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09/01/2024, 09:46 O Acólito

O Acólito
Antes de tratarmos dos acontecimentos da Grande Jornada de Frater P., durante a qual
por seis anos ele viajou pela face do globo em busca do conhecimento místico de todas as
nações, é necessário relatar aqui, mesmo que brevemente, as circunstâncias que
permitiram que ele entrasse em comunicação com a Ordem da A∴A∴.

Nascido de uma família antiga, mas poucos dias após o quinquagésimo sexto Equinócio
antes do Equinócio dos Deuses, ele foi criado e educado na fé de Cristo, conforme
ensinada por uma das seitas mais rígidas das muitas facções da Igreja Cristã, e mal
aprendeu a balbuciar as sílabas mais simples da infância quando começou seu martírio.

Desde a primeira infância, ele lutou na escuridão fria de seu entorno até atingir a pré-
adolescência, e à medida que crescia e prosperava, o mesmo acontecia com a iniquidade
daquele tratamento antinatural, que com mão pródiga e cruel, era esbanjado sobre ele.
Então chegou a adolescência, e com ela o nome de Deus se tornou uma maldição, e a
forma de Jesus surgiu na escuridão de Gólgota, um horror gélido e hediondo que, como
um vampiro, sugou a alegria de sua infância; quando de repente, numa noite de verão, ele
se separou dos carniçais que o atormentavam, deixando de lado as convenções sórdidas da
vida, desafiando as leis de sua terra, duvidando da religião decadente de sua infância, ele
quebrou, como galhos podres, o convencionalismos da civilização estéril e hipócrita em
que ele foi criado, e buscou refúgio por um tempo no país selvagem e belo que se encontra
emaranhado como uma cabeça de cabelo despenteado ao norte e noroeste da Inglaterra.
Aqui ele aprendeu com os ventos sussurrantes e com as estrelas sonhadoras que a vida não
era de todo uma maldição, e que toda noite morre nos braços da aurora.

Sua liberdade teve curta duração; no entanto, embora ele tenha sido arrastado de volta
para a prisão de onde ele havia escapado, ele descobriu sua própria força, uma nova vida
fluiu como um grande mar dançando com espuma sobre ele, e o embriagou com o vinho
tinto da Liberdade e da Revolta – sua manopla da juventude havia sido derrubada,
doravante ele lutaria por sua hombridade, sim! e pela hombridade do Mundo!

Então o toque da trombeta soou; a batalha havia realmente começado! Esforçando-se para
ficar de pé, arrancou de si o sudário de uma fé corrompida como se fosse a mortalha podre
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de uma múmia. Com os lábios trêmulos e a voz embargada de indignação pela injustiça do
mundo, ele amaldiçoou o nome de Cristo e caminhou em busca da porta do Inferno e
soltou os demônios do abismo, para que a humanidade ainda aprendesse que a compaixão
não estava morta.

No entanto, a loucura passa, como uma nuvem escura antes do sopro da aurora que
desperta; consciente de sua própria retidão, da hombridade que era sua, de sua própria
força e da justiça de seu propósito, e repleto das ambições transbordantes da juventude,
nós o encontramos inconscientemente embainhando sua espada vermelho-sangue e
soprando chamas e fumaça do tripé da vida, lançando diante da imagem velada e terrível
do Desconhecido as flechas de sua razão, e buscando diligentemente tanto o presságio
quanto o sinal nos volumes empoeirados do passado e na antiga sabedoria de dias há
muito esquecidos.

Profundamente versado em poesia, filosofia e ciência, com habilidades naturais além do


comum, e já um poeta de brilhante promessa; ele subitamente sai da escuridão como uma
estrela profética selvagem, e derrubando as carteiras e os bancos dos escolásticos, e
lançando sua papila pedagógica de seus lábios, escapa dos claustros abafados do
aprendizado mofado, e dos colégios de dogmática dialética, e procura o que ainda não
podia encontrar na liberdade que em seu ardor juvenil lhe parece viver a apenas duzentos
ou trezentos metros além das torres e frontões daquela cidade de pedantes inflexíveis que
havia sido sua escola, sua casa e sua prisão.

Então ocorreu o grande despertar. É curioso dizer, foi por volta da meia-noite do último
dia do ano, quando o velho se afasta do novo, que ele estava cavalgando sozinho, envolto
no manto escuro de pensamentos indizíveis. Um sino distante soou no último quarto de
hora do ano moribundo, e a neve que jazia fina e quebradiça na estrada estava sendo
apanhada aqui e ali pelos sopros de vento gelado cortante que vinha como uma serpente
através das esquinas e das árvores, rodopiando como um espectro no frio e sob o luar
prateado. Mas obscuros eram seus pensamentos, pois o mundo havia falhado com ele. Ele
buscava a liberdade, mas não aquela liberdade que conquistara. O sangue parecia escorrer
de suas pálpebras e pingar, gota a gota, sobre a neve branca, escrevendo em sua superfície
pura o nome de Cristo. Grandes morcegos esvoaçavam por ele, e abutres cujas cabeças
calvas estavam coaguladas com sangue podre. “Ah! o mundo, o mundo… o fracasso do
mundo”. E então uma luz âmbar surgiu ao seu redor, a tapeçaria temerosa do pensamento

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torturante foi despedaçada, as vozes de muitos anjos cantaram para ele. “Mestre! Mestre!”
exclamou: “Encontrei-Te… Ó Cristo de prata…”

Então tudo era o Nada… nada… nada… nada; e seu cavalo o carregou loucamente noite
adentro.

Assim, ele partiu em sua busca mística em direção ao objetivo que ele havia visto e que
parecia tão próximo; e, no entanto, como veremos, provou estar tão distante.

No primeiro volume dos diários, o encontramos mergulhado no estudo dos filósofos


alquimistas. Debruçado sobre Paracelso [1] , Benedictus Figulus [2] , Eugenius
«Philalethes» [3] e Eirenæus Philalethes [4] , ele buscava o Azoth Alquímico, o
Catholicon, o Esperma do Mundo, aquela Medicina Universal na qual estão contidos
todos os outros medicamentos e o primeiro princípio de todas as substâncias. Em agonia e
alegria, ele procurou fixar o volátil e transmutar a raça humana sem forma no filho dual da
mística Cruz de Luz, ou seja, resolver o problema do Homem Perfeito. Fludd [5] , «São»
Boaventura [6] , Lúlio [7] , Valentino [8] , Flamel [9] , Geber [10] , Plotino [11] ,
Amônio [12] , Jâmblico [13] e Dionísio [14] foram todos devorados com a avidez e a
ganância que só a juventude possui; não havia descanso aqui –

“‘Agora, mestre, descanse um pouco!’ – mas ele não!


(Com cuidado redobrado,
E o segundo passo à frente, um caminho de tirar o fôlego!)
Nem um pouco perturbado,
Volta aos estudos, mais renovado que no início,
Feroz como um dragão,
Ele (alma-hidróptica com uma sede sagrada)
Bebeu direto do jarro” [15] .

Mergulhando nas tenebræ [16] da física transcendental, ele buscava a grande realização e,
sem saber, na exuberância de seu entusiasmo, deixou a larga estrada do vale e partiu pela
trilha da montanha em direção ao cume derradeiro que brilha com a pedra dos Sábios, e
cujo segredo está na abertura do “Olho Fechado” – a consumação da Escuridão.

Aquele que dispensa Paracelso com um clister de dois centavos, ou Raimundo Lúlio com
uma reimpressão de seis centavos, não é um tolo, não, não, não é nada tão exaltado; mas

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apenas um piolho com cérebro de coelho, que, gabando-se de estar rastejando na barba
grisalha de Haeckel [17] e nas mechas escassas de Spencer [18] , suga o sangue
pseudocientífico dos folhetos de propaganda de nossas revistas mensais e declara tudo fora
do lixo racional de um Pediculus [19] como algo ridículo e impossível.

O Alquimista sabia bem a diferença entre o fogão de cozinha e a fornalha heraclitiana; e


entre a água da banheira e “a água que não molha as mãos”. É verdade que muito
“disparate” foi escrito a respeito de bálsamos, elixires e sangues, que, no entanto, para o
mero principiante da alquimia pode ser separado dos trabalhos sérios tão facilmente
quanto um estudante «de medicina» da “Bart” [20] pode separar panfletos de restauração
de cabelos e removedores de cravos de palestras e ensaios de Lister e Müller.

Assim, aos vinte e dois anos de idade, P. partiu freneticamente na Busca pela Pedra
Filosofal.

Vī sitā Interiō ra Terræ Rē ctificandō Inveniē s Occultam Lapidem Vē ram Medicī nam [21] ;
este de fato é o verdadeiro remédio das almas; e assim P. buscou o solvente universal
VITRIOLUM, e equiparou as sete letras em VITRIOL, SULPHUR e MERCURY [22]
com os poderes alquímicos dos sete planetas; precipitando o SALT dos quatro elementos
– Subtī lis, Aqua, Lū x, Terra [23] ; e misturando Flā tus, Ignis, Aqua e Terra [24] , feriu-os
com a cruz do Mistério Oculto e gritou: “Fī at Lū x [25] !”

A juventude avança com passos apressados, e no verão daquele ano – 1898 – encontramos
P. consultando os místicos profundamente, e bebendo do cálice branco dos mistérios com
São João «da Cruz» [26] , Boehme [27] , Tauler [28] , Eckart [29] , Molinos [30] , Levi [31] e
Blake [32] :

“Rintrah ruge e agita seus fogos no ar carregado,


Nuvens famintas balançam sobre as profundezas” [33] .

Insaciável, ele seguiu ainda mais longe, faminto pelo conhecimento das coisas lá fora; e em
sua luta pelo milhão ele perdeu a unidade, e acumula caos na escuridão externa da Ilusão.
Dos céus sem nuvens do Misticismo ele desce para a escuridão infernal em pensamentos
alados: “Os membros de fogo, os cabelos flamejantes, disparados como o sol poente no
mar ocidental”, e o encontramos agora nos reinos goéticos da feitiçaria, da bruxaria e da
necromancia infernal. Os morcegos passam voando por nós enquanto ouvimos seus gritos

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frenéticos por luz e conhecimento: “O Guia Espiritual” e “O Peregrino Querubínico” são


postos de lado a favor de “O Arbatel” e “As Sete Orações Misteriosas”. Uma virada
apressada de muitas páginas, a queima de muitas velas, e então – a Chave de Salomão é
guardada por um tempo, com os Grimórios e os rituais, os talismãs e os pergaminhos
virgens; os antigos livros da Cabala estão abertos diante dele; um lampejo de fogo
brilhante, como um peixe prateado saltando das águas negras do mar para a luz das
estrelas, o desorienta e desaparece; pois ele abriu “O Livro do Mistério Oculto” e leu:

“Antes que houvesse equilíbrio, semblante não contemplava semblante”.

As palavras: “Yehi Aour” tremiam em seus lábios; o próprio caos de seu ser pareceu de
repente tomar forma – vasto e terrível; mas o tempo não havia sido cumprido, e o sopro da
criação de um novo mundo os pegou de sua boca entreaberta e os levou de volta para a
escuridão de onde eles quase vibraram [34] .

Do meio do verão até o início do outono, os diários são silenciosos, exceto por uma
anotação, “conheci um certo Sr. B___ um alquimista notável [35] ” que, embora sem
nenhuma importância em si, estava destinado a levar a outro encontro que mudou todo o
curso do progresso de P., e acelerou seu passo em direção àquele Templo, cuja terra negra
das fundações ele, até o presente, havia juntado em montes caóticos ao seu redor.

O imenso depósito de conhecimento cabalístico de Knorr von Rosenroth [36] parece ter
mantido P. totalmente ocupado até o equinócio de outono, quando B___ [37] , o
alquimista notável, o apresentou a um Sr. C___ [38] (depois, como veremos, Frater
V∴N∴ da Ordem da Aurora Dourada). Esta reunião revelou-se da maior importância,
como será apresentado no capítulo seguinte. Por intermédio de C___, P. por enquanto
havia posto de lado von Rosenroth, e agora estava mergulhado no “Livro da Magia
Sagrada de Abra-Melin, o Mago”. Uma época de transição se aproximava, um
renascimento espiritual estava prestes a acontecer, não é de admirar que encontremos P.
como Santo Agostinho lamentando sua busca externa e chorando com ele:

“Senhor, vaguei como uma ovelha desgarrada, procurando-Te fora com ansioso
Raciocínio, enquanto Tu estavas dentro de mim. Me cansei muito procurando-Te
fora, e ainda assim Tu tens Tua habitação dentro de mim, se Te desejar e ansiar por
Ti. Andei por Ruas e Praças da Cidade deste Mundo procurando-Te; e não Te
encontrei, porque em vão procurei fora Aquele que estava dentro de mim”.

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Notas de Rodapé:

1. «Philippus Aureolus Theophrastus Bombastus von Hohenheim (1493-1541) foi um alquimista, médico,
teólogo e filósofo suíço.» ↩︎

2. «Benedikt Heffner (1567-?) foi um alquimista, pastor e poeta alemão, que desapareceu em 1619.» ↩︎

3. «Thomas Vaughan (1621-1666) foi um alquimista, clérigo e filósofo e galês.» ↩︎

4. «George Starkey (1628-1665) foi um alquimista, médico e escritor norte-americano.» ↩︎

5. «Robert Fludd (1574-1637) foi um alquimista, médico, astrólogo e matemático inglês.» ↩︎

6. «Giovanni di Fidanza (1221-1274) foi um bispo franciscano italiano, também cardeal, teólogo e filósofo.» ↩︎

7. «Ramon Llull (1232-1316) foi um escritor, filósofo, poeta, missionário e teólogo, beatificado pela Igreja
Católica.» ↩︎

8. «Valentinus (100-180) foi um teólogo gnóstico do proto-cristianismo.» ↩︎

9. «Nicolas Flamel (1330-1418) foi um alquimista, escriba e vendedor de manuscritos francês.» ↩︎

10. «Abū Mū sā Jā bir ibn Ḥayyā n (?-816) foi um alquimista do oriente médio, supostamente autor de uma grande
quantidade de escritos sobre alquimia, química, magia e filosofia conhecidos como o corpus Jabiriano.» ↩︎

11. «Plotino (204-270) foi um importante filósofo neo-platônico de língua grega, nascido no Egito.» ↩︎

12. «Amônio Sacas (175-240) foi um filósofo neoplatônico romano, filho de cristãos.» ↩︎

13. «Iamblichus Chalcidensis (245-325) foi um filósofo neoplatônico assírio.» ↩︎

14. «Há pelo menos cinco filósofos clássicos com o nome de Dionísio, não se sabe ao certo a qual deles Crowley se
refere.» ↩︎

15. «Poema “O Funeral de um Gramático” de Robert Browning (1812-1889).» ↩︎

16. «“Sombras” em latim.» ↩︎

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17. «Ernst Heinrich Philipp August Haeckel (1834-1919) foi um filósofo, biólogo, naturalista e médico alemão.»
↩︎

18. «Herbert Spencer (1820-1903) foi um filósofo, biólogo e antropólogo inglês.» ↩︎

19. «Pediculus é um gênero de piolhos. » ↩︎

20. «“Barts” é o apelido da Escola de Medicina e Odontologia de Londres, formada por diversos colégios e
hospitais remetendo ao ano de 1123.» ↩︎

21. «Latim para “Visita o interior da terra e retificando encontrarás a pedra oculta, a verdadeira medicina”.» ↩︎

22. «Traduzindo do inglês, seriam Vitríolo, Enxofre e Mercúrio, respectivamente.» ↩︎

23. «Latim para Sutil, Água, Luz e Terra, respectivamente.» ↩︎

24. «Latim para Sopro, Fogo, Água e Terra, respectivamente.» ↩︎

25. «Latim para “Que haja luz”.» ↩︎

26. «Juan de Yepes y Álvarez (1542-1591) foi um místico, sacerdote e frade carmelita espanhol.» ↩︎

27. «Jakob Böhme (1575-1624) foi um místico e filósofo luterano alemão.» ↩︎

28. «Johann Tauler (1300-1361) foi um místico e frade dominicano alemão.» ↩︎

29. «Eckhart de Hochheim (1260-1328) foi um místico, filósofo e frade dominicano.» ↩︎

30. «Miguel de Molinos (1628-1696) foi um místico e sacerdote católico espanhol.» ↩︎

31. «Éliphas Lévi foi o pseudônimo de Alphonse Louis Constant (1810-1875), um místico, mago cerimonial e
ocultista francês.» ↩︎

32. «William Blake (1757-1827) foi um poeta, tipógrafo e pintor inglês.» ↩︎

33. «Trecho de O Casamento do Céu e do Inferno de William Blake » ↩︎

34. Naquela época, P. levava uma vida de eremita em uma geleira suíça com alguém que, embora não soubesse disso
na época, de vez em quando destinava-se a trazer-lhe sabedoria da Grande Fraternidade Branca. Este nós
encontraremos novamente sob as iniciais de D.A. ↩︎

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35. Depois conhecido como Frater C.S. ↩︎

36. «“A Kabbalah Revelada” de Knorr von Rosenroth.» ↩︎

37. «Julian Levett Baker (1873-1958), um químico inglês, conhecido na Aurora Dourada como Frater Causa
Scientiæ.» ↩︎

38. «George Cecil Jones (1873-1960), um químico inglês, conhecido na Ordem como Frater Volo Noscere.» ↩︎

Capítulo traduzido por Alan Willms em dezembro de 2022. Ilustração de Kasper


Rasmussen no Unsplash.

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