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QUINTA ESSÊNCIA
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PROMESSA
DE
VELUDO
Tradução
Maria Ponce de Leão
Para Jennifer
A lua lançava longas sombras sobre a velha torre de pedra que tinha uma
altura de três andares e parecia sombria, cansada da muralha arruinada e
desmoronada que a rodeava. A torre havia sido construída duzentos anos
antes dessa noite húmida de abril de 1501. Agora vivia-se uma época de paz
em que já não eram necessárias fortalezas de pedra; mas este não era o lar
de um homem diligente. O seu bisavô tinha vivido na torre quando tais
fortificações eram necessárias e Nicolas Valence pensava, se ficasse sóbrio
bastante para pensar, que a torre era suficiente para ele e para as gerações
futuras.
Um portão maciço dava para as paredes desintegradas e para a velha
torre. Aqui um guarda solitário dormia com o braço em torno de um odre de
vinho meio vazio. Dentro da torre, o piso térreo estava cheio de cães e
cavaleiros adormecidos. As suas armaduras encontravam-se encostadas às
paredes, numa pilha enferrujada e confusa, emaranhada com os juncos sujos
que cobriam as tábuas de carvalho.
Esta era a propriedade Valence, um castelo pobre, ultrapassado,
antiquado, que era objeto de piadas em toda a Inglaterra. Dizia-se que, se as
fortificações fossem tão fortes como o vinho, Nicolas Valence poderia deter
toda a Inglaterra. Mas ninguém atacava. Não havia razão para atacar. Há
muitos anos, a maior parte da terra de Nicolas fora-lhe tirada por cavaleiros
jovens, ávidos e sem dinheiro, que tinham acabado de ganhar as suas
esporas. Tudo o que restava era a antiga torre, que, na opinião de todos,
deveria ter sido demolida, e alguns campos periféricos que eram o sustento
da família Valence.
Havia uma luz na janela do último andar. No interior, o quarto estava frio
e húmido – uma humidade que nunca saía das paredes mesmo no tempo
mais seco do verão. O musgo crescia entre as fendas da pedra e pequenas
coisas rastejantes moviam-se constantemente pelo chão. Mas neste quarto
estava toda a riqueza do castelo, sentada diante de um espelho.
Alice Valence inclinou-se para o espelho e aplicou um escurecedor nos
cílios curtos e pálidos. O cosmético fora importado de França. Alice
recostou-se e analisou-se criticamente. Era objetiva sobre a sua aparência,
sabia o que possuía e como usá-lo a seu favor.
Refletido no espelho viu um pequeno rosto oval, com feições delicadas,
uma boca parecida com um botão de rosa, um nariz esguio e reto. Os olhos
rasgados em formato de amêndoa, de um azul brilhante, eram o seu traço
mais marcante. Tinha o cabelo loiro, que enxaguava permanentemente com
sumo de limão e vinagre. A sua criada, Ella, puxou uma madeixa amarela-
clara sobre a testa da ama e depois colocou um capuz francês1 na cabeça de
Alice. O capuz era de um brocado pesado, orlado por uma ampla franja de
veludo alaranjado.
Alice abriu a boca pequena para analisar uma vez mais os dentes. Eram a
sua pior característica, tortos e um pouco salientes. Ao longo dos anos,
aprendera a mantê-los escondidos, a sorrir com os lábios fechados, a falar
baixinho, a cabeça ligeiramente baixa. Esse maneirismo era uma vantagem,
pois intrigava os homens. Dava-lhes a ideia de que não tinha a noção de
como era bonita. Eles imaginavam despertar essa tímida flor para todas as
delícias do mundo.
Alice levantou-se e alisou o vestido por cima do corpo magro. Tinha
poucas curvas. Os seios pequenos repousavam sobre uma armação reta sem
quadris, sem entalhes na cintura. Ela gostava do seu corpo. Parecia esguio e
elegante em comparação com o das outras mulheres.
As suas roupas eram exuberantes, parecendo deslocadas no quarto
sombrio. Sobre o corpo usava uma camisa de linho, tão fina que era quase
gaze. Por cima, usava um vestido luxuriante do mesmo brocado pesado do
capuz. Tinha um decote profundo e quadrado e o corpete encaixava-se
perfeitamente no corpo esguio. A saia era em formato de sino, suave e
graciosa. O brocado azul era orlado com pele branca de coelho, bem como
os amplos e largos punhos das mangas pendentes. A rodear-lhe a cintura
tinha um cinto de couro azul, enfeitado com grandes pedras preciosas,
esmeraldas e rubis.
Alice continuou a analisar-se enquanto Ella colocava sobre os ombros da
patroa um manto de brocado forrado de pele de coelho.
– Milady, não pode encontrar-se com ele. Não quando vai...
– Casar com outro? – completou Alice enquanto apertava o pesado manto
sobre os ombros. Virou-se para se contemplar, satisfeita com o resultado. A
combinação do laranja com o azul era impressionante. Não passaria
despercebida com aquela roupa. – O que tem o meu casamento a ver com o
que faço agora?
– Sabe que é um pecado. Não pode encontrar-se com um homem que não
é seu marido.
Alice soltou uma risadinha enquanto ajustava as dobras do pesado manto.
– Queres que vá ao encontro do meu pretendido? O querido Edmund? –
perguntou com grande sarcasmo. Antes que Ella pudesse responder,
continuou: – Não precisas ir comigo. Conheço o caminho e, para o que
Gavin e eu fazemos, não precisamos de mais ninguém.
Ella estava com Alice há demasiado tempo para ficar chocada. Alice fazia
o que queria, quando queria.
– Não, eu irei. Mas só para me certificar de que não sofra qualquer dano.
Alice ignorou a mulher idosa como o fizera toda a sua vida. Tirou uma
vela do pesado castiçal em metal ao lado da cama e dirigiu-se à porta de
carvalho reforçada com tiras de ferro.
– Silêncio, então – ordenou por cima do ombro enquanto voltava a ajustar
a porta nas dobradiças bem lubrificadas. Pegou no manto de brocado na
mão e atirou-o sobre o braço. Não podia deixar de pensar que, em poucas
semanas, deixaria aquela decrépita fortaleza e passaria a viver num castelo
– a mansão Chatworth, uma construção de pedra e madeira rodeada por
altas muralhas protetoras.
– Quieta! – ordenou a Ella enquanto colocava o braço sobre o estômago
mole da mulher por forma a que ambas ficassem coladas contra a parede
húmida da escada escura. Um dos guardas do pai passou
despreocupadamente ao fundo da escada, fez as suas necessidades, voltou a
apertar as calças e regressou ao catre de palha. Alice apagou rapidamente a
vela e esperou que o homem não ouvisse o suspiro de Ella, enquanto a
escuridão do velho castelo envolvia as duas.
– Anda – sussurrou Alice, sem ter tempo nem vontade de ouvir os
protestos de Ella.
A noite estava clara e fresca e, como ela sabia, dois cavalos esperavam
por ela e pela sua criada. Alice sorriu quando se atirou para a sela do
garanhão escuro. Mais tarde, recompensaria o rapaz do estábulo que
cuidava tão bem e adequadamente da sua patroa.
– Milady! – gemeu Ella desesperada.
Contudo, Alice não se virou porque sabia que Ella era gorda de mais para
montar o cavalo sozinha. Alice não desperdiçaria um único dos seus
preciosos minutos com uma mulher velha e inútil – não quando Gavin a
esperava.
A porta na muralha, que ficava de frente para o rio, fora deixada aberta
para ela. Tinha chovido mais cedo e o chão estava molhado, mas havia um
toque de primavera no ar. Com ela veio uma sensação de promessa – e de
paixão.
Quando estava certa de que os cascos do cavalo não seriam ouvidos,
inclinou-se para a frente e sussurrou-lhe:
– Vá, meu demónio negro. Leva-me ao meu amante. – O garanhão
empinou-se para mostrar que compreendia e depois esticou as patas
dianteiras longas e direitas. Conhecia o caminho e partiu a uma velocidade
tremenda.
Alice balançou a cabeça, deixando que o ar soprasse no seu rosto
enquanto se entregava ao poder e à força do magnífico animal. Gavin.
Gavin. Gavin, pareciam dizer os cascos ao ressoar na estrada molhada. Em
muitos aspetos, os músculos de um cavalo entre as coxas lembravam-lhe
Gavin. As mãos fortes no seu corpo, a força dele que a enfraquecia de
desejo. O seu rosto, o luar a refulgir nas maçãs do rosto, os olhos brilhantes
mesmo na noite mais escura.
– Ah, meu doce, agora tem cuidado – disse Alice suavemente ao mesmo
tempo que puxava as rédeas. Agora que estava a aproximar-se do local do
encontro, começou a lembrar-se do que tão cuidadosamente tentara
esquecer. Desta vez, Gavin teria ouvido falar do seu casamento iminente e
estaria zangado com ela.
Virou o rosto para apanhar o vento diretamente. Pestanejou rapidamente
até as lágrimas começarem a formar-se. Lágrimas ajudariam. Gavin sempre
odiara lágrimas, então ela usara-as cuidadosamente nos últimos dois anos.
Só quando queria desesperadamente algo recorria ao truque; assim não se
desgastou por uso excessivo.
Alice suspirou. Por que não podia falar honestamente com Gavin? Por
que razão os homens deviam ser sempre tratados tão gentilmente? Ele
amava-a, portanto, devia amar o que ela fizesse, por mais desagradável que
fosse para ele. Era uma esperança inútil e ela sabia disso. Se contasse a
verdade a Gavin, iria perdê-lo. Então, onde encontraria outro amante?
A recordação do seu corpo, duro e exigente, levou Alice a enterrar os
calcanhares dos sapatos macios nos flancos do cavalo. Oh, sim, usaria
lágrimas ou qualquer outra coisa necessária para manter Gavin
Montgomery, um cavaleiro de renome, um lutador sem igual... e dela, todo
dela!
De súbito, quase podia ouvir as perguntas aguçadas de Ella. Se Alice
desejava tanto Gavin, por que estava prometida a Edmund Chatworth, um
homem com a pele da cor da barriga de um peixe, mãos gordas e macias e
uma boca feia e pequena, que formava um círculo perfeito?
Porque Edmund era um conde. Possuía terras de um extremo ao outro de
Inglaterra, propriedades na Irlanda, no País de Gales, na Escócia e, segundo
constava, também na França. Claro que Alice não podia saber exatamente a
extensão da sua riqueza, mas viria a saber. Oh, sim, quando fosse sua
esposa, saberia. A mente de Edmund era tão fraca quanto o seu corpo e não
demoraria muito para que o controlasse assim como às suas propriedades.
Iria mantê-lo feliz com algumas prostitutas e cuidaria pessoalmente das
propriedades, livre das exigências e ordens irritantes de qualquer homem.
Alice tinha uma paixão pelo belo Gavin, mas isso não obscurecia o seu
bom senso. Quem era Gavin Montgomery? Um barão de pouca importância
– mais pobre do que rico. Um guerreiro brilhante, um homem forte e
bonito, mas não tinha riqueza. Não comparado com Edmund. O que seria a
vida com Gavin? As noites seriam noites de paixão e de êxtase, mas Alice
sabia muito bem que nenhuma mulher jamais controlaria Gavin. Se casasse
com Gavin, ele esperaria que ela ficasse em casa e fizesse o trabalho das
mulheres. Não, nenhuma mulher alguma vez controlaria Gavin
Montgomery. Seria um marido tão exigente como era no seu papel como
amante.
Instigou o cavalo para a frente. Ela queria tudo: a fortuna e a posição
social de Edmund e a paixão de Gavin. Sorriu ao endireitar os alfinetes de
ouro, um em cada ombro, que seguravam o vistoso manto no lugar. Ele
amava-a – Alice estava confiante – e não perderia o seu amor. Como
poderia? Que mulher se lhe comparava em beleza?
Alice começou a pestanejar rapidamente. Algumas lágrimas e ele
entenderia que ela estava a ser forçada a casar com Edmund. Gavin era um
homem de honra. Entenderia que ela devia respeitar o acordo do seu pai
com Edmund. Sim, se fosse cautelosa, teria os dois; Gavin para as noites e a
riqueza de Edmund para o dia.
Gavin esperava em silêncio. A única parte dele que se movia era um
músculo na mandíbula, contraindo-se e descontraindo-se. O luar prateado
brilhava nas maçãs do rosto até parecerem lâminas de punhais. A boca
firme e reta formava uma linha severa acima de uma covinha no queixo. Os
olhos cinzentos estavam negros de raiva, quase tão negros quanto os
cabelos que se encaracolavam e se escapavam pela gola do casaco de lã.
Somente longos anos de árduo treino como cavaleiro lhe permitiam um
rígido controlo externo. Por dentro estava a ferver. Nessa manhã tinha
ouvido que a mulher que amava se casaria com outro, iria para a cama com
outro homem, e os seus filhos pertencer-lhe-iam. O seu primeiro impulso
fora cavalgar diretamente para a fortaleza de Valence e exigir que ela
negasse o que ele ouvira. Mas o seu orgulho deteve-o. Este encontro com
ela havia sido combinado há semanas, então obrigou-se a esperar até que
pudesse vê-la novamente, voltar a abraçá-la e ouvi-la dizer-lhe, dos seus
próprios lábios doces, o que queria ouvir. Ela não se casaria com ninguém
além dele. Disso tinha a certeza.
Perscrutou o vazio da noite, atento ao som de cascos de cavalo; mas o
campo estava silencioso, uma massa de escuridão quebrada apenas pelas
sombras mais escuras. Um cão esquivou-se, furtivo, de uma árvore a outra,
olhando para Gavin, desconfiado do homem silencioso e imóvel. A noite
trouxe de volta memórias da primeira vez que ele e Alice se tinham
encontrado nessa clareira, um lugar abrigado do vento, aberto ao céu.
Durante o dia, um homem poderia passar a cavalo por ela e não reparar,
mas à noite as sombras transformavam-na numa caixa de veludo negro,
apenas com tamanho bastante para guardar uma joia.
Gavin conhecera Alice no casamento de uma das suas irmãs. Embora os
Montgomery e os Valence fossem vizinhos, raramente se viam. O pai de
Alice era um bêbado. Pouco se importava com as suas propriedades; viveu
– e forçou a mulher e as cinco filhas a viver – tão miseravelmente como
alguns servos. Foi por um sentido de dever que Gavin assistiu a um
casamento lá, como representante da sua família, dado que, na verdade, os
seus três irmãos se recusaram a fazê-lo.
Tinha sido nesse monte de esterco e de negligência que Gavin viu Alice –
a sua bela e inocente Alice. No começo não podia acreditar que ela
pertencia a essa família de filhas gordas e feias. As suas roupas eram dos
mais ricos tecidos, os seus modos delicados e refinados e a sua beleza...
Sentara-se a olhá-la, como vários dos outros jovens fizeram. Ela era
perfeita; cabelos loiros, olhos azuis, uma boca pequena que ele ansiava por
fazer sorrir a qualquer custo. Naquele momento, antes mesmo de lhe falar,
apaixonou-se por ela. Mais tarde, teve de abrir caminho à força entre os
homens para chegar ao lado dela. A sua violência pareceu chocar Alice e os
seus olhos baixos, a voz suave, tinham-no hipnotizado ainda mais. Ela era
tão tímida, tão reticente que mal conseguia responder às suas perguntas.
Alice era tudo e muito mais do que podia esperar, virginal e, no entanto,
feminina.
Naquela noite, pediu-lhe que se casasse com ele. Ela brindou-o com uma
expressão assustada e por um momento os olhos assemelharam-se a safiras.
Depois, baixou a cabeça e murmurou algo sobre a necessidade de perguntar
ao pai.
No dia seguinte, Gavin apareceu diante do bêbado para pedir a mão de
Alice, mas o homem disse-lhe algumas idiotices do género de que a mãe
precisava da jovem. As suas palavras soaram estranhamente hesitantes,
como se repetisse um discurso aprendido de memória. Nada do que Gavin
lhe disse fez com que Valence mudasse de ideia.
Gavin saiu desgostoso, enraivecido por haver sido impedido de ter a
mulher que queria. Não tinha cavalgado até muito longe quando a viu. O
seu cabelo estava descoberto, brilhante à luz do entardecer, e o rico veludo
azul do seu vestido refletia a cor dos seus olhos. Estava ansiosa por ouvir
qual fora a resposta do pai. Gavin comunicou-lha, furioso, e então viu as
suas lágrimas. Alice tentou escondê-las, mas ele podia senti-las bem como
vê-las. Em segundos, desmontou e puxou-a do seu cavalo. Não se lembrava
de como aquilo acontecera. Um minuto depois, estava a confortá-la. Logo a
seguir, estavam aqui, neste lugar secreto, as roupas removidas e envoltos
nos espasmos da paixão. Não sabia se deveria desculpar-se ou alegrar-se. A
doce Alice não era uma serva que se atirasse ao feno; era uma dama, que
um dia seria sua mulher. Além disso, uma virgem. Disso tinha a certeza
quando viu duas gotas de sangue nas suas coxas esguias.
Dois anos! Isso fora há dois anos. Se ele não tivesse passado a maior
parte do tempo na Escócia, a patrulhar as fronteiras, teria exigido que o pai
dela lhe desse a mão de Alice em casamento. Agora que tinha voltado,
planeava fazer exatamente isso. Na verdade, se necessário, iria ao rei com a
sua súplica, Valence não era razoável. Alice contou a Gavin as conversas
com o pai, implorando e suplicando por ele, mas sem sucesso. Uma vez,
mostrou-lhe uma contusão que recebeu pela sua insistência a favor de
Gavin. O jovem ficara louco de raiva. Desembainhara a espada e teria ido
atrás do homem se Alice não se tivesse agarrado a ele, de lágrimas nos
olhos, implorando-lhe que não fizesse mal ao pai. Não poderia recusar nada
ante a visão das suas lágrimas, portanto, embainhou a espada e prometeu
que iria esperar. Alice garantiu-lhe que o pai acabaria por ver a razão.
Assim, continuaram a encontrar-se secretamente como crianças
desobedientes – uma situação que desagradava a Gavin. No entanto, Alice
implorou-lhe que não falasse com o seu pai, deixando que fosse ela a
persuadi-lo.
Gavin mudou de posição e escutou novamente. Ainda reinava apenas o
silêncio. Nessa manhã ouvira dizer que Alice casaria com Edmund
Chatworth, aquele pedaço de lama. Chatworth pagava grandes somas ao rei
para que não fosse chamado a lutar em qualquer guerra. «Ele não era um
homem», pensou Gavin. Chatworth não merecia o título de conde. Pensar
em Alice casada com alguém como ele ultrapassava a sua imaginação.
De repente, todos os sentidos de Gavin ficaram em alerta ao ouvir os sons
abafados de cascos do cavalo no solo húmido. Ficou instantaneamente ao
lado de Alice que caiu nos seus braços.
– Gavin – sussurrou ela –, meu doce Gavin. – Agarrou-se a ele, quase
como se estivesse aterrorizada.
O jovem tentou afastá-la para que pudesse ver o seu rosto, mas ela
prendeu-o com um tal desespero que não se atreveu a fazê-lo. Sentiu a
humidade das suas lágrimas no pescoço e toda a raiva que o invadira
durante o dia abandonou-o. Abraçou-a junto ao corpo, murmurando
palavras carinhosas junto à sua pequena orelha, acariciando-lhe os cabelos.
– Diz-me, o que aconteceu? O que te magoou tanto?
Ela afastou-se para poder fitá-lo, segura de que a noite não poderia trair a
ausência de vermelhidão nos seus olhos.
– É terrível – sussurrou Alice com voz rouca. – É de mais para suportar.
Gavin ficou um pouco tenso quando se lembrou do que tinha ouvido
sobre o seu casamento.
– É verdade, então?
Ela fungou delicadamente, tocou com um dedo no canto do olho e fitou-o
através dos cílios.
– O meu pai não pode ser persuadido. Cheguei a recusar comida para
fazer com que mudasse de ideia, mas ele mandou uma das mulheres… Não,
não vou contar-te o que elas me fizeram. Ele disse que... Oh, Gavin, não
posso repetir as coisas que me disse. – Sentiu que o corpo de Gavin
enrijecia.
– Irei ter com ele e...
– Não! – exclamou Alice quase freneticamente, apertando entre as mãos
os seus braços musculosos. – Não podes! Quero dizer... – Baixou os braços
e os cílios. – Quero dizer, já está feito. O noivado foi assinado e
testemunhado. Não há nada que alguém possa fazer agora. Se o meu pai
cancelasse, ainda teria de pagar o meu dote a Chatworth.
– Eu pagarei – disse Gavin com dureza.
Alice deitou-lhe um olhar de surpresa; depois, mais lágrimas juntaram-se
nos seus olhos.
– Não importaria. O meu pai não me permitirá casar contigo. Sabes isso.
Oh, Gavin, o que devo fazer? Serei forçada a casar com um homem que não
amo. Olhou para ele com tanto desespero que Gavin a apertou contra si.
– Como posso suportar perder-te, meu amor? – sussurrou contra o seu
pescoço. – És a minha carne e o meu sangue, sol e noite. Eu… eu morrerei
se te perder.
– Não digas isso! Como poderás perder-me? Sabes que sinto o mesmo
por ti.
Ela afastou-se para o olhar, subitamente mais feliz.
– Então amas-me? Amas-me verdadeiramente, de modo que, se o nosso
amor for testado, continuarei segura de ti?
Gavin franziu a testa.
– Testado?
Alice sorriu por entre as lágrimas.
– Mesmo que case com Edmund, continuarás a amar-me?
– Casar! – Ele quase gritou enquanto a empurrava para longe dele.
– Pretendes casar com esse homem?
– Tenho escolha? – Ficaram ambos em silêncio, Gavin olhando para ela,
Alice com os olhos recatadamente baixos. – Então, irei embora.
Desaparecerei da tua vista. Não precisarás olhar para mim novamente.
Ela estava a preparar-se para montar no cavalo quando ele reagiu.
Agarrou-a com força, puxando a sua boca para a dele até a magoar. Não
havia palavras, não eram necessárias. Os seus corpos entendiam-se, mesmo
que não pudessem concordar. A rapariga tímida tinha desaparecido. No seu
lugar estava a Alice apaixonada que Gavin conhecia tão bem. As mãos
femininas despiram freneticamente as roupas dele até ficarem rapidamente
empilhadas no chão.
Ela soltou uma risada rouca ao vê-lo nu diante de si. O seu corpo era
musculoso devido aos muitos anos de treino. Era uma boa cabeça mais alta
do que Alice, que frequentemente se elevava sobre os homens. Os ombros
eram largos, o peito fortemente grosso. No entanto, tinha as ancas esguias e
o ventre era liso, os músculos divididos em sulcos. As coxas e a barriga das
pernas exibiam músculos fortalecidos por anos de uso de armaduras
pesadas.
Alice deu um passo para trás e respirou fundo entre os dentes, devorando-
o com os olhos. As mãos estenderam-se para ele como se fossem garras.
Gavin puxou-a para si, beijou a pequena boca que se abria amplamente
sob a dele, enquanto a língua dela mergulhava na boca dele. Aproximou-a
mais e a sensação do seu vestido contra a pele nua excitava-a. Os lábios
masculinos moveram-se para a sua face, para o seu pescoço. Com a noite
toda ainda pela frente, ele tinha intenção de passá-la a fazer amor com ela.
– Não! – exclamou Alice impaciente enquanto se afastava com
brusquidão. Afastou o manto dos ombros, indiferente ao tecido caro.
Empurrou as mãos de Gavin para longe da fivela do cinto.
– És muito lento – declarou sem rodeios.
Gavin franziu momentaneamente a testa, mas à medida que camada após
camada das roupas de Alice caía por terra, os sentidos levaram a melhor.
Ela ansiava-o tanto como ele a ela. Assim, o que importava se ela não
quisesse perder tempo demasiado antes que os seus corpos estivessem
unidos pele com pele?
Gavin teria gostado de saborear o corpo esbelto de Alice durante algum
tempo, mas a jovem puxou-o rapidamente para o chão e com a mão guiou-o
de imediato para dentro dela. Então ele parou de pensar sobre os jogos de
amor preliminares ou beijos demorados. Alice estava debaixo dele,
instigando-o. A voz dela era áspera enquanto dirigia o seu corpo, com as
mãos nos seus quadris, enquanto o empurrava cada vez com mais força. A
certa altura Gavin preocupou-se com a possibilidade de a magoar, mas ela
parecia glorificar-se na força dele.
– Agora! Agora! – exigiu debaixo dele e emitiu um som baixo e gutural
de triunfo quando ele a obedeceu.
Logo a seguir, afastou-se para longe dele. Havia-lhe dito repetidamente
que o fazia por causa dos seus pensamentos antagónicos, enquanto
reconciliava o seu estado de solteira com a sua paixão. No entanto, ele teria
gostado de tê-la abraçado por mais tempo, desfrutado mais do seu corpo,
talvez até mesmo fazer amor com ela novamente. Seria um ato de amor
lento dessa vez, agora que o fogo da primeira paixão fora extinto. Gavin
tentou ignorar o sentimento de vazio dentro de si, como se tivesse acabado
de provar algo, mas ainda não estivesse saciado.
– Tenho de ir embora – disse ela, sentando-se e começando o intrincado
processo de se vestir.
Gavin gostava de observar as suas pernas esbeltas enquanto enfiava as
meias leves de linho. Pelo menos observá-la ajudou a dissipar um pouco do
vazio. Inesperadamente, lembrou-se de que, em breve, outro homem teria o
direito de tocá-la. De repente, desejou magoá-la, como ela estava a magoá-
lo.
– Também tenho uma proposta de casamento.
Alice parou instantaneamente, com a mão na meia e observou-o,
esperando por mais.
– A filha de Robert Revedoune.
– Ele não tem filhas, apenas filhos, ambos casados – reagiu Alice
imediatamente. – Revedoune era um dos condes do rei, um homem cujas
propriedades faziam com que as de Edmund parecessem as da propriedade
de um servo. Levara algum tempo, mas Alice usara os dois anos passados
por Gavin na Escócia para averiguar e descobrir a história de todos os
condes, de todos os homens mais ricos da Inglaterra, antes de decidir que
Edmund seria a presa mais apetecível.
– Não ouviste dizer que os dois filhos morreram há dois meses de uma
terrível doença?
Alice fitou-o.
– Mas nunca ouvi falar de uma filha.
– Uma rapariga chamada Judith, mais jovem do que os seus irmãos. Ouvi
dizer que foi preparada pela mãe para a Igreja e que é mantida enclausurada
na casa do pai.
– Ofereceram-te essa Judith em casamento? Mas ela seria a herdeira do
pai, uma mulher rica. Por que haveria de oferecê-la a...? – parou,
lembrando-se de ocultar os seus pensamentos de Gavin.
Ele virou o rosto na sua direção e ela podia ver os músculos da sua
mandíbula contraídos, o luar a brilhar no seu peito nu, ainda levemente
coberto de suor pelo ato de amor.
– Por que ofereceria ele esse prémio a um Montgomery? – concluiu
Gavin por ela num tom frio. Noutros tempos, a família Montgomery tinha
sido suficientemente rica para despertar a inveja do rei Henrique IV. O rei
declarara toda a família como traidora e depois começara a desmantelar a
poderosa família. Fora tão bem-sucedido que só agora, cem anos mais
tarde, a família começava a recuperar uma parte do que havia perdido. Mas
as memórias da família Montgomery estavam intactas e nenhum deles se
importava de lembrar o que haviam sido noutros tempos.
– Pelos braços direitos dos meus irmãos e do meu também – disse Gavin
depois de uns momentos. – As terras Revedoune fazem fronteira com a
nossa, ao norte, e ele tem medo dos escoceses. Percebeu que as suas terras
serão protegidas, caso se alie à minha família. Um dos trovadores da Corte
ouviu-o dizer que os Montgomery, se mais não produzissem, criavam
varões que sobrevivem. Então, parece que sou uma boa oferta para a filha
dele, se ao menos lhe fizer varões.
Alice estava quase vestida agora e olhou para ele.
– O título passará pela filha, certo? O teu filho mais velho seria um conde
e tu, quando Revedoune morrer.
Gavin virou-se bruscamente. Não tinha pensado nisso, nem tão pouco lhe
importara. Era estranho que Alice, que ligava tão pouco a bens materiais,
tivesse pensado primeiro nisso.
– Então vais casar com ela? – perguntou Alice, em pé diante dele,
observando-o a vestir rapidamente a roupa.
– Ainda não tomei uma decisão. A proposta só chegou há dois dias, e
depois pensei...
– Já a viste? – interrompeu Alice.
– Quem? Referes-te à herdeira?
Alice cerrou os dentes. Às vezes, os homens podiam ser tão
insuportáveis. Recompôs-se.
– Ela é linda, eu sei – disse Alice em lágrimas. – Quando estiveres casado
com ela, nunca mais te lembrarás de mim.
Gavin levantou-se rapidamente. Não sabia se estava zangado ou não. A
mulher falava dos casamentos de ambos com outras pessoas como se não
afetassem em nada o relacionamento entre eles.
– Não a vi – respondeu em voz baixa.
De repente, a noite parecia estar a fechar-se sobre ele. Queria ouvir Alice
negar a conversa sobre o casamento dela, mas em vez disso viu-se a falar da
possibilidade do seu próprio casamento. Desejava fugir – fugir das
complexidades das mulheres e regressar à solidez e à lógica dos seus
irmãos.
– Não sei o que vai acontecer.
Alice franziu a testa quando ele lhe pegou no braço e a conduziu até junto
do cavalo.
– Amo-te, Gavin – disse ela rapidamente. – Aconteça o que acontecer,
sempre te amarei, sempre te desejarei.
Ele apressou-se a erguê-la para a colocar na sela.
– Deves regressar antes que alguém dê pela tua ausência. Não
gostaríamos que essa história chegasse aos ouvidos do bravo e nobre
Chatworth, não é?
– És cruel, Gavin – acusou ela, mas não havia som de lágrimas na sua
voz. – Devo ser punida pelo que está fora das minhas mãos, pelo que não
posso controlar?
Ele não tinha resposta.
Alice inclinou-se para a frente e beijou-o, mas sabia que a sua mente
estava em outro lugar e isso assustou-a. Puxou as rédeas bruscamente e
galopou para longe.
1 O capuz francês era um tipo de chapéu feminino popular na Europa Ocidental no século XVI.
Caracteriza-se por uma forma arredondada em contraste com o «Inglês» angular. É usado sobre
uma touca e tem um véu preto preso às costas. (N. da T.)
Capítulo Dois
A velha torre era cheia de correntes de ar; o vento assobiava através das
fendas. O papel oleado sobre as janelas de pouco servia para evitar o frio.
Alice dormia confortavelmente, nua sob um edredão de linho, forrado
com penas de ganso.
– Milady – sussurrou Ella à ama. – Ele está aqui.
Sonolenta, Alice virou-se.
– Como ousas acordar-me?! – disse com um sussurro feroz. – Quem está
aqui?
– O homem da casa dos Revedoune. Ele…
– Revedoune! – exclamou Alice enquanto se sentava, agora totalmente
desperta. – Vai buscar-me o roupão e traz-me o homem até aqui.
– Aqui? – A criada ficou horrorizada. – Não, milady, não pode. Alguém
poderia ouvi-la.
– Sim – concordou Alice distraidamente. – É um risco muito grande.
Deixa-me vestir. Vou encontrar-me com ele debaixo daquele olmo, junto à
horta.
– À noite? Mas...
– Vai lá agora! Diz-lhe que estarei lá em breve.
– Alice enfiou rapidamente os braços no roupão, um manto de veludo
carmesim grosso forrado com pele de esquilo cinzento. Enrolou um cinto
largo na cintura e deslizou os pés para uns chinelos de couro macio tingidos
de ouro.
Passara quase um mês desde que vira Gavin e durante todo esse tempo
não tinha recebido nenhuma palavra dele. Mas, alguns dias depois do
encontro na floresta, ouvira dizer que ele se casaria com a herdeira
Revedoune. De um extremo ao outro de Inglaterra, estava a ser anunciado
um torneio para celebrar a boda. Todos os homens importantes estavam a
receber convites; todos os cavaleiros com destreza foram convidados a
participar. A cada palavra que ouvia, Alice ficava mais ciumenta. Como
teria gostado de se sentar ao lado de um marido como Gavin e assistir a um
torneio organizado para celebrar as suas próprias núpcias! Mas nenhum
plano idêntico estava a ser feito para o casamento dela.
No entanto, apesar de tudo o que ouviu sobre os planos, em lugar nenhum
encontrou alguém que pudesse dizer uma palavra sobre Judith Revedoune.
A jovem era um nome sem rosto e sem corpo. Duas semanas antes, Alice
tinha tido a ideia de contratar um espião que fizesse averiguações sobre essa
esquiva Judith, para descobrir como ela era e com o que se via forçada a
competir. Deu ordens a Ella para que a criada a alertasse sobre a chegada
desse homem, independentemente da hora.
O coração de Alice batia rapidamente enquanto corria pelo caminho do
jardim cheio de ervas daninhas. «Essa Judith é um sapo absoluto», dizia
Alice para si mesma. «Tem de ser.»
– Ah, milady – disse o espião quando Alice estava perto. – A sua beleza
ofusca o esplendor da Lua. – Agarrou-lhe na mão e beijou-a.
Aquele homem enojava-a, mas era o único que conseguira encontrar que
tinha acesso à família Revedoune. O preço que teve de lhe pagar era
ultrajante! Tratava-se de um homem viscoso, oleoso, mas pelo menos tinha
sido bom a fazer amor.
– Quais são as notícias? – perguntou, impaciente, enquanto retirava
apressadamente a mão. – Viu-a?
– Não... De perto, não...
– De perto? Viu-a ou não? – exigiu saber Alice, fitando-o diretamente nos
olhos.
– Sim, vi-a – respondeu ele firmemente. – Mas ela está muito protegida. –
Queria agradar àquela beldade loira, então sabia que devia esconder a
verdade. Tinha visto Judith Revedoune, mas só de longe, enquanto se
afastava da mansão montada a cavalo, rodeada pelas suas damas de
companhia. Nem sequer tinha a certeza de qual era a herdeira.
– Por que é mantida guardada? Não tem uma mente sã, por isso não a
deixam andar livremente?
De súbito, teve medo daquela mulher que o interrogava tão asperamente.
Havia poder naqueles frios olhos azuis.
– Há, obviamente, rumores. Não é vista por ninguém, excetuando as
damas de companhia e a mãe. Viveu toda a vida entre elas e foi sempre
preparada para a Igreja.
– A Igreja? – Alice começou a sentir que parte da tensão a deixava. Era
do conhecimento geral que sempre que uma filha deformada ou retardada
nascesse, se a família fosse rica o suficiente, era-lhe concedida uma pensão
e entregue aos cuidados das freiras.
– Então acha que ela poderia ter uma mente fraca ou ser deformada de
alguma maneira?
– Por que outro motivo haveriam de mantê-la tão escondida durante a
vida inteira, milady? Robert Revedoune é um homem duro. A mulher ainda
coxeia desde que ele a atirou pelas escadas. Decerto não ia querer que as
pessoas vissem que tem um monstro como filha.
– Mas não tem a certeza de que seja essa a razão pela qual ela está
escondida?
Ele sorriu, sentindo-se mais seguro.
– Que outra razão poderia haver? Se ela fosse sã e completa, não a
exporia aos olhos do mundo? Só a ofereceu em casamento depois de ser
forçado a fazê-lo devido à morte dos seus filhos, não foi? Que homem
permitiria que a sua filha ingressasse na Igreja? Só quando um homem tem
muitas filhas permite isso.
Alice contemplava tranquilamente a noite. O seu silêncio fez com que o
homem ficasse mais ousado. Inclinou-se para perto dela, colocou a mão
sobre a dela e sussurrou-lhe ao ouvido:
– Não tem razão para temer, milady, não haverá uma noiva bonita que a
tire da cabeça de Lorde Gavin.
Apenas a respiração bruscamente sustida de Alice deu alguma indicação
de que tivesse ouvido. Até o mais comum dos homens sabia sobre ela e
Gavin? Com o talento de uma grande atriz, virou-se e sorriu ao homem.
– Fez um bom trabalho e será... devidamente recompensado. – Não
deixou a mínima dúvida quanto ao significado das suas palavras.
O homem inclinou-se e beijou-a no pescoço.
Alice afastou-se, dissimulando a repulsa que a invadia.
– Não, não esta noite – sussurrou num tom íntimo. – Amanhã. Há que
tomar disposições para que possamos estar mais tempo juntos. – Passou a
mão sob o tabardo2 solto, ao longo da sua coxa, e sorriu sedutoramente
quando ele ficou sem fôlego.
– Tenho de ir embora – disse ela com aparente relutância.
Não havia um indício de sorriso no seu rosto quando estava de costas
para ele. Alice tinha mais uma diligência para fazer antes de voltar para a
cama. O jovem do estábulo ficaria feliz por ajudá-la. Ela não permitiria que
nenhum homem falasse livremente de Gavin e dela... e este pagaria pelas
suas palavras.
***
2 Tabardo – uma túnica exterior curta e sem mangas estampada com um brasão, usado por um
cavaleiro sobre a sua armadura. (N. da T.)
Capítulo Três
Ainda era de manhã cedo quando Judith seguiu as criadas pelas escadas
de madeira até ao grande salão no segundo andar. O chão fora coberto de
junco fresco; as tapeçarias que estavam guardadas haviam sido penduradas
e o chão entre a porta e a parte de trás do salão era um caminho de pétalas
de rosas e de lírios. Passaria por ali quando voltasse da igreja – uma mulher
casada.
Maud caminhava atrás da ama, segurando bem alto a longa cauda do
frágil vestido dourado e o manto orlado de arminho. Judith fez uma pausa
antes de sair de casa e respirou fundo para ganhar coragem.
Os olhos levaram um momento para se adaptarem à forte luz do Sol e
avistarem a longa fila de pessoas que tinham comparecido para testemunhar
o casamento da filha de um conde. Não estava preparada para receber os
aplausos que a saudaram, gritos de boas-vindas e de prazer ante a visão de
tão esplêndida jovem.
Judith sorriu em resposta, acenando com a cabeça para os convidados,
servos e mercadores que também tinham vindo assistir às festividades.
O trajeto para a igreja seria como um desfile, criado para mostrar a
riqueza e a importância do conde do rei, Robert Revedoune. Mais tarde,
poderia gabar-se de que muitos condes e barões tinham vindo homenagear o
casamento da filha. Os menestréis conduziram a procissão, anunciando com
entusiasmo a passagem da bonita noiva. Judith foi colocada num cavalo
branco pelo seu próprio pai, que esboçou um sinal de aprovação quanto ao
seu vestido e porte. Ela montou de lado para esta ocasião auspiciosa;
tratava-se de uma posição invulgar para ela e que a incomodava, mas
dissimulou. A mãe cavalgava atrás, ladeada por Miles e Raine. Uma
multidão de convidados seguia por ordem de importância.
Com um grande estrépito de címbalos, os menestréis começaram a cantar
e a procissão pôs-se a caminho. Moviam-se lentamente, seguindo os
músicos e Robert Revedoune, que conduzia o cavalo da filha pelas rédeas.
Apesar de todos os seus votos e juramentos, Judith descobriu que ficava
mais nervosa a cada passo; a curiosidade sobre o noivo começou a
consumi-la. Sentou-se ereta, mas semicerrou os olhos na direção da porta da
igreja, onde se encontravam duas figuras de pé: o padre e o estranho que
seria seu marido.
Gavin não estava tão curioso. Ainda se sentia enjoado com base na
descrição de Raine: aparentemente, a jovem era simplória e feia. Tentou
desviar os olhos da procissão que se aproximava rapidamente, mas o
barulho dos menestréis e os gritos ensurdecedores dos milhares de servos e
de mercadores, que se alinhavam no caminho, impediam-no de ouvir os
seus próprios pensamentos. O seu olhar foi atraído involuntariamente para o
desfile. Não se apercebera de que estavam tão perto!
Quando ergueu o rosto e viu uma jovem de cabelo ruivo montada na sela
de um cavalo branco, não fazia ideia de quem poderia tratar-se, e levou um
minuto a perceber que era a sua noiva. O sol brilhava sobre ela como se
fosse uma deusa pagã revivida. Fitou-a boquiaberto. Depois esboçou um
sorriso. Raine! Era de esperar que Raine mentisse! Gavin ficou tão aliviado
e tão feliz que, inadvertidamente, abandonou o portal da igreja e desceu a
escadaria, de dois em dois e depois de três em três degraus. O costume
ditava que o noivo esperasse até que o pai da noiva a desmontasse do
cavalo e a acompanhasse até à escadaria para apresentá-la ao seu novo amo.
Mas Gavin queria vê-la melhor. Sem ouvir os risos e aplausos dos
espetadores, afastou o sogro para o lado, com um empurrão, e colocou as
mãos na cintura da noiva para a tirar do cavalo.
De perto, era ainda mais bonita. Os olhos de Gavin deleitaram-se com
aqueles lábios macios, carnudos e convidativos. A sua pele era límpida,
cremosa e pura, mais suave do que o melhor cetim. E, quando finalmente a
olhou nos olhos, esteve prestes a soltar uma exclamação.
Gavin sorriu-lhe extasiado e ela devolveu o sorriso, expondo os dentes
brancos e regulares. O rugido da multidão trouxe-o de volta à realidade.
Gavin colocou-a relutantemente no chão e ofereceu-lhe o braço, apertando a
mão sobre a dela como se ela pudesse tentar fugir. Tinha toda a intenção de
manter esta nova posse.
Os espetadores ficaram totalmente satisfeitos com o comportamento
impetuoso de Gavin Montgomery e deram voz à sua aprovação. Robert
franziu o cenho ao ser empurrado para o lado e depois viu que cada um dos
convidados tinha um sorriso nos lábios.
A cerimónia de casamento foi realizada no adro da igreja, para que todos
pudessem testemunhar o enlace, porque dentro não caberiam. O padre
perguntou a Gavin se aceitaria Judith Revedoune para sua esposa. Gavin
olhou para a mulher que estava ao seu lado, com os cabelos soltos até à
cintura, onde formava cachos perfeitos.
– Aceito – respondeu.
Em seguida, o padre perguntou a Judith, que olhava para o seu prometido
com a mesma franqueza. Este vestia cinzento da cabeça aos pés. O gibão e
o casaco de ombros largos eram de veludo italiano macio. O casaco estava
totalmente forrado de um vison escuro, que formava um colarinho largo no
pescoço, e uma borda estreita na parte dianteira. O seu único ornamento era
a espada pendurada no quadril, o punho incrustado com um grande
diamante que brilhava sob a luz do Sol.
Embora as criadas tivessem dito que Gavin era bonito, Judith não
esperava encontrar um homem com tal poder e força, mas algum jovem
delicado e loiro. Observou o seu espesso cabelo negro que se encaracolava
ao longo do pescoço, viu os lábios que lhe sorriam e, em seguida, os olhos
que, de súbito, lhe provocaram um arrepio na espinha. Para deleite da
multidão, o padre teve de repetir a pergunta. Judith sentiu as faces a arder
quando disse:
– Sim. – Estava indubitavelmente disposta a aceitar Gavin Montgomery.
Fizeram juras de amor, honra e obediência. Seguiu-se a troca de alianças
enquanto a multidão, temporariamente silenciosa, soltava bramidos que
ameaçavam o telhado da igreja. Quando o dote de Judith foi lido para os
convidados e espectador, dificilmente podia ser ouvido. Judith e Gavin, dois
belos jovens, contavam com o afeto de todos. Os noivos receberam cestas
com moedas de prata, que atiraram ao povo junto aos degraus. Em seguida,
o casal seguiu o padre até ao interior da igreja, tranquila e relativamente
escura.
Gavin e Judith ocuparam lugares de honra no coro, acima da multidão de
convidados. Pareciam crianças pelo modo como trocaram olhares furtivos
durante a longa e solene missa. Os convidados observavam com adoração,
encantados por esta união que começava como um conto de fadas. Os
menestréis já estavam a escrever as canções que entoariam mais tarde,
durante o banquete. Os servos e os mercadores encontravam-se fora da
igreja e trocavam comentários sobre as roupas requintadas dos hóspedes e,
acima de tudo, sobre a beleza da noiva.
Mas havia uma pessoa que não estava feliz. Alice Valence sentou-se ao
lado da figura gorda e sonolenta do seu futuro marido, Edmund Chatworth,
e encarou a noiva com todo o ódio da sua alma. Gavin tinha feito papel de
idiota! Até mesmo os servos haviam rido dele quando desceu as escadas a
correr ao encontro daquela mulher, como um menino que corre em direção
ao seu primeiro cavalo.
Como poderia alguém pensar que aquela cadela ruiva era linda? Alice
sabia que as sardas sempre acompanhavam os cabelos vermelhos.
Desviou o olhar de Judith e fixou Gavin. Era ele quem a enfurecia. Alice
conhecia-o melhor do que ele mesmo. Embora um rosto bonito pudesse
fazê-lo saltar como um palhaço, ela sabia que as suas emoções eram
profundas. Havia-lhe dito que a amava e era verdade. Iria lembrá-lo o mais
rapidamente possível. Não permitiria que a esquecesse quando estivesse na
cama com aquele demónio ruivo.
Alice olhou para as suas mãos e sorriu. Ela possuía um anel... sim. Um
pouco mais calma, olhou novamente para o casal de noivos enquanto um
plano se formava na sua mente.
Viu que Gavin pegava na mão de Judith para beijá-la, ignorando Raine
que lhe lembrava que estavam na igreja. Alice sacudiu a cabeça. Essa tola
nem sabia como reagir. Deveria ter baixado os olhos e ficado ruborizada.
No que lhe dizia respeito, sabia corar de uma forma muito conveniente.
Mas Judith Revedoune limitou-se simplesmente a olhar para o marido,
atenta a cada um dos seus movimentos, enquanto ele pressionava os lábios
nas costas da mão dela. «Nada feminina», pensou Alice.
Naquele momento, Alice não era ignorada; alguém estava a observá-la.
Raine, que se encontrava lá em cima no coro, cravou os olhos em Alice e
notou o cenho franzido que enrugava a sua testa perfeita. Sem dúvida
alguma, a jovem não tinha ideia de que estava a fazer isso, pois sempre
tivera o cuidado de mostrar apenas o que devia ser visto.
«Fogo e gelo», pensou. A beleza de Judith assemelhava-se a fogo,
contrastando com a palidez gelada da loira Alice. Sorriu ao pensar na
facilidade com que o fogo derretia o gelo, mas depois lembrou-se que tudo
dependia do calor do fogo e da grandeza do bloco de gelo. O irmão era um
homem sensato e sensível, racional em todos os aspetos, exceto um: Alice
Valence. Gavin adorava-a e ficava louco quando alguém insinuava as falhas
dela. A sua nova esposa exercia atração sobre Gavin e ao mesmo tempo
sentia-se atraída por ele, mas por quanto tempo? Poderia superar o facto de
que Alice havia roubado o seu coração? Raine esperava que sim. Ao olhar
de uma mulher para a outra, percebeu que Alice poderia ser uma mulher
para adorar, mas Judith era uma mulher para amar.
Capítulo Cinco
Um único raio de sol entrou pela janela e o calor fez cócegas no nariz de
Judith. Sonolenta, enxotou-o e tentou virar as costas, mas algo a segurava
pelos cabelos. Abriu os olhos preguiçosamente e viu a estranha cama de
dossel. Quando se lembrou de onde estava, sentiu o rosto ficar quente. Até
o seu corpo parecia corar.
Moveu a cabeça para o outro lado da cama e olhou para o marido
adormecido. Os seus cílios eram curtos, grossos e escuros e a barba
começava a crescer nas faces. Adormecido, as maçãs do rosto não eram tão
proeminentes. Até a covinha no queixo parecia relaxada.
Gavin estava deitado de lado, de frente para ela, e Judith vagueou o olhar
pelo seu corpo. O peito largo estava generosamente coberto de pelos
escuros e encaracolados. Os músculos formavam montículos grandes e bem
modelados. Os braços estavam cobertos por um músculo redondo e firme.
Os olhos desceram até ao ventre duro e liso. Só depois de um momento
baixaram um pouco mais. O que viu não parecia tão poderoso agora, mas,
enquanto observava, a sua masculinidade começou a crescer.
Arquejou e os seus olhos voaram de volta para os dele. Gavin estava
acordado, observando-a, e os olhos ficavam mais escuros a cada momento.
Já não era o homem descontraído que ela vira ao despertar, mas um homem
cheio de paixão. Judith tentou afastar-se, mas Gavin continuava a prendê-la
pelos cabelos. O pior era que ela realmente não queria resistir. Lembrou-se
de que o odiava; porém, mais do que isso, lembrou-se do prazer de quando
ele fizera amor com suavidade.
– Judith – sussurrou ele num tom de voz que lhe provocou arrepios nos
braços.
Gavin beijou-lhe o canto da boca. Judith fez ligeiramente força contra os
seus ombros, mas, mesmo com aquele ligeiro toque, os seus olhos
fecharam-se em sinal de rendição. Ele beijou-lhe a face, o lóbulo da orelha.
Então, no meio da sua respiração arquejante, a boca masculina desceu sobre
a dela. A língua tocou docemente a ponta da dela. Judith recuou assustada.
Gavin sorriu-lhe, como se a entendesse. Na noite anterior, Judith pensara ter
aprendido tudo o que havia para saber sobre o amor entre um homem e uma
mulher, mas agora pensava que talvez soubesse muito, muito pouco.
Os olhos de Gavin emitiam um tom cinzento-escuro quando a puxou
novamente para si. Humedeceu os lábios dela, demorando-se sobretudo nos
cantos internos. Ela apartou os dentes para o provar. O seu sabor era melhor
do que o mel mais rico: quente e frio, macio e firme. A jovem explorou a
sua boca, enquanto ele explorava a dela. Não pensava em timidez. Na
verdade, não pensava em nada.
Judith passou as mãos sobre o seu corpo, enquanto ele baixava a cabeça
para o seu pescoço, correndo a língua ao longo do pulso que ali ressoava.
Ela reclinou instintivamente a cabeça para trás, a sua respiração mais
profunda, mais rápida.
Quando os lábios e a língua de Gavin tocaram nos seus seios, quase
gritou. Pensou que talvez pudesse morrer sob essa tortura. Tentou puxar a
cabeça dele de volta à sua boca, mas ele soltou uma risada profunda e
gutural que a fez estremecer. Talvez, afinal, ele a possuísse.
Quando pensou que iria perder a cabeça, ele moveu-se em cima dela, com
a mão acariciando-lhe o interior das coxas até que ela estremeceu de desejo.
Quando a penetrou, ela gritou. Não havia alívio para o seu tormento.
Agarrou-se a ele, rodeando-lhe a cintura com as pernas, enquanto levantava
as ancas ao encontro de cada estocada. Por fim, quando se sentia prestes a
explodir, experimentou as contrações que a aliviaram. Gavin desmoronou
sobre ela, segurando-a tão perto que quase não conseguia respirar. Mas,
nesse momento, era-lhe, na verdade, indiferente que respirasse de novo.
Uma hora depois, as criadas vieram vestir Judith, acordando os recém-
casados. De repente, retomou perfeitamente a consciência de que o seu
corpo e os cabelos estavam enroscados em Gavin. Maud e Joan tinham
várias coisas a dizer sobre o abandono de Judith. Os lençóis estavam
manchados e havia mais roupas de cama no chão do que na cama. A colcha
de pele de esquilo estava do outro lado do quarto junto à lareira.
As criadas ajudaram Judith a levantar-se e a lavar-se. Gavin descansava
preguiçosamente na cama e observava cada movimento.
Judith não olhava para ele, não podia. Estava envergonhada até ao mais
fundo da alma. Detestava o homem. Ele era tudo o que ela odiava; vil,
mentiroso, enganador, ganancioso. No entanto, deixara o orgulho de lado
quando ele lhe tocara. Fizera-lhe uma promessa – e a Deus – de que não
receberia nada dela, mas ele tomou mais dela do que lhe queria dar.
Mal notou quando as criadas lhe enfiaram uma fina camisa de linho sobre
a cabeça e depois um vestido de veludo verde-escuro. O vestido tinha sido
bordado com intrincados desenhos de ouro. A parte dianteira da saia foi
dividida, revelando uma larga faixa de anáguas de seda. As mangas eram
tufadas e recolhidas nos pulsos, com pequenos cortes em alguns lugares, e o
forro de seda verde-claro foi puxado através dos cortes.
– Aqui tem, milady – disse Maud, entregando a Judith uma grande caixa
de marfim.
Judith olhou perplexa para a criada enquanto abria a caixa. Sobre um
forro de veludo preto estava um grande colar de filigrana de ouro e os fios
minúsculos eram tão finos como o seu cabelo. Ao longo do fundo do colar
havia uma fieira de esmeraldas, muitas delas perfeitamente combinadas em
tamanho, nenhuma delas maior do que uma gota de chuva.
– É linda… – sussurrou Judith. – Como é que a minha mãe...
– É o presente de casamento do seu esposo – corrigiu Maud com os olhos
brilhantes.
Judith podia sentir os olhos de Gavin nas suas costas. Rodou sobre os
calcanhares e encarou-o. A visão dele na cama, a sua pele tão morena
contrastando com a brancura dos lençóis, enfraqueceu-lhe os joelhos.
Necessitou de muita força de vontade, mas dobrou um joelho e fez uma
vénia.
– Obrigada, milorde.
Gavin cerrou o maxilar frente a tamanha frieza. Havia esperado que o
presente a suavizasse um pouco. Como podia ser tão ardente na cama e tão
fria e altiva fora dela?
Judith virou-se de novo para as suas criadas e Maud apertou os botões do
vestido que faltavam. Joan entrançou a camada superior do cabelo da ama e
permeou as tranças com fitas douradas. Antes de terminarem, Gavin
ordenou que saíssem do quarto. Judith não o olhou enquanto ele se
barbeava apressadamente e vestia um gibão e umas calças castanho-escuro,
com um casaco de lã castanho-claro por cima, forrado de lince dourado.
Quando ele deu um passo na sua direção, Judith teve de lutar para
acalmar o seu precipitado coração. Gavin ofereceu-lhe o braço e conduziu-a
ao andar de baixo, onde os convidados aguardavam.
Assistiram à missa juntos, mas desta vez não se olhavam nos olhos nem
ele lhe beijou a mão.
Permaneceram solenes e sóbrios ao longo de toda a cerimónia.
Capítulo Sete
3 Agraço – um licor de ácido feito a partir do sumo azedo de maçãs silvestres, uvas verdes, etc.,
anteriormente muito utilizado para fins culinários e outros. (N. da T.)
Capítulo Oito
Judith fechou a porta do quarto com tanta força que até as paredes de pedra
pareciam estremecer. Assim terminava o seu primeiro dia de casada, que
poderia facilmente qualificar-se como o mais horrível da sua vida. Deveria
ter sido feliz, um dia cheio de amor e de risos – mas não com um marido
como o dela! Gavin não tinha perdido uma oportunidade para humilhá-la.
De manhã, acusara-a de ser uma prostituta diante dos seus irmãos.
Quando se afastou e a deixou sozinha, Judith conversou com outras
pessoas. Um homem, Walter Demari, tivera a amabilidade de sentar-se ao
lado dela e explicar o funcionamento do torneio. Pela primeira vez naquele
dia, começou a divertir-se. Walter tinha um talento para assinalar o ridículo
e ela apreciou muito o seu sentido de humor.
De súbito, Gavin reapareceu e ordenou-lhe que o seguisse. Judith não
queria fazer uma cena em público, mas, na privacidade da tenda de Raine,
disse a Gavin tudo o que pensava do seu comportamento. Deixava-a
sozinha e entregue a si própria, mas, quando ela demonstrava algum prazer,
reaparecia para lho tirar. Era como os meninos que não querem um
brinquedo, mas também o negam a qualquer outro. Gavin respondera
ironicamente, mas Judith registou com satisfação que ele não sabia o que
dizer.
A chegada de Raine e de Miles interrompeu a discussão. Mais tarde, ela
regressou com Miles ao torneio. Foi então que Gavin realmente a humilhou.
Assim que Alice Valence apareceu, praticamente correu atrás dela. Parecia
devorá-la, mas ao mesmo tempo olhava-a com devoção, como se ela fosse
santa. A Judith não passou despercebido o olhar de triunfo que Alice lhe
enviou de soslaio. Então, desviou o rosto, endireitou as costas e pegou no
braço de Miles. Não deixaria ninguém ver como tinha sido publicamente
envergonhada.
Mais tarde, no jantar, Gavin ignorou Judith, embora estivessem sentados
lado a lado na mesa alta. Ela riu do bufão e fingiu estar contente quando um
bardo extremamente bonito compôs e cantou uma ode à sua beleza. Na
verdade, mal o ouviu. A proximidade de Gavin exercia um efeito
perturbador sobre ela, sem lhe permitir desfrutar de nada.
Depois da refeição, as mesas de cavalete foram desmontadas e
empurradas contra a parede para dar espaço ao baile. Depois de uma dança
juntos, para salvar as aparências, Gavin começou a rodopiar com uma
mulher após outra nos seus braços. Judith recebeu mais convites para
dançar do que poderia aceitar, mas depressa alegou fadiga e subiu a correr
as escadas para a privacidade do seu quarto.
– Um banho – exigiu a Joan, a quem arrastou de um canto da escada,
onde estava entrelaçada com um jovem. – Traz-me uma tina e água quente.
Talvez possa lavar um pouco do fedor do dia de hoje.
Ao contrário do que Judith acreditava, Gavin estivera muito consciente da
presença da esposa. Não houve um momento em que não soubesse onde ela
estava ou com quem. Havia aparentemente conversado durante horas com
um homem no torneio. Ria de cada uma das suas palavras, sorrindo-lhe até
o homem estar obviamente embevecido.
Gavin tinha-a afastado para o seu próprio bem. Sabia que Judith ignorava
o efeito da sua presença nos homens. Era como uma criança. Tudo era novo
para ela. Olhava para o homem sem esconder nada, sem reservas, rindo
abertamente do que ele dizia. Gavin viu que o homem tomava essa
cordialidade como algo mais profundo.
Gavin tencionava explicar-lhe isso, mas, quando ela o atacou, acusando-o
de todos os tipos de insulto, de como ele se estava a comportar, teria
preferido morrer em vez de explicar os seus atos. Receava que o impulso o
levasse a envolver-lhe a garganta encantadora com as mãos e a estrangulá-
la. Por sorte, a breve aparição de Alice acalmara-o. Alice era como um gole
de água fresca para quem acabara de sair do inferno.
Agora, com as mãos apoiadas nos fartos quadris de uma jovem pouco
atraente, viu Judith subir as escadas. Não dançou com ela, receoso de que
pudesse desculpar-se. «Por que motivo?», interrogou-se. Havia sido gentil
com Judith até àquele momento no jardim quando ela começou a agir de
forma insana, fazendo juramentos que não tinha o direito de fazer. Ao
separá-la do homem que obviamente interpretava mal os seus sorrisos, agira
bem; no entanto, ela fê-lo sentir-se como se tivesse feito algo de errado.
Esperou um pouco, dançou com mais duas mulheres, mas Judith não
voltou ao grande salão. Impaciente, subiu as escadas. Nesses breves
segundos, imaginou todo o tipo de coisas que ela poderia estar a fazer.
Ao abrir a porta do quarto, Judith estava submersa até ao pescoço numa
tina de água fumegante, com o cabelo ruivo apanhado no cimo da cabeça,
num macio aglomerado de caracóis. Tinha os olhos fechados e a cabeça
apoiada na borda da banheira. A água devia estar muito quente porque o
rosto estava levemente humedecido com suor. Ao vê-la, todos os seus
músculos se retesaram. Era maravilhosa quando o olhara de testa franzida,
enfurecendo-o, mas agora parecia a inocência personificada. De repente,
compreendeu que era isso que queria dela, que isso era tudo o que
precisava. Que importava que ela o desprezasse? Era dele e só dele. Com o
coração a palpitar, fechou a porta atrás de si.
– Joan? – perguntou Judith languidamente. Como não recebeu resposta,
abriu os olhos. Bastou ver a expressão de Gavin para lhe adivinhar os
pensamentos. Apesar de tudo, o seu coração começou a bater rapidamente.
– Deixa-me sozinha – conseguiu sussurrar.
Ele ignorou-a enquanto avançava com os olhos escuros ficando mais
escuros. Inclinou-se sobre ela, e agarrou-lhe o queixo com a mão. Judith
tentou afastar-se, mas ele segurou-a com força. Beijou-a rudemente no
começo; mas depois o aperto dos dedos e o beijo tornaram-se suaves,
profundos.
Judith sentiu-se à deriva. O prazer da água quente, a mão apoiada na sua
face e o beijo enfraqueceram-na. Ele afastou-se e fitou-a nos olhos, aqueles
olhos de um dourado ardente. Todos os pensamentos de ódio desapareceram
deles. Havia apenas a proximidade dos seus corpos. A fome mútua superou
qualquer hostilidade.
Gavin ajoelhou-se junto à tina e apoiou a mão atrás do pescoço de Judith.
Voltou a beijá-la e deslizou os lábios pela curva do seu pescoço. Estava
húmida e quente e o vapor que se elevava da água era como a sua paixão,
crescente. Estava pronto, mas queria prolongar o prazer, arrastá-lo até ao
limite da dor. As suas orelhas eram macias e cheiravam ao sabonete com
aroma de rosas que ela usava.
De repente, queria vê-la por inteiro. Gavin colocou as mãos sob os braços
de Judith e levantou-a. Ela soltou uma exclamação de surpresa ante o
movimento inesperado e o impacto do ar frio depois do calor da água. Uma
toalha macia e morna pendia ao alcance do braço e Gavin envolveu-a nela.
Judith não falou. No fundo, enterrado na sua mente, estava o conhecimento
de que as palavras quebrariam o feitiço. Gavin tocava-lhe ternamente, sem
exigências severas, e sem a magoar. Sentou-se num banco diante do fogo e
colocou-a entre as suas pernas como se fosse uma criança.
Se alguém lhe tivesse descrito aquela cena, Judith teria negado que isso
pudesse acontecer e diria que Gavin era um bruto insensível. Não sentiu
nenhum embaraço pela sua nudez enquanto ele permanecia completamente
vestido, maravilhando-se apenas com a magia do momento. Gavin secou-a
cuidadosamente. Era um pouco desajeitado, demasiado brusco às vezes,
mas outras vezes muito terno.
– Volta-te – ordenou e ela obedeceu permitindo que lhe secasse as costas.
Por fim, Gavin atirou a toalha para o chão e Judith conteve a respiração.
Mas ele não falou. Limitou-se a deslizar os dedos pelo sulco profundo da
sua coluna. A jovem sentiu calafrios. Um único dedo dizia mais do que uma
centena de carícias.
– És linda – sussurrou com voz rouca, apoiando as palmas das mãos sobre
a curva das suas ancas. – Tão bonita.
Judith susteve a respiração e não se moveu, mesmo quando sentiu os
lábios do marido no pescoço. Aquelas mãos moviam-se numa tortura lenta
até ao ventre, ao longo das costelas, até aos seios, que o esperavam,
suplicantes. Judith soltou a respiração reprimida e encostou-se a ele, a
cabeça repousando no seu ombro, a boca dele ainda no seu pescoço. Ele
passou as mãos sobre ela, tocando a pele, explorando o seu corpo.
Quando Judith estava quase louca de desejo, levou-a para a cama. Em
segundos, as suas roupas estavam no chão e deitou-se ao lado dela. Ela
puxou-o para si, procurou a sua boca. Gavin riu da cobiça das suas mãos,
provocando-a, mas não havia nenhuma zombaria nos seus olhos cinzentos.
Havia apenas o desejo de prolongar o prazer de ambos. Um brilho acendeu-
se nos olhos de Judith e ela soube que seria a última a rir. As mãos
desceram. Quando encontrou o que procurava, deixou de haver riso nos
olhos dele. Estavam negros de paixão quando a puxou para baixo.
Poucos segundos depois ambos soltaram um grito em uníssono, ambos
libertados do doce tormento. Judith sentia-se esgotada, os ossos fracos,
enquanto Gavin se afastava parcialmente, caindo para o lado, com uma
perna cruzada sobre a dela, o braço sobre os seus seios. Ela suspirou
profundamente antes de adormecer.
***
4 Ells – Qualquer uma das várias unidades históricas de medida, originalmente baseadas no
comprimento do braço ou antebraço, mas depois padronizadas em outros comprimentos, como o
inglês de 45 polegadas (114 centímetros). (N. da T.)
5 Palafrém – Um cavalo dócil usado para equitação comum, especialmente por mulheres. (N. da T.)
Capítulo Dez
O grande salão da casa senhorial brilhava com a luz trémula das lareiras.
Alguns dos homens mais favorecidos de Montgomery jogavam cartas,
dados, xadrez, limpavam armas ou simplesmente descansavam. Judith e
Raine estavam sentados sozinhos no extremo oposto da sala.
– Por favor, toca essa música, Raine – pediu Judith. – Sabes que não sou
dotada para a música. Disse-te isso esta manhã, e que prometi jogar uma
partida de xadrez contigo.
– Queres que toque uma música tão longa como as tuas ausências? –
dedilhou dois acordes no alaúde. – Aqui está. Tenho a certeza de que toquei
tanto quanto o tempo que precisas para me derrotar – brincou.
– Não tenho culpa que te deixes derrotar com tanta facilidade. Só usas os
peões para atacar e não te proteges dos ataques dos outros.
Raine olhou-a fixamente, boquiaberto, e depois começou a rir.
– Isso é uma demonstração de sabedoria ou um insulto sem adornos?
– Raine – começou Judith –, sabes exatamente o que quero dizer. Gostaria
que tocasses para mim.
O cunhado sorriu-lhe. A luz das chamas brilhava no seu cabelo castanho-
avermelhado e o vestido de lã ressaltava o corpo tentador. Mas a beleza dela
não era o que ameaçava enlouquecê-lo. Por vezes, a beleza existia até entre
as servas. Não. Era a própria Judith. Raine nunca tinha conhecido uma
mulher com a sua honestidade, a sua lógica, a sua inteligência. Se Judith
tivesse nascido homem... sorriu. Se Judith tivesse nascido homem, não
estaria em tal perigo de se apaixonar irremediavelmente por ela. Precisava
afastar-se da jovem quanto antes, embora a sua perna não estivesse
totalmente curada.
Raine olhou por cima da cabeça de Judith e viu Gavin encostado à
ombreira da porta, observando o perfil da esposa iluminado pelas chamas.
– Vem cá, Gavin – chamou. – Vem e toca para a tua mulher. A perna dói-
me em demasia para apreciar o que quer que seja. Tenho dado lições a
Judith, mas em vão. – Os olhos brilhavam ao olhar para a cunhada, mas ela
limitou-se a fixar as mãos que mantinha cruzadas no regaço.
Gavin avançou.
– Alegra-me saber que há algo que a minha mulher não faz na perfeição –
riu. – Sabes que hoje mandou limpar o lago dos peixes? Constou-me que os
homens encontraram um castelo normando no fundo. – Interrompeu-se
quando Judith se levantou.
– Peço que me desculpem – disse num tom sereno. – Acho que estou
mais cansada do que imaginava e quero retirar-me. – Sem mais uma
palavra, abandonou o salão.
O sorriso desapareceu do rosto de Gavin que se afundou numa cadeira
almofadada.
Raine olhou para o irmão com simpatia.
– Amanhã tenho de regressar às minhas propriedades.
Se Gavin ouviu, não comentou.
Raine fez sinal a um dos servos para que o ajudasse a chegar ao seu
quarto.
***
Judith contemplou o quarto com novos olhos. Já não era somente dela.
Agora que o marido regressara a casa, tinha o direito de compartilhá-lo com
ela. Compartilhar o quarto, compartilhar a cama, compartilhar o seu corpo.
Despiu-se apressadamente e enfiou-se sob os lençóis. Tinha dispensado as
criadas mais cedo, pois desejava algum tempo a sós. Embora Judith
estivesse cansada após as atividades do dia, fitava a cama de dossel com os
olhos muito abertos. Decorrido muito tempo, ouviu passos do lado de fora
da porta.
Susteve a respiração durante uns momentos e então os passos afastaram-
se, hesitantes. Era obviamente um alívio, disse para si mesma, mas isso não
aquecia a cama fria. Por que havia Gavin de desejá-la?, pensou, com os
olhos cheios de lágrimas. Passara, sem dúvida, a última semana com a sua
amada Alice. A sua paixão estaria completamente esgotada e não precisava
da esposa.
Apesar dos seus pensamentos, o cansaço do longo dia acabou por levá-la
a dormir.
Acordou muito cedo, quando ainda estava escuro no quarto. Só a luz
fraca do amanhecer entrava através das persianas. O castelo inteiro ainda
estava adormecido e Judith achou o silêncio agradável. Sabia que não podia
dormir mais, nem queria. Esse momento, ainda escuro da manhã, era o seu
favorito.
Vestiu-se rapidamente com um simples vestido de lã azul-escuro. Os
sapatos de couro macio não fizeram qualquer ruído nos degraus de madeira,
nem enquanto caminhava por entre os homens que dormiam no grande
salão. Lá fora, a luz era de um cinzento-escuro, mas os seus olhos
ajustaram-se rapidamente. Junto à mansão havia um pequeno jardim
murado. Tinha sido uma das primeiras coisas que Judith vira na sua nova
casa e uma das últimas a que poderia prestar atenção. Havia fileiras de rosas
com grande variedade de cores, mas os botões estavam quase ocultos
debaixo das hastes mortas, nos arbustos muito negligenciados.
A fragrância das flores na frescura matutina era embriagadora. Judith
sorriu quando se inclinou sobre um dos arbustos. As outras tarefas haviam
sido necessárias, mas a poda das rosas era um trabalho de amor.
– Pertenciam à minha mãe.
Judith soltou uma exclamação ante a voz tão próxima. Não tinha ouvido
ruído de passos.
– Onde quer que fosse, colhia pedaços do caule de rosas de outras pessoas
– continuou Gavin enquanto se ajoelhava ao lado de Judith, tocando num
dos botões.
O momento e o lugar pareciam sobrenaturais. Quase conseguiu esquecer
que o odiava. Voltou-se e continuou a podar.
– A tua mãe morreu quando eras pequeno? – perguntou baixinho.
– Sim. Muito pequeno e o Miles quase não a conheceu.
– O teu pai não voltou a casar?
– Passou o resto da vida a chorar por ela. Durante o pouco tempo que lhe
restava. Morreu três anos depois dela. Eu tinha apenas dezasseis anos.
Judith nunca o ouvira falar com tanta tristeza. Na verdade, pouco detetara
na voz de Gavin, além de raiva.
– Eras muito jovem para lidares com a administração das propriedades do
teu pai.
– Tinha menos um ano do que tens agora e pareces saber perfeitamente
como administrar esta propriedade. Muito melhor do que o fiz nessa altura,
e do que tenho feito até agora. – Havia admiração na sua voz, mas também
um pouco de mágoa.
– Mas a mim prepararam-me para este trabalho – apressou-se a dizer. –
Tu foste treinado como um cavaleiro. Deveria ser-te mais difícil aprender o
que fazer.
– Disseram-me que te tinham preparado para a Igreja – observou,
surpreendido.
– Sim – confirmou Judith enquanto passava a outra roseira. – A minha
mãe desejava que eu escapasse à vida que ela conheceu. Passou a infância
num convento, onde foi muito feliz. Foi apenas quando se casou que... –
Judith interrompeu-se, sem querer terminar a frase.
– Não entendo como a vida num convento de freiras poderia preparar-te
para o que fizeste aqui. Pelo contrário, imaginava-te a passar os dias,
rezando.
Ela sorriu-lhe quando ele se sentou no caminho de cascalho ao seu lado.
O céu começava a adquirir um tom rosado. À distância, ouvia o barulho dos
criados.
– Na sua maioria, os homens pensam que a pior coisa que pode acontecer
a uma mulher será ver-se sem a companhia de um homem. Garanto-te que a
vida de uma freira está longe de ser vazia. Pensa no Convento de Sainte
Anne. Quem julgas que administra essas terras?
– Nunca me ocorreu essa questão.
– A abadessa administra propriedades que fazem com que as do rei
pareçam pobres. As tuas e as minhas caberiam num rincão de Sainte Anne.
No ano passado, a minha mãe levou-me a visitar a abadessa. Passei uma
semana ao seu lado. É uma mulher constantemente ocupada, que dirige o
trabalho de milhares de homens e acres de terra. Ela não... – os olhos de
Judith brilharam – … tem tempo para o trabalho de mulher.
Gavin ficou sobressaltado um momento, mas logo desatou a rir.
– Boa estocada. «O que tinha dito Raine sobre o sentido de humor de
Judith?» – Aceito a correção.
– Julguei que deverias saber mais sobre conventos, já que a tua irmã é
freira.
Um brilho especial iluminou o rosto de Gavin ante a menção à irmã e
sorriu.
– Não consigo imaginar Mary a administrar as propriedades de ninguém.
Mesmo quando criança era tão doce e tímida que parecia de outro mundo.
– Por isso a deixaste entrar no convento.
– Era a sua vontade, e quando herdei as propriedades do meu pai, ela
deixou-nos. Queria que ficasse aqui e não casasse se não quisesse, mas ela
queria estar perto das irmãs.
Gavin olhou fixamente para a esposa, pensando que ela estivera muito
próximo de passar a vida num convento. A luz do Sol parecia fogo nos seus
cabelos ruivos. Ao olhá-lo assim, sem raiva ou ódio, deixava-o sem alento.
– Ai! – Judith quebrou o feitiço enquanto olhava para o dedo, picado pelo
espinho de uma rosa.
– Deixa-me ver – pediu Gavin enquanto segurava a sua mão pequena na
dele. Limpou uma gota de sangue da ponta do dedo e depois levou-o aos
lábios, fitando-a nos olhos.
– Bom dia!
Os dois ergueram o rosto para a janela por cima do jardim.
– Lamento interromper a cena de amor – anunciou Raine da janela da
mansão –, mas os meus homens parecem ter-me esquecido e, com esta
maldita perna, estou quase convertido num prisioneiro.
Judith tirou a mão de entre as de Gavin e desviou o olhar, ruborizada.
– Vou ajudá-lo – disse Gavin, levantando-se. – Raine decidiu que vai
partir hoje. Talvez possa colocá-lo a caminho. Vais acompanhar-me esta
manhã para escolheres a tua égua?
Ela assentiu com a cabeça, mas não voltou a olhar para ele, até que saísse
do jardim.
– Vejo que estás a fazer progressos com a tua mulher – comentou Raine
enquanto Gavin o ajudava bruscamente a descer as escadas.
– Teria progredido mais se alguém não tivesse começado a gritar pela
janela – lamentou Gavin amargamente.
Raine desatou a rir. Doía-lhe a perna e não lhe agradava a perspetiva de
fazer uma longa viagem até outra propriedade, de modo que estava de mau
humor.
– Nem sequer passaste a noite com ela.
– O que tens a ver com isso? Desde quando averiguas onde durmo?
– Desde que conheci Judith.
– Raine, se tu...
– Não te atrevas a dizê-lo. Por que julgas que vou partir com a perna a
meio da cura?
Gavin sorriu.
– Ela é encantadora, não é? Dentro de poucos dias vou tê-la a comer na
minha mão. Então verás onde vou dormir. As mulheres são como falcões: é
preciso deixá-los passar fome até que estejam desesperados por comida;
então é fácil domesticá-los.
Raine parou na escada, com o braço a rodear o ombro de Gavin.
– És um tolo, irmão. Deves ser o maior de todos os tolos. Não sabes que o
mestre é muitas vezes o servo do seu falcão? Quantas vezes já viste homens
que transportam o seu falcão favorito preso ao pulso, mesmo na igreja?
– Estás a dizer disparates – retorquiu Gavin – e não gosto que me
chamem tolo.
Raine cerrou os dentes, pois Gavin dera-lhe um abanão na perna.
– Judith vale por dois como tu e por cem daquela cabra gélida que julgas
amar.
Gavin parou ao fundo da escada, deitou um olhar malévolo ao irmão e
afastou-se tão rapidamente que Raine teve de apoiar-se à parede para não
cair.
– Não voltes a mencionar Alice! – advertiu o irmão mais velho com voz
letal.
– Falarei dela quando me apetecer, raios! Alguém tem de o fazer. Está a
arruinar-te a vida e a deitar por terra a felicidade de Judith. E Alice não vale
uma madeixa do cabelo de Judith.
Gavin ergueu o punho e deixou-o cair.
– Fico contente por te ires embora hoje. Não quero ouvir-te dizer nem
mais uma palavra sobre as minhas mulheres. – Virou-se e afastou-se com
grandes passadas.
– As tuas mulheres? – gritou Raine. – Uma é dona da tua alma e à outra
trata-la com desprezo. Como podes chamá-las de tuas?
Capítulo Onze
Havia dez cavalos dentro da área cercada. Cada um era elegante e forte,
com longas pernas que inspiravam visões de animais a galope por campos
floridos.
– Devo escolher um, milorde? – perguntou Judith, enquanto se inclinava
sobre a grade da cerca. – Fitou Gavin ao seu lado, observando-o com
desconfiança. Durante toda a manhã ele tinha-se mostrado excecionalmente
agradável; primeiro no jardim e agora ao oferecer-lhe um presente.
Ajudara-a a montar e segurara-lhe no braço quando ela, num gesto pouco
senhorial, se inclinou sobre a cerca. Judith podia entender a sua irritação e
as suas expressões carrancudas, mas aquela gentileza inesperada causava-
lhe desconfiança.
– Qualquer um que te agradar – respondeu Gavin, sorridente. – Todos
foram domados e estão prontos para arreios e uma sela. Vês algum de que
gostes?
Ela olhou para os cavalos.
– Não há um que não goste. Não é fácil escolher. Creio que é aquele, o
negro.
Gavin sorriu ante a sua escolha, uma égua com um passo alto e elegante.
– É tua – afirmou. – Então, sem lhe dar tempo a ajudá-la, Judith estava no
chão e atravessou o portão. Poucos minutos depois, o palafreneiro de Gavin
tinha a égua selada e Judith montada no dorso do seu animal.
Era maravilhoso voltar a montar um cavalo de raça. À direita de Judith
estendia-se o caminho até ao castelo. À sua esquerda, a densa floresta, um
campo de caça para os Montgomery. Sem pensar, tomou o caminho para a
floresta. Passara tempo demasiado, confinada a paredes e apinhada entre as
pessoas. Os grandes carvalhos e faias pareciam-lhe convidativos, os ramos
entrelaçados por cima, formando um refúgio privado. Judith não olhou para
trás para ver se a seguiam; limitou-se a lançar-se em linha reta para a
liberdade.
Cavalgava velozmente para testar a égua e a si mesma. Eram compatíveis,
como sabia que seriam. O animal gostava tanto da corrida como Judith.
– Calma agora, ternura – sussurrou Judith quando estavam bem dentro da
floresta. A égua obedeceu, escolhendo delicadamente o caminho entre as
árvores e os arbustos. O solo estava coberto de samambaias e de folhagem
seca acumulada em centenas de anos. Era um tapete macio e silencioso.
Judith respirou profundamente o ar limpo e fresco e deixou que a sua
montada escolhesse o rumo.
O som da água corrente chamou a atenção de Judith, assim como a da
égua. Por entre as árvores corria apressado um rio profundo e fresco e o sol
brilhava entre os galhos pendentes. Judith desmontou e conduziu a égua até
à água. Enquanto a égua bebia em silêncio, Judith arrancou pedaços de erva
macia e começou a esfregar os flancos do animal. Tinham galopado vários
minutos antes de chegar à floresta e a égua estava suada.
Judith envolveu-se nessa agradável tarefa, glorificando o dia e a água
correndo. A égua ergueu as orelhas e escutou, alerta, e depois retrocedeu
com nervosismo.
– Calma, rapariga – tranquilizou-a Judith, acariciando o pescoço macio. A
égua recuou outro passo, desta vez com mais ímpeto, atirou a cabeça para
trás e relinchou. Judith deu meia-volta para agarrar as rédeas do animal
assustado e falhou.
Um javali aproximou-se, farejando o ar. Estava ferido e tinha os olhos
minúsculos vidrados de dor. Judith tentou novamente agarrar as rédeas da
sua égua, mas o javali iniciou o ataque e a égua, enlouquecida de medo,
afastou-se a galope. A jovem pegou nas saias e começou a correr, mas o
javali era mais rápido do que ela. Judith deu um pulo para um ramo baixo,
agarrou-o e começou a erguer-se. Fortalecida por toda uma vida de trabalho
e de exercício, balançou as pernas para outro ramo, quando o javali quase a
alcançava. Não era tarefa fácil manter-se na árvore por causa do ataque do
animal enlouquecido, que abanava repetidamente o tronco.
Por fim, Judith conseguiu pôr-se de pé no ramo mais baixo, enquanto
segurava outro por cima da sua cabeça. Ao olhar para baixo, deu-se conta
de que estava muito acima do chão. Fixou o javali com um terror cego; os
nós dos dedos haviam embranquecido devido à força com que se agarrava
ao ramo por cima dela.
***
– Temos de nos dispersar – ordenou Gavin ao seu homem, John Bassett. –
Não somos suficientes para irmos aos pares e ela não pode estar muito
longe. – Gavin tentava manter um tom de voz calmo. Estava furioso com a
esposa por se ter afastado a galope num cavalo desconhecido por um
bosque que lhe era estranho. Mantivera-se de pé junto dos cavalos e dos
seus homens, observando-a a afastar-se. Esperava que, quando chegasse à
orla da floresta, voltasse. Demorou um momento a perceber que Judith
estava a internar-se na floresta.
Agora não podia encontrá-la. Era como se tivesse desaparecido, engolida
pelas árvores.
– John, tu vais para norte, contornando as árvores. Tu, Odo, vais para sul.
Tentarei o centro.
No interior da floresta reinava o silêncio. Gavin ouvia atentamente,
tentando perceber qualquer sinal da mulher. Tinha passado uma grande
parte da sua vida ali e conhecia cada centímetro do bosque. Sabia que a
égua se encaminharia provavelmente para o rio que corria através do centro.
Chamou várias vezes por Judith, mas não obteve resposta.
Então o seu garanhão espetou as orelhas.
– O que se passa, rapaz? – perguntou Gavin, de ouvido alerta. O cavalo
deu um passo atrás, com as narinas dilatadas. O animal estava treinado para
a caça e Gavin reconheceu os sinais. – Agora, não – disse ele. – Mais tarde
vamos procurar a presa.
O cavalo não pareceu entender, mas sacudiu a cabeça contra as rédeas.
Gavin franziu a testa, mas deixou-o à vontade. Nesse momento, ouviu o
ruído do javali que atacava a base da árvore. Um instante depois, viu-o.
Preparava-se para conduzir a montada dando a volta para passar longe da
besta, mas avistou algo azul em cima da árvore.
– Por Deus! – sussurrou ao perceber que Judith estava presa na árvore. –
Judith! – chamou, mas não obteve resposta. – Daqui a um momento estarás
a salvo.
O cavalo baixou a cabeça, preparando-se para o ataque, enquanto Gavin
desembainhava a longa espada que levava junto à sela. O garanhão, bem
treinado, correu até passar muito perto do javali e Gavin inclinou-se para
fora da sela, apertando as fortes coxas, enquanto se dobrava e enfiava a
espada pela espinha do animal. O javali soltou um grunhido e agitou as
patas antes de morrer.
Gavin saltou rapidamente da sela e recuperou a arma. Quando olhou para
Judith, ficou atónito com o puro terror estampado no seu rosto.
– Passou o perigo, Judith. O javali está morto. Não pode fazer-te mal. – O
seu terror parecia desproporcionado em relação ao perigo, dado que a
jovem estava suficientemente segura na árvore.
Ela não respondeu, mas continuou a olhar para o chão, o seu corpo tão
rígido quanto uma lança de ferro.
– Judith! – exclamou num tom brusco. – Estás ferida?
Ainda assim, ela não respondeu nem reconheceu a sua presença.
– Bastará um pequeno salto – disse, erguendo os braços para ela. – Larga
o ramo acima e apanhar-te-ei.
Ela não se mexeu.
Gavin ficou perplexo, lançou um olhar desconcertado ao javali morto e
voltou a observar o rosto aterrorizado da esposa. Havia outra coisa além do
javali que a assustava.
– Judith é a altura que te causa medo? – perguntou ele calmamente e
moveu-se para a linha do seu olhar vago.
Gavin não tinha a certeza, mas pareceu-lhe que ela assentia levemente
com a cabeça. Agarrou-se ao ramo mais baixo, perto dos seus pés e subiu
facilmente até ficar ao lado dela. Rodeou-lhe a cintura com o braço, mas ela
não deu nenhum sinal de que estivesse ciente da sua presença.
– Escuta-me, Judith – pediu num tom de voz baixo e sereno. – Vou pegar-
te nas mãos e baixar-te até ao chão. Tens de confiar em mim. Não tenhas
medo. – Foi preciso soltar-lhe as mãos, e ela agarrou-se aos seus pulsos, em
pânico. Gavin procurou apoio num ramo e baixou-a até ao chão.
Quando os pés da jovem haviam tocado na terra, ele desceu de um salto e
tomou-a nos braços. Judith agarrou-se a ele desesperadamente, tremendo.
– Calma, agora – sussurrou enquanto lhe acariciava a cabeça. – Estás a
salvo.
Judith continuou a tremer e Gavin sentiu que os seus joelhos cediam.
Ergueu-a nos braços e levou-a até junto de um tronco de árvore, onde a
sentou e abraçou como se ela fosse uma criança. Tinha pouca experiência
com mulheres fora da cama e nenhuma com crianças, mas sabia que o medo
dela era enorme.
Estreitou-a firmemente, o mais forte que pôde sem a esmagar. Afastou-
lhe o cabelo da face onde ela começara a transpirar. Embalou-a e abraçou-a
com mais força ainda. Se alguém lhe tivesse dito que estar a poucos metros
do chão poderia causar tanto terror, teria rido, mas agora não achava graça.
O medo de Judith era muito real e sentiu o coração apertado ao vê-la sofrer
assim. O seu pequeno corpo tremia, o coração palpitava como o de um
pássaro e Gavin sabia que tinha de inspirar-lhe uma sensação de segurança.
Começou a cantar, baixinho no começo, sem prestar atenção às palavras. A
sua voz era rica e reconfortante. Entoou uma canção de amor, sobre um
homem que regressara das Cruzadas para encontrar o seu verdadeiro amor,
esperando por ele.
Pouco a pouco sentiu que Judith começava a relaxar contra o seu corpo e
o terrível tremor diminuía. Deixou de apertá-lo com tanta força, mas Gavin
não a soltou. Sorriu e beijou-lhe a fronte e continuou a trautear a melodia. A
respiração da jovem tornou-se mais regular até que levantou a cabeça do
seu ombro. Judith afastou-se, mas ele reteve-a com firmeza. A necessidade
que Judith tinha da sua proteção tranquilizava-o de um modo estranho,
embora Gavin afirmasse que não gostava de mulheres dependentes.
– Vais pensar que sou uma idiota – murmurou ela.
Ele não respondeu.
– Não gosto de alturas – prosseguiu Judith.
Ele sorriu e abraçou-a.
– Já me dei conta – riu. – Embora não gosto seja pouco para o que vi. Por
que razão lugares altos te inspiram tanto medo? – Agora, ria, feliz por ela
ter recuperado e ficou surpreendido quando o seu corpo enrijeceu. – O que
disse? Não fiques irritada.
– Não estou irritada – assegurou ela tristemente, relaxando novamente,
confortável nos seus braços. – Não gosto de pensar no meu pai… é só isso.
Gavin obrigou-a a apoiar outra vez a cabeça no seu ombro.
– Conta-me – pediu num tom sério.
Judith conservou-se um momento em silêncio. Quando retomou a
palavra, fê-lo com uma voz tão baixa, que ele mal conseguia ouvi-la.
– Na verdade, lembro-me de pouca coisa. Só perdura o medo. As minhas
criadas só me contaram muitos anos depois. Quando tinha três anos, algo
perturbou o meu sono. Saí do quarto e fui até ao grande salão, cheio de
luzes e música. O meu pai estava acompanhado pelos amigos, todos eles
embriagados. – Expressava-se num tom frio, como se contasse uma história
sobre outra pessoa. – Ao ver-me, o meu pai pareceu idealizar uma grande
brincadeira. Pediu uma escada e subiu por ela, comigo debaixo do braço, e
sentou-me num parapeito alto. Como disse, não me recordo de nada. O meu
pai e os amigos adormeceram e pela manhã as criadas foram à minha
procura. Demoraram muito tempo a encontrar-me, se bem que deva tê-las
ouvido a chamarem-me. Aparentemente estava tão assustada que não
conseguia falar.
Gavin acariciou-lhe o cabelo e recomeçou a embalá-la. O pensamento de
um homem a colocar uma criança de três anos a seis metros acima do chão
e, em seguida, deixando-a ali toda a noite, dava-lhe a volta ao estômago.
Agarrou Judith pelos ombros e afastou-a dele.
– Mas agora estás a salvo. Vê como o chão está tão perto.
A jovem sorriu-lhe, hesitante.
– Foste bom para mim. Obrigada.
Aquele agradecimento não satisfez Gavin. Era triste pensar que a jovem
havia sido tão duramente maltratada na sua curta vida, a ponto de o consolo
do marido lhe parecer uma dádiva dos céus.
– Não viste os meus bosques. O que te parece, se ficarmos aqui por algum
tempo?
– Mas há trabalho...
– És um demónio para o trabalho. Nunca te divertes?
– Não tenho a certeza de saber como fazê-lo – respondeu ela com
franqueza.
– Bem, hoje vais aprender. Hoje o dia será dedicado à colheita de flores
silvestres e ao acasalamento dos pássaros. – Arqueou as sobrancelhas para
ela e Judith deu uma risada muito pouco habitual nela. Gavin estava
encantado. Os olhos da jovem eram quentes, os lábios curvavam-se
docemente e a sua beleza era deslumbrante.
– Então anda – convidou ao mesmo tempo que a punha de pé. – Aqui
perto há uma colina coberta de flores e onde vivem alguns pássaros
extraordinários.
Quando os pés de Judith tocaram no chão, o tornozelo esquerdo cedeu
debaixo dela. Apoiou-se no braço de Gavin.
– Magoaste-te – observou enquanto se ajoelhava para lhe analisar o
tornozelo. Ao virar-se, notou que Judith mordia o lábio. – Vamos mergulhá-
lo na água fria do ribeiro para que não inche. – Ergueu-a nos braços.
– Posso andar se me ajudares um pouco.
– E perder a minha condição de cavaleiro? Como sabes, ensinam-nos as
regras do amor cortês, que são muito rígidas sobre belas damas em apuros.
Devem ser levadas em braços sempre que possível.
– Então sou apenas um meio para promover o teu estatuto de cavaleiro? –
perguntou Judith, muito séria.
– Claro, pois és um fardo difícil de carregar. Deves pesar tanto como o
meu cavalo.
– Não é verdade! – protestou ela veementemente e então viu que os olhos
lhe brilhavam. – Estás a provocar-me!
– Não afirmei que o dia era para a diversão?
Ela sorriu e apoiou-se contra o seu ombro. Era agradável estar tão perto.
Gavin colocou-a na beira do ribeiro e depois tirou-lhe cuidadosamente o
sapato.
– É necessário tirar a meia – exigiu com um sorriso. – Observou com
deleite enquanto Judith levantava a saia do longo vestido e revelava o topo
da meia, presa com uma liga acima do joelho. – Se precisares de ajuda... –
ofereceu-se, lascivo, enquanto ela enrolava a meia de seda ao longo da
perna.
Judith permitiu que Gavin lhe banhasse suavemente o pé na água fria.
Quem era aquele homem que lhe tocava com tanta gentileza? Não poderia
ser o mesmo que a esbofeteara, que ostentara a amante diante dela e a tinha
violado na noite de núpcias.
– Não parece estar muito magoado – disse ele, fitando-a.
– Não, não parece – confirmou Judith em voz baixa.
Uma brisa súbita agitou uma madeixa de cabelo sobre os seus olhos.
Gavin afastou-a com suavidade.
– O que achas de fazer uma fogueira e assarmos esse javali hediondo?
– Seria uma boa ideia – respondeu com um sorriso.
Gavin ergueu-a da margem e lançou-a alegremente ao ar. Judith agarrou-
se ao seu pescoço, assustada.
– Talvez comece a gostar desse teu medo – riu ele, estreitando-a contra si.
Levou-a para a outra margem do ribeiro até uma colina que estava
realmente coberta de flores silvestres e acendeu uma fogueira por baixo de
uma saliência rochosa. Em minutos, regressou com um pedaço de javali
selvagem, já limpo, e colocou-o a assar sobre o fogo. Não permitiu que
Judith se movesse ou lhe prestasse qualquer ajuda. Enquanto a carne assava,
e já havia lenha bastante, Gavin afastou-se de novo e voltou após alguns
momentos com o tabardo6 levantado sobre as ancas, como se carregasse
alguma coisa.
– Fecha os olhos – disse e, quando ela obedeceu, derramou uma chuva de
flores sobre Judith. – Como não podes ir até elas, então elas devem vir até
ti.
A jovem fitou-o. Tinha o regaço e o chão à sua volta cobertos de um
tapete de botões perfumados.
– Obrigada, milorde – agradeceu com um sorriso resplandecente.
Gavin sentou-se ao seu lado, com uma mão atrás das costas, inclinando-
se sobre o seu corpo.
– Tenho outro presente – anunciou, oferecendo-lhe três frágeis flores de
columbine7.
Eram belas e delicadas flores, brilhando à luz do Sol, em tons de violeta e
branco. Judith tentou pegar-lhes, mas ele afastou-as do seu alcance. Ela
fitou-o, surpreendida.
– Não são gratuitas. – Gavin estava novamente a brincar com ela, mas a
expressão do seu rosto mostrava que não percebera. Sentiu um arrepio de
remorso por tê-la magoado tanto, que a levava a olhá-lo daquela maneira.
De repente, Gavin interrogou-se se seria melhor do que o sogro. Deslizou
levemente um dedo pela sua face.
– É um pequeno preço a pagar – acrescentou suavemente. – Gostava de
ouvir que me chamavas pelo meu nome próprio.
Os olhos de Judith arregalaram-se e recuperaram o calor.
– Gavin – pronunciou baixinho enquanto ele lhe entregava as flores. –
Obrigada, meu... Gavin pelas flores.
Ele suspirou languidamente e recostou-se na erva, com as mãos atrás da
cabeça.
– Meu Gavin! – repetiu. – Soa bem. – Moveu a mão e enroscou
ociosamente uma madeixa do seu cabelo na palma da mão. Ela estava de
costas para ele enquanto reunia as flores para formar um buquê. «Sempre
ordenada», pensou.
De repente, ocorreu-lhe que há anos que não passava um dia tão
agradável nas suas próprias terras. As responsabilidades do castelo
assediavam-no sempre, mas em poucos dias a sua mulher tinha organizado
as coisas de tal forma que podia estender-se sobre a erva, sem pensar em
nada, para observar o voo das abelhas e a textura sedosa dos cabelos de uma
mulher.
– Ficaste realmente irritado por causa das sugestões que dei a Simon? –
perguntou Judith.
Gavin quase não se lembrava de quem era Simon.
– Não! – sorriu. – Simplesmente não gostei que uma mulher conseguisse
o que eu não podia alcançar, e não tenho tanta certeza de que esse novo isco
seja melhor.
Judith voltou-se para o encarar de frente.
– É, sim. Simon concordou instantaneamente. Estou segura de que os
falcões vão pegar mais presas agora e... – Interrompeu-se ao vê-lo rir. – És
um homem vaidoso.
– Eu? – contrapôs Gavin, apoiando-se nos cotovelos. – Sou o menos
vaidoso dos homens.
– Não acabaste de dizer que estavas irritado porque uma mulher fez o que
não conseguiste?
– Oh... – exclamou Gavin, enquanto voltava a descontrair-se na erva, com
os olhos fechados. – Não é o mesmo. Um homem fica sempre surpreendido
quando uma mulher faz algo além de costurar e criar filhos.
– Ora, que coisa! – exclamou Judith desgostosa; em seguida, pegou num
punhado de erva com um torrão de terra agarrado e atirou-lho à cara.
Ele abriu os olhos surpreendido e depois limpou a terra da boca. Estreitou
os olhos.
– Pagarás por isso – garantiu, avançando cautelosamente para ela.
Judith retrocedeu, temendo a dor que sabia que lhe causaria. Ia a levantar-
se, mas ele agarrou-lhe o tornozelo nu e prendeu-o com força.
– Não... – protestou, antes que ele se atirasse sobre ela... e começasse a
fazer-lhe cócegas. Judith ficou surpreendida e depois desatou a rir.
Encolheu os joelhos até aos seios tentando proteger-se das mãos dele, mas
Gavin era impiedoso.
– Retiras as palavras?
– Não – arquejou. – És vaidoso e pretensioso, mil vezes mais do que
qualquer mulher.
O marido deslizou os dedos para cima e para baixo nas suas costelas até
ela se desfazer em riso.
– Por favor, para – gritou a jovem. – Não aguento mais!
As mãos de Gavin acalmaram e ele aproximou-se do seu rosto.
– Dás-te por vencida?
– Não – recusou ela, mas acrescentou rapidamente: – Embora não sejas
tão vaidoso como eu pensava.
– Isso não é maneira de pedir desculpas.
– Foram-me arrancadas sob tortura.
Gavin sorriu-lhe. O pôr do Sol dourava-lhe a pele e o cabelo espalhado à
sua volta assemelhava-se a um crepúsculo ardente.
– Quem és tu, minha esposa? – sussurrou, devorando-a com os olhos. –
Amaldiçoas-me num momento e enfeitiças-me no seguinte. Desafias-me até
ter vontade de te matar; depois sorris-me e deslumbras-me com a tua
beleza. Não és como nenhuma outra mulher que já conheci. Nunca te vi
enfiares uma agulha para costurar, mas vi-te, mergulhada até aos joelhos, na
lama do lago dos peixes. Montas tão bem como qualquer homem, mas
encontro-te no cimo de uma árvore, tremendo como uma criança, presa de
um medo mortal. És a mesma, de um momento para o outro? Alguma vez
foste a mesma pessoa dois dias seguidos?
– Sou Judith. Não sou mais ninguém, nem sei como ser outra pessoa.
Gavin acariciou-lhe a têmpora. Depois, inclinou-se e roçou os lábios nos
dela. Estavam quentes do sol e doces. Mal tinha começado a saborear os
lábios dela quando o céu se abriu de repente com uma enorme explosão de
trovões e começou a verter sobre eles uma verdadeira torrente de água.
Gavin pronunciou um palavrão, que Judith nunca tinha ouvido antes.
– Para a saliência da rocha! – indicou e depois lembrou-se do tornozelo
dela. Pegou-lhe e correu com ela nos braços para o refúgio, onde o fogo
crepitava e chiava devido ao gotejar da gordura da carne. Aquele repentino
aguaceiro não melhorou em nada o humor de Gavin. Dirigiu-se, furioso, até
junto do fogo. Um lado da carne estava queimado, preto; o outro cru.
Nenhum deles pensara em dar a volta ao assado.
– És uma má cozinheira – acusou, aborrecido por aquele momento
perfeito ter sido destruído.
Ela fitou-o com um olhar inexpressivo.
– Sou melhor costureira do que cozinheira.
Gavin fitou-a e depois começou a rir.
– Boa resposta. – Estudou a chuva que caía lá fora. – Devo ver como está
o meu cavalo. Não posso deixá-lo sob esta chuva com a sela colocada.
Sempre preocupada com o bem-estar dos animais, Judith voltou-se para
ele.
– Deixaste o teu pobre cavalo sozinho todo este tempo?
Ele não gostou do tom de comando dela.
– Então, faz o favor de me dizeres onde está a tua égua? Importas-te tão
pouco com ela que não sabes o que lhe aconteceu?
– Eu... – começou. Estivera tão concentrada em Gavin que não tinha
pensado no animal.
– Então, faz os teus deveres, antes de me dares ordens.
– Não estava a dar-te nenhuma ordem.
– Então, o que era?
Judith afastou-se dele.
– Vai lá, então. O teu cavalo está à espera debaixo de chuva.
Gavin ia a replicar, mas mudou de ideias e saiu para a chuva.
Judith sentou-se esfregando o tornozelo, repreendendo-se. Parecia estar
sempre a irritar o marido. Depois deteve-se. O que interessava que o
enraivecesse? Por acaso, não o odiava? Ele era um homem vil e desonroso e
um dia de bondade não mudaria os seus sentimentos de ódio por ele. Ou
poderia?
– Milorde.
Ela ouviu a voz como se viesse de longe.
– Milorde Gavin, Lady Judith. – As vozes aproximaram-se.
Gavin resmungou baixinho, ajustando a cilha que acabara de se soltar.
Esquecera-se completamente dos seus homens. Que magia lhe lançara
aquela pequena bruxa para ter esquecido o cavalo e, pior ainda, os seus
homens que os procuravam com tanto afinco? Agora eles cavalgavam à
chuva, molhados, com frio e sem dúvida com fome. Por mais que lhe
agradasse regressar para junto de Judith, talvez passar a noite com ela,
primeiro devia pensar nos seus homens.
Levou o cavalo a passo através do riacho e subiu a colina. Nessa altura,
eles já teriam visto a fogueira.
– Não está ferido, milorde? – perguntou John Bassett quando se
encontraram, com a água a escorrer-lhe pelo nariz.
– Não – replicou Gavin secamente, sem olhar para a mulher que se
apoiava no rebordo da rocha. – Fomos apanhados pela tempestade e Lady
Judith magoou o tornozelo – começou a explicar, mas deteve-se ao ver que
John olhava intensamente para o céu. Um aguaceiro de primavera
dificilmente era uma tempestade; além disso, Gavin e a esposa poderiam ter
montado um só cavalo.
John era um homem mais velho, um cavaleiro do pai de Gavin, e tinha
experiência em lidar com jovens.
– Compreendo, milorde. Trouxemos a égua da senhora.
– Maldição... maldição... maldição! – murmurou Gavin. Agora ela fizera
com que mentisse aos seus homens. Aproximou-se da égua e ajustou a cilha
selvaticamente.
Mesmo com toda a dor no tornozelo magoado, Judith correu rapidamente
na sua direção.
– Não sejas tão rude com a minha égua – disse, possessiva.
Ele virou-se para ela.
– E tu, não sejas tão rude comigo, Judith!
***
6 Tabardo – peça de roupa que consiste numa parte traseira e numa parte frontal sem mangas e com
um buraco para a cabeça, às vezes usado para proteger as roupas por baixo quando se executa uma
tarefa. (N. da T.)
Gavin acordou muito cedo depois de uma noite de sono agitada. No castelo
já havia algum movimento, mas os ruídos ainda eram abafados. O seu
primeiro pensamento foi para Judith. Queria vê-la. Seria verdade que no dia
anterior ela lhe tinha sorrido?
Vestiu-se rapidamente com uma camisa de linho e um grosso gibão de lã,
preso com um amplo cinto de couro. Cobriu as pernas musculosas com
meias de linho que atou aos calções que usava como tanga. Em seguida,
desceu apressadamente as escadas até ao jardim, onde cortou uma rosa
vermelha perfumada, com as pétalas beijadas por gotas peroladas de
orvalho.
A porta do quarto de Judith estava fechada. Gavin abriu-a sem fazer
barulho. Ela dormia, com uma mão enrolada no cabelo que estava
espalhado sobre os ombros nus e a almofada ao seu lado. Pousou a rosa na
almofada e afastou delicadamente uma madeixa da sua face.
Judith abriu os olhos lentamente. Parecia parte dos seus sonhos ver Gavin
tão próximo. Tocou-lhe no rosto com suavidade, apoiando o polegar no
queixo, sentindo a barba crescida e os dedos nas faces. Parecia mais jovem
do que habitualmente, as linhas de expressão e preocupação haviam
desaparecido dos seus olhos.
– Julguei que não eras real – murmurou, fitando-o nos olhos que se
suavizaram.
Ele moveu a cabeça ligeiramente e mordeu-lhe a ponta do dedo.
– Sou muito real. És tu quem parece um sonho.
Ela sorriu-lhe maliciosamente.
– Então os nossos sonhos agradam-nos muito, não é verdade?
Gavin riu, enquanto a rodeava com os braços e esfregava a face na pele
macia do seu pescoço, deleitando-se com os gritinhos de protesto, pois a
barba ameaçava arrancar-lhe a pele.
– Judith, doce Judith – sussurrou, mordiscando-lhe o lóbulo da orelha. –
És sempre um mistério para mim. Não sei se te agrado ou não.
– Importavas-te muito, se não me agradasses?
Afastou-se dela e tocou-lhe na têmpora.
– Sim, penso que me importaria.
– Milady!
Ambos levantaram os olhos quando Joan irrompeu pelo quarto.
– Mil perdões, milady – pediu Joan, rindo entredentes. – Não sabia que
estava tão ocupada, mas já se faz tarde e há muitos que a reclamam.
– Diz-lhes que esperem – replicou Gavin acalorado, abraçando
fortemente Judith, que tentava afastá-lo.
– Não! – exclamou a jovem. – Quem me procura, Joan?
– O padre pergunta se desejam começar o dia sem missa. O braço direito
de Lorde Gavin, John Bassett, diz que chegaram alguns cavalos de
Chestershire. Três comerciantes de tecidos desejam que se inspecionem as
suas mercadorias.
Gavin enrijeceu e soltou a esposa.
– Diz ao padre que estaremos lá e vou ver os cavalos depois da missa e
quanto aos mercadores... – parou, desgostoso. – Sou ou não o amo desta
casa? – interrogou-se.
Judith pousou a mão no seu braço.
– Diz aos mercadores que armazenem as suas mercadorias e assistam à
missa connosco. Falarei com eles depois da missa.
– Então? – dirigiu-se Gavin à criada. – Já te disseram o que deves fazer.
Agora vai.
Joan fechou a porta nas suas costas.
– Tenho de ajudar a minha ama a vestir-se.
Gavin começou a sorrir.
– Eu farei isso. Talvez encontre algum prazer neste dia, além das
obrigações.
Joan sorriu maliciosamente à ama, antes de fechar a porta e deslizar para
o corredor.
– Agora, milady – disse Gavin, voltando-se de novo para a esposa. –
Estou às vossas ordens.
Os olhos de Judith cintilaram.
– Mesmo que as minhas ordens se refiram aos teus cavalos?
Ele gemeu, fingindo-se atormentado.
– Foi uma briga idiota, não foi? Estava mais irritado com a chuva do que
contigo.
– Por que razão a chuva havia de irritar-te? – brincou ela.
Gavin inclinou-se sobre ela.
– Impediu-me de praticar um exercício que muito desejava.
Judith apoiou uma mão no seu peito e sentiu que o coração palpitava com
força.
– Esqueceste que o padre nos espera?
Ele inclinou-se para trás.
– Bem, então levanta-te para te ajudar a vestires-te. Se não posso provar,
pelo menos posso olhar.
Judith olhou-o nos olhos por um momento. Há quase duas semanas que
não fazia amor com ela. Talvez a tivesse deixado, mal haviam casado, para
ir encontrar-se com a amante. Mas Judith percebeu que Gavin era seu
naquele momento e decidiu aproveitar essa posse ao máximo. Havia muitos
que lhe elogiavam a beleza, mas geralmente descartava-os como
bajuladores. Sabia que as curvas do seu corpo eram muito diferentes da
magreza de Alice Valence. Mas anteriormente Gavin desejara aquele corpo.
Interrogou-se se poderia fazer com que aqueles olhos passassem novamente
de cinzento a preto.
Puxou lentamente uma borda da colcha para trás e estendeu um pé
descalço; depois recolheu-a até meio da coxa e flexionou os dois pés.
– Creio que o meu tornozelo está bastante recuperado, não te parece? –
esboçou um sorriso inocente, mas ele não estava a olhar para o seu rosto.
Muito lentamente, afastou a coberta da anca firme e redonda, depois
expôs o umbigo e o ventre liso. Levantou-se lentamente para fora da cama e
ficou, de pé, diante dele à luz do amanhecer.
Gavin olhou-a fixamente. Há semanas que não a via nua. Apreciou as
pernas longas e esbeltas, as ancas redondas, a cintura fina e os seios fartos,
de mamilos rosados.
– Que se dane o padre! – murmurou Gavin enquanto estendia a mão para
tocar na curva da anca.
– Não blasfeme, milorde – advertiu Judith seriamente. Gavin olhou-a,
surpreendido.
– Espanta-me sempre que tenhas querido esconder tudo isso sob o hábito
de uma freira – suspirou Gavin com força sem deixar de a fitar e com as
palmas das mãos a doer com desejo de lhe tocar. – Sê boa menina e vai
buscar a tua roupa. Já não aguento esta doce tortura. Mais um momento e
violar-te-ia diante dos olhos do padre.
Judith virou-se para a arca da roupa e dissimulou um sorriso. Perguntava-
se se isso poderia chamar-se violação.
Vestiu-se sem pressa, desfrutando dos olhos postos sobre ela e do seu
silêncio tenso. Enfiou uma camisa de algodão fino bordada com minúsculos
unicórnios azuis. Mal lhe chegava a meio da coxa. Seguiram-se os culotes a
combinar. Depois, colocou a perna na borda do banco onde Gavin se
sentava, rígido, e puxou cuidadosamente as meias de seda pelas pernas, a
fim de prendê-las com as ligas.
Estendeu a mão pela frente dele para agarrar o vestido de caxemira
castanha de Veneza. Leões de prata estavam bordados na frente e ao longo
da bainha. As mãos de Gavin tremiam quando abotoou os botões nas costas.
Um cinto de filigrana de prata completou o traje, mas Judith não conseguia
fechar a simples fivela sem ajuda.
– Pronto – disse depois de lutar muito tempo com as roupas não
cooperativas.
Gavin deixou escapar a respiração que estava a conter.
– Darias uma excelente criada – riu a jovem, rodopiando num mar de
castanho e prata.
– Não – contrapôs Gavin sinceramente. – Morreria em menos de uma
semana. Agora desce comigo e não me provoques mais.
– Sim, milorde – respondeu Judith, obediente, com os olhos a brilhar.
***
Queridíssimo
Envio-te esta carta em segredo para poder falar-te livremente do
meu amor. Amanhã vou casar-me com Edmund Chatworth. Reza por
mim, pensa em mim, como te terei nos meus pensamentos. Nunca te
esqueças que a minha vida te pertence. Sem o teu amor não sou nada.
Conto os instantes até que volte a ser tua.
Com todo o amor,
Alice
– Algum problema, milorde? – perguntou John Bassett.
Gavin pôs a missiva de lado.
– O pior que já tive. Diz-me, John, tu que já és maduro, acaso sabes algo
sobre as mulheres?
John riu entredentes.
– Nenhum homem sabe, milorde.
– É possível dares o teu amor a uma mulher, mas desejares outra quase a
ponto de enlouqueceres?
John abanou a cabeça enquanto observava o amo a seguir com os olhos a
silhueta da esposa, que se afastava.
– Esse homem também deseja a mulher que ama?
– Sem dúvida! – respondeu Gavin. – Mas talvez não... não da mesma
maneira.
– Ah, compreendo. Um amor sagrado, como o que se oferece à Virgem.
Sou um homem simples. Se fosse comigo, iria ficar com o amor profano.
Creio que, se a mulher fosse encantadora na cama, o amor acabaria por vir.
Gavin apoiou os cotovelos nos joelhos, a cabeça entre as mãos.
– As mulheres foram criadas para tentar os homens; são o diabo em
pessoa.
John sorriu.
– Creio que se encontrasse esse Velho Arranhão8, bem poderia agradecer-
lhe por essa parte maldosa.
***
Judith ficou de pé, junto da janela do seu quarto por muito tempo. A
criada veio para despi-la e enfiou os braços da ama num roupão de veludo
verde forrado com vison. Judith mal notou a sua presença. A sua mãe, que a
havia amparado e protegido toda a sua vida, era ameaçada por um homem
que Judith mal conhecia. Recordava-se vagamente de Walter Demari apenas
como um jovem simpático que conversara com ela sobre as regras do
torneio. Porém, lembrava-se claramente que, segundo Gavin, ela havia
seduzido o homem.
Gavin. Gavin. Gavin. Sempre ele. Todos os caminhos conduziam ao seu
marido. Ele exigia, ele ordenava o que ela deveria fazer, sem lhe dar
alternativa. A sua mãe seria sacrificada pela possessividade feroz de Gavin.
Mas o que teria feito se lhe fosse dada hipótese de escolha?
De repente, os seus olhos emitiram chispas douradas. Que direito tinha
aquele homenzinho odioso de interferir na sua vida? Assumia o papel de
Deus, quando forçava os outros a obedecer aos seus desejos. Lutar!, gritava
a sua mente. A mãe ensinara-a a ser orgulhosa. Acaso Helen desejaria que a
sua única filha ficasse calma e sossegada diante do rei e cedesse de boa
vontade a um peralvilho presunçoso só porque esse homem assim o
decretava?
Não, nada disso! Helen não teria desejado semelhante coisa. Judith
voltou-se para a porta, sem ter a certeza do que ia fazer, mas uma ideia,
provocada pela sua nova raiva, deu-lhe coragem.
– Então, os espiões de Demari dizem que não dormimos juntos e que o
nosso casamento pode ser anulado – murmurou enquanto caminhava pelo
corredor deserto.
As suas convicções mantiveram-se firmes até abrir a porta do quarto
ocupado por Gavin. Viu-o diante da janela, perdido nos seus pensamentos,
com uma perna apoiada no parapeito. Uma coisa era fazer nobres bravatas
de orgulho, mas outra bem diferente era enfrentar o homem que, todas as
noites, encontrava motivos para evitar a cama da sua esposa. O rosto gélido
de Alice Valence flutuou diante dela. Judith mordeu a língua e a dor susteve
as lágrimas. Tinha tomado uma decisão e agora devia respeitá-la; no dia
seguinte o marido iria para a guerra. Os pés descalços não fizeram ruídos no
chão coberto de juncos, quando se deteve a poucos metros atrás dele.
Gavin sentiu a sua presença, mais do que a viu. Virou-se devagar,
sustendo a respiração. Os cabelos de Judith pareciam mais escuros à luz das
velas e o verde do veludo fazia brilhar a riqueza da sua cor. O vison escuro
enfatizava a cremosidade da pele. Ficou sem palavras. A proximidade dela,
o silêncio do quarto, a luz das velas, era ainda melhor do que nos seus
sonhos. Ela olhou-o fixamente; em seguida, desapertou devagar o cinto do
roupão e fê-lo deslizar languidamente sobre a sua pele macia, até cair aos
seus pés.
O olhar de Gavin percorreu-a de alto a baixo, como se não fosse capaz de
apreender plenamente toda a sua beleza. Só quando a olhou nos olhos,
notou que estava perturbada. Aquela expressão era medo? Como se…
esperasse que ele a rejeitasse? A possibilidade pareceu-lhe tão absurda que
quase soltou uma gargalhada.
– Gavin – sussurrou ela.
Mal tinha terminado de murmurar o seu nome quando a puxou para os
seus braços e a levou para a cama, os lábios já presos aos dela.
Judith não tinha apenas medo dele, mas também de si mesma, o que ele
sentiu, enquanto a beijava. Gavin tinha esperado muito tempo que ela viesse
ao seu encontro. Ficara longe dela semanas a fio, com a esperança de que
Judith aprendesse a confiar nele. No entanto, agora, enquanto a abraçava,
não sentia a grande sensação do triunfo.
– O que se passa, querida? O que te preocupa?
Aquele interesse por ela deu-lhe vontade de chorar. Como poderia
explicar-lhe a sua dor?
Quando ele a levou para a cama e a luz da vela dançou sobre o seu corpo,
sobre os seios subindo e descendo a cada respirar, esqueceu tudo, menos a
proximidade dela. Desembaraçou-se rapidamente da roupa e estendeu-se ao
lado dela. Queria saborear o contacto da sua pele, centímetro a centímetro,
lentamente.
Quando a tortura se tornou insuportável, apertou-a ferozmente contra o
seu corpo.
– Judith, senti a tua falta.
Ela levantou o rosto para que a beijasse.
Tinham passado demasiado tempo separados para avançarem devagar. A
mútua necessidade era urgente. Judith apertou um punhado de carne e
músculos nas costas de Gavin, que ofegou e soltou uma gargalhada rouca.
Quando as suas mãos o apertaram novamente, ele agarrou em ambas com
uma das suas e segurou-as sobre a sua cabeça.
Ela lutou para se libertar, mas ele era muito forte. Quando a penetrou, ela
sufocou um grito e levantou as ancas ao encontro dele. Gavin soltou-lhe as
mãos e Judith puxou-o cada vez mais para dentro dela. Fizeram amor
rapidamente, quase com rudeza, antes de obterem a libertação que
buscavam. Então Gavin caiu sobre ela, os seus corpos ainda unidos.
Deviam ter adormecido, mas algum tempo depois Judith foi acordada
pelo lento movimento rítmico de Gavin. Meio sonolenta, meio excitada,
começou a responder-lhe com movimentos sensuais e vagarosos. Minuto a
minuto, a sua mente foi-se perdendo nas sensações do corpo. Não sabia o
que desejava, mas não estava satisfeita com a sua posição. Não se deu conta
da surpresa de Gavin quando o empurrou para o lado, sem que os corpos se
separassem. Um momento depois, ele estava deitado de costas e ela
montava-o.
Gavin não perdeu tempo a questionar-se. Deslizou as mãos do seu ventre
até aos seios. Judith arqueou a cabeça para trás e o seu pescoço, tão liso e
macio na escuridão excitou-o ainda mais. Agarrou-lhe as ancas e os dois
perderam-se na crescente paixão. Explodiram juntos num flash de estrelas
azuis e brancas.
Judith caiu sobre Gavin e ele segurou-a contra o seu corpo. A cabeleira
ruiva envolveu os seus corpos embebidos de suor, como um casulo de seda.
Nenhum deles mencionou o que lhes passava pela cabeça. No dia seguinte
Gavin partiria para a batalha.
8 Old Scratch ou Mr. Scratch (Velho Arranhão) é o nome do diabo. Faz parte do inglês médio
falado até ao século XV. (N. da T.)
Capítulo Treze
A mansão dos Chatworth era uma casa de tijolo de dois andares, com
janelas de pedra esculpida e vidros importados. Era comprida e estreita e
em cada extremo havia uma janela de sacada com vitrais. Atrás da casa
estendia-se um encantador pátio murado. O relvado de dois acres na frente
era exuberante e ao fundo situava-se uma reserva florestal de caça privada
do conde.
Três pessoas iam a sair desse bosque, caminhando pelo relvado em
direção à mansão. Jocelin Laing, com o alaúde pendurado no ombro,
rodeava com os braços a cintura de duas criadas da cozinha, Gladys e
Blanche. Os olhos quentes e escuros de Jocelin tinham-se nublado ainda
mais devido à tarde passada a satisfazer as duas mulheres gananciosas. Mas
Jocelin não as considerava gananciosas. Para ele, todas as mulheres eram
joias, para serem apreciadas segundo o seu próprio brilho especial. Não
havia ciúme ou possessividade nele.
Infelizmente, não era esse o caso das duas mulheres. Nesse momento,
ambas estavam desgostosas por deixar Jocelin.
– Vieste por causa dela? – perguntou Gladys.
Jocelin virou a cabeça e fitou-a até que ela desviou o olhar e corou.
Blanche não era tão difícil de intimidar. – É muito estranho que Lorde
Edmund te tenha permitido vir. Mantém Lady Alice como uma prisioneira e
nem sequer permite que ela saia a cavalo, a menos que seja com ele.
– E Lorde Edmund não gosta de sacudir o seu delicado traseiro no lombo
de um cavalo – chilreou Gladys.
Jocelin parecia perplexo.
– Julguei que se tratasse de um enlace de amor, uma mulher pobre casada
com um conde.
– Amor! Bah! – riu Blanche. – Aquela mulher não ama ninguém a não ser
a si mesma. Pensava que Lorde Edmund era um simplório que poderia usar
como desejasse, mas ele não é nada simples e está longe de sê-lo... Sabemos
muito bem... Não é, Gladys... Dado que vivemos aqui há anos, verdade?
– Oh, sim – concordou Gladys. – Ela pensou que poderia dirigir o castelo.
Conheço o género dela, mas Lorde Edmund preferia incendiar tudo isto do
que dar-lhe rédea livre.
Jocelin franziu a testa.
– Nesse caso, por que se casou com ela? Poderia ter escolhido entre tantas
mulheres, Lady Alice não possuía terras para oferecer nessa aliança.
– Ela é linda – respondeu Blanche com um encolher de ombros. – Ele
gosta de mulheres bonitas.
Jocelin sorriu.
– Começo a gostar desse homem. Estou plenamente de acordo com ele. –
Brindou Blanche e Gladys com olhares lascivos, que as fizeram baixar o
rosto, com as faces coradas.
– Jocelin – prosseguiu Blanche –, ele não é como tu.
– Não, mesmo – anuiu Gladys enquanto passava a mão pela coxa de
Jocelin.
Blanche fitou-a com um olhar de censura.
– Lorde Edmund gosta apenas da sua beleza e não se importa com a
mulher em si.
– Como faz com a pobre Constance – acrescentou Gladys.
– Constance? – repetiu Jocelin. – Não a conheço.
Blanche riu.
– Olha para ele, Gladys. Agora tem duas mulheres, mas preocupa-se que
não conheça uma terceira.
– Ou preocupa-se sempre que há alguma mulher que não conhece? –
questionou Gladys.
Jocelin levou a mão à testa, fingindo desespero.
– Fui descoberto. Estou perdido!
– Estás mesmo – riu Blanche quando começou a beijar-lhe o pescoço. –
Diz-me, tesouro, és fiel a alguma mulher?
Ele começou a mordiscar-lhe a orelha.
– Sou fiel a todas as mulheres... por um tempo.
Chegaram à mansão, rindo.
– Onde estiveste? – sibilou Alice, mal Jocelin entrou no grande salão.
Blanche e Gladys correram para as suas tarefas em partes diferentes da
casa.
Jocelin estava imperturbável.
– Sentiu a minha falta, milady? – sorriu, pegando-lhe na mão e beijando-a
depois de ter a certeza de que não havia ninguém por perto.
– Nada disso! – respondeu Alice sinceramente. – Não, no sentido que dás
às palavras. Passaste a tarde com essas rameiras enquanto permanecia aqui
sozinha?
Jocelin ficou imediatamente preocupado.
– Sentiu-se só, milady?
– Oh, sim, senti-me só! – exclamou Alice, deixando-se cair num assento
forrado junto à janela. Ela era tão delicadamente adorável como quando a
vira pela primeira vez no casamento da família Montgomery; mas agora
tinha um olhar mais retraído, como se tivesse perdido peso, e movia os
olhos nervosamente de um lado para outro. – Sim – afirmou sem erguer a
voz. – Estou sozinha. Não tenho ninguém aqui que seja meu amigo.
– Como é possível? O vosso marido deve amar sem dúvida uma mulher
tão bela como sois.
– Amar-me! – riu ela. – Edmund não ama ninguém. Mantém-me aqui,
como a um pássaro numa gaiola. Não vejo ninguém, não falo com ninguém.
– Virou-se para olhar um vulto no quarto, o seu belo rosto retorcido de ódio.
– Exceto ela! – rugiu.
Jocelin olhou para o vulto mergulhado na sombra, sem saber se estava
alguém por perto.
– Mostra-te, pequena rameira – troçou Alice. – Deixa que ele te veja em
vez de te ocultares como uma ave de rapina. Orgulha-te do que fazes.
Jocelin forçou a vista até distinguir uma jovem dar um passo à frente.
Tinha uma silhueta esbelta e caminhava de cabeça baixa, com os ombros
inclinados para diante.
– Olha para cima, rameira! – ordenou Alice.
Jocelin susteve a respiração, quando fitou os olhos da jovem. Era bonita –
não com a beleza de Alice nem da mulher que ele tinha visto como uma
noiva, Judith Revedoune, mas, no entanto adorável. Foram os olhos que lhe
prenderam a atenção. Eram dois lagos violeta, transbordando com todos os
problemas do mundo. Nunca tinha visto tamanho tormento e desespero.
– Ele pô-la atrás de mim como um cachorro – explicou Alice, retomando
a atenção de Jocelin. – Não posso dar um passo sem que me siga. Uma vez
tentei matá-la, mas Edmund reanimou-a. Ameaçou trancar-me durante um
mês se voltasse a magoá-la. Eu… – Nesse preciso momento, Alice percebeu
que o marido se aproximava dela.
Era um homem baixo e gordo, com grandes papadas, olhos pesados e
sonolentos. Ninguém imaginaria que por trás daquele rosto poderia ter uma
mente que não era das mais simples. Mas Alice tinha descoberto muito bem
a sua astúcia e inteligência.
– Vem ter comigo – sussurrou a Jocelin antes que ele esboçasse um leve
aceno de cabeça a Edmund e abandonasse o salão.
– Os teus gostos mudaram – observou Edmund. – Esse não se parece
nada com Gavin Montgomery.
Alice limitou-se a olhá-lo. Sabia que não adiantava contestar. Estava
casada há apenas um mês e, de cada vez que olhava para o marido,
lembrava-se da manhã seguinte ao casamento. Passara a noite de núpcias
sozinha.
Pela manhã, Edmund chamara-a. Era um homem diferente do que Alice
tinha conhecido pela primeira vez.
– Confio que tenhas dormido bem – dissera Edmund em voz baixa,
observando-a com os seus pequenos olhos no rosto demasiado gordo.
Alice pestanejou com uma expressão coquete.
– Senti-me... só, milorde.
– Agora, podes deixar de fingir! – ordenou Edmund, levantando-se da
cadeira. – Então, julgavas que poderias governar-me e às minhas
propriedades, não é verdade?
– Eu... não faço ideia do que quereis dizer – balbuciou Alice, fitando-o
com os olhos azuis.
– Tu... todos vocês, toda a Inglaterra, pensam que sou um tolo. Esses
cavaleiros musculosos com quem te envolvias consideram-me um covarde,
porque me recuso a arriscar a vida, combatendo pelo rei. O que me
interessam as batalhas alheias? Só me preocupam as minhas.
Alice ficou atónita, sem palavras.
– Ah, minha querida, onde está aquele olhar sedutor, aquele sorriso de
covinhas que dedicas aos homens, que se babam pela tua beleza?
– Não compreendo.
Edmund atravessou a sala até um armário alto e serviu-se de um pouco de
vinho. Era uma divisão grande e arejada, situada no último andar da
encantadora mansão da propriedade de Chatworth. Todos os móveis eram
de carvalho ou nogueira, finamente esculpidos, com peles de lobo e de
esquilo lançadas sobre as costas das cadeiras. O copo por onde agora bebia
era feito de cristal com pequenos pés de ouro.
Ostentou o cristal à luz do Sol. Havia palavras em latim na base, que
garantiam boa sorte ao proprietário.
– Tens alguma ideia da razão por que me casei contigo? – Não deu
qualquer oportunidade de resposta a Alice. – Tenho a certeza de que deves
ser a mulher mais vaidosa de Inglaterra. Pensaste provavelmente que estava
tão cego quanto esse enamorado Gavin Montgomery. Sei, pelo menos, que
nunca te interrogaste por que um conde como eu iria querer casar com uma
pobretona, que se deitava com qualquer homem que tivesse o equipamento
para lhe agradar.
Alice levantou-se.
– Não vou continuar a ouvir!
Aproximando-se, Edmund empurrou-a bruscamente para a obrigar a
sentar-se de novo.
– Quem julgas que és para decidires o que vais fazer ou não? Quero que
entendas uma coisa: não me casei contigo por amor ou porque estava
enfeitiçado pela tua suposta beleza.
Afastou-se dela e serviu-se de outro copo de vinho.
– A tua beleza! – troçou. – Não consigo ver o que Montgomery desejaria
com uma «tábua» como tu, quando tem aquela mulher Revedoune... Essa
sim, é uma mulher capaz de agitar o sangue de um homem.
Alice tentou atacar Edmund com as mãos transformadas em garras, mas
ele afastou-a facilmente.
– Estou cansado destes jogos. O teu pai possui duzentos acres no meio
das minhas propriedades. Esse velho nojento ia vendê-las ao conde de
Weston, que há anos tem sido meu inimigo e do meu pai. Sabes o que teria
acontecido às minhas propriedades se Weston possuísse terras no meio
delas? Um riacho corre por ali. Se ele construísse um dique, eu perderia
centenas de acres de lavoura e os meus servos morreriam de sede. O teu pai
foi muito estúpido em não perceber que eu só queria essa propriedade.
Alice limitava-se a olhar. Por que não lhe falara o pai sobre essas terras
que Weston queria?
– Mas, Edmund... – balbuciou no seu tom de voz mais suave.
– Não me dirijas a palavra. Durante os últimos meses mantive-te vigiada.
Conheço cada homem que levaste para a cama. E esse Montgomery!
Mesmo no seu casamento lançaste-te para os braços dele. Sei da cena no
jardim. Suicidares-te, tu! Sabes que a mulher dele viu o teu joguinho? Não,
julgo que não. Embriaguei-me para não ouvir que toda gente zombava de
mim.
– Mas, Edmund...
– Disse-te que não falasses comigo. Segui para diante com o casamento
porque não podia suportar que as terras fossem para Weston. O teu pai
prometeu-me as escrituras quando lhe desses um neto.
Alice recostou-se na cadeira. Um neto! Quase sorriu. Quando tinha
catorze anos ficara grávida e uma velha bruxa da aldeia encarregou-se de
retirar o feto. Alice quase morrera por causa da hemorragia, mas ficara
alegre por se livrar do pirralho. Nunca destruiria a sua figura esbelta pelo
bastardo de um homem. Nos anos seguintes, com todos os homens que teve,
não voltara a engravidar. Até ficou feliz por aquela operação a ter deixado
estéril. Agora, Alice sabia que a sua vida se tornara um inferno.
***
O novo quarto que Judith tinha conseguido para Lady Helen era grande,
arejado e limpo. Uma sólida divisória de madeira havia sido pregada nas
paredes do terceiro piso, criando o quarto. Estava afastado do resto do
castelo, protegido por uma porta de carvalho com dez centímetros de
espessura.
Havia poucos móveis. Uma cama grande coberta de linho pesado ocupava
um canto. Um colchão de palha encontrava-se no lado oposto do quarto.
Duas pessoas, sentadas junto ao braseiro aceso, inclinavam as cabeças sobre
um tabuleiro de xadrez colocado em cima de uma mesa baixa.
– Haveis ganho novamente! – exclamou John Bassett, atónito.
Helen sorriu-lhe.
– Pareceis satisfeito.
– Sim. Pelo menos estes dias não foram aborrecidos. – No decurso do
tempo em que estavam juntos, John tinha visto muitas mudanças nela.
Havia aumentado de peso e as faces perdiam as cavidades. Além disso,
mostrava-se mais relaxada na sua presença. Já não desviava a vista de um
lado para o outro. Na verdade, raramente afastava os olhos do companheiro.
– Acreditais que a minha filha está bem? – perguntou Helen, devolvendo
as peças de xadrez às suas posições originais.
– Só posso deduzir que sim. Julgo que, se ela tivesse sofrido algum dano,
o saberíamos. Não me parece que Demari demorasse a condenar-nos ao
mesmo destino.
Helen assentiu com a cabeça. Considerava refrescante a dura franqueza
de John depois de ter vivido com mentiras por tanto tempo. Não voltara a
ver Judith desde aquela primeira noite e, se não fosse a serenidade de John,
teria adoecido de preocupação.
– Outro jogo?
– Não. Necessito de um descanso dos vossos ataques.
– É tarde. Talvez... – começou ela, renitente a ir para a cama e deixar
aquela agradável companhia.
– Quereis sentar-vos ao meu lado um momento? – perguntou ele,
levantando-se para atiçar as brasas.
– Sim – acedeu ela com um sorriso. – Aquela era a parte do dia que mais
lhe agradava: ser levada de um lado para o outro nos braços fortes de John.
Tinha a certeza de que o seu tornozelo estava curado, mas ele não
perguntou e ela não mencionou o facto.
John baixou os olhos para a cabeça apoiada no seu ombro.
– Cada dia vos pareceis mais com a vossa filha – comentou enquanto a
transportava para uma cadeira mais perto do fogo. – É fácil ver onde ela foi
buscar a sua beleza.
Helen não respondeu, mas sorriu contra o seu ombro, deleitando-se com a
força dele. John tinha acabado de depositá-la na cadeira quando a porta se
abriu de par em par.
– Mãe! – exclamou Judith, correndo para os braços abertos de Helen.
– Estava preocupada contigo – reagiu Helen ansiosamente. – Onde te
mantiveram? Fizeram-te mal?
– Que notícias há? – interrompeu a voz grave de John.
Judith afastou-se da mãe.
– Não, estou ilesa. Não pude vir antes por falta de tempo. Walter Demari
mantém-me ocupada todos os momentos. Quando menciono que quero
visitar-vos, encontra um lugar para me levar. – Sentou-se num banquinho
que John colocou atrás dela. – Quanto a notícias, vi o Gavin.
Nem John nem Helen abriram a boca.
– Eles têm-no num buraco por baixo da cave. É um lugar hediondo. Não
viverá muito tempo ali. Fui vê-lo e...
– Entraste no fosso? – inquiriu Helen, atónita. – Estando grávida! Não
podias. Colocaste a vida do bebé em risco.
– Silêncio! – ordenou John. – Deixai que nos fale de Lorde Gavin.
Judith olhou para a mãe, que geralmente se acobardava ao tom duro de
um homem, mas Helen limitou-se a obedecer sem demonstrar medo.
– Ele enfureceu-se comigo por ter ido e disse que já havia preparado o
nosso resgate. Enviou um dos seus homens em busca do seu irmão Stephen.
– Lorde Stephen? – exclamou John, sorrindo. – Ah, sim, se resistirmos
até à sua chegada, estaremos salvos. Ele é um bom guerreiro.
– Foi o que Gavin disse, que mantivesse Demari longe de mim o máximo
que puder, a fim de dar a Stephen tempo para trazer os seus homens.
– O que mais disse Lorde Gavin?
– Muito pouco. Passou a maior parte do tempo a fazer a lista dos meus
erros – respondeu Judith desgostosa.
– Consegues manter Demari à distância? – questionou Helen.
Judith suspirou.
– Não é fácil. Se me toca no pulso, a mão desliza até ao meu cotovelo. Se
coloca a mão na minha cintura, desliza até às minhas costelas. Não respeito
esse homem. Se fosse capaz de se sentar e conversar sensatamente comigo,
entregar-lhe-ia metade das terras Revedoune a troco da nossa liberdade. Em
vez disso, oferece-me grinaldas de margaridas e poemas de amor. Há
momentos em que tenho vontade de gritar de frustração.
– E Sir Arthur? – quis saber John. – Não o imagino a fazer grinaldas de
margaridas.
– Não. Limita-se a observar-me. Nunca escapo aos seus olhos. Sinto que
planeia algo, mas não sei o quê.
– Será o pior, sem dúvida – afirmou John. – Como lamento não poder
ajudar!
– Não. De momento não preciso de ajuda. Resta-me esperar que Lorde
Stephen chegue e negoceie ou lute – o que tiver de ser feito. Então, falarei
com ele.
– Falar? – John arqueou uma sobrancelha. – Stephen é pouco dado a
discutir os seus planos de batalha com mulheres.
Ouviu-se uma pancada na porta.
– Tenho de ir embora. Joan está à minha espera. Não sei se me convém
que Demari saiba da minha presença aqui.
– Judith. – Helen agarrou no braço da filha. – Cuidas bem de ti?
– Quanto me é possível. Estou cansada... só isso. – Beijou a face da mãe.
– Preciso ir.
Quando ficaram sozinhos, John virou-se para Helen.
– Não choreis – disse severamente. – Não vai ajudar em nada.
– Eu sei – reconheceu Helen. – Mas ela está tão sozinha. Sempre esteve
sozinha.
– E vós? Também não haveis estado sempre sozinha?
– Não tem importância. Sou velha.
John agarrou-a com força pelos braços e ergueu-a até ele.
– Não sois velha! – exclamou apaixonadamente e beijou-a.
Helen nunca havia sido beijada por um homem, exceto pelo marido e só
no início do seu casamento. Assustou-se com o frio que lhe percorreu a
espinha. Correspondeu ao beijo, rodeando o pescoço de John com os
braços, atraindo-o para mais perto dela.
Ele beijou-lhe a face, o pescoço, com o coração palpitando aos seus
ouvidos.
– É tarde! – sussurrou; depois pegou-lhe ao colo e levou-a para a cama.
Ajudava-a todas as noites a desabotoar o vestido simples, já que Helen não
tinha uma serva. Fora sempre respeitador e desviava os olhos enquanto ela
se deitava na cama. Agora, colocou-a de pé junto à cama e virou-se para ir
embora.
– John – chamou ela –, não vais ajudar-me com os botões?
Ele virou-se para ela, com os olhos escuros de paixão.
– Esta noite, não. Se te ajudasse a despires-te, não subirias sozinha para
essa cama.
Helen fitou-o com o sangue a palpitar por todo o corpo. As suas
experiências com um homem na cama tinham primado pela brutalidade,
mas agora, ao observar John, compreendeu que com ele seria diferente.
Como seria enroscar-se com prazer nos braços de um homem? Mal
reconheceu a sua própria voz quando falou:
– Mesmo assim, vou precisar de ajuda.
John acercou-se dela.
– Tens a certeza? És uma dama. Eu sou apenas vassalo do teu genro.
– Tornaste-te muito importante para mim, John Bassett. Agora quero que
sejas tudo para mim.
Ele tocou-lhe no capuz que lhe cobria os cabelos e puxou-o
completamente.
– Vem cá, então – sorriu. – Deixa que me encarregue desses botões.
Apesar das palavras ousadas que Helen pronunciara, John inspirava-lhe
algum receio. Começara a amá-lo nos últimos dias e queria dar-lhe algo.
Não possuía nada para lhe oferecer, exceto o corpo. Entregou-se como uma
mártir. Sabia que os homens recolhiam um grande prazer da cópula, embora
para ela tivesse sido só algo rápido e sujo. Não fazia ideia de que poderia
ser diferente.
Ficou surpreendida quando John demorou tempo a despi-la. Esperava que
lhe erguesse as saias sobre o rosto para acabar de uma vez com aquilo. John
parecia gostar de lhe tocar. Percorreu-lhe as costas com os dedos, causando-
lhe pequenos calafrios. Tirou-lhe o vestido pela cabeça e em seguida a
camisa. Afastou-se dela e olhou-a enquanto ela estava apenas vestida com a
camisola de algodão fina e as meias. Sorriu calorosamente como se o corpo
dela lhe agradasse. John colocou as mãos na sua cintura e depois tirou a
camisola. Pousou imediatamente as mãos nos seus seios e Helen ofegou de
prazer. Voltou a beijá-la e ela manteve os olhos abertos, fitando-o
maravilhada. Aquela suavidade emitiu ondas de prazer por todo o seu
corpo. Encostou os seios à lã áspera do seu gibão. Fechou os olhos e
apoiou-se contra ele. Nunca experimentara essa sensação antes.
John afastou-a para começar a tirar a roupa. O coração de Helen batia
descompassado.
– Deixa-me fazê-lo – ouviu a própria voz e recuou ante a sua ousadia.
John sorriu-lhe com a mesma expressão que ela sentia, uma paixão
crescente.
Era a primeira vez que Helen despia um homem, excetuando os visitantes
a quem ajudava a tomar banho. O corpo de John era forte e musculoso e ela
tocava-lhe na pele de cada vez que uma peça de roupa caía por terra.
Roçou-lhe no braço com os seios e pequenas faíscas percorreram-lhe o
corpo.
Quando ficou nu, John levantou Helen nos braços e colocou-a
cuidadosamente na cama. Ela teve um momento de pesar ante a ideia de
que o prazer terminara e começaria a dor, mas John ergueu-lhe o pé e
pousou-o no seu colo. Enquanto Helen observava sem fôlego, desatou a liga
e tirou a meia de algodão, beijando cada centímetro de pele à medida que
percorria o caminho. Quando chegou aos dedos do pé, Helen não conseguiu
resistir mais. O seu corpo estava estranhamente fraco e o coração latejava-
lhe na garganta. Estendeu os braços para que ele viesse até ela, mas viu o
chamamento recusado.
John estendeu a mão para a outra perna. Helen sabia que não podia
suportar mais. O corpo começava a ansiar por ele. John riu com voz rouca e
afastou-lhe as mãos. Passou uma eternidade antes que ele removesse com
beijos a outra meia.
Helen recostou-se contra as almofadas, debilitada. John aproximou-se
dela, beijou-a e ela cravou as mãos nos seus ombros. Ele passeava as mãos
firmemente pelos seus lados. Helen pressionou-se contra ele, sentindo que
estava pronto para ela. Mas a tortura não havia terminado. John inclinou a
cabeça até aos seus seios, descrevendo círculos com a língua e mordiscando
os mamilos cor-de-rosa e duros. Helen gemia, movendo a cabeça de um
lado para o outro na almofada.
John colocou lentamente uma perna sobre a dela. Depois cobriu-a com
todo o seu peso. Como ela se sentia bem! Ele era tão forte e pesado.
Quando a penetrou, Helen gritou. Sentia-se como uma virgem inexperiente
em questões de prazer. O marido tinha usado o seu corpo, mas John fazia
amor com ela.
A sua paixão era tão intensa quanto a de John e alcançaram o clímax
juntos numa tremenda explosão. Ele puxou-a para perto de si e pôs um
braço e uma perna em cima dela, como se temesse vê-la escapar. Helen
aproximou-se ainda mais dele. Se possível, teria gostado de deslizar para
dentro da sua pele. O seu corpo começava a relaxar do delicioso prazer após
uma noite de amor. Adormeceu com a suave respiração de John no ouvido e
no pescoço.
***
– Diz uma só palavra e corto-te essa cabeça de víbora – ameaçou uma voz
grave, que ela nunca ouvira antes. – Onde está John Bassett?
Judith mal podia falar, mas aquele não era um homem a quem
desobedecer.
– Responde! – insistiu ele enquanto reforçava o aperto do braço e a adaga
se pressionava mais contra a sua garganta.
– Com a minha mãe – sussurrou ela.
– Mãe! – cuspiu-lhe ao ouvido. – Que essa mulher amaldiçoe o dia em
que deu à luz um ser como tu!
Judith não conseguia vê-lo. O braço que lhe apertava as costelas mal lhe
permitia respirar.
– Quem sois? – indagou, ofegante.
– Sim, bem podes perguntar. Sou teu inimigo e gostaria de acabar com a
tua vil existência agora mesmo, se não precisasse de ti. Onde prenderam
John?
– Não… não consigo respirar.
Ele hesitou. Depois reduziu a pressão, afastando um pouco a adaga do seu
pescoço.
– Responde!
– Há dois homens do lado de fora da porta do quarto que ele compartilha
com a minha mãe.
– Que piso? Vá, responde – ordenou enquanto a apertava mais uma vez. –
Não penses que alguém virá salvar-te.
De repente, foi de mais para Judith e ela começou a rir. Suavemente no
início, mas ficando cada vez mais histérica a cada palavra.
– Salvar-me? Quem poderia salvar-me? A minha mãe está prisioneira. O
meu único guarda também é mantido prisioneiro. O meu marido está no
fundo de um fosso. Um homem que detesto tem o direito de me pôr as mãos
diante do meu marido enquanto outro me sussurra ameaças ao ouvido.
Agora sou atacada por um desconhecido no escuro do corredor!
Colocou as mãos no antebraço dele, aproximando a adaga da garganta.
– Rogo-lhe, quem quer que sejais. Acabai com a minha vida, imploro-
vos. De que me serve? Devo ficar a testemunhar o assassinato de todos os
meus amigos e familiares? Não desejo viver para assistir a esse final.
O braço do homem diminuiu a pressão. Afastou a mão que empunhava a
adaga. Embainhou a lâmina, agarrou-a pelos ombros e virou-a. Judith não
se surpreendeu ao reconhecer o menestrel do grande salão.
– Quero saber mais – disse o homem, com uma voz menos áspera.
– Porquê? – inquiriu, encarando os seus olhos azuis mortíferos. – Sois um
espião enviado por Walter ou Arthur? Já falei demasiado.
– Sim, é verdade – concordou ele, sem rodeios. – Se fosse um espião,
teria muito que contar ao meu amo.
– Ide informá-lo, então! Acabemos com isto de uma vez!
– Não sou um espião. Sou Stephen, o irmão de Gavin.
Judith fixou-o com os olhos arregalados. Sabia que era verdade. Por isso
se sentira atraída por ele. Havia algo nas atitudes de Stephen, se não na sua
aparência, que lhe recordava Gavin. Sem que se desse conta, lágrimas
corriam-lhe pelas faces.
– Gavin garantiu-me que virias. Disse que eu enredara tudo, mas que tu
voltarias a pôr tudo no devido lugar.
Stephen pestanejou.
– Quando o viste para que te tenha dito isso?
– Na segunda noite em que cheguei aqui. Desci até junto dele, no fosso.
– No...? – Stephen tinha ouvido falar do sítio onde o seu irmão era
mantido prisioneiro, mas sem conseguir aproximar-se de Gavin. – Anda,
senta-te aqui – convidou, levando-a até um assento junto da janela. – Temos
muito que falar. Conta-me tudo desde o início.
Stephen escutou atentamente e em silêncio enquanto ela narrava o
assassinato do pai, a reivindicação das suas propriedades e a decisão de
Gavin de contra-atacar Walter.
– Gavin e a tua mãe foram feitos prisioneiros?
– Sim.
– Então o que fazes aqui se Demari não pediu um resgate? Deverias estar
a dar ordens aos servos.
– Não esperei até que ele pedisse. Vim com John Bassett e fomos bem
recebidos no castelo.
– Sim, presumo – expressou Stephen num tom sarcástico. – Agora Walter
Demari tem todos: a ti, Gavin, à tua mãe e o segundo em comando do meu
irmão.
– Não sabia o que mais fazer.
– Podias ter mandado chamar algum de nós! – exclamou Stephen,
furioso. – Até Raine, com a perna partida, teria podido fazer melhor do que
tu, uma mulher. John Bassett deveria saber...
Judith pousou uma mão no braço de Stephen.
– Não o culpes. Ameacei que viria sozinha, se ele não me trouxesse.
Stephen baixou o rosto para a sua mão pequena e depois voltou a encará-
la.
– E o que vi lá em baixo? Os servos do castelo dizem que odeias Gavin e
farias qualquer coisa para te livrares dele. Talvez queiras dar o teu
casamento por terminado.
Judith afastou rapidamente a mão. Stephen começava a lembrar-lhe a
conduta de Gavin e enfureceu-se.
– O que sinto por Gavin é entre ele e mim, e não para que outros se
intrometam.
Os olhos de Stephen emitiram chispas. Agarrou-lhe no pulso até ela
cerrar os dentes de dor.
– Então é verdade que te importas por esse Walter Demari?
– Não, não o quero!
Ele apertou-a com mais força.
– Não me mintas!
A violência dos homens sempre havia enraivecido Judith.
– És igual a Gavin! – cuspiu. – Vês apenas o que desejas ver. Não, eu não
sou tão desonesta como o teu irmão. É ele quem se arrasta aos pés de uma
mulher má. Mas não me rebaixarei a tanto.
Stephen pareceu desconcertado e afrouxou a pressão.
– Que mulher má? A que desonestidade te referes?
Judith soltou o pulso e massajou-o.
– Vim salvar o meu marido porque ele me foi dado diante de Deus e
porque agora carrego o seu filho. Tenho a obrigação de tentar ajudá-lo, mas
não o faço por amor a ele – insistiu, acaloradamente. – Ele só ama essa
loira! – deteve-se e examinou o pulso.
A gargalhada de Stephen fez com que levantasse os olhos.
– Alice – pronunciou com um sorriso. – Então, é disso que se trata? Não é
uma guerra séria pelas propriedades, mas uma briga de amante, um
problema de mulheres.
– Mulheres?
– Silêncio, seremos ouvidos.
– É mais do que um problema por mulheres, asseguro-te! – sibilou ela.
Stephen ficou sério.
– Mais tarde poderás ajustar contas com Alice, mas tenho de certificar-me
de que não te apresentarás diante do rei para pedires uma anulação. Não
podemos perder as propriedades Revedoune.
Então era por isso que ele se importava tanto com o que ela sentia por
Walter. Não interessava que Gavin a traísse com outra. Que Deus a
protegesse se alguma vez pensasse em se apaixonar por outro homem.
– Não posso anular o casamento, se estou grávida.
– Quem mais sabe dessa gravidez? Certamente não Demari?
– Só a minha mãe e John Bassett... e a minha criada.
– Gavin, não?
– Não. Não houve tempo de lhe dizer.
– Bem, ele já tem bastante em que pensar. Quem conhece este castelo a
fundo?
– O administrador-chefe. Está aqui há doze anos.
– Tens sempre a resposta apropriada – observou Stephen desconfiado.
– Por mais que tu e o teu irmão pensem de outra forma, tenho um cérebro
para raciocinar e olhos para observar.
Ele analisou-a sob a luz escassa.
– Foste corajosa em vir aqui, embora estivesses a agir erradamente.
– Devo tomar isso como um elogio?
– Como quiseres.
Judith estreitou os olhos.
– A tua mãe deve ter ficado contente por os seus filhos mais novos não
serem como os dois primeiros.
Stephen olhou para ela e depois esboçou um sorriso.
– Não duvido que tornes a vida interessante ao meu irmão. Agora para de
provocar-me e deixa-me procurar uma solução para esta confusão que
desencadeaste.
– Eu! – exclamou ela, mas deteve-se. Ele tinha obviamente razão.
Stephen ignorou a sua explosão.
– Conseguiste que Gavin fosse limpo e alimentado, embora os teus
métodos desagradassem ao meu estômago
– Terias preferido que corresse a abraçá-lo? – inquiriu ela
sarcasticamente.
– Não. Agiste bem. Não acredito que ele esteja em condições de viajar e,
como se encontra, seria um estorvo para nós. Mas ele é forte. Em dois dias,
com os devidos cuidados, vai recuperar o suficiente para podermos escapar.
Tenho de sair do castelo para procurar ajuda.
– Os meus homens estão lá fora.
– Sim, eu sei. Mas os meus homens não estão aqui. Quase cheguei
sozinho ao inteirar-me de que Gavin precisava de mim. Os meus homens
seguem-me, mas vão demorar pelo menos mais dois dias a chegar. Tenho de
reunir-me a eles e trazê-los até aqui.
Judith tocou novamente no seu braço.
– Voltarei a ficar sozinha.
Stephen sorriu, acariciando-lhe o queixo com um dedo.
– Sim, é verdade! Mas vais conseguir... Encarrega-te de que Gavin seja
cuidado e recupere as forças... Quando voltar, vou tirar-vos a todos daqui.
Ela assentiu e depois baixou o rosto.
Stephen ergueu-lhe o queixo e fitou-a nos olhos.
– Não fiques zangada comigo. Pensei que querias que Gavin morresse e
agora vejo que não é assim.
A jovem sorriu hesitante.
– Não estou zangada. Só estou farta deste lugar, daquele homem que me
toca, do outro...
Stephen pousou um dedo nos seus lábios.
– Resiste um pouco mais. Conseguirás?
– Vou tentar. Começava a perder a esperança.
Ele inclinou-se para a beijar na testa.
– Gavin tem sorte – sussurrou. Depois, levantou-se e deixou-a só.
Capítulo Vinte
– Ele julga-se melhor do que nós – disse Blanche, rancorosa. Estava com
Gladys na pequena granja de Chatworth, enchendo jarros com vinho para a
refeição das onze horas.
– Sim – replicou Gladys, mas com menos amargura. Sentia muito a falta
de Jocelin, mas não se enfurecia tanto com isso como Blanche.
– Que assunto o manterá afastado de nós? – perguntou Blanche. – Ele
passa pouco tempo com ela. – Fez um sinal com a cabeça para cima,
referindo-se ao quarto de Alice Chatworth. – E raramente está no salão.
Gladys suspirou.
– Parece passar a maior parte do seu tempo sozinho, no palheiro.
Blanche interrompeu subitamente a sua tarefa.
– Sozinho! Estará mesmo sozinho? Não tínhamos pensado nisso. Haverá
uma mulher lá em cima?
– Gladys riu.
– Por que quereria Jocelin apenas uma mulher quando pode ter muitas?
Qual das mulheres falta no castelo? A menos que seja uma das servas, não
conheço ninguém que possa ter estado ausente por tanto tempo.
– Então, o que mais poderia reter um homem como Jocelin? Ei, tu! –
chamou Blanche a uma jovem serva que ia a passar. – Acaba de encher
estas canecas.
– Mas eu... – a jovem ia a protestar, mas Blanche deu-lhe um beliscão no
braço. – Está bem! – cedeu ela, chorosa.
– Vem, Gladys! – exclamou Blanche. – Enquanto Jocelin está ocupado
em outro lugar, vamos pôr fim a este mistério.
As duas mulheres saíram da pequena granja e percorreram a curta
distância que as separava dos estábulos.
– Olha! Ele retira a escada de cada vez que sai – observou Blanche. –
Caminhou silenciosamente para os estábulos, seguida de perto pela amiga.
Blanche levou um dedo aos lábios e apontou para a esposa gorda do criado
do estábulo. – O velho dragão está de vigia – sussurrou.
As raparigas pegaram na escada, tomando cuidado para não fazer
barulho. Encostaram-na à parede externa, com a extremidade apoiada
contra a abertura do quarto de Jocelin. Blanche levantou as saias e subiu.
Quando estavam lá dentro, diante dos fardos de feno que lhes bloqueavam a
visão, chegou-lhes uma voz feminina.
– Jocelin? És tu?
Blanche sorriu a Gladys, plena de um triunfo malicioso, e abriu o
caminho para a zona aberta.
– Constance!
O rosto encantador da mulher ainda estava maltratado, mas começava a
cicatrizar. Constance recuou até apoiar as costas contra um fardo de feno.
– Com que então és o motivo por que Jocelin nos abandona. Pensei que
tivesses saído do castelo – disse Gladys.
Constance limitou-se a sacudir a cabeça.
– Não! Ela não foi! – cuspiu Blanche. – Viu Jocelin e decidiu que tinha de
ser dela. Não suportava partilhá-lo.
– Isso não é verdade – murmurou Constance, com o lábio inferior a
tremer. – Quase morri e ele cuidou de mim.
– Sim e tu cuidas dele, não? Que bruxaria usaste para encantá-lo?
– Por favor…, não quis fazer nenhum mal.
Blanche não estava a escutar as suas súplicas. Sabia que não era Jocelin
quem fizera as marcas que Constance tinha no rosto e no corpo. Só poderia
ter sido obra de Edmund Chatworth.
– Responde. Lorde Edmund sabe onde estás?
Constance arregalou os olhos, horrorizada.
Blanche riu.
– Vê bem, Gladys, ela é a amante do lorde, mas atraiçoa-o com outro.
Que te parece se a devolvermos ao amo?
Gladys olhou para a jovem aterrorizada com simpatia.
Contudo, Blanche agarrou nos braços da amiga, e cravou-lhe as unhas na
carne macia.
– Ela atraiçoou-nos, mas hesitas quando te falo em pagar-lhe na mesma
moeda. Esta cadela desavergonhada tirou-nos o Joss. Tinha Lorde Edmund,
mas queria mais. Não estava satisfeita com um só homem, mas desejava-os
todos aos seus pés.
Gladys virou-se para Constance com um olhar de ódio.
– Se não vieres connosco, diremos a Lorde Edmund que Jocelin tem
estado a esconder-te – sorriu Blanche.
Constance seguiu-as silenciosamente pela escada. Não se permitia pensar,
apenas tinha em mente que deveria proteger Jocelin. Em toda a sua vida,
ninguém lhe tinha oferecido ternura. O seu mundo estava cheio de pessoas
como Edmund, Blanche e Alice. Porém, durante quase duas semanas, tinha
vivido um sonho nos braços de Jocelin; ele tinha falado com ela, cantado
para ela, apertara-a nos seus braços e fizera amor com ela. Sussurrava que a
amava e ela acreditou nele.
Seguir Blanche e Gladys era como despertar de um sonho. Ao contrário
de Jocelin, Constance não traçava planos para quando abandonassem o
castelo de Chatworth, quando estivesse completamente curada. Sabia que o
tempo que haviam tido naquele sótão seria o único que iriam viver. Por isso,
seguiu docilmente as mulheres, aceitando o seu destino; nunca lhe passou
pela mente a ideia de escapar ou de resistir. Sabia para onde elas a levavam
e, quando entrou no quarto de Edmund, o peito apertou-se, como cingido
por tiras de ferro.
– Fica aqui, enquanto vou chamar Lorde Edmund – ordenou Blanche.
– Ele virá? – perguntou Gladys.
– Oh, sim, quando ouvir o que tenho para lhe dizer. Não a deixes sair da
sala.
Blanche regressou pouco depois com um furioso Edmund logo atrás. Não
gostava que lhe interrompessem o jantar, mas o nome de Constance fizera-o
seguir a presunçosa criada. Ao entrar no quarto, bateu com a porta e
trancou-a, com os olhos cravados em Constance, ignorando as expressões
nervosas das duas criadas.
– Então minha doce Constance, afinal não morreste. – Edmund colocou a
mão sob o seu queixo para a obrigar a levantar a cara. Apenas viu
resignação. Os hematomas obscureciam a sua beleza, mas ela ficaria
curada. – Esses olhos – sussurrou – perseguiram-me por muito tempo.
Ouviu um barulho atrás de si e rodou sobre os calcanhares, apanhando as
duas servas a tentarem abrir sub-repticiamente o ferrolho da porta.
– Aqui! – ordenou e agarrou o braço da mais próxima, Gladys. – Onde
pensam que vão?
– Cumprir os nossos deveres, milorde – respondeu Blanche com a voz
trémula. – Somos as suas mais leais servidoras.
Gladys tinha lágrimas nos olhos quando os dedos de Edmund se lhe
cravaram na pele. Tentou soltar-se.
Edmund atirou-a ao chão.
– Vocês julgam que poderiam trazê-la aqui e deixá-la como se fosse parte
de uma bagagem? Onde tem estado?
Blanche e Gladys trocaram olhares. Não tinham pensado nisso. Apenas
queriam afastar Constance de Jocelin para que tudo fosse como antes,
quando Jocelin fazia amor com elas e as divertia.
– Nã… não sei, milorde! – gaguejou Blanche.
– Tomam-me por um idiota? – replicou Edmund e avançou para ela. – A
rapariga tem estado bem escondida ou teria sabido. Seria informado sobre a
presença dela, através das coscuvilhices do castelo.
– Não, milorde, ela... – Blanche não tinha rapidez mental suficiente para
inventar uma história. A língua atraiçoou-a.
Edmund parou e olhou para Gladys encolhida aos seus pés.
– Há alguma coisa nesta história que escondem. A quem tentam proteger?
– Agarrou no braço de Blanche e torceu-o dolorosamente atrás das costas.
– Milorde! Está a magoar-me!
– Farei pior do que isso se me mentires.
– Foi Baines da cozinha – disse Gladys em voz alta, querendo proteger a
amiga.
Edmund soltou o braço de Blanche enquanto ponderava na resposta.
Baines era um homem profundamente detestado, mal-humorado, sabia
disso. Mas Edmund também sabia que Baines dormia na cozinha, onde não
tinha privacidade suficiente para esconder uma rapariga maltratada até que
se curasse. Teria provocado rumores por todo o castelo.
– Estás a mentir – acusou Edmund com uma voz mortífera e avançou
lentamente para ela.
Gladys afastou-se dele, rastejando por entre os juncos.
– Milorde! – rogou, tremendo com todas as fibras do corpo.
– É a tua última mentira – garantiu ele, agarrando-a pela cintura. Ela
começou a lutar ao compreender que a levava na direção da janela aberta.
Blanche olhava horrorizada enquanto Edmund arrastava Gladys para a
janela. A serva agarrou-se à estrutura da janela, com toda a força dos seus
braços, mas não era adversária para a força de Edmund. Ele deu-lhe um
empurrão nas costas e Gladys voou para diante, golpeando o ar com a
queda. O seu grito, enquanto caía do terceiro piso para o pátio, pareceu
fazer estremecer as paredes.
Blanche permanecia imóvel, com os joelhos tremendo e o estômago às
voltas.
– Agora, quero saber a verdade – exigiu Edmund, voltando-se para
Blanche. – Quem a escondeu? – acenou para Constance, que se mantinha
em silêncio, encostada à parede. O assassinato de Gladys por Edmund não a
surpreendera. Era o que ela esperara.
– Jocelin – sussurrou Blanche.
Ao ouvir o nome, a jovem levantou a cabeça.
– Não! – Não podia suportar que Jocelin fosse atraiçoado.
Edmund sorriu.
– Esse bonito cantor? – O mesmo que havia transportado Constance
naquela noite. Um facto que Edmund esquecera. – Onde dorme? Como
pôde mantê-la despercebida?
– No palheiro, por cima dos estábulos. – Blanche mal conseguia falar.
Mantinha os olhos fixos na janela. Apenas um momento antes, Gladys
estava viva. Agora o seu corpo jazia despedaçado e esmagado no
pavimento.
Edmund assentiu diante da resposta de Blanche. Sabia reconhecer a
verdade quando a ouvia. Deu um passo na direção da mulher, que se
encolheu e recuou com medo, colando as costas à porta.
– Não, milorde. Disse-lhe o que desejáveis saber. – Ele continuou a
avançar na sua direção, com um leve sorriso no rosto. – Trouxe-lhe
Constance. Sou uma serva leal.
Edmund gostava daquele terror. Demonstrava o seu poder e a sua força.
Parou diante dela, levantou a mão gorda para acariciar a linha da sua
mandíbula. Ela tinha os olhos cheios de lágrimas. Lágrimas de medo.
Continuou a sorrir, quando a esbofeteou.
Blanche caiu no chão, com a mão na cara. O olho desse lado começava a
ficar roxo.
– Vai! – disse, com um meio-sorriso, enquanto abria a porta de par em
par. – Aprendeste uma boa lição.
Blanche estava fora do quarto antes que a porta se fechasse. Desceu as
escadas a correr e saiu pelo salão. Continuou a correr pelo pátio do castelo e
saiu pelo portão aberto. Não respondeu aos chamamentos dos homens de
cima das muralhas. Só sabia que queria estar longe de qualquer coisa que
tivesse a ver com a propriedade Chatworth. Só parou quando as dores dos
lados a obrigaram. Depois, continuou a pé, sem olhar uma única vez para
trás.
***
Alice não conseguia dormir. Há semanas que não conseguira dormir bem
– desde que o menestrel deixara de ir à sua cama. Ameaçara-o
repetidamente, mas sem sucesso. Jocelin tinha-se limitado a fixá-la através
dos seus longos cílios e não dizia nada. Na verdade, estava um pouco
intrigada que um homem a tratasse tão mal.
Atirou as cobertas da cama para trás e vestiu um roupão. Os pés não
fizeram nenhum barulho no chão coberto com juncos. No corredor, Alice
percebeu que algo estava errado. A porta do quarto de Edmund estava
aberta, o guarda estava sentado numa posição estranha. Curiosa,
aproximou-se. Os seus olhos estavam acostumados à escuridão e o corredor
estava iluminado apenas pelas tochas ao longo da parede.
Um homem saiu do quarto de Edmund, sem olhar para a direita nem para
a esquerda, e caminhou em linha reta até ela. Viu o gibão coberto de
sangue, antes de lhe ver o rosto. Alice soltou uma exclamação abafada e
levou a mão à garganta. Quando ele parou diante dela, mal o reconheceu. Já
não era um jovem sorridente, mas um homem que a olhava com audácia.
Sentiu um pequeno arrepio na espinha.
– Jocelin.
Ele passou por ela como se não a tivesse visto ou não se importasse com
a sua presença. Alice seguiu-o com o olhar e depois encaminhou-se
lentamente para o quarto de Edmund. Passou sobre o corpo do guarda
morto, com o coração palpitante. Ao ver o cadáver de Edmund, com o
sangue ainda a escorrer do pescoço degolado, sorriu.
Alice dirigiu-se à janela, pôs a mão no peitoril, cobrindo uma mancha
deixada pelo sangue da outra inocente no dia anterior.
– Viúva – sussurrou. – Uma viúva! – Agora tinha tudo: riqueza, beleza e
liberdade.
Durante um mês escrevera cartas, suplicando um convite para a Corte do
rei Henrique. Quando o tinha recebido, Edmund riu dela, dizendo que se
recusava a gastar dinheiro em tais frivolidades. Na verdade, na Corte não
poderia atirar servas pelas janelas, como no seu próprio castelo. «Agora,
poderia ir à Corte do rei sem que ninguém a impedisse», decidiu Alice.
E haveria Gavin! Ah, sim, também se encarregara disso. Aquela rameira
de cabelos vermelhos tivera-o demasiado tempo. Gavin era dela e
continuaria a ser. Se pudesse livrar-se da sua esposa, então seria dela
completamente. Não lhe negaria vestidos de tecidos dourados. Não, Gavin
não lhe negaria nada. Acaso não era capaz de conseguir o que desejava?
Desejava Gavin Montgomery novamente e iria tê-lo.
Alguém cruzou o pátio, chamando-lhe a atenção. Jocelin dirigia-se à
escada que levava ao topo da muralha, com um saco de couro sobre o
ombro.
– Fizeste-me um grande favor – sussurrou. – E agora vou retribuir-to. –
Não chamou os guardas. Em vez disso, ficou em silêncio, planeando o que
faria, agora que estava livre de Edmund. Jocelin tinha-lhe dado muitas
coisas – acesso a uma grande riqueza –, mas, acima de tudo, devolvera-lhe
Gavin.
Capítulo Vinte e Três
– Acorda, minha louca! – riu Gavin, dando uma palmada nas nádegas
nuas de Judith. – O acampamento já acordou e virão à nossa procura.
– Que nos procurem – murmurou Judith e envolveu-se mais no manto.
Gavin pairava de pé sobre ela, com aquele corpo entre os seus tornozelos.
Nunca havia experimentado uma noite como a que acabara de passar. Quem
era a sua esposa? Uma adúltera? Uma mulher que passava de um amor a
outro, ao sabor do vento? Ou era boa e gentil, como os seus irmãos
pensavam? De qualquer maneira, era um demónio quando se tratava de
fazer amor.
– Queres que chame a tua criada para te vestir aqui? Joan terá, sem
dúvida, alguns comentários a fazer.
Quando Judith, sonolenta, pensou nos sorrisos maliciosos de Joan,
demorou pouco tempo a ficar completamente acordada. Sentou-se, olhou
para o rio e aspirou profundamente o ar fresco da manhã. Bocejou,
espreguiçou-se e o manto caiu, expondo os seios fartos e impudicos.
– Por Deus! – exclamou Gavin. – Cobre-te ou nunca chegaremos a
Londres e à Corte do rei.
Judith sorriu-lhe, sedutora.
– Talvez preferisse ficar aqui. Na verdade, a Corte não deve ser tão
agradável.
– Sem dúvida – reconheceu Gavin. – Depois, curvou-se para a envolver
no seu manto e levantou-a suavemente nos braços. – Anda. Regressemos.
Miles e Raine vão deixar-nos hoje e preciso falar com eles.
Voltaram para a tenda em silêncio. Judith aconchegava-se contra o ombro
de Gavin. «Não poderia ser sempre ser assim?, pensou. Ele era gentil e
terno quando queria. «Por favor, Deus», rezou «permite que isto dure entre
nós. Que não voltemos a discutir.»
Uma hora depois, Judith caminhava entre Raine e Miles pela mão de
ambos. Formavam um grupo absurdo: dois homens robustos vestidos com
roupas de viagem de lã pesada, e, entre eles, Judith mal lhes chegando aos
ombros.
– Vou sentir falta de ambos – disse Judith, apertando-lhes as mãos. – É
bom ter toda a minha família perto, embora a minha mãe raramente se
separe de John Bassett.
Raine riu.
– Parece-me ouvir ciúmes nessa confissão.
– Sim – concordou Miles. – Acaso não te bastamos?
– Gavin parece bastar – provocou Raine.
Judith riu com as faces coradas.
– Existe alguma coisa que um irmão faça que os outros não saibam?
– Raramente – admitiu Raine, olhando para Miles por cima da cabeça de
Judith. – Há obviamente a questão de onde o nosso irmãozinho passou a
noite anterior.
– Com Joan – respondeu Judith sem pensar.
Os olhos de Raine brilharam de riso enquanto os de Miles permaneceram
indecifráveis, como sempre.
– Se… sei, porque Joan falou muito sobre ele – balbuciou Judith.
As covinhas de Raine aprofundaram-se.
– Não deixes que Miles te assuste. Está curioso para saber o que disse
essa mulher.
Judith sorriu.
– Conto-te da próxima vez que te vir. Talvez assim decidas visitar-nos
mais cedo do que planeavas.
– Muito bem! – Raine riu. – Agora, na verdade, temos de ir. Não seríamos
bem-recebidos na Corte, a menos que pagássemos para entrar, e não posso
permitir-me esses luxos.
– Ele é rico – replicou Miles. – Não te deixes enganar.
– Nenhum de vocês me engana. Obrigada por todo o vosso tempo e
preocupação. Obrigada por escutarem os meus problemas.
– Queres que choremos todos em vez de aproveitar a ocasião para beijar
uma mulher deliciosa? – contrapôs Miles.
– Por uma vez tens razão, irmãozinho – concordou Raine enquanto
levantava Judith do chão e lhe dava um beijo em cada face.
Miles fez o mesmo, rindo-se do irmão.
– Não sabes tratar as mulheres – protestou ao mesmo tempo que erguia
Judith nos braços e depositava um beijo muito pouco fraternal nos lábios da
jovem.
– O que significa isso, Miles? – perguntou uma voz mortífera.
Judith apartou-se do cunhado e virou-se para Gavin que os observava
com olhos nublados.
Raine e Miles trocaram olhares. Era a primeira vez que Gavin mostrava
algum ciúme palpável.
– Coloca-a no chão antes que este homem te trespasse com a espada –
recomendou Raine.
Miles reteve Judith por um momento mais, observando-a.
– Quem sabe se não valeria a pena – lamentou e pousou-a gentilmente no
chão.
– Em breve voltaremos a ver-nos – dirigiu-se Raine a Gavin. – Talvez
possamos reunir-nos todos no Natal. Gostaria de conhecer essa dama
escocesa com quem Stephen vai casar.
Gavin colocou uma mão possessiva no ombro de Judith e puxou-a para
perto dele.
– Até ao Natal! – despediu-se. – Os irmãos montaram nos cavalos e
afastaram-se.
– Suponho que não estejas realmente zangado? – questionou Judith.
– Não – suspirou Gavin. – Mas não gostei de ver um homem a tocar-te.
Nem mesmo o meu próprio irmão.
Judith respirou fundo.
– Se vierem no Natal, o bebé já terá nascido.
«O bebé», pensou Gavin. «Não “o meu bebé”, ou “o nosso bebé”, mas “o
bebé”.» – Não gostava de pensar na criança.
– Vem. Temos de levantar o acampamento. Passámos demasiado tempo
aqui.
Judith seguiu-o, pestanejando para conter as lágrimas. Não mencionavam
os dias passados no castelo de Demari nem falavam do bebé. Deveria dizer-
lhe que a criança só poderia ser dele? Deveria implorar que a ouvisse e
acreditasse nela? Podia contar os dias e dizer-lhe o tempo de gravidez, mas
em determinada ocasião Gavin havia insinuado que ela poderia ter-se
deitado com Demari durante os festejos da boda. Voltou à tenda para dar
indicações às criadas, que tinham de arrumar a bagagem.
Acamparam cedo naquela noite. Não havia pressa para chegar a Londres
e Gavin apreciava o tempo da viagem. Começara a sentir-se próximo da
esposa. Conversavam frequentemente como se fossem amigos. Gavin
surpreendeu-se a partilhar segredos de infância com ela, revelando-lhe o
medo que sentira quando o pai morreu e o deixou com tantas terras para
administrar.
Sentou-se a uma mesa com um livro de contabilidade aberto na sua
frente. Era preciso anotar e justificar cada penny gasto. Era um trabalho
aborrecido, mas o seu administrador tinha ficado doente com febre e Gavin
não podia confiar as contas aos seus cavaleiros.
Bebeu um gole de uma caneca de sidra e procurou a esposa com o olhar.
Estava sentada num banquinho junto à entrada aberta da tenda, com um
novelo de fios azuis no colo. As mãos lutavam com um longo par de
agulhas de tricô. Enquanto a observava, ela enredava cada vez mais o seu
trabalho manual. Tinha o rosto encantador distorcido pelo esforço e a
pequena ponta da língua assomava entre os lábios. Gavin voltou a debruçar-
se sobre os livros e percebeu que aquela tentativa para tricotar era um
esforço para lhe agradar. Ele expressara-lhe com frequência o seu desagrado
quando ela interferia nos negócios do castelo.
Gavin teve de sufocar uma gargalhada ao ouvi-la rezingar contra o fio,
murmurando algo em voz baixa. Acalmou-se.
– Judith, talvez possas ajudar-me. Não te importas de pôr isso de lado? –
perguntou com toda a seriedade que conseguiu reunir. Tentou não sorrir
enquanto ela atirava de bom grado os fios e as agulhas contra a parede da
tenda.
Gavin apontou para o livro.
– Gastámos demasiado nesta viagem, mas não sei porquê.
Judith virou o livro para ela. Finalmente algo que compreendia! Deslizou
os dedos pelas colunas, movendo os olhos de um lado para o outro. De
súbito, parou.
– Cinco marcos de pão! Quem está a cobrar tanto?
– Não sei – respondeu Gavin sinceramente.
– Limito-me a comê-lo, não a cozê-lo.
– Bem, tens estado a comer ouro! Vou encarregar-me imediatamente do
assunto. Por que não me mostraste isso antes?
– Porque, minha querida esposa, pensei que pudesse dirigir a minha vida
sozinho. Ai do homem que pense dessa maneira!
Judith olhou-o fixamente.
– Vou ajustar contas com esse padeiro! – assegurou, encaminhando-se
para a saída.
– Não deverias levar o tricô? Talvez não encontres o suficiente com que
te ocupares.
Judith olhou por cima do ombro para Gavin e viu que ele estava a brincar.
Devolveu o sorriso, pegou no novelo e atirou-lho.
– Talvez sejas tu quem tem de se manter ocupado. – Apontou
intencionalmente para os livros, e saiu da tenda.
Gavin permaneceu sentado por um momento, rodando o novelo entre as
mãos. A tenda ficara demasiado vazia com a ausência de Judith.
Aproximou-se da aba aberta e encostou-se ao poste, observando-a. Judith
nunca gritava com um servo, mas de alguma forma fazia-os trabalhar mais
do que ele. Encarregava-se da comida, da lavagem da roupa, da instalação
do acampamento, tudo com facilidade. Contudo, nunca parecia nervosa e
ninguém imaginava como lidava com seis coisas ao mesmo tempo.
A jovem terminou a conversa com o homem que tinha a carroça
carregada de pão. O homem baixo e gordo retirou-se, sacudindo a cabeça.
Gavin sorriu divertido; sabia bem como o padeiro se sentia. Quantas vezes
tinha perdido uma discussão com Judith, embora pudesse ter razão. Ela
sabia retorcer as palavras até fazer com que uma pessoa esquecesse os seus
próprios pensamentos.
Gavin seguiu-a com a vista, enquanto ela percorria o acampamento.
Deteve-se para provar o guisado numa panela e falar com o escudeiro de
Gavin, que estava sentado num banquinho, a polir a armadura do amo. O
jovem assentiu com um sorriso e Gavin adivinhou que lhe havia indicado
alguma pequena mudança nesse simples processo. E a mudança seria para
melhor. Nunca tinha vivido ou viajado com tanto conforto, e com tão pouco
esforço da sua parte. Pensou nas vezes em que, ao sair da tenda pela manhã,
havia pisado um monte de esterco de cavalo. Agora duvidava que Judith
permitisse que a lama e os dejetos se amontoassem no chão. Nunca tinha
visto um acampamento tão limpo.
Judith pareceu sentir que ele a olhava. Virou-se sorridente, desviando a
atenção das galinhas que inspecionava. Gavin sentiu um nó no peito. O que
sentia por ela? Importava que carregasse o filho de outro homem? Apenas
sabia que a desejava.
Atravessou a relva e agarrou-lhe no braço.
– Vem comigo para dentro.
– Mas eu devo...
– Preferes que façamos amor aqui fora? – inquiriu, arqueando uma
sobrancelha.
Judith sorriu encantada.
– Não, não me parece.
Fizeram amor vagarosamente, saboreando o corpo um do outro até que a
paixão crescesse. Era isso o que Gavin adorava ao fazer amor com Judith: a
variedade. Ela nunca parecia ser a mesma duas vezes. Se numa ocasião se
mostrava calma e sensual, na seguinte era agressiva e exigente. Em alguns
momentos, ria e provocava; noutros, gostava de experimentar novidades e
era quase acrobática. Mas, independentemente do que ela era, adorava amá-
la. Até o pensamento de tocá-la o excitava.
Estreitou-a, com o nariz enterrado nos seus cabelos. Ela moveu-se contra
ele como se pudesse aproximar-se mais, o que era impossível. Gavin
beijou-lhe o topo da cabeça, sonolento, e adormeceu.
***
A primeira coisa que Judith notou em Londres foi o mau cheiro. Julgava
conhecer todos os odores que os humanos poderiam criar, pois tinha
passado verões em castelos assolados pelo calor e pelo excesso de
população. Mas nada a preparara para Londres. Esgotos abertos corriam de
cada lado das ruas de paralelepípedos, transbordando de todo o tipo de lixo.
De cabeças de peixe e vegetais apodrecidos aos conteúdos dos penicos,
tudo estava nas ruas. Porcos e ratos corriam livremente, comendo o lixo e
espalhando-o por toda a parte.
As casas, edifícios de madeira aliada a pedra, tinham dois ou três andares
de altura; estavam tão perto umas das outras que pouco ar e nenhum sol
circulavam entre eles. O horror que Judith sentiu deve ter-se notado no
rosto, pois tanto Gavin como Stephen se riram dela.
– Bem-vinda à cidade dos reis – comentou Stephen.
Uma vez dentro das muralhas de Winchester, o ruído e mau cheiro eram
menores. Um homem veio encarregar-se dos cavalos e assim que Gavin
ajudou Judith a desmontar do dela, ela virou-se para dar ordens sobre as
carroças com a bagagem e o mobiliário.
– Não – contrapôs Gavin. – Tenho a certeza de que o rei foi informado da
nossa chegada, e não vai gostar de esperar enquanto pões ordem no seu
castelo.
– As minhas roupas estão limpas? Não estão muito amarrotadas? – Judith
tinha-se vestido com esmero naquela manhã, com uma anágua de seda preta
e um vestido de veludo amarelo brilhante. As longas mangas penduradas
estavam revestidas com finíssima zibelina russa. Havia também uma larga
orla de zibelina ao longo da bainha do vestido.
– Estás perfeita. Agora vamos para que o rei te veja.
Judith tentou acalmar o coração palpitante com a ideia de conhecer o rei
de Inglaterra. Ignorava o que a esperava, mas nunca imaginara que o salão
fosse tão comum. Homens e mulheres sentados jogavam xadrez e outros
jogos. Três mulheres sentavam-se nos banquinhos aos pés de um homem
bonito que tocava um saltério. Não via nenhum homem que pudesse ser o
rei Henrique de Inglaterra.
Judith ficou espantada quando Gavin parou diante de um homem vulgar,
de meia-idade; tinha olhos azuis e cabelos brancos e ralos. Parecia muito
cansado.
A jovem recompôs-se e apressou-se a fazer uma vénia.
O rei pegou-lhe na mão.
– Aproximai-vos da luz para que possa ver-vos. Ouvi muitos comentários
sobre a vossa beleza. – Levou-a para o lado, pairando sobre ela, pois tinha
um metro e oitenta de altura. – Sois tão bonita quanto me haviam dito. –
Vem cá, Bess – disse o rei – e vê Lady Judith, a esposa de Gavin.
Ao virar-se, Judith deparou com uma bela mulher de meia-idade.
Surpreendera-se ao descobrir que aquele homem era o rei, mas não havia
dúvida de que aquela mulher era a rainha. Era uma mulher majestosa e
segura de si mesma, a ponto de poder mostrar-se gentil e generosa. Os seus
olhos expressavam boas-vindas a Judith.
– Majestade! – saudou Judith com uma reverência.
Isabel estendeu a mão.
– Condessa! – exclamou a rainha. – Sinto-me muito feliz por haveis
vindo passar algum tempo connosco. Disse algo de errado?
Judith sorriu ante aquela sensibilidade.
– É a primeira vez que me chamam «condessa». Passou pouco tempo
desde a morte de meu pai.
– Sim, foi uma tragédia, não foi? E o homem que cometeu a ação?
– Está morto – respondeu Judith com firmeza, lembrando-se muito bem
da sensação da espada a afundar-se na espinha de Walter.
– Vinde. Deveis estar cansada depois da viagem.
– Não, não estou.
Isabel sorriu afetuosamente.
– Então, talvez gostásseis de vir aos meus aposentos tomar um pouco de
vinho.
– Sim, Majestade, gostaria.
– Vais desculpar-me, Henrique?
Judith percebeu subitamente que tinha virado as costas para o rei. Deu
meia-volta, com as faces ruborizadas.
– Não vos preocupeis comigo, jovem – manifestou-se o rei, distraído. –
Tenho a certeza de que Bess vai colocar-vos a trabalhar nos planos para o
casamento do nosso filho mais velho, Artur.
Judith sorriu e fez-lhe uma reverência, antes de seguir a rainha pela ampla
escadaria até ao andar superior.
10 Laird é um nome genérico para o dono de uma propriedade escocesa grande e de longa data,
aproximadamente equivalente a um escudeiro na Inglaterra, mas ainda superior na Escócia. Na
ordem de precedência escocesa, um laird está abaixo de um barão e acima de um cavalheiro. (N. da
T.)
Capítulo Vinte e Quatro
11 Catarina de Aragão em espanhol: Catalina de Aragón foi princesa de Espanha. (N. da T.)
Capítulo Vinte e Cinco
Alice olhava por cima das cabeças dos muitos homens que a rodeavam para
o homem magro, loiro, bonito, encostado à parede. Ele tinha uma expressão
pensativa no rosto que ela reconheceu como a de alguém apaixonado.
Embora Alice sorrisse docemente para um homem próximo, não estava a
ouvi-lo. Tinha a mente completamente absorta naquela tarde, quando Gavin
lhe confessara que amava a esposa. Observou-o enquanto segurava a mão
da mulher e a conduzia pelos intrincados passos de uma dança. A Alice não
lhe importava ter vários homens jovens aos seus pés. Ser desprezada por
Gavin só a fez desejá-lo mais. Se ele houvesse jurado que ainda a amava,
talvez tivesse considerado uma das muitas propostas de casamento que lhe
faziam. Mas Gavin rejeitara-a e agora sabia que tinha de o conseguir. Só
existia uma coisa que estorvava os seus planos e que Alice planeava
remover.
O jovem loiro olhava para Judith com fascínio, sem nunca desviar o
rosto. Alice reparara nele durante o jantar quando fitava a mesa elevada,
sem pestanejar, enquanto olhava insistentemente para Judith. Alice
percebeu que a mulher era estúpida de mais para tomar consciência de um
admirador, pois Judith nunca apartava os olhos de Gavin.
– Dão-me licença? – murmurou Alice poderosa e afastou os homens que
a rodeavam para se dirigir ao jovem encostado à parede.
– É linda, não é? – comentou Alice, rangendo os dentes com as palavras.
– Sim – sussurrou ele e a palavra saiu-lhe do mais fundo da alma.
– É triste ver uma mulher como ela tão infeliz.
O homem virou-se e olhou fixamente para Alice.
– Não parece infeliz.
– Não, porque dissimula bem, mas a sua infelicidade existe.
– Sois Lady Alice Chatworth?
– Sim, e vós?
– Alan Fairfax, minha linda condessa – respondeu, curvando-se e
beijando-lhe a mão. – Ao vosso serviço.
Alice soltou uma risada alegre.
– Não sou eu quem necessita dos vossos serviços, mas Lady Judith.
Alan observou novamente os dançarinos.
– É a mulher mais bonita que já vi – sussurrou.
Os olhos de Alice soltaram chispas como vidro azul.
– Já lhe haveis confessado o vosso amor?
– Não! – respondeu ele, franzindo a testa. – Sou um cavaleiro, fiz um
juramento de honra e ela é uma mulher casada.
– Sim, é, embora esse matrimónio seja muito infeliz.
– Ela não parece ser infeliz – repetiu o jovem, enquanto observava o
objeto do seu afeto que fitava ardentemente o marido.
– Conheço-a há muito tempo e é realmente infeliz. Ainda ontem chorava,
dizendo-me que necessita desesperadamente de alguém para amar. Alguém
que seja doce e gentil com ela.
– O marido não o é? – Alan estava preocupado.
– Poucos o sabem – respondeu Alice quase num sussurro –, mas ele bate-
lhe com frequência.
Alan voltou a observar Judith.
– Não acredito nas vossas palavras.
Alice encolheu os ombros.
– Não é minha intenção espalhar rumores. É minha amiga e gostaria de
ajudá-la. Não ficarão na Corte por muito tempo, e eu esperava que, antes de
partirem, a minha querida Judith pudesse encontrar alguns momentos de
prazer.
Lady Judith era de facto adorável e o seu cabelo radioso contribuía para
tal. A tonalidade de um dourado-avermelhado era visível sob um véu de
gaze transparente. O tecido de prata do seu vestido ressaltava curvas
exuberantes. Todavia, o que mais chamava a atenção de Alan e que parecia
ser ainda mais impressionante do que a sua beleza era a vitalidade que
parecia emanar. Olhava para todos, do rei aos servos, com uma calma que
demonstrava que se interessava por todos. Nunca ria, nem namoriscava,
nem se fingia uma donzela tímida. Alan estava realmente fascinado. Teria
dado qualquer coisa para que o fitasse uma única vez com aqueles cálidos
olhos dourados.
– Gostaríeis de vê-la a sós?
Os olhos de Alan cintilaram.
– Sim, gostaria.
– Então vou encarregar-me disso. Ide até ao jardim que a enviarei à vossa
presença. Somos grandes amigas e ela sabe que pode confiar em mim. –
Alice interrompeu-se e pôs uma mão no braço de Alan. – Sem dúvida estará
preocupada com a possibilidade de que o marido a encontre. Dizei-lhe que
ele está comigo e então saberá que não há perigo de ser descoberta.
Alan assentiu. Não lhe desagradava a ideia de passar algum tempo com a
dama e tinha de aproveitar aquela oportunidade, pois o marido raramente a
perdia de vista.
Judith encontrava-se junto a Gavin, bebendo uma caneca de sidra fria.
Estava com calor por causa da dança e era agradável encostar-se à pedra
fria e observar os outros. Um homem aproximou-se com uma mensagem
para Gavin, que transmitiu em voz baixa, ao seu ouvido. Gavin franziu o
sobrolho.
– Más notícias? – inquiriu ela.
– Não sei. Alguém necessita ver-me.
– Não sabes quem é?
– Não. Estive a falar com um comerciante de cavalos sobre uma égua.
Talvez seja isso. – Virou-se e acariciou-lhe a face. – Ali está Stephen. Fica
com ele. Não demorarei muito.
– Se puder encontrar uma maneira de passar entre as mulheres que o
rodeiam! – riu ela.
– Faz o que te digo.
– Sim, milorde – troçou ela.
Gavin meneou a cabeça, mas sorriu; depois virou-se e saiu.
Judith foi ao encontro de Stephen, que tocava um alaúde e cantava para
um grupo de mulheres bonitas e adoráveis. Stephen dissera-lhe que
pretendia aproveitar totalmente os seus últimos dias de liberdade.
– Lady Judith?
– Sim. – Virou-se para uma criada que não reconheceu.
– Há um homem que vos espera no jardim.
– Um homem? O meu esposo?
– Não sei, milady.
Judith esboçou um sorriso. Gavin planeava, sem dúvida, alguma
travessura ao luar.
– Obrigada – agradeceu, saindo do salão para o jardim. O jardim estava
escuro e frio, com muitas sombras secretas que revelavam a presença de
vários casais entrelaçados.
– Lady Judith?
– Sim. – Não era possível ver claramente, mas tratava-se de um jovem
alto, elegante, com os olhos brilhantes, um nariz proeminente e os lábios
um pouco grossos de mais.
– Permiti que me apresente. Sou Alan Fairfax, de Lincolnshire.
Judith saudou-o com um sorriso enquanto ele lhe beijava a mão.
– Procurais alguém?
– Julguei que o meu esposo estivesse aqui.
– Não o vi.
– Então, conhecei-lo?
O jovem sorriu, mostrando dentes brancos.
– Tenho-vos observado e sei perfeitamente quem vos rodeia.
Judith fitou-o, surpreendida.
– Bonitas palavras, sir.
Alan ofereceu-lhe o braço.
– Vamos sentar-nos aqui um momento enquanto esperamos o vosso
esposo?
Ela hesitou.
– Como estais a ver, o banco encontra-se à vista. Não vos peço nada,
exceto um pouco de conversa com um cavaleiro solitário.
O banco encontrava-se diretamente sob uma tocha brilhante fixada na
parede do jardim. Judith podia ver o acompanhante com mais clareza. Tinha
uns lábios sensuais, um nariz fino e aristocrático. Os olhos eram quase
negros na escuridão. Judith sentia-se cautelosa. O último homem com quem
se havia sentado e conversado fora Walter Demari o que a levara à
calamidade.
– Pareceis-me nervosa, milady.
– Não estou habituada aos costumes da Corte. Tenho passado muito
pouco tempo na companhia de homens que não sejam meus familiares.
– Gostaríeis de sanar esta falta? – encorajou-a.
– Não tinha pensado nisso. Tenho o meu esposo e os meus cunhados.
Aparentemente, bastam-me.
– Mas aqui, na Corte, uma dama pode desfrutar de mais liberdade. É
aceitável ter muitos amigos, homens e mulheres. – Alan retirou-lhe a mão
do regaço. – Gostaria muito de ser vosso amigo.
Judith afastou a mão bruscamente, franzindo as sobrancelhas, e levantou-
se.
– Tenho de voltar para o salão e para o meu esposo.
Alan também se levantou e ficou ao lado dela.
– Não haveis por que recear. Ele está a distrair-se na companhia da vossa
amiga, Alice Chatworth.
– Não! Estais a insultar-me!
– Por favor, não era essa a minha intenção – protestou Alan,
desconcertado. – O que disse?
Então Gavin estava com Alice! Talvez tivesse tomado disposições para a
manter ocupada com outro homem no jardim. Mas ela não tinha nenhum
desejo de permanecer com um desconhecido.
– Tenho de ir – apressou-se a responder, girando sobre os calcanhares.
– Onde estiveste? – perguntou Gavin, vindo ao seu encontro antes que ela
chegasse ao salão.
– Com o meu amante – justificou, muito serena. – E tu?
Ele apertou-lhe os braços com força.
– Estás a provocar-me?
– Talvez.
– Judith!
A jovem fulminou-o com o olhar.
– Lady Alice não estava particularmente bonita esta noite? O tecido
dourado condiz com o cabelo e os olhos, não te parece?
Gavin afrouxou o aperto no braço, sorrindo ligeiramente.
– Não reparei nela. Estás com ciúmes?
– Tenho motivos?
– Não, Judith, não tens. Já te garanti que a afastei da minha vida.
Ela reagiu, trocista:
– A seguir, vais dizer-me que agora o teu amor me pertence.
– E se o disser? – sussurrou Gavin com tanta intensidade que Judith quase
sentiu medo.
O seu coração palpitou.
– Não sei se te acreditaria – disse num tom sereno. – Talvez receasse que,
ante essa declaração, ela respondesse com palavras iguais? E se ele as
recebesse com escárnio? Se nos braços de Alice, quando estivessem
deitados, ridicularizasse o que para ela era uma questão de vida ou morte?
– Vem para dentro. Já é tarde.
O que havia na voz de Gavin que a levava a desejar consolá-lo?
***
– Minha doce Judith, fica na cama – murmurou Gavin junto à sua face
sonolenta. – Precisas descansar e a água pode ter-te provocado um
resfriado.
Judith não respondeu. Saciada com o ato de amor, sentia-se sonolenta e
lânguida.
Gavin esfregou o nariz contra o seu pescoço mais uma vez e levantou-se
da cama. Vestiu-se rapidamente, sem deixar de observá-la. Quando estava
vestido, despediu-se com um sorriso, beijou-a na face e saiu do quarto.
Stephen cruzou-se com ele ao fundo da escada.
– Não posso dar um passo sem ouvir mais rumores sobre ti.
– O que se passa agora? – perguntou Gavin, desconfiado.
– Dizem que castigas a tua esposa, a atiras para as tinas de água e a exibes
diante de toda a gente.
Gavin sorriu.
– É verdade.
Stephen devolveu o sorriso do irmão.
– Agora entendemo-nos. Julguei que não soubesses como tratar uma
mulher. Ela está a dormir?
– Sim. Não descerá até amanhã. – Gavin arqueou uma sobrancelha. –
Pensei que tinhas um barril de vinho pronto.
– E tenho – sorriu Stephen. – Não queria que te sentisses diminuído por
me veres beber o dobro de ti.
– Tu! O meu irmão mais novo? – rugiu Gavin. – Não sabias que me
embebedei pela primeira vez ainda não tinhas nascido?
– Não acredito!
– É verdade. Vou contar-te a história, embora seja muito longa.
Stephen deu uma palmada nas costas do irmão.
– Dispomos de toda a noite. Só amanhã nos arrependeremos do que
fizemos.
Gavin riu entredentes.
– Vais arrepender-te com a tua feia noiva escocesa, mas eu vou colocar a
minha cabeça cansada no colo da minha bela esposa e permitir gentilmente
que ela me mime.
Stephen emitiu um gemido de dor.
– És um homem cruel!
Para os dois irmãos, aquela noite foi um momento especial de reencontro.
Celebraram a vitória sobre Demari e a boa sorte de Gavin no casamento; e
lamentaram juntos a perspetiva das bodas de Stephen.
– Vou devolvê-la ao seu povo se ela me desobedecer – garantiu Stephen.
– O vinho que bebiam era tão mau que tiveram de filtrá-lo por entre os
dentes, mas nenhum deles notou.
– Duas mulheres desobedientes! – exclamou Gavin com voz arrastada,
levantando a caneca. – Se Judith me obedecesse, pensaria que algum
demónio lhe tinha roubado a mente.
– E só te deixara o corpo? – sugeriu Stephen com luxúria.
– Vou desafiar-te para um duelo por essa sugestão – protestou Gavin,
buscando desajeitadamente a espada.
– Ela não me aceitaria – lamentou-se Stephen enquanto enchia de novo a
sua caneca.
– Achas? Ela parecia muito satisfeita com Demari. – Gavin havia passado
da felicidade à tristeza numa questão de segundos, como só um bêbado
poderia.
– Não, ela odiava o homem.
– Mas está grávida dele! – exclamou Gavin, como um rapazinho à beira
do choro.
– Não tens cérebro, irmão? A criança é tua, não de Demari.
– Não acredito em ti.
– É verdade. Ela contou-me.
Gavin, sentado na mesa sólida, ficou calado um momento. Depois, quis
levantar-se, mas tinha a cabeça às voltas.
– Tens a certeza? Por que não me contou?
– Disse que queria manter alguma coisa para si mesma.
Gavin deixou-se cair na cadeira.
– E o meu filho é «alguma coisa» e nada mais?
– Não. Não compreendes as mulheres.
– E tu sim? – indignou-se Gavin.
Stephen voltou a encher a caneca do irmão.
– Não mais do que tu, sem dúvida. Talvez menos, se isso for possível.
Raine poderia explicar-te melhor do que eu o que Judith quis expressar. Ela
disse que já possuías as terras Revedoune e Alice, por isso não queria dar-te
mais.
O rosto de Gavin ensombrou-se quando se levantou. De repente,
acalmou-se e voltou a sentar-se, com um leve sorriso no rosto.
– Ela é uma bruxa, não é? Rebola as ancas diante de mim até me
enlouquecer de desejo. Amaldiçoa-me quando troco umas poucas palavras
com outra mulher.
– Outra mulher que tu mesmo admitiste amar.
Gavin acenou com a mão, como se isso não importasse.
– Mas ela tem a chave que abre todos os segredos e nos liberta da tensão
que existe entre nós.
– Não vejo nenhuma objeção da tua parte – observou Stephen.
Gavin riu entredentes.
– Não, nenhuma da minha parte, mas tenho sido relutante em... impor-me.
Supus que Demari significava algo para ela.
– Só há um meio para salvar o teu pescoço ingrato.
Gavin sorriu.
– Passa-me esse vinho. Esta noite temos mais para celebrar, além da tua
princesa escocesa.
Stephen pegou na caneca antes que Gavin pudesse tocar-lhe.
– És um irmão cruel.
– Aprendi com a minha esposa. – Gavin sorriu e voltou a encher a caneca.
Capítulo Vinte e Sete
– Não posso permitir isto! – Disse Ella, com as costas muito direitas. Estava
de pé ao lado de Alice numa pequena câmara dividida do castelo.
– Desde quando permites ou não o que desejo? – ripostou Alice
desdenhosa. – A minha vida é coisa minha, e a ti só te cabe ajudares-me a
vestir.
– Não é certo que vos lanceis nos braços desse homem. Não há um dia
em que alguém não vos peça em matrimónio. Não podeis contentar-vos
com um deles?
Alice voltou-se para a criada.
– Para que ela fique com Gavin? Antes morrer.
– Na verdade, desejai-o para vós? – insistiu Ella.
– O que é que isso interessa? – reagiu Alice enquanto ajustava o véu e a
tiara. – É meu e continuará a ser meu.
A escada estava escura quando saiu do quarto. Alice não tardara a
inteirar-se de que a Corte do rei Henrique era um lugar fácil para descobrir
o que queria saber. Havia muitos que estavam dispostos, por um preço, a
fazer qualquer coisa que ela pedisse. Os seus espiões tinham-na informado
de que Gavin estava lá em baixo, na companhia do irmão, longe da esposa.
Alice sabia o quão confuso um homem poderia ficar com a bebida e
planeava aproveitar a oportunidade em seu benefício. Com a mente toldada
pela bebida, ele não seria capaz de resistir-lhe.
Praguejou quando, ao chegar ao grande salão, não havia sinal de Gavin
nem do irmão.
– Onde está Lorde Gavin? – perguntou Alice duramente a uma serva que
bocejava. O chão estava a abarrotar de servos que dormiam em colchões de
palha.
– Saiu. É tudo o que sei.
Alice agarrou o braço da jovem.
– Para onde foi?
– Não faço ideia.
Alice tirou uma moeda de ouro do bolso e viu os olhos da rapariga
brilharem.
– De que serias capaz por uma como esta?
A jovem despertou completamente.
– De qualquer coisa.
– Bom – sorriu Alice. – Então escuta-me com atenção.
***
Joan estava sentada perto da sua ama adormecida. A cor de Judith havia
desaparecido e tinha o cabelo húmido de suor.
– Em breve estará bem – respondeu Joan à pergunta não formulada de
Gavin.
– Não estou assim tão seguro – respondeu ele, tocando na face quente da
sua esposa.
– Foi uma queda terrível a que ela deu – observou Joan, olhando
fixamente para Gavin.
Gavin limitou-se a assentir, mais preocupado com Judith do que com
qualquer conversa.
– O que pensais fazer com ela? – continuou Joan.
– O que posso fazer? Só espero vê-la bem quanto antes.
Joan acenou com a mão de forma depreciativa.
– Não. Refiro-me a Lady Alice. Que castigo planeais aplicar-lhe pela
patifaria que ela fez? – bufou Joan. – Uma patifaria que poderia ter custado
a vida a milady!
– Não digas isso – rugiu Gavin.
– Volto a perguntar-vos: em que castigo haveis pensado?
– Cala-te, mulher! Não sei de nenhuma patifaria.
– Não? Então, nesse caso direi o que devo dizer. Há uma serva na cozinha
que chora rios de lágrimas. Tem uma moeda de ouro e diz que Lady Alice
lha deu para levar a minha ama até onde estáveis na cama com essa
meretriz. A jovem disse que teria feito qualquer coisa pelo dinheiro, mas
não havia pensado em assassinato. Considera-se culpada pela morte do bebé
e pela possível morte de Lady Judith. Teme ir para o inferno pelo que fez.
Gavin compreendeu que era hora de encarar a verdade.
– Gostaria de ver essa mulher e de falar com ela – disse ele em voz baixa.
Joan levantou-se.
– Vou buscar a rapariga se conseguir encontrá-la.
Gavin permaneceu sentado junto a Judith, observando-a. Notou que
estava a recuperar a cor natural. Algum tempo mais tarde, Joan voltou,
puxando uma serva assustada e encolhida atrás dela.
– É esta a porca! – exclamou, dando um forte empurrão à jovem. – Olha
para a minha pobre ama, que está ali estendida. Mataste um bebé e é
possível que ela também morra. Uma dama que nunca fez mal a ninguém.
Sabes que me ensinou muitas vezes a não maltratar a escória como tu?
– Silêncio! – ordenou Gavin. – A serva estava, obviamente, com muito
medo. – Conta-me o que sabes sobre o acidente da minha esposa.
– Acidente! – repetiu Joan com uma gargalhada, mas calou-se ante o
olhar de Gavin.
A rapariga, varrendo furtivamente com o olhar os cantos do quarto,
narrou a sua história em frases desconexas e hesitantes. Por fim, lançou-se
aos pés de Gavin.
– Por favor, milorde, salve-me, Lady Alice vai matar-me!
O rosto de Gavin não mostrou nenhuma piedade.
– Pedes-me ajuda? Que ajuda prestaste à minha esposa ou ao nosso filho?
Queres que te leve onde enterraram a criança?
– Não. – A serva chorava desesperadamente, tocando com a cabeça no
chão.
– Levanta-te! – ordenou Joan. – Sujas o chão deste quarto!
– Leva-a daqui! – mandou Gavin. – Não suporto vê-la.
Joan agarrou a criada pelos cabelos e puxou-a violentamente para cima,
arrastando-a ao pontapé até à porta.
– Joan – interferiu Gavin. – Leva-a a John Bassett e diz-lhe que a
mantenha segura.
– Segura? – explodiu Joan e depois o olhar endureceu. – Sim, sir – anuiu
com uma voz falsamente submissa. Fechou a porta, torcendo o braço da
rapariga atrás das suas costas. – Mata o bebé da minha ama e devo protegê-
la! – murmurou. – Não. Vou encarregar-me de que receba o que merece.
No topo da escada em espiral, a mão de Joan apertou com mais força o
braço da serva aterrorizada.
– Basta! Fica quieta! – grunhiu John Bassett que nunca se afastara muito
da porta do quarto de Judith nos últimos dias. – É esta a mulher que Lady
Alice subornou? – Não havia uma só pessoa no castelo que ignorasse a
história da traição de Alice.
– Oh, por favor, sir – rogou a jovem, caindo de joelhos. – Não deixeis que
me matem. Não voltarei a fazer nada assim.
Joan tentou falar, mas John cravou-lhe um olhar irritado e levantou a
criada. Joan permaneceu de pé por vários minutos, seguindo-os com o olhar
enquanto se afastavam.
– Que pena que ele a tenha levado. Poderias ter-me poupado o trabalho –
pronunciou uma voz calma atrás dela.
Joan girou para encarar Alice Chatworth.
– Preferia ver-vos a vós ao fundo da escada – disse Joan com desprezo.
Os olhos azuis de Alice emitiram chispas.
– Pagarás isto com a vida!
– Aqui? Agora? – espicaçou Joan. – Não. Não é esse o vosso modo de
agir. Contratais gente para fazer o trabalho sujo no vosso lugar e depois
fingis ser uma dama inocente.
Nunca ninguém se atrevera a dizer tais coisas a Alice!
– Então? Por que hesitais? – provocou Joan.
Alice sentiu-se tentada a dar um forte empurrão à jovem, mas Joan
parecia forte e Alice não podia arriscar-se a perder a luta.
– Depois do que me disseste, tem cuidado com a tua vida – advertiu
Alice.
– Cuidarei das minhas costas, porque pessoas como vós atacam por aí. –
Joan fitou a mulher e depois começou a rir. Não parou enquanto subiu as
escadas até chegar ao quarto da ama.
A parteira e Gavin zelavam Judith.
– A febre começou – anunciou a anciã em voz baixa. – Agora as orações
ajudarão tanto como qualquer outra coisa.
Capítulo Vinte e Oito
Despedir-se dos seus conhecidos na Corte não foi fácil para Judith. A
rainha, em especial, tornara-se sua amiga. No momento de fazer uma
reverência diante do rei, a jovem sentiu-se corar. Lamentava o espalhafato
por ter pedido o divórcio, mas, se não tivesse percebido o seu erro, ela e
Gavin não estariam juntos agora. Ao levantar a cabeça para o rei, sorriu.
Saber que Gavin a amava e que ela o amava e que isso valia todo o
embaraço e provocação.
– Sentiremos a falta do vosso belo rosto – sorriu o rei Henrique. – Espero
que volteis a visitar-nos em breve.
Gavin colocou um braço possessivamente sobre os ombros da esposa.
– É o belo rosto dela ou a diversão que proporcionou?
– Gavin! – exclamou Judith, horrorizada.
O rei atirou a cabeça para trás e soltou enormes gargalhadas.
– É verdade, Gavin – disse depois de algum tempo. – Juro que não me
divertia assim há tanto tempo. Tenho a certeza de que não haverá
casamentos tão fascinantes como este.
Gavin devolveu o sorriso do rei.
– Então podeis observar o de Stephen. Acabei de ouvir que a sua noiva
escocesa o ameaçou com uma adaga na noite de núpcias.
– Feriu-o? – quis saber o rei, preocupado.
– Não – foi a sorridente resposta –, mas imagino que também não pôde
dominar a personalidade dele. Talvez a mulher tivesse motivos para se
encolerizar. Afinal, Stephen chegou às próprias bodas com três dias de
atraso.
O rei Henrique sacudiu a cabeça, incrédulo.
– Não invejo o homem. – Voltou a sorrir. – Pelo menos tudo está bem
com um dos irmãos Montgomery.
– Sim – reconheceu Gavin, acariciando o braço de Judith. – Na verdade,
está tudo bem.
Terminaram as despedidas e abandonaram o grande salão. Tinham levado
a maior parte do dia a tratar da bagagem para iniciar a viagem de volta. Na
realidade, deveriam ter esperado até ao dia seguinte, mas toda a gente
parecia ter tanta pressa de partir como Judith e Gavin. Contando o tempo
passado no castelo de Demari e a estadia na Corte, levavam muitas semanas
de ausência.
Quando montaram nos cavalos e se despediram das várias pessoas que se
reuniram para saudá-los, apenas um observava com preocupação. Alan
Fairfax não conseguira ficar um momento a sós com Judith, como esperava.
De manhã cedo, Alice Chatworth havia abandonado o castelo, com os seus
servos e pertences. Todos na Corte pareciam acreditar que a mulher aceitara
a derrota quando Judith e Gavin se reconciliaram. Mas não era essa a
opinião de Alan. Sentia que conhecia muito bem Alice. Ela tinha sido
humilhada e procuraria vingança.
Quando o pátio ficou limpo e o grupo Montgomery estava fora das
muralhas do castelo, Alan montou no seu cavalo e seguiu-os a uma discreta
distância. Não fazia mal ser cauteloso, pelo menos até que Lady Judith
estivesse segura dentro das muralhas do seu próprio castelo.
Alan sorriu e flexionou o queixo dorido, onde Gavin o havia atingido no
dia anterior. Não havia expressado abertamente os seus medos de Alice,
pois sabia que Lorde Gavin acreditava que ele tinha uma preocupação não
cavalheiresca pela sua esposa. «Talvez fosse verdade», pensou Alan.
«Talvez no início.» Finalmente, quando a conheceu melhor, começou a
olhar para ela como se de uma irmã mais nova se tratasse.
Suspirou e quase riu em voz alta. Pelo menos podia reconhecê-lo: pela
maneira como ela olhava para Lorde Gavin, não havia esperança para mais
nada.
Capítulo Trinta