Você está na página 1de 172

Angélica, rainha de Quebec

Quando, em 1663, Luís XIV transformou a Nova França em província real, englobando
a Acádia e o Canadá, Quebec já era o centro administrativo dos poderes civis, militares e
religiosos dos territórios franceses na América do Norte. Apenas consolidou-se, nessa
ocasião, a interferência direta da Coroa nos negócios da colónia, com a criação de um
Conselho Superior. Este incluía, além do governador, o bispo, vários conselheiros e, a partir
de 1665, uma nova autoridade, o intendente. A eles competia a administração da justiça e
das finanças, além da manutenção da ordem pública.
Aos poucos, as atribuições do governador e do intendente se confundiram, provocando
frequentes discórdias entre ambos e prejudicando o governo. Também o papel do conselho
restringiu-se, terminando por manter-se apenas como corte de apelação.
Junto a esses prepostos do rei, Angélica e o marido, o Conde Joffrey de Peyrac,
recorrem em busca de justiça. Tentam o perdão por uma condenação injusta e talvez, quem
sabe, a devolução de títulos e bens indevidamente confiscados.
"Você não precisa de inspiração diz o Conde de Peyrac "Por trás de seu encanto
existe magia!"
No castelo de popa do navio Gouldsboro, ancorado na enseada de Quebec, Angélica
adornou-se de jóias e cetim para ser recebida pelo Sr. de Frontenac, governador da Nova
França e representante na América de Luís XIV, que, um dia, ela desafiara.
A medida que se aproximava hora de desembarcar, vinham-lhe à mente todos os
obstáculos que faziam desse encontro uma loucura. O rei da França, os banira um dia, a ela
e ao marido, o Conde Joffrey de Peyrac. Durante longos anos, lutaram contra o soberano,
que os condenara injustamente. No Novo Mundo, mesmo, muitos franceses do Canadá os
consideravam inimigos, aliados dos ingleses.
Agora, ignorando esses entraves pojíticos, desafiando todas as leis, eles iriam avistar-se
com o governador, para negociar um tratado de boa vizinhança. Um primeiro passo para
recuperar seu lugar no reino e, quem sabe, um dia, reaver nomes e títulos de que se
consideravam indevidamente despojados.
Amanhecia. A luz no interior da cabine esmaeceu. Ao longe, a pequena cidade colonial,
perdida nos ermos selvagens do Canadá, parecia espreitá-los, impassível, sonhadora.
Angélica tocou um dos brincos de diamante, ajeitou outra vez algumas mechas de
cabelo, antes de se expor aos olhares do mundo. As horas seguintes decidiriam sobre seu
destino...

Angélica, rainha de Quebec


Anne e Serge Golon

A bordo do navio Gouldsboro, a nau capitânea da frota do marido, o Conde Joffrey de


Peyrac, Angélica observava apreensiva o amanhecer diante da cidade de Quebec, a capital
da Nova França.
Antes do anoitecer, sua sorte estaria selada: entre os muros da cidade e o rio ameaçado
pelo gelo. Havia pouco, Angélica tivera de convencer a fiihinha, Honorina, a deixar-se
vestir de modo conveniente para. acompanhá-los à presença do governador, O Sr. de
Frontenac, Florimond, o filho mais velho, juntarã-se à comitiva "no último momento,
enquanto o segundo filho, Cantorjjcomandava o navio, Le Rochelais. Antes do
desembarque, atingia a todos uma agitação intensa, à qual não se furtavam nem mesmo os
hóspedes mais eminentes: o Conde Nicolau de Bardagne, emissário secreto do rei; o
intendente João Carlon; e o governador da Acádia, Marquês de Ville-d'Ayfay. No momento
da chegada à enseada da cidade, Joffrey de Peyrac entrara no camarote de Angélica com
três vestidos para que escolhesse: um azul, um púrpura e um dourado. Com um gesto
teatral, o conde ordenara em tom irónico: "Que a festa comece!..."

A CHEGADA

CAPÍTULO I

A estratégia da Conde de Peyrac

Foi o vestido azul que Angélica escolheu. Era um vestido de cetim pesado, quase
branco, mas quando as pregas se abriam ou se alinhavam em camadas brilhantes, surgiam
reflexos de um azul puro, acompanhando cada movimento do suntuoso brilho delas,
deixando vislumbrar também um rosa imperceptível como o de unja-aurora.
Olhando para a janela do castelo de popa do navio Gouldsboro, ancorado na enseada de
Quebec, Angélica pensava consigo que o vestido eraidêntico àquela manhã gelada e imóvel
que os aguardava láíora, mergulhando as mesmas nuanças de nácar nas águas calmas do
Saint-Laurent, derramadas como as águas de um lago tranquilo ao pé das muralhas de
Quebec.
Também a cidade estava rosada. Dela não subia nenhum som. Impassível e sonhadora,
a pequena cidade colonial, perdida no seio dos ermos selvagens do Canadá, parecia reter o
fôlego e esperar.
Angélica sentia a cidade a espreitá-la, a observá-la, enquanto no salão do Gouldsboro,
em pé diante do espelho, ela, Angélica de Sancé de Monteloup, Condessa de Peyrac,
proscrita do reino de França, terminava de preparar-se para ser recebida pelo Sr. de
Frontenac, governador da Nova França e representante na América daquele mesmo Rei
Luís XIV que, um dia, ela desafiara em sua revolta.
Era por isso que uma leve apreensão lhe estreitava a garganta, ainda que ela se proibisse
de senti-la e parecesse dedicar à toalete toda a atenção necessária. Seu rosto permanecia
sereno, os grandes olhos verdes exprimiam apenas a vigilância crítica com que ela
observava o próprio reflexo no espelho.
Por nada no mundo a jovem deixaria transparecer o menor alarma diante dos que a
cercavam e a ajudavam a vestir-se: suas acompanhantes, o costureiro, Kuassi-Ba, o grande
negro que segurava o cofre de jóias.
Mas aproximava-se a hora de desembarcar e vinham-lhe à mente todos os obstáculos
que faziam daquela decisão uma loucura. O rei da França os banira um dia, a ela e ao
marido, o Conde de Peyrac. Durante longos anos tinham estado em luta contra esse
soberano; que, por ciúme e receio de um rival poderoso, os condenara injustamente.
No Novo Mundo mesmo, muitos franceses do Canadá os consideravam aliados da Nova
Inglaterra, de que eram vizinhos, e por isso os tinham como inimigos.
Ora, ignorando esses entraves políticos, Joffrey de Peyrac, com cinco navios da sua
frota, acabava de aportar em Queb ec a fim de avistar-se com o Sr. de Frontenac e travar
uma aliança de boa vizinhança. Um primeiro passo para recuperar o seu lugar no reino de
França e, quem sabe, um dia, recuperar nomes e títulos de que fora indevidamente
despojado. As horas seguintes decidiriam sobre o destino deles.
Angélica meditava na diferença entre as reações de um homem e as de uma mulher
diante de uma situação extrema.
A ela, enfrentar uma hostilidade injustificada a afetava muito mais do que àquele
homem que, afrontando as piores perseguições, descobrira nisso uma espécie tle
divertimento.
Ele entrara há pouco, escoltando os vestidos e jóias que traziam para ela, e exclamara:
— Que a festa comece!
E estava ali atrás dela, num riquíssimo traje de cetim marfim. O plissado em losangos
era preso por perolazinhas e incrustado de cetim carmesim. No momento o olhar de Joffrey
de Peyrac, fito no reflexo de Angélica no espelho, brilhava com uma admiração contida,
atento aos últimos detalhes a acrescentar aos adornos de sua mulher para a entrada em
Quebec. Mas ela não duvidava de que ele, no íntimo, estava impaciente por ver "a festa"
começar. Naquele instante se sentia diferente e até um pouco, distante dele.
Aquele retorno à França, ainda que se limitasse a eles porem os pés na pequena capital
do Canadá, despertava nela a recordação de sua luta pessoal com o rei. O intransigente so-
berano jamais lhe perdoaria o fato de ela haver se recusado a ele.
Toffrey, com sua frota, sua riqueza, com a força que lhe conferiam os seus
estabelecimentos no Maine, encontrava-se numa posição mais segura.
Os acasos do verão tinham trazido para bordo de seus navios duas grandes personagens
da Nova França: o Sr. de Ville-d'Avray, eovernador da Acádia, e o intendente Carjon, aos
quais Joffrey tivera ocasião de prestai- favores. Com o apoio do Sr. de Fron-tenac, o
governador, e á garantia dé que o Sr. de Castel-Morgeãt, governador militar, não interviria
é que o bispo permaneceria neutro, era possível augurar uma boa acolhida em Quebec.
No entanto, era preciso levar erri conta o Padre d'Orgeval, que os combatera na Acádia
e que detinhagrande influência sobre os índios aliados dos franceses, abenakis e
algonquinos, e sobre um número enorme de pessoas devotas, desejosas de manifestar-lhe a
sua dedicação. O jesuíta criara um movimento malévolo em relação ao recém-chegado
Joffrey de Peyrac, que, marchando sob os gróprios.estandartes, instalara-se nos confins da
Acádia, considerada domínio do rei da França, e que comerciava com os ingleses. Para
agravar a situação, uma religiosa de Quebec, no ano anterior, tivera uma visão em que lhe
aparecera uma mulher belíssima trazendo muitas infelicidades para a Nova França. A voz
popular se apressara em ver na mulher do Conde de Peyrac, cuja. beleza era renomada, a
diaba anunciada.
Era de rir. Mas essas .correntes fanáticas acarretavam guerras. Hoje seria preciso
esclarecer a situação ou vê-la desembocar numa solução belicosa.
Nesta colónia turbulenta havia tantos partidos que os compromissos assumidos por uns
corriam o risco de nem sempre serem respeitados por outros. Entre os partidários do jesuíta,
tinham-lhes falado de Castel-Morgeat, que detinha o controle do exército, e sobretudo de
sua mulher, Sabina de Castel-Morgeat, descrita como autoritária e temível. Na outra
extremidade da escala, tinham falado de Janine Gonfarel, que reinava sobre
estabelecimentos mal-afamados da Cidade Baixa e que, para obter certa tolerância dos
eclesiásticos, apoiava-lhes a política. Havia que contar com reservas. O aparecimento de
Angélica naquele vestido maravilhoso, da última moda, não suscitaria a inveja daquelas
senhoras?
— Não seria melhor eu chegar vestida com simplicidade e passar despercebida, como
em Tadoussac? — perguntara.
— Não — respondera Peyrac. — Você tem que seduzi-los, subjugá-los... Não pode
desapontá-los, também. O povo espera uma aparição... Há que dar-lhe uma aparição. A
Dama do Lago de Prata... Uma personagem de lenda...
Assim, Angélica não se enganava sobre a importância dos primeiros momentos e da
impressão que causaria sobre aquela multidão, reunida para vê-la e em meio à qual se
disputavam sentimentos contrários.
Nesta noite Joffrey de Peyrac e os seus dormiriam dentro das muralhas de Quebec ou
seriam obrigados a retirar-se, com a sua pequena frota vencida e, além disso, emboscada
pelo grande rio setentrional que logo seria invadido de gelos.
Joffrey de Peyrac também sentia isso. Era Angélica qre desempenharia o papel mais
decisivo. E, consciente da carga que lhe incumbia, elaborara um plano audacioso, insólito e,
para Angélica, inesperado.
— Você será a primeira a desembarcar, sozinha e como foco de todos os olhares. O Sr.
de Ville-dAvray a escoltará. Já lhe comuniquei isso. Está encantado. Duas chalupas a
acompanharão, com homens armados: a sua guarda de honra. Assim, vindo dos navios,
você será a única a aparecer diante deles, e o seu esplendor os deixará estupefatos.
Aproveitará disso para pousar o seu pé encantador no solo de Quebec como uma deusa
retornando de Citera. O Sr. de Frontenac, o governador, esse homem galante que está do
nosso lado, lhe estenderá a mão, e assim a multidão verá que você não é mais do que uma
mulher das mais graciosas, um ser inofensivo, a encarnação mesma da feminilidade e de
seus encantos. Será recebida por si mesma e não porque é minha esposa e porque está sob a
proteção das minhas armas.
E acrescentou:
— Está de acordo?
Mas não precisou esperar por uma resposta. Os olhos brilhantes de Angélica lhe diziam
de como o plano parecia feliz para ela e de como convinha à sua natureza impetuosa e
empreendedora.
 Pois conhecemos os franceses, não é? Entre nós, podemos nos mostrar desconfiados
diante de forças armadas, mas não podemos repelir uma mulher que avança sozinha...
 E você, nesse meio tempo, fará o quê?
 Eu, nesse meio... cercarei a cidade!

CAPITULO II

A aventura começa

O vestido era belíssimo. Apesar das preocupações, Angélica só podia sentir-se feliz
com a própria imagem no espelho. Naquele traje, vindo de Paris, notara certos detalhes
novos. Assim, parecia que agora já não se usava, ou usava-se menos, o manto do vestido
arregaçado em "cestos" sobre uma ou duas outras saias; esse rríanto, agora, caía
completamente, e era da mesma cor da saia sobre a qual se entreabria.
Exibia-se toda a magnificência do tecido, cujas nuanças irisadas eram dignas de
fascinar o olho mais-refinado. A blusa de pontas curtas, igualmente rebordada de rosas, e o
peitilho, rijo de barbatanas, eram do mesmo tom achamalotado. Havia um laço de cetim e
uma espécie de gola de renda um pouco armada, que seguia a, linha do decote e subia por
trás, pela nuca, emoldurando o pescoço, cuja alvura se realçava com graça desse precioso
invólucro.
Nessa vestimenta de sonho, Angélica tinha um ar irreal. Sua pele ambarina, que ela
empoara, captava a luz. Era como se estivesse iluminada por dentro. Dedicara um cuidado
especial à pintura dos olhos e desenhara a linha exata das sobrancelhas. Um pouco de
carmim —"sumo de orcaneta misturado com um ocre claro — sublinhava-lhe com um
ondeado imperceptível o relevo das maçãs do rosto. Passara mais de uma hora, desde o
alvorecer, entretida com a maquilagem, e apesar do frio intenso que reinava na cabina ela
parecia acalorada, devido à concentração que lhe exigira. A vida de aventureira a
desabituara da rotina de Versalhes, quando tinha que maquilar-se antes de surgir sob as
luzes da corte.
Acabara, afinal, e era de crer que o resultado agradava, em vista do olhar que Joffrey de
Peyrac lhe dirigia. Os olhos escuros do conde brilhavam de satisfação, mas havia também
um pouco de ternura em seu meio sorriso.
Era mais uma Angélica nova que ele descobria, a que fora uma grande dama em
Versalhes, desejada pelo rei. Mas isso não o agastava, pois desde que a reencontrara
aprendera a conhecê-la e a amar todos os aspectos do seu caráter. Ela o surpreendia com
frequência, inquietavam às vezes, mas o encantava mais ainda com a sua natureza mutável
mas coerente consigo.
Avançou a mão e pousou os dedos no colo de Angélica, roçando-o com uma carícia.
 Este decote admirável exige diamantes. Depois, mudando de ideia:
 Não! Pérolas! São mais suaves.
Voltou-se para o cofrinho que Kuassi-Ba, o criado negro, lhe estendia. Escolheu um
colar de três voltas de pérolas.
No espelho, o casal que os dois formavam trouxe-lhes à mente a recordação de uma
cena semelhante que tinham ambos vivido outrora, no seu palácio em Toulouse, muitos
anos atrás.
Entenderam que estavam ambos evocando a mesma imagem. Toulouse.
— Você me amava então — disse Peyrac. — Como parece distante! Você me fez
sofrer mil mortes. Mas, palavra de honra que eu a teria esperado até o final dos tempos! Eu
só a queria pela sua livre e espontânea vontade, não pelos meus direitos de marido, minha
maravilhazinha! E continua sendo assim.
Olharam na direção da cidade, com o pressentimento de que esse retorno ao mundo
francês ia oferecer-lhes a oportunidade de recomeçar tudo o que fora destruído, devastado.
Finalmente deixariam de ser nómades cruzando os mares ou metidos no fundo das matas.
Ver-se-iam outra vez entre seus pares, jogando o jogo deles, ou desempenhando os próprios
papéis no coração de uma sociedade calcada sobre o Velho Mundo.
Segurando-a pelos ombros, perguntou baixinho:
 Está com medo?
 Um pouco.
E como ela tivesse um leve arrepio, ele disse:
— Você está com frio. Mando buscar seu manto.
Delfina, a jovem camareira, chamou Henriqueta e Iolanda e também requisitou o
auxílio do costureiro e de Kuassi-Ba, pois o manto não era fácil de carregar. Era feito de
pele branca, forrado de lã fina e cetim branco, com um amplo capuz bordado em ouro e
prata por dentro. Tinha-se que prestar atenção para que não arrastasse no chão, jájque o
soalho de um navio nem sempre era o que se podia encontrar de mais limpo. Saíram em
corteja para buscá-lo num gabinete contíguo, onde desde a véspera o manto estava
estendido sobre arcas. Joffrey de Peyrac olhava Angélica no espelho. — O que você pode
temer, meu amor? Não ter êxito, ou seja, não emocionar? Ignora a que ponto fascina
aqueles que a encontram? É tão inconsciente assim do poder de sedução que emana de sua
pçssoa? Quem pôde destruir essa confiança imbatível que você deveria ter? Mas, se
duvida,^ saiba que esse encanto não perdeu nada de sua intensidade. É mais temível do que
nunca... Mak irresistível do que nunca... Eu gostaria de analisar nas minhas retortas os
elementos que o compõem, 'averia de encontrar os mil segredos de uma alquimia que ão
está longe de assemelhar-se à magia. Oh, minha querida, inha belíssima! Você que é tão
hábil em me torturar, que o menos o que lhe garante tamanho poder sobre aqueles que
cercam a confirme "na certeza da sua vitória... Esse rasgo de espírito em que passava, na
voz quente e um ouço velada do conde, o sopro inspirado do amor cortesão os trovadores
do Languedoc, de que ele fora um dos mais enomados, esse rasgo formulado num tom de
ternura e ale-ria, mas onde se sentia vibrar uma paixão total, arrancou um orriso a Angélica.
Voltou-se outra vez para o espelho. E o eflexo lhe devolvia a imagem.-Um dom de sedução
que ela sara com tantos homens, que às vezes maldissera, outras ve-es abençoara, mas que
não podia lamentar continuar a sentir que ainda o tinha. Joffrey tinha razão ao lembrá-la
disso. Chegara o dia de reen-ontrar aquela Angélica que, ao loHgo do ano, se recobrara e
suas derrotas.
Compareceria perante aquela multidão com toda a confian-a de que era capaz e não a
decepcionaria. Se a achassem bela e feliz, os medos se acalmariam e os ódios se
entorpeceriam momentaneamente.
Tocou um dos brincos, para ver o reflexo do diamante sobre o rosto. Tudo aquilo era
belíssimo. Seus dedos ajeitaram outra vez algumas mechas de cabelo aqui e ali. Era o gesto
último, que todas as mulheres fazem no instante de se exporem ao olhares do mundo. Rito
mágico. Sinais de exorcismo a fim de se recriarem, encarnarem e surgirem aos próprios
olhos daquele modo como gostamos de nós, como existimos.
O êxito torna-se certo, então, e a gente sorri ao espelho.
As pessoas retornavam com o manto branco, carregando-o pelas quatro pontas, como
um estandarte. O Conde de Pey-rac pegou-o e passou-o ele próprio sobre os ombros de
\ngé-lica, ajeitando as pregas e dispondo o capuz macio em torno dos brilhantes cabelos
dela. Era como se a estivesse vestindo para armá-la cavaleiro. Como se o manto, qual uma
armadura, pudesse dar-lhe proteçào, mas também designá-la para combate.
Era a armadura de sua sedução feminina que hoje lhe granjearia Quebec.
Delfina aproximou-se e ofereceu um pente, um alfinete.
— Senhora, devo acompanhá-la? — indagou a moça. — Tenho aqui o cofrinho com os
seus acessórios.
— Não, é inútil, não quero expô-lj. Talvez haja perigo.
Joffrey de Peyrac interveio.
— Senhorita, seu cuidado me parece louvável. Mas hoje não quero para você nem para
suas companheiras uma posição... de primeira linha. Seguirá para o Le Rochelais, onde se
encontram as crianças, com lolanda. Lá lhe darão instruções para que possam todas
desembarcar na hora certa e participar da festa.
Docilmente, as moças deixaram os objetos de que estavam encarregadas e, depois de
uma pequena reverência, retiraram-se sob a égide de um dos homens do Gouldsboro, que
estavam especialmente incumbidos de protegê-las durante a operação de desembarque
prevista.
Angélica ouviu o conde ordenar a Kuassi-Ba:
— Mande vir até aqui o Sr. de Castel-Morgeat...
Ela teve um sobressalto.
O Sr. de Castel-Morgeat, coronel, governador militar da Nova França, e que, embora
gascão, era considerado um dos mais ferozes adversários deles, estava a bordo? O que
significava isso?
Angélica entendeu quando viu surgir à soleira da porta, em lugar do irascível
coronel-go,vernador que diziam ser muito intransigente, bigodudo, moreno e de humor
sombrio, o filho dele, o jovem Ana-Prancisco, umsF encantadora aparição. Por enquanto o
sangue gascão só lhe corria nas veias para trazer-lhe a alegria do Languedocj: 6 gosto pelo
amor cortesão e pelos poemas, a alegria de^vivér. Esguioe alto, tinha da raça os olhos
negros, a tez de ameixa amadurecida pelo sol e pela aventura, o sorriso cintilante.
Parecia-se com Florimond como um irmão, e não surpreendia que se tivessem entendido
muitíssimo bem quando o,acaso os fizera conhecer-se na região dos Mares Doces,
conforme chamavam os Grandes Lagos.
Com os cabelos presos por uma faixa à índia bordada de pérolas, a indumentána*"de
camurça mas acompanhada de um peitilho de renda-atado segundo a moda, o que bastava
para conferir-lhe-um ar^dé elegância, ele era a imagem absoluta daqueles jovens, ébrios de
liberdade, que a colónia produzia como frutos novos, de ama espécie não conhecida de
todo, ainda que lembrasse p sabor do Velho Mundo e das castas ou províncias de que eram
originários.
Saudou com uma-graça de jovem senhor, e repetiu a saudação, mais profundamente,
diante de Angélica. Os olhos ardentes não ocultavam a admiração que ela lhe inspirava.
Ficou pasmado e encontrou dificuldade em voltar-se para Peyrac, na frente de quem se
postou cortesmente, esperando que o conde lhe informasse as razões da convocação. O
conde o examinava com simpatia e indulgência.
Ao olhá-los assim face a face, O jovenzinho e o gentil-homem aventureiro de têmporas
grisalhas e rosto marcado de cicatrizes, era espantoso e quase emocionante perceber como
eram semelhantes as raízes de que a Aquitânia forjara os seus filhos.
 Belo senhor — disse-lhe Peyrac —, ouvi dizer que serviu como pajem na corte da
França durante alguns anos...
 É verdade. Estive a serviço da Sra. de Valenciennes, uma amiga de minha mãe. Eu
lhe segurava a cauda. Depois, quando meus pais partiram para a Nova França, entrei para o
serviço da Sra. de Tounnay-Charente, na corte de Monsieur. Mas há três anos, quando o Sr.
de Ville-d'Avray esteve em Saint-Cloud, levando-me notícias dos meus, viu como eu sentia
saudades de minha mãe e obteve permissão para trazer-me consigo quando retornou a
Quebec. Não me arrependo — acrescentou o jovem, com entusiasmo. — A vida é mais
agradável explorando florestas do que carregando a jarra de água e a toalha, passando
bomboneiras, abanando senhoras, ainda que se trate de uma princesa.
— Ah, sim, mas este é o momento de lembrar seu aprendizado. A Sra. de Peyrac
necessita de um pajem para acompanhá-la nesta jornada, carregar-lhe o cofrinho de
acessórios e prestar-lhe assistência, tanto quanto possível, durante a cerimónia que exigirá
da parte dela muito aparato e que não deixará de fa igá-la. Acrescento que o escolhi pela
sua reputação de coragem, habilidade e amabilidade. Você conhece o povo de Quebec.
Saberá, caso necessário, fazer-se reconhecer e assim prestar todo o seu auxílio àquela que
estará escoltando. Você se sente apto a executar essa missão junto da Condessa de Peyrac?
A expressão e a atitude de Ana-Francisco de Castel-Morgeat refletiam seu
encantamento com a proposta. Para ele, era uma sorte inesperada esse papel a desempenhar
junto de Angélica, por quem nutria uma admiração cada vez mais ardente, desde que
embarcara em Tadoussac, vindo do Grand Nord.
Sem se preocupar muito com o próprio traje de explorador de bosques, Ana-Francisco
indagou sobre o cortejo e depois, com muita diligência, foi examinar o cofrinho de
tartaruga engastado em ouro e cuja tampa, ao levantar-se, revelava um espelho que
possibilitava uma olhada rápida e discreta. Indagou sobre o conteúdo, verificou a presença
de pentes e escovas e potes de cosméticos. Havia alfinetes suficientes? Um frasco de sais,
para o caso de desmaio? Pastilhas de cravo para dissipar a náusea? Lenços de renda
perfumada para se abanar, sempre para a eventualidade de uma mal-estar? As damas a
quem servira deviam ser mulheres particularmente sujeitas a indisposições súbitas. Ele fora
bem treinado, e todo o seu saber lhe voltava à mente sem dificuldade, pois é dura a vida
para os pequenos pajens nas cortes principescas. Com os belos olhos, a graça que tinha, a
roupa de índio e a seriedade de que se imbuía de repente, o rapaz era todo encanto. Disse
que ia informar-se sobre Neals e Timóteo, que deviam segurar a ponta do manto, e que, se o
Sr. e a Sra. de Peyrac já não precisavam dele, ia aguardá-los no convés, E saiu, levando o
cofrinho de tartaruga.
Angélica queria olhar o colar de wampum que o chefe iroquês Utakê lhe dera, na
primavera, oefho sinal de aliança. Tinha a impressão de que o colar lhe traria sorte.
Para abrir a arca onde estava guardado, teve que desacomodar o gato, instalado sobre o
baú. O gato, que a acompanhara desde Gouldsboro, não aprovava toda aquela agitação que
desde o amanhecer perturbava o feliz transcorrer dos seus dias. Fingiu mergulhar num sono
profundo. Despertado, espreguiçou-se com ar chocado.-Olhou, aborrecido, Angélica erguer
o colar de conchas, composto de sementes brancas e azuis, um ob-jeto a que a tradição
índia conferia uma virtude de talismã.
O wampum era tido como o ouro e a prata amoedados. Este que o chefe iroquês dera a
Angélica era de valor inestimável. Representava um verdadeiro tratado de paz.
Utakê o chefe das Cinco Nações iroquesas, era o mais feroz inimigo da Nova França.
Mas seu entendimento com Joffrey de Peyrac e Angélica, franceses também, atenuara sua
virulência em relação aos brancos do Canadá.
Animada de uma confiança e de uma certeza renovadas, Angélica recolocou o wampum
no lugar e disse ao gato:
— Alegre-se, pequeno, esta noite você estará em Quebec e poderá vadiar pelas ruas de
uma cidade de verdade.
A aventura começava.
Olhou novamente para Joffrey de Peyrac, seu marido, seu amor, que, mais uma vez,
tendo decidido responder a um desafio, abordava, sem parecerimpressionado com isso, a
última fase, de que dependia a vitória ou a derrota.
"Como ele é grande!", pensou ela. "É quase um estranho, de tão diferente dos outros!"
E, ao mesmo tempo:
"Ele só pode triunfar... em tudo .e sempre... Hoje é o dia da ressurreição".
Angélica pousou a mão sobre o punho que ele lhe apresentava.
— Vamos agora — disse ele—, vamos, senhora! Quebec a espera.

CAPÍTULO III

"A mais bela embaixatriz da América"

Sentiu o frio ferir-lhe o colo assim que surgiu no balcão do primeiro tombadilho. Havia
um alarido enorme, do navio em efervescência nos últimos preparativos para o
desembarque, mas também um tumulto que vinha da cidade, trazido pelo eco das falésias e
pelo ar limpíssimo.
De onde lhe viera a ideia, no salão do Gouldsboro, de que reinava o silêncio ali fora?
O estrépito de sinos em carrilhão e de chamados formava um rumor imenso, que troava
como um sopro na concha de um molusco.
O nevoeiro continuava pairando rio abaixo e escondendo uma parte da costa, mas dava
para se ver que a enseada ao redor estava coberta de embarcações de todp tipo, barcos de
pesca, canoas de madeira ou de casca de árvore, e até uma espécie de balsas de toras
amarradas, com um leme improvisado, nas quais os audaciosos daquelas ribanceiras,
dispondo apenas do rio como meio de transporte, não hesitavam em se lançar de uma
margem à outra.
Joffrey de Peyrac conduziu Angélica pelo primeiro tombadilho. Segurava-lhe a mão, e
de súbito ela adivinhou que ele estava se violentando para deixá-la cumprir uma missão em
que podia correr riscos longe dele.
Uma grande bandeja de prata interpôs-se entre eles. O mordomo e seus auxiliares
apresentavam taças de prata ou cristal, contendo rum ou um álcool translúcido e perfumado
que o senhor de Wapassu e Gouldsboro obtinha em Nova Orange, nas nascentes do rio
Hudson, onde os holandeses o fabricavam com bagas de zimbro.
— O trago de despedida — explicou Joffrey de Peyrac. — A cada um dos meus
combatentes, desde o grumete até você, minha cara, a mais bela embaixatriz das terras da
América.
As taças contendo o álcool estavam pousadas sobre um leito de gelo, pois a bebida
devia ser tomada bem fria.
— Eu preferiria um copo grande deíágua — disse Angélica,
notando que estava com a garganta tão seca, que mal poderia pronunciar duas palavras.
Trouxeram-lhe a água quase imediatamente. Ela bebeu com avidez e soltou um suspiro.
,
— Sinto-me melhor. O que você quer, fiquei como os índios: apenas a água das fontes
me comunica a força da terra.
Viu no olhar de Joffrey de Peyrac que ele estava com uma vontade louca de tomá-la nos
braços e cobri-la de beijos.
 Como você está bonita! Vai ser um triunfo. Não se atira numa mulher que avança
como uma rainha nos seus mais belos atavios. Tercbse-pelo menos o trabalho de examinar
todos os adornos da sua toalete, às suas jóias, o modo como está penteada e... a partida está
ganha., O espetáculo se desenrola, continua. Ninguém se sente tentado a interrompê-lo. A
vida não é assim tão rica de distrações nesta capitalzinha da Nova França.
 Também eu me alegro. A partida será difícil, mas já não sinto medo algum..
 Sim, sim, o medo fica comigo! --- disse o conde, com uma careta. E engoliu de um
trago uma taça de rum.
Ela entendeu que não era sem apreensão que ele a deixava expor-se ao fogo. No
entanto, não duvidava do êxito dela.
Em seguida ele cobriu a abundante cabeleira que o vento agitava com o seu chapéu de
feltro negro, rodeado de uma pluma branca presa por uma fivela de diamantes. E calçou
cuidadosamente as luvas de couro com punhos pespontados de renda.
— Deixo-a, querida, para dar início à manobra de desembarque que lhe anunciei.
Valendo-me do nevoeiro que esconde a embocadura do rio Saint-Charles, desço na margem
e, seguindo pela costa, atinjo os subúrbios da Cidade Baixa e a alcanço em pouco tempo no
porto, com pífaros, tambores e trombetas. Quanto às crianças, tranquilize-se, estão no Le
Roebelais, que vaga um pouco ao largo e só se aproximará quando o grosso das nossas
tropas tiver desembarcado. O Gouldsboro será avisado por um sinal do sucesso da manobra
e, nesse momento, você descerá para a chalupa de honra e seguirá direto para Quebec.
Enquanto falavam, os olhos de ambos continuavam a interrogar-se e a responder-se.
Os corações seguiam outro diálogo. "Eu te amo... você existe... é maravilhosa..." "Eu té
amo... você existe e me sinto bela, sinto-me mais forte..."
 E o prémio — murmurou ela —, o prémio de tudo isso, de todos esses riscos, qual é?
Levar o rei da França a nos fazer justiça? Ou levar essa gente, submissa a ele, a
pronunciar-se contra ele? É loucura, irrealizável! Nós nos batemos e debatemos, mas
diga-me, senhor, qual é o prémio?
 O mesmo que para todos — respondeu ele, alegremente: — viver, sobreviver nesta
terra danada onde se saboreiam tantas maravilhas. Viver melhor. Lutar para viver.
Poupando, não esforços, mas, tanto quanto possível, sangue e violência... Claro que, para a
Nova França, receber-nos é absolutamente ilegal. Mas o inverno está começando. Não
haverá ligação com a França durante meses. Somos numerosos e animados de intenções
pacíficas. Minha correspondência com Frontenac gera seus frutos.
 E você também tem outro aliado no local, não me disse?
 Psiu! — fez Peyrac. — O meu aliado é mais eficaz se permanecer secreto. Mas aos
poucos tudo se revelará. Já é muito que o governador esteja francamente do nosso lado.
Está correndo o risco de um dia ser repreendido pelo rei. E qual é o sentimento do rei em
relação a nós? Ainda ignoramos isso. Enquanto esperamos, nosso prémio, se é mais
modesto, não nos satisfará menos. Para nós, que somos banidos e nómades, o que haveria
de mais miraculoso do que conseguir passar um inverno inteiro em Quebec, em solo
francês, entre amigos?

CAPÍTULO IV

Expectativa ante o desembarque

Joffrey se afastara, depois dé beijar-lhe a mão.


— Não se preocupe comigo — dissera-lhe mais uma vez. — Trata-se apenas de-você,
de seu triunfo, Marquesa dos Anjos.
Ela rira ouvindo o .título antigo que lhe lançava: Marquesa dos Anjos. Era o.norae
secreto do submundo, que ela usara entre os vagabundes, no Pátio dos Milagres, em Paris.
Ele fora informado desse título na outra noite, pela carta de Des-grez. Ouvi-lo pronunciado
por ele dava-lhe prazer e surpresa.
Marquesa dos Anjos!
Olhando a cidade que de longe se assemelhava a uma cidadezinha francesa da
Normandia ou da Bretanha, ela sentia o próprio passado misturar-se com o presente.
A partida começava. Pouco a pouco cada um se dirigia para o seu posto. Recuada,
protegida pela coxia, Angélica aguardava o Marquês de Ville-d'Avray.
Apenas a frota deles estava atracada junto de Quebec. Cinco navios, com as amuradas
de cada convés e até os cestos das gáveas adornadas com uma frisa escarlate agaloada de
ouro, e cujas vigias, pálpebras berrí" fechadas, ocultavam o olho negro dos canhões.
A cidade era frágil diante deles. O inverno que se aproximava encerrava os antagonistas
numa solidão sem remédio. Não havia nenhuma intervenção a esperar, fosse de quem fosse.
O continente americano, sem limites,"mantinha-os prisioneiros, face a face, reduzidos
apenas às próprias forças: os franceses de Quebec ante os franceses comandados por
Peyrac.
Quebec, erguida diante deles como uma peça de ourivesaria, cinzelada e cintilante, toda
enfestoada de casas brancas e altas, apertadas umas contra as outras, até o pico do rochedo.
Era um amontoado de telhados pontudos, encimados de chaminés quadradas, uma
sequência pouco comum de construções de pedra, madeira ou taipa, que pareciam pousadas
umas sobre as outras, como num castelo de cartas.
Grandes espaços plantados de árvores, jardins ou pomares, terraplenos, muralhas,
rampas e, em certos trechos, uma parede ereta e escorchada da falésia abrupta, marcando os
diferentes andares da cidade, unidos por lanços de escada, atalhos de cabras, e um caminho
sem contorno, traçado como uma escada.
No topo, grandes construções e residências, a catedral, o bispado, o seminário, o colégio
dos jesuítas, o convento uas ur-sulinas, o hospital, o Castelo Saint-Louis formavam como
que uma coroa cujos florões seriam os múltiplos sinos e campanários, todos muito
trabalhados, decorados, vazados e flanqueados de suas cruzes pontudas.
Havia algo de singular nessa cidade do fim do mundo. Parecia um gigantesco ex-voto.
Três ou quatro moinhos de vento plantados aqui e acolá, à beira do platô na ponta de
um cabo ou de uma saliência, davam ao conjunto um toque ingénuo e familiar.
Acima do cabo Diamant, destacava-se isolada a silhueta de uma grande cruz de
madeira.'
O Marquês de Ville-d'Avray surgiu de repente ao lado de Angélica, como um duende
em traje de príncipe.
— Quer a minha luneta?
E acrescentou, mostrando-se de costas e de frente:
 Como me acha? Não estou magnífico?
 Está soberbo. Mas também espero seus cumprimentos para o meu vestido... Não diz
nada?
 Claro! Você está admirável... Não tenho palavras. Sou imperdoável, mas estou tão
excitado, tão alegre com a ideia de escoltá-la! Você será recebida com ovações. Olhe a
multidão. Já não aguenta a excitação com a ideia de vê-la.
Era verdade que até a olho nu se podia ver a cidade fervilhar de alto a baixo, tal
formigueiro em efervescência. Angélica tomou emprestada a luneta do Marquês de
Ville-d'Avray, ajustou-a e, no círculo assim focalizado, apareceram-lhe os cais apinhados
de gente e, em primeiro plano, as silhuetas ataviadas dos oficiais em uniforme de
cerimonia, senhoras em vestido de gala e leque na mão.
Estavam sendo esperados e, aparentemente, com todas as honras devidas a hóspedes
ilustres e não a inimigos, nem mesmo a estrangeiros que inspiram desconfiança e desprezo.
Angélica estava impressionada. Fazia muito tempo que não via tanta gente reunida,
todos franceses.
 Parecem contentes.
 Estão encantados. Pode acreditar em mim.
 E como se comporta o governador militar, o Sr. de Castel-Morgeat? — indagou ela.
 Ele cedeu. O governador exigiu que ele desse a sua palavra de que não tentaria nada
contra você. Olhe, estou vendo-o pela luneta ao lado- do Sr. de Frontenac. Está mordendo o
freio, mas está- quieto.
— E... e o Padre d'Orgeval, está vendo-o?
Avistavàm-se inúmeras sotainas pretas. Ville-d'Avray entregou-se-a um exame
atento e meneou a cabeça.
— Não o vejo. É de crer que também ele se mantém à parte.
Ville-d'Avray continuava a examinar a multidão com a luneta.
De súbito exclamou:
—Ah, lá está ele! Lá está! Eu sabia, bem que lhe disse! Olhe ali, à direita, perto do
grupo de oficiais. Estou vendo. Aquele eclesiástico de preto... Bem que lhe disse que ele
chegaria antes de mim e me esperaria no molhe.
 Quem? O Padre d'Orgeval?
 Não, não, ora! O meu capelão! — exultou o marquês. — Lembre-se, o Sr. Dagenet,
que foi ao meu encontro em Goulds-boro e depois se recusou a acompanhar-me ao outro
lado da baía Francesa e pretendia retornar a Quebec por terra. Ah, Ah! Aí está o que faz a
Acádia de um sulpiciano quadragená-rio, embolorado entre livros e orações. Um
explorador de bosques com a canoa às costas! Eu lhe disse: este país enlouquece.
Angélica pegou a luneta e acabou localizando a silhueta do solene eclesiástico de nariz
comprido, que ela entrevira em Gouldsboro. E não havia dúvida de que era ele mesmo.
Com ar circunspecto à beira do cais, esperava pelo protetor, e era difícil imaginar que
tivesse atravessado a pé, de ponta a ponta, sempre solene, quase trezentas léguas de regiões
florestais e perigosas.
Agora Quebec parecia uma árvore carregada de frutos. Não havia uma única janela
onde não se vissem cabeças. Uma praça, um jardim, um pomar que não estivesse socado de
gente. Os muros externos e as muralhas suportavam fileiras de indivíduos empoleirados.
Em toda parte, em Quebec, as pessoas ocupavam os primeiros camarotes. Para além dos
fortins da Cidade Baixa estendia-se uma vasta planície esverdeada. Parecia recobrir-se de
uma maré avermelhada e agitada. Eram os selvagens, aliados e amigos dos franceses.
Ville-d'Avray afastou-se, gritando de longe para Angélica:
— Naturalmente eu coloco a minha cadeirinha à sua disposição para subir a encosta
quando tivermos que ir à catedral para o te-déum. A minha cadeirinha é uma das poucas
existentes em Quebec, e certamente a mais confortável.
Voltou atrás para acrescentar:
— Não tema nada. Sob a minha proteção, você é sagrada...Você verá.
Ele certamente não pensava nas balas! Afastou-se de novo, rumando para a proa,
abrindo passagem entre a agitação que reinava no Gouldsboro. A coberta estava invadida
de gente correndo de um lado para outro, tripulantes vestidos de linho branco com um cinto
de seda azul e ouro e boina azul com pompons dourados. Tinham todos uma aparência
magnífica. Muitos estavam de prontidão nos ovéns ou alinhados ao longo das vergas como
pássaros prontos não a levantar vôo, mas a soltar as velas em caso de alerta. A parada não
deixava esquecer a possibilidade de um alerta.
Ville-d'Avray, debruçado sobre a amurada que dava para os barcos e botes que
patrulhavam os arredores, lançava saudações e chamados.
Abbal Neals, o sueco louro, e Timóteo, o negrinho, vieram postar-se junto de Angélica.
Ela notou que lhes tinham vestido casacas vermelhas com punhos bordados. Calçavam
meias brancas e sapatos com laços de cetim presos por uma fivela de prata. Estavam muito
orgulhosos da incumbência de segurar as abas do manto de Angélica.
Ville-d'Avray voltou para perto deles. Estava pálido, fora de si.
— Quebraram uma peça — disse a Angélica. — Que desastre! O que fora? Uma peça
de canhão, de quê?
— Meu aquecedor de porcelana! Um dos mais belos motivos,
naturalmente.
Sua contrariedade acentuou-se quando percebeu Timóteo de libré carmesim.
— O quê! Você me recusa o negrinho para meu pajem e o toma para
si!
Angélica começou a explicar-lheque o arranjo era apenas provisório, para agradar ao
pequeno escravo, mas Ville-d'Avray já estava pensando em outra coisa. A conversa por
sobre a amurada com gente de Quebec lhe trouxera uma notícia mais feliz.
 Fiquei sabendo que minha criada regressou do sítio em Saint-Joseph. Parece qu£ um
sonho a avisou do meu retorno iminente. Ela fez uma limpeza em regra em minha casa e
aposto como nos prejiarau uma daquelas tortas de caça, de que só ela conhece o segredo.
Ah, Angélica! Esta noite mesmo você estará sentada -lá em cima, em rríinha casa, e se
regalará vendo a noite cair sobre o Saint-Laurent. Espero que me convide com frequência a
minha casa.
 Sua criada não ficará decepcionada de vê-lo ceder-nos a casa, enquanto se instala na
Cidade Baixa?
— Ela fará o que eu lhe disser.
Ele procurava com a luneta.
— Gostaria de apontar-lhe a minha casa, mas as árvores do jardim da minha vizinha, a
Srta. d'Houredanne, a escondem. Em todo caso, estou vendo um trecho do telhado e fumaça
saindo da chaminé. A vida é bela!

CAPÍTULO V

Canhoneio sobre o Saint-Laurent

O Marquês de Ville-d'Avray e Angélica não podiam impedir-se de olhar, de tempos em


tempos, na direção do esturno do rio Saint-Charles, para onde tinham seguido as chalupas
comandadas pelo Conde de Peyrac. Um leve nevoeiro continuava a disfarçar os
movimentos que se tramavam ali.
 O que estamos esperando? — perguntou ela.
 O sinal que ele nos dará. É possível que ele ainda ache o nevoeiro demasiado denso.
Quase no mesmo instante a bruma que velava os contornos da costa de Beaupré
começou a dissipar-se, e na embocadura do rio avistou-se um navio encalhado.
 Que navio é aquele que parece em apuros?
 O Saint-Jean-Baptiste, uma banheira velha que já livramos de mais de uma
enrascada durante a nossa subida do Saint-Laurent. Demos-lhe uma chance, mas ele se
encontrava num estado lamentável demais, e ontem à noite, quando chegava ao destino, foi
encalhar bem na entrada do estuário, que está obstruindo no momento. Mas esse incidente é
conveniente para nós. Os nosso iates Mont-Désert e Le Rochelais foram em socorro dos
passageiros. Recolheram a bordo os que estavam mais aflitos, como o Sr. de Bardagne,
enviado do rei, e os oficiais de sua casa. Junto com o intendente Carlon e o Barão
d'Arre-boust, o Sr. de Peyrac dispõe de um bom número de reféns. Mas ele não vai
utilizá-los. Admiro-lhe a prudência política. O encalhe do Saint-Jean-Baptiste deu-lhe um
pretexto para manobrar no local, a título de socorrer os náufragos. E vai chegar por trás,
levando na bagagem os seus hóspedes de honra salvos das águas, inclusive o enviado do
rei...
Nesse ínterim, um rapaz de cabelo comprido, preso por uma tira de pérolas índias e com
as franjas do casaco flutuando ao vento, chegou a passos largos e veio plantar-se ao lado de
Angélica, ultrapassando-a em altura em mais de uma cabeça. Segurava junto ao coração um
eoffinho de tartaruga engastado em ouro, com a mesma gravidade de um rei mago no
presépio.
 Ana-Francisco! — exclamou Vill£d'Avray. — O que está fazendo aqui, meu:amigo?
 O Sr. de Peyrac encarregou-rhé de .escoltar a Sra. de Pey-rac — respondeu o
adolescente, aprumàndo-se em toda a sua altura, esbelta e interminável.
 Como! Escoltá-la! Mas sou-eu quemvai escoltá-la! — protestou o marquês, com a
mão espalmada sobre o peito.
 Talvez dois defensores; não spjam demais.
 Tolices! Sou bem capaz de defendê-la sozinho! Seja como for, você está mentmdo.
Não o encarregaram de nada. E está destoando, com essa roupa de explorador de bosques.
E escandaloso!
 Estou incumbido de carregar o cofrinho de acessórios da Sra. de Peyrac.
 Nessa indumentária! Que farsa! Como! Você não foi capaz de vestir-se de acordo
com sua posição e pretende servir de camareiro à mais bela mulher do mundo... Nada disso,
meu rapaz!
 O sinal! — bradou Angélica, que acabava de avistar o rastro de uma luz de estrela
cadente que, depois de subir bem alto, caía e se apagava.
— O sinal! — repetiu Ville-d'Avray. — Chegou a hora!
Imediatamente mobilizado pela gravidade do momento, ele esqueceu a disputa.
— Vamos descer para a chalupa. Venha, Angélica! E vocês, pajenzinhos, estão
prontos? Segurem o manto assim. Isso... Quanto a você, Ana-Francisco, recue um pouco e
não venha pavonear-se no meu lugar ou lhe torço o pescoço!
Com o peito estufado e o pé bem arqueado, o Marquês de Ville-dAvray tomou a mão de
Angélica, ergueu-a bem alto e, como se a estivesse tirando para dançar uma pavana, sob o
fogo dos olhares da corte, fê-la atravessar a primeira ponte até o convés.
Ao pé do Gouldsboro, a chalupa dançava sobre as ondas. Prevendo-se a amplidão do
vestido e do manto de pele de Angélica, tinham fixado ao lado do navio uma espécie de
escada de madeira, com um corrimão de corda que permitia embarcar na chalupa com mais
facilidade.
Fizeram os dois pajens descer. Depois desceu o Cavaleiro de Vauvenart, que se
desculpou por passar antes de Angélica, mas era para ajudá-la a instalar-se. O balanço do
navio não facilitava a baldeação. O vestido e o manto enganchavam, e Angélica ficou
contente de poder valer-se do sólido punho do senhor acadiano. Aquecia-lhe o coração
ver-se rodeada de amigos canadenses e acadianos, que não receavam afirmar, à vista de
todos, a estima e o afeto que nutriam por ela.
Na chalupa, Angélica preferiu permanecer em pé, pois o seu traje de corte era
decididamente muito incomodo. Mas a embarcação era larga e estável, e o rio, pouco
agitado.
Ela agradeceu ao céu pela clemência do tempo. Em meio a borrascas de chuva ou neve,
vagalhões negros e furiosos, seria tudo um grande fracasso. Sob aquele firmamento
translúcido, tudo se desenrolava com calma, como que para intensificar a perfeição do
momento da chegada e da imagem que ela devia impor a Quebec. Levantando os olhos, viu
passar um bando de gansos selvagens. Os últimos... Desenhados em preto, traçando um "V"
gigantesco no céu, soltavam alguns gritos agudos, como um chamado ou uma saudação, e
Angélica viu neles um sinal benéfico. Mas logo lhe veio a lembrança da voz aveludada que
cochichava: "Aprendi a odiar o mar porque você o amava... e também as aves que
passavam... porque você as achava belas..."
As palavras odiosas e loucas de Ambrosina, a Diaba, sacudiram-na de um receio
furtivo, como que para lembrá-la de que havia em algum lugar inimigos seus que não
depunham armas.
Será que, mesmo morta, aquela mulher, enviada para destruí-la, ainda podia persegui-la
e trazer-lhe infelicidade?
O Sr. de Ville-d'Ayray desceu por sua vez a escada móvel e reclamou um lugar num
dos bancos de remador. Sentou-se, levantando as abas de sua casaca bordada, agaloada,
sutacheada, uma verdadeira obra-prima.
Os remadores empunharam os remos pesados. Assim como toda a tripulação, estavam
vestidos de branco, azul e dourado, com uma pistola passada à cintura. Numa barca vizinha,
que os seguiria, seis marujos armados com mosquetes completavam a tripulação.
Angélica, na proa, olhava páraQuebec. Agora se sentia impaciente por dar início à áção,
partir e tjonquistar novas amizades, por medir o seu poder de sedução* sobre seres
prevenidos contra ela. Foi assim, ^então, a primeira a ver desabrochar no topo do rochedo,
por trás. da paliçada de um fortim, uma grande flor de fumaça branca. '/
— Alerta! — gritou.
Depois ouviram todos a detonação surda. E, simultaneamente, bem próximo,
inconcebível, estrepitoso, terrificante, o vento do projétil. Houve um ruído de madeira
partida, uma enorme sacudidela. Umá grande coluna de água, surgida como que por
milagre diante do'Gouldsboro, alçou-se a uma altura prodigiosa e desabou em chafariz,
com um estalejar de temporal. Varrido pelo choque, o jovem Ana-Brancisco, no convés, no
momento eití-que sépfeparãva para descer, passou por sobre a cabeça de todos e
fpijçnergulhar um pouco adiante no Saint-Laurent, sempre ape'rtando contra o peito o
cofrinho de tartaruga engastado em ouro.

CAPÍTULO VI

Reencontro do Conde de Loménie-Chambord

O gurupés fora levado. Faltou pouco para que a bala, atirada das alturas de Quebec,
atingisse o Gouldsboro em sras partes vitais, esmagando de passagem a barca e seus
ocupantes.
O Gouldsboro manobrava com uma rapidez exemplar, para sair da linha de tiro.
A chalupa fora levantada por uma onda enorme. Os remadores faziam prodígios para
afastá-la do navio e não serem pro-jetados contra o casco.
Entre ruídos de correntes e estalidos, as janelas de madeira das vigias do Gouldsboro
levantavam-se, descobrindo a goela negra dos canhões.
"Pronto, é a guerra", pensou Angélica, fora de si de raiva e decepção. "Ah, é muita
tolice!"
Ela fora atirada para trás, depois para a frente, e agora, meio sentada, agarrava-se como
podia.
Ville-d'Avray, em compensação, em pé, esgoelava-se na di-reçao do Sr. d'Urville,
comandando o fogo do tombadilho do Gouldsboro.
— Não atire naquela direção! Vai demolir a minha casa! Atire para a esquerda, na casa
do Sr. de Castel-Morgeat, o governador militar, aquele traidor, aquele rufião. Olhe, ali, ali,
aquela que fica em ângulo, acima da capela do seminário! A casa com telhado de ardósia.
Atire! Abata-a!
Dominando o tumulto de gritos e ordens, elevou-se a voz do Conde d'Urville:
— Fogo!
Uma salva ensurdecedora ecoou nas falésias e o ar encheu-se de uma fumaça acre,
enquanto as embarcações em torno
do navio pareciam enlouquecidas. O Gouldsboro manobrava, de velas desfraldadas. Os
outros navios da frota aproximavam-se para se alinharem ao lado da nau capitânea. Um
nevoeiro amarelado, cheio de ecos estrondejantes e gritos de chamado, substituíra a calma
da bela manhã e acima de tudo isso, os gansos selvagens passaram, endoidecidos, na
direçãò oposta, soltando gritos de feiticeiras.
Preocupada com o jovem Ana-Francisco de Castel-Morgeat, Angélica procurava na
superfície, da água. Ele saberia nadar? Avistou-o, debatendo-se, cgritou para que o
socorressem. O rapaz sabia nadar, mas a espessa roupa de camurça o atrapalhava. Afinal,
uma canoa indígena, onde se encontravam dois selvagens, foi resgatá-lo. Ele se agarrou ao
remo, para logo depois ser recolhido-por um barco de pesca.
Esperavam-se outros tiros, outras salvas, mas os ecos ainda rolavam, diminuindo, e
nada acontecia. Fora como uma breve e louca convulsão. Lentamente a fumaça se dissipou,
o sol reapareceu, a enseada revelou-se de novo, vasta e cintilante, com a cidade; mais
agitada do que nunca, efervescente.
Notaram então que chalupa fora à deriva e que os roda-moinhos a tinham arrastado para
longe da barca de escolta, onde se encontravam os marujos armados. Uma corrente forte os
apanhara e os aproximava irresistivelmente dos cais da Cidade Baixa, um pouco acima da
Place Royale, onde os oficiais esperavam.
De chofre, deram com pessoas alinhadas ao longo da margem, a algumas toesas deles,
que os viam aproximar-se, boquiabertas. Ouviu-se alguém gritar:
— Lá está ela!
Os remadores esforçavam-se em vão para fazer meia-volta. A maré, ainda sensível
junto He Quebec, acabava de virar, e a corrente poderosa os arrastava.
 Tanto pior! Vamos atracar — decidiu Angélica.
 Mas isto é o bairro dos. entrepostos e do mercado — disse Ville-d'Avray.
— É Quebec! E eu vim para deserribarcar em Quebec!
Ergueu-se na proa, no seu vestido régio. O sol fazia as suas jóias cintilarem. A chalupa
avançava depressa rumo à praia. Angélica já podia distinguir os rostos. A expressão mais
frequente era assombro. Angélica entendeu que aquela gentinha dos bairros escusos, que
hoje não esperava muito além de migalhas do espetáculo oficial, não conseguia dar-se conta
de que subitamente se encontrava na primeira fila.
Além disso, para terem sido retirados assim para aquele canto apartado da Cidade
Baixa, era porque entre eles devia haver elementos hostis, que desaprovavam a política do
governo e que estavam prontos a insultar os "estrangeiros" que lhes tinham sido anunciados
como emissários de Satã e aliados dos seus piores inimigos, os ingleses.
Era por isso que Ville-d'Avray estava furioso. Não só aquele desembarque nesse ponto
negligenciado da margem carecia demasiado de decoro, mas também seriam obrigados a
desembarcai entre a canalha. Faltava tudo do belo espetáculo em que ele desempenharia
papel de destaque e que prometera a si mesmo...
— A plebe! A plebe! — resmungava ele. — Estamos bem arranjados!
Mas Angélica, encantada de ver a praia de Quebec aproximar-se rapidamente,
contemplava com prazer a multidão compacta que, de olhos arregalados, via chegar aquele
barco onde se via, ereta, uma aparição digna das grandezas de Versalhes.
Em vão Vauvenart, na proa, berrava:
— Agarrem o cabo, bando de imbecis! Agarrem o cabo!
Ninguém se mexia.
Finalmente alguém segurou a corda que o acadiano atirava e amarrou-a.
Houve uma leve colisão contra as estacas de um pequeno molhe um pouco apodrecido e
enfiado na lama.
Ville-d'Avray saltou do barco com presteza, recuperando o entusiasmo assim que a
ponta do seu sapato de cetim tocou a madeira úmida do embarcadouro de sua cidade
preferida.
Estendeu a mão para Angélica, que, auxiliada pelos ocupantes do barco e pelos pajens,
que lhe seguravam o manto e as belas saias cintilantes, pousou o pé na plataforma de
madeira.
A alegria e o sentimento de vitória iluminavam-na.
Desembarcava em Quebec. Estava ali, afinal.
Em Tadoussac tinham posto novamente os pés em solo francês.
Mas em Quebec, capital da colónia da Nova França, era o reino que ela reencontrava, e
quase Versalhes, e por trás das casas de pedra edificadas em terras da America, o rosto
om-presente do rei, aquele rei que a amara, a quem ela desafiara, que a banira, Luís XIV, o
Rei?Sol, e que hoje era o maior rei inconteste do universo, o rei. dos franceses.
Pois, fossem quem fossem, ralé ou gente honesta, plebeus ou nobres, os que a
aguardavam ali eram franceses como ela, da sua raça, falavam á sua língua e, melhor/ainda,
eram na maioria originários do oeste da Çrança,' de que fazia parte a sua província natal, o
Poitou.
Todas as suas reflexões e a sensação que delas advinha de estar em casa, em país
conhecido, causaram-lhe um prazer imenso.
Devia-se ler isso nó seu rosto sorridente.
Ville-d'Avray, enfrentando a situação, plantou-se junto dela e, sacando, da espada, que
ele brandia num gesto teatral, exclamou:
— Meus amigos, de regresso à nossa boa cidade, eu, o Marquês de Vill"e-d'Avray,.
saúdo-lhes. E tenho a honra de apresentar-lhes a Condessa de Peyrac. Os acasos da
correnteza fizeram que ela os'visitasse antes de avistar-se com o governador. Mostrem-lhe
seu prazer por terem sido favorecidos assim pela sorte e formem-lhe alas de honra,
enquanto a conduzo aos nossos oficiais mal-afortunados, que a esperam de nariz para o ar...
Risos e vivas espocaram espontaneamente ao cabo desse discurso.
— Avante e ânimo — bradou Ville-d'Avray.
Abaixou a espada, mantendo-a afastada do corpo, para o lado, de ponta virada para
baixo, com a outra mão segurou a de Angélica e começaram a subir pelo cais que se
elevava e alargava numa vasta praça.
— Precisaríamos de música — decidiu Ville-d'Avray. — Não tínhamos previsto este
cortejo.
Ouvindo-o, o pequeno Abbal Neals mostrou-lhe a sua flauta de Pan. Largou o manto,
que segur-ava junto com Timóteo, e, indo postar-se na dianteira, levou o instrumento aos
lábios. A música graciosa e ligeira alçou-se pelo ar, e eles avançaram a passos cadenciados.
Faziam questão de andar lentamente, a fim de não darem a impressão à multidão, caso
se apressassem, de que lhe temiam os humores. As pessoas continuavam a aplaudir,
enquanto se abriam alas diante deles. A música da flautinha de caniço mantinha o encanto.
Angélica lembrava-se daquelas cidades no Poitou, na Ven-dée, onde fizera algumas
entradas triunfais. Naquela altura, gritavam para ela com esperança, e agora, assim como
então, a vontade que tinha era de beijar a todos, abraçá-los. E eles deviam sentiresse seu
impulso, pois aos poucos os rostos se iluminaram, esboçaram-se sorrisos. De repente houve
francas gargalhadas. Olhavam para alguma coisa atrás dela. Voltando-se, Angélica deu com
o gato, o seu gato, que a seguia.
Com a cauda espessa levantada bem reta, ele parecia adaptar a sua marcha aos passos
lentos e solenes deles, como se dissesse: "Pois bem, também eu, não levem a mal, entro em
Quebec!"
Angélica ficou tão espantada de descobri-lo ali, que estacou. Como fizera para segui-la?
Devia ter saído do Gouldsboro atrás dela e depois se insinuara para dentro da chalupa, sem
que ninguém notasse. Ela viu naquela presença um sinal de bom augúrio: ele sempre lhe
trouxera felicidade.
Achando que o fato de ter sido descoberto o autorizava a tomar o lugar que lhe
convinha, o gato ultrapassou-os com alguns pulos e foi colocar-se perto de Abbal Neals
para caminhar na frente de todos.
Este incidente acabou de quebrar o gelo.
Os aplausos reiniciaram-se, mas mais sonoros e calorosos.
A multidão se adensava cada vez mais. A notícia de que a Condessa de Peyrac, a Dama
do Lago de Prata, personagem mítica em que até então só se acreditava parcialmente, tinha
realmente atracado na enseada do fundo da baía e que avançava pelo bairro Sous-le-Fort,
correra e esvaziava as ruelas e casas da vizinhança.
A partida parecia ganha. Mas, no momento em que atingiam a extremidade da praça e
iam tomar uma rua paralela ao rio para alcançarem a Place du Marche, ou Royale, surgiu
um grupo de homens com a visível intenção de obstruir a passagem e soltando gritos
sediciosos.
 Vendidos aos ingleses! Traidores!
 Traidores são vocês! Abram caminho! Nada de virem se meter no que acontece em
nosso bairro. Vendidos são vocês! Foram pagos! Quem os pagou?.., O jesuíta?
 Cale-se, blasfemador!
No súbito alarido que rebentava, em que os moradores do bairro que tinham acolhido
Angélica ao desembarque tomavam-lhe a defesa violentamente, começaram a voar pedras.
Uma delas ricochetepu é foi atingir o gato.
Ouviu-se um miado desesperado..
— Meu gato! — gritou Angélica, transtornada.
O animal soltara o miado desesperado, dera um pulo e caíra, imóvel.
Sem se preocupar com o principesco vestido, Angélica caiu de joelhos junto dele. Tudo
se desorganizava. As pessoas gritavam e se molestavam. "Os marujos da chalupa tinham
imediatamente formado-unT círculo à volta de Angélica, que pegara o pobre gato, tentániio
ver se estava ferido ou somente atordoado. Felizmente a pedra ricocheteara e o atingira com
menos brutalidade. Ville^PAvray, com a espada em riste, conseguia manter a gente à
distância. Não queria ferir a ninguém e pedia que se acalmassem, mas não lhe davam
ouvidos.
Uma voz de peixeira, rouca e tonitruante, dominou o tumulto de súbito.
— Parem com isso, grosseirões! Escória! Animais! Então não têm vergonha! Atacar
um bicho! Faço picadinho de vocês todos, eu!
Em poucos instantes a situação se esclareceu de novo. Com os paus derrubados pela
súbita chegada de uma bola bem atirada, alguns antagonistas foram morder o pó, e no
espaço que se abriu com isso viu-se uma mulher grandalhona, muito violenta, o cabelo todo
para fora da coifa, distribuindo generosamente bofetões e pontapés e abrindo espaço ao seu
redor. Assim que se tornou senhora do terreno, foi plantar-se diante de Angélica.
— Não se preocupe com seu gato, minha pequena — lançou-lhe numa voz suavizada.
E baixinho, em tom de confidência:
— Ele não tem nada. Vi como a pedra o atingiu. Olhe, está vendo? Ele se mexe. Cuido
dele. Passe-o para mim. Não é hora de cuidar de um gato. Continue em frente. É melhor
não se atrasar por aqui. Mandei meu criado avisar aqueles belos senhores, e daqui a pouco a
guarda virá para escoltá-la até o governador. Não tema nada e confie em mim. Cuido do seu
gato para você.
Pegando delicadamente o animal, que começava a espernear, ela deu unia piscada
enérgica e cúmplice para Angélica e se perdeu entre a multidão, que de bom grado abriu
passagem para ela. A mulher parecia conhecida ali e ter grande influência sobre a gente do
seu bairro.
Ville-d'Avray sacudiu a poeira dos punhos e ajeitava a peruca. Timóteo lhe estendeu o
chapéu, que caíra no chão.
— Mas que modos são estes! — ralhou o marquês. — Já não reconheço a minha boa
cidade. Isso lá é jeito de procederem e assustarem gente honesta! Reconheci alguns deles e
não perdem nada por esperar. Hei de fazê-los pagar caro pela insolência. O subtenente da
polícia civile criminal é o meu melhor amigo.
Angélica correu os olhos à volta. Ao seu redor, agora, só havia gente preocupada em
agradar-lhe. Mas o incidente com o gato a perturbara. Havia algo na intervenção da mulher
gorda que lhe escapava. No entanto, apesar da atitude de familiaridade, havia algo nela que
lhe inspirara confiança.
Olhou para Ville-d'Avray e disse:
— Temos que nos reunir ao Sr. de Frontenac.
Nesse momento a multidão se afastou, pressurosa, para deixar passar um homem que
vinha a passos rápidos ao encontro de Angélica.
Também ele trazia a espada desembainhada, como se estivesse pronto, caso necessário,
a partir algum oponente em dois.
De botas e chapéu pretos, trazia sobre o gibão uma casula curta, igualmente preta, no
centro da qual estava bordada uma grande cruz em fio de prata.
Angélica reconheceu, no uniforme de cerimónia da Ordem de Malta, o Cavaleiro
Cláudio de Loménie-Chambord.

CAPITULO VII

Recepção na Place Royale

A inquietação marcava-lhe as feições.


— Fomos avisados! — exclamou. — Graças a Deus, você está sã e salva! Que
aventura incrível! Estávamos olhando para o rio, tentando adivinhar o que ia acontecer. E
eis que você nos pega por trás...
Ele sorriu. Angelica estava emocionada de revê-lo e muito aliviada com a.sua presença.
O Cavaleiro de Malta possuía grande ascendência sobre a população.
 Quem atirou? —perguntou Ville-d'Avray.
 Ainda não se sabe... Felizmente o Sr. de Frontenac agiu com presteza e energia.
Ficou furioso por lhe terem infringido as ordens. Retornou às pressas à Cidade Alta, a fim
de intervir pessoalmente, caso isso se faça necessário... Mas parece que tudo voltou à
ordem... Venha! Vou conduzi-la até a Place Royale, onde você é esperada... Tomo-a sob a
minha proteção.
De repente ele arregalou os olhos, maravilhado. Acabava de notar os adereços dela.
— Meu Deus! Angélica, como você está bela!
Ela riu alegremente. Ele só a conhecera no forte de Wapassu, envolta em peles ou lãs
grossasye botas nos pés. Não lhe desagradava mostrar-se a ele sob uma luz mais favorável,
ofuscante até.
— Eu quis fazer honra a Quebec — disse. — Para mim este dia é belíssimo.
Tanto lhe haviam contado que o casto cavaleiro se apaixonara por ela, que Angélica não
podia impedir-se de manifestar um pouco de coqueteria no trato com ele.
Uma coisa era certa: ele tomara partido por eles com entusiasmo, a ponto de ser
acusado de haver perdido a razão e ter-se deixado enfeitiçar". Na qualidade de amigo leal,
ele resistira. E a entrevista desse dia devia muito à sua coragem.
— E eu? — interveio Ville-d'Avray.
O marquês franzira o cenho ao ouvir o Conde de Loménie declarar: "Tomo-a sob a
minha proteção".
 Ora! Somos bombardeados, separam-nos da nossa escolta, desembarcamos na lama
dos bairros escusos, sem que ninguém se dê conta disso e venha ao nosso socorrq... Nós
nos engalfinhamos com a ralé para, à duras penas, chegar até vocês. Defendo a Sra. de.
Peyrac com risco de vida. Evito para o Sr. de Frontenac uma ruptura diplomática grave, a
guerra talvez, quem sabe! E não serei eu quem terá a honra de apresentar a Sra. de Peyrac
ao governador e aos notáveis, mas você? Acha, então, Sr. Loménie, que basta aparecer para
abiscoitar o melhor pqjel?
 Acalme-se, marquês — observou o cavaleiro, surpreso. — E receba todas as minhas
desculpas. Eu não contava com a sua presença.
 E o cúmulo!
 Eu não o tinha visto.
 No entanto, eu lhe dirigi a palavra e você me respondeu... Mas estava ausente,
enlevado, fascinado! Por ela, evidentemente! Note que entendo o seu êxtase e posso até
desculpá-lo, mas nem por isso hei de eclipsar-me...
 Pois bem, eclipso-me eu, então — aquiesceu, rindo, o Conde de Loménie-Chambord.
Ainda assim, não largou a mão de Angélica. Limitou-se a postar-se à esquerda dela,
enquanto o marquês se punha à direita.
Ladeada por eles, Angélica adentrou a Place Royale, que também era a praça do
mercado da Cidade Baixa, apinhada de gente.
O aparecimento dela suscitou um burburinho, um silêncio, e depois gritos, aclamações e
ovações.
A ausência do Sr. de Frontenac causava desordem no protocolo.
Angélica avistou os oficiais no fundo da praça, em torno de um palanque, todos em
cores vivas e uniformes variegados. Quando a viram, oscilaram na sua direção e Angélica
teve a impressão de vê-los abater-sè à sua volta como uma revoada de grandes aves
marinhas.
Num átimo ela se viu rodeada de bons votos e cumprimentos calorosos, de protestos de
amizade, de convites para beber, para sentar, para ser levada até o governador, que não
estava ali, enquanto esperava para ser apresentada a uns e outros, todos importantes.
Conduziram-nos até o palanque, erguido no centro da praça, sobre o qual havia mesas
postas, com toalhas brancas e cobertas de taças e jarras de estanho, de copos e cálices, cujo
cristal cintilava ao sol de inverno, e de jarras, de prata dourada.
Se Angélica precisasse de apenas um detalhe para lembrar-se de que se encontrava na
Nova França e não na Nova Inglaterra, tinha-o ali, pois a Place Royaje, sendo jgualmente a
praça do mercado da Cidade Baixa, servia mais comumente, e o palanque no seu centro,
para as punições e as execuções capitais — raras, é verdade —, e tinham-se limitado a
retirar o banco e as correntes do pelourinho, envolvendo o cadafalso com belos tapetes.
Sobre cavaletes baixos e já abertos havia quatro barris de vinho das ilhas, bem como
uma impressionante fileira de frascos de rum das Antilhas, alinhados sobre as mesas.
— O Sr. de Peyrac nos deu de presente estes vinhos excelentes — explicou a Angélica
uma senhora amável e que parecia muito ativa. .—Mandou trazê-los bem cedo, na chalupa,
junto com esse cálido rum e licores para, as senhoras.
Explicava-se, assim, a jovial-exuberância que reinava. Angélica perguntou consigo
mesma se não teria sido com essa intenção que Joffrey, logo ao alvorecer, mandara regalar
a população de Quebéc.
A generosidade dele era causa de todo aquele bom humor e também de haverem
recebido tão levianamente os intempestivos canhonaços. Assim, tudo parecia arranjar-se.

CAPITULO VIII

Os governadores da Nova França

Um grande zangalho chegava correndo, descendo o caminho da Montanha abaixo,


claudicando e como que sem fôV go, tão peludo que, com a barba nascendo no rosto
inflamado pelo frio, parecia arroxeado. Uma espécie de espanhol com olhos esbraseados.
Estacou bruscamente diante de Angélica, como um cavalo que acabava de topar com um
obstáculo.
— É a Sra. de Peyrac? — perguntou, arquejando. — Causaram-lhe algum dano?
Considera-se ferida ou maltratada?
Como Angélica protestasse a boa acolhida que recebera, o homem continuou:
— Então é preciso avisar os selvagens — bradou, voltando- se para o grupo de
comerciantes e exploradores de bosques, que, em seus trajes à indígena, misturav^m-se à
multidão. — O grande narrangasett está sublevando-os nas planícies de Abraão, dizendo
que atiraram nos amigos deles... Vão avisá-los, depressa!
Um dos "viajantes", em quem Angélica reconheceu Romão de L'Aubignière,
precipitou-se às carreiras.
— O grande narrangasett? Piksarett! — exclamou Angélica. — Ele me precedeu, ele
me disse que me esperaria em Quebec!
O oficial peludo continuava diante de Angélica, com ar de desamparo. Juntou o manto
sobre o braço com nervosismo e, querendo executar uma polida saudação de corte, já não
se lembrava de que lado se encontrava a guarda de sua espada. Ele correra tanto, que seu
hálito, no ar frio, saía-lhe da boca entreaberta como lufadas de vapor de um caldeirão.
— O Sr. de Castel-Morgeat, lugar-tenente do rei da França na América — apresentou o
Conde de Loménie.
— Sr. de Castel-Morgeat — exclamou Angélica —, foi o se nhor que mandou atirar na
nossa frota?
 Não, com efeito! Eu dei a minha palavra, sei respeitá-la! Apoiou-se ao palanque.
 Ai, ai, a minha perna!
 Está ferido?
— Não, são as dores que contraí na"campanha de inverno com os iroqueses...
Afastou-se, com ar ainda mais desnorteado, para acorrer na direção de um
gentil-homem que chegava rodeado de doze soldados com o gibão cinza e branco dá
infantaria e mosquete ao ombro. A meia voz, pôs-se a cochichar-lhe prolixas explicações.
Angélica adivinhou que o recém-chegado era o Governador Frontenac. Logo gostou
dele. Naquele qiiinquagenário robusto havia algo de zombeteiro e simples que lhe dava a
impressão de conhecê-lo há muito tempo. Quando franzia as sobrancelhas espessas, o
seu,olhar ciotrlava-como o aço batido por um relâmpago repentino. Em fègouso, porém, a
sua boca de lábios carnudos sob o bigode eriçado apresentava um vinco de bondade e os
seus olhos riam dibom grado. Via-se que ele era-antes de mais nada um militar, e que o
traje elegante vestido de manhã, com o peitilho atado da melhor maneira possível, todas as
fitas das condecorações nos devidos lugares, as meias com filetes de ouro bem puxadas,
certamente exigida muito heroísmo e habilidade da parte dos seus valetes. A peruca, que ele
usava branca, embora não fosse um ancião, estava um pouco de lado. O governador ouviu
Castel-Morgeat com atenção, mas impaciente, e descartou com um gesto as explicações que
o outro recomeçava.
— É tudo sua culpa! — Angélica ouviu-o lançar ao governador militar. — Você se
deixa levar pelo nariz. E devido à sua insigne fraqueza, eis-me aqui agora com um grave
incidente diplomático. Conheço o Sr. de Peyrac de reputação há muito tempo e faz mais de
um ano que troçamos correspondência para firmar a nossa aliança! E, veja,, os navios dele
se retiraram. O que estará tramando? Ele não vai deixar passar em branco um insulto que
quase lhe custou a nau capitanea... Quero enviar-lhe uma mensagem imediatamente. Você
se incumbirá disso, a título de punição. Vamos, embarque, tanto pior se for alvejado...
Nesse meio tempo foram dizer ao Sr. de Frontenac que a Sra. de Peyrac se encontrava
ali. Ele se virou e, avistando-a, soltou uma exclamação estupefata e encantada, e se encami-
nhou para ela, de mãos estendidas.
— Sra. de Peyrac! Que milagre! Sã e salva! E seu esposo, onde está? Espero que ele
não nos queira muito mal!
Sem esperar pelas respostas às suas perguntas, beijava-lhe as mãos e olhava-a
entusiasmado, como se não pudesse crer nos próprios olhos. Depois -voltou a se inquietar.
 Onde está o senhor seu esposo? O que está fazendo?
 Ignoro-o...
Rapidamente ela lhe contou a sua odisseia: como já se encontrava na chalupa no
momento do canhonaço e como o esquife fora arrastado pelos rodamoinhos e pela
correnteza, ela tivera que atracar num ponto da Cidade Baixa.
— O Sr. Peyrac deve estar louco de preocupação com a senhora e de raiva por mim. E
preciso avisá-lo e tranquilizá-lo.
Ditou ao seu secretário, que escrevia sobre uma escrivaninha portátil, uma missiva
cheia de escusas e explicações, e entregou-a a um oficial da sua escolta.
— Você, não — disse, afastando Castel-Morgeat com um gesto —, só serviria para
agravar as coisas.
O oficial tomou assento num barco. Perdeu-se algum tempo à procura de uma bandeira
branca, que acabou sendo improvisada com o lenço de um daquelesVcavalheiros. Sob o
impulso de dois sólidos remadores, o plenipotenciário se afastou rumo aos ermos onde
delineavam, esfumados por uma bruma ligeira, os vasos da frota de Peyrac. O Sr. de
Frontenac seguiu-o com um olho ansioso e impaciente.
— E agora temos que esperar!
Angélica pensou que a espera prometia ser longa. Já não conseguia extrapolar sobre a
guinada que dariam as decisões de Joffrey de Peyrac depois daquela troca de tiros. Quando
ela embarcara, ele, com os seus homens, já estava em terra, acima de Quebec. Teria voltado
para bordo? Ou estaria rumando com intenções belicosas para a cidade traidora? Saberia, ao
menos, o que acontecera corn ela?
Havia que esperar pelos efeitos da carta do Sr. de Frontenac, se é que ele a receberia.
Angélica teve vontade de perguntar-lhe qual era o partido hostil que ousara desrespeitar
e contrariar os planos generosos do governador. Era evidente que este fora pego de surpresa
e controlava com dificuldade a cólera que lhe vinha em ondas; O governador dirigiu-se a
ela novamente.
 É desolador! Uma recepç-ãotão bela! Eu havia organizado tudo, com toda a etiqueta,
A senhora teria sido recebida suntuosamente, como uma rainha, teria assistido ao desfile de
tambores e trombetas retinindo ecos. Agora, olhe toda esta desordem de feira! As
pessoas.bebem, riem e se congratulam, como se nada houvesse acontecido!
 Talvez minha vinda os tenha tranquilizado. Vendo-me aqui, sabem que as
conversações não foram rompidas.
 E se o Sr. de Peyrac se recusasse a parlamentar?
 Pois bem! O.senhor não tem em mim um refém de qualidade? Poderá trodar-me pelo
perdão à sua ofensa.
 E o S£ de Peyrac^de seu lado, pode ameaçar enforcar o Sr. Carlon e o Sr. de
Bardagne, que se encontram em seu poder — exclamou "Ville-d'Avray, cpm ar de júbilo.
 Que vergonha essas, chantagens odiosas, essas ameaças covardes! — queixeu-se
Frpntenac. —'Ah, eu sonhei com outra coisa!
Angélica quis reeõnfortá-lo.
 Cavalheiro, estávamos brincando...
 A senhora está rindo!
 Mas claro! Até.agora não temos nada de grave a lamentar. De minha parte,
considero-me em boa companhia. E seus vinhos são muito estimulantes.
 Pois então, sigo-lhe o exemplo! — decidiu Frontenac, pegando um copo de uma
bandeja que lhe apresentavam. — Estou precisando disto.
Ergueu o copo diante do dela.
— A nossa aliança! — exclamou.
Parecia emocionado. Ela lembrou que ele era da Aquitânia e talvez soubesse sobre ela e
Joffrey muita coisa que os outros ignoravam ou tinham esquecido. O olhar do Sr. de
Frontenac, cravado no seu, pareceu evocar todo tipo de imagens.
— Tão bela quanto a lenda — murmurou ele. — Senhora, tudo isto não é muito
protocolar, mas perdoe uma emoção legítima depois de uma espera tão longa e de
confabulações tão difíceis. Ver triunfar sobre obstáculos intransponíveis a vontade de
amizade que me une à senhora e a seu esposo me transtorna para além do que sou capaz de
exprimir. Ainda há pouco achei que não chegaríamos a termo e que esta hora presenciaria o
fim das nossas esperanças. Depois, anunciam-me que a senhora está aqui e ouço os vivas da
multidão. E a vejo...
Ele esvaziou o copo de um trago e mandou que o servissem uma segunda vez.
De vez em quando olhava impaciente ao largo.
— O que estará acontecendo? O que ele estará fazendo?
Mas Angélica, qué sabia que Joffrey já desembarcara acima de Quebec, não esperava vê-lo
tão cedo, sobretudo se o-avanço dele fora interrompido pelo incidente do canhonaço. Na
expectativa, ele precisaria pelo menos certificar-se da situação de sua frota e das intenções
da cidade. Acabaria recebendo a mensagem de Frontenac.
Por entre a multidão circulavam criados levando grandes cestos de pãezinhos e doces.
Garotinhos vestidos dé preto e colarinho branco se destacavam comandados por um
grupo de padres. Trazidos bem cedo para a praça, os meninos tinham as faces vermelhas e
os olhos brilhantes. Tinham bebido cerveja de espruce e era difícil mantê-los quietos. Eram
os pupilos do seminário de Quebec.
Não longe deles, outro grupo de sotainas negras atraiu a atenção de Angélica, que
entendeu que se tratava de jesuítas, cuja presença o governador mais ou menos .exigira, a
fim de homenagear os recém-chegados e não dar rhargem a reticências.
O coração acelerou-se-lhe e ela se inclinou para o Cavaleiro de Malta,
Loménie-Chambord, puxando-o um pouco de lado.
— Sr. de Loménie — disse, baixinho —, pode ter a gentileza de me apontar, entre
aqueles senhores da Companhia de Jesus, o Padre Sebastião d'Orgeval? Sei que ele é seu
amigo e que você é nosso amigo, mas não é menos verdade que ele se comportou como
inimigo em relação a nós e que certamente continua sendo-nos hostil. A ideia de me ver
diante dele me impressiona e eu gostaria de me preparar para isso.
A testa do Conde de Loménie-Chambord se anuviou. Depois ele deu um sorriso um
pouco triste. Fitava com indulgência o belo rosto feminino alçado para ele. A timidez
tornava a deusa emocionante.
— Não o verá — disse. — Faz três dias que ele desapareceu.

CAPITULO IX

A entrada do grande chefe Piksarett

— Desapareceu?
Angélica ainda não sabia se a notícia a aliviava de um peso ou se a decepcionava.
Repetiu: .
 Desapareceu? O que você quer dizer?
 Que há três dias-Sebastião d'Orgeval ainda se encontrava em Quebec. Encontrei-o
em diversas ocasiões, tentando convencê-lo a aprovar a decisão do senhor governador de
lhes dar boa acolhida. Uma noite fui vê-lo no convento dos jesuítas, onde ele combinara um
encontro comigo. Disseram-me que ele estava naxasa do senhor governador, que mandara
chamá-lo. Dirigi-me para lá. O Sr. de Frontenac não o vira. Foi em vão que o esperamos.
Desdg então ninguém mais o viu em Quebec.
Angélica estava pasmada, hão conseguindo formar uma opinião sobre essa nova atitude
esquiva no inapreensível jesuíta. Após um momento de reflexão, veio-lhe uma inquietação.
Aquilo ocultava o quê? O jesuíta se retirara para as sombras a fim de melhor preparar suas
armadilhas?
 Assim que chegou a Quebec ele começou a reunir os selvagens abenakis e
huroniáhos nas planícies de Abraão, encorajando-os a se oporem pelas armas ao
desembarque de vocês. Os fenómenos estranhos a que chamam aqui de "canoas da
chasse-galerie sustentavam a revelação que ele lhes fazia sobre as calamidades que se
abateriam sobre nós. Um iluminado viu cortarem o céu algumas dessas luzes que às vezes o
atravessam nestas latitudes.
 Também as vi — murmurou Angélica, mas como se falasse consigo mesma.
— As almas fracas e assustadas vêem nisso a visão de canoas em chamas a bordo das
quais se encontram os missionários e exploradores das florestas martirizados pelos
iroqueses pela sobrevivência da Nova França... Anúncio de infelicidades, apelo à
vigilância... Era fácil explorar essa atmosfera de medo e foi inútil eu falar. Enquanto isso,
chegava o chefe dos patsuiketts, que convocava efetivos e reservas dos abenakis para
receber vocês. Faltou pouco para que não eclodisse uma batalha renhida entre os partidários
do narrangasett e os de Sebastião d'Orgeval.
Um rumor longínquo, que se elevou das alturas da cidade e rolou o seu eco na direção
deles, qual trovoada prolongada, interrompeu-lhes a conversa.
Seria Joffrey chegando?, indagou-se Angélica, alerta.
O ronco amplificou-se, como o de um vagalhão rolando de estágio em estágio, pelo
flanco da falésia.
Depois surgiu um soldado de uma ruela em declive, com o dedo apontado na direção do
cume, gritando:
— Senhor governador, os selvagens! Estão vindo!
Centenas de selvagens, num clamor gigantesco, desciam pelas ruas, jardins, pulando
cercas e muretas. O ruído dos seu colares de conchas, sacudidos pela corrida, somava ao
tumulto um curioso retinir sincopado.
De punhos às ancas, Frontenac empinou o nariz na direção do rumor torrencial.
— O que foi que deu neles?
E, voltando-se para Castel-Morgeat:
 Não podia ter ficado lá em cima, imbecil, controlando toda a sua gente?
 Mas foi o senhor, governador, quem exigiu que eu estivesse aqui embaixo, no
desembarcadouro.
 Quem comanda os selvagens?
 Piksarett!
 Então devemos esperar que isso não seja mais do que uma manifestação de
boas-vindas, à moda deles.
Apesar de tudo, o governador estava um pouco apreensivo. Aqueles índios eram
imprevisíveis.
— O grande sagamore Piksarett tomou o seu partido ferozmente — disse, dirigindo-se
a Angélica. — Declara-se um de seus amigos, o que é no mínimo surpreendente.
— Nós nos prestamos serviços mútuos — respondeu ela —, e tenho-o em grande
estima.
A última vez que encontrara o grande chefe índio fora há três meses, no golfo
Saint-Laurent, após os trágicos incidentes
da Acádia.
Antes de embrenhar-sé na floresta, levando à cintura os escalpos sangrentos dos adeptos
de Ambrosina de Maudribourg, ele lhe gritara:
— Vá! Eu a encontrarei em Quebec. Você ainda precisará de auxílio meu lá...
Estava cumprindo a palavra.
Apareceu no topo da Rue des Epargès, que terminava numa escadaria.
Sozinho!
Com um gesta imperativo, retinha a desabalada carreira dos guerreiros que arrasfara
consigo naquela louca correria.
Fez-se silêncíoO^o-mesmo tempo a borda das muralhas e parapeitos se guarneceu de
cabeças-emplumadas.
Piksarett era reconhecível pela grande estatura desenvolta. Mas ele, a quemtinhanv
o-hábito de ver seminu ou vestido com a sua disforme pele de urso negro, hoje estava
magnificamente adornado. Serpentes de tinta vermelha e branca cobriam-no da cabeça aos
pés, segundo um ritual complicado que sublinhava de volutas cada um dos seus músculos,
os peitorais, o umbigo, as rótulas dos joelhos enfeitados com jarreteiras de plumas.
A cabeça trazia uma imensa tiara rebordada de conchas, que sustentava um penacho,
não menos impressionante, de plumas de todas as cores.
Permaneceu imóvel por um longo instante, a fim de que todos pudessem admirar-lhe a
magnificência, depois se encaminhou com toda a solenidade em direção a Angélica,
ladeada pelos notáveis franceses.
Uma intensa satisfação fazia-lhe brilhar as pupilas negras e maliciosas.
Endereçou a ela um olhar de conivência. Já havia entre eles uma riquíssima história de
adversários, adversários aliados, adversários de força igual.
Preocupado em fazer lembrar os próprios direitos, pousou uma mão peremptória no
ombro de Angélica.
— Minha cativa — disse.
E, dirigindo-se a Frontenac:
 É assim, você deve sabê-lo. Esta mulher é cativa minha e não sua. Pousei a mão
sobre ela na aldeia de Newehevanik, mas ela me disse que já era batizada e francesa. O que
podia eu fazer então? Mas, como vê, eu a trouxe a Quebec, para você, e o seu esposo
também vem, a fim de me pagar o resgate. Conheço" bem estes estrangeiros do Alto
Kennebec. E posso garantir-lhe que neles não há absolutamente nada de fraudulento. Assim
eu lhe peço que receba meus convidados com honra e confiança.
 Você pode constatar com os seus próprios olhos a honra que lhes dispenso, e fique
em paz. A acolhida que receberão dentro de nossos muros há de contentar-lhe o coração.
As -ios-sas alianças se confundem, e não posso considerar indignos de se sentarem ao meu
lado, sob a égide da bandeira do rei da França, para compartilharem do festim depois de
fumarem do cachimbo da paz, aqueles a quem você honra com sua confiança. Compartilho
da sua convicção de que este é um grande dia para o repouso das nações.
Satisfeito, Piksarett voltou-se para a população e começou a arengá-la. Angélica
entendeu que ele apresentava uma relação das façanhas dela, Angélica, e destacava como
mais importantes aos seus olhos o fato de ela poder comandar os espíritos e ressuscitar
seres quase mortos tocandô-os com as mãos.
Felizmente a homilia foi breve, e ela esperou que não o tivessem ouvido com
demasiada atenção.
Com um gesto autoritário, Piksarett concluiu apresentando a cativa e pedindo à
multidão que a aclamasse.
Os vivas se repetiram de bom grado, e o tumulto, agora com a participação dos
selvagens, adquiriu tal amplidão, que cobriu a aproximação de uma música de pífaros e
tambores, chegando pelas ruas da beira do rio.
Viu-se de repente, à entrada da praça, uma fileira de músicos batendo nas caixas
adornadas com fitas, e logo depois homens armados carregando chuços, cujas couraças e
elmos de aço negro cintilavam ao sol.
Eram Joffrey de Peyrac e sua tropa.

CAPITULO X

A chegada triunfal do Conde de Peyrac

Angélica, com o coração disparado, teve que admitir consigo mesma que a dupla fileira
de tambores seguidas de pífaros, avançando com petulância em seus cintilantes uniformes
brancos, o cinto franjado de ouro, a boina azul com borlas douradas, e sepafando-se para
abrir alas num movimento exato de conjunto, sem-por isso interromper a música, cujos
rufares e notas agudas se intensificavam, produzia um surpreendente efeito de beleza- e
poderio.
Mais impressionantes ainda estavam os espanhóis de Peyrac, de armadura e-capacete
pretos e chuço na mão, formando a guarda do Conde de Peyrac. Dom Alvarez, o capitão,
afeta-va o ar altivo e severo de um hidalgo penetrando numa cidade flamenga.
Flutuavam ao vento galhardetes e bandeiras, com o brasão de armas de cada capitão dos
cinco navios ancorados na enseada, precedidos do estandarte com as armas que o Conde de
Peyrac ostentava em Gouldsboro e nos seus fortes no Mai-ne: um escudo de prata sobre
fundo azul.
— Ora — exclamou alguém —, quando ele andava pelo Mediterrâneo, usava o escudo
de prata sobre fundo vermelho...
Angélica se voltou com vivacidade, tentando identificar entre todos aqueles rostos
comprimidos, postados na direção do cortejo que chegava, o homem que lançara essas
palavras em tom leviano e sarcástico.
Havia, então, naquela multidão francesa, alguém que sabia que por trás do Conde de
Peyrac se escondia o antigo Resca-tor do Mediterrâneo?
Não conseguiu reconhecer nenhum rosto. Que importava!
Seria um perigo? Havia que estar preparada para esse tipo de encontro.
Querendo penetrar naquela pequena sociedade dirigente da Nova França, ligada
diretamente à corte e suas intrigas, eles tinham que estar preparados para ver surgir
fantasmas do passado.
Angélica temia isso?
Não teve tempo de preocupar-se, de sentir um arrepio. Os espanhóis se separavam por
sua vez, também eles se alinhando de lado, frente a frente, com os chuços levantados e
entrecruzados para formar uma ala de honra. E viu-se avançar o Conde Joffrey de Peyrac de
Morens d'Irristru.
Um burburinho percorreu a multidão. Burburinho que traía uma emoção não despida de
receio e de certa hostilidade, mas também de espanto.
Pois ele avançava de mãos dadas com Honorina.
O encanto ambíguo que emanava de sua grande silhueta de conquistador, com o rosto
costurado de cicatrizes e trazendo a marca de uma existência fértil em combates e
violência, era como que atenuado pela presença da criança.
Certamente ele tinha o olho escuro e sarraceno, cabelos negros e espessos que não
deviam nada às perucas, e ostentava -uma elegância guerreira que, com as suas botas altas à
inglesa, as luvas de crispim e os dois boldriés de couro de Córdoba suportando pistolas com
coronha de prata, aproximava-se da imagem que os simples faziam de um temível pirata do
Caribe.
Mas o que desconcertava era a cordialidade do seu sorriso, e sobretudo o gesto simples
e natural com que conduzia a menininha até o governador e os dignitários.
Dir-se-ia que era muito mais a ela que ele queria apresentar do que a si mesmo.
Honorina, pela mão de Joffrey de Peyrac, estava adorável de imponência e dignidade. O
vestido azul, atravessado de suaves reflexos verdes, realçava-lhe o brilho dos belos cabelos
acobreados, penteados em cascata sobre os ombros. Ela, que tanto gostava da sua liberdade
"de movimentos, suportava com paciência a gola alta de renda atada por galões de borlas
prateadas, que a obrigavam a manter o pescoço bem ereto. Ela suportava o corselete
pontudo, contornado de franjas cor da aurora que se destacavam sobre o verde do tecido
adamascado, e os laços aurora atando aos punhos as mangas bufantes de linho fino, que
saíam das mangas mais curtas, de punhos bordados, do casaquinho. Sob o braço esquerdo,
trazia o chapéu de plumas verde e rosa. Pedir-lhe que o usasse seria pedir demasiado, mas
era admissível levá-lo assim, pois muitas senhoras tinham adquirido o hábito, em vista da
arquitetura cada vez mais complicada dos penteados, de levar o chapéu sob o braço, a
exemplo dos homens.
Honorina parecia uma criançq, régia. Era com grande seriedade que se aproximava ao
lado do pai.
Enquanto todos os olhos estavam fitos nos dois, os marujos do Gouldsboro se
espalharam rapidamente pela praça. Homens armados de mosquete postaram-se em
diversos pontos, com a mão sobre o sabre à cintura.
Esses movimentos paSsaram despercebidos. As pessoas apontavam umas para,3as-
outras, caminhando atrás de Joffrey de Peyrac e de Honorina, os dois filhos do conde,
Florimond e Cantor, belo"s adolescentes de ,dezesseis e dezoito anos, e um grupo das mais
dignas^personalidades, nas quais — pelo menos em duas delas — Quebec podia reconhecer
figuras familiares e estimadas, ou seja, o próprio intendente da Nova França, Sr. Carlon, de
regresso de sua viagem à Acádia, e o Sr. d'Arreboust, que todos imaginavam embarcado
para a Europa. Havia uma terceira personagem, um belo homem com boa aparência e
seriedade, que era desconhecido, mas já corria o boato de que se tratava de um enviado
extraordinário do rei, chegado num navio desmastreado e a quem a frota do Sr. de Peyrac
salvara de naufrágio.
A presença deles e a dos resgatados do Saint-Jean-Baptiste, que os seguiam, acabaram
de transformar essa entrada na cidade de um corsário temido em entrevista de potências
aliadas, desejosas de se obsequiarem e de se socorrerem mutuamente, a fim de
estabelecerem relações de boa vizinhança.
Soltando da mão que a segurava, Honorina fez uma profunda reverência ao Sr. de
Frontenac e, após um instante de reflexão, fez uma segunda reverência diante de Piksarett,
a quem vira avançar primeiro. Em seguida, cumprida a tarefa, disparou na corrida.
Angélica achou que a menina viesse na sua direção, mas ela se dirigia ao Sr. de
Loménie-Chambord, a quem os seus olhos de lince haviam notado desde que ingressara na
praça. O Cavaleiro de Malta, tocado por esse impulso inocente, levantou-a nos braços e
estreitou-a sobre a sua cruz de prata.
— Você me preparou a minha faca de escalpelar? — perguntou-lhe Honorina logo
depois de beijá-lo nas duas faces. — Você me prometeu, e o Sr. d'Arreboust também,
quando foi a Wapassu...
O cavaleiro surpreendeu-se, pois a promessa lhe escapara totalmente da memória. Para
grande sorte sua, Honorina foi rodeada por inúmeras senhoras e cavalheiros, que a achavam
encantadora e queriam beijá-la e cumprimentá-la.
Em Quebec, apesar dos esforços do governador, que insistia muito nisso, o protocolo
nunca resistia muito tempo. A intervenção da criança-quebrara o gelo, e as pessoas começa-
vam a se interpelar, a se apresentar umas às outras, a se reconhecer. O Sr. d'Arreboust
viu-se rodeado de amigos, encantados por revê-lo, pois imaginavam-no vogando rumo à
Bastilha, e a desgraça dele transformara os elementos conciliadores da colónia.
Apesar de tudo, Frontenac se empenhava em proceder a algumas apresentações oficiais.
Pelo menos dos membros da sua administração civil e militar.
Após o governador militar e seus oficiais, os membros do conselho soberano, os
senhores Gaubert de La Melloise, Magry de Saint-Chamond, Hauborg de Longchamp,
Basílio, Gollin, o procurador Natal Tardieu de La Vaudière, o escrivão Nicolau Carbonnel.
Joffrey de Peyrac saudava e dizia uma palavra a cada um. Angélica esforçava-se, mais
uma vez, por gravar no mínimo alguns de todos aqueles nomes.
O conde, por sua vez, apresentava os filhos, os lugar-tenentes, oficiais, escudeiros, e
sobretudo o Sr. de Bardagne, emissário do rei, que esperava com toda a paciência.
Angélica, que o governador Frontenac mantinha à sua direita, achava-se bem perto do
Sr. de Bardagne quando este apresentou os seus títulos e credenciais, enquanto o Conde de
Peyrac, em poucas palavras, explicava como tivera a satisfação de poder acudir o
representante de Sua Majestade, em apuros no Saint-Laurent.
Afinal, Angélica pôde insinuar-se para junto de Joffrey. Fitou-o, com os olhos
brilhantes. Ele segurou-lhe a mão e furtivamente beijou-lhé a ponta dós dedos.
 O que foi que eu disse? — sussurrou-lhe. — Eles ganharam!
 Quem ganhou?
 Os seus olhos -verdes!
 Oh, Joffrey! Bem.que acreditei que tudo estivesse perdido. O que foi aquele
cãnhonaço?
 Ainda não sei... Um nervoso qualquer. Talvez um supremo ataque do seu caro
amigo, o Padre d'Orgeval.
 Ele não se encontra em Quebec. Desapareceu. O Sr. de Loménie acaba de me
informar....
 Ah, realmente!...
Refletiu e sorriu. A«gélica teria jurado que ele não se surpreendera muitcr com a
.notícia.
— Pois é perfeito! Um adversário a menos para conquistar...
O conde '«stava^muito à vontade, divertido.
"O que teria ele tramado agora?", perguntou-se ela. "Quem provocou essa... fuga do
Padre d'Orgeval? Joffrey não aludiu a um espião secreto que estaria a soldo seu, bem no
coração de Quebec?"
Correu os olhos à vplta, interrogando aqueles rostos novos, todos diferentes, mas joviais
e animados. As pessoas estavam ficando loucamente alegres.
 Temi por você — continuou Peyrac, aproveitando das conversas cruzadas para
retê-la um pouco perto de si. — O cãnhonaço podia ter tido consequências desastrosas...
Felizmente, na mensagem que me enviou, o Sr. de Frontenac me garantiu que se tratava de
vfm erro lamentável e que, apesar da resposta violenta do Gouldsboro, agora estava tudo
bem.
 Sim, sua resposta foi rude — interrompeu Frontenac, que ouvira as últimas palavras.
— Graças a Deus, não houve mortes... Apenas uma casa demolida, a de... No final das
contas, foi bem feito... Eu lhe explicarei...
A cidade parecia liberta de um sortilégio. As crianças se faziam mais ousadas e corriam
por toda parte, bebendo, comendo, desafiando os índios na corrida ou no tiro, vindo admirar
de perto os trajes suntuosos das belas damas e dos belos senhores da Cidade Alta, hoje
descidos até a Cidade Baixa.
Os homens de Peyrac e a gente de sua casa travavam conhecimento com a população e
aceitavam das mãos delicadas das moças um caneco de cerveja, um quartilho de vinho.
Angélica surpreendeu-se ao ver Honorina ir beijar um garotinho entre os pupilos do
seminário. Ficaram ambos de mãos dadas, olhando-se gravemente.
Angélica aproximou-se.
— Por que beijou esse garotinho? De onde o conhece?
Honorina meneou a cabeça.
— Bem sabe que lhe dei um pedaço de açúcar-cândi o ano passado, quando ele foi à
nossa casa, antes de tudo pegar fogo!
Honorina tinha uma memória espantosa para rostos t para tudo em geral. Não era a
primeira vez que Angélica se dava conta disso.
Também ela, agora, reconhecia o pequeno Marcelino, sobrinho do Sr. de L'Aubignière,
que um grupo de iroqueses, que o mantinha prisioneiro há três anos, devolvera aos cana-
denses que os cercavam nas margens do Kennebec, em troca da própria liberdade.
Ele não dizia palavra.
— Você conservou as bolas de gude que Tomás lhe deu? Responda. Agora você fala
francês, não fala?
Mas o menino permanecia calado. Ela, porém, adivinhou que a reconhecia por um
rápido clarão malicioso e desconfiado que lhe cruzou o olhar azul.
Atónita de verem-na ajoelhar-se diante de um dos internos do seminário, e sensíveis ao
quadro que ela oferecia com o grande manto de pele branca, a corola do vestido azul
esparramada à volta dela, as pessoas se haviam aglomerado.
A chegada em massa dos acadianos, que também tinham sido passageiros do
Gouldsboro, provocou uma nova troca de saudações.
— Decididamente, conde, você tocou a chamada dos retardatários — dizia o
governador a Peyrac. — Sem você, começo a entender que muitos dos nossos teriam
encontrado dificuldade para alcançar Quebec no outono. Por causa dos ingleses, a na-
vegação se torna cada vez mais difícil na baía Francesa. Por outro lado, eu ficaria feliz se
me desse notícias sobre um contingente de Moças do Rei, que a Companhia do Santíssimo
Sacramento me anunciou, com grandes recomendações, nos primeiros correios do verão. A
benfeitora delas, a Duquesa de Maudribourg, fretou um navio por conta própria e vinha
acompanhando-as.
Calou-se, fitando, espantado, alguém que estava atrás de Angélica e do Conde de Peyrac.
 Por que se persigna,, soldado?
 E que o senhor prpnurkiou o nome daquela praga, meu governador — balbuciou voz
engasgada de Ademar, que, escondido atrás de Angélica, cobria-sè de grandes
sinais-da-cruz. — A Maudribourg! Oh, Piedade! Todo mundo sabe que ela era filha do
Diabo!
O conjunto desta declaração confusa se perdeu em meio a um fluxo de palavras
veementes que alguns dos recém-chegados que se encontravam ah se apressaram a lançar
com grande energia, a fim de dissimulá-la.
Finalmente Joffrey teve ocasião de. informar ao Sr. de Frontenac sobre-o destino da
Duquesa de Maudribourg.
 De fato senhor governador, os seus.pressentimentos se justificam. O La Licórne, o
navio dessa dama benfeitora, perdeu-se completamente na costa da Acádia. Como me
encontrava nas proximidades, pude socorrer algumas daquelas moças infelizes, mas,
infelizmejite, a duquesa pereceu no naufrágio.
 Com os diabos! — bradou Frontenac. — A Companhia do Santíssimo Sacramento
vai me excomungar!
 Trouxemos conosco algumas das que se salvaram...
 O que farei com elas, agora que a sua benfeitora já não está aqui para mante-las?
O governador relanceou ao redor, inquisitivo.
— Vou pedir a opinião da Sra. de Mercourville. E uma pessoa de bom julgamento,
muito ativa. É presidenta da Confraria da Sagrada Família. Certamente terá uma ideia. De
qualquer maneira, devo reunir o Grande Conselho amanhã, não, depois de amanhã, pois
quero dar-lhe, e à Sra. de Peyrac, tempo para se acomodarem... Depois de uma viagem tão
longa... Tive uma excelente ideia. Ao ver que já não devia esperá-la para esta estação, pus à
sua disposição o solar que eu previra para a Duquesa de Maudribourg, um dos nossos mais
belos prédios...
Cada vez que ouvia pronunciar o nome da Duquesa de Maudribourg, Ademar se
persignava com profusão. O quartel-mestre Vanneau acabou afastando-se e ocultando-o por
trás da muralha de homens do Gouldsboro.Era melhor que não chamasse atenção no seu
uniforme novinho, enquanto não se eliminasse a acusação de deserção que podia pairar
sobre o pobre soldado na Nova França.
Conto por uma reação de conjurações contra a duquesa, o momento pareceu propício
para apresentar os jesuítas. Prevenida de que o Padre d'Orgeval não se encontrava entre
eles, Angélica dirigiu-se-lhes sem apreensão. Não pôde impedir-se, porém, de também se
sentir um tanto decepcionada. Aquele jesuíta, inimigo deles, a quem nunca tinham visto e
que sempre se esquivava no momento do confronto, continua a sendo, assim, um adversário
inquietante. Teria sido bom terçar armas com ele de uma vez por todas, enfrentar "o olhar
azul de dureza de safira" de que Ambrosina falava.
Privado dessa presença, o grupo de jesuítas, apesar de sua expressão de cortesia
distante, não inspirava temor.
Eram cerca de dez.
O superior da comunidade, o reverendo Padre Maubeuge, pareceu a Angélica uma
figura enigmática. Dizia-se que passara longos anos na China, entre os sábios que fundaram
o observatório de Pequim. Talvez fosse efeito da reputação dele, mas não se podia deixar
de ver no religioso, originário da Picardia, uma vaga semelhança com os asiáticos com
quem, durante tanto tempo, ele compartilhara a existência e os costumes.
De uns sessenta anos, talvez mais, estatura mediana, quase calvo, tinha a pele lisa,
ebúrnea, gestos raros, feições impassíveis, mas que às vezes podiam ser iluminadas por um
clarão de humor. A barba grisalha era curta e pontuda. O padre trocou palavras de
boas-vindas com o Conde de Peyrac. A sua forma de polidez e as pequenas saudações com
que pontilhava o discurso completavam essa impressão de se estar lidando com um
mandarim, um homem de raça diferente, estranha à daqueles franceses ruidosos e
turbulentos que se agitavam por ali.
Do breve olhar que ele lhe lançou por sob as pálpebras em-papuçadas, Angélica
conservou a sensação de que fora examinada pelo representante de um mundo misterioso e
inacessível. No entanto, não teve medo.
— Não esquecemos de que lhe devemos a vida de um dos nossos irmãos, senhora —
disse-lhe numa voz tranquila e monocórdia.
Ante o espanto dela, ele se voltou papa outro jesuíta ao seu lado, atarracado e sólido, de
densa bafba negra, em quem ela reconheceu o Padre Masséraí, sorridente e bonachão.
 Você, meu padre? Que boa surpresa encontrá-lo aqui! Perdoe-me por não havê-lo
reconhecido antes...
 Eu é que lhe rogo excusar-me. Arregalava os olhos e não reconhecia, numa aparição
tão faustosa, a nossa boa anfitriã de Wapassu, a quem devemos não havermos perecido,
transformados em estátuas de gelo, numa noite de Epifania. Demorei em vir saudá-la.
Puseram-se a evocar as lembranças daquele inverno terrível, durante o qual o Padre
Massérat os ajudara a tratar dos doentes.
As Moças do Rei tinham chegado com Iolànda e Querubim, e o séquito de passageiros
do Saint-Jean-Baptiste a quem os homens de Peyrac tinham tirado-do apuro à entrada do
rio Saint-Laurent.
De longe Angélica os viu apresentarem as jovens aos amáveis canadenses com quem
tinham travado conhecimento e que mandavam servir-lhes de comer e beber, tentando
animá-las e alegrá-las.
Estavam em Quebec, não havia mais dúvida! E chegara o momento de ver como se
resolveria toda uma multidão de pormenores, cuja proposição não era simples.
O que fazer, entre outras coisas, do infeliz inglês de Con-necticut, Elias Kempton,
capturado pelo capitão do Saint-Jean-Baptiste no golfo Saint-Laurent? Não o mostrariam
por enquanto, pois seria preciso evitar que ele fosse aprisionado como inimigo dos
franceses e vendido como escravo aos índios ou a uma família piedosa, incumbida de
convertê-lo ao catolicismo.
Angélica soltou uma pequena exclamação. Aqueles canadenses, com as suas bebidas
explosivas, tinham-na feito esquecer o gato.
 Não tema nada — afirmou Ville-d'Avray. — Repito-lhe que ele está em boas mãos.
Quando Janine Gonfarel adota alguém, pode-se contar com ela.
 Janine Gonfarel! — repetiu Angélica. — Não quer dizerque... que... aquela mulher
grandalhona que interferiu... Mas tinham-nos dito que ela era hostil a nós e muito devotada
aos jesuítas...
— É fato... Mas é de crer que gosta de animais. Bem que ela gostaria que lhe atirassem
pedras, em você, não em seu gato... Tranqúijize-se! Tranqiiilize-se — insistiu o marquês,
vendo que Angélica empalidecia. — Garanto-lhe que ela tem o coração terno. É temida,
aterroriza meia cidade com o seu rebuliço e o seu tom autoritário. Não passa um dia sem
que suba ao Castelo Saint-Louis ou ao prebostado ou à casa do intendente para queixar-sè
disto ou reclamar daquilo. Mas fique sossegada pelo seu gato. Será cuidado e mimado!
Pense que ela é dona da taberna Navio de França, um lugar onde se come divinamente.
Tranqúilize-se, estou dizendo! É uma excelente mulher! Gosto dela como de uma irmã...
Apesar dos protestos do marquês, Angélica sentia mais uma vez a sua alegria
conturbar-se com uma preocupação interior maldefinida. A intervenção do virago não
deixara de confundi-la, e, agora que sabia que se tratava de Janine Gonfarel, a revelação de
uma pessoa desfavorável à vinda deles mais a preocupava do que a acalmava.
Mas foi-lhe impossível anuviar-se em meio a tamanha agitação e alarido.
Os sons carrilhonantes de um dobrç de sinos alçando-se de súbito pelas alturas da
cidade e rolando até eles, a despertar os ecos das falésias, vieram somar-se ao tumulto.
— O te-déum! — exclamou o governador. — E o senhor bispo que nos aguarda há
horas no átrio da catedral!
Não faltava mais nada!
CAPÍTULO XI

Monsenhor de Layal, vigário apostólico da Nova França

0 Trago um presente para Monsenhor de Laval de que, espero, ele há de gostar —


anunciou Peyrac.
 O que é?
 Relíquias.
Seis marinheiros do Gouldsboro aproximaram-se, trazendo aos ombros uni andor que
sustentava uma pequena arca de prata.
— Ao sabir que a sua Basílica de Nossa Senhora de Quebec continha as relíquias de
São Saturno e as de Santa Felicidade, eu quis acrescentaria esse tesouro as relíquias de
Santa Perpétua, que, conforme não ignora, foi martirizada com eles perto de Cartago, nos
primeiros séculos.
O Sr. de Frontenac talvez o ignorasse, mas tirou o chapéu, respeitoso, e persignou-se.
— Relíquias! O bispo ficará encantado. Ele mandou colocar mais de oitenta relíquias
sob as pedras dos altares de nossas igrejas. Nossa cidade é uma cidade santa.
Organizou-se o cortejo, com os músicos à testa, seguidos das oriflamas.
A arca, rodeada pelos jesuítas, recoletos e padres do seminário que a isolavam da
desordem popular, viria em seguida, depois dos oficiais, levada e escoltada pelos
tripulantes.
Angélica recusou a cadeirinha, oferecida com insistência por Ville-d'Avray. Frontenac
explicava alguma coisa sobre uma carruagem de honra que não conseguira abrir caminho.
Não era mais agradável se encaminharem calmamente rumo à catedral, subindo aos
poucos à luz dourada daquele belo dia de fim de outono?
O sol, ainda a meio do céu, dispensava algum calor.
Ao longo da encosta da montanha, que era o caminho principal para a Cidade Alta, uma
densa multidão dava à rua escarpada a aparência de uma torrente de águas tumultuosas e
sombrias.
Mas essas águas se afastaram de bom grado e, quando o cortejo ultrapassou o estreito
desfiladeiro das últimas casas, onde cada janela ou lucarna surgia apinhada de cabeças,
houve espaço suficiente para que o séquito se alargasse.
Ao partirem, a estreiteza da passagem colocara uma questão de protocolo. Quem devia
pôr-se à direita do governador, Peyrac ou o Sr. de Bardagne? O Sr. de Frontênac a resolveu
à francesa, ou seja, de modo galante: postou Angélica à sua direita e, sozinho com ela,
tomou a dianteira.
Depois, quando o caminho se revelou um pouco mais espaçoso, à esquerda do
governador se encontrou o Sr. de Bardagne a quem ninguém notava. Tomaram-no por um
oficial da escolta de Joffrey de Peyrac, que vinha atrás do governador e cuja estatura e
magnificência atraíam todos os olhares e suscitavam, junto com a beleza de Angélica,
exclamações e comentários apaixonados.
O clamor dos vivas e aplausos precedia e seguia a passagem deles.
Ali estavam, então, Angélica e Joffrey de Peyrac subindo por aquela ladeira que ia dos
cais de Quebec à cidade aristocrática e conventual edificada nas altujas, uma ladeira tão es-
carpada, íngreme e rochosa quanto o caminho do paraíso, e, assim como este, revelando, à
medida que avançavam, perspectivas de surpreendente beleza.
Chegavam ao ponto culminante do rude caminho. Angélica estacou, desejosa de abraçar
com o olhar o magnífico horizonte cuja beleza os acompanhava na ascensão, como um hino
alçando-se e desdobrando aos poucos as suas mais belas tonalidades.
Da saliência da falésia onde se encontravam, o rio se descortinava como uma imensa
baía cintilante que os longínquos rosados e azuis das montanhas ampliavam infinitamente.
Céu e água pareciam confundir-se numa mesma tonalidade lavada de rosa, e bem longe,
efnbaixo, avistavam-se os navios da flotilha de Peyrac, alinhados em semicírculos diante da
cidade, como brinquedos sobre um espelho.
Retomaram a marcha e numa virada toparam com um padre de sobrepeliz branca sobre
a batina preta e estola violeta ao pescoço, escoltado por dois garotos calçando grandes
tamancos e também de sotaina preta e sobrepeliz. Um deles sacudia um sininho de cabo de
madeira, o outro se curvava sob a haste de uma grande cruz de prata, que ele sustentava da
melhor maneira que podia, segurando-a com as duas mãos. Um cão os acompanhava.
A atitude do padre era um pouco a de um profeta incumbido de lembrar à humanidade
pecadora e negligente que viver é sofrer e que o serviço de Deus vem antes de todas as
coisas.
No entanto, a presença dó cão mudava tudo. Pois se o rosto do eclesiástico exprimia
sentimentos de fúria, a atitude do animal, sentado sobre a cauda, de língua pendurada e
vendo o grupo aproximar-se com um belo olhar pacato, era a imagem mesma daquek
cidade bonachona, e eliminava muito da solenidade que o padre queria conferir ao seu
discurso. Afe-tando não notar Angélica, cuja presença não tinha nada de negligenciável,,ele
se dirigiu ao governador em tom autoritário.
 Isto são horas para o te-déum? Estava previsto para as vésperas e cheganrà noa. Os
penhores do capítulo criaram raízes, usou-se a provisão de incenso de uma semana inteira, e
o monsenhor está prestes a voltar para casa.
 Ora' abade, acha que todas as questões diplomáticas podem ser resolvidas às pressas?
Principalmente quando o canhão se envolve nelas... E você, o que está fazendo aqui,
passeando, quando deveria estar com os chantres?
 Fui requisitado para levar os santos óleos às vítimas do bombardeio.
 O quê! Aquele canhonaço estúpido fez vítimas? Há mortos?
—Dois. Mas puderam receber os sacramentos antes de expirar.
O Sr. de Frontenac fez alto novamente e empurrou o chapéu para trás, agora para coçar a
testa sob a peruca, preocupada.
 Diabo! E o que dizem as famílias? A vizinhança?
 Agiram como patifes — declarou secamente o vigário. — Ninguém se preocupou.
Valendo-se da ausência dos proprietários, estavam assaltando a casa do Sr. de
Castel-Morgeat, que foi atingida...
 Bravo! — bradou Ville-d'Avray na multidão.
E o governador militar, furioso, pôs-se a abrir caminho a cotoveladas para tentar
alcançá-lo.
— Mas lembro-lhe, humildemente — continuou o padre, dirigindo-se a Frontenac — ,
que todo mundo está esperando no átrio da catedral. Apressem-se, rogo-lhes! Não se pode
tolerar isso.
Com uma invectiva, intimou os dois pequenos acólitos a retomarem a marcha à sua
frente, coisa que ambos fizeram, batendo os tamancos, um levantando a cruz o máximo
possível e o outro tocando o sininho. O canzarrão, erguendo-se, soltou uma espécie de
suspiro e, gingando os quartos traseiros, seguiu-os com ar filosófico.
Os demais lhe imitaram o exemplo, e a subida reiniciou-se. Dando as costas ao rio,
ganhavam agora o flanco do platô. A ladeira se fazia menos rude, e o caminho se abria. Os
arredores da Cidade Alta eram anunciados por habitações mais -mplas e opulentas, situadas
no meio de belos jardins, cercadas por paliçadas de cedro. Algumas delas tinham o ar de
pequenos castelos campesinos, rodeados de campinas e pomares. A direita, acima do rio e
disposto em degraus, ficou para trás um cemitério.
Ao atingirem uma encruzilhada, um cheiro intenso de gordura de urso e fumaça invadiu
a atmosfera, e simultaneamente todos os habitantes de um pequeno acampamento de
huronianos situado atrás da catedral desataram num grande concerto de gritos, com as
mulheres, as crianças e os cães em primeiro plano, soltando aclamações e uivos e dançando
ao som de palmas.
A comitiva aproveitou-se desse intef lúdio e do espaço da encruzilhada, que formava
uma espécie de estrela, para rearranjar as fileiras segundo outro cerimonial, a fim de
desembocarem na Grande Place da Cidade Alta com toda a solenidade requerida.
Pediu-se aos músicos que se reagrupassem por trás da cruz do abade, seguidos da arca
de Santa Perpétua, escoltada por sotainas e buréis e pelos principais chefes indígenas.
A catedral ficava ao fundo de uma grande praça, ladeada de casas e guarnecida de
árvores, um pouco inclinada, como todos os espaços abertos de Quebec. O campanário
estava fincado no cruzeiro do transepto, e a fachada, voltada para a praça, apresentava um
grande portal e duas belas janelas de forma arredondada. No átrio vasto e bem projetado
para a frente, com todo um desdobramento de degraus que compensavam o desnível,
espalhava-se uma imponente reunião de sobrepelizes, capas ou dalmáticas.
A altura a que chegava a renda da barra das sobrepelizes variava conforme o grau
hierárquico. As crianças mais novas do coro usavam batina vermelha, enquanto as mais
velhas estavam de preto. Balançando os incensórios ou segurando grandes candelabros, de
cabeça ereta, os meninos ladeavam o bispo, que se encontrava no topo da escada, diante da
porta aberta da igreja.
Monsenhor de Laval era um homem de bela aparência, de uns cinquenta anos. A mitra
lhe aumentava ainda mais a alta estatura. Empunhava o báculo episcópal distintivo de seu
ministério, que o tornava guardião e condutor de almas e de que o cajado precioso, de prata
maciça, era o símbolo.
Quando ele avançou, o sol fez cintilar òs cabochões de pedras preciosas que ornavam a
voluta lavrada do báculo e brilhar os esmaltes da haste e dos dois. pequenos globos entre os
quais pousava a mão enluvada de violeta e enfeitada de anéis.
O Conde de Peyrac adiantou-se, fez uma profunda reverência palaciana, é dobrando a
meio o joelho beijou o anel que Monsenhor de Montmorency-Laval lhe estendia.
Ao verem-no destacar-se do cortejo, um murmúrio percorreu a assistência. Seria aquele
o homem negro da visão de Madre Madalena?
Ora, ele não estava vestido de preto, nem mesmo de escuro, e isso provocou um
primeiro vacilar nas reações populares.
Joffrey de Peyrac falava ao bispo e sem dúvida o informava sobre as relíquias santas
que lhe trazia de presente, pois viu-se o rosto do prelado, até então marmóreo e
voluntariamente inexpressivo, iluminar-se, sem conter um sinal de interesse.
Angélica achou que estavam demorando a apresentar Nicolau de Bardagne. O seu
infeliz amigo de La Rochelle, chegando de uma viagem interminável, carregado de títulos e
responsabilidades de uma importância extrema, via retirarem-lhe a atenção que lhe seria
consagrada naquela ocasião, em proveito de estrangeiros, cujo caso, aliás, ele trazia a
missão de examinar.
No seu lugar qualquer diplomata teria o direito de ofender-se.
Aliviada, Angélica viu que o Governador Frontenac, talvez por iniciativa discreta de um
dos seus oficiais, pareceu lembrar-se da presença do emissário do rei e o anunciava com
muita ênfase. O Sr. de Bardagne ajoelhou-se. por sua vez, beijou o anel piedosamente, mas
quando, depois que se levantou, o bispo indagou polidamente sobre a viagem, ele se
esquivou às perguntas, dizendo que compartilhava da impaciência de todos para prestar
homenagem às santas relíquias.
Angélica, que não ouviu mais do que algumas palavras desse discurso, ficou-lhe grata
por se sair com tato de uma situação que até aquele momento fora bem humilhante para ele
e para a sua posição.
Mas ele se voltava na direção dela.'
— Antes de mais nada, porém, monsenhor, achando-me em terra francesa, nação que
se sabe das mais corteses para com as senhoras, eu gostaria de apresentar-lhe pessoalmente,
sem mais delongas, a sra. de Peyrac, cuja beleza e encanto vêm honrar sua cidade, o que só
pode constituir motivo de regozijo para o homem de gosto que a sua reputação diz ser.
Coube, então, a Angélica aproximar-se por sua vez, ajoelhar-se diante do bispo e beijar
o anel que o prelado lhe estendia com certa rigidez. Bem que ela sentira que o bispo, assim
como o abade anteriormente, afetava não notá-la, mas, mesmo levando isso em conta, a
intervenção do Sr. de Bardagne continuava sendo inesperada. Todos se puseram de acordo
que não era papel do emissário do rei apresentar a nobre visitante, que ele ultrapassara os
seus direitos e que ninguém entendia por quê.
— Claro que eu não tinha nenhuma intenção de me esquecer da Condessa de Peyrac —
rosnou Frontenac, vexado. — No que é que esse imbecil está se metendo? Isto está
começando bem!
Mas as comadres, atentas, logo reconheceram a paixão do emissário do rei, e puderam
desenredar melhor as razões do estranho comportamento. O emissário do rei estava
subjugado, e só enxergava Angélica. Naturalmente, acreditava-se que essa paixão datasse
apenas de Tadoussac, onde se supunha que os dois se tivessem encontrado pela primeira
vez.
Angélica não tardou a perceber no rosto de Monsenhor de Lavai os vestígios da
surpresa. Ergueu-se prontamente. O Sr. de Bardagne quis oferecer-lhe o braço, mas
Ville-d'Avray novamente não se deixou lograr e trouxe-a com vivacidade para trás, para
junto de si."
A arca de Santa Perpétua chegava sobre o andor de cetim e madeira das ilhas, carregada
por marinheiros. Sua presença suscitou um rumor de admiração, curiosidade e emoção
mística.
A arca cintilava, e depois de os marujos a erguerem nos braços, para que todos
pudessem avistá-la, foi depositada diante do bispo.
— Que ideia maravilhosa e inacreditável! — sussurrou Ville-d'Avray para Angélica. —
Seu esposo não poderia ter encontrado coisa melhor para encorajar o monsenhor a ver com
olhos favoráveis as conversações entre-a NovaiFrança e os invasores do sul. Como é que
esse diabo de homem faz para sempre me suplantar e me surpreender? Estou com ciúme!
Angélica compartilhava dáopinião do marquês de que Jof-frey nunca deixaria de
pasmá-la.
Ficava sempre boquiaberta com a atividade dele, suas mil ideias e projetos, que ele tecia
e-entreteciá sem cessar. Perguntava a si mesma quando fora que ele pudera se preocupar
em encomendar aquelas relíquias, aquelas "autênticas", e aqueles manuscritos, de valor
inestimável.
O fato é que estavam ali.
No átrio, todoslgsperavâm.
— Está frio — disse Ville-d'Avrayi — O sol está mudando. Que os mártires de Túnis
não se ofendam, mas aqui não estamos no Oriente. Cubra-se!
E para bem mostrar a todos que tinha direitos sobre ela, ajudou-à a recolocar sobre os
cabelos o capuz de cetim forrado de pele, cuidados que lhe acarretaram um olhar sombrio
de Nicolau de Bardagne.
— Como você está encantadora, minha cara! Ninguém pô
de resistir à sua imagem, viu? Vitória em toda a linha...
Enquanto isso, o bispo agradecia com algumas frases escolhidas que, vindas dele,
pareceram calorosas às testemunhas.
Em seguida, convidou todo o seu caro povo de Quebec a entrar na casa de Deus para
cantar o te-déum...
 Vitória! Vitória em toda a linha — repetia Ville-d'Avray, subindo a escada com
Angélica pelo braço e avançando para a grande porta escancarada, de onde evolavam em
rajadas solenes acordes de órgão. — A propósito — continuou ele —, sei quem mandou
disparar na sua frota... Sim! Acabaram de informar-me na subida... É absolutamente
inesperado... Você não vai acreditar... Adivinhe!
 Mas fale... Estou ardendo por saber!
 Pois bem! Foi a sra. de Castel-Morgeat!

CAPÍTULO XII

O te-déum

0 A Sra. de Castel-Morgeat! — repetiu Angélica. — Uma mulher! Disparar o canhão!


Mas ela é louca! Poderia ter matado o próprio filho...
 Ela não sabia que ele estava a bordo... — O marquês casquinou. — Ficou tão furiosa
que não garantissem a defesa de Quebec contra vocês e que o marido tivesse cedido a
Fronte-nac, que tomou a si a incumbência de penetrar no forte e, depois de aterrorizar os
infelizes soldados que estavam de guarda e subjugar o oficial que os comandava, ordenou
que afundassem a frota. Dizem que ela mesma enfiou o cartucho na boca do canhão e o
perfurou com um golpe da baioneta de que ela se havia apoderado. Foi porque teve medo
de que ela lhe vazasse os olhos com os molinetes e de que fizesse o recinto e todo mundo
ali voar pelos ares com um incêndio, que o artilheiro disparou... Bem mirado, há que
admitir! Que amazona!
 Antes diga: que louca!
O comunicado, embasbacante para dizer o mínimo, fez que Angélica não prestasse
atenção à entrada na catedral, nem no prazer que prometera a si mesma, pois estava bem
decidida a saborear cada segundo de uma cerimonia tão emocionante.
Mas, absorta nas reflexões sobre o gesto insensato da Sra. de Castel-Morgeat, viu-se de
repente na extremidade da nave, na primeira fileira, diante de um genuflexório de madeira
esculpida, com almofada de veludo grená bordado em ouro, sem consciência de haver
percorrido a distância desde o portal nem de haver seguido pela aléia central, ao longo da
qual haviam desenrolado um rico e espesso tapete de Àubusson.
Ajoelhou-se. Diante de si, na penumbra do coro, via luzir os ouros do altar-mor e do
retábulo, emoldurado por duas colunas de pórfiro negro. Acima do altar erguia-se um
mascarão de madeira dourada, onde estava esculpida a pomba do Espírito Santo.
Nisso, atrás dela, a igreja sé encheu de repente, tal e qual um reservatório cujas
comportas fossem abertas, e todo mundo tomava o seu lugar, numa algazarra que ignorava
completamente a habitual discrição devida aos lugares santos e à presença do
Santíssimo.Sacramento.
Em Quebec, uma coisaíínha precedência sobre todo o resto: a posição.
A hierarquia dos títulos, das- funções é das fortunas criava na pequena capital, onde,
por uma ou outra razão, cada indivíduo era uma personagem importante, conflitos de
supremacia que nada conseguia serenar, visto que cada um achava que a defesa da própria
honra e cargo punha em jogo, simultaneamente, a honra dã jei-, da..Nova França e até de
Deus. Assim, defender-se ferrenhamente constituía um dever.
Em todas as circunstâncias a competição era cerrada.
No nervosismo com que cada um se pôs no lugar que julgava dever ocupar, sem deixar
a ávidos rivais a possibilidade de tomar a dianteira, quase houve uma escaramuça, e pouco
faltou para que o Sr. de Bardagne, emissário do rei, fosse lesado mais uma vez e se visse
sem genuflexório ou rechaçado para a segunda fileira. Ele não tinha sido previsto, nem ele
nem sua comitiva.
O Sr. de Frontenac remediou a situação cedendo-lhe o seu próprio genuflexório,
colocado um pouco à frente dos hóspedes, os condes de Peyrac. Ele aceitou, não sem lançar
uma olhada descontente ao intendente Carlon, que tomara o lugar à direita de
Ville-d'Avray, o qual ocupava o que se destinaria ao Sr. de Bardagne. Foi assimque o
marquesinho, com o seu zelo por estar o mais perto possível de Angélica, desequilibrou o
escalonamento dos edis.
O intendente Carlon, correndo o risco de ser empurrado para trás, apoderara-se do lugar
que, a rigor, estaria reservado para o Sr. de Ville-d'Avray, já que esteara governador da
Acádia e retornava à terra após uma longa e movimentada viagem pela sua jurisdição.
O Governador Frontenac, então, resolveu a questão mandando levar o seu genuflexório
para o coro, mas bem perto da balaustrada que fechava o santuário. Com isso dava a
entender que a sua elevada posição o autorizava a penetrar na parte reservada aos ministros
do culto, mas que ele só pretendia estar ali como o mais humilde dos servidores de Deus
Todo-Poderoso.
O bispo, que se encaminhava para os degraus do altar, notou-o e franziu o cenho. Mas a
cerimónia começava. Os meninos do coro chegavam em cortejo da sacristia e se,
dispunham em fila dupla, cumprimentando-se e passando-se a naveta de prata para
encherem os incensórios.
Os chantres do coral episcopal, reunidos na tribuna, deram início ao cântico da vitória.
O Deus, nós Te louvamos, nós.Te
Reconhecemos como Senhor,
Toda a terra Te venera, Pai Eterno.
Santo, Santo, Santo é o Senhor,
O Deus dos exércitos!
Os céus e a terra estão cheios
Da majestade da Tua glória.

Fazia anos que Angélica não assistia a um grande ofício do ritual católico.
Correra matas e mares, mulher de aventuras, repudiada pelos seus.
"Como é estranho!", disse consigo.
Nuvens de incenso começavam a escapar de uma dezena de incensórios de prata e prata
dourada, balançados, levantados e baixados a um só tempo por jovenzinhos de sotaina
vermelha ou preta. No hemiciclo do coro, os oficiantes subiam e desciam os degraus do
altar, indo e vindo nas preces preliminares, virando-se, benzendo, saudando-se,
segurando-se mutuamente, com grandes movimentos de braços, as capas de gala
rebordadas de flores suntuosas em fios de seda de todas as cores, mesclados de fios de prata
e ouro.
Atordoada por esses movimentos èncantatórios e pelo desfraldar dos órgãos, Angélica
embarcou num devaneio no qual fiapos de recordações, reflexões risíveis, rostos
inesperados se impunham a ela sem que conseguisse entender por que seu pensamento se
punha a vagabundear. Ainda assim, mantinha-se muito ereta, com os cotovelos apoiados à
borda do genuflexório e as mãos postas na atitude, logo recordada, que lhe fora prescrita na
juventude pelas ursulinas de Poitiers. Maços de velas fosforescentes, cravadas em bandejas
de cobre e dispostas dos dois lados do santuário, bem como nas capelas laterais do
transepto e da abside, círios enormes fincados em procissão em castiçais de ouro
desprendiam um forte calor e uma claridade ofuscante. O atoma adocicado das ceras
preciosas misturava-se ao do incenso. A éssá luz. móvel e dançante, os motivos exuberantes
das esculturas do tabernáculo e do retábulo pareciam dilatar-se e inflamar-se em bolas, em
bolhas de ouro. Frutos em penca, flores em guirlanda, mísulas, volutas, volteios,
defumadores, ostensórios, representações do Bom Pastor, do cordeiro ou do pelicano
eucarístico — tudo isso se movia ao sabor do clarão das .chamas. As estatuetas de santos
esculpidas em madeira.saíam dos nichos emoldurados de colunatas, as conchas dos
embrechados se abriam, o domo do coroamento-se intumescia, enquanto de cada lado
cintilavam os vidros de-cristal de dois'relicários.
Toda a cena lembrava a Angélica os anátemas do Reverendo Patridge, pastor da Nova
Inglaterra, vociferando: "Os papistas professam uma religião babilónica e fanática!" Fora
com ele que o Padre de Vernon, jesuíta, se batera até a morte.
Angélica levantou a cabeça para examinar os jesuítas, que se mantinham em pé, em
duas fileiras, junto às estalas de madeira lavrada do coro.
Sempre de batina preta, mas sobre a qual vestiam, para assistir ao ofício, uma
sobrepeliz branca. Os rostos glabros ou barbudos, igualmente serenos e frios, emergiam da
gola dura de abas arredondadas que lhes dava o-ar de príncipes espanhóis e que eles deviam
ao fundador da ordem, o grande Inácio de Loyola.
A reunião deles lhe pareceu um conselho de lobos, prudentes e graves, desconfiados
talvez, mas por ora contidos por alguma injunção misteriosa que os tornava inofensivos e
quase amistosos.
Angélica censurou-se por esses pensamentos irreverentes. Não eram inimigos. Eram
uma força que, em certos aspectos, se assemelhava à deles próprios.
Notou as mãos de um jovem jesuíta segurando o livro de orações. Na esquerda faltava o
polegar, e dois dedos, que deviam ter sido enfiados num cachimbo iroquês aceso, estavam
roídos até a altura da falange, tal e qual os de um leproso. Na outra mão, a ausência do
médio abria uma brecha. A barba pontuda, curta e castanha, cuidadosamente aparada,
emoldurava um rosto quase juvenil. Mas. ele já estava careca. Calvície natural, acentuada
por uma chaga cuja cicatriz rosada cobria a metade do crânio. Notava-se então que também
lhe faltaya a metade da orelha esquerda, cortada. Mártir ontem, hoje cantando o te-déum na
catedral de Quebec, ele não parecia haver guardado a recordação dos suplícios que lhe
valeram as mutilações. Tinha um grande ar de inocência e doçura. Angélica lembrou-se do
nome pelo qual lhe fora apresentado: Padre Jorras.
Ela pensava no Padre de Vernon, com quem viajara no Whitt Bird e que fora morto
pelos murros do pastor inglês.
"Oh, meu amigo! Por que você morreu? Veja, estou em Quebec, conforme me pediu..."
Afundou a cabeça entre as mãos, esforçando-se por ressuscitar os traços ora vagos do
rosto apagado, tentando decifrar o segredo que algumas vezes tivera a impressão de ler nos
olhos dele.
"Ele me amava!", pensou. "Tenho certeza de que me amava."
Absorta nesse diálogo mudo com um fantasma, perdera a noção do tempo escoado e
quase do lugar onde se encontrava.
A intensidade da meditação em que estava mergulhada acabou por surpreender, depois
impressionar e finalmente pasmar a assistência.
Todos os olhos estavam fitos na nuca loura daquela fidalga, tão humildemente
prosternada ao pé do altar.
Naquele momento, não se tratava apenas de uma atitude.
— Será que ela é devota? — cochichou a Sra. de Mercour-ville ao ouvido da vizinha,
Sra. Duperrin. — É o que faltava! Confesso que já não entendo nada... Afinal, o que não
nos contaram sobre essa gente!... Que eram ímpios, hostis à Igreja! Que não ergueram a
cruz! Que sei eu! Ah, minha cara! Em quem se há de acreditar agora...

O carrilhão de cinco sinos de prata interligados, que um vigoroso seminarista canadense


sacudia com energia, arrancou Angélica a seus pensamentos.
Virou-se para dar uma olhada, interessada em examinar as pessoas entre as quais
viveria alguns meses de uma vida nova.
Perto dela erguia-se Joffrey, com a cabeça lançada para trás e os braços cruzados sobre
o peito. Mantinha-se ali sem fan-farronice. No que estaria pensando? Estaria, como ela,
sensível à atmosfera francesa reencontrada? Parecia satisfeito, mas seria pelas mesmas
razões que ela?
A sua direita estava Ville-d’Avray, empertigado como um galo, muito devoto. Na
verdade ele gostava de rezar e de estar na igreja.
Piksarett postava-se atras corri um chefe huroniano e um algonquino. Para além deles,
inicíáva-se o mar de cabeças, numa surpreendente mistura.
Havia muitos índios e índias, alguns seminus, outros envoltos em mantas ou peles,
comprimidos lado a lado com os gentis-homens elegantes, ás nobres damas de espartilho,
os oficiais em trajes muito coloridos, os exploradores de bosques cabeludos e
barbudos,~Vestidos.de peles acamurçadas. Muitas francesas usavam, as coifas camponesas
.da sua província natal, enquanto outras-traziam toucas brancas.
As burguesas atavarri^obré as fivelas enfeitadas lenços de tafetá preto ou marrom, e
traziam uma estola aos ombros.
Em toda parte havia crianças, rostos jovens com olhos claros e atrevidos, cabelos de
palha, ao lado de outros em que luzia, negro como a amora silvestre ou como a água sob as
folhagens, o olhar dos indíõzinhos.
Num banco, à direita, via-se a Madre Bourgeoys ladeada pelas "filhas". A convicção
com que estas cantavam a sua alegria por haverem finalmente chegado ao Canadá
irradiava-se pelas suas pálidas fisionomias fervorosas.
Era fácil reconhecer os novos imigrantes, desembarcados naquele dia mesmo, pela
magreza, pelas pálpebras contornadas de vermelho, pela tez terrosa, pela expressão de
desnorteamento e um quê de lamentável, de humilde, de emprestado, que traziam consigo
do Velho Mundo. Haveriam de perder esse ar quando se vissem à testa de vinte alqueires de
terra a desbravar entre rio e floresta, ou quando se -embrenhassem por sob as ramagens da
mata para irem à cata de peles nas Terras Altas.
Para eles, a cerimonia de chegada, após uma viagem cruel, era ao mesmo tempo uma
culminação e um começo.
As vozes angelicais dos pequenos chantres na tribuna alçavam o momento a um nível
de entusiasmo e júbilo que transformava todas as pessoas presentes. O prazer de se
encontrarem reunidos e de haverem atingido a meta fazia vibrar as vozes que repetiam com
vigor o refrão dos cânticos.
Para os recém-chegados, vindos ao Canadá à procura da possibilidade de uma vida
melhor, o velho reino se distanciava como um pesado navio carregado de anátemas e
rancores, de ouropéis sangrentos e poeirentos, para desaparecer bem longe no horizonte dos
espíritos e ceder lugar à esperança de que tudo o que se edificasse ali seria harmonioso,
sanado de servidões inúteis.
Levantando a cabeça acima do missal, Margarida Bourgeoys viu o olhar de Angélica
fixo nela, e dirigiu-lhe um sinalzinho de conivência. As duas não se viam desde Tadoussac.
"Pois aí' se vê!", parecia dizer a religiosa. "Tudo acontece para o melhor."
Angélica sorriu. E esse sorriso, que suavizava o brilho dos seus olhos verdes, foi
captado pelos fiéis como um símbolo de amizade.
Somente uma mulher lhe dedicou um olhar feroz.
Estava um pouco recuada, à esquerda, ajoelhada com uma rigidez afetada que exprimia
toda uma atitude de raiva interior.
Muito alta, vestia-se como se estivesse de luto fechado. Sua posição indicava que não se
tratava de uma burguesa, mas de uma dama de alta linhagem. Cruzou o olhar de Angélica
com um lampejo tão cortante quanto uma espada,, desviou os olhos ostensivamente e se pôs
a mirar um vitral I sua frente com uma fixidez intencional. Parecia afirmar que se abstraía
do lugar onde se encontrava, que rejeitava tudo o que a cercava. O claro-escuro da basílica
acentuava-lhe as feições angulosas, a tez alvacenta. "Parece a cara de um cadáver...",
pensou Angélica. Na figura lívida, a boca grande traçava como que um ferimento,
acentuada que estava pelo batom passado atabalhoadamente, numa maquilagem ultrajada e
precipitada. No momento, aquela boca de cantos caídos exprimia o mais profundo amargor.
Suas mãos, que seguravam um grossíssimo livro de orações, tremiam de tal sorte, que o
desajeitado volume parecia estar o tempo todo a ponto- de cair.
Angélica não duvidou por um instante sequer de que se tratava, forçada a assistir para
sua expiação ao triunfo da gente a quem quisera pôr a pique, da belicosa Sabina de
Castel-Morgeat.

CAPITULO XIII

Na residência do Marquês de Ville-d'Avray

Um a um Angélica retirava os alfinetes-que prendiam o peitilho de pérolas à blusa do


seu vestido azul e ia pondo-os numa taça de ônix. Um espelho, com moldura de madeira
dourada, refletia-lhe a turva lourice e o rosto, que parecia desabrochado como umailor do
alvorecer e onde as pupilas verdes rivalizavam "-era, luz, com os brilhantes dos grandes
cabochões que lhe pendiam dos lobos das orelhas. A cada gesto os movimentos apagavam e
acendiam, cintilando como uma luz longínqua que^atravessa úm nevoeiro.
Por que o espelho lhe devolvia uma imagem tão pouco nítida, ainda que lindíssima?
Sem dúvida por causa do vapor da água quente que se elevava do banho preparado para ela
numa tina de madeira. Angélica quis enxugar a superfície do espelho, mas não houve
mudança alguma.
Deduziu que-também estava um pouco embriagada, mas, na. verdade, ébria muito mais
pelo excesso de fadiga e tumulto do que pelas bebidas que tomara.
Quando, passada a meia-noite, ela podia finalmente se ver sozinha, depois de um dia
daqueles, vertigens eram a coisa mais natural do mundo. E a tarefa insípida que consistia
em retirar um a um os inúmeros alfinetes que lhe fixavam os adornos repousava-a e, em
certo nível, agradava-lhe.
O vestido maravilhoso não a traíra. Tinham ambos respeitado o pacto que os unia, o
pacto que estipula, no código secreto firmado entre a Mulher e o Traje, que devem fazer-se
mutuamente magníficos. Ver-se sozinha de novo constituía para Angélica uma volúpia toda
pessoal. Os últimos anos da sua existência a tinham acostumado a ir e vir livremente, e ela
pensou consigo que jamais poderia voltar a ser uma dama da corte, com uma nuvem de
acompanhantes e lacaios à sua cola. Enfim, "jamais" talvez não, mas certamente ainda
não... Havia também o problema da flor-de-lis infamante com que tinha o ombro marcado e
que a condenava a só poder colocar-se entre as mãos de uma pessoa de confiança.
Paciência! Haveria de espetar um pouco as pontas dos dedos, mas preferia este
momento de solidão, rico em tudo, preferia poder saborear sozinha o primeiro momento de
descontração na casa de Quebec de que o Marquês de Ville-d'Avray tanto lhe falara.
Conseguiu tirar o peitilho, depois desamarrou a blusa e tirou-a, virando-a como uma
pele, pois era muito justa e, seguindo a moda, colava-se ao corpo, a fim de lhe sublinhar as
formas e a graça. Isso não deixava de apertar um pouco a carne assim aprisionada,
sobretudo depois de generosos banquetes.
Angélica atirou longe peitilho e blusa e suspirou de alívio. Mergulhou as mãos nos
cabelos e ergueu-os, para aliviar a nuca. Olhou-se novamente no espelho. A imagem
continuava turva, mas por isso mesmo mais inspiradora. Sob as pregas coladas da camisa
de linho fino, a pele transparecia-lhe branca e as pontas dos seios, como duas nódoas mais
nítidas.
Acima do espelho havia um enorme crucifixo de marfim e prata maciça. Na casa de
Ville-d'Avray havia crucifixos por toda parte, mas tão lindos, que quase faziam esquecer
que se tratava de objetos de devoção.
Angélica terminou de desatar os prendedores da última saia, que caiu em corola à sua
volta.
Iolanda a ajudara a desembaraçar-se do manto, mas Angélica logo a dispensara.
Agora havia saias e rendas prateadas por terra. Ela passou por cima da roupa e
empurrou-a com o pé. Tirou a camisa e pôs-se nua. Prendeu o cabelo com uma fita e se
aproximou da banheira. Com outro suspiro, entrou na água bem quente. O cansaço do dia
desapareceu.. O bem-estar que a invadiu esvaziou-lhe a cabeça de todos os pensamentos e,
com a nuca apoiada à beirada da tina de madeira, Angélica se entregou a um
bem-aventurado devaneio.
Estava em Quebec. E isso, nela, ressoava quase tão gloriosamente quanto o dia em que,
do alto das escadas do camarote do rei, dera-se conta de que estava em Versalhes!
O importante era medir a ladeira que fora preciso subir para conquistar esse momento.
Estava em Quebec e, depois da sua vida de nómade, era como estar num porto seguro,
píeno de maravilhas.
Encontrava-se numa cidadcUma cidade de província francesa, com suas casas, igrejas,
jardins e lojas.
Estava ali, mergulhada em água quente até o pescoço, rodeada por um tranquilo silêncio
nóturne. Os espelhos refle-tiam seu corpo abandonado. Pejidurados por toda parte,
aumentavam aquele exíguo aposento com divisórias de madeira esculpida, onde o marquês
sibarita mandara instalar um banheiro de grande luxo.
Finalmente tinham chegado à famosa casa do Marquês de Ville-d'Avray, situada na
Cidade Alta de Quebec, capital da Nova França.
E chegar até ali antes do cair da noite, para se instalarem, fora empresa -quase mais
aleatória e impossível do que desembarcar em Quebec. Que milagre os fizera enfim pôr os
pés naquela casa tão gabada?
Após um -dia cheio dos estrépitos da guerra, da conquista e da glória, como tinham
conseguido escapar às últimas ações de graças e congratulações e alcançar a soleira da
porta?
 Mas é tão pequena! —. exclamara Angélica ao vê-la.
 Mas é encantadora! — retorquira Ville-d'Avray. Havia que admitir. Depois que a
pessoa se habituava às suas
proporções modestas, a residência de Ville-d'Avray se tornava acolhedora e sedutora.
O marquês acrescentou que Angélica estava mal acostumada com a recordação de
castelos principescos. Para Quebec, a morada era vasta. Comportava dois andares e uma
fileira de lucarnas nas cumeeiras. A cada lado da porta dê entrada havia duas janelas que
davam para. a rua, e o marquês quisera que a porta fosse de belas proporções, feita de
carvalho, encimada por um mascarão de pedra trabalhada que abrigava o rosto de Apolo, e
munida de uma aldraba de bronze que a mão tinha dificuldade de segurar por entre a
profusão de cachos e flores esculpidos, que lhe faziam a beleza. Essa grande porta também
era ladeada de marcos representando Atlas a suportar o mundo sob a forma de bolas
imponentes, sobre as quais os convidados do marquês, ao saírem da casa, eram aconse-
lhados a apoiar a ponta das botas, para subir com mais facilidade à montaria.
No entanto, Yille-d'Avray indicou que deviam entrar por trás, a fim de penetrarem
imediatamente na grande sala-cozinha, onde, sem dúvida alguma, já os aguardava uma ceia
deliciosa.
A casa se encostava a uma escarpa lamacenta. Tiveram que subir para atingir o pátio,
limitado pelos aposentos dos criados, uma granja, um depósito de lenha, um pequeno
telheiro para o "suadouro" à moda indígena, como na floresta, e Ville-d'Avray anunciava
que em breve adquiriria o campo vizinho para construir estábulos, ter o seu gado e cultivar
os seus legumes.
Todo mundo já desaparecia pela porta aberta. Lá dentro via-se o faiscar de um fogo
acolhedor. A sala era grande e baixa, com todo tipo de recanto. A lareira ficava à esquerda;
no centro, uma grande mesa guarnecida de uma toalha adamascada, peças de vidro e
serviço de prata; e, à direita, o conforto de um salão com os móveis recobertos de
tapeçarias.
— Eu trouxe a maior parte dos móveis da França — informou Ville-d'Avray.
Como previra, a criada o esperava, em pê, perto da mesa, hierática como uma imagem
de madeira, parecendo também fazer parte da decoração.
Era uma mulher alta, de expressão taciturna e olhos ariscos sob a coifa bretã em forma
de asas de gaivota. Contra o coração, como se fosse um recém-nascido, segurava a famosa
tor-teira de faiança esmaltada, de onde transbordava a crosta dourada e ornamentada de
arabescos de um torta de caça.
— Minha cara, você é única! — exclamou p marquês, beijando-a nas duas faces. —
Ah, mais que isso! É uma fada!
Eu sempre o disse!
Logo quis levar Angélica para cima, para lhe mostrar a disposição dos quartos. Mas
Angélica, correndo os olhos à volta, indagava-se como poderiam alojar-se todos ali.
Preferiu esperar pelo marido para decidirem.
Os integrantes da sua comitiva começavam a surgir à porta: os escudeiros; o cozinheiro
e seus auxiliares, carregando cestos de louça e roupa de mesa; as Moças do Rei, um pouco
desorientadas e que por hábito seguiam no rasto de Angélica; e alguns dos pífaros e
tambores, fatigados de tanto soprar nos instrumentos ou manejar astaquetas. Os homens
queriam beber alguma coisa. Praticamente não tifiham tido tempo de tomar nada desde a
manhã, pois não tinham parado de desfilar.
No entanto, o quê Angélica previra estava acontecendo. A criada do marquês,
entendendo que ó amo não se instalaria ali e que não somente ia perdê-lq mais uma vez
como ele, sem cerimonia alguma, a punha a serviço de uma estranha por quem ele parecia
nutrir uma paixão inconveniente, encaminhava-se para a porta com toda a dignidade e a
torteira. Não podia suportar ver o patrão instalar Angélica na casa que ela cuidara tão bem e
transferir-se para a Cidade Baixa, para ficar mal alojado, sem pedir-ihe que o
acompanhasse, ela sua devotada criada, que o. esperara- durante meses com fidelidade.
Ville-d'Ayray' rebentou em imprecações.
— Com que então se toma por alguma rainha da França? — gritou-lhè, indignado. —
Veja que insolência! Essa gente das colónias não tem vergonha! Ah, se estivesse do outro
lado do mar, você não se comportaria assim, velhaca! Levaria umas boas bastonadas!
Fora de si, administrou-lhe algumas bengaladas bem sentidas. A criada curvou-se toda,
mas nem por isso deixou de afastar-se, levando a comida.
— E agora, o que vamos comer esta noite? — gemia ele.
O cozinheiro do Gouldsboro interveio, dizendo que estava pronto a preparar-lhe os pratos
de sua escolha. Florimond ofereceu-se para ajudá-lo: aprendera a cozinhar nos navios,
quando era grumete.
Continuavam a trazer arcas, sacos, guarda-vestidos.
Angélica saiu para o pátio, que fervilhava de gente. Sentados sob o olmo gigante que se
erguia perto da casa, topou com Juliana e Aristides Beaumarcharid e a bagagem, entre a
qual estavam uma canastra de açúcar mascavo das ilhas e alguns frascos do rum fabricado
por ele e que o flibusteiro arrependido havia "recuperado" no Saint-Jean-Baptiste.
Ali fora a multidão aumentava e se aglomerava, com pressa de achar um abrigo, pois o
frio do anoitecer se tornava cortante. A grande sala-cozinha não comportaria todo mundo.
Nisso alguém veio avisar que a mansão de que se avistavam, do outro lado da encosta,
as altas chaminés, o telhado aman-sardado e uma parte da branca fachada, era a habitação
posta pelo Governador Frontenac à disposição do Sr. e Sra. de Pey-rac, de sua família e de
toda a sua gente. Com vastas dependências de criados, o domínio oferecia todas «as
comodidades desejadas.
Os homens da tripulação já tinham levado para lá víveres, mobiliário e objetos de
primeira necessidade para completar o que lhes fora preparado.
Lançaram-se ordens, e os que estavam fora refluíram na di reção indicada, atravessando
o campo por trás da casa para atingir o solar.
Tudo se resolvia ao mesmo tempo; duas senhoras da Confraria da Santa Família
apresentaram-se em nome de algumas pessoas caridosas, que estavam dispostas a abrigar as
Moças do Rei. Angélica encorajou as jovens a segui-las.
Nessa confusão toda, Ana-Francisco de Castel-Morgeat apareceu ao lado dela, torcendo
as mãos.
 Senhora! Senhora! Perdoe-me, o que aconteceu é terrível...
 Sim, sim, eu perdoo... perdoo tudo — afirmou Angélica, que começava a sentir o
peso do dia.
Mas Ville-d'Avray falava, abrindo-lhe portas. Quisesse vender-lhe a casa, da adega ao
sótão, bibelô por bibelô, e não se teria esforçado com mais intensidade.
— E depois, minha cara, há uma coisa que você ignora... Ouviu o Sr. de Frontenac
falando da casa preparada para a Sra. de Maudribourg... Não era outra senão esse solar de
Montigny que lhe oferecem hoje. Não ia instalar-se entre paredes assombradas por ela, não
é?
Finalmente, ele se afastou. Ela não devia preocupar-se com ele, preveniu. Sabia onde
alojar-se.
A noite, pouco depois da partida de Ville-d'Avray, um garoto gordo de uns doze
anos,~de cachimbo na boca, veio trazer-lhe notícias do gato. O bichano passava bem, e
parecia familiarizar-se com o fundo da cozinha da taberna, Navio de França, onde
encontrava tudo o que precisava para o seu bem-estar. Dois criados acompanhavam o
menino. Estavam carregados de panelas e pratos que continham guisado e manjar-branco,
sopa de legumes e trigo, doces, tudo oferecido pela gentil taberneira.
Podia-se pensar em atenção mais amável? Angélica teve a impressão de reconhecer o
menino gordo. Ele disse que era filho dos Gonfarel e que tinha noyè anos. Puerrtetia
tornar-se um homem grandalhão. Ela quis dar-lhe um presentinho. O garoto recusou.
Angélica beijou-o nas duas faces rechonchudas e pediu-lhe que anunciasse à mãe que no
dia seguinte, assim que pudesse, iria visitá-la para agradecer e buscar o gato.
Angélica viu-se sozinha com Iolanda, aacadiana.
As crianças dormiam num quarto inferior, por trás da cozinha. A proximidade da lareira
aquecia a parede divisória.
A casa cheirava berrí, os móveis estavam impregnados de cera com essência de
benjoim,jos bibelôs e utensílios brilhavam dispostos sobre as Tiresâs e ejn vitrinas e
suspensos às paredes; lustres, candeeiros e crucifixos cintilavam. Que façanha haverem
chegado até aquelas pSredes! Um ano antes, a capital da Nova França, perdida ao norteadas
poásessões deles no Maine, fazia figura de cidadela iníhiiga, inacessível à eles para sempre.
Vinham-lhe ideias de supetão, surgia-lhe na mente um rosto, voltava-lhe a recordação
de uma palavra ouvida. Perguntas a que não podia responder passavam como que
esvoaçando.
A ausência do Padre d'Orgcval... Misteriosa... A loucura da Sra. de Castel-Morgeat...
Insensata... E quem poderia ser o homem, perdido na multidão, que, no momento em que
Joffrey de Peyrac aparecia com os seus estandartes, lançara a frase: "Ora! No Mediterrâneo
ele usava o escudo de prata sobre fundo vermelho"?
Um homem que sabia que Joffrey também era o Rescator.
E que outrora atirara contra as galeras do rei...

CAPÍTULO XIV

Devaneio aterrador na cidade-armadilha

Angélica reabriu os olhos. Um mal-estar a oprimia. A água do banho


pareceu-lhe.morna. Ela achou que devia ter adormecido. Uma das candeias se apagara. A
luz das demais, no fim, vacilava.
Angélica reviu-se no espelho acima dela. Uma mulher nua, deitada na cintilação da
água, com a cabeleira espalhada em auréola e os olhos brilhando na penumbra, assustados.
Por que Joffrey não estava ali?
O breve instante que acabava de sacrificar ao sono bastara para desfigurar a seus olhos
a decoração que lhe parecera tão graciosa.
Achou o silêncio carregado de ameaças.
Lá fora um grave relógio bateu três horas. Era a voz da cidade adormecida. A
cidade-armadilha.
Angélica respirava com dificuldade, não querendo deixar o medo atingi-la.
Onde estava Joffrey? Onde estavam os seus soldados? A sua tripulação? Os espanhóis?
Os oficiais?
As piores imagens desabavam sobre ela como uma revoada de pássaros negros.
Começava a temer que a entusiasmada acolhida que lhes haviam dispensado não passara de
uma miragem, de uma comédia terrível destinada a adormecer-lhes a desconfiança, a fim de
poderem capturar, sem disparar um único tiro, o homem que ameaçava a hegemonia do rei
cristianíssimo sobre os vastos territórios da América do Norte.
No espelho ela viu inscrever-se a verdade em letras de fogo: Prenderam-no...
A imaginação de Angélica, muito viva, fez que ela o visse, adentrando o Castelo
Saint-Louis, para logo ser rodeado de gentis-homens de espada na mão: "Sr. de Peyrac,
temos ordens de prendê-lo. Em nome do rei!"
Recomeçava tudo...
E quando ouviu um ruído, embaixo, na casa que se tornara escura como um forno, nãó
teve dúvida de que se tratava, como outrora, do trágico Kuassi-Ba, novamente chamando e
gemendo: "Senhora! Senhora!... Eles tomaram o meu sabre!"
Com ímpeto, arrancou-se à inércia. Ern meio a um grande gotejar, lançou-se para
foráxiá baríheira. Agarrou uma toalha e envolveu-se.
Com a garganta bloqueada pelos gritos que retinha com enorme dificuldade, a ponto de
deixar seu desespero explodir, Angélica se precipitou para o patamar da escada.
Ali, ao pé da escada, havia um homem.
Um homem vestido de preto.
CAPÍTULO XV

Trégua de amor sob o luar

Era Joffrey de Peyrac, ali, ao pé da escada.


Estava todo vestido de preto.
De cabeça erguida, olhava Angélica.
Usava um casaco curto, de mangas largas, cuja gola de pele de urso, levantada e
confundindo-se com sua cabeleira, fazia-lhe como que uma auréola eriçada, onde o reflexo
do fogo da lareira acendia pequenas centelhas avermelhadas.
Angélica, debruçada sobre o patamar, arquejante, paralisada, fitava-o como a um morto
ressuscitado.
E Joffrey de Peyrac, encantado por vê-la, mas surpreso com a trágica expressão dela,
alçava as sobrancelhas, com ar inquisitivo.
Ela estava seminua, gotejante, os cabelos em desalinho, encantadora...
No rosto levantado para ela, Angélica viu abrir-se o branco clarão do sorriso
maravilhoso. Não conseguia acreditar. Disse a meia voz:
 Então? Conseguiu escapar deles?
 Escapar?
 O que aconteceu? Eu o esperava... Adormeci e...
 E, ao que parece, ainda não despertou de todo, meu coração!... Eu a tinha informado
sobre a reunião do Grande Conselho no Castelo Saint-Louis... E de fato consegui
escapar-lhes... Finalmente... Ansiava por vir ao seu encontro em seus aposentos... Mas
separamo-nos nos melhores termos...
Um suspiro escapou dos lábios de Angélica. Voou de degrau em degrau e se atirou aos
braços dele, estreitando-o e repetindo:
— Que tolice, meu Deus, que tolice!
Afundava o rosto nas pregas da roupa dele e roçava a face, ao mesmo tempo que
crispava os dedos sobre os ombros dele.
 Será que os espíritos malignos estão nos conduzindo novamente? — indagou ele, em
tom zombeteiro. — O que teria o poder de transformar a ofuscante rainha de Quebec numa
ninfa amedrontada?
 Achei que haviam-no aprisionado!
 Infantilidades! Então não entendeu, hoje, que isso não seria coisa fácil? As minhas
defesas estao bem posicionadas e as minhas amizades, garantidas. Além'do mais., os ventos
da popularidade mudaram a nosso favor. Você deveria estar convencida disso.
 Poderia ser uma astúcia...
 Não! Nossos franceses do Canadá são francos e folgazões demais para isso.
 Você me assustou — disse ela. — Principalmente quando, do alto da escada, vi-o
todo de preto.
 Eu quis comparecer assim a essa reunião noturna.
 Por quê?
 O Homem Negro — disse ele. — Lembra, o Homem Ne-Oro que se posta atrás da
mulher demoníaca, na visão de Madre Madalena. Eu sabia que me haviam identificado com
essa igura. Depois de instalar minha gente no solar, mudei de roupa e me dirigi ao Conselho
assim, escoltado pelos meus espanhóis. Angélica estava sufocada...
— Joffrey, isso não foi razoável — disse, agitada. — Estamos num vespeiro onde
qualquer mal-entendido pode desencadear o pior contra nós, e você se diverte provocando
os espíritos, lembrando uma predição que alguns talvez tenham esquecido, mas que
continua a inquietar muitos outros.
 Mais um motivo para esclarecer a situação sem demora. Estava curioso por ver a
reação daqueles senhores ao me verem, e permiti-me fazer isso porque o bispo não esteve
presente esta noite. Acusaram-me de ser o Homem Negro, assim como lhe atribuíram a
identidade da Diaba. Num passe de mágica, submeti-lhes a personagem para destruir o mito
ante os olhos deles. Por outro lado, constato que você não teme aparecer como "a mulher
nua saindo das águas"...
 Eu não fui ao Grande Conselho com esta aparência...
 Deus seja louvado! Angélica, meu amor, você leva a vida demasiado a sério, e está
sendo, novamente, a adorável abades-sazinha do ano passado, de quando a subtraí aos
ferozes protestantes de La Rochelle. Mas, acredite-me, depois do que me revelou sobre os
seus talentos, o papel não lhe assenta de modo algum.
Estreitava-a contra si, beijava-a e, depois do susto por que ela passara, a desenvoltura
dele era o que podia haver de mais eficaz para dissipar-lhe as apreensões.
Ergueu a cabeça para olhá-lo e convencer-se bem da sua presença.
Soltou um grito.
Por sobre o ombro dele, do fundo da sala, via surgir de um ataúde um crânio, seguido
de dois olhos cintilantes como pirilampos e de uma boca rasgada por um ricto de riso.
Peyrac virou-se.
 Boa noite, Sr. Macollet. Perdão por havermos perturbado seu sono.
 Não faz mal! — respondeu a voz rangente do velho explorador de bosques. — De
que me queixaria eu? O espetácu-lo é agradável.
Era, de fato.
O Conde de Peyrac, de botas e metido em pesadas roupas forradas, segurava Angélica,
qual náiade nos braços. Do fundo da espécie de caixa onde se encontrava, o velho Elói apa-
nhou a boina vermelha e a enterrou- na cabeça escalpelada. Depois bocejou lentamente e
resmungou alguma coisa acerca de um urso que matara na fazenda do rei, motivo pelo qual
o Sr. Le Bachoys, superintendente da companhia, andava à sua procura. Fora por isso que
se refugiara na casa deles, pois em Quebec, com a administração, nunca se sabia o que
podia acontecer a um pobre viajante das Terras Altas.
 Então pensei que aqui, em sua casa, eu estaria protegido... como em Wapassu.
 Pensou bem.
 Mas onde é que está dormindo? — exclamou Angélica, que se esforçava por segurar
as pontas da toalha, que escorregava e lhe escapava.
 Abri o banco-leito, o banco do mendigo, como se diz entre nós. Há palha no fundo e
uma coberta... Se isso não a incomoda, senhora...
E voltou a mergulhar nas profundezas da sua longa arca, a fim de adormecer
novamente.
Nos porões, ouviu-se balir uma cabra.
Não havia dúvida, estava-se no Canadá.
O Conde de Peyrac passou o' braço pela cintura de Angélica e subiram lentamente a
escada estreita.
Pararam no patamar. À-dirèita abria-ste ó quarto onde se encontrava o vasto leito
anunciado por Ville-d'Avray, e que, de fato, com os seus degraus de madeira marchetada,
cortinas de damasco forrado de cetim do dossel mais vasto e guarnecido de franjas do que
um baldaquinho real, ocupava quase todo o aposento, de parede a parede.
— Nosso marquês é um anfitrião incomparável — disse Angélica.
Mas eles se demoravam diante da alta janela que se abria no centro do patamar.
As-paredes grossas permitiam que se ajeitasse ali um recanto, cqm uma banqueta de cada
lado da janela, frente a frente."
Atraídos pela claridade que luzia por trás dos vidros, foram sentar-se lado-a ladouPeyrac
entreabriu o quente casaco para cobrir os ombros de" Angélica e apertá-la mais junto de si.
 Que roupa é essa? — indagou ela. — O tecido é tão espesso quanto um luís de ouro,
mas grosseiro.
 E um capote com que um negociante desta cidade me presenteou, e que esta noite
convinha ao meu disfarce. Vou lançar a moda para os elegantes, e quem sabe se não
chegará até Paris...
 Uma roupa de camponês!
 Mas muito prática para ir visitar beldades em noites geladas...
Apoiados um contra o outro, olhavam lá fora, curiosos, a paisagem lunar.
Do outro lado da rua, adivinhavam-se as árvores de um pomar, afogadas na úmida
escuridão. A mesma bruma impalpável dissimulava os contornos das casas mais próximas.
Mas, mais longe, contra a luz, surgia iluminado o campanário da catedral. Por trás dele, a
lua saía de uma nuvem. Um halo de luz irisada aumentava-a como uma opala enorme, e sua
claridade cinzelava a moldura dos balaústres e das colunatas da torre. Na ponta o
campanário, a alta cruz de ferro forjado varava o céu com o seu galo cata-vento, pousando
bem na extremidade, enquanto no centro se dispunham a coroa de espinhos e todos os ins-
trumentos da Paixão, inclusive a escada. Seu desenho se recortava contra o céu leitoso,
como que traçado a tinta preta por uma pena gigante. Ao redor, os campanários da capela
do seminário, da das ursulinas, da igreja dos jesuítas, e todas as torres ou sineiros dos
outros pequenos edifícios religiosos da cidade repetiam o mesmo tema dos instrumentos da
Paixão, do galo e, às vezes, também havia uma rosa-dos-ventos.
Joffrey falava a meia voz.
Passava em revista os diversos acontecimentos do dia, felicitando-se pelo seu
desenrolar. O gesto louco da Sra. de Castel-Morgeat parecia diverti-lo.
 Reconheço que tenho certo fraco por essas mulheres audaciosas e apaixonadas, que
vão até o fim nos seus engajamentos. Fiel ao seu professor, o Padre d'Orgeval, ela manteve
o compromisso assumido apesar da deserção dele. Depois, é uma mulher da Aquitânia.
Entre gascões, podemos nos entender e perdoar.
 Acho que você encara bem levianamente um gesto que poderia ter causado a perda
do Gouldsboro — censurou Angélica, esquecendo que poucas horas antes ela própria
compartilhara um pouco dessa opinião. — Imaginemos: se a bala tivesse atingido as suas
obras vivas, aquele navio magnífico indo ao fundo, perdendo-se as armas e as riquezas que
havia a bordo, as vítimas inevitáveis...
 Raramente a vida nos faz tanto mal quanto poderia... De minha parte, depois que
passa um perigo, penso menos em me assustar com o que poderia ter acontecido do que em
me maravilhar por haver escapado...
 Acho que você bebeu vinho francês em excesso, hoje.
 Mas quem foi que saiu ganhando? 0 Gouldsboro, que balança ancorado ao pé do
rochedo, enquanto a casa dos Castel-Morgeat está com um grande buraco na fachada e um
ângulo demolido.
Acrescentou que o Sr. de Frontenac se sentira obrigado a conceder-lhes hospitalidade
numa ala do Castelo Saint-Louis.
Mantinha Angélica bem apertada contra si, e às vezes pousava os lábios na testa dela,
nas têmporas, como se fosse irresistivelmente atraído pela proximidade daquele rosto.
Ela adivinhava que ele lhe falava assim para distraí-la e transmitir-lhe a própria
confiança, pois ele não estava de humor tão alegre, e não sem razão.
 Joffrey — disse, humilde —, confesso que há pouco fui tomada de pânico. Todos os
obstáculos que se opõem a que vivamos felizes me apareciam pela frente. De repente, vi
nesta casa uma semelhança- com aquela 'onde nos hospedamos quando fomos assistir :ao
casamento do rei, em Sâint-Jean-de-Luz. Lembra? Tudo eram festas e prazeres, mas na
confusão o rei aproveitou para mandar prendê-lo.
 Deixe essas recordações distantes, querida. Os tempos são outros. Nada se repete
exatamente da mesma maneira, pois a vida é movimento. Hoje o rei já não é aquele jovem
soberano preocupado em reduzir a independência dos príncipes, que, com a Fronda, lhe
haviam ameaçado o trono. Ele tem o poder assegurado. Nenhum grande vassalo pode agir
como rei em sua província, do "modo como eu, naquela época, dava ao ciúme desconfiado
dele a impressão de fazer. Os tempos são outros.
 O rei é outro.
 E você é outra mulher. Deu-nos a prova disso hoje, e com que brilhantismo! Eu a
olhava e via que aquela que avançava assim me era um tanto desconhecida. Como exprimir
o que sinto ao vê-la como ponto de mira de tantos olhos admirativos e encantados? Eu a via
sob todos ps seus rostos: magnífica como em Versalhes, mas também serena é segura como
diante da iroqueses, inabalável como diante da Diaba. Isso não significa que eu encare
calmamente tais perspectivas... Mas gosto do risco e da novidade.
 É isso! Você gosta demasiado do risco. Tenho razão em me atormentar. Veja quando
você foi ao encontro daquele Va-range, na enseada de Mercy, confiando apenas num
bilhete assinado "Frontenac". Foi até la "quase sozinho, e ele o esperava para matá-lo.
 Eu devia pressentir que o anjo salvador se poria a caminho. Nem tudo o que se trama
à nossa volta nos é visível. Sem você eu estaria morto. Mas você veio e o matou. Assim,
entre nós, para a vida e para a morte, meu amor.
Angélica teve um arrepio.
— Qual era a intenção dele? Deixou-me uma impressão estranha. Insinuou-se em sua
vida como um fantasma deliqüescente, uma larva escura, como se tivesse sido sonhado.
Tenho certeza de que era um dos cúmplices de Ambrosina, um dos que a esperavam e que
talvez soubesse que personagem perigosa se ocultava por trás de suas feições seráficas...
— Ele morreu e você a venceu. Já não pode prejudicar-nos. Suas tropas infernais
recuam e desaparecem na sombra.
Levantou a mão na direção da janela, num gesto encantatório, mas sorria.
Ao pé do rochedoj.as águas do Sainf-Laurent se desdobravam numa estrela-do-mar,
insinuando por entre os cabos, ilhas e angras os seus tentáculos de um inigualável.metal
vibrante.
Naquela hora algumas canoas indígenas ainda lhe cortavam a superfície, qual insetos
negros.
Ele se esforçara por dissipar-lhe as dúvidas, e ela recuperava o sentimento de confiança
que a habitara durante todo aquele dia.
 Chegamos longe demais para que "eles" nos atinjam — acrescentou ele. — Não está
sentindo? Tudo o que possa nos acontecer de perigoso ou de trágico doravante nunca mais
será tão grave.
 E o rancor do Padre d'Orgeval? Quando vi uma pessoa de preto ao pé da escada,
achei que fosse ele.
Joffrey de Peyrac caiu na risada.
 Que ideia! Não consigo ver um jesuíta, mesmo aquele, apresentando-se em plena
noite na casa de uma senhora.
 Poderia querer exorcizar-me.
 Você tem imaginação demais, meu coração! — Fez uma pausa. — Não o tema. Ele
não virá mais.
 Onde está ele? — murmurou Angélica.
 Deixou a cidade... pelo que dizem.
 Mas estava aqui alguns dias antes da nossa chegada.
 Não está mais.
Angélica lembrou-se de que ele recebera a notícia da ausência do Padre d'Orgeval com
surpresa, mas também como se a houvesse previsto. Perguntou-se o que ele poderia ter
tramado que não lhe revelava agora. Mantinha um espião secreto em Quebec; até a
arreliara: "Não disse que era um homem..."
 E se voltar?
 Não voltará.
 Teria morrido?
— Não, não morreu.
Abraçava-a com força e acariciava-lhe o ombro com a mão. Ela sentia os bordados do
gibão dele, que lhe arranhavam a pele, e isso lhe despertava insidiosas volúpias.
 Por que ele sé esquiva? Porque se recusa a nos enfrentar? Quero saber.
 Que importância tem isso? — disSe Joffrey. Ela via-lhe o sorriso e sentia-lhe o
desejo.— Tanto pior, senhora! Não terá o segredo das velas verdes!
Os olhos brilhavam-lhe alegres. Angélica irritou-se.
 Não, não é simples assim. Tive muito medo.
 Quando, meu amor?
 Há pouco.
 Eu lhe disse: o medo não lhe assenta.
 E quase morremos, de fome no ano passado. Se os iro-queses não tivessem vindo...
 Mas vieram...^Eu-os tinha chamado. Angélica arrancou:se ao braço dela.
 E não rríe cantou?
 Não sabia se eles poderiam atender ao apelo. E às vezes a expectativa frustrada é o
que há de pior para consumir as últimas forças.
 Você me conhece mal.
 Um segredo ganha força não sendo divulgado.
 Ah, você é demasiado "gascão! Mas eu te amo.
Um nos braços do outro, prolongavam o sabor de uma querela acompanhada de
carícias, de longos beijos dados e recebidos, e da delícia de pronunciarem palavras que se
abafavam num murmúrio, esboçar frases que se interrompiam para ceder lugar ao silêncio,
enquanto os seus lábios se reconheciam e se respondiam.
A cidade estava aos pés deles, estreita e amontoada como uma ilha sobre o oceano de
florestas, e naquela hora cor de estanho, de chumbo, prata, aço, flutuavam fumaças lentas e
azuladas, raras, mesclando-se a bruma. Receando mais o incêndio do que o frio, os
habitantes de Quebec preferiam apagar o fogo na lareira antes de se porem na cama.
A aresta dos telhados pontudos, as empenas, os cata-ventos reluziam sob o luar.
Alguns naquela cidade conheciam o passado, as condenações do casai. Outros se
lembravam da Sra. du Plessis-Bellière e outras ainda do Rescator ou do grão-senhor
tolosano.
Mas todos aqueles seres adormecidos também tinham seus segredos, medos e
recordações. Entre eles, Joffrey de Peyrac e Angélica podiam ter uma trégua e, pelo espaço
de uma noite, retornar ao outro significado do seu destino: um homem e uma mulher que se
amavam.
Então, tudo se abplia. Eles paravam <de ser banidos para serem os eleitos do reino sem
nome, cuja conquista dependia somente dos seus corações apaixonados e dos impulsos de
seus corpos em brasa.
Os dedos de Joffrey perdiam-se nos cabelos de Angélica, erravam sobre sua lisa pele,
reencontravam suas formas suaves.
 Você é outra mulher, na sua beleza e força — dizia-lhe ele, baixinho. — A mesma
mulher... pois continuamos sempre sendo nós mesmos. Mas sua alma transitou, como os as-
tros, por regiões escuras e perigosas, e, assim como os astros, com o ardente atrito do
espaço, ela adquiriu esse brilho ainda mais ofuscante e cuja irradiação ultrapassa limites
visíveis. A mesma... Mas saída das águas lustrais da renovação, qual Afrodite nascendo do
nácar de uma concha dos sopros da primavera.
 Você sempre será um poeta do Languedoc.
 E sempre cantarei a dama dos meus pensamentos. E você me ouvirá com esse olhar
que suscjta em mim a mais exaltante inspiração e a impaciência por enfrentar os dragões.
 Pois as palavras que você pronuncia me transportam. Depois que o conheci, com
cada palavra de sua boca parece-me que fez a minha alma e o meu coração respirarem.
 Oh, mas tampouco você carece de inspiração, querida! Que bela imagem! E seu
corpo divino?
Angélica ria sob os beijos dele.
— Você é um patife incorrigível! Bem sabe o que fez dele!
Joffrey de Peyrac tomava entre as mãos aquele rosto tão puro,
perturbado e como que iluminado pelo excesso de alegria. Ele se perdia naquele olhar
insondável de transparência única, suavizado pela ternura e pelo amor a ele. Murmurou:
— Os demónios retiraram-se nas dobras da noite.

UM PESADELO

CAPÍTULO XVI
Da missivista ao príncipe das trevas, os estranhos, bizarros personagens dos
bastidores de Quebec

Na calada da noite, a Srta. Cleo d'Houredanne escreve uma carta à amiga distante,
Maria Gabriela, viúva do Rei Casimiro V, da Polónia, alcunhada de Bela Herborista.
A época dos. navios já passou. A missiva só partirá depois que os meses de inverno se
tenham escoado e que a primavera, libertando õ rio deis gelos, traga os navios de volta da
França. Mas a Srta. d'jiouredanne enganará a demora da espera redigindo essas epístolas
que, para ela, são como que diálogos lançados por sobre os oceanos.
Uma a uma, ela as alinhará num cofrinho reservado apenas para essa finalidade.

"Caríssima,
Mudei a minha cama de posição.
Agora, do meu canto, vejo muito bem a casa nova que Ville-d'Avray mandou construir
na borda da concessão dos Counat-Banistère, pois a partir desta tarde, ao olhá-la, terei
outros temas de distração além de me amofinar com a vista do pomar e do rio, que conheço
de cor.
Uma pirata suntuoso atracou sob os nossos muros e, como tomara previamente o
cuidado <le capturar o Sr. d'Arreboust e o senhor intendente, não se pôde fazer outra coisa
senão recebê-lo de modo igualmente suntuoso.
Eis a feliz conclusão de um caso de que já lhe falei.
Trata-se daquele cavalheiro francês, aliado da Nova Inglaterra, cujo estabelecimento no
sul de nossas possessões, nos confins da Acádia e do Canadá, causou-nos alarme. Quiseram
considerá-lo inimigo e houve várias campanhas contra ele.
Soube-se que ele tinha uma mulher belíssima. E a emoção chegou ao auge quando uma
de nossas ursulinas, Madre Madalena, que é vidente, fez a respeito deles uma predição em
que o Diabo parecia envolvido. Despacharam-se inquiridores, que trouxeram de volta
opiniões tranquilizadoras. Os espíritos serenaram.
O anúncio de que eles viriam a Quebec para fazer propostas de paz reacendeu a querela.
O Padre d'Orgeval, que preside aos destinos religiosos da Acádia, chegou acusando-os
de haverem entravado sua campanha de guerra contra os hereges da Nova Inglaterra. __
Isso causou grande alarido, e a opinião pública dividiu-se. A aproximação da frota,
anunciavam-se as piores calamidades, e hasteou-se a bandeira de Nossa Senhora, para
salvar a cidade.
O feiticeiro da Cidade Baixa contou que viu cortarem o céu as canoas em fogo da
chasse-galerie. Trata-se de uma lenda em que acreditam de bom grado todos os que vêm do
oeste da França. É sinal de infelicidades iminentes.
Depois, de modo bem misterioso, esse virulento jesuíta desapareceu, coisa que
desconcertou seus seguidores.
Frontenac, de seu lado, resistiu. Sempre foi a favor deles. Comprometeu-se com este
caso a ponto de enviar, neste verão, várias missivas ao rei, tratando do assunto,
demonstrando-lhe as vantagens que teria a Nova França estabelecendo boas relações com
esse poderoso vizinho que dizem ser fabulosamente rico.
Na expectativa de uma resposta que ele espera aprovadora e benévola, o governador
jogou a cartada da acolhida e da amizade. Tanto mais que o Sr. de Peyrac e ele são da
mesma província do Languedoc, e todos sabem que os gascões se apoiam entre si.
Assim vai o mundo!
Aqui entre nós, no Canadá, somos bem gulosos de acontecimentos novos e de
distrações.
Os espíritos desgostosos foram afastados e preparou-se tudo para receber o Sr. e Sra. de
Peyrac.
Minha cara, é árduo exprimir-lhe a alegria das pessoas com essa chegada tão temida.
— E eu não invento nada.
A Sra. de Peyrac possui a virtude das rainhas! A de fascinar com a mera presença!
Ela caiu tão prontamente nas boas graças de todos, que é inacreditável!
Esperavam-na no cais desde o alvorecer, e a cidade inteira estava pronta a ali passar o
Advento, caso ela não houvesse desembarcado, o que aconteceu hoje.
Segundo o julgamento do Sr. de Magry, ela é de uma beleza de incendiar o mundo.
Decididamente essa mulher é uma feiticeira. Não entrará-em minha residência."

A Srta. d'Houredanne sublinha com a pluma sua resolução.


Escora-se um pouco melhor contra os travesseiros de renda. Com um dedo, antes de
instalar a escrivaninha sobre os joelhos, toca os lobos das orelhas com um pouco do seu
perfume preferido. Olha no espelho se a ponta de renda de Malines com que cobre os
cabelos brancos está bem colocada. Manda trazer duas candeias novas. Desistiu de
impatientar-se com a criada inglesa, melancólica, estúpida e herética ainda por cima, e
contentou-se em mandar desembaraçar'o seu leito do cofrinho e dos pacotes de missivas
atadas por uma fita que ela.nsío teve tempo de desamarrar.
O Marques de Ville-d Avray fora levá-las, mas ficara pouco, falando somente das
festividades do dia e das do dia seguinte, e com pressa de correr para algum lugar que não
identificou. E ela entendeu por quê, quando viu todo um bando de estranhos, guiado por
Ville-d'Avray, invadir sua rua tão pacata e entrar na casa do marquês.
Era essa, a Srta. d'Houredanne não o nega a si mesma, uma das razões da sua antipatia
pela mulher a quem chama não de Diaba, mas de Sedutora.

"Carlon também não veio mever, embora esteja de regresso. Mas hei de perdoar-lhe,
pois você sabe que tenho um fraco por ele.
A cidade inteira estava na rua.
Jessy, a inglesa, correndo até lá embaixo no prado para avistar esses navios que a tola
imagina que vêm libertá-la, deixou a cadela escapar. Foi uma dificuldade apanhá-la e
fazê-la entrar, principalmente porque ninguérn apareceu para ajudar. Eu poderia ter morrido
enfiada na cama e ninguém se teria preocupado. Felizmente, nestes dias que precedem o
inverno, bebo uma decocção de raízes que me dá forças.
O senhor conselheiro Magry de Saint-Chamond teve piedade da minha solidão e me
visitou.
Seja como for, você me conhece: não vi nada, mas soube de tudo.
Ouvi um tiro de canhão, só um. Não queria dizer nada, parece.
Foi Sabina de Castel-Morgeat quem o disparou, na sua raiva de ver recebidas em
Quebec personagens que ela considera inimigas da Nova França e sobretudo do seu caro
confessor, o Padre d'Orgeval. Esse jesuíta que a governa fá-la comungar todos os dias. Bom
Deus! Que profanação! Mas eu me calarei, pois dizem-me que a hostilidade para com
Port-Royal e os jan-senistas não é bem-vista pelo rei..."
Cleo d'Houredanne suspende o relato e fica com a pluma no ar. Não vai começar a
discorrer sobre Port-Royal, ou não acabará mais.

"O Sr. de Peyrac fez-se acompanhar de Santa Perpétua, mártir. O bispo foi apanhado de
surpresa. Bem que gostaria de agastar-se, mas o anúncio de uma relíquia tão santa e das
suas autênticas levou-o a empregar toda a sua pompa.
Eu lhe direi, no entanto, que as senhoras da Santa Família passaram uma grande
vergonha por causa de uma delas, Sabina de Castel-Morgeat. Não tanto por aquele tiro de
canhão, gesto que 'não carece de ousadia, mas em seguida, intimada pelo marido a assistir
ao te-déum, ela se vestiu de preto, para ostentar luto por aquele dia, cobriu o rosto com
alvaiade e pintou os lábios de vermelho-sangue, de modo que estava medonha como más-
cara de Quaresma. Enfim, um verdadeiro escândalo! A Sra. Dau-brun, que é tão meiga e
bondosa, chorou por isso. Sabina acredita que tudo lhe é permitido e, com a sua atitude
extremada, suscitou uma onda de simpatia por aquela a quem desejava insultar, a bela Sra.
de Peyrac, que não pareceu fazer caso de tantas provocações da parte de Sabina e
mostrou-se amável."

A Srta. d'Houredanne faz uma pausa. A noite está calma e profunda.


A cadela preta e branca está deitada ao pé da cama, sobre os degraus da alcova. A dama
mandou afastar as cortinas, pois não quer desviar os olhos da janela que dá na direção da
casa do Marquês de Ville-d'Avray do outro lado da rua.
Também lá a agitação se acalmou. Está tudo escuro. Adivinham-se luzes amortecidas,
mas não passam de lamparinas, ou o que sobrou das brasas no átrio da cozinha. No entanto,
a uma janela alta, Cleo d'Houredanne teve a impressão de perceber duas silhuetas
que.olhavam a noite, um homem e uma mulher, e essa visão déixa-lhe -um travo de
ansiedade e interesse cuja razão ela não consegue explicar.
Uma coisa é certa: a noite pajeçe particularmente amena, assim como a atmosfera de
sua casinha tépida, onde se ouve o tique-taque do seu belo relógio de pêndulo.
"Ouvi dizer que lhes deram como alojamento uma casa na orla da colina, que fora
preparada.-para uma benfeitora, a Duquesa de Maudribourg, que devia ter chegado no
verão, com sua comitiva e muitos bens... Mas nada!... E corre o boato de que ela se
afogou,..
Esta noite, porém eles ainda estão na casa de Ville-d'Avray. A este, você"conhece:
sempre,se reserva o que há de mais re-nomado, trate-se de um objeto ou de gente.
Ele morreria de ciúme, caso não fosse o preferido em tudo!
Permanecerão na casa do marquês? Desejo que sim, pois da minha janela poderei
acompanhar-lhes todas as idas e vindas.
Mas se vão habituar-se com a vizinhança de Eustáquio Ba-nistère é outra questão.
Desde que este teve cassada a licença de viajante para ir para as matas comerciar peles, e
desde que o bispo o excomungou porque levava aguardente para os selvagens, vive em
disputa com todo mundo. Os filhos dele são uns moleques que fazem mil e uma e
martirizam seu cão. Você sabe como gosto de animais e como sou sensível a isso.
Perdoe-me, caríssima amiga, ainda não pude dedicar-me à leitura de suas cartas, cuja
vista me encheu de alegria.
Cá entre nós, minha cara, bem protegida por trás dos muros de minha casa, regozijo-me
de que esses visitantes do sul nos tragam tanta animação. Terei de que escrever-lhe. Por
ora, não fiz mais do que um apanhado dós fatos. Há mil detalhes que lhe comunicarei mais
tarde.
Resumamos: a Sedutora se encontra dentro das nossas muralhas. Não nos deixará tão
cedo.
Alguma coisa no vermelho do céu, esta noite, fez-me pensar que os gelos não estão
longe, embora os milhares de gansos selvagens reunidos no cabo Tourmente ainda não se
tenham decidido a migrar para o sul.
Doravante nenhuma embarcação poderá partir nem chegar. Nossos hóspedes vão
compartilhar de nosso inverno canadense e já não temos indagações a fazer a nós mesmos.
Pois, entre nós as contas só são acertadas na primavera, quando o rio se torna livre de novo,
os primeiros navios trazem os primeiros correios e fica-se sabendo a decisão do rei..."

Se, deixando a modesta residência da Srta. d'Houredanne, deslizarmos num vôo


planado na asa penugenta de um pássaro noturno, acima dos campanários e sinos da Cidade
Alta, chegaremos ao Castelo Saint-Louis, residência do governador, fortaleza na
extremidade do cabo, dominando e vigiando o rio.
Na ala direita, uma janela permanece iluminada.
O Sr. de Castel-Morgeat espanca a mulher. Está enlouquecido de raiva.
A meia voz, para não despertar os ecos do Castelo Saint-Louis, onde o senhor
governador os hospeda, ele exala o seu rancor e desprazer.
— Não basta, senhora, que me desdenhe em minha própria casa, que há anos, desde que
a desposei, não cessa <le fazer-me sentir o peso de minha presença, como se eu fosse um
intruso, que proclame o desdém que tem pelas minhas homenagens, tornando-me motivo de
riso dos néscios! Ainda tem que fazer-me perjurar a palavra dada, tem que cobrir-me de
ridículo perante meus soldados e meus selvagens, á mim, lugar-tenente do rei na América...
Sabina de Castel-Morgeat curva-se sob os golpes que a pegaram desprevenida.
Fazia muito tempo, anos, que ele não se entregava a tais violências.
Ela não lhe nega o direito de estar furioso, mas odeia-o por haver virado a casaca com
tanta facilidade.
Durante toda aquela história, ele optara pelo Padre d'Orge-val, aprovando-o por querer
afastar das terras da Acádia um perigo de invasão que vinha redobrado por uma ameaça
diabólica. Na verdade, foi uma das raras ocasiões em que se pôs de acordo com a esposa.
Ter-se-ia arrependido? Não fazia muito ele garantia a sua fidelidade aos jesuítas, armava-se
em mata-mouros...
Bastou... o quê, afinal? Que Frontenac lhe assegurasse o interesse de uma aliança entre
gascões? Que o Padre d'Orgeval desaparecesse bruscamente, como ã confessar-se
derrotado? Que ele quisesse contradizê-la, humilhá-la mais Uma vez...
Bastou, sobretudo, que alcançasse Quebec a notícia de que avançava para a cidade
aquele homem; que diziam ser mago, seguro da própria vitória, com sua frota ipsplente e
carregada de riquezas e presentes, seguro de vencer sem um único disparo de canhão.
Pois bem! Sim! Houve um tiro de canhão! O que ela mesma disparara, como outrora a
Srta. de Montpensier mandara atirar no primo, o rei. Que embriaguez, para uma mulher,
sentir o poder de detonar o canhão sob seus dedos! Poderia ter adivinhado que seu filho,
Ana-Francisco, estava a bordo? Tudo o que ela realiza se volta contra ela!
No entanto, como Ana-Francisco está são e salvo, ela não se arrepende-do gesto.
O gesto de hostilidade compensou a covardia geral.
A Sra. de Castel-Morgeat proclamou assim a sua dedicação ao confessor que ainda
ontem todo mundo cobria de homenagens, para hoje renegá-lo. O gesto vingou-a de todo o
rancor, de toda a amargura acumulados ao longo de anos, cuja causa lhe parecia ser o casal
aguardado, a"imagem mesma, pelo que se dizia, do êxito da vida e do amor. Ela odeia tudo
o que pode lembrar-lhe que jamais conheceu a felicidade nem o prazer do amor.
Oh! Que sofrimento sentira hoje, que dor sem nome, diante daquele casal insólito e
magnífico que subiu rumo à catredral sob ovações! Toda a vida dela, desperdiçada,
incessantemente, adquiria ante a cena um sabor mais amargo. Nunca lhe parecera tão
pesado o vínculo com aquele Castel-Morgeat a quem nunca amara. Toda a sua vida,
lamentavelmente perdida, veio-lhe à mente quando viu aquela mulher triunfante que uma
cidade inteira aclama, idolatra, sem sequer a conhecer, simplesmente porque ela aparece,
porque basta vê-la, porque aquela tem o encanto, enquanto Sabina, ninguém gosta dela, ela
não agrada.
Obrigaram-na a assistir ao te-déum. Teria preferido ser atirada numa masmorra.
Ninguém se preocupou com sua humilhação e sua dor, ninguém lhe dirigiu uma palavra
de compaixão.
A única pessoa que tinha por ela um pouco de indulgência e de estima sincera já não se
encontra ali: seu confessor.
A sua mágoa íntima, despertada pelos acontecimentos recentes, somam-se a inquietação
e o desnorteamento.
Ele, Sebastião d'Orgeval, tão forte, ter-se-ia deixado vencer pelo medo? Não,
impossível! Teria caído numa cilada? A extraordinária intuição dele o teria prevenido em
tempo. Acreditar em quê, então? Que ele se recolheu para algum retiro, a fim de atacar
melhor, mais tarde? Mas que necessidade de eclipsar-se assim? A situação estava nas mãos
dele.
Abandonou-a... Agora ela está sozinha e sem recursos, entregue à reprovação e à
execração.
As lágrimas deslizam pelo seu rosto intumescido que a ma-quilagem esbranquiçada
torna ainda mais feio.
O Conde de Castel-Morgeat se sente ainda mais fora de si e enlouquecidamente furioso.
Aquela maldita mulher sempre consegue fazê-lo agir mal... Ele anda como um leão
enjaulado através do único aposento que lhes reservaram. Lança olhares furibundos na
direção do leito, vasto e confortável, posto à disposição deles, e cujas cortinas estão meio
levantadas, descobrindo a brancura dos lençóis.
 Jamais me deitarei com você nesta cama — grita ele.
 Eu tampouco! Vá dormir na casa de Janine Gonfarel, a alcoviteira! Você tem o
hábito de encontrar bom abrigo e terna acolhida por ali...
Ele solta uma blasfémia horrível, atira-se na cama e se enfia sob os lençóis, de botas e
casaco.
Ela se atira para fora do aposento, reprimindo um grito de raiva.
O criado do Sr. de Frontenac, que dorme num leito de campanha atravessado diante da
porta do amo, ouve um ruído de louça quebrada. Levanta-se, intrigado.
O castelo é pequeno e àquela hora da noite todo mundo deve estar dormindo sem causar
alvoroço. As sentinelas vigiam lá fora, é o bastante. Rumando na direção de onde veio o
ruído, chega às cozinhas.
O Sr. de Castel-Morgeat também ouviu. Estava dormindo com um olho só. "Ela
quebrou alguma coisa novamente", pensa. Desce a escada mancando, pois a perna sempre
lhe dói ao se aproximar o amanhecer.
Avista um fantasma negro que atravessa a antecâmara carregando um cesto, sob o olhar
sonolento do criado e de um ajudante de cozinha, de camisola.
É a Sra. de Castel-Morgeat, encapuzada, que se dirige para a porta principal.
Ele a alcança bem no momento em que ela vai abri-la e agarra-a pelo braço.
—Aonde vai agora, louca? A esta hora da noite?
Ela responde, com ar de vítima:
—Vou levar um pouco de comida ao infeliz do Loubette. Ninguém se ocupou dele hoje.
Os olhos faíscam-lhe bruscamente. Ela cospe, furiosa:
—Sim, a cidade perdeu a cabeça! A ponto de esquecer os seus pobres, os seus deveres
de caridade mais imperiosos... Tudo por uma mulher cuja "beleza perigosa não tem outro
objetivo senão o de esmagai as rivais a sua volta, atrair todos os homens a seus pés,
difundir o mal e a destruição de todo o bem...
Falou com tanta .veemência, de boca retorcida, que Castel-Morgeat, embora habituado
às extremadas reações dela, fica atónito. E demais! Alguma coisa lhe escapa nesse
comportamento desmedido.
Intrigado, vê-a franquear a soleira, com um andar de rainha ultrajada. Diz:
—Mas, afinal, por que a odeia tanto?

A mão descarnada e tremula do velho Pedro Maria Loubette avança e consegue pegar
com dificuldade a tabaqueira de lata pousada sobre um tamborete à sua cabeceira.
Merda de vida! A tabaqueira está vazia!
Ele torna a cair sobre os travesseiros e friorentamente puxa até os ombros a coberta, que
escorregou, mas que ele não consegue ajeitar muito bem. A febre o sacode de tal modo, que
ele se descobre, mais do que se volta a cobrir, e ao cabo de um instante sente-se ardendo e
vermelho como o fundo de um caldeirão de ferro sobre o fogo.
Merda de vida! O que teria ele feito do tabaco, caso houvesse encontrado três talos?
Teria mascado um pouco. Fumar? Fora de cogitação.
Assim que começa a acender o velho cachimbo, quase tão velho quanto ele, e aspira
uma baforada, põe-se a tossir a ponto de sufocar, e cospe sangue.
Mascar? Ainda pode. Conservou os dentes, dentes quase tão bons quanto os dos índios,
sadios, sólidos. Foi quase tudo o que conseguiu conservar ..O resto foi-se: as forças, os
escudos, os amigos. Coisas que acontecem. Principalmente aos veteranos dessa merda de
colónia. Ninguém mais aguenta veteranos por aqui. Cansaram-se de vê-los. Devem-lhes
demasiado. Preferem esquecê-los. O dia inteiro aqueles sinos malditos lhe martelaram a
cabeça. Bléim, blom, bléim, blom! E de novo! E de novo! E por acaso houve uma alma
caridosa para vir dizer-lhe o que estava acontecendo e o que foi que significou aquele único
canhonaço? Porque...não foi alucinação! Dispararam o canhão!
Mas ele vai permanecer curioso. A cidade inteira sumiu, como uma revoada de
estorninhos.
Todo mundo desceu, para receber os estranhos. Ele ficou sozinho sobre aquele rochedo
infeliz, quase como no tempo em que era criança e subia até ali por um sendeiro de cabras.
Quem acreditaria que a praça principal pavimentada da Cidade Alta, onde, hoje, as
senhoras gostam de passear, foi aquela clareira à sombra de grandes árvores por "onde,
desde os seis anos de idade, ele perambulava, com uma faquinha na mão, à procura de
aspargos silvestres ou brotos de fetos que despontavam da terra úmida e que ele levava para
a mãe, para que ela os misturasse à sopa da família?
O riacho que atravessa a praça descia por entre o mato alto. Ali ele mergulhou os pés
descalços de pequeno normando, levantando os olhos para a fronde das grandes árvores da
América. Ali onde se ergue a catedral, ele entalhou uma flauta, encostado às raízes de um
carvalho. Da grande floresta original, restam apenas, no promontório, pequenos trechos e
parques rodeando as propriedades construídas: o mosteiro das ursulinas, a casa e o colégio
dos jesuítas, o seminário e o bispado, a Santa Casa. Afora essas grandes construções em
suas ilhotas de verdor, tudo são ruas abertas, ladeadas de casas. E ouvem-se as carruagens e
as charretes trepidar sobre o calçamento, o ruído dos cascos ferrados dos cavalos...
Naquela época, no tempo de sua infância, há quase cinquenta anos, ao pé do rochedo
não havia mais do que duas ou três famílias de colonos. Não havia mais que um punhado de
crianças francesas, sendo criadas como uma ninhada de cercetas selvagens à beira do rio
perdido...
Seis a sete mulheres:e, entre elas, Helena Boullé, vinte anos, esposa do Sr. de
Champlain-e suas três acompanhantes.
A fina Helena Boullé, dê vestido branco e com o espelhinho ao pescoço. Os índios,
vendo-se refletidos ali, enterneciam-se de que ela "os guardasse assim no coração".
Todo mundo se alojava na habitação que o Sr. de Cham-plain construíra na margem.
Um verdadeiro castelinho de madeira, em sólida carpintaria, com três corpos
residenciais, um vasto paiol, um pequeno pombal e, no segundo andar, sob o telhado
inclinado com altas chaminés, um .balcão circular, que permitia às sentinelas vigiar o
horizonte imenso. Ao redor, um grande fosso flanqueado por Qma ponteJevadiça e vários
canhões assestados em locais estratégicos. A habitação, onde todos se amontoavam, no
começo, quando chegava o inverno, quando os iroqueses ameaçavam — colonos,
comerciantes, intérpretes, soldados. Mantinham-se aquecidos. A falésia a que se
encostavam suspendia-os acima da cabeça das gigantescas franjas de galo.
As marés de outono roíam as estacas.
Para comer, no inverno, sempre farinhas e salgados da companhia, cidra picada como
nos navios, alguma caça trazida pelos índios ou apanhada em armadilhas.
O cheiro das peles inebriava. O mal-da-terra — o escorbuto — deixava as carnes
flácidas, á"pele pálida, sangrava as gengivas.
Luís Hébert, o boticário, tratava disso com uma decocção de mirtilos secos. Os
algonquinos traziam suas medicinas misteriosas.
A noite faziam-se orações em conjunto e, no domingo, durante as refeições, lia-se a
vida de santos.
Num ano em que os navios trazendo víveres da França foram capturados pelos ingleses,
houve fome. Péssimas as colheitas daqueles colonos que mal sabiam manejar a enxada!
Nenhuma reserva para o inverno. Morte certa sem remédio.
O Sr. de Champlain embarcou os seus franceses em três barcas e foram todos pelo
grande rio São Lourenço, pedindo piedade aos selvagens.
Foi assim que se salvou a pequena colónia. Pela caridade dos selvagens. Algonquinos,
montanheses, nómades dispersos sob suas wigwams_ de pele, ou huronianos sedentários em
suas aldeias de opulentas casas de casca de árvore, bem providas de milho comido, uns e
outros aceitando receber um homem, ou uma criança, ou um casal com um bebé, a fim de
repartir com essa boca suplementar a tigela de sagamité, o cozido de milho, ou as reservas
de peixe seco ou carne defumada.
Uma caridade exemplar, pois para cada família ou tribo isolada, no inverno inclemente,
uma boca suplementar pode ser a causa de sua ruína, se a primavera demorar a chegar.
Foi assim que eles, pouco a pouco, foram se abrigando ao longo do rio.
No fim restava somente uma barca, em que estava ele, com seus onze anos de idade, e o
amigo Tancredo Beaujars, de treze anos, junto com a irmã, Elisabete Beaujars, de dez anos
— os três espremidos sob uma coberta, sem ousar mover-se, tanto o frio e a fome os
torturavam.
O próprio piloto, Eustáquio Boullé, cunhado do Sr. de Champlain, estava tão fraco, que
já não tinha forças para içar a vela, mal podia manejar o leme.
A barca seguia como um navio fantasma, descendo rumo à embocadura polar, entre os
rios Labrador e Gaspé.
Os gelos começavam. Na junção com as águas salgadas, adquiriam transparências
verdes e azuis que cintilavam no nevoeiro. As altas falésias de cristal pareciam povoadas de
demónios. As crianças ficavam cada vez mais tristes. Tinham a impressão de que estavam
destinadas a errar pelo limbo para sempre. Quando atracavam, encontravam praias desertas
e já não tinham forças para saictfà procura das aldeias. Sugavam cascas de árvore, divi-
dindo entre si um último naco de biscoito.
Para o lado do Gaspé, um chefe algonquino aceitou acolher as três crianças. Eustáquio
Boullé foi em frente.
Nas cabanas, havia fumaça, havia insetos, mas fazia bom tempo. Sepultada sob a neve,
a vida nas aldeias índias, no inverno, não é nada diferente da dos animais metidos no fundo
de sua toca. Os homens se enroscam ao abrigo das tempestades, dormem, comem e fazem
muitas coisas agradáveis para esquecer as ameaças exteriores.
Ao rememorar a temporada em Gaspésia, Pedro Loubette se pega sorrindo.
Pouco envergonhadas como eram da natureza, aquelas selvagens, as adolescentes e
mesmo as moças, não levaram muito tempo para se sentirern curiosas- acerca dós dois
belos rapazinhos de raça estranha: '
A essa lembrança, ele ri e gargalha e tosse, tosse até que o sangue venha macular o
pano que ele levou à boca.
Merda de vida! Foi toda a fumaça que respirara e todo aquele frio inumano que, a longo
prazo, lhe queimaram o interior. Mas não podia lamentar-se.
Por um instante se reviu, sujeitinho robusto e vigoroso, todo surpreso com o próprio
prazer, debatendo-se sob as peles com a bela índia de corpo liso que ri, dá-lhe beijinhos,
acaricia-o, faz-lhe cócegas, provoca-o, lambe-o, enrosca-se nele como um cãozinho e o faz
estourar jde, riso.
Bons tempos!
E como querer, após uma infância assim, que alguém se acostume com essa cidade
cheia de casas, lojas, entrepostos, igrejas e bordéis, que alguém se habitue a essa
miscelânea de récem-chegados do Velho Mundo, ralé rapinante ou clérigos iluminados que
excomungam por um nada, grão-senhores em rendas cujo exílio sanciona algum crime ou
malversação, ou pias benfeitoras desembarcando com todos os seus móveis, tapeçarias e os
quadros de todos os santos, funcionários de dentes compridos, grandes jesuítas prometidos
ao martírio, emigrantes famélicos, soldados pasmos, oficiais pretensiosos que caminham
como ursos pela vereda da guerra — toda aquela gente que só tem em comum a ávida
esperança de fazer um pé-de-meia com as peles?
Naquela época os carvalhos da floresta da América não pertenciam ao rei da França,
conforme se decretou um belo dia, e os bravos colonos do Canadá podiam entalhar belos
móveis para si, como o seu guarda-louça com desenhos em "pontas de diamante". Tudo o
que lhe resta. O Sr. Marquês de Ville-d'Avray bem que o cobiça, mas não haverá de tê-lo.
Parece que os estranhos chegados hoje se instalaram na casa dele, no alto daquela rua
mesma. Pedro Loubette ouviu passar todo um grupo ruidoso. Gritos! Chamados!
Dava para acreditar que naquela época tudo era tão grande, calmo e deserto no Canadá,
quando a esta hora da noite ouvem-se vozes e bêbados que fazem arruaça na rua, logo ali na
frente da sua casa? Uma nesga de luz passou pelos quadradinhos de papel oleado de sua
janela. Foi a porta da taberna Sol Levante, que abriu para -deixar entrar um bebedor
titubeante, e fechou.

Na entrada da Rue de la Closerie, bem em frente à casa onde o velho Loubette,


esquecido sobre a sua enxerga entre o aparador de carvalho e o cachimbo de pedra
vermelha, recorda-se da época do Sr. de Champlain, fica a taberna Sol Levante, com a sua
soleira de três degraus — traiçoeira para os bêbados nos dias de geada —, encimada por
uma bela tabuleta dourada, cintilando um sol que sorri.
O Duque de La Ferté, amargurado e atormentado, refugiou-se ali à noite. É coisa
penosa ocultar-se sob um nome falso, sobretudo quando o passado nos surge diante dos
olhos na aparência de uma mulher perturbadora e o incógnito de que nos revestimos não
nos permite dar-nos a conhecer a ela.
O duque desliza a taça de estanho ao longo da mesa de madeira, polida por duas
gerações de bebedores. E ali fica, arriado, de braço estendido, o punho de renda amarrotada
cobrindo-lhe o pulso, dedos trémulos, crispados em torno do corpo.
Tartamudeia:
— Quem não a possuiu... não sabe o que é uma mulher...
Os outros três, que formam a suã corte, caem numa risada estrepitosa e trocista.
— Riam, amigos — diz ele. — Quem não a teve nos braços, não lhe acariciou a pele
divina, não penetrou aquele corpo de armadilhas voluptuosas, não sabe o que é o amor.
De súbito, berra:
— Bebida, bodegueiro! Vai deixar-me de braço estendido até que eu seque no pé?
Antonino Boisvite dá uma-olhada desdenhosa para esse cliente desairoso. Faz trinta
anos que ele pendurou um ramo de abeto acima da sua tabuleta do Sol Levante e que
recebeu, do juiz régio, permissão para "manter taberna e pôr mesa, e licença para fabricar e
servir cerveja e todos os licores fortes, vinhos e xaropes. Não esquece que foi o primeiro
taberneiro da Nova França e o único a reinar neste dia na Cidade Alta. Situado a igual
distância da catedral do seminário dos jesuítas e das ursuli-nas, ele fecha as portas durante
os ofícios solenes e as missas do domingo, e embora distribua o jarro de vinho ou o
quartilho de álcool num ritmo altamente honroso, soube oferecer às senhoras a
possibilidade de virem sentar-se no seu estabelecimento, pelas horas .da tarde, para
tõmar.um dedo de málaga, de sidra ou água pura com xarope de oçchata, à escolha delas.
Portanto sua casa não é do tipo que se possa batizar de "bodega". Daí o seu mau humor
ao ver aqueles grão-senhores, estranhos na terra, esquecendo que não se encontram mais
em alguma viela parisiense onde seu.-desdém se impõe como lei junto a infelizes
taberneiros sem defesas. Neste verão os navios trouxeram muita*gente desagradável. A
cada ano chega mais e mais. Estarão tomando a Nova França por um monturo?
— Secar no pé"! — resmunga Antonino Boisvite. — Não há perigo! Ele molha demais
a gpela para que isso lhe aconteça.
Riem à sua voltai, vingado, Antonino se aproxima da mesa dos cavalheiros com seu
púcaro de louça.
Vai dar-lhes do forte, agora. Assim já caem de bêbados logo de uma vez e chamam-se
os criados para carregá-los de volta a casa.
Desde o mês de agosto, quando desembarcaram aqueles quatro que passam o tempo a
beber, a jogar alto em todas as espeluncas e salões da cidade e a procurar a companhia das
mulheres levianas, causam-lhe cuidados. O taberneiro pergunta-se se no final das contas
eles terão dinheiro. Nos seus estatutos, intimaram-no a dar crédito aos filhos de família, aos
soldados e aos domésticos.
Embora aparentem ter entre quarenta e cinquenta anos, deve considerá-los como "filhos
de família"? Às vezes, mostram-se generosos, atiram um escudo sobre a mesa... O que
parece de mais alta linhagem tem maneiras de comandante que poderiam fazer crer ser ele
homem de guerra, mas, com mais frequência, sua displicência largada contra os encostos
dos bancos de madeira exprime para Boisvite a ideia mais exata que ele faz de um cortesão.
Ele nunca vira assim tão de perto nenhum daqueles príncipes que, ao que se diz,
enchem o Palácio de Versalhes, colmeia de mil alvéolos invisíveis por trás da cintilação de
suas altas janelas envidraçadas e que guarda, ao abrigo dos olhares do vulgo, aqueles
cortesãos, como um enxame de zangões e abelhas zumbindo em torno de uma rainha que
seria um rei.
O interesse em acolher entre suas paredes uma espécie ainda bem rara no Canadá
compensa para Antonino o desprazer de ser tratado com uma altivez e desenvoltura cuja
recordação ele perdeu há trinta anos, desde que desembarcou naquelas margens, um
aprendiz de ferreiro, sem tostão, que trazia como única bagagem uma tenaz e um martelo...
e um nome que o predestinava a tornar-se taberneiro: Boisvite, "Bebe rápido".
Enquanto lhes serve o néctar do seu melhor vinho, Antonino Boisvite os observa de
soslaio.
Um deles, um homem idoso, o deixa pasmado, pois está ma-quilado como uma mulher;
pior: como uma dona de bordel. Vaidade destinada a dissimular feições que envelhecem,
uma tez demasiado descorada, ou a acentuar um olhar brilhante, destacar uma boca de
lábios demasiado finos. Mas é de espantar que o monsenhor, o bispo, tolere isso em sua
cidade episcopal.
O mais jovem possui belas mãos, estreitamente enluvadas de vermelho, mãos que ele
abre e fecha o tempo todo, como se quisesse avaliar a flexibilidade e a força de suas
articulações e músculos.
O quarto homem tem certa corpulência, mas é o único que parece ter a cabeça sobre os
ombros em todas as circunstâncias. Tem o olhar duro e implacável. Tratam-no por "barão",
mas Boisvite desconfia que seja ele quem controla os cordões da bolsa do Sr. de La Ferté e
que é a ele que deverá dirigir-se quando o montante devido se avolumar demais.
Todos portam espada. Consta que já se bateram em duelo.
Antonino Boisvite afasta-se para atender ao chamado de outro honorável cliente cuja
presença esta noite em seu estabelecimento muito o lisonjeia. Trata-se do emissário do rei,
chegado naquele dia e que lhe parece homem amável e decente.
De boina na mão, o taberneiro inclina-se profundamente.
— Pode dizer-me quem são aqueles senhores? — indaga Nicolau de Bardagne.
Antonino Boisvite os identifica: o Sr. de La Ferté e amigos, o Conde de Saint-Edme, o
Sr. de Bessart e Martim d'Argen-teuil. Incumbe-se de acrescentar, com ar de
bem-informado:
— São cavalheiros da corte, da comitiva do rei...
Apesar dessa afirmação, que em outra época e lugar o tornaria circunspecto, Nicolau de
Bardagne continua a sentir uma mordaz antipatia por eles. Gostaria de duvidar, mas está
cada vez mais convencido de que aquele bonitão de belos olhos azuis e rosto bem atraente e
nobre, á despeito dos estigmas de devassidão e embriaguez que o marcam,.-fala de
Angélica quando alude a uma mulher a quem aníbu, e isso provoca em Bardagne uma
cólera-e ansiedade que culminam a irritação de seus nervos já bastante.solicitados por
aquele árduo dia.
Instalaram-no no fim dó mundo, numa residência bem bonita, mas perdida no meio de
um amontoado de árvores, na extremidade de um platô relvado a que chamam "planícies de
Abraão". Deixando que os criados carregassem arcas e bagagens, ele retornou à cidade,
preocupado em saber em que morada se achavam o Sr. e a Sra. de Peyrac..'.
Se entrou no Sol Levante foi porque o estabelecimento fica na esquina de urna. rua ao
fim da qual se ergue uma casa onde, dizem-lhe, eles passarão aquela noite-. Novamente
fora o Marquês de VilIe-d'Avray quem conseguira hospedá-los.
Só faltavaTnesmo- que lhe chegassem aos ouvidos os discursos e afirmações daquele
Sr. de La Ferté, insolentes e incongruentes, para dizer o mínimo.
Ei-lo de novo, que se levanta e brada, erguendo o copo:
— Bebo à deusa de todos os mares e oceanos, que nos visitou neste dia e que já me
pertenceu!
Desta vez o Sr. de Bardagne não se contém. Decide levantar-se e interromper aquelas
elucubrações escandalosas e intoleráveis. Aproxima-se da mesa.
— Cavalheiro — diz, a meia voz —, considere que suas palavras podem ser
descorteses para com a reputação de uma fidalga. Tenha a galanteria de não proferi-las tão
alto.
O Sr. de La Ferté é um homem bem alto e de boa compleição. Examina com um olhar
vago a pessoa que o interpela.
 Quem é você? — pergunta, retendo um soluço.
 Sou o emissário do rei — replica Nicolau de Bardagne, melindrado. — Não me
reconhece?
 Claro! Pois bem, quanto a mim... sou irmão do rei! O que diz a isso? Uma coisa
compensa a outra!
O Sr. de Bardagne recua para escapar ao hálito avinhado do interlocutor.
 Tolice! O rei só tem um irmão e, graças a Deus, não é você.
 Bom! Admito isso — zomba o outro. — Não sou irmão dele... mas posso dizer...
parente dele... de certa forma... parente morganático... Por isso, cuidado, senhor emissário
do rei... Existem querelas de família em que estranhos não podem ficar com a última
palavra... É melhor que ninguém se imiscua.
O Sr. de Bardagne esta a ponto de atirar-lhe a luva ao rosto e desafiá-lo para duelo. Mas
seria bem ruim iniciar assim suas importantes funções na capital da Nova França. Lamenta
de repente estar investido de um papel tão difícil, que não lhe dá a liberdade de castigar
como merece aquela personagem arrogante que o encara com uma insolência zombeteira e
desdenhosa.
 Sim — diz ele, numa voz arrastada —, ela é linda, não é, a nova rainha de Quebec, a
Condessa de Peyrac?
 Pare de citar o nome da Sra. de Peyrac em suas divagações, senhor!
 Ela me pertenceu — repete o gentil-homem, desafiador. E seus olhos azuis
assemelham-se a dois pedaços de vidro baço.
Mortificado, Nicolau de Bardagne bate em retirada. Retornando à sua mesa, diante de
um caneco de cerveja em que mal umede-ceu os lábios, remói as palavras do gentil-homem.
Demora-se na expressão que o outro frisara: "morganático". Vem-lhe, à memória que o
irmão de uma das amantes do rei, Luísa de La Val-lière, beneficiou-se durante muito tempo
de um cargo na Companhia das índias e controlava certos proventos do Canadá.
Seria ele? Mas o que significaria aquelas bazófias a respeito de Angélica? O que mais
teria ele ainda que aprender acerca daquela a quem ama com uma paixão irracional e
insensata?
O Sr. de Bardagne suspira.
Após as confidências do policial cínico, as do gentil-homem . devasso. Aonde quer que
vá, e por mais longe que vá, seu sofrimento jamais terá fim.
Apesar de tudo, porém, sua intervenção dissipou um pouco da embriaguez do Sr. de La
Perté. Uma amargura ciumenta corrói-lhe o coração. Ele é duque. E aqueles rústicos
permitem-se olhá-lo de cima... Caramba! Onde foi que ele caiu, afinal? Fugir para o fim do
mundo reserva surpresas...
Sente-se mal.
— Ei, bodegueiro! Não há um pouco de café turco neste seu botequim?
Um homem de ar militar, que bebe e fuma não longe dali, intervém:
— Cavalheiro, se quer café turco, cojivido-o à minha casa. Aprendi a gostar de café em
Budapeste, combatendo contra os turcos para o imperador da Alemanha.
Anuncia-se como Melquior Sabanac, lugar-tenente reformado, vindo para o Canadá
com o regimento de Carignan-Salière, que permanecera no país depois que os pés se lhe
congelaram numa batalha de inverno contra.os iroqueses das Cinco Nações.
— Claro que a vida em Quebec é menos suntuosa do que em Versalhes — acrescenta,
examinando a rica vestimenta dos quatro homens.
Aquele a quem ele se dirigiu troça:
— Ah, acha mesma! Depois de um dia como o que acabamos de viver, acha que
Versalhes tem algo a ensinar a Quebec? Receberam uma de suas rainhas, senhores, uma das
rainhas de Versalhes,- estão,sajjendo? Senão a rainha, a única rainha de nossos coraçõesf
Põe-se a tartamudear novamente:
— Quando penso... o rei, corneado por aquele pirata! E eu mesmo...
Aquele a quem chamam de barão intervém:
 Monseigneur, fale mais baixo... Suas declarações vão causar-nos aborrecimentos.
Aqui se sabe e descobre tudo muito depressa...
 Claro, como é que poderia ser diferente? Estamos encurralados no fundo de uma
armadilha!
Com humor, recomeça um refrão que seus amigos já ouviram inúmeras vezes nos
quatro meses em que se encontram ali.
O que foi que ele veio fazer em Quebec? Cidadezinha estúpida, grosseira, provinciana,
ocupada por labregos que se tomam por senhores porque lhes concederam direito de caçar e
pescar.
— Monseigneur, de que se queixa? — insiste o dito Bessart, que, no grupo, mais
parece ter um papel de mentor do que de cúmplice. — Você mesmo acaba de dizer que esta
cidade, hoje, nos ofereceu distrações com que não sonháramos sequer em nossas mais
ambiciosas esperanças.
O Conde de Saint-Edme, o velho de rosto maquilado, inclina-se para a frente.
 Monseigneur, vejo-o perturbado, mas compartilho da opinião do Barão de Bessart. O
inverno se anuncia bem. Quando embarcamos no Havre, estávamos dispostos a sofrer os
mil e um aborrecimentos de um exílio provisório para apagar nossa pista. O policial estava
em nosso encalço e era preciso que se esquecessem daqueles frasquinhos de veneno da
comadre Monvoisin...
 Nada de nomes! — interrompe o Sr. de Bessart.
 Ora! Estamos longe... Agradeçamos... ao inferno por nos haver trazido a este lugar
onde, durante longos meses, ninguém pode vir nos procurar. E quem pode imaginar-nos no
Canadá? Em compensação, pressinto cada vez mais que haveremos de saborear aqui
inúmeros prazeres refinados.
Debruça-se um pouco mais e insiste, em voz baixa:
— Eu lhes havia predito, meus irmãos. Às vezes, há que ter coragem de partir para
longe, não só para escapar aos importunos e aos imbecis, mas também para reunirmos os
nossos poderes, para nos livrarmos dos erros dos não-iniciados. Hoje, em Paris, todo
mundo se gaba de invocar o Diabo. No final, de toda essa canhestrice surgirão apenas
fantoches com a toga de juiz. Afastemo-nos dessas desordens. No Canadá podemos
encontrar um local quase virgem para destilar nossa ciência em segredo, e, por ser
elaborada à distância, nossa obra só se tornará mais poderosa. Acreditem-me...
Fala a meia voz, com um sorriso de demente, o olhar iluminado.
O Sr. de La Ferté ouve-o com uma expressão desiludida. Quem o observasse bem,
também adivinharia repugnância e certa dúvida no olhar que ele pousa sobre o
companheiro.
— Vejo um bom augúrio na vinda desses estranhos a quem você parece conhecer —
continua o outro, passando pelos lábios uma língua gulosa. — Há sinais que se ocultam por
trás da beleza dessa mulher e da personalidade desse homem. E não foi o acaso que os
trouxe a este lugar onde se encontram, mas a conjunção dos astros. Esse homem e essa
mulher não parecem ser mais do que personalidades brilhantes, aventureiros dos mares
como há tantos nas costas da América, mas são mais do que isso... muito mais do que isso...
0 Oh, claro, eu sei! — exclama o Duque de La Ferté, dando uma gargalhada cuja
ressonância sarcástica ele é o único a entender.
 Poderia prejudicar-nos que eles viessem a reconhecê-los, senhor duque? — indaga o
jóvém de luvas vermelhas.
 Nada pode prejudicar-nos — afirma? o velho, antecipando-se à resposta do duque.
— R'epíto-lhes"que somos mais fones, pois fizemos uma aliança com x> príncipe-deste
mundo: Satã. Uma única coisa me inquieta: o Conde; de Varange, que nos recebeu, acolheu
e ajudou a refugiarmos nesta cidade, desapareceu há mais de um mês. Felizmente tenho
meios de saber o que é feito dele.
Mas o jovem de luvas vermelhas continua a olhar na direção do Sr. de La Ferté para
decidir sobre a situação e suas vantagens. O duque meneia lentamente a.cabeça.
— Não... Não sei... Já não sei... Pode ser que o fato de havê-la encontrado resolva os
meus assuntos na corte, a menos que... Sim, tem razão, Saint-Edme, não vamos
entediar-nos...
Acrescenta em voz surda:
— Em todo lugar onde ela aparece, a vida adquire outro sabor... O rei "bem que sabe
disso... Aonda vai, Saint-Edme? — pergunta, ao ver que o velho se levanta.
Este, em pé, ajeita as dobras do manto à volta dos ombros.
— Alguém deve entregar-me um talismã graças ao qual nos será permitido ver nossa
situação com mais clareza e também saber o que foi feito de Varange. Aquele a quem vou
invocar nos dará informações perfeitas sobre tudo isso.
O Sr. de La Ferté o olha com ironia. No fundo, não sabe se aquele Saint-Edme, com a
mania do ocultismo, não lhe inspira certo receio. Mas também se trata de um homem hábil
e eficiente. Há que dar-se bem com ele.
 A quem vai invocar? — 'interroga. Outro sorriso frio da boca maquilada.
 Já lhe disse... Satã!

O Conde de Saint-Edme deixa a taberna Sol Levante e, por um hábito de desconfiança,


traz parte do manto sobre a boca, para dissimular a parte inferior do rosto. Precaução bem
inútil. Numa cidade como esta, e numa noite de luar, logo se reconhece a todos pelo andar.
As ruas estão desertas. O frio metálico parece cair do céu como se fosse chuva. Vem de
muito longe, de muito alto. Enquanto em Paris o frio lembra um rio encerrado entre os mu-
ros das casas, a escoar de um ângulo a outro, aqui a cidade não é protegida por nada. É
aberta, entregue à natureza gigante e soberana. As correntes de ar rodopiam sem trégua.
Nada estagna, é-se atravessado pelo frio sem mercê. Esse estado de virgindade das coisas
não desagrada ao Sr. de Saint-Edme. Não foi à toa que há pouco ele falou da necessidade
de se afastarem de um mundo inepto e desordenado como o que reina na corte. Isso
perturba a concentração indispensável à realização dos fenómenos ocultos. Todos aqueles
incapazes, que manejam o frasco de veneno ou o ritual satânico como fariam com um
bilboquê ou com um jogo de cartas, um dia hão de ser presos e condenados à fogueira e ao
machado, como criminosos vulgares. Eles ainda não compreenderam que a polícia do reino
mudou de rosto.
Aqui os grandes espíritos íncubos e súcubos podem itinerar livremente. O solo do país
ainda está carregado de forças telúricas e o éter é percorrido por correntes livres e
desenfreadas. Sabe-se que neste país as aparições são frequentes, os religiosos têm visões,
consumam-se milagres. Excelentes disposições para as ciências herméticas.
No cinza-pérola da lua, que a banha em luz, a cidade e suas grandes construções de
pedra, seus campanários cinzelados, eriçados de cruzes, surgem aos olhos do Sr. de
Saint-Edme como uma cidade já submetida ao Império das Trevas e, conforme imagina seu
espírito às vezes, uma cidade onde ele caminhará como príncipe, como deus, armado de
todos os poderes transcendentes.
Ao desembocar na Place de La Cathédrale, alguém sai da escuridão, no ângulo de uma
casa.
Quem avança para o Conde de Saint-Edme lembra-lhe inopida-mente que ele se
encontra no Canadá, pois antes evocaria a silhueta de um urso cinzento, que, parece, nos
primeiros tempos visitava os arredores da cidade. Isso, agora, só acontece raramente.
Nessa noite, trata-se de um homem mesmo, um gigante, pesado, maciço, de passos
solenes mas rápidos. Vestido de peles acamurçadas como um explorador de bosques, com o
gorro de lã enterrado até os olhos, que mal se lhe adivinham a aba do gorro e uma barba
negra de oito dias, o recém-chegado não se apresenta sob um aspecto tranquilizador.
— Trouxe-me o que lhe pedi, Eustáquio Banistère? — indaga o Conde de Saint-Edme.
O outro balança a cabeça, córrí um grunhido afirmativo.
Estende uma caixinha de folha:de-£landres, de formato retangular.
 Onde as conseguiu?
 No convento das ursulinas. Pelo meu porão posso penetrar no porão delas.
O conde meneia a cabeça, satisfeito.
— As ursulinas... Perfeito! Moças santas... Virgens... Mãos puras... Dê-ma!
Mas o gigante retira a mão que segura a caixa e estende a outra, aberta, quadrada como
uma pá. Com o gesto, faz saber que, antes de abandonado butim, espera pela compensação.
O conde extrai de sob o manto uma bolsa bem recheada de escudos, que deposita sobre
aquela palma vigorosa.
A caixinha passa para a sua.
Grunhindo- uma vaga saudação de despedida, o gigante distancia-se.
O Conde de Saint-Edme atravessa a Place de la Cathédrale e, pela Rue de la Fabrique,
começa a descer a encosta da montanha.
Com um dedo, levanta a tampa da caixinha e dá um sorriso furtivo, que lhe desliza
pelos lábios delgados e vermelhos: hóstias!
Com o conteúdo daquela caixa, seria o diabo — e ele esboça uma risadinha — se não
conseguisse "ver" o que aconteceu com o seu amigo, o Conde de Varange, misteriosamente
desaparecido havia várias semanas, enquanto ia ao encontro da frota daquele temível
Peyrac e da inquietante e belíssima mulher dele.
Enquanto o Sr. de Saint-Edifie deixa o platô da Cidade Alta e mergulha rumo à Cidade
Baixa pelo íngreme caminho deste lado da montanha, o gigante Eustáquio Banistère vai
bater à porta de uma casa baixa, escondida entre os altos muros do jardim das ursulinas e os
da mansão da família Mercourville.
É a oficina de Francisco Le Bassemymestre marceneiro, deão da Confraria de Santa
Ana e meirinho ordinário da cidade, depois de haver sido o primeiro meirinho do Grande
Conselho. Embora marceneiro, embora solicitado sobretudo a trabalhar a madeira para a
ornamentação das igrejas e esculpir retábulos, tabernáculos e estátuas pias, também é
procurado para redigir documentos oficiais, numa cidade onde os escrivães foram proibidos
a fim de curar os franceses da doença de litigar.
Não se curaram! Contentam-se com um marceneiro-escultor que sabe redigir autos
processuais.
Se Francisco Le Basseur ainda está em pé a essa hora, quando o punho de Eustáquio
Banistère lhe sacode a porta, é porque está trabalhando no desenho de um relicário de que
Monsenhor de Lavai, bispo do Canadá, acaba' de encarregá-lo, para abrigar os santos
despojos de Perpétua, mártir, chegados naquele dia a Quebec.
O relicário ficará situado abaixo do coroamento do altar-mor da catedral, no nicho
central.
Le Basseur idealiza-o de bela nogueira, em forma de incensório oriental, ladeado por
dois anjos ajoelhados, empunhando as palmas do martírio.
Um vidro ovalado fechará o receptáculo, permitindo ver o coração de prata dourada que
contém as relíquias. Pode-se pensar num pé em forma de concha e numa coroa, incrustada
de pedras preciosas. Mas para este último detalhe é preciso conversar com o monsenhor.
A violeta batida na porta causa um sobressalto ao artesão. Corre os olhos à volta e pega
a lâmpada a óleo. Com cuidado, passa por entre as bancadas de trabalho, as pranchas de
madeira recém-desbastadas, em que os seus aprendizes e os seus filhos começaram a cortar
as diferentes peças de um grande tabernáculo que a confraria destina ao novo santuário de
Santa Ana, em Beaupré.
Seus pés afastam um mar de aparas, e ele cuida que nenhuma gota ardente caia no chão.
Que desordem! Todo o trabalho fora suspenso com a chegada daqueles estranhos que
puseram a cidade de pernas para o ar.
Desconfiado, entreabre a porta e se vê diante do colossal Banistère, vestido de peles de
alce, que lhe estende uma bolsa pesada.
 Eustáquio Banistère, o que faz rondando por aí a esta hora?
 Aqui está o dinheiro, você vai redigir os autos do meu processo. Preciso desses
garranchos para obter o que me é devido. Cito o procurador do conselho, que deixou
expirar minhas cartas de nobreza. Cito as irmãs ursulinas, porque construíram em terras que
me pertencem. Cito o Marquês de Ville-d'Avray, porque escavou sob terras que me
pertencem e porque começou a agir para fiGar comimeú campo que confina com a
propriedade-dele.
 Banistère, esse seu proceSso será a sua ruína. Você só vive para litigar!
 Não fui eu quem começou. Q bispo me excomungou porque eu levava álcool para os
selvagens! Como se eu fosse o único! Cassaram-me a licença para coletar peles nas matas.
Não tenho direito de sair da cidade... Pois bem! Vou me ocupar da cidade... Já que estou
aqui, fico aqui e velo pelos meus bens. Ouro, tenho que baste, e encontrarei mais para a
demanda... Você é meirinho ou não? Pago-lhe ou não?
Os olhinhos maus vasculham as sombras da oficina, onde se vêem esboçar formas de
cúpulas, colunatas com volutas gregas, painéis esculpidos com baixos-relevos
representando flores ou frutos, cibótios-e crucifixos.
— Rabisque seus autos, garatuje, ou virei incendiar sua tenda, e seu retábulo de Santa
Ana arderá, antes mesmo de você poder levar suas peças às ursulinas, para mandar
dourá-las...

Madre Madalena, a jovem ursulina visionária, não consegue dormir nem repousar.
Deixou em vão a desconfortável enxerga de palha de aveia, fechada numa daquelas alcovas
rústicas de abeto, que no Canadá chamam de cabanas e onde se pode cochilar ao abrigo das
correntes de ar, depois de cerradas diante da abertura as cortinas de sarja verde.
Foi em vão que se ajoelhou sobre o frio lajeado da cela, visando ao olvido de seus
tormentos pela virtude da prece e da mortificação.
Então, batendo a pederneira, encaminhou-se de candeia na mão até a oficina de
douramento.
Longe, na claustro, chora uma criança, uma das pequenas pensionistas que as religiosas
criam sob os olhos de Deus. A noite está opressiva, até as crianças estão agitadas...
Ela agora está no meio da oficina, e se acalma de novo a observar o quadro dos pacatos
trabalhos a que se dedicam ela e suas irmãs, enquanto os dias passam, ao som argentino dos
sinos, marcando as horas cheias de fervor e devoção que as levam da capela, onde se
realizam os ofícios, às classes eaos dormitórios das crianças, e as conduzem até ali, onde,
pelo seu talento na difícil arte do douramento, elas produzem alguns bens para sua
comunidade.
A estrela de uma lâmpada tremula ao fim do corredor. Uma religiosa mais velha se
encontra agora à soleira da porta.
 Minha, irmã Madalena, o que está fazendo? Vejo que falta gravemente à disciplina
monástica, não empregando para reparar suas forças estas horas preciosas da noite, que nos
são concedidas pela misericórdia divina, sabendo como somos fracas para a tarefa que
temos a cumprir.
 Madre, perdoe-me! Este dia, embora o tenhamos vivido por trás dos muros do nosso
claustro, foi uma provação para nós. Chegou até nós seu eco. O que nos traz a chegada
desses estrangeiros? Tormentos ou paz? Deverei ser confrontada com essa mulher tão bela
em quem alguns acreditaram reconhecer a que me apareceu sob os traços de um demónio
súcubo? Minha carne se arrepia somente em evocá-la. Vou reconhecê-la? Que
responsabilidade pesada a minha! E o Padre d'Orgeval já não está aqui para sustentar minha
fraqueza! Para defender-me, caso necessário! Ora, à minha angúgtia vem somar-se outra.
Nesta noite mesma o Padre Bréboeuf, mártir dos iroque-ses, acaba de aparecer-me em
sonho. Suplicava-me que me levantasse e me pusesse a orar para obter a conversão de um
feiticeiro que age nesta cidade.
 Disse-lhe o nome?
Madre Madalena meneia a cabeça, negativamente.
 Não! Apenas me recomendou que rezasse, rezasse muito, e prometeu-me que os
demónios não me inquietariam durante esse tempo, e seriam impedidos de intervir.
 Deus seja louvado! Pois venha, então, minha irmã. Ponha sua capa de coro. Vai soar
a hora em que devemos nos dirigir à capela para entoar as matinas. Gosto desse ofício em
que somos incumbidas de orar na noite em que se engendram tantos crimes. Nesta noite,
mais do que em qualquer outra, nosso cânticos guardarão Quebec.
Uma atrás da outra, levantando bem alto as luminárias, as duas religiosas deixam a
oficina, seguindo pelo frio vestíbulo que conduz à igreja.
Da capela das ursulinas, os cantos salmodiados se elevam na noite. Vogam até a grande
e bela residência dos Mercourville, vizinha ao mosteiro.

O bebezinho guloso-sent-a-se com um único impulso no bercinho.


A lua olha pela janela. Aos seus olhos, é uma bala. É uma bomba de açúcar. Ermelina
de Mercourville, dois anos e meio, pequena criança colonial do século XVII, nascida em
Quebec, cai na risada, alto.
Ri! Ri!
Seu riso é uma sineta -que ecoa e desperta a casa inteira.
Seus irmãos e irmãs, alinhados a três ou quatro em vastos leitos monumentais viram-se
resmungando. O riso de Ermelina atravessa as muralhas, as cortinas mais grossas.
Nunca antes ela foi assim tão feliz.
Amanhã o sol vai apasecer-lhe. Ela sabe disso. Vai esperá-la lá fora, com os braços
carregados de guloseimas. O júbilo com a visão a faz estremecer com todo o corpinho
frágil. Seus pezinhos têm comichões para correr na direção do amanhecer. Seu riso soa
cada vez mais como um clarim.
O senhor juiz, pai dela, enfia o gorro de algodão sobre as orelhas e suspira.
 Lá está a criança com seus acessos de alegria! Realmente não sei por que lhe
atribuem uma doença de apatia.
 É porque ela não anda, com quase três anos de idade — geme a Sra. de Mercourville
—, e não faz nenhum esforço para se manter de pé. Em desespero de causa dirigi-me ao
santuário de Santa Ana, na costa de Beaupré, para acender um círio e iniciar uma novena,
que termina amanhã.
 A pequena parece bem alegre.
 É verdade. Ela está sempre contente.
A ama negra, Pedrina, aproximou-se do berço de Ermelina. A Sra. de Mercourville, que
foi criada na Martinica, trouxe-a consigo quando veio casar-se no Canadá. Pedrina começa
a cantar e a embalar a pequena. Pouco a pouco, o canto da negra substitui o riso de
Ermelina. As crianças, nos quartos vizinhos, voltam a seus sonhos. Os roncos sonoros do
juiz substituem por sua vez o canto da negra.
Somente a Sra. de Mercourville, presidenta das Senhoras da Sagrada Família,
permanece acordada. Recorda-se de todos os instantes do dia. Um sucesso, apesar das
loucuras de Sabina de Castel-Mòrgeat... Será necessário excluí-la da confraria?
A Sra. de Mercourville afasta essa preocupação. O vestido dela lhe assentava muito
bem. A Sra. de Peyrac tem um ar jovial, ativo, diligente. As duas se entenderam logo de
início. Será necessário admiti-la na confraria?
A Sra. de Mercourville está feliz. Sente-se alegre como Ermelina e enumera
mentalmente as atividades que a esperam. Agora que o intendente Carlon regressou, muitos
projetos vão realizar-se. Ela vai mostrar-lhe o tear, de que encomendou um modelo na
França, chegado durante o verão. Carlon dará ordens aos carpinteiros para que fabriquem
outros. Serão distribuídos pelos lares, e as mulheres se porão ao trabalho. Assim se
ocuparão utilmente durante os meses de inverno, ao invés de tagarelar, jogar dados e,
frequentemente, beber. Com o cânhamo e o linho, cuja cultura se iniciou na colónia, hão de
fabricar bons panos.
A Sra. de Mercourville já tem a impressão de ouvir o alegre ruído dos teares ressoando
na sala das moradas camponesas, ou no sótão dos lares burgueses.
Readormece, com um sorriso nos lábios.

Se se desce da Cidade Alta, conforme está precisamente fazendo o Sr. de Saint-Edme,


por aquela falha rasgada em plena rocha a que dão o nome de Caminho da Encosta da
Montanha, chega-se à Cidade Baixa e às suas casas altas, de telhados pontudos, sob a
cerrada plantação de chaminés imensas.
Três longas vielas, que se estiram no sentido da ribanceira, separam as casas cambaias
da Rue Sous-le-Fort, encostadas di-retamente à falésia, dos belos solares ribeirinhos que
pertencem a senhores ou a comerciantes abastados, como o Sr. Le Bachoys, o Sr. Basílio, o
Sr. Gualberto de La Melloise, cuja soleira a água do rio vem lamber na época das grandes
marés.
Nessa profusão de habitações, praças e pracinhas, pátios e entrepostos, lojas e telheiros
encontram jeito de imbricar, como que por milagre.
Muros e paliçadas de estacas, batentes sólidos de madeira inteiriça, portas maciças
atravessadas por uma barra protegem contra os ladrões as riquezas amontoadas nas
entranhas da Quebec portuária: peles, vinho, trigo, madeira, tecidos...
Filtram-se poucas luzes. Chegada a noite, os ativos moradores da Cidade Baixa se
trancam em casa.-Dormem, jogam cartas, bebem ou fornicam. .
Deixando a branca via quê o conduziu dos cumes batidos pelo vento da Cidade Alta
rumo a esse labirinto sombrio e fétido, o Conde de Saint-Edme vadeia a fronteira de
claridade e pentra na escuridão da Rue Sous-le-Fort, do mesmo modo como enveredaria
pelo dédalo do inferno.
Um braço estende-se na sua direção, no escuro; uma mão enluvada de vermelho
pousa-lhe no ombro.
— Acompanho-o,— diz a voz de Martim d'Argenteuil, mestre da péla do-rei —,. estou
ansioso per assistir a uma missa negra no Canadá.

Uma leve música de câmara na casa do Sr. Le Bachoys, que tem quatro filhas, três
filhos, uma mulher gorda e quadrada, de cara vermelha, olhos incrivelmente azuis, a qual
recebeu o dom de agradar a todos os homens e que o engana a três por dois.
Na realidade, apresentada desse modo, a coisa não permite uma avaliação exata da
situação. Pois, neste caso, o marido enganado antes surge como um privilegiado. Pois,
afinal, ele tem a vantagem de possuir, sobre esta mulher em cujos braços tantos homens
aspiram ver-se um dia, inalienáveis direitos de amor, que pode usar quando lhe dê vcmtade,
ou seja, com mais frequência do que os rivais. Daí o rancor e o ciúme que estes lhe
dedicam. Daí a constância de seu caráter e a serenidade com que ele carrega seus cornos.
Como o sentem vitorioso nessa história, faz muito tempo que todos perderam o gosto por
rir às suas custas. Seu prestígio e autoridade antes se reforçam com esse estado de coisas. É
a eminência parda de Quebec. Antigo supertintendente da Companhia das índias
Ocidentais, conserva o controle sobre quase tudo o que se comercia no país.
No momento, joga bilhar com o Sr. Magry de Saint-Chamond. Esfrega com resina a
ponta do curto taco achatado, recurvado na extremidade, de que se servirá para empurrar as
bolas, O bilhar ainda não passa de um jogo de malha de salão. Comporta uma quilha, que
não se deve derrubar, e um arco.
O Sr. Le Bachoys corre o olhar pensativamente pelos convidados. Está ali o Sr.
Gualberto de La Melloise, cabelos bran-cos, elegante. Está "Romano de L'Aubignière, que
vem cortejar-lhe a filha mais nova, Maria Adélia. Esta está sentada diante do virginal, um
instrumento musical que se assemelha à espineta ou no cravo, mas de som mais delicado e
que ela toca muito bem. Também há dois violinos e um oboé.
A filha mais velha encontra-se ausente. Não quis aparecer o dia inteiro e manteve-se
fechada no quarto. Durante muito tempo considerou-se noiva do Tenente de Pont-Briand,
que dizem ter sido morto em duelo por aquele gentil-homem do sul, o Sr. de Peyrac. A filha
não se consola. Decidiu que não se casará.
Esperemos que a mais nova tenha mais sorte.
De vez em quando Maria Adélia se volta para Romano de L'Aubignière e procura
atrair-lhe a atenção.
Mas o jovem senhor está distraído. Aconteceram muitas coisas naquele dia. Romano, o
explorador de bosques inveterado, o guerreiro fanático, sempre pronto a seguir o Padre
d'Orgeval nas expedições punitivas que ele empreendia contra a Nova Inglaterra, não se
sente muito à vontade ante a perspectiva de rever o Sr. e a Sra. de Peyrac. Congratula-se
pelo fato de os acontecimentos se terem revelado da melhor maneira possível para ele e
para todo mundo. Há poucos dias não se podia esperar tanto.
Quando correu o boato de que as canoas da chasse-galerie foram avistadas acima de
Quebec, a partida parecia perdida para os estrangeiros do Maine. O terror começava a
tomar conta da população..
Um vento de pânico soprava sobre a cidade. As mulheres se descontrolavam. Elas são
instrumentos dóceis entre as mãos dos padres, e o Padre d'Orgeval parecia vitorioso.
Depois, de repente, sumiu.
E a má febre serenou como que por encanto.
E agora Três Dedos de Trois-Rivières, como o chamavam, não pode deixar de fazer
perguntas a si mesmo e de se atormentar.
"Onde está ele? O que é feito dele? Que força pôde convencer o jesuíta a sair da cidade
nomomerítqjfo confronto, quando a cidade estava pronta a segui-lo e a desferir um combate
encarniçado contra 'o invasor'? 0 Sr. de Castel-Morgeat ia segui-lo, repetindo que seus
paióis-xlépólvora estavam cheios e suas armas, bem assestadas. Começava-se -a cavar
trincheiras e a levantar bastiões de defesa com sacos de terra. Ele desapareceu... Tê-lo-ão
raptado? Assassinado? Aonde foi? Que rota tomou, perseguido pela necessidade de
sacrifício e de domínio? É tão pouco próprio dele esquivar-se assim'diante do combate!...
Onde estará preparando suà vingança?"
No entanto,..chegou um rumor aos ouvidos do explorador de bosques: diz-se que d
jesuíta retornou às missões iroquesas.
Se for verdade, e loucura pura!
O Sr. de L'Aubignière contempla as mãos de dedos decepados ou calcinados. Uiíi
polegar quase reduzido a cinzas no fornilho de um cachimbo. Um indicador lentamente
serrado com o fio de uma concha. E pensar que aqueles bárbaros não o consideravam seu
pior inimigo...
Se o Padre d'Orgeval retornar para junto dos iroqueses, estará perdido. Hão de fazê-lo
perecer em meio aos mais abomináveis tormentos.

Enterrado numa funda poltrona, embalado pela música agradável, o Sr. Gualberto de La
Melloise junta as pontas de seus dedos enluvados, e indaga condigo o que deve pensar
acerca da loucura daquele dia.
Sem estar expressamente do lado dos jesuítas, não pode deixar de deplorar sua derrota.
A introdução, na cidade, de franceses audaciosos que, por mais generosa e agradavelmente
que se apresentem, não deixam de ser fora-da-lei — e há que esclarecer o fundamento dos
relatos que correm sobre eles — não vai perturbar gravemente o equilíbrio moral e
económico, um decorrente do outro, aliás, e que já é bem instável na cidade?
O Sr. Gualberto de La Melloise é devoto. Pertence à Confraria da Virgem, à da Sagrada
Família, e conserva solidamente em si as marcas da Companhia do Santíssimo Sacramento,
a que aderira outrora.
Estima, assim, que neste caso o Sr. de Frontenac excedeu os próprios direitos em
matéria de política e resolveu bem levianamente carregar os ombros dos seus
administradores com um fardo pesado demais: o da tentação do luxo e da dissipação, que os
reeém-chegados trarão consigo, não é um dos mais árduos de rechaçar?
O Sr. Gualberto de La Melloise promete a si mesmo esclarecer muitas coisas. O que se
fará, por exemplo, daquelas Moças do Rei, cuja benfeitora desapareceu, afogada, ao que
diz? Mas o faro adquirido por uma longa prática de espionagem virtuosa, que têm os
adeptos da Companhia do Santíssimo Sacramento, adverte o Sr. de La Melloise de que há
algum segredo dissimulado por trás das explicações apresentadas. Lamenta amargamente
que a Sra. de Maudribourg não tenha vindo para Quebec, pois tinha-lhe sido expressamente
recomendada por uma missiva de Paris, diziam-na muito rica, e, por impulso do Padre
d'Orgeval, de quem ela fora penitente em Paris, ele próprio interferira na instalação dela.
Aquela dama se anunciava como uma aquisição de categoria.
O solar de Montigny, na vertente norte da colina Sainte-Geneviève, requereu o verão
inteiro jo cuidado de pedreiros e carpinteiros, e dos tapeceiros, para o mobiliário. E eis que
a rica benfeitora não vem e, cúmulo da ironia, alojam ali o Sr. de Peyrac, a quem o Sr.
Gualberto de La Melloise, na qualidade de membro da Companhia do Santíssimo
Sacramento, combateu o melhor que pôde.
Nesse passe de prestidigitação há habilidades inquietantes. O Sr. Gualberto toma a
resolução de permanecer muito vigilante, pois o bem deve triunfar.
Com um gesto que lhe é costumeiro, alisa as pregas das luvas sobre as mãos, que tem
belas e delicadas. As luvas são cor de malva e exalam um perfume de violetas. Casam à
perfeição com o formato da palma e dos dedos.
Luvas são a vaidade do Sr. Gualberto. Possui inúmeros pares, de matizes e aromas
diferentes. O índio esquimó do Velhaco Vermelho as curte para ele em peles de aves, o
capelista da Rue Sainte-Anne as costura, e quem as tinge são dois prisioneiros ingleses,
cativos dos huronianos em Loreto, que possuem o segredo das tinturas. Ele ofereceu um par
do mais belo encarnado ao Sr. Martim dArgenteuil, quando soube que aquele soberbo
gentil-homem joga péla com o rei. A fineza daquelas luvas se iguala à da mais fina sedare
protege melhor.
"Depois de depenada a ave é retirada a pele com toda a delicadeza, parece que o
esquimó abocanha o que sobra do animal e tritura bico,, ossos e patas^com. seus dentes
afiados em ponta. 'Esquimó' não significa 'comedor de carne crua'?"
Embora a noite vá bem avançada, continua-se a jogar cartas e dados nas mesas de jogo
e a tacar as bolas de bilhar. Os músicos e os seus ritornelos dispensam a conversa.
Fumam-se daquelas folhas de tabaco enrolado que o Sr. de Peyrac distribuiu profusamente.
Esses "charutos", conforme ele os chama, têm, com o gosto do tabaco da Nova Inglaterra,
sabor de fruto proibido.
Valendo-se de-que'os violinistas afinam os instrumentos, o Sr. Magry diz, balançando a
cabeça:
 O tabaco deles, em tedo caso, é melhor do que o nosso...
 Deve-se considerá-lo mercadoria estrangeira importada? — indaga o procurador
Natal Tardieu de La Vaudière.
Voltam o olhar para a Sr. Le Bachoys, mas como este só parece preocupado com sua
partida e fuma o tabaco incriminado com evidente deleite, tranquilizam-se.
Um pouco mais tarde, diz o Sr. de La Melloise:
— A presença desses aventureiros, muitos dos quais são ímpios e inescrupulosos, vai
causar perturbações entre a nossa população, já turbulenta por natureza. Apenas no plano
financeiro, há uma pergunta: como pagarão suas despesas? Nosso orçamento, já vacilante,
ficará clésequilibrado...
Le Bachoys responde, seguindo com os olhos sua bola que passa pelo arco: .— Não se
preocupem... Basílio tratará do assunto.

Na casa do Sr. Basílio, O Conde d'UfVÍlle está sentado diante dele, um dos mais
importantes comerciantes de Quebec. Também ali se fumam charutos da Virgínia. O que
não impede o Sr. Basílio de trabalhar ativamente. Termina de pesar numa pequena balança
moedas de prata pura, que seu empregado vai metendo aos punhados em bolsas de couro.
— Pode garantir ao Sr. de Peyrac que não haverá nenhuma discussão acerca da
circulação destas moedas. Dou minha palavra. Além disso, logo ao amanhecer mandarei
entregar-lhe determinada quantidade de cédulas com a minha assinatura, que poderão servir
à sua companhia para o intercâmbio com pessoas e empresas da cidade. Será o tempo de
rubricá-las e meu caixeiro as levará.
O Sr. d'Urville levanta-se e agradece, em nome do Sr. de Peyrac, todas as comodidades
que o Sr. Basílio lhes colocou à disposição.
Cortesmente, não deixa transparecer o próprio espanto. Mas nunca antes topara com
patrão e empregado tão disparatados. Se Basílio possui o desembaraço compassado de um
burguês abastado, um pouco corpulento, manhoso em negócios, o amanuense, magro, a tez
pálida, um olhar vivo e alerta, daria a impressão de um indivíduo que vive de barriga vazia
e que só subsiste com furtos. Claro que a situação dele em Quebec não é essa; pelo
contrário, parece das mais garantidas na casa do importante Sr. Basílio, que o apresentou
com negligência:
— Paulo Le-Fol ou Paulo Le-Follet... — acrescentando: — Como se queira...
É verdade que na silhueta e no rosjo da dita figura há algo que lembra o pierrô das
comédias italianas. Pode parecer ora gracejador, ora sinistro. No geral, revela-se vivo,
entendido, de espírito tão ágil quanto o corpo. Sua desenvoltura é tamanha, que não
surpreende ouvi-lo tratar o patrão com intimidade familiar.
Com a mão sobre o punho da espada, O Conde d'Urville se inclina e retira-se.
Assim que ele sai, o amanuense abre a janela de pequenos vidros redondos e grossos,
reforçados com chumbo, e deixa entrar o frio, que dissipa a fumaça do excesso de tabaco.
Paulo Le-Fol se debruça para fora. Ao rumor do rio, que passa raspando a areia-e
chocando-se com algumas rochas e as estacas de um embarcadouro, mesclam-se os sons
abafados da música suave que escapa da mansão do Sr. Le Bachoys. Os acordes dos
violinos, oboés e virginal evolam-se em ondas e parecem embalar o êxtase de um índio,
sentado ao pé da casa, que certamente acaba de trocar a sua última pele de lontra por um
quartilho de álcool.
Por modesta que seja, essa medida basta para transportá-lo rumo às visões exaltantes
quef a aguardente propicia.
Está imóvel, insensível ao frio. No entarao, pressente-se geada naquela noite lunar.
O caixeiro atenta ao" vasto fúmor das correntezas, que em breve se calarão. .
— Quando retornaremos para as margens do Sena? — indaga. — Cada vez que ouço
esta canção do rio, fico nostálgico...
O Sr. Basílio meneia a cabeça; enquanto alinha seus pesos, pinças e balanças.
— No que se refere a mim, nunca mais voltarei. Não há vida que me convenha por lá.
Eu morreria de tédio e revolta...
O empregado torna a~fechar a janela e vem sentar-se atrás do negociante. Com um
gesto familiar, rodeia-lhe os ombros, enquanto seu-rostò astuto esboça uma careta, triste e
zombeteira ao mesmo tempo.
 Então morrereçsem rever Paris... Pois nada pode nos separar, não é, meu irmão?
 Vê se me acha uns pés de porco — diz Janine Gonfarel, a proprietária do albergue
Navio de França, ao seu marido. — Quero fazer um guisado.
 Pés de porco! A esta hora? Achar onde? Ainda não estamos no Natal. Depois, você
não está pensando direito... Bem sabe que taberneiros e regatões não têm o direito de
guardar ou comprar mercadorias antes das nove horas da manhã...
 Oito horas, homem! Ainda não estamos no inverno...
 ...e antes de terem elas ficado expostas durante uma hora nos mercados da Cidade
Alta ou da Baixa.
 Cale-se! Deixe-me em paz com as ordens daquele bastardo do Tardieu. Não vim de
tão longe para o Canadá para ainda ser molestada por beleguins... Vê se me acha uns pés de
porco, estou dizendo! É questão de"vida ou morte. Vá pedi-los ao caixeiro do Sr. Basílio,
Paulo Le-Follet. Para mim ele é capaz de acordar o açougueiro. Mas traga-me as patas
antes do amanhecer. Vá!
Acabrunhado mas resignado, o rapaz pega o capote e desliza para fora, para a noite.
Satisfeita, Janine Gonfarel vira-se para o gato, a que instalou confortavelmente sobre
uma almofada fofa. Faz-lhé cócegas nas bochechas com um dedo. O animal aceita a carícia
com uma condescendência lasciva, enrugando as pálpebras.
— Gosto de você — diz ela. — Hein! Não se está melhor na casa da mãe Gonfarel do
que na casa daquela fulana, com todos os seus enfeites de princesa?... Deixe que lhe diga:
um gato não devia frequentar as grandes damas... Você bem viu o que isso lhe custou...
Acredite-me, pequeno, fique aqui na casa da boa Janine.
Ele ronrona. Ela o examina, e seus lábios, entre as faces cheias, esboçam um muxoxo
magoado.
— Sim, já estou vendo... Você é bem como todos os homens, bichano... Entre uma
ordinária e uma mulher honesta, é sempre a primeira que eles preferem. Vá! Não tenho
ilusões, não. E a ela que você escolherá. Como de hábito!
Com um suspiro resignado, vai olhar pela janela a praça que, naquele dia, viu avançar
uma mulher vestida de azul, com brincos de diamantes... Ela... Um verdadeiro milagre.
Aquela hora a praça está deserta. Janine avista duas silhuetas furtivas que desaparecem
na esquina de uma ruela. São o Conde de Saint-Edme e Martim d'Ajrgenteuil.
— Ora! O que é que aqueles belos cavalheiros estão fazendo num canto destes? Aposto
como estão indo a casa do Velhado Vermelho, o feiticeiro da Cidade Baixa...

O antro do Velhaco Vermelho, naquele bairro miserável, edificado no local do forte de


madeira que Champlain chamava de Habitação, construído na ribanceira, protegido pela fa-
lésia. Restam apenas os vestígios do fosso defensivo, sobre o qual se abaixava a ponta
levadiça e aonde os bêbados retardatários vão tropeçar, às vezes, e tomar um banho gelado,
quando a água das chuvas se despeja no fosso.
Para além daquele limite, a engenhosidade dos imigrantes, empenhados em encontrar
algum espaço para se alojarem, edificou uma espantosa sobreposição de casas de madeira,
cabanas, choças, construídas umas sobre as outras aproveitando a menor saliência de
terreno, o menor desabamento ou desnivelamentos naturais.
Trata-se de uma estranha floração de construções primitivas, de pranchas ou toras, tetos
de choupo ou ripas, cuja ras-tejante progressão pelo flanco da montanha,, qual trepadeira,
assombra os pesadelos do procurador Tardieu, responsável pela salubridade da cidade e
pela sua proteção contra incêndios.
É assim que, para chegarem'^ao covil de Nicolau Mariel, dito Velhado Vermelho e
tambéírirFeiticeiro, oConde de Saint-Edme e Martim d'Argenteuil começaram por se
insinuar pela estreita passagem que separa duas casas altas e opulentas de pedra, na Rue
Sous-le-Fort, chocam-se com as latrinas oscilantes de uma das habitações, contornam-nas
para encontrar uma escada, apoiada em estacas, que os conduz a uma espécie de pequeno
pátio, onde a presença deles arranca ao sono as galinhas trancadas num galinheiro de tábuas
mal-unidas. Elas se põem a cacarejar.
— Quem vem lá?— grita uma voz de velha por trás de uma vacilante veneziana.
Devem saltar uma barreira, que tem a pretensão de fechar aquela propriedade pousada
no flanco da falésia como um ninho de pega num galho. Do outro lado, um terrapleno lama-
cento permite dar alguns passos por uma espécie de caminho, depois é o rochedo de novo,
no qual se rasgaram alguns degraus.
A casa do Velhaco Vermelho é a última, no topo daquela verdadeira sucessão de
andaimes. Depois há o rochedo, que se ergue nu e reto. Ouve-se água correndo, gotejando...
Levantando-se os olhos, avistam-se ao longe, lá em cima, as janelas iluminadas do Castelo
Saint-Louis, residência do governador, e um pouco abaixo as dos corpos da guarda, onde os
soldados jogam cartas enquanto esperam para serem-rendidos.
Iluminada por uma lâmpada cuja mecha está mergulhada em óleo de marsuíno-branco,
nesta sala todos os odores se combatem. O tépido cheiro de peixe, que emana da lâmpada;
os das plantas: raízes, rizomas, folhas, cascas que secam, suspensas às vigas ou espalhadas
sobre grades; o aroma seguro, de fruta, do "caldo", a bebida canadense comum, uma
espécie de limonada fabricada a partir de pasta fermentada; e o odor, inesperado, que se
exala das encardenações de couro de uma quantidade de livros grandes e pequenos, grossos
e finos, empilhados a um canto.
A outro canto descobre-se uma criatura agachada, cujas mãos trançam habilmente uma
rede. A cabeça redonda, cor de aca-ju envernizado, de olhos amendoados, parece muito
grande para o corpo pequeno e atarracado. E o índio esquimó.
Sob a lâmpada em forma de bico de corvo, um homem está sentado à moda índia sobre
peles atiradas ao chão, e escreve apoiado a uma secretária portátil.
Martim d'Argenteuil admira-se de vê-lo vestido de peles acamurçadas com franjas, com
um gorro de pele enterrado até as sobrancelhas. Não se sabe que idade atribuir-lhe.
 Quem são vocês — indaga ele, lançando aos visitantes um olhar sem cordialidade,
enquanto estes tomam assento sobre as peles. — Não os conheço.
 Conhece — lembra o Sr. de Saint-Edme. — Já vim à sua casa com o Conde de
Varange.
 Onde está ele? '
 É precisamente o que eu gostaria de saber e que apenas você pode revelar-me.
 Não sou adivinho.
 Sim, é, eu o vi em ação, Nicolau Mariel.
 Não viu nada. Só me ocupo de interpretar o Grand e o Pe-tit Albert, e de fabricar
talismãs contra a má sorte e medicamentos.
 Pode bem mais do que isso. Não há apenas o Grand e o Petit Albert entre os livros
que você possui. Neles você aprendeu o que John Dee viu no espelho negro. E sei que você
pode conversar com os espíritos e fazer aparecer qualquer um que deseje convocar. Repito
que não faz muito tempo que o vi em ação.
 Os tempos já não são os mesmos.
 O que aconteceu de novo?
 Os presságios são maus.
 O que mais?
 Uma noite vi passar acima do forte as canoas da chasse-galerie...
 Já contou isso a todo mundo.
 O que eu não disse foi que seu companheiro desta noite estava numa daquelas canoas
em chamas. Reconheço-o.
 Eu!— exclama Martim d'Argenteuil, horrorizado.
A revelação não lhe agrada de modo algum. Significa que ele vai morrer? Arrepende-se
agora de haver acompanhado o
Conde de Saint-Edme na sua expedição. Interessa-se por magia, mas não faz a menor
questão de ser envolvido nas elucubrações de um bruxo de baixa categoria.
Podia-se esperar algo de melhor no fundo desse Canadá obscuro e ignaro? As oficinas
parisienses, onde ele foi ver operar o mago Lesage ou o Abade Guibourg, estão longe, com
seus escalfadores e retortas, suas fumaças de incenso ou de ervas inebriantes.
D'Argenteuil'conserva uma recordação indescritível. E verdade que por vezes ele
.distinguia por entre os nevoeiros o rosto suave dâ sutiLe estranha Maria Madalena
d'Aubray, Marquesa de Brinvillers, que soubera enfeitiçá-lo. Ela, porém, não o via. Vivia
apenas pela vontade do amante, o Cavaleiro de Sainte-Croix. Ao pensar nisso, o mestre de
péla do rei considera das mais aflitivas sua sorte atual.
O sr. de Saint-Edme procura cativar o homem.
 Você tem que ajucíar-nos. Trouxe aquilo de que precisa.
 O quê?
 Primeiro, isto— diz o conde, nlostrando uma bolsa bem recheada deescúdos —,
depois, isto.
Exibe a caixinha de ferro que Eustáquio Banistère lhe entregara havia pouco. Levanta a
tampa e descobre pastilhas brancas de pão ázimo.
— Hóstias!
Mas o feiticeiro não-se abala. Fita, como se não os visse, os objetos, que o visitante lhe
estende. Depois, lentamente, começa a balançar a cabeça negativamente.
 Cuidado, senhores — murmura afinal. — Não ataquem a mulher que desembarcou
hoje em Quebec.
 A Sra. de Peyrac?
 Não pronunciem o nome dela! — exclama o outro, em tom feroz. — PsiuL. — faz de
repente, misterioso. — Desejam sua própria destruição? Ela é mais forte do que vocês e
todas as suas feitiçarias. Sua força é tamanha, que ela evita as armadilhas que lhe preparam,
atravessa as chamas sem que estas a toquem, desvia a adaga que a ataca e faz tremer a mão
que lhe atira uma pedra. Eu sei. Vl-a hoje, saindo das águas. Foi para ela que a outra mulher
a quem esperavam foi afastada.
 A Sra. de Maudribourg?
 Já lhes disse que não pronunciem nomes.
 A visão da madre ursulina estaria correta, então?
 Não me meto com as visões das freiras. A cada um o seu domínio. O que a Madre
Madalena viu, só ela sabe. Quanto a mim, não digo mais nada, e repito-lhes: guardem suas
hóstias... Não preciso de suas tramóias sacrílegas. Tenho os meus livros, as minhas
fórmulas e o dom de clarividência que me foi dado ao nascer e que agucei com a minha
ciência. É por isso que lhes digo: não quero me envolver com essa mulher, pois o
ressentimento dela não me serve para nada e seria inútil. Os encantos e magia dela a põem
fora de alcance.
 Ajude-nos pelo menos a encontrar o Sr. de Varange. Você reconheceu nele a
habilidade de mago. Ele teria força contra ela, estou certo.
Mal tem tempo de concluir a frase e sobressalta-se e olha à volta, procurando adivinhar
de onde sai aquele ruído de matraca que começa a soar subitamente.
Precisa de algum tempo para entender que foi o anfitrião que se pôs a rir, ou melhor, a
casquinar, com a boca fendida num ricto hilárico. O Velhaco Vermelho se balança, sacudi-
do pelo riso, e estapeia as próprias coxas, tão cómico lhe parece o que acabou de ouvir.
 Partamos — cochicha Martim d'Argenteuil, exasperado. — O homem está bêbado.
Creia-me que não estou nem de longe convencido das maravilhas que se fazem neste país.
 Por que está rindo? — indaga o conde.
O homem recobra a custo a seriedade e bruscamente estende para eles uma mão que
antes parece uma garra, de palma aberta.
— Dêem os seus escudos, belos senhores, e lhes direi por quê...
Os dedos se fecham sobre a bolsa que ele faz desaparecer nas pregas do seu cinto de lã.
Depois seca os lábios de saliva amarronzada de tabaco.
— E o que acabam de dizer que me faz rir, meus belos senhores... De jeito nenhum! O
Sr. de Varange não será mais forte do que aquela mulher...
Seus olhos brilham intermitentemente, como pirilampos. Diz, a meia voz:
— Por que foi ela que o matou, e com as próprias mãos.
Na Cidade Alta, Eustáquio Banistère, passando por trás das casas da Rue Sainte-Anne,
chega ao seu lameiro.
Um casebre, uma choupana, construída nos primeiros tempos pelos pais dele, nos
limites dos campos que lhe pertencem.
Passou junto ao moinho dos"jesuítas e agora está em seu pátio, onde se ergue uma
grande árvore. Um <jão magro, amarrado à árvore, vem-lhe ao encontro com um ruído de
corrente. Ele lhe desfere um violento pontapé e se encaminha até o limite do pátio.
Dali ele sobrancéia a casa do vizinho/mais próximo, o Marquês de Ville-d'Ávray.
A",fachada dá para a Rue de la Close-rie. Os fundos, com um grande pátio e dependências
de criados, estendem-se até a divisa com as terras dê Banistère. Ele bem sabe que o
marquês cava como uma toupeira sob seu campo, sempre ávido por abrir novas adegas para
guardar seus vinhos, suas provisões, gelo para o verão...
Adegas naturais há ramas quantas se queira, ali embaixo. Não é difícil passar para a
propriedade do vizinho com uma enxadada.
E agora, eis que o. marquês encheu, a casa de hóspedes. Mais gente ruidosa para vir
disputar com ele faixas de território e criar-lhe problemas.
Desse local se enxerga bem longe, e a vasta estrela aquática que forma o cruzamento do
rio sob Quebec brilha em toda parte, espalhando-se por entre ilhas, cabos e golfos. Nuvens
brancas alongam-se sobre o metal do céu, e à distância estão as linhas das montanhas, em
ondas azuis e negras... sem fim.
O homem é prisioneiro da cidade. Já não pode partir para as matas. Se for, tomam-lhe a
propriedade.
Os insultos mais sacrílegos e as blasfémias mais terríveis giram em sua cabeçorra. Tem
cuidado para não pronunciá-los em voz alta. Não quer que ainda por cima lhe cortem a
língua...
O mutismo a que é condenado pelo medo aumenta-lhe o rancor. Um homem que não
pode praguejar quando não aguenta mais é como uma bexiga cheia demais, preste a
rebentar.
Um dia ele terá ouro, muito ouro, e se vingará de todos, até do bispo, com uma
infinidade de processos.
Eustáquio Banistère encolhe os ombros de ogro e entra em sua palhoça.
O cão magro fica sozinho na noite, deitado ao pé da faia vermelha.
O cão magro de Banistère está deitado ao pé da faia vermelha. A fome o tortura. A
noite sucedeu-se ao dia. E tudo o que ele recebeu foi um pontapé do homem, há pouco. Sua
esperança se distende na medida de sua dor. Cada instante que passa é pesado de promessas
e de decepções.
O pobre cão descarnado, esfomeado, acorrentado, não é mais do que um único olhar
voltado para a forma escura da casa.
E dali que virão as quatro crianças, ^seus donos. Hão de destacar-se daquela massa
atarracada que as abriga e segrega assim como a colmeia segrega a abelha. Ele as verá
vindo em sua direção vestidos de marrom, de cinza, de preto, titubeando como as peças do
jogo de paus, como piorras informes que se entrechocam. Os rostos são grandes luas
rosadas e baças. Quando se debruçam bem perto, ele lhes vê os olhos, que se acendem, e o
branco de seus dentes, que riem.
Aí o olhar do cão não será mais do que um único apelo ao desmedido poder deles.
O sentimento que o invade e que o atrai para eles o domina com tal força, com tal
plenitude, que ele sente, quase a contragosto, sua cauda agitar-se debilmente.
De suas mãos vem a vida. Um osso, um pedaço de couro. Ele abocanha o que vier,
tritura, engole, e se desmancha de felicidade. Às vezes há uma surpresa dolorosa: um prego,
uma pedra...
Outro dia atiraram-lhe uma brasa ardente. Ele ainda está com o focinho dolorido.
Hoje, nada. Não as viu.
A lua sai de uma nuvem, ilumina o telhado de choupo do casebre onde dormem os
humanos, recorta na parede de argamassa a moldura da porta.
A porta que se abrirá... para as crianças...
As crianças que ele ama!
Ao pé de Quebec, para o norte e para a costa de Beaupré, o estuário do rio
Saint-Charles dispersa as suas sinuosidades prateadas por entre os belos prados da paróquia
de Notre-Dame-des-Anges. Na embocadura, a água murmura e bate nos flancos do navio
que encalhou ali. Nas entranhas apodrecidas do Saint-Jean-Baptiste abandonado, o urso
Willoagby dorme seu sono hibernal.

A CASA DO MARQUÊS DE VILLE D'AVRAY

CAPÍTULO XVII

O despertar na cidade

Nessa primeira noite que passou na casa do Marquês de Ville-d'Avray, Angélica


sorrhou com Poitiers, a bela cidade francesa em que passara a adolescência, pensionista das
ursulinas. Via a si mesma subindo pelas ruelas entrecortadas de escadas de madeira, de
caminhos cpbertos e que escalavam os flancos da colina acima do Clain, o rio tranquilq. De
longe via-se o rio colear pelas suas gargafitas, no coração de um campo azul-verde, suave,
ténue. Era o Pqitou, rasgado de caminhos fundos e gargantas profundas, rodeado de
florestas, recortado de charcos, sua província...
Angélica soube que tinha quinze ou dezesseis anos pela ansiedade e tristeza que lhe
pesavam sobre o coração.
Subia rumo à Igreja Notre-Dame-la-Grande. Ao entrar, admirou-se com a penumbra e o
silêncio, quando esperava o som dos órgãos e a iluminação dos círios. Desconcertada, quis
sair, mas de chofre viu-se entre os braços de um jovem pajem risonho, que a acariciava e
beijava com uma ávida canhestrice.
Despertou bruscamente.
Soergueu-se sobre um cotovelo. A suavidade dos lençóis, a maciez dos travesseiros, o
perfume de erva-cidreira ou de lavanda que impregnava os acolchoados recobertos de
tecidos ornamentados lembraram-lhe que se encontrava na alcova de um leito com
baldaquino, alçado por três degraus, fechado por cortinas de seda franjada com borlas
douradas, e que esse leito se encontrava numa sólida casa de pedra, erguida entre outras
casas, e que toda essa realidade que lhe voltava em pequenos detalhes significava que ela
estava em Quebec, Nova França.
Joffrey dormia a seu lado. Ela moveu-se para se aproximar dele, até que o calor que lhe
emanava do corpo imóvel viesse roçá-la sem que ela o tocasse. De olhos fechados,
respirou-lhe a vida. Sua presença junto a ela não devia ser estranha à perturbação que se lhe
insinuara até no sonho, e sem dúvida a confusão entre Quebec e Poitiers, nos limbos do
sono, era devida, à sua ascensão naquele dia em Quebec, coroada pelos grandiosos
desdobramentos da cerimónia religiosa sob as abóbadas da catedral.
A analogia detinha-se aí. Quebec, tão semelhante a tantas cidadezinhas da França, não
deixava de ser tocada por um sinal singular, erguida que estava à beira do Saint-Laurent.
Angélica aguçou o ouvido para captar para além das paredes o eco das extensões livres e
desertas do Novo Mundo.
O sonho que a agitara conferia uma inexprimível plenitude ao momento miraculoso que
estava vivendo.
Quando acordou completamente, os sinos repicavam à- toda em igrejas próximas ou
longínquas, e nos intervalos ouvia-se soar o toque da alvorada no Castelo Saint-Louis.
Joffrey estava em pé diante da janela. Já estava meio vestido, tendo enfiado o gibão e as
botas. A brancura da sua camisa de mil pregas, com enfeites de renda, contrastava com sua
pele morena.
O cintilar, através das vidraças, da primeira claridade do dia acentuava-lhe o perfil
enérgico, de nariz levemente aquilino e lábios cheios, que, mesmo quando ele estava
impassível, conservavam um vinco de suavidade e humor.
O vidro das janelas, embaçado por algumas bolhas de ar e imperfeições, apresentava o
ondeado brilhante de uma película de gelo sobre um lago, que multiplicava os reflexos vin-
dos de fora. Àquela hora, via-se tremular ali, como uma peônia de contornos imprecisos por
entre clarões de ouro, o rosa lavado do sol levante.
O Conde de Peyrac ergueu o trinco de ferro e abriu as venezianas. O ar frio penetrou no
aposento com uma luz mais viva. O quarto era tão pequeno, que da cama quase se podia ver
o que acontecia na rua, e em frente, para além do pomar, avistava-se o rio ao longe.
Emergindo de uma rede de brumas arroxeadas que se arrastavam pelo céu, o sol nascia
com dificuldade entre diferentes andares de nuvens violáceas que barravam o horizonte e
seu clarão rosado se apagava e voltava a acender à medida que a estrela ascendia. Aos
poucos, porém, cresceu para se espalhar e dissolver num céu purificado que adquiriu um
matiz de porcelana. :
O Saint-Laurent estava cor de absinto! Mal se distinguiam os contornos da grande ilha
de Orléans, que dividia o rio e a montanha. Somente mais perto "de Levis, desenhando-se
como uma língua de terra violeta em ferro de lança, ela avançava até diante de Quebec,
rasgando a superfície opalina das águas.
A norte divisava-se a bela curva da costa de Beaupré, assinalada de casas isoladas
dando para o rio, e de alguns povoados à volta de um campanário, que indicava o centro
das paróquias distribuídas ao longo daquela ribanceira muito próspera.
Angélica sonhou com ver muitas auroras daquela janela. Emergiu dentre as cobertas e,
depois de pôr uma roupa de uso íntimo, uma túnica de seda crua forrada, com gola e
punhos das mangas largas revestidos de pele, apoiou-se aos cotovelos na borda da cama,
examinando o mobiliário reunido naquele espaço exíguo. Havia um espelho florentino,
acima de uma penteadeira de nogueira marchetada, provida dos mais belos objetos
necessários à toalete'feminina — pentes, escova, de-sembaraçador de cabelo, uma panóplia
que vinha substituir seus objetos pessoais, perdidos na véspera.
A um canto, um oratório monumental com madeiramento de ébano incrustado de
pedras duras e miniaturas de esmalte, também em estilo florentino, servia igualmente de
pequena biblioteca. O leito de quatro colunas com o friso do baldaqui-no marcado com as
armas do marquês, a arca de cabeceira para guardar pertences, um console ao alcance da
mão, perto da cama mesmo, era por si só um pequeno quarto dentro do outro.
Angélica foi ao encontro do Conde de Peyrac diante da janela. Ele voltou-se e
sorriu-lhe. Ocorreu a ela que era a primeira vez, num tempo infinito, que se achava com ele
numa casa de cidade provida de todo o conforto e elegância devidos à posição deles.
Há quanto tempo? Quantos anos? Oh, meu Deus, desde Toulouse! Quinze anos? Vinte?
Não conseguia crer que isso finalmente acontecera.
Encerradas as perambulações, então? Nada mais de tetos incertos, navios estalejantes
impregnados de ar salgado, fortes de madeira perdidos nas florestas, ou praias selvagens,
onde espreitam a fome, o escorbuto e a morte violenta?
"Gostaria de ficar nesta casinha", pensou ela, "e ver o sol nascer assim todos os dias..."
Coma se compartilhasse do seu pensamento, Joffrey se pôs a falar do solar de
Montigny, posto à disposição deles.
— É uma bela residência, bem construída, bem mobiliada, mas aposto como você não
gosta da ideia de se instalar lá, por que foi preparada para receber sua inquietante rival... a
Duquesa de Maudribourg.
Sondava-a, olhando-a de soslaio, com ar zombeteiro.
 De fato, você pensou corretamente... Sei que você, Sr. de Peyrac, é insensível a esse
género de fraqueza.
 Realmente!
 Eu teria demasiado medo de ver-lhe a sombra maléfica a rondar por ali... Não
poderia deixar de pensar que Ambro-sina prepara sua vinda para Quebec, o que significa
que tinha, e certamente ainda tem, amigos aqui, cúmplices, embora o mais importante, o
Padre d'Orgeval, seu "amigo de infância, que a dirigia, tenha desaparecido... Mas há
outros... Quem são eles? Hão de revelar-se aos poucos e...
 ...e você se sentirá melhor nesta casinha... — concluiu Peyrac, passando-lhe o braço
com ternura — imagino... Foi feita para você... Sinto que era com isto que sonhava,
enquanto lutávamos tão duramente no ano passado, durante nosso inverno em Wapassu. E
bem mereceu estar em paz, viver ao seu bel-prazer e gozar de todas as amenidades de nossa
capital. Suportou desordem e confusão suficientes. Ora, a instalação de parte de nossa
comitiva no Castelo de Montigny pode transformá-lo em carãvançará militar. Nossos
oficiais se alojarão lá. Ali ficarão os doentes ou feridos de nossas tripulações e se
organizará uma pequena guarnição de defesa. No entanto, há grandes salões, onde
poderemos oferecer recepções. E reservo para nós um apartamento que por enquanto será o
meu posto de comando. Esta pequena casa, dominando a cidade, será sua. Destas alturas,
seu olhar verde a manterá sob controle. Seu espírito atirará seus laços e redes, para
colocá-la, sempre mais submissa, segundo sua sábia estratégia. Não é esse seu projeto, meu
belo. chefe de guerra?
Acariciou o rosto de Angélica.
— Mas não haverá guerra — prosseguiu. — A má sorte foi derrotada. Nossa estratégia
consistirá somente em organizarmos nossas diversões segundo nossos, gostos e, se é
preciso preparar o futuro, em fazermos amigos na Nova França, a fim de tranquilizar nossa
grande vizinha na América e também, talvez, um dia, o rei .da França, que a governa.
Ouvindo-o, Angélica sentia exaltar-se a sua força interior e a sua ânsia d« viver feliz.
O movimento, impetuoso do espírito de Joffrey passava para ela pelo que ambos tinham
de semelhante e de melhor: amavam a vida, gostavanvde realizar, de vencer, lutar pela
harmonia e pela beleza tia existência. Pouco a pouco eles se foram reconhecendo nesse
dorríímo.
As reticências de Angélica e o cuidado que tinha em ocultar os episódios da sua vida
passada, atitude que às vezes irritava o coração demasiado livre e desenvolto do
gentil-homem da Aquitânia, habituado a "obter a confiança dos corações femininos, haviam
cessado de erguer entre eles aquele obstáculo que por pouco não envenenara os primeiros
tempos que se seguiram ao seu difícil reencontro. Ambos admitiam que todo ser, homem ou
mulher, tem direito ao seu domínio secreto. Viam nisso o testemunho de uma riqueza
interior que satisfazia plenamente aos dois. E isso só tornava mais delicioso sentirem-se
próximos e tão reconhecidos um pelo outro.
Tudo isso se exprimiu no beijo que trocaram naquela manhã, e o momento foi de uma
perfeição imaculada.
Em seguida falaram das providências a tomar para organizarem da melhor maneira
possível, e rápido, a estada em Quebec.
Dissessem o que dissessem, não podiam esquivar-se com facilidade às obrigações de
que estavam incumbidos. Puseram-se a rir ao verem alongar-se a lista dos assuntos urgentes
a acertar.
— Vou pedir ao Governador Frontenac que convoque o
mais breve possível uma sessão extraordinária do Grande Conselho, a fim de podermos
debater nossa posição e determinar as providências referentes à nossa presença e à dos
nossos homens na cidade.
Angélica não esquecia os casos particulares. O que fazer, por exemplo, de Aristides e
de Juliana, e do inglês de Connecticut, Elias Kempton, que não demorariam a ser
considerados "indesejáveis" pelo tenente de polícia, embora estivessem a contragosto em
Quebec? E de Ademar, o desertor, que corria o risco de ser condenado ao pelourinho, se
não ao cavalete e à forca?
No entanto, a primeira coisa que tinha em mente era pedir uma audiência ao bispo. Por
intermédio dele, queria obter uma confrontação com a Madre Madalena, a ursulina
visionária cujas revelações contribuíram para que recaísse sobre ela a acusação de ser a
Diaba.
A ursulina devia declarar o quanto antes que Angélica não se assemelhava à mulher que
ela vira em sonhos.
Ah, claro que Angélica agora entendia os acontecimentos inesperados que Quebec lhes
reservava!
De início encarara aquela expedição à Nova França meramente como uma manobra
diplomática, prendendo-se quase unicamente à situação deles na América. Quebec, no
entanto, era uma pequena réplica da metrópole. O reino em miniatura, a quintessência da
corte e da administração real: o passado podia ser aquele gentil-homem na multidão que
lançara a frase, no momento em que Joffrey de Peyrac penetrava na praça com seus
estandartes: "Ora, no Mediterrâneo seu escudo de prata ficava sobre fundo vermelho..."
Ergueu-se e chamou Iolanda.
— Primeiro, ver o bispo. Mas depois tenho que ir agradecer àquela mulher encantadora
que tomou minha defesa ontem, na Cidade Baixa, e que se encarregou de cuidar de meu
gato, Janine Gonfarel. É passar da água ao vinho, bem sei, mas gostei muito dela, e hei de
conhecê-la de bom grado. Ville-d'Avray a tem em grande estima...
— Faz-me lembrar que preciso mandar distribuir, hoje mesmo, às senhoras mais
preeminentes da cidade os presentes trazidos para elas.

CAPÍTULO XVIII
Um milagre para Angélica

Era, então, a primeira manhã deles em Quebec.


De início, deixando que a casa despertasse, seguiram juntos por um caminho de terra
até o solar de Montigny, cujo telhado e as chaminés se avistavam por trás da colina.
Os soldados espanhóis de Peyrac e Yann Le Couénnec apresentaram-se para
acompanhá-los.
Conforme previra Joffrey de Peyrac, o solar e suas dependências apresentavam um ar
de acampamento muito animado, mas bem desordenado.
O conde distribuiu algumas ordens aos diferentes capitães e quartéis-mestres, depois
reencetaram a marcha, seguidos dos seus guardas, desta vez em pequeno número, em
comparação à véspera.
Todas as ruas de Quebec conduziam à catedral.
Do solar de Montigny, indo pelo caminho chamado de Sainte-Foy, Angélica, o marido
e escolta desembocaram na praça no momento em que se encerrava o grande ofício do meio
da manhã.
A chegada deles, com menos aparato do que na véspera, não deixou de causar sensação
novamente.
Foram profusamente saudados, e várias damas os abordaram. A que tomou a iniciativa
foi a Sra. de Mercourville. Angélica notara, no dia anterior, aquela mulher muito bonita,
cheia de disposição. Era alta, elegante, sólida, de aparência fresca. Viera ouvir a missa
acompanhada das duas filhas mais velhas, de catorze e quinze anos.
Depois de cumprimentar cada uma das senhoras e dirigir uma palavra amável a cada
uma, o Sr. de Peyrac retirou-se. O governador esperava-o no Castelo Saint-Louis.
Afastou-se com a escolta de espanhóis e imediatamente o círculo se fechou em torno de
Angélica, aumentando de instante a instante, fosse pela aproximação de passantes que
atravessavam a praça, fosse pelos fiéis deixando a igreja, a quçrrf o ajuntamento atraía.
De todos os curiosos e curiosas, a Sra. de Mercourville era a mais afável. Indagou sobre
a saúde de Angélica, sobre o repouso, se estava bem instalada, garantiu-lhe que estava à
sua inteira disposição para tudo o que pudesse necessitar e para tornar-lhe agradável a vida
em Quebec.
Ofereceu-se para encontrar-lhe uma criada para o trabalho pesado. Enquanto isso lhe
enviaria o seu escravo índio, um panis que comprara por quinze fibras cunhadas em Tours a
um "viajante" que retornava do forte de Michillimakihac e a quem fizera batizan Mas não
garantia a excelência dos serviços dele, pois era bem lunático e preguiçoso.
Por outro-lado, Se a Sra. de Peyrac desejasse percorrer a cidade, a Sra.-de Mercourville
lhe enviaria, sua cadeirinha e os seus criados. Também estava pronta a aconselhá-la acerca
da escolha de provisões para o inverno. Logo chegaria o frio. Já não era tempo de se
armazenarem raízes, cenouras, nabos, etc, e guardá-los ao abrigo, do gelo, já que a rigor as
verduras podiam ficar do lado de fora? Pois o inverno era longo no Canadá, afirmava ela.
Até em Quebec chegava a haver fome, quando a primavera se atrasava. As senhoras ao
redor confirmaram isso, cada uma trazendo o exemplo de uma estação em que fora
obrigada a cozinhar pedaços de couro para encorpar a sopa e misturar serragem de madeira
ao último punhado de farinha, a fim de obter uma ração suficiente de pão cotidiano.
Angélica tentou explicar que já passara um inverno em terra americana e que possuía
algum conhecimento de todos esses desconfortos, mas foi em vão. As damas coloniais,
todas cheias de experiência, gostavam de iniciar as recém-chegadas, que com frequência
embarcavam cóm uma ingénua confiança para aquele fim de mundo.
Angélica teve uma enorme dificuldade em interromper os relatos de fome e as inúmeras
receitas que lhe davam para limpar, secar e prover da melhor maneira possível uma
despensa familiar.
Já que a Sra. de Mercourville desejava prestar-lhe um favor, disse Angélica, era com
reconhecimento que se dirigiria a ela e aceitaria suas sugestões quanto às medidas a adotar
para obter o mais breve possível uma audiência privada com Monsenhor de Lavai. A quem
devia dirigir-se?
A Sra. de Mercourville disse que falaria com o Sr. de Ber-nières, diretor do seminário.
As senhoras logo se puseram a preparar para Angélica uma entrevista com o onipotente
prelado, Monsenhor Francisco de Montmorency-Laval, bispo de Petréia, vigário apostólico
da Nova França, uma entrevista que elas não consideravam todas sob o mesmo ponto de
vista. Algumas traziam o bispo nas nuvens, outras pareciam francamente detestá-lo.
Angélica estava disposta a ouvir com atenção essas opiniões contraditórias, quando
aconteceu algo. Irromperam gritos de alegria, agudos como os de um pássaro, e uma
criança minúscula, vestida de branco e vindo do alto da praça, pareceu voar ao encontro de
Angélica.
Era tão pequena e leve, que seus pezinhos mal roçavam os calhaus arredondados do
calçamento.
O gorro, a camisola e o avental de renda que usava inflavam-se ao vento, aumentando a
impressão de avezinha ligeira, de asas abertas, que ela despertava.
Era mesmo na direção de Angélica que ela corria, rindo de todo o coração, de braços
estendidos, e Angélica não teve alternativa senão inclinar-se e apanhá-la no vôo.
— Ermelina! — exclamou a Sra. de Mercourville, reconhe cendo sua filha caçula.
O grupo estava pasmado. Depois houve exclamações diversas.
 Ela anda! Ela anda!
 Pedrina a deixou escapar!
 Mas ainda ontem ""não andava!
 Não somente ela anda — disse, solene, o Sr. de Longchamp —, como corre.
Angélica, com a criança no colo, procurava na bolsa uma bala ou guloseima de que
sempre estava munida, para Hono-rina ou Querubim.
 Não lhe dê nada! — interveio a Sra. de Mercourville. — gla é muito gulosa!
 Mas é tão encantadora!
Não entendia por que a vinda da menininha suscitava tamanha emoção. Viram chegar a
ama negra, correndo e chorando, de mãos postas ,e gritando:
— Milagre! Milagre!
Caiu de joelhos diante de Angélica e beijou-lhe a barra do vestido.
— Entenda o que está acontecendo, cara senhora — explicou a Sra. Gualberto de La
Melloise, dando tapinhas nas próprias faces inundadas de lágrimas emocionadas. — Esta
criança de três anos não andava mal se sentava no berço, e de repente, hoje.
A criaturinha, tão leve e alegre, instalada no braço de Angélica, roía suas pastilhas
cornar de triunfo, como que encantada com a peça-que acabava de pregar à família. Depois
Angélica entregou-a a uma de- suas irmãs mais velhas, que a devolveu à ama. As pessoas
riam e choravam à sua volta. Correu o rumor:
— A pequena Ermelina foi curada por milagre!
No entanto, embora fosse a mais interessada no evento, a Sra. de Mercourville não
perdera tempo. Era uma mulher com a cabeça no lugar e, na qualidade de crioula, habituada
a enfrentar todos os acasos da vida colonial, tanto os devastadores furacões que conhecera
nas ilhas durante a infância quanto as fomes e os iroqueses do Canadá. Deixara para mais
tarde as ações de graça que o céu merecia pela cura de sua filha e já estava de volta
apresentando à Sra. de Peyrac o Sr. de Berniè-res, diretor do seminário, a quem mandara
transmitir o pedido de Angélica. Monsenhor de Lavai propunha recebê-la em audiência
privada naquela mesma tarde ou na manhã seguinte, a partir das dez horas.
Impressionada com a rapidez com que esse tipo de assunto se concluía naquele país,
Angélica refletiu e optou pela manhã seguinte.
Por outro lado, aceitou de bom grado, para aquela tarde, o oferecimento que a Sra. de
Mercourville lhe fizera da cadeirinha. Assim, pensou, poderia descer naquele mesmo dia
até a Cidade Baixa, para buscar o gato e agradecer à Sra. Gonfarel.

CAPÍTULO XIX

A verdadeira identidade de Janine Gonfarel

Os dois valetes da Sra. de Mercourville, carregando a cadeirinha em que Angélica


tomara assento, encetavam, não sem precauções, a descida pela abrupta rampa que levava
ao porto.
A medida que desciam, mais densa e vivaz se tornava a multidão.
A Cidade Baixa era aquele grande amontoado de casas altas e estreitas, apertadas umas
contra as outras, comprimidas junto ao flanco do rochedo, metidas na água e cujas
chaminés monumentais, prolongadas pelos seus penachos de fumaça, formavam uma coroa.
Pelos interstícios de uma cortininha, Angélica olhava com curiosidade.
Ainda subsistia um pouco da calorosa animação que havia na Cidade Baixa por ocasião
da partida dos últimos navios para a Europa e que a chegada da frota de Peyrac contribuíra
para prolongar.
Havia exploradores de bosques, com a fortuna feita, que ainda não haviam gastado tudo
em compras suntuosas ou em transações impudentes. Circulavam por ali nas suas roupas de
peles franjadas, o fuzil ao braço, entretendo-se com frioleiras mas já se entediando,
entrando no alfaiate para encomendar um traje de categoria, no serralheiro para escolher
machados comerciáveis ou quinquilharias. Selvagens que ainda não tinham bebido toda a
aguardente das suas transações demoravam-se pela cidade de armadilhas e seduções
insólitas. Seu andar lento e sonhador contrastava com a presteza que reinava no porto e nas
ruas contíguas.
A aproximação do inverno ocasionava trabalhos de serraria. Trazia-se a madeira para os
pátios, que era descarregada e empilhada ali, e por toda parte se ouvia o ruído das achas
atiradas às filhas, viam-se crianças erguendo contra as casas, sob o telheiro das galerias, o
mosaico bem-disposto de um depósito de lenha.
Angélica percebeu o geômetra Fallières discutindo com o proprietário de uma vasta
casa prolongada por um pátio e um estábulo. Um tabelião-escrivão o acompanhava.
Tratava-se de aplicar um regulamento que fixava a medida das achas, a altura e a largura
das cordas de madeira, frequentemente fantasiosas...
Os cavalos de uma carreta, cujas rodas estavam calçadas na rampa por grandes pedras,
esperavam pacientemente diante da entrada do pátio. Eram cavalos mansos e tranquilos,
pesados, habituados a puxar cargas. Dizia-se que eram eles que puxavam o arado na
primavera, pois não havia animal de tiro para a lavoura na Nova França, e ver cavalos
assim numerosos era um dos grandes prodígios do Canadá, já que descendiam dos doze
enviados pelo rei da França dez anos antes.
Em Quebec, as crianças, de tamancos, turbulentas e de cara lambuzada, podiam disputar
em paz um pião de madeira na ponta de um pau, o jogo indígena favorito, brincar com os
carrinhos puxados por cães ou deslizar pela encosta da montanha num trenó, quando a neve
chegasse.
Angélica avistou crianças de dez a doze anos que fumavam cachimbo com a segurança
de tarimbados exploradores de bosques. Mas todo mundo fumava, nobres e camponeses,
mercadores e aventureiros, até algumas mulheres, sentadas à soleira de suas portas. Era
uma necessidade e um prazer, enraizado nos costumes pela luta contra os pernilongos no
verão, pela duração dos serões de inverno, pela frequência dos contatos com os
peles-vermelhas, que não saberiam fazer quase nada sem, antes, puxar uma baforada do
cachimbo e depois passá-lo generosamente de boca em boca.
Plantava-se fumo em cada esquina, na soleira de cada casa, e o seu odor impregnava os
mínimos recantos das ruelas.
Esse odor misturava-se ao do estrume, ao do alcatrão quente quando se chegava mais
perto do porto, das aves assadas, quando se passava pelos arredores dos albergues, das
peles e vinhos nas proximidades dos entrepostos, e do fumeiro perto das praias que as
marés curtas do rio franjeavam de algas. Nesses lugares, ambíguos andarilhos instalavam as
suas fogueiras de ervas e espinhos, mantendo noite e dia o incenso de uma espessa fumaça
que não parava de inchar e volutear em torno de uma vara posta de través e carregada de
enfiadas de enguias.
Porcos vagavam aqui e ali, trotando nas patinhas e detendo-se para observar, com
interesse, a passagem das tripulações. Aparentemente tudo os encantava, e mostravam-se
indiferentes aos latidos dos cães, aos processos suscitados pelas suas depredações e, mais
ainda, pelos inúmeros regulamentos policiais de que eles, periodicamente, eram objeto.
Angélica avançava lentamente por entre a multidão heterogénea e multicolorida, onde
esvoaçavam as coifas brancas, cortadas e engomadas de modos variados, da maioria das
mulheres, muitas das quais trouxeram as peculiaridades do toucado da província natal:
Normandia, Bretanha, Perche, Champagne, Aunis, Saintonge...
Os homens usavam o tapabor, grande chapéu rural desabado, ou gorros de cor e
enfeites diversos.
Finalmente, via-os dentro dos seus próprios muros, aqueles canadenses que ela
conhecera no ano anterior como guerreiros loucos de audácia, tanto em Katarunk quanto na
Nova Inglaterra.
Via-os agora entre suas mulheres e filhos. Mas quase não pareciam diferentes.
Revelavam-se risonhos, com certa violência contida nos gestos e na atitude, uma centelha
no fundo dos olhos que não tinha nada de comum nem de familiar. Reconhecia-os como
franceses, mas franceses de outro lugar, e isso os tornava mais próximos do que eles
próprios eram — Peyrac, ela e sua gente —, que também tinham conhecido o perigo do
iroquês, o inverno, a ameaça do escorbuto e da fome.
No centro de uma praça que atravessaram, ela percebeu o busto de bronze de Sua
Majestade, o rei da França, Luís XIV.
Janine Gonfarel morava perto da Rue Sous-le-Fort, e seu albergue acolhedor, com
anexos, galerias de madeira cobertas, a taberna e o restaurante, onde se comia bem,
seguiam a curva da enseada do fundo da baía, onde estavam atracados barcos e navios.
Não se podia estar mais bem situado.
Acima do patamar da entrada principal, os ramos verdes de abeto, obrigatórios para
designar os estabelecimentos daquele género, estavam acompanhados de uma magnífica
tabuleta de ferro forjado, inteiramente dourada, onde se lia AO NAVIO DE FRANÇA.
O conjunto era opulento, inspirava confiança.
No acotovelamento da véspera, Angélica não notara aquelas belas moradas perante as
quais passara o cortejo.
Ao pousar o pé no chão, teve um instante de dúvida. Era ali mesmo que morava Janine
Gonfarel? Tinham-na informado corretamente, dizendo-lhe que fora a dona da taberna Ao
Navio de França que recolhera seu gato? Mas logo avistou o garoto gorducho que, na
véspera, fora levar-lhe notícias do animal.
Quando adentrou a sala, obscurecida pela fumaça dos cachimbos, o tumulto cessou, os
copinhos de dados dos jogadores de gamão e as taças dos bebedores pararam no ar. O
silêncio foi tal, que o crepitar de uma grande acha no braseiro da lareira estalou como um
tiro.
Angélica procurava com os olhos a proprietária e não a distinguia na semi-obscuridade
enevoada, particular às tabernas mesmo em pleno dia. Tinha esperado que o gato lhe
pulasse ao colo. Mas nada se mexia. Arrependeu-se por não haver trazido pelo menos um
dos seus pajens para introduzi-la ali. Os carregadores da Sra. de Mercourville tinham ficado
lá fora. Não tinham o direito de entrar numa tasca sem uma autorização assinada pelo amo.
Cumprida, então, a tarefa que lhes fora determinada, agacharam-se encostados à parede,
para tirar um cochilo. Não eram serviçais de uma grande casa, e careciam de boas maneiras.
Como que nascido da fumaça nebulosa do tabaco, transformada em aparição humana, o
grande chefe Piksarett apareceu de repente ao lado de Angélica, com todas as suas plumas e
medalhas no birote oleado, as tranças de honra metidas em patas de raposa, e a manta
regiamente atirada sobre o soberbo traje de pano vermelho, sutacheado de dourados, que
ele preferia usar quando se encontrava em Quebec e que na realidade era o casaco de um
oficial inglês, capturado ao inimigo. Disse ele, solene:
— Não tema nada e avance sem medo, minha cativa. Você aqui está entre amigos.
Conheço-os e respondo por eles, exceto por alguns que são maus cristãos, mas meu
machado e meu tacape os abaterão antes que os seus maus pensamentos sequer cheguem a
tomar forma em suas cabeças. Vá! Velo por você!
A porta abriu-se ao fundo da sala, e Angélica viu a proprietária, que lhe vinha ao
encontro com um largo sorriso. Devia ter-se apressado para se arrumar da melhor maneira
possível, pois o edifício de renda, sustentado por barbatanas de baleia para ficar mais rijo,
que lhe servia de toucado, estava um pouco de banda no alto da cabeça abundantemente
cacheada. Pesados brincos de coral, em forma de pêra, emolduravam-lhe o rosto redondo.
A gola de renda não lhe assentava, e as três saias sobrepostas, segundo os critérios da
moda, dobravam-lhe o volume. Sobre o peito abundante, as jóias, muito bonitas, pareciam
antes oferecidas numa bandeja à admiração dos apreciadores do que destinadas a realçar a
elegância de sua dona. Numa mão trazia um lenço de renda; na outra, um soberbo leque
espanhol, aberto com tanta falta de jeito, que levava quem a visse a perguntar-se o que ela
tencionava fazer com ele. Mas Angélica, que a achava agradável, pensou que a estalajadeira
bem valia todas as infantas da Espanha e mesmo a rainha da França, que era tão medíocre e
rígida em sua apresentação e que ainda por cima carecia totalmente de graciosidade.
 Senhora, quis vir agradecer-lhe sem demora.
 A honra é toda minha, marquesa! — exclamou a Sra. Gonfarel na sua voz arrastada e
cordial, depois de executar diante de Angélica um pequeno mergulho que pretendia ser uma
reverência e que por pouco não a fez perder o equilíbrio. — Se quiser acompanhar-me aos
meus apartamentos, marquesa...
Indicou o caminho da porta por onde surgira. A medida que foram avançando rumo ao
"apartamento" da dona da taberna Ao Navio de França, saborosos eflúvios da cozinha
faziam palpitar as narinas gulosas de'Angélica.
 Pelo cheiro, seu guisado está excelente, senhora — não pôde deixar de comentar ao
penetrar, na companhia da hoteleira, no aposento vizinho.
 Pois eu cá não tenho dúvida disso! — exclamou a outra, alegremente.
Fechou a porta com precauções e ares de conspiradora. O cómodo era vasto e
agradável, bem mobiliado. A esquerda, abria-se uma lareira, onde, sobre um leito de brasas,
estava pousado um grande caldeirão. Janine Confarel foi levantar-Ihe a tampa com
cuidados misteriosos.
— Olhe! Preparei pés de porco para você! Não é o que prefere?
Voltava ao tratamento informal, conforme fizera na véspera. Sentia-se que era uma
pessoa original e espontânea, incapaz de se embaraçar por muito tempo com maneiras
cerimoniosas.
Angélica, aliás, sentia-se bem naquele aposento, na companhia daquela mulher. Não
saberia explicar por quê. Mas desde que chegara, desde antes até... na verdade... talvez há
anos, não experimentara uma impressão tão cordial de descontra-ção e segurança. Só a
aborrecia não ver o gato, e procurava-o com os olhos.
—Não é o que você prefere? — repetiu a taberneira.
Por polidez, Angélica inclinou-se sobre o cozido que borbulhava suavemente e tinha um
aspecto dos mais apetitosos.
 Com certeza! Sempre fui louca por pés de porco...
 Ah, disso eu sei!
Surpresa com a entonação, Angélica levantou a cabeça. A expressão da anfitriã mudara.
Houvera em sua voz como que uma mescla de triunfo e aspereza, e o rosto pareceu hostil a
Angélica.
Perturbada, Angélica sentiu vacilar sua confiança, e, assim como na véspera, durante o
banho, foi presa de um pânico irracional.
Lançou um olhar furtivo e angustiado para o caldeirão. O medo a dominava. Aqueles
sorrisos matreiros, aquela solicitude estariam escondendo uma maldade dissimulada?
Teriam dado um mau fim ao seu gato? Por um átimo esteve pronta a ver surgir o garoto
gorducho, dando risadinhas e cantarolando:
"Foi a Madre Michel
Que perdeu o seu gato..."

No entanto, nas feições da Sra. Gonfarel lia-se a decepção mais sombria. As


sobrancelhas e os cantos da boca arriavam-se-lhe, dando-lhe uma expressão de mágoa, e o
lábio inferior pôs-se-lhe a tremer, como o de um nené a ponto de rebentar no choro.
— Então, é verdade! Não me reconheceu! — bradou de repente.
E como Angélica permanecesse calada, a amargura da comadre pareceu atingir o auge.
— Desci mesmo ladeira abaixo — lamentou-se. — Devo mesmo estar cheia de rugas,
com as bochechas caídas, e toda marcada pelos anos para que me aconteça uma destas...
Cheguei ao ponto mais baixo... para que ela não me reconheça, a mim, a Polaca, sua
companheira no Pátio dos Milagres? Ah, será sempre a mesma!... Uma destruidora de
corações, é isso que você será sempre, Marquesa dos Anjos!

CAPITULO XX

Na taberna Ao Navio de França

0 Oh, minha Polaca! — disse Angélica, passando o braço sobre os ombros macios da
corpulenta mulher. — Jamais imaginei que um dia a reveria.
 E eu! Imagina que eu a acreditava viva? Depois do que lhe aconteceu na feira de
Saint-Germain... Cada vez que eu falava da Marquesa dos Anjos, derramava lágrimas. Uma
moça tão linda, dizia eu... os beleguins deram cabo dela.
 E reencontro-a em Quebec! E senhora da maior estalagem da cidade. Famosa,
solicitada, estimada.
 E você então! Deixo-a descalça, por assim dizer levada para a prisão pelos arqueiros,
e quando a revejo é quase a rainha da França que me surge pela frente!
 Em Quebec! Quem teria imaginado! E uma loucura!
 Não! E lógico! Se não conseguiram nos matar, para onde quer que se vá senão para o
fim do mundo? Nesta cidade há de tudo...
Fez um gesto de mão como se prestasse um juramento.
— De tudo! Acredite-me. Mas, venha, preparei-lhe pés de porco. Você gostava disso
na Tour de Nesle, no tempo em que disputávamos os favores daquele patife do Nicolau
Calembredaine.
Sentaram-se frente a frente diante da lareira e, depois de degustarem com a necessária
circunspecção a obra-prima culinária da Sra. Gonfarel, esta se pôs a relatar por que atalhos
uma pobre coitada como ela acabara vindo dar na Nova França.
Deu uma piscadela.
— Despacharam-me como rapariga de colonos para as ilhas.
Mas, no caminho, mudei de direção. O Canadá era mais honroso, no final das contas.
Abaixou a voz, para acrescentar:
— Minha sorte foi conhecer Gonfarel no porto em que iam nos embarcar.
Apaixonou-se por mim, e, como vinha para o Canadá, deu um jeito para que eu viesse com
ele... Minha menina! Temos muitas coisas a nos contar. Não havemos de acabar nunca. A
verdade é que agora estou rica, tenho a cidade nas mãos e Gonfarel também. Todo ano
ampliamos um pouco nosso comércio e nossas construções. Uma loja aqui, um entreposto
ali, um andar a mais. E olhe que agora mesmo estou mandando construir uma capela ou um
oratório, como chamam por aqui. Por que não? Sou uma criatura de Deus como as outras,
se me dão licença esses devotos todos. Tenho o direito de honrar meu Senhor com meus
escudos, se me dá na telha. Venha ver, vai ficar bonito.
Levantou-se, mas, a caminho, deteve-se para pegar num guarda-louça um jarro de grés
que continha uma aguardente irrepreensível, destinada a "fazer esquecer tudo".
Trouxe Angélica de volta para junto da lareira e generosamente encheu dois copos de
estanho.
— Pode ter certeza de que alguns vão se escandalizar com meu oratório. Porque sabem
por aí que minha casa não é sempre das mais virtuosas. Mas diga-me qual é a casa que é!
Isso não impede aos outros de construir igrejas e oratórios. Em todas as cidades do mundo,
os bordéis não estão sempre na vizinhança das catedrais? Isso, acredite-me, foi planejado
assim e tem os seus motivos. Só faço seguir o exemplo... Lembra? Fiz das minhas atrás de
Notre-Dame de Paris! Não tivesse havido o caso da feira de Saint-Germain, que nos
destruiu o trabalho... Paciência. Passado é passado. Pelo menos posso dizer a mim mesma
que vivi muito. Não perdi meu tempo. Agora é menos divertido, mas também tem o seu
sabor. Depois, gosto do frio, lembra-me a infância na Auvergne.
Calou-se, com os cotovelos apoiados nos joelhos, pensativa.
— Não, estou enganada. Não foi na feira de Saint-Germain que a vi pela última vez.
Foi depois que fomos procurar seu garoto, o pequenino, você sabe, Cantor, que os egípcios
tinham raptado... Sim foi bem assim, eu a vi de cabelo cortado. Portanto, foi depois da
confusão na feira de Saint-Germain, depois que você passou pela tesoura dos esbirros...
Lembra?
 Lembro.
 Vi o seu Cantor ontem. Está bonito, belo como um deus... um deus grego. Foi uma
sorte a gente ter encontrado perto de Charenton aqueles ciganos que estavam levando o seu
garoto. Aquela corrida debaixo de chuva! Lembra? Ah, não nos importávamos de galopar
naquele tempo... Hoje eu não poderia... Brindemos! Seu Cantor está aí, salvo de todos
aqueles imbecis do diabo que queriam nossa morte, nós, pobres moças miseráveis. Deus
abençoe o Canadá! E também eu tenho um belo filho. Menos bonito do que o seu, mas...
 Ele é magnífico, eu o vi. Aparenta uns doze anos.
 E só tem nove! Também, o pai é um homenzarrão! Gon-farel não está aqui hoje, foi
buscar queijos na ilha de Orléans. Há de conhecer o meu homem. Foi o tamanho dele que o
salvou e que lhe permitiu vir para o Canadá. Foi escolhido como carrasco...
Janine Gonfarel baixou a voz.
 Já é coisa esquecida. Mas, você sabe, eu não renegaria a sorte, venha ela de onde
vier. Com a sorte, há que ser franco. Esses senhores da Companhia das índias Ocidentais
não achavam um executor de penas capitais para a colónia. Todo mundo se recusava. Ser
carrasco no Canadá não tentava a ninguém. Então, quando havia uma condenação por aqui,
eram obrigados a se arranjar com uns fracotes que não tinham força nem para apertar um
borzeguim, que dirá erguer um machado ou puxar a corda da forca. O que você quer,
palerma? — gritou ela, percebendo um servente da tasca que acabava de entrar. — Não vê
que estou conversando com uma dama da Cidade Alta?
 Patroa, tem dois sujeitos lá fora que dizem estar congelando.
 Sem dúvida são os criados da Sra. de Mercourville que me trouxeram na cadeirinha
— lembrou Angélica.
 Não se pode deixá-los entrar e servir-lhes bebida sem uma autorização escrita do
patrão deles.
 Pago eu e autorizo — sugeriu Angélica.
Mas, depois de discutirem, preferiu mandar de volta os carregadores e a cadeirinha, pois
não podia prever quando é que elas acabariam de desfiar o rosário das suas recordações.
A Sra. Gonfarel, enquanto isso, permanecia atenta ao bom andamento de seu
estabelecimento. Quando o empregado saiu, ela comunicou a Angélica que passariam ao
seu "posto de vigia", o que não as impediria de continuar conversando, comendo e
bebendo.
Sentaram-se num pequeno estrado, diante de uma parede onde havia duas portinholas,
como nos parlatórios de convento, que, ao serem abertas, permitiam que se observasse
através da grade o que acontecia no salão, sem que se fosse visto.
A Polaca conhecia todo o seu mundo. E àqueles que não conhecia, situava rapidamente
segundo a origem, com um faro infalível.
— Quanto você aposta que aqueles ali, no canto, são acadianos? Como é que eu sei
disso? Sinto que não são cá da terra, mas que também não vêm da Europa.
Acompanhando-lhe o olhar, Angélica de fato descobriu, no fundo da sala, isolados e
jogando dados com um ar carrancudo, o Barão de Vauvenart, Grand Bois e um dos irmãos
de Iolanda, filho de Marcelina, Telésforo, que viera com eles. Perguntou-se se o quarto não
seria um dos irmãos Défour, do fundo da baía Francesa.
— Esses acadianos são todos um pouco piratas — comentava a dona da taberna Ao
Navio de França. — Todos comerciam com os ingleses, bem protegidos nas suas tocas na
costa, lá no sul... Depois, você está vendo aqueles de gorro azul, são gente de Ville-Marie,
de Montreal, como dizem agora. Uns espertalhões que se gabam de só terem Deus e a
Virgem Maria como senhores. Entre os seus santos e os seus mercadores, acredite-me, eles
não têm de que se queixar. Vieram a Quebec para a partida dos últimos navios. Hão de
partir em breve, antes que o rio congele.
Angélica sorria de ver a Polaca adotar com tanto entusiasmo as querelas do país.
 E aquele ali naquele canto? — indagou, apontando um indivíduo encolhido perto da
lareira e que bebia, solitário.
 Ah, aquele é o Velhaco Vermelho.
— Que apelido feio! — observou Angélica com uma careta, não podendo conter o
arrepio, pois na linguagem popular, Velhaco Vermelho às vezes designava o Diabo.
A Polaca baixou a voz.
 Foi ele que viu no céu as canoas da chasse-galerie. Um pouco antes da chegada dos
seus navios.
 Não teria sido ele quem atirou uma pedra no meu gato?
 E possível. Isto aqui é cheio de feiticeiros e magos. Esse mora na falésia acima das
casas da Rue Sous-le-Fort. Mas os melhores feiticeiros estão na ilha de Orléans. Tenho uma
amiga feiticeira que me ensina todo tipo de coisa. Por isso, fico feliz de que você tenha
vindo numa sexta-feira, o dia de Vénus, bom para a amizade.
 Como você está bem instruída, minha Polaca!
 Eu me iniciei — disse a Polaca, toda cheia de si. Pegou um livro das prateleiras de
uma estante.
 Olhe só isto... É instrutivo.
 Você tem livros?
 Claro! Todo mundo tem livros aqui.
 Aprendeu a ler, Polaca!
 O jesuíta me ensinou. Vê por que devo dedicação àquele homem? Mas o que tem
mais livros e alfarrábios é o Velhaco Vermelho. Entende de magia, esse feiticeiro, e me dá
dentes de lobo e ossos de coruja para conjurar a má sorte. No Canadá a gente precisa de
proteção... Você pode acreditar em mim: talismãs ou medalhas, contra o Diabo ou contra a
polícia, nunca são demais por aqui!
 Como é a polícia no Canadá?
 Importuna. Intrigante. Ora, como em todo lugar!
O tenente de polícia chamava-se Sr. Garreau d'Entremont. A Polaca chamava-o de
Resmungão. Não é a mais bem-humorada das criaturas, diz ela, mas não é mau homem.
— E um homem de princípios. Essa espécie, você sabe, a gente não consegue
impressionar nem conquistar com um sorriso ou um presente. Se você não tiver nada a se
censurar, irá tudo bem. Caso contrário, ele se põe na sua cola e não lhe larga. No entanto, o
mais perigoso é Natal Tardieu de La Vaudière, o procurador régio. Você deve tê-lo notado,
ontem, entre "os poderosos". Um alto, cabelo crespo, belo rapaz, ar vaidoso.
 Aquele rapaz? Parece simpático.
 Desconfie da simpatia dele! Você aprenderá a conhecê-lo. Uma verdadeira peste!
Puxou o banco mais uma vez e logo -chamou a atenção de Angélica com um gesto
veemente.
— Oh, olhe quem vem aí! Gente elegante!
Um grupo de cavalheiros entrava com soberbos ares de conquistadores cujo efeito se
perdia já na soleira da porta, afogado no nevoeiro de tabaco.
À testa deles vinha o Sr. de Bardagne.
 Não é o emissário do rei, que recebemos ontem, com você? — cochichou a Polaca,
que a emoção tornara sóbria. — Parece que está incumbido de uma missão da mais alta
importância, alguma coisa como a declaração de guerra aos ingleses ou acabar com os
fortes dos Grandes Lagos ou proibir a venda do castor e mandar todo mundo de volta,
porque vai haver guerra com a Espanha e a Holanda. Enfim, dizem que até o Sr. de
Frontenac terá que fazer o que ele lhe disser.
 De fato, ele recebeu grandes poderes do rei, mas não há motivo de inquietação por
isso. É um homem sensato. Eu o conheço.
 Seria de admirar se não o conhecesse — casquinou a Polaca. — E o que é que pode
ter trazido à minha casa, uma taberna na Cidade Baixa, esse grão-senhor? Parece que está à
procura de alguém.
Angélica conteve um suspiro.
Bem via que Nicolau de Bardagne, em pé entre os companheiros que já se tinham
sentado à volta de uma mesa, inspe-cionava a sala em todos os recantos. Havia em suas
feições algo daquela expressão tensa e dramática que assumiam quando Angélica estava em
jogo. Deviam ter-lhe dito que ela se encontrava na taberna Ao Navio de França.
A Polaca teve um pressentimento.
 Ora! Deve ser a você que ele procura!
 Receio que sim.
 Quando eu lhe dizia! Ah, você não mudou, Marquesa dos Anjos!
A discussão a propósito do sucesso de Angélica junto aos homens punha-a de humor
melancólico.
A taberneira fechou bruscamente a portinhola e voltou a sentar-se no estrado.
 Onde está meu gato? — perguntou Angélica, lembrando-se do motivo que a levara
ali.
 E eu é que sei! — tornou a Polaca, irritada. — Está onde tem vontade de estar!....
Como você, o malandrinho! Tudo o que posso dizer-lhe é que não está no meu caldeirão,
como você quase desconfiou que eu tivesse feito... Bem vi há pouco que você pensava
nisso. Por quem me toma? É bem de você isso! Sempre foi desconfiada, ah, sim!
 Perdoe-me, Polaca — disse Angélica, esforçando-se por ser conciliadora. — É a
vida que nos faz assim, desferindo-nos tantos golpes.
 Por que não deixaria seu gato em minha casa? Gosto dele. O que quer fazer com ele
na Cidade Alta? Aqui no porto, camundongos e ratos é o que não falta, com os navios e os
entrepostos.
 Não, tenho vínculos com esse gato que não posso romper.
 É muita sorte minha, mesmo, sempre gostar daquilo de que você gosta e que,
naturalmente, acaba escolhendo a você! Já na Tour de Nesle você me roubou Nicolau.
Antes de você chegar ele era meu amante e eu o prendia, bem. Mas assim que a trouxe,
compreendi. E era apenas o começo. Sempre a mesma coisa.
Na sua cólera, fechou com um gesto seco o leque e atirou-o ao fogo. Essa execução
pareceu acalmá-la. Ficou a vê-lo consumir-se com ar satisfeito.
Angélica ria, reconhecendo-a, como outrora, impulsiva e violenta sob a indumentária de
taberneira respeitável em vias de mandar construir um oratório.
Violentas batidas à porta fizeram a Sra. Gonfarel levantar-se de um pulo.
 Quem vem lá?
 O corpo da guarda!
Dissesse o que dissesse, a velha Polaca não estava tão liberta quanto supunha. Em vão
fazia-se cercar de belos móveis, de objetos de valor e de bolsas bem-fornidas: há coisas que
não se podem extirpar quando estão tecidas na trama da vida, entre outras, o medo ao corpo
da guarda. Ela correu até a janela para dar uma olhada lá fora.
— Meu Deus! — exclamou. — Os arqueiros! Bem que lhe disse!
Mas Angélica reconheceu na praça, diante da taberna, o Tenente de Barssempuy,
acompanhado de três homens do Goulds-boro, portando armas, é verdade, mas que não
pareciam animados de más intenções. Pelo contrário: Barssempuy exibia um sorriso
agradável. Era uma delegação oficial, e Angélica não teve dúvidas quanto ao motivo que os
trazia ali.
 Deixe-os entrar sem receio. São enviados de meu marido. Devem estar trazendo-lhe
um presente da parte dele...
 Para mim? — fez a Polaca, quase assustada.
 Há um para cada uma das senhoras mais importantes da cidade.
 Entre — gritou a Polaca ao rapaz que tamborilava no batente da porta novamente.
 Patroa, está aí um gentil-homem que pede para vê-la pessoalmente, da parte do Sr.
Conde de Peyrac!...
 Quantas vezes já não lhe disse, palerma, que numa residência de gente bem não se
bate assim na porta, só se arranha, está ouvindo, arranha!
Angélica, não querendo ser. vista por Nicolau de Bardagne, não a acompanhou até a
sala, para onde a Sra. Gonfarel se dirigiu para receber Barssempuy.
Retornou pouco depois, desnorteada, trazendo, deitado sobre as duas mãos, um cofrinho
de veludo vermelho, que tinha no meio, incrustado em ouro, o monograma do cordeiro
pascal. A tampa levantada revelou um relicário de ouro, no centro do qual, numa custódia
de vidro, repousava uma pastilha de cera. Essas pastilhas eram tidas como de grande valor
como objeto sagrado de proteção, pois eram moldadas e bentas pelas mãos do próprio papa,
em Roma, todos os anos, durante a missa pascal.
 Um ágnus-dei — exclamou a Polaca em voz abafada. — Como foi que ele pôde
adivinhar que isto era o meu sonho?
 Ele adivinha tudo.
 Aquele cicatrizado! — suspirou a Polaca. — Que homem!
Caiu de joelhos, ao mesmo tempo pelo efeito da emoção e pelo respeito diante do
piedoso talismã papal.
 Mas então ele não é o Diabo! Escute aqui, Marquesa dos Anjos, você é bem digna de
um homem como esse? Doidiva-nas e atrevida como você é, ele sabe do perigo que corre
por havê-la esposado?
 Não tema nada! Ele também não é a mais pacata das criaturas!
Anoitecia.
— Você tem que retornar — disse a Polaca. — Para a Cidade Alta. É para as belas
damas do seu tipo.
No fundo do albergue estendia-se um vasto pátio fechado por uma cerca de estacas de
cedro. As diversas construções, de pedra ou madeira, deviam abrigar mercadorias, reservas
de víveres e bebidas. Com o anoitecer surgiu uma leve bruma, flutuando ao nível do chão.
Como Angélica não queria encontrar Nicolau de Bardagne, que não hesitaria em pedir-lhe
explicações para sua presença naquele local, a amiga a fez passar por ali.
O odor almiscarado das peles empilhadas ou penduradas nos arcos dos entrepostos
lutava com os eflúvios que escapavam do restaurante.
— Escute, Marquesa dos Anjos — disse a Sra. Gonfarel —, vamos guardar nosso
segredo. Os homens não gostam muito do passado da mulher a quem amam. Querem
sempre achar que foram os primeiros e que os outros não contaram. Acredite-me: o que
vivemos naquele tempo pertence somente a nós. O juramento secreto dos bandidos da
matterie continua valendo.
Cruzou dois dedos e cuspiu na lareira.
 E meu gato? — lembrou Angélica.
 Ele é que escolherá — disse a Polaca, com magnanimidade.

Angélica deixou a propriedade e viu-se numa das ruas transversais da Cidade Baixa,
que a escuridão já invadia. Acendiam-se candeeiros, aqui e acolá. Angélica envolveu-se
bem no manto e puxou o capuz sobre a testa. Continuava a sentir-se muito feliz. Lamentava
não poder revelar a Joffrey o casual reencontro com Janine Gonfarel. Mas esta tinha razão:
ou bem se contava tudo, ou bem não se contava nada.
Escalando a encosta da montanha, Angélica alçou os olhos para o céu dourado que se
avistava lá em cima, como do fundo de um poço, entre as paredes da falésia e as das casas
altas, cujas chaminés e empenas pontudas, enfileiradas numa frisa negra, a claridade do
poente tomava de assalto.
Os passantes, subindo ou descendo, faziam-se raros e não a reconheciam. Ela ia só e
feliz e invadida de um sentimento novo, de liberdade e plenitude.
Voltando-se para olhar a admirável superfície do lago, que se estendia como um escudo
cintilante entre suas ilhas e promontórios, percebeu o gato, que a seguia.

CAPITULO XXI

Jantar em família

A noite, durante a ceia, o gato pulou para cima da mesa e empreendeu uma cautelosa
marcha por entre pratos e talheres, a fim de reconhecer os seus.
 Senhor gato, como o chamaremos? — disse Joffrey de Peyrac.
 Pai, você acabou de dar-lhe um nome! — exclamou Honorina. — Senhor Gato! Que
belo nome! Senhor Gato, nós o saudamos.
Luminárias cintilando em inúmeros candelabros. Serviço de prata. Assim como na
véspera, o mordomo pusera a mesa no centro da grande sala.
A luz das velas e candeias, Angélica sentiu prazer em olhar seus filhos Florimond e
Cantor.
Florimond ajudava o mordomo, Sr. Tissot, a servir. Era sempre muito ativo e solícito, e
seu serviço como pajem na corte desenvolvera-lhe essas disposições naturais. Gostava de
fazer mil coisas e adaptava-se sem esforço. O fato de haver regressado do Grande Norte,
depois de uma odisseia de vários meses, de saber matar um urso a faca e conversar com os
índios não o impedia de repetir com entusiasmo os gestos consagrados para manter o
guardanapo sobre o braço e levantar a jarra, no seu papel de copeiro. De bom grado trocaria
a vestimenta acamurçada de explorador de bosques pelos trajes de um jovem grão-senhor.
Cantor, em compensação, era diferente.
"Já lhe contei", pensava Angélica, "que corri descalça pela estrada de Charenton para
salvá-lo dos egípcios?"
O marquês viera vê-los. Encontrara acomodação na Cidade Baixa e faria as refeições na
taberna Ao Navio de França, cuja proprietária cozinhava divinamente. Esperava que sua
criada não tardasse a retornar, aguilhoada pelo ciúme. Aceitaria os serviços dela, mas
pretendia fazer-se convidar com frequência à casa de seus caros amigos' Peyrac, na Cidade
Alta.
 Depois de acertar alguns negócios, virei ajudá-los a se instalar. Hei de mostrar-lhes a
casa e todas as comodidades. Tenho a intenção de mandar subir meu aquecedor de louça
para o salãozinho contíguo à sala grande.
 Ele ainda tem seu pequeno exército de prata?
A frase sibilina intrigou Angélica, e como o rapaz passava perto dela, pediu-lhe que se
explicasse.
— Como, minha mãe, não sabe que o Sr. Tissot foi oficial da Boca do Rei em
Versalhes? Terceiro carregador do assado. Vi-o frequentemente passando os molhos. Em
Tadoussac, reconheci-o na hora. As vezes me informo com ele sobre a corte, que ele deixou
recentemente. Perguntava-lhe, entre outras coisas, se monseigneur, o delfim, ainda tinha o
pequeno exército de prata que o Sr. Colbert, por intermédio de seu irmão, o intendente da
Alsácia, encomendou aos mestres de Augsbourg e de Nuremberg.
Até então o Sr. Tissot se mostrara pouco loquaz acerca de seus antecedentes.
Com um gesto, Angélica chamou-o para perto e falou-lhe à parte.
 Senhor, suponho que tenha conhecido desprazeres muito grandes para se decidir a
deixar esse emprego tão brilhante e disputado junto de Sua Majestade.
 De fato, senhora.
 Desprazeres de que ordem?
 Senhora, da ordem que a senhora mesma conheceu e que a fizeram deixar Versalhes
quando sua estrela alcançava o zénite...
 Veneno? — avançou ela, fitando-o com ar interrogativo.
 Todo mundo usa veneno na corte. A senhora sabe. Isso resolve muita coisa, e é um
caminho como outro qualquer
para se atingir o cume e garantir a própria fortuna e reputação. ..
 Você não quis seguir esse caminho?
 A vida é o bem mais precioso — respondeu ele —, e eu era devotado ao rei.
 A Sra. de Montespan continua gozando de favores junto de Sua Majestade?
 Mais do que nunca.
 E as festas?... Diga-me, Sr. Tissot, as festas continuam tão belas e suntuosas?
 Nenhuma corte na Europa conhece festas iguais. Sua Majestade se consagra à beleza
de seu palácio e de seus jardins com uma paixão e um gosto que os tornam um dos mais
belos locais do mundo. As festas são à imagem desse cenário: magníficas e galantes.
Então, pensava Angélica, girando o pé do seu copo de mála-ga, que ela pegara
maquinalmente, e fazendo-o refletir suavemente as luzes na transparência ora dourada ora
púrpura do vinho, assim como se refletiam no seu pensamento as luzes de sua vida, então as
coisas não melhoraram na corte. As pessoas continuavam a matar-se e a envenenar-se umas
às outras alegremente, por entre o bulício das festas mais encantadas.
Um navio, sob o céu de inverno, ainda dançava através do oceano. Uma após outra, as
ondas profundas o impeliam para a Europa.
A carta que Angélica escrevera em Tadoussac ao policial Desgrez e que o criado do Sr.
d'Arreboust levava a bordo do Ma-ribelle em breve chegaria a bom porto. O criado iria
bater à porta de Desgrez... Entregar-lhe-ia a missiva chegada de uma terra tão longínqua e
Desgrez, batendo os olhos, reconheceria a letra da Marquesa dos Anjos... Um sorriso lhe
brotaria nos lábios escarninhos... Mais uma vez ela ia ao encontro dele...
Angélica olhou a própria mão que empunhara a pluma denunciadora.
No fogo vibrante de chamas que crepitavam alegremente na grande lareira,
destacavam-se os rostos brilhantes e animados da sua família, os seus bem-amados. Ouvia
o riso de Honori-na, os gracejos de Florimond, a música em surdina sob os dedos de
Cantor...
Sabia naquele instante que escrevera aquela carta para chegar até o rei e obter dele
justiça.

CAPITULO XXII

Uma sombra do passado

Mais uma vez o sono apagou as recordações e mais uma vez o ângelus, nos sinos das
igrejas, rompia a treva da noite. Seis horas... Em Quebec, iniciava-se um segundo dia.
Joffrey já estava de pé. Angélica não o ouvira partir, mergulhada que estava num sono
letárgico que não lhe parecia ter sido mais do que um longo e suave estado de volúpia, e
que lhe deixava o corpo leve, o espírito claro. Lembrou-se da surpresa: a Polaca estava na
cidade.
Ouviu alguém mover-se na grande sala embaixo. Ao estalido da madeira seca partida
sucedeu o de gravetos consumidos pelas chamas. Alçou-se um perfume de fumaça.
Depois de vestir-se, Angélica desceu e viu o velho Macollet, que pendurava à
cremalheira um caldeirão de água. Não estava sozinho. Os dois garotos, descalços, de
camisola, os cabelos despenteados e os olhos pesados de sono, observavam-no com
interesse. Ele prometera que lhes daria para comer um pouco da carne-seca que trouxera
dos selvagens. lolanda subia da adega com um balde de leite de cabra, que ela acabara de
ordenhar.
Havia muito mais gente naquela casinha do que o silêncio precedente levaria a crer.
Cantor, por exemplo, que surgiu não se sabe de onde, no seu passo de índio. Ademar, mais
ruidoso, que se ocupava carregando achas. Abbal Neals e o negrinho Timóteo.
Paramentados desde o alvorecer com as suas casacas de pajens, maldespertos, os meninos
balançavam os pés nus metidos em grandes sapatos de fivela. Os faustos dos dias pre-
cedentes tinham exaurido completamente os dois...
A vida começava tal como Angélica sonhara, num inverno em Quebec.
Bateram na porta do pátio, nos fundos. Era o Tenente de Barssempuy, escoltado por
dois auxiliares do mordomo, que traziam empadões quentes e manjar-branco, biscoitos e
uma jarra de prata contendo café, a beberagem oriental que Angélica adorava. Honorina e
Querubim não prestaram atenção alguma a essas guloseimas. Estavam ocupados vigiando
Elói Macollet, que, na palma da mão, desmanchava num pouco de água, à moda iroquesa,
um pó marrom com um forte cheiro de fumeiro. Iolanda disse que não comeria, pois queria
ir comungar, se a senhora o permitisse.
O Sr. de Barssempuy perguntou a Angélica se o Sr. de Peyrac a pusera a par das
moedas de prata.
Angélica pestanejou.
— Moedas de prata? Não... Explique-me.
O jovem viu nela um ar totalmente sonhador. Mas que só a tornava mais bela, pensou
ele. Parecia encantada com tudo. Ele deu um sorriso indulgente, um tanto triste, pois ainda
pensava em Maria, a Meiga, sua noiva que morrera. Reteve um suspiro. Recompondo-se,
passou a mensagem de que estava incumbido.
Entregou-lhe, da parte do conde, uma bolsa que continha moedas de prata, cunhadas em
Wapassu e que por isso não estavam empilhadas. Nem por isso ela não poderia usá-las para
resgatar todas as suas compras nas lojas ou bazares de Quebec. O conselho superior da
cidade decidiria mais tarde quanto à forma a adotar para legalizar a circulação daquela
moeda estrangeira na Nova França. Enquanto isso, o valor seria julgado pelo peso.
Todos os comerciantes possuíam a balancinha destinada a pesar o marco de prata, e
tinham sido solenemente avisados de que o Grande Conselho aprovara a emissão de metal
nobre anónimo no mercado de Quebec. Far-se-ia uma proclamação em várias ocasiões, nas
encruzilhadas e nas praças públicas. Além disso, Barssempuy também tinha que entregar a
Angélica uma cédula assinada por um certo Basílio, cuja assinatura abria uma garantia de
despesas até quinhentas libras de Tours, o que era mais do que ela desejaria e, no momento
e em sã consciência, gastaria. Angélica agradeceu ao mensageiro.
Bateram à porta da rua. Angélica foi abrir e viu-se diante de um homem barbudo, com
um gorro de pele na cabeça e um machado ao ombro.
 Quer que eu lhe rache lenha, senhora?
 Ora, Nicaise Heurtebise — exclamou Elói Macollet, aparecendo à soleira —, então
já está começando seu giro de vendedor de aguardente?
 Não, não antes de nevar forte e de o Saint-Laurent ter virado gelo.
Ele acumulava pequenos ofícios, entre outros o de vendedor de aguardente, passando de
porta em porta, nas manhãs frias, para oferecer o primeiro trago aos madrugadores que ini-
ciavam sua jornada de trabalho.
Nevara durante a noite, mas a neve ainda era leve. Em camada fina, derreteria ao menor
raio de sol. Os telhados brancos destacavam-se contra o fundo negro das águas do rio, que
ainda rolavam suas ondas turbulentas.
Enquanto ouvia os dois velhos companheiros discutir os méritos do inverno e da
aguardente, Angélica examinava os arredores do que seria o seu bairro. Sua casa. era a
última, quando se subia a rua vindo da catedral. Depois", a rua deixava de ser calçada para
se transformar em caminho de terra. Na verdade, a casa ficava na orla dos prados. A uma
encruzilhada erguia-se um grande olmo. Ao pé deste havia um pequeno acampamento de
índios, com duas ou três wigwams arredondadas, de casca de olmo, seus cães amarelos,
seus meninos seminus arrastando-se na terra molhada. Uma mulher envolta numa manta
saiu de uma cabana e foi avivar as brasas fumegantes das fogueiras meio apagadas.
Um pouco adiante, na mesma direção, estendia-se um bos-quezinho que servia de sebe
a uma casa bem bonita, cujo telhado, recoberto de ardósia e com chaminés imponentes e
quadradas, ultrapassava a copa das árvores.
Era àquela sebe que cercava uma bela morada escondida que a rua devia o seu nome:
Rue de la Closerie.
Em frente à casa de Ville-d'Avray, erguia-se a mureta que encerrava o pomar da Srta.
d'Houredanne e seu jardim. Um pouco abaixo, a casa da missivista era pequena, com um
único andar e duas lucarnas sob as cumeeiras. Aquela hora, a ponta luminosa de uma
candeia ia e vinha por trás dos quadrados de vidro de uma dessas lucarnas. Angélica viu
colar-se ao vidro a sombra de um rosto. Certamente o da criada inglesa que não conseguia
deixar de espreitá-los. Na outra lucárna a cadela também apareceu, curiosa.
Para além da casa da Srta. d'Houredanne, a rua que levava à catedral tornava-se uma rua
de verdade, bem pavimentada, ladeada de residências mais ou menos ricas, mais ou menos
cercadas de pequenos pátios ou jardinzinhos, ou então apoiadas umas às outras e se
comprimindo à medida que se descia rumo à Grande Place. Avistavam-se inúmeras
tabuletas de madeira ou de ferro forjado avançando sobre a rua e indicando as lojas, bazares
ou as tascas, algumas delas desenhadas em dourado ou em cores vivas.
Nicaise Heurtebise e Macollet continuavam a falar de álcool.
— Eufrosina Delpech é que possui a melhor levedura — dizia Nicaise Heurtebise. —Já
ela mesma é um veneno, concordo. Mas ela lhe fará a melhor bebida a partir de qualquer
coisa: sabugueiro, cevada, resíduo de raízes...
Enquanto falavam de fabrico de álcool, surgiu uma silhueta cambaia, friorentamente
embrulhada dos pés à cabeça e que só mostrava um nariz descorado. Para um pirata das
Caraíbas como Aristides Beaumarchand, o Canadá revelava-se um país ao mesmo tempo
demasiado frio e demasiado austero. No entanto, ele rapidamente descobrira um ponto em
comum que lhe permitira entender-se, ele, o gentil-homem da pirataria, com aqueles
laboriosos exploradores de bosques, que viviam com os pés na neve de novembro a junho:
assim como ele, os canadenses professavam o amor pelas "boas bebidas".
— Não nos vá estragar o comércio com seu rum — disse-lhe Macollet. — De qualquer
maneira, é fraco demais para os índios. Eles querem é do forte.
Aristides ouvira dizer que na região havia uma árvore que segregava uma seiva
açucarada. Não seria mau se, queimando essa seiva, pudesse extrair alguma coisa para
fortificar seu run-zinho. Ele recuperara a carga de resíduo de melaço, roubada ao
Saint-Jean-Bàptiste.
— E — fez Nicaise Heurtebise —, tenho um alambique escondido nos galhos de um
bordo esperando pela época do açúcar, na primavera. Mas dizer-lhe que é uma maravilha,
não!
Talvez seja por causa do alambique.
Ouvira dizer que.a Sra. de Peyrac possuía um alambique de cobre, no sistema de
Charenton, para os medicamentos dela. Talvez com aquilo obtivesse melhor resultado. Ela
se meteu na conversa, observando que aquele trio pitoresco, em Paris, não deixaria de
inspirar certa desconfiança a um policial de mau humor.
— Há uma receita para fortificar seu rum — confessou Heurtebise. — É a "barreia de
madeira". Com isso você faz uma bebida que deixa até os índios com água na boca. Mas,
atenção, apenas duas gotas, não mais. Uma terceira é mortífera...
Começou a enumerar os ingredientes necessários. . — Palha... carvão de madeira e
couro queimado... um filete de água pura.
Angélica, distraída, olhava a parte baixa da rua e teve a impressão de reconhecer uma
silhueta que^subia na direção deles.
— ...O importante é que o carvão seja de pinho ou de cedro...
Era mesmo o Sr. de Bardagne que se aproximava.
Cumprimentou-a e disse que o tinham instalado de propósito na outra extremidade da
Cidade Alta, no centro de um platô deserto, chamado planícies de Abraão.
Na véspera não conseguira vê-la. Procurara-a por toda parte. Depois de indagar sobre a
saúde dela e se estava bem acomodada, chegou'ao que o atormentava.
— Há um homem na cidade dizendo que a conheceu biblicamente.
Angélica pôs-se a rir.
 Seja quem for, está se vangloriando.
 No passado?
— No passado... Tudo é possível. No entanto, não vejo quem poderia...
Sob o olhar doloroso do Sr. de Bardagne, ela fez um rápido exame interior e constatou
que, na verdade, se de fato amara muito, seus amantes não tinham sido tão numerosos.
 De que tipo é esse indivíduo?
 Um grão-senhor.
Angélica levantou as sobrancelhas, francamente surpresa.
 Devia estar bêbado, aposto.
 Admito que sim.
 E você tem a fraqueza de levar a sério tais palavras? Meu pobre amigo, você procura
tudo o que pode para alimentar seu ciúme.
 A minha dor, você quer dizer.
 Que seja. Mas aonde é que isso o leva?
 A cidade está sob o encanto — disse o Sr. de Bardagne, sombrio. — Só falam de
você e de seu marido. Tudo o que vocês fizeram ou disseram durante esse dia memorável
seduziu os mais prevenidos de seus adversários e encantou o povo.
 Você teria preferido que naufragássemos ou que tivéssemos sido apedrejados?
O rosto do emissário do rei adquiriu uma expressão desapontada.
 Não... Mas gostaria de ter precisado defendê-la, protegê-la.
 Ainda pode fazê-lo. Sua influência como emissário do rei é valiosa. Você tem todo o
poder para nos tornar aceitos pelos nossos pares e, mais tarde, interferir em nosso favor em
Versalhes. Não é um milagre que seja justamente você o encarregado de esclarecer a
situação de meu marido junto ao rei?
Nicolau de Bardagne não respondeu. Tudo o que concernia a Peyrac lhe era
infinitamente penoso. Sentia-se dividido entre a aversão que nutria pelo esposo de Angélica
e seu espírito de justiça.
— Devo confessar-lhe uma coisa — disse ele. — Aproveitei a passagem do Maribelle
por Tadoussac para já despachar um relatório excepcional a Sua Majestade.
Foi interrompido por latidos. Surgiu um homem, vindo do pequeno bosque que cercava
a casa, acompanhado de um grande cão de fila de um preto luzidio de pão queimado.
Passando perto da wigwam dos huronianos, o magnífico animal saltou sobre um de seus
congéneres indígenas, abocanhou-lhe os quadris com um golpe das mandíbulas e, depois de
observar com satisfação o sobressaltado recuo dos outros cães amarelos do acampamento,
alcançou seu dono num trotezinho resoluto.
O Sr. de Chambly-Montauban apresentou-se como grande inspetor viário do Canadá e
vizinho deles. Cumprimentou o grupo, tirando o gorro com cauda de vison. Era um belo ho-
mem, no mínimo tão belo quanto seu cão, e certamente com o mesmo andar desenvolto de
conquistador. O título de grande inspetor viário do Canadá, que o tornava responsável pelas
estradas e caminhos do país, era antes honorífico, numa terra que não dispunha de outros
meios de comunicação senão o rio e os riachos.
Quanto às vias da cidade, que, por extensão, dependiam de seu cargo, ele lhes deixava
as malcheirosas obrigações ao procurador Tardieu, encarregado de promulgar os
regulamentos. Por esses poucos indícios, deu a entender que era principalmente um bon
vivant.
Dirigiu muitos cumprimentos respeitosos ao Sr. de Bardag-ne, mas olhava Angélica, e
parecia decidido a fitar apenas a ela.
Estava vestido com elegância: usava uma capa forrada de pele, trazia espada e botas de
couro fino, à cavaleiro. De uns quarenta anos, um tanto sanguíneo, tinha o olhar espiritual,
dentes muito alvos, lábios sensuais.
 Está bem acomodado? — indagou ele com displicência a Bardagne.
 Menos bem do que você — respondeu este, olhando de viés na direçãò do pequeno
basteio, cujo telhado e chaminés ultrapassavam as frondes da mata.
A seus olhos, aquele solar contava com a enorme vantagem de estar situado nos
arredores da casa de Ville-d'Avray, onde a Sra. de Peyrac estava hospedada. O Sr. de
Chambly dignou-se dar-lhe uma olhada e deve ter pensado que havia certas vantagens em
se entender bem com o representante oficial de Sua Majestade.
 O rei tratou-me muito mal neste ano — queixou-se. — Forçou-me a vender uma
parte de minhas terras por uma ninharia. Gostaria de conservar o que me resta. Você
poderia fazer algo por mim?
 Com certeza você explorou de modo insuficiente as terras do seu feudo. Mas... está
bem, falarei ao rei.
Duas índias vieram gemer às costas do Sr. de Chambly. Reclamavam aguardente em
troca do cão morto. Sem abandonar o luminoso sorriso, o grande inspetor viário
respondeu-lhes em língua selvagina. Angélica compreendeu que ele as censurava por se
embriagarem, que as lembrava dos decretos que proibiam dar-se álcool aos selvagens, e que
lhes recomendava que fossem à missa. Quanto ao cão, tudo o que tinham a fazer era pô-lo
no caldeirão.
 É que seu cão de fila é uma verdadeira fera, Sr. de Chambly — comentou Elói
Macollet. — Não é como o do Padre Morillot, que é tão manso e tranquilo.
 Os cães de fila já tiveram inúmeras ocasiões de salvar os postos avançados farejando
os iroqueses — observou o Sr. de Chambly.
 Aí está o índio — anunciou o Sr. de Bardagne, amargo e fatalista.
A silhueta desajeitada de Piksarett se recortava no alto da colina. Desceu na direção
deles, muito desdenhoso, de lança na mão e vestido com sua pele de urso hibernal.
Não perdeu tempo em ecoar o Sr. de Chambly, repreendendo as índias e
censurando-lhes a inclinação para o álcool que lhes pervertia a alma e arruinava o corpo.
Iolanda surgiu à soleira, toda arrumada, com uma manta de quadrados de cetim que
Marcelina, sua mãe, lhe confiara para as grandes ocasiões durante a estada na capital.
Trazia um missal bem apertado numa mão e com a outra puxava Querubim. Ademar
seguia-os, com o chapéu militar embaixo do braço. Marcelina, a acadiana, fizera mil
recomendações a Iolanda acerca do clima temível de Quebec. Não era a doce baía Francesa,
com suas tempestades e marés endoidecidas, é verdade, mas também onde os tremoços
rosados, azuis e brancos cresciam como mato. O mar era sempre alto ali.
Angélica pegou Honorina e Timóteo pela mão.
— Tem razão, grande sagamore — disse —, ao nos lembrar nossos deveres para com
Deus. Vamos comungar.

CAPÍTULO XXIII

Na antecâmara de Monsenhor de Laval — Uma audiência proveitosa

O que em Quebec chamavam de seminário na verdade era o bispado. Monsenhor de


Lavai, bispo de Petréia, vigário apostólico da Nova França, reunia ali seu clero, uma
comunidade de padres seculares que tomara o lugar dos missionários jesuítas ou
franciscanos junto da população branca do Canadá e que devia servir as paróquias sem
receber os proventos da cúria. Naqueles grandes prédios de dois ou três andares, de im-
ponentes cumeeiras, os servidores das paróquias encontravam asilo e subsistência.
Também funcionava ali a escola para os meninos da cidade. Havia inúmeros internos, e
entre eles alguns indiozinhos a quem pretendiam afrancesar, crianças de senhorias ou
concessões remotas, órfãos a cargo da comunidade. Os padres dividiam o ensino com os
jesuítas, a cujo convento as crianças iam para as aulas de matemática, gramática, ciências
naturais, etc. Os adolescentes e jovens que se destinavam ao sacerdócio faziam ali os seus
estudos, antes de serem ordenados pelo bispo.
O grande pátio de entrada abria-se sobre a Place de la Cathédrale, precedida de uma
grade monumental de ferro forjado, encimada pelo brasão de armas dos
Montmorency-Laval, de metal dourado, e de outro brasão onde se entrelaçavam as letras
J.M.J. — Jesus, Maria, José.
Angélica atravessou o pátio a passo firme. Ao toque do sino apareceu um daqueles
senhores do seminário.
As senhoras deixaram Angélica sob a proteção dele, que de início a conduziu por um
longo corredor lajeado e depois a fez subir os degraus de uma escada de pedra, cintilante de
nova.
Ouviam-se ao longe vozes infantis entoando salmos e as escalas de um órgão, tocadas
por um virtuoso notável. As notas subiam e desciam com ímpeto. O organista culminava
com acordes triunfantes, e recomeçava. Estudava com prazer. Respirava-se um ambiente
ativo e familiar.
No primeiro andar, o clérigo tomou a dianteira e abriu para a visitante uma porta que
dava para um vasto parlatório, onde um grande número de pessoas aguardava.
Aqueles senhores do seminário deviam ser de compleição robusta, pois não só o
aposento não era aquecido, como tinham aberto uma das altas janelas com pequenos vidros
coloridos — sem dúvida para deixar entrar o belíssimo sol daquele dia de novembro e
substituir o aquecedor ou o braseiro.
A janela aberta permitia que, ao se entrar, um único olhar abarcasse a distância a
maravilhosa costa de Beaupré, toda branca sob o gelo do inverno, com seus campos
desnudos estendendo-se até o escuro dos bosques e florestas que os cercavam.
Relanceando o olhar pela enseada, Angélica notou que só restavam dois navios de sua
frota ancorados ali: o Le Rochelais e o Mont-Désert.
Depois que sua vista se habitou à penumbra do aposento, reconheceu entre os presentes
Margarida-Bourgeoys e suas companheiras, e, contente, dirigiu-se até elas. Uma das jovens
logo se levantou e lhe cedeu a cadeira de encosto alto e reto, indo ela própria sentar-se num
pufe quadrado de tapeçaria. As pessoas deviam estar acostumadas, quando pediam uma
audiência ao bispo, a esperar pacientemente durante longas horas, pois quase todo mundo
ocupava o tempo de algum modo — lendo obras pias, desfiando o terço, tricotando ou
ocupando os dedos em trabalhos de croché.
A Srta. Bourgeoys e as moças tinham nas mãos pequenos instrumentos de madeira,
cravados de pregos, sobre os quais entrecruzavam fios pretos ou marrons.
— Estamos fazendo cordões.
Quando estivessem em Montreal, ensinariam suas neófitas a trançar, como os índios,
fios coloridos para compor cintos bem cómodos e, além disso, muito vistosos, que os
canadenses gostavam de passar à volta do ventre para se protegerem do frio intenso.
—, Embarcaremos depois de amanha para Ville-Marie — informou a diretora da
comunidade. — É mais do que tempo. As grandes marés do outono já passaram, os gelos
podem chegar a qualquer momento.
Pela janela aberta, os gritos das gaivotas e cormorões subiam no ar puro, até a Cidade
Alta, acompanhados do eco sonoro das marteladas no estaleiro naval. Antes de deixar
Quebec, a Srta. Bourgeoys desejava cumprimentar e consultar o monsenhor.
— Ele é muito ciumento do seu papel de pastor da Nova França, e em Ville-Marie
temos que atentar para suscetibilidades, embora nossa cidade seja uma sociedade
independente livre das fundações e iniciativas dele. Somente os sei Santo Sulpício,
senhores da ilha de Montreal, possi dição eclesiástica. Poderíamos dispensar muito bem ção
episcopal, mas é uma questão de cortesia.
Depois de definir bem a própria posição, ela admitiu de grado que Monsenhor de Laval
era um homem cor vo, devotado à salvação das almas reunidas sob seu báculo pastoraral.
Mas a Srta. Bourgeoys suspirou puxou seu fio e disse:
Neste país de cruz, nada é simples. Na minha ausência o monsenhor pertubou-se ao
saber que já há tres anos eu dei o hábito às minhas postulantes sem que houvesse regra
escrita para isso. Desta vez, porém ele terá que conceder à nossa congregação a aprovação
canônica.
As dificuldades com o bispo, continuou ela, adivinha do fato de que ele recusava o claustro
monástico para sua ordem e, para o hábito das religiosas, não queria véu nem touca, que as
diferenciariam demasiado das habitantes da região. Queria as companheiras da sua ordem
vestidas como modestas burguesas: o mesmo vestido preto de gola branca com um lenço
preto atado sobre as coifas de donas-de-casa.
—Somos mulheres comuns, a serviço dos outros.
Falou de todas as grandes damas da França, as benfeitoras, que sustentaram com recursos
próprios as obras no Canadá. Citou a Sra. de La Peltrie, que acompanhara as ursulinas a
Quebec, e a Sra. de Gallion, que ajudara Joana Mance a fundar um pequeno hospital em
Montreal.
Angélica, que precisava incluir nessa legião uma "benfeitora" do género da Duquesa de
Maudribourg, ouviu esse panegírico todo não sem reservas. Imaginou Ambrosina
desembarcando em Quebec, açucarada, toda devoção, maternal com suas Moças do Rei,
atraindo a dedicação das melhores pessoas do lugar com sua conduta exemplar, o prestígio
de sua fortuna e seu hábil encanto. Ante a simples ideia das devastações subterrâneas que a
vinda dela poderia ter provocado na cidadezinha confiante, Angélica teve um arrepio e co-
mo que o pressentimento de que Quebec já não estava a salvo de contágios venenosos do
Velho Mundo.
Abriu-se uma porta no fundo do aposento e por ela saiu um rapaz de uns trinta anos,
que agradecia com efusão, inclinando-se muito, com o chapelao pousado sobre o estômago.
A porta fechou-se de novo.
O homem veio saudar a Sita. Bourgeoys. Era muito conhecida, e todos gostavam dela.
Ele lhe comunicou a própria satisfação, pois queria se casar com uma jovem moradora de
Château-Richer e Monsenhor de Lavai acabava de conceder-lhe um arrendamento de cinco
anos sobre os dois moinhos comunitários de seu feudo. Fizera o acordo em troca da soma
anual de seiscentas libras de Tours, seis capões vivos e um bolo.
 De que tamanho, o bolo? — atalhou Angélica, que achou divertida essa novidade em
matéria de imposto.
 Ainda resta determinar os pormenores — disse o rapaz —, mas o bolo deverá ser
entregue em maio, para a festa de São Bonifácio.
Também o alegrava o fato de ter sido aprendiz de doceiro antes de emigrar para a Nova
França. Correra as matas e fizera pão nos fortes militares. Agora desejava fixar-se. Seu bolo
fiscal lhe permitiria estabelecer-se.
Uma pequena família de imigrantes, que esperava sentada enfileirada a um banco
encostado à parede, ouvira com atenção. Aproximaram-se todos juntos, os pais e os quatro
filhos.
Margarida Bourgeoys os conhecia porque fizera com eles a travessia no
Saint-Jean-Baptiste. Bastava vê-los macilentos, pálidos e com as roupas gastas dançando
no corpo para adivinhar-lhes a condição de imigrantes. Estavam preocupados. Tinham
chegado na véspera, assistiram ao te-déum, que os maravilhara — sem que entendessem
nada —, e dormiram no estábulo de um dos estabelecimentos da antiga Companhia das
índias Ocidentais. Tinham sido recrutados na França para o povoamento de terras situadas
entre Quebec e Montreal — já não lembravam bem o nome da feitoria. No dia anterior, na
chegada, ninguém se encarregara deles. Acabaram mandando-os ao bispo, naquela manhã.
Estavam completamente perdidos. Partindo de Le Havre, levaram quase quatro meses para
chegar a Quebec.
— De fato, essa viagem foi uma das mais árduas que já conheci — aquiesceu a Srta.
Bourgeoys. — Claro que já sabemos com antecedência dos perigos que devemos correr
nesse grande oceano, o mais rude de todos os mares. Não que muitos navios se percam na
travessia de mil e duzentas léguas. Mas há muitos incómodos a sofrer, ocorrem doenças
graves, teme-se encontrar os ingleses, os turcos, a gente de Dunquerque... Com o
Saint-Jean-Baptiste, ainda tivemos que suportar as trapaças do capitão e da tripulação.
A mulher tirou de sob o manto remendado uma pequena taça de prata.
 Vendemos algum gado e ferramentas antes de partir, e investi a soma nesta taça.
 Você foi prudente, minha filha — aprovou Margarida Bourgeoys. — Com essa
pequena garantia, você pode levantar empréstimos ou numerário, se mandar fundi-la.
Angélica teve a impressão de lembrar que o fato de fundir prata e passá-la adiante era
passível de galés e mesmo de morte sem apelação, segundo os veredictos de tribunais
estabelecidos a partir do costume de Paris.
Mas, na colónia, ninguém parecia preocupar-se com isso. Ela viria a saber que todo
mundo derretia prata ali. O menor bi-belô, como a mais suntuosa peça de prataria,
representavam o único valor seguro.
Quem possuía prata, gozava da confiança dos comerciantes, afirmou a Srta. Bourgeoys.
Um homem calçado de sapatos grossos entrou a passos rápidos, deixando vestígios de
lama por toda parte. Correu os olhos à volta e acorreu na direção da pequena família de imi-
grantes.
— Ah, ei-los aqui! Sou seu senhor, Arnaldo de La Porterie. Só pude atracar
esta-manhã, e sigo-lhes a pista há duas horas pela cidade. Temos que acertar nossos
negócios rapidamente. A barca vai. partir logo.
Examinou uns papéis que puxou do bolso do casaco de couro.
— Você é Gastão Bernard e esposa, Isabel, Candelle em sol teira, ambos originários de
Chartres?
Em pé diante dele, o casal aquiesceu, timidamente. O Sr. de La Porterie contou-os com
os olhos. Foram anunciados como sete...
— Perdemos um menino no mar — respondeu a mulher, levando o lenço aos olhos.
— Bem — concluiu o gentil-homem, ajeitando seus papéis.
Dando-se conta de que não demonstrara compaixão, tirou o chapéu de castor e orou, solene:
— Paz à alma dessa criança! Deus levou as primícias, a obra será bela. Que a virgem
nos proteja!
— Amém — responderam eles em coro.
— Ternos que ir ao cartório do conselho soberano —prosseguiu o outro —, para
assinar seu ato de concessão. Receberão tres alqueires de frente por vinte de fundo, com a
condição de se estabelecerem lá neste ano, de haver fogo em casa, e de pagarem vinte
soldos de Tours por alqueire de terra de frente, doze denários de imposto e dois capões
vivos, tudo isso entregue todo ano, no dia de São Martinho, em meu solar. Sabem arar?
Aprenderão — atalhou ele, vendo a atitude evasiva do casal.
Examinou-lhes os trajes esfarrapados em que eles tiritavam de frio.
0 Para começar, têm que adquirir capotes e botas indígenas. Tenho algumas reservas
em minha loja na Cidade Baixa.
Acompanhem-me.
0 Deixe-os pelo menos saudar o bispo — interpôs-se a Srta. Bourgeoys.
— Para quê? O bispo nada tem a ver com os meus rendeiros. Terá muito tempo para
vê-los quando fizer sua viagem episcopal, no verão.
Saiu, tocando sua pequena tropa à frente. A Srta. Bourgeoys meneou a cabeça, com ar
de reprovação.
— O Sr. de La Porterie não tem direito de possuir um entreposto de mercadorias na
cidade. Isso é proibido aos senhores que possuem feudos de nobreza pu mesmo feudos
comunitários. Mas todo mundo aqui, exceto o clero, faz comércio. É verdade que, para um
senhor, os proventos de suas terras mal lhe rendem um frango uma vez por ano. O dízimo
dos arrendatários não é nada, conforme você pôde ouvir. E o proprietário tem que cuidar da
instalação das pessoas que manda vir. Tem encargos pesados e pouco auxílio do rei para
ajudar a povoar a colónia. Morrerá sem dinheiro, mas com a senhoria toda ocupada e
desbravada. Pode ser que seu filho venha a auferir bons rendimentos.
Enquanto a ouvia, Angélica passeava o olhar pela decoração da sala. Das paredes
pendiam belas tapeçarias representando temas bíblicos. O teto era alto, ornamentado com
frisos de madeira, e o assoalho, encerado como um espelho.
A sua frente, num nicho, erguia-se uma imagem do Menino Jesus, coroado de ouro e
vestido de veludo vermelho, segurando em uma das mãos um globo encimado por uma
cruz. Os quadros na parede mostravam reproduções do Menino Jesus na manjedoura,
adorado pelos anjos, e outra reprodução, em camafeu, representava um anjo oferecendo
Luís XTV recém-nascido à Nossa Senhora de Loreto.
Uma grande estátua de São José, com a criança divina ao braço, erguia-se perto da
porta.
A Srta. Bourgeoys informou Angélica de que São José era o patrono da Nova França,
enquanto o Menino Jesus era encarregado particularmente da proteção do seminário.
Angélica teria ouvido Margarida Bourgeoys durante horas. Assim como em Tadoussac,
percebia que na companhia dela o tempo voava como o vento. A paz da alma de Margarida
era contagiante. Mesmo relatando os "piores aborrecimentos, conservava a alma leve.
— Você passará à nossa frente para ver o bispo — declarou de chofre a Angélica. —
Claro que é importante que você veja o bispo, mas não pode perder tempo. Suas atividades
sociais são interessantes e você tem muito a fazer. Nós podemos esperar.
Angélica lembrou que, de fato, tinha um encontro com Joffrey no Castelo Saint-Louis,
para avistar-se com o governador por volta do meio-dia.
Agradeceu- calorosamente.
Novamente a porta do gabinete do bispo se abriu. Desta vez foi o Marquês de Ville--d
Avray que saiu. Meio de costas, dirigia-se ao prelado, cuja alta estatura, numa batina
violeta, se delineava em perfil atrás dele.
— Assim,- monsenhor, pode ver que não tem nada a temer quanto à fidelidade de
nossos catecúmenos da Acádia. Prova disso é a carga de escalpos de ingleses hereges que
eu trouxe para o senhor governador e que traduz a devoção que esses pobres selvagens
nutrem por Deus e pela Igreja que lhes demos a conhecer, devoção que manifestam
segundo seus meios e à sua maneira, indo semear a guerra entre nossos inimigos da Nova
Inglaterra...
Com presteza, pousou um joelho no chão para beijar o anel do bispo e se afastou,
atravessando o parlatório com passo seguro e sem notar Angélica.
Esta se lançou atrás dele e o chamou do alto da escada, que ele já descera a meio.
— Sr. de Ville-d'Avray!
Ele voltou-se e, quando a viu, seu rosto iluminou-se.
— Oh, caríssima!
Ela não o deixou prosseguir.
 O que estava contando ao bispo? Escalpos de ingleses? Estaria dando como seu o
cofre que o Barão de Saint-Castine despachou para Quebec a fim de testemunhar o seu zelo
às autoridades?
 Por que não? — disse o marquês, com um sorriso aliciante.
 De jeito nenhum! Não o deixarei levar esse crédito. Embora essa mercadoria me
repugne, encarrego-me eu de divulgar-Ihe a procedência. Só faltava mesmo que você se
arrogasse todas as vantagens e nosso pobre Saint-Castine fosse acusado, e talvez até
desalojado, por não haver apoiado a campanha de guerra do Padre d'Orgeval!
Vendo que ela falava a sério, o marquês empertigou-se.
 Todas as cabeças da Acádia me pertencem — declarou, soberbo.
 E o que veremos. Vou avisar os guardas do Gouldsboro para que lhe recusem o
cofre, caso o peça.
 Eu já o tenho...
Depois de uma troca de palavras bem acaloradas, Ville-d'Avray afastou-se, aborrecido.
Retornando ao parlatório, Angélica percebeu que a alteração a fizera perder a vez
generosamente cedida pela Srta. Bourgeoys. Esta e suas moças tinham sido introduzidas no
gabinete do bispo.
O ângelus anunciava o meio-dia. As outras pessoas que esperavam ergueram-se para
dizer em conjunto a prece de saudação à Virgem.

"O Anjo anunciou a Maria


E ela concebeu
Por obra do Espírito Santo..."

Um clérigo veio desculpar-se com a Sra. de Peyrac, dizendo que Monsenhor de Laval,
depois da audiência em curso, faria uma colação ligeira. Ele esperaria pela Sra. de Peyrac
no começo da tarde.
Angélica saiu, apressada. Por nada no mundo queria faltar ao encontro com Joffrey na
casa do governador.
Na praça, hesitou. Cadeirinha? Carruagem? Qual era o melhor?
Usar as pernas. Quando se tinha pressa em Quebec, tomava menos tempo correr do que
arrebanhar criados e cocheiros.
Num instante atingiu o Castelo Saint-Louis, e já no vestíbulo avistou Joffrey, numa
animada conversa com uma encantadora morena de olhos negros, Berengária Amada de La
Vaudière, esposa do procurador Natal Tardieu.
A jovem se fizera notar logo no dia da chegada, pela sua graça amável. Sua família, de
alta linhagem, provinha de Tarbes. As senhoras e cavalheiros se preparavam para
compartilhar da refeição do governador. Enquanto esperavam, a conversa tinha por tema o
deleite daquelas senhoras que na véspera tinham recebido das mãos do plenipotenciário do
Sr. de Peyrac uma jóia, um objeto de devoção, uma miniatura ou um simples mimo.
Berengária de La Vaudière tinha lágrimas nos olhos por isso, o que os tornava ainda
mais brilhantes e negros.
Todas, no grupo, alçavam para Joffrey um olhar extasiado. Ele se escusava, sorrindo e
dizendo que tivera apenas o gesto natural de agradecer a tantas pessoas encantadoras a
acolhida amável.
Angélica, que chegava de faces coradas pela corrida, respondeu, distraída, aos
cumprimentos e se lançou na direção de Joffrey. Parecia-lhe que não o via há muitíssimo
tempo.
 Mas por onde você andava? — perguntou, atormentada pela irresistível vontade de
beijá-lo e estreitá-lo contra o coração.
 E você, Angélica?
 Fiz uma visita ao bispo.
 Como transcorreu a entrevista?
Angélica admitiu que passara uma manhã apaixonante com Margarida Bourgeoys, mas
que ainda não se avistara com o bispo.
Ao chegar, o Sr. de Frontenac beijou as duas mãos de Angélica, uma após a outra, e
fê-la sentar-se à sua direita. A sra. de Castel-Morgeat estava à sua esquerda. Tinha o rosto
inchado, e ninguém ousava fitá-la.
Depois da refeição, o governador propôs um passeio pelo seu jardim, situado pouco
acima, na encosta do monte Carmel.
Angélica abandonou o grupo: queria concluir a visita ao bispo.
Monsenhor de Lavai parecia-se com Bossuet. O pastor da Nova França tinha a mesma
compleição robusta, o contato direto, a inteligência rápida, alimentada por uma cultura que
se sentia vasta e diversificada.
Um fino bigode, apenas esboçado, uma vírgula de pêlos entre lábio e queixo
sublinhavam-lhe a boca bonita e autoritária. O nariz aquilino, a fronte alta sob o solidéu
episcopal ter-lhe-iam dado um ar dominador, não fosse pelas pálpebras um pouco caídas,
que lhe atenuavam o brilho dos olhos, comunicando-lhes uma expressão sonhadora e
benevolente.
Na qualidade de grão-esmoler da corte, ostentava simultaneamente simplicidade e
grandeza. A semelhança contribuiu para ajudar Angélica a sentir-se no mesmo nível de seu
augusto interlocutor.

Estava a ponto de falar primeiro, quando o bispo se decidiu a fazê-lo. Ela se conteve,
ele fez o mesmo. Sorriram ambos.
Angélica então externou a admiração que lhe inspiraram a catedral e a pompa das
cerimonias. O bispo não dissimulou que essas palavras lhe eram agradáveis. Sempre se via
grande em Quebec. Quando ele chegara à sua diocese, a cidade contava apenas oitenta
famílias, umas seiscentas pessoas. Mas os jesuítas já haviam dado às manifestações de
devoção aquele tom elevado de que toda a mentalidade do país estava impregnada.
Graças aos cuidados deles e das ursulinas, a geração crescida no país sabia ler, escrever
e declinar o latim. Essa base de qualidade bastante incomum o encorajava a criar o grande e
o pequeno seminários, a fim de garantir a formação de jovens clérigos entre as crianças da
terra. Havia que desviá-los da desastrosa vocação de sair pelas matas já aos quinze anos de
idade.
Deu a entender que era muito necessário aos colonos da Nova França terem um pastor
nas formas eclesiásticas conhecidas de episcopado, pois os jesuítas eram sobretudo
missionários, interessados nos índios, e os primeiros colonos não tinham, de fato, sido
orientados com suficiente rigor. Os jesuítas pensavam mais na conquista das almas dos
índios do que em manter na obediência as dos seus compatriotas... Recrutavam todo mundo
para suas expedições, quando um humilde cristão deve ficar à sombra de seu campanário e
sob o báculo de seu pastor, a fim de poder gozar do auxílio dos sacramentos, sem os quais
ele soçobra em todas as tentações, dentre as quais a do paganismo, que o espreitava sem
trégua sob aqueles céus.
Essa introdução pareceu encorajar Angélica a falar da Madre Madalena. O rosto do
bispo tornou-se mais grave. Mas Angélica entendera que ele se declarara contra o Padre
d'Or-geval, o que o obrigava a ajudá-la.
 O caso é de importância. Ela suscitou emoções acaloradas.
 Mais uma razão para encerrá-lo completamente, tranquilizando por minha vez, por
intermediário da Madre Madalena os que ainda possam ter dúvidas.
 Você parece ter certeza de que o parecer da Madre Madalena lhe será favorável.
— O senhor quer dizer: certeza de que ela não me tomará por uma diaba? Sim, tenho,
se essa religiosa for honesta... E o senhor também tem, monsenhor. Caso contrário não me
teria recebido.
O bispo deu um sorrisinho, mas seu rosto logo se anuviou outra vez.
 Pena! — suspirou.
 O que quer dizer? — perguntou Angélica, alarmada.
 Você terá que esperar. Para falar a verdade, eu gostaria de atender sem demora à sua
súplica. Essa iniciativa de sua parte me compraz. Mas um incidente penoso, dramático,
melhor dizendo, vai obrigá4a a aguardar. Anteontem, na noite de sua chegada, roubaram
das senhoras ursulinas uma caixa de hóstias.
No primeiro momento Angélica não viu em que isso impediria sua entrevista e por que
ele proferia aquelas palavras em voz tão lúgubre. Depois, por intuição, lembrando-se da
conversa que tivera na véspera com o mordomo Tissot, entendeu as razões profundas da
preocupação do bispo.
 Temeria, monsenhor, que essas hóstias tivessem sido roubadas com vistas a serem
utilizadas em operações mágicas?
 E sempre com esse desígnio que se roubam hóstias — replicou ele tristemente.
 Mas, em Quebec, monsenhor... é possível? É uma terra nova, devota, austera...
costumes corr aptos assim não podem difundir-se aqui.
 É uma pena! — repetiu o bispo. — Os tempos já não são os mesmos. Antigamente,
neste país, o vício era quase desconhecido. Vivia-se somente de devoção e religião, de
harmonia e caridade. Mas os perjúrios e as vilezas dos mercadores fizeram-no prevalecer
sobre a retidão e a sinceridade dos missionários. Acolhe-se um número excessivo de
ovelhas negras, de pessoas escandalosas...
 Monsenhor, não estariam querendo impedir-me de ver a Madre Madalena a fim de
prejudicar-me?
Ele meneou a cabeça, apaziguador.
— A entrevista fica somente adiada — disse. — Depois do roubo, as senhoras
ursulinas iniciaram uma novena para compensar o mal que talvez seja praticado com o pão
sagrado. Há que aguardar pelo término da penitência. Mas não pretendo esquecer sua
solicitação — acrescentou.
Angélica agradeceu-lhe calorosamente. Tivera razão de dirigir-se ao bispo em primeiro
lugar. Ele parecia ter uma visão justa e saudável da situação.
Revelava-se uma personagem sensível e interessante. Probo, virtuoso, homem da Igreja
e nascido para sê-lo. Dizia-se que recebera a tonsura aos nove anos de idade.
Era bem o homem sólido e íntegro que se devia ter à testa daquela imensa diocese, três
ou quatro vezes maior do que a França...
— Monsenhor — disse-lhe —, posso fazer-lhe uma pergunta por simples curiosidade?
Por que lhe dão o título de bispo de Petréia, que, pelo que me parece, é uma cidade da
Mesopotâmia, nas escalas do Levante, quando o senhor é bispo do Canadá?
O monsenhor sorriu e disse que o estranho arranjo era fruto das encarniçadas
rivalidades de que sua candidatura fora alvo. O bispo de Rouen, de quem ele dependia,
recusara-se a nomeá-lo porque ele fora proposto pelas missões estrangeiras e apoiado por
Roma.
— A maioria dos fundadores do Instituto das Missões Estrangeiras são meus amigos
íntimos e queriam-me neste posto. De minha parte, eu pedira o Tonquim. Solucionou-se a
questão com a aplicação de um artigo do direito canónico que me permitia dispensar a
ordenação do bispo de Rouen. Fui ordenado bispo in partibus infidelium ou,
abreviadamente, bispo in partibus. E uma convenção. O bispo in partibus é promovido para
um bispado situado num país que se tenha tornado infiel, isso desde o século XII, cm seja,
quando os muçulmanos se apoderaram de cidade no Oriente ou na Africa que pertenciam
aos grandes reinos cristãos de Bizâncio ou Jerusalém.
Continuam-se a nomear para lá bispos que não podem exercer suas funções e residem em
países católicos, mas que pela sua presença parecem conservá-los no reino de Deus. Foi
assim que o núncio papal, Piccolomini, ele próprio bispo de Cesaréia, na Palestina, me
nomeou bispo de Petréia, numa tocante cerimónia que se realizou em
Saint-Germain-des-Prés, em Paris. Em seguida pude receber o vicariato da Nova França.
 Então as cabalas e conflitos nâo estão excluídos dos domínios em que obram os
servidores de Deus?
 Tanto quanto de qualquer outro lugar — disse o bispo, filosófico. — Talvez até
mais. Mas Deus redime a mesquinharia dos seres.
Angélica não ocultou a ele a admiração que lhe inspirara a magnificência das
cerimónias. Ele sentiu-se tocado. Falou-lhe com mais confiança. Sua maior preocupação
era ver os comerciantes de peles levar álcool para os selvagens, que se permitiam excessos
terríveis.
— Infelizmente os selvagens querem álcool em troca de suas peles — disse Angélica.
— Dizem que o álcool os põe em comunicação com o Além. E é difícil fazê-los entender o
dano que causam a si próprios.
O bispo não a seguiu nesse terreno. Nesse caso específico, os brancos eram culpados, os
selvagens também, e deviam todos fazer penitência.
— O mais simples seria não levar-lhes bebida — atalhou.
Quando se tratava de comércio de aguardente, ele perdia todo o bom humor, e
excomungaria a terra inteira.
— A Nova França poderia sobreviver sem peles?
— Seria você de tendência um tanto molinista? — sugeriu ele, referindo-se ao
molinismo, doutrina do jesuíta espanhol Luís de Molina (1535-1600), que visa a conciliar o
livre-arbítrio com a graça e a presciência divinas.
Angélica sentiu um leve pânico. Felizmente, colhera outrora nos salões parisienses
alguns conhecimentos sobre as ideias filosóficas e teológicas em voga, que lhe voltaram à
mente. E ela pôde responder que certa indulgência pelas fraquezas do próximo não quer
dizer liberalidade sem discernimento, menos ainda indiferença pela sua salvação.
A resposta deve ter sido excelente, pois o rosto do Monsenhor de Lavai iluminou-se.
Pareceu satisfeito e até vagamente divertido por não haver conseguido confundi-la.
— Você tenciona ingressar na Confraria da Sagrada Família? — indagou.
Tal proposta, vinda dele, mostrava que doravante a considerava digna de fazer parte da
confraria. Ela esquivou-se.
 A Sra. de Mercourville me falou a respeito...
 E uma irmandade a que a colónia deve grandes graças. Explicou que no Canadá era
preciso ter-se uma irmandade.
— Nos perigos sem conta que nos acometem, os encargos esmagadores, as
responsabilidades que recebemos neste país onde tudo está por fazer, onde nossa própria
sobrevivência está permanentemente em jogo, é bom obter o socorro das forças divinas por
intermédio de algum santo protetor, que cria o elo entre nós, pobres mortais, e o Altíssimo,
a quem Ele contempla na sua glória.
A Sagrada Família — Jesus, Maria, José, pobres, laboriosos, unidos — oferecia uma
imagem ideal ao povo isolado do canada.
Por extensão, São Joaquim e Santa Ana, avô e avó da Criança Divina, também
recolhiam muitos sufrágios.
Monsenhor de Lavai falou em seguida do culto ao Menino Jesus, a quem chamava de
Reizinho de Graça ou Reizinho de Glória.
A Catedral de Nossa Senhora de Quebec era consagrada ao patronato conjunto de São
Luís, patrono do reino da França, e da Imaculada Conceição, irmandade mariana, cujo valor
soberano mais e mais se descobria. Madre Maria da Encarnação, uma das fundadoras
ursulinas que morrera recentemente em Quebec e que a Igreja certamente reconheceria um
dia como uma de suas grandes místicas, tão evidente era a sua afinidade com Santa Teresa
d'Ávila, tinha o hábito de dirigir-se ao Pai eterno.
O Santíssimo Sacramento também tinha os seus adeptos. Talvez até predominasse, mas
não se podia saber ao certo, pois era uma confraria secreta muito influente. Podia-se
adiantar que a maioria das pessoas de destaque faziam parte dela, e não se devia esquecer
que Gastão de Meury, que fora a alma dessa irmandade, encontrava-se na base da fundação
do Canadá e do seu clima místico.
— Consulte seu confessor — disse-lhe o bispo, levantando-se —, ele a aconselhará.
Todos devemos ter um amigo para interceder por nós no céu.
Angélica fez uma genuflexão para beijar o anel pastoral. O bispo não parecia
descontente com a entrevista. Devia aprovar as pessoas que não o temiam e que debatiam
francamente com ele... Acompanhou-a até a porta.
No pátio do seminário, Angélica parou e respirou fundo duas ou três vezes. O ar estava
gelado e revigorante. Ocorreu-lhe que se uma conversa com o bispo a esgotara a tal ponto,
como não teria sido se tivesse precisado enfrentar o Padre d'Or-geval? Graças a Deus! O
céu só lhe enviava provas na medida de sua forças. Levando-se" em conta todos os temas
abordados, roçados, contornados, as questões feitas, as ciladas armadas, e se se excetuasse
o molinismo, no qual ela derrapara um pouco, concluiu que não se saíra muito mal. Tinha
que reconhecer as suas "insuficiências", como dizia Margarida Bourgeoys, admitir que
andando por matas e mares não se enriquecera muito no domínio da teologia, da filosofia e
da retórica.
As senhoras da Nova França possuíam em sua maioria um elevado grau de cultura. Ia
pedir-lhes livros e daria um jeito de ir às conferências e sermões.
Além disso, precisava encontrar um confessor o mais breve possível, e escolher uma
irmandade.

CAPITULO XXIV

A reunião do Grande Conselho

Anunciava-se uma terceira aurora.


Naquela manhã se reuniria o Grande Conselho, e Angélica fora convidada.
Para o lado da margem de Levis, onde se acendiam os primeiros candeeiros atrás das
janelas das casas, viam-se mover-se as flores vermelhas dos vasos de fogo levadas pelos
camponeses ao embarcadouro.
Era dia de mercado. Eles atravessavam o rio para ir a Que-bec com legumes, ovos, leite,
manteiga, peixes frescos e defumados, carne ou charcutaria. Começava-se a adivinhar o
bulício discreto da enseada, onde dois navios ancorados balançavam suas lanternas. Balsas
carregadas destacavam-se da sombra das falésias.
Depois, a leste, uma longa barra de um denso alaranjado surgiu acima do festão negro
dos Apalaches. A claridade subia, lenta, como se encontrasse dificuldade em abrir caminho
na confusão noturna que engolia ilhas, cabos e costas cobertas de florestas. Aquela parte do
mundo ainda pertencia à génese, ao caos.
O dia seria nublado. Nada da claridade da véspera. Naquele dia a manhã molhada
deixava a cidade bem-comportada e simples.
Depois de contemplar a distância da soleira da casa, Angélica desceu a Rue de la
Petite-Chapelle, modestamente escoltada pelo Sr. de Barssempuy e por Piksarett. Dirigia-se
à reunião do Grande Conselho, em honra deles.
Era uma reunião excepcional, destinada a resolver as questões suscitadas pela chegada
deles à cidade. Ela seria a única mulher, com a Sra. de Mercourville, cuja opinião era
considerada preciosa pelo conhecimento que ela possuía das questões de caridade e a
competência com que secundava o intendente Carlon nos seus esforços para o
desenvolvimento comercial e artesanal da colónia.
Atingindo a Place de la Cathédrale, Angélica encontrou Jof-frey de Peyrac, que chegava
do solar de Montigny com o conde d'Urville, Kuassi-Ba, quatro espanhóis a ladeá-lo e o seu
escudeiro bretão, Yann Le Couénnec, encarregado dos sacos que continham papéis e
documentos que ele talvez precisasse mencionar durante a sessão.
Dois carregadores de tochas e dois jovens tambores precediam o pequeno grupo. Os
tambores cadenciavam-lhes o avanço com discretos rufares intermitentes, mas que
bastavam para fazer sair de todos os cantos inúmeras pessoas já atarefadas, apesar da hora
matinal. Levantava-se cedo em Quebec.
Atravessando a grade do seminário, meninos e adolescentes, de uniforme preto, em fila
e de mãos dadas, cruzaram a praça dirigindo-se aos jesuítas, onde os aguardavam seus estu-
dos de gramática, matemática, teologia e mecânica. Um jovem clérigo e um "engajado" os
acompanhavam.
Angélica, o Conde de Peyrac e seu séquito subiram a Rue du Fort para chegar à Place
d'Armes, ao fim da qual, do lado do rio, erguia-se o Castelo Saint-Louis, residência do
governador. Fora construído no local do primeiro forte edificado por Champlain para
proteger a habitação a seus pés. Portanto, situava-se no lado mais escarpado da montanha,
bem acima da Cidade Baixa.
Nessa época, era uma grande construção de dois andares, estendendo-se de norte a sul à
beira da falésia, com grandes telhados cobertos de ardósias importadas da França, altas e
inúmeras chaminés. A entrada ficava a oeste, dando para um pátio cercado por um muro e
pelos prédios que alojavam os militares.
Desembocava-se na Place d Armes, plantada de olmos e bordos, no centro da qual se
ajeitara um espaço aberto para que os soldados pudessem exercitar-se. Emergindo das ruas
adjacentes, chegavam silhuetas envoltas em abrigos e agasalhos. Vindo da rua a que
chamavam de Grande Allée, dois cavaleiros desmontaram e amarraram as montarias na
esquina do pre-bostado, de onde saiu a silhueta atarracada do tenente de polícia, o Sr.
Garreau d'Entremont. Depois de se cumprimentarem, os três homens seguiram também
para o Castelo Saint-Louis. Chegando da cidade, uma carruagem os ultrapassou. Rangia
nos eixos, e as ferraduras dos cavalos deslizavam pelas pedras envernizadas pela geada
branca. O Sr. de Frontenac retornava da missa. Como estava em guerra surda contra os
jesuítas e pouco desejoso de favorecer o bispo, ia confessar-se e ouvir missa com os
recoletos, que tinham um pequeno convento afastado da cidade, sobre o rio Saint-Charles,
perto de Notre-Dame-des-Anges.
Poucos dignitários em Quebec começavam o dia sem assistir ao santo sacramento da
missa e comungar. Em todas as estações, e, se fosse preciso, no inverno também, na noite
mais negra, aqueles senhores corriam aos seus padres-nossos. Cada um tinha uma devoção
particular e, para honrá-la, professava uma birrenta fidelidade.
Uma vez por semana o intendente Carlon mandava abrir a pequena Capela de
Sainte-Foy, isolada, no cruzamento de algumas ruas e caminhos, entre as ursulinas e o
bairro de Sainte-Anne.
Garreau d'Entremont, duas sextas-feiras'por mês, requisitava a capela lateral da catedral,
.dedicada a São Miguel Arcanjo, e mandava celebrar uma missa solene com três oficiantes,
ninguém sabia com que intenção, mas que aos olhos do tenente de polícia civil e criminal
devia revestir-se de uma gi portância, pois ele não falhava nunca.
Frontenac saltou da carruagem ao passar perto do: de Peyrac. De rosto afogueado .pelo
ar frio, sorriden a mão de Angélica e passou o braço sob o dela.
— Senhora, perdoe a indivíduos infatigáveis por have na convocado em hora tão
matinal... Para tudo o que te a debater, creio que mesmo várias horas seriam insufjcit Por
outro lado, sua presença é indispensável... Ah, que digo eu? Mostro-me hipócrita. Para
requisitar sua presença entre nós, invoco todo tipo de boa razão, tal como a necessidade de
recorrer a sua competência para determinar o destino das jovens naufragadas que trouxeram
consigo, e esta ou mais aquela... mas, na verdade... e isto vale para aqueles senhores tanto
quanto para mim, aposto... creio que já não podemos passar sem você...
O galanteio fez Angélica sorrir. Declarou que se sentia feliz por participar do Conselho,
pois fazia longos meses que Que-bec era o centro.dos seus pensamentos.
Adentraram o pátio do castelo por um grande pórtico encimado de um escudo e uma
cruz-de-malta, entalhados no arco de pedra. A entrada era flanqueada por dois corpos de
guarda. Saíram alguns militares para apresentar armas.. Piksarett respondeu-lhes com um
gesto nobre da mão levantada. Estava usando o famoso casaco vermelho de oficial inglês, o
que não o impedia de calçar mocassins. Os cabelos, cuidadosamente untados de gordura de
urso, em tranças metidas num estojo de patas de raposa, estavam encimados por um chapéu
de castor com duas plumas negras de avestruz, presente do governador. Piksarett se
convidava para o Conselho, o que não incomodava a ninguém. Foi o primeiro a penetrar na
residência senhorial.
Os carregadores de tochas apagaram os bastões resinosos num balde de areia. Agora, já
era dia claro.
O Sr. de Frontenac conduziu Angélica até o terraço que dava para o rio, uma galeria
lajeada e protegida do precipício por uma balaustrada de ferro forjado, acompanhando toda
a fachada leste.
Desse belvedere, tinha-se uma vista esplêndida do Saint-Laurent e das montanhas. As
fumaças da Cidade Baixa subiam suavemente, revoluteando. Um pouco abaixo, à direita,
um fortim de madeira, agarrado como que por milagre ao flanco rochoso, tinha a
incumbência de vigiar os arredores escarpados e quase inacessíveis daquele lado do castelo.
Frontenac estava feliz. O sol levante inundava o terraço e banhava a fachada do Castelo
Saint-Louis na sua luz baixa e, por isso, mais ofuscante. Refletia-se nos olhos de todos. O
sol, enorme entre as nuvens arroxeadas e alongadas, parecia olhá-los de frente. Antes de ser
tragado pela abóbada baixa do céu, de um cinza pálido, o astro do dia lançou em todas as
dire-ções um facho de raios, e depois seu clarão se extinguiu.
— Não ficarei admirado se nevar — disse o governador.
Entraram diretamente na sala do Conselho. As portas-janelas se abriam para o terraço.
Lacaios vieram fechá-las.
A uma extremidade do imenso aposento, um grande fogo crepitava na lareira
monumental, dispensando calor e claridade. Acima da cornija de mármore, erguia-se um
grande quadro reproduzindo uma alegoria à glória do rei da França e que se dizia ter sido
pintado por um discípulo do célebre Le Brun. Na parede em frente havia um retrato da
Condessa de Fron-tenac, vestida de guerreira, com um elmo de aço cintilante e plumas.
Nem por isso renunciara aos seus belos brincos de diamantes e pérolas. Mas empunhava
um arco com orgulho, enquanto se adivinhava uma aljava bem carregada de flechas atrás
dela, na penumbra ambiental do quadro, destinada a realçar com mais brilho a pele
nacarada do rosto da condessa e de seus braços roliços. Angélica, que conhecia a reputação
de beleza da Sra. de Frontenac, achou que o pintor não a lisonjeara. Dizia-se que o rei a
cobiçava e que essa fora uma das razões a contribuir para que Luís de Buade, Conde de
Frontenac, fosse nomeado para o governo do Canadá.
Dos dois lados da lareira erguiam-se estandartes reunidos em feixes por escudos de
madeira pintados com as armas do rei e da cidade de Paris.
A grande sala era muito solene. Não era Versalhes, mas alguma coisa trouxe o reflexo
do palácio do rei quando o governador se aproximou a passo majestoso da longa mesa
disposta no centro do salão e que ele presidiria.
Frontenac fez Angélica sentar-se à sua direita e o Sr. de Bar-dagne à sua esquerda.
O olhar de Angélica cruzou-se com o do emissário do rei, e ela não pôde deixar de
sorrir-lhe.
Enquanto isso, os cavalheiros não cessavam de chegar. Alguns faziam soar as esporas
nas lajes, outros batiam os saltos altos dos sapatos de fivela. Finalmente, um majestoso
ruge-ruge de sedas e cauda, o bispo em sotaina de corte e manto violeta fez sua entrada,
seguido do camareiro.
Monsenhor de Lavai tomou assento ao centro da mesa. Do outro lado, em frente a ele, o
intendente Carlon. Os demais membros do Conselho e os que tinham sido convidados a
participar da sessão excepcional dispuseram-se também ao redor da mesa. A maioria usava
chapéu, manto, e os gentis-homens, espada.
O homem chamado Basílio veio de gorro de pele e capa de pele forrada, de que se
desembaraçou para aparecer em colete de botões de chifre e peitilho de pano ordinário.
O Marquês de Yille-d'Avray, que, empoado e perfumado, se sentara à direita de
Angélica, confiou-lhe que o Sr. Basílio participara de tantos Grandes Conselhos, há mais de
vinte anos, que ninguém se importava mais com o seu desleixo, da mesma forma como se
aceitava a presença inevitável do seu amanuense, Paulo Le Foliet, sempre a seu lado ou
debruçado atrás de sua cadeira... O escrivão Carbonnel tentara inscrevê-lo nas atas sob o
nome de Lefollet, mas o amanuense, assistido por Basílio, fizera retificar para Le Foliet ou
Le Fou. No fim, todos acabaram aceitando ;lhe o nome, a presença e o ar zombeteiro.
Basílio valia, sozinho, todos os tabeliães, notários ou homens de lei da colónia. Tinha o
dedo nos mercados da Cidade Alta e da Baixa, na localização dos entrepostos e das praias
de desembarque, numa infinita variedade de negócios sem expressão que sua habilidade e
conhecimentos jurídicos tom prósperos.
O índio Piksarett insinuou-se entre Angélica e o Sr. de Frontenac. Vendo isso, o
governador pediu-lhe que presidisse ao seu lado. O narrangasset achava que devia
participar de um conselho em que se debateria a sorte da Acádia. Ele representava as tribos
da confederação abenaki, aliada dos franceses, a parte algonquina de sudoeste, do encontro
do oceano com os rios Penobscot e Kennebec, onde se integravam etnias importantes:
mic-macs, etchemins, malecitas, pesmacodics, penta gouets... Pôs-se a alinhar uma série de
bastõezinhos sobre a mesa.
Os conselheiros, que se acomodavam, olharam no preocupados. Em princípio, não temiam
a eloqüência do índios. Sabia-se que eram capazes de sustentar homilias de várias horas.
Quando tinham a intenção de proferir um longo discurso, utilizavam pequenos bastões para
se lembrarem melhor dos pontos que desejavam discutir. Cada pauzinho representava um
tópico da arenga. Colocavam-nos à sua frente. Alguns iam aumentando-os, outros
retirando-os, à medida que falavam. piksarett, então, parecia antever comunicações
importantes. É como cada uma das pessoas convocadas se encontrava no mesmo estado de
espírito, já podiam preparar-se para lutas acaloradas a fim de obter ou conservar a palavra.
A Sra. de Mercourville apresentou-se seguida de um escravo índio, da raça panis, que
ela comprara de "viajantes" retornados dos Grandes Lagos. O homem estava desfigurado
por uma queimadura recente que lhe marcava a face direita com o sinete da flor-de-lis, mas
nem por isso ele carregava com menos altivez a sacola de tapeçaria de onde a ativa dama
tirou um maço de papéis.
— Não poderemos tratar de tudo nesta reunião — admitiu a Sra. de Mercourville ao
cumprimentar Angélica —, mas pelo menos vou tentar obter uma situação clara para suas
Moças do Rei. Você fez sua parte de caridade em relação a elas. Cabe-nos fazer a nossa. O
procurador e o intendente haverão de discutir quando se tiver que tratar dos créditos, mas o
intendente sempre acata minhas opiniões, pois prestei-lhe um grande auxílio com relação a
seu comércio com as Antilhas.
Ela era crioula, nascida nas ilhas ensolaradas de que o seu pai era o governador. Isso lhe
dera o gosto pelas coisas do mar e pelas transações dos produtos diversos que adornam os
portos do Caribe, numa efervescência de movimentos, cores e perfumes das mais
excitantes: trigo por açúcar, madeira por seda, escravos por tabaco, munições por rum, etc.
Antes da abertura da sessão, a Sra. de Mercourville encontrou um jeito de comunicar a
Angélica que possuía relações importantes em Paris, e uma delas em particular lhe era mui-
to preciosa. Tratava-se de uma amiga de infância com quem ela partilhara os primeiros
folguedos sob os flamboyants da Martinica, depois os anos de internato na França.
Retornando às Antilhas, não cessara a correspondência com a amiga, que atual-mente
gravitava em Versalhes na comitiva do rei e soubera cativar-lhe a atenção. Começava-se a
pronunciar o nome dela como o da futura favorita.
 E como se chama sua amiga? — indagou Angélica, curiosa por conhecer uma rival
de Atenaís de Montespan.
 A Marquesa de Maintenon.
Angélica rebuscou na memória, mas o nome não lhe lembrava nada. A Sra. de
Mercourville foi sentar-se modestamente perto de Pedro Gollin, que era o mais
inexpressivo dos cinco conselheiros.
Não queria dar a impressão de imiscuir-se entre os membros nomeados do Grande
Conselho, mas naquele dia a reunião quase apresentava mais convidados do que integrantes
habituais.
Fora o procurador régio do Grande Conselho, Natal Tar-dieu de La Vaudière, que
decidira prender o Sr. d'Arreboust, e ninguém se admiraria se este lhe guardasse rancor e se
houvesse reflexões acerbas de ambas as partes.
Angélica viu o rapaz de que falavam avançar a passo seguro. Conversou em pé com o
Sr. Carlon antes de resolver sentar-se, não sem correr pela assembleia um olhar de uma
lentidão calculada e desagradável.' A expressão implacável empanava-lhe a suavidade azul
dos olhos. Angélica não pôde deixar de admirar mais uma vez o porte e a beleza daquele
rapaz, que a inclinavam à indulgência. Lembrou-se de que a mulher dele era aquela
fascinante Berengária Amada, cuja amabilidade e vivacidade a tinham cativado.
— Um casalzinho ambicioso... bah... — murmurou Ville-d'Avray, quase sem mexer os
lábios. — Pena que a mulher seja tão bonita... e ele tão belo...
O Conde de Loménie-Chambord trajava com modéstia um costume cinzento de corte
militar. A luz um pouco atenuada que entrava pelos vitrais das janelas, aquele rosto de
traços finos refletia a mansidão distante dos seus pensamentos, e Angélica achou-lhe o ar
triste.
O intendente Carlon, embora falante e respondendo a todos, pareceu-lhe objeto de um
devaneio melancólico, e ela intuiu que os dois homens, a quem se considerava unida por
vínculos de amizade e gratidão, estavam às voltas com uma querela pessoal. O olhar de
Loménie acabou encontrando o de Angélica. Percebendo que era a ele que ela fitava, o
conde pareceu surpreso e sorriu.'
O intendente, em compensação, franziu o cenho. Ele e Angélica estavam afastados
demais para poderem comunicar-se com palavras, mas idêntico pensamento ocorreu-lhes
no mesmo instante: o tema da Duquesa de Maudribourg, de sua vinda, ou melhor, de sua
não-vinda, seria abordado, e para muitos deles o momento seria difícil.
Joffrey estava à cabeceira da mesa, no seu gibão de veludo vermelho com bordados de
prata. Uma fita de chamalote sustentava-lhe ao peito uma estrela de brilhantes. Observando
uma a uma as pessoas presentes, Angélica indagou-se se entre elas se encontraria o
"espião" de Joffrey.
Fora pelas indicações desse espião que o Conde de Peyrac se decidira quanto à escolha
dos presentes, quando os separara na praia de Tidmagouche. Era de crer que ele atendera
aos desejos de cada um e, sobretudo, de cada uma, pois corriam os boatos mais
entusiasmados a esse respeito. Somente a Sra. de Castel-Morgeat não recebera o encantador
bibelô de ouro e esmeralda que fora reservado para ela.
Onde estaria naquele momento Sabina de Castel-Morgeat? Devia estar entocada lá em
cima, em seu apartamento no Castelo Saint-Louis, a pensar que sua própria casa se
escancarava para os intrusos a quem quisera repelir a canhonaços, e que agora se sentavam
vitoriosos na sala do Conselho.
Antes de abrir a sessão, o governador pediu ao bispo que a abençoasse com uma breve
oração. Ele próprio invocou a São José a bondade de iluminá-los com sabedoria nas suas
deliberações. Depois de responderem três vezes "Rogai por nós" à invocação "São José,
patrono da Nova França", todos se sentaram de novo.

CAPÍTULO XXV

O Grande Conselho delibera

Sabia-se que o objetivo da reunião do Conselho extraordinário era discutir tudo que
concernia à presença na cidade do Sr. de Peyrac e suas tropas. Seria a ocasião de se discutir
o rumo que os acontecimentos tinham tomado e reexaminar diferentes aspectos que só fora
possível mencionar de passagem, quando da assembleia noturna da primeira noite. Cada um
redigira um apanhado e conjecturava sobre as próprias possibilidades de intervir nos
debates. Mas ninguém esperava o ataque do procurador Tardieu e a natureza de suas
reivindicações. Tiveram todos que admitir que, se ele desejara causar pasmo, atingira
plenamente o alvo.
O jovem Tardieu de La Vaudière, no tom autoritário de que gostava, ergueu-se contra a
ação fraudulenta que consistia em introduzir na Nova França mercadorias estrangeiras e
pô-las em circulação sem antes haver-lhes saldado as taxas alfandegárias.
 Que mercadorias? — perguntou o intendente.
 De todo tipo.
 Mas quais?
Natal Tardieu fez um sinal a seu escrivão para que lhe passasse um longo relatório,
cheio de dados, que ele leu apressadamente com gestos de mãos que davam a entender que
ele saltava trechos, tanto havia o que ler.
— Quadros religiosos de bela confecção. Ornamentos de igreja, objetos de culto,
objetos de ouro, de prata, marfim, prata dourada, pedras preciosas, tecidos, sedas, veludos,
tapeçarias, esmaltes, nácares, objetos científicos em que entram ébano e palissandra,
mármore de Carrara, etc. — E prosseguiu: — Perfumes, fumo da Virgínia e de Maryland,
vinhos e licores de diferentes procedências, etc.
Mercadorias duplamente taxadas, não somente como estrangeiras, mas também como
de luxo. Numa primeira estimativa, ele avaliava ali uma soma vultosa, de que o devido, e
não pago, à colónia não podia passar em silêncio. Certos objetos precisariam ser
examinados com cuidado, como o relicário de prata dourada, por exemplo, pois para
estimar-lhe o valor era necessário saber se ele trazia uma marca de origem ou não.
 Mas isso são presentes! — bradou Monsenhor de Lavai, melindrado com tais
pretensões.
 Perdão, mercadorias — não temeu retificar o jovem procurador.
 Não contou as munições? — ironizou Ville-d'Avray. — As duas balas estrangeiras
que foram fixar-se na parede do Sr. de Castel-Morgeat?
 Não conto as munições — tornou o outro —, mas um navio, sim... o que não é nada
negligenciável... O seu, Sr. de Ville-cTAvray.
E como o marquês ficasse sem palavras:
— Não lhe ouvi dizer que um dos navios ancorados na baía lhe pertence, um presente
que o Sr. de Peyrac lhe teria dado?
Ville-d'Avray ficou rubro de indignação. Durante alguns instantes, Natal Tardieu de La
Vaudière pôde perorar a seu bel-prazer e fazer ressoar as abóbadas decoradas com frisos de
madeira do salão do Castelo Saint-Louis com sua voz sonora e bem-colocada, já que seu
requisitório tivera a virtude de fechar a boca de todos os presentes.
O bispo, desconcertado, indagou-se se não haveria um atentado à Igreja ou à sua pessoa
naquela aplicação excessivamente conscienciosa das leis temporais.
Frontenac não encontrava o que dizer. Desde que desembarcara no Canadá, aquele
jovem administrador cheio de promessa não parava de preocupá-lo, tanto quanto de
pasmá-lo.
Os mercadores, taciturnos, meditavam sobre as dificuldades que já tinham
experimentado e que não deixariam de experimentar ainda com um procurador fiscal tão
astuto quanto fanático.
 Mas aquele navio me foi dado em troca do meu pobre Asmodée, afundado pelos
bandidos! — explodiu afinal Ville-d'Avray, que recobrara o fôlego. — Cuidado! Se me
provocar, reclamarei uma indenização pelo que perdi a serviço do rei. E, acredite-me, o
montante ultrapassaria de longe o que tenta arrancar-me como taxas, abutre...
 Quer insinuar que se trata de uma presa de guerra? — interrogou o intratável,
avançando um lábio desdenhoso.
 Presa de guerra! — exclamou Basílio, batendo com as duas mãos na mesa.
Desde o início da altercação, ele permanecera pensativo, acariciando o queixo e
examinando Natal Tardieu de La Vaudiè-re, como faria com um animal desconhecido, mas
cujos motivos é absolutamente necessário entender a fim de torná-lo o menos perigoso
possível e reduzi-lo ao silêncio.
— Presa de guerra! Eis a solução, meu rapaz — continuou, pousando a mão no braço
do procurador, que não apreciou muito a familiaridade. — Estaria eu enganado ao supor
que você está menos preocupado em receber essas taxas para metê-las nas caixas do Estado
do que em encontrar uma justificação para a livre entrada dessas mercadorias, sem que se
possa acusá-lo, em altas esferas, de negligência ou mesmo de conivência com os
defraudadores? Sua posição nem sempre é fácil, e não lhe queremos mal por isso. Sabemos
que você é como todos nós, e que não faz tanta questão assim de pagar um imposto sobre o
maravilhoso relógio de ouro e esmalte de que sua esposa se ufana desde ontem,
alinhando-se assim entre os culpados. Sua observação a propósito do navio do Sr. De
Ville-d'Avray prova que está a caminho de uma forma conciliatória que satisfaça a todos.
As presas de guerra, consideradas como butim, não são taxadas...
Ville-dAvray, compreendendo a intenção do negociante, lançou-se num dramático
relato, tendendo a demonstrar com ardor como seu navio fora conquistado em luta
encarniçada com horríveis piratas. Falava com convicção. Os acontecimentos trágicos do
verão não estavam assim tão distantes.
— Pouco faltou para que eu ali deixasse a minha vida... — o que era verdade. Em todo
caso, ele perdera o navio, o Asmodée. Começava a traçar um quadro sombrio da situação na
baía Francesa, infestada de ingleses e de piratas de todas as nações, mas os assuntos da
Acádia aborreciam Frontenac.
 No que concerne a seu governo da Acádia — disse ele a Ville-d'Avray —, teremos
uma sessão especial. Hoje, nosso objetivo é iniciar conversações com o Sr. de Peyrac, e
estamos a nos perder em discursos frívolos. Sr. de La Vaudière, decida-se, peço-lhe, e eu o
aconselharia a fazê-lo no sentido proposto pelo Sr. Basílio, que me parece conciliar o seu
justo desejo de isentá-lo de toda a responsabilidade e a cortesia que nos deve e que deve
reinar entre nós. Conservaremos os nossos presentes: presa de guerra...
 Então a embarcação me pertence, sem contestação possível? — certificou-se
Ville-d'Avray.
 Plenamente.
No alívio que se seguiu, o intendente Carlon teve uma frase infeliz. A Ville-d'Avray,
que começava a enumerar os trabalhos que tencionava realizar para embelezar sua "presa
de guerra", ele lançou, secamente sarcástico:
 Mas comece mandando exorcizar seu navio...
 Exorcizar por quê? — perguntou o Monsenhor de Lavai, admirado.
João Carlon mordeu a língua. Como a evocação do navio o reconduzira aos eventos
diabólicos de que, malgrado seu, fora testemunho, ele falara sem pensar. Saiu-se com um
"Eu estava brincando", que surpreendeu mais ainda, pois ele passava por uma pessoa de
espírito austero e não era comum vê-lo brincar. O marquês foi-lhe em socorro, explicando
que o navio fora tripulado por corsários, certamente ateus.
O bispo aproveitou o pretexto para comunicar ao Grande Conselho uma decisão que
tomara desde a véspera. Observou que cada vez mais, com o correr dos anos, chegava à
Nova França uma ralé de um e outro sexo, que causava inúmeros escândalos: impurezas,
estupros, furtos, assassinatos, atos de magia e de feitiçaria. Uma forte armadura religiosa
era a melhor defesa contra esses perigos. No entanto, para maior segurança, o bispo
resolvera, neste ano, ordenar um exorcista.
Os três primeiros conselheiros, que eram devotos, aprovaram. O Sr. de Frontenac,
descontente, disse consigo que o bispo bem poderia ter esperado para estar no púlpito,
domingo, para fazer seu comunicado. Mas, antecipando-se a ele, Monsenhor de Lavai
expôs que julgara preferível prevenir primeiro o Grande Conselho de seu projeto. Também
fazia questão de falar diante do Sr. de Peyrac, a fim de que este não se considerasse visado,
ele e sua comitiva, por uma decisão que deveria ter sido tomada há muito tempo pelas
autoridades eclesiásticas. Mas o mal era uma lepra que se alastrava insidiosamente. Era vão
mostrarem-se vigilantes, às vezes ele se antecipava. Sob uma aparência honrosa, pessoas
submetidas aos costumes nocivos e depravados da época desembarcavam em Quebec e trai-
çoeiramente lhe transformavam o espírito. Era preciso opor às influências deletérias as
armas tradicionais destinadas a combatê-las.
O Conde de Peyrac agradeceu ao monsenhor pela sua civilidade. Garantiu que todos os
homens sob sua bandeira respeitariam as leis civis e religiosas. Caso as infringissem,
seriam punidos com a mesma severidade que a bordo de seus navios.
O bispo concluiu, avisando que a cerimónia de ordenação do exorcista transcorreria no
sábado de Têmporas do Advento, dia reservado à ordenação dos "minorados", ou seja, das
quatro ordens menores ligadas ao serviço da catedral.
— Pois bem, falemos imediatamente sobre a Sra. de Maudribourg! — decidiu
Frontenac, sem adivinhar a perturbação em que sua abrupta intervenção lançava alguns dos
presentes, acelerando-lhes os batimentos cardíacos.
Falara sem intenção alguma. O encadeamento dos pensamentos o levara do navio de
Ville-d'Avray ao navio desaparecido da Sra. de Maudribourg, que se afogara deixando-lhe
nos braços um grupo inteiro de moças a casar.
Insensível à comoção que provocara involuntariamente, prosseguiu:
 O que aconteceu? Onde... quando ocorreu o naufrágio do navio dela, o... ?
 La Licorne — disse o sr. Gualberto de La Melloise.
 Está a par? — indagou Frontenac.
 Estou a par na medida em que a vinda desse navio fretado por uma dama benfeitora,
rica e devota, a Duquesa de Maudribourg, me fora anunciada para o outono e recomendada
por pessoas de destaque da Companhia do Santíssimo Sacramento, que nos pediram, ao Sr.
de Longchamp, ao Sr. de Va-range e a mim, que tratássemos de seu estabelecimento em
Quebec. Não sei mais nada.
Assim, Ambrosina previra seguir para Quebec, depois de cumprida sua missão
devastadora na Acádia. Sempre encontrava homens dispostos a colocar-lhe fortuna e navios
aos pés.
— Então? — perguntou o governador, correndo o olhar à volta.
O intendente Carlon tomou a palavra com sangue-frio. Contou como, durante sua
viagem de inspeção pela Acádia, encontrara os condes de Peyrac, que se preparavam para
zarpar para Quebec. Eles acabavam de recolher as únicas sobreviventes do naufrágio do La
Licorne, que se perdera completamente.
 Fui testemunha da miséria dessas infelizes. A sorte delas dependia unicamente da
sociedade constituída pela sua benfeitora, a Sra. de Maudribourg. O desaparecimento desta,
do navio, dos cofres das cartas e autos de contrato, deixou-as sem nada. Elas se diziam
Moças do Rei...
 Deve haver um meio de saber-se quem eram os comanditados e os associados da Sra.
de Maudribourg na França...
 Que meio? Não vejo meio algum, antes do regresso dos navios, na primavera...
 Uma dessas moças, Delfina, parece bem inteligente. Tentarei interrogá-la —
interveio a Sra. de Mercourville.
O Sr. Haubourg de Longchamp tirou dos bolsos uma tabaqueira e encheu as narinas de
tabaco, refletindo. O fato de esquecer-se de pedir licença para isso ao governador provava
sua preocupação. Estava preocupado de fato. Disse que o nome Maudribourg não lhe era
desconhecido. Na sua última viagem à França, tinha a impressão de que ouvira ecos
desfavoráveis a essa senhora, um pouco exaltada, cujos objeti-vos pareciam extravagantes.
 Quer dizer que a Sra. de Maudribourg carecia de fundos para sustentar seus
empreendimentos? — perguntou Tardieu de La Vaudière, alarmado.
 O Conde de Varange, porém, que a conheceu ligeiramente em Paris, garantiu-me que
a Sra. de Maudribourg herdara do marido uma fortuna enorme — retificou Gualberto de La
Melloise.
— A família do falecido faria oposição ao testamento, contra a viúva?
Gualberto não sabia nada de preciso. Ajudara na instalação da fidalga em Quebec
porque fora solicitado a isso pelo Sr. Le Charrier, que tinha em Paris o cargo de procurador
da Companhia do Santíssimo Sacramento, homem de grande mérito, membro da Ordem
Terceira da Penitência, franciscana. Este lhe garantira que a iniciativa da Sra. de
Maudribourg contava com o apoio dos jesuítas, sem proferir nomes, mas dando a entender
que se tratava de jesuítas influentes, próximos ao rei.
Os ruidosos espirros do Sr. de Longchamp, sob o efeito do tabaco, dispensaram-no de
lembrar-se com mais precisão.
Angélica, calcando a própria atitude na do marido, exibia a maior calma. Carlon não se
sentia à vontade, mas nada deixava transparecer.
— O que aconteceu aos mortos já não é da nossa alçada — atalhou. — Há que
determinar o destino dos vivos, ou seja, dessas moças que nos chegam completamente
despojadas, sem contrato, sem noivado, sem que possamos sequer mandá-las de volta para
a França, visto que a estação já vai demasiado avançada. Tampouco podemos ter certeza,
quando as comunicações se reiniciarem, de que encontraremos a sociedade que nos
reembolsará pelas nossas despesas.
Seguiu-se uma troca de propostas confusas e reservadas.
— Por que não apresentá-las a jovens desejosos de se estabe lecer, conforme estava
previsto?
Dispararam explicações e protestos.
— Elas já não têm dote. E será que são Moças do Rei mesmo? Onde se há de ir buscar
dinheiro para constituir-lhes um dote?
A Sra. de Mercourville entrou em cena. Deu prova de qualidades precisas de
organizadora, sugerindo que se deduzisse do orçamento da colónia as cem libras de dote
previstas para cada noiva, descontando-se essa despesa das gratificações previstas pelo
"Estado do domínio".
— Que seja — concedeu Tardieu de La Vaudière. — Mas então, senhor intendente,
será necessário prever uma diminuição nas somas que destina ao desenvolvimento de seu
baronato das ilhas Verdes.
— E é venenoso ainda por cima — sussurrou Ville-d'Avray a Angélica. — Esse rapaz,
um dia, acaba assassinado...
Desdenhando a reflexão, João Carlon propôs que ao invés disso se recorresse ao
"Estado do rei".
 A que departamento? — indagou o procurador.
 Assistência... — disse a Sra. de Mercourville.
 Religião — lançou Basílio.
Os três primeiros conselheiros insurgiram-se. Eram fabri-queiros de Nossa Senhora,
encarregados de gerir financeiramente a fábrica, ou seja, a paróquia de Quebec, e sabiam
como era estreita a margem que lhes fora concedida quando estabeleceram o "projeto de
fundos" para o ano seguinte.
O governador deu de ombros.
O "projeto de fundos" que previa as despesas acabava de ser enviado pelo último navio
do outono. Mais uma vez, só na primavera ficariam sabendo da decisão do rei, discutida pe-
lo Conselho da Marinha e do Comércio.
Nisso alguém sugeriu que se fizesse" recair as despesas sobre os proventos da fazenda
do rei, descontadas do imposto sobre as peles ou dos carvalhos abatidos para os mastros de
navios ou qualquer outro uso, mas cuja renda era reservada exclusivamente à coroa.
O intendente concordou com uma fórmula que lhe permitia poupar seu baronato das
ilhas Verdes, situada perto de Beauport.
Também era necessário reunir o indispensável enxoval. A Sra. de Mercourville
anunciou que se dirigiria às confrarias de caridade e às organizações.
Poucas mulheres dispunham de supérfluos no Canadá, mas cada uma delas conseguiria
descobrir no próprio guarda-roupa trajes usados de primeira necessidade.
Ainda faltava encontrar o mais difícil: o marido.
— Nossos jovens não são assim apressados por se estabelecer — confiou Frontenac a
Angélica.
Nascidos na terra, eram alegres doidivanas, loucos por espaço e liberdade. Para retê-los,
impedi-los de partir para as matas a tentar a sorte na aventura das peles e forçá-los a formar
uma família, tinham-se editado leis severas. Se um rapaz até a idade de vinte anos ou uma
moça até os dezessete não estivessem casados, os pais tinham que ir explicar-se às
autoridades. Pesadas multas incidiam sobre os genitores dos recalcitrantes. Na época em
que chegavam os comboios mais numerosos de Moças do Rei, todo celibatário que não se
casasse num prazo de quinze dias perdia os direitos de caça e pesca e sua "licença" de via-
jante, que o autorizava a partir para as tribos, a trocar mercadorias por castores. Valia dizer
que ele já não podia mais viver...

Depois de lembradas essas sanções, a Sra. de Mercourville, que tinha o espírito


engenhoso, pronto a tirar partido de todas as situações, sugeriu que se retirassem as cem
agulhas e os mil alfinetes previstos para o enxoval matrimonial de cada moça da
quinquilharia confiscada aos exploradores de bosques punidos por não se haverem casado.
Dali também se tirariam os utensílios de cozinha e objetos presenteados aos recém-casados
para encorajá-los: caldeirões, panelas, tesouras, machados para cortar lenha, facas, mantas...
O Sr. de Frontenac, por cortesia, não queria interromper a Sra. de Mercourville, mas
quando se começaram a contar alfinetes e agulhas, Angélica sentiu que ele estava a ponto
de explodir.
— Deixemos esses detalhes que fatigam estes senhores — propôs ela à eficiente
presidenta das Senhoras da Sagrada Família. — Irei vê-la, minha cara, e resolveremos isso
juntas. O principal é receber o acordo do Grande Conselho quanto ao sustento dessas
moças.
A aprovação parecia obtida. Natal de La Vaudière fez uma última restrição.
 Todas elas são "senhoritas"? Pois o dote de cem libras é previsto somente para as
jovens de boa família, pobres mas de boa educação e que são destinadas ao casamento com
oficiais ou funcionários da colónia. Para as órfãs ou moças do asilo, são só cinquenta
libras...
 Está fazendo tempestade em copo d'água! — bradou Frontenac, já impaciente. —
Acabemos com isto! Escrivão, tome nota!
Começou-se a ditar as modalidades do contrato que comprometia o Estado a dotar as
jovens a casar.
Elevou-se uma voz:
— Precisaríamos de mais detalhes sobre o naufrágio do La Licorne. A benfeitora
morreu mesmo? Não poderemos ficar com imprecisões, quando os herdeiros ou os
comanditários dessa viúva vierem nos pedir contas.
Era o gordo tenente de polícia, Garreau d'Entremont, que intervinha, sem deixar de dar
à sua pergunta uma forma que lhe traía inegavelmente a função.
A observação provocou um pesado silêncio.
 Quem foi testemunha da morte da Sra. de Maudribourg? — perguntou ele.
 Eu — respondeu Carlon.
E acrescentou, fitando o interlocutor com um olhar que não admitia réplica:
— Vi o cadáver dela. Poderia indicar-lhe a localização de sua tumba. Isso não entrava
em nada as decisões que temos que tomar hoje para a instalação das infelizes sobreviventes.
O incidente foi encerrado.
O Sr. Gualberto de La Melloise voltou ao assunto pouco depois, sugerindo em voz
untuosa:
 Festejaremos Santo Ambrósio dentro de alguns dias. Eu proporia que na ocasião se
mandasse celebrar uma missa pelo repouso da alma dessa senhora bem-pensante que pagou
tão caro seu devotamento à causa do Canadá.
 O altar vai pegar fogo — resmungou Ville-d'Avray à socapa para Angélica.
A proposta foi aceita. Os membros da Companhia do Santíssimo Sacramento pagariam
o incenso e as velas, assim como o óbolo para a paróquia e para os pobres. Os vínculos que
uniam a Duquesa de Maudribourg ao Padre d'Orgeval não pareciam conhecidos. Ele
deixara a outros o cuidado de preparar a vinda daquela que era sua alma perdida. A menos
que ele próprio fosse sua alma perdida, ou ambos se considerassem um mais forte do que o
outro. Desnorteamento, obscurecimento da consciência, confusão irreal...
Um arrepio percorreu a espinha de Angélica quando ela ouviu a pergunta de Garreau
d'Entremont: "Ela morreu?"
Soltou um suspiro tão profundo, que todos ouviram. As cabeças se voltaram na sua
direção, e Frontenac exclamou:
 Senhora, nós a cansamos! Perdoe estas controvérsias. Mas era necessário que
estivesse presente...
 Não me incomodo, em absoluto. Pude apreciar de que responsabilidades seus
ombros suportam o peso...
 Está vendo? Elas não têm fim...
— Mas na verdade estou morrendo de sede...
Imediatamente os lacaios trouxeram copos. A maioria dos
conselheiros pediu cerveja, que a cervejaria da costa de Abraão fabricava em
quantidade. Angélica quis apenas um grande copo de água.
Alguém disse: "Que calor!", e os criados abriram as janelas que davam para o terraço.
Lá fora alguns flocos de neve caíam suavemente. Aqui e ali, por entre as nuvens, viam-se
pedaços de céu azul. E de repente o horizonte cintilou.
Angélica, tomando sua água gelada aos golinhos, recobrava forças. Os índios
tinham-lhe dado o gosto pela água, seiva da terra, elixir da vida.
 A água é particularmente boa em Quebec — disse Basílio, que a olhava beber.
 É por isso que fabricamos uma cerveja tão boa — insistiu Carlon.
Ele se orgulhava da cervejaria que criara para utilizar a sobra de cereais, e exportava
tonéis de cerveja até para as Antilhas. Sentia-se reanimado depois da penosa discussão
precedente. Ele fora admirável.

CAPITULO XXVI

"Todos reinam"

A reunião prosseguiu num clima descontraído. Mandou-se trazer mapas e em alguns


pontos o Sr. de Frontenac traçou mentalmente as perspectivas para o futuro do Canadá e da
Acá-dia, reunidos sob a designação de Nova França — territórios tão vastos, que os raros
franceses que os haviam reunido sob a bandeira da flor-de-lis pareciam perder-se ali. O
Cavaleiro de La Salle avançava para o Mississipi. O Sr. de Peyrac financiara aquela
expedição. Com seus navios na costa da Acádia, o conde desempenhava na baía Francesa
um papel de polícia evidente, que mantinha respeitosos os saqueadores ingleses. Possuía
minas de prata. Resgatara tesouros espanhóis do fundo do mar. Sua fortuna era imensa.
— E depois, é gascão como o senhor — frisou Pedro Gollin, em tom ácido.
Frontenac ignorou a observação. Concluiu, lembrando que por milagre os reinos da
França e da Inglaterra não estavam em guerra no momento. Não seria de temer que
escaramuças demasiado frequentes entre a colónia francesa e os Estados da Nova Inglaterra
ameaçassem os respectivos soberanos, fazendo-os sentir-se provocados e transformando em
guerra inexplicável o conflito das possessões na América?
— Cabe a nós lembrar aos nossos príncipes que eles fizeram mal depondo as armas?
Mas os conselheiros eram menos sensíveis a esse aspecto da questão do que ao perigo
que representava para eles comprometerem-se com um aventureiro que poderia ser con-
siderado inimigo do rei da França.
O sr. Haubourg de Longchamp, que apoiava o Padre d'Or-geval, tomou a palavra.
 Afinal, não ignoram, senhores — disse, em tom áspero —, que o Padre d'Orgeval é
ouvido pelo rei. Conversou com ele, quando de sua última estada na França, e ouvi dizer
que recebeu a anuência secreta de Luís XIV, nosso monarca, para prosseguir na guerra com
as colónias inglesas...
 Embora a França e a Inglaterra não estejam em guerra, para variar...
 Talvez, mas nem por isso centenas de navios saqueadores da Nova Inglaterra deixam
de vir rondar na baía Francesa e de ameaçar a Acádia, conforme você mesmo observou há
pouco, Sr. de Ville-dAvray.
 Mais uma razão para confiarmos no Sr. de Peyrac, que está decidido a nos ajudar a
manter a paz naquelas regiões.
 E se o Padre d'Orgeval recebeu ordem do rei para manter a guerra, conforme ouvi
dizer...
 Senhor — interrompeu-o o bispo —, os "ouvi dizer" são bases demasiado frágeis
para que nelas assentemos de modo seguro nossas decisões. Inútil lembrar-lhe o que todos
sabem: o que penso. O Reverendo Padre d'Orgeval tomou em suas mãos não só a Acádia,
mas o Canadá também, ou seja, a Nova França inteira. Seu apelo à guerra ultrapassou os
limites do simples aviso e conselho que um confessor deve às almas inquietas. Ora, fui
nomeado para a função de bispo a fim de desincumbir os senhores da Companhia de Jesus
das responsabilidades temporais e espirituais de que eles aos poucos se investiram, e
deixá-los mais livres para se dedicarem à sua vocação missionária. Está bem assim. Há
muito tempo nenhum deles tem direito de participar do Conselho nem de se imiscuir nas
metas políticas do governo da colónia. Minha presença basta para representar a Igreja e
suas exigências no Conselho. E digo isto sem diminuir em nada o grande respeito que devo
àqueles que me ensinaram e acompanharam minha infância, e com quem conservo relações
excelentes.
Essa claríssima tomada de posição provocou um profundo silêncio. Ninguém sentia
vontade de ter o bispo como adversário. Ele era capaz de muitas intrigas quando sua
onipotência espiritual era questionada. E a ausência do Padre d'Orge-val o deixava como
senhor do terreno.
Piksarett, o abenaki, achou que chegara o momento de intervir num debate para o qual
vestira, querendo honrar Onôn-Icio, nome dado, pelos índios, ao governador, o traje dos
brancos, que, segundo ele, não carecia de brilho e opulência, mas que na sua opinião se
revelava dos mais incómodos. Mas estava disposto a suportá-lo pelos seus amigos, a fim de
dar-lhes a conhecer as palavras da sabedoria e da razão de que, a julgar pelo que acabara de
ouvir, estavam necessita-díssimos.
E foi o que lhes anunciou, depois de se levantar e saudá-los com o braço e pronunciar as
fórmulas honoríficas, sempre muito elaboradas e floridas nos discursos dos índios.
A eloquência dos autóctones seduzia os franceses pela sua naturalidade, pelo seu caráter
patético e pelo uso que faziam de inúmeras expressões figuradas. Apesar do sotaque das
línguas selvaginas, que dava à emissão das palavras a tonalidade ao mesmo tempo
monótona e sonora de aves grasnando no fundo das matas, ele se exprimiu no seu francês
castigado, cheio de expressões indígenas familiares aos brancos.
Eis, em essência, o que disse:
— O sol gira e prossegue seu curso no céu. Chegamos à hora em que os homens sábios
e que são responsáveis pela nação devem interromper seu debate e se alimentar, caso
contrário, na vertigem da fadiga de um estômago vazio e a perturbação de um excesso de
pensamentos revolvidos, como a lama dos fundos de um lago, eles não poderão atingir uma
decisão clara. Vocês, brancos, cometem o erro de não fumar durante seus debates.
Privam-se do auxílio quase divino que a fumaça do tabaco dispensa, que lhes clarearia o
espírito e repararia as forças, esgotadas pela febre de suas arengas. Ignoram o repouso que
confere a todos a passagem do cachimbo de um para o outro, e o silêncio que acompanha as
duas baforadas rituais, um tempo destinado às reflexões interiores e ao preparo de respostas
para as perguntas imprevistas que são inevitavelmente lançadas. Não levam em conta a
disposição para a paz que esse simples gesto engendra, o gesto de estender ao inimigo, ou
ao adversário, ou até ao amigo, o cachimbo, levando-lhe o auxílio sublime, inestimável, da
fumaça do tabaco que enche o corpo de suavidade e alívio, gesto que predispõe à aliança.
Não têm nenhum desses socorros, em seus conselhos, a não ser aguardente e vinho, que
levam à loucura. Não admira, portanto, que não consigam dominar os sobressaltos que os
impelem a tomar a palavra, quando não lhes foi passada, a interromper seu irmão quando
ele exprime seu pensamento, a expor o seu como se fosse o único justo e não necessitasse
de exame. Não admira, então, que a nós, índios, participar dos pawas dos brancos seria
expedição das mais divertidas, não fosse, infelizmente, pelos funestos decretos que deles
nascem e que neles são promulgados, arrastando-nos com frequência, a nós, seus aliados,
para infelicidades ou expedições desastrosas. — O grande chefe continuou: — Hoje ouvi
tombar-lhes da boca muitas coisas fúteis e cómicas, que fariam pensar em comadri-ces de
mulher numa praça de aldeia, se eu não o soubesse, por ser há muito tempo amigo dos
franceses, que essa é a sua maneira tortuosa de se aproximar do assunto principal por que se
reuniram. E como a tática dos índios sauteux, que pertencem a uma tribo lamentável e que,
não se sabe por quê, ao cercarem a aldeia de seus inimigos, começam por recuar,
dispersar-se e até dar-lhes as costas. Ora, eu os conheço e sei que não esqueceram a
"aldeia" que se encontra no centro de seus pensamentos, ou seja, o futuro a decidir, de
guerra ou de paz, que se apresenta a vocês pela presença de Teconderoga [nome dado pelos
índios a Joffrey de Peyrac] neste Conselho de Quebec. Sabemos todos que nos reunimos
aqui para lançar as bases de um tratado de paz com Teconderoga, o homem que explode a
montanha e que estendeu a própria sombra desde as fontes do Kennebec ao oceano, às
margens do leste, aonde vêm os pescadores de bacalhau. Ele agora se ergue entre os
ingleses e nós, entre os iroqueses e nós. Eis-nos diante de dias de paz e de prosperidade, ou
diante dos preparativos para novas campanhas jnilitares. — Ele fez uma pausa antes de
continuar: — Assim, devo falar, para que saibam quem é Piksarett, o chefe dos
narraganssetts, que opiniões me habitam o coração e as razões pelas quais se
desenvolveram em meu espírito. Não temo a guerra. O fogo que me leva a aniquilar os que
massacraram os meus, como os iroqueses, ou aqueles malditos ingleses, que crucificaram
Nosso Senhor Jesus Cristo e escalpelaram tantos dos meus irmãos bem-amados entre os
franceses, assim como entre os Togas Negras, que me salvaram a alma por meio do
batismo, é o fogo daquele que só pode satisfazer-se levando a morte às aldeias e às
wigwams desses inimigos de Deus. No entanto, presenciei a desolação que decorre dos
combates com a perda de tantos bravos guerreiros, a ameaça que o espírito de vingança
insaciável dos iroqueses faz pesar sobre nossas tribos, o lamentável estado em que se vêem
nossos povos depois das campanhas pouco antes do inverno, não tendo podido "desbravar"
sua terra para plantar o suficiente e, sobretudo, caçar abundantemente para preparar
reservas de carne salgada, a coletar frutos selvagens, raízes e ervas secas, e até coletar lenha
para se preservar do frio. O inimigo não nos vence pelas armas, mas a fome e o frio
conseguem isso. Assim, as infelicidades com que devemos pagar pelas nossas gloriosas
campanhas de verão me incitaram a encarar de modo favorável o tratado de aliança que
Teconderoga quer submeter à sua justiça. Não falarei por muito mais tempo. Vocês saberão
discernir a vantagem que encerram esses atos que não são nem de franceses nem de
ingleses. Previno-os somente de mais uma coisa. Ele e sua esposa estão na posse de
wampums de valor inestimável, que garantem a paz iroquesa durante luas e luas. Aonde
quer que vão, ou qualquer um dos seus, o mais cruel daqueles cães iroqueses com quem
toparem entoará para eles o seu canto de paz. Esse acordo já gerou frutos. Não é verdade
que nenhum francês lavrando suas terras durante o verão teve que se queixar da incursão de
iroqueses? Vocês puderam ensilar em paz. Ouvi pelas ruas de Quebec conversas de pessoas
felicitando-se pela clemência de um verão de que a Nova França conheceu poucos, em que
não correu sangue, em que as colheitas não foram queimadas, em que os cativos não foram
levados em servidão para as Cinco Nações. Não me calarei sem que tenham compreendido
isto: Utakê, aquele coiote vingativo, não trouxe a guerra para além do Kennebec, como faz
todo ano, ávido de sua safra de escalpos de franceses, de huronianos, ou dos nossos
também, abenakis, filhos da aurora, porque Teconderoga se ergueu entre eles e vocês.
Falei.
Sentou-se em meio a um respeitoso silêncio, que o deixou muito satisfeito. Juntou seus
bastõezinhos e, vasculhando nos bolsos do casaco inglês, puxou uma cobrinha defumada,
que se pôs a cortar sem cerimónia na beirada da mesa. Depois, abandonou a postura
desconfortável que suportava desde o início da sessão, sentado, como os brancos, naqueles
tronos rijos a que chamam cadeiras e onde não se pode sequer dobrar as pernas para
descansar. Foi sentar-se de pernas cruzadas na pedra da lareira e se pôs a degustar seus
pedaços de cobra, observando de soslaio o efeito de seu discurso. Seu olhar astuto esprei-
tava qual daqueles agitados ia ser o primeiro a retomar a palavra. Apostava que se poriam a
falar todos juntos, pelo que podia prever a partir de sua experiência.
Mas as contundentes declarações do narrangassett tinham causado forte impressão. Os
argumentos dele somavam-se aos outros já expostos, para fazer a balança pender para o
lado das vantagens a extrair de um tratado franco. Os conselheiros meditavam nos termos
desse tratado.
— Suas palavras valem como sagamore — agradeceu o governador, voltado para
Piksarett. — Tem razão em nos conduzir às questões essenciais que fizeram necessária esta
convocação. Não é triste — continuou, dirigindo-se aos seus funcionários — que
precisemos de um selvagem para nos lembrar nossos deveres e a importância de nossas
funções?
Os presentes permaneciam calados, de modo que o governador achou o momento
oportuno para abrir o jogo.
 Escrevi ao rei — anunciou — por um correio que partiu no primeiro navio de retorno
à França, em julho. Expus o melhor que pude os eventos que tínhamos que enfrentar e as
soluções que eu propunha. Citei o Sr. de Peyrac, a fim de não deixar nada obscuro e para
que Sua Majestade pudesse julgar com todo o conhecimento de causa.
 Nãó foi prematuro citá-lo por nome ao rei? — exclamou o Sr. Haubourg de
Longchamp.
O Sr. Magry de Saint-Chamond pigarreou, dirigindo-se a Peyrac sem olhá-lo:
 Ouvimos dizer, senhor, que esteve na origem da revolta da província da Aquitânia,
que há uns quinze anos causou muitos aborrecimentos ao rei.
 Que província não teve sua revolta neste reinado? — replicou o conde, sem se
perturbar.
Levantou-se e pousou sobre os presentes um olhar atento.
— Todos aqui não somos mais ou menos vítimas de desgraças? — prosseguiu. —
Desgraças que bem poucos de nós têm consciência de haver causado ou merecido pela
própria conduta. Mas temos que sofrê-las, pois não nos é concedido a todos o poder de sair
incólume das convulsões do tempo, suscitadas pelos erros de alguns. O rei, na minoridade,
viu erguer-se contra ele os grandes do reino, a maioria dos seus parentes, como o seu
próprio tio, Gastão d'Orléans, irmão de seu pai, Luís XIII. Não nos admiremos de que disso
ele tenha conservado uma desconfiança profunda pelo poder das províncias e por todos
aqueles que, à testa das províncias, lhe dêem a impressão, com ou sem razão, de
ameaçar-lhe o trono e a unidade da França. Assim como muitos, tive que suportar o peso
dessa desconfiança, embora eu não precise lembrar-lhes, senhores, que na época da Fronda
eu ainda era um rapazinho, à distância das conspirações. Foi só mais tarde, do prejuízo que
me foi causado, que nasceu a revolta da Aquitânia. Eu já não lhe presidia o destino e ela se
desgovernou, querendo ser fiel a mim. Mas deixemos essa história, cuja importância não
deve ser exagerada. Os tempos mudaram. O Cardeal de Mazarino, que velou pela juventude
do rei e lhe permitiu sair vitorioso das desordens da Fronda, foi o último primeiro-ministro.
Hoje o rei-reina sozinho. Ninguém lhe contesta o poder. E gravitando à sua volta em
Versalhes, cobertos de benefícios e cargos, vêem-se muitos dos que, outrora, empunharam
armas contra ele. Pois o rei esquece o que quer esquecer e, às vezes, esquece muito mais do
que se teria o direito de esperar.
Angélica estava atónita com a habilidade com que Joffrey de Peyrac apresentava uma
defesa que começava a fazer os conselheiros sentir-se embaraçados de a haverem
solicitado.
Ele punha em evidência um fato que pesava muitíssimo na evolução do destino de
todos: a magnanimidade do rei. Sabia-se que o rei se excedia em suas generosidades, assim
como em seus rancores^ Quando concedia graça, apagava tudo e cumulava de favores
aqueles a quem havia rebaixado.
Alçando os olhos para o gentil-homem em traje de veludo vermelho, a estrela de
brilhantes cintilando-lhe ao peito, e que lhes falava com tanta autoridade quanto
comedimento, eles viram que Joffrey de Peyrac era o último dos grandes príncipes cuja
altivez o rei se empenhara em abater.
Ora, por ter sido banido e afastado com mais rigor, era agora mais livre e poderoso do
que os outros, aqueles que, lá em Versalhes, servilizados pelas suas correntes douradas,
distanciados de seus feudos, só subsistiam pelos títulos e fortuna naquela corte esplêndida
em que Luís XIV os queria reunidos sob seus olhos, a fim de melhor mante-los à sua
mercê.
Peyrac restava como o mais livre. Esquecido, excluído, apagado, podia reaparecer,
ainda distinguido por um privilégio perdido.
O Sr. Magry de Saint-Chamond interveio.
— Sua missiva ao rei, senhor governador, introduz um elemento novo, bem como
perspectivas novas. Infelizmente só saberemos o que Sua Majestade pensa a esse respeito
quando os navios retornarem.
— Sua Majestade pensa muito bem a esse respeito.
Quem acabava de proferir estas palavras era Nicolau de Bardagne, que até então não
dissera nada.
A assembleia ficou pasmada. O Sr. de Frontenac foi o que ficou mais surpreso. Pôs-se a
repuxar o bigode, perplexo. Mas foi o primeiro a entender as implicações da declaração do
emissário real.
 Quer dizer que sua missão no Canadá tem por objeto examinar as eventualidades que
acabamos de expor acerca do Sr. de Peyrac?
 Entre outros — respondeu um pouco secamente o emissário.
Frontenac insistiu:
— Sua Majestade lhe teria pedido que se informasse sobre a situação na Acádia,
modificada pela presença do Sr. de Peyrac?
0 Entre outras coisas — repetiu Bardagne, que preferia deixar pairar uma dúvida
sobre o número e a importância dos diferentes inquéritos de que fora incumbido. — Na
verdade __ prosseguiu, após um pequeno silêncio —, Sua Majestade me pareceu desejoso
sobretudo de saber quem é o Sr. de Peyrac. Em suma: de receber informes precisos e
detalhados sobre esse gentil-homem, suas intenções, seus atos, suas declarações.
— Mas então — exclamou alegremente Frontenac —, mas então... é de se crer que o
rei já examinou a minha correspondência? Sua partida para a Nova França teria sido
determinada pelo que expus a ele em minhas cartas?
Os conselheiros calcularam febrilmente o tempo das travessias.
 Seja como for, o rei está ciente. A pressa com que resolveu agir depois do que lhe
expus prova como ele percebeu a importância da situação. O que foi que ele lhe disse,
senhor emissário real?
 Segredo de Estado. No entanto, posso dizer-lhe que Sua Majestade encara com
simpatia seu projeto. Já em Tadoussac pude escrever-lhe uma carta, em que lhe apresentei
minha opinião.
— Favorável, espero — atalhou vivamente Frontenac.
Estava jubilante.
 Vejam, senhores, não há mais dúvida, Sua Majestade aprova a política de aliança
com o Sr. de Peyrac que preconizei.
 Aprovará, talvez... — retificou o primeiro-conselheiro, Magry de Saint-Chamond,
levantando um indicador reticente.
Mas seu pessimismo já não encontrou eco.
O emissário do rei, revelando .que o soberano encarava com interesse o projeto de
expansão pacífica, fizera a opinião geral mudar com a presteza de uma ampulheta virada.
Por que aquele Nicolau de Bardagne não falara antes?, pensavam os conselheiros. Eles
teriam poupado inúmeras delongas.
Sutil, o Sr. de Chambly-Montauban, que gostava de apimentar a mais anódina das
situações com eventualidades amorosas ou eróticas, conjecturou que a beleza da Sra. de
Peyrac era daquelas que não poderiam deixar o sensual Luís XIV indiferente, caso a visse
um dia. Mais valia, então, já se pôr antecipadamente do lado certo. A partida estava ganha.
Quase involuntariamente, Bardagne contribuíra para isso.
Com suas palavras, trazia-lhes a caução do rei. E, para aquela gente, isso era a única
coisa que contava. Angélica alçou os olhos para o grande quadro que, acima da lareira,
representava o rei.
Para ela, tornara-se um mito, uma abstração temível.
Pouco a pouco, "esquecera-se da pessoa humana. E, sob os lambris do Castelo
Saint-Louis, em Quebec, ela se recordou, reviu-lhe os olhos castanhos, cujo brilho ele
empanava voluntariamente, mas que sabia tornar eloquentes quando o desejo o
atormentava.
Houve uma época em que quisera fazer dela a rainha de Versalhes.
A Sra. de Mercourville, pensando que as graves questões políticas estavam acertadas,
julgou o momento oportuno para falar dos seus teares. Tinha-se plantado linho, e o país
produzia carneiros. Era preciso encorajar as mulheres do campo, ina-tivas durante o
inverno, a tecerem seus panos e roupas. Ela tinha uma solicitação a apresentar ao Conselho
acerca dos prisioneiros ingleses que se encontravam na aldeia dos huronia-nos de Loreto.
Tinham-lhe dito que aqueles dois cativos de Boston conheciam o segredo das tinturas
vegetais e o de fixá-las. Agora, desejava obter do intendente Carlon uma ordem de
requisição, que lhe permitisse mandar trazer os homens para Quebec, pelo tempo de
ensinarem seus processos, para que se tingisse a lã destinada à tecelagem com cores vivas e
seguras.
— O Sr. Gualberto de La Melloise — disse ela — os empregava com frequência.
Mas Gualberto de La Melloise, cruzando os dedos finamente enluvados, nessa ocasião
de verde-amêndoa, observou que aqueles homens, muito tacanhos e taciturnos, como todos
os plebeus de raça anglo-saxônica, não divulgariam seus segredos, e que ela não
conseguiria nada.
 Eles não sabem uma palavra de francês.
 Eu falo inglês.
 Acredite que os amos selvagens deles não se privarão de bom grado de seus serviços,
mesmo por oito dias.
 O Sr. Carlon lhes enviará uma ordem.
Gualberto de La Melloise riu suavemente. Garantiu que ele era o único que conseguia
fazer aqueles selvagens darem ouvidos à razão e convencer os embrutecidos escravos
ingleses a preparar de vez em quando uma tigela de tintura, cujos ingredientes eles não
revelavam.
— Na verdade, você quer conservá-los para si mesmo! — bradou a Sra. de
Mercourville, indignada.
Vendo o rumo que tomava esta nova divergência, Fronte-nac declarou a sessão
suspensa. Fizera-se um bom trabalho. Levantou-se, e os homens o imitaram.
— Ai, a minha perna! — gritou o Sr. de Castel-Morgeat.
Ninguém se incomodava com as exclamações que a dor àsvezes arrancava ao pobre
governador militar. Desculpou-se com as senhoras.
 O senhor sofre de um antigo ferimento? — indagou Angélica.
 Não! Seria mais glorioso se fosse isso! São dores que contraí durante uma campanha
de inverno contra os iro-queses.
Angélica esteve a ponto de aconselhar-lhe um unguento cujo segredo ela conhecia, de
grãos de sorveira e resina de abeto-bálsamo, misturados com manteiga de cabra.
Acompanhado de uma infusão de cólquico bem dosada, o tratamento fazia maravilhas. Mas
conteve-se. Não sem pesar, abandonou o pobre Castel-Morgeat aos seus sofrimentos.
Prometera a si mesma, por prudência, não alimentar a sua lenda de curandeira. Desse
título ao de feiticeira, costumava haver somente um passo.
Atenta a compor, para Quebec, uma personagem de grande dama citadina e mundana,
haveria de esforçar-se por embaçar a imagem ingénua e perigosa que lhe haviam criado e
cuja confirmação poderia custar-lhe caro.

Os sinos repicavam o meio-dia. Monsenhor de Lavai recitou o ângelus, o que encerrou


devotamente a sessão, e todos atravessaram o vestíbulo em grupinhos.
Angélica aproximou-se de Nicolau de Bardagne.
— A lealdade de sua intervenção me agradou — disse-lhe. — Quero agradecer-lhe.
Ele pousou um longo olhar sobre ela. Angélica emocionou-se diante daquele rosto e
sentiu que, falando-lhe assim, pagava-lhe em cêntuplo. Ele recolhia cada palavra ou gesto
que viessem dela como se fossem pérolas.
— Como você é ardente! — disse. — Observo seu viver e percebo que foi essa sua
qualidade que me seduziu já em La Rochelle. Sua chama, sua participação na vida, a
consciência com que procura o melhor caminho. Em La Rochelle, eu me espantava de vê-la
tomar o partido de seus amos huguenotes, como se a injustiça que lhes era causada também
a atingisse, sem se preocupar com seu próprio destino. Naquele tempo eu me perguntava
qual seria a cor de seus cabelos, cuidadosamente ocultos sob sua touca de criada... Agora
sei — acrescentou, detendo-se à soleira da porta e contemplando-a. — Você tem o ar de
uma fada...
Esboçou o gesto de acariciar-lhe a cabeleira clara e dourada. Perdido em seu sonho,
sempre se acreditava sozinho no mundo com ela. O Conde de Loménie vinha na direção
deles para se despedir. O Sr. de Bardagne beijou a mão de Angélica e afastou-se.
Joffrey de Peyrac demorava-se. Falava com o governador e com um certo Morillon,
assessor do intendente, que fora incumbido de uma missão na Nova Inglaterra depois do
Tratado de Breda. Não interviera na reunião por timidez, mas estava feliz de conversar
sobre um assunto que conhecia bem, e confirmava o que o conde dissera sobre o traçado
das fronteiras nas'regiões da embocadura do Kennebec.
Ville-dAvray saía do castelo, descrevendo aos três primeiros-conselheiros as reformas e
embelezamentos que pensava fazer em seu navio.
 Espero que lhe dê um nome um pouco menos pagão do que o do primeiro. —
comentou o Sr. de Saint-Chamond.
 Hei de chamá-lo Aphrodite... Pretendo pedir ao carpinteiro Le Basseur que me
esculpa uma bela figura de proa: Afrodite nascida da espuma do mar... Para variar um
pouco desses tabernáculos.
No pano, os soldados do corpo da guarda tinham colocado as armas em feixes e se
reuniam à volta de um fogo acima do qual estava suspenso um caldeirão. A comida
desprendia um aroma delicioso. Aquela hora, os mais apetitosos eflúvios se misturavam aos
odores dos fogos a lenha. As estalagens anunciavam aves e caça, tortas e empadões. Os
perfumes das sopas e dos guisados variados deslizavam pelos interstícios de portas e
janelas quando se passava, na rua, diante das casas bem fechadas, mas em cujo interior
ressoava o ruído ativo de colheres de estanho contra gamelas.
Flutuando acima do acampamento dos huronianos, uma bruma azul e espessa trazia
para os bairros altos as emanações in-sulsas da sagamite, o tradicional cozido de milho.
Os membros do Conselho Soberano debandavam, todos apressados, pois as discussões
lhes tinham aberto o apetite.
A Sra. de Mercourville distanciava-se, continuando a discutir com o Sr. Gualberto de
La Melloise, obstinado em lhe recusar o auxílio dos cativos ingleses. Ela interceptara o
intendente para tentar dobrá-lo.
Atrás dela, Angélica ouvia Joffrey dizer ao Sr. Basílio:
— Fico-lhe muito agradecido. Não ignoro que não se pode fazer nada sem você.
O negociante ultrapassou-a, levantando o gorro de pele, e se afastou com as mãos nos
bolsos do casaco de pano castanho grosso, forrado na gola, nos punhos e nas abas dos
bolsos da mesma pele negra do gorro. Calçando botas indígenas, ele tinha o andar ao
mesmo tempo pesado e alerta dos nativos. Atravessando a porta de entrada, o amanuense
voltou-se e deu uma piscadela cúmplice na direção deles.
Joffrey segurou o braço de Angélica. Os espanhóis, que esperavam a uma esquina do
pátio, vieram tomar-lhes a dianteira. Tinham estado a conversar com dois soldados
procedentes dos Pireneus e que falavam um dialeto mesclado de espanhol.
Rodeado de um enxame de sotainas negras, Monsenhor de Lavai, nobre silhueta vestida
de violeta, chegava ao seminário onde o aguardava no seu apartamento particular uma
refeição frugal. Antes ele atravessaria os grandes refeitórios, para abençoar com dois dedos
levantados os meninos sentados à mesa diante da tigela de leite com bom pão francês.
O que chamara a atenção de Angélica durante uma manhã nada desinteressante fora a
autoridade única que cada um daqueles senhores pretendia exercer.
O governador? O intendente? O bispo? Basílio, a eminência parda? Os jesuítas, à
sombra? O procurador real? O amanuense?
 Quem reina aqui? — perguntou a Joffrey.
 Todos reinam... —.respondeu ele.

CAPÍTULO XXVII

O resgate do Saint-Jean-Baptiste e a salvação de Mister Willoagby — O carrasco


arrependido

Angélica voltou para ver a Polaca e lhe contou da visita ao bispo. Precisava escolher
uma irmandade.
 Escolha a do Pai Eterno! — aconselhou a outra.
 Como a Madre Maria da Encarnação, das ursulinas.
 Não! Como todos os malandros de Paris. Esqueceu?... A estátua do Pai Eterno na
esquina da Rue de la Pierre-aux-Boeufs, no Faubourg Saint-Denis. As preces que lhe
fazíamos! Ah, ah, ah! Quantas blasfémias e maldições...
Depois de gargalhar ruidosamente, persignou-se e se pôs séria de novo.
— Não se deve rir dessas coisas. Não, chega! Que Deus me perdoe! O passado está
apagado. Confesso-me com frequência. Não quero arder no inferno.
Angélica às vezes era presa de estupor. Não conseguia crer que falava com a Polaca e
que com ela vivera tantas coisas terríveis.
Perguntou quando conheceria o ativo Gonfarel, cuja referência ouvia de todo lado.
Estavam nesse ponto da conversa quando um rumor no porto as levou para a entrada do
albergue.
As pessoas, que se aglomeravam aos poucos, apontavam do outro lado da enseada de
Quebec grandes barcas que rebocavam com cordas um navio desmastreado que adernava e
parecia a ponto de ser engolido pelas águas a cada instante.
 Mas é o Saint-Jean-Baptiste! — bradou Janine Gonfarel.
 Vão pô-lo a pique — disse alguém.
Como um relâmpago, um pensamento consternante atravessou o espírito de Angélica: e
o urso, Mister Willoagby, que está a bordo?
Na coberta do navio naufragado, o urso amestrado de Elias Kempton adormecera seu
sono hibernal, e eis que agora levavam para o largo, para pô-lo a pique, o destroço que lhe
servia de refúgio!
Assim como a Polaca, a seu lado, mas por outro motivo, de início ficou sem voz.
Depois a dona da taberna Ao Navio de França se pôs a invectivar as pessoas à volta,
instando para que impedissem aquilo. De suas frases sem nexo, por causa da indignação e
do desespero, depreendeu-se que ela e o marido eram proprietários, em parte, do
Saint-Jean-Baptiste, que era uma fortuna que ia desaparecer, que eles iam se arruinar...
Janine Gonfarel arrancou a coifa com laços, correu para a praia, fazendo sinais em vão.
Entre os curiosos, alguns casquinavam, outros balançavam a cabeça, poucos se condoíam:
 Esse navio está empestado! — disse um.
 Esse navio me pertence! — retorquiu Janine Gonfarel.
 Resolveram afundá-lo.
 Quem decidiu? Qual foi o filho da puta que me aprontou essa? Foi o procurador,
tenho certeza... Ou então o major... Não, foi Le Bachoys... É bem do feitio dele... E o
jesuíta que não está aqui... Marquesa, faça alguma coisa, rogo-lhe — disse a meia voz,
reaproximando-se da amiga. — Não posso ir ao governador. Mas se seu "cicatrizado"
quisesse intervir... Ele já os controla a todos. Não se pode deixar que façam isso.
 Sim, você tem razão. Não se pode deixar que façam isso — repetiu Angélica,
francamente consternada.
Corria os olhos à volta, procurando alguém que a ajudasse. Por sorte avistou uma
grande chalupa que atracava na enseada do fundo da baía, equipada por homens do
Gouldsboro sob o comando do quartel-mestre Vanneau. Apressou-se a ir ao encontro deles.
Vinham do cabo Rouge. Vanneau pôde dizer-lhe que o Conde de Peyrac devia estar na
cidade.
— Vou tentar encontrá-lo — disse ela a Vanneau —, mas enquanto isso faça todo o
possível para deter o comboio que es tá levando o Saint-Jean-Baptiste para afundá-lo em
alto-mar.
Suplicou-lhe que disparasse imediatamente um foguete e sinais para que se detivessem
e que remasse vigorosamente até eles, para convencê-los a esperar pela contra-ordem.
— Ganhe tempo! Seja quem for que tenha dado essa ordem, inclusive o governador,
assumo a responsabilidade de suspendê-la. Foi um mal-entendido.
Ia correr até o solar de Montigny, que lhe parecia desesperadamente distante, sem
sequer ter certeza de que encontraria o marido.
Depois de ver a chalupa partir sob o impulso de seis remadores e de lançar algumas
palavras de encorajamento à Polaca, lançou-se pelas ruas e começou a subir a encosta da
montanha. Procurava Piksarett com os olhos. O índio, com suas longas pernas, lhe seria
preciosíssimo.
Uma carruagem, que subia não sem dificuldade, vindo por trás, alcançou-a. A encosta
era tão íngreme, que os dois cavalos, a cada passo, avançavam uma distância mínima.
Havia que ter paciência quando se subia a encosta da montanha. O cocheiro balançava a
cabeça. A carruagem balançava ao sabor dos seixos com que topava. Era uma belíssima
carruagem, com um monograma marcado na portinhola e cortinas de cetim com franjas
douradas.
Quando o veículo a ultrapassava, o bonito rosto de Beren-gária Amada Tardieu de La
Vaudière surgiu por entre as franjas das cortinas.
 Senhora, o que está acontecendo? Parece ansiosa.
 Estou à procura de meu marido — lançou-lhe Angélica, que logo se censurou por
parecer ansiosa, o que a tornava ridícula. Teve a impressão, certa ou errada, de ver um
clarão de divertimento brilhar nos olhos da buliçosa criatura.
 O Sr. de Peyrac? Tenho alguma ideia sobre o lugar onde encontrá-lo — disse a
outra, com ar importante. — Suba...
O lacaio já pulara em terra e abria a portinhola diante de Angélica, que entrou. A
carruagem partiu com um gemido de todos os eixos. As ferraduras dos cavalos deslizavam
nas pedras.

A Sra. de La Vaudière olhava Angélica de soslaio e não dissimulava a satisfação que


sentia de vê-la mais de perto. Angélica, de seu lado, felicitava-se pela ocasião que lhe era
dada de poder lançar-lhe uma olhada crítica. Decididamente era uma pessoa encantadora,
mais bonita do que bela, com entusiasmo, um movimento de cabeça um tanto irreverente,
que deixava, adivinhar que a vida não a intimidava em absoluto e que ela já lhe lançara o
seu desafio.
Punha certa afetação a reclamar que a chamassem pelo nome todo de Berengária
Amada. Possuía um riso cascateante, que utilizava meio a torto e a direito. Era pose, mas
embaraçava. Não se ousava falar de assuntos sérios na sua frente, de medo de vê-los
transformados em gracejo com uma gargalhada. Isso certamente dava leveza às reuniões
em que ela se encontrava. Em compensação, possuía a arte de interrogar. A carruagem
ainda não ultrapassara a paliçada do pequeno cemitério que ficava a meio caminho da
encosta, e Angélica deu-se conta de que já lhe explicara por que precisava encontrar o
marido com urgência, a fim de evitar que afundassem o Saint-Jean-Baptiste. Mas por que
fazia tanta questão de que não o afundassem?, espantou-se Berengária. Ê que Janine
Gonfarel ficaria desesperada, já que era proprietária do navio. A Sra. de La Vaudière
espantou-se mais ainda.
— Mas o que você vê naquela mulhej ? É de uma vulgaridade!
Tinha tal jeito de arquear as finas sobrancelhas e de arredondar os olhos escuros e
cândidos, que levava o interlocutor a fornecer-lhe explicações as mais completas, a fim de
não passar por tolo, ingénuo, ou de gosto medíocre.
Angélica teve toda a dificuldade do mundo para guardar seu segredo e dissimular o
horror que lhe inspirava a sorte de Mister Willoagby. Conseguiu permanecer evasiva,
limitando-se a repetir que o Sr. de Peyrac precisava ser informado imediatamente.
— Ele será, não tema nada — tranquilizou a outra, em tom protetor. — Mas há que
confessar que nosso caro conde não é dessas personagens que se pode ter a certeza de
encontrar em casa. Longe disso. Antes seria acusado de possuir o dom da ubiquidade. Não
paro de girar como um cata-vento para encontrá-lo. Dizem-me: ele está ali. Corro para lá.
Ele está em outro lugar.
Angélica notava que em menos de três dias Joffrey se tornara "nosso caro conde" para
as senhoras, e que — ingenuidade ou bravata — a senhora procuradora não dissimulava
que andava correndo atrás dele.
— Seu esposo é homem de tamanha galanteria! Olhe o relógio que recebi dele.
Segurava com dois dedos a jóia que trazia ao pescoço suspensa por uma fita de veludo
preto e que lhe repousava junto ao ponto de encontro dos seios, sustentados bem alto pelo
cor-pete. Um delgado xale de cambraia não lhes ocultava o arredondado.
Sempre falando, a jovem observava os passantes que iam e vinham pelo caminho
escarpado. Soltou uma exclamação.
— Ah, eis alguém que vai nos informar com certeza!
Ao seu chamado, surgiu no vão das cortinas, como de uma caixa de molas, o rosto do índio
escravo da Sra. de Mercour-ville, em cuja face direita a marca da. flor-de-lis deixava uma
cicatriz meio preta e inchada, repuxando-lhe um canto da boca e dando-lhe o ar de estar
sempre rindo.
— Este rapaz sabe tudo de todo mundo — disse a Sra. de La Vaudière. — Mas é muito
lunático. Há que saber levá-lo.
Dialogou com ele. Angélica mal compreendia o sotaque do índio, que se exprimia em
francês, a única língua que ele poderia usar em Quebec para se fazer entender.
Após uma troca de perguntas e respostas ininteligíveis, o índio subiu para o lado do
cocheiro. A Sra. de La Vaudière assumiu um ar de bem-informada e fez sinal a Angélica
para que não se desencorajasse.
Passou o resto do trajeto a instruí-la sobre a situação dos panis que eram os únicos
índios escravos da Nova França. Vinham de regiões inexploradas, para além dos Mares
Doces. Os índios que os capturavam vendiam-nos aos brancos.
Angélica ouvia distraidamente e, pensando em Mister Wil-loagby, continha a
impaciência.
Pela Rue de la Fabrique, a carruagem desembocou finalmente na Place de la
Cathédrale.
O índio pulou ao chão, correu, desapareceu e voltou pouco depois, saltitando num passo
de dança guerreira. Indicava assim que encontrara aquele a quem procuravam. A Sra. de La
Vaudière exultou.
 Bem como pensei! O Sr. de Peyrac está com os jesuítas.
 Com os jesuítas!
Mas Berengária Amada, muito resoluta, já apeava da carruagem.
Para chegarem aos estabelecimentos dos padres jesuítas, agrupados diante da catedral,
mas do outro lado da praça, era preciso saltar um riacho.
Atingia-se então a outra margem como se se alcançasse território estrangeiro. Era
domínio dos jesuítas.'Grandes árvores, sobre uma leve saliência de terreno, guardavam as
entradas das belas construções de pedra da Companhia de Jesus. Havia a igreja, o colégio, o
convento, uma residência para hóspedes ou retirados, as herdades, estábulos e cavalariças.
Os jesuítas acabavam de concluir sua nova igreja, ao lado do colégio. O edifício, notável
para a época e o lugar, possuía uma fachada encimada por duas torres além do campanário,
acima do vitral do transepto.
O bispo, agora, procurava ampliar sua própria catedral. Esta, embora vasta e bela,
possuía somente uma torre, e a igreja dos jesuítas parecia lançar-lhe um desafio por sobre
as árvores e o riacho, olhá-la dos seus vitrais em ogiva, abertos como olhos tranquilos.
Tanto a igreja quanto o convento dos jesuítas possuíam uma entrada que dava para a praça.
Mas Berengária, conduzindo Angélica com rapidez, preferiu entrar por uma portinha
lateral, que levava a um pátio interno.
— Nós estamos procurando o Sr. de Peyrac — lançou ela a um irmão leigo que vinha
dos estábulos, com baldes de leite nas mãos e o longo escapulário preto a bater-lhe nos
tamancos.
Esse "nós" irritou Angélica.
A Sra. de La Vaudière parecia familiarizada com o local, que não lhe inspirava receio
algum. Não se deixou impressionar, como Angélica, pelo vestíbulo lajeado, guarnecido de
algumas cadeiras, um único crucifixo grande à parede e uma pia de água benta à direita da
porta.
Berengária molhou as pontas dos dedos com um misto de desenvoltura e compunção
que foi uma obra-prima de graça e hipocrisia femininas. Ao fazer isso possuía um encanto
inegável, a petulância ao mesmo tempo alegre e devota que se atribui a certa categoria de
anjos que rodeiam o trono do Altíssimo e que não parecem desempenhar outro papel senão
o de introduzir um ar de travessura.
Ao ver-lhe os modos, Angélica lembrou-se de que a Sra. de La Vaudière também era da
Gasconha. Uma meridional daquela província da Aquitânia, rebelde e ensolarada, onde a
gente tem uma noção singular de religião, um comportamento diferente em relação a ritos e
crenças.
Angélica recordou-se de que quando chegara a Toulouse, vinda do seu Poitou natal,
assustara-se com o ardor daquelas pessoas, cujos contrastes o nobre Joffrey de Peyrac
personificava: elegância, espírito, independência feroz, gosto pelo amor. E também
entusiasmo, ternura, desprendimento, sutil ironia.
Parecia-lhe, naquela altura, que as belas damas do Langue-doc, de olhos negros, riso
provocante, paixões ardentes, troçavam da sua lourice e da sua seriedade. E não foi sem
dificuldade que a pequena "poitevine" se impôs entre elas.
E eis que — não era ridículo? — aquela estouvada Berengá-ria despertava nela
sentimentos antigos e atenuados.
Um seminarista, vestido de preto, fez entrar as duas senhoras num amplo parlatório.
Informado do objetivo delas, afastou-se para indagar se o Sr. de Peyrac se encontrava ali, o
que era bem possível.
Um aquecedor de ferro fundido, como se começava a importar da Inglaterra, esquentava
o aposento. Às paredes estavam suspensos inúmeros quadros, um dos quais era um retrato
de Santo Inácio de Loyola, o oficial espanhol que, pouco mais de um século antes, lançara
os fundamentos da célebre companhia dos soldados de Cristo. Num nicho onde ardia uma
lamparina, estava uma cópia de sua máscara mortuária.
Berengária ia e vinha, examinando com interesse os grandes quadros, cenas edificantes
formigando de personagens, pintadas por artistas de talento, que, sentia-se, haviam se
consagrado a eles com entusiasta devoção.
Uma das telas representava a morte do Padre Jorge Vaz, apóstolo da Africa, reunindo as
últimas forças para abençoar os negros do Congo, aglomerados em torno do seu leito. Outra
punha em cena o Padre Francisco Xavier entre a multidão chinesa de São Chéu,
ressuscitando uma criança afogada. Ele fora um dos seis jesuítas fundadores, companheiros
de Inácio e, como ele, já canonizados pelo Papa Gregório XV. Celebrara-se há pouco sua
festa, o que explicava os vasos de prata e vidro dispostos diante do quadro, com grandes
ramos de flores de papel, pintadas e douradas, confeccionadas pelas freiras da Santa Casa.
O silêncio que reinava era de uma densidade toda particular. A atmosfera era diferente
da do seminário. Mais interiorizada. Uma calma surpreendente, apesar das crianças nas
salas de aula. Com as portas fechadas, estava-se, atrás daquelas grossas paredes, numa
fortaleza. Naquele recinto os missionários itinerantes vinham repousar das fadigas e perigos
de suas viagens. Depois das intermináveis jornadas nas canoas de casca de árvore,
reencontravam, longe da fumaça e dos vermes das cabanas indígenas, a paz de suas celas
caiadas de branco, o reconforto dos ofícios litúrgicos, a descontração que lhes traziam as
conversas com seus irmãos de religião. Ali escreviam seus relatos, célebres e muito
esperados na França. Ali se entregavam ao estudo das línguas selvaginas, ao ensino dos
jovens canadenses, aos exercícios da alma e do corpo, prescritos pelo seu místico fundador.
Personalidades fora do comum, capazes de levitação, de transmissão do pensamento à
distância, de adivinhação, visitavam aquele lugar.
Ocorreu a Angélica que o Padre d'Orgeval poderia muito bem estar escondido ali,
insuspeito, à espera de sua hora.
Foi então que aconteceu a aparição. Um passo deslizou atrás dela e, quando virou a
cabeça, havia ali um jesuíta, surgido de uma porta dissimulada na tapeçaria.
Apesar da penumbra, ela logo lhe reconheceu a barba loura, a pele muito branca, que o
sol havia como que esfolado nas maçãs do rosto e na aresta do nariz.
Como ele permanecesse imóvel, impassível a alguns passos, ela lhe dirigiu uma ligeira
saudação.
— Creio que nos encontramos na Acádia. Você é o Padre Filipe de Guérande, não é? O
coadjutor do Padre d'Orge-val?
Ele aprovou com um sinal de cabeça. Seu olhar claríssimo adquiria a dureza da ágata.
Seus lábios moveram-se afinal. Disse, num sopro:
— Por sua culpa, ele vai morrer.
E, recuando, pareceu fundir-se nas sombras do parlatório, como um espectro.
Angélica, petrificada, não estava muito certa de haver ouvido ou entendido bem as
palavras dele.
— Você vem, minha cara? — chamava Berengária.
O seminarista voltara para buscá-las. O Sr. de Peyrac estava ali, sim.
O cicerone se enfiou por um longo corredor de paredes brancas, arranhou com as pontas
dos dedos a última porta de madeira maciça e introduziu-as num vasto aposento, uma
biblioteca, a se julgar pelas centenas de livros de todos os tamanhos, encadernados de
couro, cujas lombadas atapetavam as paredes. Alguns deles, "incunábulos", tinham a altura
de uma criança de cinco anos. No momento, um daqueles volumes de grande dimensão
acabava de ser pousado sobre um peitoril de madeira e o Conde de Peyrac, em companhia
de um dos jesuítas, debruçava-se para levantar-lhe as páginas com precaução.
Quando a porta se abriu, eles se voltaram para as recém-chegadas, e Angélica
reconheceu no jesuíta o Padre de Mau-beuge, o superior.
O que chamava a atenção de imediato naquela sala austera no rude Canadá era a
profusão-de instrumentos científicos de grande valor. Astrolábios de cobre ou latão
dourado, quadrantes astronómicos, globos celestes ou terrestres, trigonômetros... Sobre as
mesas e veladores, entre as lupas e compassos espalhados, estava aberto um estojo
astronómico representado por uma caixa octogonal de madeira incrustada de prata dourada,
cuja tampa levantada mostrava um mapa geográfico em miniatura, em esmalte de cores
vivas. As diversas peças — um pequeno quadrante solar, um quadrante lunar, uma tábua de
longitudes e latitudes, etc. — estavam dispostas em torno da caixa. Angélica teve a
impressão de lembrar que vira aquele estojo entre os presentes trazidos pelo Conde de
Peyrac para Quebec.
A um canto, uma belíssima esfera armilar com quatro planos. Erguido sobre um tripé
corrediço, um telescópio de cobre dourado estava assestado na direção da janela
escancarada. O frio cortante daquele dia de inverno que ia a meio não parecia incomodar os
dois homens, inteiramente mergulhados no interesse das suas pesquisas, enquanto um
clérigo em sotaina, deferente e calado, lhes servia de secretário e lhes prestava assistência
com gestos comedidos de oficiante.
Havia que estar-se em Quebec para julgar admissível a súbita irrupção de duas senhoras
em tal santuário da ciência. Mas era um fato que naquela cidade isolada vivia-se em família
e que as distâncias observadas na metrópole, entre as diferentes classes da sociedade,
aboliam-se.
— Perdoem-me, meus padres! — exclamou alegremente a Sra. de La Vaudière. —
Vejo-me obrigada a interromper suas doutas conversas, mas minha cara amiga, a Sra. de
Peyrac, procurava o esposo pela cidade inteira e...
Expressando ao superior seu pesar por havê-lo perturbado, Angélica explicou
rapidamente que se solicitava o mais rápido possível a intervenção do conde para salvar o
Saint-Jean-Baptiste, que as autoridades portuárias tinham condenado ao afundamento.
Joffrey de Peyrac demonstrou surpresa.
 Aquela banheira velha! — espantou-se. — Que importância tem? Não me pertence...
 Mas o urso está a bordo! — exclamou Angélica. — Oh, Joffrey, é preciso salvar
Mister Willoagby...

O urso foi salvo!


Trouxeram o Saint-Jean-Baptiste de volta para a margem, e o intendente Carlon,
notificado pelo Conde de Peyrac, ofereceu ao destroço, cada vez mais submerso, o refúgio
de uma bacia desativada nos estaleiros marítimos.
O pobre Elias Kempton, entocado no solar de Montigny por medo de se ver numa
armadilha, ele, um puritano de Connecticut, naquela cidade papista, foi escoltado por
alguns amigos do Gouldsboro, a fim de visitar o amigo plantígrado.
O urso continuava dormindo e não fora absolutamente perturbado pelo passeio na
enseada de Quebec. Elias Kempton cobriu-o com uma provisão de feno e palha
suplementar, e depôs num canto do porão alguns tubérculos e raízes, reforço necessário ao
animal que, duas ou três vezes durante o inverno, despertaria, movido pela necessidade, e
procuraria à volta, no seu covil, algo com que renovar as reservas de gordura esgotadas.
Ao anoitecer, um homem corpulento apresentou-se na casa do Marquês de
Ville-d'Avray, onde se hospedava o Conde de Peyrac, segurando o gorro com uma mão e,
com a outra, uma cesta contendo três queijos redondos.
O grupo acabava de cear no salão e o Senhor Gato estava em cima da mesa, entre pratos
e sobras do festim.
Angélica se sentara no famoso canapé — cujos segredos todos ela ainda não conhecia.
O Conde de Peyrac estava a seu lado.
Era um sarau como o que já se tornara frequente naquela casinha, e que lembrava as
noites no forte de Wapassu. Porque Joffrey estava presente; porque amigos daquele
inverno, como o Conde de Loménie ou o Sr. d'Arreboust, os cercavam; porque crianças
sentadas na pedra da lareira misturavam suas vozes estridentes ao ruído das conversas;
porque, enfim, havia tanta gente reunida em torno do fogo ou à volta da mesa, sentados em
poltronas ou tamboretes ou acocorados no chão sobre tapetes ou peles, como Piksarett, de
cachimbo na boca — por isso tudo se evocava a intimidade da floresta e que aqueles que
compartilharam da vida nos fortes não esquecem nunca.
O homem anunciou-se como amigo pela porta do pátio, que dava diretamente no salão,
e se apresentou como o Sr. Bonifácio Gonfarel.
Causou sensação. A maioria dos presentes o conhecia, mas Angélica examinou com
curiosidade o homem que unira sua desafortunada existência à da Polaca e a ajudara a sair
da miséria.
Se outrora ele apodrecera nas prisões de Rouen e se tivera que exercer, uma época, a
vergonhosa função de carrasco, o ar do Canadá e o sucesso social lhe haviam apagado os
estigmas. Exibia o mais honesto rosto do mundo.
Vestia-se como burguês abastado, mas os sapatos grossos e aquele gorro que segurava
na mão traíam, apesar do seu ar imponente, uma simplicidade de fundo que os escudos não
haviam corrompido.
— Senhor — disse, dirigindo-se a Peyrac com dignidade e deferência —, venho
agradecer-lhe por salvar minha propriedade. Sem o senhor eu teria sofrido uma perda
considerável. Uma parte da mercadoria já me havia chegado avariada, e os lucros que eu
tinha o direito de esperar de meus investimentos naquele navio infeliz foram bastante
diminuídos por culpa dos gatunos que o tripulavam, das tempestades ou das piratarias que
sofreu. E a inveja dos que querem minha ruína nesta cidade ia arrematando a obra,
conseguindo que as autoridades o pusessem a pique, sem que eu pudesse sequer me
interpor em tempo. O senhor impediu que, aproveitando-se de minha ausência, me
desferissem esse golpe. Fique certo de que nunca esquecerei que dispensou seu tempo e
influência para me obsequiar, e vim confirmar-lhe, senhor, que doravante estou
inteiramente à sua disposição, assim como os meus e os meus amigos. Ficarei muito
honrado, se a ocasião se apresentar, que faça apelo à nossa dedicação.
Peyrac agradeceu-lhe. Alegrava-se, disse, que as circunstâncias lhe tivessem permitido
prestar um favor a um dos mais reputados cidadãos de Quebec.
— Afinal de contas, o seu Saint-Jean-Baptiste bem poderia rejuvenescer. Se estiver de
acordo, façamos um trato. Amanhã mesmo mando instalar bombas e, aproveitando a maré
para pô-lo a flutuar de novo, proponho que meus dois
iates, o Le Rochelais e o Mont-Désert, o reboquem até Sillery, acima da cidade, onde estou
construindo uma bacia de reparos e uma casa para as equipes encarregadas de guardar os
navios que ali hibernarão. Os gelos o conservarão. Na primavera veremos o que os
carpinteiros podem fazer com ele...
Angélica ouvia essa troca de amabilidades e sugestões, enquanto fazia o balanço
daquele dia picaresco. De manhã, o
Grande Conselho, depois a sua visita à Polaca, a corrida com Berengaria, o salvamento
do urso, tudo arrematado por aqueles três queijos da ilha de Orléans, oferecidos como sinal
de aliança por um carrasco arrependido.

CAPITULO XXVIII

Um último embarque antes do gelo

Formava-se o último comboio, pronto a partir para Montreal. Logo os gelos estariam ali
e interromperiam o tráfego fluvial entre as três cidades da Nova França: Trois-Rivières,
Montreal e Quebec. Não havia outra rota a interligá-las além do Saint-Laurent. A rigor,
podiam-se despachar mensageiros de trenó ou calçados com raquetes pelas pistas do rio
congelado, mas as tempestades do inverno tornavam perigosas essas expedições.
Assim, os canadenses se despediam por vários meses.
Os trifluvianos, de Trois-Rivières, todos de gorro branco, seriam deixados de passagem
nas margens da sua cidade plana, pequena Veneza polar, espalhada pelas suas ilhas entre os
canais de um delta que drenava rios vindos das Terras Altas.
Os montrealenses e seus gorros azuis retornavam ao seu feudo da pele e da prece,
Ville-Marie, a Santa, ao pé do monte Royal, oitocentas léguas acima de Quebec,
assinalando o fim do rio navegável.
Os viajantes de partida haviam se agrupado na enseada do Sault-au-Matelot, aos pés das
altas casas da rua do mesmo nome. O sol brilhava, e as janelas de madeira, pintadas de
cores vivas, cintilando de azul, vermelho e amarelo as fachadas de pedra, davam um ar de
alegria à cena.
Um vento forte varria o céu de jade, onde se dissolviam e se reagrupavam o tempo todo
formações de nuvens de um sépia escuro ou cinza-carbonáceo, ourelanos de
amarelo-enxofre.
Ainda livre para rolar suas ondas tumultuosas, o Saint-Laurent continuava a ostentar em
seus coloridos e matizes os mais loucos adornos. Refletindo os movimentos do céu, naquela
manhã ele fazia circunvoluções ora negras ora cor de mel, atravessadas por correntes de
esmeralda.
Da praia estreita, o rio impressionava, descobrindo-se em toda a sua potência e
caprichos de réptil gigante, que, depois de se enroscar preguiçosamente em torno da ilha de
Orléans, insinuava-se por entre os promontórios gémeos de Levis e do cabo Diamant, para
se lançar para oeste resolutamente.
Para além de Trois-Rivières, ele inflaria de novo, formando as belas superfícies do lago
Saint-Pierre, e continuaria, ainda majestoso e vasto, para ir rodear com seus braços glaucos
a grande ilha de Montreal e a irmãzinha desta, a ilha de Jesus.
"O caminho que anda", diziam os índios. Assim era esse rio-mar, Nilo do Setentrião.
Atraente, magnífico e traiçoeiro, um monstro...
Suas tempestades, suas correntes infernais, seus rochedos cheios de traição tornavam-no
temível. Seus desastres e naufrágios já não se contavam, nem as vidas humanas e bens con-
sideráveis que ele tragara em suas entranhas geladas.
No entanto, era amado. Era sempre com prazer que o reencontravam, e a excitação da
navegação fazia brilhar antecipadamente os olhos dos viajantes.
Angélica fizera-se acompanhar do Sr. Tissot, o mordomo, e seus auxiliares, que
carregavam cestos dentro dos quais ela mandara pôr provisões a serem entregues à Srta.
Bourgeoys e suas jovens. Notara como eram caridosas aquelas pessoas, e como careciam
do essencial.
As crianças também integravam o grupo, assim como Io-landa e Ademar, os jovens
pajen-s, Elói Macollet e Piksarett, que readotara a pele de urso, o arco e as flechas, e levava
tacape e machadinha passados na cintura. Como de hábito, havia muitos índios misturados
à multidão.
Avistou-se o Marquês de Ville-d'Avray, pois ele estava sempre presente onde havia um
acontecimento qualquer. Foi ao encontro de Angélica para mostrar-lhe algumas pessoas
entre as que ela ainda não conhecia. Indicou-lhe a Sra. Le Bachoys, de quem ela ouvira
falar como de uma mulher forte sob todos os pontos de vista. Estava acompanhada das
filhas, mas os genros também se encontravam ali, bem como as crianças. O Sr. de
Chambly-Montauban e Romano de UAubignière faziam parte da comitiva, pois o primeiro
estava de olho na filha mais velha, uma jovem um tanto alta, o que era raro no Canadá, e o
segundo cortejava a mais nova, uma bonita morena de dezoito anos. A Sra. Le Bachoys ria
e lançava ditos espirituosos e imediatamente atraía uma corte à sua volta.
Naquele dia, dividia as atenções com Angélica, cujo aparecimento sempre provocava
ajuntamentos.
O Sr. d'Arreboust tentava aproximar-se da Srta. Bourgeoys para entregar-lhe uma carta
à mulher, Camila d'Arreboust, que consagrara a vida a Deus e se retirara como reclusa em
Ville-Marie, a fim de ali encerrar os dias na prece e mortificação.
Duas grandes barcas estavam atracadas. Na popa de cada uma, um toldo aberto
proporcionaria às mulheres um abrigo na eventualidade de mau tempo.
Angélica avistou a pequena família de novos imigrantes, que conhecera na antecâmara
do bispo. Esperavam, de alforjes na mão, sob a égide do patrão, o Sr. de La Porterie.
Devidamente equipados com confortáveis capotes de sarja marrom e com botas indígenas,
já apresentavam melhor aspecto. Seriam desembarcados na margem, nas proximidades da
paróquia, onde ficava o seu futuro domínio. Passariam o inverno na casa de um morador da
região, onde se iniciariam nos rudimentos da vida canadense. Depois, quando chegasse a
primavera, começariam a limpar o terreno e a construir sua casa.
Também de regresso ao seu solar à beira do rio, um jovem senhor de uns vinte anos,
acompanhado da mulher que mal teria dezessete, agradecia com efusão ao Sr. de Bernières,
cura de Quebec e diretor do seminário, que lhes dera a honra de batizar a filhinha
recém-nascida.
A jovem viera durante o verão, para dar à luz na Santa Casa de Quebec.
Durante todo o tempo que se levou para carregar as barcas com caixas, arcas, tonéis,
fardos de todo tipo de mercadoria, o Sr. de Bernières, o simpático eclesiástico de uns
quarenta anos de idade, segurou o bebé nos braços com cuidados maternais.
Contemplava, enternecido, a menininha e recomendava à jovem mãe que cuidasse bem
dela. O jovem casal lhe era um pouco aparentado, originário, como ele, de uma ilustre
família da Normandia. Quisera que a criança se chamasse Jordânia, assim como uma de
suas tias, irmã do seu tio João de Bernières, o grande místico de Caên, amigo da Sra. de La
Pel-trie, uma das fundadoras do Canadá.
Ville-d'Avray reteve por longo tempo a Sita. Bourgeoys. Angélica chegou a achar que
não poderia dirigir-lhe sequer algumas palavras de despedida. Segurando Querubim pela
mão, o marquês perorava, sem se preocupar com os demais.
 Não estou disposto a confiá-lo aos jesuítas — dizia ele —, nem àqueles senhores do
seminário.
 Em todo caso, ele ainda é muito pequeno para iniciar os estudos — respondia a Sita.
Bourgeoys.
 E isso. Gostaria de confiá-lo a uma educadora como a senhora, Madre Bourgeoys,
pois ele tem que seguir carreira.
 Tem, por quê? E que carreira? — ouviu-se nitidamente a Sita. Bourgeoys indagar.
 Pajem do rei. Não pode haver outra carreira para ele. Mas eu gostaria de levá-lo para
a França já civilizado, com uns oito ou nove anos. Deixá-lo com Marcelina, a mãe?
Impossível! É uma mulher excelente, a quem adoro, mas ela jamais sairá de sua feitoria no
fundo da baía Francesa. E não posso deixá-lo lá para vê-lo transformar-se num rústico
como todos os outros bastardozinhos dos irmãos Défour... Isso, nunca.
 Ei, no que é que está se metendo? — resmungou Amadeu Défour, que, exatamente a
dois passos de distância, se ocupava em retirar uma corda de uma estaca de amarração.
O Barão de Vauvenart, acadiano, postava-se entre os que ficavam em Quebec, assim
como Grand Bois. Os dois tinham resolvido aproveitar a estada na. capitaj^p^ra, encontrar
esposas.
Vauvenart cortejava uma viúva, rica e atraente, a quem chamavam de Rendeira, pois era
de Flandres e praticava a delicada arte da renda. Morava na rua de Angélica, que, ao passar,
ja a vira sentada diante da janela, debruçada o dia inteiro sobre a almofada onde cravava
seus alfinetes.
 Então declarou Querubim seu filho perante o mundo? — observou Angélica, quando
Ville-d'Avray foi ao seu encontro.
 Com a Sita. Bourgeoys, é inútil fingir. Ela percebeu logo à primeira olhada... É
verdade que ele se parece muito comigo — disse, contemplando Querubim.
 E o que foi que. ela lhe aconselhou para lhe acalmar as preocupações paternas?
 Que o deixe aos seus cuidados... coisa que eu já pensava fazer, naturalmente.
Agora era Elói Macollet que conversava com a fundadora da Congregação de Nossa
Senhora. Via-se que ela o repreendia a meia voz e que ele aquiescia docilmente, meneando
a cabeça.
Depois foi o Sr. d'Arreboust, que lhe entregou a carta. Angélica ouviu-o recomendando:
 A senhora lhe dirá que a amo...
 Por que não vem dizer-lhe pessoalmente? — disse a religiosa.
O bulício não permitiu ouvir-lhe a resposta, mas de repente o Sr. d'Arreboust voltou,
gritando:
— Vou partir!
Chamou seus criados, mandou-os correr até a casa para trazer uma ou duas roupas, o
estojo de barbear, o cofre.
O marinheiro-chefe avisou que se aproximava a hora da maré alta. Não se podia perder
aquele momento em que a corrente virava e quando as embarcações eram arrastadas rio
acima, o que fazia ganhar tempo. O vento estava favorável.
A animação se fez mais premente e ruidosa. Traziam-se as últimas mercadorias. O Sr.
Le Moyne, um dos primeiros colonos de Ville-Marie, hoje comerciante bem abastado, um
grande ladino, vestido de tecidos opulentos, acompanhado do filho adolescente, cuidava
pessoalmente da estivagem de vários bar-riletes de vinho da Espanha. Passava-se bem em
Montreal.
Surgiram duas carruagens, com franjas e plumas, sacolejando e cambaleando depois da
rude descida desde a Cidade Alta. A chegada delas desviou a atenção. As pessoas que delas
saíram afetaram abertamente não se misturar ao populacho.
Entre elas havia senhoras muito coloridas e maquiladas, e gentis-homens que não o
eram menos, numa excessiva profusão de adornos.
As mulheres brincando com os leques e os cavalheiros apoiando-se ao pomo de prata ou
marfim de longas bengalas, dirigiram-se todos para a extremidade do cais, olhando obsti-
nadamente na direção da ilha de Orléans, de onde pareciam esperar alguém.
Uma mulher de certa idade, muito elegante e falando alto, dava a impressão de estar à
testa desse grupo. Ville-d'Avray e Chambly-Montauban foram os únicos a ir
cumprimentá-la e a trocar algumas palavras com os amigos dela, em meio a muitos rapapés
e exclamações de papagaios, que pareciam de rigor entre eles.
 É a Sra. de Campvert — informou Ville-d'Avray, voltando para junto de Angélica.
— O rei a exilou porque trapaceava demais no jogo. Ela acompanhou o jovem amante,
oficial do Canadá, para onde foi nomeado no comando de uma companhia. Ela joga, joga
tanto que tem a ponta dos dedos gasta. Mas dá algumas belas recepções.
 Tivemos ocasião de conhecer essas pessoas no dia de nossa chegada?
 Algumas... Não conheço todas. A Sra. de Campvert se mantém um pouco à
parte.'Tem o seu próprio mundo, e se enfurece tanto por estar no exílio, que prefere
esquecer que se encontra aqui. Há alguns cavalheiros que chegaram durante a minha
ausência. Mas logo saberei quem são.
Um barco de uma vela só, vindo da ilha de Orléans, atracava. Um homem bem idoso,
envolto num manto que arrastava pela areia molhada da praia,-pois ele se mantinha
arqueado, desembarcou e logo se viu rodeado por aqueles que o aguardavam, como uma
revoada de papagaios.
Ville-d'Avray voltou para se informar.
— É um tal Conde de Saint-Edme, que acompanha o Duque de La Ferté. Dizem que
esse velho é mágico e que foi à ilha de Orléans consultar uma feiticeira. Eis uma
companhia bem estranha! Espero que não nos estraguem o inverno.
O grupo mundano retornava, afetando desdenhar a multidão canadense ocupada com o
embarque.
Um dos cavalheiros, ao passar, voltou-se para Angélica e lhe dirigiu uma saudação com
o chapéu emplumado. Ela não respondeu. Fez que não notou o gesto. Sentia-se feliz e quase
orgulhosa por estar ao lado da Srta. Bourgeoys, Loménie ou Vauvenart, ou de todos aqueles
gorros vermelhos, azuis ou brancos, o que provava que pelo menos fora adotada pela po-
pulação canadense.
Um resultado mais rápido do que ousara esperar. Mas ela também achava que aquela
gente empolada e extravagante estava deslocada em Quebec.
Enquanto se aguardava a bagagem do Sr. d'Arreboust, Angélica pôde finalmente chegar
perto de Margarida Bourgeoys e entregar-lhe as provisões trazidas para ela e suas
companheiras — doces e confeitos que o mordomo do Gouldsboro preparara a seu pedido.
— Obrigada, cara senhora, por nos mimar assim. Não somos loucas por doces, mas
estas guloseimas distrairão as crianças pequenas e as jovens durante a longa viagem. Como
você é amável!
Apesar da partida, de que a avisavam, ela não se apressava. Continuava a pousar sobre a
Sra. de Peyrac um olhar perscrutador que esta já notara em Tadoussac e em várias ocasiões
em que a encontrara. De chofre e movida por um impulso travesso, Angélica disse:
— Está olhando como é feita uma diaba?
A religiosa sobressaltou-se, mas logo se recompôs e se pôs a rir, franca e
bondosamente.
 Pois bem, sim! — disse. — Embora não fosse bem a minha intenção. Desde nosso
primeiro encontro que procuro descobrir a quem é que você me lembra. E não é curioso?
Coincidências sobrenaturais? Acaso? Aviso para o futuro? Que sei eu? Você me lembra,
irresistivelmente, uma garotinha que tivemos em nossa escola em Ville-Marie, a quem
apelidávamos de Diabinha... Uma pimentinha, aquela criança! E após alguns anos que nos
empenhamos em poli-la da melhor maneira possível, não podemos felicitar-nos por
absolutamente nada.
 Uma índia?
 Qual nada! Filha de um dos nossos colonos. As irmãs, que estiveram conosco antes
dela, eram boas e comportadas, mas ela... Dizer o quê? Um duende! Um elfo! E às vezes,
nos seus movimentos ou quando você fala, a lembrança dela me vem como um relâmpago.
É por causa dos seus olhos, sem dúvida. Também ela os tinha verdes, o que não é muito
comum...
 E também se chama Angélica?
 Não!
 Tanto melhor!
 Mas...
A Sita. Bourgeoys encarou-a com malícia.
 ...chama-se Maria-Anjo! Foi a vez de Angélica rir.
 Confesso que é perturbador.
 Você nos acha um tanto supersticiosos por estas bandas, não é? Vendo sinais em
toda parte... Não lhe escondo que tenho consciência disso. Vem do hábito de viver em
perigo, de sobreviver por milagre. Você haverá de aperceber-se disso aos poucos, vivendo
no Canadá... A menor coisa que aconteça, por ínfima que seja, pode não significar nada,
como pode dissimular algo de importância, um indício do céu, verdades secretas e
místicas... Venha ver-nos em Ville-Marie, no outono, na época da feira de peles. Hei de
apresentá-la a pessoas excepcionais... Ah, falei das suas Moças do Rei às senhoras da Sa-
grada Família... Vão ocupar-se delas.
 Sim! Estive com a Sra. de Mercourville no Grande Conselho, ontem. Obrigada de
todo o coração!
 Madre Bourgeoys! Madre Bourgeoys!
Todo mundo queria falar com ela, que precisou soltar-se de abraços, recomendações,
protestos de pesar e amizade. Embarcou. Recortada contra o cinza da água, sua corajosa
silhueta vestida de preto e seu rosto afável pareciam integrados na natureza.
Ela pertencia ao Canadá. Vê-la distanciar-se deixava certa sensação de orfandade.
As barcas foram afastadas da margem com longos arpéus e as velas quadradas subiram
pelo mastro único. O piloto da cidade, chamado Topin, encabeçava o comboio e dirigia a
manobra. Só ele, garantia, conhecia todas as traições e maligni-dades do Saint-Laurent, do
cabo Tourmente, diante de Quebec, até a entrada da Chaudière, rio na margem sul, ao norte.
As correntezas, os turbilhões, as rochas dissimuladas lhe eram submissos, como feras ao
domador.
As barcas bordejaram entre Quebec e Levis por um longo momento, à procura do vento.
Depois tomaram a direção desejada, sob vivas e lenços desfraldados. De todas as praias cir-
cunvizinhas, lançaram-se canoas indígenas na sua esteira, movendo-se a remadas vigorosas.
As pessoas demoravam-se ali na margem, impregnada de melancolia. Naquela manhã a
ilha de Orléans parecia próxima e tão nítida, que, na chanfradura da enseada das canoas,
avistavam-se algumas casas e cabanas do vilarejo de Sainte-Pétronille, uma das paróquias
da grande ilha, e podiam-se contar inúmeras quintas disseminadas sobre sua espinha
rugosa.
— Era tempo de zarparem — observou o Sr. de Bernières,
o eclesiástico. — Olhem.
Apontava um ponto adiante da ilha, que se destacava sobre a superfície esverdeada do
rio.
Parecia espuma branca de ondas prontas e rebentar, mas que, bem observadas,
revelavam-se curiosamente imóveis.
— O gelo... — disse ele. — Em breve...

CAPÍTULO XXIX

As investidas do Marquês de Ville-d'Avray

A pergunta que Angélica fazia a si mesma acerca do gentil-homem que a


cumprimentara e que a deixara intrigada, lembrando o brasão do Rescator, ela recebeu uma
resposta mais depressa do que previa, e foi Ville-d'Avray quem lha deu.
Ele veio à tarde, conforme prometera, a fim de mostrar-lhe mais de perto a casa onde
ela se hospedava e a cuja decoração ele dedicara muitos cuidados e uma fortuna.
O Marquês de Ville-d'Avray, três dias depois de chegarem, consagrou-lhe um dia
inteiro, ajudando-a a instalar-se e apresentando-lhe sua bem-amada, aquela jóia, sua
casinha, que ele construíra no alto de Quebec com tanto amor.
Para o telhado, mandara vir de Anjou cinquenta mil telhas de ardósia, da melhor
qualidade, embarcadas em Sables-d'01on-ne. Da Itália, ferragem, placas de mármore, e
também vidros, um luxo reservado somente às residências de categoria.
Na casa de Janine Gonfarel, num quarto grande no primeiro andar, que possuía um
lavatório e que de bom grado ela colocava à disposição dos bons pagadores, o marquês
mandara pendurar sua rede de algodão, comprada ao pirata do Sans-Peur, e depositara
numa prateleira a pedra verde do pirata ca-raíba, talismã precioso, dotado de todo tipo de
propriedade mágica. No primeiro andar da casa de Janine havia um balcão de madeira, com
uma vista magnífica para o rio. Quando ele se sentisse nostálgico pela Cidade Alta, viria à
casa de Angélica.
Passou-lhe um braço conquistador pela cintura. Fazia-se de bobo para não ter que
responder às perguntas que ela lhe faria acerca do baú de escalpos, cujo merecimento ele se
atribuíra, em detrimento do pobre Saint-Castine, longe demais para se defender. .
— Se você soubesse como estou orgulhoso por havê-la trazido para dentro destes
muros. A minha reputação de homem de gosto foi fortalecida por isso, se é que tal coisa é
possível...
Venha-sentar-se neste canapé.
Angélica se recusou.
 Você prometeu que me levaria a visitar a casa. Não é hora de repousar.
 Que seja!
O Marquês lançou um olhar enternecido à volta, passou afe-tuosamente a mão pelo
encosto do grande canapé, rodeado de inúmeras poltronas e tamboretes recobertos de
tapeçaria, diante da grande lareira.
Tornou a rodear a cintura de Angélica com o braço e roçou-lhe a têmpora, perto do
cabelo, com um beijo ligeiro, de que ela não teve tempo de esquivar-se.
— Amo as mulheres — afirmou ele, em tom lírico. — Sou demasiado apaixonado pela
beleza para não amar as mulheres, quando elas são de qualidade. Beijo muito bem, fique
sabendo, você precisaria aprender!
E como ela risse:
— Ah, eis o que eu queria obter! Seu riso... Sempre soube lidar com as mulheres. Elas
me amam e eu as amo. Têm espírito e se interessam pela vida, não são como os homens.
Deus, como são entediantes os homens!
Com essa declaração, no mínimo inesperada de sua parte, ele levou-a para as adegas, a
mostrar-lhe as mil reservas que empilhara "para ela": os tonéis de vinho da Borgonha, os
barris de biscoitos da Itália, de ervilhas, de favas, as barras de açúcar, sem falar dos saleiros
bem-providos, dos frascos de especiarias, arrolhados com cortiça e recobertos de gordura.
Sempre teriam leite fresco, graças às ovelhas e à cabra.
Reinava naqueles porões abobadados, de paredes revestidas de um reboco de cal, argila
e palha picada, uma tepidez seca, agradável, que preservaria os géneros perecíveis da
deterioração e do mofo. Outras câmaras subterrâneas, menos arejadas e mais frescas,
guardavam os vinhos.
Ville-d'Avray mandara aumentar o buraco onde se punham blocos de gelo durante o
inverno e que serviria de geleira no verão, permitindo o consumo de sorvetes e bebidas
frescas, na época dos calores tórridos.
— O que faríamos sem nossas adegas e nossas cumeeiras? São nossos melhores aliados
para sobrevivermos nestes climas extremos. As cumeeiras, no inverno, armazenam as
carnes geladas, evitando-nos o trabalho de ir à caça ou abater animais com muita
frequência. Nossas adegas preservam nossas provisões do calor ou do frio. Sabia que a
maioria delas são grutas naturais que só precisaram de uma adaptação? Com as cisternas e
os poços, elas compõem, na Cidade Alta, uma verdadeira cidade subterrânea, em que, a
rigor, poderíamos nos enterrar e sobreviver como toupeiras. Seria agradável.
Deu uma piscadela.
— Nossas adegas são nossos labirintos secretos. Há delas por toda parte. Algumas se
intercomunicam. E graças a elas, podem-se viver muitas histórias escondidas. Sabia que os
jesuítas têm um corredor que se comunica com as cavernas adaptadas sob o convento das
ursulinas? Assim os piedosos indivíduos podem visitar-se. Eh, eh, eh! Sem que ninguém
fique sabendo...
Ele não podia deixar de ser maledicente. Das adegas, subiram aos sótãos. O marquês
levara a luneta. Olhando a rua pela lucarna, decidiu:
 Pois bem! Vou preparar um quarto nestas cumeeiras, como Cleo d'Houredanne, já
que você acha a casa demasiado pequena.
 Nada disso! Já lhe disse que gosto dela assim!
Atingiram o segundo piso, que ficava bem embaixo do telhado, ocupando um espaço
onde era preciso ficar um pouco curvado. Ali, em pleno inverno, penduravam-se em
ganchos os pedaços de carne endurecida pelo gelo.
A luneta de Ville-d'Avray se recusou a deixar-se seduzir pelo panorama grandioso e,
mais prosaicamente, fixou-se numa cabana de argamassa sobre tabiques e teto de choupo,
que se erguia como um cogumelo quase ao pé da casa, um pouco à esquerda, a meio
caminho do talude. Era ali que vivia seu vizinho, Eustáquio Banistère. Com um vinco
amargo nos lábios, o marquês explicou a Angélica que aquele casebre em ruínas era a
vergonha do bairro e um espinho cravado na sua carne.
Ambicionando ampliar seu domínio, construir cavalariças, estábulos, um forno, ele se
via limitado em seus projetos pela má vontade do proprietário da cabana, que não queria
vender uma parcela de seu terreno. Ora, a lei das heranças outorgava a ele a maior parte da
colina a que estavam encostados, um território com que ele nunca fizera nada,
contentando-se em deixar apodrecer ali a palhoça edificada pelos pais quando chegaram da
Normandia, em 1635. Eustáquio Banistère, vulgo Cabeçudo, nascera ali, voltava para lá
após cada uma de suas viagens aos Grandes Lagos, e ali se encontrava no momento, para
grande prejuízo da vizinhança.
Fora intérprete, explorador. Nunca o viam. Estava retido havia dois anos em Quebec,
em seu covil de telhado de choupo podre, porque fora excomungado por haver levado
aguardente aos selvagens, por causa de cartas de nobilitação que caducaram por não terem
sido registradas ;m tempo pelo Conselho Soberano, e devido a litígio com as ursulinas, cujo
mosteiro se limitava com a propriedade dele, e que por engano tinham começado a
desbravar um pedaço de seu lote.
Não vivia só, mas com uma mulher loura e amorfa, que atendia pelo bizarro
patronímico de Joana da Alemanha, e quatro filhos, tão selvagens quanto os coiotes.
Ao cabo de dois anos, os moradores da Rue de la Closerie estavam dispostos a assinar
uma petição e pagar do próprio bolso para que lhe suspendessem a "excomunhão" e lhe de-
volvessem a licença, a fim de que ele retornasse para a mata e pudessem livrar-se de sua
presença.
Mas o gigante, com seus quarenta anos, grosseiro, taciturno e beberrão, tencionava
vingar-se da cidade, e sabia muito bem que a melhor maneira de conseguir isso era
recusar-se a vender seus lotes e ficar em sua choça, digna de um carvoeiro, se tanto, e que
todos os burgueses da Cidade Alta sonhavam pôr abaixo. Ali, plantado como um cancro nas
bordas daquele delicioso platô de lânguidas descidas para os vilarejos de Sainte-Anne,
Saint-Jean e Saint-Cyrille, ele levava avante uma rabugenta vingança. O pátio dele era
representado por uma escavação entulhada de detritos e utensílios, uma charrete, um
machado sobre um cepo, um caldeirão sobre três pedras. Na extremidade do pátio erguia-se
uma bela árvore, um imponente carvalho vermelho com os galhos nodosos abertos em
candelabro, e a cujo tronco estava acorrentado um cão magro.

Foi assim que Ville-d'Avray apresentou as coisas, ou seja, do modo mais sinistro.
Era a única sombra num quadro que poderia ser idílico, a única desgraça de um local
que ele escolhera entre os mais belos de Quebec, se não do mundo. Era o inconveniente de
morar numa cidade: não se é seu próprio senhor, depende-se dos vizinhos!
Angélica disse que até então aquela vizinhança não a importunara demasiado, exceto
em duas ou três ocasiões pela irrupção ruidosa das crianças, que atrelaram a um caixote de
madeira, que servia de carrinho, o cão miserável e despencaram rua abaixo num estrondo
infernal. Honoriná, indignada, berrava de cólera.
 Verdadeiros coiotes, bem que lhe disse — suspirou Ville-d'Avray. — Isso é só o
começo.
 Você poderia ter por vizinha a Sra. de Maudribourg! Você notou, no Conselho, de
que tipo eram os "amigos" da Duquesa de Maudribourg, que a aguardavam em Quebec?...
Aquele Conde de Varange de que falaram e que veio rondar para o lado de Tadoussac...
O Marquês de Ville-d'Avray baixou a voz e correu os olhos desconfiados à volta, como
se sua minúscula casa canadense pudesse conter recantos para espiões.
— É um membro muito influente da Companhia do San
tíssimo Sacramento, mas nem por isso deixam de comentar
que ele foi mandado para o Canadá depois de um caso de aten
tado aos bons costumes.
Ville-d'Avray sempre afetava um ar comedido para falar de escândalos, como se ele não
tivesse algumas coisinhas do mesmo género a se censurar. Era um reflexo de educação. E
também a consequência da sua índole simples e alegre. Fizesse o que fizesse, ele tinha a
consciência limpa em tudo. Mas o hábito de estar em sociedade o impelia a adotar a mímica
consagrada — pálpebras baixadas e sorriso de pessoa bem-informada — para transmitir
histórias jocosas ou escabrosas.
— Contaram-me que esse devoto rançoso era tutor de um garoto, herdeiro de uma
fortuna imensa. Dizem que abusou do jovem, fez que lhe passassem todos os bens do
inocente, estrangulou-o e atirou o corpo num poço... Em Paris, ele foi amante da duquesa.
Você imagina esse dejeto dissoluto com aquela beldade, fina como uma estatueta de
Tanagra? Bem que nossa Diaba gostava de velhos concupiscentes!
Retornaram ao salão e sentaram-se no canapé.
Lá fora, o frio cortante e azul chegava, sorrateiro, e reinaria assim que o sol acabasse de
se pôr num céu de nácar, por entre um cortejo de nuvens com reflexos de cobre e ouro.
Ville-d'Avray jogou nifm bom punhado de gravetos no fogo, que crepitou.
— Ah, como é bom! — exclamou Angélica, afundando no canapé. — Não me farto
nunca desse fogo. Fazia tanto frio nos navios!
O marquês empurrou na direção dela o pequeno móvel de bebidas. Estavam sozinhos na
casa.
 Você nunca me contou o que o trouxe a viver na Nova França — comentou ela. —
Você, um homem da corte, cercado de amigos influentes e conhecendo todos os grandes...
Quando penso nisso, não lhe assenta... Mesmo que me afirme o contrário, continuarei a
achar que seu cargo de governador da Acádia não passou de um pretexto. No máximo,
compensação, talvez até consolo. Mas há outra coisa. O que foi que você fez, afinal?
 Como todo mundo — confessou Ville-d'Avray —, desagradei. E quando é a Sua
Majestade Cristianíssima, o rei da França, que a gente se permite desagradar, saiba, bela
ignorante, que nunca viveu na corte, que isso pode levar longe... muito longe... até o
Canadá, por exemplo.
Trouxe o pequeno móvel de bebidas para perto do canapé novamente, serviu a Angélica
um pequeno copo de málaga, num cristal trabalhado da Boémia, e sentou-se perto dela,
muito perto.
Contou-lhe que durante muito tempo fora o provedor de objetos de arte de Monsieur, o
irmão do rei, para o seu palácio de Saint-Cloud.
— Eu tinha escolhido porcelanas da China para Monsieur, a fim de ornamentar-lhe a
residência. Há que conhecer Monsieur. Gosta do fausto, no mínimo tanto quanto seu régio
irmão.
Ville-d'Avray suspirou, sorveu seu copo de cordial e passou um braço pela cintura de
Angélica.
— O rei jamais recusou ao irmão os meios de levar uma vida prodigiosa — prosseguiu
ele. — Mas tratava-se de uma generosidade que ocultava armadilhas. Levado a despesas
consideráveis, Monsieur tornou-se cada vez mais dependente
do rei. Além disso, e preveni Sua Alteza em várias ocasiões, o rei se preocupava com que a
corte de Monsieur ultrapassasse a sua em gosto e elegância, e que fosse mais divertida do
que Versalhes. Minha descoberta de porcelanas da China, raríssimas, trazidas do Oriente
por um mercador veneziano, fez transbordar a inveja do rei. Mandou chamar-me a
Versalhes, cumprimentou-me pelos meus talentos, doou-me uma terra e uma abadia, o que
me encantou, pois os proventos são excelentes, e depois me outorgou a carta de governador
da Acádia, na Nova França, com a missão de seguir para lá sem demora. Eu não sabia
sequer onde ficava. Mas aquiesci. Tinha entendido. Nosso soberano é assim, minha cara.
Angélica tomara o copo de málaga sem dar-se conta. Aquelas evocações das cortes
principescas lhe rodopiavam na cabeça. A luz vibrante do verão em Saint-Cloud, com
jardins ingleses, desordenados e maravilhosos, voltou-lhe à memória e pareceu entrar na
sala com o último clarão daquele sol baixo do Grande Norte, afundando por trás de um
horizonte deserto e atravessando os vidros da janela atrás dela como uma estaca de ouro.
De súbito, ela soltou um grito, imaginando-se tomada de uma vertigem ou vítima de um
tremor de terra. Caiu para trás e viu-se de pés para o ar, com Ville-d'Avray por cima dela, a
abraçá-la e a rir como um louco.
— E o segredo de meu canapé — bradou ele encantado com a brincadeira. — Eu lhe
tinha dito que lhe mostraria as pequenas astúcias dele. No momento escolhido, manobra-se
uma alavanca dissimulada nos braços e o encosto desce, para formar um leito dos mais
oportunos.
Angélica se encontrava numa situação difícil para se defender com eficácia. Se quisesse
reerguer-se, precisaria agarrar-se ao pescoço do marquês, o que a entregaria ainda mais aos
avanços dele.
— Não se aborreça — disse ele —, e lhe direi o nome daquele gentil-homem que lhe
dirige grandes saudações e que, quando está embriagado, conta que a conhece e que você
foi muito generosa com ele.
Angélica parou de debater-se no ato, espicaçada pela curiosidade.
— Quem é ele?
Ville-d'Avray, com o rabo do olho, observava Angélica reclinada sobre os cabelos
espalhados contra os motivos mitológicos da tapeçaria do canapé, com a satisfação de um
gato que acaba de capturar um camundongo.
 Você não ficará aborrecida comigo?
 Não, mas diga.
 É um gentil-homem da comitiva do rei.
 Não duvido... Mas quem é?
 Está aqui com nome falso... Quer que acreditem que está aqui para uma missão que
requer que ele permaneça incógnito, mas eu apostaria que, provisoriamente comprometido
com alguma estroinice, ele encontrou pretexto para se manter longe das intrigas e não se
envolver com o seu desenrolar. Mas eu o reconheci.
 Quem é?
Ville-d'Avray aproveitou-se da enormidade da confidência que ia fazer para
aproximar-se mais da orelha dela e soprar-lhe, entre dois beijinhos:
 O irmão da favorita.
 Que favorita?
 Mas só existe uma! — espantou-se o marquês, agastado. — Apesar dos caprichos do
rei, é sempre a mesma inimiga de todos nós, a que mandou Lauzun para a prisão e me
despachou para o Canadá. Ela, Atenaís, a Marquesa de Montespan...
Uma revoada de imagens desfilou pela mente de Angélica, como que folheadas por uma
mão febril.
—O irmão de Atenaís... O Duque de Vivonne...
As visões se precisaram, qual leque abrindo e fechando com um ar de gracejo galante,
estalando rapidamente, deixando entrever alcovas, um mar azul, o refúgio de um
tabernáculo de seda vermelha na proa de uma galera e, sobre almofadas de seda, os embates
inequívocos de um casal estreitamente enlaçado. Não era Versalhes. Era Marselha! O
Mediterrâneo! E o sedutor almirante das galeras do rei, irmão da favorita, tinha-a nos
braços.
"Senhor! Mas... eu dormi com ele!", pensou ela.
Percebeu que Ville-d'Avray, aproveitando-se de sua distra-ção, apropriara-se de seus
lábios e os comprimia com arte. Era verdade que ele beijava bem, o sibarita!
 Pa... pare! — intimou ela, debatendo-se, agora com energia. — Proíbo-o.
 Mas de repente você me pareceu tão acessível, tão aquiescente...
 Não é isso... — protestou Angélica, tentando safar-se do canapé-armadilha. — Você
me deixou tão atónita com suas revelações sobre esse "Sr. de La Ferté", que eu pensava em
outra coisa.
 Como as mulheres são decepcionantes! — queixou-se o marquês. — E você é a mais
decepcionante de todas, Angélica! Eu não esperava isso de você.
 Não lhe prometi nada.
 Não veio a Quebec para...
 Para... comer maçãs carameladas com você, diante da lareira... mais nada.
 Importuno-a?
 Às vezes — admitiu ela.

Reergueu-se e sentou-se, alisou a gola do vestido e esforçou-se por dar uma aparência
bem-comportada ao cabelo. O Duque de Vinonne... O que mais a contrariava era estar tão
perto de alguém que sabia muitas coisas sobre seu passado e sobre sua situação na corte. À
medida que as imagens desfilavam, ela lhes via as repercussões. Sem dúvida alguma, fora
ele que, no dia da chegada, no momento em que Joffrey de Peyrac desembocava na praça
com seu estandarte e suas bandeiras, lancara as palavras: "No Mediterrâneo ele usava o
escudo de prata sobre fundo vermelho..."
"Que azar! Que catástrofe!", dizia ela consigo, aterrorizada. "Ele nos reconheceu... Pode
prejudicar-nos..." Depois re-fletiu que ele se ocultava sob um nome falso e talvez preferisse
que não o soubessem no Canadá. Mas ele a cumprimentara, de modo enfático e
desagradável.
 Você me faz sofrer — gemia Ville-d'Avray.
 Ah, não perca a cabeça, você também! — disse ela, impaciente.
Depois, vendo-o acabrunhado e lembrando que ele lhe dera a possibilidade de viver
num local tão agradável, depôs-lhe na face um beijo fraterno.
— Não fique amuado, meu caro. Saiba que gosto de você, que é meu preferido. Mas
não faça loucuras outra vez. O inverno mal está começando. Se queimar as etapas, não
chegaremos ao fim do inverno. Afinal, marquês, um pouco de bom senso!
Ville-d'Avray protestou que, como a adorava, não quisera causar-lhe nenhum dissabor,
que ele só estava ali para tornar-lhe a vida leve, o que constituía a única finalidade daqueles
beijinhos marotos e necessários para curar a "doença de seriedade" que ela contraíra, a
ponto de não perceber logo que ele, Ville-d'Avray, fora posto na terra para a felicidade dos
seus amigos; e que, de todo modo, ela podia abandonar-se à quietude de Quebec, onde só
conheceria alegrias, pois a vida é bela e não merece ser desperdiçada em tragédias. Toda
aquela brincadeira não teria consequência, não é? Ela aquiesceu. Riram os dois, beijaram-se
como primos e se prometeram fidelidade, ajuda e assistência, como nos bons e velhos
tempos sulfurosos da Diaba.
Angélica reconhecia de bom grado que, sem Ville-d'Avray, Quebec podia assustá-la,
com seus mundos ocultos e diferentes. Mas ele sabia tudo e lhe era devotado.
Foram trazidos de volta ao Canadá pela irrupção de vozes e risos infantis. Honorina e
Querubim, seu acompanhante, atravessavam o pátio e voltavam para casa. Angélica pediu a
Ville-d'Avray que desse ao canapé um aspecto honesto de novo.
—Mostre-me como funciona o seu sistema diabólico.
Mas ele se recusou a desvendar-lhe os segredos do mecanismo que criara.
—Para que o utilize com outro que não eu? Nunca!

CAPÍTULO XXX

As difíceis Moças do Rei

"Vou evitá-lo", prometeu Angélica a si mesma. Pensava no Duque de Vivonne, irmão


de Atenaís de Montespan, que a má sorte conduzira a Quebec enquanto ela ali se
encontrava.
Mas os últimos dias daquela primeira semana trouxeram tantas ocupações e
acontecimentos, que ela precisou adiar para mais tarde refletir sobre esse contratempo.
Quase se poderia crer que sempre vivera em Quebec, tão naturalmente se viu envolvida
numa forma de vida a que, pelo menos em sonho, sempre dera sua preferência. Assim, nada
era mais agradável do que iniciar o dia indo à missa logo cedo, o que dava a oportunidade
de ver o sol nascer da soleira da porta e de cumprimentar as pessoas^ da sua comitiva ou os
primeiros passantes da rua.
Na sua escolta habitual, sempre estavam Piksarett e Ademar, a quem ela salvara do
"cavalo de pau", indo pedir auxílio ao Sr. de Castel-Morgeat. O pobre soldado fora
reintegrado no exército como sentinela e designado para garantir proteção à Sra. de Peyrac
e montar guarda diante de sua casa... ou dentro dela, quando fizesse frio.
A Sita. d'Houredanne, a vizinha de frente, ainda se recusava a vê-la. Quando Angélica
fora soar a aldrava da porta, a criada inglesa, depois de entreabri-la, batera-lhe a porta na
cara.
Em compensação, os índios do pequeno acampamento vinham fazer um círculo à sua
volta assim que ela saía, e acom-panhavam-na, com seus cães, até a igreja. Angílica
também já tinha seus pobres, entre eles um velho chamado Loubette, que morava ao fim da
rua e que Ville-d'Avray lhe recomendara.
— Imagine que no dia de sua chegada todo mundo se esqueceu dele! Como é sozinho e
indefeso, sem mim estaria morto. Tive a ideia de visitá-lo de manhã, e o socorri. É um
velho urso, muito irascível, mas interessante. Possui um belíssimo cachimbo indígena e um
admirável aparador de carvalho.
A Sra. de Mercourville oferecera a ele, para os pesados trabalhos domésticos, seu
escravo índio, da tribo panis, os únicos considerados escravos pelos seus congéneres. Mas
mudou de ideia subitamente.
— Não! Desde que ele foi marcado com a flor-de-lis, já não
posso confiar nele. Eu teria medo de que ele a decepcionasse...
Explicou que aquele excelente rapaz só lhe dera satisfações. Um "viajante" o trouxera
dos mares Doces, ela o comprara por quinze libras de Tours e mandara batizá-lo.
No entanto, como roubara um machado durante um incêndio — crime severamente
punido —, fora marcado na face com ferro em brasa, segundo a lei francesa. E não é que
agora resolvera gabar-se da marca, dizendo que pertencia ao rei da França e que não
aceitaria ordens de mais ninguém, a não ser do próprio monarca, seu amo!
— Esses índios têm argumentos que nos estarrecem! Você aprenderá a conhecê-los,
minha cara.
Muita gente falava com Angélica como se ela acabasse de desembarcar, procedente da
França.
Ela acabara de contratar uma jovem canadense para ajudar Iolanda durante o dia.
Iolanda não se esquivava ao trabalho, mas, com as crianças, havia muito o que fazer.
A jovem tinha vinte e três anos. Chamava-se Suzana Legagne. Era alta, robusta e
esperta, natural do país, muito segura de si. Casara-se aos catorze anos com um soldado do
regimento de Ca-rignan. Quando a campanha militar terminara, a mãe dela ficara no
Canadá e recebera uma concessão. Suzana já tinha quatro filhos, todos meninos, e morava
um pouco fora da cidade, no flanco da encosta Sainte-Geneviève, que dava para o convento
dos re-coletos. Explicou que naquele ano o marido partira para a mata, para os Grandes
Lagos, fora ferido e teria que passar o inverno no Forte Frontenac, perto do lago Ontário.
Mandara avisá-la de que não era nada de grave, mas como não pudera levar as peles Para
Quebec, não recebera seus dividendos. Assim, era com prazer que a mulher via a
perspectiva de ganhar alguns escudos.
A herdade ia bem. Havia empregados, um casal que se ocupava do grosso do trabalho, e
a mulher também se ocupava das crianças menores.
A avó dela, veterana no país, paralisada mas autoritária, dirigia a casa de sua poltrona.
Por trás de todas essas explicações, Suzana dava a entender que bem que gostaria de deitar
os olhos para os lados.da cidade e que nada lhe parecera mais inspirador do que penetrar na
intimidade daqueles recém-chegados de que tanto se falava.
De manhã traria o leite de suas vacas, manteiga e ovos. Logo se entendeu com Iolanda,
acadiana, é verdade, mas, como ela, nascida no continente americano.
Na sexta-feira, o vizinho declarou guerra, despejando todo o estrume de seu estábulo
diante da porta da casa do marquês, de modo que já não se pôde abrir a porta da rua.
Ville-d'Avray ficou ainda mais furioso porque, vindo para acompanhar Angélica à
missa, encontrou à sua espera, resolutamente, um esbirro do escrivão régio, com a farda
indicativa de suas funções, e que lhe pediu dez soldos por ter cometido a "infração número
9, multa promulgada pelo grande inspe-tor viário do Canadá e confirmada pelo procurador
do Conselho Soberano em 6 de maio de 1640 sobre a legislação concernente aos animais de
estábulo e cavalariça, punindo com a dita soma toda pessoa que atire ou deposite o
excremento dos ditos animais na via pública, particularmente na rua, diante de sua casa
particular".
— Mas esse estrume não é meu! — bradou Ville-d'Avray. — Não pagarei!
Angélica, vendo-o recusar encarniçadamente os dez soldos ao oficial de justiça,
ofereceu-se para ir falar com o grande ins-petor viário em pessoa, o Sr. de
Chambly-Montauban, que morava na mesma Rue de la Closerie, a dois passos dali.
Seguidos de uma multidão já numerosa, chegaram à sedutora propriedade do homem do
cão de fila, uma habitação que fazia a inveja de muitos, pois, protegida dos olhares pela sua
cortina de árvores de folhas leves, como bétulas, olmos e faias, com alguns abetos negros
pelo meio, era a morada ideal para se receber companhia alegre e galante.

Angélica e o marquês tiveram a surpresa de encontrar ah o Sr. Nicolau de Bardagne e


os oficiais de seu séquito, bem como seu criado, os domésticos encarregados de servir a
mesa, seu cozinheiro e os cavalariços. O Sr. de Chambly-Montauban, cuja criadagem era
menos numerosa, fora hospedar-se na cidade, feliz por prestar um favor ao emissário do rei,
que sofria por estar apertado numa acomodação distante, para os lados das planícies de
Abraão.
Com ar de encantada surpresa, Nicolau de Bardagne beijou a mão de Angélica.
 Minha cara! Você, já!... Como fico feliz!... Eis-me seu vizinho agora.
 Você é incorrigível — murmurou Angélica.
 Minha bela amiga — replicou Nicolau de Bardagne, também num murmúrio —, vale
a pena eu me deixar emboscar para um inverno em Quebec se tenho que me hospedar no
extremo oposto de sua casa? O Sr. de Chambly-Montauban se mostrou muito solícito e
saberei reconhecer-lhe a amabilidade.
No inesperado gesto de Angélica, ele via um sinal de bom augúrio para o futuro de suas
relações amorosas.
 Na verdade, estamos à procura do grande inspetor viário — desiludiu-o ela.
 Já não está aqui, embora eu lhe tenha deixado de bom rado um apartamento em sua
própria casa. Em Quebec, todos estão em casa em todo lugar. Angélica, minha cara vizinha,
como ficarei feliz, doravante, de poder contemplá-la logo de manhã, à soleira de sua porta!
Os tapeceiros ainda não terminaram de pôr no lugar meu guarda-roupa e meu mobiliário.
Preciso ajudar meu secretário a esvaziar os caixotes de livros e a colocá-los na biblioteca.
Mas você voltará, não é, para me visitar nesta casa encantadora? Agora que estamos
próximos...
Furioso, o Sr. de Ville-d'Avray levou Angélica embora. Preferia pagar os dez soldos.
Em meio a tudo isso, a lembrança do Duque de Vivonne embaçou-se. Seria ele mesmo?
Ville-d'Avray não se teria enganado, talvez?
Angélica ia visitar a Polaca todos os dias. A dar-lhe ouvidos, Angélica lhe permanecera
no centro da vida durante to-
os aqueles longos anos.
— Eu a vi à minha frente todos os dias de minha vida — afirmava ela, sem dúvida com
uma ponta de exagero —, pois foi você quem mais me ensinou coisas úteis, marquesa.
Você e o jesuíta.
Angélica não esperava ver-se reunida assim com o Padre d'Orgeval numa mesma obra
educadora.
Ouvindo falar dele assim esparsamente, aqui e ali, teve que admitir que o temível
jesuíta também era amado. Daí seu poder sobre os simples.
Em geral, as pessoas sentiam-se aliviadas com o desaparecimento dele. Mas a
preocupação que seu destino inspirava era sincera. Parecia, de fato, que ninguém sabia que
fim tivera. E como não se podia conceber que ele se houvesse eclipsado de livre vontade,
corriam os mais desvairados boatos à socapa. Dizia-se que ele se alçara aos ares, quando
vira aproximar-se os navios de Peyrac, e desaparecera acima das nuvens. Ou então, que
fora levado pelas canoas da chasse-galerie, como Elias no carro de fogo. Alguns
insinuavam que ele fora assassinado. Que fora morto por magia e que fora a sombra dele
que algumas pessoas tinham encontrado, subindo o rio de canoa, para o lado de
Trois-Rivières...
Angélica ouvira realmente o Padre de Guérande murmurar-lhe: "Por sua culpa, ele vai
morrer1'?
Não teria sido um fantasma? Não! Ela o viu na catedral um dia, nó coro com os outros
jesuítas...
Cruzou com a Sra. de Mercourville, que se queixou das Moças do Rei.
— Elas não são fáceis de lidar.
Angélica inquietou-se, receando as tagarelices que revelariam demasiado sobre a
odisseia delas em Gouldsboro. Mas a Sra. de Mercourville lhes censurava principalmente o
fato de serem pretensiosas.
— De antemão, mostram-se difíceis acerca da escolha dos futuros maridos, e fazem
muxoxo diante dos trabalhos que lhes proponho. Uma delas é mestiça, uma mourisca.
Achei que lhe prestava um favor sugerindo-lhe que ajudasse Pedrina, minha baba negra.
Replicou-me que foi criada pelas senhoras de Saint-Maur, que sua madrinha era de alta
linhagem e que não veio para o Canadá para ser escrava, mas para desposar um oficial.
Digo-lhe de imediato que isso não me parece possível. A única dessas moças que me
pareceu digna de interesse foi Delfina du Rosoy. Mas aí temos outro problema: ela não quer
se casar.
Angélica foi à casa da Sra. de Mercourville, sempre rodeada de crianças e de todo tipo
de gente.
Já no vestíbulo, a pequena Ermelina, criança gulosa, atirou-se em seus braços. A babá
martinicana disse-lhe que a minúscula senhorita escapava o tempo todo, tentando ir ao
encontro de Angélica. O milagre fora um tanto exagerado, pois, depois de acreditarem que
ela não andaria nunca, agora passavam o tempo a correr atrás da menina.
Depois de beijar a criança, Angélica foi conversar com as Moças do Rei e fez-lhes uma
pequena representação:
— Aceitem os empregos que lhes oferecem, enquanto esperam que o Grande
Conselho se manifeste sobre seu caso. Estão tratando de reconstituir o seu dote e enxoval,
mas é preciso que dêem prova de seus talentos, de seu bom humor e boa educação, se
querem que os jovens habitantes da terra sejam encorajados a pedi-las em casamento. Pelo
Natal, muitos desses rapazes solteiros, isolados em suas fazendas, virão a Quebec de trenó
para assistir aos ofícios religiosos. Vamos aproveitar a época de festas para dar um grande
baile de Epifania. O senhor governador abrirá seus salões no Castelo Saint-Louis. Vocês
irão ao baile, onde terão a oportunidade de conhecer seus futuros esposos...
As órfãs e internas do asilo arregalaram os olhos e postaram as mãos, extasiadas. Elas,
que só tinham conhecido os grossos muros do convento, onde se encerravam as menininhas
já aos sete anos de idade, sob a guarda de religiosas dedicadas, mas austeras, não davam
crédito aos próprios ouvidos.
 Iremos ao baile? No palácio do governador? Nós também, senhora?
 Sim, vocês também! Estamos no Canadá, e fiquem sabendo que aqui se leva menos
em consideração a linhagem do que a qualidade... vocês tiveram a coragem de atravessar os
mares para vir povoar a Nova França, e como tal serão apreciadas... Providenciarei para que
estejam bem penteadas, e vestidas com elegância, mas vocês, por seu lado, lembrem-se das
boas maneiras que suas educadoras lhes ensinaram. Assim, irão ao baile bonitas, modestas,
amáveis, e não sereis desdenhadas.
Angélica deixou-as devaneando, imersas num sonho azul.
Delfina du Rosoy pediu para falar-lhe a sós.
 Se eu soubesse que não me manteria a seu serviço, senhora — disse-lhe —, teria
pedido que me deixasse na Acádia. Lamento muito não haver ficado em Gouldsboro, como
algumas de nossas companheiras, que tinham um prometido e que conseguiram se esconder
no momento da partida da Sra. de Maudribourg. O Sr. Paturel lhes garantira que-tomaria
conta delas. O lugar assusta um pouco, no começo, quando se vêem todos aqueles hereges e
piratas, mas logo a gente se deixa seduzir pelo calor humano que ali reina. Senhora, posso
pedir-lhe muito humildemente que considere meu pedido e me leve consigo quando
retornar a Gouldsboro?
 Ainda falta muito para isso — protestou Angélica. — O Saint-Laurent vai congelar e
não poderemos partir de Quebec antes da primavera. Isso lhe deixa muito tempo para
mudar de ideia.
E pensou: "Quem é que sabe se algum dia voltaremos a Gouldsboro? E para que destino
rumaremos quando chegar a primavera?"
A prematura noite de inverno já havia caído quando ela deixou o lar dos Mercourville.
No negrume da noite dançavam minúsculos flocos de neve que não se decidiam a cair e
que rodopiavam de modo frívolo.
Angélica se sentia oprimida, como sempre que precisava lembrar-se dos
acontecimentos do último verão: a Diaba, suas queixas desvairadas, sua antiga aliança com
o Padre d'Orge-val. "Éramos três crianças, malditas, ele, Zalil e eu, nas montanhas do
Dauphiné." Dificilmente se escapa ao círculo de giz mágico da infância.
As chamas suaves dos círios brilhavam por trás dos vitrais da capela das ursulinas. Aos
ouvidos de Angélica chegavam acordes de cânticos, salmodiados por vozes femininas. As
religiosas faziam penitência pelas hóstias roubadas.
Mas logo a inquietação lhe voltava. O repicar dos sinos, que não parava de planar acima
de Quebec, cravada na América, levava como pássaros familiares os pensamentos
preocupantes ou pessimistas, para concentrá-los nas únicas coisas concretas e i lignas de
interesse: a vida cotidiana, a salvação da alma, a oração, os ofícios, a mundanidade, a
aproximação do inverno, as provisões nas adegas ou nos sótãos, e mais preces, e ofícios,
etc.
Quando chegou o domingo e, na missa, Angélica viu aparecer, trazida por quatro
meninos de coro vestidos de sobrepeliz, uma credencia coberta de grandes pedaços de bolo,
e o fabriqueiro titular lhe ofereceu o primeiro pedaço, numa almofada — gesto honorífico
—, Angélica esqueceu que fazia só uma semana que subira a encosta da montanha para
ouvir o te-déum naquela mesma catedral.
Esqueceu o tempo, a hora, o dia, e que havia na cidade um homem que fora seu amante
e que talvez se valesse disso para perturbar a harmonia de seus dias, que havia uma
visionária que talvez reconhecesse nela uma emissária de Satã, e um eclesiástico fanático a
lançar-lhe o anátema.
Esqueceu o passado, o presente e o futuro. Pela magia do aroma daquele bolo,
misturado ao do incenso, reviu-se na igrejinha de Monteloup, sua aldeia natal, no momento
da distribuição do "pão bento", que, dentre todos os ritos da missa, era o preferido das
crianças.
E, mastigando lentamente e com circunspecção, como fazia quando pequena, deixou-se
embalar por aquelas recordações idílicas, cuja nostalgia jamais morre, e que, por milagre,
ela reencontrava em Quebec — a França, o Poitou, Monteloup, o velho castelo com ponte
levadiça, sua infância, sua terra...

CAPÍTULO XXXI

Correspondência da Srta. d'Houredanne

"Faz uma semana que os estrangeiros do Gouldsboro chegaram a Quebec", escrevia a


Srta. d'Houredanne, apoiada em seus travesseiros de renda e de vez em quando levantando
os olhos para espiar a casa em frente. "Posso dizer-lhe sem rebuços. Essas criaturas
transtornaram a cidade, conforme previsto, mas com uma loucura diferente da que
temíamos e que sinto por trás de minhas paredes, sem que ninguém me diga nada. Meus
amigos de certa maneira me abandonaram para correrem a cortejar o Sr. e a Sra. de Peyrac,
os grandes favoritos.
"Só vi o intendente Carlon uma vez, desde seu retorno. Veio, muito excitado depois de
uma sessão extraordinária do Grande Conselho, para dizer-me que vai fazer potassa com o
Sr. de Peyrac, trocar toucinho por porcos, e fabricar tecidos de lã... Você o conhece: não é
preciso mais para deixá-lo feliz... Mas, sabendo também do fraco que tenho por ele, você
pode adivinhar como sofro com seu desafeto.
"Por outro lado, a vizinhança, com essa belíssima dama que dizem ser feiticeira,
instalada na casa do Marquês de Ville-d'Avray, traz-me gente sem a qual eu passaria muito
bem e que só deseja satisfazer a própria curiosidade, espiando-a de minha janela, que,
confesso, é um magnífico posto de vigia para isso. Esses importunos insistem inutilmente
que vêm a minha casa por amizade a mim. Não me iludo.
"Assim, entre outras, recebi a visita da Sra. de Campvert... A Sra. de Campvert, a quem
vejo apenas uma vez por ano, quando ela não encontra parceiras para se arruinar no jogo e
desaba sobre mim para um 'trinta e um', em que sou bastante hábil, apareceu-me ontem com
grandes demonstrações de amizade. Fazia-se acompanhar dos cavalheiros de sua roda, e
digo-lhe, logo de começo, que os achei muito desagradáveis. Trata-se dos senhores De La
Ferté, Bessart, De Saint-Edme e D'Argenteuil. Pelo modo como se sentaram, voltados para
a rua, de olhos fitos na casa de Ville-d'Avray, logo percebi que vinham para captar alguns
relances de nossos hóspedes. Torciam o pescoço o tempo todo e não tardaram a me pedir
todo tipo de detalhe acerca da bela Sra. de Peyrac. Parecem quatro larápios, cada um com
seu papel num bando de malfeitores.
"O tal Bessart é quem se ocupa das contas. E financista. Deve ter roubado muita gente,
daí o exílio no Canadá.
"O mais jovem atende pelo nome de Martim d'Argenteuil. Deve ser filho caçula e serve
de acompanhante ao Sr. de La Ferté, o qual, sem dúvida alguma, é de alta linhagem. Esse
D'Argenteuil tem boa cara, mas o olhar instável. Usa luvas vermelhas, que o Sr. de La
Melloise mandou fazer para ele, e abre e fecha os dedos sem parar, como se quisesse
estrangular alguém. Fizeram-me saber que ele ocupou o cargo de mestre do jogo de péla do
rei e outrora foi companheiro de Sua Majestade. Mas faz alguns anos que o rei desertou a
quadra, queixa-se ele. O rei prefere a caça. Também ele fala de operações mágicas e de
alquimia. Conheceu e amou aquela Brinvil-liers, a envenenadora, que decapitaram há
pouco na Place de Greve, e chora-a dizendo que 'era uma santa'. Faria melhor se se gabasse
menos. Sem dúvida, essa é a razão para sua presença longe de Paris.
"Para confiar-lhe tudo, receio que um ou outro desses gentis-homens, e talvez os quatro,
estejam infectados pelo mal-napolitano, aquela horrível gangrena devida ao amor carnal e
que os exércitos do rei Carlos VIII trouxeram para a França de uma guerra demasiado
galante com os italianos, que a contraíram de espanhóis retornados da América.
"Praga terrível, esse mal que leva os homens a correrem o risco de ver a própria
virilidade tombar como fruto podre, e as mulheres a tornarem-se objeto de repulsa, pela
lepra que lhes corrói o que possuem de mais íntimo, de mais precioso, de mais cobiçado e
de mais encantador.
"Eu não parava de pensar nisso durante essa visita, e você me entenderá se lhe declarar
que não estava nada feliz de vê-los sentados em minhas poltronas de seda bordada.
"O Sr. de Saint-Edme e o Sr. d'Argenteuil me perguntaram se eu acreditava que a Sra.
de Peyrac é feiticeira, conforme se disse. Foi então que a vimos passar. Estava
acompanhada do Sr. de Bardagne, o emissário do rei, que ronda sempre por aqui.
"Os cavalheiros calaram-se, e o Sr. de La Ferté se inclinou para a frente. Vi que seus
olhos brilhavam, olhos que ele tem muito azuis, mas que não me agradam..."

CAPÍTULO XXXII

A intransigência do procurador Tardieu — O protesto de Honorina

A segunda semana começou mal. No entanto, poder-se-ia crer que começava bem, pois
Angélica, abrindo sua porta naquela segunda-feira de manhã, viu-se na presença de um belo
jovem, de ar vigoroso e elegante, a quem a luz do sol nascente dava a suavidade e o
inesperado de uma aparição arcangélica.
Confundida por essa auréola ofuscante, Angélica levou alguns segundos para
reconhecer o procurador do Grande Conselho, Natal Tardieu de La Vaudière em pessoa.
Sorriu-lhe e convidou-o a entrar, perguntando-lhe sobre sua encantadora esposa, mas
ele recusou, dando a entender, sem delonga, que não viera para uma visita, mas para tratar
de uma queixa acerca de um inglês que o Sr. de Peyrac tinha em sua comitiva, apresentada
pelos sete sapateiros da cidade.
De resto, tinham visto aquele sequaz de uma religião deformada, o protestantismo,
atravessar a cidade usando aquele chapéu alto preto com uma fivela de aço na frente, que
caracterizava a canalha designada como puritanos, que, na Inglaterra, tinham levado o
sacrilégio a ponto de decapitar a machado seu legítimo rei.
Sem pudor e sem se importar de causar medo à população com a aparição daquela
silhueta envolta na capa genebrina que lembrava a do horrível Calvino, senhor da cidade
reformada às margens do lago Léman, ele descera ao porto, passeando como se estivesse
em casa, e subira a bordo do navio que acabava de ser rebocado para uma das bacias a fim
de ser reparado.
Angélica explicou que aquele inglês, embora fosse um de seus amigos, não fazia parte
de sua comitiva. Jamais lhes tinha ocorrido a ideia de trazê-lo para Quebec.
Contou a historia de Elias Kempton, mascate itinerante do Estado de Connecticut, na
Nova Inglaterra, cujo comércio o levara até o golfo Saint-Laurent, onde seu barco fora
detido pelo Saint-Jean-Baptiste, equipado, conforme o Sr. de La Vau-dière não ignorava,
por uma tripulação de piratas, que o capturaram a fim de se apoderarem de suas
mercadorias.
— Que fazia esse inimigo no golfo Saint-Laurent, cujas margens acadianas pertencem
à Nova França e onde sp podem circular os pescadores normandos, malvinos, bretões ou
bascos?
Toda embarcação inglesa encontrada ali deve ser afundada sumariamente. Seu mascate de
Connecticut ainda teve sorte.
Enfim, concluiu, ele desconfiava de que aquele Elias Kempton fosse oficialmente
protegido pelo Sr. de Peyrac, pois durante sua passagem através da cidade ele se mostrara
evidentemente escoltado por marujos do Gouldsboro, reconhecidos sem dificuldade pelo
uniforme.
 O que é que ele foi fazer na bacia de reparos?
 Foi levar provisões e palha para seu urso amestrado, que está hibernando nos porões
do Saint-Jean-Baptiste.
 Um urso?
O Sr. Tardieu de La Vaudière mordeuos belos lábios cheios, que mais pareciam
destinados a dar e receber beijos do que a enfear-se com muxoxos severos. Um urso? A
história não lhe cheirava bem. Mas Angélica garantiu que Elias Kempton era a criatura
mais inofensiva do mundo e, levando-se era conta que ele fora vítima do Capitão Fénelon,
que se encontrava na prisão, La Vaudière concordou em que ele permanecesse em
liberdade. A rigor, até poderia praticar seu ofício, com a condição de que se limitasse ao
calçado de luxo, de que não havia fabricante no Canadá.
 Ele terá que pagar patente.
 Pagará.
 E que se instale no alto da cidade e não seja visto a passear, sobretudo com aquele
chapéu sinistro.
 Não será!
Estava a ponto de agradecer-lhe calorosamente, mas ele a interrompeu.
—Um instante, por favor... Há um decreto especial acerca de prisioneiros ingleses na
Nova França. Vou mandar lê-lo para que saiba bem a que se compromete.
Ele se fizera acompanhar de um pequeno tambor do exército, bem como do arauto da
cidade portando o seu chuço, cujo ferro tinha a base enfeitada com fitas nas cores da
cidade, e também carregando a tiracolo sua bolsa, onde metia os rolos de pergaminho das
proclamações.
Nicaise Heurtebise, hirsuto carregador, chegara trazendo sobre os ombros uma barrica
enorme, do tamanho que fora batizado de "tonel de Orléans, contendo duzentos e quarenta
copos".
Diante da porta ele virou a barrica, felizmente vazia, é o arauto nela se empoleirou,
atraindo a atenção dos índios do pequeno acampamento e de alguns vizinhos
madrugadores.
Depois de desenrolar uma folha e fazer sinal ao tambor para um primeiro repique de
baquetas, o funcionário municipal entoou, numa bela voz de baixo:
 "Fazemos saber que, tendo pelo nosso regulamento de polícia de 26 de março de
1673 confirmado os decretos sobre os ajuntamentos de cativos ingleses, lembramos aos
moradores desta cidade que os respeitem, sob pena de multa..."
 O que chamam de ajuntamento? — indagou Angélica ao procurador.
 Duas, três pessoas no máximo...
 Isso é tudo o que há de ingleses em Quebec? A parte nosso puritano de Connecticut?
 Há outros — afirmou o procurador. — Há aí a criada da Srta. d'Houredanne —
acrescentou, voltando-se para a casinha do outro lado da rua —, chamada Jessy, uma doida
que se recusa a converter-se e que temos a generosidade de tolerar em nossa cidade, ao
invés de despachá-la de volta para os abenakis que a capturaram.
Angélica começava a entender as reservas da Polaca sobre o belo procurador: "É uma
peste!" De meigo ele só tinha o prenome: Natal.
— Vai haver mais dois ingleses, cativos dos huronianos, que a Sra. de Mercourville
mandará vir todos os dias, para aprender com eles o segredo da tintura de lãs e linho...
Assim, intimo-a...
— Entendi — atalhou Angélica.
Mas ele não acabara! Recuou para examinar de mais longe o telhado da casa do
Marquês de Ville-A'Avray com olhos críticos. Seu terror eram os incêndios, que em poucos
minutos podiam destruir no inverno uma parte da cidade, principalmente na Cidade Baixa,
onde as casas eram muito juntas, a maioria de madeira, com tetos de ripas. Ele mandara
proclamar regulamentos draconianos, e nesse ponto era preciso dar-lhe razão.
— Não há guarda-fogo — disse.
Tratava-se de muretas que separavam os telhados das casas conjugadas e cuja presença
podia retardar a propagação das chamas.
 Mas a casa ainda não está encostada em nenhuma construção e até que é bem isolada
das outras.
 Não importa, a lei é a lei para todos. Os regulamentos devem ser aplicados, toda casa
nova deve comportar a edificação de guarda-fogo com empenas. O Sr. de Ville-d'Avray
será taxado em cinco libras pela infração.
Ordenou ao arauto e comitiva que se dirigissem às encruzilhadas para proclamar o
regulamento sobre os ingleses e os outros, inúmeros, sobre os incêndios.
Decididamente, uma pena! Ele era de tamanha beleza! E quanto mais o sol subia, mais
belo ele ficava e, por contraste, mais odioso se revelava.
Angélica sentia vontade de beliscar-lhe a ponta do nariz e dizer-lhe, galhofeira: "Você é
um grosseirão, cavalheiro". A fim de fazê-lo entender que, mesmo no exercício de suas fun-
ções mais austeras, um belo rapaz não deve faltar a tal ponto com a cortesia, se não com a
indulgência, que uma mulher tem o direito de esperar dele. Infelizmente ele parecia haver
esquecido as regras do jogo... se é que as conhecera algum dia. E o mistério de seu
comportamento fazia indagar: era tolo ou malvado?
Pretensioso, com certeza. Ele a mantinha inutilmente em pé, sem uma palavra de
desculpas, à soleira da porta a que Ho-norina e Querubim lhe tinham vindo ao encontro,
levantando para ele as carinhas descontentes. Angélica já estava vendo o momento em que
Honorina desapareceria para voltar com um bastão na mão e gritando: "Vou matá-lo!"
 Deixe o Sr. de Ville-d'Avray fora disto — pediu-lhe. — Ele teve a bondade de pôr à
minha disposição sua residência particular e eu não gostaria de vê-lo molestado por tolices.
Onde devo pagar?
 Vai pagar, então? Pelo guarda-fogo?
 Sim. E a você que devo entregar essas cinco libras, escrivão do Conselho Soberano?
 Não! Ao Sr. Carbonnel. É preciso registrar seu pagamento.
 Onde o encontro?
 No cartório do tribunal do Grande Conselho.
 Irei imediatamente... Mas lembre, senhor procurador, que hoje abriu um pesado
litígio em seu desfavor, no que concerne a minha salvação eterna.
 O que... o que quer dizer? — gaguejou ele, alarmado e finalmente desconcertado.
 Fez-me perder a missa.
 Senhora, podemos ser-lhe úteis? — diziam atrás dela o Sr. de Bardagne e o Sr. de
Chambly-Montauban, vindo de seu "jardim de prazeres", onde na véspera tinham festejado
até bem tarde.
 Não, não, por piedade... Vão à missa para a remissão de seus pecados... Eu vou ao
cartório para pagar cinco libras de multa e encher de alegria o senhor procurador Tardieu.
E se pôs a correr rua abaixo, conduzindo pela mão Honorina, que "não queria ficar em
casa"...
Atrás de si não toleraria ninguém além de Piksarett, em sua pele de urso negro e, a
rigor, os índios do acampamento e seus cães, fugindo aos pulos do cão de fila do Sr. de
Chambly-Montauban. Na realidade, Angélica sempre ficava encantada com todas as
ocasiões que tinha de conhecer um novo aspecto de Quebec.
O imóvel onde ficava o cartório real situava-se atrás da catedral, a meio caminho da
encosta que levava à Place dermes e à residência do governador.
As janelas dos escritórios voltadas para o lado do rio davam diretamente para o
acampamento permanente dos huronianos no coração de Quebec. Tinham sido reunidos ali
uns dez ou doze anos antes, quando os sobreviventes daquela nação, fugindo aos massacres
perpetrados contra eles pelos iroqueses, tinham vindo refugiar-se sob as asas de Onôncio,
nome dado indistintamente a todos os governadores, representantes do rei da França.
Eles se haviam agarrado àquele terrapleno, suspenso a meia altura da Cidade Alta,
protegidos pela sua paliçada de estacas e à sombra dos muros do bispado, da catedral e do
Castelo Saint-Louis.
Protegidos pelas preces de uns e pelos canhões do outro, não queriam arredar pé dali.
Somente naquele local se sentiam ao abrigo dos ataques de seus ferozes inimigos iroqueses.
A presença de suas wigwams de casca de árvore, bem sob as janelas do cartório real,
trazia um forte cheiro de fumaça de fumeiro, de gordura de urso e de milho cozido, que se
misturava ao das tintas e do papel e produzia odores compostos no mínimo vigorosos.
Exceto por essa nota insólita, nada lembrava, ao se penetrar sob as abóbadas e nas salas
estreitas e atulhadas de prateleiras e alfarrábios, que não se estava na França. .Tudo ali era
reconstituído para evocar os escritórios comunsf e sinistros, agrupados em torno do Palácio
da Justiça, à beira do Sena.
Nicolau Carbonnel era o escrivão que se mantivera à sombra do procurador durante a
reunião e que tinha em alta estima a tarefa de que estava investido. Exercendo-a e servindo
a Natal Tardieu, ele punha uma devoção meticulosa e um instinto seguro sobre os meios a
utilizar para atingir seus fins, ou seja, cobrar as multas, impostos e taxas de cidadãos
recalcitrantes, e indiretamente encher os cofres do Estado, sempre impondo a disciplina
indispensável a toda cidade próspera e renomada.
Era organizadíssimo. Em seu cartório mantinha bem à vista o padrão de todas as
medidas e peso em uso: fanga, meia fanga, alqueire, bilha, quartilho, vara, meia vara,
balanças romanas, outras balanças, pesos, correntes para a medida exata das cordas de
madeira. A lenha para aquecimento devia ter três pés e meio entre dois cortes e a corda,
oito pés de comprimento e quatro de altura.
Revestido de uma função que tinha suas obrigações e seu clima particular, o escrivão
tinha-lhe todos os maneirismos, as manias, o comportamento, a ponto de usar barrete sobre
uma cabeleira que ainda não era rala. Vestia-se com austeridade, de sarja preta ou
cinza-escura, isso quando o diziam abastado. Afetava costas arredondadas e como que
curvadas pelo peso do cargo. E, dependendo dos discursos que lhe faziam, podia ser um
pouco surdo ou espantosamente lúcido.
Tinha os gestos lentos e parecia distraído, mas logo se notava que era de uma
surpreendente vivacidade quando se tratava de redigir um processo verbal de infração aos
regulamentos ou de decidir acerca de um mandado de busca, caso o considerasse urgente.
 Então, vai pagar? — indagou, começando a aparar uma pluma de ganso dentre as
dez que o esperavam ao alcance da mão, à sua frente, e reavivando as brasas de um
pequeno aquecedor, a fim de derreter a cera do lacre que pretendia apor à folha do auto.
Dez bastõezinhos de cera vermelha também estavam alinhados ali em boa ordem, perto do
tinteiro.
 Sim — disse Angélica, levando a mão à bolsa.
Mas, após examinar o caso, ele disse que não era possível, que ela só devia pagar duas
libras e meia e que Ville-d'Avray, na qualidade de proprietário, devia comparecer para
pagar o restante e anunciar suas intenções acerca da construção dos guarda-fogos.
Angélica viu-se novamente na Place de la Cathédrale no momento em que os fiéis
saíam da primeira missa. Ville-d'Avray, que acabava de chegar, já estava a par e,
naturalmente, indignado.
— Não pagarei nada e não construirei nada. Vamos ver Basílio, ele nos aconselhará.
Vendo que se esboçava um movimento geral na direção da Cidade Baixa, a pequena
Honorina se pôs a berrar de repente, agarrando-se a Angélica.
— Estou farta, já não a vejo mais — gritava. — Você está sempre longe, não se ocupa
mais de mim nem de Querubim. Só se ocupa do bebezinho guloso... Quero voltar para
Wapassu.
Essas reivindicações, longamente ponderadas naquela cabecinha, encontravam
finalmente a oportunidade de vir à luz, sob o golpe de decepção. Pois desde a manhã
Honorina via afastar-se cada vez mais o momento de irem fazer as panquecas que lhe
tinham sido prometidas para o café. E também sob o aguilhão do desprazer que lhe
inspirava a propriedade dos Mercourvillé ali perto, pois pela grade aberta da casa não dei-
xaria de aparecer a temível è minúscula Ermelina, duende impenitente, sempre à procura
insaciável de balas e guloseimas, e sobretudo à procura de Angélica.
Ei-la que aparecia de fato, com a sua rapidez de gnomo, os pezinhos mal parecendo
tocar o chão, soltando gritos e risos de pássaro extasiado.
Era demais!
Honorina berrou com mais força, de olhos fechados, a boca escancarada, as faces
lavadas de lágrimas. Desta vez resolvera que dominaria Quebec, assim como a mãe fizera
no dia da chegada, mas seria com seus próprios meios.
Seus gritos desenfreados acabaram impondo silêncio ao falatório sem sentido dos
adultos.
 Eu nunca a vejo — repetiu Honorina por entre as lágrimas. E desfiou as queixas: —
Você sobe! Você desce! Vai a tudo quanto é casa, e eu onde é que fico. nisso tudo, com
Querubim!... Quero voltar para Wapassu. Quero Bartolomeu e Tomás! Por que foi que eles
não vieram conosco?
 Você bem sabe que não podíamos trazê-los. Eles são protestantes.
 Quero voltar para junto dos protestantes! — berrou Honorina a plenos pulmões.
Uma exclamação dessas, gritada no centro de uma cidade eminentemente papista, era
no mínimo inoportuna.
Voltaram às pressas para casa e só faltou passarem ferrolhos e trancas às portas.
Finalmente tranquilas, a grande frigideira de panquecas foi untada e levada às brasas da
lareira.
Para distrair o humor da. filha, Angélica subiu com ela até a segunda cumeeira, a que se
chegava por uma escadinha. Das lucarnas enxergava-se bem longe.
Com a cabeça e os ombros para fora, ao nível da cornija, e com o rosto açoitado pelo
vento, Angélica e Honorina podiam lançar um olhar circular ao domínio a seus pés. Do
ponto onde se encontravam, a vista mergulhava para além dos muros e paliçadas.
O pátio das ursulinas oferecia um campo de observação dos mais fáceis à curiosidade
de Honorina e sua mãe. Apesar dos altos muros que cercavam a propriedade, era possível
acompanhar a existência familiar, toda de devoção e trabalho, daquelas mulheres. Algumas
aluninhas, das quais a maioria eram filhas de moradores ou de senhores distantes, todas
internas, passavam o recreio no pomar.
Angélica notara que a principal distração daquelas crianças parecia ser a dança. Danças
camponesas na maior parte, trazidas da província natal pelos pais: a bourrée, o rigodão.
Seguravam-se pelo braço e giravam numa direção e na outra. Punham-se em fila, cara a
cara, avançavam, recuavam, batiam as mãos, faziam uma reverência... No ar gelado, as
vozinhas entoavam as cantigas ingénuas:
—"Na ponte de Nantes
Marion, Marion, dança
Na ponte de Nantes
Marion dançará."
—"Pastores, entrem na dança
Marion, Marion, dance
Pule, dance, beije
A quem quiser."

Havia algumas crianças indígenas entre elas. Deixava-se que usassem seus trajes de
peles franjadas, os mocassins e a plumi-nha única enfiada na fita bordada de pérolas que
lhes prendia os longos cabelos negros. Elas pareciam alegres e espertas, e não dançavam
nem gritavam menos do que as demais.

A um canto do terreno erguia-se o habitual agrupamento de cabanas de casca de árvore


em torno de uma fogueira sempre fumegante, pequeno acampamento de índios refugiados à
sombra abençoada daquelas meigas ursulinas. Avistava-se uma índia velha ali, o dia inteiro
preocupada em levantar a tampa do caldeirão, examinar-lhe o conteúdo, retirá-lo do fogo,
juntar um pedaço de gordura, um punhado de milho, um copo de água. Como um bando de
pardais, às vezes algumas menininhas a rodeavam naquele canto do jardim, ouviam uma
história e não deixavam de pescar com as pontas dos dedos alguns nacos de sagamité no
caldeirão.
Iam embora correndo, perseguiam uma à outra, subiam nas árvores naquelas macieiras
enfezadas, cuja silhueta retorcida e espalhada, com cotovelos e ângulos agudos nos galhos,
falava do seu crescimento difícil, dos galhos quebrados inúmeras vezes ao peso da neve ou
pressão do gelo.
As garotinhas de saias coloridas empoleiravam-se lá em cima, animando os galhos com
sua plumagem.
— Como elas se divertem! — comentou Angélica com Honorina. — Você não tem
vontade de ir brincar com elas um dia?
Honorina olhava, interessava-se, mas respondeu:
— Não.
"Mas ela precisa aprender a ler!", pensou Angélica. Porém, sabia que jamais teria a
coragem de abandonar Honorina à soleira de um convento sem que a menina tivesse
manifestado tal desejo. Honorina sempre fora sozinha. Sozinha com a mãe, não pertencia a
parte alguma. Tinha desconfiança em relação à sociedade, como se o instinto lhe ensinajse
que desde o nascimento fora rejeitada por ela. O dia em que se misturasse com as alegres
canadensezinhas seria uma reparação do destino.
Por ora Honorina dizia não. Os garotinhos do seminário se divertiam tanto quanto as
meninas das ursulinas?, indagava. Emanuel contara a Angélica que os meninos jogavam
principalmente hóquei, o jogo iroquês pelo qual eram fanáticos.
Assim que os soltavam um instante, pegavam um bastão e uma bola de tiras de couro.
Faziam batalhas de bolas de neve, como todos os garotos. Eram turbulentos, e o abade, que
pertencera às missões do Sr. Vicente de Paulo, considerava-os mais instáveis mas mais
espertos do que os meninos da mesma idade e condição social na França. Também
gostavam de dançar, só que danças pagãs, segundo pensavam seus educadores, danças que
seus condiscípulos selvagens lhe ensinavam e que foram proibidas, pois despertavam a
nostalgia das crianças índias, que fugiam de dentro dos altos muros do seminário, tentando
ir ao encontro das tribos, no fundo das matas.

Acerca do que Ville-d'Avray lhe contara, Angélica resolveu correr o risco de fazer um
pequeno inquérito, a fim de esclarecer a questão. Recebendo o mordomo T-issot,
indagou-lhe a queima roupa:
— Você, que serviu na corte, reconheceu a pessoa que se oculta sob o nome de Duque
de La Ferté e que se encontra na cidade?
Ele lhe deu uma breve olhada de soslaio e inclinou a cabeça, afirmativamente.
— Não é incompreensível? — disse ela, desapontada.
Ele! Que motivos podem levar um homem de posição tão alta e segura, graças à posição da
irmã, a dissimular-se, a fugir de certa maneira...
— Não faltam motivos para levar um grão-senhor da corte a querer que o esqueçam
durante algum tempo. A justiça já não é tão indulgente quanto antigamente para certos
crimes. E recebeu o direito e as facilidades de poder recorrer a todas as fontes.
Ele baixou a voz.
— Sua Majestade esteve muito doente no ano passado, a ponto de recear-se que não
escaparia. Os médicos, apesar da ignorância, acabaram falando em envenenamento. Vieram
fazer-nos muitas perguntas nas cozinhas. Para nós, oficiais da Boca, era evidente. A Sra. de
Montespan exagerou um pouco nos pós destinados a reanimar os ardores do rei por ela. Por
pouco . que esse Duque... de La Ferté a tenha ajudado, e que tenha visto os investigadores
aproximarem-se de sua pessoa e começarem a interrogar seus domésticos e a gente de sua
casa... Era melhor que ele se subtraísse à curiosidade malsã, pelo menos por ora. Se o rei
tivesse morrido, teria sido crime de lesa-majestade.
 E também foi por essa história que você resolveu abandonar o reino.
Um oficial da Boca do Rei sabe coisas demais forçosamente, devido ao seu cargo.
Assim, é o primeiro a ser ameaçado por uns e por outros: pelos que tem interesse em que se
cale e pelos que têm interesse em que fale.
 Você receia que ele o tenha reconhecido aqui em Que-bec? Que se assuste com isso
e procure eliminá-lo? Sua colocação conosco terá sido um mau acaso para você, então.
 Não mais do que para a senhora, que tampouco contava encontrá-lo aqui. Não
devemos nos surpreender com esses acasos. O contrário é que seria de admirar. Diga-se o
que se disser, a Terra é pequena. É sempre o mesmo tipo de gente que encontramos nos
mesmos lugares. Estou a serviço do Sr. de Peyrac e procurarei limitar-me o máximo
possível ao solar de Montigny, que fica afastado. No que me concerne, com um pouco de
habilidade talvez eu nunca tenha a ocasião de verme na presença dele.
 Aceito o augúrio e encorajo-o a fazer isso. Mas a partida será dura. Estamos
fechados numa cidadezinha sem saída, onde logo se fica sabendo de tudo sobre todo mundo
e de onde não é possível escapar.
 A senhora acredita que a partida que se joga em Versalhes seja menos dura e
perigosa? Não se deve pensar demais, e só se deve fazê-lo com conhecimento de causa,
reservando esse exercício apenas à hora perigosa que o merece. Afora isso, com um pouco
de inconsciência e muita filosofia, atravessa-se tudo. Aposto que a senhora condessa sabe
tão bem disso quanto eu...

CAPÍTULO XXXIII

A chegada do inverno

Os gansos selvagens partiam. Era o sinal de que o inverno chegava sem remissão.
Enquanto estavam ali, em bandos de mais de duzentas mil aves, pastando ao pé do cabo
Tourmente, estava garantida a clemência do fim do outono, que neste ano ainda se prolon-
gara mais.
Durante quase dois meses, vindos do Artico, onde tinham nidificado no verão, os
grandes gansos brancos haviam visitado as restingas pantanosas que se estendiam na
extremidade da encosta de Beaupré, onde encontravam, e somente ali, um rizoma
particular, necessário à sua sobrevivência. Pelo outono inteiro tinham feito ecoar as falésias
com seus grasnidos animados.
Agora, quando já se imaginava que o bom tempo duraria para sempre, elas partiam de
súbito.
De nariz levantado, todos os viam passar acima da cidade, de pescoço estendido, as asas
batendo largamente, e seus gritos traduziam uma alegria corajosa, um fervoroso amor pela
viagem que os levaria direto, sem uma única parada, até as ilhas Carolinas, no sul.
Sentia-se que abandonavam os homens às intempéries, o rio aos gelos, as terras às
neves infecundas. Alguns ficavam melancólicos ao vê-los. Diziam, tristes:
— Estão indo embora! Estão indo embora!
Mas quando retornassem, todos exclamariam alegremente:
— Estão chegando!
Pois os gansos anunciavam a primavera.

Querendo falar de Elias Kempton e movida por um pouco de curiosidade, Angélica


dominara a repulsa que lhe inspirava a morada preparada para Ambrosina e se dirigira ao
solar, atrás da colina. Encontrou o marido no pátio de entrada, que delimitava as
dependências de serviço, onde se reuniam cavalos, trenós e charretes e onde estava alojada
uma parte dos homens da frota.
Angélica correu os olhos pela fachada guarnecida de oito janelas, no segundo andar, o
que, com os aposentos do térreo e os do sótão, anunciava uma residência bem vasta. Joffrey
de Peyrac tinha ali o que chamava de sua câmara de comando. Nos salões inferiores,
instalara seu quartel-general para decidir acerca das ordens do dia e das tarefas a distribuir
entre as diferentes equipagens. Desaparelhar cinco navios para deixá-los em condições de
suportar a hibernação requeria cuidados e diligência.
Uma parte do mobiliário do Gouldsboro fora transportada para o solar, bem como peças
de canhão e armas. Reinava ali, e era normal, uma atividade mais de caserna e
acampamento do que de casa do amo.
 Não — disse Joffrey, que seguira o olhar de Angélica —, a figura de Ambrosina não
vem assombrar-me entre essas paredes...
 O que você faz o dia inteiro? — perguntou ela, dando-se conta de que quase não
pensara nas tarefas que lhe cabiam.
 Como você, minha amiga, visito meus amigos.
 Seu "aliado secreto"?
 Por que não?
Ela fitou-o perplexa. E simultaneamente lhe ocorreu uma ideia que não conseguiu
precisar e que por pouco não a pôs na pista do misterioso espião de Joffrey. Teve a certeza
de que num momento ou noutro., no turbilhão de pessoas que os dois tinham encontrado,
ela o vira e reconhecera. Mas a intuição fora demasiado fugaz. E Joffrey voltava a calar-se.
— Você desconfia de mim — disse ela.
Ele meneou a cabeça, rindo.
Chegará o dia. Não fique com ciúme.
Tomou-lhe o braço e levou-a por entre os ralos bosques de bétulas despojadas das
folhas que, misturados com alguns abetos-negros, compunham ilhotas de floresta no
coração da Cidade Alta. Aqueles bosquetes separavam os diferentes bairros que, no início,
tinham sido concessões isoladas e agora representavam os arredores imediatos da cidade.
Quebec não era fechada por muralhas, e não havia nenhuma fronteira a marcar o limite
entre a concentração urbana e a natureza selvagem e ainda mal desbravada.
Assim, atravessavam-se aqueles bosques e clareiras como se se estivesse num parque.
Os caminhos e atalhos, traçados pela passagem dos moradores da cidade, davam aos
namorados, à noite, a oportunidade de se afastarem para um beijo longe de olhares
intolerantes.
Sempre caminhando, Joffrey tentou tranquilizá-la a propósito daqueles incidentes
mesquinhos que pareciam desviá-la de uma meta importante, enquanto ela se dava conta,
aos poucos, de que tudo importava.
Dizia-lhe que ela sem dúvida se esquecera de como são múltiplas e diversificadas as
atividades numa cidade.
— Mas na verdade nunca vivi de fato numa cidade — observou Angélica. — Sempre
fui nómade. É a primeira vez em nossa vida, Joffrey, que vivemos juntos numa cidade.
E contemplou-o mais uma vez, sem poder crer no milagre, enquanto andavam os dois,
familiarmente, lado a lado. Desembocaram na Grande Allée, ao longo da qual ainda se
espaçavam algumas casas, e enfiaram pelas grandes planícies a que chamavam de planícies
de Abraão.
Os espaços naturalmente desmaiados eram tão raros no Canadá, que aquelas planícies
permaneciam desertas. No verão, levava-se gado para pastar ali e soldados para fazer
manobras. Em seus valezinhos, pequenos bosques abrigavam algumas residências
solarengas. Numa delas, o Sr. de Bardagne fora instalado, e ela entendia um pouco por que
ele se considerara demasiado afastado e preferira hospedar-se na casa do Sr. de
Chambly-Montauban, onde ficava a dois passos da casa dela.

Depois de ver a animação ruidosa que reinava no solar de Montigny, Angélica ficou
feliz de ela e Joffrey haverem separado os respectivos "postos de comando".
Jamais se teria sentido em casa naquela grande construção que deveria abrigar a maioria
dos tripulantes da frota, pois não era confortável passar o inverno nos navios. Não teria
podido preparar-se como desejava para iniciar a nova vida em Que-bec, e para enfrentar a
prova seguinte, que era conhecer a Madre Madalena e ouvir-lhe o veredicto. A novena
acabaria em breve.
Angélica e Joffrey encontravam-se na extremidade das planícies de Abraão, que dava
para uma falésia abrupta. Aos pés deles, o Saint-Laurent, naquele dia cor de estanho, seguia
seu curso rumo a Trois-Rivières e Montreal. Os gansos selvagens passavam em longos
voos abertos, "veleiros", conforme os canadenses os chamavam, numerosos e cada vez
mais próximos, trazendo os retardatários e escoltados por aqueles gritos que enchiam o céu
esbranquiçado: — Adeus! Adeus! Adeus!
Na mesma direção, para o sul, Joffrey estendeu o braço:
— A meia légua daqui, na margem sul do rio, abre-se a embocadura do Chaudière. É
subindo esse rio que se chega ao lago Mégantic, e depois ao Kennebec. É uma das vias que
os canadenses seguem para alcançar a Nova Inglaterra.
— E por onde puderam atingir Katarunk, Wapassu...
Ele aquiesceu. Pousou-lhe a mão na cinjfura e trouxe-a para mais perto da beira da falésia.
— Daqui vemos o cabo Rouge. Ao pé do penhasco, está Sillery, uma antiga missão dos
jesuítas, abandonada depois que os iroqueses a devastaram, há alguns anos. Estou
restaurando as casas e construindo um fortim, e mandarei uma parte de meus homens e três
navios passar o inverno ali.
Estava querendo fazê-la entender que instalava um forte em Sillery porque assim ficaria
quase de cara para a embocadura do Chaudière, caminho natural para o sul e para as
possessões deles em Wapassu e Gouldsboro?
Impraticável no inverno, difícil quando as águas tivessem retomado o curso, mas única
via de acesso para fugir, caso a do rio para o norte, pelo Gaspé e pelo Saint-Laurent se reve-
lasse interditada. O fundo da armadilha tinha, afinal, uma escapatória, e de Sillery Joffrey
de Peyrac lhe vigiava a entrada.
Ele acrescentou que, além do mais, para ocupar os homens, pusera-os a construir
pequenos bastiões de madeira à entrada do Saint-Charles, diante das paróquias de
Charlesbourg e Lo-reto, e no cabo Rouge.
Ela o ouvia, observando-lhe o rosto enérgico emoldurado pela gola alta de pele negra de
seu capote.
Ouvia-o, ouvia-lhe a voz, que sempre provocaria nela um arrepio de emoção e que o
vento às vezes levava. Através das palavras ela sentia que ganhava acesso a uma parte
diminuta daquela vida fervilhante de ações e de pensamentos que não paravam de nascer e
fundir-se nele, solicitados pelos seus dons particulares de inteligência e paixão; o desejo e o
prazer de viver, inventar, construir, que caracterizavam o grande Jof-frey de Peyrac e que o
impeliam a querer deixar a própria marca na terra, não por orgulho ou avidez apenas, mas
porque ele possuía, ao ponto mais elevado, esse gosto pela criação cujo germe a vida coloca
no coração de todos os homens.
— Em suma — disse ela, quando ele se calou —, se entendi bem, você continua a
cercar a cidade?
Joffrey sorriu, mas não negou.
— Por quê?
O conde olhou na direção daquela cidade cujos altos campanários com sinos de prata
surgiam do outro lado do platô, no crepúsculo salpicado de clarões rosados.
— Porque nunca se sabe — respondeu.
Depois, tomou-lhe o braço de novo e retornaram felizes e em harmonia pelas planícies
de Abraão, cuja delgada crosta de neve congelada lhes estalava sob os passos.
Joffrey de Peyrac ergueu os olhos, estudando o firmamento de uma limpidez que dava
vertigem.
— Ora, a lua está com seu halo vermelho — disse.

Quando Angélica, naquela manhã, abriu a porta, pareceu-lhe que a paisagem que
contemplava todos os dias acabava de ser mortalmente ferida, por obra de um cataclismo.
Já não a reconhecia. Precisou de alguns segundos para entender. O Saint-Laurent
desaparecera.
No lugar de suas águas esverdeadas, pretas, cinzentas ou avermelhadas, das ondas
espumosas, das correntes rápidas e luzidias, estendia-se a perder de vista um vasto vale
branco, como que talhado em alabastro.
Parecia o vale gigante de um deserto marmóreo, coleando imóvel, ressecado entre as
ilhas, baías e promontórios de um branco de giz. Toda vida e movimento tinham cessado.
O Saint-Laurent estava invadido pelo gelo.
O frio comprimia o rosto de Angélica como uma manopla de ferro. Seu hálito sé
transformava em mil lantejoulas de prata dourada.
Ela entendeu que agora estavam isolados do mundo. Ou seria o resto do mundo que
cessara de existir e eles, os únicos sobreviventes de uma terra gelada?
Retornou para o interior da casa e teve a impressão de que parar à soleira lhe bastara
para congelar o sangue nas veias.
Na casa, todo mundo falava do frio. Chegara de repente, como uma celebridade a quem
tinham cansado de esperar. Celebridade considerável, de dentes de aço e olhos de cristal.
E pela primeira vez se viu o gigante em pé diante de sua casa, debruçado sobre uma
almofariz de pedra e ocupado com uma tarefa misteriosa.
— Ele está fabricando bagaço, congelando sidra — explicou Macollet, que o conhecia.
Todas as altas chaminés quadradas da cidade cuspiam fumaça com fúria. Parecia que o
próprio vapor congelava na saída do tubo. A fumaça era densa, e o vento, que era como
uma espécie de aspiração de ar glacial, impelia-a ora como écharpe cinzenta e preta, ora
como grandes borbulhas esbranquiçadas. Isso acabou formando tamanha nuvem, rolando e
se renovando com uma inquietante atividade, que pelo final da manhã alguns se alarmaram
e falaram de incêndio.
Incêndios, junto com epidemia, eram o grande terror dos citadinos, exilados no seu
deserto de gelo. Em poucos instantes o fogo podia devastar um bairro, pôr na rua famílias
inteiras, aniquilar reservas preciosas de víveres e mercadorias, arruinar os esforços de toda
uma vida. E, como quase acontecera nos primeiros tempos, condenar toda uma população
afastada de qualquer socorro a perecer de frio e fome.
O procurador Tardieu aproveitou-se da comoção para enviar seus inspetores e verificar
se cada habitante tinha em casa fisga e gancho, bem como dois carneiros de ferro no sótão e
longas varas com um pano molhado na ponta, para apagar as fagulhas sobre todos os
telhados. As casas que não tinham janelas nas cumeeiras deviam manter uma escada
permanentemente no telhado, solidamente presa à cumeeira por dois grampos. A pouca
neve que caíra permitia que ainda se processasse a uma inspeção cuidadosa, coisa que se
tornaria menos fácil mais tarde.
Aquele dia também viu o Sr. Topin, acompanhado de um grupo numeroso de
empregados do porto de barqueiros, seguir para a floresta e retornar carregado, bem como
os companheiros, de braçadas de varas e galhos guarnecidos de folhagem persistente.
Piloto do Saint-Laurent, ele não se considerava aliviado, pelo gelo, de suas
responsabilidades para com o "seu" rio. Cabia a ele balizar as pistas que os trenós
tomariam, sulcando a branca planície pelo inverno afora. Havia que demarcar no caos dos
gelos às vezes imobilizados em blocos, em ondas tempestuosas, as passagens mais fáceis
para traçar a rota entre duas fileiras de varas cravadas a intervalos de uma toesa.

CAPITULO XXXIV

No ninho da missivista

Angélica estava apoiada às cortinas de seda da alcova. Erguidas por um cordão trançado
com borlas, as cortinas eram forradas de cetim.
A sua frente, no fundo do leito, apoiada a travesseiros de renda, estava uma criaturinha
frágil que a olhava por cima de grossos óculos redondos com aro de aço.
 Então é você, afinal! — disse ela.
 Sou eu — respondeu Angélica. — Sua vizinha em Quebec, pois tenho o prazer de
morar na casa do Sr. de Ville-d'Avray, quase em frente a sua casa. Eu ansiava por
conhecê-la, cara Cleo d'Houredanne.
 Eu, não.
A pequena senhora tirou os óculos, o que a fez parecer ainda mais frágil.
Angélica sorriu. Ville-d'Avray a prevenira de que Cleo d'Houredanne não era fácil.
A Sita. d'Houredanne franzia os olhos, examinando demoradamente a jovem que se
erguia a alguns passos de seu leito e que ela tanto observara da janela. Finalmente a via.
 Você é menos bela do que eu imaginara, observando-a de longe — disse.
 É comum a distância criar ilusões. Fico pesarosa por desapontá-la. De minha parte,
estou feliz em descobri-la tão semelhante às descrições que seus amigos fizeram
calorosamente a seu respeito.
 Que amigos? Bah, se você se fia nas palavras do seu pretendente...
— Meu pretendente? Qual deles?
A Srta. d'Houredanne se pôs a rir.
— De fato, você tem por onde escolher! Mas gosto da sua franqueza. Audácia é o que
não lhe falta, nem resposta.
O nariz um pouco arrebitado e as sobrancelhas afastadas em acento circunflexo
davam-lhe às vezes um ar de mocinha ingénua e desarmada. Sua pele era
surpreendentemente alva e diáfana. Tinha a testa lisa, sobre a qual caía uma ponta da renda
coquetemen-te pousada sobre a cabeleira branca. Apenas as mãos, longas e delicadas, mas
mais enrugadas do que o rosto, traíam-lhe a idade.
Angélica ouvira dizer que ela fora casada. Mas continuavam a tratá-la espontaneamente
por senhorita. Talvez devido a seu ar de juventude. Também era frequente usar-se esse
tratamento com viúvas ou mulheres sem filhos, da pequena burguesia.
A senhorita jogou longe os óculos, sobre a coberta.
 Não preciso de óculos para vê-la. Enxergo-a muito bem, mesmo que esteja a
distância. Só os uso para escrever. Escrevo muitíssimo.
 Eu sei.
O leito estava coberto de papéis, manuscritos apertados por uma tira de pano, à moda
dos autos dos escrivãos, livros abertos, virados como que para marcar a página em que se
interrompera a leitura ou o ponto de uma citação em que meditar.
Diante dela, sobre os joelhos, estava colocada uma escrivaninha de pés curtos, disposta
como secretária, com uma cavidade para o tinteiro e a tampa inclinada, que se podia
levantar.
Finalmente, entre os papéis e autos, uma caixinha entreaberta deixava escapar maços de
cartas atadas por fitas de cores diferentes.
Honorina acompanhara a mãe e, encolhida entre as saias de Angélica, com ar de
timidez, não despregava os olhos da Srta. d'Houredanne.
Para ela, aquela mulher bonita desessenta anos parecia um pássaro no ninho. Um ninho
de papel, habilmente composto, e de materiais diversos, como todos os ninhos de pássaros.
Perguntava consigo mesma por que aquela senhora preferia cobrir-se de papel a cobrir-se
com uma boa manta da Catalunha, como a que Elói Macollet colocara sobre seu leito
naquela noite extremamente fria. Será que todos aqueles papéis a mantinham aquecida?
Fora uma circunstância excepcional e, no final das contas, feliz que acabara levando
Angélica e Honorina àquele quarto forrado de tapeçarias, guarnecido de belos móveis e
quadros, onde escoava a vida da invisível missivista de Quebec.
Ao fundo do aposento, pela porta-janela entreaberta que deixava entrar, qual presença
sorrateira, uma densa lufada de frio, avistava-se um canto do jardim com canteiros de buxo
cobertos de neve e um panorama do pomar de macieiras, entre as quais se agitavam e
corriam em todas as direções diversas pessoas de braços para o ar.
O glutão de Cantor estava de regresso e fugira para o jardim da vizinha, onde agora lhe
davam caça.
A criada inglesa, que, na cozinha, depenava sem pressa um capão, tivera a impressão de
ver alguma coisa entre as árvores. Abriu a porta que dava para o jardim. A cadela
aproveitara para sair em disparada, ladrando enlouquecidamente.
Vendo isso, Angélica, que acompanhara o alvoroço de sua casa, pegou a mão de
Honorina e decidiu que chegara o momento de ir soar a aldraVa da porta da Srta.
d'Houredanne, para apresentar desculpas, dar explicações e dar-se a conhecer. A inglesa, já
sem saber para onde se virar, viera abrir-lhe.
— Como tem passado? — perguntou Angélica. — O Sr. De Ville-d'Avray me disse
que você sofre de dores, de reumatismo.
A Srta. d'Houredanne não dava mostras de muita cordialidade, mas talvez isso fosse
uma atitude de defesa de mulher idosa, ciumenta das próprias amizades e a quem a doença
mantinha à parte da vida mundana.
— O Sr. de Ville-d'Avray não sabe nada a meu respeito nem das minhas dores.
Preocupa-se demasiado com os próprios negócios. E pouco o vi desde que você chegou.
Você provocou muitos acontecimentos por aqui...
Angélica explicou-lhe os motivos da intrusão.
— Um glutão! — exlamou a Srta. d'Houredanne. — Um Karka-fu!... Seu gato já põe
minha cadela nervosa. O cão de fila do Sr. de Chambíy-Montauban há de dar cabo de seu
glutão!
— É o que receamos. Foi por isso que tomei a liberdade...
Como as pessoas que permanecem muito tempo caladas, quando tinha a ocasião de
dirigir-se a alguém a Srta. d'Houre-danne continuava em voz alta os discursos que tinha o
hábito de fazer interiormente ou de trocar com a amiga epistolar. Em poucos minutos pediu
a opinião de Angélica e deu a sua sobre a maioria das pessoas de projeção, lamentou o
caráter de Sabina de Castel-Morgeat, que possuía os seios demasiado audaciosos para uma
pessoa tão inimiga das coisas do amor, e deplorou ver a Sra. de Mercourville como
presidenta das senhoras da Sagrada Família, ao invés da Sra. de Beaumont, mais devota.
 Você já esteve com as ursulinas? Viu a Madre Madalena?
 Não, ainda não. ;
 A novena acabou. Em breve você será chamada.
 Espero que sim.
Do fundo do pomar, uma bola escura arremeteu para a casa como um projétil. Angélica
correu para barrar-lhe a entrada, assustada com a ideia de ver o glutão irromper por entre os
móveis e bibelôs frágeis.
O animal estacou a alguns passos dela, numa revoada de cristais de neve.
Era Wolverines mesmo.
Reconhecia-a. Seus olhos redondos e negros a fitavam com intensidade. "Como é
inteligente", pensou Angélica, "quase um ser humano."
No entanto, podia-se entender o terror supersticioso que o glutão inspira aos índios,
alvo dos delitos desse adversário temível que lhes desmonta as armadilhas, saqueia-lhes as
redes de caça e deles se vinga com uma desconcertante sutileza. É um animal estranho, uma
espécie de urso ou texugo enorme, com o ventre, a cabeça, as patas e o focinho muito
pretos. Com a cabeça curta em relação ao corpo, orelhas e olhos pequenos, a cauda espessa
e peluda, a pelagem de um preto amarronzado tanto no verão quanto no inverno, com
longos pêlos sedosos pendendo da cauda, ele impressionava por uma feiúra poderosa que se
pressentia indomável.
Imóvel, a cara rombuda ao nível do chão, o rabo levantado, ele eriçava todos os pêlos, e
o sol fazia cintilar a longa faixa castanho-clara que lhe dava um rastro luminoso aos
flancos, do ombro à raiz da cauda. A mesma lourice luzidia na testa e nas faces, em
contraste com a máscara negra que lhe rodeava os olhos, contribuía para lhe dar o ar feroz e
cruel que aterroriza. Sob o nariz de narinas dilatadas, a boquinha aberta descobria os quatro
caninos pontudos e brancos, num ricto ameaçador.
Fora aquela cara demoníaca que a mulher maldita vira antes de morrer?
Fora ele que destroçara o belo rosto de Ambrosina com seusdentes agudos, as garras
parcialmente retrateis projetadas das patas pesadas de um negro de fuligem?
"... e vi um monstro peludo sair dos silvados, lançar-se sobre a Diaba e devorá-la..."
— Wolverines... o que foi que você fez? — murmurou Angélica.
Saindo de sua imobilidade, a grande fuinha fez meia-volta
e com uma rapidez de serpente disparou na direção do muro, que atravessou com um
pulo. Os gritos dos índios da encruzilhada revelaram o retorno do glutão à Rue de la
Closerie. Os perseguidores que reapareciam entre as árvores seguiram-lhe o caminho e
pularam o muro também.
O pomar esvaziou-se. A bruma acentuava-se, cor de tília.
Angélica fechou a porta-janela por onde se infiltrava o ar gelado. Logo chegou a cadela,
que fora divertir-se nos confins da propriedade e que subiu a encosta a galope. Abriu-se a
porta para deixá-la entrar, e ela se precipitou para dentro do quarto, de língua pendurada,
toda excitada com o inesperado jogo de esconde-esconde.
— É uma cadela da raça cananéia — apresentou a Sita. d'Houredanne. — A primeira
raça de cães domésticos, daí o cane dos romanos, que lhes guardava a entrada das vilas.
Um amigo a trouxe para mim das escalas do levante. Foi cruzada com o cão de fila do Sr.
de Chambly-Montauban, e os filhotes são muito bonitos.
Ela dobrava suas cartas, suspirando.
— Seu gato insolente... um Kar-ka-fu feroz, todos esses animais da criação passeando
sobre meu muro... Teria sido melhor se eu conservasse a paliçada de estacas bem pontudas
que cercava o jardim antes.
Arrumava os papéis com método, dando-lhes uma última olhada antes de guardá-los na
caixinha e demorando-se sobre algumas palavras notadas de passagem. Pôs-se a procurar
em outro cofrinho.
Resmungando em inglês e com a touca de viés, a criada voltara para a cozinha, sem
fôlego. Pouco depois entrou no quarto, trazendo numa bandeja de prata uma tigela de
mingau de aveia. O preparo da papa devia ter sofrido com a afobação da cozinheira, que
abandonara o fogo para correr atrás do glutão.
Um nítido cheiro de queimado se desprendia da comida. Nem criada nem patroa
pareceram incomodar-se com isso.
— Deixe isso ali — disse a Sita. d'Houredanne, apontando a mesa-de-cabeceira. — Ah,
eis o que eu estava procurando! Erguia encantada, outro maço de manuscritos.
— Se você soubesse o tesouro que é! É um romance cujos direitos o livreiro Bardin
adquiriu no ano passado. Mas ainda não o publicou, e algumas cópias estão sendo passadas
de mão em mão, à socapa. A Princesa de Clèves. Foi a Sra. de La Fayette que escreveu.
Calou-se e pôs-se a examinar Angélica com atenção.
 Você interessaria à Sra. de La Fayette... Sua vida amorosa deve ter sido muito
movimentada...
 Ignoro o que quer dizer exatamente com "movimentada" — disse Angélica, rindo.
Fez a Srta. d'Mouredanne notar que o jantar ia esfriar. Seus instintos de enfermeira
sofriam por não poder arrumar um pouco aquela cama submersa em papéis, e teria
preferido ver aquela frágil mulherzinha tomar uma boa gemada.
Foi até a chaminé atiçar as brasas e lançou mais duas achas ao fogo. As chamas
crepitaram alegremente.
— Recebi um certo Sr. de La Ferté, que se interessa muito por você — continuou a
velha senhorita. — Só veio com a finalidade de espiá-la de minha casa.
Angélica estremeceu. Bem que tivera a impressão de ver Vivonne e comparsas
rondando por ali.
— Ele e os companheiros são muito desagradáveis. Receio que tenham o
mal-napolitano, como todos os gentis-homens da corte. Dizem que pimenta é bom remédio
contra essas afecções devidas à flecha envenenada de Vénus. Mas faz espirrar...
Insistiu com Angélica para que lhe encontrasse uma panaceia para a horrível doença.
Angélica não via por que a velha senhorita temia tanto o mal-napolitano, ela, que não
saía do leito, levava uma vida de reclusa e, apesar de uma graça evidente, estava numa
idade que a punha ao abrigo das paixões.
Prometeu à Srta. D'Houredanne que lhe traria todo tipo de plantas tranquilizantes.
— Pois bem, está combinado, volte! E quando a neve cair abundantemente e nos isolar,
atravesse a rua e venha de noite. Ler-lhe-ei esta história maravilhosa. A Princesa de Clèves.
A pena da Sra. de La Fayette é divina. Seu estilo é um regalo.
Você haverá de apreciar.
E acrescentou:
— Fui leitora da rainha.

"Pronto! Vi a sedutora", escreveu a Srta. d'Houredanne. "Esteve na minha frente, a dois


passos de mim.
"Tivemos uma conversa desconexa. Eu queria apanhá-la em falta, vê-la franzir o cenho,
anuviar-se, desvendar as suas baterias de orgulho ou vingança, seus subterfúgios egoístas e
dominadores, conforme parece que deve possuir uma pessoa anunciada como tão perigosa.
Assim, usei e abusei de sarcasmos.
"Numa palavra, sucumbi-lhe ao encanto, sem que seja capaz de definir de onde procede
esse encanto. A beleza dela comove, é verdade. Sempre se fica desarmado por certa
perfeição de corpo e rosto, harmoniosa de gestos, andar. Ver a beleza repousa e satisfaz
nossa nostalgia do paraíso terrestre. Mas isso não seria suficiente. Será o olhar dela? Retive
menos a cor dos seus olhos, de que tanto se fala, do que a expressão. Ela me examinava
com atenção, e vi que estava feliz por me conhecer e não somente para me cair nas boas
graças. Senti-a preocupada com a minha saúde, o que me toca.
"Que diferença dos bons amigos que encaram com leviandade meus males e me dizem:
'Levante! Levante!' Como se fosse assim necessário haver uma pessoa a mais a tagarelar
nas ruas de Quebec!
"A criança, filha dela, não me agrada. É muito importante para a mãe, demasiado
importante para uma mulher que não deveria ter fraquezas desse género.
"A criança observa também, mas é diferente. Não parece filha deles.
"Deus! Como gosto de filosofar e me debruçar sobre as finezas e contradições do ser
humano. Como a Sra. de La Fa-yette, neste belo relato cujo original me enviou.
"Nosso mundo afunda na escuridão e no gelo. Tudo se em-baça. É por isso que fico na
cama. O gelo estala lá fora, as grandes tempestades se aproximam.
"De repente penso na Sra. de Peyrac e sou tomada de receio. Tomara que a Madre
Madalena não reconheça nela a mulher maléfica de sua visão!
"A Sra. de Peyrac é muito forte. Mas os jesuítas não são mais fortes ainda?"

Ordem ideal de leitura das aventuras de Angélica:


1. Os Amores de Angélica
2. O Suplício de Angélica
3. Angélica e o Príncipe das Trevas
4. A Vingança de Angélica
5. Angélica e as Insídias da Corte
6. Angélica, a Favorita do Rei
7. Angélica e o Pirata
8. Angélica, Cativa no Harém
9. Angélica, Rebelde Guerreira
10. Angélica, Clandestina... Maldita
11. Angélica no Barco do Amor
12. Angélica no Fim do Arco-íris
13. Angélica na Floresta em Chamas
14. Angélica e a Caçada Mortal
15. Angélica e Seu Amor Proibido
16. Angélica Ultrajada
17. Angélica e a Duquesa Diabólica
18. A Satânica Rival de Angélica
19. Angélica e o Complô das Sombras
20. Angélica, Rainha de Quebec

No próximo volume
O Inesquecível Natal de Angélica

Angélica era uma vencedora. Ninguém podia resistir a seu encanto fascinante. Um a um,
todos os habitantes de Quebec sucumbiam ao seu poder de sedução. Nem mesmo a difícil e
desconfiada Cleo d'Houredanne, isolada em sua alcova literária, conseguiu defender-se
dos poderes daquela a quem chamava "a sedutora".

Restava, porém, a mais dura prova da Marquesa dos Anjos: o confronto com a Madre
Madalena da Cruz, visionária que poderia, com uma palavra, identificá-la com a mulher
maléfica da premonição. De seu veredicto dependeria a sorte de Angélica e do marido, o
Conde Joffrey de Peyrac, em sua reentrada em solo francês.
No próximo volume, O Inesquecível Natal de Angélica, entre inúmeras peripécias
que os canadenses inventam para entreter-se em suas cidades ilhadaspelo gelo do longo
inverno, nossa imbatível marquesa terá de enfrentar os derradeiros obstáculos antes do
pronunciamento fatídico de Luís XIV sobre seu destino em terras francesas.
ANNE E SERGE GOLON

OS AUTORES:
ANNEE SERGE GOLON
Serge Golonbikoff nasceu em Bukhara (URSS) em 1903 e Simone (Anne) Cnangeuse,
em Toulon (França), em 1928. Çonheceram-se e casaram-se na Africa, para onde Arme,
com o dinheiro de um premio literário, viajara como jornalista. Serge era uma celebridade
na época: formado em geologia, mineralogia e química, cruzara o misterioso continente em
busca de ouro e diamantes, acabando por participar da descoberta de estanho em Katanga
(Zaire). Atraída por sua fama, Anne resolveu entrevistá-lo.
De volta à França, em 1952, já casados, tiveram a ideia de escrever uma novela
histórica ambientada no século XVII: Serge colhendo as informações no Arquivo de
Versalhes e Anne exercitando um talento para as letras manifestado já na infância.
O sucesso de Angélica, Marquesa dos Anjos, lançado em 1959, foi imediato, animando
os autores a produzirem novos volumes. Estes, traduzidos para vários idiomas e transpostos
para o cinema, fizeram da heroína uma das personagens mais famosas do mundo.

Você também pode gostar