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Segredos...

no mundo oculto que existe junto ao nosso, um mundo espetacular


de magia antiga e enganos elegantes, um mundo de pessoas que são muito mais
do que parecem, uma guerra está sendo elaborada. A maioria destas pessoas
dotadas – os Ikati, uma raça selvagem e sensual de predadores letais – se contentam
com esconder-se atrás de sorrisos humanos, disfarçando seu esplendor para
sobreviver. Mas outros estão descontentes. E não se esconderão mais.

Traições... Eliana vive sozinha apenas por duas coisas: a vingança contra o
homem que matou seu pai e ver o sonho de seu pai de viver ao ar livre com seres
humanos acontecer. Mas este sonho é muito perigoso por causa dos Caçadores, um
grupo de assassinos Ikati de elite com um objetivo: eliminá-la antes que possa expor
seus segredos para o mundo.

Sedução... Demetrius tem uma obsessão pela lembrança da mulher que uma vez
amou. Arriscará tudo para salvá-la dos assassinos atrás dela... e convencê-la, antes
das antigas muralhas entre os dois mundos caírem, que apenas juntos podem
derrotar seu verdadeiro inimigo, um traidor brilhante, astuto e muito mais mortal
que qualquer um deles possa imaginar.
Toca-me como sou.
Ofereço cicatrizes, imperfeições...
Toque-me e abrace meus defeitos
Sou tua amada
Olhe minhas falhas e veja a história,
lendas, eu antes de você.

Vou contar contos, meu amante,


apenas se sussurrar,
onde irei encontrá-lo e
sairei do meu esconderijo.
Ou podemos brincar de gato e rato...
perseguir, escapar um do outro até chocarmos.
Irei seguir seu caminho
e você o meu.
Prólogo

De todos os lugares em todo o mundo para passar uma noite clandestina


sozinha, o museu do Louvre em Paris, era provavelmente o mais fino.

Claro, fazer isso é ilegal.

As horas de visita eram das nove da manhã às seis da tarde todos os dias, exceto
nas quartas e sextas. Mas para os visitantes com certas habilidades especiais, o
horário de visita não significava nada.

Porque quando você pode se transformar em nevoa a sua vontade, um grande


número de normas e regulamentos aplicáveis aos demais, deixam de impressionar.

Era uma dessas pessoas “especiais” — seres, aliás, mais precisamente uma
criatura— que passava aproximadamente vinte minutos contemplando uma
escultura de Michelangelo, intitulada Escravo Agonizante, em uma estrelada e
cristalina manhã de dezembro, horas antes do amanhecer e ainda antes dos turistas
começarem a formar uma fila do lado de fora. De quase dois metros e meio de
altura, a escultura dramática de mármore em tons cinza de um homem nu com a
camisa levantada no peito e com o pulso segurando-a, tinha uma placa abaixo com
a escrita: O momento em que a vida se rende ante a força implacável da morte.
Brilhante, refletiu Eliana Cardinal enquanto estava diante da estátua, admirando
a representação extraordinária deste fugaz momento justo antes da morte. Eu sei
exatamente como ele se sente.

Tão nua como a figura de mármore morrendo, não sentia frio ou incômodo,
nada do que era consciente. Ela estava, simplesmente, satisfeita. Sozinha, felizmente
sozinha e livre do olhar vigilante e dos sussurros que normalmente a seguiam, a
curiosidade natural e os humores repentinos. Divagou pelo lugar, fazendo eco nos
corredores do museu mais tempo do que o estritamente necessário para a tarefa em
questão, mas uma pastoral de Monet lhe chamou a atenção, depois um feroz
Caravaggio e logo uma caixa de vidro com artefatos funerários egípcios sobre um
tecido em uma fascinante, fila macabra.

Os receptáculos de cerâmica para o armazenamento dos órgãos internos de uma


múmia a fez bufar com desdém. O morto estava morto, mas seus parentes, os
antigos egípcios, de todo o coração acreditavam na vida após a morte, um salto de
fé que Eliana achava seriamente deficiente.

Estupidamente deficiente.

Sabia por experiência em primeira mão que a fé não era nada além de atos
intencionais de autoengano. Nos dias atuais, tinha princípios simples: acreditar
quando ver, e que é melhor pedir perdão que permissão. Ambos serviam muito
melhor que a fé cega de sua infância.

A fé era um luxo que já não podia se permitir.

Mas nem sempre foi tão cínica. Nascida e criada no subterrâneo, em um lugar
escuro e um extenso labirinto de catacumbas com cheiro de incenso, o qual nenhum
olho humano viu, sua educação na tradição dos antigos deuses e feitiços secretos,
rituais carregados de magia, foi completo e eficaz. Prestou culto a todos os antigos
deuses, ofertou rendas bordadas a mão, frutas maduras, acendeu velas em honra
aos antepassados mortos, enquanto observava com todos seus parentes, uma vez
por mês durante a noite, aqueles desafortunados que não sobreviveram à Transição,
queimar até as cinzas envoltos em sedas, balançar lentamente pelo Rio Tiber¹1 nas
tábuas de madeira da balsa, até desaparecerem da vista em uma curva sinuosa do
rio escuro.

Aceitou tudo o que lhe foi ensinado pelos mais velhos com confiança e braços
abertos de uma criança, já que mesmo aos vinte e três anos, quando a maioria a
considerava uma mulher, Eliana ainda era em muitos aspectos uma criança.

Então, há três anos, tudo mudou.

Agora, por necessidade, amadureceu.

Mas ela não estava pensando em nada disso enquanto estava de pé observando
silenciosa a obra de Michelangelo. Pensava que era melhor colocar-se em
movimento, devido a que o guarda da noite iria aparecer como programado na
esquina mais afastada da sala em exatamente três minutos e dezessete segundos, e
ela tinha que roubar uma pintura antes disso.

Com um suspiro de pesar, afastou-se da estátua e se dirigiu em silêncio pelo


corredor de mármore sombreado, desfrutando da sensação do ar fresco sobre sua
pele nua. Virou a esquina e parou bruscamente quando viu a famosa estátua de

1 Terceiro maior rio da Itália


Canova2. Erótica e bonita, o trabalho em mármore intitulada Psique Revivida pelo Beijo
do Cupido, representava dois amantes mitológicos presos para sempre em um
apaixonado beijo.

Ao ver o abraço lânguido do Cupido, sensual e flexível rendição provocada pela


entrega de Psique, um sentimento indesejado atravessou seu coração como uma
lâmina afiada.

Demetrius.

Seu estômago se contorceu em nós. O calor deixou seu rosto vermelho. Logo,
bruscamente, sem som ou advertência, a mulher de carne e osso que era, se
dissolveu na nevoa.

Nem sequer precisava pensar conscientemente — transformar-se em nevoa —


era tão natural como respirar para ela, tão natural como a primeira vez que
aconteceu aos treze anos de idade, quando tentaram forçá-la a comer ovos cozidos
e sentiu a maior repugnância — assim puff!

Desapareceu.

Apenas os mais fortes de sua espécie podiam se transformar em vapor e pelo


qual estava agradecida, mas até o dia de hoje odiava ovos.

O vapor era apenas um de seus muitos dons, mas que oferecia o valioso
benefício que os outros não tinham: escapar. Agora, liberada da terrível carga de
sentimentos, flutuava em uma nuvem cinza pálida por um momento, recuperando
o equilíbrio. Desconectada de um corpo, ela continuava sendo a mesma, sua mente

2 Antônio Canova, um artista italiano mais conhecido como o Escultor. Seu estilo inspirado na arte grega.
se mantinha forte, mas não havia batidas de coração, nem respiração, nem emoção
ou a digestão, apenas a sensação preciosa e calma da ausência da gravidade. De si
mesma, sem peso como o ar.

Com este pensamento ela deslizou ao teto o suficiente para ficar acima dos
amantes, que agora se converteu em algo menos ofensivo. Deu a volta e passou
pela vasta escuridão do museu, uma nuvem brilhante de vapor indo para a sala
setenta e sete e as pinturas românticas, onde um de seus outros dons entraria em
jogo.

Um Degas3 era o prêmio desta noite. Não muito famoso, não muito grande, não
por isso deixaria de ter um bom preço no mercado negro e não seria muito fácil de
rastrear pelas autoridades ou muito difícil de tirá-lo da parede.

Contrariamente à crença popular, os sistemas de segurança do museu eram


tipicamente um dos piores. Diferente dos filmes, o que levaria a acreditar em um
campo de lasers invisíveis e câmeras com infravermelhos, na realidade estava mais
perto da dupla lamentável, seguranças mal treinados e mal pagos e portas mecânicas.
A maioria das lojas de joias eram muito mais seguras, como todos os bancos; Eliana
sabia por experiência.

E para uma mulher que não apenas podia se dissolver em nevoa, mas que era
capaz, e até melhor, se tornar invisível como a sombra, enquanto conservava seu
corpo físico, podendo levantar uma pintura e transportá-la, a tentação de roubar os
prédios fechados, trancados e legalmente proibidos era muito grande.

3 Edgar Hilaire Germain Degas foi um pintor, gravurista, escultor e fotografo francês. Conhecido por sua visão particular do
mundo do ballet, sabendo captar os mais belos cenários.
Mas esta não era a principal razão. O dinheiro era a razão principal. Grosseiro
sim, mas precisava de dinheiro para continuar a pesquisa de seu pai e seu povo
precisava comer, assim recorria ao uso de seus dons como uma forma de evitar a
inanição.

Não era como se fosse começar a se alimentar de seres humanos, depois de


tudo, não importava o quanto seu irmão Caesar tentasse convencê-la de que era seu
direito de nascimento e que as criaturas tristes eram muito saborosas. Deveria pensar
nelas como vacas, argumentou novamente dois dias antes. Você gosta de carne, certo?

Sim, gostava de carne bovina, mas gostava dos seres humanos também. Na
maioria das vezes. De qualquer forma, ela não iria comer. Parecia que não era uma
coisa a ser feita.

Pensou em conseguir um trabalho para ganhar dinheiro, mas rapidamente


percebeu o ridículo que era. Não apenas nenhum dos Ikati tinha experiência laboral
ou algo que poderia ser considerado “habilidades” por um empregador, pois eram
muito diferentes dos seres humanos. Assim estava fora.

Uma antiga palavra zulu de sua terra natal ainda mais antiga que o centro escuro
da África, Ikati significava “gato guerreiro” e era uma descrição quase perfeita de
Eliana e seu povo. Elegantes, esbeltos e poderosos, capazes de se moverem sem
som de passos ou patas, capazes de golpearem para matar antes que sua presa
detectasse o perigo, os Ikati formavam parte do mundo dos humanos, mas não
pertenciam a ele e inclusive disfarçados era evidente para todos.

Os olhos delatavam. Pareciam selvagens, iluminados por um brilho predador,


mesmo quando sorriam e Eliana e seus parentes das catacumbas romanas tinham
olhos escuros como a meia noite, um negro tão profundo que parecia impenetrável.
O mais robusto dos homens humanos era conhecido em parar em seu passo quando
um de sua espécie olhava por muito tempo em sua direção.

Assim os olhos eram um problema, mas também era quase todos os demais. A
forma de falar, a forma de caminhar, a forma como o ar que lhes rodeava parava.
Inclusive a noite, quando geralmente as luzes se apagavam, suas diferenças eram
evidentes, assim, Eliana e seu pequeno grupo de rebeldes se mantinham separados
do resto do mundo todos os dias o melhor que podiam.

Um dia, logo, no entanto, o mundo iria conhecê-los. Depois, tudo mudaria.

Até então, teria que continuar roubando.

E ali, à volta de outra esquina tranquila, estava pendurado na parede


benignamente em um marco dourado sem a proteção do vidro, o Degas.

O primeiro que deveria se materializar eram os lábios e estava sorrindo.

Ela tomou forma como uma mulher outra vez, com os pés sem fazer ruídos
sobre o chão de pedra, com uma graça informal de anos de prática. Seus sentidos
dispararam novamente, o ar entrando em seu nariz, a pedra fria e suave sob seus
pés, uma buzina fraca no tráfego na Rua Rivoli que nunca parava, mesmo a esta
hora. Seu estômago grunhiu de fome e percebeu que não comeu em horas.

Manifestou-se totalmente, estendeu a mão e agarrou a pintura na luz tênue que


projetava sombras na mulher curvilínea se retirando às sombras quando ouviu
ruídos e congelou.

Estalo.
Click.

Um ranger de sapatos de couro.

Por uma fração de segundos seu coração deixou de bater. Colocou-se em


marcha novamente e acelerou.

Não estava sozinha. Alguém estava ali.

Eliana nem sequer teve tempo de girar antes que a escuridão fosse difundida
por uma dezena de luzes amarelas no teto largo, logo as suas costas. A parede a sua
frente banhou-se de ouro e a fila de molduras douradas captou a luz e o reflexo
brilhante a cegou. Ela virou-se com uma mão levantada para cobrir os olhos e justo
antes de ouvir o barulho alto, por um milésimo de segundo entre o sentir o cheiro
de pólvora e o clarão deslumbrante, uma dor atravessou sua panturrilha —
enviando uma onda de agonia por todo seu corpo — ouviu um grito de voz
masculina em francês.

Ela caiu no chão. Cega pelas luzes e incapaz de correr ou ficar de pé, inclusive
respirar, Eliana viu com horror quando uma dezena de guardas armados saíam
agachados de seus esconderijos de ambos os lados do longo corredor.

Policiais. Seres humanos.

Tocou a panturrilha, sentiu a ferida ali, irregular e úmida através da pele e o


músculo. Ela levantou a mão e por um suspenso e horrível momento olhou a
mancha de sangue, depois sua mente ficou completamente em branco.

A voz masculina chegou novamente, sem deixar de gritar frenética em francês e


percebeu o que disse antes. Um clichê que ouviu milhares de vezes nos filmes
americanos que amava, os antigos faroestes nos quais era fácil saber quem eram os
bandidos, porque sempre usavam chapéu preto.

Ele gritou: “Pare ou atiro!”

A medida que observava os homens se arrastarem mais perto — com armas na


mão, olhos raivosos — até onde ela estava agachada nua e sangrando no chão,
debaixo do Degas, Eliana teve o breve, pensamento irônico que ele conseguiu
perfeitamente cair para trás.
CAPÍTULO
UM

Sete dias antes


Pela quarta vez em três semanas, a polícia realizou uma visita a Gregor
MacGregor.

Tinham suas razões, claro. Ele não era o que podia se chamar um bom homem
no pior dos casos, certo, mas era um excelente homem de negócios, e o tipo de
negócios no qual se especializou nunca deixava de atrair o escrutínio das
autoridades. Mulheres, armas, drogas ou capangas, Gregor podia satisfazer o desejo
nefasto de quase toda sua clientela endinheirada, e que o deixou escandalosamente
rico.

Conseguiu criar diversas empresas e dirigia seus negócios de uma poltrona


reclinável de couro preta situada atrás de uma enorme e reluzente mesa em um
escritório no último andar de um prédio de sua propriedade no centro de Paris, que
albergava uma discoteca e um prostibulo, entre outras coisas. A polícia sabia da
discoteca, mas não do prostibulo; apenas os ricos podiam se permitir o luxo de ir
além das portas opulentas de ouro, em formato de folha, que levavam ao jardim
dos prazeres ocultos nas entranhas do prédio, e não estavam dispostos a falar.
Devido a isso que Gregor foi submetido a estas visitas inesperadas da polícia em
diversas ocasiões, estava mais irritado que preocupado. Nunca encontraram nada
que o incriminasse, ele era muito cuidadoso para isso.

O que o irritava sobre esta visita em particular, no entanto, era o homem que
estava sentado no canto sombreado do escritório, em sua poltrona de seda Louis
Vitton fumando um cigarro, observando-o tão intensamente como um falcão, com
seus olhos azuis claros e tão frios como o céu do ártico. Vestia um terno preto, com
sapatos Oxford da mesma cor e não havia relógios, anéis ou qualquer adorno,
exceto os óculos redondos, e nunca acompanhou a polícia em qualquer outra de
suas visitas surpresas, algo sobre este homem não encaixava.

Gregor cresceu na periferia pouco confiável de Edimburgo, seus pais pobres


tiveram oito filhos em uma rápida sucessão, até que seu pai desapareceu ou fugiu,
assim ele se viu obrigado a sobreviver o melhor que pode. Naquela época tinha dez
anos e cometeu todos crimes imagináveis e estava muito familiarizado com todo
tipo de ladrões e assassinos.

Pelo que sabiam era um bastardo sem alma.

Gregor voltou sua atenção para o homem sentado do outro lado da mesa. Alto,
impecavelmente vestido e completamente francês, era a mão direita do chefe de
polícia e uma dor real no traseiro de Gregor. —Isto está beirando assédio Édoard.
Sou um cidadão que paga seus impostos e segue a lei respeitosamente neste país.
Tolero vocês porque não tenho nada a esconder, mas se continuar com esta caças
a bruxas, irei chamar meu advogado.
O brandamente bonito Édoard sorriu, deixando ao descoberto uma fileira de
dentes brancos e perfeitamente retos, talvez grandes demais para sua boca, como
no saquinho de Chicletes. — Com o pagamento de impostos tenho que concordar.
Já investigamos isto. Respeitar a lei, no entanto... —O sorriso irônico Chicletes
aumentou. — Você e eu sabemos que é um exagero.

Olharam um para o outro. Atrás dele na poltrona, o homem de olhos azuis,


levantou o queixo e igual ao dragão vermelho soltando fogo pela boca no escudo
de armas da família MacGregor, exalou uma fumaça cinza.

Dos dois lados da cadeira de Édoard estavam dois homens de pé, olhando ao
redor de seu luxuoso escritório, a inveja evidente. Gregor se perguntou por que
Édoard nunca trazia duas vezes os mesmos homens. Talvez esperasse que os novos
recrutas percebessem algo que os antigos não o fizeram?

—O que quer? — Seu sotaque escocês ainda acrescentava um pouco de música


ao seu discurso, mesmo depois de duas décadas na França, mas seu encanto se
perdeu em Édoard, cujo sorriso nunca hesitava.

—Estamos procurando um ladrão. Um ladrão de arte, para ser especifico. —


Seu olhar piscou para a pintura a óleo na parede atrás da cabeça de Gregor. Era
grande e abstrato; Picasso em seu período azul. Original. — Entendo que está bem
relacionado no mundo das artes.

Um eufemismo risível. A arte era uma comunidade pequena e ele era ao mesmo
tempo um distribuidor e um colecionador. Algumas ofertas eram inclusive
legítimas. Mas para Édoard se limitou a dizer. — Este é o La Chatte4 que apareceu
na imprensa?

—O próprio.

Gregor balançou a cabeça. — Não o conheço. Não posso te ajudar neste caso.

—Percebe MacGregor. — Disse Édoard, sua voz levemente mais baixa que
antes. — Posso tornar sua vida muito mais difícil se for preciso. Posso ter homens
aqui todas as noites. Posso observar cada movimento seu. Posso rastrear seu
traseiro e plantar uma bandeira ali se quiser e não há nada que você possa fazer a
respeito. Assim, por favor, tome um momento para pensar nisso. — Fez uma pausa
e o sorriso grande ficou em seu rosto como se estivesse talhado nele. — Talvez
você ouviu por causalidade sobre suas ações. Talvez de alguém de quem não goste,
poderia ter algumas notícias interessantes para nós. Talvez até mesmo pudesse ser
alguém a quem você gostaria... — Suas sobrancelhas se ergueram. — De apontar.
Mesmo a menor informação será maravilhosa para meu senso de clemencia. Você
gosta de desfrutar de todos seus brinquedos caros, verdade?

Seu olhar deslizou para o Picasso. —Não quer que sua coleção de arte, sua
cobertura, sua discoteca e sua Ferrari de repente sejam confiscadas pelo governo
por um erro em documentos, certo? Uma infeliz confusão que sem dúvida levará
meses, mesmo anos para desenredar?

Como uma serpente, a ira soltou-se como uma bobina fria e polida no estômago
de Gregor. Um réptil rastejando abria caminho em seu estômago e o peito, até que
os pulmões se contraíram, o que era tão familiar quanto seu próprio rosto no

4 No francês seria como “o gatuno”


espelho. Com isto chegou o impulso igualmente familiar, quase irresistível de deixar
o verme ensanguentado e irreconhecível.

Por sorte para Édoard, o impulso não era completamente esmagador.

Com o controle férreo de um homem que uma vez apunhalou seu rival até a
morte com sua caneta de platina Mont Blanc e horas mais tarde usou a mesma
caneta para assinar seu nome com um floreio em um cheque de seis zeros para o
baile de caridade anual do Prefeito, George refletiu. — Sabia que o ácido fluorídrico
é um dos únicos que podem corroer por completo os ossos humanos? Também
podem dissolver vidros, é muito corrosivo. Inclusive se apenas alguns centímetros
de sua pele entrar em contato com ele, pode morrer em questão de horas. Reage
com o cálcio no corpo, provoca intoxicação sistêmica e a morte do tecido. É
impossível de encontrar também.

O sorriso de Édoard teve uma morte rápida, feia. Bufou. — Está... está me
ameaçando?

—O que? —Gregor piscou fingindo inocência. — Desculpe, estava pensando


no que vi na televisão ontem à noite. É surpreendente o que se pode aprender com
estas séries criminais.

De trás de Édoard chegou uma risadinha, divertida. Gregor olhou para o


homem de terno preto e o encontrou sorrindo, um talho liso através de seu rosto,
que não fez nada para diminuir a intensidade congelada em seu olhar. Com aqueles
olhos astutos, traiçoeiros e as nuvens de fumaça ao redor, o homem lembrava a
Gregor cada vez mais uma serpente de gelo conjurada de alguma versão do inferno
glacial.
Édoard saltou da cadeira. —Faça o que quiser. — Disse. — Volto pela manhã
com uma ordem judicial. Planejo passar todo o dia aqui. Vamos precisar de acesso
a todos seus arquivos.

Murmurando xingamentos, inclinou a cabeça para a porta e se virou. Os dois


capangas seguiram seus calcanhares. — Agente Doe! — Gritou sobre o ombro e
logo deu um passo através da porta e desapareceu.

O homem de preto se levantou do sofá com calma, confiante. Inalou uma última
vez o cigarro e logo o deixou cair sobre o tapete turco tecido a mão sob seus pés.
Com a ponta reluzente de seu Oxford preto, que sem pensar esmagou no grosso
tapete. Juntou as mãos nas costas e considerou Gregor com os olhos azuis frios.
Quando falou, sua voz combinava com o olhar frio e sem vida, com sotaque alemão
pronunciado, que poderia deixar qualquer canção infantil alegre, fúnebre.

—Cigarros franceses são tão fracos como tudo neste país.

Gregor se inclinou para trás na cadeira e observou o frio Agente Doe. —


Inclusive a polícia.

—Devo dizer. Tem razão. —Brincou Doe sem enfrentá-lo. Dirigiu-se a porta,
sem pressa, com as mãos unidas nas costas.

—Você não é um dos homens de Édoard, vejo. — Disse Gregor. — Mas ele o
chamou de Agente. Pertence ao governo?

Doe chegou a porta e parou. —Estou com o governo da mesma forma que você
é um homem de negócios legítimo.
Esta afirmação irritou Gregor. A forma como a pronunciou era incômodo.
Tudo no homem irritava Gregor. Com uma pontada física em sua pele, sentia a
necessidade intensa, irritante de saber exatamente quem era este homem e o que
estava fazendo. — Doe é um nome incomum para um alemão. — Insistiu. — Qual
seu primeiro nome?

O agente deu outro sorriso morto. Passou pela porta e disse. — John. —
Desapareceu pela porta e a fez girar com um golpe atrás dele. Fechou com um
barulho que estremeceu levemente a fileira de janelas do piso ao teto.

John Doe?5

Atrás dele uma voz disse. — Cuidado com ele. Ele pode arrancar sua pele e
fazer um abajur se tiver a oportunidade.

Gregor sorriu, mas não se moveu. Queria saborear o momento.

Lembrou-se da primeira vez que ouviu o ronronar de seda de uma voz. Foi há
três anos. Estava na Bulgária com seu filho Sean e sua nova amante do momento,
Nicollette, comprando um presente de Natal para sua mãe idosa e agora cega, que
se instalava em uma casa grande, que comprou para ela em Mônaco, quando seu
descendente idiota pensou que fosse uma boa ideia tentar roubar um relógio de dez
mil euros como presente de Natal para si mesmo.

Tentou, essa é a palavra-chave. Foi uma tola tentativa, na melhor das hipóteses e
um guarda de segurança gigantesco o tinha pelo pescoço antes que desse dez passos.

5 Em português algo como ‘João Ninguém’


Como seu pai, Sean tinha problemas com a lei desde criança, mas não tinha nada
de inteligência ou capacidade para aprender com os erros e pensar em novas e
melhores formas de operar fora do sistema legal de seu pai. Ele era um ladrão
insignificante, sem nada a dizer sobre isso e se não fosse pela interferência de um
anjo, ainda estaria apodrecendo na prisão até hoje.

Gregor não sabia exatamente como o conseguiu, não sabia porque, ela não
contaria, refletiu sobre isso durante anos e nunca resolveu o enigma. A única coisa
que teve certeza foi ver com seus próprios olhos incrédulos, seu filho pegar o
relógio e deslizar no bolso do casaco enquanto Nicollette distraía a atendente da
seção, olhando a bandeja de veludo branco. Logo se virou e começou a caminhar
pela porta. Então o guarda de segurança o pegou, ele lutou no chão e procurou,
enquanto Sean ainda estava em silêncio, as lágrimas rodando de suas bochechas
vermelhas.

Mas não havia nenhum relógio.

Não estava em seu bolso ou em qualquer lugar em seu corpo e finalmente o


guarda se viu obrigado a deixá-lo ir. A evidência desapareceu no ar.

Todos voltaram para a limusine, a ponto de separar-se na calçada fora da loja,


quando ouviu um leve golpe na janela. Gregor apertou o botão na porta, que
deslizou em silêncio, revelando gradualmente o rosto mais assombroso que já viu,
olhando-o.

Olhos largos como a mais escura meia-noite, inclinados nos cantos, como os de
um gato. Cabelos grossos e repicados de forma áspera, até os ombros como um
azul índigo suave e tingido por alguém que obviamente a odiava. A pele em um tom
mais escuro, como café com leite. Um nariz delicado e uma ampla testa, os lábios
inteligentes quase exageradamente, fazendo-o pensar em qual parte do corpo
gostaria de ter ao redor.

Gregor não acreditava com precisão que poderia chamá-la de bonita, ela era
muito exótica, com muitos planos e ângulos, características proporcionais, mas
atípicas, mas sabia sem dúvidas que nunca viu algo remotamente comparável.
Sentia-se como se fosse um homem das cavernas contemplando um quadro de
Salvador Dalí; não tinha uma moldura para referência e não se sentia muito bem,
mas reconheceu o gênio, no entanto.

Pela primeira vez em sua vida, quase acreditou na existência de deus.

Sua obra mestre surrealista disse. —Acho que isso te pertence. — Ela levantou
a mão e em um único dedo estava pendurado o relógio de ouro e diamante que
Sean pegou. Brilhava com irônica alegria no sol da tarde.

Quando ele voltou a olhá-la, ela tinha uma inclinação levemente divertida na
boca. Gregor sentiu o súbito e violento impulso de beijar aqueles lábios
pornográficos. Em vez disso, disse. — Não. Está enganada.

Ela levantou as sobrancelhas. — Estou?

Ela riu de forma gutural, que arrepiou suas costas. Ordenou ao motorista que
esperasse, abriu a porta, saiu ao ar fresco do outono e se esforçou para inalar uma
só respiração dela, quando seu olhar percorreu seu corpo. Os pés estavam em botas
de salto agulha, vestia uma calça de couro preta que abraçava suas curvas para
satisfazer um entusiasmado BDSM, combinando com uma jaqueta de couro, com
o zíper fechado até o queixo.
Tudo o que a armadura de couro não podia esconder era a dor em seus olhos,
no entanto. Ficou de pé na calçada junto a ela e se maravilhou por como alguém
que tinha bolas para ser tão desafiadora e pouco comum, ser tão triste. Seus lábios
sorriam, mas os olhos de meia-noite continham uma terrível dor que estava
enraizada profundamente e o fez querer apagá-la.

—Talvez deva ir embora então. — Disse os assombrosos olhos negros e


deslizou o relógio sobre sua mão e fechou-o no pulso. Ela admirou por um
momento, contorcendo-se na luz e logo devolveu o olhar, cravando-o com
profunda melancolia. —Por acaso conhece alguém a quem poderia vender isto por
um bom dinheiro?

Diversão novamente. Porque queria desesperadamente se assegurar que ficaria,


respondeu. — De fato, conheço.

Logo enviou o motorista pelo caminho, junto com um Sean com lágrimas nos
olhos e uma Nicollette fazendo beicinho.

Há três anos. Gregor sabia que a mulher de pé atrás dele agora sabia exatamente
quem era naquele dia, muito provavelmente o seguiu, esperando a oportunidade de
propor a ele o que queria, neste mesmo escritório depois que fingiu que o deixou
convencê-la a ir ali. Apesar de terem feito negócios com regularidade desde então,
ela era tanto um mistério para ele agora como foi antes naquele primeiro dia, um
fantasma que entrava e saía de sua vida, sempre em silêncio, cada vez de forma
inesperada, deixando atrás de si um fraco aroma de bosques, invernos e rosas que
o perseguiam horas depois.

Ela lhe assombrava.


Gregor era um homem calculador e pragmático que não acreditava em espíritos
ou no sobrenatural ou qualquer coisa que não se pudesse comprar com dinheiro
frio e duro e ainda não estava totalmente convencido de que esta criatura fosse real.

—Apenas mais um dos lacaios de Édoard, princesa. — Disse a ela agora,


lentamente girando sua cadeira.

Na sombra suave contra a parede do fundo, ficou de pé ao vê-la, real e


enigmática como a Esfinge. Chamava-a sua princesa, porque apesar de roubar para
ganhar a vida e estar vestida como uma dominatrix e saindo de moda, era
obviamente bem-nascida, um felino como Audrey Hepburn, elegante e esbelta.
Havia algo de profundamente selvagem nela, também. Algo que falava da noite e
caças ao luar.

Algo quase... predador.

Nunca conheceu ninguém que pudesse ficar em silêncio da forma que podia,
que poderia olhar como se pudesse ver por dentro da pessoa.

Era inquietante. Mas também —profundamente emocionante.

Andava de forma elegante, toda de negro, como sempre: um cinto de couro que
realçava sua figura longilínea, luvas negras e botas da mesma cor com correntes e
fivelas o suficiente para dobrar com folga. Sob o vestido justo suas pernas reluzentes
estavam nuas. Ela lhe disse uma vez que as meias a faziam se sentir claustrofóbica
— precisa sentir o ar sob sua pele e ele convocou ao instante a imagem viva de seu
corpo nu tocado pelo sol, enquanto estava deitada na grama verde sob uma arvore
no bosque, arqueando as costas e levantando os braços para ele, movendo os dedos
em convite como uma sereia luxuriosa.
Não podia evitar os pensamentos. Ele tinha uma namorada, Céline, a quem se
dedicava, mas na presença dessa mulher que se fazia chamar Eliana — não estava
totalmente convencido de ser seu nome real — toda sua força de vontade
desmoronava.

Deveria se sentir preocupado.

Sendo um homem, ela lhe intrigava.

—Acho que não. — Ela deu um passo adiante das sombras e pela primeira vez,
Gregor percebeu que carregava um cilindro de papel sob o braço longo. — É
perigoso, tenho certeza.

Gregor se levantou, aproximou-se dela e segurou as mãos nas dele. Sob suas
luvas, sentiu-a fria. Não se incomodou em perguntar como tinha acesso a um prédio
de alta segurança. Apenas outro de seus mistérios, nunca descoberto.

—Não se preocupe com ele. — Murmurou olhando-a. — É bom vê-la


novamente, princesa. Como está?

Ela fez uma careta e desceu o olhar para suas mãos unidas. — Sabe que odeio
quando me chama assim, Gregor. Sou tão da realeza como você. — Depois de um
momento, puxou suavemente as mãos. —Estou preocupada com você. Estão
chegando perto. Um desses dias...

—Um desses dias nada. — Interrompeu com firmeza, deixando suas


preocupações de lado. —Não sabem nada e nunca descobrirão. Já falhei com você
alguma vez?
Ela levantou o olhar para ele e algo quente se acendeu em seus olhos, mas foi
coberto de imediato quando abaixou as pálpebras, evitando habilmente seu
escrutínio.

Sentiu-se tentado a colocar um dedo sob seu queixo e obrigá-la a olhá-lo nos
olhos, mas sabia que seria um erro. Distante e orgulhosa, ainda que nunca altiva —
ela não lidava bem com as emoções. Como questão de fato, nunca conheceu
ninguém mais moderado. Apenas raros flashes de tristeza e raiva escapavam de sua
reserva fria e se perguntava o que mais estava escondendo. Em sua experiência,
apenas as pessoas com algo a esconder ou algo que tentavam esquecer mantinham-
se fechados assim.

No caso de Eliana, suspeitava que pudesse ser os dois.

—Não. Claro que não, Gregor. Apenas queria dizer que talvez deveríamos parar
por um tempo. Não quero colocá-lo em nenhum tipo de perigo...

Sua gargalhada a cortou. — O perigo é meu nome do meio! Faça bem! Não é
mais que um absurdo sem sentido. Agora, garota, mostre-me o que tem aí sob o
braço.

Seus lábios se curvaram em um leve sorriso irônico. Seus olhos se levantaram e


ela o olhou como um cisne. Logo, sem dizer nada mais, moveu-se por seu escritório,
abriu a tampa de plástico do cilindro de papel e puxou uma lona de dentro. Deixou
de lado o cilindro e o abriu com cuidado até que se mostrou.
Aproximou-se dela por trás e ficou olhando por cima do ombro. O cilindro
continha o Espírito Santo em si, e nunca ficou mais aturdido. — Os Jogadores de
Cartas6. — Sussurrou.

—Sei que gosta de Picasso, mas este Cézanne me tocou. —Murmurou. Uma de
suas mãos enluvada, reverentemente traçou a borda desgastada da velha lona. —
Intenso, não é verdade?

—Este foi vendido a um colecionador particular em Qatar no ano passado. —


Disse ainda aturdido. — Como o conseguiu?

Sua cabeça se virou uma fração e viu o brilho de malícia em seus olhos enquanto
olhava para ele. Sorriu, sentindo suas entranhas se abrandarem sob o calor de seu
olhar.

—O Gato tem sua maneira, certo princesa?

—De fato, Sr. MacGregor. — Afastando-se para se sentar do outro lado da


mesa, Eliana se acomodou na poltrona, cruzou as mãos sobre o colo e disse. —
Pode vendê-lo?

—Se posso vendê-lo? —Ele levantou as sobrancelhas com fingida indignação.


— O Papa é polonês?

Ela piscou desconcertada. — Não. Mas tomarei como um sim.

Gregor estava sentado cômodo em sua poltrona e sorriu. — Pode apostar seus
biscoitos que posso vendê-lo, princesa! Mesmas condições?

6 É uma série de pinturas a óleo sobre tela feita entre 1890 e 1895, pelo pintor Paul Cézanne. Um dos quadros da série,
o mais famoso, está exposto no Museu de Orsay em Paris.
Ela sorriu. — Dez por centro. De acordo. — Seu sorriso hesitou e por um
momento deixou a antiga dor brotar a superfície novamente. — No entanto...
gostaria de usar os dez por cento para um acordo de negócios neste momento.

Gregor ficou intrigado. — Que negócios?

Colocou a mão no bolso da jaqueta e puxou um pedaço de papel,


cuidadosamente dobrado. Ela se inclinou sobre a mesa e o entregou sem dizer uma
palavra.

Curioso, abriu a nota. Quando leu o conteúdo, ficou ainda mais surpreso que
momentos antes. — Eliana. Que porra irá fazer com essa quantidade de armas de
fogo?

Totalmente composta, com uma terrível tristeza ainda por trás de seu leve
sorriso, em voz baixa disse. —O que as pessoas fazem com armas de fogo, Gregor.

Olharam um para o outro. Lá fora no frio, no inverno noturno de Paris,


começou a chover.

—E o restante? —Olhou para a lista. — Granadas de propulsão para foguetes?


Bombas de fumaça? —Olhou para ela novamente, incrédulo. —Minas terrestres?

Ela exalou um longo e lento suspiro e afastou o olhar. Tirou as luvas, dedo a
dedo e passou uma mão pelo cabelo grosso, movendo-os entre as mechas.
Percebeu, talvez pela milionésima vez que nunca usava maquiagem, mas nunca viu
ninguém que precisava menos. Como uma libélula, esta mulher brilhava.

—As guerras não podem ser combatidas com paus e pedras.


Gregor moveu-se para frente em sua cadeira, muito alarmado agora. —
Guerras? Quem irá à guerra, princesa?

Ela permaneceu em silêncio, olhando-o agora com reprovação. Havia perguntas


que não faziam um para o outro, informações que nunca trocavam e ambos sabiam
que acabaram de violar uma regra inviolável. Mas, porra, isto era diferente! Se ela
estava em problemas, o tipo de problemas que requeria esta quantidade de artilharia
pesada, queria ajudar. Precisava.

—Deixe-me ajudá-la. Seja o que for, posso ajudar.

Sua resposta foi rápida, limpa e inequívoca. — Não.

Fora, a chuva caía. Começou a golpear contra as janelas com força entrecortada,
manchando a cidade além com parcelas hesitantes de negro e amarelo.

—Não gosto disso. — Declarou Gregor e jogou a nota sobre a mesa.

Eliana nem sequer piscou. —Você é um homem de negócios. Isto é um negócio.


Pode não gostar, mas pode fazê-lo. —Sua cabeça inclinou de lado em um
movimento de pássaro que viu um milhão de vezes antes, quando ela estava
desconcertada com algo e sabia que este ‘algo’ agora, era ele. Quando voltou a falar,
sua voz se suavizou, com a finalidade de derreter e ele sabia que ela tinha um ponto:
a adulação e a impotência feminina eram uma combinação potente para ele, ainda
que ambas fossem manifestadamente sinceras. —Não pode fazer, velho amigo? Por
mim?

—Deixe de tentar me deslumbrar Eliana, isto é sério! — Estava


verdadeiramente irritado agora, pulou da cadeira e começou a caminhar atrás dela.
—Porque está me dando sermões, Gregor? — Disse mais duro agora. — Se eu
fosse um homem, iria duvidar?

Deu a volta e a olhou. Seu olhar percorreu seu bonito corpo, suas pernas
cruzadas nuas, seu perfeito rosto oval. —Você não é um homem. Obviamente.

Claro que seu rosto ficou vermelho e ficou rígida, Gregor sabia que a ofendeu.
Por fim chegamos a alguma parte, pensou. Talvez esta parede caísse depois de tudo.

—Assim, minha falta de pênis é o único problema aqui? —A amargura em sua


voz era inconfundível e surpreendente. Eliana se levantou e vestiu as luvas, todo o
tempo movendo a cabeça e fazendo leves ruídos de desgosto. — Toda minha vida
tive que lidar com este lixo de minha família. Não irei tolerar de meus colegas de
trabalho.

Ela o olhou e se ergueu em toda sua altura completa, que para uma mulher, era
substancial. Com 1,85m não se elevava sobre ela como todos os demais.

—Obrigada por toda sua ajuda no passado, Gregor. Desejo o melhor. Adeus.

Ela rapidamente começou a enrolar a pintura a óleo ainda sobre a mesa.

Ele se inclinou e agarrou suas mãos. Ela levantou o olhar para ele, a fúria ainda
fria e dura, encontrou-se com o seu olhar de aço.

—Não, garota, não vai sair assim desta forma.

Cada vez que ficava emocional, seu discurso sempre ficava cheio da cadência de
sua infância, cheio de R e deixava cair o G e o Y lentamente, uma cadência musical
de escocês nativo. Porque vivia na França, onde todos olhavam para ele por baixo,
devido ao sotaque de seu país, inclusive as empregadas domésticas, melhorou-o em
seus anos de prática, mas não podia se incomodar a tomar cuidado com seu sotaque
neste momento.

—Se é armas de fogo o que quer. Será armas de fogo o que terá, mas estou
dizendo que não gosto disso e se entrar em problemas, preciso que me prometa que
me deixará saber para poder ajudá-la.

Ela retrocedeu contra seu agarre com uma força vigorosa que o surpreendeu,
pois parecia tão delicada, mas ele se negou a deixá-la ir até que cedesse. — Prometa,
princesa. — Insistiu em voz muito baixa e gutural.

Finalmente, depois de longos momentos olhando-o em silêncio, sem piscar, ela


disse em voz baixa. — Gosto de você, Gregor. Sempre gostei. Mas se não tirar as
mãos nos próximos cinco segundos, verá um lado feio de mim. Um lado que não
posso garantir a que irá sobreviver.

Logo murmurou algo em latim, que ele entendeu, porque sua mãe católica o
arrastava aos domingos para igreja quando era criança sempre que estava na
América.

—Nec mala te amicum. Placered no me faciunt.

Traduzido: Não quero machucá-lo, velho amigo. Por favor, não faça isto.

Ela abaixou a cabeça uma fração e pensou ver seus olhos prateados contra a luz,
como um gato. Uma pontada de medo, algo que Gregor não sentia em muitos anos
arrepiou sua nuca. Antes que pudesse formar a resposta, ouviu um golpe em sua
porta fechada. Ele e Eliana se afastaram quando a porta se abriu para revelar sua
namorada Céline, apertando seu cão da raça Yorkie contra seus seios grandes.
Como sempre o fazia quando via Eliana, o cão começou a grunhir e logo tremer
violentamente nos braços de Céline. Ela o fez se calar e passou por eles, através do
tapete com um vestido Dior vermelho que parecia costurado nela e um par de
sandálias Louboutin que sabia ter custado um braço e uma perna. A fatura mensal
de seu cartão American Express Black era maior que o PIB de alguns países
pequenos.

—Papai, quero sair! —Implorou com um beicinho francês. Ela deu uma rápida
olhada em Eliana, bem azedo uma vez mais e logo sua atenção voltou-se para ele
jogando seu longo cabelo loiro platinado sobre um ombro com um movimento
praticado de seu pulso. — Quando tempo mais será?

—De fato, terminamos aqui. — Disse Eliana friamente, com o roso vazio de
emoção. Virou-se e foi para a porta, abandonando a pintura no escritório.

—Eliana. — Chamou Gregor.

Desejava dizer tantas coisas. Não vá ainda ou Por favor, fique, ou mesmo uma
versão do mesmo, mas sob o olhar astuto e vigilante de Céline não se atreveria.
Podia ser um gangster em uma sala de reuniões, mas entre estas duas malditas
mulheres estava tão indefeso como um gatinho recém-nascido. Cada uma delas
tinha um de seus testículos agarrados firmemente na mão delicada e implacável.

Eliana parou na porta. Ela lhe devolveu o olhar sobre o ombro e algo em seu
rosto suavizou. Ela abaixou o olhar para a pintura que deixou sobre a mesa e
percebeu que fez de propósito, como uma oferta. Se a levasse com ela, nunca a
veria novamente.

—Gregor. — Disse.
Seu coração deu um salto ante a suavidade inesperada em sua voz e ele conteve
a respiração, esperando. Ela sorriu e Gregor pensou que nunca viu nada tão triste
em toda sua vida.

—Enviarei pelo correio o... — Parou e olhou para Céline, logo novamente para
ele. — Os pacotes. Acha que na próxima segunda será tempo suficiente?

Ele moveu a cabeça e ela concordou com a cabeça. Ela lançou um olhar para o
tapete e logo rapidamente novamente para seu rosto. Sua expressão era em branco
agora, sua voz fria, mas percebeu em ambas um eco pálido de alívio. — Obrigada.

Logo se voltou e desapareceu pela porta, deixando-o com um curioso e rotundo


vazio no peito.

—Há algo muito estranho nessa mulher. — Disse Céline quando ela se foi.
Moveu o cão ainda com medo, acariciando a pequena cabeça até que deixou de
tremer e lambeu sua mão. — Mesmo Gigi pode dizer. Gostaria que não a deixasse
vir aqui mais. Ela realmente me arrepia.

A mim também, Gregor pensou enquanto olhava para a porta vazia. A mim
também.
CAPÍTULO
DOIS

—Ele está ficando pior, Constantine.

Era uma declaração de fato, não uma acusação, mas para Constantine os dois
eram indistinguíveis quando o assunto era Demetrius. A culpa o sobrecarregava,
inclusive ao ouvir o comentário mais inócuo a respeito de seu irmão Demetrius —
sempre chamado de D — levando-o ao limite.

—Ele ficará bem. — Disse Constantine, dobrando os braços grandes através do


amplo peito. — Ele apenas está tendo um dia ruim.

Lix bufou sua opinião sobre isso.

Permaneceram juntos nas frias sombras de cor azul na parte posterior da câmara
de combate com teto baixo, observando a multidão de jovens Legiones — a casta
inferior de soldados que se reuniam em círculos ao redor dos homens que estavam
no meio do ringue elevado. Um dos homens com o peito nu no ringue agora estava
deitado como uma águia na lona, inconsciente. O outro, uma fera com o peito e os
braços cobertos por tatuagens que ondulavam a cada movimento dos músculos
grandes estava sobre seu oponente, ofegante, olhando para baixo ao corpo ainda
com os olhos enlouquecidos, mostrando os dentes e toda a genialidade de um
tubarão no frenesi da alimentação.
—Não se pode negar que seus sonhos estão piorando. — Lix insistiu enquanto
observavam D derrubar outro oponente no ringue. E já havia passado por três e a
sessão de treinamento apenas começou em vinte minutos. Dois Legiones foram
arrastados inconscientes fora do ringue, deixando uma longa mancha de cor
vermelha na lona branca. Outro macho jovem tomou seu lugar, um homem alto e
musculoso perto de seu vigésimo quinto aniversário e que o Bellatorum estava
considerando convidar para se unir as suas filas se sobrevivesse à Transição. Era mais
provável que não conseguiria, menos de um por centro deles conseguia.

A Transição ficava pendurada como uma corda na cabeça de metade dos —


Puro Sangue Ikati. Quando se fusionava com seu homólogo humano, o sangue Ikati
era misturado e perdia sua pureza inicial que permitia que suas características únicas
florescessem. Vinte e cinco anos a partir do nascimento para descobrir se um puro
sangue viveria... ou não. Como um relógio marcando a hora limite.

Constantine permaneceu em silêncio. Ele sabia que o que Lix estava dizendo
sobre os sonhos de D era verdade, pois ouvia seus gritos com seus próprios
ouvidos. Uma ocorrência quase todas as noites, os sonhos de D eram mais
pesadelos, ainda que nunca contasse sobre o que era e sabia que não eram sonhos
comuns.

D era dotado com a Vidência, um dom que tinha desde o seu nascimento que
nos últimos tempos o estavam torturando com visões das quais se negava a falar.
Tinha todos ao limite e não apenas porque seus gritos faziam eco de maneira
inquietante pelos corredores serpenteando as catacumbas, sumindo no silêncio dos
cantos escuros, enquanto as crianças na cama puxavam os lençóis sobre suas
cabeças.
As coisas que D sonhava se transformavam em realidade. E se seus gritos de
terror eram um indício, algo horrível se dirigia a eles.

—Alguma vez ele fala sobre ela? — Lix murmurou, olhando quando o novo
companheiro de treinamento de D começou a rodear o ringue. D parou, as mãos
do lado do corpo, observando os movimentos de seu oponente apenas com os
olhos. Estes brilhavam com uma luz assassina.

—Mal conversa comigo. —Respondeu Constantine. Logo, mais baixo. — Não


que tenha sido de conversar muito antes, mas agora aperfeiçoou o tratamento do
silêncio como forma de arte.

Lix assentiu com a cabeça. Então, quando D lançou um soco vicioso que
golpeou seu oponente contra as cordas onde se agarrava e hesitava por um
momento, antes de cair de bruços sobre a lona e ficar imóvel enquanto a multidão
ia a loucura, disse. — Ele irá matar um deles, Constantine. É para ser uma formação,
mas ele quer matá-los. Temos que fazer algo a respeito. Temos que envolver Celian
nisto.

Constantine viu quando D pareceu ter o suficiente de vencer os alunos sem


sentido neste momento e saltava as cordas do ringue. A multidão, ainda animada, o
rodeou enquanto ele se afastava na penumbra do corredor longo e logo começava
a correr. Depois de alguns passos longos, foi engolido pela escuridão.

Os Legiones reunidos começaram a se dispersar e sair da câmara de combate e


para a dezena de túneis que a alimentava. As catacumbas, onde a colônia romana
construiu sua casa, incluía milhares e milhares destes tuneis, muito sob a cidade, era
escura, fria, com um cheiro levemente de mofo e por mais que queimassem
incensos por todos os lugares com incensários de ouro para cobri-lo, não adiantava.

—Talvez esteja querendo matar outra pessoa, Lix.

Inclusive na penumbra que era constante nas catacumbas, via Lix empalidecer.
Virou-se para Constantine, seu cabelo longo caindo como sempre nos olhos. —
Ele nunca... pode fazer isso. — Disse escandalizado. — Está proibido.

—Você sabe tão bem quanto eu, que D não se importa nada com as regras. As
nossas, dos deuses, de ninguém. Espero que tenha razão, no entanto, irmão. —
Suspirou, sentindo um peso assentar-se no centro de seu peito. — Realmente
espero que tenha razão. Mas vamos ter que fazer algo com ele logo, antes de ficar
mais difícil.

***

As águas terapêuticas que alimentavam os banhos subterrâneos termais,


borbulhavam e estavam levemente salgadas como sempre, mas para D
proporcionava pouco alívio. Seus músculos se viam reforçados, mas não era onde
estava a dor verdadeira. Instalou seu pesado corpo mais baixo na água, passou as
mãos pelo rosto e fechou os olhos.

Eliana.
Sua imagem saltou à vida sob as pálpebras. Ela estava na vanguarda de sua mente
a cada momento. Dormindo, acordando, lutando, comendo... a levava sempre com
ele e a necessidade por ela era como uma doença que se estendeu a todos os órgãos,
comendo-o vivo.

Não teria nenhum alívio até que a encontrasse... ou morresse.

Esteve apaixonado por Eliana tão ferozmente e durante tanto tempo que a dor
de seu desaparecimento há três anos o transfigurou até uma espécie de obsessão
mórbida, sombria e negra, estranhamente viva, como um câncer em seu corpo que
lentamente o devorava de dentro para fora.

Era implacável está obsessão. Ele não pensava em outra coisa. Não sonhava
com nada mais. Comia e respirava, vivia para apenas uma coisa e era o dia em que
iria encontrá-la e se desculpar pela desordem que causou, e explicar que
contrariamente ao que pensava, não foi ele que fez a terrível coisa que a levou para
longe, em primeiro lugar.

Infelizmente, D não tinha ideia de onde estava Eliana. Roma era uma cidade
enorme, antiga e em expansão, com um milhão de lugares para se esconder. Ou
desaparecer por completo. Mas conhecia a cidade e seu cheiro almiscarado
particular e a doçura do cheiro dela, bom e embriagante, tinha muita esperança de
ser capaz de encontrá-la antes que passasse muito tempo. Antes que as coisas
ficassem ainda mais complicadas.

Antes que as coisas ficassem perigosas.

Não podia, no entanto. Cada dia e cada noite durante anos a procurou, tudo por
nada. Percorreu a cidade, o campo aos arredores, até o norte dos Alpes e pelo sul
até a pequena ilha de Malta, mas não havia rastro dela para encontrar. Ele sabia que
existia a possibilidade de ter deixado o país, apesar de não acreditar nisso. Como
todos os animais predadores, os Ikati tinham o senso de lar. Ele pensava que ela
tinha.

Incorreto. Ela se foi. E não tinha ideia de onde estava.

—Bonum vespere, Bellator7. —Disse uma voz suave. D levantou a cabeça em


um golpe.

No chão de rocha lisa do lado oposto da piscina termal havia uma jovem mulher,
vestida de vermelho. Olhos e cabelos escuros e como todos em seu povo, ela
também era muito jovem. E muito encantadora. Uma luz pálida, reflexo das águas
tocava seu rosto, seu corpo e as paredes do lugar. Procurou na lembrança seu
nome... Iris. Ex-membro da Electi. Celian dissolveu o harém quando o velho rei
morreu, mas o Bellatorum ainda estava procurando as fêmeas não acasaladas para
serem parceiras sexuais e prisioneiras para procriação com guerreiros mais dotados
já que seus genes tinham uma alta demanda.

Entre outras coisas.

D saudou com a cabeça de forma brusca.

Incentivada, ela sorriu com timidez e deu a volta na beira da piscina, olhando
para baixo na água borbulhando verde pálida, enviando-lhe um olhar uma vez ou
outra, enquanto se movia para ele. Viu as curvas de seu corpo sob a túnica que fluía
enquanto ela caminha e percebeu que estava nua por baixo.

7 Boa tarde, Guerreiro. Em italiano


Eliana

Seu corpo respondeu. Nu na água quente, ficou duro.

Iris parou a seu lado. Em silêncio, levantou os olhos para ele. Ela disse: Posso
me unir a você? —Sem esperar uma resposta, abriu a túnica e deslizou sobre seus
ombros nus. Entrou na beira da piscina com a seda vermelha ao redor dos
tornozelos e instalou-se na pedra úmida.

Nua, ela era mais que bonita. Era madura e perfeita como um pêssego no verão.

Abaixou e girou suas longas pernas sobre o lado da piscina e D observou com
uma sombria necessidade quando se arqueou para trás e tirou o cabelo do rosto.
Sentou-se na beira, apoiando-se em suas mãos, com os pés na água, ventre plano e
os seios cheios e um leve sorriso enquanto olhava para ele com uma sobrancelha
levantada como um gato lambendo o creme.

D se levantou bruscamente. A água fluía por seu corpo nu e Iris perdeu o sorriso
enquanto seu olhar viajava pelo peito, pelo abdômen, mais abaixo...

Seus olhos se abriram. Sua boca formou um O.

D agarrou Iris pela cintura fina e a puxou para a água quente, imobilizando-a
contra ele. Ela se surpreendeu, mas não resistiu; D sabia que ganhou sua merecida
reputação por sua brutalidade nas batalhas, então Iris não deveria esperar doçura
dele. E talvez isso fosse o que ela esperava.

Puxou seu cabelo para trás e desceu a boca sobre a dela, do nada D se perguntou
quem a enviou. Lix? Constantine?
Quando sua língua tocou, decidiu que não importava. Precisava disso. Fazia
tanto tempo, tanto tempo que não tocava uma mulher e ele a sentia tão bem. Assim
suave...

Eliana.

Afastou-se da boca suave de Iris com um xingamento entre os lábios. Ela o


olhou confusa. — Bellator? — Murmurou hesitante.

Não se incomodou com uma resposta. Seu corpo ainda estava duro e doloroso
e agora não era o momento de se afogar na lembrança de um amor perdido ou
pensar nos sonhos que vividamente representava seus problemas, na dor... sem
saber onde estava. Apertando Iris contra seu corpo, D se sentiu na beira da rocha
submersa na piscina e puxou-a sob ele. Beijou-a novamente, mais forte que antes,
desesperado para bloquear tudo menos este momento.

A água quente borbulhava ao redor de seus corpos. Suas pernas chegaram a


cintura dele. Os seios apertados contra o peito e D deixou escapar um gemido ao
sentir a pressão contra a dor pulsando entre as pernas. Precisava disso... precisava
tanto...

Eliana.

Desta vez a maldição foi quase um grito. Iris afastou-se, está doce suavidade em
seu rosto endurecendo a algo completamente diferente.

—Bellator. — Disse em um tom sério. — O que estou fazendo de errado? Diga-


me e mudarei.
Ele queria rir. Não achava que pedir que se transformasse em outra mulher iria
bem. Afastou uma mecha de cabelo úmido da bochecha ruborizada e disse. — Não
me desgosta pequena. É linda. — Tentou sorrir. Sentia-se estranho em seu rosto,
difícil, como se não pertencesse ali. — Você sabe disso.

A suavidade voltou a seu rosto e ela sorriu. Seus braços se envolveram ao redor
de seu pescoço e ela começou pouco a pouco, a esfregar os quadris contra o dele.
Sentia seu calor inclusive com a água quente e um grunhido se levantou do fundo
de sua garganta.

—Tome-me, por favor, Bellator. — Sussurrou ela, inclinando-se para passar a


língua por seu lábio inferior. — Tome de mim o que precisa. —Duros mamilos
roçaram seu peito e D levantou as mãos para cobrir seus seios cheios, beliscar estas
protuberâncias atraentes entre os dedos. Ela abriu a boca e apertou as pernas ao
redor de sua cintura e logo o beijou, profundo e exigente. Sua ereção ficou mais
dura ainda, sofrendo por ela, por sua liberação, por um momento para esquecer...

ELIANA!

D empurrou Iris para longe com tanta força que enviou uma onda de salpicadas
água contra a beira da rocha atrás dela. Ficou de pé e amaldiçoou, pulverizando sua
caótica indignação, o cabelo molhado pingava em seu rosto.

Ele saltou da piscina, pegou uma toalha e sua roupa e com uma palavra
sussurrada de desculpa e vergonha, quando dedos frios apertaram ao redor de seu
coração, foi para o mais longe possível da fascinação de Iris e os demônios que
despertavam o que sobrava de sua alma negra, sua alma desigual.
CAPÍTULO
TRÊS

Dois dias mais tarde e quase mil quilômetros e meio de distância, em uma cidade
subterrânea secreta muito parecida com aquela na qual nasceu e cresceu, Eliana
girou sobre um pé, levantando a perna oposta, conseguiu dar um perfeito chute na
mandíbula de seu oponente.

Enviou-o cambaleando para o chão de pedra empoeirado em um mar de corpos


empilhados em um círculo irregular contra as paredes rochosas pintadas de New
Harmony.

A multidão rugiu em aprovação e jogou-o de volta para ela.

—Não teve o suficiente ainda, slick8? — Ela murmurou quando ele foi
derrubado a um joelho. Suando e ofegando, levantou os olhos para ela através do
emaranhado de cabelo loiro e sorriu.

—Nem sequer de perto, Butterfly. Apenas estou me aquecendo.

Ele ficou de pé e parou tempo suficiente para ela e todas as outras mulheres da
multidão admirar seu físico tonificado: músculos tensos em jeans ajustado e uma
apertada camiseta negra, tudo aquilo sendo exibido a luz de velas em centenas de

8 A melhor forma de definir seria algo como: ‘arrumadinho’, ‘engomadinho’. Segue a descrição do Urban
Dictionary: Perfeito nos costumes; Afiado, atencioso, com respostas perfeitas para praticamente todas as questões
e, claro, grandes quantidades de gel nos cabelos.
nichos nas paredes arredondas que se estendia com um resplendor hesitante sobre
a sala cavernosa. Loiro como um anjo, tinha um sorriso com covinhas altas, olhos
cor chocolate quente e um sorriso que poderia derreter um iceberg.

O que foi que ela ouviu da menina — groupie fanática das lutas subterrâneas —
do cara chamado Alexi? Oh sim. Sarado. Também fino e ohmeudeusquepernasquentes.

Ele não se conteve enquanto saltava para frente com um rugido, os braços
estendidos mostrando os dentes, com intenção. Ela o admirou de forma fugaz
novamente, tal graça animal e ferocidade, quase como um de sua espécie e logo
rompeu o foco quando o instinto tomou conta e uma onda de energia passou por
sua coluna.

Sensual e deliciosa, fazendo-a se arrepiar e arrastando-se ao longo de sua pele.

Agachou-se esperando por ele, movendo-se para perto do chão, com os olhos,
ouvidos e nariz abertos, concentrando-se nele enquanto se aproximava, buscando,
calculando todos os matizes de sua expressão, cada contração dos músculos e os
nervos que transmitiam sua intenção claramente como um alto-falante.

Ele estava quase sobre ela, chegando, quase tinha uma mão em seu cabelo...

...mas ela se esquivou de seu agarre com um movimento veloz e se contorceu,


sorrindo.

Parou em seco e deu a volta, grunhindo de frustração, cuspindo terra sob seus
calcanhares. Ele deu a volta e logo se lançou sobre ela novamente, estava agachada
ainda e teve tempo para chutar suas pernas com um movimento poderoso das
pernas. Ela saltou, executando um salto mortal no ar sobre a cabeça dele e caindo
agachada a três metros, com uma mão no joelho para equilibrar seu peso, a perna
esticada, seu outro braço para trás no alto como contrapeso, sem levantar nada de
poeira enquanto ficava em silêncio no chão.

Em conjunto, a multidão reunida ficou em silêncio.

—Exibicionista. — Alexi murmurou franzido o cenho, mas Eliana podia dizer


por seu tom e o brilho nos olhos que ele não estava realmente irritado.

Ele vivia para aquilo.

Um homem de êxito no mundo real sob o chão, Alexi era também uma das
pessoas mais inteligentes que Eliana conheceu. Ele terminou sua pós-graduação em
eletroquímica, matemática e informática aplicada. A idade de vinte e um anos,
comprou e vendeu sua primeira empresa. Aos vinte e oito anos, ele tinha uma
patente em robótica, em realidade virtual e tecnologia holográfica e criopreservação.
Agora, aos trinta e dois, era CEO de um conglomerado internacional que perseguia,
entre outras coisas, a chave para a fusão fria.

Como a maioria dos gênios, sentia-se atraído pelo estranho, excêntrico e o


inexplicável. Assim que, naturalmente, sentia-se atraído pelas catacumbas e por
Eliana, um enigma que estava decidido a resolver.

O Clube da Luta era seu filme favorito e lutar nas catacumbas alimentava seu
lado altamente competitivo, em busca de emoções devido a sua personalidade.
Eliana suspeitava que criou uma versão mais instruída e europeia de Brad Pitt.

Com certeza. Sua combinação de olhares, inteligência e força física era


devastadora.
—Aposto quinhentos que ela te imobiliza em sessenta segundos. — Melliane
disse de algum lugar na multidão atrás dela. Um coro de vozes interveio,
argumentando e gritando uma sobre a outra, clamando por algo de ação. Eliana
sorriu. Esta noite seria boa.

—Mil que o faz em dez! —Um homem anônimo com uma voz rouca gritou
sobre o ruído e isso foi o que finalmente decidiu por ela.

Ela ficou de pé em um único, fluido e flexível movimento das extremidades e


sentiu a ascensão animal quase insuportável dentro dela, afundando as garras em
seus músculos e nervos, lutando contra sua pele, assobiando para fora a cada
respiração, contorcendo-se para ficar livre. Seus olhos fixos em Alexi e por um
momento teve certeza de que ele também viu, a fera que vivia justo sob sua pele.
Seus olhos castanhos se abriram por um momento e logo se estreitaram, se
preparando.

Termine isto! A fera disse entre dentes. Sem hesitar, Eliana obedeceu.

Um passo largo, dois, três... uma onda repentina de vento fresco enquanto se
movia, a falta de definição dos corpos em sua visão periférica, a maior parte de
Alexi adiante dela, o ruído surdo das vozes de todos, o cheiro de cera quente, rocha
úmida e seres humanos. Em uma batida de coração, estava sobre ele, calor,
músculos e o cheiro embriagante de pele limpa misturada com colônia e suor, com
os braços duros no aperto ao redor de suas costas enquanto golpeava contra ele e
ambos caiam no chão.

Seu fôlego saiu com o impacto, mas não afrouxou seu agarre. Ela lhe deu alguns
pontos de bônus por isso.
—Desculpe, Slick. — Sussurrou em seu ouvido. — Mas o tempo de brincar
acabou.

Logo se virou sobre suas costas, o arrastou com ela, lançou as pernas ao redor
de seu pescoço e apertou.

O rugido da multidão foi ensurdecedor.

Ele tentou com todo seu considerável poder forçar suas coxas a se abrirem, mas
seu rosto ficava cada vez mais vermelho a cada segundo e logo veias começaram a
inchar na testa e no pescoço. Ela pronunciou novamente uma desculpa e fez um
leve gesto.

Ela finalmente se rendeu e o soltou. Ele deixou-se cair contra a pedra


empoeirada, tossindo e rindo ao mesmo tempo, os olhos castanhos apertados e as
mãos na garganta.

—Gata do inferno! — Disse com voz áspera.

Se soubesse. Eliana olhou para sua direita e viu Mel — uma sílfide de cabelo escuro
entre os homens — com os braços cruzados sobre o peito, movendo a cabeça com
satisfação. Ela piscou um olho e Mel sorriu. Ela caminhou até ela em passos rápidos
e lhe ofereceu uma mão. Eliana a pegou, ficou de pé e tirou o pó da parte de trás
de sua calça de couro preta favorita e seu cabelo.

—Levou tempo demais. — Mel murmurou com um rápido olhar para Alexi.
Dois de seus amigos o estavam ajudando no chão, mas ele os rejeitou, amaldiçoando
em voz alta, preferindo ficar de pé sozinho.
—Apenas tempo suficiente para permitir que salvasse seu rosto. — Murmurou
Eliana quando Alexi lhe lançou um olhar penetrante e depois olhou para os lados e
logo deu a volta para golpear um de seus amigos na nuca.

—Alguém me compre uma bebida. Acabei de ter meu traseiro chutado por uma
garota! — Gritou.

—Uma vez mais! — Gritou alguém novamente e ele gritou uma maldição para
o homem. Eliana era a única a vencer Alexi nos torneios semanais, mas vencia todos
os demais também, inclusive um lutador monstruoso de MMA quando tentou
colocar a prova suas habilidades, assim isso não contava.

Ela era um fenômeno da natureza, isso era tudo. Sempre era mais fácil acabar
com os monstros.

Um bando de garotas gritando, olhos maquiados de forma pesada, minissaias e


tops minúsculos — desceram em sua direção. Ele olhou para ela para se assegurar
que continuava olhando e logo colocou o braço ao redor da mais próxima e
esfregou o rosto em seu pescoço.

Eliana suspirou. Se ela estivesse apaixonada por ele, sua estratégia teria
funcionado. Assim eram as coisas, ela apenas sentia uma pontada de culpa por estar
tão quebrada que não conseguia sentir nada, mesmo por alguém de quem foi tão
intima.

Não, nunca teve uma verdadeira intimidade com Alexi. Doía admitir que o usou
para cobrir sua solidão escura e sem fundo. Por alguns meses caóticos antes de cair
em si, eles eram inseparáveis, ele era a luz para sua escuridão.
Então, quando os presentes começaram a chegar, flores, doces e um lindo anel
de filigrana que chamou de anel da “amizade”, terminou tudo. Ela lhe enviou de
voltas as groupies que o seguiam aonde quer que fosse como um bando de famintas.

Ela não era boa para ele e ele merecia ser feliz. Alexi, apesar de sua arrogância
era um bom rapaz. Ela esperava que pudessem chegar a um lugar onde fossem
verdadeiramente amigos, mas estava começando a duvidar da possibilidade. Fazia
mais de um ano que estiveram juntos e seus olhos ainda a seguiam.

Ainda queria resolver seu enigma.

—Ele tem a ideia correta, de qualquer forma. — Ela voltou sua atenção a Mel,
que estava observando com atenção, algo que pegou-a fazendo em mais de uma
ocasião. Eliana sabia que Mel se preocupava com ela, mas a pedra angular, a regra
tácita de sua amizade era não perguntar nada. As relações eram uma das dezenas de
coisas que Eliana não discutia com ninguém. Nunca.

—Sobre o que?

—Beber. Vamos conseguir uma.

Mel concordou. — Dê-me dez minutos e a encontro no Tabernáculo. — Ela


sorriu e fez seu rosto parecer mais travesso que o habitual. — Tenho que pegar o
dinheiro. — Deu a volta e afastou-se dançando desta forma particular que tinha,
quase saltando sobre o chão, o cabelo longo e negro, trançado golpeando levemente
contra suas costas.

Bem, pensou Eliana, virando-se. Mantenha seus olhos no prêmio, Butterfly. Olhos no
prêmio.
***

Sob o brilho, o glamour e as luzes da cidade de Paris, existia um mundo frio e


tranquilo, de liberdade e possibilidades. Les Carrières9 de Paris era uma profunda
rede, intricada e com cerca de seiscentos quilômetros de pedreiras abandonadas e
poços antigos, redes de metrô e esgoto, canais e reservatórios, aquedutos que se
filtravam nas rochas circundantes e faziam as paredes chorarem lágrimas silenciosas.
Era um lindo mistério e alguns diziam ser o paraíso subterrâneo assustador, outros
diziam que os portões do inferno poderiam ser encontrados ali, um pouco além das
catacumbas nomeadas Império da Morte para os seis milhões de almas sem nome,
enterrados em seu abraço escuro, mofando os ossos misturados em grandes montes
e empoeirados no fundo dos poços e se empilhavam com macabra precisão ao
longo das paredes escuras, como conchas comuns no mar.

Estas catacumbas formavam as artérias e intestinos de Paris. Antigas e


misteriosas, eram decoradas com desenhos nas paredes e algumas pinturas em neon,
esculturas de ossos e estalactites pingando de cima. Toda iluminada por milhares de
velas em nichos, cujas chamas não se moviam, porque o ar era tranquilo. Era um
reino subterrâneo que poucos conheciam e menos ainda viam.

Os poucos que se arriscavam ser presos — entrar nas catacumbas era ilegal
desde muitas décadas — precisavam mantê-las em segredo e o ponto de entrada
bem guardados. Estes eram através dos bueiros que caiam na escuridão, nas
estações de trens de ferros abandonadas, nos porões de prédios antigos, igrejas e

9 Estradas em Francês.
bancos e os cataphiles10 viviam buscando alívio para a vida cotidiana na noite
espiritual do submundo. A liberdade e a anarquia reinavam, todos tinham apelidos
para esconder sua verdadeira identidade e compartilhavam a mesma filosofia
simples: Para ser feliz, permaneçam ocultos.

Eliana e seu grupo de duas dezenas foram exilados e estavam bem familiarizados
com a clandestinidade, assim a vida nas catacumbas era perfeita. Por agora.

Enquanto abria passo entre a multidão, as pessoas a deixavam passar e sussurros


a seguiam. —Alguma vez viu alguém se mover assim? — Murmurou um jovem
tatuado magro a seu amigo musculoso que estava de pé junto a ele. Olhavam para
ela como se de repente fosse criar chifres.

—Eu disse, homem. — O musculoso disse com orgulho. — Butterfly é uma


lenda no subterrâneo. Nunca irão superá-la.

Eliana levou a mão ao pescoço, imaginando se podia sentir sua própria tatuagem
ali mesmo, uma borboleta negra que estendia suas asas entre as omoplatas e que
conseguiu seu apelido. Phengaris Arion transformava sua forma original, foi pintada
com as cores da noite e balançava ao fio da navalha da extinção, assim tinham muito
em comum.

Ao sair do calor e da multidão para o anfiteatro de trás, Eliana abriu passo por
um corredor sinuoso, passando debaixo de vários canos de esgoto e evitando
cuidadosamente as colunas de pedra que eram o apoio, aprisionadas entre o piso e
teto. Houveram muito desmoronamentos nos últimos anos, as antigas pedreiras
eram frágeis como um esqueleto seco. Pelo corredor estreito onde a luz se fundia

10 Aficionados em catacumbas.
até ficar verde escura, havia mais curvas nas esquinas que conhecia de memória e
de repente as paredes caiam e um cômodo alto se abria, um espaço silencioso.

O Tabernáculo era o mais próximo no subterrâneo de uma igreja. Era um


santuário ainda que não confessional, onde milhares de pessoas não identificadas
deixavam suas lembranças de entes queridos que perderam ao longo dos anos.
Fotos e coisas pequenas, poemas e alianças de casamento, cartas amareladas com
as bordas desgastadas e manchadas pelas lágrimas... um milhão de lembranças
empoeiradas se alinhavam nas paredes e cobriam o chão e todos que ficavam ali
naquele lugar se mantinha em um silêncio de reverência.

Todo mundo, menos Caesar, que nunca deixava de fazer uma entrada
espetacular onde quer que ia.

Estava com algumas garotas no túnel de acesso oval a alguns metros de


distância. Assim que a viu gritou. — Ali está!

As garotas estavam cobertas de pó, os sapatos cobertos de lodo, os braços e as


pernas nuas manchadas de barro e poeira e a umidade invadia todos os lugares, mas
entre elas Caesar estava impecável, a roupa sem rugas, o cabelo penteado e o corpo
perfeito. —Como está minha pequena boxeadora profissional?

As paredes fizeram eco, morrendo lentamente em silêncio. Arrastava-se um


pouco, cambaleando e as garotas estavam suportando a maior parte de seu peso.

Maravilhoso.

—Irmão. — Saudou com rigidez.


—Irmã. — Ele sorriu, com uma ironia lenta na curva dos lábios esculpidos e
logo inclinou a cabeça para o ouvido da garota a sua direita e logo disse algo. Ela
riu e olhou rápido na direção de Eliana e logo o trio tropeçou para as sombras da
parede no fundo, onde vários sofás estavam escondidos atrás de pilhas de velhas
caixas de madeira.

—Não deixe que ele te afete. — Disse Mel em voz baixa, vindo de trás dela.

—Tudo bem. — Mentiu Eliana, respirando com dificuldade pelo nariz. —


Estou bem. — Ela apertou a mão que Mel colocou em seu ombro, podia lidar com
a humilhação, mas nunca a piedade e voltou-se para ela.

Mel levantou um antigo frasco prata e moveu o mesmo. — Beber a vitória?

Eliana pegou-o sem hesitar, abrindo a tampa e tragou o líquido. Um desastre de


fermentação de peras e batatas, queimou como ácido enquanto descia. Tossiu e
devolveu a Mel. —Uf! Parece que fez isso em seu sapato. Gosto de pensar que sou
o tipo de garota que pode beber qualquer coisa, mas isto é vulcânico. Porque alguma
vez minhas bebidas de vitória não podem ser champanhe?

—Champanhe não está no mesmo orçamento da cerveja. —Mel encolheu os


ombros. Inclinou a garrafa nos lábios e engoliu. — Além disso, Sra. Calça
Charmosa, pela forma como bebe, dentro de uns meses alguém teria que trazer uma
escavadora aqui para tirá-la da montanha de garrafas vazias.

Eliana fez uma pausa, considerando. Tinha um ponto. Nenhuma das duas
bebiam ao ponto da estupidez como seu irmão Caesar o fazia, bebiam o suficiente
até o limite da visão turva. Às vezes até mesmo funcionavam. — Luz da Lua
vulcânica então.
Mel entregou a garrafa novamente a ela e a esvaziou, fazendo uma careta
enquanto Mel a observava.

—Alexi me perguntou onde estava.

—Pfft. Estava tão envolvido pelas mulheres, me surpreende que tenha


percebido que saí.

A boca de Mel tinha um sorriso triste. — Ele sempre percebe o que faz, E.

—Sim, bom, apesar da história antiga, espero que não pegue algo daquelas
groupies que o acompanhavam. Elas não parecem exatamente... virginais.

Mel riu, uma risada de bruxa que estava decididamente em desacordo com sua
aparência. Era mais baixa e mais delicada que seu corpo magro, de pernas longas,
com um lindo cabelo negro até a cintura que usava com uma trança francesa. A
trança terminava como uma coroa em sua cabeça e era mordaz, tinha um mórbido
sentido de humor e Mel parecia com certeza uma criatura do bosque travessa, um
elfo malicioso e atraente que podia levar alguém pela selva com segurança ou passar
direto por um desfiladeiro.

Em outras palavras, um lobo em pele de cordeiro.

Apesar de seis anos mais jovem que sua amiga, Mel era perfeitamente capaz de
defender a si mesma e Eliana se sentia violentamente protetora com ela.
Considerava Melliane a irmã que nunca teve.

—Olha quem está falando besteira! — Gritou Mel com prazer. Os olhos escuros
dançavam com alegria quando apontou com o dedo. — O sujo falando do mal
lavado!
—Cale-se. — Eliana respondeu com bom humor e logo congelou quando o
som agudo e inconfundível da carne batendo em carne rompeu a quietude. Foi
seguido rapidamente por um gemido, um grunhido e logo silêncio misterioso. Mel
lançou um olhar para a alta pilha de caixa onde Caesar e suas duas companheiras
desapareceram, mas Eliana não precisava olhar. Ouviu tudo antes e isto deixava seu
estômago revirado.

—Vamos sair daqui. — O rosto bonito de Mel ficou sombrio. — Não quero
ficar para o espetáculo de horrores.

Nem eu, Eliana pensou já rapidamente se virando e se dirigindo para outro túnel
de acesso para tirá-las das catacumbas e o sótão da igreja abandonada onde
dormiam. Já sei como termina.
CAPÍTULO
QUATRO

— Caesar está atrasado novamente.

Eliana colocou distraidamente os dentes de seu garfo na gema gelatinosa do ovo


frito em seu prato. Moveu-se e rachou, manchando a porcelana toda de amarelo.
Estremeceu, desgostosa. Não gostava de ovo. Quem gostava dessas coisas
horríveis?

Silas gostava ao parecer, devido a que cortava o seu ovo com precisão cirúrgica
e comeu a metade dele de uma vez. Ele respondeu. — Está dormindo.

Isto não a enganava, Eliana conhecia Caesar muito bem. Dormindo significava
em coma. Passou a noite brincando com as groupies e outras novas que não
conheciam seus peculiares gostos ou no Moulin Rouge, onde pagavam as garotas
de forma generosa para atender este tipo de gostos e os homens que os possuíam.
Passou-se cinco dias desde que presenciou a feiura no Tabernáculo e ele apareceu
apenas um dia para o café da manhã.

Era um hábito tomar o café da manhã no jardim traseiro da DuMarne, a grande


e antiga igreja a qual se mudou quando decidiu se refugiar em Paris depois de fugir
de Roma, três anos antes. Uma linda ruina, cavernosa e descuidada, mas em nenhum
perigo de ser vendida por seu valor histórico, então era o refúgio temporário
perfeito para sua pequena colônia. O acesso às catacumbas era uma vantagem que
todos aproveitavam, eram criaturas do submundo depois de tudo, mesmo mais que
todos aqueles humanos que iam ali para brincar e se esconder da vida real na
escuridão.

—Talvez se ele não passasse tanto tempo dormindo eu não teria que passar
tanto tempo trabalhando. — Disse. Já que geralmente o fazia quando era a vez de
Caesar e seu estômago se apertou em um punho.

—Não gosta de lutar?

Olhou para Silas para encontrá-lo olhando-a com detalhe. Seu cabelo negro
longo até os ombros, preso em um rabo de cavalo perfeito com uma tira de couro
fina, marcava sua mandíbula quadrada, alguns os descreviam como bonito, mas
apenas parecia muito duro. E extremamente inteligente, Silas não perdia nada.

Era doze anos mais velho que ela e o conhecia de toda a vida. Um servo antes
de escapar das catacumbas há três anos, agora era o segundo no comando de seu
irmão, o Alfa e era muito valioso para eles desde então. Era completamente capaz
e leal e se tinha uma estranha sensação sobre ele às vezes, tentava descartar como
nervos aguçados.

Sem dúvida, seus nervos não eram como costumavam ser.

—Lutar é... bom, uma distração. — Ela encolheu os ombros. — E é apenas


para se exibir, ninguém se machuca. — Egos eram realmente a única coisa que
nunca machucava. Nas lutas semanais em New Harmony, ela lutava por dinheiro,
não por sangue.
Silas limpou o canto dos lábios com um guardanapo, sem deixar de olhá-la
fixamente. —Então é ao roubo que se opõe. Não gosta de ser uma ladra?

Ela fez uma careta. — Claro que não gosto, Silas. É desonroso. Até uma criança
sabe que roubar é errado.

Ele sorriu ante isto, uma curva leve nos lábios que poderia ser de satisfação ou
desdém. — Apenas está roubando pinturas a óleo, Eliana. É apenas uma mancha
em sua moralidade. E, em qualquer caso, o fim justifica os meios. Seu pai sabia. Às
vezes temos que sacrificar nossos próprios ideais... por um bem maior.

Apenas ele poderia considerar isto uma honra por causa de um nobre ideal. Para
ele, apenas havia um índice de referência para se medir: é útil? Se a resposta fosse
sim, independente da situação ou da ética, perguntas ou opiniões dos demais, era
aceito. Ela nunca conheceu ninguém mais clinicamente pragmático.

—Um bem maior que a obsessão de meu irmão por pegar prostitutas?

O sorriso de Silas apenas aumentou com o ácido em sua voz, o olhar de desgosto
em seu rosto.

—Pequenos pecados de seu irmão, no entanto, ele está disposto a fazer todo o
necessário para ver o sonho de liberdade de seu pai chegar para todos nós. Todos
compartilhamos a mesma filosofia, infelizmente, você é a única com os dons para
conseguir o que precisamos. — Seus olhos suavizaram, mas de alguma forma
ficaram mais intensos. — Acredite, gostaria de ter esta carga sobre mim mesmo se
pudesse.

Incomoda sob o olhar penetrante, afastou os olhos. — Temos quase o dinheiro


suficiente para construir a fortaleza. Uma que estiver pronta...
—Então irá deixar tudo. — Disse Silas, lendo sua mente. O homem realmente
não perdia nada.

Que irritante.

—Então irei deixar tudo. — Eliana concordou. E fazer o que, se perguntou.


Cuidar do jardim?

Novamente com um olhar de intuição, disse. — Talvez então, você possa


considerar... —parou, abaixando o olhar para o prato de comida sobre a mesa na
frente dele. Ele brincou com o ovo sem comer. —Começar uma família. — Sua
voz era estranhamente neutra. —Ter um companheiro.

—Um companheiro? Faz soar tão romântico.

Um músculo pulsou em sua mandíbula quadrada. —É muito inteligente para


pensar em casamento com corações e flores, Eliana. Talvez pelo ser humano que é,
mas o romance é um luxo que criaturas como nós não podem se permitir. Temos
que ser mais lúcidos, observar as alternativas através das lentes da lógica, não a
emoção. Nossa continua sobrevivência depende da criação da próxima geração,
especialmente agora...

—De verdade? — O estômago de Eliana começou a arder. — Não é suficiente


que eu roube e lute por nós, agora quer que meu útero seja usado também?

Ele a olhou, seus olhos negros fortes. — Deixe seu útero de lado. — Disse
mortal e suave. — Há uma guerra se aproximando. A sobrevivência do mais apto é
o único que importa agora, princesa...
—Não me chame assim, Silas. — Disse entre dentes, afastando sua cadeira. Ele
sabia que ela odiava ser chamada assim, sabia o quanto lhe lembrava o passado. —
O dia que meu pai morreu deixei de ser uma princesa...

—Uma guerra que irá custar muitas vidas. —Ele disse calmo e tenaz, ignorando
sua ira. — E nos deixará ainda mais fracos do que somos agora, que há menos
crianças para substituir as perdidas. E como as fêmeas são férteis apenas uma vez
por ano e muitas vezes não ficam grávidas, cada período fértil é uma oportunidade
perdida. Você já teve três desde que saímos das catacumbas em Roma...

—Silas! —Ele estava contando. A ideia a fez estremecer.

—... e logo terá outra. O relógio não para, Eliana. E ninguém mais nesta colônia
se adapta melhor para você do que eu. Nosso casamento é a conclusão lógica.

Eliana ficou olhando durante longos segundos, tanto curiosa como rejeitando a
súbita compreensão de que Silas estava falando sobre se casar com ela. O que não
tinha nenhum sentido, já que estava convencida na maior parte do tempo de que
não gostava dela.

Ela disse. — Esta tem que ser a proposta menos atraente de casamento já
pronunciada na história de vida deste planeta.

Um leve aumento da bochecha indicava que estava contendo a risada. Ou era


uma brincadeira?

—Esta não é a única razão pela qual deve considerar, no entanto.

Suas sobrancelhas subiram. —Há mais nesta declaração difusa e comovente?


Estou na beirada do meu assento.
Ele inclinou a cabeça e a olhou sob os cílios negros, este leve aumento da
bochecha cada vez mais profundo enquanto seus lábios se curvavam no mais fraco
dos sorrisos. Algo que a deixava nervosa de uma forma que não podia explicar.

—Garanto que as coisas nem sempre serão como agora. — Disse em voz baixa.
— Seu irmão é... desequilibrado. Não me olhe assim. Sabe que é verdade.

Ela disse cada palavra com cuidado. — Qual seu ponto Silas?

Esticou seu braço, tranquilamente, sem pressa, inspecionou as unhas e


endireitou o punho da manga da camisa preta. Então, quase casualmente disse. —
Quando os objetivos para a produção do soro e a construção da fortaleza forem
atingidos e você não ser mais necessária para isso... Case-se comigo. — Hesitou e
Eliana ficou olhando-o com consternação, sentindo o coração bater no peito. —
Sabe a influência que tenho sobre ele. — Murmurou, sua voz quase sedutora. Em
contraste com a voz sedosa, seu sorriso grande lhe causou arrepios.

Abaixou o braço e levantou o olhar diretamente para ela. —Poderia oferecer


proteção.

Certo. Ali estava.

Com toda dignidade que pode reunir, Eliana levantou o queixo e ficou em
silêncio rígido no jardim de rosas, uma profusão de flores brancas balançando na
brisa fresca manhã. Seu cheiro doce no ar, mas isso não fez nada para eliminar o
repentino sabor amargo na boca.

Apesar de ser um homem e mais velho, assim era mantido automaticamente na


mais alta estima por seu povo, Caesar nasceu sem dons, assim seu pai — brilhante,
como Dominus era— favoreceu Eliana. Ele nunca disse, mas era claro como o
cristal através dos anos de olhares raivosos e frios que seu pai considerava Caesar
um fracasso, uma mancha na honra de sua poderosa linhagem.

Dedecus. Uma desgraça.

Eliana fez todo o possível para proteger Caesar da decepção implacável que
emanava de Dominus. Caesar, ainda que sem dons, era inteligente o suficiente para
reconhecer o desdém de seu pai como o pus de uma ferida e detestava Eliana ainda
mais por tentar protegê-lo.

Não importava quanto ela tentasse diminuir a brecha entre eles, Caesar era tão
imprevisível como um vira-lata e ela nunca teve muita certeza de um momento a
outro se iria entregar um ramo de oliveira com sorrisos ou grunhidos.

Ela sabia que era defeituoso, pior que isso provavelmente, mas era a única
família que lhe restava. Sua mãe morreu ao dar à luz a ela, seu pai morreu há três
anos e ela não tinha outros irmãos e uma família próxima desde que fugiu de Roma.
Sem ele, ela estaria sozinha.

Completamente sozinha.

Era seu medo mais profundo e um dos quais mais lhe envergonhava. Fazia com
que se sentisse uma covarde e justo atrás de mentirosos, covardes eram o que mais
desprezava na terra.

—Sou seu sangue. — Disse ela, suave e veemente, mais para si mesma que para
Silas.

— O ciúme escureceu seu coração. — Respondeu ele, quase chegando a soar


verdadeiramente lamentável.
—Quem pode dizer o que um rei ciumento pode fazer, inclusive com aqueles
que ama?

O calor brilhou sobre ela, fervendo. Agarrou-se a beira da mesa com tanta força
que seus nós dos dedos ficaram brancos. —Quem diabos você acha pensa que é,
tentando me ameaçar com casamento, tentando colocar-me contra meu próprio
sangue?

—Bom dia, crianças. — Uma voz languida, arrastada soou atrás dela. Eliana se
virou lentamente na cadeira para olhar.

—Caesar. Como amável é por se unir a nós.

Se notou o sarcasmo em sua voz, ele não reconheceu. Vestindo branco, com o
sol da manhã de inverno atrás dele explodindo em uma aureola ao redor de sua
cabeça, parecia um serafim, de outro mundo e sombriamente perigoso. Herdou de
seu pai os ombros largos e fortes, o porte elegante, os lábios esculpidos de sua mãe
e os olhos eloquentes. A pele dourada e os longos membros o deixavam bonito e
como alguém poderia facilmente dizer pela forma insolente se movia e falava,
inclusive respirava, ele sabia.

—Estão tendo uma pequena discussão? — Perguntou suavemente enquanto


sentava-se à mesa. Ele abriu com graça o guardanapo e o colocou no colo, pegou o
garfo e se inclinou para trás em sua cadeira, olhando os dois com brilhantes e
risonhos olhos.

—Estávamos falando da fortaleza. — Disse Eliana, ainda rígida e em plena


ebulição, olhando agora para Silas. — Temos que escolher um lugar definitivo para
que possamos começar a trabalhar nos planos de arquitetura.
—Bom. — Disse Caesar com um pedaço de melão na boca. —Todos
concordamos com a bacia no Congo na África, que é o propósito, considerando ser
a origem dos Ikati. — Suspirou. — Ainda que admito, irei sentir falta da França. As
pessoas aqui são tão amáveis...

Isto significava, as mulheres. As prostitutas. —Mas a localização final. —Insistiu


Eliana, mas Caesar a cortou.

—Acho que é mais importante discutir o nome.

Pega de surpresa, Eliana piscou. — O nome?

Levou um tempo para escolher outro pedaço de melão. — Hum. — Disse,


espetando o garfo na fruta. — Um importante país, precisa de um nome
importante.

Silas e Eliana trocaram um olhar. — País, meu senhor? Nossa fortaleza


planejada poderia ser um pouco pequena para ser chamado de país.

—Se o Vaticano pode ser chamado de país, poderá ser Sião. —Pronunciou
Caesar, comendo o melão rapidamente. Eliana sentiu o impulso de tirar o garfo de
sua mão e dizer para conseguir sua própria maldita comida, mas se conteve
apertando os punhos no colo. — Definitivamente será mais importante que os dois,
a longo prazo.

—Sião. — Repetiu Eliana. — Muito dramático. E talvez bíblico demais, não


acha? Teremos loucos apocalípticos descendo sobre nós como chuva. Todos
aqueles que acreditam em calendários maias pensarão que somos a segunda melhor
opção.
—Na verdade, é perfeito. —Ronronou Silas, com um olhar de lado para ela.
Assim, ele escolheu seu lado e a castigava. Seus punhos se fecharam mais apertado
no colo. — Sião se refere ao mundo por vir. — Continuou. — A terra prometida,
a terra espiritual e física de um povo oprimido, errante e ansiando segurança.

Eliana o fulminou com o olhar. Ainda que seu pai houvesse assegurado que
tivesse a melhor educação com instrutores de artes, matemática, línguas, ciências e
inclusive um mestre Gendai budista japonês que era pago por suas visitas e silêncio.
Silas e Caesar inevitavelmente, agora falavam com ela como se desafiando-a. Era o
dano colateral infeliz e exasperante de viver em uma sociedade patriarcal que
permaneceu sem mudanças durante milhares de anos: as mulheres eram cidadãs de
segunda classe. Ou provavelmente, terceira, atrás do gado.

Com uma mandíbula apertada, Eliana disse. — Sei o que significa a palavra Sião.

—Então, estamos de acordo. — Os dentes de Caesar brilharam quando ele


esboçou um sorriso. — Bom!

Não havia discussão, não havia acordo, simplesmente Caesar fazendo


exatamente o que queria. Como sempre. Fazendo um grande esforço para respirar
com calma enquanto ouvia as batidas de seu coração e dizia. — E a localização?

A resposta de Caesar foi uma mão ondulando. — Contratei uma empresa de


arquitetura para começar os planos para o composto principal e os prédios
periféricos. Estamos fazendo investigações sobre a disponibilidade de uma grande
extensão de terreno suficiente para o que imagino. Espaço para expansões é
importante, uma vez que os outros membros descontentes das outras colônias
descobrirem sobre nós, irão aparecer. —Riu. —Imagino que exista uma grande
quantidade deles que estão fartos de se esconder como ratos no sótão.

—E como as outras colônias saberão sobre nós? — Perguntou Eliana. —


Nunca falamos especificamente sobre a forma como vamos correr a voz àqueles
que querem viver abertamente com os seres humanos, já que queremos, como
vamos proporcionar um transporte seguro de suas próprias colônias, protegê-los
de seus Alfas que sem dúvida irão querer matá-los por desertarem...

Caesar agitou outra mão. — Que os homens se preocupem com os detalhes,


Ana. Você simplesmente continue trazendo comida para casa. O que me lembra.
— Disse, estalando os dedos juntos. — Há um novo Degas no Louvre que você
precisa olhar. Seria perfeito para seu pequeno animal de estimação humano.

Gregor, ele queria dizer. Era assim que o chamava: animal de estimação
humano. Era melhor do que a forma como ele chamava a maioria dos seres
humanos. Para ele, eram apenas três coisas: animal de estimação, brinquedos e
reprodutores. Era onde suas ideologias se distanciavam consideravelmente. Eliana
acreditava que deveriam viver junto com os humanos, porque as duas espécies eram
iguais, como todas as criaturas na terra, mas Caesar pensava que deveriam viver
juntos aos humanos porque os Ikati deveriam ser adorados como antes há muito
tempo no antigo Egito.

Uma vez foram considerados deuses e ele não se esqueceu disso.

—No Louvre? Isso é demais, não acha? Isso é um pouco... perfil alto.
O sorriso de Caesar como resposta foi quase uma careta. — Deve ser fácil o
suficiente para você, Ana. De vapor a invisibilidade... tudo chega tão facilmente a
você. Será uma brincadeira de criança.

Inclinou-se para trás em sua cadeira e lhe sorriu, lento e irônico e este olhar fez
seu sangue ferver. Suficiente. Não podia aguentar mais nada neste dia. Levantou-se
da mesa e empurrou a cadeira para trás. — Eu o olharei.

Infelizmente, sua voz não saiu tão bem como ela queria e sabia que ele estava
feliz quando seu sorriso aumentou.

—Está noite. — Disse rapidamente. A expressão em seus olhos era tudo menos
luz e Eliana entendeu que não era negociável. —Consiga que seja feito esta noite.
Há outro pagamento que precisamos fazer para o laboratório.

Seus olhos ficaram fixos por um momento, até que finalmente ela concordou.
Ele moveu a cabeça satisfeito e voltou sua atenção para Silas.

—Temos suficiente do soro por agora para injetar nos mestiços da antiga
colônia. Não há razão para que não saltem com a oportunidade de sobreviver além
da Transição e se unir a nós. Agora apenas temos que fazer correr a notícia.
Teremos que pensar em algo... especial.

Dispensada. Ela apenas foi dispensada. Sem dizer uma palavra, humilhada,
sentia a garganta se queimar em um aperto, mas compreendendo e com o peito
cheio de ira, Eliana deu a volta e se afastou.

Os olhos negros de Silas a seguiram até que saiu da vista além da esquina coberta
por hidra, em direção ao interior da igreja.
***

Seu dom era sutil, mas funcionava com uma eficácia devastadora.

Menos potente que o controle da mente pura e simples, o dom da sugestão, a


capacidade que Silas aprendeu a usar ao longo dos anos era exercida com a precisão
mortal que um ninja manejava uma katana, em um sussurro ao invés de um grito,
um leve empurrão, o olhar tímido de uma dama, tinha o mesmo resultado que um
audaz olhar, mais luxurioso que de uma puta.

Em outras palavras, era elegante.

Não tinha nome para ele e não servia para nada, não era como se fosse falar
disso em voz alta, de qualquer forma. Ele não era propenso a está horrível
combustão que afligia os dos jovens humanos: compartilhar. Era, no entanto,
propenso a representação gráfica. Propenso ao planejamento. Propenso a uma
risada sombria, satisfeita quando o resultado que orquestrou chegava a um bom e
glorioso final, inevitável.

Silas ria muito.

O único ponto negro em sua grande satisfação com seu dom era sua limitação.
Havia certas mentes, corações muito fortes ou fechados, resistentes a se deixar
levar. No caso de Eliana, suspeitava que fosse as três coisas, mas nunca foi afetada
pela pressão sutil que enviava a ela, pequenos empurrões de intenção em ondas
invisíveis, como o tato suave de um amante. Não importava o quanto tentasse
influenciar suas emoções, não se deixava influenciar.
Seu irmão, pelo contrário, era uma questão totalmente diferente.

Caesar, seus olhos fixos no lugar onde Eliana desapareceu além da parede, disse.
— Ainda bancando a difícil, certo?

Impossível de conseguir, na verdade. Silas não era tolo, sabia que não a faria
amá-lo. Também sabia que ela ainda se consumia por aquele guerreiro duro que
deixou para trás em Roma. Mas não importava. O amor era para crianças e os loucos
e ele não eram nenhum dos dois. O amor não tinha nenhum papel em seu plano.
Caesar, no entanto, tinha.

Disse em voz baixa, abatido. — É tão obvio que ela não me quer?

Caesar riu, encantado. — Não se preocupe, Silas. Não importa o que ela pensa
que quer. Ela será sua finalmente.

Silas quase podia ouvir o tom de chefe indulgente de Caesar. Disse de forma
inocente. — Sim, se tão somente pudesse ser como você, meu senhor. Ela é muito
teimosa quando tem algo em mente.

A risada de Caesar morreu. Olhou para Silas durante um longo momento, em


silêncio e imóvel como uma serpente enroscada, a luz do sol brilhando azul em seu
cabelo negro. — Ela é somente uma mulher, Silas. Não vai escolher o seu destino.

Silas levantou a sobrancelha e piscou, a imagem da antecipação tirando seu


fôlego e Caesar disse. — Que pense estar no controle pelo momento. Não importa.
De fato, que se adapte aos nossos propósitos. Precisamos dela agora. Mas uma vez
que chegarmos a Sião, ela será sua. Continue supervisionando a produção do soro
e a pequena festa que planejamos para sua apresentação e prometo, ela será sua. —
Sorriu, duro como uma pedra. —Não importa o que ela queira.
Um sorriso apareceu no rosto de Silas. Grande Hórus, manipulá-lo era muito
fácil, a força de vontade do rapaz era muito fraca, escorregadia, ele era facilmente
empurrado a um lado. Na verdade, os dois não podiam com ele e tudo o que
planejava. Cavaleiro da torre, peão da rainha, tudo em apenas um jogo e um no qual
ele não se destacava.

Ela já tinha seis movimentos diante deles dois.

Sabendo exatamente o que precisava ouvir de Caesar, Silas disse com voz
humilde. — Seu pai ficaria muito orgulhoso de você, meu senhor. É tão implacável
como ele era.

No sol da manhã, os olhos negros de Caesar brilharam com malicia. — Era


muito brando com ela. Confio que não irá cometer o mesmo erro. Minha irmã...
requer uma mão firme. — Olharam um para o outro e Silas ouviu em voz alta o
que ficou sem dizer. Seu sorriso aumentou e ficou mais raivoso.

—Não poderia estar mais de acordo, meu senhor. Não poderia estar mais de
acordo.

Esperava com interesse demonstrar o quanto tinha a mão firme.


CAPÍTULO
CINCO

O melhor uísque era a velocidade com que trabalhava.

—Calma, assassina. — Disse Mel com frieza, puxando a garrafa de prata das
garras de morte de Eliana. —Não pode ficar doente.

Muito tarde, Eliana pensou. Mas não estava doente por causa do álcool. Apoiada
na parede de rocha nua do anfiteatro que apelidaram ironicamente de New
Harmony, Eliana deixou Mel pegar a garrafa e logo limpou a boca com o dorso da
mão. Seu olhar vagando pelo espaço sombreado e perguntou em voz alta. — Qual
é a melhor forma de morrer? Ser devorado por um tubarão ou queimado em uma
fogueira?

Mel parou com a mão no ar, olhando-a com uma sobrancelha levantada. — Ah.
Estamos com este tipo de ânimo, verdade? Deixe-me adivinhar... o idiota número
um ou o idiota número dois?

Eliana exalou com força e o vapor do uísque queimou o nariz. — Ambos.

—Equipe dupla. — Mel concordou sabiamente. — Isso vai acontecer o tempo


todo. — Ela olhou para a garrafa em sua mão e logo empurrou para trás. —
Definitivamente precisa disso mais do que eu.

—Tenho certeza de que já acabei com ele. — Disse Eliana com tristeza.
Fugiu para as catacumbas depois de seu café da manhã com Caesar e Silas e
ficou rodando por horas, com a esperança de encontrar alguém para treinar,
pensando que uma boa luta pudesse levantar seu estado de ânimo. Não teve sorte.
Os corredores às luzes de velas estavam quase desertos com exceção de dois deles.
Mel a encontrou quase apenas uns minutos depois, derrubando uma fila de garrafas
vazias que alguém alinhou ao longo da rachadura da rocha. Gárgulas talhadas
lançavam olharem lascivos para baixo desde o teto, olhando com olhos vazios, ao
longo da parede onde alguém pintou um lindo tsunami, engolindo desfiladeiros e o
Japão.

Os monstros e o caos. Adaptava-se perfeitamente ao seu estado de ânimo.

Eliana colocou as mãos sobre seu rosto, esfregou a testa e suspirou. — Em


minha próxima vida, gostaria de ter um pênis. Quem escreveu esta canção sobre o
mundo ser dos homens, estava certo.

—Desejos de morte e inveja de pênis. Está tendo um dia ruim. — A voz


sarcástica de Mel suavizou enquanto observava seu rosto. — O que aconteceu?

—O que sempre acontece. Caesar aconteceu.

Mel deixou por ali um minuto e logo disse em voz muito baixa. — Eliana, sabe
que é a razão por que todos saíram de Roma, verdade?

Ela levantou a cabeça e olhou para Mel.

—Não por causa de seu irmão, nem Silas, não este grande plano de viver ao ar
livre com os seres humanos que é tão maravilhoso. Nenhum de nós se preocupava
com nada disso. Nós saímos por que você saiu. Você. —Sua voz se reduziu ainda
mais, quase um sussurro de cumplicidade. — Você é o Alfa desta colônia Eliana, se
percebe ou não. Silas era apenas um Servorum11 de sua família naquela casa, apesar
de atuar como se possuísse as chaves do castelo agora. E todos sabem que seu
irmão é um soberbo e... problemático. Podemos dizer assim.

Eliana colocou a mão sobre a boca de Mel e a manteve ali, horrorizada. —Não
se atreva a dizer isso! —Apesar de ter dito entre dentes e o mais baixo que pode,
sua voz parecia amplificada pelo espaço cavernoso, fazendo eco. Ela precisou
respirar várias vezes profundamente antes de continuar. — Ele terá sua cabeça em
uma estaca em dez segundos exatos se achar que está conspirando a... a...

A voz abafada por baixo da mão de Eliana, Mel disse. — É mais forte que ele.
Sei que pode ganhar.

—Shhh!

Mel encolheu os ombros. Sobre a mão de Eliana, seus olhos negros eram
solenes, mas cheios de desafio. — Além disso, é a verdadeira pessoa que mantém
sua família. Ele morreria de fome sem você.

—Mel. — Advertiu ela, mas antes que pudesse dizer algo mais se ouviu o som
de vozes e passos em um dos corredores que chegava a New Harmony. Alguém se
aproximava.

Eliana se levantou e passou uma mão pelo emaranhado que era seu cabelo azul.
—Por favor, não diga mais nada! —Mel subiu ao seu lado, cruzou os braços sobre
o peito e fez um gesto vago com os ombros que pareciam dizer por agora.

—Butterfly!

11 Servo em Latim.
Alexi, que entrava pela parte baixa do corredor de acesso, parou abruptamente.
Junto a ele, olhando ao seu redor com assombro as paredes de grafite e fileiras
monstruosas de estalactites penduradas do teto alto, estava uma garota com uma
minissaia com estampas de leopardo, o cabelo loiro ondulado e um bronzeado que
parecia artificial. Ela tinha seios volumosos que geralmente se observavam em
modelos nas revistas masculinas e as unhas longas pintadas de rosa neon. Suas mãos
estavam entrelaçadas, mas tão logo viu Alexi, Eliana deixou cair a mão da garota
como se queimasse.

Oh deus. Hoje não. Agora não.

—Que divertido! — Mel riu dissimulada ao seu lado. — Ken e a Barbie Puta!

Eliana deu uma cotovelada no seu lado. — Estávamos a ponto de sair, Slick. —
Disse em voz alta, dirigindo-se para o corredor atrás deles. Ela estendeu a mão e
agarrou o braço de Mel, mas ela não se moveu. Estava claro que queria ficar para
os fogos de artificio.

A garota murmurou para Alexi. — Quem é Slick? E quem é ela?

Outro puxão em seu braço e Mel olhou para ela feio. — Tenho quinhentos em
minha garota na noite de sexta Slick, está dentro?

Alexi olhava para Eliana. — Sempre. — Disse solenemente e o duplo sentido


não poderia ter sido mais claro.

—Boa sorte com isso. — Disse Mel em voz baixa e então ela sorriu e se despediu
enquanto Eliana a arrastava pelo corredor.
Quando Alexi e seu sabor da semana estiveram fora de alcance do ouvido,
Eliana disse. — É terrível. Deixe de fazer isto, certo?

—Por quê? É divertido empurrar o urso e vê-lo dançar.

—Seja boa.

—Está sendo agradável ao arrastar aquela garota de programa de Paris até aqui
embaixo para esfregar em sua cara? Acho que não. Assim, merece o que pode. —
Mel fez o pronunciamento com um gesto de mão de uma rainha. — Deus, é como
se ele as clona ou algo assim.

—Apenas... tentando tirar algo de mim. Porque ele se importa. É doce, em sua
própria forma doente e retorcida.

—Doce? De verdade? — Brincou. — É um truque barato, imaturo. Ele merece


ser cortado em pedaços por este tipo de comportamento.

—Mel. — Advertiu Eliana, mas sua amiga se limitou a rir, bufando tão feliz que
ecoou nas paredes de rocha ao redor delas.

—Não se preocupe, vou deixar seu garoto são e salvo no momento. Mas está
em minha lista. E, junto com algumas outras pessoas que permanecerão no
anonimato.

Ela enviou a Eliana um olhar escuro, carregado e de repente se lembrou da tarefa


que lhe assignaram. — Falando destas pessoas não identificadas, decidiram que eu
deveria entrar no Louvre esta noite.

Mel parou em seco e Eliana se virou, surpresa com o olhar. O corredor que
estavam estava escuro e era sinuoso, cheio do som de água pingando e longo,
arrastando-se nas sombras, mas Eliana podia ver facilmente a consternação no rosto
de Mel.

—O Louvre! Porque lá? Isso parece tão arriscado!

Eliana suspirou de acordo. — Alegro-me de que não sou a única que pensa
assim. Como se tivesse uma escolha. — Murmurou no último momento. — De
qualquer forma, o pessoal da segurança não pode me ver na escuridão. As câmeras
não podem capturar uma imagem minha. Além disso, posso me transformar em
vapor se necessário. Realmente, o que de pior poderia acontecer?

Era uma pergunta retórica, claro e uma para qual Mel não tinha resposta, mas à
medida que se virou e começou o longo trajeto de volta ao nível superior das
catacumbas e a entrada oculta que as levaria ao sótão da igreja abandonada, Eliana
não podia evitar a sensação incômoda, que de alguma forma, estava a ponto de
descobrir.
CAPÍTULO
SEIS

Com o coração acelerado, D pulou na cama e piscou na quietude fria do quarto


escuro, tentando recuperar seu equilíbrio. Tentando, sem êxito tragar todo o frio
devorando-o, o terror arranhando sua garganta. Um eco de um grito morreu no
silêncio das paredes de rochas curvas enquanto estava ali sentado suando e ofegante
com o lençol enrugado ao redor de sua cintura e D percebeu que vinha dele.

O sonho era o pior que já teve.

Lutando contra o pânico, deixou cair a cabeça entre as mãos e se concentrou


em controlar a si mesmo. As imagens ainda o golpeava sem cessar, o sangue, os
homens com armas sobre a figura nua, aterrada de Eliana, encurralada contra uma
parede como um animal. Não havia nada que pudesse fazer, mas cada terminação
nervosa de seu corpo gritava para que fizesse algo.

Porque como os outros antes deste, o sonho era um presságio do que viria.

Jogou as pernas para o lado da cama e se levantou. Nu, foi ao baú no extremo
da cama e vestiu uma calça cargo preta e uma camiseta que jogou ali antes. Amarrou
os cordões das botas e aproximou-se da cômoda do outro lado do quarto onde
tinha diversas armas que sempre carregava, dispostas em uma fila cuidadosa na
parte de cima. Ele as pegou na mesma ordem que o fazia cada vez: Glock de 9mm
no quadril direito, uma faca kukhri12 com a ponta envenenada a sua esquerda, uma
faca em casa bota e facas nos bolsos da calça. Era um arsenal ambulante e como
um dos guardas de elite do rei, foi a maior parte de sua vida adulta.

Não que houvesse um rei para guardar mais, mas isso não reduzia as ameaças a
sua colônia. Em todo caso, a morte do rei aumentou dez vezes as ameaças.

Passou a mão pela cabeça, seu cabelo escuro rapado tão perto do crânio não
podia com precisão até mesmo ser chamado de corte de cabelo e agarrou as chaves
de sua Ducati no pequeno pote de madeira onde sempre a mantinha. Precisava de
um passeio.

Precisava de uma bebida também. Ignorando o fato de que todos eles estavam
basicamente sob uma lei marcial e era proibido sair das catacumbas sem a permissão
expressa de Celian — antes um executor do rei e agora o líder dos Bellatorum e
governante de fato da colônia — D estava fazendo viagens de reconhecimento
clandestinas desde que Eliana desapareceu.

Ele gemeu em voz alta. Inclusive pensar em seu nome o feria.

Com uma maldição, girou sobre os calcanhares e se dirigiu desde as câmaras de


dormir espartanas no Bellatorum para a penumbra fria do corredor principal das
catacumbas.

Quinze minutos mais tarde saiu à sombra da basílica subterrânea de Domitila


que o Bellatorum usava como sua própria entrada principal e saída das catacumbas e
se encontrou cara a cara com alguns guardas de aspecto desagradável descansando

12 Facas artesanais, rústicas, com origem nepalesa, cujo emprego principal é utilitária/sobrevivência, mas serve para
combate.
contra as antigas colunas. Jovens, musculosos e rostos sérios, que olhavam com
atenção e fuzis automáticos no peito. D observou com satisfação que era pelo
menos uma cabeça mais alto que os dois.

Por outra parte, com quase dois metros, era mais alto uma cabeça que quase
todo o mundo.

—Senhores. — Disse com calma, olhando para um e logo o outro.

Um deles limpou a garganta, um som que fez um suave eco nas paredes de
pedra. —Não pode passar, D.

D levantou as sobrancelhas. — Como?

—Ordens de Celian. — O outro ofereceu em tom de desculpa. Inquieto, mudou


o peso de um lado a outro entre seus pés. D cheirava sua ansiedade, tanto acre e
almiscarado, um toque de especiarias no ar e de fato em uma avaliação instantânea
dos dois, sabia que era de latir muito e não morder.

Em outras palavras, uma presa fácil.

—Estava na sessão de treinamento na outra noite. — Disse D, olhando para o


que estava obviamente nervoso. Ele assentiu com a cabeça, uma afirmativa cortante
e ajustou o agarre em seu rifle. Pequenas gotas de suor apareceram no seu lábio
inferior. — Gostou?

O guarda olhou para seu companheiro e D continuou. —Ouvi que o soldado


que foi nocauteado está melhor.
—Qual? — Disse o outro guarda, com um sorriso forçado. Ele era o maior dos
dois, também estava nervoso, mas decidido a não demonstrar ficou de pé com as
pernas abertas e o queixo quadrado alto em desafio.

Certo, pensou D. Você primeiro.

Antes que pudesse reagir, D transformou-se em vapor, deixando a roupa em


uma pilha no chão, aparecendo atrás do guarda arrogante e deu-lhe um golpe de
leve no ombro. O guarda deu a volta, direto no potente punho de D. Caiu como
uma pedra e seu rifle ruidosamente sobre o mármore.

O outro guarda lançou um olhar para a forma nua e tatuada de D e rapidamente


deixou cair o rifle. Ele levantou as duas mãos. — Apenas seja rápido. — Disse. —
E diga a Celian que dei um pouco de trabalho, certo?

D quase sorriu. Ele gostava deste rapaz. Assim que em lugar de dar-lhe um soco
no rosto que lhe deixaria com uma contusão azul e purpura nos ossos e
provavelmente triturado, como seu amigo a seus pés, usou um antigo recurso... o
fez dormir. Aplicou pressão na carótida e depois de uns espasmos, o rapaz apagou.

Quando D terminou de se vestir novamente, ouviu um ruído atrás dele. Deu a


volta e viu Constantine apoiado em uma coluna de mármore do outro lado da
basílica, aplaudindo lentamente. Sua expressão era de incredulidade divertida. Ele
se afastou da coluna e se dirigiu a D.

—Grande espetáculo. Acho que Celian precisa repensar sua estratégia de


contenção.

Quando D não respondeu, disse com sarcasmo exagerado. — Vai a algum lugar?
D encolheu os ombros e cruzou os braços sobre o peito. — Estava ficando
louco. Precisava sair.

—Achei que estava assim.

—Está me vigiando novamente, vovô?

Constantine riu entre dentes. — Algo assim. Importa se me unir a você?

D parou, observou a expressão do rosto de Constantine e logo disse. — Não é


uma pergunta, certo?

Agora a risada de Constantine foi irônica, como o sorriso que partiu seu rosto
antes. — É muito esperto para ser contundente, sabia?

—Traços de família também. — Neste momento, ambos riram. — As damas


primeiro. — Disse D, fazendo um gesto para a porta escondida que levava ao
mundo exterior e a liberdade. — E se ouvir uma palavra sobre o toque de recolher,
irei apagar este sorriso de seu rosto.

—É bom saber que não perdeu o sentido de humor, D. A ideia de me bater é


de verdade hilária.

Constantine deu um empurrão em D de forma amável e D o empurrou para


trás, sorrindo. Logo, os dois caminharam para a noite estrelada romana.

***
Três horas e duas garrafas de Glenlivet13 depois, o estado de ânimo de D
afundou-se em uma escala abaixo do negro.

—Quer falar sobre isso? — Perguntou Constantine, vendo o olhar perdido de


D no copo vazio em sua mão.

—Quando eu quis falar sobre isso? — Murmurou D. A camaradagem de horas


antes se evaporou junto com o uísque e D ficou mais sério do que nunca. Sabia por
experiência que o consumo de álcool apenas embota a dor, mas não o deixava
insensível e esta dor em seu peito precisaria de algo mais forte que um uísque de
dezoito anos. Um machado poderia funcionar.

—Então, apenas se sentará aqui a noite toda e ficará olhando para as paredes?

D olhou para Constantine e um flash de ira se acendeu quando ele viu a


compaixão em seu rosto. —Que eu me lembre, foi você quem insistiu para vir. —
Respondeu.

—Se soubesse que seu estado de ânimo de pena fosse tão divertido, não teria
vindo.

D endireitou-se e se sentou, olhando para Constantine. — Não sinto pena de


mim mesmo!

—Certo, apenas está bebendo muito porque é feliz.

—Foda-se Constantine.

13 Marca de Uísque. Geralmente 12 anos.


—Seja realista, D. Precisa se controlar, irmão. Isto não pode continuar para
sempre...

Constantine continuou falando, mas D não ouviu o resto porque sua atenção
desviou para a tela plana da televisão pendurada sobre a mesa de bilhar. Estava no
canal de notícias e a imagem na tela fez seu sangue congelar como gelo.

Eliana. Bom deus, era ela.

As mãos algemadas nas costas, vestindo apenas uma camisa branca masculina
amassada, estava sendo tirada de um carro de polícia por alguns guardas
uniformizados e armados o suficiente para equipar um pequeno exército. Ainda que
sua cabeça estivesse de lado, a viu claramente de perfil e a imagem ao instante
chamuscou sua mente. A elevação do queixo, a linha elegante de seu pescoço, as
extremidades longas que lhe dava um aspecto de bailarina ou duende delicado. Ela
estava exatamente como se lembrava, exceto pelo cabelo tingido de lápis-lazuli14 e
uma atadura manchada de sangue ao redor de sua panturrilha.

A televisão estava sem som, mas o título na tela gritava: Polícia francesa prende
famoso ladrão!

Tudo ao seu redor sumiu.

Para trás ficou o bar escuro, enfumaçado com suas mesas velhas e uma
decoração de mal gosto. Despareceu no ar viciado e úmido de cigarros e cerveja
velha. Desapareceu o letreiro em neon escrito Peretti na janela e a garrafa de uísque
vazia na mesa ao lado de sua mão esquerda. Apenas havia ela. Cada nervo, cada

14 Uma rocha metafórmica de cor azul, usada como pedra ou rocha ornamental.
célula e átomo de seu corpo brilhavam como fogo, pulsando e começando a rugir.
Eliana! Eliana! Eliana!

Congelado, olhava a televisão e via como os guardas rapidamente a levavam


mancando por uma aglomeração de reportes gritando nos degraus da escada de
mármore até as portas duplas de vidro da entrada de um edifício de pedras. Justo
antes de desaparecer pela porta, olhou sobre o ombro e diretamente para a câmera.

Os olhos de corça, negros como a noite, pareciam líquidos e olhando para ele.
Através dele. O coração de D parou no peito. Ele saiu disparado de sua cadeira e a
plenos pulmões gritou a única palavra que lhe veio à mente.

—Merda!

Apesar da explosão, nenhum dos outros clientes do bar olhou em sua direção.
Ele frequentava este bar com muita frequência e mais de uma vez viu como
olhavam o enorme tatuado com o cenho franzido e sabiam que poderia esmagar
qualquer um, assim aprenderam a se manter afastados.

—Muito bom! — Disse Constantine seco enquanto tamborilava os dedos de


uma mão na grande mesa cheia de riscos e pegajosa. Estava de costas para a
televisão. — Isto é apenas uma observação geral ou está experimentando algum
tipo de emergência no ventre?

—É ela! Na televisão! É ela! — D disse entre os lábios intumescidos.

Constantine fechou os olhos por segundo mais que um piscar e suspirou. —


Você tomou um litro de uísque, D. Está vendo coisas. Porque não se senta e...
—Por favor! — D gritou ao garçom magro, silenciando Constantine e o
parando o garçom em movimento. Ele saltou sobre o bar e lançou-se para a
televisão como se sua vida dependesse disso. Seus dedos trêmulos encontraram o
controle do volume e Constantine com o cenho franzido, virou sua cadeira para
olhar quando a voz modulada de uma repórter encheu o lugar enfumaçado.

—... eludiu as autoridades nos últimos anos e se converteu na mais infame série
de roubos de arte na história da França. Alguns dos cidadãos mais ricos do país e
figuras políticas foram suas vítimas, incluindo o próprio Primeiro Ministro François
Fillon, cuja coleção pessoal de um Picasso original que vale mais de cinco milhões
de euros foi roubado de sua casa no ano passado, enquanto ele e sua esposa estavam
dormindo.

A imagem mudou para uma cena de sorridente homem de meia idade de pé sem
camisa e bronzeado com uma taça de champanha no convés de seu reluzente iate.

—Neste momento não se sabe se ela trabalha sozinha. — A repórter continuou


quando a cena mudou novamente para a multidão na frente do edifício de pedra.
—Mas por agora a ladra conhecida como La Chatte se encontra sob custódia e
imaginamos que o chefe de polícia de Paris está suspirando muito forte de alívio
depois desta longa perseguição e pelas obras artes da elite estarem mais uma vez
seguras. Sou Lisa Campbell para CNN Notícias Internacionais. Novamente com
você, Bob.

D ficou olhando para televisão muito depois que Bob — um repórter calvo —
continuava a história. Sua respiração era irregular, as batidas de seu coração
selvagens e suas mãos se moviam dos lados, mas tudo era secundário à tempestade
de gemidos dentro de seu crânio.
La Chatte. Gatuno. Um criminoso escorregadio.

Eliana, o amor de sua vida, a fonte de sua alegria e sua dor, que o deixou em
agonia por três anos, com a alma ardendo de uma forma que não desejava a seu
pior inimigo, era La Chatte. Agora sob custódia da polícia francesa.

As grandes mãos de D se fecharam em punhos dos lados.

Apesar de sua aparência e a gama de armamentos escondidos sob sua jaqueta


negra, Constantine se levantou com graça e sem fazer ruído da cadeira. — D. —
Disse com severidade, a leitura do que era evidente em seu rosto. — Nem sequer
pense nisso.

D estreitou o olhar. Ainda que a maioria de sua espécie fosse bonita até o ponto
de não fazer sentido, Constantine — com o cabelo negro, maçãs do rosto brilhantes
e longos cílios — ofuscava todos eles. No momento, D tinha em mente destruir
este rosto perfeito com um golpe devastador.

—Nem sequer pense em tentar me impedir. — Grunhiu. Deu um passo atrás e


sua cadeira deslizou sobre o chão de tábuas xadrez com um chiado de raspar os
nervos.

—Celian não permitirá. — Respondeu Constantine. Ajustando sutilmente sua


postura e o cálculo em seus olhos indicavam que ele estava concentrado em seu
irmão e companheiro de treinamentos. Não seria a primeira vez que lutavam e era
provável que não fosse a última. — Ela é procurada pelo Conselho de Alfas...

—Foda-se o Conselho! — D gritou. Dois humanos sentados em uma mesa na


parte posterior se levantaram e se dirigiram rapidamente para a porta de trás.
Constantine apertou a mandíbula e lhe lançou um olhar duro, intenso que
drenaria o sangue do rosto de outra pessoa. D, no entanto, não se imutou. Com
voz baixa Constantine disse. — Pense nisso por um minuto. Se a vimos na televisão,
eles a viram também e estão a caminho. Nenhum de nós tem autorização para atuar
nisso, sobretudo você. E sabe o que acontece se desertar, irmão. Irão executá-lo
antes que o Bellatorum mesmo possa piscar. Já viu como são. Não quer estar do
outro lado da caçada.

A caçada. Um grupo de oito dos mais mortíferos caçadores selecionados das


quatro colônias Ikati, encarregados de uma coisa: encontrar a princesa que faltava,
seu irmão e o pequeno grupo leal que desapareceu com ela há três anos e levá-los
ao Conselho.

Para serem interrogados. Para serem eliminados.

O coração de D se encolheu com pesar. — Acha que deixarei que a toquem? —


Grunhiu, arrepiado dos pés à cabeça. — Está louco! Eu irei. Agora. Com ou sem
sua benção. Assim é melhor dar um passo atrás se quer manter a cabeça unida ao
corpo.

Olharam um para o outro em silêncio, dois musculosos e ameaçadores homens


vestidos de negro, ambos iguais e, no entanto, tão diferentes. Mesma altura, mesma
largura dos ombros, o mesmo ar de perigo e olhos negros. Nascidos e criados na
escuridão, eram guerreiros e valentes como tal, orgulhosos e também dispostos a
morrer pelo que acreditavam.

Constantine acreditava no dever. D acreditava no que era muito mais perigoso:


o amor.
—Grande Hórus nos salve. —Constantine finalmente murmurou. — Dos
idiotas apaixonados.

Ainda que duvidasse inclusive que o deus da guerra, cujo símbolo que protegia
todo o Bellatorum estava tatuado em seu ombro esquerdo, poderia fazer D mudar
de ideia quando estava certo. Passou uma mão pelo cabelo e ficou olhando D um
momento mais até que ele balançou a cabeça e suspirou. —Você é um idiota, sabia?

—Não há discussão aqui. — Respondeu D, ainda arrepiado pela ira.

A boca de Constantine se contorceu. Observando seu irmão, pensou na dor dos


últimos anos, ainda que D nunca a tivesse expressado em voz alta. Ironicamente,
com o nome de um antigo orador grego, D ficava dias sem falar nada em absoluto.
Como se a cabeça raspada, as múltiplas tatuagens, os piercings nas sobrancelhas e
o ar de raiva assassina não fosse suficiente, seu silêncio lhe dava um aspecto ainda
mais assustador. Um olhar dele fazia as pessoas correrem.

Constantine via além disso, no entanto. Eles se conheciam desde seu nascimento
e ainda que não fossem irmãos de sangue, eram irmãos em espírito e quando D
perdeu a esperança, Constantine o via pouco a pouco morrer e sentia-se miserável.
Pensou que D a esqueceria com o tempo, mas Eliana e a lembrança dela o
perseguiam como um fantasma.

E agora o fantasma foi capturado pela polícia de Paris.

—No entanto, dois idiotas pensam melhor que um. — Constantine decidiu, a
lealdade ganhando de longe da lógica. — Irei com você.

O corpo de D relaxou um pouco e a tensão saiu de seus ombros. O fato de


terem se enfrentado no passado, não significava que qualquer dos dois queriam
fazê-lo novamente. — Não. Tenho que fazer isso sozinho. —Fez uma pausa. —
Sabe por quê.

Três anos de pena se passou entre eles de uma só vez, o olhar aguçado.

—Não seja idiota! — Disse Constantine.

D encontrou seu olhar de frente, mas não respondeu.

—De verdade vamos fazer isto novamente? Aqui? — Constantine fez um gesto
para indicar ao redor, o bar que desprezava, mas frequentava e não queria lutar ali
com seu melhor amigo e irmão. — Bem, então vamos fazê-lo! Se eu não disparasse
naquele filho da puta, você estaria morto. Todos nós ainda estaríamos vivendo
como escravos. Sua garota teria se casado com algum idiota dos Alfas, o que iria te
matar cada vez que chegasse perto...

—Eu sei. — Interrompeu D. — Salvou minha vida. Salvou a todos nós. Eu sei.

—Mas nunca me perdoará por isso. — Disse Constantine rotundamente.

D fez uma pausa por um elemental segundo. — Odiava aquele bastardo tanto
quando você. Mais até.

Isto era apenas uma evasão e dos dois sabiam. Uns quantos segundos de silêncio
crepitavam entre eles, enquanto todos os demais no bar prestavam muita atenção a
suas bebidas e fingiam não ouvir. Por último, Constantine murmurou um
xingamento. Ele disse. — Vou cobri-lo todo o tempo que puder. Dez, doze horas
no máximo, então Celian irá perceber e enviará os Legiones atrás de você. Mas os
caçadores não esperarão tanto tempo. Provavelmente já estão a caminho. Assim
tenha cuidado. E seja rápido.
Houve um momento em que os dois trocaram um rápido e forte abraço —
golpeando os braços como se fosse a batalha. Mas agora apenas trocaram gestos
rígidos. O excesso de ira e culpa era demais entre eles. Agora, por fim, a verdadeira
batalha começaria.

D virou-se e dirigiu-se à porta.

Depois de apenas uns poucos passos, ele começou a correr.


CAPÍTULO
SETE

Se ela não estivesse ferida, Eliana poderia ter se transformado em pantera e


arrancado a cabeça do oficial de polícia justo ao lado de seu corpo.

Infelizmente, estava ferida. A bala arrancou a pele da perna, então a cabeça teria
que esperar. Ainda que se curasse rapidamente de uma ferida relativamente limpa
como esta, já que a cura era rápida e comum a todos de sua espécie, mas ainda mais
em sua família, porém, uma lesão muito menor era suficiente para prendê-la no
aspecto humano, assim era impossível se transformar. Os problemas mais urgentes
eram, dar pontos em sua perna, conseguir remover as algemas humilhantes, tirar a
camisa que cheirava a suor rançoso e comer algo. Ao ficar de pé, a camisa caiu até
a metade de suas coxas e cobria seu corpo nu. Ao se sentar, no entanto... Deslizando
delicadamente, suas partes femininas estavam a ponto de aparecer.

E o oficial definitivamente percebeu. Ainda o porquê de estar tão interessado


agora era um mistério, posto que a viu completamente nua no museu.

Maldição. Ela sabia que o Louvre era uma má ideia.

O oficial sentado na mesa de frente a ela disse algo em francês. Ela fingiu não
entender, assim passou ao inglês. — Como está a camisa para você, pombinha?
Pombinha? Baratas dos céus? Profundamente insultada, perguntou. — Como
estava a caixa dos donuts que conseguiu manchar toda sua camisa, porco?

Suas bochechas ficaram vermelhas. Ela se alegrou ao ver no canto da sala, outro
oficial apoiado na parede, que bufou.

Havia seis deles. Uniformizados, armados e obviamente sentindo-se muito


satisfeitos consigo mesmos por terem finalmente capturado a infame La Chatte. A
sala de interrogatórios era pequena e fria, carente de qualquer coisa exceto uma
mesa de metal e duas cadeiras, uma pequena câmera montada no alto da parede
sobre a porta. Uma grande janela cobria uma parede e ainda que não soubesse,
assumiu ser de vidro duplo. Seu próprio reflexo zombava dela ali, uma testemunha
de seu primeiro fracasso.

Não importava. Era apenas questão de tempo. Apenas um curto período de


tempo até que se curasse e pudesse se transformar em vapor e deslizar pela porta,
a janela ou algum orifício de ventilação no teto. Apenas tinha que sobreviver tempo
suficiente...

—Nossa pequena gatinha tem garras, certo cavalheiros?

Foi o oficial do canto que falou, sua voz suave e divertida. Ele falava em francês
e ainda que ela fingisse não entender antes, de alguma forma ele sabia que ela
entendia. Ela lançou lhe um olhar de lado, avaliando. Era de bom aspecto, alto e
bem construído com o cabelo castanho grosso e penetrantes olhos verdes que
pareciam não perder nada. Ele a olhava com olhos ávidos agora, ignorando suas
pernas nuas e se concentrando no rosto.
Teria que tomar cuidado com ele. Os homens humanos não tinham os sentidos
aguçados de sua espécie, mas algumas vezes algum lhe surpreendia. Pelo menos era
bom de mira: ele foi quem disparou.

E logo, em um instante, ela o reconheceu. O homem no escritório de Gregor


há uma semana, o que ameaçou...

—Vamos tentar novamente. — Disse o primeiro oficial sentado na frente dela,


do qual usava a camisa. Ela voltou sua atenção a ele. Era mais baixo e mais
rechonchudo que o restante deles, com os antebraços peludos e o que apenas
poderia ser descrito como olhos de um tubarão morto. Negros e planos, perfuravam
como facas. —Pelo bem de todos, vou prescindir da merda toda. — Fez uma pausa,
evidentemente para efeito dramático. — Sabemos tudo. — Disse.

Eliana estreitou os olhos. Esperando.

—Tudo. — Repetiu com mais força, inclinando-se para frente na mesa. Por
baixo dos punhos enrolados da camisa, o dorso das mãos gordas, estavam úmidas
de suor. — Sabemos exatamente o que é... e exatamente o que esteve fazendo.

—Entendo. — Disse ela, fingindo uma calma que definitivamente não sentia.
Seu coração batia tão forte no peito, que pensava que deveriam ser capazes de ouvir.
— Devo estar em sérios problemas.

Seus olhos de tubarão se estreitaram. Não gostava de ser objeto de zombaria.

—Por uma questão de fato, está. — Seu tom caiu. — Mas se cooperar, pode
ganhar um pouco de indulgência no tempo de condenação.
Eliana resistiu à tentação de responder com um comentário fulminante sobre
que a gordura e restos de rosquinhas não a intimidavam. Deusa Bastet15, orou em
silêncio, sorrindo ao oficial, por favor envie uma praga a este homem. De preferência uma
bactéria carnívora.

Segurando seu olhar, murmurou. — Oh, gostaria de cooperar. A cooperação é


uma de minhas coisas favoritas, sobretudo quando é alguém como você. Alguém
tão inteligente. E assim obviamente... — Olhou os braços roliços e seu sorriso ficou
levemente irônico. — Forte.

Ele piscou rapidamente e o rubor nas bochechas aumentou. Como um pavão


real, inchou o peito e precisou se conter novamente, desta vez de rodar os olhos.

Ela nunca entenderia o ego de um homem. Era o tendão de Aquiles universal.

—Mas gostaria de fazer uma pergunta antes de começar. — Sentia a atenção do


oficial no canto com a mesma facilidade que viu o gordinho diante dela ao lamber
os lábios.

—Er... ah... sim. — Gaguejou e logo limpou a garganta. — O que é?

Ela inclinou a cabeça para a esquerda. — Na verdade não tem nenhuma prova
contra mim, certo?

Ficou ali no silêncio que se seguiu, reverberando como um tambor. Para seu
crédito, os homens ao redor da sala não reagiram, nenhum músculo se moveu, mas
ela provou a repentina irritação como um timbre metálico no ar e tinha toda a
confirmação que precisava.

15 Na mitologia egípcia é uma divindade solar e deusa da fertilidade, além de protetora das mulheres. Palavra grega para
“gato”.
—Não há vídeo de vigilância, não há impressões digitais, não há testemunhas.
Nada. — Disse em voz baixa.

—Pega em flagrante no Louvre, pombinha. — O rosto do agente gordinho


voltou a ruborizar. Piscava rapidamente como um pássaro bebê gordo. —Tentando
roubar uma peça de arte famosa. Temos todas as provas que precisamos para deixá-
la presa por um tempo muito longo. Échec et mat16.

Xeque-mate? Era evidente que ele não jogava xadrez. Ela, no entanto, jogava e
bem. Seu pai lhe ensinou quando tinha doze anos, lhe disse que grandes generais e
estrategistas militares da história usaram as habilidades aprendidas no xadrez para
ganhar uma guerra? Sempre manter a meta em mente, ter um plano, mas manter-se
flexível, pensar em ao menos três movimento a frente, proteger seus ativos e por
último, mas o mais importante, não confiar em suas emoções, porque elas
enganavam.

Aprendeu a lição final da maneira mais difícil. A maneira mais difícil de todas.

Seu olhar se dirigiu ao homem bonito, de olhos verdes no canto. Não estava
sorrindo. De fato, seu rosto estava sombrio e sua boca se reduziu a uma linha
sombria, branca.

—Como sabem que eu estava tentando roubar uma pintura? — Perguntou. —


Talvez apenas fiquei presa dentro do museu quando fechou.

—Nua? — Olhos verdes interrompeu ríspido.

16 Xeque-mate, em Francês.
—Porque desmaiei no banheiro feminino e não acordei até que as luzes se
apagaram e todos se foram e em meu estado de pânico a me ver sozinha na
escuridão fiquei dando voltas pelo museu tentando encontrar uma forma de sair.

—Nua? — Repetiu, ainda mais ríspido.

Ela encolheu os ombros. — Algumas pessoas choram quando se assustam. Eu


fico...

—Nua. — Terminou e agora soava como se realmente quisesse romper algo.

Ela sorriu para ele, uma curva triste nos lábios. — Exatamente. É uma doença.
Talvez estivesse tentando encontrar uma saída e o grande e escuro museu me deu
medo, já que são mais de setenta mil metros quadrados, sabe, é muito, sobretudo
na escuridão e terminei diante de um Degas e me distraí por um minuto de meu
medo extremo e desorientação e fiquei ali admirando-o.

—Com as mãos no quadro. — Interrompeu o rechonchudo em voz alta,


incrédulo. — Estava tentando levantá-lo da parede!

Eliana o olhou. —Nunca toquei na pintura.

Ele fez um som como se estivesse sufocando com algo e apontou com a mão
para indicar aos demais. — Nós vimos! Tinha as mãos na pintura.

—Estava muito escuro ali. Talvez seus olhos te enganaram. Conseguiu


impressões digitais?

Ninguém disse nada. Um dos que estavam ali, mudou o peso de um pé para
outro.
—Não? Bom, não se incomode. Devido a que, infelizmente, não encontrará
nenhuma.

Eles não encontrariam, porque não podia. Intangibilidade na sombra lhe


permitia tocar sem ser detectada, sem deixar impressões digitais... Ela era tão
invisível como o ar.

Nas sombras, queria dizer. Quando focalizada pelas lanternas que o


rechonchudo e os guardas carregavam, aparecia claramente.

Ouviu falar disso apenas uma vez antes. Sua bisavó por parte de mãe era também
uma sombra caminhante e uma ladra consumada. Ali era onde terminava as
similaridades, no entanto, segundo a história, sua bisavó roubava as joias de outros
ladrões. Dizia-se que levava grande parte de seu motim roubado.

Olhos verdes foram diretamente a ela. — Gosta de jogar, certo?

Era uma afirmação, não uma pergunta. Sob o tom suave de sua voz, sentiu o
desafio e também percebeu uma sombria excitação crescendo.

Segurando seu olhar, ela se inclinou para trás na cadeira e cruzou as pernas. A
camisa subiu ainda mais nas coxas nuas e o quente olhar piscou para suas pernas.
Quando seu olhar viajou de volta a seu rosto, estava brilhante e vermelho.

Este olhar moveu algo nela. Uma antiga lembrança brilhou em sua mente, belos
olhos escuros que a olhavam com o mesmo desejo febril. Ela anulou rapidamente,
antes de sair à superfície.

As lembranças daqueles olhos e a quem pertenciam era ainda mais perigosos


que ser capturada pelos seres humanos.
—Gosto de fazer todo tipo de coisas. — Respondeu ela, olhando fixamente
sem sorrir. — O que tem em mente?

Ficou rígido. Suas fossas nasais se abriram. Ao julgar pelo amargo cheiro que de
repente impregnou o ar, ela realmente o irritou. Em um rápido movimento, saiu da
parede. —Todos para fora. — Disse. Cruzou os braços sobre o peito e ficou
olhando fixamente, seu rosto duro como granito.

—Édoard. — O rechonchudo protestou, virando-se para ele com o cenho


franzido, mas Olhos verdes lhe cortou com um olhar tão duro que fechou a boca e
se levantou com rigidez da cadeira.

—Vous avez l’entendu17. —O rechonchudo se levantou e chamou os quatros


agentes de pé e um a um passou pela porta. Ele fechou a porta atrás de si mesmo,
deixando-a sozinha com o imprevisível e agitado Édoard.

Olharam um para o outro pelo que pareceu uma hora. O único som era o
sussurro do ar através de um orifício de ventilação no teto. Um músculo de seu
bíceps começou a dar câimbras e se contrair e ela desejava esticar os braços sobre
a cabeça e massagear. Mas, claro, as algemas a impediam.

Logo, depois do tenso silêncio ele disse. — O que você é?

Não quem, mas o que. Surpresa ela piscou. — Como?

—Já me ouviu. — Disse, sem se mover. Olhou-a, realmente a avaliava, como se


tentasse deslizar dentro de seu corpo usando apenas seus olhos. Era desconcertante.
Ela sabia que não era o frio na sala que fazia sua pele se arrepiar.

17 Vocês já ouviram, em Francês.


—O que tenho é fome, dor e não estou com ânimo para jogos de palavras. —
Disse rotundamente, tentando manter a aguda preocupação fora de sua voz. O que
era?

Ele se limitou a olhá-la.

Seu olhar afastou-se dele e caiu na pequena câmera sobre a porta. Não havia
sombras na sala iluminada fortemente, então com certeza apareceria no vídeo.

Ao ver a direção de seu olhar, Édoard se virou, aproximou-se da porta, levantou


a mão e acionou o interruptor ao lado da lente. Uma pequena luz vermelha sob a
câmera se apagou.

Suas sobrancelhas se ergueram.

Virou-se para ela com o intenso olhar verde e se apoiou no encosto da cadeira,
na qual seu companheiro gordinho se sentou, com os nós dos dedos brancos
quando agarrou o material curvo. Sob o resplendor das luzes fluorescentes, seu
cabelo castanho brilhava de uma linda cor bronze.

—Você é diferente. — Acusou, surpreendendo-a novamente. — Tudo em você


é diferente. — Continuou, sua voz se suavizou com o sotaque francês. Seu olhar a
percorreu. — Seu rosto, a forma como se move. Inclusive a forma como está
sentada nessa cadeira olhando para mim, parece diferente de qualquer pessoa que
alguma vez sentou aí antes. Estou neste trabalho a muito tempo, belle fille e nunca vi
nada como você.

Belle fille. Garota bonita. Isto fez um buraco em seu peito, onde seu coração
estava antes. Há muito tempo, muito mesmo que ninguém a chamava de bonita.
—É um interrogatório ou está tentando me convidar para um encontro? —
Disse com frieza.

Seu rosto endureceu. Endireitou-se e cruzou os braços sobre o amplo peito. —


Entrevista. — Disse, olhando para ela. —Chama-se entrevista. Se fosse um
interrogatório, teria dor envolvida.

—Há dor em questão. — Ela se inclinou de lado e puxou a atadura, logo dobrou
os braços para dar-lhe uma boa vista das algemas atrás de suas costas, os pulsos
vermelhos e irritados em seu interior. Apenas para provocá-lo, disse. — E meu
traseiro nu está congelando nesta cadeira.

Uma vez mais, não mordeu o anzol. Sua boca se franziu simplesmente como
houvesse chupado um limão. — Tem sorte por Jean-Luc ter-lhe dado sua camisa.
Eu a teria trago nua como a encontramos e seu traseiro nu seria a capa do Le
Monde.

Eliana ruborizou. — Encantador. — Murmurou. Ela se incorporou e


endireitou-se na cadeira para que seu cóccix não ficasse contra o assento frio. Todo
seu traseiro estava dormente. E sua perna latejava. Quando se encontrasse com
Caesar novamente, iria matá-lo.

—É a única que gosta de ficar nua. E pode ser grosseiro, mas não sou estúpido.
— Ele respondeu. Algo estranho deslizou em sua voz e levantou os olhos para
encontrar seu olhar sem piscar.

—Eu sei o que você é, belle fille. — Disse com os olhos brilhantes. — Sei como
você pensa. Estive estudando La Chatte durante anos. Vou admitir que se converteu
em uma obsessão para mim. Um ladrão que eludiu todos os sistemas de segurança,
que nunca se ativavam, que entrava e saía de edifícios fechados, salas e cofres como
um fantasma? Impossível. Deixou-nos como um montão de idiotas incompetentes.
Deixou-me como um tolo. Todos aqueles ricos, as pessoas importantes gritando e
não havia um rastro seu. Assim, estudei seu padrão, o que usou, os momentos
específicos, as datas e os lugares dos crimes. E descobri algo.

Eliana esperava, uma crescente onda de medo em seu estômago.

—Inclusive os fantasmas ficam entediados.

Sorriu e a curva predadora dos lábios enviou um arrepio de temor ao longo de


cada terminação nervosa.

—Todo roubo era mais atrevido que o anterior, um pouco mais difícil. —
Continuou. — Ou estava ficando desesperada, o que não parece provável, já que
não estava sob nossos holofotes ou precisava de um desafio. Eu previ que Le Chatte
iria se cansar da caça furtiva a velhas cabras e ir por algo maior. Sabia que um dia
golpearia o Louvre. E porque, como adivinhou, nunca conseguimos capturá-la em
vídeo para prendê-la, pedi uma câmera especial de alta tecnologia, desenhada por
velhos amigos do exército dos EUA. Custou os olhos da cara também e era tudo
muito secreto, mas consegui autorização do próprio Primeiro Ministro. Devido a
isso, belle fille, você está no topo de sua lista negra.

Câmeras? Câmeras especiais? Não podia ser vista em câmeras...

—Ele ainda guardando rancor pelo Picasso que roubou de sua casa enquanto
ele estava dormindo. — Édoard continuou em um tom de cumplicidade, como se
fossem dois amigos conversando em uma festa. — De fato, ele nos deu carta branca
para fazer o que fosse necessário para recuperá-los, junto com o restante daqueles
que roubou, alguns dos quais eram seus amigos pessoais. Tudo o que fosse
necessário, em particular, recorrer ao interrogatório que tão casualmente
mencionou antes. No qual, por certo, sou bem qualificado para fazer, por ter
servido antes como interrogador, nos meus dez anos na unidade antiterrorismo nos
Boinas Verdes.

Um interrogador dos Boinas Verdes. Câmeras de alta tecnologia. Havia várias


coisas que fizeram sentido e o fogo lento em seu sangue se elevou a ebulição escura,
violenta. O estômago revirou.

No último momento acrescentou. — Sabia que a palavra tortura vem da palavra


francesa “torcer”?

Seus lábios se curvaram em um sorriso escuro, triunfante e ela ficou fria como
gelo.

—Está blefando. — Disse ela com o pulso acelerado. — Não pode colocar um
dedo sobre mim. Há leis contra isso e o mundo inteiro viu minha prisão.

—Não irei entrar em detalhes de como as câmeras trabalham, mas as imagens


são muito interessantes, para dizer no mínimo. — Interrompeu ele, como se ela não
houvesse falado. Descruzou os braços e colocou a cadeira na frente dela e logo se
sentou com graça e sem pressa, cruzou uma perna sobre a outra e as mãos em seu
colo. —Você não está curiosa sobre como um museu de setenta metros quadrados
como tão amavelmente apontou, sabíamos exatamente onde encontrar uma mulher
invisível?

Ela não respondeu. Um fio frio de suor rodou por seu pescoço.
—Assim vou perguntar novamente. — Sem deixar de sorrir, ele a olhava com
seus olhos verdes brilhantes. — E pedirei uma vez mais, antes que a entregue a um
medecin18. E não será pela perna ferida, querida. O bom médico fará alguns
experimentos.

Destacou cuidadosamente cada palavra seguinte falada. — O. Que. Você. É?

Horror apertou suas garras afiadas, congelando ao redor da garganta. Ficou


sentada ali como uma estátua, incapaz de responder, incapaz sequer de piscar.

Um médico. Interrogatório. Experimentos.

Oh Deus.

18 Médico, em Francês.
CAPÍTULO
OITO

D fez uma viagem de treze horas de Roma a Paris em menos de dez.

Teria ido muito mais rápido com a Ducati, mas seu plano implicava explosivos
pesados, o que ocupava muito espaço, sobretudo como o que tinha em mente.
Assim a moto estava fora, deixada para trás em seu lugar habitual na garagem não
muito longe da igreja abandonada e a entrada das catacumbas onde ele e os demais
membros da colônia romana viviam.

Onde Eliana antes costumava viver, até que tudo fugiu do controle.

O Ranger Rover rugia — escuro e sinistro, assim como seu estado de ânimo —
pertencia a um grupo de assassinos Ikati que foram expulsos da colônia no Brasil,
com o nome de O Sindicato. Os líderes paranoicos das quatro colônias que
formavam o Conselho de Alfas nunca deixavam nada ao azar, assim tão logo o
Sindicato saiu da linha há três anos, a caçada começou.

Devido a que pagava assassinos para eliminar desertores inevitáveis que não
podiam viver pela regra mais inviolável da lei Ikati: manter segredo. Em segundo
lugar somente a lealdade, o segredo era de suma importância para a sobrevivência
de todos eles. Agora mais do que nunca.
E sua Eliana — além de ser a filha do líder morto dos Expurgari, antigos inimigos
dos Ikati e a nova chefe da organização, violou esta regra de ferro sobre o segredo
de uma forma realmente espetacular, tornou-se inimiga número um do Conselho.

E deixando D desesperado.

Se os caçadores chegassem antes que ele...

Agarrou o volante mais forte e pisou no acelerador até o fundo. A SUV


estremeceu adiante, rugindo pelas ruas vazias, chegando em Paris antes do
amanhecer.

No mesmo momento, seis homens vestidos exatamente iguais, em ternos


escuros sob medida e óculos escuros aviador, desceram do trem Eurostar na estação
Gare du Nord, no centro de Paris e sem falar um com o outro, passaram pela
plataforma cheia de gente e através das portas automáticas de vidro até dois Audi
negros elegantes esperando na calçada.

Os seis se dividiram em dois grupos de três. Todos entraram por trás no carro,
um com uma escopeta na mão. O motorista de cada carro estava vestido idêntico
aos recém-chegados.

—Dezessete minutos. Travar e carregar. — E apontou com a cabeça para a


caixa de ferro inoxidável no meio do assento traseiro.

Ambos os carros tinham placas do governo e assim tinham permissão para


estacionar em local proibido. Se algum policial passasse, poderia verificar as placas
e encontrar os carros registrados no nome de Pierre Nettoyeur, médico francês de
alto nível do Serviço de Saúde da Defesa, o médico pessoal do Ministro da Defesa.
Monsieur Nettoyeur era, claro, uma ficção. Como os outros manipulados pelo
Conselho de Alfas, que existiam de forma exclusivamente virtual conforme a
conveniência. A liderança Ikati às vezes precisava viajar e ocasionalmente, se via
obrigada a fazê-lo de forma rápida e muito próximo dos humanos que permaneciam
ignorantes de sua existência.

A maioria ignorava, se poderia dizer. Aconteceu um incidente há uns anos que


envolveu uma discoteca, uma disputa de território e uma testemunha com celular,
mas apesar do vídeo em particular ter chegado aos noticiários noturnos, foi
descartado como falso. E todas as testemunhas do clube foram apontadas como
bêbados em busca de fama.

Ao menos publicamente. Houve alguns que não acreditaram assim tão


facilmente.

Nettoyeur era uma fantasia — significava “limpeza” em francês e “grande


limpeza” e certos círculos como os quais os oito cavalheiros no Audi se moviam
quando se referia a um assassino, especificamente um contratado para lidar uma
situação ruim para que tivesse uma solução permanente, mas esta missão tinha um
propósito mais prático.

Se parados pela polícia, o motorista poderia explicar porque carregava


tranquilizantes e armas perigosas e em tal quantidade. Monsieur Nettoyeur se
reportava diretamente a um militar na França e tinha todos os documentos para
provar isto.
A documentação estava em ordem, identidades falsas foram assumidas, a viagem
providenciada e todos os planos muito cuidadosamente elaborados. E agora os
caçadores chegaram em Paris.

Em menos de uma hora, Eliana Cardinalis seria capturada ou morta.


CAPÍTULO
NOVE

Havia um rato dentro de seu crânio.

Um irritado e faminto rato, com a intenção de devorar toda matéria cinza que
poderia antes dela arrancar seus próprios olhos para chegar a ele. Eliana precisava
acabar com ele, tinha que matá-lo logo porque a agonia, oh deuses, era a agonia.

—Cento e cinquenta mil, Édoard. — Disse uma voz masculina com calma, com
um forte sotaque alemão. A voz estava em algum lugar muito perto, mas também
muito, muito longe. Ouviu o movimento, o tecido, sapatos fazendo click no azulejo,
cheirava o fresco aroma de chuva no ar, uma tempestade do lado de fora por horas.
E algum lugar no prédio uma janela estava quebrada e o ar doce entrava.

Mas não ali, onde queria que entrasse. Neste caso, o ar era quente e cheirava a
morte.

O rato de verdade odiava isso. Mordeu o cérebro com mais vontade do que
antes. Lagrimejando, arranhando, olhos pequenos e brilhantes de cor vermelha
como sangue.

—Canino? — Disse outra voz, quase com sorte.


O rato levantou a cabeça e silvou. Sim gostava deste alto-falante tanto quanto
ela. Édoard, de quem se lembrava além da dor, Édoard era seu nome. Cabelo
bonito, belos olhos... o coração como pedra.

—Morcego, na verdade. — Murmurou a primeira voz, surpreso. — Audição


elevada. Extraordinário.

—Muito bem, grave e termine. Usaremos o UV e veremos o que acontece.


Temos que passar pelo corredor, no entanto. E onde porra está a documentação de
transferência? Precisava dela há uma hora. — Édoard murmurou irritado.

—Paciência. — Seu amigo respondeu com calma. —Ela não irá a nenhuma
parte.

Logo houve outro leve click e todos ratos raivosos desapareceram, a dor em seu
crânio se acalmou e a sala, os fios e o branco nadou no foco enquanto piscava para
abrir os olhos.

—Você está bem, liebe19? — Disse um homem alto, vestido de branco, de óculos
com olhos azuis gelo. Ele era de uma idade indeterminada em algum lugar entre
quarenta e sessenta, cheirava de cigarros, e parecia branda como aveia. Ele a olhou
por cima dos óculos e sorriu, alegremente benigno.

A epitome do mal. Eliana ouviu alguém descrever uma vez o fenômeno pelos
quais os atos mais verdadeiramente terríveis realizados pelos fanáticos ou
sociopatas, são cometidos por pessoas comuns que aceitavam atrocidades como
“normais”. O holocausto, a experimentação com animais, o genocídio e a pena
capital e guerra.

19 Querido(a), em Alemão
Tortura.

Era o homem do escritório de Gregor, o Agente Doe. O que ela advertiu ser
perigoso no dia que chegou a Cézanne e ele estava entretendo a polícia. Ela sabia
que seria um problema.

—Espero que você queime no inferno. — Disse ao médico de olhos frios, sua
voz extremamente rouca. Então se lembrou: esteve gritando. Durante muito tempo,
evidentemente, porque sua garganta se sentia crua como se estivesse em carne viva.

O médico riu entre dentes, impressionado com a tentativa de valentia. Atrás


dela, Édoard soltou outro bufo familiar. — Tem garras a gatinha. Boas garras.

Caminhava casualmente ao redor de sua cadeira de rodas, estava presa a uma


cadeira de rodas, quando isso aconteceu? Ele ficou de pé ao lado do médico. A
mesa ao lado deles tinha um pequeno dispositivo eletrônico com fios e mostradores
de leitura digital com números piscando em azul contra a tela negra. Um dispositivo
do tamanho de um forno micro-ondas, que deveria ser a fonte de alimentação para
a dor insuportável em seu crânio.

Esta era outra sala, estéril como a primeira, mas maior e cheia de uma variedade
de equipamentos eletrônicos de aspecto estranho de todos os tamanhos e variedade.
Tubos de ensaio, dispositivos de gravação, alguns instrumentos de aço inoxidável
sobre um pano em um painel de metal longo debaixo de uma tela de vidro. Parecia
menos com uma sala de interrogatório em uma delegacia de polícia e mais como o
laboratório de Frankenstein.

Sua memória estava nublada. Ela assumiu que foi injetada com algo porque a
veia do braço esquerdo estava queimando e havia uma sensação pesada em suas
extremidades que nunca experimentou antes. Vagamente, se lembrou de uma luta,
lembrou-se de quebrar a mandíbula de uma pessoa com um forte chute na cabeça
e derrubar outros dois com dois chutes entre as pernas antes de ser dominada por
seis homens armados com cassetetes. Isso era tudo o que lembrava, até agora.

Édoard riu, um som mau e levantou o olhar para ele. Ele lhe devolveu o olhar
com o tipo de expressão que costumava aparecer no rosto de novos pais e
ganhadores da loteria. Fervoroso. Jubiloso.

Neste momento, ela sentiu mais medo do que nunca sentiu na vida.

—O que fará comigo? — Perguntou ela, escondendo o medo sob seu tom
glacial. Ele não respondeu, mas seu sorriso se ampliou.

Neste momento, sem aviso, a sala ficou escura.

—Jean-Luc! — Gritou. Sua voz fez eco nas paredes de pedra, sumindo no
silêncio. — Henri!

Nada. O corredor estava silencioso como um cemitério. Ainda porque se


esperava uma resposta em absoluto era um mistério, o prédio era enorme e se
saíram de perto da sala de interrogatório original, estavam profundamente dentro
dele. A esta hora, ela sentia que estava perto da madrugada, como sempre a esta
hora estava quase tudo deserto.

Chegou um ruído surdo que estremeceu as paredes e logo um barulho de porta


se abrindo e mostrando as luzes de emergência que se alinhavam de ambos os lados
do corredor se acenderam. Não eram estáveis, no entanto, algumas estavam
queimadas e o corredor tinha um ar estranho e extremamente raro. Dentro da sala,
todo equipamento elétrico sinistro se apagou.
—Vamos sair daqui. — Disse um Édoard satisfeito, caminhando de volta à sala
nas sombras. — Apenas uma pequena queda. Não o suficiente para impedir nosso
trabalho, certo gatinha? — Ela o observou enquanto passava por ela, sorrindo e
depois se posicionando atrás da cadeira de rodas. Com um leve golpe, soltou o freio
e a cadeira começou a deslizar pelo chão. — Ou ao menos, não por muito tempo.
Agente Doe abra a porta. — Disse ao médico, que não perdeu tempo ao abrir a
porta para que os três pudessem passar.

E logo, no instante que entraram no corredor, ela sentiu isso.

Correção: ele. Ela o sentiu e o ar ficou quente.

Demetrius.

O calor queimou com uma intensidade elétrica e uma corrente de perigo, ela o
reconheceria em qualquer lugar. Ele finalmente a encontrou.

E agora, como aconteceu em cada pesadelo que teve nos últimos três anos,
como Silas advertiu uma e outra vez, tentaria matá-la.

Cada célula de seu corpo explodiu, gritando em alerta.

—Tire-me daqui! — Gritou ela, movendo os pulsos e os tornozelos presos. Seu


coração estava acelerado, seu sangue fervia, os músculos se apertaram. Ela tinha
que fugir, tinha que escapar, agora, agora, agora, AGORA....

—Oh é verdade, tem medo do escuro? —Disse um muito tranquilo Édoard,


sarcasmo pingando de sua voz. Não perdeu o passo, apenas continuou empurrando
a cadeira de rodas a um ritmo lento pelo corredor assustador enquanto ela resistia
violentamente. Uma das rodas não estava com óleo e fazia um chiado resistente que
ecoava pelas paredes frias de pedra e se rompia em um milhão de chiados mais
leves, um coro de gritos horríveis, não humanos que pareciam dizer: Você vai morrer!
Você vai morrer!

Lutou com mais força. Apesar de estar ainda fraca e um pouco tonta pelo que
injetaram, uma das correias no tornozelo rompeu o fecho de metal.

Atrás dela, Édoard amaldiçoou e gritou. —Pare, Doe!

Mas antes que o médico pudesse reagir, um trovão sacudiu o prédio até os
cimentos. Uma parte completa da parede de pedra lisa do outro lado do corredor
cavernoso explodiu com uma onda de choque e ar quente que deixou a cadeira de
rodas de lado com Eliana nela e tanto Édoard quanto o médico aos seus pés.

Sua cabeça bateu no chão.

Fogos de artifícios explodiram em sua visão.

Ouviu gritos, sentiu o cheiro de fumaça e tecido queimado, sentiu o chão tremer
com outro trovão que fez o prédio estremecer, mas o som pareceu viajar a seus
ouvidos lentamente, distorcidos como se viessem de muito longe ou sob a água. De
fato, tudo ficou lento até quase parar. Ela levantou a cabeça, piscando através de
uma neblina turva de pó e viu o médico a uns poucos passos de distância, caído no
chão em uma piscina vermelha sob a cabeça. Ele se contorcia de forma grotesca, a
boca aberta em um grito silencioso. Tinha um olho aberto também, mas do outro
saía um pedaço de metal. Seus óculos quebrados estavam pendurados em sua
orelha.

Édoard gritou algo atrás dela que não pode distinguir porque houve outra
explosão ensurdecedora, em algum lugar perto, mas fora da vista. Com um gemido,
grande parte do teto caiu em um montão de escombros no chão a menos de um
metro de distância e enviou outra onda de pó asfixiante em seu rosto. Suas orelhas
doeram. Ela tossiu e cuspiu, lutando contra as correias, tentando empurrar a cadeira
de rodas mais perto da parede com o pé livre. Um emaranhado de fios elétricos
negros estavam pendurados no enorme buraco no teto e rangia como se quisesse
despertar um ninho de serpentes nervosas.

As luzes de emergência no corredor se apagaram e logo voltou, piscando


intermitente como se fossem se apagar por completo a qualquer momento. Uma
sirene começou a tocar.

E apesar de tudo, a pulsação de Demetrius parecia um tambor contra sua pele,


mais forte a cada segundo.

Levante-se! Gritou para si mesma. Fora daqui ou irá morrer!

Ela não queria morrer. Assim que, com a força emprestada pela fúria e o medo,
Eliana rompeu a correia ao redor do pulso direito.

Ofegando, levantou a mão e tentou soltar o outro pulso, com dedos trêmulos
trabalhou para abrir a fivela. Ela conseguiu apenas quando um choque terrível de
eletricidade a golpeou e soube com certeza que Demetrius não estava sozinho.
Havia mais seis não, oito Ikati com ele.

Ela lutou para se sentar de lado e trabalhou a correia no tornozelo, inclinou-se


quase na metade da cintura, segurando a si mesma com um cotovelo. O pó cobria
seu nariz e os cílios, fazendo com que fosse difícil respirar e ver. A correia se soltou
e ela saiu depressa da cadeira virada, sobre suas mãos e joelhos, raspando as palmas
das mãos e os joelhos em pedaços afiados de azulejos que cobriam o chão. Deu a
volta e viu Édoard, desorientado, cambaleando até ela com as mãos estendidas. Ele
estava dizendo algo, sabia porque sua boca se movia, mas seus ouvidos estavam
ruins e tudo o que ouvia era um zumbido doloroso e agudo que fazia seus olhos
lacrimejarem.

Olhou atrás dele e seu coração quase parou no peito.

Ali, no final do longo corredor havia uma figura descomunal escura,


impossivelmente enorme, o rosto na sombra, recortado pela luz amarela fraca das
lâmpadas de emergência atrás dele. Com as pernas abertas e as mãos flexionadas
dos lados, enorme, musculoso quase por completo, bloqueando a porta aberta do
corredor de onde veio. Ainda envolvido pelas sombras e fumaça, os detalhes
aterradores surgiam.

Cabeça raspada. Um brilho de prata na sobrancelha. Olhos negros que


mostravam sua alma mais negra ainda.

Seu animal gritava procurando uma forma de sair dela, rasgar sua garganta, tirar
sua vida. Por instinto, ela deu passo para trás e seu calcanhar prendeu-se em uma
pedra. Ela caiu em movimento lento, sem deixar de gritar, agitando as mãos e
aterrissou forte, os dentes batendo e tirando todo o ar de seus pulmões.

O tempo e os movimentos que desaceleraram a apenas uns momentos antes, de


repente acelerou e tudo pareceu acontecer de uma vez.

Édoard, ao vê-la se afastar, mas pensando que era dele, se lançou adiante com
um grunhido estranho e animal. Antes que pudesse colocar um dedo nela, foi
puxada para trás a um lado e contra uma parede aberta batendo com tanta força
que pulou e caiu de com a boca para baixo no chão, onde deslizou até a parede
oposta.

Demetrius abaixou o olhar para ela com tanta fúria selvagem em sua expressão
que a congelou no lugar como um rato olhando uma serpente. Agachou, devagar,
mas logo levantou a cabeça, seus olhos concentrados em algo atrás dela e um
grunhido retumbou em seu peito fazendo-a se arrepiar.

Mais rápido que seus olhos puderam seguir, passou junto a ela como um borrão
negro. Deu a volta sobre o estômago e levantou-se sobre os cotovelos a tempo de
ver figuras escuras aparecendo através do pó que se assentava no extremo do
corredor, passando pelos fios elétricos emaranhados e os escombros da parede
destruída.

Sua equipe.

Em um movimento ágil, a velocidade do raio, ela ficou de pé, virou-se e


começou a correr na direção oposta, para a porta aberta, pensando apenas na saída,
fogo líquido percorrendo suas veias e sua visão ficou vermelha focando na luz no
final do corredor.

Nos segundos que se seguiram, ela ouviu justo sob o zumbido do alarme e de
seus ouvidos surdos um click de uma pistola automática com silenciador. Logo
outra. Uma bala passou roçando sua cabeça com um cheiro acre de pólvora e bateu
na parede de pedra perfurando-a e criando uma nuvem de fumaça. Ela moveu-se
para a esquerda, logo para a direita, tentando desesperadamente ser um alvo incerto,
mas outra bala passou perto, logo outra e antes que pudesse mover-se novamente,
uma delas encontrou sua carne no quadril.
Eliana caiu de joelhos gritando. Havia um ruído diferente atrás dela agora, um
grunhido distorcido e horrível, cruel e selvagem, como um predador faminto
rasgando a comida, mas não se virou e olhou, mas não ficaria ali quieta. Ela ficou
de pé novamente, a dor chicoteando furiosa abaixo em suas pernas e começou a
arrastar a perna lesionada para frente.

Assim que chegou ao final do corredor, algo pesado golpeou atrás.

Cambaleou, mas não caiu, porque estava presa.

E mantinha-se pulsando. Foi virada por duas mãos enormes, apertadas ao redor
de seus braços.

Eliana ficou olhando nos olhos de Demetrius. Negros e selvagens queimavam-


na com raiva e sabia que este era seu final. Preparou-se para isso, rígida e pronta
para sentir a faca em seu pescoço ou nas costelas, até o cano de uma arma na boca.

E então um pensamento cruzou sua mente, com clareza traiçoeira.

Lembro-me exatamente do seu gosto.

Então o homem que matou seu pai se aproximou mais e grunhiu. — Peguei
você!
CAPÍTULO
DEZ

Como estava fazendo durante a última hora, Leander ficou de pé, imóvel e em
silêncio, olhando pelas janelas altas da Biblioteca. Rodeadas por pesadas cortinas de
seda envoltas em borlas, ofereciam uma vista espetacular da extensão verde dos
gramados, das árvores bem aparadas, uma fonte de mármore com um Tritão no
meio dos jardins. Muito além dos limites de Sommerley a linha escura do bosque
começava, colinas densas com pinheiros e que se estendia a frente. Estava um dia
lindo hoje, quente e ensolarado, o ar perfumado suavemente com lavandas e rodas
do jardim plantadas sob sua janela. O céu estava perfeito e sem nuvens, um falcão
branco se destaca contra ele, movendo-se rapidamente.

Estava ainda alto, mas cada vez mais perto. A impaciência apertou seu
estômago. Olhou o relógio.

Dez minutos. Talvez vinte.

A menos que mudou de ideia. Seus lábios se levantaram em um sorriso irônico.


Sempre existia a possibilidade de ela mudar de ideia. Ele juntou as mãos nas costas
e levantou os olhos novamente, cedendo a paciência de quem estava acostumado a
esperar.

Atrás dele uma voz lacônica disse. — Temos um problema.


Leander se virou. Seu irmão mais novo, Christian estava na porta aberta. Seu
segundo em autoridade depois dele, o Alfa da colona inglesa e o cabeça do Conselho
dos Alfas — Christian era também seu irmão e confidente. Conhecia todos seus
segredos, frequentava todas as reuniões, fazia comentários e comandava. Durante
os últimos três anos, mostrou um valor incalculável à tribo enquanto se esforçava
para se adaptar aos choques assombrosos de descobrir uma nova colônia em Roma,
descobrindo que seu líder era um antigo inimigo — o Expurgari — era de fato um
de sua própria espécie e finalmente, descobrir que foi assassinado, mas não antes
de seus dois filhos fugirem com um grupo de rebeldes. Razão pela qual a maioria
da sua tribo foi movida para a colônia no Brasil. Era a única colônia que Expurgari
ainda não havia descoberto.

Apenas poucos ficaram em Sommerley. Jenna — Eu nunca mais irei me esconder


novamente — ficou com Leander.

Christian era conhecido como aquele que consertava coisas erradas. Um


solucionador de problemas. De modo que sua linha de julgamento era um pouco
preocupante. Como sua postura: tensa como uma corda violino, como se fosse
romper a qualquer momento.

—Um problema? — Repetiu Leander. — Qual?

Christian passou a mão pelo cabelo escuro. Um hábito inconsciente, Leander


sabia e um que significava que estava tentando escolher cuidadosamente suas
palavras.

—Christian. — Leander disse no silêncio, de forma imperativa.

—A princesa desaparecida da colônia de Roma foi capturada! — Disse.


O alívio que percorreu Leander foi doce e surpreendentemente intenso. Não
percebeu até este momento o muito que temia este momento, quando alguém viria
lhe dizer que um dos filhos rebeldes do líder morto do Expurgari fez algo terrível,
acabou com toda uma colônia, assassinou mulheres e crianças dormindo. Ele não
era um homem religioso, mas quase fez o sinal da cruz.

—Graças a Deus.

Aproximou-se do aparador de cerejeira e pegou uma das pesadas garrafas em


uma bandeja de prata, cheia de um líquido âmbar e dourado. Abriu a tampa redonda
e estava a ponto de servir-se de uma generosa dose de uísque, quando Christina
disse. — Não, Leander, ela não foi capturada por um dos nossos.

Leander congelou. A garrafa converteu-se em um peso morto de repente em


sua mão.

Com cuidado, colocou-a novamente na bandeja de prata. Virou-se novamente


para Christian e o olhou. O mesmo cabelo escuro. Os mesmos olhos verdes
penetrantes. Toda a mesma coloração escura dos Ikati que sua colônia
compartilhava.

Todos os Ikati, exceto um. Jenna, sua rainha era branca como alabastro.

Seu primeiro pensamento sempre era ela. Sua segurança era a única coisa que
importava.

Ela não foi capturada por um dos nossos.

—Tem exatamente cinco segundos Christian, para me dizer que porra está
falando.
Christian se moveu pela porta opulenta marfim e dourada da Biblioteca.
Irradiando tensão, aproximou-se e parou no aparador. Mesmo sua voz era tensa
quando disse. — Alguém mais estava ali. Os caçadores a encontraram na delegacia
de polícia, mas alguém chegou primeiro, usou explosivos como uma distração,
entrou e a tirou de lá. Matou um dos caçadores e quase matou o restante. Mas
escapou... com a princesa.

—Explosivos. — Leander disse lentamente. Um terrível pensamento cruzou


sua mente, mas ele o afastou. Não podia ser. Isto significaria traição. Isto significaria
guerra.

Christian mudou o peso sobre o outro pé. Colocou as mãos nos quadris,
olhando o tapete turco, depois olhou firme para Leander. — Keshav disse que era
um dos nossos. Um homem. Grande. Cabeça raspada. Tatuagens.

Keshav era um dos que foi recrutado da colônia de Bhaktapur no Nepal — era
o líder dos caçadores e se estava dizendo que um macho Ikati os atacou, era verdade.
E ali estava o pensamento novamente, empurrando enquanto tentava ignorá-lo. —
Olhos negros?

Christian assentiu.

—Merda. — Sussurrou Leander.

Christian piscou surpreso. Leander nunca xingava. Quase nunca sequer


levantava a voz. Ele não precisava. Quando ficava nervoso, a resposta universal era:
quão alto?

—Telefone. — Exigiu Leander.


Christian pegou no bolso e entregou sem dizer uma palavra. Leander marcou
um número que memorizou há muito tempo e levou-o ao ouvido. Odiava as
malditas coisas, nunca tinha um consigo, mas celulares eram uma necessidade,
sobretudo agora.

Todo tipo de coisas que Leander odiava se converteram recentemente em


artigos de primeira necessidade.

Andou novamente para as janelas, levantou o olhar para o céu e se encontrou


como o falcão ainda acima do bosque, voando alto e de forma preguiçosa. Ele não
afastou os olhos dela enquanto ouvia do outro lado da linha uma voz profunda e
masculina, arrastando as palavras em um leve sotaque inglês. — Majestade! Que
inesperado. Deve ser uma emergência extrema se está me ligando na hora do chá.

A mandíbula de Leander se apertou. — Celian. — Disse através dos dentes


apertados. —Já disse para não me chamar assim.

Celian riu, fazendo Leander ficar ainda mais irritado. — Fala como um
verdadeiro ditador. Pode se chamar de Alfa, Presidente ou o que quiser Leander,
mas continua sendo um ditador.

Incitando-o como sempre. Celian tinha ideias muito diferentes sobre a melhor
forma de governar uma colônia, ideias que incluíam palavras como democracia,
consenso e liberdade, que eram cada vez mais populares.

Más ideias. Ideias que poderia fazer todos morrerem. Ou pior. Apenas o
tolerava, porque era um dos maiores e ruins peixes para se fritar.
—E você é um tolo. — Disse Leander em voz muito baixa. — Se pensar por
um momento que você e sua “democracia” estão nos colocando em perigo, eu o
limparei da face da terra. Não me teste, Celian. Não estou com humor.

Silêncio. Um enorme e gratificante silêncio.

Apenas se viram cara a cara uma vez, ele e o líder da colônia romana Ikati recém
descoberta e não foi agradável. Alfas de sua classe nunca se davam bem,
considerando todos os animais e instintos territoriais de sua natureza, e ele e Celian
não eram exceção. Conseguiu que Celian concordasse em controlar mais
firmemente sua colônia até que encontrassem os rebeldes, mas com certeza iria
permitir que saíssem e voltassem a vontade quando esta crise terminasse.

Alto no céu do inverno, o falcão fez um giro amplo e gracioso.

Ele sabia o que Jenna diria sobre o assunto. Ele tem razão, Leander. Todos nós
precisamos ser livres. É a hora.

Ele categoricamente discordava. Todos eles precisavam estar em segurança e às


vezes isto significava restrições a tais ideais como liberdade. Integração, como Jenna
dizia, era um desastre de proporções épicas, a espera de acontecer. Infelizmente, ela
era a Rainha e sua palavra não tinha mais peso que a de Leander. Tinha mais peso
sobre todas as outras.

O Ikati, ainda que de natureza felina, desenvolveu durante milhares de anos uma
sociedade patriarcal e hierárquica similar a uma das matilhas de lobos. Cada uma
das quatro colônias no Nepal, Brasil, Canada e Inglaterra tinham um Alfa, o mais
poderoso do sexo masculino de toda a tribo, quem através das linhagens de sangue,
um desafio ritual ou batalha demonstravam ser o mais forte. Mas de vez enquanto,
uma vez em dezena de gerações, uma fêmea nascia na tribo e era mais poderosa que
todos os machos Alfas combinados. Como Maria Antonieta, a última rainha Ikati e
Cleópatra, a rainha mais infame de todas elas, Jenna tinha dons que a fazia soberana
sobre os demais.

Os gatos eram diferentes dos lobos e por natureza eram governados por uma
rainha. Apenas na ausência de uma forte o suficiente, um homem poderia reinar.

Conseguiu convencer Jenna de que a guerra era sempre um bode expiatório


conveniente para a restrição da liberdade, mas sabia que não podia mantê-lo para
sempre. Teria seu caminho, gostasse ou não.

Mesmo se toda tribo se extinguisse por isso.

Esconder é para ratos, dizia ela, olhando-o de forma constante com os olhos
brilhantes amarelo e verde. E não somos ratos, meu amor.

Não. Eles não eram ratos. Eram feras que fingiam ser pessoas. Eram animais,
vapor e sigilosos, um predador mortal, relíquias de uma era perdida antes que o
homem caminhasse pela terra e a magia ainda vivia e respirava. Estremeceu ao
pensar no que aconteceria se a humanidade soubesse sobre eles. Novamente.

—Cabeça raspada. Tatuado. Grande. Soa como alguém que você conhece? —
Disse Leander ao telefone.

Mais silêncio. Então. —Como?

—Um dos rebeldes, um de sua colônia, que estava com a filha do rei na noite
que ele foi morto... é grande, com a cabeça raspada e com tatuagens?

—Não. — Disse Celian, mas Leander ouviu a leve hesitação e seu sangue ferveu.
—Não minta. — Começou quase cuspindo com raiva, mas Celian o
interrompeu.

—Ele não é um dos rebeldes. É Demetrius. Um do meu conselho. Um dos


meus irmãos de maior confiança. O que há com ele?

—Está tentando me dizer que não sabe que seu irmão de confiança explodiu a
delegacia de polícia de Paris e levou a princesa desaparecida? — Disse Leander,
com incredulidade em sua voz.

—Impossível. — Celian zombou. — Demetrius está aqui. Não iria sem me


dizer... — Parou, pensando e logo voltou com menos confiança que antes. —
Explodiram a delegacia de polícia?

—Que Deus me ajude Celian, se tiver algum conhecimento disto...

—Deve ser um dos outros que escapou com ela... não poder ser...

—Há muitos de vocês que raspam a cabeça e se tatuam? — Leander cortou com
impaciência. O falcão fora desceu em um arco lento, em direção a Sommerley e as
janelas onde estava. Observou sem piscar, a mandíbula apertada.

—Não. — Admitiu Celian depois de outra pausa embaraçosa. — Mas


desapareceram a três anos, é possível que um deles decidiu se tatuar. E raspou a
cabeça.

Sem se afastar da janela, Leander moveu o telefone e disse a Christian. —


Qualquer outro detalhe, Christian? Sobre o macho que levou a princesa?

—Sobrancelha perfurada. Três anéis de prata nela. —Chegou a resposta de


Christian do outro lado da sala.
Leander voltou o telefone a boca. — Sobrancelha perfurada. Soa uma
campainha?

Ouviu Celian murmurar irritado. — Merda. — E logo se dirigir a alguém perto


para buscar outra pessoa. O nome era ilegível, mas Leander sabia quem era.

—Seu irmão. Demetrius. Se não o encontrar aí... se fez isto...

—Se foi tão estúpido para fazer algo como isto, eu mesmo vou matá-lo. —
Celian disse entre dentes e Leander se mostrou satisfeito pela convicção em sua
voz.

—Bem, não o faça. — Disse Leander enquanto observava o falcão descendo a


poucos metros sobre o jardim com cuidado, com as garras estendidas, as asas
batendo sem fazer ruído, penetrantes olhos verdes amarelos ávidos em seu rosto.
— Eu o farei.

Antes que Celian pudesse responder, Leander desligou.

Fora o falcão branco descia em voltas até a grama e começou a se transformar


em algo completamente diferente quando aterrissou. Pés primeiro, logo as pernas,
depois um corpo — nu — e impressionante rosto que podia fazer homens adultos
chorarem por sua beleza. O cabelo dourado tocava os ombros, em cascatas
cintilantes pelo peito.

Jenna. Sua rainha. Seu milagre. A única deles que podia se transformar em
qualquer coisa que quisesse.

Filha de seu pai, com certeza.


Cruzou rapidamente os poucos metros de distância de onde estava, olhando o
relógio enquanto corria. Sensual e descarada como uma odalisca, abriu passo entre
as rosas na altura da cintura e grossas capas de lavanda e parou justo fora de sua
janela. Tinha que olhar para cima um pouco, com a cabeça inclinada para trás, os
lábios cor de rosa levantados nos cantos.

Apertou a palma da mão no vidro. Ela abriu os seus no lado oposto da janela.

—Adiante. —Murmurou, sabendo que ela o ouvia claramente através da janela


de vidro duplo fechada. — Jenna. Adiante.

Ela observou seu rosto e seus lábios perderam a curva. Um pequeno vinco
apareceu em suas sobrancelhas. Como o conhecia bem.

—Venha para dentro. — Insistiu, a voz mais rouca que antes.

Leander ouviu a porta atrás dele, mas se esqueceu por completo que Christian
estava ali.

***

Por dez segundos dentro dele a raiva fervia e sentindo-se como se fosse atacado
por várias facas, Celian ficou com o telefone na orelha ouvindo o ar morto.

Logo, com um xingamento, virou-se e caminhou pelo quarto.

Explodiu o telefone contra a parede de rocha nua com um ruído metálico surdo
e caiu com barulho no chão.
—Boas notícias, eu vejo. — O humor seco de Lix, sempre presente, apenas
serviu para enfurecê-lo ainda mais.

—Presumido filho da puta! — Celian gritou.

As sobrancelhas escuras de Lix se ergueram, mas Celian agitou a mão com


desdém, o que indicava que não quis dizer isto. Sentou-se pesado na cadeira de
madeira talhada, idêntica à que ocupava Lix na frente dele na mesa maciça de
carvalho que servia como uma versão da mesa de conferências do Bellatorum. Como
a famosa mesa redonda do Rei Artur, este lugar de encontro dos cavaleiros não
tinha cabeça, não havia hierarquia. Todos eram iguais.

Todo mundo, mas D, perdeu a reunião da manhã. Apenas podia ser um igual se
incomodasse em aparecer.

A direita de Celian, estava sentado Constantine, com o cenho franzido. Inclusive


o fulminava com graça, o que no momento, irritava mais Celian.

O dia não começou bem. Já perdeu um dos jovens do Legion para a Transição
e cinco mais teriam seu vigésimo quinto aniversário nas próximas trinta e seis horas.
Se eles não conseguissem... a este ritmo, ficariam sem soldados meio sangue dentro
de poucos anos.

Estavam morrendo mais rápido do que podiam ser substituídos. Especialmente


agora que o Conselho de Alfas — em sua mente fazia uma careta —lhes proibiu de
se misturar com seres humanos sob pena de morte. Assim reproduzir novos
mestiços estava fora de questão.

Não poder ser muito prudente em tempo de guerra, Leander disse, sorrindo com
suficiência inglesa para Celian na primeira e única vez que se encontraram. Falava
devagar, com condescendência, como se o Bellatorum reunido diante dele tivesse um
pequeno problema com as grandes palavras, olhando como se fossem nada mais do
que bárbaros sujos que viviam como homens das cavernas em covas. Celian quis
socar seu rosto. Apenas uma coisa o impediu.

Leander, infelizmente, tinha razão.

O rei morto, Dominus, resultou ser muito mais traiçoeiro que qualquer pessoa
pudesse imaginar, tentando assumir como ditador todas as colônias, matando sua
própria espécie, se não se adaptasse as suas necessidades. Inclusive trabalhando com
os seres humanos. Não havia nenhuma dúvida de que sua rede de assassinos e
espiões pagos ainda estavam por aí, esperando a oportunidade de atacar.

Caesar estava por aí ainda. Silas estava ali também e era mais esperto e mais
perigoso que o filho egoísta e vaidoso do rei.

Não sabia o que aqueles dois planejavam em todo caso, mas Celian odiava se
sentir como um alvo fácil. E agora, se fosse verdade — D piorou uma situação
colossalmente já ruim.

—O que aconteceu? — Lix se inclinou na mesa e apoiou os cotovelos.

—O pequeno Lorde está de volta. —Murmurou Celian, tamborilando os dedos


na madeira.

—Ele ainda está insistindo em escrever ao Conselho de Alfas? — Perguntou


Lix surpreso.

Nos três anos que se conheciam, Leander e os outros três líderes que
compunham o Conselho de Alfas tentaram persuadi-lo pela coerção e a adulação,
depois com velada ameaça de que não era para se unir a uma declaração de guerra.
Mas Celian viveu o suficiente com um ditador e nunca trocaria um por quatro, não
importava o quão bem eles fingissem ou quantas promessas floridas fizessem. Mais
juntos do que separados. Todos por um e um por todos. Dever da tribo, etc. etc...

Ele não queria nada disso. Concordou em manter seu povo contido dentro das
catacumbas até que encontrassem os rebeldes e isto foi o suficiente para mantê-los
longe até agora. Mas isto...

Celian olhou para Constantine, que imediatamente abaixou o olhar para a mesa
e mudou de posição na cadeira.

Interessante.

Celian o observava cuidadosamente quando disse. — Na verdade, ele tinha


notícias sobre Eliana.

Um músculo na mandíbula de Constantine se moveu. Olhou para cima, logo


para baixo novamente.

—O que? — Exclamou Lix, endireitando-se. — Eliana? Como? O que


aconteceu? E porque estavam falando sobre D?

Sim, essa é a reação correta, pensou Celian, olhando para Constantine muito
tranquilo. Em voz alta, disse. — Pelo que parece, alguém que se parece muito com
nosso querido irmão explodiu a delegacia de polícia de Paris e levou a princesa
desaparecida.

Lix se levantou bruscamente, empurrando para trás a cadeira pesada de madeira


no processo. — O QUE?
—Sim. — Celian murmurou, olhando para Constantine. — Qualquer coisa que
gostaria de acrescentar na conversa, Constantine?

Constantine respirou fundo, abriu as grandes mãos sobre a mesa, exalou e disse
em voz baixa. — Eu devia uma para ele.

Lix olhou para Constantine. — O que? — Gritou novamente.

O servo que enviou à procura de D escolheu este exato momento para entrar.
Jovem magro, parou em seco na porta em arco. — Ele se foi! — Disse sem fôlego.
— Ele se foi! Os guardas na porta do norte estavam desmaiados...

Celian levantou uma mão e o rapaz ao instante ficou em silêncio. Um


movimento da mão e o rapaz saiu da sala com uma reverencia. Durante todo o
tempo, o olhar de Celian nunca saiu do rosto de Constantine. — Conte-me tudo
agora, porque se tiver que ouvi-lo de um puto pavão real britânico...

—Eu estava com ele quando vimos Eliana na televisão sendo capturada pela
polícia francesa.

—O QUE?

—Sente-se Lix e se cale. — Disse Celian. O guerreiro de cabelos longos sentou-


se lentamente e ficou calado, olhando entre ele e Constantine com um olhar
horrorizado e incrédulo.

Constantine falou baixo, com as mãos separadas. — Ela foi presa. Eles disseram
no noticiário que ela era uma ladra notória. Eles a tinham algemada...

—Estava ferida. — Celian deduziu ao instante. Ela nunca teria sido capturada
de outra forma.
Constantine assentiu. — D apenas... ele simplesmente ficou louco. Nada
poderia impedi-lo. Tentei falar dela, mas já sabe como ele é... sobre ela... ele estava
totalmente louco... — Olhou para Celian.

Estava ficando muito difícil de ouvir sobre a adrenalina rugindo em suas veias.
—Continue falando. — Disse.

—Como disse, devia uma a ele. — Seus grandes ombros se encurvaram e


abaixou o olhar novamente para a mesa.

A sala ficou completamente imóvel e em silêncio. Ao redor de seus tornozelos,


uns cem gatos selvagens corriam através das catacumbas indo e voltando,
esfregando os bigodes em suas pernas. —Arriscou nossas vidas. — Celian disse em
voz baixa. — Arriscou-se a uma guerra com outras colônias por um sentimento de
culpa.

Pouco a pouco, Constantine levantou os olhos e encontrou o olhar de Celian.


Balançou a cabeça. — Não. Arrisquei a uma guerra com as outras colônias porque
é meu irmão e ele precisava de minha ajuda. Eu faria o mesmo por qualquer um
dos dois.

Celian ficou de pé e começou a andar pelo chão de rocha nua. —Foi muito
difícil convencer o Conselho que não tínhamos nada a ver com os Expurgari, que
nós não sabíamos o que fazia Dominus todos aqueles anos. Ainda acho que não
acreditam por completo.

Lix não disse a ninguém em particular. — Eliana é uma ladra?

Celian continuou falando. — E agora tenho que convencê-los que não temos
nada a ver com D e esta nova situação de merda...
—Uma ladra? — Lix interrompeu, olhando com incredulidade para
Constantine.

—Silas deve tê-la influenciado. — Murmurou, movendo a cabeça. — Ela nunca


faria algo assim por sua conta. Ela era muito...

Doce, ele não disse. Doce, encantadora e inocente como um cordeiro.

—Não sabemos. — Disse Celian, parando na metade do caminho ao lado da


mesa. Lix e Constantine olharam para ele. —Não sabemos mais quem ela é. Ou o
que ela foi nestes últimos três anos desde que desapareceu. Tudo o que sabemos
com certeza é que viu os três de pé junto a seu pai morto no chão com uma bala na
cabeça. — Fez uma pausa, olhando para eles novamente. — E o macho que amava
com a arma na mão. Como acha que não poderia mudar?

Não responderam. Não precisavam fazê-lo. Cada um deles sabia que estaria
mudada por esta experiência e não para melhor.

—Está planejando tentar trazê-la de volta? — Perguntou Lix para Constantine,


que se limitou a balançar a cabeça.

—Não sei. Não disse. Não tenho certeza se ele mesmo tinha um plano, além de
levá-la para longe da polícia.

—Certo. — Celian se sentou à mesa. — Alguma ideia de onde ele pode levá-la,
uma que o fizer? Supondo que não voltarão para cá?

—Precisaria de refúgio, comida. — Disse Constantine lentamente, pensando.


— E se Eliana estiver ferida, algum lugar com atenção médica. Em algum lugar que
poderia passar despercebido até que pensasse em um plano.
—Em algum lugar como uma casa de segurança. Provavelmente uma não muito
longe da delegacia. — Disse Lix e os dois se viraram para ele. Olhou novamente
para eles, uma mecha de cabelo negro caindo no olho e de repente Celian teve uma
ideia de onde D poderia ir.

Ele disse. — Preciso de outro telefone.


CAPÍTULO
ONZE

Um zumbido sutil em seu sangue, uma emoção ao longo dos nervos da coluna
vertebral, D sentiu no instante que Eliana acordou.

Congelou, um pedaço de camurça oleosa em uma mão e a Glock na outra,


completamente tomada de surpresa.

Por ela acordar tão rápido, queria dizer. Os sedativos que lhe deram deveriam
ser fortes o suficiente para derrubar um macho com o dobro do seu tamanho, por
duas vezes mais tempo. Ele lhe deu uma dose adicional para ter certeza que ela não
acordaria durante a cirurgia para extrair a bala de seu quadril e dar pontos, mas...

Um forte golpe vinha de baixo. Logo outro. D olhou para o chão sob seus pés.
Em um dos quartos do andar de baixo, Eliana estava acordada e ao julgar pelo som,
outro sinistro golpe, este foi acompanhado por um tremor das tabuas no chão e o
barulho inconfundível de vidros quebrados, dizendo que ela não estava feliz.

Maldição. Na verdade, não deveria ter deixado o vaso de vidro no quarto.

Colheu as flores no jardim exterior, pensou que poderia satisfazê-la ao ver o


bonito ramalhete quando acordasse, mas agora parecia muito tolo, um erro
evidente. Este vaso de vidro pesado seria uma arma eficaz se jogado com força em

20 Cross-Dressing: Termo que se refere a pessoas que vestem ou usam objetos ou acessórios associados ao sexo oposto,
algo como um travesti, mas não está ligado ao gênero sexual.
Pixie pode ser traduzido como uma fada ou duende. (Tipo)
sua cabeça. Ele preferia manter seu crânio intacto, mas se o ruído que vinha de
baixo fosse uma indicação, ela poderia ter outros planos.

Fez um inventário mental rápido de seu quarto: dois copos mais, mesa, cadeira,
televisão de tela plana... tudo poderia definitivamente ser ruim para o estado futuro
de sua cabeça.

Colocou a pistola e o pano de limpeza sobre a mesa e limpou os dedos com


cuidado sobre um pano de cozinha para desfazer-se do óleo, tentando ignorar o
muito leve tremor nas mãos. As batidas de seu coração aumentaram em picos
irregulares que quase dolorosamente golpeavam contra seu peito. Respirou
lentamente, tentando se acalmar.

Esteve esperando este momento durante três anos e agora que estava ali, se
sentia como um colegial com a boca seca e os joelhos trêmulos, um estômago cheio
de borboletas dançando.

—Controle-se, soldado. — Murmurou, jogando o pano sobre a mesa com um


movimento de suas mãos. Levantou-se e andou pela cozinha, sala de estar e sala de
TV, tudo em tons masculinos de negro e marrom, estilo espartano como os antigos
assassinos que possuíram esta casa de segurança antes. Tinham uma em cada cidade
importante em todo o mundo, para ocasiões como estas e agora agradecia por isto.

Pouco a pouco foi passando pela escada em caracol no andar de baixo. Os


quartos.

Ficou de pé no final do corredor acarpetado olhando. Todas as portas estavam


abertas, exceto uma, no outro extremo.
E vibrando. Ela estava golpeando ou chutando de dentro. Se não fosse
reforçada, ela teria facilmente jogado a porta no chão, mas como era, estava fazendo
um bom trabalho tentando. Perguntou-se o que o interior da porta parecia.

Não estava bonita, apostava.

—Eliana. — Chamou. Os golpes na porta pararam. Deu vários passos para


frente, ouvindo nada além de seu próprio pulso nos ouvidos. — Ana, sou eu. —
Limpou a garganta, sentindo-se logo como o maior idiota no planeta. Claro que é
você. Muito bem jogado, idiota!

Ignorando esta leve voz sarcástica, D estendeu a mão, colocou-a na maçaneta,


a virou e abriu a porta.

Abriu-se silenciosamente, revelando o caos em todo o quarto.

Ela rasgou os lençóis e o edredom acolchoado da cama e virou o colchão assim


como a cama grande no canto oposto do quarto. Todas as gavetas dos armários
estavam abertas, seu conteúdo jogado no chão, a roupa jogada e deixada aos montes
no chão ou penduradas ao azar nos encostos das cadeiras ou sobre uma cômoda,
que também tinha suas gavetas abertas, algumas de boca para baixo no chão. As
duas lâmpadas da mesinha de noite estavam quebradas, ainda que uma sobreviveu
ao ataque e estava de lado contra uma parede, iluminando o quarto em um
intermitente amarelo.

O vaso de vidro com as flores que colheu estava destroçado aos seus pés, as
flores espalhadas sobre o tapete escuro em uma confusão brilhante, molhadas e
meio rasgadas.

Causou um grande estrago.


—Vou entrar. — Advertiu, sua voz mais dura do que pretendia, já que estava
sentido pena de si mesmo, pelas flores.

Silêncio. Ele o tomou como uma afirmação e entrou no quarto.

Seu primeiro erro foi supor que ela se escondeu atrás do colchão e percebeu isso
ao ver o movimento à sua direita e ouvir algo passando por sua cabeça, correndo
no ar com um silvo sinistro enquanto fazia seu caminho. Deu a volta e saltou para
trás ao mesmo tempo, evitando um golpe direto na jugular e teve exatamente dois
segundos para apreciar a vista dos olhos escuros de Eliana — em chamas — e sua
boca em uma linha concentrada antes que ela empurrasse novamente a faca.

Afastou-se e deixou uma distância antes que o ataque pudesse alcançá-lo


novamente e deixou-a de pé, com o braço no alto, a faca apertada no punho, ao
lado da porta aberta do quarto.

—Olá, Demetrius. — Disse friamente, olhando-o com o que parecia ser uma
postura perfeita. — Estive esperando por isso por muito tempo.

Incrivelmente queria rir. Estava tão feliz que poderia ter dançado. Ela o odiava
com clareza e queria matá-lo, mas estava ali e viva e era tudo o que desejou durante
tanto tempo, que não podia se lembrar de um momento em que não a quis, o alívio
e a euforia iluminou-se dentro dele como uma vela romana.

Seu rosto se dividiu em um grande sorriso, tolo, a primeira vez que realmente
sorria em anos. — Eu também. — Disse. —Mas, obviamente, por diferentes
razões.

Muito lentamente, sem deixar que seu intenso olhar saísse de seu rosto, deu um
passo de cada vez, reposicionando seu peso. Maravilhou-se de como ela parecia
perfeitamente bem e segura, totalmente no controle e então notou o pulsar
palpitante na garganta que a traía.

Não estava tão calma depois de tudo. Contra toda a lógica, isto o deixava
contente.

—Estou desarmado. — Ele disse enquanto ela avançava para ele com a faca no
alto. Deu um passo lento para trás e levantou as mãos, perguntando-se onde a
encontrou, enquanto ao mesmo se amaldiçoava novamente por não limpar o quarto
antes que a deixasse ali para dormir para se recuperar da anestesia. Um erro de
principiante, um que inclusive um soldado com menos experiência de classes
inferiores do Legion teria evitado. Ela detonava seu cérebro, como sempre.

—Um infeliz descuido de sua parte. — Respondeu Eliana, não soando mal por
ele em absoluto. — Já que é muito idiota para vir a uma luta sem uma faca ou arma.

Vestida com uma bermuda preta masculina amarrada na cintura e uma camisa
branca que deve ter encontrado em uma das gavetas da cômoda, com o cabelo azul
em todas as direções e seus selvagens olhos brilhantes, parecia um duende louco,
uma cross-dressing.

Um duende louco com a pele brilhante e seios perfeitos, felizmente, claramente


visíveis em toda sua glória cremosa sob a camisa fina de algodão. Evitou olhar para
eles, mas sabia que estavam ali e seu corpo respondeu.

A excitação correu para seu ventre, sorriu ainda mais.

Eliana ficou vermelha. — Não sou a pequena princesa inocente de antes, Bellator.
— Disse entre dentes. — Ela morreu quando você matou meu pai!
Logo se lançou adiante, a faca apontando seu coração.

Ele saiu de sua frente e ela o seguiu, empurrando, saltando para frente quando
ele se movia para trás, brandindo a faca, com o rosto sombrio e decidido. Não
pensava no perigo para si mesmo — ele era muito mais forte e treinado em todos
os tipos de combates desde que foi selecionado quando criança para a guarda de
elite do Rei, por sua força e pureza de sangue — mas teve o cuidado de não deixá-
la ver sua confiança e mantinha uma distância segura, enquanto deixava que
avançasse e atacasse.

—Pare de brincar comigo e lute! — Disse enquanto empurrava com um rápido


giro do pulso. Tinha que admirar sua técnica, a contragosto, admitiu para si mesmo.
Era evidente que treinou com alguém que sabia o que estava fazendo.

—Estamos lutando. Está me atacando com uma faca e estou tentando não ser
atingido, assim sem dúvida é uma luta. E para constar, não matei seu pai.

Em resposta a isto, Eliana congelou. Sim congelou e ele a olhou com cautela
enquanto lhe devolvia o olhar, o peito subindo e descendo de forma errática, o
pulso ainda batendo com violência em seu pescoço.

—Mentindo na minha cara. — Murmurou e balançou a cabeça.

Desta vez, quando se lançou adiante com um selvagem grunhido, mostrando os


dentes e com os olhos acesos com uma fúria demoníaca, D ficou um pouco menos
seguro sobre sair daquele quarto com vida.
CAPÍTULO
DOZE

Merda! Eliana perdeu o rosto de D por pouco.

O fato de ele ficar olhando-a, não estava ajudando em sua concentração. Como
tinha a ousadia de olhá-la fixamente com tal alegria desenfreada depois do que fez,
a deixava com mais vontade ainda de matá-lo. Ela se lançou adiante novamente.

—Quase me esqueci de como fica linda quando está louca. — Disse D,


movendo-se rápido como um borrão. Nem sequer respirava com dificuldade,
maldito, mas ela estava suando, suas mãos estavam úmidas e a adrenalina voava
através de suas veias deixando-a instável. Ajustou o agarre sobre a faca e inalou,
tentando sem êxito frear seu coração acelerado.

Isto não era nada como lutar com Alexi.

—Não quero ouvir o que tem a dizer. — Disse. — Apenas quero que morra!

—Ouch. — Olhou com dor e saltou quando ela se lançou novamente.

Deu a volta e o enfrentou. Grande e musculoso, completamente masculino


como se lembrava, continuava sendo um mestre da agilidade e elegante em cada
movimento. Usava botas, uma calça de couro preta baixa na cintura e uma jaqueta
de pele aberta mostrando uma parte do peito. Do peito musculoso e tatuado. Sua
presença enchia o pequeno quarto e se sentia quase sufocada pela proximidade dele,
seu tamanho e cheiro. Apenas ficar perto dele era esmagador. Tinha que acabar com
isto e rapidamente.

—Covarde. — Grunhiu quando ele habilmente evitou outro golpe.

—Não fui eu quem fugiu no meio da noite. — Respondeu. Ainda que seu tom
fosse sério, sabia que estava gostando, gostando de vê-la suada e naquela bermuda
perseguindo-o.

Gostava de brincar com ela.

***

Fúria percorreu suas veias. Ele matou seu pai. Arruinou sua vida. Tirou dela
tudo o que conhecia e a usou da pior forma possível, agora estava brincando com
ela.

Ela ficou parada e a faca caiu a seu lado. D observou isto com uma expressão
cautelosa de longe. — Vamos. — Ela o desafiou, segurando seu olhar. — Venha
até mim se não é um covarde. Isto é o que quer, verdade? Foi por isso que entrou
naquela delegacia. Assim poderia me trazer a algum lugar esquecido por deus no
meio do nada. — Disse apontando o quarto. — E tirar isso de mim.

A expressão dele ficou sombria. Sua testa se enrugou. — Tirar o que de você,
exatamente?
—De verdade acha que sou muito estúpida? — Ela começou a tremer muito
agora. As emoções que conseguiu reprimir durante anos se aproximavam
perigosamente da superfície, uma onda de raiva e traição, ira e solidão, reunidas
todas e tentando se converter em uma supernova21. — Acha que não sei que apenas
estou viva neste momento, para que possa saber onde o restante de nós está se
escondendo? Para que possa terminar o que começou há três anos e matar a todos
nós?

Suas fossas nasais se abriram. Seus olhos, dançando com alegria mal reprimida
apenas uns momentos antes, ficou assassina. —Salvei sua vida hoje. — Disse, sua
voz muito baixa. — Se quisesse vê-la morta, eu a teria deixado naquela prisão e que
os caçadores a levassem. E quem você acha que fechou estes buracos de bala em
você? A fada dos dentes?

Levou uma mão as ataduras escondidas sob a bermuda. Caçadores? Um brilho


de emoção contorceu seu estômago — confusão? Dúvida? Mas foi comido
rapidamente pela ira.

—Inteligente. Pretende me salvar de seu próprio bando para ganhar minha


confiança, me manter aqui tempo o suficiente para descobrir onde os demais estão
e logo me matar. Você é inclusive mais inteligente do que Silas disse. Não posso
acreditar que confiei em você!

E com isto, a peça do quebra cabeça que faltava fez click no lugar.

— Ele lhe disse que fui eu. — Disse D, incrédulo. — Aquele filho da puta disse
que eu matei seu pai, certo?

21É um evento astronômico que acontece durante os estágios finais da evolução de algumas estrelas, que é caracterizado
por uma explosão muito brilhante.
Os olhos escuros de Eliana se dilataram, quentes e duas manchas rosa
apareceram no alto das bochechas. Ela conteve o fôlego e logo gritou. — Ninguém
precisou me dizer nada porque vi com meus próprios olhos, bastardo! Você, a arma,
meu pai morto no chão com um buraco na cabeça!

Ela retrocedeu um passo, com a respiração ofegante, com as pernas dobradas


como se fosse saltar sobre ele a qualquer momento.

D estava preparado para seu movimento, cada nervo e músculo pulsando com
o esforço de conter para não ir contra ela, esmagá-la conta o peito e beijá-la. —
Você não viu nada. — Disse entre dentes. — Estava com uma arma, isso foi tudo.
E depois saiu correndo sem que me deixasse explicar.

Ela fez um movimento mais leve, seus músculos em espiral e cansada desse jogo
de gato e rato, assim quase deixou a faca cair. Ele estendeu a mão e agarrou seu
pulso. Com um ofego, ela tentou puxar e se livrar, mas o agarre dele era muito forte
e deixou cair a faca. Lutando violentamente, ela acabou perdendo o equilíbrio e caiu
desajeitada sobre o colchão, onde pulou uma vez e logo recuperou o equilíbrio e
chutou bruscamente.

Mas, uma vez mais ele foi mais rápido que ela. D segurou seu tornozelo na outra
mão e puxou-a se contorcendo e gritando pelo colchão.

—Assassino! — Eliana gritou em seu rosto e toda pretensão de controle sumiu,


continuou se contorcendo e silvando sob ele como uma serpente. — Mentiroso!
Traidor!

—Ouça-me! — Gritou, enquanto ela se contorcia, cuspindo xingamentos e


golpeando-o com a mão livre. Ela acertou um golpe duro do lado de sua cabeça e
ele grunhiu enquanto fogos de artifício dançavam atrás de seus olhos. Porra, ela era
um monte de muito mais forte do que parecia. E viciosa como um gato selvagem
também, já que passou as unhas por seu rosto e sentiu o sangue quente e úmido
pingando por sua mandíbula.

—Vou matá-lo! — Gritou. — Juro por meu pai morto, que vou te matar!

Deixou cair todo seu peso no peito dela, segurando-a e logo agarrou o outro
pulso e empurrou seus braços para cima de sua cabeça no colchão.

—Porra, ouça-me! —Gritou D, empurrando seu rosto junto ao dela.

Ela se inclinou para trás no colchão surpresa e congelou. Seus narizes se


tocavam. Seus corpos estavam pressionados juntos por completo. Olharam um para
o outro, cara a cara, respirando com dificuldade, os músculos rígidos.

E então, ah e então...

Segundo a segundo, centímetro a centímetro, em um nível profundo, celular, D


tornou-se consciente de Eliana.

Sua respiração ofegante. As batidas do coração, golpeando violentamente contra


seu peito. O sangue correndo pelas veias. O calor de sua pele. Seu corpo sob o dele,
suave e quente, entorpecendo seus sentidos.

Todos os pequenos detalhes tão vividos em sua memória, mas agora ali,
começaram a chegar novamente a ele, paralisando-o com uma onda de emoção tão
esmagadora que perdeu momentaneamente a capacidade de falar.
—Não fui eu. — Disse por fim com a voz rouca, olhando fixamente em seus
olhos. — Juro pela minha vida, pela vida de meus irmãos, por tudo o que é sagrado,
que não fui eu.

—Quem... quem foi então? — Ela estava sussurrando agora também, como se
houvesse sentido a mudança nele, o que provavelmente aconteceu. Seus olhos se
encheram de conhecimento e pensou que poderia ter uma leve, muito leve luz de
esperança ali.

Constantine. Estava na ponta da língua, justo ali. Ele conteve o fôlego...

Não podia dizer. Ele simplesmente nunca poderia dedurar seu irmão, a quem
jurou proteger com sua própria vida, nem sequer para tentar convencer a mulher
que amava de que não era o bastardo assassino que ela pensava. Preso entre o amor
e o dever, a agonia e a lealdade, era tudo esmagador e se manteve em silêncio.

A leve luz de esperança em seus olhos se apagou. Foi substituída pela fúria e o
ódio fulminante. — Será melhor que me mate agora, porque no momento em que
me deixar ir, vou cortar suas bolas e farei um bom par de brincos. — Ela sorriu. —
Um par muito pequeno.

—Piadas sujas de pau? Sério? — Disse, sentindo-se castrado enquanto ela


ameaçava. Ela nunca na verdade viu suas bolas, mas não gostava de ter sua virilidade
ameaçada. Contra toda lógica, queria ficar nu e mostrar a ela que estava errada.

—Solte-me!

—Não vou a nenhuma parte até que você se acalme!

—Mate-me ou saia de cima de mim!


—Acalme-se!

Olharam um para o outro, sem piscar. Soltando fumaça, ela apertou os lábios e
um estremecimento percorreu seu corpo. Passou-se vários segundos, mas pareceu
se controlar mais. Logo disse. — Se seu plano é me esmagar até a morte, está
funcionando. Não posso respirar.

—Parece estar fazendo um bom trabalho de respiração, Ana. —D abaixou o


olhar para seu peito, onde a parte superior de seus seios se inchava tentadoramente
sobre a gola redonda da camiseta. Quando voltou a olhar para ela, seu rosto estava
vermelho como uma cereja. Ela virou o rosto de lado, fechou os olhos e mordeu o
lábio.

O calor de seu corpo contra o dele, os lindos seios, os dentes mordendo o lábio
inferior... D não pode evitar. Uma ereção saltou a vida, dura como uma rocha em
sua calça. Devido a que seus corpos estavam pressionados juntos, peitos e entre as
pernas, totalmente.

—Incrível. — Disse indignada. —Apenas... incrível. — Ela se contorceu sob


ele, tentando escapar, mas a fricção apenas serviu para excitá-lo ainda mais e ela
ficou sem fôlego, sentindo-o ficar ainda mais duro.

—Você provoca o animal em mim, linda. — Disse bruscamente sorrindo,


apesar de saber que não deveria, eufórico por estar perto dela. —Sempre o fez.

—Vou vomitar em você, agora. Saia de cima de mim!

Seu aspecto era absolutamente o de um assassino e decidiu, completamente


adorável. —Não antes de se desculpar por arranhar meu rosto e dizer que tenho
um pau pequeno.
Ela grunhiu exasperada e disse entre dentes. — Pau. Pequeno. Agora. Saia!

—Precisa saber algo primeiro, garota. — Disse, mas ela ficou tensa sob ele como
se houvesse recebido um tapa.

—Não! —Ela o olhou e seus olhos escuros se acenderam como fogo frio. —
Não me chame assim! Não pode me chamar por apelidos e fingir que se importa
enquanto mente na minha cara, não depois de me usar e tirar tudo o que eu tinha!
Acabou com toda minha vida! E te odeio por isso! Eu! Te! Odeio!

D sentiu seu rosto endurecer. — Não tirei nada de você, você sim. Fugiu sem
uma palavra, sem inclusive um olhar para trás e passei os últimos três anos em uma
puta agonia por causa disso. E sua fuga suscitou uma tempestade de merda épica.
Não sei como pode consertar tudo. Talvez não possa. Mas sou o que está entre
você e uma morte segura neste momento e estou arriscando meu próprio traseiro
para manter o seu a salvo, assim seja amável comigo e se acalme!

Olharam um para o outro, um ponto morto, até que finalmente o lábio inferior
dela tremeu. Incrivelmente, impossivelmente, seus olhos se encheram de lágrimas.
—Queria que estivesse morto. — Sussurrou miserável.

D podia suportar a dor física de qualquer tipo. Podia receber golpes, lidar com
cortes ou quedas, inclusive passar por uma tortura. O que não podia lidar era com
as lágrimas de uma mulher. Especialmente as lágrimas de sua mulher.

Como a neve no sol, seu coração se derreteu.

—Não, garota, não quer. — Sussurrou ele, olhando fixamente em seus olhos.
Tinha certeza que sob toda esta raiva, fúria e um muro de gelo que ergueu havia
uma pequena brasa de ternura que ainda ardia apenas para ele. — E vou demonstrar
a você.

Ele desceu sua boca até a dela.

Ela abriu a boca contra a dele e ele aproveitou a oportunidade para deslizar sua
língua entre os lábios. Ela soltou um leve som — terror ou ultraje, não podia dizer
— e ficou rígida como uma tabua e deixou de respirar.

Mas não se afastou dele.

D tomou isto como um sinal positivo e aprofundou o beijo, com ternura,


buscando, saboreando-a, querendo que ela respondesse ao invés de permanecer
congelada, o que lhe permitiu explorar sua boca sem nenhuma resistência.

Inclinou-se para trás e a olhou, seus olhos estavam fortemente fechados. Ele
abaixou a cabeça e a beijou suavemente em cada uma das pálpebras, o lugar entre
as sobrancelhas, a ponta do nariz. Ela soltou um leve som novamente e desta vez
soava mais como um apelo. Para o que, não podia dizer.

Para parar? Continuar? Uma morte rápida e misericordiosa?

Seu lábio inferior começou a tremer novamente. Ela era tão linda, tão vulnerável
assim, presa sob ele, fazia-o sentir uma onda de calor envolver seu corpo, o desejo
ardente brilhante como o sol da meia-noite.

Abra-se para mim, pensou, beijando primeiro o lábio superior e depois o inferior.
Apertou o mais suave dos beijos no centro de seus lábios, o leve arco, a curva
inferior, um lugar que beijou um milhão de vezes em sonhos febris. Abra seu coração
para mim, anjo. Deixe-me entrar.
Logo soluçou.

Congelou em um fôlego, seu corpo ardente, dolorido e seu coração quase


parando no peito como se tivesse morrido. Ela convulsionou e soluçou novamente,
virou a cabeça para o lado e começou a gritar em grandes soluços, atrozes que fazia
até a cama sob eles estremecer.

—Garota. — Sussurrou D, assustado. — Ana, Eliana, pare, está tudo bem, não
vou beijá-la novamente, apenas por favor... pare.

Soltou-a e se sentou. Ela cruzou os braços sobre o peito e enrolou-se como um


ovo, protetora, os joelhos perto do nariz, o rosto voltado para o colchão. Não sabia
o que fazer. Não sabia se poderia fazer algo. Vê-la assim fazia um buraco em seu
peito grande o suficiente para passar um caminhão.

—S... saia. — Soluçou. — Afaste-se de mim...

Aproximou-se dela, tocou seu ombro, mas no segundo que sua mão estava nela,
se sacudiu como se tivesse sido eletrocutada e deu um chute forte, em seu estômago.
— Afaste-se de mim! — Gritou enquanto caiu da cama. Aterrissou em um golpe
duro no chão e Eliana, com os olhos muito abertos, tremendo violentamente,
arrastou-se até a cabeceira da cama e encolheu-se ali, com o rosto vermelho,
olhando-o fixamente, mas com os olhos em branco, como se não o estivesse vendo,
mas alguém ou algo completamente diferente.

—Ana...

Exatamente neste momento, o alarme de segurança tocou alto, perfurando seus


tímpanos. Todos os nervos de D ficaram em alerta máximo.
Alguém estava entrando na casa.
CAPÍTULO
TREZE

Um ataque de pânico.

Eliana conhecia os sintomas intimamente, porque sofreu destes episódios


terríveis durante anos. Não que alguma vez contou a alguém. Em sua espécie,
mostrar fraqueza, era uma forma garantida de ir para outra vida.

A sobrevivência do mais forte era mais que uma teoria da evolução. Era um fato
real na lei Ikati.

A primeira vez que aconteceu foi três dias depois da morte de seu pai. Ela, Mel
e o restante do grupo estavam ainda nas catacumbas, tentando cruzar a fronteira
para a França a pé, sem saber se seriam pegos, sem saber de onde sua próxima
refeição viria.

Em um momento estava bem, caminhando ao longo de um riacho seco no


crepúsculo quente no Parque Nacional de Gran Paradiso a poucos quilômetros da
fronteira francesa, com os pés doloridos, o estômago grunhindo, sua mente um
emaranhado de pensamentos e lembranças que continuava empurrando de lado
para se concentrar na tarefa cada vez mais difícil de colocar um pé diante do outro.
Então, de repente, de entre os arbustos secos junto ao leito, explodiu em gritos,
alguns falcões, causando terror, vindo de um ninho escondido de predadores muito
maiores passaram voando.
O terror foi contagioso. Por um momento, a cegou. Eliana não podia respirar.
Seu coração não podia superar o fato. Ela explodiu em suor frio, começou a tremer
violentamente e sentiu um formigamento em todas as extremidades. Seu peito se
sentia como se estivesse sendo exprimido por uma mão gigante e invisível. Ela
pensou que estivesse morrendo de um ataque do coração.

O que era exatamente como se sentiu quando Demetrius simplesmente a beijou.

No ano anterior se sentiu melhor. Uma vez instalados na França — Silas teve a
ideia de encher uma sacola com dinheiro antes de fugir, não o suficiente para durar,
mas fez com que os ataques diminuíssem — não sentiu nenhum. Não quando ela
foi capturada pela polícia, não quando ela foi torturada por Édoard e o Dr.
Frankenstein, não quando a delegacia explodiu ao seu redor e foi sequestrada,
acordando com duas feridas de balas fechadas, presa em um quarto estranho em
uma casa estranha, sozinha.

Não, apenas um beijo pode trazê-lo de volta. Um beijo dele.

E este foi o pior de todos eles.

Agachada sobre a cama como um animal encurralado, enquanto observava com


olhos selvagens, D caindo no chão, seu enorme corpo se virando, com o rosto
tenso, um olhar de pura raiva nos olhos, indo diretamente para a porta do quarto.
Com um grunhido, disse. — Fique aqui! — Ele se moveu em silêncio até a porta,
olhou para fora e logo desapareceu, sem olhar para trás.

Uma vez que sentiu uma onda de alívio, ainda não pode fazer suas pernas
gelatinosas se moverem. Engoliu ar, desejando que seu coração diminuísse o ritmo
furioso, dizendo a si mesma que não estava morrendo, que ficaria bem, apenas
precisava sair do quarto e para longe dele.

E tudo o que viveu recentemente.

Ainda tremendo, tentou descer da cama e em seu lugar caiu de bruços no chão.
Ela ficou ali ofegando um momento, tentando ouvir algo sobre o terrível som do
alarme, mas não ouviu nada. Finalmente conseguiu fazer suas pernas trabalharem e
se arrastou para a porta. No chão pegou a faca que D tirou de sua mão. Chegou a
porta e olhou.

Um longo corredor alinhado com as portas abertas, algumas um pouco


fechadas. Uma escada em caracol no final, levava a outro andar.

Não havia janelas. Não havia outra saída.

Arrastou-se pelo corredor, olhando cada cômodo. Todos eram quartos, nenhum
tinha portas dentro. Tinha que passar pela escada.

Considerando seus passos com muito cuidado, com a adrenalina gritando


através de suas veias, avançava pela escada até chegar a parte de cima, depois,
avançou um último passo: a sala de estar. Sofás, uma grande televisão de tela plana,
uma decoração moderna, masculina. Não havia ninguém a vista.

O alarme estridente ainda gritava, impulsionando-a para frente.

Com o coração na garganta, relaxou nos últimos degraus e correu para a parede
oposta, onde se pegou do lado de uma estante alta e parou um momento para
recuperar o fôlego. Seu pulso estava acelerado, golpeando em um ritmo
intermitente que quase concorria com o alarme.
Ouviu vozes. Vozes masculinas. Gritos. Seu coração acelerou como um foguete
e suas mãos começaram a tremer tanto que quase deixou cair a faca. Aproximou-se
nas pontas dos pés pelo chão até a outra escada de caracol que conduzia a quem
sabe onde, a única forma de sair do cômodo.

Quando chegou à parte de cima da escada, quase caiu.

Três machos enormes, de cabelos negros, armados, mais ameaçadores que


qualquer humano poderia jamais ser, estavam tentando derrubar Demetrius no
chão. Tentando levá-lo ao chão sem muito sucesso. Todos estavam grunhindo e
gritando um com o outro em latim. Braços enormes balançando, cabelos negros e
punhos voando, uma mesa de carvalho na cozinha e as cadeiras bateram de lado
como brinquedos enquanto lutavam e cambaleavam pelo lugar.

D. Lix. Celian. Constantine. Os guardas pessoais de seu pai.

Os assassinos traidores de seu pai.

Um impulso quase termonuclear de matar todos eles com suas próprias mãos
fez o sangue cobrir seu rosto, pulsando quente, das orelhas ao pescoço. Lutou
contra o instinto de sobrevivência profundamente enraizado, teimoso que gritava
em termos muito claros para sair correndo dali enquanto estavam ocupados
fazendo o que fosse. Parecia que os outros três estavam tentando derrubar D, mas
porque, não podia entender. Ocorreu-lhe que talvez D se converteu em um
corrupto e matou seu pai sem o conhecimento dos demais, mas ela rejeitou este
pensamento tão rápido como chegou, sabendo que o Bellatorum era como os
mosqueteiros — um por todos e todos por um e coisas sem sentido. Se D planejou
matar seu pai, estavam todos juntos.
E esta era a oportunidade de se vingar.

Ou... fugir.

O que seria? Não poderia derrubar todos de uma vez, tinha apenas uma faca,
mas estavam todos de costas, distraídos, assim ela tinha o elemento surpresa...

Então, aconteceu algo estranho. No centro da bola grunhindo de fúria que era
os guerreiros lutando, D a viu na parte de cima da escada. Sobre os ombros dos
outros, seus olhos se encontraram por um instante infinitesimal. Logo olhou a sua
direita e olhou para ela, um olhar intenso de concentração em seu rosto, como se
estivesse tentando comunicar algo crucial. O olhar de Eliana se lançou à direita,
seguindo o dele.

A porta de correr de vidro da sala de estar na frente foi destruída. Em seu lugar
estava um enorme buraco, desigual e conduzia direto para fora.

A liberdade.

Seu estômago se contorceu. Ela devolveu o olhar para D e ele concordou com
a cabeça, logo soltou um grito assustador e arrastou os três guerreiros até o chão
com ele.

Eliana saltou a vida.

Em três longos saltos estava do outro lado da sala e passando pela porta
quebrada, saindo em um jardim de árvores e grama iluminado pela luz azul
fantasmagórica da lua. Ela não podia se transformar, mas ainda podia correr e o fez,
como o vento, sem olhar para trás, para os grunhidos dos homens lutando que
diminuía à medida que entrava na noite iluminada pela lua, pulando cercas,
escalando paredes, correndo através de gramados, ruas e varandas, sua mente um
ninho de víboras de perguntas sem respostas, contorcendo-se e cuspindo negro.

D a sequestrou.

D lutando contra seus irmãos.

D a deixando fugir.

Que porra estava acontecendo?


CAPÍTULO
QUATORZE

Quando o golpe seco chegou à porta fechada do escritório, Gregor não se


incomodou em olhar por cima do jornal que estava lendo. A notícia da fuga de La
Chatte da delegacia de polícia de Paris — com imagens coloridas da magnifica ladra
e o prédio destruído estavam em toda capa.

—Entre. —Disse com ar ausente, olhando a página.

Merck, um dos gorilas musculosos do clube, assomou a cabeça. — Temos um


problema, chefe. — Disse com sua voz fina que escondia sua verdadeira natureza
violenta. Passou sete anos na prisão por assassinato antes de Gregor contratá-lo.

—Não é o esquadrão idiota novamente, é? — Murmurou Gregor, imaginando


Édoard e seus subordinados à porta. Passaram toda a semana anterior procurando
dentro de seu prédio e quando não encontraram nada, foram embora.

—Não, exatamente. — A voz de Merck tinha quase um sorriso. Gregor


levantou os olhos do jornal para encontrar o homem musculoso, com um
cavanhaque, olhando-o com as sobrancelhas altas. Seus olhos castanhos brilhavam
com diversão. —Verifique a câmera cinco.

Gregor franziu o cenho e voltou-se para as telas de vídeo junto à parede do


escritório. Nelas estavam as imagens em preto e branco de dezenas de lugares ao
redor da propriedade, ao vivo em todos os ângulos. As escadas estavam vazias e os
cômodos silenciosos, portas e corredores fechados, a multidão flutuando no clube
noturno... e uma delas pegava a imagem assombrosa dos tambores de lixo, onde
uma mulher molhada tremia, quase nua, com os braços ao redor do peito, o cabelo
molhado grudado na cabeça, olhos enormes e escuros olhando suplicante para a
câmera.

Com o coração trovejando no peito, Gregor ficou de pé.

—Não aceitou um não como resposta quando a mandamos à merda. Disse que
a conhece. — A voz de Merck era cuidadosamente neutra. Ele nunca fazia
perguntas, ditava sentenças ou se envolvia nos assuntos de Gregor, a qual era uma
das muitas razões por ser um excelente funcionário.

—Cristo! Jesus Cristo! Leve-me a ela! — Gritou Gregor, com o rosto vermelho.
Merck apenas movimentou a cabeça e se afastou, fazendo a porta bater enquanto
Gregor passava por ela.

Uma viagem pelo elevador, dois lances de escada e três ataques cardíacos depois,
Gregor abriu a porta de trás e uma Eliana molhada e chorando caiu em seus braços.

—Fui sequestrada... e corri todo caminho até aqui. — Engoliu um soluço.

—Devagar, menina. — Murmurou, igualmente surpreso por esta nova e


vulnerável Eliana e com seu corpo quase nu grudado nele. Descalça, vestindo
apenas o que parecia ser uma bermuda e camiseta masculina, transparente pela água
e estava tremendo, ofegando e agarrando-se a ele como se fosse uma boia em um
mar agitado na tempestade. Envolveu seus braços ao redor dela, puxou-a para si e
murmurou com doçura. — Está tudo bem agora. Está a salvo aqui, pequena Chatte.
Entre. Venha para dentro comigo e vou deixá-la seca.

Olhou para as estrelas cintilando no céu noturno claro, franziu o cenho e logo
a empurrou para dentro. Com ela apoiando-se em seu braço, Gregor voltou para as
escadas.

***

Gregor a levou a um quarto enterrado em algum lugar profundo no prédio, que


estava decorado com tapetes marfim e paredes com painéis, um fogo aceso na
lareira de mármore. Acomodou-a no abraço reconfortante de uma poltrona junto
ao fogo e enviou Merck por toalhas limpas. Quando voltou, Merck foi liberado
depois de receber instruções para pegar uma roupa seca no armário de Celine e
Gregor passou vários minutos sem palavras, secando-a com cuidado e
metodicamente como se faz com uma criança depois de um banho, secou seu
cabelo e depois os braços, as pernas carinhosamente, até que ficou totalmente seca.

A simples cortesia a encheu de gratidão.

Quando terminou, jogou as toalhas na ponta da cama grande. Eliana observou


a cama e o grande espelho no teto acima dela e a mesinha de noite com uma discreta
placa dourada que dizia “baú do tesouro” e tentou não pensar no que se tratava.
Enrolou uma toalha felpuda ao redor dos ombros, a olhou um momento, logo se
instalou na poltrona maior de frente a ela, juntou os dedos sob o queixo e disse. —
Então.
Eliana inclinou a cabeça e fechou os olhos.

Imaginou este momento durante anos, ainda que claro, nunca sonhou ser nestas
circunstancias. Vários cenários foram considerados e quanto mais tempo o
conhecia e mais confiava nele e queria lhe contar... mas podia confiar nele com isto?

Adivinha o que? Sou um shifter exilado de minha colônia de shifters que vivem escondidos
nas catacumbas sob o Vaticano. Ah e há outras colônias de nós escondidas em todo o mundo.
Não sou humana, como vê. Não é genial? Vamos brindar!

De alguma forma não acreditava que seria assim.

Mas ela estava ali. Ali, não a antiga igreja e catacumbas com o restante dos
parentes exilados. Ali, na segurança oferecida por um ser humano que nunca lhe
negou nada e aceitou todos seus segredos e idas e vindas sem perguntas. Ela não
tentava enganar a si mesma que era por Gregor estar mais perto, ainda que sem
dúvida, estivesse. Uma vez que encontrou um caminho principal que levava longe
da casa, passando pelo subúrbio, apenas correu diretamente ali, ainda que por alguns
quilômetros mais, estaria em casa.

Casa, pensou com uma pontada no peito. Ela nunca realmente teria uma nova
casa?

Levantou os olhos para encontrar Gregor considerando-a com cuidado, os


olhos ternos, mas muito astutos.

—Seus pés precisam de cuidados. — O olhar caiu a seus pés descalços,


descansando sobre um banco com cautela. As plantas estavam cortadas de tanto
correr, algo que nunca fazia em forma humana. Doíam demais, mas já sofreu coisas
piores.
—Pior que pés quebrados? — Refletiu, com as sobrancelhas altas.

Tente com um coração partido, pensou e logo fechou este pensamento novamente
na pequena masmorra em sua mente, onde guardava os demônios errantes. Ela
estava mais tranquila do que quando chegou, mais lúcida, mas ainda em estado de
choque e se permitia pensar...

Demetrius. O Bellatorum. Seu pai. Édoard e o alemão. Silas. Caesar. Tudo girava
ao redor de uivos, os dentes batendo — seu cérebro um tornado, puxando-a cada
vez mais para baixo.

—Como sabe em quem confiar, Gregor? Você é um homem de negócios, um


homem do mundo. Viu e fez quase tudo, aposto. Como decide que é o momento
de confiar em alguém?

Ele sorriu conhecedor. — Alguém?

Seu coração golpeou contra o peito. —Você. — Disse finalmente, sem rodeios.
— Como sei que posso confiar em você

—Não pode, princesa. —Respondeu em voz baixa, segurando seu olhar. —


Feche os olhos e se deixe cair e veja se estarei aqui para pegá-la. É por isso que se
chama confiança. É um pouco como a fé, somente não precisa esperar até que esteja
morta para ver se é real.

Ela não sorriu ante sua brincadeira. —Há muitas vidas em jogo para desfrutar
de um luxo como a confiança, sem algum tipo de garantia de que não será quebrada.

Bufou. —Não há garantias na vida. Sem risco, não há recompensa e a confiança


é um grande risco, eu garanto. — Sua voz suavizou. — Mas você já sabe que eu
faria qualquer coisa por você, certo? Já tem a prova. Não é mais que a sensação do
vento em seu rosto quando está pulando do telhado.

Eliana franziu o cenho para ele. — É a versão escocesa de palavras de ânimo?


Porque é horrível. Claro, viria bem com uma bebida agora. Uísque, se tiver.

Ele lhe olhou. — O álcool não soluciona nenhum problema.

—Sim, mamãe, mas não o faz o leite também.

Gregor olhou-a por um instante, logo se levantou da cadeira e se aproximou de


um aparador cheio de garrafas de uísque, vinho, vodka e rum. Serviu uma dose do
líquido âmbar em dois copos e lhe entregou um, logo bebeu de uma vez.
Acomodou-se em uma cadeira enquanto ela olhava para baixo, no copo em sua
mão.

Depois de um momento de silêncio, disse. — Porque não me conta uma


história, Eliana.

Cautelosa, levantou o olhar para ele. — Uma história?

Ele concordou lentamente, seus quentes olhos cor avelã prendendo o dela. Na
lareira, a madeira rugia com um golpe seco amortecido, enviando uma cinza laranja
para cima. — Uma história. Não tem porque ser necessariamente certo, veja, somos
apenas dois amigos que compartilham uma história enquanto tomam um copo de
uísque. Algo incrível e fantástico, sabe, como: Era uma vez, uma mulher misteriosa
que podia aparecer do nada e desparecer com a mesma rapidez. Como o gato de
Alice no país das maravilhas, entrando e saindo dos lugares fechados, como um
fantasma... — Sua voz suave ficou irônica. —Um fantasma que precisava de armas,
minas terrestres e semiautomáticas, que apareceu molhado e assustado no meio da
noite depois de ser solto da prisão por um grupo experiente de ninjas armados.

Ela passou a mão pelo rosto e apertou a ponte do nariz com os dedos. —Minha
história é tediosa, Gregor. Realmente não há muito para contar.

Inclinou-se adiante em sua cadeira e apoiou os cotovelos sobre suas enormes


coxas, olhando-a com os intensos olhos claros. O cabelo grosso e loiro escuro, com
uma barba de três dias e um sorriso de pirata, que afirmava ser um descendente
direto do proscrito escocês Rob Roy22. Ela acreditava também que era fácil imaginá-
lo liderando guerreiros com espadas e gritos de guerra, vestidos em kilt. Em voz
muito baixa, disse. —Não minta a um mentiroso, querida. Aposto que sua maldita
história não tem preço.

Ela ficou rígida. A mão que segurava a manta ficou com os nós dos dedos
brancos. Gregor viu a mudança nela e seu rosto suavizou.

—Não. Não fique assim, princesa. Tudo já passou, agora está a salvo. Está com
um amigo que não irá julgá-la, nem a machucar. Irei fazer o que puder para ajudá-
la, sempre, sabe disso. Deveria saber. Outros podem estar contra você, mas eu estou
a seu lado. — Hesitou e sua expressão ficou séria. —Prometeu que viria a mim se
tivesse problemas e o fez. E agora tenho que saber exatamente em que tipo de
problemas está, para que eu possa ajudá-la.

—Ninguém pode me ajudar. Especialmente ninguém como... ninguém como...

22Filme americano lançado em 1995, inspirado na vida do escocês Robert Roy MacGregor e suas batalhas com os
senhores feudais das terras altas da Escócia.
—Eu? — Disse Gregor, adivinhando corretamente. Toda a suavidade saiu de
seu rosto. —Não ninguém como eu, quer dizer?

Ela concordou com a cabeça e seus olhos se levantaram. — Gregor, não. —


Disse em voz baixa, ao ver sua incompreensão. — Não por quem é, mas pelo que
faz. — Ela fez um gesto para o quarto, o espelho sobre a cama, o baú de brinquedos
ao lado dele.

—Então o que? — Sua voz ficou tão fria como seus olhos.

Não acreditava nela. E ela lhe machucou. Ajudou-a e ela o machucou. Por
guardar informação, machucou uma das únicas pessoas que na verdade poderia ser
capaz de confiar.

Apenas feche os olhos e pule.

Poderia? Eliana inalou uma longa respiração, depois soltou lentamente, se


debatendo.

Seu coração se encolheu. Gregor ficou olhando-a atentamente e irritado. Cada


aspecto do quarto se acentuou, o fogo murmurando ficou mais forte, a luz brilhante
quase insuportável.

Logo, como a sensação de um precipício muito alto e caindo para baixo em um


poço de escuridão permanente, disse. — Devido a que é um ser humano, Gregor.
E eu não sou.

Depois de um momento longo e doloroso de silêncio, sentindo como se seu


corpo fosse um cabo esticado que poderia se romper em dois, Gregor fez um ruído
com a garganta, baixo e contemplativo. Inclinou-se para trás em sua cadeira.
Esfregou um dedo sobre seus lábios e deixou o olhar ir sobre seu rosto, seu corpo,
suas pernas nuas e os pés machucados. Sua mandíbula se moveu. Logo, em voz
muito baixa e rouca, disse. — Quando era uma criança, minha avó contava história
sobre os sidhe. Ouviu falar deles?

Confusa por sua reação ou a falta dela — Eliana moveu lentamente a cabeça.

—Eram espíritos da natureza, dizia, deuses e deusas que existiam em um mundo


invisível, que coexistia com o mundo dos seres humanos. — Seu olhar fixo e
penetrante agora, voltou para seu rosto e a imobilizou com seu olhar primitivo e
inteligente. — Eram incrivelmente lindos e igualmente ferozes, dotados com algo
que os seres humanos não podiam entender. Os sidhe anunciavam uma morte
próxima com lamentos, molhando a roupa da pessoa condenada a morrer, os sidhe
leanan eram amantes de fadas ou buscavam o amor entre os mortais... e os sidhe
gatos podiam se transformar em um gato ou roubar sua alma.

Ele a olhou e Eliana, com os olhos abertos e sem fôlego, sentiu um arrepio na
pele.

—Minha avó era uma velha louca, princesa. Ela era uma das mais antigas de um
país velho, cheio de folclore e caminhos na magia antiga. Eu era um garoto da
cidade, nunca acreditei em uma palavra que dizia. — Sua voz caiu uma oitava. —
Até que a conheci. Até talvez, neste momento. Assim vou dizer mais, princesa e
espero que satisfaça um velho amigo. Conte-me sua história.

Os lábios de Eliana se separaram. Tudo dentro dela queimava e tremia. Sentia-


se eletrocutada. Sentia-se aterrada. Sentia-se viva.

Estava contando sua história a alguém. Um humano.


Ele sabia.

Ele acreditava.

Ruborizada, quase eufórica com uma mistura embriagante de esperança e medo,


ficou olhando-o.

—Era uma vez. — Em voz baixa disse.

—Era uma vez... — Quando hesitou, Gregor balançou a cabeça tranquilizando,


como se quisesse dizer, adiante. Incapaz de suportar seu olhar agudo por mais
tempo, virou o rosto para o fogo e ficou olhando as chamas crepitantes. Umedeceu
os lábios e começou novamente.

—Era uma vez, um reino de magia, mistério e escuridão permanente, no qual


vivia uma princesa. Ela era impotente, superprotegida e como as princesas dos
contos de fadas, incrivelmente ingênua. Não sabia confiar em estranhos. Não sabia
como escolher adequadamente amigos. Não sabia, infelizmente, que por trás dos
mais belos sorrisos às vezes se escondiam as mais feias mentiras e as mais perigosas.

Ela fechou os olhos, se lembrando, a dor da traição ainda tão profunda depois
de todos estes anos.

—Nascida em uma família de grande riqueza e um povo de dons incomuns, a


princesa privilegiada e mimada, não sabia que havia outro mundo além da jaula
dourada. Um mundo de aventura e possibilidades. Um mundo diferente. Um
mundo ao qual não pertencia e, no entanto, queria conhecer com cada fibra de seu
ser.
Olhou para Gregor e ele moveu a cabeça novamente, incentivando, assim
respirou fundo e continuou.

—Mas devido a ela ser filha de um grande e poderoso rei, descente de uma
linhagem antiga de grandes reis que aprenderam a sobreviver se escondendo dos
humanos, a princesa não tinha permissão para mergulhar nas águas proibidas e
tentadoras da humanidade. Ela era mantida no palácio subterrâneo suntuoso e
satisfazia suas ânsias com livros e filmes, fantasias sobre o que nunca poderia
acontecer. — Sua voz se converteu em um sussurro. — Um dia, no entanto, o
destino interviu.

O fogo piscava laranja, dançava e girava chamando-a para trás, para o passado,
a lembrança agridoce das vezes antes que ela se dividiu em duas pessoas. A Eliana
de antes e a Eliana de depois, uma feliz ignorante, uma congelada para sempre em
um caixão de gelo.

—O rei foi assassinado. Como o rei humano Caesar Augusto que uma vez caçou
sua espécie até a extinção, que foi traído pelas pessoas mais próximas a ele. O reino
foi roubado e a princesa... a princesa fugiu para não voltar mais.

O nó se formou em sua garganta. As chamas se agitavam e nadavam em sua


visão. Gregor não se moveu e ela não o olhou. Ela tinha medo, se o fizesse se
desmancharia em lágrimas.

Murmurou. — O que aconteceu com ela?

—Ela... ela mudou. Descobriu seu caminho no mundo. Ela começou a roubar.
— Seu olhar piscou para Gregor. —Para sobreviver. Por dinheiro. E para outras
coisas... coisas que precisava. — Voltou a olhar o fogo.
—E estas outras coisas que precisava. — Murmurou Gregor. — Eram elas para
proteção contra o assassino de seu pai?

Eliana fechou os olhos e sentiu uma lágrima solitária escorrer pela bochecha. A
voz de Silas sussurrou em sua cabeça: Há uma guerra vindo, principessa. A sobrevivência
do mais apto é a única coisa que importa agora. — Isto é apenas uma parte. — Sussurrou
ela, puxando a manta mais ao redor dos ombros. De repente sentia muito frio.

—O que mais? O que falta?

—Vingança.

A palavra ficou pendurada no ar entre eles, simples e sinistra. Gregor a olhou


sério. — Isto é muitas armas para uma vingança.

—É mais complicado que isso.

Um leve movimento da cabeça e Eliana soube que não entendeu completamente


e queria que explicasse. Devido a que ela estava sentindo que tinha uma experiência
fora do corpo de qualquer forma, adiantou-se e disse. — Cada país conquista o
poder de várias formas, desde o tamanho da população aos recursos naturais para
estabilidade financeira. Sem estas coisas, o poder é impossível. A liberdade é
impossível. Mas há uma coisa que pode mesmo no campo de jogo, que inclusive os
mais fracos podem usar, como Davi e Golias. — Ela o olhou e ele estava olhando
para trás dela, absorto. — Armas.

Gregor começava a compreender. —Está criando um exército. — Acusou.

Ele era rápido, tinha que lhe dar crédito. — Apenas estou contanto uma história,
lembra-se? — Ela limpou o rosto com as costas da mão e se negou a olhá-lo.
Sentou-se rigidamente para frente em sua cadeira. —Assim que estou
comprando um arsenal de armas para que possa, a sua vez, fazer o que? Matar as
pessoas — Os humanos?

Surpresa ficou rígida. —Não! Claro que não! Apenas temos que nos proteger!
Queremos sair das sombras e viver em paz, mas temos inimigos.

Gregor ficou de pé e olhou para ela, irradiando tensão. — Proteger a si mesmos


com armas automáticas? Com minas terrestres?

—Gregor. — Disse ela mais firme. — Sente-se.

Ele deve ter visto algo em seu rosto, porque concordou, a contragosto. Ele
cruzou os braços sobre o peito e a olhou sem piscar, toda a suavidade desapareceu.

Ele bebeu o resto do uísque e deixou o copo na mesa junto a sua poltrona com
um tilintar agudo. — Temos muitos inimigos e eles são muito desagradáveis,
Gregor. Não se trata de pessoas sofrerem, trata-se de nos proteger daqueles que
querem nos ferir.

Parecia duvidoso com o que ela dizia. — Lembra-se do homem que estava em
seu escritório no dia estava com o Cézanne? O que estava com a polícia, o alemão
com um pedaço de gelo no coração?

Os lábios de Gregor se apertaram e ele inclinou a cabeça.

—Quando me levaram à delegacia, me torturaram.

Foi como se um globo cheio fosse atingido por um alfinete. Ele visivelmente
desinflou. Seu rosto empalideceu e disse. — O que?
—Eles sabem, de alguma forma, o que nós somos. Eles... — Fez uma careta,
depois continuou. — Fizeram testes comigo. Provas, para ver minha reação aos
estímulos, estes tipos de coisas. Eles sabem sobre nós, mas não sabem tudo e temos
que nos proteger se vamos correr o risco de estar fora. Talvez isso começou com
este vídeo há anos. — Murmurou. Constantine e seu estúpido instinto de luta na
discoteca.

—Espere. Espere. —Gregor se inclinou adiante na poltrona novamente, com


as mãos estendidas. —O infame vídeo da discoteca em Roma? Com as... uh... —
Parou em silêncio, incapaz de dizer mais.

Eliana olhava sob os cílios. — Panteras. Sim.

Ele empalideceu visivelmente. Ela o viu pensar novamente, o vídeo feito pelo
celular de um expectador no clube noturno popular mostrava uma estranha visão
de seis panteras negras impossivelmente enormes que grunhiam, em uma sangrenta
batalha na pista de dança antes que a polícia houvesse disparado e capturado duas.
Ela o viu diversas vezes, ficou no ar muito tempo, antes das autoridades dizerem
que era falso. Ao menos publicamente.

—Eh. Eh. — Disse, dando volta em sua mente, envolvendo sua cabeça ao redor
da coisa. Inclinou-se para trás na cadeira e exalou um longo e tranquilo suspiro. —
Sidhe gato depois de tudo, certo?

—Cada cultura tem seus mitos sobre shifters. — Disse Eliana suavemente. —
Alguns deles estão mais perto da verdade do que outros.

Ficou nisso por um minuto, voltando a pensar e Eliana esperou, observou sua
expressão cheia de emoção, com o coração na garganta.
Será que fez algo muito, muito estúpido?

Depois de um tempo, seus lábios se torceram. — Deveria saber que roubava


almas. — Murmurou.

O alívio a percorreu e ela deixou escapar o fôlego que nem sequer sabia que
estava segurando. — Um demônio eloquente.

—Uma ladra felina.

Ela lhe sorriu e ele se inclinou, segurou suas mãos, de repente inclinando-se
novamente. Com veemência disse. — Prometa que não vai lançar um Montecore
em mim. Ou em qualquer outra pessoa.

—Montecore? — Ela estava confusa. — O que é um Montecore?

Completamente sério, a luz do fogo deixava o cabelo dele em um vermelho


brilhante e dourado, enquanto ele a olhava. — O tigre branco que comeu o mágico
em Las Vegas. Roy não-sei-o-nome. Já sabe, no espetáculo no Hotel Mirage23.

Ela riu levemente, se inclinou e pressionou a testa quente nas mãos unidas. Seus
dedos contra a pele avermelhada estavam gelados e ela supunha que não estava tão
bem quanto ele pretendia. Com uma risada grave e retumbante sem quase nada de
súplica, disse. — Gosto de manter minha cabeça unida ao corpo, moça, se não se
importar.

—Prometo que não vou atacá-lo. — Disse ela solenemente. — Mas aquele
pequeno cão seu...

23 Roy Horn, um dos membros da dupla de ilusionistas Siegfried e Roy, uma das mais famosas do Mundo, foi atacado
no dia em que completava 59 anos, por um tigre branco com o qual realizava o habitual “show” no Hotel Mirage, em Las
Vegas. O felino atirou-se ao pescoço do mágico e arrastou-o pelo palco.
Gregor ficou sem fôlego em indignação fingida e levantou o olhar ao seu rosto.
Seus olhos cor avelã brilhavam. —Apesar de que me faria um favor neste caso.

Eliana balançou a cabeça, assustada com a gratidão crescente e compreensão de


que o sonho de seu pai de uma vida no campo poderia ser uma realidade plausível.
Se um ser humano podia aceitá-la, por que não dez? Porque não cem?

Porque não todos eles?

—Bom, então vamos ver o que pode fazer, princesa. Vá em frente e me mostre.
— Fez um gesto com a mão, incentivando, mas ela negou com a cabeça.

—Não posso. — Disse ela sabendo o que queira. — Não posso me transformar
quando estou ferida.

Bufou incrédulo. —Oh, que conveniente! Alguns leves arranhões nas plantas
dos pés e o grande gato fica escondido!

Ela suspirou e encolheu os ombros sob a manta. —Se fosse só isto, funcionaria,
mas os buracos de balas não ajudam em nada.

Sua alegria ao instante sumiu e sua voz ficou baixa e ameaçadora. — Buracos de
balas. — Seu olhar a percorreu e caiu na atadura na perna. Ele não o mencionou
antes e agora ela não queria responder a pergunta em seus olhos. Depois de um
momento, disse com a mesma voz baixa. — Então os assassinos do rei alcançaram
a princesa.

—Assim parece.
A tensão irradiava de seu corpo como se tivesse apertado um interruptor. Ficou
rígido, olhando ao redor do suntuoso quarto como se os esperasse encontrar
escondidos atrás das cortinas. — Podem também se transformar em panteras?

Demetrius podia. Quando ao resto do novo grupo, os de caçadores, como ele


chamou, ela não sabia com certeza, mas se estivessem em sua equipe, poderia
imaginar que sim. Sentindo-se mal novamente, ela concordou. — Mas eles não me
seguiram até aqui. Tenho certeza. Não o colocaria em perigo desta forma. E
disfarcei meu cheiro para não serem capazes de me seguirem assim.

Quando as sobrancelhas se juntaram em confusão explicou. — A água mascara


nosso cheiro. Passei por cada maldito rio, fonte ou piscina infantil na cidade no
caminho até aqui.

—Jesus, Maria e José. — Murmurou, olhando-a com consternação. —Conte-


me sobre isso.

Um golpe na porta mostrou Merck, voltando com roupas secas roubadas do


armário de Celine. Ambos se levantaram e Gregor pegou as roupas, uma blusa fina
e um Jersey de seda drapeado cinza claro, coisas que ela nunca escolheria por si
mesma e as colocou na cama. Merck se desculpou e Gregor virou-se para ela.

—Ficará aqui esta noite. Chamarei um médico, mas pode levar uma hora ou
algo assim antes de chegar aqui, assim durma um pouco enquanto isso.

—Um médico? — Disse alarmada, lembrando-se do alemão na delegacia.

—Para os ferimentos de bala. — Explicou suavemente, olhando sua perna


vendada. Seu olhar viajou por seu corpo, em busca de mais.
—Quadril. Mas está com pontos, as feridas estão limpas. Irei me curar em um
dia.

—De uma ferida de bala? — Seu rosto se manteve neutro, mas se tom era
claramente incrédulo. Ela se limitou a concordar. Aceitou com um movimento de
cabeça e logo disse. — Deu pontos em suas próprias feridas? Conheci mercenários
duros que não foram capazes de fazê-lo.

Ela hesitou. — Eu... não. É, hum, complicado.

Suas sobrancelhas se ergueram. Ele disse. — Foi a um veterinário?

Ela rodou os olhos. — Se quer saber, a mesma pessoa que explodiu a delegacia,
atirou em mim e me tirou de lá, foi quem o fez.

Ele a olhou desconcertado. — Caminhe comigo através disso, princesa. Alguém


que a quer morta, explodiu a maior prisão na França e depois, disparou em você,
então a levou a um lugar seguro, tirou as balas e deu pontos?

Dito assim, soava menos razoável. Eliana mordeu o lábio. — Ele o fez porque
estava tentando tirar informações de mim. Sobre o restante. Onde estamos. Onde
vamos ficar. De maneira que ele...

—Assassinos geralmente não fazem uma cirurgia com a finalidade de conseguir


informações. —Interrompeu, razoável. —Alguns alicates seriam suficientes. Se este
indivíduo trabalhasse para mim, estaria despedido.

Eliana abriu a boca para dizer, mas não tinha resposta.

—E escapou desse assassino... como?


—Ele... bom, me deixou ir. Quando seus amigos apareceram. Os outros
assassinos.

De todas as coisas incríveis que lhe contou nos últimos minutos, esta era a qual
Gregor escolheu para conversar. Seu rosto adquiriu uma expressão de incredulidade
extrema, como se houvesse entrado em seu quarto para ver um unicórnio deitado
com um yeti na cama. —Ah. E iria fazer isso por que...

Seus lábios se torceram. — Como disse, é complicado.

—Isto não é complicado, Eliana. Isto é um absurdo.

—Bom. — Disse, na defensiva. —Isto foi o que aconteceu! Quem sabe por que
Demetrius faz alguma coisa...

—Ah. — Disse e cruzou os braços sobre o peito.

Ela ficou olhando-o. — O que, ah? O que significa isso?

Ele arqueou as sobrancelhas e encolheu os ombros. — A julgar pela forma como


você diz seu nome, estou adivinhando que entre você e este Demetrius tem alguma
história.

Uma onda de calor subiu por seu pescoço, estendeu-se pelas bochechas, orelhas
e testa.

Gregor bufou, observando seu rosto. — Uma história importante.

—Sim, temos. — Disse ela, sua voz mais fina. Seus olhos se enchendo de
umidade traidora e ela nem sequer se incomodou em piscar para limpar. — Eu...
estava apaixonada por ele e ele matou meu pai.
Os braços de Gregor caíram dos lados. Seu rosto suavizou. — Oh princes...

Deu um passo para ela e neste preciso momento um Merck extremamente


agitado explodiu através da porta do quarto.

—Temos más companhias, chefe! — Gritou, com o rosto vermelho e suado. —


Céu afora!

Despareceu pela porta sem dizer nada mais, deixando Eliana com o coração
acelerado e Gregor com um rosto sombrio, respondendo sua pergunta antes que
pudesse falar.

—Significa correr. — Disse entre dentes, agarrando Eliana pelo braço.


CAPÍTULO
QUINZE

Levaram muito tempo para subjugarem D, foi apenas o tranquilizante que


Constantine com inteligência o suficiente se lembrou de pegar da enfermaria antes
de sair de Roma, que funcionou.

—Ele terá uma puta dor de cabeça quando acordar. — Lix disse enquanto
observava o enorme D dormindo no sofá no qual o deixaram. Estavam reunidos
na sala de estar da casa de segurança onde encontraram D... mas não Eliana.

Ela esteve ali, no entanto. Celian, Constantine e Lix puderam sentir seu cheiro,
rastros fracos de bosque e rosas espalhados pelo ar, no andar de baixo mais forte,
mas ainda mais forte, em um dos quartos que parecia ter sido vítima de um tornado.
Lix se esqueceu de seu cheiro incrível. Uma fêmea não acasalada, incrivelmente
poderosa, de puro sangue e privilegiada... não havia ninguém igual na terra.

Não era de estranhar que D praticamente não podia deixá-la.

—Merece uma puta dor de cabeça. — Murmurou Celian de sua posição na porta
da sala. Estava apoiado no umbral, era o mais alto deles com mais de dois metros
de altura, passava o grupo em uma cabeça e cruzou os braços sobre o amplo peito.
Tinha um cenho ameaçador para o guerreiro inconsciente deitado no sofá. —
Teimoso, obstinado, rebelde filho da puta.
Lix observou o antebraço e fez uma careta. Um perfeito contorno dos dentes
de D estava em sua pele. —Desde quando começou a morder?

—Desde que caiu de cabeça e perdeu as bolas por Eliana. O que foi quando
perdeu seu maldito juízo.

Um gemido da direção do sofá fez todas as cabeças se virarem. Lix se levantou,


Celian se endireitou na porta e Constantine parou seu vai e vem tenso do outro lado
da sala. A cabeça de D rodou para um lado e logo outro. Suas grandes mãos se
fecharam.

Soando preocupado, Lix disse. —Precisamos segurá-lo?

—Isso apenas o irritará. — Celian lançou um olhar para Constantine, que ainda
não se moveu. — Vamos dar-lhe um minuto, ver o que faz. Mantenha a seringa
pronta, no entanto.

Um olho se abriu, logo outro. D piscou para o teto. As mãos fechadas se abriram
e depois se fecharam em um punho. Logo em um movimento rápido levantou-se
do sofá como se alguém o houvesse eletrocutado e se afundou em uma posição de
combate reflexiva, com os punhos no alto, os joelhos dobrados e as pernas abertas.
Um grunhido malvado saiu de seus lábios.

—Calma, irmão. — Disse Celian em voz baixa. D o olhou, os olhos negros fora
de foco e balançou sobre os pés. —Somos apenas nós. Tivemos que derrubá-lo por
um minuto. O tranquilizante vai levar um tempo para sair de seu sistema...

Como para provar seu ponto, D cambaleou de lado e explodiu contra uma
mesinha de madeira que rapidamente se partiu. Recuperou o equilíbrio, balançou a
cabeça e grunhiu. —Que porra é isso?
—Excelente pergunta. — Disse Celian de forma fria. — E esperava que me
respondesse.

—Como me encontrou, merda? — D estendeu a mão contra a parede.

—Não é exatamente um experiente em explosivos. — Lix respondeu em tom


neutro. — Xander ficou feliz em dizer sua localização.

—Filho da...

—A antiga casa de segurança do Sindicato em Paris. Foi apenas uma questão de


colocar dois mais dois juntos.

D rugiu. — Sabia que deveria tê-lo matado quando tive a oportunidade.

—Onde ela está, D? — Disse Constantine do outro lado da sala. — Onde está
Eliana?

Ao ouvir seu nome, D se ergueu em toda sua altura e fulminou seus três irmãos
com o olhar. Não disse uma palavra mais.

A voz de Celian soou brusca quando disse. — Certo. Assim é como será. Vai
nos contar o que aconteceu aqui, o que sabe e se ela disse algo que pode nos ajudar
a encontrar sua nova colônia. E logo vamos decidir qual o seguinte passo... no jogo.

—O seguinte passo é meu punho em sua garganta. — D pronunciou com uma


fúria fria e selvagem, que realmente fez Celian parar, o que era uma proeza em si
mesmo.

—Eu disse. — Disse Constantine a Lix e Celian, sua voz derrotada. — Está
totalmente fora de si.
—Talvez possamos usar isto em nossa vantagem. — Celian parecia quase
distraído enquanto falava, contemplativo de uma forma que fez Lix e Constantine,
trocarem um olhar. — Durante um tempo, ao menos.

Com D olhando-os com olhos selvagens, Celian casualmente se aproximou da


mesa contra a parede e sentou-se. Esticou suas longas pernas, as cruzou nos
tornozelos, franziu os lábios e começou a traçar um padrão invisível lentamente
sobre a mesa, com o dedo.

—Digamos, por exemplo, que está além da sanidade. Neste momento. —


Enfatizou, levantando os olhos para D e logo para baixo. — Digamos que posso
informar ao Conselho de Alfas que efetivamente nosso irmão está enlouquecido de
amor. — D grunhiu uma advertência baixa, mas Celian continuou, imperturbável.
— Mas infelizmente escapou de nós antes que pudéssemos conseguir qualquer
informação sobre o paradeiro da princesa desaparecida, que inconvenientemente
fugiu da prisão e sua tribo.

D grunhiu para silenciá-lo. Uma sombra de hostilidade desapareceu de sua


postura, mas continuou observando Celian em beligerância — olhos estreitos e
cautelosos.

—E digamos que solicitaremos mais tempo para pegá-lo, porque apenas nós
podemos fazê-lo e apenas nós podemos tirar alguma informação sobre o que a
princesa disse.

D sabia que Celian já havia conversado com o Conselho, provavelmente foi


ameaçado com lesões corporais e uma guerra... e ainda queria ganhar tempo para
encontrar Eliana. A ira saiu de seu corpo e foi substituída por uma emoção mais
profunda do que já tinha pelo líder do Bellatorum. Isto era arriscado e muito. Ele
disse. — Eles nunca irão concordar.

Celian respondeu em voz baixa. — Direi a eles que a colônia romana irá se unir
a Confederação tribal e farei parte do Conselho de Alfas se concordarem.

Este pronunciamento foi recebido com um silêncio incômodo. Todos na sala


sabiam o quanto Celian resistia a se unir a Confederação, o quanto odiava a ideia de
submeter seu próprio povo as leis externas. Leis estrangeiras. Fazer parte do
Conselho significaria grandes mudanças, menos controle e sem dúvida menos
liberdade. E muito mais contato com Leander McLoughlin, o Alfa de Sommerley,
a quem odiava abertamente.

—Um acordo justo. — Lix disse com voz tensa, olhando para D.

Ele tinha um ponto. — Se concordarem, apenas teremos uns dias. Talvez nem
sequer isto. Precisa valer a pena.

Celian observou D com calma, ignorando os demais. — Apenas se você


concordar. E depois, nós três vamos votar sobre isto.

Ao instante Constantine disse. —Estou dentro.

—Grande. — Murmurou Lix. — Com certeza não preciso votar, então.

D cruzou os braços sobre o peito. Depois de um longo olhar, o silêncio de


Celian durou alguns minutos. — Silas está por trás disso. Ele lhe disse que matei
seu pai e me deu a impressão de que todos a levaram acreditar que nós três
planejamos um golpe... e ela acha que tem um alvo em suas costas.

As sobrancelhas de Celian se ergueram. — Ela acha que queremos matá-la?


—Ela pensa que quero matar todos. — A incredulidade, ira e dor soavam em
sua voz. Passou a mão pela cabeça e a manteve ali, fechando os olhos brevemente.

—Parece como se estivesse muito irritada com você. — Constantine olhou para
o rosto vermelho de D.

—Irritada nem sequer começa a descrever. — Murmurou D. Levou uma mão


ao rosto e fez uma careta. — Ela ficou louca.

—Pagaria um bom dinheiro para ver isso. — A voz de Celian era leve, mas havia
um sorriso por trás. — Nossa pequena principesca, irritada o suficiente para tentar
derrubá-lo.

—Está muito irritada. — Mas pior ainda que a raiva era a terrível tristeza que
viu na mulher que se lembrava como feliz. O peito de D se apertou ante a lembrança
das lágrimas, a lembrança daquele poço sem fundo de tristeza que vislumbrou em
seus olhos, a dor que equivocada ou não, ela pensava que ele causou. Sentiu um
impulsou repentino, violento de apertar o pescoço do escorregadio Silas, pela
mentira. Lentamente se dirigiu ao sofá novamente e se sentou com os braços nos
joelhos.

—A polícia sabe quem é você agora. —Disse Constantine em voz baixa. —


Estão te procurando. — Olhou para D. — E para você. Será muito mais difícil
segui-la agora.

—O que passou na televisão? Falaram sobre os corpos dos policias que não
pude identificar? —D estava olhando para o chão, encurvado e perdido em seus
pensamentos, toda a ira de momentos antes sumiu de sua postura.

—Não. —Celian se inclinou em sua cadeira. — Pegou alguém?


D assentiu. — Um dos caçadores. Chegaram ao mesmo tempo em que eu. Se
chegasse uns minutos mais tarde... — Olhou para Celian e seus olhos queimaram.
— Ainda estão aí fora, procurando-a. — Então sua mandíbula ficou tensa e sua voz
venenosa. — Sete ou oito, pelo menos.

Celian franziu o cenho. — O noticiário na televisão unicamente indicava que o


mão direita do chefe ficou levemente ferido na explosão. Ao parecer, nenhum outro
se feriu.

—Havia outro homem ferido. — Interrompeu D. —Humano. Muito ferido


pelo que pude ver. Óculos. Jaleco branco. Parecia um médico.

Celian negou com a cabeça. —Não o mencionaram, não mencionaram corpos


impossíveis de identificar. Leander não mencionou nada disso.

Os lábios de D se levantaram em uma linha feia mostrando os dentes e ele se


incorporou, tenso como uma tábua, irradiando violência. Ele grunhiu. —Eu
pessoalmente vou arrancar a cabeça de cada um de seu pequeno grupo de
assassinos...

—Provavelmente não seja útil a nossa causa. — Interrompeu Celian.

—... e se algum deles machucarem um fio de cabelo dela, irei atrás dele e toda
sua colônia eu mesmo! Irei como ao Antigo Testamento sobre eles. Será uma chuva
de fogo e enxofre sobre eles.

—Uma vez mais. — Disse Celian, mais forte, mais duro. — Não será útil. Nosso
objetivo é que possamos comprar mais tempo para encontrar Eliana e trazê-la, antes
de iniciarmos uma guerra entre as tribos!
D apertou os dentes, ficou de pé e começou a caminhar de um lado a outro todo
tenso, olhando feroz para a mesa onde estava Celian. Ele flexionou as mãos, com
vontade de colocá-las ao redor do pescoço de alguém. —Ela apenas continuará
fugindo de mim. Acha que quero a ela e os outros mortos. Acha que matei seu pai.

—Você não contou? — Do outro lado da sala a voz de Constantine era baixa e
emocionada, sua expressão surpresa também. — Não contou o que aconteceu? Que
fui eu quem apertou o gatilho?

D manteve as mãos se movendo. — É sua história para contar, irmão, não


minha.

Movendo-se lentamente, Constantine se aproximou da mesa onde estava


sentado Celian e se afundou na cadeira a frente. Passou uma mão pelo cabelo grosso
e negro, soltou um suspiro e balançou a cabeça com assombro, olhando novamente
para D.

—Preciso encontrar uma forma de mostrar a ela que tudo o que Silas disse sobre
nós, é mentira.

—Com exceção da parte de matar seu pai. — Constantine abaixou o olhar para
a mesa. — Esta parte é verdade.

—Ele ia me matar, Garoto Troll. — D não usava este apelido desde que eram
crianças, as brincadeiras entre eles por causa de sua aparência com as meninas.
Constantine era o Garoto Troll porque era qualquer coisa menos sociável e D era
quem conversava mais. — Era um bastardo louco que aterrorizava nossa colônia e
quase afundou uma faca no meu peito quando percebeu que me encontrava com
sua filha. Você cobriu minhas costas. — D diminuiu o ritmo e levantou a cabeça
para olhar Constantine. — Acho que nunca agradeci.

—Não. — Disse Constantine. — Não o fez.

—Bem... obrigado.

Com estas poucas palavras, Constantine sabia que o rancor entre eles nos
últimos três anos, foi perdoado. D segurou seu olhar por um instante, assentiu e
logo voltou ao seu ritmo agitado.

—Assim, o problema é, a menos que tenhamos alguma prova de que Silas não
é bom, Eliana continuará pensando assim.

—Como uma prova? Algo escrito? — Lix disse. Três pares de olhos
interrogantes se voltaram para ele e se afastou, esperando a que adivinhassem.
Quando não o fizeram, ele rodou os olhos. — Por escrito, gênios. O diário de seu
pai. Ainda o temos.

O ar ficou elétrico.

O diário do louco rei Dominus que foi encontrado depois que morreu e a
princesa e seu grupo fugiram das catacumbas de Roma naquela noite a três anos.
Descreve de forma detalhada, seu plano para tomar as outras colônias, seu
genocídio contra seu próprio povo, os testes genéticos que encomendou, o que
resultou no soro que permite que o sangue humano e Ikati sejam compatíveis.
Como todos os megalomaníacos sádicos, seu objetivo final que era o domínio de
mundo. Iria colocar o Ikati de volta no topo da cadeia alimentar, usando o DNA
humano e fertilizando-o para fazê-lo.
E logo o fariam desaparecer da face da terra.

Silas, seu servo de confiança, igualmente sádico e faminto por poder — o estava
ajudando com tudo isso.

D olhou para Celian. — Quanto pode...

—Vinte e quatro horas depois, talvez se sair agora.

—Vai ligar para Leander no caminho?

Celian concordou, levantando-se da mesa. —Não posso garantir que não irá
enviar os Caçadores atrás de pistas sobre Eliana, mas vou conseguir uns dias mais.
Nós resolveremos a partir daí. É melhor trabalhar rápido, no entanto.

Constantine também se levantou. — Tem alguma ideia de onde pode ter ido
daqui? Como vai segui-la?

D sorriu e era quase alegre, o mais feliz que eles alguma vez o viram em anos.
—Enquanto estava dormindo com o tranquilizante, tive um sonho, irmão. — Ele
tocou a testa. —Tive um sonho.
CAPÍTULO
DEZESSEIS

A primeira bala gritou no ouvido direito de Eliana e a segunda cravou na parede


junto a sua cabeça ao nível do olho, com um golpe seco e sinistro que desprendeu
uma nuvem de fumaça e cuspiu pedaços finos de gesso direto no seu rosto.
Agarrando a mão de Gregor, puxou seu braço e ele se contorceu, xingando.

—Quantos filhos da puta estão ali? — Gritou Gregor, correndo pela escada,
pulando de três em três degraus, arrastando Eliana como um saco de pedras atrás
de si.

Justo antes do terceiro disparo soar — passando mais uma vez perto e cravando
no metal alto, fazendo-o vibrar no ouvido de Eliana — gritou. — Sete!

A ferocidade de sua perseguição fazia parecer mais de setenta. Sentia cada um


deles em ondas separadas, quentes através da pele, sua intenção de matá-la tão claro
como se estivesse gritando. Quatro assassinos Ikati atrás e mais três em algum lugar
perto, que não se viam além das paredes, movendo-se rapidamente em diferentes
lugares do prédio.

Provavelmente, como eles, se dirigiam à saída.

Estavam em uma estreita escada, correndo precipitadamente em espirais


vertiginosas. Os passos de Gregor ecoavam com força nas paredes sem pintura e
degraus de metal e as plantas dos pés de Eliana, que estavam machucadas deixava
um rastro de sangue. Não sabia como a encontraram, foi muito cuidadosa ao
dissimular seu cheiro, mas de alguma forma levou os assassinos diretamente ao
prédio de Gregor, direto ao coração dos negócios e sua vida pessoal.

Se sobrevivessem nos próximos minutos, ela iria matar todos eles.

Logo ficaria de joelhos e pediria perdão.

Gregor explodiu através da porta sem pisar em um dos degraus da escada e de


repente se encontravam em um estacionamento escuro e em silêncio, exceto pelo
som das portas de aço batendo atrás deles com uma fria e desconcertante finalidade,
sombria como a tampa de uma cripta.

Eliana olhou ao redor, para as longas filas de carros, os para-brisas escuros com
faróis brancos, sem refletir nada de volta. Murmurou. — Esta é sempre a cena no
filme onde alguém morre.

Gregor a ignorou e puxou-a para frente sobre o cimento, dirigindo-se


diretamente para uma Ferrari cinza chumbo e preta, estacionada dois corredores
abaixo no final da fila. Apenas levou uns segundos para chegar ali, conseguir abrir
as portas e ligar o motor.

Mas foi um tempo longo o suficiente.

Do mesmo modo que saíram do estacionamento com um bramido do motor,


com os pneus chiando e levantando colunas brancas de fumaça, uma profunda e
retumbante vibração elevou-se através do assento de couro para fixar os dentes no
ruído da porta da garagem se levantando, para mostrar uma figura alta e reta de um
homem em um terno escuro sob medida e uma camisa branca, agarrando uma
enorme pistola de prata em cada mão levantada. As armas se nivelaram diretamente
à Ferrari.

—Oh merda. — Disse Gregor, pisando mais no acelerador.

A única saída infelizmente era onde o assassino estava, cravando o para-brisas


de balas. Ao desviarem violentamente, se agacharam e gritaram quando o vidro
rachado virou uma confusão, parecendo uma teia de aranha, se abrindo ao redor
dos quatro orifícios perfeitos, mas sem se romper. Ao redor de uma esquina,
ouviram disparos novamente, mas tudo era uma confusão de ruídos e movimentos
no cérebro de Eliana. O único que podia fazer era cravar seus calcanhares no
assoalho do carro e segurar com força o couro do assento.

Com as marcas de borracha no cimento, negras em linhas largas e ondulantes,


deixaram a garagem e o atirador atrás deles. Dentro do carro, Eliana sentiu uma
leve e brilhante esperança, crepitando como fogo artificial. Conseguiram escapar!

Oh, estava errada. Muito errada. A esperança, rapidamente descobriu, não era
particularmente útil quando mais de meia dúzia de soldados treinados abria fogo
contra sua cabeça.

Cerca de duas curvas fechadas entraram em uma dupla rampa de saída em hélice,
passando por colunas de cimento. Ambos os lados da rampa se abriam aos outros
andares de estacionamento e mostrava um trio de homens saltando até ali sem
esforço, agarrando-se brevemente as colunas antes de empurrar para fora, na
direção abaixo.

—Está brincando! — Gritou Gregor, furioso. — De verdade! Tem que estar


brincando!
—Cuidado! — Gritou Eliana quando uma das rampas se reduziu diretamente
diante deles e levantaram suas armas. Deixou-se cair no assento e lançou os braços
sobre o rosto, mas logo houve um baque e uma espécie de rangido repugnante e
um dos assassinos com a arma na mão, desapareceu sob o carro.

—Certo, idiota! — Gritou Gregor alegremente, golpeando o punho no grande


volante. —Chupe está!

Eliana viu pela janela traseira uma figura sem vida no chão, na rampa atrás deles,
com os braços na cintura e as pernas dobradas em um ângulo não natural.

Chegando ao nível inferior do estacionamento em uma curva deslizante,


cambaleando Gregor se esforçou para manter o controle do volante.

—Não! — Gritou Eliana sobre os pneus chiando, apontando uma pequena


saída em neon que estava ao lado da escada.

Gregor apertou as mãos no volante, a Ferrari saltou adiante com um rugido


ensurdecedor e Eliana apertou-se novamente no assento com a propulsão
repentina. Ao virar a última curva, ela se horrorizou ao ver não um, mas dois
assassinos de pé com as pernas separadas e as armas apontadas diretamente para a
porta de metal que conduzia a saída.

A porta de metal fechada.

—Porta-luvas! — Gritou Gregor. — Arma!

—Agora que está me dizendo!


Com apenas apertar um botão, a tampa do compartimento se abriu e Eliana
segurou a arma. Era pesada e fria na mão, elegante e utilitária, neste momento
pensou ser a coisa mais bonita que já viu em sua vida.

Gregor abaixou o vidro da janela e Eliana se inclinou para fora, apontou e


apertou o gatilho, disparando quatro rodadas... e os assassinos nem sequer se
moveram.

—Onde aprendeu a disparar uma arma de fogo, na maldita escola para cegos?
— Gritou Gregor.

Mas então um deles ficou de joelhos, abaixou sua arma e olhou para baixo,
surpreso para a parte da frente de sua camisa branca, onde uma mancha de líquido
escuro começava a se estender.

O outro, com um luminoso e astuto olhar verde, apontou sua arma para Gregor
no assento do motorista e disparou. Apenas pelo olhar — com certeza assassino —
Eliana sabia mesmo antes de Gregor inclinar-se para trás e gritar, que a bala poderia
alcançar seu alvo.

Um jato de sangue manchou o painel do carro. A Ferrari acelerou. As mãos de


Gregor deslizaram do volante.

Bateram na porta de metal com toda velocidade e Eliana se torceu para o lado,
agarrando volante, gritando com toda a força de seus pulmões. O assassino saltou
no último momento, ainda rodando, mas tudo ficou muito irreal, as cores das luzes
intermitentes pela hipervelocidade, o som deformado lento e estranho, como se
estivesse sob a água.
As batidas do coração pareciam um tambor no campo de batalha. O cheiro
metálico de sangue era grosso no ar.

A porta arrancou-se com um violento e ensurdecedor rangido, passando por ele


em uma chuva de chispas laranja. Foi voando para o alto como um enorme pássaro,
deformado e com pedaços irregulares de metal e plástico retorcido e os faróis
quebrados. Algo pesado prendeu-se na aterrissagem e se arrastou debaixo deles, o
que desencadeou um clamor sobrenatural ao chocar contra o pavimento
novamente, avançando para fora da garagem e pela estrada deserta ao longo do
prédio.

—Gregor! — Gritou ela, frenética. — Gregor!

Ele estava imóvel no assento, não respondia.

Eliana olhou pelo retrovisor justo a tempo de ver quatro assassinos mais
aparecerem rapidamente na porta da garagem, que brilhava branco como um
fantasma contra o prédio escuro e à noite. O pé de Gregor ainda estava
pressionando o acelerador, ela puxou com força a roda e deu a volta em uma
esquina em uma rua lateral a uma velocidade vertiginosa, passando por um sinal.

Justo antes do prédio que deixaram para trás desaparecer de vista, viu cinco
figuras escuras em um retângulo de luz se transformar em uma violenta erupção de
pele negra e presas afiadas, músculos rasgando as roupas à medida que se
transformavam, antes de cair no chão.

Com rugidos selvagens, ouvidos acima do zumbido da marcha do motor, cinco


impossivelmente enormes panteras negras saltaram para frente nas patas traseiras,
com grande alcance e começaram a correr atrás do carro.
***

Eram cinco horas da manhã em ponto, na Inglaterra, o rubor pálido da manhã


começava a ficar rosa e lavanda sobre as colinas escuras. Tordos24 e pardais
começaram a agitar-se nos galhos das árvores e cantar suas primeiras canções,
tentativas na manhã, com a nevoa nos grossos troncos dos pinheiros e olmos25
começaram a se levantar. Todas as pequenas criaturas dos bosques estavam ainda
na cama, mas no pitoresco povoado de Sommerley — como um cartão postal, atrás
do exuberante bosque e nos vales e longe dos olhares indiscretos da civilização —
uma criatura singular estava acordada.

Ela tinha a pele pálida e feminina, a musa de um poeta com cabelos dourados e
o sorriso tranquilo e sem esforço da Mona Lisa. Nascida plebeia, ela era agora uma
rainha, a rainha mais dotada e potente que seu povo jamais viu em séculos. Podia
ler a mente de alguém com apenas um toque de sua mão, podia se transformar de
mulher a nevoa, como em um letal predador, entre outras coisas. Podia inclusive,
quando o estado de ânimo a golpeava, se transformar em algo muito emocional e
chocar todos seus parentes predadores, o que a fazia feliz.

Gatos acreditavam que as aves eram criaturas inferiores, criaturas tolas, boas
para apenas uma coisa: comer.

24 É uma ave natural da Europa, Norte da África, Oriente Médio e Sibéria. É um cruzamento entre o rouxinol e pássaro-
espião.
25 Uma espécie de árvore. As lendas dizem que é onde as fadas vivem.
Mas no momento não era mais que uma mulher, sentada em posição vertical e
sem fôlego na cama, ouvindo a baixa e retumbante voz do outro lado do telefone.

—... e se me conceder isto, concordarei em me unir a Confederação. Concordo


com os seus termos...

Olhou para seu amado esposo agora, dormindo sobre as costas com um braço
pesado sobre o rosto, o peito musculoso nu e reluzente na pálida luz da manhã. Seu
outro braço ainda ao redor de sua cintura nua, não se moveu, ainda quando o toque
estridente do telefone rompeu o silêncio da madrugada.

Leander sempre dormia como um tronco depois de uma longa noite de amor.
O que significava que quase sempre estava dormindo como um tronco.

—Diga-me Celian. — Disse Jenna, traçando um dedo no peito de seu marido.


A seu contato se agitou e soltou um som baixo na garganta e logo se deixou cair em
um sono profundo. —Porque este Demetrius, seu irmão, como o chama, fez isso?
Deve saber quais seriam as consequências de suas ações. Ajude-me a entender
porque se arriscaria tanto, por algo que parece ser tão pouco.

Houve uma pausa, um raspar de garganta, outra pausa como se sentisse


vergonha. Então Celian disse simplesmente. — Amor.

A mão de Jenna se acalmou. — Luta por amor? — Sussurrou, parando.

Ouviu uma longa exalação a tantas milhas de distância, carregada de uma


centena de coisas sem nome. —São nossos caminhos tão diferentes, Jenna? —
Negava-se a chamá-la de rainha tão firmemente como até este momento se negou
a formar parte do Conselho de Alfas, o que ela não mantinha contra ele, em seu
lugar, ela se sentiria exatamente da mesma forma por ambos. Isto era onde Leander
se encaixava também. — De onde é, um homem abandonaria tudo o que tem pela
mulher que ama? Mesmo se necessário com a sua vida?

Seus olhos foram para a forma adormecida de Leander novamente. Não, seus
caminhos não eram tão diferentes. Eles não eram em nada diferentes. Murmurou.
— Mesmo se a mulher que ama é a líder do grupo que está tentando nos matar a
séculos?

Silêncio. Súbito, uma crepitante raiva que sentiu como uma mão ao redor de sua
garganta. — Eliana não é seu pai...

—Não. — Jenna concordou. — Não é. Mas ela é filha do louco que deixou
minha cunhada mutilada para a vida toda, que torturou e matou muitos parentes,
que manteve a cabeça dos inimigos como troféus e que... — Com voz baixa e fria
disse. — ...Me torturou e golpeou até quase à morte.

Celian não tinha resposta para isso. Jenna continuou. — Sangue é sangue,
Celian. É como funciona nossa espécie. Que provas tem que ela e seu irmão não
seguiram os passos de seu pai?

—Não posso falar em nome de seu irmão. — Contestou com voz tensa. — Mas
Demetrius acha que Eliana é inocente, assim, eu também.

Não era suficiente, o Conselho de Alfas poderia dizer que não era o suficiente
para lhe conceder o favor, mesmo com sua capitulação de disposição a se unir a
eles e submeter-se a sua vontade. Demetrius rompeu filas e foi contra as ordens,
era perigoso para todos. Não importava no que Celian acreditasse.

E no entanto... no entanto.
Lá fora um pássaro começou a cantar, um alto canto na quietude da madrugada
iluminada pela cor rosa. Jenna lançou um olhar para as janelas altas que corriam ao
longo da parede de seu quarto e viu além, uma pequena borboleta branca flutuando
acima das flores nos vasos, estabelecendo-se finalmente em uma flor rosa aberta. A
flor nem sequer tremeu sob seu peso.

A vida é dor e todos morrem, mas o verdadeiro amor vive para sempre.

As palavras de sua mãe. Voltavam para atormentá-la em momentos estranhos


como estes. Morreu há anos e anos, mas Jenna se perguntava com frequência se ela
ainda estava ali em algum lugar, velando por ela.

Lembrando-se dela.

Jenna era um produto do amor desesperado e a lealdade, uma criança de dois


amantes, que pagaram um preço muito alto por seus sonhos. Ela sabia o que
significava arriscar tudo por amor e no final perder, mas nunca se arrepender de um
brilhante momento porque valeu por cada sacrifício, mesmo a morte.

Talvez Demetrius poderia lamentar depois com seu coração. Talvez tivesse sorte
em encontrar seu verdadeiro amor o amaldiçoado o suficiente para perdê-la para o
destino. Mas o destino carregava as minucias do universo e às vezes precisava de
um pouco de ajuda.

Jenna se sentou um momento mais, pensando, então tomou uma decisão em


sua forma habitual: seguiria seu instinto.

—Gostaria de conhecer Demetrius, Celian. — Disse em voz baixa. — E a você


também. Admiro este tipo de lealdade. É muito raro. E sinto... que todos tenhamos
começado com o pé errado. A última coisa que quero é mais luta. Mais
derramamento de sangue. Todos tiveram muito disso por anos. — Ela fez uma
pausa, permitindo que o silêncio se aprofundasse entre eles. Do outro lado do
telefone, Celian esperava, sua atenção aguda como a ponta de uma faca afiada. Mais
firme disse. — Gostaria de vê-lo unido a Confederação Celian, mas não será
obrigado, mesmo em tais circunstancias. Se vamos trabalhar juntos, precisa ser em
igualdade de condições. Precisa desejar se unir a nós. Eu sei muito bem como nossas
leis são. — Ela sorriu, uma curva irônica nos lábios. — Felizmente, estou acima
delas. Assim, tem seus dois dias. Comece a contar.

Houve um momento de silêncio atônito antes de ouvir uma risada divertida de


Celian. Imaginou-o movendo a cabeça. — Bom, por menos que concorde com seu
marido em algumas coisas, nós dois temos o mesmo gosto por mulheres.

—Eu direi a ele. — Jenna voltou a olhar para Leander. Sem dizer uma palavra,
desligou o telefone.

Fez outra ligação rápida e logo colocou o telefone no suporte da mesinha junto
a cama e se aconchegou no espaço entre o forte braço de Leander e seu corpo
quente, o lugar mais seguro do mundo.

Virou a cabeça e murmurou algo incoerente em seu cabelo. — Durma, meu


amor. — Sussurrou ela, fechando os olhos e apertando seus braços ao redor dele.
—Volte a dormir.

Tinham horas ainda antes de o sol subir nas montanhas e ele e o Conselho
descobrirem o que fez. Melhor seria descansarem para o que os esperava.
CAPÍTULO
DEZESSETE

A crença no destino, como a crença em Deus, requer certa suspensão da


incredulidade, a capacidade de aceitar sem prova física que há algo maior operando
atrás das cenas no universo, há um plano que está sendo seguido e sua própria vida
é uma parte dela.

Este era um conceito tão estranho para Keshav que não eram apenas
inimagináveis, mas completamente ridículo.

Um assassino por natureza e contratado, Keshav não acreditava no destino, mas


no acaso cego do destino, alegremente caótico que não tinha planos a longo prazo,
mas causava estragos nos corações e vivia apenas porque podia. Keshav viu e fez
muitas coisas horríveis para albergar qualquer noção de um Deus benévolo. Ele
sabia que Deus era um conceito que os seres humanos criaram no início dos
tempos, quando se arrastavam pela lama e respiravam como anfíbios. A função
principal de Deus era simplesmente para ajudar a acalmar o primitivo terror da
morte dos animais.

A função principal do acaso, por outro lado, era realmente ferrar com você.

Um exemplo perfeito: sua situação atual.


Realmente não foi sua hora na delegacia. Uns momentos mais e teria seu
objetivo firmemente em sua mão. Mas o acaso decidiu que seu antigo amante
chegaria primeiro. Bem, Keshav podia lidar com isso e o fez. Eliminou rápido e
silenciosamente o corpo de seu companheiro caído entre os restos do edifício e
logo saíram, se reagruparam. Decidiram pelo melhor lugar para uma tumba
temporária, voltaria mais tarde para enterrá-lo em sua terra natal, já que era uma
abominação para qualquer de sua espécie, ficar em uma tumba em um país
estrangeiro e discutiram o seguinte movimento.

Então o acaso os lançou uma preciosa maçã de ouro: voltando do enterro, viu
a garota correndo. Literalmente, poucos passos perto deles. Estavam em um
semáforo fora da cidade, esperando a que abrisse e ela passou correndo pela rua em
um borrão azul e negro, com as longas pernas e desapareceu em uma vala no pátio
tranquilo da vizinhança.

Keshav olhou para os outros membros caçadores. Eles lhe devolveram o olhar.
Logo, sem pronunciar uma palavra, abandonaram o carro no meio da rua e saíram
a pé atrás dela.

Então o acaso achou divertido equipá-la com uma arma e um companheiro


humano com um carro esportivo.

Quando as luzes traseiras da Ferrari sumiram à distância pela Rua del’Arbalete,


os cinco membros restantes de caçadores desaceleraram de uma corrida veloz a um
trote e finalmente a um ponto morto. Em brilhos de vapor cinza, se transformaram
novamente em humanos e ficaram nus no meio da estrada vazia, olhando.
—Não podia estar dirigindo um Fiat. — Comentou Calder junto a ele.
Originário da colônia do Quebec, era magro e algo, com uma grossa cicatriz que
corria ondulante de sua mandíbula até o nascimento do cabelo, dividindo em duas
uma sobrancelha. Ele nunca disse como chegou e ninguém perguntou.

—De zero a cem quilômetros por hora em três segundos. — Responde Ang,
um membro da colônia do Nepal, que tinha um fetiche por carros caros. Tinha
alguns que usava em seu tempo livre. Quando não estava matando coisas. — A
velocidade máxima é de mais trezentos e vinte e cinco quilômetros por hora...
rápido, mas nem sequer nós podemos superá-lo.

—Muito bem. — Disse Keshav, tranquilo. Ele sabia que Chance não se juntaria
e eles. —Vamos limpar e ir para dentro.

Limpar era uma gíria para se desfazer dos corpos. Dois de sua equipe ainda
estavam no prédio, um abatido por balas e o outro esmagado por mais de uma
tonelada de metal. As balas ele entendia, viajava mais de mil milhas por hora, uma
bala em sua direção proporciona apenas milissegundos para reagir antes que esteja
morto. Um carro por outro lado, apenas porque o idiota não se transformou em
vapor estava além da compreensão de Keshav. Portanto, merecia ser atropelado.

Um por um, os cinco assassinos agora fizeram exatamente isto. Cinco brilhantes
nuvens se reuniram sinuosamente como fumaça, subiram pelo céu noturno e se
dirigiram de volta de onde vieram.

***
Laurent trabalhou durante dezenove anos como chefe do Departamento de
Medicina na Emergência no Centro Hospitalar de Saint-Anne, um dos hospitais
mais antigos e prestigiados de Paris. Viu quase todos os traumas e lesões em sua
longa carreira e passou muitos anos desde que foi surpreendido pelo ocorrido em
hospitais, o que as pessoas faziam uma a outra ou a si mesmo por desespero.

Mas está noite demonstrou que ainda tinha a capacidade de ficar em choque.

Ouviu sua abordagem em primeiro lugar. Estava parado na estação das


enfermeiras perto das portas de correr da entrada da sala de emergências, movendo-
se com o formulário de admissão para um paciente com um grave resfriado, que
estava convencido que morria de peste, quando de algum lugar da rua, veio o som
característico de um carro freando, os pneus gritando em protesto. O que quer que
fosse que o motorista do carro estava tentando evitar, fracassou enormemente, por
que em questão de segundo o carro passou voando pelo estacionamento do hospital
e bateu em meia dúzia de carros estacionados e se moveu dali como uma bola de
pebolim, então quando Laurent e a enfermeira da noite no balcão olhavam
horrorizados com a boca aberta, passou direto pelas portas de correr de vidro da
sala de emergência.

A toda velocidade.

Saltou sobre a mesa, agarrou a enfermeira congelada pelo braço gordo e correu.
No último segundo o motorista ganhou um pouco de controle sobre o carro. E
assim, como Laurent diria mais tarde para sua esposa, uma quantité une petit. Uma
coisa pequena. Deslizando, desacelerou o suficiente para que quando o carro
esportivo finalmente impactasse com o prédio, apenas destruísse a fila de arbustos
ao longo do caminho da entrada, a grade de ferro forjado ao lado deles e uma parte
de baixo da parede de azulejos onde ficava sentado contemplando seus pecados
durante seus descansos para fumar. Uma parte muito considerável, mas poderia ser
muito pior.

Quando se dissipou a fumaça dos azulejos e os arbustos se assentaram, o único


ruído era o chiado irritado de um radiador quebrado soltando vapor, Laurent saiu
de seu esconderijo atrás de uma coluna de azulejos perto dos elevadores justo a
tempo de ver uma mulher — jovem, com o cabelo curto e quase nua — abrir a
porta do motorista da Ferrari, em sua maior parte demolida, puxar de lado como se
não pesasse uma pluma e levantar um homem inconsciente, sangrando e dobro de
seu tamanho nos braços.

Seu primeiro pensamento foi PCP.

Durante muito tempo atrás, mas ainda disponível, a fenciclidina, uma droga
alucinógena tinha a tendência de dar aos usuários uma força sobre humana. Quando
não os deixava esquizofrênicos. Seu segundo pensamento, quando a dupla entrou
pelas portas de correr e a mulher pousou seus olhos prateados e brilhantes nele,
como moedas no fundo de um poço dos desejos foi — Dieu fue aidez-moi!

Deus me ajude!
Ela era sobrenaturalmente impressionante, com um corpo e rosto de uma
cortesã que faria Picasso morrer novamente. Ela possuía uma estranha beleza, não
tinha palavras para descrever de forma convivente, seus lábios e olhos eram
ardentes. Ao vê-la, Laurent pensou por um momento que estava tendo um ataque
do coração. Ela, literalmente, lhe tirou o fôlego.

—Você! — Grunhiu ela, ele ficou congelado no lugar com os olhos ferozes dela.
— Ajude-me!

Seu francês era quase perfeito, mas não de tudo. Obviamente, ela não era nativa.
Talvez viesse de Marte.

—Agora! — Disse enquanto permanecia cravada no chão. A palavra era dura


como dois dedos estalando e sacudiu Laurent à ação.

—Ali. — Referiu-se a uma sala de exame justo atrás dela, observando-a


enquanto passava os ombros pela porta e suavemente depositava o homem que
carregava na cama do hospital com lençóis brancos. Um rápido olhar sobre o
ombro e uma instrução da boca de Michelle, a enfermeira da noite — para chamar
a polícia — e ele a seguiu.

—Dispararam nele. — A beleza deu um passo atrás para permitir que Laurent
se aproximasse.

Tirou os óculos do bolso do jaleco branco e os colocou, vestiu um par de luvas


finas e fez um exame rápido, superficial da vítima. O sangue se estendia em um
círculo irregular sobre a parte dianteira de sua camisa de botões e Laurent a abriu,
fazendo-os voar. Havia um furo perfeito, alguns centímetros abaixo da clavícula do
homem musculoso. Justo acima de seu coração.
—Ele ficará bem? — A mulher estava quase perto demais, observando
atentamente enquanto examinava a ferida.

—Perdeu muito sangue. Há um orifício de saída, o que significa que a bala saiu.
Temos que prepará-lo para a cirurgia.

Endireitou-se, enfrentou-a e fez uma avaliação rápida, visual de seu estado. Sem
dilatação das pupilas. Sem espasmos nervosos ou agitação. Não havia sinais
evidentes de drogas. Ela estava curiosamente descalça, ainda mais estranho era que
usava uma bermuda de boxeador e uma camiseta levemente transparente por causa
do suor grudando em seus bonitos seios — uma distração, mas atraente.

Ela se aproximou, segurou o cotovelo dele com uma mão de ferro e disse em
voz baixa. — Ele vive ou você morre. Entendeu?

Laurent ouviu em mais de uma ocasião de familiares angustiados. As ameaças


de vida ou segurança não era pouco comum, mas algo na forma como esta mulher
dizia as palavras, a intenção fria em seus olhos escuros, realmente o assustou. Ele
escolheu não antagonizar e em seu lugar disse simplesmente. — Você é da família?
Precisaremos de algumas informações para o tratamento. E para a polícia.

Com a palavra polícia, ela soltou seu braço como se houvesse queimado e
retrocedeu com um grunhido, fazendo-o se arrepiar, pois era como um animal frio.
Não era como nada que ouviu antes. Lentamente, se afastou da porta.

Ela iria fugir. Viu isso antes, também.

—Senhora. — Disse, estendendo uma mão, mas ela o interrompeu com um


grunhido selvagem, que o congelou no lugar e fez seu estômago se contorcer.
—Ele vive ou você morre. — Insistiu, com voz mortal e suave, uma vibrante
ameaça. Olhou para o nome cursivo no bolso dianteiro do jaleco. —Laurent.

Alto, sob os gritos das sirenes, disse seu nome entre dentes. Selvagem, olhou
sobre o ombro para as portas da Emergência e logo para ele novamente. Por um
momento, imaginou que seus olhos mudaram, algo na íris... aumentaram? E depois
ficaram como fendas?

Mas então, ela se foi. Como uma gazela, desapareceu pelas portas de vidro na
noite, assim que os três carros de polícia azul e branco com sirenes e luzes
intermitentes pararam no estacionamento.
CAPÍTULO
DEZOITO

Eliana entrou mancando nas catacumbas justo antes do amanhecer, esgotada


como nunca esteve, cada músculo doía, cada passo queimava com uma dor aguda.

A dor da angústia. A dor da confusão. A intensa e pulsante dor da culpa.

Se Gregor morresse, ela nunca se perdoaria.

Levou quase uma hora andando em silêncio, torcendo passagens antes de chegar
à escada de metal oxidado em um canto negro no ventre das catacumbas. A escada,
perfurada a direita na rocha, conduzia a três salas através da fissura na pedra
irregular do sótão da igreja. Subiu lentamente, aturdida, o ar frio fazendo pouco
para acalmar sua pele quente.

Ela precisava de um banho, dormir e conversar com Mel sobre tudo o que
aconteceu. Não necessariamente nesta ordem.

A velha tampa de madeira era muito mais pesada do que o habitual para
empurrar, mas o fez, emergindo na escuridão fria do sótão....

Quando de repente, uma forte mão se estendeu, a velocidade de um raio e


dolorosamente segurou seu cabelo.
—Você, estúpida filha da puta! — Caesar rugiu em seu ouvido. Brutalmente,
puxou seu cabelo para trás e perdeu o pé da escada, girando longe dele. Puxando-a
pelo cabelo, a arrastou pelo túnel, empurrando-a para o chão de pedra empoeirado.

Antes que pudesse se levantar, chutou com força suas costelas. Duas vezes.

Eliana ouviu o grito de Mel e ouviu outra voz que reconheceu como Silas, mas
sobretudo ouviu os grunhidos furiosos de Caesar quando ele a golpeou com punhos
de ferro e levantou-a, xingando com nomes sujos que jamais ouviu e muito que
conhecia. Ela se dobrou, muito aturdida para compreender o que estava
acontecendo, muito esgotada para fazer algo mais que girar e rodar pelo chão duro,
cobrindo cabeça para evitar o mais violento dos golpes.

—Pare! — Gritou Silas, arrastando Caesar para longe. — Meu senhor, pare!

Pontos brancos dançavam em sua visão. De repente ficou difícil respirar.

O rosto de Mel nadou em sua visão, flutuando acima dela, pálida e horrorizada.
— Ana! Ana, pode falar? O quanto está ferida?

Eliana respirou sentindo-se como fogo e tossiu. A dor disparou do seu lado
direito, onde Caesar a golpeou com o pé e ela gemeu.

—Deus me ajude, Caesar. — Mel disse entre dentes, olhando para ele, ainda
contida pelos braços de Silas. — Um desses dias...

—Uma palavra mais e as duas estão mortas! — Gritou Caesar, veias explodindo
para fora em seu pescoço. Contorceu e lutou contra Silas, chutando, mas o homem
era maior, mais forte e mais alto, ele a manteve segura, sussurrando palavras
tranquilizadoras em seu ouvido. Caesar se acalmou depois de um momento e Silas
o soltou, ainda com raiva.

—Arruinou tudo! Guiou-o diretamente a nós! Agora todo mundo sabe que
estamos na França. Teremos que sair antes de estarmos prontos. Vamos ter que
mudar todos nossos planos...

Gritou uma e outra vez, caminhando de um lado a outro sobre o chão de pedras,
com os olhos desorbitados, com o rosto vermelho, abstendo-se de atacar
novamente apenas pela mão estendia de Silas, que parecia capaz de dissuadi-lo com
apenas isto.

Mel lhe ajudou a uma posição sentada, com as mãos firmando suas costas
enquanto ela engolia o ar frio e úmido.

—Meu senhor. — Interrompeu Silas sem problemas, ainda com a mão


estendida. —Talvez poderia permitir a sua irmã um momento para se recompor,
para sabermos exatamente o que aconteceu. —Olhou para Eliana e Mel, ainda
agachada junto ao solo e logo voltou a olhar para Caesar. — Ficaria feliz em falar
com ela e informá-lo o mais rápido possível. — Sua voz continuava sendo suave,
como veludo. — Enquanto isso, irei arrumar uma garota para você. Sua favorita,
talvez? A loira?

Ainda respirando com dificuldade, Caesar parou e lançou um olhar sombrio


para Silas. Depois de um momento, assentiu brevemente e logo voltou a olhar para
Eliana. Seu lábio superior tremendo. — Se não fosse por ele, não estaria respirando
neste momento.
Deu a volta e saiu do lugar e tão logo esteve fora da vista Silas se ajoelhou ao
seu lado.

—Sinto muito. — Murmurou tocando suavemente seu ombro. — Ele a sentiu


chegando. Foi tudo o que pude fazer para evitar que trouxesse sua arma.

Seus olhos se encontraram. Viu a preocupação genuína, a sinceridade de sua


desculpa e ela também viu a tática que usou.

—Tinha razão. — Ela tentou não inalar muito profundamente, já que causava
muita dor. — Não acreditei, mas tinha razão.

—Sobre o que? — Perguntou Mel enquanto ela e Silas suavemente a ajudavam


a ficar de pé.

Silas olhou-a, sondando de forma intensa e Eliana o olhou.

—Vamos limpá-la e conversaremos. — Murmurou, o que lhe permitiu se apoiar


no braço enquanto a levava para a porta. Ela sentiu seu penetrante olhar obliquo
sobre ela. Sua voz ficou mais baixa. — Agradeço a Hórus que esteja de volta.
Quando ouvi que foi capturada pela polícia, logo a explosão na delegacia, me senti...
— Deixou de falar, o pensamento inacabado e pendurado ali entre eles, mais forte
que qualquer palavra. Sua voz ficou mais dura. — E não se preocupe com seu
irmão. Não deixarei que isto ocorra novamente.

Nem eu, Eliana pensou com amargura, mas apenas assentiu e deixou que a
levassem.

***
Silas sabia que ela estava mentindo. O que não sabia era porque ou sobre o que
exatamente.

Eliana descansou, tomou banho e se vestiu, agora estava de pé olhando uma


lápide do século XVIII quase destruída, com um anjo com asas altas, coberto de
musgo e enegrecido pela idade. O pequeno cemitério ficava ao lado da antiga igreja,
suas fileiras de lápides com inscrições descoloridas, rodeadas de árvores de ameixa
retorcidas, que a décadas deixaram de dar frutos. Já era tarde, o sol estava baixo no
céu e projetava longas sombras sinistras, que se arrastavam com avidez sobre a erva
morta e até suas pernas.

Ele pensou que era melhor ficar ao ar livre, longe de qualquer ouvido
interessado, para que pudessem falar abertamente.

—... assim me escondi dentro de uma tubulação até ter certeza de que foram.
— A voz de Eliana era sem emoção.

Silas a estudou. Vestida toda com couro negro como costume, parecia ainda
mais sombria. Havia manchas tênues azuis sob seus olhos, os lábios faziam uma
curva para baixo e de vez enquanto davam uma leve sacudida inconsciente de sua
cabeça, como se estivesse contestando a mesma pergunta sem resposta, uma e outra
vez.

—E você não conhecia estes homens... — Ele incentivou.

—Não. Não eram da colônia de Roma. Não eram Legiones ou... — Ela hesitou
por um segundo. — Bellatorum. Foram obviamente enviados por uma das outras
colônias. Ou todas elas, imagino.
Silas estreitou os olhos. A forma como hesitou, era preocupante. De fato, muito
preocupante. Mas porque iria esconder algo? O que poderia ganhar? Ou perder?

—Ficou nesta tubulação por muito tempo. Deve ter sido horrível. —Observou-
a novamente, estudando seu rosto solene, procurando qualquer pista do que
poderia estar escondendo, mas ela não revelava nada.

Ela nem sequer piscou quando murmurou. — Não tem ideia.

—E tem certeza de que não a seguiram até aqui?

—Se soubessem onde estou agora, teríamos visto. E eu já estaria morta.

Hum. Ele acreditava em sua sinceridade a respeito, sua voz era dura com
convicção. Mas algo estava definitivamente fora. Ele decidiu empurrá-la um pouco
e ver como reagiria. Em voz simpática, reflexiva, perguntou. — Porque acha que se
incomodaram em explodir a delegacia? Parece um pouco... demais para um grupo
de assassinos. Pelo menos, sempre imaginei que assassinos fossem um grupo mais
sigiloso.

Seu rosto mudou, um brilho de emoção não identificada ali, então desapareceu.
— Desvio talvez. Não sei.

Virou a cabeça e não pode ver sua expressão, assim pouco a pouco se aproximou
por trás dela, com as mãos cruzadas nas costas, contemplativo, paciente. Quando
estavam ombro a ombro, afastou o olhar para que pudesse vê-la em sua visão
periférica. — Provavelmente tenha razão. Assassinos parecem desfrutar em criar
distrações. Os assassinos de seu pai, por exemplo, souberam fazer isso. Demetrius
começou a cortejá-la para que não suspeitasse de seus verdadeiros motivos, de certa
forma, um golpe de mestre.
Não recebeu nada, menos que nada, mas seus olhos de falcão detectaram e
reconheceram como o que era: uma fala. Um diminuto músculo sob o olho
esquerdo se moveu. Uma vez. Do contrário, o rosto e o corpo se mantiveram
totalmente impassíveis. Sua respiração nem sequer mudou.

Mas agora sabia. O que estava escondendo, tinha a ver com Demetrius.

Sua mente saltou, muito adiante, calculando as possibilidades, criando,


examinando e descartando hipóteses, trabalhando rapidamente, com fria precisão
de uma máquina nem engrenada.

Talvez não foram os assassinos. Talvez em lugar de uma tentativa de acabar com
sua vida, a explosão tenha sido mais uma tentativa... de ganhar seu coração. Ela
voltou ali, assim que a tentativa obviamente não teve êxito, mas talvez algo mudou.

Talvez uma semente de dúvida foi semeada.

—Sim. — Ela concordou, a voz firme e limpa. — Um golpe de mestre. — Ela


virou a cabeça e o olhou no rosto, com os olhos planos, sem revelar nada. —Mais
que um gênio. Uma pergunta que me faço é como um grupo com o QI deles, que
não sabem nada além de combates, poderia ser tão astuto.

Ah. Um desafio. Esteve preparado para isto por anos. O que realmente lhe
surpreendeu foi que levou todo este tempo.

Ele lhe devolveu o olhar, abrindo o seu próprio. — O ódio é um grande


motivador, principessa.

—O ódio? — Repetiu incrédula e se virou para ele. — Que razão poderia ter
para me odiar?
—Não você. — Disse com suavemente, movendo a cabeça. —Seu pai.

Ela o olhou fixamente, sem revelar nada. — Continue.

Silas deixou seu olhar se afastar, parando nas lápides abandonadas. Um corvo
chamou sua atenção e continuou seu voo nos galhos de uma arvore sem folhas até
que desapareceu no céu do inverno e além dos jardins da igreja. —As crianças nunca
podem realmente conhecer seus pais. — Murmurou com tristeza. — O amor e a
lealdade conspiram para cegar certas verdades desagradáveis.

Sem olhar sentiu a mudança nela, a rigidez, o brilho de calor. — Não fale em
charadas, Silas. Diga o que quer dizer.

Esforçou-se para assegurar que sua expressão fosse exatamente a combinação


correta de angústia, cuidado e sinceridade quando se virou para ela. — Seu pai era
um homem brilhante, Eliana. Eu o servi durante a maior parte de minha vida. Sei
que suas intenções eram boas...

—Silas. — Advertiu ela, aproximando-se mais.

—Mas nem sempre foi um homem bom. De fato, podia ser... Incrivelmente
cruel.

Ele deveria deixar isso entre eles, para atraí-la com um golpe de sorte. Eliana
não disse nada por muito tempo e Silas imaginou que estivesse procurando nas
lembranças por evidências. Ela ficou em silêncio por tempo suficiente para fazê-lo
pensar que encontrou.

—Reis são conhecidos por ter a mão dura. — Disse ela com frieza. —A carga
da lei descansa sobre seus ombros. Não podem se permitir ser suaves...
—Não tinha a mão dura Eliana, era sedento por sangue. Tirânico. Impiedoso.
—Abaixou a voz. —Louco.

Ela soltou uma risada de incredulidade. — Louco? Meu pai, louco? Você mesmo
disse que era um gênio...

—A genialidade e a loucura andam de mãos dadas.

—Que provas têm? — Ela estava lívida agora, respirando com dificuldade, os
olhos brilhantes com fogo frio. Deu um passo mais perto e ele respirou fundo,
embriagando-se com seu perfume, não seu perfume, algo mais rico, mais escuro e
decadente. —Que evidências têm? Meu pai trabalhou toda sua vida para encontrar
a solução para o nosso problema de infertilidade e a maldição da transição que nos
acomete desde o início dos tempos. E a encontrou! Na verdade, o fez! Que tipo de
louco brutal iria querer que sobrevivêssemos, uníssemos nossa linhagem com os
seres humanos e viver em paz?

—Seu irmão compartilha um pouco da loucura de seu pai. —Silas interrompeu,


em voz muito baixa. Ela empalideceu, seus lábios planos em desgosto. — Mas nada
de sua genialidade e nada de sua previsão. Caesar é retorcido como seu pai era, mas
querida, seu pai era retorcido de uma forma que apenas o diabo poderia ser.
Pergunte, se não acredita. — Fez um gesto para a igreja. — Pergunte a sua amiga
Mel. Pergunte a qualquer um deles. Seu pai tinha um lado tão escuro que deixava
os poços negros do inferno com vergonha.

Ela se encolheu. Toda a cor sumiu de seu rosto.

—Sinto muito. De verdade, sinto. Apenas digo isto agora para ajudar a entender
porque o Bellatorum conspirou para matar seu pai e tomar o reino para si mesmos.
Descobriram sobre o soro de alguma forma, suponho que pela leitura do diário de
seu pai ou pelo dom de Demetrius e sabiam que isso iria colocá-los em perigo, se
toda a casta mestiça de Legiones pudesse sobreviver a Transição. Já não seriam
guerreiros fortes, mas apenas um dentre os demais. Como seriam especiais então?
Eles a usaram como um peão em seu jogo de dominação e acho, sempre acreditei,
que seu objetivo final era nada menos que a dominação do mundo. Eles se
moveriam para as outras colônias, matariam os Alfas e suas famílias, como em
Roma e logo se converteriam em generais perante o mundo. Eles são os assassinos,
Eliana. Assassinos que estão cansados de responder a alguém. Assassinos que não
duvidarão em tomar o que querem, por qualquer meio possível.

Aproximou-se mais, sua voz suplicante, as sobrancelhas no alto. — É por isso


que é tão importante que o soro não caia em suas mãos. Porque é tão importante
que continuemos a nos fortalecer com armas e manter-nos escondidos por agora,
até que tenhamos construído a fortaleza e possamos convidar os membros de
outras colônias que estão cansados de seus próprios tiranos para se unir a nós.
Então podemos nos vingar pelo o que o Bellatorum tomou de nós. — Ele levantou
a mão, roçando os nós dos dedos no rosto dela. — O que tomaram de você.

Ela engoliu saliva. Seus cílios desceram e uma leve brisa soprou uma mecha de
cabelo de sua bochecha. Era sua imaginação ou se apoiou em sua mão? Uma onda
de calor pulsava em suas veias, vitorioso. Logo seus cílios se levantaram e ela o
olhou, fria como um dragão.

—Sem dúvida penso em me vingar, Silas. De todos meus inimigos, quem quer
que sejam.
A mão em seu rosto ficou imóvel e ele lhe devolveu o olhar em silêncio.
Concordava com ele? Ou era uma ameaça? Ela o confundiu ainda mais com o que
disse depois.

—Obrigada pelo que fez com Caesar nesta manhã. Poderia ter me matado.
Mata-me admitir, mas... você tinha razão sobre ele.

Agora soava realmente agradecida, mesmo em dívida. — Eliana. — Murmurou.

—E também tem razão sobre as crianças serem cegas. Mas não sou uma criança.
Qualquer que seja a verdade, eu a encontrarei. Devido a que o poder real não vem
do ódio. Trata-se da verdade.

Silas quase riu em voz alta disso. Teve que morder a língua para silenciar.

O poder não vinha da verdade. Poder provinha da capacidade de manipular os


resultados a favor de si mesmo. Do mesmo modo como fez agora.

Ela iria encontrar a verdade sobre seu pai e ainda que não quisesse, ele ganharia
ainda mais confiança. Sim, assassinos aproveitavam as distrações. De fato, o faziam.

Pobre e doce Eliana. Como um cordeiro indo ao sacrifício.

Ele assentiu solenemente, permitindo que sua mão se abaixasse. Sem dizer uma
palavra, se virou e afastou-se lentamente, serpenteando através dos túmulos, folhas
secas rangendo como ossos se quebrando sob seus pés.

***
Foi algo que Mel disse neste mesmo dia que o fez. Uma história simples, terrível,
mas certa, fez um pequeno grão de dúvida criar raízes e empurrar para cima.

Estavam no quarto onde dormia, ela não se referia a ele como seu quarto, ainda
que houvesse uma cama, era mais como um quarto de hotel no purgatório, anônimo
e frio, Mel estava ajudando com a roupa depois de seu banho. Dormiu um pouco,
mas ela ainda estava esgotada e seu corpo estava dolorido em todas as partes. Suas
costelas, descobriu, não se quebraram com os chutes de Caesar, simplesmente
estavam machucadas. As feridas de bala no quadril e na perna já começaram a se
curar.

Eliana relatou os detalhes de tudo o que aconteceu desde o momento que


recebeu o disparo no museu e Mel ouviu, incomumente silenciosa. Quando
terminou com sua história e ficou olhando o antigo muro de pedra do outro lado
da cama, o último que disse foi. — Continuo voltando a algo que Gregor disse,
antes de fugir do prédio.

—O que?

—Os assassinos geralmente não precisam fazer uma cirurgia para conseguir
informações. — Eliana olhou para Mel. —Porque Demetrius iria perder tempo
fazendo isso? E por isso, porque quando o resto do Bellatorum apareceu, me deixou
ir?

Passou-se muito, muito tempo, antes de Mel responder. Nas sombras de cor
azul tênue do quarto — não havia eletricidade no prédio — seu rosto estava sério,
quase austero. Finalmente deixou sair um leve suspiro, como se houvesse chegado
a uma conclusão sombria, não desejada.
—Lembra-se do dia que nos conhecemos?

Isto surpreendeu Eliana, era tão fora de contexto. Ela tentou pensar para trás,
mas não podia se lembrar com precisão. —Um...

—Foi dois dias depois do Natal. — Mel continuou olhando ao redor do quarto.
— Meu vigésimo primeiro aniversário.

—Aniversário? Eu... eu não sabia que era seu aniversário.

Ela encolheu os ombros. —Porque o faria? Era a filha do rei. Eu era uma serva.
Uma humilde escrava. Não era importante.

Sentaram-se em silêncio por um momento, sentindo a sensação da verdade


rotunda desta afirmação. Que não era importante. Como as coisas mudaram?

—Estava aterrorizada. —Mel riu suavemente. —Era uma criatura estranha, tão
perfeita e consentida. — Disparou um olhar de desculpa para Ana. — E ao
contrário do que é hoje. Seis anos de diferença e um mundo entre nós duas em
todos os demais aspectos.

—Você era muito magra. — Eliana brincou com suavidade, empurrando um


dedo nos dedos bem desenvolvidos de Mel. — Toda joelhos e cotovelos.

—Ambas duas éramos magras. —Ela concordou, assentindo. — Fracas e


inocentes. Patinhos fracos com nossas cabeças metidas no traseiro enquanto
pensávamos que nossa merda era estrela.

Eliana riu, um som que parecia discordante no quarto frio, empoeirado. — Você
realmente tem facilidade com as palavras, Mel.
Ela sorriu. — É um dom. —Olhou de lado para Eliana e seu rosto ficou sério
outra vez.

—Mas me lembro bem deste dia.

—O que?

Mel olhou para Eliana por muito tempo, procurando algo e logo se virou,
engolindo. Respirou fundo e em voz baixa disse. — Foi o dia que meu marido
morreu.

Eliana começou surpresa. — Marido? Mel... não sabia que estava casada! Porque
não me contou...

—Ninguém sabia. Era um mestiço. Aposto como o inferno, com uma grande
risada e covinhas nas quais poderia me perder. Não era para estarmos juntos, na
verdade. Eu era uma serva e ele era um dos melhores no Legion, sendo preparado
pessoalmente por seu pai para entrar no Bellatorum se sobrevivesse... — Sua voz
sumiu até o silêncio.

—Oh não. —Disse Eliana em silêncio. — Oh Mel. Sinto muito.

—Nascemos no mesmo dia. Nunca falamos sobre isso, o fato de que eu tinha
sangue puro e não ter que me preocupar com a transição e ele tinha a chance de um
mosquito no inferno de passar por ela. Nos adiantamos e casamos em segredo,
sabendo que não tínhamos muito tempo. —Melliane olhou para seu colo. — Rezei
com tanta força para que meu período não viesse e ficasse grávida. Assim teria algo
para me lembrar dele... — Ela engoliu e mordeu o lábio inferior. —Mas isso nunca
aconteceu. Pelo menos ficamos juntos até o final, no entanto. Ele disse que queria
que eu segurasse sua mão quando... quando...
De repente cobriu o rosto com as mãos e Eliana envolveu os braços ao redor
de seus ombros. Sentaram-se assim por um momento, em silêncio e imóveis.

—Nunca soube. — Sussurrou Eliana. — Você estava tão... bem quando nos
encontramos. Nem sequer chorou. Nunca soube que estava passando por isso. —
Depois de um momento, Mel de endireitou e limpou os olhos enquanto Eliana
cruzava os braços sobre o peito e ficou olhando. — Porque nunca me contou?

Seu rosto, sempre tão precioso, endureceu. Ela afastou o olhar. — Seu pai me
ordenou que não o fizesse.

Eliana a olhou com a boca aberta, assombrada, mas Mel simplesmente


continuou com o tom morto, evitando seus olhos. — Ele soube que tínhamos
casado. Claro que soube, certo? Nunca perdia nada, seu pai. — Uma ponta de
amargura se colou em sua voz, que Eliana não perdeu. — Encontrou-me com
Emil... seu nome era Emiliano e nos fez jurar que nunca contaríamos a ninguém.
Disse que podíamos ficar juntos até que... até que chegasse o dia que o destino iria
decidir se deveríamos permanecer juntos ou não. Depois, apenas uma coisa me
impediu de me matar.

A voz de Eliana tremeu. —O que?

Mel se virou considerando Eliana com os olhos atormentados. — Demetrius.

O sangue abandonou seu rosto. Ficou de pé bruscamente na cama.

—Não foi assim. — Disse Mel, adivinhando o que significava sua expressão de
surpresa, D era conhecido por ser mulherengo de primeira ordem. De volta a antiga
colônia, passou por muitas mulheres, sem descanso. — Sempre fomos apenas
amigos. Sei que Emil nunca disse a ninguém que nos casamos porque sabia o
problema que causaria, mas de alguma forma Demetrius descobriu... como,
realmente não sei. Mas depois que Emil morreu, ele veio me ver todos os dias e me
abraçava enquanto chorava. Apenas... me segurava. Nunca disse uma palavra neste
tempo todo, mas alguém saber como eu me sentia por Emil, ajudou de uma forma
que não pude explicar. Ia ao meu quarto e eu chorava em seu ombro e quando me
acalmava, ia embora. Depois de semanas e semanas disso, comecei a sentir como
se devesse a ele viver, como se houvesse investido tempo e esforço em mim e fazer
isto seria o mais baixo egoísmo para devolver sua bondade ao cortar meus pulsos.

—Assim, decidi viver. E uma vez que ele viu que eu estava bem, Demetrius
parou suas visitas e nunca disse uma palavra sobre isto, apenas assentia enquanto
passava pelos corredores, como se nada houvesse acontecido. Mas a cada ano no
aniversário da morte de Emil, eu encontrava uma rosa branca em meu travesseiro
e sabia que era dele.

Eliana sacudiu lentamente a cabeça para trás e para frente. Parecia que havia um
peso em seu peito, esmagando seus pulmões, roubando seu fôlego.

—O que estou tentando dizer Ana, é que o homem lidou comigo com tanto
cuidado, um homem que mal conhecia e se sentava comigo com tanta paciência, o
homem que me deu tanta comodidade no pior momento da minha vida, não é o
tipo de homem que faz um complô para matar o pai da mulher que amava.

—Ele não me amava. — Disse Eliana insistente. — Usou-me. E você não estava
ali. Eu o vi com a arma na mão, Mel. Eu o vi.

—Você o viu disparar em seu pai? —Disse Mel em voz baixa, olhando para ela.
A mandíbula de Eliana se apertou. —Não precisava ver isso. — Suas bochechas
ruborizaram fortemente. — Sou perfeitamente capaz de colocar dois e dois juntos
quando vejo um... um corpo no chão e alguém com uma arma saindo fumaça. E
não se esqueça, Silas descobriu sua trama para cuidar de... meu pai.

—Sim. —Disse Mel mordaz. — Silas. Este modelo de virtude.

—Sei que nunca gostou dele, mas tem sido útil e um apoio. Mesmo se é um
pouco... — Fez uma pausa, lembrando-se de sua proposta calculada de casamento,
a forma como manteve sua parte, toda lógica e sem amor. — ... Adstringente.

Mel encolheu os ombros, mas seu rosto era duro como granito. — Talvez tenha
razão. Não sei. Sei que ajuda seu irmão com seus pequenos... problemas, no entanto.
E sei como olha para você, Eliana.

Eliana ficou olhando.

—Como se você fosse o jantar. — Disse sombria. — Uma leitoa assada, toda
amarrada e pronta para comer.

A pele de Eliana se arrepiou. Algo sobre isso soava perfeito. Aproximou-se


lentamente da cama e sentou-se junto a Mel uma vez mais e se apoiou em seu
ombro. Olhando o chão de pedra desgastada, as paredes nuas, ensombrecidas, disse.
—Porque não me contou nada disso antes? Porque agora?

O suspiro de Mel era pesado. — Devido a que nunca iria acreditar e não queria
que isto ficasse entre nós. Que diferença poderia fazer, de qualquer forma?
Desenterrar o passado, quando nada pode mudá-lo? Você e eu sempre fomos boas
em deixar o passado para trás. No entanto.... — Sua voz se rompeu e olhou para
Eliana. — Agora o passado está se colocando ao dia conosco e acho que deve
considerá-lo, realmente considerar, a possibilidade de nada ser o que parece. E fazer
suas opções de cara ao futuro e suas consequências.

***

Mel a deixou depois disso, sentada sozinha no meio do quarto vazio com a
lembrança e a confusão, como um par de monstros sombrios grunhindo dentro de
seu crânio, uma coisa se repetindo uma e outra vez, sem descanso.

Nada é o que parece.

Para Eliana, era a possibilidade mais temível de todas elas.


CAPÍTULO
DEZENOVE

Este não pode ser o lugar correto, D pensou, olhando seu destino final em todo
passeio arborizado. Não pode ser.

Mas, de acordo com seu sonho, era.

O cemitério gótico Montmartre, famoso por ser o lugar de descanso final de


luminários como Degas, Nijinsky e Zola, foi construído sob o nível da rua no oco
de um antigo canteiro. A porta de entrada a seu extenso vinte e cinco acres de
jardins e tumbas estava na tranquila Avenida Rachel, sob o passo elevado da Rua
Caulaincourt, onde agora se encontrava bem escondido do suave resplendor
amarelo das luzes nos postes, nas sombras de um chorão. Perplexo, olhou para cima
e abaixo na rua, com esperança de ter mais pistas.

O sonho lhe mostrou o número das duas paradas de metrô, na Praça Blanche
com seus vendedores ambulantes fora do Moulin Rouge e a pequena casa de guarda
junto a porta do cemitério, onde os visitantes pagavam uma cota de seis euros para
percorrer as passarelas estreitas, de frente as criptas e obeliscos talhados e estatuas
de mármore branco e olhos elaborados, monumentos desmoronando sobre os
mortos indiferentes. No escuro crepúsculo da hora de fechar, a casinha do guarda
estava escura e deserta, as portas de ferro oxidadas, trancadas.
Era como no sonho, até o último detalhe — parado ali com a nevoa rodeando
seus tornozelos, o som da música e risadas de um restaurante a meia quadra de onde
estava, sob a árvore com as mãos dentro dos bolsos para afastar o frio silencioso
na noite. Mas agora que estava ali, D não tinha ideia do que fazer.

Acostumado a natureza caprichosa deste dom em particular, D decidiu esperar.

Não precisou esperar muito tempo.

Da rua retumbou um antigo Peugeot verde, expelindo fumaça de seu silenciador


em plumas azuis, um farol piscando esporadicamente como se fosse um código.
Aproximou-se e D se colocou atrás do tronco grosso da árvore, observando. O
carro sacudiu e moveu-se a uma parada na calçada e vomitou quatro jovens, rindo
entre si e falando besteiras em francês. Tinham uma estranha coleção de objetos:
bússolas, botas de borracha, mochilas estufadas, lanterna e um mapa aberto no capo
do carro que começaram a examinar, com uma conversa amistosa sobre uma
aposta.

—Digo que não há como ganhar, amigo. Apenas irá ganhar um tapa da cadela
e molhar sua calcinha de babados cor de rosa.

Um bufar zombeteiro. — Certo, como se fosse deixar uma mulher me bater.

—Isto foi o que Jules pensou e ficou mancando uma semana depois.

Uma rodada de risadas estridentes começou e o ofendido Jules os repreendeu.


— Não fiquei!

—Amigo, ficou mancando totalmente.

—Tropecei em uma pedra!


—De verdade? Isto foi antes ou depois do chute de Butterfly na perna jogando-
o sobre o traseiro?

—Aquilo foi um golpe de sorte.

—Sim, ela é muito sortuda de qualquer forma. Vocês trouxeram dinheiro?

Ouviu-se um murmúrio de assentimentos, botas e mochilas postas e o mapa


dobrado, se afastaram. Os homens que repreendiam um ao outro, trancaram o carro
e se dirigiram ao cemitério, lanternas acesas pelo chão em franjas amarelas trêmulas.
Um por um, saltou o portão baixo e logo foram engolidos pela escuridão.

—Bem. — Murmurou D ao descer a calçada e seguindo-os. — Isto deve ser


interessante.

***

A noite de sexta era dia de luta nas catacumbas e Eliana não iria permitir que
algo tão pequeno como as feridas a bala, as contusões nas costelas e um sentido de
realidade se deteriorando a impedisse de participar.

Depois de tudo, ela era a atração, a estrela. E realmente precisava de uma saída
para a raiva nuclear que estava crescendo dentro dela o dia todo.

Não foi capaz de encontrar Mel, de deixar Silas pela tarde. A necessidade de
conversar sobre o que disse sobre seu pai era grande, uma compulsão correndo-a e
fazia seu coração golpear como um tubarão em um anzol dentro do peito. Havia
várias coisas que Mel disse e sua voz, os olhos e a postura quando o fazia que
também ficou presa nela, irritando-a como uma farpa sob a pele.

Nunca perdia nada, seu pai.

Porque ele me proibiu de fazê-lo.

Fez-nos jurar que nunca contaria a ninguém.

Porque? Eliana rodeou novamente esta pergunta, uma e outra vez. Porque?

Porque seu pai insistiu com Mel para manter seu casamento em segredo?

Porque Demetrius cuidou e suturou suas feridas?

Porque os assassinos, sobre os quais contou a Silas e não os Legiones ou o


Bellatorum a queriam morta?

Poderia o que disse Silas sobre seu pai ser verdade?

Não sabia de nada. Nada mesmo. A incerteza deslizou, fria como um réptil sob
sua pele.

No momento que entrou no ringue climatizado e cavernoso de New Harmony,


trabalhou a si mesma em espuma épica.

A multidão esta noite era enorme. Corpos pressionados contra as paredes de


pedra, um conta o outro, quase todos com um copo na mão, muitos rindo,
dançando, gritando para se fazer ouvir sobre os graves golpes da música eletrônica
que um DJ tocava na mesa giratória e nos alto falantes nos cantos junto as velas.
Era em noites como está, bebendo e conversando junto com os seres humanos,
que a fazia pensar que o que seu pai pensava era possível. Não, eles não sabiam de
verdade quem e o que era, os detalhes arenosos, mas a maioria deles pareciam saber
que era como um animal primitivo, diferente. Que ela era muito diferente. Eles a
olhavam, se moviam de lado para deixá-la passar, mas desviavam o olhar quando
ela os olhava.

E ainda estavam ali.

Estavam ali se divertindo e entretendo-se, escapando da monotonia da vida


cotidiana passada em escritórios, em cubículos, atrás das paredes do lugar sem
janelas. Chegavam a se perder na escuridão, na aventura e no companheirismo sob
a terra. Chegavam a lutar. Chegavam a dançar. Chegavam a beber, brincar e amar.

Chegavam a viver. E nesta noite, mais do que nunca, Eliana precisava disso para
viver, também.

Um rugido subiu quando se deixou ver. Ela saiu das sombras do túnel de
conexão, seu casaco negro voando atrás dela, um leve sorriso, satisfeito em seu
rosto. Esta era sua casa e este era seu povo, relacionados a ela ou não, ela adorava
isso. Ela gostava de todos.

—Butterfly! —Gritou alguém do fundo da multidão e centenas de vozes


cantavam como uma onda. Butterfly! Butterfly! Butterfly!

Quase com cinquenta graus, o ar nas catacumbas se eletrificava.

Ela passou pela multidão e parou. Tirou o casaco, o entregou a pessoa anônima
que se lançou adiante na multidão para pegá-lo e deixou que seu olhar passasse
sobre o mar de corpos. Ela sabia o que viam quando olhavam para ela: o cabelo
repicado azul e couro negro ajustado, botas de motoqueiro e um corpinho apertado
que deixava os braços e os ombros ao descoberto, mostrando a borboleta entre as
omoplatas e estranhamente animada nas sombras sobre sua pele. Pela primeira vez
em muito tempo usava maquiagem, sombra nos olhos e delineador para acentuar a
inclinação felina. Seus lábios estavam vermelhos.

—Quem quer ir primeiro? — Gritou sobre o ruído.

Um grupo de quatro homens, com dinheiro no alto dos punhos, empurrou-se


para frente da multidão. Um deles, o maior, sorria com as mãos em punhos e orelhas
como couve-flor de um boxeador profissional, tirou a camisa, deixou-a cair no chão,
levantou a mão e apontou para peito grande.

Eliana sorriu e pensou: quanto maiores, mais fáceis são...

—Eu irei primeiro. — Disparou uma voz profunda e masculina das sombras ao
longo da parede do fundo, uma voz que fez cada célula de seu corpo se contorcer
e todas as cabeças na multidão se esticarem ao redor para ver.

Eles não precisaram se esforçar muito. Ele ficava muito acima dos demais. Deu
um passo adiante das sombras e um a um, ficou com a boca aberta, cada pessoa se
afastou a seu passo.

Demetrius.

Aqui.

Aqui!

A música morreu. Sussurros correram através do lugar. Um rangido palpável de


emoção saltou de pessoa a pessoa, viral.
Caminhava até ela, exalando uma corrente bruta de perigo, selvagem e quente,
com os olhos fixos. Quando chegou à beira da multidão parou. Deliberadamente,
manteve seu olhar, abriu o zíper lentamente da jaqueta com capuz negro que usava,
encolheu os ombros e a deixou cair a seus pés.

Foi então quando o ar realmente pegou fogo.

Suspiros audíveis subiram através da multidão. As mãos em punho do homem


que antes estava pronto para lutar tremeram. Alguém sussurrou com assombro:
Merde!

E além de seu coração trovejando e os músculos congelados de horror, Eliana


o apreciou.

Enorme, o peito nu e musculoso de D ficou exposto, o queixo levantado, os


olhos estreitos, os ombros inclinados para trás. Seu corpo era talhado com
músculos, como a imaginação selvagem de um escultor. A partir de seus músculos
em forma de V na cintura de sua calça de couro havia uma ondulação articulada de
seu abdômen duro como rocha, dos bíceps pesados às costas que se estreitavam na
cintura em um triangulo invertido, era magnifico. Assombroso. Hércules, Adônis,
Sansão e Tarzan, tudo em um.

Ele tinha múltiplas tatuagens, elaboradas: o olho estilizado de Hórus em seu


ombro esquerdo, grossos símbolos tribais negros rastreados ao longo de seu braço
direito, uma enorme serpente indo pelo pescoço, ao redor das costas e até seu peito,
onde se enrolava, sinuosa. No centro de uma escada sobre seu coração, havia um
nome em letras cursivas com videiras espinhosas e flores ao redor.

As letras enunciando Eliana.


Assombrada, olhou novamente para seu rosto, percebendo os arranhões que lhe
deu já se curando. Ele estava sorrindo, uma curva lenta e sedutora de seus lábios.
— Que tal uma revanche? — Disse em um ruído surdo, divertido. — Algo me diz
que irei ganhar esta também.

Filho da puta.

A multidão explodiu em frenesi. Fizeram apostas, dinheiro mudou de mãos,


com gritos e empurrões, sobreveio o caos. Do canto dos olhos percebeu que Alexi
estava de pé com os braços cruzados, olhando entre os dois. A loira atônita a seu
lado não podia afastar os olhos do peito de Demetrius.

Deu um passo à frente. Ela deu um passo atrás. Começaram a dar voltas entre
si lentamente, com cautela, seus olhares fixos. Todo o ruído e o movimento sumiu
a um segundo plano, já que seu foco estava em seu rosto. Seus movimentos. Seu
fôlego.

Sua própria respiração estava ofegante, seu pulso uma tempestade elétrica
dentro de sua cabeça.

—Se acha que vou levar você até os outros está errado. — Disse, baixo o
suficiente para apenas seus ouvidos. Mais de quatrocentas milhas de esconderijos
nas catacumbas, precisava de dias para encontrá-los e então seria coisa do passado.

Ele arqueou uma sobrancelha. Os anéis de prata nela brilharam à luz. —Não
estou aqui por eles, garota. Estou aqui por você.

Se a queria irada com o carinho, funcionou. — Uma bela tatuagem por certo.
— Disse, olhando para seu peito. — Vou arrancá-la de seu corpo morto mais tarde.
Ele estalou a língua. — Terá que me matar primeiro. Boa sorte com isso.

Logo se lançou adiante em um borrão de pele bronzeada e corpo, agarrando-a.

Contorceu-se fora de seu alcance, usando toda sua força para se soltar. Mas ele
a pegou novamente em um instante e segurou seus braços nas costas. Embriagante
e quente, masculino o cheiro de sua pele enquanto se inclinava e sussurrava em seu
ouvido. — Não está fazendo um grande esforço. É preciso dar a multidão o valor
de seu dinheiro. Butterfly. — Ela sentiu o roce de seus lábios na pele do ombro e
logo a soltou, afastando-se.

Deu a volta com um grunhido selvagem. Ele estava do outro lado do círculo de
corpos, as mãos nos quadris, olhando-a com uma expressão tranquila em algum
lugar entre diversão e antecipação. Esticou uma mão e torceu dois dedos para ela,
uma ordem silenciosa.

Venha.

Oh não. Oh não, ele não o fez.

Fúria a cegou e foi por puro instinto, batendo, chutando, golpeando. Os


momentos seguintes foram um borrão. Houve uma sensação de voo, a gravidade
girando à distância. Tinha as mãos ao redor da garganta, suas mãos chegaram ao
redor de sua cintura e de repente ela estava tombada no centro do ringue de luta
com Demetrius sentado sobre seu corpo, as mãos segurando seus pulsos no chão
acima de sua cabeça.

O rugido da multidão era ensurdecedor.


Ele lhe sorriu, vitorioso e logo antes que pudesse gritar uma maldição que estava
na ponta da língua, a boca dele estava sobre a sua.

Dor, sal e suavidade, o chão frio e duro contra suas costas, Demetrius quente e
com força contra seu peito, puxando com avidez seus lábios, bebendo
profundamente... o limite afiado de sua fúria começou a se derreter terrivelmente.

Ele se afastou primeiro, ofegante, virou-a e, em um movimento horripilante e


fluido, atirou-a sobre o seu joelho dobrado, de modo que ficou encarando o chão
empoeirado.

E então — para horror de todos os horrores — ele lhe deu umas palmadas.

Na frente de todos.

Três vezes.

Forte.

O público ficou absolutamente louco.

—Isso é por todos os anos que se foi. — Grunhiu D, inclinando-se perto de


seu ouvido. Ela chutou e gritou, lutando contra ele, mas ele a segurava com força,
imóvel e punhos de ferro, prendendo suas duas mãos em uma das dele, apoiando
seu peso sobre suas costas com o antebraço.

Logo outras três palmadas. Seu grito de indignação foi abafado pelos aplausos
estrondosos, dos encantados expectadores.

—Isso por me chamar de mentiroso, assassino e traidor.


Suas bochechas estavam quentes e ardiam. Não podia escapar, ela estava a sua
completa mercê...

Ele bateu novamente, outras três vezes, humilhante e forte, logo a levantou, a
pegou nos braços e disse. — E isto é para as próximas três coisas que fará e me irá
irritar para cacete.

Logo, puxou-a para si e a beijou novamente, a vista de todo o mundo, com as


mãos em seu cabelo e sua boca sobre a dela, quente com um baixo ronronar de
prazer profundo no peito.

—Isso não é bom. — Disse Alexis de algum lugar perto. — Então, isso não é
bom.

Ela voltou a si e o empurrou assim que a multidão rompeu repentinamente e


começou uma selvagem debandada para os inúmeros tuneis de sombra que levavam
a New Harmony.

—Cataflics! — Gritou alguém, empurrando-os.

Polícia.

Eliana levantou-se de um salto e começou a correr, piscando através da


multidão, usando o caos como vantagem para entrar em um túnel de acesso que
raramente usava devido aos poços traiçoeiros, sem marcação que pareciam como o
chão irregular, mas que faziam cair na escuridão.

Ela sabia sem olhar que Demetrius estava logo atrás.


CAPÍTULO
VINTE

A prostituta era uma loira, como prometeu Silas, mas sua loira favorita, que
gritava com tão lindo abandono, com aquela pele pálida e leitosa, que quando ferida
ficava arroxeada.

Ela não era sua favorita, não. Ela não era jovem, bonita ou magra.

Ela não se movia no momento, também.

De pé no extremo da cama completamente vestido, Caesar olhou para a luz


fluorescente sombria da lâmpada de noite. Ela estava de boca para baixo sobre a
colcha machada e enrugada, aberta, nua.

Ele inclinou a cabeça, inspecionando com cálculo frio, clínica de um


conhecedor. Havia o bom nu e o nu ruim e tudo no meio, mas o pior era o tipo
feio de nu, onde mesmo uma enfermeira do hospital, que sempre via pessoa com
muito sangue e vômito, retrocedia.

Esta cadela era definitivamente o feio nu.

Havia marcas de amarras vermelhas e irritadas nos pulsos e tornozelos, onde


ficou presa e um salpicado de sangue decorando o arco carnoso de seus quadris.
Suas costas estavam cheias de sardas, suaves contra sua pele pálida. Seu cabelo fino
e liso de cor amarela — odiava cabelos finos — estavam em fios frouxos sobre o
travesseiro e seu rosto, escondendo seus olhos. Abertos? Fechados? Não
importava. Não queria ver seus olhos, de qualquer forma. Sempre gostava de cobrir
seus olhos, era apenas seus gritos que queria.

Esta puta de cabelo fino deu-lhe alguns que ele queria. A mordaça de bola de
plástico que colocou em sua boca e pescoço fez pouco para amortecê-los.

O quarto do hotel ficava na área vermelha fora de Montmartre, de má reputação


e sombrio, visitado por homens de certo calibre que se moviam furtivamente
através das sombras, correndo como ratos. Cheirava a suor, urina e fumaça de
cigarro, dor e desespero. Caesar tentava de tudo para bloqueá-los. Em momento
como estes, amaldiçoava seus sentidos intensificados, uma das poucas diferenças
entre ele e aqueles homens comuns.

Talvez a única diferença, para dizer a verdade, sim.

Levantou o pé e deu ao colchão cheio de caroços um forte chute. A puta não


reagiu, não fez um som, apenas rodou um pouco na cama e logo se acomodou
muito rapidamente na quietude pesada, pouco natural. Sua pele estava começando
a mostrar uma cor cinza clara. Fora, no estacionamento, onde não se via além das
cortinas abertas, alguém gritou algo inteligível e fechou a porta de um carro. Longe,
um cão latiu três vezes.

Cabelo loiro. Deuses, odiava seu cabelo.

Dobrada em uma cadeira de vime velha contra a parede manchada e nua, estava
uma manta irregular e simples. Caesar a viu e deixou seu olhar vagar, parando,
apreciando a única coisa que era a beleza no quarto. A cor dela. Linda, o matiz
saturado.
Índigo. Na verdade, nunca percebeu o lindo que era este tom em particular
antes.

Sua boca encheu de água. Outra ereção muito mais firme que a anterior com a
puta, agitou à vida em sua calça.

Pouco a pouco, desfrutando da antecipação, a luxúria e a ira fervendo a fogo


lento em seu sangue como uma febre aumentando, Caesar cruzou o quarto desde a
cama até a cadeira contra a parede. Pegou a manta nas mãos. Ele a apertou contra
seu nariz, os lábios. Moveu-se para a cama, onde a colocou sobre a prostituta morta
e desceu o olhar para ela, repelido. Mas uma vez que colocou a manta
cuidadosamente sobre a sua cabeça, escondendo seu rosto, seus olhos, seu cabelo
loiro feio, tudo pessoal sobre ela, se sentiu melhor.

Sentia-se bem.

Voltou a seu lugar a seus pés da cama e admirou sua obra.

Imaginou que a manta azul não era uma manta em absoluto, mas cabelos.
Cabelos tão grossos, escuros e bonitos como nunca poderiam traduzir-se por um
corte indiferente, uma tintura inexperiente.

Mas tão azul como a noite que imitava os céus e deveria ser coroado de estrelas.

Cabelos como de... sua irmã.

Com água na boca, o coração pulsando no peito, Caesar começou, pouco a


pouco, abrir o cinto de sua calça.
***

—Tudo está disposto para a reunião?

O homem de chapéu de feltro inclinou a cabeça, murmurando respeitosamente.


— Ita, domine meus.

Sim, meu senhor. Como Silas amava as formas imutáveis da igreja. Todos falavam
latim, ninguém colocava em dúvida sua autoridade, subordinados sabiam seu lugar.
Negou-se a falar em latim desde que saiu das catacumbas romanas, mas supunha
que poderia dobrar dita norma neste dia, sendo esta uma ocasião especial.

Depois de tudo, não era todos os dias que marcava um encontro com o Papa.

—Exellens. — Respondeu ele e o homem de chapéu de feltro sorriu.

Seu lugar de reunião era uma pequena cafeteria com café expresso forte, garçons
simples e uma excelente vista da Praça du Tertre, uma praça empedrada, rodeada
de pequenas lojas cobertas com toldos vermelhos ordenados. Amarrados através
dos galhos nus das árvores, ao seu redor havia pequenas luzes azuis e branco
espumoso ao longo das calçadas e janelas, cheias de neve. Apesar da hora e a
temperatura, a praça ainda zunia com compradores e vendedores, filas atrás de filas
de cavaletes, vendedores ambulantes vendendo retratos a turistas. Tudo perto do
Natal ficava aberto até tarde.

Para o homem magro, sorridente com chapéu de feltro e um casaco longo


sentado na frente dele, na mesa de ferro do café, Silas disse. —O tempo é muito
importante. Justo antes do discurso da manhã de Natal seria ideal. Não vamos
manter Sua Santidade por muito tempo, claro. Ele tem tantos assuntos importantes
para atender neste dia.
Silas enviou um leve empurrão, junto com as palavras, uma pitada de
concordância, fez o homem assentir com a cabeça.

—O Papa está ansioso para conhecê-lo, domine meus. Tinha o maior respeito por
seu antecessor e sabe que o trabalho que faz é necessário para nossa Madre Igreja.
Para mantê-la a salvo do mau que prevaleceria se não estivéssemos sendo vigilantes.
—Seu rosto ficou sombrio. — Estes demônios estão por todas as partes nestes dias.

Oh, ele realmente não tinha ideia. Sila precisou trabalhar duro para manter um
rosto sério. —Dê ao cardeal minhas saudações, sim? Por favor, agradeça a ele por
organizar a reunião e por seus serviços. Será recompensado generosamente por sua
lealdade. Como todos vocês.

Uma vez mais a inclinação respeitosa da cabeça. Trocaram algumas palavras


mais, referindo-se ao tempo e viagens, até que Silas discretamente olhou seu relógio.
Sem necessidade de dizer algo, o homem sabia que a reunião terminou e levantou-
se de sua cadeira.

—Ire cum Deus. — Murmurou a modo de despedida. Ele levantou a mão até a
ponta de seu chapéu e Silas via a pequena e negra tatuagem em seu pulso interno,
uma tatuagem que toda sua classe compartilhava: uma pantera sem cabeça,
atravessada por uma lança. O homem se virou e dirigiu-se ao outro lado da
concorrida praça e Silas o viu se afastar até que deslizou nas sombras entre dois
edifícios e se perdeu de vista.

Vá com Deus. Era seu lema desde tempos imemoráveis, três palavras
pronunciadas como uma benção ou despedida ou qualquer número de coisas no
meio. Fanáticos estranhos como sempre precisavam de algum tipo de saudação.
Silas jogava junto, como o Dominus diante dele, como todos os líderes deste grupo
não-humanos decididamente de caçadores humanos.

Expurgari, chamavam a si mesmos. Purificadores. Que piada. Quase mil anos


desde que começou a Inquisição e sua pequena tropa de assassinos sancionados
pela Igreja reformada, ainda não tinham ideia de que tipo de monstros realmente
puxavam suas correntes.

Logo, no entanto. Logo se encontrariam fora.

Lançou algumas moedas sobre a mesa e se levantou, sorrindo languidamente


para a garota que correu para pegar seu prato. Claro como pudim de baunilha,
ruborizou e abaixou o olhar. Tentador, mas não tinha tempo a perder esta tarde.
Tinha assuntos mais importantes que atender.

Tinha um assassinato para planejar, uma revolução para dirigir e um império


para derrubar.

Estava muito ocupado para perder o rumo agora.


CAPÍTULO
VINTE E UM

Era o lugar mais estranho que D já viu.

Grande, escuro e cavernoso, uma espécie de catedral subterrânea, um


monumento para exaltar o talento dos artistas de rua anônimos e lembrar o longo
tempo esquecido. Grafite, vívido como pesadelos, estava em todas as partes.
Salpicado sobre as paredes de pedra em franjas mórbidas de flores purpuras, negras,
vermelhas e amarelas pintadas em colunas imponentes, um redemoinho de cores
como um caleidoscópio no teto da caverna arredondada muito acima de suas
cabeças. Havia vários dragões dourados voando e cuspindo fogo com as garras
estendidas. Havia enormes letras de um alfabeto esquecido e uma representação de
dois metros e meio de altura de uma mulher nua com um braço cobrindo a cabeça.

Mas os ossos eram muito mais estranhos que a obra de arte.

Em todo o caminho até o teto ao longo de uma parede grande e curva, se


mostrava figuras dispostas artisticamente de ossos humanos. Inúmeros ossos,
provavelmente milhares, fêmur e costelas, crânios empilhados com precisão
cuidadosa, quase reverente. Era um depósito horrível em sua grandeza, um feito
ainda mais inquietante pelas centenas de velas que brilhavam ao longo de suas
paredes.

E em algum lugar deste império de pintura de ossos, Eliana se escondia.


Não podia vê-la, mas a sentia, um arrepio percorreu cada centímetro de sua pele
como nuvens de tempestade antes que vomitasse um raio. Deu outro passo adiante,
fazendo eco no espaço, seu olhar procurando em cada canto das sombras, cada
rachadura, cada lugar escondido.

Ela não estava à vista.

—Não estou aqui para machucá-la, Eliana. — Sua voz se elevou pelo espaço
tranquilo, fazendo eco até diminuir e sumir no silêncio. A mulher nua pintada
parecia zombar dele com seu astuto sorriso. — Quero apenas conversar. Vou dizer
o que preciso e então irei embora. Tem minha palavra.

Ouviu o som de água pingando. Uma vela em um nicho na parede atrás dele
farfalhou. Depois, uma voz sem corpo veio de algum lugar diante dele, soou com
sarcasmo. — Sua palavra? Bem, como é tranquilizador.

Congelou. A voz, tinha certeza, veio da sombra mais profunda do espaço, um


oco criado pela interseção de duas louças massivas, perpendiculares de pedra cal.
Ele estreitou os olhos, esticou seus sentidos e permitiu que cada feixe de luz
ambiente entrasse em suas pupilas para que dilatasse rapidamente. Sob o véu das
sombras de onde a voz se originava havia apenas folhas silvestres pintadas no chão
da caverna, crescendo pelas paredes de pedra com galhos finos até cobrir tudo
amplamente.

Ela não estava ali.

Deu um passo adiante e logo outro. Com a esperança de conseguir que falasse
novamente e ter uma melhor vantagem, disse. — Diga o que preciso fazer para
convencê-la. Diga e farei.
Um triste suspiro veio deste canto vazio, sabia que sim. Mas como? Deu outro
passo adiante, com cuidado, logo inalou e abriu todos seus sentidos para todo o
caos implacável ao redor se fundisse.

Dois ratos passaram correndo ao longo do telhado em algum lugar acima de sua
cabeça. Água estava pingando, caindo através da caverna antes que tocasse uma
poça de água parada, longe, muito abaixo. Pó de pedras e pó de ossos, tão finos
como limo, suspenso e difuso como átomos no ar. Um pulso de calor estava diante
dele, o cheiro em seu nariz. Deu outro passo seguro até este cheiro sensual e ela
disse bruscamente. — Pare.

Ele o fez. Colocou as duas mãos para cima em uma postura de rendição. O ar
frio e úmido, se sentia delicioso contra sua pele quente.

—Posso matá-lo agora e nem sequer irá ver. Fique onde está ou irei derramar
suas tripas por todo o chão. Entendeu?

Considerando o fato de que de alguma forma não podia vê-la agora e quando a
viu pela última vez lidava com uma faca muito bem, D considerou prudente apenas
inclinar a cabeça.

Ele sentiu um movimento sem ver a sua frente, sentiu o pulso de seu corpo se
mover lentamente ao redor, o calor a sua esquerda. Indiferente, fingindo-se
entediado desceu o olhar ao chão e logo deslizou para a esquerda, perto do calor
delicioso, sedoso. Ali, no ponto pálido de pó que cobria o chão havia um rastro de
passos, nada em especial, mas surpreendente pelo fato de aparecer um diante do
outro, justo na frente de seus olhos.

Maldição, pensou, tendo certeza absoluta de que era ela.


Eliana estava invisível. Porra, como conseguiu?

—Não sinto outro Bellatorum perto. Ou sua nova equipe. Assim, tenho que
assumir que veio me matar sozinho desta vez.

Ao instante disse. — Não acredita nisso. Sabe que nunca a machucaria.

—Verdade? — Murmurou em resposta, sua voz agora diretamente atrás dele.


Precisou de cada grama de sua força de vontade para não se virar, mas se manteve
imóvel, com os membros, a postura e a respiração não ameaçadores e relaxado.

—Sim. E a equipe que mencionou não é minha. Como disse antes, chamam-se
Caçadores. São assassinos das colônias confederadas.

O movimento saiu de trás dele. Imaginou senti-la olhando-o diretamente,


disposta a explodir.

—Fale. — Convidou ela, não fria, mas não particularmente acolhedora também.

Suas mãos ainda estavam altas e coçavam para descer, mas em troca, virou a
cabeça e disse sobre o ombro. — Acham que você é a nova líder do Expurgari.

Ela falava latim tão bem quanto ele. Assim que sua voz estava um pouco mais
firme quando disse. — Purificadores? O que isto significa? Porque iriam pensar
isto?

Cuidado, teria que ser muito, muito cuidadoso agora. — Gostaria de dizer isto
de frente, se não se importa. — Murmurou. — Posso me virar?
—Não. — Foi a resposta instantânea. Algo afiado e frio se pressionou em seu
ombro: uma faca. — E tem dez segundos contando agora para derramar sua
história, estou contanto.

Ele aceitou tanto a ameaça verbal quanto a mais imediata com a arma, com a
tranquilidade de alguém que muitas vezes enfrentou a morte, como se fosse algo
rotineiro. Um soldado do início ao fim, seu instinto de conservação se amorteceu
na infância, quando foi levado da creche e começou seu treinamento como
guerreiro. Ele protegeu a colônia de criaturas sobrenaturais, protegeu seu líder
genocida, que há muito tempo estava em paz pelo simples fato de que, com toda
certeza, sua vida seria curta e violenta. Não havia netos em seu futuro, isto tinha
certeza.

—Acham que é a nova líder do Expurgari porque seu pai era o antigo.

A lâmina se moveu contra sua pele. Uma leve hesitação, depois ouviu em voz
muito baixa. — E o que é exatamente que estes purificadores purificam?

Inalou. Exalou. —Nós.

—Isso não tem sentido. — Foi a resposta instantânea. A faca se pressionou


profundamente em suas costas. Sentia-se como se fosse um sinal de exclamação no
final de uma frase contundente.

—É complicado.

—Sim. — Soava como se ela quisesse empurrar a faca por sua coluna vertebral.

—São um ramo militante da Igreja, assassinos treinados.

—Mais assassinos!
—Que foi liderado por um Ikati disfarçado de humano desde a Inquisição.

—Oito.

—O que foi uma forma inteligente, se pensar nisso, usar os seres humanos para
matar sua própria espécie sem chamar atenção sobre o culpado real.

—Com que propósito? Por qual razão?

—Vingança Eliana. Vingança.

—Sete. — Sua voz era dura como granito.

—Porque acha que seu pai era tão dedicado a Hórus? O deus da vingança, deus
da guerra... isso não soa algo? Usou os seres humanos como uma rede de
espionagem para conseguir informações sobre as outras colônias para que pudesse
derrubar todas elas enquanto se disfarçava de um discípulo devoto da Igreja, um
guerreiro espiritual contra o mal. Contra os hereges humanos e não humanos,
flagelando esta abominação contra Deus e a natureza... os shifters.

—Seis, cinco, quatro—

—Tenho provas. — Disse bruscamente e sentiu a faca nas costas se mover.

A ponta da faca se afastou. Percebeu o movimento e depois a sentiu em seu


ombro esquerdo e ficou sem fôlego.

Ela estava ali, mas não muito nítida, começando a tomar forma na escuridão
com as luzes brilhantes e leves atrás dela, suspensas como raios de sol. Seu rosto
apareceu pela primeira vez, um pálido fantasma e logo seu corpo começou a tomar
forma, uma massa crescente que se reunia ao redor de um núcleo de partículas
mutantes e etéreas como nevoa. De um segundo a outro ela estava ali,
completamente de carne e osso e vestida, começou a se mover, lentamente, com
cuidado, olhando-o com intensidade e sem piscar.

—Ana. — Disse. —É incrível. Isso é uma belez...

Ela disse. —Que provas?

Não era uma faca que estava segurando, via agora quando parou e ficava um
pouco distante dele com a arma estendida, apontando seu coração. Era uma espada.
Uma espada curta, elegante e curva com uma empunhadura de osso com cordões
de seda e uma lâmina de carbono afiada. Parecia vagamente asiática. E mortal.

Ele respirou o ar fresco da caverna e respondeu. — Seu pai. Temos o diário de


seu pai. Deixou-o para trás.

Viu a forma como se rompeu, apenas um leve movimento entre suas


sobrancelhas escuras antes de sumir. Antes que pudesse responder, disse. — Irá
reconhecer sua letra. Ali terá todas suas respostas.

—Onde está? — Sussurrou olhando-o. — Entregue-me.

Ele negou com a cabeça uma vez e lentamente abaixou as mãos dos lados. —
Não está aqui. Trarei amanhã. Virei aqui.

—Não. —Insistiu com veemência. — Aqui não. Em algum outro lugar. Em um


lugar público.

Observou seu rosto. Pálido, parecia subitamente aterrorizada, mas não por ele.
Não, por algo que estava pensando. Do que imaginava estar dentro deste diário.
—A Torre Eiffel.

Suas sobrancelhas se ergueram.

—A plataforma de observação do segundo andar. Nos vemos ali ao entardecer


amanhã. Estarei sozinho.

—Saberei se não estiver. — Advertiu. Ela ainda segurava a espada. — Saberei


se for uma armadilha.

—Eu sei. — Concordou em voz baixa. —Sei que saberá. Não é uma armadilha.

—E se tentar algo ou ir atrás de qualquer um...

—Eu disse, garota. Não quero nenhum deles. Vim por você. Apenas você.
Sempre foi você.

Seus olhos se fecharam por um segundo. Antes que ela pudesse falar,
murmurou. — Não sabe? — Deu um passo adiante, pouco a pouco, até que a
lâmina de sua espada tocou seu peito, fria e mortal contra a carne sobre o coração,
a carne tatuada com seu nome. Seu nariz se abriu com a inalação, mas ela não se
afastou ou se moveu.

Olhando fixamente em seus olhos, disse. — Tibi ego mori.

—Eu morreria por você.

Em inglês, porque foi assim como nasceram e se criaram. As catacumbas, a


escuridão, segredos e as línguas mortas, afastados de todo o resto do mundo.

Eliana se contorceu e exalou, atordoada. Seus olhos estavam muito escuros e


abertos.
Ainda em inglês, de forma feroz, continuou. —Mataria por você. Arrancaria
meu coração com as próprias mãos se me pedisse, porque seu prazer é minha
recompensa e um sorriso para mim vale mais que o ouro. Procurei por você cada
segundo de cada dia desde que desapareceu e tudo o que quero agora é que possa
estar a salvo dos que a procuram e a querem morta. Não deixarei que a machuquem
e ainda que não acredite em mim, não a machucarei também. Jamais. — Sua voz
ficou mais rouca e engoliu. — Porque estou apaixonado por você, garota e estive
por tanto tempo que mal posso me lembrar. Você é o único raio de sol na escuridão
total da minha vida. É a única coisa que importa.

Ela fez um som baixo e angustioso no fundo da garganta. A viu apertar o agarre
na empunhadura da espada, viu os nós dos dedos ficarem branco com o muito que
apertava, viu sua intenção de atacar de onde estava.

Justo antes dela se lançar adiante, D transformou-se em vapor e Eliana


encontrou o ar vazio.
CAPÍTULO
VINTE E DOIS

O primeiro que Gregor ouviu foi um apito.

Barulhento e insistente, o ruído eletrônico era tão irritante que atrapalhou seu
sono. Estava tendo um sonho maravilhoso, claro como a luz do dia, na qual era
visitado por alguém vagamente familiar. Uma mulher, de pé ao final de sua cama.
Mas ela era mais espectro do que carne, com cheiro da noite e o ar livre, silenciosa
como este maldito apito não era. Foi para o lado dele, rodeava-a calmamente a
nevoa, murmurou seu nome ao ouvido, depois, outras coisas. Coisas amorosas.

—Descanse velho amigo. Cure-se. Nos vemos novamente logo.

Mas o apito não parava e finalmente, a bonita visão desapareceu, apenas para
ser substituída pela visão do quarto brilhante quando abriu os olhos. Ele estreitou-
os contra o resplendor, desorientado, viu as paredes brancas e uma cortina de tecido
pendurada do teto, cheirava forte alguma químico desinfetante e mais sutil cheiro
de algodão recém lavado.

Quando virou a cabeça para a esquerda viu a fonte desse ruído infernal: um
monitor cardíaco, verde retangular, rodando sobre pernas de metal ao lado de sua
cama.

Sua cama. No hospital.


Com um puxão se sentou e a dor, abrasadora lhe atravessou o peito.

Um murmúrio de desaprovação veio do outro lado e Gregor, grunhindo seu


descontentamento e apertando os dentes pela dor, permitiu que mãos suaves o
empurrassem de volta contra o colchão. A enfermeira se inclinou sobre ele, alisou
a gola do jaleco de cor pastel que cobria o peito e corpo e inspecionou um curativo
branco em seu peito.

—Tente não romper os pontos de sutura, senhor MacGregor. — Ela advertiu


em uma voz rouca e com sotaque. Ela tinha uns quarenta anos, gostosa, com um
cabelo escuro e brilhante que acentuava seu rosto tão cinzelado que poderia cortar
o vidro. Voltou-se sorridente, olhos castanhos quentes nos seus. — Não queremos
que se hospede aqui mais tempo que o necessário, queremos?

Odiava quando as pessoas faziam perguntas retoricas. Mas no caso da


enfermeira gostosa, iria deixar passar. — Quanto tempo estou aqui? — Ele a deixou
arrumar os travesseiros sob sua cabeça e as mantas ao redor dele. Ela levantou um
copo de plástico até sua boca e lhe ajudou a tomar um pouco de água em um
canudinho, ao mesmo tempo fazendo ruídos para incentivá-lo. Começou a gostar
mais e mais dela.

—Dois dias. — Foi a resposta enquanto o observava beber. Quando terminou,


colocou o copo novamente na mesinha junto a cama. — E eles tem sido uma dor
no traseiro, se sabe o que quero dizer, todo o tempo.

Suas sobrancelhas se juntaram. — Eles?

Ela lançou um olhar para a porta do quarto. Além da estreita franja de vidro
junto a ele, Gregor viu um trio de homens, dois deles uniformizados flertando com
uma mulher que não conseguia ver no balcão de enfermeiras, de pé de costas a ele
e um homem sentado com um terno liso e óculos, com um olho tampado. Estava
olhando de lado, então Gregor apenas viu seu perfil, mas sabia exatamente quem
era.

Como se sentisse que era observado, o Agente Doe o olhou. Seus olhos se
encontraram através do vidro.

—Disseram o que queriam? —Murmurou, segurando o olhar azul gelado de


Doe.

—Bom, mom amie. — Disse a enfermeira bonita com um sorriso irônico. —


Fez uma grande entrada quando se registrou. O dano na parte dianteira do hospital
foi grande. E sua namorada assustou um de nossos médicos adjuntos. Não tenho
certeza se alguma vez voltará.

A mão de Gregor voou ao peito vendado. Cirurgia. Recebeu um tiro. Eliana...

—O que aconteceu com a mulher que me trouxe? —Ele segurou a enfermeira


pelo pulso. — Onde está ela? Está ferida?

Com os movimentos lentos e não ameaçadores de quem estava treinada para


lidar com pessoas irracionais, a enfermeira soltou seu pulso e logo acariciou sua
mão. — Ela saiu da sala de emergências em seus próprios pés, senhor MacGregor.
Assim, entendo que não estava ferida. Tem sorte que tivesse chegado até aqui tão
rápido, no entanto. Você quase morreu no caminho.

Gregor se deixou cair nos travesseiros com alívio. Ela não estava ferida. Mas
onde estava agora?
—O carro no qual chegou, por outro lado, não teve tanta sorte. — Ela riu e se
moveu para o outro lado da cama para comprovar as leituras do monitor cardíaco
e a quantidade de líquido pálido em uma bolsa de plástico pendurada em um gancho
no poste de metal. Havia um tubo transparente da bolsa a seu braço, um pedaço de
fita branca sobre a veia no dorso da mão, onde o tubo terminava com uma agulha.
— Antibióticos. — Disse ao ver seu olhar. — Apenas para se assegurar que não
pegue nenhuma infecção com a ferida.

A porta se abriu. Ele e a enfermeira se viraram para ver o Agente Doe apoiado
em um bastão entrar no quarto, seguido por dois agentes uniformizados. Os três
lhe enviaram olhares tortos.

—Bom. — A enfermeira disparou a Gregor um olhar significativo. — Meu


nome é Lily. Fico até as nove. Se precisar de algo, basta apertar o botão vermelho
junto a cama e estarei aqui. —Ela passou junto aos homens e fechou a porta.

Gregor disse no silêncio que se seguiu. — Agente Doe. Nos encontramos


novamente. — Olhou os dois oficias sem sorrir. — Onde está meu bom amigo
Édoard? Nossa pequena reunião não será a mesma sem ele.

Os nós dos dedos de Doe ficaram brancos ao redor da ponta do bastão. Sua
mandíbula se apertou, mas seu frio olho não revelou nada. — Está em seu prédio
enquanto conversamos.

Havia um nó no colchão do tamanho de um gato que apertava um nervo em


suas costas, mas Gregor se negou a mover o peso para aliviar o incômodo. —
Verdade?
Doe sorriu mais, ficando parecido com Hannibal Lecter. —Tem alguma ideia
de quanto tempo de prisão pode pegar por operar um bordel?

Assim o encontrou. Gregor disse rotundamente. — Cinco anos. Ou isso me


disseram.

—Ah, mas é verdade! Seu advogado deve ser muito inteligente. Ainda que não
inteligente o suficiente para dissuadi-lo de participar em uma atividade reprovável.
Que pena.

Gregor tinha um advogado inteligente. Um advogado genial, de fato, que


cobrava mil e quinhentos dólares por hora e poderia receber uma bala na nuca que
não diria nada, inclusive se o ameaçassem decapitar com um machado
ensanguentado em uma mão e uma cabeça na outra. O que no caso de Gregor não
estava completamente fora do âmbito.

—Na verdade, apenas sei o que falam na televisão. É incrível o que se pode
descobrir ali...

—Séries criminais. — Doe terminou por ele. — Sim, disse isso antes. — Seu
sorriso feio ficou mais sarcástico. — Claro que assiste muita televisão.

Os dois agentes riram. Gregor e Doe olharam um para o outro, em um ponto


morto na animosidade do silêncio, até que Gregor fez um movimento com a mão.

—O que aconteceu com o olho?

Doe ficou rígido. O sorriso sumiu de seu rosto e ele mudou o peso de um pé a
outro. —Sem conversa fiada, MacGregor, deve estar à frente para que possa tomar
suas decisões de cara para o futuro em consequência. —Em resposta e expressão
de incredulidade de Gregor continuou. — Estou atrás de peixes muito maiores e se
me ajudar neste sentido, será dada baixa a todas as queixas contra você.

—Pensei que não estivesse na polícia. Como pode ter autoridade para isso?

Inquieto disse. — Minha organização está acima da polícia.

O interesse de Gregor se despertou. — Verdade? E eu pensando que ninguém


estava acima da lei.

—Suficiente dinheiro pode colocar qualquer um acima da lei, mesmo um deus.

Sem explicar mais e ao parecer cansado de ficar de pé, Doe estalou os dedos e
um dos policiais lhe trouxe uma cadeira do canto do quarto. Acomodou-se com os
lábios apertados e as pernas rígidas, logo fez um gesto com a mão, liberando-os.
Olharam um para o outro por um momento antes de sair da forma entraram.
Gregor viu que ocuparam a posição de frente a porta, percebendo que ambos
carregavam armas.

A polícia estava atuando como guardas pessoais armados. Ainda mais


interessante.

—Falando em deus, você é um homem religioso, MacGregor?

Gregor piscou para ele e viu quando Doe tirou um cigarro do bolso, acendeu e
viu a ponta em chamas. Sua profunda exalação enviou uma nuvem de fumaça.

—Assumo que há um ponto que tenta fazer, Doe. Diga logo.


Doe riu. — Não há, neste caso. Mas há coisas que não entendemos neste
mundo, verdade? Coisas além de nossa compreensão? Coisas... pode ser, que
inclusive tenha visto. Com seus próprios olhos.

Gregor ficou olhando, sem revelar nada.

—Vi o vídeo de sua espetacular chegada ao hospital? Não? Hum. Bom, na


verdade não é tão interessante. —Seu único olho azul gelado, olhando-o de trás dos
óculos redondos, aumentou positivamente. —Quando se compara com o vídeo
recuperado das câmeras de segurança de seu prédio. Sistema assombroso que tem.
Uma obra de arte me disseram.

—Doe...

Inclinou-se para frente da cadeira, de repente todo o humor sumiu. — Sabia o


que era desde o início? Tinha alguma ideia de com quem estava realmente lidando?

Gregor inclinou-se para trás no travesseiro, em silêncio e Doe ficou de pé. Do


outro bolso puxou um celular e o segurou entre os dedos. — Uma cópia. Foi
editado. Pode desfrutar dos aspectos mais destacados.

Tocou um botão e logo aproximou-se mais de Gregor, segurando o telefone.


Pegou-o, olhando a pequena tela quadrada e descobriu que não podia afastar o
olhar.

Em toda sua vida, nunca viu nada se movimentando assim. Arrastavam-se pelas
paredes de vidro, literalmente do lado de fora do prédio como lagartos e entraram
pelo teto. A partir de uma dezena de pontos de vista diferentes viu os assassinos
correndo e saltando, tudo tão rapidamente que seus movimentos eram sem
definição na tela. Viu a si mesmo e Eliana nas escadas, a perseguição na garagem, o
impacto horrível com a porta de metal. Viu a Ferrari desaparecer ao longe e fora da
câmera, mas logo viu, editado de um dos ângulos diferentes, cinco homens adultos
se transformando em animais que grunhiam e começavam uma perseguição.

Panteras. Converteram-se em panteras, impossivelmente grandes e negros.

Arrepiou-se.

Doe pegou a câmera de seus dedos frios e sorriu ao ver a expressão no rosto de
Gregor. —Exatamente minha reação. Acho que vamos ter que construir muitos
zoológicos.

Voltou para a cadeira e terminou o cigarro em silêncio, enquanto Gregor


inclinava-se contra o travesseiro, de repente esgotado. Ficou olhando o teto, seu
cérebro uma repetição sem fim. Os homens com armas de fogo, panteras. Os homens com
armas de fogo, panteras.

—Como disse antes. — Murmurou Doe, apagando o cigarro no braço da


cadeira de plástico. —Não é quem queremos. Queremos ela. Queremos eles. Conte-
nos tudo o que sabe e todas as queixas contra você serão retiradas. E você não
receberá visitas da polícia, posso garantir.

Ela tinha razão sobre ter muito inimigos. Gregor pensou enquanto observava
uma mosca andando nas placas do teto acima. Sua própria espécie queria vê-la
morta, este bastardo alemão louco queria colocá-la em um zoológico... por isso
precisava de mais armas.

Gregor voltou sua atenção para o Agente Doe. Sorriu sem sentido de humor.
— Acho que acabei de perceber que tenho uma terrível amnésia. Quem é você
mesmo?
Doe negou com a cabeça, decepcionado. —Porque os protege? Porque se
arrisca a prisão? São apenas animais, MacGregor. — Disse a palavra animais com
uma careta e um estremecimento delicado que apagou o sorriso de Gregor.

—Assim somos. — Disse com voz dura. —Nós também Doe, mas alguns são
melhores que outros animais. Ela me contou o que fez com ela. Falou dos testes,
das torturas. Então, em que isso te converte?

Doe ficou olhando-o durante muito tempo, observando o rosto de Gregor de


seu único olho visível. — Sou um patriota. — Disse finalmente. — Um protetor
de nosso modo de vida e nossa raça.

—Hitler pensava o mesmo.

Houve outro silêncio, longo e cavernoso, quebrado apenas pelo apito do


monitor cardíaco de Gregor, agora tremendamente errático.

—Deite-se com cães e se levantará com pulgas, MacGregor. — Doe disse em


voz baixa, com uma mão ao redor do cabo do bastão em um aperto de morte. Ficou
de pé lentamente, em obvia dor, favorecendo uma perna e apoiando-se no bastão.
— Isto não terminou. É apenas o começo. Acha que estas criaturas ficarão felizes
nas sombras para sempre? Nossa informação indica que há centenas deles,
provavelmente milhares. Talvez mais, não há como ter certeza. Mas considere o
que acontecerá se chegar um dia em que os seres humanos estejam acima na cadeia
alimentar. Já viu o que podem fazer. — Acariciou o bolso do terno onde guardou
o telefone. — E isto é apenas a ponta do iceberg, como dizem. São assassinos,
MacGregor. São monstros. Seu potencial para causar dano à raça humana é
ilimitado. Considere isso cuidadosamente quando pensar nas razões pelas quais
protege sua amiga.

Moveu-se lentamente para a porta. Um dos policiais o viu através do vidro e


abriu a porta para ele, segurando-a enquanto se aproximava. Parou na porta e voltou
para Gregor sobre o ombro. Seu olhar fantasma pálido e misterioso caiu sobre ele.

—Terá muito tempo para refletir sobre tudo isso na cadeia, tenho certeza.

A porta do hospital tinha um tipo de imã nela, assim quando empurrada contra
uma parede ficava. O Agente Doe passou pela porta, mas devido ao policial ter
empurrado a porta se manteve desta forma e Gregor foi capaz de ouvir algumas
palavras enquanto fazia uma ligação do celular, caminhando lentamente para longe
de seu quarto e ao final do corredor.

—Treze falando. Seção trinta. Coloque-me com o Presidente. Sim, esperarei.

Virou a esquina e mancou fora da vista.

***

Agachada fora da vista na mesma posição durante as últimas seis horas, as


pernas de Eliana estavam rígidas.

No alto, a estrutura de tijolos vermelhos há muito tempo usados como forno e


chaminé para queimar resíduos durante a construção da Torre Eiffel, foi eclipsada
pela própria torre, mas a sua pequena colina coberta por grama proporcionava uma
visão perfeita e sem obstáculos da área ao redor. Ela seria capaz de ver D de
qualquer direção.

Seria capaz de ver se estivesse com alguém mais.

O crepúsculo pintava Paris de um resplendor romântico perfeitamente


inadequado para seu estado de ânimo. Fazia frio, mas o céu ficava lindo tingido de
prata e a neva amortecia o ruído dos carros e ônibus na avenida Gustave Eiffel ao
sul. As luzes do porto serpentando o Rio Sena brilhavam ao norte, piscando sobre
as ondas na água escura. A torre em si estava inundada de luzes douradas de
milhares de lâmpadas, brilhando acima dos céus no coração da maior cidade do
mundo. Tudo era lindo.

Tudo era horrível.

Ela não foi capaz de assimilar nenhum pensamento coerente durante todo o dia.
Depois que a polícia invadiu as catacumbas como fazia para limpá-las de forma
regular, finalmente as cavernas e os corredores ficaram uma vez mais em silêncio.
Eliana foi à superfície e deu voltas pelas ruas durante quase todo o dia, como um
zumbi. Não viu as lojas prontas para as compras de Natal nas ruas de pedras e os
elegantes cafés, não se importou quando esbarrou nas pessoas e elas se afastaram
assustadas com o que viram em seu rosto.

Podia adivinhar que não era agradável. Ou particularmente sã.

Curiosamente, não podia sentir. Não sentia nada em absoluto, exceto uma
opressão no peito que não desaparecia e uma crescente tensão em seus músculos
com que parecia apertá-los. Havia uma nuvem negra sobre sua cabeça, envolvendo-
a na escuridão.
Um arrepio de reconhecimento a fez virar a cabeça e tirou-a dos pensamentos
sombrios persistentes com uma sacudida brusca, como se saísse da areia movediça.
Seu coração começou a pulsar com força. As mãos começaram a tremer.

Por causa dele. Caminhava lentamente até a plataforma no sul da torre até uma
pilastra, como uma pessoa normal entre todos os outros turistas, ele estava vestido
de forma idêntica à ela com botas e couro negro, uma jaqueta longa com o pescoço
alto para proteger do vento.

Destacava-se como um leão em um rebanho de cordeiros.

Um leão grande que carregava um pacote.

Em lugar de ir para os elevadores como a maioria dos turistas faziam para evitar
a exposição ao frio, Demetrius foi para a escada estreita na base da torre sul até o
segundo andar. Ela o observou enquanto subia pela escada de ferro até chega à
ampla plataforma. Movendo-se com deliberada lentidão, com os ombros largos
entre a multidão, todos ficavam de lado para deixá-lo passar como um cardume de
peixes que fugiam de um tubarão, logo foi até a grade e se inclinou. Fechou os olhos
e se manteve assim vários minutos, sem se mover, sua jaqueta balançando ao redor
de suas pernas abertas, enquanto Eliana observava de sua posição escondida,
sentindo seu coração bater com força dentro do peito.

Então virou a cabeça e ao longe seus olhos encontraram os dela, como se


soubesse onde estava escondida desde o início. Como se a houvesse sentido.

Ficou de pé. Ela lhe devolveu o olhar. Mesmo de longe, tudo o que havia entre
eles era a neve e a luz brilhante do sol de verão. Seu olhar era quente em seu rosto,
os olhos ardiam, simplesmente olhando-a, sem movimentos, intenso e crepitando
como uma chama invisível. Sentiu-se imobilizada por este olhar, o cru anseio nele,
a fome primitiva e real. Sentia-se impotente frente a ele e de repente uma onda de
angústia se levantou nela, um anseio que coincidia com o dele e teve que afastar o
olhar.

Virou para a escada da antiga chaminé e começou a descer.

Quando finalmente ficou de pé junto a ele na plataforma de observação no


segundo andar que dava para a grande e majestosa Paris, em uma noite fria, ela já
estava mais controlada.

D não se virou para olhá-la. Ele reconheceu sua presença com uma leve
inclinação de cabeça, mas isso foi tudo. Ficaram em silêncio por um longo
momento, ombro a ombro, ouvindo a conversa das pessoas em dezenas de idiomas
diferentes, sentindo o vento no rosto. Ali era mais frio, os copos de neve
penetrantes caindo.

—Lembro-me de você. — Disse em voz baixa, solene, sem deixar de olhar ao


longo da cidade. Manteve os olhos na vista, assim como continuou falando. —
Tinha dezesseis anos, dezessete talvez. Era solstício de inverno e todo mundo se
reuniu na sala grande depois da cerimônia no templo para a festa de Hórus.

Eliana fechou os olhos, lembrando-se da grande sala cavernosa que usavam nos
dias festivos, o cheiro da cera quente e incenso, o brilho de milhares de velas nos
nichos de ferro e lâmpadas em lustres, os gritos e as risadas, o calor de tantos corpos
pressionados juntos nas longas mesas de madeira, todos comendo leitoa e carne
assada, como outros pratos, para celebrar o aniversário do deus patrono.
—Você estava sentada com seu pai e irmão na mesa principal. Eu estava de pé
atrás de você, contra a parede, em serviço como sempre. O Bellatorum tirou na sorte
quem iria ficar de guarda durante a festa e eu quem ganhei. Não importava de
qualquer forma, o restante deles tinham mulheres para quem voltar, mas eu não
tinha nenhuma, assim não importava. E você não deixou de me olhar, com um
olhar de preocupação no rosto. Não me atrevia a olhá-la, não podia entender
porque a filha do rei, a Spem Futuri preciosa, iria prestar atenção em mim.

—Esperança para o futuro: assim era como os anciões a chamavam, ainda que
nunca soube exatamente porque. — Continuou e sua voz ficou mais suave, cheia
de algo perto do assombro.

—Logo, quando seu pai se distraiu com alguém que foi falar com ele, chamou
uma das servas e algo aconteceu. Sussurrou algo a ela e percebi que estava tentando
convencê-la. Ela parecia muito irritada, mas insistiu e finalmente, com algum
pretexto para caminhar até mim, entregou-me o que lhe deu.

D abaixou o olhar para ela. — Uma maçã. Deu-me uma maçã.

—Você parecia faminto. —Sussurrou Eliana. —Parecia triste, de pé ali sozinho.


Parecia que precisava comer.

—Você continuou me enviando coisas em cada oportunidade que teve, não é?


Pedaços de frutas, queijo, pão e doces.

—E você não comeu nada. Tinha que continuar tentando até que encontrasse
algo que gostasse.

Virou-se para ela, olhando-a fixamente com toda intensidade de antes ardendo
em seus olhos. —Gostei de tudo. Não podia comer porque estava de serviço, mas
gostei de tudo. Você foi a única pessoa naquele lugar de milhares que deu atenção
a mim, a única com a menor razão para fazê-lo. Foi amável comigo. Viu-me ali.
Olhou-me, quando todo mundo fazia o possível para evitar isso. Todos os demais
tinham medo de mim e, no entanto, você não. Sorriu quando passou por mim.
Disse olá. — Abaixou a voz. — Disse meu nome. Disse como se gostasse de mim...
como eu gostava de você. Este foi um começo para mim. Como a maçã, era perfeita
e deliciosa, a desejei com cada célula do meu corpo, mas estava proibido de comer.

—Pare. — Sussurrou, congelada no lugar. —Por favor. Pare.

Ficaram assim, sem se mover, trinta centímetros de distância, o olhar ardente


prendendo-a no lugar porque não podia suportar olhar para ele.

Por último, com um nó na garganta, disse. — Trouxe?

Pelo canto do olho o viu assentir. Ela estendeu a mão. Ele colocou o pacote
embrulhado nela e fechou os dedos ao redor dele, com força. —Vou embora agora.

—Sim, estarei no mesmo lugar onde a levei depois de tirá-la da delegacia. A casa
de segurança. Lembra-se onde fica?

Ela o olhou com os olhos frios. —Não irei até lá. Não espere por mim.

Ele não disse nada, se limitou a olhá-la. Ela retrocedeu lentamente, segurando o
pacote contra o peito. — Não irei. — Disse novamente, mas ele nem sequer
assentiu.

Eliana deu a volta e fugiu.


CAPÍTULO
VINTE E TRÊS

D iria esperar, no entanto. Seu coração não lhe dava outra opção.

Conseguiu convencer Celian, Lix e Constantine de que o melhor era se


abandonassem a casa de segurança e voltassem a Roma. Iriam confundir a ausência
deles e deixar a colônia romana sem proteção por mais tempo do que absolutamente
necessário era impensável. Celian levou o diário e conseguiu um respiro de poucos
dias das colônias confederadas que solicitou e tudo o que precisava, era que ela
aparecesse. Em apenas poucas horas, seu tempo expiraria.

Se Eliana não aparecesse, se entregaria ao Conselho e deixaria que o destino


tivesse seu caminho com ele. Se ela não aparecesse, não importava de qualquer
forma. Deixaria que acontecesse o pior.

Enquanto isso, teria que encontrar uma forma de convencê-los de que ela era
inocente da traição de seu pai. Porque sabia que era. Ele sabia até a medula.

***

Estava agora deitado no sofá da sala subterrânea escura da casa de segurança,


com as mãos atrás da cabeça, olhando o teto, quando ouviu um ruído.
O som de golpear, irritado e em voz alta.

Dois andares acima, na casa mobiliada e sem uso que escondia três níveis
secretos abaixo, que alguém batia na porta.

Com o coração na garganta, ficou de pé, subiu a escada de quatro em quatro e


correu, literalmente correu até a porta. Nem sequer se incomodou em olhar para
ver quem estava ali, não precisava fazê-lo. Ele sentiu seu cheiro, a sentiu e seu
sangue queimou por suas veias como fogo líquido.

Ele abriu a porta e um vento frio da noite entrou, golpeando-o no rosto.

Depois, um punho acertou seu rosto.

—Você sabia! — Gritou Eliana, forte. —Sabia e nunca me disse! Porque não
disse nada?

Ela o acertou na mandíbula com um soco. Conseguiu virar sua cabeça, mas não
se moveu e agora empurrava com ambas as mãos seu peito, realmente fazendo-o
ficar nos calcanhares. Deu um passo atrás para recuperar o equilíbrio e ela estava
ali antes de que pudesse evitar, outro punho em seu rosto, golpes oscilantes e
selvagens que era tudo sobre fúria e sem controle, grunhindo como um leão
enjaulado.

Ele se afastou e conseguiu fechar a porta de entrada antes que ela fosse para ele
novamente, golpeando e xingando. Pensava que poderia se machucar mais que a
ele, assim agarrou seus pulsos e os segurou nas costas.

—Acalme-se! — Grunhiu, precisando usar uma quantidade surpreendente de


força para mantê-la quieta enquanto se contorcia e resistia. Ele puxou-a com força
contra seu corpo e repetiu em seu ouvido. Depois de um segundo, ela se acalmou,
ainda que sua respiração ainda estivesse selvagem, as batidas do coração fortes o
suficiente para ouvir no silêncio da sala. Ela apoiou a cabeça em seu ombro.

—Você sabia. — Ofegou ela, entre um sussurro e soluço. — Sabia o que ele era
na verdade e eu... eu... deus, estava tão cega. Fui tão estúpida!

Ele soltou seus pulsos e apertou-a contra ele. Seu corpo se sacudiu contra o dele.
— Não foi estúpida. Ele não deixou que visse. Controlava todos nós. Não havia
como saber...

—Mas você sabia! — Sua voz ficou histérica. — E não me disse! Fiquei na
ignorância por toda minha vida e você sabia que ele era um monstro, nunca o
perdoarei por isso, nunca, nunca, nunca!

Ela se separou dele e começou a andar ao redor da sala, com os olhos


desorbitados e enfurecida. Arrancou um quadro da parede e jogou-o do outro lado.
Um abajur foi o seguinte alvo de sua ira, destruído em uma explosão e voando até
parede, a cerâmica se quebrando ao bater contra a mesa.

—Tudo era mentira! Minha vida inteira foi uma mentira!

Ela estava além de si mesma, além do pensamento racional, linda e violenta


como um anjo vingador, uma tempestade de destruição. D observou sua luta através
da sala com uma calma que não coincidia com as circunstancias, porque sabia que
em algum nível básico, que isto era exatamente o que precisava neste momento.
Tinha que gastar a energia. Tudo o que a ira e a traição, a dor causou, precisava sair.

Ele arrumaria a casa mais tarde.


Deu a volta e o enfrentou, a respiração ofegante, fixando seu olhar negro lívido
pela primeira vez em seu rosto. — Você o matou?

Sua resposta foi rápida e contundente. — Não.

Deu um passo mais perto, os olhos sem piscar. —Assim foi como você e os
outros planejaram liderar a colônia?

—Não.

Seus lábios se apertaram. Deu outro passo mais perto. —Riu de mim, às minhas
costas? Sabendo que era uma idiota?

Deu um passo para ela e sua voz ficou sombria. — Não, Eliana. Não.

—Como posso acreditar? Como posso acreditar em algo? Não posso confiar
em ninguém, nem sequer posso confiar em mim mesma? Não posso confiar em
meu próprio julgamento!

Estava angustiada, movendo-se novamente, levantando a voz, onde momentos


antes estava baixa. Ele diminuiu a distância entre eles, a pegou pelos braços, olhando
fixamente nos olhos e disse. — Pode confiar nisto.

E a beijou.

Ela não lutou como ele esperava. Ela se derreteu contra ele com um som baixo
em sua garganta e sua boca suave e quente contra a dele. Seus braços foram ao redor
de seu pescoço e os dele se enrolou em seu corpo e ali ficaram assim, beijando-se,
fundidos na escuridão da sala de estar em ruinas, os escombros ao seu redor.
Continuaram assim até que a respiração ficou ofegante e o corpo quente e
inflamado. Os dedos dele se cravaram nos quadris dela, na cintura. Sob o tecido
fino e frio, sua pele era suave e flexível, o que o fez imaginá-la sob seus dedos, na
língua, gemeu e a beijou ainda mais forte.

Ela se separou com uma expressão de horror. Logo lhe deu um tapa, forte e
pungente, sua palma aberta contra seu rosto.

Ele lhe deu um sorriso impiedoso que drenou a cor de suas bochechas. Ele disse.
— Você sabe o que precisa, garota?

Ela o olhou fixamente, respirando de forma errática, os olhos negros enormes.

Seu sorriso ficou mais sombrio. — Precisa foder.

Ela piscou, bufou assombrada e disse. —Realmente te odeio, sabe disso?

—Me odeia porque digo a verdade. —Alcançou o punho de uma mão em seu
cabelo na base do pescoço e puxou-a para ele. Beijou-a novamente, mas ela lutou,
empurrou contra seu peito. Ele ignorou e aprofundou o beijo. Foi duro, áspero e
ambicioso, os dentes chocando. Ela lhe mordeu no lábio e sentiu o gosto de seu
próprio sangue.

—Isso é tudo. — Sussurrou contra sua boca e voltou a beijá-la, profundo e


exigente.

Ela se afastou e o olhou por um instante, ofegando, uma mecha de cabelo negro
azulado preso no canto de sua boca, vendo uma mancha de sangue em seu lábio
inferior.

Logo saltou sobre ele.


Pegou-a pela cintura enquanto colocava as coxas e os braços ao redor dele,
beijando-o com uma fome sem controle que tirava o fôlego. Cambaleou, chocou
com a mesa, a mesa que quebrou a lâmpada, até que finalmente a perna bateu no
sofá situado no canto da janela e os deixou cair ali.

Ela ficou sobre ele, tirou a jaqueta de couro, a camisa, jogando no chão entre
beijos frenéticos. Ela estava tão faminta como ele, quente e excitada, sua respiração
ofegante igualada. Passou uma mão por baixo de sua camisa e segurou um seio na
mão, beliscando forte o mamilo e pensou que gozaria quando ela gemeu em sua
boca e moveu o quadril contra o dele. Incorporou-se e a luz da lua entrava pela
janela e os pintava com uma palidez fantasmagórica, como um tabuleiro de xadrez.
Ela baixou o olhar para ele, com as bochechas vermelhas e os lábios com seu sangue
e inchados por seus beijos, sua respiração parou na garganta.

Nunca viu nada tão lindo.

Levantou os braços e puxou a camisa sobre a cabeça, deixando-a cair no chão.


Usava um sutiã de renda negro, delicado e feminino, que rasgou como papel quando
segurou entre os dentes. Ele apertou os seios nas mãos e os esfregou, desfrutando
de seus pequenos gemidos de prazer enquanto os lábios se fechavam sobre um
mamilo e o chupava.

Ele estava muito duro, pulsando e ela se apertou contra ele, os quadris
movendo-se em um ritmo que fazia seu coração acelerar. Inclinou-se e pegou o
lóbulo de sua orelha entre os dentes e ele pensou que o coração pudesse falar
quando ouviu as palavras que ansiou por tantos anos.

—Sim. — Sussurrou seus lábios contra sua orelha. —Demetrius, sim.


Ele deu a volta para que suas costas ficassem no sofá e ela sob ele, se
contorcendo. Tirou as botas e a calça, logo ela estava nua, gloriosamente nua com
exceção da calcinha. Inclinou-se e a beijou novamente, chupando os lábios,
passando as mãos por toda a pele quente. Sentia-se como seda e veludo, como nada
que já tocou e estava tão ávido por ela que não sabia se estava machucando-a e não
podia evitar, de qualquer forma.

Ele estava em chamas. Cada célula, cada músculo, cada nervo. Cada vez que
respirava era fogo.

Beijou-a nos seios, descendo a língua por seu estômago, mordeu-a ali porque
era tão delicada, tão suave. Estremeceu e se arqueou contra ele, com as mãos nos
ombros, as unhas arranhando sua pele. Ele colocou o rosto entre suas pernas e
inalou profundamente e ficou sem fôlego, surpresa.

Ficou ainda mais ofegante quando ele puxou de lado sua calcinha e deslizou a
língua dentro dela.

Almíscar, sal e mulher, já molhada, ela tinha um gosto incrível. Gemeram ao


mesmo tempo. Sua ereção se moveu na calça, dolorido para ficar em liberdade.

Apertou as coxas e passou a língua ali, lambendo e chupando com avidez,


engolindo seu gosto, descobrindo o que a fazia se contrair e gemer. Deslizou os
dedos dentro dela e ela se arqueou com força no sofá e gritou.

—Ainda não, garota. — Sussurrou, acariciando com o polegar e a língua. —


Não pode gozar ainda. Não até que eu diga.

—Não, não, não. — Ela se contorceu debaixo dele e ele colocou o antebraço
em seu estômago e pressionou-a para baixo. Ele desceu a boca sobre seu sexo
novamente e começou lentamente, ritmicamente lambendo-a. Deslizou os dedos
dentro e fora, a outra mão acariciando seus seios, beliscando os mamilos.

—Por favor, oh por favor. —Ofegou ela, arqueando. Suas mãos se agarraram
ao sofá e em sua nuca.

Inclinou-se para trás e bufou uma respiração pelos lábios inchados, sorrindo
quando ela estremeceu e o xingou.

Ele abriu sua calça e elevou-se sobre ela com o couro aberto nos quadris,
equilibrando seu peso no cotovelo. Inclinou-se e a beijou com força, deixando seu
gosto nos lábios, provocando-a com a ponta de seu eixo que segurava em uma mão,
masturbando-se na entrada de seu sexo úmido. Quando ignorou as demandas de
seus quadris, ela se inclinou e segurou-o na mão.

Ficou sem fôlego, se acalmou e fechou os olhos ao sentir a mão dela sobre ele.

—Você é enorme. — Respirou ela, passando o polegar sobre a cabeça. O eixo


pulsou e ficou mais duro em sua mão. Inclinou-se e chupou seu seio outra vez,
empurrando contra ela, gemendo ao sentir seu calor e a umidade tentadora contra
a parte mais sensível de seu corpo.

—Oh garota, a adulação não conseguirá te levar a nenhum lugar. — Sussurrou


e empurrou dentro dela.

Fez com força e rápido porque queria lhe dar uma sacudida elétrica para deixá-
la louca, ele queria que ela se esquecesse de tudo e se concentrasse apenas nele. Ela
gritou e se arqueou contra ele, os seios esmagados contra seu peito, o corpo tenso
em um arco do sofá para ele. Antes que pudesse se recuperar disso, começou a
empurrar, em movimentos longos e lentos da pélvis que o levava profundamente,
esticando-a.

Ela gemeu seu nome, gutural, as coxas apertando sua cintura. Ele baixou a
cabeça novamente e mordeu seu pescoço, afogando-se na sensação dela, sua bela
rebelde e selvagem, nua sob ele. Seus quadris encontravam cada uma das suas
estocadas. As unhas cravadas em suas costas.

Ele grunhiu algo em latim, não entendeu o que, tão imerso estava nela.

—Por favor, por favor, por favor, oh por favor. — Implorou em um sussurro
trêmulo, quase soluçando.

Ele ficou quieto, segurando seu rosto nas mãos. —Ainda não. — Estava
ofegante, mordeu seus lábios, a mandíbula e o pescoço, deixando um rastro rosa
em sua pele. O ombro era um delicioso calor contra sua língua. —Ainda não.

Ela se contorcia sob ele, exigindo, arranhando suas costas, mas ele colocou a
mão em seu quadril. — Abra os olhos. — Sussurrou. — Olhe para mim.

Ela fez o que ele ordenou e levou um momento para que sem fôlego, seus lindos
olhos se encontrassem com os dele, os narizes a centímetros de distância, o único
som era de suas respirações fortes e os corpos beijados pela luz da lua.

Flexionou a pélvis uma vez e suas pálpebras se agitaram. — Abra. — Advertiu


em voz baixa e passou o polegar pelo lábio inferior. — Mantenha os olhos abertos
para mim. — Inclinou-se e enganchou o polegar na parte de trás do joelho, deslizou
sua perna ao redor de sua cintura e logo empurrou profundamente nela outra vez,
olhando seu rosto. Ela fez um som, um gemido de prazer e deslizou as mãos por
suas costas, mas manteve os olhos fixos nele, inquebrantável.
—Sim. — Sussurrou. —Isso mesmo, garota. Mantenha os olhos em mim.

Ela assentiu e mordeu o lábio inferior enquanto empurrava novamente, lento e


profundo, enterrando-se até a empunhadura. Ainda enterrado profundamente, fez
um círculo lento, esfregando contra ela e ela ficou sem fôlego, logo se moveu com
ele, fazendo coincidir seus lentos e pequenos movimento com os dele, levando o
prazer até seu pico.

Olhando-o nos olhos, ela sussurrou seu nome. Os dedos cravados em seus
ombros.

Ele se endireitou, lentamente ficando de joelhos, puxando-a ao longo de seus


quadris, segurou a perna ao redor de sua cintura e deslizou-a para cima sobre seu
ombro. Ela se abriu ainda mais e ele se aproveitou e deslizou pouco a pouco todo
de volta, até não poder ir mais fundo.

No limite do orgasmo, ela estremeceu. Seu peito subia e descia em respirações


curtas, irregulares.

Ele ficou quieto porque sabia o quão perto que estava e ele não queria que isto
terminasse. Ainda não. Ele sabia que assim que ela gozasse, ele iria com ela. Passou
as mãos sobre os seios, seus quadris, virou o rosto para sua perna, beijando de sua
panturrilha até o tornozelo, apoiado em seu ombro e ao mesmo tempo mantendo
o olhar nele, os olhos quase fechados e brilhando com o calor.

Inclinou-se e a acariciou, justo acima de onde se uniam, seu sexo úmido e


inchado sob seu polegar. Ela abriu a boca, mas não saiu nenhum som. Os quadris
se moveram.
—Não. — Advertiu e ela respondeu com um gemido de objeção. Ela fez um
movimento como se fosse empurrar sob ele, mas ele capturou seus pulsos nas mãos
e os segurou sobre a cabeça, empurrando-os para baixo no sofá. Ela protestou, mas
esmagou os lábios contra os dela e a empurrou com força e gemeu, mordendo seu
lábio. Ofegante, seu controle se rachava a cada movimento do corpo, ele se afastou
para olhá-la e a encontrou olhando-o, com as sobrancelhas juntas, com o rosto
contraído em algo como uma agonia.

—Por favor. — A urgência soou quase como uma súplica, um sussurro rouco,
trêmulo acabando com seu controle.

Ele segurou seus pulsos em uma das mãos e segurou o rosto com a outra.
Deixou que seus quadris se acomodassem, empurrando de forma primitiva, o que
a fez gemer sua aprovação sob ele, mas não tirou o olhar dela.

—Sim Ana. Agora.

E como tinha os olhos abertos, viu o momento exato que aconteceu, quando se
inclinou no limite e girou além do prazer e êxtase, mesmo antes de seu corpo ficar
tenso e se arquear sob ele. Mesmo antes de seus olhos se fecharem e os gemidos
formarem seu nome.

—Garota. — Sussurrou, feroz, o fogo lambendo cada terminação nervosa, a


eletricidade percorrendo sua coluna vertebral. — Minha garota linda...

Quando o orgasmo roubou seu fôlego e enviou ondas de choque através de seu
corpo. Prazer, tão agudo que era quase dor disparou através dele e ele sacudiu,
derramando-se dentro dela, grunhindo como uma espécie de animal selvagem, o
rosto contra seu pescoço, a fera dentro dele gritando: Sim, sim, sim, sim, sim! Minha!
Toda minha!

As unhas dela se cravaram em suas costas. Seu coração contra o peito,


golpeando violentamente. Seu corpo, suave e quente sob ele. A luz da lua
desenhando sombras nas paredes e a árvore sem folhas por causa do inverno no
pátio, o carro que passava, sem ser visto, em algum lugar longe na noite. Cada
pequeno detalhe do momento queimou em sua memória como uma marca de
forma que mesmo além de sua agitação e respiração ofegante, os rugidos em seus
ouvidos, era consciente em algum nível de que este momento ficaria com ele
durante o resto de sua vida.

Algum tempo depois, quando sua respiração desacelerou e o coração voltou a


normalidade, murmurou seu nome. Atordoada, levantou a cabeça e piscou, ele
acariciou seu rosto e sorriu.

—Isso não muda nada. — Sussurrou ela, com os olhos suaves. — Ainda te
odeio.

E teve que rir. De forma fraca, com a testa apertada contra seu peito, riu.
CAPÍTULO
VINTE E QUATRO

Passou-se um longo tempo, antes que conversassem novamente.

Em algum momento da noite ele a levou ao quarto, mas ela não acordou. Não
acordou quando ele se deitou ao lado dela e puxou as mantas sobre eles e colocou
seu braço ao redor dela, abraçando-a. Seu corpo era calor e músculo atrás dela, as
pernas juntas. Ela acordou apenas quando ouviu a voz profunda em seu ouvido,
murmurando algo que terminou: —... para sempre.

—O que? — Ela piscou no quarto desconhecido. Uma vela em um pequeno


prato sobre um aparador enviava uma chama piscando e produzia uma mancha
amarela de luz na escuridão.

Ele apertou os lábios contra sua nuca. — Nada. Volte a dormir.

Mas não podia, não agora que estava acordada e a tempestade de gelo uivava
dentro de sua cabeça novamente.

Tinha razão, antes. Sua maneira grosseira de informar exatamente que precisava
“foder” para se acalmar teve êxito. Tirou um fio de angústia e embotou seu corpo.
E estava profundamente grata, porque não sabia se teria sobrevivido esta noite sem
ele.
A dor da traição era uma coisa física, uma dor oca e profunda na boca do
estômago que se estendia para todos os órgãos, corrosiva e negra. Se propagava ao
cérebro e inclusive poderia deixá-la louca e Eliana estava convencida de que estava
na metade do caminho já, mas não se importava mais.

Seu pai era seu ídolo. Sabia que em algum nível estava doente, viu como seus
parentes se afastavam dele, pálidos e trêmulos, viu a luz da loucura, perigosa que às
vezes se arrastava em seus olhos, mas também sabia que era suave e bom com ela,
ainda que estivesse em seu direito por lei de matar Caesar por não ter dons, poupou
seu único filho. De tudo, ele amou sua mãe e a tratou bem, protegeu a colônia e
deu-lhes o que precisavam para sobreviver, prosperar.

Mas era um monstro. Dominus inclusive poderia ser o próprio diabo.

O que experimentou na leitura das páginas de seu diário era um descendo


aterrador na mente brilhante de uma criatura sem alma e sem consciência, mas com
um apetite não saudável para a vingança e uma vontade de ferro para converter o
planeta em seu próprio pátio de recreio pessoal. O soro — pensou que criou apenas
para ajudar aos mestiços a sobreviverem a transição, mas tinha uma explicação
muito mais sinistra.

Holocausto.

Ele iria usá-lo para acabar com a raça humana. Seu sonho de coexistência
pacífica foi uma mentira escrita na areia, com a intenção de apaziguá-la até que a
maré subiu e trouxe toda a realidade sobre estes sonhos de paz, como um tsunami
de sangue e lágrimas.
Oh, não sobraria ninguém. Apenas o suficiente para os escravos que iriam
cozinhar, limpar e reproduzir a próxima geração de serviçais. No entanto, seus
genes seriam suprimidos em umas poucas gerações.

Então percebeu o que os anciãos queriam dizer quando a chamavam de Spem


Futuri — Esperança para o futuro. Percebeu de repente, a clareza terrível do que
isso queria dizer na noite que morreu. — Seu filho governará a Terra.

Ela era a última linhagem de sangue de Dominus, uma linhagem que engendrou
reis por mil gerações, enquanto os seres humanos estavam ainda ocupados com
pinturas rupestres. Uma linhagem que até o fracasso de Caesar, produziu machos
muito mais dotados que qualquer espécie. Uma linhagem que se extinguiria sem
novos herdeiros para continuar a mesma.

Seus herdeiros. Ela e seu irmão.

Seu pai planejou que procriassem juntos.

Era por isso que nunca insistiu que ela se casasse, apesar de todos na idade terem
feito isso. Por isso que não matou Caesar quando descobriu que não tinha dons.
Dominus não acreditava que uma mulher poderia governar a colônia e nunca
aceitaria um Alfa pouco dotado, assim a coroa ia saltar uma geração e ir para o filho
varão de seu irmão. Um herdeiro e um substituto, porque Dominus tinha a intenção
de assegurar que de sua união se reproduzissem apenas machos.

Tinha a intenção de estar ali. Tinha a intenção de ver.

O horror a dominou, toda ela, sentia-se literalmente doente. Queria vomitar em


um canto do quarto até que não sobrasse nada em seu estômago para expulsar a
não ser bílis.
E Silas, servo de confiança da família antes da morte de seu pai, o amigo de
confiança depois, sabia de tudo isso.

Sua culpa era implícita. Foi-lhe prometido um lugar especial no novo reino
imaginário de seu pai, assim Silas improvisou muito inteligentemente quando seu
pai morreu. Usou seus dons para conseguir o dinheiro para desenvolver o soro e as
armas, usava sua ignorância para mantê-la sob controle.

Um fato inegável que a manipulou com toda sua frieza, no entanto, Demetrius
foi o que ela encontrou de pé sobre o cadáver de seu pai, não Silas. Demetrius, que
estava segurando a arma.

Demetrius que afirmava não ter matado Dominus, mas se negava a dizer quem
foi.

E algo mais a fazia sentir como seu sangue se convertesse em gelo. Ainda havia
a possibilidade por menos que fosse de que Silas lhe disse a verdade sobre o
Bellatorum. Que Demetrius não apenas matou seu pai, mas sabia de seus planos para
o soro de antemão e viu a oportunidade de tomar o poder se assumisse o controle
da colônia. De alguma forma sabia de Mel e seu marido. E se soubesse de outras
coisas?

E se soubesse tudo?

O que aconteceria se, como Silas disse, D com seu dom da premonição viu que
poderia governar o mundo?

Não poderia ser perdoado, não importava o quanto a deixasse doente.


Não queria acreditar. Ela queria acreditar no que seu corpo dizia, no que seu
coração dizia. Queria se derreter em seus braços e deixar que o calor que a rodeava
a envolvesse, que ele não fosse inocente.

Mas não era esta mulher. Preocupava-se com a verdade. A verdade, pura. E iria
consegui-la, mesmo se a matasse.

—Não vai dormir. — D suavemente acusou, passando uma mão por seu braço.
Ela fez um ruído evasivo e logo sussurrou.

Parecia sentir sua agitação interior, porque sua mão flutuou sobre o ombro e ele
estendeu sua palma da mão sobre o seio, sentindo as batidas de seu coração. Era
um ruído surdo contra seu peito, rápido e errático. Quase podia ouvir o que
pensava.

Mas se mantinha afastado de qualquer coisa muito perigosa e disse com um tom
divertido. —Assim é uma garota invisível agora. Muito impressionante, tenho que
dizer. Como aconteceu?

—Por acidente, suponho. Quer dizer, vivi sob a terra nas sombras de forma
permanente em toda minha vida, então nunca precisei me esconder... — Ela hesitou
e D apertou os braços ao redor dela. Eliana imaginou que ambos pensavam no que
tinham que esconder a partir de agora. — De qualquer forma, a primeira vez que vi
o sol, foi o dia que saímos de Roma. Estávamos caminhando pelo bosque entre as
oliveiras em Mazzalupeto ao sair do sol sobre o horizonte e fiquei com tanto medo
que me escondi na fazenda abandonada, em um estábulo de cavalos. Quando Mel
veio me buscar, não podia me ver, apesar de estar ali de pé, a um metro de distância.
— Ela fechou os olhos, lembrando o pânico de Mel e o seu próprio. —Levou um
tempo para aprender a controlar. No início tinha medo de desaparecer. Logo, um
pouco mais tarde apenas quando algo me assustava. E agora posso fazê-lo à
vontade.

D ficou ali em silêncio por um momento, sua respiração quente contra suas
costas. — Mas suas roupas não desaparecem. Quando mudamos para vapor,
qualquer coisa que usamos cai no chão. Não entendo.

—Devido a que não mudo de forma. Não é uma coisa física, diferente de mudar
para uma pantera ou nevoa. Mudo a luz, a forma como se dobra ao meu redor.
Assim continuo com a roupa. O melhor de tudo, posso fazê-lo quando estou ferida,
diferente da mudança de forma. Mas precisa ser feito nas sombras. Não pode ser
em pleno sol ou mesmo em cômodos bem iluminados. — Ela tentou, tentou um
milhão de maneiras diferentes, mas havia algo na luz que a assustava, que a fazia se
encolher por dentro. Nunca soube que a luz do dia poderia ser tão violenta.

—Dobrar a luz. — Repetiu, sua voz suave e impressionada. Deslizou a mão


sobre o coração de onde estava para sua mandíbula enquanto ela estava falando.
Virou seu rosto para ele. Ele colocou os lábios em seu ouvido. —Tem alguma ideia
do quão incrível isso é? O quão incrível você é?

Seu coração se encolheu novamente. Agradeceu por ele ter movido a mão. Ela
afastou o elogio com ironia, falando. — Já entrou em minha calça, vaqueiro. Pode
deixar de lado a conversa doce.

Ele riu, um profundo som que retumbou em seu peito. — Sempre fui terrível
com elogios. Vejo que nada mudou.
Nada mudou? Deus, o que poderia responder a isto? Mordeu os lábios para não
dizer nada. Logo, com uma doçura que fez nós em seu estômago, D soltou sua
mandíbula e passou os dedos por sua nuca e os ombros, traçando o contorno de
sua tatuagem.

—Está borboleta é bonita. Azul e negro, como seu cabelo.

—Como meu estado de ânimo. —Corrigiu. Os dedos pararam e ela continuou.


— Meu estado de ânimo... normalmente.

Ela sentiu seu sorriso. Acariciou o lugar no alto das costas justo sobre a sétima
vertebra e sentiu um arrepio em consequência de seu contato. — E o que significa
este símbolo?

—É um caractere kanji26 para Ronin27. — Murmurou, olhando fixamente a luz


amarela no quarto enquanto seus dedos paravam de se mover. — Um samurai...

—Que não tinham mestres, ficavam sozinhos.

Não se surpreendeu por conhecer a antiga classe guerreira do Japão, parecia


saber sobre tudo. Ela suspirou.

Ele disse. — Se o mestre de um Ronin fosse assassinado ele rejeitava o código


dos samurais para ir atrás de vingança, ainda que depois devessem cometer suicídio
pelo delito de homicídio. — Ficou em silêncio por um momento, contemplativo e
logo seus dedos começaram a traçar um padrão novamente, lento e quase...
reverente.

26 São caracteres da língua japonesa adquiridos a partir de caracteres chineses, da época da Dinastia Han, usava-se para escrever japonês junto
com caracteres silabários japoneses katakana e hiragana.
27 Um Ronin, foi no Japão feudal, um samurai que não seguia um daimyo, ou seja, não possuía um mestre.
—Trata-se de lealdade. — Sussurrou na escuridão. —Trata-se de sacrifício. E
honra. Trata-se de viver por algo além de si mesmo e ter coragem de morrer pelo
que acredita.

—Sim. — Murmurou e pressionou suavemente seus lábios na nuca. — Sim.

Ela não sabia o que dizer a isto. Parecia haver um significado mais profundo em
sua concordância e ela sabia que a ironia não iria se perder, por ter na pele um
símbolo de Ronin e ele era o homem contra quem jurou vingança, no entanto, ali
estavam, entrelaçados juntos em uma cama na qual dormiam depois de fazer amor.
Ainda sentia que precisava matar alguém, apenas que agora não tinha certeza de ser
ele, ela mesma ou a próxima pessoa em que colocasse os olhos. Talvez todos estes.

Irritada agora disse. —Como me encontrou? Nas catacumbas?

Outra risada baixa. — Sonhei com elas.

O coração acelerou. Isto significava que sabia exatamente onde o restante deles
estavam? Sobre a abadia e a entrada das catacumbas?

D se agitou atrás dela, acariciando seu rosto em seu cabelo. —Segui um grupo
de garotos até as catacumbas, uma entrada escondida atrás de uma cripta no
cemitério de Montmartre. Não tinha ideia de onde ia, sabia apenas que era um ponto
de partida e logo apareceu.

Para esconder um suspiro de alívio, ela fingiu bocejar. — E estes assassinos que
estão atrás de mim... quem os enviou?

—Disse que são um grupo reunidos de outras quatros Colônias.

—Mas, quem os enviou exatamente?


Houve uma pausa e logo D disse. — A Rainha.

—Rainha? — Sussurrou Eliana assombrada. — Deixaram uma mulher reinar?

—Houve outras antes. —Murmurou, apertando os braços ao redor dela. —


Maria Antonieta, Cleópatra...

—Não!

—É raro, mas quando acontece, uma rainha Ikati é muito mais poderosa que
qualquer macho Alfa. Dizem que esta Rainha inglesa pode se transformar em
qualquer coisa que quiser, não apenas pantera...

—Não! — Eliana se sentou na cama, os lençóis caindo ao redor da cintura e


olhou para baixo. Ele lhe devolveu o olhar, os olhos, os músculos na sombra,
aumentavam o calor por seu corpo nu em onda deliciosas, arrebatadoras. Ele
estendeu a mão e passou o polegar, muito levemente pelo rosto dela.

—Tenha percebido ou não. — Murmurou, olhando-a nos olhos. — As


mulheres são sempre mais poderosas que os homens. A única razão pela qual os
machos são maiores, mais fortes fisicamente, deve-se a que fomos feitos para
proteger e servir o sexo mais valioso: as fêmeas. A natureza lhes dá a capacidade de
conceber e dar à luz. Apenas as fêmeas carregam vida dentro do corpo. Apenas as
fêmeas podem deixá-los sair. São feitas para criar e nutrir vidas. Não há nada mais
poderoso, mais necessário que isto.

O calor inundou suas bochechas. Quando seu olhar ficou muito intenso, muito
observador, ela abaixou os olhos. Fomos feitos para proteger e servir.

— E agora esta poderosa shifter que se transforma em tudo, me quer morta.


—Eles não leram o diário de seu pai. Eles nem sequer sabem que existe, assim,
o que leu é apenas para seus olhos. Mas eles sabem que ele era o líder dos Expurgari
e acreditam que seu irmão ou você tomaram seu lugar. São caçados por este grupo
há centenas de anos, seus líderes foram assassinados, torturados pelos seus. Ao
parecer, ela mesma foi torturada. Agora que sabe o que pensava fazer Dominus...
estamos à beira da guerra com eles desde que vocês se foram. Eles não acreditam
inteiramente que nenhum de nós não sabia o que seu pai estava fazendo, mas
fizemos algumas concessões para mantê-los longe. Por agora.

Assim por causa dela, toda a colônia romana estava em perigo. Mas porque, se
o Bellatorum queria manter a paz com as outras colônias, não deixou a Rainha ler o
diário de seu pai, demonstrando assim a culpa de Dominus e sua própria inocência?

O soro, uma leve voz sussurrou dentro de sua cabeça. Querem para si mesmo.

Um arrepio percorreu sua pele. Ela empurrou o pensamento de lado, mas se


manteve olhando para frente em seus olhos, decidida a condenar. Observou o rosto
de D quando perguntou. — Sabem sobre o soro?

Sua expressão não mudou. Sua voz se manteve neutra. — Não. Como disse,
nunca leram o diário de seu pai e pelo que o Bellatorum sabe, nunca foi desenvolvido,
apenas testado. — Seus olhos se estreitaram. —Porque pergunta?

Ela o olhou fixamente durante um longo momento, sentiu nós em seu


estômago, o coração batia freneticamente contra seu peito, uma vez mais. —Porque
não mostrou a eles o diário, Demetrius? Se com isto poderia demonstrar que não
fizeram nada errado?
A cabeça dele se inclinou para o lado no travesseiro. Algo mudou em seu rosto.
Endureceu, uma leve rigidez indicando uma consciência de sua desconfiança, talvez
não estivesse seguro. Havia um novo vazio em sua voz quando falou, uma nova
tensão ao redor de sua boca.

—Eu li o diário, Eliana. Uma e outra vez e de novo, em busca de algum tipo de
pista sobre onde poderia ter ido quando fugiu. Não havia nenhuma, claro, mas o
que seu pai planejou para você... seu irmão... todas as coisas terríveis que fez e queria
fazer... isto não é algo que deixaria alguém ler. As outras colônias podem tomar suas
ameaças e ir diretamente ao inferno. Eu não gostaria de ser humilhado desta forma.
Nunca. — Sua voz endureceu. —Há alguns segredos que devemos levar para nossa
tumba.

Oh, o que estas palavras fizeram. Se era conflituoso e confuso antes, isto era a
cereja que faltava para coroar seu triplo sundae de confusão. As palavras pareciam
sinceras, mas o tom com o qual falou e a expressão em seu rosto pareciam... o que?
Ímpar, se nada mais. A proteção era a motivação segundo ele, sua proteção e
poderia ter acreditado, mas para que a sentença final fosse dada precisava lidar com
sua fala como se fosse uma profecia. Há alguns segredos que devemos levar conosco para a
tumba. E por esta estranha excentricidade em sua forma, poderia ter sido ferida em
sua incredulidade.

Ou poderia ser uma falsidade, uma distração.

Assassinos desfrutam criando distrações, Eliana.

Inclusive agora, a voz de Silas fazia eco em sua cabeça.


Pouco a pouco se deitou e apertou as costas contra a dura extensão do peito de
D, evitando seus olhos, evitando o emaranhado repentino que eram seus
pensamentos. — Entendo. — Sussurrou ela, sem entender nada em absoluto.

Ficou atrás dela, tenso e silencioso, até que ele deixou escapar um suspiro e
arrastou as mantas ao seu redor e a apertou contra o peito uma vez mais. Ficaram
assim durante muito tempo, até que sentiu sua respiração ficar mais regular, as
batidas do coração mais lentas. Quanto teve certeza de que quase estava dormindo,
ela sussurrou na escuridão. — De verdade acredita que os homens foram feitos para
proteger e servir as fêmeas ou simplesmente é conversa de travesseiro?

Murmurou algo e ela virou a cabeça para ouvi-lo melhor. —Se não houvesse me
esgotado mulher, iria servi-la neste momento. —Ele riu suavemente. —Mas terá
que esperar até amanhã. Mostrarei exatamente como um homem deve proteger e
servir sua fêmea de manhã.

Mas quando chegou a manhã e D se esticou e abriu os olhos, a cama estava


vazia, os lençóis do seu lado frios.

Eliana se foi.
CAPÍTULO
VINTE E CINCO

Mel acordou em um sobressalto quando uma mão cobriu sua boca.

Sentou-se de um golpe na cama, um grito abafado em sua garganta, mas deixou


escapar um suspiro de alívio quando viu que era apenas Eliana, agachada junto a
cama na escuridão, pálida e com os olhos selvagens com um dedo nos lábios, como
algum tipo de fantasmas de cabelo azul pedindo silêncio.

—O que está fazendo, ficou louca? — Disse Mel. —Porra, quase me matou de
susto!

—Vista-se. — Foi a resposta urgente sussurrada. — Acorde os demais e desça


ao Tabernáculo e me espere. Vou me encontrar com Alexi...

—Alexi? O que? Está louca E, estamos na metade da noite.

—Temos que tirar todos daqui e a casa de Alexi é grande o suficiente para todos
nós. —Sua voz endureceu. — A maioria de nós.

Mel ficou olhando, por muito tempo e duro, através das sombras do quarto. Ela
sentia o cheiro do medo e da raiva de Eliana como quando uma refeição ficava
muito tempo no sol e algo mais que a surpreendeu e gostava em partes iguais:
almíscar e especiarias de poder masculino que apenas poderia ser Demetrius.

—Diga-me o que aconteceu. Sei que se encontrou com Demetrius.


Eliana ficou como se houvesse saltado de trás de uma porta e gritasse: Boo! Mel
disse. — Passei muito tempo chorando em seu ombro, céu. Lembro-me exatamente
como cheira. Derrame.

Renunciou ao fato de que Mel não iria ceder até que soubesse o que estava
acontecendo, Eliana deixou escapar um suspiro de frustração e passou as mãos
pelos cabelos. Ela se sentou ao seu lado na cama e fechou os olhos. — Ele me
trouxe o diário do meu pai. Eu li e foi... horrível. —Apesar do sussurro, sua voz
ficava mais dura do que Mel jamais ouviu. — Foi pior que horrível. Seu
pressentimento estava correto, Mel. Nada é o que parece.

Mel não sabia o que dizer. A forma como ela estava falando, apenas a forma
como as palavras saiam, a fez parar. —E... e Demetrius? O que tem ele?

Mesmo na escuridão, Mel podia ver o calor no rosto de Eliana. Ela mordeu o
lábio inferior e depois, em um movimento disse tudo, tampou o rosto com as mãos.

Mel levantou as mãos juntas em um movimento silencioso de alegria e pulou


para cima e para baixo no colchão. —Oh deus meu, fizeram! Conte-me tudo!

Por trás de suas mãos Eliana zombou. —Céus, o que quer?

Mel estava muito ocupada para se preocupar com a acidez de seu tom. — Foi
gentil? Foi áspero? Foi muito rápido? Oh deus meu, espero não tenha terminado
muito rápido, é tãããããoooo como uma máquina.

—Ele disse que me ama.

Isto foi dito com tanto idiotismo, com uma desesperança sombria, que poderia
estar dizendo: Estou ardendo no inferno. Ficou olhando Eliana, que deixou cair as mãos
no colo e as olhava como se nunca as viu antes, como se seus próprios dez dedos
fossem desconhecidos. Algo enorme e feio parecia estar crescendo nela, um mal,
um câncer de raiva ou desespero, florescendo lentamente à vida.

—Porque é tão ruim? O que aconteceu exatamente?

Muito cansada, Eliana respondeu. — Está mentindo sobre algo, Mel. Não sei o
que ou se trata do que realmente aconteceu na noite que meu pai morreu, mas está
escondendo algo. — Fez uma pausa e disse em voz mais baixa. — Sabe do soro.
Não posso evitar pensar...

—Não. —Foi a resposta imediata de Mel. —Não ele.

Eliana virou a cabeça e olhou-a com os olhos vidrados que se viam em vítimas
de desastres ou neuroses de guerra, como dardos. Obsessivos.

—Isto foi o que pensei de meu pai. Isto foi o que pensei sobre Silas e meu irmão
também. Ao parecer ser um bom juiz de caráter não está entre meus dons. De fato,
acho que podemos dizer com segurança que sou péssima nisto.

Mel segurou a mão fria de sua amiga e apertou entre as suas. — Posso assegurar
que meu julgamento é bom, no entanto, não fique sem esperanças. —O fantasma
de um sorriso foi a única resposta antes de Eliana afastar o olhar. — O que soube
de Silas?

O rosto de Eliana endureceu novamente. A expressão voltou a aparecer com


muita rapidez e facilidade, como se tratasse de uma configuração pré-determinada
e qualquer outro aspecto que aparecesse seria transitório. Era estranho e Mel não
gostou em absoluto.
—É um traidor e mentiroso, logo irá conhecer o fio da minha espada. —Ela
sussurrou uma respiração através dos dentes, logo se levantou e a olhou nos olhos
vidrados traumatizados pela guerra. Apenas que agora queimavam. —É por isso
que temos que sair daqui e tirar os outros rápido e em silêncio. Não peguem nada,
vamos subir o mais rápido que pudermos.

—Um traidor? — Mel sussurrou com a mão na garganta. Ficou de pé, o chão
de pedra deu-lhe uma sacudida quando sentiu o frio em seus pés descalços. — O
que fez?

Eliana se levantou e foi ao baú de madeira no extremo da cama onde Mel


guardava as roupas e começou a procurar através dele. Ela puxou uma jaqueta, calça,
camisa, botas e jogou tudo na cama. —O que não fez é a verdadeira questão. Se
procurar a definição de encarnação do mal no dicionário, a imagem dele estará justo
do lado do meu pai. Vista-se.

Mel vestiu a roupa tão rápido como pode, seu coração acelerado. — Então, o
que faremos?

—Vamos levar a todos para um lugar seguro e logo Silas e eu teremos uma
pequena conversa.

—Ou melhor. — Disse uma voz da porta. —Poderíamos tê-la agora.

Eliana e Mel giraram juntas e o horror caiu sobre ela, grosso e quente, como
uma manta sobre sua cabeça.

Na porta estava Silas, vestido de negro. Irradiando ameaça, olhando entre elas
com um leve sorriso inquietante, com uma pistola na mão.
A pistola que agora levantava e apontava diretamente para Eliana.
CAPÍTULO
VINTE E SEIS

Isto era o que o amor era para o guerreiro Demetrius:

Anos e anos de anseio, um anseio tão agudo e terrível que não acabava, como
uma espada de aço permanentemente incrustrada em seu peito. O amor roubava
olhares, esperança e sonhos vividos, ilícitos que zombavam dele ao acordar e o
medo frio, implacável do descobrimento que se seguia, astuto que se agarrava como
uma sombra, durante todos seus dias e noites, sufocando-os. Porque, de alguma
forma, o amor ardia em seu interior como o sol e se descoberto pela pessoa errada,
sua vida poderia terminar rapidamente e a chama que se manteve durante tanto
tempo seria apagada entre dedos umedecidos.

Isto era ruim, insuportável. Era um soldado, depois de tudo, nascido e criado
para a batalha. Sua vida não iria durar muito tempo e proibido de ter uma esposa,
não teria também amor. Mesmo os filhos que engendrasse em encontros anônimos
com as Electi28, Servorum29 ou mulheres humanas ao azar, nunca seria reconhecido
como um pai, apenas um doador de esperma, nada mais.

Ele sabia. Endureceu-se com a crua realidade há muito tempo.

28 Eleita, em Latim
29 Serva, em Latim
O que não era suportável. Se de alguma forma, apesar de tudo, seus sentimentos
fossem correspondidos... sua amada morreria também. Apenas que não seria
rápido. Seria horrível. Isto seria usado como uma lição para todos, uma afirmação
de poder tão evidente que seu significado não poderia ser mal interpretado. Um
espetáculo que faria com que até mesmo o mais temido guerreiro tremesse de terror
enquanto observava.

A desobediência se igualava a morte. Tomar uma mulher acima de seu próprio


nível se igualava a morte. Assim, a morte seria lenta e tortuosa. Não havia outra
solução para um soldado de seu nível e não aconteceria diferente em milênios.

Assim como o amor — além de ser inútil — era uma agonia. O amor era um
demônio que comia sua alma. O amor era a mais terrível sensação no mundo.

Um segundo finalista: o desespero.

Estava cheio disso agora. Morto de frio onde o amor estava ao vermelho vivo,
o desespero obstruía a garganta e o sufocava como se houvesse inalado as cinzas
em um crematório.

Ela chegou a ele, lutaram e fizeram amor e até mesmo dormiram juntos —
coisas simples e normais que desejou durante anos — e, no entanto, acordou
sozinho com o quarto em silêncio e a cama vazia, isto o encheu de desespero e se
perguntou por um momento sem fôlego, se todo este inferno um dia iria terminar.
Sem chamas, gritos e lagos de fogo, ainda que a angústia, a desesperança e a miséria
estivessem entrelaçadas ao redor de seu pescoço como uma corda invisível
deixando-o pendurado por toda a eternidade, sozinho.

D não pode se antecipar a tudo isso. Seu sono era profundo e ela foi silenciosa.
Lentamente, dolorosamente, se levantou da cama que ele e Eliana
compartilharam, seu coração como um animal selvagem no peito, negando-se a
conformar-se. Ele lhe disse a verdade na última noite, não tinha ideia de onde estava
sua colônia, ele simplesmente seguiu aqueles rapazes rindo por um cemitério
silencioso e logo dentro da terra em cavernas sinuosas. Poderia voltar ali, mas que
esperança tinha de encontrar o mesmo lugar? Se ela quisesse se esconder dele,
poderia. Ela não voltaria ao mesmo lugar. Ela já poderia estar em outro continente.

Ou capturada pelos Caçadores.

O pensamento enviou uma sacudida elétrica de medo através de seu corpo, que
foi engolida rapidamente pela fúria. Maldição. Maldita ela pela teimosia obstinada,
maldita por se negar em acreditar nele quando disse que não foi ele quem atirou em
seu pai. Certo, ele concedia que não parecia bem, de pé sobre o cadáver de Dominus
com uma arma, mas ela deveria saber que sua palavra bastava.

Ficou rígido. Sua nuca se arrepiou. Olhou ao redor do quarto escuro, ouvindo
com força o silêncio.

Aquilo foi um grito?

Manteve-se imóvel, sem fôlego durante um longo momento, cada nervo alerta,
cada poro em sintonia com qualquer ritmo...

Não. Não foi um grito. Era um impulso, um impulso invisível, palpável como
uma mão empurrando-o, que enviou uma onda de choque de reconhecimento
através de seu corpo. Chegou novamente, mais fraco que antes, mas inconfundível.

D nunca se vestiu tão rápido em sua vida. Camisa, calça, botas e suas facas, tudo
sem pensar, ambos os ouvidos em sintonia com a sensação de que poderia chegar
novamente a qualquer momento, a vibração que lhe mostraria o caminho para
encontrá-la.

Devido a que era ela. Não sabia como, mas sabia que era Eliana e estava em
problemas, precisava dele.

E porque ela era sua vida, seu coração e sua alma, ele a encontraria. Sim, o faria.

Vibrava através dele como a sede de sangue que às vezes sentia depois de uma
matança, brilhante e cega. Na união de seus corpos. Seu fôlego, na consumação de
um amor não correspondido tanto tempo, sua alma se fundiu com a dela de forma
que um grão de areia se prende em uma concha e algo mais nasceu entre eles. Paixão
sempre existiu, mas esta noite uma pérola de algo mais profundo se formou,
permanente e irrompível.

Posse.

Ela pertencia a ele agora. Ele a encontraria.

Nem sequer a morte poderia mantê-lo longe.


CAPÍTULO
VINTE E SETE

—Demetrius. — Disse Silas com uma careta, seu bonito rosto duro pela ira. —
Sempre esta obsessão por Demetrius. Ele é inferior a você, querida. Nada além de
um soldado.

Eliana se sentia congelada no chão. Ela não tinha que olhar para Mel para ver
que estava congelada também, branca contra a parede de pedra escura atrás dela,
com os olhos abertos e fixos na arma na mão de Silas.

—Assim, foi você. — Disse Eliana com calma, apesar do sangue rugir em suas
veias.

Ele estalou a língua em reprovação, mas sem se perturbar. Silas sorriu, um


sorriso malicioso que puxava seus lábios sobre os dentes enquanto dava um passo
lento no quarto. —Provavelmente não é inteligente provocar um homem que
segura uma arma. No entanto, está errada. Eu era um servo leal, mas agora estou
em um nível um pouco mais elevado, certo? A morte de seu pai criou um vazio,
querida e como todos sabemos a natureza não gosta do vazio.

—Meu irmão...

—Seu irmão é uma marionete. — Foi duro, brusco e provavelmente mais forte
do que pretendia, porque seu olhar foi para a porta atrás dele antes que se
acomodasse. —Não apenas não tem dons, é um tolo, indigno de sua posição. Nem
sequer digno de seu nome. Caesar, claro. O que é uma ilusão! Não que alguma vez
te incomodou Eliana, já que é a pessoa da família com cérebro, mas nunca lhe foi
permitido ser... nada... porque era apenas uma mulher?

Deu outro passo para frente, ela e Mel se afastaram. Parecia estar gostando disso,
sua emoção ao medo saltava à vista. Seu sorriso aumentava e ficava mais excitado
a cada segundo.

—Teria mudado tudo isso, sabe. Eu a deixaria ficar ao meu lado. Poderíamos
ter sido uma equipe gloriosa, você e eu. —Sua voz ficou mais suave, enquanto seus
olhos sempre escuros e brilhantes, ficavam mais abertos. —Infelizmente, não
formo equipes com prostitutas.

Ouviu tudo antes, então. Não incomodava ele a chamar de puta, tanto que nem
registrou porque estava muito concentrada formulando um plano para sair dali sem
receber um tiro.

Ela retrocedeu um passo enquanto se aproximava. — O que vai fazer?

—Eu? —Respondeu com fingida inocência. — Não farei nada. Você, no


entanto, irá matar sua melhor amiga.

O que?

Não tinha certeza se falou em voz alta ou não, mas Silas respondeu como se o
houvesse feito, sorrindo de forma terrível, irado todo o tempo.

—Terrível que simplesmente não pode se ajustar a nossa nova vida aqui. Nunca
realmente superou a morte repentina de seu pai, verdade querida? Todo o mundo
pode ver o quanto ficou afetada. Como ficou cada vez mais deprimida. Não será
uma grande surpresa quando finalmente chegar ao limite e matar sua melhor amiga
e logo a si mesma. Tão trágico, de verdade. Um desperdício de vida quando estava
a ponto de acontecer coisas transcendentais.

Golpeou-a com uma clareza repentina e ela sabia que seria capaz de fazê-lo
porque ele tinha o dom de fazer as pessoas acreditarem. O cadáver de Mel, ao lado
do seu próprio, com a arma na mão... pareceria um detalhe em uma foto. Como
reagiria seus parentes em choque, quando Silas os consolasse, como usaria a dor em
sua própria vantagem e fazer com que confiassem nele ainda mais. Mataria as duas
e ninguém descobriria sua traição.

Sua insensibilidade, sua astucia, enviou uma onda de raiva diferente a tudo o que
já conheceu por seu corpo. Houve um movimento de luz e um ruído dentro dela,
um som como milhares de asas, uma união que incinerou seu medo e transformou
tudo em algo claro, cristalino.

Então Silas mudou de alvo e apontou a arma para Mel.


CAPÍTULO
VINTE E OITO

Traduzido literalmente, budõ significa — o caminho do guerreiro. É mais que um


método de luta, ainda que sem dúvida isto. Uma prática antiga usada pelos samurais
no Japão, budõ é uma forma de vida, uma filosofia. Era uma arte.

A arte de matar.

Como com toda arte, havia beleza nela.

Eliana praticou o ritual kata em todo o amanhecer durante anos. Era uma forma
de conhecer a si mesma em uma nova vida e uma forma de conectar-se com o sol.
Para uma criança que nasceu e cresceu sob a terra, que nunca vislumbrou o céu até
aos vinte e três anos de idade, o sol era uma coisa terrível para ela, um monstro de
calor e luz suspenso em uma lona azul tão vasta que não tinha bordas, mas extraia
sangue até o infinito. Ela chorou na primeira vez que viu o céu noturno, mas na
primeira vez que viu o sol, se encolheu de terror.

Era uma criança da escuridão. Para ela, a luz do dia era o lugar onde se
escondiam os homens do saco, não nos braços frios e confortáveis da noite.

Assim, praticava no jardim da abadia em ruinas de madrugada, com o ritmo


calmo de passos, voltas e movimentos com as costas, até que o sol fosse uma fonte
de temor e sua mente ficasse mais aguda, seu espírito se aprofundava e seus
músculos endurecidos se suavizavam como era antes quando menina. Praticou com
um mestre budõ que desafiou sua concentração e sua forma, ela então se converteu
em sua melhor aluna. Nunca alcançou o katachi, que era um estado de kata que se
convertia na perfeição da forma e todo o treinamento se alinhava com o centro de
sua própria calma, sem peso e mágico, onde o movimento era sem esforço, tudo
ficava mais lento e se cristalizada, vendo a perfeição de tudo o que estava ao seu
redor.

Neste estado elevado, inclusive as intenções dos demais ficavam visíveis. Sua luz
se movia diante deles justo antes que o fizessem e poderia ver o que estavam a
ponto de fazer.

Um segundo justo antes de Silas virar sua arma para Mel, Eliana por fim
conseguiu o katachi.

Foi instantâneo e sem pensar. A partir de uma batida e na seguinte.

Uma onda de energia crepitou sob sua pele e uma onda de potência, enorme e
pulsante, iluminou-se através dela como lenha seca nas chamas. Sua espada estava
ao seu lado, na funda de couro e escondida sob sua jaqueta larga e então logo foi
para sua mão, fazendo um arco perfeito, sem o mínimo esforço ou concentração
para inalar. Não houve uma decisão consciente, apenas a ação e reação. A clareza
de sua visão dava aos músculos e nervos tudo o que precisava para se mover a
velocidade de um raio, invisível.

Ela se lançou adiante e seus pés nem sequer tocaram o chão.

Em apenas um golpe limpo, cortou a mão de Silas no pulso.


Sem soltar a arma, saiu voando pelo ar em um spray vermelho e caiu com um
ruído surdo de carne contra a parede. Caiu no chão e a arma saiu de entre os dedos
sem vida e chocou com a parede nua.

Cambaleou para trás, atordoado, com a boca aberta, quando o sangue de sua
mão cortada começou a escorrer da ferida, logo uma inundação. Agarrou o pulso
com a outra mão e retrocedeu, logo se virou e correu, deixando um rastro de sangue
escuro atrás dele.

Logo, tão rápido como Eliana se converteu em luz, a magia a drenou como se
um interruptor fosse acionado.

Ela se apoiou na porta onde Silas esteve de pé e deixou escapar o fôlego. Seguiu-
se um silêncio tão profundo que parecia como se a própria Terra pudesse ter
deixado de girar sobre seu eixo e tudo o que continha, cada pessoa, aves e insetos,
ficassem sem gravidade e fossem lançados aos confins do espaço.

Depois, um som estranho, líquido e sufocante rompeu o silêncio antinatural.

Asfixia.

Deu a volta e... não. Não!

Mel estava deitada de costas sobre o chão de pedra, tossindo sangue.

Ela se moveu. Eliana deixou cair sua espada e ficou de joelhos ao lado de Mel,
com as mãos sobre a mancha se propagando no meio de sua camisa. Não podia ser,
não podia não ter ouvido o disparo, não viu o flash de luz, não...

Mas logo sentiu o cheiro forte e persistente de pólvora no ar, registrou a piscina
vermelha cada vez maior nos ombros de Mel e sabia que aconteceu sim.
—Ana. —Os olhos de Mel estavam selvagens quando agarrou a parte da frente
de sua jaqueta. —Ana. — Perdeu-se sob o horrível murmúrio tingido de vermelho,
do sangue que saia de sua boca e nariz. Seu pulmão deve ter sido perfurado. Estava
se afogando em seu próprio sangue.

—Socorro! —Eliana gritou, indo para a porta. — Alguém nos ajude!

Ouviu-se um ruído de passos e murmúrio de vozes, logo alguém apareceu na


porta do quarto. Um dos que entrou primeiro —Betina, com cabelos grisalhos e
dedos ágeis, era a parteira de sua colônia. Ela ajudou a trazer Eliana ao mundo há
muito tempo, foi sua amiga e uma figura materna depois da morte de sua mãe. Ela
se negou a ficar para trás quando fugiram das catacumbas, insistindo em ficar ao
lado de Eliana.

—Doce deusa Nephthys. — Sussurrou ela, inclinando-se para inspecionar Mel.


—Não a leve ainda. — Ela abriu a camisa de Mel para revelar uma ferida aberta no
centro de seu peito, escorrendo sangue. Amaldiçoou em latim, puxou uma tira do
lençol na cama e apertou contra o peito de Mel.

A cabeça de Mel estava de lado. Tossiu e um jato de sangue salpicou Eliana.

—O que aconteceu? — Era Aldo, um dos seguidores mais devotos de Caesar,


um macho jovem com ombros largos e uma temerária atitude de quem andou no
caminho errado por anos. Seguia Caesar como um cão segue bacon no bolso de
alguém.

—Silas disparou nela!

Aldo retrocedeu com incredulidade. —Porque? O que aconteceu? O que ela


fez?
Eliana queria matá-lo por isso. Tudo começava a desmoronar e a forma como
o quarto estava ondulando, afirmava isto. Ela mordeu com força a língua para se
concentrar em si mesma e o sabor de sangue, mas piscou novamente para conseguir
controle.

Se tivesse um ataque de pânico agora, seria completamente inútil. E Mel poderia


morrer. E Mel não poderia morrer.

—Não há hospitais Eliana, onde possamos ir. — Respondeu Betina em voz


baixa. Encontrando os olhos negros e suaves da mulher. —Não podemos correr o
risco.

Leu tudo nos olhos de Betina. Não era apenas o risco, era por causa das leis
antigas de seu povo. A sobrevivência do mais apto significava exatamente isto,
todos que não eram aptos devido à idade, por doenças ou lesões eram deixados para
morrer. Era uma verdade dura e fria de que todos eles vivam uma lei da natureza
que até agora parecia brutal, mas justa. Necessária, inclusive. Força era uma
vantagem sobre todas as espécies. Apenas o Bellatorum, que era muito valioso para
seu pai para ser consumido ou lesionado, tinha atenção médica e eram capacitados
para cuidar uns dos outros. Todos os demais eram deixados para morrer.

Merda de sorte.

Seu rosto endureceu. Não, não desta vez. Ela faria o que fosse necessário para
manter Mel viva.

Mel se contorcia no chão, entre eles, atormentada por espasmos de dor. Sua
boca estava trabalhando e Eliana se inclinou para ouvi-la. —Mel. — Sussurrou. —
Mel, ficará bem, vamos encontrar uma forma.
—Demetrius. — Mel se afogou um pouco, forçando as veias do pescoço. —
Leve-me a Demetrius. Ele saberá o que fazer.

À menção de seu nome, Betina retrocedeu, horrorizada e houve mais


murmúrios de choque da porta onde todos estavam reunidos. Percebeu que Aldo
desapareceu.

—O que ela está dizendo? Demetrius? — Disse Betina. —Porque menciona o


assassino do Rei?

Isto era tudo o que eram para eles, o assassino do Rei, o que matou Dominus
para se apoderar do reino para si mesmo. Conhecido por todos assim e Silas fez um
trabalho maravilhoso de convencer todos de que Demetrius não duvidaria em matá-
los se alguma vez os encontrasse ou se alguma vez voltassem às catacumbas.

Convenceu todos muito bem.

—Ajude-me a levantá-la. — Ela disse a Betina, ignorando a pergunta e logo se


voltando ao grupo reunido, os rostos pálidos e olhos bem abertos na tênue luz que
começava a entrar pela janela quebrada. —Geo. — Olhou o jovem macho alto de
pé perto da porta que tinha um dom para eletricidade. — Encontre um carro.
Rápido. Leve-o para entrada sul. Nos encontraremos ali.

Geovanni assentiu e desapareceu.

Dos outros que ficaram, houve murmúrios de confusão, o nome de Silas se


repetindo em sussurros de assombro, incerteza ao acompanhar tal irrealidade.
Ninguém sabia exatamente como reagir ou no que acreditar.
—Silas é um traidor. — Eliana disse com voz rouca e eles olharam um para o
outro. — Ele é um mentiroso, um assassino e não podemos confiar nele. —Atirou
em Mel e teria atirado em mim também se não o houvesse impedido.

Eliana moveu a cabeça para o canto, a mão ensanguentada de Silas permanecia


imóvel perto da arma que segurou antes e alguns murmúrios de assombro se
transformaram em gritos de desgosto. — Todos podem ir ao Tabernáculo e
esperem quietos até que eu volte. Alguém viu meu irmão?

—Ele saiu, minha senhora. — Disse uma leve voz da parte de trás do grupo
reunido.

Afastaram-se e Lina deu um passo adiante, a mais jovem de todos, uma garota
magra com cabelo negro brilhante e um sorriso tímido, de berço de ouro, que fugiu
com eles das catacumbas porque seu pai lhe informou naquela noite que se casaria
com o filho de outra família de berço de ouro no dia que fizesse quinze anos.

O rapaz era conhecido por desfrutar de torturar cães de rua que capturava,
colocando fitas adesivas em seus focinhos até que morressem asfixiados.

—Eu o vi sair e ele não voltou, estive lá em cima desde que saiu.

—Certo. Não importa. Vão para o Tabernáculo o mais rápido possível e me


esperem ali, todos vocês. Vou conseguir para Melliane ajuda e logo voltarei para
vocês. Não podemos mais ficar aqui.

Sussurros e pés se arrastando com surpresa foi ouvido, mas ninguém a desafiou
abertamente. Na ausência de Caesar ou Silas, era a líder temporária da colônia e
tinham que fazer o que dissesse... ao menos até que um deles voltasse.
—Betina, por favor, ajude-me. — Eliana deslizou os braços suavemente sob
Mel, que se apoiou nela, pesada, mas então alguém se adiantou. Fabricio —
universalmente chamado Fabi — era um gigante amável, um dos Castratus
encarregados da vigilância do harém em sua vida anterior, agora responsável pela
cozinha da pequena nova colônia, quem fazia os ovos que era forçada a comer todas
as manhãs. Como desejava que este fosse o menor de seus problemas.

—Eu a tenho. — Disse Fabi, sua voz profunda como um bálsamo sobre seus
nervos destroçados. Ele levantou Mel facilmente em seus braços como se fosse uma
criança e segurou seu corpo contra o peito. Mel gemeu com os olhos fechados, os
lábios de cor azul claro. O pulso na base de sua garganta ficando fraco.

—Depressa. Depressa. — Insistiu Eliana, movendo-se pela porta. O grupo


reunido se afastou para deixá-la passar e Betina a seguiu, pisando em seus
calcanhares, pressionando o pedaço de lençol ensanguentado contra o peito de Mel
para tentar impedir a hemorragia enquanto abriam caminho até a sala abobadada na
parte de trás da abadia. Atrás deles, a multidão sussurrante começou a formar
grupos menores.

Eliana não perdeu tempo em perguntar quantos deles realmente esperaria que
voltasse. Tinha seus próprios partidários, mas o tinha Caesar também.

O mesmo com Silas.

Chegando na parte posterior da abadia, onde as portas principais se abriam em


um único acesso à estrada, tiveram que passar através da antiga igreja, empoeirada
e sombria à meia luz do amanhecer que se estendia das janelas talhadas em branco
muito acima da pedra. Havia uma porta de ferro na parede ao leste, em um nicho
ao lado do altar. Estava oxidada e trancada, mas Eliana deu um chute forte e a
fechadura e o cadeado caíram. A porta se abriu com um gemido misterioso e ela
empurrou na direção do caminho de gramas.

E Geo já estava ali.

Alívio surgiu através de Eliana e ela correu para o SUV negro, agitando
freneticamente, suas botas rangido sobre a grama e os galhos. Os faróis a cegaram
por um breve momento e ela levantou uma mão, protegendo os olhos contra o
resplendor e logo parou em seco quando sua visão se ajustou e seu coração ameaçou
sair pela garganta.

Não era Geo atrás do volante.

Era Demetrius.

E não estava sorrindo.


CAPÍTULO
VINTE E NOVE

D não se surpreendeu ao ver a expressão de horror no rosto assustado de Eliana


quando ele entrou no caminho arborizado da abadia abandonada. Não lhe
surpreendeu que o impulso o levasse até ali. Ele descobriu há muito tempo a confiar
em seus instintos e o instinto o levou diretamente a esta sombra, então do carro viu
os faróis cortarem através da nevoa.

O que o surpreendeu foi Melliane. Uma Melliane inconsciente e ensanguentada,


nos braços de um Castratus.

Ele estacionou o Range Rover no parque e saltou. — O que aconteceu? —


Gritou, olhando fixamente o Castratus. Fabi — lembrou-se do nome, mesmo em
seu estado de choque. O nome do homem era Fabi.

Logo ficou evidente que Fabi também se lembrava dele.

Ele grunhiu. —Um passo mais, assassino do Rei e sua cabeça precisará de um
novo corpo!

Fabi o olhava com hostilidade aberta. Era grande e sólido, D apostava que iria
acertá-lo se tentasse chegar até Eliana, a quem Fabi se colocou na frente em uma
atitude protetora, fazendo D apertar ambos os punhos e a mandíbula. A parteira
Betina, junto a ele, era ainda mais abertamente antagônica. Ela silvou uma
advertência entre os dentes no momento que saiu do carro e não parou desde então.

—Não matei Dominus. — Disse rotundamente, olhando apenas para Betina e


Fabi. Eliana, que via de sua visão periférica, estava tentando decidir o que fazer. Ela
estava tocando algo sob sua jaqueta, o que suspeitava ser a espada. Ele levantou as
mãos em sinal de rendição e abaixou a voz, deixando a tensão sair de sua postura.
—Não sou um perigo para qualquer um de vocês, mas posso ajudar Melliane...

—Você não irá tocá-la! — Betina deu um passo adiante, com as mãos em punho,
sibilando como uma serpente. — E se acha por um segundo que acreditamos no
que diz...

—Não sou eu quem está mentindo para vocês.

—Assim diz o assassino do Rei, um homem de palavra, sem dúvida!

—Agora não é o momento para discutir isto.

—Volte para baixo de qualquer rocha da qual se arrastou.

—Betina...

—Não se atreva a dizer meu nome!

D estava começando a perder a paciência. Observou o rio de sangue saindo por


baixo do braço nu de Melliane se reunindo na ponta de um dedo e logo caindo em
uma poça nos pés de Fabi. — Não estou aqui para machucar vocês...

—Não, está aqui para nos matar!

D gritou. — Se os quisessem mortos, já estariam mortos mulher!


A mandíbula de Betina se fechou em um estalo. Eliana deu um passo adiante,
colocou uma mão em seu braço e olhou para D de forma estranha, sombria e
insondável.

—Ele tem razão Betina e Fabi. Se nos quisesse mortos, já estaríamos.

Betina empurrou para trás uma mecha de cabelo grisalho que escapou de seu
coque e abraçou a si mesma, com um olhar assassino para ele. — Porque está aqui
então, senão para nos matar? O que quer?

Nesse instante D olhou para Eliana.

Ela lhe devolveu o olhar de forma estranha, com uma mão flexionada de lado,
a outra ao redor da empunhadura da espada. Surpreendeu-se ao ver sua postura
defensiva, mais que a mão na arma. Cortou-o até os ossos. Seus olhos ficaram fixos
nele e ainda que seu rosto não mudou, ele acreditou perceber um grande tumulto
em seu interior, uma silenciosa batalha que travava consigo mesmo.

—Fabi. — Disse Eliana, olhando para ele, finalmente muito suave. — Coloque
Mel na parte de trás do carro.

Betina abriu a boca e Fabi deu um passo atrás. Ainda suave, ainda a olhando,
Eliana disse. — Ele sabe como tirar balas, posso garantir isso. Mel confia nele. E
nós não podemos levá-la ao hospital. Assim é nossa única opção.

Soava como se ela quisesse ter outra opção e D sentiu o coração dele ser cortado
em pedaços. Mel confiava nele.

Não ela. Ela não confiava nele. Ela não o defendeu das acusações.
Porque iria fazê-lo? Lembrou-se. Ela não sabia a verdade, porque não lhe contou
a verdade. Não podia dizer, porque fez um juramento de sangue para defender seu
irmão Constantine até a morte que —muito lamentavelmente incluía — conceitos
errôneos e trágicos nas atuais circunstâncias.

Como a verdade, a honra era algo vazio, poderia ser descartada como algo
pessoalmente inconveniente.

Matava a alma, era desgarradora. Como um disco furado.

—Coloque-a na parte de trás do carro, Fabi. — Disse Eliana novamente, ainda


com esta terrível suavidade e estranho olhar no rosto. Disse uma vez mais de forma
ríspida, quando Fabi não se moveu, então o grande macho finalmente respirou
fundo e se abrandou. Deu um passo adiante, eriçado, os tendões do pescoço
aparecendo, os olhos frios.

—Juro por Amon-Ra, Maat e Sekhmet, se alguma coisa acontecer com ela,
enquanto estiver sob sua proteção, dedicarei minha vida em matá-lo. Vou caçá-lo
como um cão e o verei morrer como um também, com minha espada enterrada em
seu ventre e sua língua falsa arrancada e jogada aos abutres. Seu nome será
amaldiçoado por mil gerações e sua alma se contorcerá na ponta da lança de Osíris
por toda eternidade.

Cuspiu no chão para selar sua maldição e logo voltou o olhar negro novamente
para D, cujas sobrancelhas se erguiam.

Para esconder sua ira e indignação pela grande tortura de toda situação, D disse
rapidamente. — Muito bem elaborado, Fabi. Muito bom. — Fez uma curta
reverência e logo se levantou e franziu os lábios. — Tem abutres na França?
Fabi grunhiu e Eliana passou junto a ele para abrir a porta de trás do carro. Ela
balançou a cabeça para dentro e Fabi colocou Mel suavemente no assento traseiro,
murmurando algo enquanto ela gemia ao ajustar suas pernas.

Quando o fez, Eliana se virou e deu em Fabi e Betina rápido e rígidos abraços.
— Reúna os outros, todos que puderem e os levem ao Tabernáculo. —Murmurou.
— Enviarei Alexi até vocês. Podem confiar nele. Sigam-no e esperem por mim. —
Seu olhar piscou para D. — Vocês ouvirão algo de mim em poucas horas. Se por
alguma razão isto não acontecer, assumam o pior. Tomem todas as precauções.
Fujam como planejamos, mas encontrem uma nova morada. Algum lugar que Silas
—ou qualquer outro — não possa encontrar.

Fugir. Desaparecer. D ficou ali, com o coração como pedra no peito, ouvindo
enquanto sua amada dava instruções sobre o que fazer em caso dela não voltar mais.

No caso dela desaparecer.

Doente. Sentia-se doente. Sentia como se algo fosse romper. Sentia que iria
morrer.

Murmuraram algo por alguns minutos mais, planos, garantias e instruções de


despedida. Logo, com um olhar para Fabi e um grunhido com os dentes
descobertos para Betina, os dois saíram do caminho e voltaram para dentro da
antiga igreja no silêncio da madrugada. Eliana os observou por um momento, a
preocupação em seu rosto, logo deu a volta e o olhou, sombria e resoluta, como se
fosse enfrentar um pelotão de fuzilamento.

—Vamos.

Então abriu a porta do passageiro do carro e saltou dentro.


Movendo-se lentamente, sentindo-se um pouco atordoado, D sentou-se ao
volante e deu ré no carro. A medida que saiam do parque, disse com os dentes
apertados. — Deveria saber agora que não vou machucá-la, Ana.

Ela olhou pela janela para a crescente luz da manhã. Exalou lentamente pelo
nariz. Murmurou. — Demetrius, apenas olhar para você doí.

Depois disso, não quis mais conversar.

***

Alexi atendeu na primeira chamada. — O que? — Em um murmúrio sonolento


incomodado.

—Preciso da sua ajuda. —Eliana tentou ignorar o olhar assassino de D para ela
do assento do motorista.

Houve um momento de silêncio seguido pelo roce de tecido. Imaginou Alexi


sentado na cama, olhando para protuberância imóvel ao lado, provavelmente sua
última conquista. — Qualquer coisa. — Disse em voz baixa. — O que precisa?

Um suspiro de alívio escapou dela. Ela não tinha certeza disso, mas Alexi soou
alerta ao instante e sincero. Graças a deus pelos ex-namorados de confiança. —
Preciso de um lugar seguro para ficar.

—Eliana. — Bufou. — Sempre pode ficar comigo.


—Não estou sozinha. — Disse de forma ambígua. — Há pessoas que tenho
que... esconder. Apenas por uns dias até que possa tomar outras medidas.

Ouviu a confusão em sua voz. —Sua família? O que aconteceu? Está tudo bem?

—Não. —Respondeu ela com sinceridade. — Tudo ao contrário de bem. —Ela


engoliu, de repente rouca. — Mel recebeu um tiro. — Sussurrou.

—Um tiro! — Exclamou. No fundo ouviu um murmúrio sonolento, feminino.


Cobriu o telefone com a mão e murmurou algo afiado, logo voltou à linha. —O
que está acontecendo Butterfly? Onde está?

Eliana limpou a garganta. — Preciso que vá ao Tabernáculo, Alexi. Tem pessoas


esperando ali por você, não mais que quinze.

—Quinze pessoas! O que...

—Apenas chegue ali o mais rápido possível e os leve para um lugar seguro e não
deixe que ninguém o veja. Tenho que ajudar Mel, mas irei até você assim que puder
e explicarei tudo. Certo?

Outro silêncio, este pesado, logo o som de Alexi exalando pelo nariz. — Certo.
Mas isto não será como o habitual Eliana, como ir e vir todo o tempo e eu fico
esperando. Vou buscar sua família e podem ficar comigo o tempo que precisar, mas
assim que chegar aqui, terá que me atualizar. Irá me dizer tudo o que está
acontecendo, Eliana. E quero a verdade. Temos um acordo?

—Sim. — Sussurrou sentindo-se miserável, porque realmente não tinha outra


opção. Ela deslizou depois de dizer adeus e se virou para olhar Mel silenciosa no
assento traseiro do carro. Ela se aproximou e segurou sua mão, sentindo o pulso.
Estava ali, mas fraco.

—Quanto tempo? — Perguntou a D sem olhá-lo.

—Está perto. — Respondeu duro. Olhou para cima para encontrá-lo olhando
com fúria o para-brisas. Iam tão rápido que os faróis eram borrões, diretamente
para a casa de segurança onde D tinha uma maleta médica e anestesia.

—Quem é ele?

Eliana deixou escapar um suspiro. Ela sabia que D era facilmente capaz de ouvir
toda a conversa, sentado tão perto com sua estupida audição realçada. Ouviu a
inflexão na voz de Alexi. A emoção... a intimidade.

—É um amigo.

—Que tipo de amigo? — Grunhiu. Os dedos ao redor do volante com tanta


força que ficaram brancos.

—O que tipo de amigo em que posso confiar. — Respondeu ela, porque quem,
porra, era ele para interrogá-la? —Não responde minhas perguntas, mas tenho que
responder as suas? Não senhor: não matei seu pai louco, mas vamos, estava apenas
de pé sobre ele com uma arma?

Ele não voltou a falar, mas sua fúria era palpável. Os minutos finais a seu destino
pareceram intermináveis, mas finalmente a entrada da porta da garagem se abriu e
fechou atrás deles silenciosamente.

D saiu do carro como se estivesse pegando fogo, abriu a porta de trás e com
cuidado pegou Mel nos braços. Ela estava mortalmente pálida e flácida, o sangue
molhava sua camisa e salpicava seu pescoço e os braços. Sem olhar em sua direção,
disse. — Água quente. Toalhas limpas encontrará no banheiro no segundo andar.
Irei para o terceiro quarto no térreo. Logo, saia do meu caminho.

Desapareceu pela porta da garagem da casa, deixando Eliana de pé ali sozinha


ao lado do carro, trêmula, segurando as lágrimas e engoliu o soluço que estava preso
em sua garganta.
CAPÍTULO
TRINTA

Aldo sabia onde Caesar estava, mesmo que os outros não tivessem ideia. Seu
dono e senhor estava no mesmo lugar de sempre quando desaparecia, com uma
puta degenerada.

Desta vez eram duas.

Apesar de ser bem depois do amanhecer, quando a maioria das pessoas se


preparavam para o trabalho ou estavam fazendo o café da manhã para suas famílias
ou um milhão de coisas que alguém faz de manhã, a puta do Caesar não aderia a
nenhum destes programas em particular. Tampouco o fazia sua maneira de beber
ou sua predileção pela crueldade. Uma das mulheres estava na cama, sangrando
profusamente pelo nariz, a outra encolhida no canto do quarto chorando e o
próprio Caesar estava na porta aberta, nu, cheirando a álcool.

—Atreve-se a me incomodar? — Disse imperiosamente, olhando irritado e com


os lábios apertados, os olhos negros todo em Aldo, que bateu na porta do quarto
nove, onde o empregado do lugar horrível disse que estava quando Aldo grunhiu
ameaças para ele. Foi nos outros lugares favoritos de Caesar primeiro, um hotel
horripilante a poucos quilômetros a oeste, mas estava fechado devido a um
assassinato umas quantas noites antes e que a polícia continuava investigando.

Caesar estava ali de pé em sua imponente altura. — Que merda quer?


A fala não estava muito arrastada. Não exatamente. Aldo desejava que se
cobrisse, era desconcertante ficar ali de pé perto de um homem nu. Especialmente
um Rei bêbado. Podia estender a mão e tocar seu ombro se quisesse.

—Sua irmã, meu senhor. Ela disse para a colônia que Silas é um traidor e
mentiroso. Reuniu todos e disse para se prepararem para ir. Não sei para onde.
Pensei que gostaria de saber.

Aldo nunca viu ninguém ficar sóbrio tão rapidamente. Os olhos de Caesar
ficaram limpos de repente uns segundos antes, agudos e adquiriu um tom sinistro,
predador. Ficou rígido, bufando.

—Onde está Silas?

—Não sei, meu senhor. Não o vi, mas sua irmã... parece que sua irmã, cortou
uma de suas mãos.

Caesar retrocedeu com uma exalação que o deixou sem fôlego. Recuperou-se e
murmurou. — Aquela cadela. — Então disse. — Espere por mim. — E fechou a
porta na cara de Aldo.

Não foi dois minutos depois que ele voltou a aparecer, vestido e irradiando ira,
os olhos mortais e planos como Aldo viu inúmeras vezes, justo antes de que
acontecesse algo horrível.

Caesar disse. —Vamos.

***
Encontraram Silas em um dos velhos prédios periféricos da abadia, uma
estrutura de pedra coberta de musgo em ruinas que uma vez foi usado como
enfermaria. Sentado em uma caixa de leite, virada para cima ao lado de uma pequena
fogueira que construiu no meio do chão nu, estava sem camisa, suado profusamente
e pálido como um lençol. No braço faltava uma mão, que estava amarrado
firmemente com uma tira da camisa rasgada a seus pés, justo acima do cotovelo
como um torniquete. Como, porra, conseguiu amarrar um torniquete com uma mão
era um mistério que Caesar não tinha intenção de descobrir.

Sob o torniquete a carne estava cinza, sem vida. Havia um rastro de sangue da
porta até onde estava sentado e um padrão salpicado de gotas vermelhas em
ziguezague ao outro lado do lugar, um mapa visual de onde esteve desde que
chegou. A fumaça da pequena fogueira subia até o teto abobado de madeira e
entrada em ocos podres das tabuas como longos dentes brancos.

Na mão ilesa, Silas segurava uma faca.

—Meu senhor. — Saudou-o, mais forte do que Caesar pensou que faria para
alguém que estava sem uma parte tão importante. Caesar não podia olhar no rosto
de Silas, devido a que o braço ensanguentado o hipnotizava, era quase sensual. Não
podia esperar para conseguir uma vista melhor do mesmo. Ele e Aldo se
aproximaram.

—Sua irmã. — Silas começou, mas Caesar o interrompeu.

—Sim, eu sei. — Finalmente olhou nos olhos de Silas. — Sempre foi irracional.

Silas exalou, estranhamente aliviado. — Ela se encontrou com Demetrius.


—Demetrius!

—Dormiu com ele, meu senhor. Ouvi ela contando para Melliane.

—Dormiu com ele! — Gritou Caesar, os olhos bem abertos. Fixo em um ponto
morto.

—De alguma forma está convencida de que estive mentindo a ela, todos nós.

—Dormiu com ele!

Caesar se sentia como se uma bomba detonasse em seu corpo. Não podia ver.
Não podia falar. Não podia se mover. Estava congelado de horror e uma fúria tão
gigantesca que se sentia nuclear. Dormiu com o monstro que assassinou seu pai.
Dormiu com ele. Dormiu com ele. Manteve-se golpeando contra o interior de seu
crânio como um pássaro preso.

—Mate-a. — Disse sufocado. Silas e Aldo ficaram olhando para ele. O fogo
crepitava alegremente, levantando cinza brilhante e espirais de fumaça. —Temos
que matá-la! Ela é uma traidora! Ela é... ela é uma puta!

Pouco a pouco, Silas sorriu. Era mais uma careta pela forma como seus lábios
bem abertos ficavam sobre os dentes, mas o sangue pulsava com força nas veias de
Caesar e não pode ver muito mais do lugar porque sua cabeça começou a girar.

Dormiu com ele. Dormiu com ele.

Imaginou os dois juntos, detalhes coloridos, seus corpos nus pressionados


juntos, as mãos grandes do guerreiro por toda sua pele nua, os gemidos sem sentido
e o ranger do colchão sob eles...
Aldo o segurou enquanto cambaleava para os lados. Caesar o empurrou e
começou a andar de um lado a outro, as mãos passando pelo cabelo para controlar
sua repentina tontura, o ácido queimando nos pulmões. O ódio brilhava através
dele, consumindo-o e Caesar nunca quis matar alguém tanto em sua vida.

Deu a volta e viu a faca na mão de Silas. — O que faz com esta faca, Silas? —
Disse entre dentes, dando um passo à frente.

O rosto de Silas endureceu. O suor pingava pelo queixo. — Tenho que parar a
hemorragia, meu senhor.

Caesar olhou a faca, o fogo e compreendeu em um instante como um raio.


Puxou a faca da mão de Silas, colocou-a sobre o fogo até que a ponta brilhou
vermelho vivo e seus dedos queimaram, logo gritou para Aldo. — Segure-o. —
Voltou a olhar para Silas e seu sorriso era como um de animal, raivoso e selvagem.
— Isto irá doer.

***

Um homem que passeava com seu cão por uma rua residencial tranquila a seis
quarteirões ouviu os gritos. Parou e fez o sinal da cruz, olhando para cima. Uma
mãe que buscava seus dois filhos na escola também ouviu e o mesmo o fez o
vendedor de frutas e sua esposa na esquina da Rua Marquet. Muitos mais ouviram
o longo grito, misterioso que parecia descer do próprio céu, fazendo eco nas
paredes e nas árvores, nos prédios antes de ser cortado bruscamente, deixando
todos se perguntando o que causou terrível ruído.
Ou quem.
CAPÍTULO
TRINTA E UM

Eliana não tinha ideia de como passou o tempo. Podia ser minutos, podia ser
horas. Poderia inclusive ter sido séculos pelo o que seu coração morto poderia
contar.

Ela se deixou cair contra a parede ao longo do corredor no andar dos quartos,
os braços descansando sobre os joelhos dobrados, olhando para as fibras do tapete
negro, sem ver nada. Demetrius estava dentro do quarto com Mel desde que
chegaram. Ela levou água quente em panelas e as toalhas que pode encontrar e logo
o deixou sozinho como pediu. Sua última visão de Mel foi seu corpo pálido na
cama, Demetrius sobre ela com um bisturi na mão.

Ela morreria. Eliana tinha certeza disso. Perdeu muito sangue. Ela morreria.

Sua culpa. Sua culpa. Tanto sangue, caos e a interminável agonia, quase
insuportável de viver com meias verdades e mentiras retorcidas que passavam por
sua triste realidade. E qual era o ponto de tudo isto? Mais anos fugindo,
escondendo-se das pessoas que pensavam ser seus amigos e familiares. Mais dias de
prisões e noites sem fim, com a esperança de um futuro que provavelmente não
chegaria nunca, mais traição, mais assassinatos, um futuro de vida ao ar livre com
outra espécie que parecia preferir que estivessem mortos ou pior, enjaulados?
A resposta era: não tinha sentido. Tudo foi um sonho, um castelo construído na
areia. Os sonhos destruídos, sentia-se eviscerada. Sentia-se vazia.

A porta se abriu. A cabeça de Eliana se girou bruscamente. Cambaleou sobre


seus pés. — Então?

Demetrius parecia ter descido ao inferno para lutar com demônios e perdido.
Seu rosto estava tenso, os ombros curvados para frente em atitude de derrota e
havia manchas escuras sob seus olhos e para seu grande terror, refletia a derrota em
sua postura. A absoluta falta de esperança.

—Deve se sentar com ela. — Foi a resposta seca e logo passou junto a ela e foi
lentamente para a escada em curva até o andar superior.

Não. Seu coração começou a bater como um tambor no peito. Não, não, não, não.

Ela entrou no quarto e teve que morder o lábio para não chorar.

Havia uma pilha de toalhas com sangue no canto, horrivelmente vividos, panelas
cheias de água fria agora que estavam todas vermelhas ao longo da parede. Uma
bandeja de instrumentos ensanguentados estava no armário perto da porta e a
camisa arruinada de Mel pendurada no encosto de uma cadeira, ali como um
lembrete obvio. E Mel estava na cama, imóvel, silenciosa como um cadáver.

D a limpou e lavou o sangue de seu rosto e braços, cobriu-a até o pescoço com
um lençol e cruzou suas mãos sobre o peito. Estava tranquila, pálida,
fantasmagórica e se já não estivesse morta, parecia como se logo estaria.

No lençol branco, justo no centro de seu peito, havia uma pequena mancha
vermelha.
Sentou-se junto a cama e segurou a mão gelada de Mel na sua. — Sinto muito.
— Sussurrou. —Sinto muito.

Mel não respondeu. Ela não se moveu. A trança escura se desfez e estava ali
desalinhada no travesseiro e sobre o edredom suaves como as penas de um cisne
negro. Com mãos trêmulas, Eliana soltou a trança e passou os dedos pelas mechas,
penteando-os suavemente sobre o travesseiro até que seu cabelo ficou aberto ao
redor de sua cabeça. Ela mal se segurava e apenas porque Mel se horrorizaria se
pudesse ver seu rosto, todo vermelho pelo esforço de não chorar. Ela sabia que iria
chamar a atenção dela e dizer para que crescesse um par de bolas e então iria rir
daquela forma maravilhosa, como uma bruxa dizendo que ela era uma maricas
depois de tudo.

Eliana pensou que talvez devesse rezar, mas tudo o que saia de sua boca era. —
Por favor. Por favor, Mel. Não morra. Por favor, não morra.

Mas os pálidos lábios de Mel não se moveram e suas pálpebras azuladas


permaneceram fechadas e finalmente Eliana se rompeu em lágrimas. Seu corpo foi
sacudido por soluços e ela se entregou a eles, de joelhos junto a cama com o rosto
apertado contra o colchão, a mão de Mel no seu rosto, os dedos frios molhados por
suas lágrimas.

O tempo passou. Suas lágrimas diminuíram e pararam. Suas pernas ficaram


insensíveis. Ela deslizou de joelhos e se apoiou na cama, ainda segurando a mão de
Mel, não disposta a deixá-la ir. Suas pálpebras ficaram pesadas e ela se deixou ir,
finalmente dormiu ali mesmo, sem soltar a mão de Mel.
***

E foi assim exatamente que D a encontrou quando voltou horas depois.

Ficou de pé na porta em um longo momento de silêncio, olhando com o coração


apertado. Ele pensou que poderia ser apenas minutos e de fato se surpreendeu por
Mel já não ter passado para os braços de Anúbis, deus da vida futura. Viu homens
muito mais fortes perder sangue e morrer por feridas menores.

Ela era uma guerreira, mas não era imortal. Havia apenas alguns poucos
traumatismos que seu corpo poderia tomar. Fez o que podia, parou o sangramento,
reparou a artéria e limpou a ferida, mas a perdeu e não tinha ferramentas para fazer
uma transfusão. Assim sua esperança sumiu rapidamente.

Seu olhar caiu em Eliana. Em seu sono parecia mais jovem e vulnerável como
nunca o fazia quando estava acordada. Seu rosto perdeu todas as arestas duras e sua
generosa boca estava suave. Ela parecia quase tranquila como Mel, com exceção da
pequena linha entre as sobrancelhas. Caída no chão contra a cama, com a cabeça
inclinada e os joelhos até o peito, ela também parecia agoniada e incomoda, não
podia vê-la assim. D respirou e se moveu para frente.

Levantou-a tão suavemente como pode sem acordá-la e soltou sua mão de Mel.
Ela fez um ruído leve em protesto, mas não abriu os olhos e quando ele a levantou,
apoiou a cabeça em seu peito e suspirou como uma criança. Quando ela passou os
braços por seu pescoço, precisou engolir a opressão na garganta.

Levou-a para o quarto que pensava como deles, ainda que sem dúvida não era,
como ela deixou perfeitamente claro. Colocou-a suavemente na cama e tirou suas
botas, soltou o cinto com a espada, colocando-a na mesinha ao lado, para que
pudesse ver assim que abrisse os olhos e saber que não tentou desarmá-la. Inclinou-
se para puxar o lençol sobre ela e quando se endireitou ela estava acordada,
observando-o.

—Obrigada. — Sussurrou, com os olhos brilhantes. — Sei que fez tudo o que
pode. Então, obrigada.

Ele assentiu. Seu coração deu uma estranha e dolorosa volta em seu peito.
Virou-se para ir, mas ela se incorporou e segurou sua mão, ele devolveu o olhar,
parando. —Por favor. Eu...

Parecia incapaz de continuar. Sua garganta se moveu e seu rosto tinha a


expressão de alguém que se perdeu por completo ou se rendeu. Seus olhos estavam
molhados, suplicando. Com voz ofegante, disse. — Demetrius.

Ela disse seu nome como se significasse outra coisa, como se significasse algo
para ela e teve que reunir cada força de vontade para não cair a seus pés, teve que
se esforçar fisicamente para ficar ali com seu rosto sem emoção porque era assim
que ela queria entre eles, isto foi o que provou deixando-o no meio da noite,
colocando a mão em sua espada na abadia e com a ligação para Alexi, quem quer
que o bastardo fosse. E sabia, sabia em algum nível, quem exatamente era Alexi,
mas não queria saber realmente. Queria tirá-lo de sua mente.

Mas não podia fazê-lo. Ele não o faria. Mentir para si mesmo nunca foi seu
forte.
—Deve descansar um pouco. — Disse em voz baixa. — Vou sair. Eu a
acordarei no caso... acordarei você daqui a pouco e podemos nos sentar junto a ela.
Não há nada mais que possamos fazer esta noite.

Seu olhar era pura tortura. Não podia se lembrar de ter visto tanta angústia no
rosto de uma pessoa e de fato, ser um rosto tão amado, deixava seu lindo rosto
ainda mais terrível. Olhou para o outro lado, soltou sua mão, mas ela apertou os
dedos ao redor de sua mão e a usou para puxá-lo e que ficasse de frente a ele, apenas
alguns centímetros, olhando seu rosto. Estava tremendo, tremendo e respirando
como se tivesse corrido desde o outro lado da cidade e olhando para ele como se
estivesse tentando encontrar algum tipo de resposta a uma pergunta que ela não
fez.

O que viu quando ele se virou para olhá-la era alguém cuja alma estava em
cinzas.

—Não sei como te amar. — Sussurrou. —Nem sequer sei se posso. Passei anos
amaldiçoando seu nome, desejando sua morte e anos antes quando estava atrás de
você, quando quase não te conhecia e quando comecei a te conhecer mais, nós
terminamos e eu estava aqui e você lá e tudo era tão ruim e pensei que poderia algo
dar certo, mas agora não sei o que pensar, não sei o que fazer, não sei nada...

Ela soltou tudo de uma vez sem respirar, trêmula e gaguejando, caminhando até
ele até que se esgotou no silêncio final e ficou olhando-o, com os olhos enormes,
escuros e encantada. D ficou em estado de choque, seu coração batendo forte como
se quisesse sair de seu peito, sufocando com o calor e a paixão que se levantava
sobre ele como magia conjurada de um feitiço e sentiu-se banhado pelo anseio de
seus braços na luz do sol dourado, uma forte e doce emoção correndo através dele
como se fosse um cabo de alta tensão, conduzindo eletricidade através de suas veias.

Então pensou em Alexi, seu rosto quando ela ligou, seu alívio palpável e a
emoção doce, ficou azeda. Ela poderia não saber como o amava, mas certamente
parecia saber como amar alguém mais.

Com amargura, odiando a si mesmo devido aos ciúmes que uma vez pensou
estar por baixo dele, disse. — Deve ser mais fácil, considerando o tipo de coração
que lhe permite escolher o que quer. Infelizmente não tenho este problema.

E ele se virou e saiu do quarto sem olhar para trás, cada passo uma dor, cada
batida do coração um som metálico agudo, um trovão em seus ouvidos.

***

Este dia era como um sonho, diferente e enevoado. Eliana dormiu, mas quando
acordou a noite, ainda estava esgotada, cambaleando quando ficou de pé. Seu corpo
se sentia ferido e quebrado, seu coração se sentia um pouco frio, com um nó dentro
do peito.

Ela foi até Mel em primeiro lugar, mas não havia mudanças desde a última vez
que viu sua pele pálida e uma fraca batida de coração, a respiração quase
imperceptível. Era um milagre ainda estar assim, mas a vida se agarrava a ela como
um amante se agarra a sua amada, voltando uma e outra vez para um último beijo,
antes de ir embora para sempre.
Ligou para Alexi, seu povo estava a salvo. Betina e Fabi levaram dezessete
pessoas ao Tabernáculo, o restante ficou ao lado de Silas.

Dezessete de vinte e quatro. Melhor do que se atreveu a pensar. O bom era que
a casa de Alexi era grande.

Ela lhe disse que o veria logo e desligou, sentou-se olhando para a parede, sem
saber o que fazer agora. Comer, imaginava, ainda que não sentisse fome. Comer
parecia um luxo sem necessidade e de alguma forma egoísta. Como iria comer
agora? Como iria comer?

Logo, sentiu vergonha por sentir pena de si mesma. Tinha pessoas que
confiavam nela. Tinha que ser forte para eles. Ela seria.

Arrastou-se para fora do quarto e pelo corredor. Na parte de cima da escada


encontrou uma sala, obviamente decorada por um homem. O tamanho da televisão
por si só era prova o suficiente, mas tudo o mais era completamente masculino,
também. Moveis de couro angular, uma mesa de vidro e metal de café, não havia
plantas ou vasos que uma mulher poderia ter usado para suavizar com toda crueza
do cinza e negro das cadeiras, sofás e paredes. No outro extremo do grande quarto
havia uma porta aberta que dava para a cozinha, com uma sala de jantar além.

E em uma cadeira na sala de jantar estava sentado Demetrius, perfeitamente


imóvel, olhando para baixo, no celular que estava sobre a mesa de frente a ele entre
suas mãos abertas.

Ela engoliu, estabilizando-se e se endireitou. Deu um passo adiante na sala e


neste momento, o celular diante dele tocou.
Mas percebeu seu movimento. Um olhar fugaz cruzou seu rosto, dor e algo mais
sombrio, não podia dizer o que porque sumiu rapidamente quando se levantou
bruscamente, ignorando o telefone tocando com insistência e concentrou toda sua
atenção nela.

Um flash de dejá vu a sacudiu. Ela o viu em um milhão de lembranças fugazes,


fazendo esta mesma coisa. Não importava o que fazia, não importava com quem,
sempre olhava quando ela entrava em um lugar. Sempre. O conhecimento tocou
seu peito.

O telefone continuou tocando. Nenhum dos dois fez um movimento.

Quem ligava era persistente, seus nervos estavam quase em ruptura quando o
timbre finalmente parou. O repentino silêncio era ensurdecedor.

—Parece cansada. — Disse finalmente. Seu olhar se moveu sobre seu rosto e
cabelo, que não se incomodou em pentear e estava como louco em sua cabeça.

Ela não tinha energia para ficar na defensiva. — Eu dormi.

Seu olhar se estreitou. — Quando foi a última vez que comeu?

Ela pensou e logo encolheu os ombros. — Não sei.

Apontou uma cadeira na sua frente. — Sente-se.

—Demetrius...

—Eliana. —Disse em um tom que indicava que não tolerava qualquer recusa.
— Sente-se.

Ela se sentou.
—Bom. Fique aí.

Seus lábios se apertaram. Ficar ali? Como um cão? Mas manteve a boca fechada.

Armários foram abertos e fechados, a geladeira se abriu e fechou, o micro-ondas


apitou, um líquido caiu em um copo. Não viu nada disso porque não se virou para
olhar, como ele ordenou.

Quando colocou suavemente um prato diante dela e olhou para baixo, toda sua
irritação desapareceu e se sentiu... se sentiu grata. E maravilhada. Frango assado,
batatas com alho, manteiga e ervilhas verdes estavam esperando, alguns pedaços de
carne e pão.

—O que é isto?

Ela levantou o olhar para ele, mas ele deu a volta para que não pudesse ver seu
rosto. — Não tem comida aqui. Tive que sair e comprar algo.

Olhou novamente para o prato, perplexa. —Você cozinhou?

Sua risada baixa a fez olhar para ele novamente. Estava apoiado no balcão da
cozinha, com os braços cruzados sobre o peito, um dos cantos da boca curvado
para cima em diversão. —Soa surpresa.

—Estou surpresa. Desde quando cozinha?

Seu rosto escureceu. Ele afastou o olhar. —Precisava de um hobby. Para evitar
que... para passar o tempo.

Não disse muito mais que isso, ela sentia tudo que havia debaixo das simples
palavras. Mas ele voltou a olhá-la e seu rosto estava mais claro.
—Deve provar minha torta de batata doce. É de matar.

Sua boca se abriu. Fechou. Abriu novamente e ela disse, com emoção. —Uau.

Ele lhe deu um sorriso verdadeiro, um que iluminou seu rosto, seus olhos e fez
aparecer uma covinha em sua bochecha. Ela teve que olhar para o outro lado,
porque nunca viu nada tão bonito. Tatuagens, piercings, montanhas de músculos e
o cenho franzido capaz de congelar lava e ainda era sempre a coisa mais bela, mais
masculina, forte e real que já viu.

Olhou o prato e se horrorizou ao encontrar a umidade nadando em seus olhos.


Colocou os talheres para baixo e uma taça de vinho branco logo apareceu ao lado.
Sabia sem olhar que os olhos dele estavam nela, cheios de intenção.

—Coma. — Disse em voz baixa.

Era uma sensação horrível tentar não chorar, fingir que estava tudo bem e
conseguir que seu corpo e rosto cooperasse. Ela precisava de ambos. Suas mãos
estavam firmes quando ela segurou a taça e seu rosto estava composto, mas ainda
havia água em seus olhos e uma lágrima caiu por sua bochecha. Tomou o vinho e
desceu a taça, fingindo que esta lágrima bastarda não escapou, mas claro que ele
viu. Claro que sim. Ele estava justo ali.

A voz estava suave, quando D disse. — É apenas comida.

—Não, não é. — Sussurrou. Não se atrevia a olhá-lo. — Você cozinhou para


mim. — Disse novamente, enfatizando cada palavra. —Você. Cozinhou. Para mim.
—Bem. — Murmurou, o sorriso em sua voz. — Se soubesse que esta seria sua
reação, teria feito anos atrás. — Esticou-se e passou o polegar pela bochecha,
secando as lágrimas que tentava conter.

Ela o olhou então e deixou que tudo saísse. Tudo se mostrava em seu rosto,
tudo o que sentia por ele, toda a angústia e confusão, a dor e o desejo e ela soube
que via cada matiz, cada chispa e esperança, a profundidade de seu desespero,
porque seu fôlego e sorriso sumiu, quando voltou a olhar havia uma feroz
intensidade repentina ardente em seus olhos.

—Eu... eu... — Ela não podia dizer, mas não importava.

—Eu sei. — Sussurrou com veemência. — Eu sei.

—Sinto muito. — Sua voz quase não era audível e seu rosto estava tão perto,
que ela pensou que iria beijá-la. E ela o queria, poderia morrer pelo tanto que queria,
mas ele exalou de forma pesada e triste e ela soube que não o faria.

Retirou-se. Foi até a porta e parou, logo disse em voz baixa. — Coma.

Ele a observou até que começou a comer. Logo, satisfeito, deu a volta e se
afastou e foi tudo o que pode fazer para não jogar o prato contra a parede de
frustração.

Mas não o fez, porque como sabia, ela estava faminta.

E bem, o homem sabia cozinhar.


CAPÍTULO
TRINTA E DOIS

Havia uma grande quantidade de malas, volumosas.

Havia tanto dinheiro nas malas e apenas algumas podiam caber na traseira do
carro. Justo agora, Caesar desejou ter alugado um carro maior.

Ou ter aberto uma conta bancária.

Era óbvio que não poderiam tê-lo feito, no entanto, devido a que grandes
depósitos em efetivo tendiam a convidar a curiosidade de determinadas pessoas
jurídicas, cujas curiosidades que não podiam se permitir despertar, assim se viu
obrigado a esconder quase tudo nas catacumbas, como ratos em um ninho. Eliana
foi quase eficiente demais em seus esforços de conseguir dinheiro, porque mover
todo este dinheiro em efetivo rapidamente estava resultando ser um problema
imprevisto.

Cadela estúpida.

Suspirou, olhando Aldo e um dos outros que ficou para trás com os homens,
todos eles, devido a que apenas um idiota... ou um macho castrado como no caso
de Fabi, que não contava... seguiria uma mulher, pensou ao colocar a última mala
de couro na traseira do carro. Eles tiveram êxito contra todos os prognósticos e
Aldo saiu pela porta de metal laminado e trancou.
—Bom. —Disse Caesar com um movimento de cabeça. — Agora tudo o que
temos que nos preocupar é passar as armas.

—Estão em contêineres de transporte. —Disse Silas a sua direita.

Surpreso, virou-se e olhou para Silas, que estava de pé rigidamente ao lado da


estrada de grama com o braço em uma tipoia improvisada e a dor gravada em seu
rosto. Caesar estava fracamente surpreso por estar parado em absoluto. Ficou fora
de combate quando cauterizou a amputação com a faca quente e o fedor acre de
carne queimada ainda permanecia em seu nariz, doce e suave. Mas ele acordou em
questão de minutos, tomando metade de uma garrafa de uísque e isso foi tudo.
Nenhum murmúrio de dor, nenhuma queixa, apenas o suor em sua testa e sua
expressão não o delatava e Caesar podia dizer que ele estava fazendo todo o possível
para sufocar sequer isto.

Tinha que concordar, Silas era um bastardo duro. Não era de estranhar que seu
pai confiasse tanto nele. Talvez o subestimou. Caesar apreciaria um pouco mais
aqueles preciosos gritos dele, mas não podia ter tudo.

Além disso, quando ele colocasse as mãos em Eliana, ela o compensaria


enormemente.

—Movi todas as armas para os cais de Le Havre para que não tivessem acesso
a elas sem o meu — seu — conhecimento, meu senhor, e os inspetores foram pagos
generosamente para ignorar a falta de documentação adequada e assegurar o
transporte das mercadorias e sem incidentes. Podemos ter os contêineres prontos
para serem enviados a qualquer lugar dentro de oito horas.
E quando estava planejando falar a ele sobre isso? —Porque Silas? — Caesar arrastou
as palavras, seus olhos se estreitaram. —Que cachorro velho é você. Está
demonstrando ter mais recursos do que pensava.

Silas inclinou a cabeça, a imagem da deferência, mas de repente Caesar não


apenas estava convencido de que o subestimou, mas se perguntou o quanto
exatamente.

—Se quiser pode colocar o dinheiro nos contêineres e assim enviar tudo junto.

Sua voz era suave, totalmente sem engano, mas Caesar percebeu que um homem
que podia permanecer estoico quando uma extremidade era cortada, sem dúvida
poderia esconder uma grande quantidade de coisas e sem muito esforço.

Sorriu alegremente. — Não Silas, obrigado, mas farei os arranjos para que o
dinheiro chegue ao destino final.

Um brilho de irritação cruzou o rosto de Silas e então se foi quando disse. —


Como quiser, meu senhor. Vamos começar a gravação?

—Ah! — Caesar se esqueceu de suas suspeitas. Bateu palma e Aldo saltou da


porta traseira do carro e ficou diante deles. — Está pronto?

—Sim senhor, a câmera e as luzes estão todas configuradas! — Aldo soava quase
tão emocionado como se sentia, este pequeno esforço era, contra todo prognóstico,
divertido.

—Bom então, vamos!

Aldo e os outros cincos dispersos como formigas, foram em direção a cabana


ao final do caminho de entrada. Estava em ruínas o lugar que costumava ser, como
podia adivinhar, uma cabana de caça, com uma parede caída e outra desaparecida.
Cobriram com um lençol uma das paredes e colocaram uma cadeira de madeira na
frente dele.

De frente a cadeira estava uma câmera de vídeo em um tripé, já outro tripé


estava no canto com a luz.

—Meu senhor. — Aldo fez um gesto para a cadeira e se colocou atrás da câmera.
Apertou um interruptor e uma luz vermelha na parte frontal da câmera piscou. —
Estamos gravando.

Caesar se sentou na cadeira, passou uma mão pelo cabelo e sorriu. Sem piscar
para a câmera de vídeo, disse. —Feliz Natal, seres humanos e permita que me
apresente. —Seu sorriso ficou maior. — Sou seu novo deus.

***

A gravação, claro, foi ideia de Silas.

Observou Caesar sorrir e se pavonear, recitar as palavras que ele mesmo


escreveu, apesar da dor pulsando em cada terminação nervosa de seu corpo, sentia
uma profunda, profunda satisfação.

Caesar seria o culpado para os humanos. Seria o nome de Caesar que


amaldiçoariam, seu rosto que lembrariam. Silas teria liberdade para operar atrás das
câmeras como sempre fez, planejamento e intriga sem a notoriedade das cargas
inevitáveis de trabalho.
Não importava o que acontecesse, seus dias de servidão terminaram.

Porque quando Caesar terminasse sua parte no jogo, teria que morrer.

Lembrando-se da expressão no rosto de Caesar quando pressionou a faca


quente contra seu braço ensanguentado, Silas sorriu. Sim, Caesar teria que morrer.
Por suas mãos. Mão, se corrigiu mentalmente. Por sua mão.

E iria gostar muito disso.

***

Trezentos e cinquenta milhas de distância, através do Canal Inglês, a Rainha


Ikati estava mais uma vez sentada em sua cama iluminada pelos raios rosa pálido do
sol na madrugada. Sentou-se olhando ao redor da opulência de seu quarto por um
momento, ouvindo atentamente o silêncio, seu coração acelerado no peito.

Não foi uma ligação telefônica que a acordou desta vez, mas um sonho. Sonhou
com um cometa cortando o céu noturno, deixando para trás um incêndio com sua
cauda longa e laranja. O cometa iluminava a paisagem escura, antiga de uma cidade
montanhosa com quilômetros de ruas serpenteantes e casas de telhados vermelhos
e um rio sinuoso através dela, lentamente se movendo.

Havia cúpula familiar no centro da cidade, uma enorme cúpula branca que
brilhava acima de uma catedral ainda maior, que foi construída acima dos ossos do
santo mais famoso em todo o mundo. Em toda história.
Sob o resplendor do fogo do cometa, a basílica de São Pedro e a Cidade de
Vaticano pareciam banhadas com sangue.

Pareciam banhados com sangue.

Com um olhar para forma adormecida de seu marido a seu lado, Jenna deslizou
sobre o edredom quente de penas de ganso e cruzou o quarto com passos
silenciosos, até ficar na janela de vidro. Jogou de lado seu cabelo pesado e olhou
para o céu, uma sensação de temor roendo-a como um enxame de insetos.

Seu pai lhe disse que os antigos acreditavam que os cometas eram um sinal de
coisas ruins, um presságio de coisas terríveis por vir. A fome, terremotos e
inundações, destruição e morte.

Praga. Peste.

Guerra.

A última vez que viu seu pai, quando tinha dez anos, um cometa abriu caminho
de forma brilhante no céu noturno. Um cometa com uma cauda laranja ardente,
como o de seu sonho.

Estremeceu, de repente com frio até os ossos, como se um vento fantasma


estivesse passando por ela.

—O que foi?

A voz era suave e masculina, com uma rouquidão que chegou a conhecer tão
bem. Jenna afastou-se da janela para ver Leander sentado na enorme cama com
dossel, olhando-a através da penumbra prateada. Estava alerta e no limite, sentia a
tensão dele em todo o quarto. Combinando com seu coração acelerado. Seu pulso
batendo em uma advertência direto através de suas veias.

—Acorde todos. — Disse baixinho. — Acorde todos. Algo vai acontecer. Algo
muito ruim.

***

—Não atende ao maldito telefone. — A voz de Celian estava forte, mais escura
e mais tensa do que Lix e Constantine já ouviram e isto queria dizer algo.

—Não pode deixar uma mensagem? — Perguntou Lix.

—O idiota não configurou a caixa postal.

Lix bufou, sua resposta habitual para algo que achava ridículo. — Típico de D.
Para isso seria necessário falar.

—Não é divertido. —Celian bruscamente disse, jogando para o alto sua


paciência e parando de andar de um lado a outro no tapete vermelho opulento à luz
das velas, no que uma vez foi a biblioteca pessoal do Rei, mas agora estava aberta a
qualquer pessoa da colônia que desejasse entrar. —Não ouvimos notícias deles em
dias e seu tempo se acabou, como o de Eliana e nosso bom amigo Leander tem sua
calcinha torcida sobre toda esta situação, não menos importante, consegui falar com
sua esposa para permitir algo que ele nunca teria permitido, em primeiro lugar, assim
ele não ficará satisfeito e ficarei como alguém em quem não se pode confiar, além
de parecer um idiota total.
Passou uma mão pelo cabelo escuro, amaldiçoando e começou a caminhar
novamente.

Lix e Constantine trocaram um olhar, Celian raramente perdia a cabeça. Ele era
racional, controlado, com uma vontade de ferro e um olhar que podia fazer com
que os homens murchassem como testículos expostos ao frio. Em oposição ao bom
humor alegre de Lix e a sensibilidade que Constantine fazia um grande esforço para
esconder — Celian não tinha pontos fracos ou sentimentalismo. Ele era pragmático
e quase sempre tranquilo como uma pedra fria, o que o converteu em um líder forte
e um guerreiro ainda mais forte e sua agitação era um bom indicio de que esta era
uma situação muito ruim.

—Com a Rainha... eu tinha uma oportunidade, ao menos com ela. Ela é a única
em toda a colônia que parecia ser mais razoável. —Abaixou a voz. — Mas agora
todas as apostas estão apagadas. D se declarou formalmente um desertor e um
traidor, nossa colônia foi declarada persona non grata. A menos que D apareça, claro.
Do contrário, estamos essencialmente em guerra. — Fez uma pausa e seu rosto
ficou sombrio. — O que significa que irão invadir a qualquer momento.

Lix e Constantine ficaram sem fôlego.

—Sim. Bem-vindos a festa.

Constantine ficou de pé e Lix o seguiu, os dois flexionando as mãos e grunhindo


como os animais que eram. Estiveram descansando no sofá de veludo e olhando
como Celian falava por telefone com Leander, antes de tentar, em vão, chegar até
D, mas seu tranquilo repouso foi substituído de forma instantânea com feroz
disposição e a vontade de arrancar a garganta de um inimigo que apostou e dariam
suas próprias vidas com a finalidade de proteger sua colônia.

Celian se virou e olhou para eles. — Tenham os Legiones prontos. Chame os


anciãos e ordenem a se assegurarem que todos saibam o que está em jogo. Levem
as mulheres e as crianças para Domitila até a igreja fundida que é o posto avançado
mais longe e podem escapar por ali se acontecer o pior. E logo unam-se a mim na
sala de armas. Vamos colocar algumas armadilhas para estes ratos.

Sorriu sem alegria, seus lábios se curvando friamente.

—Há mil passagens secretas nestas catacumbas, um milhão de corredores, um


poço negro para se perder. Se eles invadirem, o pavão real britânico e seus amigos
não sairão daqui com vida.
CAPÍTULO
TRINTA E TRÊS

—Não podemos ficar aqui muito tempo.

D se afastou dela com as mãos nos quadris. Sua voz era baixa e solene.

Ela o encontrou assim, olhando pela janela da sala de estar na pálida luz da
madrugada. Comeu e comprovou Mel — que não teve mudanças — logo andou
pela casa de segurança sem rumo, sem perceber até que se encontrou no andar
principal procurando-o.

—Porque não? — Ela pensou no celular tocando antes e seu coração se agitou
em pânico. —Teve alguma notícia?

Um movimento de cabeça, quase imperceptível. Seus ombros estavam rígidos,


se esticavam de uma forma que acentuava sua amplitude e contrastava com sua
tensão interior. Parecia estar observando a rua, em busca de algo. Ou alguém.

—Eles irão revisar todas as partes agora. Este lugar já não é seguro.

Eliana engoliu. — Eles?

Virou-se e a olhou. Seu rosto era uma máscara sombria e seus olhos estavam
escuros e insondáveis. —Mel precisa ser removida. Este Alexi... — Sua voz adquiriu
um tom perigoso quando disse seu nome. — Sua casa é segura?
Com esta pergunta, Eliana entendeu com perfeita clareza a terrível escolha que
teria que fazer, escolher entre seu nêmeses e a comodidade de sua velha amiga.

Precisava de ajuda para mover Mel com segurança. E onde mais poderia levar
Mel, além da cada de Alexi, onde poderia ser cuidada e vigiada? Mas logo, ele saberia
onde Alexi morava e todos os demais membros da colônia estavam ali. Ela tinha
poucas opções, pouco tempo e não havia dinheiro em mão para assegurar outro
alojamento e apenas sua palavra de que nunca a machucaria. Sua palavra e o olhar
em seus olhos quando disse, quase a fez acreditar.

Se ela o levasse até Alexi, não teria como se esconder. Não haveria mais
segredos. Não haveria nada além de esperança e o desespero da fé cega.

Teria que confiar nele ou ficar ali e correr o risco de Mel morrer. De qualquer
forma, logo saberia, suas vidas já estavam nas mãos dele.

E ele não a decepcionou ainda.

Observou seu rosto, com os pensamentos cheios em sua mente, observando-a


em silêncio e imóvel, até que respirou lentamente e escolheu.

Ela assentiu. — Sim. É seguro. Vou dar-lhe o endereço.

Deixe que as fichas caiam onde for, pensou se virando. Sempre posso matá-lo depois.

***

A casa de Alexi não era uma mera casa. Era praticamente sua própria cidade.
Dois metros de altura, quase tão larga como uma cidade, modesta, com uma
fachada de pedra clássica, escondia um opulento interior ricamente de elementos
de seda creme, com o chão de mármore polido e antiguidades, uma coleção de arte
moderna para rivalizar com os melhores museus, estavam pendurados em cores
vivas nas paredes pintadas de branco. Situada na Avenida Presidente Kennedy
diretamente ao lado da Torre Eiffel, também tinha uma vista impressionante do
Sena.

—Deixe-me adivinhar, pais ricos? Fundo fiduciário? —D disse com rispidez a


Eliana enquanto permaneciam sob um lustre elaborado no grande vestíbulo que
lançava prismas coloridos como o arco-íris ao redor do lugar.

Ela balançou a cabeça. —Fez a si mesmo. Surgiu do nada. Ele trabalhou duro e
o talento o trouxe aqui. É um gênio, na verdade. —Seus lábios se levantaram com
um sorriso leve. —Não me surpreenderia se um dia governasse o mundo.

D começou a odiar este rico e gênio Alexi com uma ira quase bíblica. Ele não
aparece ainda, foram admitidos no vestíbulo por um velho mordomo de smoking
que olhou para os dois e franziu os lábios e logo se afastou para informar ao dono
da casa que os demais convidados, chegaram.

—Sabe o que é?

Eliana pensou por um momento, olhando o uma estátua de vidro, em uma mesa
próxima, um casal abraçado e logo murmurou. — Ele sabe o que não sou.

—O que isto significa?

Ela lhe lançou um olhar indecifrável para os lados. — Está me fazendo um favor
incrível Demetrius, por nos deixar aqui. Por favor, não arrume uma briga.
D apertou os dentes e tudo dentro dele se apertou também. Disse entre os
dentes. — Ele deve tomar cuidado para não brigar comigo, Ana. De repente me
sinto como se pudesse arrancar a cabeça de alguém.

—O que não ajudará nada...

—Não, mas me fará sentir um cacete de muito melhor.

—Demetrius, por favor...

—Não se pode esperar que cães e gatos brinquem juntos.

—Alexi não é um cão!

D sorriu e Eliana lhe devolveu o olhar. — Ele não é um cão, certo. Eu o vi nas
catacumbas, Ana. É um cão com pedigree, gosta de enterrar um osso em toda
cidade.

A boca de Eliana se abriu. Seu rosto ficou pálido e logo ficou vermelha. Ela
abriu a boca, para sem dúvida, chamar sua tenção, mas neste momento o pequeno
cão apareceu.

Passou por um conjunto de portas de vidro com uma enorme fonte no lado
oposto do vestíbulo com os braços estendidos, a preocupação nas linhas de sua
testa dourada. Loiro e bronzeado, em forma, ele era um homem bem cuidado e
rico, mesmo com os pés descalços, calça jeans surrada e uma camiseta justa do
Rolling Stones, que tinha dupla função de fazer uma declaração de moda e ressaltar
seu físico endurecido.

Sem olhar na direção de D envolveu Eliana em um abraço possessivo e


apertado.
D odiou o homem com uma ira termonuclear. Ele queria ver a cabeça deste
idiota ser arrancada de seu corpo e empalada em um poste. Um grunhido baixo e
ameaçador, retumbou em seu peito e ele deu passo adiante.

Eliana se separou de Alexi e colocou o corpo entre eles. Alexi olhou para D,
curvando as mãos em punhos.

Sem olhar para trás, Eliana estendeu a mão e colocou sobre seu peito. Teve o
efeito desejado. D parou em seco, distraído pelo contato.

—O que ele quer é agradecer. — Disse Eliana sem problemas. —Pelo que fez.
Estamos em dívida.

Estaria condenado antes de ficar em dívida com este aficionado presumido e


pedante, mas Alexi reagiu como se houvesse sido acariciado na cabeça. Ronronou
seu prazer em um francês florido.

—Bien sûr. Quelque eligió pour toi.

Qualquer coisa por você. Disse o mesmo a ela por telefone e pelo tom de voz e a
expressão em seu rosto, D não tinha dúvida de que era verdade. Eliana percebeu
sua crescente fúria e deu um passo para ele, ainda com a mão em seu peito, o que
Alexi observou com os lábios apertados e um fugaz olhar. Isto significava guerra.
Seu olhar caiu novamente em Eliana e suavizou.

—Sua família está lá em cima descansando comodamente. Preparei um quarto


para você, também. Pode ficar quanto tempo quiser, claro.

—Pode levar Mel para meu quarto. Ela está no carro. Vamos trazê-la.
—Mel! — Exclamou abrindo os olhos. — Espere, você disse que ela levou um
tiro.

Silenciosamente, Eliana assentiu lentamente.

Alexi levantou as mãos no ar. — Porque não está no hospital?

—Não podemos... não podemos ir a um hospital. — Disse sem convicção.

Alexi olhou-a com os olhos estreitos e soltou um ruído de incredulidade e


desaprovação na garganta. Então, aparentemente acostumado a este tipo de coisas
com ela, rodou os olhos e disse. — Vou chamar meu médico particular. Pago o
suficiente para ficar de prontidão. Ele poderá estar aqui em uma hora.

—Um médico? — Eliana murmurou com um tom estranho.

Através do tecido da camisa, D sentiu seus dedos tremerem. Ele se aproximou


e colocou a mão sobre os dela, uma ação que não era mais que comodidade, mas
Alexi tomou nota, franzindo a boca como se houvesse chupado limão.

—Sim, um médico, Butterfly. — Disse com amargura. — Isto é o que as pessoas


normais fazem quando recebem um tiro. Justo antes de ver o advogado.

Eliana disse. —Advogado. Um...

Alexi cruzou os braços sobre o peito e entrou em modo de resolução de


problemas. —Qual sua condição agora? Está estável, consciente? Onde ela se
lesionou?

—Ela recebeu um disparo no peito e ainda não está consciente, mas está estável.
Foi operada...
A sobrancelha loira de Alexi se ergueu. —Não entendo. Disse que não esteve
em um hospital.

—Er, não...

—Cirurgia de campo. — D cortou de forma abrupta. — Fiz o que pude com o


que tinha a mão.

Alexi o olhou com novo interesse, sua expressão roçando a incredulidade, seus
olhos penetrantes. — Bem. Isto fica cada vez melhor. —Seu olhar piscou sobre a
cabeça raspada de D e a sobrancelha perfurada, as tatuagens aparecendo na gola da
camisa preta, sua longa jaqueta preta, as botas e a calça de couro. — Deixe-me
adivinhar — Escola de Medicina de Harvard?

D sorriu. Puxou a Glock da cintura da calça, apontou entre as pernas de Alexi e


com calma disse. — Diga mais uma vez Escola de Harvard ou que for e irei
transformar um galo em galinha com apenas um disparo, filho da puta.

—Demetrius! — Disse Eliana. Ela tirou a mão de seu peito e o olhou, uma
súplica em seus olhos.

Não provocar o garoto humano de brinquedo. Certo.

No que talvez foi a terceira coisa mais difícil que já fez. D se afastou e guardou
a arma na calça.

Alexi, novamente o surpreendendo, não contraiu um músculo. D imaginou que


não fosse a primeira vez que foi ameaçado com danos corporais graves, o homem
realmente tinha uma forma de irritar os outros. Mas Alexi olhou entre D e Eliana
duas vezes antes de falar.
—Traga-a. Vou chamar o médico. E depois disso, você e eu vamos conversar.

Fez a palavra conversar soar como algo que gostaria de fazer na cama.

Para Alexi enviou um olhar que dizia, tenho seu número: toque-a novamente e
eu tocarei você. Para Eliana, D disse. — Vou buscá-la. —Logo se foi deixando os
dois de pé na opulência silenciosa do grande vestíbulo de Alexi e se dirigiu ao SUV
na garagem abaixo.

***

—Então, vai falar comigo ou simplesmente continuar olhando pela janela?

Isto foi dito sem rancor de forma irônica como Alexi costumava fazer para que
sorrisse, mas agora sua cabeça doía. Mais do que antes.

Estavam em um cômodo do lado do que Mel foi instalada, em uma espécie de


sala de estar no andar de cima, todo com móveis brancos e um tapete macio e uma
vista para a cidade através das janelas de vidro ao longo da parede leste. Ela se
assegurou que Mel estivesse bem cuidada, conversou com Betina e Fabi.

O sol estava saindo, pintando a cidade com tons lavanda, azul e ouro e a cada
momento que subia no céu, se sentia como se seu corpo pesasse mais. Não podia
se lembrar da última vez que teve uma boa noite de sono.

—Eu já o agradeci?
Ela se girou para olhá-lo. Estava sentado ao seu lado em uma cadeira idêntica a
sua, uma cadeira de plástico branca que poderia ser um instrumento de tortura pela
comodidade. Não entendia como algo assim com bordas afiadas podia ser tão...
bonita. Mas assim era Alexi. Em qualquer dia da semana. —Se ainda não agradeci.
Vou começar agora.

—De nada. — Ele a observava muito sério, ainda que soubesse que estava
contente de tê-la ali. Feliz, inclusive. Isto irradiava dele em ondas, grossas como
mel. Como se para demonstrar, disse. — É bom ter companhia. Deveria ter
comprado algo menor. Este lugar é realmente muito cavernoso e solitário, mesmo
com Smithers.

Smithers. O mordomo britânico severo que sempre fingia não se lembrar do


nome de Eliana. Ela esteve ali algumas vezes quando ela e Alexi estavam juntos,
mas se manteve à margem, com ar de desaprovação vago, ainda que para dizer a
verdade o homem deveria ter um verdadeiro desafio, ao abrir a porta para cada
mulher que Alexi lhe apresentava. No momento estava na cozinha, preparando um
café da manhã para o grupo de convidados inesperados e famintos.

—Quase me esqueci como imperturbável é. — Refletiu. —Mais de uma dezena


de desconhecidos desalinhados hostis em sua casa, um deles com uma ferida de
bala e atua como se estivesse providenciando um coquetel improvisado.

Agora ele sorriu amplamente. — Imperturbável? Faz soar como um defeito de


personalidade. Tenho certeza, Butterfly. — Ele tocou a testa. —Segredo do meu
sucesso.

—De verdade? Isso funciona?


—Deveria tentar alguma vez. — Sua voz era graciosa, apontou com o olhar e
logo ficou na defensiva.

—Com certeza. — Protestou ela, rindo com ele de forma irônica.

Alexi passou uma mão pelo cabelo, mechas grossas douradas e mel se refletiram
na luz e balançou a cabeça. — É muitas coisas maravilhosas Eliana, mas de verdade,
positiva, sinto dizer, não é uma delas.

Agora estava ainda mais na defensiva. Ofendeu-se por completo. — De que


forma não sou positiva, exatamente?

—Bom, vamos ver. — Olhou o teto e uma sucessão rápida e irritante, enumerou
a lista nos dedos. — Não confia em ninguém, não deixa ninguém entrar, assume o
pior de cada situação, acredita que as pessoas são culpadas até que se prove o
contrário, usa o sarcasmo como uma arma que tecnicamente é necessário, já que
carrega uma espada presa à cintura no caso de ter que cortar alguém e tem
problemas de controle de ira. Ah e gosta de lutar. — Ele lhe devolveu o olhar. —
Esqueci de algo?

—Sim. — Disse ela. — Guardo rancor. Pela eternidade.

Começou a rir, mas se não estivesse tão louco, seria encantador. Ficou de pé
com rigidez e ficou diante da janela. — Não acho nada divertido. — Murmurou
ríspida para a vista impressionante, com os braços cruzados no peito.

Quando a risada morreu, ele ficou atrás dela e logo colocou uma mão em seu
ombro. Apenas porque ele estava ajudando sua família, ela não podia matá-lo.
—Também é leal, forte e valente. —Disse em voz baixa, a risada desaparecida
de sua voz. — Coloca as necessidades de outras pessoas diante da sua própria. É
disciplinada, autossuficiente, mais inteligente do que acredita e é a mulher mais linda
que já conheci.

—Afff. — Ela levantou o queixo e ficou olhando a figura alta da Torre Eiffel e
pensou em Demetrius de pé na plataforma com vista para a cidade, o que parecia
uma vida atrás.

A voz de Alexi ficou ainda mais suave. —Quando não está sendo evasiva, é
honesta, ainda que suspeito que sua evasão tem menos com o desejo de enganar e
mais a ver com proteger. E agora que conheci sua família, que não sabia que existia,
além de Mel, antes de sua ligação, acho que é isto. O que me faz pensar que além
de ser misteriosa e sexy para cacete... é honrada.

Honrada. Se havia uma coisa que realmente desejava ser, era honrada. Ela não
era, mas apenas ouvi-lo dizer fazia toda sua justa indignação sumir como se um
tampão houvesse sido puxado. Estremeceu e a luz do sol refletida em outro prédio
do outro lado do rio, quase cegou-a. —Honra entre ladrões. — Murmurou. —Não
é exatamente o mesmo que honra com H maiúsculo.

—Não diz nada contra a maturidade de espírito que tem alguns vermes.

Virou-se e o olhou com as sobrancelhas levantadas e ele encolheu os ombros.


— Certo, roubei de Nietzsche. Mas é verdade.

—Assim, agora tenho vermes?

Seus olhos castanhos eram quentes e suaves enquanto olhavam para ela. —Tem
feridas, mas isto não a impede de fazer o que acha correto. Estive com muitas
mulheres Eliana, mas você foi a única que sempre admirei. Então não, não é
precisamente a pessoa mais positiva do mundo, mas está a anos luz adiante da
maioria de todos os demais que conheço em termos de caráter. Até mesmo eu.

Ela piscou. Engoliu. Disse. — Tenho certeza que sabe como elogiar uma garota,
Stick.

Uma sobrancelha dourada se ergueu. —De verdade? Sou melhor nisso do que
seu encantador gorila gótico que está esperando em minha garagem para cortar
minha garganta enquanto conversamos?

Seu rosto se ruborizou. Nem sequer tentou negar, ela sabia que D estava na
garagem, onde ela o enviou para se acalmar e esperava distraí-lo ao não olhar para
o rosto de Alexi.

—Por isso não quis me ver mais? Por causa dele?

—Não. — Admitiu com sinceridade. —Não estávamos juntos então.

—Mas estão agora. — Insistiu.

Ela se surpreendeu. —Não.

Era evidente que estava hesitante em sua negativa. — Tem certeza que não quer
pensar antes de responder?

—Nós não estamos juntos. O que te faz pensar isso?

—Porque a misteriosa borboleta de cabelos azuis. — Disse suavemente. — Está


apaixonada. Ambos estão.

Ela empalideceu, ficou rígida e segurou o fôlego. Apaixonada?


Disse com amargura. — Tente não parecer tão esperançosa, está me deixando
com complexo.

Ela disse. —Não estou esperançosa.

—Oh. — Interrompeu ele rotundamente. — Esqueci algo. Tem a tendência a


rejeitar o óbvio, mesmo quando está batendo em sua cabeça a dois por quatro.
Também é uma mentirosa horrível.

—Não estou mentindo!

—Tudo bem, então. Olhe em meus olhos e diga que não está apaixonada por
ele.

Ela se horrorizou. Isto era ridículo. — Alexi!

—Bem, se é verdade, será fácil. Apenas faça. — Ele cruzou os braços sobre o
peito e a olhou, esperando, não irritado, mas não feliz ou melhor apenas... paciente.

—Isto é estúpido.

—Não, é meu preço para deixá-la ficar aqui.

—O que?

Ele levantou os ombros.

—Alexi. — Disse entre dentes. — Não me faça chutar seu traseiro por toda a
casa.

Um canto de sua boca se levantou. — Sim. Isto foi o que pensei.


Ele lhe deu um rápido beijo na testa. Virou-se e foi para a porta. Sobre o ombro,
disse. —Pense nisso, Butterfly, o Godzila bateu em você na frente de centenas de
pessoas e o deixou viver. Se eu tivesse feito isto, estaria deitado na minha tumba
profunda em alguma parte. — Parou justo diante da porta e se virou para olhá-la.
— Certo?

—É um idiota.

Ele riu. —Para que servem os amigos, se não podem dizer em voz alta sua
merda?

—Sorte a minha que não tenho muito amigos. —Murmurou ela e seu rosto
ficou suave.

—Não precisa de muitos. Apenas alguns realmente bons.

Olharam um para o outro durante uns segundos e logo disse. — Você é um


bom amigo, Alexi. Isso aqui. — Apontou para todo o lugar. — Está acima disso e
além. Obrigada pelo que fez.

Sorriu diabolicamente encantador. — Eu disse quando terminou comigo que


viria arrastando até mim.

—Sim, o fez. E então começou a desfilar com um bando de mulheres em Paris,


o que não fez muito para que me arrastasse.

Ele teve a decência de se mostrar irritado. — Bom, estava tentando reparar o


dano aqui, senhora, me aliviar. E para que conste, isto não foi exatamente como
imaginei, mas para o que vale... alegro-me que esteja aqui. Você e toda sua família
louca. Que por certo, falam em latim. O que isto significa?
—Oh. —Disse ela sorrindo sombriamente. — Isto é o de menos, Stick. Faça o
favor e não tente surpreender nenhum deles. Poderia acabar perdendo uma
extremidade ou duas.

Ele negou com a cabeça lentamente, surpreso ou desconcertado, não podia


dizer.

—Vai me contar tudo isto mais tarde. Não pense que esqueci nosso acordo. —
Seu sorriso diabólico reapareceu. — Não pense que apenas porque jogo bem e está
apaixonada pelo gorila de dois metros de altura, tatuado que quer me matar, que
vou deixar de tentar levá-la para minha cama.

Ela apertou os lábios para esconder o sorriso. —Não, não acredito nisso.

Ele assentiu, satisfeito. — Bom. Seu quarto está do outro lado do corredor.
Tome um banho se quiser. Logo pode descer, Smithers faz um crepe delicioso para
as festividades.

—Festa? Que festividade?

—É Natal, Butterfly. — Não tem Natal em seu planeta?

Logo, com uma piscadela travessa, se foi.

***

O chuveiro resultou ser o melhor conselho que recebeu em muito tempo.


Colocou-se sob o jato quente, deixando que a água relaxasse os músculos tensos
dos ombros, deixando que o vapor fizesse seu melhor esforço para tentar acalmar
suas preocupações.

Não funcionou. Nenhuma quantidade de água quente poderia lavar suas


preocupações, nenhum sabonete poderia fazer com que se soltasse.

Onde estava Silas neste momento? Onde estava seu irmão? Como ficariam os
poucos que se negaram a abandonar as catacumbas em sua ausência?

Estava Demetrius, justo neste momento, contando ao Bellatorum onde estavam?

Ela empurrou de lado este pensamento, surpreendendo-se com a veemência que


sua mente gritava um grande: Não! Estúpida. Estúpida. Qualquer coisa era possível,
isto era tudo o que era e tentar negar era uma estupidez... mas Alexi lhe disse algo
que ecoava em sua cabeça, uma e outra vez.

Está apaixonada. Ambos estão.

Devido a ter crescido entendendo o quanto a vida era estranha como


imprevisível e na verdade não surpreendeu quando ouviu a porta do banheiro se
abrir uns minutos mais tarde e se fechar com um grunhido tenso e profundo. —O
pequeno cão disse que precisava me ver, imediatamente. Disse que era importante.

Sua risada de incredulidade foi abafada pela água caindo. Ela apoiou a testa
contra os azulejos, aliviada e aterrorizada na mesma proporção, tanto amaldiçoando
Alexi como com vontade de lhe abraçar e agradecer.

Justo quando pensava tê-lo catalogado como um egoísta e superficial, seguia


adiante e fazia algo como isto. Algo tão grande como isto.
Doce Isis, talvez houvesse esperança depois de tudo.

Pensando nisso, sentindo esta possibilidade, este pequeno fio de esperança fez
seu coração disparar.

—O que aconteceu? Está bem? —Quando ela não respondeu, D deu um passo
mais perto da porta do chuveiro e sua voz ficou mais forte, mais urgente, a
impaciência misturada com aguda preocupação. —Eliana! Responda!

A porta de vidro do chuveiro estava embaçada com o vapor, assim não via seu
rosto. E de repente, muito, precisava ver seu rosto. Afastou-se dos azulejos como
se estivesse sonhando, abriu a porta e ficou nua no jato de água, olhando-o como
se nunca o tivesse visto antes. O que talvez, na realidade, não o fez.

O pequeno cômodo elegante e luxuoso era eclipsado por ele. Seu tamanho, sua
pura masculinidade se rendia a todos os adornos caros: a moldura dourada do
espelho, os acessórios em ouro, o mármore polido e decadente e se perguntou
porque não notou antes, a forma como sua presença fazia tudo empalidecer em
comparação. A forma como fazia todo o restante parecer figurativo e literalmente
menor.

Ele lhe devolveu o olhar, os lábios entreabertos, o rosto cheio de preocupação


enquanto seu olhar se aquecia percorrendo seu corpo úmido, nu. Quando seus
olhos se encontraram com o dela outra vez, estavam em chamas.

—Não, Demetrius. — Disse simplesmente. —Não estou bem. Nunca estive


bem em minha vida.

Deu um passo adiante, com os olhos nela. — Eu o matarei. Matarei este filho
da puta se colocou um dedo em você...
—Fez algo pior. Disse que estamos apaixonados, eu e você.

Congelou. Seu nariz se abriu. Sua mandíbula ficou tensa e suas mãos dos lados,
apertou os punhos. O vapor subia ao redor deles, quente e ondulante, roçava sua
pele nua como um milhão de dedos de fadas, deixando-a arrepiada.

—É assim? — Sua voz estava rouca. —O amor? Porque parece mais como ser
eletrocutado.

Ela assentiu, aceitando. —Ou ser queimado em uma fogueira.

Pouco a pouco, com o coração acelerado e a respiração cada vez mais curta, deu
um passo adiante até a beira do vidro e azulejos. Observou cada movimento com
os olhos ávidos, devorando sua expressão cautelosa, quente e com anseio.

E torturada. Parecia tão torturada como ele, como um prisioneiro de guerra, de


sua guerra — uma sangrenta batalha que o matava por anos. O olhar dele a
perfurou. Quase deu-lhe vontade de chorar.

Ele disse. —Como ser atropelado por um caminhão e arrastado ao longo da


estrada.

Ela estendeu a mão, tocou o lugar onde um nervo pulsava em sua mandíbula e
acariciou suavemente até encontrar os lábios e logo os traçar. —Destroçado.

—Como ingerir ácido. — Sua voz se reduziu a um sussurro instável. Suas mãos
chegaram até a cintura dela, rodeando-a. Seu rosto inclinado e ele parecia um pouco
atordoado, o calor e a emoção que sentia por estar perto dele se refletia em seus
olhos, tirando sua respiração.

—Devorado por um tubarão.


—Enterrado vivo.

—Afogado.

—Afogado, sim, é igual a se afogar. — Sussurrou com veemência, olhando-a


nos olhos, sua voz rouca, o rosto cheio de miséria e desejo. — Exceto que nunca
morre e nunca sobe à superfície e o sofrimento nunca desaparece, simplesmente
continua e continua. Porra, todo o tempo.

Ele a puxou para si e esmagou os lábios dela.

E então não era mais que desejo, selvagem e cru, tanto assim que se afogava.

Era fácil para ele pegá-la nos braços e equilibrar seu peso enquanto envolvia
suas pernas e braços ao redor dele, sem esforço para pegá-la no chuveiro sem
romper o passo ou o beijo, sem esforço para pressioná-la contra o azulejo e fazê-la
gritar quando chupou um mamilo com força. Os dois estavam metade dentro e
metade fora do chuveiro, ele estava encharcado, suas botas, calça e camisa, que ela
puxou sobre as costas cobertas para tocar o calor de sua pele e músculos, os braços
fortes ao redor dela era deliciosamente possessivos.

Beijou-a de forma voraz com uma mão em punho em seu cabelo molhado e a
outra segurou sua cintura. Ela lhe devolveu o beijo, os dentes chocando, os seios
apertados contra o peito dele, os mamilos doloridos deslizando pela pele molhada.
Ofegou seu nome, procurando seu zíper. Quando a ereção dura dele se soltou e se
apertou contra seu ventre quente, estava pronta, chegou entre eles e o segurou,
desfrutando de seu rouco gemido.
—Talvez isto é o que seja o amor, Demetrius. — Sussurrou com voz rouca em
seu ouvido. — Isto é o que é o amor para nós, a tortura, o sofrimento e a dor. E
isto.

Deixou-se cair sobre ele com um movimento rápido, fluido dos quadris.

Ele arqueou as costas e estremeceu, apertando-a, seu corpo tenso contra o dela.
Então ele a segurou contra o azulejo úmido e a penetrou uma e outra vez, sem
descanso, duro e implacável, ela apertou os tornozelos em sua coluna e o montou
ao ouvir o golpe de sua carne e seus eróticos gemidos baixos e o som de seu próprio
sangue rugindo em seus ouvidos.

O prazer se reuniu em um ponto brilhante, elétrico dentro de seu corpo. Ela


gemeu seu nome, bebeu dele, balançando no precipício do alívio...

E então o bastardo que era... ficou quieto.

Seus olhos se abriram. Respirando com dificuldade, ele estava olhando para ela
com um sorriso malicioso no rosto.

—Oh não. Oh não, não. — Disse ela, o conhecimento repentino do frio


amanhecer sobre ela.

Mas sim, ele o fez e seus seguintes movimentos lentos e sedutores o


demonstrou.

—Ainda não.

—Filho da puta! — Disse entre os dentes, com força. —Outra vez isso não!
Ele flexionou os quadris e pressionou profundamente dentro dela, enchendo-a
— sua ira se dissolveu junto com suas extremidades. Ela gemeu e estremeceu e ele
riu contra seu pescoço, triunfante.

—Demetrius. — Gemeu ela. —Por favor.

—Implorar não irá ajudá-la, garota. —Brincou ele com brusquidão, flexionando
outra vez, de alguma forma sabia exatamente quanta pressão colocar e a velocidade
que a levaria ao limite e como a manter ali. —Solte-se e confie em mim.

—Vou matá-lo. — Sua voz estava rouca e mesmo para seus próprios ouvidos,
carecia de convicção. —Juro que vou matá-lo.

Flexionou outra vez, com um leve giro dos quadris como se fosse pouco e desta
vez ficou sem fôlego. Colocou os lábios contra seu ouvido e murmurou. —Solte-
se. Confie em mim. Apenas uma vez. Apenas desta vez.

Oh, isto era uma sedução, uma armadilha. Ela já confiou nele uma vez, mais de
uma vez, mas não podia pensar com ele enterrado dentro dela, mal podia respirar e
por alguma razão ridícula tudo o que queria fazer era lhe dar o que queria. O que
quisesse.

Virou a cabeça, olhou para ele e sussurrou. —Certo.

Ele não esperava isto, ela podia dizer pela forma como congelou e a olhou,
surpreso. Mordeu o lábio e assentiu com a cabeça, apenas para assegurar que ele
soubesse que estava bem e relaxada em seus braços. —Sim.

—Ana. —Disse com assombro. — Nunca deixa de me surpreender.

Ela sorriu sentindo-se quase tímida. — Não estrague tudo.


—Oh? — Suas sobrancelhas se ergueram. Inclinou-se e roçou seus lábios sobre
a bochecha, sua barba de um dia áspera. —Interessante escolha de palavras,
considerando...

Afundou-se lentamente nela outra vez e ela apertou os braços ao redor de seu
pescoço.

Ela sussurrou seu nome enquanto os olhos se fechavam e sua cabeça caía para
trás contra os azulejos, sussurrou novamente, rouca, quando ele segurou seu seio e
inclinou a cabeça para chupar. Ele passou a língua e os lábios sobre o mamilo,
enviando ondas de prazer e dor por sua medula, fazendo com que quisesse se
contorcer sobre ele, mas se manteve imóvel, o que lhe permitiu abraçá-la, acariciar
e controlar seu corpo, o que lhe permitiu levá-la ao limite outra vez, com seus lábios
e seu bonito corpo duro preenchendo-a.

Começou a empurrar novamente, pouco a pouco, puxou o rosto dela com os


dedos em sua mandíbula. Ela sabia que ele queria que ficasse de olhos abertos, então
os manteve assim e o olhou, notando cada detalhe de seu rosto, a forte mandíbula,
os lábios grossos, a espessura das sobrancelhas escuras sobre os olhos. Sua
respiração era irregular. As mãos se afundaram em sua cintura.

Ela começou a se perder na sensação. Estava em todas as partes, enchendo-a de


todas as maneiras, o cheiro em seu nariz e a língua em sua boca, sua necessidade
como outra pele sobre seu corpo. Estava ardendo, estava voando e com cada
empurrão caía mais e mais, feliz. Feliz de finalmente se soltar, mesmo que fosse
apenas por um tempo.
—Isso. — Murmurou, olhando-a com os olhos estreitos quando ela gemeu e
estremeceu contra ele. — Esta é minha garota.

Estava tão perto agora, cada terminação nervosa estava disparando e todo seu
corpo tremia. Sentia-se como se fosse romper e morrer de prazer ou ser devorada
pelo que havia entre eles, como se fosse um monstro no quarto, uma entidade
primitiva, animalesca de faminta.

Ela segurou seu rosto entre as mãos e ele a olhou nos olhos, deixando-o ver
tudo. Pedindo permissão.

Seus braços apertaram mais. Os olhos estavam selvagens. —Como se afogar. —


Se queixou.

—Como a morte. — Ela concordou em um áspero sussurro enquanto subia em


uma onda e sentia que algo enorme e escuro corria até ela, como a morte inevitável.

D começou a pressionar com força, deixando-se levar. — Sim Ana. — Ofegou.


— Goze para mim bebê. Agora.

O amor era como se afogar, o amor queimava, era como morrer de um milhão de formas
diferente...

Ela explodiu, como uma supernova, o mundo ficou branco e preto. Seu corpo
se inclinou e soluçou seu nome, apertando-o, atormentada por tremores, o prazer
tão intenso que quase doía.

Machucava. Queimava.

Talvez isto é o que seja o amor para nós... a dor interminável, insuportável.
Ela enterrou o rosto em seu pescoço para esconder os olhos úmidos.

—Tu mea es! — D disse de repente, com força. Ele puxou sua cabeça para trás
com uma mão em seu cabelo e a olhou nos olhos, seu olhar animal, agonizado e
intenso. — Tu mea es.

Você é minha.

Mostrou os dentes e gozou dentro dela, tremendo, com os olhos bloqueados


nos dela. Ela gritou quando o sentiu se derramar dentro dela e viu o rosto dele
através das lágrimas.

—Tu mea es.

Sussurrou uma e outra vez enquanto a segurava contra a parede de azulejos do


chuveiro, sussurrou contra seus lábios, seu pescoço, seus seios e as palavras subiram
ao redor deles como o vapor, vertiginosas, desorientas, fazendo eco, perfurando os
cantos escondidos de sua alma.

Você.

É.

Minha.
CAPÍTULO
TRINTA E QUATRO

A escada de mármore larga que levava ao Palácio Apostólico do Vaticano foi


desenhada por Bernini e a entrada estava ladeada por um grupo de guardas suíços
armados. Silas, Caesar e Aldo foram levados adiante pelos guardas de sua escolta
até um homem pequeno com um chapéu de feltro negro e capa, que subia a escada
em silêncio.

Eram quase nove e meia da manhã de Natal. Precisamente em trinta minutos, o


Papa faria a missa da manhã de Natal para o mundo do balcão de seu escritório
particular nos apartamentos papais, com vista para a praça de São Pedro.

E então o curso da história seria mudado para sempre.

A viagem de carro para Paris levou toda a noite, mas Silas não estava cansando.
Pelo contrário. Cheio de antecipação, era quase insuportável, era até mesmo difícil
manter um rosto sério. Anos, anos e anos de escravidão, de se inclinar, mordendo
a língua e ouvindo o que deveria fazer, tudo o que o levou até este momento.

Não deveria acontecer exatamente assim, faltava a ele uma mão, depois de tudo,
não podia mudar tudo por isso. Silas era um mestre da adaptação e isto era apenas
uma coisa mais a que se adaptaria.

Assim, como a inclusão de Aldo.


Aldo podia se transformar, enquanto Silas não podia neste momento e Caesar
nunca foi capaz de fazê-lo. E este era precisamente o ponto na verdade, conseguir
que aquele dom em particular fosse visto por todo o mundo. Não podia saber
exatamente o tipo de medo e temor que iria inspirar nos seres humanos
simplesmente por matar o líder mais poderoso da igreja, pelo amor de deus. Sim,
deveriam mostrar o que os Ikati podiam fazer. Tinham que ser humilhados. Não
havia como ser capturado pela televisão, mas se fossem, o pequeno acidente seria
facilmente descartado.

Não seria tão fácil descartar a visão do Papa sendo sacrificado no programa de
televisão transmitido para todo o mundo na frente de milhares e milhares de
testemunhas.

E então oh, logo iriam reinar. E quando as paredes entre os dois mundos
caíssem junto com os humanos que os perseguiram por milhares de anos, se uniriam
aos clãs dispersos, distribuiriam o soro e bateriam palmas de alegria.

Justo depois de matar Caesar.

Apesar de ser tecnicamente o alfa de sua pequena colônia porque era o filho
mais velho do último alfa, a falta de dons de Caesar significava seu domínio sobre
o título era tênue no melhor dos casos. Força sempre tinha que ser provada,
inclusive um alfa e Silas ficou um pouco surpreso por nenhum dos outros o terem
desafiado ainda. Desde logo perderia, seria deposto, mas não importava, o tempo
que ficaria como alfa seria curto.

E depois do golpe espetacular que Silas orquestrou, ninguém se atreveria a


questionar sua supremacia, seu direito de reclamar o título como seu.
Caesar não questionou a forma como Silas foi capaz de obter acesso ao círculo
íntimo do Papa. Não questionou como ou quando Silas chegou com um esquema
tão monumental. Não questionou nada, na verdade, aceitou simplesmente que
estaria presente nesta pequena festa de apresentação dos seus, com toda a glória
para si mesmo.

Sempre foi um pouco egoísta, mesquinho.

Chegaram no topo da escada e pararam ante um conjunto de torres, portas de


madeira talhada. O homem com o chapéu de feltro murmurou em latim. —Desta
forma. — Apontando os guardas postados de cada lado, que abriram a porta e deu
um passo atrás.

Com um movimento de cabeça em deferência e uma mão estendida, Silas


apontou para Caesar e Aldo passarem diante dele.

***

—Parece uma merda.

Este pronunciamento foi um sussurro quase sem força atrás dela, mas deixou
Eliana tão feliz que quase chorou. Ela tinha o pensamento fugaz de que armazenou
uma enorme quantidade de lágrimas ao longo dos anos, porque agora novamente
pareciam ameaçar cair.

—Você sempre tem os melhores elogios, Mel.


Ela lhe apertou a mão e Mel, fraca, lhe devolveu o aperto. Seus olhos foram para
o quarto. — Porra, onde estou? No céu dos ricos?

—Oh, isto? — Eliana olhou o quarto ridículo, opulento. Havia uma lareira de
mármore, janelas altas com cortinas de seda, uma televisão de tela plana na parede
oposta e um lustre sobre a cama. Uma muito grande cama coberta com seda
tailandesa. — Isto não é nada. Espere para ver a sala de bilhar. E a piscina no
telhado. E o ginásio.

Ela conseguiu sorrir de forma fraca. — O ginásio. Oh que bom. Poderia ser
bom ter um entretenimento neste momento.

—Cale-se idiota.

—Você primeiro.

Compartilharam um sorriso e um momento de silêncio profundamente aliviado.

Eliana entrou no quarto apenas uns momentos antes de ver Melliane acordada,
tentando se sentar na cama, com o rosto pálido e suado pelo esforço que fez ao se
mover. Ela lhe empurrou suavemente contra os travesseiros e se sentou ao seu lado.

—Estamos na casa de Alexi.

As sobrancelhas escuras de Mel subiram. Ela cheirou, um delicado resplendor


apareceu em seu nariz e olhou Eliana de cima abaixo antes de sorrir novamente. —
E Demetrius está aqui também.

Eliana ficou ruborizada. —Posso dizer que isto é muito incômodo? E


vagamente assustador?
—Derrame.

—É uma longa história.

—Deve ser muito interessante.

—Não tem ideia.

O sorriso de Mel sumiu e ela a olhou séria. — Diria se fosse morrer, certo?
Porque me sinto como se fosse. Meu peito se sente como se houvesse um cara
muito gordo sentado nele e o resto de mim se sente como se fosse atropelado por
um caminhão.

—Você não vai morrer. —Anunciou Eliana, inclinando-se mais perto. —Não
te deixarei. E tampouco o fará Demetrius. —Simplesmente dizer seu nome a fazia
se sentir divertida, como um milhão de pequenas borboletas abrindo suas asas e
começando a dançar. Sua voz se suavizou quando seu olhar caiu sobre o curativo
branco que aparecia no pescoço de Mel. — Ele quem a ajudou.

Um olhar estranho deslizou no rosto de Mel. — Isso é bom. —Havia um tom


puxando sua voz. — Não se acertaram ainda?

Eliana mordeu o lábio. — Coloque outra palavra que começa com F nesta frase
e tenha uma ideia geral.

O olhar de Mel ficou grave. —Detalhes. Quero detalhes.

Eliana tentou não sorrir e em seu lugar tentou parecer muito severa e
intimidante. — Acho que poderia gostar mais de você inconsciente.
Sua tentativa de intimidação fracassou. Mel disse. — Não finja que não faria um
pequeno santuário para mim com incenso e velas com minha melhor foto e iria
chorar ali todo o tempo e orar a um destes deuses monges budistas que gosta. Seria
totalmente assim.

Ela afastou uma mecha de cabelo preto de sua amiga de sua testa, sentindo um
aperto dentro do peito. Ela teria feito mais que construir apenas um santuário. Teria
construído um monumento, adornado com anjos de pedra com grandes asas e
olhos ferozes, com inscrições no mármore e velas que nunca se apagavam.

Eliana encolheu os ombros, mantendo a voz indiferente. —Não tenho


nenhuma foto sua. Gostaria de fazer uma espécie de desenho rustico, com uma
enorme boca e dentes medonhos. Poderia acender uma vela. Uma pequena. Se
pudesse encontrar alguma por aí.

Mel sorriu.

Houve um golpe suave na porta e logo Alexi colocou a cabeça. — O médico


está aqui. Aí está ela.

Viu Mel acordada na cama e sorriu. A porta se abriu e entrou. — Sim, está. Bem-
vinda novamente a terra dos vivos, pequena e feroz.

—A terra dos vivos extravagantes e ricos. — Disse Mel olhando-o. — Como


eu não soube antes que era tão rico?

—Porque, gosta mais de mim agora?

Com os lábios franzidos, como se considerando, logo assentiu. — Isso ajuda.


— Quando ele sorriu corrigiu. — Um pouco.
Alexi foi até elas, sem deixar de sorrir, como se tivesse lançado um desafio ao
invés de um insulto. —E se trouxer o café da manhã na cama? Crepes com creme
e framboesas?

—Oh. — Sussurrou ela muito séria, os olhos abertos. — Que homem mal.

—Isto é um sim, ela gosta de você. — Disse Eliana. — É muito suscetível a


comida, no caso de não ter percebido ainda. Se trouxer chocolate, consegue tudo.

—Ah, uma mulher fácil. — O sorriso de Alexi aumentou. — Minha favorita.

—Acho que todos são conscientes de sua predileção por mulheres fáceis, Alexi.
— Mel disse séria.

—Sendo assim, já vou. — Eliana se levantou da cama. Olhou para Alexi. —


Onde...

—O Godzilla Romeu está conversando no telefone com alguém lá embaixo,


Butterfly.

—Como sabia que não estava perguntando pelo médico?

Olhou para ela e sorriu irônico. — Por favor. Não cheguei onde estou na vida
sendo desorientado. Mas falando do médico, quer que ele entre? Está bem ali na
porta.

Ela assentiu, pensava ser melhor não responder e logo soprou um beijo para
Mel indo para a porta.

—Godzilla Romeu? — Ouviu Mel repetir enquanto saia do quarto.


Ao que Alexi respondeu com suspiro. — Eu sei. Na verdade, não se pode
discutir os gostos das pessoas.

***

Encontrou Demetrius olhando por uma grande janela, na sala de estar vazia,
olhando em silêncio para vista espetacular da cidade além do vidro. Quando ela
entrou, ele se virou e a olhou.

E seu rosto se transformou.

Fazia com que se sentisse mais leve ao ver a forma de sua força, a boca sensual
suavizou e se curvou, seus olhos se iluminaram. Todo seu aspecto mudou como se
estivesse sendo banhado por uma luz estelar repentina e seu olhar tão óbvio de
esperança a fez se sentir como se pudesse flutuar. Ela queria se aconchegar nele,
como um gato no sol.

Para lidar com tudo isso, mordeu o interior da boca.

Os orgasmos não fazem dele confiável, Eliana. Não seja idiota.

—Interessante roupa.

Ela considerou o robe branco de seda que usava, que era ao menos três
tamanhos menores para ele. Mal chegava aos joelhos, mal se fechava na frente com
o cinto que ficou um pouco tenso, ameaçando soltar a qualquer momento, deixando
Demetrius nu em toda sua glória.
—As roupas estavam molhadas. Estão na secadora. — Seu sorriso aumentou.
— O garoto bonito não tinha nada que me servisse, assim me deu isto.

—Oh. Não tem roupas intimas pretas gigantes em seu armário? Estranho. —
Ela se aproximou um pouco mais, devagar, aumentando sua coragem a cada passo.

Ele sorriu. — Nem sapatos tamanho cinquenta, tampouco.

Ela rodou os olhos. Mas agora estava ao alcance do braço e ele se aproveitou
disso. Esticou um longo braço e puxou-a contra seu corpo. Apertou o rosto contra
seu pescoço e ficaram ali por um momento, sentindo as batidas do coração um do
outro, seus braços ao redor um do outro, silenciosos e imóveis.

Em outra vida, pensou com o coração apertado, poderiam ter se amado. Poderia ter
sido lindo.

Murmurou. — Diga o que está pensando.

—Estou pensando... — Suspirou. Não. Não vá por aí. — Mel acordou. Ela me
insultou, assim acho que ficará bem.

Ela sentiu seu sorriso contra o pescoço. — Isso é bom. E você? Como está?

Confusa. Em conflito. Preocupada. Instável. Louca.

Suspirou novamente e se afastou. — Estou bem. Mas tenho que sair por um
tempo. Há alguém que preciso visitar.

Ficou rígido. Inclinou-se para trás para olhá-la e seus olhos, que momentos antes
estavam tão suaves, agora estavam abertos. — Alguém? Quem? Onde? Vou com
você.
—Não vai. É um amigo.

—Outro amigo. —Sua voz ficou perigosamente baixa.

—Não é assim, Demetrius. Ele me ajudou a fugir dos caçadores.

—O que? — D disse entre dentes, de repente lívido e assustador, mesmo no


robe branco.

Ele a agarrou pelos braços. — Quando aconteceu isso? Porque não me disse?

—Nós não conversamos muito. —Ela disse com sarcasmo, mas ele a cortou.

—Não pode pensar de verdade que vou deixá-la sair desta casa enquanto ainda
estão por aí. Não sabemos o que vamos ainda...

Ela afastou-se dele. A ira acendendo dentro dela e a confusão que sentiu
momentos antes ficou quente, transformando-se em indignação.

—Nós? Não há nós, Demetrius. O fato de nós termos... — Agitou a mão no ar,
passando por alto o óbvio. —Não quer dizer que tenho que pedir permissão para
fazer alguma coisa.

Seu rosto endureceu. Um grunhido retumbou sinistro através de seu peito. E


estavam de volta onde estiveram durante anos: como inimigos.

Ela franziu o cenho. — Não pense que pode grunhir e que irei me submeter,
tampouco. Não pertenço a você.

—Sim, pertence!
De repente, ele estava em seu rosto. Os braços ao redor dela, segurando as mãos
atrás das costas. As mãos dele seguraram seus pulsos, com força. Ele abaixou o
olhar para ela, enormes e terríveis olhos ardendo com fúria escura, selvagem. —
Você me pertence. É minha e sou seu, não há nada nesta terra que pode mudar isso!
Deixe de lutar contra!

—Solte-me! — Tremia de fúria e tentou se soltar, mas não pode fazer as bandas
de ferros se soltar.

—Precisamos um do outro, garota, goste ou não, assim é melhor se acostumar


à ideia.

Sua respiração saiu forte como se tivesse recebido um soco no estômago. —


Com certeza! Você está sendo um inferno de convencido, Bellator!

Colocou a boca em seu ouvido e disse deliberadamente. — Não faça isto ou a


colocarei nos meus joelhos.

Porque odiava, odiava a ideia do que fazia com ela, o que sua voz e força faziam
com ela, deixando-a fraca, congelou no lugar. Muito, muito baixo, disse. — E não
me faça lembrar porque estamos nesta situação em primeiro lugar.

Ele se sacudiu.

Ainda com suavidade mortal, ela disse. —Se acha que estamos além do fato de
que o encontrei de pé junto a meu pai morto com uma arma de fogo, está errado.
Se acha que o fato de termos feito sexo me fez esquecer os últimos três anos e tudo
o que aconteceu com meu povo, está errado. E se pensa que eu me permitiria
confiar em alguém que sequer me deu a cortesia de uma explicação, está muito,
muito errado.
Um tremor o percorreu. Suas mãos ao redor dos pulsos dela se afrouxaram e ela
se afastou olhando-o. Estava congelado, lhe devolvia o olhar sem expressão. Toda
a emoção desapareceu de seu rosto, seus olhos. Parecia morto. Quando falou, sua
voz era dura, afiada.

—Leu o diário de seu pai. Já sabe que Silas é...

—Sim, eu sei. Mas e você? Vamos esclarecer tudo agora, Demetrius, porque
não? Estou cansada de segredos. Estou cansada de mentiras. Estou cansada de não
saber a verdade. Ajudou-me, ajudou Mel, mas e o resto? Como sei que realmente
não é sua cartada final? Se não me dirá a verdade, como posso voltar a confiar em
você?

Ficou olhando-a em silêncio durante o que pareceu uma eternidade, com o rosto
plano, uma quietude gelada cada vez maior entre eles, que sentia como estar
mergulhando lentamente em uma água negra como tinta. Seu corpo e sangue
estavam gelados, dos pés à cabeça.

Por último, em latim, lento e deliberadamente olhando-a nos olhos, disse. —Sua
vida antes que a minha. Suas necessidades antes das minhas. Seus desejos, esperanças e sonhos
antes dos meus. Entrego-lhe minha vida e depois de minha morte me comprometo a servi-la
eternamente com minha alma. Não haverá outras, agora e até o final dos tempos. Por minha honra
eu juro.

Sua boca se abriu. Ela o olhou fixamente, atordoada.

Palavras rituais. Palavras de união. Palavras que apenas se falavam em uma


cerimônia com as mãos pintadas de hena e presos com um laço de seda, coroas de
ramos, velas e troca de alianças.
E seu rosto ainda estava plano, mas sua voz era pura agonia, em contraste com
tudo o que não se permitia revelar. Era horrível, quase muito doloroso para ouvir.

Mas ele não terminou ainda. Disse. —Você, evidentemente, não está unida a
mim, mas estou unido a você. É permanente. É para sempre. Não tenho nenhuma
cartada final, exceto amá-la, Eliana. Proteger e mantê-la a salvo. Depende de você
se acredita ou não, mas a verdade continua sendo esta.

Ela engoliu, uma sensação de algo muito grande e pesado caiu sobre sua cabeça.
Seu coração não sabia se deveria parar ou explodir, assim que decidiu por um tipo
horrível de contorção como se um animal estivesse preso em agonia dentro de seu
peito.

—Conte-me o que realmente aconteceu naquela noite. —Exigiu ela, com voz
dura. — Se me ama como diz que o faz, conte-me o que aconteceu e vamos acabar
com isso de uma vez por todas.

Um olhar misterioso foi o que se seguiu. Sua feição plana transformou-se em


algo terrível, algo que ela sabia muito bem de anos evitando seu próprio rosto no
espelho: desolação.

Ela esperou, segurou a respiração e sentiu como o ar ao seu redor ficou preso
também, tudo suspenso como raios de sol. Como as batidas de seu coração.

Mas não falou. Manteve o silêncio e o olhar primitivo, estéril no rosto que não
mudou, nenhum som saiu de sua boca e era demais para ela suportar. Neste
momento, sentiu como se algo dentro dela morresse.

Ela deu outro passo atrás. Outro.


Ele disse. — Nunca menti. Confie em mim e posso provar.

Sua risada era amarga, tão feia que poderia se sentir envergonhada dela se não
estivesse tão sufocada pelas cinzas de sua esperança. —Se estivesse em meu lugar,
se os papéis fossem invertidos, você confiaria?

Ele a olhou fixamente, sem se mover, miserável. Sua boca se contorceu.


Sussurrou. — Não.

Ela fechou os olhos brevemente e se perguntou quanto tempo levaria antes que
seu coração partido deixasse de bater, como se privado de qualquer motivo para
continuar.

—Finalmente. — Ela abriu os olhos e o olhou. — Finalmente uma resposta


honesta.

Logo transformou-se em vapor e deixou as roupas a seus pés, fugindo no ar.


CAPÍTULO
TRINTA E CINCO

O problema de se transformar em vapor era deixar toda sua roupa para trás em
um monte no chão.

Em outras palavras, se estivesse em qualquer lugar, exceto em uma praia de


nudismo ou sozinha, as pessoas olhariam.

Eliana se arrastou, tão lentamente como pode sem ser notada, sobre o teto do
corredor do hospital. As enfermeiras e os médicos passavam sob ela em silêncio,
enquanto iam de um lado a outro, ela passou pelas luzes no teto, tentando ser
discreta como uma pequena nuvem de fumaça ao longo do teto, tanto como
possível. Passou pela área de visitantes e pelo balcão de informações, desceu em um
elevador com uma mulher grávida e de mãos dadas com uma criança.

Estava como um sopro de ar, flutuando contra o elevador de metal que tinha
uma fileira de luzes fluorescentes. O menino —de cabelo muito claro — apenas
uma criança, levantou os olhos e sorriu. Para seu horror, apontou e disse para sua
mãe. — Fumaça.

—Não tem fumaça, querido. — A mãe nem sequer olhou para cima. As portas
do elevador se fecharam e começou a subir suavemente. Mas a criança não desistiu.

—Fumaça! — Insistiu e bateu o pé. — Fumaça!


Eliana se moveu lentamente a um canto.

A mãe suspirou forte, derrotada e em um-suspiro-de-merda-de-mãe-cansada,


procurou algo dentro da bolsa pendurada no ombro e tirou um conjunto de argolas
de plástico de cores brilhantes presas. Ela colocou na cabeça do menino.

—Aqui, querido. Brinque com isto.

Quando o menino pegou as argolas na mão e começou a mordê-los, esquecendo


ao instante sua fascinação pela nuvem que era Eliana, assim relaxou, profundamente
grata pela falta de atenção. As portas se abriram no quarto andar, a mãe e a criança
desapareceram pelo corredor vazio.

Ela tomou forma rapidamente como mulher e apertou o botão do sexto andar,
logo transformou-se em vapor novamente, ficando contra um dos lados e fez todo
o percurso sozinha.

Uma vez no andar de Gregor, encontrou a sala de descanso das enfermeiras sem
muitos problemas e a sorte por uma vez, estava a seu lado. Alguém deixou um
uniforme em uma sacola de plástico vinda da limpeza à seco, sobre uma cadeira.

Eliana sorriu. Não precisaria visitar Gregor nua depois de tudo.

***

—Hora do seu banho de esponja, Senhor MacGregor.


Gregor abriu os olhos, viu uma Eliana sombria com uniforme de enfermeira e
touca branca segurando o metal aos pés da cama e se perguntou como um homem
de trinta e oito anos poderia sobreviver a uma bala no peito, mas logo morrer de
parada cardíaca pelo simples fato de ver uma mulher atraente em um apertado
uniforme que induzia a fantasias, a alguns metros de distância.

—Doce Jesus. — Murmurou, olhando-a. — Papai Noel foi generoso este ano.

Ela puxou a gola do uniforme, que parecia muito pequeno e apertado nos
lugares corretos. —Melhor que um pedaço de carvão em sua meia?

Ele sorriu. —Tenho algo duro, mas querida, não está na minha meia.

Isto valeu um sorriso, pequeno e torcido. Soltou a grade e se sentou na feia


cadeira verde ao lado da cama. O cabelo estava preso sob uma touca, mas algumas
mechas desordenadas em azul e negro escapavam. Olhou para a porta, para os dois
agentes da polícia armados do lado de fora.

—Não é seguro. —Murmurou e logo voltou a olhá-la. — Provavelmente não


muito inteligente, também.

—Como poderia ficar longe? Subestima o poder de seu encanto, Gregor. Além
disso, valoriza demais a inteligência de nossos amigos. — Ela lançou um olhar
astuto para a porta. —Nem olharam em meu rosto quando entrei.

Gregor desceu o olhar para o decote em V do uniforme branco, buscando na


exuberante imagem de seu corpo. — Posso culpar os pobres desgraçados?

Ela suspirou, mas de alguma forma não parecia relacionado com ele.
—Um bom corpo pode derrubar impérios, princesa. É apenas a forma como
somos.

Seu olhar era de incredulidade e dor. Ela disse simplesmente. —Homens.

Ele estendeu a mão. Ela a segurou. Ficaram olhando um paro o outro por um
momento de silêncio, enquanto a televisão zumbia suavemente no fundo. Estava
pendurada na parede oposta da cama e usou o ruído para bloquear todos os sons
das pessoas doentes, chorando e chamando as enfermeiras por mais morfina e
melhor comida. Um hospital lhe parecia um lugar muito deprimente. Odiava aquilo,
mas a prisão — o que era um fato — seria ainda pior, assim estava aproveitando
sua estadia pelo que valia a pena.

—Como está? — Seu olhar caiu sobre seu peito, o curativo visível sobre a gola
da roupa azul que era trocada a cada doze horas pela linda Lily.

—Já estive melhor. — Disse com maior naturalidade. — Esqueci há muito


tempo como uma bala pode causar dano.

Ela levantou as sobrancelhas. — Esqueceu? Recebeu um tiro antes?

Ele fez ruído desdenhoso e um gesto com a mão livre. —Em minha linha de
trabalho, faz parte. Seus amigos, no entanto, são uma coisa nova. Não posso dizer
que gostaria de voltar a vê-los.

—Sinto muito. — Sua boca se contorceu. — Não sabia que poderia resultar
nisto.

—Sem desculpas, princesa. Minha vida é um passeio selvagem e um que não


mudará nada. Incluindo isto. — Considerou por um momento. — Ainda que se
quiser me comprar uma nova Ferrari, não me oporia. — Sua voz se agitou. — Não
que precisarei de uma na prisão.

—Prisão?

Em seu olhar confuso, disse. — Agente Doe. O alemão. Ele veio me ver.

Seus dedos se apertaram. Ela sussurrou. —Não está morto?

—Ele está muito vivo. — Confirmou Gregor.

—E?

—E tinha razão. Eles sabem sobre você. Sobre sua espécie.

Seus olhos negros queimaram. — O que sabe?

Ele considerou. — O suficiente para causar problemas.

—O que ele disse? O que queria?

—Queria que preenchesse os buracos em sua informação. Ofereceu um acordo:


falar ou ir para prisão.

Ela deixou cair a mão e se sentou rigidamente na cadeira, pensando que ele disse
alguma coisa. Ele franziu o cenho. — De verdade princesa, é um insulto.

Ficou de pé e começou a caminhar, morder a unha do polegar, lançando olhares


de preocupação para a porta. Ela puxou a cortina que estava pendurada no teto ao
redor da cama, bloqueando a vista da porta. —Conte-me. Conte-me tudo.

—Venha aqui. —Ordenou apontando a cama. — As mulheres andando me


deixam nervoso.
Surpreendentemente, ela obedeceu sem comentários. Uma vez que se sentou na
beira da cama, ela segurou a mão que oferecia e ficou ali.

Disse em voa baixa. — Bem sua organização quer subir rápido, mantê-los
presos. A palavra que mencionou foi zoológico.

Sua cabeça se levantou. Os olhos estavam muito abertos e horrorizados. Se


acreditassem nisso, diria que devoraram seu rosto.

—Ele disse que sua organização estava acima da polícia e o ouvi ligar para
alguém. Perguntou pelo presidente, identificou-se como Treze, da seção Trinta. Isto
significa algo para você?

Pálida e trêmula, ela negou com a cabeça.

Ele lhe apertou a mão. — Preciso de armas. Tenho a sensação de que vou
precisar delas.

Levou um tempo para responder. Quando por fim falou, sua voz era desigual e
baixa. Ela falou com as mãos unidas, sem olhá-lo. —Diga para eles irem às
catacumbas. Diga a eles que é onde vivemos, na antiga abadia de Sacré-Coeur em
Montmartre — la DuMarne. Deve ser o suficiente para mantê-lo fora da prisão, os
fará pensar que está cooperando. E acho que... —Ela levantou o olhar para ele e
era completamente sem esperança. —Acho que será a última vez que nos vemos.

Gregor a fulminou com o olhar. — Não seja estúpida, princesa! Não vou deixar
que você...

Interrompeu-se porque pelo canto do olho, viu a imagem da televisão, uma cena
na praça de São Pedro, no Vaticano.
Caos.

Milhares de pessoas gritando, empurrando, pisoteando entre si. O chão


salpicado de sangue, barreiras de madeira caídas e a polícia frenética tentando dirigir
e controlar a multidão crescente e assustada. Um balcão coberto com uma bandeira
vermelha, uma janela vazia com um longo fio de sangue pingando nos painéis.

O texto dizia: Massacre no Natal na Basílica de São Pedro, o Papa foi ferido, teme-se que
esteja morto.

Quando a imagem se cortou a uma repetição da transmissão ao vivo antes do


discurso do Papa, Gregor, um homem que já viu muitas coisas ímpias, fez muitas
coisas espantosas, pensou que poderia vomitar o café da manhã.

Sangue. Tanto sangue. Grandes arcos de jatos de sangue, quase cômicos pelo
volume, pouco provável pelo tanto derramado, como um filme de Tarantino. Uma
mancha negra de pele e unhas, um corpo musculoso liso, com focinhos com
bigodes brancos e dentes longos e afiados rasgava brutalmente os pescoços dos
humanos vulneráveis.

Braços. Pernas. Tudo se partia em ondas assustadoras de carne e sangue, como


uma fruta muito madura que apertava com força.

Meia dezena de panteras negras atacavam a multidão no Vaticano durante a


manhã da missa do Papa e outra atacou o próprio Papa.

Ali mesmo na câmera. Para todo mundo ver.


Tinha a mão de Eliana na dele, agarrou-a com tanta força que disse. — Ai,
Gregor! — E tentou se afastar. Mas era como se seus músculos houvessem
endurecido como pedra, simplesmente não podia se mover.

Virou a cabeça e seguiu seu olhar. Houve um momento antes de reconhecer o


que estava vendo e logo, com um som de terror estrangulado, Eliana saltou da cama,
puxou a mão e cobriu a boca.

Os olhos de Gregor a seguiram. A expressão em seu rosto era indescritível, o


medo misturado com pânico, desespero e repulsa — seus traços apertados em uma
careta de puro horror, estava quase irreconhecível.

—Não. Não, não, não, não, não. Por favor, por favor, não!

Ela sussurrou uma e outra vez baixo, sufocada pelo choque, o rosto branco,
com as mãos tremendo violentamente, ainda cobrindo a boca. A parte branca de
seus olhos mostravam toda sua íris negra. Então Eliana reagiu como se um punho
invisível tivesse se movido com força e conectado ao seu estômago. Todo fôlego
deixou seu corpo em um assobio surpreendente, forte e ela se deixou cair na cadeira
junto a cama como uma boneca de trapo desfeita. Um soluço de morte pareceu
escapar de seus lábios.

Voltou a olhar para a televisão. A imagem mudou para um homem bonito, de


cabelo escuro, olhos negros e confiante, sorrindo de forma que dava arrepios como
Gregor nunca viu. Era estranho e se parecia com Eliana e fervor que ardia em seus
olhos, fazia o Agente Doe virar um escoteiro.

O locutor das notícias disse. —Os meios de comunicação receberam este vídeo
do grupo terrorista desconhecido que assumiu a responsabilidade pelo ataque. —
E o homem bonito começou alegremente, com veneração e pompa, como se
estivesse começando a contar uma história na sala de aula.

—Feliz Natal, seres humanos e permita que me apresente. Sou seu novo deus...

***

Todo o mundo sumiu e imediatamente uma agonia ocupou seu lugar.

Eliana sentia como se sua pele houvesse se soltado com um puxão brusco,
violento e ela estava ali de pé exposta, toda músculo, tendão e ossos. Dor queimou
brilhante e bolhas se formou através dela como se fosse um nervo gigante, em carne
viva.

O conhecimento do que fez e o que com certeza contribuiu, foi instantâneo.

Seu povo: caçado.

Sua colônia: matando.

Seus sonhos: mortos.

Com um só golpe, Caesar selou o destino de todos. Nunca haveria recompensa


por isso. Nunca haveria perdão. Haveria uma guerra eterna.

Haveria extinção.

A magnitude de tudo era surpreende e impressionante.


Um som chamou sua atenção para longe da televisão, onde Caesar ainda falava.
Era Gregor amaldiçoando, com o rosto duro, o olhar do lado oposto do quarto,
onde apareceu uma mão ao redor do tecido. A cortina foi levantada rapidamente
de lado.

—Oh céus. —O Agente Doe estava entre os dois. Seu único olho azul ardendo.
— Atrapalho?

Deu um passo adiante com um olhar de lado, dois agentes armados atrás dele e
algo feio, escuro, explodiu dentro de Eliana.
CAPÍTULO
TRINTA E SEIS

A mudança era uma coisa elemental.

A transformação da matéria em presas, focinho, patas, era um processo primário


agudo, fugaz e doloroso. Era real no sentido físico, mas também uma forma de
magia. Como toda magia, criava energia.

A energia se podia sentir.

No momento em que o assassino Keshav sentiu a mudança da garota em


pantera, estava apoiado contra a parede de uma máquina de café no vestíbulo do
hospital, com um copo nos lábios. Ele e dois de sua equipe ficaram no hospital,
espreitando dos fundos, rondando os corredores e os outros dois ficaram no prédio
de Gregor. A suposição e esperança era de que ela voltaria para ver o amigo ferido,
era tudo o que tinham, já que desapareceu por completo.

Ele estava a ponto de tomar um gole de café quando a primeira onda de choque
o golpeou. Esmagou o copo de plástico na mão, espirrando café sobre o rosto e
peito.

Um pulso de calor. Uma vibração. Um comunicado, como uma espiral apertada,


logo se rompeu e uma porta se abriu com a força do vento. Era ao mesmo tempo
surpreendente e estimulante, ela era tão poderosa que enviou uma onda crepitante
de eletricidade através de sua pele.

Olhou para o teto do sexto andar, no canto noroeste e logo para os elevadores.

***

—Não disparem! Não disparem!

Gregor gritou com ela, em posição vertical e na cama com o rosto vermelho,
com as mãos estendidas rigidamente para os dois oficiais que puxaram suas armas
e apontavam para a cena surreal na frente deles.

O Agente Doe, contra a parede estava com os braços para cima, o rosto
contraído em uma careta de terror. O animal enorme negro que cravava as patas
fortes em seu peito estava com as orelhas para baixo, o focinho brilhando e
mostrando os dentes afiados, grunhindo para ele.

E sem dúvida estava com medo. Sobre as patas traseiras, em forma de pantera,
Eliana se elevava sobre ele como Golias e um Davi de apenas um olho.

Os agentes estavam gritando algo em francês para que ela descesse, enquanto
Gregor gritava em inglês e francês e todos os idiomas que conhecia para não
atirarem.

Com os gritos, a televisão e o grunhido da pantera, ninguém ouviu a porta se


abrir até que foi muito tarde.
Whump. Whump. Ambos os oficiais se sacudiram e logo em silêncio caíram no
chão. Um homem em terno negro feito sob medida deu um passo adiante sobre
seus corpos, com uma arma preta diante dele, equipada com um silenciador longo
e cilíndrico.

—Mude novamente ou morra. — Disse com voz baixa para a pantera


grunhindo. — Escolha. Agora.

A pantera mostrava os dentes de forma selvagem, as garras cravando na camisa


branca de Doe. Oito pontos se sangue apareceram, do lugar onde as garras afiadas
se pressionavam através do tecido fino até a pele e Doe deixou escapar um soluço
sufocado lamentável.

Gregor sussurrou. — Eliana.

O homem com a arma colocou o dedo no gatilho.

Logo, a pantera brilhou e perdeu a forma, transformando-se em nevoa. Flutuou


etérea, agitando-se no ar cinza claro, uma nuvem de vapor ficou ali um momento
muito longo para o homem com a arma.

Seu rosto sem perder a concentração fria, o tom em sua voz ainda tranquilo e
controlado, apontou a arma para Gregor e disse. — Escolha novamente.

O coração de Gregor parou com um chiado.

Desta vez não houve dúvida. A nuvem de vapor se fundiu, contraindo-se,


recolocando-se e engrossando até que tomou a forma de Eliana, completamente
nua. Com a voz trêmula disse. — Não o machuque. — Deu a volta na cama, com
as mãos levantadas em rendição. —Por favor. Farei o que quiser. Simplesmente não
o machuque.

O olhar frio do assassino piscou sobre ela. Um músculo em sua mandíbula se


contraiu. Ainda segurava a arma apontando para Gregor, enquanto tirava algo do
bolso do terno algo metálico. Ofereceu a ela. —Coloque.

Com as mãos trêmulas, Eliana estendeu uma mão e o pegou, segurou no alto.
O barulho de metal deslizando contra metal se ouviu, girou na luz por um
momento, torcendo-o entre os dedos.

—Ao redor do pescoço. — O caçador instruiu com um movimento do queixo.


Eliana o fez, logo, cruzou os braços sobre o peito nu e ficou diante dele com o
queixo no alto, esperando.

Atrás dela, contra a parede, um Agente Doe paralisado perdeu a batalha contra
a gravidade e deslizou em silêncio para o chão.

O caçador colocou a arma na cintura de sua calça, tirou o terno e entregou a


Eliana, indicando que o vestisse. Para Gregor enviou um olhar que dizia: Mova-se
e está morto.

Quando Eliana estava coberta, o caçador disse. —O colar evitará que se


transforme. Qualquer tentativa de escapar o matará e a você. Entendeu?

Ela assentiu em silêncio. O caçador a agarrou pelo braço e puxou-a adiante,


empurrando-a sobre os corpos no chão.

—Eliana! — A voz de Gregor se rompeu. Seu coração começou a bater


novamente de forma dolorosa.
Não podia ver seu rosto, mas a medida que era empurrada pela porta ela
murmurou. — Adeus, velho amigo.

Durante um longo momento, não houve nada além do som da televisão. Sua
própria respiração era alta para os ouvidos. Logo, lenta e deliberadamente, o Agente
Doe se inclinou e vomitou algo amarelo no chão.
CAPÍTULO
TRINTA E SETE

Tudo saiu a perfeição.

O lugar: perfeito. O momento: perfeito. A reunião sozinho no escritório pessoal,


apenas momentos antes de sua transmissão pela televisão: perfeito.

Tudo correu tão bem... até que tudo se transformou em um caos, em um giro
horrível, imprevisível dos acontecimentos que fez a cabeça de Silas rodar com a
improbabilidade da mesma.

Foi ele, Caesar, Aldo, Ottavio e o servo Expurgari com o chapéu de feltro que
arrumaram tudo, inclinando a cabeça nas apresentações silenciosas em reverência
ao Santo Papa. O Papa humano era muito mais frágil do que Silas pensou, sua pele
parecia feita de papel e sua voz rouca e suave, as mãos trêmulas pela idade avançada.

Sua roupa era algo, no entanto. Silas não viu nunca um chapéu tão elaborado,
ridículo.

Ele lhes agradeceu pelo serviço prestado à igreja, agradeceu pelos anos de
dedicação e sacrifício, assegurou a Caesar que seu pai foi um guerreiro santo na luta
contra o mal, o que confundiu Caesar, sem saber que seu pai na verdade não tinha
nada a ver com qualquer que implicasse a igreja.

Imbecil.
Com mais energia do que parecia ter, o Papa falou com sua voz rouca e divertida
para Silas, agradecendo com efusão. Então, mais divertido ainda: uma benção,
ondulando sobre suas cabeças.

Queria muito rir. Como queria segurar o estômago e rir alto.

Mas, claro, não o fez. Ele se limitou a sorrir e assentiu com a cabeça, sabendo
que logo estas bênçãos, impotentes seriam silenciadas para sempre quando Aldo
arrancasse sua cabeça.

Despediram-se e foram levados a uma antecâmara, onde Silas cuidadosamente


cortou a garganta de Ottavio. Morreu tranquilamente sufocando em seu próprio
sangue com uma expressão de surpresa, fazendo outro sorriso aparecer no rosto de
Silas.

Apesar de saber que seu tempo era curto, a morte parecia tomar as pessoas de
surpresa.

Os três esperaram até o discurso do Papa começar momentos antes ao vivo na


televisão, a que a voz soasse pelos alto falantes espalhados do balcão ao Vaticano,
logo simplesmente voltaram a entrar no escritório e tudo começou.

Não havia guardas dentro do santuário. Não precisava. O acesso de fora era
controlado com muito cuidado e proteção, mas como convidados de honra, tinham
o passe livre. Assim que não havia ninguém para adverti-los, salvo os dois
sacerdotes vestidos de negro, assistentes que repetiam os versos da oração nos
microfones justo atrás da janela onde o próprio Papa estava de pé, olhando a vasta
multidão reunida, lendo a benção de abertura em seu próprio microfone.

Morreram primeiro.
Silas não se incomodou em usar Aldo transformado para isto, os dois assistentes
tiveram o mesmo destino veloz que Ottavio.

Apenas quando o Papa se virou lentamente e olhou para trás dele com confusão
evidente, quando os assistentes não responderam a suas indicações verbais, Silas
deu a Aldo o visto para agir.

Realmente desejava ter levado uma câmera, porque pela expressão do Papa —
ver um dos homens que acabou de abençoar e agradecer minutos antes, se
transformar em uma enorme e violento predador, não tinha preço.

Depois de apenas uns segundos, Aldo soube exatamente o que fazer. Foi bem
preparado.

Saltou sobre o pontífice de idade avançada, o arrastou até a beirada do balcão


com a boca em se pescoço como se fosse uma presa que precisava ser morta, jogou-
o sobre o balcão com uma enorme pata.

Suas roupas brancas volumosas, com reluzentes fios de ouro e brilhantes no sol
da manhã, se agitaram na brisa fresca. O alto e elaborado chapéu caiu de sua cabeça,
indo para baixo, até a multidão. O ofegar foi coletivo.

Então Aldo o mordeu e o ofegar se transformou em gritos.

Caesar, de pé junto a ele, riu com a pulverização exagerada do sangue. Silas virou
a cabeça, o olhou e disse. — Realmente divertido, verdade? — E logo afundou sua
faca na nuca de Caesar. A ponta saiu pela boca aberta, polida e vermelha.

Caesar nem seque fez um ruído. Ele apenas se sacudiu uma vez e logo, quando
Silas puxou a faca de sua carne, batendo contra ossos, caiu no chão, morto.
Aldo foi mais fácil, passou a faca para baixo, através do crânio. Ele soltou sua
presa com grito sufocado e ambos, Aldo e o Papa deslizaram sem forças e
ensanguentados, no chão de pedra do balcão. Então Silas guardou a faca e
retrocedeu, com cuidado para não mostrar seu rosto para a janela aberta. Assim
podia ver a multidão abaixo, estavam em total pânico, não apenas pelo o que acabou
de acontecer na janela, mas pelos ataques coordenados que aconteciam abaixo.

Deu a volta e deixou escapar um grito de surpresa.

Ali, no centro no quarto, inundado em seu próprio sangue, Caesar estava


sentado.

Olhando para ele.

Com o rosto franzido.

Levou a mão à nuca, sentindo o lugar enquanto Silas ficava olhando sem
compreender. Ele balançou a cabeça como se para limpá-la, cuspiu sangue de sua
boca e logo, incrivelmente —impossível — ficou de pé.

O clamor de gritos e pés batendo forte pelos corredores em uma corrida distraiu
Caesar, que virou a cabeça para o ruído, mas não Silas, que era incapaz de mover
um músculo para salvar sua vida. Um milhão de diferentes explicações passaram
por sua cabeça na velocidade da luz, um milhão de perguntas diferentes e sempre a
resposta parecia piscar como em um letreiro de neon em Las Vegas.

Não, não, não.

Um grupo de guardas suíços armados entrou pela porta da antecâmara. Caesar


foi o primeiro que viram, de pé em uma poça de sangue no centro do quarto, os
corpos dos sacerdotes mortos aos seus pés, olhos abertos e a garganta cortada. Silas
estava ainda na janela do balcão, parcialmente fora da linha de visão, mas Caesar
poderia ter um olho de boi em sua camisa ensanguentada, pela forma como os
guardas reagiram.

Foram até ele com rugido unificado.

Uma chuva de balas, Caesar se moveu e cambaleou para trás quando os


fragmentos tocaram sua carne, rasgou a camisa, lhe atravessou o corpo. O sangue
espirrou de centenas de feridas irregulares e quase em câmera lenta caiu, agitando
os braços, um grito de angústia nos lábios. Ele caiu no chão e ficou imóvel.

Em sequência: o silêncio e impossível aconteceu diante de seus olhos, quando


Caesar, uma vez mais, abriu os olhos.

Incorporou-se bruscamente, rasgou sua roupa ensanguentada e observou com


fascinação, junto com os demais no lugar, como dezenas de balas se espalhavam
pela superfície de seu peito e abdômen, caindo no chão como moedas de um
centavo sendo lançadas no poço dos desejos, onde rodavam, compactadas e
ensanguentas, em pequenos círculos até cair.

Caesar voltou a olhar para os guardas, vários dos quais abandonaram suas armas
e se olharam com horror. Ele sorriu. Disse. — Bem. Aposto que não esperavam
isto.

Logo, Silas ficou de joelhos no chão de madeira duro do escritório privado do


Papa e pela primeira vez em toda sua vida, chorou.
***

Demetrius soube inclusive antes que tocasse o telefone que algo terrível
aconteceu.

Ele não sabia que seria tão ruim.

Enquanto olhava o telefone tocando em sua mão, uma premonição do desastre


deixou seu sangue frio. Era uma ligação de Celian, sabia pelo número e algo o fez
hesitar antes de atender e dizer. —O que aconteceu?

Um momento de silêncio. Então. — Não assistiu televisão.

A premonição se converteu em algo frio e vil que se sentia como um réptil


faminto deslizando pela boca do estômago. — Não.

Celian disse. — Houve um ataque. Ao Papa e as pessoas na praça de São Pedro


durante a missa de Natal.

—Um ataque? O que tem a ver conosco?

—Foi feito por nós.

Demetrius ficou na janela onde Eliana o deixou menos de quinze minutos antes,
imóvel e silencioso. — Nós?

— Ikati. — A voz de Celian endureceu. — Caesar.

Com o telefone ainda no ouvido, Demetrius correu pelo corredor da sala de


estar de Alexi para o quarto, apertou o botão para ligar a televisão sobre um
aparador. A tela piscou à vida e estava em todos os canais, os detalhes mórbidos
repetindo-se, debates com experientes e testemunhas histéricas, líderes religiosos e
políticos indignados, gritando e pedindo a cabeça de alguém.

E Caesar sorrindo, expondo seu plano de dominar o mundo.

Sempre soube que Caesar era um covarde, mas ao vê-lo ali, isto ao vê-lo ali,
sabia que era outra coisa. Fez um ruído sem palavras de horror para mostrar sua
irritação e sua perfeita compreensão do que isto significava para todos eles.

—Isto não é o pior de tudo, irmão.

Cada célula de D se congelou e sabia, sabia mesmo antes de Celian dizer.


Sussurrou. —Eliana.

—Os caçadores a tem. Leander ligou há um momento, estão levando-a para


Sommerley. Assumem que ela estava com Caesar.

—Não! — Disse entre dentes, inundado de fúria, de raiva contra si mesmo por
deixá-la ir e não a seguir, com ela sendo tão imprudente e teimosa, cegamente leal,
arriscando sua vida para ver um amigo.

—Eu disse isto. E ele me disse em termos inequívocos que diga adeus a minha
colônia. Vão fazer de nós um exemplo para qualquer outra colônia que quiser sair
da linha e logo vão recolher todos e passar para a clandestinidade. — Sua voz
endureceu. —Mas não antes dele a fazer pagar pelos pecados de seu irmão.

Demetrius agarrou o telefone com tanta força que a caixa de plástico se quebrou
e partiu em duas. — Vou atrás dela.

No fundo ouviu Constantine dizer. — Eu te avisei.


Celian soltou um suspiro longo. — Sim. Imaginei que diria isto. Por isso estamos
a caminho.

D percebeu que estava no viva-voz, ouviu o ruído da estrada no fundo, junto


com as vozes sombrias de Lix e Constantine. Algo entrou em seu sangue e ferveu
em seu interior, gelando o exterior. — Não chegarão rápido o suficiente. É treze
horas daqui a Roma, mas apenas umas poucas horas de Paris até Sommerley. Será
muito tarde então.

Celian disse. — Não estamos indo de trem para Paris, D. Estamos voando.
Leander enviou seu jato particular. Estaremos lá em apenas algumas horas. Talvez
menos.

Seu jato particular. Claro. Claro, o conde de Sommerley tinha um jato particular.

O que significava que D não tinha outra opção que voar também.

Com fúria em sua voz, disse ao telefone. — Bom então, terei que chegar ali,
não?

Sem esperar uma resposta, transformou-se em vapor e subiu pela lareira no


outro lado do quarto, deixando cair o telefone quebrado no chão.

O pequeno robe de seda branca de Alexi flutuou para baixo ao lado dele.
CAPÍTULO
TRINTA E OITO

Era uma sensação incomoda, mas pálida em comparação com os outros


sentimentos que Eliana sentiu durante as últimas horas.

Com a pressão fria contra sua pele e o zumbido elétrico que enviava um
estremecimento de dor crescente pelas costas cada vez que se empurrava muito
longe, a coleira de metal ao redor da garganta a segurava justo no limite, mas não
podia se transformar. A carga se construiria e a energia provocada seria como
pólvora e logo o cheiro de fumaça seria sentido antes da transformação. Mas a carga
hesitou e sumiu, deixando um oco de dor.

Era inútil. Estava presa.

Em mais de um sentido.

A viagem de avião estava além de sombria. Presa no luxo das poltronas de couro
do avião particular do homem responsável por sua morte iminente não era a forma
como Eliana previu as últimas horas de sua vida. Não que passou muito tempo
imaginando sua morte antes de hoje, mas agora pensava nisso. Estava com as mãos
algemadas e usando apenas um terno masculino. Rodeada de inimigos e não podia
se transformar.

Novamente.
Três dos caçadores elegantes em ternos a acompanhavam na viagem. O que a
capturou no hospital — alto, com rosto como pedra e bonito — e os dois outros
que viu na porta do hospital, esperando em um sedan negro com vidros escuros.
Estavam em desacordo total com o companheirismo e o código de honra do
Bellatorum.

Estes não eram obviamente irmãos. Eram um grupo de assassinos de aluguel,


frios e sem laços de irmandade.

Eles não a olhavam. Não falavam com ela ou com um ao outro e seu silêncio
era mais sinistro que qualquer ameaça ou insultos lançados teriam sido.

Eliana estava doente de medo com o que estava a ponto de acontecer.

Ela sabia que não seria rápido e não seria indolor. Se as leis desta colônia
britânica fossem como as leis de sua colônia, seria usada como exemplo. Um traidor
era a pior coisa que um membro da tribo poderia ser e a execução não era lenta.
Juntavam-se ao redor e durante um tempo que eram horas, pelo menos, até que seu
sentido de justiça fosse satisfeito ou morresse, o que acontecesse primeiro. E
porque sabia que empregariam os mais bárbaros métodos de tortura com a
finalidade de obter informação, estava tentando transformar seus nervos em aço,
imaginando o pior que poderiam fazer.

Nunca lhes contaria onde estavam os demais. Nunca.

Mas sem dúvida teriam horríveis formas de fazê-la falar.

O suicídio era a melhor opção, mas não havia nenhuma oportunidade. E sabia
que se fosse de alguma forma capaz de tirar sua vida, Gregor iria pagar.
Não havia saída. Iria morrer logo...

Doce Isis, por favor, dê-me forças, implorou a deusa dos escravos, pecadores e
oprimidos. Que não desonre a mim mesma. Eu imploro.

Olhou pela janela da limusine que chegou a Heathrow para pegá-los e observou
como a paisagem deslizava pelas colinas esmeraldas atravessadas por muros de
pedra e cheia de ovelhas, casas de campo e uma vegetação cheia de árvores antigas
com troncos negros e galhos longos, todos verdes e reluzentes na chuva fina, um
nevoeiro que diminuiu há apenas uns minutos antes. Ela nunca esteve na Inglaterra
antes e nunca tão longe em um campo e o pensamento de que seus ossos seriam
enterrados tão longe de casa trouxe um brilho de lágrimas em seus olhos.

Ela não se permitia pensar em Demetrius. Sabia que começaria a chorar e não
poderia parar.

—Chegamos. — Disse o motorista do assento dianteiro e o ar dentro do carro


ficou elétrico.

O carro parou na frente de um enorme portão de ferro. O portão estava ladeado


por paredes de pedras com mais de dois metros de altura e coberto o arames
farpados, o qual se estendia até onde alcançava a vista em qualquer direção. O
motorista abaixou o vidro, agitou a mão no portão de entrada e depois de uma leve
hesitação, os portões de ferro começaram uma leve oscilação para fora.

E o coração de Eliana começou uma frenética batida.

Por favor, eu imploro.


***

Ao ver a traidora, o primeiro pensando de Christian foi: seu cabelo era azul?

A medida que era arrastada do carro por Keshav e empurrada adiante com os
pés descalços sobre a grama na entrada circular, as mãos algemadas nas costas, as
pernas longas nuas, seu segundo pensamento foi: está nua sobre este terno?

Seu terceiro pensamento não foi um pensamento em absoluto. Era mais uma
impressão confusa de várias coisas ao mesmo tempo, todos confusos pelo grande
assombro.

Ela estava com a cabeça para baixo, os olhos fixos no chão, à medida que dava
a volta atrás do carro, levantou a cabeça e olhou diretamente em seus olhos e
Christian se sentiu atingido como se houvesse recebido um golpe.

Seu rosto era lindo, apesar de tal expressão de desolação e parecia como se uma
mão houvesse se aproximado e apoderado de seu coração. Não era miséria e sim
dor, mas também um tipo horrível de renúncia e sob tudo isso, um orgulho
inquietante. Estava claro que sabia que caminhava para a morte, sabia que não seria
fácil... e estava decidida a enfrentá-la com dignidade.

Admiração floresceu dentro dele.

E os primeiros egos — pequenos ainda — de dúvida.

Keshav puxou-a a uma parada com uma mão dura ao redor de seu braço. Ela
tropeçou e ficou sem fôlego, logo segurou a respiração e endireitou as costas. Ela
levantou os olhos para ele e ficou preso na força dela, por seu ar de fatalidade
magnífico, tanto heroico como trágico. Teve a fugaz ideia de que poderia ser uma
inspiração para um poema épico sobre batalha grega, traição e amor. Cuidadoso e
intenso, parecia com alguém que passou anos vagando nas profundezas mais
escuras do inferno, reuniu-se com todos seus habitantes e deu-se ao trabalho de
contar aos mortos que entravam.

Com voz rouca e acentuada ela disse. —É você quem o fará?

Keshav fez um movimento para arrastá-la novamente, mas Christian o parou


com um seco: — Espere.

Ela não afastou os olhos dele. Nunca viu olhos tão negros.

—Não. — Disse. — Meu irmão, Leander. O Alfa.

Algo brilhou em seus olhos negros e logo rapidamente desapareceu. Não se


parecia com medo... talvez ira? Desprezo?

—Que pena. — Disse. — Você tem um rosto amável. Suponho que seu irmão,
o alfa, realmente fará uma bela refeição. — Sua voz ficou mais amarga. — Sempre
são os piores.

Perguntou-se sobre sua postura. Em seus sapatos, não estaria tão seguro. —
Não está com medo. — Disse e ela piscou surpresa.

Deslizou sua postura dura. Ela engoliu, ficou ruborizada e seus olhos se
encheram de lágrimas. — Sim, estou. — Sussurrou. — Mas não posso ser fraca.
Não posso suportar a ideia da última hora...

Moveu-se com esta admissão irracional dela. Esta honestidade. Combateu o


impulso repentino de consolá-la com uma espécie de lugar comum, mas seria inútil.
Ela se romperia. Com tudo o que fariam, aconteceria cedo ou tarde.

E lembrou a si mesmo com seriedade, tentando empurrar as dúvidas de lado


que ela era uma selvagem. Todos viram a evidência do que ela e seu irmão fizeram.
Todos viram a carnificina, junto com o resto do mundo.

Fez um gesto com o queixo para Keshav para levá-la para dentro da casa e ela
se afastou, sendo levada pela escada de mármore pelas portas de ferro duas vezes
do tamanho de um homem. Elas se abriram e Christian se virou, seguindo-os para
dentro.

***

O ar presente na alta atmosfera era fino e frio, cheio de cristais de gelo que
pouco a pouco cruzava e ameaçavam com rasgá-lo por completo, mas em bruto, o
medo mantendo D em seu rumo.

O medo de ser muito tarde.

Encontrou uma corrente de ar de fluxo rápido e estreito que o arrastou pelo


Canal Inglês em um bom momento, mas logo se virou bruscamente para o leste,
quando tinha que ir ao oeste. Deixou-se cair fora dele, mais abaixo, surgindo sobre
os campos, rondando em paramos e pequenos povoados e aldeias, tudo em uma
mancha pintada de verde, purpura e marrom, muito abaixo. Ele não sabia sua
velocidade exata, mas sabia que nunca seria tão rápido como um avião e esperava
com toda esperança que chegasse a tempo.
Não. Não se permitia considerar a possibilidade. Iria encontrá-la viva, isto era o
que aconteceria.

Que deus o ajudasse se não. Iria sacrificar todos.

***

A mansão era enorme e luxuosa, um labirinto de salões, salas de música e salas


de estar, tudo cheio de sedas e veludos dourados. Eliana foi levava por corredor
atrás de corredor, além da dupla escada que terminava no segundo andar, com os
pés descalços tocando a madeira fria, polida entre os tapetes turcos em alguns
lugares, até que finalmente chegou a uma entrada, de uma grande sala dourada. Era
cavernosa, equipada com ainda mais gala que o restante do lugar.

E outra coisa muito singular dos outros cômodos: havia tronos.

Um jogo completo deles, dois tralhados em mogno brilhante com assentos


acolchoados, situados do lado oposto da sala.

Seus lábios se apertaram com pesar. De volta as catacumbas sob Roma, seu pai
se sentou em um idêntico.

Os tronos estavam vazios, mas as longas mesas que estavam do lado não. Um
grupo de homens se sentavam em cadeiras de madeira opulentas, com os braços
cruzados sobre suéter de cachemira ou jaquetas de seda ou com as mãos sobre a
seda cobrindo a mesa ou em apertados punhos dos lados, cada um rosto severo.
Suas expressões eram uniformemente duras, hostis e sombrias.
No canto extremo um jovem que parecia aficionado aos livros, com uma mecha
escura caindo sobre os olhos, óculos que mantinha empurrando para cima do nariz
parecia muito jovem para estar ali.

Deveria ser sua primeira execução.

Eles não falaram nada quando ela se adiantou, apenas um a olhou com olhos
verdes amarelados pela penetrante luz do sol que se inclinava pelas janelas mais
longe. Eram os mesmo olhos que viu do lado de fora, o irmão do alfa, que deixou
gelada da mesma forma.

Os olhos de seu povo eram escuros, ricos como a argila, quentes e cheios de
vida. Os olhos destas pessoas eram claros e gelados, deslizavam como o vento
gélido.

Eram ricos, elegantes e refinados, mas sob tudo isso, eram assassinos.

Ela levantou o queixo. Sou Eliana, filha da Câmara dos Cardinalis. As mulheres de
minha linhagem são como o coração de leões. Não me deixarei intimidar. Não deixarei que me
façam implorar.

Em um movimento de sacudir os ossos apertou os dentes bem forte, o que


provocou uma careta instintiva nos lábios e Keshav a empurrou de joelhos diante
dos homens.

—Silêncio! — Um dos homens na mesa ordenou. Mais velho, com o cabelo


grisalho e pomposo em sua roupa formal e obsoleta, inclusive com uma jaqueta de
brocado e gravata, ficou de pé e Eliana grunhiu baixo em advertência quando caiu.
O que estava olhando para ela, moveu os olhos para Keshav atrás dela e assentiu.
Sem aviso prévio, a dor a atravessou e sua respiração saiu de seus pulmões quando
lhe deu um chute forte nos rins.

Ela caiu adiante, ofegando, lágrimas de raiva e humilhação queimando em seus


olhos. Ela apoiou a testa no chão de madeira frio por um momento para recuperar
o equilíbrio. O ar era gelado em suas costas e pernas nuas.

Não vou implorar. Não o farei.

O pomposo começou a falar e seu sotaque britânico de alguma forma fez com
que parecesse ainda mais arrogante que sua postura e expressão.

—Sou o Visconde Weymouth, Guardião das linhagens de sangue. Estarei aos


cuidados deste procedimento e se em algum momento suas respostas não me
satisfizerem, irei ordenar ao Sr. Keshav para administrar outro pequeno símbolo de
motivação e outro, até que o faça.

Houve uma pausa. — Entendeu?

Eliana disse do chão brilhante. — Não. Pensei que tivesse que ficar em silêncio.
Como posso responder as perguntas, se devo ficar...

Chegou outro chute, desta vez mais forte, nas costelas.

Ela gemeu de dor e se curvou em uma pequena bola, mas foi arrastada
novamente para seus joelhos por uma mão em seu cabelo. Não podia se endireitar,
no entanto, porque a dor sugou suas habilidades motoras — e sua capacidade de
respirar. Engoliu seco, tentando respirar, ondas de agonia irradiava através dela
como fogo. A única coisa que a mantinha na posição era o punho em seu cabelo.
Ela tentou ir a um lugar de paz e relaxamento, como fazia no kata diário, mas
não serviu de nada. A adrenalina e o medo a açoitavam como um chicote.

—Senso de humor. — Disse o Visconde Weymouth. — Não será tolerado.

Eliana ouviu a resposta sarcástica de Mel em sua cabeça: Evidentemente.

—Que porra é essa?

Eliana olhou para a voz surpresa. Da porta do lado extremo da mesa, o irmão
do alfa apareceu e agora estava olhando o visconde em lívido ultraje, sem piscar.

Sem complexos, o visconde olhou por baixo de seu longo e pontudo nariz. —
Concordamos que...

—Não se outorgou permissão para começar sem nós e não foi concedido
permissão para tocá-la!

Começaram a ir e vir, o irmão indignado e Weymouth cheio de caótica


indignação, os outros homens na mesa lançando olhares inquietos uns aos outros,
decidindo ao parecer, que lado tomar.

Deuses, como odiava política. Viu isto desde que era uma criança, a postura, a
crucificação do favor da corte. Sempre havia uma intriga e um escândalo, um
segredo para manter, um acordo para fazer. Sempre havia um carrasco, sempre
havia alguém que sentia acima de sua posição e sempre — como Weymouth — um
que queria escalar o nível.

Por último, ao parece doente com a discussão, o irmão voltou sua atenção a
Keshav e disse. — Solte-a! Agora!
Contra toda lógica, sentiu vontade de sorrir. Esqueceu que sempre havia um
cavalheiro cortês também. Então sentiu outra pontada de pesar por ele não ser o
alfa. Apostaria qualquer coisa que seu irmão não era a metade de cavalheiro como
ele.

Keshav a soltou como se queimasse. Ela caiu adiante novamente, mas desta vez
o irmão estava ali para pegá-la. Ele a segurou, deixou-a novamente sobre os
calcanhares e quando ficou firme, suavemente a colocou de pé. Manteve-se perto,
quente e estável segurando-a pelo braço.

—Uma cadeira. — Dirigiu-se a Keshav, apertando os dentes.

Uma cadeira apareceu e sentou-se nela com uma palavra sussurrada de


agradecimento.

Logo, o ar do lugar pareceu mudar, de forma rápida, a pressão aumentando


quando olhou para a porta que o irmão passou antes. Lutou contra a onda de
náuseas pela dor aguda na parte posterior e lateral, Eliana olhou para cima e
congelou.

O Alfa. Tinha que ser ele.

Vestido com uma camisa cinza com botões e calça preta que mostrava seu corpo
magro, mas musculoso, poderia ser comum, exceto pelo seguinte: era ferozmente
lindo.

O cabelo preto brilhante roçava os ombros, as feições clássicas, uma boca que
parecia muito sensual para um homem. Penetrantes olhos verdes amarelados como
os demais, a pele escura como eles também e havia algo mais que o distinguia, algo
em sua postura que gritava poder. Ainda que apenas estivesse parado na porta,
liberava uma energia voraz, violenta e selvagem, que pulsava para fora dele como
bolhas, abraçando tudo o que o rodeava.

Este não era um plebeu. Este não era sequer um senhor, ainda que sem dúvida,
se intitulasse com um aristocrata do Império.

Este era um Rei, do princípio ao fim.

Sem esforço, concentrou toda sua atenção e se manteve em silêncio


contemplando a cena. Eliana sentiu o roce fugaz, elétrico de seu olhar antes de cair
nela e depois, um profundo alívio quando passou.

Seu pai louco, tinha o mesmo tipo de presença. O mesmo tipo de poder fácil,
elemental. Eliana se perguntou se este Rei estava louco também, mas este
pensamento foi borrado quando outra pessoa apareceu ao seu lado.

O Alfa deu um passo lento longe da porta e estendeu a mão. Um braço longo e
branco apareceu entre as sombras da porta como um drama por etapas, um pulso
e uma mão dobrada em um movimento fluido de graça, feminino. A pálida mão
descansou na do alfa e então a mulher unida a este braço apareceu sob a luz.

E a dor e o medo de Eliana simplesmente desapareceram.

Foi instantâneo e total, o sentimento de parentesco. De parentela. Também


colossalmente estúpido, porque não sabia nada desta mulher, deste Rei ou desta
terra, mas olhava para Eliana com um sentimento tão quente e aliviado, profundo
que apenas podia ser chamado de volta à casa.

Ou loucura.
A mulher parou um momento, observando-a. Vestia uma blusa cinza, sem
maquiagem ou joias, mesmo sem nada disso parecia uma mulher impressionante,
como Eliana nunca viu. Seu rosto, seu corpo, sua pele, o cabelo dourado que caia
em cascata sobre os ombros até a cintura, tudo era perfeito e absolutamente sem
mancha, como uma espécie de representação do artista principal de um anjo, de
ideais femininos de beleza.

Picasso teria matado para pintar seu retrato, pensou. Miguelangelo teria vendido sua alma.

Isso levou um leve sorriso a seus lábios. Ao vê-la, a Rainha pareceu


momentaneamente desconcertada. Então, incrivelmente, seus próprios lábios se
curvaram, uma leve inclinação para cima que seu formidável marido não perdeu.

Olhou para trás e adiante entre os dois. Bruscamente falou. — Visconde.


Continue.

A sensação de calor de volta à casa se apagou, substituída por uma sensação


muito quente de temor.

O visconde disparou ao irmão do alfa um olhar vitorioso presumido, mas


resultou amargo quando a Rainha falou.

—Porque está quase nua?

Todos congelaram. Seu marido suspirou, os lábios apertados.

—E algemada? — Virou para o visconde. — Weymouth?

Sua voz tinha sotaque americano sem adornos, surpreendente no meio de todo
aquele inglês estranhamente neutro.
O visconde moveu-se de um pé a outro. — Ela foi trazida com algemas, Sua
Majestade e seria prudente mantê-las.

—Sem dúvida, tudo o que os homens podem fazer para controlar uma mulher.

Havia ironia em sua voz e Eliana percebeu a ira por trás.

O rosto de Weymouth ficou vermelho. — Ela é uma traidora.

—Isto ainda está para ser julgado.

—Da pior espécie...

—Não percebi que havia níveis.

A voz de Weymouth se levantou. — É a filha de um traidor.

Neste momento a voz da Rainha perdeu toda sua neutralidade e endureceu a


uma frieza como a lâmina de uma faca que fez todos na sala se endireitarem em seu
assento.

—Como eu também ou se esqueceu?

O olhar da Rainha, irado agora, descasou no visconde. Ele não se moveu, os


lábios se apertaram com indignação, mas manteve o olhar congelado nela, um
desafio ou uma advertência, ao parecer pensou melhor e não discutiu. Olhou para
Keshav e fez um rápido movimento de cabeça.

As algemas se soltaram. Os braços de Eliana deslizaram adiante e teve que


conter um gemido de dor quando o sangue voltou a correr por seus braços.
—Obrigada visconde. — Disse a Rainha com voz neutra. — Sempre tão
complacente.

Se suas palavras ou seu tom era sem ofensa, a leve curva dos lábios, desmentia
sua fala ao pomposo visconde.

O nariz de Weymouth se abriu, seu rosto passou de vermelho a roxo e parecia


fisicamente estar mordendo a língua. Os outros homens da mesa nem sequer se
atreviam a olhá-lo ou a Rainha. Todos mantiveram seus olhos para baixo ou sobre
ela, a traidora solitária diante deles.

E isto era absolutamente fascinante para Eliana. Inclusive quando a voz da


Rainha endureceu, não pensou nisso e se tivesse alguma dúvida antes que uma
mulher podia conduzir tudo isso, extinguiu-se rapidamente.

Esta mulher elegante, de aspecto angelical que tinha tudo, inclusive controle
completo de seu potente marido.

Ao instante, Eliana sabia que qualquer decisão que fosse tomada sobre seu
destino, qualquer que fosse o castigo aplicado, o faria a Rainha e ninguém mais. Ela
poderia deixar que tivessem o espetáculo daquele circo, mas a última palavra seria
dela.

Em vista disso, Eliana dirigiu sua declaração diretamente a ela.

—Sei que não há forma de provar minha inocência e se tivesse provavelmente


não iria acreditar em nada que dissesse. Tudo o que posso fazer é dizer a verdade,
se quiser ouvi-la e decidir por si mesma.
Este pequeno discurso foi recebido com as sobrancelhas arqueadas da Rainha,
uma ironia do visconde e algumas risadas dos outros homens.

O alfa, no entanto, não parecia divertido. Ele acompanhou sua esposa até o
estrado. — A verdade é uma coisa muito subjetiva. — Sua voz era tão elegante e
masculina como seu corpo, um tom que combinava com o sotaque britânico,
imaginava que era devastador para a mais gelada das fêmeas.

Ou a quem estava a ponto de condenar a morte.

—Está errado. — Disse com firmeza. Isto provocou uma série de murmúrios
dos homens. — A verdade é em absoluto uma das únicas coisas que realmente
importa.

Horrível, horrível, porque iria morrer e a dor queimava através dela e todo o
peso da constatação de que nunca veria Demetrius novamente, finalmente se
afundou e seus olhos se encheram de lágrimas. — E o amor. — Sua voz se rompeu
ao falar a palavra. — Esta é a outra coisa. Perca qualquer um dos dois e a vida fica
sem sentido.

A Rainha, agora sentada, congelou em seu elaborado trono. Ficou olhando


Eliana por um longo momento e logo disse em voz baixa. —Não poderia concordar
mais.

Com os lábios apertados e um longo olhar para os lados e na direção do alfa ao


lado dela, voltou seu olhar para Eliana. — Espera que acreditemos que não tinha
conhecimento do acontecido? Que você e seu irmão não eram parceiros nisso?

—Não espero que acredite em tudo o que disser. Mas a verdade é que não sabia
nada sobre isto.
O visconde acrescentou rotundamente. — Nenhum de nós jamais acreditará
nisso.

Eliana engoliu o nó na garganta, do tamanho de um punho e repetiu uma citação


que leu uma vez, atribuída a Gandhi. —Inclusive se é uma minoria, a verdade
continua sendo verdade.

—Seu pai. — O visconde disse, com ácido na voz. — Era um assassino em


massa. Quer dizer que não sabia nada disso, também?

Eliana fechou os olhos por um momento. Vergonha. A vergonha tão quente e


rançosa, que era como estar mergulhada em vômito. Como uma tatuagem no corpo,
nunca se livraria dela.

—Sim. Eu sei. Agora. Sinto muito. — Ela abriu os olhos e olhou para a Rainha.
— Não compartilho com seus... ideais. Eu queria viver com os humanos, não...

—Viver com os humanos? — A Rainha moveu-se adiante no trono, com as


mãos ao redor dos braços talhados firmemente. Sua expressão era de incredulidade.
— Acredita que podemos viver juntos com os humanos de forma aberta?

Era evidente pela reação dela, com o mover inquieto e os rostos brancos dos
outros, que se tratava de um assunto importante. Ela não sabia sobre suas formas,
se interatuavam com os humanos da mesma forma que o fizeram na colônia
romana, alguns tinham permissão para ir e vir, alguns — como ela, ficavam ali —
mas a julgar pelo pouco que viu até o momento, apostaria que não eram exatamente
revolucionários, que defendiam a igualdade e a abolição da segregação.

Seria esta a verdade que a mataria?


Ficou olhando para a Rainha e decidiu que preferia morrer com esta verdade
que todas as mentiras que lhe acusavam dizer. Ao menos, ali no final, poderia ser
valente.

—Sim. — Disse simplesmente. — De fato, alguns de meus melhores amigos


são humanos.

Mais murmúrios dos homens reunidos, estes mais fortes que antes. Ela nunca
ouviu tantos bobos murmúrios em toda sua vida e se perguntou se podiam respirar
todo o oxigênio do ar e ela se asfixiar até a morte.

Mas o alfa não murmurava. Nem sequer se movia. Apenas inspecionada as duas
com olhos reluzentes, cheios de malicia. Sua voz saiu baixa e muito sombria. — Já
estava vivendo com eles.

Não era uma pergunta, era uma afirmação, vibrando com ameaça.

Não deixarei que me intimidem. —Não havia nenhuma razão para não vivermos
juntos.

Um olhar foi trocado entre o Alfa e sua Rainha.

—Não mais se esconder, é o que propõe? Sem importar as consequências? —


A expressão da Rainha era indecifrável.

Usando sua coragem como armadura, Eliana disse em voz baixa. — Esconder-
se é para ratos. E não somos ratos. —Olhou para o visconde. — Ao menos eu não
sou.

A boca do alfa se abriu. A Rainha riu levemente, assombrada.


—Isto é ridículo! —Gritou o visconde. —Porque estamos ouvindo este
disparate? Apenas esta fala é o suficiente para confirmar sua culpa! Meu senhor. —
Implorou ao alfa. — Por favor! Não podemos seguir adiante? — E apontou para
algo que Eliana não viu antes em sua dor e pânico, algo grande e volumoso no canto
da sala, parcialmente escondido sob um tecido negro.

Uma máquina. Algum tipo de máquina com facas de madeira.

Mas não foi o alfa quem respondeu, foi a Rainha e seus olhos verdes queimavam.

—Sim. Vamos terminar com isso.

Com dedos duros no seu braço, Keshav puxou Eliana para ficar de pé.
CAPÍTULO
TRINTA E NOVE

Mas não foi levada até a máquina como imaginou. A Rainha ordenou: —Traga-
a para mim. —E Eliana foi levada pelo chão frio e até a escada no estrado, forçada
a se ajoelhar diante do trono da Rainha.

A Rainha ofereceu sua mão.

Eliana olhou, confusa. O que significava isto? O que esperava?

—Pegue. — Disse a Rainha. — Se você é inocente como afirma, pegue.

Ela levantou o olhar e olhou fixamente nos olhos brilhantes, procurando.

—Ou deixe que eles tenham seu caminho com você. — A Rainha murmurou
com um olhar ao visconde e a máquina. — Você decide.

Assim Eliana o fez e deslizou a mão fria na mão suave da Rainha.

Houve um silêncio, sem fôlego e embaraçoso. Logo franziu o cenho.

—Jenna? — O alfa moveu-se adiante, irradiando violência, sua mão agarrou o


braço talhado do trono tão forte que seus dedos ficaram brancos.
—Ela é... ela é... — Interrompeu-se, perguntando-se e sentindo a antecipação
na sala aumentar. As pálpebras se levantaram e encontrou o olhar de Eliana com o
seu. O assombro estava ali, junto com a incerteza. — Ela é um escudo.

—O que?

—Um dom. — Refletiu a Rainha, olhando fixamente em seus olhos. Ela parecia
estranhamente impressionada.

—O que significa isto?

—Significa que não posso lê-la a menos que ela deixe. Sua mente é impenetrável.

A sala ficou completamente imóvel. Apertando o braço da cadeira forte o


suficiente, o alfa olhou entre elas. —Por isso nunca fui capaz de localizá-los. Por
isso parecia como se houvessem desaparecido por completo. Ela estava os
protegendo.

Localizá-los? Eliana foi golpeada pelo horror e compreensão repentina. Esta


mulher podia encontrá-los, a longas distancias com apenas sua mente? O pânico se
iluminou através dela como um pavio. Todos na casa de Alexi...

Observando-a com atenção a Rainha disse. — Acho que nem sequer sabia o
que estava fazendo.

—Uma benção. —Disse Eliana. — Assim meu pai chamava. Meu pai, queria
que...

—Lesse as mentes. — A Rainha terminou, com desgosto. —Ouvi que é muito


boa nisso. Entre outras coisas.
—Para esconder todos eles? — Disse com incredulidade Leander.

A Rainha assentiu. —É notável. —Ela inclinou a cabeça, os lábios apertados e


murmurou. — Sempre as mulheres...

O ambiente na sala ficou inquieto e o pânico de Eliana começou a aumentar. Se


não pudesse demonstrar sua inocência com palavras ou permitisse acesso a sua
mente, o que seria da colônia romana? De seus parentes com Alexi?

Demetrius?

—Diga-me como posso deixar que você faça isso? — De repente estava
desesperada, seu compromisso de não se deixar intimidar desapareceu, Eliana
segurou a mão da Rainha mais forte, mas neste momento sua cabeça se levantou e
olhou para o teto alto, com os olhos estreitos.

Ao seu lado o alfa perguntou entre dentes. — O que foi?

Ao que Rainha respondeu. — Temos companhia. — Os homens ao redor da


mesa ficaram de pé, como o alfa, todos em um instante em alerta máximo.

—Quantos? — Grunhiu Leander.

—Apenas um. — A Rainha olhou novamente para Eliana e puxou sua mão. —
E está se movendo rápido.
CAPÍTULO
QUARENTA

D não se incomodou em disfarçar, esconder na lareira, em uma porta traseira


ou uma rachadura no vidro. Ele simplesmente voou diretamente para baixo e
aterrissou sem cerimônia no centro da sala circular, transformando-se em pantera e
saltou pelas portas de ferro da entrada da mansão, em alta velocidade.

Explodiu através das portas e lascas de madeira saíram voando.

Uma vez dentro, usou seu nariz para guiá-lo e correu, grunhindo de forma
assassina, passando pela sala luxuosa vazia, não vendo nada disso, correndo por
puro instinto, o cheiro do medo de Eliana puxando-o adiante como um gancho,
como uma força gravitacional de uma estrela caindo.

Ela estava sentindo dor. Ele sentia e pensou em matar todos. Com um rugido
aterrador, Demetrius passou pelas portas abertas no outro extremo do trono. Tão
logo o fez, cada um dos homens atrás das mesas de ambos os lados dos tronos,
com exceção de Leander e o visconde, transformaram-se em panteras em um
unificado poder que enviou uma onda de choque como uma bomba detonando
pela sala.

Seu coração parou. Em um instante, Eliana viu o que aconteceria.

Havia mais de uma dezena deles, talvez vinte e apenas um Demetrius.


Seria um banho de sangue.

Sem pensar, segurou a mão da Rainha e gritou. — Não!

No instante a conexão foi elétrica, como uma tomada ligada na eletricidade.

Todo o ar foi drenado da sala, a gravidade deixou de existir e ela se precipitou


pelo espaço a mil milhas por hora, muda, cega, paralitica. O sentido de invasão era
agudo, como a náusea que revolvia seu estômago. A bílis subiu pela garganta.

E logo vieram as lembranças, forte e rápido, quase indecifrável, uma a uma,


flashes de cor, vozes, sons e cheiros, violentamente tirado dela por uma força
invisível, como a luz das estrelas aspiradas no vasto vazio, até um buraco negro. Ela
estava sendo inalada, estava esvaziada e o pior de tudo estava tão indefesa como
um gatinho contra tudo isso.

Tão bruscamente como começou, parou. Foi deixada em liberdade, ofegando e


cambaleando, caiu no chão.

Junto a ela, com uma voz clara de comando, a Rainha disse. —Parem!

E todos pararam.

Eliana levantou a cabeça, muito fraca para parar, não muito cega para ver, mas
não entendia o que estava vendo. Em um círculo ao redor de Demetrius havia uma
dezena ou mais de brilhantes animais escuros musculosos, centenas de quilos cada
um, grunhindo, mostrando os dentes longos e as caudas se movendo
ameaçadoramente para trás e para frente. O próprio Demetrius estava em silêncio
e imóvel no centro, com as orelhas planas contra a cabeça, agachado para o ataque.
Além de seu terror, Eliana sentiu uma enorme satisfação ao ver que ele era quase
duas vezes maior que o restante. Que eram enormes.

—Amor. — Disse o alfa, muito neutro junto a Rainha. — Tem algo a dizer?

A Rainha deu um passo diante do outro. Ela desceu a escada lentamente, seu
olhar no grupo de animais grunhindo, sua postura relaxada. Finalmente parou no
círculo.

—Demetrius. — Sua voz era estranha e plana. — Queria te conhecer.

O visconde Weymouth com voz cheia de fúria disse. — Demetrius! Este foi
quem desafiou as ordens, encarregou-se de sequestrar um preso que era nosso por
direito, que se atreveu a entrar em sua casa de uma forma hostil e ameaçadora. —
Apontou Eliana. — Ele é tão perigoso como seu irmão!

—Provavelmente mais perigoso. — Disse a Rainha, ainda em tom uniforme. —


No entanto, por razões muito diferentes.

—Obrigado! — O visconde disse e logo para o círculo de panteras. — Ataquem!

—Para trás! — Disse a Rainha firme, com a mão no alto. Houve um momento
de confusão, de hesitação, até que ela disse. — Não iremos machucá-lo, pelo menos
ainda não. Todos, para trás.

—Majestade!

—Visconde. — Jenna virou a cabeça e deu a Weymouth um olhar que o fez


apertar a mandíbula e afundar-se novamente na cadeira, apertando os braços até os
nós dos dedos ficarem brancos.
Movendo-se suavemente a Rainha disse. — Deixe-me repetir mais uma vez para
que não tenha nenhum equívoco. Eu disse para trás.

Leander suspirou e cruzou os braços sobre o peito.

Houve um momento de contrariedade, um mover silencioso de patas. D


observava com olhos cautelosos até que se retiraram a uma distância segura, mas
ele ainda não voltou a forma humana e Eliana esperou, sentindo seu coração
acelerado, ouvindo o que viria a seguir.

Para D, a Rainha disse em tom suave. —Por favor, mude. Precisamos conversar.

Olhou dela para Leander e ao visconde. Pouco a pouco, seu focinho se curvou
para trás mostrando os dentes.

—Eu entendo. — Disse ela, soando como se de fato entendesse. — Mas


realmente precisamos conversar.

Ele fez um som na garganta, um ruído baixo de descontentamento. A Rainha


esperou pacientemente, imóvel, com uma expressão que não revelava nada. Suas
orelhas planas se deram a conhecer e sentiu o ar com seu nariz. Por último a enorme
pantera brilhou e se dissolveu em uma nuvem flutuando de vapor, logo fusionou-
se na forma de um homem.

Um homem muito, muito nu, tatuado, musculoso, alto e enorme.

Por todas as partes.

A Rainha deu a volta, ficou de costas para ele. Seu rosto ficou vermelho e seus
olhos estavam enormes e redondos. Levou uma mão à boca e tossiu, uma dama. —
Obrigada. Precisará de roupas. Eu, um, não sei se temos algo... — Tossiu
novamente. — Do seu tamanho, mas tenho certeza que o visconde pode conseguir
algo. — Ela o olhou com um brilho travesso nos olhos. —Talvez pudesse lhe
oferecer sua calça, visconde.

Isto não era uma pergunta.

Eliana nem sequer precisou olhar para sentir sua indignação. Provavelmente não
podia olhá-lo de qualquer forma, tudo o que podia ver era Demetrius. O belo e
poderoso Demetrius, olhando além da Rainha, para ela, com os olhos escuros
brilhantes e ferozes.

—Majestade! — O visconde parecia ter uma apoplexia.

—Sua calça. — O alfa repetiu com frieza, olhando com desaprovação aberta o
rosto vermelho de sua esposa. Era evidente que isto não foi o que pensou para esta
reunião. —Agora.

Em plena ebulição, o visconde desabotoou sua calça preta, desceu-a sobre as


pernas e a entregou. Leander jogou para D que a pegou e vestiu.

Ficou um pouco curta, as coxas apertadas, mas conseguiu entrar nela e puxar o
zíper. A cintura ficou muito apertada, então deixou o botão aberto. Cruzou os
braços sobre o peito e ficou olhando com olhos estreitos a cabeça da Rainha por
trás.

Casualmente, arrastando as palavras disse. —Estou vestido, minha senhora.

Eliana sentiu repentinamente uma louca vontade rir. Leander, no entanto, não
parecia encontrar nada divertido. Observava D com a intensidade de um laser,
similar a um predador contemplando sua comida.
A Rainha se virou novamente para ele, recuperou a compostura. — Como
amavelmente o visconde apontou, rompeu várias leis sagradas.

D não disse nada por um momento

—Suas leis não são as nossas leis. — Disse D com a voz como aço. — E ela
não é culpada de nada, exceto confiar nas pessoas erradas.

A Rainha pareceu impressionada. — Mesmo se o que diz for verdade, este tipo
de confiança fora de lugar tem um preço. Especialmente quando resulta na morte
de pessoas inocentes. —Sua voz endureceu. — Sobretudo quando significa que
seremos perseguidos, até mais que antes. Tudo irá mudar agora, para pior. Deve
haver um castigo adequado.

D adiantou-se com um grunhido baixo e Leander também o fez. Os dois se


enfrentaram a ambos os lados da Rainha que, a julgar por sua expressão, estava mais
irritada que alarmada.

—Por todos os meios, Guerreiros, siga adiante e tente me intimidar. Mas


quando eu me transformar em um dragão e comê-lo, será muito tarde para lamentar
seu erro.

D olhou por um momento. Logo em voz muito baixa disse. —Dragão?

Leander respondeu. — Tão grande quanto esta sala, idiota. Assim escolha
cuidadosamente suas palavras e mostre um pouco de respeito.

A Rainha sorriu com doçura. —Ou talvez um urso Kodiak, assim não causaria
danos nos afrescos novamente. — Ela olhou para cima e D seguiu seu olhar, como
Eliana.
Ali, entre as nuvens cor pastel e os deuses em um banquete, com querubins
pintados no teto, havia profundas e longas rachaduras e buracos, onde o gesso foi
esmagado e arrancado como se algo bateu neles. Algo enorme.

D olhou para ela com incredulidade e ela encolheu os ombros. — Aprender a


voar é um pesadelo, deixe que te diga. Nunca deve tentar dentro de casa.

D disse entre dentes. —Celian disse que você era racional, mas agora vejo que
estava errado.

—Oh pelo contrário! De fato, tenho uma proposta muito racional para você.

Sua mandíbula se apertou. Com um olhar lívido e ameaçador para Leander,


disse. —O que é?

O doce sorriso da Rainha não hesitou. — Dê sua vida no lugar da dela e a


deixaremos viver.

Isto sacudiu a sala, até mesmo Leander, cuja cabeça deu a volta para olhar
confuso sua esposa. Mas ninguém mais se surpreendeu que Eliana, quem levantou-
se de um salto.

—Não! — Gritou. — Ele estava apenas tentando me proteger.

—Bom, alguém tem que pagar. — Disse a Rainha graciosamente. — Sinto


muito, mas é uma de nossas leis antigas. A vida de um traidor deve ser ceifada.
Assim que, ou morre por você ou...

—Sim. — Disse Eliana no mesmo instante, compreendendo. — Vou morrer


por ele.
A Rainha riu da forma mais estranha e continuou, de alguma forma primitiva e
misteriosa, como se acabasse de ganhar uma aposta consigo mesma.

D gritou. — Não!

Leander se colocou diante da Rainha e de frente a ele, D grunhiu e ele também,


quase agachados se preparando para atacar. Ela disse para Eliana com firmeza. —
Irá receber o castigo que ganhou por seus próprios atos de desobediência?

—Sim.

—E não irá resistir de nenhuma forma? Vai nos permitir proceder como
desejamos? — Ela levantou uma mão para a máquina no canto.

Eliana assentiu.

D grunhiu. — Se algum de vocês bastardos colocar um dedo sobre ela matarei


a todos!

—Demetrius...

—Não Ana, não vou deixá-la fazer isto!

—Está não é sua decisão!

—Você deve saber que será muito pior agora que está pagando por ele também.
— Interrompeu a Rainha, sem deixar de sorrir de forma estranha, combinando
agora com um olhar fulminante. — Vai levar muito mais tempo.

Foi este sorriso que finalmente o fez. Algo se endureceu dentro dela.

Em uma voz fria e pesada como ferro, Eliana disse. —Faça. Seu. Pior.
Alcançou um lugar dentro dela que não sabia que existia, um lugar carente de
medo ou dúvida e a Rainha soube a verdade, como D, que deixou escapar um rugido
ensurdecedor indignado.

A cabeça da Rainha girou bruscamente. Ela lhe disse. — Apenas se lembre de


que ela se ofereceu por você, Guerreiro. E lembre-se que foi antes de saber.

A Rainha estendeu a mão e agarrou sua mão.

E Eliana viu com horror como o guerreiro feroz e orgulhoso se consumia.

Seus olhos se ampliaram, sem ver. Sua boca se abriu. Sua mandíbula se afrouxou.
Um tremor passou por seu peito. Logo, com graça lenta e suave, caiu de joelhos no
chão diante da Rainha e inclinou a cabeça.

A Rainha fechou os olhos e soltou um som baixo pela garganta. Ela inalou, longa
e profundamente, quando exalou como se um peso houvesse se levantado dela.

—Winston Churchill disse uma vez: Uma mentira consegue abrir caminho por
todo o mundo antes da verdade ter a oportunidade de vestir a calça. E demonstrou
ser verdade, Guerreiro. —Olhou para D a seus pés, com o peito nu, vestido com a
calça de outro homem e riu em voz baixa. —Literalmente.

—Jenna? — Leander deu um passo adiante.

Virou-se e olhou brevemente seu marido e finalmente deixou cair o olhar sobre
Eliana e foi diretamente a ela. — Você tinha razão. A verdade é um fato. Inclusive
se a maioria acredita ou neste caso dois.

Sua boca se secou, o coração começou a bater muito forte. E assim, tão
selvagem, deixando o sangue correr forte nas veias, como uma tempestade
descontrolada. Ela tentou engolir e não pode. Tentou se mover e não pode. Era
como se alguém fora dela estivesse controlando todo seu corpo, uma força
poderosa que arrancou sua vontade e a deixou gelada. Ofegante. Atônita.

—Jenna. — A voz de Leander estava mais firme.

Olhou novamente para Leander e sorriu, um sorriso verdadeiro, que iluminou


todo seu rosto. —Ela é inocente. E ele também. Nenhum deles é um perigo para
nós.

A tensão na sala relaxou como se o fôlego contido tivesse sido expulso. Uma a
uma, as panteras se transformaram em vapor e depois ficaram ali no silêncio da
grande sala como nuvens pequenas e brilhantes.

—Eliana. — Disse a Rainha, ainda segurando a mão de D. —Peço desculpas.


Este foi um teste, um pelo qual espero que me perdoe. Não irei machucá-lo. Venha
aqui.

Trêmula e com um zumbido selvagem em seu sangue. Eliana encontrou a


vontade para se mover. Levantou-se lentamente e aproximou-se da Rainha, olhando
todo o tempo para Demetrius, que ainda estava de joelhos, imóvel, paralisado.

A Rainha estendeu a outra mão. Sorrindo, ela murmurou. — Está pronta para a
verdade com V maiúsculo?

Uma vez mais, a boca de Eliana não funcionou. Seus lábios não formavam as
palavras.

—Não tenha medo. Há algo que precisa ver, se me deixar entrar. —Seu sorriso
ficou mais amplo. —Butterfly.
E assim Eliana segurou a mão estendida e finalmente, finalmente entendeu.
CAPÍTULO
QUARENTA E UM

A verdade, como a honra, o valor e amor, não vinha em tons cinza. Ou a tinha
ou não. Ainda mais, não havia meio termo.

Às vezes precisava toda uma vida para descobri-la, ás vezes era clara e simples
como amanhecer. Também como a honra, o valor e o amor, às vezes a verdade
podia se perder e tinha que encontrar seu caminho de volta, arrastando-se sobre os
campos de vidros quebrados, os cadáveres, os joelhos e as mãos ensanguentadas e
curas, até chegar a um caminho mais doce que antes, pelo que sofreu neste tempo.

Eliana se encheu com esta doçura, grata agora, seu coração tão cheio que podia
explodir. Viu e sentiu tudo o que D viu e sentiu nos últimos três anos — e agora
ela entendia. Entendeu tudo.

E o amava ainda mais por isso.

—Não pôde me dizer por que foi Constantine. — Sussurrou ela, a voz quebrada
nas palavras. A Rainha ainda segurava as mãos de ambos, proporcionando uma
conexão que lhe permitia ver dentro da mente de D e ele ver dentro dela. —Estava
te protegendo do meu pai... e estava me protegendo dele, também. Todos estes
anos, cuidou de mim, assegurando-se que não me acontecesse nada. Assegurando-
se que sempre estivesse bem. E logo, ao final...
Uma cena de uma imagem pintada em sua mente: uma sala circular de pedra,
dois homens lutando, uma mulher nua acorrentada na parede. Seu pai afundando
uma faca nas costas do outro homem, o homem caiu de joelhos, a mulher gritou.
D em uma porta, Lix e Constantine na outra, olhando com horror. Seu pai lançou
outra faca para D, a lâmina se afundou profundamente em seu peito.

Constantine, leal e protetor com seu irmão, explodiu depois de anos de abuso
por parte de seu pai, apontou sua arma e apertou o gatilho.

Seu pai caiu lentamente no chão.

Logo, o Bellatorum de D o ajudou a ficar de pé, Constantine lhe entregou a arma


para que pudesse levá-lo, Eliana patinou para parar na porta.

—Ele descobriu sobre nós, você e eu. —D disse com voz rouca, tremendo tanto
como ela, o rosto cheio do peso de tantas lembranças, tanta dor e perda. —Teria
me matado, teria matados todos nós se Constantine...

—Eu sei. — Soluçou de joelhos junto a ele. — Eu sei.

Ela soltou a mão de Jenna e colocou os braços ao redor do pescoço de D.

—Mas não sabia quando disse que iria morrer por mim. —Sussurrou em voz
rouca. — Não sabia e ainda assim... você...

—Porque eu te amo, idiota. — Ela se engasgou. As lágrimas corriam por seu


rosto e caia pelo queixo, todo o corpo tremendo. —Pensei que iria perder todos
outra vez ao invés de perceber que é a melhor parte de mim. Nunca nada foi tão
bom como quando estive com você e se não puder ficar com você, então ficarei
bem morta.
Então ele colocou os braços ao redor dela e se ajoelharam ali juntos em silêncio,
movendo-se suavemente, até que seus lábios encontraram os dela e a beijou com
todo o desejo, posse, ternura e amor que sempre sentiu por ela, tudo entre eles
queimava e brilhava e era uma dor muito doce.

Eu te amo, deus como te quero, como sempre amarei até o dia em que morra.

Alguém limpou a garganta.

—Perdão. — Disse Leander de forma educada. —Mas talvez queiram... hum...


se limpar depois da longa viagem. E então todos podemos conversar mais tarde.

D se separou, respirando com dificuldade e assentiu. Mas Eliana apenas podia


olhar para seu amado guerreiro, sem querer deixar que seus olhos se desviassem
sequer por um segundo. Ficou de pé e puxou-a com suavidade junto a ele, envolveu
o braço apertado ao redor de seus ombros e a colocou sobre o braço e ainda assim
ela olhava para ele, abismada.

—Minha colônia. — D começou, mas a Rainha o interrompeu.

—Estão a salvo conosco, Demetrius. Mas, infelizmente, não posso garantir que
seguirão assim. O Expurgari sabe da existência de todas as colônias confederadas,
exceto uma no Brasil. Razão pela qual a maioria de Sommerley foi levada ali. Não
fizeram nenhum movimento contra nós ainda, mas a partir de hoje e o que
aconteceu em São Pedro...

Sua voz se apagou.

—Roma será o primeiro lugar a que irão. — Disse D com voz sombria.
A Rainha assentiu. — E irão querer vingança por terem sido enganados durante
tanto tempo. Os convidamos para irem ao Brasil, que é grande e bem escondido,
melhor fortificado que aqui. Do contrário, gostaria de recomendar que estabeleçam
uma nova colônia com rapidez, em algum lugar seguro. E como disse a Celian, os
convidamos a fazer parte do Conselho e da Confederação, em seus próprios termos.
A decisão é sua. De qualquer forma... — Levantou uma mão para Leander, que a
segurou, puxando-a contra ele com um olhar duro para D que indicava que não
estava totalmente de acordo com este plano. —Consideramos vocês da família
agora. Faremos tudo a nosso alcance para ajudá-los, se assim decidirem.

Algo no rosto de D suavizou. Olhou dela para o alfa, que estava protegendo
Jenna com seu corpo exatamente da mesma forma que D protegia sua Eliana. Ele
inclinou a cabeça em um movimento que era ao mesmo tempo agradecimento e
admiração a contragosto e logo olhou para Eliana, suas pernas nuas e o terno, sob
o qual não usava nada.

—Terno adorável. — Murmurou.

—Calça bonita. — Murmurou novamente.

Ele sorriu. — Entre os dois formamos um traje completo.

Ela riu levemente e colocou o rosto em seu peito.

—Há vários quartos na ala norte que os convidamos a usar, sempre e quando
quiserem. — Disse Leander, com a voz menos tensa. —O visconde pode mostrar
o caminho.

Houve um rugido de indignação do visconde, que ela poderia ter imaginado


devido ao rugido em seus ouvidos, mas logo se moveu até a porta, com a camisa
descendo pelas coxas nuas, enquanto se movia com rigidez em uma cueca boxer de
seda azul bebe. Seu rosto estava lívido e Eliana sabia pelo olhar em seus olhos que
fez um inimigo.

E assim talvez, a Rainha.

Mas D a moveu e ela se deixou levar para longe, nos braços dele.
CAPÍTULO
QUARENTA E DOIS

O casamento foi um assunto sensível e solene, votos e alianças trocadas sob o


dossel de galhos de pinheiros e flores silvestres nas profundezas do antigo bosque
selvagem de Sommerley.

Eliana insistiu que fosse ao ar livre e a noite. Suas três coisas favoritas, disse e D
soube sem perguntar que era a número um, porque ela demonstrou de milhares
maneiras diferentes.

Lix e Constantine estavam ali, claro, junto a Celian, que oficializava. Jenna e
Leander foram testemunhas, como a pequena quantidade de pequenas criaturas do
bosque, que não viam, mas sabia que eram atraídas pelas chamas das velas, o jogo
das luzes nas árvores e o som de vozes, sussurros e reverentes.

D repetiu as palavras de amor que lhe disse antes, os votos de honra e lealdade,
as palavras rituais que os uniriam para sempre.

Na verdade, eles já estavam unidos além do que qualquer palavra poderia


resultar. Estavam presos por correntes que nunca poderiam se romper, as correntes
do amor que eram ainda mais fortes que aço em uma chama. E enquanto olhava
nos olhos de sua amada, cheios de lágrimas dizendo as palavras a ele em voz baixa
e trêmula, D não pode evitar sentir algo que nunca sentiu antes na vida.
Abençoado.

Os últimos meses foram uma extraordinária mistura de felicidade e esperança,


caos e confusão, mudanças que alteraram a vida deles. Depois de uma reunião inicial
do Bellatorum e o Conselho de Alfas, a colônia romana se uniu a Confederação e
aceitou Jenna como sua Rainha. E que reunião foi!

Esperando encontrar D e Eliana presos ou torturados ou pior, os três membros


do Bellatorum chegaram a Sommerley poucas horas depois de D. Entraram na casa
da mesma forma que ele e ficaram de joelhos como ele o fez, mas por uma razão
muito diferente.

Um lindo e puro falcão peregrino voou na sala de teto alto do trono através de
uma janela aberta. Deu três voltas preguiçosas sobre a cabeça dos guerreiros,
elevando-se com graça no silêncio enquanto a olhavam com os pescoços esticados
e as bocas abertas, logo desceu sobre a madeira talhada de um dos tronos, sacudiu
suas asas e esperou com paciência imóvel enquanto Leander se aproximava,
estendendo um robe de seda marfim pesado e bordado. O falcão branco se
converteu em uma nuvem brilhante de nevoa e se moveu dentro do tecido, agitando
lentamente e enchendo-o, até que a forma de uma mulher surgiu. A mulher amarrou
o robe pela cintura e se virou para os guerreiros com um acolhedor sorriso de boas-
vindas.

Um por um, em silêncio, ficaram em um joelho e inclinou a cabeça com respeito.

E quando a rainha Ikati perguntou porque, foi Celian quem respondeu,


encolhendo-se na jaqueta e levantando a manga da camisa, mostrando a tatuagem
do olho de Hórus em seu musculoso ombro esquerdo, a tatuagem que todo
Bellatorum compartilhava.

Um antigo símbolo de proteção e de poder real, o olho de Hórus era um deus


egípcio, um dos deuses mais antigos e mais importantes do Egito, das catacumbas
romanas às cidades Ikati remontavam de sua linhagem.

Deus da vingança, deus da guerra, sempre Hórus era assim representados nos
textos antigos e hieróglifos como um falcão peregrino.

Isto foi recebido como um sinal. E quando o Bellatorum descobriu que ela e
Eliana ficaram amigas, foram declarados familiares e nenhum dano cairia sobre eles
ou sua colônia pelo decreto da Rainha e isto foi recebido como outro sinal.

A decisão de se unir a Confederação foi fácil depois de tudo.

O que não foi fácil, foi D aceitar Alexi.

Ele de má vontade admitiu que o homem se manteve fiel à sua palavra. Ajudou
todos os membros restantes da pequena colônia de Eliana em Paris a se reunir com
a antiga colônia em Roma e se assegurou que nenhum rastro deles pudesse ser
encontrado por qualquer um de seus inimigos. Mas D não queria encontrá-lo nunca
mais.

A Rainha e Eliana se aproximaram mais. Ao final resultou que a duas tinham a


mesma opinião quando se tratava de que os seres humanos e os Ikati vivessem
juntos e em paz. A Rainha era metade humana, depois de tudo. Era um fato que
parecia pouco provável depois do que Caesar fez, mas um fato sobre o qual
decidiram trabalhar, no entanto. Sua existência já não era um segredo e as ameaças
a eles se multiplicaram, mas a Rainha se negou a abandonar Sommerley e Eliana se
negou a deixar a Rainha.

—Ela sabe o que uma mulher sente em um mundo de homens, Demetrius. —


Seu amor lhe disse. — Além disso, sempre quis uma irmã. — Então ela ficou nas
pontas dos pés e o beijou, fazendo-o esquecer o que estavam conversando.

Assim ficaram nos últimos meses em Sommerley, planejando o futuro.


Planejando este lindo casamento, que agora chegava ao fim.

—Pode beijar a noiva. — Celian murmurou com um olhar para D e um lento e


preguiçoso sorriso em seu rosto. Celian soltou o cordão de seda que unia os pulsos
de D e Eliana e deu um passo atrás, com as mãos cruzadas nas costas.

E quando Eliana piscou para ele, suas bochechas ficaram ruborizadas, os olhos
brilhantes, o pulso se agitou violentamente na base da garganta, D segurou seu rosto
entre as mãos e colocou sua testa na dela.

—Para sempre. —Murmurou.

—Para sempre. — Murmurou, uma lágrima descendo por sua bochecha.

Logo, com o coração como um martelo no peito, D pressionou os lábios nos


dela.

***

A luz se moveu sob suas pálpebras.


Pontas dos dedos roçaram seus lábios.

D abriu os olhos e olhou para Eliana. Era de manhã e estavam em Sommerley


por um tempo. Ao perceber o que acontecia, começou a rir. Envolveu seus braços
ao redor dela e a puxou para o peito, rindo em seu cabelo.

—O que é tão engraçado? — Murmurou.

—Tive um sonho.

Ela ficou imóvel. —Um sonho ou uma premonição, D?

Ele apertou os lábios contra seu cabelo. — Ambos.

Ela levantou a cabeça e o olhou, as sobrancelhas levantadas.

Estavam nus em uma cama muito grande, apoiados em lençóis muito finos, em
um quarto que era muito elegante para seu gosto. A Rainha e seu Alfa não os viam
há dias, passavam seu tempo, sobretudo na cama, conversando muito, fazendo
amor ainda mais.

Tinham que compensar os três anos perdidos, depois de tudo.

—Bom, vai me contar a respeito? — Eliana insistiu, batendo em seu peito com
a ponta do dedo. — Foi bom? Ruim? Foi...

—Foi perfeito. Tudo será perfeito. —Sussurrou e logo se inclinou para dar-lhe
um beijo suave e quente. A mão deslizou para segurar seu rosto.

Quando se separaram, ambos respiravam rápido. —Nem sempre será capaz de


me distrair assim, sabe. — Disse ela, não realmente séria.
—Oh sim, serei. —Apenas para demonstrar a beijou novamente.

Quando ele se afastou desta vez, levou um momento para abrir os olhos.
Quando o fez, suas pálpebras estavam pesadas e a beijou novamente.

—Merda. — Ela suspirou. —Odeio quando tem razão.

Suas sobrancelhas se ergueram. — Pensei que já estivesse acostumada a estas


alturas.

Isto lhe valeu um olhar. —Não tem tanta sorte.

—Hum. — Ele arrastou os dedos lentamente ao longo de sua coluna,


desfrutando de seu arrepio e a suavidade de sua pele. — Tem certeza que não quer
se rebaixar um pouco mais? — Murmurou brincando. — Seria realmente uma
humilhação.

Sim, seria. Desde que a Rainha lhe mostrou a verdade com V maiúsculo, como
gostava de chamar, se desculpou várias vezes, toda sentida e sincera e cada vez ele
a impedia com um beijo. Eles não iriam olhar para trás nunca mais. Iriam olhar para
frente.

Porque agora sabia exatamente o que esperar.

Mas ela lhe tomou a palavra. Seu olhar suave foi substituído pelo desgosto
instantâneo e mordeu os lábios. Ela balbuciou. — Eu... eu deveria ter confiado em
você desde o início. Deveria ter deixado que se explicasse. Estou tão...

Isto foi até onde ele a deixou ir. Tinha os lábios sobre os dela antes que pudesse
falar novamente.
—Estou começando a pensar que isto é uma desculpa para beijos. — Murmurou
contra sua boca quando ele se afastou. Seus olhos se levantaram e o olhou suave.

Suas sobrancelhas se levantaram. —Está reclamando?

—Não. Amo seus beijos. — Ela se aconchegou perto dele, pressionando o


ventre no dele. — Quase tanto quanto amo outras coisas. — Então ela riu.

Sua mão desceu, além da curva dos quadris, indo diretamente para seu redondo
e suave traseiro, não pode evitar lhe beliscar. Ela gritou em protesto.

—Tem sorte de que tudo o que faço é beliscá-la, garota. Acho que merece algo
um pouco mais duro por sair correndo sem minha permissão para ver seu amigo
gangster Gregor.

Ela lhe contou tudo sobre Gregor, sobre como a ajudou e era um amigo —
puramente platônico — e iria se assegurar que o homem permanecesse a salvo,
porque estava preocupada com ele. E o que a preocupava, se convertia em
prioridade para ele.

—Sua permissão? — Ela repetiu com voz inocente, brincando, batendo os


cílios. — Certo. Terei certeza de pedir da próxima vez.

—Apenas terei que bater em você, garota, se não fizer. — Advertiu, passando a
mão pelo traseiro dela e franzindo o cenho.

—Afff. Tem uma obsessão com surras! — Ela empurrou contra seu peito, mas
ele a tinha em um punho apertado e não se moveu.

—Por favor. —Zombou. — Não atue como se não gostasse.


Parecia mortificada. — Claro que não gosto.

Ele a interrompeu novamente com um beijo, desta vez mais duro e exigente.
Ele pressionou seu corpo com o dela, rodou sobre ela e quando ela envolveu os
braços ao redor de seu pescoço, ele prendeu seus pulsos e colocou-os acima de sua
cabeça, prendendo-a.

—Verdade com V maiúsculo, lembra-se? —Disse com a voz rouca, os olhos


ardendo.

Ela conseguiu parecer indignada durante uns segundos. Logo se dissolveu em


risadas. —Bom. Talvez goste um pouco.

—Melhor. — Disse sorrindo agora. Ele soltou seus pulsos e afastou uma mecha
de cabelo azul de sua bochecha. Puxou-a. —Tinha a intenção de lhe perguntar sobre
isso.

Ela levou a mão ao cabelo. —O que? Não gosta?

—Na verdade... sim. Mas me disse que o azul e o preto era para combinar com
seu estado de ânimo. Seu estado de ânimo habitual.

—E?

—Bom. — Roçou os lábios em sua testa. — E se este não for mais seu estado
de ânimo atual? Gostaria de mudar de cor?

Ela piscou para ele, de repente tímida. — Como sabe que não é mais meu estado
de ânimo habitual?

—Devido a que tenho a intenção de garantir isso.


Um sorriso se estendeu por seu rosto. —Bom, neste caso sim, mudaria de cor.

—Para qual?

O sorriso dela ficou deslumbrante. Quando ela realmente sorria, sorria com tudo
o que tinha. O coração de D disparou.

—Não sei. — Disse sua amada. —Qual a cor da felicidade?

Olharam um para o outro em silêncio, o futuro alçando voo entre eles como um
cometa.

—Você sabe que as coisas ficarão pior. — Sussurrou. — As coisas ficarão ruins
para todos nós.

Ela assentiu, seu sorriso sumiu. —Eu sei. Primeiro o Expurgari, agora este grupo,
a Seção Trinta...

D ficou rígido com ira, lembrando-se do que a Rainha mostrou, as lembranças


de Eliana como um filme acelerado dentro de sua própria mente. Já tinha se vingado
daquele bastardo Keshav por colocar as mãos sobre ela, ele não voltaria tão cedo
ali, mas as imagens do médico alemão de olhos frios, realmente o incomodou. Olhar
em seus olhos era como olhar um abismo. Seu sonho não revelou nada do alemão.

—Acha que são outra facção religiosa?

Eliana exalou e balançou a cabeça. — Pior... uma corporação.

—Como pior?

—Os fanáticos religiosos, quase podem ser entendidos. Seguem uma crença e,
no entanto, por mais deturpada que uma crença possa ser, ainda é algo que parece
sagrado. Isto é mais previsível, seus objetivos mais claros. Querem-nos mortos
porque pensam que somos o mal, simples assim. Sabemos o que esperar. Mas para
uma corporação, apenas importa uma coisa...

—Benefícios. — Percebeu, com uma sensação ruim no estômago.

Seus olhos, olhando para ele, se abriram mais. — Se estão atrás de nós por causa
de dinheiro, porque pensam que podem se beneficiar de alguma forma... — Ela
engoliu. — O Expurgari apenas quer nos matar. Mas há coisas muito, muito piores
que a morte, Demetrius.

Ele não respondeu, apenas lhe devolveu o olhar, sabendo sem dúvida que ela
tinha razão. Pior que a morte era a vida em correntes. Pior que a morte era a
escravidão. Ser cobaias cativas.

A ganância era um dos sete pecados capitais por uma boa razão.

—Eu sei. — Sua voz ficou mais suave. — Como ficar separado de você, por
exemplo.

Ela disse. — Quer me dizer algo? Era sobre isso seu sonho?

Puxou-a para mais perto, segurou seu rosto nas mãos e a olhou nos olhos. —
Bebê, apenas precisa confiar em mim sobre o sonho. Pode fazer isto?

—Oh. — Respirou ela, com os olhos fixos nele. — Acho que preciso de mais
prática com a coisa... talvez possamos praticar a confiança no chuveiro. Funcionou
muito bem na casa de Alexi. —Os lábios dela se abriram lentamente e de forma
maliciosa.
Ele lhe devolveu o sorriso. Logo, em um movimento veloz, puxou os cobertores
dos dois e levantou Eliana sobre o ombro.

Havia pouco tempo para se preparar para o que esperava. Com a morte do Papa
e o massacre no Vaticano, o mundo inteiro agora sabia de sua existência e o mundo
inteiro estava alvoroçado por isso.

O futuro, sombrio e incerto, tinha grande influência. Mas neste momento, ali
naquele pequeno oásis no meio da loucura, D e Eliana tinham um ao outro e
precisavam de mais prática com essa coisa chamada confiança. Assim deu uma
palmada dura no traseiro dela, que a fez soltar uma maldição, D foi para o banheiro
com sua mulher no ombro, chutando, gritando e batendo em suas costas com os
punhos.

—A resistência é inútil, principessa. — Ele lhe deu outra palmada, um amplo


sorriso se formou em seu rosto. — Quantas vezes tenho que dizer? Resistir é inútil.

Merda, amava seu dom. E ela, o duende em seu ombro. Sua esposa.

A amava mais que tudo.


EPÍLOGO

O soro foi retirado, o laboratório que o produziu completamente destruído,


junto com todos seus registros. Foi enviado na frente em grandes contêineres de
carga com o depósito de armas. Não queria correr o risco com as malas de dinheiro
e as colocou no iate que alugou, onde atualmente estava na rota para seu destino
final.

Sião, a terra dos deuses, escondida no profundo, profundo da selva africana,


teria que esperar. Eliana sabia sobre seus planos de construir a fortaleza nas margens
do Rio Congo, assim mudou de ideia e se dirigia para a Espanha.

Sempre quis conhecer as catedrais góticas e esculturas fabulosas de Gaudí, ver


as touradas e tomar um vinho em uma praia banhada pelo sol.

Conhecer algumas bailarinas flamencas de olhos negros e saber se seus gritos


superaram o das bailarinas de cancã na França.

Era apenas ele e os outros cinco que lhe ajudaram no Natal, naturalmente Silas
não era confiável. Ali, no escritório particular do Papa, depois que a Guarda Suíça
saiu correndo quando viram o corpo detonado de Caesar se regenerar, se assegurou
que Silas tivesse o mesmo fim que tão espetacularmente proporcionou a ele.

Caesar cortou a garganta dele de orelha a orelha e logo afundou a faca de Silas
diretamente na nuca dele.
Morreu de boca para baixo, em espasmos e silvos em uma poça cada vez maior
de seu próprio sangue.

Muito ruim, tão triste e porra, em boa hora.

A ironia não passou desapercebida para Caesar que teve todo seu passado
definido pelo que não podia fazer e agora todo seu futuro se definia pelo que apenas
ele não podia fazer, mas todos os demais na Terra sim: morrer.

Seu corpo rejeitava a morte como uma máquina de café rejeita uma cápsula
estragada. Recebia tudo no primeiro momento e depois cuspia bruscamente de
volta.

Não, não vamos pensar nesta bobeira, obrigado. Tente novamente.

Na última semana, testou a si mesmo. Afogamento, eletrocussão, uma queda e


uma dose dupla de um medicamento forte, um tiro na cabeça com uma arma, para
o caso do primeiro tiroteio ser um golpe de sorte e sempre era imune. Nada
funcionava. Ele morria na verdade, de forma muito dolorosa também, mas em
poucos momentos seu corpo simplesmente regenerava e bem, era isso.

Na verdade, poderia ter algo melhor?

Acreditou não ter sido abençoado. Sem dons. Todos acreditaram. Mas agora
Caesar compreendia que tinha o maior dom de todos.

A imortalidade.

Podia não se transformar em vapor, não se transformar em pantera, mas qual o


problema? Não podia deixar de pensar nisso.
Oh que dia feliz, tão feliz.

Oh que lindo dia!

Quando Caesar ficou ao lado do timão do iate ao lado da morena que era capitã
e claro, teria que morrer no final desta viagem e o vento forte jogava seus cabelos
nos olhos, sabia que todas suas manhãs seriam inclusive melhores.

FIM
Próximo

SINOPSE
Seis anos depois de uma tragédia impactante que a deixou emocionalmente e
fisicamente com cicatrizes, Ember Jones vive uma vida de isolamento e tranquila
em Barcelona. Decidida a manter seu problemático passado em segredo, ela
mantém sua cabeça e coração bem fechados. Até o dia em que um lindo e misterioso
desconhecido entra em sua vida e seu mundo cuidadosamente controlado se rompe
para sempre.

Christian McLoughlin é diferente de qualquer homem que Ember conheceu.


Rico, culto e absolutamente carismático, também tem seus próprios segredos
sombrios. Sucumbem a atração inegável entre eles e embarcam em uma apaixonada
relação, mas as coisas ficam explosivas quando expõe a verdade sobre Christian e a
razão pela qual estava em Barcelona. Quando seus escuros passados chocam, os
dois amantes improváveis se encontram presos em uma rede de perigo e engano,
ao qual nenhum deles poderia sobreviver.

O fio da escuridão, onde caçador se converte em presa, onde ninguém é


confiável e o amor é o jogo mais perigoso de todos eles.

Lançamento especial
Halloween 2017

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