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O

espelho
de Jó
Jardel Felipe Santiago

1
Copyright © 2021 by Jardel Felipe Santiago
Diagramação Jardel Felipe Santiago
Capa Jardel Felipe Santiago
Revisão Jardel Felipe Santiago

S235e Jardel Felipe Santiago


O espelho de Jó / Jardel Felipe Santiago / 2. ed./
Campo Belo/MG
Esta obra é uma produção independente
ISBN 978-65-901569-1-4
Copyright (2021) by Jardel Felipe Santiago
Todos os direitos desta edição reservados ao autor
da obra
1.Romance místico/esotérico – Brasil
2. Literatura brasileira

Índice para catálogo sistemático


1. Romance – Brasil CDD B869.93
2. Literatura brasileira CDD B869

2
Assim como as árvores, os homens
íntegros crescem olhando para
cima, pois confiam na firmeza de
suas próprias raízes.

Jardel Felipe Santiago


3
4
À
Neguinha,
uma tia, um anjo,
uma saudade.

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6
Sumário

1 - Século XXI, 31 de agosto, à noite... .........................10


2 - O barqueiro. ............................................................16
3 - O quarto amigo de Jó. .............................................23
4 - Sombras e sangue. ..................................................32
5 – Cascas. ....................................................................39
6 - Trezentos dias. ........................................................44
7 - O oráculo. ................................................................51
8 - Infância. ...................................................................59
9 - Trabalho. .................................................................66
10 - Recompensa. .........................................................71
11 - 1º de setembro, de manhã... ................................77

7
8
“...
Pois, Deus fala uma vez
e não o repete duas vezes.
Através de sonho, em visão noturna,
quando profundo torpor cai sobre
os homens,
enquanto dormem nos seus leitos,
então ele abre o ouvido dos mortais
e com aparições os sobressalta:
para apartar da iniquidade o homem
e do mortal exterminar a arrogância,
para preservar da cova a sua alma
e da travessia do Canal a sua vida.
...”
(Livro de Jó – Bíblia Sagrada)

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1 - Século XXI, 31 de agosto, à
noite...

— Meu nome é Jó. Não tenho nada.


Sou um mero pintor. Não tenho amigos
agora, somente três, talvez quatro, todos
distantes no tempo, os quais entoam-me
hinos e cânticos que ecoam nos séculos
desde a antiguidade. São eles: Elifaz, Baldad,
Sofar e Eliú. Não tenho pais. Herdei apenas
cacos e este espelho que me devolve uma
imagem cansada, que não é refletida, mas
que surge das profundezas de um mundo
desconhecido pela razão dos comuns. Tento
sobreviver numa cidade insana que, entre
desfiles e festas, espalha dor e sofrimento.
Acabei de chegar e trago desta cidade
angústia e náusea, provocadas pelos
miasmas dos esgotos, dos hálitos e dos
arrotos da multidão embriagada. Quanto lixo
me castiga o olfato e tantos ruídos me ferem
os ouvidos. Perambulei entre escombros e
entre as sombras dos bobos e das meretrizes,
até sufocar-me com tanta estupidez. Sinto-
me asfixiado pela fumaça, pelos licores e

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pelos suores misturados com o perfume
barato da plebe. Até um simples pacote em
papel pardo, com um endereço escrito em
vermelho, deixado por alguém em meu ateliê
me irrita e me causa um terrível mal-estar.
Penso em entregá-lo ao dono assim que
puder. Estou só. Preciso lavar-me. Retirar
toda a imundície urbana. Afastar-me dos
costumes profanos. Fugir dos horrores e dos
nefastos gostos do populacho, deste mundo
morto dirigido por decadentes, verdadeiros
fantoches amorfos. Tantos fantasmas de uma
noite negra me assombram. Então me
acomete aquela estranha necessidade
metafísica de encontrar o sentido da vida.
Onde estão meus remédios? Meu antiácido,
os analgésicos e o “prozac”? Quero sentir
algo além da fronteira da lucidez, eis que esta
percepção aguda de uma realidade dura me
sufoca. Talvez o absinto me baste ou, quem
sabe, o ópio. Estou ansioso e sei que esta
ansiedade pode levar-me a condições
extremas que tento evitar. Num fugaz lance
de hipermnésia capto um rosto enigmático de
tez pálida, exótico, de uma beleza diferente,
estampado em uma antiga caixa de sabonetes
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que há muito tempo se encontrava sobre a
velha cômoda de minha avó. Havia um
rótulo, um nome: Sherazade! E hoje nada
mais existe, pulverizado que foi pela
crueldade do tempo e pelo apetite voraz dos
cupins e carunchos. Sei que hoje vi aquele
mesmo rosto na multidão, despertando-me
uma paixão juvenil, mas logo o perdi, como
perdi tantos amores nas ruas, nas praças, nas
vias, nas vielas, nas passarelas, nos becos,
nos guetos e nos corredores deste mundo
inquieto. Quero vê-lo novamente, urgente, e
conhecer a mulher que me persegue nos
sonhos desde os tempos que eu menino
sentia o cheiro adocicado de uma simples
caixa vazia de sabonetes. De tantos rostos
embaçados que vi durante o dia pelos
caminhos que passei ou dentro dos bares, das
lojas, dos mercados e das lanchonetes, por
onde vaguei, agora me lembro, foi em
sentido contrário que o vi, nas escadas
rolantes de um “shopping”, enquanto eu
subia, ela, esguia, magnética, a dona do rosto
mais belo e cabelos tão pretos como o
carvão, descia, exalando um perfume doce
no ar e perdeu-se entre tantos do povo,
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restando-me apenas olhar um mar de
calcanhares e contemplar o Leviatã
engolindo um precioso fragmento de meu
desejo insano. Sherazade? Acho que não.
Lilith? Não sei. Talvez Dalila, Madalena,
Morgana, Joana d’Arc ou Jezabel. Pode ser a
outra parte de mim, de minha alma, que vaga
nos séculos, que talvez me complete e por
isso não me aquieto. Contentei-me em
guardar tal musa reproduzindo seu rosto em
uma tela. Gostei muito de meu trabalho.
Preciso de ajuda, preciso de luz, preciso de
Deus. Preciso de algo mais, de algo que
ultrapasse esta singela lógica dos homens
que habitam apenas o agora de uma realidade
única. O verdadeiro amor que une almas
soltas nos séculos nunca socorre os
comodistas, nem os omissos ou os submissos
e muito menos os supersticiosos, fiéis de um
credo acanhado. Preciso pular do comum
para o precioso. Purificar-me. Sei que estou
prestes a cair no fundo do espelho e percorrer
novos caminhos rumo aos mistérios do ser.
Não tenho escolha e entendo agora que o
perfume da caixa vazia de sabonetes é a
senha e o espelho é o portal para o
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desconhecido, para a eternidade de mim,
para o meu renascer diante do infinito.
Preparei-me. Raspei a cabeça, acabei de
banhar-me, sinto-me limpo, leve e livre para
voar junto com o vento da ousadia. Já não me
vejo no espelho. Ultrapassei-o e não deixei
rastros. Não sinto meu corpo, mas sou forte
e tenho muita energia, como um vulcão, uma
bola de fogo, um meteoro ou um cometa, sei
lá! Sou apenas eu que, primeiramente escorri
pelo umbigo, pela braguilha ou por um ralo
e depois por um imenso tobogã, numa
escuridão sem fim. Rio de mim. Vivo uma
espécie de loucura pelo avesso. Meu agora é
eterno. Percebo algo diferente e algumas
luzes distantes. Vislumbro no horizonte
coisas soltas, disformes, uma espécie de
cidade derretida, com torres e arcos que se
prendem ao solo e se lançam às alturas,
banhados de luzes e cores vibrantes,
espelhando uma arquitetura assimétrica,
estranha, confusa, esplêndida, fascinante.
Neste universo não se sente a força, a
consistência ou a existência dos quatro
elementos como experimentados em minha
realidade material até então conhecida. São
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todos mera aparência, sustentando um
mundo esquisito. Se até aqui, através de
meus cinco sentidos, percebi e vivi uma
existência em um mundo tridimensional,
agora me sinto uno com tudo, pairando e
sentindo o todo que me cerca, envolve e
acomoda. Neste agora que passo a existir não
há limites de percepção como havia para os
cinco sentidos suficientes à realidade do
mundo de três dimensões que comporta os
quatro elementos conhecidos. Meu campo
existencial é muito maior e... estranho! O que
era consistência agora é mera aparência. O
mundo em que eu vivi até aqui, onde vivi, é
apenas um fragmento de um cosmos muito
mais complexo e amplo. Seguirei os rastros
da mais bela mulher, mesmo na escuridão
desta noite! A aflição me sufoca, mas sei que
estaremos juntos um dia! Os cânticos
entoados pelos meus amigos do passado
anunciam que alguém me espera e me servirá
de guia para seguir meu caminho e ludibriar
as feras e bestas que silenciosamente
guardam o portal do Xeol. Eu tenho um
punhal! Preciso da rosa e do sal!

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2 - O barqueiro.

Prostrou-se Jó e exclamou:
— Bendito seja o nome de Javé!
Assim, Jó iniciou seu ritual para
buscar o sal da sabedoria, purificar-se e
encontrar com o Deus de seu coração.
— Apareça meu guia! Eu que sempre
o temi agora preciso de sua luz, de seu
archote, da força de seus braços, da sua
lucidez e do seu discernimento! Afasta-me
do Acusador e dê-me luz! Aponte-me o
caminho da paz e da verdade! Mostre-me a
morada daquela que não me deixa dormir!
Dê-me a coragem necessária para aventurar-
me no abismo do desconhecido em busca de
minha consorte! Quero minha alma por
inteiro, pura e completamente sem mácula!
O pesado silêncio e a espessa
escuridão comprimiram o coração de Jó,
causando-lhe grande ansiedade e desespero,
impedindo-lhe a percepção de qualquer
referência no tempo e no espaço.

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— Nada, ou..., quase nada. Ainda não
sei o que sou, ou... se sou. Estou? Também
não sei. Apenas penso e não sinto. Existo!
Sei que existir é o começo. E depois? Pensar.
Mas eu pensei antes de existir! Então pensar
é o começo! Eu sou o que penso, portanto a
partir de agora vou existir. Mas, existir onde?
Preciso de um lugar! Um lugar para entrar,
cair, mergulhar..., poder existir e...
compreender. Preciso me construir e, por
assim dizer..., nascer. Decidi nascer, ou seja,
renascer. Estou consciente da minha
vontade, do meu desejo de ser e estar. Não
sei onde nem quando. Tenho vontade.
Preciso agora de força, da força maior, da
força que o sentimento não enfraquece, de
energia, de poder. Quero viver! Quero ser!
Quero estar! Eu sou! Eu sou! Eu sou!
Então, de um sopro na fronteira do
nada, começou o balé das partículas,
oriundas da força maior, condensando-se em
movimento, gerando mais energia e... luz. É
a vontade, o alento divino que empurra as
partículas, aos pares e trincas, formando
cristais vibrantes num ambiente aparente de

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caos que, na verdade, é o caminho da ordem,
pois..., é a expansão. O esforço de ser e
expandir aproxima os cristais que se
multiplicam, se abraçam e se lançam no
espaço, formando cristais mais complexos e
destes surgem corpos simétricos que se
encaixam e se ajustam, gravitando
conscientemente ao redor de um ponto
inteligente. E, numa sequencia de velocidade
infinita, surgem outros corpos que se fundem
amorosamente e começam a sonhar... um
sonho de vida!
— Eu sou! Disse Jó. Renasci e agora
me construo com os fragmentos que se
aglutinaram formando o pó primordial deste
novo mundo, estranho e confuso! Onde está
minha amada?
Movido pela paixão Jó se organiza em
seu novo ambiente, em sua nova realidade,
nas profundezas de si e prepara-se para sua
peregrinação em busca da musa, de seu amor
perdido na noite dos tempos, de sua alma
pura, completa e imaculada.

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Após longo lapso de tempo que não se
pode mensurar com o padrão de consciência
normal, em que um minuto não se difere de
um século, o pesado véu da escuridão
começa a dissipar-se e surgem brumas e um
ar muito frio, trazendo uma realidade
diferente para Jó, causando-lhe náusea e
tontura. Aos poucos vai se acostumando com
o ambiente e começa a distinguir uma
paisagem estranha. Está diante de um rio de
águas turvas e ao longe pode ver algo, uma
cidade envolta em neblina, mas de certa
forma já conhecida, como aquela tal cidade
derretida, já contemplada anteriormente em
sonho ou delírio.
— Preciso chegar à cidade, pois não há
caminho de volta. Atrás apenas uma parede
de escuridão, obrigando-me a seguir tão
somente na direção das luzes que bruxuleiam
depois do rio escuro. Como atravessá-lo? A
água é demasiado escura e fria e a correnteza
é forte, aparentando uma longa travessia, de
meia légua talvez. Sinto-me impotente e
totalmente frágil diante de tal obstáculo, com
medo do desconhecido e dos perigos do

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lugar. Sei que há criaturas e bestas dentro do
rio e nas margens a guardarem os portões da
cidade. Vejo que algo se aproxima,
deslizando sobre as águas, em silêncio. O
que era apenas um vulto sem forma aos
poucos vai se definindo e posso dizer que
trata-se de um barco comprido e estreito,
conduzido num dos extremos por um
barqueiro sinistro, coberto por um manto
escuro e a cabeça encoberta por um grande
capuz. Estou próximo a um amontoado de
troncos de madeira à margem do rio e é
justamente no lugar em que o barco se atraca,
mas o condutor da embarcação permanece
quieto, totalmente imóvel e em silêncio.
Assim permanece por algum tempo até que
percebo que aquele barco é a única maneira
de sair daquele lugar e alcançar a tal cidade
derretida. Sei que aqui não cabe perguntas,
não há necessidade de conversar e
intuitivamente levo a mão ao bolso de um
grande casaco que até então não tinha
conhecimento de que o vestia. Encontro uma
moeda, estranha, muito pesada, fosca e
áspera. Intuitivamente entendo que é o
pagamento para efetivar-se a travessia do rio,
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pois o velho estende sua mão descarnada.
Não percebo seu rosto, apenas um vazio
negro oculto pelo capuz e uma longa barba
branca bifurcada que vai até a altura do peito.
Entro no barco e antes de assentar-me no
lado oposto ao condutor, coloco a moeda em
sua mão e esta, após guardar o dinheiro em
um pequeno baú de madeira, desliza até
alcançar o cabo de um dos remos.
Mecanicamente o barqueiro começa a remar
e, sem muito esforço, imprime velocidade
àquela frágil embarcação e logo alcançamos
a metade da travessia. A escuridão vai aos
poucos sendo apagada pelas luzes da cidade
e começo a perceber sinais de vida ao meu
redor. Não vejo, mas sinto sob o barco o
deslizar de criaturas aquáticas, talvez
serpentes e outros monstros que de leve
roçam a embarcação fazendo com que o
barqueiro mostre sua habilidade e,
diminuindo a velocidade, calmamente se
adere a um curso comum com os seres que
rumam em direção ao clarão da cidade. Aos
poucos vamos nos aproximando da margem
do rio coberta de pedras escuras onde a
espuma das águas reflete a luz do luar. O
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velho barqueiro para de remar e deixa o
barco encostar-se numa grande pedra negra e
pontuda, como se esta indicasse o caminho
mais curto para aquela estranha cidade. Ali
desço e logo percebo que o velho e seu barco,
cumprindo a missão de Caronte,
desaparecem na escuridão. Estou só!
“Enquanto respirar, eu tenho
esperança!”

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3 - O quarto amigo de Jó.

Sem alternativa, Jó segue no rumo da


luz da cidade, pisando sobre um chão coberto
de pedras negras e escorregadias até
aproximar-se de um grande e rústico portal,
formado por duas imensas colunas laterais,
um pesado portão de madeira grossa e uma
grande travessa sobreposta, com a seguinte
inscrição: “CUM LUCE SALUTEM”.
— Estou pronto meu guia! Sei que
existe apenas uma entrada para a cidade, mas
são inúmeros os caminhos para dentro de
mim. Qual devo seguir? Espero um sinal!
O tempo não corre e Jó pacientemente
espera por um sinal. Cansado, Jó adormece.
Uma estranha procissão passa por ali
em silêncio. São consciências de entes
encarnados em orbes distantes, que seguem
um guia de luz. Buscam o conhecimento e a
liberdade para evoluírem e, após longo
caminhar às margens do rio, dispersam-se e,
individualmente, buscam seu próprio raio de

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lucidez, para retorno ao lar, antes da chuva
ígnea.
O guia de luz aproxima-se de Jó e
passa a compartilhar de um mesmo sonho.
Um sonho lúcido de vivências passadas, pois
são velhos conhecidos e prazerosamente
flutuam no céu admirando as esferas que
giram e dançam a mais bela ciranda cósmica.
Então o guia afasta-se calmamente e deixa Jó
sob um manto de tranquilidade.
Os portões se abrem com um suave
ranger e Jó desperta um pouco assustado,
vendo diante de si um caminho fracamente
iluminado, porém seguro, eis que ladeado
por blocos de pedras enormes e alguns
animais, como cervos, antílopes e outros
parecidos que por ali vagueiam.
— Tenho medo, disse Jó para si
mesmo. Sei que as bestas estão por aí
guardando a entrada. Cérbero? Medusa?
Tifão? Golem? Tantos monstros que sempre
me assustaram certamente tentarão me
impedir qualquer encontro com a luz da
verdade.

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Então Jó segue aquele caminho à sua
frente, crendo que onde estão aqueles
animais não há perigo de ataques ou ameaças
das feras oriundas da escuridão. O caminho
é longo e a escuridão aumenta a cada passo
até tornar-se um imenso túnel totalmente
escuro que impede Jó de prosseguir, pois a
cada passo às cegas tropeça nas pedras
irregulares, perdendo toda e qualquer noção
de direção. Então, resolve parar e suplicar ao
guardião por uma luz e orientação.
— Anjo da Luz, estou aqui e preciso
de ajuda!
Imediatamente Jó percebe ao longe
uma pequena luz que vai se aproximando
lentamente em sua direção. O lugar é
extremamente silencioso, calmo e agora Jó
começa a distinguir um vulto na escuridão,
envolto por uma tênue claridade emanada de
uma lanterna que aquela figura traz nas
mãos. É tão lento o caminhar daquele vulto
em sua direção que Jó percebe que ele vem
não de um lugar no espaço, mas no tempo e,
assim, só faz esperar, esperar e esperar... Por
quanto tempo? Não se sabe quanto, nem em
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horas nem em dias, mas com certeza por um
longo lapso de tempo que não abala a
paciência de Jó, até poder começar a
distinguir as feições daquele ser que agora já
está bem próximo. Não é um anjo. Um rosto
familiar começa a se delinear.
— Meu grande amigo Jó, venho de
muito longe no tempo e já orei bastante por
você. Meu nome é Eliú, o seu quarto amigo
e talvez agora possa lembrar-se de mim. As
vozes do céu me convenceram a te procurar
e por isso segui seu rastro no tempo, ouvindo
os cânticos e preces de nossos três amigos do
passado. Sei de sua aflição e de sua busca
pela esposa iluminada. Pelos caminhos
encontrei tantas mulheres, belas,
maravilhosas e misteriosas e consegui
decifrar alguns enigmas interessantes da
alma feminina, apenas alguns, pois a maioria
não pertence ao mundo e está entregue ao
silêncio da Grande Mãe. Com a pureza do
silêncio e a sinceridade de nossas orações
conseguimos a permissão da Grande Mãe
para trilhar certos caminhos rumo ao coração
feminino. O pássaro foi solto e leva a

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mensagem. Hoje buscaremos o oráculo que
lhe apontará o rumo certo para seu coração.
Este oráculo encontra-se na fronteira deste
mundo com a “Praga Celeste”, lugar acima
da “cidade das cem cúpulas”, para onde vão
as almas ciganas. A carruagem dos ciganos,
conduzida por um cocheiro manco e que tem
a velocidade dos ventos, nos levará até o
castelo do oráculo. Este castelo é invisível e
inalcançável para os profanos. Somente aos
puros de coração é dado encontrá-lo, ou por
uma feliz premiação da engenharia sideral,
ou através da magia dos eleitos, caso
contrário ele se subtrai aos olhos de quem
dele necessita.
Jó acha aquilo estranho, pois irá
buscar ajuda através de alguém que ainda
não se encontra num estado de luz e por isso
indaga:
— E porque o oráculo ainda não habita
a cidade celeste?
— Porque é apenas um instrumento e
ainda não alcançou o grau de perfeição ideal,
carecendo de prestar muitos serviços ao

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mundo e só após fazer jus à premiação
cármica adentrar os portões da “Praga
Celeste”, para aí sim, viver junto às almas
ciganas evoluídas e desta forma usufruir da
luz do lugar. Por enquanto ainda é um ser em
evolução e possui um caráter sombrio,
ofuscado pelas limitações dos próprios
sentidos e ainda não domina totalmente os
instintos carnais, sendo que acredita na
existência de um ser perfeito e, desta forma,
ainda não controla o ódio por quem não tem
esta perfeição. Assim, permanecerá na
fronteira deste mundo com a “Praga
Celeste”, até que os Senhores do Carma
atestem sua evolução e, por merecimento,
permitam sua passagem. Ela se dispôs a
recebê-lo porque se identifica com alguém
de seu mundo, que te ama em silêncio, mas
que ainda se perde nas teias da vaidade e da
soberba e que também ainda não evoluiu o
bastante, porque não entende o real sentido
da humildade. Por isso não deve seguir seus
conselhos, apenas orientar-se nas previsões,
sabendo distinguir o que é vontade da
profetisa e o que é a mensagem cósmica. Irei
contigo até o castelo, na dita fronteira, porém
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só você poderá seguir em frente e contatar o
oráculo. Por ora esqueça a cidade derretida.
Ela é um mero reflexo da soma de suas
visões anteriores pelas passagens
existenciais no mundo material e agora só
serve mesmo como marco inicial de sua
peregrinação interior.
De repente Jó e seu amigo Eliú
começam a sentir uma trepidação leve no
chão, que aos poucos vai aumentando,
juntamente com um barulho de pesados
cascos de cavalos a tocarem o solo e, ao
longe, avistam um enorme rastro de poeira
vermelha a colorir aquela paisagem cinzenta.
É o carro, a carruagem que chega, puxada
por quatro cavalos robustos e velozes,
cobertos de poeira e suor. O carro para bem
próximo dos amigos, Jó e Eliú, que admiram
a robustez dos fogosos animais, bem como a
simplicidade daquela carruagem, bem
rústica e sem qualquer adorno ou acessório
especial. O cocheiro desce e, claudicando,
vai até Jó e seu amigo, dizendo:
— Estou à disposição de vocês e
espero que estejam bem. Tenho
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recomendações para conduzi-los em
segurança e confortavelmente, pois o
caminho é longo e depende de boas escolhas
no trajeto e principalmente da intuição de
cada passageiro que deve ser coerente com
os seus respectivos propósitos!
Jó e seu amigo trocam um olhar de
curiosidade, logo percebido pelo cocheiro,
que se apresenta e justifica-se.
— Meu nome é Dan e sou fiel à Mona,
a profetisa, a quem sirvo há quase cem anos.
O pássaro cumpriu sua missão e a mensagem
chegou. Vou levá-los em segurança e podem
confiar em minhas mãos, que os conduzirei
ao destino que esperam.
Dan é um homem estranho, de
movimentos curtos e rápidos, com uma
mania esquisita de assobiar, pois tem lábios
leporinos e o som emitido mais parece um
sibilar. É baixo, magro, coxeia e possui a
coluna encurvada e, com tal aparência difícil
de não ser notada, ainda usa um vistoso
chapéu grená.

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Aceitando o convite do cocheiro os
dois amigos entram na carruagem e assim
que se acomodam nos assentos, os animais,
obedecendo às ordens do condutor, se agitam
e começam a andar e, num deslizar tranquilo
sobre a estrada poeirenta, iniciam uma
viagem insólita.

31
4 - Sombras e sangue.

Após muito rodar por uma estrada


comprida, numa extensa e árida planície e
integrar uma paisagem bastante monótona,
que ao longe se vê apenas pequenas
montanhas azuladas, ao comando do
cocheiro, a carruagem para e todos descem.
Encontram-se diante de um caravançará, ou
seja, de um pátio rodeado por pequenos
abrigos, para descanso dos viajantes e dos
animais. No centro do pátio há uma fonte de
água límpida, entre duas árvores de pequeno
porte, porém frondosas, proporcionando uma
única e grande sombra e algum conforto aos
passantes. O lugar é inabitado e serve apenas
para descanso temporário de caravanas,
peregrinos e outros viajantes.
Ao chamado do cocheiro os amigos
vão se refrescar junto à fonte. Dan solta os
ginetes famintos no canto do pátio, sob uma
coberta de palha e após dar-lhes de beber e
comer vai se juntar aos companheiros de
jornada. Sob uma agradável sombra e
protegidos do sol intenso daquele lugar
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desértico, os três alimentam-se de pão e
frutas e se hidratam com muita água e
também um pouco de vinho. Assim o
cansaço dos viajantes é amenizado e
afagados por uma agradável brisa se
entregam àquele momento de tranquilidade e
paz, caindo os três num sono reparador e,
estranhamente, passam a compartilhar
insolitamente de um mesmo sonho.
Estão num grande vale, sob um céu
demasiadamente azul, limpo de qualquer
nuvem. Um guerreiro ferido de morte se
aproxima e com grande esforço, num
sussurro, pergunta sobre o caminho para o
rio do conhecimento. Antes de ouvir
qualquer resposta o guerreiro cai, sem vida,
aos pés de Dan.
— Venham rapazes, disse Dan. O
grande guerreiro é um mensageiro da luz.
Devemos aproveitar de tudo que ele trouxe.
Até aqui ele seguiu o caminho reto da espada
e com certeza já se encontra próximo ao rio
do conhecimento. Ele deixou armas, seu
cavalo e mais outro de carga, bem como sua
armadura, o que devemos saber usar neste
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terrível vale de sombras e sangue de tantos
guerreiros tombados nas guerras santas da
história dos homens.
Assim, os três amigos dividem o
pequeno acervo do cavaleiro morto,
retirando o equipamento usado por ele, ou
seja, o elmo, a armadura, o escudo, a lança, a
espada e o punhal, bem como, o arsenal de
reserva transportado pelo cavalo de carga,
atendendo as necessidades defensivas e
ofensivas dos três viajantes, agora
guerreiros. Sem muita cerimônia realizam
um funeral muito simples, porém digno para
o nobre guerreiro.
Preparados para um combate, os três
se alinham um ao lado do outro e diante de
uma densa cortina de poeira e fumaça que
pouco pode se distinguir a dois passos de
distância o experiente e ousado Dan se lança
no ar, dando saltos e cambalhotas sem tocar
o solo, como se fosse um trapezista numa
demonstração circense ininterrupta e, de
repente, some de vista, quando Jó ouve de
seu amigo Eliú:

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— Estamos sós, quando o inimigo
aparecer golpeie sem parar e não esmoreça.
Cada um de nós terá sua batalha e depois nos
encontraremos.
— Assim espero, respondeu Jó e não
mais avistou seu amigo Eliú que, tal qual o
cocheiro manco, também desapareceu
naquele lugar inóspito.
Então ao perceber movimentos ao seu
redor, Jó começou a golpear com uma espada
curta e logo as sombras se avolumaram em
sua direção e iniciaram um estranho
combate. O novo guerreiro golpeava
incansavelmente com a espada e movia o
escudo em manobras rápidas entre o peito e
o rosto, para defender-se de tantas agressões
quase simultâneas, observando que uma das
sombras, desgarrada, como sua aliada, já era
parte de seu corpo, talvez herdada de uma
das suas encarnações passadas, de sua
própria vivência naquele campo de luta
sangrenta, conduzindo habilmente seus
movimentos, não como uma sombra, um
mero reflexo, mas sim como uma extensão
inteligente de seu corpo, induzindo a
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execução de movimentos inconscientes, que
lhe garantia uma proteção ante as agressões
intensas daqueles seres bizarros. Jó sentia o
impacto seco em seu escudo, dos golpes das
armas rudes usadas na luta, ora uma espada,
ora uma lança, e até mesmo maças, adagas,
martelos e machados, que eram
milagrosamente absorvidos e permitia-lhe
contragolpear e ver tombar à sua frente os
guerreiros inimigos mortos e feridos. Tudo
era muito assustador, porém a necessidade de
lutar ininterruptamente impedia o assédio do
medo, garantindo-lhe a sobrevivência. Jó
sabia que todo guerreiro é um vencedor,
mesmo aqueles tombados em combate pois,
apesar de perderem a batalha, venceram o
próprio medo e engrandeceram com honra as
suas vidas. Consumido por tal adversidade,
jamais experimentada em sua existência de
antes, mas, com certeza em alguma ou
algumas de suas outras vidas anteriores, Jó
só podia e devia continuar sua luta e golpear,
golpear sempre e derrubar o que lhe aparecia
pela frente, sendo que o cenário se tornava
cada vez mais tenebroso e repulsivo, com um
cheiro repugnante de sangue, suor e poeira a
36
ferir-lhe as narinas, ciente de que sua única
alternativa era persistir e seguir em frente,
pisando naquele terreno nauseabundo,
impregnado de sangue e coberto de corpos
mutilados, membros, cabeças, vísceras e
fezes, resultado de um combate insano e
intenso. O impressionante volume de golpes
ofensivos e defensivos, ante aquelas sombras
monstruosas, sufocava o guerreiro, que às
vezes perdia o raciocínio, vindo a perceber
que também sofrera grandes ferimentos no
rosto, no peito, nas pernas e nas costas, com
o aumento do cansaço e da dor a lhe
enfraquecer a cada momento de luta. Além
das armas utilizadas no combate, Jó valeu-se
de suas principais virtudes, ou seja,
paciência, habilidade, bravura, fé e
persistência, o que foi reconhecido pelo seu
Guardião e, aos poucos, o cenário foi se
clareando e amenizando a violência, sendo
que alguns seres disformes, tropeçando em
cadáveres, vagarosamente deixavam o
campo de batalha e, logo atrás, Jó
extremamente exausto, sentiu algo frio,
refrescante, a lhe escorrer pelo corpo e
observou que aquela sombra amiga, parceira
37
de combate, estava lhe deixando e penetrava
nas trincas do chão. Então, prostrou-se e orou
em silêncio. De repente começa a soprar uma
suave brisa, levando o odor da guerra, que
aos poucos apaga aquele cenário de horror,
quando Jó pôde contemplar a retirada dos
corpos dos guerreiros mortos pelas virgens
do ar, conduzidas pelos Devas e por suas
grandes aves etéreas.
“A tarefa é rude, mas, ao vencer sem
risco, o triunfo não tem glória!”

38
5 – Cascas.

Agora Jó encontra-se só, num


ambiente vazio e completamente
desconhecido, sem qualquer referência
topográfica, contemplando um imenso
deserto de areias brancas, sob um sol
inclemente a flutuar num céu limpo e de
intenso azul. Então começou a ouvir o vento,
que trazia uma espécie de sussurros e
grunhidos, aproximando-se lentamente, até
que alguns sons guturais também puderam
ser percebidos, arranhando os ouvidos de Jó.
As areias se moviam e mostravam corpos
disformes surgindo do nada, serpenteando
nas areias quentes. Uma imensa horda de
seres estranhos, conhecidos por cascas,
aproxima-se de Jó e tenta envolvê-lo. Têm
aspecto horripilante e asqueroso, embora de
feições semi-humanas, habitando corpos
frágeis e pálidos, com membros atrofiados,
além de apresentarem mãos e pés totalmente
desproporcionais, sendo demasiados grandes
e curvos, em completa desarmonia com os
braços e pernas demasiadamente finos.

39
Daquele emaranhado de corpos, um se
destacou e como se fosse um líder, afastou os
demais com gestos agressivos e um rosnar
assustador. Jó logo percebeu a intenção
daquele casca, pois já lidara com tais seres
em outras realidades existenciais, tratando-
se de verdadeiros parasitas astrais,
exploradores de almas ingênuas, que se
escondem sob o manto da covardia,
invocando clemência e simulando
humildade, para atrelarem-se a uma
consciência, tornando-se uma única vida de
total submissão. Quando todos os outros se
afastaram aquele ser manifestou-se:
— Pode me chamar de Og. Doravante
te servirei e serei o escravo mais fiel de Jó.
Em minha companhia você encontrará
tesouros e será o homem mais rico e
poderoso do mundo. Basta que me aceite e
coloque este anel que selará este
compromisso de fidelidade e servidão eterna.
Jó deu uma sonora risada e com os
lábios trêmulos de raiva, respondeu:

40
— Og? Você não tem nome, porque
você é nada! Parasita desprezível, que sequer
tem um corpo físico. Você se arrasta com as
sobras dos mortos, não passa de um
aglutinado de larvas e é totalmente
desprovido de caráter, casca miserável! Você
pode até obter a misericórdia dos fracos, mas
nunca a confiança dos sábios! Você vai
servir sim, escravo eterno e asqueroso, nada
recebendo em troca, enquanto eterna for sua
sordidez. Dê-me este anel que nunca foi seu,
pois não é digno de possuir nenhum bem!
A seguir Jó tomou-lhe o anel,
recebendo um olhar melancólico daquele ser
astucioso, porém já estava plenamente ciente
das estratégias e chantagens emocionais
típicas dos cascas, os quais buscavam os
extremos da humilhação para conquistar
suas vítimas, sendo a submissão exacerbada
um ardil para forjar um elo de estagnação
espiritual junto à vítima, ao contrário da
lealdade cristalina que caracteriza uma
grande amizade. Buscando sempre a piedade
de seu senhor, a submissão do casca na
verdade inverte a situação, tornando-o dono

41
daquela pobre alma que, por piedade ou
ingenuidade, se atrela ao parasita
eternamente.
— Na falta de um nome vou chamá-lo
mesmo de Og, pois é o que está escrito neste
anel e de agora em diante estará sob meu
domínio e destruindo este anel você também
deixará de existir. Og deve ser o nome de
quem você usurpou esta jóia e só você sabe
que fim levou sua vítima. Pegue todas as
coisas, armas e bagagens e vamos ao
encontro de meus amigos, Dan e Eliú. Fique
sempre atrás de mim, com os fardos e nunca
dê um passo à minha frente!
Com um riso torto no canto da boca e
soltando alguns grunhidos incompreensíveis,
Og junta toda aquela tralha e faz um grande
amarrado, colocando-o nas costas.
Demonstrando seu grande esforço e
esperando o reconhecimento de seu senhor,
Og ajeita o grande volume e começa a andar,
transportando o imenso fardo e emitindo
baixos gemidos, ao que Jó, não se apiedando
daquele ser desprezível, ordena-lhe para não
se esquecer da água e assim coloca vários
42
galões e cantis sobre o amarrado. Como todo
casca não foge às exigências patronais, ele se
ajeita, bem como toda a carga volumosa a ser
transportada e, com uma força inacreditável,
dá início àquela jornada sob o comando de
Jó, rumo ao desconhecido.

43
6 - Trezentos dias.

Com passos lentos e miúdos, Jó e seu


servo, calados, caminham sobre a areia
quente do deserto, nada tendo a contemplar a
não ser areia, céu e um sol abrasador. O
cansaço aumenta a cada passo e as pernas
pesam como chumbo, no entanto o casca
miserável segue fielmente seu senhor, com
muita determinação e inabalável sujeição,
carregando seu pesado fardo. Os viajantes
dificilmente interrompem tal caminhada,
pois enfrentam todas as adversidades que
encontram pela frente e param apenas e tão
somente diante de tempestades de areia e
quando a noite cai, sendo esta a única ocasião
a permitir um merecido descanso de ambos,
bem como a reposição de energia através da
única refeição do dia, cuja reserva vai se
escasseando com o passar do tempo. Os
perigos são muitos e não foi vista nenhuma
vivalma por toda aquela extensão até então
percorrida, mas alguns animais ferozes que
eventualmente apareceram foram abatidos e
também serviram como alimento da dupla de

44
viajantes. O caminho é tortuoso, não há
qualquer referência naquele estranho cenário
de infinitas dunas que se movem e as areias
riscadas pelo vento confundem os olhos
humanos, restando apenas as estrelas para
guiar os viajantes, os quais traçam o rumo a
ser seguido no dia seguinte observando o
movimento dos astros no período noturno,
após cada longo dia de jornada. E assim
seguiram o melhor caminho na interpretação
de Jó, crendo que, de acordo com os astros e
uma forte intuição, já estavam se
aproximando de algum lugar habitado, tendo
já decorridos quase trezentos dias desde a
partida do vale das sombras. Então,
repentinamente deparam com uma espécie
de portão translúcido, muito alto e largo,
como se fosse um manto descendo do céu, a
separar dois ambientes. Sem vacilar Jó e seu
servo caminham na direção daquela bela
passagem e têm uma sensação muito
agradável, eis que a temperatura exagerada
do deserto é amenizada e experimentam um
novo clima, bastante suave, passando a
contemplar uma nova paisagem, pois agora
se encontram numa planície com vegetação
45
rala e um caminho quase reto, como se fosse
preparado para eles, direcionando-os ao
destino reservado a Jó. Agora caminham
sobre uma trilha de chão liso, coberta por
uma fina camada de poeira, onde ficam
gravadas suas pegadas, porém não percebem
outros rastros, pelo que Jó constata que o
caminho foi realmente preparado
exclusivamente para ele e até o momento
ninguém o utilizou. E assim caminham por
longas horas, naquela trilha monótona até
alcançarem uma série de elevações no
terreno que ao longo do caminho vão
aumentando de tamanho, surgindo outras
elevações maiores, colinas e tantos montes
de terra escura. Muito exausto Jó decide por
descansar e aponta para Og um dos grandes
montes de terra escura, coberto por algumas
árvores de pequeno porte e farta ramagem,
lugar em que se acomodam e ali adormecem
ao lado de suas tralhas. Em sonho Jó recebe
de uma bela criança uma rosa perfumada,
com um único espinho em sua haste.
Encantado com a beleza da flor e entorpecido
pelo perfume assaz agradável ele olha para
aquela criança de luz, mas não consegue
46
pronunciar uma palavra, porque tudo é tão
belo e envolvente que basta-lhe agora
contemplar o sorriso infantil e angelical
daquele mensageiro mirim. Em completo
êxtase Jó ouve do infante:
— Você caminhou, você guerreou,
você enfrentou todas as adversidades, fome,
sede, calor e conquistou amigos, mas até
agora não se libertou do medo de perder e do
apego às pequenas coisas, tornando mais
árdua sua caminhada! Deixe o peso para
trás, juntamente com seu reflexo negativo.
Aqueles que se preocupam apenas em
adquirir e conservar coisas inúteis por meios
ridículos, são os que mais se aproximam do
nada e se ferem com o próprio espinho. Olhe
para dentro de si mesmo e continue a
jornada, pensando tão somente na beleza da
rosa e no seu odor precioso. Ignore o espinho
e ele deixará de existir. Não tema o leão!
Confie no sol, no sal e no mercúrio!
Jó acordou e começou analisar aquele
sonho enigmático, refletiu e então percebeu
o quanto se perdeu em sua busca interior,
ignorando por todo esse tempo de caminhada
47
o enorme potencial acumulado em suas
existências, assim como tantas bênçãos
cósmicas recentemente recebidas nesta vida
atual, como cavaleiro leal da rosa e fiel
seguidor do Anjo da Luz. Então começou a
meditar mergulhando em suas profundezas
psicológicas e, numa epifania momentânea,
entra na alma do mundo e começa a sentir-se
extremamente forte, robusto e puro. Já não é
mais apenas o homem Jó. Ele é o monte, a
terra, as pedras, os minerais, os arbustos,
respira com as árvores e sente como se o
mercúrio corresse em suas veias, dando-lhe
uma vida mais complexa e intensa, que
transcende os limites da matéria até atingir
um elevado grau de consciência e plenitude.
O corvo retira-lhe o espinho e o sangue
respinga na terra que escurece ainda mais e o
solo trepida quando os trovões ecoam no céu.
Do ar vem a águia, veloz, terrível, furiosa,
pronta para o grande combate com o leão da
terra. Os oponentes se agigantam, se
agarram, se rechaçam e se misturam em um
só corpo e logo depois separam-se para, logo
a seguir, engalfinharem-se novamente. Tudo
gira e as cores vivas surgem no céu e no chão
48
quando o embate realmente começa e, a cada
golpe, um clarão e faíscas como na bigorna
de Vulcano. O leão quer sair, mas a águia o
impede e com luta tão feroz ambos se
dilaceram e começam a perder membros e
nacos de seus corpos, ocasião em que, num
último esforço, o leão cruel rompe a barreira
do sono e se exterioriza com sua bocarra
escancarada, como se fosse parte daquela
colina escura em que se encontravam e, de
um só golpe, a fera de terra engole o servo de
Jó e toda bagagem dos viajantes. Como se
pairasse no ar Jó assiste aquele espetáculo
medonho e vê seu escravo desaparecer aos
poucos, escorrendo como mingau do
negrume, juntamente com o leão, num
redemoinho de terra quando, num reflexo
natural, lembra-se do anel de Og e lança-lhe
tal jóia como presente de despedida,
recebendo em troca daquele tolo e estúpido
portador, um amável e humílimo sorriso de
agradecimento e tudo acaba, sumindo nas
entranhas do chão, restando agora apenas
uma paisagem calma e um caminho a seguir.
Enfim o mercúrio animado e Jó está livre de
seu fardo material, bem como de seu reflexo
49
negativo, portanto, pronto para iniciar-se na
Grande Obra.
“Quanto mais prejudicial você me foi,
mais você me perdeu e menos eu me
arrependi”.

50
7 - O oráculo.

Jó deixou aquela realidade anterior e


agora medita e agradece ao Criador,
buscando encaixar-se noutra realidade que o
leve de volta ao seu próprio interior. A
meditação abre então as portas para outras
experiências em sua nova realidade, em seu
reino espiritual mais elevado e puro. Ao
contrário do que antes acreditava, que todo
homem tem vida curta e cheia de misérias,
como a flor que nasce e depois murcha,
agora ele vê o quanto é forte e belo em sua
essência divina e não teme a solidão do
presente, nem a incerteza do futuro, pois
consciente e uno com a Luz Maior,
certamente um dia alcançará um estado de
paz e serenidade diante da eternidade
compreendida. Agora encontra-se numa
floresta densa e úmida, com árvores altas, de
troncos grossos, robustos e enormes galhos
crivados de folhas extremamente verdes. As
cores das flores e dos frutos são de grande
beleza e os raios de sol são multicores,
indicando vários caminhos naquele mato,

51
deixando Jó indeciso sobre qual rumo tomar.
Mas Jó sabe que os indecisos temem, os
afoitos seguem, enquanto os iluminados
encontram. Assim, invocando mais uma vez
seu anjo guardião ele percebe que a luz do
dia em breve se apagará.
Finda-se o dia, o sol já se encosta às
montanhas do oeste e Jó contempla no céu
um grande leque de luzes douradas, abrindo,
fechando e emanando outros fachos de luz
púrpura, tudo na mais perfeita sincronia,
colorindo a abóbada celeste de forma intensa
e fascinante, enquanto o vento coadjuvante
assobia uma melodia suave e encantadora. Jó
se encanta com aquele belo espetáculo
luminoso, enquanto no céu continua o balé
de luzes e de cada explosão silenciosa que
acontece, surge uma miríade de faíscas
coloridas, dando sequência àquele
espetáculo multicor que se prolonga com
tantas ocorrências admiráveis e
surpreendentes. Eis que, de repente, uma
escada de luz surge diante de Jó, ofuscando
todo o resto da paisagem, numa indicação do
Alto de que aquele era o caminho a seguir. E

52
assim Jó segue seu novo caminho de luz. A
cada degrau tocado por seus pés jorra uma
cascata colorida de luzes e um perfume de
flores paira à sua volta, quando ele pôde
perceber à sua frente um imenso corredor
ladeado por belas mulheres de vestes
brilhantes, cantando uma linda canção, na
forma de murmúrios suaves e harmônicos,
dando-lhe as boas vindas, eis que já estava
adentrando o castelo de Mona. Com certeza
é o castelo de Mona, a profetisa, pois o
decidido viandante tem um forte
pressentimento de que a iluminação está
próxima e que um ser especial encontra-se no
local, emanando uma energia sagrada e pura.
Sentiu-se extremamente privilegiado e
recompensado, após tanto esforço
dispendido e renúncias praticadas,
recebendo agora um grande presente do
Altíssimo, sentindo-se como uma peça ou
engrenagem de grande importância perante a
engenharia sideral. Há um perfume de
incenso no ar, semelhante ao cheiro
adocicado da velha caixa de sabonetes dos
tempos de infância o que lhe causa uma
confusão mental momentânea e,
53
estranhamente, uma agradável sensação de
intensa liberdade, então sente-se flutuando
por vários corredores do castelo até chegar
em um imenso salão de paredes prateadas,
onde depara-se com uma bela mulher de
aparência cigana, madura, morena, olhos
castanhos, dentes perfeitos, cabelos negros e
roupas coloridas, assentada em uma
confortável cadeira de encosto alto. Ali está
ele de frente para Mona, a profetisa, que lhe
indica uma cadeira semelhante à sua, do
outro lado de uma grande mesa retangular,
onde ele se acomoda e contempla um
admirável sorriso de sua anfitriã. Logo Jó
percebe naquele sorriso suave uma
mensagem de boas vindas e, em silêncio,
com um semblante de muita paz e como
forma de agradecimento, retribui um sorriso
idêntico. Para ele é como se já estivesse
vivido aquele momento, experimentando um
“deja vu” pois, pressente a entrada de uma
moça que lhes serve uma bebida muito
agradável e após sorvê-la desprende-se do
corpo e vê Mona bebericar sua taça e
contemplá-lo no ar. Após tomar o último
gole ela vai em direção a Jó e o abraça
54
ternamente. Agora, entrelaçados, são um só
corpo que sobe em espiral no espaço e se
embriagam com o mesmo hálito mágico,
experimentando uma sensação única e Jó
começa a narrar o que sente:
— Que estranha sensação me toma do
couro cabeludo às solas dos pés. Uma
aflição, um desejo abafado, uma esquisitice
sensorial inexplicável que me empurra para
as zonas abissais do eu mais puro, até
alcançar um estado de total inércia, para
então experimentar cada morte de
encarnações passadas, numa sequência
ultrarrápida, um tiro no peito, uma facada nas
costas, a queda, a altura, o medo da fera, a
corda esticada, a corrente que rompe, o
veneno, o amargo na boca, a falta de ar, o
gosto de sangue, o cheiro de pólvora, a força
da água, a língua de fogo, o tapa do vento, o
peso da terra, o enxofre, a fome, o sono e... a
escuridão! Eu balanço, babo, suo, mijo,
sangro e caio mil vezes até contemplar a luz
que sempre me salva. Estou só! Estou salvo!

55
Sem abrir os olhos, apreciando aquele
momento de intenso êxtase, Jó ouve de sua
companheira:
— Você é um iniciado, um ser
privilegiado que usufrui das bênçãos do
Cósmico e como elo importante de uma
respeitável corrente fraterna deve seguir seu
caminho e alcançar a plenitude do ser. Para
encontrar a sua amada deve buscar seu rastro
no tempo e colher de todas suas paixões a
ternura e o amor que usufruiu em cada
relacionamento, pois de cada uma delas algo
do mais puro amor ficou retido em seu
coração. Tantas sofreram e preferiram o
triste adeus do amado do que abandoná-lo
nas esquinas do tempo. E destas, as mais
sinceras, que se sacrificaram apenas em troca
de sua felicidade, certamente receberá os
sentimentos mais nobres a serem
depositados no coração não daquela que não
lhe deixa dormir, mas no daquela que lhe
permite sonhar. Experimente o absinto!
E assim Jó flutuou no espaço, como se
deslizasse em um tapete mágico sobre as
nuvens alvas mais altas do planeta e dali
56
pode admirar numa tela celeste todos os
rostos de suas amantes, sentindo um misto de
gratidão e remorso, não só por não ter
entendido a extensão do amor de cada uma
delas, bem como porque tão pouco delas
ouviu, já que apenas as mulheres sabem o
que deve ser dirigido aos ouvidos dos
homens e sabiamente reservam o que eles
ignoram e o que resta da dor de cada
rompimento apenas para os ouvidos da
Grande Mãe. A seguir passa a envolver-se
com cada uma das amantes, alternadamente,
numa sequência alucinante e, entre beijos e
carícias recíprocas, revive o melhor do amor
de cada uma delas.
Após tantas aventuras e experiências
do mais terno amor Jó se deixa levar por uma
espécie de redemoinho de vento e como um
filhote no ninho é colocado novamente em
seu assento no castelo de Mona. A profetisa
sorri e diz:
— Poucos chegaram até aqui, nesta
faixa intermediária, geograficamente
impossível de explicar, pois, fisicamente
estamos a quilômetros acima da “cidade das
57
cem cúpulas” e, como não existe um padrão
de medida extrafísico adequado, ainda a uma
certa distância espaço-temporal da “Praga
Celeste”. Amanhã conhecerá o jardim do
orvalho dourado e então poderá seguir o
caminho dos reis até onde dorme a bela
criança! Não tema a tempestade, pois ela
assusta, mas não é má e nem traz nada de
ruim. Ela simplesmente vem dar vida ao que
não presta, mas que já existe e habita calado
entre nós!

58
8 - Infância.

De repente não há mais castelo, nem


Mona está mais ao lado de Jó. Há sim uma
linda paisagem, num dia claro de céu muito
azul, com uma bela montanha azulada ao
fundo e, como se estivesse acordado em um
outro mundo, ele pode sentir novas situações
de prazer e o sabor das coisas que vê. O gosto
de montanha misturado com o de árvores e
pássaros, e ainda, o doce sabor dos estratos e
cúmulos que se amontoam no céu, tudo
acompanhado pelo som ameno do vento
roçando os raios de sol como se anjos
dedilhassem uma harpa imensa e divina. Na
cabeça de Jó as lembranças das musas de sua
vida, os abraços da irmã, o carinho da mãe e
as carícias de suas amantes, o que há de mais
puro em cada um dos afagos e abraços
colhidos se aglutina e reveste seu coração do
mais sublime amor, blindando-o dos ataques
demoníacos, farpas e fincas de emoções e
lembranças amargas que habitam os
subterrâneos de sua mente. Então ele
caminha a esmo até encontrar um enorme

59
portal, ou seja, a entrada para uma cidade,
idêntica àquela do interior, onde nasceu e
cresceu, mas que não é a mesma, apenas
parecida, contendo as idênticas ruas, praças
e construções, em que predominam tons
ocreados. Tudo é muito estranho, pairando
um clima de mistério na vida da cidade. O
rosto de cada um do povo se mostra
indiferente, sem emoção e todos agem de
modo mecânico e previsível, praticando
atividades rotineiras, comuns do cotidiano,
inexistindo incidentes ou alardes de qualquer
natureza. Jó procura alguém conhecido ou
pelo menos acessível a informações, sendo
que todos se ocupam de alguma forma e não
há ninguém disperso ou entregue ao ócio e,
assim, não recebe nenhuma atenção nem
oportunidade para abordar quem quer que
seja, não logrando êxito em qualquer
indagação. Parece caído em uma dobra
temporal em que vive uma fração de segundo
em atraso aos demais e estes não o percebem.
Continua ele perambulando pelas vias, becos
e vielas, encontrando um prédio escolar em
ruínas, bem familiar, lembrando a escola
primária que frequentou na infância, com um
60
parque infantil totalmente vazio. Ali entrou e
passou a fazer parte daquele ambiente de
vibrações fortes até que percebeu o total
abandono, o desgaste e a deterioração de
todos os brinquedos, castigados pela
intempérie, com as peças de madeira
apodrecidas, as de plástico trincadas e
partidas e as de ferro carcomidas pela
ferrugem, quando sentiu que pouquíssimas
coisas são tão assustadoras quanto um
parque infantil abandonado. Os infantes que
ali frequentavam deixaram impregnados no
ar as vibrações de suas alegrias, tristezas,
sonhos, angústias, frustrações e saudades e
hoje os brinquedos transmitem um recado
enigmático, através do ranger dos balanços
empurrados pelo vento, do uivo e assobios
do mesmo vento nos canos e tubos de
escorregadores e tobogãs, ou mudo, pela
forma rígida de uma gangorra emperrada que
aponta um lado para o céu e o outro para as
profundezas do solo estéril. Tal cenário faz
com que Jó viaje no tempo sem entender
tantas mensagens transmitidas naquele
parque e passa a indagar:

61
— Como estarão hoje as crianças que
aqui brincaram? Será que foram realizados
todos os seus sonhos?
Tudo o intriga, sendo que até agora
não viu crianças na cidade. Talvez porque
restou apenas tristezas e saudade e não é
justo nem aceitável que outras crianças
sofram tais reflexos. As pessoas que
encontrou são apenas projeções de seus
contemporâneos na condição de abdicarem-
se das escolhas fundamentais, inclusive da
procriação.
— Todos crescemos e entristecemos
quando esquecemos os brinquedos, reflete, e
agora, percebo o quanto é mais triste quando
somos esquecidos por eles, quando nos
ignoram e perdem sua função de divertir.
O conjunto de ruídos no parque mais
parece um lamento que o empurra para um
passado confuso e então resolve sair e trilhar
um caminho que lhe parece familiar, pois, na
infância, ao sair do parque seguia uma
pequena trilha até um riacho próximo à casa
da saudosa avó. Após caminhar um pequeno

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trecho começa a ouvir o barulho suave de
água corrente e sente o cheiro adocicado de
mato verde e úmido. Uma agradável
sensação de estar novamente num ambiente
em que foi muito feliz lhe percorre todo o
corpo e pensa somente em assim
permanecer, apreciando tudo que lhe
envolve a cada passo de sua caminhada.
Fecha os olhos e segue intuitivamente até
alcançar uma ligeira elevação no terreno e
lembra-se da entrada para a casa de sua avó,
e então, de olhos abertos, admira a saudosa
casa caiada que guarda em seu interior tantos
momentos felizes ali vividos quando
menino. Sem titubear abre a porta e entra. A
casa está vazia, mas conservada e limpa, com
todos os móveis, retratos emoldurados nas
paredes, bibelôs e enfeites nos mesmos
lugares de antigamente e o mesmo cheiro de
café, papel velho, talco e sabonete barato,
levando-o a divagar:
— Um ajuntamento de coisas que
formam uma única coisa, estranha, confusa
e, paradoxalmente, agradável, que se mistura
dentro de mim, transbordando lembranças e

63
encantos de uma infância distante, mágica e
feliz. Eu luto, debato, grito e resisto ao susto
com o rugido das feras que se embrenham
nas camadas mais profundas do eu que se
afasta da lógica e da razão, restando assim,
um acervo de imagens arquetipais, íntimas e
sagradas. Então rio de mim, sentindo um
cheiro agridoce de sangue misturado com o
cheiro de flores silvestres e estrume seco de
porco. Meu pé dói como doeu quando o
cortei com um caco de vidro, mas a dor tem
um sabor, algo diferente, incrivelmente
agradável, de um mero pedaço de doce de
amendoim cortado em tabuleiro de madeira,
degustado ao lado de uma laranjeira florida.
O cachorro late e as galinhas cacarejam
despejando no ar um canto cego como a faca
de um bêbado errante. Saio de casa. Sinto o
cheiro do álcool, do conhaque maldito e
embriago-me, deixando-me levar pela água
da chuva, numa enxurrada barrenta e fria por
todo o quintal, até alcançar o primeiro degrau
da escada da cozinha, de volta à casa e outra
vez me encontro no mesmo lugar de antes, de
frente para a cômoda com a velha caixa de
sabonetes vazia. Agora sei que todo menino
64
é um rei e que os caminhos trilhados na
infância são dourados. A bela criança dorme
dentro de mim!

65
9 - Trabalho.

Jó se espreguiça e reflete:
— Eis que me encontro no grande
jardim das romãzeiras, pronto para preparar
o elixir sagrado e adquirir o esplendor da
vida. Que venham a raposa e o pássaro e,
com a ajuda do fogo santo, deem vida à
matéria seca. O canto do pássaro seduz a
raposa e esta descobre o caminho mais curto
até a fonte que a todos sacia, com sua água
fresca e pura. Então o pássaro voa e a raposa
dorme. Após tantas metamorfoses sucessivas
do adubo, com a influência do fogo sagrado,
consegui o tesouro. Surge assim o orvalho
dourado, que a paciência me proporcionou
adquiri-lo e agora repousa em meu vaso a
amálgama preciosa e equilibrada. Sou dono
de mim!
Após tanta labuta, Jó agradece o
resultado num ritual calado e, ajoelhando-se,
invoca o Anjo da Luz:
— Em nome da bela criança que
dorme no meu coração, eu agradeço, meu
66
anjo protetor, e peço força e discernimento
para prosseguir, agora que tenho a pedra
sagrada e o escudo santo, estou pronto para
derrotar o dragão que nunca dorme!
Então Jó olha para cima e colhe do céu
uma visão assustadora, eis que tudo
escurece, surgindo grandes e espessas
nuvens anunciando uma tempestade. As
pesadas nuvens se amontoam e os raios
cortam a escuridão, seguindo-se os trovões
que ecoam por todos os lados. O gigantesco
e escuro colchão de nuvens se intumesce e
surgem trincas como se tudo fosse
despencar, escapando faíscas e línguas de
fogo de cada brecha que se abre. Começam a
cair centelhas miúdas, fagulhas maiores e
bolas incandescentes de vários tamanhos,
iluminando o cenário e incendiando a
vegetação. Das montanhas escorrem lavas
ferventes e toda aquela massa ígnea se
avoluma formando uma enorme montanha
ardente que se move de um lado para outro
até aproximar-se da mais bela das romãzeiras
que se encontra no centro do jardim. O lobo
branco descansa sob a romãzeira e não se

67
assusta com o monte de fogo denso e viscoso
à sua frente e tranquilamente assiste a
matéria em chamas adquirindo vida e
transformando-se em outro ser igualmente
monstruoso, agora um animal terrível em
forma de dragão de cor vermelha. Ele se
agiganta com as vibrações malévolas
extraídas da maldade humana. Colhe o ódio,
a inveja, a ira, a vaidade e a luxúria no
coração dos incautos buscadores, recebendo
daí sua energia vital necessária à perpetuação
da maldade. Ele cresce e prepara-se para
atacar o lobo, pois se destruir o lobo ele terá
a romãzeira e será o dono do jardim. O lobo
não recua e isto torna o monstro inseguro,
mas com sua força e tamanho descomunal
tenta impressionar o canino despertando-lhe
uma possível inveja, pois a inveja nunca está
sozinha no coração do indigno. Ela sempre
vem acompanhada dos mais torpes
sentimentos e aniquila os insensatos. No
entanto, o lobo é íntegro e mantém a
brancura da alma, sob o escudo da caridade.
As virtudes adquiridas junto à romãzeira o
tornaram incorruptível e não deseja o poder
que amedronta e subjuga os fracos. Tal poder
68
é perigoso, pois atrai os piores e corrompe os
melhores e só é concedido àqueles que estão
prontos a se curvar para obtê-lo. Diante da
integridade do lobo, de sua paciência e
serenidade, o dragão se desespera e mostra
sua ira, que é o começo de seu fim. Ataca
ferozmente o lobo, com fogo e suas garras
curvas e cortantes, mas o lobo é ágil e sagaz,
esquivando-se até perceber o momento
correto de agredir o monstro insano. E o
combate é intenso e desproporcional ante a
tremenda força e poder do gigante de fogo
em relação a um simples canídeo. Este,
diligente e sagaz, se esquiva das labaredas
despejadas das narinas e boca do monstro
horrendo. A romãzeira se expande e protege
o lobo com galhos imensos e brilhantes,
ofuscando a vista do dragão com seu brilho
intenso e, desta forma, o caçador não
consegue localizar a caça. Rios de lava
escorrem no chão, mas não atingem a
romãzeira nem seu defensor e do céu descem
imensas bolas de luz líquida que aos poucos
formam no chão uma cerca translúcida
delimitando momentaneamente a área de
combate, separando os oponentes. E o
69
dragão, confuso, não percebe que o lobo salta
sobre a cerca luminosa e cai em seu dorso
para, num golpe surpreendente e certeiro,
cravar-lhe as presas no pescoço, ceifando-lhe
a vida. O fogo líquido se espalha misturado
ao sangue negro do animal terrível que
agoniza, enquanto o lobo, branco como a
neve, volta para a romãzeira que readquire
seu estado e forma de antes.
“A sorte não é igual para todos!”

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10 - Recompensa.

Um lindo cântico, vindo do castelo de


Mona, alcança os ouvidos de Jó. E este,
ainda entorpecido pela experiência anterior,
se movimenta com dificuldade até conseguir
mudar os passos e andar sobre um tapete de
flores de todas as cores que, aos poucos, lhe
restaura o vigor e a mobilidade. De repente
Jó para e sente aquele canto penetrar-lhe
pelos ouvidos, cabeça a dentro, como uma
avalanche sonora nunca antes
experimentada, fragmentando-se numa
multiplicidade de blocos musicais que
deslizam e ricocheteiam pelo cérebro até o
coração, convocando cada célula do corpo
para um baile no jardim da renovação
espiritual, onde arde o fogo da sabedoria.
— Estou pronto, meu anjo. Me dê a
mão!
Então, Jó se eleva do chão e flutua
serenamente sobre o jardim, quando sua mão
é tocada de leve por um ser de luz, que aos
poucos vai se metamorfoseando e adquirindo

71
a forma de uma linda mulher, muito alta, de
cabelos dourados, trajando uma veste
prateada e longa. Em pleno ar eles se
abraçam e dão início a um passeio incomum,
vagando pelo espaço. Assim pôde ele
contemplar um outro universo onde os
“Djins” criam novos mundos e protegem
seus eleitos. Ali cada ser de luz, de extrema
beleza, adquire as formas que mais agradam
e se adequam às faculdades mentais de seus
discípulos. E criam novos mundos de luzes e
cores, espalhando alegria e conhecimento em
cada universo ainda não compreendido.
Como se fosse um só corpo, Jó e sua
amparadora seguem o rastro do vento,
admirando o labor criativo dos gênios e
sentindo um prazer indizível, que a
linguagem comum não consegue descrever.
Todos os “Djins” que se aproximam trazem
frutos e afagos, numa recepção amigável e
sincera. São gênios com aparência de musas,
anciões, guerreiros e monges, sendo todos
extremamente belos, agradáveis, amigos e
protetores. Após tantos contatos e trocas de
afetos Jó é conduzido ao topo de uma
montanha e de lá pôde ver a extensão do
72
mundo percorrido, dos inúmeros e
espetaculares canteiros de obras, bem como
a complexidade dos trabalhos ali
desenvolvidos. A seguir a dedicada guardiã
de Jó se desprende de seu corpo e o acaricia,
dizendo suavemente:
— Um novo mundo foi criado para
você, construído e preparado de acordo com
o seu conhecimento, seus sentimentos,
emoções e anseios, embasado nas
experiências colhidas e acumuladas ao longo
de suas vidas anteriores. Agora você está
pronto para seguir um novo caminho, colher
o fruto de ouro e encontrar sua companheira.
Desça a montanha e aguarde um sinal!
E assim Jó desce calmamente por uma
trilha sinuosa e chega até um lindo vale de
vegetação rasteira e fofa, avistando dali um
castelo envolto por uma névoa tênue, a mais
ou menos meia milha de distância. Do céu
desce um bando de pássaros amarelos que o
rodeiam, ficando ele ciente de que era este o
sinal anunciado, pois daquele bando de aves
um único pássaro azul se destaca e indica o
caminho a ser seguido rumo àquele castelo
73
de aspecto familiar. Após longa caminhada,
divertindo-se com os pássaros, Jó chega ao
seu destino e logo percebe que é o castelo de
Mona, encontrando no pátio externo a
mesma carruagem que antes o conduziu
àquela região até então desconhecida.
Reconhece os quatro fogosos cavalos que
estão se alimentando junto de outros, sob
uma grande árvore à beira do fosso. As
portas se abrem e a ponte levadiça desce
sobre o fosso, por onde Jó atravessa de volta
à morada da profetisa. Já dentro do castelo
ele percorre vários corredores e admira os
desenhos e pinturas nas paredes, que
registram as aventuras e feitos heroicos de
tantos iniciados que por ali passaram na
busca do eu verdadeiro e do aperfeiçoamento
espiritual. Em uma sala ampla e desprovida
de móveis ele vê num dos cantos a lanterna
de Eliú e o velho chapéu grená de Dan sobre
uma caixa de madeira. Então deduz que seus
amigos venceram suas batalhas e também ali
chegaram em segurança. Prossegue ele até
alcançar o grande salão com a mesa
retangular e as cadeiras de encostos altos,
encontrando-se ali a solitária e sorridente
74
anfitriã do peregrino Jó. Indicando-lhe um
assento à sua frente ela diz:
— Agora você deve ir até a sala dos
espelhos e contemplar certas imagens dos
arquivos acásicos no espelho central, que vão
lhe permitir encontrar o fruto dourado.
Calmamente ele segue pelo corredor
principal e encontra no final um cômodo
enorme, com vários espelhos de tamanhos e
formatos variados, destacando-se ali três
espelhos enormes, que ocupam a parede à
sua frente, todos revestidos por belos portais
dourados. Convicto de seus propósitos Jó
adentra o recinto, ultrapassando o portal-
espelho do centro e encontra um pequeno
banco de madeira de frente para uma espécie
de oratório e sobre este um pequeno espelho
emoldurado. Intuitivamente ele se acomoda
no banco, de frente para o espelho e, com
muita tranquilidade, contempla sua imagem
refletida. Aos poucos sua imagem vai sendo
substituída por outras, numa sequência
ultrarrápida, porém perceptível e ele
reconhece tantas pessoas e situações
marcantes em suas vidas anteriores, até fixar-
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se em uma imagem surpreendente, idêntica à
sua última pintura que reproduziu o rosto da
misteriosa mulher de seus sonhos. Então, ela
se movimenta e, com um sorriso meigo, ela
se despede acenando graciosamente e segue
um caminho sinuoso, num estranho e
descuidado jardim, rumo a uma antiga casa
amarela de grandes janelas de madeira
avermelhada.
“O ouro abre portas fechadas”.

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11 - 1º de setembro, de manhã...

Amanhece. Jó desperta e percebe que


encontra-se em seu apartamento, mas não
consegue mexer-se, tomado que está por um
torpor muscular que lhe prende na cama,
deixando-lhe a impressão de pesar uma
tonelada. Retornou ao mundo dos comuns e
aos poucos vai readquirindo a visão da
realidade de antes do mergulho nas
profundezas de seu ser. Ouve os ruídos e os
sons matinais familiares que lhe situam no
tempo e no espaço, quando percorre-lhe um
formigamento em seus membros e um
arrepio por todo o corpo, mas aos poucos vai
recuperando todos os sentidos, adaptando-se
à realidade atual. Lembra-se de forma
fragmentada e desordenada de sua longa
experiência onírica, bem como de suas
atividades no dia anterior, e ainda, da tela
que pintou, retratando aquele rosto
misterioso, do mal-estar causado pelas
rotinas urbanas e também do pacote deixado
em seu ateliê. Após um bom banho matinal e
um lanche acompanhado de um café bem

77
forte irá devolver o embrulho no endereço
constante no mesmo. E assim faz. O
endereço é bem distante. Então ele decide ir
de ônibus, atravessando toda a cidade até o
ponto final. No pacote está escrito: Rua das
Figueiras, s/nº – Chácara. Ele realmente se
encontra na Rua das Figueiras, já no final
dela e, após a última casa, vê o que pode ser
uma chácara, ou seja, uma grande área toda
cercada de muros, com um portão gradeado,
sem qualquer identificação, à frente de um
jardim descuidado e, ao fundo, uma casa
antiga, de cor amarela e grandes janelas de
madeira avermelhada. Um tanto atônito com
aquele cenário bastante familiar, Jó toca a
campainha e ansioso aguarda alguns
minutos. Quando vai tocá-la novamente vê
ao longe um senhor magro, encurvado, vindo
em sua direção com certa dificuldade,
claudicando de forma idêntica a alguém que
conheceu recentemente. Surpreso e cada vez
mais espantado com tal encontro inesperado,
ele aguarda a recepção daquele senhor, o
qual, assobiando de forma bem peculiar,
como um sibilar que escapa de seus lábios
leporinos, abre o cadeado e solta a corrente
78
que prende o portão, sorrindo amistosamente
e diz cordialmente ao visitante:
— Bom dia! Quase não recebo visitas.
A que devo a honra?
— Engolindo em seco e com o coração
acelerado, com tal situação insólita e tantas
coincidências, Jó responde:
— Bom dia senhor! Meu nome é Jó e
sou pintor. Alguém deixou este pacote em
meu ateliê e nele consta este endereço. Por
acaso pertence ao senhor?
— Deixe-me ver. Só abrindo para ver
o que contém não é mesmo? Você é muito
correto amigo!
Com muito cuidado o velho começa a
retirar o papel que envolve uma pequena
caixa de papelão e logo a seguir,
calmamente, abre a tampa e encontra um
objeto muito importante, pois suas feições se
modificam demonstrando intensa alegria e
surpresa. Eufórico ele exclama:
— Que surpresa agradável! Pensei
nunca mais ver este chapéu novamente! Há

79
muitos anos o recebi de presente e
recentemente ele sumiu misteriosamente! Já
o procurei por todos os cantos da casa e nada
até agora! Ele me faz muito bem e livra-me
de muitos males! Você sabe com quem
estava?
Meio confuso e trêmulo Jó vê na mão
daquele senhor o já conhecido chapéu grená,
como aquele de seu amigo cocheiro e,
gaguejando, tenta explicar:
— Não senhor! Apareceu
misteriosamente em meu ateliê e não tenho a
mínima ideia de quem possa tê-lo deixado lá!
— Estranho, muito estranho, pois,
coincidentemente, eu também tenho algo que
pode ser para você, ou seja, uma
recomendação de alguém muito especial que
deseja conhecer um pintor!
— Sério? Confesso que não consigo
entender, senhor! É a primeira vez que venho
a este lugar e não me lembro de termos feito
nenhum contato antes!

80
— Será mesmo? Não há nada
impossível e o acaso não existe, meu filho!
São muitos os caminhos para o coração do
homem, às vezes um verdadeiro labirinto.
Apenas as mulheres especiais, com a ajuda
da Grande Mãe, aprendem a escolher os
atalhos. Aguarde-me um instante que vou
buscar o que lhe pertence!
Em silêncio Jó apenas acena com a
cabeça, em sinal de concordância.
O velho dá meia volta e coloca na
cabeça o incomum chapéu grená, indo em
direção à casa amarela, aparentando agora
maior agilidade e rapidez nos movimentos,
como se aquele espalhafatoso chapéu lhe
rejuvenescesse. Daí a pouco ele retorna,
trazendo uma linda romã e diz:
— É para você meu jovem. Um
presente, aliás, uma retribuição pelo favor
que me fez e pela sua honestidade! Muito
obrigado, você não sabe a alegria que
proporcionou a este velho solitário!
— Não precisa me agradecer. Eu não
me sentiria confortável ficando com um bem

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de outra pessoa, ainda mais quando se trata
de algo tão pessoal e tão precioso
sentimentalmente! Fico agradecido pela
romã, que é o mais belo presente que já
recebi, pois para mim tem um significado
muito especial.
E, em silêncio, Jó entendeu a
mensagem alquímica transmitida com tal
presente, uma bela romã, o fruto dourado
recebido após uma experiência intensa de
conhecer tantos mundos e acervos íntimos,
que lhe proporcionou a elevação espiritual e
a harmonia cósmica.
— Agora, meu jovem, como lhe disse
antes tenho algo que vai lhe causar muito
espanto e que, talvez, só os anjos poderão lhe
explicar algum dia.
Levando a mão ao bolso interno do
paletó, o velho retira uma fotografia em preto
e branco, entregando-a ao pintor.
— É de uma pessoa muito especial,
uma grande amiga que às vezes vem me
visitar. Ela se diverte muito com minhas
histórias e me chama de velho maluco. Um

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dia quando tomávamos chá na varanda,
admirando o jardim, ela me falou que amiúde
tem sonhado com uma vidente, uma
profetisa, a qual lhe diz que um dia será
esposa de um pintor, pois este pintor foi um
grande guerreiro em uma outra vida e agora,
um iniciado no ocultismo e nas artes
mágicas, que a livrará de um encantamento,
libertando-a do mundo dos “Djins”, assim
que seu rosto for reproduzido por ele em uma
simples tela de pintura.
Com as mãos trêmulas Jó pega aquela
fotografia e estupefato verifica que o rosto é
exatamente igual ao que pintou em seu ateliê.
A expressão de mistério, os belos olhos
claros, o sorriso enigmático e o cabelo negro
como o carvão. Tudo é surpreendente e
mesmo inacreditável, mormente que paira no
ar um agradável perfume, como aquele
exalado da antiga caixa de sabonetes de
muito significado em sua infância. Com
certo receio, ele vira a foto e olha no verso da
mesma e, tal qual funâmbulo entorpecido,
equilibrando-se na corda do absurdo,
pressente um encontro impossível, quando

83
vê escrito o nome daquela que lhe persegue
nos sonhos, sua musa: SHERAZADE !

“...
Sim, falei, sem
compreender, de
maravilhas que
excedem o meu
saber.
...” - Livro de Jó.

FIM

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