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R O M A N C E D E C L Ã

TOREADOR
S T E W A R T W I E C K
TOREADOR
Com amor e gratidão a meus pais
— meus próprios Médicis — por
jamais falharem, ao encorajar
minhas aspirações artísticas.
TOREADOR
parte um:
LEOPOLD
9

parte dois:
VICTORIA
67

parte três:
O OLHO
219
parte um:
LEOPOLD
Sábado, 20 de junho de 1999; 4h29min
Avenida Piedmont
Atlanta, Georgia

Leopold sentou­se com Michelle sobre seu colo. Embora ambos


estivessem nus, o frio que fazia no ateliê de Leopold no porão não afetava
seu corpo como ao de Michelle. Mesmo inconsciente, ela reagia a baixa
temperatura.Os mamilos de seus pequenos seios estavam endurecidos e
um arrepio ia e vinha por suas longas pernas, subindo por suas costas até
chegar ao pescoço delicado.
Ele havia mordido a parte interna da coxa de Michelle, onde a
artéria femural se origina e se estende por toda a perna. A princípio, ela
fingiu estar excitada, mas ficou um pouco assustada quando ele mordeu.
Então, ele sorveu rapidamente vários goles de sangue e a excitação de
Michelle tomou­se mais autêntica. Quase que instantaneamente ficou
tonta, e nesse momento deve ter imaginado que Leopold era talentoso e
estava ávido por satisfazê­la.
Entretanto, após esses primeiros goles de sangue, Leopold estava
interessado apenas em satisfazer a si mesmo. Alimentava­se com pouca
frequência porque se sentia constrangido em atrair mulheres para o seu
porão. Apesar de irem até lá sob o pretexto de posarem como modelo para
ele, as mulheres deduziam que ele queria sexo — e Leopold sabia disso.
Assim, elas riam diante do convite, mas logo se surpreendiam ao verem
que realmente tinha um atelier no porão; no entanto, voltavam a rir
quando ele pedia para se despirem.
Com os homens era ainda mais difícil. Isso porque o homem que
ele pudesse desejar como modelo, podia não ser necessariamente gay.
Sendo assim, eles raramente iam para o porão de livre e espontânea
vontade. Nesse caso, era necessário algum tipo de persuasão ao estilo dos
vampiros.
Assim como algumas das garotas — quem sabe, já mulheres
(Leopold descobriu que estava perdendo a habilidade de adivinhar a idade
dos humanos), Michelle simplesmente tirou a roupa e foi até Leopold.
Muitas queriam apenas um lugar para passar a noite. Estavam dispostas a
trabalhar por um teto, mas o único trabalho que conheciam era o sexo, e
Leopold achava que, mais cedo ou mais tarde, elas iriam preferir acabar
com tudo aquilo.

10 Toreador
Como fez com todas as pretensas modelos que levou para casa ,
ele pegou Michelle na rua Ponce, pouco antes de chegar em sua residência,
na Avenida Piedmont. Aquelas que demonstravam pouco interesse em
juntar­se a ele, sempre podiam ser encorajadas. Leopold sabia pouco a
respeito dos impressionantes poderes possuídos por alguns Membros além
desse, mas não tinha dificuldade alguma em convencer a maioria dos
mortais de que era inofensivo e amigável. Michelle despertou sua atenção
sem precisar se exibir. Era uma garota bonita, que estava nas ruas há
tempo suficiente para saber usar sua bela aparência, mas não o bastante
para entender que isso não duraria para sempre. No entanto, havia algo
naquela beleza pálida que se adequava ao humor de Leopold.
Quando Michelle ofereceu seus “favores sexuais”, Leopold
imediatamente arrependeu­se de ter perdido a oportunidade de esculpir a
visão que tinha dela, mas, naquela noite, ele não estava interessado em
impor sua vontade a mais um mortal. Sucumbiu ao desejo dela e se
propôs a fazer algo para satisfazê­la também. Pelo menos ela teria um teto
seguro por aquela noite.
Leopold achou engraçada a ideia de casa segura. De acordo com
os seus padrões, ele a mantinha segura, mas duvidava que Michelle viesse a
julgar seguro, o local onde perdeu uma boa quantidade de sangue para um
monstro com presas enormes.
Então, ele se controlou e engoliu a risada. Era a isso que os
Membros se referiam quando falavam em perder a humanidade? Leopold
havia sentido a Besta — aquela parte dele que se alvoroçava quando ele se
aproximava em silêncio e matava, perdendo o controle de si mesmo — mas
era apenas questão de deixá­la de lado, permitindo que sua consciência
fosse seu guia.
Mas para onde sua consciência o havia levado naquela noite? A rir
diante do fato de sugar o sangue vital de uma alma cansada como a de
Michelle? Sim, ele precisava daquele fluido para sobreviver, mas desde
quando isso era engraçado? Onde estava seu senso de violação? De
tragédia?
Sabia que muitos Membros lamentavam a perda daquilo que
consideravam ser sua parte humana. Não as perdas superficiais, como a
respiração, nem mesmo as psicológicas, como a luz do sol. Mas as
qualidades essenciais que definem a humanidade. A capacidade de amar,
de sonhar, de sentir empatia.
Também havia vários Membros que não lamentavam a perda,

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principalmente os desprezíveis integrantes do Sabá — aqueles vampiros
assassinos e abomináveis que pouco se importavam com os Membros que
não eles próprios e para quem o Rebanho era a ralé. Os vampiros do Sabá,
e alguns da Camarilla, pareciam lançar fora uma porção vital de si
mesmos, sem se preocuparem. Talvez considerassem os sentimentos de
misericórdia ou amor, como órgãos característicos da existência mortal;
Leopold não conseguia assimilar o impacto de tal perda.
Mas talvez ele estivesse nessa mesma estrada.
Examinou a ferida que abrira na coxa de Michelle. O corte
horrível causado pela mordida localizava­se, precisamente, na linha do
elástico da minúscula calcinha que ela usava. Isso lhe deu uma espécie de
nojo estranho. Todavia, ele não podia deixar de fazer seu trabalho,
principalmente quando podia corrigir um pouco do dano. Umedeceu a
língua e tentou passá­la pelo ferimento. Enquanto lambia, sentindo mais
uma vez o sabor da ferida provocada, a pele rasgada fechou­se. As marcas
do elástico também sumiram.
Então Leopold examinou Michelle melhor. Agora estava pálida, e
ainda mais bela por isso. A vermelhidão causada pelas pressões aplicadas
com força sobre seu corpo e pelas drogas baratas tinha, de alguma forma,
sumido. Sua pele, naturalmente cheia de luminosidade, tornou quase
transparente seu corpo faminto, e menos evidentes as picadas das
frequentes injeções.
A beleza dela era algo que ele ainda podia capturar e preservar.
Muitos Membros, especialmente os Toreador, poderiam pensar em
envolver o brilho dela com as mãos, através do Abraço, transformando­a
em um vampiro. Leopold não queria que tais pensamentos o afligissem e
estava feliz por essas idéias serem secundárias com relação a seu primeiro
impulso: o de imortalizá­la em pedra.
Entregou­se a tais pensamentos, enquanto continuava sentado no
chão, com as pernas cruzadas e com o corpo dela sobre seu colo nu.
Embora ele se sentisse tentado, o dia já estava por amanhecer, e mesmo
um bosquejo apressado mal lhe serviria para reavivar a memória mais
tarde.
Fitando­a, Leopold passou seus dedos delgados sobre a face dela,
afastando algumas mechas do cabelo sujo. De repente, sentiu­se tolo por
dispensar­lhe toda aquela atenção. Sim, ela era bonita, mas... e daí? Ele
jamais gostou de bichinhos de estimação e, de certo modo, precisava
arraigar a realidade de sua situação relativamente recente: ele era um

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vampiro, um ser que só podia ser considerado superior aos mortais.
Com isso, acariciou novamente os cabelos dela, dessa vez mais
como se Michelle fosse um cachorrinho dormindo, do que uma pessoa.
Era engraçado, pensava ele, esse jeito como os Membros se
alimentavam. Riu da dicotomia de seu pensamento, com relação ao fato de
os Membros formarem uma classe separada e acima da dos seres humanos,
considerando­se que eles esgueiravam­se pela noite e levavam uma vida
semelhante à de muitos dos humanos primitivos, como os longínquos
antepassados das Michelles do mundo, que sobreviviam da caça e da
coleta.
Saiu cuidadosamente debaixo de Michelle, largando­a no chão,
como a uma boneca de trapos. Depois de recolher suas roupas e enfiá­las
debaixo do braço, Leopold inclinou­se, segurou­a pelas axilas e levou­a,
meio carregada, meio arrastada, até a escada que levava à cozinha, no
primeiro andar.
Era um cômodo amplo, como todos os da casa velha e antiquada.
Porém, ao contrário da maioria das cozinhas de solteiros, essa era quase
limpa, embora isso se devesse mais a uma completa falta de uso, e não por
algum cuidado perfeccionista dele. Pela segurança da camuflagem, ele
mantinha alguns alimentos, como manteiga de amendoim e cereais na
despensa e armários, para convidados como Michelle. Havia também
produtos não perecíveis, como cerveja barata e pizzas congeladas, no
refrigerador e no freezer.
Como a aurora se aproximava, Leopold sentia calafrios em seu
coração, parecidos aos que sentia quando seu pulso acelerava, na época em
que ainda era mortal. Uma gélida mão agarrando­o e instigando­o a
procurar abrigo.
Ele apressou­se com Michelle pela cozinha, descendo o corredor
até uma porta que mantinha trancada. Empurrou o corpo nu e sem peso
de Michelle contra suas coxas e joelhos, deixando uma das mãos livre para
pegar a maçaneta. Quando a porta se abriu, o ar fresco invadiu o corredor.
Era o único cômodo da casa que Leopold mantinha com ar condicionado.
Fazia isso, apenas para o conforto de seus convidados. O gasto era
ínfimo e ele achava que ajudava a manter as aparências.
O quarto era bagunçado. Travesseiros e lençóis, espalhavam­se
pela cama e pelo piso. Roupas femininas e objetos masculinos estavam
esparramados pelo chão, ou amontoados em uma grande pilha, junto às
portas semi­abertas do closet. Sobre a cômoda de madeira nobre

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acumulavam­se latinhas vazias de cerveja e cinzeiros quase transbordantes.
Leopold deixou as roupas de Michelle caírem ao chão e, em
seguida, colocou­a na cama, cobrindo­a com um lençol e manta. Em
seguida, ajustou o único aparelho de ar condicionado — a casa era velha
demais para ter um sistema completo de refrigeração — e abriu o closet.
Um pequeno cofre estava fixo no chão sob as sombras das camisas e calças,
penduradas nos cabides.
Leopold girou a combinação e prontamente abriu o cofre. Tirou
alguns objetos, fechou o cofre e as portas do closet e foi até a cômoda, para
completar sua camuflagem.
Espalhou os objetos ao acaso pela superfície de madeira. Doze
dólares — uma nota de cinco e sete de um —, um papelote de cocaína e um
canudo. E o coup de grâce. um saquinho com várias embalagens de
cocaína. Essas, ele pôs sob uma edição da revista Time, para que
parecessem esquecidas.
Era quase certo que qualquer mulher que ele trouxesse para casa,
pegaria o dinheiro e a cocaína e fugiria antes que o homem do qual ela
não mais se lembrava voltasse para surpreendê­la, talvez desejando transar
novamente. Uma quantidade tão pequena de cocaína era inexpressiva,
mas com um valor psicológico que faria uma mulher sentir ter sido ela
quem saíra da noite lucrando. Além do mais, a cocaína explicava a dor de
cabeça e a fraqueza que elas sentiriam após ter perdido uma bela
quantidade de sangue.
Leopold fechou a porta atrás de si e trancou as portas da frente e
dos fundos da casa, antes de descer novamente para o porão. Trancou, e
bloqueou por dentro, a porta do porão. Somente uma convidada tinha
sido tão brava ou gananciosa, a ponto de, com enorme esforço, por tal
porta abaixo. Ela levou algumas pequenas esculturas, mas Leopold as
recuperou três noites depois, quando se alimentou um pouco mais que o
normal. Mesmo assim, ela não se deu ao trabalho de fuçar na adega
subterrânea, onde Leopold se abrigava durante o dia.
Faltava menos de meia hora para o amanhecer e Leopold não
queria arriscar­se à menor exposição, retirando­se, então, para a adega
subterrânea. As antigas portas eram de carvalho pesado e praticamente
inquebráveis. Quando se mudou para essa casa, Leopold teve que remover
e inverter as portas para que as pudesse fechar pelo lado de dentro. Um
Brujah intrometido seria capaz de abrir caminho por elas e mesmo um
mortal do Rebanho, armado com uma serra, poderia fazer o mesmo.

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Entretanto, ele estava livre de intrometidos, uma vez que mulheres para as
quais um pacotinho de cocaína era suficiente para fazer esquecer uma
noite de negligência, não procuravam criar tal problema.
Então, pelo menos por hora e pelo dia que chegava, Leopold
estava seguro.

Stewart Wieck 15
Domingo, 20 de junho de 1999; 5h00
Corporação Financeira de Boston
Boston, Massachusetts

O homem de terno preto dedilhava nervosamente em um de seus


telefones celulares. O modelo era o mais moderno, brilhante e leve, com
sofisticadas opções de programação, que permitiam que Benito Giovanni
realizasse múltiplos e incríveis milagres de comunicação.
O manuseio foi brusco demais para o frágil aparelho, que foi
lançado longe. Benito franziu o rosto ainda mais, e seus olhos firmes e
coléricos continuaram sobre o aparelho preto.Arrumou­o e, com alguns
movimentos ágeis, colocou­o novamente alinhado aos outros dois celulares
sobre a antiga escrivaninha de cerejeira maciça.
Benito preferia que as coisas fossem fortes e seguras,
mas,definitivamente, havia algo de errado.
Seu rosto relaxou um pouco, assim que ele correu os olhos por seu
escritório bem organizado. Os objetos de marfim sobre a mesa eram quase
fluorescentes. As estantes de armas orientais, perfeitamente polidas e
meticulosamente organizadas, lançavam estranhas sombras sobre as mesas,
nos isolados do enorme couro. Em cada uma das mesas laterais havia um
par de katanas e wakizashis, com os pomos de cada arma apontados para o
sofá. Acima deste, dois Chagalls originais encontravam­se em molduras
meticulosamente alinhadas, à mesma altura do terceiro quadro, atrás de
Benito e entre as janelas absolutamente limpas que davam para a Baía de
Boston.
Seu terno preto tinha finas listras azuis, embora o sol já estivesse
quase nascendo, sua gravata ainda estava impecável e apertada, a ponto de
machucar seu pescoço. As abotoaduras de diamante encontravam­se
posicionadas de maneira a serem reflexos perfeitos uma da outra.
Fabulosos anéis de ouro brancoe diamante envolviam cada dedo anelar.
Parecia evidente que Benito era descendente de italianos, e a
intensidade das características étnicas, como sua pele mediterrânea, seus
cabelos pretos e a bela face, faziam supor que não houvera muitas gerações
americanas desde a partida da terra natal.Usava um bigode delgado que
ajudava a encher seu rosto fino. As mãos estavam cruzadas, com os dedos
indicadores esticados e pressionando a linha que se estendia por sobre seus
lábios. Ele a alisava continuamente, enquanto seus olhos escuros
brilhavam na luz esverdeada que caía da luminária da escrivaninha.

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Embora estivesse descansando, parecia um predador, um homem
pensativo, em sua paciência de espreita, ainda assim capaz de emboscar
com extrema extroversão,caso a situação assim o exigisse.
Um homem rico e poderoso, seu escritório podia ser o de
qualquer homem que se preocupasse com intrusões indesejáveis e
misteriosas. Mas Benito não era um homem comum, a despeito do sangue
da mais rica família da terra correr em suas veias e de se haver elevado ao
topo dela, apesar de sua família ser virtualmente desconhecida para a
maior parte do mundo. Trabalhava só à noite e se deleitava com o sangue
de qualquer secretária que não fosse capaz de manter seu escritório
durante o dia, enquanto ele dormia.
Além de todos esses fatos e de outros provavelmente dignos de
nota, Benito Giovanni, como alguns de sua família, ou de seu clã, era um
Membro. Um vampiro. Poucos gracejavam com a rara mistura de
inteligência diabólica, boa aparência, incrível riqueza, formidável força
física e existência eterna de Benito.Claro, também havia outros Membros
de outros clãs que possuíam muitas dessas vantagens, mas eles não eram
Giovanni e, para Benito pelo menos, isso significava muito. Benito
ostentava uma expressão carregada, pois mesmo ele — um Giovanni — às
vezes tinha medo de sua família. Mesmo ele, um poderoso membro da
família, tinha apenas uma ligeira suspeita da extensão do poder e
influência que os Giovanni manipularam.
Mas alguém o insultara naquela noite e o fizera por toda a noite.
Agora que o amanhecer se aproximava, Benito continuava a esperar com
paciência, embora com uma ira que crescia proporcionalmente ao desejo
de que novas informações fossem reveladas. Sim, alguém fora obviamente
estúpido, ou imensamente confiante, pois o telefone tocou de novo.
Benito ajustou as luvas de couro preto que usava. Eram listradas
como seu terno, e certificou­se de que elas estavam satisfatoriamente
alinhadas, antes de atender ao telefone já depois do quarto toque.
— Alô! — Não era uma pergunta, como nas três vezes anteriores
que tinha atendido. Ao invés disso, era familiar, com boa dose de raiva,
pois Benito queria que o outro pensasse que ele agora conhecia sua
identidade.
Somente silêncio do outro lado. Benito não falou mais,
esperando, em silêncio, obter alguma vantagem, mas também para
conseguir detectar o menor dos ruídos que fosse revelador.
A ligação foi encerrada. Benito sabia que progredira.

Stewart Wieck 17
Provavelmente não haveria nova ligação, já que o amanhecer estava
próximo. Mas talvez houvesse uma última chamada, pois o interlocutor
tentaria reassumir a posição de domínio anterior, e Benito achava que
então poderia desmascarar o tolo. Afinal, havia alcançado a posição atual
por ser um negociante habilidoso. Não era grande entendedor de leis, mas
conseguiria tal conhecimento com os séculos. Não percebia as sutilezas da
economia internacional, mas conhecia as pessoas. Não o que as deixava
felizes, não o que elas desejavam, mas o que elas não desejavam, o que elas
temiam. Tão logo descobria seu ponto fraco, Benito as desmascarava e,
com frequência, as observava capitular sem que ele precisasse levantar a
voz ou fazer sutis ameaças indiretas.
E claro que ele sabia que as ligações tinham um propósito.
Alguém enganado poderia ter digitado inadvertidamente os números do
seu telefone mais à esquerda, com 212 e tudo, o código da cidade de Nova
Iorque, ou o seu telefone da direita, com o 310 da cidade de Los Angeles,
ou até mesmo o seu telefone sem fio, O da escrivaninha, como 617 de
Boston. Mas o de código de área **# era somente para o uso da família
Giovanni, sendo esse o prefixo do seu celular do meio. Tratava­se do mais
importante aparelho de comunicação, pois o colocava em contato
imediato com os outros membros da família, que sabiam que qualquer
ligação que exigisse o uso do **# era realmente importante.
Não obstante, ele desligou os outros dois celulares. O toque do
**# era único e, assim, não havia a menor chance de Benito confundi­lo
com o de outro aparelho, mas isso já estava ficando importuno. Resolveu
não arriscar.
Uma quarta vez aconteceu. Isso já era provocação. A primeira foi
esquisita, mas talvez a pessoa tivesse ficado em dúvida, resolvendo adiar a
ligação. A segunda poderia ter sido mais uma tentativa, depois adiada
também, embora já levantasse as suspeitas de Benito. A terceira foi
frustrante, mas ninguém do outro lado fizera Benito ficar preocupado com
algum parente em apuros, que estivesse arranjando um tempo a
esquisitíssimos intervalos regulares para fazer­lhe uma ligação. A quarta,
entretanto, revelara que se tratava de um jogo. A espera, antes de desligar,
fora longa demais, e Benito começou a fazer uma lista, mentalmente, dos
possíveis responsáveis.
Nenhum Giovanni teria tamanha falta de respeito para com esse
código de área secreto a ponto de fazer brincadeiras em uma linha **#.
Benito não era capaz de imaginar quem mais poderia possuir o segredo. É

18 Toreador
claro que poderia haver vários outros capazes disso.
Quem dentre esses indivíduos, então, tinha ligado para Benito
assim? Um mago, talvez um integrante dos Tecnocratas? Um antigo
Membro? Daqueles que poderiam conhecer o segredo, Benito só
conseguia imaginar um Nosferatu fedorento fazendo tais brincadeiras.
Aqueles vis ratos de esgoto coletavam mais informações do que eram
capazes de usar com lucro.
Nenhum mortal seu inimigo seria capaz de romper as precauções
da segurança que protegiam esse telefone e sua banda de comunicação
contra intrusos indesejáveis. Ninguém jamais ouviu uma conversa da linha
**# Acidentalmente, Benito conhecia o axioma mais apreciado por
Madelaine Giovanni, famosa assassina que a família convocava quando a
necessidade era extrema: o que não poderia ocorrer nem por acaso, jamais
poderia ocorrer de propósito.
Com mais certeza ainda, ninguém ligaria por engano para a linha
com o código **#. Com a exceção do 77 do 770 da Geórgia, não havia
códigos de área com três dígitos que tivessem dígitos iguais no início, além
de estarem próximos no teclado.
Contudo, o telefone tocou de novo.
Benito considerou rapidamente sua melhor estratégia. Um
pretenso conhecimento tinha confundido seu oponente da outra vez. Ele
decidiu­se, então, pela mesma tática.
— Por que agora? — perguntou para o brincalhão desconhecido.
Ele falou com alguma insistência, mas também dando sinal de
preocupação ou incerteza, para que, quem quer que estivesse ligando,
percebesse uma vantagem e tentasse usá­la.
Só silêncio, mas a ligação não foi encerrada.
Mais alguma coisa, pensou Benito. Ele ou ela precisa de um pouco
mais de evidências de que eu percebi sua charada. Ele queria levar o jogo à
próxima fase, para além da intimidação que parecia dar prazer ao seu
atacante, mas, se seu chute no escuro revelasse uma completa falta de
suspeitas possíveis, isso poderia enfraquecer dramaticamente sua posição.
Portanto, após um momento, Benito acrescentou:
— Eu estive esperando. Por que agora ?
A voz do outro lado foi surpreendentemente clara, como se a
ligação estivesse sendo feita da sala ao lado, e não de Chicago, embora
fosse bobagem Benito imaginar que seu oponente ainda estivesse lá, ao
invés de estar se escondendo. Foi essa clareza, porém, que fez com que

Stewart Wieck 19
Benito não entrasse em pânico, ou pelo menos, não revelasse pânico
algum em sua voz.Se o som daquela voz do passado estivesse amortecido e
se, ao invés de reconhecer instantaneamente a identidade de seu
interlocutor, Benito tivesse levado alguns segundos, com certeza seu temor
e a surpresa teriam ficado patentes
Houve uma risada antes.
— Como você soube que era eu? Se ao menos você tivesse
percebido as coisas tão bem assim há alguns anos, Benito...
— Você costumava ser mais sutil. Agora, revela sua natureza
ameaçadora sem o menor pudor. — Foi uma resposta rápida e, graças aos
céus, as palavras vieram­lhe com facilidade, pois, de outro modo, ele
estaria perdido.
Sem mais brincadeiras, o Membro do outro lado da linha disse
mais alguma coisa antes de desligar. Benito deixou o telefone despencar de
sua mão sobre a escrivaninha. Seu senso de desespero e impotência era
tamanho, que vários minutos se passaram antes que ele recolocasse os
aparelhos em ordem.
Após essa primeira hesitação, Benito teve uma reação calma e
perfeita. Primeiro, ele chamou sua atual secretária, a Sra. Windham.
— Senhor?
— Cancele meus planos para Atlanta, mas não use essa brecha
para outros compromissos.
— Claro, senhor.
Depois, ele contatou o chefe da segurança do prédio, seu enérgico
e combativo primo, Michael Giovanni.
— Quero atenção particular à minha suite e a segurança do prédio
dobrada até que eu possa falar com você quanto a planos mais específicos
e apropriados.
— Algum perigo imediato, Benito?
Respondeu bufando, manifestando sua impaciência:
— Não, por isso que cu tô deixando pra discutir as especificações
mais tarde. — E desligou.
Benito reclinou­se na cadeira de couro macio, momentaneamente
consciente do gesto involuntário de levar seus dedos indicadores ao bigode
mais uma vez. Era melhor estar vigilante a todos esses detalhes,
normalmente invisíveis para ele.
Girando a cadeira, olhou para o Chagall que estava pendurado
atrás de si.

20 Toreador
Domingo, 20 de junho de 1999; 22h55min
Avenida East Ponce de Leon
Atlanta, Geórgia

Incansável passo a incansável passada, imortal dia a imortal


noitada, Leopold foi deixando cada vez mais para trás uma vida igual
àquela do Rebanho que o cercava. E isso era uma pena, pois ele se sentia
mais à vontade entre essas sombras de sua antiga vida do que dentro dos
corredores do Elísio ou entre os éditos da Máscara, que eram apenas duas
das armadilhas de sua vida entre os Membros de Atlanta.
Sim, sentia­se mais integrado ao mundo, mais ligado à sua
vibração, ao seu âmago, quando estava entre mortais e não entre os seus
irmãos vampiros. E isso era uma tolice, pois melhor do que qualquer
outro caçador das sombras dessa rua, Leopold sabia que tais mortais eram
bem ignorantes e completamente alienado das grandes ­ ou, pelo menos,
das mais relevantes ­ verdades do mundo.
Isso o fez estremecer de nojo, ódio e ressentimento, pois ele sabia
que também era completamente mal informado, mesmo que
compreendesse mistérios de que essas pessoas nem ao menos suspeitavam,
quanto mais entendiam. Sim, o Rebanho ainda manipulava grande poder,
de outra forma a Camarilla não ordenaria aos vampiros pertencentes a
esse grupo, que mantivessem a Máscara, que se certificassem de que a
maior prioridade da vida noturna dos Membros era continuarem a
manter­se ocultos dos curiosos olhos dos mortais. A Inquisição tinha
dado uma bela lição aos Membros. Mas a essência dos mortais era a
fraqueza e a vulnerabilidade.
Talvez, justamente isso o tenha atraído para eles. Sobretudo esses,
os notívagos da East Ponce. Elas estavam à margem da sociedade humana,
assim como Leopold estava à margem da vampírica. Eles eram os artistas,
os pobres, os loucos, as prostitutas. E, de sua parte, Leopold francamente
se sentia como se já soubesse demais, e uma participação maior nos
eventos da sociedade dos Membros serviria somente para aumentar o mal­
estar que sentia entre os de sua própria espécie. Ele não desejava saber
que o Príncipe Benison controlava o departamento de polícia e que, por
isso, nenhum homem, mulher ou criança estava a salvo nem mesmo de
sua família mortal, se o príncipe assim o desejasse; nem que Victoria Ash
poderia, sem nenhum esforço, expor ao ridículo o trabalho de toda a vida
de um artista, a ponto de fazê­lo cair no esquecimento, mesmo que ele

Stewart Wieck 21
estivesse prestes a ser reconhecido e, talvez, imortalizado.
Essas eram algumas das verdades básicas e cotidianas de um
mundo em que criaturas que viviam à noite também imperavam de dia.
Leopold estremeceu, apesar do verão terrivelmente quente e úmido. Ainda
bem que faltavam apenas dois dias para o solstício. Ele marcaria o apogeu
do verão, mas também o início de seu declínio.
Parou de andar e apoiou­se a um poste, permanecendo de frente
para a calçada. O ruído dos velozes carros, cruzando de lá para cá às suas
costas pela atraente área da cidade, o perturbava.
O coração da East Ponce, ao norte de Little Five Points,
estendendo­se para o leste a partir da Rua Peachtree e do centro de
Atlanta, era uma área congestionada. As ruas não eram largas, embora
quatro avenidas dessem condições de se atravessar a região. As transversais
eram amontoadas de pequenas casas com jardinzinhos gramados. E a
Ponce era, por si só, uma confusão de coisas banais e de coisas incomuns
ou, até mesmo, únicas. Restaurantes de fast­food estavam grudados a
ecléticas cafeterias. Bem à direita de Leopold, estava a esquina da Ponce
com a Highland, cheia de neons, onde o velho Teatro Plaza sustentava­se
da apresentação de filminhos de curta metragem onde um antigo
restaurante 24­horas estava sempre lotado.
Leopold sentiu vontade de acender um cigarro, mas perdeu esse
vício quando havia parado de respirar. Exigia muito esforço para puxar o
ar e fazê­lo circular e, sem isso, a animadora queimação nos pulmões era
perdida. Por essa razão não fazia muito sentido fumar assim.
Ele observava as pessoas que passavam. Muitas nem olhavam para
ele. Outras o encarava tentando provocá­lo. Mas ninguém fazia qualquer
tipo de esforço especial para evitá­lo, já que ele não parecia ameaçador.
Exceto pela camiseta limpa e pelas calças cáqui, como a dos pintores,
Leopold podia muito bem se passar por um morador da rua. Seu cabelo
era um monte de fios pretos embaraçados, que parecia destinado a ser
curto, mas que estava crescendo há seis meses sem nenhum tipo de
cuidado. Suas mãos estavam impregnadas de sujeira sob as unhas e entre
os dedos. O rosto triste era de um homem à procura de algo que não tinha
esperança de encontrar. A boca era pequena e os lábios, rachados.
Embora fosse esguio, de estatura e porte mediano, seu semblante
era pesado, quase depressivo. As pálpebras eram caídas e suas grandes
bochechas pareciam conter chumaços de algodão para aliviar uma dor de
dente.

22 Toreador
Acima de tudo, ele estava apenas cansado. Ficou desapontado ao
descobrir que os vampiros se sentiam tão fatigados quanto os mortais.
Enquanto observava as pessoas, notou que, ao mesmo tempo em que se
sentia confortável entre elas, ainda não interagia com elas, exceto quando
sentia necessidade de esculpir ou de jantar. Perguntava­se, então, o porquê
disso. Talvez fosse genético — ou, pelo menos, o equivalente vampírico à
genética, os laços de sangue, que o faziam procurar a companhia dos
humanos. Era o sangue de um Membro — não um óvulo ou um
espermatozóide — que fornecia sua nova marca genética, mas será que isso
se sobrepunha ao que ele fora enquanto humano?
Leopold era um Toreador, o que significava, claro, que sua
senhora — fosse ela quem fosse, tivesse sido qual fosse sua vida mortal, não
importando quão diferente tivesse sido com relação à dele —, também era
uma Toreador. E o senhor dele, e o senhor anterior, e o anterior também,
retrocedendo quantas gerações fossem necessárias até chegar à chamada
Terceira, os lendários Antediluvianos que fundaram a linhagem dos
Toreador em algum tempo remoto. Esse fundador encontrava­se a
somente duas gerações do hipotético vampiro original , que Leopold tinha
lido que era “Caim”, o homem que a mitologia Ocidental culpara pelo
primelo assassinato.
Leopold não conseguia chegar a conclusão alguma quanto a se era
o sangue vampírico que o impelia a agir de determinado modo, ou se era
uma predileção do clã por alguns tipos de humanos — como a escolha dos
Toreador por artistas, ou a tendência dos Malkavianos em abraçar os
loucos — que criava uma certa semelhança entre os Membros de um clã
específico. Teria­o redefinido seu sangue vampírico ou ele já se encaixava
no perfil dos Toreador antes mesmo do Abraço?
Em meio à perturbação violenta dos pensamentos de Leopold,
uma espessa névoa noturna surgiu e cobriu as ruas e os demónios de
Atlanta que se encontravam fora de suas casas com um véu d’água. Depois
da curta tempestade de verão, o ar fresco tomou todo o ambiente e a
temperatura amena era tão reconfortante, que Leopold sentia­se
indiferente à umidade.
De feto, os reflexos das luzes da cidade nas avenidas sujas de óleo
da East Ponce deram aos pensamentos de Leopold um foco menos
pessoal. Ele fitou as oscilantes imagens fantasmagóricas e concluiu que
ainda carregava um programa humano dentro de si — o DNA e a criação
que seus pais mortais lhe deram — mas isso agora era suportado, e não

Stewart Wieck 23
suplantado, por seu sangue vampírico.
Esforçou­se por abandonar essa linha de pensamento. Até certo
ponto, tratava­se de uma questão discutível ou, no mínimo, ele não
conseguia se considerar um bom exemplo de nenhum dos lados desse
debate interno. Se ele sentisse que se conhecia melhor; se sentisse que o
passado de que se lembrava era, de feto, dele mesmo, pois precisava de seu
passado, somente então seria capaz de saber mais sobre seu futuro.
Leopold imaginava: se todos os Membros perdiam o contato com
seus eus passados e se tornavam um novo ser após o Abraço, então,
certamente ele era um mortal renascido no fogo do sangue. Era um
pensamento que o assustava, pois o trabalho de um artista só podia vir de
sua própria experiência e, sem um passado, ele tinha pouco de onde tirar.
Leopold alimentara­se bem com Michelle, na noite anterior, por
isso não precisava se preocupar com comida esta noite. Ele estava feliz.
Estava na hora de encarar seriamente a questão de seu passado
incompleto. Estava na hora de um teste ou de fazer experiências.
A distância da volta para a sua casa na Avenida Piedmont não era
tão longa, mas ele não estava disposto a cobri­la duas vezes a pé em uma só
noite, especialmente agora que tinha resolvido fazer as investigações. Uma
ligação arranjou­lhe um táxi em pouco tempo e, assim, do assento dos
passageiros, Leopold contemplou as ruas quentes e úmidas de sua cidade.

24 Toreador
Domingo, 20 de junho de 1999; 23h38min
Avenida Piedmont
Atlanta, Georgia

O mármore parecia simplesmente sem vida em seus dedos,


quando tentava esculpir um vampiro. Ele não sabia dizer exatamente o
porquê. Leopold imaginava se esse bloqueio em esculpir um vampiro tinha
algo a ver como passado que ele não conseguia evocar com clareza.
Lembrava­se de “um” passado, mas duvidava se esse era realmente o seu
passado. Um neófito na complexa trama dos outros vampiros a que
chamava Membros, somente porque essa era a maneira civilizada de se
referir a um companheiro vampiro, Leopold agora entendia que alguns
Membros podiam facilmente adulterar sua memória assim como ele podia
fazer comas emoções e, por isso, ele não confiava no estranho passado que
supunha ser o seu.
Primeiramente, ele era muito conveniente, muito “historinha” —
um artista disposto a sacrificar qualquer coisa por seu trabalho, ele
aparentemente fugira de seus pais que esperavam que ele assumisse os
armazéns da família e, ao invés disso, ele vivia sem dinheiro em Nova
Iorque. Mal achava tempo para dedicar­se à sua arte em meio aos
problemas ganhar dinheiro para pagar um teto e comida, expulsar as
baratas de ambos, e recusar mais chances de se vender do que era, mesmo
falsamente, capaz de lembrar.
E então, a pausa com que todo artista autêntico sonha: um
benfeitor, um Médici dos dias atuais. Alguém, qualquer pessoa, com
grande riqueza, capaz de enxergar o âmago do trabalho do artista e
reconhecer­lhe a grandeza inerente e que, acima de tudo, se sentisse
arrebatado pela obra. Alguém que percebesse quão vazia sua vida de
riquezas tinha sido e sentisse fervorosamente que, no trabalho do artista,
descobrira o propósito que redimiria sua vida.
No caso de Leopold, esse benfeitor foi uma mulher linda, que
oferecera mais do que somente sua riqueza. Sua forma era voluptuosa e os
traços puros, a ponto de poder inspirar até um escultor medíocre a
grandes níveis de proeza, que dizer de um artista que realmente possuísse
algum talento. Após seis meses como beneficiário de sua riqueza e de suas
poses, Leopold finalmente despertou para o feto de que ela também tinha
outros desígnios para ele. Infelizmente, tais desígnios não incluíam sexo.
Eles envolviam sua entrada para as fileiras de mortos­vivos.

Stewart Wieck 25
Uma noite — pois, é claro, ela só posava para ele à noite —, após
horas e horas de trabalho intenso, ela desceu de sua plataforma e
aproximou­se confiante de seu escultor. Leopold tinha feito um
comentário positivo, sobre como sua adorável forma merecia ser
imortalizada em mármore, e foi então que ela se aproximou. Quando suas
presas cresceram e ela trouxe Leopold para si, disse:
— Minha carne perdurará mais que qualquer mármore.
A recordação que Leopold tinha lembrava­lhe de ter sua face
pressionada contra o colo nu dela, onde percebeu uma faixa vertical
carmesim, que se alongava por seu esterno. Depois, as águas da memória
turvaram­ se , e ele lembrava se muito obscuramente de noites de vôo e
dor que terminaram na morte dela e em sua fixação em Atlanta.
Os vampiros até podiam gozar de grandes poderes, mas eles
certamente eram contadores de histórias “cliché”. Ou talvez Leopold
tivesse vivido uma vida mortal de livrinho de histórias. Contudo, por
alguma razão, ele simplesmente duvidava disso ou, pelo menos, sua mente
subconsciente duvidava disso e dava­lhe uma sensação engraçada sempre
que pensava no assunto.
Assim, Leopold estava tentando reconstruir seu passado
verdadeiro, embora tivesse juntado somente três detalhes até aqui:
primeiro, o buraco de seu suposto passado; segundo, o fato de que ele
poderia não se lembrar de ter questionado seu passado, até uns dois anos
atrás; e, finalmente, sua inabilidade em esculpir qualquer um que ele
soubesse ser um Membro. Era esse último aspecto o que mais o
preocupava, e já tinha feito algumas experiências para investigar a questão.
Havia pedido à amiga Sarah, outra Toreador recém­nascida que era nova
em Atlanta, mas que subsequentemente sucumbira à Maldição Sanguínea,
que preparasse alguns modelos desconhecidos para ele. Especificamente,
ele não queria saber se o modelo era ou não um vampiro. E o que
aconteceu? Bem, nada, mas esse era o ponto.
Metade dos modelos eram vampiros.Quando não conhecia suas
naturezas, Leopold sentia pouca dificuldade em manifestar suas imagens
em argila. Um dos modelos, incapaz de ser discreto quanto à sua natureza,
abalou tanto Leopold que ele agradeceu, mas pediu­lhe para que se
retirasse. Um incidente desastroso, pois tratava­se de Trevor, um dos
sargentos dos Brujah, que agora carregava rancor, pelo menosprezo com
que Leopold a tratara.
Certamente, Leopold poderia imaginar que sua dificuldade em

26 Toreador
esculpir um vampiro fosse uma consequência de seu trabalho com a bela
Toreador (que tinha convenientemente insistido quanto ao anonimato,
como ele se lembrava claramente), que acabara por desmantelar totalmente
sua vida ao Abraçá­lo e, posteriormente, forçá­lo a salvar a sua própria vida,
consumindo avidamente o sangue dela. Leopold estava certo de que até
mesmo psicoterapeutas não­Freudianos se apiedariam de um dramático
caso de causa e efeito como esse, mas não lhe parecia estar certo.
Afinal, estava ciente daquele evento, ou pelo menos pensava que
estava, e sua contemplação não o consternava diretamente. Mas, suas
lembranças daquele tempo eram, de fato, terríveis e, presumivelmente,
poderia haver algo da saga que ele estivesse deliberadamente evitando
recordar, algo tão abominável que o evento, por si só, fora apagado de sua
memória e, agora, inconscientemente, causava seus problemas.
Entretanto, ele simplesmente não acreditava nisso. Na maioria das
vezes, era a parte da história do artista esfomeado que o incomodava.
Leopold sabia que se encaixava no arquétipo. Ele era desleixado, perdia
longas horas com um momento fugaz enquanto trabalhava, e realmente
passava fome por feita de sangue, quando esculpia, ao invés de caçar. Mas
ele não achava que fosse capaz de negligenciar por muito tempo uma bela
mulher que estivesse claramente mais interessada nos prazeres carnais que
sua mão pudesse proporcionar, do que na sua habilidade de imortalizá­la
em pedra.
Por exemplo, embora talvez ele fosse imune à sua aparência
estonteante, Leopold não tinha negligenciado Victoria Ash, a Toreador
primígena de Atlanta. Se é que ela ajudou em alguma coisa quanto à
história da vida dele, foi o fato de ela ser uma prova andante (e não “viva”)
de que essas criaturas deslumbrantes realmente existiam. Outra variação
em suas suspeitas com relação ao seu passado verdadeiro sugeria que
Victoria havia sido sua Senhora, e que havia inventado essa simples
história superficial para esconder­lhe tal feto.
Tão logo imaginou isso, Leopold sentiu­se envergonhado de
tamanha paranóia sem sentido, que o fazia parecer um teórico de
conspiração.Não é que esses teóricos não tivessem alguma razão, pois
realmente havia dúzias de conspirações, mas deveriam se ater aos seus
melhores palpites, e não tolerar qualquer suspeita maluca que surgisse em
suas cabeças. Havia vampiros por trás de muitas das conspirações, mas não
alienígenas, ou abomináveis homens das neves, ou quaisquer outras tolices
que estivessem em voga. E assim, Leopold apegou­se à sua teoria principal

Stewart Wieck 27
de uma vida agora inteiramente desconhecida para si, e não às várias
possibilidades que podia imaginar e que se encaixariam nas evidências. A
idéia de uma vida perdida simplesmente parecia-lhe correta.
Além disso, Leopold sentia que tamanha maquinação não
assentava bem à encantadora primígena. Victoria parecia maior que isso,
não do tipo que perdia tempo com meios que não levassem a fins.
Reconheceu a óbvia beleza que ela possuía, mas seu dom de artista era a
capacidade de enxergar as pessoas mais profundamente, e ele acreditava
que se Victoria era responsável por seu passado, então ela não lhe poderia
esconder isso. Se ele não tivesse utilidade para ela, simplesmente o
mataria.
Percebeu, de repente, que parte de suas tolices com relação a
Victoria, devia­se aos vestígios de sua luxúria enquanto mortal. Ela era tão
maravilhosamente bela que ele não conseguia tirá­la da cabeça.
Francamente, imaginar que ele era sua criança da noite era uma ideia que
o excitava, e suspeitou que nutriria essa ideia maluca por algum tempo.
De fato, embora tivesse conversado com ela por telefone
recentemente, Leopold nunca tinha ficado a sós com Victoria Ash, apesar
dela ser a cabeça de seu clã na cidade. Não fazia sentido. Ele realizava os
trabalhos que lhe pareciam importantes e tentava manter­se longe das
políticas. Estas já tinham matado um. Era melhor simplesmente seguir as
regras de todos — as do Príncipe, as dos Anarquistas e as da Camarilla — e
ninguém teria razão para ser hostil, nem para sentir­se ofendido. A
possibilidade de cometer um erro acidentalmente era o que o convencia a
não comparecer a eventos, nem mesmo ao Baile do Solstício de Verão, na
noite seguinte, no Museu de Arte. Certamente, numa reunião tão
concorrida, haveria algum Membro que consideraria Leopold um perfeito
“laranja”, ingénuo, um "inocente útil” para alguma trama. Por isso, quanto
menos o conhecessem, melhor.
Isso não o impedira de aceitar uma encomenda de Victoria para a
festa quando ela ligará há uma semana. Ela tinha pedidos muito
específicos, mas sugeriu que a realização do trabalho era para o bem do clã
e, assim, pelo orgulho dos Toreador ele era obrigado a aceitar. Ele o
executou e, na noite anterior, alguns empregados — caniçais, acreditava
Leopold, pois ergueram sua escultura com uma facilidade que nenhum
mortal teria — vieram para tomar posse da obra.
Ele estava realmente orgulhoso da peça e imaginava se a veria
novamente. Os cinquenta mil dólares que os caniçais lhe haviam pago em

28 Toreador
notas de cem, numeradas, deveriam eliminar, ou pelo menos aliviar, esse
pensamento. Ele já era o proprietário da casa que servia como ateliê e
refúgio, mas precisaria de mais dinheiro para sobreviver em segurança
como um ser imortal. Ele se esforçava para não ficar no caminho de
ninguém, mas um único refúgio não era suficiente; só que por enquanto
era tudo o que ele podia bancar.
Quase deixou de lado o seu plano, para dar uma olhada nos
jornais em busca de pistas para um bom segundo lar, mas por alguma
razão, a ânsia de esclarecer a questão sobre seu passado era maior. Até
então, tais pensamentos não passavam de especulações, mas agora ele
sentia que precisava chegar ao âmago do problema.
O mais provável é que tudo isso fosse pura tolice sua, pois a
menos que houvesse motivações maiores em jogo — e Leopold duvidava
que ele pudesse fazer parte de qualquer plano realmente grandioso — sua
história de vida fantasiosa provavelmente era verdadeira. Essa conclusão o
perturbou.Uma vez que o passado já se fora, ele ansiava que houvesse algo
mais vital nele, algo de que pudesse tirar inspiração para a arte verdadeira,
não apenas as obras de exposição que era capaz de criar quando se
concentrava no mérito técnico, ou as peças grotescas que resultavam
quando ele se soltava. Era, afinal, um bom escultor, e essa parcela de seu
possível passado não era uma charada, pois tamanho talento não poderia
ter sido inventado, embora Leopold soubesse que alguns Membros eram
capazes de feitos evidentemente incríveis. Mas quem, na História, foi o
último escultor a se preocupar com planos que poderiam mudar o mundo
ou afetar vidas além daquelas dos ricos patronos ou de outros pobres
artistas que sonhavam em viver uma vida tão patética como os artistas
mais talentosos porém nada excepcionais? Alguém, de há muito tempo,
inferiu Leopold. Talvez Leonardo ou Michelangelo. Nem mesmo o grande
Rodin planejou eventos internacionais, ou pelo menos, assim pensava
Leopold.
Portanto, decidiu dedicar­se a uma experiência que esperava o
dissuadiria de sua teoria, ou a fortaleceria ainda mais. Era sua intenção
esculpir o busto de sua senhora Toreador. Ela se fora, e as lembranças que
tinha dela eram limitadas, mas ele ainda conservava uma imagem forte
dela em sua mente e decidiu verificar se seria capaz de esculpi­la.Se não
conseguisse, a única explicação possível seria a de que as terríveis dores
que ela lhe infligira eram, de fato, as razões para seus problemas e,
consequentemente, ela deveria ser real.

Stewart Wieck 29
Por outro lado, se a pudesse esculpir, apesar de não ter
conseguido fazê­lo com nenhum outro vampiro, então ele achava que isso
provaria uma conexão consciente como conhecimento ainda inconsciente
de que sua amável benfeitora não era real.
Enfim, ele acreditava que se pudesse esculpir a única criatura que
era, presumivelmente, a fonte do bloqueio que o impedia de trabalhar,
então ela não devia ser a razão real, o que significaria que sua mente
inconsciente, mais do que a consciente, sabia que ela não existia. Não seria
diferente da aparência de Bela Lugosi como Drácula, que ele esculpiu pois
sabia que Drácula não existia, mesmo sendo um vampiro que ele
conseguiu retratar em barro.
Ele continuaria sem ter certeza, mas um resultado assim lhe daria
a confiança para prosseguir com outros experimentos possíveis. Talvez até
mesmo a ponto de procurar auxílio com outro vampiro — quem sabe, até
Victoria — para ver o que poderia ser feito para ajudá­lo a recuperar seu
conhecimento anterior. Porém, um movimento tão direto seria perigoso,
pois o que aconteceria se o Membro ao qual ele pedisse ajuda fizesse parte
da charada aplicada contra ele? E se fosse Victoria e ele acabasse revelando
algum tipo de suspeita contra ela, por menor que fosse?
Leopold riu sozinho. Na pior das hipóteses, supôs, ele poderia ter
que ir para outra cidade, talvez outro continente, mas então, a história de
sua vida seria melhor.
Descobrir que a vida de que se lembrava era uma charada, talvez
só servisse para arruinar seu presente. Deveria ele desistir de um passado
de “historinha”, para descobrir que a verdade podia ser diferente? Se sua
senhora era uma farsa, uma fábula inventada por alguém que escondia
algo dele, então em que problema, possivelmente perigoso, ele poderia vir
a mexer, com a volta de sua memória?
No entanto, Leopold estava decidido quanto ao curso de sua ação.
Acreditava que a arte tratava da verdade.Embora seu trabalho envolvendo
os Membros jamais pudesse ser para o consumo público — pois isso
poderia ser considerado uma perigosa brecha na Máscara — Leopold sentia
que seria capaz de revelar alguma verdade, para alguns poucos dentre os
Membros que também a procuravam.
Mas não se não pudesse esculpir aqueles que veriam essa arte, pois
tamanha falha provocaria um claro impacto com relação à transmissão e
recepção de sua mensagem. Os escultores, de Rodin a Brancusi, falavam
de seres humanos, tendo o Rebanho como o centro de grande parte de

30 Toreador
suas obras.Talvez houvesse uma maneira de falar sobre vampiros em sua
obra, sem mencionar os Membros, mas para que sua mensagem fosse
honesta, esse método teria que surgir naturalmente e não ser um
impedimento em tomo do qual ele construísse um método.
Por fim, respirou fundo e tirou o pano que cobria uma grande quantidade
de argila que ele cortara e envolvera com uma toalha molhada horas antes
naquela noite. Ele estava ansioso para começar o trabalho imediatamente,
pois embora pudesse ser eterno enquanto continuasse a se alimentar de
sangue, sua paciência para alcançar o autoconhecimento não era
igualmente infinita.
Pensar em sangue fez seu estômago e sua garganta contraírem­se.
Considerou, então, a possibilidade de adiar seu trabalho para procurar
alimento, mas resistiu e voltou a fitar o bloco de argila à sua frente.
Ergueu­se e afastou seu banquinho para ter liberdade de
movimentos ao redor do pedestal sobre oqual jazia a argila. Ele colocou
sua mão direita sobre ela e passou a andar ao redor, em sentido horário.
Os dedos fortes imprimiram quatro leve sulcos no meio, que ele alargou
através de vários giros, espiralando­os para o alto, à medida que
continuava a girar. Fez isso repetidamente, como um gato brincando com
sua presa. E, tão repentinamente quanto um gato que percebe que o jogo
chegou à fronteira do tédio, Leopold deu uma volta e atacou a argila.
Agora ele era uma ave de rapina, seus dedos pressionando, como as garras
de um falcão, enquanto ele se lançava à argila, retirando uma pequena
porção que jogou ao chão, fora do alcance de suas passadas.
Depois de momentos turbulentos, a massa informe de argila foi
talhada à semelhança de um busto, em forma vagamente humanóide.
Leopold estava coberto de respingos do material. Os dedos estavam
revestidos de grossas camadas cinzentas, que os transformavam,
completamente, de implementos aparentemente capazes de trabalhos
precisos, em clavas destinadas presumivelmente a esforços destrutivos.
Havia muito de destruição na escultura, pois Leopold acreditava na criação
através da aniquilação, o que talvez explicasse porque estava disposto a
destruir sua vida atual, desde que uma nova fosse criada no processo.
Contudo, ele se sentia solto, o que era sempre um bom sinal para
seu trabalho. Era uma sensação de desprendimento, que ele não era capaz
de explicar e só conseguia descrever como uma experiência extracorpórea
na qual imaginava­se trabalhando, embora em tais casos não tivesse

Stewart Wieck 31
controle consciente do que fazia. Da mesma forma, às vezes ele apagava
completamente e só quando ficava extremamente cansado — ou, agora que
era um vampiro, quando a aurora se aproximava — recuperava ligeiramente
seus sentidos e descobria uma escultura que lhe é estranha.
Invariavelmente, porém, esse seu desprendimento — sem
preocupações técnicas que o restringissem — originava os melhores
trabalhos. Fora esse desprendimento que, em sua juventude, o tinha
convencido de que ele era um grande artista e que acabaria sendo
reconhecido como tal. O gênio da grandeza se manifestava de maneiras
muito esquisitas, e ele achava que essa era a sua esquisitice.
Não obstante, foi essa mesma insolência que, nos últimos anos, o
convenceu de que nunca alcançaria tamanha grandeza. Somente quando o
artista não consciência de sua insensatez, de sua própria extravagância, a
grandeza pode ser percebida.Deu­se conta,então, de que usava essa falta de
controle como desculpa para merecer a grandeza, ao invés de um flagelo
com o qual se açoitaria até ela.
Desta vez, ele realmente sentiu que flutuava em seu estúdio. Seu
raciocínio estava intacto o suficiente para ficar impressionado com ele
mesmo, apesar de suas reservas quanto ao próprio talento. Ele viu um
artista confiante fazendo a superfície do barro corajosamente. Parecia que
uma reflexão cuidadosa lhe vinha instantaneamente, pois o trabalho era
uniforme e constante, sem erros; pelo não havia nada que o incomodasse,
pois nenhum movimento era contraposto ou encoberto.
Lentamente, a face de uma mulher cinzelava­se, entalhava­se,
suavizava­se e tomava forma rumo à existência. Leopold percebia que ela
seria uma bela mulher, enquanto seu todo correspondesse à superfície do
pescoço e da maliciosa inclinação da cabeça.
Aí, Leopold viu o escultor hesitar. O ritmo do trabalho perdeu
sensivelmente sua magia e descambou para uma tragédia de improvisação
inexperiente. O escultor chegou até a derrubar seu cinzel, e titubeou
boquiaberto, estupefato por um momento, antes de recobrar­se. Era como
se um autómato estivesse trabalhando, como se o Leopold que flutuava
sobre o escultor fosse a alma do artista e não a sua Musa. O escultor
trabalhava metodicamente. A inevitável distração, apesar da dedicação ao
trabalho, significava,de fato, progresso lento na obra, pois Leopold
percebeu, agora, que o escultor estava num ciclo de cortar, esculpir e
substituir aquelas áreas do busto.
Estava certo de que esse era o seu bloqueio inconsciente

32 Toreador
manifestando­se, e não havia dúvidas de que tal era o exemplo que mais o
desmoralizava, pois nunca esse estado de fuga falhara em produzir algo de
que Leopold tivesse um grande orgulho pessoal.Mesmo nesse estado, a
acomodação de sua genialidade tão fervorosamente desejada era incapaz
de sucesso.
Ele sentiu­se condenado. E perdido.
Sentiu­se desvanecer para longe, cada vez mais alto, embora agora
fosse uma fuga, uma abençoada evasão.
Era uma sensação gradual de perda do foco de si e da escultura de
argila. Começou a perceber todo o seu estúdio, e assimilou tudo isso sem
a capacidade de se concentrar em qualquer aspecto que fosse. Viu o
contorno das compridas mesas que se estendiam ao longo das paredes, e
as partes das mesmas que formavam um T, próximo da área principal do
aposento. Viu as caixas de “bozzettos” e de trabalhos inacabados, sobre as
mesas junto às paredes, embora fosse incapaz de distinguir qualquer peça
específica.
E, sobre as outras mesas, ele somente pressentia o negro, o cinza e
o branco do granito, da argila e do mármore.
Mesmo esses itens do amplo estúdio desvaneceram­se e ele
vislumbrou a periferia de seu refúgio: os frouxos tijolos caiados das
paredes do porão,a escadaria de madeira arqueada e manchada pela
umidade, mas resolutamente forte, que levava ao andar térreo para o qual
se sentia levemente carregado, e a porta para a adega seca e fresca que se
aprofundava ainda mais que o porão, e onde Leopold passava cada das
horas comatosas do dia sobre um colchão firme, travesseiros de pena e sob
uma manta de lã.
Apesar da altura em que se encontrava, por um momento ele
sentiu que havia algo ainda mais profundo que sua adega. Algo sombrio,
amorfo e poderoso. Então aquilo sumiu, mas alguma coisa informe ainda
atiçava seu cérebro, e ele flutuou ainda mais.
Acabou por esbarrar no teto que correspondia ao piso térreo. Em
seu estado, o teto também era uma barreira permeável que separava a
vigília do sono, e as imagens borradas de tudo o que ele sentira luziram
em branco puro num lampejo brilhante que trouxe Leopold subitamente
de volta à consciência.

Stewart Wieck 33
Domingo, 20 de junho de 1999; 23h 57min
Uma siderúrgica abandonada
Atlanta, Geórgia

O motociclista voava pelas ruas escuras de Atlanta. Ele optou por


manter­se fora das vias principais norte­sul, 1­75 e 1­85, que levavam ao
centro da cidade. Era melhor evitar as avenidas e usar as numerosas ruas
laterais onde podia “queimar” o asfalto, e com uma virtual Caçada de
Sangue já declarada contra qualquer considerado remotamente
Anarquista, era imperativo que os lacaios do Príncipe não seguissem o
mensageiro ao seu destino.
Ele adentrou as ruas labirínticas, pelas quais Atlanta é notória, e
assim foi traçando seu caminho na direção desejada. Satisfeito por não ter
sido seguido por ninguém, o mensageiro deu uma derrapada final num
trecho aberto, em direção a um maciço edifício de concreto e aço.
Sabia que esse seria o momento em que estaria mais vulnerável,
então se aproveitou da velocidade. A moto BMW respondeu
admiravelmente, sobretudo porque o habilidoso piloto desviou dos
inúmeros buracos e quebra­molas da pista.
Quando se aproximou da fechada — e isso era tudo o que havia,
pois a parte principal da siderúrgica havia desabado, restando apenas essa
única parede orgulhosa — o mensageiro deu uma olhada final para trás
para ter certeza de que estava tudo limpo.
E estava.
Mas então, houve tiros.
O trovão da abundante munição rugiu das paredes de concreto e
aço à sua frente.O mensageiro quase deitou a moto no pavimento
arrebentado; as rachaduras e buracos certamente o teriam retalhado como
um ralador de queijo.
Quando se recuperou do choque de ter sido alvo de tiros, vindos
da posição que supostamente era do seu próprio lado, o mensageiro notou
que as armas de alto calibre estavam atirando para o céu por sobre sua
cabeça. Definindo um curso na estrada que no momento parecia estável, o
mensageiro estendeu o pescoço para os lados e para cima. Ele não foi
capaz de ouvi­los, devido ao rugido de sua própria máquina, mas já podia
ver os três helicópteros. O da frente parecia ser preto e sem marca,
provavelmente o que o seguira. Outros dois aproximavam­se rapidamente,
e pareciam ser da polícia.

34 Toreador
Gritou um palavrão e acelerou fortemente, para liberar toda a
força da máquina. A moto respondeu com uma grande explosão de
aceleração, mesmo já estando a 190 km/h. Não somente era provável que
morresse pela segurança de uma mensagem qualquer — não importava que
ela fosse urgente — mas também porque falhara no aspecto mais básico de
seu dever: não conduzir o inimigo ao próprio esconderijo.
As balas jorraram ao redor do mensageiro como o tamborilar de
uma chuva forte. Uma das balas atravessou seu braço e alojou­se em sua
coxa direita. Ele quase perdeu a direção, mas a força carniçal de seu braço
esquerdo intacto era suficiente para mantê­lo no controle, pelo menos por
agora. O braço direito estava quase inutilizado. Ele ainda conseguiu reunir
força suficiente para usar o acelerador, mas não havia firmeza em seu
cotovelo e o mensageiro sabia que sua habilidade em pilotar motocicletas
estava seriamente comprometida.
Olhou de novo para trás e viu que havia um intervalo
extraordinário entre o helicóptero principal e os dois da polícia. Se
pudesse dar um jeito de se posicionar nesse espaço, talvez conseguisse
escapar.
O mensageiro acionou os freios. No mesmo momento, ele
deslizou, deitando a moto para a parte frontal esquerda da moto, e surfou
no asfalto, com seu único braço bom segurando o guidão.
Faíscas e peças voavam, enquanto o mensageiro lutava para
manter o equilíbrio na moto que dançava na estrada esburacada. O
helicóptero girou à sua frente, incapaz de diminuir a velocidade tão
repentinamente quanto a moto. Mal tinha tempo para observar o
helicóptero, mas o viu começar a diminuir a velocidade, como se o piloto
cogitasse fazer a volta para matá­lo. Então, acelerou novamente.
Assim que o helicóptero passou e esforçou­se por atirar contra a
posição do Anarquista na siderúrgica vazia, o mensageiro levantou
novamente a moto puxão de seu braço esquerdo, cuja força era
hercúlea.Sua velocidade tinha sido reduzida a apenas uns 50 km/h, mas
após ter­se sentado novamente, acelerou rapidamente. Ele deixara para trás
o helicóptero principal, mas os outros dois à frente ainda o perseguiam.
A moto estava num estado de causar dó, puxando para a direita,
mas o mensageiro esforçava­se para fazê­la ficar com a roda para frente.
Observou o helicóptero preto mergulhar, passando por cima da
parede de concreto e aço.Suas armas frontais demoliram uma parte dela, e
o mensageiro viu um de seus amigos Membros caindo junto com um

Stewart Wieck 35
amontoado de escombros.
O helicóptero deu uma volta para passar de novo, e os dois
veículos da polícia provavelmente se juntariam a ele no próximo ataque.
Além disso, o mensageiro via à sua esquerda a alça de desvio da 1­75
saindo da via central, e uma longa fila de carros com suas luzes azuis
piscantes que pontilhavam a estrada.
Mais uma vez ele praguejou e acelerou à velocidade máxima de
que sua moto danificada era capaz. Ele permitiu que a tendência da moto
em ir para a direita piorasse e circulou o muro para procurar abrigo lá
atrás, com seus colegas condenados. Imaginou por um instante se havia
alguma diferença em se encarar a Morte Final ou a simples morte física
que já enfrentara. Ele podia ser um carniçal com sangue vampírico nas
veias, mas ainda estava sujeito a morrer de todas as causas comuns. Como
a polícia lidaria com seus amigos que não cairiam à saraivada de tiros?
Parecia ao mensageiro que o Príncipe brincava despreocupada­
mente de quebrar a Máscara enviando sua polícia atrás dos Anarquistas.
Tanta coisa passou por sua mente nesses momentos finais, o tipo
de pensamentos que o mensageiro jamais tinha tido antes, e que nunca
teria novamente.
A salvo, por um momento, atrás das paredes e sob um fragmento
do que teria sido o segundo pavimento, o mensageiro desligou o motor da
moto e saltou dela.
Seu braço direito machucado pendia contra seu corpo.
Ele viu Thelonious e apressou­se até o poderoso Brujah. O
homem parecia impecável em seu belo terno de trabalho. Ele tinha um
telefone celular grudado ao ouvido, mas desligou assim que o carniçal se
aproximou.
Thelonious parecia ter um comportamento brando demais para
um Brujah — especialmente um tão procurado pelo Príncipe, a ponto
dessas hordas de policiais serem convocadas para o combate—, mas o
jovem negro bem vestido podia ser feroz quando era preciso. De fato, ele
era um dos poucos indivíduos — Membro ou mortal — que enfrentara o
Príncipe Benison numa batalha e sobrevivera, caso contrário a guerra
entre os anciãos do Príncipe e os Anarquistas de Thelonius não estaria
sendo travada.
O carniçal disse:
— Desculpe, mestre. Eu os trouxe até você. Assim que os
expulsarmos ou fugirmos, eu me submeterei à sua punição.

36 Toreador
A princípio, Thelonious pareceu não ouvir o carniçal, mas então
o Brujah Falou:
— Não seja tolo, Thomas. Esse ataque já estava em andamento
antes de você chegar. Eles nos encontraram de algum outro jeito. Talvez
um espião. Algum dos nossos, interessado na sociedade arrogante e
degradante que o Príncipe estabeleceu em nossa cidade.
— Se foi isso, então eu vou matar o traidor.
— Já tomei providências quanto a isso. — disse Thelonious,
exibindo uma das mãos ensanguentada ao mensageiro. Então prosseguiu:
— Quanto à polícia, talvez a gente consiga assustá­la ou, pelo
menos, ganhar algum tempo.
Dito isso, Thelonious ergueu sua mão. Embora através das janelas
quebradas e buracos da construção, o carniçal pudesse ver apenas
lampejos do helicóptero preto girando novamente ao redor do edifício, ele
percebeu que o mesmo estava fazendo mais uma aproximação.
As armas começaram a destruir os tijolos de novo e Thomas
recuou. Aí, dois sons estridentes se ouviram e um par de linhas de fogo
cortou o ar. Uma delas perdeu­se de vista, zunindo, mas a outra
interceptou o helicóptero e uma forte explosão sacudiu a terra e o ar.
Uma grande euforia tomou conta dos Anarquistas, e Thomas viu
que Thelonious também sorria.
— Vejamos se isso os faz pensar melhor — disse o Brujah.
De fato, os dois helicópteros da polícia, que também estavam
prontos para disparar as metralhadoras, ganharam altitude rapidamente e
atiraram por sobre a siderúrgica.
— Agora é a nossa chance! — acrescentou.
Thelonious deu um assobio agudo e acenou com os dois braços.
A maior parte dos Anarquistas entrincheirados abandonou imediata­
mente suas posições, subindo ou pulando até o chão. Dois deles,
entretanto, demoraram um pouco mais. Eles preparavam novo disparo e
Thomas assistiu a um dos Membros, um Brujah Chamado Trevor,
apontar a arma contra os helicópteros que batiam em retirada.
Os veículos não se afastaram rápido o suficiente e o projétil,
lançado do alto da velha parede, partiu diretamente para cima deles.
Rapidamente passou por um dos helicópteros, e como o piloto não era
muito hábil em combate aéreo à curta distância, o helicóptero bateu em
uma fenda e explodiu com um estrondo seco.
— Foi­se. — disse Thelonious, chamando novamente a atenção do
Stewart Wieck 37
carniçal para seu líder.
Ao voltar­se, o carniçal, viu que o líder Anarquista estava tirando
as roupas. A pele negra do corpo magnificamente esculpido reluziu à luz
da lua. Então Thelonious estendeu seu braço em direção ao rosto do
mensageiro.
— Tome um pouco de sangue. Sem isso, esse ferimento será sua
morte e você não sobreviverá ao vôo que estamos prestes a fazer.
O carniçal ficou surpreso, mas não vacilou. Agarrou o braço do
Brujah e lançou contra ele seu rosto voraz. Ele sabia que era alimentado
pela autoridade de seu líder, mas jamais sentira realmente o gosto do
sangue de Thelonious, só o de seus subordinados. Logo, o carniçal nunca
havia provado sangue tão bom, tão aromático, tão cheio de vida e poder.
Quando o sangue fluiu por seu corpo, o carniçal sentiu­o agir
imediatamente.
Num instante, seu braço rasgado cicatrizou e o sangue ainda
restaurou­lhe alguma força e flexibilidade. O sangue vampírico era incrível,
pensou ele. Especialmente o sangue de um primógeno Brujah. Bem, um
ex­primógeno Brujah. Na onda da revolta anarquista, esta já não era mais
uma posição oficial.
De repente, o alimento delicioso se fora. Um fio de sangue
escorreu do braço do Brujah, mas o sangramento cessou tão logo o
carniçal afastou sua boca.
Thelonious, então, empurrou o carniçal de modo que ele
começasse a correr sob o manto da noite. Todo o grupo, formado por
outros oito Anarquistas, saiu atrás dos dois. Cinco destes eram Membros e
três, carniçais como Thomas.
Thelonious tinha prometido aos carniçais que se essa guerra fosse
vencida eles seriam Abraçados para se tornarem totalmente vampiros.
Enquanto o grupo esfarrapado corria pelo chão coberto de entulhos da
velha siderúrgica, Thelonious olhou para Thomas e perguntou:
— Trouxe alguma mensagem, ou só estava voltando para o QG?
Thomas quase não tinha condições de falar enquanto corria a
passos tão rápidos, mas conseguiu dizer:
— Eu...trouxe...uma...mensagem.
— Então me entregue!— ordenou o líder Brujah.
Thomas puxou um envelope lacrado de sua cintura e estendeu­o
desajeitadamente para Thelonious. O Brujah agarrou­o com agilidade e o
abriu, enquanto corriam.

38 Toreador
Como Thelonious conseguiu ler enquanto mantinha a mesma
velocidade, Thomas não sabia, mas isso o fez desejar ser um Membro mais
do que nunca,
— É do Benjamin! — revelou o Brujah.
Thomas estava ficando fraco, mas sentiu o fluir das últimas gotas
do sangue de seu líder em suas veias, recuperando seu fôlego.
— Benjamin?— perguntou ele.
— O Ventrue. — explicou Thelonious. Então o Brujah desviou o
olhar, como se revelasse o conteúdo da mensagem somente para uma parte
de si mesmo.
— Ele diz que eu deveria comparecer à festa, amanhã à noite.
Benison estará lá...
— Suas palavras morreram, mas os pés dele voaram furiosamente e
ele avançou até a frente de todos.
Sua voz ecoou para o grupo:
Encontrem­me no próximo esconderijo daqui a duas noites!
Então, a superfície aparentemente polida de sua pele recusou­se a
refletir qualquer raio da lua e, enquanto desaparecia no breu azeviche da
noite, Thelonious ponderava se o preço de Benjamin era alto demais. Por
que o Brujah deveria trocar um Príncipe por outro?

Stewart Wieck 39
Segunda­feira, 21 de junho de 1999; lh 50min
Avenida Piedmont
Atlanta, Georgia

Leopold, de repente, se encontrou alerta e consciente. Esse


período de desprendimento em particular não fora marcado pela confusão
e preguiça que às vezes o invadiam quando voltava a si.
Ele ficou momentaneamente confuso pelas algemas que sentia a
restringi­lo, mas logo entendeu que seus dedos e pulsos estavam somente
endurecidos pela argila seca. Quando flexionou os dedos, com mínimo
esforço, a argila seca rachou­se e caiu aos pedaços no chão empoeirado.
Foi sobre esse mesmo chão empoeirado de seu ateliê que Leopold se
deitou. Seu corpo estava envolto pelos escombros de muitos projetos
anteriores, pois ele só se motivava a limpar o lugar quando este estava
cheio de pilhas nas quais ele poderia tropeçar, o que acontecia mais ou
menos de seis em seis meses.
Ele olhou para o teto e, por um instante, imaginou que se via
flutuando lá em cima. Agora era o escultor olhando para a Musa. Porém,
tudo o que via eram as pesadas vigas de madeira que estavam sustentando
o pavimento térreo há cem anos, e o sustentariam por mais cem. Elas
pareciam invencíveis e imunes à passagem do tempo.
Ah, se uma de suas esculturas — uma, apenas! — resistisse tão bem
ao teste das gerações de vampiros e mortais...
Quando focalizou melhor o chão, Leopold descobriu que estava
com sua cabeça próxima ao pedestal, sobre o qual trabalhara o busto de
argila. Uma sensação de fracasso ainda o consumia. Sensação de frustração
e de insensatez, também.Como podia ele realmente ter imaginado que seu
passado continha qualquer surpresa inesperada? Era essa a demência da
vida eterna que alguns Membros afirmavam afligir a mente dos anciãos?
Leopold não tinha nem mesmo arranhado a superfície dos anos de vida
concedidos a alguns mortais, e já estava se entregando. Ele se imaginou
servindo como exemplo de um Toreador de vontade fraca — um escultor
afetado que não era capaz de durar nem os sessenta e sete, ou coisa
parecida, prometidos pela Bíblia.
Embora lúcido e com força em seus braços e pernas, Leopold não
sentia motivação para se mover. Sua posição no chão fornecia­lhe uma
visão tão boa do seu busto de argila, quanto sua confiança restante lhe
permitia: um delgado nariz sobre lábios Cerrados, ou talvez, entreabertos.

40 Toreador
Ali permaneceu por um bom tempo, perdido em pensamentos
que levavam a pouco e nada significavam. Finalmente, o desconforto do
chão e o desejo premente por algum tipo de alimento, fizeram­no pôr­se
de pé.
Ergueu­se e caminhou lentamente pela escadaria de madeira.
Apertando o corrimão com os dedos, deu lentos passos para cima. Então,
assim que seus olhos estavam para ultrapassar o limiar do chão acima do
porão, ele olhou para trás, para o busto.
Uma mulher estonteantemente adorável retribuiu seu olhar, sua
cabeça inclinada para um dos lados com o pescoço levemente esticado
para a frente. Não era uma peça inacabada. Tratava­se de um trabalho
completo, com algo de belo. Leopold bateu com a cabeça na viga quando
começou a descer correndo pelos degraus, atravessando o estúdio para
parar ante o busto.
Os ombros da mulher estavam nus, elegantes e lustrosos. Ele a
imaginava nua ou usando um vestido sem alças, como uma mulher de
feições tão adoráveis, provavelmente usaria. Era fácil vislumbrar os ossos
sob a pele de argila da mulher, e algo na postura de seus ombros indicava
força ou, no mínimo, auto­confiança.
A face era iluminada por um sorriso discreto, mas eram as outras
feições da mulher que davam dimensão à sua expressão. Isso provinha
principalmente dos olhos, com um quê de asiáticos. Havia uma fina ironia
neles, embora de alguma forma disfarçada entre as sombras de seu
formato oblíquo e por encontrarem­se semicerrados. As maçãs do rosto
eram salientes, afilando­se até ao queixo. Acima, uma única mecha de
cabelo caía na testa. O resto do cabelo era bem arrumado, curto e
levemente cacheado.
O que Leopold não reparou de imediato foram as presas da
mulher, já que nem pensou em observá­las, ou talvez porque as via agora
com tanta frequência que não lhe pareciam fora comum. Elas não eram
evidentes, mas a boca levemente entreaberta revelava as finas pontas dos
dois caninos superiores.
Isso não era comum. Leopold firmou­se sobre o pedestal,
inclinando­se para frente, com suas pernas separadas, como se estivesse
prestes a ser revistado pela polícia, e com as duas mãos pressionava a
superfície que também suportava o busto.
Sua cabeça caiu­lhe por entre os braços e lá ficou como um
pêndulo imóvel em seu torso.
Stewart Wieck 41
Os dentes não somente significavam que ele havia esculpido um
Membro, mas também era sinal de que aquela vampira em particular que
ele esculpira, o perturbava e excitava, mesmo não sendo a beldade que
lembrava tê­lo Abraçado. Ele mal podia acreditar que havia conseguido,
nem podia crer que não a tivesse reconhecido de imediato.
Levantou a cabeça e olhou a mulher diretamente em seus olhos de
argila escura, mas quase vivos. Era Victoria Ash, primígena dos Toreador
de Atlanta. Sua luxuriante exuberância pré­Rafaeleana era a síntese da
beleza aos olhos do escultor de Leopold, embora houvesse suavidade
suficiente em sua face, para equilibrá­la e aproximá­la dos conceitos
modernos da beleza. A Vénus sem braços não tinha nada em si, como
metáfora para a beleza eterna.
Ele a fitou por um longo tempo, imaginando o que isso lhe dizia
sobre as circunstâncias, sobre seu passado. Talvez não tivesse nada a ver
com seu passado, mas era um augúrio do futuro. Talvez Leopold estivesse
condenado a saber mais sobre seu futuro do que de seu passado.
Entretanto, se Victoria era significativa em seu futuro, Leopold poderia
perdoar um passado perdido.
Afastou­se a passos vagarosos, dando­se a vantagem da distância
para olhar de novo e ter certeza. Foi, porém, apenas um momento. A face
fina, o ar levemente oriental, o gracioso pescoço: definitivamente era ela.
Leopold aproximou­se novamente e curvou­se um pouco.
Sistematicamente, como o Toreador saboreava cada momento, ele
pressionou seus lábios contra a argila do busto e deu­lhe um beijo, à
medida que atenciosamente trabalhava sua língua na argila da boca
entreaberta e sorridente de Victoria.

42 Toreador
Segunda­feira, 21 de junho de 1999; 2h 02min
Hotel Skyline
Atlanta, Geórgia

Benjamin estava na cobertura de seu hotel, no centro da cidade,


olhando o belo céu noturno de Atlanta. Uma dentre suas dúzias de firmas
“fantasmas” ou empresas para lavagem de dinheiro — ou uma mistura das
duas, que nem ele era capaz de definir — era dona do prédio, cuja
cobertura estava oficialmente cheia de equipamento e só parcialmente
completa, pois as verbas da companhia acabaram antes que seu projeto
pudesse ser finalizado.
Na verdade, estava só parcialmente completa porque Benjamin
assim preferira. Ele podia bancar muito luxo, como o que tinha em muitos
de seus outros refúgios. Mas quando queria pensar, Benjamin precisava de
um mobiliário mais espartano: um computador sobre uma mesa; uma
pequena mesa lateral; uma grande mapoteca com dez gavetas horizontais
para guardar documentos; um alçapão para fugas rápidas.
Benjamin fitava o centro da cidade, para além das altas colinas.
Desejava ter visto os mísseis sendo lançados.Sua posição teria fornecido
uma bela vista da batalha, apesar dela ter sido travada a três quilómetros ao
norte de seu refúgio. O Ventrue ajeitou os óculos, um cacoete de seus anos
como mortal. Por outro lado, parecia estar relaxado com seu suéter de gola
alta preto e branco, e calças pretas folgadas.
Se não fossem os pontos brancos mesclados de seu suéter,
Benjamin, um belo homem negro, poderia ter desaparecido na pouca luz
da sala. Ele logo desapareceria, quando em meio a pensamentos
profundos, mas havia algo quanto ao preto total que não atraía o
Ventrue.Muito na moda... Muito rebelde. E ele não era nem um Toreador
nem um Brujah: deixava essas coisas para eles.
A não ser que tivesse que se intrometer nos assuntos deles esta
noite. Pelo menos nos negócios dos Brujah e de quaisquer outros clãs que
pudessem estar representados no grupo de Anarquistas liderado por
Thelonious. Talvez um Gangrel, ou dois, mas a informação que Benjamin
tinha apontava para um grupo todo de Brujah e, provavelmente, um par
de carniçais. Além de Thelonious, é claro. Era um exército triste, mas a
Maldição Sanguínea tinha reduzido drasticamente suas fileiras e
Thelonious parecia ser contra Abraçar outros, simplesmente para abastecer
tropas de choque — uma tática preferida pelo Sabá, que pouco se

Stewart Wieck 43
importava com o futuro dessas tropas.
Não, a guerra que Thelonious travava era legítima , e os Brujah
eram escrupulosos demais para curvarem­se a táticas que, se
implementadas, arriscariam uma vitória a longo prazo, em detrimento de
uma mais imediata. Isso significava que a mensagem dos Brujah devia
conter um benefício a longo prazo, que o Ventrue não conseguia
vislumbrar no momento.
Seja como for, Benjamin era um pouco mais pragmático. Ele
consideraria as tropas de choque, se elas garantissem a vitória que, no final
das contas, daria a oportunidade de compensar tal erro.
É claro que o rancor de Benjamin contra o establishment de
Atlanta era de natureza mais pessoal, considerando­se que Thelonious
travava uma batalha ideológica contra o Príncipe Benison. Benjamin
também lutava por uma ideologia, mas admitia para si mesmo que a
derrota do Príncipe e sua maldita esposa, Eleanor — aquela porcaria de
Senhora que não hesitaria em exercer controle sobre ele, se achasse que
havia alguma possibilidade dele nunca mais voltar por iniciativa própria —
afetaria dramaticamente os métodos que ele poderia empregar.
Thelonious entendia as sutilezas da decisão que Benjamin estava a
ponto de tomar?
O Ventrue afastou­se da janela e voltou à mapoteca. Todas as
informações que seus agentes haviam reunido no dia anterior, estavam
espalhadas sobre a superfície plana. Benjamin tinha lido tudo algumas
horas atrás, achando pouco que o pudesse interessar.
Sua mão deslizou até uma única folha de papel, a qual pegou e leu
novamente.
Nela estava escrito: “Agora é o momento de tomar as medidas
para bloquear Benison.
Eu sei o seu segredo, Benjamin, e Benison poderá tomar
conhecimento dele na festa de amanhã à noite.”
Estava assinado: “Thelonious.”
A mensagem chegara por um mensageiro que pilotava uma
motocicleta, há cerca de uma hora. Estava lacrada num envelope timbrado
de uma construtora inexistente. O mensageiro que a entregou disse à
recepcionista que era uma ordem de serviço que deveria ser levada à
cobertura. Esse estranho pedido naturalmente chamou a atenção da
carniçal de Benjamin, Augusta Riley, uma jovem astuta que gerenciava o
hotel e usava o sangue que ele lhe transferia para ficar acordada vinte

44 Toreador
quatro horas por dia. Benjamin também costumava trabalhar
incansavelmente, mas isso foi antes de se tornar um Membro, quando
ainda podia permanecer ativo durante o dia.
Benjamin reconhecia, agora, que Thelonious seria beneficiado ao
revelar o segredo do Ventrue na festa do Solstício de Verão, na noite
seguinte. Qualquer coisa que o Brujah pudesse fazer para desviar os
ataques e a atenção do Príncipe, poderia dar a Thelonious tempo para se
reorganizar para possíveis contra­ataques. Mas isso ainda parecia um prazo
terrivelmente curto. De qualquer modo, a sobrevivência a curto prazo era
condição para a vitória a longo.
Benjamin podia, de fato, retardar a perseguição do Príncipe aos
Membros rebeldes, pois embora Benison controlasse a força policial da
cidade, todo o sistema judiciário estava sob o poder de Benjamin. Os
mortais de Benjamin poderiam dar qualquer número de passos, a fim de
limitar os ataques que Benison estava realizando com suas próprias
marionetes. Diabos, até mesmo um ou outro mandato de busca negado,
aqui e ali, poderia custar vários dias a Thelonious!
Mas Benjamin ousaria tomar tal atitude? Não havia dúvida de que
ele não se importava com as ameaças que Thelonious lhe dirigia. Com ou
sem ameaças, Benjamin teria que fazer o que fosse melhor para si.
Na realidade, concluiu, tudo se resumia em decidir quem, entre
Thelonious e Eleanor, seria o melhor títere — ou aliado, se ele preferisse
encarar as coisas desse modo. Fosse qual fosse a escolha — ele teria que
considerar as consequências durante as horas de escuridão que ainda
restavam naquela noite — Benjamin sabia que não podia dar passo algum
contra o Príncipe antes da festa.
Benison saberia imediatamente que a interferência de Benjamin
teria retardado sua perseguição aos Anarquistas, e o Ventrue concluiu não
haver razão para, por si só, criar mais um problema, quando os outros já
tinham a habilidade de despejar vários sobre ele.

Stewart Wieck 45
Segunda, 21 de junho de 1999; 3h 18min
Avenida Piedmont
Atlanta, Geórgia

O que Leopold mais temia era o resultado: uma resposta. Mas


cada uma trazia a manifestação de inúmeras outras questões.
Sua resposta consistia simplesmente em que era, de fato, capaz de esculpir
um Membro, embora isso exigisse sua entrada em seu estado de fuga,
processo sobre o qual ele jamais teve controle. Mais que isso, esse estágio
de desligamento pareceu diferente dos anteriores. Ele se lembrava, com
pouca clareza, dos detalhes do que considerava sua projeção astral, mas
tinha consciência de que seu bloqueio mental tinha vencido até esse
estágio mágico da criação. Havia flutuado ainda mais alto, antes de voltar
à consciência plena.
Normalmente, sua presença fantasmagórica estendia­se à distância
de um braço acima de seu eu que trabalhava.Talvez, contudo, sua natureza
vampírica ampliasse esse seu poder, ou talvez este tivesse alcance ainda
maior do que ele imaginara.
Talvez fosse potente o suficiente para que ele pudesse voltar a se
imaginar um gênio da arte — um criador dotado de loucura suficiente e
comportamento radical para qualificar­se.
Independente do que tivesse acontecido e estivesse acontecendo,
Leopold sabia que precisava de mais respostas. Sua busca era vencer a
hidra, pois em tudo o que diz respeito aos Membros, cada resposta criava
mais duas perguntas, mas talvez ele topasse com uma verdade que lhe
permitiria cauterizar as lacunas sangrentas antes que outros mistérios
pudessem surgir.
O problema era que seus amigos eram tão poucos quanto seus
inimigos.
Mantinha­se fora da política para evitar a criação de inimigos, mas
sem uma área de influência ou de controle que pudesse reivindicar, outros
Membros também não teriam razão alguma para procurá­lo como aliado.
Havia uma dezena de mortais para os quais poderia se voltar em caso de
extrema necessidade — Rose Markowitz em particular, já que ele a havia
tirado das ruas e colocado de volta à vida da arte, que para ela era
presumivelmente infinitas vezes mais atraente — mas não havia nenhum
Membro com quem ele pudesse contar.
A não ser que Hannah o ajudasse. Ele pensou nisso por um

46 Toreador
momento.
Ele se lembrou de ter pensado na mansão dela quando passou por
lá, na noite anterior. Achou que era dela, embora supusesse que, na
realidade, fosse a capela dos Tremere de Atlanta, um clã extremamente
hierárquico, que para Leopold permanecia unido tanto por uma linhagem
comum, como por sangue comum. Isto é, ele ouvira que todos os neófitos
— vampiros recém­criados — eram obrigados a beber o sangue de todos os
anciãos do clã.
O sangue era uma força poderosa para os Membros, e não apenas
por servir de alimento. Afinal, qualquer substância capaz de transformar
um ser humano exangue em um vampiro, guardava segredos muito além
do alcance da ciência dos mortais. Um mortal que bebesse sangue
vampírico tomava­se um carniçal. Um Membro que bebesse o sangue de
um outro Membro poderia vir a se tornar escravo deste. De fato, Leopold
tinha ouvido histórias de incontáveis modos pelos quais o poder do
sangue vampírico podia ser libertado e, no âmago da maioria dessas
histórias, estavam os Tremere, um clã que diziam descender não de Caim,
mas de um grupo secreto de feiticeiros que se haviam transformado por
seus próprios métodos durante a Idade Média.
Leopold balançou a cabeça, frustrado. Havia tantas histórias! Cada
uma tão improvável quanto às demais, mas carregando em si uma semente
de verdade. Ele precisaria de vida eterna para analisar todas elas.
Pensou em Hannah e em como ele estava quase alegre por sua
incapacidade — pelo menos, há aproximadamente um ano — de esculpir os
vampiros. Ele jamais encontrará ser humano ou Membro tão moroso,
inanimado e desinteressado. Hannah afetou Leopold, combinando todas
as piores características de uma puritana vitoriana, de uma professora
certinha e de uma quaker severa. Ela era muito afeita à severidade,
inexpressiva até à estupefação e sinistra como uma bruxa de Salém que
queria queimar.
Ela não teria sido um objeto impossível de se esculpir, mas
Leopold não achava que ela seria um dos prazerosos. Não que Leopold
duvidasse da capacidade dela de ficar sentada por horas, ou até dias —
interrompidos pela luz solar, é claro —, se a modelagem assim o exigisse,
mas duvidava de sua própria habilidade de encontrar algo nela para
animar a alma de seu retrato na argila, no granito ou no mármore.
Mas, naquele dia em que ela apareceu de surpresa em seu ateliê
ele tentou.

Stewart Wieck 47
Leopold lembrou que estava tendo algum problema com uma
modelo que não cooperava, quando, de repente, a garota frustrantemente
inquieta gritou e apontou para a figura envolta e encapuzada em negro que
se encontrava aos pés da escada.
Leopold quase gritou também, mas Hannah prontamente tirou
seu capuz e ele a reconheceu como um de seus poucos relacionamentos
sociais entre os Membros.
— Consta que você não é capaz de esculpir a aparência de um
vampiro — disse ela, com voz tão monocórdia que Leopold teve que
decifrar as palavras do zumbido mecânico que era o registro de sua voz.
A assustada mortal gritou de novo, lançando­se a Leopold e
suplicando por proteção. Sua voz, no entanto, vacilou em murmúrios e ela
caiu ao chão tão repentinamente, que Leopold imaginou que os ossos dela
se haviam liquefeito.
— Sim, é verdade. — Leopold acreditava que teria dito, enquanto
abaixou­se até a mulher caída e a virou. Ele removeu alguns fragmentos de
um dos seios dela e de sua barriga, e apoiou­a, sentada contra um pedestal.
Leopold deve ter parecido preocupado com a mortal, pois Hannah
comentou brevemente que ela ficaria bem e que jamais seria capaz de
lembrar­se dos dez segundos imediatamente anteriores ao colapso, assim
como dos primeiros dez segundos, após o despertar.
Ela advertiu que seriam aproximadamente dez segundos, e então
perguntou a Leopold o que ele faria com ela durante aquele período.
Vinda de qualquer outra pessoa, a pergunta poderia ter sido maliciosa, ou
até mesmo maléfica, mas Hannah não esboçou o menor sorriso nem
revelou o veloz e raro piscar de seu olho. Leopold teve a impressão de que
tudo o que ela fazia era calculado para obter uma resposta e que sua
presença não era uma variável em seus experimentos, observando que ela
se mantinha afastada e só estava presente para registrar os resultados.
Leopold não se lembrava de como respondera, mas se tivesse que
responder de novo, e se a coragem não lhe faltasse, ele gostaria de dizer
algo ultrajante, para ver como Hannah reagiria. Ele balançou a cabeça.
Provavelmente ela aceitaria qualquer sugestão, independentemente de
quão grotesca ou erudita fosse, com o mesmo estoicismo.
Essa impressão que tinha quanto aos métodos de Hannah foi
confirmada, pelo menos na mente de Leopold, quando, então, ela exigiu
que ele a esculpisse. Leopold protestou e, como um teste, devolveu:
— A menos que você conheça a mágika Tremere capaz de romper

48 Toreador
meu bloqueio, você está perdendo seu tempo.
Ela fingiu não ouvir, e Leopold sentiu­se grato, não ressentido,
pelo feto, pois ela era uma anciã muito mais poderosa que ele. Segurando
sua língua, ele intimamente repreendeu­se por sua tola explosão.
Hannah, então, sentou­se na cadeira em que a mulher mortal
havia desmaiado. Embora fosse um objeto impossível, Hannah finalmente
se sentou imóvel, mesmo que sua absoluta tranquilidade fosse enervante.
Leopold estava acostumado à ausência de respiração dos Membros —
embora o subir e descer do peito de um mortal fosse um ritmo pelo qual
ele marcava seu trabalho — mas o frio comportamento de Hannah era
sinistro.
Quando a bruxa agarrou a mulher mortal pelo pé e a arrastou até
a cadeira, Leopold tremeu com a visão horripilante. Ela suspendeu a
mortal nua até o seu colo envolto pelo manto negro e segurou­a, também
imóvel.
— Comece com a mulher e, lentamente, me inclua na escultura —
insistiu Hannah.
Leopold gastou a maior parte da noite nisso e, pouco a pouco, a
mortal revelou­se em sua argila, mas a imagem de Hannah permaneceu um
esboço cru, sem refletir uma única característica que a distinguisse.
Hannah permitiu que a tortura acabasse ao levantar­se
repentinamente,derrubando de seu colo a humana, que ficou largada
como um amontoado de carne rosada e de membros dobrados.
Então ela foi até a base da escada onde Leopold a tinha visto no
começo, tudo isso em silêncio, até que sugeriu:
— Eu não trouxe nenhuma magia para quebrar o seu bloqueio,
mas isso não significa que a mágica dos Tremere não possa vir a ajudá­lo
no futuro.
Leopold tentou se desculpar pela falha, mas um pequeno
movimento da mão de Hannah o interrompeu.
— Você tem dez segundos — disse ela, apontando para a humana
atrás dele.
Leopold olhou de relance para a mulher e a seguir voltou­se para
Hannah, mas ela se fora. O Toreador não conseguia se lembrar do que fez
com os oito segundos que lhe sobraram depois disso. Ele, agora, riu
sozinho, quando entendeu que poderia ter esquecido, mas provavelmente
Hannah não o fez.
Aquela misteriosa oferta, se é que chegou a ser isso, por parte de

Stewart Wieck 49
Hannah foi tudo o que teve. Ele não tinha mais ninguém a quem recorrer,
que achasse que estaria interessado o suficiente para escutar sobre sua
difícil situação. Ele podia ir, então, à sua primógena, mas ela era Victoria,
e ele se sentiria embaraçado. Ele não desejava revelar nenhum de seus
pensamentos em relação a ela. Além disso, se ela estivesse envolvida em
alguma fraude, isso seria perigoso.
Não que qualquer negociação com Hannah fosse algo diferente de
uma negociação com o diabo, mas por alguma razão estranha, ela parecia
ter um interesse pessoal em Leopold, e se sua visita pudesse excitar a
curiosidade dela por alguma razão egoísta, então ela poderia ser motivada
a fazer algo que o beneficiasse.
Leopold recusou a ilusão de achar que Hannah poderia ser
cultivada como uma amiga. Ela era do tipo que simplesmente não tinha
amigos ou, pelo menos, os amigos que tinha só eram conhecidos por ela, e
não por aqueles a quem prestava favores.
Cultivava o mesmo comportamento em relação aos amigos e aos
inimigos, e nisso ela era ao mesmo tempo perfeita e imperfeita no mundo
dos Membros. Ninguém jamais seria enganado por Hannah, pois ela não
parecia fazer uso de trapaças. Isso removia uma grande gama de opções
fraudulentas de seu arsenal, e ela também lucrava com essa atitude. Não
tinha vergonha de deixar que os outros soubessem que seus desejos e
objetivos estavam em consonância com os dela, assim como estavam os de
Leopold.
Amanhã será o solstício de verão. As noites já eram curtas e esta
tinha sido cansativa. Ainda havia tempo de sobra para visitar Hannah
antes do alvorecer.
Além disso, quanto antes ela soubesse que a desejava ver, mais
cedo ela condescenderia em vê­lo.
Leopold não ia de bom grado visitar a capela dos Tremere, mas
queria ver Hannah antes da festa que iria marcar a noite do solstício,
especialmente agora que acreditava que precisaria comparecer à festa. Ele
tomaria cuidado para não se afastar da peça que havia doado. Gostando
ou não — e no momento, ele estava definitivamente preocupado como
futuro —, Leopold precisava circular entre os Membros e aprender melhor
as manhas de seus jogos.
Ele estava realmente condenado.
Leopold supôs que a mansão era uma das primeiras casas da época
da Restauração de Atlanta. Ela era formidável o suficiente para ter sido a

50 Toreador
casa de um mortal importante, preocupado acima de tudo com as próprias
necessidades.Teria, talvez, sido construída sob as ordens de um Membro
que precisava de um esconderijo mais seguro, após os inenarráveis perigos
de quando Atlanta pegou fogo.
A mansão era de fato enorme. Com a altura de quatro andares
completos, com arestas que pareciam se cruzar numa confusão de ângulos
vertiginosos.
Grandes janelas, capazes de iluminar salões de baile inteiros com
a luz solar, estavam agora cobertas por espessas cortinas de veludo, sempre
fechadas. Leopold supunha haver mais de cinquenta aposentos no
interior. Hannah com certeza estava em um deles, mas estaria ela ocupada
em alguma bizarra atividade mágica para recebê­lo esta noite?
O Toreador foi induzido a assumir que esse era o caso e que
deveria tentar de novo uma outra noite, quando a madrugada não
estivesse tão próxima da manhã. Mas sua necessidade por respostas o
levou a sair da calçada para caminhar ao longo dc uma pequena passagem
que ia em direção ao grande portão de ferro. Aí começava um caminho de
tijolos que terminava na maciça porta principal da mansão. O portão e as
barras pouco espaçadas da grade elevavam­se a quase o dobro da altura de
Leopold.
Ele percebeu duas câmeras de segurança virarem­se para ele e
pararem. Elas estavam instaladas no topo das colunas de tijolos que
seguravam o portão de ferro. A alta grade de ferro continuava a partir de
cada coluna.
Leopold olhou diretamente para as câmeras e, de modo hesitante,
acenou.Olhou de novo para a rua atrás de si para ver se alguém estava
passando e, quando viu que tudo estava limpo, falou baixinho para as
câmeras:
— Eu sou Leopold, do clã Toreador, e solicito uma audiência
com... ah, Hannah.
Ele gaguejou por parecer impróprio se referir à líder da capela dos
Tremere, com um simples “Hannah”, mas ele não conhecia nenhum outro
nome ou título. Seria suficiente. Ou, pelo menos, esperava que fosse.
E deve ter sido, pois, pouco depois, o portão de ferro se abriu
rangendo. Leopold olhou para as dobradiças, enquanto passava por elas.
Ele não era capaz de detectar nenhum mecanismo que as impulsionasse,
mas não queria atribuir à magia cada evento que testemunhasse na capela
dos Tremere.

Stewart Wieck 51
Assim que atravessou o portão, caminhou firmemente até as
portas frontais. A passagem era fracamente iluminada, e uma sensação
nervosa o excitou, quando os portões atrás dele se fecharam.Ao subir o
primeiro dos seis degraus de tijolos, Leopold detectou uma sombra com o
canto dos olhos. Ele quase tropeçou de susto, quando uma observação
mais apurada lhe revelou um par de mastins pretos. Ambos estavam
abaixados e pareciam prontos para atacar e, em um instante, rasgar sua
garganta, Leopold sabia o suficiente sobre ataques caninos para mover seu
antebraço à frente de seu pescoço para proteger­se caso um dos dois
saltasse.O Toreador duvidava que tal tática lhe seria de alguma valia contra
essas feras musculosas.
Ele ficou parado por um momento, vendo­os farejar com seus
focinhos ágeis.
Então as portas frontais da casa se abriram, e Leopold fugiu na
direção da estrutura arcada e aberta. Somente depois de seus pés estarem
além da soleira e de uma de luas mãos tocar a enorme maçaneta, foi que
Leopold deu as costas para os cães e considerou­se no interior da casa.
Era escuro e havia um cheiro de incenso na sala,embora “câmara”
provavelmente fosse uma designação mais apropriada para o
impressionante recinto. Essa porta também cerrou­se sozinha e Leopold
teve a inquietante sensação de estar entrando numa casa mal­assombrada
de parque de diversões— um lugar destinado a, ao mesmo tempo, assustar
e convidar, de modo que o desconforto do convidado pudesse ser usado
para a vantagem do anfitrião.
Não obstante, não havia ninguém para saudá­lo. Parou por um
momento para examinar a decoração. Tudo era perturbador. No centro do
aposento, um esqueleto bidimensional de um extinto pássaro dodó numa
cripta rasa, bem iluminada e coberta por um vidro. Na parede, um
documento emoldurado e que um exame cuidadoso revelava ser a
confissão assinada de uma mulher, queimada numa fogueira em Salém,
Massachusetts. Uma mesa pequena, quase circular, com uma borda elevada
de quase 2 cm, feita para evitar que os três piões, que giravam
perpetuamente, caíssem pela borda. Dois piões pretos pareciam perseguir
um outro, branco e pequeno.
Leopold percebeu um espelho, na mesma parede do documento
emoldurado, mas apesar da grande curiosidade, ele resistiu e não o foi
examinar.
A sala em si era ampla e alta. O teto estendia­se à altura de pelo

52 Toreador
menos três andares, enquanto vários retratos macabros decoravam as
partes mais elevadas das paredes. Ao longo da parede à esquerda de
Leopold, uma grande escada em caracol conduzia a uma plataforma que
desaparecia dentro de corredores à direita e à esquerda do segundo andar.
Embora a escada não tivesse continuação, Leopold notou um balcão no
terceiro andar, de onde era possível contemplar este aposento.
Havia, também, na sala, dois pares de grandes portas duplas, um
na parede à frente de Leopold e outro à sua direita. Todas as quatro portas
estavam fechadas.
O Toreador ficou parado por um momento, vigiando
alternadamente cada das portas da sala, mas sem ver ninguém para atendê­
lo, sentou­se sobre um grande divã vermelho, próximo da mesa dos piões.
O ruído e o movimento dos piões ajudaram a passar um ou dois instantes,
principalmente porque Leopold não desejava olhar para os ossos do
pássaro, cuja visão frontal parecia inevitável para que estivesse no divã.
Logo, um homem idoso de barbas brancas entrou na câmara pelas
portas opostas à principal. Ele estava puxando as mangas do paletó de seu
smoking.
— Perdoe­me, senhor, mas por não estarmos aguardando visitantes
esta noite, temo que os criados tenham ficado um pouco negligentes.
O homem era caucasiano e sua barba branca eriçava­se ao longo
da linha de seu queixo. De altura mediana e de aparência um tanto
quanto cansada. Assim que ele se aproximou, Leopold verificou que ele
era mortal ou, no mínimo, carniçal.
Provavelmente o último, mas isso não importava para Leopold.
Ele não estava obtendo informações para um futuro ataque à mansão; ele
simplesmente esperava que Hannah pudesse fornecer algumas respostas,
ou mesmo, uma resposta única.
— Eu gostaria de falar com Hannah, dona dessa capela.
— De fato, a senhora Hannah está a par de sua presença, Sr.
Leopold, e instruiu que seja levado até ela imediatamente. Por favor, siga­
me e, por favor, senhor, não se desvie nem um passo do caminho que
tomaremos. Se o fizer, fica sujeito a grande dano ou a grande confusão,
senão ambos.
— Grande confusão? — perguntou Leopold.
— Sim,senhor. Embora os corredores pareçam ser totalmente
comuns, é provável que um passo incerto o deposite em uma outra ala
desta casa ou de uma casa totalmente diferente. Então, por favor, tome

Stewart Wieck 53
cuidado.
Leopold tirou o pó de suas calças, quando se levantou. Talvez a
fraca luz do aposento tenha ocultado o pó, mas uma fina camada dele
recobrira seu corpo enquanto ele esperava
O homem tomou de um pequeno candelabro que se encontrava
em uma saliência baixa ao pé da escada. Também sobre essa saliência
encontravam­se várias velas finas. Ele colocou uma no castiçal e estalou
seus dedos sobre o pavio. Ela acendeu Instantaneamente, queimando com
uma forte chama amarelada.
O homem, ou talvez carniçal, andou até a base da escada e olhou
para trás em direção a Leopold, antes que este desse o primeiro passo.O
Toreadorentendeu isso como um sinal para segui­lo e, imediatamente,
começou a andar atrás do servo.
Contudo, ele reagiu rapidamente demais, pisando no calcanhar
do servo, fazendo com que o velho homem tropeçasse.
— Desculpe — disse Leopold enquanto punha­se a ajudar o homem
a se levantar.
O servo aceitou, mas não respondeu às desculpas do Toreador,
nem mesmo olhou para ele.Simplesmente se limpou e subiu o primeiro
degrau.
Leopold ainda estava perto e ouviu o carniçal sussurrar um nome:
“Hannah.”
Embora não pudesse ver diretamente a chama, Leopold obtinha a
impressão da luz das velas através das sombras tremeluzentes e de uma aura
de iluminação que envolvia o corpo do carniçal. À menção do nome de
Hannah, a luz perdia seu matiz mareio e assumia uma coloração de chama
violeta.
E por não poder ver a chama diretamente, Leopold não podia ter
certeza quanto Isso, mas suspeitou que a chama púrpura conduzia o servo
à localização atual de Hannah. Ele supôs isso, devido à maneira que o
carniçal abaixava a cabeça, como se estivesse inspecionando a luz cada vez
que o par chegava a uma intersecção de caminhos possíveis.
O caminho pelo qual a chama ou o carniçal levava Leopold era
extremamente confuso. Eles passavam por arcos, percorriam passagens
longas e vazias, entravam em corredores e salas que pareciam não ter
propósito algum, e geralmente tomavam uma rota tão circular que ele
perdia qualquer sentido da pista seguida, verdadeiro labirinto em que não
se podia saber a direção do caminho de volta.

54 Toreador
Sua preocupação em cuidar para não se desviar do caminho
percorrido pelo carniçal era tanta, que mal tinha cabeça para registrar
metade que fosse da rota.
Com certeza, ele contaria com esse carniçal ou outro servo para
sair da mansão.
Portanto, não havia nenhuma razão para arriscar um passo errado,
que pudesse lançá­lo dessa residência de Atlanta, para outro lugar
inteiramente diferente. A ameaça fora um tanto imaginativa para que
Leopold a levasse a sério se estivesse em qualquer outro lugar que não uma
capela dos Tremere, por isso ele procurou não ignorá­la.
O carniçal ia pelo caminho sem fazer comentários, a não ser os de
pura educação formal: “Abaixe­se aqui, senhor, o teto é um pouco baixo”,
ou “Cuidado com esse passo, senhor.” Finalmente parou ante uma porta
ornamentada, a qual Leopold não podia ver nitidamente, e voltou­se para
o Toreador.
O servo disse:
— Hannah está dentro desta câmara. Não o anunciarei, pois ela
pediu­me para que não o fizesse. Ela poderia estar no meio de um trabalho
meticuloso, então lhe imploro que entre silenciosamente e espere que ela
se dirija a você. Fazer qualquer outra coisa seria abusar demais da
generosidade dela em recebê­lo esta noite, jovem Toreador.
—Eu entendo — disse Leopold. — Mas eu não deveria
simplesmente esperar aqui fora até ela me chamar?
O servo balançou a cabeça e respondeu:
— Não foi isso que ela pediu. Agora, por favor, entre.
Com isso, o carniçal deu um passo para o lado e rapidamente
passou por Leopold, descendo um longo corredor, semelhante ao
percorrido há pouco.
Leopold observava a imagem do carniçal sumindo no corredor, e
ficou atento até o ponto em que suspeitava não ser mais possível alcançá­
lo, mesmo que corresse o máximo. Assim que o carniçal atingiu esse
ponto, Leopold foi deixado sem alternativa que não a de entrar, como
Hannah havia, aparentemente, pedido.
Seguir o conselho do carniçal parecia uma opção razoável, pois
Leopold não desejava interromper Hannah no meio de algum
experimento terrível. Ademais, ele não era capaz de imaginar nenhum
ritual Tremere que pudesse ser diferente disso.
Pensou que essa seria uma desculpa tola para recuar em sua busca

Stewart Wieck 55
pela verdade ou, pelo menos, por algumas respostas. Portanto, deu um
passo em direção à porta, respirou fundo, em uma pantomima de
relaxamento, já que não mais respirava, e deslizou seus dedos pela
maçaneta.
Só agora, a poucos centímetros, Leopold podia apreciar a
qualidade dos entalhes sobre a porta de carvalho. Eram, de fato, muito
finos; ele teria sentido inveja deles, se algum dia tivesse pensado
seriamente em trabalhar com madeira. Ele preferia mármore e argila —
meios sem vida a partir dos quais podia criar vida. A madeira sempre lhe
parecia próxima demais dos vivos. Entalhá­la era menos esculpir que
experimentar, muito semelhante ao que um cientista podia fazer.
A porta descrevia uma cena dos mitos gregos, com Cérbero, o cão
de três cabeças, parado, fiel e realisticamente entalhado ante os portões do
Hades. Seus ombros estavam perto do chão, enquanto seu quadril estava
para cima. Isso deixava a distinta impressão de que a fera estava prestes a
dar o bote contra os intrusos. Leopold infelizmente se lembrou dos
mastins que encontrou nos jardins. Talvez eles pertencessem a Hannah.
Ele abaixou o trinco com seu dedão e empurrou a porta. Ela não
cedeu. Por reflexo, ele tentou a outra direção e, de fato, ela se abriu para o
corredor. Os instintos domésticos de Leopold ficaram confusos por um
instante, pois ele acreditava que as portas sempre se abriam para dentro
dos aposentos. Quase sempre, ao que parece.
O Toreador imaginou se havia uma explicação para a mudança.
Suspeitava que sim: ou havia, ou simplesmente se tratava de uma outra
tática para deixar os visitantes desconcertados. Se fosse a última, então o
dodó e toda a grandeza e a vela de chama púrpura e esta porta, certamente
estavam funcionando. Seja como for, Leopold se sentiu como um alvo
fácil para esses jogos.
A sala estava tomada por fina fumaça avermelhada que flutuava
em nuvens difusas. O ambiente estava praticamente às escuras, mas as
velas em cada um dos cantos iluminavam a área o suficiente para fazer a
fumaça parecer brilhante.Leopold avançou e rapidamente a porta atrás
dele se fechou. Não era hora de ficar tímido, pensou. Se essa sala
representasse algum perigo, então ele havia sido trazido com uma
intenção, propositadamente terrível. Mesmo se pudesse ter conseguido
evitá­la antes, ele não escaparia vivo da mansão, a não ser com a
aquiescência dos Tremere.
Portanto, seu movimento atrevido nascia não tanto de bravura,

56 Toreador
mas de resignação Antes que seus olhos se acostumassem à pouca luz,
Leopold ouviu o soar regular de algum pequeno instrumento de
percussão. O tom do som fez o Toreador pensar nas medalhinhas usadas
pelas dançarinas do ventre. Não seria apenas um pensamento? Hannah
estaria pulando e se contorcendo como uma dançarina do ventre?!
Quando a luz se fez suficiente para que conseguisse enxergar
melhor, Leopold percebeu, de fato, uma figura movendo­se no centro da
sala retangular. O movimento era muito débil, porém, e a silhueta,
dramaticamente esguia e ogival. Ele imaginou que devia ser Hannah.
Ele imaginara corretamente, mas Hannah não emulava os giros
bravios das dançarinas do Oriente Médio. Ao invés disso, quando
diminuía o ritmo e a batida pedia, ela levantava o braço esquerdo e,
mecanicamente, estalava os dedos. Os instrumentos metálicos cintilavam
na fraca luz, e Leopold notou que esses reflexos eram quase simultâneos
aos ruídos que criavam. Duvidava que isso fosse coincidência.
As paredes da sala estavam apinhadas de livros, embora de tipos
que Leopold era incapaz de reconhecer. Apresentavam vários formatos e
deformações. Um, que estava próximo o suficiente para que ele o pudesse
examinar, exibia o título na lombada, mas num idioma que ele
desconhecia. Alguma língua oriental, supunha. outros que ele examinou
brevemente, pareciam ter capas de couro. O Toreador inaginou se não era
esta uma biblioteca de antigos tomos de magia.
A julgar pelos cinco candelabros, Leopold estimou que a sala
tinha aproximadamente dez metros de um lado a outro. No entanto, os
mesmos cinco candelabros de repente o alertaram que ela provavelmente
era pentagonal. Cinco mesas baixas, com formatos que permitiam que se
encaixassem, encontravam­se a meio caminho entre as paredes e a posição
de Hannah, no centro da sala, espelhando­se na orientação das paredes. E
pelos filetes de fumaça vermelha, Leopold notou que Hannah estava
dentro de um pentagrama feito de metal e incrustado no chão.
Ele esperava que ela percebesse sua presença, mas se arrependeu
um pouco de pressa com que entrara na sala. Considerou prudente não
perturbar Hannah. Talvez fosse mais seguro chamar a atenção para ele,
para que se certificasse de que ela não o colocaria em perigo,
inconscientemente. Mesmo assim, lembrou­se de que ela aparentemente
sabia de sua vinda e, por isso, sendo ela capaz de manter os sentidos
enquanto em estado meditativo, certamente estaria ciente da sua presença.
Além do mais, que Membro cuidadoso — e Hannah com certeza era

Stewart Wieck 57
cuidadosa — permitiria que uma ameaça em potencial permanecesse na
mesma sala em que ele estaria vulnerável?
Independentemente disso, Leopold continuou preocupado.
Gradualmente, o andamento das batidas se acelerou e as
medalhinhas de Hannah pareceram soar mais alto. A energia aumentara,
porém, o movimento dela parecia muito controlado e preciso como antes.
Leopold notou que a luz do candelabro começava a chamejar em
sintonia com as batidas. Primeiro uma vela e, em seguida, uma segunda,
em uníssono com a primeira, tremeluziu com a batida da música. O
tremeluzir não era brilhante, mas era perceptível. Enquanto Leopold
observava e pensava, um terceiro candelabro uniu­se ao segundo.
A batida era, agora, rápida o suficiente para que Hannah
repicasse suas medalhinhas uma vez por segundo. Ela não mais abaixava o
braço após cada estalido.
Ao invés disso, mantinha­o levantado e esticado à sua frente.
Quando um quarto candelabro juntou­se ao ritmo pulsante,
Leopold teve a impressão distinta de que o trabalho de Hannah estava
próximo de se completar.
Certamente, a adição do quinto candelabro completaria seu
ritual.
Uma leve brisa pareceu soprar na sala, e suas rajadas também
uniram­se ao tempo da música e das velas. A fumaça vermelha que se
acumulara lentamente, tomou a forma exigida pelo fluxo do ar, girando a
cada rajada compassada do vento. Vagarosamente, como se não estivesse
disposta a inclinar­se ao vento, a fumaça aglutinou­se num funil de ar que
cercou Hannah e redemoinhou de cima a baixo num movimento
incessante e que se acelerava cada vez que a estranha brisa interior
soprava.
As batidas aceleram­se mais ainda e Leopold ficou mais nervoso
do que antes. Sem fazer muito esforço para ficar em silêncio, ao mesmo
tempo em que procurava evitar uma interrupção ruidosa,o Toreador
esgueirou­se pelo perímetro da sala, até ficar de frente para Hannah. Ele
esperava ao menos fazer contato visual com ela, mas foi em vão­ o capuz
que ela usava cobria­lhe grande parte do rosto, quase até a ponta do nariz.
A batida estava tão rápida agora que os dedos de Hannah
estalavam mais de três vezes por segundo. Foi então que o quinto
candelabro resplandeceu e um lampejo muito claro inundou a sala,
quando todos os candelabros derramaram uma intensa luz branca. Os

58 Toreador
olhos de Leopold foram atingidos muito intensamente e se fecharam por
reflexo. Algo nele sabia que a rápida cadência havia chegado ao seu
crescendo, embora não pudesse explicar como ou por quê.
Quando Leopold forçou seus olhos a se abrirem, encontrou a
câmara quase escura novamente, embora a luz firme das velas ainda
fornecesse iluminação suficiente para que mesmo um mortal fosse capaz
de enxergar, quanto mais um Membro com sentidos aguçados. Hannah
continuava no centro, e sua mão ainda estava estendida, embora ela não
mais chacoalhasse os címbalos.
A fumaça vermelha ainda girava, mas se havia aglutinado a tal
ponto que agora formava um funil de ar, com poucos centímetros de altura
e com largura não maior do que a que se estendia da mão erguida de
Hannah. A fumaça tornou­se cada vez mais densa e o vermelho ficou da
cor do rubi, passando ao carmesim do sangue.
Simultaneamente, o funil tomava­se mais compacto, reduzindo­se
lentamente em tamanho, até que Leopold mal conseguia percebê­lo como
um ponto de luz girando sobre a palma da mão de Hannah.
Do começo ao fim, Hannah ficou completamente parada,
presumivelmente incapaz de ver o que estava acontecendo, por seu capuz
ainda estar abaixado.
Quando sua mão esticada se fechou repentinamente com um
estalo, Leopold deu um pulo, assustando­se com o movimento
subsequente ao giro hipnótico da fumaça. Enquanto ele se acalmava,
Hannah lançou seu capuz para trás e o encarou, fitando­o diretamente nos
olhos.
Leopold continuou com os olhos presos aos de Hannah, embora
estivesse apreensivo. Sem esconder sua intranquilidade, disse:
— Eu achava que os Tremere não compartilhavam seus segredos.
Hannah estava em silêncio; então, quebrou o contato dos olhos
para examinar o que tinha na mão. O breve olhar que Leopold recebeu
revelava somente que a fumaça devia ter­se solidificado em algum objeto de
pequeno tamanho, conservando a cor vermelha.
Ele continuou:
— Quero dizer: eu. Eu pensava que os Tremere não permitissem
que outros tivessem contato com sua mágica.
A face desolada, pálida e fria de Hannah voltou­se para o
Toreador. Ela disse:
— Isso costuma ser verdade.

Stewart Wieck 59
— Então… — começou Leopold.
— De que substância as velas foram feitas?
— Eu não...
— Qual foi a ordem das notas em que minhas medalhas soaram?
— Eu não...
— Para que direção eu estava olhando?
Dessa vez Leopold ficou em silêncio, e Hannah arremedou­o por
uma fração de segundo.
Então ela disse:
— Percebe? Eu não revelei nada a você. Pelo menos, não ainda.
— O que você quer dizer?
Hannah levou um momento para arrumar seu capuz, esticando­o
para que pendesse alinhado às suas costas.
— Siga­me até a outra sala, Cainita.
A sentença foi tão ríspida que soou como algo entre um pedido e
uma ordem.
Leopold a seguiu. Algo da delicadeza entre a coerção e a força
estava no uso do antigo termo “Cainita”. Leopold raramente ouvia esse
termo ser usado, já que “Membro” era a gíria preferida entre os jovens
vampiros com que ele se encontrava com mais frequência.
Será que Hannah era realmente velha a ponto de tal termo ter­lhe
vindo tão naturalmente, ou tratava­se apenas de simples afetação, como a
de alguns Membros que se consideravam negociadores do poder com
influência crescente apesar de sua juventude e ignorância geral?
Não que ele a considerasse ignorante, pelo contrário, pois já a vira
ser chamada de “Aquela­Que­Tudo­Sabe”, embora acreditasse que ela era
apenas alguns séculos mais velha, havia rumores de que ela estava no
máximo a cinco gerações de Caim.
Provavelmente era um exagero, mas Leopold, que era péssimo juiz
nesses casos, suspeitava que ela bem poderia estar a cinco ou seis gerações
da suposta fonte de sangue dos Membros, ou Cainitas.
Hannah andou até uma das paredes e quando estendeu suas
mãos sobre a superfície, as chamas das velas repentinamente se
extinguiram. Pouco depois o contorno iluminado de uma porta revelou­se
onde Leopold antes não havia detectado nada. A silhueta delgada de
Hannah ficou recortada contra a luz que vinha do corredor, mas somente
por um breve momento.
Leopold foi para uma sala que estava em completo contraste em

60 Toreador
relação a tudo o que ele vira até então na capela dos Tremere. Ela exibia os
móveis e as características de um grande escritório. Havia um pequeno
bar; uma grande escrivaninha de carvalho com tampa plana; fotos aéreas
nas paredes; duas poltronas de veludo de frente para a mesa, com uma
mesinha redonda entre elas, sobre a qual havia uma cigarreira.
Sua simplicidade confundiu Leopold mais que qualquer dos
retratos esquisitos e arcanos que já encontrara nesta noite. Sentiu­se
boquiaberto, enquanto vacilou em direção a uma das duas grandes
poltronas e sentou­se. Hannah estava sentada em uma cadeira de couro
para executivos, atrás de uma enorme mesa.
Ela colocou na mesa o objeto que estava em sua mão esquerda, e este foi
imediatamente reconhecido por Leopold como sendo um frasco de
sangue.
Inconscientemente, lambeu seus lábios, embora tenha se
arrependido dessa manifestação imediatamente. O sangue era tão espesso,
que seu vermelho, muito escuro, certamente denotava um sabor
extraordinário.
Hannah estava impassível enquanto inspecionava o Toreador.
Leopold esperava que ela dissesse alguma coisa, mas talvez tenha­se
passado um tempo razoável e ela não iniciou conversa alguma. Então,
Leopold disse:
— Você disse, na noite em que me visitou em meu ateliê, que
podia ter um jeito de me ajudar, no futuro.
Hannah respondeu monotonamente:
— De fato. Sem dúvida há inúmeras maneiras de eu ajudar você.
Leopold esperava que ela falasse mais, mas não deixou a conversa
parada por tanto tempo desta vez. Olhando para baixo, disse:
— Provavelmente você está certa, embora eu tenha certeza de que
você pode enumerar mais maneiras do que eu. — Ele levantou o rosto,
exibindo grande sorriso, mas a face de Hannah continuava sem denotar
qualquer emoção.
Leopold continuou:
— Mas eu estou esperando um tipo especial de ajuda.
— Claro. Você procura a identidade de seu senhor.
Leopold ficou atordoado.
— E, é isso mesmo! Mas como você sabe disso? — Talvez ela
realmente fosse Aquela­Que­Tudo­Sabe.
A Tremere empertigou­se e enrijeceu­se em sua cadeira de couro,

Stewart Wieck 61
parecendo não se abalar com a surpresa que causou em seu convidado. E
novamente permaneceu em silêncio.
A inquietação de Leopold somente cresceu, e ele perguntou:
— Há outros que estão cientes dessa minha incerteza?
— É improvável que haja muitos.
Isso não tranquilizou Leopold nem um pouco.
— É claro que eu posso ajudá­lo — disse Hannah. Indicando o
frasco de delicioso sangue negro sobre sua mesa, falou: — É para isso que
isto serve, afinal de contas.
Leopold imaginou­se encolhendo em sua cadeira estofada. Seria
ele tão transparente assim? Será que a bruxa Tremere possuía algum poder
de detecção ou de leitura de pensamentos, que a capacitava a assim
prognosticar? Acaso tinha ele revelado algo, quando ela visitara seu
estúdio, algo de que ele não se lembrava, assim como a mulher do
Rebanho esqueceria uma parte do tempo que passara com ele? Esses e
outros pensamentos corriam soltos pela sua mente. Imaginando que ela
poderia estar lendo seus pensamentos neste mesmo momento, tentou
cancelá­los ou mesmo substituí­los por pensamentos de auto­confiança.
Ela ergueu uma sobrancelha para ele, o que lhe pareceu uma
quase chocante demonstração de emoção, e disse:
— Mas antes você tem que me dizer uma coisa.
— Se eu puder... — intentou Leopold,
— Por que eu deveria ajudá­lo?
A voz dela estava tão destituída de emoção, que Leopold
imaginou que seu caso estava quase encerrado. Não havia nada que ele
pudesse oferecer, e ela sabia disso, ou devia saber já que sabia tanto sobre
ele. Ele sentiu uma desesperança inundá­lo.
As noites anteriores de repente pareceram terrivelmente longas.O
sucesso ao esculpir Victoria quase se desvaneceu no horizonte de sua
memória. De repente ele soube o que dizer.
— Já que entre nós dois, claramente sou o que sabe menos,
proponho que você me diga por que me ajudaria?
Os olhos de Hannah semi cerraram­se, contraindo­se não como os
de um humano, mas como os de uma serpente. Ela parecia avaliar o
Toreador à sua frente.
— Sim, talvez haja uma razão para que eu o ajude. Você prometeu
me esculpir...
— Mas você sabe que eu não consigo esculpir Mem… Cainitas… —

62 Toreador
interrompeu Leopold e prosseguiu: — Nós esclarecemos isso quando você
visitou meu... ate… Iliê… aquela... noi… — Leopold desistiu de falar ao
perceber que a face de Hannah manifestava total descrença no protesto do
Toreador. A sobrancelha esquerda dela levantou­se e ela esticou um pouco
o pescoço para frente, finalmente semicerrando seus olhos como uma
serpente. Leopold cedeu. Poderia ela já saber de seu recente sucesso nesta
mesma noite?
Ele disse:
— Mas agora eu já consegui uma vez, então pode ser que eu seja
capaz de fazer de novo. Concordo em tentar, mas incapacidade não pode
ser traduzida como falha.
— Concordo, mas meu preço exige mais.
— Ah, sim?
Hannah levantou­se e andou ao redor da mesa até o Toreador e
completou;
— A escultura deve ser em tamanho natural e de aparência
natural. Nade de interpretações artísticas. Deve ser uma figura completa,
não apenas um busto ou retrato.
Leopold aquiesceu:
— Posso concordar com tudo isso.
— Por fim, — acrescentou Hannah, quase atropelando Leopold
com suas palavras, como se não tivesse ouvido o que ele falara — deve ser
de memória. Eu não vou posar para a escultura.
Para Leopold, o “eu não vou” da Tremere soou quase como um
“eu não posso posar", mas ele não conseguia atinar com o porquê dessa
impressão.
Forçou­se contra o espaldar da grande cadeira, pois Hannah
estava quase sobre ele. Podia ver que o manto que ela usava era muito
pesado, quando algumas pregas encostaram em seu joelho.
Então disse:
— Isso é um pouco mais difícil, pois alguns detalhes da aparência
natural tendem a se perder, mas eu estou certo de que posso executar a
obra com sucesso razoável.
Hannah aproximou­se ainda mais com sua perna esquerda
apoiada na almofada da poltrona, entre as pernas de Leopold, disse:
—Então eu posarei agora, para garantir que você seja mais do que
“razoavelmente” bem sucedido.
Como uma cobra trocando de pele, Hannah jogou seus ombros

Stewart Wieck 63
para trás e seu pesado manto deslizou por suas costas e caiu até seus
joelhos, onde parou somente porque o assento da cadeira não permitiu
que ele descesse até ao chão.
Por baixo do manto ela estava nua, e além da surpresa desse gesto
repentino e, com certeza, completamente atípico de Hannah, Leopold
surpreendeu­se com as formas de seu corpo delgado. Ela era quase
dolorosamente esguia, mas tal magreza era considerada bela pelos padrões
modernos. Sua pele, assim como a de muitos Membros, era perfeita; a
cintura fina era maravilhosamente formada e suas linhas afilavam­se, para
cima, em direção à delicada barriga que levava a seios delicados como
pedras preciosas, e para baixo, alargavam­se levemente até à pélvis, antes de
declinar suavemente ao longo de suas pernas bem torneadas.
— Toque­me. — ordenou Hannah.
Leopold, percebeu de repente que enquanto estava embevecido
por seu corpo, não tinha mais fitado sua face, e olhou para cima. Algo da
magia de sua beleza dissipou­se na frieza de seu semblante desapaixonado,
mas Leopold não precisou que a ordem fosse repetida. Ele levou as pontas
dos dedos de ambas as mãos até a Tremere e deslizou­as ao longo de seus
flancos levemente curvados.
— Não — corrigiu ela, e ele rapidamente recuou.
— Mais. Você deve memorizar­me não apenas com seus olhos, mas
também com suas mãos. Explore­me, jovem Toreador, e pense na
promessa que me fez. Confie meu corpo à sua memória.
Suas palavras encerravam o mesmo misto de coação e simples
conselho antes manifestado. Imaginou se a rígida e puritana Hannah não
oferecia algo além daquilo que os olhos encontravam. Talvez enquanto
mortal, ela tivesse guardado mais segredos além da sua natureza
taumatúrgica.
Hannah levou uma das mãos dele ao seu corpo e esticou­lhe os
dedos. Então ela pressionou a mão aberta contra sua cintura nua.
Leopold fez como instruído, suavemente aplicando também sua outra
mão, assim como fazia quando alisava um trabalho em argila quase
completo pela última vez.
Ele fechou os olhos, acariciando e explorando.
Ele estava impressionado com a maciez de seu corpo. Já ouvira
falar que a pele de muitos anciãos ficava rígida para proteger o vampiro. E
embora pudesse sentir os ossos bem salientes de Hannah, sua pele possuía
um brilho sensual que dava prazer investigar.

64 Toreador
Ele fechou os olhos e concentrou sua mente nas mãos.
— Basta.
Embora proferida de maneira suave, a palavra lançou Leopold de
volta ao escritório no qual se encontrava. Ele esfregou os olhos e imaginou
que tinha dormido, embora se lembrasse claramente dos momentos
anteriores, quando vira Hannah ainda exótica e nua à sua frente. A
Tremere abaixou­se para apanhar seu manto e o pôs de novo sobre os
ombros.
Ela deu as costas para o Toreador enquanto se dirigia para sua
cadeira de couro, no lado oposto da grande mesa. Encarando Leopold, ela
ajeitou o manto e sentou se, com sua face ainda tão imóvel e inanimada
quanto a pele de um cervo esticada no curtume.
Como que em choque, Leopold começou a se recuperar
lentamente. A manifestação de Hannah tinha sido tão desconcertante e
diferente do que esperava, que ele não soube exatamente como reagir,
nem o que dizer para ela.
Profissionalmente, como escultor, ficara extremamente
impressionado com seu físico. Quando era mortal, e mesmo agora como
Membro, ele jamais tivera oportunidade de trabalhar com uma modelo
dessas. Qualquer uma, com um corpo desses, estaria trabalhando em
moda, não precisando permanecer imóvel durante horas para que um
artista a trabalhasse em argila ou pedra.
Porém, pareceu­lhe totalmente impróprio elogiá­la, restringindo­se
a dizer:
— Eu às vezes entro em transe quando faço minhas melhores
esculturas. Creio que fiz o mesmo agora para memorizar o contorno de
seu corpo, como você me pediu.
— Você, de fato, ficou totalmente quieto — disse Hannah, com
face impassível que não expressava nenhuma alusão, prazer, desgosto, ou
qualquer outra coisa.
Tudo que Leopold foi capaz de dizer foi:
— O resultado será melhor por causa disso.
Hannah voltou a sua fixação silenciosa e Leopold tornou a tomar
a iniciativa:
— Então, o que contém exatamente aquele frasco?
Hannah olhou para o tubo de vidro cheio do carmesim e disse:
— Você deve estar imaginando que isso é vitae sintética. Ela não
foi extraída diretamente de nenhum vampiro ou mortal, mas sustentaria

Stewart Wieck 65
aquele e serviria para uma transfusão deste, sem nenhum tipo de rejeição.
— E eu...
Hannah o interrompeu, agindo como se não tivesse feito pausa
alguma:
— Você o beberá hoje.
Leopold não gostou de como isso soou. Havia tanto poder no
sangue, e os Tremere eram os supostos mestres de o extrair para usos
inconcebíveis. Determinado uso poderia beneficiar Leopold, se fosse
dirigido a seu problema, mas ele subia que também havia um risco em se
beber o sangue. Por exemplo, Leopold ouvira que se um Membro viesse a
tomar o sangue de um outro Membro, então o último conseguiria controle
sobre o primeiro, mediante alguma forma implacável de controle de
mente.
É claro que ele também ouvira que isso acontecia depois de duas,
quatro ou mais ingestões. Afinal, quanto mais vezes, mais eficiente o
controle. Múltiplas formas, mas todas levavam ao mesmo princípio básico
mas todas desembocavam no mesmo fato básico de que era insensato
beber vitae — sangue — oferecida por um outro Membro, especialmente se
fosse um Tremere, para quem a existência era construída à base de sangue
compartilhado.
— E depois?
— Ele deve ficar em seu sistema por um dia completo, então não o
desperdice em atividades à noite. Depois disso, um simples ritual que eu
posso realizar em um instante, na festa de amanhã, fornecerá alguma
informação que poderá gerar outras muito úteis.
Leopold perguntou:
— Ele revelará a identidade de meu senhor?
— Talvez. — A imobilidade de Hannah, inclusive a inexistência de
qualquer linguagem corporal, dificultava a Leopold decifrar se esse “talvez”
era um “provavelmente” ou uma possibilidade remota. Por isso, dispondo
de poucas opções, não insistiu mais; só lhe restava aceitar.
— Muito bem, então é melhor eu prosseguir, já que a aurora
parece estar a apenas uma hora, ou mais ou menos isso, e eu ainda tenho
que voltar para o meu refugio.
Hannah pinçou o frasco com dois dedos e o ofereceu por sobre o
tampo da mesa. Leopold se levantou e o recebeu.
Ele o examinou enquanto voltava a se sentar. o frasco era pesado,
aparentemente confeccionado de vidro plúmbeo. A tampa que o arrolhava

66 Toreador
era de cortiça muito densa que instantaneamente voltou à sua forma,
depois que ele a pressionou com a unha.
Ele olhou para Hannah, esperando encontrá­la como antes,
sempre tranquila e paciente. Ao invés disso, ela fitava o espaço à esquerda
de Leopold. Enquanto o Toreador olhava, o nariz da Tremere movia­se
como se ela estivesse procurando por um odor. Então, os olhos dela
comprimiram­se brevemente, daquela maneira serpentina, e ela voltou sua
atenção para Leopold.
Por fim, ela rompeu o silêncio: — Prossiga.— Não dava para fingir
que isso não era uma ordem. Parecia que a paciência da anfitriã estava
chegando ao fim.
Ele bebeu. Leopold segurou a rolha e, cuidadosamente, a puxou.
Com um estampido semelhante ao de uma garrafa de champanhe, a rolha
soltou­se. Uma gota do grosso sangue espirrou, caindo sobre o pulso de
Leopold. Apesar de ser uma gota de tamanho considerável, ela contraiu­se
ao invés de deslizar por seu braço.
Um odor agradável e natural soltou­se do frasco, e Leopold viu­se
desejoso do sangue, independentemente dos benefícios futuros que dele
poderiam advir. Sem olhar de novo para Hannah, o Toreador tragou o
líquido viscoso. Ele abriu sua garganta como tinha aprendido a fazer para
apanhar cada partícula do sangue da artéria perfurada de um mortal.
O sangue verteu satisfatoriamente garganta abaixo, tão saboroso
quanto ele havia imaginado. Leopold sentiu uma breve investida de
hipersensibilidade, como se sua visão e audição ficassem, de repente, mais
apuradas, mas essa sensação sumiu tão instantaneamente como surgiu.
Olhou para Hannah, agora que colocara o frasco vazio em cima da
mesa.
— Então, não há mais nada que possa ser feito esta noite ? —
perguntou.
— Isso completa nosso negócio por hora, Toreador. Cada um de
nós tem mais serviços a prestar para o outro, mas você entende que seu
preço deve ser pago, independentemente do sucesso ou fracasso de meu
ritual.
— Sim. — disse Leopold. — Eu entendo, assim como certamente
você aceita que eu possa ser incapaz de executar a escultura de um outro
Membro. Mas eu espero poder fazer, pois anseio esculpir sua imagem. Sua
imagem exata.
Hannah respondeu:

Stewart Wieck 67
— Meu servo aguarda à porta. Ele o escoltará até à saída — uma
jornada que, eu creio, você julgará mais simples do que a entrada.
Leopold assentiu, mas quando se virou para sair, o Toreador
parou e voltou­se para­olhar Hannah diretamente. Perguntou:
Quando você me visitou pela primeira vez, naquela noite há um
ano...
— Sim? — indagou ela, como resposta à sua pausa.
— O que eu fiz com a garota quando você saiu?
Hannah sorriu e isso visivelmente deu um calafrio em Leopold,
pois ela nunca havia sorrido antes e ele não desejaria que ela o fizesse de
novo, pois isso era muito, muito mais assustador do que horas do seu
estoicismo.
— Eu não lembro, mas por alguma razão estou certo de que você
sabe. — disse Leopold.
— Eu, de fato, possuo tal conhecimento, jovem Cainita. — Ela
elevou seu olhar diretamente aos olhos dele. — Você caiu de joelhos e
implorou pelo perdão dela.
Leopold ficou parado por um momento, surpreso por Hannah
ter­lhe contado tão abruptamente, ou simplesmente por ter contado.
Sentia­se parcialmente chocado por Hannah estar a par do que ele achava
que deveria ter sido uma demonstração privada, e parcialmente
envergonhado pelo simples fato de ter pedido isso.
Leopold olhou para o chão e, depois, novamente para Hannah.
— Ela o concedeu ? — perguntou ele.
Hannah esboçou vagarosamente em seus lábios. Ela lançou um
olhar por sobre os ombros e depois voltou a fitar o Toreador.
— Eu também contarei isso amanhã. Agora, fora!
Uma vez mais, o tom da voz não deixou margens para a menor
divergência.
Leopold rapidamente se virou e saiu, fechando gentilmente atrás
de si a pesada porta de carvalho entalhado.

68 Toreador
parte dois:
VICTORIA
Segunda­feira, 21 de junho de 1999; 21h 36min
Museu de Arte
Atlanta, Georgia

Victoria estava encantada consigo mesma. Gozava os momentos


finais de sua viagem conduzida pelo chofer. Por isso afundou­se ainda mais
no couro macio do banco do carro. Já era hora de causar uma impressão
apropriada aos Membros do Sul, e ela estava ciente de que essa hora seria
esta noite.
Preenchera a vaga de primígena dos Toreador no início do ano,
depois que a Maldição Sanguínea matou a insossa e estúpida Marlene —
junto com a maior parte dos Membros de Atlanta — em 1998. Precisava de
uma festa de apresentação, e esta celebração do solstício de verão serviria
perfeitamente para o objetivo almejado.
Tinha sido uma sugestão encantadora, e demonstrava sua gratidão
convidando todos os Nosferatu de Atlanta para a festa. Devido à aparência
frequentemente repulsiva desses horrendos vampiros, não era costume
convidá­los para os encontros dos Toreador.
Fora difícil planejar uma celebração dessas em tão pouco tempo,
mas ela apreciava de tal forma esse planejamento espontâneo, que o
evento parecia ainda mais um assunto dos Toreador. Sua satisfação com
esse fato não era por um orgulho de clã — embora pudesse sustentar os
méritos de seu clã contra os de qualquer outro, e esperava ser obrigada a
fazer isso nesta noite. Ao invés disso, ela estava contente por tirar
vantagem do estereótipo dos Toreador. Victoria preferia o termo
“arquétipo”, mas o resultado era o mesmo: fazendo bom uso das
expectativas dos outros quanto ao comportamento dos Toreador, era capaz
de acalmá­los, quanto às maneiras com as quais ela subitamente esquivara­
se de tal convenção. Se os holofotes dos Toreador permitissem que os
planos à luz de vela de Victoria Ash chamejassem desapercebidos, então as
convenções dos Toreador poderiam ser­lhe muito valiosas.
Afinal de contas, quem imaginaria que um Toreador deleitando­se
na suntuosidade da noite, realmente pudesse ter um motivo ulterior em
relação ao Príncipe e à oferta de Jarislav Pascek, o Justiçar Brujah, que
também compareceria à festa? Victoria não era tão obtusa a ponto de não
perceber que poderia haver alguém capaz de suspeitar de jogada tão
dissimulada, mas existia uma grande diferença entre suspeitas e provas.
Victoria gostava de dar asas àquelas, mas poucas oportunidades para que

70 Toreador
se descobrissem estas últimas.
Levou o braço delgado ao painel de controle central. Sua mão
coberta desde o braço até a ponta dos dedos por uma luva de seda que
acentuava o equilíbrio e o talento da bela mulher. Pressionando o botão
que se encontrava no enorme descanso de braço, que lhe possibilitava
comunicar­se com o chofer, ela preguiçosamente ordenou:
— Dê uma volta pela frente antes. Devagar.
Victoria mantinha escuro o interior de seu carro, enquanto
observava o Museu de Arte nessa última volta. A estrutura branca elevava­
se por quatro andares, sobre um pequeno aclive no centro de Atlanta.
Todo o prédio parecia estar escuro e vazio para a noite, mas a festa já
estava em andamento no quarto andar.
Lentes especiais de espionagem parecidas com binóculos para
ópera, permitiam que Victoria perscrutasse, naquele último andar, o
conjunto de vidros aparentemente opacos das janelas padronizadas do
Museu. O vidro especial Ocultava a festa aos olhos dos mortais, mas não
para os dela, embora somente quando usava as lentes especiais para
observá­lo. Havia algo técnico, que ela não entendia direito, em relação
aos comprimentos de onda da luz e à Interferência. O que entendia
perfeitamente era que os vidros eram opacos para seus olhos nus, mesmo
quando utilizava suas capacidades sensoriais muito aguçadas.
Sem dúvida, outros possuíam habilidades ainda maiores, mas ela
confiava que seu método de espionagem era perfeitamente seguro. Sua
decisão quanto a usar ou não as lentes tinha sido tomada com um simples
cara ou coroa, um método muito mais rústico do que os que ela
costumava empregar. Nem tudo podia ser posto à prova de maneira
elaborada ou elegante. Não como os movimentos que ela faria esta noite.
As lentes revelavam aproximadamente uma dúzia de Membros já
presentes, o que agradou Victoria. O número não era grande, mas
considerando como a Maldição Sanguínea tinha dizimado as fileiras dos
vampiros locais — tanto da Camarilla quanto do Sabá, felizmente — ela
ficou satisfeita. De fato, se não fosse por alguns convidados de fora da
cidade, apesar da supressão de alguns dos mais interessantes, como Benito
Giovanni, então esses doze, ou quase, seriam tudo o que ela poderia
esperar. Patético, embora fosse isso que tornasse Atlanta perfeita para ela.
Ela era a anfitriã desta festa, mas não ia, de maneira alguma,
chegar cedo para receber cada vampiro pé­rapado que tivesse se arrastado a
uma experiência cultural. Não, ela chegaria de modo que os Membros a

Stewart Wieck 71
vissem de acordo com seu plano. Então, ela poderia procurar aqueles que
mereciam, ou até mesmo precisavam de sua atenção especial e pessoal,
embora ainda não tivesse decidido quem a mereceria nesta noite. Talvez
fosse um dos visitantes de fora da cidade. Ou talvez tais jogos não
existiriam esta noite, se seus planos fossem executados e, especialmente, se
dessem frutos.
Enquanto enfiava as lentes em um compartimento secreto,
Victoria imaginou se esse pequeno truque ia, tecnicamente, de encontro
às leis dos Membros. O Museu era tido como Elísio, o que significava que
violência alguma era permitida dentro daquele prédio. No entanto, a
Toreador não tinha certeza de que essa condição também valia para sua
pequena trapaça. Ela duvidava que fosse forçar demais a barra, pois
embora não quebrasse a lei escrita, o intento certamente estava sendo
subvertido.
Ela duvidava que alguém viesse a saber algum dia, o que
significava que isso era aceitável. Além do mais, como um Membro
poderia se sobressair nesse mundo se não com embustes? O poder bruto
que muitos vampiros possuíam era perigoso demais e frequentemente
causava algum dano permanente ou até a morte, tanto ao seu usuário,
como ao adversário. Embustes, astúcia e logro já eram de se esperar, e
enquanto um Membro pudesse agir sem chamar muito a atenção, ela
poderia prosseguir com seus planos.
Essa era a parte difícil, claro. Ela teria que ser cuidadosa, por
exemplo, quando usasse suas lentes semelhantes a binóculos para ópera,
mas era com elas que podia enxergar através dos vidros que para os outros
davam uma ilusão de privacidade.
Ela apertou o botão novamente: — Para o elevador, agora.
O carro virou à direita na esquina seguinte, dobrando vagarosamente
outra vez, para uma rua ainda menor, atrás do Museu.
Quando diminuiu a velocidade para entrarem uma garagem
subterrânea, Victoria olhou­se uma última vez no espelho. Seu cabelo
encaracolado estava perfeito. Sua face também estava bem, mas esta jamais
mudava.Era agradavelmente arredondada, com um queixo estreito e
interessante. Não era a face de uma nobre, mas a de uma amável criada
cuja beleza excedia à de sua arrogante patroa de sangue real.
Ela piscou seus olhos verdes e contemplou a aparência levemente
asiática que outrora a incomodava. Neste mundo mais cosmopolita, às
vésperas do século XXI, um aspecto sutil como o dela só acrescentava à sua

72 Toreador
beleza. Então bombeou um pouco de sangue para suas bochechas. Ela
preferia a cor de uma mortal, o vermelho que todos os Membros sabiam
ser o sangue que tomava os mortais mais vivazes, e isso era um convite
especial para os vampiros do sexo masculino.
Por fim, ela enrolou um dedo em um dos cachos castanhos e
lustrosos. Seu próprio servo (este nem perto de ser tão amável quanto sua
arrogante patroa) tinha tido sucesso em reproduzir fielmente o estilo de
uma das estátuas da festa: a estátua de Helena, se a Toreador lembrava
direito. Victoria sorriu diabolicamente. Seu cabelo parecia não ter peso em
seus cachos suspensos, pois ficava acima de seus ombros, mas se alongava
para beijar a seda de seu vestido grego estilizado, gracioso quando ela se
movia.Se Helena, com esse cabelo, despachou milhares de navios, então a
Toreador suspeitava que seria preciso toda a armada de uma nação
moderna, para fazer­lhe justiça.
Ela permitiu que seus olhos se desviassem do espelho, embora
continuasse a fitá­lo enquanto fazia isso, percebendo quão séria estava ao
fazê­lo. Pelo resto da noite, os olhos dos outros falariam a ela sobre sua
beleza, pois estava tão bela quanto sempre fora, mesmo após seus mais de
trezentos anos nesta Terra. Claro que a maior parte desses anos — 349,
para ser exato — tinha sido gasta nesta forma peculiar de vida­em­morte
que caracterizava os Membros, na qual ela não mais envelhecia como uma
mortal, mas mantinha uma beleza atemporal que lhe proporcionava
muitos olhares e tantas luxúrias devassas como naqueles séculos há muito
passados.
Como mortal, a esplêndida beleza de Victoria tinha­lhe dado tudo
o que precisava. Era muito mais difícil usar o apelo sexual para controlar
um Membro, já que vampiros hesitantes só podiam se preparar através de
disciplinas mágicas especiais. É claro que ela conhecia essas disciplinas e as
podia aplicar, mas algo na natureza do instinto de sobrevivência dos
Membros sobrepunha­se à compulsão quase insuportável que os mortais
tinham em copular e procriar. Os Membros eram instruídos a se
importarem somente consigo mesmos, pois, ainda que se tratasse de uma
criança da noite nascida do Abraço, parecia não haver espaço no coração
dos vampiros. A única exceção ocorreria se o vampiro retivesse um grau
elevado da natureza humana, ou se a criança da noite trouxesse à memória
do mais bestial dos vampiros algo por ele perdido em uma vida anterior e
inferior.
Mas a luxúria ainda era uma oferta tentadora. A maioria dos

Stewart Wieck 73
Membros era muito jovem — menos de cem anos de idade — e
frequentemente ainda restava algo dos tempos de mortal em suas mentes.
Sua fisiologia não reagiria como Victoria desejava, nem cooperaria, como
frequentemente os próprios vampiros desejavam, ou achavam que
desejavam, mas seus cérebros débeis ainda estavam atados à cópula, tão
importante para os humanos. Portanto, eles quase sempre eram alvos
fáceis.
Não constituía um jogo diferente do que ela tinha jogado em sua
juventude quando mortal. Todos os seus maridos tinham sido homens
mais velhos. Seus ferrões não a podiam picar, mas, oh, como eles devem
ter imaginado como seria o abraço de seu corpo delgado, ainda que
apropriadamente arredondado, contra suas conchas ósseas e quebradiças
durante a noite!
Eles teriam pago qualquer coisa. Por fim, todos pagaram tudo.
Ficava muito mais difícil aplicar suas tramas, quanto mais alto na
hierarquia da Camarilla ela se posicionasse. Os homens que controlavam a
organização eram ambiciosos e o tempo tinha entorpecido suas memórias
quanto aos prazeres que Victoria poderia lhes proporcionar. E eram, na
maioria, homens, já que as mudanças ocorridas no mundo mortal devido
à sucessão de gerações, não afetaram o mundo vampírico tão velozmente,
quanto ao Rebanho. Por outro lado, ainda eram do sexo masculino, e seus
cérebros ainda estavam atados, de modo que poderia induzi­los a
empertigaremse como pavões.
Sobretudo em eventos como o desta noite. É certo que ela
precisava continuar os exercícios usuais de descobrir aliados e desentocar
inimigos. Independentemente de seu plano maior, Victoria precisava
tomar­se um locus da sociedade vampírica em Atlanta. Logo os Membros
confiariam em suas festas — e não nas reuniões insípidas ou insanas, ou
ambas, de estudos da Bíblia, exigidas pelo Príncipe Benison, como
desculpa para reunirem­se e discutirem estratégias e atividades de debate.
Assim que controlasse o fórum, o controle do conteúdo seria apenas uma
questão de tempo.
Este era o momento certo para fazer isso. Parecia que a população
vampírica dessa cidade do sul iria se recuperar o suficiente, para fazer dela
um ponto inicial que valesse a pena. Na esteira da Maldição Sanguínea,
estava em andamento uma Reconstrução da espécie e esta era a
oportunidade para Victoria modelar os protocolos e tradições que
continuariam quando a população de Membros dobrasse, triplicasse,

74 Toreador
enfim, voltasse a crescer novamente.
Victoria fez desaparecer o sorriso de sua face.
— Por que você não me disse que nós havíamos chegado? —
perguntou ela.
Não houve resposta, é claro. O chofer seria estúpido, se fizesse
qualquer outra coisa senão aceitar a culpa.
Victoria notou que seu carro estava estacionado na frente das
portas do elevador, na garagem subterrânea do Museu. Há quanto tempo
estava lá, ela não sabia. E embora tivesse ficado irritada , ela decidiu conter
a punição, pois o lapso de tempo provavelmente lhe faria bem. Não seria
ruim ter bem definidos em sua mente, alguns dos muitos fios de suas
tramas que iriam se emaranhar esta noite. Sem dúvida, ela não os
conhecia todos, mas se tudo corresse bem, aqueles que ela controlava
ficariam um pouco mais firmemente atados em sua rede antes que a noite
terminasse. Talvez fossem até emaranhados.
Um momento depois, a porta mais próxima a Victoria abriu­se
silenciosamente.
A Toreador lançou pela abertura um pé calçado com uma sandália
alta e, lentamente, esticou também a mão. Sua mão foi imediatamente
recebida por um aperto forte, quando um dos porteiros a ajudou a sair do
carro. Como seu motorista, estes eram carniçais a seu serviço. Por ainda
serem meio mortais, eles não sofriam de nenhum dos impedimentos
sexuais dos Membros, o que significava que Victoria nem sempre tinha
que trabalhar tanto. Entretanto, ela os pagava também com sangue e
dinheiro.
Sem o sangue dela, eles envelheceriam e sofreriam todas as
fraquezas da sua condição de mortais. Por não serem fortes o suficiente
para tirar­ lhe o sangue, ela detinha controle absoluto sobre eles. Isso
tomava o sexo tedioso, mas ela recusavalhes mais que um pingo de livre
arbítrio, porque a proximidade e intimidade com ela tomavam todo o
resto perigoso demais. Isso ela aprendeu com as lições dos Membros
anciãos que a cercavam. Raramente havia vampiros igualitários entre
aqueles que sobreviveram por um longo tempo.
Enquanto seu carro estacionava , Victoria analisou as instalações
do estacionamento. A impressionante variedade de veículos estacionados
na garagem subterrânea demonstrava, instantaneamente, a gama de
camadas sociais de seus convidados. Seu Rolls Royce estacionou
silenciosamente entre dois veículos similarmente ostentosos, uma grande

Stewart Wieck 75
limusine, com um motorista esperando pacientemente, e outro, um sexy
Dodge Viper para um Membro de natureza mais solitária ou aventureira.
Só dois dos veículos utilitários —ou esporte — tão apreciados pelos Brujah
e Gangrel, faziam­se evidentes. Era improvável que os Gangrel, que
realmente utilizavam a natureza utilitária dos veículos, tivessem mais de
um, ou talvez dois, representantes ali. Victoria não se importaria se não
houvesse nenhum.
Duvidava também que essas pick­ups pertencessem a um Brujah,
a menos que um ou mais dos integrantes daquele clã tivessem decidido
utilizar­se do Elísio para se protegerem contra uma retaliação do Príncipe
Benison. Os Brujah tinham­no atacado brutalmente nos dias de lua
minguante, durante a Maldição Sanguínea no último ano. Os poucos
Brujah de cuja sobrevivência se tinha notícia ainda estavam exilados entre
os Anarquistas da cidade, sujeitos às sanções do Príncipe.
Finalmente , aninhados aqui e ali na garagem, estavam os veículos
patéticos dos neófitos. Esses Membros foram Abraçados há pouco tempo
e ainda possuíam os automóveis de seus anos como mortais.Ou isso, ou
os empregados do museu tinham abandonado suas tristes geringonças lá .
— Leve­me para a festa — disse ela, girando graciosamente sobre os
saltos para encarar seus carniçais e o elevador em que trabalhavam.
— Claro, senhora. — disse aquele que a ajudara no carro. Era
Gerald, uma bela e musculosa criança da noite canadense, que segurava
aberta a porta de um dos elevadores.
— Benison já chegou ? perguntou
— Não, senhora.
— Julius?
— Não, senhora.
Victoria meneou a cabeça alegremente. Ela não esperava que
nenhum desses grandes jogadores chegasse tão cedo. Seria difícil se um
tivesse chegado antes dela, talvez a ruína, se ambos. Era uma vantagem
que ela conseguira.
— E quanto a Benjamin?
— Ele está aqui, senhora.
— E Thelonious?
— Sim, ele também, senhora.
Ela estava surpresa de que eles já estivessem ali. Eles também
eram grandes jogadores, embora não do mesmo naipe dos outros dois. O
quinto grande poder que estaria na galeria esta noite era Eleanor, a esposa

76 Toreador
do Príncipe. Era uma peça chave nos planos de Victoria, mas ela e o
Príncipe chegariam simultaneamente, por isso nem era necessário
perguntar.
Victoria e o outro carniçal, Samuel, um bostoniano ágil e de tez
negra, entrou depois dela. Enquanto Victoria apoiava­se contra o espelho
no fundo do pequeno elevador, Samuel rapidamente apertou o botão “4”.
As portas do elevador fecharam­se e eles começaram a subir.
Victoria suspirou enquanto considerava melhor os automóveis
dignos de riso dos neófitos. Eles ainda eram tão humanos. Tão jovens e
ainda jogando tantos jogos tolos. Jovens Membros eram exatamente como
as crianças mortais. Tão indisciplinados. Tão confiantes. Tão tolos.
Achavam que o universo se encontrava nas palmas de suas mãos, porque
eram, agora, parte de algo previamente desconhecido. Um mundo
desconhecido mesmo para presidentes e atores famosos, nara homens que
haviam andado na lua, mas pouco havia que pudessem fazer que viesse a
ter algum impacto mais sério nas maiores maquinações de seus anciãos.
Apesar de suas débeis tentativas de obter poder ou influência, os neófitos
inevitavelmente se achavam enganados e superados pelos da laia de
Victoria — os Membros que gastavam menos tempo saboreando sua
posição do que tirando proveito dela.
Porém, Victoria também sabia que era uma tola. Muitos anciãos
provavelmente riam dos jogos insignificantes que ela e seus
contemporâneos jogavam. Lutando para controlar a cidade como se isso
significasse alguma coisa. Cidades, nações, culturas inteiras n ão passavam
de ninharias para os Membros mais antigos, os chamados Matusaléns, e
para os senhores destes, os Antediluvianos. Estes últimos eram os
vampiros incompreensíveis e provavelmente míticos da terceira geração —
os netos de Caim.
A partir do ponto de vista deles, a geração de Victoria e mesmo
aquelas anteriores dela, não passavam de brinquedos descartados quando
não tinham mais utilidade. Pelo menos, assim eram as histórias que os
anciãos tinham contado quando Victoria era, ela própria, uma neófita.
Ela dispunha de poucas razões para duvidar desses temores, pois como na
vida mortal, não importando sua esfera de excelência, sempre há alguém
melhor que você, na vida vampírica também sempre havia alguém que
sabia mais ou detinha poderes maiores. Fosse essa teoria verdadeira ou
não, ela era um espelho que Victoria sempre usava para se olhar. Para
ajudá­la a se entender.

Stewart Wieck 77
Ela jogava deliciosos jogos com aqueles mais fracos que ela, mas
por que não podia ser parte de um jogo de poder ainda maior?
Infelizmente, ela sempre admitia que podia ser, e isso era o que a
impelia.Talvez até essa festa fosse um evento que alguém mais poderoso
do que ela havia colocado em movimento através dela. Isso lhe parecia
natural, porque se adequava aos seus fins; mas seriam seus fins, os meios
de um outro alguém? Poderia um Matusalém, ou até um improvável
Antediluviano, ter boas razões para ver Victoria clamando por um poder
maior em Atlanta ou na Camarilla? Victoria só podia ter esperanças. Ao
mesmo tempo em que estremecia ao pensar em seus planos cuidadosos,
suas enganosas traições, percebia que seus jogos implacáveis não eram
realmente seus.
Por isso era bom ser uma Toreador. Ela podia ser volúvel e
perniciosa, sem que ninguém olhasse mais a fundo o sangue que corria
em suas veias. Ser uma Toreador era sua desculpa para ser imprevisível,
enquanto também tentava manter­se fazendo suposições. Bem, não
imprevisível, pois esse era o papel dos Malkavianos, os malucos da
Sociedade dos Membros. Como uma Toreador, Victoria tinha uma certa
liberdade para racionalizar as mudanças de opinião. Enquanto as
mudanças de direção tomadas por ela levassem consigo os sinais de uma
indiferença extravagante, Victoria poderia executar seus planos sem
provocar análises minuciosas.
De fato, ela estava prestes a tomar uma grande decisão em relação
ao seu futuro, ainda esta noite. Afastou­se da parede do elevador. As
portas estavam prestes a se abrir, mas Victoria já sabia o que iria ver.
Haveria dois portais, e cada um levava a um futuro diferente.
Quando as portas começaram a se abrir, Victoria hesitou na saída
do elevador.
Seu grande momento estava se aproximando e,subitamente, ela
se sentiu apreensiva.
— Minha senhora esqueceu algo? — Samuel perguntou
suavemente
— Não, não — respondeu Victoria, numa voz sem o costumeiro
tom de comando. Apesar do refúgio do elevador, esse breve diálogo foi
dominado pela música ambiente Victoria ganhou confiança com o que
ouviu. Era o Bolero de Ravel, uma peça apresentada pela primeira vez por
volta de 1929; ela não se lembrava exatamente do ano. Eram tempos em
que era mais fácil manter a Máscara, pois eram tempos seguros e alegres

78 Toreador
em Paris, muito parecidos com os anos 60 nos Estados Unidos. Ela se
sentiu encorajada, quando se lembrou dos sucessos daquelas noites
distantes.
Novamente de cabeça erguida, Victoria saiu do elevador e virou
rapidamente a face para Samuel. Com sua voz agora mais segura, disse: —
Rápido, agora, volte lá para baixo e receba os próximos convidados. Mas
lembre­se, agora é a hora de se criar um pretexto para esperar até que duas
pessoas estejam prontas para ser conduzidas a este andar. Mais que duas é
aceitável, como discutimos antes, mas um convidado único seria
desastroso.
Samuel estava surpreendentemente perplexo com essa ordem;
tanto quanto ele e Gerald ficaram surpresos quando Victoria explicou
pela primeira vez o procedimento, na noite anterior. Entretanto, ela estava
certa de que ele cumpriria esta ordem, mesmo sem explicações
satisfatórias. Isso tudo fazia parte das defesas de Victoria, e as explicações
simplesmente fariam com que outros acreditassem que ela fosse um dos
chapeleiros malucos dos Malkavianos. Assim, ela manteve para si as razões
de seu estranho comportamento, e despachou Samuel. — Desastroso —
objetou a ele novamente, agitando um dedo enquanto a porta do elevador
começava a se fechar ao toque que Samuel deu no botão do primeiro
andar. O vácuo do fosso do elevador puxou um pouco de ar, enquanto
Victoria examinava seu trabalho.
De fato, os dois pares de portas enormes a encaravam. Elas
estavam sustentadas Como parte de uma parede temporária que separava
a baixa área da entrada do restante da galeria à sua frente. Todas as
gigantescas portas estavam fechadas, e embora o teto da galeria adiante
pudesse ser visto por sobre ambas, elas cumpriam sua função de acesso.
E esse era o ponto crucial de tudo isso. Qual das portas escolheria
cada um dos convidados? Mais importante ainda, qual das portas iriam os
próximos convidados escolher? Pois isso determinaria a entrada de
Victoria, e isso teria grandes consequências pelo restante de sua noite e de
sua vida.
As portas à esquerda eram, de longe, as maiores, e com mais de
dez metros, elas davam bem uma ideia da altura do teto do Museu. Essas
imensas portas eram de um lindo bronze esculpido, e exibiam dez cenas
individuais, em oito painéis separados, arranjados em duas colunas com
quatro painéis cada uma, sobre as quais se estendia uma padieira dividida
por uma figura com barba, ao centro, e flanqueada por mais duas cenas.

Stewart Wieck 79
O fato dessa figura única ter uma barba bíblica e estar envolta por
um manto pregueado, levantando uma prancha de pedra gravada,
estabelecia sua identidade, até mesmo para o mais obtuso dos
espectadores ocidentais, como Moisés.
Victoria sabia, é claro, que se tratava d'Os Dez Mandamentos de
Henri de Triqueti, mas ela não fazia ideia de quais mandamentos cada
uma das dez cenas representava. Uma notável exceção era o segundo
painel do lado superior esquerdo, já que era esse o painel que permitia a
essas portas opostas receberem as placas com temas das exposições da
galeria por trás delas.
Não matarás — disse Deus, mas não foi preciso mais que cinco
humanos para que já fossem demais, antes que Caim trouxesse a questão
para suas próprias mãos.
Para os Membros, entretanto, Caim significava “Cainita”, e a
lenda o glorificava como o primeiro dos vampiros, a razão maior dos
Membros serem assim chamados, pois se o sangue de Caim fosse passado
à sua progênie e assim por diante, então, até Victoria Ash, seis gerações
após seu ancestral bíblico, carregaria consigo um pouco do sangue do
Primeiro. Mesmo diluído, ele certamente existiria dentro dela e seria a
fonte de seus poderes assombrosos, bem como das maldições resultantes,
das quais uns Membros se aborreciam, mas que Victoria tinha se decidido,
alguns anos atrás, a aceitar como parte dessa existência
surpreendentemente grandiosa.
Tudo isso passava pela mente de Victoria por duas razões.
Primeira, a cena das imensas portas que ilustravam o Sexto Mandamento
era, de fato, a da morte de Abel. Nela, anjos desciam para levar Abel ao
Paraíso, enquanto Caim era proscrito. Segunda, porque Victoria sentia um
forte medo de que suas ações não fossem realmente suas. Se o sangue que
ela carregava em si era tão poderoso , então como tal sangue poderia
mantê­la escrava? Se ela não estava a serviço de Caim, então a serviço de
quem, de sua incrível prole da quinta ou sexta gerações, cujo sangue ela
também carregava ?
Esse medo era o que tornava seu jogo desta noite tão importante.
Era o motivo para o oposto d’ Os Dez Mandamentos ser tão importante.
Victoria virou­se rapidamente para a direita e olhou uma outra vez para
uma das obras mais incríveis jamais criada pela mão do homem. Por ser
também uma escultura, o artista que realizara a obra não poderia ser
outro, senão Auguste Rodin. Ainda que mais baixa que Os Dez

80 Toreador
Mandamentos com seus dez metros, Os Portais do Inferno de Rodin não
parecia menor, embora sua altura fosse de apenas oito metros.
Essa falta de diminuição devia­se inteiramente ao gênio da obra,
pois trata­se realmente de um trabalho brilhante. O tipo de criação que
Victoria buscava, mas duvidava que algum dia iria alcançar, na arte que ela
criava.
A grande porta também possuía uma padieira dividida por uma
figura central. Em uma forma anterior, porém quase completa, do grande
O Pensador de Rodin, de anos mais tarde, a figura estava sentada e
inclinada para frente, com seu queixo apoiado sobre os nós dos dedos da
mão direita, e com o cotovelo apoiado em sua coxa direita. Era Dante, e
ele imaginava, na porta à sua volta, as cenas de seu Inferno.
Sobre o topo do batente da porta estavam três figuras, em
essência, três visões de um mesmo homem a partir de diferentes ângulos.
Suas cabeças estavam abaixadas e juntas, e suas mãos unidas num
restabelecimento letárgico e triste dos Três Mosqueteiros.
Mais do que esses ilustres ornamentos, o restante da porta era, de
fato, como vindo do Inferno. Fossos e valas de figuras e cenas quase
indistinguíveis cobriam cada uma das portas, bem como seu batente. Toda
essa turbulência traduzia a paixão e a dor da criação.
Contrastando com as paredes e teto brancos da galeria do Museu,
o bronze escurecido dos dois conjuntos de portas fazia o ambiente parecer
mais agourento ainda. A solidez servia apenas para aumentar a impressão
de que uma decisão de natureza séria impunha­se ante aquele que se
aproximava. E, como um par elas criavam um belo contraste: Os Dez
Mandamentos, os desenhos simétricos dos painéis e suas linhas esculpidas,
geralmente suaves, contra os dos Portais indistintos e de difícil
compreensão.
E Dante, na pose d'O Pensador, acima dos Portais fazia a
contemplação parecer natural.
O plano de Victoria era de uma superstição tola, mas para
acreditar que era livre dos grilhões de algum poder invisível maior que ela
— um Membro maior que ela e que poderia imaginar a amável Toreador
como uma peça de xadrez sobre seu tabuleiro de jogo — ela aplicava
rigorosamente a aleatoriedade em muito do que fazia.
O tamborilar do Bolero estava chegando ao seu momento
máximo, quando ela ouviu o ruído do elevador e afastou­se das portas.
Que porta usaria seu próximo convidado para adentrar a galeria ? Iria ele,

Stewart Wieck 81
ou ela, pelo Inferno ou pelo Paraíso? A resposta iminente determinaria
muito do que Victoria faria esta noite; Interessado em um dos painéis — o
mais baixo do lado direito da porta mas seu corpo o ocultava e Victoria
francamente não conhecia a peça bem o suficiente para recordar o
Mandamento retratado naquele ponto. Ela queria apressar a saída de
Leopold, mas não ousava fazer isso. Apressá­lo só era uma opção enquanto
ele ainda não estivesse na frente de nenhuma das portas. Se ela o fizesse
agora, também poderia não ter esse elaborado jogo encenado, já que era
provável que Leopold fosse em direção à porta mais próxima. Nesse caso,
o Paraíso significaria que ela deveria cancelar seus planos, pois era a porta
mais alta e seria usada pelo mais alto dos dois, que era um homem, o que
significava que Victoria deveria entrar pelo inferno e cancelar seus planos.
Entretanto, se Leopold entrasse pelo Inferno, Victoria não o poderia
seguir, e sua entrada pelo Paraíso significaria que seu jogo estava
evoluindo. Parecia­lhe provável que esse seria o caso, quando Leopold
examinou primeiro o Paraíso e, presumivelmente, entraria pelo Inferno
após tê­lo examinado também. Satisfeito com a avaliação que fizera do
Paraíso, pelo menos até o momento, Leopold de fato se moveu até os
Portais do Inferno. Victoria ficou um pouco nervosa e excitada com a
aproximação do momento. Ela imaginava, às vezes, se havia preparado
esses jogos elaborados, não devido ao medo de ser dirigida por outros,
mas devido ao receio que tinha de dar direção a si própria. Todavia, ela
sempre rejeitou a ideia porque não era uma pessoa tímida. Apenas
cautelosa.
Victoria não tinha ouvido realmente o elevador antes,
especialmente nas pulsações fortes do décimo oitavo minuto, do tudo­ou­
nada da obra­prima de Ravel. Agora ela ouvia o som das portas, no andar
térreo, na quase ausência da música que se seguia. Parecia­lhe que estava
começando uma peça que vagamente lhe trazia Beethoven à mente.
Leopold demonstrava continuar tão curioso em relação às massas
quase amorfas que se enrolavam na fachada das portas da obra­ prima de
Rodin, quanto ficara com as imagens mais bem acabadas de Triqueti. Ele
chegou mesmo a olhar mais uma vez para Victoria, somente para
demonstrar sua admiração e assombro.
Ele começou a perguntar: — Como você adqui... — mas perdeu a
voz quando Victoria virou­se para o elevador, como se não o tivesse
ouvido. Quando olhou de volta, Victoria murmurou um rápido: — O quê?
Você disse alguma coisa, Leopold?

82 Toreador
O jovem Toreador recusou a questão, quando percebeu que a
estava aborrecendo.
Nada. Desculpe­me por desviá­la de seus outros convidados.
Ele, então, colocou sua mão sobre as portas e vagarosamente as
deslizou pela superfície, imaginando que ela estava formando­se
repentinamente, por sob seus dedos. Ou talvez ele imagine o que teria
feito diferente, refletiu Victoria, já que aquela reação, com frequência, era
a reação de um grande, ou até mesmo bom artista , com relação à obra de
um mestre. Eles não analisavam tanto a obra, mas como a obra difere das
deles e, a partir disso, as definia.
Tendo­se esquivado com sucesso da pergunta de Leopold, Victoria
agora virou­se séria, em direção ao elevador. Na verdade, estava frustrada
por ser pega aqui, recebendo seus convidados. Era uma formalidade mais
apropriada para se receber filas de pessoas, não uma pequena reunião de
Membros. Além disso, se novos convidados chegassem, tornar­se­iam
fatores complicadores em seu jogo, embora as consequências que se
apresentassem também fossem, é claro, predeterminadas. Contudo, ela
preferiria que a decisão fosse uma questão um pouco menos complicada.
Era simplesmente como ler os augúrios a partir das tripas de um cordeiro,
no qual sangue demais — sinais demais — poderia obscurecer os fetos
importantes, evidentes nos intestinos. Quanto menos convidados, melhor.
E Victoria riu sozinha quando viu quem o acaso lhe entregava.
A primeira a sair do elevador foi Cyndy, a Toreador que tinha
herdado os adjetivos “insípida" e "néscia”, assim que Marlene morreu,
pouco antes da chegada de Victoria a Atlanta. Ela achou que esses títulos
caíam excepcionalmente bem para a vadiazinha baixa e forte, pois
Marlene era Senhora de Cyndy. É verdade que desajustados geram
desajustados, mas elas também eram corretas o suficiente, não
importando a linhagem da exótica dançarina.
Cyndy, que à primeira vista estava falando amigavelmente com seu
companheiro, calou­se repentinamente ao ver Victoria. Desviou depressa
os olhos e não retornou a conversa.
A Toreador exibia, de fato, estatura baixa e seu corpo era flexível.
Figura ágil, possuía alguma graça, embora qualquer observador
instruído pudesse constatar facilmente total falta de treinamento formal
em dança. Rosto atraente, se bem que um pouco arredondado demais,
agradável apenas, à maneira daqueles de colegiais acima do peso. Era um
pouco grande demais para atrair o olhar masculino, embora parecesse

Stewart Wieck 83
jovem, o que atrairia a imaginação dos homens. E, por ser vampira,
sempre pareceria jovem.
Todavia, fosse Qual fosse o potencial que possuía, deixou
sua amuada espontaneidade e tornou­se seca, quando Se pôs a andar e
passou por Victoria sem nenhuma palavra
Victoria permitiu que sua risada de desaprovação se fizesse
fracamente audível. Pensar Que essa recém­Abraçada por Marlene em
alguma noite de descuido, em inferninhos e lojas de lingerie que
constituem seu território na Cheshire Bridge Road, fazia imaginar que
na verdade ela é que deveria ter sido nomeada primógena dos Toreador
de Atlanta.
Victoria riu de novo, embora desta vez ácida e silenciosamente.
Tornara ­se Membro e tinha deixado Londres somente cinco anos
antes da Peste Negra dizimar aquela cidade. Permaneceu nos Estados
Unidos no profundo e sombrio sono de descanso e recuperação,
conhecido como Torpor, durante os anos da Gripe Espanhola do
início do século, mas mesmo assim percebeu com que aleatoriedade
essas pestes atacavam. Como é que essa vampira, que não passava de
urna menina — ela mal merecia o título de Membro — havia
sobrevivido à Maldição Sanguínea quanto outros, eminentemente mais
capazes e merecedores, tinham perecido? Não que Victoria lamentasse a
perda desses outros. Na verdade, ela riu novamente — e essa risada
recebeu um olhar terrível e uma raiva espumante da parte de Cyndy — tal
aleatoriedade trabalhava claramente a favor de Victoria desta vez.
O segundo ocupante do elevador, que emergiu quando Cyndy
passou por Victoria batendo os pés com força, era tão interessante quanto
o primeiro. Era um parente pé­rapado em Atlanta, mas pelo menos, era
um indivíduo de algum mérito ou talento Victoria observou com ainda
mais deleite, quando Leopold saiu vagarosamente. Esse Toreador era do
tipo apolítico, mas mesmo ele certamente entendia que havia um clima
ruim entre Cyndy e a primógena dele. Manteve­se lá dentro, até que o
confronto potencial passasse.
Victoria desviou­se de Leopold por um momento, para observar
Cyndy escolher entre as enormes portas. Ela notou com pesar, que a
simplória mal se deteve para absorver a maravilha dos portais à sua frente.
Então Cyndy olhou para trás, aparentemente confusa, mas quando viu
Victoria a observá­la, se irritou e bateu um pé, como se essas estranhas

84 Toreador
portas tivessem sido colocadas ali só para atormentá­la, Victoria permitiu
que um sorriso lívido vacilasse em seus lábios, enquanto Cyndy
praticamente se arrojou através dos presumíveis e aparentemente mais
dóceis Portais do Inferno de Rodin, após abrir com força, uma das grandes
portas.
Então ela entra pelo Inferno, percebeu Victoria, enquanto se virava
para Leopold, que tinha dado mais um passo só porque as portas do
elevador ameaçavam fechar­se sobre ele. Quando elas por fim cerraram­se,
o jovem Toreador empalideceu e pareceu encolher­se, à procura de um
local para se esconder. Sábia o suficiente ao julgar os homens — Leopold
era um jovem Membro, praticamente um mortal para ela — Victoria
reconheceu que parte do desconforto de Leopold resultava de uma atração
por sua primógena. Ela também percebera isso em uma outra ocasião, mas
antes o desejo evidente dele tinha sido mais direto, talvez um simples
ímpeto das partes de sua mente que retinham alguma porção de
necessidade física.
Enquanto pensava no assunto, Victoria volveu rapidamente sua
cabeça para o lado e elevou um pouco suas sobrancelhas — linguagem
corporal para convidar o tímido Toreador a sair de sua toca. Ela
sentenciou que definitivamente , havia algo de diferente na atração de
Leopold, mas não se preocuparia com isso agora. Poderia fazê­lo mais
tarde, já que era muito eficiente analisando as pessoas, um talento que
havia desenvolvido quando mortal , e que agora, mais do que nunca, seus
sentidos aguçados detectavam tanta coisa para ela interpretar.
Leopold ensaiou um sorriso amigável, mas não pessoal demais ,
enquanto se aproximava de Victoria. A perfeita audição dela lia o medo
existente na excitação surpreendente do seu coração, e não era o medo
teatral que normalmente poderia desarmar tamanho introvertido. Ela
julgou que havia algo mais agudo nesse temor. Percebeu então, que não se
tratava de medo dela, Victoria.
Você está bem, Leopold? — indagou. Tomando consciência de que
seu sorriso fora perceptivelmente prolongado , Leopold disse:
Sim, Sra. Ash. Só que, ah... nervoso quanto à, ah. .. estreia de
minha obra esta noite. — O sorriso retornou quando Leopold tentou,
inconscientemente, reforçar a Mentira.
Claro, claro — aceitou Victoria graciosamente. E então aproximou­
se para abraçá­lo, o que, como ela antecipara, chocou Leopold. Seu corpo
enrijeceu­se, mas ele conseguiu relaxar, quando Victoria beijou­lhe cada

Stewart Wieck 85
uma das faces, suavemente.
Abraçando­o ainda, com a face perto da dele, com o Bolero
avançando para as notas máximas, ela disse:
E é uma realização notável, considerando a pouca atenção que lhe
dispensei. Peço desculpas por isso.
Leopold não respondeu e, ao invés disso, retribuiu o abraço.
Victoria estava muito impressionada pela inépcia do aprendiz, enquanto
ele tentava usar sua falta de jeito como uma desculpa para abraçá­la com
muita força e colocar suas mãos muito baixo em suas costas.
Então ela repentinamente desvencilhou­se, o que chocou Leopold
ainda mais. Victoria teria se deliciado ainda mais em continuar jogando
com o rapaz. Sua escultura era realmente respeitável, mas ela precisava
estar pronta para a questão das portas antes de embarcar em qualquer
outro curso de ação nesta noite. Mesmo se esse curso fosse tão simples
quanto confundir, ou seduzir, ou embaraçar um jovem Toreador. — Mas,
por favor. — ela disse. — Não permita que eu o retenha. Mesmo agora pode
haver alguns Membros admirando sua escultura. Espero ter a
oportunidade de falar com você novamente mais tarde.
— Você não vem, também? — perguntou Leopold.
— Não, não, Leopold. Eu sou a anfitriã, e estou recebendo meus
convidados. Agora, apresse­se. Ouço o elevador vindo com mais
convidados.
Leopold escutou, mas não ouviu nada exceto o Bolero, que estava
alcançado o pico de seu entusiasmo. Ele ficou lá o tempo de pestanejar
duas vezes antes de consentir e andar rumo às portas.
Imediatamente deteve­se. Ficou boquiaberto quando voltou­se
para encarar Victoria com descrença. Ele apontou os dois dedos
indicadores na direção de uma das portas e tentou, silenciosamente, trazer
à tona uma explicação de sua anciã.
Victoria simplesmente sorriu e assentiu antes de abrir suavemente
sua boca e apontar para ela a fim de ajudar Leopold a corrigir sua
expressão desagradável.
Então ela acenou com as costas da mão para fazê­lo prosseguir.
Leopold olhou uma segunda vez, mas então se aproximou das portas sem
nenhum encorajamento adicional.
Victoria observava­o atentamente, pois seu plano agora estava
essencialmente sobre os ombros dele. Cyndy tinha limitado a habilidade
de Leopold em determinar como Victoria procederia esta noite, mas a

86 Toreador
determinação final cabia ao jovem Toreador, pois ele era o segundo a
optar por uma entrada.
Victoria visualizou em sua mente as permutações de suas
excêntricas regras. O fato de os dois indivíduos que tinham chegado no
elevador serem de sexo oposto e do mesmo clã, necessariamente projetava
todo um sortimento de possibilidades.
Victoria ignorou grande parte delas e ateve­se às que envolviam
um homem e uma mulher, isto é, a ambos, Toreador e, acima disso, um
homem que entrou depois de uma mulher.
As regras eram extremamente complicadas, mas estavam tão
perfeitamente codificadas na mente de Victoria, que a complexidade não
lhe ocorria, assim como as obscuras regras do críquete não confundiriam
um fã desse esporte peculiar. Portanto, Victoria não se imaginava
obsessiva quanto às medidas que tomava para se proteger de uma possível
cooperação imprudente com planos alheios.
Ficou um tanto quanto impaciente com Leopold , que perdia
tempo em seu exame das cenas representadas nas portas do Paraíso. Ele
parecia particularmente interessado em um dos painéis — o mais baixo do
lado direito da porta, mas seu corpo o ocultava e Victoria francamente
não conhecia a peça bem o suficiente para recordar o Mandamento
retratado naquele ponto. Ela queria apressar a saída de Leopold, mas não
ousava fazer isso. Apressá­lo só era uma opção enquanto ele ainda não
estivesse na frente de nenhuma das portas. Se ela o fizesse agora, também
poderia não ter esse elaborado jogo encenado, já que era provável que
Leopold fosse em direção à porta mais próxima. Nesse caso, o Paraíso
significaria que ela deveria cancelar seus planos, pois era a porta mais alta
e seria usada pelo mais alto dos dois, que era um homem, o que
significava que Victoria deveria entrar pelo Inferno e cancelar seus planos.
Entretanto, se Leopold entrasse pelo Inferno, Victoria não o
poderia seguir, e sua entrada pelo Paraíso significaria que seu jogo estava
evoluindo. Parecia­lhe impovável que esse seria o caso, quando Leopold
examinou primeiro o Paraíso e, presumivelmente, entraria pelo Inferno
após tê­lo examinado também.
Satisfeito com a avaliação que fizera do Paraíso, pelo menos até o
momento, Leopold de fato se moveu até os Portais do Inferno. Victoria
ficou um pouco nervosa e excitada com a aproximação do momento. Ela
imaginava, às vezes, se havia preparado esses jogos elaborados, não devido
ao medo de ser dirigida por outros, mas devido ao receio que tinha de dar

Stewart Wieck 87
direção a si própria. Todavia, ela sempre rejeitou a ideia porque não era
uma pessoa tímida. Apenas cautelosa.
Victoria não tinha ouvido realmente o elevador antes,
especialmente nas pulsações fortes do décimo oitavo minuto, do tudo­ou­
nada da obra­prima de Ravel. Agora ela ouvia o som das portas, no andar
térreo, na quase ausência da música que se seguia. Parecia­lhe que estava
começando uma peça que vagamente lhe trazia beethoven à mente.
Leopold demonstrava continuar tão curioso em relação às massas quase
amorfas que se enrolavam na fachada das portas da obra­prima de Rodin,
quanto ficara com as imagens mais bem acabadas de Triqueti. Ele chegou
mesmo a olhar mais uma vez para Victoria, somente para demonstrar sua
admiração e assombro.
Ele começou a perguntar: — Como você adqui... — mas perdeu a
voz quando Victoria virou­se para o elevador, como se não o tivesse
ouvido.
Quando olhou de volta, Victoria murmurou um rápido: — O quê?
Você disse alguma coisa, Leopold?
O jovem Toreador recusou a questão, quando percebeu que a
estava aborrecendo.
— Nada. Desculpe­me por desviá­la de seus outros convidados.
Ele, então, colocou sua mão sobre as portas e vagarosamente as
deslizou pela superfície, imaginando que ela estava formando­se
repentinamente, por sob seus dedos. Ou talvez ele imagine o que teria feito
diferente, refletiu Victoria, já que aquela reação, com frequência, era a
reação de um grande, ou até mesmo bom artista, com relação à obra de
um mestre. Eles não analisavam tanto a obra, mas quanto a obra diferia
das deles e, a partir disso, as definia.
Tendo­se esquivado com sucesso da pergunta de Leopold, Victoria
agora virou­se séria, em direção ao elevador. Na verdade, estava frustrada
por ser pega aqui, recebendo seus convidados. Era uma formalidade mais
apropriada para se receber filas de pessoas, não uma pequena reunião de
Membros. Além disso, se novos convidados chegassem, tornar­se­iam
fatores complicadores em seu jogo, embora as consequências que se
apresentassem também fossem, é claro, predeterminadas.
Contudo, ela preferiria que a decisão fosse uma questão um pouco menos
complicada.
Era simplesmente como ler os augúrios a partir das tripas de um
cordeiro, no qual sangue demais — sinais demais — poderia obscurecer os

88 Toreador
fetos importantes, evidentes nos intestinos. Quanto menos convidados,
melhor.
Victoria sorriu quando ouviu as portas do elevador abrirem­se no
terceiro andar. Samuel estava fazendo o jogo da protelação, como ela havia
instruído, porque não passara tempo suficiente. Ela sabia que alguns
convidados estavam além da habilidade dos carniçais em retardá­los na
garagem; afinal, algumas técnicas como essas faziam­se necessárias.
Victoria virou­se de novo, agora mais frontalmente para olhar
Leopold. Ela não tinha, claro, tirado seus olhos dele, mas seu olhar tinha
sido imperceptível por alguns momentos. Quando o jovem Toreador
voltou para as grandes portas do Paraíso, ela sentiu ímpetos de estrangulá­
lo. Ele olhou o painel mais baixo da direita bem de perto e alisou­o como
fizera com a obra de Rodin, mas logo se afastou, e rápido, para admirar
ambas as portas gigantescas.
Victoria não sabia se devia ou não ficar admirada com essa
contemplação tão evidente. Ele realmente parecia estar escolhendo qual
porta usar como entrada, como se isso lhe fosse de importância.
Ficou curiosa quanto ao porquê dele ter escolhido o Inferno, mas
ele de fato retomou à obra de Rodin e saiu da entrada, depois de breve
luta com a porta do Paraíso. Perguntar­lhe­ia mais tarde, pois agora que
sua escolha estava feita, ela poderia discutir livremente com ele sobre as
portas, se não as razões dela em utilizar as portas.
Quando Victoria aproximou­se d’Os Dez Mandamentos, olhou
interessada para o painel que despertara em Leopold tanta demonstração
de interesse. Ela não gostou do que viu. O painel mostrava Naboth. Ele
estava morto — transformado em pedra devido a Ahab e Jezebel cobiçarem
seu vinhedo.
O Mandamento veio­lhe à mente, por ela o conhecer bem. Era
um dos que lhe haviam causado problemas durante seus anos como
mortal.
Nem tu desejarás a mulher de teu vizinho, nem tu cobiçarás a casa
de teu vizinho, seus campos, ou seu servo ou serva, seu boi ou seu burro,
ou qualquer coisa que seja de teu vizinho.
Victoria engoliu em seco. Tudo o que sempre fez foi cobiçar as
coisas de seu vizinho.
Por isso, em vão, tentou sentir­se melhor, ao invés de interpretar
isso como um sinal de que estava, afinal de contas, sendo corrompida.
Pois, de fato, era Naboth, não Ahab ou Jezebel, que estava morto na

Stewart Wieck 89
descrição do painel. Essa era uma das cenas mais poderosamente
esculpidas na porta. Talvez Leopold a tivesse examinado simplesmente
devido aos seus méritos técnicos, e não por estar afinado com qualquer
coisa maior que os frágeis poderes de um jovem Membro como ele podia
possuir.
No final, Victoria deu de ombros. Ela estava comprometida com
sua escolha e com seus métodos. Se, supersticiosamente, temesse cada
sinal que visse, então ela de fato seria uma pessoa tímida que com certeza
devia contar como suposto fato de os jogos poderem tomar decisões por
ela. Tomada não apenas pela segurança de suas decisões, Victoria Ash
adentrou um Paraíso onde só encontrou demónios.

90 Toreador
Segunda­feira , 21 de Junho de 1999; 22h 10min
Corporação Financeira de Boston
Boston, Massachusetts

O belo italiano reclinou­se por trás de sua enorme mesa de


cerejeira. Os telefones J de Benito estavam organizados como sempre e,
embora duas noites atrás ele estivesse sentado ali, irritado por receber
ligações telefônicas, agora encontrava­se igualmente perturbado pela
inexistência de uma.
Lorenzo Giovanni costumava ser muito confiável. De fato, Benito
já tinha dado várias instruções ao carniçal. Lorenzo desejava o Abraço, é
claro, como virtualmente todos os Giovanni que descobriram haver mais
em sua grande família, do que uma riqueza jamais sonhada. Porém, Benito
iria ter que revogar sua recomendação se Lorenzo não ligasse logo ou, pelo
menos, tivesse uma desculpa muito boa para a demora.
Nas últimas quarenta e oito horas, Benito não teve muito tempo
para se desviar das responsabilidades de sua família , para dedicar­se a uma
questão que era, afinal de contas, um assunto pessoal; não obstante, após
longa discussão sobre questões de segurança com seu primo Michael,
Benito contatou Lorenzo, em Atlanta.
O carniçal estava lá, comprometido em algumas missões secretas
para a família, das quais Benito não estava a par — não que desejasse ficar,
já que a família considerou que ele não era um dos que precisavam saber,
mas como um dos poucos Giovanni permanentes naquele baluarte de
civilização, único no Sul, o carniçal ainda tinha tempo para realizar os
pedidos especiais de outros membros da família. Ele não passava de um
carniçal, mas era um carniçal formidável, e por isso Benito não sentiu
receio algum ao enviá­lo para espionar as festividades no Museu.
Seria necessário espionar, já que não havia como Lorenzo ser
convidado ou, pelo menos, ir em nome de Benito. O evento era somente
para Membros e, embora Benito pudesse criar um caso, se a Toreador
vadia que estava no comando, Victoria Ash, negasse permissão a Lorenzo,
ele percebia que isso traria animosidade à sua família, por ter sido ele o
criador do caso.
E agora Lorenzo estava atrasado — muito atrasado — para relatar as
novas a Benito que queria informações frescas, sem ter que esperar até a
noite seguinte, quando seria tarde demais para tomar atitudes se, de fato,
o maldito neófito que tinha a vida de Benito em suas mãos estivesse

Stewart Wieck 91
presente.
Ele batia os dedos impacientemente no telefone que tocara tantas
vezes duas noites atrás. Nada, ainda. Benito cerrou os punhos e esmurrou
a mesa. Ele quase gritou de raiva, também, mas refreou suas emoções.
Encontrava­se sob uma tremenda tensão, e não era hora de dar uma
brecha para a Besta.
Lentamente, voltou sua atenção para os documentos financeiros
sobre sua mesa. A princípio, os números se misturavam e não pareciam
fazer nenhum sentido, mas ao concentrar­se, Benito devorou a informação
que eles continham.
Rapidamente, ele levantou sua cabeça e olhou para a direita , em
direção à porta de seu escritório. Alguma coisa, talvez apenas uma sombra
fugaz, tinha passado.
Sem hesitar, Benito pairou seus dedos um milímetro acima do botão do
alarme, que se encontrava por baixo de sua mesa. Enquanto isso, ele
procurou minuciosamente por algum outro sinal de movimento.
Mesmo não havendo nada, ele permaneceu em suspenso.
Benito falou para os espaços vazios da sala: — Randall?
E novamente: — Randall?
O cício inumano que respondeu foi quase inaudível, mas um eco
fragmentado, quase demoníaco, repetiu a palavra. — Sim. — surgiu da voz
secundária.
Benito interpelou:
— Era você se movendo, ainda há pouco?
O mesmo eco sombrio respondeu: — Sim.
— Com que propósito? Eu não estou em condições de tolerar tal
atividade.
— As sombras falavam comigo. Então, eu conversei.
Benito continuou irritado, mas a aparição estava presa ali para
fornecer proteção, e era melhor prestar atenção em momentos como esse.
Perguntou, com um quê de sarcasmo: — E o que lhe dizem as
sombras? — Não muito. — disse a aparição amorfa. Depois acrescentou: —
Por hora.
Benito suspirou:
— Bem, transmita os sinais que tem de transmitir, mas faça­o sem
me perturbar, eu estou cansado, mas ainda tenho trabalho a fazer.
Não houve resposta, mas Benito não esperava nenhuma. Ele
voltou ao seu trabalho imediatamente após dar a ordem.

92 Toreador
Passou­se mais algum tempo. Interrompeu repentinamente o
trabalho para empurrar o telefone celular do meio, o que estava conectado
à rede Giovanni, para o chão. — Toque, maldito! — gritou. Ele caíra com a
face para baixo, sobre o tapete felpudo que cobria uma parte do piso de
madeira.
Benito fitou o telefone por um momento e, então, se levantou
para pegá­lo. alcançou­o com dois passos e, ao abaixar­se para agarrá­ lo, o
cício inaudível de Randall precedeu uma profunda amplificação, que dava
um aviso.
— As sombras falam!
Sobressaltado tanto pela voz de Randall quanto pelo som de
alarme que ela manifestava, Benito agachou­se, equilibrando­se e
preparando­se para o que quer que estivesse por vir.
O que dizem as sombras? — exigiu ele.
Randall disse:
— Elas dizem que é tarde demais. Eles já estão aqui.
Os olhos de Benito brilharam em temor, e ele cobriu
rapidamente a distância até a mesa com o botão de alarme e depois as
espadas samurai. A prateleira mais próxima guardava a lâmina que fora
supostamente manipulada pelo chamado Guerreiro Tigre, um samurai
que havia caçado e exterminado ninjas há mais de meio século. Muito
propício, pensou ele, quando viu figuras semelhantes a ninjas, quatro delas,
saírem das sombras da sala.
A mais próxima pareceu destacar­se da parede atrás da mesa de
Benito e ficou agachada entre o Giovanni e o botão de alarme. Duas
outras brotaram como sangue escuro jorrando de uma ferida profunda.
Uma estava ao lado do sofá e a outra perto da porta de saída do escritório.
A última parecia crescer do tapete próximo no centro do escritório, como
uma trepadeira filmada em câmera lenta.
— Inacreditável — foi tudo o que Benito pode dizer, num primeiro
instante. Ele tomou a ofensiva, pois esses poderiam ser assassinos mortais
e, se assim fosse, sua falta de resposta seria a única maneira deles o
derrotarem.
— Randall! — gritou ele. — Duelo!
Benito viu a figura próxima à porta, aquela que estava mais bem
posicionada, olhar rapidamente a sala. Quando a katana do Guerreiro
Tigre saltou da mesa próxima ao sofá, a figura da porta gritou um aviso
aos seus comparsas ou , pelo menos, foi isso que Benito imaginou que ele

Stewart Wieck 93
fez. Nenhuma palavra real foi ouvida; ao invés disso, trevas escaparam da
boca da figura e formaram uma imitação sinistra de um balão de história
em quadrinhos, embora preenchido por uma pulsação quase invisível de
escuridão.
Se aquelas trevas disseminaram alguma informação, não foi a
tempo. Parecendo flutuar, mas na verdade brandida por um espírito
invisível de um morto que Benito tirou de uma existência infernal e trouxe
de volta à Terra, a katana do Guerreiro Tigre zuniu no ar. A lâmina da
espada era afiada a um corte perfeito, e os entalhes no metal executados
pelo seu criador tomavam­na mais forte. Forte e afiada o suficiente para,
pelo menos, arrancar o braço do assassino de seu corpo, mesmo que a
aparição chamada Randall mal conseguisse reunir força suficiente para
manipular a lâmina, quanto mais direcioná­la contra um inimigo.
O alvo do ataque era o assassino próximo ao sofá de couro.
Entretanto, os assassinos eram, evidentemente, bem treinados, já que o
suposto líder, na porta, era o único a reagir ao ataque. Ele se dirigiu à
concentração de trevas que se estendia como velhas teias de aranha a
partir das sombras que envolviam a porta, para se abrigar e obscurecer seu
corpo. O olhar de Benito perdurou o bastante para perceber a mão de
unhas longas que emergia e se atirava habilmente na direção da katana do
Guerreiro Tigre. Um lampejo metálico dirigiu­se para aquele ponto —
provavelmente uma faca ou shuriken — já que o comandante devia
imaginar um oponente invisível, porém físico, manipulando a lâmina.
Não obstante, aquela fração de segundo era tudo de que Benito
podia dispor, pois os outros dois assassinos ignoraram a situação de seu
companheiro e lançaram o ataque diretamente contra Benito. Isso
significava que podia muito bem se tratar de uma missão suicida, senão o
inimigo do centro da sala teria se voltado para ajudar o comparsa mais
próximo, seu aliado agora manietado.
O Giovanni focalizou sua atenção no assassino que estava mais
perto, aquele atrás da mesa, que representava uma ameaça mais imediata e
também bloqueava a rota para o alarme. Michael e os outros membros da
segurança podiam muito bem já estar mortos e destruídos, mas não havia
nenhum alarme soando, motivo que levou Benito a imaginar que sua
melhor opção seria acioná­lo agora.
Quando Benito se virou, ele e o inimigo encararam­se por uma
infinitesimal fração de segundo. O assassino abortou o ataque para desviar
o olhar e prevenir­se contra o poderoso controle mental que Benito podia

94 Toreador
operar contra ele.
— Então você sabe que eu sou um Membro? — gritou Benito
raivosamente. O que eles sabiam não importava. Aquele milésimo de
segundo em que seus olhos tinham­se encontrado fora suficiente.
Benito comandou laconicamente: — Recue!
A postura de defesa do assassino foi abandonada, quando ele deu
uma cambalhota parou, antes de rolar para trás ininterruptamente.
Hesitou por um momento perto da cadeira de Benito, mas o assassino
parecia incapaz de resistir ao comando do Giovanni, e seu salto carregou­o
para além do botão de alarme, para o qual Benito imediatamente se
lançou.
Enquanto isso, o assassino atacado por Randall estava reagindo
muito vagarosamente à ameaça, já que também ele assumia estar
enfrentando um oponente que não conseguia enxergar, mas não um que
ele não pudesse tocar. Com o outro braço, ele disparava socos para todos
os lados, ao redor da arma que flutuava, procurando atingir um golpe no
atacante. Os esforços, é claro, provaram­se infrutíferos, enquanto a
perplexidade do assassino deixou­o vulnerável a um outro golpe da lâmina,
rija e afiada. Desta vez, a trajetória da katana atingiu em cheio o pescoço
da vítima. Os ligamentos, músculos e ossos cederam, com a mesma
facilidade do braço da vítima.
Benito percebeu a decapitação sem derramamento de sangue,
enquanto se apressava em direção à sua mesa. A ausência de sangue era
má notícia, já que isso significava que os assassinos provavelmente eram
vampiros. Benito não era velho nem poderoso o suficiente para lidar com
quatro vampiros ao mesmo tempo, nem mesmo com a ajuda de seu
assistente fantasmagórico. Todavia, agora seriam dois contra dois, se a
eficácia da ordem de Benito para “ recuar” persistisse.
Como se estivesse reforçando a crença nesse ponto, o outro
assassino que tinha Benito por alvo, agarrou­o por trás, enquanto o
Giovanni apressava­se para a mesa.
Ao invés de resistir, como supunha que seu oponente esperava,
Benito virou­se rapidamente para ele. Girou e caiu, esperando que esse
movimento rápido lhe desse oportunidade de também fitar os olhos deste.
Entretanto, a manobra teve um sucesso apenas parcial. O assassino reagiu
bem, não tropeçando no corpo debruçado de Benito, mas não evitou o
seu olhar a tempo. Benito arregalou suas órbitas, como se isso pudesse
facilitar seu trabalho de coação hipnótica.

Stewart Wieck 95
Mas Benito ficou desorientado ao fitar a face de seu inimigo. Não
havia nada familiar, nenhum ponto de referência ou contorno facial para
guiar sua tentativa de fitá­lo diretamente nos olhos. A face do assassino
estava envolta por uma escuridão sobrenatural e, embora tentasse
desesperadamente enxergar através dessa névoa tão próxima, Benito era
incapaz de penetrá­la. Essa confusão custou­lhe o mesmo que teria custado
ao assassino que contra­atacou Randall — ela deixou o Giovanni vulnerável
a um ataque que ele não conseguiu defender em tempo.
O punho cerrado do assassino atingiu Benito bem no queixo, e o
Giovanni cambaleou para trás tão desajeitadamente, que não pode nem ao
menos evitar a queda. Sua grande cadeira fez esse serviço por ele, e seu
braço causou um vergão de sangue nas costas de Benito. Ele então se
deixou cair de bruços, e no momento mesmo em que tentava rolar para se
recuperar, o grande peso do assassino caiu sobre suas costas, empurrando­o
novamente para a lã grossa do tapete.
O atacante então agarrou os braços de Benito, tentando segurá­los
pelos pulsos ou antebraços, de modo que eles pudessem ser imobilizados
por trás de suas costas.
O primeiro foi facilmente vencido, e Benito retorceu­se como uma
cobra para manter seu braço direito livre.
De sua posição, Benito viu a cabeça decapitada do outro assassino,
jazendo em frente à mesa. Houve, então, um reflexo metálico e a espada
do Guerreiro Tigre foi para o chão, ao lado da cabeça. Ou Randall tinha
abandonado a arma, ou ela tinha lhe sido tirada. Benito levantou sua
cabeça para gritar um novo comando à aparição, mas ele teve os cabelos
agarrados e um forte braço esmagou sua face contra o chão.
O tapete amorteceu um pouco o golpe, mas como o assassino
mantinha a pressão, Benito estava efetivamente cegado.
O braço direito de Benito ainda estava livre, pois sua captura
havia sido abandonada em favor da de sua cabeça. Foi quando o Giovanni
o esticou em direção à mesa, tateando cegamente na esperança de alcançar
o alarme. Sua primeira apalpadela encontrou a borda da mesa e ele
percebeu então, que estava longe demais para alcançar o botão.
Sua única esperança era a força do sangue que ele continha dentro
de si. Com a mais breve das concentrações, Benito iniciou a conversão de
seus suprimentos de sangue para produzir uma tremenda força física. Sua
visão anuviou­se ficando rubra; seguiu­se um formigamento, em todas as
extremidades. Logo em seguida, Benito começou a dar pinotes como um

96 Toreador
garanhão selvagem.
Apesar do aperto imponente que mantinha, o assassino foi
lançado ao chão como um peão inábil. Benito não parou um instante
sequer para olhar os destroços de seu escritório. Ao invés disso, apertou
imediatamente o botão do alarme silencioso.
Somente então, com sua força aumentada ainda percorrendo seu
corpo, pode examinar a cena da batalha, enquanto andava para trás a fim
de se afastar do assassino que lançara longe.
O líder já não se encontrava próximo da porta. Agora, estava de
pé no centro do escritório, com o corpo sem cabeça entre suas pernas.
Suas mãos estavam inchadas pelo sangue, pois ele obviamente estava
usando sua força prodigiosa para vergar o wakizashi, que formava par com
a katana do Guerreiro Tigre. Nem com todo o sangue que seu corpo podia
conter, Benito seria capaz de gerar o tipo de força necessária para vergar
um objeto tão formidável — uma espada forjada por um mestre ferreiro.
Somente o outro wakizashi sobrara na prateleira, o que significava que a
katana que ficava ao seu lado provavelmente já estava retorcida além de
qualquer condição de uso. Independentemente disso, a lâmina animou­se
rapidamente, quando Randall agarrou essa última arma restante.
O Membro a quem Benito tinha ordenado que recuasse não
estava à vista em lugar algum. Ele devia ser um tolo de mente fraca para
ficar afetado tão completamente. Talvez esses assassinos fossem fisicamente
poderosos, mas vulneráveis a ataques mentais.
O assassino do qual Benito escapara momentos antes continuava
parado, encarando Benito a uns cinco metros de distância. O Giovanni
percebeu que seu Inimigo estava simplesmente esperando que o
comandante acabasse com a ameaça Invisível, para que ambos avançassem
para pegá­lo. Mas Benito esperava que Randall pudesse resistir até a
chegada do Giovanni Michael.
A arma da aparição desenhou um arco em direção ao
comandante, o qual ainda parecia estar literalmente tomado pelas trevas,
como se elas fossem sólidas. De fato, quando ele se esquivou para evitar o
golpe, a espada fez com que o lamaçal de trevas deixasse um rastro escuro,
como um polvo deixaria ao se excitar. E antes que Randall, agora mal
armado, tivesse uma chance para se recompor e desferir outro Golpe, o
comandante, unindo as palmas das mãos, agarrou a lâmina. Com um
movimento rápido e poderoso, o assassino arrancou a lâmina do atacante
invisível, agarrando prontamente cada uma das extremidades, e a dobrou.

Stewart Wieck 97
Benito anotou mentalmente que no futuro deveria deixar armas
bem mais leves a mão, talvez espadas de esgrima, para que Randall
pudesse realizar um ataque com mais eficiência.
O comandante inspecionou brevemente a sala e então falou em
uma outra nuvem negra. O segundo assassino assentiu levemente,
enquanto mantinha vigilância inabalável sobre Benito.
Este falou: — O que você quer? Minha morte garantiria apenas o ladrar
infinito de cães, perseguindo­os. A família Giovanni não iria esquecer
facilmente a minha morte.
O Giovanni esperava ganhar algum tempo, mas o esforço foi em
vão. Os dois assassinos, presumivelmente Membros, avançaram. Benito
blasfemou. Onde estava Michael? Teria esse ataque alguma coisa a ver com
Lorenzo, ou com Atlanta, ou com Chicago? Teriam outros assassinos ido
até Lorenzo e o matado também?
Então o comandante voltou sua atenção para a porta e Benito
suspirou aliviado.
Ele imaginou que o assassino devia ter ouvido a aproximação da
ajuda.
Quando a porta começou a arrebentar como impacto dos chutes
ensurdecedores, Benito reagiu imediatamente. Ele pensou em usar a
distração para passar correndo pelo comandante e ganhar a segurança
com Michael e os guardas. Mas foi ele quem foi surpreendido, pois
embora tivesse reagido primeiro e aparentemente tirado vantagem disso,
no meio de sua ação, percebeu que o comandante tinha simplesmente
decidido não dar atenção à porta que caía, nem à legião de guardas atrás
dela. Ao invés disso, ele astutamente esperou e lançou­se sobre Benito,
equanto o Giovanni tentava passar.
O comandante assassino agarrou Benito pela cintura e pelo
pescoço, e apertou­os tanto que o Giovanni inquietou­se, pensando que
poderia ser esmagado até a morte, antes que Michael pudesse libertá­lo de
seu domínio. Todavia, o aperto não aumentou acima do necessário para
sufocar Benito e obter o controle completo da região do diafragma.
Considerando a força do comandante, não havia esperança de que
conseguisse escapar.
O assassino mascarado que restara estava de repente ao lado de
seu comandante, assim que se viraram para encarar as figuras que
emergiam da porta do escritório, ficaram totalmente parados. Os guardas
da segurança perfilaram­se eficientemente junto à parede posterior do

98 Toreador
escritório e apontaram suas armas para cada centímetro da área. Além dos
fuzis e pistolas que brandiam, eles vestiam coletes à prova de balas,
capacetes com viseiras e máscaras de gás. Benito sabia que outro membro
da força de segurança esperava no corredor, pronto para arremessar
bombas de gás se isso fosse necessário.
Benito não conseguia imaginar o que os assassinos planejavam.
Eles estavam em grande desvantagem numérica e bélica. Mesmo um
vampiro poderoso como o que o segurava poderia ser levado ao chão com
um número suficiente de balas. Se não permanentemente, pelo menos por
tempo suficiente para que outros meios de dar cabo dele fossem
arranjados. Matar Benito agora — algo que o Giovanni achava que seu
captor fosse capaz de fazer num piscar de olhos — somente tornaria a
morte deles certa. Então, talvez eles o usassem como um refém.
Enquanto os pensamentos de Benito turbilhonavam em sua
cabeça, ele percebeu que o tempo estava passando e nada mais estava
acontecendo. Nenhum diálogo.
Nenhuma luta. Nenhum reconhecimento. Sem poder acreditar,
Benito observou a fila de oficiais de segurança que se mantinham a postos
com suas armas.
Ele olhou em cada direção do escritório. Alguns deles até
pareciam fazer contato visual com Benito, mas pareciam olhar através dele.
Com uma apreensão crescente transformada em terror, Benito concluiu
que nenhum dos guardas via, diante de si, nenhuma das três figuras. De
algum modo, os assassinos deviam ter se ocultado, e isso era mesmo uma
magia poderosa. Deve ter sido através desses mesmos meios que eles
driblaram, previamente, as medidas de segurança.
Benito tentou dar pontapés e socos, gritar, apesar do aperto em
sua garganta.
Ele conseguiu apenas emitir um suspiro chiado, e nem isso, nem
seus giros selvagens, conseguiram atrair um só olhar.
Benito viu quando os guardas de repente olharam a mesa e
apontaram suas armas a ela.
— Sr. Giovanni? — perguntou um deles.
O Giovanni então cessou sua luta, pois sabia que ela era em vão.
Através de algum artifício desconhecido para ele, os assassinos estavam se
escondendo e escondendo a ele também. Mas certamente os guardas da
segurança podiam ver que o lugar estava destruído, que uma briga devia
ter ocorrido. Mas se assim fosse, por que eles se demoravam em alertar os

Stewart Wieck 99
outros?
Foi então que Michael entrou no escritório. O primo de Benito
não aparentava ser um Giovanni tanto quanto ele, mas as semelhanças
eram inegáveis. Michael tinha os ombros um pouco largos demais, era
demasiadamente, excessivamente musculoso. Em suma, era um pouco
americano demais, em sua essência, e isso se devia ao fato da avó de
Michael ter se casado fora da família, um erro pelo qual o pai de Michael
gastara toda a sua vida tentando fazer com que seu filho fosse novamente
recebido no seio da família e ganhasse os melhores dons que ela lhe
poderia conceder. O pai de Michael foi punido por saber que foi ele quem
nunca se igualou, mas ele era um homem decidido — mais Giovanni que
sua traiçoeira mãe — e usou tal conhecimento não para queixar­se quanto
à sua desgraça, mas sim, para se estimular à redenção.
Michael era um Membro, o débito de sua família fora reparado,
mas ele ainda ocupava um posto baixo na hierarquia. Esta era a razão pela
qual apenas comandava a força de segurança. Independentemente disso,
assim como seu pai, ele fazia o que lhe era exigido e geralmente fazia bem.
Obviamente tinha a lealdade e o respeito dos homens que comandava,
pois quando entrou na sala, eles relaxaram mas mantiveram­se em
posição. Nenhum deles adotou uma postura mais eficaz ou uma conduta
mais profissional. Evidentemente, todos eles davam tudo de si, sem se
preocupar com aparências,
— Qual a situação aqui? — perguntou Michael.
Um dos homens respondeu: — O escritório do Sr. Giovanni está
seguro, senhor, com a possível exceção de embaixo da mesa. Nós
chamamos por ele, mas não obtivemos resposta.
Michael virou­se para olhar a mesa também. Ele semicerrou seus
olhos por um momento e pareceu concentrar seus sentidos nisso, fitando
com tamanha força que parecia conseguir perscrutar, através do móvel de
madeira maciça. Benito sabia que seu primo possuía sentidos
extraordinários, até mesmo uma espécie de sexto sentido e, por isso, se
alguém era capaz de penetrar a mortalha desses assassinos,
esse alguém era ele. Se Michael falhasse, então ele estava perdido. E
provavelmente morto, também.
O comandante assassino pareceu chegar à mesma conclusão, pois
ele tentou sair do centro do aposento indo em direção à parede mais
distante, ante a qual havia o sofá. O outro assassino seguiu­o com muito
cuidado, aparentemente colocando seus pés onde o comandante pisava.

100 Toreador
Os instintos de sobrevivência da mente de Benito exigiram que
ele fizesse um esforço final para atrair atenção sobre si, sem se importar
com quão remotas fossem as chances. O outro Giovanni os ignorou, pois
estava tão fascinado pelas poderosas forças em ação no momento, que seus
sentidos penetrantes concentraram­se em decifrar o véu de ocultação que
se estendia sobre a área dos assassinos.
Estes últimos ganharam fácil, pois apesar da aparente inquietação
do primo de Benito, seus poderes eram fracos demais.
O intenso olhar de Michael Giovanni demorou­se na mesa por
mais um momento, e ele disse: — Não há ninguém ali.
Benito viu os guardas baixarem suas armas, mas antes que a
tensão escoasse de seus corpos eles foram novamente alertados, pois
Michael, cujos olhos ígneos estavam semicerrados, para iluminar a mais
profunda sombra, continuou observando a sala lenta e cuidadosamente.
— Algo... — resmungou ele.
Quando o olhar cauteloso de Michael passou por Benito, o
Giovanni capturado entregou­se aos seus instintos de sobrevivência e lutou
poderosamente, chutando e debatendo­se com tanta energia quanto
outrora. Mas o assassino silenciou­o e o refreou ainda mais ferozmente e,
naquele segundo, Benito compreendeu que estava condenado. Diante de
tanto poder, praticamente qualquer Membro estaria, e Benito decidiu que
não podia lamentar uma morte que atraía a atenção de alguém tão
poderoso quanto esse comandante. Seria como o nascimento de uma
gazela que esperava viver, apesar da predação determinada de um saudável
leopardo.
Finalmente, Michael parou e disse: — O maldito alarme está me
distraindo.
O Giovanni fez um rápido movimento de pescoço ao olhar para o
corredor fora do escritório. Alguns segundos depois, Michael relaxou.
Benito percebeu que, embora o alarme estivesse quase totalmente
silencioso, ele só o estava para aqueles que possuíam sentidos tão comuns
como os dele, embora Michael devesse ouvi­lo mesmo em sua sala. Benito
imaginou se os assassinos o ouviam, e concluiu que provavelmente sim.
Então Michael repentinamente estendeu seu pescoço novamente
em direção ao teto.
— Eu disse pra desligar! — ele gritou pela porta do escritório,
aberta. — Não brinque comigo agora, Daniel.
Uma voz veio do corredor: — Eu não o reativei, senhor. O

Stewart Wieck 101


diagrama indica que o alarme foi novamente ativado do escritório do Sr.
Benito.
Com isso, os guardas da segurança imediatamente se prepararam
uma vez mais. Benito chegou mesmo a acreditar que os assassinos
pareceram agitar­se com as novas. Ele certamente estava confuso.
Somente Michael parecia calmo, e falou em direção à mesa: —
Espírito, cesse seu assombrar. Benito jamais confirmaria sua existência
para mim, mas eu sempre soube que você devia estar aqui. Pare com esses
jogos agora ou seu mestre, que será informado de sua imprudência, não
terá nenhuma razão para conceder­lhe misericórdia.
Uma pausa, e então os olhos de Michael lançaram­se na direção
do teto e, depois, de volta à mesa.
— Muito bom. E então, aos seus homens, disse: — Achem o Sr.
Benito. Mesmo um alarme falso como esse deve ser investigado até o fim.
Benito agitou­se numa fúria desesperada e desamparada. Randall
viu, claramente uma oportunidade de livrar­se dos serviços de Benito. Ele
não estava fazendo nada contra as ordens de Benito, e como a voz deste
estava bloqueada, nenhuma nova ordem poderia ser dada. Randall estava,
portanto, protegido contra as defesas que Benito tinha instaurado para
punir a aparição. Se o Giovanni algum dia viesse a se livrar dessa situação,
então Randall iria pagar por isto; mas a traição num momento crucial era
o preço por se forçar os espíritos dos mortos a ajudarem.
Quando os guardas se dispersaram para investigar cada canto do
escritório e as outras salas daquele andar, os assassinos esgueiraram­se para
fora do escritório, rumando para o corredor. Ele moveram­se pelo corredor
e passaram por um trio de homens que se debruçavam por sobre
computadores e outros instrumentos. Depois dirigiram­se para os degraus
que levavam ao primeiro andar e, finalmente, para fora do edifício.
Flutuando invisível em meio a tanta atividade, Benito sentiu
como se fosse uma sombra passando da vida para a morte. Talvez somente
como uma aparição Benito pudesse vir a se vingar de Randall.

102 Toreador
Segunda­feira, 21 de junho de 1999; 22h 22min
Museu de Arte
Atlanta, Georgia

Victoria sorriu quando fechou a porta do Paraíso atrás de si. O


negro presságio do Décimo Mandamento foi esquecido ao ver a festa:
estava gloriosa.
De sua posição de leve vantagem, no topo dos poucos degraus da
galeria ao lado dos portais do Paraíso e do Inferno, Victoria observou as
cenas de sua festa. Estátuas esculturas tão grotescas que seu conjunto fazia
a galeria parecer o covil de um rei Louco e decadente. Vampiros vestidos
com farrapos. Vampiros vestidos com discernimento e dispendiosamente.
Servos carregando bandejas com taças de cristal cheias até a boca de rico e
rubro sangue.
Tudo isso em meio a um verdadeiro labirinto construído por
placas do mesmo vidro opaco e à prova de balas que se alinhava nas
janelas do Museu. Os vidros de dois metros e meio de altura e três de
comprimento dividiam a galeria como cobras enroladas. Lá estavam
longos trechos, interrompidos apenas por um estreito portal. Havia vários
becos sem saída que criavam um labirinto capaz de ocultar um indivíduo,
independentemente da direção da qual se tentava olhá­lo. Bem, isso para
alguém que não estivesse armado com lentes como as dos binóculos de
Victoria.
Tudo isso se espalhava ante Victoria e, por um momento, a cena
pareceu uma coreografia. Contudo, com a chegada de Victoria encerrou­se
o ensaio, e essas figuras sombrias e perigosas em meio ao terrível conjunto
gótico começariam a jogar com seriedade.
Ou, pelo menos, era melhor que começassem, pois Victoria não
jogava de outro jeito, especialmente esta noite, quando os auspícios
estavam corretos e ela planejava um movimento audaz para atacar, rumo
ao Principado de Atlanta. Agora que sua entrada fora realizada pelo
Paraíso, a ambição de se tornar uma intrusa no poder desta cidade —
tomando­se uma parte integrante da nova estrutura — era secundária.
Ela era um anjo, aceitando a queda para que pudesse governar
essa turba.
A população de Membros de Atlanta ainda estava muito
diminuída em relação ao seu nível anterior à Maldição Sanguínea. No
entanto, os pouco mais de doze que Victoria esperava formavam uma

Stewart Wieck 103


porção apropriada. Até a única Caitiff que Victoria percebia estava vestida
de modo satisfatório. Como muitos outros Membros, Victoria nutria
temores vagos quanto a esses vampiros sem clã. Não era pela razão
tradicional de um senhor morto ou desaparecido — que em outras
circunstâncias poderia vir a reivindicar sua criança da noite que esses
novos Caitiff não pertenciam a um clã.
Era por estarem a muitas gerações da fonte do poder vampírico e
seu sangue ser, Consequentemente, fraco demais para suportar o tipo de
diferenciação e poder que a identidade de um clã proporciona.
O Tempo do Sangue Fraco. Esse era o nome que Victoria tinha
ouvido ser aplicado à recente proliferação de Caitiff. Mas essa — que
Victoria acreditava chamar­se Stella — demonstrava alguma classe. Ela era
uma pequena delicada e ostentava pouco, no que se refere à definição de
atributos femininos. Isto, para Victoria, significava que a Stella faltava
voluptuosidade. A Caitiff estava usando um smoking e cabelos curtos, que
lhe conferiam uma aparência esguia e atraente, e um certo charme.
Victoria decidiu ficar de olho nela.
Eram Membros assim que povoavam o quarto andar do Museu de
Arte. A sala de repente parecia maior, agora que as pessoas dentro dela
forneciam uma escala para o teto exagerado e para as esculturas, por vezes
enormes, espalhadas pelo recinto.
A sala era longa o suficiente para justificar o uso dos binóculos de
ópera, carregados em um bolso costurado no interior de seu traje pseudo­
grego. Ela não utilizava as lentes especiais no momento, mas sabia que
havia mais cinco Membros presentes, além dos que podia ver no
momento, concluindo, pois, que alguns deveriam estar ocultos nas alcovas
de vidro.
Essas alcovas permitiriam aos Membros presentes uma sensação
de privacidade, pois eles acreditariam estar em segurança para trocar
algumas palavras com um amigo ou inimigo, longe das vistas dos demais.
E eles estariam, assim, protegidos contra qualquer um, com exceção de
Victoria, que era uma ótima leitora de lábios.
Também localizadas no interior de algumas dessas alcovas,
estavam as esculturas que eram a atração artística da noite. Nenhuma festa
dos Toreador seria possível sem tal pretexto. Victoria sabia o suficiente das
coisas para entender uma parte do que era pretexto. Mas fosse por sua
variedade de sangue vampírico ou uma apreciação construída durante
séculos de observação de mudanças que a faziam sentir­se deste jeito,

104 Toreador
Victoria tinha um respeito verdadeiro para com essa forma de arte. O que
a atraía na escultura, era o profundo conflito do tempo. Cada peça
fundida em bronze ou entalhada no mármore ou granito era tão eterna e
duradoura quanto os Membros, mesmo que os breves gestos e momentos
fugazes capturados nas peças fossem tipicamente mortais.
Para convidados que podiam não apreciar o trabalho, as esculturas
forneceriam pelo menos uma aparência de desculpa para iniciar uma
conversa sobre assuntos completamente diferentes.
Do ponto para onde Victoria olhava a sala, uma figura coberta
por um manto ergueu­lhe sua taça de cristal em um brinde. A Toreador
sabia que esse deveria ser Rolph, um infeliz de coração nobre, membro do
horrivelmente desfigurado clã dos Nosferatu, que obviamente tinha
aceitado o convite de Victoria. Por um momento, arrependeu­se de ter
feito o convite, pois como a maioria dos Toreador, ela preferia a beleza, e o
hediondo Nosferatu dificilmente passava nesse teste. Mas queria os
Nosferatu em seu bloco de poder, e quando se tratava de aliados políticos,
os Nosferatu escavadores de informação estavam entre os melhores para se
contar como amigos.
O manto que Rolph vestia estava longe de ser suntuoso, mas
Victoria esperava que pelo menos ele não fedesse como os esgotos e
subterrâneos que os Nosferatu gostavam de frequentar. Esse seria um
consolo suficiente para ela; não podia esperar por mais.
Acenou­lhe com a cabeça, aceitando seu cumprimento. Não podia
ver a face de Rolph, dentro das negras dobras do capuz, mas o imaginava
sorrindo antes de dar um pequeno gole no sangue fresco que enchia a taça
de cristal.
— Senhora?
Distraidamente, Victoria pegou uma taça de uma bandeja que um
servo oferecia. Ela olhou para retribuir o brinde de Rolph, mas ele se fora.
Os Nosferatu sabiam como fazer isso. Eles eram mestres em se moverem
sem ser vistos. Sua ignóbil feiura exigia isso, pois de outra forma sua mera
presença quebraria a Máscara.
Victoria deu mais uma rápida olhada na sala. Ela viu Cyndy
tentando se insinuar para perto de Javic, um Gangrel, novo em Atlanta,
que havia pedido e recebido permissão do Príncipe Benison para demorar­
se por aqui. Javic era um eslavo, e Victoria sabia que sua história incluía
algo dos eventos recentes da Bósnia, mas não sabia de que lado esse
Membro estivera, nem mesmo se ele era mortal ou imortal naquela época.

Stewart Wieck 105


Ele se portava com muita segurança, dando a impressão de ser um
ancião. Isso, mais a sua boa aparência, sombria e austera, era o que devia
ter chamado a atenção de Cyndy, supôs Victoria. Aquilo e o mistério que
o envolvia, pois ele ainda era praticamente um estranho. Como muitos
Gangrel, ou pelo menos assim pensava Victoria, Javic parecia preferir sua
própria companhia à virtual exclusão de todos os outros, já que ele não
fazia esforço algum para entreter Cyndy. Victoria não estava certa, nem
mesmo quanto ao lugar onde ele morava, embora Atlanta tivesse áreas
verdes suficientes para suportar um ninho de Gangrel, tanto dentro como
fora da cidade.
Cyndy percebeu que Victoria a observava e, além disso, olhava
para Javic. Ela fez um gesto de repúdio em direção a Victoria e tentou se
colocar entre o eslavo e sua anfitriã. Tudo o que conseguiu, entretanto, foi
desviar a atenção de Javic para Victoria.
A Toreador permitiu que um sorriso reservado, porém demorado,
movesse seus lábios. A expressão de Javic não mudou, mas o fato dele ter
sustentado seu olhar foi mais tempo do que um passar de olhos, foi tão
bom quanto a retribuição de um sorriso. Além do mais, isso enfureceu
Cyndy, que tentou pegar Javic pelo braço e levá­lo a outro local. Mas isso
foi demais para o Gangrel que se desvencilhou dela com tanta rapidez, que
Cyndy quase caiu. De fato, ela teria caído, mas Javic se recompôs e
amparou­a, salvando­a de uma queda vergonhosa. Todavia, sua ajuda foi
mecânica, não tendo nada da intimidade que Cyndy poderia passar toda
uma longa noite tentando engendrar.
Victoria percebeu Leopold andando para dentro dos limites
ocultos de uma alcova próxima, que continha um bronze aumentado do
Satã de Jean­Jacques feuchére, tomado emprestado por Victoria de um
museu de Los Angeles. Ela pensou que talvez não o devolvesse, mas não
tinha certeza de quais seriam as consequências desse ato. Certamente,
haveria um meio para conseguir se fazer com que as pessoas apropriadas
no Oeste esquecessem­se de que ele fora emprestado ou, pelo menos, a
Quem ele havia sido emprestado.
Observou com deleite quando Stella tomou também a mesma
direção. Eles estariam invisíveis à visão normal, mas Victoria suspeitava
que nada se passaria entre eles que pudesse exigir o uso de seus binóculos
de ópera.

106 Toreador
Segunda­feira, 21 de Junho de 1999; 22h 31min
Museu de Arte
Atlanta, Georgia

Leopold foi para o primeiro abrigo que pode encontrar, uma


decisão pela qual lamentavelmente se repreendeu, quando percebeu que
deveria ter se dirigido mais para o fundo da sala e para longe da multidão
de Membros perto da entrada.
Mas ele estava inquieto. Aguentar os lamentos e a postura de
Cyndy na subida do elevador desde o estacionamento, o deixara assim.
Ele fora o primeiro a entrar no elevador, e embora Cyndy estivesse um
tanto afastada, o rude carniçal que operava o elevador, recusara­se a levar
Leopold para cima e voltar para buscá ­la.
Se algum dia houve um Toreador que manchou o nome do clã,
então esse Toreador era Cyndy. Uma pessoa afetada e, ainda por cima
posuda. Ela e os detestáveis inferninhos dela. Não era de se espantar que
Victoria mal tivesse dado atenção à garota.
Para piorar seu desconforto, ele foi lançado à presença de Victoria
Ash assim que saiu do elevador, novamente após o rude comando do
carniçal. Quando Leopold notou as reações de Cyndy, ele soube que
Victoria devia estar lá, esperando para receber seus convidados. Por que
achava que seria diferente, ele não tinha certeza; Parecia que Victoria era
de um nível mais alto do que a maior parte de seus convidados, então por
que não esperá­los do outro lado da entrada?
Entretanto, o carniçal insistiu e Leopold foi forçado a encontrá­la
sem estar devidamente preparado. Ele se surpreendeu por ter se acalmado
tão bem, mas mesmo assim queria deixar escapar que ele é quem a tinha
esculpido. Que ela era a chave para as incógnitas que o infestavam. Mas
isso teria sido ridículo, porque com toda a probabilidade, ele estava
ridiculamente errado.
Leopold rezava para que Hannah tivesse algo a lhe contar. Ele
estremeceu ao pensar no comportamento esquisito da Tremere na noite
anterior, mas ainda podia sentir sua pele de alabastro sob as pontas de
seus dedos. Ele suspeitava que jamais seria capaz de olhar para ela
novamente, sem imaginar aquela cena, embora, talvez; tivesse sido assim
que ela desejasse. As maquinações dos Membros estavam muito além dele,
e as dos Tremere também, ou pelo menos, as dessa Tremere.

Stewart Wieck 107


Felizmente, não foi Cyndy que virou atrás dele na alcova do
estranho vidro que criava limites e paredes na câmara. Ao invés, foi Stella,
uma sem­clã, uma Caitiff, a quem Leopold teria recebido bem se, naquele
momento, ele não preferisse a privacidade. O Toreador tinha encontrado
Stella em três ocasiões anteriores, uma taxa de incidência alta para seu
padrão normal de confraternização com outros Membros. Leopold
preferia ater­se somente à última delas, pois as duas primeiras tinham sido
ocasiões repulsivas. Independentemente disso, quando viu a jovem e bela
mulher se aproximando, ele recapitulou brevemente todas as outras
ocasiões.
A primeira foi pouco após o Abraço dela, quando um Anarquista,
encharcado por drogas e álcool, devia ter se esquecido que era um
vampiro, pois ele tentara estuprar Stella antes de, frustrado, Abraçá­la.
O segundo encontro tinha sido muito parecido, embora dessa vez
tivesse sido um mortal aquele que tentara ser bruto com ela. Em seu
medo, ela também voltou aos padrões mortais, havia se esquecido de que
agora ela era a caçadora e o valentão, a caça. Foi bem aí, durante uma de
suas turnês pelas ruas estreitas que corriam perpendicularmente à Ponce,
que topou como ataque em que ela libertava um pouco do seu poder
sobre o assassino. O grito de Leopold tirou­a daquele transe, depois que
Stella tinha sugado o homem até secá­lo. Leopold ajudou­a, então, a
destruir o corpo que, felizmente, calhou de não ser ninguém que alguém
quisesse encontrar.
A terceira tinha sido há apenas alguns meses, quando os dois
Membros descobriram que ambos estavam assistindo a um filme clássico
em preto e branco, Metrópolis no Fabulous Fox Theater, localizado a apenas
algumas quadras descendo Peachtree em direção à High. Ele foi muito
mais para ver o interior do Fox do que para ver o velho filme de ficção
científica. As estrelas que pareciam cintilar no teto do cinema teriam sido
mais interessantes, se a vida inteira de Leopold não tivesse sido gasta sob o
céu da meia­noite. Entretanto, as decorações do lugar — especialmente a
Egyptian Ballroom, com seu teto forrado de hieróglifos — atiçavam
Imaginação de Leopold.
Leopold viu Stella antes, e sentou­se longe dela — quase
totalmente à esquerda durante a projeção, evitando assim ser uma
lembrança dos encontros anteriores.
Entretanto, depois do filme, a Caitiff aproximara­se de Leopold,
como se ele fosse um amigo estimado, e não somente um salvador

108 Toreador
ocasional. Então, depois de apostarem quem conseguia melhor fingir que
estava tomando um expresso numa cafeteria próxima, eles voltaram para a
casa de Leopold e conversaram durante a maior parte da noite.
Leopold tentara esculpir a aparência de Stella, mas ela foi mais
uma de suas falhas. Ela tinha sido simpática, mas mais que isso, teria dado
uma excelente modelo, pois Leopold sabia o suficiente da tragédia de sua
vida para conceder profundidade a qualquer obra para a qual ela posasse.
Stella era uma mulher pequena, talvez somente com 1,40m de
altura. Com seu belo curto e de estilo atraente, tinha idade suficiente para
parecer madura e possuir pequenas rugas ao redor dos olhos, mas ao
mesmo tempo parecia jovem o suficiente para passar por alguém que não
tinha idade nem para beber. Tinha sido eterna como uma mortal, e agora,
como Membro, realmente o era.
A não ser que a Caitiff não fosse como os outros vampiros.
Afirmava­se que o Brigue estava ficando ainda mais diluído agora, mas
uma Membro como Stella costumava ser do grau mais baixo dos vampiros.
O sangue com o qual seu senhor a havia alimentado era fraco demais para
transferir algo além das armadilhas do vampirismo — a necessidade pelo
sangue, a vulnerabilidade ao sol, e pouco mais.
Porém, nenhuma indicação de clã foi passada, portanto ela era
uma sem­clã, amenos que algum primógeno a reivindicasse.
Leopold tinha pensado em apresentar o caso dela a Victoria, mas
evitou fazê­lo, porque não queria que sua conversa com Victoria tivesse
uma mulher diferente como foco. Seria uma grande tolice. Isso ele sabia,
embora não o tivesse feito mudar de atitude.
Ele achava que Stella merecia ser uma Toreador porque ela via o
mundo com olhos de artista. Quando mortal, sua vida como fotógrafa
tinha sido difícil, mas ela continuou nesse trabalho, embora agora tivesse
se especializado em fotografias noturnas, por razões inevitáveis. — Vamos
esperar que isso deixe tudo quite — disse Stella quando se aproximou de
Leopold.
— O que você quer dizer com isso?
Stella fez­lhe uma careta, as lembranças também a feriam; mas
disse: — Dois encontros ruins, e então um bom. Este será um segundo
bom, e tudo estará quite.
O Toreador riu.
— Não espere que o carma faça parte da vida de um vampiro,
Stella.

Stewart Wieck 109


Ela estava perto, agora, e Leopold a abraçou. Quando ela retribuiu
calorosamente seu gesto amigável, Leopold repreendeu­se por ter
pensamentos tão mesquinhos sobre sua condição de Caitiff. Ele admitiu
para si que ela era o tipo de garota que combinaria com ele, se ambos
ainda fizessem parte do Rebanho e jamais tivessem, sido expostos a tantas
coisas do mundo, muito mais do que jamais desejou saber, mesmo agora.
A careta de Stella ainda estava intacta.
— Eu não espero nada da vida vampírica , Leo.
Ela era a única pessoa que o chamava assim. A única que o
chamara assim e não fora corrigida imediatamente. Era o nome que ela
gritara naquela noite, após drenar cada gota vermelha do homem que a
tinha atacado, e Leopold não quis criar um caso por causa disso naquele
momento. Por alguma razão, ele continuou a deixar isso de lado.
— Vamos esperar que a gente se dê, pelo menos, melhor que esse
cara. — disse Leopold, batendo sua mão na escultura de bronze de 75 cm
de altura no centro da alcova.
— É o demônio, suponho. — disse Stella. — Parece que todas as
esculturas aqui esta noite são um pouco demoníacas.
— Como os convidados — sugeriu Leopold.
— Mas, você está certa. — continuou. — A peça é chamada Satã, e
foi esculpida por um homem chamado Feuchére. Olhe para ele. —
Leopold apontou para o centro da obra. — Satã, é ele. — acrescentou.
As asas da estátua, que pareciam de couro, estavam parcialmente
estendidas de modo que ocultavam a face de Satã. Dentro dessa região de
sombra, o maquinado chifrudo e com garras, estava sentado com o queixo
apoiado numa das mãos e sua cabeça projetada para fora. E embora a
representação fosse a de uma besta, as qualidades humanas da figura
mostravam­se, e Stella sentiu uma certa compaixão ao fitar a face que
Leopold lhe apontara.
— É o tipo de obra que minha condição me permitiria realizar. —
Leopold disse, taciturnamente.
Stella olhou tristemente, para ele:
— Seu bloqueio ainda está impedindo que você modele os
vampiros? Eu sinto muito, Leo.
Leopold foi tentado a contar a Stella sobre seu recente sucesso,
pois o impulso para compartilhar as novas com alguém cordial fazia­se
crescente. Ao invés disso, ele permaneceu num mutismo triste, deixando
que tal silêncio contasse sua mentira por ele. Permaneceram em silêncio

110 Toreador
por algum tempo, e Stella usou a oportunidade para examinar o Satã mais
de perto.
— Você é capaz de criar obras pelo menos tão boas quanto esta —
disse ela por fim.
Leopold concordou, aceitando graciosamente o elogio dela e
disse: — Você viu minha nova peça à mostra esta noite?
Stella brilhou, encantada por levar a conversa adiante e para longe
de pensamentos opressivos.
— Não, não vi. Eu ficaria honrada se você a mostrasse para mim.
Leopold deu o braço para Stella e moveu­se para fora da alcova.
Então ele parou e perguntou, de repente: — Você não viu Hannah aqui
esta noite, viu?
— A Tremere? Não, não vi. De fato, até reparei nisso; é difícil
acreditar que não haja nenhum Tremere aqui ainda. — Isso é estranho?
— Oh, muito... — disse ela. — Os Tremere são muito políticos, e eu
não posso imaginar uma reunião como esta na qual eles não tenham um
representante presente logo cedo, para espionar todos os outros. Eu os
chamo de moscas da sopa, que é o que Rolph deve ser para os Nosferatu.
Leopold não sabia dessas coisas, mas ele acreditava que Stella
sabia. Ela estava se esforçando muito para conhecer os laços da sociedade
vampírica. Nada mais fazia em seu próprio proveito. Sua boa vontade para
lidar com tais situações sugeria a Leopold que ela encontraria uma
maneira de superar sua condição de sem­clã, mesmo que supostos amigos
como ele continuassem a ser uns idiotas.
Stella perguntou: — Você precisa vê­la por alguma razão? Se
precisar, eu tomaria cuidado. Ela faz
Barganhas difíceis e perigosas. Pelo menos foi o que eu ouvi.
E então, eles dois ouviram algo mais. Uma comoção, logo ali fora
da alcova, estava atraindo a atenção de todos os Membros ao redor.
Leopold e Stella saíram bem a tempo de presenciar uma entrada pomposa.
Stella ficou de boca aberta e arregalou os olhos para as figuras que
entravam, entretanto, Leopold tinha outras coisas em mente, e ainda
precisava de um momento a sós.
Ele sussurrou ao ouvido de Stella: — Mostro minha escultura para
você mais tarde. — Ela concordou suavemente, portanto, pelo menos o
ouviu, embora ele não estivesse certo de que ela também o tivesse
escutado.

Stewart Wieck 111


Segunda­feira, 21 de Junho de 1999; 22h 33min
Museu de Arte
Atlanta, Georgia

A atenção de muitos dos convidados foi repentinamente desviada


para o centro da sala. Victoria estava grata por algo que lhe dera uma
direção, e ela não tinha mais que permanecer junto à entrada, nem
escolher seu primeiro interlocutor. Haveria acusações de favoritismo se ela
escolhesse mal. Mas agora o destino já interviera. Portanto, quaisquer
expectativas de refinamentos sociais seriam esquecidas.
Ela se aproximou do tumulto. Sorvendo de sua taça vermelha,
Victoria sorriu para Clarice, uma jovem Ventrue que se encontrava
próxima. O sangue revestiu os lábios de Victoria e ela cuidadosamente os
lambeu antes de dizer: — Algo interessante, eu espero.
Clarice foi educada: — Há muito de interessante aqui esta noite,
Sra. Ash.
— Só Victoria está bom, — corrigiu a Toreador. — Como uma
Ventrue, você deveria saber que a maioria dos Membros prefere títulos de
acordo com suas idades aparentes, e não com as reais.
— Isso é esquisito — admitiu Clarice. Ela era uma mulher alta e
bem desenvolvida. De compleição avantajada, embora sem ser gorda, ela
conservava uma certa leveza de movimentos que Victoria apreciava, pois
essa mulher tão sem atrativos precisava de alguma coisa para compensar
suas deficiências. As roupas escuras e conservadoras de Clarice certamente
não ajudavam muito.
Victoria discordou:
— Não é tão estranho assim, se você considerar o instinto para a
Máscara que muitos Membros vêm acumulando há vários séculos. Talvez
possa parecer uma coisa sem importância, para evitar uma cena, em que
um homem mais velho venha a chamar um mais jovem de “Senhor”,
quando ambos parecem ocupar o mesmo posto. No entanto, eu suponho
que isso lhe pareceria menos estranho, caso você vivesse num ambiente em
que a existência da nossa espécie não estivesse esquecida ou negligenciada
como está hoje.
Clarice não teve nenhuma maneira de responder a tal declaração
carregada de tanta autoridade. Nem, aparentemente, estava ela preparada
para a extensão da réplica. Ela só podia salvar seu orgulho Ventrue com
um gracejo: — É um caso que parece se dirigir a mim Victoria.

112 Toreador
E então elas alcançaram Ugolino e seus Filhos de Jean­Baptiste
Carpeaux. Uma pequena multidão de meia dúzia de Membros tinha se
aglomerado ao lado de Victoria e Clarice. Um homem alto e esguio, que
Victoria imaginou ser o Setita que ela fora convencida a convidar, estava
entre eles. Javic, ainda não livre de Cyndy, encontrava­se afastado do resto
do grupo, mas também fora atraído pela curiosidade. Os outros três eram
o Ventrue afro­americano Benjamin, que era um amigo íntimo de
Eleanor, a esposa do Príncipe; o solitário Brujah, Thelonious; e o centro
da atenção, o vampiro conhecido apenas como General.
Esta era apenas a segunda vez que Victoria via este último. Tudo o
que ela sabia era do conhecimento comum: ele era um Malkaviano.
Despertara recentemente do Torpor o qual, evidentemente, ele passara
dentro de Stone Mountain, um enorme bloco de granito a leste de
Atlanta; e tinha sido visto saindo da montanha pelo Gangrel chamado
Dusty.
Em tempos passados, ou assim Victoria ouviu, Benison tinha sido
relativamente avesso a aceitar novos Membros em Atlanta. A destruição
trazida pela Maldição Sanguínea mudou tudo isso e, na verdade, a grande
maioria dos Membros presentes até agora nesta noite, ou era nova na
cidade, o que incluía a própria Victoria, ou mesmo recém­Abraçada. O
General também fazia parte desse grupo, mas Benison indubitavelmente
teria lhe concedido permissão para permanecer independentemente disso,
já que o Príncipe também era Malkaviano.
Esses Membros eram, invariavelmente, dementes de uma maneira
ou de outra, embora como muitos malucos, eles frequentemente
pudessem parecer sãos. Alguns, como o profeta da Gehenna chamado
Anatole, não ocultavam suas loucuras por trás de tais fachadas. Ele e
outros Malkavianos afirmavam que suas loucuras em geral provinham da
visão da verdade negligenciada por outros Membros que ainda viviam
excessivamente ligados ao mundo do Rebanho. Em essência, os
Malkavianos como Anatole insistiam que havia uma Máscara maior do
que a perpetrada pelos vampiros diante dos mortais. Com seu saudável
temor dos poderes invisíveis, Victoria aceitava essa loucura dos
Malkavianos como uma sabedoria. Mas a maior parte dos outros não o
fazia.
Devido aos Malkavianos a intrigarem tanto, Victoria certificou­se
de que o General recebesse um convite para esta festa. Ela estava muito
contente por ele ter vindo.

Stewart Wieck 113


Verdadeiramente contente. Diferentemente de alguns Membros
despertos do Torpor o sono profundo no qual um vampiro dorme por até
cem anos de cada vez — e especialmente dos que têm acordado agora,
quando os últimos cem, ou cinquenta, ou até mesmo vinte anos
trouxeram tantas mudanças ao mundo, o General parecia à vontade com
o novo mundo, tendo levado pouco tempo para se adaptar. Ou isso, ou
ele era poderoso o suficiente para superar um déficit de conhecimento.
Victoria e os outros reuniram­se para observar atentamente o
Malkaviano. Com suas roupas já arrancadas de seu corpo e espalhadas
pelo chão, o General subiu ao pódio que suportava a grande obra de
Carpeaux. Seu corpo musculoso e nu não era feio, mas embora ele
ostentasse um excelente físico, Victoria não viu nada em particular que a
fascinasse. Seus feitiços funcionavam melhor quando os homens eram
mais impressionantes do que isso.
O General abaixou­se aos pés do Conde Ugolino, onde convocou
uma tête d 'expression, grotescamente imprópria em conjunto com os
quatro filhos nus do Conde, a cujos pés se agachavam, reclinavam ou
desmaiavam. Sua expressão de alegria cômica fez Victoria estremecer, pois
o filho mais próximo retinha em sua face a materialização do medo, até
mesmo de terror. Completando a tête d’expression, os outros filhos
traduziam outras emoções. Nenhum deles alegre, pois o Conde estava
prestes a devorá­los. Sentado acima de seus filhos, o corpo poderoso
curvado e a face deformada pela loucura, o Conde rasgava seu rosto com
dedos que se arqueavam em garra.
O General tinha o mesmo cabelo desgrenhado de quando se
apresentara pela primeira vez ao Príncipe e ao conselho dos primógenos,
embora não mais vestisse o uniforme de soldado Confederado, que ele
afirmava ter roubado das prateleiras de uma loja de “souvenirs” do Parque
Nacional de Stone Mountain, mas que o Príncipe acolhia como um sinal
de que o General tinha lutado ao seu lado e, talvez, do seu lado na Guerra
da Agressão do Norte. Naquela ocasião, o novato apresentou ­se somente
como General, o que, é claro, fez com que todos se indagassem se ele
tinha sido um, embora Benison não o reconhecesse. Recusava­se a
responder à maioria das perguntas a ele dirigidas, e quando o Primógeno
Brujah Thelonious exigiu melhores respostas, o General,
indiferentemente, arrancou a língua de sua própria boca, e colocou­a
sobre a mesa, ante o confuso membro do conselho.
Benison rira e concedera ao General permissão para ficar. Se

114 Toreador
Benison precisava, de alguma outra razão, um insulto ao seu constante
inimigo Brujah, era razão suficiente.
Com sua língua presumivelmente regenerada, o General agora
escalava para sentar­se junto ao Conde, com suas nádegas apertadas contra
o rosto do temeroso filho, do qual tinha zombado pouco antes. O
Malkaviano estava num estado muito melhor do que meses atrás. De fato,
seu corpo antes destruído, agora se definia com músculos, de modo que
parecia um irmão gêmeo do Conde. E enquanto os espectadores olhavam,
o General literalmente tornou­se um só com Ugolino. Da mesma forma
que alguns Membros tinham a habilidade de afundar na terra, o General
também gozava desse atributo. Desde a Guerra Civil, havia dormido cento
e trinta e poucos anos dentro de Stone Mountain. Ele se tornara um tanto
incorpóreo, então se harmonizava com a estrutura, deslizando para dentro
do Conde. Enquanto essa transição ocorria, a expressão de loucura do
Conde mudava lentamente para a jocosidade risonha preferida pelo
General.
Victoria tentou dar um sentido a esse gesto potencialmente
profundo, extravagante e ridículo do General. Ela olhou à volta e
constatou que outros também pareciam perdidos. Exceto Javic, pois ele se
afastara da cena, meneando a cabeça.
Ele podia estar rejeitando o evento como ridículo, mas algo em
sua severa desaprovação atingiu Victoria. A irritação de Javic com Cyndy
finalmente o dominou de novo, e ele arrancou seu braço da Toreador com
um puxão rápido, o que lançou Cyndy ao chão. Dessa vez, ele não a
segurou. Victoria teria rido alto e tomado vantagem em relação à jovem
Toreador, mas ela não queria transformar Cyndy de um inimigo passivo
para um ativo e bem definido. Um Príncipe precisava de amigos, que era o
que Benison carecia inteiramente.
O único Brujah presente, e provavelmente um de apenas dois que
estariam presentes esta noite, era Thelonious. Ele parecia um pouco
irritado com a performance do General, restringindo­se apenas a ele sua
oposição. Victoria achou isso engraçado, pois o Brujah usualmente era a
favor de qualquer variedade de interrupção, especialmente se ela pudesse
ofender outros. Mas acontecia de Thelonious ser um Brujah atípico, o que
talvez explicasse porque ele era o único Brujah que o Príncipe Benison
reconhecia como um membro oficial da sociedade vampírica de Atlanta.
Ou isso, ou ficaria parecendo indecoroso não ter nem ao menos um
Primógeno Brujah. Os Brujah representavam o movimento Anarquista

Stewart Wieck 115


entre os Membros da Camarilla. Eles eram os rebeldes que queriam ver o
fim do Controle conservador da organização, geralmente nas mãos dos
Ventrue. Vestiam­se Como rebeldes, com roupas que lhes permitiam
sobressair notoriamente em relação aqueles a quem se opunham.
Uma das razões de Thelonius ser tão atípico eram suas roupas
conservadoras. Ele preferia ternos modernos e óculos pequenos, de aros
redondos. Era um jovem negro, que exibia aparência surpreendentemente
leve para um guerreiro Brujah. Victoria já tinha ouvido histórias de como
esse homem lutara com Benison, não sendo tão tola a ponto de ser
enganada pelos grandes olhos de gazela, que pareciam tornar evidente um
coração meigo e compassivo.
Nesta noite, todavia, Thelonious estava vestido com uma roupa
tradicional africana. O manto largo era de um cor­de­laranja brilhante com
coloridas listas rosas, amarelas e verdes. Usava um pequeno chapéu
redondo sobre a cabeça, e não fazia uso dos costumeiros óculos. Agora,
lembrando­se novamente desse fato, Victoria percebeu que essa fora, na
realidade, a primeira coisa que ela notara, pois sem os óculos ampliando a
expressão gentil de seus olhos, Thelonious demonstrava capacidade para
absorver as defrontações ferozes. Era um desses olhares de intenso
desgosto que ele lançava sobre o General.
Benjamin parecia muito intrigado e extremamente perturbado
com o espetáculo do General. Victoria reconheceu que ele era um homem
muito atraente. De fato, ele poderia ter posado para algum pôster, como
um afro­americano moderno e de sucesso. Este era o porquê de Victoria
ter ficado surpresa por Benison tê­lo aceito em Atlanta, mesmo que
supostamente ele tivesse tido alguma “familiaridade” com a esposa do
Príncipe, Eleanor. Afinal, o que o Príncipe odiaria mais: um homem
negro de sucesso ou um vampiro negro de sucesso? A verdade era que
Benjamin era criança da noite de Eleanor, e Benison não sabia disso. Pelo
menos, ainda não. A entrada de Victoria pelo Paraíso demandava que o
Príncipe não mais ficasse privado da verdade. Graças aos Céus, por assim
dizer, devido à incrível habilidade de Hannah, para deduzir ou, de alguma
forma, determinar o Senhor de um dado Membro.
Como Javic, os dois homens negros também se afastaram, mas o
fizeram juntos. Victoria sorriu. Era particularmente importante que
ambos se entendessem. Seu plano estava a exigir uma aliança de afro­
americanos, e seria melhor que esses dois começassem antes que Julius
chegasse para elaborar um amálgama ou fecho final.

116 Toreador
A cena passou por sua mente. Benison matando Eleanor, Eleanor
matando Benjamin, Julius matando Benison. Se Benison pudesse levar
Thelonious consigo, tanto melhor. Ela sorriu a esses pensamentos.
Ao lado dela, Clarice estremeceu e disse:
— É horrível. Aquelas crianças pareciam tão infelizes e, agora...
esse sorriso. Victoria olhou novamente para a escultura. Parecia que o
General ia ficar dentro do Conde. Se ficasse, ela teria que lembrar que ele
estava lá, pois não podia se dar ao luxo de revelar nenhum de seus planos
acidentalmente, quando não houvesse nenhum Membro à vista. O sorriso
horripilante que irradiava das crianças da escultura era, de fato,
desconcertante, mas muitas coisas o eram nesta noite, o que era perfeito
para Victoria. Uma pequena tensão nervosa ajudaria a fazer seu bule
ferver, mais tarde. Além disso, Victoria sentia que esta festa era uma
oportunidade para revelar a todos de que matéria audaciosa e
inquebrantável ela era feita. Eles esperavam pinturas expressionistas ou
nus clássicos? Cada peça apresentada esta a noite aludia a uma história
terrível, fosse a queda de Satã, o perverso banquete dos filhos do Conde,
ou o assassinato de Abel por Caim.
Victoria dirigiu­se a Clarice:
— Talvez o General esteja somente apresentando sua própria arte,
para o nosso deleite, a interpretação da terrível situação do Conde.
— O Conde?
— Ora, Clarice. Certamente você conhece Dante?
A Ventrue sorriu:
— Aquele livro sobre o Inferno, você quer dizer ?
— Sim — lamentou Victoria. — O Conde Ugolino e seus filhos
foram aprisionados em uma torre, para morrerem de fome. Para salvar­se,
o Conde devorou seus filhos.
Clarice estremeceu e Victoria descobriu que ela gostava muito
pouco dessa mulher enorme. As peças apresentadas separavam o joio do
trigo, e Clarice tinha sido joeirada.
O Setita era claramente trigo, pois quando Victoria olhou em sua
direção, conseguiu ver um sorriso discreto dividir sua face. Ele também
notou a reação de estremecimento de Clarice e, aparentemente, foi isso
que o deleitou. Seus olhos lançaram­se de encontro aos de Victoria, e os
dois pareceram entender­se momentaneamente. Victoria repentinamente
ficou feliz por Rolph ter­lhe falado que o Setita estaria visitando a cidade.
Ela sorriu galantemente para o homem alto, ereto e delgado. A isso, o

Stewart Wieck 117


sorriso do homem tomou­se impossivelmente longo, como se sua face
pudesse fender­se como a de uma serpente.
Então Clarice novamente interpelou Victoria e a troca de olhares
acabou.
— Ele realmente devorou seus filhos ? — perguntou nervosamente.
Victoria estava perturbada por essa conversa incessante.
— Sim. — ela insistiu categoricamente. — Assim como nós,
Membros, devoramos crianças mortais. Os paralelos entre arte e realidade
não são reanimadores e atraentes ?
Com isso, Victoria afastou ­se decisivamente.
Ela deu uma olhada pela sala, a fim de encontrar o Setita
novamente, mas ele estava sob alguma cobertura em algum lugar. Victoria
ajustou o broche em seu ombro direito, que era tudo o que sustentava seu
vestido grego no corpo, e procurou no bolso de sua veste o binóculo para
operas. Era hora não apenas de encontrar o Setita, mas também de ver o
que mais ela estava perdendo. Em especial a conversa entre Thelonious e
Benjamin Brown.

118 Toreador
Segunda­feira, 21 de junho de 1999; 22 h51min
Museu de Arte
Atlanta, Georgia

Victoria foi a última a se afastar do Conde Ugolino e Seus Filhos.


O General presumivelmente ainda estava dentro da estátua, pois a nova
expressão de deleite perdurava. Ela olhou de novo para aquela face e, uma
vez mais, procurou um significado nela. Essa era mais uma mensagem
concernente à sua missão desta noite? Por fim, simplesmente a aceitou
como o meio pelo qual dois de sua esperada tríade vieram a se reunir; não
que um desses homens fosse capaz de negar as acusações por muito
tempo.
Ela achou muito engraçado ver os dois homens negros — um
Brujah, considerado o clã dos rebeldes, e um Ventrue, visto como o clã de
aristocratas, uma mistura usualmente volátil, fruto de uma mútua
desconsideração pelo Príncipe Benison — ponderando sobre as
implicações da louca apresentação do General.
De uma posição segura, ela observava os dois homens com seus
binóculos de ópera. A migração para longe do General e a interrupção da
apresentação do Malkaviano garantiram a Victoria, mais que tudo, tempo
e proteção suficientes para esgueirar­se a um cubículo especial que ela
tinha preparado durante a montagem e construção. Tratava­se de uma
área pequena, cerca de 1,5m por 1,5m, circundada pelo vidro opaco
utilizado na câmara maior. A entrada era fácil e rápida através de uma das
placas de vidro que se deslocava como uma porta corrediça.
O toque essencial e mais importante era o alçapão no chão. Ela
esperava usar o interior do cubículo para observar de modo seguro aqueles
que se encontravam fora dele, mas caso temesse ser descoberta, Victoria
poderia esgueirar­se para baixo do chão e trancar o alçapão por dentro.
De dentro da pequena e ao mesmo tempo ampla área, Victoria
podia usar livremente seus binóculos e ver todos os que estavam na festa e
que não tivessem tomado outras precauções para permanecerem invisíveis.
Quanto a isso, Victoria estava especialmente preocupada com Rolph, pois
mesmo entre os Nosferatu, ele era considerado um mestre nessa
arte.Victoria tentava manter um olho em Rolph não na esperança de ver
algo interessante, mas mais para deduzir suas ações por sua omissão física.
Isto é, quando ele desapareceu, era possível que ainda estivesse na festa,
mas cuidando mais furtivamente dos seus objetivos ou dos de seu clã.

Stewart Wieck 119


No momento, porém, Victoria estava preocupada somente com
Thelonious e Benjamin. Esses dois homens, juntamente com o Arconte
Brujah Julius, figuravam intimamente em seus planos. O manto de um
laranja brilhante que Thelonious vestia foi o primeiro objeto visto pelo
binóculo de ópera da Toreador. Ela ajustou a lente zoom e focalizou de
modo que pudesse ver claramente os lados das faces de ambos os homens.
Era difícil ler os lábios, mas não era impossível.
Benjamin estava falando:
— Talvez seja esse manto que você está usando, Thelonious. Ele
evoca o xamã que há em você.
— Se eu estivesse usando meu terno de negócios, então eu não
estaria tentando encontrar mensagens na estranha apresentação do
General?
Os dois homens olhavam­se com cautela e com uma sugestão de
ameaça também. Não era de se admirar, já que cada um achava que o
outro tinha feito uma ameaça. Mas Victoria sabia que eles conversariam,
apesar das mensagens falsas que ela enviara, sobretudo porque essas
ameaças tinham vindo na noite anterior e o Elísio apresentava a
oportunidade de investigá­las ou suspendê­las.
Benjamin encolheu os ombros e disse: — Talvez sim. Talvez não.
O comportamento do maluco não se parece com nada além das
sensibilidades distorcidas de um Malkaviano expostas para nossa
distração.
Thelonious balançou a cabeça: — É justamente isso. Por que ele
desejaria nos entreter? — E uma festa. — Isso não importa para um
Malkaviano. Pode ser uma festa neste mundo, mas não nos recônditos
sombrios de sua mente confusa. Não... Se sua proeza realmente significa
algo para nós ou não, eu garanto que significa algo para o General.
Victoria ficou frustrada com essa pequena conversa. Ou os dois
homens conheciam um ao outro melhor do que Victoria pensava — e isso
certamente apenas adiaria seus planos, o que não a preocupava nem um
pouco — ou então eles estavam encenando essa pequena conversa. Encená­
la para passar verdadeiras mensagens em código, talvez. Nada daquilo
parecia certo e ampliando o campo de visão de suas lentes, para que
pudesse ler a linguagem corporal deles, tanto quanto seus lábios, Victoria
concluiu que ambos estavam ansiosos para resolver os negócios relativos a
uma discussão importante, mas nenhum parecia certo como o outro
receberia uma declaração franca.

120 Toreador
Victoria murmurou as palavras que esperava que Benjamin
dissesse. E, ou seus poderes tinham ficado maiores do que ela imaginava,
ou Benjamin tomou a iniciativa por si só, porque o Ventrue deu uma
rápida olhada ao redor e guiou Thelonious mais para dentro da alcova
formada pelas vidraças.
O Brujah semicerrou seus olhos furiosamente para o Ventrue,
mas aceitou o convite e também disse algo que Victoria não entendeu.
Ela rapidamente os aproximou, com as lentes zoom, de modo que
somente suas cabeças ficassem visíveis no campo de aumento de seu
binóculo. Ela apreendeu mais da conversa.
Benjamin dizia: — Estou surpreso por você estar aqui esta noite,
Thelonious.
A face branda do Brujah ficou um pouco mais hostil e ele se
preparou para vociferar algo, mas o Ventrue o interrompeu.
— Obviamente, você não está com medo do Príncipe. Se eu
quisesse insultar você, eu não o faria tão grosseiramente. Eu não sou um
soldado Confederado com séculos de idade. — Não era necessário, mas
Benjamin enfatizou sua óbvia referência com uma inclinação de cabeça e
uma sobrancelha levantada. Thelonious e Victoria entenderam que ele se
referia a Benison, não ao General.
As feições de Thelonius suavizaram­se novamente e o Brujah, na
verdade, sorriu, embora apenas brevemente. Em seu cubículo a alguma
distância, Victoria sorriu enquanto continuava a espreitar. A conversa real
estava começando.
Benjamin continuou: — Eu não respondo à chantagem.
Com isso, Thelonious levantou a cabeça. Fora pego um pouco
despreparado, mas respondeu:
— Nem eu.
Foi a vez de Benjamin ser levado para trás.
Isso tudo era muito divertido para Victoria, pois ela era a base
sobre a qual esses dois homens falavam. Se tudo corresse de acordo com
seus planos, então estes seriam seus rivais restantes em Atlanta, e qualquer
pista quantos aos seus métodos era um benefício para o futuro.
O Ventrue disse:
— Mas você espera que outros sejam influenciados por táticas tão
violentas? Devo dizer que estou desapontado, Thelonious. Eu achava que
você não era um Brujah tão típico.
Thelonious riu:

Stewart Wieck 121


— Brujah tão típico? Que coisa tipicamente Ventrue!
— Independentemente disso, eu continuo perturbado por suas
táticas.
O Brujah disse:
— Nossa diferença, então, é que eu não estou surpreso com suas
táticas.
Benjamin rangeu os dentes:
— Há algo fora do comum em usar a proteção do Elísio para
confrontá­lo ? O Elísio pode ser um conceito inventado, por e para
anciãos mais do que pelos anarquistas, mas sua presença aqui, esta noite,
apesar dos esforços do Príncipe contra você, também revela sua fé nessa
convenção.
— Não, não há vergonha nenhuma quanto ao Elísio. A
integridade da oferta, por um lado, é discutível.
— Minha oferta ? É assim que você quer ver a questão? Sua carta
não me deu nenhuma indicação...
— Minha carta? — interrompeu Thelonious.
— Sim, sua car...
Thelonious o interrompeu de novo:
— Você quer dizer sua...
— Pare de me interromper! — sibilou Benjamin. Mas então ele
voltou ao que as palavras de Thelonious registravam. — Minha?
E, ao mesmo tempo, o Ventrue e o Brujah desviaram seus olhos
um do outro e olharam ao redor, e olharam para fora da entrada da
alcova. Victoria imaginou que eles podiam ser irmãos, tamanha
similaridade em suas ações. Ela ainda não tinha certeza se isso viria a se
constituir ou não numa vantagem para si.
Continuou a observá­los, a salvo dos olhares apavorados. Ou
assim ela esperava assim parecia.
Eles se reavaliaram quando seus olhos se reencontraram
Thelonious disse:
— Quer dizer que você não me enviou...
— Não, e você também não ?
— Então quem foi? — perguntou o Brujah.
— Eu não sei. — Admitiu o Ventrue. — Nem sei se esse truque se
destinava a nos unir ou separar.
Thelonious parecia intrigado.
— A nos dividir, eu presumo.

122 Toreador
Benjamin sugeriu: — Na véspera de uma reunião no Elísio? Nós
possivelmente poderíamos estar tendo uma discussão e revelação
exatamente como a que estamos tendo agora.
Victoria sorriu em apreciação. Talvez Benison fosse o que pensava
mais.
Thelonious assentiu.
Subitamente, correu um murmúrio entre os Membros que se
encontravam junto à entrada do salão, e Victoria, por reflexo, virou­se
para olhar naquela direção. As grandes portas do Paraíso e do Inferno
pendiam abertas simultaneamente.Tamanho tinha sido o clamor das
quatro portas abrindo­se de uma só vez, que todos os que estavam
próximos à entrada voltaram­se para observar a fonte da comoção.

Stewart Wieck 123


124 Toreador
parte três:
O OLHO
Segunda­feira, 21 de junho de 1999; 23h 12min
Museu de Arte
Atlanta, Georgia

A figura recortada contra as portas esculpidas por Rodin e


iluminada por trás pela luz da antecâmara que brilhava mais que a luz
difusa espalhada pelos focados refletores nas esculturas, mostrava uma
silhueta aparentemente feminina ou, ao menos, de uma pessoa de ossos
delgados, cabelo crespo armado e trajando um manto rodado. O contorno
do homem, à medida que ele adentrava o vão d’Os Dez Mandamentos,
poderia parecer ser menor devido à incrível criação, mas embora não fosse
nenhum gigante, J.Benison Hodge, com seus pouco mais de um metro e
oitenta de altura, o Príncipe J. Benison Hodge, projetava uma aura tão
poderosa, que nenhum portal, por mais suntuoso que fosse, seria capaz de
diminuí­lo.
Victoria praguejou. Mais alguns minutos e ela poderia ter
descoberto muito sobre como seus aliados desavisados iriam proceder. Mas
da maneira como tudo estava acontecendo, ela tirou vantagem da comoção
para esgueirar­se para fora de seu esconderijo e mover­se em direção às
portas.
A dramaticidade da chegada agitou todos os Membros ali
reunidos. Enquanto tanto o Príncipe quanto sua esposa avançavam,
Victoria percebeu que precisava acalmar a vertigem que revolucionava sua
cabeça. Esses dois Membros tinham uma presença tão imponente — o
Príncipe poderoso e dominante, sua esposa adorável e radiante, com algo
além da beleza física­que seu esforço em não ir ao encontro deles dois era
impossível. Cada um exigia — não, merecia — sua atenção total. E, ainda
que Victoria soubesse que o instinto para divinizá­los dessa maneira fosse
um efeito que eles criavam propositalmente com seus poderes vampíricos,
era difícil resistir.
Finalmente recuperando­se por um momento, ela olhou à volta e,
para seu deleite, viu que estava resistindo muito melhor do que a maioria.
Clarice e Cyndy estavam particularmente servis, já que praticamente se
jogavam ao chão para mostrar o respeito e a adoração próprios a essas duas
deidades. Outros como Javic, Rolph e até mesmo Thelonious, denotavam
o esforço para resistir. Mais interessante para Victoria, era a resposta do
Setita. Ele parecia não recuar ou tremer, e se empertigara para parecer

126 Toreador
ainda mais alto.
Quando Eleanor se revelou completamente, deslizando para a luz
direta, Victoria estremeceu. A Toreador não gostava de admitir que tinha
uma inimiga de nível igual, ou até superior. Talvez Eleanor não fosse tão
bela quanto Victoria. Mas a Toreador sabia que quaisquer falhas físicas
reais eram mais do que compensadas por um controle fenomenal das
muitas disciplinas do poder vampírico que ela também possuía. Tais
falhas eram poucas. Isto porque a mulher, delicadamente esculpida,
ostentava virtudes raras, tais como pele pálida mas láctea, brilhantes olhos
verdes, maçãs do rosto proeminentes e régias.
Onde Victoria podia usar sua beleza para enganar até mesmo os
homens mais: cautelosos, Eleanor podia realçar sua beleza para arrebatar
homens, e até mulheres que a consideravam sua inimiga. De fato, Victoria
imaginava como ela própria se mantinha a salvo desse efeito insidioso que
já vira pessoalmente infectando outros Membros cujo ódio pela esposa do
Príncipe ela conhecia bem.
Na verdade, ninguém podia odiar o Príncipe, nem desprezar
Eleanor. Ela detinha, obviamente, um peso igual na relação, o que
significava que ela governava igualmente, embora fosse evidente que o
Príncipe tomava decisões impulsivas sobre as quais Eleanor
presumivelmente não tinha influenciado ou aconselhado. Eles eram tão
manifestamente opostos e, ainda assim, perfeitamente feitos um para o
outro.
Ele, um esperto proprietário de terras americano com ambições
pela realeza; ela, uma nobre ambiciosa pelo poder. Ambos haviam
atingido seus sonhos e eram fantasticamente poderosos.
Quando o Príncipe caminhou inteiramente para a luz que
contrastava, não ocorreu nenhuma outra revelação. Ele era de uma
compleição poderosa, comum peito de touro, braços e pernas longos e
grossos. Seu cabelo era comprido e ruivo, usava barba espessa, generoso
bigode e tinha as sobrancelhas cerradas. Assim, sua face era toda
recoberta. Muito acessível quando a conversa era sobre ele. Por isso
Victoria ficara sabendo algum tempo atrás, que ele fora Abraçado quando
contava pouco mais de trinta anos. Os sinais grisalhos em seu cabelo, suas
entradas e um tórax de barril, que só se suavizava levemente em sua
cintura, revelavam a Victoria que ele devia ter tido uma vida dura como
soldado Confederado, naqueles anos há muito passados.
Independentemente disso, como agora, podia haver uma grande
Stewart Wieck 127
benevolência em sua face. Quando sorria e exibia uma cor boa no rosto,
parecia um Papai Noel antes da idade ter­lhe encanecido os cabelos.
Victoria duvidava que houvesse alguém presente que já não tivesse visto
seu Príncipe totalmente dominado por sua grande e repentina fúria.
Victoria imaginou momentaneamente um Benison colérico, a imagem era
terrível demais, por isso ela se concentrou na aparente suavidade que o
homem demonstrava.
Enquanto aqueles dois indivíduos impressionantes continuavam
sua lenta entrada na sala, um par de Caitiffs que Victoria mal reconheceu
como Grant e Fingers, tiveram o infortúnio de surgir à entrada ainda
aberta d’Os Portais do Inferno. Embora os homens aparentassem ser
indivíduos fortes e capazes, eles pareciam tão comuns e fracos ante o
esplendor de seus anciãos, que seus olhares estupefatos eram cômicos.
Thelonious foi o primeiro a rir, mas era bem provável que ele
estivesse procurando alguma desculpa legítima para embaraçar o Príncipe.
Os olhos do Príncipe Benison agitaram­se arregalados, com choque e
ódio, e Victoria perdeu as forças ante o calor da transformação que ela
banira de sua imaginação um instante antes. A Colisão da realidade e de
seus pensamentos tornou a terrível fúria do Príncipe ainda mais
assustadora.
A cor sumiu da face Benison, revelando um grande número de
cicatrizes em sua testa e olhos. Suas bochechas contraíram­se, seus olhos
pareceram secar dentro das órbitas e sua mandíbula barbada cerrou­se
com grande força. O efeito foi o de ver um homem humilde e gentil
transformar­se, de repente, em algo mais semelhante à verdadeira
existência do Príncipe, algo que buscava uma vingança de além­túmulo.
— Você ousa! — exclamou ele, gritando. Uma de suas grandes
mãos fechou­se numa garra­marreta que socou uma e, então, duas vezes a
palma da outra mão. — Você ousa se mostrar a mim! — continuou. Não se
tratava de uma pergunta, mas de uma afirmação, pronunciamento de
caos.
Victoria deleitou­se ao ouvir isso, pois significava que o Príncipe
estava de fato nervoso esta noite, provavelmente ansioso porque Julius
estaria presente, e isso tornaria seu trabalho mais simples.
Apesar dos pesares, Thelonious encolheu­se com o desafio. Ele
estava congelado em seu lugar, como uma presa condenada, já que o
ataque verbal imediato do Príncipe parecia um prelúdio de aniquilação
certa.

128 Toreador
Até que Victoria interveio. Ela aproximou­se de Benison e disse:
— Grande Príncipe, por favor, não se esqueça de que a lei do Elísio impera
aqui, pois o senhor mesmo declarou que assim fosse.
Benison olhou­a furiosamente, foi necessário cada grama da
vontade de Victoria e da força do seu desejo de ver seus planos darem
frutos, para resistir à presença incendiária do Príncipe.
— Eu revogo minha declaração. — Rosnou ele.
Victoria deu um meio­passo atrás. Ela precisava manter a paz até
que todos os elementos estivessem presentes, mas Julius, o enviado dos
Justicares, ainda não tinha chegado. Por outro lado, ela não desejava se
colocar no caminho da ira do Príncipe, e nem que ele sentisse que ela
estava fazendo um papel além do exigido como uma primógena
preocupada e anfitriã da festa, para reter a autoridade dele.
Victoria olhou para Eleanor, em busca de ajuda, mas a assim
chamada esposa do Príncipe tinha seu olhar letal depositado sobre
Thelonious, também. Não havia nenhuma aliança entre essa Ventrue — a
primógena Ventrue — e o primógeno Brujah. Alguns Membros sugeriam
que era o ódio dela pelo clã que incitava os ataques selvagens de Benison.
Enquanto a Toreador decidia o que fazer em seguida, ela viu os
dois Caitiff esgueirarem­se por fora da cena de fúria e juntarem­se à
multidão de espectadores. Podia ser que o Príncipe não os tivesse visto
antes e não soubesse onde poderia procurar vingança pela risada de
Thelonious.
Então Victoria aproximou­se novamente do Príncipe e sussurrou
de modo que somente ele e outros com habilidades auditivas
extraordinárias pudessem ouvi­ la.
Ela disse:
— Por favor, grande Príncipe, preocupo­me com sua segurança
nesta noite em que Julius, o arconte Brujah, comparece. Mas, é claro, o
senhor sabe melhor do que eu, como lidar com tais situações traiçoeiras e
políticas.
Mais depressa do que imaginara, o Príncipe registrou as palavras
dela; sua face transformou­se novamente. A fúria e o ódio não se
liquefizeram, mas evaporaram instantaneamente, enquanto reassumia sua
expressão de magnanimidade. A aparência era exagerada demais para ser
real e todos sabiam disso. Tamanha serenidade não combinava bem com a
face do Príncipe. Não foi a primeira vez que Victoria imaginou que ele
devia ser realmente louco, devia realmente carregar as cicatrizes do clã

Stewart Wieck 129


Malkaviano, para mudar suas máscaras emocionais com tanta rapidez e
facilidade.
O Príncipe olhou para Thelonious, enquanto esboçava, de algum
modo, um sorriso mais amplo. O Brujah recuou um passo
instantaneamente e Victoria o viu estremecer. Benison deve ter colocado
alguma coisa naquele olhar; pensou ela. Então o Príncipe voltou­se para
Eleanor e envolveu­a com seu braço esquerdo.
Ergueu o direito para o céu e, com um floreio, declarou
novamente sua presença.
Benison disse:
— Apreciemos a noite mais curta do ano e percebamos que cada
momento desta noite carrega o peso de dois, em qualquer outra.
Taças de cristal tilintaram e tiniram, houve murmúrios de “
tintim” e “sa úde ” e, embora o momento do solstício tivesse passado há
algumas horas — já que eram quase onze e meia e a multidão se dirigia
para os fundos da galeria — considerou­se a festa oficialmente aberta.
Victoria ajudou a conduzir todos para longe da entrada e ficou
um pouco para trás, para certificar­se de que todos os servos fossem ágeis o
suficiente para suprir a extremidade mais distante da galeria. Quando se
voltou para juntar­se aos convidados, Victoria viu que Eleanor estava
esperando por ela.
A primógena dos Toreador aproximou­se de sua contraparte
Ventrue. Quando estavam perto, Eleanor deu um abraço de saudação em
Victoria — ou, pelo menos, a Ventrue deu a entender que estava
prestigiando Victoria com um abraço.
Quando se separaram, Eleanor disse:
— A festa parece estar maravilhosa, minha cara. Você deve estar
muito satisfeita.
Sua face estava animada com toda a sinceridade dissimulada que
ela era capaz de reunir e que era suficiente para enganar e adular qualquer
um que não fosse tão fugaz quanto Victoria.
Victoria queria estripar a cadela ali mesmo, mas sabia que
precisava ser cuidadosa.
Por outro lado, cuidado demais poderia alertar Eleanor, tanto
quanto um aviso a plenos pulmões. Portanto, precisava saber lidar com a
política de sentido duplo da Ventrue.
— Bem, obrigada, Eleanor. Tais cumprimentos certamente
significam algo quando vêm de você. Mas eu ainda não estou realmente

130 Toreador
satisfeita. Ora, eu diria que o entretenimento e a diversão realmente ainda
estão por começar. Meu único desgosto é que me vesti com este estilo
grego, quando o romano teria sido mais apropriado.
Eleanor estreitou seus olhos. Também ela conhecia o passado de
Julius como gladiador na Roma antiga.
Então a Ventrue disse:
— Certamente formam um elenco e tanto, os personagens com
que você terá de lidar esta noite.
— Oh, de fato. — Concordou Victoria. — Mas todos eles, também
os de fora da cidade, foram estritamente informados quanto ao status
Superior do Elísio. Estou certa de que ninguém, consideraria nem por um
momento quebrar a paz do Príncipe.
Eleanor mordeu seu lábio inferior.
— Claro que não. O Príncipe é um Membro vingativo, e não é
sábio opor­se a ele.
— É verdade que ninguém está a salvo quando se opõe ao peso da
lei da Camarilla. — Admitiu Victoria, evidentemente menos preocupada
agora com o Elísio do que com outros eventos recentes em Atlanta, como
a sanção severa aos anarquistas e aos Brujah em particular.
Quando Eleanor ficou em silêncio por um momento, Victoria
continuou: — Atlanta costumava ser um lugar tão atrasado que a Camarilla
provavelmente se preocupava pouco com o que acontecia aqui. Mas nosso
Príncipe tem feito um excelente trabalho para atrair a atenção para todos
nós. — Oh, ele tem feito um bom trabalho, não? As Olimpíadas, claro,
foram um golpe esplêndido.
Victoria avivou­se com uma compreensão fingida.
— Isto é certo, talvez meu traje grego seja apropriado, afinal.
Os cantos dos lábios de Eleanor tremeram, e estava claro que a
Ventrue já tinha aguentado o suficiente.
— É melhor eu me juntar a meu marido. — Disse ela enquanto
dava as costas a qualquer despedida que Victoria pudesse oferecer. Mas
após alguns passos, ela se virou.
— Você sabe, — disse a Ventrue, — será bom ter a Camarilla
representada aqui esta noite. Eu acho que a longa memória da organização
é simplesmente incrível, e sou levada a crer que nós todos teremos algumas
surpresas interessantes esta noite.
Victoria não teve resposta. Seus olhos simplesmente piscaram
algumas vezes, numa rápida sucessão. Eleanor sorriu e distanciou­se,

Stewart Wieck 131


alternando seu polegar para cima e para baixo, como um imperador
romano. Após várias repetições, tudo discretamente, mas completamente
dentro da visão de Victoria, a Ventrue decidiu deixá­lo para baixo e virou
um pouco sua cabeça para vibrar seus cílios para Victoria uma vez mais.
A Toreador estava atordoada. Eleanor tinha permitido que
Victoria a coagisse naquela conversa para tomar esse derradeiro golpe mais
inesperado e impressionante.
Mais que isso, ela estava preocupada com o que Julius poderia
saber, pois havia alguns segredos bem guardados do seu passado, que era
melhor permanecerem enterrados.
Victoria esperava estar na ofensiva a noite toda, e essa súbita
inversão a fez temer que suas próprias defesas fossem inadequadas.

132 Toreador
Segunda­feira, 21 de junho de 1999; 23h 24min
Museu de Arte
Atlanta, Georgia

O gesto virtualmente não tinha atrito algum: quase sem poros,


pele de alabastro acariciando um mármore liso e frio. A mão dele
deslizando até parar, Vegel gentil e metodicamente apertava o pulso da
escultura, com sua atenção tão fixada nesse ato simples, que o tomara
meditativo.
Vegel ficou assim por muitos momentos. Quando seus dedos
voltaram ao seu passeio pelo braço de uma das figuras esculpidas, perdeu
seus pensamentos no desfile de emoções capturadas nas expressões
marmóreas dos angustiados pais. A cabeça do filho repousava no colo do
pai sentado. A mãe sem filhos — já que agora um estava morto e o outro,
exilado — desmoronava no chão, ao lado do filho inerte, agarrando seu
braço, enterrando a cabeça em seu ombro. Sua angústia era aguda, quase
cruel em seu retrato, enquanto os olhos perscrutadores do pai olhavam
para cima, buscando pelo Deus que ele sabia, com certeza, existir.
Mesmo transfigurado como estava, Vegel notou duas coisas:
primeiro, a iluminação dessa escultura era muito difusa, falhando em
revelar completamente os detalhes das marcas do cinzel de Canova;
segundo, que alguém estava se aproximando dele por trás. Quem quer que
estivesse se aproximando parou, embora o Membro não soubesse se ele
estava hesitando em dirigir­lhe a palavra, ou aguardando em cortesia ao
aparente devaneio dele.
Sem vontade de interromper sua apreciação da escultura, Vegel
esperava descartar a necessidade de conversa com um resmungo qualquer,
de modo a encorajar o importuno a deixá­lo em paz.
— Não há mármore mais suave que o de Canova.
Como era seu hábito, para incomodar os que gostavam de
estereótipos e para encorajar aqueles atraídos por lendas, Vegel prolongou
um pouco seu “s”, dando ao “ssssuave” um quê sibilante.
Ele recebeu uma resposta jovial:
— Nem pele tão pronta para ser arrancada pelas presas da
serpente. — A voz de uma mulher; ele a reconheceu imediatamente como
a da charmosa risada que ouvira antes: sua anfitriã, Victoria Ash.
Vegel aprumou­se, permitindo que o resíduo emocional de sua
interação com a bela escultura se exaurisse. Volvendo­se, ele disse:

Stewart Wieck 133


— Boa noite, Sra. Ash. Você estava observando, esperando que eu
beliscasse a marmórea carne de Eva e dobrasse o grito da mortal como se
acelerasse a queda deles de Deus?
— Meu caro! caro Vegel... Eu acredito que essa peça o tenha
levado a uma disposição filosófica. Victoria Ash parou na frente de Vegel.
Como um pavão superava um casuar, certamente a mais amada das
modelos mortais ficaria sozinha pela falta de admiradores quando Victoria
Ash. estivesse por perto. Suas feições eram tão perfeitas quanto podiam
ser as de uma vampira — a perfeição que Antonio Canova tinha reservado
para os temas míticos dessa escultura: Eva, Psiquê, Vénus, ou mesmo a
magnífica Cabeça de Helena em algum outro lugar desta sala, que Vegel
instantaneamente percebeu como sendo a aparência de Victoria nesta
noite.
Exagerando, tocando as raias do embaraço, os olhos de Vegel
subiram e desceram pelo corpo esguio e voluptuoso de Victoria, vestido
com uma variação de uma túnica grega clássica de seda, sem mangas.
Então inclinou­se, zombando, e recitou:
E este amável mármore vê
Acima das obras e pensamentos do Homem,
O que a natureza poderia fazer, mas não faria,
E a beleza e Canova podem!
Além do poder da imaginação,
Além da vencida arte do Bardo,
Com a imortalidade como dote,
Cuidado com a Helena do coração.
Um sorriso deliciado aqueceu a face de Victoria, embora Vegel
soubesse que não passava de um engodo, nem maior nem menor do que o
que ele poderia esperar de qualquer Membro com quem falasse esta noite.
Victoria aproximou­se, suspirando:
— Eu não teria reconhecido esse fragmento de Byron antes de
planejar esta pequena exposição para a noite. — Para enfatizar quão
“pequena” sua exposição era, Victoria graciosamente moveu as mãos para
os lados, indicando a extensão da enorme câmara. Enquanto isso, ela
alçou elegantemente o pescoço — revelando um perfil maravilhoso — para
assimilar a cena juntamente com seu convidado.
Naturalmente, Vegel também olhou, embora tenha dado um
meio­passo atrás, já que seus instintos achavam que a proximidade com
sua anfitriã era um pouco aconchegante demais.

134 Toreador
Todo o último andar do Museu de Arte tinha, de fato, sido
transformado em um sonho neoclássico. Vegel sabia que a qualidade, para
não mencionar a história, ou mesmo a impossibilidade histórica, da
maioria das peças em exposição estava perdida para a melancólica
multidão de olhos fundos que formava a maior parte dos convidados de
Victoria.
Agora havia muito mais Membros aqui do que antes. A multidão
começava a se diferenciar com a chegada de um elemento menos refinado
da sociedade da Camarilla. Não estavam mais presentes somente os
convidados interessados em manobras políticas. Alguns dos Membros
estavam, na verdade, examinando as esculturas, ao invés das pequenas
mudanças faciais de um oponente, embora Vegel tenha notado
especificamente um daqueles exames de obra de arte. Um idiota vestindo
uma jaqueta preta de couro estava cheirando o traseiro do Cachorro
Defecando, de Adriano Cecioni.
As obras de arte eram incríveis, mas não mais que os finos cachos
de cabelos pretos arrumados da cabeça de Victoria, numa duplicata
perfeita da Helena de Canova. Vegel não sabia a idade verdadeira de
Victoria, mas seu impressionante cabelo servia de moldura para um rosto
que poderia ser de uma mulher com pouco mais de vinte anos. Ela era
levemente mais arredondada do que a boa aparência atlética das mulheres
americanas modernas, mas certamente vinha de um tempo muito anterior
a este século, sendo a sua, uma beleza clássica que, com certeza, agradava
independentemente da tendência da década ou do dia. Havia um quê de
mediterrâneo em sua cor, mas Vegel não podia ter certeza de que essa
suposição não estivesse sendo demasiadamente influenciada por sua
semelhança com Helena de Tróia. Talvez fossem seus olhos levemente
rasgados.
Victoria pegou­o olhando.
— Por acaso sou uma cobra dançante para transfixar tão
facilmente uma outra serpente?
A resposta de Vegel foi engenhosa e rápida:
— Eu não tenho dúvidas de que você seria capaz de enganar tão
habilmente quanto a serpente que tentou Eva. Se for para permanecermos
no tema do meu clã Setita, então admitirei que os anéis serpentinos de seu
cabelo de fato me hipnotizam. Entretanto, minha fascinação por Eva da
Lamentação a Abel Morto, não tem nada a ver com o parentesco de sangue
frio. O conhecimento disponível afirma que a peça nunca foi executada

Stewart Wieck 135


em mármore a partir do bozzetto de terracota que Canova preparou.
A resposta de Victoria foi entusiástica:
— Ótimo! — exclamou ela. — Talvez minha alusão às cobras tenha
sido infeliz. Talvez eu devesse tratar você como um Toreador honorário, de
tão profundo que é seu conhecimento destas obras­primas. Mas claro, o
conhecimento a que você se refere não passa de conhecimento mortal,
enquanto ambos nos encontramos em situação que propicia muito mais
que isso.
— É verdade, Sra. Ash. — Por favor, apenas Victoria ou, por hoje,
‘Helena’, se preferir, e parece que você poderia preferir, já que antes eu o
notei bem impressionado pelo busto e, agora, por minha própria...
semelhança com ele.
Vegel sorriu acidamente à hesitação de Victoria.
— Também é verdade, ‘Helena’.
Victoria não apreciou a expressão de seu convidado e prosseguiu:
— Como é que você veio a ter tamanho conhecimento sobre obras
de arte?
Vegel afastou­se da escultura, enquanto respondia à Toreador. Ele
não se sentia à vontade em manter uma conversa tão trivial,
permanecendo tão próximo da tocante angústia sofrida por Adão e Eva
ante seu filho Abel. Especialmente depois que Vegel já tinha sido alertado
de que se tratava das reverberações da essência negra do primeiro
assassinato. O próprio Caim — se ainda vagasse pela Terra — estava
vinculado a cada imagem dessas. Até mesmo a simples menção do evento
soava como uma trombeta que o convocava. De acordo com as histórias
que Vegel ouvira, muitos foram os tolos neófitos que tentaram essa lenda,
e muitos foram os infelizes que morreram logo após dar crédito
supersticioso à veracidade da mesma.
Se Victoria percebeu seu desconforto, ela não deu sinal algum
disso.
Vegel respondeu:
— A serviço de meu mestre, é claro.
— Hesha? — perguntou Victoria, embora claramente ela soubesse a
resposta.
— Sim.
— Eu quero tanto marcar um encontro com ele... — amuou­se
Victoria, comportamento aliás, esplendidamente apropriado à roupa e aos
adornos.

136 Toreador
Vegel assentiu e, sorrindo, disse:
— É por isso que você fez seus convites com a escandalosa Mulher
Mordida por uma Cobra, de Clesinger? É veneno ou êxtase o que a faz
estremecer tanto?
— Você é espantoso, Vegel. — disse Victoria. — Mas por que é que
Hesha exigiria que sua progénie fosse tão atenta à arte, como à estimada
Mulher; de Auguste? Embora se trate de uma peça de notoriedade, e talvez
alguma inovação para sua época, certamente ela não tem nenhum valor
especial para um caça­tesouros como Hesha. Caso não haja outra razão,
então certamente a idade deve estar sendo um estorvo. Quero dizer, ela
tem apenas 150 anos!
Vegel explicou casualmente: — É uma peça nova, ‘Helena’, mas
Hesha deseja que estejamos cientes das antigas e das novas. Além disso,
embora 150 anos tenham um viço juvenil para nós, é uma idade bem
antiga para o dinheiro novo dos Estados Unidos. Eu estou certo de que há
um milhonário da era da informação, cheio de dólares, que esteja disposto
a revelar aos seus convidados de forma nem um pouco sutil, que ele é um
homem de coração com apetite sexual, e não meramente um cavalheiro
cerebral com um físico medíocre e uma masculinidade diminuta. — Você é
muito engraçado, Vegel — disse Victoria, sorrindo. O sorriso parecia mais
genuíno desta vez, mas isso só servia para ajudar Vegel a manter a cautela.
Ela continuou: — Não é de se espantar que digam que a riqueza de Hesha
é tão grande;
Com caçadores tão capazes quanto você para dar impulso ao jogo,
ele só precisa planejar os meios de obtenção.
Vegel disse: — Porém, se eu pareço um exibicionista, é porque você
tocou numa extravagância pessoal minha, os bustos de Helena.
Victoria levantou uma sobrancelha para que ele continuasse, mas
Vegel demorou­se.
Ainda balançando a cabeça, Vegel continuava a resistir: — Não,
não, as explicações realmente revelam muito de mim. Devo me inclinar ao
geral, só para dizer que o divino sorriso dela, tão finamente executado por
Canova comunica a própria essência do auto­conhecimento. Esta Helena
claramente sabe algo sobre si mesma, sobre seu mundo, sobre os outros
que o habitam; algo que os demais ainda têm que descobrir, por si
próprios.
— Talvez, então, caro Vegel, você devesse ficar com a cabeça que eu
tenho em exposição esta noite. Uma lembrança da festa, digamos?

Stewart Wieck 137


As costas de Vegel estremeceram com um arrepio causado pela
expressão de Victoria. Sua surpreendente oferta foi comunicada enquanto
ela reproduzia exatamente o sorriso impossível do rosto de Helena. Ele foi
tão perfeito, que parecia inteiramente natural para o momento.
Precisamente fixos estavam os lábios nos quais o sorriso era virtualmente
inexistente, com exceção do sutil repuxado nos cantos dos olhos que
transmitia a curiosa ilusão de um sorriso.
Embora agitado como estava, e percebendo pela primeira vez que
estava muito, muito longe dos seus quando lidava com Victoria Ash, Vegel
deu um jeito de voltar hesitantemente à continuidade da conversa.
— Uma oferta totalmente imprevista e franca, Victoria, mas eu
devo rejeitar.
Nem tanto por eu já possuir uma cópia, mas também por esse
motivo. Você claramente merece a peça, mais do que eu poderia jamais
imaginar.
— Obrigada — disse Victoria, demonstrando sinceridade. — Creio
que eu teria me arrependido do presente se você o aceitasse. Engraçado
como uma peça que simplesmente tivera seu lugar como parte de minha
coleção, pudesse de repente vir a significar­me algo mais. Obrigado, Vegel,
por esse presente.
Algo ou alguém chamou a atenção de Vegel e ele olhou para a
esquerda, antes de voltar seu olhar para Victoria, embora isso não fosse
uma distração capaz de escapar à atenção dela.
Vegel observou:
— Como eu disse, claramente você a merece, e agora seu busto
merece você.
Entretanto, temo que por mais deleitável que considere sua
companhia, eu tenha que lembrá­la de que você também tem outros
convidados aqui esta noite. Mais de meia dúzia deles já me lançaram
olhares terríveis por distraí­la por tanto tempo.
Então, para minha segurança, talvez eu possa encorajá­la a
abençoá­los com seu radiante sorriso.
— Sim, sim — concordou Victoria. — Estou certa de que nós dois
temos outros negócios a tratar esta noite. Todavia, não me arrependo do
tempo que passei com alguém que me era, previamente, um estranho.
Espero ouvir algo mais de você,Vegel.
Intrigado, Vegel perguntou:
— Diga­me, por favor, com que pretexto, ‘Helena’?

138 Toreador
Victoria respondeu:
— Ora, para examinar o busto de Helena, é claro. Ou trazer
notícias de qualquer tesouro que não interesse a Hesha, mas que poderia,
por outro lado, tomar­se uma ótima contribuição à minha própria coleção.
Movendo­se em direção ao previamente desconhecido Canova,
Vegel disse:
— Talvez nós devêssemos inverter posições. Eu discorrerei sobre
conhecimento de arte e história da arte como um Toreador afetado e vazio,
e você bode pôr seus ardis de caça­ao­ tesouro para funcionar como um
Setita escorregadio e conivente, que finge ter muitos amigos, mas que na
verdade só tem um — isso se puder contar consigo mesmo.
Victoria não pareceu se surpreender com esse rude comentário,
ou se surpreendeu, o fez em silêncio.
Então, Vegel continuou:
— Assim, ofereço minha despedida com graça serpentina.
Virando­se para a angustiada mulher de mármore, Vegel
continuou: — Amável
Eva, salve­nos todos de uma quantidade excessiva de problemas e
perdoe Caim por sua transgressão.
Em seguida, aproximou­se de sua anfitriã e murmurou ­lhe:
— Não desista de sua alusão às serpentes, amável ‘Helena’. Embora
eu creia que as cobras venenosas lhe cairiam melhor do que uma víbora
imortal, como eu.
Com isso, Vegel volveu­se rapidamente e se afastou. Enquanto o
fazia, o Setita notou, com pesar, que a luz fraca de antes parecia ter sido
corrigida, o que parecia impossível, a não ser que a razão para o problema
estivesse associada à eletricidade e às lâmpadas. Isso fez com que ele se
sentisse muito desconfortável.
Mas Victoria conjurou seus pensamentos de volta ao momento.
Com língua ferina e petulante, espichando­se às costas de Vegel, a
Toreador foi rápida com um gracejo de festa:
— Os mortais não me interessam, Vegel, nem as cobras comuns.
Olhando para trás para pegar essas palavras, Vegel imaginou
Victoria como uma colegial de devaneio, enquanto ela delicadamente
enrolava um cacho ao redor de um dedo macio e, com hábil movimento
de pescoço, lançava um beijo a Vegel.
Quando sentiu o sensual calor do beijo derreter­se em seu
pescoço, ele imaginou que mágica ela teria feito. Como ela poderia ter

Stewart Wieck 139


adivinhado que seu humor e alusão estudantis seriam eficazes em alguém
aparentemente tão culto e intelectual como ele? O que era ainda mais
assustador: o sorriso mimetizado e assombroso constituía um choque
prolongado.
Porém, que tal medo fosse rejeitado, pois Vegel estava se
apressando para encontrar seu contato Nosferatu — a primeira e única
razão pela qual aceitara o convite para esta festa, no lugar de Hesha.

140 Toreador
Segunda­feira, 21 de junho de 1999; 11h 38min
Museu de Arte
Atlanta, Georgia

A proliferação de cadáveres de Abel neste último andar do Museu


de Arte perturbava Vegel. Ele era supersticioso demais para rir junto com
a maioria dos Membros, na presença da indecência vulgar da exposição.
Após ter deixado Victoria com a Lamentação a Abel Morto, de
Antônio Canova, ele estava passando por uma escultura aparentemente
recente, quando percebeu que se tratava de uma outra cena da morte de
Abel. E isso ainda foi antes de seu encontro com o Nosferatu Rolph ao
lado d’O Abel Morto, de Dupré. Portanto, Vegel sabia haver pelo menos
mais um cadáver esculpido a esperá­lo.
Na mesma medida em que o exagero de representações da morte
de Abel era perturbador, Vegel deu ­se conta da extensão do perigo que
Victoria Ash representava. Ela o estava seduzindo abertamente e, ainda
por cima, com a maior facilidade. Desde seus antigos dias como um
mortal, jamais seu desejo esteve tão fora de seu controle. A maldição do
efeito dela sobre ele era tal que, mesmo apesar de compreender que ela
estava abrindo caminho rumo ao seu coração, a sensação era deliciosa
demais para se resistir. Poucos perigos para os Membros eram maiores que
os da nostalgia, e lembrar tão vividamente das esquecidas tangências do
desejo era revigorante e irresistível.
Retardando seu passo antes que passasse pelo Abel recém­
esculpido, Vegel cautelosamente esfregou seu pescoço onde o beijo da
Toreador o tinha massageado.
Era magia, ou meramente o fluxo do desejo o que aquecia seu
pescoço?
O novo Abel era monstruoso por razões inteiramente opostas ao
verísmo da obra de Dupré, o qual Vegel logo veria novamente (pois antes
ele o vira anos atrás, quando a obra foi levada ao Louvre pela primeira
vez). Enquanto o Abel de Dupré era horrendamente representado, com
detalhes absolutamente realistas, a escultura que agora tinha diante de si
era uma caricatura mais chocante.
Vegel normalmente preferia ver novas obras sem interferências,
mas ele descobriu­se absorvendo lentamente os detalhes dessa estranha
peça, apesar da presença de um outro observador. Felizmente, o esguio

Stewart Wieck 141


vampiro estava quieto. Em todo o caso, Vegel não prestava atenção nele,
mas concentrava­se totalmente na escultura.
Sua análise foi irritantemente interrompida, quando o estranho
disse:
— Que lixo, não?
Rudemente, Vegel disse:
— Eu ainda estou indeciso. Tirarei minhas próprias conclusões
após uma análise mais profunda.
Vegel percebeu de relance que o outro Membro estava zombando
dele, olhando fixamente para baixo e por sobre seu longo nariz enquanto
Vegel dava­lhe as costas e continuava sua observação. O Setita percebeu o
outro se afastando alguns passos, mas o gesto era claramente de irritação,
mais para atrair a atenção, do que uma cortesia para permitir o
isolamento que Vegel preferia.
O aspecto mais surpreendente desta cena de morte era a
anatomia das duas figuras. Os braços e pernas tanto de Caim quanto de
Abel eram suaves e corpulentos, e os troncos possuíam pouca definição.
Além disso, as cabeças eram demasiadamente grandes­pesadas demais para
os corpos das figuras. Como a escultura era entalhada numa pedra preta
sem textura, essa desproporção proposital era acentuada.
A arma da morte era uma espécie de corda, e o estrangulamento
era o que passava a sensação de que Abel não tinha sangue —
presumivelmente não o que ocorrera na realidade.
As expressões eram intrigantes e bem executadas; tanto que Vegel
estava surpreso por não reconhecer a peça, ou mesmo o artista. A face de
Abel estava iluminada por uma alegria jovial, sem nem ao menos um sinal
de resignação. Ficava claro que ele antecipava a jornada para o céu. Vegel
imaginava se não havia algo naquilo. Sim, tratava­se do primeiro
assassinato, mas era também a primeira morte?
Abel era o primeiro dos semelhantes a Deus que iria para o Seu
lado, no céu. Ou isso era antes da admissão da humanidade no céu? Vegel
estava incerto quanto a esse detalhe do cristianismo.
Essa premissa intrigante tomava a face de Caim ainda mais
decifrável, pois a expressão do assassino era de resolução e determinação,
mas com um lábio superior levemente franzido para denotar algum
desgosto. A escultura contava a Vegel uma história de Caim matando Abel
a pedido deste.
Voltando para a frente da peça, de modo a deixar o outro

142 Toreador
novamente atrás dele, Vegel notou a placa de bronze com o título impresso
de Abel Condena Caim, o que potencialmente confirmava a interpretação
que o Setita fizera da peça. Deste lugar, Vegel também podia ver que a
“corda” era, na realidade, um cordão umbilical, ainda preso ao umbigo de
Caim. Essa revelação tomava ridiculamente claro que os irmãos não
estavam de fato deformados, mas que eram, na realidade, infantes.
Vegel debatia­se com a idéia de que essa descoberta afetava a
interpretação da peça.
De trás, ele ouviu:
— Eu não os deveria ter feito crianças, deveria?
Vegel suspirou intimamente e mentiu:
— Eu admito que esse aspecto da obra inicialmente estava confuso,
mas à luz do título, acho­o inteiramente apropriado e, mais que isso, uma
proposta muito atual.
Raramente ele gostava de discutir a peça com seu criador,
principalmente um que ficava à espreita daqueles que se aproximavam de
seu trabalho para colher comentários. Mesmo nos raros casos em que a
apreciação de Vegel de uma peça não era imediatamente azeda devido à
personalidade do criador, por mais que a peça em si fosse extraordinária,
ele preferia estar no mesmo nível quando discutia uma obra com alguém.
Quando a conversa era com o criador, a interpretação de Vegel só podia
ser correta, ou mesmo razoável, se tivesse muito em comum com a
interpretação que o próprio criador dava ao seu trabalho. Era difícil
discutir com um criador que se auto proclamava especialista. Os artistas
não podiam ser especialistas de seus trabalhos para todos, pois muito da
arte está no olho do observador.
O Setita virou­se para o artista e completou, esperando que sua
mentira extinguisse a necessidade do outro de discutir a escultura:
— Você deve ser o artista. Eu sou Vegel, um colecionador de
antiguidades.
— Não se interessa por obras novas, então — disse o homem
magro, com sua tentativa de sorriso desaparecendo numa carranca. — Meu
nome é Leopold, e sim, a obra é minha.
Cara a cara com ele agora, Vegel aproveitou um momento para
analisar o artista.
Embora fosse um Membro e, presumivelmente, um Toreador — ou
de outro modo Victoria Ash não permitiria que sua peça fosse admitida
aqui (pois embora imperfeita, a obra era boa demais para que se zombasse

Stewart Wieck 143


dele no evento, caso ela tivesse permitido a exposição com a única
intenção de embaraçá­lo) — Leopold tinha a aparência de um artista que
passava fome. Ele era magro, abatido, curvado e despenteado como
somente uma pessoa indiferente com a própria aparência, mas que tenta
se arrumar antes de um evento como esse, poderia ser. Porém, Vegel
notou um brilho nos olhos do artista que lhe indicou que esse Toreador
era um criador. O brilho poderia advir da loucura, mas com frequência,
essa luz era a mesma que guiava o trabalho artístico inspirado.
Vegel foi tentado a revelar sua mentira para o artista, mas havia
negócios muito mais urgentes esta noite do que um talento
potencialmente notável. Assim, eliminando de sua voz qualquer tom de
compromisso ou interesse, Vegel disse:
— É uma bela peça. Agora, se me dá licença...
Leopold mal estava atento ao que Vegel estava dizendo, e fitando
a peça, murmurava:
— Essas substâncias duras ainda não estão me respondendo bem.
Talvez eu devesse usar algo mais maleável, como madeira. Dá pra imaginar
isso em madeira? O cordão umbilical poderia ser tão mais dinâmico! Eu
simplesmente não poderia conceber nenhuma energia... através... de
uma... pedra...
Mas Vegel se fora. Ele não se virou, nem mesmo quando as
palavras do artista, indelicadamente, se arrastaram no silêncio. O Setita
não desejava encontrar os tristes olhos do Toreador.

144 Toreador
Segunda­feira, 21 de junho de 1999; 23h 47min
Museu de Arte
Atlanta, Georgia

Acena parecia tirada de algum dos primeiros filmes de monstros


hollywoodianos uma figura encapuzada e vestida toda de preto, agachada
ao lado da forma praticamente nua de um homem. Feições monstruosas
não eram prontamente identificáveis, devido ao capuz do manto, mas a
contraluz evidenciava uma silhueta de nariz nodoso e torto, e um queixo
muito afilado e longo que se projetava de dentro do capuz, à medida que a
cabeça lentamente se volvia.
Vegel imaginou um bosque de elegantes vidoeiros brancos que
completaria a sinistra cena. Seus troncos esguios e brancos seriam ossos
alvos e gigantes, sobressaindo em direção ao céu, visíveis à noite, mesmo
sob o mais pálido luar.
Mas não havia árvores. Nem havia um cadáver. Entretanto, havia
um monstro Rolph, do clã Nosferatu, o vampiro cujo encontro tinha sido
o objetivo especial da viagem de Vegel a Atlanta.
Rolph de fato curvava­se como se estivesse sobre um cadáver; mais
um de Abel. Esse era o Abel de Giovanni Dupré, O Abel Morto. Não
era uma interpretação romântica do homem morto. Seus braços estavam
com os cotovelos para fora , seus olhos afundados em sua face e sua boca
pendia aberta. Dedos e pontas de dedos faltantes não faziam parte do
escopo do escultor — tais faltas ocorreram cerca de um século e meio após
a conclusão da obra.
Quanto a Rolph, havia pouco a se ver, devido ao manto, embora
Vegel o reconhecesse imediatamente, de relações pessoais no passado. Não
tinha como confundir o nariz bulboso e torto para a esquerda, ou o
queixo tão longo e pontudo que parecia um chifre crescido embaixo do
fino lábio inferior do Nosferatu. Eram feições que escapariam de qualquer
capa ou capuz.
Rolph tinha uma estatura média, talvez alguns poucos centímetros
a menos que o um metro e oitenta de Vegel, embora ele continuasse
agachado mesmo após perceber que o Setita se aproximava. O volumoso
manto marrom drapejava por todo o chão ao redor do Nosferatu, por isso
Vegel não conseguia determinar o que ele vestia por baixo.
Rolph falou primeiro.

Stewart Wieck 145


— Saudações, Vegel. Eu estive observando sua movimentação e
imaginava quando você se disporia a resolver os reais negócios de sua
viagem.
Vegel respondeu:
— Olá, Rolph. — Então, após mais alguns passos que o levaram a
uma distância confortável enquanto o Nosferatu finalmente se levantava,
Vegel se defendeu: Minhas instruções eram para que o encontrasse no O
Abel Morto, próximo à meia noite, mas antes desse horário. Se dispusesse
de instruções mais precisas, eu teria prazer em satisfazê­lo mais a contento.
— Não importa — disse Rolph. — Você está aqui com tempo de
sobra. Eu imaginava se talvez você estivesse aturdido com a confusa
quantidade de Abéís que se espalham por esta câmara, embora eu tenha
visto que, de fato, você estava distraído por vivas, ou pelo menos quase
vivas, preocupações, na forma de nossa temível anfitriã.
Vegel ficou sem jeito com essa acusação, mas pouco havia que
pudesse fazer para contestá­la, então ele mentiu, ao mesmo tempo em que
devolvia o golpe a Rolph:
— Sim, nós conversamos um pouco. Sinto que ela pode ser de
imensa valia para ajudar a localizar artefatos importantes que Hesha
procura.
— Entendo — disse Rolph — Então talvez seja hora de tratarmos
dos negócios.
— Claro! — respondeu Vegel, aliviado por ter passado pelos
gracejos, uma vez que ele não gostava de conversas superficiais e, menos
ainda, conversas superficiais com um Nosferatu. Ele não confiava em
membros desse clã, embora eles em geral, e Rolph em particular, tivessem
fornecido assistência aos seus esforços. A feiúra do clã fazia crer,
erroneamente, que tudo o que se relacionava a um Nosferatu era tão
visível quanto ela. Frequentemente, eles exageravam isso com uma rudeza
como a que Rolph tinha manifestado ao mencionar Victoria Ash.
Eles também fingiam ser transparentes em suas tramas, mas Vegel
sabia, por experiência própria, que eles podiam ser os mais astutos dos
vampiros da Camarilla.
Os Ventrue podiam afirmar ser os mestres da falsidade, já que sua
arena era, de todo modo, política. Entretanto, essa era uma afirmação que
os Nosferatu concediam aos líderes da Camarilla, numa manobra para
dissimular ainda mais profundamente os feitos do seu clã.
Rolph disse, contrito:

146 Toreador
— Sinto por ter arrastado você a este covil de ladrões, mas,
honestamente, era meu único meio de fornecer algum material que Hesha
há muito tem procurado.
Vegel não inquiriu quanto à privacidade da conversa deles,
mesmo estando ela se desenrolando a olhos vistos na galeria. Certamente,
esse era um detalhe do qual Rolph tinha se assegurado, e se o Nosferatu
não o tivesse feito — isto é, se Rolph quisesse que essa conversa fosse
ouvida — então não haveria nada que Vegel pudesse fazer a respeito. Ele
poderia, com seus murmúrios sibilantes, se dirigir a alguns outros Setitas
sem que ninguém fora do clã fosse capaz de traduzir, mesmo que pudesse
ouvir, mas ele duvidava que o segredo daquela língua fosse conhecido
mesmo pelo ardiloso Nosferatu.
Rolph continuou:
— Entretanto, eu sei que seu risco valerá a pena, pois esta noite, o
Clã Nosferatu gostaria de pagar um débito antigo para com Hesha. O que
eu lhe dou deveria até se relacionar ao caso de Bombaim, há alguns
séculos. Esse incidente foi anterior ao nosso tempo, mas eu garanto que
seu mestre saberá do que eu falo.
Vegel disse:
— Muito bem. Eu relatarei ao meu mestre a notificação do
pagamento do débito e qualquer informação ou material que você forneça.
Se ele julgar a questão injusta ou não saldada, então eu estou certo de que
ele contatará seus mestres. Mas se não me for exigido nenhum pagamento
direto, então acolherei com prazer o que quer que você venha a revelar a
seguir.
— Entendido — disse Rolph. O Nosferatu então deu alguns passos
para o lado, de modo que a escultura de Dupré não ficasse mais atrás de
si. O movimento proporcionou a Vegel uma visão desobstruída da peça. —
O que eu ofereço esta noite, amigo Vegel, é um artefato por demais
desejado e há muito procurado por seu mestre. Ofereço nada menos que o
Olho de Hazimel.
Vegel não pode evitar ser pego de surpresa. O que quer que
tivesse acontecido em Bombaim, há muito tempo, deve ter deixado alguns
anciões importantes dos Nosferatu em débito para com Hesha, pois o
Olho de Hazimel poderia ser o Olho Maligno, o artefato que serviu de
base para todas as tolas posturas dos ciganos e simplórios supersticiosos.
Que no âmago dessas lendas, geralmente havia alguma verdade, era algo
que Vegel aprendera cedo em seu serviço para Hesha. — É tarde demais

Stewart Wieck 147


para eu esconder minha surpresa, Rolph, portanto admitirei meu choque.
Se o que você oferece é realmente o Olho de Hazimel, então é
claro que eu levarei sua informação a Hesha, para que ele possa procurar o
item onde quer que ele repouse.
— Procurar não é necessário — riu Rolph. — O Olho está aqui
nesta estátua de Abel.
Rolph apontou sua mão para o cadáver aos seus pés.
Vegel disse, surpreso: — Então ele pertence a Victoria Ash?
Rolph explicou: — Certamente não. Pelo menos não em sentido
real, pois é virtualmente certo que a adorável Sra. Ash nem ao menos
percebe que o Olho reside dentro de sua escultura, se é que ela está ciente
da existência dele.
Sentindo­se repentinamente estranho por analisar a escultura tão
de perto, com medo que seu olhar se transformasse em um coração
denunciador, Vegel, todavia examinava a peça atentamente, embora o
fizesse sem sair da posição em que se encontrava. Ele continuava com
dúvidas. Suas melhores técnicas de detecção — poderes que já haviam
localizado brincos de jade levemente encantados, trancados em algum
lugar num trecho de cinco quilómetros da Grande Muralha da China, e
depois quando eles foram enterrados a uns cem metros abaixo da terra —
não notavam, a presença da mais insignificante ninharia mágica em
nenhum lugar do Abel esculpido. E o Olho de Hazimel, especialmente se
fosse o Olho Maligno provavelmente teria se mostrado a Vegel, assim que
ele se aproximasse à distância de algumas dúzias de passos, mesmo que o
Setita não o estivesse procurando ativamente.
E Vegel perguntou: — Você pode explicar, então, por que todos
parecem tão ignorantes quanto à presença dele ?
— Certamente. — sorriu Rolph. — Em seu estado atual, o Olho
não pode ser detectado.
Vegel deu um suspiro inaudível. Como se aquilo realmente
explicasse algo. Em seu estado atual...
Rolph continuou:
— É por isso que é improvável que a Sra. Ash perceba que possui
este item. É também o porquê de ser necessário dar este presente a você
em um local tão público, onde temos acesso a esta escultura, e o motivo
pelo qual arranjamos para que você fosse convidado a esta celebração.
Consentindo com a cabeça para que Rolph soubesse que ele
estava ouvindo, Vegel esquadrinhou a grande câmara. Se era para ele

148 Toreador
tomar posse de um artefato tão poderoso, então era crucial saber quem
estava por perto. Pois o Olho podia ser de detecção impossível em seu
estado atual, mas e quando ele fosse retirado da escultura? Pelo menos
Vegel esperava que ele pudesse ser retirado. Havia poucas chances de ele se
esgueirar para fora da festa com a escultura de um cadáver embaixo do
braço, e isto supondo­se que ele tivesse a força de Hesha e fosse capaz de
erguer a obra­ prima de Dupré.
Vegel percebeu vários detalhes importantes, enquanto examinava
os arredores. Primeiro, ficou satisfeito ao confirmar que este Abel Morto
estava na periferia da câmara. Não havia uma multidão de Membros entre
ele e a saída de emergência mais próxima.
Segundo, ficou aliviado ao ver que Hannah, a líder da capela
Tremere, ainda estava ausente. Se algum dos Membros da cidade era capaz
de detectar o Olho, seria ela. E o Setita sabia que, para possuir este, único
e antigo, ela desistiria de seus próprios olhos sem vacilar um segundo
sequer.
Terceiro, ele ficou desconcertado ao ver Victoria Ash a observá­
lo, de modo que seus olhares se cruzaram pouco antes que ele o desviasse
dela — com dificuldade.
Finalmente, Vegel ficou alarmado ao perceber que o grande
relógio de bronze localizado sobre a janela que dava para a Rua Peachtree
em frente do Museu, estava apenas a alguns tique­taques da meia­noite.
Embora nenhum horário tivesse sido definido, a impressão de Vegel era
que a meia­noite era uma espécie de prazo final para esta transferência.
— Se eu puder, tenho algumas perguntas — disse Vegel.
Rolph olhou para o mesmo relógio que Vegel checara segundos
antes.
— Certamente, mas nosso tempo é curto, portanto sejamos breves
e relevantes.
Sem dar muita pausa, Vegel disse:
— Por que meia­noite ?
— Porque nós arranjamos uma rota de fuga para você. Se é para
que a rota sirva a seu propósito, você deve passar por aquela saída de
emergência precisamente um minuto antes da meia­noite.
Vegel assentiu brevemente e perguntou:
— O Olho será detectável uma vez removido da escultura?
— Não por um período. Certamente por tempo suficiente para
você realizar sua fuga. Enquanto ele estiver em um objeto inanimado não

Stewart Wieck 149


pode ser detectado, nem mesmo por seu progenitor. Na verdade,
especialmente por seu progenitor, mas presumivelmente por outros que
também usam os mesmos métodos.
Dragando lentamente algumas lembranças das lendas do Olho,
Vegel perguntou:
— E se for colocado em um ser animado ?
— Ele tomará vida na órbita vazia de um ser animado.
Esperando obter alguma informação que ainda não possuía, mas
que o Nosferatu poderia fornecer, Vegel arriscou:
— Para esse propósito, um vampiro é considerado um ser
‘animado’? — É quase certo. O Olho vem de um da nossa espécie, afinal.
Rápido agora, última pergunta.
Vegel pensou por um momento. Ele não gostava da idéia de que
outros lhe fornecessem uma rota de fuga. Francamente, ele ficava nervoso
até quando essa tarefa era deixada nas mãos de Hesha. Não tinha havido
problema nenhum, é claro — quem ousaria se opor a seu mestre ? — mas
deixar um negócio tão sério quanto a sua existência e um artefato precioso
nas mãos de Rolph, mesmo sendo ele um aliado eventual aparentemente
pagando algum débito antigo, deixava­o nervoso. Brandindo um telefone
celular que ele tirou de um bolso interno do seu casaco, Vegel perguntou:
— Por que a sua rota de fuga? Por que eu não aceito o Olho e
então chamo meu motorista para partir como cheguei? Afinal de contas, o
Olho permanecerá oculto…
A face de Rolph que havia empalidecido com sua impaciência,
imediatamente se ruborizou, devido ao que Vegel só podia interpretar
como confusão. Rolph se recompôs, lançou um olhar sobre o relógio,
olhou seriamente para Vegel e disse:
— Ouça, e ouça com atenção, pois após responder­lhe, eu
entregarei o Olho a você e o conduzirei imediatamente através da porta de
emergência mais próxima de nós. É uma instrução que eu recomendo
veementemente que você atenda. Por favor, chame seu motorista, mas
deixe­o chegar e partir novamente, como um chamariz. Eu prometo que
você não o verá novamente.
Rolph olhou atentamente os olhos de Vegel por um momento
após esses pronunciamentos. Vegel entendeu que o gesto não cuidava de
subjugar sua vontade, como alguns Membros eram capazes de fazer, mas
era, ao invés disso, simplesmente um teste para verificar se a sinceridade
dessa mensagem afetava o Setita. Com um lento assentimento, Vegel

150 Toreador
manifestou sua compreensão.
— Bom — disse Rolph.
Movendo­se rapidamente, Rolph levantou suas mãos e, com seus dedos
separados, como se sua mão fosse se fender como se esquartejada por
cavalos, ele retirou o capuz para revelar uma face tão repulsiva quanto
Vegel recordava. O Nosferatu se importava pouco com a reação de Vegel, e
de fato nem a percebeu. Parecia igualmente indiferente com relação a
todos os outros nas galerias.
Ao invés disso, enquanto Vegel olhava ao seu redor, desviando
brevemente sua atenção de Rolph, ele viu que os movimentos repentinos e
exagerados de Rolph não chamavam absolutamente nenhuma atenção. De
fato, todos pareciam estar intencionalmente olhando para longe deles dois.
Vegel sentiu um grande prazer por estar no epicentro do poder do
Nosferatu. As habilidades de vários Membros jamais deixavam de
impressioná­lo. Ele era capaz de encontrar um brinco de jade na Grande
Muralha da China, mas Rolph era efetivamente capaz de fazer desaparecer
a si e, aparentemente, a outros.
O divertimento do Setita acabou, quando ele observou apavorado
Rolph recuperando o Olho de Hazimel. Inclinando­se sobre a escultura de
Abel, o Nosferatu esfregava vigorosamente o polegar e o indicador de sua
mão direita. Ele usava sua mão esquerda para estabilizar seu peso contra o
peito de Abel enfiando­lhe os dedos em seu olho esquerdo. Vegel
instintivamente hesitou, esperando que fragmentos da escultura caíssem
do ponto de impacto, mas ao invés disso, os dedos de Rolph inseriram­se e
desapareceram dentro dos globos oculares, como se eles fossem água turva
e profunda.
Rolph contorcia­se e volvia­se, com seu pulso virando e repuxando
em giros violentos, como se o Nosferatu estivesse tentando agarrar algo
dentro do olho ou da cabeça da escultura. A mão e o braço de Rolph, de
repente, prenderam­se numa
rigidez quase violenta, e ele olhou para cima, desferindo um sorriso
dolorido sobre Vegel.
Vegel então seguiu o olhar do Nosferatu de volta ao relógio de
bronze, e embora se tivesse virado novamente para ver a cabeça de Abel e
os dedos do outro estendendo­se dentro dela, a atenção de Rolph
permaneceu focada no relógio. Ele estava em contagem regressiva rumo às
23h 59min. Enquanto os minutos se passavam, Rolph permanecia

Stewart Wieck 151


congelado. Até que ele olhou novamente para Vegel.
— Pronto? — perguntou o Nosferatu.
— Pronto.
Com um som de sucção, viscoso como o de um desentupidor de
pia molhado quando solta seu “vácuo", Rolph lentamente retirou sua mão
da escultura. Uma luminosidade, como a de uma luz negra de 1000W,
cegou Vegel, mas ele ainda era capaz de ver a sombra de algo oblongo e
pulsante entre o polegar e o indicador do Nosferatu.
Como se segurasse algo perigoso, ou quente, ou precioso — ou
mesmo todos os três ao mesmo tempo —, Rolph cuidadosamente ofereceu
o objeto a Vegel e soltou o lentamente sobre a palma da mão do Setita.
Gotas pegajosas de algo coagulado pingaram do objeto sobre a mão de
Vegel, antes que o objeto em si, frio e úmido, pousasse sobre sua mão.
Vegel fechou sua mão e sentiu o objeto esponjoso, mas liso e
surpreendentemente pesado, e isso bloqueou um pouco da luz que vazava,
embora sua mão não fosse grande o suficiente para envolver
completamente o Olho. Sua visão recuperou­se parcialmente e Vegel,
preocupado, olhou em volta, mas descobriu que nenhum desses
espantosos eventos tinha atraído a atenção dos outros. Enquanto ele
estava lá banhado pela luz sobrenatural do globo ocular de um antigo
Membro, os outros Membros continuavam seus debates sobre política.
Isso fez Vegel sorrir.
Essa alegria durou pouco, pois Rolph puxou Vegel pela manga e o
levou em direção à porta vermelha, da saída de emergência.
— Vá e não se preocupe com o alarme — disse o Nosferatu, cuja
pele ganhara uma palidez ainda menos atraente à luz purpúrea.
Vegel não hesitou. Todavia, não correu apressadamente em
direção à porta, pois ele não tinha certeza de que a ocultação que Rolph
fornecia, se estendia para além da proximidade imediata do Nosferatu.
Além do mais, a porta estava muito próxima, e Vegel a alcançou sem atrair
nenhuma atenção sobre si ou sobre a poderosa orbe em sua posse.
Quando a pesada porta de emergência foi­se fechando e cerrou­se
atrás dele, Vegel ouviu o soar de um alarme. A sua frente havia lances de
escada que levavam somente para baixo. Ele não tardou. O ecoar de seus
passos saltando os degraus metálicos, certamente não seria capaz de atrair
mais atenção do que o alarme.
Vegel era relativamente forte, além de possuir o vigor

152 Toreador
sobrenatural de todos os Membros, e assim sua descida pelas escadas era
muito rápida. Ele ainda segurava o Olho em sua mão direita, e depois de
descer vários degraus, a luz púrpura se apagou. Ao mesmo tempo, o Olho
pulsou mais rapidamente que antes, mas logo se acalmou.
Após descer quatro lances de escada, dois andares do museu,
Vegel chegou a um pavimento onde uma fita amarela, como a usada para
demarcar limites policiais, estava esticada na entrada do que parecia ser
uma antiga porta de acesso de empregados. Outros lances de escada
continuavam levando para o solo, mas ele suspeitava que a rota de fúga do
Nosferatu continuava através desta porta. Do contrário, Rolph teria
removido a fita para evitar esse tipo de confusão.
A porta estava seriamente corroída e um cadeado gasto prendia­a
a um antigo batente de madeira. Mesmo que a porta resistisse a esforços
para abri­ la, Vegel tinha como certo que o batente se quebraria e
permitiria o acesso. Essa tática, é claro, revelaria sua rota se estivesse sendo
seguido, portanto ele concluiu que deveria haver um modo de solucionar
o problema com menos violência.
E havia. Após um exame mais cuidadoso, Vegel percebeu que a
madeira roída estava, de fato, rachada ao longo de toda sua extensão. Vegel
aplicou uma pressão cuidadosa e diligente, e descobriu que toda a
estrutura — porta , batente e tudo o mais — podia ser aberta como uma
unidade.
Ela abriu o suficiente para permitir que o Membro se esgueirasse
para dentro, embora seu esforço tenha sido recompensado com algumas
farpas, duas das quais penetraram em suas roupas. Elas também poderiam
ter cortado sua carne, mas a pele de Vegel era mais resistente que a de
qualquer mortal e por isso, quebraram­se como palitinhos de dente.
Somente as luzes de emergência iluminavam a área atrás da porta
de acesso Vegel primeiro certificou­se de que não havia nenhum perigo
imediato, e então se virou para pôr o batente de volta no lugar. Com um
pequeno estalo, ele entrou em sua posição e, do outro lado, ela devia estar
parecendo ser tão inutilizada, quanto Vegel imaginara momentos atrás.
A pequena área na qual ele estava consistia de uma passarela do
que presumivelmente fora o fosso de algum elevador. O odor de graxa
velha denunciava a Vegel que esse não era um fosso atualmente em uso.
Em um ponto da passarela, escadas ofereciam acesso a andares
superiores e inferiores àquele em que se encontrava. O Setita decidiu que
deveria continuar para baixo. Rapidamente, pôs o Olho em segurança

Stewart Wieck 153


junto ao seu celular no bolso interno do casaco, deixando a passarela e
descendo a escada, com os pés e mãos pressionando fortemente os lados
externos das barras verticais.
Ele desceu os últimos centímetros até uma outra passarela — o
térreo, supunha ele — e então realizou a mesma manobra para alcançar a
passarela do porão. O fosso continuava para baixo, mas o elevador
aposentado estava "estacionado" nesse recesso, e Vegel foi em direção a
uma porta de acesso atrás dele.
Parou por um momento, contudo, e desligou seu celular. Não
podia correr o risco de receber uma ligação que denunciasse sua posição.
Então ele tentou a porta.
Estava trancada e Vegel olhou novamente ao redor. Enquanto
olhava, apalpou de leve seu peito, a fim de certificar­se de que o Olho
ainda estava com ele, embora o gesto fosse na verdade um reexame, já que
o artefato parecia estar ficando mais gelado. O frio quase doloroso podia
ser sentido através de seu casaco e camisa.
Vegel percebeu, então, que parecia haver uma escotilha meio
levantada no topo do elevador. Caminhou até a borda da passarela e
desceu aproximadamente um metro e meio, até parar próximo à escotilha.
De fato, ela estava entreaberta; então, a abriu.
A iluminação de emergência no fosso não clareava muito bem o
interior do antigo elevador, mas ele julgou que podia enxergar o suficiente,
para acreditar que o elevador estava vazio. Maldizendo essa atrapalhada
rota de fuga do Nosferatu, Vegel subiu com dificuldade, espremeu­se pela
escotilha e chegou ao fundo do elevador.
Vacilando no silêncio e na escuridão por um momento, Vegel não
pode evitar a lembrança das palavras de Rolph: Eu prometo que você não o
verá novamente.
O que ia acontecer ao seu motorista? Sua morte era necessária por
alguma razão, ou ele seria pego em um incidente maior? Esse pensamento
do perigo, acima, fez Vegel repentinamente ficar preocupado com Victoria
Ash. O breve impulso de voltar para ajudá­la o surpreendia, com força e
lucidez, mas resistiu ao chamado, pois confiava que nada de ruim
aconteceria com ela ou afetaria um fio que fosse de seus delicados cachos.
Vegel balançou vigorosamente a cabeça para esvaziá­la, surpreso
por seu lapso.
Não parecia haver nenhuma maneira de sair do elevador senão
pela escotilha, acima; rapidamente tentou abrir as portas. Elas deslizaram,

154 Toreador
como se estivessem bem lubrificadas e com boa manutenção.
Perante as portas abertas, Vegel encontrou uma passagem bem
iluminada e mais moderna. Ele ficou surpreso com o fato de que o
Nosferatu estivesse compartilhando tal entrada secreta com ele. O simples
fato dele haver encontrado esta, significava que devia haver uma outra
saída, até melhor, em outro lugar.

Stewart Wieck 155


Segunda­feira, 21 de junho de 1999; 23h 55min
Museu de Arte
Atlanta, Georgia

Pelo menos Stella fez os elogios apropriados a sua escultura.


Leopold respeitava sua opinião e sabia que ela tinha um olho sagaz,
treinado através da fotografia. Ele não confiava nos elogios de alguém que
considerava um amigo. Era muito fácil para um amigo gostar do trabalho
dele e muito difícil fazer críticas honestamente. Leopold jamais pode
entender a utilidade dos retiros ou comunidades de artistas. Uma mesma
pessoa não podia ser um bom crítico e um bom amigo; portanto esses dois
esforços estavam condenados à falha.
Ele a deixou ainda examinando o seu Abel Condena Caim. Há a
alguma distância apoiou­se em uma das paredes de vidro que se cruzavam e
dividiam a galeria. Tamborilou nela algumas vezes e acabou por admitir
para si mesmo que deveria aceitar os elogios de Stella. Ele estava muito
desconcertado devido à troca de idéias com o Setita, e aquilo havia
acabado com seu humor.
Como se ele já não estivesse desconcertado o suficiente!...
Cabeceou o vidro, em sua frustração. Então, envergonhado, olhou em
volta para ver se alguém tinha percebido seu comportamento petulante. A
princípio, pensou estar a salvo, mas percebeu, então, uma figura solitária
sentada sob uma grande escultura de uma figura masculina ainda não
examinada por Leopold.
O vampiro aos pés da escultura tinha um olhar feral. Seu cabelo
era longo e emaranhado, e sua face não era completamente humana. Era
muito significativa como a cabeça de um cachorro, talvez. Leopold
suspeitou que se tratava de um Gangrel, o que significava que ele
provavelmente era Javic ou o que morava no norte de Atlanta, cujo nome
era Dusty. Pela aparência selvagem do indivíduo Leopold suspeitou que era
este último.
Quem quer que fosse, ele olhava diretamente para Leopold, mas
não dava nenhuma indicação de saudação ou identificação enquanto
Leopold retribuía o olhar. Contudo, sua mirada fazia com que se sentisse
desconfortável, por isso o Toreador foi para um ponto em que ficasse fora
do alcance do olhar de todo mundo.
O adiamento não tinha diminuído sua frustração, e ele bateu
novamente com a cabeça no vidro. Desta vez, bateu tão forte, que suas

156 Toreador
orelhas zumbiram.
Ainda nada de Hannah! Maldição. Por que ela não estava ali?
Aparentemente ele não era o único que tinha percebido ou ficado
surpreso, pois já ouvira duas outras menções à Tremere. Todavia, era certo
que ninguém, como ele, tinha um negócio premente com ela.
Ele pensava se não a tinha entendido mal, mas se lembrava
claramente dela dizendo que o passo final do processo seria alguma magia
simples que ela usaria para fazer alguma coisa. Analisar a reação do sangue
em seu corpo, supôs ele.
E se tudo isso tivesse sido um truque? Leopold estremeceu a esse
pensamento, E se agora ele estivesse ligado a ela por sangue e ela não
precisasse estar aqui porque poderia ver através dos olhos dele ou, talvez,
até controlar algumas das ações dele?
Isso pareceu ridículo para o Toreador, mas ele já tinha ouvido
tantas coisas inacreditáveis nos últimos dois anos, que não estava disposto
a descartar a idéia independente de quão absurda fosse.
Assim, se Hannah não ia aparecer, Leopold pensou sobre o que fazer em
seguida.
Talvez ele devesse ir à capela Tremere e ver, por si mesmo, o que a
atrasara ou detivera. Ele não achou que essa era uma boa idéia. Se ela o
estava evitando, ou se tivesse outras razões para não estar aqui, então ela
provavelmente desconsideraria mais uma visita.
Ou talvez ele devesse só confrontar Victoria? Simplesmente
perguntar­lhe direto:
— Você é minha Senhora? — Mas isso era estupidez.
Por outro lado, talvez ele pudesse simplesmente conversar com
ela. Mesmo que ela não soubesse nada quanto ao seu passado, Victoria
ainda era sua primógena.
Isso dificilmente a tomava sua senadora — alguém obrigado a
representá­lo e ajudá­lo — mas talvez ela o ajudasse. Talvez ela conhecesse
segredos do sangue Toreador que permitiriam a ela descobrir quem era
seu Senhor. A idéia de compartilhar seu sangue com ela era muito
sedutora, embora Leopold balançasse a cabeça a essa infantil paixão
passageira pela mulher.
De qualquer forma, iria falar com ela. Afinal era a anfitriã, e ele
tinha que falar com ela dentro da própria galeria.

Stewart Wieck 157


Terça­feira, 22 de junho de 1999; 0h 04min
Museu de Arte
Atlanta, Georgia

Não houve fanfarras. Nada de portas abrindo­se dramaticamente


com sons trovejantes. Nada de declarações ou pronunciamentos. Nada
exceto o impressionante espécime que Victoria acreditava ter sido a única
a perceber entrar. Teria sido necessária uma comoção para atrair alguma
atenção, pois todos os Membros presentes no quarto andar do Museu de
Arte tinham abandonado a entrada em favor dos recessos da galeria, onde
formaram pequenos grupos.
Victoria não sabia dizer o que a trouxera para a entrada. Somente
uma sensação incómoda de que algo estava por acontecer. Talvez fosse
porque Rolph tivesse desaparecido há algum tempo, embora houvesse
reaparecido apenas para dar adeus a esta noite.O Nosferatu não ofereceu
nenhuma explicação e a pressa de sua partida não deu a ela oportunidade
para fazer perguntas.
A Toreador respirou fundo, pois o desfecho do plano que ela
havia colocado em movimento — e que mantinha em andamento por ter
entrado através da porta do Paraíso — estava prestes a começar. Ela
observava o recém­chegado entrar. Quando ele olhou para ela e sorriu,
depois de olhar rapidamente a câmara, ela estendeu as mãos para saudá­lo.
Ele se moveu como um gato pelos degraus que desciam da plataforma
sobre a qual as portas se encontravam. Chegou onde ela estava, em um
piscar de olhos, rapidamente perfazendo uma distância singular, sem
parecer estar apressado. O efeito era quase vertiginoso, e Victoria sentiu
sua cabeça girar. Ele aceitou suas mãos nas dele e fez uma saudação, com
uma inclinação de cabeça.
Julius era um homem abrutalhado que ajudava o justiçar Brujah a
administrar a justiça da Camarilla. Victoria gostou da aparência desse
arconte. Um homem negro grande, de face quadrada e cabelo longo e com
tranças. Julius exibia um rosto belo e forte. Victoria teve o estranho desejo
de passar seus dedos pelas cicatrizes purpúreas de seu rosto. Uma cortava
sua bochecha direita e estendia­se por sobre seu olho até a testa. Outra ia
desde a parte superior de sua orelha esquerda até quase o ponto central de
seu queixo quadrado.
Trajava calças vermelhas e largas, camisa de gola olímpica, justa e
preta , sobre a qual havia uma bandoleira antiquada. Os doze estojos de

158 Toreador
latão nessa cinta de couro evidentemente continham algo, pois eles faziam
ruídos quando o homem andava. Presas às costas de Julius, estavam as
espadas pelas quais ele era tão bem conhecido. Certamente elas não eram
as mesmas espadas que ele brandia nas arenas de Roma quando lutava, há
aproximadamente dois mil anos, mas em ambas estavam inscritas frases
em latim que Victoria não conseguia ler.
Mesmo que Victoria duvidasse seriamente da veracidade das
histórias que falavam de Julius como gladiador nas arenas romanas, não
havia dúvidas de que ele era, claramente, um homem perigoso.
independentemente disso, Victoria sabia que se a lei do Elísio fosse
quebrada esta noite, Julius encontraria suas mãos totalmente imersas em
um conflito com o Príncipe Benison.
Victoria estava desapontada pelo fato do Brujah não estar usando
nenhum símbolo dos Panteras Negras, uma organização que Julius
supostamente ajudara em seus princípios. Aparentemente foi seu trabalho
em Chicago, em 1968, que provara à elite Brujah (da qual Julius
certamente faria parte se fosse dois mil, ou mesmo mil, anos mais velho)
que Julius estava interessado em ter, novamente, uma parte ativa nos
negócios do clã.
Independentemente disso, Victoria passou a língua pelos lábios.
Um Brujah militante e negro. Ah, os fogos de artifício desta noite
poderiam ser esplêndidos, se Julius aproveitasse, de fato, a oportunidade
desta reunião para pressionar o Príncipe ex­Confederado, em relação às
suas ações duras contra os Anarquistas da cidade.
E Julius também poderia ter um Ventrue como aliado em
Benjamin, sobre quem também havia rumores de que se preocupava com
os direitos civis. Victoria fez o que pode para pôr essas peças em seus
lugares, incluindo, sub­repticiamente, a revelação ao justiçar Brujah de que
Benison havia permitido a criação e a admissão de todos os tipos de
Membros na sociedade de Atlanta — com exceção dos Brujah.
O General, um Malkaviano, havia sido admitido recentemente.
Javic, o Gangrel refugiado da Bósnia, foi admitido. Clarice e Cyndy foram,
ambas, Abraçadas em Atlanta e admitidas na sociedade dos Membros.
E, acima de tudo, mesmo durante o tempo em que a cidade estava
cheia e o reconhecimento da cidadania não era concedido porque ele
supostamente temia superpopular a cidade, o Príncipe Benison “permitiu”
à esposa Abraçar Benjamin e, assim, um novo Ventrue foi admitido na
cidade. Ou, pelo menos, Victoria podia afirmar que ele havia consentido.

Stewart Wieck 159


Como, na verdade, o Príncipe não tinha conhecimento do feito, ele teria
que optar entre mentir e afirmar que o mesmo fora feito com permissão,
ou punir Eleanor por sua desobediência às regras e, provavelmente, à
confiança dele também. De qualquer modo, sua posição estava
enfraquecida.
— Bem­vindo, nobre arconte, à gloriosa Atlanta e à minha pobre
festa.
Julius torceu os lábios. — Eu falo e ajo com aspereza, portanto não
tentarei vencer você num assunto tão simples. Perdoe­me se isso perturba
sua sensibilidade de Toreador, Victoria; mas sua festa parece muito boa,
embora minha opinião sobre Atlanta seja visivelmente menos entusiástica
que a sua.
Victoria sorriu e disse: — Seriam necessárias muitas palavras para
que você falasse asperamente. Você tem certeza de que não é um autor de
épicos latinos, ao invés de um criador de grandes histórias no interior dos
confins da arena?
Julius grunhiu: — Seu modo floreado de falar tirou o brilho do
meu, é só.
— Estou certa de que o Príncipe o lembrará, — começou Victoria
— então permita — me fazê­lo primeiro: estamos num Elísio e nenhuma
arma é permitida aqui.
Julius simplesmente balançou a cabeça:
— Este nobre arconte mantém suas armas. Quaisquer
discordâncias podem ser levadas ao meu mestre.
Victoria perguntou: — E as discord â ncias entre Benison e
Thelonious também vão ser levadas a Pascek? — Talvez — disse Julius. Uma
cintilação furtiva acendeu seus olhos e ele continuou.
— Se as questões progredirem tanto assim.
A Toreador balançou a cabeça com uma tristeza bem encenada:
— Parece que as questões já progrediram tanto assim. O
pronunciamento de Benison em relação aos Membros sem­clã antecede
minha chegada à cidade; portanto esse não é um assunto novo. Parece que
os anciãos da Camarilla deixaram isso progredir um certo tempo e a uma
certa distância.
Julius disse:
— O Príncipe ampliou sua autoridade quando exigiu que todos os
vampiros sem clã se juntassem formalmente a um clã.
— Ampliou, mas não a excedeu...

160 Toreador
— Talvez — disse Julius. — Embora o simples aumento de
abrangência dê crédito à posição que os Anarquistas tomaram, que
representou uma recusa em se submeterem a tais ordens tão autoritárias.
— E assim permaneceram por mais de um ano. Por que interferir
agora ?
Julius fitou Victoria nos olhos e disse:
— Mísseis terra­ar chamam a atenção.
Victoria olhou Julius para avaliar essa resposta.
— Mas os mísseis foram disparados pelos Brujah, ou pelos
Anarquistas, se você quiser ser menos específico.
Julius sorriu:
— É verdade. Mas segundo minhas fontes, Thelonious adquiriu
esses mísseis através de um contato arranjado pelo Príncipe.
— Isso realmente muda as coisas — admitiu. Intimamente, Victoria
praguejou.
Eleanor estava certa. Julius tinha mesmo as esporas nela, ou pelo
menos parecia ter.
A Toreador estava esperando, durante a última hora, que as
palavras da Ventrue não passassem de meras maldades infundadas.
Entretanto, Julius não deu nem mesmo uma dica sutil de que estava ciente
de que a sugestão para que Benison fornecesse aquelas armas para os
Anarquistas, tinha vindo da própria Victoria. Através de uma carta
anônima, claro, mas apesar de suas precauções para não ser descoberta
incluindo não escrever de próprio punho, evidentemente — talvez Eleanor
a tivesse rastreado de volta até Victoria.
— Você se opõe a essa intervenção em Atlanta?
— Certamente não — Victoria assegurou ao arconte. Ela sorriu o
mais docemente possível e acrescentou: — Já é hora de Atlanta se mover
para uma nova era, acredito eu.
Julius riu: — Você, hum?
Victoria não disse mais nada sobre esse assunto e mudou o tópico.
— Posso apresentá­lo?
— Não. — respondeu Julius, diretamente.
— Ah, agora entendo o que você quer dizer com falar claramente.
Inspirou ­se no estilo do Conde de Kent, em Rei Lear?
Enquanto Victoria falava, ela viu seu carniçal Samuel entrar pelas
portas do Inferno. Ele a avistou imediatamente e viu que ela fez o mesmo,
então tentou parecer relaxado. Entretanto, a Toreador viu que Samuel

Stewart Wieck 161


estava ansioso para falar com ela.
Não uma emergência, talvez, mas algo perturbava o carniçal.
Enquanto isso, Julius simplesmente a olhava inexpressivamente,
sem entender sua referência shakespeariana. Em seguida, ele disse: — Que
seja. Simplesmente esqueça que eu estou aqui. Primeiro vou me colocar à
vontade por um momento perto daquele demônio — ele apontou ao Satã,
de Feuchére — e depois me apresentarei a algumas pessoas. Verei o
Príncipe Benison mais tarde, imagino.
Victoria aquiesceu:
— Como quiser, nobre arconte. Satã é um excelente trabalho e é
capaz de, Incompreensivelmente, tomar um bom tempo. Alguém poderia
até se distrair em seu exame, o que causaria descuidos de etiqueta, aos
quais nenhuma culpa poderia ser atribuída.
Julius riu suavemente: — Você é uma garota brilhante, Victoria. —
Então ele andou até a alcova vazia, com sua bandoleira chacoalhando
ruidosamente. Aí, fingiu momentaneamente analisar a escultura, antes de
olhar de volta para Victoria e novamente sorrir. Então ele levantou sua
mão e fez o movimento de virar um copo aos seus lábios. Ele acenou para
ela.
Victoria saiu andando, aliviada de que mesmo quando fez seu
comentário de “garota brilhante”, Julius não deu nenhuma indicação de
saber algo sobre seus planos ardilosos. Ela acenou a Samuel e o carniçal
desceu os degraus e se aproximou de sua ama.
Enquanto isso, Victoria redirecionou o segundo servo que viu,
para que entregasse uma taça de sangue ao arconte. O primeiro servo não
era o mais astuto dos servos à mão. Esperou, então um candidato melhor.
Acreditava que o servo poderia servir a bebida, mas ela precisaria de outro
para receber instruções sobre quando e como ele deveria perceber a
presença do Brujah.
Benison ficaria furioso quando ficasse sabendo que o arconte
estava presente e que não tinha se apresentado. Era um desprezo de
cortesia que ele poderia aproveitar para pressionar o Brujah, mas Julius
claramente estava calculando os resultados, provavelmente na esperança
de que, em sua fúria, Benison cometesse um erro grave.
O jogo de Julius parecia bom para Victoria. Ele também a deixava
um pouco nervosa porque ela planejava se colocar em posição de instigar
a luta. Ela estava com todas as ferramentas certas à mão, mas agora Julius

162 Toreador
lhe estava prestando esse serviço. Isso preocupava Victoria, porque agora
não importava se ela entrara pelo Paraíso ou pelo Inferno, pois seu plano
ia ser executado sem sua indução.
Victoria acalmou­se imediatamente. Talvez estivesse
racionalizando seu controle da situação, mas convenceu­se de que se
tivesse entrado pelo Inferno e, portanto, ficado em um caminho que
arruinaria ou no mínimo adiaria seus planos, então poderia ter interferido
nas intenções de Julius, alertando Benison imediatamente de modo que
nenhum desprezo ocorresse.
Ela ainda estava no controle de seu próprio destino.
Samuel limpou suavemente sua garganta atrás de Victoria e a
Toreador se virou, — O que é?
Samuel disse:
— Um motorista na garagem diz que deve falar imediatamente
com seu mestre um Membro do clã Setita chamado Vegel.
— Ele está aqui — disse Victoria.
— Qual é o problema? Alguma agitação lá em baixo ?
Samuel balançou a cabeça:
— Não, tudo está prosseguindo calmamente, senhora. O motorista
disse que houve uma ligação para Vegel, e é de seu parceiro, Hesha.
— Hesha? — Victoria franziu seus lábios e agitou a cabeça com
interesse.
— Muito bem, espere fora daquelas portas e eu enviarei Vegel a
você. Será somente um momento para encontrá­lo.
Samuel deu um rápido olhar pelo labirinto de vidro da galeria e
pareceu duvidar um pouco dessa afirmação, mas não ousou questionar
Victoria.
— Claro, senhora. — Ele curvou­se levemente e retirou­se pelas
mesmas portas que tinha entrado.
Mais ninguém estava por perto, então Victoria recolheu­se mais
uma vez em seu cubículo. Ela usou seus binóculos de ópera para varrer a
galeria à procura de Vegel.
Mas não conseguia encontrá­lo.
Tirou um momento para checar Julius, e descobriu­o encostado
contra Satã e sorvendo de uma taça de sangue.
Victoria presumia que Vegel ainda estava em algum lugar na
galeria, já que seu motorista estava lá embaixo. Ela olhou de novo.

Stewart Wieck 163


Falhando mais uma vez, saiu de seu cubículo e caminhou pela galeria por
alguns momentos. Encontrou todos os outros Membros que sabia estarem
presentes, mas não Vegel.
Então ela parou de repente. Que tipo de jogo estava ocorrendo
ali ? Ficou um pouco zangada. Essa questão da ligação e do motorista era
claramente algum tipo de distração. Vegel sabia que Victoria ficaria
intrigada com uma ligação de Hesha e então ele lhe passava algumas
informações falsas e a levava por onde quisesse. Mas, para quê?
Victoria decidiu que aceitaria o blefe e eliminaria assim essa nova
preocupação do fundo de sua mente. A Toreador dirigiu­se à saída da
galeria e abriu as portas do Inferno. Ela estava provando para si mesma
que não era supersticiosa ao usar essas portas ao invés das do Paraíso, que
usara para entrar. Esse lance do jogo estava encerrado: agora havia outros.
Samuel estava encostado contra uma parede do corredor, próximo
ao elevador quando viu Victoria, imediatamente ele se empertigou e pôs­se
em prontidão, Ela dirigiu­se até ele, com seus pés calçados por sandálias
esmagando o piso ladrilhado. Sua face era resoluta, ainda que bela.
— Certo, vamos ver se Hesha estava mesmo ao telefone.
Samuel pareceu confuso, mas como sempre, não houve pergunta
alguma. Quando ambos adentraram o elevador, ele disse:
— O motorista está esperando na Câmara Auxiliar.
Victoria brevemente aprovou isso e fitou fixamente as portas que
se fechavam.

164 Toreador
Terça­feira, 22 de junho; 0h 08min
Museu de Arte
Atlanta, Georgia

O corredor metálico era iluminado por lâmpadas fluorescentes.


Assim que percebeu que o túnel se estendia por uma distância
significativa, Vegel começou a correr. Sua pressa era parcialmente inspirada
pelo maldito frio do Olho em seu bolso.
Após um minuto de corrida, Vegel alcançou o final da passagem.
Uma escada de aço subia até uma escotilha no teto. O Setita não tinha
percebido nenhuma outra porta ou saída de tipo algum no corredor, e
então presumiu que esse era o próximo estágio de sua fuga.
Ele subiu as escadas, girou uma maçaneta e com as pernas
firmemente apoiadas, esticou­se e empurrou a porta, abrindo­a.
Todas as luzes extinguiram­se instantaneamente assim que a porta
rompeu o selo do soalho. Vegel foi repentinamente envolto pela escuridão,
desorientando­se. Estendeu o pescoço para olhar para trás, de volta para a
direção do longo túnel, à procura da menor fonte de luz que fosse, mas
não havia nenhuma.
Esperando que se tratasse de uma medida de segurança para
fornecer proteção àqueles que emergiam como ele, Vegel estabilizou­se e,
então, abriu mais a porta de modo que pudesse se arrastar para fora. Tudo
à sua volta estava preto como o piche, e ele se arrastou próximo à porta,
esperando que seus olhos se adaptassem. Até a mais tênue centelha de luz
seria suficiente!
Vegel pensou em revelar o Olho, mas uma vez que não podia
controlar a quantidade de luz ou nem mesmo sabia se alguma luz era
irradiada, achou isso arriscado demais. Para todos os efeitos, ele mantinha
uma mão sob a porta que agora estava à sua lateral, no chão. Por um lado,
achava que algumas luzes poderiam voltar se ele a fechasse, mas por outro,
imaginava que ela também poderia se trancar atrás dele e prendê­lo, sabe­
se lá onde.
Ele permaneceu nisso por mais alguns instantes, antes de decidir
que a rota do Nosferatu tinha sido excelente e segura até este ponto, e uma
vez que já tinha confiado em Rolph até aqui, por que não aceitar
completamente a situação?
Ele retirou a mão e permitiu que a porta se fechasse. De fato, ela

Stewart Wieck 165


se trancou, pois ouviu um clique e então um fechamento a vácuo que a
prendeu firmemente cerrada.
Mas uma luz cintilou, e Vegel sentiu que sua coragem foi
recompensada.
O Setita descobriu que estava em uma pequena área anexa, com
um teto dramaticamente inclinado de maneira que, o lugar onde ele estava
agachado estava a apenas um palmo acima de sua cabeça. Considerando o
espaço estreito e a angulação do teto, Vegel percebeu que essa pequena
área devia estar localizada sob uma rampa ou escada rolante.
Ele quis desesperadamente retirar o Olho do bolso de seu casaco e
examiná­lo por um momento, mas essa rota de fuga podia ainda não estar
completa, embora ele certamente estivesse a uma boa distância do museu.
Qualquer demora agora poderia significar a diferença entre a segurança e a
destruição, tanto dele quanto do Olho, portanto recusou­se a demorar
mais. Além do que, o gélido frio do Olho estava diminuindo, e assim não
havia um porquê nem para trocá­lo de bolso.
Fazendo uma pausa para se recuperar mentalmente, Vegel sentia­
se revigorado à medida que se aproximava da única porta visível no local.
Um estrondo repentino, como o de um pequeno tremor de terra, o fez
parar, mas o breve guincho de pneus acalmou sua mente. Ele pensou que
provavelmente estaria em um estacionamento, então tais ruídos não o
perturbaram. Não havia nada que indicasse que o carro o estava
perseguindo.
Mesmo assim, ele abriu a porta cuidadosamente. Parecia que
estava no andar térreo do poço de uma escada anexa. Latas de cola e tinta,
bem como lixo, literalmente espalhavam­se por todo o lugar que também
exalava um leve cheiro de urina.
Vegel esgueirou­se pela porta e andou silenciosamente em direção
a uma outra, que presumivelmente levava à garagem propriamente dita, ou
talvez à rua. Uma pequena janela, na metade superior da porta, revelava a
escada. Vegel olhou a escada acima por um momento, mas não viu
ninguém; voltou então para a porta de saída pressionou sua face contra a
janela para criar o maior ângulo de visão possível. Do lado de fora havia
uma rua estreita. Pequenas lojas e restaurantes, do tipo que tem pretensão
mais sobre residentes do que sobre turistas, alinhavam­se na rua, e todos
pareciam fechados. Vegel era capaz de ver a placa da rua, à sua esquerda,
mas ela estava virada de um modo que ele não a conseguia ler. Mais

166 Toreador
importante que tudo, a rua não tinha nenhuma pessoa ou carro vindo de
nenhuma direção.
Parecia que a rota de fuga acabava aqui, pois Vegel não conseguiu
detectar nenhuma pista em relação aonde poderia ir em seguida.
Nenhuma fita de polícia.
Nenhum desenho de olhos. Nada.
Ele retirou o telefone celular de seu bolso e pensou em usá­lo, mas
descartou imediatamente a idéia, tola e perigosa. Se Rolph estivesse certo,
então o motorista Já estaria morto, e uma ligação somente alertaria seus
assassinos quanto ao sofisticado equipamento rastreador da limusine. Se
seu carro agora estava nas mãos de outros que queriam tirar o Olho dele,
então eles poderiam utilizar esse equipamento para rastrear sua posição
através do localizador do seu telefone.
O localizador tinha a finalidade de encontrar Vegel, na
eventualidade de que alguma adversidade caísse sobre ele, mas agora era
inútil. Assim, Vegel jogou o aparelho numa lata de lixo, ao lado do
corrimão, ao pé da escada. Depois, ajeitou algumas embalagens de lanches
por cima, de modo que ocultassem o aparelho.
Ele sentiu que sua melhor opção era ir diretamente para o
aeroporto. Não para o Hartsfield International, onde seria procurado
imediatamente, mas para o Aeroporto DeKalb­Peachtree, um pequeno
campo de vôo ao norte do centro da cidade, onde um plano de
emergência era mantido. Se conseguisse ser transportado em até uma
hora, então ele conseguiria chegar a Baltimore ao amanhecer. Baltimore
era o local de recursos de Hesha, na Costa Leste dos Estados Unidos.
Só precisava chegar a uma rua principal que não a Peachtree, onde
ficava o Museu de Arte. Então ele poderia pegar um táxi. Era uma pena
que as ruas de Atlanta não fossem cheias dos carros amarelos como
Manhattan. As fugas eram tão mais fáceis lá...
Vegel empurrou a porta com a janelinha e dirigiu­se furtivamente
para a rua.
Ele caminhou próximo ao muro do estacionamento, enquanto ia
em direção à placa da rua.
Sem aviso, ele sofreu uma emboscada vinda, repentinamente, de
cima.
Houve o ondular de uma capa ou manto no ar, e então um
grande peso caiu sobre seus ombros. Felizmente, o Setita era bem
treinado, e enquanto com esse ataque outros teriam sido esmagados ou

Stewart Wieck 167


pregados contra o solo, Vegel reagiu instantânea e instintivamente.
Dobrou os joelhos e deixou­se cair para trás, mas ao invés de cair
diretamente ao chão, ele conseguiu realizar um giro.
Uma fração de segundo após o ataque, uma figura toda coberta
estava no chão e Vegel, equilibrado e de pé.
Mas antes que Vegel pudesse dar um chute em seu atacante caído,
houve um estentóreo rugido vindo de cima. A força e fúria do som
intenso foram acompanhadas por gargalhadas excitadas, também vindas
de cima. Andando para dar um espaço entre seu inimigo visível e ele
mesmo, Vegel olhou para cima.
Para seu horror, ele viu três Membros. No centro do grupo estava
um enorme brutamontes, flanqueado por um par do que pareciam ser
cadáveres magros e muito queimados. Mas esses cadáveres eram a fonte
das risadas. Não havia dúvida alguma quanto à fonte do rugido.
O quarto inimigo de Vegel se levantou lentamente. Era o que
tinha a aparência mais normal do grupo, embora fosse claramente um
Membro. Ele sorriu diabolicamente para Vegel e assim revelou que sua
humanidade estava há muito perdida, também. Com um silvo, o monstro
abriu seus braços e seus dedos pareceram se expandir até virarem longos
fios de carne, com muitos centímetros de comprimento. A besta então riu,
enquanto seu queixo se enrijecia e sua boca se abria cavernosamente.
Aqui, Vegel percebeu que não havia preocupação alguma quanto à
Máscara.
Não havia como confundir esses animais com qualquer coisa que
não o Sabá.
Concluiu que não havia como se confundir com qualquer coisa
que não morta.
Vegel gritou:
— Venham, então, seus desgraçados! Levarei um de vocês comigo.
Qual de vocês deseja me acompanhar às invernais covas de Set?
O vampiro do Sabá que estava diante de Vegel disse alguma coisa,
mas o som inumano que brotava da estranha boca, era ininteligível.
Vegel começou a se afastar, quando viu que os dois vampiros do
Sabá começaram a descer pelas paredes do estacionamento como aranhas.
A fera de aparência poderosa estava passando uma perna por cima do
parapeito, preparando­se para saltar, embora Vegel não pudesse dizer se
seu intento era saltar sobre ele ou no chão.
Vegel estava furioso com a traição de Rolph. Que bela “rota de

168 Toreador
fuga”. Toda aquela tolice sobre Bombaim e antigos débitos! Hesha teria
débitos a cobrar agora.
Vegel teve algum consolo ao pensar na bem conhecida propensão
de seu mestre para vingar a morte de seus agentes.
O vampiro de bocarra violenta, acima, estava pulando agora, e
embora Vegel já tivesse se afastado uns bons quatro metros do ponto
inicial da emboscada, as poderosas pernas do monstro o impulsionaram
muito longe pelo ar... e para trás de Vegel.
O Setita encontrava­se, agora, cercado. Um enorme vampiro do
Sabá atrás de si e um trio de aberrações à sua frente.
Um dos gêmeos cadavéricos disse:
— Bondade sua, ter vindo até nós.
O vampiro com os dedos longos avançou firmemente com os
outros dois seguindo­o a meio passo de distância. Ele mexia seus braços
ameaçadoramente e os dedos serpenteavam como cobras prontas para
esmagar uma vítima.
Vegel não gostava da ironia daquela comparação.
Contudo, o perigo mais imediato era o brutamontes atrás dele
que estava pulando novamente. Dessa vez, muitos metros, em um salto
decidido e longo que o levou bem até Vegel. Este conseguiu se esquivar e
fugir dos braços maciços do vampiro.
Ele levantou­se rapidamente e pôs­se a fugir correndo, mas os
gêmeos, ágeis, foram muito mais rápidos. Dando cambalhotas e saltos
como talentosos ginastas, eles interceptaram Vegel, que por eles foi parado
e agarrado por trás por longos dedos que seguravam um de seus braços
próximo ao seu flanco.
Vegel teve que lutar e resistir por um momento, a fim de evitar
que seu braço esquerdo também fosse preso. Ele dificultou bastante as
coisas para o vampiro do Sabá, a ponto de conseguir puxar uma pequena
faca que sempre guardava em uma bainha no tornozelo. Horrendo sangue
verde pingou da faca, que Vegel girava em pequenos círculos, como uma
colher de mel, para manter o quanto pudesse do líquido sobre a lâmina.
Quando viu, pelo canto dos olhos, o maior deles se aproximando, Vegel
cortou o ar com a lâmina. O vampiro não estava perto o suficiente para
ser atingido, mas uma quantidade expressiva do veneno espirrou da adaga
e esparramou­se sobre seus olhos e nariz.
Um rugido assassino irrompeu enquanto o vampiro levava as
garras aos olhos, em agonia. Seu poderoso pé, batendo, causou finas

Stewart Wieck 169


rachaduras no pavimento da rua.
Mais uma vez, soltando seu braço esquerdo do outro vampiro,
Vegel enfiou a lâmina pela mão direita da fera. A adaga atravessou, mas
qualquer veneno que ainda estivesse na lâmina não o feriria, e a liberdade
valeria um pequeno ferimento.
Seu captor gritou de dor e rapidamente soltou Vegel, que também
soltou a adaga, para que ela ficasse alojada na mão do vampiro, espetando­
a na palma. O inimigo agora também se afastava para remover
dolorosamente a lâmina. Enquanto isso, o veneno começou a fazer efeito.
Era difícil causar dano a vampiros com o uso de venenos, mas o tipo do
que estava na arma do Setita afetava a circulação, quase tão Importante
para um Membro quanto era para um mortal. Ele e seu companheiro
grandalhão criaram um coro de brados de dor.
Vegel não conseguira manter o equilíbrio, quando fora atacado,
mas enquanto se punha de pé, ele disse aos gêmeos aracnóides:
— Qual de vocês é o próximo?
Eles hesitaram.
Vegel espichou­lhes uma língua bifurcada e os covardes ficaram
chocados o suficiente para recuarem alguns passos.
Surpreso pela confusão não ter atraído nenhuma testemunha,
Vegel se preparou para fugir, mas foi atingido nas costas por um golpe
violento do Sabá monstruoso.
Seu corpo foi arremessado para frente e caiu na rua com
tremendo impacto. Tentou se erguer, mas os ginastas foram mais rápidos.
Eles surraram­no com golpes rijos — não tão demolidores, mas que
dificultavam a recuperação dos sentidos.
Foi então levantado do chão pelo brutamontes parcialmente cego.
O poderoso Sabá pegou­o pelo colarinho e o girou de modo que
ficassem cara a cara. A pele em volta dos olhos do monstro estava muito
queimada pelo veneno. Um dos olhos estava crestado, mas o outro
encarava Vegel através da pele deformada.
Grunhindo e gemendo o tempo todo, a besta sorriu, enquanto
apertava Vegel em um abraço de urso. Como arbustos numa tempestade,
os ossos de Vegel foram, um a um, esmagados, e foi a vez do Setita gritar.
A força do monstro era incrível.
Vegel sentia seus membros sendo triturados sob a pressão exercida
pelos braços poderosamente musculosos. Mais devastadoramente ainda,
Vegel sentia seu precioso sangue jorrando de todos os orifícios. O sangue

170 Toreador
que vertia de sua boca sufocava­o, engasgava­o, borrifando o rosto de seu
adversário.
Sentindo sua força quase esgotada, Vegel tentou um último
truque Setita. Seria ele veloz o suficiente para escapar dos rápidos
vampiros menores? Era sua única esperança, e então aqueles de seus
membros que ainda não estavam irreconhecivelmente esmagados soltaram­
se de suas juntas e ele repentinamente deslizou de suas roupas
ensanguentadas, como uma cobra trocando de pele.
Completamente nu e muito mutilado, Vegel escapou por entre as
pernas do brutamontes, por cima da figura inconsciente do vampiro de
dedos longos, e com um luminoso impulso de velocidade, ele serpenteou
sob o portão e por entre os carros estacionados em direção ao
estacionamento. Enquanto se movia pelo chão, usou as últimas gotas de
sangue para criar coágulos em seus ferimentos. Não havia como fechar
todas as feridas graves, mas se conseguisse ao menos conter a hemorragia
por um momento, ele não deixaria um rastro vermelho para que os Sabás
o seguissem.
Atrás de si, ele ouvia o rugir do vampiro quase cego, primeiro
vitorioso, depois surpreso quando descobriu que as vestes que apertava
não continham nenhum corpo. As roupas foram, então, rasgadas e
espalhadas pela rua.
Um dos outros dois lacaios perseguia Vegel no estacionamento,
mas de seu esconderijo embaixo de uma velha BMW o Setita percebeu
que sua fuga não tinha sido vista claramente. O lacaio corria em círculos,
procurando em todos os lugares, mas rapidamente voltou à rua para
procurar fora também.
Vários objetos interpunham­se, mas de seu esconderijo Vegel
podia ver o Sabá na rua. O vampiro cego, que quase o matara, estava
tomado de fúria. Quando o segundo dos vampiros menores relatou sua
incapacidade de encontrar Vegel, o vampiro maior ficou lívido e
literalmente pulou de raiva. Para suavizar sua dor, ele investiu contra o
portador das más notícias e rasgou­lhe o pescoço com seus dentes tão
barbaramente, que praticamente arrancou­lhe a cabeça. O poderoso Sabá
então parou por um momento para se revigorar, sugando totalmente sua
pequena vítima.
A seguir, ele arremessou a um canto da rua a carcaça dessecada.
Com voz cavernosa, ele disse ao outro magro vampiro aracnóide:
— Livre­se daquilo e depois carregue Jorge de volta lá pra cima.

Stewart Wieck 171


Agora!
O outro vampiro apressou­se em obedecer, mas a visão de Vegel
começou a anuviar­se e ele pensou que era melhor abaixar a cabeça um
pouco...

172 Toreador
Terça­feira, 22 de junho de 1999; 0h 33min
Museu de Arte
Atlanta, Geórgia

Victoria deixou a conversa com Hesha para trás e se apressou de


volta à galeria para observar o Príncipe Benison e Julius. A menos que
surgisse alguma outra coisa, Victoria teria que deixar os carniçais lidarem
com a questão Vegel. Ela precisava concentrar sua atenção em Julius e
Benison.
Quase vinte minutos tinham­se passado desde que ela saíra para
lidar com a questão Vegel, e tinha sido tempo suficiente para irritar
Benison quando a presença de Julius foi revelada. Quando Victoria
passava pela alcova próxima à entrada, ela viu que o Brujah ainda estava
entre as paredes de vidro.
Julius estava sorvendo uma outra taça de sangue. Ele parecia
relaxado, equilibrado e confiante. Victoria ponderou que ele sempre
denotava essas características e ela não queria nem pensar em uma situação
que acabasse com elas.
Ela, então, voltou à festa para estar presente quando a ação
começasse. A festa continuava agradavelmente, embora Victoria estivesse
um pouco mais rude que o normal, enquanto tentava não se envolver em
conversas, sobretudo com Leopold que apresentava a possibilidade de
muitas investigações mentais. Agora que Julius estava aqui, ela não tinha
tempo para nenhuma outra tolice desse tipo.
Após talvez quinze minutos, ela retornou ao cubículo envidraçado
para checar Julius. Reprimiu o riso quando o descobriu falando com
Cyndy, que estava se apertando obscenamente contra o corpo daquele
homem enorme. Victoria podia ler os lábios do Brujah. As ninharias e
promessas vazias que ele sussurrava à estúpida “stripper” Toreador
sugeriram a ela que o astuto Brujah estava usando seus poderes para fazer
de Cyndy uma leal amiga e aliada. Com essa revelação, Victoria atenuou
um pouco sua aversão para com Cyndy, pois ela certamente não possuía os
meios para resistir aos poderes que Julius projetava em sua direção.
Algum tempo depois, Cyndy foi vagando para o final da câmara
onde a maioria dos Membros tinha se reunido. Ela deu um sorriso de
auto­satisfação para Victoria que fez a Toreador mais velha balançar a
cabeça. Percebeu que a vadiazinha pensava saber algo que Victoria
ignorava.

Stewart Wieck 173


Victoria observou Cyndy por mais tempo, mas a insolente
meretriz não fez nada.
E então, Victoria escapuliu novamente. Clarice e Stella estavam
conversando próximas ao cubículo, por isso ela não podia entrar nele
despercebida. Andou um pouco adiante, para encontrar um local
relativamente seguro para sua próxima observação. Ela corria o risco de ser
vista, mas estava no último recesso da galeria e podia usar as propriedades
de ampliação de suas lentes. Sua observação revelou que faltava pouco
para a uma hora. Direcionou seu binóculo de ópera para Satã, mas não
havia ninguém na alcova.
— O que você está olhando, Victoria ? — A profunda voz veio
diretamente do seu lado, e Victoria deu um pulo, surpresa.
Julius praticamente flutuava sobre ela, parecendo esperar uma resposta.
Contudo, percebendo o quanto dependia disso, a Toreador se
recuperou rapidamente e disse:
— Só procurando um jeito de me recompensar por ficar silente
quanto à sua presença, nobre arconte.
— Decerto. — O arconte se afastou.
Houve um rosnado do outro lado de uma parede de vidro. A voz
do Príncipe Benison esvoaçou como a de um homem mudo reaprendendo
a falar.
— Como ele ousa insultar minha hospitalidade?
Julius parou quando ouviu as imprecações que se seguiram. Ele
voltou­se para encarar Victoria.
— Suponho que nenhum de nós é tão esperto quanto
imaginamos.
Victoria concordou com aquilo:
— Eu apostaria, porém, que tanto a sua imaginação como a minha
sejam bastante excepcionais; portanto se formos cinquenta por cento do
que pensamos que somos já será bem satisfatório.
Julius concordou, sorrindo:
— Gosto de seu estilo, Victoria. — Ele deu alguns passos e então se
virou novamente.
— Não perca a agitação.
Enquanto Victoria se apressava pelo outro lado para não chegar
junto com o Brujah, ela percebeu que Julius ajustava sua bandoleira e fazia
um saque­teste de uma de suas espadas. Ou pelo menos ela julgava que ele
a sacava, pois a lâmina surgiu tão rapidamente em sua mão que Victoria só

174 Toreador
percebeu que ele a sacou quando ele a recolocou lentamente no lugar. Ela
também era veloz, mas... bem, aquilo era fantástico.

Stewart Wieck 175


Terça­feira, 22 de junho de 1999; 1h 02min
Museu de Arte
Atlanta, Georgia

Leopold chegou à conclusão de que Hannah simplesmente não


viria à festa. Se Stella estava certa anteriormente, quando sugeriu que
haveria alguns representantes do clã Tremere presentes nas primeiras
horas do evento, parecia, então, que nenhum Tremere apareceria tarde da
noite.
Assim o jovem Toreador decidiu que iria embora. Contudo, bem
quando estava subindo os primeiros degraus para a porta, ele ouviu as
exclamações do Príncipe.
Quando parou e se virou para ver do que se tratava essa nova
agitação, Leopold descobriu­se alvo de um distante gesto do Príncipe.
O Príncipe Benison, com uma Cyndy ruborizada e presa
forçadamente ao seu lado por uma mão enorme, e com um servo
uniformizado enganchado pelo pescoço e puxado até ele com a outra
mão, atraía uma legião de Membros que ia dos recessos da galeria em
direção a Leopold. Por um instante, Leopold entrou em pânico. O que ele
tinha feito?
Benison gritou: — Onde ele está, Toreador? Você vê o bastardo lá
em cima?
Foi preciso um momento até que Leopold percebesse que o
Príncipe estava falando com ele e não com Cyndy.
Leopold gritou: — O­o que? Q­qu­quem ? — Era somente a
segunda vez que Leopold se dirigia ao Príncipe, e sua voz falhava com a
tensão de fazer isso agora.
— O estúpido arconte Brujah Pantera Negra, desgraçado filho de
uma mãe, é ele, seu lixo miserável!
Leopold tremeu sob o peso dos insultos, mas olhou ao redor.
Antes que Leopold pudesse responder, o Príncipe soltou mais uma litania
de vulgaridades, que durou até ele chegar à alcova em que Leopold tinha
conversado com Stella algumas horas antes.
Cyndy apontou para lá e disse:
— Ele estava aqui.
— Quando? — exigiu o príncipe, olhando acusadoramente tanto
para Cyndy quanto para o servo.

176 Toreador
Percebendo que tinha sido esquecido, Leopold desceu os degraus
e se juntou à multidão atrás de Benison. Stella rapidamente chegou a seu
lado e segurou sua mão. Isso acalmou Leopold instantaneamente.
— Vinte minutos atrás, Príncipe — afirmou Cyndy.
Benison jogou a Toreador e o servo ao chão. A bandeja que o
servo tinha tão habilmente equilibrado enquanto estava sendo arrastado
até este ponto, também foi ao chão. Cacos de cristal e sangue espalharam­
se pelos ladrilhos brancos.
— E você? — Benison interpelou o servo.
— Eu lhe servi o primeiro drinque há mais de meia hora —
balbuciou ele.
— Maldições do INFERNO! — gritou o Príncipe, enfatizando
grosseiramente a última palavra, enquanto batia o pé no chão. — E onde
ele está agora?
— Atrás de você, Príncipe — surgiu uma voz limpa e profunda.
A multidão se dividiu e um corredor ladeado por Membros
separou o Príncipe Malkaviano e o arconte Brujah.
Julius perguntou inocentemente: — Eu o ofendi de algum modo?
Benison sorriu um sorriso fragmentado.
— Pelo contrário, arconte. Você deixou­me muito feliz. Dane­se o
Elísio. Eu punirei sua atitude insuportável.
Um rumor metálico soou na grande câmara quando Julius sacou a
espada.
— Suponho que teremos uma continuação da história sobre
aqueles terroristas que se entocaiaram na siderúrgica. Estranho que
terroristas se escondessem em um museu, você não acha, Benison?
Benison ficou lívido de raiva, mas mesmo seus olhos brilhantes e
vermelhos não puderam iluminar a escuridão repentina que se espalhou
pela sala.

Stewart Wieck 177


Terça­feira, 22 de junho de 1999; 1h 04min
Museu de Arte
Atlanta Georgia

A escuridão que se seguiu mais que simplesmente obscureceu a


visão de Victoria; ela também silenciou estranhamente sua audição, de
modo que os gritos alarmados que brotavam nos Membros eram
singularmente prolongados e deformados.
Mortalhas tenebrosas, quase animadas, envolviam sua alma em
um invólucro de amargura, pesar e desapontamento. Seus peões estavam
enfileirados à sua frente, bem como ela planejara. O trabalho de meses e a
ambição de décadas estavam ao seu alcance, e na luz e som agonizantes ela
de algum modo sabia que também seu sonho agonizava.
Talvez ele renascesse, pois uma pós­imagem de sua orquestração
queimava como uma fénix em sua retina entorpecida. Julius e Benison
encaravam­se, Julius sacando uma de suas espadas para empalar o
enlouquecido Malkaviano, disposto a sacrificar seu Elísio e sua vida,
simplesmente porque um Brujah o insultara.
Embora ela não tivesse visto como a cena havia se desenvolvido,
nesse “replay” mental, Victoria via Thelonious e Benjamin passando pela
multidão, em direção às costas de Eleanor. A vadia Ventrue seria partida
em duas se os dois também resolvessem ignorar o Elísio, embora fosse
provável que ela levasse um deles consigo.
Victoria esperava que ela escolhesse Benjamin, sua traiçoeira
criança da noite, o que significaria que quando a poeira assentasse, os
únicos candidatos para o Principado seriam Victoria e Thelonious. E não
seria possível que um Brujah viesse como arconte fazer uma visita a
Atlanta e deixasse um Príncipe Brujah no lugar, seria?
Ela não gritou, mas a raiva de Victoria ecoou em sua própria
mente. Ela chegara tão perto!
A Toreador sentia a escuridão fora de sua mente pressionando­a
com mais força, e suas imagens oníricas desapareceram. Era algo quase
palpável e, de um ímpeto, ela percebeu a provável fonte do perigo, como
uma voz profunda e ressonante que se entoava. O som estava distorcido,
mas Victoria também estava pensando na palavra, e então entendeu
apesar do gorjeio de seu tom.
— LA­Sooom­ br­A!
Ela sentiu a escura massa de trevas começar a forçar caminho para

178 Toreador
dentro de seus orifícios, e a massa descuidada, horrível, plásmica, não
discriminava. Apesar de sua idade e experiência, apesar de seus grandes
poderes, Victoria entrou em pânico. Ela foi ao chão e rolou como se a
opressão que a envolvia e invadia fosse um fogo que podia ser apagado.
Mas isso não aliviava nada.
Todavia, lentamente aquilo se foi.
Após ter partido, e dela ter visto os horrores que a luz da galeria
revelavam, Victoria rogava pela volta da escuridão e que lhe fosse
concedida uma rápida e indolor Morte Final encoberta pela nuvem que
entorpecia seus sentidos.
De Príncipe a Morte Final em um piscar de olhos.
Mesmo assim, ela não unia seu grito aos outros que a cercavam, e
os lamentos e escárnios vinham tanto dos ofensores quanto das vítimas.
Victoria estremeceu e sentiu o sangue dentro de si — felizmente havia
bastante, pois ela bebera muito esta noite — aglutinar­se em grandes
massas que lhe faziam o estômago parecer pesado.
A escuridão ondulava­se em fragmentos, e em meio à colcha de
retalhos que aquele labirinto de cacos criava, Victoria testemunhou todas
as deformações bizarras da natureza que poderia imaginar. É claro que
havia outras maneiras do corpo de um Membro ficar repulsivo, mas a
realidade dos exemplos à sua frente tornava Impensáveis as outras
possibilidades. Escabrosos, queimados, inchados, definhados, retorcidos,
esticados, fibrosos, gelatinosos... mais e mais adjetivos desfilavam pela
mente desarmada de Victoria.
— Sabá! — gritou Julius. Victoria reconheceu sua voz, e embora
não houvesse nenhum indício de medo nela, havia desespero.
Victoria também sabia que eles estavam condenados. Os grotescos
monstros só poderiam ser o resultado da manipulação de carne feita pelos
Tzimisce e a escuridão era certamente criação dos Lasombra, portanto o
ataque era, de fato, o esforço conjunto daquele grupo diabólico
responsável por muito do mal e da brutalidade entre os Membros, o Sabá.
Como e por que eles se juntaram para esse ataque, era algo que
estava além do raciocínio de Victoria. Mas também, muito sobre o caótico
Sabá estava além da capacidade dela. O “por quê” não era tão misterioso,
supunha ela, já que eles foram capazes de se organizar além do “como”.
Porém, o “por quê” ainda se aplicava a muitas questões. Porque agora? Por
que Atlanta? Porquê, porquê, porquê?

Stewart Wieck 179


Victoria lançou um olhar a Julius. O arconte Brujah ainda parecia
poderoso e perigoso, mas não mais invencível. Tentáculos de trevas
agrupavam­se como coisas vivas dos lamaçais lodosos da matéria Lasombra
que se espalhava pelo chão. Os monstruosos Sabás dançavam e giravam ao
redor dos Membros da Camarilla.
Um deles chegou perto demais, e a espada de Julius o atingiu, mas
a criatura era tão cheia de terror que o golpe alimentou o lugar do sangue,
encorajando­a, e não acabando com a decisão dela, em se alimentar de
suas presas.
Todos os Membros que Victoria conhecia — Benjamin, Eleanor,
Thelonious, Javic, Cyndy, Leopold e outros — imediatamente esqueceram
seus planos e queixas individuais e uniram­se para sobreviver. Victoria viu
o momento decisivo dessa união importantíssima, quando Julius e
Benison cruzaram olhares e o Brujah sacou a segunda espada de suas
costas e estendeu seu pomo em direção ao Príncipe, que supostamente
também era um excelente espadachim.
O som de janelas quebrando soou acima da cacofonia de terror.
Esferas do tamanho de punhos e da cor da carne moviam­se velozmente
em meio aos vampiros da Camarilla, e como se o pânico e a desorientação
não tivessem sido suficientes antes, um verdadeiro inferno se libertou
quando as granadas de carne explodiram e espalharam uma película de
linfa pelo bando reunido.
Então os demónios a agarraram. Uma monstruosidade de ombros
largos, mas pouco cérebro, investiu contra Victoria. Seus braços eram tão
contraídos quanto sua cabeça e, assim, Victoria foi capaz de aparar os
golpes. Mas então, um órgão inchado e pendular, que indicava que a besta
fora outrora um homem, ergueu­se para golpear a Toreador. Com tal arma
abatendo­se sobre ela, Victoria finalmente gritou. Ela a acertou na perna
direita, e a força do golpe a ergueu do chão completamente e a depositou
num amontoado desajeitado, aos pés da besta.
De repente, uma espada brilhou na frente de Victoria e cortou a
extremidade pulsante do monstro. Seu gemido agudo foi tão estridente
que soou acima de toda a balbúrdia e quebrou algumas vidraças próximas
a ela. Uma grande garra silvou perto do corpo caído de Victoria e, assim,
Julius, o benfeitor momentâneo da Toreador, foi arrastado a um combate
diferente.
A besta cujas pernas ainda estavam abertas sobre Victoria
continuava seu gemido, enquanto sangue e outros humores derramavam­

180 Toreador
se do grave ferimento. O fluxo de líquidos não permitia que Victoria
encontrasse um ponto de apoio no chão, então ela se arrastava e retorcia
sem escapar, até que o monstro, com a face ainda deformada pela agonia,
se recuperou o suficiente para procurar vingança. Seus braços e cabeça
eram frágeis, mas seu torso e pernas eram enormes, e quando ele saltou
sobre a Toreador caída, o grande peso de seu corpo esmagou­a contra o
chão.
Ela pensou ter ouvido sua perna trincar, mas sentiu dor em todo
seu corpo, de modo que não tinha como localizar nenhum ferimento
individual. Os finos braços da criatura começaram a bater em sua cabeça e
Victoria fez o que podia para bloquear os golpes, mas eles choviam sobre
ela tão rapidamente que o ataque começou a anuviar e desorganizar seus
pensamentos.
Poucos de seus poderes eram de alguma valia agora. Em um
movimento final, desesperado, ela gritou por ajuda. Não com sua voz, mas
com seus poderes vampíricos.
E em um instante, Leopold estava lá. O jovem Toreador não era o
mais forte ou competente dos lutadores — e em seus pensamentos
confusos, Victoria imaginou por que ela o teria chamado, quando podia
ter convocado qualquer um — mas ele fez o trabalho.
Um pé calçando uma bota chutou a cabeça da obscenidade Sabá
uma primeira, segunda e então, quando a fera tentou se defender com
seus braços minúsculos, mais uma terceira vez. A fonte da fratura que
Victoria ouviu foi claramente perceptível dessa vez — o chute de Leopold
quebrou o delgado pescoço do demônio.
O corpo do Sabá, sem vida pelo menos momentaneamente, caiu
para trás por sobre Victoria, com todo o seu peso esmagando­a
novamente.
Leopold caiu de joelhos ao lado de Victoria e, antes de dizer ou
fazer qualquer outra coisa, congelou, olhando fundo nos olhos dela. Ela
estava surpresa, pois não havia medo nos olhos, apenas preocupações.
De repente, os olhos dele incharam­se de dor, e ele sumiu.
Coberta como estava por aquela coisa pegajosa, Victoria tentava
sair debaixo da pilha caída sobre ela. Ela lançou um olhar apenas para ver
o que acontecera com Leopold. Um tenebroso tentáculo grosso como a
perna dele amarrava­se ao redor da cintura do escultor e pinoteava como
um garanhão, esmagando Leopold de novo de novo e de novo contra o
chão ladrilhado do museu.

Stewart Wieck 181


Victoria sentiu uma fugaz sensação de dó, mas levantou­se e
correu. Sua perna devia, de fato, ter­se trincado ou fraturado, pois ela caiu
de novo imediatamente, tomada pela dor. Então, ela reuniu o poder do
sangue dentro de si para tratar rapidamente o ferimento, e recorreu às
lições de seus professores para encher seu corpo com o potencial para
grande velocidade. Ergueu­se e disparou, sem olhar para o campo de
batalha à frente.
A Toreador era como um borrão interrompido apenas por
hesitações, para enganar um inimigo ou percorrer uma ruína coberta por
corpos na qual ela quase tropeçou sobre os restos do cadáver de um
homem negro. Podia tanto ser de Thelonious quanto de Benjamin.
No espaço de algumas pulsações, Victoria estava seguramente
oculta no cubículo de vidro do qual antes espionava. Ela procurou em seu
bolso e sacou os binóculos de ópera, mas não podia pôr­se a olhar. Não
ainda.

182 Toreador
Terça­feira, 22 de junho de 1999; 1h 07min
Museu de Arte
Atlanta, Georgia

Houve um único momento de claridade em meio ao caos de


escuridão, sangue e ruína. E o mesmo voltava à mente de Leopold a cada
fração de segundo dos intervalos das atoadoras pancadas que seu corpo
sofria.
Os olhos de Victoria.
O lado esquerdo esmagado contra o chão.
Ela tinha precisado dele.
A cabeça era batida contra um outro corpo, e um grito de dor era
emitido pelo outro.
Ela o tinha chamado.
O braço esquerdo pendia por fios de carne, depois que ele foi
untado no chão.
Ele sabia que tinha sido um tipo de magia que ela usara para
chamá­lo. A magia estaria disponível apenas para um Mestre? Um
chamado que só ia a uma criança da noite?
As pernas eram esmagadas diretamente contra o chão. Ambas
dobravam­se sob a pressão e flexionavam­se para direções opostas às
naturais.
Ele sabia que a havia salvo. Ele sabia que não precisava responder
ao chamado, mas ela necessitava dele e ele não podia recusar.
As costelas foram trituradas quando uma tremenda pressão comprimiu
seu peito e suas costas.
Seu último momento nesta terra não teria sido gasto renegando
sua mãe. Seu amor. Ele a salvara.
O corpo sem energia foi solto, flutuando no ar. Vidros
quebrando­se, cacos entrando em sua pele ou girando livremente. Um vôo
de quatro andares rumo a um terrível impacto contra pedras e concreto.

Stewart Wieck 183


Terça­feira, 22 de junho de 1999; 1h 18min
Estacionamento do Ansel
Atlanta, Georgia

O Olho!
Vegel teve um sobressalto. Ele o deixara para trás ao desvencilhar­
se de suas roupas. Considerou­se um tolo, mas em seguida se acalmou,
percebendo que provavelmente estaria morto, morto de verdade, se não
tivesse usado o truque para escapar.
Malditos Nosferatu! Que jogo eles estavam fazendo? Usar um
Setita como entregador para levar o Olho de Hazimel de uma festa da
Camarilla para uma emboscada do Sabá. Mesmo superficialmente, o
plano era tão complicado que somente um vampiro poderia concebê­lo e
provavelmente somente um Nosferatu poderia executá­lo.
Contudo, quando se sentou por um momento em silêncio, Vegel
lembrou­se das últimas palavras do grande Sabá, antes de perder a
consciência. Ele disse para que arrumassem o cadáver e levassem o terceiro
Sabá, o de dedos longos, para cima. Nada quanto ao Olho. Nada como:
“procurem o Olho, nessas roupas esfarrapadas.” Nada como: “o Olho não
está aqui, encontrem o Setita.” Enfim, nada relacionado ao Olho.
Vegel estava completamente confuso, agora, mas admitiu que ele
mesmo estava mal. Provavelmente delirante, devido à falta de sangue e
quase morto devido aos ferimentos, Vegel não podia neste momento
esperar grande coisa de si mesmo.
A única maneira de descobrir mais era se arrastar de novo para a
rua e verificar o que poderia estar acontecendo. E era bom que começasse
logo, pois ele tinha escapado do Sabá, mas não havia escapatória para o
sol. Vegel esperava poder descobrir como reabrir aquele alçapão dos
Nosferatu. Ele não gostava de ter que voltar para a casa de seu inimigo,
mas era o único lugar à prova de luz, dentro dos limites de sua condição
enfraquecida.
Não havia tempo a perder. Por isso, ele se arrastou da proteção da
BMW até a rua. Mover­se fazia com que ele desse mais atenção ao dano
que sofrera. Sua caixa torácica estava despedaçada. Seu braço e ombro
esquerdo estavam completamente triturados. Sua perna direita
provavelmente estava quebrada e a esquerda, quase, também. Incontáveis
ferimentos e contusões menores o cobriam, mas eram esses outros
ferimentos que o matariam, se ele não conseguisse se proteger logo.

184 Toreador
Vegel conseguiu chegar à saída do estacionamento. Felizmente,
ainda não havia ninguém trabalhando. Dessa posição, ele podia ver
claramente a área em que a luta ocorrera. Suas roupas esfarrapadas ainda
se espalhavam pela rua, e seus olhos focalizaram apenas o suficiente para
localizar a peça que provavelmente seria sua jaqueta.
A rua também estava vazia e, assim, Vegel moveu­se lentamente
em direçã o à jaqueta. A descida do meio­fio foi dolorida e várias poças
cobriram­no com água e lama, mas ele acabou chegando à jaqueta.
Deslizando por sobre seu lado esquerdo destroçado, de modo a
poder usar sua mão direita, Vegel mexeu nos fragmentos do casaco, até
sentir a seda do revestimento interno. Ele puxou tal peça do monte e
descobriu que ambos os bolsos internos estavam intactos. Apalpou o bolso
esquerdo e ficou pasmo ao ver que o Olho ainda estava lá.
O choque foi tamanho que quase fez com que ele perdesse os
sentidos novamente, Enrijeceu­se de medo ao ouvir algo acima de si.
Vinha do segundo andar do estacionamento — o local onde o Sabá
começara a emboscada. Vegel não conseguia decifrar as palavras, mas
estava certo de que ouvira uma voz profunda, ressonante como a do Sabá
monstruoso.
Rapidamente, segurou com a boca o pedaço da jaqueta que
continha o Olho e arrastou­se de volta em direção ao estacionamento. Seu
progresso era dolorosamente lento. Sabia que sua força estava chegando ao
fim.
O Setita ouviu mais vozes acima, mas elas estavam abafadas ou ele
estava fraco demais para ouvir com clareza. Concentrando­se, finalmente
entendeu as palavras “é hora de irmos”. Nada, no tom das vozes lhe dizia
que havia sido descoberto novamente, mas com certeza eles o veriam
quando saíssem.
Mais alguns centímetros e Vegel chegou ao meio­fio, onde escorou
sua cabeça no travesseiro de concreto.
Ele sabia que suas opções eram muito limitadas. Morrer pelas
mãos do Sabá, ou morrer devido à exposição. Mesmo que conseguisse
alcançar alguma proteção, Vegel duvidava que sobrevivesse até a próxima
noite, especialmente, se sua proteção fosse o túnel do Nosferatu. E se
optasse por recuperar seu celular, quem sabe o que ou quem poderia vir
resgatá­lo.
Meu Deus, pensou ele, o que Hesha não faria para conseguir este
Olho. Ele só desejava saber como usar o poder dele. Talvez com seu poder

Stewart Wieck 185


ele conseguisse sobreviver. Mas essa era uma via infrutífera de
pensamento.
Então ele percebeu a única coisa que poderia fazer; a única que
deveria fazer. Seria um servo leal até o fim, e essa lealdade seria
recompensada com a vingança de Hesha sobre esses Sabás, bem como
sobre Rolph e seus mestres Nosferatu.
Vegel tirou a roupa ensanguentada de sua boca e procurou no
bolso pelo Olho. O Olho começou a pulsar novamente quando ele o
retirou. E agora ele finalmente era capaz de analisá­lo.
Era grotesco, uma coisa preta e fibrosa. Pouco maior do que um
olho deveria ser e coberto com uma película de linfa, perpetuamente
úmida; parecia também estar coberto com um invólucro de pele.
Sentindo os últimas vestígios de energia e vida escoando de seu
corpo, Vegel não hesitou. Pôs o Olho de Hazimel cuidadosamente sobre o
pedaço da jaqueta e, com sua mão direita, ainda perfeita, forçando a frágil
órbita para dentro e rasgando­a, puxou seu próprio olho da órbita. Jogou­o
longe e, com seu olho restante, observou a pequena massa branca rolar,
sujando­se, enquanto escorregava pelo pavimento,
Então ele pegou o Olho de Hazimel. Riu, pois mesmo que os
Sabás o encontrassem agora, eles não achariam o Olho.
Girando­o, de modo que a pálpebra ficasse para frente, Vegel
introduziu­o em seu crânio. Com um ruído suave, ele pareceu encaixar­se
e, com uma surpresa que chacoalhou seu corpo agonizante, sentiu algo
voltando à sua cabeça. De repente, podia sentir o Olho, sua pesada
pálpebra e as reverberações de poder, de dentro dela.
Vegel abriu seu Olho e sua força começou a se apagar para
sempre.

186 Toreador
Terça­feira, 22 de junho de 1999; 1h 37min
As entranhas da terra

Sua risada estremeceu as paredes de pedra da tumba, de modo


que sem seu deleite, ele causou leves tremores na afilada superfície do
mundo. Não importava. Ninguém suspeitava que ele estivesse ali. De fato,
ninguém tinha nem ao menos razão para crer que ele ainda existisse.
Mas agora ele estava completo.
Que prazer teria em participar das brincadeiras infantis
novamente...

Stewart Wieck 187


Terça­feira, 22 de junho de 1999; 1h 40min
Museu de Arte
Atlanta, Georgia

Milhares de milhões de bilhões de pensamentos passavam pela


mente de Victoria. Podia estar errada, mas encontrava­se não tanto em
choque e sim completa e totalmente confusa.
Ela lutava para encontrar um meio de juntar as peças. Os
Nosferatu estavam envolvidos? Rolph saiu antes. A única outra saída
antecipada foi a de Vegel, mas ela vira o motorista do Setita quando
voltou à garagem com Samuel. Se aquilo era para ser uma distração, então
por que se chamaria a atenção para a ausência de Vegel?
Além disso, se forçada a supor, ela diria que Hesha também ficou
surpreso com a ausência de seu seguidor. Victoria não era capaz de
interpretar tão bem as pessoas através do telefone, como em pessoa. Os
Setitas em geral eram mentirosos e enganadores, e era possível que Hesha
fosse parte da fraude. Se é que tinha sido Hesha do outro lado da linha. A
Toreador sabia que não podia tomar nada por certo, especialmente em se
tratando de uma noite em que o ataque do Sabá dizimara os Membros da
sua cidade.
As perguntas sobre o próprio Sabá eram ilimitadas, e dar­lhes
espaço para lançarem­se em seu pensamento consciente só serviria para
confundi­la ainda mais; ela os manteve afastados.
Algumas de suas perguntas claramente já não tinham mais
importância. Saberia Eleanor que Victoria era responsável pela dica a
Benison sobre os mísseis? Ela havia contado a Julius? Assim como tudo o
que se relacionava aos últimos dois anos da vida de Victoria, tais questões
eram, agora, insignificantes.
Isso porque ela não tinha dúvidas de que absolutamente todos os
Membros da Camarilla presentes em seu Baile do Solstício de Verão
haviam sido destruídos pelo Sabá. Talvez um ou dois, além dela, tivessem
escapado, mas era difícil imaginar isso. Conseguira escapar somente por
causa do alçapão que instalara no chão de seu cubículo de vidro.
Depois que alcançou a proteção daquele cubículo, ela levou um
momento para se recuperar do choque — tinha sido choque, então — e
começar a tomar decisões que salvariam sua vida. O alçapão levava a uma
área de manutenção entre o terceiro e quarto andares, e a altura de menos
de um metro e vinte significava que Victoria arrastava­se para a segurança.

188 Toreador
Ela ouvia os gritos, as ameaças e os brados de guerra acima, e mais
de uma vez arrastou­se sobre uma poça de sangue. Pensava ouvir os
insultos de Julius se exagerava suas fantasias para imaginá­lo vitorioso, mas
as desigualdades eram grandes demais.
Além disso, os sons da luta encerraram­se rapidamente. Nem
mesmo alguém com a agilidade de Julius seria capaz de vencer tantos
inimigos tão depressa. Talvez ele e Benison juntos, mas a Toreador sabia
que tais pensamentos não passavam de quimeras.
Se ela duvidou da totalidade da vitória do Sabá naquele
momento, qualquer resquício de esperança esvaiu­se quando ela chegou ao
estacionamento. Ela esperava encontrar seus carniçais ignorando as mortes
acima. Eles a poriam em seu Rolls Royce e acelerariam até um de seus
refúgios ao sul da Geórgia — embora, talvez, fosse melhor ir para o norte —
antes que o amanhecer chegasse.
Mas eles estavam decapitados e estripados. O mesmo quanto ao
motorista da limusine, que agora ela sabia ser o veículo de Vegel. Como
seu Rolls, a limusine parecia ter um compartimento à prova de luz, no qual
um Membro poderia se esconder, mas Victoria não ousou ficar tão perto
da horda do Sabá. Os pneus dos carros estavam todos cortados, mas ela
suspeitava que os perpetradores voltariam em busca de qualquer tesouro
que esses carros pudessem guardar. De qualquer forma, ela não conseguia
imaginar um bando daquele tamanho, permanecendo junto por mais
tempo que o necessário para aniquilar a Camarilla. Não havia dúvidas de
que eles brigariam entre si por qualquer ninharia que pudessem encontrar
em suas vítimas.
E era nisso que Victoria estava agora. Procurando dentro da
limusine de Vegel por qualquer coisa útil, ela decidiu que haveria uma
coisa á menos para o Sabá pensar em confiscar, pois pegou o telefone
celular. Seu próprio telefone ficava fixo no seu Rolls, mas este, portátil,
adequava­se à sua necessidade presente. Além do mais, ela sabia o número
que o motorista ligara para falar com Hesha, e ela o usaria, se necessário.
Se ele realmente era Hesha, e se ele realmente não sabia por que Vegel
estava sumido, então talvez a ajudasse. Por um preço, é claro, mas sua vida
valia qualquer preço. Bem, quase qualquer preço.
Então Victoria apressou­se para fora do estacionamento, até a
viela atrás do museu. Queria encontrar uma posição oculta da qual
pudesse ver o último andar do prédio; entretanto, satisfazer sua
curiosidade não valeria o risco da exposição.
Stewart Wieck 189
O ruído parecia vir de uma grande distância, mas o ranger
ecoante das portas do elevador trouxe arrepios para a espinha de Victoria.
Ela imediatamente se agachou por trás de uma parede de concreto muito
baixa e olhou o mais que pode para dentro da garagem. Uma gangue de
sombras estranhas emergiu dos recessos do elevador.
Victoria se forçou a permanecer calma. Entrar em pânico agora só
os traria mais rapidamente até ela. Mas quando um par de olhos
vermelhos pareceu brilhar das trevas, diretamente em direção ao ponto em
que se escondia, a Toreador perdeu sua determinação. Convocando toda a
velocidade inumana que era capaz de reunir, a Toreador correu
avidamente como nunca o fizera.
Embora seus poderes e seu sangue significassem que ela corria
pela rua com uma velocidade desconhecida até para o maior dos atletas
humanos, os perseguidores pareciam possuir a mesmo atributo fantástico,
e Victoria contou os momentos de sua vida com os passos que deu.

190 Toreador
Terça­feira, 22 de junho de 1999; 2h 09min
Uma rua escura
Atlanta, Geórgia

Sua língua lambia um líquido viscoso e grosso, quase seco sobre


uma superfície dura e áspera.
E isso era tudo que importava.
O tempo se passou e aquele ato solitário, que continha sua
sobrevivência em seu âmago, continuou sendo o único elemento de seu
ambiente, que chegava a atingir seu pensamento consciente.
Impacientemente, implacavelmente, ele continuou seu trabalho.
Apoiado sobre suas mãos e joelhos como um animal, ele sugava com
voracidade, devorando a mais ínfima gota do líquido.
Ele estava tão desidratado que não produzia saliva para ajudar sua
língua no terrível encontro com o chão. E o líquido era tão grosso, que
era difícil engolir. Mas ele continuou a fuçar nele, raspando nariz e boca
nas cavidades mais estreitas, pois farejava ainda mais. Onde todo o seu
rosto não alcançava, sua língua obscena conseguia, e pressionava­se contra
orifícios diminutos, onde talvez uma gota do líquido se alojasse.
Mas cada gota era sagrada.
Mais que isso, cada gota significava sua vida.
Contudo, apesar de seus maiores esforços, ele só encontrava
pouco do líquido.
O instinto enraizado lhe dizia que devia haver mais. Era um
instinto pré­vampírico.
Até mesmo pré­humano. Algo de seu passado primitivo, antes de
sua espécie equilibrar­se sobre dois pés.
Ele prestou atenção àquele instinto e negligentemente saiu
apalpando mais; sua língua pressionava­se por baixo de cada objeto
encontrado, em busca de cada gota coagulada disponível.
Isso durou um período de tempo indefinido.
O que era o tempo quando a vida estava na ponta da língua?
No final, ele encontrou pouco, mas o suficiente. A dor e a
necessidade diminuíram. Gradualmente, a Besta acalmou­se,
gradualmente os sentidos de Leopold voltaram.
Sangue!
Foi seu primeiro pensamento.
Era o líquido mesmo que lhe permitia pensar.

Stewart Wieck 191


Então ficou claro que ele estava agachado no chão, próximo ao
meio­fio de uma rua pavimentada. Sua situação era clara, mas sua mente
ainda estava anuviada, seus pensamentos suspensos na úmida camada da
noite de verão de Atlanta. Assim, ele não estava surpreso por se encontrar
desse modo.
Como seus sentidos continuavam lúcidos, Leopold sentou­se
novamente, com a alta sarjeta apoiando parte de suas costas. Ele
massageou sua cabeça, e como a sensação e o gosto voltavam, ele
violentamente cuspiu e em seguida raspou sua língua com dedos agitados
e impacientes. A areia e o cascalho em sua boca estavam tingidos com uma
camada úmida, levemente avermelhada. Ele limpou os fragmentos e
lambeu as pontas dos dedos distraidamente.
Quando se recuperou mais, tomou consciência de seu
comportamento ridículo. Puxou um pedaço de chiclete de sua cabeça, com
marcas de dente ainda nele. Como o chiclete estava grudado, ele
furiosamente arrancou um chumaço de cabelo.
Também havia um pirulito preso em sua bochecha. Um pedaço
roxo do doce havia aderido nele e o palitinho branco pendia para baixo.
Suas mãos gordurosas devido ao óleo vazado de um carro próximo, e seus
cotovelos e joelhos estavam grossos de sujeira preta­avermelhada.
Sangue!
Ele se ergueu e olhou o contorno da poça praticamente seca com
que se ocupara um momento antes.
Ficou novamente confuso. A vertigem o invadiu mais uma vez e
ele tropeçou e foi de novo ao pavimento.
Lembrava­se da vertigem, porque de repente ele se lembrou do
vidro quebrando, da longa queda e da dor. Embora tenha recorrido a seu
sangue para curar seus piores ferimentos, as costelas de Leopold ainda
estavam moles, talvez ainda quebradas.
Ele esfregou a boca, repentinamente ciente de que havia algo
dentro dela. Algo que ele continuava a chupar para se acalmar, girando
lentamente em sua boca, com a língua raspada e dolorida, assim como
uma criança distraidamente procura por uma chupeta. Supôs que era um
dente, talvez afrouxado quando de sua primeira longa queda, e agora solto
quando tropeçou. Mas era macio demais.
Parou de especular e, olhando para o lugar que estivera lambendo
como um cão faminto, sentiu uma estranha premonição quanto ao que
tinha na boca.

192 Toreador
Curioso, cuspiu antes que os pensamentos o pudessem impedir, e
pegou em sua mão. O objeto arredondado afundava suavemente em sua
mão e ele apertou os dedos ao redor dele. Não mais parecia sólido, mas
frágil e flácido, como a gema de um ovo.
Lentamente abriu a mão e revelou um item oval, um pouco
maior que uma bolinha de gude. Estava pegajoso, agora, e ele percebeu
que a grande quantidade de sujeira, em sua boca, devia ter vindo disso,
antes que fosse limpa por sua língua.
Leopold estremeceu, mas ainda se recusou a admitir o que
obviamente era. O branco contraía­se, como uma pele arrepiada, quando
ele tirava um dedo de cima dele. Repetiu cuidadosamente o movimento,
muitas e muitas vezes, até que a pupila lançou­lhe um olhar. Um globo
ocular.
Ele o arremessou longe e, nervosamente o observou enquanto
voou, deslizou, e então oscilou de um lado para outro até parar, mais uma
vez coberto de sujeira como devia ter estado antes que as necessidades
animalescas tivessem feito Leopold pegá­lo.
Leopold balançou a cabeça. Bem podia imaginar o frenesi do
processo que devia tê­lo trazido desde o Museu de Arte até aqui. O ataque
do Sabá. O chamado de Victoria. O vidro despedaçado. E ele evocou o
impacto ressonante que deve ter sido o chão punindo seu corpo. E agora,
o instinto que deve ter salvo sua vida: sangue para reabastecimento.
Que ele abjetamente encontrara nesta rua. Mas como?
Não ousou virar a cabeça para olhar a rua de cima a baixo.
Presumivelmente de cima, à sua direita, pois um declive suave vinha de lá,
e o sangue que ele consumira devia ter escorrido de alguma coisa pela
inclinação.
Alguma coisa? Pensando melhor sobre isso, o sangue o tinha
revigorado bem rapidamente. Mas ele não conseguia distinguir o sabor.
Não era humano, sua caça usual. Nem era de nenhum animal de
estimação doméstico. Alguma coisa muito mais saborosa do que qualquer
desses tipos!
Um desejo repentino de conhecer a iguaria que devorara o
dominou, e Leopold olhou para a direita, em direção à parte mais alta do
leve declive. As sombras estavam densas, pois a luz de lâmpadas gastas,
lutava com o ar cada vez mais úmido, mas ele podia discernir a forma do
que, sem dúvida, era um homem. Presumivelmente um homem morto.
Vidro quebrado.

Stewart Wieck 193


Não era o primeiro cadáver da noite. Desfilando ante seus olhos,
uma lembrança relâmpago da cena da qual escapara enquanto mergulhava
dez ou quinze metros do quarto andar do Museu de Arte, estavam os
corpos esfarrapados de uma dúzia de Membros.
O que tinha acontecido!?
Ele olhou para a esquerda, onde podia ver o topo do Museu de
Arte. Não era capaz de ver nenhuma evidência do ataque lá dentro. De
qualquer modo, provavelmente já havia acabado.
O massacre era uma confusão em sua cabeça e ele sabia que teria
de pensar muito para montar as peças de uma interpretação coerente do
assalto. Dos muitos e instantâneos sons fragmentados que
redemoinhavam em sua cabeça, Leopold lembrava­se claramente de duas
coisas: várias figuras barbaramente arrastando o Príncipe Benison ao chão
e alguém gritando “ Lasombra!”
Se ele estava se lembrando direito de qualquer um desses eventos,
e que Deus o ajudasse que ambos estivessem corretos, então isso
significava que Atlanta estava passando para outras mãos. Talvez fosse
simplesmente um dos primógenos fazendo um lance para substituir
Benison, mas todos naquela festa estavam claramente destinados a ser
assassinados. O fato de ele estar vivo era um milagre. Permanecer vivo
exigiria outro, e o sangue que achara tão facilmente era um início
delicioso.
Mas e quanto a Victoria? Ou Stella? Ele lamentou e olhou para o
Museu novamente. O desespero era evidente em sua face, enquanto
considerava a perda de seus poucos amigos, e provavelmente das respostas
quanto ao seu passado também. Tudo se fora.
Com exceção de Hannah, talvez. Essa idéia o ajudou a concentrar
novamente seus pensamentos sobre si mesmo. No momento, não
importava o que tinha acontecido na festa. A única coisa importante era
que ele chegasse ao seu refúgio em segurança. E talvez mais tarde ele se
aventurasse na capela Tremere.
Lançou novamente um olhar à direita. Podia usar mais sangue e
ainda se indagava quanto à fonte de sua refeição. Leopold olhou a
pequena elevação. Tomou a posição de bruços em um instante e, pela
quantidade de sangue espalhado e seco, concluiu a que se tratava, de fato,
de um cadáver.
Era um homem e estava nu. As costas despidas da figura estavam
viradas para Leopold, e a cabeça estava escorada no meio­fio, as pernas,

194 Toreador
levemente curvadas e dobradas em direção ao corpo. O braço esquerdo
do cadáver, o que estava por cima, estendia­se para longe do corpo,
enquanto o direito estava sob a cabeça, de modo que a mão direita
aninhava o rosto.
Nenhum ferimento era evidente, ainda que o sangue tivesse
claramente saído de algum lugar.
Talvez não tivesse mais nada para beber. Agora, novamente no
controle de suas faculdades, Leopold duvidava que pudesse suportar
repetir seus métodos de alimentação anteriores. Decidiu investigar mais
de perto. Tinha que saber, pelo menos, se era o olho desse pobre coitado
que ele tinha chupado. Lentamente, ele virou o corpo.
Desorientado e fraco como estava, e mesmo encontrando­se o
corpo privado do terno e gravata de antes, Leopold reconheceu
instantaneamente o vampiro morto. Era o Setita, Vegel. Leopold ficou um
pouco chocado, e imaginou como o Setita tinha conseguido escapar do
ataque. Contudo, a fascinação do Toreador era demasiada para que se
afastasse, e ele se agachou para ter uma visão melhor da face do Setita
morto. Mesmo de um ângulo novo, a mão sem vida de Vegel amortalhava
sua face, como se a Morte Final o tivesse tocado e o Setita, depois disso,
mantivesse suas pálpebras cerradas, em um sentido de decência post­
mortem.
A bile já estava subindo pela garganta de Leopold. Era o olho de
Vegel que ele tinha chupado?
Cuidadosamente, Leopold se preparou para tirar aquela mão do
caminho e revelar a face do Setita. Quando estava pronto, agiu
rapidamente, com o movimento preciso de um escultor, talhando um
pedaço de mármore desnecessário.
A face revelada era tão terrivelmente inumana, que as pernas de
Leopold ficaram bambas e ele desfaleceu. O olho direito estava intacto e
totalmente arregalado. O olho esquerdo era deprimente, quase surrealista
em sua obscenidade. Também este estava totalmente arregalado, fitando à
distância, enquanto Leopold tinha a desanimadora impressão de que ele
também o estava olhando.
A esfera repulsiva repentinamente pareceu menos um olho para
Leopold do que um tumor maligno, talvez malévolo, com uma pupila e
uma cómea. E como uma pintura de uma velha fiandeira em uma casa
mal­assombrada, o olhar pernicioso do olho parecia seguir Leopold
independentemente de como ele se posicionava. Leopold estremeceu, mas

Stewart Wieck 195


observou o olho mais de perto. Alguém mais supersticioso teria feito o
sinal da cruz ou qualquer outra coisa que pudesse proteger contra o olho
do mal.
O branco luminoso do olho estava marcado com profundas e
brilhantes estrias de sangue. Talvez tivesse sido cirurgicamente enxertado
em Vegel, porque ele se projetava levemente para fora, mais do que um
olho normal e havia ferimentos de carne em suas bordas, onde parecia se
superpor à pele da face do Setita. Em todo o caso, Leopold tinha certeza
de que não estivera tão absorto em sua obra durante seu encontro
anterior com Vegel, a ponto de negligenciar algo tão óbvio e nojento.
Parecia, na verdade, uma coisa que uma cigana poderia brandir
para amaldiçoar aqueles que a ofendessem.
Talvez o olho tivesse sido implantado em Vegel. Mas como tal
procedimento poderia ter sido feito tão rapidamente? Contudo, Leopold
admitiu para si que realmente não tinha uma idéia clara do tempo. Quem
saberia há quanto tempo ele estava ali, entre sua queda do Museu de Arte
e o devorar do sangue, nessa rua?
Leopold sentia pouca simpatia por Vegel. Talvez se o outro tivesse
mostrado um pouco mais de interesse em sua obra... Além disso, ele
esperava ouvir notícias de muitas outras mortes, e a perda deste Setita
pesaria pouco em sua mente.
Então o Toreador caiu em si. Era por isso que o sangue tinha um
gosto tão diferente, tão rejuvenescedor: era sangue de um Membro!
Leopold conhecia histórias daquilo que alguns de sua espécie chamavam
Diablerie — Membro se alimentando de Membro — mas não entendia a
tentação. Agora sim. Mesmo o mais doce sangue do mortal mais
suculento não se comparava ao licor suave deste vampiro de sangue frio.
Naturalmente, Leopold também ouviu que os Diableristas
tinham uma outra motivação: poder. Devorar o sangue — até a última gota!
— de um Membro de uma geração anterior, significava mover­se para mais
perto do próprio Caim.
Evidentemente algo do poder do sangue era retido, absorvido
pelos tecidos do corpo, talvez, mesmo que mais tarde o líquido fosse
perdido ou gasto.
Essa idéia deu a Leopold uma pausa. Ela também o encorajou a
dar uma olhada mais crítica no Setita morto.
Morto ou vivo, Vegel não era estimado aos olhos de Leopold, mas
o cadáver do Membro agora alentava o olho do artista dentro do

196 Toreador
Toreador. O amarelo pálido da lâmpada atingia obliquamente o corpo do
Setita e criava tiras de sombra que realçavam e acentuavam o que era,
afinal de contas, uma figura vistosa e musculosa.
O que era que ele tinha tentado dizer a Vegel, quando o Setita se
afastou para cuidar de assuntos mais importantes? Leopold lembrava suas
palavras: Essas substâncias duras ainda não estão respondendo bem para mim.
Talvez eu devesse usar algo mais maleável
— Como madeira, adicionou.
Ou carne, Leopold pensava agora.
Nesse momento, Vegel deixou de ser um ser outrora­vivo, ou até
morto­vivo, nos pensamentos de Leopold, e ao invés disso, o Toreador
projetou mentalmente o corpo como a escultura espetacular que poderia
se tornar. Os membros deslocados, mas com uma aparência de poder.
Uma poça de sangue, mas sem ferimentos abomináveis. Uma expressão
que olhava para, e pelo, espectador. E aquele olho como uma peça
decorativa. Que obra notável seria!
Leopold olhou furtivamente para os lados, e ficou
repentinamente preocupado que alguém pudesse ter notado quanto
tempo ele passara com um cadáver. Mas, mais que isso, ele percebeu que
desejava este olho. Se ele tinha sido cravado no crânio de Vegel, então
também podia ser removido. Serviria como sua Musa, a peça decorativa de
alguma grande obra. E Leopold soube, com nitidez de arrepiar, que tal
obra seria uma obra­prima, algo muito superior às realizações técnicas de
seu passado.
Com uma determinação selvagem, nascida em parte do medo e
em parte da ganância, Leopold atacou a cabeça do Setita, tremendo
enquanto enfiava dois dedos de cada mão, pelos lados do hediondo globo
ocular.
A textura do olho era, ao mesmo tempo, repulsiva e fascinante.
Esponjoso, ainda que de alguma forma inelástico, o olho encantou ao
máximo seus sentidos de escultor.
A extração foi surpreendentemente fácil. Bem, é verdade que o
Toreador nunca tinha arrancado um olho antes, mas esperava algum tipo
de fibra ou pelo menos um cordão de carne, conectando a parte de trás do
olho ao cérebro ou a algum lugar.
Mas não havia nada. Ele deslizou para fora como uma planta que
crescera tão rápido que não tinha tido tempo de criar raízes no solo. De
fato, as poucas e finas veias azuladas que saíam da parte de trás do olho

Stewart Wieck 197


ramificavam­se como frágeis raízes.
Tinha sido tão rápido, que Leopold ficou perplexo de se achar
ainda agachado, mas já com a esfera enorme, quase preenchendo sua
palma. Enquanto ele a rolava em sua mão, pálpebras começaram a se
fechar por sobre a pupila do olho. Leopold se assustou, e observou
fascinado, enquanto o perímetro do globo ocular, vermelho como sangue,
era coberto. Então, gradual mas metodicamente, a cor mais clara, quase
alaranjada, ao redor da escura pupila, também se extinguia.
Leopold distraiu­se com um pequeno fio de sangue que brotava
dentro da depressão e prontamente inundou a agora vazia cavidade do
olho esquerdo de Vegel.
O Toreador perscrutou brevemente os recessos do sombrio
orifício, mas não era capaz de ver nada que não trevas e a negridão do
sangue que brotava suavemente dentro.
E sem nenhum outro pensamento, Leopold se aproximou do
crânio do Setita e sua língua tenteou a órbita. O espesso líquido era puro,
livre da poeira e sujeira da rua. Era uma delícia doce para Leopold, e ele
enfiou sua língua até o fundo, lambendo os restos de carne nos recessos da
órbita.
Uma vez que a cavidade estava seca, Leopold sentou e lambeu seus
lábios. Então percorreu sua língua grosseira e abusiva por seus formidáveis
caninos. Ele ainda precisava de sangue!
Desesperadamente, Leopold envolveu­se ao redor de Vegel como
um pára­quedas sem ar, e prontamente mergulhou seus dentes no pálido
pescoço do Membro. Uma gota de sangue cresceu numa corrente que
escoou para dentro de sua boca, e o Toreador bebeu um gole profundo da
ambrosia.
Leopold fechou os olhos e deixou o sedoso elixir escorrer por seus
lábios e por sua garganta. Quando a oferta ficou escassa, ele aplicou uma
sucção, e se achou sorvendo com tremenda força pelo benefício de meras
gotas. Mas essas gotas eram as mais divertidas de todas. Cada uma deixava
sua boca flamejante.
Finalmente, Vegel estava tão completamente drenado que seu
corpo perdeu toda a densidade e ruiu ao próprio peso. A escultura
belamente posada definhou, reduzindo­se a um amontoado de braços e
pernas esqueléticos, que se cruzavam em ângulos impossíveis.
Só então Leopold afastou­se, com sua língua se esticando a
comprimentos inconcebíveis, para pegar as gotas que hesitavam em seus

198 Toreador
lábios ou escorriam por seu queixo. Ele olhou o desfalecido e dissecado
Setita e não podia pôr em dúvida o formigamento da sensação de
confiança e energia que se irradiava por seu corpo.
Ele sabia que era verdade. Muito do que ouvira sobre a diablerie
devia ser verdade.
Não tinha dúvida de que Vegel pertencia — tinha pertencido — a
uma geração anterior, e agora ele, Leopold, bebera um pouco do poder
para si.
Isso mais a sensação palpável de poder que emanava do olho que
ele segurava.
O Toreador sabia que tinha estado muito perto da morte pouco
antes nesta noite, mas agora ele se sentia renascido. Potencialmente
renascido. Ansiava por direcionar para sua arte esse valor recém­
encontrado. E também, ao mesmo tempo, sentia que um destino maior o
esperava Sim, alguma obra­prima miraculosa estava na orla de sua
consciência. Com a agudeza da determinação e criatividade que sabia que
poderia aplicar ao seu ainda desconhecido empenho, Leopold não
duvidava que mudaria o mundo.

Stewart Wieck 199


Terça­feira, 22 de junho de 1999; 3hl 2min
Manhattan, cidade de Nova York

Não havia uma única voz. Ou um único propósito. Ou mesmo,


uma única sensibilidade. Ao invés disso, um amálgama de impulsos,
necessidades, instintos.
Claro, o instinto de um ser era a suposição descuidada de um
outro. Os animais têm modos misteriosos de encontrar água. Os homens
simplesmente abrem suas torneiras. Os Membros simplesmente
encontram os homens.
Porém, as suposições feitas agora não eram descuidadas. Ao invés
disso, eram infinitamente complexas. Tão intricadas que o pensamento
consciente era fraco demais para separar as fibras.
Era preciso algo maior, e o complexo de impulsos, necessidades e
instintos era, de fato, muito maior. Era também uma inteligência sombria
que só poderia ser julgada malévola, se de fato houvesse algo capaz de
dimensionar tamanha incógnita.
Sua resposta foi precisa e suficiente, acionada de forma tão casual,
como uma pessoa adormecida esmaga um pernilongo. Então, o sono
retomou.
Mas, a menor das pedras lançadas na água cria ondulações.
Meia dúzia de trabalhadores estavam se preparando para reabrir o
túnel 147 do metrô, quando centenas de ratos invadiram o túnel e não
deixaram nada dos trabalhadores exceto ossos limpos.

200 Toreador
Sobre o
autor
Stewart Wieck participou da criação do
Mundo das Trevas, projetou o jogo original de
Mago: A Ascensão e colaborou para engendrar a
série de Romances de Clã. Escrevendo sob o
pseudónimo de Stewart von Allmen, ele também é
o autor de Saint Vitus Dances Eternity: A
Sarajevo Ghost Story, de 1996 (indicado a
prêmios), e Conspicuous Consumption, de 1995.
.
A série de romances de clã...............................
Romance de Clã: Toreador Romance de Clã: Malkaviano
Estes artistas são os mais Considerados insanos pelos
sofisticados entre os Membros. outros Membros, sabem que
junto com a loucura existe a
Romance de Clã: Tzimlsce
sabedoria.
Entalhadores de carne,
especialistas do oculto e os
vampiros mais cruéis do Sabá. Romance de Clã: Brujah
Punks de rua e rebeldes, são
Romance de Clã: Gangrel agressivos e vingativos para
Metamorfos ferozes excluídos da defender suas crenças.
sociedade vampírica.

Romance de Clã: Setitas Romance de Clã: Giovanni


Os mestres desprezados e Uma parte ainda respeitável do
traiçoeiros da corrupção moral e mundo mortal, este Clã
espiritual. mercenário também é o lar de
necromantes.
Romance de Clã: Ventrue
Os mais políticos entre os
Romance de Clã: Tremere
vampiros, os líderes da Camarilla.
O Clã mais mágico e melhor
Romance de Clã: Lasombra organizado.
Os líderes do Sabá e os mais
maquiavélicos de todos os Romance de Clã: Nosferatu
Membros. Terríveis de se ver, estes
mexeriqueiros sabem mais
Romance de Clã: Ravnos
Estes ciganos diabólicos não são segredos do que os outros Clãs ­
bem recebidos pela Camarilla e segredos que serão revelados
nem tolerados pelo Sabá. apenas no último Romance de
Clã.
Romance de Clã: Assamita
O Clã mais temido, pois matam
tanto vampiros quanto humanos.
..................................................................................continua

A história do clã Toreador acabou de ser contada neste Romance,


mas não pense que será a última vez que você vai ouvir falar de Leopold e
Victoria. As histórias deles, bem como a de outros personagens
importantes do Mundo das Trevas continua por mais doze Romances de
Clã.
Os leitores astutos desta série começarão a juntar as pistas
conforme as histórias progridem, mas todos irão perceber que a data final
de cada livro é posterior à data final do livro anterior. Portanto, a série tem
sua continuação cronológica no Romance de Clã: Tzimisce e Romance de
Clã: Gangrel. Trechos desses dois romances fascinantes estão nas páginas
seguintes.

Romance de Clã: TZIMISCE

Romance de Clã: GANGREL


Tzimisce
Segunda­feira, 21 de junho de 1999, 04h 43min
Décimo terceiro andar do Hotel Buckhead Ritz­Carlton
Atlanta, Geórgia

Três pancadas secas. Ao ouvir esse som, Sascha Vykos


interrompeu seus afazeres e olhou para “uma com um leve ar de
aborrecmento Elas voltou a dobrar cuidadosamente à carta, que
desapareceu em um bolso intemo do traje Chanel imaculado.
A porta abnu­se apenas o suficunte para duxar Ravenna esgueirar­
se por ela. Ele não fechou a porta atrás de si, mas encostou se contra ela,
como se para impedi­la de abrir mais.
— Desculpe, Vykos Ha um — senhor aqui que insiste em vê­la
imediatamente
O carmiçal conseguiu manter o tom apropriado de repugnância,
mas à sua ansiedade era obvia.
Vykos sornu com o constrangimento dele.
— E como é o nome desse cavalheiro?
Um olhar quase arerrorzado cruzou a expressão condadosamente
controlada do carniçal.
— Minha senhora! Eu não... uma pessoa não... o que eu quero
dizer é...
Era exidente que Vykos não ma ajudá­lo a sair daquela situação
desagradável. A voz de Ravenna baixou para um tom conspiratório
— É um Assa...
Houve um estalido agudo e Ravenna caiu no chão.
— Assassino é uma palavra tão feia. — disse o visitante, passando
por cima do corpo inerte do carmçal — Mil bênçãos para você e a sua casa.
Pode considerar esta a primera.
Vykos permaneceu impassivel e examinou o estranho.
Os movimentos dele eram como mel escorrendo — fluidos,
hipnotzantes. Suas formas estavam quase inteiramente cobertas por uma
túnica solta de linho cru. Uma indumentaria incomum para um assassino.
Ela chegou a pensar que devia haver algum tipo de norma implicita sobre
o vestuário destes assassinos contratados. Todos pareciam preferir roupas
justas, que não iriam interferir nas necessidades de combate ou fuga. Já
havia imaginado quatro ou cinco situações em que a roupa esvoaçante do
visitante seria uma desvantagem se ocorresse uma luta corpo­a­corpo. No
entanto, era bem provável que aquelas pregas ocultassem uma séne de

de Erick Griffin 205


armas mortais que tornariam essas especulações discutíveis.
Ela também sabia que vestir­se inteiramente de preto era como
uma farda para os agentes da segunda profissão mais velha do mundo.
Esta roupa brilharia até mesmo sob um luar pálido, frustrando qualquer
esforço de movimentação furtiva. Evidentemente, nem um amador
cometeria um erro assim. Não, era óbvio que seu convidado não estava
nada preocupado em esconder sua aproximação Às palavras, os atos e até
mesmo a roupa dele mostravam uma grande confiança em seu próprio
valor. Vykos considerou o fato ligeiramente irritante.
— Isso era absolutamente necessário?
O tom de voz de Vykos revelou apenas um descontentamento
comercial — o suficiente para deixar claro que não consideraria o carniçal
morto um serviço prestado.
O visitante ergueu as mãos e inclinou ligeiramente a cabeça. Suas
mãos eram grandes e elegantes — como as de um pianista, um artista, um
cirurgião. A graciosidade lânguida delas transmitia uma energia quase
irreprimível. Flutuavam suavemente, como as asas de um pássaro delicado.
Vykos não tirou os olhos daquelas mãos.
— Você podia, no mínimo, levá­lo de volta à sala da frente para
não termos de ficar olhando para ele enquanto falamos — continuou Vykos
— Não me conformo com a sua tranquilidade em relação a se livrar de
corpos e coisas semelhantes. E traga outra cadeira quando voltar. Os meus
criados mal tiveram tempo de desfazer as malas.
Um sorriso branco como a neve rastejou pelas feições talhadas em
ébano do visitante.
— Não tenho o hábito de esconder as minhas obras. A não ser,
claro, que você queira levar em conta a remoção de testemunhas. E não
precisa se preocupar como meu conforto. Vou ficar de pé mesmo.
Estamos sozinhos? Você disse algo sobre criados.
— Sim, agora estamos. Dispensei os meus companheiros mais
valiosos esta noite. Alguns dos meus convidados têm fama de ser um
pouco... irritáveis.
A voz do estranho tornou­se baixa e ameaçadora.
— E não teme pela sua segurança? Muita gente nesta cidade
gostaria de vê­la em perigo.
— Esta noite, sou a pessoa mais protegida de toda a Atlanta.
Vykos ficou propositalmente de costas para ele e atravessou a sala
em direção à escrivaninha cheia de coisas.

206 do Romance de clã: Tzmisce


— Seus mestres não são tão descuidados a ponto de mandarem
um agente para me matar quando ainda há negócios pendentes. Não seria
nada profissional. Nem poderiam permitir que terceiros me fizessem mal,
já que as suspeitas recaíram imediatamente sobre eles.
Vykos virou­se para ele e continuou logo em seguida, antes que
pudesse ser interrompida.
— Não, não tenho medo de você, embora traga a morte até minha
casa. Esta noite, você é meu anjo da guarda, meu cavaleiro protetor. Será
capaz até de lutar, ou mesmo morrer, para impedir que algo me aconteça
antes de concluirmos o nosso negócio. Não é mesmo?
— Esta noite, — o Assamita exibiu de novo um sorriso assassino —
sou a sua apólice de seguro. Mas apenas esta noite, senhora.
Ele retirou um saco de estopa, que estava embaixo da túnica. Com
um movimento de braço tirou as coisas amontoadas no centro da
escrivaninha e depositou bruscamente um pacote sobre ela.
Bastardos dramáticos, pensou Vykos. Mas a esta altura não havia
outra escolha, a não ser continuar com o jogo. De outra maneira, não
seria muito fácil concluir este negócio. Com um suspiro de resignação, ela
abriu o pacote.
Reconheceu os traços familiares imediatamente, lembrando­se das
fotos. Era Hannah, a líder da capela Tremere. Mais precisamente, a cabeça
dela. As mãos de Hannah também tinham sido cortadas e estavam
depositadas bem debaixo do queixo. Muito bom gosto, pensou Vykos. A
mistura ideal de superstição e tradição. Estava bem consciente de que o
ódio dos Assamitas pelos feiticeiros era tão antigo quanto o do seu próprio
clã.
Claro que ela não deu ao Assamita a satisfação de expressar sua
admiração em voz alta.
— Está bem mortinha.
O Assamita fez o que pôde para não mostrar que estava
desiludido com aquela reação banal.
No entanto, antes que ele conseguisse responder, ela continuou,
talvez com uma ponta de malícia:
— Tem certeza que é ela?
Com o orgulho ferido, ele parecia prestes a dar uma resposta
incisiva. Depois, deteve­se visivelmente e se acalmou.
— Ah, agora estou percebendo. Você resolveu se divertir um pouco
às minhas custas. Com certeza, você era mais do que uma mera conhecida

de Erick Griffin 207


da... defunta.
O tom do Assamita era suave e formal como o de um gerente de
uma funerária abordando um tema chocante nos termos mais suaves
possíveis.
— Nunca a vi antes. — respondeu Vykos friamente, pronunciando
cada palavra separadamente e de maneira clara.
— E, se entendi direito, só cheguei a este país depois da morte
dela.
— Não se preocupe com isso. Tudo foi executado da maneira
como você especificou. Quanto à identidade da bruxa, não há dúvidas. Se
me permite...
O Assamita depositou descuidadamente um punho sobre a
cabeça decepada para fixá­la enquanto puxava uma das mãos brancas
como lírios que estavam embaixo do queixo. Ele a virou e a colocou sobre
a escrivaninha, com a palma da mão para cima.
— A magia da bruxa ainda está nas mãos dela. A faca não a corta,
a foice não a destrói.
Ele recitou essas palavras com reverência, como se estivesse
citando alguma escritura antiga.
Acariciou a mão suavemente, como um amante.
Como toque, a rede de linhas delicadas que cruzavam a palma da
mão escureceu e se tornou mais densa. À medida que ele a esfregava com
as pontas dos dedos, as linhas pareceram contorcer­se e deslizarem em
direção às beiradas da mão, como se estivessem tentando se afastar de
uma chama.
Sob o olhar de Vykos, as linhas rastejantes formaram uma série de
símbolos mágicos complexos e sutilmente perturbadores.
O Assamita recuou com um sorriso de satisfação. Os hieróglifos
continuaram a se contorcer e a deslizar uns sobre os outros.
— Conhece estes sinais?
Vykos não disse nada, mas não tirava os olhos da dança de
símbolos arcanos.
— Não me foi concedida a capacidade de interpretar os símbolos.
— continuou o Assamita — Mas um perito poderia dizer seus nomes
apropriados. Cada sinal é uma assinatura mágica única — uma lembrança
persistente dos encantamentos perversos que ocuparam os últimos dias da
bruxa. Precisa desses conhecimentos?
Ainda de olhos fixos na mão, Vykos abanou a cabeça, devagar.

208 do Romance de clã: Tzmisce


Depois, como se regressasse de um lugar bem distante, respondeu:
— Não, não, isso não interessa agora. Com a morte de Hannah,
toda a capela estará...
Mudou rapidamente o rumo da conversa, mas sem se
interromper.
— Mas onde estão minhas boas maneiras? Não devo aborrecê­lo
com detalhes sobre dificuldades pessoais e insignificantes. Você é
realmente muito bonzinho comigo. Agora, o que estava dizendo sobre a
prova incontestável da identidade de Hannah?
Levantando ligeiramente a própria mão, o Assamita apontou para
os símbolos.
— Um exercício fascinante. — disse Vykos ­ Suponhamos, por
enquanto, que acredito piamente na sua versão do que acabei de ver.
Ela levantou uma mão para impedir qualquer protesto.
— Mas isso apenas me diz que esta mão pertencia a uma bruxa
Tremere. E não que pertencia especificamente a Hannah.
— As aparências — continuou Vykos — fatalmente enganam.
Ela se sentou à escrivaninha. Enquanto falava, suas mãos
afastaram, com um gesto distraído, alguns fios desalinhados do cabelo de
Hannah que estavam caídos sobre a face pálida. Desceu suavemente as
mãos e acariciou a carne morta do rosto e da garganta.
Quando se dirigiu novamente ao convidado, não parou de olhar
aquela máscara da morte à sua frente.
— Claro que já a vi antes, mas só em fotos.
As pontas de seus dedos encontraram­se na parte de trás do
pescoço.
— Você a acha bonita?
A pergunta pareceu pegar o convidado de surpresa. Ele bufou
com desprezo antes de recuperar a compostura.
— Minha senhora, essas considerações não têm lugar no meu
trabalho.
Vykos sorriu. Os polegares abriram e fecharam suavemente as
pálpebras.
— Não, claro que não.
A voz dela era calma, seus olhos fitaram o chão. Seus polegares
demoraram­se sobre os olhos fechados de Hannah, pressionando­os
ligeiramente como se para garantir que não voltariam a se abrir.
— Mas eu não estava pedindo uma opinião profissional. Com

de Erick Griffin 209


certeza, você teve várias oportunidades de vê­la e estudá­la. Diria que era
bonita?
O assassino afastou­se dela e resmungou algumas sílabas em uma
língua estrangeira e de maneira ríspida.
— Espero que me perdoe se lhe disser que é uma das clientes mais
irritantes que conheci. É claro que observei os movimentos da bruxa.
Como é que podia deixar de fazer isso? Não há margem para erros, nem
hesitações e nem misericórdia quando se lida com os da corja Tremere.
Ela está aí na sua frente agora. Julgue sozinha se é bonita ou não!
Vykos, aparentemente impassível com essa explosão, observou o
rosto imóvel à sua frente com um olhar crítico. Após uma observação
demorada, abriu uma gaveta, pegou uma escova de prata e começou a
escovar o cabelo comprido e ruivo de Hannah.
— Sim, mas você a viu com todo o fulgor do sangue — quando
ainda estava “viva”; quando ainda havia movimentos e gestos, expressão,
emoção. Essas são coisas que as fotografias — e as recordações — não
podem me mostrar.
Ele andou rapidamente de um lado para outro e demorou
bastante para responder:
— Sim, eu vi a bruxa viva. Sou, como você sabe muito bem, a
última pessoa que pode dizer isso.
Fixou o olhar em um ponto imaginário e um pouco distante,
como se estivesse vendo, e não pela primeira vez, pessoas e coisas que já
não existiam.
— Senti o arco das costas quando minhas mãos envolveram a
cintura dela. Vi a pulsação delicada na linha da sua garganta enquanto os
cabelos esvoaçantes se esticavam. Vi os lábios entreabrirem­se para
pronunciarem palavras de poder que nunca foram iniciadas. Sim, ela foi
tão bonita morrendo quanto o é na morte.
Vykos sorriu e continuou a escovar, contando em voz baixa.
O convidado moveu­se constrangido, mas não recomeçou a andar
pela sala.
Houve um silêncio tenso, quebrado apenas pelos sons regulares
da escova. Como se subitamente houvesse lhe ocorrido um pensamento,
Vykos olhou para cima e fixou o seu olhar no Assamita. Com as pálpebras
semicerradas, ela perguntou:
— Como devo, então, chamá­lo, meu assassino sentimental? Você
ainda não me disse seu nome.

210 do Romance de clã: Tzmisce


Ele virou a cabeça e olhou Vykos por um momento, como se
estivesse procurando perceber se ela realmente esperava uma resposta ou
se continuava simplesmente tentando irritá­lo. Havia um tom peculiar
oculto na pergunta. Alguma coisa além da voz, quase felina e certamente
perigosa. Isso contrariava o ar inocente do olhar dela. Sem querer, ele
adotou uma postura mais defensiva.
— Enem vou dizer. Pode me chamar de Parmênides.
— Ah, um filósofo então. Quase confundi o senhor com um
poeta.
Ela continuou a pensar alto:
— Não parece ser grego e também não está tão enrugado a ponto
de poder ter andado entre os luminares da Escola de Atenas. Portanto,
deve ser uma espécie de classicista, de erudito... um romântico.
Ele quase encolheu com esse último epíteto e começou a
protestar.
— Não. Não diga mais nada. A conclusão resulta inevitavelmente
das premissas.
Mas não tenha medo, o seu segredo ficará a salvo comigo.
Ela pegou a escova e retomou a sua tarefa, como se tivesse
esquecido completamente a presença do Assamita.
Ele a encarou com total descrença, mas ela parecia
completamente absorta.
Com a escovação constante, o cabelo de Hannah começou a cair
em grandes chumaços emaranhados. A escrivaninha logo ficou repleta de
cabelos, mas Vykos continuou mesmo assim.
— Minha senhora, acredito que ainda precisamos discutir alguns
assuntos.
Vykos não tirou os olhos do seu trabalho. A escova começou a
raspar com um som áspero os pedaços expostos de couro cabeludo que
estavam entre os cabelos que restavam. O som parecia atingir diretamente
os nervos sem antes passar pelos ouvidos.
A carne começou a escurecer e a ficar ferida. Depois de um bom
tempo, Vykos disse distraidamente:
— Você estava lutando para provar que esta é realmente Hannah,
a bruxa Tremere e líder da capela de Atlanta. No entanto, quanto mais
examino esta coisa, menos semelhança vejo entre uma e outra.
Ela soltou a escova e pôs a cadeira mais para trás para observar o
resultado de seu trabalho. Assentiu com a cabeça, satisfeita.

de Erick Griffin 211


— Falta um certo... brilho.
Vykos beliscou suavemente as bochechas para deixá­las coradas,
mas pareceu desapontada com o resultado.
— Já não se vê mais aquele ar de desafio nesta linha delicada do
rosto. — disse e fez uma carícia lenta com o dedo indicador.
— E os olhos. Mesmo em foto, era possível ver que os olhos da
bruxa eram bem fundos — como se tivessem recuado com as coisas que ela
testemunhou nas horas sombrias. Estes olhos são salientes e não possuem
o fogo característico da magia negra dos Tremere.
Vykos afundou os polegares nas órbitas, como para resolver o
problema.
Parmênides fez um som de desaprovação, ou de nojo, e se virou.
— Chega. Conhece esses sinais pelo que eles são, minha senhora.
Eles representam as marcas da sepultura, da Morte Final, nada mais. Mas,
se continuar por esse caminho, os restos ficarão completamente
irreconhecíveis, com certeza.
Vykos empurrou a cadeira para trás e levantou­se. O tom da sua
voz era conciliador.
— Feri seus sentimentos de novo. Vem cá, meu jovem romântico,
meu filósofo.
Se me disser que esta é a bruxa, aceito seu juramento.
Ouviu­se um som ríspido quando ela girou a cabeça sobre a
escrivaninha para virá­la para ele.
— Olhe para ela. Não é bonita?
Quase contra sua vontade, ele olhou. O cabelo ruivo e delicado
desaparecera completamente. A carne do rosto e do couro cabeludo estava
ferida e uniformemente escura. À linha do queixo havia sido dada uma
expressão poderosa e repleta de vigor. A face tinha perdido o seu ar
arredondado inteiramente feminino e estava tão repuxada que era possível
discernir um pouco do crânio por baixo. Os olhos tinham se tornado
cautelosos — pequenos, escuros e fundos.
No entanto, nenhuma dessas alterações individuais causou o
menor efeito no assustado Parmênides. Ele havia sido instantaneamente
atingido pela totalidade de alterações alarmantes. O rosto que o fitava era,
inequivocamente, o seu.
A voz de Vykos, quando ele a ouviu, estava atrás dele e bem
próxima. Conseguia sentir a respiração dela em seu pescoço e orelha.
—... o motivo pelo qual não confio em fotos. As imagens podem ser

212 do Romance de clã: Tzmisce


modificadas.
Ele sentiu os lábios dela em sua garganta e deixou seus olhos
fecharem­se.

de Erick Griffin 213


Gangrel
Domingo, 18 de julho de 1999; 12h34min
Cidade de Nova York, Nova York

Ramona se empoleirou na plataforma superior da saída de


incêndio e viu Zhavon dormindo placidamente. Nas primeiras noites que
se seguiram ao ataque, a garota se agitava e gritava, tentando escapar de
sabe­se lá que monstros que assombravam seus sonhos.
Há coisas piores aqui fora, advertiu­a Ramona baixinho.
À vários quarteirões de distância, ela ouviu um ruído de freadas
bruscas. Ramona se encolheu e esperou pelo som da colisão que acabou
por não acontecer. Quase em seguida ela olhou para trás, para certificar­se
de que o barulho não havia acordado Zhavon. A garota continuava a
dormir sossegada. No decorrer dessas últimas semanas de vigília, Ramona
acabou desenvolvendo um extraordinário senso de percepção do
momento em que a garota estava prestes a acordar — o leve movimento da
cabeça, o pescoço se esticando logo antes dos olhos piscarem agitados.
Ramona tinha certeza de que, a não ser pela noite do ataque, Zhavon
jamais a tinha visto e mesmo o fato de tê­la visto naquela noite seria fácil
de explicar como resultado de histeria ou trauma. Ainda assim, havia
certos momentos quando Zhavon estava acordada, momentos em que
Ramona tinha certeza absoluta de estar completamente fora de suas vistas,
que a garota de pele escura parecia saber que alguém — ou alguma coisa —
a observava.
Eu me lembro dessa sensação, pensou Ramona.
Ela se distraiu por um momento com o ruído de movimento nas
sombras abaixo, mas não havia nada lá.
Você está assustada esta noite, menina. Provavelmente era por causa
daquele motoqueiro na noite passada, ela concluiu — e esse pensamento a fez
lembrar-se de que não deveria deixar Jen sozinha por muito tempo. Darnell não
passava nem um minuto com ela além do estritamente necessário, por isso, o
que aconteceria se O motoqueiro voltasse?
Mas o olhar de Ramona vagueou de volta para a garota que
dormia. Ela compreendia os temores de Jen, e até mesmo compartilhava
alguns deles, mas, com Zhavon, havia uma afinidade mais profunda. A
garota mortal parecia tão plácida ali deitada sob os lençóis. Quando estava
acordada, porém, ela demonstrava uma certa rebeldia, uma ingenuidade
associada a um senso mal orientado de invulnerabilidade.
Lembro-me dessa sensação também, pensou Ramona. Houve um

de Gherbod Fleming 215


tempo em que ela se sentira quase da mesma maneira. Mas agora ela sabia que
as coisas eram diferentes. Ela não era mais tão tola em achar que as coisas
sempre terminaríam bem. Já não era tão tola em pensar que nada de muito
ruim poderia lhe acontecer. Zhavon, contudo, continuava a dormir, alheia aos
piores temores que a noite abrigava.
Após alguns minutos, Ramona percebeu que estivera olhando
fixamente para a mortal — e era isso que as pessoas normais
representavam para ela hoje em dia: mortal, carne, sangue. Logo acima da
dobra do lençol branco, a mão de Zhavon descansava languidamente
sobre seu peito, e acima da mão o pescoço exposto.
Ramona imaginou estar vendo o pulsar da jugular — será que ela
o via mesmo? Os sons da cidade à sua volta se desvaneceram sob as
batidas ritmadas de um único cotação humano e do som do fluxo
intermitente do sangue bombeado através das artérias e veias.
Ramona já estava com a metade do corpo para dentro da janela —
lambendo os lábios — quando deu por si. Ela recuou para a saída de
incêndio e sacudiu a cabeça com força.
— Droga! Eu detesto isso! — resmungou para si mesma enquanto se
sentava e abraçava os joelhos junto ao peito.
Perder o controle desse jeito, ainda que por um instante tão
breve, fez com que ela fosse inundada com as lembranças da primeira
noite em que sentiu o gosto de sangue em seus lábios e se entregou àquela
fome incontestável.
Sentada lá, Ramona queria olhar para Zhavon pela janela, mas
tinha medo de si mesma.
E se acontecer de novo? E se eu não conseguir me conter? Por
que, afinal, me preocupei em salvá­la? Ramona divagava, embora ela soubesse
muito bem que quando tinha feito aqueles dois sujeitos em pedaços na outra
noite, fora muito mais pelo impulso de predador de um caçador cuja presa
estava sendo roubada, do que um ato de heroísmo.
Inferno, se aqueles miseráveis não tivessem se atravessado no meu
caminho, percebeu ela pela primeira vez, talvez eu tivesse acabado
matando Zhavon.
O instinto da caçada havia tomado conta dela, como tantas e
tantas vezes.
Quem saberia dizer quando aconteceria de novo? Ramona não se
iludia em pensar que isso não se repetiria. Pois todos os seus poderes
recém descobertos eram apenas mais uma forma de deixá­la impotente.

216 do Romance de clã: Gangrel


Zangada consigo mesma e em busca de alguma distração, Ramona
evitou propositalmente olhar para Zhavon e, ao invés disso, arrancou os
sapatos. Já fazia algum tempo que eles a estavam incomodando, e naquele
momento ela não estava disposta a aturar a amolação de objetos
inanimados. Ela puxou as linguetas dos tênis de couro, como se eles
fossem a causa de todos os seus problemas e, quando ela libertou os pés, a
causa de seu desconforto físico ficou logo esclarecida.
Os sapatos estavam em ordem, mas Ramona ficou horrorizada ao
olhar seus pés. Eles estavam comprimidos do calcanhar até o tornozelo e
tinham mais ou menos a metade do comprimento que deveriam ter. Seus
artelhos torcidos, por outro lado, estavam anormalmente longos. Eles se
estendiam quase como dedos longos e finos, terminando em unhas
grossas e recurvadas.
Garras, pensou Ramona consternada.
Ela já as tinha visto antes, quando os dedos das mãos se
transformavam em garras afiadas como lâminas, mas aquilo só tinha
acontecido quando ela ficava brava ou aborrecida e não durava muito. Ela
continuou a fitar aquelas coisas que não poderiam ser seus pés e esperou
que a ilusão se desfizesse, ou, na pior das hipóteses, que tudo voltasse ao
normal.
Mas aqueles eram os seus pés e eles não voltaram ao normal só
porque ela assim queria.
Ai, meu Deus.
Ramona apalpou­os e ficou realmente surpresa ao sentir em seus
pés a sensação das pontas de seus dedos esfregando a pele enrugada e
retorcida.
— Você se entregou à Besta. — disse uma voz vinda lá de baixo.
Assustada, Ramona deu um pulo sobre seus pés deformados. Na
plataforma inferior da escada de incêndio, ao invés do senhor porto­
riquenho que morava no andar de baixo, ela viu um estranho parado em
pé.
Os cabelinhos atrás de sua nuca se eriçaram.
O estranho não avançou nem recuou. Simplesmente ficou lá
parado, com cara de poucos amigos, sem demonstrar nenhuma emoção.
Sua face estava parcialmente escondida por óculos escuros e cabelos
“rastafári'. As cores de suas roupas rasgadas e amassadas se misturavam
quase perfeitamente com a paisagem noturna da cidade
O choque inicial de Ramona rapidamente deu lugar a um

de Gherbod Fleming 217


grunhido baixo que emergiu de suas entranhas. O estranho
imediatamente levou um dedo aos lábios.
— Shh. — Ele mencou a cabeça em direção à janela de Zhavon.
Ele tinha razão, pensou Ramona. Ela não queria se arriscar a
acordar a garota.
Mesmo assim, ela se eriçou. Quem ele pensava que era para lhe
dizer que fazer!
Ela engoliu o rosnado, mas precisava extravasar sua raiva e antes
que percebesse o que estava fazendo, ela pulou os degraus até o estranho.
Ele pareceu ficar menos surpreso do que ela com sua reação e
com um movimento fluido, colocou uma das mãos na grade de cima e
deu um salto acrobático para longe da saída de incêndio.
Assim que os joelhos de Ramona se desdobraram após absorver o
impacto de sua queda, ela lançou­se atrás dele sem a menor pausa. O
rápido movimento garantiu lhe impulsão para fazê­la passar por sobre a
grade e ela aterrissou na viela a poucos passos do estranho, agachada e
pronta para atacar.
Pare aí, seu cretino! — rosnou, agora que já estava a uma distância
segura da janela.
O estranho virou a cabeça como se tivesse ouvido um ruído ao
longe e em seguida olhou para cima, na direção da janela de Zhavon.
— Quem você deixará sem proteção?
A pergunta deixou Ramona paralisada. Ele sabe sobre ela, pensou
alarmada, e no instante em que seguiu seu olhar até a janela, ele
desapareceu. Ramona ficou parada em pé sozinha na viela deserta.
O estranho havia sumido, mas seu odor permanecia no ar — um
cheiro fraco mas bem definido, que ela já havia sentido em outras
ocasiões, embora nunca antes tivesse sido capaz de associar o odor a sua
fonte. Em seguida, ela se lançou na direção que seu nariz indicava ter sido
tomada pelo estranho, mas após alguns passos ela estacou.
Quem você deixará sem proteção? As palavras que ele dissera há
apenas alguns momentos lhe voltaram à cabeça.
Ela olhou rapidamente para a janela. Havia algum perigo
ameaçando Zhavon?
Quem você deixará sem proteção?
Era óbvio que ele sabia sobre a garota, embora nem mesmo
Ramona entendesse direito o que a atraía para lá quase todas as noites. O
cheiro. Ramona forçou­se a se concentrar. Numa fração de segundos, seus

218 do Romance de clã: Gangrel


instintos oscilaram da agressividade contra o desconhecido à necessidade
de proteger Zhavon, mas ela precisava pensar.
Ela tinha sentido aquele cheiro na noite anterior, na garagem.
Será que isso significava que ele também estava ciente sobre Jen e Darnell
e seu local de repouso?
Eu voltarei, dissera o motoqueiro — numa imitação barata de uma
fala de Schwarzenegger. Seria o desconhecido desta noite um integrante
do Sabá também?
Ramona olhou novamente para a janela.
Ou será que ele está tentando me atrair para longe para poder
voltar lá?
Como em muitas das noites das últimas semanas, seus
sentimentos estavam divididos entre permanecer lá, vigiando o sono da
mortal, e ir ter com os de sua própria espécie. Sem ter resolvido o dilema
conscientemente, Ramona acabou seguindo o odor e, embora ele logo
tenha se dissipado, seus primeiros passos a tinham colocado na direção da
Ponte George Washington.
Depois de percorrer cerca de um quilômetro, deu­se conta de que
havia deixado seus sapatos na saída de incêndio, mas ela já havia hesitado
o suficiente. Além disso, seus pés deformados moviam­se com facilidade
sobre a rua pavimentada.
Nem o cascalho, nem cacos de vidro feriam as solas rijas e grossas
de seus pés e o ruído ritmado de suas garras no asfalto a embalavam num
transe galopante.
Quem você deixará sem proteção?
Os quarteirões e os quilômetros foram ficando para trás, até que
ela se viu atravessando a ponte e passando por um carro, que se desviou
numa guinada daquela sombra fugidia que o motorista apenas percebeu
por um breve instante com sua visão periférica. Depois a ponte também
foi ficando à distância. Ramona passou pelo lugar onde havia defrontado
o motoqueiro na noite anterior. Ela disparou para a frente freneticamente,
empurrada pelo enorme temor que crescia dentro dela. E se fosse muito
tarde para alcançar seus amigos? E se ela tivesse tomado a decisão errada e
algo de terrível acontecesse a Zhavon?
Quando a garagem entrou em seu campo de visão, por um
instante Ramona sentiu, não alívio, mas um terror inexplicável. De fora,
tudo parecia calmo e silencioso.
Silêncio normal, ou silencioso demais?

de Gherbod Fleming 219


A dúvida mal perpassara em sua mente quando ela chegou à
porta e, investindo com toda força, abriu­a com violência. A corrente que
segurava as maçanetas partiu­se diante da força que superava sua
resistência. O clangor dos fragmentos da corrente espalhando­se pelo chão
do estacionamento perdeu­se na explosão da porta de metal batendo
contra a parede de alumínio do edifício. Ramona entrou correndo, pronta
para atacar.
Darnell pulou de onde estava sentado e virou­se para encará­la.
Ramona só viu Jen de relance enquanto ela corria para se esconder no
poço mais próximo.
— Filho da... — Darnell começou a berrar, mas o palavrão ficou a
meio caminho depois que o choque inicial foi substituído pelo
reconhecimento.
— Que diabos 'cê pensa que 'tá fazendo?
Ramona perscrutou rapidamente o interior escuro do prédio.
— Ele esteve aqui? — perguntou abruptamente.
— O quê ...! Quem?
Darnell, que já estava furioso e bastante envergonhado por ter
sido pego desprevenido, ficou ainda mais nervoso com o seu
comportamento quase frenético.
O motoqueiro, ela ia dizer quando percebeu que não era com ele
que ela estava mais preocupada. O estranho.
— Qualquer um.
— Não. Ninguém além de você, agindo feito uma maluca idiota e
arrebentando a maldita porta. — respondeu Darnell.
Uma luz tremeluziu vacilante no poço em que Jen se havia
escondido. Ela esticou a cabeça para fora e ergueu seu lampião de
mecânico.
— Ramona? É você?
— Apague essa maldita luz! — gritaram Darnell e Ramona em
uníssono, ao mesmo tempo em que protegiam os olhos.
Depois que a luz se apagou e os três estavam imersos na mais
completa escuridão, Ramona ouviu, pela segunda vez nesta noite, o
guinchado de pneus. Da vez anterior, ela pensou que haveria uma colisão.
Desta vez, sua expectativa foi correspondida.
O rugido de um motor explodiu num súbito crescendo de
destruição, metal rasgado e retorcido quando um carro atravessou a parede
lateral esquerda e invadiu a garagem. Um farol dianteiro estilhaçou­se

220 do Romance de clã: Gangrel


lançando jatos de cacos de vidro e faíscas ofuscantes.

de Gherbod Fleming 221


Próximo: Tzimisce

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