tinha improvisado um recital de poesia num café em Paris.
Depois que termináramos de comer, Peter lera para mim em francês. Um poema de Baudelaire. Não
importava que eu não entendesse uma palavra do que ele dizia, nem que ele com certeza já tivesse feito
exatamente a mesma coisa com uma centena de outras garotas, nem que eu houvesse prometido a Joel que nunca
o trairia. Tudo o que importava naquele instante era que Peter estava ali, fazendo com que me sentisse uma
mulher madura e muito romântica.
Eu me atirara em seus braços quando ele acabara de ler o poema. Ele afastara meus cabelos para trás e
acariciara meus lábios com o dedo indicador. De repente o tempo parecia ter parado. Tudo ao redor, com exceção
das quedas d'água, silenciara ou parecera ter recuado para um plano muito distante. Peter olhara no fundo dos
meus olhos, e eu erguera minha cabeça na direção da dele. Mas naquele momento a imagem de Joel explodira em
minha mente, e quando os lábios de Peter tinham começado a tocar os meus, eu afastei minha cabeça.
- Peter, não posso... não posso fazer isso... - eu disse, sem fôlego.
Ele apenas balançou a cabeça, decepcionado.
- Ah, Arma - ele balbuciou -, você ainda é muito nova. pra saber o que realmente importa na vida...
Nesse instante, tirando-me do devaneio e me fazendo retornar ao meu quarto, ouvi Joel gritar do andar de
baixo:
- Motorista às ordens, senhoritas! - Ele subiu as escadas de dois em dois degraus como sempre fazia.
Pisquei e despenquei novamente no presente. Uma forte onda de sentimento de culpa me invadiu quando
Joel entrou no quarto. Um ano inteiro passara, e mesmo assim eu ainda pensava em Peter Bordeaux, em como
teria sido ficar com ele, nas oportunidades que tinha perdido... Eu não me arrependera de ter permanecido fiel a
Joel- na verdade me sentia muito orgulhosa por ter resistido à tentação. Mas sempre continuaria imaginando...
Vestindo uma calça verde-oliva bem larga e uma camiseta azul clara, Joel parecia bonito e solto como
sempre. Seu cabelo estava preso num rabo-de-cavalo folgado, e alguns fios caíam sobre seu rosto.
- Ao seu dispor, mademoiselle.
Eu sorri, mas aquela palavra francesa me fez pensar em Peter e me produziu um arrepio.
- Oi, Joel - falei, ficando na ponta dos pés para beijá-lo. Não sou baixinha, mas Joel é alto. Muito alto. Eu
sempre dizia que ele tinha um e oitenta e nove, mas ele garantia que era um e oitenta e três. Era um constante tema
de discussão entre nós. Joel achava que eu queria fazê-lo mais alto para também parecer mais alta.
Joel bateu palmas, todo seu corpo exalando energia.
- Tudo pronto, tia Anna? - perguntou. - Pronta pra pegar a estrada e se encontrar com aquele bando de
fedelhos em Seneca Falls?
Balancei a cabeça dizendo que sim. Com a energia de Joel e Jackie reunidas daria para explodir o teto de
uma casa.
- Ela está pronta - confirmou Jackie, se debruçando sobre a minha mochila. - Só não consegue decidir
se você vai ou não com ela.
Jackie se levantou e pegou um boné azul de beisebol em cima da escrivaninha, rodopiando-o no ar.
- O quê? - perguntei, confusa. - Ah, claro... Eu ainda estava segurando a foto de Joel.
- Claro que ele vem comigo - continuei irritada, jogando o porta-retratos na mochila.
- Então vamos lá - disse Joel, pegando minha abarrotada sacola de viagem.
Ele a levantou do chão e logo a deixou cair de novo, com um ruído surdo.
- Caramba! O que é que tem aqui dentro? Cimento?
- Vamos dar uma olhada - disse Jackie. - Um dicionário,
alguns livros de biologia, todos os cadernos de inglês dos últimos três anos...
- Tá bem, tá bem, chega! - interrompi, pegando a alça da sacola e sorrindo para Joel. - Motorista, por
gentileza?
- O homem foi feito para servir às mulheres - respondeu ele suspirando, pegando a sacola e abrindo a
porta.
Coloquei minha mochila nas costas e pulei algumas vezes para distribuir o peso. Depois ajustei as
alças dos ombros e a correia em volta da cintura.
- Pé na estrada, Jack - falei com um sorriso safado para Jackie, parodiando uma música do Ray
Charles.
- Muito engraçadinha - replicou ela, fazendo uma careta e descendo atrás de mim.
- Você se despediu dos seus pais? - Jackie perguntou enquanto descíamos as escadas.
Fiz um gesto negativo com a cabeça.
- Minha mãe não queria ir ao trabalho só pra ficar aqui e me ajudar, mas consegui convencê-la de que
sou capaz de me virar sozinha.
- A nossa garotinha está crescendo rápido demais - gozou Jackie, torcendo o nariz numa expressão
zombeteira.
Ela abriu a porta da frente.
Uma onda de calor me envolveu quando dei o primeiro passo para fora de casa. Apesar de ainda ser muito
cedo, o sol já estava bem quente. Com certeza seria um dia sufocante. A luz solar se refletia na enferrujada lataria
cor-de-laranja da velha camionete de Joel.
- O Doutor J não vai dirigindo, vai? - perguntou Jackie enquanto colocávamos minhas coisas na parte de
trás da camionete.
O bobalhão do cachorro estava pendurado na direção, babando no painel.
- Não, ele ainda não conseguiu tirar a carteira. Continua errando na hora de fazer a baliza - brincou Joel,
jogando as chaves para Jackie. - Por que você não dirige? Assim eu e a Anna podemos ficar nos agarrando até a
rodoviária.
Ele sorriu e piscou para mim. Em seguida abriu a porta do carro para que Doutor J saísse.
- Vamos lá, Doutor J, chega de palhaçada por hoje.
O cachorro latiu duas vezes e pulou para a traseira da camionete. Ficou saltando excitado, farejando o ar.
Depois rodou um pouco em círculos e por fim se acomodou em cima das minhas malas.
- Vocês não vão me deixar segurando vela, né? - perguntou Jackie, enquanto se acomodava no banco da
frente.
- Vamos tentar manter o controle - respondi sorrindo. Na verdade era só uma brincadeirinha entre mim e
Joel. Ele nunca gostara muito das MPAs - Manifestações Públicas de Afeto -, e de alguma forma o nosso
relacionamento amadurecera com o decorrer dos anos. Não sentíamos nenhuma necessidade de nos agarrarmos
na frente dos outros.
Me sentei ao lado de Joel e peguei na sua mão. Ele apertou a minha, e senti uma pontada no coração. Joel
era meu companheiro constante, e sua presença sempre me reconfortava. Seria difícil me afastar dele mais uma
vez durante todo o verão.
Fiquei sentada de pernas cruzadas observando os monumentos da cidade de Washington que passavam por
nós, e percebendo apenas vagamente as constantes brincadeiras entre Jackie e Joel. Continuei em silêncio durante
todo o caminho, absorta em meus pensamentos sobre o verão que me aguardava em Seneca Falls.
Eu me divertira muito no acampamento do ano anterior. No início não quisera ir, pois não suportava a idéia
de passar todo o verão bancando a babá de um monte de crianças. E o Seneca Falls, um acampamento de férias
com seis semanas de duração para crianças entre nove e treze anos de idade, estava absolutamente repleto delas.
Durante aquela primavera eu planejara ficar em Washington durante o verão. Pretendia escrever um pouco,
talvez organizar um grupo de redação. Então recebera um telefonema de Lucky Hamilton, minha amiga mais
antiga e mais querida. Ela tinha sido minha vizinha, e nós crescêramos juntas. "Vocês duas parecem irmãs
siamesas", minha mãe costumava dizer. Mas no início do colegial a mãe de Lucky recebera uma ótima oferta de
emprego de uma empresa do Maine, e a família toda se mudara para lá. Eu ficara arrasada.
- Você já tem planos pro verão? - perguntara a voz calorosa de Lucky do outro lado da linha.
Nós nos falávamos pelo menos uma vez por semana, e sempre que ela ligava nem sequer dizia "alô": ia
direto ao assunto. Eu gostava daquilo, era como se nunca houvesse existido distância alguma entre nós.
- Não exatamente. Por quê? - eu perguntara, com uma certa apreensão.
O tom de voz de Lucky parecia querer dizer "tive uma idéia", e suas idéias tendiam a ser inaceitáveis.
- Anna, vamos a um acampamento como monitoras! exclamara ela.
- Acampamento? Sem essa, Lucky! Não tenho a mínima intenção de passar todo o verão cuidando de um
monte de crianças.
- Um acampamento não é feito só de crianças - ela explicara. - Tem também os outros monitores, fogueiras
à noite, muita diversão... e liberdade. Você vai ver. Vai ser demais. E ainda por cima vamos passar seis semanas
juntas.
Aquele fora o argumento decisivo: a possibilidade de passar o verão com Lucky.
E ela estava certa. O acampamento foi maravilhoso. Meus deveres de monitora naquele verão não foram
chatos, e trabalhar com as crianças foi até mesmo muito divertido. No fim da temporada eu me apegara
bastante ao grupo de meninas de dez anos de idade com as quais dividira uma cabana. Eu era a monitora
responsável pelas atividades artísticas e trabalhos manuais, e levara um monte de projetos para desenvolver
com os campistas. Tínhamos pintado camisetas e criado um enorme mural cheio de cenas do acampamento.
E as noites também tinham sido ótimas: fazíamos churrascos, jantares ao ar livre e jogos de vôlei noturnos.
Aquele meu segundo verão no Acampamento Seneca Falls tinha tudo para ser ainda melhor. Como
monitora sênior, eu teria mais privilégios e mais independência. Havia oito monitores júnior e oito monitores
sênior no acampamento, e os sênior ficavam em cabanas independentes. Os monitores júnior, além de dormir
com os campistas na mesma cabana, eram responsáveis pela coordenação de todas as atividades e por tomar
conta deles à noite.
Os sênior tinham muito mais liberdade. Como não nos ocuparíamos dos campistas todas as noites,
poderíamos usar o tempo livre para as nossas próprias atividades. Naquele ano eu ficaria encarregada de dar
aulas diárias de natação e workshops de artes duas vezes por semana. Mal podia esperar para encontrar meus
amigos do verão anterior, e estava louca para ser instrutora de natação. No ano anterior eu não tivera
condições para assumir o posto. Todas as atividades no Seneca Falls - com exceção da natação - eram
orientadas por um monitor sênior e um júnior. Mas como as aulas de natação eram no lago, e potencialmente
perigosas, a diretora do acampamento confiava apenas nos sênior que tivessem experiência como salva-
vidas.
Eu tentara convencer Joel e Jackie a irem ao acampamento comigo e Lucky naquela segunda
temporada. Mas Joel tirara três notas vermelhas - quatro, contando Educação Física - e tinha ficado de
recuperação no verão. Jackie também não poderia ir. Jogava no time de futebol feminino e queria participar
do campeonato de verão. Com seu cabelo espetado, curto e preto e um espírito constantemente irrequieto, ela
sempre tivera um jeito de menino, mas mesmo assim conseguia ser atraente de uma maneira só sua.
Sentada ao lado de Joel na camionete, com um irracional sentimento de abandono, suspirei e abracei
minhas pernas. A palavra "vôlei" invadiu meus pensamentos, e voltei minha atenção para a conversa entre
Joel e Jackie.
- Este vai ser o melhor torneio de vôlei que Washington já teve - dizia Joel.
Ele estava sentado na beirada do banco, tocando um tambor imaginário.
Joel e Jackie haviam se inscrito para serem capitães dos times masculino e feminino de vôlei de Sara
toga, a nossa escola, no torneio estadual daquele verão. Tinham tentado me convencer a participar, mas eu
queria voltar ao acampamento.
- Sem dúvida - concordou Jackie. - A Saratoga vai tomar conta de Washington neste verão.
Jackie estava excitada como sempre. Mesmo quando dirigia não conseguia parar de se mexer. Batia
no volante com a mão direita e balançava a cabeça. Era como se ela e Joel estivessem seguindo um mesmo
ritmo inaudível para os meus ouvidos.
Joel me abraçou e me puxou para perto de si.
- Tem certeza de que não quer mudar de idéia, Anna?
- É, Anna! - arremedou Jackie. - Por que você não desiste
dessa história de acampamento e se junta a nós no caminho da fama?
Eu ri.
- Não, o vôlei não é pra mim. Além do mais, os atletas aqui são vocês.
Na verdade eu também era bastante esportiva. Fazia parte do time de natação da escola e já trabalhara
como salva-vidas num clube alguns verões antes. Mas não era do tipo que gostava de aparecer. Gostava
mais de usar a minha cabeça, de observar as pessoas e escrever textos sobre minhas experiências. Meu
sonho era escrever romances e algum dia ter um pequeno café - um café do tipo que os artistas freqüentam.
Jackie riu.
- É, provavelmente você ia querer ensinar a filosofia do vôlei em vez de liderar o time.
- "O zen e a arte de jogar vôlei", de Anna Morris - completou Joel em tom gozador.
Todos rimos, mas o humor se esfumou quando Jackie estacionou na rodoviária. Os olhos de Joel
foram ficando tristes enquanto ele me acompanhava até o ônibus. Mesmo que não dissesse nada, eu sabia
que sentiria muito a minha falta. E eu, a dele.
Depois de Joel ter colocado minhas malas no bagageiro do ônibus, nós três ficamos parados perto da
camionete dele, meio sem saber o que fazer. Observávamos os outros passageiros chegando e saindo, e
não tínhamos muito o que dizer.
- Bem, vou deixar vocês se despedirem - disse Jackie, me abraçando. - Cuide-se.
- Tá bom. Você também - respondi. - E me faça um favorzinho: fique de olho em Joel.
- Combinado - garantiu Jackie, pegando Doutor J pela correia e levando-o para dar uma volta pelo
estacionamento. Joel me abraçou e me olhou nos olhos. Os dele brilhavam com o sol da manhã.
- Vou escrever pra você todos os dias - disse sorrindo, seus olhos se fechando um pouco e formando
rugas nos cantos.
- Eu também.
Eu sabia que provavelmente Joel me mandaria apenas dois ou três cartões-postais durante todo o
verão, mas achava que ele realmente pensava que ia me escrever todos os dias. Fazia parte de seu charme:
Joel sempre desejava do fundo do coração que as coisas que dizia se realizassem, só que não conseguia se
concentrar pelo tempo necessário para que elas de fato acontecessem.
Fiquei na ponta dos pés para lhe dar um beijo de despedida. Um belo beijo. Como todos os nossos
beijos.
Mas eu não conseguia deixar de pensar no promissor verão que me aguardava, cheio de novas e
excitantes aventuras.
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Antipatia à primeira vista

O ônibus estava quase vazio quando entrei. Só uns poucos passageiros: um homem de terno e gravata, uma
mulher com três crianças histéricas, e duas garotas que pareciam ter mais ou menos a minha idade. Escolhi uma
poltrona no fundo e me afundei nela.
Observei Joel e Jackie fazendo uma pequena bagunça no estacionamento enquanto o ônibus se afastava.
Doutor J escapara, e os dois corriam atrás dele. Finalmente Joel pisou na coleira e Jackie tropeçou nela, caindo no
chão. Doutor J a lambeu carinhosamente, colocando as patas no peito dela e passando a enorme língua em sua
cara. Ri sozinha enquanto observava as palhaçadas deles, sentindo uma pontada de arrependimento. Teria sido di-
vertido ficar por lá com os dois.
À medida que o ônibus saía da cidade, meus pensamentos se voltavam cada vez mais para as férias que se
iniciavam. Pensei no que o acampamento me reservaria. O verão anterior fora empolgante: meu primeiro contato
com a liberdade total, muitos amigos novos, e Peter... Mas desta vez eu queria algo diferente. Estava ansiosa para
ficar com Lucky e todos os amigos que eu havia feito, mas também queria algum tempo para mim, para refletir e
escrever um pouco.
Me perguntei se Peter estaria lá outra vez. Ele me enviara alguns cartões-postais durante o ano, cada um de
um país diferente. Um vinha da Espanha, outro da Itália, e até mesmo da Grécia. Ele viajava em todas as férias
escolares, e imaginei que agora que terminara o colegial, provavelmente se mudaria de país.
Justamente uma semana antes eu recebera um breve cartão dele. Dizia: Seneca Falls ou l'Afrique cet été -
qui sait?
Jackie sabia um pouco de francês e traduzira a frase para mim: "Seneca Falls ou África neste verão -
quem sabe?" Ela quase tivera um ataque ao ler aquilo. "É a coisa mais pretensiosa que já li", dissera,
simulando que ia vomitar.
Eu apenas sorri. Gostaria de ver Peter novamente, mas sabia que seria melhor que ele ficasse bem
longe, na África ou em qualquer outro lugar. Me sentira muito culpada por causa do meu "quase-caso" com
ele. Mesmo que nada houvesse de fato acontecido, Peter e eu tínhamos nos comportado como um casal
romântico. Passáramos muito tempo juntos, e Peter dissera que estava perdidamente apaixonado por mim.
Tudo aquilo era um pouco estranho, e eu ainda não compreendera totalmente o que sentia por ele. A única
coisa que eu sabia era que o achara incrivelmente atraente e intrigante, e que desejava que ele me beijasse.
Uma parte de mim ainda se perguntava se devia mesmo ter impedido Peter de me beijar aquele dia nas
cataratas. Se eu tivesse deixado, pelo menos teria sabido como seria namorar com ele, e talvez tivesse
compreendido melhor a natureza dos meus sentimentos. Aquele quase-beijo me assombrara durante meses
depois que eu voltara para casa. Relembrara aquele momento inúmeras vezes, imaginando como teria sido
sentir os braços dele me enlaçando, seus lábios nos meus...
Eu planejara contar a Joel tudo sobre Peter ao voltar do acampamento, mas Jackie me fizera desistir da
idéia. "Você pirou, Anna?", ela perguntara. "Não aconteceu nada! É completamente normal se sentir atraída
por alguém. Você gostaria que o Joel te contasse cada vez que se interessasse por alguma garota?"
Lembro bem que olhei chocada para Jackie ao ouvir aquilo.
- Você acha que o Joel se interessa por outras garotas? - eu perguntara.
Jackie balançara a cabeça.
- Anna, você não tem jeito mesmo. Santa ingenuidade!
No fim cheguei à conclusão de que ela estava certa. Afinal de contas, nada acontecera realmente entre
mim e Peter. Não valia a pena arriscar meu relacionamento com Joel. E eu amava Joel. Tinha certeza disso.
Ele ainda me fazia sentir feliz e segura. Contar-lhe sobre Peter seria magoá-lo sem motivo.
Pensar em Peter fez meus dedos coçarem de vontade de escrever, e tirei da bolsa meu diário e minha
caneta, que estavam sempre à mão.
Apoiando meus joelhos na poltrona em frente à minha, procurei por uma página em branco. Pensei
naquela história de Peter ter recitado poesia em um café de Paris. Imaginei um dia quente de verão e um
café lotado. Uma garota parisiense está sentada sozinha numa mesa, quando de repente um americano se
levanta e começa a recitar poesia...
"Ela francesa, ele americano", escrevi. "Vinham de mundos diferentes, mas as palavras dele os
uniam. Era como se ele falasse só para ela, como se tivesse escrito o poema para ela... "
Mas poucos minutos depois meus pensamentos se desviaram, e eu larguei a caneta. O ritmo calmo
do ônibus me embalava, e a luz quente do sol que entrava pelas janelas amolecia o meu corpo. Coloquei
nos ouvidos os fones do walkman, fiz um travesseiro com meu moletom, e apoiei a cabeça na janela.
Ouvindo a voz de Joan Osborne, fechei os olhos e desabei.

Peter e eu estamos andando no deserto do Saara, no coração da África. Tudo parece calmo, mortalmente
calmo. Os únicos sons são os das moscas zunindo sobre nossa cabeça. O sol se põe devagar. Sinto calor, e minha
boca está seca.
- Peter, tenho sede - digo.
Ele aponta para a frente. Um lago azul e cristalino brilha a distância. Passamos pelo meio de uma tribo de
africanos cujos corpos estão cobertos com uma tinta vennelha. Usam apenas tangas e a tinta vermelha, e não
fazem barulho enquanto andam.
Alcançamos o lago e nos ajoelhamos. Finalmente, penso. Mas a água do lago virou areia. Peter pega um
punhado dela e me encara com um ar solene.
"Je t'aime, Anna... ", ele diz, "je t'aime." Eu te amo, Anna... eu te amo.
"Je t'aime, Peter", replico sussurrando.
Também pego um punhado de areia, e o levo à boca. Então eu pisco. Agora Peter é Joel, e sua cara está
pintada de vermelho. Tento falar, mas minha boca está cheia de areia...
Fui acordada de repente quando o ônibus deu uma freada brusca. Olhei confusa para o meu relógio. Eram
duas da tarde. Eu dormira por mais de uma hora. Meu sonho estava vivo em minha mente, e me senti perturbada.
O sol quente batia em minha pele, e quase podia sentir o gosto de areia em minha boca. Lambi os lábios,
tentando tirar a areia e tudo o mais da minha cabeça.
Por que Peter se transformara em Joel? E por que a areia na boca? Será que aquilo significava que eu
quisera contar a Joel sobre Peter mas não conseguira? E o que queria dizer a tinta vermelha? Seria um símbolo
da raiva de Joel? Seu amor por mim? Ciúmes? Não, pensei. O ciúme é verde.
O sonho estava se tornando nebuloso, começava a se apagar rapidamente. Esfreguei os olhos e estiquei o
pescoço, voltando aos poucos ao presente. Meu cabelo caíra como uma cortina na frente do meu rosto, e eu o
afastei dos olhos. Ainda meio grogue, olhei ao redor para ver se algum dos meus amigos do verão anterior
entrara no ônibus.
Dei um pulo ao perceber que havia um cara sentado ao meu lado - um garoto especialmente interessante.
Tinha cabelos castanho-escuros, tão escuros que quase pareciam pretos, e um rosto forte, de traços angulosos.
Seus olhos, de um castanho tão profundo quanto os cabelos, eram grandes e bem separados um do outro, e
naquele instante enfocavam fixamente as páginas do meu diário.
- Ei! - exclamei, fechando abruptamente o meu caderno. - Que diabo você pensa que está fazendo?
Enfiei o diário no bolso da frente da minha mochila e voltei à carga.
- Você não tem nenhum respeito pela privacidade alheia, é? Não tem nada melhor pra fazer?
Mas ele apenas sorria para mim.
No início pensei que fosse por causa do que eu havia escrito. Fiquei vermelha quando me lembrei da
história ridícula que começara a escrever antes de cair no sono.
- Tá rindo de quê? - perguntei, cruzando os braços.
- O seu sonho era assim tão quente a ponto de fazer você acordar? - perguntou, seus olhos piscando contra
a luz do sol que entrava pela janela ao meu lado.
- O quê? Do que você está falando? - perguntei horrorizada. Ele olhou fixo para mim, com uma expressão
suave e sonhadora. - Je t'aime, Peter... Je t'aime - sussurrou.
Senti meu rosto pegar fogo.
- Peter é o seu namorado francês, ou algo do gênero? - ele insistiu.
- Não, não é - respondi irritada. – Joel é meu namorado.
- Então quem é o príncipe do sonho? - perguntou o garoto, com um sorriso zombeteiro.
- Ele é... não é... é só... É só uma história que eu estava escrevendo.
Então calei a boca de supetão. Por que tinha de me justificar para aquele cara, afinal? Meu sonhos e meus
romances não eram da conta dele.
Ele encolheu os ombros, seus olhos ainda brilhando com o riso. - Talvez você queira dar uma penteada no
cabelo. Acho que se excitou um pouco durante o sonho.
Pus a mão no meu cabelo e percebi que ele estava todo espetado. Poderia dizer que se transformara em algo
parecido a um esfregão eletrificado. Meu cabelo, comprido e loiro, tendia a ficar eriçado no calor. Às vezes eu
parecia uma doida varrida quando acordava.
Completamente sem graça, ajeitei-o o melhor que pude.
- Com licença - falei, com a máxima dignidade que consegui reunir. - Acho que estou no lugar errado.
Me espremi entre os joelhos do garoto e a poltrona da frente e fiquei no corredor, procurando outro lugar
com os olhos qualquer um.
Mas aparentemente o ônibus fizera muitas paradas enquanto eu dormia. Estava lotado.
- Se importa de me deixar passar outra vez? - sussurrei entre os dentes.
- Claro que não - o cara respondeu, sempre sorrindo.
Ele contorceu o corpo e se levantou um pouco, deixando apenas o espaço suficiente para que eu tornasse a
me sentar.
- Tome, quer usar isto? - perguntou, segurando uma escova de cabelo.
- Me deixe em paz, tá bom? - disparei.
Cruzei os braços e olhei pela janela, rezando para a viagem acabar logo.

Uma hora depois o ônibus entrou no estacionamento em frente à cabana central do Acampamento Seneca
Falls, e eu suspirei de alívio. Continuara sentada num silêncio sepulcral durante toda a última hora da viagem, e
no fim já me sentia um bocado tensa. O garoto continuara tentando puxar conversa, mas eu me recusara a lhe dar
atenção.
- Chegamos - anunciou ele quando o ônibus parou abruptamente.
- Percebi - respondi.
- Bom, foi realmente um prazer conversar com você - ele
disse, os olhos brilhando com um sorriso irônico. - Você tem um papo realmente ótimo, e deu pra perceber
que nós dois temos muito em comum. Eu adoraria poder continuar a nossa conversa qualquer hora.
- Se importa de me deixar sair?
Me levantei de repente e o empurrei, arremetendo para o corredor. Então me apressei para a frente do
ônibus, tentando me afastar o máximo possível dele. A porta se abriu, e eu praticamente voei pelos degraus
abaixo.
- Anna! Anna!
Era Lucky, que pulava enquanto acenava para mim. Salvação!, pensei, correndo na direção dela.
Achei Lucky linda como sempre. Seus cabelos castanhos, densos e cacheados, estavam mais compridos do
que no verão anterior, e me pareceu que ela ficara ainda mais alta. Os cachos balançavam sobre seus ombros
presos por uma faixa verde, que criava reflexos esverdeados em seus olhos castanhos. Um monte de pequenas
sardas cobria seu nariz e suas bochechas.
Pulei do ônibus e nos abraçamos fortemente. Me sentia felicíssima por vê-Ia, e também por me livrar
daquele chato no ônibus. Subitamente me senti envolvida e acalmada pela beleza natural de Seneca Falls. Quase
me esquecera do quanto aquele lugar era sossegado. A altitude era bem maior que a de Washington, e por
isso o ar era mais fresco. A luz do sol brincava por entre os galhos das altíssimas coníferas, e um delicioso
cheiro de fumaça de alguma fogueira pairava no ar. O oval verde do lago brilhava a distância, e enormes
montanhas se erguiam imponentes atrás dele.
- Anna, estou tão feliz por ver você! Cheguei há horas! O que aconteceu com o seu cabelo? - disse
Lucky de uma só vez. - Não quero falar sobre isso - murmurei, falando baixo e temendo que o chato do
ônibus estivesse ouvindo.
- Ficou legal assim - disse Lucky. - Dá um ar de rebelde.
- Obrigada - respondi com desânimo.
Peguei um elástico em meu bolso e prendi o cabelo num rabo-de-cavalo.
- Ei, o que aconteceu? - perguntou Lucky, se aproximando. - Tá com cara de quem acabou de sair de
uma guerra!
Essa é uma característica importante em Lucky: ela me conhece melhor do que ninguém. Melhor que
Jackie. Lucky sempre percebia o que eu estava sentindo só de olhar para a minha cara.
- Uma guerrilha - repliquei. - Tive o azar de me sentar ao lado do cara mais insuportável do ônibus.
Não me deixou em paz durante todo o caminho. Acho que foi a viagem mais longa da minha vida.
Afastei uma longa mecha de cabelo.
- Vamos nos mandar daqui antes que ele apareça, tá bem?
- Mas Anna, eles ainda estão tirando as malas do bagageiro - respondeu Lucky, apoiando-se na lateral
de um velho Ford azul. - Temos de esperar.
Fiquei balançando o corpo de um pé para o outro, ansiosa por cair fora dali o quanto antes.
- Anna, sabe de uma coisa? Cheguei a uma conclusão definitiva com relação aos homens: eles
simplesmente não prestam.
- Ah-ah! Olha quem fala! Quer dizer que Jason Mann já é coisa do passado? - perguntei,
provocadora.
Nos últimos meses Lucky estivera saindo com um jogador de basquete chamado Jason, e me fizera
relatórios semanais por telefone. Na verdade ele era o primeiro cara com quem ela saía, de verdade. Apesar de
sua beleza de topmodel, Lucky não tinha lá muita sorte no amor. A maior parte de seus amigos eram homens, mas
não eram nada além disso: amigos. No começo pensava que os rapazes não se interessavam por ela, mas
finalmente percebeu que era ela quem os assustava. Lucky era autoconfiante e direta, além de bonita e inteligente.
Uma combinação fatal.
Lucky confirmou com um gesto de cabeça.
- Acabou na noite passada. Um dramalhão. Praticamente me implorou pra ficar com ele - contou ela,
suspirando e ajeitando os cabelos sobre os ombros. - É sério, Anna, estou até as tampas com homens.
Ela levou uma mão até a testa e continuou.
- A maioria dos garotos da nossa idade é medrosa demais pra falar comigo. E o primeiro cara que
finalmente cria coragem pra me convidar pra sair é tão possessivo que me sufoca. A coisa chegou a ficar tão
ruim que eu não podia nem mesmo sorrir para algum dos meus amigos, ou conversar a sós com eles.
Lucky agitava os braços no ar com nervosismo enquanto falava
- É isso aí, Anna. Faço aqui e agora um juramento solene: chega de homens.
Ela parou e me olhou fixo.
- Decreto que este será para mim um verão sem garotos! - concluiu num tom sentencioso.
Eu ri e enganchei meu braço no dela.
- Então será pra nós duas, garota. Joel está me esperando em Washington, e não quero saber de
ninguém além dele.
O motorista acabara de acrescentar a minha mala à pilha de bagagem ao lado do ônibus, e puxei Lucky
naquela direção.
Fiz menção de pegar a mala, mas Lucky me impediu.
- Deixe comigo - ofereceu. - Você já está carregando essa mochila gigantesca.
Ela pegou a alça da minha mala e a largou imediatamente.
- Mas que diabo você tem aqui?
Suspirei.
- O Joel me perguntou a mesma coisa. Trouxe alguns livros, só isso.
Eu tinha mania de carregar os meus livros comigo para onde quer que fosse. Era como se não me sentisse
segura sem eles por perto. Não todos, claro. Só os meus favoritos.
- A mala tem rodinhas, é só puxar - expliquei.
Lucky pegou a alça de novo e levantou a mala alguns centímetros do chão, testando o peso. A mala oscilou
perigosamente no solo coberto de pedregulhos, e eu a estabilizei com um gesto rápido.
- Tudo bem, mas vamos ser obrigadas a ir pelo caminho mais longo, que é mais liso - disse Lucky. - Ainda
bem que a nossa cabana fica deste lado do lago, senão acho que nunca chegaríamos nela com todo este peso.
- Eles vão continuar com o apartheid neste ano, é?
A diretora do acampamento tinha regras estritas para separar rapazes e garotas. As cabanas dos rapazes
ficavam de um lado do lago, e as das garotas do outro. E atravessar o lago à noite era estritamente proibido.
- Pois é, não há justiça neste mundo - suspirou Lucky. Mas logo se corrigiu.
- Não que isso me importe, já que não tenho nenhum interesse em qualquer coisa que se refira a garotos...
- Ora, vejam só, se não é a minha pequena sonhadora! falou uma voz sensual masculina atrás de mim.
Reconheci a voz, e os cabelos da minha nuca se arrepiaram.
Me virei enfurecida. Era o cara do ônibus, claro. Vestia uma jaqueta jeans clara, e levava uma mochila
roxa pendurada no ombro direito. Eu não percebera o quanto ele era grande quando estávamos sentados lado a
lado no ônibus. Tinha ombros largos e músculos potentes, o que fazia sua camiseta cinza ficar bem colada ao
peito.
- Adoraria que nos encontrássemos depois pra continuar o nosso maravilhoso papo - ele disse, me
provocando. - Se você concordar, eu gostaria de analisar o seu sonho.
Ele deu uma piscadela maliciosa e desapareceu.
Abri a boca para responder, mas o garoto já sumira de vista em meio à multidão de monitores que se
reunia em volta do ônibus. Senti meu rosto pegando fogo novamente.
- Que sonho? - perguntou Lucky. Encolhi os ombros.
- Esse é o cara de quem falei a você. Tive um sonho quente com Peter durante a viagem. Parece que
eu disse Je t'aime dormindo.
Lucky explodiu numa risada.
- Tá brincando! Ainda sonhando com Monsieur Sauvignon Blanc? E falando francês no sonho?
- Lucky, não tem a mínima graça! Foi uma total invasão da minha privacidade. Acho que tenho o
direito de sonhar e pensar o que quiser. É como se o meu irmão mais velho estivesse sentado do meu lado,
me vigiando. É mole? Que babaca!
Lucky continuava com um leve sorriso nos lábios.
- Hum, isso tá cheirando a futuro romance. Olhei para Lucky, chocada.
- Você pirou, é? Aquele panaca foi um grosso comigo no ônibus! Pode crer, ele não teria a menor
chance! Além do mais eu... eu amo o Joel.
- Bem, aquele "panaca", como você diz, não é nada mau...
- Exatamente - respondi - esse é o problema. Ele é um gato e sabe disso. Conheço bem o tipo: machão,
convencido, metido e arrogante.
Ajustei as alças da mochila e comecei a caminhar para fora do estacionamento.
Lucky me seguiu caminhando ao meu lado e puxando minha pesada mala.
- Humm, sei... - murmurou, não parecendo muito convencida.
- Lucky, não há nenhuma chance de eu me envolver com alguém neste acampamento - garanti
com firmeza, enquanto atravessávamos o bosque. - Acredite, aprendi bem a lição no verão passado.
Nunca vou trair o Joel. Nunca.
Lucky sorriu.
- E você apostaria algum nessas suas palavras? Fiquei boquiaberta.
- Como assim? - perguntei, me virando para encará-la.
- Uma pequena aposta - disse Lucky, sorrindo. - Se você se envolver com alguém que não seja o Joel
neste verão, vai ter que... hum... - ela fez uma pausa para pensar e olhou para o alto, como se buscasse
inspiração nos céus - já sei! - exclamou, estalando os dedos. - Vai ter que tingir o cabelo de roxo até o fim
do verão!
Me arrepiei toda só de pensar na idéia. Desde que o tempo não esteja úmido, meu cabelo é o meu
maior orgulho. É sedoso e dourado, e sempre ganha altos elogios de todo mundo. Naquela época ele era um
dos meus poucos atributos físicos que realmente me satisfaziam. Mas eu não gostava de me esquivar aos
desafios. Além do mais, aquela aposta seria uma barbada. Eu não tinha o menor interesse em sair com
alguém que não fosse Joel.
- Fechado! - topei com firmeza, rindo para Lucky. – E se você se envolver com alguém neste verão,
terá que tingir o cabelo de verde fosforescente!
Lucky torceu o nariz.
- Argh! Verde fosforescente?
Fiz que sim com um gesto de cabeça e estendi minha mão.
- Combinado?
Lucky riu também, e apertou minha mão.
- Combinado!
3

A força do destino

- A nossa cabana fica logo ali adiante - disse Lucky, apontando com o dedo.
Havíamos andado pelo caminho de terra batida por mais de quinze minutos. Lucky protegeu os olhos
do sol enquanto nos aproximávamos de um cabana de madeira incrustada no alto da montanha. Uma floresta
de bétulas brancas se estendia bem atrás dele, criando um efeito mágico.
Lucky agarrou firme a alça da minha mala e a puxou com mais força, tentando levá-la pelo declive
acima.
- Opa! - ela exclamou quando a mala oscilou sobre um monte de grama e começou a cair para o lado.
Me ajoelhei e endireitei a mala, acertando as rodas.
- Toda mulher tem de carregar a sua cruz - brinquei.
Cada uma de nós levantou um lado da mala e a erguemos. Afundando bem os calcanhares no chão,
comecei a escalar ladeira. Lucky vinha bem atrás de mim. Quando chegamos ao topo, estávamos ambas
ofegantes. A cabana ficava sob um grande carvalho de galhos retorcidos.
Na porta havia um cartaz triangular pendurado por um cordão, com três nomes escritos com uma letra
gótica preta: Anna, Lucky, Kerry.
- Não lembro de nenhuma Kerry do verão passado - observei.
- Deve ser uma garota nova - comentou Lucky.
Abri a porta da frente e joguei minha mochila em uma das três camas.
- Ah, que alívio! - suspirei, alongando o pescoço.
Lucky concordou com um gesto de cabeça, consternada, enquanto colocava minha mala no quarto.
- Ah é, dondoca? E quem carregou a sua mala até aqui, hein?
- Puxou a minha mala - corrigi, sorrindo.
Coloquei as mãos na cintura e dei uma olhada no meu novo lar.
- Uau, este lugar é incrível! - exclamei.
A cabana de madeira era bem iluminada e arejada, com três camas, três cômodas e uma grande
penteadeira com um espelho encostado na parede. Havia uma antiga escrivaninha de madeira na parede do
fundo, e uma velha cadeira de balanço no canto. Em cada uma das paredes maiores havia duas grandes
janelas quadradas com cortinas amarelas listradas.
Olhei para uma porta perto da janela e a abri. Era um banheiro, com uma pia e uma banheira de ferro
com um chuveiro dentro.
- Lucky, veja só isso! O nosso próprio banheiro! E com chuveiro!
Lucky enfiou a cabeça pela porta do banheiro e concordou.
- Pois é, ser monitor sênior tem suas vantagens - disse ela. Lucky tinha razão. No ano anterior nós
ficáramos em um chalezinho fuleiro com um grupo de garotas de dez anos de idade, e os toaletes se
situavam a uns cinco minutos de caminhada. Agora tínhamos nossa própria casa, completa, com banheiro e
chuveiro.
Abri minha mochila e despejei as coisas em cima do beliche.
Lucky ficou de pé em sua cama e pendurou na parede um grande cartaz onde estava escrito "SALVE
AS BALEIAS". Ela é daquelas que querem salvar o mundo, ou pelo menos o meio ambiente.
- Opa, a campanha já vai começar - brinquei sorrindo. - Talvez eu deva decorar este lado do quarto
com cartazes em defesa dos comedores de alimentos de origem animal.
Lucky estalou os dedos.
- Ah! Isso me faz lembrar algo! A dança do ovo! Você prometeu que ia me mostrar!
Ergui as sobrancelhas, tentando entender a associação.
- Alimentos de origem animal e dança do ovo? O que...
Lucky me interrompeu fazendo um sinal de impaciência com a mão.
- Alimentos de origem animal: carne, leite e ovos. Me fez lembrar da dança do ovo. Sacou agora?
Eu contara a Lucky sobre umas aulas de dança moderna que tivera no semestre anterior. Logo na
primeira aula tínhamos aprendido a dança do ovo - "o símbolo da vida por excelência", dissera madame
Stravinsky, nossa velha professora russa. Lucky quase morrera de rir quando eu lhe contara aquilo.
- Ah, entendi... - eu respondera na aula, adotando uma pose dramática para imitar madame
Stravinsky.
Ela tinha uma voz grave e um jeito esquisito de projetar a mandíbula para fora enquanto falava.
- Meninas, vocês precisam descobrir o seu cen-tro - comecei a brincar com Lucky, imitando a voz
profunda e a mandíbula para fora de madame Stravinsky. - Encontrar aquele ponto no fundo, bem lá no
fundo de vocês e trabalhar a partir dele. Lembrem-se, garotas: tudo sempre de dentro para fora.
Lucky me observava com um sorriso divertido. Apontou para o centro da cabana.
- Vamos! Mostre! Mostre! - exclamou ansiosa.
- Tá bom, tá bom - repliquei. - Me dê um minuto. Tenho de encontrar o meu cen-tro.
Me acocorei no chão e abracei meus joelhos. Fechei os olhos e fiz uma pausa. Depois comecei a me
levantar lentamente, abrindo os braços. Mas Lucky explodiu numa gargalhada e eu perdi a concentração.
- Pára com isso, Lucky. Assim você vai me fazer rir e perder o meu cen-tro.
- Tá bom, desculpe. Comece de novo.
Voltei à posição original, tentando não rir. Abri os braços bem devagar num grande arco e me
levantei de novo do chão, meus olhos abertos simulando uma expressão de espanto. Mexi os braços com
cada vez mais intensidade, como um ovo despertando para um novo dia.
Lucky teve um colapso na cama, rindo histericamente.
Aquilo já era a dança completa, mas decidi esticar um pouco mais a coreografia para diverti-Ia. Pulei
no ar como um pintinho saindo do ovo. Depois dancei pelo quarto de maneira selvagem, saltando de um lado
para o outro. Agitava os braços como se fossem asas e rodopiava dando chutes no ar.
- O que foi? - ouvi Lucky perguntar a alguém, interrompendo abruptamente sua risada.
Engasguei e me voltei em câmara lenta, ainda com os braços no ar e uma perna esticada para o alto.
Havia um cara no quarto: o garoto do ônibus. Estava encostado no batente da porta, rindo.
Petrificada, sem saber como reagir, abaixei os braços ao lado do corpo. Senti uma onda de
vermelhidão subindo pelo meu pescoço e queimando minhas bochechas. Não conseguia acreditar que aquele
cara tivesse me surpreendido em mais uma situação embaraçosa. Aquele dia estava me trazendo uma
humilhação após a outra.
- Bela dança - ele disse. - O que é? O lago dos cisnes? Lucky riu.
- Algo parecido - ela disse.
Fulminei minha amiga com um olhar duro. Imediatamente andei até a porta e encarei o rapaz.
- Que diabo você está fazendo aqui? - perguntei, hostil. Esta é a nossa cabana.
- Puxa... me desculpe - ele respondeu, ainda me olhando como quem usa de todas as suas forças para
reprimir o riso. Achei que era a minha. Deve haver algum engano.
- Ah, claro - retorquiu Lucky, rindo novamente. - É o que todos dizem.
Ela virou a cabeça e olhou direto para ele.
- Não, é sério, não estou mentindo - ele insistiu. - Me disseram que a minha cabana era esta.
O rapaz deu um passo atrás e olhou para o alto da porta, do lado de fora.
- É, realmente... - falou, voltando para dentro. - O meu nome está bem ali, no cartaz pendurado na
porta: Kerry.
- Ei, você tem nome de menina! - exclamei.
Eu sabia muito bem que aquilo não era uma coisa agradável de se dizer a alguém, mas eu não tinha a
mínima vontade de ser simpática com ele.
Aparentemente meu comentário surtiu algum efeito, porque suas bochechas coraram rapidamente.
Obviamente o assunto lhe desagradava.
- Não faz mal - disse Lucky, compadecida. - Eu tenho nome de cachorro.
- Acho Lucky um belo nome - respondeu Kerry com um sorriso genuinamente amigável e solidário.
Eu não acreditei nos meus ouvidos. Aquele cara me ridicularizara a viagem inteira e agora vinha dar uma
de cavalheiro com minha amiga.
Lucky sorriu de volta.
- Seja bem-vindo - ela cumprimentou. - Aposto que vamos nos dar muito bem.
Lucky enfatizou a palavra aposto e me olhou com um ar malicioso.
- Nem pensar! - exclamei, dando as costas para os dois e voltando à minha arrumação. - Aqui ele não fica!
E pouco me interessa o nome dele.

- Ei, Anna Banana! - gritou uma voz masculina na noite daquele mesmo dia, quando Lucky e eu
chegávamos ao acampa-
mento principal.
Era uma tradição dos monitores se reunirem para um jantar ao ar livre antes do primeiro dia de
acampamento. Oficialmente o acampamento começaria no sábado, quando receberíamos as orientações da
direção. Mas as crianças só chegariam na segunda-feira, por isso poderíamos nos acomodar com tranqüilidade e
divertir-nos bastante no fim de semana.
- Jojo! - gritei, correndo para abraçá-lo.
Jojo também fora monitor júnior no ano anterior, e era uma das pessoas de quem eu mais gostara e me
aproximara no acampamento. Seu nome era Joey Dawson, mas todos o chamavam de Jojo.
Era um cara enorme, com uma pele macia e escura e um cabelo encaracolado em apertadas espirais tipo
saca-rolha. Jojo tinha uma queda pela originalidade, e adorava usar camisetas de cores chocantes. Naquele dia
vestia um short jeans e uma camiseta cor de vinho com um papagaio desenhado na frente.
Jojo me levantou no ar e rodopiou comigo. Eu já estava sem fôlego quando ele me colocou de volta no
chão.
Parecia que todo o resto do grupo de monitores sênior havia chegado antes de nós. Uma rodinha deles
se reunira ao redor de uma fogueira, e já havia uma grelha montada perto da mesa de piquenique. Um
delicioso e penetrante cheiro de churrasco pairava no ar.
- E você, garota? Pronta pra aceitar o meu pedido de casamento? - Jojo perguntou a Lucky,
inclinando-se para beijá-la na bochecha.
Lucky o empurrou.
- Jojo, você é a única pessoa que pode fazer essa brincadeira e escapar vivo.
Jojo bateu palmas.
- Bom, gente, agora vamos começar essa festa de verdade. Vocês foram as últimas a chegar.
- E eu, não ganho um abraço? - perguntou Derek Matthews, aparecendo ao lado de Jojo.
- Claro! - respondi, dando-lhe um abraço e um beijo rápidos. Derek é um cara legal, um piadista como
Jojo. Os dois ficavam o tempo todo fazendo brincadeiras estúpidas um com o outro. Derek tinha uma beleza
clássica: cabelos loiros, olhos verde-azulados, estatura mediana. Definitivamente um gato, mas um pouco
convencional demais para o meu gosto. Seu cabelo era curto e bem arrumado, e ele sempre vestia calças
cáqui e camisetas pólo. Prefiro uma aparência mais desmazelada.
Derek apontou um dedo para Lucky. - E você, gatinha, pronta pra...
- Nem experimente! - avisou Lucky com uma risada,
levantando a mão, ameaçadora.
- Anna! Lucky! Que bom ver vocês! - exclamou Robbie Sander.
Robbie era o chefe dos monitores. Um cara robusto, de cabelos castanhos e encaracolados, sempre
transbordando energia
- Deixem eu apresentar vocês aos novos monitores.
Um par de gêmeos estava de pé ao lado dele, dois rapazes indianos de lindos olhos castanhos e
amendoados.
- Anna, Lucky, estes são Amir e Sacha Battacharji - disse Robbie. - Os dois são novos monitores sênior.
Amir vai coordenar os jogos do acampamento, e Sacha vai ser o monitor de ginástica.
- Muito prazer - cumprimentei, olhando de um para o outro. Desde a pele amarronzada até os olhos escuros
e os corpos atléticos e longilíneos, os dois eram fisicamente idênticos.
Lucky colocou as mãos na cabeça.
- Como vamos identificar vocês? - perguntou.
- Fácil - respondeu Sacha, dando um sorriso charmoso que mostrava parte de sua gengiva. - Amir é o mais
esperto. Eu, o mais bonito.
- Ah, entendi - respondeu Lucky, sorrindo.
- Não se preocupem - nos confortou Amir. - Logo vocês vão conseguir nos distinguir.
Os dois se dirigiram para perto da grelha do churrasco, e Robbie nos conduziu até a fogueira.
- Esta é Sam Lerner, mais uma nova monitora sênior desse ano - disse ele, apontando para uma garota
sentada em uma pedra com um prato de comida apoiado sobre as pernas.
Eu provavelmente nem sequer teria reparado nela se Robbie não nos tivesse apresentado. Era miúda, com
cara de criança E cabelo ruivo cortado rente. Tinha uma fileira de pequenas argolas prateadas penduradas na
orelha esquerda.
- Sam, estas são Anna Morris e Lucky Hamilton - continuou Robbie. - Anna vai ser monitora de natação, e
Lucky vai cuidar dos workshops sobre natureza e preservação do meio ambiente.
- Muito prazer - cumprimentei, me sentando em uma pedra ao lado dela.
Sam sorriu, mas seu sorriso parecia não chegar até os olhos.
- Oi - disse. - Vou ser a monitora de vela.
Ela molhou seu cachorro-quente em um monte de mostarda e deu uma grande mordida.
- Ei, você não deveria estar na nossa cabana? - perguntou Lucky, sentando-se na grama.
Sam concordou com um gesto de cabeça, mas não disse nada porque estava de boca cheia. Jojo se ajoelhou
e abraçou Sam.
- Sammy vai ficar na nossa cabana neste verão - ele explicou. Então eu percebi o que acontecera. Olhei
para Lucky e ambas rimos.
- Não me diga que colocaram você na cabana dos meninos? - perguntei.
- Isso mesmo - respondeu uma penetrante voz masculina. De repente vi Kerry sentado do outro lado da
fogueira.
- Sam e eu estamos brigando pelo meu beliche na cabana de vocês - ele continuou.
Meu estômago se contraiu de uma maneira estranha quando ele falou. Depois de sua inconveniente
aparição na nossa cabana, Kerry se mudara para a cabana dos rapazes do outro lado do lago.
- É, acho que houve uma pequena confusão... - começou Sam. - Na verdade meu nome é Samantha, mas
todos me chamam de Sam. Vou levar as minhas coisas para a cabana de vocês hoje à noite.
Jojo pareceu desapontado.
- Mas Sam, você sabe que pode ficar conosco. Não pode, moçada?
Derek e Kerry concordaram com um efusivo gesto de cabeça.
- Desculpem, meninos, mas cabanas mistas são contra o regulamento do Sargento Susanna - lembrou
Robbie com um sorriso.
Susanna Cagney era a diretora do acampamento. Controlava tudo com mão de ferro, e a havíamos
apelidado de "Sargento Susanna" no verão anterior.
- Ahhh... - gemeram Jojo e Derek em uníssono. Os olhos de Sam brilharam.
- Não se preocupem, garotos - disse ela -, a gente vai fazer uma visitinha clandestina à cabana de vocês
numa madrugada dessas. Um ataque de surpresa, quem sabe.
Kerry se levantou e veio andando na minha direção, segurando uma lata de refrigerante. Caminhava
devagar e com segurança, e não consegui deixar de segui-lo com o olhar.
- E eu, ninguém vai me apresentar formalmente? - perguntou a Robbie.
- Anna, Lucky, este aqui é Kerry Halley - disse Robbie. - O Kerry é o mais novo monitor sênior da nossa
equipe. Veio de Maryland, e foi monitor júnior num acampamento na Pensilvânia no ano passado.
Robbie fez uma pausa e nos olhou desconfiado.
- Mas vocês já não se encontraram hoje à tarde nessa confusão das cabanas? - perguntou.
- É, já tivemos o prazer - respondi secamente.
Não acrescentei que já ouvira algumas garotas comentando que Kerry seria monitor de natação, algo que
não me deixava nem um pouco feliz.
- Bom, então vou deixar vocês se conhecerem melhor - disse Robbie, pegando um galho para atiçar o fogo.
Ele recolheu um punhado de gravetos e os jogou na fogueira, e depois colocou um pedaço de jornal
amassado por cima. A fogueira estalou escandalosamente e começou a soltar labaredas alaranjadas.
Kerry sentou-se em uma pedra perto de mim.
- Não imaginava que você fosse uma bailarina - ele sussurrou em meu ouvido.
Estava tão próximo que pude sentir o calor de sua respiração na minha orelha. Um tremor inesperado
percorreu meu corpo.
- Muito engraçadinho - respondi, olhando para o alto. - Era só uma brincadeira. Estava mostrando a
Lucky uma aula de dança moderna que tive no semestre passado. Era uma... - limpei a garganta - hã... uma
espécie de coreografia.
- Ah, é? E o que representa? - insistiu ele.
- É melhor eu não dizer - respondi, sorrindo levemente.
Estiquei as pernas para a frente e as cruzei à altura dos tornozelos, reparando em um pequeno furo no
joelho direito do meu jeans.
- Vamos lá, conte pra mim - pressionou Kerry.
Ele ergueu a latinha e tomou o que restava do refrigerante.
- Tá bom - cedi. - Era a "Dança do ovo".
- Dança do ovo! - ele exclamou, caindo na gargalhada. - Anna, eu detesto dar uma de crítico, mas aquilo
não se parecia nem um pouco com um ovo. Aliás, não consigo nem imaginar um ovo dançando.
Ele amassou a lata e a jogou na lixeira.
- Na verdade você perdeu a parte do ovo - expliquei. Chegou na hora da galinha.
- Bom - replicou Kerry, abaixando a voz -, então tenho de admitir que você é uma das galinhas mais
sexy que já vi na minha vida.
Fiquei vermelha pela vigésima vez naquele dia. E mais uma vez me vi sem palavras. Não sabia se
devia me sentir lisonjeada ou ultrajada com o que ele dissera. Quer dizer, normalmente eu nunca deixaria um
cara sair impune depois de me chamar de galinha, muito menos de galinha sexy. Consideraria isso uma
observação abertamente machista e vulgar, e reagiria indignada com alguma resposta feminista. Mas naquele
contexto foi um comentário engraçado.
- Alguém aceita um hambúrguer? - perguntou Derek, amarrando um avental branco na cintura e
enfiando na cabeça um chapéu alto de cozinheiro.
Me levantei rapidamente, aliviada por ter uma saída para aquela situação constrangedora.
- Aceitamos! - respondi, agarrando a mão de Lucky e puxando-a comigo.
Meu estômago roncou forte quando chegamos à churrasqueira, o que me fez lembrar que não comera
nada durante o dia todo. Havia suculentos pedaços de carne e salsichas estalando na grelha e uma fileira de
pãezinhos disposta na mesa junto com pedaços de cenoura, aipo e outros petiscos. Peguei um prato de papel
e coloquei um pão nele.
Derek virou um par de hambúrgueres na grelha, sorrindo de satisfação.
- Maravilha - ele disse.
- Tem algum hambúrguer vegetariano aí? - perguntou Lucky.
- Pra você, senhorita Granola com Iogurte, temos salada de macarrão - respondeu Derek, pegando
uma colherada de macarrão de uma travessa e servindo o prato dela.
Lucky fez uma careta enquanto pegava o prato que Derek lhe oferecia.
Quando voltamos para a fogueira, fiquei feliz em ver que Sam tomara meu lugar ao lado de Kerry. Os dois
riam, com as cabeças próximas. Me acomodei do lado oposto da fogueira, o mais distante possível deles. Lucky e
Derek sentaram-se perto de mim.
- Acho que Pierre Beaujolais não vem este ano - começou Lucky. - Com quem você vai sonhar agora que o
poeta francês se foi?
Levantei os ombros, olhando inadvertidamente para Kerry.
Ele futucava um pedaço de madeira com seu canivete. O fogo produzia sombras bruxuleantes em seu rosto,
deixando os traços ainda mais salientes. Pode até ser um babaca, pensei, mas o cara sem dúvida é um charme.
Mais que isso. É lindo de morrer.
Sam sussurrou algo para Kerry, que se inclinou na direção dela. Ele sussurrou alguma coisa de volta, e os
dois riram baixinho, obviamente compartilhando um momento íntimo. Me senti estranhamente irritada. Kerry
deve de alguma forma ter percebido o meu olhar, porque levantou a vista e me surpreendeu fitando os dois. Olhei
rapidamente para o outro lado, mas não sem antes perceber que ele sorria. Corei mais uma vez.
Peguei um galho e desenhei com ele na terra, com uma estranha sensação de déjà vu. De repente percebi o
que era: me sentia atordoada e estava tremendo, exatamente como me sentira com Peter no verão anterior. Olhei
para as labaredas que estalavam na fogueira e tomei uma firme resolução. Aprendera minha lição, e não deixaria
Kerry se aproximar de mim de jeito nenhum. Naquele verão eu não deixaria absolutamente nada abalar minha
relação com Joel. Dali em diante, evitaria Kerry como a uma praga.
- Bom, gente, vamos aos negócios - convocou Robbie levantando-se e esfregando as mãos. - A coisa mais
importante neste verão é nos divertirmos...
- É isso aí! - apoiou Jojo, que segurava o violão e tocava suavemente.
- ... E aprendermos algo mais sobre trabalho em equipe e cooperação, e talvez sobre nós mesmos -
continuou Robbie.
- Robbie, você está começando a falar como o Sargento Susanna - interrompeu Derek.
Robbie sorriu e começou a falar com uma voz grave e rouca, imitando Susanna.
- Lembrem-se: um acampamento é acima de tudo uma vivência. Pode mudar suas vidas.
Todos riram, e Robbie levantou a mão.
- Ok, Ok, chega de brincadeira. Tenho alguns avisos a dar. Antes de mais nada, teremos um festival de
cinema neste verão. Todos os campistas e monitores estão convidados a comparecer ao auditório todos os sábados
à noite para assistir a um filme antigo.
- Legal! - sussurrou Lucky para mim. - Adoro filmes antigos.
Robbie se colocou na frente da fogueira.
- E neste verão vamos adotar um sistema de parceria. Você é responsável pelo seu parceiro, e o seu parceiro
é responsável por você. Se um dos dois tiver algum problema, o outro estará lá pra dar uma força. Vocês vão
trabalhar em duplas na maioria das atividades.
Sorri para Lucky.
- Quer ser a minha dupla? - perguntei.
Mas logo percebi que Robbie estava segurando uma lista. Ele ergueu o pedaço de papel à altura dos olhos e
começou a ler.
- As duplas são as seguintes: Jojo e Amir, Lucky e Derek, Sacha e Sam, Kerry e Anna...
Quase caí para trás quando escutei aquelas palavras. Kerry e eu faríamos uma dupla? Não dava para
acreditar! Olhei para Lucky.
- Lucky, será que eu ouvi bem? - cochichei. Lucky fez que sim com um gesto de cabeça.
- Jojo e Amir vão organizar o churrasco da semana de abertura - continuou Robbie - e o resto de vocês
ficará encarregado das festas do Quatro de Julho. Lucky e Derek vão ser os responsáveis pela festa de sábado à
noite, Sacha e Sam pelos fogos de artifício de sábado à tarde, e Kerry e Anna ficaram com a maior
responsabilidade de todas: a grande gincana do acampamento, no domingo.
Robbie esfregou as mãos novamente e sorriu para o grupo.
- Vocês dois acham que vão dar conta? Kerry sorriu e piscou para mim.
- Sem problemas - ele disse.
Fechei os olhos e gemi. Ia ser um longo verão.
4

Frio por fora, sensível por dentro

- Bem-vindos a Seneca Falls! - gritou Susanna no microfone: no sábado de manhã no auditório da sede do
acampamento.
Todos os monitores sênior e júnior estavam reunidos para ouvir o discurso anual de boas-vindas de
Susanna. Eu me sentara com Lucky na última fila.
Susanna, a dona e diretora do acampamento, era uma mulher grandalhona e masculina, com aspecto militar
e uma voz grave e rouca que soava como um latido. Naquele dia vestia cáqui da cabeça aos pés, como se estivesse
pronta para a batalha.
- O sargento está em ótima forma hoje - cochichou Lucky no meu ouvido.
- Fico feliz em ver tantos rostos familiares e alguns novos também - continuou Susanna.
Ela enfiou os polegares na cintura da calça e se inclinou em direção ao microfone.
- Os que estavam aqui no verão passado devem conhecer bem as regras do acampamento. Mas gostaria que
todos ouvissem com atenção.
Foi então que a porta dos fundos se abriu e todos se viraram. Era Kerry, com uma cara de quem acabara de
cair da cama. Seus cabelos escuros estavam despenteados e suas roupas amarrotadas. Ele sorriu de leve e deslizou
até a cadeira ao lado da minha.
- Como vai a minha parceira? - sussurrou.
- Como se você se importasse com isso - respondi com dureza.
Susanna contraiu os lábios, incomodada.
- Gostaria que todos se comprometessem a comparecer pontualmente a todas as atividades do
acampamento - ela disse olhando diretamente para Kerry.
Kerry sorriu se desculpando. Susanna limpou a garganta com um áspero som gutural e continuou.
- Por favor, respeitem as seguinte regras.
Ela pegou seus óculos dependurados de seu pescoço por uma corrente e os colocou na ponta do nariz.
Depois segurou uma lista à sua frente, olhando para a ponta do nariz para lê-Ia.
- Nada de idas à cidade sem permissão. Luzes apagadas à meia-noite. Nada de álcool ou substâncias
ilegais. Nada de estrepolias com membros do sexo oposto nas cabanas durante a noite. Absolutamente proibido
nadar no lago depois das...
Minha atenção se desviou da voz de Susanna. Comecei a divagar em pensamentos sobre Joel. Pensei no
que ele estaria fazendo. Sábado era o meu dia favorito da semana, e Joel e eu quase sempre o passávamos
juntos. Tínhamos até a nossa tradição para o café da manhã de sábado: íamos ao Tommy's na rua Principal, ou
então Joel ia até minha casa com pães frescos e broinhas. Minha família recebia o jornal cedo, e eu e Joel
geralmente o líamos juntos. Eu era fanática pela seção de palavras cruzadas, e resolvia todas religiosamente. Ele
não costumava me ajudar. Normalmente ficava grudado na seção de esportes.
Podia ouvir Kerry se remexendo na cadeira ao meu lado. Desejei que fosse Joel quem estivesse ali, em
vez de Kerry. Quase podia sentir Joel sentado ao meu lado, sua mão grande e quente envolvendo
confortavelmente a minha. Se ele estivesse ali, certamente estaria cochichando comentários engraçados sobre
Susanna no meu ouvido, e mais tarde nos proporcionaria horas de diversão. Senti uma aguda pontada de
saudade, e calculei rapidamente quanto tempo ficaria sem ver Joel. Fazia um dia que chegara ao acampamento.
O que significava que ainda faltavam quarenta e um dias. Quarenta, sem contar aquele.
Sacudi minha cabeça com força. Se continuasse a pensar daquele modo, o acampamento se tomaria
algo insuportável. Precisava me acostumar a ficar sozinha novamente. Forcei meus pensamentos a se
afastarem de Joel, e tornei a prestar atenção em Susanna.
- ... e como monitores vocês são os líderes do acampamento - dizia ela, olhando para nós com um ar
solene. - Isso significa que são modelos para os campistas. É uma grande responsabilidade, mas tenho fé na
habilidade de todos vocês para se erguerem à altura dessa nobre missão.
- Você não acha que ela leva a coisa um pouco a sério de mais? - Lucky cochichou para mim.
Olhei para minha amiga e balancei a cabeça concordando.
Susanna se inclinou mais em direção ao microfone e sorriu pela primeira vez.
- Lembrem-se - concluiu -, o acampamento é uma vivência. Pode mudar suas vidas.
Aquilo arrancou algumas risadinhas zombeteiras do público, e eu tentei me conter.
Lucky deu um adeusinho quando Susanna saiu.
- Já vai tarde - sussurrou.
Kerry balançou a cabeça.
- Achei que isto fosse um acampamento, não uma colônia penal.
Lucky riu.
- Bom, ainda temos mais um dia de liberdade - ela replicou, virando-se para mim. - A gente vai à
pedreira amanhã, não vai, Anna?
- Com certeza - respondi.
A pedreira era o meu lugar favorito. Um recanto isolado cerca de oito quilômetros do acampamento,
com sólidos paredões de pedra que desciam até a água.
- Uma pedreira? Eu adoraria conhecer - disse Kerry. - Vocês aceitam a minha companhia?
Abri minha boca para dizer que não, mas Lucky foi mais rápida.
- Claro - exclamou. - Que tal a gente se encontrar no galpão de recreação às nove da manhã pra pegar
as bicicletas?
Eu xinguei por dentro. Pretendia passar o dia a sós com Lucky, -e não queria ficar nenhum tempo além
do estritamente necessário com meu "parceiro".
Lucky me encarou.
- Tudo bem pra você, Anna?
- Tudo bem, sem problemas - menti, forçando um sorriso.

- Que belo filme! - exclamei entusiasmada no sábado à noite enquanto Lucky, Sam e eu voltávamos para
a cabana, Acabávamos de sair do auditório, onde Robbie exibira o primeiro filme antigo do festival de longas do
verão. Naquela noite o filme fora a versão original de Sabrina, com Audrey Hepburn e Humphrey Bogart.
- Tão romântico! - suspirou Sam ao entrar na cabana, largando-se na cadeira de balanço e tirando as
sandálias.
Ela abraçou as pernas, com uma expressão melancólica estampada em seu rosto de criança.
Tirei os meus tênis e me deitei no beliche. Estava morta. Fora um dia longo e movimentado. Depois do
discurso de Susanna fizéramos uma pausa para o lanche na cafeteria. Em seguida os monitores tinham se
espalhado. Lucky e eu ficáramos com Jojo e Derek o dia inteiro. Depois de estocar suprimentos na despensa, -
jogáramos uma partida de tênis em duplas e fôramos nadar no lago. Por sorte eu não tinha cruzado com Kerry o
dia todo. Ele e Sam haviam saído juntos logo após o almoço.
Lucky vestiu um short preto de lycra.
- O Humphrey Bogart é demais - falou. - Bem o tipo homem que eu queria pra mim. Um cara que saiba
assumir o controle em qualquer situação. Estou cheia de adolescentes inseguros e bundas-moles.
Ela amarrou um cinto com pesos de chumbo em cada tornozelo e sentou de pernas esticadas no chão,
alongando a cabeça até os joelhos.
- Na verdade Kerry me faz pensar nele - disse Sam, levantando-se e andando até o beliche.
Ela tirou uma provocante camisola cor-de-rosa do armário e a jogou em sua cama.
Lucky e eu olhamos para Sam chocadas.
- O Kerry lembra Humphrey Bogart pra você? – perguntei, segurando o riso.
Lucky não se conteve e caiu na gargalhada.
- Deve ser porque os dois são cinqüentões, fumam e têm cara de durão e cicatrizes no lábio superior, não é?
- perguntou ela, deitando-se de lado no chão, apoiando-se no cotovelo levantando uma perna para o alto.
Sam riu da provocação de Lucky, fazendo um aceno de desprezo com a mão.
- Não, é porque os dois são do tipo frio e quietão. Frios por fora e sensíveis por dentro - sentenciou Sam.
Ela vestiu a camisola e subiu no beliche.
- Não consigo enxergar essa parte sensível de dentro - ataquei.
Sam suspirou.
- Além do mais, ambos são lindos.
- Pra quem gosta do tipo musculoso... - resmunguei, encolhendo os ombros.
Vesti uma camiseta regata azul-clara. Era de Joel. Eu roubara várias camisetas dele ao longo dos anos, e
adorava dormir com elas.
Lucky soltou o velcro do cinturão de pesos amarrado ao tornozelo.
- A Anna gosta de poetas torturados, de preferência franceses - provocou, ficando de pé e alongando o
corpo.
Peguei um travesseiro e o atirei na direção dela. Lucky riu e se esquivou, e o travesseiro atingiu a parede,
caindo no chão.
- Lucky, eu reparei que o Derek ficou do seu lado na fogueira - comentei, enquanto me sentava outra vez no
beliche. - E vocês vão ser parceiros nesse verão. Provavelmente vão passar muito tempo juntos... Ele é uma
gracinha, não é mesmo?
Lucky levantou um punho do ar.
- Nem tente me provocar, Anna. O Derek é um cara legal, mas não tenho absolutamente nenhum interesse
nele. Em primeiro lugar, não quero saber de amores neste verão. Não há a mínima chance de eu perder a nossa
aposta. E em segundo lugar, mesmo que estivesse procurando alguém, escolheria um cara um pouco mais
sofisticado do que o nosso amigo Derek.
- Que aposta? - perguntou Sam.
Ela tirou suas argolas de prata da orelha e as colocou alinhadas no tampo da penteadeira.
- Nada demais, uma bobagem sem importância - respondi depressa.
Sam encolheu os ombros, apoiando-se na parede e cobrindo-se até os joelhos com o edredom.
- Ele sem dúvida é um cara sensível por dentro - ela disse.
- Estamos falando de Kerry Halley outra vez? – perguntei.
Sam confirmou com um gesto de cabeça.
- Jackson, o cozinheiro, deixou a gente assaltar a cozinha hoje. Kerry e eu fizemos um piquenique.
Entramos no bosque e ficamos num cantinho isolado, perto do lago. Havia patos, cisnes, cardumes de peixinhos
vermelhos...
A narrativa de Sam estava começando a me irritar, e desviei a atenção dela. Peguei no meu armário o
porta-retratos com a foto de Joel. A simples visão do sorriso agradável e dos olhos azuis dele me aqueceu por
dentro. Coloquei a fotografia de volta no armário, entrei debaixo das cobertas e me deitei de lado, aconchegando
a cabeça no travesseiro.
- Lucky, você se importaria de apagar a luz? – perguntei.
- Boa noite, meninas - disse Lucky, enquanto apagava o abajur em seu criado-mudo.
Puxei mais as cobertas, com o filme ainda fresco na minha memória. Joel e eu sempre alugávamos filmes
clássicos na video-locadora. Era uma das poucas coisas românticas que ainda fazíamos juntos. Eu sabia que Joel
teria adorado Sabrina.
Os filmes antigos sempre me deixavam sentimental, e Joel sempre gozava de mim por causa disso.
Naquela noite não pude evitar dar uma choradinha no fim do filme, quando Bogart voa para Paris para ficar com
Audrey Hepburn. Se Joel estivesse lá, teria rido de mim e me puxado para seus braços.
Me aconcheguei bem na camiseta dele e me entreguei ao sono.
5

Flertando com o perigo

No domingo de manhã acordamos bem cedo para ir à pedreira. Como Kerry se autoconvidara para ir junto,
Lucky e eu convidamos também os outros monitores. Eu não podia nem pensar em passar o resto do dia sozinha e
tensa com Kerry e Lucky.
Formamos um grupo de oito, e percorremos de bicicleta os oito quilômetros de distância. Foi um trajeto
difícil, com muitas subidas, e estávamos todos exaustos quando chegamos lá .
Sam ficou boquiaberta ao ver os rochedos .
- Uau! Cara, este lugar é lindo! - exclamou.
Apoiei minha enferrujada bicicleta de três marchas numa árvore e apreciei a vista. A pedreira era mesmo
de tirar o fôlego, exatamente como ficara na minha memória. Penhascos de rocha branca brotavam das
montanhas e caíam direto até o lago verde-azulado e cristalino. O dia estava limpo, e a calma superfície da água
cintilava sob os raios fortes do sol matinal.
Todos jogaram suas coisas na prainha e vestiram as roupas de banho. Então subimos com cuidado até o
alto de uma das rochas. Não havia nenhuma trilha. Tínhamos de achar buracos para encravar os pés e encontrar
um jeito de nos agarrarmos ao pouco mato que nascia nas fendas das pedras. Sacha chegou ao topo antes de
todos. Ele era visivelmente um ginasta, escalando a encosta sem nenhum esforço. Quando finalmente o resto de
nós chegou lá, o encontramos recostado em uma pedra, tomando sol com as pernas confortavelmente esticadas.
- Ei, mano - disse ele com um sorriso para o ofegante Amir -, talvez você devesse participar das minhas
aulas de acrobacia.
- Há mais coisas importantes na vida além da habilidade física - replicou Amir, fazendo uma careta e
enxugando a testa com uma toalha. - Acho - acrescentou logo em seguida, sorrindo.
Eu estava começando a notar as diferenças entre os dois gêmeos. Sacha tinha uma expressão facial mais
aberta e um sorriso relaxado. Amir era mais intenso, mas também mais tenso. Sua testa parecia estar
permanentemente franzida de concentração, e seus olhos escuros revelavam uma personalidade profunda e
reflexiva.
Peguei meu cantil pendurado em meu ombro e tomei um grande gole.
- ÁGUA! - gritou Derek como um homem desidratado perdido no deserto.
Soltei uma risada e passei o cantil para ele.
Kerry sentou ao meu lado, mas eu me levantei rápido, antes que ele conseguisse me aborrecer. Comecei a
caminhar até a próxima rocha. Entre ela e aquela em que eu estava havia um vazio de mais ou menos meio metro
de distância. Plantando meus pés firmemente em uma fenda, saltei para o outro lado. Senti a superfície rochosa
macia e fria sob meus pés.
Andei até a beirada do precipício e olhei para a água lá embaixo, sentindo uma estranha vertigem. Os
rochedos em que subíramos tinham aproximadamente sete metros de altura. Do meu ponto de observação o lago
parecia um enorme espelho escuro e misterioso. E distante. Muito distante. A água se movia suavemente,
lambendo a beira da praia.
De repente percebi um corpo perto de mim. Antes mesmo de olhar, já sabia que era Kerry. Sabia porque os
cabelos da minha nuca se arrepiaram.
- Você pularia de uma altura destas? - perguntou.
Ele se aproximara tanto de mim que eu podia sentir em minha pele o calor que emanava de seu corpo.
Me virei para olhá-lo. Vestia uma sunga azul, e nada mais. Não pude deixar de reparar em seus avantajados
bíceps e peitorais, em sua pele levemente bronzeada e macia.
Me virei rapidamente de frente para o lago de novo, ao me dar conta de que estava olhando fixo para seu
corpo.
- Claro - respondi. - Já pulei de alturas maiores.
Mentira deslavada. Era extremamente perigoso pular daqueles rochedos. Não tinha nada a ver com pular de
uma plataforma em uma piscina, onde tudo o que havia para vencer era o medo instintivo de se jogar no vazio.
Mesmo que o lago fosse suficientemente fundo para um mergulho daqueles, nada garantia que o mergulhador
fosse cair no lago.
Olhei para baixo, para a água batendo suavemente no paredão rochoso, que formava uma leve barriga até
chegar lá. Isso significava que quem quisesse mergulhar tinha de pular com bastante impulso e se projetar ao
máximo para a frente. Se você vacilasse ao pular ou calculasse mal, se espatifaria nas pedras. Um movimento
errado, e adeus.
Kerry sorriu.
- Acho que você tem é muito papo-furado, Anna.
A provocação de Kerry fez meu sangue ferver.
- Então fique quietinho aí e preste atenção - respondi calmamente.
Me posicionei na beira da precipício, dobrei os joelhos e calculei cuidadosamente o quanto deveria me
projetar adiante ao saltar. Uns dois metros. Mas logo vi a barriga do rochedo se sobressaindo até chegar na água, e
meu estômago revirou de medo.
A água acariciava a praia, me convidando a pular. Aquilo me fez lembrar o mito da canção das sereias, que
tentavam os marinheiros a saltar ao mar - e à morte.
Me imaginei caindo bem perto da água, batendo nas rochas e esmigalhando todos os meus ossos. Me vi
deixando o acampamento em uma cadeira de rodas. "Que pena", diriam todos. "Tão jovem, tão cheia de vida... "
- Anna, não! - disse Kerry com um tom de voz grave e preocupado. - Eu estava só brincando.
Ele deu um passo adiante, esticando sua mão forte para mim. Fechei os olhos e tomei coragem,
determinada a ir até o fim. Senti a terra se mover sob os meus pés e engoli em seco, recuando instintivamente para
trás. A superfície da água parecia ainda mais distante que antes, e uma fria pontada de medo atingiu meu
estômago. Percebi que quanto mais esperasse, mais difícil seria.
Sem pensar mais nem um segundo, dobrei bem os joelhos e saltei.
Por um breve instante temi não ter pulado longe o suficiente. Vi a saliência da pedra vindo ao meu
encontro, e deixei escapar um grito de pavor.
- AAANNAAAAA! - ouvi Kerry gritar de muito longe.
Seu grito se fundiu com o meu, e meu nome rebateu nas pedras, ecoando no vazio.
O tempo pareceu ficar em suspenso, e minha vida inteira passou em flashes diante de meus olhos. Sou
jovem demais, pensei desesperada, não é justo...
Mas de repente caí como uma bomba na água gelada do lago, a alguns metros da encosta rochosa. Voltei
rapidamente à superfície e tentei tirar o cabelo da cara, mas minhas mãos tremiam demais. Me sentia como se um
milagre tivesse acabado de acontecer. Nunca amara tanto a água como naquele momento. Respirei fundo,
tentando acalmar o galope do meu coração.
Então ouvi um tremendo "splash" bem ao meu lado. Era Kerry. Pulara do rochedo de cabeça. Olhei para
ele, atônita. Ele era louco? Um salto de pé já era perigoso daquela altura, mas arriscar um mergulho de cabeça
num lago cheio de rochas era uma total insanidade.
Ele emergiu sacudindo vigorosamente a cabeça.
- Você está bem? - perguntou logo que apareceu à flor d'água.
- Claro que sim! - respondi tranqüilamente, flutuando de costas e batendo os pés na água.
Mas meu tom de voz soara muito mais cool do que eu realmente me sentia. Meu corpo todo ainda tremia de
uma forma quase incontrolável.
Kerry me olhou furioso.
- Isso foi realmente uma estupidez, garota - disse, soltando fogo pelas ventas.
Encolhi os ombros.
- Não vejo nada de mais.
- Ah, claro - ele replicou. - O seu grito ecoou por todo o vale.
- Olha aqui, não preciso de nenhum sermão seu, tá bom? - devolvi, brava. - Aliás, você fez exatamente
a mesma coisa, com uma diferença: foi mais estúpido que eu. Ninguém mergulha de cabeça num lago que
não conhece. Podia ter ficado paralítico.
A voz de Kerry ficou mais serena.
- Só fiz isso pra socorrer você.
- Bom, pois fique sabendo que não preciso da sua ajuda.
Dizendo isso, saí nadando o mais rápido que pude. Subi por um barranco enlameado e peguei uma
toalha na minha sacola.
Kerry praticamente me desafiara a pular. Não tinha o direito de me repreender por ter saltado.
Enxuguei meus cabelos com força e enrolei a toalha no corpo, ainda um pouco trêmula. Agora eu já não
sabia mais se tremia de raiva ou de medo.
Olhei para Kerry enquanto ele saía da água. Não consegui deixar de reparar mais uma vez na beleza
de seu corpo. Depois olhei para o alto do rochedo, e me espantei com a altura de que havíamos pulado.
Balancei a cabeça, percebendo que aquele salto fora uma das coisas mais imbecis que já fizera na minha
vida.
E de repente percebi também que fizera aquilo por uma única razão: para impressionar Kerry.
6

Que garoto insuportável!

- Chegaram! Eles chegaram! - exclamou Lucky na segunda-feira de manhã enquanto olhava pela janela do
galpão da recepção do acampamento.
Segui o olhar dela. Dois ônibus lotados entravam no estacionamento naquele exato instante. Lucky e eu
estávamos sentadas atrás de uma mesa, preparadas para listar as campistas quando chegassem, e Amir e Sacha
estavam sentados ao nosso lado para fazer o mesmo com os meninos. Jojo ficara do lado de fora, no
estacionamento, para receber as crianças e conduzi-las até a recepção. Com seus movimentos exagerados e
teatrais, parecia mais um guarda de trânsito.
- Espero que alguns dos campistas do ano passado tenham voltado neste ano - falei, dando uma olhada
atenta para ver se reconhecia alguém.
De repente uma horda de fedelhos entrou gritando no galpão. A maioria deles carregava mochilas coloridas
nas costas e falava mais rápido que um locutor de futebol.
- Anna! Anna! - ouvi uma voz excitada de menina chamar da porta.
Era Nikki Daniels, acompanhada de Jennifer Thomas e Olívia Puccini. As três tinham ficado na nossa
cabana no verão anterior. Nikki, uma garota robusta com longos cabelos castanhos, fora a líder do grupo. Jennifer
era uma menina bagunceira e palhaça de pele pálida e cabelos ruivos enroladinhos em compridos cachos
espiralados. Olívia, de origem italiana, com olhos escuros e amendoados e um elegante nariz romano, era a mais
sofisticada das três. Vieram direto na minha direção, e eu me ajoelhei e abracei todas ao mesmo tempo.
- Oi, meninas! Olhem só pra vocês! Acho que cresceram uns cinco anos de uma vez! - exclamei, feliz.
Nikki riu.
- Foi só um ano, Anna. Agora a gente tem onze.
- Ah, bom! - falei. - Ainda bem, se não eu também ia estar cinco anos mais velha!
Todas riram contentes.
- Anna, a viagem de ônibus foi horrível! - reclamou Jennifer, pondo a língua para fora numa careta.
- Ah é? Por quê? - perguntei.
- Porque o Albert Cohen sentou bem do meu lado e ficou jogando bolinhas de papel em mim o tempo
todo.
Olívia deu uma risadinha matreira.
- Ela gosta dele, Anna - explicou.
- Eu não! - grunhiu Olívia. - Ele é que gosta de mim!
Sacha ficou de pé na mesa e colocou as mãos em concha ao redor da boca.
- Bem-vindos todos ao Acampamento Seneca Falls Meninas, façam a ficha ali com a Anna e a Lucky.
Meninos, venham falar comigo e Amir.
- Garotas, preciso voltar ao trabalho. A gente se vê depois, tá bom? - falei, voltando para a mesa.
- Vocês vão dormir com a gente de novo neste ano? - perguntou Nikki, puxando a barra da minha
camiseta.
Balancei a cabeça.
- Infelizmente não.
- Ahhh ... - elas reclamaram em coro.
- Mas vamos comer juntas em todas as refeições - assegurei. - Não se preocupem. A gente vai se ver
tanto que até o final do verão vocês já vão estar cheias de mim.
Elas acenaram e foram embora, e eu me juntei a Lucky atrás da mesa. As crianças tinham formado
duas filas, e se empurravam e tagarelavam hiperexcitadas.
Voltei minha atenção para a primeira menina da fila e lhe dei um belo sorriso de boas-vindas.
- Oi! Eu sou Anna, uma das monitoras sênior. Qual é o seu nome?
- Sandra Spelling - respondeu ela com uma voz entediada. - Tenho treze anos - concluiu, inflando as
bochechas e assoprando a franja loira que lhe caía na frente do rosto.
Percorri minha lista com o dedo.
- Tudo bem, Sandy, você está no quarto da Gina Alexander. Peguei um kit e uma agenda das atividades e
dei tudo a ela.
O kit continha sabonete, pasta dental, uma lanterninha e um mapa do acampamento.
- Isto aqui é a programação das suas atividades neste verão. Apontei para um canto do salão onde Gina,
uma das novas monitoras júnior, estava sentada. Gina era uma bela morena com covinhas no rosto e um enorme
sorriso.
- Aquela é a Gina. Ela vai levar vocês até o quarto.
- Obrigada - replicou Sandra secamente, enfiando o material na sua sacola de mão e indo embora com o
nariz empinado.
Balancei a cabeça e me concentrei na próxima campista.
- Oi! Bem-vinda ao Seneca Falls! - falei mais uma vez. Meia hora depois a fila já começava a desaparecer.
Lucky se inclinou na minha direção.
- Acho que o meu rosto vai rachar em dois de tanto sorrir - ela cochichou em meu ouvido.
- É, eu também - repliquei.
Imediatamente reparei em uma menininha encolhida num canto, sentada em cima que sua mochila e
parecendo à beira das lágrimas.
- Ops - falei, me levantando. - Lucky, você pode cuidar das duas filas por um minuto?
- Claro.
Atravessei a sala e me ajoelhei ao lado da menina. Tinha longos cabelos castanhos, embaraçados e
amarrados com uma fita de cetim, e um belo par de úmidos olhos azuis.
- Dá um pouco de medo no começo, né? - perguntei, iniciando a conversa.
Os lábios da menina tremeram e uma lágrima rolou pelo seu rostinho.
- Eu quero ir pra casa - ela sussurrou. Coloquei um braço em volta de seus ombros.
- Sei como você se sente - continuei. - Na primeira vez em que fui a um acampamento de verão,
detestei. Escrevia cartas aos meus pais fingindo que estava me divertindo, mas na verdade sofria muito.
Ela piscou e olhou para mim com os olhos arregalados.
- Sofria?
Confirmei com um gesto de cabeça.
- Sofria. Até o dia em que decidi me dar uma chance. E no fim das contas acabei achando que o
acampamento não era tão ruim assim.
Ela me olhou desconfiada.
- Meu nome é Anna - falei, me sentando no chão de pernas cruzadas. - Qual é o seu?
- Maureen - respondeu, rodando uma mecha de seu cabelo entre os dedos.
- E o que você gosta de fazer, Maureen? Ela encolheu os ombros e fez uma careta. - Eu estava na
peça de teatro da escola...
- Ei! Então você devia tentar participar da peça do acampamento. Tá vendo aquele cara sentado ali? -
perguntei, apontando para a mesa dos garotos - O nome dele é Amir. Vai ser o diretor da peça. Vou dizer a
ele pra ficar de olho em você.
Ela abriu um sorriso encantador.
- Tem uma peça aqui? Achei que o acampamento tinha só coisas da natureza.
- Tem de tudo aqui - respondi, me levantando. - Agora vamos lá, vamos registrar você.
O rosto de Maureen se iluminou, e ela ficou de pé num salto. Peguei na sua mão e a conduzi até a
mesa, onde lhe dei o kit do acampamento. Depois a levei até o grupo de Nádia Barnes, outra monitora
júnior.
- Nádia, esta aqui é a Maureen. Ela está na sua cabana. Acho que vai ser uma estrela da peça - falei,
piscando para a menininha.
- Oi, Maureen - cumprimentou Nádia, abrindo um caloroso sorriso e mostrando uma cadeira a seu
lado.
Quando voltei para a mesa, Lucky já estava terminando a última inscrição.
- Bom, parece que acabamos - disse ela, massageando o próprio ombro e alongando o pescoço. - Acho
que se tiver que dizer "bem-vinda ao Seneca Falls" mais uma vez, vou explodir.
Mas eu balancei a cabeça e apontei para a porta. Um novo grupo de crianças estava entrando no
galpão.
Lucky afundou a cabeça nas mãos.
- Ah, nãããão - resmungou.

Desci para a sede ao meio-dia, vestindo bermudas e camiseta por cima do meu maiô com o emblema do
Seneca Falls. Os monitores tinham de usar camisetas vermelhas nos workshops e maiôs do acampamento no lago.
A primeira sessão de natação estava programada para aquela tarde.
Fazia um dia lindo, e o perfume dos lilases pairava no ar. Delicadas flores azuis do campo enfeitavam o
caminho desde a saída da minha cabana. Me inclinei e colhi algumas, cantarolando enquanto andava pelo caminho
de terra até o galpão da sede.
De repente algo agarrou a minha coxa. Gritei e tentei me desvencilhar. Logo percebi que minha bermuda
ficara enganchada nos galhos mais baixos de uma árvore. Puxei a bermuda, mas só consegui enroscá-la ainda
mais. Me virei para analisar a situação.
A bermuda estava irremediavelmente agarrada ao galho. O único jeito era sair de dentro dela. E foi o que
fiz.
- Opa! Nada de strip-tease no bosque! - ressoou uma voz penetrante e familiar.
Vesti minha bermuda de volta rapidamente, desejando que a terra se abrisse e me engolisse. Era Kerry.
Claro. O cara devia ter uma espécie de detector de situações embaraçosas. Toda vez que eu estava em uma delas,
podia contar que ele apareceria.
Kerry se encostou numa árvore, com os braços cruzados à altura do peito e as pernas cruzadas nos
calcanhares.
- Ia perguntar se você queria dar uma volta, mas parece que está meio enroscada - ele disse, com um sorriso
irônico.
Sua fala era lenta e provocante, e os olhos brilhavam. Senti meu sangue começar a ferver de raiva e
frustração. Se estivesse livre, teria avançado nele.
Humilhada, puxei a bermuda com mais força. Mas meus esforços só pioraram as coisas: ouvi um
desesperador som de tecido rasgando.
- Ei, calma! - exclamou Kerry, andando até mim.
Aquilo me agitou ainda mais. Não há pior remédio para a histeria do que alguém pedir para você se
acalmar.
Antes que eu pudesse detê-lo, Kerry me segurou com as duas mãos e me fez parar de me remexer. Em
seguida desenroscou gentilmente minha bermuda do galho, e me liberou.
Eu estava furiosa. Me virei para encará-lo, pronta para dizer o que pensava dele e de suas aparições
inoportunas.
- Obrigada, mas não preciso da sua ajuda - disparei. Sou perfeitamente capaz de ...
- Não precisa me agradecer - interrompeu Kerry, já indo ;embora. - Foi um prazer. Afinal de contas, pra
que servem os parceiros?
Quando já tinha andado alguns metros pelo caminho de terra à minha frente, ele acenou e piscou.
- Até mais tarde, Anna! E vá pela sombra.

- É i-na-cre-di-tá-vel - desabafei na cozinha do acampamento depois do jantar, enquanto esfregava uma


panela com palha de aço. - Esse cara tem uma habilidade incrível pra aparecer no lugar errado na hora certa.
Presenciou todas as minhas situações embaraçosas e humilhações! Todas!
Lucky e eu tínhamos assumido a limpeza da cozinha durante aquela semana. Havia uma pilha de louça suja
que ia quase até o teto, e eu estava com os braços enfiados até os cotovelos numa pia cheia de água suja e sabão.
- Esse cara é o Kerry, suponho - disse Lucky, lavando mais um prato e colocando-o no escorredor.
Afastei o cabelo da minha testa com a luva amarela cheia de espuma de sabão que eu estava usando.
Apesar de a cozinha ser enorme e arejada, com pé direito alto e grandes janelas, nunca fazia menos de trinta e
cinco graus ali. Havia um antigo aquecedor a carvão num canto e enormes panelas e frigideiras de cobre
penduradas nas vigas do teto.
- E quem mais poderia ser? - repliquei, agarrando na pilha de louça uma grande panela de ferro recoberta
de crostas de macarrão e queijo do almoço. - Deus me dê paciência! - continuei, enquanto mergulhava a panela na
água e a deixava afundar. - Primeiro ele se senta do meu lado no ônibus e fica ouvindo os meus sonhos...
Peguei a palha de aço e esfreguei violentamente a panela.
É mesmo - disse, soltando uma risadinha zombeteira ao se lembrar. - Aquela história do sonho com Peter e
o "je t'aime".
Ela pegou um pano de prato e enxugou um punhado de talheres. Passei a panela sob o jato d'água da
torneira e a joguei na pia de enxágüe na frente de Lucky.
- Lucky, acho que você não está me levando a sério.
- Desculpe - ela disse. - Continue.
Lucky afundou a panela na pia algumas vezes e em seguida a enxugou.
Afundei cuidadosamente uma pilha de copos dentro da minha pia.
- Continuando: primeiro ele invade os meus sonhos; depois goza do meu cabelo...
- Bom, pra falar a verdade você parecia uma lunática quando saiu do ônibus - observou Lucky, me
interrompendo mais uma vez.
Ela se voltou e olhou de frente para mim.
- Aliás, você está perto de atingir o mesmo estado neste instante.
Eu sabia que sim. Podia sentir meu rosto grudando e meu cabelo se eriçando com a umidade da cozinha.
- Obrigada, companheira - retorqui, jogando um pouco de água nela.
Lucky pulou para trás, soltando um gritinho.
- Mas não foi só isso - prossegui. - Depois ele ainda me pegou no meio da dança do ovo...
Esfreguei os copos na pia com raiva, fazendo a espuma saltar pelos ares.
- Ei, cuidado! - exclamou Lucky quando a água com sabão caiu em seu short. - Lembre-se, somos uma
equipe de limpeza.
- Desculpe - falei, jogando na direção dela um pano de prato limpo.
Peguei dois pratos da pilha e suspirei. Não importava quanta louça lavássemos, a pilha não parecia
diminuir.
- E hoje ele me pegou com a bermuda enganchada numa árvore. O cara não me dá uma folga, Lucky! E vou
ter de passar todo o verão com ele! Vamos estar juntos o dia inteiro no lago para as aulas de natação, vamos estar
em dupla em todas as atividades noturnas do acampamento, e no tempo livre vamos planejar a gincana juntos.
Não vai dar pé!
Me virei e olhei para a minha amiga, esperando uma resposta. Ela tinha um sorrisinho matreiro estampado
nos lábios.
- Sabe o que eu acho? - perguntou.
- O quê?
- Acho que você gosta dele.
- O QUÊ!? - gritei. - Caramba, Lucky, você não ouviu nada do que eu acabei de dizer?
Lucky fez que sim com um gesto de cabeça.
- Cada palavra, Anna. Cada palavra.
7

Tempos de paz

Na terça-feira à tarde desci correndo para o lago para ler a minha correspondência tranqüila e sozinha antes
da próxima bateria de aulas de natação. Eu tinha passado na sede logo depois do almoço e ficara surpresa ao
encontrar duas cartas no meu escaninho. Uma era um cartão de Jackie, a outra era uma carta de Peter.
Meu estômago se contraíra de uma maneira estranha quando eu percebera a familiar caligrafia de Peter no
envelope. Mal podia esperar para abri-lo. Também ficara feliz por ter notícias de Jackie, mas não conseguira
evitar um certo desapontamento por Joel ainda não ter escrito. Eu lhe escrevera uma longa carta no domingo à
noite antes de os campistas chegarem, e esperava já ter recebido notícias dele.
O lago estava completamente deserto quando cheguei. Era um dia frio e ventava muito. A água ficara
verde-escura.
Me sentei na areia e deixei minha bolsa ao meu lado.
Procurei as cartas com a mão dentro dela, dentro do meu diário, e quando finalmente as senti, puxei-as para
fora.
Sorri ao olhar para o cartão-postal de Jackie. A ilustração era uma imagem em preto-e-branco dos anos
cinqüenta. Era uma foto de uma mulher de avental branco passando aspirador num tapete. "O trabalho de uma
mulher jamais termina!", dizia a legenda. Virei o cartão e li o que estava escrito. Eram bobagens típicas de cartão-
postal. Mas mesmo assim havia um Post Scriptum. Apertei os olhos para lê-lo: "P.S. Joel manda um beijo".
Senti uma pontada de dor ao ler aquilo. Já era ruim Joel não ter se preocupado em me escrever. Mas pelo
menos podia ter acrescentado algumas frases no cartão de Jackie. Depois me forcei a me acalmar. Estava no
acampamento havia apenas alguns dias, e Joel provavelmente ainda não recebera minha carta. Com certeza daria
notícias logo.
Enfiei o cartão-postal em meu diário e puxei a carta de Peter.
Era um desses envelopes vermelhos e azuis, do tipo "via aérea". Virei o envelope e olhei para o endereço
do remetente. Fora mandado da Namíbia. Então, no fim das contas, Peter fora mesmo para a África!
Cruzando as pernas, rasguei o envelope e li a carta.

"Ma chère Anna. A África é tão exótica quanto eu esperava. Mas há algo de estranhamente familiar nela,
como se fosse o nosso terreno comum, a origem de todos nós... Viajei muito neste verão, mas não encontrei
nenhuma pessoa tão bonita quanto você. Penso em você o tempo todo... especialmente em seus lindos olhos
azuis... Je t'aime comme toujours. Peter."

Deixei a carta cair sobre minhas pernas, me sentindo lisonjeada. Je t'aime comme toujours, ele escrevera.
Eu te amo como sempre. Peter continuava romântico. Apoiei o queixo nas mãos, olhando para a água agitada do
lago. Uma vez mais a cena do ano anterior me veio à mente. Senti os dedos de Peter passando suavemente pelos
meus lábios, vi seus olhos intensos e escuros olhando nos meus, senti seus lábios procurando pelos meus...
De repente uma forte lufada de vento soprou na praia, e a carta voou. Me levantei rápido para tentar pegar o
envelope no ar, mas perdi o equilíbrio e caí na areia. Me levantei de novo e corri atrás da carta, mas um novo
golpe de vento ainda mais forte levou a carta voando em direção à outra ponta da praia.
Uma rajada de areia me atingiu no rosto, e eu pisquei. Quando minha visão clareou, a carta já sumira.
Fiquei em desespero por um momento, vasculhando a praia com o olhar. Logo vi o envelope, voando pela areia
rumo à beira do lago. Tirei os chinelos e saí correndo atrás dele, torcendo para que não caísse na água.
O vento mudou de direção e soprou meu cabelo para a frente dos meus olhos. Continuei correndo às cegas
pela areia, até que de repente colidi com um peito duro e musculoso.
- Ai! - gritei de susto, recuando e retirando meu cabelo da frente do rosto.
Kerry. Claro.
- Engraçado trombar com você por aqui! - falei com sarcasmo.
Kerry sorriu, segurando minha carta.
- Procurando por isto? - perguntou, sacudindo o papel no ar.
- Obrigada - repliquei secamente, estendendo a mão para pegar a carta.
Kerry abriu um sorriso tranqüilo.
- Às ordens - ele disse, puxando a carta de volta antes que eu pudesse alcançá-la.
Kerry virou o papel e olhou atentamente para a página.
- "Je t'aime comme toujours. Peter." - leu em voz alta.
Em seguida apertou a carta contra o peito, com um ar gozador.
- Não é lindo? - perguntou.
Fiquei boquiaberta com a ousadia.
- Devolva isso já pra mim! - ordenei.
Mas Kerry continuava a segurar a carta no ar, fora do meu alcance.
Cruzei os braços e bati com o pé direito no chão, com raiva.
- Uma carta do Peter? Do Peter Je t'aime? - inquiriu, me encarando com uma expressão provocadora. -
Pensei que Peter fosse apenas um sonho.
- Digamos que Peter é um sonho e você é um pesadelo retruquei, arrancando a carta da mão dele e voltando
para a praia a grandes passadas.
- Tudo bem, meninos, mais uma ida e volta e acabou por hoje! - gritou Kerry.
Era mais tarde naquele mesmo dia, e Kerry estava na água com um grupo de meninos de treze anos de
idade. Eu estava sentada no píer, em cuja beirada os meninos se seguravam ofegantes. Eram todos bons
nadadores, mas nós os havíamos cansado bastante. Tínhamos repassado todos os estilos - peito, costas, crawl,
borboleta - e havíamos nadado pelo menos três quilômetros. O lago agitado tornava a natação mais difícil do que
o normal.
Me ajoelhei no píer diante de um garoto pálido com lábios carnudos e vermelhos.
- Jeremy, preste mais atenção na respiração. Você está levantando a cabeça para a frente em vez de apenas
virar de lado.
Demonstrei o jeito certo de respirar, imitando uma braçada de crawl e virando a cabeça para o lado entre as
braçadas.
Jeremy concordou com um aceno de cabeça.
- Tá bom - ele disse.
Kerry franziu as sobrancelhas, pensativo.
- Anthony, preste atenção nas suas pernas. Não precisa pôr tanta energia nelas. Está batendo os pés muito
pra fora d'água. Tem de ser mais perto da superfície, e debaixo dela.
Kerry se virou na água e mostrou como bater os pés. Anthony nadou a seu lado imitando-o, policiando-se
para fazer o que o professor dissera.
Kerry fez um gesto afirmativo com a cabeça.
- Isso aí! - falou, com um sorriso encorajador.
Me debrucei na beirada do deque.
- Muito bem, meninos, estão prontos? - perguntei em voz alta para todos. - Agora, uma corrida! Até a bóia,
ida e volta!
Kerry saiu da água e se sentou no píer ao meu lado. - A postos! Preparar... Já!
Os garotos partiram, deslizando pela superfície do lago com braçadas suaves e regulares.
- Eles são mesmo bons - observei.
- É, são sim. A gente trabalhou duro com eles hoje - concordou Kerry, observando-os atentamente.
Os meninos chegaram à bóia e fizeram a volta. Jeremy e James estavam na dianteira.
- Aposto no James - disse Kerry.
James era um menino miúdo com evidente talento esportivo. Sacudi a cabeça.
- Não mesmo. Com certeza o Jeremy vai ganhar. Estava só com um pouco de dificuldade na respiração,
mas já conseguiu corrigir.
Com muita segurança, Jeremy veio nadando de volta com braçadas longas e fortes, e alguns segundos
depois James estava uma cabeça atrás. Os dois foram aumentando a velocidade à medi que se aproximavam do
deque, mas Jeremy chegou antes. Sorrindo, levantou a cabeça da água.
- Bom palpite - admitiu Kerry com um sorrisinho.
- Jeremy, sua respiração ficou ótima agora! - elogiei, entusiasmada. - Viu quanta energia você economizou?
- Você tinha razão, Anna - concordou Jeremy, feliz, enquanto subia no deque e pegava sua sacola.
- Missão cumprida, meninos! Belo exercício - dizia Kerry, dando tapinhas nas costas de cada um que saía
da água.
- Estou morta - falei depois que todos os garotos tinham ido embora.
Os músculos das minhas costas e pescoço doíam, e os tendões detrás dos meus joelhos estavam tensos. Até
aquele momento não me dera conta de que não só os campistas tinham trabalhado duro. Eu e Kerry também.
- Talvez você devesse dormir um pouco mais - sugeriu Kerry enquanto acabava de se enxugar e vestia uns
jeans desbotados e uma camiseta roxa.
Lá vem, pensei. Eu sabia aonde ele queria chegar com aquele comentário. Terminei de me secar e vesti
meu short.
Como já esperava, Kerry se virou para mim e sorriu.
- Tem tido lindos sonhos ultimamente?
Percebi meu rosto ficando vermelho de vergonha e raiva, e procurei em vão por uma boa resposta. Eu
costumava ser rápida. Revides instantâneos a espirituosos eram a minha especialidade. Mas, claro, naquele
momento nada me veio à mente.
- Quer dizer que o Peter je t'aime vai trabalhar na cozinha de novo neste verão? - continuou ele.
Como diabos Kerry sabia que Peter tinha trabalhado no acampamento no verão anterior? O cara não me
dava uma trégua! Senti uma súbita necessidade de lhe dar uma lição. Com toda a minha força, o empurrei do píer.
Ele soltou um berro enquanto caía no lago com um sonoro tchibum.
Kerry subiu à tona borrifando e cuspindo água para todos os lados. Afastou seu cabelo escuro dos olhos e
se agarrou na beirada do embarcadouro. A ensopada camiseta roxa se colara ao seu corpo, realçando a potente
musculatura dos ombros.
- Estamos quites agora? - perguntou.
- Acho que sim - respondi com um sorriso bobo, satisfeita comigo mesma.
Mas então ele me puxou com força pelo tornozelo e eu perdi equilíbrio.
- KEERRYYY! - gritei, enquanto caía na água por cima dele. Tossindo e sem ar, voltei rapidamente à
superfície e me agarrei na beirada do píer com uma das mãos. Ofeguei e recuperei o fôlego. Kerry veio nadando
na minha direção, e quando o vi me soltei do píer, jogando água nele com toda a minha energia. Ele tentou me
espirrar água também, mas eu mergulhei e emergi por trás dele, tentando lhe dar um caldo.
- Ei! - ele gritou, voltando-se antes que eu conseguisse afundá-lo, me enlaçando pela cintura e começando a
me fazer cócegas.
- Assim não vale! - gritei entre risadinhas, me contorcendo para me livrar de seus braços.
Por fim consegui me agarrar na beirada do píer e me içar para fora d'água. Kerry subiu logo atrás de mim.
Lá, de pé no deque, ensopados dos pés à cabeça, ambos ríamos e tentávamos recobrar o fôlego. Nossas
roupas estavam coladas aos nossos corpos, e parecíamos dois ratos afogados.
- Paz? - sugeriu Kerry, estendendo a mão molhada para mim. Olhei desconfiada para aquela mão, me
perguntando se não seria só mais uma artimanha para me jogar de novo para dentro d'água. Mas seus belos olhos
castanhos pareciam completamente sinceros.
- Paz - concordei, sacudindo a mão de Kerry.
Lutei para tirar meu short molhado grudado ao corpo, e quando consegui me sentei na beirada do píer. Uma
brisa fresca atravessou o lago, e senti um calafrio. Sacudi a toalha e a joguei por cima dos ombros.
Kerry sentou-se ao meu lado, ainda com suas roupas encharcadas.
- Anna, eu sei que às vezes sou um baita dum chato, mas é que você é tão fácil de provocar... - ele disse
com suavidade.
- Sou? - perguntei surpresa.
Kerry esfregou a toalha energicamente nos cabelos.
- É. Você é tão defensiva, tão cheia de escudos protetores, que...
- De que raios você está falando, afinal? - exclamei, interrompendo-o. - Não sou defensiva coisa nenhuma.
Mas ao dizer aquilo tive de rir.
- É, Kerry, acho que desta vez você me pegou - reconheci.
- Não, tudo bem... Eu gosto desse seu jeito – disse, me fitando direto nos olhos.
Um olhar tão intenso que fez minha boca secar.
- É isso que faz você ser você, Anna.
Senti um calafrio de novo. Mas dessa vez não tive certeza de que fora por causa do vento.

- Artes e ofícios num acampamento! - resmungou uma campista mal-humorada chamada Tiffany, liderando
um grupo de meninas de treze anos de idade na cabana de artes no final da tarde de terça-feira.
Eu mal tivera tempo de correr até a minha cabana para me trocar e me preparar para a aula. Felizmente
passara de manhã na cabana de artes e deixara tudo mais ou menos arrumado para as atividades daquele dia.
Tiffany parou de passear pela sala e se inclinou contra a parede com uma expressão de desprezo no rosto.
Amber, uma menina bonita e charmosa de cabelos loiríssimos, se juntou a ela.
- Anna, a gente tem mesmo de fazer aula de artes? - perguntou, fazendo beiço e cruzando os braços.
- O que vamos fazer, pintar anjinhos de gesso pelados? - reclamou uma garotinha miúda chamada Janine,
cuja pele lisa e pálida fazia um forte contraste com seus óculos pretos tipo gato.
As outras meninas soltaram um risinho.

Eu ri por dentro da atitude delas. Para um grupo de meninas de treze anos, até que eram uma turminha
bastante sofisticada e exigente.
- Bom, vocês não precisam participar da aula se não quiserem - falei. - Mas, pra quem quiser ficar... eu
tinha pensado em fazermos umas bijuterias.
Apontei para a longa mesa retangular que havia montado no meio da sala, sobre a qual dispusera uma
grande variedade de tiras de couro, fios de lã e algodão, contas multicoloridas, pedras perfuradas, agulhas, potes
de cola, tesouras e carretéis de linha.
O rosto de Tiffany se iluminou.
- Bijuteria! - exclamou empolgada, sentando-se em uma das banquetas ao redor da mesa. - Que legal!
Todas as outras garotas se sentaram também e me deram total atenção. Elas acabaram se mostrando um
grupo extremamente bem-comportado, seguindo minhas instruções com grande concentração. Quarenta e cinco
minutos mais tarde já tínhamos superado a etapa básica na confecção de algumas pulseiras e colares. Dividi as
meninas em três grupos e fiquei circulando entre elas enquanto trabalhavam em suas peças.
- Anna, tá certo desse jeito? - perguntou Janine, erguendo uma pulseira trançada com as extremidades
desfiadas em franja.
Sacudi a cabeça.
- Acho que não, Janine. Você tem de dar um nó nos fios antes de começar.
Puxei uma banqueta e me sentei ao lado dela.
- Deixe mostrar a você. Vamos ter de começar tudo de novo. Justo naquele momento a porta se abriu e uma
bela cabeça morena se enfiou por ela. Era Kerry. Vestia um par de jeans limpinhos e folgados e uma camiseta
marrom.
- Oi, Kerry! - exclamou Yi-Ping, uma das garotas.
Ela pulou de sua banqueta e correu até ele, com seus óculos de aros redondos e prateados escorregando
pelo nariz.
- Olha só o que eu fiz! - disse, mostrando-lhe uma gargantilha. Era uma grande pedra de jade com duas
pequenas pedras verdes de cada lado, todas penduradas em um cordão de couro preto.
- Olha só! Ficou lindo, Yi-Ping! - disse Kerry, admirado, passando o dedo pelo cordão.
Yi-Ping sorriu de prazer e amarrou a gargantilha em volta de seu pescoço, ajeitando-a enquanto caminhava
toda vaidosa de volta para a mesa.
- O que você está fazendo aqui? - perguntei. - Quer fazer uns brinquinhos pra usar na festa de Quatro de
Julho?
Kerry sorriu.
- Obrigado, mas não faz muito o meu gênero. Na verdade vim porque tenho uma coisa pra entregar pra
você - replicou, retirando um livro de sua mochila.
Era o meu diário. Fiquei de queixo caído.
- Você esqueceu na praia - explicou Kerry.
- Obrigada - falei quase sem voz, tomando o livro da mão dele e enfiando-o na minha bolsa.
Eu não conseguia acreditar que tinha sido tão burra a ponto de deixar meu diário jogado por aí. E na praia!
Qualquer um poderia ter encontrado e lido, e aquele caderno continha todos os meus pensamentos mais íntimos.
Estremeci só de pensar naquela possibilidade.
- De nada - replicou Kerry, despedindo-se com um aceno enquanto andava de volta até a porta.
- O Kerry é seu namorado, é? - perguntou Tiffany quando ele já tinha partido.
Meu rosto corou um pouco, e rapidamente sacudi a cabeça, negando.
- Não, somos só amigos.
- Então por que você não faz uma pulseira pra ele, como prova de amizade? - sugeriu Amber.

Pensei no "tratado de paz" que Kerry e eu tínhamos feito havia poucos instantes no lago, depois de
jogarmos um ao outro de roupa e tudo na água. E no jeito como ele mergulhara atrás de mim na pedreira, para "me
salvar". E no fato de ele ter se deslocado até a cabana de artes especialmente para me entregar o diário.
Éramos parceiros, afinal de contas. Seria um belo gesto da minha parte dar a ele uma pulseira feita por
mim. E assim Kerry veria que eu não tinha tantas defesas e bloqueios quanto ele pensava.
Sorrindo para Amber, peguei alguns pedaços de fios coloridos e comecei a trançar uma bela pulseira.

- Kerry! Dá pra você dar uma chegadinha até aqui? - gritei na quarta-feira à tarde quando entrava pela porta
da cabana central.
Kerry e eu tínhamos passado as últimas horas reunindo material para a grande gincana. Eu mal podia
enxergar por cima da enorme pilha de sacos de batatas vazios amontoada em meus braços.
Kerry abriu a porta do quarto de material em que estava e apareceu. Eu cambaleei cegamente até ele e
larguei a pilha de sacos no chão.
- Uff! - bufei, limpando as mãos na minha camiseta e dando uma olhada para dentro do quarto lotado de
material para a gincana. - Acho que já deu, né?
Kerry jogou em cima de uma escada de madeira deitada no chão um enorme rolo de corda que estava
pendurado em seu ombro esquerdo.
- Já está ótimo! - concordou. - Vamos cair fora daqui. Ele trancou o quarto e caminhamos até a porta da
cabana.
Eu pisquei com a luz do sol quando saímos para o exterior.
- Muito bem, chefe, qual a próxima tarefa? - perguntou Kerry, deitando-se com as mãos atrás da cabeça no
declive gramado em frente à cabana.
Eu me sentei ao lado dele.
- Por que não damos uma repassada em tudo, pra ter certeza de que não nos esquecemos de nada?
- Boa idéia - concordou, arrancando um pedaço de grama e colocando-o na boca. - Manda bala.
Peguei um caderno na minha mochila e li em voz alta.
- Ok, estas são as provas da gincana: a corrida com o ovo na colher, a corrida de duzentos metros, o cabo-
de-guerra, a corrida com as pernas enfiadas nos sacos de batatas, uma competição de natação de quinhentos
metros no lago, e uma corrida com obstáculos. E temos seis dúzias de ovos...
- Talvez você pudesse abrir a gincana com a sua dança do ovo, pra dar um impulso inicial à garotada -
interrompeu Kerry, com um sorriso malicioso.
- Muito engraçadinho - repliquei, dando-lhe um soco de leve no estômago.
- Ai! - exclamou ele, fingindo dor e segurando o estômago com as mãos. - Foi só uma sugestão.
- Sei, sei - disse, incapaz de reprimir meu sorriso. - Bom, como eu estava dizendo, já temos os ovos, os
rolos de corda, os sacos de batatas, cronômetros, vendas...
- E pneus, escadas, trampolins, cavaletes, e tudo o que você quiser imaginar para uma boa corrida de
obstáculos - completou Kerry.
Ele rolou e se deitou de lado, apoiando a cabeça na palma da mão.
- Agora temos de nos preocupar com o tingimento das camisetas.
Os rapazes da cantina tinham encomendado um monte de camisetas brancas para nós, e a previsão era de
que chegassem naquele mesmo dia.
- Puxa, eu tinha me esquecido completamente das camisetas! - exclamei, franzindo a testa.
- Por que vocês não as tingem na aula de artes de sexta-feira? - sugeriu ele.
- Kerry, você é um gênio! Grande idéia!
Eu ainda não tinha planejado o que faria na minha aula, e tingir as camisetas sem dúvida deixaria as
crianças entusiasmadas com a gincana.
Pensar na aula me lembrou do presente que eu tinha feito para Kerry no dia anterior. Abri o zíper do bolso
externo da minha mochila e tirei a pulseira. Eu tinha combinado fios de lã azul, verde e preta em três grossas
tranças.
- Olha, fiz uma coisinha pra você. Uma homenagem à nossa amizade e ao tratado de paz que fizemos no
lago.
Me senti subitamente ridícula e sem jeito, e dei um chute num montinho de terra à minha frente.
Mas Kerry pareceu comovido.
- Ei, mas isso é demais! - disse ele, ajustando a pulseira em volta de seu pulso esquerdo e erguendo o punho
para que eu visse o resultado. - Veja só, serviu direitinho!
Então ele me fitou.
- Mas cadê a sua? Você não teria de ter uma também? Levantei minha mão esquerda, mostrando-lhe a
pulseira gêmea que tinha feito para mim mesma.
Kerry sorriu contente.
- Obrigado, moça. Será que isso significa que você está realmente começando a gostar de mim?
- Não force a barra, Kerry!
Ele riu e pegou meu caderno. Virou para a próxima página, que continha a relação dos dois times da
gincana.
Kerry e eu decidimos ser capitães dos times opostos. Tínhamos dividido arbitrariamente os campistas em
dois grupos, com quantidades iguais de meninos e meninas de cada lado.
- Hum - disse Kerry, examinando a lista. - Fiquei com Jeremy e James do meu lado. Melhor você se cuidar,
Anna Morris. O time vermelho está me parecendo terrivelmente forte.
- Pode tirar o cavalinho da chuva, Kerry Halley - rebati. - Você tem o Jeremy e o James, mas eu tenho
Tiffany e Amber no meu time. E as meninas amadurecem mais rápido do que os meninos.
Dei a ele um sorriso provocador.
- Encare os fatos. Vamos fazer picadinho de vocês - concluí.
8

A garota mais sozinha do mundo

Quando a sexta-feira finalmente chegou, eu estava exausta.


Percebi que minhas obrigações de monitora sênior eram ainda mais estafantes do que haviam sido as de
monitora júnior no ano anterior. Entre as aulas de natação, as de artes e as atividades noturnas, eu raramente tinha
um tempinho para mim mesma. Mas percebi também que estava gostando daquele ritmo de vida movimentado do
acampamento, sobretudo pela constante proximidade da natureza.
Quando cheguei ao lago na sexta-feira à tarde, Kerry já estava na água com um grupo de meninos de dez
anos de idade, jogando pólo aquático. Tirei meu short e minha camiseta, ficando só de maiô, e andei
apressadamente até a margem.
O vento parecia pesado e denso, e soprava com força ao longo da praia. Acenei para Kerry enquanto
caminhava pela areia na direção do píer, mas ele não me viu.
Observei-o dizendo algo aos garotos na água. Eles caíram na gargalhada e saíram nadando em grupo até a
linha das bóias. Eu me sentia cada vez mais impressionada com o quanto Kerry era bom para lidar com os
meninos. Eles o adoravam e faziam tudo o que ele mandava. Começava a me dar conta de que Kerry talvez não
fosse o babaca arrogante que me parecera quando o conhecera no ônibus. Na verdade era uma pessoa doce,
inteligente e divertida.
Pensei na nossa guerra aquática alguns dias antes naquela mesma semana, quando Kerry dissera que eu era
defensiva. Será que eu realmente vivia em guarda? Será que eu empurrava as pessoas para longe de mim, de
maneira que elas não pudessem se aproximar muito? Não, não podia ser verdade. Se eu era tão bloqueada, então
como tinha conseguido manter uma relação duradoura com Joel? Mordi o lábio. Talvez me sentisse segura com
ele e nada mais. Talvez Joel nunca tivesse se aproximado muita da verdadeira Anna, do meu eu mais profundo.
- Ok, meninos! - gritou Kerry logo que me viu. - Nadem livremente por mais uns dois ou três minutos, e
então todo mundo pro deque.
Os garotos se animaram e começaram a brincar na água.
Alguns ficaram lançando a bola de pólo um para o outro, enquanto o resto apenas bagunçava, saltando nas
costas do companheiro que estivesse mais perto, ou tentando lhe dar um caldo, ou batendo mãos e pés e
espirrando enormes jatos d'água para todos os lados.
Continuei andando pela praia rumo ao píer, os olhos fixos em Kerry.
Ele veio nadando também na direção do píer, e ao chegar se pendurou nas pranchas de madeira da beirada
para subir. A água escorria de seus cabelos escuros quando ele ficou de pé no deque, e seus olhos castanhos
cintilavam no rosto bronzeado. Por um instante minha única vontade foi pular em seus braços e cair junto com ele
na água. Então sacudi a cabeça. Era Kerry quem estava ali, e não. Joel. Eu devia estar passando por algum sério
distúrbio afetivo para que aquelas idéias viessem à minha cabeça, talvez uma espécie de "síndrome do namorado
distante". Kerry e eu éramos amigos, ponto.
- Me larga! - escutei um garoto gritar na parte rasa do lago... A agitação me fez sair dos meus devaneios e
voltar à realidade. - Eu cheguei primeiro! - gritou outro menino.
Os dois começaram a se jogar água e se agarrar com fúria.
Então vi Kerry mergulhar de novo e nadar com braçadas longas e suaves até os garotos. Não. pude ouvir o
que ele lhes dizia, mas parecia estar conseguindo terminar com a briga entre os dois.
- Socorro! Socorra!
Fiquei alarmada ao ouvir aqueles novos gritos vindo da água. Olhei rapidamente pelo lago, à esquerda de
onde Kerry se ocupava dos dois brigões, e vi um menino se debatendo desesperadamente depois da linha das
bóias. Ele espirrava água para todos os lados feito um louco, e já mostrava todos os clássicos sinais de pânico.
Corri como uma bala até o píer e mergulhei sem vacilar nem um segundo. Nadei com a cabeça para fora
d'água o mais rápido que pude, o tempo inteiro com os olhos fixos no menino. De repente seus braços se
estenderam para cima e afundaram. Meu coração saltou para a garganta.
- KEEEERRYYYY! - gritei.
Sem esperar que ele respondesse, tomei ar, prendi a respiração e nadei por baixo d'água até a linha das
bóias, procurando desesperadamente pelo menino, meus pulmões quase explodindo. Então o vi flutuando para
baixo, já perto do fundo arenoso. Era Danny Broderick. Icei o garoto rapidamente até a superfície e saí nadando
mais rápido que nunca, rebocando-o na direção do píer.
Quando chegamos, Kerry já se dera conta do que ocorria, e nos esperava nervoso e completamente
desorientado. Ele ergueu Danny rapidamente com seus braços fortes e o deitou de barriga para cima no deque.
Danny estava flácido, inconsciente, com os olhos fechados.
Meu coração ficou ainda mais apertado, e me agachei ao lado do menino, pegando em seu pulso.
- Kerry, ele não está respirando - falei baixinho, meu pânico aumentando.
Os olhos de Kerry ficaram arregalados de pavor, mas ele se manteve calmo.
- Segure a cabeça dele, Anna - ordenou, abrindo a boca de Danny.
Então tampou o nariz do menino e fez respiração boca a boca. Mas Danny não se mexeu. Kerry repetiu o
procedimento. Nada. Todos os outros garotos estavam de pé em círculo à nossa volta, em completo silêncio.
Senti as lágrimas subindo aos meus olhos. Por favor, por favor, fique bem.
Kerry respirou na boca de Danny mais uma vez. Subitamente o menino teve um espasmo e começou a
vomitar e tossir golfadas de água. Todo o meu corpo tremeu de alívio. Momentos mais tarde ele já estava sentado,
consciente, trêmulo e com o rosto bastante vermelho, mas aparentemente recuperado.
- Ei, Danny, você está bem? - perguntou Kerry, colocando uma mão carinhosa no ombro dele.
Danny franziu a testa.
- Acho que sim... - murmurou olhando para o chão, claramente encabulado.
- Não se sinta envergonhado de nada, garoto - disse Kerry, passando seu braço por cima dos ombros do
menino. - Poderia ter acontecido com qualquer um de nós. Você apenas nadou um pouco longe demais. Ficou
enroscado em algum arbusto debaixo d'água, não foi?
Danny fez que sim com um gesto de cabeça, tossindo levemente.
- Por hoje chega, gente! - anunciou Kerry, pondo-se de pé e batendo palmas. - E o resto de vocês, meninos,
podem tirar uma boa lição disto que aconteceu. Aquelas bóias sinalizadoras estão lá por alguma razão. Não quero
ver ninguém ultrapassando a linha das bóias de novo, entendido?
Os garotos prometeram que sim com solenes gestos de cabeça e se dirigiram para as suas cabanas.
Eu ainda estava tremendo quando Kerry passou seu braço ao redor dos meus ombros.
- Não sei o que teria acontecido se você não estivesse aqui pra me ajudar, Anna - falou, balançando a
cabeça e pegando na minha mão.
- Dois garotos brigando e outro se afogando, tudo ao mesmo tempo...
- Foi um bocado assustador, não foi? - perguntei.
Eu não queria que ele se soltasse de mim.
- Foi. É impressionante a rapidez com que alguém pode se afogar.
Kerry se voltou e me olhou direto nos olhos.
- Anna, você foi demais.
- Você também - repliquei suavemente, me derretendo por dentro com a deliciosa sensação de sua mão
forte agarrando a minha.
- Pra isso servem os parceiros - observou, me dando um grande sorriso.

- Ah, o Kerry é um nadador incrível! - exclamou Sam, excitada, na noite daquele mesmo dia.
Lucky, Sam e eu estávamos na nossa cabana, nos trocando para o jantar. Sam sentara-se de pernas cruzadas
em sua cama e olhava para um pequeno espelho em seu colo enquanto aplicava uma grossa camada de rímel nos
cílios. Lucky estava acomodada na beirada do beliche, vestida só com uma camiseta e fazendo uma grossa trança
com seus belos cabelos cacheados.
- Tá conversando com a gente ou com o espelho? - perguntei a Sam com uma certa aspereza.
Eu acabara de tomar banho e de colocar jeans e uma camiseta limpa. Meu cabelo estava enrolado em uma
toalha, tipo turbante. Soltei a toalha e o sacudi.
- Ãh?... Ah, desculpe, acho que estava falando comigo mesma - respondeu ela, dando uma risadinha boba.
Olhei para o teto. Às vezes Sam agia como uma perfeita babaca.
- Então você e o Kerry foram nadar juntos hoje? - perguntou Lucky, enquanto se enfiava num macacão e
saltava pelo quarto puxando-o para cima.
Sam suspirou emocionada.
- Na verdade eu o levei pra velejar. Foi o dia mais perfeito de toda a minha vida.
O deslumbramento de Sam com Kerry estava começando a me virar o estômago. Liguei abruptamente meu
secador de cabelo na esperança de abafar a voz dela, mas por baixo do ronco do aparelho ainda podia ouvir a
maior parte das babaquices que dizia.
- Lá no barco... depois da minha aula de vela... deslizando pela água ... deitados no deque do píer... depois
fomos nadar... lago totalmente deserto...
Desliguei o secador e o joguei na cama. Meu cabelo ainda não estava seco, mas senti uma súbita e urgente
necessidade de cair fora daquela cabana o mais rápido possível. Calcei um par de tênis e catei meu relógio na
penteadeira.
- Isso tudo me soa a começo de romance de férias - sentenciou Lucky, sentando na beirada da cama de
Sam.
- Você acha mesmo que ele gosta de mim? - perguntou Sam, ansiosa.
Lucky encolheu os ombros.
- Tudo indica que sim.
Sam se inclinou para mais perto de Lucky e falou em tom confidencial.
- Bom, ainda não aconteceu nada de verdade - confessou. - Mas acho que vamos à cachoeira amanhã de
manhã, antes do passeio com os campistas. E Kerry prometeu me mostrar como acender um fogo usando só
pedras hoje à noite, na fogueira que vamos fazer com os campistas mais velhos.
Agarrei minha bolsa e me dirigi à porta.
- Vejo vocês mais tarde. Tchau.
Lucky me olhou preocupada.
- Ei, Anna, tudo bem aí como você?
- Claro - respondi, tentando manter minha voz leve e alegre. - Acho que todo esse papo romântico está me
fazendo sentir sozinha. Sinto falta do Joel.
Me esgueirei pela porta antes que ela fizesse mais perguntas. Enquanto caminhava pela mata silenciosa,
tentei organizar minhas emoções. Por que eu me sentira tão irritada com Sam se derretendo toda por Kerry? Devia
ter ficado contente pelos dois, e não chateada. Afinal Kerry e eu éramos apenas amigos. E ele tinha todo o direito
de ser tão feliz quanto eu era com Joel.
Estou feliz por eles, disse a mim mesma. Estou feliz por eles.
Repeti aquelas palavras como um mantra por todo o caminho.
- Todo mundo pronto pro esconde-esconde da sardinha? - perguntou Derek na noite daquele mesmo dia,
esfregando as mãos uma na outra.
Lucky e eu acabávamos de chegar à fogueira central do acampamento, que todas as noites reunia a maioria
dos campistas e monitores no mesmo local. Era sexta-feira, e os monitores sênior tinham combinado uma espécie
de jogo de esconde-esconde na mata com os campistas mais velhos. As regras eram bastante simples. Primeiro
uma pessoa determinada deveria se esconder. A última pessoa a descobrir o esconderijo seria a próxima a ter de se
esconder também, junto com a anterior, e assim por diante até que restasse apenas uma pessoa procurando por
todas as outras. Costumávamos fazer a busca em grupos, para que ninguém se perdesse na mata. Era realmente
divertido, porque no final todo mundo acabava apinhado em um único esconderijo - por isso se chamava
"esconde-esconde da sardinha".
Quinze minutos mais tarde todos os monitores sênior exceto Kerry e Sam - já tinham chegado, e os
campistas de treze anos de idade também. Era uma noite úmida, e acabara de começar a garoar. Lucky e eu
vestíamos capas de chuva amarelas, e Derek usava uma folgada malha de moletom cinza com capuz. Jojo estava
gozado e excêntrico como sempre com seu poncho laranja-cheguei.
- Jojo, você vai ser o nosso poncho-guia? - brinquei.
Todo mundo riu.
- Anna, as suas piadinhas estão ficando cada vez mais fracas - Jojo respondeu.
Me limitei a um leve sorriso.
Derek subiu num toco de uma árvore cortada e gritou por cima das risadas.
- Ok, todo mundo, formem suas equipes! - bradou, contando rapidamente as cabeças. - Cada monitor vai
fazer um trio com dois campistas. Em cinco minutos vocês podem começar a busca. Vou ser a primeira sardinha.
E dizendo isso desapareceu na mata.
Justamente naquele instante Kerry e Sam surgiram por trás da fogueira, bastante afobados. Kerry parecia
levemente ofegante, e Sam estava corada e sem fôlego. Senti uma estranha pontada de ciúmes ao observá-las.
Todas as vezes que os vira juntos durante aquela semana, Sam agira como uma garotinha perdidamente apaixona-
da, sempre lançando um olhar derretido para Kerry e seguindo todos os seus movimentos como um cachorrinho
ao seu dono.
Lucky acompanhou meu olhar.
- Ops! Sentindo alguma emoçãozinha estranha, Morris? Uma fisgadinha de ciúme, talvez?
- Dá um tempo, Lucky - rebati. - Como se eu desse a mínima pro fato do Kerry estar a fim da Sam. Estou
mais é torcendo pra que eles sejam felizes juntos.
Lucky deu um sorriso cínico.
- Ou talvez seja só um leve medo de ficar com o cabelo roxo? - acrescentou ela, referindo-se à nossa
aposta.
Subitamente Yi-Ping e Amber vieram na minha direção, e voltei minha atenção para elas, agradecida.
- Anna, a gente pode ficar no seu time? - perguntou Amber, com os olhos cintilando de excitação.
- Claro! - concordei sorrindo.
Yi-Ping passou o dedo pela gargantilha de jade que fizera na aula de artes, agora pendurada em seu
pescoço.
- Estou usando o meu talismã da boa sorte, por isso com certeza vamos ganhar - disse ela.
- Vocês já estão prontas? - perguntei, dando uma mão a cada uma das meninas e conduzindo-as na direção
da mata sem esperar que respondessem.
Quinze minutos depois já estávamos nas profundezas da floresta. Marchávamos com firmeza pela mata
úmida, procurando por Derek com nossas lanternas. A mata escura parecia fantasmagórica, espectral. As folhas
secas crepitavam sob os nossos pés, e a chuva fina parecia nos envolver em um universo misterioso e assombrado.
Uma coruja piou. Yi-Ping deu um salto, apertando minha mão com força.
- Anna, a floresta tem uns barulhos estranhos de noite, né? - perguntou com uma vozinha trêmula.
Passei um braço reconfortante por cima dos ombros dela.
- Eu sei. Por isso é que temos de nos manter juntas. Subitamente o débil som de uma risadinha veio
flutuando pelo o ar, carregado pelo vento.
- Shhhh! - ordenou Amber, levando o dedo indicador aos lábios. - Ouçam só!
O som se repetiu, mas não pude situar a origem dele por causa do vento que uivava entre as árvores. Olhei
ao redor na mata escura, mas nada se movia a não ser as folhagens.
- Tenho um palpite! - disse Amber. - Sigam-me!
Rastejamos atrás dela por entre árvores e arbustos, até que chegamos a uma clareira. Subitamente um raio e
um relâmpago iluminaram o céu, e uma chuva torrencial começou a desabar. As meninas colocaram seus capuzes,
e eu apertei as mãos delas com firmeza.
Amber apontou para o chão bem à nossa frente.
- Ali! - exclamou, com um tom de vitória na voz.
Olhei para o ponto que ela indicava, mas tudo o que vi foi alguns troncos finos e um monte de folhas
mortas.
- O Derek não é magro o suficiente pra se esconder debaixo desses tronquinhos aí - protestou Yi-Ping.
Amber riu.
- Então veja só - replicou, chutando para um lado as folhas e rolando os troncos para trás, revelando uma
enorme gruta subterrânea.
Derek estava de cócoras lá no fundo, e Kerry e Sam, aconchegados num cantinho, também estavam lá com
seus campistas.
- Pegamos vocês! - riu Amber, enfocando Derek com sua lanterna.
- Shhh! - mandou ele, fazendo um aceno para que descêssemos. - Entrem logo!
Kerry deu uma piscadela para mim. Eu sorri de volta, sentindo um estranho aperto no coração.
Entramos e cobrimos de novo a abertura por cima de nossas cabeças com os troncos e folhas. Yi-Ping e
Amber se sentaram bem no meio da gruta, brincando com Derek e dando risadinhas.
Me ajoelhei num canto escuro, sozinha. A chuva martelava no teto de folhas, fazendo a nossa casam ata
parecer a mais Íntima e isolada do mundo. Era o cenário perfeito para uma bela sessão de beijos e carícias, só que
eu não tinha ninguém pra beijar.
Mordi o lábio enquanto observava Kerry e Sam com o canto do olho. Eles estavam sentados bem juntinhos,
muito juntinhos, e sussurravam nos ouvidos um do outro.
Me senti a garota mais sozinha do mundo.
9

Ciúmes e incertezas

No sábado de manhã, um dia frio e chuvoso, acordei de mau humor. Não conseguia apagar da minha
cabeça a imagem de Kerry e Sam na gruta na noite anterior. Continuei vendo os dois abraçadinhos num
canto, em absoluta intimidade, sussurrando e dando risadinhas um para o outro.
As coisas não melhoraram no café da manhã. Sam e seu rebanho de campistas de dez anos de idade
comeram na mesa de Kerry, e os dois pombinhos se sentaram lado a lado. Eles estavam diretamente no meu
campo de visão, e fui forçada o tempo todo a vê-los comendo, conversando e rindo juntos. Não podia evitar
de me sentir irritada quando Sam jogava sua cabeça para trás e piscava seus olhos azuis de bebê para Kerry.
- O que os campistas de Kerry e os de Sam estão fazendo juntos? - grunhi para Lucky, enterrando a
faca nos ovos estrelados que jaziam em meu prato.
Tudo naquele café da manhã me parecia uma gororoba insípida, e eu obrigava cada bocado a descer
com um gole d'água.
Lucky pegou seu copo de suco de laranja e bebeu com prazer.
- Hã, bom, acho que estão tomando o café da manhã.
- Ah, obrigada pelo esclarecimento, Lucky - repliquei secamente.
Lucky empurrou o resto de seus ovos para dentro de um pãozinho.
- E que diabos isso importa a você? - perguntou.
- Nada. Absolutamente nada - murmurei, picando e revirando obsessivamente meus ovos e atochando
tudo de uma vez na boca.
Nikki, a campista sentada à minha direita, inclinou-se por trás de mim e falou num sussurro com Jennifer,
que se sentara à minha esquerda.
- Você ouviu falar do nosso plano de invadir a fogueira dos meninos hoje à noite?
Jennifer sacudiu a cabeça.
- Não. Que plano é esse? - perguntou.
- Conto pra você mais tarde - respondeu Nikki. - Me encontre na cabana depois da aula de vela.
Jennifer fez um sinal positivo com o polegar e se concentrou de novo em sua comida.
Agora Kerry começara a massagear os ombros de Sam. Os olhos dela estavam fechados, e parecia como se
estivesse ronronando. Estava sentada praticamente no colo dele.
Me levantei do banco de um pulo. Não podia suportar ficar assistindo àquela cena por mais nem um
segundo.
- Vejo você mais tarde - disse a Lucky, já saindo precipitadamente do refeitório na direção do telefone na
cabana central.
Tinha uma súbita e desesperadora necessidade de ligar para Joel. Provavelmente só ficava irritada ao ver
Kerry e Sam juntos porque me sentia sozinha, raciocinei. Devia ser uma espécie de pena de mim mesma.
Conversar com Joel sem dúvida iria me reconfortar e acabar com aquela bobagem.
O telefone ficava na mesa de centro da sala de descanso da cabana central. Peguei o fone, me esparramei no
velho e maltrapilho sofá cor-de-laranja e fiz uma ligação a cobrar. O aparelho soou duas vezes, e então alguém
atendeu.
- Alô? - disse uma voz feminina. Era Jackie.
Quase deixei o fone cair de surpresa.
- Jackie!?
- Anna!? - perguntou ela de volta, soando tão surpresa quanto eu.
- O que você está fazendo aí na casa do Joel? - perguntei.
- Ah... é só uma visitinha - respondeu ela num tom despreocupado.
Franzi a testa desconfiada. Jackie fazendo uma visitinha a Joel às nove da manhã em pleno sábado? O que
estava acontecendo, afinal?
- Ah, sei - repliquei, tentando reprimir o tremor em minha voz. - E então, como vão as coisas?
- Tudo em cima. Os dois andamos meio deprê - disse ela. - Tá bem paradão por aqui. As aulas de verão já
começaram, e o Joel tem dado duro pra se recuperar nas matérias em que ficou com nota vermelha. Estamos tendo
treino de vôlei todas as tardes, e tem sido bem puxado.
- Hã-hã - murmurei, me reclinando numa almofada e cruzando as pernas em cima da mesa de centro.
Tive a nítida sensação de que Jackie estava me escondendo algo. - E isso é tudo? Vocês não têm feito nada
de especial? pressionei.
- É tudo, e já é bastante. As aulas do Joel são chatas pra caramba...
Segurei o fone a uma certa distância de meu rosto e olhei para ele consternada. Jackie estava falando dos
dois como se fossem um casal! Será que ela não podia fazer nada sem o meu namorado? Coloquei o fone de volta
no ouvido.
Jackie continuava falando.
- ...hoje vamos andar de caiaque. Vai ser legal.
Senti uma forte fisgada de ciúmes no estômago enquanto ela falava. Era como se eu já tivesse sido
substituída. Provavelmente Joel nem sequer estava sentindo a minha falta, agora que tinha a companhia de Jackie.
- E como vai o acampamento? Tem se divertido? - ela perguntou.
- Tenho - falei. - Mas às vezes, bem...
Parei. Pude sentir que Jackie não estava prestando atenção.
Ouvi risos ao fundo, e então Joel pegou o aparelho.
- Como vai a minha princesa? - ele perguntou, com sua ternura habitual.
Uma onda de calor percorreu todo o meu corpo ao ouvir o som de sua voz, tão doce e tão familiar. Eu não
sabia por quê, mas me sentia no limiar das lágrimas.
- Muito bem - respondi, tentando manter a voz serena. E aí, o que tem acontecido de interessante?
- Pouca coisa. Estou numa verdadeira guerra aqui, Anna.
Três aulas de recuperação por dia, mais educação física, são quatro horas diárias de batente. Um saco. E
sem você por perto pra me animar.
Joel fez silêncio por um momento.
- Sinto muito a sua falta, Anna - completou.
- Eu também, Joel - repliquei meiga, estremecendo de alívio ao ouvir Joel soar tão carinhoso como sempre.
Então Jackie voltou ao aparelho.
- Ah, Anna, você não vai acreditar. O Joel está ensinando o Doutor J a subir numa pilha de pneus e saltar
dando uma pirueta no ar. Acho que ele quer que o cão entre no circuito dos talk shows da televisão - contou ela,
soltando umas gargalhadas esganiçadas.
- Não é nada disso - disse Joel, retomando o fone. - Estou pensando mais no cinema, Hollywood pra
começar. E o Doutor J ficou totalmente obcecado com a brincadeira.
Pude ouvir Jackie soltando mais risadinhas ao fundo. Soava como se os dois estivessem lutando pelo
aparelho de telefone.
- Vamos lá, Joel, tá ficando tarde - ouvi Jackie dizer.
- O quê? Ei!... Olhe, Anna, preciso ir. A Jackie vai me levar pra andar de caiaque. Te ligo mais tarde, tá
bom? Obrigado pela carta.
E então o telefone clicou e ficou mudo. Fiquei um momento sentada com o aparelho na mão, atônita. Me
sentia como se uma bola de basquete tivesse explodido na minha cabeça.
Coloquei o fone no gancho, imersa em meus pensamentos.
Joel e Jackie eram feitos um para o outro. Eram ambos do tipo esportivo, rústico, que gostavam de
aventuras e programas ao ar livre. Natureza e esportes. Os dois adoravam caminhar no campo, andar de mountain
bike e esquiar.
Joel e Jackie, Jackie e Joel: até os nomes combinavam direitinho. Eu podia vê-los nitidamente dali a dez
anos, casados, com filhos e morando no Colorado num típico rancho do Oeste.
Me afundei ainda mais nas almofadas do sofá e fechei os olhos, com duas lágrimas quentes rolando pelas
minhas bochechas. Me sentia como se o chão tivesse sumido sob os meus pés.
No sábado à noite me sentei sozinha na praia e fiquei olhando para a água escura do lago. Estava
deprimida, total e completamente deprimida. Apesar de a tempestade ter terminado, o cheiro doce da chuva ainda
perfumava o ar. Era uma noite fria e límpida, e a superfície da água estava absolutamente imóvel. O lago resplan-
decia sereno sob a luz prateada da lua. Aquele cenário deslumbrante só aumentava a minha melancolia.
Na cabana, antes do jantar, Sam mais uma vez se mostrara empolgadíssima com Kerry. Ao que tudo
indicava, agora os dois eram oficialmente um casal.
- Kerry e eu fomos à cachoeira hoje - contara Sam.
Ela tinha praticamente guinchado ao dizer aquilo.
- Foi tão romântico - suspirara. - Água por todos os lados. A cascata rugindo, a chuva caindo, o lago lá no
fundo...
Os olhos dela quase tinham virado do avesso de puro êxtase. Forcei meus pensamentos para longe dos dois,
mas apenas para aterrissar em Joel e Jackie, um lugar não muito melhor de se estar. Imaginei-os na televisão com
Doutor J: "Esta é a Jackie, e este é o meu cachorro, o Doutor J", diria Joel ao apertar a mão do repórter. Jackie
daria uma risadinha e falaria alguma coisa engraçadinha. "Mas que lindo casal vocês formam", comentaria o
entrevistador.
Gemi e tampei meus ouvidos, como se pudesse apagar fisicamente o som dos meus pensamentos.
- Anna, encare os fatos de frente! - falei em voz alta para mim mesma, sentindo uma pontada no estômago.
Se eu não gostava de Kerry, então por que ficava tão irritada cada vez que o via com Sam?
Porque você está se apaixonando por ele, sussurrou uma voz dentro de minha cabeça.
Mas como podia estar apaixonada por Kerry se ainda me importava tanto com Joel? Se não, por que outro
motivo eu me incomodaria com o fato de ele e Jackie estarem passando tanto tempo juntos?
Por que você ainda ama o JoeI.
Impossível. Não fazia o menor sentido.
Justamente naquele momento escutei som de passos se aproximando e levantei a vista. Era Lucky.
- Achei mesmo que ia encontrar você aqui - disse ela, sentando-se na areia ao meu lado. - O que você está
fazendo?
- Sentindo pena de mim mesma na escuridão da noite - respondi, endireitando o corpo.
Lucky pegou um punhado de areia.
- A Sam estava um bocado pentelha hoje, né? - tateou ela.
Encolhi os ombros.
- É, um pouco - concordei. - Não que eu me importe, de todo jeito.
Peguei um graveto e desenhei uma linha na areia.
- É, não que você se importe - concordou Lucky, deixando a areia escorrer por entre os dedos. - Mas só
para o caso de que algum dia você se importe, eu não acredito que haja muito com que se preocupar.
Olhei pasma para Lucky.
- Do que você está falando? Eles são "o casal" agora. Um par de pombinhos. Uma união celestial. Água por
todos os lados e tudo mais.
Lucky se pôs de pé.
- Venha - disse ela, pegando minha mão e me puxando.
- Chega de deprê. Vamos nadar.
- Mas não podemos! Já passou do horário, e eu nem tenho maiô aqui, e... - protestei.
- E daí? - interrompeu Lucky, encolhendo os ombros.
Ela tirou rapidamente suas roupas e ficou lá de pé com o maiô cor-de-laranja que havia vestido por baixo.
Então abriu o zíper de sua mochila e tirou um maiô branco.
- Pra você, madame - disse triunfante, sacudindo o maiô no ar.
- Você ficou doida! - exclamei, pegando o maiô de sua mão.
- Bah, desencana - replicou ela, acenando para que eu a seguisse.
Já na linha d'água, Lucky abraçou o próprio corpo. - E venha rápido. Está ficando frio aqui.
Olhei rapidamente ao redor. A praia estava completamente deserta.
- Lucky, você pirou de vez - falei com um sorriso enquanto me trocava.
Eu sempre podia contar com Lucky pra inventar alguma loucura justamente quando eu mais precisava de
uma.
Empilhei minhas roupas na areia e corri para perto da minha amiga. Um vento arrepiante atravessou a praia
e me fez soltar um grito.
- Iiihhh! Tá frio pacas!
Demos um pique rápido e mergulhamos. A água estava um gelo. Nadei vigorosamente até a linha das bóias
e voltei, tentando me aquecer. Finalmente parei no píer e me pendurei na beirada do deque para recuperar o
fôlego. Eu já começava a me habituar com a temperatura. Parecia mais quente. O lago era maravilhoso à noite, e
inspirava uma intensa sensação de paz e serenidade. A luz da lua criava uma tremeluzente trilha de prata ao longo
da superfície.
Lucky ainda estava perto da linha das bóias, nadando crawl furiosamente.
- Lucky! - gritei. - Volte!
Ela ergueu a cabeça e começou a nadar na minha direção
- Vamos pra onde dá pé, daquele lado - indiquei, me preparando para recomeçar a nadar.
Mas Lucky parara e se pusera a olhar para a praia com cara de espanto. Segui o olhar dela e vi Kerry de pé
perto da casa de barcos. Ele acenava freneticamente para nós duas, tentando nos dizer que saíssemos da água o
mais rápido possível.
Dei um suspiro de susto e afundei na água para me esconder.
- Ele está nos dizendo pra sairmos - sussurrou Lucky, que se aproximara nadando peito o mais
silenciosamente possível.
Então uma mulher apareceu no umbral da casa de barcos.
Kerry rapidamente se pôs na frente dela, bloqueando seu campo de visão e impedindo-a de nos ver.
- Lucky, é a Susanna! - sussurrei. - Afunde!
Nós duas submergimos na água escura. Segurei o fôlego o máximo que pude, rezando para que Kerry
levasse Susanna embora. Meus pulmões estavam a ponto de explodir quando voltei à tona para respirar, arfando
como uma desesperada. Lucky emergiu comigo. Kerry e Susanna tinham desaparecido.
- Vamos cair fora daqui - Lucky me apressou. - Eles devem ter voltado pra dentro da casa de barcos, mas
podem sair de novo a qualquer momento.
Nadamos silenciosamente até a praia, apanhamos nossas roupas e corremos para dentro do mato.
10

Intimidade violada

Domingo de manhã decidi visitar Kerry antes que Sam o raptasse pelo resto do dia. Os monitores
sênior tinham o dia livre, e meu plano era passar a tarde inteira sozinha, escrevendo. Meu diário é uma
válvula de escape constante em minha vida. Sempre que me sinto angustiada ou triste, me sento e escrevo
algo sobre esses sentimentos. Nove em cada dez vezes, quando termino de escrever já me esqueci do que
estava me incomodando.
Vestindo um short de moletom e uma camiseta folgada, me dirigi para a cabana dos garotos. Queria
agradecer a Kerry por ele ter nos salvado a pele no lago na noite anterior.
O dia raiou luminoso e límpido. Os passarinhos trinavam nas árvores e os grilos cricrilavam no mato.
Eu assobiava enquanto contornava o lago, sentindo-me aliviada de toda a ansiedade do dia anterior. Aquela
nadada ao luar fora libertadora. Já não importava tanto se Joel tinha algo com Jackie ou se Kerry tinha algo
com Sam. Me sentia simplesmente feliz por ser eu mesma.
Segui a trilha através do bosque até o outro lado do lago e desci a colina na direção da cabana dos
meninos. Mochila ao ombro, bati na porta.
- Entre! - uma grave voz masculina gritou lá de dentro. Abri uma fresta e enfiei a cabeça para dentro.
Kerry estava lendo esparramado em sua cama, vestido apenas com uma cueca roxa. Coloquei a mão na
boca.
- Aaahh! Desculpe! - exclamei, sem jeito. Mas Kerry acenou para eu entrar.
- Não se preocupe - disse ele, sentando-se na cama na maior tranqüilidade.
Esticou o braço para pegar um par de jeans que estavam jogados por cima de uma arca de madeira e os
vestiu.
- Acho que vocês me devem uma por ontem à noite comentou, enquanto pegava uma camiseta lilás e à
vestia.
Eu apenas olhava em silêncio, levemente hipnotizada por seu peito nu e musculoso. Mesmo tendo visto
Kerry todos os dias de maiô na praia, aquilo de alguma forma parecia um pouco mais... íntimo.
Mordi meu lábio e olhei para o lado.
- Ah, claro... - repliquei por fim. - Na verdade foi por isso mesmo que vim até aqui. Queria agradecer a
você por...
- De nada! - Kerry interrompeu, pegando um par de meias e calçando-as. - Da próxima vez que você for
quebrar as regras do acampamento, me avise antes, pra que eu possa montar guarda.
Balancei a cabeça sorrindo e me sentei na cama em frente à dele, largando minha mochila no chão.
- Bom, a questão agora é saber se a Susanna nos viu ou não - falei. - Porque se viu, tenho um
pressentimento de que Lucky e eu vamos lavar pratos pelo resto do verão.
Mas Kerry sacudiu a cabeça.
- Não, ela não viu absolutamente nada - garantiu, dando um sorriso malicioso. - Eu a despistei pra dentro da
casa de barcos com a desculpa de que algumas canoas estavam em péssimas condições e precisavam de reparos.
Vamos ter de consertar várias delas.
- Muito esperto - elogiei, empurrando para o lado uma pilha de roupas que estavam em cima da cama e
reconhecendo as extravagantes camisetas coloridas de Jojo.
- Ah, desculpe pela zona - disse Kerry. - Faz vários dias que a gente não dá uma geral na cabana.
- É, tô vendo que vocês a decoraram com a roupa suja.
- Eu ia mesmo fazer uma faxinazinha hoje ... - desculpou-se Kerry, levantando-se de um salto.
Ele apanhou a pilha de roupas e a jogou num grande cesto de roupa suja.
- Se eu soubesse que você viria teria limpado a cabana inteira com uma escova de dentes - brincou, com um
sorriso matreiro que revelou uma covinha em sua bochecha esquerda que eu nunca havia notado antes.
Fazia calor na cabana, e me abanei com a mão.
- Cadê o resto dos garotos? - perguntei.
Me ajoelhei na cama e abri a janela. Uma brisa quente invadiu o quarto.
- Estão jogando beisebol com alguns monitores júnior e seus campistas. Vamos nos reunir mais tarde pra
dar um passeio na cidade, com autorização do Sargento Susanna. Quer vir com a gente? - perguntou Kerry,
enquanto percorria toda a cabana e ia recolhendo camisetas e shorts de todos os beliches.
- Não, obrigada. Vou ficar por aí tentando escrever um pouco - respondi.
Estiquei meu cabelo para trás e o prendi com um nó atrás da cabeça.
Kerry largou as roupas no cesto.
- Ah, vai escrever outro conto?
- Outro conto? - perguntei, surpresa, me sentando de novo no beliche.
Meu cabelo se soltou do nó, e o joguei de volta para trás dos ombros.
Kerry pareceu subitamente atrapalhado.
- Bom, você deve se lembrar que quando eu encontrei o seu diário na praia...
Fiquei de pé.
- Me lembro muito bem. E quanto dele você viu? - perguntei com voz dura.
- Ah... Hã... foi só um pouquinho - disse Kerry, sentando em cima da arca e passando os dedos por entre os
cabelos.
- Você leu o meu diário? - indaguei, lançando-lhe um olhar furioso.
Pude sentir meu sangue começar a ferver.
- Veja, Anna, eu não sabia que era o seu diário - explicou Kerry, virando as palmas das mãos para cima. -
Simplesmente abri o caderno e dei de cara com uma história. E a achei tão interessante que não consegui parar de
ler. Eu...
Mas não o deixei terminar. Não me importava a explicação dele. Não podia existir nenhuma justificativa
aceitável para aquele comportamento.
- Não consigo acreditar que você foi capaz de fazer uma coisa dessas! - gritei com raiva.
E dizendo isso agarrei minha mochila e saí tempestuosamente da cabana, batendo a porta com força.

Contornei o lago, furiosa, com passadas grandes e pesadas.


Se minha vida fosse um desenho animado, haveria fumaça saindo dos meus ouvidos. Já era ruim de sobra
que Kerry tivesse se imiscuído nos meus sonhos naquela primeira vez no ônibus, se bem que aquilo não fora
exatamente culpa dele. Mas ler o meu diário! Isso já era intencional, e totalmente imperdoável.
O meu diário era o meu paraíso privado, o único lugar no mundo em que eu nunca me censurava. Era lá
onde eu deixava os meus pensamentos surgirem livremente e tomarem qualquer forma, onde eu liberava as
minhas tensões e expressava as minhas emoções mais íntimas e profundas. Me senti completamente violada.
Chutei um montinho de terra no caminho. Meu diário continha a verdadeira Anna. Muitas das minhas
histórias eram altamente pessoais, e várias delas eram péssimas. Eu freqüentemente me aventurava em textos
experimentais, o que nem sempre dava certo. E não era só isso: no meu diário eu falava amplamente dos meus
sentimentos mais íntimos por Joel. E por Peter.
E por Kerry!
Parei petrificada sem dar mais um passo, horrorizada ante aquela constatação. Repassei mentalmente as
últimas páginas que acrescentara ao diário na semana anterior. Primeiro dissera que Kerry era um panaca, depois
que éramos amigos, e finalmente que achava que estava gostando dele...
Me sentei no chão, praticamente no meio do mato, e enterrei a cabeça nas mãos. Me sentia como se
acabasse de ser esfolada viva.
Me levantei e decidi ir até a cabana de teatro, torcendo desesperadamente para encontrar Lucky por lá. Ela
era a única pessoa com quem eu poderia falar sobre aquilo. A única que me entenderia.
Lucky estava ocupada ajudando a equipe técnica a fazer o cenário da peça do acampamento. Era uma peça
sobre piratas dos dias de hoje, desses que assaltam iates de milionários. Fora um dos monitores júnior quem
escrevera o texto, e Lucky dissera que era engraçadíssimo. Assim que entrei na cabana vi um monte de moleques
no palco fingindo remar um barco no meio de enormes ondas de papelão. Amir estava de pé nas coxias analisando
o texto com Nádia Barnes, a diretora-assistente.
- Alto! Perigo a estibordo! - gritou um garoto que obviamente fazia o papel de capitão.
Vi outro menino engatinhar pelo chão, e uma barbatana surgiu por entre as ondas de cartão.
Encontrei Lucky nos bastidores, ajoelhada no chão com uma enorme prancha de compensado à sua frente.
Dei uns passos para trás para olhar. Havia uma casa pintada na prancha de madeira, em estilo moderno, com
grossas linhas pretas e ângulos agudos. Lucky vestia um macacão de trabalho, e parecia haver mais tinta nela do
que no compensado.
- Lucky, preciso falar com você. Aconteceu uma coisa simplesmente inacreditável! - falei, sacudindo as
mãos no ar.
- O que pode ser tão incrível assim pra eu não acreditar? - ela perguntou, afundando seu pincel numa lata de
tinta e esboçando algumas nuvens brancas e fofas no céu.
- O Kerry leu o meu diário!
Me sentei numa lata de tinta ao lado dela. Lucky me olhou surpresa.
- Ele pegou o seu diário e leu, assim sem mais?
- Bom, ele não pegou exatamente - respondi. - Eu esqueci o diário na praia.
- Talvez inconscientemente você quisesse que ele o lesse ela sugeriu.
- E talvez eu não devesse ter me dado ao trabalho de vir até aqui falar com você - rebati, me levantando.
- Ah, sem essa, Anna, não precisa exagerar. Tudo bem, desculpe. Nada de psicologia de botequim,
prometo.
Ela analisou brevemente a prancha e então acrescentou alguns tufos de fumaça na chaminé.
- Seja sincera - continuou -, não pode ser que você realmente acredite que ele planejou ler o seu diário.
Você praticamente o esfregou na cara dele. Desse jeito fica muito difícil resistir.
- Pois eu acho injustificável e imperdoável - retorqui.
- Na verdade pra mim parece até lisonjeiro - disse Lucky, empertigando a cabeça.
Ela mergulhou o pincel na tinta de novo e acrescentou uma cerca de estacas branca à pintura.
- Lisonjeiro? - escarneci. - É insultante. Esse cara não tem um pingo de respeito por mim.
Lucky sorriu e pincel ou de leve algumas árvores em estilo impressionista no gramado em frente à casa.
- Vamos lá, Anna, pense bem e seja franca. Se você tropeçasse com o diário do Kerry e ele não estivesse
por perto, o que você faria?
- Nem olharia, nem encostaria nele - garanti em tom solene.
Lucky explodiu numa risada.
- Você leria cada página.
Me levantei brava e frustrada.
- Obrigada por não me ajudar em nada, Lucky. A gente se vê mais tarde - falei, me dirigindo para a porta.
- Tudo bem, a gente se vê - replicou Lucky, acenando para mim com o pincel.
Nem a Lucky me entende, pensei enquanto saía da cabana do teatro. Ninguém me entende.

- Ei, justo a mulher furiosa que eu estava procurando disse uma voz dolorosamente familiar quando trombei
com um corpo musculoso na trilha no meio do bosque.
Kerry.
Eu não conseguia um minuto de sossego!
Ele tirou um buquê de flores silvestres de trás de suas costas e o estendeu para mim, com uma expressão de
arrependimento no rosto.
- Colhi especialmente pra você - disse, me dando um sorriso sedutor.
- Obrigada - repliquei educadamente, pegando as flores. Era um buquê encantador, com florzinhas roxas,
vermelhas ê: azuis. Mas não importava. Todas as flores do mundo não podiam apagar o fato de que Kerry traíra a
minha confiança.
- Anna, estou me sentindo péssimo por ter lido o seu diário. Eu não devia ter feito isso - ele se desculpou,
com um tom de voz dramático e sentido. - Por favor, me perdoe.
- Você acha que pode comprar o meu perdão com flores? - perguntei.
- Hum, eu tinha essa esperança - respondeu, franzindo a testa. - Que tal alguns elogios?
Cruzei os braços.
- Não pode fazer nenhum mal tentar - repliquei.
Kerry olhou direto nos meus olhos e falou sem hesitação.
- Anna, você é a garota mais interessante que conheci em toda a minha vida. Adoro o jeito como os seus
belos olhos azuis soltam faíscas quando você está brava, e como as suas bochechas coram quando você está
encabulada.
Um sorriso começou a forçar passagem nos meus lábios.
Surpreendentemente a técnica da bajulação estava funcionando. Tentei manter um olhar sério e duro.
- E acho também que você é uma escritora fantástica continuou ele. - Tenho certeza de que vai ser famosa
algum dia.
Eu estava a ponto de perdoá-lo quando, talvez pela menção aos meus talentos literários, uma imagem do
meu diário nas mãos dele atravessou a minha mente. Vi Kerry na praia virando uma página após a outra, lendo um
pensamento íntimo após o outro... Um ferro em brasa atravessou meu coração. Me senti completamente exposta, e
meu sangue começou a ferver de novo.
- Olhe aqui, simplesmente me deixe em paz, entendido? - falei com raiva.
Girei nos calcanhares e saí andando como um furacão na direção da minha cabana.
Mas Kerry me perseguiu e bloqueou a passagem.
- Por favor, me deixe explicar - ele implorou.
- E o que há pra explicar? - perguntei, impaciente, batendo o pé no chão. - Você invadiu completamente a
minha privacidade. Isso não tem explicação nem justificativa possível.
- Anna, não li o seu diário inteiro - disse Kerry. - Li só uma história, nada mais. O caderno se escancarou
quando eu o peguei. Olhei para a página aberta na minha frente e li algumas linhas. A história era tão boa que não
consegui largar. Mas foi só isso. Juro.
Me inclinei contra o tronco de uma árvore, olhando para ele desconfiada.
- Você leu as coisas que escrevi sobre você? - perguntei.
- Você escreveu algo sobre mim? - indagou ele, parecendo sinceramente chocado.
Confirmei com um gesto de cabeça, tentando não sorrir.
Arranquei um pedaço da casca da árvore, o quebrei em dois e joguei tudo no chão.
- O que você escreveu sobre mim? - Kerry perguntou.
- Isso eu nunca vou contar - provoquei.
Dei alguns passos a esmo pela clareira, me sentido aliviada e segura novamente. Kerry parecia estar
dizendo a verdade, e sua surpresa ante o fato de eu ter escrito algo sobre ele parecia sincera.
Ele gemeu e colocou as mãos na cabeça.
- Tudo bem, acho justo - aceitou.
Então me olhou com um olhar absolutamente franco e convincente.
- Anna, eu sinto muito, de verdade. Sei bem o que é ter a privacidade invadida.
Ele andou alguns passos e deu um chute num pedregulho. - Quando eu era pequeno - continuou -, era
bastante tímido. Queria ser artista, e desenhava o tempo todo. Um dia os garotos da escola roubaram um caderno
meu cheio de desenhos e o passaram por toda a classe. Fiquei tão traumatizado que implorei aos meus pais para
mudarmos de cidade.
Ele olhou para o chão, obviamente embaraçado.
- Foi por isso que li só essa única história no seu diário e nada mais. Assim que percebi o que estava lendo,
parei e devolvi o caderno a você.
Olhei para ele, surpresa.
- Você era tímido?
Kerry fez que sim com um gesto de cabeça, parecendo envergonhado.
- Estou perdoado?
- Acho que sim... - respondi devagar.
Ele abriu um grande sorriso.
- Posso acompanhar você até a sua cabana? - perguntou.
Cedi de uma vez por todas e deixei que ele me acompanhasse. Enquanto andávamos pela estreita trilha de
terra, Kerry passou um braço por cima dos meus ombros. Eu mal podia me concentrar nos meus pensamentos com
seu corpo tão perto do meu.
- E então ... que conto você leu? - perguntei.
Vi um galho quebrado dependurado de uma árvore e o arranquei para usá-lo como bastão. Kerry se
agachou para passar por baixo de outro galho.
- Aquele sobre a velhinha numa cadeira de rodas na varanda - ele respondeu. - É um texto impressionante.
As maçãs de meu rosto coraram de prazer.
- Você gostou mesmo desse? É um dos meus favoritos.
Quando chegamos à minha cabana o ar que havia entre nós estava praticamente soltando faíscas. Na
entrada me virei para encarar Kerry, que se apoiou com uma mão em cada batente da porta.
- Gostei especialmente do final feliz - disse ele, com doçura.
Kerry me fitou no fundo dos olhos e se aproximou. Estava tão perto que eu podia sentir seu cheiro
deliciosamente masculino, uma mistura de roupa limpa, suor e sabonete. Podia sentir sua respiração quente em
meu rosto, o calor que emanava de seu corpo no meu. Estremeci, e meu corpo inteiro se arrepiou com um forte
desejo de beijá-lo. Levantei meu rosto na direção do dele, e ele se inclinou na minha direção.
Mas subitamente Kerry se afastou, e o encanto se desfez. Recuei alguns centímetros, respirando forte, e me
dei conta de que ficara com a respiração presa por um bom tempo.
Então ele se aproximou de novo e me beijou na bochecha.
- Boa noite, Anna - disse com suavidade, voltando-se logo em seguida e indo embora.
Fiquei olhando enquanto ele se afastava, com o coração batendo como um bumbo dentro do peito.
11

Um momento inesquecível

- Pra que você está se arrumando tanto assim? - perguntou Lucky na terça-feira à noite.
Era primeiro de julho, e todo mundo no acampamento demonstrava a maior expectativa pelas
comemorações do Quatro de Julho no fim de semana que se aproximava.
Lucky e eu estávamos nos vestindo para o churrasco que Jojo e Amir haviam organizado para todos os
campistas e monitores. O churrasco era uma tradição, um dos grandes eventos do Seneca Falls, com toneladas de
comida, música, baile e tudo o mais. No ano anterior terminara com todo mundo pulando no lago e Susanna
completamente bêbada.
- O que tem demais neste pano velho? - perguntei, fazendo um gesto de desprezo para a minha roupa.
Eu tinha colocado um vestido de algodão amarelo-claro e sandálias de couro.
- É, esse pano velho - disse Lucky rindo -, que justo por acaso ressalta o seu bronzeado, o azul dos seus
olhos e o dourado do seu cabelo.
Ela inclinou a cabeça para a frente e sacudiu os cabelos encaracolados.
- Aposto que o Kerry vai adorar - provocou, sacudindo a cabeça para cima e para os lados e deixando seus
cachinhos caírem como uma cascata por cima dos ombros.
Coloquei as mãos na cintura e a encarei.
- Pra sua informação, minha filha, não há absolutamente nada acontecendo entre mim e Kerry.
Lucky ergueu uma sobrancelha.
- Por enquanto.
- Vamos, vai ficar tarde - falei, encerrando o assunto, pegando Lucky pelo braço e arrastando-a para fora da
cabana.
Eu não queria pensar sobre Kerry... sobre aquele mágico quase-beijo. Não podia contar a Lucky que de
repente achava Kerry irresistível. Que o achava divertido e meigo e sexy... Na verdade, mal conseguia admitir isso
para mim mesma.
Como eu podia ser tão desleal com Joel? Ele era o meu melhor amigo, a minha cara-metade, meu
companheiro de todos os dias. E quanto a Sam? Kerry não estava com ela afinal?
Era uma noite quente e perfumada, perfeita para um churrasco. Milhares de estrelas cintilavam num céu de
um azul profundo e aveludado e uma leve brisa sacudia os galhos das árvores, fazendo algumas folhas soltas
choverem sobre nós.
Meu estômago se contraía cada vez mais enquanto Lucky e eu caminhávamos através do bosque. Kerry e
eu mal tínhamos conversado durante nossa aula de natação no lago, na manhã daquele dia. A tensão no ar fora
palpável. Havia claramente algo a ponto de acontecer entre nós dois, a menos que eu impedisse. Mordi o lábio.
Será que eu queria impedir?
Precisava descobrir logo o que realmente queria. E para isso tinha de falar com Joel. Ligaria para ele na
manhã seguinte, decidi. E evitaria Kerry a noite inteira. Além do mais, Sam provavelmente passaria a noite toda
seguindo-o para todos os lados como um cachorrinho.
Quando chegamos ao churrasco a área já estava apinhada de campistas correndo por todos os cantos e
conversando em grupos. Tive a impressão de que Lucky e eu éramos as últimas a chegar. Um grupo de meninos
de dez anos de idade montara uma rede de vôlei, e outro grupo jogava futebol.
Dei uma olhada ao redor, procurando casualmente por Kerry.
Mas não o vi em lugar nenhum.
- Venha, vamos ajudar os garotos com o som - sugeriu Lucky.
Jojo e Amir haviam montado uma aparelhagem de som na cabana central e estavam passando os longos
fios das caixas acústicas pela janela para instalá-las do lado de fora, ao ar livre.
Amir, com uma camiseta vermelho-néon com um "PARE" estampado no peito, conectava os fios às caixas,
enquanto Jojo, com uma camiseta verde-limão que dizia "SIGA", gritava da janela da cabana. Dois monitores
júnior faziam uma triagem numa pilha de CDs.
A cabeça de Jojo saiu pela janela.
- Amir, dá pra você me jogar a ponta solta do fio? - gritou ele.
Amir enrolou alguns metros da ponta do cabo e lançou o rolinho pelos ares.
Jojo agarrou o rolo, fez um sinal de positivo com o polegar e desapareceu dentro da cabana.
- Ei, meninos, vocês precisam de ajuda? - perguntou Lucky.
- Não, obrigado, Lucky, já estamos quase terminando respondeu Amir.
Jojo saltou pela janela da cabana e veio trotando pelo gramado.
- Ok, vamos lá gente! - disse ele, batendo palmas. - Tudo pronto pro bacanal.
Lucky riu.
- Às vezes ele é tão bobo que chega a ser engraçado - comentou ela, balançando a cabeça e olhando para
Jojo com um sorriso de deboche.
Jojo estalou os dedos para os monitores júnior que remexiam nos CDs.
- Música! - ordenou.
Howard, um dos monitores, jogou um CD para Jojo, que imediatamente o enfiou no aparelho. Um animado
rap atravessou os ares, e uma súbita excitação contagiou os campistas. O gramado se transformou numa grande
pista de dança.
- Anna, vem dançar com a gente! - chamou Nikki, puxando minha mão.
Olívia e Jennifer puxaram Lucky também, e logo todos os nossos campistas estavam dançando. Jojo se
enfiou na nossa roda, me segurou pelos braços e começou a me rodopiar amalucadamente, até que ele caiu no
chão numa tentativa fracassada de fazer uma acrobacia de rapista. A criançada formou um círculo ao redor dele,
rindo, gritando e vaiando.
A música seguinte foi uma lenta, e a maioria dos campistas abandonou a "pista". Derek dançou no estilo
swing com Gina Alexander, e os mais corajosos da turma de treze anos de idade começaram a balançar com a
canção. Os colegas deles ficaram de pé num canto, apontando e fazendo piadas. De repente o rechonchudo Albert
Cohen levou Jennifer para o meio da pista, enlaçando-a pela cintura.
- Não é uma gracinha? - comentei com Lucky.
- Total - replicou uma voz grave e macia bem atrás de mim.
Kerry.
Me voltei, com o coração subitamente batendo como um tímpano dentro do meu peito.
Kerry me fitou com um brilho suave em seus olhos castanhos.
- Oi, Anna. Como vão as coisas? - perguntou ele.
Meu pulso acelerou.
- Tudo bem - respondi, tentando manter a voz neutra. Justamente naquele instante Sam apareceu, ofegante
como se acabasse de dar uma corrida. Ela levantou seus olhos azuis de bebê para Kerry.
- Kerry, benzinho, será que você poderia me dar uma mão lá na grelha? O Sacha espirrou molho de
churrasco na roupa e foi até a cabana pra se trocar.
- Claro - concordou Kerry.
Ele tocou em meu braço antes de partir.
- Vejo você mais tarde, Anna.
- Isso foi tão ridículo! - resmunguei irritada para Lucky. - Como se a Sam não pudesse cuidar da grelha
sozinha por cinco minutos.
Passei a maior parte da noite dançando com Jojo e conversando com Lucky. Evitar Kerry acabou não sendo
muito difícil, já que Sam ficou grudada nele o tempo todo.
A festa terminou por volta das onze horas. Os campistas e os monitores júnior já tinham voltado para as
suas cabanas havia algum tempo, e somente oito monitores sênior ficaram até o fim.
Jojo percorreu o gramado com uma vara comprida e pontiaguda, espetando o lixo e jogando-o num grande
saco de plástico preto. Amir se ocupou de recolher a aparelhagem de som, e Lucky e eu nos sentamos na grama e
ficamos recolocando os CDs em suas caixinhas.
Kerry caminhou até Jojo, com Sam a um passo atrás dele.
- Escute, Jojo, já que você e o Amir montaram toda a festa - começou Kerry -, porque vocês dois não
deixam a gente cuidar da arrumação?
Jojo soltou o saco de lixo no chão imediatamente.
- Foi idéia sua - concordou ele com um sorriso malicioso, dando um tapinha no ombro de Kerry e
apontando para o lixo que restava no gramado. - É todo seu, cara.
Kerry pegou a vara da mão dele e me olhou.
- Anna e eu vamos ser o comitê de limpeza, se você concordar, claro - anunciou, estendendo a outra mão
para mim.
- Fechado - repliquei, ansiosa por colaborar.
Não me atrevi a pegar naquela mão esticada. Tive medo de me derreter toda com o toque quente da pele
dele.
Os olhos de Sam se nublaram de mágoa.
- Bom, acho que não há mais nenhum motivo pra eu continuar por aqui - disse ela, brava, girando
imediatamente nos calcanhares e indo embora a passos rápidos.
Lucky se levantou de um salto e a seguiu, piscando para mim ao partir.
- A gente se vê mais tarde - bradou ela, já a alguns metros de distância. - Não fiquem ao relento até muito
tarde. É perigoso - provocou.
Kerry e eu não falamos muito enquanto fazíamos a limpeza.
Ele recolheu todo o lixo espalhado pela grama e eu limpei a mesa, colocando os restos de comida em potes
de plástico. Vinte minutos mais tarde tudo estava em perfeita ordem.
Fiquei de pé no meio da "pista" de dança, revistando a área com os olhos. Cinco estufados sacos de lixo
alinhavam-se perto da mesa, e havia uma grande pilha de potes de plástico em cima dela. Jojo colocara o som num
canto da varanda da cabana central, e os CDs estavam todos arrumadinhos em seus respectivos estojos. Todas as
cadeiras haviam sido dobradas e repousavam apoiadas nas árvores.
Afastei os cabelos da testa e suspirei, subitamente me dando conta do quanto estava cansada.
- Mas que idéia de jerico a sua, hein, Kerry, se oferecer pra cuidar da limpeza e ainda por cima me botar na
roda - falei fingindo indignação, com as mãos na cintura.
Kerry sorriu, jogando um galho no fogo que ainda crepitava na churrasqueira e caminhando na minha
direção.
- Na verdade eu só queria ficar a sós com você - confessou ele de pé bem na minha frente e olhando fundo
nos meus olhos.
Engoli em seco, nervosa.
- Quer dançar, Anna? - perguntou.
Eu hesitei, mas Kerry já tinha enlaçado minha cintura com seus braços. Só uma dancinha, disse a mim
mesma. Não vai fazer nenhum mal.
Kerry me apertou contra seu corpo e rodamos silenciosamente pela grama. Senti como se estivéssemos
num paraíso particular. Um doce aroma de madressilva perfumava a noite, e uma cascata de raios prateados caía
da lua, iluminando a mata escura.
- Fiquei com ciúmes vendo você e Jojo dançando a noite inteira um com o outro - disse Kerry, deslocando
sua mão pelas minhas costas e me virando.
- Senti a mesma coisa vendo você com Sam - admiti timidamente.
Kerry abaixou um pouco as pálpebras e corou.
- Acho que ela está meio a fim de mim.
- Pode dizer inteira - corrigi, com um sorriso malicioso nos lábios.
Kerry soltou minha mão, passou seus dois braços ao redor da minha cintura e me puxou com força para
mais perto de seu corpo. Abracei os ombros dele, pousando levemente minhas mãos sobre os fortes músculos de
suas costas, fechei os olhos e reclinei minha cabeça em seu peito. Os braços de Kerry me apertaram ainda mais, e
desejei que aquele momento durasse para sempre. Na verdade eu nunca dançara daquele jeito com ninguém antes.
Joel não gostava de danças lentas. E dançar com Kerry era delicioso, íntimo, e incrivelmente romântico.
- Anna, você já tem companhia Pro baile do Quatro de Julho?
Inclinei a cabeça para trás e sorri.
- Ainda não - respondi.
- Gostaria de ir comigo? - ele perguntou.
Seu tom era quase formal, mas eu corei de prazer.
- Como amigos, se você preferir - acrescentou.
Cheguei a hesitar, mas não pude resistir ao contato de seu corpo, ao seu cheiro doce e masculino, à magia
da noite.
- Eu adoraria - respondi por fim.
Kerry sorriu. E então, de repente, seu sorriso se esfumou. Agora ele me fitava com olhos ardendo em brasa,
e seus lábios, sem que eu soubesse como, já estavam a poucos centímetros dos meus.
Eu o fitei também, minha respiração presa na garganta. O tempo pareceu ficar em suspenso. Lentamente,
gentilmente, ele pousou seus lábios nos meus, ainda me abraçando apertado.
No começo foi um beijo doce, quente e terno. Então ele me beijou de novo, e de novo, crescendo em
intensidade a cada vez que seus lábios procuravam, famintos, os meus.
Fechei os olhos, devolvendo cada beijo dele com a mesma intensidade. Um raio elétrico atravessou todo o
meu corpo, fazendo-o formigar e tremer de desejo. As mãos de Kerry passearam pelas minhas costas e foram
parar nos cabelos da minha nuca. Um delicioso arrepio percorreu a minha espinha de alto a baixo, e me agarrei à
camiseta de Kerry. O mundo inteiro pareceu desaparecer. As únicas coisas que existiam para mim naquele
momento eram os braços de Kerry envolvendo meu corpo e seus lábios quentes nos meus.
Ele se afastou um pouco, e nos fitamos olhos nos olhos. Me senti subitamente nervosa. Mas Kerry riu e
quebrou a tensão.
- Melhor eu levar você de volta pra sua cabana - ele sussurrou -, ou nunca mais vou conseguir desgrudar do
seu corpo.
Me limitei a concordar com um gesto de cabeça, com medo de que qualquer palavra que eu falasse pudesse
arruinar a noite mais perfeita da minha vida. Fiquei quieta enquanto caminhávamos de mãos dadas por entre as
árvores. Eu nunca tinha experimentado nenhum beijo como aqueles antes. Não com Joel... nem com Peter.
Meu estômago deu um nó. Aquilo que estava acontecendo entre mim e Kerry era pra valer, podia sentir
isso na minha pele, em todo o meu corpo.
Mas e Joel?
12

Nuvens negras no horizonte


Joel e eu estamos sozinhos, dançando uma música lenta na praia. Seus braços me apertam com força
contra seu corpo, e ele começa a sussurrar algo em meu ouvido. Mas não consigo ouvir o que ele diz. Coloco o
ouvido mais perto de sua boca, tentando entender-lhe as palavras. Mas a música subitamente se transforma num
rap barulhento, e todo o acampamento se aglomera na areia para dançar. A batida da música vai crescendo e se
tomando cada vez mais alta e obsessiva, acompanhando o som das ondas que quebram na praia.
Uma onda gigantesca e violenta como um maremoto se levanta de repente horizonte, vem correndo a uma
velocidade espantosa, varre a praia e arrasta Joel para o mar.
- Joel! - eu grito.
Mas nenhum som sai da minha garganta.
- Joel! Joel! Joel! - continuo a gritar, sem som.
A multidão forma um círculo fechado ao meu redor, cada vez mais fechado, e o rap continua a soar cada
vez mais alto.
Tum, tum, tum...
Saltei abruptamente da cama, meu coração rebatendo contra o tórax. Olhei ao redor como uma louca,
tentando entender onde estava. Fechei os olhos e dei um suspiro de alívio. Estava na minha cabana. Fora só um
sonho. Joel estava em Washington, são e salvo.
Olhei para o meu despertador na penteadeira. Os dígitos vermelhos brilhavam na escuridão: quarta-feira,
cinco da manhã.
Então ouvi um som suave, uma leve pancada que parecia vir da janela, e entrei em pânico. Minha mão
tremia enquanto eu abria a cortina e olhava para fora. Era Kerry, acenando para que eu saísse.
Suspirei fundo e fiz um sinal de silêncio com o dedo indicador.
- Espere um pouco - sussurrei.
Esfreguei meus olhos com as costas das mãos, ainda confusa por causa do sonho. Parecera tão real... Por
que uma onda gigantesca arrastara Joel para o mar? Será que eu queria empurrá-lo para longe de mim? E por que
Kerry estava lá fora me chamando antes de o sol nascer?
Me levantei da cama e peguei minhas calças jeans e uma camiseta. Me vesti o mais silenciosamente
possível, agarrei minhas sandálias pelas alças e saí andando descalça a passos de gato pelo chão de madeira da
cabana.
Uma tábua do chão rangeu e Sam se agitou na cama, murmurando algo em seu sono. Parei congelada no
meio de um passo, prendendo a respiração. Mas então ela se virou para o outro lado e o ritmo de sua respiração
voltou ao normal. Abri a porta com o máximo cuidado e me esgueirei para fora.
- Bom dia - sussurrou Kerry, sorrindo.
- Você ficou louco? - perguntei, jogando minhas sandálias no chão e enfiando meus pés nelas.
Ia ser uma manhã quente, e o sol já começara a nascer. Os olhos de Kerry estavam brilhando.
- Venha, quero mostrar uma coisa a você - ele disse.
- E isso não podia ter esperado até mais tarde? - gemi.
Estiquei meus braços por trás da cabeça e me espreguicei.
Kerry riu.
- Não, não podia. Você vai ficar feliz de ter vindo. Prometo. Ele pegou na minha mão e me guiou para o
bosque.
A mata estava completamente quieta, exceto pelo farfalhar das folhas com a brisa cálida. Kerry e eu
também caminhávamos em silêncio, prestando atenção na vida da floresta acordando para um novo dia. Aos
poucos os passarinhos começaram a piar nas árvores e os grilos a cantar. O mato ainda estava escuro, e sentíamos
sob os nossos pés a umidade do chão molhado pelo orvalho fresco da manhã.
Caminhamos até o lago, descemos até a praia e nos sentamos na areia. O que estou fazendo aqui?, eu
perguntava a mim mesma uma e outra vez. E Joel? Será que eu poderia estar realmente sentindo algo de
verdadeiro por Kerry quando ainda amava Joel?
Kerry me puxou para perto de seu corpo. Me rendi à magia do momento, colocando meus pensamentos
sobre Joel de lado ao mesmo tempo que me reclinava contra o peito de Kerry.
Ele passou seu braço ao redor da minha cintura.
- Chegamos na hora certa - falou.
O lago já estava de um azul plácido, embora o dia ainda mal tivesse começado a raiar no horizonte. Faixas
de rosa e amarelo-dourado rasgavam o céu turquesa. Olhei maravilhada para o grande disco vermelho do sol, que
criava uma trilha de fogo pela superfície do lago. A água cintilava pura e límpida como uma lágrima de cristal.
- Era isto que eu queria mostrar a você - sussurrou Kerry no meu ouvido.
Meu corpo inteiro se arrepiou ao sentir o calor de seu hálito na minha orelha. Suspirei fundo.
- Ah, Kerry, é lindo demais... - falei baixinho, quase chorando de emoção.
- Mas não tanto quanto você - ele disse.
Me virei para olhá-lo, sorrindo. Ele se inclinou para mais perto de meu rosto e me beijou com seus lábios
quentes e doces. Em seguida me puxou contra seu corpo e me abraçou forte, justamente quando os primeiros raios
do sol batiam na praia.

Quando a hora do almoço chegou, eu me sentia física e emocionalmente acabada. Dera uma aula de artes
de manhã cedo, e havíamos tingido quase cem camisetas para a grande gincana do acampamento. Eu mal
conseguira manter meus olhos abertos durante toda a manhã. Não só isso: não conseguia acreditar que tinha
beijado Kerry - duas vezes. Primeiro à noite, logo após o churrasco, e depois de novo ao amanhecer.
- Ficou acordada até muito tarde ontem à noite? - perguntou Lucky, dobrando um pedaço de pizza em dois
e dando uma mordida.
Eu descansava apoiando o cotovelo na mesa e o queixo na palma da mão.
- Não, mas acordei muito cedo. Kerry foi me chamar às cinco da manhã pra assistir ao nascer do sol no
lago.
Lucky gemeu.
- Argh! Isso é tão romântico que dá até enjôo.
Ela pegou um guardanapo na mesa e limpou suas mãos. Eu sorri.
- E é romântico, não é?
Lucky me encarou com um sorriso cínico.
- Você vai ficar linda de cabelo roxo, Anna.
A aposta! Eu tinha me esquecido completamente.
- Um simples nascer do sol não pode ser classificado como envolvimento amoroso - refutei rapidamente. -
Além do mais, eu tenho namorado.
Lucky encolheu os ombros e sorriu de novo, agora com um ar de esperta.
- Tem, mas fora do seu campo de visão, fora do seu aqui e agora emocional... Você não vai poder resistir
pra sempre, Anna - disse ela, tomando um gole de refrigerante. - Encare os fatos: o seu cabelo vai ficar roxo.
Olhei para cima, bufando.
- Você é impossível, Lucky.
Fiquei alheia ao que acontecia à minha volta durante o resto da refeição. Os campistas estavam se
mostrando especialmente bagunceiros, mas eu os ignorei. Simplesmente deixei Lucky cuidar deles. Olhava para o
espaço vazio, indiferente ao tumulto que tomava conta do refeitório. Tudo em que conseguia pensar era no meu
aconchegante beliche na cabana e no quanto queria estar lá - sozinha.
Depois do almoço passei pela secretaria. Enfiei a mão na minha caixa de correspondência, por puro hábito,
crente de que ela estaria vazia. Mas para a minha surpresa havia uma carta. Olhei com curiosidade para o
envelope. Mais uma carta via aérea sem endereço de remetente. Mas dessa vez não senti nenhuma excitação por
receber correspondência de Peter. A última coisa de que eu precisava àquela altura era das atenções de mais um
garoto.

Li a carta enquanto caminhava para o lago. Tinha duas páginas, nas quais Peter me contava sua viagem
pela África. Ele estava na pior. A temperatura era insuportavelmente alta, não havia água corrente e ele não
entendia uma palavra da língua local.
- Ah, não! Não pode ser verdade! - gritei quando cheguei ao fim da carta.
Pisquei algumas vezes e li de novo, na esperança de que os meus olhos tivessem me enganado. Mas não, eu
lera corretamente: Peter estava a caminho de Seneca Falls, uma visita surpresa. E chegaria justamente no dia
Quatro de Julho!
"Sinto tanto a sua falta, Anna", escrevera Peter. "E tenho uma surpresa pra você. Em poucos dias estaremos
um nos braços do outro de novo. Talvez possamos retomar tudo de onde paramos no verão passado. Você se
lembra do nosso piquenique particular na cachoeira? O meu avião chega na sexta-feira bem cedo. Vejo você aí por
volta das dez da manhã!"
Me sentei numa pedra e olhei para a carta em estado de choque. "Em poucos dias estaremos um nos braços
do outro de novo." Peter estava vindo me visitar. E agora?
Revistei freneticamente todo o envelope, na esperança de que ele tivesse deixado algum endereço em que
eu pudesse encontrá-lo a tempo. Mas ele escrevera apenas "Peter, África". Olhei para o céu, bufando de irritação.
Típico de Peter.
De todo jeito, dava na mesma. Me dei conta ao olhar para o carimbo do correio de que a data de chegada da
carta nos Estados Unidos era de dois dias antes. Onde quer que Peter estivesse quando me escrevera, já tinha ido
embora havia tempo. Na verdade ele provavelmente já estava nos Estados Unidos e a caminho de Seneca Falls.
A situação era gravíssima. Eu já estava tendo dificuldades para organizar os meus sentimentos por Joel com
Kerry constantemente presente na minha mente e ao vivo. Agora que Peter estava a caminho, tive medo de que
meu coração explodisse de vez. Seria possível que uma garota normal se sentisse ligada a três garotos totalmente
diferentes ao mesmo tempo?
Eu estava péssima quando me levantei e continuei a caminhar rumo ao lago. Um vento forte soprou, e
algumas nuvens negras e agourentas pairavam no céu. O desastre começava definitivamente a emergir no
horizonte.
Eu acabava de me sentar para jantar quando Susanna se aproximou da nossa mesa, com suas calças
militares verde-oliva e sua pinta habitual de sargento.
- Anna, tenho uma mensagem pra você - disse ela, segurando um pedaço de papel.
- Obrigada, Susanna - falei, pegando a mensagem. Dizia: "Joel, urgente".
Meu coração acelerou, e corri para a sala de descanso. Será que algo de ruim acontecera a Joel? Estaria ele
ferido? Ou em apuros? Talvez tivesse sofrido um acidente de caiaque...
Fiz rapidamente a chamada a cobrar e esperei que a ligação se completasse, segurando o fone no ouvido e
andando para lá e para cá no surrado tapete amarelo.
Joel respondeu na segunda chamada.
- Joel, você está bem? - perguntei, com a respiração presa.
- Ãh?... Claro - respondeu ele, com uma voz suave e preguiçosa como de costume. - E você, tudo bem?
Me joguei no sofá, aliviada.
- Tudo. É que recebi a sua mensagem, e dizia que era urgente - expliquei. - Aí entrei em pânico. Pensei que
você tivesse se machucado, ou algo parecido.
- Ah, me desculpe, Anna, sinto muito... Não pretendia assustar você.
A voz afetuosa de Joel aumentou ainda mais a minha confusão emocional. Será que eu sentia tanta falta
dele por que o amava, ou apenas porque estava sozinha?
- E como vai tudo por aí? - perguntou ele despreocupadamente.
- Ótimo - respondi, procurando adotar um tom de voz leve e alegre. - Tudo em paz e correndo conforme o
previsto.
- Que bom... - ele falou, com um tom pensativo e tristonho.
- E então, como foi o passeio de caiaque com a Jackie? - indaguei.

Enrolei o fio do telefone em meu dedo indicador, praticamente cortando a minha circulação sanguínea. Eu
sabia que aquele era o momento perfeito para me abrir com Joel sobre os meus sentimentos, sobre as minhas
dúvidas quanto ao nosso relacionamento. Mas não conseguia começar. Como eu poderia abordar um assunto tão
delicado pelo telefone?
- Foi demais - replicou JoeI. - Mas agora está ficando tudo um tédio. A minha vida se resumiu às aulas de
recuperação e a estudar para as provas. Todo mundo viajou, menos a Jackie, e não tem nada pra fazer por aqui.
Sinto a sua falta, Anna...
Percebi um tom de autêntica saudade em sua voz, e meu coração vacilou com uma estranha combinação de
carinho e culpa.
- Mas sabe o quê? – continuou JoeI. - Tenho uma surpresa! Me endireitei no sofá.
- Uma surpresa? O que é? - perguntei, alerta.
- Estou indo aí visitar você!
A voz de Joel se tornara alegre e excitada de repente.
- Posso ficar o fim de semana inteiro! - anunciou. - A escola vai fechar por causa do feriado de Quatro de
Julho, e pretendo sair daqui amanhã. Devo chegar em Seneca Falls na sexta-feira cedo. Não é demais?
Quase deixei cair o telefone.
- Mas Joel... - comecei.
- Anna, desculpe mas meu pai está me chamando. Preciso desligar agora - interrompeu ele. - Não vejo a
hora de encontrar você. Tchau, um beijo.
Então o aparelho ficou mudo.
Pendurei o fone no gancho e me afundei desesperada no sofá. Peguei o telefone de novo e disquei,
determinada a fazer Joel desistir daquela idéia. Era simplesmente inconcebível que ele viesse para Seneca Falls.
Eu sabia que tinha de resolver as coisas com ele, mas não poderia ser naquele fim de semana. De jeito nenhum.
Não com Peter chegando da África. Não quando eu estava louca para ir ao baile de Quatro de Julho com Kerry.
Diria a Joel que não estaria em Seneca Falls durante aqueles três dias, que Lucky e eu tínhamos de fazer
uma excursão com os campistas no fim de semana. Mas Joel não atendeu.
- Vamos lá, Joel, atenda - murmurei no fone.
Mas o aparelho apenas tocava e tocava no meu ouvido. Me joguei de novo no sofá e fiquei olhando para o
teto.
Era o meu fim.
13

Com o coração partido em três

- Você tem de me ajudar, Lucky - implorei na quinta-feira à tarde pouco antes do jantar, abrindo os
braços num grande gesto dramático. - Simplesmente não sei o que fazer.
- Bom, na verdade tudo o que você tem de fazer é decidir qual desses três caras realmente quer. E
depois dar um pé nos outros dois - sentenciou Lucky.
Estávamos na nossa cabana, nos trocando para o jantar.
- O que o seu coração diz? - perguntou ela, apontando para o meu peito.
Eu acabara de contar tudo a Lucky sobre o meu terrível dilema. Ergui as mãos no ar.
- Não sei! - gemi.
Me larguei pesadamente de bruços na cama e enterrei a cabeça nas mãos. Em geral havia uma ótima
comunicação entre a minha mente e os meus sentimentos, mas naqueles dias eu não conseguia distinguir
alhos de bugalhos. Simplesmente não sabia mais o que sentia.
- Tá bom, tá bom, não precisa ficar tão nervosinha - disse Lucky, sentando na beirada do meu beliche
e me cutucando com a ponta da sua escova de cabelo. - De pé, Morris. Tá na hora do rango. Talvez uma
caminhada ajude você a clarear as idéias.
Joguei minha jaqueta jeans sobre os ombros e segui Lucky porta afora. Era um dia plácido e frio, e os
débeis raios do sol da tarde projetavam as sombras alongadas das árvores no solo. As folhas secas
crepitavam sob os nossos pés enquanto caminhávamos.
- Então vamos começar com Monsieur Pierre Cabernet disse Lucky assim que tomamos a trilha.
Ela quebrou uma longa haste de capim que pegara do chão e desenhou com ela no ar enquanto falava.
- Simplesmente não é possível que você tenha nenhum sentimento verdadeiro por aquele pseudo-
intelectual narcisista e presunçoso - proclamou.
Ela fez uma pausa, mastigando pensativa a haste de capim.
- Eu sei que vocês tiveram um affair no verão passado, apesar de eu não conseguir entender que raios
você viu nele.
Tive de sorrir, apesar da minha situação trágica. Lucky sem dúvida não era do tipo que guardava suas
opiniões.
- Pra dizer a verdade, Lucky, até hoje eu não consegui entender nem resolver direito os meus
sentimentos por Peter.
Estiquei o braço para pegar uma joaninha que passeava por uma folha.
- E esse é o meu grande problema também com relação a Joel e Kerry - continuei com um suspiro,
espantando a joaninha da minha mão. - Será que é possível gostar de três caras totalmente diferentes ao
mesmo tempo?
Chegamos a um pequeno córrego transparente e borbulhante, cheio de pedras brancas no fundo.
Lucky sacudiu a cabeça e saltou para cima de uma grande pedra no meio do córrego.
- De jeito nenhum.
Ela saltou para outra pedra e escalou a pequena ribanceira do outro lado. Eu a segui, e me agarrei a
algumas raízes para subir.
- Não sei o que vou fazer - falei.
Sequei a água dos meus sapatos na relva e limpei as mãos na calça. Continuamos andando. A trilha se
alargou numa clareira gramada, e fizemos uma pausa.
- Preciso ver o Joel primeiro. Tenho a esperança de que, ao vê-lo, o meu coração me diga que caminho
seguir.
Respirei fundo.
- Do que não tenho a mínima dúvida é que este fim de semana com os três juntos não pode acontecer.
Não tenho a menor condição de lidar com Joel, Peter e Kerry ao mesmo tempo.
Lucky se pôs a andar em um pequeno círculo pela clareira, pensativa. De repente estalou os dedos.
- Isso eu já sei - ela resmungou.
- É simples! Por que você e o Joel não fazem um longo passeio durante todo o fim de semana? Você
parte com ele, o Peter se manda quando percebe que você não está no pedaço, e o Kerry vai à festa sozinho.
Eu posso até dar uma cobertura pra você com a Susanna. É um plano perfeito.
- Brilhante! - exclamei, abraçando Lucky e rodopiando com ela pelo gramado. - Lucky, você é um
gênio!
- Isso eu já sei - ela resmungou.

Depois de um barulhento jantar com os meus campistas, fui procurar Kerry. Encontrei-o caminhando
pela trilha do bosque, jogando uma bola de tênis para o alto. Desde que eu recebera a carta de Peter
mantivera uma certa distância dele.
- Kerry! - gritei, correndo até ele. - Espere um pouco!
Ele pegou a bola no ar e se virou na direção do som da minha voz.
- Oi, Anna! Tudo bem?
- Oi! - falei, recuperando o fôlego.
Meu coração doeu ao vê-lo. Kerry estava especialmente bonito com seus jeans folgados e sua camisa
verde-oliva, que produzia minúsculas manchas amarelas em seus olhos castanhos. Na verdade, muito mais
que bonito: deslumbrante. Um cacho de seus cabelos escuros caía na frente de seu olho esquerdo.
Ficamos em silêncio por um momento.
- Você está indo pra sua cabana? - sondei.
- Estou - ele respondeu. - Quer me acompanhar?
Fiz que sim com um movimento de cabeça e retomamos a caminhada pelo bosque.
- E então, continua de pé o nosso compromisso pra amanhã à noite? - perguntou Kerry, quicando a
bola no chão à sua frente.
Respirei fundo, trêmula.
- Na verdade, Kerry, era justamente sobre isso que eu queria falar com você.
Kerry continuou a rebater a bola com uma das mãos.
- Você não quer ir comigo - disse ele num tom de voz impassível, como se tivesse sabido o tempo
todo.
- Não, não é isso - comecei. - É só que... Bem, o meu, hã... o meu...
Fiquei paralisada, incapaz de fazer as palavras saírem. Olhei para Kerry, nervosa, mordendo o lábio.
Seus braços estavam cruzados à altura de seu peito, e seu rosto permanecia impassível. Respirei fundo
novamente e me forcei a continuar.
- Bem, é que o meu namorado está vindo passar o fim de semana aqui no acampamento, e eu preciso...
Preciso de um tempo pra chegar a algumas conclusões.
Fechei os olhos e esperei pela explosão. Mas ela não veio. Quando os reabri, vi Kerry me fitando com
seus profundos olhos castanhos nublados pela mágoa. Senti um súbito e violento golpe de remorsos em meu
peito.
- Ele já sabe que a gente se beijou? - perguntou com suavidade.
Fiz uma careta de dor e sacudi a cabeça.
- Ainda não - admiti.
- E você pretende contar a ele? - perguntou, com uma voz já mais grave.
- Eu... eu não sei - respondi num sussurro.
Kerry digeriu em silêncio as minhas palavras. De repente sua mágoa pareceu se transformar em raiva.
- Tudo bem, Anna. Mas nem sonhe que eu vá ficar sentado esperando você se decidir - disse ele com
voz dura e seca.
Então se virou e saiu andando a passos rápidos.
14

Catástrofe total

Na sexta-feira de manhã, dia Quatro de Julho, sentei-me tensa no beliche, contando os segundos que
restavam antes de que a minha vida desmoronasse completamente. Tudo estava pronto. Peter chegaria às dez da
manhã, e Lucky o interceptaria na cabana central antes que ele tivesse chance de falar com quem quer que fosse.
Ela lhe diria que eu tinha saído por todo o fim de semana e o manteria longe da nossa cabana até Joel e eu
estarmos a salvo fora da área do acampamento.
Me levantei e caminhei nervosa pela cabana. Onde estava Joel? Eu preferia que ele já tivesse chegado.
Precisava estar na cabana de artes às onze horas, e começava a me sentir com claustrofobia. Joel dissera que
chegaria pela manhã, mas isso podia significar qualquer hora entre as nove e o meio-dia. Peguei um cobertor de
cima de uma pequena arca e o sacudi, apenas para dobrá-lo novamente e recolocá-lo no mesmo lugar. Então
sacudi as cobertas da minha cama e afofei os travesseiros. Andei até o outro lado da cabana, tirei o pó do gaveteiro
e reordenei o arsenal de produtos de beleza espalhados em cima dele.
Subitamente ouvi uma batida na porta. Joel. Uma sensação de alívio atravessou todo o meu corpo. Dei uma
última olhada no espelho e andei apressada até a porta do outro lado do quarto. A abri com um sorriso fixo em
meu rosto para receber Joel. "Oi, Jo... ", comecei a dizer, mas as palavras ficaram congeladas na minha garganta.
- Kerry! - exclamei, olhando para ele em estado de choque. Fiquei tão atônita que nem me lembrei de
convidá-lo para entrar. Nem foi preciso, pois ele cambaleou para dentro e começou a caminhar a passadas largas
pelo quarto, feito um lunático.
Kerry tinha uma expressão selvagem nos olhos. Havia algo de muito errado. Ele passou os dedos por entre
os cabelos e se virou para mim. A tensão em seu corpo era tão evidente que temi que ele explodisse a qualquer
momento.
- Escute, Anna - começou -, eu realmente sinto muito por ontem. Não devia ter estourado com você daquele
jeito. Afinal, eu sabia o tempo todo que você tinha um namorado. E sei que tem de resolver as coisas com ele.
Kerry fechou os punhos com força e os manteve assim ao lado do corpo, enquanto um músculo de seu
maxilar se contraía e relaxava intermitentemente.
- É que me deixa tão louco a simples idéia de imaginar você com outro cara que...
Kerry fez uma pausa e esticou o braço para erguer suavemente meu queixo com a mão.
- Eu não tinha percebido que queria que fôssemos mais do que apenas amigos até você me contar que
ficaria com o seu namorado neste fim de semana - continuou ele, com uma voz grave e rouca. - Não quero perder
você, Anna. Acho que estou...
Mas antes que ele pudesse terminar a frase, alguém bateu na porta. Prendi a respiração e me esquivei do
toque de Kerry, que continuara segurando meu queixo enquanto falava. Passei os olhos, angustiada, por toda a
cabana, buscando desesperadamente uma maneira de tirar Kerry dali. Até que fiquei apenas olhando para a porta,
paralisada.
- Você não vai atender? - ele perguntou. Sacudi a cabeça, tentando parecer despreocupada.
- Não ... Provavelmente não é pra mim.
Mas as pancadas continuaram. Meu coração batia em meu peito como uma britadeira enquanto eu andava
até a porta e a abria. Lá estava Joel, de pé no umbral, vestido com roupas e equipamentos de mountain bike e
coberto de lama da cabeça aos pés.
Antes que eu pudesse dizer uma palavra, ele deu um passo para dentro e me agarrou, plantando um enorme
beijo nos meus lábios e me dando um abraço de urso. Me desvencilhei abruptamente, com o sangue fervendo
nas minhas orelhas.
Me voltei para Kerry, implorando com o olhar para que ele compreendesse. Mas seu rosto era uma máscara
impassível, e seus olhos castanhos brilhavam de fúria.
Joel acompanhou o meu olhar, e ele e Kerry ficaram de pé, mudos, imóveis, encarando um ao outro. Eu
olhava para ambos alternadamente, perdida.
- Hã... J-Joel - gaguejei -, este aqui é o...
Mas antes de que eu terminasse a frase Kerry saiu tempestuosamente da cabana.
- Quem era esse cara? - inquiriu Joel, largando suas coisas no chão enquanto caminhava pela cabana.
Ele tirou sua japona roxa e a jogou na minha cama. Em seguida tirou o moletom e o pendurou no encosto
de uma cadeira, ficando apenas de cueca e camiseta. Deixando um rastro de sujeira pelo assoalho, deixou-se cair
na cadeira de balanço e se agachou para desamarrar as botas. O elástico que prendia seu rabo-de-cavalo caiu no
chão, e seus cabelos castanhos caíram soltos sobre os ombros.
O mesmo velho Joel, bonito, rude e doce. Uma onda de ternura me invadiu, e sorri enquanto o observava.
Foi como se estivesse revendo um amigo que não via há muito tempo e sentisse um súbito impulso de lhe dar um
grande abraço.
- Anna? - disse Joel, erguendo a vista para mim.
- Hã?... - reagi, perdida nos meus devaneios. - Ah... é só um dos monitores sênior - respondi por fim,
fazendo um gesto de desprezo com a mão.
Joel me fitou desconfiado.
- Ele não pareceu muito contente em me ver - comentou, agarrando a bota pela sola e puxando-a para fora.
- É só mau humor - respondi, pensando rápido. - Ele... ele teve um atrito com a diretora do acampamento.
- Sei - disse Joel, se levantando e vindo na minha direção. Ele pegou na minha mão e sorriu, com seus
olhos azuis formando preguinhas nos cantos, como sempre.
- E você, está contente por me ver? - perguntou, aproximando-se e passando a mão pelos meus cabelos,
ajeitando-os gentilmente sobre os meus ombros.
- Estou... - comecei a responder.
Mas Joel pressionou seus lábios contra os meus, engolindo as minhas palavras.
O beijo de Joel foi cálido e familiar, com um suave sabor de menta. Ele colocou uma das mãos na parte
inferior das minhas costas, como sempre fazia.
Fechei os olhos e tentei me concentrar na sensação que me produzia o abraço de Joel. Mas a única coisa em
que conseguia pensar era em Kerry, no delicioso cheiro de seu corpo e nos seus lábios ardentes e famintos
beijando os meus.
Me desvencilhei com delicadeza dos braços de Joel.
- Claro que estou feliz em ver você - concluí.
Joel endireitou a cabeça e me olhou atento.
- Então por que você está com a sua típica cara de preocupada? - perguntou, erguendo meu queixo e
olhando fundo nos meus olhos.
Dei um passo atrás, me sentindo como se ele pudesse enxergar direto no fundo da minha mente.
- Desculpe - respondi, me jogando num dos beliches e respirando fundo. - Acho que é tensão. Eu não sabia
a que horas você ia chegar, e tenho um dia realmente cheio pela frente.
- Não se preocupe comigo, Anna. Tem coisas de sobra aqui pra me manter ocupado.
Joel andou até a janela e fez um amplo gesto abarcando a paisagem.
- É realmente lindo este lugar. Acho que vou dar um passeio pelas montanhas agora mesmo.
- Ótima idéia - concordei, tentando não deixar transparecer o meu alívio.
- Mas é melhor tomar uma ducha primeiro, senão posso ser preso por indecência - disse ele, olhando para
as próprias mãos. - Onde fica o banheiro dos homens?
- Temos o nosso próprio banheiro aqui na cabana - respondi, indicando uma porta do outro lado do quarto.
Ele andou até lá e enfiou a cabeça pela fresta para xeretar.
- Uau, hotel cinco estrelas, hein, madame? - brincou. - Tem serviço de quarto também?
- Bem que eu gostaria - respondi, pegando uma toalha azul na arca de madeira e jogando-a para ele. - Sabão
e toalha estão incluídos na diária.
- Legal.
Joel pegou a toalha no ar e desapareceu por trás da porta do banheiro, fechando-a.
Eu me ajoelhei na cama e fiquei olhando pela janela enquanto ele tomava seu banho.
Minha mente era uma verdadeira salada de Kerry e Joel.
Tentei visualizar os doces olhos azuis de Joel, mas consegui ver apenas os intensos olhos castanhos de
Kerry. Imaginei o sorriso tranqüilo de Joel e vi a sensual boca avermelhada de Kerry. Pensei no beijo de Joel, e
senti os lábios ardentes de Kerry nos meus.
Quando ouvi o som chuveiro, imaginei Peter numa longa travessia a pé pela mata a caminho de Seneca
Falls. Ele também deve aparecer logo, pensei. Então dei uma segunda olhada na paisagem à minha frente. Não era
uma visão. Era realmente Peter! E vinha andando pela trilha que subia até a minha cabana!
Percebi que ele ziguezagueava um pouco enquanto andava. De repente, de maneira inexplicável, Peter
dobrou à esquerda, saindo da trilha, e desapareceu no bosque.
Ah, essa não! Saltei do beliche e corri porta afora. Continuei a correr colina abaixo e entrei no mato. Mas
não havia nem sinal de Peter.
- Peter! Peter! - gritei.
Nada. Fiz uma concha na boca com as mãos e gritei de novo.
Então fiquei parada, absolutamente quieta, tentando distinguir sons de passos ou algo parecido. Mas tudo o
que se ouvia era o piar dos passarinhos e o troar das cascatas.
Em pânico, voltei correndo colina acima e entrei na cabana.
Onde Peter se enfiara? E por que Lucky não estava com ele? O que eu ia fazer agora?
De repente uma inspiração me iluminou a mente. Já que eu não poderia manter Peter fora da cabana, teria
de manter Joel dentro. Arrastei uma pesada cadeira pelo quarto e escorei com ela a porta do banheiro, trancando
Joel lá dentro.

***

Sentada na beirada da minha cama, me forcei a respirar fundo várias vezes. Tentei me manter calma, mas
quando o chuveiro foi desligado e escutei Joel assobiando alegremente, um súbito pânico tomou conta de mim.
Sabendo que ele tentaria abrir a porta a qualquer momento, fechei os olhos e comecei a contar até dez bem
devagar.
Quando cheguei no cinco, ouvi uma batida na porta da cabana. Meus olhos se abriram estatelados. Peter. O
pesadelo estava ficando pior a cada minuto. Pulei e corri até a porta, na esperança de poder me livrar de Peter
antes que Joel suspeitasse de qualquer coisa.
Mas dei meia-volta instantaneamente ao ouvir o som de Joel girando a maçaneta da porta do banheiro. Ele
puxou e empurrou a maçaneta por dentro, mas a cadeira manteve a porta firme. Joel continuou tentando.
- Ei, Anna! Esta droga aqui travou! - ele gritou, batendo na porta e forçando a maçaneta de novo.
Meu pânico aumentou, e olhei em desespero da porta do banheiro para a porta da cabana alternadamente.
Fiquei paralisada no meio do quarto, como um animal selvagem encurralado pelos seus predadores.
Peter deu de novo uma batida rápida na porta de entrada, e Joel esmurrou com mais força a porta do
banheiro.
Respirei fundo mais uma vez. Concentre-se, Anna. Primeiro livre-se de Peter. Depois você cuida do Joel.
Corri até a porta do banheiro e gritei por uma frincha entre as tábuas.
- Agüente só um minutinho aí, Joe1! Tem alguém batendo na porta da cabana. Já volto.
Me precipitei até a porta de entrada, rezando para conseguir me livrar rapidamente de Peter. Quando por
fim abri a porta, pisquei surpresa. Não era Peter. Era Derek.
- Derek! - exclamei aliviada.
- Oi, Anna. A Lucky está por aí? - ele perguntou. - Temos de cuidar dos últimos detalhes pra festa de hoje à
noite.
- Ah!... Hã... Eu acho que ela está lá embaixo, na cabana central - respondi apressada.
- Legal, obrigado - agradeceu Derek. - A gente se vê mais tarde.
Fechei a porta e me inclinei contra ela, tremendo de alívio. A voz de Joel ressoou de novo no banheiro.
- Ei, você aí fora. Se esqueceu de mim? - ele gritou.
- Tô indo - gritei de volta, correndo até a porta e retirando silenciosamente a cadeira.
Sacudi a maçaneta para fingir que havia algum problema com ela e abri. Joel estava de pé na soleira, só de
calças, com uma expressão irritada no rosto avermelhado pelo calor e uma toalha pendurada em seus largos
ombros.
- Desculpe pela demora - falei. - Às vezes a porta emperra por causa da umidade.
Subitamente a porta da frente se abriu e Lucky entrou. Seu cabelo estava todo despenteado, e seu olhar
furioso.
- Anna, deu zebra - disse, falando à velocidade da luz. - O Peter está delirando de febre, deve ter pego
algum tipo de gripe. Ele simplesmente não me ouve, e insiste em vir pra cá.
Só então ela reparou em Joel.
- Ah!... Hã... Oi! - cumprimentou sem graça, forçando um enorme sorriso. - Sou Lucky, a companheira de
quarto.
- Muito prazer - replicou Joel, estendendo a mão. - Sou Joel, o namorado.
Os dois riram. Joel sentou na cadeira de balanço e esticou os braços para pegar suas botas.
Justamente naquele instante Peter irrompeu dentro da cabana, balbuciando algo sobre águas barrentas e
moscas tsé-tsé. Seu cabelo preto estava mais comprido que no verão anterior, caindo quase até seus ombros, e
uma barba rala de três dias cobria seu queixo. Me pareceu tão bonito quanto sempre, mas com um aspecto de
louco. Seus olhos pareciam desfocados e delirantes, e seu rosto estava corado de febre. Ele desabou na minha
cama, murmurando algo a respeito da respiração.
E agora, como eu ia sair daquela? Olhei para Lucky com uma expressão de desespero.
Ela assumiu o comando.
- Escutem, vocês dois se importariam de nos deixar a sós? - nos perguntou. - Peter, o meu... hã, meu
namorado, acaba de chegar da África e não está passando bem. Talvez seja contagioso.
- Claro - respondeu Joel, pondo-se de pé imediatamente.
- Eu já estava mesmo de saída.
Ele vestiu sua jaqueta e recolheu suas roupas do chão. Então se inclinou e me beijou na bochecha.
- A gente se vê à noite, Anna.
Depois que a porta bateu, me sentei no beliche de Lucky, dando-lhe um sorriso agradecido.
- Obrigada por me tirar desta.
- De nada - disse Lucky.
Ela ficou parada por um segundo, pensativa.
- O Joel parece ser mesmo um doce - comentou. - Dá pra entender o seu dilema.
Peter começou a tremer convulsivamente na cama, sacudindo as pernas e golpeando o ar com os braços.
Me sentei ao lado dele na beirada do beliche.
- Peter, você consegue me ouvir? - perguntei, pousando uma mão em sua testa.
Ele ardia em febre, com o rosto já quase escarlate. Começou a murmurar algumas palavras, e me inclinei
mais para perto para tentar entender.
- Anna... Eu vejo... animais enormes ... Um safári... Nai... Nairobi... Anna... - balbuciou.
Então fez uma careta, como se estivesse se concentrando em algo.
- Os aborígenes que vivem no deserto de Kalahari... Homens da mata ... Florestas selvagens...
De repente soltou uma gargalhada e repetiu as mesmas palavras.
- Homens da mata... Florestas...
Olhei preocupada para Lucky.
- Lucky, ele está completamente alucinado. Eu o sacudi com vigor.
- Vamos lá, Peter, volte à realidade!
Mas ele continuava murmurando palavras sem nexo uma após a outra. Agarrou violentamente o acolchoado
e em seguida o jogou para o alto, chutando e espancando o ar a esmo com per nas e braços. Balbuciou mais
alguma coisa e se virou de lado, por fim quieto.
Lucky sacudiu a cabeça para mim, com um ar desaprovador.
- Você daria uma grande médica, Anna.
- Bom, pois a doutora aqui acha que este paciente precisa ir pra enfermaria já - falei.
- Ok, vamos tirar Monsieur Malade daqui - concordou Lucky. - Malade quer dizer doente, para o seu
governo.
Colocamos Peter de pé, segurando-o cada uma de um lado pelas axilas, e o arrastamos porta afora. Já na
trilha, Lucky passou um braço ao redor da fina cintura de Peter. Ele reclamou, mas jogou condescendentemente
seu braço direito por cima dos ombros dela para se apoiar.
- Lucky, quer que eu vá junto? - perguntei.
Ela sacudiu a cabeça.
- Não. Talvez ainda possamos levar adiante o nosso plano se conseguirmos nos livrar deste traste aqui.
Pode ser que ele não se lembre de nada quando voltar a si.
- Você é uma salva-vidas inata - agradeci.
Lucky suspirou.
- Eu que o diga.
Curvando-se um pouco sob o peso de Peter, ela o carregou lentamente trilha abaixo.
Eu os observei até desaparecerem na mata, e então voltei para a cabana.
Dei um enorme suspiro e desabei no meu beliche. Que desastre! Peter doente, Kerry furioso e Joel
desconfiado...
Foi só então que me dei conta de um erro fatal: me esquecera completamente de falar com Joel sobre a
idéia de passar o fim de semana fora do acampamento. E agora já era tarde demais. Ele ficaria o dia todo
passeando nas montanhas, e só nos veríamos de novo à noite.
Eu já esperava que as coisas ficassem difíceis, muito difíceis.
Mas aquilo era uma catástrofe total.
Os rojões do Quatro de Julho daquele ano não iriam explodir apenas no céu. Já tinham começado a estourar
na minha cabeça. E isso que o fim de semana estava só começando.
15

O amor é uma caixinha de surpresas

Na sexta-feira à tarde me dirigi para a enfermaria, depois de dar uma ansiosa e apressada aula de artes
para os meus campistas de dez anos de idade.
O cheiro de anti-séptico me invadiu as narinas assim que me aproximei da pequena construção branca
e moderna. Quando cheguei ao quarto de Peter, abri a porta e o encontrei esticado na cama, com Lucky
sentada ao seu lado batucando no braço da cadeira. Era um típico quarto de hospital, com uma cama cortina-
da no centro do recinto e vários assustadores equipamentos de aço. A cortina estava aberta, e Peter dormia
pacificamente de barriga para cima. Fiquei chocada por Lucky ainda estar lá.
- Não conseguiu se livrar ainda? - sussurrei em seu ouvido, puxando uma cadeira e me sentando ao
lado dela.
- Bah, as enfermeiras me pediram pra tomar conta dele bufou Lucky.
- Mas isso não é o serviço delas? - perguntei.
- Elas estão desfalcadas. Os monitores júnior encarregados de ajudar na enfermaria estão ocupados
com a preparação da grande festa de hoje à noite.
Lucky torceu o nariz.
- Anna, você me deve uma, e das grandes.
Concordei com um gesto de cabeça.
- É, sem a menor dúvida - assenti.
Lucky assoprou seu cabelo da testa e cruzou as pernas.
- E então, o que ele tem, afinal? - perguntei. - Malária ou algo parecido?
Lucky sacudiu a cabeça.
- Não. Ele simplesmente teve uma febre superalta. O médico disse que se trata de algum tipo de virose
passageira. Eles lhe deram alguns antibióticos potentes logo que chegamos aqui, e a febre já foi controlada. Desde
então Peter está dormindo que nem um bebê, balbuciando o tempo todo alguma coisa sobre desertos, savanas e
moscas tsé-tsé.
Lucky franziu a testa.
- Já sei mais sobre esse Peter Bordeaux do que nunca quis saber. Comecei a entender como funciona a
pobre mente dele, e acho que a esta altura já memorizei todas as expressões que seu rosto é capaz de produzir.
Peter se agitou em seu sono e murmurou algo.
- Peter? - perguntei, me levantando da cadeira e me sentando na beirada da cama.
Ele virou a cabeça e abriu seus olhos escuros, que lentamente se enfocaram em mim.
- Ah, você está aqui... - disse suavemente, com a língua um pouco enrolada.
Então pegou na minha mão e sorriu, todo inocência. Em seguida a soltou e foi de novo engolido pelo sono.
- Você não tem que dar uma aula de natação hoje à tarde? - perguntou Lucky, olhando em seu relógio.
Fiz uma expressão de culpada.
- É, eu sei que deveria ir pro lago, mas acho que o Kerry não está muito ansioso por me ver. Ele apareceu
inesperadamente na cabana hoje de manhã, e no mesmo instante Joel chegou e me plantou um beijo na boca bem
na frente dele.
- Caramba! - exclamou Lucky, fazendo uma careta.
- Põe caramba nisso - concordei, soltando um longo suspiro.
- Anna, não se mexa tanto! - ordenou Lucky.
Já era quase de noite, e estávamos na nossa cabana nos arrumando para a festa de Quatro de Julho que
começaria logo mais. Lucky tentava fazer uma trança francesa no meu longo cabelo loiro.
- Desculpe - falei, me sentando rígida na beirada da minha cama.
- Ah, droga! - exclamou ela quando a trança se desmanchou acidentalmente. - Anna, o seu cabelo é muito
liso e sedoso. Assim não vai dar.
Lucky pegou uma lata de spray para cabelo na penteadeira e a ergueu ameaçadora.
- Feche os olhos - avisou, agitando a lata.
Antes mesmo que eu pudesse protestar, ela vaporizou o produto generosamente por todo o meu cabelo.
- Ai! Cuidado! - reclamei, fechando os olhos bem apertados.
- Ah, agora vai ser muito melhor - disse ela satisfeita.
Lucky passou um pente pelo meu cabelo e o separou com cuidado em três grandes mechas.
Cruzei as pernas, impaciente.
- Lucky, a gente tem mesmo de fazer isto?
- Sem a menor dúvida - respondeu ela, trançando habilmente os três chumaços de cabelo. - O meu lema é:
quando você estiver se despedaçando por dentro, pareça maravilhosa por fora.
Suspirei.
- Mas pra quê?
- Você vai ver - disse Lucky. - Vai levantar a sua moral.
Justamente naquele momento Sam entrou na cabana praticamente valsando, seu rosto resplandecendo de
prazer.
- Ooooi! - cumprimentou, largando-se na cadeira de balanço com um sorriso de orelha a orelha.
Me virei para olhar para ela.
- Anna! - ralhou Lucky. - Fique quieta, pô!
- Desculpe - falei, olhando para Sam com o canto do olho.
- Algo de bom aconteceu pra você hoje, Sam?
- Não. Algo de maravilhoso aconteceu pra mim hoje - respondeu ela, balançando-se para a frente e para
trás na cadeira.
- E o que foi? - perguntou Lucky, colocando um elástico na ponta da minha trança e pegando um pequeno
espelho de cima da cama.
Lucky me levou até o grande espelho da penteadeira e ergueu o pequeno com um gesto floreado, para que
eu pudesse enxergar a parte de trás da minha cabeça.
- Voilà! - exclamou orgulhosa. - Uma verdadeira obra de arte.
Tive de admitir que aquela trança dourada ficara realmente bonita. Ela descia do topo da minha cabeça até
os meus ombros.
- Kerry e eu vamos juntos ao baile. Foi isso o que aconteceu - revelou Sam, feliz.
Lucky girou a cabeça de supetão para encará-la.
- Sério? Você e Kerry?
Me sentei no beliche, me sentindo como se acabasse de levar um soco na boca do estômago. Claro que
Kerry tinha todo o direito de convidar Sam para o baile. Afinal, eu lhe dissera que não iria com ele. Mas não
esperava que ele me substituísse por Sam tão rápido.
Então Sam olhou direto pra mim.
- Anna, o Kerry está claramente interessado em mim, não em você - disse, seus olhos azuis se endurecendo.
- Por isso fique longe dele. Senão, talvez eu conte ao seu lindo namoradinho que você anda arrastando uma asa
pelo Kerry.
Pisquei, pega de surpresa pelo tom de voz venenoso de Sam.
- Não precisa se preocupar comigo, Sam - repliquei, serena. - O Kerry sem dúvida já fez a sua escolha.
- Isso mesmo - retorquiu ela, pondo-se de pé, pegando sua bolsa e jogando-a por cima do ombro. - E essa
escolha sou eu.

- Acho que vou passar mal - eu disse a Lucky enquanto andávamos para a cabana central, a caminho da
festa.
Me sentia como se houvesse uma enorme cratera no meu estômago, que crescia a cada passo que eu dava.
- Não se preocupe, Anna - Lucky assegurou. - Tudo está sob controle.
As coisas estavam parcialmente sob controle. Por sorte Peter estava fora de combate por enquanto. Ele
tinha acordado antes que deixássemos a enfermaria, gritando que queria sair dali. Mas o médico insistira em
mantê-lo internado até o dia seguinte, e rezei para que o segurassem pelo fim de semana inteiro. Eu até queria
passar algum tempo com Peter, mas não enquanto Joel estivesse por perto.
A festa era informal, mas Lucky e eu estávamos razoavelmente produzidas. Eu vestia uma saia azul-escura
e uma camisa de seda branca, e Lucky uma longa saia verde de batique com uma delicada camisa marrom. Seu
cabelo encaracolado fora preso atrás num coque, e uma gargantilha com um belo pingente de cristal enfeitava seu
pescoço.
Se eu estivesse com o mínimo espírito para festas, com certeza teria ficado empolgadíssima com aquela.
Lucky e Derek tinham feito um trabalho de primeira. Havia mesas e cadeiras montadas sob uma tenda do lado de
fora, e desta vez havia no gramado uma pista de dança real, de madeira. Uma turma de monitores júnior já
zanzava ao redor da churrasqueira, e uma banda tocava jazz numa plataforma ao lado da pista. A área das mesas
com as comidas estava toda decorada com flâmulas e balões vermelhos, brancos e azuis, as cores da bandeira.
Era uma noite perfeita para uma festa: uma brisa cálida, gente divertida e milhares de estrelas no céu. A
pista já estava lotada de entusiásticos bailarinos, e montes de crianças corriam e rolavam pela grama. Dava a
impressão de que o acampamento em peso estava lá. Olhei ao redor, mas não vi Joel.
- Que lotação! - observou Lucky.
- É mesmo - concordei.
Então senti um braço me agarrando pela cintura e me voltei rapidamente. Joel.
- Oi, meninas - disse ele, me beijando na bochecha.
Joel estava bonito como sempre com suas calças de algodão bege e uma camisa azul de botões. Para os
padrões dele, aquilo era um traje de gala.
- Quer dançar? - perguntou, pegando na minha mão.
- Hum... Quero.
Joel me arrastou pelo meio da multidão cada vez mais numerosa até o centro da pista e começamos a
dançar. Era uma lenta, mas ficamos apenas bamboleando suavemente e conversando, como sempre havíamos
feito.
- Bela noite, hein? - comentou ele.
- Bonita mesmo - concordei, tentando desesperadamente encontrar algum assunto.
Eu não sabia por que conversar com Joel me parecia algo tão impossível naquele momento. Ele apertou sua
mão nas minhas costas e me puxou suavemente para mais perto de si. Fechei os olhos e reclinei minha cabeça
contra seu peito, desejando poder me desligar do resto do mundo, tentando desfrutar aquele momento. Mas não
conseguia tirar Kerry da cabeça. Me lembrei de quando dançáramos depois daquele churrasco, de como ele me
agarrara e beijara apaixonadamente, de como eu quisera que aquele instante se prolongasse por toda a eternidade.
Quando abri os olhos, vi Kerry e Sam de relance. Eles estavam de pé na beirada da pista de dança, rindo
juntos. Sam disse algo, e eles ergueram seus copos de ponche num brinde. Eu estremeci e olhei para outro lado.
Pouco depois Sam levou Kerry até a pista. Eles ficaram a apenas alguns metros de distância de mim e Joel.
Pude ouvir o riso extasiado de Sam enquanto Kerry a rodopiava. O ritmo da música ficou mais lento, e pude ver
Kerry se aproximando mais e mais dela, enlaçando sua fina cintura com seus braços fortes e morenos.
Kerry sussurrou alguma coisa no ouvido de Sam e ela deu uma risadinha, com o rosto corando. Fechei os
olhos de novo, incapaz de assistir àquilo por mais um segundo sequer.
Toquei na mão de Joel.
- Você não quer fazer uma pausa? - perguntei.
A lotadíssima pista de dança estava cada vez mais quente e abafada. Abanei o rosto com a mão.
Joel desabotoou o colarinho.
- Pra falar a verdade, adoraria - respondeu ele, me seguindo para fora da pista.
Subitamente senti um tapinha no meu ombro e girei sobre os calcanhares. Era Peter. Por um momento
fiquei com a respiração presa na garganta, e me lembrei por que me sentira tão atraída por ele no verão anterior.
Peter estava totalmente recuperado, e lindo com suas calças pretas, camisa preta e gravata cor de vinho.
- Boa noite, Anna - disse ele, me dando um sorriso dolorosamente charmoso.
Ele se inclinou para a frente e me beijou em ambas as bochechas.
- Hã... O-oi, Peter - gaguejei, sentindo meu rosto esquentar e meus joelhos amolecerem.
Ele estendeu a mão para Joel.
- Muito prazer. Peter, recém-chegado da África. Joel apertou sua mão com vigor.
- O prazer é todo meu. Joel, recém-chegado de Washington.
Lutei para reprimir uma risada.
- Vejo que você se recuperou muito bem - disse Joel.
- É. Foi só uma virose passageira - replicou Peter, afrouxando o nó da gravata. - Não consigo nem imaginar
como passei pela alfândega. A última coisa de que me lembro é de estar entrando num avião na Namíbia. E a
seguinte, descobrir que estava sendo mantido como prisioneiro na enfermaria do acampamento Seneca Falls.
Peter se inclinou para trás contra uma árvore e cruzou as pernas na altura dos tornozelos, gesticulando com
uma mão no ar enquanto falava. Continuava tão charmoso como sempre.
Joel tossiu.
- Bom, foi um prazer conversar com você...
- É, nós dois estávamos indo até a mesa pra comer uns sanduíches... - acrescentei meio sem jeito, querendo
escapar de Peter o antes possível.
- Tudo bem, fiquem à vontade - disse Peter, compreendendo a situação. - Na verdade eu estava procurando
a Lucky.
Seus olhos varreram a multidão à nossa volta e se iluminaram ao encontrar Lucky conversando com Sacha
e Amir a poucos metros de distância.
- Ah, olha ela lá! - exclamou.
Antes de sair andando com Joel na direção da mesa dos sanduíches, pude ver Peter dar um tapinha no
ombro de Lucky. Ela se virou, e eu sorri por antecipação, certa de que Lucky diria alguma barbaridade para
espantá-lo.
- Quer dançar? - ele perguntou.
Lucky o olhou surpresa, e então lhe deu um sorriso estonteante.
- Adoraria - ela respondeu.
E o meu queixo quase caiu no chão ao ver Monsieur Peter pegar Lucky Hamilton pela mão e guiá-la até a
pista de dança.
16

Lágrimas de adeus

No sábado acordei cedo para me encontrar com Joel no lago antes que a gincana começasse.
Bocejando, vesti um par de jeans e uma camiseta e saí da cabana na ponta dos pés.
Fiquei com a respiração presa ao ver a beleza da cena à minha frente. O sol começava a se levantar e
os bosques estavam banhados por uma suave luz rosada. O ar era leve e fresco, perfumado com a fragrância
mentolada dos pinheiros.
Me espreguicei esticando os braços para o alto ao penetrar na tranqüila floresta. A festa da noite
anterior tinha continuado até bem mais de meia-noite, e depois todos havíamos ficado sentados em volta da
fogueira assando marshmallows e cantando músicas típicas de acampamento. Embora a noitada com Joel
tivesse sido maravilhosa, tinha me convencido de uma coisa: a chama já se apagara definitivamente.
Joel e eu nos sentíamos confortáveis e felizes juntos, mas isso era tudo. Ele já não fazia o meu
coração bater mais rápido, e eu sabia que não poderia segurar a nossa relação só porque era segura e
confortável.
Quando cheguei ao lago encontrei Joel deitado de lado na areia. Tinha o cabelo puxado para trás num
rabo-de-cavalo, e seu perfil estava iluminado pela luz da manhã. Parecia meditativo, mas sereno.
Subitamente fui invadida por uma onda de lembranças: o dia em que nos conhecêramos, quando eu
trombara com Joel num corredor da escola e ele me iluminara com seu maravilhoso sorriso; nosso primeiro
beijo no banco da frente de sua surrada camionete num recanto deserto da cidade; um piquenique que
fizéramos na praia, em que Doutor J, o cachorro dele, comera todo o nosso lanche...
Talvez fosse normal a paixão esmorecer, refleti. Afinal, ficáramos juntos por um longo período. Era
isso, concluí: nossa relação tinha simplesmente amadurecido. Talvez o que sentíamos agora um pelo outro
fosse um amor mais verdadeiro e profundo, e não um distanciamento.
Joel se virou e olhou na minha direção, como se tivesse sentido a minha presença.
- Bom dia, Anna - disse com sua voz preguiçosa, me dando um sorriso meigo.
Me sentei perto dele e peguei na sua mão.
- Dormiu bem? - perguntei.
Joel acampara no bosque, fora da área de Seneca Falls. Ele esticou o pescoço e sorriu.
- Dormi, mas tive de acordar junto com as criaturas da floresta. Estou de pé desde as cinco da manhã.
Ele se sentou e me olhou direto nos olhos.
- O que significa que estou esperando por você há mais ou menos quatro horas.
Joel se inclinou e me beijou suavemente. Me sentei de joelhos dobrados e retribuí o beijo. Então ele
me puxou para perto de seu corpo e me enlaçou num abraço apertado.
Aninhei minha cabeça em seu pescoço e comecei a chorar.
- Ah, Joel, senti tanto a sua falta...
Ele me apertou mais forte, seus olhos também ficando úmidos e nublados.
- Também senti a sua falta, Anna... - sussurrou. Descansei minha cabeça em seu ombro, ouvindo o
som da água do lago lambendo a areia da praia. Eu não sabia muito bem por que estava chorando: se era
porque continuaríamos juntos, ou porque nos separaríamos em breve. Tudo o que eu sabia era que precisava
de um pouco mais de tempo para organizar os meus confusos sentimentos por Joel.

- Veja só como eles são rápidos! - exclamou Lucky sábado à tarde na grande clareira central de
Seneca Falls, onde realizávamos a gincana.
- São mesmo bons - concordei.
As crianças de onze anos de idade estavam disputando a corrida de obstáculos que Kerry e eu
tínhamos organizado. Os campistas tinham de superar uma parte da pista cheia de pneus espalhados pelo
chão sem tropeçar em nenhum, escalar uma série de trepa-trepas e atravessar uma corda pendurada entre
duas árvores por cima de uma piscina de plástico.
Kerry e eu trabalháramos juntos o dia inteiro e nos entendêramos bem. Era como se o nosso curto
"romance" fosse coisa do passado. Agora ele estava com Sam. Nos sentíamos os dois meio sem jeito um
com o outro, mas fiquei contente por ainda conseguirmos pelo menos nos falar.
O local estava lotado de campistas vestindo as camisetas azuis e vermelhas que minhas alunas de
artes tinham tingido. Até aquele momento a gincana tinha sido um enorme sucesso. As crianças estavam
elétricas, e até Susanna sorria de satisfação. Já tínhamos superado a maior parte das provas, e a disputa fora
bastante equilibrada. Eu estava anotando os resultados da corrida de obstáculos enquanto Kerry se
encarregava da prova de natação de meio quilômetro no lago. A prova final seria o cabo-de-guerra, que
incluiria todos os campistas de ambos os times.
Justamente naquele momento Peter apareceu com dois copos de limonada. Ele passou um para mim e
começou a bebericar do seu.
- Obrigada - agradeci, dando um grande gole.
Fazia um dia escaldante, e o sol brilhava num céu sem nuvens.
- É um prazer - disse Peter, me dando aquele sorriso charmoso que era a sua marca registrada.
Então ele se inclinou para mais perto de mim e falou em voz baixa.
- Sabe, fiquei observando os dois times a manhã toda, e cheguei à conclusão de que um dos dois vai
ganhar.
Tive de rir, apesar de todas as minhas desventuras dos últimos dias.
- Peter, você não toma jeito.
Ele sorriu.
- Eu tento.
Um rugido de excitação percorreu a multidão quando as duas últimas garotas, Dana e Elyse, entraram
na corrida de obstáculos. Dana, de camiseta azul, tomou a dianteira e saltou habilmente por cima dos oito
pneus espalhados pela grama. Em seguida começou a escalar com destreza as barras do primeiro trepa-
trepa.
- Vamos lá, Dana!
O time azul inteiro começou a cantar "Da-na, Da-na, Dana", mas então Elyse se aproximou por trás e
o time vermelho começou a gritar ainda mais alto.
As duas meninas já estavam lado a lado quando desciam as barras do último trepa-trepa.
Atravessaram juntas a corda sobre a piscina e aterrissaram sem dificuldades na grama. Cabeça a cabeça,
elas desembestaram a correr pelos cem metros finais até a faixa de chegada.
Dana atingiu a faixa primeiro. O time azul deu um grito de vitória coletivo, e um grupo de campistas
fez uma cadeira com os braços e saiu desfilando com ela pelo gramado.
- Puxa, essa foi emocionante - comentou Peter.
- Nem me fale - respondi dando-lhe um grande sorriso, contente com a vitória do meu time.
Peter sorriu.
- Mas nem de longe tão emocionante quanto você - acrescentou.
Então se inclinou para ainda mais perto de mim.
- Anna, você sabia que os seus olhos cintilam como diamantes quando sorriem?
Eu ainda não tinha passado muito tempo a sós com Peter desde que ele se recuperara da febre, e
agora sabia por quê. As qualidades dele que tanto tinham me atraído no verão passado sua maturidade, seu
cosmopolitismo - ainda estavam todas lá. Mas, por alguma razão indefinível, toda aquela sua sofisticação
agora me parecia falsa, artificial. Ele era o mesmo Peter de antes, o mesmo cara que sabia dizer todas as
palavras certas nas horas certas. Mas eu tinha mudado.

***

- E então, como foi? - perguntei a Kerry meia hora mais tarde no lago.
Ele estava de sunga e camiseta vermelha, com o cabelo molhado.
- O meu time vermelho ganhou - ele respondeu. - E pra você, como correram as coisas?
Sorri também.
- O meu time azul ganhou, claro.
- Isso significa que ficamos empatados - disse ele, ainda sorrindo. - Ou seja, guerra.
Kerry pegou o megafone e berrou com força.
- Atenção todos! Estamos entrando na etapa final de uma competição extremamente disputada. Os
dois times ficaram empatados até agora! Vamos para a última prova, o cabo-de-guerra. Por favor, todos aos
seus postos.
Quinze minutos mais tarde todos os campistas de Seneca Falls estavam em linha segurando a longa
corda. Lucky e Sam se juntaram a eles, cada uma numa extremidade da corda. Lucky ficou no meu time, e
Sam no de Kerry.
- Atenção! Um, dois, e... já! - berrou Kerry, assoprando o apito que segurava entre os dentes.
- Ei, Anna! - me chamou Joel, trazendo um cachorro-quente na mão. - Quer uma mordida?
Sacudi a cabeça negando, totalmente absorvida pela excitação da disputa. Os monitores ficaram de pé
nas laterais animando as crianças. Algumas delas puxavam a corda com tanta força que chegavam a ficar
quase paralelas ao chão.
O time azul começou a se aproximar perigosamente da linha divisória e redobrou seus esforços. Eles
enterraram os pés na terra, gritando, gemendo entre os dentes, puxando com todas as suas forças. Mas o
time vermelho finalmente os sobrepujou, arrastando os primeiros campistas do outro lado por cima da linha.
- O time vermelho é o campeão! - explodiu Kerry no megafone.
As crianças do time vermelho enlouqueceram de alegria, saltando feito loucas pelo gramado e
abraçando umas às outras.
Sam guinchou e correu até Kerry, jogando seus braços ao redor do pescoço dele. Fiquei observando.
Ele se desvencilhou gentilmente do abraço dela, e os dois se sentaram juntos num banco próximo. Então ela
se inclinou e sussurrou alguma coisa em seu ouvido.
- Tudo bem com você? - perguntou Joel.
Eu devia estar com uma indisfarçável expressão de dor no rosto.
- Tudo... - respondi.
Mas eu acabava de constatar algo importante: sem dúvida amava Joel, seu jeito de sorrir, o cálido e
familiar som de sua voz... Mas não estava mais apaixonada por ele. Afinal, não era normal que eu me
sentisse impelida para fora da nossa relação com tanta freqüência. Era um sinal de que havia alguma coisa
errada.
Joel e eu nos tornáramos os melhores amigos do mundo ao longo daqueles três anos, mas agora isso
era tudo o que éramos um para o outro - amigos. E eu suspeitava de que ele pensava do mesmo jeito.
- Joel - comecei ternamente -, precisamos conversar.
Joel concordou com um gesto de cabeça.
- Eu sei – disse ele.

Dez minutos mais tarde estávamos os dois sozinhos num recanto isolado na trilha à margem do
bosque. Joel sentou-se num banco com os cotovelos apoiados nos joelhos. Fiquei andando num pequeno
círculo à frente dele, com minha cabeça dando mil voltas por segundo.
Chutei algumas pedras no chão, me sentei no banco ao lado dele e me levantei de novo. Finalmente
dei um suspiro trêmulo e o encarei.
- Joel, tenho uma coisa pra contar a você.
Mas Joel ergueu uma mão.
- Escute, Anna, eu sei - ele começou. - E não tenho certeza de que quero ouvir isso que você está a
ponto de me contar.
Num primeiro momento eu hesitei, mas então balancei a cabeça, concordando compreensiva. Me
sentei de novo ao lado dele e o olhei atenta e carinhosamente.
- Joel, algo mudou entre nós - continuei. - É como... como se o fogo tivesse acabado.
- É, eu sei - ele concordou. - E acho que já faz um bom tempo.
Eu raspei meus pés na terra e reuni toda a minha coragem. - Tenho a sensação de que estamos só nos
agarrando ao passado. Nenhum de nós dois quer deixar a coisa terminar, mas acho que já é hora...
Seus olhos azuis se ensombreceram, doloridos. Então senti sua mão na minha. Levantei o olhar para
ele, piscando para reprimir minhas lágrimas.
- Tem razão, Anna - disse Joel. - Falta algo. Acho que sempre vou amar você, mas acho também que
não estamos mais apaixonados.
Estremeci de dor. Mesmo concordando com tudo o que Joel dissera, era duro ouvir aquelas palavras
saindo de sua boca. Apertei meus joelhos contra o peito e senti duas lágrimas quentes queimando meus
olhos.
- E preciso confessar algo a você, Anna - continuou. - É sobre a Jackie. Nada aconteceu ainda, mas
parece que a coisa está... você sabe, caminhando nessa direção.
Jackie?! Fechei os olhos e tentei reprimir as minhas emoções.
Eu sabia que não tinha o menor direito de ficar brava com Joel por ele estar interessado em Jackie, já
que eu passara as últimas semanas pensando exclusivamente em Kerry. Respirei fundo e dei um sorriso
trêmulo.
- Tudo bem, Joel - falei, tentando ser forte. - Eu entendo. Me aproximei dele e lhe dei um grande
abraço.
- Estou feliz por você ter vindo - sussurrei. - Feliz por termos passado algum tempo juntos antes de...
Mas não consegui terminar, vencida pelo choro.
Joel me abraçou de volta.
- Você é o máximo, Anna.
- Vamos ser sempre grandes amigos, não vamos? - perguntei aos prantos.
Joel se inclinou para trás e me fitou com carinho, seus olhos também rasos d'água.
- Sempre - confirmou ele com voz rouca. - Bom, acho que já está na hora de eu pegar o caminho de
volta pra Washington...
Enxuguei minhas lágrimas com o dorso das mãos, sentindo um aperto no coração. Eu sabia que fizera
o que tinha de ser feito, que Joel e eu não dávamos mais certo como casal. Mas três anos era um bocado de
tempo. E doía.
17

A força do destino, mais uma vez


Sábado à noite desci até o lago. Todo mundo se reunira na grande clareira central do acampamento para ver
os fogos de artifício, mas eu preferira ficar sozinha. Lucky, Peter e eu tínhamos passado o dia com meus
campistas fazendo uma caminhada pelas montanhas. Eu pensara o dia inteiro em Joel... e Jackie. Meu namorado -
agora ex-namorado - e minha melhor amiga. No entanto, estava contente ao menos por uma coisa: continuaria no
acampamento, longe deles, pelo resto do verão. Isso me daria tempo suficiente para me adaptar àquela nova
situação.
No fundo eu sabia que era o melhor que podia ter acontecido. Joel e eu tínhamos feito a coisa certa. E
sempre seríamos amigos muito próximos. Quanto a Joel e Jackie, eles formariam um belo casal.
Tirei minhas sandálias ao chegar à praia e caminhei descalça pela areia. A praia me fez pensar em Kerry.
Tudo me parecia tão familiar agora - a faixa tortuosa de areia branca, o oval verde do lago, o longo píer se
estendendo para dentro da água. Aquele era o nosso cantinho: de Kerry e meu.
Olhei para o lago sombrio e tenebroso, relembrando o dia em que Kerry me puxara pelo tornozelo para
dentro d'água, o dia em que salváramos Danny de se afogar, aquela vez em que os campistas tinham brincado no
píer quanto a sermos namorados...
E agora, tudo acabado. Uma pontada de dor atravessou meu coração como uma faca. Eu perdera Kerry para
sempre.
Caminhei pelo píer e me sentei na beirada, balançando os pés na água fria. Me inclinei para trás e fiquei
deitada olhando para o céu estrelado.
De repente uma magnífica festa de fogos de artifício iluminou a noite. Uma chuva de luzes vermelhas
explodiu no horizonte, seguida por cascatas de luzes azuis e amarelas. Me senti sozinha, desejando que Kerry
estivesse ali assistindo aos fogos comigo. Era o fim de semana que tínhamos planejado passar juntos. E só por
minha culpa estávamos separados.
Ouvi o som de passos nas tábuas do píer e me sentei imediatamente. Me virei para ver quem era, e minha
respiração ficou entalada na garganta. Kerry. Vestindo uns jeans largos e uma velha malha azul, me pareceu mais
lindo do que nunca.
- Kerry! - sussurrei.
Ele se ajoelhou perto de mim.
- Sonhando de novo? - perguntou com suavidade.
Suas palavras me comoveram. Trouxeram de volta o dia em que nos conhecêramos no ônibus e aqueles
primeiros dias no acampamento, quando ele me provocara sem piedade... Quando eu começara a me apaixonar.
Perigosamente perto das lágrimas, resolvi fazer uma confissão.
- Kerry, eu sinto tanto por tudo o que aconteceu... Eu não queria...
Mas minhas palavras foram abafadas pelo trovejar dos fogos. Explosões de luzes verdes, amarelas e
vermelhas seguiram-se numa rápida seqüência, colorindo o céu da meia-noite. Por fim uma chuva de luzes
brancas irrompeu no ar, e o silêncio voltou.
Kerry sentou-se ao meu lado, balançando a cabeça.
- Tudo bem, não tem importância. Eu sabia o que estava rolando.
- Você sabia? - perguntei, olhando para ele em estado de choque.
Ele fez que sim com um gesto de cabeça.
- Lucky me contou.
- Tudo? - insisti.
- Tudo.
Respirei fundo, trêmula.
- Bom, pois duvido que você saiba que Joel e eu terminamos - revelei. - Finalmente percebi que estávamos
nos agarran do ao passado... e que era só isso o que nos restava: lembranças de tempos melhores.
Olhei diretamente nos belos olhos castanhos de Kerry.
- Kerry, eu realmente sinto muito por ter arrastado você pra dentro dessa confusão. Por não ter sido
completamente honesta a respeito de Joel. Acho que na verdade eu queria conhecer você melhor primeiro...
- Eu também queria... - disse ele num sussurro.
Continuei chutando suavemente a superfície da água.
- Mas não quer mais - emendei com tristeza. - Agora você tem Sam...
- Pra ser franco, Anna, eu fiquei tão magoado ao ver Joel na sua cabana ontem de manhã que resolvi ficar
com a Sam - Kerry confessou. - Não queria ficar sozinho assistindo você e Joel se divertirem.
Eu sorri.
- Então foi por isso que você convidou a Sam pro baile?
Kerry me olhou com uma expressão zombeteira.
- O quê!? Eu não convidei ninguém. Foi ela quem me convidou.
- Ah... Bom, em todo caso nada disso importa mais agora.
Kerry pousou uma mão no meu joelho.
- É, tudo isso é passado - confirmou ele. - Eu conversei com Sam, e lhe expliquei que não posso ser nada
mais do que um bom amigo pra ela.
Fiz um gesto de assentimento com a cabeça, meu coração explodindo de felicidade. De repente Kerry me
agarrou em seus braços e me deu um beijo de fazer a terra tremer. Fechei os olhos e me perdi na eternidade
daquele momento. Quando nos separamos, me sentia sem fôlego.
- Eu tinha um bom motivo pra ir à sua cabana ontem de manhã. Pretendia contar uma coisa a você... - disse
Kerry, com voz grave e rouca.
Então ele pegou meu rosto com ambas as mãos e olhou fundo nos meus olhos.
- Eu... Eu te amo, Anna Morris.
- Eu também, Kerry. Eu também te amo - sussurrei.

***

E essa é a minha história. No fim tudo deu certo. Joel até me escreveu uma carta dizendo que eu sempre
ocuparia um lugar muito especial em seu coração. Espero que sejamos melhores amigos do que namorados. E
Jackie e eu tivemos uma conversa de mulher pra mulher. Ela não queria fazer nada que pudesse me magoar, e o
fato de ela colocar a nossa amizade em primeiro lugar significou muito pra mim. Fiquei realmente feliz por ela e
Joel.
Kerry e eu também tivemos o nosso final feliz. Passamos todos os dias restantes do verão juntos no lago - e
algumas noites também -, com a perspectiva de um longo romance se estendendo à nossa frente. Eu sabia que
tinha feito a escolha certa. Kerry é o tipo de cara que eu quero e de que preciso. Só demorou um pouquinho pra eu
perceber isso.
Sam acabou ficando com Derek. Parece que eles continuam juntos até hoje. Mas o mais surpreendente de
tudo foi Lucky e Peter. Depois da nossa caminhada pelas montanhas naquela tarde de sábado, Peter decidiu
continuar no acampamento pelo resto do verão. Mas não por minha causa: por Lucky. Susanna o contratou como
assistente do cozinheiro-chefe de novo, e ele com certeza incrementou o menu do acampamento. Peter preparava
requintados pratos vegetarianos para Lucky, e ela lhe ensinava tudo o que sabia sobre a natureza e os animais,
especialmente as espécies em perigo de extinção, sua especialidade. Lucky finalmente encontrara alguém que não
tinha medo dela, e Peter encontrara alguém que não se impressionava com sua sofisticação. Quando Peter
começava a esnobar com seu francês pra cima dela, ela respondia em francês e ele se calava boquiaberto.
Lucky não queria admitir, mas eu tinha certeza de que havia algo mais do que simples amizade entre ela e
Peter. No dia em que peguei os dois conversando baixinho no bosque atrás da nossa cabana, Lucky ficou roxa de
vergonha.
Por falar em roxo, no fim das contas ambas perdemos a aposta - e ambas ganhamos. Demos um pulo até a
cidade e tingimos nossos cabelos com tintas laváveis. Eu pintei o meu de roxo e ela de verde-néon, conforme o
combinado.
Mas as nossas cabeleiras coloridas duraram pouco. As campistas acharam o máximo, e logo tivemos um
pequeno surto de loucura coletiva em Seneca Falls. Nikki e Olívia pintaram seus cabelos de vermelho, e Elyse de
azul. Jennifer fez meio a meio: metade azul, metade vermelho.
Susanna quase se jogou na cachoeira quando viu aquilo. Convocou uma reunião de emergência do seu
estado-maior e nos, acusou de estar provocando um motim.
- Vocês vão transformar este acampamento numa colônia de punks! - bradou ela.
Não deu outra: todas nós tivemos de tirar a tinta dos nossos cabelos imediatamente.
De vez em quando fico relembrando os primeiros dias daquele verão, quando Kerry Halley não fazia nada
além de me encher a paciência. Se alguém tivesse me dito que eu ia me apaixonar por ele, teria achado que esse
alguém precisava ser internado urgentemente num hospício. Mas o amor é mesmo muito louco...

FIM

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