Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Quando, em 1663, Luís XIV transformou a Nova França em província real, englobando
a Acádia e o Canadá, Quebec já era o centro administrativo dos poderes civis, militares e
religiosos dos territórios franceses na América do Norte. Apenas consolidou-se, nessa
ocasião, a interferência direta da Coroa nos negócios da colónia, com a criação de um
Conselho Superior. Este incluía, além do governador, o bispo, vários conselheiros e, a partir
de 1665, uma nova autoridade, o intendente. A eles competia a administração da justiça e
das finanças, além da manutenção da ordem pública.
Aos poucos, as atribuições do governador e do intendente se confundiram, provocando
frequentes discórdias entre ambos e prejudicando o governo. Também o papel do conselho
restringiu-se, terminando por manter-se apenas como corte de apelação.
Junto a esses prepostos do rei, Angélica e o marido, o Conde Joffrey de Peyrac,
recorrem em busca de justiça. Tentam o perdão por uma condenação injusta e talvez, quem
sabe, a devolução de títulos e bens indevidamente confiscados.
"Você não precisa de inspiração diz o Conde de Peyrac "Por trás de seu encanto
existe magia!"
No castelo de popa do navio Gouldsboro, ancorado na enseada de Quebec, Angélica
adornou-se de jóias e cetim para ser recebida pelo Sr. de Frontenac, governador da Nova
França e representante na América de Luís XIV, que, um dia, ela desafiara.
A medida que se aproximava hora de desembarcar, vinham-lhe à mente todos os
obstáculos que faziam desse encontro uma loucura. O rei da França, os banira um dia, a ela
e ao marido, o Conde Joffrey de Peyrac. Durante longos anos, lutaram contra o soberano,
que os condenara injustamente. No Novo Mundo, mesmo, muitos franceses do Canadá os
consideravam inimigos, aliados dos ingleses.
Agora, ignorando esses entraves pojíticos, desafiando todas as leis, eles iriam avistar-se
com o governador, para negociar um tratado de boa vizinhança. Um primeiro passo para
recuperar seu lugar no reino e, quem sabe, um dia, reaver nomes e títulos de que se
consideravam indevidamente despojados.
Amanhecia. A luz no interior da cabine esmaeceu. Ao longe, a pequena cidade colonial,
perdida nos ermos selvagens do Canadá, parecia espreitá-los, impassível, sonhadora.
Angélica tocou um dos brincos de diamante, ajeitou outra vez algumas mechas de
cabelo, antes de se expor aos olhares do mundo. As horas seguintes decidiriam sobre seu
destino...
A CHEGADA
CAPÍTULO I
Foi o vestido azul que Angélica escolheu. Era um vestido de cetim pesado, quase
branco, mas quando as pregas se abriam ou se alinhavam em camadas brilhantes, surgiam
reflexos de um azul puro, acompanhando cada movimento do suntuoso brilho delas,
deixando vislumbrar também um rosa imperceptível como o de unja-aurora.
Olhando para a janela do castelo de popa do navio Gouldsboro, ancorado na enseada de
Quebec, Angélica pensava consigo que o vestido eraidêntico àquela manhã gelada e imóvel
que os aguardava láíora, mergulhando as mesmas nuanças de nácar nas águas calmas do
Saint-Laurent, derramadas como as águas de um lago tranquilo ao pé das muralhas de
Quebec.
Também a cidade estava rosada. Dela não subia nenhum som. Impassível e sonhadora,
a pequena cidade colonial, perdida no seio dos ermos selvagens do Canadá, parecia reter o
fôlego e esperar.
Angélica sentia a cidade a espreitá-la, a observá-la, enquanto no salão do Gouldsboro,
em pé diante do espelho, ela, Angélica de Sancé de Monteloup, Condessa de Peyrac,
proscrita do reino de França, terminava de preparar-se para ser recebida pelo Sr. de
Frontenac, governador da Nova França e representante na América daquele mesmo Rei
Luís XIV que, um dia, ela desafiara em sua revolta.
Era por isso que uma leve apreensão lhe estreitava a garganta, ainda que ela se proibisse
de senti-la e parecesse dedicar à toalete toda a atenção necessária. Seu rosto permanecia
sereno, os grandes olhos verdes exprimiam apenas a vigilância crítica com que ela
observava o próprio reflexo no espelho.
Por nada no mundo a jovem deixaria transparecer o menor alarma diante dos que a
cercavam e a ajudavam a vestir-se: suas acompanhantes, o costureiro, Kuassi-Ba, o grande
negro que segurava o cofre de jóias.
Mas aproximava-se a hora de desembarcar e vinham-lhe à mente todos os obstáculos
que faziam daquela decisão uma loucura. O rei da França os banira um dia, a ela e ao
marido, o Conde de Peyrac. Durante longos anos tinham estado em luta contra esse
soberano; que, por ciúme e receio de um rival poderoso, os condenara injustamente.
No Novo Mundo mesmo, muitos franceses do Canadá os consideravam aliados da Nova
Inglaterra, de que eram vizinhos, e por isso os tinham como inimigos.
Ora, ignorando esses entraves políticos, Joffrey de Peyrac, com cinco navios da sua
frota, acabava de aportar em Queb ec a fim de avistar-se com o Sr. de Frontenac e travar
uma aliança de boa vizinhança. Um primeiro passo para recuperar o seu lugar no reino de
França e, quem sabe, um dia, recuperar nomes e títulos de que fora indevidamente
despojado. As horas seguintes decidiriam sobre o destino deles.
Angélica meditava na diferença entre as reações de um homem e as de uma mulher
diante de uma situação extrema.
A ela, enfrentar uma hostilidade injustificada a afetava muito mais do que àquele
homem que, afrontando as piores perseguições, descobrira nisso uma espécie tle
divertimento.
Ele entrara há pouco, escoltando os vestidos e jóias que traziam para ela, e exclamara:
— Que a festa comece!
E estava ali atrás dela, num riquíssimo traje de cetim marfim. O plissado em losangos
era preso por perolazinhas e incrustado de cetim carmesim. No momento o olhar de Joffrey
de Peyrac, fito no reflexo de Angélica no espelho, brilhava com uma admiração contida,
atento aos últimos detalhes a acrescentar aos adornos de sua mulher para a entrada em
Quebec. Mas ela não duvidava de que ele, no íntimo, estava impaciente por ver "a festa"
começar. Naquele instante se sentia diferente e até um pouco, distante dele.
Aquele retorno à França, ainda que se limitasse a eles porem os pés na pequena capital
do Canadá, despertava nela a recordação de sua luta pessoal com o rei. O intransigente so-
berano jamais lhe perdoaria o fato de ela haver se recusado a ele.
Toffrey, com sua frota, sua riqueza, com a força que lhe conferiam os seus
estabelecimentos no Maine, encontrava-se numa posição mais segura.
Os acasos do verão tinham trazido para bordo de seus navios duas grandes personagens
da Nova França: o Sr. de Ville-d'Avray, eovernador da Acádia, e o intendente Carjon, aos
quais Joffrey tivera ocasião de prestai- favores. Com o apoio do Sr. de Fron-tenac, o
governador, e á garantia dé que o Sr. de Castel-Morgeãt, governador militar, não interviria
é que o bispo permaneceria neutro, era possível augurar uma boa acolhida em Quebec.
No entanto, era preciso levar erri conta o Padre d'Orgeval, que os combatera na Acádia
e que detinhagrande influência sobre os índios aliados dos franceses, abenakis e
algonquinos, e sobre um número enorme de pessoas devotas, desejosas de manifestar-lhe a
sua dedicação. O jesuíta criara um movimento malévolo em relação ao recém-chegado
Joffrey de Peyrac, que, marchando sob os gróprios.estandartes, instalara-se nos confins da
Acádia, considerada domínio do rei da França, e que comerciava com os ingleses. Para
agravar a situação, uma religiosa de Quebec, no ano anterior, tivera uma visão em que lhe
aparecera uma mulher belíssima trazendo muitas infelicidades para a Nova França. A voz
popular se apressara em ver na mulher do Conde de Peyrac, cuja. beleza era renomada, a
diaba anunciada.
Era de rir. Mas essas .correntes fanáticas acarretavam guerras. Hoje seria preciso
esclarecer a situação ou vê-la desembocar numa solução belicosa.
Nesta colónia turbulenta havia tantos partidos que os compromissos assumidos por uns
corriam o risco de nem sempre serem respeitados por outros. Entre os partidários do jesuíta,
tinham-lhes falado de Castel-Morgeat, que detinha o controle do exército, e sobretudo de
sua mulher, Sabina de Castel-Morgeat, descrita como autoritária e temível. Na outra
extremidade da escala, tinham falado de Janine Gonfarel, que reinava sobre
estabelecimentos mal-afamados da Cidade Baixa e que, para obter certa tolerância dos
eclesiásticos, apoiava-lhes a política. Havia que contar com reservas. O aparecimento de
Angélica naquele vestido maravilhoso, da última moda, não suscitaria a inveja daquelas
senhoras?
— Não seria melhor eu chegar vestida com simplicidade e passar despercebida, como
em Tadoussac? — perguntara.
— Não — respondera Peyrac. — Você tem que seduzi-los, subjugá-los... Não pode
desapontá-los, também. O povo espera uma aparição... Há que dar-lhe uma aparição. A
Dama do Lago de Prata... Uma personagem de lenda...
Assim, Angélica não se enganava sobre a importância dos primeiros momentos e da
impressão que causaria sobre aquela multidão, reunida para vê-la e em meio à qual se
disputavam sentimentos contrários.
Nesta noite Joffrey de Peyrac e os seus dormiriam dentro das muralhas de Quebec ou
seriam obrigados a retirar-se, com a sua pequena frota vencida e, além disso, emboscada
pelo grande rio setentrional que logo seria invadido de gelos.
Joffrey de Peyrac também sentia isso. Era Angélica qre desempenharia o papel mais
decisivo. E, consciente da carga que lhe incumbia, elaborara um plano audacioso, insólito e,
para Angélica, inesperado.
— Você será a primeira a desembarcar, sozinha e como foco de todos os olhares. O Sr.
de Ville-dAvray a escoltará. Já lhe comuniquei isso. Está encantado. Duas chalupas a
acompanharão, com homens armados: a sua guarda de honra. Assim, vindo dos navios,
você será a única a aparecer diante deles, e o seu esplendor os deixará estupefatos.
Aproveitará disso para pousar o seu pé encantador no solo de Quebec como uma deusa
retornando de Citera. O Sr. de Frontenac, o governador, esse homem galante que está do
nosso lado, lhe estenderá a mão, e assim a multidão verá que você não é mais do que uma
mulher das mais graciosas, um ser inofensivo, a encarnação mesma da feminilidade e de
seus encantos. Será recebida por si mesma e não porque é minha esposa e porque está sob a
proteção das minhas armas.
E acrescentou:
— Está de acordo?
Mas não precisou esperar por uma resposta. Os olhos brilhantes de Angélica lhe diziam
de como o plano parecia feliz para ela e de como convinha à sua natureza impetuosa e
empreendedora.
Pois conhecemos os franceses, não é? Entre nós, podemos nos mostrar desconfiados
diante de forças armadas, mas não podemos repelir uma mulher que avança sozinha...
E você, nesse meio tempo, fará o quê?
Eu, nesse meio... cercarei a cidade!
CAPITULO II
A aventura começa
O vestido era belíssimo. Apesar das preocupações, Angélica só podia sentir-se feliz
com a própria imagem no espelho. Naquele traje, vindo de Paris, notara certos detalhes
novos. Assim, parecia que agora já não se usava, ou usava-se menos, o manto do vestido
arregaçado em "cestos" sobre uma ou duas outras saias; esse rríanto, agora, caía
completamente, e era da mesma cor da saia sobre a qual se entreabria.
Exibia-se toda a magnificência do tecido, cujas nuanças irisadas eram dignas de
fascinar o olho mais-refinado. A blusa de pontas curtas, igualmente rebordada de rosas, e o
peitilho, rijo de barbatanas, eram do mesmo tom achamalotado. Havia um laço de cetim e
uma espécie de gola de renda um pouco armada, que seguia a, linha do decote e subia por
trás, pela nuca, emoldurando o pescoço, cuja alvura se realçava com graça desse precioso
invólucro.
Nessa vestimenta de sonho, Angélica tinha um ar irreal. Sua pele ambarina, que ela
empoara, captava a luz. Era como se estivesse iluminada por dentro. Dedicara um cuidado
especial à pintura dos olhos e desenhara a linha exata das sobrancelhas. Um pouco de
carmim —"sumo de orcaneta misturado com um ocre claro — sublinhava-lhe com um
ondeado imperceptível o relevo das maçãs do rosto. Passara mais de uma hora, desde o
alvorecer, entretida com a maquilagem, e apesar do frio intenso que reinava na cabina ela
parecia acalorada, devido à concentração que lhe exigira. A vida de aventureira a
desabituara da rotina de Versalhes, quando tinha que maquilar-se antes de surgir sob as
luzes da corte.
Acabara, afinal, e era de crer que o resultado agradava, em vista do olhar que Joffrey de
Peyrac lhe dirigia. Os olhos escuros do conde brilhavam de satisfação, mas havia também
um pouco de ternura em seu meio sorriso.
Era mais uma Angélica nova que ele descobria, a que fora uma grande dama em
Versalhes, desejada pelo rei. Mas isso não o agastava, pois desde que a reencontrara
aprendera a conhecê-la e a amar todos os aspectos do seu caráter. Ela o surpreendia com
frequência, inquietavam às vezes, mas o encantava mais ainda com a sua natureza mutável
mas coerente consigo.
Avançou a mão e pousou os dedos no colo de Angélica, roçando-o com uma carícia.
Este decote admirável exige diamantes. Depois, mudando de ideia:
Não! Pérolas! São mais suaves.
Voltou-se para o cofrinho que Kuassi-Ba, o criado negro, lhe estendia. Escolheu um
colar de três voltas de pérolas.
No espelho, o casal que os dois formavam trouxe-lhes à mente a recordação de uma
cena semelhante que tinham ambos vivido outrora, no seu palácio em Toulouse, muitos
anos atrás.
Entenderam que estavam ambos evocando a mesma imagem. Toulouse.
— Você me amava então — disse Peyrac. — Como parece distante! Você me fez
sofrer mil mortes. Mas, palavra de honra que eu a teria esperado até o final dos tempos! Eu
só a queria pela sua livre e espontânea vontade, não pelos meus direitos de marido, minha
maravilhazinha! E continua sendo assim.
Olharam na direção da cidade, com o pressentimento de que esse retorno ao mundo
francês ia oferecer-lhes a oportunidade de recomeçar tudo o que fora destruído, devastado.
Finalmente deixariam de ser nómades cruzando os mares ou metidos no fundo das matas.
Ver-se-iam outra vez entre seus pares, jogando o jogo deles, ou desempenhando os próprios
papéis no coração de uma sociedade calcada sobre o Velho Mundo.
Segurando-a pelos ombros, perguntou baixinho:
Está com medo?
Um pouco.
E como ela tivesse um leve arrepio, ele disse:
— Você está com frio. Mando buscar seu manto.
Delfina, a jovem camareira, chamou Henriqueta e Iolanda e também requisitou o
auxílio do costureiro e de Kuassi-Ba, pois o manto não era fácil de carregar. Era feito de
pele branca, forrado de lã fina e cetim branco, com um amplo capuz bordado em ouro e
prata por dentro. Tinha-se que prestar atenção para que não arrastasse no chão, jájque o
soalho de um navio nem sempre era o que se podia encontrar de mais limpo. Saíram em
corteja para buscá-lo num gabinete contíguo, onde desde a véspera o manto estava
estendido sobre arcas. Joffrey de Peyrac olhava Angélica no espelho. — O que você pode
temer, meu amor? Não ter êxito, ou seja, não emocionar? Ignora a que ponto fascina
aqueles que a encontram? É tão inconsciente assim do poder de sedução que emana de sua
pçssoa? Quem pôde destruir essa confiança imbatível que você deveria ter? Mas, se
duvida,^ saiba que esse encanto não perdeu nada de sua intensidade. É mais temível do que
nunca... Mak irresistível do que nunca... Eu gostaria de analisar nas minhas retortas os
elementos que o compõem, 'averia de encontrar os mil segredos de uma alquimia que ão
está longe de assemelhar-se à magia. Oh, minha querida, inha belíssima! Você que é tão
hábil em me torturar, que o menos o que lhe garante tamanho poder sobre aqueles que
cercam a confirme "na certeza da sua vitória... Esse rasgo de espírito em que passava, na
voz quente e um ouço velada do conde, o sopro inspirado do amor cortesão os trovadores
do Languedoc, de que ele fora um dos mais enomados, esse rasgo formulado num tom de
ternura e ale-ria, mas onde se sentia vibrar uma paixão total, arrancou um orriso a Angélica.
Voltou-se outra vez para o espelho. E o eflexo lhe devolvia a imagem.-Um dom de sedução
que ela sara com tantos homens, que às vezes maldissera, outras ve-es abençoara, mas que
não podia lamentar continuar a sentir que ainda o tinha. Joffrey tinha razão ao lembrá-la
disso. Chegara o dia de reen-ontrar aquela Angélica que, ao loHgo do ano, se recobrara e
suas derrotas.
Compareceria perante aquela multidão com toda a confian-a de que era capaz e não a
decepcionaria. Se a achassem bela e feliz, os medos se acalmariam e os ódios se
entorpeceriam momentaneamente.
Tocou um dos brincos, para ver o reflexo do diamante sobre o rosto. Tudo aquilo era
belíssimo. Seus dedos ajeitaram outra vez algumas mechas de cabelo aqui e ali. Era o gesto
último, que todas as mulheres fazem no instante de se exporem ao olhares do mundo. Rito
mágico. Sinais de exorcismo a fim de se recriarem, encarnarem e surgirem aos próprios
olhos daquele modo como gostamos de nós, como existimos.
O êxito torna-se certo, então, e a gente sorri ao espelho.
As pessoas retornavam com o manto branco, carregando-o pelas quatro pontas, como
um estandarte. O Conde de Pey-rac pegou-o e passou-o ele próprio sobre os ombros de
\ngé-lica, ajeitando as pregas e dispondo o capuz macio em torno dos brilhantes cabelos
dela. Era como se a estivesse vestindo para armá-la cavaleiro. Como se o manto, qual uma
armadura, pudesse dar-lhe proteçào, mas também designá-la para combate.
Era a armadura de sua sedução feminina que hoje lhe granjearia Quebec.
Delfina aproximou-se e ofereceu um pente, um alfinete.
— Senhora, devo acompanhá-la? — indagou a moça. — Tenho aqui o cofrinho com os
seus acessórios.
— Não, é inútil, não quero expô-lj. Talvez haja perigo.
Joffrey de Peyrac interveio.
— Senhorita, seu cuidado me parece louvável. Mas hoje não quero para você nem para
suas companheiras uma posição... de primeira linha. Seguirá para o Le Rochelais, onde se
encontram as crianças, com lolanda. Lá lhe darão instruções para que possam todas
desembarcar na hora certa e participar da festa.
Docilmente, as moças deixaram os objetos de que estavam encarregadas e, depois de
uma pequena reverência, retiraram-se sob a égide de um dos homens do Gouldsboro, que
estavam especialmente incumbidos de protegê-las durante a operação de desembarque
prevista.
Angélica ouviu o conde ordenar a Kuassi-Ba:
— Mande vir até aqui o Sr. de Castel-Morgeat...
Ela teve um sobressalto.
O Sr. de Castel-Morgeat, coronel, governador militar da Nova França, e que, embora
gascão, era considerado um dos mais ferozes adversários deles, estava a bordo? O que
significava isso?
Angélica entendeu quando viu surgir à soleira da porta, em lugar do irascível
coronel-go,vernador que diziam ser muito intransigente, bigodudo, moreno e de humor
sombrio, o filho dele, o jovem Ana-Prancisco, umsF encantadora aparição. Por enquanto o
sangue gascão só lhe corria nas veias para trazer-lhe a alegria do Languedocj: 6 gosto pelo
amor cortesão e pelos poemas, a alegria de^vivér. Esguioe alto, tinha da raça os olhos
negros, a tez de ameixa amadurecida pelo sol e pela aventura, o sorriso cintilante.
Parecia-se com Florimond como um irmão, e não surpreendia que se tivessem entendido
muitíssimo bem quando o,acaso os fizera conhecer-se na região dos Mares Doces,
conforme chamavam os Grandes Lagos.
Com os cabelos presos por uma faixa à índia bordada de pérolas, a indumentána*"de
camurça mas acompanhada de um peitilho de renda-atado segundo a moda, o que bastava
para conferir-lhe-um ar^dé elegância, ele era a imagem absoluta daqueles jovens, ébrios de
liberdade, que a colónia produzia como frutos novos, de ama espécie não conhecida de
todo, ainda que lembrasse p sabor do Velho Mundo e das castas ou províncias de que eram
originários.
Saudou com uma-graça de jovem senhor, e repetiu a saudação, mais profundamente,
diante de Angélica. Os olhos ardentes não ocultavam a admiração que ela lhe inspirava.
Ficou pasmado e encontrou dificuldade em voltar-se para Peyrac, na frente de quem se
postou cortesmente, esperando que o conde lhe informasse as razões da convocação. O
conde o examinava com simpatia e indulgência.
Ao olhá-los assim face a face, O jovenzinho e o gentil-homem aventureiro de têmporas
grisalhas e rosto marcado de cicatrizes, era espantoso e quase emocionante perceber como
eram semelhantes as raízes de que a Aquitânia forjara os seus filhos.
Belo senhor — disse-lhe Peyrac —, ouvi dizer que serviu como pajem na corte da
França durante alguns anos...
É verdade. Estive a serviço da Sra. de Valenciennes, uma amiga de minha mãe. Eu
lhe segurava a cauda. Depois, quando meus pais partiram para a Nova França, entrei para o
serviço da Sra. de Tounnay-Charente, na corte de Monsieur. Mas há três anos, quando o Sr.
de Ville-d'Avray esteve em Saint-Cloud, levando-me notícias dos meus, viu como eu sentia
saudades de minha mãe e obteve permissão para trazer-me consigo quando retornou a
Quebec. Não me arrependo — acrescentou o jovem, com entusiasmo. — A vida é mais
agradável explorando florestas do que carregando a jarra de água e a toalha, passando
bomboneiras, abanando senhoras, ainda que se trate de uma princesa.
— Ah, sim, mas este é o momento de lembrar seu aprendizado. A Sra. de Peyrac
necessita de um pajem para acompanhá-la nesta jornada, carregar-lhe o cofrinho de
acessórios e prestar-lhe assistência, tanto quanto possível, durante a cerimónia que exigirá
da parte dela muito aparato e que não deixará de fa igá-la. Acrescento que o escolhi pela
sua reputação de coragem, habilidade e amabilidade. Você conhece o povo de Quebec.
Saberá, caso necessário, fazer-se reconhecer e assim prestar todo o seu auxílio àquela que
estará escoltando. Você se sente apto a executar essa missão junto da Condessa de Peyrac?
A expressão e a atitude de Ana-Francisco de Castel-Morgeat refletiam seu
encantamento com a proposta. Para ele, era uma sorte inesperada esse papel a desempenhar
junto de Angélica, por quem nutria uma admiração cada vez mais ardente, desde que
embarcara em Tadoussac, vindo do Grand Nord.
Sem se preocupar muito com o próprio traje de explorador de bosques, Ana-Francisco
indagou sobre o cortejo e depois, com muita diligência, foi examinar o cofrinho de
tartaruga engastado em ouro e cuja tampa, ao levantar-se, revelava um espelho que
possibilitava uma olhada rápida e discreta. Indagou sobre o conteúdo, verificou a presença
de pentes e escovas e potes de cosméticos. Havia alfinetes suficientes? Um frasco de sais,
para o caso de desmaio? Pastilhas de cravo para dissipar a náusea? Lenços de renda
perfumada para se abanar, sempre para a eventualidade de uma mal-estar? As damas a
quem servira deviam ser mulheres particularmente sujeitas a indisposições súbitas. Ele fora
bem treinado, e todo o seu saber lhe voltava à mente sem dificuldade, pois é dura a vida
para os pequenos pajens nas cortes principescas. Com os belos olhos, a graça que tinha, a
roupa de índio e a seriedade de que se imbuía de repente, o rapaz era todo encanto. Disse
que ia informar-se sobre Neals e Timóteo, que deviam segurar a ponta do manto, e que, se o
Sr. e a Sra. de Peyrac já não precisavam dele, ia aguardá-los no convés, E saiu, levando o
cofrinho de tartaruga.
Angélica queria olhar o colar de wampum que o chefe iroquês Utakê lhe dera, na
primavera, oefho sinal de aliança. Tinha a impressão de que o colar lhe traria sorte.
Para abrir a arca onde estava guardado, teve que desacomodar o gato, instalado sobre o
baú. O gato, que a acompanhara desde Gouldsboro, não aprovava toda aquela agitação que
desde o amanhecer perturbava o feliz transcorrer dos seus dias. Fingiu mergulhar num sono
profundo. Despertado, espreguiçou-se com ar chocado.-Olhou, aborrecido, Angélica erguer
o colar de conchas, composto de sementes brancas e azuis, um ob-jeto a que a tradição
índia conferia uma virtude de talismã.
O wampum era tido como o ouro e a prata amoedados. Este que o chefe iroquês dera a
Angélica era de valor inestimável. Representava um verdadeiro tratado de paz.
Utakê o chefe das Cinco Nações iroquesas, era o mais feroz inimigo da Nova França.
Mas seu entendimento com Joffrey de Peyrac e Angélica, franceses também, atenuara sua
virulência em relação aos brancos do Canadá.
Animada de uma confiança e de uma certeza renovadas, Angélica recolocou o wampum
no lugar e disse ao gato:
— Alegre-se, pequeno, esta noite você estará em Quebec e poderá vadiar pelas ruas de
uma cidade de verdade.
A aventura começava.
Olhou novamente para Joffrey de Peyrac, seu marido, seu amor, que, mais uma vez,
tendo decidido responder a um desafio, abordava, sem parecerimpressionado com isso, a
última fase, de que dependia a vitória ou a derrota.
"Como ele é grande!", pensou ela. "É quase um estranho, de tão diferente dos outros!"
E, ao mesmo tempo:
"Ele só pode triunfar... em tudo .e sempre... Hoje é o dia da ressurreição".
Angélica pousou a mão sobre o punho que ele lhe apresentava.
— Vamos agora — disse ele—, vamos, senhora! Quebec a espera.
CAPÍTULO III
Sentiu o frio ferir-lhe o colo assim que surgiu no balcão do primeiro tombadilho. Havia
um alarido enorme, do navio em efervescência nos últimos preparativos para o
desembarque, mas também um tumulto que vinha da cidade, trazido pelo eco das falésias e
pelo ar limpíssimo.
De onde lhe viera a ideia, no salão do Gouldsboro, de que reinava o silêncio ali fora?
O estrépito de sinos em carrilhão e de chamados formava um rumor imenso, que troava
como um sopro na concha de um molusco.
O nevoeiro continuava pairando rio abaixo e escondendo uma parte da costa, mas dava
para se ver que a enseada ao redor estava coberta de embarcações de todp tipo, barcos de
pesca, canoas de madeira ou de casca de árvore, e até uma espécie de balsas de toras
amarradas, com um leme improvisado, nas quais os audaciosos daquelas ribanceiras,
dispondo apenas do rio como meio de transporte, não hesitavam em se lançar de uma
margem à outra.
Joffrey de Peyrac conduziu Angélica pelo primeiro tombadilho. Segurava-lhe a mão, e
de súbito ela adivinhou que ele estava se violentando para deixá-la cumprir uma missão em
que podia correr riscos longe dele.
Uma grande bandeja de prata interpôs-se entre eles. O mordomo e seus auxiliares
apresentavam taças de prata ou cristal, contendo rum ou um álcool translúcido e perfumado
que o senhor de Wapassu e Gouldsboro obtinha em Nova Orange, nas nascentes do rio
Hudson, onde os holandeses o fabricavam com bagas de zimbro.
— O trago de despedida — explicou Joffrey de Peyrac. — A cada um dos meus
combatentes, desde o grumete até você, minha cara, a mais bela embaixatriz das terras da
América.
As taças contendo o álcool estavam pousadas sobre um leito de gelo, pois a bebida
devia ser tomada bem fria.
— Eu preferiria um copo grande deíágua — disse Angélica,
notando que estava com a garganta tão seca, que mal poderia pronunciar duas palavras.
Trouxeram-lhe a água quase imediatamente. Ela bebeu com avidez e soltou um suspiro.
,
— Sinto-me melhor. O que você quer, fiquei como os índios: apenas a água das fontes
me comunica a força da terra.
Viu no olhar de Joffrey de Peyrac que ele estava com uma vontade louca de tomá-la nos
braços e cobri-la de beijos.
Como você está bonita! Vai ser um triunfo. Não se atira numa mulher que avança
como uma rainha nos seus mais belos atavios. Tercbse-pelo menos o trabalho de examinar
todos os adornos da sua toalete, às suas jóias, o modo como está penteada e... a partida está
ganha., O espetáculo se desenrola, continua. Ninguém se sente tentado a interrompê-lo. A
vida não é assim tão rica de distrações nesta capitalzinha da Nova França.
Também eu me alegro. A partida será difícil, mas já não sinto medo algum..
Sim, sim, o medo fica comigo! --- disse o conde, com uma careta. E engoliu de um
trago uma taça de rum.
Ela entendeu que não era sem apreensão que ele a deixava expor-se ao fogo. No
entanto, não duvidava do êxito dela.
Em seguida ele cobriu a abundante cabeleira que o vento agitava com o seu chapéu de
feltro negro, rodeado de uma pluma branca presa por uma fivela de diamantes. E calçou
cuidadosamente as luvas de couro com punhos pespontados de renda.
— Deixo-a, querida, para dar início à manobra de desembarque que lhe anunciei.
Valendo-me do nevoeiro que esconde a embocadura do rio Saint-Charles, desço na margem
e, seguindo pela costa, atinjo os subúrbios da Cidade Baixa e a alcanço em pouco tempo no
porto, com pífaros, tambores e trombetas. Quanto às crianças, tranquilize-se, estão no Le
Roebelais, que vaga um pouco ao largo e só se aproximará quando o grosso das nossas
tropas tiver desembarcado. O Gouldsboro será avisado por um sinal do sucesso da manobra
e, nesse momento, você descerá para a chalupa de honra e seguirá direto para Quebec.
Enquanto falavam, os olhos de ambos continuavam a interrogar-se e a responder-se.
Os corações seguiam outro diálogo. "Eu te amo... você existe... é maravilhosa..." "Eu té
amo... você existe e me sinto bela, sinto-me mais forte..."
E o prémio — murmurou ela —, o prémio de tudo isso, de todos esses riscos, qual é?
Levar o rei da França a nos fazer justiça? Ou levar essa gente, submissa a ele, a
pronunciar-se contra ele? É loucura, irrealizável! Nós nos batemos e debatemos, mas
diga-me, senhor, qual é o prémio?
O mesmo que para todos — respondeu ele, alegremente: — viver, sobreviver nesta
terra danada onde se saboreiam tantas maravilhas. Viver melhor. Lutar para viver.
Poupando, não esforços, mas, tanto quanto possível, sangue e violência... Claro que, para a
Nova França, receber-nos é absolutamente ilegal. Mas o inverno está começando. Não
haverá ligação com a França durante meses. Somos numerosos e animados de intenções
pacíficas. Minha correspondência com Frontenac gera seus frutos.
E você também tem outro aliado no local, não me disse?
Psiu! — fez Peyrac. — O meu aliado é mais eficaz se permanecer secreto. Mas aos
poucos tudo se revelará. Já é muito que o governador esteja francamente do nosso lado.
Está correndo o risco de um dia ser repreendido pelo rei. E qual é o sentimento do rei em
relação a nós? Ainda ignoramos isso. Enquanto esperamos, nosso prémio, se é mais
modesto, não nos satisfará menos. Para nós, que somos banidos e nómades, o que haveria
de mais miraculoso do que conseguir passar um inverno inteiro em Quebec, em solo
francês, entre amigos?
CAPÍTULO IV
CAPÍTULO V
CAPÍTULO VI
O gurupés fora levado. Faltou pouco para que a bala, atirada das alturas de Quebec,
atingisse o Gouldsboro em sras partes vitais, esmagando de passagem a barca e seus
ocupantes.
O Gouldsboro manobrava com uma rapidez exemplar, para sair da linha de tiro.
A chalupa fora levantada por uma onda enorme. Os remadores faziam prodígios para
afastá-la do navio e não serem pro-jetados contra o casco.
Entre ruídos de correntes e estalidos, as janelas de madeira das vigias do Gouldsboro
levantavam-se, descobrindo a goela negra dos canhões.
"Pronto, é a guerra", pensou Angélica, fora de si de raiva e decepção. "Ah, é muita
tolice!"
Ela fora atirada para trás, depois para a frente, e agora, meio sentada, agarrava-se como
podia.
Ville-d'Avray, em compensação, em pé, esgoelava-se na di-reçao do Sr. d'Urville,
comandando o fogo do tombadilho do Gouldsboro.
— Não atire naquela direção! Vai demolir a minha casa! Atire para a esquerda, na casa
do Sr. de Castel-Morgeat, o governador militar, aquele traidor, aquele rufião. Olhe, ali, ali,
aquela que fica em ângulo, acima da capela do seminário! A casa com telhado de ardósia.
Atire! Abata-a!
Dominando o tumulto de gritos e ordens, elevou-se a voz do Conde d'Urville:
— Fogo!
Uma salva ensurdecedora ecoou nas falésias e o ar encheu-se de uma fumaça acre,
enquanto as embarcações em torno
do navio pareciam enlouquecidas. O Gouldsboro manobrava, de velas desfraldadas. Os
outros navios da frota aproximavam-se para se alinharem ao lado da nau capitânea. Um
nevoeiro amarelado, cheio de ecos estrondejantes e gritos de chamado, substituíra a calma
da bela manhã e acima de tudo isso, os gansos selvagens passaram, endoidecidos, na
direçãò oposta, soltando gritos de feiticeiras.
Preocupada com o jovem Ana-Francisco de Castel-Morgeat, Angélica procurava na
superfície, da água. Ele saberia nadar? Avistou-o, debatendo-se, cgritou para que o
socorressem. O rapaz sabia nadar, mas a espessa roupa de camurça o atrapalhava. Afinal,
uma canoa indígena, onde se encontravam dois selvagens, foi resgatá-lo. Ele se agarrou ao
remo, para logo depois ser recolhido-por um barco de pesca.
Esperavam-se outros tiros, outras salvas, mas os ecos ainda rolavam, diminuindo, e
nada acontecia. Fora como uma breve e louca convulsão. Lentamente a fumaça se dissipou,
o sol reapareceu, a enseada revelou-se de novo, vasta e cintilante, com a cidade; mais
agitada do que nunca, efervescente.
Notaram então que chalupa fora à deriva e que os roda-moinhos a tinham arrastado para
longe da barca de escolta, onde se encontravam os marujos armados. Uma corrente forte os
apanhara e os aproximava irresistivelmente dos cais da Cidade Baixa, um pouco acima da
Place Royale, onde os oficiais esperavam.
De chofre, deram com pessoas alinhadas ao longo da margem, a algumas toesas deles,
que os viam aproximar-se, boquiabertas. Ouviu-se alguém gritar:
— Lá está ela!
Os remadores esforçavam-se em vão para fazer meia-volta. A maré, ainda sensível
junto He Quebec, acabava de virar, e a corrente poderosa os arrastava.
Tanto pior! Vamos atracar — decidiu Angélica.
Mas isto é o bairro dos. entrepostos e do mercado — disse Ville-d'Avray.
— É Quebec! E eu vim para deserribarcar em Quebec!
Ergueu-se na proa, no seu vestido régio. O sol fazia as suas jóias cintilarem. A chalupa
avançava depressa rumo à praia. Angélica já podia distinguir os rostos. A expressão mais
frequente era assombro. Angélica entendeu que aquela gentinha dos bairros escusos, que
hoje não esperava muito além de migalhas do espetáculo oficial, não conseguia dar-se conta
de que subitamente se encontrava na primeira fila.
Além disso, para terem sido retirados assim para aquele canto apartado da Cidade
Baixa, era porque entre eles devia haver elementos hostis, que desaprovavam a política do
governo e que estavam prontos a insultar os "estrangeiros" que lhes tinham sido anunciados
como emissários de Satã e aliados dos seus piores inimigos, os ingleses.
Era por isso que Ville-d'Avray estava furioso. Não só aquele desembarque nesse ponto
negligenciado da margem carecia demasiado de decoro, mas também seriam obrigados a
desembarcai entre a canalha. Faltava tudo do belo espetáculo em que ele desempenharia
papel de destaque e que prometera a si mesmo...
— A plebe! A plebe! — resmungava ele. — Estamos bem arranjados!
Mas Angélica, encantada de ver a praia de Quebec aproximar-se rapidamente,
contemplava com prazer a multidão compacta que, de olhos arregalados, via chegar aquele
barco onde se via, ereta, uma aparição digna das grandezas de Versalhes.
Em vão Vauvenart, na proa, berrava:
— Agarrem o cabo, bando de imbecis! Agarrem o cabo!
Ninguém se mexia.
Finalmente alguém segurou a corda que o acadiano atirava e amarrou-a.
Houve uma leve colisão contra as estacas de um pequeno molhe um pouco apodrecido e
enfiado na lama.
Ville-d'Avray saltou do barco com presteza, recuperando o entusiasmo assim que a
ponta do seu sapato de cetim tocou a madeira úmida do embarcadouro de sua cidade
preferida.
Estendeu a mão para Angélica, que, auxiliada pelos ocupantes do barco e pelos pajens,
que lhe seguravam o manto e as belas saias cintilantes, pousou o pé na plataforma de
madeira.
A alegria e o sentimento de vitória iluminavam-na.
Desembarcava em Quebec. Estava ali, afinal.
Em Tadoussac tinham posto novamente os pés em solo francês.
Mas em Quebec, capital da colónia da Nova França, era o reino que ela reencontrava, e
quase Versalhes, e por trás das casas de pedra edificadas em terras da America, o rosto
om-presente do rei, aquele rei que a amara, a quem ela desafiara, que a banira, Luís XIV, o
Rei?Sol, e que hoje era o maior rei inconteste do universo, o rei. dos franceses.
Pois, fossem quem fossem, ralé ou gente honesta, plebeus ou nobres, os que a
aguardavam ali eram franceses como ela, da sua raça, falavam á sua língua e, melhor/ainda,
eram na maioria originários do oeste da Çrança,' de que fazia parte a sua província natal, o
Poitou.
Todas as suas reflexões e a sensação que delas advinha de estar em casa, em país
conhecido, causaram-lhe um prazer imenso.
Devia-se ler isso nó seu rosto sorridente.
Ville-d'Avray, enfrentando a situação, plantou-se junto dela e, sacando, da espada, que
ele brandia num gesto teatral, exclamou:
— Meus amigos, de regresso à nossa boa cidade, eu, o Marquês de Vill"e-d'Avray,.
saúdo-lhes. E tenho a honra de apresentar-lhes a Condessa de Peyrac. Os acasos da
correnteza fizeram que ela os'visitasse antes de avistar-se com o governador. Mostrem-lhe
seu prazer por terem sido favorecidos assim pela sorte e formem-lhe alas de honra,
enquanto a conduzo aos nossos oficiais mal-afortunados, que a esperam de nariz para o ar...
Risos e vivas espocaram espontaneamente ao cabo desse discurso.
— Avante e ânimo — bradou Ville-d'Avray.
Abaixou a espada, mantendo-a afastada do corpo, para o lado, de ponta virada para
baixo, com a outra mão segurou a de Angélica e começaram a subir pelo cais que se
elevava e alargava numa vasta praça.
— Precisaríamos de música — decidiu Ville-d'Avray. — Não tínhamos previsto este
cortejo.
Ouvindo-o, o pequeno Abbal Neals mostrou-lhe a sua flauta de Pan. Largou o manto,
que segur-ava junto com Timóteo, e, indo postar-se na dianteira, levou o instrumento aos
lábios. A música graciosa e ligeira alçou-se pelo ar, e eles avançaram a passos cadenciados.
Faziam questão de andar lentamente, a fim de não darem a impressão à multidão, caso
se apressassem, de que lhe temiam os humores. As pessoas continuavam a aplaudir,
enquanto se abriam alas diante deles. A música da flautinha de caniço mantinha o encanto.
Angélica lembrava-se daquelas cidades no Poitou, na Ven-dée, onde fizera algumas
entradas triunfais. Naquela altura, gritavam para ela com esperança, e agora, assim como
então, a vontade que tinha era de beijar a todos, abraçá-los. E eles deviam sentiresse seu
impulso, pois aos poucos os rostos se iluminaram, esboçaram-se sorrisos. De repente houve
francas gargalhadas. Olhavam para alguma coisa atrás dela. Voltando-se, Angélica deu com
o gato, o seu gato, que a seguia.
Com a cauda espessa levantada bem reta, ele parecia adaptar a sua marcha aos passos
lentos e solenes deles, como se dissesse: "Pois bem, também eu, não levem a mal, entro em
Quebec!"
Angélica ficou tão espantada de descobri-lo ali, que estacou. Como fizera para segui-la?
Devia ter saído do Gouldsboro atrás dela e depois se insinuara para dentro da chalupa, sem
que ninguém notasse. Ela viu naquela presença um sinal de bom augúrio: ele sempre lhe
trouxera felicidade.
Achando que o fato de ter sido descoberto o autorizava a tomar o lugar que lhe
convinha, o gato ultrapassou-os com alguns pulos e foi colocar-se perto de Abbal Neals
para caminhar na frente de todos.
Este incidente acabou de quebrar o gelo.
Os aplausos reiniciaram-se, mas mais sonoros e calorosos.
A multidão se adensava cada vez mais. A notícia de que a Condessa de Peyrac, a Dama
do Lago de Prata, personagem mítica em que até então só se acreditava parcialmente, tinha
realmente atracado na enseada do fundo da baía e que avançava pelo bairro Sous-le-Fort,
correra e esvaziava as ruelas e casas da vizinhança.
A partida parecia ganha. Mas, no momento em que atingiam a extremidade da praça e
iam tomar uma rua paralela ao rio para alcançarem a Place du Marche, ou Royale, surgiu
um grupo de homens com a visível intenção de obstruir a passagem e soltando gritos
sediciosos.
Vendidos aos ingleses! Traidores!
Traidores são vocês! Abram caminho! Nada de virem se meter no que acontece em
nosso bairro. Vendidos são vocês! Foram pagos! Quem os pagou?.., O jesuíta?
Cale-se, blasfemador!
No súbito alarido que rebentava, em que os moradores do bairro que tinham acolhido
Angélica ao desembarque tomavam-lhe a defesa violentamente, começaram a voar pedras.
Uma delas ricochetepu é foi atingir o gato.
Ouviu-se um miado desesperado..
— Meu gato! — gritou Angélica, transtornada.
O animal soltara o miado desesperado, dera um pulo e caíra, imóvel.
Sem se preocupar com o principesco vestido, Angélica caiu de joelhos junto dele. Tudo
se desorganizava. As pessoas gritavam e se molestavam. "Os marujos da chalupa tinham
imediatamente formado-unT círculo à volta de Angélica, que pegara o pobre gato, tentániio
ver se estava ferido ou somente atordoado. Felizmente a pedra ricocheteara e o atingira com
menos brutalidade. Ville^PAvray, com a espada em riste, conseguia manter a gente à
distância. Não queria ferir a ninguém e pedia que se acalmassem, mas não lhe davam
ouvidos.
Uma voz de peixeira, rouca e tonitruante, dominou o tumulto de súbito.
— Parem com isso, grosseirões! Escória! Animais! Então não têm vergonha! Atacar
um bicho! Faço picadinho de vocês todos, eu!
Em poucos instantes a situação se esclareceu de novo. Com os paus derrubados pela
súbita chegada de uma bola bem atirada, alguns antagonistas foram morder o pó, e no
espaço que se abriu com isso viu-se uma mulher grandalhona, muito violenta, o cabelo todo
para fora da coifa, distribuindo generosamente bofetões e pontapés e abrindo espaço ao seu
redor. Assim que se tornou senhora do terreno, foi plantar-se diante de Angélica.
— Não se preocupe com seu gato, minha pequena — lançou-lhe numa voz suavizada.
E baixinho, em tom de confidência:
— Ele não tem nada. Vi como a pedra o atingiu. Olhe, está vendo? Ele se mexe. Cuido
dele. Passe-o para mim. Não é hora de cuidar de um gato. Continue em frente. É melhor
não se atrasar por aqui. Mandei meu criado avisar aqueles belos senhores, e daqui a pouco a
guarda virá para escoltá-la até o governador. Não tema nada e confie em mim. Cuido do seu
gato para você.
Pegando delicadamente o animal, que começava a espernear, ela deu unia piscada
enérgica e cúmplice para Angélica e se perdeu entre a multidão, que de bom grado abriu
passagem para ela. A mulher parecia conhecida ali e ter grande influência sobre a gente do
seu bairro.
Ville-d'Avray sacudiu a poeira dos punhos e ajeitava a peruca. Timóteo lhe estendeu o
chapéu, que caíra no chão.
— Mas que modos são estes! — ralhou o marquês. — Já não reconheço a minha boa
cidade. Isso lá é jeito de procederem e assustarem gente honesta! Reconheci alguns deles e
não perdem nada por esperar. Hei de fazê-los pagar caro pela insolência. O subtenente da
polícia civile criminal é o meu melhor amigo.
Angélica correu os olhos à volta. Ao seu redor, agora, só havia gente preocupada em
agradar-lhe. Mas o incidente com o gato a perturbara. Havia algo na intervenção da mulher
gorda que lhe escapava. No entanto, apesar da atitude de familiaridade, havia algo nela que
lhe inspirara confiança.
Olhou para Ville-d'Avray e disse:
— Temos que nos reunir ao Sr. de Frontenac.
Nesse momento a multidão se afastou, pressurosa, para deixar passar um homem que
vinha a passos rápidos ao encontro de Angélica.
Também ele trazia a espada desembainhada, como se estivesse pronto, caso necessário,
a partir algum oponente em dois.
De botas e chapéu pretos, trazia sobre o gibão uma casula curta, igualmente preta, no
centro da qual estava bordada uma grande cruz em fio de prata.
Angélica reconheceu, no uniforme de cerimónia da Ordem de Malta, o Cavaleiro
Cláudio de Loménie-Chambord.
CAPITULO VII
CAPITULO VIII
CAPITULO IX
— Desapareceu?
Angélica ainda não sabia se a notícia a aliviava de um peso ou se a decepcionava.
Repetiu: .
Desapareceu? O que você quer dizer?
Que há três dias-Sebastião d'Orgeval ainda se encontrava em Quebec. Encontrei-o
em diversas ocasiões, tentando convencê-lo a aprovar a decisão do senhor governador de
lhes dar boa acolhida. Uma noite fui vê-lo no convento dos jesuítas, onde ele combinara um
encontro comigo. Disseram-me que ele estava naxasa do senhor governador, que mandara
chamá-lo. Dirigi-me para lá. O Sr. de Frontenac não o vira. Foi em vão que o esperamos.
Desdg então ninguém mais o viu em Quebec.
Angélica estava pasmada, hão conseguindo formar uma opinião sobre essa nova atitude
esquiva no inapreensível jesuíta. Após um momento de reflexão, veio-lhe uma inquietação.
Aquilo ocultava o quê? O jesuíta se retirara para as sombras a fim de melhor preparar suas
armadilhas?
Assim que chegou a Quebec ele começou a reunir os selvagens abenakis e
huroniáhos nas planícies de Abraão, encorajando-os a se oporem pelas armas ao
desembarque de vocês. Os fenómenos estranhos a que chamam aqui de "canoas da
chasse-galerie sustentavam a revelação que ele lhes fazia sobre as calamidades que se
abateriam sobre nós. Um iluminado viu cortarem o céu algumas dessas luzes que às vezes o
atravessam nestas latitudes.
Também as vi — murmurou Angélica, mas como se falasse consigo mesma.
— As almas fracas e assustadas vêem nisso a visão de canoas em chamas a bordo das
quais se encontram os missionários e exploradores das florestas martirizados pelos
iroqueses pela sobrevivência da Nova França... Anúncio de infelicidades, apelo à
vigilância... Era fácil explorar essa atmosfera de medo e foi inútil eu falar. Enquanto isso,
chegava o chefe dos patsuiketts, que convocava efetivos e reservas dos abenakis para
receber vocês. Faltou pouco para que não eclodisse uma batalha renhida entre os partidários
do narrangasett e os de Sebastião d'Orgeval.
Um rumor longínquo, que se elevou das alturas da cidade e rolou o seu eco na direção
deles, qual trovoada prolongada, interrompeu-lhes a conversa.
Seria Joffrey chegando?, indagou-se Angélica, alerta.
O ronco amplificou-se, como o de um vagalhão rolando de estágio em estágio, pelo
flanco da falésia.
Depois surgiu um soldado de uma ruela em declive, com o dedo apontado na direção do
cume, gritando:
— Senhor governador, os selvagens! Estão vindo!
Centenas de selvagens, num clamor gigantesco, desciam pelas ruas, jardins, pulando
cercas e muretas. O ruído dos seu colares de conchas, sacudidos pela corrida, somava ao
tumulto um curioso retinir sincopado.
De punhos às ancas, Frontenac empinou o nariz na direção do rumor torrencial.
— O que foi que deu neles?
E, voltando-se para Castel-Morgeat:
Não podia ter ficado lá em cima, imbecil, controlando toda a sua gente?
Mas foi o senhor, governador, quem exigiu que eu estivesse aqui embaixo, no
desembarcadouro.
Quem comanda os selvagens?
Piksarett!
Então devemos esperar que isso não seja mais do que uma manifestação de
boas-vindas, à moda deles.
Apesar de tudo, o governador estava um pouco apreensivo. Aqueles índios eram
imprevisíveis.
— O grande sagamore Piksarett tomou o seu partido ferozmente — disse, dirigindo-se
a Angélica. — Declara-se um de seus amigos, o que é no mínimo surpreendente.
— Nós nos prestamos serviços mútuos — respondeu ela —, e tenho-o em grande
estima.
A última vez que encontrara o grande chefe índio fora há três meses, no golfo
Saint-Laurent, após os trágicos incidentes
da Acádia.
Antes de embrenhar-sé na floresta, levando à cintura os escalpos sangrentos dos adeptos
de Ambrosina de Maudribourg, ele lhe gritara:
— Vá! Eu a encontrarei em Quebec. Você ainda precisará de auxílio meu lá...
Estava cumprindo a palavra.
Apareceu no topo da Rue des Epargès, que terminava numa escadaria.
Sozinho!
Com um gesta imperativo, retinha a desabalada carreira dos guerreiros que arrasfara
consigo naquela louca correria.
Fez-se silêncíoO^o-mesmo tempo a borda das muralhas e parapeitos se guarneceu de
cabeças-emplumadas.
Piksarett era reconhecível pela grande estatura desenvolta. Mas ele, a quemtinhanv
o-hábito de ver seminu ou vestido com a sua disforme pele de urso negro, hoje estava
magnificamente adornado. Serpentes de tinta vermelha e branca cobriam-no da cabeça aos
pés, segundo um ritual complicado que sublinhava de volutas cada um dos seus músculos,
os peitorais, o umbigo, as rótulas dos joelhos enfeitados com jarreteiras de plumas.
A cabeça trazia uma imensa tiara rebordada de conchas, que sustentava um penacho,
não menos impressionante, de plumas de todas as cores.
Permaneceu imóvel por um longo instante, a fim de que todos pudessem admirar-lhe a
magnificência, depois se encaminhou com toda a solenidade em direção a Angélica,
ladeada pelos notáveis franceses.
Uma intensa satisfação fazia-lhe brilhar as pupilas negras e maliciosas.
Endereçou a ela um olhar de conivência. Já havia entre eles uma riquíssima história de
adversários, adversários aliados, adversários de força igual.
Preocupado em fazer lembrar os próprios direitos, pousou uma mão peremptória no
ombro de Angélica.
— Minha cativa — disse.
E, dirigindo-se a Frontenac:
É assim, você deve sabê-lo. Esta mulher é cativa minha e não sua. Pousei a mão
sobre ela na aldeia de Newehevanik, mas ela me disse que já era batizada e francesa. O que
podia eu fazer então? Mas, como vê, eu a trouxe a Quebec, para você, e o seu esposo
também vem, a fim de me pagar o resgate. Conheço" bem estes estrangeiros do Alto
Kennebec. E posso garantir-lhe que neles não há absolutamente nada de fraudulento. Assim
eu lhe peço que receba meus convidados com honra e confiança.
Você pode constatar com os seus próprios olhos a honra que lhes dispenso, e fique
em paz. A acolhida que receberão dentro de nossos muros há de contentar-lhe o coração.
As -ios-sas alianças se confundem, e não posso considerar indignos de se sentarem ao meu
lado, sob a égide da bandeira do rei da França, para compartilharem do festim depois de
fumarem do cachimbo da paz, aqueles a quem você honra com sua confiança. Compartilho
da sua convicção de que este é um grande dia para o repouso das nações.
Satisfeito, Piksarett voltou-se para a população e começou a arengá-la. Angélica
entendeu que ele apresentava uma relação das façanhas dela, Angélica, e destacava como
mais importantes aos seus olhos o fato de ela poder comandar os espíritos e ressuscitar
seres quase mortos tocandô-os com as mãos.
Felizmente a homilia foi breve, e ela esperou que não o tivessem ouvido com
demasiada atenção.
Com um gesto autoritário, Piksarett concluiu apresentando a cativa e pedindo à
multidão que a aclamasse.
Os vivas se repetiram de bom grado, e o tumulto, agora com a participação dos
selvagens, adquiriu tal amplidão, que cobriu a aproximação de uma música de pífaros e
tambores, chegando pelas ruas da beira do rio.
Viu-se de repente, à entrada da praça, uma fileira de músicos batendo nas caixas
adornadas com fitas, e logo depois homens armados carregando chuços, cujas couraças e
elmos de aço negro cintilavam ao sol.
Eram Joffrey de Peyrac e sua tropa.
CAPITULO X
Angélica, com o coração disparado, teve que admitir consigo mesma que a dupla fileira
de tambores seguidas de pífaros, avançando com petulância em seus cintilantes uniformes
brancos, o cinto franjado de ouro, a boina azul com borlas douradas, e sepafando-se para
abrir alas num movimento exato de conjunto, sem-por isso interromper a música, cujos
rufares e notas agudas se intensificavam, produzia um surpreendente efeito de beleza- e
poderio.
Mais impressionantes ainda estavam os espanhóis de Peyrac, de armadura e-capacete
pretos e chuço na mão, formando a guarda do Conde de Peyrac. Dom Alvarez, o capitão,
afeta-va o ar altivo e severo de um hidalgo penetrando numa cidade flamenga.
Flutuavam ao vento galhardetes e bandeiras, com o brasão de armas de cada capitão dos
cinco navios ancorados na enseada, precedidos do estandarte com as armas que o Conde de
Peyrac ostentava em Gouldsboro e nos seus fortes no Mai-ne: um escudo de prata sobre
fundo azul.
— Ora — exclamou alguém —, quando ele andava pelo Mediterrâneo, usava o escudo
de prata sobre fundo vermelho...
Angélica se voltou com vivacidade, tentando identificar entre todos aqueles rostos
comprimidos, postados na direção do cortejo que chegava, o homem que lançara essas
palavras em tom leviano e sarcástico.
Havia, então, naquela multidão francesa, alguém que sabia que por trás do Conde de
Peyrac se escondia o antigo Resca-tor do Mediterrâneo?
Não conseguiu reconhecer nenhum rosto. Que importava!
Seria um perigo? Havia que estar preparada para esse tipo de encontro.
Querendo penetrar naquela pequena sociedade dirigente da Nova França, ligada
diretamente à corte e suas intrigas, eles tinham que estar preparados para ver surgir
fantasmas do passado.
Angélica temia isso?
Não teve tempo de preocupar-se, de sentir um arrepio. Os espanhóis se separavam por
sua vez, também eles se alinhando de lado, frente a frente, com os chuços levantados e
entrecruzados para formar uma ala de honra. E viu-se avançar o Conde Joffrey de Peyrac de
Morens d'Irristru.
Um burburinho percorreu a multidão. Burburinho que traía uma emoção não despida de
receio e de certa hostilidade, mas também de espanto.
Pois ele avançava de mãos dadas com Honorina.
O encanto ambíguo que emanava de sua grande silhueta de conquistador, com o rosto
costurado de cicatrizes e trazendo a marca de uma existência fértil em combates e
violência, era como que atenuado pela presença da criança.
Certamente ele tinha o olho escuro e sarraceno, cabelos negros e espessos que não
deviam nada às perucas, e ostentava -uma elegância guerreira que, com as suas botas altas à
inglesa, as luvas de crispim e os dois boldriés de couro de Córdoba suportando pistolas com
coronha de prata, aproximava-se da imagem que os simples faziam de um temível pirata do
Caribe.
Mas o que desconcertava era a cordialidade do seu sorriso, e sobretudo o gesto simples
e natural com que conduzia a menininha até o governador e os dignitários.
Dir-se-ia que era muito mais a ela que ele queria apresentar do que a si mesmo.
Honorina, pela mão de Joffrey de Peyrac, estava adorável de imponência e dignidade. O
vestido azul, atravessado de suaves reflexos verdes, realçava-lhe o brilho dos belos cabelos
acobreados, penteados em cascata sobre os ombros. Ela, que tanto gostava da sua liberdade
"de movimentos, suportava com paciência a gola alta de renda atada por galões de borlas
prateadas, que a obrigavam a manter o pescoço bem ereto. Ela suportava o corselete
pontudo, contornado de franjas cor da aurora que se destacavam sobre o verde do tecido
adamascado, e os laços aurora atando aos punhos as mangas bufantes de linho fino, que
saíam das mangas mais curtas, de punhos bordados, do casaquinho. Sob o braço esquerdo,
trazia o chapéu de plumas verde e rosa. Pedir-lhe que o usasse seria pedir demasiado, mas
era admissível levá-lo assim, pois muitas senhoras tinham adquirido o hábito, em vista da
arquitetura cada vez mais complicada dos penteados, de levar o chapéu sob o braço, a
exemplo dos homens.
Honorina parecia uma criançq, régia. Era com grande seriedade que se aproximava ao
lado do pai.
Enquanto todos os olhos estavam fitos nos dois, os marujos do Gouldsboro se
espalharam rapidamente pela praça. Homens armados de mosquete postaram-se em
diversos pontos, com a mão sobre o sabre à cintura.
Esses movimentos paSsaram despercebidos. As pessoas apontavam umas para,3as-
outras, caminhando atrás de Joffrey de Peyrac e de Honorina, os dois filhos do conde,
Florimond e Cantor, belo"s adolescentes de ,dezesseis e dezoito anos, e um grupo das mais
dignas^personalidades, nas quais — pelo menos em duas delas — Quebec podia reconhecer
figuras familiares e estimadas, ou seja, o próprio intendente da Nova França, Sr. Carlon, de
regresso de sua viagem à Acádia, e o Sr. d'Arreboust, que todos imaginavam embarcado
para a Europa. Havia uma terceira personagem, um belo homem com boa aparência e
seriedade, que era desconhecido, mas já corria o boato de que se tratava de um enviado
extraordinário do rei, chegado num navio desmastreado e a quem a frota do Sr. de Peyrac
salvara de naufrágio.
A presença deles e a dos resgatados do Saint-Jean-Baptiste, que os seguiam, acabaram
de transformar essa entrada na cidade de um corsário temido em entrevista de potências
aliadas, desejosas de se obsequiarem e de se socorrerem mutuamente, a fim de
estabelecerem relações de boa vizinhança.
Soltando da mão que a segurava, Honorina fez uma profunda reverência ao Sr. de
Frontenac e, após um instante de reflexão, fez uma segunda reverência diante de Piksarett,
a quem vira avançar primeiro. Em seguida, cumprida a tarefa, disparou na corrida.
Angélica achou que a menina viesse na sua direção, mas ela se dirigia ao Sr. de
Loménie-Chambord, a quem os seus olhos de lince haviam notado desde que ingressara na
praça. O Cavaleiro de Malta, tocado por esse impulso inocente, levantou-a nos braços e
estreitou-a sobre a sua cruz de prata.
— Você me preparou a minha faca de escalpelar? — perguntou-lhe Honorina logo
depois de beijá-lo nas duas faces. — Você me prometeu, e o Sr. d'Arreboust também,
quando foi a Wapassu...
O cavaleiro surpreendeu-se, pois a promessa lhe escapara totalmente da memória. Para
grande sorte sua, Honorina foi rodeada por inúmeras senhoras e cavalheiros, que a achavam
encantadora e queriam beijá-la e cumprimentá-la.
Em Quebec, apesar dos esforços do governador, que insistia muito nisso, o protocolo
nunca resistia muito tempo. A intervenção da criança-quebrara o gelo, e as pessoas começa-
vam a se interpelar, a se apresentar umas às outras, a se reconhecer. O Sr. d'Arreboust
viu-se rodeado de amigos, encantados por revê-lo, pois imaginavam-no vogando rumo à
Bastilha, e a desgraça dele transformara os elementos conciliadores da colónia.
Apesar de tudo, Frontenac se empenhava em proceder a algumas apresentações oficiais.
Pelo menos dos membros da sua administração civil e militar.
Após o governador militar e seus oficiais, os membros do conselho soberano, os
senhores Gaubert de La Melloise, Magry de Saint-Chamond, Hauborg de Longchamp,
Basílio, Gollin, o procurador Natal Tardieu de La Vaudière, o escrivão Nicolau Carbonnel.
Joffrey de Peyrac saudava e dizia uma palavra a cada um. Angélica esforçava-se, mais
uma vez, por gravar no mínimo alguns de todos aqueles nomes.
O conde, por sua vez, apresentava os filhos, os lugar-tenentes, oficiais, escudeiros, e
sobretudo o Sr. de Bardagne, emissário do rei, que esperava com toda a paciência.
Angélica, que o governador Frontenac mantinha à sua direita, achava-se bem perto do
Sr. de Bardagne quando este apresentou os seus títulos e credenciais, enquanto o Conde de
Peyrac, em poucas palavras, explicava como tivera a satisfação de poder acudir o
representante de Sua Majestade, em apuros no Saint-Laurent.
Afinal, Angélica pôde insinuar-se para junto de Joffrey. Fitou-o, com os olhos
brilhantes. Ele segurou-lhe a mão e furtivamente beijou-lhé a ponta dós dedos.
O que foi que eu disse? — sussurrou-lhe. — Eles ganharam!
Quem ganhou?
Os seus olhos -verdes!
Oh, Joffrey! Bem.que acreditei que tudo estivesse perdido. O que foi aquele
cãnhonaço?
Ainda não sei... Um nervoso qualquer. Talvez um supremo ataque do seu caro
amigo, o Padre d'Orgeval.
Ele não se encontra em Quebec. Desapareceu. O Sr. de Loménie acaba de me
informar....
Ah, realmente!...
Refletiu e sorriu. A«gélica teria jurado que ele não se surpreendera muitcr com a
.notícia.
— Pois é perfeito! Um adversário a menos para conquistar...
O conde '«stava^muito à vontade, divertido.
"O que teria ele tramado agora?", perguntou-se ela. "Quem provocou essa... fuga do
Padre d'Orgeval? Joffrey não aludiu a um espião secreto que estaria a soldo seu, bem no
coração de Quebec?"
Correu os olhos à vplta, interrogando aqueles rostos novos, todos diferentes, mas joviais
e animados. As pessoas estavam ficando loucamente alegres.
Temi por você — continuou Peyrac, aproveitando das conversas cruzadas para
retê-la um pouco perto de si. — O cãnhonaço podia ter tido consequências desastrosas...
Felizmente, na mensagem que me enviou, o Sr. de Frontenac me garantiu que se tratava de
vfm erro lamentável e que, apesar da resposta violenta do Gouldsboro, agora estava tudo
bem.
Sim, sua resposta foi rude — interrompeu Frontenac, que ouvira as últimas palavras.
— Graças a Deus, não houve mortes... Apenas uma casa demolida, a de... No final das
contas, foi bem feito... Eu lhe explicarei...
A cidade parecia liberta de um sortilégio. As crianças se faziam mais ousadas e corriam
por toda parte, bebendo, comendo, desafiando os índios na corrida ou no tiro, vindo admirar
de perto os trajes suntuosos das belas damas e dos belos senhores da Cidade Alta, hoje
descidos até a Cidade Baixa.
Os homens de Peyrac e a gente de sua casa travavam conhecimento com a população e
aceitavam das mãos delicadas das moças um caneco de cerveja, um quartilho de vinho.
Angélica surpreendeu-se ao ver Honorina ir beijar um garotinho entre os pupilos do
seminário. Ficaram ambos de mãos dadas, olhando-se gravemente.
Angélica aproximou-se.
— Por que beijou esse garotinho? De onde o conhece?
Honorina meneou a cabeça.
— Bem sabe que lhe dei um pedaço de açúcar-cândi o ano passado, quando ele foi à
nossa casa, antes de tudo pegar fogo!
Honorina tinha uma memória espantosa para rostos t para tudo em geral. Não era a
primeira vez que Angélica se dava conta disso.
Também ela, agora, reconhecia o pequeno Marcelino, sobrinho do Sr. de L'Aubignière,
que um grupo de iroqueses, que o mantinha prisioneiro há três anos, devolvera aos cana-
denses que os cercavam nas margens do Kennebec, em troca da própria liberdade.
Ele não dizia palavra.
— Você conservou as bolas de gude que Tomás lhe deu? Responda. Agora você fala
francês, não fala?
Mas o menino permanecia calado. Ela, porém, adivinhou que a reconhecia por um
rápido clarão malicioso e desconfiado que lhe cruzou o olhar azul.
Atónita de verem-na ajoelhar-se diante de um dos internos do seminário, e sensíveis ao
quadro que ela oferecia com o grande manto de pele branca, a corola do vestido azul
esparramada à volta dela, as pessoas se haviam aglomerado.
A chegada em massa dos acadianos, que também tinham sido passageiros do
Gouldsboro, provocou uma nova troca de saudações.
— Decididamente, conde, você tocou a chamada dos retardatários — dizia o
governador a Peyrac. — Sem você, começo a entender que muitos dos nossos teriam
encontrado dificuldade para alcançar Quebec no outono. Por causa dos ingleses, a na-
vegação se torna cada vez mais difícil na baía Francesa. Por outro lado, eu ficaria feliz se
me desse notícias sobre um contingente de Moças do Rei, que a Companhia do Santíssimo
Sacramento me anunciou, com grandes recomendações, nos primeiros correios do verão. A
benfeitora delas, a Duquesa de Maudribourg, fretou um navio por conta própria e vinha
acompanhando-as.
Calou-se, fitando, espantado, alguém que estava atrás de Angélica e do Conde de Peyrac.
Por que se persigna,, soldado?
E que o senhor prpnurkiou o nome daquela praga, meu governador — balbuciou voz
engasgada de Ademar, que, escondido atrás de Angélica, cobria-sè de grandes
sinais-da-cruz. — A Maudribourg! Oh, Piedade! Todo mundo sabe que ela era filha do
Diabo!
O conjunto desta declaração confusa se perdeu em meio a um fluxo de palavras
veementes que alguns dos recém-chegados que se encontravam ah se apressaram a lançar
com grande energia, a fim de dissimulá-la.
Finalmente Joffrey teve ocasião de. informar ao Sr. de Frontenac sobre-o destino da
Duquesa de Maudribourg.
De fato senhor governador, os seus.pressentimentos se justificam. O La Licórne, o
navio dessa dama benfeitora, perdeu-se completamente na costa da Acádia. Como me
encontrava nas proximidades, pude socorrer algumas daquelas moças infelizes, mas,
infelizmejite, a duquesa pereceu no naufrágio.
Com os diabos! — bradou Frontenac. — A Companhia do Santíssimo Sacramento
vai me excomungar!
Trouxemos conosco algumas das que se salvaram...
O que farei com elas, agora que a sua benfeitora já não está aqui para mante-las?
O governador relanceou ao redor, inquisitivo.
— Vou pedir a opinião da Sra. de Mercourville. E uma pessoa de bom julgamento,
muito ativa. É presidenta da Confraria da Sagrada Família. Certamente terá uma ideia. De
qualquer maneira, devo reunir o Grande Conselho amanhã, não, depois de amanhã, pois
quero dar-lhe, e à Sra. de Peyrac, tempo para se acomodarem... Depois de uma viagem tão
longa... Tive uma excelente ideia. Ao ver que já não devia esperá-la para esta estação, pus à
sua disposição o solar que eu previra para a Duquesa de Maudribourg, um dos nossos mais
belos prédios...
Cada vez que ouvia pronunciar o nome da Duquesa de Maudribourg, Ademar se
persignava com profusão. O quartel-mestre Vanneau acabou afastando-se e ocultando-o por
trás da muralha de homens do Gouldsboro.Era melhor que não chamasse atenção no seu
uniforme novinho, enquanto não se eliminasse a acusação de deserção que podia pairar
sobre o pobre soldado na Nova França.
Conto por uma reação de conjurações contra a duquesa, o momento pareceu propício
para apresentar os jesuítas. Prevenida de que o Padre d'Orgeval não se encontrava entre
eles, Angélica dirigiu-se-lhes sem apreensão. Não pôde impedir-se, porém, de também se
sentir um tanto decepcionada. Aquele jesuíta, inimigo deles, a quem nunca tinham visto e
que sempre se esquivava no momento do confronto, continua a sendo, assim, um adversário
inquietante. Teria sido bom terçar armas com ele de uma vez por todas, enfrentar "o olhar
azul de dureza de safira" de que Ambrosina falava.
Privado dessa presença, o grupo de jesuítas, apesar de sua expressão de cortesia
distante, não inspirava temor.
Eram cerca de dez.
O superior da comunidade, o reverendo Padre Maubeuge, pareceu a Angélica uma
figura enigmática. Dizia-se que passara longos anos na China, entre os sábios que fundaram
o observatório de Pequim. Talvez fosse efeito da reputação dele, mas não se podia deixar
de ver no religioso, originário da Picardia, uma vaga semelhança com os asiáticos com
quem, durante tanto tempo, ele compartilhara a existência e os costumes.
De uns sessenta anos, talvez mais, estatura mediana, quase calvo, tinha a pele lisa,
ebúrnea, gestos raros, feições impassíveis, mas que às vezes podiam ser iluminadas por um
clarão de humor. A barba grisalha era curta e pontuda. O padre trocou palavras de
boas-vindas com o Conde de Peyrac. A sua forma de polidez e as pequenas saudações com
que pontilhava o discurso completavam essa impressão de se estar lidando com um
mandarim, um homem de raça diferente, estranha à daqueles franceses ruidosos e
turbulentos que se agitavam por ali.
Do breve olhar que ele lhe lançou por sob as pálpebras em-papuçadas, Angélica
conservou a sensação de que fora examinada pelo representante de um mundo misterioso e
inacessível. No entanto, não teve medo.
— Não esquecemos de que lhe devemos a vida de um dos nossos irmãos, senhora —
disse-lhe numa voz tranquila e monocórdia.
Ante o espanto dela, ele se voltou papa outro jesuíta ao seu lado, atarracado e sólido, de
densa bafba negra, em quem ela reconheceu o Padre Masséraí, sorridente e bonachão.
Você, meu padre? Que boa surpresa encontrá-lo aqui! Perdoe-me por não havê-lo
reconhecido antes...
Eu é que lhe rogo excusar-me. Arregalava os olhos e não reconhecia, numa aparição
tão faustosa, a nossa boa anfitriã de Wapassu, a quem devemos não havermos perecido,
transformados em estátuas de gelo, numa noite de Epifania. Demorei em vir saudá-la.
Puseram-se a evocar as lembranças daquele inverno terrível, durante o qual o Padre
Massérat os ajudara a tratar dos doentes.
As Moças do Rei tinham chegado com Iolànda e Querubim, e o séquito de passageiros
do Saint-Jean-Baptiste a quem os homens de Peyrac tinham tirado-do apuro à entrada do
rio Saint-Laurent.
De longe Angélica os viu apresentarem as jovens aos amáveis canadenses com quem
tinham travado conhecimento e que mandavam servir-lhes de comer e beber, tentando
animá-las e alegrá-las.
Estavam em Quebec, não havia mais dúvida! E chegara o momento de ver como se
resolveria toda uma multidão de pormenores, cuja proposição não era simples.
O que fazer, entre outras coisas, do infeliz inglês de Con-necticut, Elias Kempton,
capturado pelo capitão do Saint-Jean-Baptiste no golfo Saint-Laurent? Não o mostrariam
por enquanto, pois seria preciso evitar que ele fosse aprisionado como inimigo dos
franceses e vendido como escravo aos índios ou a uma família piedosa, incumbida de
convertê-lo ao catolicismo.
Angélica soltou uma pequena exclamação. Aqueles canadenses, com as suas bebidas
explosivas, tinham-na feito esquecer o gato.
Não tema nada — afirmou Ville-d'Avray. — Repito-lhe que ele está em boas mãos.
Quando Janine Gonfarel adota alguém, pode-se contar com ela.
Janine Gonfarel! — repetiu Angélica. — Não quer dizerque... que... aquela mulher
grandalhona que interferiu... Mas tinham-nos dito que ela era hostil a nós e muito devotada
aos jesuítas...
— É fato... Mas é de crer que gosta de animais. Bem que ela gostaria que lhe atirassem
pedras, em você, não em seu gato... Tranqúijize-se! Tranqiiilize-se — insistiu o marquês,
vendo que Angélica empalidecia. — Garanto-lhe que ela tem o coração terno. É temida,
aterroriza meia cidade com o seu rebuliço e o seu tom autoritário. Não passa um dia sem
que suba ao Castelo Saint-Louis ou ao prebostado ou à casa do intendente para queixar-sè
disto ou reclamar daquilo. Mas fique sossegada pelo seu gato. Será cuidado e mimado!
Pense que ela é dona da taberna Navio de França, um lugar onde se come divinamente.
Tranqúilize-se, estou dizendo! É uma excelente mulher! Gosto dela como de uma irmã...
Apesar dos protestos do marquês, Angélica sentia mais uma vez a sua alegria
conturbar-se com uma preocupação interior maldefinida. A intervenção do virago não
deixara de confundi-la, e, agora que sabia que se tratava de Janine Gonfarel, a revelação de
uma pessoa desfavorável à vinda deles mais a preocupava do que a acalmava.
Mas foi-lhe impossível anuviar-se em meio a tamanha agitação e alarido.
Os sons carrilhonantes de um dobrç de sinos alçando-se de súbito pelas alturas da
cidade e rolando até eles, a despertar os ecos das falésias, vieram somar-se ao tumulto.
— O te-déum! — exclamou o governador. — E o senhor bispo que nos aguarda há
horas no átrio da catedral!
Não faltava mais nada!
CAPÍTULO XI
CAPÍTULO XII
O te-déum
Fazia anos que Angélica não assistia a um grande ofício do ritual católico.
Correra matas e mares, mulher de aventuras, repudiada pelos seus.
"Como é estranho!", disse consigo.
Nuvens de incenso começavam a escapar de uma dezena de incensórios de prata e prata
dourada, balançados, levantados e baixados a um só tempo por jovenzinhos de sotaina
vermelha ou preta. No hemiciclo do coro, os oficiantes subiam e desciam os degraus do
altar, indo e vindo nas preces preliminares, virando-se, benzendo, saudando-se,
segurando-se mutuamente, com grandes movimentos de braços, as capas de gala
rebordadas de flores suntuosas em fios de seda de todas as cores, mesclados de fios de prata
e ouro.
Atordoada por esses movimentos èncantatórios e pelo desfraldar dos órgãos, Angélica
embarcou num devaneio no qual fiapos de recordações, reflexões risíveis, rostos
inesperados se impunham a ela sem que conseguisse entender por que seu pensamento se
punha a vagabundear. Ainda assim, mantinha-se muito ereta, com os cotovelos apoiados à
borda do genuflexório e as mãos postas na atitude, logo recordada, que lhe fora prescrita na
juventude pelas ursulinas de Poitiers. Maços de velas fosforescentes, cravadas em bandejas
de cobre e dispostas dos dois lados do santuário, bem como nas capelas laterais do
transepto e da abside, círios enormes fincados em procissão em castiçais de ouro
desprendiam um forte calor e uma claridade ofuscante. O atoma adocicado das ceras
preciosas misturava-se ao do incenso. A éssá luz. móvel e dançante, os motivos exuberantes
das esculturas do tabernáculo e do retábulo pareciam dilatar-se e inflamar-se em bolas, em
bolhas de ouro. Frutos em penca, flores em guirlanda, mísulas, volutas, volteios,
defumadores, ostensórios, representações do Bom Pastor, do cordeiro ou do pelicano
eucarístico — tudo isso se movia ao sabor do clarão das .chamas. As estatuetas de santos
esculpidas em madeira.saíam dos nichos emoldurados de colunatas, as conchas dos
embrechados se abriam, o domo do coroamento-se intumescia, enquanto de cada lado
cintilavam os vidros de-cristal de dois'relicários.
Toda a cena lembrava a Angélica os anátemas do Reverendo Patridge, pastor da Nova
Inglaterra, vociferando: "Os papistas professam uma religião babilónica e fanática!" Fora
com ele que o Padre de Vernon, jesuíta, se batera até a morte.
Angélica levantou a cabeça para examinar os jesuítas, que se mantinham em pé, em
duas fileiras, junto às estalas de madeira lavrada do coro.
Sempre de batina preta, mas sobre a qual vestiam, para assistir ao ofício, uma
sobrepeliz branca. Os rostos glabros ou barbudos, igualmente serenos e frios, emergiam da
gola dura de abas arredondadas que lhes dava o-ar de príncipes espanhóis e que eles deviam
ao fundador da ordem, o grande Inácio de Loyola.
A reunião deles lhe pareceu um conselho de lobos, prudentes e graves, desconfiados
talvez, mas por ora contidos por alguma injunção misteriosa que os tornava inofensivos e
quase amistosos.
Angélica censurou-se por esses pensamentos irreverentes. Não eram inimigos. Eram
uma força que, em certos aspectos, se assemelhava à deles próprios.
Notou as mãos de um jovem jesuíta segurando o livro de orações. Na esquerda faltava o
polegar, e dois dedos, que deviam ter sido enfiados num cachimbo iroquês aceso, estavam
roídos até a altura da falange, tal e qual os de um leproso. Na outra mão, a ausência do
médio abria uma brecha. A barba pontuda, curta e castanha, cuidadosamente aparada,
emoldurava um rosto quase juvenil. Mas. ele já estava careca. Calvície natural, acentuada
por uma chaga cuja cicatriz rosada cobria a metade do crânio. Notava-se então que também
lhe faltaya a metade da orelha esquerda, cortada. Mártir ontem, hoje cantando o te-déum na
catedral de Quebec, ele não parecia haver guardado a recordação dos suplícios que lhe
valeram as mutilações. Tinha um grande ar de inocência e doçura. Angélica lembrou-se do
nome pelo qual lhe fora apresentado: Padre Jorras.
Ela pensava no Padre de Vernon, com quem viajara no Whitt Bird e que fora morto
pelos murros do pastor inglês.
"Oh, meu amigo! Por que você morreu? Veja, estou em Quebec, conforme me pediu..."
Afundou a cabeça entre as mãos, esforçando-se por ressuscitar os traços ora vagos do
rosto apagado, tentando decifrar o segredo que algumas vezes tivera a impressão de ler nos
olhos dele.
"Ele me amava!", pensou. "Tenho certeza de que me amava."
Absorta nesse diálogo mudo com um fantasma, perdera a noção do tempo escoado e
quase do lugar onde se encontrava.
A intensidade da meditação em que estava mergulhada acabou por surpreender, depois
impressionar e finalmente pasmar a assistência.
Todos os olhos estavam fitos na nuca loura daquela fidalga, tão humildemente
prosternada ao pé do altar.
Naquele momento, não se tratava apenas de uma atitude.
— Será que ela é devota? — cochichou a Sra. de Mercour-ville ao ouvido da vizinha,
Sra. Duperrin. — É o que faltava! Confesso que já não entendo nada... Afinal, o que não
nos contaram sobre essa gente!... Que eram ímpios, hostis à Igreja! Que não ergueram a
cruz! Que sei eu! Ah, minha cara! Em quem se há de acreditar agora...
CAPITULO XIII
CAPÍTULO XIV
UM PESADELO
CAPÍTULO XVI
Da missivista ao príncipe das trevas, os estranhos, bizarros personagens dos
bastidores de Quebec
Na calada da noite, a Srta. Cleo d'Houredanne escreve uma carta à amiga distante,
Maria Gabriela, viúva do Rei Casimiro V, da Polónia, alcunhada de Bela Herborista.
A época dos. navios já passou. A missiva só partirá depois que os meses de inverno se
tenham escoado e que a primavera, libertando õ rio deis gelos, traga os navios de volta da
França. Mas a Srta. d'jiouredanne enganará a demora da espera redigindo essas epístolas
que, para ela, são como que diálogos lançados por sobre os oceanos.
Uma a uma, ela as alinhará num cofrinho reservado apenas para essa finalidade.
"Caríssima,
Mudei a minha cama de posição.
Agora, do meu canto, vejo muito bem a casa nova que Ville-d'Avray mandou construir
na borda da concessão dos Counat-Banistère, pois a partir desta tarde, ao olhá-la, terei
outros temas de distração além de me amofinar com a vista do pomar e do rio, que conheço
de cor.
Uma pirata suntuoso atracou sob os nossos muros e, como tomara previamente o
cuidado <le capturar o Sr. d'Arreboust e o senhor intendente, não se pôde fazer outra coisa
senão recebê-lo de modo igualmente suntuoso.
Eis a feliz conclusão de um caso de que já lhe falei.
Trata-se daquele cavalheiro francês, aliado da Nova Inglaterra, cujo estabelecimento no
sul de nossas possessões, nos confins da Acádia e do Canadá, causou-nos alarme. Quiseram
considerá-lo inimigo e houve várias campanhas contra ele.
Soube-se que ele tinha uma mulher belíssima. E a emoção chegou ao auge quando uma
de nossas ursulinas, Madre Madalena, que é vidente, fez a respeito deles uma predição em
que o Diabo parecia envolvido. Despacharam-se inquiridores, que trouxeram de volta
opiniões tranquilizadoras. Os espíritos serenaram.
O anúncio de que eles viriam a Quebec para fazer propostas de paz reacendeu a querela.
O Padre d'Orgeval, que preside aos destinos religiosos da Acádia, chegou acusando-os
de haverem entravado sua campanha de guerra contra os hereges da Nova Inglaterra. __
Isso causou grande alarido, e a opinião pública dividiu-se. A aproximação da frota,
anunciavam-se as piores calamidades, e hasteou-se a bandeira de Nossa Senhora, para
salvar a cidade.
O feiticeiro da Cidade Baixa contou que viu cortarem o céu as canoas em fogo da
chasse-galerie. Trata-se de uma lenda em que acreditam de bom grado todos os que vêm do
oeste da França. É sinal de infelicidades iminentes.
Depois, de modo bem misterioso, esse virulento jesuíta desapareceu, coisa que
desconcertou seus seguidores.
Frontenac, de seu lado, resistiu. Sempre foi a favor deles. Comprometeu-se com este
caso a ponto de enviar, neste verão, várias missivas ao rei, tratando do assunto,
demonstrando-lhe as vantagens que teria a Nova França estabelecendo boas relações com
esse poderoso vizinho que dizem ser fabulosamente rico.
Na expectativa de uma resposta que ele espera aprovadora e benévola, o governador
jogou a cartada da acolhida e da amizade. Tanto mais que o Sr. de Peyrac e ele são da
mesma província do Languedoc, e todos sabem que os gascões se apoiam entre si.
Assim vai o mundo!
Aqui entre nós, no Canadá, somos bem gulosos de acontecimentos novos e de
distrações.
Os espíritos desgostosos foram afastados e preparou-se tudo para receber o Sr. e Sra. de
Peyrac.
Minha cara, é árduo exprimir-lhe a alegria das pessoas com essa chegada tão temida.
— E eu não invento nada.
A Sra. de Peyrac possui a virtude das rainhas! A de fascinar com a mera presença!
Ela caiu tão prontamente nas boas graças de todos, que é inacreditável!
Esperavam-na no cais desde o alvorecer, e a cidade inteira estava pronta a ali passar o
Advento, caso ela não houvesse desembarcado, o que aconteceu hoje.
Segundo o julgamento do Sr. de Magry, ela é de uma beleza de incendiar o mundo.
Decididamente essa mulher é uma feiticeira. Não entrará-em minha residência."
"Carlon também não veio mever, embora esteja de regresso. Mas hei de perdoar-lhe,
pois você sabe que tenho um fraco por ele.
A cidade inteira estava na rua.
Jessy, a inglesa, correndo até lá embaixo no prado para avistar esses navios que a tola
imagina que vêm libertá-la, deixou a cadela escapar. Foi uma dificuldade apanhá-la e
fazê-la entrar, principalmente porque ninguérn apareceu para ajudar. Eu poderia ter morrido
enfiada na cama e ninguém se teria preocupado. Felizmente, nestes dias que precedem o
inverno, bebo uma decocção de raízes que me dá forças.
O senhor conselheiro Magry de Saint-Chamond teve piedade da minha solidão e me
visitou.
Seja como for, você me conhece: não vi nada, mas soube de tudo.
Ouvi um tiro de canhão, só um. Não queria dizer nada, parece.
Foi Sabina de Castel-Morgeat quem o disparou, na sua raiva de ver recebidas em
Quebec personagens que ela considera inimigas da Nova França e sobretudo do seu caro
confessor, o Padre d'Orgeval. Esse jesuíta que a governa fá-la comungar todos os dias. Bom
Deus! Que profanação! Mas eu me calarei, pois dizem-me que a hostilidade para com
Port-Royal e os jan-senistas não é bem-vista pelo rei..."
Cleo d'Houredanne suspende o relato e fica com a pluma no ar. Não vai começar a
discorrer sobre Port-Royal, ou não acabará mais.
"O Sr. de Peyrac fez-se acompanhar de Santa Perpétua, mártir. O bispo foi apanhado de
surpresa. Bem que gostaria de agastar-se, mas o anúncio de uma relíquia tão santa e das
suas autênticas levou-o a empregar toda a sua pompa.
Eu lhe direi, no entanto, que as senhoras da Santa Família passaram uma grande
vergonha por causa de uma delas, Sabina de Castel-Morgeat. Não tanto por aquele tiro de
canhão, gesto que 'não carece de ousadia, mas em seguida, intimada pelo marido a assistir
ao te-déum, ela se vestiu de preto, para ostentar luto por aquele dia, cobriu o rosto com
alvaiade e pintou os lábios de vermelho-sangue, de modo que estava medonha como más-
cara de Quaresma. Enfim, um verdadeiro escândalo! A Sra. Dau-brun, que é tão meiga e
bondosa, chorou por isso. Sabina acredita que tudo lhe é permitido e, com a sua atitude
extremada, suscitou uma onda de simpatia por aquela a quem desejava insultar, a bela Sra.
de Peyrac, que não pareceu fazer caso de tantas provocações da parte de Sabina e
mostrou-se amável."
A mão descarnada e tremula do velho Pedro Maria Loubette avança e consegue pegar
com dificuldade a tabaqueira de lata pousada sobre um tamborete à sua cabeceira.
Merda de vida! A tabaqueira está vazia!
Ele torna a cair sobre os travesseiros e friorentamente puxa até os ombros a coberta, que
escorregou, mas que ele não consegue ajeitar muito bem. A febre o sacode de tal modo, que
ele se descobre, mais do que se volta a cobrir, e ao cabo de um instante sente-se ardendo e
vermelho como o fundo de um caldeirão de ferro sobre o fogo.
Merda de vida! O que teria ele feito do tabaco, caso houvesse encontrado três talos?
Teria mascado um pouco. Fumar? Fora de cogitação.
Assim que começa a acender o velho cachimbo, quase tão velho quanto ele, e aspira
uma baforada, põe-se a tossir a ponto de sufocar, e cospe sangue.
Mascar? Ainda pode. Conservou os dentes, dentes quase tão bons quanto os dos índios,
sadios, sólidos. Foi quase tudo o que conseguiu conservar ..O resto foi-se: as forças, os
escudos, os amigos. Coisas que acontecem. Principalmente aos veteranos dessa merda de
colónia. Ninguém mais aguenta veteranos por aqui. Cansaram-se de vê-los. Devem-lhes
demasiado. Preferem esquecê-los. O dia inteiro aqueles sinos malditos lhe martelaram a
cabeça. Bléim, blom, bléim, blom! E de novo! E de novo! E por acaso houve uma alma
caridosa para vir dizer-lhe o que estava acontecendo e o que foi que significou aquele único
canhonaço? Porque...não foi alucinação! Dispararam o canhão!
Mas ele vai permanecer curioso. A cidade inteira sumiu, como uma revoada de
estorninhos.
Todo mundo desceu, para receber os estranhos. Ele ficou sozinho sobre aquele rochedo
infeliz, quase como no tempo em que era criança e subia até ali por um sendeiro de cabras.
Quem acreditaria que a praça principal pavimentada da Cidade Alta, onde, hoje, as
senhoras gostam de passear, foi aquela clareira à sombra de grandes árvores por "onde,
desde os seis anos de idade, ele perambulava, com uma faquinha na mão, à procura de
aspargos silvestres ou brotos de fetos que despontavam da terra úmida e que ele levava para
a mãe, para que ela os misturasse à sopa da família?
O riacho que atravessa a praça descia por entre o mato alto. Ali ele mergulhou os pés
descalços de pequeno normando, levantando os olhos para a fronde das grandes árvores da
América. Ali onde se ergue a catedral, ele entalhou uma flauta, encostado às raízes de um
carvalho. Da grande floresta original, restam apenas, no promontório, pequenos trechos e
parques rodeando as propriedades construídas: o mosteiro das ursulinas, a casa e o colégio
dos jesuítas, o seminário e o bispado, a Santa Casa. Afora essas grandes construções em
suas ilhotas de verdor, tudo são ruas abertas, ladeadas de casas. E ouvem-se as carruagens e
as charretes trepidar sobre o calçamento, o ruído dos cascos ferrados dos cavalos...
Naquela época, no tempo de sua infância, há quase cinquenta anos, ao pé do rochedo
não havia mais do que duas ou três famílias de colonos. Não havia mais que um punhado de
crianças francesas, sendo criadas como uma ninhada de cercetas selvagens à beira do rio
perdido...
Seis a sete mulheres:e, entre elas, Helena Boullé, vinte anos, esposa do Sr. de
Champlain-e suas três acompanhantes.
A fina Helena Boullé, dê vestido branco e com o espelhinho ao pescoço. Os índios,
vendo-se refletidos ali, enterneciam-se de que ela "os guardasse assim no coração".
Todo mundo se alojava na habitação que o Sr. de Cham-plain construíra na margem.
Um verdadeiro castelinho de madeira, em sólida carpintaria, com três corpos
residenciais, um vasto paiol, um pequeno pombal e, no segundo andar, sob o telhado
inclinado com altas chaminés, um .balcão circular, que permitia às sentinelas vigiar o
horizonte imenso. Ao redor, um grande fosso flanqueado por Qma ponteJevadiça e vários
canhões assestados em locais estratégicos. A habitação, onde todos se amontoavam, no
começo, quando chegava o inverno, quando os iroqueses ameaçavam — colonos,
comerciantes, intérpretes, soldados. Mantinham-se aquecidos. A falésia a que se
encostavam suspendia-os acima da cabeça das gigantescas franjas de galo.
As marés de outono roíam as estacas.
Para comer, no inverno, sempre farinhas e salgados da companhia, cidra picada como
nos navios, alguma caça trazida pelos índios ou apanhada em armadilhas.
O cheiro das peles inebriava. O mal-da-terra — o escorbuto — deixava as carnes
flácidas, á"pele pálida, sangrava as gengivas.
Luís Hébert, o boticário, tratava disso com uma decocção de mirtilos secos. Os
algonquinos traziam suas medicinas misteriosas.
A noite faziam-se orações em conjunto e, no domingo, durante as refeições, lia-se a
vida de santos.
Num ano em que os navios trazendo víveres da França foram capturados pelos ingleses,
houve fome. Péssimas as colheitas daqueles colonos que mal sabiam manejar a enxada!
Nenhuma reserva para o inverno. Morte certa sem remédio.
O Sr. de Champlain embarcou os seus franceses em três barcas e foram todos pelo
grande rio São Lourenço, pedindo piedade aos selvagens.
Foi assim que se salvou a pequena colónia. Pela caridade dos selvagens. Algonquinos,
montanheses, nómades dispersos sob suas wigwams_ de pele, ou huronianos sedentários em
suas aldeias de opulentas casas de casca de árvore, bem providas de milho comido, uns e
outros aceitando receber um homem, ou uma criança, ou um casal com um bebé, a fim de
repartir com essa boca suplementar a tigela de sagamité, o cozido de milho, ou as reservas
de peixe seco ou carne defumada.
Uma caridade exemplar, pois para cada família ou tribo isolada, no inverno inclemente,
uma boca suplementar pode ser a causa de sua ruína, se a primavera demorar a chegar.
Foi assim que eles, pouco a pouco, foram se abrigando ao longo do rio.
No fim restava somente uma barca, em que estava ele, com seus onze anos de idade, e o
amigo Tancredo Beaujars, de treze anos, junto com a irmã, Elisabete Beaujars, de dez anos
— os três espremidos sob uma coberta, sem ousar mover-se, tanto o frio e a fome os
torturavam.
O próprio piloto, Eustáquio Boullé, cunhado do Sr. de Champlain, estava tão fraco, que
já não tinha forças para içar a vela, mal podia manejar o leme.
A barca seguia como um navio fantasma, descendo rumo à embocadura polar, entre os
rios Labrador e Gaspé.
Os gelos começavam. Na junção com as águas salgadas, adquiriam transparências
verdes e azuis que cintilavam no nevoeiro. As altas falésias de cristal pareciam povoadas de
demónios. As crianças ficavam cada vez mais tristes. Tinham a impressão de que estavam
destinadas a errar pelo limbo para sempre. Quando atracavam, encontravam praias desertas
e já não tinham forças para saictfà procura das aldeias. Sugavam cascas de árvore, divi-
dindo entre si um último naco de biscoito.
Para o lado do Gaspé, um chefe algonquino aceitou acolher as três crianças. Eustáquio
Boullé foi em frente.
Nas cabanas, havia fumaça, havia insetos, mas fazia bom tempo. Sepultada sob a neve,
a vida nas aldeias índias, no inverno, não é nada diferente da dos animais metidos no fundo
de sua toca. Os homens se enroscam ao abrigo das tempestades, dormem, comem e fazem
muitas coisas agradáveis para esquecer as ameaças exteriores.
Ao rememorar a temporada em Gaspésia, Pedro Loubette se pega sorrindo.
Pouco envergonhadas como eram da natureza, aquelas selvagens, as adolescentes e
mesmo as moças, não levaram muito tempo para se sentirern curiosas- acerca dós dois
belos rapazinhos de raça estranha: '
A essa lembrança, ele ri e gargalha e tosse, tosse até que o sangue venha macular o
pano que ele levou à boca.
Merda de vida! Foi toda a fumaça que respirara e todo aquele frio inumano que, a longo
prazo, lhe queimaram o interior. Mas não podia lamentar-se.
Por um instante se reviu, sujeitinho robusto e vigoroso, todo surpreso com o próprio
prazer, debatendo-se sob as peles com a bela índia de corpo liso que ri, dá-lhe beijinhos,
acaricia-o, faz-lhe cócegas, provoca-o, lambe-o, enrosca-se nele como um cãozinho e o faz
estourar jde, riso.
Bons tempos!
E como querer, após uma infância assim, que alguém se acostume com essa cidade
cheia de casas, lojas, entrepostos, igrejas e bordéis, que alguém se habitue a essa
miscelânea de récem-chegados do Velho Mundo, ralé rapinante ou clérigos iluminados que
excomungam por um nada, grão-senhores em rendas cujo exílio sanciona algum crime ou
malversação, ou pias benfeitoras desembarcando com todos os seus móveis, tapeçarias e os
quadros de todos os santos, funcionários de dentes compridos, grandes jesuítas prometidos
ao martírio, emigrantes famélicos, soldados pasmos, oficiais pretensiosos que caminham
como ursos pela vereda da guerra — toda aquela gente que só tem em comum a ávida
esperança de fazer um pé-de-meia com as peles?
Naquela época os carvalhos da floresta da América não pertenciam ao rei da França,
conforme se decretou um belo dia, e os bravos colonos do Canadá podiam entalhar belos
móveis para si, como o seu guarda-louça com desenhos em "pontas de diamante". Tudo o
que lhe resta. O Sr. Marquês de Ville-d'Avray bem que o cobiça, mas não haverá de tê-lo.
Parece que os estranhos chegados hoje se instalaram na casa dele, no alto daquela rua
mesma. Pedro Loubette ouviu passar todo um grupo ruidoso. Gritos! Chamados!
Dava para acreditar que naquela época tudo era tão grande, calmo e deserto no Canadá,
quando a esta hora da noite ouvem-se vozes e bêbados que fazem arruaça na rua, logo ali na
frente da sua casa? Uma nesga de luz passou pelos quadradinhos de papel oleado de sua
janela. Foi a porta da taberna Sol Levante, que abriu para -deixar entrar um bebedor
titubeante, e fechou.
Madre Madalena, a jovem ursulina visionária, não consegue dormir nem repousar.
Deixou em vão a desconfortável enxerga de palha de aveia, fechada numa daquelas alcovas
rústicas de abeto, que no Canadá chamam de cabanas e onde se pode cochilar ao abrigo das
correntes de ar, depois de cerradas diante da abertura as cortinas de sarja verde.
Foi em vão que se ajoelhou sobre o frio lajeado da cela, visando ao olvido de seus
tormentos pela virtude da prece e da mortificação.
Então, batendo a pederneira, encaminhou-se de candeia na mão até a oficina de
douramento.
Longe, na claustro, chora uma criança, uma das pequenas pensionistas que as religiosas
criam sob os olhos de Deus. A noite está opressiva, até as crianças estão agitadas...
Ela agora está no meio da oficina, e se acalma de novo a observar o quadro dos pacatos
trabalhos a que se dedicam ela e suas irmãs, enquanto os dias passam, ao som argentino dos
sinos, marcando as horas cheias de fervor e devoção que as levam da capela, onde se
realizam os ofícios, às classes eaos dormitórios das crianças, e as conduzem até ali, onde,
pelo seu talento na difícil arte do douramento, elas produzem alguns bens para sua
comunidade.
A estrela de uma lâmpada tremula ao fim do corredor. Uma religiosa mais velha se
encontra agora à soleira da porta.
Minha, irmã Madalena, o que está fazendo? Vejo que falta gravemente à disciplina
monástica, não empregando para reparar suas forças estas horas preciosas da noite, que nos
são concedidas pela misericórdia divina, sabendo como somos fracas para a tarefa que
temos a cumprir.
Madre, perdoe-me! Este dia, embora o tenhamos vivido por trás dos muros do nosso
claustro, foi uma provação para nós. Chegou até nós seu eco. O que nos traz a chegada
desses estrangeiros? Tormentos ou paz? Deverei ser confrontada com essa mulher tão bela
em quem alguns acreditaram reconhecer a que me apareceu sob os traços de um demónio
súcubo? Minha carne se arrepia somente em evocá-la. Vou reconhecê-la? Que
responsabilidade pesada a minha! E o Padre d'Orgeval já não está aqui para sustentar minha
fraqueza! Para defender-me, caso necessário! Ora, à minha angúgtia vem somar-se outra.
Nesta noite mesma o Padre Bréboeuf, mártir dos iroque-ses, acaba de aparecer-me em
sonho. Suplicava-me que me levantasse e me pusesse a orar para obter a conversão de um
feiticeiro que age nesta cidade.
Disse-lhe o nome?
Madre Madalena meneia a cabeça, negativamente.
Não! Apenas me recomendou que rezasse, rezasse muito, e prometeu-me que os
demónios não me inquietariam durante esse tempo, e seriam impedidos de intervir.
Deus seja louvado! Pois venha, então, minha irmã. Ponha sua capa de coro. Vai soar
a hora em que devemos nos dirigir à capela para entoar as matinas. Gosto desse ofício em
que somos incumbidas de orar na noite em que se engendram tantos crimes. Nesta noite,
mais do que em qualquer outra, nosso cânticos guardarão Quebec.
Uma atrás da outra, levantando bem alto as luminárias, as duas religiosas deixam a
oficina, seguindo pelo frio vestíbulo que conduz à igreja.
Da capela das ursulinas, os cantos salmodiados se elevam na noite. Vogam até a grande
e bela residência dos Mercourville, vizinha ao mosteiro.
Uma leve música de câmara na casa do Sr. Le Bachoys, que tem quatro filhas, três
filhos, uma mulher gorda e quadrada, de cara vermelha, olhos incrivelmente azuis, a qual
recebeu o dom de agradar a todos os homens e que o engana a três por dois.
Na realidade, apresentada desse modo, a coisa não permite uma avaliação exata da
situação. Pois, neste caso, o marido enganado antes surge como um privilegiado. Pois,
afinal, ele tem a vantagem de possuir, sobre esta mulher em cujos braços tantos homens
aspiram ver-se um dia, inalienáveis direitos de amor, que pode usar quando lhe dê vcmtade,
ou seja, com mais frequência do que os rivais. Daí o rancor e o ciúme que estes lhe
dedicam. Daí a constância de seu caráter e a serenidade com que ele carrega seus cornos.
Como o sentem vitorioso nessa história, faz muito tempo que todos perderam o gosto por
rir às suas custas. Seu prestígio e autoridade antes se reforçam com esse estado de coisas. É
a eminência parda de Quebec. Antigo supertintendente da Companhia das índias
Ocidentais, conserva o controle sobre quase tudo o que se comercia no país.
No momento, joga bilhar com o Sr. Magry de Saint-Chamond. Esfrega com resina a
ponta do curto taco achatado, recurvado na extremidade, de que se servirá para empurrar as
bolas, O bilhar ainda não passa de um jogo de malha de salão. Comporta uma quilha, que
não se deve derrubar, e um arco.
O Sr. Le Bachoys corre o olhar pensativamente pelos convidados. Está ali o Sr.
Gualberto de La Melloise, cabelos bran-cos, elegante. Está "Romano de L'Aubignière, que
vem cortejar-lhe a filha mais nova, Maria Adélia. Esta está sentada diante do virginal, um
instrumento musical que se assemelha à espineta ou no cravo, mas de som mais delicado e
que ela toca muito bem. Também há dois violinos e um oboé.
A filha mais velha encontra-se ausente. Não quis aparecer o dia inteiro e manteve-se
fechada no quarto. Durante muito tempo considerou-se noiva do Tenente de Pont-Briand,
que dizem ter sido morto em duelo por aquele gentil-homem do sul, o Sr. de Peyrac. A filha
não se consola. Decidiu que não se casará.
Esperemos que a mais nova tenha mais sorte.
De vez em quando Maria Adélia se volta para Romano de L'Aubignière e procura
atrair-lhe a atenção.
Mas o jovem senhor está distraído. Aconteceram muitas coisas naquele dia. Romano, o
explorador de bosques inveterado, o guerreiro fanático, sempre pronto a seguir o Padre
d'Orgeval nas expedições punitivas que ele empreendia contra a Nova Inglaterra, não se
sente muito à vontade ante a perspectiva de rever o Sr. e a Sra. de Peyrac. Congratula-se
pelo fato de os acontecimentos se terem revelado da melhor maneira possível para ele e
para todo mundo. Há poucos dias não se podia esperar tanto.
Quando correu o boato de que as canoas da chasse-galerie foram avistadas acima de
Quebec, a partida parecia perdida para os estrangeiros do Maine. O terror começava a
tomar conta da população..
Um vento de pânico soprava sobre a cidade. As mulheres se descontrolavam. Elas são
instrumentos dóceis entre as mãos dos padres, e o Padre d'Orgeval parecia vitorioso.
Depois, de repente, sumiu.
E a má febre serenou como que por encanto.
E agora Três Dedos de Trois-Rivières, como o chamavam, não pode deixar de fazer
perguntas a si mesmo e de se atormentar.
"Onde está ele? O que é feito dele? Que força pôde convencer o jesuíta a sair da cidade
nomomerítqjfo confronto, quando a cidade estava pronta a segui-lo e a desferir um combate
encarniçado contra 'o invasor'? 0 Sr. de Castel-Morgeat ia segui-lo, repetindo que seus
paióis-xlépólvora estavam cheios e suas armas, bem assestadas. Começava-se -a cavar
trincheiras e a levantar bastiões de defesa com sacos de terra. Ele desapareceu... Tê-lo-ão
raptado? Assassinado? Aonde foi? Que rota tomou, perseguido pela necessidade de
sacrifício e de domínio? É tão pouco próprio dele esquivar-se assim'diante do combate!...
Onde estará preparando suà vingança?"
No entanto,..chegou um rumor aos ouvidos do explorador de bosques: diz-se que d
jesuíta retornou às missões iroquesas.
Se for verdade, e loucura pura!
O Sr. de L'Aubignière contempla as mãos de dedos decepados ou calcinados. Uiíi
polegar quase reduzido a cinzas no fornilho de um cachimbo. Um indicador lentamente
serrado com o fio de uma concha. E pensar que aqueles bárbaros não o consideravam seu
pior inimigo...
Se o Padre d'Orgeval retornar para junto dos iroqueses, estará perdido. Hão de fazê-lo
perecer em meio aos mais abomináveis tormentos.
Enterrado numa funda poltrona, embalado pela música agradável, o Sr. Gualberto de La
Melloise junta as pontas de seus dedos enluvados, e indaga condigo o que deve pensar
acerca da loucura daquele dia.
Sem estar expressamente do lado dos jesuítas, não pode deixar de deplorar sua derrota.
A introdução, na cidade, de franceses audaciosos que, por mais generosa e agradavelmente
que se apresentem, não deixam de ser fora-da-lei — e há que esclarecer o fundamento dos
relatos que correm sobre eles — não vai perturbar gravemente o equilíbrio moral e
económico, um decorrente do outro, aliás, e que já é bem instável na cidade?
O Sr. Gualberto de La Melloise é devoto. Pertence à Confraria da Virgem, à da Sagrada
Família, e conserva solidamente em si as marcas da Companhia do Santíssimo Sacramento,
a que aderira outrora.
Estima, assim, que neste caso o Sr. de Frontenac excedeu os próprios direitos em
matéria de política e resolveu bem levianamente carregar os ombros dos seus
administradores com um fardo pesado demais: o da tentação do luxo e da dissipação, que os
reeém-chegados trarão consigo, não é um dos mais árduos de rechaçar?
O Sr. Gualberto de La Melloise promete a si mesmo esclarecer muitas coisas. O que se
fará, por exemplo, daquelas Moças do Rei, cuja benfeitora desapareceu, afogada, ao que
diz? Mas o faro adquirido por uma longa prática de espionagem virtuosa, que têm os
adeptos da Companhia do Santíssimo Sacramento, adverte o Sr. de La Melloise de que há
algum segredo dissimulado por trás das explicações apresentadas. Lamenta amargamente
que a Sra. de Maudribourg não tenha vindo para Quebec, pois tinha-lhe sido expressamente
recomendada por uma missiva de Paris, diziam-na muito rica, e, por impulso do Padre
d'Orgeval, de quem ela fora penitente em Paris, ele próprio interferira na instalação dela.
Aquela dama se anunciava como uma aquisição de categoria.
O solar de Montigny, na vertente norte da colina Sainte-Geneviève, requereu o verão
inteiro jo cuidado de pedreiros e carpinteiros, e dos tapeceiros, para o mobiliário. E eis que
a rica benfeitora não vem e, cúmulo da ironia, alojam ali o Sr. de Peyrac, a quem o Sr.
Gualberto de La Melloise, na qualidade de membro da Companhia do Santíssimo
Sacramento, combateu o melhor que pôde.
Nesse passe de prestidigitação há habilidades inquietantes. O Sr. Gualberto toma a
resolução de permanecer muito vigilante, pois o bem deve triunfar.
Com um gesto que lhe é costumeiro, alisa as pregas das luvas sobre as mãos, que tem
belas e delicadas. As luvas são cor de malva e exalam um perfume de violetas. Casam à
perfeição com o formato da palma e dos dedos.
Luvas são a vaidade do Sr. Gualberto. Possui inúmeros pares, de matizes e aromas
diferentes. O índio esquimó do Velhaco Vermelho as curte para ele em peles de aves, o
capelista da Rue Sainte-Anne as costura, e quem as tinge são dois prisioneiros ingleses,
cativos dos huronianos em Loreto, que possuem o segredo das tinturas. Ele ofereceu um par
do mais belo encarnado ao Sr. Martim dArgenteuil, quando soube que aquele soberbo
gentil-homem joga péla com o rei. A fineza daquelas luvas se iguala à da mais fina sedare
protege melhor.
"Depois de depenada a ave é retirada a pele com toda a delicadeza, parece que o
esquimó abocanha o que sobra do animal e tritura bico,, ossos e patas^com. seus dentes
afiados em ponta. 'Esquimó' não significa 'comedor de carne crua'?"
Embora a noite vá bem avançada, continua-se a jogar cartas e dados nas mesas de jogo
e a tacar as bolas de bilhar. Os músicos e os seus ritornelos dispensam a conversa.
Fumam-se daquelas folhas de tabaco enrolado que o Sr. de Peyrac distribuiu profusamente.
Esses "charutos", conforme ele os chama, têm, com o gosto do tabaco da Nova Inglaterra,
sabor de fruto proibido.
Valendo-se de-que'os violinistas afinam os instrumentos, o Sr. Magry diz, balançando a
cabeça:
O tabaco deles, em tedo caso, é melhor do que o nosso...
Deve-se considerá-lo mercadoria estrangeira importada? — indaga o procurador
Natal Tardieu de La Vaudière.
Voltam o olhar para a Sr. Le Bachoys, mas como este só parece preocupado com sua
partida e fuma o tabaco incriminado com evidente deleite, tranquilizam-se.
Um pouco mais tarde, diz o Sr. de La Melloise:
— A presença desses aventureiros, muitos dos quais são ímpios e inescrupulosos, vai
causar perturbações entre a nossa população, já turbulenta por natureza. Apenas no plano
financeiro, há uma pergunta: como pagarão suas despesas? Nosso orçamento, já vacilante,
ficará clésequilibrado...
Le Bachoys responde, seguindo com os olhos sua bola que passa pelo arco: .— Não se
preocupem... Basílio tratará do assunto.
Na casa do Sr. Basílio, O Conde d'UfVÍlle está sentado diante dele, um dos mais
importantes comerciantes de Quebec. Também ali se fumam charutos da Virgínia. O que
não impede o Sr. Basílio de trabalhar ativamente. Termina de pesar numa pequena balança
moedas de prata pura, que seu empregado vai metendo aos punhados em bolsas de couro.
— Pode garantir ao Sr. de Peyrac que não haverá nenhuma discussão acerca da
circulação destas moedas. Dou minha palavra. Além disso, logo ao amanhecer mandarei
entregar-lhe determinada quantidade de cédulas com a minha assinatura, que poderão servir
à sua companhia para o intercâmbio com pessoas e empresas da cidade. Será o tempo de
rubricá-las e meu caixeiro as levará.
O Sr. d'Urville levanta-se e agradece, em nome do Sr. de Peyrac, todas as comodidades
que o Sr. Basílio lhes colocou à disposição.
Cortesmente, não deixa transparecer o próprio espanto. Mas nunca antes topara com
patrão e empregado tão disparatados. Se Basílio possui o desembaraço compassado de um
burguês abastado, um pouco corpulento, manhoso em negócios, o amanuense, magro, a tez
pálida, um olhar vivo e alerta, daria a impressão de um indivíduo que vive de barriga vazia
e que só subsiste com furtos. Claro que a situação dele em Quebec não é essa; pelo
contrário, parece das mais garantidas na casa do importante Sr. Basílio, que o apresentou
com negligência:
— Paulo Le-Fol ou Paulo Le-Follet... — acrescentando: — Como se queira...
É verdade que na silhueta e no rosjo da dita figura há algo que lembra o pierrô das
comédias italianas. Pode parecer ora gracejador, ora sinistro. No geral, revela-se vivo,
entendido, de espírito tão ágil quanto o corpo. Sua desenvoltura é tamanha, que não
surpreende ouvi-lo tratar o patrão com intimidade familiar.
Com a mão sobre o punho da espada, O Conde d'Urville se inclina e retira-se.
Assim que ele sai, o amanuense abre a janela de pequenos vidros redondos e grossos,
reforçados com chumbo, e deixa entrar o frio, que dissipa a fumaça do excesso de tabaco.
Paulo Le-Fol se debruça para fora. Ao rumor do rio, que passa raspando a areia-e
chocando-se com algumas rochas e as estacas de um embarcadouro, mesclam-se os sons
abafados da música suave que escapa da mansão do Sr. Le Bachoys. Os acordes dos
violinos, oboés e virginal evolam-se em ondas e parecem embalar o êxtase de um índio,
sentado ao pé da casa, que certamente acaba de trocar a sua última pele de lontra por um
quartilho de álcool.
Por modesta que seja, essa medida basta para transportá-lo rumo às visões exaltantes
quef a aguardente propicia.
Está imóvel, insensível ao frio. No entarao, pressente-se geada naquela noite lunar.
O caixeiro atenta ao" vasto fúmor das correntezas, que em breve se calarão. .
— Quando retornaremos para as margens do Sena? — indaga. — Cada vez que ouço
esta canção do rio, fico nostálgico...
O Sr. Basílio meneia a cabeça; enquanto alinha seus pesos, pinças e balanças.
— No que se refere a mim, nunca mais voltarei. Não há vida que me convenha por lá.
Eu morreria de tédio e revolta...
O empregado torna a~fechar a janela e vem sentar-se atrás do negociante. Com um
gesto familiar, rodeia-lhe os ombros, enquanto seu-rostò astuto esboça uma careta, triste e
zombeteira ao mesmo tempo.
Então morrereçsem rever Paris... Pois nada pode nos separar, não é, meu irmão?
Vê se me acha uns pés de porco — diz Janine Gonfarel, a proprietária do albergue
Navio de França, ao seu marido. — Quero fazer um guisado.
Pés de porco! A esta hora? Achar onde? Ainda não estamos no Natal. Depois, você
não está pensando direito... Bem sabe que taberneiros e regatões não têm o direito de
guardar ou comprar mercadorias antes das nove horas da manhã...
Oito horas, homem! Ainda não estamos no inverno...
...e antes de terem elas ficado expostas durante uma hora nos mercados da Cidade
Alta ou da Baixa.
Cale-se! Deixe-me em paz com as ordens daquele bastardo do Tardieu. Não vim de
tão longe para o Canadá para ainda ser molestada por beleguins... Vê se me acha uns pés de
porco, estou dizendo! É questão de"vida ou morte. Vá pedi-los ao caixeiro do Sr. Basílio,
Paulo Le-Follet. Para mim ele é capaz de acordar o açougueiro. Mas traga-me as patas
antes do amanhecer. Vá!
Acabrunhado mas resignado, o rapaz pega o capote e desliza para fora, para a noite.
Satisfeita, Janine Gonfarel vira-se para o gato, a que instalou confortavelmente sobre
uma almofada fofa. Faz-lhé cócegas nas bochechas com um dedo. O animal aceita a carícia
com uma condescendência lasciva, enrugando as pálpebras.
— Gosto de você — diz ela. — Hein! Não se está melhor na casa da mãe Gonfarel do
que na casa daquela fulana, com todos os seus enfeites de princesa?... Deixe que lhe diga:
um gato não devia frequentar as grandes damas... Você bem viu o que isso lhe custou...
Acredite-me, pequeno, fique aqui na casa da boa Janine.
Ele ronrona. Ela o examina, e seus lábios, entre as faces cheias, esboçam um muxoxo
magoado.
— Sim, já estou vendo... Você é bem como todos os homens, bichano... Entre uma
ordinária e uma mulher honesta, é sempre a primeira que eles preferem. Vá! Não tenho
ilusões, não. E a ela que você escolherá. Como de hábito!
Com um suspiro resignado, vai olhar pela janela a praça que, naquele dia, viu avançar
uma mulher vestida de azul, com brincos de diamantes... Ela... Um verdadeiro milagre.
Aquela hora a praça está deserta. Janine avista duas silhuetas furtivas que desaparecem
na esquina de uma ruela. São o Conde de Saint-Edme e Martim d'Ajrgenteuil.
— Ora! O que é que aqueles belos cavalheiros estão fazendo num canto destes? Aposto
como estão indo a casa do Velhado Vermelho, o feiticeiro da Cidade Baixa...
CAPÍTULO XVII
O despertar na cidade
CAPÍTULO XVIII
Um milagre para Angélica
CAPÍTULO XIX
CAPITULO XX
0 Oh, minha Polaca! — disse Angélica, passando o braço sobre os ombros macios da
corpulenta mulher. — Jamais imaginei que um dia a reveria.
E eu! Imagina que eu a acreditava viva? Depois do que lhe aconteceu na feira de
Saint-Germain... Cada vez que eu falava da Marquesa dos Anjos, derramava lágrimas. Uma
moça tão linda, dizia eu... os beleguins deram cabo dela.
E reencontro-a em Quebec! E senhora da maior estalagem da cidade. Famosa,
solicitada, estimada.
E você então! Deixo-a descalça, por assim dizer levada para a prisão pelos arqueiros,
e quando a revejo é quase a rainha da França que me surge pela frente!
Em Quebec! Quem teria imaginado! E uma loucura!
Não! E lógico! Se não conseguiram nos matar, para onde quer que se vá senão para o
fim do mundo? Nesta cidade há de tudo...
Fez um gesto de mão como se prestasse um juramento.
— De tudo! Acredite-me. Mas, venha, preparei-lhe pés de porco. Você gostava disso
na Tour de Nesle, no tempo em que disputávamos os favores daquele patife do Nicolau
Calembredaine.
Sentaram-se frente a frente diante da lareira e, depois de degustarem com a necessária
circunspecção a obra-prima culinária da Sra. Gonfarel, esta se pôs a relatar por que atalhos
uma pobre coitada como ela acabara vindo dar na Nova França.
Deu uma piscadela.
— Despacharam-me como rapariga de colonos para as ilhas.
Mas, no caminho, mudei de direção. O Canadá era mais honroso, no final das contas.
Abaixou a voz, para acrescentar:
— Minha sorte foi conhecer Gonfarel no porto em que iam nos embarcar.
Apaixonou-se por mim, e, como vinha para o Canadá, deu um jeito para que eu viesse com
ele... Minha menina! Temos muitas coisas a nos contar. Não havemos de acabar nunca. A
verdade é que agora estou rica, tenho a cidade nas mãos e Gonfarel também. Todo ano
ampliamos um pouco nosso comércio e nossas construções. Uma loja aqui, um entreposto
ali, um andar a mais. E olhe que agora mesmo estou mandando construir uma capela ou um
oratório, como chamam por aqui. Por que não? Sou uma criatura de Deus como as outras,
se me dão licença esses devotos todos. Tenho o direito de honrar meu Senhor com meus
escudos, se me dá na telha. Venha ver, vai ficar bonito.
Levantou-se, mas, a caminho, deteve-se para pegar num guarda-louça um jarro de grés
que continha uma aguardente irrepreensível, destinada a "fazer esquecer tudo".
Trouxe Angélica de volta para junto da lareira e generosamente encheu dois copos de
estanho.
— Pode ter certeza de que alguns vão se escandalizar com meu oratório. Porque sabem
por aí que minha casa não é sempre das mais virtuosas. Mas diga-me qual é a casa que é!
Isso não impede aos outros de construir igrejas e oratórios. Em todas as cidades do mundo,
os bordéis não estão sempre na vizinhança das catedrais? Isso, acredite-me, foi planejado
assim e tem os seus motivos. Só faço seguir o exemplo... Lembra? Fiz das minhas atrás de
Notre-Dame de Paris! Não tivesse havido o caso da feira de Saint-Germain, que nos
destruiu o trabalho... Paciência. Passado é passado. Pelo menos posso dizer a mim mesma
que vivi muito. Não perdi meu tempo. Agora é menos divertido, mas também tem o seu
sabor. Depois, gosto do frio, lembra-me a infância na Auvergne.
Calou-se, com os cotovelos apoiados nos joelhos, pensativa.
— Não, estou enganada. Não foi na feira de Saint-Germain que a vi pela última vez.
Foi depois que fomos procurar seu garoto, o pequenino, você sabe, Cantor, que os egípcios
tinham raptado... Sim foi bem assim, eu a vi de cabelo cortado. Portanto, foi depois da
confusão na feira de Saint-Germain, depois que você passou pela tesoura dos esbirros...
Lembra?
Lembro.
Vi o seu Cantor ontem. Está bonito, belo como um deus... um deus grego. Foi uma
sorte a gente ter encontrado perto de Charenton aqueles ciganos que estavam levando o seu
garoto. Aquela corrida debaixo de chuva! Lembra? Ah, não nos importávamos de galopar
naquele tempo... Hoje eu não poderia... Brindemos! Seu Cantor está aí, salvo de todos
aqueles imbecis do diabo que queriam nossa morte, nós, pobres moças miseráveis. Deus
abençoe o Canadá! E também eu tenho um belo filho. Menos bonito do que o seu, mas...
Ele é magnífico, eu o vi. Aparenta uns doze anos.
E só tem nove! Também, o pai é um homenzarrão! Gon-farel não está aqui hoje, foi
buscar queijos na ilha de Orléans. Há de conhecer o meu homem. Foi o tamanho dele que o
salvou e que lhe permitiu vir para o Canadá. Foi escolhido como carrasco...
Janine Gonfarel baixou a voz.
Já é coisa esquecida. Mas, você sabe, eu não renegaria a sorte, venha ela de onde
vier. Com a sorte, há que ser franco. Esses senhores da Companhia das índias Ocidentais
não achavam um executor de penas capitais para a colónia. Todo mundo se recusava. Ser
carrasco no Canadá não tentava a ninguém. Então, quando havia uma condenação por aqui,
eram obrigados a se arranjar com uns fracotes que não tinham força nem para apertar um
borzeguim, que dirá erguer um machado ou puxar a corda da forca. O que você quer,
palerma? — gritou ela, percebendo um servente da tasca que acabava de entrar. — Não vê
que estou conversando com uma dama da Cidade Alta?
Patroa, tem dois sujeitos lá fora que dizem estar congelando.
Sem dúvida são os criados da Sra. de Mercourville que me trouxeram na cadeirinha
— lembrou Angélica.
Não se pode deixá-los entrar e servir-lhes bebida sem uma autorização escrita do
patrão deles.
Pago eu e autorizo — sugeriu Angélica.
Mas, depois de discutirem, preferiu mandar de volta os carregadores e a cadeirinha, pois
não podia prever quando é que elas acabariam de desfiar o rosário das suas recordações.
A Sra. Gonfarel, enquanto isso, permanecia atenta ao bom andamento de seu
estabelecimento. Quando o empregado saiu, ela comunicou a Angélica que passariam ao
seu "posto de vigia", o que não as impediria de continuar conversando, comendo e
bebendo.
Sentaram-se num pequeno estrado, diante de uma parede onde havia duas portinholas,
como nos parlatórios de convento, que, ao serem abertas, permitiam que se observasse
através da grade o que acontecia no salão, sem que se fosse visto.
A Polaca conhecia todo o seu mundo. E àqueles que não conhecia, situava rapidamente
segundo a origem, com um faro infalível.
— Quanto você aposta que aqueles ali, no canto, são acadianos? Como é que eu sei
disso? Sinto que não são cá da terra, mas que também não vêm da Europa.
Acompanhando-lhe o olhar, Angélica de fato descobriu, no fundo da sala, isolados e
jogando dados com um ar carrancudo, o Barão de Vauvenart, Grand Bois e um dos irmãos
de Iolanda, filho de Marcelina, Telésforo, que viera com eles. Perguntou-se se o quarto não
seria um dos irmãos Défour, do fundo da baía Francesa.
— Esses acadianos são todos um pouco piratas — comentava a dona da taberna Ao
Navio de França. — Todos comerciam com os ingleses, bem protegidos nas suas tocas na
costa, lá no sul... Depois, você está vendo aqueles de gorro azul, são gente de Ville-Marie,
de Montreal, como dizem agora. Uns espertalhões que se gabam de só terem Deus e a
Virgem Maria como senhores. Entre os seus santos e os seus mercadores, acredite-me, eles
não têm de que se queixar. Vieram a Quebec para a partida dos últimos navios. Hão de
partir em breve, antes que o rio congele.
Angélica sorria de ver a Polaca adotar com tanto entusiasmo as querelas do país.
E aquele ali naquele canto? — indagou, apontando um indivíduo encolhido perto da
lareira e que bebia, solitário.
Ah, aquele é o Velhaco Vermelho.
— Que apelido feio! — observou Angélica com uma careta, não podendo conter o
arrepio, pois na linguagem popular, Velhaco Vermelho às vezes designava o Diabo.
A Polaca baixou a voz.
Foi ele que viu no céu as canoas da chasse-galerie. Um pouco antes da chegada dos
seus navios.
Não teria sido ele quem atirou uma pedra no meu gato?
E possível. Isto aqui é cheio de feiticeiros e magos. Esse mora na falésia acima das
casas da Rue Sous-le-Fort. Mas os melhores feiticeiros estão na ilha de Orléans. Tenho uma
amiga feiticeira que me ensina todo tipo de coisa. Por isso, fico feliz de que você tenha
vindo numa sexta-feira, o dia de Vénus, bom para a amizade.
Como você está bem instruída, minha Polaca!
Eu me iniciei — disse a Polaca, toda cheia de si. Pegou um livro das prateleiras de
uma estante.
Olhe só isto... É instrutivo.
Você tem livros?
Claro! Todo mundo tem livros aqui.
Aprendeu a ler, Polaca!
O jesuíta me ensinou. Vê por que devo dedicação àquele homem? Mas o que tem
mais livros e alfarrábios é o Velhaco Vermelho. Entende de magia, esse feiticeiro, e me dá
dentes de lobo e ossos de coruja para conjurar a má sorte. No Canadá a gente precisa de
proteção... Você pode acreditar em mim: talismãs ou medalhas, contra o Diabo ou contra a
polícia, nunca são demais por aqui!
Como é a polícia no Canadá?
Importuna. Intrigante. Ora, como em todo lugar!
O tenente de polícia chamava-se Sr. Garreau d'Entremont. A Polaca chamava-o de
Resmungão. Não é a mais bem-humorada das criaturas, diz ela, mas não é mau homem.
— E um homem de princípios. Essa espécie, você sabe, a gente não consegue
impressionar nem conquistar com um sorriso ou um presente. Se você não tiver nada a se
censurar, irá tudo bem. Caso contrário, ele se põe na sua cola e não lhe larga. No entanto, o
mais perigoso é Natal Tardieu de La Vaudière, o procurador régio. Você deve tê-lo notado,
ontem, entre "os poderosos". Um alto, cabelo crespo, belo rapaz, ar vaidoso.
Aquele rapaz? Parece simpático.
Desconfie da simpatia dele! Você aprenderá a conhecê-lo. Uma verdadeira peste!
Puxou o banco mais uma vez e logo -chamou a atenção de Angélica com um gesto
veemente.
— Oh, olhe quem vem aí! Gente elegante!
Um grupo de cavalheiros entrava com soberbos ares de conquistadores cujo efeito se
perdia já na soleira da porta, afogado no nevoeiro de tabaco.
À testa deles vinha o Sr. de Bardagne.
Não é o emissário do rei, que recebemos ontem, com você? — cochichou a Polaca,
que a emoção tornara sóbria. — Parece que está incumbido de uma missão da mais alta
importância, alguma coisa como a declaração de guerra aos ingleses ou acabar com os
fortes dos Grandes Lagos ou proibir a venda do castor e mandar todo mundo de volta,
porque vai haver guerra com a Espanha e a Holanda. Enfim, dizem que até o Sr. de
Frontenac terá que fazer o que ele lhe disser.
De fato, ele recebeu grandes poderes do rei, mas não há motivo de inquietação por
isso. É um homem sensato. Eu o conheço.
Seria de admirar se não o conhecesse — casquinou a Polaca. — E o que é que pode
ter trazido à minha casa, uma taberna na Cidade Baixa, esse grão-senhor? Parece que está à
procura de alguém.
Angélica conteve um suspiro.
Bem via que Nicolau de Bardagne, em pé entre os companheiros que já se tinham
sentado à volta de uma mesa, inspe-cionava a sala em todos os recantos. Havia em suas
feições algo daquela expressão tensa e dramática que assumiam quando Angélica estava em
jogo. Deviam ter-lhe dito que ela se encontrava na taberna Ao Navio de França.
A Polaca teve um pressentimento.
Ora! Deve ser a você que ele procura!
Receio que sim.
Quando eu lhe dizia! Ah, você não mudou, Marquesa dos Anjos!
A discussão a propósito do sucesso de Angélica junto aos homens punha-a de humor
melancólico.
A taberneira fechou bruscamente a portinhola e voltou a sentar-se no estrado.
Onde está meu gato? — perguntou Angélica, lembrando-se do motivo que a levara
ali.
E eu é que sei! — tornou a Polaca, irritada. — Está onde tem vontade de estar!....
Como você, o malandrinho! Tudo o que posso dizer-lhe é que não está no meu caldeirão,
como você quase desconfiou que eu tivesse feito... Bem vi há pouco que você pensava
nisso. Por quem me toma? É bem de você isso! Sempre foi desconfiada, ah, sim!
Perdoe-me, Polaca — disse Angélica, esforçando-se por ser conciliadora. — É a
vida que nos faz assim, desferindo-nos tantos golpes.
Por que não deixaria seu gato em minha casa? Gosto dele. O que quer fazer com ele
na Cidade Alta? Aqui no porto, camundongos e ratos é o que não falta, com os navios e os
entrepostos.
Não, tenho vínculos com esse gato que não posso romper.
É muita sorte minha, mesmo, sempre gostar daquilo de que você gosta e que,
naturalmente, acaba escolhendo a você! Já na Tour de Nesle você me roubou Nicolau.
Antes de você chegar ele era meu amante e eu o prendia, bem. Mas assim que a trouxe,
compreendi. E era apenas o começo. Sempre a mesma coisa.
Na sua cólera, fechou com um gesto seco o leque e atirou-o ao fogo. Essa execução
pareceu acalmá-la. Ficou a vê-lo consumir-se com ar satisfeito.
Angélica ria, reconhecendo-a, como outrora, impulsiva e violenta sob a indumentária de
taberneira respeitável em vias de mandar construir um oratório.
Violentas batidas à porta fizeram a Sra. Gonfarel levantar-se de um pulo.
Quem vem lá?
O corpo da guarda!
Dissesse o que dissesse, a velha Polaca não estava tão liberta quanto supunha. Em vão
fazia-se cercar de belos móveis, de objetos de valor e de bolsas bem-fornidas: há coisas que
não se podem extirpar quando estão tecidas na trama da vida, entre outras, o medo ao corpo
da guarda. Ela correu até a janela para dar uma olhada lá fora.
— Meu Deus! — exclamou. — Os arqueiros! Bem que lhe disse!
Mas Angélica reconheceu na praça, diante da taberna, o Tenente de Barssempuy,
acompanhado de três homens do Goulds-boro, portando armas, é verdade, mas que não
pareciam animados de más intenções. Pelo contrário: Barssempuy exibia um sorriso
agradável. Era uma delegação oficial, e Angélica não teve dúvidas quanto ao motivo que os
trazia ali.
Deixe-os entrar sem receio. São enviados de meu marido. Devem estar trazendo-lhe
um presente da parte dele...
Para mim? — fez a Polaca, quase assustada.
Há um para cada uma das senhoras mais importantes da cidade.
Entre — gritou a Polaca ao rapaz que tamborilava no batente da porta novamente.
Patroa, está aí um gentil-homem que pede para vê-la pessoalmente, da parte do Sr.
Conde de Peyrac!...
Quantas vezes já não lhe disse, palerma, que numa residência de gente bem não se
bate assim na porta, só se arranha, está ouvindo, arranha!
Angélica, não querendo ser. vista por Nicolau de Bardagne, não a acompanhou até a
sala, para onde a Sra. Gonfarel se dirigiu para receber Barssempuy.
Retornou pouco depois, desnorteada, trazendo, deitado sobre as duas mãos, um cofrinho
de veludo vermelho, que tinha no meio, incrustado em ouro, o monograma do cordeiro
pascal. A tampa levantada revelou um relicário de ouro, no centro do qual, numa custódia
de vidro, repousava uma pastilha de cera. Essas pastilhas eram tidas como de grande valor
como objeto sagrado de proteção, pois eram moldadas e bentas pelas mãos do próprio papa,
em Roma, todos os anos, durante a missa pascal.
Um ágnus-dei — exclamou a Polaca em voz abafada. — Como foi que ele pôde
adivinhar que isto era o meu sonho?
Ele adivinha tudo.
Aquele cicatrizado! — suspirou a Polaca. — Que homem!
Caiu de joelhos, ao mesmo tempo pelo efeito da emoção e pelo respeito diante do
piedoso talismã papal.
Mas então ele não é o Diabo! Escute aqui, Marquesa dos Anjos, você é bem digna de
um homem como esse? Doidiva-nas e atrevida como você é, ele sabe do perigo que corre
por havê-la esposado?
Não tema nada! Ele também não é a mais pacata das criaturas!
Anoitecia.
— Você tem que retornar — disse a Polaca. — Para a Cidade Alta. É para as belas
damas do seu tipo.
No fundo do albergue estendia-se um vasto pátio fechado por uma cerca de estacas de
cedro. As diversas construções, de pedra ou madeira, deviam abrigar mercadorias, reservas
de víveres e bebidas. Com o anoitecer surgiu uma leve bruma, flutuando ao nível do chão.
Como Angélica não queria encontrar Nicolau de Bardagne, que não hesitaria em pedir-lhe
explicações para sua presença naquele local, a amiga a fez passar por ali.
O odor almiscarado das peles empilhadas ou penduradas nos arcos dos entrepostos
lutava com os eflúvios que escapavam do restaurante.
— Escute, Marquesa dos Anjos — disse a Sra. Gonfarel —, vamos guardar nosso
segredo. Os homens não gostam muito do passado da mulher a quem amam. Querem
sempre achar que foram os primeiros e que os outros não contaram. Acredite-me: o que
vivemos naquele tempo pertence somente a nós. O juramento secreto dos bandidos da
matterie continua valendo.
Cruzou dois dedos e cuspiu na lareira.
E meu gato? — lembrou Angélica.
Ele é que escolherá — disse a Polaca, com magnanimidade.
Angélica deixou a propriedade e viu-se numa das ruas transversais da Cidade Baixa,
que a escuridão já invadia. Acendiam-se candeeiros, aqui e acolá. Angélica envolveu-se
bem no manto e puxou o capuz sobre a testa. Continuava a sentir-se muito feliz. Lamentava
não poder revelar a Joffrey o casual reencontro com Janine Gonfarel. Mas esta tinha razão:
ou bem se contava tudo, ou bem não se contava nada.
Escalando a encosta da montanha, Angélica alçou os olhos para o céu dourado que se
avistava lá em cima, como do fundo de um poço, entre as paredes da falésia e as das casas
altas, cujas chaminés e empenas pontudas, enfileiradas numa frisa negra, a claridade do
poente tomava de assalto.
Os passantes, subindo ou descendo, faziam-se raros e não a reconheciam. Ela ia só e
feliz e invadida de um sentimento novo, de liberdade e plenitude.
Voltando-se para olhar a admirável superfície do lago, que se estendia como um escudo
cintilante entre suas ilhas e promontórios, percebeu o gato, que a seguia.
CAPITULO XXI
Jantar em família
A noite, durante a ceia, o gato pulou para cima da mesa e empreendeu uma cautelosa
marcha por entre pratos e talheres, a fim de reconhecer os seus.
Senhor gato, como o chamaremos? — disse Joffrey de Peyrac.
Pai, você acabou de dar-lhe um nome! — exclamou Honorina. — Senhor Gato! Que
belo nome! Senhor Gato, nós o saudamos.
Luminárias cintilando em inúmeros candelabros. Serviço de prata. Assim como na
véspera, o mordomo pusera a mesa no centro da grande sala.
A luz das velas e candeias, Angélica sentiu prazer em olhar seus filhos Florimond e
Cantor.
Florimond ajudava o mordomo, Sr. Tissot, a servir. Era sempre muito ativo e solícito, e
seu serviço como pajem na corte desenvolvera-lhe essas disposições naturais. Gostava de
fazer mil coisas e adaptava-se sem esforço. O fato de haver regressado do Grande Norte,
depois de uma odisseia de vários meses, de saber matar um urso a faca e conversar com os
índios não o impedia de repetir com entusiasmo os gestos consagrados para manter o
guardanapo sobre o braço e levantar a jarra, no seu papel de copeiro. De bom grado trocaria
a vestimenta acamurçada de explorador de bosques pelos trajes de um jovem grão-senhor.
Cantor, em compensação, era diferente.
"Já lhe contei", pensava Angélica, "que corri descalça pela estrada de Charenton para
salvá-lo dos egípcios?"
O marquês viera vê-los. Encontrara acomodação na Cidade Baixa e faria as refeições na
taberna Ao Navio de França, cuja proprietária cozinhava divinamente. Esperava que sua
criada não tardasse a retornar, aguilhoada pelo ciúme. Aceitaria os serviços dela, mas
pretendia fazer-se convidar com frequência à casa de seus caros amigos' Peyrac, na Cidade
Alta.
Depois de acertar alguns negócios, virei ajudá-los a se instalar. Hei de mostrar-lhes a
casa e todas as comodidades. Tenho a intenção de mandar subir meu aquecedor de louça
para o salãozinho contíguo à sala grande.
Ele ainda tem seu pequeno exército de prata?
A frase sibilina intrigou Angélica, e como o rapaz passava perto dela, pediu-lhe que se
explicasse.
— Como, minha mãe, não sabe que o Sr. Tissot foi oficial da Boca do Rei em
Versalhes? Terceiro carregador do assado. Vi-o frequentemente passando os molhos. Em
Tadoussac, reconheci-o na hora. As vezes me informo com ele sobre a corte, que ele deixou
recentemente. Perguntava-lhe, entre outras coisas, se monseigneur, o delfim, ainda tinha o
pequeno exército de prata que o Sr. Colbert, por intermédio de seu irmão, o intendente da
Alsácia, encomendou aos mestres de Augsbourg e de Nuremberg.
Até então o Sr. Tissot se mostrara pouco loquaz acerca de seus antecedentes.
Com um gesto, Angélica chamou-o para perto e falou-lhe à parte.
Senhor, suponho que tenha conhecido desprazeres muito grandes para se decidir a
deixar esse emprego tão brilhante e disputado junto de Sua Majestade.
De fato, senhora.
Desprazeres de que ordem?
Senhora, da ordem que a senhora mesma conheceu e que a fizeram deixar Versalhes
quando sua estrela alcançava o zénite...
Veneno? — avançou ela, fitando-o com ar interrogativo.
Todo mundo usa veneno na corte. A senhora sabe. Isso resolve muita coisa, e é um
caminho como outro qualquer
para se atingir o cume e garantir a própria fortuna e reputação. ..
Você não quis seguir esse caminho?
A vida é o bem mais precioso — respondeu ele —, e eu era devotado ao rei.
A Sra. de Montespan continua gozando de favores junto de Sua Majestade?
Mais do que nunca.
E as festas?... Diga-me, Sr. Tissot, as festas continuam tão belas e suntuosas?
Nenhuma corte na Europa conhece festas iguais. Sua Majestade se consagra à beleza
de seu palácio e de seus jardins com uma paixão e um gosto que os tornam um dos mais
belos locais do mundo. As festas são à imagem desse cenário: magníficas e galantes.
Então, pensava Angélica, girando o pé do seu copo de mála-ga, que ela pegara
maquinalmente, e fazendo-o refletir suavemente as luzes na transparência ora dourada ora
púrpura do vinho, assim como se refletiam no seu pensamento as luzes de sua vida, então as
coisas não melhoraram na corte. As pessoas continuavam a matar-se e a envenenar-se umas
às outras alegremente, por entre o bulício das festas mais encantadas.
Um navio, sob o céu de inverno, ainda dançava através do oceano. Uma após outra, as
ondas profundas o impeliam para a Europa.
A carta que Angélica escrevera em Tadoussac ao policial Desgrez e que o criado do Sr.
d'Arreboust levava a bordo do Ma-ribelle em breve chegaria a bom porto. O criado iria
bater à porta de Desgrez... Entregar-lhe-ia a missiva chegada de uma terra tão longínqua e
Desgrez, batendo os olhos, reconheceria a letra da Marquesa dos Anjos... Um sorriso lhe
brotaria nos lábios escarninhos... Mais uma vez ela ia ao encontro dele...
Angélica olhou a própria mão que empunhara a pluma denunciadora.
No fogo vibrante de chamas que crepitavam alegremente na grande lareira,
destacavam-se os rostos brilhantes e animados da sua família, os seus bem-amados. Ouvia
o riso de Honori-na, os gracejos de Florimond, a música em surdina sob os dedos de
Cantor...
Sabia naquele instante que escrevera aquela carta para chegar até o rei e obter dele
justiça.
CAPITULO XXII
Mais uma vez o sono apagou as recordações e mais uma vez o ângelus, nos sinos das
igrejas, rompia a treva da noite. Seis horas... Em Quebec, iniciava-se um segundo dia.
Joffrey já estava de pé. Angélica não o ouvira partir, mergulhada que estava num sono
letárgico que não lhe parecia ter sido mais do que um longo e suave estado de volúpia, e
que lhe deixava o corpo leve, o espírito claro. Lembrou-se da surpresa: a Polaca estava na
cidade.
Ouviu alguém mover-se na grande sala embaixo. Ao estalido da madeira seca partida
sucedeu o de gravetos consumidos pelas chamas. Alçou-se um perfume de fumaça.
Depois de vestir-se, Angélica desceu e viu o velho Macollet, que pendurava à
cremalheira um caldeirão de água. Não estava sozinho. Os dois garotos, descalços, de
camisola, os cabelos despenteados e os olhos pesados de sono, observavam-no com
interesse. Ele prometera que lhes daria para comer um pouco da carne-seca que trouxera
dos selvagens. lolanda subia da adega com um balde de leite de cabra, que ela acabara de
ordenhar.
Havia muito mais gente naquela casinha do que o silêncio precedente levaria a crer.
Cantor, por exemplo, que surgiu não se sabe de onde, no seu passo de índio. Ademar, mais
ruidoso, que se ocupava carregando achas. Abbal Neals e o negrinho Timóteo.
Paramentados desde o alvorecer com as suas casacas de pajens, maldespertos, os meninos
balançavam os pés nus metidos em grandes sapatos de fivela. Os faustos dos dias pre-
cedentes tinham exaurido completamente os dois...
A vida começava tal como Angélica sonhara, num inverno em Quebec.
Bateram na porta do pátio, nos fundos. Era o Tenente de Barssempuy, escoltado por
dois auxiliares do mordomo, que traziam empadões quentes e manjar-branco, biscoitos e
uma jarra de prata contendo café, a beberagem oriental que Angélica adorava. Honorina e
Querubim não prestaram atenção alguma a essas guloseimas. Estavam ocupados vigiando
Elói Macollet, que, na palma da mão, desmanchava num pouco de água, à moda iroquesa,
um pó marrom com um forte cheiro de fumeiro. Iolanda disse que não comeria, pois queria
ir comungar, se a senhora o permitisse.
O Sr. de Barssempuy perguntou a Angélica se o Sr. de Peyrac a pusera a par das
moedas de prata.
Angélica pestanejou.
— Moedas de prata? Não... Explique-me.
O jovem viu nela um ar totalmente sonhador. Mas que só a tornava mais bela, pensou
ele. Parecia encantada com tudo. Ele deu um sorriso indulgente, um tanto triste, pois ainda
pensava em Maria, a Meiga, sua noiva que morrera. Reteve um suspiro. Recompondo-se,
passou a mensagem de que estava incumbido.
Entregou-lhe, da parte do conde, uma bolsa que continha moedas de prata, cunhadas em
Wapassu e que por isso não estavam empilhadas. Nem por isso ela não poderia usá-las para
resgatar todas as suas compras nas lojas ou bazares de Quebec. O conselho superior da
cidade decidiria mais tarde quanto à forma a adotar para legalizar a circulação daquela
moeda estrangeira na Nova França. Enquanto isso, o valor seria julgado pelo peso.
Todos os comerciantes possuíam a balancinha destinada a pesar o marco de prata, e
tinham sido solenemente avisados de que o Grande Conselho aprovara a emissão de metal
nobre anónimo no mercado de Quebec. Far-se-ia uma proclamação em várias ocasiões, nas
encruzilhadas e nas praças públicas. Além disso, Barssempuy também tinha que entregar a
Angélica uma cédula assinada por um certo Basílio, cuja assinatura abria uma garantia de
despesas até quinhentas libras de Tours, o que era mais do que ela desejaria e, no momento
e em sã consciência, gastaria. Angélica agradeceu ao mensageiro.
Bateram à porta da rua. Angélica foi abrir e viu-se diante de um homem barbudo, com
um gorro de pele na cabeça e um machado ao ombro.
Quer que eu lhe rache lenha, senhora?
Ora, Nicaise Heurtebise — exclamou Elói Macollet, aparecendo à soleira —, então
já está começando seu giro de vendedor de aguardente?
Não, não antes de nevar forte e de o Saint-Laurent ter virado gelo.
Ele acumulava pequenos ofícios, entre outros o de vendedor de aguardente, passando de
porta em porta, nas manhãs frias, para oferecer o primeiro trago aos madrugadores que ini-
ciavam sua jornada de trabalho.
Nevara durante a noite, mas a neve ainda era leve. Em camada fina, derreteria ao menor
raio de sol. Os telhados brancos destacavam-se contra o fundo negro das águas do rio, que
ainda rolavam suas ondas turbulentas.
Enquanto ouvia os dois velhos companheiros discutir os méritos do inverno e da
aguardente, Angélica examinava os arredores do que seria o seu bairro. Sua casa. era a
última, quando se subia a rua vindo da catedral. Depois", a rua deixava de ser calçada para
se transformar em caminho de terra. Na verdade, a casa ficava na orla dos prados. A uma
encruzilhada erguia-se um grande olmo. Ao pé deste havia um pequeno acampamento de
índios, com duas ou três wigwams arredondadas, de casca de olmo, seus cães amarelos,
seus meninos seminus arrastando-se na terra molhada. Uma mulher envolta numa manta
saiu de uma cabana e foi avivar as brasas fumegantes das fogueiras meio apagadas.
Um pouco adiante, na mesma direção, estendia-se um bos-quezinho que servia de sebe
a uma casa bem bonita, cujo telhado, recoberto de ardósia e com chaminés imponentes e
quadradas, ultrapassava a copa das árvores.
Era àquela sebe que cercava uma bela morada escondida que a rua devia o seu nome:
Rue de la Closerie.
Em frente à casa de Ville-d'Avray, erguia-se a mureta que encerrava o pomar da Srta.
d'Houredanne e seu jardim. Um pouco abaixo, a casa da missivista era pequena, com um
único andar e duas lucarnas sob as cumeeiras. Aquela hora, a ponta luminosa de uma
candeia ia e vinha por trás dos quadrados de vidro de uma dessas lucarnas. Angélica viu
colar-se ao vidro a sombra de um rosto. Certamente o da criada inglesa que não conseguia
deixar de espreitá-los. Na outra lucárna a cadela também apareceu, curiosa.
Para além da casa da Srta. d'Houredanne, a rua que levava à catedral tornava-se uma rua
de verdade, bem pavimentada, ladeada de residências mais ou menos ricas, mais ou menos
cercadas de pequenos pátios ou jardinzinhos, ou então apoiadas umas às outras e se
comprimindo à medida que se descia rumo à Grande Place. Avistavam-se inúmeras
tabuletas de madeira ou de ferro forjado avançando sobre a rua e indicando as lojas, bazares
ou as tascas, algumas delas desenhadas em dourado ou em cores vivas.
Nicaise Heurtebise e Macollet continuavam a falar de álcool.
— Eufrosina Delpech é que possui a melhor levedura — dizia Nicaise Heurtebise. —Já
ela mesma é um veneno, concordo. Mas ela lhe fará a melhor bebida a partir de qualquer
coisa: sabugueiro, cevada, resíduo de raízes...
Enquanto falavam de fabrico de álcool, surgiu uma silhueta cambaia, friorentamente
embrulhada dos pés à cabeça e que só mostrava um nariz descorado. Para um pirata das
Caraíbas como Aristides Beaumarchand, o Canadá revelava-se um país ao mesmo tempo
demasiado frio e demasiado austero. No entanto, ele rapidamente descobrira um ponto em
comum que lhe permitira entender-se, ele, o gentil-homem da pirataria, com aqueles
laboriosos exploradores de bosques, que viviam com os pés na neve de novembro a junho:
assim como ele, os canadenses professavam o amor pelas "boas bebidas".
— Não nos vá estragar o comércio com seu rum — disse-lhe Macollet. — De qualquer
maneira, é fraco demais para os índios. Eles querem é do forte.
Aristides ouvira dizer que na região havia uma árvore que segregava uma seiva
açucarada. Não seria mau se, queimando essa seiva, pudesse extrair alguma coisa para
fortificar seu run-zinho. Ele recuperara a carga de resíduo de melaço, roubada ao
Saint-Jean-Bàptiste.
— E — fez Nicaise Heurtebise —, tenho um alambique escondido nos galhos de um
bordo esperando pela época do açúcar, na primavera. Mas dizer-lhe que é uma maravilha,
não!
Talvez seja por causa do alambique.
Ouvira dizer que.a Sra. de Peyrac possuía um alambique de cobre, no sistema de
Charenton, para os medicamentos dela. Talvez com aquilo obtivesse melhor resultado. Ela
se meteu na conversa, observando que aquele trio pitoresco, em Paris, não deixaria de
inspirar certa desconfiança a um policial de mau humor.
— Há uma receita para fortificar seu rum — confessou Heurtebise. — É a "barreia de
madeira". Com isso você faz uma bebida que deixa até os índios com água na boca. Mas,
atenção, apenas duas gotas, não mais. Uma terceira é mortífera...
Começou a enumerar os ingredientes necessários. . — Palha... carvão de madeira e
couro queimado... um filete de água pura.
Angélica, distraída, olhava a parte baixa da rua e teve a impressão de reconhecer uma
silhueta que^subia na direção deles.
— ...O importante é que o carvão seja de pinho ou de cedro...
Era mesmo o Sr. de Bardagne que se aproximava.
Cumprimentou-a e disse que o tinham instalado de propósito na outra extremidade da
Cidade Alta, no centro de um platô deserto, chamado planícies de Abraão.
Na véspera não conseguira vê-la. Procurara-a por toda parte. Depois de indagar sobre a
saúde dela e se estava bem acomodada, chegou'ao que o atormentava.
— Há um homem na cidade dizendo que a conheceu biblicamente.
Angélica pôs-se a rir.
Seja quem for, está se vangloriando.
No passado?
— No passado... Tudo é possível. No entanto, não vejo quem poderia...
Sob o olhar doloroso do Sr. de Bardagne, ela fez um rápido exame interior e constatou
que, na verdade, se de fato amara muito, seus amantes não tinham sido tão numerosos.
De que tipo é esse indivíduo?
Um grão-senhor.
Angélica levantou as sobrancelhas, francamente surpresa.
Devia estar bêbado, aposto.
Admito que sim.
E você tem a fraqueza de levar a sério tais palavras? Meu pobre amigo, você procura
tudo o que pode para alimentar seu ciúme.
A minha dor, você quer dizer.
Que seja. Mas aonde é que isso o leva?
A cidade está sob o encanto — disse o Sr. de Bardagne, sombrio. — Só falam de
você e de seu marido. Tudo o que vocês fizeram ou disseram durante esse dia memorável
seduziu os mais prevenidos de seus adversários e encantou o povo.
Você teria preferido que naufragássemos ou que tivéssemos sido apedrejados?
O rosto do emissário do rei adquiriu uma expressão desapontada.
Não... Mas gostaria de ter precisado defendê-la, protegê-la.
Ainda pode fazê-lo. Sua influência como emissário do rei é valiosa. Você tem todo o
poder para nos tornar aceitos pelos nossos pares e, mais tarde, interferir em nosso favor em
Versalhes. Não é um milagre que seja justamente você o encarregado de esclarecer a
situação de meu marido junto ao rei?
Nicolau de Bardagne não respondeu. Tudo o que concernia a Peyrac lhe era
infinitamente penoso. Sentia-se dividido entre a aversão que nutria pelo esposo de Angélica
e seu espírito de justiça.
— Devo confessar-lhe uma coisa — disse ele. — Aproveitei a passagem do Maribelle
por Tadoussac para já despachar um relatório excepcional a Sua Majestade.
Foi interrompido por latidos. Surgiu um homem, vindo do pequeno bosque que cercava
a casa, acompanhado de um grande cão de fila de um preto luzidio de pão queimado.
Passando perto da wigwam dos huronianos, o magnífico animal saltou sobre um de seus
congéneres indígenas, abocanhou-lhe os quadris com um golpe das mandíbulas e, depois de
observar com satisfação o sobressaltado recuo dos outros cães amarelos do acampamento,
alcançou seu dono num trotezinho resoluto.
O Sr. de Chambly-Montauban apresentou-se como grande inspetor viário do Canadá e
vizinho deles. Cumprimentou o grupo, tirando o gorro com cauda de vison. Era um belo ho-
mem, no mínimo tão belo quanto seu cão, e certamente com o mesmo andar desenvolto de
conquistador. O título de grande inspetor viário do Canadá, que o tornava responsável pelas
estradas e caminhos do país, era antes honorífico, numa terra que não dispunha de outros
meios de comunicação senão o rio e os riachos.
Quanto às vias da cidade, que, por extensão, dependiam de seu cargo, ele lhes deixava
as malcheirosas obrigações ao procurador Tardieu, encarregado de promulgar os
regulamentos. Por esses poucos indícios, deu a entender que era principalmente um bon
vivant.
Dirigiu muitos cumprimentos respeitosos ao Sr. de Bardag-ne, mas olhava Angélica, e
parecia decidido a fitar apenas a ela.
Estava vestido com elegância: usava uma capa forrada de pele, trazia espada e botas de
couro fino, à cavaleiro. De uns quarenta anos, um tanto sanguíneo, tinha o olhar espiritual,
dentes muito alvos, lábios sensuais.
Está bem acomodado? — indagou ele com displicência a Bardagne.
Menos bem do que você — respondeu este, olhando de viés na direçãò do pequeno
basteio, cujo telhado e chaminés ultrapassavam as frondes da mata.
A seus olhos, aquele solar contava com a enorme vantagem de estar situado nos
arredores da casa de Ville-d'Avray, onde a Sra. de Peyrac estava hospedada. O Sr. de
Chambly dignou-se dar-lhe uma olhada e deve ter pensado que havia certas vantagens em
se entender bem com o representante oficial de Sua Majestade.
O rei tratou-me muito mal neste ano — queixou-se. — Forçou-me a vender uma
parte de minhas terras por uma ninharia. Gostaria de conservar o que me resta. Você
poderia fazer algo por mim?
Com certeza você explorou de modo insuficiente as terras do seu feudo. Mas... está
bem, falarei ao rei.
Duas índias vieram gemer às costas do Sr. de Chambly. Reclamavam aguardente em
troca do cão morto. Sem abandonar o luminoso sorriso, o grande inspetor viário
respondeu-lhes em língua selvagina. Angélica compreendeu que ele as censurava por se
embriagarem, que as lembrava dos decretos que proibiam dar-se álcool aos selvagens, e que
lhes recomendava que fossem à missa. Quanto ao cão, tudo o que tinham a fazer era pô-lo
no caldeirão.
É que seu cão de fila é uma verdadeira fera, Sr. de Chambly — comentou Elói
Macollet. — Não é como o do Padre Morillot, que é tão manso e tranquilo.
Os cães de fila já tiveram inúmeras ocasiões de salvar os postos avançados farejando
os iroqueses — observou o Sr. de Chambly.
Aí está o índio — anunciou o Sr. de Bardagne, amargo e fatalista.
A silhueta desajeitada de Piksarett se recortava no alto da colina. Desceu na direção
deles, muito desdenhoso, de lança na mão e vestido com sua pele de urso hibernal.
Não perdeu tempo em ecoar o Sr. de Chambly, repreendendo as índias e
censurando-lhes a inclinação para o álcool que lhes pervertia a alma e arruinava o corpo.
Iolanda surgiu à soleira, toda arrumada, com uma manta de quadrados de cetim que
Marcelina, sua mãe, lhe confiara para as grandes ocasiões durante a estada na capital.
Trazia um missal bem apertado numa mão e com a outra puxava Querubim. Ademar
seguia-os, com o chapéu militar embaixo do braço. Marcelina, a acadiana, fizera mil
recomendações a Iolanda acerca do clima temível de Quebec. Não era a doce baía Francesa,
com suas tempestades e marés endoidecidas, é verdade, mas também onde os tremoços
rosados, azuis e brancos cresciam como mato. O mar era sempre alto ali.
Angélica pegou Honorina e Timóteo pela mão.
— Tem razão, grande sagamore — disse —, ao nos lembrar nossos deveres para com
Deus. Vamos comungar.
CAPÍTULO XXIII
Um clérigo veio desculpar-se com a Sra. de Peyrac, dizendo que Monsenhor de Laval,
depois da audiência em curso, faria uma colação ligeira. Ele esperaria pela Sra. de Peyrac
no começo da tarde.
Angélica saiu, apressada. Por nada no mundo queria faltar ao encontro com Joffrey na
casa do governador.
Na praça, hesitou. Cadeirinha? Carruagem? Qual era o melhor?
Usar as pernas. Quando se tinha pressa em Quebec, tomava menos tempo correr do que
arrebanhar criados e cocheiros.
Num instante atingiu o Castelo Saint-Louis, e já no vestíbulo avistou Joffrey, numa
animada conversa com uma encantadora morena de olhos negros, Berengária Amada de La
Vaudière, esposa do procurador Natal Tardieu.
A jovem se fizera notar logo no dia da chegada, pela sua graça amável. Sua família, de
alta linhagem, provinha de Tarbes. As senhoras e cavalheiros se preparavam para
compartilhar da refeição do governador. Enquanto esperavam, a conversa tinha por tema o
deleite daquelas senhoras que na véspera tinham recebido das mãos do plenipotenciário do
Sr. de Peyrac uma jóia, um objeto de devoção, uma miniatura ou um simples mimo.
Berengária de La Vaudière tinha lágrimas nos olhos por isso, o que os tornava ainda
mais brilhantes e negros.
Todas, no grupo, alçavam para Joffrey um olhar extasiado. Ele se escusava, sorrindo e
dizendo que tivera apenas o gesto natural de agradecer a tantas pessoas encantadoras a
acolhida amável.
Angélica, que chegava de faces coradas pela corrida, respondeu, distraída, aos
cumprimentos e se lançou na direção de Joffrey. Parecia-lhe que não o via há muitíssimo
tempo.
Mas por onde você andava? — perguntou, atormentada pela irresistível vontade de
beijá-lo e estreitá-lo contra o coração.
E você, Angélica?
Fiz uma visita ao bispo.
Como transcorreu a entrevista?
Angélica admitiu que passara uma manhã apaixonante com Margarida Bourgeoys, mas
que ainda não se avistara com o bispo.
Ao chegar, o Sr. de Frontenac beijou as duas mãos de Angélica, uma após a outra, e
fê-la sentar-se à sua direita. A sra. de Castel-Morgeat estava à sua esquerda. Tinha o rosto
inchado, e ninguém ousava fitá-la.
Depois da refeição, o governador propôs um passeio pelo seu jardim, situado pouco
acima, na encosta do monte Carmel.
Angélica abandonou o grupo: queria concluir a visita ao bispo.
Monsenhor de Lavai parecia-se com Bossuet. O pastor da Nova França tinha a mesma
compleição robusta, o contato direto, a inteligência rápida, alimentada por uma cultura que
se sentia vasta e diversificada.
Um fino bigode, apenas esboçado, uma vírgula de pêlos entre lábio e queixo
sublinhavam-lhe a boca bonita e autoritária. O nariz aquilino, a fronte alta sob o solidéu
episcopal ter-lhe-iam dado um ar dominador, não fosse pelas pálpebras um pouco caídas,
que lhe atenuavam o brilho dos olhos, comunicando-lhes uma expressão sonhadora e
benevolente.
Na qualidade de grão-esmoler da corte, ostentava simultaneamente simplicidade e
grandeza. A semelhança contribuiu para ajudar Angélica a sentir-se no mesmo nível de seu
augusto interlocutor.
Estava a ponto de falar primeiro, quando o bispo se decidiu a fazê-lo. Ela se conteve,
ele fez o mesmo. Sorriram ambos.
Angélica então externou a admiração que lhe inspiraram a catedral e a pompa das
cerimonias. O bispo não dissimulou que essas palavras lhe eram agradáveis. Sempre se via
grande em Quebec. Quando ele chegara à sua diocese, a cidade contava apenas oitenta
famílias, umas seiscentas pessoas. Mas os jesuítas já haviam dado às manifestações de
devoção aquele tom elevado de que toda a mentalidade do país estava impregnada.
Graças aos cuidados deles e das ursulinas, a geração crescida no país sabia ler, escrever
e declinar o latim. Essa base de qualidade bastante incomum o encorajava a criar o grande e
o pequeno seminários, a fim de garantir a formação de jovens clérigos entre as crianças da
terra. Havia que desviá-los da desastrosa vocação de sair pelas matas já aos quinze anos de
idade.
Deu a entender que era muito necessário aos colonos da Nova França terem um pastor
nas formas eclesiásticas conhecidas de episcopado, pois os jesuítas eram sobretudo
missionários, interessados nos índios, e os primeiros colonos não tinham, de fato, sido
orientados com suficiente rigor. Os jesuítas pensavam mais na conquista das almas dos
índios do que em manter na obediência as dos seus compatriotas... Recrutavam todo mundo
para suas expedições, quando um humilde cristão deve ficar à sombra de seu campanário e
sob o báculo de seu pastor, a fim de poder gozar do auxílio dos sacramentos, sem os quais
ele soçobra em todas as tentações, dentre as quais a do paganismo, que o espreitava sem
trégua sob aqueles céus.
Essa introdução pareceu encorajar Angélica a falar da Madre Madalena. O rosto do
bispo tornou-se mais grave. Mas Angélica entendera que ele se declarara contra o Padre
d'Or-geval, o que o obrigava a ajudá-la.
O caso é de importância. Ela suscitou emoções acaloradas.
Mais uma razão para encerrá-lo completamente, tranquilizando por minha vez, por
intermediário da Madre Madalena os que ainda possam ter dúvidas.
Você parece ter certeza de que o parecer da Madre Madalena lhe será favorável.
— O senhor quer dizer: certeza de que ela não me tomará por uma diaba? Sim, tenho,
se essa religiosa for honesta... E o senhor também tem, monsenhor. Caso contrário não me
teria recebido.
O bispo deu um sorrisinho, mas seu rosto logo se anuviou outra vez.
Pena! — suspirou.
O que quer dizer? — perguntou Angélica, alarmada.
Você terá que esperar. Para falar a verdade, eu gostaria de atender sem demora à sua
súplica. Essa iniciativa de sua parte me compraz. Mas um incidente penoso, dramático,
melhor dizendo, vai obrigá4a a aguardar. Anteontem, na noite de sua chegada, roubaram
das senhoras ursulinas uma caixa de hóstias.
No primeiro momento Angélica não viu em que isso impediria sua entrevista e por que
ele proferia aquelas palavras em voz tão lúgubre. Depois, por intuição, lembrando-se da
conversa que tivera na véspera com o mordomo Tissot, entendeu as razões profundas da
preocupação do bispo.
Temeria, monsenhor, que essas hóstias tivessem sido roubadas com vistas a serem
utilizadas em operações mágicas?
E sempre com esse desígnio que se roubam hóstias — replicou ele tristemente.
Mas, em Quebec, monsenhor... é possível? É uma terra nova, devota, austera...
costumes corr aptos assim não podem difundir-se aqui.
É uma pena! — repetiu o bispo. — Os tempos já não são os mesmos. Antigamente,
neste país, o vício era quase desconhecido. Vivia-se somente de devoção e religião, de
harmonia e caridade. Mas os perjúrios e as vilezas dos mercadores fizeram-no prevalecer
sobre a retidão e a sinceridade dos missionários. Acolhe-se um número excessivo de
ovelhas negras, de pessoas escandalosas...
Monsenhor, não estariam querendo impedir-me de ver a Madre Madalena a fim de
prejudicar-me?
Ele meneou a cabeça, apaziguador.
— A entrevista fica somente adiada — disse. — Depois do roubo, as senhoras
ursulinas iniciaram uma novena para compensar o mal que talvez seja praticado com o pão
sagrado. Há que aguardar pelo término da penitência. Mas não pretendo esquecer sua
solicitação — acrescentou.
Angélica agradeceu-lhe calorosamente. Tivera razão de dirigir-se ao bispo em primeiro
lugar. Ele parecia ter uma visão justa e saudável da situação.
Revelava-se uma personagem sensível e interessante. Probo, virtuoso, homem da Igreja
e nascido para sê-lo. Dizia-se que recebera a tonsura aos nove anos de idade.
Era bem o homem sólido e íntegro que se devia ter à testa daquela imensa diocese, três
ou quatro vezes maior do que a França...
— Monsenhor — disse-lhe —, posso fazer-lhe uma pergunta por simples curiosidade?
Por que lhe dão o título de bispo de Petréia, que, pelo que me parece, é uma cidade da
Mesopotâmia, nas escalas do Levante, quando o senhor é bispo do Canadá?
O monsenhor sorriu e disse que o estranho arranjo era fruto das encarniçadas
rivalidades de que sua candidatura fora alvo. O bispo de Rouen, de quem ele dependia,
recusara-se a nomeá-lo porque ele fora proposto pelas missões estrangeiras e apoiado por
Roma.
— A maioria dos fundadores do Instituto das Missões Estrangeiras são meus amigos
íntimos e queriam-me neste posto. De minha parte, eu pedira o Tonquim. Solucionou-se a
questão com a aplicação de um artigo do direito canónico que me permitia dispensar a
ordenação do bispo de Rouen. Fui ordenado bispo in partibus infidelium ou,
abreviadamente, bispo in partibus. E uma convenção. O bispo in partibus é promovido para
um bispado situado num país que se tenha tornado infiel, isso desde o século XII, cm seja,
quando os muçulmanos se apoderaram de cidade no Oriente ou na Africa que pertenciam
aos grandes reinos cristãos de Bizâncio ou Jerusalém.
Continuam-se a nomear para lá bispos que não podem exercer suas funções e residem em
países católicos, mas que pela sua presença parecem conservá-los no reino de Deus. Foi
assim que o núncio papal, Piccolomini, ele próprio bispo de Cesaréia, na Palestina, me
nomeou bispo de Petréia, numa tocante cerimónia que se realizou em
Saint-Germain-des-Prés, em Paris. Em seguida pude receber o vicariato da Nova França.
Então as cabalas e conflitos nâo estão excluídos dos domínios em que obram os
servidores de Deus?
Tanto quanto de qualquer outro lugar — disse o bispo, filosófico. — Talvez até
mais. Mas Deus redime a mesquinharia dos seres.
Angélica não ocultou a ele a admiração que lhe inspirara a magnificência das
cerimónias. Ele sentiu-se tocado. Falou-lhe com mais confiança. Sua maior preocupação
era ver os comerciantes de peles levar álcool para os selvagens, que se permitiam excessos
terríveis.
— Infelizmente os selvagens querem álcool em troca de suas peles — disse Angélica.
— Dizem que o álcool os põe em comunicação com o Além. E é difícil fazê-los entender o
dano que causam a si próprios.
O bispo não a seguiu nesse terreno. Nesse caso específico, os brancos eram culpados, os
selvagens também, e deviam todos fazer penitência.
— O mais simples seria não levar-lhes bebida — atalhou.
Quando se tratava de comércio de aguardente, ele perdia todo o bom humor, e
excomungaria a terra inteira.
— A Nova França poderia sobreviver sem peles?
— Seria você de tendência um tanto molinista? — sugeriu ele, referindo-se ao
molinismo, doutrina do jesuíta espanhol Luís de Molina (1535-1600), que visa a conciliar o
livre-arbítrio com a graça e a presciência divinas.
Angélica sentiu um leve pânico. Felizmente, colhera outrora nos salões parisienses
alguns conhecimentos sobre as ideias filosóficas e teológicas em voga, que lhe voltaram à
mente. E ela pôde responder que certa indulgência pelas fraquezas do próximo não quer
dizer liberalidade sem discernimento, menos ainda indiferença pela sua salvação.
A resposta deve ter sido excelente, pois o rosto do Monsenhor de Lavai iluminou-se.
Pareceu satisfeito e até vagamente divertido por não haver conseguido confundi-la.
— Você tenciona ingressar na Confraria da Sagrada Família? — indagou.
Tal proposta, vinda dele, mostrava que doravante a considerava digna de fazer parte da
confraria. Ela esquivou-se.
A Sra. de Mercourville me falou a respeito...
E uma irmandade a que a colónia deve grandes graças. Explicou que no Canadá era
preciso ter-se uma irmandade.
— Nos perigos sem conta que nos acometem, os encargos esmagadores, as
responsabilidades que recebemos neste país onde tudo está por fazer, onde nossa própria
sobrevivência está permanentemente em jogo, é bom obter o socorro das forças divinas por
intermédio de algum santo protetor, que cria o elo entre nós, pobres mortais, e o Altíssimo,
a quem Ele contempla na sua glória.
A Sagrada Família — Jesus, Maria, José, pobres, laboriosos, unidos — oferecia uma
imagem ideal ao povo isolado do canada.
Por extensão, São Joaquim e Santa Ana, avô e avó da Criança Divina, também
recolhiam muitos sufrágios.
Monsenhor de Lavai falou em seguida do culto ao Menino Jesus, a quem chamava de
Reizinho de Graça ou Reizinho de Glória.
A Catedral de Nossa Senhora de Quebec era consagrada ao patronato conjunto de São
Luís, patrono do reino da França, e da Imaculada Conceição, irmandade mariana, cujo valor
soberano mais e mais se descobria. Madre Maria da Encarnação, uma das fundadoras
ursulinas que morrera recentemente em Quebec e que a Igreja certamente reconheceria um
dia como uma de suas grandes místicas, tão evidente era a sua afinidade com Santa Teresa
d'Ávila, tinha o hábito de dirigir-se ao Pai eterno.
O Santíssimo Sacramento também tinha os seus adeptos. Talvez até predominasse, mas
não se podia saber ao certo, pois era uma confraria secreta muito influente. Podia-se
adiantar que a maioria das pessoas de destaque faziam parte dela, e não se devia esquecer
que Gastão de Meury, que fora a alma dessa irmandade, encontrava-se na base da fundação
do Canadá e do seu clima místico.
— Consulte seu confessor — disse-lhe o bispo, levantando-se —, ele a aconselhará.
Todos devemos ter um amigo para interceder por nós no céu.
Angélica fez uma genuflexão para beijar o anel pastoral. O bispo não parecia
descontente com a entrevista. Devia aprovar as pessoas que não o temiam e que debatiam
francamente com ele... Acompanhou-a até a porta.
No pátio do seminário, Angélica parou e respirou fundo duas ou três vezes. O ar estava
gelado e revigorante. Ocorreu-lhe que se uma conversa com o bispo a esgotara a tal ponto,
como não teria sido se tivesse precisado enfrentar o Padre d'Or-geval? Graças a Deus! O
céu só lhe enviava provas na medida de sua forças. Levando-se" em conta todos os temas
abordados, roçados, contornados, as questões feitas, as ciladas armadas, e se se excetuasse
o molinismo, no qual ela derrapara um pouco, concluiu que não se saíra muito mal. Tinha
que reconhecer as suas "insuficiências", como dizia Margarida Bourgeoys, admitir que
andando por matas e mares não se enriquecera muito no domínio da teologia, da filosofia e
da retórica.
As senhoras da Nova França possuíam em sua maioria um elevado grau de cultura. Ia
pedir-lhes livros e daria um jeito de ir às conferências e sermões.
Além disso, precisava encontrar um confessor o mais breve possível, e escolher uma
irmandade.
CAPITULO XXIV
CAPÍTULO XXV
Sabia-se que o objetivo da reunião do Conselho extraordinário era discutir tudo que
concernia à presença na cidade do Sr. de Peyrac e suas tropas. Seria a ocasião de se discutir
o rumo que os acontecimentos tinham tomado e reexaminar diferentes aspectos que só fora
possível mencionar de passagem, quando da assembleia noturna da primeira noite. Cada um
redigira um apanhado e conjecturava sobre as próprias possibilidades de intervir nos
debates. Mas ninguém esperava o ataque do procurador Tardieu e a natureza de suas
reivindicações. Tiveram todos que admitir que, se ele desejara causar pasmo, atingira
plenamente o alvo.
O jovem Tardieu de La Vaudière, no tom autoritário de que gostava, ergueu-se contra a
ação fraudulenta que consistia em introduzir na Nova França mercadorias estrangeiras e
pô-las em circulação sem antes haver-lhes saldado as taxas alfandegárias.
Que mercadorias? — perguntou o intendente.
De todo tipo.
Mas quais?
Natal Tardieu fez um sinal a seu escrivão para que lhe passasse um longo relatório,
cheio de dados, que ele leu apressadamente com gestos de mãos que davam a entender que
ele saltava trechos, tanto havia o que ler.
— Quadros religiosos de bela confecção. Ornamentos de igreja, objetos de culto,
objetos de ouro, de prata, marfim, prata dourada, pedras preciosas, tecidos, sedas, veludos,
tapeçarias, esmaltes, nácares, objetos científicos em que entram ébano e palissandra,
mármore de Carrara, etc. — E prosseguiu: — Perfumes, fumo da Virgínia e de Maryland,
vinhos e licores de diferentes procedências, etc.
Mercadorias duplamente taxadas, não somente como estrangeiras, mas também como
de luxo. Numa primeira estimativa, ele avaliava ali uma soma vultosa, de que o devido, e
não pago, à colónia não podia passar em silêncio. Certos objetos precisariam ser
examinados com cuidado, como o relicário de prata dourada, por exemplo, pois para
estimar-lhe o valor era necessário saber se ele trazia uma marca de origem ou não.
Mas isso são presentes! — bradou Monsenhor de Lavai, melindrado com tais
pretensões.
Perdão, mercadorias — não temeu retificar o jovem procurador.
Não contou as munições? — ironizou Ville-d'Avray. — As duas balas estrangeiras
que foram fixar-se na parede do Sr. de Castel-Morgeat?
Não conto as munições — tornou o outro —, mas um navio, sim... o que não é nada
negligenciável... O seu, Sr. de Ville-cTAvray.
E como o marquês ficasse sem palavras:
— Não lhe ouvi dizer que um dos navios ancorados na baía lhe pertence, um presente
que o Sr. de Peyrac lhe teria dado?
Ville-d'Avray ficou rubro de indignação. Durante alguns instantes, Natal Tardieu de La
Vaudière pôde perorar a seu bel-prazer e fazer ressoar as abóbadas decoradas com frisos de
madeira do salão do Castelo Saint-Louis com sua voz sonora e bem-colocada, já que seu
requisitório tivera a virtude de fechar a boca de todos os presentes.
O bispo, desconcertado, indagou-se se não haveria um atentado à Igreja ou à sua pessoa
naquela aplicação excessivamente conscienciosa das leis temporais.
Frontenac não encontrava o que dizer. Desde que desembarcara no Canadá, aquele
jovem administrador cheio de promessa não parava de preocupá-lo, tanto quanto de
pasmá-lo.
Os mercadores, taciturnos, meditavam sobre as dificuldades que já tinham
experimentado e que não deixariam de experimentar ainda com um procurador fiscal tão
astuto quanto fanático.
Mas aquele navio me foi dado em troca do meu pobre Asmodée, afundado pelos
bandidos! — explodiu afinal Ville-d'Avray, que recobrara o fôlego. — Cuidado! Se me
provocar, reclamarei uma indenização pelo que perdi a serviço do rei. E, acredite-me, o
montante ultrapassaria de longe o que tenta arrancar-me como taxas, abutre...
Quer insinuar que se trata de uma presa de guerra? — interrogou o intratável,
avançando um lábio desdenhoso.
Presa de guerra! — exclamou Basílio, batendo com as duas mãos na mesa.
Desde o início da altercação, ele permanecera pensativo, acariciando o queixo e
examinando Natal Tardieu de La Vaudiè-re, como faria com um animal desconhecido, mas
cujos motivos é absolutamente necessário entender a fim de torná-lo o menos perigoso
possível e reduzi-lo ao silêncio.
— Presa de guerra! Eis a solução, meu rapaz — continuou, pousando a mão no braço
do procurador, que não apreciou muito a familiaridade. — Estaria eu enganado ao supor
que você está menos preocupado em receber essas taxas para metê-las nas caixas do Estado
do que em encontrar uma justificação para a livre entrada dessas mercadorias, sem que se
possa acusá-lo, em altas esferas, de negligência ou mesmo de conivência com os
defraudadores? Sua posição nem sempre é fácil, e não lhe queremos mal por isso. Sabemos
que você é como todos nós, e que não faz tanta questão assim de pagar um imposto sobre o
maravilhoso relógio de ouro e esmalte de que sua esposa se ufana desde ontem,
alinhando-se assim entre os culpados. Sua observação a propósito do navio do Sr. De
Ville-d'Avray prova que está a caminho de uma forma conciliatória que satisfaça a todos.
As presas de guerra, consideradas como butim, não são taxadas...
Ville-dAvray, compreendendo a intenção do negociante, lançou-se num dramático
relato, tendendo a demonstrar com ardor como seu navio fora conquistado em luta
encarniçada com horríveis piratas. Falava com convicção. Os acontecimentos trágicos do
verão não estavam assim tão distantes.
— Pouco faltou para que eu ali deixasse a minha vida... — o que era verdade. Em todo
caso, ele perdera o navio, o Asmodée. Começava a traçar um quadro sombrio da situação na
baía Francesa, infestada de ingleses e de piratas de todas as nações, mas os assuntos da
Acádia aborreciam Frontenac.
No que concerne a seu governo da Acádia — disse ele a Ville-d'Avray —, teremos
uma sessão especial. Hoje, nosso objetivo é iniciar conversações com o Sr. de Peyrac, e
estamos a nos perder em discursos frívolos. Sr. de La Vaudière, decida-se, peço-lhe, e eu o
aconselharia a fazê-lo no sentido proposto pelo Sr. Basílio, que me parece conciliar o seu
justo desejo de isentá-lo de toda a responsabilidade e a cortesia que nos deve e que deve
reinar entre nós. Conservaremos os nossos presentes: presa de guerra...
Então a embarcação me pertence, sem contestação possível? — certificou-se
Ville-d'Avray.
Plenamente.
No alívio que se seguiu, o intendente Carlon teve uma frase infeliz. A Ville-d'Avray,
que começava a enumerar os trabalhos que tencionava realizar para embelezar sua "presa
de guerra", ele lançou, secamente sarcástico:
Mas comece mandando exorcizar seu navio...
Exorcizar por quê? — perguntou o Monsenhor de Lavai, admirado.
João Carlon mordeu a língua. Como a evocação do navio o reconduzira aos eventos
diabólicos de que, malgrado seu, fora testemunho, ele falara sem pensar. Saiu-se com um
"Eu estava brincando", que surpreendeu mais ainda, pois ele passava por uma pessoa de
espírito austero e não era comum vê-lo brincar. O marquês foi-lhe em socorro, explicando
que o navio fora tripulado por corsários, certamente ateus.
O bispo aproveitou o pretexto para comunicar ao Grande Conselho uma decisão que
tomara desde a véspera. Observou que cada vez mais, com o correr dos anos, chegava à
Nova França uma ralé de um e outro sexo, que causava inúmeros escândalos: impurezas,
estupros, furtos, assassinatos, atos de magia e de feitiçaria. Uma forte armadura religiosa
era a melhor defesa contra esses perigos. No entanto, para maior segurança, o bispo
resolvera, neste ano, ordenar um exorcista.
Os três primeiros conselheiros, que eram devotos, aprovaram. O Sr. de Frontenac,
descontente, disse consigo que o bispo bem poderia ter esperado para estar no púlpito,
domingo, para fazer seu comunicado. Mas, antecipando-se a ele, Monsenhor de Lavai
expôs que julgara preferível prevenir primeiro o Grande Conselho de seu projeto. Também
fazia questão de falar diante do Sr. de Peyrac, a fim de que este não se considerasse visado,
ele e sua comitiva, por uma decisão que deveria ter sido tomada há muito tempo pelas
autoridades eclesiásticas. Mas o mal era uma lepra que se alastrava insidiosamente. Era vão
mostrarem-se vigilantes, às vezes ele se antecipava. Sob uma aparência honrosa, pessoas
submetidas aos costumes nocivos e depravados da época desembarcavam em Quebec e trai-
çoeiramente lhe transformavam o espírito. Era preciso opor às influências deletérias as
armas tradicionais destinadas a combatê-las.
O Conde de Peyrac agradeceu ao monsenhor pela sua civilidade. Garantiu que todos os
homens sob sua bandeira respeitariam as leis civis e religiosas. Caso as infringissem,
seriam punidos com a mesma severidade que a bordo de seus navios.
O bispo concluiu, avisando que a cerimónia de ordenação do exorcista transcorreria no
sábado de Têmporas do Advento, dia reservado à ordenação dos "minorados", ou seja, das
quatro ordens menores ligadas ao serviço da catedral.
— Pois bem, falemos imediatamente sobre a Sra. de Maudribourg! — decidiu
Frontenac, sem adivinhar a perturbação em que sua abrupta intervenção lançava alguns dos
presentes, acelerando-lhes os batimentos cardíacos.
Falara sem intenção alguma. O encadeamento dos pensamentos o levara do navio de
Ville-d'Avray ao navio desaparecido da Sra. de Maudribourg, que se afogara deixando-lhe
nos braços um grupo inteiro de moças a casar.
Insensível à comoção que provocara involuntariamente, prosseguiu:
O que aconteceu? Onde... quando ocorreu o naufrágio do navio dela, o... ?
La Licorne — disse o sr. Gualberto de La Melloise.
Está a par? — indagou Frontenac.
Estou a par na medida em que a vinda desse navio fretado por uma dama benfeitora,
rica e devota, a Duquesa de Maudribourg, me fora anunciada para o outono e recomendada
por pessoas de destaque da Companhia do Santíssimo Sacramento, que nos pediram, ao Sr.
de Longchamp, ao Sr. de Va-range e a mim, que tratássemos de seu estabelecimento em
Quebec. Não sei mais nada.
Assim, Ambrosina previra seguir para Quebec, depois de cumprida sua missão
devastadora na Acádia. Sempre encontrava homens dispostos a colocar-lhe fortuna e navios
aos pés.
— Então? — perguntou o governador, correndo o olhar à volta.
O intendente Carlon tomou a palavra com sangue-frio. Contou como, durante sua
viagem de inspeção pela Acádia, encontrara os condes de Peyrac, que se preparavam para
zarpar para Quebec. Eles acabavam de recolher as únicas sobreviventes do naufrágio do La
Licorne, que se perdera completamente.
Fui testemunha da miséria dessas infelizes. A sorte delas dependia unicamente da
sociedade constituída pela sua benfeitora, a Sra. de Maudribourg. O desaparecimento desta,
do navio, dos cofres das cartas e autos de contrato, deixou-as sem nada. Elas se diziam
Moças do Rei...
Deve haver um meio de saber-se quem eram os comanditados e os associados da Sra.
de Maudribourg na França...
Que meio? Não vejo meio algum, antes do regresso dos navios, na primavera...
Uma dessas moças, Delfina, parece bem inteligente. Tentarei interrogá-la —
interveio a Sra. de Mercourville.
O Sr. Haubourg de Longchamp tirou dos bolsos uma tabaqueira e encheu as narinas de
tabaco, refletindo. O fato de esquecer-se de pedir licença para isso ao governador provava
sua preocupação. Estava preocupado de fato. Disse que o nome Maudribourg não lhe era
desconhecido. Na sua última viagem à França, tinha a impressão de que ouvira ecos
desfavoráveis a essa senhora, um pouco exaltada, cujos objeti-vos pareciam extravagantes.
Quer dizer que a Sra. de Maudribourg carecia de fundos para sustentar seus
empreendimentos? — perguntou Tardieu de La Vaudière, alarmado.
O Conde de Varange, porém, que a conheceu ligeiramente em Paris, garantiu-me que
a Sra. de Maudribourg herdara do marido uma fortuna enorme — retificou Gualberto de La
Melloise.
— A família do falecido faria oposição ao testamento, contra a viúva?
Gualberto não sabia nada de preciso. Ajudara na instalação da fidalga em Quebec
porque fora solicitado a isso pelo Sr. Le Charrier, que tinha em Paris o cargo de procurador
da Companhia do Santíssimo Sacramento, homem de grande mérito, membro da Ordem
Terceira da Penitência, franciscana. Este lhe garantira que a iniciativa da Sra. de
Maudribourg contava com o apoio dos jesuítas, sem proferir nomes, mas dando a entender
que se tratava de jesuítas influentes, próximos ao rei.
Os ruidosos espirros do Sr. de Longchamp, sob o efeito do tabaco, dispensaram-no de
lembrar-se com mais precisão.
Angélica, calcando a própria atitude na do marido, exibia a maior calma. Carlon não se
sentia à vontade, mas nada deixava transparecer.
— O que aconteceu aos mortos já não é da nossa alçada — atalhou. — Há que
determinar o destino dos vivos, ou seja, dessas moças que nos chegam completamente
despojadas, sem contrato, sem noivado, sem que possamos sequer mandá-las de volta para
a França, visto que a estação já vai demasiado avançada. Tampouco podemos ter certeza,
quando as comunicações se reiniciarem, de que encontraremos a sociedade que nos
reembolsará pelas nossas despesas.
Seguiu-se uma troca de propostas confusas e reservadas.
— Por que não apresentá-las a jovens desejosos de se estabe lecer, conforme estava
previsto?
Dispararam explicações e protestos.
— Elas já não têm dote. E será que são Moças do Rei mesmo? Onde se há de ir buscar
dinheiro para constituir-lhes um dote?
A Sra. de Mercourville entrou em cena. Deu prova de qualidades precisas de
organizadora, sugerindo que se deduzisse do orçamento da colónia as cem libras de dote
previstas para cada noiva, descontando-se essa despesa das gratificações previstas pelo
"Estado do domínio".
— Que seja — concedeu Tardieu de La Vaudière. — Mas então, senhor intendente,
será necessário prever uma diminuição nas somas que destina ao desenvolvimento de seu
baronato das ilhas Verdes.
— E é venenoso ainda por cima — sussurrou Ville-d'Avray a Angélica. — Esse rapaz,
um dia, acaba assassinado...
Desdenhando a reflexão, João Carlon propôs que ao invés disso se recorresse ao
"Estado do rei".
A que departamento? — indagou o procurador.
Assistência... — disse a Sra. de Mercourville.
Religião — lançou Basílio.
Os três primeiros conselheiros insurgiram-se. Eram fabri-queiros de Nossa Senhora,
encarregados de gerir financeiramente a fábrica, ou seja, a paróquia de Quebec, e sabiam
como era estreita a margem que lhes fora concedida quando estabeleceram o "projeto de
fundos" para o ano seguinte.
O governador deu de ombros.
O "projeto de fundos" que previa as despesas acabava de ser enviado pelo último navio
do outono. Mais uma vez, só na primavera ficariam sabendo da decisão do rei, discutida pe-
lo Conselho da Marinha e do Comércio.
Nisso alguém sugeriu que se fizesse" recair as despesas sobre os proventos da fazenda
do rei, descontadas do imposto sobre as peles ou dos carvalhos abatidos para os mastros de
navios ou qualquer outro uso, mas cuja renda era reservada exclusivamente à coroa.
O intendente concordou com uma fórmula que lhe permitia poupar seu baronato das
ilhas Verdes, situada perto de Beauport.
Também era necessário reunir o indispensável enxoval. A Sra. de Mercourville
anunciou que se dirigiria às confrarias de caridade e às organizações.
Poucas mulheres dispunham de supérfluos no Canadá, mas cada uma delas conseguiria
descobrir no próprio guarda-roupa trajes usados de primeira necessidade.
Ainda faltava encontrar o mais difícil: o marido.
— Nossos jovens não são assim apressados por se estabelecer — confiou Frontenac a
Angélica.
Nascidos na terra, eram alegres doidivanas, loucos por espaço e liberdade. Para retê-los,
impedi-los de partir para as matas a tentar a sorte na aventura das peles e forçá-los a formar
uma família, tinham-se editado leis severas. Se um rapaz até a idade de vinte anos ou uma
moça até os dezessete não estivessem casados, os pais tinham que ir explicar-se às
autoridades. Pesadas multas incidiam sobre os genitores dos recalcitrantes. Na época em
que chegavam os comboios mais numerosos de Moças do Rei, todo celibatário que não se
casasse num prazo de quinze dias perdia os direitos de caça e pesca e sua "licença" de via-
jante, que o autorizava a partir para as tribos, a trocar mercadorias por castores. Valia dizer
que ele já não podia mais viver...
CAPITULO XXVI
"Todos reinam"
CAPÍTULO XXVII
Angélica voltou para ver a Polaca e lhe contou da visita ao bispo. Precisava escolher
uma irmandade.
Escolha a do Pai Eterno! — aconselhou a outra.
Como a Madre Maria da Encarnação, das ursulinas.
Não! Como todos os malandros de Paris. Esqueceu?... A estátua do Pai Eterno na
esquina da Rue de la Pierre-aux-Boeufs, no Faubourg Saint-Denis. As preces que lhe
fazíamos! Ah, ah, ah! Quantas blasfémias e maldições...
Depois de gargalhar ruidosamente, persignou-se e se pôs séria de novo.
— Não se deve rir dessas coisas. Não, chega! Que Deus me perdoe! O passado está
apagado. Confesso-me com frequência. Não quero arder no inferno.
Angélica às vezes era presa de estupor. Não conseguia crer que falava com a Polaca e
que com ela vivera tantas coisas terríveis.
Perguntou quando conheceria o ativo Gonfarel, cuja referência ouvia de todo lado.
Estavam nesse ponto da conversa quando um rumor no porto as levou para a entrada do
albergue.
As pessoas, que se aglomeravam aos poucos, apontavam do outro lado da enseada de
Quebec grandes barcas que rebocavam com cordas um navio desmastreado que adernava e
parecia a ponto de ser engolido pelas águas a cada instante.
Mas é o Saint-Jean-Baptiste! — bradou Janine Gonfarel.
Vão pô-lo a pique — disse alguém.
Como um relâmpago, um pensamento consternante atravessou o espírito de Angélica: e
o urso, Mister Willoagby, que está a bordo?
Na coberta do navio naufragado, o urso amestrado de Elias Kempton adormecera seu
sono hibernal, e eis que agora levavam para o largo, para pô-lo a pique, o destroço que lhe
servia de refúgio!
Assim como a Polaca, a seu lado, mas por outro motivo, de início ficou sem voz.
Depois a dona da taberna Ao Navio de França se pôs a invectivar as pessoas à volta,
instando para que impedissem aquilo. De suas frases sem nexo, por causa da indignação e
do desespero, depreendeu-se que ela e o marido eram proprietários, em parte, do
Saint-Jean-Baptiste, que era uma fortuna que ia desaparecer, que eles iam se arruinar...
Janine Gonfarel arrancou a coifa com laços, correu para a praia, fazendo sinais em vão.
Entre os curiosos, alguns casquinavam, outros balançavam a cabeça, poucos se condoíam:
Esse navio está empestado! — disse um.
Esse navio me pertence! — retorquiu Janine Gonfarel.
Resolveram afundá-lo.
Quem decidiu? Qual foi o filho da puta que me aprontou essa? Foi o procurador,
tenho certeza... Ou então o major... Não, foi Le Bachoys... É bem do feitio dele... E o
jesuíta que não está aqui... Marquesa, faça alguma coisa, rogo-lhe — disse a meia voz,
reaproximando-se da amiga. — Não posso ir ao governador. Mas se seu "cicatrizado"
quisesse intervir... Ele já os controla a todos. Não se pode deixar que façam isso.
Sim, você tem razão. Não se pode deixar que façam isso — repetiu Angélica,
francamente consternada.
Corria os olhos à volta, procurando alguém que a ajudasse. Por sorte avistou uma
grande chalupa que atracava na enseada do fundo da baía, equipada por homens do
Gouldsboro sob o comando do quartel-mestre Vanneau. Apressou-se a ir ao encontro deles.
Vinham do cabo Rouge. Vanneau pôde dizer-lhe que o Conde de Peyrac devia estar na
cidade.
— Vou tentar encontrá-lo — disse ela a Vanneau —, mas enquanto isso faça todo o
possível para deter o comboio que es tá levando o Saint-Jean-Baptiste para afundá-lo em
alto-mar.
Suplicou-lhe que disparasse imediatamente um foguete e sinais para que se detivessem
e que remasse vigorosamente até eles, para convencê-los a esperar pela contra-ordem.
— Ganhe tempo! Seja quem for que tenha dado essa ordem, inclusive o governador,
assumo a responsabilidade de suspendê-la. Foi um mal-entendido.
Ia correr até o solar de Montigny, que lhe parecia desesperadamente distante, sem
sequer ter certeza de que encontraria o marido.
Depois de ver a chalupa partir sob o impulso de seis remadores e de lançar algumas
palavras de encorajamento à Polaca, lançou-se pelas ruas e começou a subir a encosta da
montanha. Procurava Piksarett com os olhos. O índio, com suas longas pernas, lhe seria
preciosíssimo.
Uma carruagem, que subia não sem dificuldade, vindo por trás, alcançou-a. A encosta
era tão íngreme, que os dois cavalos, a cada passo, avançavam uma distância mínima.
Havia que ter paciência quando se subia a encosta da montanha. O cocheiro balançava a
cabeça. A carruagem balançava ao sabor dos seixos com que topava. Era uma belíssima
carruagem, com um monograma marcado na portinhola e cortinas de cetim com franjas
douradas.
Quando o veículo a ultrapassava, o bonito rosto de Beren-gária Amada Tardieu de La
Vaudière surgiu por entre as franjas das cortinas.
Senhora, o que está acontecendo? Parece ansiosa.
Estou à procura de meu marido — lançou-lhe Angélica, que logo se censurou por
parecer ansiosa, o que a tornava ridícula. Teve a impressão, certa ou errada, de ver um
clarão de divertimento brilhar nos olhos da buliçosa criatura.
O Sr. de Peyrac? Tenho alguma ideia sobre o lugar onde encontrá-lo — disse a
outra, com ar importante. — Suba...
O lacaio já pulara em terra e abria a portinhola diante de Angélica, que entrou. A
carruagem partiu com um gemido de todos os eixos. As ferraduras dos cavalos deslizavam
nas pedras.
CAPITULO XXVIII
Formava-se o último comboio, pronto a partir para Montreal. Logo os gelos estariam ali
e interromperiam o tráfego fluvial entre as três cidades da Nova França: Trois-Rivières,
Montreal e Quebec. Não havia outra rota a interligá-las além do Saint-Laurent. A rigor,
podiam-se despachar mensageiros de trenó ou calçados com raquetes pelas pistas do rio
congelado, mas as tempestades do inverno tornavam perigosas essas expedições.
Assim, os canadenses se despediam por vários meses.
Os trifluvianos, de Trois-Rivières, todos de gorro branco, seriam deixados de passagem
nas margens da sua cidade plana, pequena Veneza polar, espalhada pelas suas ilhas entre os
canais de um delta que drenava rios vindos das Terras Altas.
Os montrealenses e seus gorros azuis retornavam ao seu feudo da pele e da prece,
Ville-Marie, a Santa, ao pé do monte Royal, oitocentas léguas acima de Quebec,
assinalando o fim do rio navegável.
Os viajantes de partida haviam se agrupado na enseada do Sault-au-Matelot, aos pés das
altas casas da rua do mesmo nome. O sol brilhava, e as janelas de madeira, pintadas de
cores vivas, cintilando de azul, vermelho e amarelo as fachadas de pedra, davam um ar de
alegria à cena.
Um vento forte varria o céu de jade, onde se dissolviam e se reagrupavam o tempo todo
formações de nuvens de um sépia escuro ou cinza-carbonáceo, ourelanos de
amarelo-enxofre.
Ainda livre para rolar suas ondas tumultuosas, o Saint-Laurent continuava a ostentar em
seus coloridos e matizes os mais loucos adornos. Refletindo os movimentos do céu, naquela
manhã ele fazia circunvoluções ora negras ora cor de mel, atravessadas por correntes de
esmeralda.
Da praia estreita, o rio impressionava, descobrindo-se em toda a sua potência e
caprichos de réptil gigante, que, depois de se enroscar preguiçosamente em torno da ilha de
Orléans, insinuava-se por entre os promontórios gémeos de Levis e do cabo Diamant, para
se lançar para oeste resolutamente.
Para além de Trois-Rivières, ele inflaria de novo, formando as belas superfícies do lago
Saint-Pierre, e continuaria, ainda majestoso e vasto, para ir rodear com seus braços glaucos
a grande ilha de Montreal e a irmãzinha desta, a ilha de Jesus.
"O caminho que anda", diziam os índios. Assim era esse rio-mar, Nilo do Setentrião.
Atraente, magnífico e traiçoeiro, um monstro...
Suas tempestades, suas correntes infernais, seus rochedos cheios de traição tornavam-no
temível. Seus desastres e naufrágios já não se contavam, nem as vidas humanas e bens con-
sideráveis que ele tragara em suas entranhas geladas.
No entanto, era amado. Era sempre com prazer que o reencontravam, e a excitação da
navegação fazia brilhar antecipadamente os olhos dos viajantes.
Angélica fizera-se acompanhar do Sr. Tissot, o mordomo, e seus auxiliares, que
carregavam cestos dentro dos quais ela mandara pôr provisões a serem entregues à Srta.
Bourgeoys e suas jovens. Notara como eram caridosas aquelas pessoas, e como careciam
do essencial.
As crianças também integravam o grupo, assim como Io-landa e Ademar, os jovens
pajen-s, Elói Macollet e Piksarett, que readotara a pele de urso, o arco e as flechas, e levava
tacape e machadinha passados na cintura. Como de hábito, havia muitos índios misturados
à multidão.
Avistou-se o Marquês de Ville-d'Avray, pois ele estava sempre presente onde havia um
acontecimento qualquer. Foi ao encontro de Angélica para mostrar-lhe algumas pessoas
entre as que ela ainda não conhecia. Indicou-lhe a Sra. Le Bachoys, de quem ela ouvira
falar como de uma mulher forte sob todos os pontos de vista. Estava acompanhada das
filhas, mas os genros também se encontravam ali, bem como as crianças. O Sr. de
Chambly-Montauban e Romano de UAubignière faziam parte da comitiva, pois o primeiro
estava de olho na filha mais velha, uma jovem um tanto alta, o que era raro no Canadá, e o
segundo cortejava a mais nova, uma bonita morena de dezoito anos. A Sra. Le Bachoys ria
e lançava ditos espirituosos e imediatamente atraía uma corte à sua volta.
Naquele dia, dividia as atenções com Angélica, cujo aparecimento sempre provocava
ajuntamentos.
O Sr. d'Arreboust tentava aproximar-se da Srta. Bourgeoys para entregar-lhe uma carta
à mulher, Camila d'Arreboust, que consagrara a vida a Deus e se retirara como reclusa em
Ville-Marie, a fim de ali encerrar os dias na prece e mortificação.
Duas grandes barcas estavam atracadas. Na popa de cada uma, um toldo aberto
proporcionaria às mulheres um abrigo na eventualidade de mau tempo.
Angélica avistou a pequena família de novos imigrantes, que conhecera na antecâmara
do bispo. Esperavam, de alforjes na mão, sob a égide do patrão, o Sr. de La Porterie.
Devidamente equipados com confortáveis capotes de sarja marrom e com botas indígenas,
já apresentavam melhor aspecto. Seriam desembarcados na margem, nas proximidades da
paróquia, onde ficava o seu futuro domínio. Passariam o inverno na casa de um morador da
região, onde se iniciariam nos rudimentos da vida canadense. Depois, quando chegasse a
primavera, começariam a limpar o terreno e a construir sua casa.
Também de regresso ao seu solar à beira do rio, um jovem senhor de uns vinte anos,
acompanhado da mulher que mal teria dezessete, agradecia com efusão ao Sr. de Bernières,
cura de Quebec e diretor do seminário, que lhes dera a honra de batizar a filhinha
recém-nascida.
A jovem viera durante o verão, para dar à luz na Santa Casa de Quebec.
Durante todo o tempo que se levou para carregar as barcas com caixas, arcas, tonéis,
fardos de todo tipo de mercadoria, o Sr. de Bernières, o simpático eclesiástico de uns
quarenta anos de idade, segurou o bebé nos braços com cuidados maternais.
Contemplava, enternecido, a menininha e recomendava à jovem mãe que cuidasse bem
dela. O jovem casal lhe era um pouco aparentado, originário, como ele, de uma ilustre
família da Normandia. Quisera que a criança se chamasse Jordânia, assim como uma de
suas tias, irmã do seu tio João de Bernières, o grande místico de Caên, amigo da Sra. de La
Pel-trie, uma das fundadoras do Canadá.
Ville-d'Avray reteve por longo tempo a Sita. Bourgeoys. Angélica chegou a achar que
não poderia dirigir-lhe sequer algumas palavras de despedida. Segurando Querubim pela
mão, o marquês perorava, sem se preocupar com os demais.
Não estou disposto a confiá-lo aos jesuítas — dizia ele —, nem àqueles senhores do
seminário.
Em todo caso, ele ainda é muito pequeno para iniciar os estudos — respondia a Sita.
Bourgeoys.
E isso. Gostaria de confiá-lo a uma educadora como a senhora, Madre Bourgeoys,
pois ele tem que seguir carreira.
Tem, por quê? E que carreira? — ouviu-se nitidamente a Sita. Bourgeoys indagar.
Pajem do rei. Não pode haver outra carreira para ele. Mas eu gostaria de levá-lo para
a França já civilizado, com uns oito ou nove anos. Deixá-lo com Marcelina, a mãe?
Impossível! É uma mulher excelente, a quem adoro, mas ela jamais sairá de sua feitoria no
fundo da baía Francesa. E não posso deixá-lo lá para vê-lo transformar-se num rústico
como todos os outros bastardozinhos dos irmãos Défour... Isso, nunca.
Ei, no que é que está se metendo? — resmungou Amadeu Défour, que, exatamente a
dois passos de distância, se ocupava em retirar uma corda de uma estaca de amarração.
O Barão de Vauvenart, acadiano, postava-se entre os que ficavam em Quebec, assim
como Grand Bois. Os dois tinham resolvido aproveitar a estada na. capitaj^p^ra, encontrar
esposas.
Vauvenart cortejava uma viúva, rica e atraente, a quem chamavam de Rendeira, pois era
de Flandres e praticava a delicada arte da renda. Morava na rua de Angélica, que, ao passar,
ja a vira sentada diante da janela, debruçada o dia inteiro sobre a almofada onde cravava
seus alfinetes.
Então declarou Querubim seu filho perante o mundo? — observou Angélica, quando
Ville-d'Avray foi ao seu encontro.
Com a Sita. Bourgeoys, é inútil fingir. Ela percebeu logo à primeira olhada... É
verdade que ele se parece muito comigo — disse, contemplando Querubim.
E o que foi que. ela lhe aconselhou para lhe acalmar as preocupações paternas?
Que o deixe aos seus cuidados... coisa que eu já pensava fazer, naturalmente.
Agora era Elói Macollet que conversava com a fundadora da Congregação de Nossa
Senhora. Via-se que ela o repreendia a meia voz e que ele aquiescia docilmente, meneando
a cabeça.
Depois foi o Sr. d'Arreboust, que lhe entregou a carta. Angélica ouviu-o recomendando:
A senhora lhe dirá que a amo...
Por que não vem dizer-lhe pessoalmente? — disse a religiosa.
O bulício não permitiu ouvir-lhe a resposta, mas de repente o Sr. d'Arreboust voltou,
gritando:
— Vou partir!
Chamou seus criados, mandou-os correr até a casa para trazer uma ou duas roupas, o
estojo de barbear, o cofre.
O marinheiro-chefe avisou que se aproximava a hora da maré alta. Não se podia perder
aquele momento em que a corrente virava e quando as embarcações eram arrastadas rio
acima, o que fazia ganhar tempo. O vento estava favorável.
A animação se fez mais premente e ruidosa. Traziam-se as últimas mercadorias. O Sr.
Le Moyne, um dos primeiros colonos de Ville-Marie, hoje comerciante bem abastado, um
grande ladino, vestido de tecidos opulentos, acompanhado do filho adolescente, cuidava
pessoalmente da estivagem de vários bar-riletes de vinho da Espanha. Passava-se bem em
Montreal.
Surgiram duas carruagens, com franjas e plumas, sacolejando e cambaleando depois da
rude descida desde a Cidade Alta. A chegada delas desviou a atenção. As pessoas que delas
saíram afetaram abertamente não se misturar ao populacho.
Entre elas havia senhoras muito coloridas e maquiladas, e gentis-homens que não o
eram menos, numa excessiva profusão de adornos.
As mulheres brincando com os leques e os cavalheiros apoiando-se ao pomo de prata ou
marfim de longas bengalas, dirigiram-se todos para a extremidade do cais, olhando obsti-
nadamente na direção da ilha de Orléans, de onde pareciam esperar alguém.
Uma mulher de certa idade, muito elegante e falando alto, dava a impressão de estar à
testa desse grupo. Ville-d'Avray e Chambly-Montauban foram os únicos a ir
cumprimentá-la e a trocar algumas palavras com os amigos dela, em meio a muitos rapapés
e exclamações de papagaios, que pareciam de rigor entre eles.
É a Sra. de Campvert — informou Ville-d'Avray, voltando para junto de Angélica.
— O rei a exilou porque trapaceava demais no jogo. Ela acompanhou o jovem amante,
oficial do Canadá, para onde foi nomeado no comando de uma companhia. Ela joga, joga
tanto que tem a ponta dos dedos gasta. Mas dá algumas belas recepções.
Tivemos ocasião de conhecer essas pessoas no dia de nossa chegada?
Algumas... Não conheço todas. A Sra. de Campvert se mantém um pouco à
parte.'Tem o seu próprio mundo, e se enfurece tanto por estar no exílio, que prefere
esquecer que se encontra aqui. Há alguns cavalheiros que chegaram durante a minha
ausência. Mas logo saberei quem são.
Um barco de uma vela só, vindo da ilha de Orléans, atracava. Um homem bem idoso,
envolto num manto que arrastava pela areia molhada da praia,-pois ele se mantinha
arqueado, desembarcou e logo se viu rodeado por aqueles que o aguardavam, como uma
revoada de papagaios.
Ville-d'Avray voltou para se informar.
— É um tal Conde de Saint-Edme, que acompanha o Duque de La Ferté. Dizem que
esse velho é mágico e que foi à ilha de Orléans consultar uma feiticeira. Eis uma
companhia bem estranha! Espero que não nos estraguem o inverno.
O grupo mundano retornava, afetando desdenhar a multidão canadense ocupada com o
embarque.
Um dos cavalheiros, ao passar, voltou-se para Angélica e lhe dirigiu uma saudação com
o chapéu emplumado. Ela não respondeu. Fez que não notou o gesto. Sentia-se feliz e quase
orgulhosa por estar ao lado da Srta. Bourgeoys, Loménie ou Vauvenart, ou de todos aqueles
gorros vermelhos, azuis ou brancos, o que provava que pelo menos fora adotada pela po-
pulação canadense.
Um resultado mais rápido do que ousara esperar. Mas ela também achava que aquela
gente empolada e extravagante estava deslocada em Quebec.
Enquanto se aguardava a bagagem do Sr. d'Arreboust, Angélica pôde finalmente chegar
perto de Margarida Bourgeoys e entregar-lhe as provisões trazidas para ela e suas
companheiras — doces e confeitos que o mordomo do Gouldsboro preparara a seu pedido.
— Obrigada, cara senhora, por nos mimar assim. Não somos loucas por doces, mas
estas guloseimas distrairão as crianças pequenas e as jovens durante a longa viagem. Como
você é amável!
Apesar da partida, de que a avisavam, ela não se apressava. Continuava a pousar sobre a
Sra. de Peyrac um olhar perscrutador que esta já notara em Tadoussac e em várias ocasiões
em que a encontrara. De chofre e movida por um impulso travesso, Angélica disse:
— Está olhando como é feita uma diaba?
A religiosa sobressaltou-se, mas logo se recompôs e se pôs a rir, franca e
bondosamente.
Pois bem, sim! — disse. — Embora não fosse bem a minha intenção. Desde nosso
primeiro encontro que procuro descobrir a quem é que você me lembra. E não é curioso?
Coincidências sobrenaturais? Acaso? Aviso para o futuro? Que sei eu? Você me lembra,
irresistivelmente, uma garotinha que tivemos em nossa escola em Ville-Marie, a quem
apelidávamos de Diabinha... Uma pimentinha, aquela criança! E após alguns anos que nos
empenhamos em poli-la da melhor maneira possível, não podemos felicitar-nos por
absolutamente nada.
Uma índia?
Qual nada! Filha de um dos nossos colonos. As irmãs, que estiveram conosco antes
dela, eram boas e comportadas, mas ela... Dizer o quê? Um duende! Um elfo! E às vezes,
nos seus movimentos ou quando você fala, a lembrança dela me vem como um relâmpago.
É por causa dos seus olhos, sem dúvida. Também ela os tinha verdes, o que não é muito
comum...
E também se chama Angélica?
Não!
Tanto melhor!
Mas...
A Sita. Bourgeoys encarou-a com malícia.
...chama-se Maria-Anjo! Foi a vez de Angélica rir.
Confesso que é perturbador.
Você nos acha um tanto supersticiosos por estas bandas, não é? Vendo sinais em
toda parte... Não lhe escondo que tenho consciência disso. Vem do hábito de viver em
perigo, de sobreviver por milagre. Você haverá de aperceber-se disso aos poucos, vivendo
no Canadá... A menor coisa que aconteça, por ínfima que seja, pode não significar nada,
como pode dissimular algo de importância, um indício do céu, verdades secretas e
místicas... Venha ver-nos em Ville-Marie, no outono, na época da feira de peles. Hei de
apresentá-la a pessoas excepcionais... Ah, falei das suas Moças do Rei às senhoras da Sa-
grada Família... Vão ocupar-se delas.
Sim! Estive com a Sra. de Mercourville no Grande Conselho, ontem. Obrigada de
todo o coração!
Madre Bourgeoys! Madre Bourgeoys!
Todo mundo queria falar com ela, que precisou soltar-se de abraços, recomendações,
protestos de pesar e amizade. Embarcou. Recortada contra o cinza da água, sua corajosa
silhueta vestida de preto e seu rosto afável pareciam integrados na natureza.
Ela pertencia ao Canadá. Vê-la distanciar-se deixava certa sensação de orfandade.
As barcas foram afastadas da margem com longos arpéus e as velas quadradas subiram
pelo mastro único. O piloto da cidade, chamado Topin, encabeçava o comboio e dirigia a
manobra. Só ele, garantia, conhecia todas as traições e maligni-dades do Saint-Laurent, do
cabo Tourmente, diante de Quebec, até a entrada da Chaudière, rio na margem sul, ao norte.
As correntezas, os turbilhões, as rochas dissimuladas lhe eram submissos, como feras ao
domador.
As barcas bordejaram entre Quebec e Levis por um longo momento, à procura do vento.
Depois tomaram a direção desejada, sob vivas e lenços desfraldados. De todas as praias cir-
cunvizinhas, lançaram-se canoas indígenas na sua esteira, movendo-se a remadas vigorosas.
As pessoas demoravam-se ali na margem, impregnada de melancolia. Naquela manhã a
ilha de Orléans parecia próxima e tão nítida, que, na chanfradura da enseada das canoas,
avistavam-se algumas casas e cabanas do vilarejo de Sainte-Pétronille, uma das paróquias
da grande ilha, e podiam-se contar inúmeras quintas disseminadas sobre sua espinha
rugosa.
— Era tempo de zarparem — observou o Sr. de Bernières,
o eclesiástico. — Olhem.
Apontava um ponto adiante da ilha, que se destacava sobre a superfície esverdeada do
rio.
Parecia espuma branca de ondas prontas e rebentar, mas que, bem observadas,
revelavam-se curiosamente imóveis.
— O gelo... — disse ele. — Em breve...
CAPÍTULO XXIX
Foi assim que Ville-d'Avray apresentou as coisas, ou seja, do modo mais sinistro.
Era a única sombra num quadro que poderia ser idílico, a única desgraça de um local
que ele escolhera entre os mais belos de Quebec, se não do mundo. Era o inconveniente de
morar numa cidade: não se é seu próprio senhor, depende-se dos vizinhos!
Angélica disse que até então aquela vizinhança não a importunara demasiado, exceto
em duas ou três ocasiões pela irrupção ruidosa das crianças, que atrelaram a um caixote de
madeira, que servia de carrinho, o cão miserável e despencaram rua abaixo num estrondo
infernal. Honoriná, indignada, berrava de cólera.
Verdadeiros coiotes, bem que lhe disse — suspirou Ville-d'Avray. — Isso é só o
começo.
Você poderia ter por vizinha a Sra. de Maudribourg! Você notou, no Conselho, de
que tipo eram os "amigos" da Duquesa de Maudribourg, que a aguardavam em Quebec?...
Aquele Conde de Varange de que falaram e que veio rondar para o lado de Tadoussac...
O Marquês de Ville-d'Avray baixou a voz e correu os olhos desconfiados à volta, como
se sua minúscula casa canadense pudesse conter recantos para espiões.
— É um membro muito influente da Companhia do San
tíssimo Sacramento, mas nem por isso deixam de comentar
que ele foi mandado para o Canadá depois de um caso de aten
tado aos bons costumes.
Ville-d'Avray sempre afetava um ar comedido para falar de escândalos, como se ele não
tivesse algumas coisinhas do mesmo género a se censurar. Era um reflexo de educação. E
também a consequência da sua índole simples e alegre. Fizesse o que fizesse, ele tinha a
consciência limpa em tudo. Mas o hábito de estar em sociedade o impelia a adotar a mímica
consagrada — pálpebras baixadas e sorriso de pessoa bem-informada — para transmitir
histórias jocosas ou escabrosas.
— Contaram-me que esse devoto rançoso era tutor de um garoto, herdeiro de uma
fortuna imensa. Dizem que abusou do jovem, fez que lhe passassem todos os bens do
inocente, estrangulou-o e atirou o corpo num poço... Em Paris, ele foi amante da duquesa.
Você imagina esse dejeto dissoluto com aquela beldade, fina como uma estatueta de
Tanagra? Bem que nossa Diaba gostava de velhos concupiscentes!
Retornaram ao salão e sentaram-se no canapé.
Lá fora, o frio cortante e azul chegava, sorrateiro, e reinaria assim que o sol acabasse de
se pôr num céu de nácar, por entre um cortejo de nuvens com reflexos de cobre e ouro.
Ville-d'Avray jogou nifm bom punhado de gravetos no fogo, que crepitou.
— Ah, como é bom! — exclamou Angélica, afundando no canapé. — Não me farto
nunca desse fogo. Fazia tanto frio nos navios!
O marquês empurrou na direção dela o pequeno móvel de bebidas. Estavam sozinhos na
casa.
Você nunca me contou o que o trouxe a viver na Nova França — comentou ela. —
Você, um homem da corte, cercado de amigos influentes e conhecendo todos os grandes...
Quando penso nisso, não lhe assenta... Mesmo que me afirme o contrário, continuarei a
achar que seu cargo de governador da Acádia não passou de um pretexto. No máximo,
compensação, talvez até consolo. Mas há outra coisa. O que foi que você fez, afinal?
Como todo mundo — confessou Ville-d'Avray —, desagradei. E quando é a Sua
Majestade Cristianíssima, o rei da França, que a gente se permite desagradar, saiba, bela
ignorante, que nunca viveu na corte, que isso pode levar longe... muito longe... até o
Canadá, por exemplo.
Trouxe o pequeno móvel de bebidas para perto do canapé novamente, serviu a Angélica
um pequeno copo de málaga, num cristal trabalhado da Boémia, e sentou-se perto dela,
muito perto.
Contou-lhe que durante muito tempo fora o provedor de objetos de arte de Monsieur, o
irmão do rei, para o seu palácio de Saint-Cloud.
— Eu tinha escolhido porcelanas da China para Monsieur, a fim de ornamentar-lhe a
residência. Há que conhecer Monsieur. Gosta do fausto, no mínimo tanto quanto seu régio
irmão.
Ville-d'Avray suspirou, sorveu seu copo de cordial e passou um braço pela cintura de
Angélica.
— O rei jamais recusou ao irmão os meios de levar uma vida prodigiosa — prosseguiu
ele. — Mas tratava-se de uma generosidade que ocultava armadilhas. Levado a despesas
consideráveis, Monsieur tornou-se cada vez mais dependente
do rei. Além disso, e preveni Sua Alteza em várias ocasiões, o rei se preocupava com que a
corte de Monsieur ultrapassasse a sua em gosto e elegância, e que fosse mais divertida do
que Versalhes. Minha descoberta de porcelanas da China, raríssimas, trazidas do Oriente
por um mercador veneziano, fez transbordar a inveja do rei. Mandou chamar-me a
Versalhes, cumprimentou-me pelos meus talentos, doou-me uma terra e uma abadia, o que
me encantou, pois os proventos são excelentes, e depois me outorgou a carta de governador
da Acádia, na Nova França, com a missão de seguir para lá sem demora. Eu não sabia
sequer onde ficava. Mas aquiesci. Tinha entendido. Nosso soberano é assim, minha cara.
Angélica tomara o copo de málaga sem dar-se conta. Aquelas evocações das cortes
principescas lhe rodopiavam na cabeça. A luz vibrante do verão em Saint-Cloud, com
jardins ingleses, desordenados e maravilhosos, voltou-lhe à memória e pareceu entrar na
sala com o último clarão daquele sol baixo do Grande Norte, afundando por trás de um
horizonte deserto e atravessando os vidros da janela atrás dela como uma estaca de ouro.
De súbito, ela soltou um grito, imaginando-se tomada de uma vertigem ou vítima de um
tremor de terra. Caiu para trás e viu-se de pés para o ar, com Ville-d'Avray por cima dela, a
abraçá-la e a rir como um louco.
— E o segredo de meu canapé — bradou ele encantado com a brincadeira. — Eu lhe
tinha dito que lhe mostraria as pequenas astúcias dele. No momento escolhido, manobra-se
uma alavanca dissimulada nos braços e o encosto desce, para formar um leito dos mais
oportunos.
Angélica se encontrava numa situação difícil para se defender com eficácia. Se quisesse
reerguer-se, precisaria agarrar-se ao pescoço do marquês, o que a entregaria ainda mais aos
avanços dele.
— Não se aborreça — disse ele —, e lhe direi o nome daquele gentil-homem que lhe
dirige grandes saudações e que, quando está embriagado, conta que a conhece e que você
foi muito generosa com ele.
Angélica parou de debater-se no ato, espicaçada pela curiosidade.
— Quem é ele?
Ville-d'Avray, com o rabo do olho, observava Angélica reclinada sobre os cabelos
espalhados contra os motivos mitológicos da tapeçaria do canapé, com a satisfação de um
gato que acaba de capturar um camundongo.
Você não ficará aborrecida comigo?
Não, mas diga.
É um gentil-homem da comitiva do rei.
Não duvido... Mas quem é?
Está aqui com nome falso... Quer que acreditem que está aqui para uma missão que
requer que ele permaneça incógnito, mas eu apostaria que, provisoriamente comprometido
com alguma estroinice, ele encontrou pretexto para se manter longe das intrigas e não se
envolver com o seu desenrolar. Mas eu o reconheci.
Quem é?
Ville-d'Avray aproveitou-se da enormidade da confidência que ia fazer para
aproximar-se mais da orelha dela e soprar-lhe, entre dois beijinhos:
O irmão da favorita.
Que favorita?
Mas só existe uma! — espantou-se o marquês, agastado. — Apesar dos caprichos do
rei, é sempre a mesma inimiga de todos nós, a que mandou Lauzun para a prisão e me
despachou para o Canadá. Ela, Atenaís, a Marquesa de Montespan...
Uma revoada de imagens desfilou pela mente de Angélica, como que folheadas por uma
mão febril.
—O irmão de Atenaís... O Duque de Vivonne...
As visões se precisaram, qual leque abrindo e fechando com um ar de gracejo galante,
estalando rapidamente, deixando entrever alcovas, um mar azul, o refúgio de um
tabernáculo de seda vermelha na proa de uma galera e, sobre almofadas de seda, os embates
inequívocos de um casal estreitamente enlaçado. Não era Versalhes. Era Marselha! O
Mediterrâneo! E o sedutor almirante das galeras do rei, irmão da favorita, tinha-a nos
braços.
"Senhor! Mas... eu dormi com ele!", pensou ela.
Percebeu que Ville-d'Avray, aproveitando-se de sua distra-ção, apropriara-se de seus
lábios e os comprimia com arte. Era verdade que ele beijava bem, o sibarita!
Pa... pare! — intimou ela, debatendo-se, agora com energia. — Proíbo-o.
Mas de repente você me pareceu tão acessível, tão aquiescente...
Não é isso... — protestou Angélica, tentando safar-se do canapé-armadilha. — Você
me deixou tão atónita com suas revelações sobre esse "Sr. de La Ferté", que eu pensava em
outra coisa.
Como as mulheres são decepcionantes! — queixou-se o marquês. — E você é a mais
decepcionante de todas, Angélica! Eu não esperava isso de você.
Não lhe prometi nada.
Não veio a Quebec para...
Para... comer maçãs carameladas com você, diante da lareira... mais nada.
Importuno-a?
Às vezes — admitiu ela.
Reergueu-se e sentou-se, alisou a gola do vestido e esforçou-se por dar uma aparência
bem-comportada ao cabelo. O Duque de Vinonne... O que mais a contrariava era estar tão
perto de alguém que sabia muitas coisas sobre seu passado e sobre sua situação na corte. À
medida que as imagens desfilavam, ela lhes via as repercussões. Sem dúvida alguma, fora
ele que, no dia da chegada, no momento em que Joffrey de Peyrac desembocava na praça
com seu estandarte e suas bandeiras, lancara as palavras: "No Mediterrâneo ele usava o
escudo de prata sobre fundo vermelho..."
"Que azar! Que catástrofe!", dizia ela consigo, aterrorizada. "Ele nos reconheceu... Pode
prejudicar-nos..." Depois re-fletiu que ele se ocultava sob um nome falso e talvez preferisse
que não o soubessem no Canadá. Mas ele a cumprimentara, de modo enfático e
desagradável.
Você me faz sofrer — gemia Ville-d'Avray.
Ah, não perca a cabeça, você também! — disse ela, impaciente.
Depois, vendo-o acabrunhado e lembrando que ele lhe dera a possibilidade de viver
num local tão agradável, depôs-lhe na face um beijo fraterno.
— Não fique amuado, meu caro. Saiba que gosto de você, que é meu preferido. Mas
não faça loucuras outra vez. O inverno mal está começando. Se queimar as etapas, não
chegaremos ao fim do inverno. Afinal, marquês, um pouco de bom senso!
Ville-d'Avray protestou que, como a adorava, não quisera causar-lhe nenhum dissabor,
que ele só estava ali para tornar-lhe a vida leve, o que constituía a única finalidade daqueles
beijinhos marotos e necessários para curar a "doença de seriedade" que ela contraíra, a
ponto de não perceber logo que ele, Ville-d'Avray, fora posto na terra para a felicidade dos
seus amigos; e que, de todo modo, ela podia abandonar-se à quietude de Quebec, onde só
conheceria alegrias, pois a vida é bela e não merece ser desperdiçada em tragédias. Toda
aquela brincadeira não teria consequência, não é? Ela aquiesceu. Riram os dois, beijaram-se
como primos e se prometeram fidelidade, ajuda e assistência, como nos bons e velhos
tempos sulfurosos da Diaba.
Angélica reconhecia de bom grado que, sem Ville-d'Avray, Quebec podia assustá-la,
com seus mundos ocultos e diferentes. Mas ele sabia tudo e lhe era devotado.
Foram trazidos de volta ao Canadá pela irrupção de vozes e risos infantis. Honorina e
Querubim, seu acompanhante, atravessavam o pátio e voltavam para casa. Angélica pediu a
Ville-d'Avray que desse ao canapé um aspecto honesto de novo.
—Mostre-me como funciona o seu sistema diabólico.
Mas ele se recusou a desvendar-lhe os segredos do mecanismo que criara.
—Para que o utilize com outro que não eu? Nunca!
CAPÍTULO XXX
CAPÍTULO XXXI
CAPÍTULO XXXII
A segunda semana começou mal. No entanto, poder-se-ia crer que começava bem, pois
Angélica, abrindo sua porta naquela segunda-feira de manhã, viu-se na presença de um belo
jovem, de ar vigoroso e elegante, a quem a luz do sol nascente dava a suavidade e o
inesperado de uma aparição arcangélica.
Confundida por essa auréola ofuscante, Angélica levou alguns segundos para
reconhecer o procurador do Grande Conselho, Natal Tardieu de La Vaudière em pessoa.
Sorriu-lhe e convidou-o a entrar, perguntando-lhe sobre sua encantadora esposa, mas
ele recusou, dando a entender, sem delonga, que não viera para uma visita, mas para tratar
de uma queixa acerca de um inglês que o Sr. de Peyrac tinha em sua comitiva, apresentada
pelos sete sapateiros da cidade.
De resto, tinham visto aquele sequaz de uma religião deformada, o protestantismo,
atravessar a cidade usando aquele chapéu alto preto com uma fivela de aço na frente, que
caracterizava a canalha designada como puritanos, que, na Inglaterra, tinham levado o
sacrilégio a ponto de decapitar a machado seu legítimo rei.
Sem pudor e sem se importar de causar medo à população com a aparição daquela
silhueta envolta na capa genebrina que lembrava a do horrível Calvino, senhor da cidade
reformada às margens do lago Léman, ele descera ao porto, passeando como se estivesse
em casa, e subira a bordo do navio que acabava de ser rebocado para uma das bacias a fim
de ser reparado.
Angélica explicou que aquele inglês, embora fosse um de seus amigos, não fazia parte
de sua comitiva. Jamais lhes tinha ocorrido a ideia de trazê-lo para Quebec.
Contou a historia de Elias Kempton, mascate itinerante do Estado de Connecticut, na
Nova Inglaterra, cujo comércio o levara até o golfo Saint-Laurent, onde seu barco fora
detido pelo Saint-Jean-Baptiste, equipado, conforme o Sr. de La Vau-dière não ignorava,
por uma tripulação de piratas, que o capturaram a fim de se apoderarem de suas
mercadorias.
— Que fazia esse inimigo no golfo Saint-Laurent, cujas margens acadianas pertencem
à Nova França e onde sp podem circular os pescadores normandos, malvinos, bretões ou
bascos?
Toda embarcação inglesa encontrada ali deve ser afundada sumariamente. Seu mascate de
Connecticut ainda teve sorte.
Enfim, concluiu, ele desconfiava de que aquele Elias Kempton fosse oficialmente
protegido pelo Sr. de Peyrac, pois durante sua passagem através da cidade ele se mostrara
evidentemente escoltado por marujos do Gouldsboro, reconhecidos sem dificuldade pelo
uniforme.
O que é que ele foi fazer na bacia de reparos?
Foi levar provisões e palha para seu urso amestrado, que está hibernando nos porões
do Saint-Jean-Baptiste.
Um urso?
O Sr. Tardieu de La Vaudière mordeuos belos lábios cheios, que mais pareciam
destinados a dar e receber beijos do que a enfear-se com muxoxos severos. Um urso? A
história não lhe cheirava bem. Mas Angélica garantiu que Elias Kempton era a criatura
mais inofensiva do mundo e, levando-se era conta que ele fora vítima do Capitão Fénelon,
que se encontrava na prisão, La Vaudière concordou em que ele permanecesse em
liberdade. A rigor, até poderia praticar seu ofício, com a condição de que se limitasse ao
calçado de luxo, de que não havia fabricante no Canadá.
Ele terá que pagar patente.
Pagará.
E que se instale no alto da cidade e não seja visto a passear, sobretudo com aquele
chapéu sinistro.
Não será!
Estava a ponto de agradecer-lhe calorosamente, mas ele a interrompeu.
—Um instante, por favor... Há um decreto especial acerca de prisioneiros ingleses na
Nova França. Vou mandar lê-lo para que saiba bem a que se compromete.
Ele se fizera acompanhar de um pequeno tambor do exército, bem como do arauto da
cidade portando o seu chuço, cujo ferro tinha a base enfeitada com fitas nas cores da
cidade, e também carregando a tiracolo sua bolsa, onde metia os rolos de pergaminho das
proclamações.
Nicaise Heurtebise, hirsuto carregador, chegara trazendo sobre os ombros uma barrica
enorme, do tamanho que fora batizado de "tonel de Orléans, contendo duzentos e quarenta
copos".
Diante da porta ele virou a barrica, felizmente vazia, é o arauto nela se empoleirou,
atraindo a atenção dos índios do pequeno acampamento e de alguns vizinhos
madrugadores.
Depois de desenrolar uma folha e fazer sinal ao tambor para um primeiro repique de
baquetas, o funcionário municipal entoou, numa bela voz de baixo:
"Fazemos saber que, tendo pelo nosso regulamento de polícia de 26 de março de
1673 confirmado os decretos sobre os ajuntamentos de cativos ingleses, lembramos aos
moradores desta cidade que os respeitem, sob pena de multa..."
O que chamam de ajuntamento? — indagou Angélica ao procurador.
Duas, três pessoas no máximo...
Isso é tudo o que há de ingleses em Quebec? A parte nosso puritano de Connecticut?
Há outros — afirmou o procurador. — Há aí a criada da Srta. d'Houredanne —
acrescentou, voltando-se para a casinha do outro lado da rua —, chamada Jessy, uma doida
que se recusa a converter-se e que temos a generosidade de tolerar em nossa cidade, ao
invés de despachá-la de volta para os abenakis que a capturaram.
Angélica começava a entender as reservas da Polaca sobre o belo procurador: "É uma
peste!" De meigo ele só tinha o prenome: Natal.
— Vai haver mais dois ingleses, cativos dos huronianos, que a Sra. de Mercourville
mandará vir todos os dias, para aprender com eles o segredo da tintura de lãs e linho...
Assim, intimo-a...
— Entendi — atalhou Angélica.
Mas ele não acabara! Recuou para examinar de mais longe o telhado da casa do
Marquês de Ville-A'Avray com olhos críticos. Seu terror eram os incêndios, que em poucos
minutos podiam destruir no inverno uma parte da cidade, principalmente na Cidade Baixa,
onde as casas eram muito juntas, a maioria de madeira, com tetos de ripas. Ele mandara
proclamar regulamentos draconianos, e nesse ponto era preciso dar-lhe razão.
— Não há guarda-fogo — disse.
Tratava-se de muretas que separavam os telhados das casas conjugadas e cuja presença
podia retardar a propagação das chamas.
Mas a casa ainda não está encostada em nenhuma construção e até que é bem isolada
das outras.
Não importa, a lei é a lei para todos. Os regulamentos devem ser aplicados, toda casa
nova deve comportar a edificação de guarda-fogo com empenas. O Sr. de Ville-d'Avray
será taxado em cinco libras pela infração.
Ordenou ao arauto e comitiva que se dirigissem às encruzilhadas para proclamar o
regulamento sobre os ingleses e os outros, inúmeros, sobre os incêndios.
Decididamente, uma pena! Ele era de tamanha beleza! E quanto mais o sol subia, mais
belo ele ficava e, por contraste, mais odioso se revelava.
Angélica sentia vontade de beliscar-lhe a ponta do nariz e dizer-lhe, galhofeira: "Você é
um grosseirão, cavalheiro". A fim de fazê-lo entender que, mesmo no exercício de suas fun-
ções mais austeras, um belo rapaz não deve faltar a tal ponto com a cortesia, se não com a
indulgência, que uma mulher tem o direito de esperar dele. Infelizmente ele parecia haver
esquecido as regras do jogo... se é que as conhecera algum dia. E o mistério de seu
comportamento fazia indagar: era tolo ou malvado?
Pretensioso, com certeza. Ele a mantinha inutilmente em pé, sem uma palavra de
desculpas, à soleira da porta a que Ho-norina e Querubim lhe tinham vindo ao encontro,
levantando para ele as carinhas descontentes. Angélica já estava vendo o momento em que
Honorina desapareceria para voltar com um bastão na mão e gritando: "Vou matá-lo!"
Deixe o Sr. de Ville-d'Avray fora disto — pediu-lhe. — Ele teve a bondade de pôr à
minha disposição sua residência particular e eu não gostaria de vê-lo molestado por tolices.
Onde devo pagar?
Vai pagar, então? Pelo guarda-fogo?
Sim. E a você que devo entregar essas cinco libras, escrivão do Conselho Soberano?
Não! Ao Sr. Carbonnel. É preciso registrar seu pagamento.
Onde o encontro?
No cartório do tribunal do Grande Conselho.
Irei imediatamente... Mas lembre, senhor procurador, que hoje abriu um pesado
litígio em seu desfavor, no que concerne a minha salvação eterna.
O que... o que quer dizer? — gaguejou ele, alarmado e finalmente desconcertado.
Fez-me perder a missa.
Senhora, podemos ser-lhe úteis? — diziam atrás dela o Sr. de Bardagne e o Sr. de
Chambly-Montauban, vindo de seu "jardim de prazeres", onde na véspera tinham festejado
até bem tarde.
Não, não, por piedade... Vão à missa para a remissão de seus pecados... Eu vou ao
cartório para pagar cinco libras de multa e encher de alegria o senhor procurador Tardieu.
E se pôs a correr rua abaixo, conduzindo pela mão Honorina, que "não queria ficar em
casa"...
Atrás de si não toleraria ninguém além de Piksarett, em sua pele de urso negro e, a
rigor, os índios do acampamento e seus cães, fugindo aos pulos do cão de fila do Sr. de
Chambly-Montauban. Na realidade, Angélica sempre ficava encantada com todas as
ocasiões que tinha de conhecer um novo aspecto de Quebec.
O imóvel onde ficava o cartório real situava-se atrás da catedral, a meio caminho da
encosta que levava à Place dermes e à residência do governador.
As janelas dos escritórios voltadas para o lado do rio davam diretamente para o
acampamento permanente dos huronianos no coração de Quebec. Tinham sido reunidos ali
uns dez ou doze anos antes, quando os sobreviventes daquela nação, fugindo aos massacres
perpetrados contra eles pelos iroqueses, tinham vindo refugiar-se sob as asas de Onôncio,
nome dado indistintamente a todos os governadores, representantes do rei da França.
Eles se haviam agarrado àquele terrapleno, suspenso a meia altura da Cidade Alta,
protegidos pela sua paliçada de estacas e à sombra dos muros do bispado, da catedral e do
Castelo Saint-Louis.
Protegidos pelas preces de uns e pelos canhões do outro, não queriam arredar pé dali.
Somente naquele local se sentiam ao abrigo dos ataques de seus ferozes inimigos iroqueses.
A presença de suas wigwams de casca de árvore, bem sob as janelas do cartório real,
trazia um forte cheiro de fumaça de fumeiro, de gordura de urso e de milho cozido, que se
misturava ao das tintas e do papel e produzia odores compostos no mínimo vigorosos.
Exceto por essa nota insólita, nada lembrava, ao se penetrar sob as abóbadas e nas salas
estreitas e atulhadas de prateleiras e alfarrábios, que não se estava na França. .Tudo ali era
reconstituído para evocar os escritórios comunsf e sinistros, agrupados em torno do Palácio
da Justiça, à beira do Sena.
Nicolau Carbonnel era o escrivão que se mantivera à sombra do procurador durante a
reunião e que tinha em alta estima a tarefa de que estava investido. Exercendo-a e servindo
a Natal Tardieu, ele punha uma devoção meticulosa e um instinto seguro sobre os meios a
utilizar para atingir seus fins, ou seja, cobrar as multas, impostos e taxas de cidadãos
recalcitrantes, e indiretamente encher os cofres do Estado, sempre impondo a disciplina
indispensável a toda cidade próspera e renomada.
Era organizadíssimo. Em seu cartório mantinha bem à vista o padrão de todas as
medidas e peso em uso: fanga, meia fanga, alqueire, bilha, quartilho, vara, meia vara,
balanças romanas, outras balanças, pesos, correntes para a medida exata das cordas de
madeira. A lenha para aquecimento devia ter três pés e meio entre dois cortes e a corda,
oito pés de comprimento e quatro de altura.
Revestido de uma função que tinha suas obrigações e seu clima particular, o escrivão
tinha-lhe todos os maneirismos, as manias, o comportamento, a ponto de usar barrete sobre
uma cabeleira que ainda não era rala. Vestia-se com austeridade, de sarja preta ou
cinza-escura, isso quando o diziam abastado. Afetava costas arredondadas e como que
curvadas pelo peso do cargo. E, dependendo dos discursos que lhe faziam, podia ser um
pouco surdo ou espantosamente lúcido.
Tinha os gestos lentos e parecia distraído, mas logo se notava que era de uma
surpreendente vivacidade quando se tratava de redigir um processo verbal de infração aos
regulamentos ou de decidir acerca de um mandado de busca, caso o considerasse urgente.
Então, vai pagar? — indagou, começando a aparar uma pluma de ganso dentre as
dez que o esperavam ao alcance da mão, à sua frente, e reavivando as brasas de um
pequeno aquecedor, a fim de derreter a cera do lacre que pretendia apor à folha do auto.
Dez bastõezinhos de cera vermelha também estavam alinhados ali em boa ordem, perto do
tinteiro.
Sim — disse Angélica, levando a mão à bolsa.
Mas, após examinar o caso, ele disse que não era possível, que ela só devia pagar duas
libras e meia e que Ville-d'Avray, na qualidade de proprietário, devia comparecer para
pagar o restante e anunciar suas intenções acerca da construção dos guarda-fogos.
Angélica viu-se novamente na Place de la Cathédrale no momento em que os fiéis
saíam da primeira missa. Ville-d'Avray, que acabava de chegar, já estava a par e,
naturalmente, indignado.
— Não pagarei nada e não construirei nada. Vamos ver Basílio, ele nos aconselhará.
Vendo que se esboçava um movimento geral na direção da Cidade Baixa, a pequena
Honorina se pôs a berrar de repente, agarrando-se a Angélica.
— Estou farta, já não a vejo mais — gritava. — Você está sempre longe, não se ocupa
mais de mim nem de Querubim. Só se ocupa do bebezinho guloso... Quero voltar para
Wapassu.
Essas reivindicações, longamente ponderadas naquela cabecinha, encontravam
finalmente a oportunidade de vir à luz, sob o golpe de decepção. Pois desde a manhã
Honorina via afastar-se cada vez mais o momento de irem fazer as panquecas que lhe
tinham sido prometidas para o café. E também sob o aguilhão do desprazer que lhe
inspirava a propriedade dos Mercourvillé ali perto, pois pela grade aberta da casa não dei-
xaria de aparecer a temível è minúscula Ermelina, duende impenitente, sempre à procura
insaciável de balas e guloseimas, e sobretudo à procura de Angélica.
Ei-la que aparecia de fato, com a sua rapidez de gnomo, os pezinhos mal parecendo
tocar o chão, soltando gritos e risos de pássaro extasiado.
Era demais!
Honorina berrou com mais força, de olhos fechados, a boca escancarada, as faces
lavadas de lágrimas. Desta vez resolvera que dominaria Quebec, assim como a mãe fizera
no dia da chegada, mas seria com seus próprios meios.
Seus gritos desenfreados acabaram impondo silêncio ao falatório sem sentido dos
adultos.
Eu nunca a vejo — repetiu Honorina por entre as lágrimas. E desfiou as queixas: —
Você sobe! Você desce! Vai a tudo quanto é casa, e eu onde é que fico. nisso tudo, com
Querubim!... Quero voltar para Wapassu. Quero Bartolomeu e Tomás! Por que foi que eles
não vieram conosco?
Você bem sabe que não podíamos trazê-los. Eles são protestantes.
Quero voltar para junto dos protestantes! — berrou Honorina a plenos pulmões.
Uma exclamação dessas, gritada no centro de uma cidade eminentemente papista, era
no mínimo inoportuna.
Voltaram às pressas para casa e só faltou passarem ferrolhos e trancas às portas.
Finalmente tranquilas, a grande frigideira de panquecas foi untada e levada às brasas da
lareira.
Para distrair o humor da. filha, Angélica subiu com ela até a segunda cumeeira, a que se
chegava por uma escadinha. Das lucarnas enxergava-se bem longe.
Com a cabeça e os ombros para fora, ao nível da cornija, e com o rosto açoitado pelo
vento, Angélica e Honorina podiam lançar um olhar circular ao domínio a seus pés. Do
ponto onde se encontravam, a vista mergulhava para além dos muros e paliçadas.
O pátio das ursulinas oferecia um campo de observação dos mais fáceis à curiosidade
de Honorina e sua mãe. Apesar dos altos muros que cercavam a propriedade, era possível
acompanhar a existência familiar, toda de devoção e trabalho, daquelas mulheres. Algumas
aluninhas, das quais a maioria eram filhas de moradores ou de senhores distantes, todas
internas, passavam o recreio no pomar.
Angélica notara que a principal distração daquelas crianças parecia ser a dança. Danças
camponesas na maior parte, trazidas da província natal pelos pais: a bourrée, o rigodão.
Seguravam-se pelo braço e giravam numa direção e na outra. Punham-se em fila, cara a
cara, avançavam, recuavam, batiam as mãos, faziam uma reverência... No ar gelado, as
vozinhas entoavam as cantigas ingénuas:
—"Na ponte de Nantes
Marion, Marion, dança
Na ponte de Nantes
Marion dançará."
—"Pastores, entrem na dança
Marion, Marion, dance
Pule, dance, beije
A quem quiser."
Havia algumas crianças indígenas entre elas. Deixava-se que usassem seus trajes de
peles franjadas, os mocassins e a plumi-nha única enfiada na fita bordada de pérolas que
lhes prendia os longos cabelos negros. Elas pareciam alegres e espertas, e não dançavam
nem gritavam menos do que as demais.
Acerca do que Ville-d'Avray lhe contara, Angélica resolveu correr o risco de fazer um
pequeno inquérito, a fim de esclarecer a questão. Recebendo o mordomo T-issot,
indagou-lhe a queima roupa:
— Você, que serviu na corte, reconheceu a pessoa que se oculta sob o nome de Duque
de La Ferté e que se encontra na cidade?
Ele lhe deu uma breve olhada de soslaio e inclinou a cabeça, afirmativamente.
— Não é incompreensível? — disse ela, desapontada.
Ele! Que motivos podem levar um homem de posição tão alta e segura, graças à posição da
irmã, a dissimular-se, a fugir de certa maneira...
— Não faltam motivos para levar um grão-senhor da corte a querer que o esqueçam
durante algum tempo. A justiça já não é tão indulgente quanto antigamente para certos
crimes. E recebeu o direito e as facilidades de poder recorrer a todas as fontes.
Ele baixou a voz.
— Sua Majestade esteve muito doente no ano passado, a ponto de recear-se que não
escaparia. Os médicos, apesar da ignorância, acabaram falando em envenenamento. Vieram
fazer-nos muitas perguntas nas cozinhas. Para nós, oficiais da Boca, era evidente. A Sra. de
Montespan exagerou um pouco nos pós destinados a reanimar os ardores do rei por ela. Por
pouco . que esse Duque... de La Ferté a tenha ajudado, e que tenha visto os investigadores
aproximarem-se de sua pessoa e começarem a interrogar seus domésticos e a gente de sua
casa... Era melhor que ele se subtraísse à curiosidade malsã, pelo menos por ora. Se o rei
tivesse morrido, teria sido crime de lesa-majestade.
E também foi por essa história que você resolveu abandonar o reino.
Um oficial da Boca do Rei sabe coisas demais forçosamente, devido ao seu cargo.
Assim, é o primeiro a ser ameaçado por uns e por outros: pelos que tem interesse em que se
cale e pelos que têm interesse em que fale.
Você receia que ele o tenha reconhecido aqui em Que-bec? Que se assuste com isso
e procure eliminá-lo? Sua colocação conosco terá sido um mau acaso para você, então.
Não mais do que para a senhora, que tampouco contava encontrá-lo aqui. Não
devemos nos surpreender com esses acasos. O contrário é que seria de admirar. Diga-se o
que se disser, a Terra é pequena. É sempre o mesmo tipo de gente que encontramos nos
mesmos lugares. Estou a serviço do Sr. de Peyrac e procurarei limitar-me o máximo
possível ao solar de Montigny, que fica afastado. No que me concerne, com um pouco de
habilidade talvez eu nunca tenha a ocasião de verme na presença dele.
Aceito o augúrio e encorajo-o a fazer isso. Mas a partida será dura. Estamos
fechados numa cidadezinha sem saída, onde logo se fica sabendo de tudo sobre todo mundo
e de onde não é possível escapar.
A senhora acredita que a partida que se joga em Versalhes seja menos dura e
perigosa? Não se deve pensar demais, e só se deve fazê-lo com conhecimento de causa,
reservando esse exercício apenas à hora perigosa que o merece. Afora isso, com um pouco
de inconsciência e muita filosofia, atravessa-se tudo. Aposto que a senhora condessa sabe
tão bem disso quanto eu...
CAPÍTULO XXXIII
A chegada do inverno
Os gansos selvagens partiam. Era o sinal de que o inverno chegava sem remissão.
Enquanto estavam ali, em bandos de mais de duzentas mil aves, pastando ao pé do cabo
Tourmente, estava garantida a clemência do fim do outono, que neste ano ainda se prolon-
gara mais.
Durante quase dois meses, vindos do Artico, onde tinham nidificado no verão, os
grandes gansos brancos haviam visitado as restingas pantanosas que se estendiam na
extremidade da encosta de Beaupré, onde encontravam, e somente ali, um rizoma
particular, necessário à sua sobrevivência. Pelo outono inteiro tinham feito ecoar as falésias
com seus grasnidos animados.
Agora, quando já se imaginava que o bom tempo duraria para sempre, elas partiam de
súbito.
De nariz levantado, todos os viam passar acima da cidade, de pescoço estendido, as asas
batendo largamente, e seus gritos traduziam uma alegria corajosa, um fervoroso amor pela
viagem que os levaria direto, sem uma única parada, até as ilhas Carolinas, no sul.
Sentia-se que abandonavam os homens às intempéries, o rio aos gelos, as terras às
neves infecundas. Alguns ficavam melancólicos ao vê-los. Diziam, tristes:
— Estão indo embora! Estão indo embora!
Mas quando retornassem, todos exclamariam alegremente:
— Estão chegando!
Pois os gansos anunciavam a primavera.
Depois de ver a animação ruidosa que reinava no solar de Montigny, Angélica ficou
feliz de ela e Joffrey haverem separado os respectivos "postos de comando".
Jamais se teria sentido em casa naquela grande construção que deveria abrigar a maioria
dos tripulantes da frota, pois não era confortável passar o inverno nos navios. Não teria
podido preparar-se como desejava para iniciar a nova vida em Que-bec, e para enfrentar a
prova seguinte, que era conhecer a Madre Madalena e ouvir-lhe o veredicto. A novena
acabaria em breve.
Angélica e Joffrey encontravam-se na extremidade das planícies de Abraão, que dava
para uma falésia abrupta. Aos pés deles, o Saint-Laurent, naquele dia cor de estanho, seguia
seu curso rumo a Trois-Rivières e Montreal. Os gansos selvagens passavam em longos
voos abertos, "veleiros", conforme os canadenses os chamavam, numerosos e cada vez
mais próximos, trazendo os retardatários e escoltados por aqueles gritos que enchiam o céu
esbranquiçado: — Adeus! Adeus! Adeus!
Na mesma direção, para o sul, Joffrey estendeu o braço:
— A meia légua daqui, na margem sul do rio, abre-se a embocadura do Chaudière. É
subindo esse rio que se chega ao lago Mégantic, e depois ao Kennebec. É uma das vias que
os canadenses seguem para alcançar a Nova Inglaterra.
— E por onde puderam atingir Katarunk, Wapassu...
Ele aquiesceu. Pousou-lhe a mão na cinjfura e trouxe-a para mais perto da beira da falésia.
— Daqui vemos o cabo Rouge. Ao pé do penhasco, está Sillery, uma antiga missão dos
jesuítas, abandonada depois que os iroqueses a devastaram, há alguns anos. Estou
restaurando as casas e construindo um fortim, e mandarei uma parte de meus homens e três
navios passar o inverno ali.
Estava querendo fazê-la entender que instalava um forte em Sillery porque assim ficaria
quase de cara para a embocadura do Chaudière, caminho natural para o sul e para as
possessões deles em Wapassu e Gouldsboro?
Impraticável no inverno, difícil quando as águas tivessem retomado o curso, mas única
via de acesso para fugir, caso a do rio para o norte, pelo Gaspé e pelo Saint-Laurent se reve-
lasse interditada. O fundo da armadilha tinha, afinal, uma escapatória, e de Sillery Joffrey
de Peyrac lhe vigiava a entrada.
Ele acrescentou que, além do mais, para ocupar os homens, pusera-os a construir
pequenos bastiões de madeira à entrada do Saint-Charles, diante das paróquias de
Charlesbourg e Lo-reto, e no cabo Rouge.
Ela o ouvia, observando-lhe o rosto enérgico emoldurado pela gola alta de pele negra de
seu capote.
Ouvia-o, ouvia-lhe a voz, que sempre provocaria nela um arrepio de emoção e que o
vento às vezes levava. Através das palavras ela sentia que ganhava acesso a uma parte
diminuta daquela vida fervilhante de ações e de pensamentos que não paravam de nascer e
fundir-se nele, solicitados pelos seus dons particulares de inteligência e paixão; o desejo e o
prazer de viver, inventar, construir, que caracterizavam o grande Jof-frey de Peyrac e que o
impeliam a querer deixar a própria marca na terra, não por orgulho ou avidez apenas, mas
porque ele possuía, ao ponto mais elevado, esse gosto pela criação cujo germe a vida coloca
no coração de todos os homens.
— Em suma — disse ela, quando ele se calou —, se entendi bem, você continua a
cercar a cidade?
Joffrey sorriu, mas não negou.
— Por quê?
O conde olhou na direção daquela cidade cujos altos campanários com sinos de prata
surgiam do outro lado do platô, no crepúsculo salpicado de clarões rosados.
— Porque nunca se sabe — respondeu.
Depois, tomou-lhe o braço de novo e retornaram felizes e em harmonia pelas planícies
de Abraão, cuja delgada crosta de neve congelada lhes estalava sob os passos.
Joffrey de Peyrac ergueu os olhos, estudando o firmamento de uma limpidez que dava
vertigem.
— Ora, a lua está com seu halo vermelho — disse.
Quando Angélica, naquela manhã, abriu a porta, pareceu-lhe que a paisagem que
contemplava todos os dias acabava de ser mortalmente ferida, por obra de um cataclismo.
Já não a reconhecia. Precisou de alguns segundos para entender. O Saint-Laurent
desaparecera.
No lugar de suas águas esverdeadas, pretas, cinzentas ou avermelhadas, das ondas
espumosas, das correntes rápidas e luzidias, estendia-se a perder de vista um vasto vale
branco, como que talhado em alabastro.
Parecia o vale gigante de um deserto marmóreo, coleando imóvel, ressecado entre as
ilhas, baías e promontórios de um branco de giz. Toda vida e movimento tinham cessado.
O Saint-Laurent estava invadido pelo gelo.
O frio comprimia o rosto de Angélica como uma manopla de ferro. Seu hálito sé
transformava em mil lantejoulas de prata dourada.
Ela entendeu que agora estavam isolados do mundo. Ou seria o resto do mundo que
cessara de existir e eles, os únicos sobreviventes de uma terra gelada?
Retornou para o interior da casa e teve a impressão de que parar à soleira lhe bastara
para congelar o sangue nas veias.
Na casa, todo mundo falava do frio. Chegara de repente, como uma celebridade a quem
tinham cansado de esperar. Celebridade considerável, de dentes de aço e olhos de cristal.
E pela primeira vez se viu o gigante em pé diante de sua casa, debruçado sobre uma
almofariz de pedra e ocupado com uma tarefa misteriosa.
— Ele está fabricando bagaço, congelando sidra — explicou Macollet, que o conhecia.
Todas as altas chaminés quadradas da cidade cuspiam fumaça com fúria. Parecia que o
próprio vapor congelava na saída do tubo. A fumaça era densa, e o vento, que era como
uma espécie de aspiração de ar glacial, impelia-a ora como écharpe cinzenta e preta, ora
como grandes borbulhas esbranquiçadas. Isso acabou formando tamanha nuvem, rolando e
se renovando com uma inquietante atividade, que pelo final da manhã alguns se alarmaram
e falaram de incêndio.
Incêndios, junto com epidemia, eram o grande terror dos citadinos, exilados no seu
deserto de gelo. Em poucos instantes o fogo podia devastar um bairro, pôr na rua famílias
inteiras, aniquilar reservas preciosas de víveres e mercadorias, arruinar os esforços de toda
uma vida. E, como quase acontecera nos primeiros tempos, condenar toda uma população
afastada de qualquer socorro a perecer de frio e fome.
O procurador Tardieu aproveitou-se da comoção para enviar seus inspetores e verificar
se cada habitante tinha em casa fisga e gancho, bem como dois carneiros de ferro no sótão e
longas varas com um pano molhado na ponta, para apagar as fagulhas sobre todos os
telhados. As casas que não tinham janelas nas cumeeiras deviam manter uma escada
permanentemente no telhado, solidamente presa à cumeeira por dois grampos. A pouca
neve que caíra permitia que ainda se processasse a uma inspeção cuidadosa, coisa que se
tornaria menos fácil mais tarde.
Aquele dia também viu o Sr. Topin, acompanhado de um grupo numeroso de
empregados do porto de barqueiros, seguir para a floresta e retornar carregado, bem como
os companheiros, de braçadas de varas e galhos guarnecidos de folhagem persistente.
Piloto do Saint-Laurent, ele não se considerava aliviado, pelo gelo, de suas
responsabilidades para com o "seu" rio. Cabia a ele balizar as pistas que os trenós
tomariam, sulcando a branca planície pelo inverno afora. Havia que demarcar no caos dos
gelos às vezes imobilizados em blocos, em ondas tempestuosas, as passagens mais fáceis
para traçar a rota entre duas fileiras de varas cravadas a intervalos de uma toesa.
CAPITULO XXXIV
No ninho da missivista
Angélica estava apoiada às cortinas de seda da alcova. Erguidas por um cordão trançado
com borlas, as cortinas eram forradas de cetim.
A sua frente, no fundo do leito, apoiada a travesseiros de renda, estava uma criaturinha
frágil que a olhava por cima de grossos óculos redondos com aro de aço.
Então é você, afinal! — disse ela.
Sou eu — respondeu Angélica. — Sua vizinha em Quebec, pois tenho o prazer de
morar na casa do Sr. de Ville-d'Avray, quase em frente a sua casa. Eu ansiava por
conhecê-la, cara Cleo d'Houredanne.
Eu, não.
A pequena senhora tirou os óculos, o que a fez parecer ainda mais frágil.
Angélica sorriu. Ville-d'Avray a prevenira de que Cleo d'Houredanne não era fácil.
A Sita. d'Houredanne franzia os olhos, examinando demoradamente a jovem que se
erguia a alguns passos de seu leito e que ela tanto observara da janela. Finalmente a via.
Você é menos bela do que eu imaginara, observando-a de longe — disse.
É comum a distância criar ilusões. Fico pesarosa por desapontá-la. De minha parte,
estou feliz em descobri-la tão semelhante às descrições que seus amigos fizeram
calorosamente a seu respeito.
Que amigos? Bah, se você se fia nas palavras do seu pretendente...
— Meu pretendente? Qual deles?
A Srta. d'Houredanne se pôs a rir.
— De fato, você tem por onde escolher! Mas gosto da sua franqueza. Audácia é o que
não lhe falta, nem resposta.
O nariz um pouco arrebitado e as sobrancelhas afastadas em acento circunflexo
davam-lhe às vezes um ar de mocinha ingénua e desarmada. Sua pele era
surpreendentemente alva e diáfana. Tinha a testa lisa, sobre a qual caía uma ponta da renda
coquetemen-te pousada sobre a cabeleira branca. Apenas as mãos, longas e delicadas, mas
mais enrugadas do que o rosto, traíam-lhe a idade.
Angélica ouvira dizer que ela fora casada. Mas continuavam a tratá-la espontaneamente
por senhorita. Talvez devido a seu ar de juventude. Também era frequente usar-se esse
tratamento com viúvas ou mulheres sem filhos, da pequena burguesia.
A senhorita jogou longe os óculos, sobre a coberta.
Não preciso de óculos para vê-la. Enxergo-a muito bem, mesmo que esteja a
distância. Só os uso para escrever. Escrevo muitíssimo.
Eu sei.
O leito estava coberto de papéis, manuscritos apertados por uma tira de pano, à moda
dos autos dos escrivãos, livros abertos, virados como que para marcar a página em que se
interrompera a leitura ou o ponto de uma citação em que meditar.
Diante dela, sobre os joelhos, estava colocada uma escrivaninha de pés curtos, disposta
como secretária, com uma cavidade para o tinteiro e a tampa inclinada, que se podia
levantar.
Finalmente, entre os papéis e autos, uma caixinha entreaberta deixava escapar maços de
cartas atadas por fitas de cores diferentes.
Honorina acompanhara a mãe e, encolhida entre as saias de Angélica, com ar de
timidez, não despregava os olhos da Srta. d'Houredanne.
Para ela, aquela mulher bonita desessenta anos parecia um pássaro no ninho. Um ninho
de papel, habilmente composto, e de materiais diversos, como todos os ninhos de pássaros.
Perguntava consigo mesma por que aquela senhora preferia cobrir-se de papel a cobrir-se
com uma boa manta da Catalunha, como a que Elói Macollet colocara sobre seu leito
naquela noite extremamente fria. Será que todos aqueles papéis a mantinham aquecida?
Fora uma circunstância excepcional e, no final das contas, feliz que acabara levando
Angélica e Honorina àquele quarto forrado de tapeçarias, guarnecido de belos móveis e
quadros, onde escoava a vida da invisível missivista de Quebec.
Ao fundo do aposento, pela porta-janela entreaberta que deixava entrar, qual presença
sorrateira, uma densa lufada de frio, avistava-se um canto do jardim com canteiros de buxo
cobertos de neve e um panorama do pomar de macieiras, entre as quais se agitavam e
corriam em todas as direções diversas pessoas de braços para o ar.
O glutão de Cantor estava de regresso e fugira para o jardim da vizinha, onde agora lhe
davam caça.
A criada inglesa, que, na cozinha, depenava sem pressa um capão, tivera a impressão de
ver alguma coisa entre as árvores. Abriu a porta que dava para o jardim. A cadela
aproveitara para sair em disparada, ladrando enlouquecidamente.
Vendo isso, Angélica, que acompanhara o alvoroço de sua casa, pegou a mão de
Honorina e decidiu que chegara o momento de ir soar a aldraVa da porta da Srta.
d'Houredanne, para apresentar desculpas, dar explicações e dar-se a conhecer. A inglesa, já
sem saber para onde se virar, viera abrir-lhe.
— Como tem passado? — perguntou Angélica. — O Sr. De Ville-d'Avray me disse
que você sofre de dores, de reumatismo.
A Srta. d'Houredanne não dava mostras de muita cordialidade, mas talvez isso fosse
uma atitude de defesa de mulher idosa, ciumenta das próprias amizades e a quem a doença
mantinha à parte da vida mundana.
— O Sr. de Ville-d'Avray não sabe nada a meu respeito nem das minhas dores.
Preocupa-se demasiado com os próprios negócios. E pouco o vi desde que você chegou.
Você provocou muitos acontecimentos por aqui...
Angélica explicou-lhe os motivos da intrusão.
— Um glutão! — exlamou a Srta. d'Houredanne. — Um Karka-fu!... Seu gato já põe
minha cadela nervosa. O cão de fila do Sr. de Chambíy-Montauban há de dar cabo de seu
glutão!
— É o que receamos. Foi por isso que tomei a liberdade...
Como as pessoas que permanecem muito tempo caladas, quando tinha a ocasião de
dirigir-se a alguém a Srta. d'Houre-danne continuava em voz alta os discursos que tinha o
hábito de fazer interiormente ou de trocar com a amiga epistolar. Em poucos minutos pediu
a opinião de Angélica e deu a sua sobre a maioria das pessoas de projeção, lamentou o
caráter de Sabina de Castel-Morgeat, que possuía os seios demasiado audaciosos para uma
pessoa tão inimiga das coisas do amor, e deplorou ver a Sra. de Mercourville como
presidenta das senhoras da Sagrada Família, ao invés da Sra. de Beaumont, mais devota.
Você já esteve com as ursulinas? Viu a Madre Madalena?
Não, ainda não. ;
A novena acabou. Em breve você será chamada.
Espero que sim.
Do fundo do pomar, uma bola escura arremeteu para a casa como um projétil. Angélica
correu para barrar-lhe a entrada, assustada com a ideia de ver o glutão irromper por entre os
móveis e bibelôs frágeis.
O animal estacou a alguns passos dela, numa revoada de cristais de neve.
Era Wolverines mesmo.
Reconhecia-a. Seus olhos redondos e negros a fitavam com intensidade. "Como é
inteligente", pensou Angélica, "quase um ser humano."
No entanto, podia-se entender o terror supersticioso que o glutão inspira aos índios,
alvo dos delitos desse adversário temível que lhes desmonta as armadilhas, saqueia-lhes as
redes de caça e deles se vinga com uma desconcertante sutileza. É um animal estranho, uma
espécie de urso ou texugo enorme, com o ventre, a cabeça, as patas e o focinho muito
pretos. Com a cabeça curta em relação ao corpo, orelhas e olhos pequenos, a cauda espessa
e peluda, a pelagem de um preto amarronzado tanto no verão quanto no inverno, com
longos pêlos sedosos pendendo da cauda, ele impressionava por uma feiúra poderosa que se
pressentia indomável.
Imóvel, a cara rombuda ao nível do chão, o rabo levantado, ele eriçava todos os pêlos, e
o sol fazia cintilar a longa faixa castanho-clara que lhe dava um rastro luminoso aos
flancos, do ombro à raiz da cauda. A mesma lourice luzidia na testa e nas faces, em
contraste com a máscara negra que lhe rodeava os olhos, contribuía para lhe dar o ar feroz e
cruel que aterroriza. Sob o nariz de narinas dilatadas, a boquinha aberta descobria os quatro
caninos pontudos e brancos, num ricto ameaçador.
Fora aquela cara demoníaca que a mulher maldita vira antes de morrer?
Fora ele que destroçara o belo rosto de Ambrosina com seusdentes agudos, as garras
parcialmente retrateis projetadas das patas pesadas de um negro de fuligem?
"... e vi um monstro peludo sair dos silvados, lançar-se sobre a Diaba e devorá-la..."
— Wolverines... o que foi que você fez? — murmurou Angélica.
Saindo de sua imobilidade, a grande fuinha fez meia-volta
e com uma rapidez de serpente disparou na direção do muro, que atravessou com um
pulo. Os gritos dos índios da encruzilhada revelaram o retorno do glutão à Rue de la
Closerie. Os perseguidores que reapareciam entre as árvores seguiram-lhe o caminho e
pularam o muro também.
O pomar esvaziou-se. A bruma acentuava-se, cor de tília.
Angélica fechou a porta-janela por onde se infiltrava o ar gelado. Logo chegou a cadela,
que fora divertir-se nos confins da propriedade e que subiu a encosta a galope. Abriu-se a
porta para deixá-la entrar, e ela se precipitou para dentro do quarto, de língua pendurada,
toda excitada com o inesperado jogo de esconde-esconde.
— É uma cadela da raça cananéia — apresentou a Sita. d'Houredanne. — A primeira
raça de cães domésticos, daí o cane dos romanos, que lhes guardava a entrada das vilas.
Um amigo a trouxe para mim das escalas do levante. Foi cruzada com o cão de fila do Sr.
de Chambly-Montauban, e os filhotes são muito bonitos.
Ela dobrava suas cartas, suspirando.
— Seu gato insolente... um Kar-ka-fu feroz, todos esses animais da criação passeando
sobre meu muro... Teria sido melhor se eu conservasse a paliçada de estacas bem pontudas
que cercava o jardim antes.
Arrumava os papéis com método, dando-lhes uma última olhada antes de guardá-los na
caixinha e demorando-se sobre algumas palavras notadas de passagem. Pôs-se a procurar
em outro cofrinho.
Resmungando em inglês e com a touca de viés, a criada voltara para a cozinha, sem
fôlego. Pouco depois entrou no quarto, trazendo numa bandeja de prata uma tigela de
mingau de aveia. O preparo da papa devia ter sofrido com a afobação da cozinheira, que
abandonara o fogo para correr atrás do glutão.
Um nítido cheiro de queimado se desprendia da comida. Nem criada nem patroa
pareceram incomodar-se com isso.
— Deixe isso ali — disse a Sita. d'Houredanne, apontando a mesa-de-cabeceira. — Ah,
eis o que eu estava procurando! Erguia encantada, outro maço de manuscritos.
— Se você soubesse o tesouro que é! É um romance cujos direitos o livreiro Bardin
adquiriu no ano passado. Mas ainda não o publicou, e algumas cópias estão sendo passadas
de mão em mão, à socapa. A Princesa de Clèves. Foi a Sra. de La Fayette que escreveu.
Calou-se e pôs-se a examinar Angélica com atenção.
Você interessaria à Sra. de La Fayette... Sua vida amorosa deve ter sido muito
movimentada...
Ignoro o que quer dizer exatamente com "movimentada" — disse Angélica, rindo.
Fez a Srta. d'Mouredanne notar que o jantar ia esfriar. Seus instintos de enfermeira
sofriam por não poder arrumar um pouco aquela cama submersa em papéis, e teria
preferido ver aquela frágil mulherzinha tomar uma boa gemada.
Foi até a chaminé atiçar as brasas e lançou mais duas achas ao fogo. As chamas
crepitaram alegremente.
— Recebi um certo Sr. de La Ferté, que se interessa muito por você — continuou a
velha senhorita. — Só veio com a finalidade de espiá-la de minha casa.
Angélica estremeceu. Bem que tivera a impressão de ver Vivonne e comparsas
rondando por ali.
— Ele e os companheiros são muito desagradáveis. Receio que tenham o
mal-napolitano, como todos os gentis-homens da corte. Dizem que pimenta é bom remédio
contra essas afecções devidas à flecha envenenada de Vénus. Mas faz espirrar...
Insistiu com Angélica para que lhe encontrasse uma panaceia para a horrível doença.
Angélica não via por que a velha senhorita temia tanto o mal-napolitano, ela, que não
saía do leito, levava uma vida de reclusa e, apesar de uma graça evidente, estava numa
idade que a punha ao abrigo das paixões.
Prometeu à Srta. D'Houredanne que lhe traria todo tipo de plantas tranquilizantes.
— Pois bem, está combinado, volte! E quando a neve cair abundantemente e nos isolar,
atravesse a rua e venha de noite. Ler-lhe-ei esta história maravilhosa. A Princesa de Clèves.
A pena da Sra. de La Fayette é divina. Seu estilo é um regalo.
Você haverá de apreciar.
E acrescentou:
— Fui leitora da rainha.
No próximo volume
O Inesquecível Natal de Angélica
Angélica era uma vencedora. Ninguém podia resistir a seu encanto fascinante. Um a um,
todos os habitantes de Quebec sucumbiam ao seu poder de sedução. Nem mesmo a difícil e
desconfiada Cleo d'Houredanne, isolada em sua alcova literária, conseguiu defender-se
dos poderes daquela a quem chamava "a sedutora".
Restava, porém, a mais dura prova da Marquesa dos Anjos: o confronto com a Madre
Madalena da Cruz, visionária que poderia, com uma palavra, identificá-la com a mulher
maléfica da premonição. De seu veredicto dependeria a sorte de Angélica e do marido, o
Conde Joffrey de Peyrac, em sua reentrada em solo francês.
No próximo volume, O Inesquecível Natal de Angélica, entre inúmeras peripécias
que os canadenses inventam para entreter-se em suas cidades ilhadaspelo gelo do longo
inverno, nossa imbatível marquesa terá de enfrentar os derradeiros obstáculos antes do
pronunciamento fatídico de Luís XIV sobre seu destino em terras francesas.
ANNE E SERGE GOLON
OS AUTORES:
ANNEE SERGE GOLON
Serge Golonbikoff nasceu em Bukhara (URSS) em 1903 e Simone (Anne) Cnangeuse,
em Toulon (França), em 1928. Çonheceram-se e casaram-se na Africa, para onde Arme,
com o dinheiro de um premio literário, viajara como jornalista. Serge era uma celebridade
na época: formado em geologia, mineralogia e química, cruzara o misterioso continente em
busca de ouro e diamantes, acabando por participar da descoberta de estanho em Katanga
(Zaire). Atraída por sua fama, Anne resolveu entrevistá-lo.
De volta à França, em 1952, já casados, tiveram a ideia de escrever uma novela
histórica ambientada no século XVII: Serge colhendo as informações no Arquivo de
Versalhes e Anne exercitando um talento para as letras manifestado já na infância.
O sucesso de Angélica, Marquesa dos Anjos, lançado em 1959, foi imediato, animando
os autores a produzirem novos volumes. Estes, traduzidos para vários idiomas e transpostos
para o cinema, fizeram da heroína uma das personagens mais famosas do mundo.