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O Conde
Esqueleto
E S P E C IA L
D IA D A S
B R U X AS !
1
DAS
BY E D ITO R A WIS H
Tradução:
Karen Alvares
Preparação:
Karine Ribeiro
Revisão:
Pedro Poeira
Capa e projeto gráfico:
Marina Avila
Ilustração de capa:
Ana Milani
2023 ISBN
Copyright 2023 Editora Wish. Este material possui direitos
de tradução e publicação e, ao não divulgá-lo sem prévia
autorização da editora, você está nos ajudando a continuar
publicando raridades para os leitores. Agradecemos por isso.
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82
UMA RELÍQUIA DE
4
Sinopse
Um estremecimento perpassou
o corpo dele contra sua vontade
ao notar os olhos do cadáver se
abrirem devagar, e as pupilas
escuras e dilatadas o encararem
com um olhar estranho e
impassível.
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matéria e da natureza da alma.
Até que decide colocar em prática
as suas teorias de trazer uma bela
jovem de volta à vida.
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18 28 E LIZ A BET H CA ROL I N E GR EY
O Conde
Esqueleto
O
conde Rodolph, após selar
um pacto herege com o
príncipe das trevas, cessou
seus estudos de alquimia, ou a busca
pelo elixir da vida, pois não apenas
lhe fora assegurado pelo demônio
o começo de uma nova existência,
como também as autoridades decla-
raram que tais pesquisas eram vãs e
9
ilusórias. Contudo, ainda explorava o
ocultismo nas ciências da magia e da
astrologia, e com frequência passava
dia após dia em infrutíferas especu-
lações a respeito da origem da maté-
ria e da natureza da alma. Estudava
os escritos de Aristóteles, Plínio,
Lucrécio, Josefo, Jâmblico, Sprenger,
Cardano e o erudito Miguel Pselo; no
entanto, estava mais distante do que
nunca de alcançar um conhecimento
satisfatório dos fatos que buscava
desvendar acerca dos mistérios que
os envolviam. Os devaneios dos an-
tigos filósofos, dos gnósticos e dos
pneumologistas serviram apenas
10
para afundá-lo em dúvidas ainda
mais profundas e, depois de muito
tempo, decidiu passar das especula-
ções aos experimentos e colocar em
prática suas teorias formuladas em
parte.
Após ávidos estudos da ana-
tomia do corpo humano e muitas
operações e experimentos em cadá-
veres de malfeitores que foram en-
forcados por roubo ou assassinato,
os quais havia furtado da forca na
calada da noite e transportado até
o Castelo Ravensburg com o auxílio
de dois miseráveis que aliciara em
11
uma estalagem obscura na cidade
de Heidelberg, decidiu exumar o ca-
dáver de alguém recém-falecido e
tentar reanimá-lo. A fórmula dos ne-
cromantes para ressuscitar os mor-
tos não era suficiente para promover
a restauração da vida, mas apenas
uma revivificação temporária; con-
tudo, em um antigo manuscrito
grego, o qual encontrara na biblioteca
do castelo, havia um relato de como
esta animação restaurada poderia
ser mantida por meio de um líquido
miraculoso, para cuja destilação lhe
fora dada uma receita.
12
À meia-noite, o conde Rodolph
reuniu as ervas que o manuscrito
grego prescrevera e delas destilou
um líquido de um tom pálido de dou-
rado e bem pouco sabor, mas de um
odor fragrante, que preservou em
um frasco. Ao descobrir que a filha de
um camponês, uma jovem de beleza
singular de cerca de dezesseis anos
de idade, morrera de repente e seria
sepultada no dia seguinte àquele
em que havia preparado seu esplên-
dido elixir restaurador, o conde par-
tiu naquele mesmo dia em direção
a Heidelberg, a fim de obter a ajuda
dos mesmos sujeitos que o haviam
13
auxiliado na remoção do cadáver do
malfeitor da forca, e então retornou
ao Castelo de Ravensburg com o in-
tuito de se preparar para seu peculiar
experimento.
No solene horário da meia-noite,
partiu em segredo do castelo, valen-
do-se de uma porta na torre leste,
cuja chave manteve em sua posse,
e dobrou o passo em direção ao ce-
mitério que ficava na igreja da vila,
nos arredores. Era uma bela noite de
luar, porém todos os simplórios ha-
bitantes encontravam-se nos braços
de Morfeu, o deus do sono de olhos
14
plúmbeos, portanto, o violador da
santidade do túmulo adentrou o
cemitério despercebido. Encontrou
seus associados contratados espe-
rando por ele, ocultos sob as sombras
do muro, o qual foi escalado com fa-
cilidade, providos de pás e um saco
para guardar o corpo. Começaram a
trabalhar de imediato. A terra fresca
revolvida logo foi atirada para longe
da tampa do caixão, a qual fora re-
movida pelos ressurreicionistas por
meio de uma chave de fenda, e então
o cadáver da falecida revelou-se para
eles.
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O corpo da jovem moça foi erguido
de seu estreito local de descanso e
elevado nos braços dos sujeitos mise-
ráveis e profanos que Rodolph havia
contratado. Eles depositaram a car-
caça inanimada à beira do túmulo,
o qual rapidamente preencheram, e
então passaram a colocar no saco os
restos mortais da bela jovem cam-
ponesa. Tendo removido cada traço
do roubo profanador que haviam co-
metido, um deles colocou o saco nos
ombros e, quando se cansou, o cama-
rada aliviou seu fardo, e dessa forma
alcançaram o castelo.
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O conde Rodolph os conduziu pe-
las escadas estreitas que levavam à câ-
mara de estudos, localizada na torre
leste, e, após depositarem o corpo no
chão, receberam o pagamento esti-
pulado, e os dois ressurreicionistas
ficaram satisfeitos em sair depressa
daquele lugar que, segundo rumores
que circulavam entre o povo, come-
çava a ser associado com atos som-
brios e horrendos.
Após acender uma lamparina, que
lançou uma luz fraca e tremeluzente
nos inúmeros objetos estranhos e
misteriosos contidos na câmara e fez
17
o semblante pálido do cadáver pare-
cer ainda mais horrendo e medonho,
o conde Rodolph prosseguiu para o
ato de despir o corpo das vestes com
as quais a jovem fora sepultada, que
guardou com cuidado, com receio
de que a visão delas, quando a moça
retornasse à vida, pudessem atin-
gi-la com repentino horror, o qual
poderia se provar desastroso para o
completo sucesso do experimento
audacioso do conde. Então, depositou
o corpo no centro do círculo mágico
previamente desenhado por ele no
chão para o estudo e cobriu-o com
um lençol. Havia comprado algumas
18
vestimentas femininas pré-fabrica-
das na cidade de Heidelberg e colo-
cou-as na mesa, prontas para o uso
da jovem que esperava ressuscitar.
Bertha havia sido, como eviden-
ciado por seus rígidos e frios restos
mortais, uma jovem de incompará-
vel simetria na silhueta e de beleza
ímpar no semblante; nenhum pintor
ou escultor poderia almejar melhor
modelo, nenhum poeta, musa mais
inspiradora. Deitada ali, no chão,
parecia uma bela escultura em ala-
bastro ou ainda uma estátua de cera
da maior inventividade artística. Os
19
cabelos compridos e escuros tinham
um brilho roxo tal qual a plumagem
do corvo, e suas feições eram da mais
extraordinária proporção e disposi-
ção. Agora, contudo, seu semblante
angelical era lívido com a tonalidade
pálida da morte, a marca pesada de
sua mão gélida visível em cada traço.
O conde Rodolph tomou em suas
mãos uma varinha mágica, cuja
ponta posicionou sobre o peito do ca-
dáver, e então passou a recitar as pala-
vras cabalísticas que os necromantes
usavam para chamar à vida os inqui-
linos adormecidos das sepulturas.
20
Quando concluiu o rito profano, um
silêncio medonho reinava na torre, e
notou que os lençóis eram agitados
de leve por um tremor dos membros,
o que sinalizava o retorno dos movi-
mentos. Então, um estremecimento
perpassou o corpo dele contra sua
vontade ao notar os olhos do cadáver
se abrirem devagar, e as pupilas escu-
ras e dilatadas o encararem com um
olhar estranho e impassível.
Em seguida, os membros se me-
xeram, primeiro de maneira convul-
siva, mas logo em um movimento
mais natural e forte, e então a jovem
21
ergueu o corpo a fim de se sentar no
chão da câmara, observando ao re-
dor com agitação e estranhamento,
o que fez Rodolph temer que o objeto
de seu experimento se provasse uma
tola deplorável ou uma lunática deli-
rante.
Porém, de súbito, pensou no xa-
rope restaurador e, agarrando o frasco
da prateleira, verteu na garganta da
moça ressuscitada uma quantidade
expressiva do líquido dourado e fra-
grante ali contido. Em seguida, uma
centelha daquela gloriosa inteligên-
cia que aproxima humanos de anjos
22
pareceu infundir-se na mente dela e
irradiar dos olhos escuros e brilhan-
tes, que pousaram com suavidade
e ternura no belo semblante do jo-
vem conde. Os seios alvos, revelados
após o lençol que os cobrira ter caído
quando ela se erguera de seu estado
reclinado no chão onde jazia, subiam
e desciam com o retorno da vida re-
novada, e o conde de Ravensburg fi-
tou-a com uma mistura de espanto e
deleite.
À medida que o sopro de vida foi
restaurado e passou a correr pelas
veias dela em um formigamento
23
quente, um enrubescimento de re-
cato instintivo cobriu seu semblante
e, puxando o lençol por sobre os seios,
ficou de pé, com o cabelo preto e com-
prido sobre os ombros e os olhos es-
curos fixos no chão. O conde Rodolph
então chamou a atenção dela para
as vestimentas que havia providen-
ciado, entusiasmado por conta do
completo sucesso do ousado expe-
rimento, e então retirou-se do local
enquanto o adorável objeto de seus
cuidados científicos se vestia.
Quando o conde de Ravensburg
retornou à câmara de estudos, Bertha
24
estava sentada diante do fogo, en-
volvida nas vestes que havia provi-
denciado para ela, e ele pensou que
jamais contemplara um espécime
mais belo do sexo feminino. Ela le-
vantou-se quando o conde entrou e
beijou a mão dele, como se ele fosse
uma entidade superior, e teria perma-
necido de pé, com a cabeça curvada
sobre os seios, como se na presença
de um ser de outro mundo, se ele não
a tivesse gentilmente forçado a vol-
tar a sentar-se no mesmo assento e
indagado com ternura a respeito de
seus sentimentos ao retornar à vida
de maneira tão peculiar e magnífica.
25
No entanto, descobriu que ela não
guardava memória alguma de sua
existência prévia e que todos seus
sentimentos eram novos e estranhos,
como os de Eva ao irromper para a
vida consciente partindo das mãos
do Todo-Poderoso. Em sua misteriosa
passagem da vida para a morte e da
morte para a vida, havia perdido to-
das as suas ideias e convicções an-
teriores, todas as experiências do
passado, tudo o que adquirira de co-
nhecimento, tornando-se uma filha
da natureza, simplória e singela tal
qual uma habitante da floresta, com a
26
percepção aguçada e os instintos não
treinados de selvageria ignorante.
A jovem havia trançado as ma-
deixas esvoaçantes, de um tom tão
escuro no qual era possível se per-
der, e nas bochechas residia uma cor
capaz de testar a habilidade de um
pintor, tão rica e delicada em seu ma-
tiz tal qual o tom de rosa de alguma
concha rara e exótica ou de uma flor
que desabrochara em uma coluna de
alabastro. O jovem conde sentiu-se
atraído pela moça de maneira irresis-
tível, a quem sua ciência havia dotado
com tão misteriosa e sobrenatural
27
existência, e ela, por sua vez, fitou o
belo Rodolph com uma paixão sel-
vagem, embora ainda terna, de uma
fragilidade inerente à humanidade,
misturada com a gratidão e a devo-
ção que julgava adequadas a quem
estava na posição de seu criador.
Assim, os sentimentos em rela-
ção ao único ser do qual tinha algum
conhecimento afloraram depressa
no coração dela, partilhados de uma
natureza de devoção religiosa, em-
bora ainda misturados a sentimen-
tos mais mundanos, como aqueles
que se agitavam nos seios virginais
28
daqueles que fundaram Roma, ou na
virgem de Shen-si, que fora escolhida
entre todas as mulheres do império
celestial para tornar-se a mãe da en-
carnação de Foh.
— És gloriosamente bela, minha
Bertha! — exclamou o conde enamo-
rado, tomando-a nos braços. — Dize
que serás minha, e farás de mim o
mais feliz servo; pois deves ser tão
amorosa quanto és adorável, graciosa
filha do mistério!
— Amo-te! — respondeu Bertha,
com uma expressão suave e terna
residindo nas profundezas claras de
29
seus olhos escuros. — Adoro-te, meu
criador; minha alma rende-se diante
de ti, contudo, meu coração dá um
salto ao teu olhar, embora tema ser
presunção do trabalho de tuas mãos
fitar-te com olhos de amor.
— Doce e ingênua criatura! —
redarguiu o conde de Ravensburg,
beijando os lábios de tom coral e as
bochechas reluzentes dela. — Sou eu
quem deveria devotar-me a ti! Serás
minha, Bertha, agora e para sempre.
Doravante, viverei apenas em nome
de teu sorriso!
— Pa ra sempre! Deverei
30
permanecer contigo para sempre?
Ah, que alegria incomparável. O ídolo
de meu coração, adoro-te!
E a formosa Bertha envolveu seus
braços alvos ao redor do pescoço do
conde, pressionando os lábios contra
os dele, pois, na sua nova existência,
agora desfrutava de seus sentimen-
tos sem restrições e cedia a cada im-
pulso de sua natureza ardente.
— Vem, minha Bertha — disse o
extasiado Rodolph —, esta torre so-
litária não deve ser teu mundo; vem
comigo, teu Rodolph, e torna-te a se-
nhora do Castelo de Ravensburg, tal
31
qual já és dona do coração do senhor
do castelo.
32
com menos fervor por nenhum padre
haver abençoado o leito de núpcias.
A presença da jovem no Castelo
de Ravensburg, que Rodolph, com
o usual desprezo pela opinião do
mundo que pontuava seus atos, não
se preocupou em esconder, tornou-se
o tema estimulante das conversas no
refeitório dos lacaios durante o dia
e, como Rodolph jamais se deixara
levar por intrigas de qualquer espé-
cie, seja das jovens camponesas da
vila nos arredores ou as cortesãs de
Heidelburg, a circunstância pareceu
menos memorável. Porém, a graciosa
33
Bertha parecia bastante alheia à na-
tureza ambígua de sua situação com
o jovem conde, e embora sua visão da
condição humana se tornasse cada
vez maior à medida que aumentava a
esfera de sua existência, ainda enxer-
gava Rodolph como um ser de caráter
superior.
Quando a noite mais uma vez
derramou seu manto sobre a terra
adormecida, Rodolph e a misteriosa
Bertha procuraram seu leito, e jamais
a lua inconstante brilhara acima
de um par que combinava tanto no
quesito beleza física ou, talvez seja
34
possível acrescentar, no que diz res-
peito ao estranho destino dos dois
— um munido de poderes da mente
quase sobre-humanos, ainda que em
poucos dias viesse a sofrer tão horrí-
vel transformação e ser separado dos
mortais comuns por aquele estranho
destino; a outra dotada de beleza tão
singular, mas condenada à terrível
existência de alguém que ultrapas-
sara os limites da sepultura e retor-
nara à vida!
Com um badalar sonoro e solene
do sino do castelo, o relógio procla-
mou a meia-noite, e então Bertha
35
ergueu-se devagar do corpo de seu
amante e, deslizando da cama, vestiu-
-se em um estado de semiconsciência
e deixou o cômodo em silêncio.
Sua face encontrava-se pálida, e
os olhos tinham o mesmo olhar fixo,
selvagem e impassível que Rodolph
havia observado quando ela desper-
tara de seu repouso no túmulo. Ela
deixou o castelo e, após observar ao
redor de si, como se incerta de para
onde ir, seguiu em direção à vila.
Ela parou defronte à casa mais
próxima e então avançou contra a ja-
nela, agitando as venezianas; o fecho
36
não se encontrava seguro, portanto,
abriu com pouco esforço, e um pedaço
quebrado na vidraça foi o suficiente
para permitir que Bertha introdu-
zisse sua mão e removesse o fecho
da janela. Então, com cuidado, ela a
abriu, adentrando o cômodo — subiu
as escadas na ponta dos pés e entrou
em um quarto onde uma menininha
encontrava-se na cama, adormecida.
Por um momento, estremeceu com
violência, como se lutando para re-
primir a terrível vontade provinda da
sombria condição de haver retornado
à vida depois de ter atravessado os
portais da morte, mas então inclinou
37
o rosto sobre a garganta da criança,
com o hálito quente dela roçando sua
face e, no instante seguinte, os dentes
cravaram-se na pele macia, e come-
çou a sugar o sangue a fim de manter
sua existência sobrenatural!
Pois este é o atroz destino da raça
de vampiros, a respeito dos quais
ainda existem mais mistérios e se-
gredos a serem revelados; e foi este o
ser que o conde Rodolph removera do
túmulo e conduzira ao próprio leito!
Logo, a criança acordou com um
grito pavoroso, e o pai dela, saltando
da cama no quarto ao lado, correu em
38
seu socorro, mas Bertha passou de-
pressa por ele na escuridão e escapou
da casa. O camponês encontrou a fi-
lha muito assustada, com a garganta
sangrando; porém, a menina não so-
frera ferimento letal e, tendo-se cer-
tificado deste fato, o pai apanhou seu
mosquete e correu atrás da agressora.
— Uma vampira — exclamou o
camponês, empalidecendo de horror
ao ver, de maneira distinta, sob a luz
da lua, uma mulher jovem correndo
pela vila a passos rápidos.
O homem deu início a uma per-
seguição a veloz Bertha, aos poucos
39
ganhando terreno, ao que sucedeu-se
um tiro do mosquete assim que ela al-
cançou a margem do rio, quando ele
ergueu a arma na altura dos ombros e
disparou. O estampido ecoou através
das margens do Reno, e Bertha gritou
quando a bala penetrou suas costas
e rolou de ponta-cabeça para dentro
da correnteza. O camponês apressou-
-se de volta ao vilarejo, satisfeito pela
criatura não existir mais, e o corpo
da vampira flutuou na superfície do
rio, iluminada pela luz da lua.
A lua estava cheia naquela noite, e
a cena pitoresca no Reno foi inundada
40
com uma luz perolada. Ao longo de
todo seu percurso, o rio é um pano-
rama de beleza paisagística, reve-
lando a cada curva algum elemento
interessante, quer pelas reminiscên-
cias históricas, quer pelas associa-
ções lendárias. Havia o vilarejo, mas
naquele momento o cenário era de
terrível revolta; o castelo, por vezes
coberto pela luz, outras obscurecido
pelas sombras devido à passagem
de grossas nuvens diante da lua; a
cidade de Heidelberg, descendo a
encosta desde o Castelo do Palatino
e atravessando o rio com sua nobre
ponte; e o Reno, encoberto por pedras
41
escuras que se acumulavam na mar-
gem oposta, refletindo a luz prateada
da lua. O corpo da vampira flutuava,
descendo um bom trecho na corren-
teza até ter seu curso interrompido
pela curva do rio, jazendo parcial-
mente para fora d’água na margem
inclinada do rio.
E então iniciou-se outra cena de
estranho e surpreendente interesse
— outra fase na pavorosa existência
da noiva vampira! Pois, os raios da lua
cheia derramaram-se sobre a forma
inanimada daquele ser feito de mis-
tério e medo, e a sensibilidade aos
42
poucos retornou ao seu corpo, como
quando a magia dos feitiços do conde
de Ravensburg a ressuscitara do tú-
mulo; os olhos dela se abriram, seus
seios ergueram-se e caíram com a
pulsação quente do retorno à vida; os
membros moveram-se em espasmos,
e então ela se pôs de pé na margem do
rio e, com um estremecimento após
lembrar-se do que lhe havia aconte-
cido, torceu as vestes encharcadas e
correu em direção ao castelo em um
ritmo acelerado devido ao pânico.
Adentrando o castelo, foi em
busca dos aposentos do conde a passos
43
silenciosos e, após retirar e guardar
as vestes molhadas, retornou à cama
sem que o conde sequer notasse que
ela havia partido. Ele ficou surpreso
ao descobrir que a amante não havia
feito nenhuma refeição durante o
dia, mas foi levado a acreditar nisso
como uma das leis naturais da exis-
tência dela e não deu mais atenção
ao assunto.
Porém, no vilarejo, a comoção
atingiu seu pico quando se tornou
de conhecimento geral que a casa de
Herman Klans fora visitada por uma
vampira durante a noite e que sua
44
filhinha fora mordida por tão horrí-
vel criatura. Ao longo de todo o dia, a
casa que recebera a misteriosa visita
foi cercada por aldeões curiosos, que
se benziam com extrema devoção,
imaginando onde a vampira poderia
ter ido. Os serviços do padre foram
requisitados para impedir que a pe-
quena menina de olhos azuis, Minna,
se tornasse uma vampira após a
morte, como se supõe que seja o caso
com os desafortunados mordidos
por uma dessas pavorosas criaturas,
assim como uma pessoa pode enlou-
quecer após ser mordida por um cão
ou um gato com raiva.
45
De acordo com os termos do pacto
firmado entre o conde Rodolph e o
demônio, as condições não entravam
em vigor até sete dias após a assina-
tura do terrível acordo, e dia após
dia, Rodolph temia a necessidade de
revelar a Bertha a hedionda transfor-
mação a qual ele deveria se submeter
todas as noites. Contudo, sabia ser
impossível manter em segredo da
amada sua horrenda e estarrecedora
metamorfose, e refletiu que, se fizesse
dela sua confidente daquele pavoroso
destino, seria mais provável que esta
permanecesse desconhecida para o
restante do mundo. Ele, portanto,
46
tomou coragem para a chocante reve-
lação que teria de fazer e, no sétimo
dia após o pacto com Lúcifer, revelou
a ela seu medonho segredo.
— Bertha — disse ele, em tom
triste e solene —, estou prestes a con-
fiar-te um terrível segredo; jure para
mim que jamais o divulgarás.
— Eu juro — respondeu ela.
— Sabe, então — continuou o
conde, baixando a voz até um sus-
surro rouco —, que, em virtude de
um pacto com os poderes infernais
do mal e das trevas, sou dotado de
um período de vida e juventude que
47
equivale quase ao benefício da imor-
talidade, porém, a este dom inesti-
mável há uma condição, que se inicia
esta noite e que quase estremeço ao
compartilhar contigo.
— Não temas, meu Rodolph — ex-
clamou sua bela amante, enlaçando
os braços alvos em torno do pescoço
do conde —, tua Bertha jamais po-
deria amar-te menos, e a alma dela
se apega a ti mais intensamente pelo
dom sobrenatural que liga teu des-
tino de maneira mais íntima ao meu.
Pois, também tenho uma estranha e
terrível existência, a qual devo a ti,
48
e, portanto, devo me apegar a ti com
mais carinho por conta da mesma
sina que nos une enquanto nos eleva
muito acima dos mortais comuns.
TH E E N D
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t.me/sociedadewish
95
E X TR A: BIOGR AFIA
Elizabeth
Caroline Grey
Fofocas literárias, autoria fantasma
e mistérios históricos. Elizabeth
96
Caroline Grey e sua ligação com as
narrativas pelas quais ficou famosa
poderia ter saído de uma ficção tão
intrigante quanto os nossos enre-
dos favoritos. Como várias autoras
ao longo do tempo, a história de
Elizabeth Caroline Grey perma-
nece, em grande parte, um misté-
rio. Enquanto alguns nomes foram
quase apagados da história, outros
podem ter sido inventados para es-
conder algo a mais.
Acredita-se que Elizabeth Grey
tenha nascido na Inglaterra e, ao
pesquisar sobre quem foi, é comum
97
encontrá-la sendo referenciada como
uma prolífica autora de penny dread-
fuls da era vitoriana. Entretanto, é
difícil afirmar com total certeza se
todas as informações disponíveis
creditadas a ela são verídicas.
Após a Revolução Industrial e
com o aumento dos índices de alfa-
betização na Inglaterra, surgiu a ne-
cessidade de se criar uma literatura
de entretenimento para as massas.
As histórias de horror para adultos,
passadas nos grandes centros urba-
nos, cheios de crimes e sangue, to-
maram conta do gosto popular. As
98
penny dreadfuls e penny bloods eram
novelas periódicas de terror que to-
maram conta da literatura da época
e algumas, como Sweeney Todd, por
exemplo, são lembradas e lidas até
hoje.
O fascínio por essas histórias e
os nomes que as escreveram se man-
teve ao longo dos séculos, o que con-
tribui para que muitos entusiastas,
inclusive, tenham se aproveitado
da curiosidade pelo antigo e sobre-
natural para falsamente creditar
histórias modernas a autores vito-
rianos. As intenções por trás disso
99
variam e, com o aumento do resgate
de tesouros literários, acadêmicos e
estudiosos estão debatendo cada vez
mais a respeito.
Apesar de seu nome ser referen-
ciado como a primeira mulher a es-
crever uma história de vampiros,
pouco se pode afirmar com certeza a
respeito de quem foi ou se a história
de fato é de sua autoria. Algumas fon-
tes dizem que existiu uma Elizabeth
Grey que era sobrinha de uma atriz
famosa, que teria se casado com um
repórter da época, lecionado em uma
escola para meninas em Londres e
100
mergulhado na escrita de ficção nas
suas horas vagas. Um perfil que se
encaixa bem no contexto da época e
se assemelha a outras autoras.
Entretanto, existem diversas
teorias a respeito de sua vida, da
hipótese de que seu nome era um
pseudônimo usado por outro autor
de penny dreadfuls da época, até a
ideia de que ela na verdade nunca
tenha existido da forma como é
conhecida. Suspeita-se, inclusive,
que muitas das obras atribuídas a
Elizabeth Caroline Grey não tenham
sequer sido escritas por ela.
101
Atualmente acadêmicos buscam
entender melhor as fontes primá-
rias que ligam o nome de Elizabeth
Caroline Grey ao conto O Conde
Esqueleto: ou a Amante Vampira.
Em The Many Mrs Grey: Confusion
and Lies about Elizabeth Caroline
Grey, Catherine Maria Grey, Maria
Georgina Grey and Others, o autor
Patrick Spedding tenta diminuir
um pouco a confusão em torno de
tantas autoras creditadas como Mrs
Grey e o que pode existir por trás de
informações falsas ou inconclusivas
relacionadas a elas.
102
Infelizmente a história da lite-
ratura é cheia de manuscritos que
foram perdidos e originais que pas-
saram de mão em mão até virarem
fragmentos. Originais de diversos
contos podem na verdade nunca ter
existido ou estão escondidos nas bi-
bliotecas de antepassados e baús que
talvez nunca tenhamos acesso. Do
lado de cá, a gente acredita que essa,
também, é uma das belezas da lite-
ratura: nos presenteia com histórias
para além das páginas que leremos
ao longo da vida.
Teria sido Elizabeth Caroline
103
Grey a verdadeira autora de uma his-
tória tão controversa? Ou teria sido
seu nome apenas mais um fantasma
literário sobre o qual talvez nunca
tenhamos certeza?
O que se sabe é que o nome
Elizabeth Caroline Grey, de uma
forma ou de outra, deixou sua marca
na literatura. O Conde Esqueleto: ou a
Amante Vampira é uma das primei-
ras histórias de vampiros creditada
a uma mulher e chega com exclu-
sividade à Sociedade das Relíquias
Literárias.
104
Fontes:
https://pt.scribd.com/author/590655796/Elizabeth-
Caroline-Grey
https://onlinebooks.library.upenn.edu/webbin/
book/lookupname?key=Grey%2C%20Mrs%2E%20
%28Elizabeth%20Caroline%29%2C%20
1798%2D1869
https://researchmgt.monash.edu/ws/portalfiles/
portal/27184900/1907563.pdf
http://john-adcock.blogspot.com/2010/06/
elizabeth-caroline-grey.html?m=1
http://taliesinttlg.blogspot.com/2014/08/
interesting-shorts-skeleton-count-or.html
https://www.magersandquinn.com/product/
SKELETON-COUNT/25496380
105
Falando em
mistério...
No Reino da Wish, a busca pelos
mascotes metamorfos continua.
Áureo e Máureo foram vistos pela
última vez no início deste ano,
navegando em águas misteriosas.
Karen Alvares
TR A DUÇÃO
107
Karine Ribeiro
PRE PA R AÇÃO
Escritora premiada,
tradutora e revisora,
graduanda em Tradução
pela UFMG. @karineescreve
Pedro Poeira
RE V ISÃO
108
Ana Milani
ILUSTR AÇÃO
Artista, ilustradora
e influenciada por
literatura, ela se
expressa através do
etéreo e do estranho
Insta: @omnifantasmicdraws
Marina Avila
PROJE TO G R Á FICO
Produtora editorial e
fundadora da Wish. Mãe
de gatos e de livros.
@marinalivros
Valquíria Vlad
COMUNICAÇÃO E
COMUNIDA DE
Escritora, pesquisadora
e publicitária formada
pela Universidade
Federal do Ceará (UFC).
@valquiriavlad
Laura Brand
ME DIAÇÃO E
PA R ATE X TOS
Editora, coordenadora
editorial, jornalista e
criadora de conteúdo.
Formada pela PUC-MG
e Columbia Journalism
School. @nostalgiacinza
110
Muito obrigada
por apoiar este
financiamento
coletivo!
Neste mês foi possível viabilizar a cura-
doria, tradução, revisão e ilustração do
conto The Skeleton Count! A cada mês de
assinatura, a Wish continuará resgatando
os tesouros do passado em novas edições
para os caçadores das Relíquias Literárias.
111
N O P R ÓX I M O M Ê S
Uma história
sensível sobre
ciúmes, inveja e
morte
Da mesma autora de
Mulherzinhas, Louisa May Alcott
112