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A França, em 1661, é a maior potência do Ocidente.

Paris, na época com 500 mil habitantes, a maior


cidade da Europa. No entanto, enquanto a nobreza isola-se no luxo da corte, a capital assemelha-se a um
teatro de horrores. Um quinto da população, entrincheirada nos bairros medievais, nos chamados "Pátios
dos Milagres", onde nem mesmo a polícia ousa aventurar-se, vive na miséria e na marginalidade,
cometendo livremente toda sorte de desordens, assassinatos e roubos, tanto de dia quanto de noite.
Mas a impunidade tem seus dias contados. Com a morte do Cardeal Mazarino, Luís XIV assume o
poder absoluto e passa a governar com mão de ferro. Disposto a tudo para reorganizar o país sob seu
comando, nivela as cabeças a golpe de foice. Sua primeira vitima é o poderoso ministro das Finanças,
Nicolas Fouquet, pretenso candidato natural à sucessão do primeiro-ministro. "O Estado sou eu",
sentencia o Rei-Sol ao tomar posse.
Enquanto os grandes conspiram, traem e retornam às graças do soberano, ou então são eliminados,
Angélica, renegada pelos seus, é uma mulher sem nome. Estreitando os dois filhos ao coração, ela olha o
futuro com temor. Que destino espera a doce menina de Monteloup na lama corrompida da velha capital?

"Esta morte será seu dote", arqueja o marginal. "Assim se compra uma bela no reino dos
mendigos."
Viúva de um homem condenado à morte na fogueira por feitiçaria, Angélica, sem bens nem fortuna,
vagava pelas ruas geladas de Paris. Errante e sem destino, acabara se envolvendo com os mendigos que
infestavam o domínio temível e quase inacessível do Pátio dos Milagres, onde nem mesmo a polícia
ousava aventurar-se.
A iniciação da doce Marquesa dos Anjos naquele ambiente sinistro ocorreria numa inquietante noite
de inverno, num cemitério, com a lua a iluminar o macabro cenário de covas abertas e ossários expostos.
Logo ela descobriria os bandos rivais, cada qual com seu chefe e seu território, todos subordinados ao rei
das sombras.
Também nesse império das trevas a bela condessinha ocuparia um lugar de destaque — para sua
grande surpresa, ao lado de alguém muito querido na infância, que a amara no passado e nunca a
esquecera...

Título: Angélica e o príncipe das trevas


Autor: Anne e Serge Golon
Título original:
Dados da Edição: Editora Nova Cultural 1989
Publicação original:
Gênero: Romance Histórico
Digitalização e correção: Nina
Estado da Obra: Corrigida

Angélica e o príncipe das trevas


Anne e Serge Golon

Fevereiro de 1661. Expulsa de casa e abandonada por todos, Angélica errava sem destino pelas ruas
geladas de Paris, onde pululavam mendigos e salteadores. Permaneciam vivas em sua memória as
imagens do espetáculo macabro que fora a execução de seu marido, o Conde Joffrey de Peyrac,
consumido na fogueira; aos gritos da multidão ensandecida. Como se evadida do inferno, ela conseguira
sobreviver à enfermaria infecta do Hôtel-Dieu, de onde poucos escapavam com vida. Aferrando-se ao
desejo ardente de viver, ela saíra de lá levando o filho Cantor, recém-nascido, nos braços. Restava, no
entanto, uma tarefa a cumprir. Ela jurara vingar-se de seus opressores. O monge Bécher, principal
acusador de seu marido no tribunal, devia morrer!
O PÁTIO DOS MILAGRES

CAPÍTULO I

Batalha dos mendigos no Cimetière des Saints-Innocents

Angélica olhava, através da vidraça, o rosto do monge Bé-cher. Insensível à neve derretida que
gotejava do telhado sobre seus ombros, ela ficou, pela noite adentro, encostada à Taberna da Grade
Verde.
O monge achava-se amesendado diante de um pichei de estanho e bebia, com o olhar fixo.
Angélica o via muito distintamente, malgrado o espesso vidro da janela. O interior da taberna estava
pouco enfumaçado. Os monges e os padres seculares, que constituíam a principal clientela da Grade
Verde, não tinham o gosto do cachimbo. Iam ali para beber e, sobretudo, para os jogos de damas e de
dados.
A jovem, que, a despeito do frio, permanecia imóvel, em sua vigia obstinada, estava vestida
pobremente. Sua roupa era de fustão grosseiro; uma touca de linho cobria-lhe os cabelos.
Entretanto, quando a porta da taberna, abrindo-se, proje-tava uma faixa de luz sobre a soleira, podia-se
distinguir um fino rosto, muito belo, muito pálido, cuja distinção provava a origem patrícia.
Ainda não fazia muito tempo, aquela mulher fora um dos mais belos ornamentos da luxuosa corte do
jovem Luís XIV. Lá, dançara vestida de tecido de ouro, envolta pelo fogo admirativo dos olhares que
sua beleza atraía.
Chamava-se Angélica de Sancé de Monteloup. Aos dezes-sete anos, seus pais haviam-na casado com
um grande senhor tolosano, o Conde Joffrey de Peyrac.
Por que caminhos terríveis e imprevistos seu destino a havia conduzido para lá, naquela noite
miserável, onde, grudada nas vidraças de uma taberna, vigiava o objeto de seu ódio?
Contemplando a fisionomia sinistra do monge Bécher, Angélica revivia o calvário de seus últimos
meses, o pavoroso pesadelo em que se debatera.
Voltava a ver o Conde de Peyrac, seu marido, aquele homem estranho e sedutor, a despeito da
desgraça de uma perna doente, que lhe rendera o apelido de Grande Coxo do Languedoc.
Grande sábio também^ grande artista, grande espírito, grande em tudo, atraía a simpatia e o amor, e
sua jovem esposa, de início rebelde, se transformara numa mulher apaixonadamente dedicada.
Mas a fabulosa riqueza do Conde de Peyrac também suscitava invejas.
Ele fora objeto de um complô que o rei, temendo o poderoso vassalo, apoiara. Acusado de feitiçaria,
preso na Bastilha, o conde fora entregue a um tribunal iníquo e condenado à fogueira.
Ela vira o monge mandar queimar na Place de Greve aquele a quem amava!
Vira a chama da fogueira misturar-se ao ouro do sol, no ar cristalino de uma manhã de inverno, havia
pouco.
Ficara só, negada por todos, condenada a desaparecer com seus dois filhos.
As carinhas de Florimond e Cantor passaram ante seus olhos. As pálpebras bateram. Por um momento
deixou de perscrutar através da vidraça, e a cabeça lhe pendeu, cansada.
Florimond estaria chorando? Chamaria alguém? Pobre anjo! Não tinha mais pai nem mãe...
Ela os deixara em casa de sua irmã Hortênsia, a despeito dos gritos desta. A Sra. Fallot, mulher do
procurador, ficara apavorada ante a ideia de abrigar a prole de um feiticeiro. Expulsara Angélica com
horror. Felizmente, havia Bárbara, a criada de coração generoso. Ela teria pena dos pobres órfãos...
Angélica errara durante muito tempo, sem destino, através de uma Paris noturna e coberta de neve que
se abria à noite, covil de bandidos e teatro de emboscadas e crimes. O acaso a tinha conduzido à Taberna
da Grade Verde, onde o monge Bécher acabava de se introduzir, com ar espantado, e procurava
esquecer, bebendo, as labaredas da fogueira que ele provocara.
Subitamente Angélica se reanimou. Não, ela não estava completamente vencida. Pois ainda lhe restava
uma tarefa a cumprir. O monge Bécher devia morrer!
Angélica não tremeu. Somente ela sabia por que o monge Bécher devia morrer. Via nele o símbolo de
tudo que Jof-frey de Peyrac reprovara durante sua vida: a estupidez humana, a intolerância e aquela
sobrevivência da sofística medieval, contra a qual ele debalde procurara defender as ciências novas. E
era aquele espírito apoucado, perdido em uma dialética trevosa e arcaica, que havia triunfado. Joffrey de
Peyrac estava morto.
Mas antes de morrer ele gritara a Conan Bécher no adro de Notre-Dame:
— Dentro de um mês nos encontraremos diante do tribunal de Deus!
O prazo estava expirando...
— Você faz mal em permanecer em pé tanto tempo numa noite como esta.. Não tem uma moeda para
me dar?
Angélica voltou-se, procurando quem lhe dirigia essas palavras, e não viu ninguém. De súbito, no
entanto, a lua, passando entre duas nuvens, mostrou-lhe a seus pés a forma achaparrada de um anão. Este
ergueu dois dedos entrecruzados de maneira estranha. A jovem recordou-se do gesto que o mouro
Kuassi-Ba lhe havia ensinado certo dia, dizendo-lhe: "É só cruzar os dedos assim, e meus amigos dizem:
Está bem, você é dos nossos!"
Maquinalmente ela repetiu o sinal de Kuassi-Ba. Um largo sorriso fendeu o rosto do pigmeu.
— Você é do bando, eu bem que desconfiava! Mas não a reconheço. Você pertence a Rodoguno, o
Egípcio, ao soldado João Banguela, ao Jaqueta Azul ou ao Corvo?
Sem responder, Angélica recomeçou a examinar o monge Bécher através do vidro. De um salto o anão
pulou para o peitoril. A claridade que vinha da taberna alumiou-lhe a gorda face e o chapéu seboso. Ele
tinha mãos redondas e carnudas e pés pequeníssimos, calçados em sapatos de pano, como os que usam
as crianças.
— Onde está esse cliente de quem você não tira os olhos?
— Ali, é aquele que está sentado no canto.
— Você acredita que esse velho saco de ossos, com um olho mandando o outro à merda, pagará caro
por seus pesares?
Angélica respirou profundamente.
— Aquele homem é quem eu devo matar — disse ela.
Rapidamente o anão passou-lhe um braço ágil em torno da cintura.
— Você nem sequer traz sua faca. Como o fará?
Pela primeira vez, a jovem olhou atentamente para aquela estranha criatura que acabava de surgir das
pedras como um rato, como um dos repugnantes animais da noite pelos quais Paris era invadida à
proporção que as trevas se tornavam mais profundas.
— Venha comigo, marquesa — disse bruscamente o pitorra, saltando para o chão. — Vamos até o
Saints-Innocents.
Lá, Yocè se entenderá com os camaradas para fazer acertar o seu frade.
Ela seguiu-o sem a mínima hesitação. O anão precedia-a bamboleando.
— Eu me chamo Barcarola — disse ele após alguns instantes. — Não é um nome gracioso, tão
gracioso quanto eu? Uh! Uh!
Soltava gritos alegres e deu uma cabriola. Depois, amassando uma bola de neve e de lama, atirou-a à
janela de uma casa.
— Vamos dar o pira, minha cara — continuou ele, estugando o passo. — Do contrário, vamos receber
sobre a cabeça o urinol desses bons burgueses que nós impedimos de dormir.
Mal acabou de falar, abriu-se uma janela e Angélica teve de dar um pulo para o lado a fim de evitar a
ducha anunciada.
O anão havia desaparecido. Angélica continuou a caminhar. Seus pés afundaram-se na lama e suas
vestes estavam úmidas, mas ela não sentia frio.
Um leve assovio atraiu sua atenção para a abertura de um esgoto. Surgindo do buraco, reapareceu o
anão Barcarola.
— Perdoe-me ter deixado de fazer-lhe companhia, marque
sa. Fui procurar meu amigo Janin Traseiro de Pau.
Atrás dele, uma segunda silhueta pequena surgiu do esgoto. Não era um anão, mas um aleijado, um
homem-tronco, instalado sobre uma enorme cuia de madeira. Com suas mãos nodosas, empunhava tacos
de madeira sobre os quais se apoiava para mover-se.
O monstro ergueu para Angélica um olhar escrutador. Tinha uma face bestial, rebentando em pústulas.
Seus cabelos raros estavam cuidadosamente arrumados sobre o crânio luzidio. Sua única vestimenta era
composta de uma espécie de casaco de pano azul, com botoeiras e lapelas agaloadas de ouro, que devia
ter pertencido a um oficial. Com um peitilho impecável, ele compunha uma personagem extraordinária.
Depois de examinar demoradamente a jovem, escarrou sobre ela. Angélica olhou-o com espanto, depois
limpou-se com um punhado de neve.
— Está bem — disse o aleijado, satisfeito. — Ela sabe com quem fala.
— Falar? Hum! Que esquisita maneira de falar! — exclamou Barcarola.
E explodiu em seu riso ululante:
— Uh! Uh! Como eu tenho espírito.
— Dê-me meu chapéu — disse Traseiro de Pau. Cobriu-se com um chapéu de feltro guarnecido de
belas
plumas. Depois, apanhando seus punhos de madeira, pôs-se a caminhar.
— Que é que ela quer? — perguntou ele após alguns momentos.
— Que a ajudem a matar um frade.
— É impossível. A quem pertence ela?
— Não posso saber...

A medida que eles avançavam através das ruas, outros vultos se lhes juntavam. Ouviram-se
primeiramente assovios partidos dos cantos escuros, das ribanceiras ou do fundo dos pátios. Depois
surgiram mendigos de longas barbas, pés descalços e amplos casacos andrajosos; velhas que não eram
mais do que pacotes de trapos amarrados com barbantes e grossos terços; cegos e coxos que punham
suas muletas ao ombro para andar mais depressa; corcundas que não tinham tido tempo de retirar suas
gibas. Alguns autênticos miseráveis e autênticos aleijados se misturavam aos falsos mendigos.
Angélica tinha dificuldade em compreender a linguagem deles, toda recheada de palavras estranhas.
Numa encruzilhada, um grupo de espadachins de bigodes conquistadores abeirou-os. Ela supôs que
fossem militares, ou talvez homens da ronda, mas logo percebeu que se tratava de bandidos disfarçados.
Foi nesse instante, à vista dos olhos de lobo dos recém-chegados, que ela teve um movimento de
recuo. Lançou um olhar para trás, viu-se rodeada de formas hediondas.
— Está com medo, minha bela? — perguntou um dos bandidos passando-lhe o braço em volta da
cintura.
Ela afastou o braço indiscreto, dizendo:
— Não! — E, como o homem insistisse, deu-lhe uma bofetada.
Ele teve uma reação diante da qual Angélica se perguntou o que ele ia fazer. Mas não tinha medo. O
ódio e a revolta, que havia muito se achavam latentes em sua alma, concentravam-se num terrível desejo
de morder, de arranhar, de furar olhos. Precipitada ao fundo do abismo, eis que ela se encontrava sem
dificuldade ao nível das feras que a cercavam.
Foi o estranho Traseiro de Pau que restabeleceu a ordem, com sua autoridade e seus berros furiosos. O
homem-tronco possuía uma voz cavernosa que fazia estremecer os companheiros e acabava por dominar
a todos.
Suas palavras veementes apaziguaram a querela. Olhando o espadachim que a tinha provocado,
Angélica viu que seu rosto estava sulcado por filetes de sangue e que ele tinha uma das mãos sobre os
olhos. Mas os outros riam.
— Ah, ah, ah! A pequena lhe fez uma boa!
Angélica riu também; era um riso provocante que surpreendeu a ela própria. Isso não era mais difícil
do que marchar para o fundo do inferno? Quanto ao medo... Afinal de contas, que é o medo? É um
sentimento que não existe. Muito bom para essa brava gente de Paris que tremia ao ouvir passar sob suas
janelas os mendigos da matterie a caminho do Cimetiere des Saints-Innocents para ver seu príncipe, o
Grande Coesre.
— A quem pertence ela? — perguntou ainda alguém.
— A nós! — rugiu Traseiro de Pau. — E que todos o fiquem sabendo.

Deixaram-no ir adiante. Nenhum dos mendigos, embora fosse dotado de um par de pernas ágeis,
procurava ultrapassar o homem-tronco. Em uma ruela em aclive, dois falsos soldados, que eram
chamados drilles, precipitaram-se para carregar a cuia do aleijado e levá-lo mais longe.
O odor do quarteirão tornava-se penetrante, espantoso: carne e queijos, legumes que apodreciam nas
valas e, principalmente, um cheiro de putrefação. Era o quarteirão dos Halles, selado pelo horrível
devorador de carne: o Cimetiere de Saints-Innocents.
Angélica nunca havia ido ao Innocents, embora esse lugar macabro fosse um dos mais populares locais
de encontro de Paris. E ali se encontravam mesmo grandes damas que iam escolher livros ou roupa-
branca nas lojas instaladas sob os ossuários.
Era um espetáculo familiar, durante o dia, ver senhores elegantes e suas amantes irem, de arcada em
arcada, afastando negligentemente com a ponta de suas bengalas caveiras ou ossos esparsos, enquanto os
enterros passavam por eles salmodiando.
A noite, aquele sítio privilegiado, onde não se podia, por tradição, prender ninguém, servia de refúgio
aos gatunos e salteadores, e os libertinos iam ali escolher, entre as prostitutas, as suas companheiras de
devassidão.
Quando chegaram diante do recinto, cuja muralha derruída em vários lugares permitia penetrar no
interior, um cam-painheiro dos mortos saiu pela grade principal, vestido com sua levita negra bordada de
caveiras, tíbias entrecruzadas e lágrimas de prata. Percebendo o grupo, ele disse calmamente:
— Aviso-lhes de que há um morto na Rue de la Ferronnerie e que estio pedindo pobres para o cortejo
amanhã. Darão a cada um dez soldos e uma saia ou um casaco negro.
— Eu vou, eu vou! — gritaram algumas velhas desdentadas.
Por pouco não foram postar-se imediatamente defronte da casa do defunto, mas os outros as censuraram
e Traseiro de Pau rugiu uma vez mais, injuriando-as:
— Merda! Não vamos ocupar-nos de nosso trabalho e de nossos pequenos negócios, quando o Grande
Coésre nos espera! Ter eu agora de me aporrinhar com essas bruxas! Os costumes passam, eu lhes
afirmo!
As velhas, confusas, baixavam a cabeça e batiam o queixo. Depois, cada um, por um buraco ou por
outro, penetrou no cemitério.
O campainheiro afastou-se, agitando a sineta. Na encruzilhada, ele se deteve, levantou o rosto para a
lua e salmodiou lugubremente:
"Interrompam seu sono,
Roguem a Deus pelos mortos..."

Angélica, com os olhos arregalados, avançou através da vasta área repleta de cadáveres. Aqui e ali
havia extensas valas comuns abertas, já meio cheias de corpos cosidos em seus sudários e que
esperavam novo contingente de mortos para serem fechadas.
Algumas esteias, algumas lajes, colocadas diretamente no solo, marcavam as sepulturas das famílias
mais abastadas. Mas era este, havia séculos, o cemitério dos pobres. Os ricos eram enterrados no de
Saint-Paul.
A lua, que havia, afinal, resolvido reinar em um céu sem nuvens, ainda alumiava a fina camada de
neve que recobria o telhado da igreja e dos edifícios próximos.
A cruz dos Buteaux, que era um alto crucifixo de metal erguido perto do púlpito, no centro do terreno,
luzia fracamente.
O frio atenuava o odor nauseabundo. Ninguém, aliás, dava importância a isso, e a própria Angélica
respirava com indiferença aquele ar saturado de miasmas.
O que atraía seu olhar, e a aturdia a tal ponto que ela tinha a impressão de ser vítima de pesadelo, eram
as quatro galerias que, partindo da igreja, formavam o recinto do cemitério.
Essas edificações, que datavam da Idade Média, compunham-se, nos seus envasamentos, de um
claustro com arcadas em ogiva, onde, ao amanhecer, os mercadores exibiam os seus cabazes.
Mas, acima do claustro, e por fora deste, encontravam-se depósitos cobertos de telhas e que
assentavam sobre pilares de madeira, deixando, assim, intervalos descobertos entre os telhados e as
abóbadas. Todo esse espaço estava repleto de ossos. Milhares e milhares de caveiras e restos de
esqueletos amontoavam-se ali. Os celeiros da morte, transbordantes de sua colheita sinistra, expunham
aos olhares e à meditação dos vivos inauditos acervos de crânios quê as correntes de ar secavam e o
tempo reduzia a pó. Mas, sem descanso, novas provisões, extraídas da terra do cemitério, os substituíam.
De fato, um pouco por toda parte, perto das sepulturas, viam-se pilhas de esqueletos reunidos em
feixes, ou as sinistras bolas brancas das caveiras, cuidadosamente arrumados pelo coveiro e que, pouco
depois, seriam colocados nos depósitos acima do claustro.
— Que é... que é isso? — balbuciou Angélica, para quem tal visão não podia pertencer à realidade, e
que acreditava estar ficando louca.
Trepado numa campa, o anão Barcarola a olhava com curiosidade.
— Os ossuários! — respondeu ele. — Os ossuários do Innocents! Os mais belos ossuários de Paris!
E após um curto silêncio acrescentou:
— De onde vem você? Nunca viu nada?
Ela foi sentar-se junto dele.
Depois que ela quase inconscientemente agatanhou o rosto do drille, deixaram-na em paz e não mais
lhe falaram.
Se olhares curiosos ou lascivos se voltavam para ela, havia imediatamente uma voz que lembrava:
— Traseiro de Pau disse: "Ela é nossa". Cuidado, rapazes!
Angélica não percebia que, a seu redor, o espaço do cemitério, ainda semideserto um momento antes,
se enchia pouco a pouco de uma multidão andrajosa e temível.
Os ossuários monopolizavàm-lhe a atenção. Ela não sabia que aquele gosto macabro de amontoar
esqueletos era peculiar de Paris. Todas as grandes igrejas da capital procuravam fazer concorrência ao
Innocents. Angélica achava aquilo horrível, mas Barcarola achava-o magnífico. O anão murmurou:

"...A morte enfim os afronta.


Que horror morrer para o mundo
E não saber para onde se vai!"

Angélica voltou-se lentamente para ele.


— Você é poeta?
— Não sou eu quem fala assim, mas o Poeta Pobre.
— Você o conhece?
— Se o conheço! E o poeta do Pont Neuf.
— Esse também eu quero matar. O anão saltou como um sapo.
— O quê? Nada de graçola. Ele é meu camarada.
O anão olhou em volta de si e, pondo um dedo sobre a fronte, tomou os outros como testemunhas:
— Ela está louca! Deseja matar todo mundo.
Levantaram-se súbitos clamores, e a multidão abriu caminho a um estranho cortejo.
A frente marchava um indivíduo muito alto e magro, cujos pés nus pisavam a curtas e rápidas passadas
a neve lamacenta. Uma abundante cabeleira branca descia-lhe sobre as espáduas, mas seu rosto era
glabro. Dir-se-ia uma mulher velha, e talvez, afinal de contas, não fosse um homem, a despeito de suas
calças e de seu casaco em frangalhos. Com seus pômulos salientes e os olhos embaciados e glaucos no
fundo das órbitas cavadas, ele era tão desprovido de sexo como um esqueleto, e estava bem de acordo
com aquele ambiente lúgubre. Carregava uma comprida lança, de cuja ponta pendia, empalado, o corpo
de um cão.
Perto dele, um homenzinho rechonchudo e imberbe brandia uma vassoura.
Atrás desses dois estranhos porta-estandartes vinha um san-fonineiro que girava a manivela de seu
instrumento. A originalidade do executante consistia em seu enorme chapéu de palha, que lhe descia
quase até os ombros. Mas ele havia feito um orifício na parte da frente, e por ali se via brilharem seus
olhos zombeteiros. Era seguido por um garoto que batia aceleradamente sobre o fundo de uma bacia de
cobre.
— Quer que lhe diga o nome desses três célebres cavalheiros? — perguntou o anão a Angélica.
E acrescentou, piscando o olho:
— Você conhece a senha, mas bem vejo que não é dos nossos. Os que vêm na frente são o Grande
Eunuco e o Pequeno Eunuco. Há anos que o Grande Eunuco se acha às portas da morte, mas não morre.
O Pequeno Eunuco é o vigia das mulheres do Grande Coésre. Ele carrega a insígnia do rei de Thunes.
— Uma vassoura?
— Psiu! Não zombe. A vassoura destina-se a fazer uma boa limpeza da casa. Atrás deles vêm
Thibault, o Sanfonineiro, e seu pajem Linot. Em seguida, vêm as mulheres do rei de Thunes.
Sob toucas sujas, as mulheres que ele indicava mostravam suas faces inchadas, suas olheiras de
prostitutas. Algumas ainda eram belas e todas olhavam em derredor com insolência. Mas somente a
primeira, uma adolescente, quase uma criança, tinha algum frescor. Malgrado o frio, ela estava com o
busto nu e exibia com orgulho seus jovens seios já bem desenvolvidos.
Vinham a seguir os portadores de tochas, os mosqueteiros armados de espadas, os mendigos e os
falsos peregrinos de São Tiago. Depois, em um ranger de eixos, apareceu um pesado carrinho puxado
por um gigante de olhar vago e lábio proeminente.
— É Bavottant, o idiota do grande Coesre — anunciou o anão.
Atrás do idiota, uma personagem de barba branca fechava a marcha, coberta por uma levita negra,
cujos bolsos estavam recheados de rolos de pergaminho. De sua cintura pendiam três varetas, um tinteiro
de chifre e penas de ganso.
— É Pedro Barbaças, o arquissequaz do Grande Coesre, o que faz as leis do reino de Thunes.
— E esse Grande Coesre, onde está?
— No carrinho.
— No carrinho? — repetiu Angélica, estupefata.
Ela esticou-se um pouco, a fim de ver melhor.
O carrinho tinha parado em frente ao púlpito. Era assim chamada, no meio do cemitério, uma tribuna
erguida sobre alguns degraus e coberta por um teto piramidal.
O idiota Bavottant inclinou-se e apanhou no carrinho um objeto, depois sentou-se no topo da escada e
pousou o obje-to sobre os joelhos.
— Meu Deus! — suspirou Angélica.
Ela via o Grande Coesre. Era um ser de busto monstruoso, terminado por pernas finas e brancas de
menino de dois anos. A cabeça possante era guarnecida de uma cabeleira hirsuta e negra, atada por um
pano sujo, que lhe escondia a pu-rulência. Os olhos profundamente enterrados sob espessas sobrancelhas
brilhavam duramente. Usava um grande bigode negro de pontas reviradas.
— Eh! Eh! — chacoteou Barcarola, deliciando-se com a surpresa de Angélica. — Você aprenderá,
garota, que entre nós os pequenos dominam os grandes. Sabe quem será talvez Grande Coesre, quando
Rolin Tarraco morrer?
Ele segredou ao ouvido dela:
— Traseiro de Pau.
Depois, sacudindo a cabeçprra:
— É uma lei da natureza. É preciso miolo para reinar sobre a matterie. É o que falta quando se tem um
par de pernas. Que pensa você disso, Pé Ligeiro?
O chamado Pé Ligeiro sorriu. Acabava de sentar-se na beira da sepultura e pôs uma das mãos sobre o
peito, como se sofresse. Era um homem muito jovem, que tinha o ar doce e simples. Disse, com voz
anelante:
— Tem razão, Barcarola. É melhor ter cabeça do que ter pernas, pois, quando as pernas nos deixam,
nada mais nos resta.
Angélica olhou com admiração as pernas do rapaz, que eram longas e musculosas.
Ele sorriu com melancolia.
— Oh! Elas continuam comigo. Mas é com dificuldade que consigo movê-las. Eu era corredor do Sr.
de La Sabliere. Um dia em que percorri cerca de vinte léguas, meu coração afrouxou. E depois não mais
pude caminhar.
— Você não pode mais caminhar porque correu demais! — exclamou o anão com uma cabriola. —
Uh! Uh! Uh! Que gracioso!
— Cale a boca, Barco! — repreendeu uma voz.
Um punho sólido agarrou o anão pelo casaco e atirou-o sobre uma pilha de ossos.
— Este aborto enche, não é, beleza?
O homem que acabava de intervir inclinou-se para Angélica. Fatigada de tantas deformidades e
horrores, a jovem encontrou na beleza do recém-vindo uma espécie de alívio. Distinguia-lhe mal o rosto,
oculto pela sombra de um grande chapéu de feltro adornado por delgada pluma. Entretanto,
vislumbravam-se-Ihe traços regulares, grandes olhos, uma boca harmoniosa. Era jovem, na plenitude de
sua força. Sua mão, muito morena, estava pousada sobre a guarda de um longo punhal pendurado em seu
cinturão.
— Que faz você aqui, beleza? — perguntou ele com voz cariciosa, com um sutil acento estrangeiro.
Ela não respondeu e olhou desdenhosamente ao longe.
Sobre os degraus do púlpito, diante do Grande Coèsre e de seu gigante idiota, acabavam de pôr a bacia
de cobre que pouco antes servira de tambor ao menino.
E os mendigos avançavam, uns após outros, para depositar na bacia o imposto exigido pelo príncipe.
Cada um era taxado conforme sua especialidade. O anão, que se havia reaproximado de Angélica,
esclarecia-a em voz baixa sobre os títulos de toda aquela multidão de mendicantes, que, desde o começo
da existência de Paris, havia codificado a exploração da caridade pública.
Ele apontava-lhe os rifodés, que, decentemente vestidos e afetando um ar envergonhado, estendiam a
mão e contavam aos transeuntes que eram outrora pessoas honradas que haviam tido as casas
incendiadas e os bens pilhados pela guerra. Os mercandiers faziam-se passar por antigos mercadores
despojados pelos bandidos dos grandes caminhos, e os con-vertis confessavam que tinham sido tocados
pela graça divina e iam tornar-se católicos. Após receberem o óbolo, partiriam para converter-se em
outra paróquia.
Os drilles e os narquois, antigos soldados, pediam esmola com a ponta da espada, ameaçando e
assustando os bons burgueses, enquanto os orphelins, pequenas crianças que se davam as mãos e
choravam de fome, procuravam enternecê-los.
Toda aquela pedintaria respeitava o Grande Coêsre porque ele mantinha a ordem entre os bandos
rivais. . Soldos, escudos e até moedas de ouro caíam na bacia.
O homem de pele trigueira não tirava os olhos de Angélica. Aproximou-se dela, acariciou-lhe a
espádua. Ela esboçou um gesto de recuo, e ele disse precipitadamente:
— Eu sou Rodoguno, o Egípcio. Tenho quatro mil pessoas à minha disposição em Paris. Todos os
ciganos que passam me pagam imposto, e também as mulheres morenas que lêem o futuro na mão. Quer
ser uma das minhas mulheres?
Ela não respondeu. A lua viajava por cima do campanário da igreja e dos ossuários. Diante do púlpito
continuava o desfile dos aleijados, falsos ou verdadeiros, daqueles que se mutilavam de propósito para
despertar a compaixão, e daqueles que, caída a noite, podiam dar folga às muletas e ataduras. Era por
isso que haviam dado ao seu covil o nome de Pátio dos Milagres.
Vindos da Rue de la Truanderie, dos faubourgs Saint-Denis, Saint-Martin, Saint-Marcel, da Rue de la
Jussienne e de Saint-Marie PÉgyptienne, os tinhosos, os raquíticos, os fracos, os sabouleux, os cajons e
finalmente os francs-mitous, que vinte vezes por dia tombavam moribundos no vão de uma porta, depois
de terem atado o braço com um barbante, a fim de acelerar os batimentos do pulso, lançavam, um após
outro, seu donativo diante do pavoroso idolozinho cuja autoridade aceitavam.
Rodoguno, o Egípcio, pousou novamente a mão sobre a espádua de Angélica. Dessa vez ela não se
esquivou. A mão era quente e viva, e a jovem tinha tanto frio! O homem era forte e ela era frágil. Ela
voltou os olhos para ele e procurou na sombra do chapéu os traços daquele rosto que não lhe inspirava o
mínimo horror. Via brilhar o branco dos longos olhos de boémio. Ele soltou uma praga entre dentes e
apoiou-se pesadamente sobre ela.
— Quer ser "marquesa"?
— Você me ajudará a matar alguém? — perguntou ela. O bandido inclinou a cabeça para trás com um
riso atroz
e silencioso.
— Dez, vinte pessoas, se quiser! Você terá de mostrar-ma, e juro que até o amanhecer ela terá largado
as tripas no chão.
Cuspiu na mão e estendeu-a para ela.
— Toque, estamos de acordo.
Mas ela pôs as próprias mãos atrás das costas, sacudindo a cabeça.
— Ainda não.
O outro praguejou de novo, depois afastou-se, olhando para Angélica.
— Você é cabeçuda — disse ele. — Mas eu a quero e você será minha.
Angélica passou a mão sobre a testa. Quem já lhe havia dito aquelas palavras perversas? Ela não se
recordava mais.
Surgiu uma rixa entre dois soldados. Terminado o desfile dos mendigos, o desfile dos vadios punha em
cena agora os piores bandidos da capital, não somente os "rapa-bolsas" e os ladrões de agasalhos, mas
também os assassinos assalariados, os ladrões e violadores de fechaduras, aos quais se misturavam
estudantes dissolutos, criados, antigos galés e toda uma multidão de estrangeiros atirados ali pelos azares
das guerras: espanhóis e irlandeses, alemães e suíços, e também ciganos.
Viam-se naquela assembleia plenária da mendicância muito mais homens do que mulheres, e nem
todos tinham vindo, ainda. Por vasto que fosse, o Cimetière des Saints-Innocents não poderia conter
todos os deserdados da sorte e párias da cidade.
De repente, os arquissequazes do Grande Coésre apartaram a turba a golpes de varas e abriram
passagem em dire-ção à tumba em que se apoiava Angélica. Esta, vendo rumar para ela aqueles homens
mal barbeados, compreendeu que era a ela que buscavam. O velho chamado Pedro Barbaças marchava à
frente.
— O rei de Thunes pergunta quem é essa jovem — disse ele mostrando Angélica.
Rodoguno passou um braço em volta da cintura de sua companheira.
— Fica quieta — sussurrou ele. — Vamos arranjar isso.
Ele arrastou-a em direção ao púlpito, apertando-a sempre contra si. Lançava olhares ao mesmo tempo
arrogantes e suspeitosos sobre a multidão, como se acreditasse que um inimigo surgiria para arrebatar-
lhe a presa.
Suas botas eram de belo couro e seu casaco, de um pano sem remendos. O espírito de Angélica
registrava esses detalhes sem que ela tivesse consciência disso. O homem não lhe causava medo. Ele
estava habituado à força e ao combate. Angélica submetia-se ao seu domínio como uma mulher vencida
que não pode passar sem um dono.
Chegado diante do Grande Coésre, o Egípcio estendeu o pescoço para a frente, cuspiu e disse:
— Eu, Duque do Egito, fico com esta para marquesa. E, com gesto largo, atirou um bolsa dentro da
bacia.
— Não! — disse uma voz calma e brutal. Rodoguno voltou-se de um salto.
— Calembredaine!
A alguns passos, ao luar, estava o homem de lobinho violeta que, por duas vezes já, se atravessara,
zombeteiramente, no caminho de Angélica.
Era tão alto como Rodoguno e mais corpulento. Suas roupas em farrapos deixavam ver os braços
musculosos e um torso peludo. Bem plantado sobre as pernas afastadas, os polegares enfiados no
cinturão de couro, ele encarava o zíngaro com insolência. Seu corpo de atleta era mais jovem que sua
face abjeta, invadida pelas brenhas de uma gaforina grisalha. Através das mechas sujas, seu único olho
brilhava. O outro estava oculto por uma venda negra.
A lua o iluminava plenamente, e atrás dele cintilava a neve sobre as coberturas dos ossuários.
"Oh! Que horrível este lugar!", pensou Angélica. "Que horrível este lugar!"
Ela encostou-se em Rodoguno. O Duque do Egito estava ocupado em endereçar um rosário de injúrias
ao seu adversário impassível.
— Cachorro! Filho de cadela! Libertino do diabo! Animal podre! Isto acabará mal... Um de nós está
sobrando...
— Cale a boca! — respondeu Calembredaine.
Depois cuspiu na direção do Grande Coèsre, o que parecia ser a homenagem tradicional, e lançou na
bacia de cobre uma bolsa mais pesada que a de Rodoguno.
Um riso súbito sacudiu o miserável pigmeu sentado nos joelhos do idiota.
— Tenho uma vontade louca de pôr essa bela em leilão!
— exclamou ele com voz rouca. — Despi-a, para que os rapazes possam julgar a mercadoria.
Os mendigos uivaram de alegria. Mãos hediondas estenderam-se para Angélica. O Egípcio puxou-a
para trás de si e sacou seu punhal. Nesse instante, Calembredaine abaixou-se e lançou um projétil
redondo e branco, que atingiu seu adversário no punho.
O projétil rolou. Angélica viu, horrorizada, que era uma caveira.
O Egípcio tinha deixado cair seu punhal. Calembredaine atracou-se com ele. Os dois bandidos
apertavam-se tão violentamente que seus ossos estalavam. Depois rolaram na lama.
Iniciou-se assim uma batalha atroz. Os representantes dos cinco ou seis bandos rivais de Paris
atiraram-se uns contra os outros. Os que tinham espadas ou punhais feriam a esmo e o sangue corria. Os
outros, imitando Calembredaine, apanhavam caveiras e atiravam-nas como projéteis.
Angélica, de um salto, misturou-se à multidão, procurando fugir.
Mas punhos sólidos a seguraram e arrastaram até diante do púlpito, onde a mantiveram os
arquissequazes do Grande Coêsre. Este, impassível, observava o combate, torcendo os bigodes.
Pedro Barbaças tinha apanhado a bacia e apertava-a contra si.
O idiota Bavottant e o Grande Eunuco riam sinistramente. Thibault, o Sanfonineiro, girava sua
manivela, cantando a plenos pulmões.
As velhas mendicantes, empurradas, pisoteadas, soltavam gritos de harpias.
Angélica percebeu um velho estropiado, munido de uma perna só, e que desferia, com sua muleta,
repetidos golpes sobre a cabeça de Traseiro de Pau, como se quisesse cravar-lhe pregos. Uma durindana
atravessou-lhe o ventre, e ele desabou sobre o aleijado.
Barcarola e as mulheres do Grande Coésre haviam-se refugiado sobre a cobertura de um ossuario e
aproveitavam a ampla reserva de caveiras para bombardear o campo de batalha.
A todos aqueles gritos estridentes, aos uivos, aos gemidos, misturavam-se agora os clamores dos
habitantes da Rue aux Fers e da Rue de la Lingerie, que, debruçados em suas janelas, acima daquele
caldeirão de feitiçaria, invocavam a Virgem Maria e apelavam para os homens da guarda.
A lua descia para o horizonte.
Rodoguno e Calembredaine prosseguiam sua luta de cães raivosos. Os golpes se sucediam. Os dois
homens tinham forças iguais. De súbito, ouviu-se um grito geral de estupor.
Rodoguno havia desaparecido como por encanto. O pânico e o medo de um milagre invadiram a
assistência, composta exclusivamente de ímpios. Mas ouviram-se gritos de Rodoguno. Um murro de
Calembredaine lançara-o ao fundo de uma das grandes valas comuns do cemitério. Recobrando os
sentidos entre os mortos, ele suplicava que o tirassem dali.
Um riso homérico sacudiu os espectadores mais próximos e propagou-se aos demais.
Os artesãos e os obreiros das ruas vizinhas ouviram, com a fronte coberta de suor, aquele riso enorme
suceder aos gritos de morte. Olhando pelas janelas, as mulheres faziam o sinal-da-cruz.
De repente, um sino argênteo soou, anunciando o ângelus.
Uma rajada de blasfémias e obscenidades subiu do cemitério para a noite cinza, enquanto os sinos de
todas as igrejas se punham a repicar.
Era preciso fugir. Assim como as corujas ou os demónios temiam a luz, as criaturas da matterie
deixaram o recinto do Cimetière des Saints-Innocents.
Naquela alvorada suja e graveolente, que começava a tingir-se de rosa como de sangue anêmico,
Calembredaine erguia-se diante de Angélica e a contemplava rindo.
— Ela é sua — disse o Grande Coésre.
Recuando de novo, Angélica correu para as grades. Mas as mesmas mãos violentas a alcançaram e
paralisaram-na. Uma mordaça de trapos a sufocou. Ela ainda se debateu, e depois mergulhou na
inconsciência.

CAPÍTULO II

Angélica em poder de Calembredaine — Morte horrível do Monge Bécher

—Não tenha medo de nada — disse Calembredaine. Ele estava sentado em um escabelo, diante dela,
com as mãos enormes apoiadas sobre os joelhos. No chão, uma vela, em um belo castiçal de prata, lutava
contra a pálida claridade do dia.
Angélica mexeu-se e viu que estava estendida sobre um catre em que se amontoava um impressionante
número de casacos de todos os tecidos e de todas as cores. Havia-os luxuosos, de veludo guarnecido de
ouro, semelhantes aos que os jovens senhores envergavam para ir tocar guitarra sob as janelas de suas
amantes, e outros de grosso fustão, vestimentas confortáveis de viajantes ou de mercadores.
— Não tenha medo de nada... Angélica — repetiu o bandido.
Ela ergueu para ele uns olhos dilatados. Sua mente se perturbava. Ele falara em patoá do Poitou, e ela o
entendera!
Ele levou a mão ao rosto e arrancou a excrescência de carne que tinha sobre a bochecha. Ela não pôde
evitar um grito nervoso. Mas ele já lançara para trás seu chapéu imundo, a que estava presa uma peruca
de cabelos desgrenhados. Depois, retirou a venda negra.
Agora, Angélica tinha diante de si um jovem de traços rudes, cujos cabelos negros e curtos se
encaracolavam acima da fronte quadrada. Afundados sob as sobrancelhas espessas e emaranhadas, olhos
escuros espreitavam a jovem, e sua expressão não era destituída de ansiedade.
Angélica levou a mão à garganta: respirava com dificuldade. Gostaria de gritar, mas sentia-se incapaz.
Balbuciou, enfim, como um surdo-mudo que move os lábios mas ignora o som de sua voz:
— Ni...co...lau.
Um sorriso distendeu os lábios do homem.
— Sim, sou eu. Você me reconheceu?
Ela deitou um olhar aos objetos imundos que jaziam no chão, perto do escabelo: a peruca, a venda
negra...
— E... é a você também que chamam Calembredaine?
Ele se empertigou e deu um murro violento no peito.
— É a mim. Calembredaine, o ilustre libertino do Pont Neuf.
Ela o olhava. Ainda se achava estendida sobre o catre de velhos agasalhos e não podia fazer um
movimento. Por uma seteira gradeada, o nevoeiro, espesso como fumaça, penetrava no aposento, em
lentas espirais. Era talvez por isso que aquela personagem andrajosa, aquele Hércules esfarrapado, de
barba negra, que batia no peito dizendo "Eu sou Nicolau... Eu sou Calembredaine", lhe aparecia como
uma fantasmagoria incrível.
Iria ela desmaiar?
Ele se pôs a caminhar, de repente, de um lado para outro, mas sem deixar de olhá-la.
— As florestas só servem quando faz calor — continuou ele. — Trabalhei com os contrabandistas de
sal. Depois, encontrei um bando na floresta de Mercoeur: velhos mercenários, antigos camponeses do
norte, galés evadidos. Estavam bem organizados. Juntei-me a eles. Saqueávamos os viajantes na estrada
que vai de Paris a Nantes. Mas só é possível agir nos bosques quando faz calor. Quando chega o
inverno, é preciso entrar nas cidades. Não é nada fácil... Estivemos em Tours, Châteaudun. Foi assim
que chegamos perto de Paris. Tínhamos aos calcanhares todos os caçadores de mendigos, todos os
caçadores de patifes! Aos que se deixavam apanhar nas portas, raspavam as sobrancelhas e metade da
barba, e agora, amigo, volta ao campo, regressa à fazenda incendiada, aos seus campos pilhados e ao seu
campo de batalha. Ou então é o Hospital Geral, ou ainda o Châtelet, já que se tinha no bolso um pedaço
de pão que a padeira lhe era porque não pudera fazer outra coisa. Quanto a mim, escolhi os bons lugares
para passar: as adegas que comunicam uma casa com outra, os buracos de esgoto que vão dar nos fossos
e, como era inverno, as chalanas presas no gelo, ao longo do Sena, desde Saint-Cloud. Uma noite,
entramos todos em Paris, como ratos... Ela disse vagamente:
— Como você pôde descer tão baixo?
Ele estremeceu e inclinou-se para ela com o rosto crispado de cólera.
— E você?
Angélica reparou em seu vestido esfarrapado. Seus cabelos soltos, mal penteados, escapavam da touca
de pano que ela passara a usar, como as mulheres do povo.
— Não é a mesma coisa — respondeu.
Os dentes de Nicolau rangeram, e ele teve um estertor de cão raivoso.
— Oh! Sim! Agora... é quase a mesma coisa. Você me entende... prostituta!
Angélica contemplava-o com uma espécie de sorriso distante... Era ele mesmo. Ela o revia de pe ao
sol, com a grande mão cheia de morangos dos bosques. E, em sua face, a mesma expressão perversa,
vingativa... Sim, isso tudo lhe voltava à memória pouco a pouco. Ele se inclinava assim... Um Nicolau
mais acanhado, camponês ainda, mas já insólito na doçura do pequeno bosque primaveril. Apaixonado
como uma besta sensual e que, entretanto, punha os braços para trás a fim de não ser tentado a agarrar e
violentar: "Vou dizer-lhe... Só você existia em minha vida... Sou como uma coisa que não está em seu
lugar e que andará sempre de um lado para outro sem saber... Meu único objeto era você..."
Nada mau como declaração para um campônio. Mas, na verdade, seu lugar verdadeiro era aquele em
que se instalava agora, terrificante, insolente: capitão de bandidos na capital!... O lugar dos que querem
tomar dos outros em vez de fatigar-se para ganhar... Isso já era de prever quando ele abandonava seu
rebanho de vacas para ir furtar a merenda dos outros pequenos pastores. E Angélica era sua cúmplice!
Ela se endireitou, com um súbito movimento, e fixou nele seus olhos glaucos.
— Proíbo-o de me injuriar. Nunca me prostituí com você. E agora dê-me de comer. Estou com fome.
Na verdade, uma fome canina acabava de acometê-la, causando-lhe mal-estar.
Nicolau Calembredaine pareceu desconcertado por esse ataque.
— Fique quieta — disse ele. — Vou providenciar.
Pegando uma barra de metal, bateu em um gongo de cobre que brilhava na parede como um sol.
Imediatamente ouviu-se na escada uma galopada de tamancos, e um homem de aspecto aturdido
apareceu na porta entreaberta. Nicolau apontou-o a Angélica:
— Apresento-lhe Jactância. Um dos meus "rapa-bolsas".
Mas sobretudo um consumado imbecil que achou maneira de se fazer exibir no pelourinho o mês
passado. Agora eu o conservo aqui para preparar a bóia, até que os fregueses do mercado esqueçam um
pouco a forma do seu nariz. Depois, coloca-se nele uma peruca, e avante com as tesouras!
Que tomem cuidado com as bolsas! Que é que você tem na panela, mandrião?
Jactância fungou e passou a manga por baixo do nariz úmido.
— Pés de porco, chefe, com couve.
— Você já é um porco! — berrou Nicolau. — Isso é comida para uma dama?
— Eu não sei, chefe...
— Qualquer coisa serve — impacientou-se Angélica.
O odor da comida fazia-a quase desfalecer. Era verdadeiramente muito humilhante aquela fome que
ela sentia nos momentos mais importantes ou dramáticos de sua vida. Quanto mais dramáticos eram os
acontecimentos, mais fome ela sentia!
Quando Jactância voltou, trazendo uma escudela transbordante de couve e vísceras gelatinosas, vinha
precedido do anão Barcarola. Este deu uma cambalhota e esboçou para Angélica uma saudação cortesã,
que tornava grotesca sua pequeníssima perna rechonchuda e seu grande chapéu. A sua cabeça
monstruosa não faltava inteligência, nem mesmo certa beleza. Era talvez por isso que, malgrado sua
deformidade, tinha logo despertado a simpatia de Angélica.
— Tenho a impressão de que você não está descontente com sua nova conquista, Calembredaine —
disse ele lançando uma olhadela a Nicolau. — Mas que pensará disso a Marquesa dos Polacos?
— Cale a boca! — grunhiu o chefe. — Com que direito se introduz no meu quarto?
— Com o direito do fiel servidor que merece recompensa. Não esqueça que fui eu quem lhe arranjou
essa bonita moça, que você espionou durante longo tempo por todas as esquinas de Paris.
— Trazê-la ao Innocents! Essa foi boa! Por pouco o Grande Coésre não ficava com ela,e Rodoguno, o
Egípcio, não a arrebatava de mim.
— Foi bom que você ganhasse — disse o minúsculo Barcarola, que tinha de deitar a cabeça para trás a
fim de olhar Nicolau. — De que me serviria um chefe que não se houvesse batido por sua marquesa? E
não esqueça, ainda não pagou todo dote. Não é, beleza?
Angélica nada escutara, pois comia avidamente. O anão mirou-a com ar enternecido.
— O que existe de melhor nos pés de porco são os ossinhos — disse ele amavelmente. — É bom
chupá-los, e é divertido quebrá-los. Para mim, bastam os ossinhos. Pode-se abandonar o resto.
— Por que você diz que o dote ainda não está pago? — perguntou Calembredaine, franzindo as
sobrancelhas.
— Ora essa! E o tipo que ela deseja suprimir? O monge dos olhos tortos!
O chefe voltou-se para Angélica.
— Isso é verdade?
Ela havia comido muito depressa. Tendo saciado a fome, sentia-se invadida de um torpor incomodo e
havia-se estendido de novo na cama.
A pergunta de Nicolau respondeu, com os olhos fechados:
— Sim, é preciso.
— É apenas justiça! — bradou o anão. — O sangue deve regar as bodas dos mendigos. Uh! Uh!
Sangue de monge!
Blasfemou horrivelmente. Depois, diante de um gesto ameaçador de seu chefe, fugiu para a escada.
Calembredaine fechou a porta com o calcanhar.
De pé, junto do estranho leito onde jazia a jovem, ele a examinou demoradamente, com as mãos nos
quadris. Ela acabou por abrir os olhos.
— É verdade que você me espreitou durante muito tempo em Paris? — perguntou ela.
— Acompanhei-a por toda parte. Com a gente de que disponho, sou prontamente informado dos
recém-vindos e sei melhor que os próprios donos o número de suas jóias e como se pode entrar em suas
casas quando soa a meia-noite na torre da Place de Greve. Mas você me viu nos Três Malhos...
— Ignóbil — murmurou ela com um estremecimento. — Oh! Por que você ria quando me olhava?
— Porque eu começava a compreender que bem cedo você seria minha.
Ela o olhou friamente, depois ergueu as espáduas e bocejou. Não temia Nicolau como temia
Calembredaine. Ela sempre dominara Nicolau. Para ter medo de um homem é preciso não o ter
conhecido em pequeno. O sono a invadia. Ela perguntou ainda, vagamente:
— Por que... mas por que você deixou Monteloup?
— Ah! Essa agora é forte! — gritou ele cruzando os braços sobre o peito. — Por quê? Você acreditava
então que eu gostaria que o velho Guilherme me espetasse com sua lança... depois do que se passou com
você? Deixei Monteloup na noite de suas núpcias... Também esqueceu isso?
Sim, também isso ela havia esquecido. Sob suas pálpebras caídas, a recordação renascia com seu odor
de palha e de vinho, o peso do musculoso corpo de Nicolau em cima dela e aquela sensação
desagradável de pressa, e de cólera, de uma coisa não realizada.
— Ah! — disse ele com amargura. — Pode-se dizer que eu não tinha o mínimo lugar na sua vida.
Certamente você jamais pensou em mim durante todos esses anos!
— Certamente — repetiu ela com indiferença — eu tinha mais o que fazer do que pensar em um
criado.
— Meretriz! — gritou ele fora de si. — Cuidado com o que
diz. O criado agora é seu senhor. Você me pertence...
Ele ainda gritava, e ela já dormia. Longe de inquietá-la, aquela voz trazia-lhe a sensação de uma brutal
mas benfazeja pro-teção. Ele parou de gritar e disse a meia voz:
— E como antigamente... quando você adormecia sobre o musgo, no meio das nossas brigas. Pois
bem, durma, meu tesouro. Seja como for, você é minha. Sente frio? Quer que lhe cubra?
Ela fez com as pálpebras um imperceptível sinal afirmativo. Ele foi buscar um luxuoso casaco de belo
tecido e estendeu-o sobre ela. Depois, passou-lhe a mão levemente pela fronte com uma espécie de
temor.

Aquele quarto era realmente um lugar muito estranho. Construído de enormes pedras, como os velhos
torreões, era redondo e tristemente alumiado por uma seteira gradeada. Estava repleto de uma
amontoado de objetos extravagantes, desde delicados espelhos emoldurados de ébano e marfim até
velhas ferramentas, utensílios de trabalho, tais como martelos e picaretas, armas...
Angélica espreguiçou-se. Mal acordada, olhando com espanto em volta de si, levantou-se e apanhou
um dos espelhos, que lhe refletiu a fisionomia desconhecida de uma jovem pálida com olhos selvagens e
muito fixos, como os de uma gata maldosa espreitando a presa. A luz da tarde comunicava um tom
sulfúreo à sua cabeleira desgrenhada. Afastou o espelho com medo. Aquela mulher de rosto assustado,
abatido, não podia ser ela!... Que se passava? Por que havia tantas coisas naquele quarto redondo?
Espadas, panelas, caixinhas, repletas de bugigangas, echarpes, leques, luvas, jóias, bengalas, instrumentos
musicais, um esquentador, pilhas de chapéus e, sobretudo, casacos que, colocados uns sobre os outros,
tinham formado o leito em que ela havia dormido?
Um só móvel, delicada cómoda marchetada de madeiras das ilhas, parecia muito surpreso de se
encontrar entre aquelas paredes úmidas.
Sentiu qualquer coisa dura em sua cinta. Puxou um cabo de couro e apareceu um comprido punhal
afiado. Onde vira ela aquele punhal? Fora em um pesadelo opressor e doloroso, durante o qual a lua
tinha feito malabarismos com cabeças de mortos.
O homem de cor trigueira tinha-o na mão. Depois o punhal tombara, e Angélica o apanhara na lama
enquanto os dois homens engalfinhados rolavam por terra. Fora assim que lhe viera parar nas mãos o
punhal de Rodoguno, o Egípcio. Ela o enfiou de novo em seu corpete. Em seu pensamento se reuniam
imagens confusas.
Nicolau... Onde estava Nicolau?
Correu para a janela. Percebeu por entre as grades o Sena, com suas ondas lentas, cor de absinto, sob o
céu nublado, e seu incessante vaivém de embarcações. Na outra margem, já invadida pelo crepúsculo,
ela reconheceu as Tulherias e o Louvre.
Essa visão de sua vida antiga causou-lhe um choque e convenceu-a de sua loucura. Nicolau! Onde
estava Nicolau?
Precipitou-se para a porta e, achando-a trancada, pôs-se a esmurrá-la, uivando, chamando Nicolau,
quebrando as unhas contra a madeira podre.
Uma chave rangeu, e o homem de nariz vermelho surgiu.
— Por que está berrando assim, marquesa? — perguntou Jactância.
— Por que trancaram esta porta?"
— Não sei.
— Onde está Nicolau?
— Não sei.
Ele a mirou e depois decidiu:
— Venha ver um pouco os camaradas, isso a distrairá.
Ela o seguiu por uma escada de pedra em caracol, úmida e sombria.
A medida que descia, chegava-lhe um clamor feito de vo-ciferações, de sonoras gargalhadas e gritos
de crianças.
Ch egou a uma sala abobadada, repleta de personagens várias. Sobre a grande mesa, viu logo Traseiro
de Pau, com um pedaço de carne de vaca em seu prato. Ao fundo da sala, brilhava um fogo e, sentado
sobre a pedra da lareira, Pé Ligeiro vigiava a panela. Uma gorda mulher depenava um pato. Uma outra,
mais jovem, entregava-se à pouco agradável tarefa de despiolhar um menino seminu que tinha entre os
joelhos. Espalhados pelo chão, sobre a palha dos ladrilhos, havia velhos e velhas, cobertos de andrajos, e
crianças imundas e esfarrapadas que disputavam os restos aos cães.
Alguns homens, sentados em volta da mesa sobre velhos tonéis, jogavam cartas ou fumavam e
bebiam.
A entrada de Angélica, todos os olhos se voltaram para ela e um relativo silêncio se fez entre a
miserável assembleia.
— Pode vir, minha filha — disse Traseiro de Pau com um gesto solene. — Você é a mulher de nosso
chefe, Calembredaine. Devemos-lhe consideração. Arredem-se, portanto, vadios, e deixem um assento
para a marquesa!
Um dos fumantes de cachimbo deu uma cotovelada no vizinho.
— Muito bem torneada a pequena! Calembredaine, desta vez, quase escolheu tão bem como você.
O homem a quem foram dirigidas tais palavras aproximou-se de Angélica e segurou-lhe o queixo com
gesto ao mesmo tempo amável e peremptório.
— Sou Belo Rapaz — disse ele. Ela o repeliu com irritação.
— Isso depende de gosto.
Uma gargalhada sacudiu o auditório.
— Não depende — disse Traseiro de Pau, soluçando de tanto rir —, é este o seu nome. Belo Rapaz, é
assim que todos os chamam. Vamos, Jactância, traga de beber para a moça. Ela me agrada.
Puseram diante dela uma grande taça, que ostentava as armas de um marquês cuja residência o bando
de Calembredaine visitara em certa noite sem lua. Jactância encheu-a até a borda com vinho tinto e
correu os outros copos.
— A sua saúde, marquesa! Como se chama?
— Angélica.
O riso grosseiro e devasso dos bandidos estralejou de novo sob as abóbadas.
— Essa, agora, é a melhor! Angélica!... Ah, ah, ah! Um anjo!
Nunca se viu disso entre nós... E por que não? Afinal, nós também, por que não seremos anjos? Já que é
nossa marquesa... A sua saúde, Marquesa dos Anjos!
Eles riam, batiam nas coxas, e isso era como um ribombo sinistro e atordoante ao redor dela.
_ À sua saúde, marquesa! Vamos, beba...
Ela, porém, permanecia imóvel, olhando o círculo de ca-rantonhas avinhadas, barbudas ou mal
raspadas, que se inclinavam sobre ela.
— Beba! — uivou Traseiro de Pau com sua voz terrificante.
Ela encarou o monstro sem responder.
Houve um silêncio ameaçador. Depois, Traseiro de Pau suspirou e olhou os outros com ar aflito.
— Ela não quer beber! Que é que ela tem?
— Que é que ela tem? — repetiram. — Belo Rapaz, você, que conhece as mulheres, procure dar um
jeito nisso.
Belo Rapaz encolheu os ombros.
— Imbecis — disse ele com desprezo —, são incapazes de perceber que essa aí, não é por meio de
berros que a doma
rão, jamais.
Sentou-se perto de Angélica e, muito docemente, afagou-lhe a espádua como a uma criança.
— Não tenha medo. Eles não são maus, você sabe. E um ar que eles assumem para assustar os
burgueses. Mas de você eles gostam. Você é nossa marquesa. Marquesa dos Anjos! Isso não lhe agrada?
Marquesa dos Anjos! E um bonito nome. E assenta-lhe bem, como esses seus belos olhos. Vamos, beba,
minha pequena, o vinho é bom. Um tonel do
porto de Greve, que chegou, com seus próprios pés, até a Tour de Nesle. E assim que as coisas
acontecem entre nós. É o Pátio dos Milagres.
Ele aproximou-lhe o copo dos lábios. Ela foi sensível ao som daquela voz máscula e carinhosa. Bebeu.
O vinho era bom. Transmitiu ao seu corpo transido um calor agradável, e tudo se tornou subitamente
mais simples e menos terrível. Ela bebeu um segundo copo, depois apoiou os cotovelos na mesa e pôs-se
a olhar em torno. O aleijado fitava-a sombriamente. Estaria encarregado de vigiá-la? Ela não pensava,
entretanto, em fugir. Para onde iria?

A noite reconduzia aos seus covis os mendigos e mendigas que viviam sob a jurisdição de
Calembredaine. Havia muitas mulheres carregando em seus braços crianças enfermas ou de peito,
envoltas em trapos, e cujos gritos agudos não cessavam. Uma delas, com o rosto coberto de botões puru-
lentos, foi entregue à mulher sentada perto da lareira. Esta, com mão hábil, arrancou todas as crostas do
rosto do recém-nascido, passou um pano sobre a carinha, que reapareceu lisa e sã, e em seguida pôs o
menino ao seio. Traseiro de Pau sorriu e comentou com sua voz rouca:
— Vê? Aqui, entre nós, a gente se cura muito rapidamente. Não é preciso ir às procissões para ver os
milagres. Aqui, eles se fazem todos os dias. Pode bem ser que neste momento haja uma boa mulher das
obras pias, como dizem, que esteja contando: "Oh, minha querida, vi um menino no PontNeuf, que
miséria! coberto de pústulas... Naturalmente, dei uma esmola à pobre mãe..." E elas vivem contentes, as
beatas. São migalhas de pão duro, com mel por cima, para atrair as moscas. Olhe, é Veneno de Rato que
se aproxima. Você vai poder partir...
Angélica o interrogou com um olhar de surpresa.
— Não é preciso compreender — rosnou ele. — Está combinado com Calembredaine.
O indigitado Veneno de Rato, que acabava de entrar, era um espanhol tão magro que seus joelhos e
seus cotovelos pontudos haviam transpassado a roupa. Triste sobrevivente dos campos de batalha de
Flandres, assumia ares de mata-mouros com seu longo bigode negro, seu chapéu emplumado e, sobre os
ombros, uma tarasca na qual estavam enfiados cinco ou seis grandes ratos mortos. De dia, o espanhol
vendia pelas ruas um produto para matar os roedores. De noite, completava sua magra receita alugando
seu talento de "duelista" a Calembredaine.
Com muita dignidade ele aceitou um copo de vinho, e roeu um rábano que tirou do bolso, enquanto
algumas velhas disputavam o produto da caçada; ele vendia um rato por dois soldos. Após embolsar o
dinheiro, Veneno de Rato saudou os presentes com sua velha espada e meteu-a na bainha.
— Estou pronto — declarou enfaticamente.
— Vá — disse Traseiro de Pau a Angélica.
Na defensiva, ela esteve prestes a fazer uma pergunta, depois desistiu. Outros homens se tinham
levantado, drilles ou narquois, como os chamavam, velhos soldados com o gosto da pilhagem e da
batalha, e que a paz acabava de jogar na ociosidade. Ela se viu cercada por suas silhuetas patibulares.
Eles usavam uniformes esfrangalhados, dos quais ainda pendiam os passamanes e galões dourados de
algum regimento principesco.
Angélica levou a mão ao lado, sob o corpete, para apalpar o punhal do Egípcio. Se necessário, estava
decidida a vender caro a vida.
Mas o punhal desaparecera.
A cólera a invadiu, uma cólera aumentada pela excitação produzida pelo vinho.
Esquecendo toda a prudência, ela uivou:
— Quem tirou minha faca?
— Ei-la aqui — disse prontamente Jactância, com sua voz monótona.
E estendeu-lhe a arma com ar inocente. Ela estava estupefata. Como pudera ele tirar o punhal de sob
seu corpete sem que ela o percebesse?
Entrementes, o mesmo riso tonitruante, aquele riso horrível dos mendigos e dos bandidos, que, por
toda a sua vida futura, devia perseguir a jovem, estalou de novo.
— Boa lição, minha pequena! — exclamou Traseiro de Pau. — Você aprenderá a conhecer as mãos de
Jactância. Cada um de seus dedos é mais hábil que um mágico. Vá perguntar o que pensam deles as
domésticas na praça do mercado.
— E belo este espeto — disse um dos narquois segurando o punhal.
Depois, tendo-o examinado, atirou-o sobre a mesa com espanto.
— É a faca de Rodoguno, o Egípcio!
Com um misto de respeito e inquietude, todos contemplavam a lâmina que brilhava à luz das velas.
Angélica apanhou sua arma e enfiou-a na cintura. Teve a impressão de que esse gesto a consagrava
aos olhos dos miseráveis. Ignorava-se em que circunstancias ela havia arrebatado aquele troféu a um dos
mais temíveis inimigos do bando. \ airava um mistério, envolvendo-a numa aureola um tanto
inquietante.
Traseiro de Pau assoviou:
— Eh, eh! Ela é mais esperta do que parece, a Marquesa dos Anjos!
Ela se retirou, seguida de olhares admirativos.

Do lado de fora, ela viu perfilar-se, na noite quase fechada, a sombra da Tour de Nesle. Compreendeu
então que a peça para onde a conduzira Nicolau Calembredaine devia estar situada no cimo dessa torre e
servir de entreposto para os objetos furtados. Um dos narquois explicou-lhe obsequiosamente que fora
Calembredaine quem tivera a ideia de alojar a gente de seu bando no velho recinto medieval de Paris.
Era certo ser a torre um refúgio ideal para os malfeitores.
Salas semiderruídas, muralhas em ruínas, torrinhas vacilantes ofereciam esconderijos de que os outros
bandos dos faubourgs não dispunham.
As lavadeiras, que por muito tempo tinham vindo lavar suas roupas nas ameias da Tour de Nesle,
haviam desaparecido diante da temível invasão.
Ninguém interviera para desalojar os maus rapazes que espreitavam as carruagens do Faubourg Saint-
Germain, escondidos sob a pequena ponte arqueada que franqueava os velhos fossos.
Limitavam-se a deplorar que a passagem pela Tour de Nesle, em plena Paris, se houvesse tornado um
verdadeiro suicídio. E, às vezes, os sons dos violinos das Tulherias, do outro lado do Sena, mesclavam-
se aos da rabeca desafinada de Hur-lurot ou às músicas batidas de Thibault, o Sanfonineiro, fazendo
dançar os mendigos numa noite de orgia.

Os embarcadiços do pequeno porto da lenha, não longe dali, baixavam a voz ao verem aproximar-se
da margem do rio os temíveis vultos.
O lugar tornara-se intransitável, diziam uns aos outros. Quando, então, os conselheiros municipais
decidiriam derribar aquelas velhas muralhas e caçar toda aquela vermina?
— Senhores, eu os saúdo — disse Veneno de Rato abeirando-os. — Teriam a bondade de conduzir-
nos até o Quai
de Gesvres?
— Tem dinheiro? — perguntou um deles.
— Temos isto — disse o espanhol, encostando-lhe ao ventre a ponta de sua espada.
O homem encolheu os ombros com resignação. Todos os dias tinham de aturar aqueles maltrapilhos
que se ocultavam nos barcos, roubavam a mercadoria e se faziam transportar, a troco de nada, de uma a
outra margem, como senhores. Quando os embarcadiços eram numerosos, isso terminava em lutas
sangrentas, a faca, pois a corporação da gente da água não era nada paciente.
Naquela noite, todavia, os três homens, que tinham acendido fogo para vigiar suas chalanas,
compreenderam que não era interessante procurar discussão. Um moço levantou-se, a um sinal do
patrão, e, não muito tranquilo, desamarrou o barco em que estavam Angélica e seus sinistros compa-
nheiros.
O barco passou sob os arcos do Pont Neuf e, perto do Pont de Notre-Dame, atracou no Quai de
Gesvres.
— Muito bem, meu rapaz — disse Veneno de Rato ao jovem bateleiro. — Não só lhe agradecemos
como também o deixamos voltar inteiro. Empreste-nos somente sua lanterna. Devolvê-la-emos quando
pudermos...
O imenso arco que sustentava o Quai de Gesvres, recentemente construído, era um trabalho
gigantesco, belo e sólido.
Ali penetrando, Angélica ouviu o marulho do rio, que fazia pensar na grande voz do oceano. O ruído
das carruagens, que passavam sobre o arco com ecos de trovões distantes, aumentava essa impressão.
Glacial e úmida, aquela caverna grandiosa, isolada no coração de Paris, parecia ter sido criada para
servir de asilo a todos os malfeitores da cidade.
Os bandidos seguiram-na até a extremidade. Três ou quatro passagens sombrias, destinadas a servir de
esgotos aos açougues da Rue de la Vieille-Lanterne, vomitavam ondas de sangue. Foi preciso transpô-las
de um salto.
Mais adiante, foram por caminhos estreitos e malcheirosos, escadas dissimuladas nos recessos das
casas, ribanceiras onde os pés se afundavam na vasa até os tornozelos.
Quando os bandidos de novo emergiram em Paris, era noite fechada, e Angélica teria sido
absolutamente incapaz de dizer onde se achava. Havia ali, sem dúvida, uma pracinha com uma fonte ao
centro, pois ouvia-se um murmúrio de água. A voz de Nicolau elevou-se de súbito, bem perto:
— São vocês, rapazes? Trouxeram a garota?
Um dos narquois ergueu a lanterna sobre Angélica.
— Aqui está.
Ela viu a silhueta alta e o rosto espantoso do bandido Ca-lembredaine e fechou os olhos horrorizada.
Ela bem sabia que era Nicolau, mas aquela visão despertava nela um terrível medo.
O chefe deu com a mão uma pancada na lanterna, jogando-a ao solo.
— Está doido? Môssier agora precisa de luz para passear?
— Não tínhamos desejo de cair na água, debaixo do Quai de Gesvres — protestou o outro.
Nicolau tomara com mão rude o braço de Angélica.
— Não tenha receio, coração, você bem sabe que sou eu— zombou ele.
Abrigou-a sob um pórtico.
— Você, Peônia, fica do outro lado da rua, atrás do marco. Você, Martin, fica comigo. Você, Gobert,
vai lá para baixo. Os outros ficarão de sentinela nas encruzilhadas. Você está em seu posto, Barcarola?
Uma voz respondeu, como vinda do céu:
— Presente, chefe.
O anão estava empoleirado na tabuleta de uma loja.
Do pórtico, onde se encontrava ao lado de Nicolau, Angélica podia ver, em toda a sua extensão, uma
rua estreita. Algumas lanternas, suspensas diante das casas mais ricas, alumiavam-na fracamente e
faziam brilhar, qual triste serpente, a vala central entulhada de lixo.
As oficinas dos artesãos estavam bem fechadas. Os habitantes metiam-se na cama, e via-se passar, por
trás das vidraças, a luz redonda das velas.
Uma mulher abriu uma janela para despejar um balde na rua. Ameaçou uma criança que chorava de
chamar o Monge Zangado. Era o papão daqueles tempos, um monge barbudo, dizia-se, que passava com
o saco às costas para carregar os meninos desobedientes.
— Eu o darei ao Monge Zangado! — resmungou Nicolau.
E acrescentou em voz baixa:
— Vou pagar-lhe seu dote, Angélica! Pela maneira adotada no reino dos mendigos. O homem paga
para ter sua bela, como se compra um lindo objeto que se deseja.
_ É a única coisa que se compra- entre nós — chacoteou um dos espadachins.
Seu chefe fê-lo calar-se com uma praga. Ouvindo um rumor de passos, os bandidos puseram-se
silenciosos e imóveis. Sem fazer ruído, puxaram das espadas. Um homem avançava na ruela, saltando
de uma pedra a outra para não sujar nas poças seus sapatos de tacões altos e com rosetas.
— Não é ele — cochichou Nicolau Calembredaine.
Os outros embainharam as espadas. O transeunte ouviu retinir as armas. Sobressaltou-se, percebeu os
vultos que se mexiam sob o pórtico, e fugiu berrando:
— Socorro! Ladrões! Assassinos! Estão me matando!
— Idiota! — rosnou do outro lado da rua o drille Peônia. — Deixa-se passar o gajo tranquilo, sem
mesmo tomar-lhe o casaco, e ele se põe a gritar feito um asno... E de causar náuseas!
Um leve assovio, vindo do outro extremo da rua, fê-lo silenciar.
— Olha quem vem lá, Angélica — cochichou Nicolau apertando o braço da jovem.
Insensível a tudo, a ponto de não sentir o contato daquela mão, Angélica mantinha-se na expectativa.
Ela sabia o que ia se passar. Era inelutável. Era preciso que aquilo se realizasse. Seu coração não poderia
ressuscitar senão depois. Porque tudo estava morto nela e somente o ódio tinha o poder de reanimá-la.
Ela viu aparecer, na claridade amarela das lanternas, dois monges de braços dados. Reconheceu num
deles, sem dificuldade, Conan Bécher. O outro, gorducho e prolixo, discorria em latim com amplos
gestos. Devia estar ligeiramente embriagado, pois, de vez em quando, empurrava o companheiro contra
a parede de uma casa, e depois, desculpando-se, conduzia-o pela vala.
Angélica ouviu o timbre agudo do alquimista. Ele também se expressava em latim, mas com um tom
de protesto indignado.
Ao se aproximarem do pórtico, ele gritou em francês, com exasperação:
— Basta, Irmão Amboise, suas teorias sobre o batismo com caldo gordo são heréticas! Um sacramento
não terá nenhum valor se a água com que for ministrado estiver poluída por elementos impuros, tais
como as gorduras animais. Um batismo com caldo gordo. Que blasfémia! Por que não com vinho tinto,
enquanto você está nele? Isso lhe convém, a você que parece amá-lo tanto!
E com uma sacudidela o magro franciscano desprendeu-se do braço que o segurava.
O gordo Irmão Amboise balbuciou em tom lamuriento de embriagado:
— Meu padre, você me magoa... Ah! Como gostaria de convencê-lo!
Subitamente ele soltou um grito louco:
— Ah! Ah! Deus coeli!
Quase no mesmo instante, Angélica percebeu que o Irmão Amboise estava ao seu lado, sob o pórtico.
— Aí o têm, rapazes — soprou ele, passando subitamente do latim para a gíria.
Conan Bécher voltou-se:
— Que lhe aconteceu?
Interrompeu-se e sondou a ruela deserta, com olhar vacilante. Sua voz estrangulou-se.
— Irmão Amboise! — chamou ele. — Irmão Amboise, onde está?
Sua magra face alucinada pareceu cavar-se ainda mais, e ele arquejava, enquanto avançava alguns
passos, lançando olhares aterrados em volta de si.
— Uh! Uh! Uh!
Era o anão Barcarola que entrava em cena com seu ulular sinistro de ave noturna. Pendurou-se na
tabuleta metálica, que rangeu, e, com salto elástico de sapo gigante, saltou aos pés do monge Bécher.
Este achatou-se contra a parede.
— Uh! Uh! Uh! — repetia o anão.
Executando um bailado infernal diante de sua vítima aterrorizada, ele multiplicava as cabriolas, as
saudações grotescas, as caretas, os gestos obscenos. Envolvia Bécher numa verdadeira ronda diabólica.
Depois, uma segunda criatura hedionda saiu da sombra, a rir zombeteiramente. Era um corcunda
cambeta. Seus joelhos tocavam-se, enquanto as pernas é os pés, muito separados, não lhe permitiam
andar senão desengonçadamente. Mas sua silhueta nada era, comparada com o rosto monstruoso. Porque
ele ostentava na fronte uma estranha protuberância de carne, pendente e rubra.
O estertor que se escapou da garganta do monge nada mais tinha de humano.
— Aaah! Os demónios!
Seu longo corpo dobrou-se subitamente, e ele se achou de joelhos sobre as pedras enlameadas. Seus
olhos saltavam das órbitas. Sua cor tornava-se cerosa. Entre as comissuras de seus lábios distendidos por
um ricto de terror abjeto, viam-se tremer duas fileiras de dentes podres.
Muito lentamente, como submerso em um pesadelo, ergueu as mãos ossudas com os dedos separados.
Sua língua movia-se penosamente. Articulou:
— Piedade... Peyrac!
Este nome, pronunciado por aquela voz maldita, penetrou no coração de Angélica como uma
punhalada. O reflexo de loucura que inspirava a cena alucinante manifestou-se nela. Começou a uivar
selvagemente:
— Mata-o! Mata-o!
E, sem consciência do que fazia, mordeu o ombro de Nicolau. Ele se desprendeu com um empurrão e
puxou a faca de açougueiro que lhe servia de arma.
De repente, fez-se na ruela um silêncio pesado. A voz de Barcarola elevou-se:
— Essa agora!
O corpo do monge acabava de cair de lado, ao pé da parede.
Os bandidos aproximaram-se. O chefe inclinou-se, levantou a cabeça imóvel. A maxila arriou,
descobrindo a boca enorme, aberta num último grito de terror. Os olhos estavam fixos e já turvos.
— Está morto! — constatou Calembredaine.
— No entanto, ninguém lhe tocou sequer — disse o pigmeu. — Não é verdade, Crista de Galo, que
ninguém lhe tocou? Apenas lhe fazíamos caretas, para meter-lhe medo!
— Você se saiu bem. Ele está morto... Morreu de susto! Abriu-se uma janela e uma voz trémula
interrogou:
— Que está acontecendo? Quem fala de demónios?
— Demos o fora — ordenou Calembredaine. — Nada mais temos que fazer aqui.

Na manhã seguinte, quando encontraram o corpo do monge Bécher sem vida e sem qualquer ferimento
ou arranhão,
os habitantes de Paris recordaram-se das palavras daquele feiticeiro que fora queimado na Place de
Greve: "Conan Bécher, dentro de um mês nos encontraremos diante do tribunal de Deus..."
Consultaram o calendário e viram que o mês terminava. Benzendo-se muito, os moradores da Rue de
la Cerisaie, perto do Arsenal, falavam dos gritos estranhos que na noite anterior lhes haviam perturbado
o primeiro sono.
Foi necessário pagar em dobro ao coveiro que enterrou o monge maldito.
E sobre a tumba inscreveram este epitáfio:

"Aqui jaz o Padre Conan Bécher, recoleto, morto pelas vexações dos demónios no último dia de março
de 1661".

O bando de Nicolau Calembredaine, ilustre libertino, acabou a noite nas tabernas.


Todas as tascas disseminadas entre o Arsenal e o Pont Neuf receberam sua visita. Eles cercavam uma
mulher de face lívida e cabelos desatados, e faziam-na beber.
Angélica, completamente ébria, acabou por vomitar incoer-civelmente. Com a cabeça apoiada numa
mesa, sentiu-se invadida por um onda de desespero:
— Desgraça! Desgraça...
Nicolau, com mão imperiosa, reaprumou-a e olhou-a com surpresa e inquietação.
— Está donte? No entanto ainda não bebemos nada... Falta celebrar nossas núpcias...
Depois, vendo-a exausta, de olhos cerrados, ergueu-a nos braços e saiu.
A noite estava fria. Entretanto, encostada ao peito de Nicolau, a jovem mulher sentia calor.
O Poeta Pobre do Pont Neuf, deitado entre as patas do cavalo de bronze, viu passar o grande bandido
que transportava, tão facilmente como se fosse uma boneca, uma forma branca com os cabelos
pendentes.
Quando Calembredaine penetrou na grande sala, ao pé da Tour de Nesle, parte dos seus mendigos e
mendigas ali estava reunida perto do fogo. Uma mulher ululante levantou-se e investiu contra ele:
— Tipo ordinário! Você arranjou outra... Os companheiros me disseram. Tudo isso enquanto eu
procurava acalmar os nervos com um bando de mosqueteiros viciosos... Mas eu o sangrarei como a um
porco, e a ela também!
Calmamente, Nicolau pousou Angélica no chão e encostou-a na muralha. Depois levantou seu pesado
punho e a moça desabou.
— Agora, escutem todos — disse Nicolau Calembredaine.
— Aquela que ali está — indigitava Angélica —, ela é minha, não é de mais ninguém! Aquele que ousar
tocar em um fio de seus cabelos e aquela que a provocar terão de se explicar comigo. Vocês sabem o
que isso quer dizer!... Quanto à Marquesa dos Polacos...
Segurou a moça por uma aba do casaco e, com gesto enérgico e desdenhoso, lançou-a sobre um grupo
de jogadores de cartas.
— ...podem fazer com ela o que quiserem!
Depois, triunfante, Nicolau Merlot, natural do Poitou, antigo pastor convertido em lobo, voltou-se para
aquela a quem sempre amara e que o destino lhe entregava.

CAPITULO III

Vida de mendicância na Tour de Nesle

Retomou-a nos braços e começou a galgar a escada da torre. Subia lentamente a fim de não vacilar,
pois os vapores do vinho lhe enevoavam o cérebro. Esse vagar conferia à sua ascensão uma espécie de
solenidade.
Angélica abandonou-se ao aperto de seus braços possantes. Sua cabeça girava, como as espirais da
escada de pedra.
Chegado ao último degrau, Nicolau Calembredaine abriu com um pontapé a sala das receptações.
Depois, caminhou até o leito de casacos e deixou cair Angélica como um fardo, gritando:
— Agora estamos sós!
Aquele gesto e o riso triunfante que fendia a face do homem e que Angélica via brilhar na penumbra
tiraram-na da indiferença passiva em que ela mergulhara depois da última taberna. Desembriagada pelos
vómitos, teve um estremecimento e, levantando-se, correu para a janela, a cujas grades se agarrou, sem
saber muito por quê.
— E então — gritou ela furiosa —, que quer dizer, imbecil, com essas palavras?
—- Eu... mas... eu quero dizer... — balbuciou Nicolau, completamente confundido. Ela teve um riso
insultante.
— Acaso você imagina que vai ser meu amante, você, Nicolau Merlot?
Em dois passos silenciosos, ele se aproximou dela, a fronte vincada por uma ruga sombria.
— Eu não imagino — disse ele secamente. — Estou certo disso.
— É o que vamos ver.
— Está tudo visto.
Ela desafiou-o com o olhar. Alumiava-os a claridade vermelha de um fogo de barqueiro, na praia ao pé
da torre. Nicolau respirou profundamente.
— Escute — tornou ele com voz baixa e ameaçadora —, ainda vou falar-lhe porque é você, e é preciso
que compreenda. Mas você não tem o direito de recusar-me o que lhe peço. Eu me bati por sua causa.
Matei o sujeito que você queria. O Grande Coèsre nos uniu. Tudo está, portanto, de acordo com a
mendicância. Você é minha.
— E se eu não quiser saber das leis da mendicância?
— Neste caso, morrerá — disse ele com um brilho no fundo dos olhos. — De fome ou de outra coisa.
Não tenha ilusões. Além do mais, você já não pode escolher. Compreendeu?

—insistiu ele, encostando a mão fechada na fronte da jovem.


—Com sua cabecinha de condessa, ainda não viu o que se queimou na Place de Greve juntamente com
seu marido feiticeiro? Era tudo que a separava de mim. Criado e condessa, isso não existe mais! Eu sou
Calembredaine, e você... você não é mais nada. Os seus a abandonaram. Aqueles ali defronte...
Estendeu o braço indicando na outra margem do Sena escuro os contornos das Tulherias e da galeria
do Louvre, onde cintilavam luzes.
— Para aqueles, você também não existe mais. Eis por que você pertence à mendicância... É a pátria dos
que foram abandonados pelos seus... Nela, você sempre terá o que comer. Será defendida. Será vingada.
Será ajudada. Mas você não trairá nunca...
Ele calou-se, um pouco anelante. Ela sentia sua respiração ardente. Ele a tocou de leve e o calor de seu
desejo comunicou-lhe uma espécie de febre. Ela o via abrir as grandes mãos, levantá-las, recolhê-las
depois, como se não ousasse...
Então, ele começou a suplicar-lhe baixinho, em patoá:
— Ma gazoute, não seja má. Por que não me quer? Não é tudo tão simples? Estamos aqui os dois...
sozinhos... como antigamente. Comemos bem, bebemos bem. Que falta fazer, senao amar? Não vai
fazer-me acreditar que está com medo...
Angélica esboçou um sorriso e encolheu os ombros. Ele continuou:
— Vamos!... Recorde-se. Nós ambos nos entendíamos muito bem. Fomos feitos um para o outro. Nada
se pode fazer contra isso. Eu sabia que você seria minha e esperava. E agora é o momento!
— Não — disse ela, sacudindo com movimento obstinado sua longa cabeleira sobre as espáduas.
Fora de si, ele gritou:
— Cuidado! Eu posso possuí-la à força, se quiser.
— Experimente, e eu lhe arrancarei os olhos com as minhas unhas.
— Fá-la-ei possuir pelos meus homens — rugiu ele.
— Covarde!
Exasperado, ele pôs-se a praguejar de maneira horrível.
Ela, no entanto, quase não o ouvia. Com a fronte apoiada às grades frias da seteira, como encarcerada
que não tem mais esperanças, Angélica sentia-se invadida de uma lassidão acabrunhadora. "Os seus a
abandonaram..." Respondendo a essa frase que Nicolau acabava de pronunciar, outras frases ressoaram,
cortantes como cutelos: "Não quero mais ouvir falar de você... Deve desaparecer. Não use seu nome,
não faça diligências, nada, nada".
E recordava Hortênsia, como uma harpia, de vela na mão:
— Vá embora! Vá embora!
Era Nicolau quem tinha razão, Nicolau Calembredaine, o Hércules de sangue rude e selvagem.
Com uma súbita resignação, ela passou diante dele e, perto do leito, começou a desacolchoar o corpete
de sarja escura. Depois deixou cair a saia. Somente de camisa, hesitou um instante. O frio mordia-lhe a
pele, mas sua cabeça fervia. Rapidamente, despiu esta última peça e estendeu-se nua sobre os casacos
roubados.
— Venha — disse ela com calma.
Ofegante, ele se tinha calado. Aquela docilidade parecia-lhe suspeita. Aproximou-se, desconfiado. Por
sua vez, desembaraçou-se de seus andrajos, com lentidão.
Prestes a atingir o clímax de seus sonhos mais delirantes, Nicolau, o antigo criado, estava tremendo. A
confusa claridade que vinha da praia projetava na parede sua sombra gigantesca.
— Venha — repetiu ela. — Estou com frio.
De fato, ela também tremia, talvez de frio, mas igualmente, diante daquele grande corpo nu, de uma
impaciência mesclada de temor.
De um salto, ele se atirou sobre ela. Apertou-a nos braços, como a quebrá-la, e soltava
convulsivamente grandes gargalhadas.
— Ah! Desta vez consegui! Ah! Como é bom! Você é minha. Não mais me escapará! Você é
minha... Minha! Minha! Minha! — repetia ele, marcando o compasso do seu delírio viril.
Um pouco mais tarde, ela o ouviu suspirar, à maneira de um cão satisfeito.
— Angélica — murmurou ele.
— Você me maltratou — queixou-se ela.
E, envolvendo-se num casaco, adormeceu.
Por duas vezes, naquela noite, ele tornou a possuí-la. Entorpecida, ela emergia de um sono pesado para
tornar-se a presa daquele ser da sombra, que a empolgava praguejando, forçava-a soltando grandes
suspiros roucos, depois caía para o lado, balbuciando palavras sem nexo.
Ao amanhecer, um cochicho o acordou:
— Calembredaine, levante-se! — reclamava Belo Rapaz. — Ainda há contas a ajustar na feira de
Saint-Germain com as feiticeiras de Rodoguno, o Egípcio, que expulsaram Mãe Hurlurette e Pai
Hurlurot.
— Já vou. Mas não faça ruído. A pequena ainda dorme.
— Não me admiro. Que barulho essa noite na Tour de Nesle! Os ratos não puderam dormir. É
engraçado que você não possa dar uma pinada sem gritar.
— Cale-se! — rosnou Calembredaine.
— A Marquesa dos Polacos está conformada. Executei à nsca as suas ordens. Durante a noite toda
eu a amimei, para que ela abandonasse a ideia de subir até aqui com um punhal. A prova de que ela
não lhe quer mais é que o espera
embaixo, com uma panela de vinho quente.
— Está bem. Cai fora.
Belo Rapaz partiu. Angélica olhou por entre as pálpebras.
Nicolau já estava de pé, no fundo do aposento, após vestir seu uniforme de incríveis andrajos. Estava de
costas e inclinava-se sobre uma caixinha em que procurava alguma coisa. Para uma mulher algo atilada,
aquela posição era muito significativa. Tratava-se de um homem extremamente acanhado.
Ele fechou de novo a caixa e, escondendo um objeto na mão, voltou para o leito. Ela apressou-se a
fingir que dormia.
Ele inclinou-se e chamou-a a meia voz:
— Angélica, está me ouvindo?... É preciso que eu parta. Mas antes queria dizer-lhe... queria saber...
Será que você me quer mal pelo que aconteceu?... Não é minha culpa. Eu não podia resistir. Você é tão
bela!...
Pousou a mão rugosa sobre a espádua nacarada, que se achava descoberta.
— Responda-me. Bem vejo que você não está dormindo. Olhe o que eu escolhi para você. É um anel
verdadeiro. Filo avaliar por um comerciante do Quai des Orfèvres. Olhe-o... Não o quer? Tome-o, já o
pus ao seu lado... Diga-me o que lhe agradaria! Quer presunto, um belo presunto?
Trouxeram-no bem fresco, esta manhã, tirado ao charcuteiro da Place de Greve, enquanto ele assistia ao
enforcamento de um de nossos companheiros... Quer um vestido novo?...
Também o tenho... Se não me responder, vou ficar com raiva.
Ela olhou por entre seus cabelos emaranhados e disse em tom altivo:
— Quero um grande balde com água bem quente.
— Um balde? — repetiu ele com uma ponta de decepção. Examinou-a suspeitosamente.
— Para quê?
— Para me lavar.
— Está bem — disse ele tranquilizado. — A Polaca vai trazê-lo. Peça-lhe tudo o que quiser e, se não
ficar satisfeita, diga-me quando eu voltar. Castigarei sem pena.
Contente por ela tqr expressado um desejo, ele se voltou para um pequeno espelho veneziano colocado
sobre o ressalto da chaminé e entregou-se à tarefa de colar na face a bola de cera tingida que contribuía
para desfigurá-lo.
Angélica sentou-se de um salto.
—Isso, nunca! — disse ela categórica. — Proíbo-o, Nicolau Merlot, de se apresentar diante de mim
com essa repulsiva cara de velho perverso e lúbrico. Do contrário, serei incapaz de suportar que me
toque de novo.
Uma expressão de alegria infantil iluminou a face brutal, já marcada por uma vida criminosa.
__ E se eu obedecer... ainda me aceitará?
Ela pôs bruscamente uma aba de casaco sobre o rosto, para dissimular a emoção que lhe causava
aquele brilho nos olhos do bandido Calembredaine. Pois era o olhar familiar do pequeno Nicolau, tão
frívolo e instável, mas "não de mau coração", como dizia sua pobre mãe. Nicolau, que se inclinava sobre
a jovem irmã violentada pelos soldados e bradava: "Francina, Francina..."
Eis o que a vida fizera de um menino, de uma menina... o coração de Angélica-encheu-se de piedade
por si mesma, por Nicolau. Eles estavam sós, abandonados de todos...
— Consente em que eu ainda a ame? — murmurou ele.
Então, pela primeira vez depois que tão estranhamente se reencontraram, ela lhe sorriu.
— Talvez.
Nicolau estendeu solenemente o braço e cuspiu no chão.
— Então, eu juro isto: mesmo que'eu tenha de me fazer prender pelos tiras limpando a cara em pleno
Pont Neuf, você nunca mais me verá como Calembredaine.
Enfiou no bolso a peruca e a venda.
— Vou disfarçar-me lá embaixo.
— Nicolau — chamou ela ainda —, tenho um pé ferido. Olhe. Será que o Grande Mateus, o espírito
do Pont Neuf, terá qualquer coisa para me curar?
— Passarei por lá.
Num gesto súbito, pegou com as duas mãos o pequeno pé branco e beijou-o.
Quando ele saiu, ela se encolheu e procurou dormir de novo. O frio aumentara, mas, bem agasalhada,
ela hão o sentia. Um pálido sol de inverno punha retângulos de luz nas paredes.
O corpo de Angélica estava fatigado e mesmo dolorido.
Ela, entretanto, não deixava de sentir uma espécie de bem-estar.
"É bom", dizia consigo mesma. "É como matar a fome e a sede. Não se pensa em mais nada. É bom
não pensar em mais nada."
Perto dela, o diamante do anel cintilava. Ela sorriu. Em todo caso, aquele Nicolau, ela o faria sempre
caminhar guiado pela sua mão!
Mais tarde, quando Angélica meditava sobre os tempos que passara nos bas-fonds, murmurou muitas
vezes, sacudindo a cabeça pensativamente: "Eu estava louca!"
Na verdade, foi em parte essa loucura que lhe permitiu viver naquele mundo terrificante e deplorável.
Ou, antes, um entorpecimento de sua sensibilidade, uma espécie de sono animal.
Seus gestos e suas ações obedeciam a necessidades muito simples. Ela queria comer, queria aquecer-
se. Sua natureza friorenta impeliu-a para o forte peito de Nicolau e fê-la dócil a seus amplexos brutais e
imperiosos.
Ela, que amara a mais fina roupa-branca, os tecidos bordados, dormia num leito de casacos roubados,
em cuja lã se mesclavam os odores dos homens de Paris.
Ela era presa de um rústico, de um criado que se fizera bandido, de um ciumento, louco de orgulho de
ser seu dono. E não somente ela não o temia, como também não achava sem sabor o sentimento
excessivo que ele lhe dedicava.
Os objetos de que ela se servia, os alimentos que ingeria, eram fruto de roubos, se não de crimes.
Seus amigos eram assassinos e miseráveis. Sua casa era um canto das muralhas, das ribas ou de uma
bodega; seu único mundo, afinal, era o domínio temível e quase inacessível do Pátio dos Milagres, onde
os oficiais do Châtelet e os esbirros do preboste não ousavam aventurar-se a não ser em pie-no dia.
Muito pouco numerosos diante do terrível exército de párias, que então representava um quinto da
população parisiense, eles o abandonavam de noite.
E, no entanto, mais tarde, após haver murmurado: ''Euj estava louca", Angélica, por vezes, ficava
meditativa, ; lembrando-se daquele período em que ela reinara, ao lado do ilustre Calembredaine, sobre
as velhas muralhas e pontes de Paris.

Tinha sido ideia de Nicolau fazer "ocupar", pelos vadios e mendigos a ele dedicados, os restos da
velha muralha construída outrora por Filipe Augusto, em volta da Paris medieval. Quatro séculos depois,
a cidade tinha feito destruir seu cinturão de pedra. As muralhas da.margem direita haviam quase
inteiramente desaparecido; as da margem esquerda subsistiam, em ruínas, invadidas de hera, mas cheias
de luras de ratos e de esconderijos providenciais.
Para dela se apossar, Nicolau Calembredaine havia conduzido um assalto lento, sorrateiro e tenaz, no
qual Traseiro de Pau, seu conselheiro, organizara a estratégia com uma habilidade digna de melhor
causa.
Em primeiro lugar, mandaram instalar, aqui e ali, ninhadas de crianças piolhentas, com suas mães
esfarrapadas, daquelas que o beleguim dos pobres não podia expulsar sem amotinar todo um quarteirão.
Depois, entraram em cena os mendigos.
Velhos e velhas, doentes, cegos que se contentavam com pouco, com uma toca de pedra, onde a água
gotejava, um trecho de escada, um velho nicho de estátua, um canto de adega. Finalmente, os soldados,
com suas-espadas ou seus bacamartes cheios de velhos pregos, haviam tomado pela força os melhores
lugares, os torreões e as poternas ainda sólidas, com belas salas espaçosas e subterrâneos. Eles
desalojaram em algumas horas as famílias de artesãos e de obreiros, que tinham esperado encontrar ali
um teto barato. As pobres pessoas, não se sentindo mais em harmonia com a cidade, não ousavam
apresentar queixa e fugiam, felizes ainda quando podiam carregar alguns móveis e não recebiam uma
tarasca no ventre.
No entanto, essas expedições sumárias não eram sempre ao simples. Existia uma categoria de
"recalcitrantes" entre os proprietários. Eram os membros de outros bandos da menicancia, que se
recusavam a ceder o lugar. Havia terríveis amas, cuja violência a aurora revelava com os cadáveres
f
ajosos que o Sena atirava às praias.
A mais renhida foi pela posse daquela velha Tour de Nes-le, erguida com seus pesados balestreiros no
ângulo do Sena e dos velhos fossos. Mas, quando ali se instalaram, que maravilha! Um verdadeiro
castelo!
Calembredaine fez dele o seu covil. E foi então que os outros capitães da mendicância perceberam que
aquele recém-vindo entre os "irmãos" cercara todo o quartier da universidade, tinha nas mãos os
arredores das velhas portas de Saint-Germain, Saint-Michel e Saint-Victor, até se encontrar nas margens
do Sena, nos envasamentos da Tournelle.
Os estudantes que tinham o gosto de ir bater-se no Pré-aux-Clercs, os pequenos burgueses em trajes
domingueiros, felizes de pescar o cadoz nos velhos fossos, as belas damas desejosas de visitar suas
amigas do Faubourg Saint-Germain, ou de ver seus confessores no Val-de-Grâce, tinham de preparar
suas bolsas. Uma nuvem de mendigos levantava-se diante deles, segurava os cavalos, bloqueava os
coches nas passagens estreitas das portas ou dos pontilhões lançados sobre os fossos.
Os camponeses ou os viajantes vindos do exterior tinham de pagar um segundo imposto de barreira
aos drilles ameaçadores que se encontravam postados diante deles quando já se achavam havia muito
tempo em plena Paris. Tornando-a quase tão difícil de atravessar quanto nos tempos das pontes
levadiças, a gente de Calembredaine ressuscitava a antiga mu-; ralha de Filipe Augusto.
Foi um golpe de mestre no reino de Thunes. O sagaz e cúpido aborto que o governava, o Grande
Coésre, Rolin Tar- i raco, não interveio. Calembredaine pagava regiamente. Suai inclinação para a luta
aberta, suas decisões ousadas, postas a serviço de um génio de organização, Traseiro de Pau, tornavam-
no cada dia mais poderoso. Da Tour de Nesle ele; tomou o Pont Neuf, lugar privilegiado de Paris, com
sua multidão de basbaques sempre pacíficos e que se deixavam rou-1 bar tão facilmente que artistas
como Jactância desgostavam de fazê-lo.
A batalha do Pont Neuf foi terrível. Durou vários meses. I Calembredaine ganhou, porque os seus já
ocupavam os ar'| redores.
Em velhas chatas abandonadas, retidas nos arcos ou nos pilares das pontes, ele postava seus mendigos,
que, parecendo jdormir, eram, entretanto, vigilantes sentinelas.

Nos dias seguintes, aventurando-se através da Paris subterrânea em companhia de Pé Ligeiro, de.
Barcarola ou de Traseiro de Pau, Angélica descobriu pouco a pouco a rede de miséria e extorsão
cuidadosamente tecida pelo seu antigo companheiro de folguedos.
— Você é mais astucioso do que eu supunha — disse elanuma noite a Nicolau —, existem algumas
boas ideias na suancachola.
E afagou-lhe a fronte com a mão.
Tais gestos, aos quais ele não estava acostumado, perturbavam o bandido. Fê-la sentar-se em seus
joelhos.
— Isso lhe espanta? Não esperava isso de um farroupilha como eu? Mas farroupilha eu jamais fui,
jamais quis ser...
Cuspiu com desprezo no lajedo.
Estavam sentados diante do fogo da grande sala, sob a Tour de Nesle. Lá se encontravam reunidos os
sequazes de Calem-bredaine e uma multidão de esfarrapados vindos para cortejar o potentado de sua
matterie. Como todas as noites, aquele público malcheiroso e barulhento se agitava entre os gritos das
crianças, eructações, injúrias que spavam sob as abóbadas, o choque dos copos de estanho, o odor
insuportável de velhos andrajos e de vinho.
A assembleia oferecia uma seleção de tudo o que se podia encontrar de melhor entre os bandos do
ilustre libertino. Este queria que seu feudo tivesse sempre tonéis abertos e carnes no espeto. Tais
liberalidades venciam os mais fortes.
Com efeito, quando chovia e ventava, quando a rua estava deserta e o nobre desdenhava o teatro e o
burguês a taberna, que havia de melhor para um narquois sem ocupação do que procurar Calembredaine
e encher o bandulho?

Traseiro de Pau instalou-se sobre a mesa com a arrogância o homem confiante e o ar sombrio de um
filósofo malcompreendido. Barcarola, seu cúmplice, cabriolava entre os grupos e exasperava os
jogadores de cartas. Veneno de Rato vendia sua caça às velhinhas famintas, Thibault, o Sanfoni-neiro,
girava a manivela de seu instrumento, lançando olhares zombeteiros pela janela de seu chapéu de palha,
enquanto Linot, seu pequeno acompanhante, garoto com olhos de anjo, percutia um címbalo. Mãe
Hurlurette e Pai Hurlurot se punham a dançar, e a luz do fogo projetava no teto suas sombras grotescas e
pesadas. Esse par de mendigos, dizia Barcarola, não tinha senão um olho e três dentes para os dois.
Hurlurot era cego e zangarreava uma espécie de caixa com duas cordas esticadas, que ele chamava
violino. Ela, zarolha, gorda, com a enorme cabeleira de estopa cinzenta escapulindo de um turbante de
pano sujo, tocava castanholas e jogava suas grossas pernas intumescidas, enfaixadas com várias meias.
Barcarola dizia ainda que ela devia ter sido espanhola... em outros tempos. Sobreviviam apenas as
castanholas.
No séquito imediato de Calembredaine havia também Pé Ligeiro, o antigo corredor, sempre ofegante,
Tabelot, o Corcunda, Jactância, o Rapa-Bolsas, Prudente, um ladrão muito choramingas e tímido, o que
não o impedia de tomar parte em todos os arrombamentos, Belo Rapaz, que era o que se chama um
barbillon, isto é, rufião, e que, quando se vestia de príncipe, era capaz de enganar o próprio rei,
prostitutas mansas como bestas de carga ou gritadeiras como harpias, saltimbancos, mais raros, porque
eram vassalos de Rodogu-no, o Egípcio, e lacaios trapaceiros que, entre duas casas onde roubavam seus
donos, tratavam de vender os furtos. Estudantes transviados, para sempre marcados pela corrupção da
mendicância, aonde os conduzira sua pobreza, vinham, em troca de pequenos serviços, jogar seus dados
entre os vadios. Chamavam-se "arquissequazes" esses faladores de latim, e eles editavam as leis do
Grande Coésre. Um deles era aquele Grande Saco que, disfarçado de monge, tinha atraído Conan Bécher
a uma cilada.
Os escroques da piedade pública, os deformados, os cegos, os coxos, os moribundos do dia ocupavam
também seu lugar na Tour de Nesle. As velhas paredes que tinham visto as luxuriosas orgias da Rainha
Margarida de Borgonha e ouvido os estertores dos jovens degolados após uma noite de amor findavam
sua sinistra carreira trazendo em seus flancos os piores dejetos da criação. Porque existiam também os
verdadeiros doentes, os idiotas, os semiloucos, os monstros corno aquele Crista de Galo, adornado com
um estranho apêndice na testa e sobre o qual Angélica não podia fixar os olhos. Calembredaine acabara
por expulsar o infeliz.
Mundo maldito: crianças que já não pareciam crianças, mulheres que se entregavam aos homens sobre
a palha dos ladrilhos, velhos e velhas de olhos vagos como os de um cão perdido. E no entanto reinava
naquele ajuntamento um clima de despreocupação e de aprazimento que não era artificial.
A miséria só é insuportável quando não é total e para aqueles que podem comparar. As pessoas do
Pátio dos Milagres não tinham passado nem futuro.
Muitos indivíduos sadios, mas preguiçosos, ali engordavam na ociosidade. A fome e o frio eram para
os fracos, para aqueles que não estavam a isso habituados. O crime e a mendicância eram as únicas
tarefas. A incerteza do amanhã não inquietava ninguém. Que importava? O preço inestimável daquela
incerteza era a liberdade, o direito de matar ao sol os seus piolhos, quando lhes aprouvesse. O guarda dos
pobres poderia vir sempre! As grandes damas e seus capelães podiam construir hospitais e asilos... Os
mendigos não entrariam neles senão à força, malgrado a sopa que lhes era assegurada.
A mesa de Calembredaine era melhor, abastecida nos bons lugares pelos seus quadrilheiros que
frequentavam as chala-nas do Sena, rondavam as charcuterias e os açougues e atacavam os camponeses
que se dirigiam ao mercado.

Diante do fogo crepitante de achas roubadas, Angélica apoiava-se nas maciças coxas de
Calembredaine. Não existia uma onça de gordura naquele atleta. O rapazinho de outrora, que trepava nas
árvores como um esquilo, tinha-se tornado um Hércules, feito de músculos enormes e compactos, fcrn
suas largas espáduas, podia-se encontrar seu atavismo camponês. Mas era certo que ele sacudira o barro
de seus tamancos. Era um lobo das cidades, flexível e rápido. . vuando seus braços se fechavam em volta
de Angélica, ela mha a impressão de estar prisioneira de um círculo de ferro ,que nenhuma força poderia
romper. Conforme o momento, ela se revoltava, ou então encostava, com gesto felino, sua face na face
áspera de Nicolau. Agradava-lhe ver acender-se nos olhos da fera um brilho intenso e aí tomar
consciência de seu próprio poder. Nicolau só se mostrava a ela sem disfarce. Os traços do antigo Nicolau
de Monteloup tornavam-na mais sensível do que ela cria ao império do novo Nicolau, e quando ele lhe
sussurrava naquele patoá que tinha sido a primeira linguagem de ambos, as palavras que se dizem às
pastoras nos montes de feno, o cenário sórdido se apagava. Era como uma droga, qualquer coisa que
suaviza as feridas muito profundas.
O orgulho que aquele homem sentia por possuí-la era ao mesmo tempo insultante e impressionante.
— Você era uma nobre... Era-me proibida — gostava ele de repetir —, e eu dizia comigo mesmo: "Hei
de tê-la". E eu sabia que você viria... E agora é minha.
Ela o insultava, mas defendia-se mal. Pois é certo que não se pode temer de verdade uma pessoa a
quem se conheceu criança: são os reflexos da infância os que menos se desfazem. A familiaridade que os
unia um ao outro tinha raízes muito distantes.
— Sabe o que eu pensava? — disse ele. — Todas essas ideias que eu tive em Paris e que me permitiram
triunfar vieram-me das nossas aventuras da infância e das nossas expedições.
Preparavam-se com grande antecedência, lembra-se? Pois bem, quando eu estava organizando o meu...
trabalho, algumas vezes dizia comigo mesmo...
Interrompeu-se para refletir e passou a língua nos lábios. Um garoto, de nome Flipot, agachado aos
seus pés, estendeu-lhe um copo de vinho.
— Está bem — rosnou Calembredaine recusando o copo —, deixe-nos conversar. Às vezes eu
pensava: "Que estará fazendo Angélica? Que belo plano lhe terá vindo à cabecinha?" E isso me
ajudava... Por que você está rindo?
— Eu não rio, eu sorrio. Porque me recordo da última expedição que fizemos e que não foi muito
gloriosa. Quando partimos para as Américas e fomos esbarrar na Abadia de Nieul...
— E verdade! Foi uma bela tolice. Eu não devia ter-lhe seguido daquela vez...
Ele continuou a refletir.
— Não eram muito boas as suas ideias naquela época. É porque você estava crescendo, tornava-se
mulher. As mulheres não têm bom senso... Elas têm-outra coisa — concluiu ele com um riso galhofeiro.
Após um momento de hesitação, ousou uma carícia, olhando sua companheira de soslaio. A força de
Angélica era que ele nunca sabia como seriam acolhidas suas iniciativas amorosas. Por causa de um
beijo, ela saltava-lhe aos olhos, as pupilas flamejantes como as de uma gata irritada, ameaçando
precipitar-se do alto da torre, insultando-o com um vocabulário de peixeira, que não tivera dificuldade
em aprender.
Ela se embezerrava dias inteiros, glacial, a ponto de impressionar Barcarola e de fazer gaguejar Belo
Rapaz. Calem-bredaine reunia então seus companheiros, e cada um, aflito, perguntava a si mesmo as
causas do mau humor da jovem.
Ao contrário, em outras ocasiões ela sabia fazer-se doce, risonha, quase meiga. Ele a reencontrava. Era
ela!... Seu sonho de sempre! A garota Angélica, de pés descalços, esfarrapada, os cabelos enfeitados de
raminhos, correndo pelos campos.
De outras vezes, ainda, ela se tornava passiva e como ausente, submissa a tudo o que ele desejava dela,
mas tão indiferente que ele renunciava, inquieto, vagamente atemorizado.
Um amor de criatura, a Marquesa dos Anjos!...
Na realidade, ela não era calculista. Seu instinto feminino havia-lhe ensinado o único meio de defesa.
Assim como ela subjugara o pequeno camponês Merlot, domava agora o bandido em que ele se
convertera... Procurava fugir ao perigo de ser sua escrava ou sua vítima. Tinha-o à sua mercê, mais pelo
afago de seus consentimentos do que pela rudeza de suas recusas. E a paixão de Nicolau tornava-se cada
dia mais abrasadora.
Aquele homem perigoso, que tinha as mãos manchadas de sangue, de muitos crimes, chegara a recear
desgostá-la.
Naquela noite, vendo que a Marquesa dos Anjos estava de bom humor, ele se pôs a acarinhá-la com
orgulho. E ela se fez langorosa, com a cabeça pousada no ombro do rapaz e desdenhando as caras
pavorosas e zombeteiras que os rodeavam. Permitiu que ele abrisse o seu corpete, que a beijasse
violentamente na boca.
Seu olhar de esmeralda filtrava-se através dos cílios, provocativo e distante. Gozando interiormente a
profundidade de sua queda, Angélica parecia exibir com prazer seu orgulho de ser a escolhida de um
senhor temível.
Tal procedimento fazia rugir de raiva a Polaca.
A antiga amante de Calembredaine não aceitava tão facilmente sua brusca "demissão", tanto mais que,
com a crueldade dos verdadeiros tiranos, Calembredaine a tinha feito criada de Angélica. Era ela quem
devia levar à sua rival a água quente para o banho, uso tão espantoso no mundo dos mendigos que já se
comentava até no Faubourg Saint-Denis. Em sua cólera, a Polaca todas as vezes derramava metade da
água fervente sobre os próprios pés. Mas era tal o domínio do antigo criado sobre sua gente que ela não
ousava pronunciar palavra diante daquela que lhe havia roubado a preferência de seu homem.
Angélica recebia com igual indiferença os serviços e os olhares rancorosos daquela gorda moça
trigueira. Na gíria dos malandros, a Polaca era uma ribaude, uma mulher de soldados, dessas que
acompanham os exércitos em guerra. Tinha mais lembranças de batalha que um velho mercenário suíço.
Podia falar de canhões, arcabuzes e lanças com igual facilidade, pois havia tido relações com todos os
graus da hierarquia militar. Andara mesmo, afirmava, com oficiais, por seus belos olhos e seus bonitos
bigodes, pois esses gentis senhores têm frequentemente os bolsos mais vazios do que o de um bravo
soldado rapinante. Ela reinara durante toda uma campanha sobre um regimento de poloneses, e daí lhe
provinha o apelido.
Carregava à cintura uma faca, que puxava por qualquer motivo e da qual tinha a reputação de servir-se
com habilidade.
De noite, depois de ver o fundo de um canjirão de vinho, a Polaca se punha a falar de pilhagens e de
incêndios.
— Ah! Belos tempos aqueles! Eu dizia aos soldados: "Beijem-me, rapazes. Matarei seus piolhos!"
Começava a entoar canções de corpos de guarda, beijava os velhos militares.
Acabavam por expulsá-la a grandes pontapés. Então, sob a chuva e o vento hibernal, a Marquesa dos
Polacos corria pelas margens do Sena e estendia os braços para o Louvre, invisível na escuridão.
— Ei, Majestade! Ei, Franc-Ripault, Rei — gritava ela —, quando nos dará a guerra?... A boa guerra!
Que é que você faz aí da sua toca, imprestável? De que me serve um rei sem batalhas? Um rei sem
vitórias?
Quando não estava sob a influência do álcool, a Polaca esquecia seus propósitos bélicos e não pensava
senão em reconquistar Calembredaine. Empenhava-se nisso com todos os recursos de um caráter sem
escrúpulos e de um temperamento vulcânico. Em sua opinião dizia, Calembredaine não tardaria a
enfastiar-se daquela pequena que quase não ria e cujos olhos por vezes pareciam não vê-lo. É verdade
que eles eram conterrâneos. Isso cria liames; mas ela conhecia Calembredaine. Isso não bastava ao
rapaz. E ela, a Polaca, não queria senão uma partilha. Afinal de contas, duas mulheres para um homem
não eram demasiado. O Grande Coêsre tinha seis!
A situação, afinal, teve o seu desenlace inevitável. Foi curto, mas violento.
Certa noite, Angélica tinha ido ver Traseiro de Pau em um buraco em que ele se alojava, nas
proximidades do Pont Saint-Michel. Ela lhe levara um chouriço. Traseiro de Pau era a única personagem
do bando a quem ela dispensava consideração. Tinha para com o aleijado atenções que ele recebia, aliás,
com a cara de buldogue de quem acha isso completamente normal.
Nessa noite, depois de ter farejado o chouriço, ele olhou Angélica e disse-lhe:
— Quando sair daqui, para onde irá?
— Voltarei para Nesle.
— Não vá diretamente para lá. Ao passar, entre na taberna de Ramez, perto do Pont Neuf.
Calembredaine está lá com os companheiros e a Polaca.
Ele esperou um instante, como para dar-lhe tempo de entender. Depois insistiu:
— Compreendeu o que deve fazer?
— Não.
Ela estava ajoelhada diante dele, como costumava fazer, a fim de ficar na mesma altura do homem-
tronco. O chão e as paredes do covil eram ae terra batida. O único móvel era uma mala de couro fervido,
na qual Traseiro de Pau guardava seus quatro trajes e seus três chapéus. Ele era muito cuidadoso com a
sua meia pessoa.
A toca era alumiada por uma lamparina de igreja, roubada, presa à parede: um delicado trabalho de
ourivesaria, de prata dourada.
— Você entrará no quarto — explicou Traseiro de Pau com ar sentencioso — e, quando tiver visto o
que Calembredaine está fazendo com a Polaca, pegará o que tiver ao alcance da mão: um vaso, uma
garrafa, e dar-lhe-á com o objeto na cabeça.
— A quem?
— A Calembredaine, é claro! Num caso como este, não se preocupe com a mulher.
— Eu tenho uma faca — disse Angélica.
— Não a use; não sabe servir-se dela. Além disso, para dar uma lição ao mendigo que engana sua
marquesa, não há como um golpe na cabeça, acredite-me!
— Mas a mim pouco se me dá que esse maltrapilho me engane — disse Angélica com um sorriso
altivo.
Os olhos de Traseiro de Pau faiscaram sob as brenhosas sobrancelhas. Ele falou com lentidão:
— Você não tem o direito... Direi mais: não pode escolher. Calembredaine é poderoso entre os nossos.
Ele a ganhou. Ele a tomou. Você não tem o direito de desdenhá-lo. Não tem o direito de deixá-lo
desprezá-la. Ele é seu homem.
Angélica teve um estremecimento em que havia cólera e uma surda voluptuosidade. Sentiu um
estrangulamento na garganta.
— Eu não quero — murmurou ela com voz sufocada.
O aleijado soltou uma gargalhada amarga.
— Eu também não queria, quando uma bala me cortou as duas pernas em Nordligen. Ela não pediu
minha opinião. Você não pode discutir essas coisas. É preciso conformar-se, eis tudo... E preciso
aprender a caminhar num prato de madeira...
A chama da griseta mostrava todos os botões da gorda face de Traseiro de Pau. Angélica achou-o
parecido com uma enorme trufa, um cogumelo crescido na sombra e na umidade da terra.
— Aprenda pois você também a caminhar entre os mendigos — continuou ele em voz baixa e
insistente. — Faça o que
eu lhe digo. Senão, morrerá.
Ela sacudiu a cabeleira para trás, em atitude altaneira.
— Não tenho medo da morte.
— Não lhe falo dessa morte — resmungou ele. — Mas da outra morte, a pior, a de si mesma...
De repente, ele se encolerizou.
— Você me faz dizer coisas! Procuro fazê-la compreender, pelo diabo! Você não tem o direito de
deixar que uma Polaca a esmague! Não tem o direito... Compreende?
Ele a verrumava com um olhar de fogo.
— Vamos, ponha-se em marcha! Dê-me a garrafa e o copo, aí no canto.
E após encher o copa de aguardente:
— Beba de um gole, depois vá lá... Não tenha medo de bater com força. Eu conheço Calembredaine.
Ele tem o crânio
sólido!

Penetrando na tasca de Ramez, natural do Auvergne, Angélica parou na soleira. O nevoeiro era quase
tão espesso no interior quanto do lado de fora. A chaminé funcionava mal e enchia a sala de fumaça.
Alguns trabalhadores, com os cotovelos pousados nas mesas vacilantes, bebiam em silêncio.
Ao fundo da peça, diante da lareira, Angélica viu os quatro soldados que compunham a guarda
habitual de Calembredaine: Peônia, Gobert, Riquet, La Chaussée, depois Barcarola trepado em uma
mesa, Jactância, Prudente, Grande Saco, Veneno de Rato e finalmente Nicolau, tendo sobre os joelhos a
Polaca descomposta e quase de pernas para o ar, que berrava canções báquicas.
Era o Nicolau que ela detestava, o rosto disfarçado e hediondo de Calembredaine.
Aquele espetáculo e mais o álcool que Traseiro de Pau lhe tinha feito beber despertaram seu instinto
combativo. Com mão rápida, ela agarrou uma pesada jarra de estanho em cima de uma das mesas e
avançou até o grupo. Os assistentes estavam demasiado ébrios para percebê-la e reconhecê-la. Quando
ela se encontrou atrás de Nicolau, reuniu suas forças e golpeou cegamente.
Houve um grande "Uh!", soltado por Barcarola. Depois Nicolau Calembredaine vacilou e caiu de
cabeça nos tições da lareira, arrastando a Polaca, que se pôs a uivar.
Seguiu-se uma enorme confusão. Os outros bebedores precipitaram-se para fora. Gritavam
"assassinato", enquanto os narquois puxavam de suas espadas e Jactância, agarrado ao corpo de Nicolau,
procurava puxá-lo para trás.
Os cabelos da Polaca começaram a queimar-se. Barcarola correu até a extremidade da mesa em que se
achava empoleirado, agarrou uma bilha de água e despejou-a na cabeça da mulher.
De repente, uma voz gritou:
— Dêem o fora, irmãos! Vem aí a polícia.
Ouviram-se passos lá fora. Um guarda do Châtelet, com a pistola na mão, apareceu na entrada, gritando:
— Não se mexam, ladrões!
Mas a espessa fumaça e a escuridão quase total do aposento fizeram-no perder um tempo precioso.
Pegando o corpo inerte de seu chefe, os bandidos tinham-no arrastado para trás da taberna e fugiam
por outra saída.
— Mexa-se, Marquesa dos Anjos! — berrou Grande Saco.
Saltando por cima de um banco tombado, ela procurou juntar-se a eles. Um sólido punho segurou-a na
passagem e uma voz gritou:
— Agarrei a mendiga.
Subitamente, Angélica viu a Polaca erguer-se diante dela. A ribaude levantava seu punhal.
"Vou morrer", pensou Angélica num turbilhão.
A lâmina brilhou, atravessando a sombra. O beleguim que segurava Angélica dobrou-se em dois e
desabou com um estertor.
A Polaca jogou uma mesa às pernas dos policiais que acorreram. Empurrou Angélica para a janela e as
duas saltaram para a rua. Um tiro estrondeou aos seus calcanhares.
Alguns instantes mais tarde, as duas mulheres reuniram-se ao grupo dos sequazes de Calembredaine,
nos arredores do Pont Neuf. Tinham interrompido a fuga para tomar fôlego.
— Uf! — suspirou Peônia, enxugando com a manga a testa suada. — Não creio que eles nos sigam até
aqui. Mas esse maldito Calembredaine é feito de chumbo, palavra de honra!
— Eles não prenderam ninguém? Você está aí, Barcarola?
— Aqui estou.
A Polaca explicou:
— Eles tinham agarrado a Marquesa dos Anjos. Mas eu acertei o tira na barriga. Este aqui não perdoa.
Mostrou o punhal manchado de sangue.
O cortejo reiniciou o trajeto para a Tour de Nesle, engrossado por todos os camaradas que àquela hora
rondavam seu lugar favorito.
A notícia passou de boca em boca:
— Calembredaine! O ilustre libertino! Ferido!
Grande Saco explicou:,
— Foi a Marquesa dos" Anjos que lhe deu um golpe de rachar, porque ele alisava a Polaca...
— Bem feito! — diziam. Um homem propôs:
— Vou buscar o Grande Mateus. E partiu correndo.

Na Tour de Nesle, estava Calembredaine estendido sobre a mesa da grande sala.


Angélica aproximou-se dele, tirou-lhe a máscara e examinou-lhe o ferimento. Ela estava desconcertada
por vê-lo assim imóvel e coberto de sangue; não tinha a impressão de haver batido tão forte; a peruca
devia tê-lo protegido. Mas o pé da jarra atingira e penetrara a fronte. Alem disso, ao cair, Calembredaine
tinha queimado a testa.
Angélica ordenou:
— Ponham água a esquentar.
Vários garotos se atropelaram para obedeeer-lhe. Sabiam bem que a água quente era a mania da
Marquesa dos Anjos e que o momento não era muito apropriado para contrariá-la. Ela havia agredido
Calembredaine, e a própria Polaca não ousara pôr em execução suas ameaças. Angélica agira em
silêncio, no momento certo, pela maneira certa... Todos se admiravam e ninguém lamentava o ocorrido,
porque sabiam que Calem-bredaine tinha a cabeça dura.
De repente um toque de clarim se elevou do lado de fora. A porta abriu-se e o Grande Mateus, dentista
empírico do Pont Neuf, apareceu.
Mesmo àquela hora avançada, não deixara ele de pôr sua célebre gola pregueada, de enfiar seu colar
de molares e de se fazer acompanhar de seus címbalos e de sua trombeta.
O Grande Mateus, como todos os charlatães, tinha um pé na mendicância e o outro na antecâmara dos
príncipes. Todos os seres igualavam-se diante da torquês do tira-dentes. E a dor torna o senhor mais
arrogante tão fraco e crédulo como o bandido mais audacioso. Os opiatos salvadores, os elixires
benfazejos, os emplastros miraculosos do Grande Mateus faziam dele um homem universal. Era para ele
que o Poeta Pobre havia composto uma canção que os sanfonineiros cantavam nas esquinas:
"...E por uma secreta causa
que ele conhecia em todos os males,
ordenava a mesma coisa
para os homens e os cavalos..."

Ele atendia a meretrizes e ladrões para conquistar-lhe as boas graças e por natural cordialidade, e
cuidava dos grandes por ambição e cupidez. Poderia ter feito uma carreira sensacional entre as grandes
damas, em que dava familiarmente palmadinhas, e a quem tratava, indistintamente, por alteza, prostituta
e mulher. Mas, tendo viajado através da Europa, decidira findar seus dias no Pont Neuf e ninguém o
arrancaria dali.

Olhou o imóvel Nicolau com visível satisfação.


— Foi você que arranjou isso? — perguntou a Angélica.
Antes que ela tivesse tempo de responder, ele segurou-lhe fortemente o queixo e examinou-lhe a boca.
— Nenhum toco para arrancar — disse com desgosto. — Vejamos mais embaixo. Está grávida?
E premiu-lhe o ventre tão energicamente que ela deu um grito.
— Não. O baú está vazio. Vejamos mais embaixo...
Angélica esquivou-se de um salto.
— Grande pote de orvietão! — gritou ela furiosa. — Não foi chamado aqui para me apalpar, mas para
se ocupar deste homem...
— Oh! Oh! a marquesa! — fez o Grande Mateus. — Oh! Oh!... Oh! Oh! Oh!...
Seus "Oh! Oh!" iam num crescendo, e ele acabou rindo de fazer desmoronar as abóbadas, segurando o
abdome com as duas mãos. Era um gigante muito corado, sempre vestido de sobrecasaca de cetim
laranja ou azul-pavão. Usava peruca sob um chapéu lindamente emplumado. Quando descia assim ao
mundo dos mendigos, entre farrapos cinzentos e chagas repugnantes, ofuscava como o sol.
Quando ele acabou de rir, viu-se que Nicolau Calembre-daine havia voltado a si. Sentado sobre a
mesa, tinha uma expressão má, que no fundo disfarçava um certo embaraço. Não ousava olhar par-a
Angélica.
— Por que estão todos a galhofar, súcia de patifes? — bramiu ele. — Jactância, estúpido! Você deixou
de novo queimar q assado. Desta vez o cheiro é de porco.
— É você o porco queimado — rugiu o Grande Mateus, enxugando as lagrimas do riso com um lenço
quadriculado. — E a Polaca também! Olhem! Ela tem metade das costas grelhada! Oh! Oh! Oh!...
E pôs-se a rir estrondosamente.
Divertiram-se bastante naquela noite, na Tour de Nesle, em frente ao Louvre.

CAPITULO IV

Angélica, na miséria, é tenazmente perseguida pelo policial Desgrez

— Olhe um pouco ali adiante — disse Peônia a Angélica. — Aquele homem que passeia perto da água
com o chapéu sobre os olhos e o casaco sobre o bigode... Reparou? Pois bem, é um grimaut.
— Um grimaut}
— Um policial, se você preferir.
— Como você sabe?
— Eu não sei, eu sinto.
E o narquois franziu o nariz de bêbado, aquele apêndice bulboso e vermelho que lhe valera a alcunha
de Peônia.
Angélica pousara os cotovelos na pequena ponte em arco que franqueava os fossos diante da Porte de
Nesle. Um sol pálido dissipava o nevoeiro que havia alguns dias baixara sobre a cidade.
A outra margem, a do Louvre, permanecia invisível ainda, mas havia doçura no ar. Crianças em
farrapos pescavam nos fossos, enquanto um lacaio, na beira do rio, lavava dois cavalos, depois de tê-los
feito beber.
O homem que Peônia tinha apontado com o cachimbo tinha o ar de um passeante inofensivo, de um
pequeno burguês que, nas margens do Sena, vem dar alguns passos antes do jantar. Ele olhava o lacaio
esfregar os animais e, de vez em quando, levantava a cabeça para a Tour de Nesle, como se estivesse
interessado naquele vestígio em ruínas de uma época distante.
— Sabe o que ele procura? — tornou Peônia soprando no rosto de Angélica sua fumaça de tabaco
ordinário.
Ela se afastou um pouco.
— Não.
— A você.
— A mim?
— Sim, a você, a Marquesa dos Anjos. Angélica teve um vago sorriso.
— Você é um visionário.
— Eu sou... o quê?
— Nada. Quero dizer que você imagina coisas. Ninguém me procura. Ninguém pensa em mim. Eu não
existo mais.
— É possível. Mas, no momento, é sobretudo o guarda Martin que não existe mais... Você se lembra?
Na taberna de Ramez, Grande Saco gritou: "Mexa-se, Marquesa dos Anjos!" Isso ficou nos ouvidos
deles e, quando viram o guarda com o ventre aberto... "Marquesa dos Anjos", disseram eles entre si, "é a
mendiga que o acertou." E agora a procuram. Sei disso porque nós, antigos soldados, bebemos às vezes
um gole com os camaradas de guerra que trabalham no Châte-let. Eles nos dão informações.
— Não há motivo para você se inquietar — disse a voz de Calembredaine atrás deles. — Se nós
quiséssemos, o cara que está lá embaixo daria um mergulho no Sena. Que é que eles podem contra nós?
Eles são apenas cem, enquanto nós...
Teve um gesto orgulhoso, como se tivesse na mão a cidade inteira. A montante, o clamor do Pont
Neuf e dos charlatães elevava-se através da bruma.
Um coche entrou na ponte. O pequeno desfez-se para deixá-lo passar; mas, à saída da ponte, os
cavalos tropicaram, pois um mendigo se havia jogado sob suas patas. Era Pão Negro, um dos pobres de
Calembredaine, velho de barbas brancas, todo ajaezado de grandes terços e de conchas de São Tiago.
— Piedade! — implorava ele. — Tenham piedade de um pobre peregrino que, a caminho de
Compostela, para fazer um voto, não tem mais com que continuar- sua viagem. Dêem-me alguns soldos,
e eu rezarei por vocês sobre a sepultura de São Tiago.
O cocheiro desferiu-lhe violenta chicotada.
— Para trás, romeiro do diabo!
Uma dama pôs a cabeça pela portinhola. Seu manto entreaberto deixava ver belas jóias em seu
pescoço.
— Que se passa, Lorrain? Apresse um pouco seus animais.
Quero estar na Abadia de Saint-Germain-des-Prés para as completas.
Nicolau deu alguns passos e pousou a mão sobre a maçaneta da portinhola.
— Piedosa dama — disse ele tirando seu chapéu furado —, a senhora, que vai às completas, recusaria
seu óbolo a este pobre peregrino que vai orar a Deus tão longe, na Espanha?
A dama olhou a cara barbada que lhe aparecia ao crepúsculo, examinou o indivíduo cujo casaco
rasgado deixava ver os bíceps de lutador e em cuja cintura estava presa uma faca de açougueiro. Abriu
uma boca enorme e pôs-se a berrar:
— Socorro! Assass...
Peônia já tinha encostado a ponta de sua tarasca no ventre do cocheiro. Pão Negro e Flipot, um dos
garotos que pescavam nos fossos, seguraram os cavalos. Prudente acorreu. Ca-lembredaine saltou para o
interior da carruagem e, com mão brutal, sufocou os gritos da dama.
Ele gritou para Angélica:
— Seu fichu! Dê-me seu fichu!
Angélica, sem saber como, viu-se dentro da carruagem, envolvida por um aroma de pó de íris e perto
de uma bela saia com passamanes dourados.
Calembredaine havia-lhe tirado seu lenço de pescoço e entupia com ele a garganta da dama.
— Faça alguma coisa, Prudente! Arranque-lhe os balangandas! Tome-lhe o dinheiro!
A mulher debatia-se com vigor. Prudente suava para desprender as jóias: uma pequena corrente de
ouro e aquilo que se chamava um carcan, isto é, uma bela placa, também de ouro, com grandes
diamantes incrustados.
— Ajude-me, Marquesa dos Anjos! — gemeu ele. — Eu me perco nessas bugiarias.
— Mexa-se, ande depressa — rosnou Calembredaine. — Ela me escapa. Até parece uma enguia!
As mãos de Angélica acharam o fecho. Era muito simples. Ela havia usado jóias semelhantes.
— Chicoteie, cocheiro! — gritou a voz trocista de Peônia.
A carruagem desceu, com grande ruído, a Rue du Faubourg Saint-Germain. Feliz de ter escapado, o
cocheiro fustigava os animais. Um pouco mais longe,.a mulher, que conseguira retirar a mordaça, pôs-se
a uivar. As mãos de Angélica estavam cheias de ouro.
— Traga a vela — gritou Calembredaine.
Na sala de Nesle, reuniam-se os assaltantes em volta da mesa, e cada um olhava as magníficas jóias
que Angélica acabava de colocar sobre ela.
— Uma bela colheita!
— Pão Negro terá sua parte. Foi ele quem começou.
— Mesmo assim — suspirou Prudente —, foi arriscado. Ainda era dia.
— Ocasiões como essa não se desperdiçam, você aprenderá, idiota, desajeitado! Ah! Você foi muito
ligeiro. Se a Marquesa não lhe houvesse dado uma mãozinha...
Nicolau olhou Angélica e teve um estranho sorriso vitorioso.
— Você também, você terá sua parte — murmurou ele.
Ele jogou-lhe a corrente de ourp. Ela empurrou-a com horror.
— Mesmo assim — repetiu Prudente —, foi arriscado. Com um guarda a dois passos dali, era
perigoso.
— Havia nevoeiro. Ele nada viu e, se ouviu, ainda deve estar correndo. Que é que ele podia fazer? Só
há um de quem eu tenho medo. Mas esse não é visto há muito tempo. É preciso esperar que ele se faça
acertar convenientemente em algum lugar. É pena. Eu gostaria de ter sua pele, a dele e a de seu maldito
cão.
— Oh! O cão! O cão! — exclamou Prudente com os olhos esbugalhados. — Ele me pegou aqui...
E levou a mão à garganta.
— O homem do cão — murmurou Calembredaine semicerrando os olhos. — Mas agora me recordo,
eu vi você comele, um dia, perto, perto do Petit Pont. Você o conhece?
Aproximou-se de Angélica e olhou-a pensativamente antes de sorrir de novo de maneira terrível.
— Você o conhece? — repetiu ele. — Isso é bom. Você nos ajudará a apanhá-lo, hem, agora que é
dos nossos?
— Ele deixou Paris. Não voltará mais, eu sei — disse Angélica com voz aguda.
— Gh! Sim, ele voltará...
Calembredaine sacudiu a cabeça e os outros o imitaram. Peônia grunhiu em tom lúgubre:
— O homem do cão sempre volta.
— Você nos ajudará, hem? — insistiu Nicolau. Ele apanhou a corrente de ouro de sobre a mesa.
— Fique com ela, querida. Você bem a ganhou.
— Não!
— Por que não?
— Não gosto de ouro — disse Angélica, que de repente foi acometida de um tremor convulsivo. —
Tenho horror ao ouro.
E saiu, não podendo suportar aquele círculo infernal.
A silhueta do policial havia desaparecido. Angélica caminhava ao longo das margens do rio. No
nevoeiro azulado, tremeluziam os pontos amarelos das lanternas penduradas" na proa das chalanas. Ela
ouviu um bateleiro afinar sua guitarra e pôr-se a cantar. Ela distanciou-se, andando para a extremidade
do faubourg, de onde vinha um odor de campo. Quando parou, a noite e a bruma tinham cessado todos
os ruídos. Ela não ouvia senão o murmúrio das águas que batiam nos caniços e nos barcos amarrados.
Angélica disse a meia voz, como uma criança que tem medo de um grande silêncio:
— Desgrez!
Pareceu-lhe ouvir uma voz sussurrar nas dobras da noite e da água:
"Quando a noite cai sobre Paris, saímos a caçar. Descemos até as margens do Sena, vagamos sob as
pontes e entre os pilares, erramos sobre as velhas muralhas, mergulhamos nos covis malcheirosos de
mendigos e bandidos..."
"O homem do cão voltará... O homem do cão sempre volta...”
"E agora, senhores, chegou a hora de fazer-lhes ouvir uma voz grandiosa, uma voz que, acima das
torpezas humanas, nunca procurou senão iluminar com prudência os seus fiéis."
"O homem do cão voltará... O homem do cão sempre vol-ta...
Ela apertou os ombros com as .duas mãos para reprimir o grito que lhe inflava o peito:
— Desgrez! — repetiu ela.
Mas somente o silêncio lhe respondeu, um silêncio tão profundo como o silêncio nevoso em que
Desgrez a tinha abandonado.
Deu alguns passos para o rio, e seus pés afundaram-se na vasa. Depois a água rodeou-lhe os
tornozelos. Ela sentia-se gelada... Barcarola diria: "Pobre Marquesa dos Anjos! Não lhe deve ter sido
desagradável morrer na água fria, a ela que tanto gostava de água quente?"
Entre os caniços, remexia-se um animal, um rato, sem dúvida. Uma pequena,bola de pêlo molhado
roçou as panturrilhas de Angélica. Ela soltou um grito assustada e voltou precipitadamente para a
margem. Mas as patas se agarravam à sua saia com as unhas. O rato subia nela, que batia em todas as
direções para se ver livre dele. O animal começou a dar gritos agudos. De repente, Angélica sentiu em
volta do pescoço o aperto de dois pequenos braços gelados. Gritou surpresa:
— Que é isto? Não é um rato!...
No caminho de sirgagem, dois embarcadiços passavam com uma lanterna. Angélica se dirigiu a eles:
— Ei! Barqueiros! Emprestem-me sua lanterna.
Os dois homens pararam e examinaram-na com desconfiança.
— Uma bela moça — disse um deles.
— Calma — disse o outro. — É a fêmea de Calembredai-ne. Fica quieto, se não quiser ser sangrado
como um porco. Desta ele tem ciúme! Um verdadeiro turco!
— Oh! Um macaco — exclamou Angélica, que havia enfim conseguido distinguir a espécie de animal
que se agarrava assim a ela.
O símio continuava a apertar seus longos braços finos em torno do pescoço de Angélica e seus olhos
negros e medrosos olhavam a jovem de maneira quase humana. Embora vestido com um calção de seda
vermelha, ele tiritava sem cessar.
— Não pertence a vocês ou a algum de seus camaradas?
Os marinheiros abanaram a cabeça.
— Não. Ele deve pertencer a um dos saltimbancos da feira de Saint-Germain.
— Eu o encontrei ali. Perto do rio.
Um dos homens balançou a lanterna na direção que ela indicava.
— Há alguém ali — disse ele.
Aproximaram-se e descobriram um corpo estendido na posição de quem dorme.
— Olá! Está muito frio para dormir aí!
Como o homem não se mexia, eles o viraram e soltaram uma exclamação de espanto, pois ele usava
uma máscara de veludo vermelho. Uma longa barba branca espalhava-se sobre seu peito. Seu chapéu
cónico, adornado com fitas vermelhas entrecruzadas, seu alforje bordado, suas calças de veludo,
igualmente presas às pernas por fitas usadas e enlameadas, eram de um saltimbanco italiano, um desses
exibidores de animais e pelotiqueiros que vinham do Piemonte • e iam de feira em feira.
Estava morto. Sua boca aberta já estava cheia de lodo.
O macaco, sempre agarrado a Angélica, soltava gritos chorosos.
A jovem inclinou-se e retirou a máscara vermelha. O rosto era o de um velho emaciado. A morte
havia-lhe consumido as carnes. Os olhos estavam vidrados.
— Temos de lançá-lo ao rio — disse um dos barqueiros.
Mas o outro, que se benzera piedosamente, disse que era preciso ir buscar um padre de Saint-Germain-
des-Prés e dar sepultura àquele pobre estrangeiro.
Sem fazer ruído, Angélica deixou-os e retomou o caminho da Tour de Nesle.
Levava o macaquinho fortemente agarrado a si. Sacudiu a cabeça e recordou-se de uma cena à qual,
no momento, não prestara nenhuma atenção. Fora na Taberna dos Três Malhos que ela havia visto
aquele macaco pela primeira vez. Ele fazia rir todos os fregueses imitando-lhes a maneira de beber ou
de comer. E Gontran tinha dito, mostrando à sua irmã o velho italiano: "Olha, que maravilha, aquela
máscara vermelha e aquela barba cintilante!"
Recordou também que o dono havia chamado Piccolo ao macaco.
— Piccolo!
O símio soltou um grito cheio de tristeza e se achegou a ela. Somente mais tarde Angélica percebeu
que tinha conservado na mão a máscara vermelha.
No mesmo momento, Mazarino dava o último suspiro. Depois de se ter feito transportar a Vincennes e
de ter mandado sua fortuna ao rei, que a tinha recusado, o senhor cardeal deixara esta vida, a que dava o
justo valor, por haver-lhe conhecido as formas mais diversas.
Sua paixão mais profunda, o poder, ele a legara a seu real pupilo.
É o primeiro-minístro, erguendo para o rei seu rosto amarelado, lhe tinha transmitido, em um
murmúrio, a chave do poder absoluto.
— Nada de primeiro-ministro, nada de favorito! O senhor, somente o senhor...
Depois, desdenhoso das lágrimas.da rainha-mãe, o italiano morreu.
A Paz de Vestfália com a Alemanha, a Paz dos Pireneus com a Espanha, a Paz do Norte, concluída
por ele sob a égide da França: todas as pazes velavam à sua cabeceira.
O pequeno rei da Fronda, da guerra civil e da guerra externa, o pequeno rei que tivera outrora a coroa
ameaçada pelos grandes enquanto ele errava de cidade em cidade, doravante apareceria como o rei dos
reis.
Luís XIV ordenou as preces das quarenta horas e pôs luto. A corte teve de imitá-lo. Todo o reino
murmurou diante dos altares pelo odiado italiano, e o dobre ininterrupto dos sinos ecoou durante dois
dias sobre Paris.
Depois, tendo derramado as últimas lágrimas de um jovem coração decidido a não mais se deixar
vencer pelo sentimentalismo, Luís XIV começou a trabalhar.
Encontrando na antecâmara o presidente da assembleia do clero, que lhe perguntou a quem devia
dirigir-se para as questões que o senhor cardeal habitualmente resolvia, o rei respondeu: "A mim, senhor
arcebispo".
— Nada de primeiro-ministro... Nada de favorito todo-
poderoso... O Estado sou eu, senhores!
Os ministros, espantados, mantinham-se de pé, diante daquele jovem cujo gosto dos prazeres lhes
havia dado outras esperanças. Como empregados disciplinados, apresentavam seus dossiês.
A corte sorria, incrédula. O rei tinha estabelecido para si mesmo um programa, hora por hora, no qual
todas as suas ocupações estavam compreendidas, bailes e amantes, mas sobretudo trabalho, um trabalho
intenso, constante, escrupuloso. Sacudiam a cabeça. Aquilo não duraria muito, diziam.
Mas durou cinquenta anos.

Do outro lado do Sena, na Tour de Nesle, era pelos relatos de Barcarola que o eco da vida real
chegava até os mendigos. Barcarola, o anão, estava sempre bem informado do que se passava na corte. É
que, em seus momentos de folga, ele vestia um traje de bobo do século XVI, com guizos e plumas, e
abria a porta de uma das maiores adivinhas de Paris.
— E as belas damas que a vão ver debalde se mascaram,
se cobrem de véu; eu as reconheço, todas...
Ele pronunciava nomes, e dava tais detalhes que Angélica, que as conhecera, não podia duvidar de que
as mais brilhantes flores do séquito do rei frequentassem o covil suspeito da dita pitonista.
Essa mulher se chamava Catarina Monvoisin. Deram-lhe o apelido de La Voisin. Barcarola dizia que
ela era temível e sobretudo muito hábil. Acocorado, em sua posição habitual de sapo, junto de seu amigo
Traseiro de Pau, Barcarola, em pequenas frases revelava a Angélica, alternadamente assombrada e
curiosa, os segredos das intrigas e o atroz arsenal das práticas e mistificações de que era testemunha.
Por que essas grandes damas ou esses príncipes deixavam o Louvre de casaco cinza e mascarados?
Por que corriam através das ruelas lamacentas de Paris e batiam à porta de um antro que lhes era aberto
por um anão ameaçador? Por que confiavam seus segredos mais íntimos aos ouvidos de uma mulher
meio ébria?
Porque desejavam aquilo que não se obtém apenas com dinheiro.
Queriam amor. O amor da juveatude, mas também o amor que desejam conservar as mulheres
maduras que vêem seus amantes esfriar, e as ambiciosas que nunca se satisfazem, que procuram subir
mais alto, sempre mais alto.
Pediam a La Voisin o filtro mágico que escraviza o coração, a droga afrodisíaca que arrebata os
sentidos.
Alguns cobiçavam a herança de um velho tio, que não se decidia a desaparecer, ou, então, a morte de
um velho marido, de uma rival, de um nascituro.
Fazedora-de-anjos, envenenadora, feiticeira: La Voisin era tudo isso.
Que queriam mais? Achar tesouros, falar ao Demónio, rever um defunto, maçar à distância por meio
de magia? Bastava procurar La Voisin. Tratava-se somente de fazer o preço, e La Voisin apelava para os
seus cúmplices: o sábio que fabricava os venenos, o lacaio ou a criada que roubavam as cartas, o padre
transviado que rezava missas negras e também a criança que era imolada, no instante do sacrifício,
enterrando-se-lhe uma longa agulha no pescoço, e da qual se bebia o sangue...

Precipitada nos basfonds do Pátio dos Milagres, por um processo de falso bruxedo, Angélica
descobria, pelas narrativas de Barcarola, a verdadeira bruxaria. Barcarola desvendava-lhe também a
assombrosa corrupção do sentimento religioso no século XVIII.
Um certo João Podre vendia muitas crianças a La Voisin para os sacrifícios.
Fora por ele, aliás, que Barcarola entrara como porteiro da adivinha.
João Podre amava o trabalho sério, bem-feito, bem organizado.
Angélica não podia encontrar a ignóbil personagem sem estremecer.
Quando, pela desmantelada porta da sala, se introduzia aquele pequeno homem de rosto pálido, de
olhos turvos de peixe morto, ela tremia. Uma serpente não a teria aterrorizado mais.
João Podre era mercador de crianças. Em algum lugar para os lados do Faubourg Saint-Denis, no
feudo mesmo do Grande Coèsre, havia um grande casebre de barro do qual os mais empedernidos não
falavam sem baixar a voz. Dia e noite elevavam-se os prantos dos inocentes martirizados. Crianças
achadas, crianças roubadas amontoavam-se ali. Aos mais franzinos torciam-lhes os membros, a fim de
alugá-los aos mendigos, que deles se serviam para apiedar os transeuntes. Os mais bonitos, meninos e
meninas, eram educados com cuidado e vendidos, ainda jovens, a senhores viciosos, que os reservavam
antecipadamente para seus abomináveis prazeres. Os mais felizes eram os comprados pelas mulheres es-
téreis, ansiosas de ter um sorriso de criança no lar, ou ainda de alegrar um marido descontente. Outros
asseguravam, ainda, alguma herança por meio de uma descendência aparente.
Saltimbancos e charlatães adquiriam por alguns soldos crianças sadias às quais ensinavam a fazer
peloticas.
Um tráfico enorme, incessante, tinha por objeto essa lastimável mercadoria. As pequenas vítimas
morriam às centenas. Sempre havia novos suprimentos. João Podre era infatigável. Visitava as amas-de-
leite, enviava seus agentes aos campos, recolhia os abandonados, subornava as empregadas das creches
públicas e dos orfanatos, fazia raptar os pequenos da Savoie ou da Auvergne que, vindos a Paris com
seus lenços de cabeça e seu material de limpeza de chaminés ou de engraxate, desapareciam para
sempre.
Paris os tinha engolido como engolia os fracos, os pobres, os isolados, os doentes incuráveis, os
aleijados, os velhos, os soldados sem pensão, os camponeses expulsos de sua terra pelas guerras, os
comerciantes arruinados.
A estes a matterie abria o seio nauseabundo e oferecia todos os recursos de suas artimanhas
codificadas pelos séculos.
Uns aprendiam a tornar-se epilépticos e outros a roubar. Velhos e velhas alugavam-se para formar o
cortejo dos enterros. As moças prostituíam-se e as mães vendiam os filhos.
Às vezes um gentil-homem pagava a um grupo de espadachins para matar um inimigo em qualquer
canto de rua. Ou então buscava no Pátio dos Milagres os elementos de um tumulto destinado a fazer
triunfar uma intriga de corte. Paga para gritar e injuriar, a gente da matterie fazia-o de coração alegre.
Diante de um grupo de farroupilhas ameaçadores, muitos ministros se viram na iminência de ser
lançados ao rio, e cederam às pressões dos rivais.
Em vésperas de dias santos, figuras eclesiásticas introduziam-se nos mais perigosos covis. No dia
seguinte o relicário de Santa Oportuna ou de São Marcelo passaria pelas ruas. Os cónegos do capítulo
desejavam que um bem-vindo milagre reanimasse, no momento psicológico, a fé da multidão. Onde
poderiam encontrar os miracules senão no Pátio dos Milagres? Bem pagos, o falso cego, o falso surdo, o
falso paralítico esperavam a passagem da procissão e de repente proclamavam sua cura, vertendo
lágrimas de júbilo.
Quem podia dizer que os súditos do reino de Thunes viviam na ociosidade?
Belo Rapaz não tinha tanta canseira com seu batalhão de prostitutas, que lhe traziam, com
pontualidade, o seu salário, mas cujas querelas ele tinha de apaziguar e para as quais tinha de roubar os
atavios necessários ao seu comércio?
Peônia, Gobert e todos os drilles enarquois do lugar achavam, por vezes, a noite fria e rara a caça.
Por um casaco que arrancavam, quantas horas de espreita e quantos gritos e desassossegos!
E ver os falsos epilépticos cuspirem bolhas de sabão, rolando por terra no meio de um círculo de
basbaques estúpidos, era assim tão divertido?
Particularmente quando no fim da jornada não esperava alguma daquelas pessoas senão a morte,
solitária, num caniçal de beira de rio ou, pior ainda, a tortura nas prisões do Châtelet, a tortura que fazia
rebentar os nervos e saltar os olhos, e, para terminar, a forca da Place de Greve — VAbba-ye de Monte-
à-Regret, Abadia de Sobe-com-Relutância, como a chamavam no reino de Thunes.
Entretanto, no reino de Thunes, Angélica, protegida por Calembredaine e pela amizade de Traseiro de
Pau, desfrutava uma vida livre e resguardada.
Ela era intocável. Tinha pago seu dízimo tornando-se a companheira de um tunante. As leis da classe
eram duras. Sabia-se que o ciúme de Calembredaine nada perdoaria, e Angélica podia achar-se, alta
noite, ao lado de homens grosseiros e perigosos como Peônia ou Gobert, sem estar exposta ao menor
gesto equívoco. Quaisquer que fossem os desejos que ela inspirasse, enquanto o chefe não houvesse
levantado o interdito ela não pertenceria senão a ele.
Era assim que sua vida, miserável na aparência, se repartia quase inteiramente entre longas horas de
sono e prostração e passeios sem destino através de Paris. Na Tour de Nesle sempre havia para ela
algum alimento e um bom fogo na lareira.
Poderia trajar-se decentemente, pois às vezes os ladrões traziam belos vestidos que recendiam íris e
alfazema. Ela, contudo, perdera o gosto. Havia guardado o mesmo costume de sarja escura, cuja saia já
se desfiava. A mesma touca de pano prendia-lhe os cabelos. Mas a Polaca havia-lhe dado um cinto
especial para a faca que ela escondia debaixo do corpete.
— Se quiser, ensiná-la-ei a usá-la — oferecera aquela.
Após a cena do vaso de estanho e do guarda estripado, havia-
se estabelecido entre as duas uma estima que não estava longe de converter-se em amizade.
Angélica saía pouco de dia e não se distanciava muito. Ado-tava, por instinto, o ritmo de vida de seus
companheiros, aos quais os burgueses, os comerciantes e os beleguins, por acordo tácito, entregavam a
noite.
Foi, pois, em uma noite que o passado ressurgiu diante dela e a despertou tão cruelmente que ela
esteve a ponto de morrer.
O bando de Calembredaine assaltou uma casa do Faubourg Saint-Germain. A noite não tinha luar, a
rua estava mal iluminada. Quando Gazua, um rapazinho de dedos ágeis, conseguiu abrir a fechadura de
uma pequena porta de serviço, os ladrões entraram sem muitas precauções.
— A casa é grande, e há nela somente um velho com uma criada que mora na parte mais alta —
explicou Nicolau. — Estaremos à vontade em nosso trabalho.
Depois de acender sua lanterna de furta-fogo, levou os companheiros para o salão. Pão Negro, que
tinha vindo mendigar frequentemente naquelas paragens, indicara-lhe a exata disposição dos aposentos.
Angélica cerrava a fila. Não era a primeira vez que se envolvia numa aventura desse género. A
princípio Nicolau não queria levá-la.
— Você não tem jeito para isso — dizia ele.
Mas a jovem agia a seu modo. Não tinha ido para roubar. Aprazia-lhe somente aspirar o odor das
casas adormecidas: tapeçaria, móveis bem lustrados, cheiros de cozinha, de bolos e tortas. Ela pegava os
bibelôs, repunha-os no lugar. Nunca uma voz se elevou dentro dela para dizer-lhe: "Que faz você aqui,
Angélica de Peyrac?" Salvo nessa noite em que Calem-bredaine roubou a casa do velho sábio Glazer, no
Faubourg Saint-Germain...
Nessa noite, Angélica encontrou sobre um consolo um castiçal com vela. Acendejj-a na lanterna dos
ladrões, enquanto esses entulhavam seusrsacos. Depois, avistando uma pequena porta ao fundo do
aposento, abriu-a com curiosidade.
— Céus! — cochichou Prudente atrás dela. — Que é isso?
A chama refletia-se em grandes globos de vidro com longos bicos, e distinguiam-se tubos de cobre
entrelaçados, vasos de faiança com inscrições latinas, garrafas de todas as cores.
— Que é isso? — repetiu Prudente, aturdido.
— É um laboratório.
Muito lentamente, Angélica avançou e parou perto de um balcão de tijolos sobre o qual havia um
fogareiro.
Ela observava cada detalhe. Havia um pequeno pacote, selado com cera vermelha, sobre o qual leu:
"Para o Sr. de Sainte-Croix". Depois, em uma caixa aberta, um pó branco. O nariz de Angélica tremeu: o
odor não lhe era desconhecido.
— E isto — perguntou Prudente —, é farinha? Cheira bem.
Cheira a alho...
Ele tomou uma picada do pó e levou-a à boca. Com gesto irrefletido, Angélica bateu-lhe na mão. Ela
revia Fritz Hauer exclamando: "Gift gnãdige Dame!”
— Largue isso, Prudente. E veneno, arsénico.
E lançou um olhar espantado em volta de si.
— Veneno! — repetiu Prudente nervoso.
Recuando, esbarrou numa retorta, que foi ao chão e se quebrou com um ruído cristalino.
Precipitadamente, todos os intrusos deixaram a peça. Agora o salão estava vazio. Ouviram, então, uma
bengala bater no pavimento superior, e uma voz de velho gritou na escada:
— Maria José, você esqueceu outra vez de prender os gatos. E insuportável. Tenho de descer para ver.
Depois, inclinado para o vestíbulo, o velho perguntou:
— É você, Sainte-Croix? Veio buscar a fórmula?
Angélica e Prudente apressaram-se a ganhar a cozinha, depois a despensa, para a qual abria a pequena
porta forçada ■ pelos ladrões. Algumas ruas mais adiante, pararam.
— Uf! — suspirou Prudente. — Que medo que eu tive! Se alguém podia desconfiar que ia à casa de
um feiticeiro!... Tomara que não nos traga infelicidade! Onde estão os outros?
— Devem ter tomado outro caminho.
— Bem que podiam ter-nos esperado. Aqui não se enxerga nada.
— Oh! Não se lamente tanto, meu pobre Prudente. As pessoas da sua laia devem enxergar na
escuridão.
Mas ele segurou-lhe o braço.
— Escute! — disse.
— Que é que há?
— Não ouviu? Escute... — repetiu ele apavorado. Súbito acrescentou, numa espécie de estertor:
— O cão!... O cão!
E, jogando no chão o seu saco, fugiu correndo.
"O pobre rapaz está maluco", pensou Angélica, inclinando-se maquinalmente para apanhar o espólio.
Então, por sua vez, ela ouviu. O ruído vinha do fundo das ruelas silenciosas.
Era como um leve galope, muito rápido, que se aproximava. Subitamente, ela divisou o animal no
outro extremo da rua, como um branco fantasma saltador. Angélica, dominada por um medo
inexprimível, também fugiu. Corria como uma louca, sem prestar atenção às pedras que lhe torciam os
pés. Estava cega. Sentia-se perdida e queria gritar, mas nenhum som lhe saía da garganta.
O choque do animal, que lhe pulara aos ombros, projetou-a de rosto na lama.
Sentiu sobre si o peso dele e, contra a nuca, a pressão de um maxilar de dentes pontiagudos como
pregos.
— Sorbonne! — gritou ela. E repetiu mais baixo:
— Sorbonne!
Depois, muito lentamente, virou a cabeça. Era Sorbonne, sem dúvida nenhuma, pois ele a deixara
prontamente. Ela ergueu a mão e acariciou a grande cabeça do dinamarquês. Ele a farejava com
surpresa.
— Sorbonne, meu querido Sorbonne, você me pregou um susto! Isso não se faz.
O cão deu-lhe uma lambidela em pleno rosto com sua enorme e áspera língua.
Angélica se levantava com dificuldade. Machucara-se bastante ao cair.
Nesse momento percebeu um rumor de passos. Seu sangue se congelou. Depois de Sorbonne... não
podia ser senão Desgrez.
De um salto, Angélica se pôs de pé.
— Não me traia — suplicou ela baixinho, dirigindo-se ao cão. — Não me traia.
Mal teve tempo de se esconder na reentrância de uma porta. Seu coração batia como se fosse explodir.
Ela teve uma vaga esperança de que não fosse Desgrez. Ele tivera de deixar a cidade. Não podia
retornar. Pertencia a um passado morto...
Os passos estavam muito próximos. De repente, cessaram.
— Que é que há, Sorbonne? — disse a voz de Desgrez. — Que lhe aconteceu? Não agarrou a bandida?
O coração de Angélica lhe doía, à força de tamborilar em seu peito.
Aquela voz familiar, aquela voz do advogado! "E agora, senhores, chegou a hora de fazer-lhes ouvir
uma voz grandiosa, uma voz que, acima das torpezas humanas..."
A noite era profunda e negra como um abismo. Não se enxergava nada, mas, em dois passos, Angélica
teria podido chegar perto de Desgrez. Ela sentia-lhe os movimentos e percebia-lhe a perplexidade.
— Maldita Marquesa dos Anjos! — exclamou ele bruscamente. — Diabos me levem se ela nos fizer
andar por muito tempo. Vamos, fareje, Sorbonne, fareje. A bandida teve a feliz ideia de deixar seu lenço
de pescoço na carruagem. Assim sendo, não nos pode escapar. Venha, voltemos as proximidades da
Porte de Nesle. A pista está por lá, tenho certeza.
Distanciou-se, assoviando para atrair o cão.
O suor escorria pelas têmporas de Angélica. Suas pernas tremiam. Decidiu-se, enfim, a dar alguns
passos para fora de seu esconderijo. Se Desgrez se dirigia para os lados da Porte de Nesle, seria
preferível que ela não voltasse para lá.
Procuraria ganhar o antro de Traseiro de Pau e pedir-lhe asilo pelo resto da noite.
Sua boca estava seca. Ouviu murmurar a água de uma fonte. A pequena praça em que se achava essa
fonte era fracamente alumiada por um lampião, pendurado diante da loja de um merceeiro.
Angélica aproximou-se e lavou na água fresca o rosto sujo de lama. Deu um suspiro de alívio.
Quando se endireitava, um forte braço a enlaçou, enquanto uma mão brutal lhe tapava a boca.
— Apanhei-a, minha bela! — disse a voz de Desgrez. —Você acreditava que podia escapar-me tão
facilmente?
Angélica procurou desvencilhar-se. Mas ele a segurava de tal maneira que ela não podia mover sem
gritar de dor.
— Não, não, minha franguinha, você não pode escapar!
— disse ainda Desgrez com um riso surdo.
Paralisada, ela reencontrava o odor familiar de suas vestes surradas: couro do cinturão, tinta e
pergaminho, tabaco. Era o advogado Desgrez, com sua face noturna. Ela desfalecia, dominada por um só
pensamento: "Tomara que ele não me reconheça... Eu morreria de vergonha... Tomara que eu consiga
fugir antes que ele me reconheça!"
Segurando-a sempre com uma só mão, Desgrez levou à boca um apito e lançou três silvos estridentes.
Alguns minutos mais tarde, cinco ou seis homens desembocaram das ruelas vizinhas. Ouvia-se o ruído
de suas esporas e do boldrié de suas espadas. Eram os homens da ronda.
— Creio que peguei a marreca — disse Desgrez.
— Otimo! Foi uma noite rendosa. Prendemos dois ladrões que fugiam. Se também apanhamos a
Marquesa dos Anjos, podemos dizer, senhor, que nos guiou muito bem. O senhor conhece os recantos...
— Foi o cão que nos guiou. Com o lenço de pescoço desta mendiga, ele nos haveria de trazer aqui.
Mas... existe algo que eu não compreendo. Por um triz ela não me escapou... Conhecem essa Marquesa
dos Anjos?
— É o arranjo de Calembredáine. Não sabemos de outra. O único de nós que pôde vê-la de perto está
morto. Foi o polícia Martin, que ela esfaqueou numa taberna. Mas basta levar a pequena que está com o
senhor. Se for ela, a Sra. de Brinvilliers a reconhecerá. Ainda era dia quando seu coche foi assaltado
pelos bandoleiros, e ela viu bem a mulher que era cúmplice deles.
— Que audácia! — rosnou um dos homens. — Eles não temem mais nada, esses bandidos. Assaltar a
carruagem da própria filha do tenente de polícia civil, e isso em pleno dia, em plena Paris!
— Eles pagarão, acredite-me.
Angélica escutava essa conversação. Procurava ficar imóvel, na esperança de que Desgrez relaxasse o
aperto. Então, de um pulo, ela mergulharia na noite cúmplice e fugiria. Estava certa de que Sorbonne
não a perseguiria. E não seriam aqueles homens pesados e estorvados pelos uniformes que poderiam
apanha-la.
Mas o ex-advogado não parecia disposto a esquecer sua captura. Com a mão experiente, ele a apalpou.
— Que é isso? — perguntou ele.
Ela sentiu os dedos do homem descerem sob o seu corpete. Ele soltou um pequeno assovio.
— Um punhal, palavra! Não é um canivete, podem acreditar. Muito bem, pequena, você não tem para
mim um ar tão ingénuo.
Introduziu o punhal de Rodoguno, o Egpício, em um dos seus bolsos e continuou ^a inspeção. -
Ela estremeceu quando a mão quente e rude lhe passou sobre o peito e ali se demorou.
— Como pulsa esse coração! — gracejou Desgrez a meia voz. — Eis uma que não tem a consciência
tranquila. Vejamos sob o candeeiro da loja com quem ela se assemelha. Com um sobressalto ela tentou
soltar-se. Mas dez punhos de ferro a subjugaram, e uma saraivada de golpes se abateu sobre ela.
— Marafona! Quer dar-nos mais trabalho?
Levaram-na até o candeeiro. Desgrez agarrou-lhe os cabelos fortemente e puxou-lhe a cabeça para
trás. Angélica cerrou os olhos. Com aquela mistura de lama e sangue que a sujava, Desgrez não poderia
reconhecê-la. Ela tremia de tal maneira que seus dentes castanholavam.
Os segundos que se escoaram enquanto ela permanecia assim exposta à crua claridade do lampião
pareceram-lhe séculos.
Depois Desgrez soltou-a com um grunhido de decepção.
— Não, não é ela. Não é a Marquesa dos Anjos. Os beleguins praguejaram em uníssono.
— Como o sabe, senhor? — ousou perguntar um deles.
— Eu já a vi. Mostraram-ma um dia no Pont Neuf. Essa moça parece-se com ela, mas não é ela.
— Levemo-la, mesmo assim. Ela poderá dar-nos algumas pequenas informações.
Desgrez, indeciso, parecia refletir.
— Além disso, qualquer coisa não está bem clara — tornou ele em tom pensativo. — Sorbonne
nunca se engana. Pois bem, ele não agarrou esta jovem. Deixou-a tranquila a alguns passos dele... Prova
de que ela não é perigosa.
E concluiu com um suspiro:
—- Errei o alvo. Ainda bem que vocês apanharam dois ladrões. Onde fizeram eles o serviço?
— Na Rue du Petit-Lion, na casa de um velho boticário chamado Glazer.
— Voltemos lá. Pode ser que encontremos uma pista.
— E a rapariga, que faremos dela?
Desgrez hesitava.
— Estou pensando se não seria melhor deixá-la em liberdade. Agora eu lhe conheço o rosto e não o
esquecerei.
Sem insistir, os beleguins soltaram a jovem e, retimindo as esporas, desapareceram na sombra.
Angélica se afastou para fora do círculo de claridade. Passava rente às paredes e foi com alívio que se
achou na escuridão. Mas distinguiu uma mancha branca perto da fonte e ouviu o ruído característico da
língua de um cão a beber. A sombra de Desgrez estava junto de Sorbonne.
Angélica imobilizou-se de novo. Viu Desgrez meter a mão no bolso do casaco e lançar um objeto na
sua direçâo.
— Toma — disse a voz do ex-advogado —, entrego-lhe sua faca. Nunca roubei uma jovem; E, depois,
para uma donzela que passeia a estas horas, um punhal pode ser útil. Vamos, boa noite, formosa.
Como Angélica permanecesse calada, ele acrescentou:
— Você não diz boa noite?
Ela reuniu toda a coragem para murmurar:
— Boa noite.
Sobre as pedras sonoras ouviu distanciarem-se os grossos sapatos ferrados do policial Desgrez.
Depois, voltou a errar através de Paris.
CAPITULO V

O galã desconhecido do barco de feno

A alva encontrou-a na orla do Quartier Latin, perto da Rue des Bernardins. O céu começava a espargir
uma claridade rosa sobre os telhados dos negros colégios. Viam-se nas trapeiras os reflexos das velas
dos estudantes madrugadores. Angélica cruzava com outros que, bocejando, com os olhos turvos,
acabavam de deixar o bordel, onde a compassiva prostituta havia embalado durante algumas horas
aqueles rapazolas de aspecto lamentável. Eles roçavam por ela atirando-lhe uma palavra insolente.
Tinham voltas imundas, surradas vestimentas de sarja que cheiravam a tinta, e meias pretas que lhes
caíam sobre as magras panturrilhas.
Os sinos das capelas começavam a repicar.
Angélica titubeava de fadiga. Tinha os pés descalços, pois perdera ambos os sapatos. Seu rosto estava
congelado pela insensibilidade.
Ao chegar ao Quai de la Tournelle, sentiu o cheiro do feno fresco. O primeiro feno da primavera. As
chalanas ali estavam, atracadas em fila, com seu carregamento leve e odorífero. Na aurora parisiense,
elas expiravam um anélito de incenso morno, o aroma de mil flores secas, a promessa dos belos dias que
viriam.
Ela desceu ate a margem. A alguns passos, os embarcadiços aqueciam-se em volta de um fogo e não a
viram. Ela entrou na água e subiu para a proa de uma chalana. Depois, penetrou no feno com
voluptuosidade. Sob o toldo, o aroma era ainda mais embriagante: úmido, quente e carregado de
tormenta, como um dia estival. De onde poderia vir aquele feno temporão? De uma campina silenciosa e
rica, fecunda, batida pelo sol. Aquele feno fazia pensar em paisagens arejadas, secas pelo vento, de céus
cheios de luz, e também no mistério dos pequenos vales cerrados, que conservam o calor e com ele
alimentam a terra.
Angélica deitou-se, com os braços cruzados. Tinha os olhos fechados. Ela mergulhava, ela se afogava
no feno. Vogava sobre uma nuvem de perfumes intensos, e não mais sentia o corpo magoado.
Monteloup a envolvia, recebia-a em seu seio. O ar tinha reencontrado seu sabor de flores, seu gosto de
rosas. O vento a acariciava. Ela flutuava lentamente, rumo ao sol. Abandonava a noite e seus horrores. O
sol a afagava. Havia muito tempo que ela não era acarinhada assim.
Tinha sido presa do selvagem Calembredaine; tinha sido a companheira do lobo que, às vezes, durante
um breve amplexo, conseguia arrancar-lhe um grito de volúpia animal, um estertor de besta possuída.
Mas seu corpo esquecera a doçura de uma verdadeira carícia.
Ela vogava para Monteloup e reencontrava no feno o odor das framboesas. Sobre suas faces ardentes,
sobre seus lábios secos, a água do regato fazia chover carícias refrescantes. Ela abriu a boca e suspirou:
"De novo!"
Em seu sono, lágrimas corriam-lhe pelo rosto e perdiam-se nos seus cabelos. Não eram lágrimas de
dor, mas de muito grande doçura.
Ela se estirou, entregou-se toda a prazeres reencontrados.
Deixava-se ir, ninada pelas vozes murmurantes dos campos dos bosques, que lhe sussurravam ao
ouvido:
—Não chore... Não chore, minha amiga... Não é nada... sofrimento acabou... Não chore, pobrezinha.

Angélica abriu os olhos. Na penumbra do toldo distinguiu um vulto estendido perto dela, no feno.
Dois olhos risonhos a contemplavam. -
Ela balbuciou:
— Quem é você?
O desconhecido pôs um dedo sobre os lábios.
— Sou o vento. O vento de um pequeno recanto de campina do Berry. Quando segaram o feno,
segaram-me com...
Olha, é bem verdade que eu fui segado.
Ele se pôs rapidamente de joelhos e revirou os bolsos.
— Nem um soldo! Completamente ceifado. Com o feno. Meteram-me em uma chalana e eis-me aqui
em Paris. Divertida história para um pequeno vento de campina.
— Mas... — disse Angélica. E procurou coordenar seus pensamentos.
O rapaz estava vestido com um traje negro puído e mesmo furado em certos lugares. Usava em redor
do pescoço uma volta de pano em farrapos, e o cinto de seu casaco acentuava-lhe a magreza.
Mas ele tinha um rosto vivo, quase belo, malgrado sua cor pálida de esfomeado. Seus lábios largos e
finos pareciam feitos para falar sem cessar e rir de tudo e de nada. Suas feições nunca estavam em
repouso. Ele fazia caretas, ria, esboçava toda sorte de mímicas. A essa curiosa fisionomia, uma gaforina
de um louro de linho, com uma franja que lhe caía sobre os olhos, ajuntava um não-sei-quê de
ingenuidade camponesa, que a expressão astuta do olhar desmentia.
Enquanto Angélica o examinava, ele continuou a falar copiosamente:
— Que pode fazer um pequeno vento como eu em Paris?
Eu, que estou habituado a soprar nas sebes, soprarei nas saias das damas e receberei um sopapo...
Arrancarei os chapéus dos padres e serei excomungado. Entrarei nas torres de Notre-Dame e farei soar
os sinos em sentido contrário... Que escândalo!
— Mas... — repetiu Angélica, procurando levantar-se. Ele a conteve com gesto rápido.
— Não se mexa... Quietinha!
"E um estudante meio maluco", pensou ela. Ele se deitou de novo e, erguendo a mão, acariciou-lhe a
face, murmurando:
— Não chore mais.
— Eu não estou chorando — disse Angélica. Mas percebeu que tinha o rosto inundado de lágrimas.
— Eu também gosto de dormir no feno — continuou o outro. — Quando me introduzi na chalana, já a
encontrei aqui. Você chorava dormindo. Então eu a acarinhei, para consolá-la, e você me disse: "De
novo!"
— Eu?
— Sim. Eu enxuguei seu rosto e vi que você era muito bela. Seu nariz tem a delicadeza de uma dessas
conchinhas que a gente encontra na areia. Você sabe, essas conchinhas que são tão brancas e tão finas
que ;se diriam translúcidas. Seus lábios são pétalas de clematite. Seu pescoço é torneado.
Angélica escutava como que sonhando. Sim, na verdade, havia muito tempo que nenhuma boca lhe
falava assim. Aquilo parecia vir de muito longe, e ela receava que ele estivesse zombando. Como
poderia ele dizer que ela era bela, quando ela se sentia descorada, abatida, para sempre maculada por
aquela terrível noite, em que compreendera que não mais poderia olhar de frente as testemunhas do seu
passado?
Ele continuou a sussurrar:
— Suas espáduas são duas bolas de marfim. Seus seios não se comparam senão a si mesmos, tão belos
são. Eles são feitos na medida exata para caberem no côncavo da mão de um homem, e têm um pequeno
botão delicioso, como os que se vêem por toda parte, na natureza, quando chega a primavera. Suas coxas
são fuseladas e sedosas. Seu ventre é uma almofada de cetim branco, túmida e firme, onde faz bem re-
pousar a face.
— Eu gostaria muito de saber — disse Angélica, chocada — como você pode julgar tudo isso!
— Enquanto você dormia, eu a examinei inteiramente. Angélica sentou-se bruscamente no feno.
— Insolente! Estudante dissoluto! Arquissequaz do Diabo!
— Psiu! Mais baixo! Quer que os barqueiros venham jogar-nos à água?... Por que se zanga, formosa
dama? Quando encontramos uma jóia no caminho, não é razoável que a examinemos? Desejamos saber
se é de ouro fino,. se é verdadeiramente tão bela como parece; em resumo, se ela nos convém ou se é
preferível deixá-la onde estava. Um prín
cipe deve escolher com cuidado o objeto de suas paixões, pois o mundo o observa — sentenciou ele em
latim.
— É você o príncipe que o mundo observa? — interrogou Angélica sarcástica.
Ele franziu as pálpebras com súbito espanto.
— Você entende latim, pequena mendiga?
— Um mendigo como você fala-o bem...
O estudante, perplexo, mordeu o lábio inferior.
— Quem é você? — disse ele docemente. — Seus pés estão ensanguentados. Parece que teve de correr
muito tempo. Que foi que lhe fez medo?
E como ela não respondesse:
— Você tem uma faca aí... Uma arma terrível, um punhal de egípcio. Sabe servir-se dele?
Angélica olhou-o com malícia entre os cílios.
— Talvez!
— Ai! — interjecionou ele, afastando-se.
Tirou um talo do feno e pôs-se a mordiscá-lo. Seus olhos pálidos tornaram-se pensativos. Bem
depressa ela teve a impressão de que ele não mais pensava nela. Em que pensava então? Talvez nas
torres de Notre-Dame... Assim, imóvel e distante, seu rosto descorado parecia menos jovem. Ela des-
cobriu, no canto de suas pálpebras, aqueles estigmas com que a miséria ou a devassidão podem marcar
um homem na plena força da idade.
Além do mais, ele não era idoso. Seu corpo magro, metido em suas vestes muito amplas, parecia
imaterial. Ela temeu que ele desaparecesse como uma visão.
— Quem é você? — murmurou ela tocando-lhe o braço.
Ele voltou para ela uns olhos que não pareciam feitos para a luz.
— Já lhe disse: sou o vento. E você?
— Sou a brisa.
Ele pôs-se a rir e segurou-a pelos ombros.
— Que fazem o vento e a brisa quando se encontram?
Docemente, ele se inclinou sobre a jovem. Ela se encontrou de novo estendida no feno, tendo sobre a
própria, muito próxima, aquela boca longa e sensível. Havia uma pequena ruga na expressão daqueles
lábios que a intimidou sem que ela soubesse por quê. Uma prega irónica, um tanto cruel. Mas o olhar era
terno e risonho.
Ele permaneceu assim em suspenso, até que Angélica, magnetizada por aquela muda solicitação,
esboçou um movimento de entrega. Então ele se deitou a meio sobre ela e beijou-a.
Esse beijo durou muito tempo, o tempo de dez beijos que fossem interrompidos e reiniciados
lentamente.
Para os sentidos brutalizados de Angélica, aquilo foi uma renovação. Velhas delícias renasciam, bem
diferentes do prazer grosseiro que lhe proporcionara o antigo criado — com que ardor, no entanto! — e
aoxmal a tinha acostumado.
"Eu estava sempre muito fatigada", pensou ela, "e agora não estou mais. Meu corpo não mais me
parece triste e aviltado. Eu, então, não estou inteiramente morta..."
Mexeu-se um pouco no feno, feliz de encontrar no íntimo de seu ser o despertar de um desejo muito
sutil e que logo se tornaria lancinante.
O homem tinha-se erguido um pouco e, apoiado sobre um cotovelo, continuava a contemplá-la com
um leve sorriso.
Ela não mais estava impaciente, atenta somente ao calor que se lhe espraiava pelo corpo. Daí a pouco
ele voltou a acariciá-la. Tinham tempo de sobra.
— É curioso — murmurou ele —, você tem finuras de grande dama. Ninguém o diria, a julgar por
suas roupas em farrapos.
Ela teve um pequeno riso.
— Realmente? Você frequenta as grandes damas, messire de la basoche?
— Às vezes.
Ele fez-lhe cócegas na ponta do nariz com uma flor seca e explicou:
— Quando estou com a barriga muito vazia, vou alugar-me a Mestre Georges, nas estufas de São
Nicolau. E lá que elas vão, as grandes damas, em busca de um pouco de condimento para os seus amores
mundanos. Oh! Decerto eu não sou um bruto como Belo Rapaz, e os favores da minha pobre carcaça de
mal nutrido se pagam menos caro que os de um forte descarregador de barco, bem. felpudo, que fede a
cebola e a vinho negro. Mas eu tenho outros recursos. Sim, minha cara. Ninguém, em Paris, tem uma
seleção de histórias obscenas tão bem achadas como eu tenho. Minhas companheiras gostam muito disso
para ficarem em forma. Eu as faço rir, às belas prostitutas... As mulheres o que lhes falta, sobretudo, é a
pândega. Quer que eu lhe conte a história do martelo e da bigorna?
— Oh! Não — disse vivamente Angélica —, eu lhe peço, eu não gosto desse género de histórias.
Ele pareceu comovido.
— Você é um amor de criatura! Já encontrei grandes damas que pareciam prostitutas, mas nunca
prostitutas que parecessem grandes damas. Você é a primeira... Você é tão bela que parece um sonho...
Escute, você ouve o carrilhão da Samaritana, no Pont Neuf?... É quase meio-dia. Quer ir comigo ao Pont
Neuf?... Furtaremos algumas maçãs para o nosso almoço. E também um buque de flores no qual você
esconderá sua carinha... Ouviremos a propaganda bombástica do Grande Mateus e veremos o
sanfonineiro fazer dançar sua marmota... E troçaremos do guarda que procura prender-me.
— Por que querem prendê-lo?
— Mas... você não sabe então que sempre querem prender-me? — respondeu ele com espanto.
"Decididamente ele é um pouco doido, mas é engraçado", pensou Angélica.
Ele se estirou. Ela desejava muito que ele voltasse a acariciá-la. No entanto, ele parecia pensar em
outra coisa.
— Agora eu me lembro — disse ele de repente —, eu já a vi no Pont Neuf. Será que você não pertence
ao bando de Calembredaine, o ilustre libertino?
— Sim, é verdade, pertenço a Calembredaine.
Ele recuou com uma expressão de terror cómico.
— Ai! Ai! Onde me meti, incorrigível galanteador que eu sou! Não será você, porventura, essa
Marquesa dos Anjos de quem o nosso libertino é tão furiosamente ciumento?
— Sou, sim, mas...
— Veja até onde vai a inconsciência das mulheres! — exclamou ele, dramático. — Será que você não
vai contar-lhe tudo, miserável? Quer então ver correr o triste sangue de nabo que eu carrego nas veias?
Ai! Ai! Calembredaine! Não era a minha oportunidade! Encontrei a mulher da minha vida, e é preciso
que ela seja de Calembredaine!... Mas não importa! A mais adorável das amantes ainda é a própria vida.
Adeus, minha bela!
Apanhou um velho chapéu de fundo cónico, semelhante aos que usavam os mestres-escolas, e,
cobrindo sua trunfa loura, deslizou para fora do toldo.
— Seja gentil — cochichou ele ainda, com um sorriso —, não fale de minha ousadia ao seu homem...
Sim, vejo que você nada dirá. Você é um amor,Marquesa dos Anjos... Pensarei em você até o dia em
que' me prenderem... e mesmo depois... Adeus!
Ela ouviu-o patinhar nas proximidades da embarcação. Viu-o depois ao sol, correndo pela margem.
Todo vestido de negro, com seu chapéu pontudo, suas magras panturrilhas, seu casaco furado flutuando
ao vento, ele parecia um estranho pássaro.
Marinheiros que o tinham visto saindo da chalana jogaram-lhe pedras. O rapaz voltou para eles seu
rosto extremamente pálido e soltou uma gargalhada. Após o quê, desapareceu subitamente, como num
sonho.

CAPITULO VI

Passeio no Pont Neuf

Aquela aparição fantástica serenou Angélica e empurrou para o último plano de seu pensamento a
lembrança do amargo encontro que tivera com Desgrez.
Era melhor não pensar mais nisso. A jovem sacudiu a cabeça e passou a mão nos cabelos para limpá-
los dos fragmentos de erva seca. No momento, não era preciso quebrar o encanto daquela hora. Suspirou
com leve pesar. Estivera verdadeiramente a ponto de enganar Nicolau?
A Marquesa dos Anjos encolheu as espáduas e teve um risinho malicioso. Não se engana um amante
dessa espécie. Nada a ligava a Nicolau, a não ser a escravidão da miséria.
Pelo instantâneo movimento de recuo do rapaz, ela mediu mais uma vez o poder da proteção de que a
cercara o bandido. Sem ele e sem seu amor exclusivo não teria ela descido mais ainda?
Em compensação, ela lhe entregara seu corpo, legado nobre de sua alta linhagem, com o qual ele
sempre sonhara.
Estavam quites. Ela não teria nenhum escrúpulo em desfrutar com outro os prazeres mais doces, cujo
sabor esquecera. Mas o outro tinha fugido, e fora melhor assim. Ela não suportaria saber que a faca de
Calembredaine havia reduzido ao silêncio aquele brilhante tagarela.
Esperou um momento antes de se retirar, por seu turno, da embarcação. Ao tocar a água, achou-a fria,
mas não gelada, e, olhando em volta de si, foi ofuscada pela luz e compreendeu que era chegada a
primavera.
O estudante não falara de flores e de frutos no Pont Neuf? Angélica descobriu, como sob um golpe de
varinha mágica, o desabrochar da suave estação.
O céu enevoado apresentava um tom róseo, e o Sena tinha sua couraça prateada. Por sua superfície
lisa e calma passavam os barcos. Ouviam-se as pancadas dos remos na água. Mais abaixo, as pás das
lavadeiras respondiam ao tique-taque dos barcos-moinhos.
Ocultando-se ao olhar dos marinheiros, Angélica lavou-se na água fria, que lhe fustigou
agradavelmente o sangue. Depois, tendo tornado a vestir-se, seguiu pela margem e alcançou o Pont
Neuf.
As palavras do desconhecido haviam despertado o espírito de Angélica, entorpecido pelo inverno.
Pela primeira vez, ela viu o Pont Neuf em seu esplendor, com seus belos arcos brancos e sua vida
espontânea, alegre, infatigável.
Era a mais bela ponte de Paris, e também a preferida, porque somente ela ligava pelo caminho mais
curto as duas margens do Sena com a ilha da Cite.
Um clamor ininterrupto se elevava dali, no qual se mesclavam os gritos dos biscateiros, as exortações
dos empíricos e dos arrancadores de dentes, o refrão das canções, o carrilhão da Samaritana, as
lamentações dos mendigos.
Angélica se pôs a caminhar entre as fileiras de lojas e de barracas. Estava descalça. Seu vestido estava
rasgado. Perdera a touca e seus longos cabelos caíam-lhe sobre as espáduas. Mas isso não tinha
importância. No Pont Neuf, os pés descalços misturavam-se com os grossos sapatos dos artesãos e com
os tacões vermelhos dos senhores.
Ela parou diante do reservatório da Samaritana para olhar o "industrioso relógio" que marcava não
somente as horas, mas também os dias e os meses, e punha em movimento um carrilhão que seu
construtor, como flamengo que era, tivera o cuidado de não omitir.
Na fachada dessa bomba monumental, que fornecia água ao Louvre e às Tulherias, havia um baixo-
relevo que representava a cena do Evangelho em que a Samaritana mata a sede a Jesus, perto do poço de
Jacó.
Angélica parou diante de cada loja, diante do brinquinhei-ro, do vendedor de aves, do passarinheiro,
do mercador de jogos e de bilboquês, do vendedor de tinta e de cores, do exi-bidor de marionetes, do
tosador de cães, do pelotiqueiro. Viu Pão Negro e suas conchas, Veneno de Rato e sua velha espada com
a triste caça, e também o casal Hurlurette e Hurlu-rot, na esquina da Samaritana.
No meio de um círculo de basbaques, o velho cego zan-garreava sua rabeca e a megera berrava um
romance sentimental, em que havia enforcados, cadáveres cujos olhos os corvos comiam e toda sorte de
horrores, que as pessoas escutavam abaixando a cabeça e enxugando os olhos. Os enforcamentos e as
procissões eram os bons espetaculos da gentalha de Paris, espetaculos que não custavam muito caro e
em que se sentia, profundamente, que se tinha um corpo e uma alma.
Hurlurette soltava sua cantilena com grande convicção:
" — Escutem todos a minha arenga!
Quando eu for
A Abadia de Monte-à-Regret,
Por vocês rezarei
Pondo a língua pra fora".

Via-se até o fundo de sua boca desdentada. Uma lágrima corria de seu único olho e se perdia em suas
rugas. Ela era espantosa, admirável...
Quando terminava sua canção com um tremolo, molhava o grande polegar e começava a distribuir
folhetos, dos quais carregava uma pilha debaixo do braço, gritando:
— Quem não tem seu enforcado?
Chegando perto de Angélica, deu um grito de alegria.
— Ei, Hurlurot, eis a menina! Você não sabe a serenata que seu homem nos fez hoje! Ele disse que o
maldito cão a havia estrangulado. Ele fala de fazer correr sobre o Châtelet todos os mendigos e todos os
aleijados de Paris. E a marquesa a passear pelo Pont Neuf!
— E por que não? — protestou Angélica, com altivez. — Também vocês não passeiam?
— Mas eu trabalho — disse a velha, azafamada. — Esta canção, você não pode saber o que ela rende.
Eu digo sempre ao Poeta Pobre: "Dê-me enforcados''. Nada rende mais do que os enforcados. Tome,
quer um? É de graça, porque você é a nossa marquesa.
— Haverá chouriço para você esta noite na Tour de Nesle — prometeu Angélica.
E arastou-se entre os basbaques, lendo seu pequeno papel:
"Escutem todos a minha arenga!
Quando eu for
A Abadia de Monte-à-Regret,
Por vocês rezarei,
Pondo a língua pra fora".

No canto, ao pé dá página, havia uma assinatura que ela já conhecia: Poeta Pobre. Uma amarga
lembrança de ódio subiu ao coração de Angélica. Ela olhou para o lado do cavalo de bronze, no
terrapleno. Era lá, haviam-lhe dito, entre as patas do cavalo, que o poeta do Pont Neuf às vezes subia
para dormir. Os ladrões respeitavam seu sono. Aliás, ele não tinha nada que lhe pudessem roubar. Era
mais pobre que o mais pobre dos mendigos, sempre errante, sempre faminto, sempre perseguido e
sempre a lançar o escândalo como um jato de peçonha através de Paris.
"Como não houve até agora quem o matasse?", pensou Angélica. "Eu o mataria, se o encontrasse. Mas
gostaria de dizer-lhe antes por quê..."
Amassou o papel e atirou-o na vala. Passou um coche, precedido de seus corredores, que saltavam
como esquilos. Com suas librés de seda e as plumas de seus chapéus, eles eram magníficos.
A turba procurava descobrir quem ia na carruagem. Angélica observou os corredores e pensou em Pé
Ligeiro, cujo coração estourara de tanto correr.
O bom rei de bronze Henrique IV cintilava ao sol e sorria por sobre um canteiro de guarda-sóis
vermelhos e rosa. O
terrapleno era ocupado pelos vendedores de laranjas e de flores. Um grande pregão anunciava os
frutos dourados:
— Portugal! Portugal!
As floristas do Pont Neuf iam instalar-se ali de madrugada. Desciam da Rue de la Bouqueterie, perto
de Saint-Julien-le-Pauvre, onde se achava a sede de sua corporação, ou da Rue de l'Arbre-Sec, onde elas
se abasteciam nos jardins dos Irmãos Provençais.
Carregando suas corbelhas de tuberosas, de rosas e de jasmins, as mais jovens misturavam-se à
multidão, enquanto as mais idosas tomavam conta de um açafate fixo, abrigado por um guarda-sol
vermelho.
Uma dessas floristas admitiu Angélica para ajudá-la a fazer buques e, como ela trabalhasse com gosto,
deu-lhe vinte soldos.
— Você tem cara de muita idade para ser aprendiz — disse-lhe ela, após tê-la examinado. — Mas uma
garota levaria dois anos para aprender a fazer buques como você. Se quiser trabalhar comigo, poderemos
entender-nos.
Angélica sacudiu a cabeça negativamente, apertou na mão os vinte soldos e afastou-se. Várias vezes
seguidas ela olhou as poucas moedas que lhe havia dado a florista. Era o primeiro dinheiro que ganhava.
Foi comprar dois filhoses e os devorou, misturando-se aos basbaques que riam destampadamente
diante do carro do Grande Mateus.

Esplêndido, o Grande Mateus! Estava instalado bem defronte do Rei Henrique IV, de quem não temia
nem o sorriso nem a majestade.
De pé sobre seu carro-plataforma de quatro rodas, cercado de uma balaustrada, ele arengava com voz
tonitruante à turba que se estendia de um ao outro extremo do Pont Neuf.
Sua orquestra particular, composta de três músicos — um trombeteiro, um tamborileiro e um tocador
de címbalo —, marcava seus discursos e cobria com um barulho aturdidor as queixas dos clientes cujos
dentes ele arrancava.
Entusiasta, perseverante, prodigioso de vigor e de habilidade, o Grande Mateus triunfava sobre os
dentes mais tenazes, ainda que tivesse de fazer ajoelhar o paciente e levantá-lo na ponta da torquês.
Depois disso, ele mandava sua vítima arquejante lavar a boca no vendedor de aguardente.
Entre os dois clientes, o Grande Mateus, com a pluma do chapéu ao vento, seu duplo colar de dentes
em exposição sobre a casaca de cetim, o grande sabre batendo-lhe nos tacões, ia de um extremo ao outro
da plataforma glorificando sua alta ciência e a excelência de suas drogas, pos, eletuários e unguentos de
toda sorte, preparados em fogo lento com grande quantidade de manteiga, azeite, cera e algumas ervas
inocentes.

— Têm diante de vocês, senhoras e senhores, a maior personagem do mundo, um virtuoso, uma fénix
na sua profissão, o protótipo da medicina, o sucessor de Hipócrates em linha reta, o perscrutador da
natureza, o flagelo de todas as faculdades; vêem aqui um médico metódico, galênico, hipo-crático,
patológico, químico, espagírico, empírico. Eu curo os soldados por cortesia, os pobres pelo amor de
Deus e os ricos mercadores pdr dinheiro. Não sou nem doutor nem filósofo, mas meu unguento faz tanto
quanto os filósofos e os doutores. A experiência vale mais que a ciência. Tenho ali uma pomada para
branquear a pele: é alva como a neve, odorífera como bálsamo e como algalia... Tenho ali também um
unguento de valor inestimável, pois esse unguento, escutem-me bem, homens galantes e mulheres
galantes, preserva aqueles e aquelas que o usam dos traiçoeiros espinhos do roseiral dos amores.
E, levantando os braços com lirismo:
" — Venham, senhores, acorram para comprar
Q grande remédio para todos os males.
E um pó admirável
Que dá espírito aos tolos,
Honra aos gatunos,
Inocência aos culpados,
Amante às velhas mulheres,
Uma jovem amante aos velhos amorosos
E ciência aos ignorantes..."

Esta última tirada, que ele declamava revirando os olhos enormes, fez Angélica soltar uma gargalhada.
Ele o percebeu e dirigiu-lhe um sinal amistoso.
"Eu ri. Por que ri?", pensou Angélica. "É completamente idiota o que ele diz."
Mas ela estava com vontade de rir.
Um pouco mais longe, sobre um pequeno estrado, um velho bonachão com perna de pau procurava
atrair a atenção dos transeuntes.
— Venham ver o homem vermelho. O mais curioso fenômeno da natureza. Vocês se julgam muito
sábios porque viram alguns homens de pele negra. Mas que coisa mais banal existe doravante que esses
marroquinos de que o grão-turco nos inunda? Porém, eu lhes mostrarei o homem des
conhecido do mundo desconhecido: refiro-me às Américas, terra prodigiosa, de onde eu próprio acabo
de chegar...
A palavra "América" reteve Angélica perto do estrado.
O saltimbanco de perna de pau era um velho homem mal barbeado e tinha a cabeça coberta por um
lenço vermelho. Não parecia ter o cuidado de se enfeitar, como os outros exibidores ou empíricos do
Pont Neuf, com ouropéis rutilantes. Sua camisa imunda, com listras vermelhas e brancas, seu colete
remendado, sua voz tremula não prendiam muito os espectadores. Ostentava em uma das orelhas uma
pequena argola de ouro.
— Eu, que sou um velho marujo e que viajei e viajei sem cessar nos navios do rei, o que não poderia
dizer-lhes dessas regiões desconhecidas? Mas vocês estão apressados, senhoras e senhores, bem o vejo.
Também eu não trouxe senão lembranças e este curioso fenómeno que eu próprio capturei, lá longe, nas
Américas.
Apontou com uma vara uma espécie de guarita fechada com cortina e que era todo o arsenal de sua
demonstração.
— O homem vermelho, senhoras e senhores, o homem vermelho!
Angélica atirou numa escudela colocada diante do estrado alguns soldos que lhe restavam. Outros
basbaques a imitaram.
Quando o inválido achou que o círculo de espectadores era suficiente, puxou a cortina com um gesto
teatral.
No fundo da guarita, havia uma estátua que se diria de terracota e cuja cabeça e rins estavam cobertos
de penas.
A estátua mexeu-se e avançou alguns passos ao sol. Houve um sussurro entre os assistentes. Não havia
dúvida: era um homem. Tinha nariz, boca, orelhas guarnecidas de argolas, compridos olhos que fixavam
sobre a multidão um olhar distante, mãos e pés. Sua pele tinha um tom bastante acobreado, mas não
muito mais — achavam os espectadores — do que a tez de certos montanheses espanhóis ou italianos.
Em suma, à parte aquelas penas quelrazia nos rins e na cabeça, o homem de pele vermelha não era tão
extraordinário.
Depois de havê-lo contemplado bem e trocado seus comentários, as pessoas se afastaram, e o velho
marinheiro reintroduziu o fenómeno em sua guarita. Em seguida, começou a ralar um pouco de fumo e
fez com ele uma bolinha que se pôs a mascar.

Angélica tinha ficado perto do estrado. O vento que soprava do Sena e revolvia seus cabelos fortalecia
a ilusão do mar alto, que acabava<le fazer surgir estas palavras: as Américas. Ela pensou em seu irmão
Josselino, reviu-o pousando sobre ela seu olhar brilhante e selvagem enquanto murmurava: "Quanto a
mim, vou para o mar".
O Pastor Rochefort tinha vindo uma tarde, sentara-se ao lado do fogão dos filhos de Sancé, e estes o
haviam cercado, abrindo os olhos maravilhados. Josselino... Raimundo... Hortênsia... Gontran...
Angélica... Madelon... Dionísio... Maria Inês... Como eram belos os filhos de Sancé, em sua inocência e
ignorância de seus destinos! Eles escutavam o estrangeiro, cujas palavras haviam excitado seus
corações:
— Quanto a mim, sou apenas um viajante curioso de ver terras novas, ávido de conhecer esses lugares
onde ninguém tem fome nem sede e onde o homem se sente livre. Foi ali que eu compreendi que todo o
mal provém dos homens de raça branca, que não atenderam à palavra do Senhor, mas a desviaram de seu
verdadeiro sentido. Porque o Senhor não mandou matar nem destruir, mas que se amassem uns aos
outros.
Angélica fechou os olhos. Ao reabri-los, viu a alguns passos, no bulício do Pont Neuf, Jactância,
Grande Saco, Peô-nia, Gobert, Belo Rapaz e os outros, que a olhavam.
— Maninha — disse Peônia, segurando-lhe o braço —, vou acender uma vela diante do Padre Eterno
em Saint-Pierre-aux-Boeufs. Chegamos a pensar que nunca mais a veríamos!
— O Châtelet ou o Hospital Geral eram as alternativas para você.
— A menos que tivesse sido trincada pelo cão maldito.
— Gazua e Prudente deixaram-se prender. Foram enforcados esta manha na Place de Greve.
Eles a rodearam e foi assim que ela reencontrou aquelas faces sinistras, aquelas vozes roucas de ébrios
contumazes e também as cadeias do círculo da matterie, cadeias que não podiam romper-se em um dia.
No entanto, depois daquele a que ela chamaria "o dia do barco de feno" ou "o dia do Pont Neuf", houve
nela um raio de esperança. Ela não sabia por quê. Não se sobe dos bas-fonds tão rapidamente quanto se
desce a eles.
— Vamos divertir-nos, minha bela — disse Peônia. — Sabe por que passeávamos em pleno dia no
Pont Neuf? É por
que o pequeno Flipot vai fazer seu exame de rapa-bolsas.
Flipot, um dos garotos da Tour de Nesle, tinha trocado, para a ocasião, seus andrajos por um costume
de sarja violeta e grossos sapatos que o incomodavam. Tinha mesmo posto uma gola branca pregueada
e, com um saco de pelúcia em que aparentava carregar seus livros e suas penas, parecia muito bem um
filho de artesão fazendo gazeta no Pont Neuf, diante do teatro de marionetes.
Jactância fez-lhe as últimas recomendações:
— Escute, pequeno. Não se trata somente de roubar uma bolsa, como você já tem feito... Queremos
saber se você é capaz de esquivar-se em uma confusão e trazer o bocado. Compreendeu?
— Gy — respondeu Flipot em gíria. — Sim.
Depois, fungou nervosamente e passou várias vezes a manga no nariz. Os companheiros examinavam
com cuidado os transeuntes.
— Vejamos, eis um belo senhor que só tem olhos para a sua bonita dama e que vem a pé... É uma
oportunidade! Viu o ja
nota que se aproxima, Flipot? Pararam diante do Grande Mateus. E o momento! Pegue suas tesouras, e vá
lá, para a vindima.
Com gesto solene, Jactância passou ao garoto uma grossa tesoura cuidadosamente amolada e
empurrou-o para o meio da multidão. Seus cúmplices já se tinham infiltrado entre os espectadores do
Grande Mateus.
O olho experiente de Jactância seguia com atenção os movimentos de seu aprendiz. De repente, pôs-se
a gritar:
— Cuidado, senhor! Senhor! Ei! Estão roubando sua bolsa, senhor!...
Alguns passantes olharam na direção que ele indicava e puseram-se a correr. Peônia bradava:
— Distinto, cuidado. Um guri o alivia!
O gentil-homem levou a mão à bolsa e encontrou a mão de Flipot.
— Rapa-bolsas! — berrou ele.
Sua companheira soltou um grito estridente.
O pandemônio foi imediato e total. Pessoas gritavam, batiam, engalfinhavam-se, enquanto os sequazes
de Calembre-
daine aumentavam o tumulto, com seus gritos e suas exclamações.
— Segurei-o!
— É ele!
— Agarrem-no! Escapou!
— Está ali!
— Está aqui!
As crianças, espremidas, choravam. Mulheres desfaleciam. Lojas foram destruídas. Guarda-sóis
vermelhos voaram para dentro do Sena. A fim de se defender, os vendedores de frutas puseram-se a
jogar maçãs e laranjas.
Os animais do tosador de cães, assustados, passavam entre as pernas, como bolas de pêlos cerrados,
ganindo e babando.
Belo Rapaz ia de uma mulher a outra: enlaçava as burguesas pela cintura, beijando-as e acariciando-as
da mais audaciosa forma, sob os olhos espantados dos maridos, que em vão procuravam dar-lhe com a
bengala. Os golpes atingiam outros, que se vingavam arrancando as perucas dos maridos ultrajados.
No meio daquele turbilhão, Jactânciaeseus cúmplices roubavam as bolsas, esvaziavam as algibeiras,
arrebatavam os casacos, enquanto o Grande Mateus, do alto de seu carro, ao som da furiosa, brandia o
sabre, berrando:
— Vão lá, rapazes! Mexam-se! É bom para a saúde!
Angélica se tinha refugiado sobre os degraus do terrapleno, de onde dominava o espetáculo.
Firmando-se nas grades, ela ria a ponto de lhe correrem lágrimas. O dia terminava muito bem. Era
exatamente aquilo que lhe faltava para satisfazer seu desejo de rir e de chorar, que a atormentava desde
que acordara no barco de feno, sob as carícias do desconhecido.
Ela distinguiu Hurlurot e Hurlurette agarrados um ao outro, flutuando na vaga da batalha, como
enorme bóia de trapos sujos.
Seu/iso redobrou. Ela sentia-se sufocar.
— É assim tão divertido, garota? — resmungou uma voz
lenta atrás dela.
E uma mão segurou-lhe o pulso. "Um guarda — isso não se reconhece; sente-se", dissera Peônia.
Desde aquela noite, Angélica aprendera a farejar de onde vinha o perigo. Ela continuou a rir, mas
moderadamente, e afetou um ar de inocência.
— Sim, é divertido, essas pessoas a lutarem sem saber por quê.
— E você, você talvez o saiba, hem?...
Angélica inclinou-se com um sorriso para o rosto do policial. De repente, com mão vigorosa, segurou-
lhe o nariz, torceu-lhe a cartilagem nasal, e como, sob o efeito da dor, ele deitasse a cabeça para trás, ela
deu-lhe um golpe com a borda externa da mão no saliente gogó.
Fora-lhe ensinado pela Polaca. Não era bastante rude para atordoar um policial, mas suficiente para
fazê-lo soltar a presa.
Libertada, Angélica fugiu, saltando como uma gazela.
Na Tour de Nesle, cada qual regressava de seu lado.
— Podemos contar nossos despojos — disse Jactância. — Mas que vindima, meus amigos, que
vindima!
E sobre a mesa caíam os casacos, as espadas, as jóias, as bolsas sonantes.
O pequeno Flipot, coberto de equimoses, tinha trazido a bolsa do gentil-homem que lhe haviam
indicado.
Foi festejado e comeu, entre os veteranos, à mesa de Calembredaine.

CAPITULO VII

O sonho das Américas

— Angélica — murmurou Nicolau —, Angélica, se eti não a houvesse reencontrado...


— Que aconteceria?
— Não sei...
Ele a puxou e apertou-a contra o peito possante.
— Oh! Por favor! — suspirou ela desprendendo-se.
Apoiou a fronte contra as barras da seteira. As estrelas do céu, de um azul profundo, eram refletidas na
água calma do Sena. O ar estava impregnado do odor das amendoeiras que floresciam nos jardins e
pomares do Faubourg Saint-Germain. Nicolau aproximou-se de Angélica e continuou a devorá-la com
os olhos. Ela ficou comovida pela intensidade daquela paixão que não esmorecia.
— Que faria você se eu não tivesse voltado?
— Depende. Se você tivesse sido aprisionada pelos guardas, eu poria em movimento todos os meus
esbirros. Vasculharíamos as prisões, os hospitais, as cadeias de mulheres. Fá-la-íamos evadir. Se o cão a
houvesse estrangulado, eu buscaria por toda parte o cão e seu dono para matá-los... Enfim, se...
Sua voz tornou-se rouca.
— Se você tivesse partido com outro... eu a reencontraria e, quanto ao outro, eu o sangraria.
Ela sorriu, lembrando-se de certa face pálida e zombeteira. Mas Nicolau era mais arguto do que ela
pensava, e o amor aguçava-lhe o instinto.
— Não creio que você possa escapar-me facilmente — tornou ele em tom de ameaça. — Na
mendicância, não se trai como na alta roda. Mas, se alguém o faz, é morto. Não haveria refúgio para
você em nenhum lugar... Nós somos muito numerosos, muito poderosos. Buscá-la-íamos por toda parte,
nas igrejas, nos conventos e até no palácio do rei... Somos bem organizados, você sabe. Eu, no fundo,
gosto de organizar batalhas.
Tirou o casaco em frangalhos e mostrou um pequeno sinal perto do mamilo esquerdo.
— Está vendo isto? Minha mãe sempre me dizia: "É a marca de seu pai!" Porque meu pai não era
aquele gordo camponês Merlot. Não. Minha mãe teve-me antes, com um militar, um oficial, pessoa de
qualidade. Ela nunca me disse o nome dele, mas, às vezes, quando papai Merlot queria bater-me, ela
gritava-lhe: "Não toque no primogénito, ele tem sangue nobre!" Você ignorava este detalhe, não é?
— Bastardo de soldado! É mesmo para se orgulhar! — disse ela desdenhosa.
Ele esmagou-lhe os ombros entre as mãos possantes.
— Há momentos em que tenho vontade de esmigalhá-la como a uma avelã. Mas, agora, você já está
prevenida. Se um dia me enganar... Se dormir com outro...
— Não tenha receio. Seus braços são mais que suficientes para mim. Por que diz isso com ar
malicioso?
— Porque seria preciso ser dotada de um temperamento excepcional para pedir mais. Se você pudesse
ser um pouco mais delicado...!
— E eu não sou delicado? — rugiu ele. — Eu, que a adoro! Repita que eu não sou delicado.
Levantou um punho maciço. Ela gritou-lhe com voz estridente:
— Não me toque, miserável! Bruto! Lembre-se da Polaca!
Ele arriou o braço. Por fim, depois de contemplá-la som briamente, soltou um suspiro.
— Perdoe-me, Angélica. Você é sempre a mais forte. Teve um sorriso, estendeu-lhe os braços com ar
canhestro.
— Deite-se. Vou procurar ser delicado.
Ela se deixou tombar sobre o catre e, indiferente, passiva, ofereceu-se ao amplexo tornado familiar.
Quando ele ficou satisfeito, ainda permaneceu por muito tempo aconchegado à mulher. Ela sentia
sobre a face a rude escova dos cabelos de Nicolau, que ele cortava muito curto por causa da peruca.
Ele disse, afinal, com voz surda:
— Agora eu sei... Você nunca será minha. Porque não é somente isto o que eu quero. É o seu coração.
— Não se pode ter tudo, meu pobre Nicolau — filosofou Angélica. — Antigamente, você tinha uma
parte do meu coração, agora tem o meu corpo inteiro. Antigamente, você era meu amigo Nicolau, agora
é meu dono Calembredaine. Matou até a lembrança do afeto que eu lhe dedicava quando éramos
crianças. Em todo caso, sou sua, de qualquer maneira, porque você é forte.
O homem impacientou-se. Resmungou e suspirou de novo:
— Fico pensando s& não serei obrigado a matá-la qualquer dia.
Ela bocejou, procurando dormir.
— Não diga tolices.
Pela janela, as estrelas refletiam-se nos vidros dos espelhos roubados. A melopeia dos sapos, ao pé da
torre, não cessava.
— Nicolau — disse de repente Angélica.
— Que é?
— Lembra-se de que desejávamos partir para as Américas?
— Lembro.
— Pois bem, e se partíssemos agora de verdade?
— Para onde?
— Para as Américas.
— Você está louca!
— Não estou, garanto-lhe... Um país onde ninguém tem frio', nem fome... onde todos são livres.
Ela insistiu.
— Que nos espera aqui? A você não pode ser senão o cárcere, a tortura, as galeras ou o patíbulo'. A
mim... a mim que nada mais tenho, que me espera, se você desaparecer?
— No Pátio dos Milagres, nunca é preciso pensar no que nos espera. Não existe amanhã.
— Lá longe, nós poderíamos, talvez, ter terras novas por nada. Cultivá-las-íamos... Eu o ajudaria.
— Você está louca! — repetiu ele em novo acesso de cólera. — Acabo de lhe explicar que não
descendo de um joão-ninguém. E você acredita que vou desertar, deixando a Rodoguno, o Egípcio, a
clientela da feira de Saint-Germain?
Ela não respondeu e recaiu em sua passividade. Ele grunhiu ainda alguns instantes.
— Essas mulheres, quando metem uma ideia na cachola!...
Furioso, ele se revirava e não se acalmava. Uma voz dentro dele repetia: "Que lhe espera? O cárcere, o
patíbulo? Sim. E depois? Mas pode-se viver em alguma parte que não seja Paris?..."
Na noite primaveril, o vasto peito de Nicolau Calembre-dainé estava cheio de suspiros abafados.
Angélica dormia e ele a olhava, transtornado pelo ciúme. Esteve prestes a acordá-la, porque ela sorria.
Estava sonhando que ia sobre o mar, em um barco de feno.

CAPÍTULO –VIII

João Podre, mercador de crianças

Numa tarde de verão, João Podre entrou no covil de Ca-lembredaine, na Tour de Nesle. Vinha ver
uma mulher chamada Fanny Poedeira e que tinha dez filhos que ela alugava, alternadamente, a uns e
outros. Havia-se estabelecido com essa sinecura, só se entregando à mendicância por passatempo e à
prostituição por hábito, o que, afinal de contas, não prejudicava suas qualidades de procriadora — antes
pelo contrário.
João Podre vinha "reservar" uma criança que ela esperava. Fanny o advertiu, como boa comerciante:
— Você vai pagar mais caro, pois ele terá um pé deformado.
— Como o sabe?
— Quem o fez era aleijado.
— Ah, ah, ah! — escarneceu a Polaca com um grande riso. — Você tem sorte em saber como era
aquele que a emprenhou. Está certa de que não confundiu?
— Eu posso escolher — respondeu a outra com dignidade.
E pôs-se a fiar uma roca de lã suja. Era uma mulher ativa e que não gostava de estar desocupada.
O macaquinho Piccolo saltou sobre a espádua de João Podre e arrancou-lhe com vivacidade um
punhado de cabelos.
— Animal horrível! — gritou o homem, defendendo-se com seu chapéu.
Angélica estava bastante contente por essa iniciativa de seu favorito. Este não escondia a repulsa que
lhe inspirava o algoz de crianças. Mas, como João Podre era indivíduo temível e estimado do Grande
Coêsre, cujo covil compartilhava, ela chamou o animalzinho.
João Podre esfregava o crânio, resmungando injúrias. Ele já tinha dado a conhecer ao Grande Coésre:
a gente de Calembredaine era insolente e perigosa. Acreditavam-se os senhores. Mas chegaria um dia
em que os outros bandidos se revoltariam. Nesse dia...
— Venha beber um trago — disse-lhe a Polaca para acalmá-lo.
Ela serviu-lhe uma concha cheia de vinho fervente. João Podre sempre sentia frio, mesmo no auge do
verão. Devia trazer nas veias sangue de peixe. Ele tinha, aliás, olhos glaucos, a pele úmida e viscosa de
um peixe.
Quando ele acabou de beber, um sorriso horrível entreabriu-lhe os lábios sobre uma fileira de dentes
estragados.
Thibault, o Sanfonineiro, chegava da rua, seguido do pequeno Linot.
— Ah! Que bonito menino — disse João Podre, esfregando as mãos. — Desta vez, Thibault, está
decidido, eu fico com ele e lhe darei, preste bem atenção, lhe darei cinquenta libras: uma fortuna.
O velho lançou um olhar embaraçado pela abertura do chapéu de palha.
— Que quer que eu faça com cinquenta libras? Depois, quem baterá meu tambor quando ele for
embora?
— Você arranjará outro garoto.
— Este é meu neto.
— Então não quer a sua felicidade? — disse o horrível João Podre, com um sorriso astuto. — Pensa
que seu neto será vestido de veludo e rendas. Não estou mentindo, Thibault. Sei a quem vou vendê-lo.
Ele será o favorito de um príncipe e, mais tarde, se for hábil, poderá ascender às mais altas posições.
João Podre afagou os anéis castanhos do menino.
— Não lhe agradará, Linot, ter belas roupas, comer até se fartar, em prato de ouro, mastigar confeitos?
— Não sei — respondeu o menino, fazendo tromba.
Ele não tinha ideia de semelhantes delícias, pois jamais conhecera senão a miséria no rasto de seu avô.
Um raio de sol enxofrado, insinuando-se pela porta entreaberta, iluminou-lhe a pele dourada. Tinha
longos cílios espessos, olhos negros e grandes, lábios rubros como cerejas. Usava com graça os seus
farrapos. Dava a impressão de um pequeno nobre fantasiado em um baile de máscaras e parecia
surpreendente que tal flor tivesse podido crescer em semelhante esterqueira.
— Vamos! Vamos! Nós dois nos entenderemos muito bem— disse João Podre.
E passou a mão branca em volta dos ombros do menino.
— Vem, meu lindo, vem, meu cordeiro.
— Mas eu não estou de acordo! — protestou o sanfonineiro, que começou a tremer. — Você não tem
o direito de tomar o meu neto.
— Eu não o tomarei; quero comprá-lo. Cinquenta libras! Não acha que é um preço justo? Portanto,
fica tranquilo. Senão, nada terá.
Ele arredou o sanfonineiro e caminhou para a porta puxando Linot. Diante da porta, encontrou
Angélica.
— Você não pode levá-lo sem autorização de Calembredaine — disse ela com muita calma.
E, tomando a mão do menino, reconduziu-o à sala.
A cor de sebo do mercador de crianças não podia empalidecer-se mais. João Podre ficou sufocado por
alguns segundos.
— Essa agora! Essa agora! E, puxando um escabelo:
— Está bem, eu esperarei Calembredaine.
— Pode esperá-lo — disse a Polaca. — Mas, se ela se opuser, você não terá o pequeno. Ele faz tudo o
que ela quer —concluiu, com um misto de ressentimento e admiração.

Calembredaine, seguido de seus homens, só regressou à noite. Antes de mais nada, pediu de beber.
Depois falariam de negócios.
Enquanto ele se dessedentava copiosamente, bateram à porta. Isso não era muito usado entre os
mendigos. Todos se olharam, e Peônia, asindo da espada, foi abrir.
Uma voz de mulher perguntou do lado de fora:
— João Podre está aí?
— Pode entrar — disse Peônia.
As tochas de resina fixadas às paredes por argolas de ferro alumiaram a entrada imprevista de uma
jovem alta, envolta em seu manto, e de um lacaio de libré vermelha, que carregava um cesto.
— Fomos procurá-lo no Faubourg Saint-Denis — explicou a moça a João Podre. — Mas disseram-nos
que você estava em casa de Calembredaine. Você nos fez caminhar, quando teríamos vindo mais
depressa das Tulherias a Nesle diretamente.
Sempre falando, ela retirara o manto e fez entufar as rendas do corpete, onde brilhava uma pequena
cruz de ouro, presa ao pescoço por uma fita de veludo negro. Os olhos dos homens faiscaram diante
daquela mulher bonitona, cuja flamejante cabeleira ruiva era mal dissimulada por uma fina touca de
rendas.
Angélica se refugiara na sombra. Um suor ligeiro aljofrava-lhe as têmporas. Acabava de reconhecer
Bertília, a camareira da Condessa de Soissons, que, alguns meses antes, havia negociado com ela a
compra de Kuassi-Ba.
— Você tem alguma coisa para mim? — perguntou João Podre.
Com ar prometedor, a jovem suspendeu a toalha do cesto que o lacaio acabava de pôr sobre a mesa e
tirou uma criança recém-nascida.
— Aqui está — disse ela.
João Podre examinou o bebé com ar cético.
— Gordo! Bem-feito... — disse ele franzindo os lábios. — Mas eu não poderia dar-lhe mais de trinta
libras por ele.
— Trinta libras! — exclamou a jovem indignada. — Está ouvindo, Jacinto? Trinta libras. Não, você
não o olhou! Não é capaz de apreciar a mercadoria que euThe trago.
Arrancou a fralda e expôs o recem-nascido inteiramente nu à claridade das tochas.
— Olha-o bem.
O pequeno ser, tirado de seu sono, mexia-se vagamente.
— Oh! — exclamou a Polaca. — Ele tem as partes negras!
— É um filho de mouro — cochichou a criada —, uma mistura de preto e branco. Você sabe como
eles se tornam belos, os mulatos, com uma pele dourada. Não se conseguem muitos. Mais tarde, quando
ele tiver seis ou sete anos, você poderá revendê-lo por bom preço, como pajem.
Riu com malícia e acrescentou:'
— Quem sabe? Você poderá talvez revendê-lo a sua própria mãe, a Soissons.
Os olhos de João Podre brilhavam de cobiça.
— Está bem — decidiu ele. — Dar-lhe-ei cem libras.
— Cento e cinquenta.
A ignóbil personagem ergueu os braços para o ar.
— Você quer minha ruína! Pode imaginar o que vai custar-me a educação desse menino, sobretudo se
eu quiser mantê-lo gordo e forte?
Seguiu-se uma sórdida discussão. Para melhor perorar, com os punhos nas cadeiras, Bertília pusera o
bebé sobre a mesa, e todos se apressaram em olhá-lo, um tanto receosos. Afora o sexo muito escuro, ele
não era muito diferente de outro recém-nascido qualquer. Só que sua pele parecia mais vermelha.
— E quem me diz que ele é verdadeiramente um mulato? — perguntou João Podre como último
argumento.
— Juro-lhe que seu pai era mais negro que o fundo de uma panela.
Fanny Poedeira soltou um pequeno grito:
— Oh! Estou até arrepiada. Como pôde sua patroa...?
— Não dizem que basta um mouro olhar uma mulher no branco do olho para torná-la grávida? —
interrogou a Polaca.
A servilheta soltou uma gargalhada.
— É o que dizem... E porfiam mesmo em dizê-lo das Tulherias ao Palais-Royal, desde que a gravidez
de minha patroa se tornou indisfarçável. Os mexericos chegaram a invadir a câmara do rei. Sua
Majestade respondeu: "Verdade? É preciso então que seja uma olhadela muito profunda". E,
encontrando minha patroa na antecâmara, deu-lhe as costas. Pode imaginar como isso aborreceu a
Soissons! Ela que tanto esperava pôr-lhe as garras em cima! Mas o rei está furioso, desde que
desconfiou que um homem de pele negra foi
recebido pela Soissons da mesma maneira que ele. E, por cúmulo da infelicidade, nem o marido nem o
amante, esse pequeno e indecente Marquês de Vardes, concordam em assumir a paternidade. Mas minha
patroa tem ainda um bom trunfo. Ela saberá tapar a boca dos intrigantes. Em primeiro lugar,
oficialmente, ela não vai parir antes de dezembro. E Bertília sentou-se, olhando em volta com ar
triunfante.
— Dê-me um gole, Polaca, e eu lhes contarei isso. É tudo muito simples, como se verá. Basta saber
contar nos dedos. O mouro deixou o serviço de minha patroa em fevereiro. Se ela tiver a criança em
dezembro, pode ser ele o pai? Então ela vai afrouxar um pouco a cintura do vestido e queixar-se: "Oh!
Minha cara, esta criança mexe-se demais. Ela me paralisa. Nem sei se poderei ir ao baile do rei esta
noite!" Depois, em dezembro, um parto com grande estardalhaço, nas próprias Tulherias. Esse será o
momento, João Podre, de você nos vender uma criança fresquinha, com um dia de vida. Será o pai quem
quiser. O mouro estará fora de cogitação: é tudo o que se deseja. Todos sabem que ele rema nas galeras
do rei desde fevereiro.
— Por que motivo está nas galeras?
— Por uma suja história de magia.
— Ele era cúmplice de um feiticeiro que foi queimado na Place de Greve.
Malgrado seu autodomínio, Angélica não pôde deixar de lançar um olhar na direção de Nicolau. Mas
ele bebia e comia com indiferença. Ela mergulhou na sombra. Gostaria de poder abandonar a sala e, ao
mesmo tempo, ardia por ouvir o resto da conversação.
— Sim, uma suja história — continuou Bertília abaixando a voz. — Esse diabo negro sabia fazer
feitiço. Foi condenado.
Por isso mesmo é que La Voisin não quis negócio com ela, quando minha patroa foi procurá-la para
fazer saltar o caroço.
O anão Barcarola pulou sobre a mesa, perto do copo da criada.
— Uh! Eu já vi essa dama e a você também, eu a vi várias vezes, bela cenoura encrespada. Eu sou o
pequeno demónio que abre a porta de minha célebre patroa, a adivinha.
— Com efeito, eu o reconheceria por sua insolência.
— La Voisin não quis fazer a condessa abortar porque era um filho de mouro que ela trazia no ventre.
— Como foi que ela o soube? — perguntou Fanny.
— Ela sabe tudo. E uma pitonisa.
— Após olhar a palma da mão de minha patroa, ela disse-lhe tudo de um golpe — comentou a criada
com ar assombrado. — Que era um menino de sangue mestiço, que o homem negro que o havia gerado
conhecia os segredos da magia, que ela não podia matá-lo, pois isso.lhe traria desgraça, a ela que
também era feiticeira. Minha patroa estava bem arrependida: "Que faremos, Bertília?", dizia-me ela.
Encolerizou-se terrivelmente. Mas La Voisin não cedeu. Disse que ajudaria minha patroa a parir, quando
chegasse a ocasião, e que ninguém saberia de nada. Que não poderia, no entanto, fazer mais. E exigiu
muito dinheiro. A coisa se passou na última noite, em Fontainebleau, onde toda a corte se acha
veraneando. La Voisin veio comum de seus homens, um mágico chamado Lesage. Minha patroa teve o
parto em uma pequena casa que pertence à família de La Voisin, bem perto do castelo. Ao amanhecer,
reconduzi minha patroa e, desde as primeiras horas, com todos os seus atavios, arrebicada até os olhos,
ela se apresentou à rainha, como é de hábito, pois é ela quem lhe dirige a casa. Isso vai decepcionar
muitas pessoas que estão esperando vê-la confinar-se por estes dias. A Sra. de Soissons ainda .está
prenhe, não parirá senão em dezembro, uma criança bem branca, e pode ser mesmo que o Sr. de
Soissons a reconheça.
Uma formidável gargalhada sublinhou a conclusão da história. Barcarola deu uma cambalhota e disse:
— Ouvi minha patroa confiar a Lesage que esse negócio da Soissons valia bem a descoberta de um
tesouro escondido.
— Oh! La Voisin é ambiciosa — resmungou Bertília em tom de queixa. — Ela tanto reclamou que
seria bem justo se minha patroa pudesse dar-me um pequeno colar em paga da minha ajuda.
A criada olhou para o anão com ar pensativo. /
— Você — disse ela subitamente —, creio que você faria a felicidade de alguém de muito alta posição
que eu conheço.
— Eu sempre pensei que fui feito para grandes destinos — respondeu Barcarola, firmando-se nas
pequenas pernas tortas.
— O anão da rainha morreu, e isso causou imenso pesar à soberana, que se contraria com tudo, desde
que concebeu. E a anã está desesperada. Ninguém pode consolá-la. É preciso arranjar-lhe um novo
companheiro... do seu tamanho.
— Oh! Estou certo de que agradarei a essa nobre dama! —exclamou Barcarola, agarrando-se à saia da
criada. — Leve-me, bela cenoura, leve-me para o palácio da rainha. Não tenho o ar admirável e
sedutor?
— Realmente ele não é feio, não acha, Jacinto? — disse ela divertida.
— Sou mesmo belo — afirmou o pigmeu. — Se a natureza me houvesse dado mais alguns
centímetros, eu seria o mais solicitado dos alcovetos. E para dizer galanteios às mulheres minha língua
nunca está em repouso, acredite-me.
— A anã só fala espanhol.
— Eu falo o espanhol, o alemão e o italiano.
— É preciso leva-lo! — exclamou Bertília, batendo as mãos.—Este negócio é excelente, e fará nosso
prestígio perante
Sua Majestade. Despachemo-nos. Devemos estar em Fontainebleau de manhã a fim de que nossa
ausência não seja nota
da. Será preciso você se meter na canastra do mulatinho?
— Esta zombando de mim, senhora — protestou Barcarola, que se sentia já um grande senhor.
Todos riram e se congratularam. Barcarola com a rainha!... Barcarola com a rainha! Calembredaine
contentou-se em tirar o nariz da escudela.
— Não esqueça os companheiros quando for rico — disse ele. E fez o gesto muito significativo de
esfregar a ponta do polegar na do indicador.
— Que você me sangre se eu os esquecer! — protestou o anão, que conhecia as impiedosas leis da
mendicância.
E, saltando para o canto em que se encontrava Angélica, fez-lhe uma grande saudação cortesã.
— Adeus, ó bela, adeus, irmãzinha, Marquesa dos Anjos.
O curioso homúnculo ergueu para ela os seus olhos vivos, estranhamente perspicazes. E acrescentou,
arremedando a afe-tação de um peralvilho:
— Espero, minha cara, que nos tornemos a encontrar. Espero-a... no palácio da rainha.

AS CRIANÇAS NO PÁTIO DOS MILAGRES

CAPÍTULO-IX

Angélica em busca de seus dois filhos

A corte estava em Fontainebleau. Durante os dias quentes de verão, nada havia mais encantador do
que aquele castelo branco, inundado de verdura, com seu lago em que as carpas faziam evoluções e,
entre elas, a velha avó toda branca, que trazia ao nariz o anel de Francisco I. Águias, flores, bosquetes...
O rei trabalhava, o rei dançava, o rei caçava a cavalo com seus cães. O rei estava enamorado. A doce
Luísa de La Valliè-re, tremula de haver despertado a paixão daquele coração real, erguia para o soberano
seus olhos magníficos, de um pardo azulado cheio de langor. E a corte, em sugestivas alegorias nas quais
Diana, correndo através dos bosques, afinal se entrega a Endimião, porfiava em celebrar a ascensão da
modesta jovem loura cuja virgindade Luís XIV acabava de colher.
Com dezessete anos, saída havia pouco da pobreza de uma numerosa família provincial, isolada entre
as donzelas de honor de Madame, não havia de que tremer Luísa de La Valliè-re quando todas as ninfas
e silvanos dos bosques de Fontainebleau cochichavam, ao luar, à sua passagem: "Ali vai a favorita!"
Que solicitude ao seu redor! Ela não sabia mais onde esconder a intensidade do seu amor e a vergonha
do seu pecado! Mas os cortesãos conheciam o mecanismo de sua sutil profissão de parasitas. Era por
intermédio da amante que se chegava ao rei, que se teciam as intrigas, que se conseguiam as nomeações,
os favores, as pensões. Enquanto a rainha, devido à maternidade, ficava recolhida aos seus aposentos,
ierto da anã inconsolável, havia, à luz dos dias de verão, ma sequência ininterrupta de festas e de
prazeres. Durate uma refeição, no canal, como não mais houvesse lugares as embarcações para os
oficiais-de-boca, era um gosto ver o Fíncipe de Conde, em vez de ganhar batalhas e de conspirr contra o
rei, pegar os pratos que lhe estendiam de um Sara vizinho e apresentá-los ao rei e à sua amante, como
seridor modelo.

Sentaa às margens do Sena, Angélica, no mau cheiro da vasa supraquecida de Paris, olhava o
crepúsculo descer sobre Nore-Dame.
Por ema das altas torres quadradas e da bojuda nave da abside, céu era amarelo, povoado de
andorinhas. De quando em uando, um pássaro, passando perto da jovem, roçava a mrgem com um grito
agudo.
Do otro lado do rio, sob as casas canonicais de Notre-Darne, ma longa encosta de barro marcava o
local do maior behvedoro de Paris. Aquela hora, inúmeros cavalos para ali se dirigim, conduzidos por
carreteiros ou criados de equipagem. 5eus relinchos alternados subiam na tarde pura.
De roente, Angélica se levantou.
"Votver meus filhos", pensou.
Um hteleiro, por vinte soldos, transportou-a ao porto de Saint-Lndry. Angélica entrou pela Rue de
l'Enfer e parou a alguns pssos da casa do Procurador Fallot de Sancé. Não tinha a irenção de apresentar-
se em casa de sua irmã no estado em quee achava, com a saia em molambos, os cabelos em de-
sordempresos num lenço, os sapatos acalcanhados. Mas tivera a idéi de que, postando-se na vizinhança,
poderia ver, talvez, seus do; filhinhos. Isso se tornara, para ela, desde algum tempo, umádéia fixa, uma
necessidade que a cada dia se acentuava e lrie oapava todo o pensamento. O pequeno rosto de Flori-
mond energia do abismo de olvido e insensibilidade em que ela subrergira. Ela revia-o, com seus cabelos
negros cacheados, sob a toca vermelha. Ouvia-o tagarelar. Que idade teria ele agora? Urmouco mais de
dois anos. E Cantor? Sete meses. Ela não consegta imaginar-lhe as feições. Deixara-o tão pequeno!
Apoida à parede, junto à oficina de um sapateiro, Angélica pôs-se a olhar fixamente a fachada daquela
casa em que ela vivera quando ainda era rica e considerada. Um ano atrás, sua equipagem obstruíra a
estreita ruela. De lá, ela saíra para assistir à entrada triunfal do rei, vestida luxuosamente. E Ca-teau, a
Caolha, lhe transmitira as vantajosas propostas do Superintendente Fouquet. "Aceite, minha cara...
Isso não é melhor do que perder a vida?"
Ela havia recusado. Assim perdera tudo e não estava longe de perguntar a si mesma se, na realidade,
não perdera também a vida, pois já não tinha nome nem direito à existência. Estava morta aos olhos de
todos.
O tempo passava e nada se movia na fachada da casa. No entanto, por trás das vidraças sujas do
escritório do procurador, adivinhavam-se as silhuetas necessitadas dos escreventes.
Um deles saiu para acender a lanterna.
Angélica o abeirou:
— Será que Maítre Fallot de Sancé está em casa ou foi para suas terras?
Antes de responder, o escrevente examinou detidamente a interlocutora.
— Já faz algum tempo que Maítre Fallot não mora aqui — respondeu. — Ele vendeu o cargo. Teve
aborrecimentos por causa de um processo de feitiçaria em que estava envolvida sua família. Isso foi
muito mau para a sua profissão. Ele foi instalar-se em outro bairro.
— E... não sabe que bairro?
— Não — disse o outro em tom arrogante. — E, se o soubesse, não lhe diria. Você não é cliente para
ele.
Angélica estava aterrada. Desde alguns dias, ela não vivia senão da ideia de olhar, nem que fosse por
um segundo, os rostos de seus filhos. Imaginava-os voltando de um passeio; Cantor nos braços de
Bárbara, Florimond saltitando alegremente ao lado dela. E eis que eles também tinham desaparecido
para sempre de seu horizonte!
Teve de apoiar-se à parede, presa de uma vertigem.
O sapateiro, que estava colocando as tábuas de sua oficina para a noite, e que tinha ouvido a conversa,
disse-lhe:
— Você precisa tanto assim ver Maítre Fallot? E para um processo?
— Não — disse Angélica procurando dominar-se —, mas eu... gostaria de ver uma jovem que estava a
seu serviço... Chama-se Bárbara. Será que ninguém sabe o novo endereço do senhor procurador?
— O de Maítre Fallot e de sua família não poderei contar-lhe. Mas o de Bárbara é possível. Ela não
trabalha mais para eles. Da última vez em que a vi, ela trabalhava para um rôtis-seur da Rue de la
Vallée-de-Misère, no Galo Atrevido.
— Obrigada.
Já Angélica corria pelas ruas escuras. A Rue de la Valée-de-Misére, por trás da prisão do Grande
Châtelet, era o feudo dos rôtisseurs. Dia e noite não cessavam os gritos das aves degoladas e o ruído dos
espetos a girarem diante de grandes fogos.
A rôtisserie do Galo Atrevido era afastada e não apresentava nada de atraente. Ao contrário,
observando-a poder-se-ia crer que a Quaresma já começara.
Angélica entrou em uma sala mal iluminada por duas ou três velas. Amesendado diante de uma jarra
de vinho, um homem gordo, com um sujo gorro de cozinheiro, parecia muito mais ocupado em beber do
que em servir seus clientes. A freguesia não era numerosa e compunha-se sobretudo de artesãos e de um
viajante de pobre aspecto. Com passo arrastado, um rapaz, cingindo um avental gordurento, trazia pratos
cuja composição era difícil distinguir.
Angélica dirigiu-se ao gordo cozinheiro:
— O senhor tem aqui uma criada de nome Bárbara?
Com um polegar negligente, o homem mostrou-lhe, aos fundos, a cozinha.
Angélica reconheceu Bárbara. Estava sentada diante do fogo e depenava uma ave.
— Bárbara!
A outra ergueu a cabeça e enxugou com o braço a fronte coberta de suor.
— Que quer, moça? — perguntou ela com voz lassa.
— Bárbara! — repetiu Angélica.
A criada arregalou os olhos. Depois, soltou subitamente uma exclamação sufocada:
— Oh! Senhora!... Que a senhora me desculpe...
— Não é mais preciso chamar-me senhora — disse Angélica.
E deixou-se tombar sobre a pedra da lareira. O calor era sufocante.
— Bárbara, onde estão meus filhos?
As gordas bochechas de Bárbara tremiam como se ela estivesse a ponto de explodir em soluços.
Engoliu a saliva e conseguiu, afinal, responder:
— Estão com uma ama, senhora... Fora de Paris, çm uma aldeia, perto de Longchamp.
— Minha irmã Hortênsia não os conservou consigo?
— A Sra. Hortênsia, logo em seguida, entregou-os a uma ama. Eu "fui uma vez à casa da ama para
entregar-lhe o dinheiro que a senhora me deixou. A Sra. Hortênsia tinha exigido que eu lhe entregasse, a
ela, esse dinheiro, mas eu nada lhe dei. Eu não queria que ele servisse senão às crianças. Depois, não
pude voltar à ama... Eu tinha deixado a Sra. Hortênsia... Trabalhei em vários lugares... E difícil ganhar a
vida.
Agora, ela falava precipitadamente, evitando olhar para Angélica. Esta refletia. Longchamp não era
uma aldeia muito distante. As damas da corte faziam dali local de passeios. Elas ouviam ali os ofícios
das freiras da abadia... Com gestos nervosos, Bárbara recomeçou a depenar a ave. Angélica experi-
mentou a sensação de que alguém a olhava fixamente. Virando-se, reparou que o ajudante de cozinha a
contemplava, de boca aberta, com uma expressão que não deixava qualquer dúvida sobre os sentimentos
que lhe inspirava aquela bela mulher em farrapos. Angélica estava habituada a esses olhares lascivos dos
homens. Mas dessa vez Írritou-se. Ergueu-se rapidamente.
— Onde você mora, Bárbara?
— Nesta casa, em um pequeno quarto improvisado.
Naquele momento, o dono do Galo Atrevido entrou, com o gorro de través.
— Então, por que estão todos pregados aí? — perguntou ele com voz pastosa. — Davi, os fregueses o
chamam... E essa galinha, quando ficará pronta, Bárbara? Palavra, quase é preciso que eu faça todo o
serviço enquanto vocês se refestelam... E essa mendiga, que faz ela aí? Anda, mexa-se, fora! E não
procure roubar-me um capão...
— Oh! Senhora!
Mas, nessa noite, Angélica não estava de bom humor. Pôs as mãos nas cadeiras e todo o vocabulário
da Polaca lhe veio à boca.
— Feche-se, gordo tonel! Não quero seus velhos galos de papelão. Quanto a você, Romeu sem Julieta,
melhor faria
abaixando os olhos e fechando a boca, se nâo quiser receber um tabefe.
— Oh! Senhora! — gritou Bárbara, cada vez mais espantada.
Angélica aproveitou o estupor dos dois homens para se retirar.
— Espero-a lá fora, no pátio.
Um pouco mais tarde, quando Bárbara passou com um castiçal na mão, Angélica seguiu-a pela escada
desmantelada até o pequeno quarto que mestre Bourjur alugava à servilheta por alguns soldos.
— Meu aposento é bem pobre, senhora — disse Bárbara humildemente.
— Não se incomode. Eu conheço a pobreza.
Angélica tirou os sapatos para gozar a frescura do lajedo e sentou-se no leito, que era uma enxerga
sem cortina montada sobre quatro pés.
— E preciso desculpar mestre Bourjur — continuou Bárbara. — Ele não é mau sujeito. Mas, desde a
morte da mulher, anda desanimado e não faz senão beber. O moço é um sobrinho que ele fez vir da
província para ajudá-lo, mas não é muito esperto. Por isso, os negócios não vão bem.
— Se isso não incomodá-la, Bárbara — disse Angélica —, posso passar a noite aqui? Amanhã partirei,
ao amanhecer, e irei ver meus filhos. Posso partilhar seu leito?
— A senhora me dá muita honra.
— A honra... — disse Angélica amargamente. — Olhe para mim e não fale mais assim.
Bárbara rompeu em soluços.
— Oh! Senhora... — balbuciou ela. — Seus belos cabelos... Seus tão belos cabelos! Quem os escova
agora?
— Eu mesma... às vezes. Bárbara, não chore tanto, peço-lhe.
— Se a senhora me permite — murmurou a criada —, tenho aqui uma escova... Poderia talvez...
aproveitá-la... já que estou com a senhora.
— Se quer...
As mãos hábeis da criada começaram a desembaraçar os belos cachos de reflexos quentes. Angélica
fechou os olhos. £ grande o poder dos gestos cotidianos. Bastaram aquelas mãos cuidadosas de uma
criada para reviver uma atmosfera para sempre desaparecida. Bárbara "fungava as lágrimas.
— Não chore — repetiu Angélica —, tudo isto acabará...
Sim, eu creio que isto terá um fim. Não já, sei-o bem, mas chegará o dia... Você não pode compreender,
Bárbara. É como um círculo infernal de onde não se pode escapar senão pela morte. Mas começo a crer
que poderei escapar, em todo caso. Não chore, Bárbara, minha filha...
Dormiram lado a lado. Bárbara começou seu trabalho à primeira luz da manhã. Angélica acompanhou-
a à cozinha. Bárbara fê-la beber vinho quente e deu-lhe dois pastéis.
Agora, Angélica seguia pela estrada de Longchamp. Tinha franqueado a Porte Saint-Honoré e, após ter
seguido os quin-cunces areentos de um;passeio denominado Champs-Élysées, chegou à aldeia de Neuflly,
onde Bárbara assegurara que se achavam as crianças. Ela ainda não sabia o que ia fazer. Talvez observá-
los de longe. E, se acaso Florimond se aproximasse dela brincando, ela procuraria atraí-lo oferecendo-lhe
um pastel.
Fez que lhe indicassem a habitação da Sra. Mavaut. Ao aproximar-se, viu crianças que brincavam na
poeira, sob a guarda de uma mocinha de uns treze anos. Estavam bastante sujas e mal vestidas, mas
pareciam bem-dispostas.
Procurou em vão reconhecer Florimond entre elas.
Quando uma alta mulher de tamancos saiu da casa, ela supôs que se tratasse da ama e decidiu entrar no
pátio.
— Gostaria de ver dois meninos que lhe foram confiados pela Sra. Fallot de Sancé.
A camponesa, que era uma forte mulher trigueira e máscula, mediu-a dos pés à cabeça com uma
desconfiança não dissimulada.
— Trouxe o dinheiro atrasado?
— Existe atraso no pagamento das mesadas?
— Se existe? — explodiu a mulher. — Com o que a Sra. Fallot me deu quando os recebi e o que sua
criada me trouxe depois, eu não poderia alimentá-los senão durante um mês. Fui a Paris, para reclamar,
mas os Fallot se tinham mudado. São maneiras bem próprias desses corvos de procuradores!
— Onde estão eles? — perguntou Angélica.
— Quem?
— As crianças.
— Como posso saber? — disse a ama, encolhendo os ombros. — Já faço muito em me ocupar com os
fedelhos das pessoas que pagam.
A mocinha, que se aproximara, disse com vivacidade:
— O menorzinho está lá dentro. Eu o mostrarei a você.
Puxou Angélica, fê-la atravessar a sala principal da granja e conduziu-a ao estábulo, onde havia duas
vacas. Atrás da grade da manjedoura, ela descobriu uma caixa em que Angélica distinguiu, com
dificuldade, na penumbra, um menino com cerca de seis meses. Estava quase nu, coberto apenas por
um trapo sujo que lhe cobria o ventre e cuja extremidade ele chupava com avidez. Angélica pegou a
caixa e tirou-a daquele lugar.
— Eu o pus no estábulo, porque é mais quente que a adega durante a noite — murmurou a mocinha.
— Ele tem crostas por toda parte, mas não está magro. Sou eu que ordenho as vacas de manhã e de
tarde. Dou-lhe um pouco de leite, a cada vez.
Aterrada, Angélica olhava o bebé. Não podia ser Cantor, aquela hedionda pequena larva coberta de
pústulas e piolhos! Além disso, Cantor tinha nascido com os cabelos louros, e o menino tinha anéis
castanhos. Nesse momento, ele abriu os olhos e mostrou umas pupilas claras e magníficas.
— Ele tem olhos verdes como os seus — disse a mocinha.— Será você a sua mãe?
— Sim, eu sou sua mãe — disse Angélica com voz sumida. — Onde está o mais velho?
— Deve estar no canil.
— Javotte, meta-se com o que é da sua conta! — gritou a camponesa.
Ela observava as duas, mas não intervinha, esperando talvez que, no final das contas, aquela mulher de
triste aparência entregasse o dinheiro.
O canil estava ocupado por um molosso de ar feroz. Javotte teve de empregar toda sorte de seduções e
de promessas para fazê-lo sair.
— Flô sempre se esconde atrás de Patou, porque tem medo.
— Medo de quê?
A menina lançou um olhar vivo em torno de si.
— De que lhe batam.
Tirou qualquer coisa do fundo da casinhola. Uma bola negra e encrespada apareceu.
— Mas é outro cão! — exclamou Angélica.
— Não, isto são os seus cabelos.
— Com certeza — murmurou Angélica.
De fato, semelhante cabeleira não podia pertencer senão ao filho de Joffrey de Peyrac. Mas, sob
aquele velo abundante, escuro e cerrado, havia um pobre corpinho esquelético e acinzentado, coberto de
andrajos.
Angélica ajoelhou-se e, com mão tremula, separou a gaforina. Descobriu o rosto magro, sem cor, no
qual brilhavam dois olhos negros dilatados. Embora fizesse muito calor, uma tremura incessante agitava
o menino. Seus ossos miúdos formavam saliências como pontas e sua pele era áspera e suja.
Angélica endireitou-se e avançou para a ama.
— Você os deixa morrer de fome — disse com voz lenta e grave. — Você os deixa morrer de
miséria... Há meses essas crianças não recebem nenhum cuidado, nenhum alimento. Somente os restos
do cão ou os bocados que essa menina separa do seu magro jantar. É uma miserável.
A camponesa tornara-se muito vermelha. Cruzou os braços sobre o corpete.
— Esta é muito boa! — exclamou ela sufocando de cólera. — Enchem-me de fedelhos sem vintém,
desaparecem sem deixar endereço e ainda é preciso que me deixe injuriar por uma mendiga de estrada,
uma cigana, uma egípcia, uma...
Sem escutá-la, Angélica entrara de novo na casa.
Pegou um pano de cozinha que pendia diante do fogão e, segurando Cantor, colocou-o às costas,
prendendo-o com o pano amarrado ao peito, à moda, precisamente, pela qual os ciganos transportam
seus filhos.
— Que vai fazer? — perguntou a ama, que a tinha seguido. — Não vai levá-los, hem? Ou então tem
de dar o dinheiro.
Angélica esquadrinhou os bolsos e atirou ao chão algumas moedas. A camponesa zombou.
— Cinco libras! Faz-me rir. Devem-me bem trezentas. Vamos, pague! Senão, chamo os vizinhos e
seus cães e faço
enxotá-la.
Alta e maciça, ela se mantinha diante da porta, com os braços estendidos. Angélica enfiou a mão
debaixo de seu corpe-te e tirou o punhal. A lâmina de Rodoguno, o Egípcio, brilhou na penumbra, com o
mesmo fulgor dos olhos verdes de quem o empunhava.
— Desguia — disse Angélica com voz surda. — Desguia, ou a sangro.
Ouvindo aquele calão, a camponesa tornou-se lívida. Conhecia-se muito bem, às portas de Paris, a
audácia das prostitutas e sua habilidade para manejar a faca.
Ela recuou, terrificada. Angélica passou diante dela, conservando a ponta do punhal em sua direçao,
como lhe havia ensinado a Polaca.
— Não chame ninguém! Não lance nem cães nem vizinhos
aos meus calcanhares, senão isso lhe trará infelicidade. Amanhã sua granja se incendiará... E você, você
acordará com a garganta cortada... Compreendeu?...
Chegada ao meio do pátio, recolocou o punhal na cinta e, carregando Florimond nos braços, foi-se
rumo a Paris.
Ofegante, atirou-se para a capital devoradora de seres humanos, onde ela não dispunha de outro
refúgio, para seus dois filhos semimortos, que não fossem as ruínas e a proteção sinistra de mendigos e
de bandidos.
Carruagens passavam por ela, levantando nuvens de poeira, que se colava ao seu rosto suado. Ela,
porém, não afrouxava a marcha, insensível ao peso de seu duplo fardo.
"Isto acabará", pensava Angélica. "É bem preciso que isto se acabe, que eu um dia me evada, que os
reconduza para o meio dos vivos..."
Na Tour de Nesle, ela encontrou a Polaca, que curtia a sua bebedeira e que a ajudou a cuidar das
crianças.

CAPITULO X

Florimond e o Grande Mateus

Ao ver as crianças, Calembredaine não se mostrou nem furioso nem enciumado, como ela receara. Mas
uma expressão aterrada estampou-se na sua rude e trigueira face.
— Você não está louca? — disse ele. — Não está louca em trazer seus filhos? Não viu ainda o que é
feito das crianças aqui? Quer que alguém os alugue para ir mendigar?... Que os ratos os devorem?... Que
João Podre os roube de você?
Acabrunhada com esses reproches inesperados, ela se agarrou a ele.
— Para onde quer que os leve, Nicolau? Olhe o que fizeram deles... Morriam de fome! Não os trouxe
para que lhes façam mal, mas para pô-los sob a sua proteção. Você é forte, Nicolau.
Ela se aconchegou a ele, desvairada, e olhou-o como nunca o fizera. Mas ele não o percebeu e sacudiu
a cabeça, repetindo:
— Não poderei protegê-los sempre... a esses meninos de sangue nobre. Não poderei.
— Por quê? Você é forte, todos o temem.
— Não sou tão forte assim. Você tem explorado meu coração. Para homens como nós, quando o
coração se intromete, é o começo das idiotices. Algumas vezes eu acordo de noite e digo comigo
mesmo: "Cuidado, Calembredaine... Não fica tão distante a Abadia de Monte-à-Regret..."
— Não fale assim. É a primeira vez que lhe peço alguma coisa. Nicolau, meu Nicolau, ajude-me a
salvar meus filhos!

Todos lhes chamavam "anjinhos". Protegidos por Calembredaine, compartilhavam a vida de Angélica
no seio da miséria e do crime. Dormiam numa grande mala de couro guarnecida de casacos confortáveis
e de tecidos finos. Tinham, a cada manhã, seu leite fresco. Para eles, Gobert ou Peônia iam tocaiar as
camponesas que se dirigiam ao mercado de Pierre-au-Lait, com sua vasilha de cobre à cabeça. As leitei-
ras acabaram por não mais querer passar pelo caminho do Sena. Foi preciso buscá-las até no Vaugirard.
Finalmente compreenderam que não se tratava senão de dar um pouco de leite para ter direito de
passagem, e os narquois já não tinham necessidade de puxar das espadas.
Florimond e Cantor haviam despertado o coração de Angélica.
Quando regressou de Neuilly, ela os levou ao Grande Mateus. Queria uma pomada para as feridas de
Cantor; e, para Florimond... que seria preciso para reconduzi-lo à vida, aquele pequeno corpo
enfraquecido, tremulo, que se retraía com medo sob as carícias de sua mãe?
— Quando eu o deixei, ele falava — disse Angélica à Polaca —, e agora ele não diz nada.
A Polaca acompanhou-a ao Grande Mateus. Este levantou a cortina carmesim que dividia em dois o
seu estrado e fê-las entrar, como damas, em seu gabinete particular, onde se viam, além de uma
confusão incrível de dentaduras, supositórios, bisturis, caixas de pós, panelas e ovos de avestruz, dois
crocodilos empalhados.
O próprio mestre untou, com sua mão augusta, a pele de Cantor com uma pomada de sua composição
e prometeu que dentro de oito dias ele pareceria outro. A predição mostrou-se acertada: as crostas
caíram, e surgiu um menino gordinho e manso, de tez branca, cabelos castanhos e cacheados e que
gozava de saúde.
Para Florimond, o Grande Mateus foi menos encorajador.
Pegou o menino com muita precaução, examinou-o, fez-lhe festinhas e entregou-o a Angélica. Depois
coçou o queixo com perplexidade. Angélica estava mais morta que viva.
— Que é que ele tem?
— Nada. É preciso que ele coma... muito pouco de início. Depois, deverá comer tanto quanto puder.
Talvez isso lhe restitua um pouco de carne.
— Quando eu o deixei, ele falava e andava — repetiu ela, aflita. — E agora ele não diz mais nada. E
com dificuldade que se mantém em pé.
— Que idade tinha ele, quando o deixou?
— Vinte meses, quase dois anos.
— É uma péssima idade para aprender a sofrer — disse o Grande Mateus, pensativo. — É melhor que
seja antes, logo após o nascimento. Ou mais tarde. Mas a essas crianças, que começam a abrir os olhos
para a vida, não convém que a dor as surpreenda tão cruelmente.
Angélica ergueu para o Grande Mateus um olhar brilhante de lágrimas contidas. Ela perguntava á si
mesma como podia aquele bruto vulgar e tonitruante saber coisas tão delicadas.
— Será que ele vai morrer? .
— Talvez não.
— Dê-lhe um remédio — suplicou ela.
O empírico despejou num cartucho de papel um pó de ervas e recomendou que desse de beber ao
menino, cada dia, uma decocção.
— E um bom fortificante — disse ele.
Mas, tão prolixo sobre a virtude dos seus medicamentos, não se entregou a qualquer verborreia
suplementar. Após um momento de reflexão, continuou:
— O que é preciso é que ele doravante não tenha fome, nem frio nem medo, e que não se sinta
abandonado. Que tenha em volta de si os mesmos semblantes... Necessita de um remédio que não tenho
nos meus potes... Precisa ser feliz. Compreendeu, filha?
Angélica moveu a cabeça afirmativamente. Estava estupe-rata e perturbada. Nunca lhe haviam falado
sobre crianças
aquela maneira. No mundo em que ela vivera outrora, não se Usava aquilo. Mas os simples tinham
talvez as luzes de certas coisas...
Um cliente, com a cara inchada, envolvida num lenço, estava sobre o estrado, e a orquestra tinha
recomeçado a sua cacofonia. O Grande Mateus impeliu as duas mulheres para fora, dando em cada uma
delas uma palmada no ombro.
— Procurem fazê-lo sorrir! — gritou-lhes ainda, antes de agarrar a torquês.

Desse dia em diante, na Tour de Nesle, todos se empenharam em fazer Florimond sorrir. Hurlurot e
Hurlurette dançavam para ele, com as suas velhas pernas endiabradas. Pão Negro emprestou-lhe, para
brincar, suas conchas de peregrino. Trazia-lhe do Pont Neuf laranjas, bolos, moinhos de papel. Um dos
saltimbancos da feira de Saint-Germain veio exibir seus oito ratos ensinados que dançavam o minueto
ao som do violino. Mas Florimond teve medo e fechou os olhos.
Piccolo, o símio, só conseguiu distraí-lo. Malgrado suas caretas e suas cabriolas, não chegou a fazê-lo
sorrir.
A honra desse milagre pertenceu a Thibault, o Sanfonineiro. Um dia, o velho músico pôs-se a tocar a
Canção do Moinho Verde. Angélica, que tinha Florimond sobre os joelhos, sentiu-o estremecer. Ele
levantou os olhos para ela. Sua boca fremiu, mostrou uns dentes minúsculos como grãos de arroz. E,
com voz fraca e baixa, rouca, vinda de muito longe, ele disse:
— Mamãe!

CAPÍTULO-XI

A batalha da feira de Saint-Germain

Veio o mês de setembro, frio e chuvoso.


— Eis o Homicida, o inverno, que chega — queixou-se Pão Negro, aproximando-se do fogo, com
seus andrajos molhados. A madeira úmidá rechinava na lareira. Excepcionalmente, os burgueses e os
ricos comerciantes de Paris não esperaram o Dia de Todos os Santos para envergar seus trajes de
inverno e fazer-se sangrar, segundo as tradições de higiene que recomendavam entregar-se à lanceta do
cirurgião quatro vezes por ano, quando da mudança das estações.
Mas os nobres e os mendigos tinham outro motivo de preocupação além de falar da chuva ou do frio.
Todas as altas personagens da corte e das finanças estavam aturdidas pela prisão do riquíssimo
superintendente das Finanças, Sr. Fouquet.
E todo o populacho fazia conjeturas sobre o rumo que tomaria a luta que ia travar-se, no momento da
abertura da feira de Saint-Germain, entre Calembredaine e Rodoguno, o Egípcio.
A prisão do Sr. Fouquet fora como um raio num céu de estio. Algumas semanas antes, o rei e a rainha-
mãe, recebidos em Vaux-le-Vicomte pelo faustoso superintendente, mais uma vez haviam admirado o
magnífico castelo concebido pelo arquiteto Le Vau, contemplado os afrescos do pintor Le Brun,
degustado os pratos de Vatel. Haviam percorrido os esplêndidos jardins desenhados por Le Nôtre,
jardins que eram refrescados pelas águas captadas pelo engenheiro Francini e dirigidas a tanques,
repuxos, grutas e fontes. Enfim, toda a corte pudera aplaudir, no teatro ao ar livre, uma comédia das
mais espirituosas: Os importunos, de um jovem autor chamado Molière.
Depois, apagadas as últimas luzes, todos se dirigiram a Nantes, para os Estados da Bretanha. Foi lá
que, certa manhã, um obscuro mosqueteiro se apresentou a Fouquet quando ele ia subir para o seu
coche.
— Não é aí, senhor, que deve subir — disse o oficial —, mas naquela cadeirinha de portinholas
gradeadas, que se vê a quatro passos.
— Que significa isso?
— Que o senhor está preso em nome do rei.
— O rei é o meu senhor — murmurou o superintendente, que se tornara muito pálido. — Mas eu
desejaria, para sua glória, que ele agisse mais abertamente.
O caso levava, mais uma vez, o selo do real discípulo de Mazarino. Não deixava de ter analogia com a
prisão, efetua-da um ano antes, de um grande vassalo tolosano, o Conde de Peyrac, que fora queimado
como feiticeiro na Place de Greve...
Mas, no meio de todo aquele pânico e ansiedade em que a desgraça do superintendente mergulhara a
corte, ninguém se lembrou de estabelecer um paralelo em conexão com a tática outra vez empregada em
semelhante circunstância.
Os grandes refletiam pouco. No entanto, eles sabiam que, nas contas de Fouquet, se encontrariam não
somente o traço de suas malversações, mas também os nomes de todos aqueles... e de todas aquelas cuja
complacência ele havia pago. Falava-se mesmo de certos documentos terrivelmente comprometedores,
pelos quais grandes senhores e até príncipes de sangue se haviam vendido, durante a Fronda, ao matrei-
ro financista.
Não, ninguém reconhecia ainda nesta segunda prisão, mais espetacular e fulminante que a primeira, a
mesma mão autoritária.
Somente Luís XIV, rompendo os selos de uma carta que lhe comunicava perturbações no Languedoc,
sublevado por um gentil-homem gascão de nome Andijos, suspirou: "Era tempo!"
O esquilo, fulminado na coma da árvore, desabara de galho em galho. Era tempo: a Bretanha não se
revoltaria por Fouquet como o Languedoc se revoltara pelo outro, aquele estranho homem que ele fora
obrigado a fazer queimar vivo na Place de Greve.
A nobreza, que Fouquet cobrira de prodigalidades, não o defenderia, por medo de ir fazer-lhe
companhia na sua desgraça. E as imensas riquezas do superintendente retornariam aos cofres do Estado,
o que não era senão justiça. Le Vau, Le Brun, Francini, Le Nôtre, até o risonho Molière e mesmo Vatel,
todos os artistas que Fouquet havia escolhido e mantido com suas equipes de desenhistas, pintores,
operários, jardineiros, comediantes e ajudantes de cozinheiro, trabalhariam doravante para um único
senhor. Seriam conduzidos a Versalíies, aquele "pequeno castelo de cartas" perdido entre pântanos e
bosques, mas onde Luís XIV havia pela primeira vez estreitado nos braços a doce La Valliére. Em
homenagem a esse amor ardente, edificar-se-ia ali o mais brilhante testemunho à glória do Rei-Sol.
Quanto a Fouquet, seria necessário instaurar longuíssimo processo. Trancariam o esquilo em uma
fortaleza. Ele seria esquecido...
Angélica não tinha lazer para meditar sobre esses novos acontecimentos. O destino queria que a ruína
daquele a quem Joffrey de Peyrac tinha sido secretamente sacrificado seguisse bem de perto sua vitória.
Mas era. muito tarde para Angélica. Ela não mais buscava recordar, compreender... Os grandes
passavam, conspiravam, traíam, retornavam às graças do soberano, desapareciam. Um jovem rei
autoritário e impassível nivelava as cabeças a golpes de foice. O pequeno cofre de veneno permanecia
escondido em uma torrinha do Castelo do Plessis-Bellière...
Angélica não era mais que uma mulher sem nome, apertando seus filhos ao coração e olhando com
temor a aproximação do inverno.
Se a corte era semelhante a um formigueiro destruído com um súbito pontapé, a mendicância fervia à
espera de uma batalha que se anunciava terrível. E, no momento em que a rainha e as floristas do Pont
Neuf aguardavam um delfim, os ciganos entravam em Paris...
Essa batalha da feira de Saint-Germain, que ensanguentou a célebre feira logo no primeiro dia da sua
abertura, desconcertou, mais tarde, aqueles que buscavam descobrir sua origem.
Ali se viram lacaios sovarem estudantes, senhores passarem suas espadas através do corpo de
saltimbancos, mulheres serem violadas no chão, carruagens incendiadas. No conjunto ninguém sabia
onde fora acesa a primeira tocha.
Mas houve um que não se enganou. Era um rapaz chamado Desgrez, homem instruído e que tivera
uma vida movimentada. Desgrez acabava de obter um lugar de capitão de polícia no Chatelet. Muito
temido de todos, começava-se a falar dele como um dos mais hábeis policiais da capital. Posteriormente,
com efeito, esse jovem ganharia renome procedendo à prisão da maior envenenadora de seu tempo e
talvez de todos os tempos, a Marquesa de Brinvilliers, e, em 1678, levantaria o véu do famoso drama
dos venenos, cujas revelações iriam salpicar de lama os degraus do trono.
Entrementes, naquele fim do ano de 1661, admitia-se que o policial Desgrez e seu cão Sorbonne eram
os dois habitantes de Paris que melhor conheciam os recantos e a fauna da cidade.
Havia muito tempo que Desgrez seguia a rivalidade existente entre dois poderosos capitães de
bandidos, Calembre-daine e Rodoguno, o Egípcio, pela posse do território da feira de Saint-Germain.
Ele sabia-os igualmente rivais no amor, disputando entre si os favores de uma mulher de olhos de
esmeralda, que se chamava Marquesa dos Anjos.
Pouco antes da abertura da feira, ele farejou movimentos estratégicos no seio da matterie.
Embora policial subalterno, conseguiu, na manhã mesmo da abertura da feira, arrancar de seus
superiores a autorização de levar todas as forças de polícia da capital para as proximidades do Faubourg
Saint-Germain. Não pôde evitar o início da luta, que se expandiu com uma rapidez e violência extremas,
mas a reduziu e circunscreveu com a mesma brutal subitaneidade, extinguindo a tempo os incêndios,
organizando em quadrados de defesa os gentis-homens portadores de espada que ali se encontravam,
procedendo a prisões em massa. Mal começou a despontar a aurora dessa noite sangrenta, vinte
mendigos "de qualidade" foram conduzidos para f0ra da cidade, até o sinistro cadafalso comum de
Montfaucon, e ali enforcados.
Indubitavelmente, a celebridade da feira de Saint-Germain justificava, por mais de um título, a áspera
contenda a que os bandos de larápios de Paris se entregavam para ter a exclusividade da "vindima".
De outubro a dezembro, e de fevereiro à Quaresma, toda Paris passava por ali. O próprio rei não se
dedignava de ir até lá certas tardes, com sua corte. Que sorte para os rapa-bolsas e ladrões de casacos,
aquele bando de fabulosos pássaros!
Vendia-se de tudo na feira de Saint-Germain. Os comerciantes das grandes cidades de província —
Amiens, Ruen, Reims — faziam-se representar ali por amostras de seus artigos. Em lojas de luxo
disputavam-se os casacos de Marselha, os diamantes de Alençon, os confeitos de Verdun.
O português vendia âmbar cinzento'e porcelana fina. O provençal vendia a retalho laranjas e limões. O
turco louvava seu bálsamo da Pérsia, suas águas aromáticas de Constantinopla. O flamengo apresentava
seus quadros e queijos. Era o Pont Neuf ampliado em escala mundial, ao som de campainhas, de flautas,
gaitas e tamborins.
Os exibidores de animais e de fenómenos atraíam a multidão. Muitos iam ver os ratos que dançavam
ao som do violino e duas moscas que se batiam em duelo com duas palhinhas.
Entre os espectadores, a plebe andrajosa misturava-se com pessoas ricamente vestidas. Cada um, na
feira de Saint-Germain, vinha encontrar, além de uma exibição cintilante e variada, uma liberdade de
maneiras que não se via em nenhuma outra parte.
Tudo ali estava organizado para a felicidade dos sentidos.
Um deboche desenfreado imperava nas casas de glutoneria, nas belas tabernas ornadas de espelhos e
de ouro e nos cassinos em que se jogavam as trincas e o lansquenê.
Não havia rapaz ou moça espicaçado pelo demónio do amor que lá não pudesse encontrar a satisfação
de seus desejos, Mas, de longa data, os ciganos constituíam a grande atração da feira de Saint-Germain.
Eles eram ali os príncipes, com seus acrobatas e seus ledores da buena-dicha.
Desde o meio do verão viam-se chegar suas caravanas dei magros sendeiros com crinas trançadas,
carregados de mulheres e de crianças amontoadas de mistura com os utensílios de cozinha, os presuntos
e os frangos roubados.
Os homens, arrogantes e silenciosos, com os longos cabelos negros cobertos por chapéus de feltro
emplumados, a cuja sombra brilhavam olhos esbraseados, carregavam ao ombro intermináveis
mosquetes.
Os parisienses olhavam-nos com a mesma curiosidade ávida de seus maiores, que, pela primeira vez,
em 1427, tinham visto surgir sob os muros de Paris aqueles eternos nómades cor de buxo. Apelidaram-
nos de egípcios e também lhes chamavam boémios ou ciganos. Os mendigos reconheciam a filiação de
sua influência sobre as leis da matterie e, na festa dos loucos, o duque do Egito caminhava perto do rei
de Thunes, e os altos dignitários do império da Galileia precediam os arquissequazes do Grande Coésre.
Rodoguno, o Egípcio, ele próprio de raça cigana, não podia ter senão uma altíssima situação entre os
mendigos de Paris. Era de justiça que ele quisesse reservar para si as vizinhanças daqueles santuários
mágicos decorados com sapos, esqueletos e gatos pretos, que as ledoras da buena-dicha, as feiticeiras
morenas, como as chamavam, estabeleceram no coração da feira de Saint-Germain.
No entanto, Calembredaine, como senhor da Porte de Nesle e do Pont Neuf, exigia para si só o melhor
bocado. A rivalidade não podia acabar senão com a morte de um ou dei outro.
Durante os últimos dias que precederam a abertura da feira, numerosas rixas estalaram no quartier.
Na véspera, as tropas de Calembredaine tiveram de recuar em desordem e refugiar-se nas ruínas da
Tour de Nesle, enquanto Rodoguno, o Egípcio, estabelecia uma espécie de cordão protetor em torno do
quartier, ao longo dos velhos fossos e do Sena.
Os homens de Calembredaine reuniram-se na grande sala, em volta da mesa em que Traseiro de Pau
vociferava como um demónio:
— Há meses que eu esperava essa pancadaria. Você é o culpado, Calembredaine! Sua mendiga o pôs
louco. Você não sabe mais bater-se; os outros mendigos se acautelam. Sentem que você perde terreno, e
vão dar ajuda a Rodoguno para fazê-lo cair. Eu vi Jaqueta Azul uma noite destas...
Em pé diante do fogo, contra o qual sua possante estatura se destacava em negro, Nicolau enxugava o
torso ensanguentado por um tiro de bacamarte. Ele rugiu mais forte que Traseiro de Pau:
— Sei bem que você é um traidor do bando; que reuniu todos os mendigos, que vai vê-los, que se
prepara para substituir o Grande CoêsrerMas tome cuidado! Eu irei prevenir Rolin Tarraco.
— Porcalhão! Você nada pode contra mim...
Angélica tornava-se louca à ideia de que esses rugidos de feras pudessem acordar Florimond e
aterrorizá-lo.
Voou até o quarto redondo. Mas as crianças dormiam serenamente. Cantor parecia um anjinho de
pintura holandesa. Florimond havia recuperado as carnes do rosto. Com as pálpebras cerradas sobre os
grandes olhos negros, ele reencontrava no sono uma expressão infantil e feliz.
Os gritos atrozes não cessavam.
"È preciso que isso acabe! É absolutamente necessário que isso termine", disse Angélica consigo
mesma, fechando o melhor que pôde a porta desmantelada.
Ela ouviu a voz rouca de Traseiro de Pau:
— Não se iluda, Calembredaine: se você recuar, pobre de você! Rodoguno será impiedoso! Não é
somente a feira que ele deseja, mas também a mulher que lhe disputou no Cimetiere des
SaintsTnnocents. Ele a deseja terrivelmente! Não Pode tê-la se você não desaparecer.
Nicolau pareceu acalmar-se.
— Que quer que eu faça? Toda essa gente, esses malditos egípcios, estão ali, do lado de fora, debaixo
do nosso nariz e, depois da surra que acabamos de receber, não vale a pena recomeçar. Seria suicídio.
Angélica voltou ao quarto, apanhou um manto e cobriu o rosto com a máscara de veludo vermelho
que conservava numa caixa com outras miudezas.
Depois, assim aparelhada, desceu para o meio das vocife-rações.
A discussão entre Calembredaine e Traseiro de Pau tornava-se épica. O chefe poderia esmagar sem
dificuldade o homem-tronco em seu prato de madeira. Mas tal era o ascendente de Traseiro de Pau que
este dominava completamente a situação.
Ao verem Angélica mascarada de vermelho, o tom baixou um pouco.
— Que significa esse carnaval? — rosnou Nicolau. — Aonde você vai?
— Muito simplesmente fazer decampar as tropas de Rodoguno. Dentro de uma hora a praça estará
vazia, senhores. Poderão retornar a suas áreas.
Calembredaine tomou Traseiro de Pau como testemunha:
— Não acha você que ela se torna cada vez mais louca?
— Acho, sim, mas afinal de contas, se isso lhe sugere ideias, deixe-a agir. Nunca se podem prever as
coisas, com essa maldita Marquesa dos Anjos! Ela fez de você um trapo. E bom, pelo menos, que
repare os danos.
Angélica dirigiu-se à Porte Saint-Jacques e, lá somente, procurou atravessar os fossos. Um dos
boémios de Rodoguno ergueu-se diante da moça. Ela algaraviou-lhe em alemão uma história
complicada: era uma comerciante da feira de Saint-Germain regressando ao seu negócio. Ele deixou
passar sem suspeita aquela mulher mascarada, envolta num manto negro. Ela correu, sem parar, à casa
de um saltimbanco seu amigo, que era proprietário de três ursos enormes. Angélica seduzira esses três
ursos e o velho dono, assim como a jovem que recolhia o dinheiro.
O negócio foi rapidamente concluído, por amor aos belos olhos da visitante.
Soavam as duas horas na Abadia de Saint-Germain-des-Prés, quando os homens de Rodoguno, que
vigiavam como sentinelas ao longo dos velhos fossos, viram, ao nevoento luar, crescer para eles uma
enorme massa a rosnar. Um dos vigilantes, que tentou perceber quem procurava assim forçar sua
barragem, recebeu em pleno peito um golpe de garras que lhe arrancou o casaco e um bom pedaço de
carne.
Os outros, sem aguardar mais amplas explicações, saltaram para trás das muralhas. Alguns cprreram
para o Sena, a fim <je prevenir seus cúmplices. Mas esses haviam igualmente recebido, em dois lugares,
a mesma desagradável visita. Já a maior parte dos bandidos estava dentro d'água, nadando para a
margem do Louvre e de outros sítios menos perigosos. Bater-se, deixar-se matar em franco duelo com
mendigos e narquois era coisa que não amedrontava os valentes. Mas lutar corpo a corpo com um urso
que, quando se erguia sobre as patas traseiras, tinha suas duas toesas bem contadas, a isso não se
animava nenhum dos homens de Rodoguno!
Angélica reapareceu: tranquilamente na Tour de Nesle e avisou que o bairro estava inteiramente livre
das presenças indesejáveis. O estado-maior de Calembredaine foi fazer um reconhecimento e teve de
render-se à evidência.
As gargalhadas cavernosas de Traseiro de Pau fizeram tremer as damas do bairro por trás de suas
cortinas.
— Ah! Ah! Ah! Essa Marquesa dos Anjos! — repetia ele. — Você fala de um milagre!
Mas Nicolau não pensou assim.
— Você se conciliou com eles para nos trair — repetia ele, moendo o pulso de Angélica. — Foi
vender-se a Rodoguno, o Egípcio!
Para acalmar seu furor ciumento, ela teve de lhe explicar seu estratagema.
Dessa vez, a hilaridade do aleijado estrondeou como o trovão. Alguns vizinhos puseram-se às janelas,
gritaram que iam descer com suas espadas ou alabardas para dar uma lição àqueles malandrins que
impediam as pessoas honestas de dormir.
O homem-tronco não lhes deu atenção. De pedra em pedra, ele atravessou todo o Faubourg Saint-
Germain rindo a bandeiras despregadas. Decorridos anos, ainda se contava, nos serões dos mendigos, a
história dos três ursos da Marquesa dos Anjos!

O supremo ardil não evitou o drama. Era o capitão de polícia Desgrez quem tinha razão quando, na
manhã do 1o de outubro, foi procurar o Sr. Dreux d'Aubrays, senhor d'Offémont e de Villiers, tenente-
civíl da cidade de Paris, e o persuadiu a colocar nas vizinhanças da feira de Saint-Germain todas as
forças de polícia disponíveis.
O dia, no entanto, foi calmo. Os homens de Calembredaine dominaram como senhores entre a
multidão cada vez mais densa. Ao crepúsculo, as carruagens da alta sociedade começaram a chegar.
Entre as centenas de velas acesas em cada loja, a feira tomava o aspecto de um palácio encantado.
Angélica estava junto de Calembredaine e acompanhava com ele as peripécias de uma luta de
animais: dois dogues contra um javali. A turba, fascinada por esses espetáculos cruéis, comprimia-se
contra a cerca da minúscula arena.
Angélica estava um pouco tonta, por ter provado seguidamente vinhos moscatéis, cidra ácida e água
de canela. Gastara prodigamente e sem escrúpulos o dinheiro de uma bolsa que Nicolau lhe entregara.
Havia comprado para Florimond marionetes e bolos. Pela primeira vez, a fim de não ser notado, pois
suspeitava que os tiras deviam estar à espreita, Nicolau se barbeara muito bem e vestira uma roupa
menos furada que aquela com que fazia seu disfarce habitual. Com o largo chapéu a ocultar-lhe os olhos
inquietantes, havia retomado o aspecto de um pobre camponês que vem, malgrado sua pobreza, divertir-
se na feira.
Esquecia-se tudo. As luzes se refletiam nos olhos: recordavam-se as belas feiras da infância nas vilas
ou nas aldeias.
Nicolau havia passado o braço em volta da cintura de Angélica. Ele tinha um modo pessoal de cingi-
la. Ela ficava com a impressão absoluta de estar fechada em um desses anéis de ferro que se põem à
cintura dos prisioneiros. Mas aquele rude amplexo não era sempre desagradável. Assim, nessa noite,
retida por aquele braço musculoso, ela se sentia diminuta e dócil, frágil e protegida. Com as mãos cheias
de bombons, de brinquedos e de pequenos frascos de perfumes, ela se apaixonava pelo combate de
animais, gritava e pulava com o público quando a bola negra e feroz do javali, sacudindo seus atacantes,
fazia voar na ponta de suas presas um dos dogues estripados.
Subitamente, defronte deles, do outro lado da arena, ela viu Rodoguno, o Egípcio.
Ele balançava um longo e fino punhal na ponta dos dedos. A arma lançada silvou por cima da arena.
Angélica se jogara para o lado, arrastando seu companheiro. A lâmina passou a uma polegada do
pescoço de Nicolau e foi enterrar-se na garganta de um comerciante de bibelôs chineses. Fulminado, o
homem ergueu os braços num espasmo, desdobrando os panos de seu manto variegado. Por um
momento, ele semelhou uma imensa borboleta espetada. Depois, revessou uma torrente de sangue e
desabou.
Então a feira de Saint-Germain explodiu.
Por volta da meia-ndite, Angélica, com uma dezena de mulheres, duas das quais pertenciam ao bando
de Calembredai-ne, foi atirada a um calabouço do Châtelet. Fechada de novo a pesada porta, pareceu-
lhe ouvir ainda o clamor da turba histérica, os gritos dos mendigos e os bandidos empurrados pelo
ancinho implacável de archeiros e-policiais, e que tinham sido trazidos, em várias levas, da feira de
Saint-Germain para a prisão comum.
— Bem o merecemos — disse uma meretriz. — É a minha sorte! Pela primeira vez que fui dar um
passeio fora de Gla-tigny, estava escrito que eu me deixaria prender. E são capazes de me fazer passar
pelo potro por não ter ficado no quarteirão reservado.
— É ruim o potro? — perguntou uma mocinha.
— Ah! Meu Deus, ainda tenho as veias e os nervos estirados como malvaísco. Quando o verdugo
me colocou nele, eu gritei: "Doce Jesus! Virgem Maria, tenha piedade de mim!"
— A mim — disse outra —, o verdugo introduziu-me um chifre oco até o fundo da garganta e me
entornou para dentro perto de seis bules de água fria. Ainda se fosse vinho! Pensei que ia estourar
como uma bexiga de porco. Depois, colocaram-me diante de um bom fogo, na cozinha do Châ-telet,
para me reanimar.
Angélica escutava essas vozes que saíam da escuridão pútrida e registrava essas palavras sem se
impressionar com tais detalhes. A ideia de que ela, sem dúvida, seria torturada no decorrer da questão
preventiva, obrigatória para todos os acusados, não penetrava em seu espírito. Um só pensamento a
dominava: e os meninos?... Que iria suceder-lhes?... Quem iria ocupar-se deles? Talvez fossem esquecê-
los na torre! Os ratos os comeriam...
Embora a atmosfera da enxovia fosse glacial e úmida, o suor lhe perlava as têmporas.
Agachada sobre uma camada de palha podre, ela apoiava-se à parede e, com os braços unidos em
volta dos joelhos, esforçava-se por não tremer e por encontrar razões para tranqúilizar-se.
"Haverá certamente alguma mulher que se ocupe deles. Elas são negligentes, incapazes, mas em todo
caso pensam em dar pão aos seus filhos... Elas o darão aos meus. Além disso, se a Polaca estiver lá,
saberá cuidar deles... E Nicolau velará..."
Mas Nicolau não teria sido preso também? Angélica revivia seu próprio pânico quando, de ruela em
ruela, para escapar à rixa sangrenta, vira, por toda parte, levantar-se diante dela uma barreira de
archeiros e policiais.
Todas as saídas da feira e do faubourg estavam tomadas, parecendo que a polícia e a guarda de Paris
se haviam subitamente multiplicado.
Angélica procurava recordar se a Polaca tinha podido deixar a feira antes do conflito. Da última vez
que a vira, a prostituta arrastava um jovem provinciano, ao mesmo tempo assustado e feliz, para as
margens do Sena. Mas, antes, eles poderiam ter parado em várias lojas, passeado, bebido em uma
taberna...
Angélica conseguiu convencer-se de que a Polaca não tinha sido presa e esse pensamento acalmou-a
um pouco. Do fundo de sua angústia, uma súplica se elevava, e fragmentos de preces esquecidas lhe
vinham aos lábios, maquinalmente:
"Piedade para eles! Proteja-os, Virgem Maria... Eu juro", repetia ela, "que se meus filhos forem salvos
eu me libertarei deste atoleiro degradante... Fugirei desta companhia de criminosos e ladrões. Tentarei
ganhar a vida trabalhando com as minhas mãos..."
Pensou na florista e fez alguns projetos. As horas pareceram-lhe menos longas.

De manhã houve um grande ruído de fechaduras e ranger de chaves, e a porta se abriu. Um archeiro
da ronda proje-tou para o interior o clarão de uma tocha. A luz que vinha da seteira, rasgada nas duas
toesas de espessura da muralha, era tão fraca que não se distinguia grande coisa na enxovia.
— Eis as marquesas, rapazes — gritou o archeiro com ar jovial. — Aproximem-se um pouco. A
colheita será bela.
Três outros soldados da ronda entraram por seu turno e fincaram a tocha em uma argola da parede.
— Vamos, queridas, vão ser boazinhas, hem?
E um dos homens tirou de baixo do casaco uma tesoura.
— Tire a touca — disse ele à mulher que se achava junto da porta. — Oh! Cabelos cinzentos... Enfim,
render-me-ão alguns soldos. Conheço um barbeiro nas proximidades da Place Saint-Michel que faz
perucas com eles, a bom preço, para os velhos escreventes.
Cortou a cabeleira cinza, atou-a com um barbante e atirou-a num cesto. Seus companheiros
examinaram as cabeças das outras prisioneiras.
— Comigo não terão trabalho — disse uma delas. — Voces me tosquiaram nao faz muito tempo.
— Sim, é verdade — disse o archeiro, jovial. — Eu a reconheço, mãezinha. Pelo que vejo, você
tomou gosto pelo albergue!
Um soldado aproximara-se de Angélica. Ela sentiu a mão grosseira apalpar-lhe a cabeleira.
— Ei, amigos — chamou ele —, eis uma maravilha. Aproximem um pouco a tocha para que eu veja
isto de perto.
A chama resinosa alumiou os belos cabelos castanhos e anelados que o soldado acabara de libertar,
retirando a touca de Angélica. Ele soltou um assovio admirativo.
— Magnífico! Não são louros, evidentemente, mas têm brilho. Vamos poder vender esses cabelos ao
Sr. Binet, da Rue Saint-Honoré. Ele não se importa com o preço, mas com a qualidade: "Levem seus
pacotes de piolhos", diz-me todas as vezes que lhe levo crina de prisioneiros. "Eu não fabrico perucas
com cabelos que já estão bichados!" Mas, desta vez, ele não poderá fazer-se desdenhoso.
Angélica levou as mãos à cabeça. Não iriam cortar-lhe os cabelos. Era uma coisa inconcebível!
— Não, não, não façam isso! — suplicou ela. Mas um punho sólido afastou-lhe as mãos.
— Vamos, minha bela, você não precisava vir ao Châtelet se queria guardar suas crinas. Nós, você
compreende, bem precisamos ter nossos pequenos lucros.
Com grandes ruídos de aço, a tesoura cortou os cachos castanhos com reflexos dourados, que Bárbara
recentemente havia escovado com tanto carinho.
Quando os soldados saíram, Angélica passou a mão trémula sobre a nuca rapada. Sua cabeça parecia-
lhe ter ficado menor e mais leve.
— Não chore — disse uma das mulheres. — Eles crescerão de novo. Mas é preciso que não mais se-
deixe prender. Por que os homens da ronda são uma raça de ceifeiros. É isso, os cabelos vendem-se caro
em Paris, com todos os gamenhos que querem usar peruca.
Sem responder, a jovem recolocou a touca. Suas companheiras criam que ela chorava, porque era
sacudida por grandes tremores nervosos. Mas o incidente já ia sendo esquecido. Afinal de contas, não
tinha importância. Uma só coisa lhe interessava: a sorte de seus filhos.
CAPÍTULO, XII

Angélica é condenada ao açoite

As horas passavam com uma lentidão acabrunhante. O calabouço em que haviam amontoado as
prisioneiras era tão pequeno que ali se respirava mal. Uma das mulheres disse:
— É bom sinal terem-nos posto nesta pequena cela. É esta que designam pelo nome de "Entre-duas-
portas". Nela colocam as pessoas que não se sabe ao certo se devem ser consideradas em estado de
prisão. Afinal de contas, quando fomos presas, nada fazíamos de mau. Estávamos na feira, como todo
mundo. A prova de que todo mundo estava lá é que não nos revistaram, pois as próprias matronas
juramentadas do Châtelet tinham ido divertir-se na feira de Saint-Germain.
— A polícia também lá estava — fez notar uma das meretrizes, com amargura.
Angélica apalpou, sob suas vestes, o punhal. Era um punhal semelhante ao que Rodoguno, o Egípcio,
havia lançado ao rosto de Nicolau.
— Uma sorte que não nos tenham revistado — repetiu a mulher, que também devia ocultar uma arma
ou talvez uma pobre bolsa com alguns escudos.
— Isso virá, não se preocupe — retorquiu sua companheira.
A maior parte das mulheres não se mostrou muito otimista. Contavam histórias de prisioneiras que
tinham ficado encarceradas dez anos, antes que se lembrassem delas. E as que conheciam o Châtelet
descreviam as prisões contidas na sinistra fortaleza. Havia o calabouço "Fim-do-conforto", cheio de
imundícies e de répteis, onde o ar era tão infecto que não se podia ter uma vela acesa; o "Açougue",
assim denominado porque ali se respiravam as exalações nauseabundas do grande talho vizinho; as
"Correntes", grande sala em que os prisioneiros eram acorrentados uns aos outros; a "Barbaria"; a
"Gruta"; e outros ainda: o "Poço", a "Fossa", que tinha a forma de um cone invertido. Os presos ali
permaneciam com os pés dentro d'água e não podiam ficar aprumados nem deitados. Ordinariamente,
morriam ao fim de quinze dias de detenção. Afinal, abaixavam a voz para falar da "Ou-bliette",
masmorra subterrânea donde ninguém voltava.
Uma claridade cinza entrava pela seteira gradeada. Era impossível adivinhar-se a hora. Uma velha
tirou os sapatos acalcanhados, arrancou os pregos da sola e enfiou-os ao contrário, com as pontas para
fora. Mostrou a suas companheiras essa arma estranha e recomendou-lhes que fizessem o mesmo, para
poderem matar os ratos que viriam durante a noite.
Lá para o meio-dia, a porta abriu-se com ruído, e alabardeiros fizeram sair as prisioneiras. De corredor
em corredor, eles as conduziram a uma grande sala forrada de tapetes azuis com flores-de-lis amarelas.
Ao fundo, sobre um estrado em semicírculo, havia uma espécie de cátedra de madeira esculpida, por
baixo de um quadro que representava o Cristo crucificado, e de um pequeno dossel de tapeçaria.
Um homem de beca, usando volta agaloada de branco e peruca branca, estava sentado nela. Outro,
tendo um maço de pergaminhos, achava-se ao seu lado. Eram o preboste de Paris e seu lugar-tenente.
Meirinhos e soldados da Guarda Real cercaram as mulheres. Foram empurradas para perto do estrado
e tiveram de passar diante de uma mesa onde um escrivão anotava seus nomes.
Angélica hesitou quando lhe perguntaram o seu. Ela não tinha mais nome!... Finalmente, disse
chamar-se Ana Sauvert, o nome de uma aldeia dos arredores de Monteloup, que lhe veio subitamente à
memória.
O julgamento foi rápido. O Châtelet, nesse dia, transbordava. Era preciso joeirar depressa.
Depois de dirigir algumas perguntas a cada uma das detidas, o lugar-tenente do preboste leu a lista
que lhe haviam entregue e declarou que "todas as supraditas pessoas eram condenadas a ser
publicamente açoitadas, depois seriam conduzidas ao Hospital Geral, onde pessoas piedosas lhes ensi-
nariam a coser, bem como a rezar a Deus".
— Será fácil a fuga — cochichou uma das meretrizes a Angélica. — O Hospital Geral não i prisão. É
o asilo dos pobres. Metem-nos lá, por bem ou por mal, mas não ficamos guardadas. Não nos será difícil
escapar.
Em seguida, um grupo de umas vinte mulheres foi conduzido a uma vasta sala do rés-do-chão e
fizeram-nas enfileirar-se ao longo da parede. Abriu-se a porta e um militar alto e corpulento entrou.
Usava belíssima peruca escura que emoldurava um rosto corado, dividido em dois por um bigode negro.
Com sua túnica azul esticada sobre as espáduas roliças de gordura, seu largo boldrié sobre a pança
avantajada, os vastos punhos das mangas cobertos de passamanes, sua espada e sua enorme volta com
borlas douradas, tinha um pouco o aspecto do Grande Mateus, mas sem apresentar a bonomia nem a
jovialidade do charlatão. Seus olhos enterrados sob supercílios espessos eram pequenos e duros.
Estava calçado com botas de tacões altos, que aumentavam ainda mais sua possante estatura.
— É o oficial da ronda — cochichou a vizinha de Angélica. — Oh! Ele é terrível. Chamam-lhe Ogro.
O Ogro passava diante das prisioneiras fazendo retinir suas esporas sobre as lajes.
— Ah! Ah!, minhas pequenas, levarão uma boa escovade-la! Vamos, baixai as camisas. E atenção:
para aquelas que gritarem muito alto haverá uma chibatada a mais!
Mulheres que já tinham conhecido o suplício do látego tiraram docilmente os corpetes. As que
usavam camisa fizeram-na escorregar ao longo dos braços e cair sobre as saias. Os soldados
caminhavam para aquelas que mostravam hesitação e despiam-nas brutalmente. Um deles, tentando
arrancar o corpete de Angélica, rasgou-o parcialmente. Ela própria se apressou em pôr o busto nu, com
medo de que notassem o cinto em que estava o seu punhal.
O oficial da ronda ia e vinha, examinando as mulheres. Parava diante das mais jovens e um fogo se
acendia em seus pequenos olhos porcinos. Enfim, com gesto imperativo, ele apontou Angélica.
Cacarejando um riso cúmplice, um dos soldados fê-la sair da fileira.
— Vamos, levem toda essa canalha — ordenou o oficial. — E que a pele lhes arda! Quantas são?
— Uma vintena, senhor.
— São quatro horas da tarde. Devem terminar antes do pôr-do-sol.
— Está bem, senhor.
Os soldados fizeram sair as mulheres. Angélica percebeu no pátio uma carroça cheia de varas que
devia seguir o lastimável cortejo até o lugar reservado para os castigos públicos, perto da Igreja de
Saint-Denis-de-la-Châtre. A porta fechou-se outra vez. Angélica permaneceu sozinha com o oficial da
ronda. Dirigiu-lhe um olhar surpreso e inquieto. Por que não seguia a sorte de suas companheiras? Iriam
devolvê-la à prisão?
Aquela sala, baixa e abobadada com as paredes úmidas, estava glacial. Embora ainda fosse dia lá fora,
a escuridão já a invadia, e foi preciso acender uma vela. Angélica, trémula, cruzava os braços e apertava
os ombros com as mãos, menos talvez para se proteger do frio do que para furtar seu peito ao olhar
impudente do Ogro.
Este aproximou-se pesadamente e tossiu fraco.
— Então, minha pequena, você tem mesmo vontade de fazer esfolar suas bonitas costas brancas?
Como ela não respondesse, ele insistiu:
— Responda! Tem mesmo vontade?
Evidentemente, Angélica não podia dizer que tinha vontade. Sacudiu negativamente a cabeça.
— Pois bem, podemos arranjar isso — tornou o militar num tom adocicado. — Seria uma pena
estragar uma tão be
la franguinha. Talvez possamos entender-nos, nós dois.
Ele passou-lhe um dedo sob o queixo, para obrigá-la a erguer a cabeça, e assoviou de admiração.
— Com os diabos! Belos olhos! Sua mãe deve ter bebido absinto enquanto a esperava! Vamos, dê-me
um risinho.
Dissimuladamente, seus grossos dedos afagaram o pescoço delicado, acariciaram o ombro redondo.
Ela recuou, sem poder dominar um estremecimento de aversão. O Ogro deu uma risada que lhe
sacudiu o ventre. Ela olhou-o fixamente, com seus olhos verdes. Enfim, embora ele a dominasse com
toda a sua, corpulência, foi quem primeiro pareceu embaraçado.
— Estamos de acordo, não é? — tornou ele. — Você virá comigo ao meu apartamento. E depois se
juntará às companheiras. Mas os soldados deixá-la-ão em paz. Você não será açoitada... Está satisfeita,
meu bem?
Ele deu uma gargalhada alegre. Depois, com passo decidido, puxou-a para si e começou a dar-lhe no
rosto grandes beijos sonoros e ávidos.
O contato daquele focinho úmido, com hálito de tabaco e de vinho tinto, repugnou Angélica. Ela se
debatia como uma enguia para fugir aquele abraço. O boldrié e os passa-manes do uniforme do capitão
arranhavam-lhe o peito.
Conseguiu, afinal, livrar-se e apressou-se a vestir, tão bem quanto pôde, a camisa em farrapos.
— Ei! Que é isso? — disse o gigante, espantado. — Que foi que lhe deu? Não compreendeu que-
quero poupá-la ao castigo?
— Agradeço-lhe — disse Angélica em tom firme. — Mas prefiro ser açoitada.
O Ogro escancelou a boca, seus bigodes tremeram e ele se tornou carmesim como se os cordões de
sua volta o houvessem subitamente estrangulado.
— Que é... Que é que você diz?...
— Prefiro ser açoitada — repetiu Angélica. — O senhor preboste de Paris condenou-me ao açoite.
Não devo fugir a justiça.
E caminhou resolutamente para a porta. De um só passo, ele a alcançou e agarrou-a pela nuca.
"Oh, meu Deus", pensou Angélica. "Nunca mais agarrarei um frango pelo pescoço. Dá uma impressão
horrível!"
O capitão examinou-a com atenção.
— Você é uma beleza de mendiga — disse ele, ofegando um pouco. — Pelo que acaba de dizer, eu
poderia dar-lhe pranchadas de sabre e deixá-la por morta sobre o lajedo. Mas não quero estragá-la. Você
é bela, bem-feita. Quanto mais a olho, mais a desejo. Seria uma pena não nos entendermos. Eu posso
ser-lhe útil. Escute, não faça cara feia. Seja gentil para comigo e, quando se juntar às outras... Bem!...
Talvez o guarda que a conduz olhe para outro lado...
Em um relâmpago, Angélica entreviu a evasão. Os mimosos rostos de Florimond e Cantor dançaram
diante de seus olhos.
Viu a face brutal e vermelha inclinar-se para ela. Contra a vontade, seu corpo se revoltou. Era
impossível. Nunca ela poderia! Além disso, fugia-se do Hospital Geral... e mesmo durante o trajeto para
lá ela poderia tentar...
— Prefiro o Hospital Geral! — gritou ela, fora de si. — Prefiro...
O resto perdeu-se em um turbilhão de tempestade. Sacudida a ponto de perder o fôlego, ouvia chover
sobre si um rosário de injúrias tonitruantes. O abismo claro de uma porta abriu-se, e ela foi projetada por
ali como uma bala.
— Que me sovem essa puta até arrancar-lhe a pele!
E a porta bateu como um trovão.

Angélica foi cair num grupo de homens da guarda civil, que vinham fazer a ronda da noite. Estes
eram, pela maior parte, artesãos e comerciantes pacíficos, que não deixavam de cacetear-se com essa
obrigação imposta alternadamente às corporações, para a segurança da cidade. Constituíam a ronda
"sentada" e "dormente", o que era todo um programa. Apenas começavam a tirar seus baralhos e
cachimbos, quando receberam nas pernas aquela moça seminua. A ordem do capitão fora rugida em tal
diapasão que ninguém a compreendera.
— Mais uma que o nosso valoroso capitão maltrata — disse um deles. — Não se pode dizer que o
amor o enternece.
— No entanto, faz sucesso. Suas noites nunca não solitárias.
— Ora essa! Ele tira prisioneiras do lote e lhes dá a escolher entre a prisão e o seu leito.
— Se o preboste de Paris soubesse disso, ele poderia arrepender-se.
Angélica erguera-se, contundida. Os homens da ronda olharam-na calmamente. Enchiam seus
cachimbos e emba-ralhavam as cartas.
Hesitante, a jovem caminhou até a parta do corpo da guarda. Ninguém a deteve.
Achou-se na passagem abobadada da Rue Saint-Leufroy, que comunicava, pela fortaleza do Châtelet,
a Rue Saint-Denis com o Pont au Change.
Pessoas iam e vinham. Angélica compreendeu que estava livre. Pôs-se a correr espavorida.

CAPÍTULO XIII

Angélica arranca seu filho Cantor aos ciganos

—Psiu! Marquesa dos Anjos!... Cuidado, não prossiga!


A voz da Polaca fez parar Angélica, quando esta se aproximava da Tour de Nesle.
Ela se voltou e viu a mulher, que, dissimulada na sombra de um pórtico, lhe fazia sinais. Juntou-se a
ela.
— Oh! Minha pobre menina — suspirou a outra —, estamos em apuros! Felizmente Belo Rapaz acaba
de chegar. Ele se fez tonsurar por um "irmão", e depois disse aos guardas que era um frade. Então,
enquanto o transferiam do Châte-let para a prisão do arcebispado, ele se arrancou.
— Por que você me impede de ir à Tour de Nesle?
— Então você não sabe? Rodoguno, o Egípcio, e todo o seu bando estão lá.
Angélica ficou lívida. A Polaca explicou:
— Só vendo como eles nos fizeram decampar! Nem tivemos tempo de apanhar nossas roupas! Olhe,
ainda assim pude salvar seu cofre e seu macaco. Estão na Rue du Vald'Amour, em uma casa onde Belo
Rapaz tem amigos e onde vai alojar suas mulheres.
— E meus filhos? — interrogou Angélica.
— Quanto a Calembredaine, ninguém sabe o que lhe aconteceu — continuou a Polaca, falando
apressadamente. — Prisioneiro? Enforcado?... Há quem diga que o viu lançar-se no Sena. Talvez tenha
alcançado o campo...
— Que vá para o diabo Calembredaine — disse Angélica, com os dentes cerrados.
Ela havia segurado a outra pelos ombros e enterrava-lhe as unhas na carne.
— Onde estão meus filhos?
A Polaca olhou-a com seus olhos negros, um tanto perturbada, e depois abaixou as pálpebras.
— Eu não queria, asseguro-lh&... mas os outros eram mais fortes...
— Onde estão eles? — repetiu-lhe Angélica com voz sem timbre.
— João Podre apanhou-os... com todas as crianças que pôde encontrar.
— Levou-os para lá... para o Faubourg Saint-Denis?
— Levou. Isto é, levou Florimond. Cantor, não. Disse que não podia alugá-lo a mendigos, por ser
muito gordo.
— Que foi que fez dele?
— Ele... ele o vendeu... Vendeu por trinta soldos... a ciganos que precisavam de um menino para
aprender acrobacia.
— Onde estão os ciganos?
— Como posso saber? — protestou a Polaca, desprendendo-se com irritação. — Tire de mim as suas
garras, pois está-me ferindo... Que quer que eu lhe diga?... Eram ciganos... Eles foram embora. A
batalha da noite os assustou. Deixaram a cidade.
— Em que díreção partiram?
— Faz apenas duas horas que os vi dirigindo-se para Porte Saint-Antoine. Vim rondar por aqui, na
esperança de encontrá-la. Você é mãe, e as mães atravessam muralhas...
Angélica estava dilacerada de dor. Sentia-se enlouquecer.
Florimond entre as mãos do ignóbil João Podre, chorando, chamando sua mãe!... Cantor levado para
sempre, rumo ao desconhecido!
— E preciso ir buscar Cantor — disse ela. — Talvez os ciganos ainda não estejam longe de Paris.
— Você perdeu o juízo, minha pobre Marquesa?
Mas Angélica já se tinha posto em marcha. A Polaca, resignada, acompanhou-a.
— Eu também vou. Tenho algum dinheiro. Talvez eles no-lo queiram revender...

Havia chovido durante o dia. O ar estava úmido e cheirava a outono. As lajes luziam.
As duas mulheres seguiram o Sena pela margem direita e saíram de Paris pelo Quai de 1'Arsenal. No
horizonte, sobre a campina, o céu baixo abria-se largamente num vermelho profundo. Um vento frio
soprava àquela hora. Pessoas dos arrabaldes disseram às duas mulheres que tinham visto os ciganos na
vizinhança do Pont de Charenton.
Elas caminhavam depressa. De quando em quando, a Polaca erguia os ombros e soltava uma
imprecação, mas não protestava. Acompanhava Angélica com o fatalismo de um ser que muito havia
caminhado e seguido outros, sem compreender, em todos os tempos, por todos os caminhos.
Quando se aproximavam do Pont de Charenton, notaram fogos acesos em um prado, abaixo da
estrada.
À Polaca parou.
— São eles — disse.em voz baixa. — Estamos com sorte.
Dirigiram-se para o acampamento. Um bosquete de grandes cavalos havia, sem dúvida, convidado a
tribo a interromper a marcha naquele lugar. Telas estendidas de um ramo a outro constituíam o único
abrigo dos boémios para aquela noite chuvosa. Mulheres e crianças estavam sentadas em volta dos
fogos. Assavam um carneiro num espeto grosseiro. Separadamente, alguns magros cavalos pastavam.
Angélica e sua companheira aproximaram-se.
— Tome cuidado para não irritá-los — cochichou a Polaca. — Você não imagina como são maus!
Eles nos espetariam tão calmamente como ao seu carneiro, e ninguém falaria mais nisso. Basta que me
deixe conversar. Conheço um pouco a língua deles...

Um dos zíngaros, de alta estatura e coberto por um barrete de pele, deixou a claridade do fogo e
encaminhou-se para as duas mulheres. Elas deram as senhas da mendicância; o homem respondeu com
altivez. Depois disso, a Polaca procurou explicar o fim da visita. Angélica não entendia as palavras que
eram trocadas. Buscava descobrir no rosto do cigano o que ele pensava, mas a escuridão agora era quase
completa e ela não podia distinguir-lhe os traços.
Finalmente, a Polaca tirou sua bolsa. O homem a sopesou, devolveu-a e afastou-se em direção dos
fogos.
— Ele disse que vai falar com os demais da tribo.
Elas esperaram, geladas pelo vento que provinha da planície. Depois, o homem voltou cprn o mesmo
passo tranquilo e flexível.
Pronunciou algumas palavras.
— Que disse ele? — reclamou Angélica, anelante.
— Ele disse... que eles não querem entregar o menino. Acham-no belo e gracioso e já lhe têm afeição.
Dizem que tudo está bem assim.
— Mas isso não é possível!... Quero meu filho — gritou Angélica.
E fez um movimento para se precipitar em direção do acampamento. A Polaca reteve-a com mão
firme. O cigano havia puxado da espada e outros se aproximavam. A prostituta arrastou sua
companheira para a estrada.
— Você está maluca!... Quer a morte?
— Não é possível — repetia Angélica. — E preciso fazer alguma coisa. Eles não podem levar Cantor
para longe... longe...
— Não se aflija, é a vida! Cedo ou tarde, os filhos se vão... Um pouco mais cedo, um pouco mais
tarde, tudo dá na mesma. Eu também tive filhos! Nem ao menos sei onde eles estão. Isso não me impede
de viver!
Angélica sacudiu a cabeça para não ouvir aquela voz. A chuva começara a cair, fina e abundante. Era
preciso fazer alguma coisa.
— Tenho uma ideia — declarou ela. — Regressemos a Paris. Quero voltar ao Châtelet.
— Otimo! Voltemos a Paris — aprovou Polaca.
Puseram-se de novo a caminhar, escorregando nas poças de lama. Os pés de Angélica, em seus sapatos
rotos, estavam sangrando. O vento colava em suas pernas a saia encharcada. Ela sentia-se desfalecer.
Nada havia comido nas últimas vinte e quatro horas.
— Não posso mais — murmurou ela, parando para tomar fôlego. — E, no entanto, é preciso agir
depressa... depressa...
— Espere, percebo lanternas atrás de nós. São cavaleiros que se dirigem a Paris. Vamos pedir-lhes
que nos levem à garupa.
Ousadamente, a Polaca plantou-se no meio da estrada. Quando o grupo estava bem perto, ela gritou
com sua voz rouca, mas que sabia tomar inflexões doces.
— Olá, galantes senhores! Não teriam nenhuma piedade de duas belas jovens que estão em
dificuldades? Saberemos agradecer-lhes.
Os cavaleiros retiveram seus animais. Deles não se distinguiam senão os capotes com a gola erguida e
os chapéus ensopados. Eles trocaram entre si palavras em uma língua estrangeira. Depois, uma mão
estendeu-se para Angélica, e uma jovem voz francesa disse:
— Monte, minha bela.
O punho era enérgico. A jovem achou-se comodamente sentada de lado, atrás do cavaleiro. Os
cavalos retomaram a marcha.
A Polaca ria. Vendo que era estrangeiro aquele que a tomara à garupa, pôs-se a trocar com ele
gracejos no áspero alemão que aprendera nos campos de batalha.
O companheiro de Angélica disse, sem se voltar:
— Agarre-se bem a mim, minha filha. A cavalgadura tem o trote duro e a minha sela é estreita. Você
corre o risco de cair.
Ela obedeceu e passou os braços em volta do busto do rapaz, juntando as duas mãos geladas contra o
peito tépido. Aquele calor fez-lhe bem. Reclinou a cabeça nas sólidas costas do desconhecido e gozou
um instante de repouso. Agora que ela sabia o que devia fazer, achava-se mais calma. Acerca dos
cavaleiros, deduziu tratar-se de um grupo de protestantes que voltavam do Temple de Charenton.
Pouco depois, entraram em Paris. O companheiro de Angélica pagou por ela a peagem da Porte Saint-
Antoine.
— Onde devo deixar-lhe, minha bela? — perguntou ele, voltando-se desta vez para procurar ver-lhe o
rosto.
Angélica sacudiu o torpor que se apoderara dela havia alguns instantes.
— Não quero abusar do seu tempo, senhor, mas me deixaria muito agradecida levando-me até o
Grande Châtelet.
— Farei isso com prazer.
— Angélica — gritou a Polaca — y você vai fazer uma besteira. Cuidado!
— Deixe-me... E passe-me sua bolsa. Ainda poderei precisar dela.
— Está bem. Afinal de contas... — murmurou a Polaca, encolhendo os ombros.
Ela havia saltado a terra e prodigalizava seus agradecimentos em língua tedesca ao seu cavaleiro, o
qual, aliás, não era alemão, mas holandês, e parecia ao mesmo tempo contente e embaraçado com
aquela cordialidade.
O cavaleiro de Angélica tirou o chapéu para se despedir dos outros, depois lançou seu cavalo através
da rua larga e quase vazia do Faubourg Saint-Antoine. Alguns minutos mais tarde, parava diante da
prisão do Châtelet, que Angélica deixara algumas horas antes.
Ela apeou-se. Grandes tochas fixadas sob o arco principal da fortaleza alumiavam a praça. A luz
vermelha, Angélica viu melhor seu cativante companheiro. Era um rapaz de vinte e cinco anos, vestido
confortável mas simplesmente, à moda burguesa.
Ela lhe disse:
— Peço desculpas por tê-lo separado de seus amigos.
— Não tem importância. Aqueles moços não são meus amigos. São estrangeiros. Eu sou francês e
moro em La Rochel-le. Meu pai, que é armador, enviou-me a Paris para inteirar-me do comercio da
capital. Eu viajava com esses estrangeiros porque os encontrei no Temple de Charenton, onde assistimos
ao enterro de um de nossos correligionários. Você bem vê que não contrariou meus projetos.
— Agradecida por me dizer isso tão amavelmente, senhor.
Ela estendeu-lhe a mão. Ele a pegou; e ela viu inclinar-se para si um rosto jovem, bom e grave, que lhe
sorria.
— Estou contente por tê-la servido, minha amiga.
Ela o viu afastar-se por entre a agitação e os balcões sanguinolentos da Rue de la Grande-Boucherie.
Ele não se voltou, mas esse encontro tinha reanimado a jovem.
Um pouco mais tarde, Angélica penetrou resolutamente na passagem abobadada e apresentou-se à
porta do corpo da guarda. Um soldado a deteve.
— Quero falar ao capitão da ronda.
O homem teve um piscar de olho compreensivo.
— O Ogro? Pois bem, vá lá, pequena, já que é do seu agrado.
A sala estava azulada pelo fumo dos cachimbos. Ali penetrando, Angélica teve o gesto maquinal de
alisar sua saia úmi-da. Percebeu que uma vez mais o vento lhe arrancara a touca, e sentiu vergonha ao
pensar em sua cabeça despojada. Tirou seu lenço do pescoço, cobriu-se com ele e atou as duas pontas
sob o queixo.
Dirigiu-se depois para o fundo da peça. Diante do fogo da lareira, destacava-se em negro a imponente
silhueta do capitão. Ele perorava ruidosamente, tendo numa das mãos seu cachimbo de longo tubo e na
outra um copo de vinho. Seus interlocutores o escutavam bocejando e balançando-se em suas cadeiras.
Estavam habituados àquelas fanfarronadas.
— Olhem! Uma garota vem-nos visitar — observou um dos soldados, feliz com a diversão.
O capitão teve um sobressalto e fez-se violeta ao reconhecer Angélica. Ela não lhe deu tempo de sair
do pasmo e exclamou:
— Senhor capitão, escute-me. E vocês, senhores militares, venham em meu socorro! Ciganos
raptaram meu filho e levam-no para fora de Paris. Estão acampados neste momento junto ao Pont de
Charenton. Eu lhes suplico, venham co
migo para obrigá-los a entregar meu filho. Eles terão de obedecer às ordens da ronda...
Houve um silêncio de estupor. De repente, um dos homens soltou uma gargalhada.
— Oh! Essa é boa! É a mais forte que já ouvi! Oh! Oh! Oh! Uma rapariga que vem deslocar a ronda
para... Oh! E muito engraçado! Mas por quem se toma, marquesa?
— Ela sonhou! Acreditou que era a rainha da França!
O riso ganhou a sala inteira. Para qualquer lado que se voltasse, Angélica não via senão bocas abertas e
espáduas sacudidas por um riso inextinguível. Somente o capitão não ria, e sua face carmesim assumia
uma expressão terrível.
"Ele vai atirar-me à prisão, estou perdida!", pensou Angélica.
Tomada de pânico, ela olhava em torno de si.
— É um menino de oito meses — gritou. — É belo como um anjo. Parece-se com os seus, bebes que
neste momento estão dormindo em seu berço, perto de sua mãe... E os "egípcios vão levá-lo para
longe... longe... Ele nunca mais verá sua mãe... Não conhecerá sua pátria, nem seu rei... Ele..."
Os soluços a sufocaram. Os risos extinguiram-se nas faces hílares dos soldados e dos homens da
ronda. Houve algumas zombarias, depois trocaram-se olhares constrangidos.
— Enquanto esta mendiga quer tanto ao filho — disse um velho costurado de cicatrizes —, há muitas
que abandonam os seus nas esquinas das ruas.
— Silêncio! — trovejou o capitão.
E postou-se diante da jovem.
— Então — disse ele com uma calma sinistra —, você não somente é uma puta sem camisa,
condenada ao açoite, mas ainda se permite assumir grandes ares e acha muito natural vir perturbar uma
patrulha! E que é que dá em troca,
marquesa?
Ela o olhou ardentemente:
— A mim.
Os olhos do colosso retraíram-se, e ele teve novo sobressalto.
— Venha para cá — decidiu ele bruscamente.
E colocou-a num compartimento vizinho, que servia de escritório.
— Que quis dizer, exatamente? — rosnou. Angélica engoliu a saliva, mas não se esquivou.
— Eu quis dizer que farei o que o senhor quiser. Subitamente, foi tomada de um medo insensato.
Receava
que ele não a quisesse mais, considerando-a muito insignificante. As vidas de Cantor e Florimond
dependiam do desejo daquele bruto. Mas ele dizia a si mesmo que nunca vira uma prostituta como
aquela. Um corpo de deusa! Aquilo se adivinhava sob os andrajos. Qualquer coisa muito diferente das
gordas meretrizes do seu trivial. Mas o rosto, sobretudo! Ele nunca olhara uma prostituta no rosto. Nada
interessante. Fora preciso que ele vivesse até agora para descobrir o que significava o rosto de uma
mulher!
O Ogro tornou-se meditativo, e Angélica tremia. Finalmente, ele estendeu as mãos, tomou-a sob as
axilas, a fim de puxá-la rudemente para si.
— O que eu quero — disse ele com ar feroz —, o que eu quero...
Estava hesitante. Ela não suspeitou que havia timidez naquela hesitação.
— Quero uma noite inteira — concluiu ele. — Compreendeu? Não uma curta passagem entre duas
portas, como lhe propus há pouco... Quero toda uma noite.
Largou-a e retomou seu cachimbo com gesto vingador.
— Isso a ensinará a não se fazer pretensiosa! Então? Entendidos?
Incapaz de falar, ela fez com a cabeça um sinal afirmativo.
— Soldado! — chamou o capitão. Um oficial aproximou-se.
— Os cavalos e cinco homens!... E mãos à obra!
A pequena tropa deteve-se ao ver o acampamento dos ciganos. O capitão deu as suas ordens.
— Dois homens ficarão mais adiante, atrás do pequeno bosque, para o caso de eles terem a ideia de
safar-se pelo campo.
Você, rapariga, ficará aqui.
Com o instinto de animais habituados a farejar a noite, os boémios já olhavam para a estrada e se
agrupavam.
O capitão e os soldados avançaram, enquanto os dois homens designados operavam um movimento de
cerco.
Angélica ficou na sombra. Ouviu o capitão da ronda, que, por meio de imprecações, explicava ao
chefe da tribo que toda a sua gente, homens, mulheres e crianças, devia enfileirar-se diante dele. Ia
recenseá-los. Era uma formalidade compulsória, por causa do que se passara na véspera na feira de
Saint-Germain. Depois seriam deixados em paz.
Tranquilizados, os nómades decidiram-se a obedecer. As importunações das polícias do mundo inteiro
eram-lhes familiares.
— Venha cá, jovem! — bramiu o capitão.
Angélica atendeu.
— O filho desta mulher está entre vocês — tornou o oficial. — Entreguem-no, ou nós os espetaremos
a todos.
Nesse momento, Angélica deu com os olhos em Cantor. Ele dormia sobre o seio moreno de uma
cigana. Com um rugido de leoa, ela saltou para a mulher e arrancou-lhe o bebe, que se pôs a chorar. A
cigana gritou, mas, com voz rude, o chefe da tribo ordenou-lhe que se calasse. A presença dos archeiros
a cavalo, cujas alabardas, em posição horizontal, brilhavam à luz das chamas, fizera-lhe compreender
que toda resistência seria inútil.
No entanto, ele afetou grande arrogância e fez notar que o menino tinha sido comprado por trinta
soldos. Angélica atirou-lhe essa quantia.
Seus braços fecharam-se com amor sobre o pequeno corpo redondo e liso. Cantor não gostou nada
dessa retomada de posse um tanto brutal. Evidentemente, com a faculdade de adaptação de que tinha
dado mostra desde o nascimento, ele se tinha achado muito bem no regaço da cigana.
O trote do cavalo, sobre o qual Angélica estava empoleirada atrás de um archeiro, embalou o menino
e ele reador-meceu com o polegar na boca. Não parecia sentir frio, embora estivesse completamente nu,
à maneira dos meninos boémios.
Ela o pôs contra o peito, sob o corpete, e o retinha com um braço, agarrando-se com o outro ao
cinturão do archeiro.
Em Paris, as pessoas pacatas começavam a fechar suas janelas e a soprar suas velas. Os nobres e os
burgueses se dirigiam às tabernas ou ao teatro. As ceias íntimas prolongavam-se por alguns copos de
rosólio e alguns beijos galantes.
O relógio do Châtelet deu dez horas.
Angélica saltou à terra e correu para o capitão.
— Deixe-me pôr meu filho em lugar seguro — suplicou. — Juro-lhe que voltarei amanhã à noite.
Ele assumiu um ar terrível.
— Ah! Não me engane. Você ficaria sem o couro.
— Juro-lhe que voltarei!
E, não sabendo como convencê-lo de sua lealdade, cruzou dois dedos e cuspiu no chão, à maneira dos
mendigos quando queriam fazer um juramento.
— Bem, vai — disse o capitão. — Não me recordo de ter visto alguém trair esse juramento. Esperá-la-
ei... Mas não me faça ficar impaciente. Enquanto espero, vem dar-me um beijinho por conta.
Ela, porém, saltou para trás e safou-se. Como ousava ele tocá-la, quando ela estava com seu precioso
filhinho nos braços? Decididamente, esses homens não respeitavam nada.
A Rue de la Vallée-de-Misère ficava exatamente atrás do Châtelet. Angélica não precisava dar senão
alguns passos. Sem afrouxar a marcha, chegou ao Galo Atrevido, atravessou a sala e entrou na cozinha.
Bárbara estava lá, ainda ocupada em depenar melancolicamente um velho galo. Angélica atirou-lhe o
menino no avental.
— Eis Cantor! — disse, ofegante. — Olhe por ele e proteja-o. Aconteça o que acontecer, prometa-me
que não o abandonará.
A mansa Bárbara estreitou, em um só movimento, o bebe e a ave.
— Prometo-lhe, senhora.
— Se seu patrão Bourjus se encolerizar...
— Eu o deixarei gritar, senhora. Dir-lhe-ei que o filho é meu e que foi um mosqueteiro quem o fez.
— Está bem. Agora, Bárbara...
— Senhora?
— Apanhe o seu terço.
— Sim, senhora.
— E comece a rezar por mim à Virgem Maria...
— Sim, senhora.
— Bárbara, você tem aguardente?
— Tenho, senhora; está sobre a mesa, ali...
Angélica pegou a garrafa e, pelo gargalo estreito, bebeu uma grande talagada. Acreditou que ia
desabar sobre o lajedo e teve de apoiar-se à mesa. Mas, ao cabo de um instante, recomeçou a ver claro e
sentiu-se invadida de um calor benéfico. Bárbara olhou-a, com os olhos arregalados.
— Senhora... Onde estão seus cabelos?
— Como quer que eu saiba onde estão meus cabelos? — disse Angélica com irritação. — Tenho mais
que fazer.
Com passo firme, dirigiu-se para.a porta.
— Senhora, aonde vai?
— Vou buscar Florimond.
CAPITULO XIV

Noite dramática no covil do Grande Coésre

No ângulo de uma casa de barro estava situada a estátua do deus dos faladores de gíria: um Padre
Eterno roubado à igreja de Saint-Pierre-aux-Boeufs. Blasfémias e obscenidades eram as preces que lhe
dirigia o seu povo.
Seguindo por um dédalo de ruelas sórdidas e fétidas, penetrava-se no reinado da noite e do horror. A
estátua do Padre Eterno marcava a fronteira que não podia transpor sem arriscar a vida um policial ou
um archeiro isolado. As pessoas pacatas também não se aventuravam a franqueá-la. Que iriam elas fazer
naquele quarteirão sem nome, onde casas negras semiderruídas, casebres, velhos coches e velhas carro-
ças, velhos moinhos e velhas chalanas, trazidos até ali não se sabia como, serviam de habitação a
milhares de famílias, elas próprias sem nome e sem raízes, as quais não tinham outro refúgio senão o da
matterie}
Na escuridão e no silêncio mais profundos, Angélica compreendeu que acabava de penetrar nos
domínios do Grande Coésre. Os cantos das tabernas tornavam-se distantes. Aqui, não mais havia
tabernas, nem luzes nem canções.
Nada além da miséria absoluta, com suas imundícies, seus ratos, seus cães vadios.
Angélica já tinha vindo de dia, com Calembredaine, ao quarteirão reservado do Faubourg Saint-Denis.
E ele havia-lhe mostrado o feudo mesmo do Grande Coésre, curiosa casa de vários andares, que devia
ter sido um antigo convento, porque pequenos campanários e os restos de um claustro ainda subsistiam
entre o amontoamento da terra, de velhas pranchas, de calhaus e de espeques de que a tinham recoberto
para impedi-la de desmoronar. Escorada por todas as partes, mal equilibrada e apoiada em muletas,
exibindo as feridas hian-tes de suas arcadas e de suas janelas ogivais e erguendo com sobranceria os
penachos de suas torrinhas, era bem o palácio do rei dos mendigos.
O Grande Coèsre ali vivia com sua corte, suas mulheres, seus arquissequazes, seu idiota. E era lá
também, sob a pro-teção do grande mestre, que João Podre armazenava sua mercadoria de crianças
roubadas, bastardas ou legítimas.
Desde que se embrenhou naquele temível quarteirão, Angélica buscava reencontrar a casa. Seu
instinto lhe dizia que Florimond estava lá. Ela caminhava, protegida pela total escuridão. Os vultos que
com ela se cruzavam não se interessavam por aquela mulher em farrapos, semelhante aos outros
moradores dos tristes pardieiros. Se alguém a abeirasse, ela safar-se-ia sem despertar suspeitas.
Conhecia suficientemente a gíria e os costumes daquela gente.
O disfarce que escolhera era, positivamente, o único que lhe permitiria atravessar impunemente aquele
inferno: era o da miséria e da degradação.
Nessa noite, com suas vestes molhadas e esfarrapadas, seus cabelos tosquiados de prisioneira, seu
rosto escavado de angústia e cansaço — que mendiga poderia acusá-la de não pertencer aos seus e de
penetrar como inimiga naquele maldito recinto?
No entanto, ela devia ter cuidado para não ser reconhecida. Dois bandos rivais do de Calembredaine
ocultavam-se naquele quarteirão.
Que adviria se se espalhasse o rumor de que a Marquesa dos Anjos rondava por ali? A caça noturna
dos animais, no coração de uma floresta, é menos cruel que a dos homens lançados em perseguição de
um dos seus no coração de uma cidade!
Para maior segurança, Angélica inclinou-se e lambuzou de lama o rosto.
Àquela hora, a casa do Grande Coêsre distinguia-se das outras por estar iluminada. Aqui e ali, em suas
janelas, via-se brilhar a estrela arruivada de uma lamparina grosseira, constituída de uma escudela com
azeite, na qual mergulhava um trapo velho.
Escondida atrás de um marco, Angélica observou durante algum tempo. A casa do Grande Coêsre era
também a mais ruidosa. Ali se reuniam mendigos e bandidos, como, havia pouco, na Tour de Nesle. Os
homens de Calembredaine eram recebidos ali. Como nessa noite fazia frio, haviam tapado todas as
aberturas com velhas pranchas.
Angélica decidiu aproximar-se de uma das janelas e olhou por um interstício entre duas tábuas. A sala
estava repleta. A jovem reconheceu alguns rostos: o Pequeno Eunuco, o ar-quissequaz Pedro Barbaças,
com sua barba espalhada, e afinal João Podre. Este apresentava suas brancas mãos à chama e falava ao
arquissequaz:
— Eis o que se chama uma bela operação, meu caro mestre. Não somente a polícia não nos causou
qualquer mal, como ainda nos ajudou a dispersar o bando desse insolente Calembredaine.
— Acho que você está exagerando ao dizer que a polícia não nos causou nenhum mal. Quinze dos
nossos foram enforcados quase sem julgamento, no cadafalso de Montfaucon! E não temos certeza de
que Calembredaine fizesse parte daquele número!
— Ora essa! De qualquer maneira, ele está com a cabeça esmagada, e por muito tempo não poderá
voltar... admitindo-se que volte... do que duvido. Rodoguno ocupou todos os seus lugares.
' Pedro Barbaças suspirou.
— Teremos, então, de bater-nos um dia com Rodoguno. Essa Tour de Nesle, que comanda o Pont
Neuf e a feira de Saint-Germain, é uma posição estratégica temível. Noutros tempos, quando eu
ensinava história a alguns tratantes no colégio de Navarra...
João Podre não escutava mais.
— Não seja pessimista quanto ao futuro da Tour de Nesle. Quanto a mim, não desejo senão que se
repita, de vez em quando, uma pequena revolução desse género. Que bela colheita eu fiz na Tour de
Nesle! Uma vintena de fedelhos bem escolhidos e que me vão render bons escudos de peso legal.
— Onde estão esses querubins?
João Podre fez um gesto indicando o teto fendido:
— Lá em cima... Madalena, minha filha, aproxime-se e mostre-me seu leitão.
Uma gorda mulher com ar bovino arrancou um bebé pendurado ao seu seio e estendeu-o âo ignóbil
indivíduo, que o tomou e levantou com admiração.
— Não é belo este pequeno mouro? Quando crescer, mandarei fazer-lhe uma roupa azul-celeste e irei
vendê-lo na corte.
Nesse momento, havendo um dos mendigos tomado sua gaita, dois outros puseram-se a dançar uma
bourrée camponesa, e Angélica não mais ouviu as palavras que trocavam João Podre e Pedro Barbaças.
Mas pelo menos de uma coisa ela já tinha certeza. As crianças raptadas da Tour de Nesle
encontravam-se na casa, aparentemente em um quarto situado por cima da sala principal.
Muito lentamente, ela deu volta à muralha. Encontrou um vão que dava para uma escada. Tirou os
sapatos e caminhou descalça. Não queria fazer o menor ruído.
A escada subia em voltas e desembocava num corredor. As paredes e o solo estavam cobertos de um
reboco de terra batida, misturada com palha. A esquerda, ela percebeu um quarto deserto, onde brilhava
uma griseta. Havia correntes presas à parede. Quem seria acorrentado ali?... A quem torturariam?... Ela
recordou: contavam que João Podre, durante as guerras da Fronda, fazia raptar jovens e camponeses
isolados, para revendê-los aos recrutadores de exércitos... O silêncio dessa parte da casa era assustador.
Angélica continuou a avançar.
Um rato a roçou. Ela teve de conter um grito.
Agora, novos sons pareciam chegar até ela, vindos do interior da casa.
Eram gemidos, choros distantes, que pouco a pouco se tornavam nítidos. Seu coração pulsou mais
forte: eram prantos de crianças. Ela evocou a face de Florimond, com seus olhos negros aterrorizados e
as lágrimas a lhe sulcarem as faces pálidas. Durante a noite ele tinha medo, chamava pela mãe.. Ela
avançou cada vez mais rápido, atraída por aquele pranto. Subiu ainda um andar, atravessou duas peças;
lamparinas ali emitiam uma luz fraca. Observou, nas paredes, gongos de cobre que constituíam, com
feixes de palha, dispersos pelo chão, e algumas tigelas de barro, a única mobília daquele sinistro lugar.
Afinal, percebeu que chegava ao fim. Ouvia distintamente o triste concerto de soluços, aos quais se
misturavam murmúrios que buscavam tranquilizar.
Angélica entrou em um pequeno quarto, à esquerda de um corredor que ela percorreu num instante.
Uma lamparina brilhava em um nicho. Mas ali não havia ninguém. Entretanto, vinham ruídos de lá.
Divisou, ao fundo, uma porta espessa, guarnecida de fechaduras. Era a primeira porta que encontrava,
pois todas as outras peças estavam abertas.
No batente havia um pequeno postigo gradeado. Nada podia ver por aquele postigo, mas compreendeu
que as crianças estavam fechadas ali, naquele fosso sem ar e sem luz. Como poderia ela atrair a atenção
de um bebe de dois anos?
Colou os lábios ao guiché e chamou docemente:
— Florimond! Florimond!
Os prantos acalmaram um pouco, depois uma voz cochichou do interior:
— É você, Marquesa dos Anjos?
— Quem está aí?
— Eu, Linot. João Podre nos enfardou com Flipot e outros.
— Florimond está com vocês?
— Está.
— É ele quem está chorando?
— Estava, mas eu lhe disse que você viria buscá-lo. Ela compreendeu que o rapazinho se voltava para
sussurrar:
— Está vendo, Flô? Mamãe está aí.
— Tenha paciência, vou fazê-los sair — prometeu Angélica.
Recuou e examinou a porta. As fechaduras pareciam sólidas. Mas a parede estava podre e havia,
talvez, algum meio de arrancar os gonzos. Meteu as unhas na parede.
Então, ouviu atrás de si um ruído estranho. Era uma espécie de cacarejo, sufocado a princípio e que,
pouco a pouco, subiu, subiu, até tornar-se um riso. Angélica voltou-se e viu o Grande Coésre.

O monstro estava num carrinho baixo com quatro rodas. Sem dúvida, era assim, auxiliando-se com as
mãos apoiadas no solo, que ele circulava pelos corredores de seu temível labirinto.
Da entrada do quarto, ele fixava sobre a jovem seu olhar cruel. E ela, paralisada pelo medo,
reconheceu a aparição fantástica do Cimetière des Saints-Innocents.
Ele continuava a rir, com cacarejos e soluços horríveis, que lhe sacudiam o busto, prolongado por
duas pequenas pernas finas e flácidas.
Depois, sem cessar de rir, recomeçou a deslocar-se. Fascinada, ela seguia com o olhar a marcha do
pequeno carrinho chiante. Ele não se dirigia para ela, mas em diagonal, através da peça. E, de súbito, ela
percebeu na parede um gongo de cobre, igual aos que já observara nas outras salas. Uma barra de ferro
estava no chão...
O Grande Coêsre aprestava-se para bater no gongo. E, a esse chamado, iriam precipitar-se, das
profundezas da casa, sobre Angélica, sobre Florimond, todos os mendigos, todos os bandidos, todos os
demónios daquele inferno...

Os olhos da besta degolada tornavam-se vítreos.


— Oh! Você o matou! — disse uma voz.
No mesmo lugar em que, havia momentos, tinha aparecido o Grande Coésre, estava uma mocinha,
quase menina, com rosto de madona.
Angélica olhou a lâmina de seu punhal, vermelha de sangue. Depois disse, em voz baixa:
— Não chame! Ou serei obrigada a matá-la também.
— Oh! Não, eu não vou chamar. Estou contente porque você o matou!
Aproximou-se.
— Ninguém tinha coragem de matá-lo — murmurou ela.— Todos tinham medo. E, no entanto, ele
não era senão um pavoroso homenzinho.
Depois, elevou para Angélica seus olhos negros.
— Mas é preciso que você se salve depressa, agora.
— Quem é você?
— Sou Rosina... A última mulher do Grande Coèsre.
Angélica guardou o punhal na cintura. Estendeu a mão tremula e pousou-a sobre aquela face fresca e
rosada.
— Rosina, ajude-me ainda. Meu filho está atrás daquela porta. João Podre fechou-o lá. Preciso
recuperá-lo.
— A chave dupla da porta está ali — disse a menina. — João Podre a confiava ao Grande Coèsre.
Está no carrinho.
Inclinou-se sobre o corpo imóvel e repulsivo. Angélica não olhava. Rosina endireitou-se.
— Aqui está — disse.
Ela própria introduziu a chave nas fechaduras, que rangeram. A porta abriu-se. Angélica precipitou-se
para o interior do cárcere e agarrou Florimond, que Linot segurava em seus braços. O menino não
chorava, não gritava, mas estava gelado e abraçou com tanta força o pescoço de sua mãe que esta perdeu
o fôlego.
— Agora, ajude-me a sair daqui — disse ela a Rosina. Linot e Flipot agarraram-se à saia de Angélica.
— Não posso levá-los todos — disse ela.
Livrou-se das pequenas mãos sujas, mas os dois garotos correram atrás dela.
— Marquesa dos Anjos! Marquesa dos Anjos, não nos abandone.
Subitamente, Rosina, que os havia arrastado para uma escada, levou o dedo aos lábios.
— Psiu! Alguém sobe.
Urn passo pesado ressoou no pavimento inferior.
— É Bavottant, o idiota. Venham por aqui.
E pôs-se a correr feito uma louca. Angélica seguiu-a com os dois meninos. Quando chegavam à rua,
um clamor aflitivo subiu das profundezas do palácio do Grande Coèsre. Era o idiota Bavottant, rugindo
sua dor diante do cadáver do real aborto que ele, durante muito tempo, cercara de seus cuidados.
— Corramos! — repetiu Rosina.
Seguidas dos garotos ofegantes, as duas entraram pelas ruelas escuras, uma atrás da outra. Seus pés
descalços escorregavam jio chão viscoso. Afinal, a mocinha afrouxou a marcha.
— Vejo lanternas — disse ela. — É a Rue Saint-Martin.
— É preciso ir mais longe. Podemos ser perseguidas.
— Bavottant não sabe falar. Ninguém o compreenderá. Talvez creiam mesmo que foi ele quem o
matou. Arranjarão outro Grande Coèsre. E eu nunca mais voltarei para lá. Ficarei com você porque você
o rnatou.
— E se João Podre nos encontrar? — perguntou Linot.
— Ele não nos achará. Eu defenderei a todos — disse Angélica.
Rosina mostrou ao longe uma claridade lívida, que fazia empalidecer as lanternas.
— Olha, a noite terminou.
— Sim, a noite terminou — repetiu Angélica.

De manhã, na Abadia de Saint-Martin-des-Champs, distribuía-se a sopa aos pobres. As grandes damas


que tinham assistido à primeira missa ajudavam as religiosas nesse ato de caridade.
Os pobres, que às vezes não tinham lugar para dormir, encontravam no grande refeitório um repouso
passageiro. Dava-se a cada um deles uma escudela de caldo quente e um pão redondo.
Foi lá que Angélica foi dar, com Florimond nos braços e seguida de Rosina, Linot e Flipot. Estavam
todos espantados e cobertos de lama e de imundícies.
Fizeram-nos entrar em fila com uma horda de miseráveis, e eles sentaram-se nos bancos diante das
mesas de madeira.
Depois apareceram criadas trazendo grandes panelas de caldo.
O odor era bastante apetitoso. Mas Angélica, antes de matar a fome, quis fazer Florimond tomá-lo.
Delicadamente, ela aproximou a tigela dos lábios do
menino.
Somente então pôde vê-lo, à vaga claridade que descia de um vitral. Ele tinha os olhos semicerradós,
o nariz franzido. Respirava precipitadamente, como se seu coração, afadiga-d° pelo terror, não pudesse
reencontrar o ritmo normal. Inerte, deixava escorrer de seus lábios o caldo. No entanto, o calor do
líquido reanimou-o. Ele teve um soluço, conseguiu deglutir uma golada, depois estendeu as mãos para a
tigela e bebeu, afinal, com sofreguidão.
Angélica olhava aquele pequeno rosto miserando, enterrado na cabeleira negra e emaranhada.
"Eis o que você fez", pensava consigo mesma, "do filho de Joffrey de Peyrac, do herdeiro dos condes
de Toulouse, do filho dos Jogos Florais, nascido para a luz e para a alegria."
Ela despertava de longo entorpecimento, contemplava o horror e a ruína de sua vida. Uma cólera
selvagem contra si mesma e contra o mundo apoderou-se dela subitamente. Agora que ela devia estar
abatida e vazia de toda substância, após aquela horrível noite, uma força prodigiosa a invadiu.
"Nunca mais", disse para si, "ele terá fome... Nunca mais ele terá frio... Nunca mais ele terá medo. Eu
o juro."
Mas, à porta da abadia, não estavam a fome, o frio e o medo a espreitá-los?
— É preciso fazer qualquer coisa. Imediatamente.
Angélica olhou em torno. Ela não era senão uma dessas
mães miseráveis, uma dessas "pobres" a quem nada é devido e sobre as quais as damas ataviadas se
inclinam por caridade, antes de tornarem às paroleiras de suas ruelles literárias ou às intrigas da corte.
Com um xale sobre a cabeleira, a fim de dissimular o brilho de algumas pérolas, um avental pregado
com alfinetes sobre seus veludos e suas sedas, elas iam de um a outro. Uma servilheta acompanhava-as
carregando um cesto de onde as damas tiravam doces, frutas, às vezes pastéis ou meios frangos, restos
das mesas principescas.
— Oh! Minha querida — disse uma delas —, você é bem corajosa vindo tão cedo, em seu estado,
distribuir esmolas.
Deus a abençoará.
— Assim espero, caríssima.
O risinho que se seguiu pareceu familiar a Angélica. Ela ergueu os olhos e reconheceu a Condessa de
Soissons, a quem a ruiva Bertília apresentava um manto de seda cor de ameixa. A condessa envolveu-se
nele, confortavelmente.
— Deus fez muito mal as coisas, obrigando as mulheres a carregar no seio durante nove meses o fruto
de um instante de prazer — disse ela à abadessa que a acompanhava rumo à porta.
— Que ficaria para as monjas, se tudo fosse prazer nos instantes do mundo? — respondeu a religiosa
com um sorriso.
Angélica levantou-se bruscamente e estendeu seu filho a
Linot.
— Tome conta de Florimond — disse.
Mas o menino agarrou-se a ela, soltando gritos. Ela se resignou a ficar com ele, e ordenou aos outros:
— Fiquem aqui, não se mexam.

Um coche esperava na Rue Saint-Martin. Quando a Condessa de Soissons se aprestava para subir,
uma mulher pobremente vestida, com uma criança nos braços, aproximou-se e disse:
— Senhora, meu filho morre de fome e de frio. Ordene que um de seus lacaios leve, ao endereço que
eu lhe darei, uma carroça cheia de lenha, pão, uma terrina de sopa, cobertores e roupas.
A nobre dama examinou com surpresa a mendicante.
— Você tem muita audácia, minha filha. Já não recebeu sua escudela esta manhã?
— Não basta uma escudela para viver, senhora. O que eu lhe peço é pouco, em comparação com a sua
riqueza: uma carroça de lenha e alimentos, que me concenderá até que eu possa arranjar-me de outro
modo.
— Incríveis — exclamou a condessa. — Está ouvindo, Bertília? A insolência dessas mendigas torna-
se cada dia maior! Deixe-me, mulher! Não me toque com suas mãos sujas, ou mandarei que meus
lacaios lhe dêem uma surra!
— Cuidado, senhora — disse Angélica em voz muito baixa —, cuidado, para que eu não fale do filho
de Kuassi-Ba!
A condessa, que arrepanhava a saia para subir à carruagem, imobilizou um pé levantado. Angélica
continuou:
— Conheço no Faubourg Saint-Denis uma casa onde um filho de mouro está sendo criado.
— Fale mais baixo — murmurou a Sra. de Soissons com raiva.
E repeliu Angélica.
— Que história é essa? — disse ela, em tom seco.
E, para disfarçar seu embaraço, abriu o leque e abanou-se, o que não tinha nenhuma utilidade, pois a
nortada era rude.
Angélica mudou Florimond de braço, porque o garoto começava a se fazer pesado.
— Eu conheço um filho de mouro que está sendo criado... — tornou ela. — Nasceu em Fontainebleau,
num dia que eu sei, sob os cuidados de uma mulher cujo nome poderei dizer a quem queira saber. A
corte não irá divertir-se muito ao tomar conhecimento de que a Sra. de Soissons carregou um filho treze
meses no ventre?
— Marafona! — exclamou a bela Olímpia, cujo temperamento meridional sempre a arrebatava.
Ela encarava Angélica, procurando reconhecê-la. Mas a jovem abaixou os olhos, bem persuadida de
que, no triste estado em que se encontrava, ninguém poderia reconhecer a brilhante Sra. de Peyrac.
— Basta! — tornou a Condessa de Soissons, colérica. E caminhou com precipitação para o seu coche.
— Você mereceria umas bastonadas. Sabe que não gosto que zombem de mim.
— O rei também não gosta que zombem dele — murmurou Angélica, que a seguia.
A nobre dama tornou-se carmesim e deixou-se cair de costas sobre o banco de veludo, dando
palmadas na saia, com agitação.
— O rei!... O rei!... Ouvir uma mendiga sem camisa falar do rei! E intolerável! E então?... Que quer?...
— Já lhe disse, senhora. Quero pouca coisa: uma carroça de lenha, agasalhos, para mim, para meu
bebé e meus rapazinhos de oito e dez anos, um pouco de alimento...
— Oh! Que humilhação ouvir falar assim! — rangeu a Sra. de Soissons, rasgando com os dentes seu
lenço de rendas. — E dizer que esse idiota do tenente de polícia se gaba de ter abatido a soberba dos
bandidos na feira de Saint-Germain... Que esperam para fechar as portinholas, imbecis? — gritou ela,
dirigindo-se aos lacaios.
Um deles empurrou Angélica para executar a ordem da patroa, mas aquela não se deu por vencida e
aproximou-se de novo da portinhola.
— Posso apresentar-me no Palácio de Soissons, na Rue Saint-Honore?
— Apresente-se — disse secamente a condessa. — Darei as ordens.

CAPÍTULO XV

Seguros em casa do rôtisseur Bourjus

Foi assim que mestre Bourjus, rôtisseur da Vallée-de-Misère que consumia seu primeiro copo de
vinho recordando melancolicamente os alegres refrães que antigamente cantava, àquela hora, sua
mulher, viu chegar ao pátio da casa um estranho cortejo.
Uma família de maltrapilhos, composta de duas jovens e três meninos, precedia um criado de libré
vermelho-cereja, o qual puxava uma carroça de lenha e vestimentas.
Para completar o quadro, um pequeno macaco, empoleirado no veículo, parecia muito feliz de assim
passear e fazia caretas aos transeuntes. Um dos meninos trazia uma sanfona, cujas cordas arranhava
alegremente.
Mestre Bourjus saltou, praguejou, esmurrou a mesa e dirigiu-se à cozinha, ali chegando no momento
em que Angélica punha Florimond nos braços de Bárbara.
— Quê? Que é isso? — bradou fora de si. — Vai dizer-me que essa criança é sua? Eu que a
considerava uma moça ajuizada e honesta, Bárbara?
— Mestre Bourjus, escute-me...
— Não escuto nada! Tomaram meu estabelecimento por um asilo! Estou desonrado...
Atirou ao chão seu gorro de cozinheiro e correu para fora, a fim de chamar a ronda.
— Conserve os dois meninos no calor — recomendou Angélica a Bárbara. — Vou acender o fogo no
seu quarto.
o lacaio da Sra. de Soissons, aturdido e indignado, teve de levar a lenha para o sétimo andar, por uma
escada oscilante, e depositá-la em uma pequena peça que não era mobiliada sequer por um leito de
cortinas.
— Não se esqueça de recomendar à senhora condessa que me faça trazer a mesma coisa todos os dias
— disse Angélica, despachando o criado.
— Olhe, minha bela, se quer um conse... — começou o lacaio.
— Não preciso de seu conselho, imbecil, e proíbo-lhe de me tratar por "você" — interrompeu
Angélica em tom que não se harmonizava com seu corpete rasgado e sua cabeça rapada.
O lacaio desceu a escada, achando, como mestre Bourjus, que estava desonrado.

Um pouco depois, Bárbara subiu com dificuldade, carregando nos braços Florimond e Cantor.
Encontrou Linot e Flipot soprando vigorosamente um magnífico fogo de lenha. O calor era sufocante e
todos tinham as faces avermelhadas.
Bárbara contou que o rôtisseur não se acalmava, e que isso fazia medo a Florimond.
— Deixe-os aqui — disse Angélica —, e vá fazer seu serviço. Bárbara, você não está contrariada por
eu ter vindo para cá com meus filhos?
— Oh, senhora, é uma grande felicidade para mim.
— E estas pobres crianças também, é preciso acolhê-las — disse Angélica, mostrando Rosina e os
dois rapazinhos. — Se você soubesse de onde eles vêm!...
— Senhora, meu pobre quarto é seu. Um rugido subiu do pátio:
— Bárbara!...
Era mestre Bourjus. Toda a vizinhança retumbava seus gritos. Não somente sua casa tinha sido
invadida por mendigos, mas ainda sua criada perdera a cabeça. Deixara queimar um espeto de seus
capões... E que eraaquilo, aquela girândo-la de fagulhas que saíam da chaminé?... Uma chaminé que
estivera apagada durante cinco anos. Tudo ia incendiar-se!... Era a ruína. Ah! Que falta fazia a Sra.
Bourjus!...
A panela enviada pela Sra. de Soissons continha carne cozida, sopa e belos legumes. Havia também
dois pães e um boião de leite.
Rosina desceu para buscar um balde d'água no poço do pátio, e puseram água para esquentar nos cães
da chaminé. Angélica lavou seus dois filhos, envolveu-os em camisas novas e cobertores. Nunca mais
eles teriam fome, nunca mais sentiriam frio!...
Cantor chupava um osso de frango apanhado na cozinha e gorjeava brincando com os pezinhos.
Florimond ainda não parecia restabelecido. Adormecia, depois acordava berrando. Ele tremia, e
Angélica não sabia se era de febre ou de medo. Mas, depois do banho, transpirou abundantemente, e em
seguida dormiu um sono tranquilo.
Angélica fez sair Linot e Flipot e banhou-se, por sua vez, na tina que habitualmente servia para as
abluções da modesta servilheta.
— Você é bela! — disse-lhe Rosina. — Eu não a conheço, mas certamente você é uma das mulheres
de Belo Rapaz.
Angélica esfregava energicamente a cabeça e constatava que é, na verdade, muito fácil lavar os
cabelos quando já não os temos.
— Não, eu sou a Marquesa dos Anjos.
— Oh! Então é você! — exclamou a mocinha, deslumbrada. — Já tinha ouvido falar a seu respeito. É
verdade que Ca-lembredaine foi enforcado?
— Não sei de nada, Rosina. Como você vê, estamos em um pequeno quarto muito simples e muito
decente. Existe um crucifixo na parede e uma caldeirinha. Não falemos mais nessas coisas.
Enfiou uma camisa de tecido grosso, uma saia e um corpe-te de sarja azul-escuro, que faziam parte do
carregamento da carroça. A fina cintura de Angélica perdia-se naquelas vestes informes e grosseiras.
Mas eram limpas, e ela experimentou um real alívio ao se desfazer dos andrajos da véspera.
Tomou um espelhinho do cofre que tinha recuperado na Rue du Vald'Amour, com o símio Piccolo.
Havia naquele cofre toda sorte de coisas interessantes e a que ela se apegara, entre outras um pente de
tartaruga. Penteou-se com ele. Seu rosto, com cabelos cortados, parecia-lhe o de uma desconhecida.
— Foram os soldados que lhe ceifaram a cabeleira? — perguntou Rosina.
— Foram... Mas ela tornará a crescer. Oh! Rosina, que é que eu tenho aqui?
— Onde?
— Nos meus cabelos. Olhe.
Rosina olhou.
— É uma mecha de cabelos brancos — disse ela.
— De cabelos brancos — repetiu Angélica com horror. — Mas isso não é possível. Eu... ainda ontem
não os tinha, estou certa.
— Devem ter vindo esta noite.
— Sim, esta noite.
Com as pernas tremulas, Angélica foi sentar-se no leito de Bárbara.
— Rosina... Será qué estou ficando velha?
A mocinha, ajoelhada diante dela, olhou-a muito seriamente. Depois acariciou-lhe a face.
— Não acredito. Você não tem rugas, e a sua pele é lisa.
Angélica penteou-se como pôde, procurando dissimular a malfadada mecha branca sob as outras.-
Depois atou à cabeça um lenço de cetineta negra.
— Que idade você tem, Rosina?
— Não sei. Talvez catorze anos, talvez quinze.
— Agora eu me lembro de você. Vi-a uma noite no Cimetiere des Saints-Innocents. Você marchava
no cortejo do
Grande Coésre e tinha os seios nus. Era inverno. Será que você não morria de frio assim despida?
Rosina ergueu para Angélica seus grandes olhos, e esta leu neles uma vaga- censura.
— Você mesma o disse. Não falemos mais nisso — murmurou a mocinha.
Nesse instante, Flipot e Linot tamborilaram na porta. Encaram, alegres. Bárbara lhes dera, às ocultas,
uma frigideira, Urn pedaço de toucinho e um pote com massa. Iam fazer panquecas.

Nessa noite, não havia em Paris muitos lugares onde se fosse mais feliz do que naquele pequeno
aposento da Rue de la Vallée-de-Misère. Angélica fazia saltar as panquecas. Linot arranhava a sanfona
de Thibault, o Sanfonineiro. A Polaca reencontrara o instrumento, encostado num marco, e o entregara
ao neto do velho músico. Ignorava-se o que acontecera a este no tumulto.
Um pouco mais tarde, Bárbara subiu com seu castiçal. Disse que não havia nenhum freguês na loja, e
que mestre Bourjus, desgostoso, fechara a porta. Para agravar o infortúnio do rôtisseur, haviam-lhe
furtado o relógio. Assim, Bárbara? estaria livre mais cedo que de costume. Quando ela acabava de falar,
seus olhos caíram sobre um estranho sortimento de objetos, postos sobre a arca de madeira em que ela
guardava suas roupas.
Havia lá dois raladores de tabaco, uma bolsa de fio com alguns escudos, botões, uma gazua e, no
meio...
— Mas... é o relógio de mestre Bourjus — exclamou ela.
— Flipot! — gritou Angélica. Flipot tomou um ar humilde.
— Sim, fui eu. Quando fui à cozinha buscar a massa... Angélica agarrou-o pela orelha e sacudiu-o
severamente.
— Se você recomeça, filhote de rapa-bolsas, eu o ponho para fora, e você poderá voltar para João
Podre!
Desolado, o garoto foi deitar-se em um canto do quarto, onde não tardou a adormecer. Linot o imitou.
Depois foi Rosina, após estender-se a meio, atravessada no enxergão. Florimond e Cantor haviam
retomado seu sono.
Ajoelhada diante do fogo, Angélica ficou acordada, sozinha, ao lado de Bárbara. Não se ouviam senão
pequenos ruídos, pois o quarto dava para um pátio, e não para a rua, que começava a ser invadida pelos
bebedores e jogadores.
— Não é tarde. Acabam de soar as nove no relógio do Châtelet — disse Bárbara.
Ela surpreendeu-se ao ver Angélica erguer a cabeça um tanto assustada e pôr-se de pé de repente.
A jovem ficou por um momento a olhar Florimond e Cantor adormecidos. Depois, dirigiu-se para a
porta.
— Até amanhã, Bárbara — cochichou ela.
— Aonde vai, senhora?
— Resta-me ainda uma coisa por fazer — disse Angélica. . Depois, isto acabará. Poderei recomeçar a
vida.

CAPÍTULO XVI

Noite galante na prisão do Grande Châtelet

Não era preciso dar senão alguns passos para ir da Rue de la Vallée-de-Misère ao Châtelet. Do Galo
Atrevido avistavam-se os tetos pontudos da grande torre da fortaleza.
Angélica se encontrou bem depressa diante do pórtico principal da prisão, ladeado por duas torrinhas e
encimado por um campanário e um relógio.
Como na véspera, tochas iluminavam a abóbada.
Angélica dirigiu-se para a entrada, em seguida recuou e começou a dar voltas pelas ruas vizinhas,
esperando que um milagre súbito viesse destruir o lúgubre castelo, cujas espessas muralhas tinham já
resistido a meia dúzia de séculos. As peripécias do dia anterior haviam apagado de sua memória a promessa
que fizera ao capitão da ronda. Mas as palavras de Bárbara tinham-lhe feito lembrar-se dela. Chegava a hora
de cumprir a palavra.
As ruelas onde Angélica se demorava exalavam horrível mau cheiro. Eram as ruas de la Pierre-à-Poisson,
de la Tuerie, de la Triperie, nas quais os ratos disputavam entre si os restos mais variados.
"Vamos", disse ela a si mesma, "nada ganho em ficar aqui-De qualquer maneira, é preciso passar por
isso."
Voltou ao Châtelet e foi até o corpo da guarda,
— Ah! Você está aí? — disse o capitão.
Ele fumava, sentado, com os dois pés sobre a mesa.
— Eu não acreditava que ela voltasse — disse um dos homens.
— Eu estava certo de que ela voltaria — afirmou o capitão. — Porque já tenho visto muitos homens
faltarem à palavra, mas uma puta, nunca! Então, querida?
Ela lançou sobre aquela face congestionada um olhar de gelo. O capitão estendeu a mão e beliscou-lhe
cordialmente a anca. '
— Vou mandá-la ao cirurgião, para que ele a lave e a examine. Se você estiver doente, ele lhe passará
pomada. Eu,
você sabe, sou delicado. Vamos, mexa-se!
Um soldado conduziu Angélica até o gabinete do cirurgião, que se achava em galante palestra com
uma das matronas da prisão.
Angélica teve de deitar-se num banco e entregar-se ao repugnante exame.
— Diga ao capitão que ela está limpa como um soldo novo e fresca como uma rosa — gritou o
cirurgião ao soldado que se afastava. — Não me lembro de me terem trazido aqui outras iguais!
Em seguida, a matrona conduziu-a até o quarto do capitão, pomposamente batizado de "apartamento".
Angélica ficou sozinha nesse aposento .gradeado como um cárcere e cujas grossas paredes eram mal
dissimuladas por tapeçarias de Bérgamo, puídas e desfiadas.
Uma vela sobre a mesa, perto de um sabre e de uma escrivaninha, não chegava a dissipar inteiramente
as sombras acumuladas sob a abóbada. O quarto cheirava a couro velho, tabaco e vinho. Angélica
permaneceu de pé junto à mesa, incapaz de sentar-se, ou de fazer alguma coisa, inibida pelo nervosismo.
E, à medida que o tempo passava, sentia mais frio, porque a umidade do lugar era penetrante.
Afinal, ouviu os passos do capitão. Ele entrou lançando uma torrente de injúrias:
— Cambada de mandriões!... Incapazes de agir sozinhos, e eu não estivesse aqui!...
Jogou a espada e a pistola sobre a mesa, sentou-se bufando e ordenou, estendendo os pés para
Angélica:
— Tire-me as botas!
O sangue de Angélica parou de circular.
— Não sou sua criada!
— Essa agora! — murmurou ele, pondo as mãos nos joelhos para olhá-la mais comodamente.
A jovem caiu em si e viu que era loucura excitar assim a cólera do Ogro, no momento em que se
achava inteiramente à sua mercê. Procurou abrandar suas palavras:
— Fá-lo-ei de bom grado, mas não entendo nada de vestiduras militares. Suas botas são tão grandes e
minhas mãos tão pequenas! Olhe.
— E verdade que elas são pequenas — concordou ele. — Você tem mãos de duquesa.
— Posso tentar...
— Deixe isso, florzinha — rosnou ele, empurrando-a.
Agarrou uma das botas e começou a puxá-la, contorcendo-se e fazendo caretas.
Nesse momento, houve rumor de passos no corredor e uma voz chamou:
— Capitão! Capitão!
— Que é que ha?
— Acabam de trazer um afogado, que pescaram perto do Petit Pont.
— Ponha-o no necrotério.
— Acontece que ele recebeu no ventre uma facada. E preciso que venha constatar.
O capitão blasfemou de fazer desabar o campanário da igreja vizinha e precipitou-se para fora.
Angélica continuou a esperar, cada vez mais gelada. Ela começava a ter esperança de que essa noite
decorresse assim ou que o capitão rúo voltasse mais, ou — quem sabe? — que ele recebesse um mau
golpe, quando ouviu de novo as explosões de sua voz possante. Um soldado o acompanhava.
—Tire minhas botas — disse ele. — Está bem. Agora, dê o fora. E você pequena, meta-se na cama,
em vez de ficar aí, plantada como um círio, a ranger os dentes.
Angélica voltou-se e avizinhou-se da alcova. Depois, começou a despir-se. Sentia como que uma bola
no vazio do estômago. Perguntou a si mesma se devia tirar a camisa, e acabou conservando-a. Subiu
para o leito e, apesar de seus receios, teve uma sensação de bem-estar ao enfiar-se debaixo das cobertas.
O colchão de penas era macio. Pouco a pouco ela começou a aquecer-se. Com o lençol puxado até o
queixo, viu o capitão despir-se.
Era quase um fenómeno da natureza. Ele crepitava, gemia, bufava, grunhia, e a sombra de sua enorme
estatura enchia toda uma parede.
Tirou o soberbo chino castanho e pô-lo com cuidado sobre um suporte de madeira.
Após haver esfregado energicamente o crânio, tirou as últimas roupas.
Desembaraçado de suas botas e da peruca, e embora nu como o Hércules de Praxíteles, o capitão da
ronda ainda continuava muito imponente. Ela ouviu-o patejar num balde d'água. Depois ele veio, com
uma toalha pudicamente presa à cintura.
Nesse momento, ressoaram duas pancadas na porta.
— Capitão! Capitão!
Ele foi abrir.
— Capitão, é a ronda que volta dizendo que assaltaram uma casa na Rue des Martyrs e...
— O diabo que os carregue! — trovejou o capitão. — Quando perceberão que o mártir sou eu? Não
vêem que tenho uma franga quentinha no meu leito e que me espera há três horas? Crêem que tenho
tempo para ocupar-me com essas coisas?
Ele bateu a porta, passou os ferrolhos com estrépito e ficou plantado ali um momento, nu e colossal, a
desfiar um rosário de injúrias. Depois, tendo-se acalmado, amarrou um lenço em volta do crânio e fez
sobressair garridamente duas pontas na testa.
Afinal, tomando a vela, aproximou-se da alcova com precaução.
Encolhida sob os lençóis puxados até o queixo, Angélica via aproximar-se aquele gigante vermelho;
cuja cabeça adornada de chifres lançava para o teto uma sombra grotesca.
Com os nervos relaxados pelo calor do leito, entorpecida Pela espera e já quase dormindo, ela achou
tão cómica aque-Ia aparição que não pôde conter uma gargalhada.
O Ogro deteve-se, mirou-a com surpresa. E uma expressão jovial fendeu sua carranca.
— Oh! Oh! A pequena me deu uma risadinha! Eis uma coisa que eu não esperava! De lançar olhares
gelados, disso você entende! Mas vejo também que você gosta de divertir-se. Eh! Eh! Você sabe rir,
minha bela! Esta bem assim! Eh! Eh! Oh! Oh! Oh!
Ele se pôs a rir francamente, e estava tão engraçado, com sua touca e seu castiçal, que Angélica se
sufocou literalmente no travesseiro. Enfim, com os olhos cheios de lágrimas, ela conseguiu dominar-se.
Estava furiosa consigo mesma, pois muito pensara em mostrar-se altiva, indiferente, não conceder senão
aquilo que lhe fosse exigido. E eis que ria feito uma mulher da vida que quer pôr à vontade um cliente.
— Está bem, minha linda, está bem — repetiu o capitão, todo contente. — Agora arrede-se um pouco
e deixe-me um pequeno lugar junto de si.
O colchão vergou sob a massa enorme. O oficial tinha apagado a vela. Sua mão fechou as cortinas da
alcova e, na úmi-da escuridão, seu forte odor de vinho, de tabaco e de couro de botas chegou a uma
densidade insuportável. Ele respirava precipatada. Apalpou o colchão perto de si e sua manopla desceu
sobre Angélica. Ela enrijou-se toda.
— Ora essa! — disse ele. — Ei-la como um manequim de madeira. Não é esta a ocasião, minha bela.
No entanto, eu não vou maltratá-la. Vou explicar-lhe cavalheirescamente, porque é você. Há momentos,
somente ao ver a maneira como você me olhava, como se eu não fosse maior que um grão de ervilha,
duvidei muito que lhe agradasse vir dormir comigo. No entanto, eu sou um homem vistoso e,
habitualmente, agrado às damas. Mas é inútil procurar compreender as mulheres de sua classe... O que é
certo é que você me agrada. Um verdadeiro xodó! Você não se parece com as outras. E dez vezes mais
bela. Desde ontem que não penso senão em você...
Seus grossos dedos a beliscaram e deram-lhe palmadinhas, afetuosamente.
— Dir-se-ia que você não está acostumada. Entretanto,, bela como é, deve ter tido muitos homens!
Enfim, no que tange a nós dois, vou lhe falar francamente. Há pouco, quando eu a vi na sala dos
guardas, disse a mim mesmo que você, com seus grandes ares, seria bem capaz de me causar uma inibi-
ção. Essas coisas acontecem a qualquer homem. Então, para estar certo de lhe fazer as honras, mandei
que me trouxessem um bom jarro de vinho com canela. Pobre de mim! Foi a partir desse momento que
todas essas histórias de ladrões e afogados caíram sobre a minha cabeça. Parece até que as pessoas
fazem questão de se fazer assassinar para me molestar. Três horas eu passei correndo do escritório para
o necrotério, com aquele maldito vinho de canela a me esquentar o sangue. Também, agora eu estou no
ponto, não lhe escondo. Mas, de qualquer maneira, será melhor para nós dois se você puser um pouco de
boa vontade!
Essas palavras tiveram sobre Angélica um efeito calmante. Contrariamente à maior parte das
mulheres, seus reflexos e suas reações, mesmo físicas, mantinham-se sensíveis ao raciocínio. O capitão,
que não era tolo, teve a intuição disso. Não se toma parte no saque de várias cidades nem se viola bom
número de mulheres de todas as raças e de todos os países :em ter sua pequena experiência!...
Ele foi recompensado de sua paciência ao encontrar contra si um belo corpo flexível, silencioso mas
dócil. Com um grunhido de prazer, ele o empolgou.
Angélica não teve tempo de experimentar repulsa nem revolta. Sacudida por aquele amplexo como
por um turbilhão de tempestade, ela se achou livre quase imediatamente.
— Pronto, acabou-se —- suspirou o oficial.
Com a palma da mão larga, ele a fez rolar, como um pedaço de pau, para o outro lado da cama.
— Vamos, durma, minha bela pequena. Faremos outra sessão de manhã cedo, e depois estaremos
quites.
Dois segundos mais tarde ele roncava.
Angélica pensou que demoraria a dormir, mas aquele supremo exercício, junto às fadigas das últimas
horas e ao con-orto de um leito macio e quente, mergulhou-a depressa em m sono profundo.

Quando Angélica despertou na escuridão, custou-lhe bastante compreender onde se achava. Os roncos
do capitão se tinham atenuado. Fazia tanto calor que Angélica tirou a camisa, cujo tecido áspero lhe
irritava a pele delicada.
Ela já não tinha medo. No entanto, subsistia nela uma inquietude. Não se sentia muito à vontade, e
isso não era por causa da grande massa adormecida do Ogro. Era outra coisa... indefinível, angustiante...
Ela procurou adormecer de novo e rolou várias vezes. Por fim, pôs-se a escutar. Percebeu então ruídos
vagos e difusos que, a contragosto, a tinham tirado de seu sono. Eram como vozes, vozes muito
distantes, que haviam assumido um tom de melopeia plangente e contínua. O tom baixava, depois se
elevava de novo. De súbito ela compreendeu: eram os prisioneiros.
Através do piso e das maciças muralhas, chegavam-lhe os prantos abafados, os gritos de desespero
dos infelizes acorrentados, gelados, que lutavam, a golpes de sapato, contra os ratos dos cárceres, que
lutavam contra a água, contra a morte. Criminosos blasfemavam o nome de Deus, e inocentes o
invocavam. Outros, exauridos pelas torturas do interrogatório, meio asfixiados, extenuados de fome e de
frio; estertoravam.
Angélica tremeu. A fortaleza do Châtelet pesava sobre ela com todos os seus séculos e todos os seus
horrores. Conseguiria ela voltar ao ar livre?, pensava. O Ogro a deixaria partir? Ele dormia. Era forte e
poderoso. E era o senhor daquele inferno.
Muito suavemente ela se aproximou daquela massa enorme, que ressonava ao seu lado, e admirou-se,
pousando-lhe a mão, de encontrar algum encanto naquele couro espesso. O capitão mexeu-se e quase a
esmagou ao virar-se.
— Eh! Eh! A pombinha está acordada — disse ele com voz pastosa.
Puxou-a para si, e ela se sentiu afogada por aquela carne de músculos cheios, que rolavam sob a pele.
O homem bocejou ruidosamente. Depois ele afastou as cortinas e entrou uma pálida claridade através
das barras da janela.
— Você é bem matinal, minha gata.
— Esses ruídos que eu ouço, que são eles?
— São os prisioneiros. Eles não se divertem tanto como nós.
— Estão sofrendo...
— Não os metemos lá dentro para farrear. Você teve a sorte, bem sabe, de ter saído dali, Está melhor
no meu leito do que do outro lado da parede, sobre a palha. Diga que não é verdade.
Angélica aprovou com a cabeça, com uma convicção que encantou o oficial.
Ele apanhou uma jarra de vinho tinto que estava sobre uma mesa, perto de seu leito, e bebeu
demoradamente. Seu pomo de Adão subia e descia ao longo do possante pescoço. Depois ele estendeu a
jarra para Angélica.
— Beba.
Ela aceitou, pois sentia que o vinho podia salvá-la do desespero, entre os muros sinistros do Châtelet.
Ele a encorajou:
— Beba, minha gata; beba, minha bela. O vinho é bom e lhe fará bem.
Quando ela, afinal, se deitou para trás, a cabeça rodava-lhe. O líquido áspero e forte nublava-lhe a
mente. Nada lhe importava mais do que estar viva.
Ele se voltou pesadamente para Angélica, mas a jovem já não o temia. Experimentou mesmo um
começo de prazer, quando ele a acariciou com sua larga mão, sem muita doçura, mas de maneira
enérgica e experiente. Essas carícias, mais próximas de uma massagem um pouco rude que de um sopro
de zéfiro, proporcionaram-lhe um real alívio. Ele a abraçou à camponesa, com grandes beijos gulosos e
barulhentos, que a espantaram e lhe deram vontade de rir.
Em seguida ele a retomou nos braços peludos e, calmamente, estendeu-a atravessada no leito. Ela
compreendeu que desta vez ele estava bem decidido a gozar seu direito, e fechou os olhos.
Dos momentos que se seguiriam, Angélica, de qualquer modo, estava decidida a não se recordar.
No entanto, não foi tão terrível quanto ela imaginara. O Ogro não era mau. Agia antes como um
homem que ignora seu peso e sua força, mas, não obstante esse inconveniente, que a deixava meio
esmagada, ela teve de convir que não estivera longe de experimentar alguma voluptuosidade, ao ser
presa daquele colosso cheio de força e de calor. Depois, ela sentiu como que uma leveza de pedra-
pomes. O capitão vestiu-se, trauteando uma marcha militar.
— Sua danada — praguejou ele —, você me deu um prazer imenso! Logo você que me fazia medo!...
O cirurgião do Châtelet entrou, munido de sua bacia de barbear e de suas navalhas.
A jovem acabou de vestir-se, enquanto seu atravancador amante de uma noite deixava amarrar a
toalha sob o queixo e lambuzar de sabão o rosto. Continuava a manifestar sua satisfação.
— Você bem o disse, barbeiro! Fresca como uma rosa!
Angélica não sabia como despedir-se. O capitão lançou de repente uma bolsa sobre a mesa.
— Toma para você.
— Já fui paga.
— Pegue-a — rugiu o capitão — e faça a pista.
Angélica não esperou que ele falasse duas vezes. Quando se encontrou fora do Châtelet, não teve
coragem de entrar logo na Rue de la Vallée-de-Misère, muito próxima da terrível prisão. Desceu rumo
ao Sena. No Quai des Morfondus, esposas de bateleiros haviam instalado, durante o verão, alguns
"banhos" para mulheres. Em todos os tempos, os parisienses, homens e mulheres, passavam os três
meses de calor a patinhar no Sena. Os "banhos" eram constituídos de algumas estacas cobertas por uma
tela. As mulheres desciam para ali de camisa e de touca.
A criatura a quem Angélica quis pagar sua despesa exclamou:
— Quer molhar-se a esta hora? Está fazendo frio, você sabe.
— Não tem importância.
Realmente, a água estava fria. Mas, depois de bater o queixo por alguns instantes, Angélica sentiu-se à
vontade. Como era a única cliente, deu algumas braçadas entre as estacas. Quando se viu enxuta e
vestida de novo, caminhou ainda ao longo das margens, gozando do tépido sol de outono.
"Está acabado", dizia a si mesma. "Não quero mais miséria. Não quero mais ser obrigada a fazer
coisas terríveis, como matar o Grande Coèsre, ou coisas difíceis, como dormir com um capitão da ronda.
Não é o meu género de vida. Amo as roupas finas, os belos vestidos. Quero que meus filhos não mais
sintam fome nem frio, que andem bem vestidos e sejam considerados, que reencontrem um nome.
Quero reencontrar um nome... Quero tornar a ser uma grande dama."

CAPITULO XVII

Angélica associa-se com o rôtisseur Bourjus

Quando Angélica se introduzia, tão discretamente quanto possível, no pátio da rôtisserie do Galo
Atrevido, mestre Bourjus, armado de uma concha de sopa, surgiu e cresceu contra ela.
A jovem mal teve tempo de se colocar atrás do pequeno poço, o que não impediu que ele corresse
atrás dela, em volta do bocal.
— Fora daqui, mendiga, puta! — bramia o rôtisseur. — Que pecado cometi para merecer esta invasão
de foragidos do Hospital Geral, ou de Bicêtre... ou de coisa pior ainda? Sabe-se o que isso significa,
uma cabeça tosquiada como a sua... Volte para o Chatelet, de onde veio... Ou serei eu quem vai fazê-la
retornar... Não sei o que me impediu de chamar a ronda ontem... Eu sou bom demais. Ah! Que diria
minha piedosa mulher se visse sua loja assim desonrada?
Angélica, sempre se esquivando aos golpes da concha, pôs-se a gritar mais alto que ele:
— E que diria vossa piedosa mulher de um esposo que assim se desonra... que começa a beber desde a
alvorada...?
O rôtisseur parou de repente. Angélica tirou proveito da situação.
— E que diria ela de sua loja coberta de poeira e dos frangos expostos de seis dias, secos e
endurecidos como pergaminho, e de sua adega vazia, de suas mesas e bancos mal lustrados...?
— Com mil demónios!... — gaguejou ele.
— Que diria ela de um marido que blasfema? Pobre Sra. Bourjus, que lá do céu contempla esta
desordem! Posso assegurar-lhe, sem medo de me enganar: sua defunta não sabe onde esconder sua
vergonha diante dos anjos e de todos os santos do paraíso!
A expressão de mestre Bourjus tof nou-se cada vez mais perturbada. Ele acabou sentando-se
pesadamente no bocal do poço.
— Ah! — gemeu. — Por que morreu ela? Era tão boa dona de casa, sempre decidida e alegre. Não sei
o que me impede de procurar o esquecimento no fundo deste poço!
— Vou dizer-lhe o que o impede: é o pensamento de que ela o receberá lá em cima dizendo-lhe: "Ah!
Você está aí, mestre Pedro..."
— Perdão, mestre Tiago.
— "Você está aí, mestre Tiago! Não lhe dou parabéns. Eu sempre disse que vocêúnunca seria capaz
de conduzir-se sozinho. Você é pior que uma criança!... Você bem o provou! Quando vejo o que fez da
minha bela loja tão brilhante, tão reluzente, dos tempos em que eu vivia... Quando vejo nossa bela
tabuleta toda enferrujada e rangendo nas noites de vento, impedindo a vizinhança de dormir... E meus
vasos de estanho, minhas torteiras, minhas peixeiras, todos arranhados porque o idiota de seu sobrinho
os limpa com cinza em vez de empregar um giz bem suave, comprado especialmente no pátio do
Temple... E quando vejo que você se deixa roubar por todos esses miseráveis negociantes de aves ou de
vinhos, que lhe enchem de galos sem a crista em lugar de capões, ou de barris de agraço em vez de bons
vinhos, como quer que eu aproveite o céu, eu que fui uma santa e honesta mulher?..."
Angélica se calou, sem fôlego. Mestre Bourjus parecia subitamente êm êxtase.
— E verdade — balbuciou ele —, é verdade... Ela falaria exatamente assim. Ela era tão... tão...
Suas gordas bochechas tremeram.
— De nada servem lágrimas fingidas — disse Angélica rudemente. — Não é assim que você evitará a
tunda de vassoura que o espera do outro lado desta vida. É pondo-se a trabalhar, mestre Bourjus. Bárbara é
uma boa moça, mas sem iniciativa. É preciso dizer-lhe o que ela deve fazer. Seu sobrinho tem um ar
apalermado. E os fregueses não entram numa loja onde os acolhem rosnando como cão de guarda.
— Quem é que rosna? — perguntou mestre Bourjus, retomando seu ar ameaçador.
— O senhor.
— Eu?
— Sim. E sua mulher, que era tão alegre, não o teria suportado três minutos com a cara que o senhor
mostra diante do seu jarro de vinho.
— E você acredita que ela teria suportado ver em seu pátio uma rapariga insolente e suja como você?
— Eu não estou suja — protestou Angélica, endireitando-se. — Minhas roupas são limpas. Examine-as
por si mesmo.
— Você acredita que ela teria suportado ver em sua cozinha seus garotos descarados, verdadeiros
rebentos de rapa-bolsas? Eu os surpreendi a fartarem-se de toucinho na minha adega, e estou certo de que
foram eles que roubaram meu relógio.
— Aqui está seu relógio — disse Angélica, tirando desdenhosamente o objeto de seu bolso. — Encontrei-o
sob os degraus da escada. Suponho que o senhor o perdeu ontem à noite, ao subir para deitar-se,
completamente bêbado...
Ela estendeu o relógio por cima do poço na direção do rô-tisseur e acrescentou:
— Veja que não sou uma ladra. Poderia ter ficado com ele.
— Não o deixe cair no poço — disse o homem, inquieto.
— Seria melhor que eu fosse até aí, mas tenho medo de sua concha.
Resmungando uma praga, mestre Bourjus lançou ao chão a concha. Angélica aproximou-se dele com ar
matreiro. Sentia que sua experiência da noite com o capitão da ronda não tinha deixado de ensinar-lhe
algumas pequenas coisas sobre a arte de seduzir os desabridos e de fazer frente aos brutos. Mostrava uma
nova desenvoltura, que doravante não lhe seria inútil.
Não se apressou em entregar o relógio.
— É um belo relógio — disse ela, examinando o objeto com interesse. De novo se iluminou o
semblante do rôtisseur.
— Você acha? Comprei-o a um bufarinheiro do Jura, um desses montanheses que passam o inverno
em Paris com seus pacotes. Eles têm verdadeiros tesouros nos bolsos... Mas não o tiram para todo o
mundo, mesmo para.os príncipes. E preciso que eles saibam a quem os oferecem.
— Preferem negociar com os verdadeiros comerciantes a fazê-lo com os patetas... Sobretudo quando
se trata dessas pequenas máquinas, verdadeiras obras de arte.
— E como você diz: verdadeiras obras de arte — repetiu o rôtisseur, fazendo a caixa de prata do seu
relógio refletir a luz do tímido sol que se esgueirava entre duas nuvens.
Depois ele o colocou em seu bolsinho, prendeu as numerosas correntes e berloques em suas
botoneiras e lançou de novo um olhar desconfiado sobre Angélica.
—Eu me pergunto a mim ínesmo como pôde este relógio cair do meu bolso — disse ele — e,
também, aonde você vai buscar esses modos de falar como dama de qualidade, quando outro dia falava
gíria, a ponto de fazer-nos arrepiar os cabelos. Creio que você está procurando embair-me, pois não
passa de uma prostituta.
Angélica não se perturbou.
—Não é fácil discutir com o senhor, mestre Tiago — disse ela num tom de reproche. — Conhece
muito bem as mulheres.
O rôtisseur cruzou os braços curtos sobre o ventre e assumiu um ar feroz.
—Eu as conheço, e não me deixo tapear por elas!
E deixou decorrer um pesado silêncio, com os olhos fitos na culpada, que abaixou a cabeça.
— E então? — tornou ele em tom peremptório.
Angélica, mais alta que ele, achava-o muito divertido com seu gorro sobre a orelha e seu ar severo.
Disse,, no entanto, humildemente:
— Farei o que me disser, mestre Bourjus. Se me expulsar Çom meus dois filhos, eu irei embora. Mas
não sei para onde lr para onde levar meus pequenos a fim de preservá-los do frio e da chuva. Acredita
que sua mulher nos teria escorraçado? Eu estou alojada no quarto de Bárbara. Não o perturbo. Tenho
minha lenha e minha comida. Os garotos e a mocinha que estão comigo poderiam prestar-lhe alguns
pequenos serviços: carregar água, esfregar o piso. Os bebes ficarão lá em cima...
— E'por que ficarão lá em cima? — gritou o rôtisseur. — O lugar das crianças não é num pombal,
mas na cozinha, perto do fogão, onde elas possam aquecer-se e passear à vontade. Assim são as
mendigas!... Têm menos entranhas que os animais! Traga, pois, os seus bebés para a cozinha, se não
quer que eu me zangue! Sem levar em conta que você poderia atear fogo, lá em cima, às minhas telhas
de madeira!...
Angélica subiu, com uma ligeireza de elfo, os sete andares que levavam à mansarda de Bárbara. As
casas eram extremamente altas e estreitas, naquele bairro comercial, onde se amontoaram na Idade
Média, sob a tumultuosa arremetida da cidade em pleno crescimento. Não havia mais de duas peças por
andar, ordinariamente uma só.
Num dos patamares, Angélica cruzou com uma silhueta furtiva, na qual reconheceu Davi, o sobrinho
do patrão. O aprendiz de cozinheiro encostou-se à parede e lançou-lhe um olhar ressentido. Angélica
não se lembrava mais das palavras realistas que lhe havia lançado em rosto no dia em que, pela primeira
vez, tinha vindo ver Bárbara no Galo Atrevido.
Ela sorriu-lhe, decidida a fazer amigos naquela casa onde desejava recomeçar uma existência honrada.
— Bom dia, garoto.
— Garoto? — grunhiu ele com um sobressalto. — Far-lhe-ei notar que poderia comer pasteizinhos
sobre a sua cabeça. Eu já tinha dezesseis anos por ocasião das últimas vindimas.
— Oh! Perdão, senhor! Eis um grosseiro erro da minha parte. Será que teria a gentileza de me
desculpar?
O rapaz, que, segundo toda aparência, não estava acostumado a tais gracejos, ergueu canhestramente
os ombros e balbuciou:
— Talvez.
— O senhor é muito bom. Estou comovida. E teria, igualmente, a boa educação de não tratar
familiarmente por "você" uma dama de qualidade?

O pobre aprendiz de rôtisseur pareceu subitamente em suplício. Ele tinha olhos negros bastante belos
em seu rosto magro e pálido de grande pateta. Sua firmeza o abandonara.
De repente, Angélica, que recomeçava a subir a escada, parou.
— Você, com semelhante sotaque, você é do Midi, com certeza.
— Sim... senhora. Sou de Toulouse.
— Toulouse! — exclamou a jovem. — Oh! Um "irmão de minha terra"!
Ela saltou-lhe ao pescoço e beijou-o.
— Toulouse! — repetiu.
O rapaz estava vermelho como um tomate. Angélica disse-lhe ainda algumas palavras em língua d'oc,
e a emoção de Davi redobrou.
— A senhora é de lá,-então?
— Quase.
Ela estava ridiculamente feliz com aquele encontro. Que contraste! Ter sido uma das grandes damas
de Toulouse e chegar a beijar um ajudante de cozinha, porque ele tinha na língua aquele acento de sol,
com cheiro de alho e de flores!
— Uma cidade tão bela — murmurou a jovem. — Por que não ficou em Toulouse?
Davi explicou:
— Primeiramente, meu pai morreu. Além disso, ele sempre desejou que eu viesse a Paris, onde se
podem fazer grandes vendas, para aprender o ofício de limonadeiro. Ele era especieiro. Vim para Paris e
cheguei exatamente no dia em que minha tia, mestra Bourjus, morria de bexigas. Nunca tive sorte. Fico
sempre para o lado.
Ele parou para engolir a saliva.
— A sorte chegará — prometeu Angélica continuando a subir.
Na mansarda, ela encontrou Rosina, que coçava a cabeça, vigiando com olho bovino os movimentos
de Florimond e Cantor. Bárbara estava no rés-do-chão. Os rapazes tinham ido se balader. Em
linguagem da matterie, isso queria dizer que eles tinham ido pedir esmolas.
— Não quero que eles mendiguem — disse Angélica, peremptória.
— Você não quer que eles roubem, não quer que eles mendiguem. Então, que quer que eles façam?
— Que trabalhem.
— Mas isso é trabalho! — protestou a mocinha.
— Não. E agora, mexa-se! Ajude-me a levar os meninos para a cozinha. Você os vigiará e ajudará
Bárbara.
Ela sentiu-se feliz em deixar as duas crianças naquele vasto domínio de calor e de aromas culinários.
O fogo ardia na lareira com um novo ardor.
"Que eles não mais tenham frio, que não mais tenham fome!", repetia consigo mesma Angélica. "Eu
não podia fazer melhor por eles do que trazê-los para uma rôtisserie!”
Florimond estava todo afogado em uma camisolinha de estamenha cinza-parda, um corpete de sarja
amarela e um avental de sarja verde. Tinha na cabeça uma touca de sarja igualmente verde. Essas cores
faziam parecer ainda mais doentio o seu semblante. Ela apalpou-lhe a fronte e pousou os lábios no
côncavo da pequenina mão, para ver se ele estava com febre. Ele parecia disposto, embora um pouco
caprichoso e resmungão. Quanto a Cantor, distraía-se desde cedo em desembaraçar-se das faixas com
que Rosina havia procurado, aliás desajeitadamente, envolve-lo. Na cesta em que o puseram, ele logo se
levantou, nu como um cupido, e pretendia escapar-se para ir agarrar as labaredas.
— Esse menino não foi educado — observou Bárbara com preocupação. — Enfaixaram-lhe ao menos
os braços e as pernas, como se deve? Ele não se manterá direito e arrisca-se mesmo a ficar corcunda.
— No momento, ele parece muito sólido para uma criança de nove meses — disse Angélica, que
admirava as nádegas roliças de seu caçula.
Mas Bárbara não estava tranquila. A liberdade de movimentos de Cantor atormentava-a.
— Logo que eu tenha um momento de folga, cortarei umas tiras para enfaixá-lo. Mas esta manhã não
será possível. Mestre Bourjus anda impertinente. Imagine, senhora, que ele me deu ordem de limpar o
lajedo, lustrar as mesas e, além disso, o fez correr ao Temple para comprar giz macio, a fim de polir os
estanhos. Eu perco a cabeça.
— Peça a Rosina que lhe ajude.

Tendo posto em ordem todo o seu mundo, Angélica tomou alegremente o caminho do'Pont Neuf.
A florista não a reconheceu. Angélica teve de lhe dar indicações precisas sobre o dia em que a tinha
ajudado a fazer buques e recebera seus elogios.
— Oh! Como queria que eu a reconhecesse? — exclamou a boa mulher. — Naquele dia você tinha
cabelos e não tinha sapatos. Hoje você tem sapatos e não tem cabelos. Enfim, espero que seus dedos não
tenham mudado... Pode vir sentar-se junto de nós. Trabalho não falta, na época de Todos os Santos.
Breve os cemitérios e as igrejas vão florir, sem falar dos retratos de defuntos.
Angélica sentou-se debaixo do guarda-sol vermelho e entregou-se à tarefa com habilidade.
Não erguia os olhos, receando perceber, no horizonte colorido do rio, a velha silhueta da Tour de
Nesle, ou reconhecer algum mendigo de Calembredaine entre os transeuntes do Pont Neuf.
Mas o Pont Neuf estava calmo nesse dia. Nem mesmo se ouvia a voz tonitruante do Grande Mateus,
porque ele tinha levado seu carro-plataforma e sua orquestra para a feira de Saint-Germain.
O Pont Neuf sofria um eclipse. Havia menos basbaques, menos saltimbancos, menos mendigos.
Angélica estava contente.
As mercadoras falavam, com grandes lamentações, da batalha da feira de Saint-Germain. Ainda se
recenseavam, parecia, os cadáveres dessa rixa particularmente sangrenta. Mas, pela primeira vez, a
polícia estivera à altura de sua missão. Desde a famosa tarde, viam-se passar pelas ruas levas de men-
digos, conduzidos pelos archeiros dos pobres ao Hospital Geral, ou ainda grupos de forçados partindo
para as galés.
Quanto às execuções, cada nova aurora alumiava dois ou três enforcados na Place de Greve.
Discutiu-se em seguida, com entusiasmo, sobre os atavios que ostentariam as damas floristas e
laranjeiras do Pont Neuf, quando fossem, com as peixeiras do mercado central, apresentar seus
cumprimentos de mercadoras de Paris à jovem rainha parturiente e ao monsenhor, o delfim.
— Enquanto espero — tornou a patroa de Angélica —, outro assunto me preocupa. Onde irá nossa
confraria festejar com o banquete habitual o dia de São Valbuno? O taberneiro dos Bons-Enfants
roubou-nos como um salteador, no ano passado. Não quero mais meter um soldo em sua sacola.
Angélica tomou parte na conversação que havia escutado, até aí, de boca fechada, como deve fazer
uma aprendiz respeitosa.
— Conheço uma excelente rôtisserie na Rue de la Valée-de-Misère. Lá os preços são módicos e
fazem-se pratos suculentos e frescos.
Enumerou, rapidamente, as especialidades da mesa da Gaia Ciência, nas quais havia outrora metido a
mão:
— Pastéis de lagosta, perus recheados com funcho, caçarolas de tripas de cordeiro, sem falar de massa
de amêndoas com pistácio, rissoles, barquilhos com anis. Mas também, senhoras, comerão nessa
rôtisserie alguma coisa que nem Sua Majestade Luís XIV já viu em sua mesa: pequenos brioches,
quentes e leves, com uma noz defoiegras cristalizado. Verdadeira maravilha!
— Upa! Minha filha, você nos põe água na boca — exclamaram as vendedoras, com o rosto já
congestionado pela gulodice. — Qual é o seu estabelecimento?
— O Galo Atrevido, a última rôtisserie da Rue de la Vallée-de-Misère, em direção do Quai des
Tanneurs.
— Palavra que nunca pensei que lá se preparasse tão boa comida. Meu homem, que trabalha no
Grande Açougue, vai ali às vezes fazer uma colação e diz que o lugar é triste e pouco atraente.
— A senhora está mal informada, minha amiga. Mestre Bourjus, o patrão, acaba de receber de
Toulose um sobrinho, que é ótimo cozinheiro e conhece toda sorte de pratos merijionais. Não se esqueça
de que Toulose é uma das cidades Ja França em que as flores são rainhas. São Valbuno ficará encantado
ao se ver festejar sob tal égide! E há também no Galo Atrevido um macaquinho que faz um cento de
caretas. E um tocador de sanfona, que sabe todas as canções do pont Neuf. Em resumo, tudo o que é
necessário para alguém se divertir em boa companhia.
— Minha filha, você me parece ainda mais dotada para fazer panegíricos do que para amarrar as
flores. Vou acompanhá-la ao restaurante.
— Oh, não hoje. O cozinheiro tolosano partiu para o campo a fim de escolher ele mesmo as couves de
uma panelada de presunto, de que possui o segredo. Mas, amanhã de tarde, esperá-las-emos, à senhora e
às damas de sua companhia, a fim de discutir o cardápio que lhes convenha.
— E você, que faz nessa rôtisserie?
—- Sou parenta de mestre Bourjus — afirmou Angélica.
Recordando-se de que da primeira vez em que a mercadora a tinha visto, ela estava com semblante
muito mais triste, explicou:
— Meu marido era um pequeno pasteleiro. Não tinha ainda feito exame para tornar-se mestre, quando
morreu de peste, neste inverno. Deixou-me na miséria, pois tínhamos contraído grandes dívidas no
boticário com a sua doença.
— Sabemos o que significam as contas do boticário! — suspiraram as boas mulheres, erguendo os
olhos para o céu.
— Mestre Bourjus recolheu-me por piedade, e eu o ajudo no seu negócio. Mas, como a sua clientela é
rara, eu procuro ganhar algum dinheiro noutro lugar.
— Como se chama, minha bela?
— Angélica.
Nesse instante ela se levantou e disse que ia partir para avisar imediatamente o rotisseur.

Voltando rapidamente à Rue de la Vallé-de-Misère, ela se admirava de todas as mentiras que havia
pregado em uma só manhã. Não procurava compreender a ideia que a tinha assaltado de recrutar
clientes para mestre Bourjus. Quereria testemunhar seu reconhecimento ao rôtisseur por não a ter
expulsado? Esperava, de sua parte, uma recompensa? Não fazia a si a mesma nenhuma pergunta. Seguia
a corrente que a levava a fazer uma coisa, depois outra. O instinto da mãe que defende seus filhos,
subitamente aguçado, lançava-a para a frente.
De mentira em mentira, de ideia em ideia, de audácia em audácia, chegaria a salvar-se e a salvar seus
filhos. Disso ela estava certa!

CAPÍTULO XVIII

O banquete da corporação das floristas

Na manhã seguinte, Angélica levantou-se ao romper da alva, e foi ela quem despertou Bárbara,
Rosina e os meninos.
— Vamos, de pé, companheiros! Não nos esqueçamos de que as floristas vêm conversar conosco
sobre o banquete da confraria. Precisamos encher-lhes os olhos.
Flipot resmungou um pouco.
— Por que somos sempre nós que trabalhamos? — perguntou. — Por que dorme ainda esse indolente
Davi e só desce para a cozinha quando o fogo já está aceso, a panela quente e toda a sala varrida?
Deveria dar-lhe uma sacudidela, marquesa!
— Atenção, rapazes, eu não sou mais a Marquesa dos Anjos, e vocês não são mais mendigos.
Atualmente, somos domésticos, criados e caixeiros. E em breve seremos burgueses.
— Merda, então — disse Flipot. — Eu não gosto dos burgueses. Aos burgueses a gente rouba a bolsa,
toma o capote. Não quero transformar-me num burguês.
— E como vamos chamá-la, se não é mais a Marquesa dos Anjos? — perguntou Linot.
— Chame-me: senhora, e diga-me: sim, senhora.
— Nada disso! — mofou Flipot.
Angélica deu-lhe um carolo que o fez compreender que a vida se tornava séria. Enquanto ele
choramingava, ela veri-hcou o traje dos dois garotos. Estavam vestidos com roupas de pobres, enviadas
pela Condessa de Soissons, cerzidas e feias, mas limpas e decentes. Além disso, tinham grandes sapatos
sólidos, ferrados, com os quais andavam desajeitadamente, mas que os preservariam do frio durante
todo o inverno.
— Flipot, você vai acompanhar-me, com Davi, ao mercado. Linot, você fará o que Bárbara mandar.
Irá buscar água, lenha etc. Rosina vigiará os meninos e os espetos na cozinha.
Flipot suspirou tristemente:
— Não é nada divertida esta nova profissão. Como mendigo e rapa-bolsas, leva-se vida de gente da
alta. Um dia, tem-se muito dinheiro: come-se a ponto de rebentar e bebe-se até cair. Outro dia não se tem
nada. Então, para não sentir fome, a gente se deita num canto e dorme quanto quiser. Aqui, é só
trabalhar e comer ensopado.
— Se quer voltar ao Grande Coêsre, não o retenho.
Os dois meninos protestaram:
— Oh, não. Aliás, não temos mais direito. Eles nos estripariam.
Angélica suspirou.
— E a aventura que lhes falta, meus rapazes. Eu os compreendo. Mas também existe o patíbulo no
final. Enquanto, por este novo caminho, nós seremos talvez menos ricos, mas tornar-nos-emos pessoas
consideradas. Vão, mexam-se!
Toda a pequena tropa desceu barulhentamente a escada. Num dos andares, Angélica parou,
tamborilou à porta do quarto do jovem Chaillou e acabou por entrar.
— De pé, aprendiz!
O adolescente levantou, na beira de seu lençol, um rosto aturdido.
— De pé, Davi Chaillou! — repetiu alegremente Angélica. — Não se esqueça de que a partir de hoje
você é um célebre cozinheiro, cujas receitas toda Paris desejará.
Mestre Bourjus, azafamado, suspiroso, excitado a contragosto e galvanizado pela autoridade de
Angélica, consentiu em lhe entregar uma bolsa bem fornida.
— Se o senhor teme que eu o roube, pode seguir-me até o mercado — disse-lhe ela —, mas faria
melhor ficando aqui para preparar capões, perus, patos e assados. Compreenda que as damas que
chegarão daqui a pouco querem encontrar um ambiente que lhes inspire confiança. Um mostruário vazio
ou com aves empoeiradas, uma sala escura e cheirando a tabaco velho, um ar de pobreza e desconforto,
isso não tenta as pessoas decididas a realizar um festim. Eu teria prometido em vão o cardápio mais
excepcional; elas não me acreditariam.
—Mas que comprará você esta manhã, se a escolha dessas pessoas ainda não foi resolvida?
—Vou comprar a decoração.
—O... quê?
—Tudo o que falta para que sua casa se torne atrativa: coelhos, peixes, frios, frutas, belas hortaliças.
—Mas isto não é casa de pasto! — lamentou-se o gordo homem. — Apenas asso e .vendo carnes.
Quer fazer-me perseguir pelas corporações dos mestres cozinheiros e pasteleiros?
—Que podem eles fazer?
—As mulheres não têm a mínima noção dessas questões sérias — gemeu mestre Boufjus, levantando
os braços curtos para o teto. — Os jurados dessas corporações vão mover-me processo, levar-me à
justiça. Em resumo, você quer
arruinar-me?
—O senhor já está arruinado — fulminou Angélica. — Então, nada a perder tentando outra coisa e
sacudindo-se um
pouco. Vá dar uma volta pelo Quai de Greve. Ouvi um vendedor de vinho anunciar uma bela chegada
de barricas de Bourgogne e de Champagne.
Na Place du Pilori, Angélica fez suas compras procurando não se deixar roubar muito. Davi
complicava as coisas não cessando de repetir:
— E bom demais! E muitíssimo caro! Que dirá meu tio?...
— Imbecil! — acabou ela por atirar-lhe. — Não tem vergonha, você, um rapaz do sul, de olhar as
coisas tão mesquinhamente como um avarento de coração gelado? Não me diga mais que é de Toulouse.
— Sou de Toulouse, sim — protestou o ajudante de cozinha. — Meu pai era o Sr. Chaillou. Este nome
não lhe diz nada?
— Não. Que fazia precisamente seu pai?
Davi pareceu decepcionado como um menino a quem se tomou seu bombom.
— Mas a senhora bem o sabe! Ele era o grande especieiro da Place de la Garonne! O único que tinha
ervas exóticas para perfumar os pratos!
"Naqueles tempos não era eu quem fazia as minhas compras", pensou Angélica.
— Ele tinha trazido das suas viagens muitas coisas desconhecidas, tendo sido cozinheiro nos navios
do rei — tornou
Davi. — A senhora bem sabe... Foi ele quem quis lançar o chocolate em Toulouse.
Angélica fez um esforço para extrair da memória um incidente que a palavra "chocolate" lhe sugeria.
Sim, havia-se falado disso nos salões. Ocorreu-lhe o protesto de uma dama tolosana, e ela disse:
— O chocolate?... Mas isso é bebida de índio!
Davi pareceu muito perturbado, pois as opiniões de Angélica já tinham para ele uma importância
desmesurada.
Aproximou-se dela e disse-lhe que, para convencê-la da excelência das ideias do senhor seu pai, ia
confiar-lhe um segredo que não havia ainda transmitido a ninguém, nem mesmo a seu tio.
Ele assegurou que seu pai, grande viajante quando jovem, tinha provado o chocolate de diferentes
países estrangeiros, onde o fabricavam com grãos importados do México. Assim, na Espanha, na Itália e
até na Polónia, ele pudera persuadir-se da excelência do novo produto, que era de gosto agradável e
possuía excelentes qualidades medicinais.
Uma vez empolgado pelo assunto, o jovem Davi mostrou-se inesgotável. Em seu desejo de prender o
interesse da dama de seus pensamentos, ele se pôs a demonstrar, com voz estridente, tudo o que sabia
sobre a questão.
— Brrr! — fez Angélica, que escutava com um só ouvido. — Jamais provei essa coisa e não me sinto
tentada a fazê-lo. Dizem que a rainha, que é espanhola, muito a aprecia. Mas a corte inteira está
perplexa diante desse gosto extravagante e faz zombaria dela.
— É porque as pessoas da corte não estão habituadas ao chocolate — afirmou, não sem lógica, o
aprendiz de cozinheiro. — Meu pai assim pensava, e obteve uma carta-patente do rei para fazer
conhecer esse novo produto. Mas, ai! Ele morreu e, como minha mãe já estava morta, só existo eu para
utilizar a carta-patente. Não sei como agir. Também não falei do assunto a meu tio. Tenho medo de que
ele troce de mim e de meu pai. Ele repete sempre que meu pai era doido.
— Você tem essa carta? — perguntou de repente Angélica, parando e arriando seus cestos a fim de
olhar fixamente seu jovem namorado.
Este quase desfaleceu ante o esplendor daqueles olhos verdes. Quando o pensamento de Angélica
estava ocupado com uma reflexão mais ou menos intensa, seus olhos tomavam uma luminosidade quase
magnética, que não podia deixar de impressionar seu interlocutor, tanto mais que não se podia sempre
explicar a causa da luminosidade.
O pobre Davi era, por esses olhos, uma vítima perdida antecipadamente. Não resistiu.
— Você tem a carta? — repetiu Angélica.
— Tenho — sussurrou ele.
— Qual é a data?
— Vinte e oito de maio de 1659, e a autorização é válida por vinte e nove anos.
— Em suma, durante vinte e nove anos você está autorizado a fabricar e lançar no comércio esse
produto exótico?
— Estou, sim...
— Seria preciso saber se o chocolate não é perigoso — murmurou Angélica, pensativa —, e se o
público poderia passar a gostar dele. Você já o bebeu?
— Já.
— Que e que acha?
— Eu — disse Davi —, eu o acho antes adocicado. Quando se lhe junta pimenta e pimentão, ele
adquire um sabor picante. Mas, de minha parte, prefiro um bom copo de vinho — ajuntou ele,
assumindo um ar alegre.
— Olha a água! — gritou uma voz acima deles.
Não tiveram tempo senão de dar um saltopara o lado, a fim de evitar a ducha malcheirosa. Angélica
tinha agarrado o braço do aprendiz. Sentiu-o estremecer.
— Eu queria dizer-lhe — balbuciou ele com precipitação—, eu nunca vi uma... uma mulher tão bela
como a senhora.
— Você já viu, sim, meu pobre rapaz — disse ela com leve irritação. — Basta olhar em volta de si em
vez de roer as unhas e de se mover feito uma lesma. Se quiser dar-me prazer, fale-me do seu chocolate,
em lugar de me fazer elogios supérfluos.
Depois, diante do seu ar lastimável, ela procurou reconfortá-lo. Achou que não era necessário repeli-
lo. Ele podia tornar-se interessante com aquela carta-patente de que era possuidor.
Disse, rindo:
— Eu não sou mais, ai de mim, uma jovem de quinze anos, meu rapaz. Olhe como estou velha. Já
tenho cabelos brancos.
Puxou de sob a touca a mecha de cabelos tão estranhamente embranquecida no transcurso da terrível
noite do Faubourg Saint-Denis.
— Onde está Flipot? — continuou Angélica, olhando em derredor. — Será que esse garoto anda na
vadiagem?
Estava um tanto inquieta, receando que Flipot, na vizinhança das multidões, procurasse pôr em prática
os ensinamentos de Jactância, o Rapa-Bolsas.
— A senhora faz muito mal em preocupar-se com esse pequeno tratante — observou Davi, em tom de
amargo ciúme.
— Eu o vi há pouco trocar uma senha com um mendigo coberto de pústulas, que pedia esmolas
diante da igreja. Depois, deu o pira... com seu cesto às costas. Meu tio vai ter um de seus acessos!
— Você sempre vê as coisas pelo lado negro, meu pobre Davi.
— Eu nunca tive sorte!
— Vamos voltar. Havemos de encontrar esse maroto. Mas já o fedelho reaparecia em desabalada
corrida, com seus olhos vivos de pardal parisiense, seu nariz vermelho, seus longos cabelos rígidos sob
um grande chapéu amarfanhado. Agarrou-se a ela, bem como ao pequeno Linot, que ela havia arrancado
por duas vezes às garras de João Podre.
— Eu nem lhe conto, Marquesa dos Anjos — disse esbaforido Flipot, esquecendo, em sua emoção,
todas as instruções.
—Sabe quem é o nosso Grande Coésre? Traseiro de Pau, minha cara, o nosso Traseiro de Pau de Tour
de Nesle!
Ele abaixou a voz e acrescentou em um murmúrio amedrontado:
— Disseram-me: "Tomem cuidado, mocinhos, que se es condem nas saias de uma traidora!"
Angélica sentiu o sangue gelar.
— Acredita que eles sabem que fui eu quem matou Rolin Tarraco?
— Nada me disseram. No entanto... Pão Negro falou dos soldados que você foi buscar contra os
ciganos.
— Quem estava lá?
— Pão Negro, Pé Ligeiro, três velhas das nossas e dois "epilépticos" de outro bando.
A jovem e o menino tinham trocado essas palavras na gíria dos ladrões, que Davi não podia
compreender, mas cujas entonações temíveis ele reconhecia sem dificuldade. Estava ao mesmo tempo
inquieto e admirado de sentir as misteriosas relações de sua nova paixão com aquela corja impalpável e
onipresente que desempenhava grande papel em Paris.
Angélica não falou durante o regresso, mas, logo que atravessou o limiar da rôtisserie, sacudiu
resolutamente suas apreensões.
"Minha filha", pensou, "pode ser muito bem que você acorde, uma bela manhã, com a garganta
cortada ou vogando nas águas do Sena. É um risco que você cofre há muito tempo. Quando não são os
príncipes que a ameaçam,"são os mendigos! Que importa? E preciso lutar, mesmo que este dia seja o
último que veja brilhar. Não se consegue sair de dificuldades sem enfrentá-las corajosamente e sem se
arriscar um pouco... Não foi o Sieur Molines quem me disse isso uma vez?"
— Vamos, meus filhos — disse ela em voz alta —, é preciso que as damas da corporação das flores se
sintam derretidas como manteiga ao sol ao franquearem a porta.
As damas, com efeito, ficaram encantadas quando desceram, ao anoitecer, os três degraus da entrada
do Galo Atrevido. Não somente ali reinava um delicioso cheiro de folhados, como também a aparência
da sala era ao mesmo tempo tentadora e original.
O grande fogo da lareira lançava, crepitando, sua claridade dourada. Auxiliado por algumas velas
postas sobre as mesas vizinhas, ele produzia belos reflexos sobre toda a baixela e os utensílios de
estanho dispostos com arte sobre os aparadores: panelas, picheis, peixeiras, torteiras. Além disso, An-
gélica requisitara algumas peças de prata que mestre Bourjus fechava ciosamente em suas arcas: dois
gomis, uma vinagreira, dois oveiros, duas lavandas. Estas últimas foram decoradas com frutas — uvas e
peras — e dispostas sobre as mesas, ao lado de belas garrafas de vinhos tinto e branco, onde o fogo
acendia reflexos de rubi e de ouro. Foram esses detalhes que mais surpreenderam a maior parte das
floreiras.
Por terem sido chamadas amiúde para levar suas mercadorias às grandes casas principescas, por
ocasião de algum festim, elas encontravam naquela disposição da prataria, das frutas e dos vinhos uma
vaga reminiscência das recepções da nobreza, o que as lisonjeava secretamente.
Como comerciantes avisadas, não quiseram testemunhar muito abertamente sua satisfação. Lançaram
uma olhada crítica às lebres e aos presuntos pendentes das vigas, farejaram com desconfiança os pratos
de charcutaria, de carne fria, os peixes cobertos de molho verde, apalparam com dedo prevenido as aves.
A decana da corporação, a quem chamavam tia Marjolaine, encontrou, enfim, a falha daquele quadro
perfeito.
— Faltam flores — disse ela. — Essa cabeça de vitelo teria outro aspecto com dois cravos nas narinas
e uma peônia entre as orelhas.
— Senhora, nós não quisemos procurar rivalizar, nem sequer por um raminho de salsa, com a graça e
a habilidade de que dão mostra nesse domínio em que são rainhas — respondeu muito galantemente
mestre Bourjus.
As três simpáticas damas foram acomodadas diante do fogo, e um jarro do melhor vinho foi trazido da
adega.
O encantador Linot, sentado na pedra da lareira, girava suavemente a manivela de sua sanfona, e
Florimond brincava com Piccolo.
O cardápio do banquete foi estabelecido numa atmosfera das mais cordiais. Entenderam-se muito
bem.
— E agora? — gemeu o rôtisseur, quando, com abundância de curvaturas, reconduziu as floristas à
porta. — Que iremos fazer de todas essas "vigarices" que guarnecem nossas mesas? Os artífices e
obreiros vão vir por causa da carne com salsa. Não serão eles que vão comer essas coisas delicadas, e
ainda menos pagá-las. Por que essa despesa inútil?
—O senhor me surpreende, mestre Tiago — protestou Angélica severamente. —- Eu o supunha mais
a par das coisas do comércio. Esta despesa inútil lhe permitiu arpoar uma encomenda que lhe trará dez
vezes mais do que as suas despesas de hoje. Sem contar que uma vez metidas na festa, não se sabe
muito até onde essas damas levarão seus gastos. Fá-las-emos cantar e dançar, e os transeuntes, vendo
esta rôtisserie em que se leva vida divertida, hão de querer seu quinhão de prazer.

Embora não o demonstrasse, mestre Bourjus não deixava de partilhar as esperanças de Angélica. O
entusiasmo e a ati-vidade que empregou para os preparativos dó festim de São Valbuno fizeram-lne
esquecer sua inclinação pela garrafa. Ele reencontrou, saltando sobre as pernas curtas, sua agilidade de
mestre-cuca e sua voz autoritária com os mercadores, assim como a amabilidade natural e untuosa de
todo alberguista que se preza. Havendo Angélica conseguido convencê-lo de que uma aparência
abastada era necessária para o sucesso de sua empresa, ele chegou a encomendar um costume completo
de ajudante de cozinha para seu sobrinho e... outro para Flipot.
Enormes gorros, jaquetas, calças, aventais, juntamente com as toalhas e os guardanapos, foram
enviados às lavadeiras e voltaram rígidos de goma e brancos como neve.

Na manha do grande dia, mestre Bourjus, sorrindo e esfregando as mãos, abeirou Angélica.
—Minha filha — disse ele com amizade —, é verdade que você tem feito voltar à minha casa a
alegria e o entusiasmo que nela fazia reinar outrora minha santa e boa mulher. Isso me deu uma ideia.
Venha comigo.
Encorajando-a com uma piscadela cúmplice, ele fez-lhe sinal para que o seguisse. Ela subiu atrás dele
a escada em caracol. No segundo andar, pararam. Angélica, penetrando no quarto conjugal de mestre
Bourjus, foi assaltada de um medo que nunca tivera. Não acariciaria porventura o rôtisseur o projeto de
pedir àquela que começava a substituir tão vantajosamente sua esposa que levasse um pouco mais longe
a complacência nesse papel delicado?
Sua expressão sorridente e sonsa, enquanto ele fechava a porta e se dirigia com ar misterioso para o
guarda-roupa, não era de fazê-la tranquilizar-se.
Tomada de pânico, Angélica perguntou a si mesma como iria enfrentar aquela situação catastrófica.
Iria ele fazê-la renunciar aos seus belos projetos, deixar aquele teto confortável, partir outra vez com
seus dois filhos e seu pequeno bando?
Ceder? Ela estava com as faces em fogo, e correu angustiada os olhos por aquele quarto de pequeno
comerciante, com seu grande leito de cortinas de sarja verde, suas duas cadeiras de braço, seu lavatório
de nogueira com uma bacia de rosto e um jarro de prata.
Por cima da lareira, havia dois quadros que representavam cenas da Paixão e, sobre ganchos, as
armas, orgulho de todo artífice e burguês: dois pequenos fuzis, um mosquete, um arcabuz, um pique,
uma espada com guarda e punho de prata.
O dono do Galo Atrevido, tão mole na vida ordinária, era sargento da milícia burguesa, e isso não lhe
desagradava. Contrariamente a muitos de seus colegas, ele se apresentava com muito gosto ao Châtelet,
quando chegava seu turno de ronda.
Naquele instante, Angélica ouvia-o arquejar e debater-se ruidosamente era um pequeno
compartimento vizinho.
Reapareceu empurrando uma grande arca de madeira enegrecida.
— Ajude-me, minha filha.
Ela ajudou-o a puxar a arca até o meio do aposento. Mestre Bourjus enxugou a fronte.
— Eis aqui — disse ele —, eu pensei... Enfim, foi você mesma que me repetiu que, para esse
banquete, era preciso que estivéssemos todos tão belos como guardas suíços. Davi, os dois ajudantes de
cozinha, eu mesmo, estaremos armados. Vestirei minha calça de seda parda. Mas é você, minha pobre
filha, que não nos orgulha, apesar de sua cara bonita. Então, eu pensei...
Ele se interrompeu, hesitou, depois abriu a arca. Cuidadosamente arrumadas e perfumadas por um
galho de alfazema, havia lá vasquinhas da Sra. Bourjus, seus corpetes, suas toucas, seus lenços de
pescoço, seu belo capirote de fazenda negra com quadrados de cetim.
— Ela era um pouco mais gorda que você — disse o rôtisseur com voz abafada. — Mas, com
alfinetes...
Com um dedo enxugou uma lágrima e rosnou subitamente:
— Não fique aí a olhar-me! Faça sua escolha.
Angélica levantou as vestimentas da finada. Eram modestos trajes de sarja, mas os passamanes de
veludo, os forros de cores vivas, a finura da roupa-branca, provavam que, no fim de sua vida, a dona do
Galo Atrevido tinha sido uma das comerciantes mais ricas do bairro. Havia possuído mesmo um
pequeno regalo de veludo vermelho com ramagens de ouro, que Angélica experimentou em seu pulso
com prazer não dissimulado.
— Uma loucura! — disse mestre Bourjus, com um sorriso indulgente. — Ela o vira na galeria do
Palais e não falava noutra coisa. Eu lhe dizia: "Amandina, que fará você com esse regalo? Ele é feito
para uma nobre dama do Marais, que vai exibir-se nas Tulherias ou no Cours-lã-Reine, por um belo sol
de inverno". "Pois bem", respondia-me ela, "eu irei exibir-me nas Tulherias e no Cours-la-Reine." E isso
me envaidecia. Ofertei-lho no último Natal. Que alegria a sua!... Quem diria que poucos dias mais
tarde... ela estaria... morta...
Angélica dominou sua emoção.
— Estou certa de que ela gostará de ver, lá do céu, como o senhor é bom e generoso. Não usarei este
regalo, porque é demasiado belo para mim. Mas aceito de boa vontade sua oferta, mestre Bourjus. Vou
ver o que me convém. Poderia mandar-me Bárbara, para que ela me auxilie a ajustar estas roupas?

Ela notou, como primeiro passo para o fim a que se propunha, o fato de se achar diante de. um espelho
com uma camareira a seus pés. Com a boca cheia de alfinetes, Bárbara também sentia isso e
multiplicava os "senhora" com satisfação evidente.
"E dizer que eu não tenho por toda fortuna senão alguns soldos que me deram as floristas do Pont
Neuf e a esmola que me envia diariamente a Condessa de Soissons!", pensava divertidamente Angélica.
Ela escolhera um corpete e uma vasquinha de sarja verde, passamanada de cetim negro. Um avental
de cetim preto com orzinhas de ouro completava sua indumentária de comerciante abastada. O amplo
peito da Sra. Bourjus não permitia o ajuste exato da vestimenta aos pequenos seios firmes e altos de
Angélica. Um lenço de pescoço cor-de-rosa, bordado de verde, disfarçou a folga na gola do corpete.
Em um saquinho Angélica encontrou as jóias simples da rôtisseuse: três anéis de ouro, guarnecidos de
cornalinas e turquesas, duas cruzes, pingentes, e ainda oito belos terços, um deles de contas de azeviche
e os outros de cristal.
Angélica desceu, trazendo sob a touca engomada, que dissimulava seus cabelos tosquiados, os brincos
de ágata e pérolas, e, ao pescoço, uma pequena cruz de ouro presa a uma fita de veludo negro.
— Por São Nicolau, você parece a filha que nós sempre esperamos e que nunca tivemos! Às vezes nós
sonhávamos com ela. Teria agora quinze anos, dezesseis anos, dizíamos. Vestir-se-ia desta ou daquela
maneira... Iria e viria em nossa loja, rindo alegremente com os fregueses...
— O senhor é muito gentil, mestre Tiago, em fazer-me esses belos elogios. Ai de mim! Já não tenho
quinze ou dezesseis anos. Sou mãe de família...
— Não sei o que você é — disse ele, sacudindo com enternecimento a gorda face vermelha. — Parece
meio irreal. Depois que se pôs a turbilhonar na minha casa, tenho a impressão de que os tempos são
outros. Não estou muito certo de que você não desaparecerá um dia como veio... Parece-me distante
aquela noite em que você surgiu das trevas com seus cabelos sobre as espáduas e me disse:"O senhor
não tem uma criada chamada Bárbara?" Aquilo soou em meu crânio como uma badalada... Aquilo
queria talvez dizer que você tinha um papel a desempenhar aqui.
"Assim o espero", pensou Angélica, mas observou, em tom de repreensão afetuosa:
— O senhor estava bêbado, e por isso é que sentiu uma badalada no crânio.
Sendo o momento de matizes sentimentais, de pressentimentos místicos, parecia-lhe muito impróprio
para conver-Ísar com mestre Bourjus sobre as recompensas financeiras que ela esperava obter para si e
seu grupo, por motivo da sua colaboração.
Quando os homens se põem a sonhar, não convém trazê-los bruscamente a um realismo que eles têm
muita tendência para professar. Angélica decidiu empregar todos os recursos de sua natureza impulsiva
para desempenhar sem falsas notas, durante algumas horas, o fascinante papel de filha do alberguista.

O festim da confraria de São Valbuno foi um êxito, e o próprio santo não lamçntou senão uma coisa:
não poder reencarnar-se para gozá-lo plenamente.
Três corbelhas de flores serviram para a decoração das mesas. Mestre Bourjus e Flipot,
resplandecentes, faziam as honras da casa e serviam os pratos. Rosina ajudava Bárbara na cozinha.
Angélica ia de um a outro, vigiava as panelas e os espetos, respondia prontamente às saudações das
freguesas e encorajava, alternando louvores e censuras, o talento culinário de Davi, promovido a mestre
em especialidades meridionais. Na realidade, ela não se comprometia apresentando-o como um
talentoso mestre da profissão. Ele sabia muitas coisas, e somente sua preguiça, e talvez a falta de
oportunidades, o tinha impedido até então de se revelar. Subjugado pelo entusiasmo de Angélica,
arrebatado por suas aprovações, guiado por ela, ele se superou. Fizeram-lhe uma ovação quando ela o
trouxe, todo ruborizado, à sala. Aquelas damas, alegradas pelo bom vinho, acharam-no de belos olhos,
fizeram-lhe perguntas indiscretas e brejeiras, beijaram-no, deram-lhe palmadinhas, fizeram-lhe afagos.
Com Linot a girar a manivela da sanfona, houve canções, de copo na mão, depois grandes risos
quando Piccolo executou seu número imitando sem piedade os modos excêntricos de tia Marjolaine e de
suas colegas.
Entrementes, um grupo de mosqueteiros, que passava pela Rue de la Vallé-de-Misère em busca de
distrações, notou aquelas gargalhadas alegres e femininas e resvalou para a sala do Galo Atrevido,
reclamando "assados e vinho".
A cerimonia tomou uma feição que teria certamente desagradado a São Valbuno, se esse bom santo
provençal, amigo do sol e da alegria, não fosse, por natureza, indulgente para com a desordem que
inevitavelmente geram as reuniões de floristas e militares galantes. Não dizem que a tristeza é um
pecado? E, se quer rir descontraidamente, não existem vinte maneiras. A melhor ainda é estar em uma
tépida sala, impregnada de odores de vinhos, de molhos e de flores, com um pequeno sanfonineiro
raivoso que faz saltar e cantar aos presentes, um símio que os diverte, e frescas mulheres risonhas, nada
bravinas, que se deixam beijar à vontade.

Angélica se concentrou quando o sino da Igreja de Santa Oportuna tocou o angelus. Com as faces
esfogueadas, as pálpebras pesadas, os braços estourados de carregar pratos e canjirões, os lábios em fogo
de alguns beijos ousados e bigodudos, ela se reanimou ao ver Bourjus contar suas moedas de ouro com
ar circunspecto.
Ela exclamou:
— Não trabalhamos bem, mestre Tiago?
— Certamente, minha filha. Há muito tempo minha loja não via festa igual! E esses senhores não se
mostraram tão maus pagadores como faziam recear seus penachos e suas ta-rascas.
— Não acredita que eles vão trazer seus amigos?
— É possível.
— Eis o que eu proponho — declarou Angélica. — Eu continuo a ajudá-lo com todas as minhas
crianças: Rosina, Linot, Flipot e o símio. E o senhor me dá um quarto de seus lucros!
O rôtisseur franziu o sobrolho. Essa maneira de encarar o comércio continuava a parecer-lhe
inusitada. Ele não estava muito certo de não vir a ter, qualquer dia, aborrecimentos com as corporações
ou o preboste dos mercadores. Mas as afortunadas libações da noite enevoavam-lhe a mioleira e
entregavam-no sem defesa ao arbítrio de Angélica.
— Faremos um contrato perante o notário — tornou ela —, mas ficará em segredo. O senhor não tem
necessidade de contar suas histórias ao vizinho. Diga que sou uma jovem parenta que recolheu, e que
trabalhamos em família. Verá, mestre Tiago, eu pressinto, que iremos fazer brilhantes negócios. Toda a
população do bairro gabará suas habilidades comerciais, e as pessoas o invejarão. Tia Marjolaine já me
falou do banquete da confraria das laranjeiras do Pont Neuf, x que cai no dia de São Fiacre. Veja bem: é
do seu interesse conservar-nos aqui. Olhe, desta vez o senhor me dará isto.
Contou rapidamente a parte que lhe tocava e retirou-se deixando o bom homem perplexo, mas já
convencido de que era um comerciante cheio de audácia.

Angélica foi ao pátio-para respirar o fresco ar da manhã. Apertou com força as peças de ouro na mão,
contra o peito. Aquelas moedas eram a chave da liberdade. Decerto, mestre Bourjus não fora roubado.
Mas Angélica calculava que, aproveitando seu pequeno grupo as sobras dos festins, tudo o que ela
retirasse, e que aumentaria na proporção de seus esforços, acabaria por constituir uma fortuna. Então
poderia íançar-se a outra coisa. Por exemplo, por que não explorar aquela patente que Davi Chaillou
pretendia conservar e que concernia à fabricação de uma bebida exótica chamada chocolate? Sem
dúvida as pessoas do povo não apreciariam muito tal bebida, mas os jovens elegantes e as "preciosas",
ávidos de novidades e de extravagâncias, talvez a lançassem em moda.
Angélica já via as carruagens de nobres damas e de nobres senhores enfitados pararem na Rue de la
Vallé-de-Misère.
Sacudiu a cabeça para afugentar seus sonhos. Não devia querer ir muito longe. A vida ainda era
precária, instável. O que devia, sobretudo, era entesourar, entesourar, como uma formiga. A riqueza é a
chave da liberdade, o "direito de não morrer, de não ver morrer os filhos, o direito de vê-los sorrir. "Se
meus bens não houvessem sido confiscados", pensou, "certamente eu teria podido salvar Joffrey!"
Novamente ela sacudiu a cabeça. Não devia mais pensar nisso. Porque, cada vez que pensava, o gosto
da morte insinuava-se-lhe nas veias, e ela era presa de um desejo de dormir eternamente.
Nunca mais ela sonharia com isso. Tinha outra coisa a fazer. Precisava salvar Florimond e Cantor. Ela
entesouraria, entesouraria!... Seu ouro, ela o fecharia no cofre de madeira, preciosa relíquia de um
tempo sórdido, no qual já guardara o punhal de Rodoguno, o Egípcio. Junto da arma doravante inútil, o
ouro, essa arma do poder, se acumularia.
Angélica ergueu os olhos para o céu molhado, onde o reflexo dourado da aurora se esfumava, cedendo
lugar a um pesado cinza-estanho.
O vendedor de aguardente apregoava nas ruas a sua mercadoria. Um mendigo, à entrada do pátio,
salmodeou sua lamentação. Olhando para ele, Angélica reconheceu Pão Negro. Pão Negro com todos os
seus andrajos, todas as suas chagas, todas as suas tralhas de eterno peregrino da miséria.
Tomada de medo, ela correu a buscar uma fatia de pão e uma tigela de caldo, e deu-as a ele. O
mendigo encarou-a ferozmente, por baixo de suas sobrancelhas brancas e espessas.

CAPITULO XIX

Visita ao Louvre e encontro com o anão Barcarola

Durante alguns dias ainda, Angélica dividiu suas habilidades entre as caçarolas de mestre Bourjus e as
flores de tia Marjolaine. A florista havia-lhe pedido ajuda, pois o nascimento do herdeiro real se
aproximava, e aquelas damas estavam sobrecarregadas de serviço.
Num dia de novembro, quando elas estavam sentadas no Pont Neuf, o relógio do palácio começou a
soar. O boneco da Samaritana agarrou seu martelo, e ouviram-se ao longe os tiros surdos do canhão da
Bastilha:
Toda a população de Paris enlouqueceu de alegria.
— A rainha deu à luz! A rainha deu à luz! Ofegante, a multidão contava:
— Vinte, vinte e um, vinte e dois...
Ao vigésimo terceiro tiro, as pessoas começaram a se agarrar. Alguns diziam que era o vigésimo
quinto, outros que era o vigésimo segundo. Os otimistas estavam adiantados; os pessimistas, atrasados.
E os repiques, os carrilhões, os disparos de canhão continuaram a inundar Paris em delírio. Não avia
mais dúvida: era um menino!
— Um delfim! Um delfim! Viva o delfim! Viva a rainha! Viva o rei!
Todos se abraçavam e beijavam. O Pont Neuf explodiu em canções. Dançavam-se de mãos dadas. As
lojas e as oficinas fecharam suas portas. As fontes vomitaram torrentes de vinho. Em grandes mesas,
armadas nas ruas pelos criados do rei, regalava-se o povo com pastéis e doces. De noite houve grande
queima de fogos de artifício.
Quando a rainha voltou de Fontainebleau e se reinstalou no Louvre com o real pimpolho, as
corporações da cidade prepararam-se para levar-lhe os cumprimentos.
Tia Marjolaine disse a Angélica:
— Você irá também. Não é muito regular, mas eu a nomearei aprendiz para levar meus cestos de
flores. Não está contente por ir ver a morada dos reis, o belo palácio do Louvre? Parece que os quartos
ali são grandes e altos como igrejas!
Angélica não ousou recusar. A honra que lhe fazia a boa mulher era grande. Além disso, embora lhe
custasse admiti-lo, ela estava ansiosa por tornar a ver aqueles lugares, palco de tantos acontecimentos e
dramas de sua vida. Veria a Grande Mademoiselle, com os olhos inchados de lágrimas comovidas, a
insolente Condessa de Soissons, o espirituoso Lauzun, o tenebroso De Guiché, De Vardes?... Entre
aquelas, grandes damas e grandes senhores, quem se lembraria de reconhecer, no meio das negociantes,
a mulher que, ainda havia pouco, em seus vestidos de corte, com os olhos ardentes, seguida de seu
mouro impassível, percorria os corredores do Louvre, ia de um a outro, inquieta, depois suplicante,
reclamando a impossível graça para um esposo condenado antecipadamente?

No dia aprazado, ela se encontrou no pátio do palácio, onde as floristas, as laranjeiras do Pont Neuf e
as peixeiras do mercado geral misturavam suas vozes sonoras e suas saias engomadas. Acompanhavam-
nas suas mercadorias, igualmente belas mas de odores diferentes.
Cestas de flores, cestos de frutas e barriletes de arenques iam ser depositados, lado a lado, diante de
monseigneur delfim, que devia tocar igualmente, com sua mãozinha, as rosas macias, as laranjas
resplandecentes e os belos peixes de prata.
Quando aquelas damas, em grupo ruidoso e odorífero, subiam a escada que conduzia aos
apartamentos reais, cruzaram com o núncio apostólico, que acabava de entregar o enxoval do herdeiro
presuntivo do trono da França, tradicionalmente ofertado pelo papa "a fim de testemunhar que ele o
reconhecia como filho primogênio da Igreja".
Na antecâmara onde as fizeram esperar, as boas mulheres extasiaram-se diante das maravilhas
extraídas de três caixas de veludo vermelho com guarnições de prata.
Fizeram-nas passar, em seguida, ao quarto da rainha. As damas das corporações de mercadoras
ajoelharam-se e pronunciaram seus discursos. Ajoelhada como elas sobre os tapetes de cores vivas,
Angélica vra, na penumbra do leito passamanado de ouro, a rainha estendida em um vestido luxuoso.
Ela sempre tinha aquela expressão um tanto fria que já apresentava em Saint-Jean-de-Luz, ao sair dos
sombrios palácios madrilenos. Mas a moda e os penteados franceses convinham-lhe menos que seus
fantásticos atavios de infanta e seus cabelos tufados de cachos postiços, que outrora emolduravam em
largas linhas hieráticas seu rosto e sua silhueta de jovem ídolo prometido ao Rei-Sol.
Mãe satisfeita, esposa amorosa tranquilizada pelas atenções do rei, a Rainha Maria~Teresa dignou-se
a sorrir ao grupo vistoso e alegre que sucedia à sua cabeceira, à companhia cheia de unção da embaixada
apostólica. O rei estava a seu lado e sorria.

Na cruel emoção que a invadiu quando ela se encontrou de joelhos, aos pés do rei, misturada àquelas
humildes mulheres, Angélica sentiu-se como cega e paralisada. Ela não via senão o rei.
Mais tarde, quando se achou fora do aposento com suas companheiras, disseram-lhe que a rainha-mãe
tinha estado presente, bem como a Sra. d'Orléans e a Srta. de Montpen-sier, o Duque d'Enghien, filho do
Príncipe de Conde, e vários moços e moças das respectivas famílias.
Ela nada vira, exceto o rei, que sorria, de pé sobre os degraus do grande leito da rainha. Tivera muito
medo. Ele não mais parecia o jovem que a recebera nas Tulherias e que ela quisera sacudir pelos bofes
da camisa. Naquele dia, eles tinham estado, um diante do outro, como dois seres de forças iguais e que
se batiam ferozmente, certos, cada qual, de merecer a vitória.
Que loucura! Como não havia ela compreendido logo que, sob a aparência de uma sensibilidade ainda
vulnerável, existia naquele soberano um caráter inteiriço que, durante sua vida, não admitiria jamais o
mínimo enfraquecimento de sua autoridade! Desde o início, era o rei quem devia triunfar, e ela, Angé-
lica, por ha vê-lo ignorado, tinha sido quebrada como uma palha.
Agora, ela seguia o grupo das aprendizes, que se dirigiam às dependências de serviço para alcançar a
saída do palácio. As damas das corporações ficaram para assistir a um grande festim, mas as aprendizes
não tinham direito a esses ágapes.
Quando ela atravessava as copas, onde as iguarias estavam prontas para ser transportadas para as
salas, Angélica ouviu assoviar atrás de si: um assobio longo, dois breves. Reconheceu o sinal do bando
de Calembredaine, e pensou que estava sonhando. Ali no Louvre?
Voltou-se. Através de uma porta entreaberta, uma pequena silhueta projetava sua sombra sobre o
lajedo.
— Barcarola!
Ela correu para ele num impulso de sincera alegria. O anão inchava de orgulho.
— Entre, irmãzinha. Entre, minha muito querida marquesa. Venha, vamos palestrar um pouco.
Ela riu.
— Oh! Barcarola, como você está belo! E como fala bem.
— Sou o anão da rainha — disse Barcarola, vaidoso.
Ele a introduziu numa espécie de pequeno locutório e fez-lhe admirar seu casaco de cetim metade
laranja e metade amarelo, fechado por um cinto guarnecido de guizos. Entregou-se, em seguida, a uma
série de cabriolas, para que ela pudesse apreciar os sons por eles produzidos. Com os cabelos cortados
sobre a nuca, ao nível da enorme gola enrocada, e seu agradável rosto cuidadosamente barbeado, o anão
parecia feliz e bem-disposto. Angélica disse-lhe que o achava rejuvenescido.
— Afirmo-lhe que é um pouco o que eu experimento aqui — confessou modestamente Barcarola. —
A vida tem os seus atrativos, e eu creio, feitas as contas, que agrado bastante às pessoas desta casa.
Estou feliz por haver atingido nessa idade o coroamento da minha carreira.
— Que idade você tem, Barcarola?
— Trinta e cinco anos. É o auge da maturidade, o desabrochar de todas as faculdades morais e físicas
do homem. Venha, pois, irmãzinha. E preciso que eu a apresente uma nobre dama a quem não lhe oculto
que dedico um terno sentimento... e que mo retribui inteiramente.
Afetando um ar de amoroso conquistador, o anão, muito misteriosamente, guiou Angélica ,através do
escuro dédalo das dependências do Louvre.
Introduziu-a num aposento sombrio, onde Angélica viu, sentada por trás de uma mesa, uma mulher de
cerca de quarenta anos, extremamente feia e trigueira, e que cozinhava qualquer coisa sobre um
pequeno fogareiro de prata dourada.
— Dona Teresita, apresento-lhe Dona Angélica, a mais bela madona de Paris — anunciou
pomposamente Barcarola.
A mulher verrumou Angélica com seu olhar sombrio e perspicaz, e disse uma frase em espanhol na
qual se podia distinguir a expressão "Marquesa dos Anjos". Barcarola piscou o olho para Angélica.
— Ela pergunta se não é você essa Marquesa dos Anjos de que eu lhe encho os ouvidos. Veja você,
irmãzinha, eu não esqueço meus amigos.
Tendo eles dado volta à mesa, Angélica percebeu que os pés minúsculos de Dona Teresita quase não
ultrapassavam a beira do tamborete em que ela se achava empoleirada. Era a anã da rainha.
Angélica pegou sua saia com dois dedos e esboçou uma pequena reverência, para mostrar a
consideração em que tinha aquela dama de afta categoria.
Com um movimento de cabeça, a anã fez sinal à jovem para sentar-se em outro tamborete, e
continuou a mexer sua mistura com lentidão. Barcarola havia saltado sobre a mesa. Ele quebrava e
trincava avelãs, contando a sua companheira histórias em espanhol.
Um belo galgo branco veio farejar Angélica e deitou-se-lhe aos pés. Os animais gostavam por instinto
de estar ao seu lado.
— É Pistola, o lebréu do rei — apresentou Barcarola —, e eis Dorinda e Mignonne, as galgas.
Era bom e calmo aquele recanto do palácio, onde os dois pigmeus, entre duas cabriolas, vinham
abrigar seus amores. O nariz de Angélica palpitava de curiosidade ao perfume que se escapava da
caçarola. Era um odor indefinível, agradável, em que dominava um cheiro de canela e de pimenta.
Examinou os ingredientes que se achavam sobre a mesa: avelãs e amêndoas, um molho de pimentas
vermelhas, um pote de mel, um pão de açúcar meio triturado, xícaras cheias de grãos de anis e pimenta-
do-reino, caixas de canela em pó. Finalmente, uma espécie de fava que ela não conhecia:
Absorvida na operação que realizava, a anã parecia pouco disposta a conversar com a recém-vinda.
No entanto, a tagarelice de Barcarola acabou por arrancar-lhe um sorriso.
— Eu lhe disse — explicou ele a Angélica — que você me achou rejuvenescido e que eu devia isso à
felicidade que ela me proporciona. Minha cara, que vidão que eu levo aqui! Para falar a verdade, eu me
estou aburguesando. Isto às vezes me inquieta. A rainha é muito boa criatura. Quando está muito triste,
chama-me para perto de si e me dá palmadinhas nas bochechas, dizendo: "Ah! Meu pobre rapaz! Meu
pobre rapaz!" Não estou habituado a essas maneiras. Fico então com lágrimas nos olhos, eu, Barcarola.
— Por que sente tristeza a rainha?
— Ela começa a suspeitar que seu homem a engana!
— Então é verdade o que se diz, que o rei tem uma favorita?
— Certamente! Ele a esconde, sua La Vallière. Mas a rainha certamente acabará sabendo. Pobre
moça! Ela não é muito esperta e nada conhece da vida. Como você vê, irmãzinha, olhada de perto, a
vida dos princípes não é muito diferente da de seus humildes súditos. Eles-trocam golpes baixos e bri-
gam em casa, como prostitutas e bandidos. É preciso vê-la, a rainha da França, quando ela espera, de
noite, a chegada do esposo, que, durante esse tempo, se encontra nos braços de outra mulher. Se existe
alguma coisa de que possamos orgulhar-nos, nós os franceses, e a capacidade amorosa de nosso rei.
Pobre rainha da França!
Decididamente, o cínico Barcarola praticava agora uma filosofia enternecida.
Ele viu o sorriso de Angélica e dirigiu-lhe uma piscadela.
— Faz bem ter, às vezes, belos sentimentos, sentir-se honesto ganhando a vida com um bom trabalho
corajoso, não acha, Marquesa dos Anjos?
Ela nada respondeu, porque o tom adocicado do anão lhe desagradava. Para fugir ao assunto,-ela
interrogou:
— Poderia dizer-me o que é que Dona Teresita prepara com tanto carinho? Essa iguaria exala um odor
estranho, ao qual não consigo dar um nome.
— E o chocolate da rainha.
De repente, Angélica se levantou e foi olhar na caçarola. Viu ali um produto escuro, de consistência
espessa, e que nada tinha de apetitoso. Através de Barcarola, ela manteve conversação com a anã, que
lhe explicou que, para levar a bom termo a obra-prima que ela estava executando, eram precisos cem
grãos de cacau, dois grãos de chili, ou pimenta do México, um punhado de anis, seis rosas de
Alexandria, uma vagem de campeche, duas dracmas de canela, doze amêndoas, doze avelãs e meio pão
de açúcar.
— Isso me parece extremamente complicado — disse Angélica, decepcionada. — Será que, pelo
menos, é bom? Eu poderia provar?
— Provar o chocolate da rainha! Uma ímpia, uma mendiga da sua espécie! Que heresia! — exclamou
o anão com fingida indignação.
Embora a anã achasse também a coisa muito atrevida, estendeu a Angélica, em uma colher de ouro,
um pouco da mistura.
Aquela pasta cortava a boca e era extremamente açucarada. Angélica disse, por polidez, que era
excelente.
— A rainha não poderia passar sem ela — comentou Barcarola. — Ela precisa de várias xícaras por
dia, mas são-lhe levadas em segredo, pois o rei e toda a corte zombam dessa sua paixão. Além dela e de
Sua Majestade, a rainha-mãe, que também é espanhola, não há quem o beba no Louvre.
— Onde se podem achar os grãos de cacau?
— A rainha manda-os vir especialmente da Espanha, por intermédio do embaixador. E preciso torrá-
los, moê-los, desengordurá-los.
E ajuntou, entre alto e baixo:
— Não compreendo que alguém tenha tanta preocupação por tal horror!
Nesse momento, uma mocinha entrou apressada na peça e reclamou, em um espanhol precipitado, o
chocolate de Sua Majestade. Angélica reconheceu Filipa. Diziam que essa menina era uma bastarda do
Rei Filipe IV da Espanha, e que a Infanta Maria Teresa, havendo-a encontrado abandonada nos
corredores do Escurial, a tinha feito educar. Fazia parte da comitiva espanhola que atravessara o
Bidassoa.
Angélica levantou-se e despediu-se de Dona Teresita. O anão acompanhou-a até a pequena porta que
dava para o cais do Sena.
— Você não me perguntou o que me tornei — disse-lhe Angélica.
De repente ela teve a impressão de que o anão se transformara em abóbora, pois não via dele senão
seu enorme chapéu de cetim laranja. Barcarola olhava para o chão.
Angélica sentou-se na soleira, a fim de ficar da altura do homunculo e olhar nos seus olhos.
— Responda-me!
— Eu sei o que você se tornou. Deixou tombar Calembredaine, e é presa de belos sentimentos.
— Dir-se-ia que você me acusa de alguma coisa. Não ouviu falar da batalha da feira de Saint-
Germain? Calembredaine desapareceu. Quanto a mim, consegui fugir do Châtelet. Rodoguno está na
Tour de Nesle.
— Você não faz mais parte da mendicância.
— Você também não.
— Oh! Eu continuo a fazer parte da mendicância. Sempn farei parte da mendicância. É o meu reino —
disse Barcarola com estranha solenidade.
— Quem lhe disse tudo isso a, meu respeito?
— Traseiro de Pau.
— Você tornou a vê-lo?
— Fui render-lhe minhas homenagens. Ele é agora o nosso Grande Coêsre. Creio que você não o
ignora.
— Realmente.
— Fui jogar na bacia uma bolsa cheia de luíses de ouro. Uh! Uh!, minha cara, eu era o mais rico da
assembleia.
Angélica tomou a mão do pigmeu, uma estranha mãozinha redonda e rechonchuda como a de uma
criança.
— Barcarola, será que eles me vão fazer mal?
— Creio que não existe em Paris uma mulher cuja bonita pele esteja menos presa ao corpo do que a
sua.
No entanto, ele exagerava sua careta. Mas ela compreendeu que a ameaça não era vã. Sacudiu a
cabeça.
— Não importa! Prefiro morrerTa voltar atrás. Pode dizê-lo a Traseiro de Pau.
O anão da rainha tapou os olhos com gesto trágico.
— Ah! É horrível ver tão bela jovem com a garganta aberta!
Quando ela se retirava, ele a agarrou pela saia.
— Aqui entre nós: será melhor que você mesma o diga a Traseiro de Pau.

A partir do mês de dezembro, Angélica dedicou todo o seu tempo ao negócio da rôtisserie. A
freguesia aumentava. A satisfação da corporação das floristas tinha sido uma bola de neve. O Galo
Atrevido especializou-se em banquetes de confrarias. Profissionais felizes de "umedecer as entranhas" e
de se empanturrar em boa companhia e para maior glória de seus santos patronos vieram realizar seus
festins sob as vigas envernizadas de novo e permanentemente guarnecidas do que se podia achar de
mais belo em matéria de caça e charcutaria.
Angélica havia-se devotado a saciar gargantas e estômagos exigentes, como se montasse um cavalo
indócil, mas que a levaria rápido e longe.
Depois dos obreiros, artistas e comerciantes, começaram a vir ao Galo Atrevido bandos de libertinos,
filósofos dissolutos e requintados, que professavam o direito a todos os prazeres, o desprezo à mulher e
a negação de Deus. Não era fácil escapar às suas mãos indiscretas. Além disso, eles se mostravam
difíceis quanto à escolha da comida. Mas, embora às vezes ficasse espantada com o cinismo deles,
Angélica contava muito com eles para dar a seu estabelecimento um renome justificado, que lhe
trouxesse uma clientela mais distinta.
Houve também atores que, sem se desembaraçarem de seus falsos narizes vermelhos, vinham, em
grupo, admirar as proezas do macaco Piccolo.
— Eis nosso mestre em tudo — diziam. — Ah! Se esse animal fosse um homem, que comediante ele
daria!
Com a fronte suada, as faces cozidas pelo fogo, os dedos engordurados e enodoados, Angélica
cumpria sua tarefa sem pensar em outra coisa que não no instante presente. Rir, gracejar, afastar
vigorosamente uma mão muito atrevida, não lhe custava muito. Mexer os molhos, cortar os legumes,
adornar os pratos era o que mais a divertia.
Lembrava-se de que, quando menina, em Monteloup, ela ajudava voluntariamente na cozinha. Mas
fora sobretudo em Toulouse que tomara gosto pelas coisas culinárias, sob a direção do requintadíssimo
Joffrey de Peyrac, cuja mesa, na Gaia Ciência, era célebre em todo o reino.
Recordar-se de certos princípios sacrossantos da arte gastronómica, reconstituir certas receitas,
causava-lhe, por vezes, uma alegria melancólica.

Quando chegou o inverno, Florimond caiu gravemente enfermo. Seu nariz escorria, seus ouvidos
supuravam.
Vinte vezes por dia, Angélica aproveitava um momento de calma para subir correndo os sete
pavimentos que levavam à mansarda onde o pequeno corpo febril prosseguia, solitário, sua luta contra a
morte. Ela tremia ao aproximar-se do leito e soltava um suspiro ao ver que seu filho ainda respirava.
Docemente, ela acariciava a grande fronte saliente, aljofrada de fino suor.
— Meu amor! Minha lindeza! Não me leve meu débil menino, Senhor! Não quererei mais nada na
vida, meu Deus.
Voltarei às igrejas, farei rezar missas. Mas salve meu filhinho...
No terceiro dia da doença de Florimond, mestre Bourjus, rabugento, "ordenou" a Angélica que
descesse para instalar-se no grande quarto do primeiro andar, que ele deixara de ocupar após a morte de
sua mulher. Podia-se tratar decentemente uma criança numa mansarda não maior que um guarda-roupa,
onde, de noite, se amontoavam mais de seis pessoas, contando com o símio? Eram bem maneiras de ci-
gana, de mendiga sem entranhas!...
Florimond sarou, mas Angélica ficou no grande quarto do primeiro andar, com seus dois filhos,
enquanto uma segunda mansarda era concedida aos garotos Flipot e Linot. Rosina continuou a
compartilhar o leito de Bárbara.
— E desejo muito — concluiu mestre Bourjus, rubro de cólera — que não continue a impor-me o
vexame de ver, todos os dias, uma sacripanta jogar lenha no meu pátio, sob o nariz de todos os vizinhos.
Se você quer aquecer-se, basta apanhá-la no meu depósito.
Angélica fez, então, saber à Condessa de Soissons, por intermédio do seu lacaio, que não tinha mais
necessidade de suas dádivas e que agradecia sua caridosa intervenção. Deu uma propina ao doméstico,
da última vez que ele veio. Este, que desde o primeiro dia, não se havia refeito de seu pasmo, abanou a
cabeça.
— Tenho sido forçado a fazer muitas coisas em minha vida, mas nunca, a ver uma mulher como você!
— Não haveria senão meio mal — replicou Angélica —, se eu não tivesse sido forçada a vê-lo
também.

Nos últimos tempos, ela distribuíra os alimentos e as vestes enviadas pela Sra. de Soissons aos
mendigos, cada vez mais numerosos, que se amontoavam nas proximidades do Galo Atrevido. Entre
eles surgiram muitas Caras conhecidas, ameaçadoras e taciturnas. Ela lhes dava, como quem procura
conciliar-se com forças hostis.
Silenciosamente, ela reclamava daqueles miseráveis o direito à liberdade. Mas eles se tornavam cada
dia mais exigentes. A torrente de seus andrajos e de suas muletas assaltava o seu refúgio. Os próprios
fregueses do Galo Atrevido protestavam contra aquela invasão, dizendo que na vizinhança da rôtisserie
formigavam mais pedintes do que num pórtico de igreja. O mau cheiro que exalavam e suas feridas
purulentas não davam muito apetite.
Mestre Bourjus enfureceu-se, dessa vez sem fingimento:
— Você os atrai como o gato-de-algália atrai as serpentes e os bichos-de-conta. Deixe de dar-lhes
esmola, e livre-me dessa vermina; do contrário serei obrigado a me separar de você.
Ela protestou violentamente:
— Por que imagina que sua casa é mais assediada pelos mendigos do que as outras? Ainda não ouviu
os rumores da fome que se espalha pelo reino? Dizem que os camponeses esfaimados entram, como
exércitos, nas cidades e que os pobres se multiplicam... E o inverno que assim o quer, é a penúria...
Mas Angélica tinha medo.
De noite, no grande quarto silencioso, onde somente se ouvia a respiração de seus dois filhos, ela se
levantava e, pela janela, olhava as águas pesadas do Sena, que brilhavam ao luar. Ao pé da casa, havia
uma praia arenosa invadida pelos detritos das rôtisseries: penas, patas, vísceras, restos que não se
podiam servir. Cães e miseráveis vinham ali procurar alimento. Era a hora em que os gritos e os
assovios dos bandidos se elevavam em Paris. Angélica sabia que a alguns passos à esquerda, além do
extremo do Pont au Change, começava o Quai de Gesvres, cuja abóbada sonora abrigava a mais bela
caverna de bandidos da capital. Ela se lembrava daquele antro úmido e vasto, onde corria, em torrente, ó
sangue dos matadouros da Rue de la Vieille-Lanterne.
Efetivamente, ela não mais estava misturada ao povo maldito da noite. Fazia parte daqueles que, em
suas casas bem fechadas, se persignavam quando um grito agônico se elevava das ruas sombrias.
Já era muito. Mas o peso de seu passado não a deteria no caminho?

Angélica dirigia-se ao leito em que dormiam Florimond e Cantor.


Os longos cílios negros de Florimond sombreavam sua face nacarada. Seus cabelos faziam-lhe uma
grande auréola escura. Cantor tinha cabelos quase tão densos e exuberantes. Mas seus cachos eram
castanho-dourados, enquanto os de Florimond tinham saído negros como a asa de um corvo.
Angélica reconhecia que Cantor era "do seu lado". Ele era da raça, ao mesmo tempo refinada e rústica,
dos Sancé de Monteloup. Cantor lembrava Josselino por sua teimosia, Raimundo pela calma, Gontran
pelo gosto da solidão. Fisicamente ele se parecia muito com Madelon, sem ter sua sensibilidade.
Aquele menino roliço, de olhos claros e perspicazes, já era todo um mundo, um resumo de virtudes e
caprichos seculares. Desde que o deixassem livre e dono da sua independência, ele cresceria sem
dificuldades. Havendo Bárbara querido enfaixá-lo bem apertado, como todos os bebés da sua idade, o
manso Cantor, depois de alguns instantes de surpresa, explodiu numa raiva pavorosa.
E, ao cabo de duas horas, a vizinhança, ensurdecida, tinha exigido sua libertação.
Bárbara dizia que Angélica preferia Florimond e não se incomodava com o caçula. Angélica
respondia que não era absolutamente necessário preocupar-se com Cantor. Toda a atitude de Cantor
significava claramente que ele queria, antes de mais nada, ficar em paz, enquanto Florimond, sensível,
gostava que se ocupassem dele, que lhe falassem, que respondessem às suas perguntas. Florimond tinha
necessidade de muitos cuidados e atenções.
Entre Angélica e Cantor, o contato se estabelecia sem palavras e sem gestos. Eles eram da mesma
raça. Ela o contemplava, admirava-lhe a carne rosada e gorda, bem como o raro valor daquele pequenino
que ainda não tinha um ano e que, desde o nascimento — e mesmo antes do nascimento, lembrava-se
ela —, tinha lutado por viver, tinha recusado obstinadamente a morte que, tantas vezes, ameaçara sua
débil existência.
Cantor era a sua força e Florimond a sua fragilidade. Eles representavam os dois pólos de sua alma.

Seguiram-se três meses terríveis.


O frio e a fome aumentavam. Os pobres tornavam-se ameaçadores. Angélica tomou a resolução de ir
ver Traseiro de Pau. Havia muito tempo que ela devia ter feito aquilo: Barcarola havia-lhe aconselhado.
Ela, porém, desfalecia à ideia de encontrar-se diante da casa do Grande Coesre.
Uma vez mais, foi-lhe preciso dominar-se, vencer uma nova etapa, ganhar nova batalha. Numa noite
escura e gelada, ela alcançou o Faubourg Saint-Denis.
Levaram-na à presença de Traseiro de Pau. Ele estava no fundo de sua casa de lama, sobre uma
espécie de trono, no meio da fumaça e da fuligem das lamparinas de óleo.
Diante dele, no chão, estava a bacia de cobre. Ela atirou-lhe uma bolsa bem pesada, e mostrou outro
presente: um enorme quarto de carneiro, bem sangrento, e um pão — manjares raríssimos na época.
— Já estava tardando! — rosnou Traseiro de Pau. — Fazia muito tempo que eu a esperava, marquesa.
Sabe que jogou um jogo perigoso?
— Eu sei que, se ainda estou viva, é a você que o devo.
Aproximou-se dele. Dos dois lados do trono do aleijado estavam as personagens de pesadelo da sua
pavorosa realeza: o Grande e o Pequeno Eunuco, com suas insígnias de loucos — a vassoura e a lança
com o cão empalado —, e Pedro Bar-baças, com sua enorme barba e suas varas — emblemas do antigo
mestre do Colégio de Navarra.
Traseiro de Pau, impecavelmente engravatado, usava um magnífico chapéu com duas voltas de
plumas vermelhas.
Angélica comprometeu-se a lhe trazer, ou a mandar trazer, todos os meses, a mesma quantia, e
prometeu-lhe que jamais faltaria algo em sua "mesa". Mas, em troca, ela queria que a deixassem livre
em sua nova existência. Pediu também que os mendigos recebessem ordem de desimpedir a entrada de
"sua" rôtisserie.
Ela compreendeu, pela expressão de Traseiro de Pau, que havia afinal agido como convinha, e que ele
se achava satisfeito.
Ao retirar-se, ela fez muito gravemente a reverência.

Angélica tinha medo. O estigma do passado, que poderia detê-la no meio do caminho, ameaçava destruir-lhe as
esperanças. Estaria a Marquesa dos Anjos condenada ao eterno padecer e à derrota?

Depois do suplicio no Pátio dos Milagres, entre os mendigos, uma etapa terrível de sua vida parecia superada. Ela
não só recuperara os filhos sequestrados, como também vencera a miséria, tornando-se uma próspera burguesa:
vivia com conforto e acalentava planos ambiciosos. Ousava até sonhar com um novo amor, quem sabe um ca-
samento...

Mas o destino virá confirmar seus amargos presságios. O futuro lhe reserva uma nova tragédia e um escândalo. Ao
mesmo tempo, chegarão a seus ouvidos estranhas revelações sobre a morte do marido, o Conde de Peyrac.

Em A Vingança de Angélica, apesar de novamente perseguida, ela furtará a seus inimigos um trunfo inesperado.
Então terá condições de planejar uma desforra fulminante — numa intriga tão escabrosa que poderá manchar os
degraus do trono de Luís XIV...

ANNE E SERGE GOLON

OS AUTORES:
ANNE E SERGE GOLON

Serge Golonbikoff nasceu em Bukhara (URSS) em 1903 e Simone (Anne) Changeuse, em Toulon (Fiança),
em 1928. Conheceriam-se e casaram-se na África, para onde Arme, com o dinheiro de um prêmio literário,
viajara como jornalista. Serge era uma celebridade na época: formado em geologia, mineralogia e química,
cruzara o misterioso continente em busca de ouro e diamantes, acabando por participar da descoberta de
estanho em Katanga (Zaire). Atraída por sua fama, Anne resolveu entrevistá-lo.
De volta à França, em 1952, já casados, tiveram a idéia de escrever uma novela histórica ambientada no
século XVII: Serge colhendo as informações no Arquivo de Versalhes e Anne exercitando um talento para as
letras manifestado já na infância.
O sucesso de Angélica, Marquesa dos Anjos, lançado em 1959, foi imediato, animando os autores a
produzirem novos volumes. Estes, traduzidos para vários idiomas e transpostos para o cinema, fizeram da
heroína uma das personagens mais famosas do mundo.

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