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georgiano na América, eu o encontrei

trabalhando em seu quarto, e, a partir dos espécimes


espalhados em seu quarto, imediatamente compreendi
que sua genialidade era de fato profunda e autentica.

O Chamado de Cthulhu
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Eu acredito que, algum dia, ele será reconhecido como
um grande decadentista, pois conseguiu cristalizar
em barro, e irá um dia espelhar em mármore, aqueles
pesadelos que Arthur Machen evoca em prosa e Clark
Ashton Smith torna visível em verso e pinturas.
Soturno, frágil e de um aspecto um tanto descuidado,
ele virou-se languidamente a minha batida e me
perguntou o que eu queria sem se levantar. Quando eu
disse quem era, ele mostrou algum interesse, pois meu
tio havia instigado a sua curiosidade ao investigar seus
sonhos estranhos, mas nunca havia explicado a razao
de seu estudo. Eu nao aumentei o seu conhecimento
nesse assunto, mas busquei com certa sutileza extrair
dele o que sabia. Em pouco tempo, convenci-me de
sua absoluta sinceridade, pois ele falava dos sonhos de
uma maneira que ninguém poderia errar. Os sonhos
e seus resíduos subconscientes influenciaram sua arte
profundamente, e ele me mostrou uma estátua mórbida
cujos contornos quase me fizeram estremecer com
a potencia de sua sugestao sombria. Ele nao conseguia
se lembrar de ter visto o original daquela coisa exceto
pelo baixo-relevo de seus sonhos, mas os contornos se
formaram insensivelmente sob suas maos. Sem dúvida,
era a forma gigante de que falou incoerentemente
em seu delírio. Ficou claro que ele nao sabia nada do
culto secreto, salvo aquilo que o incansável catecismo
do meu tio deixara escapar, e novamente eu me esforcei
para pensar em uma forma como ele poderia ter
recebido aquelas impressoes pavorosas.
Ele falava de seus sonhos de uma forma estranhamente
poética, me fazendo ver com terrível vivacidade
a cidade ciclópica úmida de pedras verdes escorregadias
– cuja geometria, ele estranhamente disse, estava toda
errada – e ouvir com temerosa expectativa o incessante,
e quase mental chamado subterrâneo: “Cthulhu fhtagn”,
“Cthulhu fhtagn”. Essas palavras formaram parte daquele
medonho ritual que falava da vigília em sonho
do falecido Cthulhu em sua cripta de pedra em R’lyeh,
e eu me senti profundamente comovido apesar de minhas
crenças racionais. Eu estava convencido de que
Wilcox ouvira falar do culto de maneira casual e logo
se esquecera em meio à grande quantidade de leituras
e fantasias igualmente estranhas. Posteriormente, em
virtude de sua impressionabilidade, aquela memória
latente encontrou expressao subconsciente nos sonhos,
no baixo-relevo e na terrível estátua que eu agora observava,
de forma que a sua impostura sobre meu tio tinha
sido muito inocente. O jovem era de um tipo levemente
afetado e rude ao mesmo tempo, o que eu nunca poderia
gostar, mas estava disposto o bastante agora para
admitir a sua genialidade, assim como também a sua
honestidade. Saí dali amigavelmente, e desejei a ele todo
o sucesso que seu talento promete.
A questao do culto continuava a me fascinar, e, às
vezes, eu tinha visoes da fama pessoal pelas pesquisas
sobre sua origem e conexoes. Visitei Nova Orleans,
falei com Legrasse e outros participantes daquela
antiga batida de policial, vi a imagem assustadora e
até questionei alguns dos prisioneiros mestiços que
ainda estavam vivos. Infelizmente, o velho Castro faleceu
há alguns anos. O que eu ouvia agora de forma
tao vivida em primeira-mao, embora fosse nada mais
do que uma confirmaçao detalhada do que meu tio
tinha escrito, me animou mais uma vez, pois me parecia
que estava no rastro de uma religiao muito real,
muito secreta e muito antiga cuja descoberta faria de
mim um renomado antropologista. Minha atitude era
ainda de absoluto materialismo, como eu desejava que
tivesse assim permanecido, e desconsiderei com quase
inexplicável perversidade a coincidencia entre as anotaçoes
dos sonhos e os estranhos recortes colecionados
pelo Professor Angell.
Uma coisa de que eu comecei a suspeitar, e que
agora temo saber, é que a morte de meu tio esteve
longe de ser natural. Ele caiu em uma ladeira estreita
que levava a um antigo cais repleto de mestiços
estrangeiros, após um empurrao de um marinheiro
negro. Eu nao esqueci o sangue mestiço e das atividades
marítimas dos membros do culto em Luisiana,
e nao ficaria surpreso em descobrir métodos secretos
e rituais e crenças. É verdade que Legrasse e seus
homens foram deixados em paz, mas, na Noruega,
um marinheiro que viu certas coisas está morto. Será
que as investigaçoes mais aprofundadas de meu tio
depois de encontrar os dados do escultor teriam
chegado a ouvidos mais sinistros? Eu acredito que
o Professor Angell morreu porque sabia demais, ou
porque viria a descobrir mais informaçoes. Se minha
sina será a mesma, ainda nao se sabe, mas eu também
tenho muito mais conhecimento agora.

A Loucura Vinda Do Mar Se o céu algum dia


desejar me conceder uma bençao,
será a de apagar por completo os resultados de um
mero acaso que fixou o meu olho em certo pedaço de
papel na prateleira. Nao era nada com que iria naturalmente
me deparar no curso de minha rotina, pois era
apenas uma velha ediçao de um jornal Australiano, o
Sydney Bulletin, de 18 de abril de 1925. Ele tinha passado
despercebido até para a empresa que na época de
sua publicaçao coletava avidamente o material para a
pesquisa do meu tio.
Eu já tinha cessado minhas investigaçoes sobre o que
o Professor Angell chamou de “Culto a Cthulhu” e estava
visitando um amigo erudito em Paterson, Nova Jersey,
o curador de um museu local e um mineralogista de
renome. Um dia, examinando os espécimes da reserva
espalhados pelas prateleiras do depósito na sala de trás
do museu, meu olho foi pego por uma estranha figura e

Chamado de Cthulhu
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um papel antigo deitado sob as pedras. Era o Sydney Bulletin
que eu mencionei, pois meu amigo possuía vastas
afiliaçoes em todas as partes do mundo, e a figura era um
recorte em meio-tom de uma pedra repulsiva identica
com a que Legrasse encontrou no pântano.
Retirei avidamente a folha de baixo de seu precioso
conteúdo, examinei o item com detalhe e fiquei decepcionado
com o seu tamanho apenas moderado. No entanto,
o que ele sugeria era de um forte significado para
a minha aventura particular, e eu cuidadosamente rasguei
a folha para uma açao imediata. Lia-se o seguinte:
ENCONTRADO NO MAR MISTERIOSO NAVIO
ABANDONADO
Vigilant chega rebocando com iate neozelandês armado
e abandonado. Encontrados um sobrevivente e um
morto a bordo. História de uma batalha desesperada e
mortes no mar. Marinheiro resgatado se recusa a relatar
a estranha experiência. Estranho ídolo encontrado
sob sua posse. Investigações prosseguem.
O cargueiro Vigilant, da Morrison Co., com destino
a Valparaiso, chegou esta manha a sua doca no Porto
de Darling, rebocando o combatido e inutilizado, mas
fortemente armado iate a vapor Alert de Dunedin,
Nova Zelândia, que foi avistado no dia 12 de abril na
Latitude 34o 21’ S. e Longitude 152o 17’ O. com um
homem vivo e outro morto a bordo.
O Vigilant deixou Valparaiso em 25 de março e, no
dia 2 de abril, saiu de sua rota consideravelmente
para o sul por causa de tempestades violentas e ondas
monstruosas. No dia 12 de abril, o navio abandonado
foi avistado e, embora aparentasse estar deserto, ao
ser abordado, descobriu-se que abrigava um sobrevivente
em condiçoes quase delirantes e um homem
que se encontrava morto há mais de uma semana. O
homem vivo estava agarrado a um horrível ídolo de
pedra de origem desconhecida, com cerca de trinta
centímetros de altura, cuja natureza as autoridades
da Universidade de Sydney, da Sociedade Real e do
Museu em College Street professaram total perplexidade,
e que o sobrevivente disse ter encontrado na
cabine do iate, em um pequeno relicário cinzelado de
padroes comuns.
Esse homem, depois de recuperar os sentidos, contou
uma história incrivelmente estranha de pirataria
e chacina. Ele é Gustaf Johansen, um noruegues de
alguma inteligencia, e fora contramestre da escuna
de dois mastros Emma, de Auckland, que velejava
para Callao desde 20 de fevereiro com uma tripulaçao
de onze homens. Ele diz que a Emma se atrasou
e foi empurrada largamente para o sul de seu curso
por causa da grande tempestade de 1o de março e,
em 22 de março, na Latitude 49o 51’ S. e Longitude
128o 34’ O., encontrou o Alert, manejado por uma
tripulaçao estranha e mal-encarada de canacas e mestiços.
Ordenado peremptoriamente a voltar, o capitao
Collins se recusou, e a estranha tripulaçao começou a
atirar selvagemente e sem aviso na escuna com uma
peculiar bateria pesada de canhoes de bronze que
faziam parte do equipamento do iate. Os homens da
Emma se apresentaram a luta, disse o sobrevivente, e,
embora a escuna começasse a afundar com os tiros
recebidos abaixo da linha d’água, conseguiram emparelhar
lado a lado com o inimigo e abordá-lo, lutando
com a tripulaçao selvagem no deque do iate, e sendo
forçados a matar a todos, mesmo tendo um número
ligeiramente inferior, por causa de sua particularmente
abominável e desesperada ainda que canhestra
forma de lutar.
Tres dos homens da Emma, incluindo o capitao Collins
e o imediato Green, foram mortos, e os oito restantes,
comandados pelo contramestre Johansen trataram de
manobrar o iate capturado, seguindo a sua direçao original
para ver se havia qualquer razao para a ordem de
voltar. No dia seguinte, ao que parece, eles desembarcaram
em uma ilha pequena, embora ninguém soubesse
de sua existencia naquela parte do oceano, e, de alguma
forma, seis dos homens morreram em terra, embora
Johansen tenha se mostrado estranhamente reticente
sobre essa parte de sua história e falado apenas que eles
haviam caído em um precipício. Depois, ao que parece,
ele e um companheiro subiram abordo do iate e tentaram
manobrá-lo, mas foram fustigados pela tempestade
de 2 de abril. Daquele momento até o resgate no
dia 12, o homem lembra-se de pouca coisa, e ele nem
sequer relembra quando William Briden, seu companheiro,
morreu. O corpo de Briden nao aparenta a
causa de sua morte, e provavelmente se tenha dado por
perturbaçao ou exposiçao. Mensagens telegrafadas de
Dunedin reportam que o Alert era bem conhecido na
ilha como um navio mercante e possuía uma péssima
reputaçao na regiao. Pertencia a um estranho grupo de
mestiços, cujas frequentes reunioes e incursoes noturnas
pelas florestas atraiam grande curiosidade, e tinha
zarpado com grande pressa logo após a tempestade e
os tremores de terra de 1o de março. Nosso correspondente
de Auckland atribui a Emma e à sua tripulaçao
uma reputaçao excelente, e Johansen é descrito como
um homem sóbrio e valoroso. O almirantado vai abrir
um inquérito sobre o assunto a partir de amanha, em
que todos os esforços serao despendidos para induzir
Johansen a falar mais abertamente sobre o que ele tem
feito até o momento.
Isto era tudo, somado a foto da imagem infernal;
mas que turbilhao de ideias ela desencadeou em
minha mente! Aqui estavam novos dados preciosos
sobre o Culto a Cthulhu, e a evidencia de que ele tinha
estranho interesse tanto no mar como na terra.
Que motivaçao teria levado a tripulaçao de híbridos
a mandarem a Emma recuar enquanto eles seguiam
em frente com seu ídolo

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