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Ficha Técnica

Título: Promessa de Veludo


Título original: Velvet Promisse
Autor: Jude Deveraux
Tradução: Maria Ponce de Leão
Revisão: Domingas Cruz
Capa: Alexandra Costa/Oficina do Livro, Lda.
ISBN:

QUINTA ESSÊNCIA
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© Jude Gilliam White, 1981


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Esta edição segue a grafia do novo acordo ortográfico.


Jude Deveraux

PROMESSA
DE
VELUDO
Tradução
Maria Ponce de Leão
Para Jennifer

por limar as arestas e me ajudar neste trabalho


Prólogo

Judith Revedoune olhou para o pai por cima do livro de contabilidade. A


sua mãe, Helen, estava ao lado dela. Judith não sentia medo do homem,
apesar de tudo o que ele tinha feito ao longo dos anos para a levar a receá-
lo. Os seus olhos estavam vermelhos com círculos profundos por baixo.
Sabia que o seu rosto devastado se devia à dor pela perda dos seus amados
filhos, dois homens cruéis e ignorantes que eram réplicas exatas do pai.
Judith analisou Robert Revedoune com uma certa curiosidade. Por regra,
ele não se importava com a sua única filha. Não via utilidade nas mulheres
desde que a sua primeira esposa morrera e a segunda, uma mulher
assustadiça, apenas lhe tinha dado uma menina.
– O que deseja? – perguntou Judith calmamente.
Robert olhou para a filha como se a visse pela primeira vez. Na verdade,
a jovem havia sido mantida escondida a maior parte da sua vida, enterrada
com a mãe, nos seus próprios aposentos, por entre livros e livros de
contabilidade. Notou com satisfação que a filha se parecia com Helen
naquela idade. Judith tinha aqueles estranhos olhos dourados que alguns
homens adoravam, mas que ele achava inquietantes. O cabelo era de um
castanho-avermelhado. Tinha uma testa larga e forte, bem como o queixo, o
nariz reto, e a boca de lábios cheios. «Sim, servirá», pensou. Poderia usar a
sua beleza em vantagem própria.
– Só me restas tu – disse Robert, com a voz pesada de desgosto. – Vais
casar e dar-me netos.
Judith fitou-o em estado de choque. Durante toda a sua vida, Helen
criara-a para a vida num convento. Não se tratara de uma piedosa educação
de orações e cânticos, mas de ensinamentos e práticas, que levavam à única
carreira aberta a uma nobre. Poderia tornar-se abadessa antes de completar
trinta anos. Uma abadessa era tão diferente da mulher comum quanto um rei
de um servo. Uma abadessa governava terras, propriedades, aldeias,
cavaleiros; comprava e vendia de acordo com o seu próprio critério; era
procurada por homens e mulheres devido à sua sabedoria. Uma abadessa
governava e não recebia ordens de ninguém.
Judith poderia fazer a contabilidade para uma grande propriedade,
poderia fazer julgamentos justos em disputas e sabia quanto trigo calcular
para alimentar determinada quantidade de pessoas. Sabia ler e escrever,
organizar uma receção para um rei, administrar um hospital; tudo o que
precisaria saber tinha-lhe sido ensinado.
Agora esperava-se que esquecesse tudo e se tornasse a serva de algum
homem?
– Não o farei. – A voz era baixa, mas as poucas palavras não poderiam ter
sido mais altas se tivessem sido gritadas do telhado de ardósia.
Por um momento, Robert Revedoune ficou perplexo. Nenhuma mulher
jamais o desafiara com um olhar tão firme. Na verdade, se não soubesse que
ela era uma mulher, a sua expressão teria sido confundida com a de um
homem. Quando recuperou do choque, esbofeteou Judith, atirando-a para o
outro lado do pequeno quarto. Mesmo deitada no chão, com um fio de
sangue a escorrer pelo canto da boca, a filha fitou-o sem o mínimo
resquício de medo nos olhos, apenas desdém e um toque de ódio. Faltou-lhe
momentaneamente o fôlego com o que viu. De certo modo, a jovem quase o
assustou.
Helen correu para junto da filha, sem perda de tempo. Agachou-se ao
lado dela e puxou do punhal que trazia de lado.
Olhando para a cena primitiva, o nervosismo momentâneo de Robert
abandonou-o. A esposa era uma mulher que ele podia entender. Apesar de
toda a aparência exterior de um animal enraivecido, ele detetou fraqueza no
fundo dos seus olhos. Em segundos, agarrou-lhe o braço e a faca voou pela
divisão. Sorriu à filha, enquanto segurava o antebraço da mulher nas suas
poderosas mãos e quebrava os ossos como se quebrasse um galho.
Helen caiu aos seus pés, sem dizer uma palavra.
Robert olhou para a filha, onde ela ainda se mantinha estendida, incapaz
de compreender a sua brutalidade.
– Agora qual é a tua resposta, rapariga? Casas-te ou não?
Judith esboçou um leve aceno de cabeça, antes de se virar para ajudar a
mãe inconsciente.
Capítulo Um

A lua lançava longas sombras sobre a velha torre de pedra que tinha uma
altura de três andares e parecia sombria, cansada da muralha arruinada e
desmoronada que a rodeava. A torre havia sido construída duzentos anos
antes dessa noite húmida de abril de 1501. Agora vivia-se uma época de paz
em que já não eram necessárias fortalezas de pedra; mas este não era o lar
de um homem diligente. O seu bisavô tinha vivido na torre quando tais
fortificações eram necessárias e Nicolas Valence pensava, se ficasse sóbrio
bastante para pensar, que a torre era suficiente para ele e para as gerações
futuras.
Um portão maciço dava para as paredes desintegradas e para a velha
torre. Aqui um guarda solitário dormia com o braço em torno de um odre de
vinho meio vazio. Dentro da torre, o piso térreo estava cheio de cães e
cavaleiros adormecidos. As suas armaduras encontravam-se encostadas às
paredes, numa pilha enferrujada e confusa, emaranhada com os juncos sujos
que cobriam as tábuas de carvalho.
Esta era a propriedade Valence, um castelo pobre, ultrapassado,
antiquado, que era objeto de piadas em toda a Inglaterra. Dizia-se que, se as
fortificações fossem tão fortes como o vinho, Nicolas Valence poderia deter
toda a Inglaterra. Mas ninguém atacava. Não havia razão para atacar. Há
muitos anos, a maior parte da terra de Nicolas fora-lhe tirada por cavaleiros
jovens, ávidos e sem dinheiro, que tinham acabado de ganhar as suas
esporas. Tudo o que restava era a antiga torre, que, na opinião de todos,
deveria ter sido demolida, e alguns campos periféricos que eram o sustento
da família Valence.
Havia uma luz na janela do último andar. No interior, o quarto estava frio
e húmido – uma humidade que nunca saía das paredes mesmo no tempo
mais seco do verão. O musgo crescia entre as fendas da pedra e pequenas
coisas rastejantes moviam-se constantemente pelo chão. Mas neste quarto
estava toda a riqueza do castelo, sentada diante de um espelho.
Alice Valence inclinou-se para o espelho e aplicou um escurecedor nos
cílios curtos e pálidos. O cosmético fora importado de França. Alice
recostou-se e analisou-se criticamente. Era objetiva sobre a sua aparência,
sabia o que possuía e como usá-lo a seu favor.
Refletido no espelho viu um pequeno rosto oval, com feições delicadas,
uma boca parecida com um botão de rosa, um nariz esguio e reto. Os olhos
rasgados em formato de amêndoa, de um azul brilhante, eram o seu traço
mais marcante. Tinha o cabelo loiro, que enxaguava permanentemente com
sumo de limão e vinagre. A sua criada, Ella, puxou uma madeixa amarela-
clara sobre a testa da ama e depois colocou um capuz francês1 na cabeça de
Alice. O capuz era de um brocado pesado, orlado por uma ampla franja de
veludo alaranjado.
Alice abriu a boca pequena para analisar uma vez mais os dentes. Eram a
sua pior característica, tortos e um pouco salientes. Ao longo dos anos,
aprendera a mantê-los escondidos, a sorrir com os lábios fechados, a falar
baixinho, a cabeça ligeiramente baixa. Esse maneirismo era uma vantagem,
pois intrigava os homens. Dava-lhes a ideia de que não tinha a noção de
como era bonita. Eles imaginavam despertar essa tímida flor para todas as
delícias do mundo.
Alice levantou-se e alisou o vestido por cima do corpo magro. Tinha
poucas curvas. Os seios pequenos repousavam sobre uma armação reta sem
quadris, sem entalhes na cintura. Ela gostava do seu corpo. Parecia esguio e
elegante em comparação com o das outras mulheres.
As suas roupas eram exuberantes, parecendo deslocadas no quarto
sombrio. Sobre o corpo usava uma camisa de linho, tão fina que era quase
gaze. Por cima, usava um vestido luxuriante do mesmo brocado pesado do
capuz. Tinha um decote profundo e quadrado e o corpete encaixava-se
perfeitamente no corpo esguio. A saia era em formato de sino, suave e
graciosa. O brocado azul era orlado com pele branca de coelho, bem como
os amplos e largos punhos das mangas pendentes. A rodear-lhe a cintura
tinha um cinto de couro azul, enfeitado com grandes pedras preciosas,
esmeraldas e rubis.
Alice continuou a analisar-se enquanto Ella colocava sobre os ombros da
patroa um manto de brocado forrado de pele de coelho.
– Milady, não pode encontrar-se com ele. Não quando vai...
– Casar com outro? – completou Alice enquanto apertava o pesado manto
sobre os ombros. Virou-se para se contemplar, satisfeita com o resultado. A
combinação do laranja com o azul era impressionante. Não passaria
despercebida com aquela roupa. – O que tem o meu casamento a ver com o
que faço agora?
– Sabe que é um pecado. Não pode encontrar-se com um homem que não
é seu marido.
Alice soltou uma risadinha enquanto ajustava as dobras do pesado manto.
– Queres que vá ao encontro do meu pretendido? O querido Edmund? –
perguntou com grande sarcasmo. Antes que Ella pudesse responder,
continuou: – Não precisas ir comigo. Conheço o caminho e, para o que
Gavin e eu fazemos, não precisamos de mais ninguém.
Ella estava com Alice há demasiado tempo para ficar chocada. Alice fazia
o que queria, quando queria.
– Não, eu irei. Mas só para me certificar de que não sofra qualquer dano.
Alice ignorou a mulher idosa como o fizera toda a sua vida. Tirou uma
vela do pesado castiçal em metal ao lado da cama e dirigiu-se à porta de
carvalho reforçada com tiras de ferro.
– Silêncio, então – ordenou por cima do ombro enquanto voltava a ajustar
a porta nas dobradiças bem lubrificadas. Pegou no manto de brocado na
mão e atirou-o sobre o braço. Não podia deixar de pensar que, em poucas
semanas, deixaria aquela decrépita fortaleza e passaria a viver num castelo
– a mansão Chatworth, uma construção de pedra e madeira rodeada por
altas muralhas protetoras.
– Quieta! – ordenou a Ella enquanto colocava o braço sobre o estômago
mole da mulher por forma a que ambas ficassem coladas contra a parede
húmida da escada escura. Um dos guardas do pai passou
despreocupadamente ao fundo da escada, fez as suas necessidades, voltou a
apertar as calças e regressou ao catre de palha. Alice apagou rapidamente a
vela e esperou que o homem não ouvisse o suspiro de Ella, enquanto a
escuridão do velho castelo envolvia as duas.
– Anda – sussurrou Alice, sem ter tempo nem vontade de ouvir os
protestos de Ella.
A noite estava clara e fresca e, como ela sabia, dois cavalos esperavam
por ela e pela sua criada. Alice sorriu quando se atirou para a sela do
garanhão escuro. Mais tarde, recompensaria o rapaz do estábulo que
cuidava tão bem e adequadamente da sua patroa.
– Milady! – gemeu Ella desesperada.
Contudo, Alice não se virou porque sabia que Ella era gorda de mais para
montar o cavalo sozinha. Alice não desperdiçaria um único dos seus
preciosos minutos com uma mulher velha e inútil – não quando Gavin a
esperava.
A porta na muralha, que ficava de frente para o rio, fora deixada aberta
para ela. Tinha chovido mais cedo e o chão estava molhado, mas havia um
toque de primavera no ar. Com ela veio uma sensação de promessa – e de
paixão.
Quando estava certa de que os cascos do cavalo não seriam ouvidos,
inclinou-se para a frente e sussurrou-lhe:
– Vá, meu demónio negro. Leva-me ao meu amante. – O garanhão
empinou-se para mostrar que compreendia e depois esticou as patas
dianteiras longas e direitas. Conhecia o caminho e partiu a uma velocidade
tremenda.
Alice balançou a cabeça, deixando que o ar soprasse no seu rosto
enquanto se entregava ao poder e à força do magnífico animal. Gavin.
Gavin. Gavin, pareciam dizer os cascos ao ressoar na estrada molhada. Em
muitos aspetos, os músculos de um cavalo entre as coxas lembravam-lhe
Gavin. As mãos fortes no seu corpo, a força dele que a enfraquecia de
desejo. O seu rosto, o luar a refulgir nas maçãs do rosto, os olhos brilhantes
mesmo na noite mais escura.
– Ah, meu doce, agora tem cuidado – disse Alice suavemente ao mesmo
tempo que puxava as rédeas. Agora que estava a aproximar-se do local do
encontro, começou a lembrar-se do que tão cuidadosamente tentara
esquecer. Desta vez, Gavin teria ouvido falar do seu casamento iminente e
estaria zangado com ela.
Virou o rosto para apanhar o vento diretamente. Pestanejou rapidamente
até as lágrimas começarem a formar-se. Lágrimas ajudariam. Gavin sempre
odiara lágrimas, então ela usara-as cuidadosamente nos últimos dois anos.
Só quando queria desesperadamente algo recorria ao truque; assim não se
desgastou por uso excessivo.
Alice suspirou. Por que não podia falar honestamente com Gavin? Por
que razão os homens deviam ser sempre tratados tão gentilmente? Ele
amava-a, portanto, devia amar o que ela fizesse, por mais desagradável que
fosse para ele. Era uma esperança inútil e ela sabia disso. Se contasse a
verdade a Gavin, iria perdê-lo. Então, onde encontraria outro amante?
A recordação do seu corpo, duro e exigente, levou Alice a enterrar os
calcanhares dos sapatos macios nos flancos do cavalo. Oh, sim, usaria
lágrimas ou qualquer outra coisa necessária para manter Gavin
Montgomery, um cavaleiro de renome, um lutador sem igual... e dela, todo
dela!
De súbito, quase podia ouvir as perguntas aguçadas de Ella. Se Alice
desejava tanto Gavin, por que estava prometida a Edmund Chatworth, um
homem com a pele da cor da barriga de um peixe, mãos gordas e macias e
uma boca feia e pequena, que formava um círculo perfeito?
Porque Edmund era um conde. Possuía terras de um extremo ao outro de
Inglaterra, propriedades na Irlanda, no País de Gales, na Escócia e, segundo
constava, também na França. Claro que Alice não podia saber exatamente a
extensão da sua riqueza, mas viria a saber. Oh, sim, quando fosse sua
esposa, saberia. A mente de Edmund era tão fraca quanto o seu corpo e não
demoraria muito para que o controlasse assim como às suas propriedades.
Iria mantê-lo feliz com algumas prostitutas e cuidaria pessoalmente das
propriedades, livre das exigências e ordens irritantes de qualquer homem.
Alice tinha uma paixão pelo belo Gavin, mas isso não obscurecia o seu
bom senso. Quem era Gavin Montgomery? Um barão de pouca importância
– mais pobre do que rico. Um guerreiro brilhante, um homem forte e
bonito, mas não tinha riqueza. Não comparado com Edmund. O que seria a
vida com Gavin? As noites seriam noites de paixão e de êxtase, mas Alice
sabia muito bem que nenhuma mulher jamais controlaria Gavin. Se casasse
com Gavin, ele esperaria que ela ficasse em casa e fizesse o trabalho das
mulheres. Não, nenhuma mulher alguma vez controlaria Gavin
Montgomery. Seria um marido tão exigente como era no seu papel como
amante.
Instigou o cavalo para a frente. Ela queria tudo: a fortuna e a posição
social de Edmund e a paixão de Gavin. Sorriu ao endireitar os alfinetes de
ouro, um em cada ombro, que seguravam o vistoso manto no lugar. Ele
amava-a – Alice estava confiante – e não perderia o seu amor. Como
poderia? Que mulher se lhe comparava em beleza?
Alice começou a pestanejar rapidamente. Algumas lágrimas e ele
entenderia que ela estava a ser forçada a casar com Edmund. Gavin era um
homem de honra. Entenderia que ela devia respeitar o acordo do seu pai
com Edmund. Sim, se fosse cautelosa, teria os dois; Gavin para as noites e a
riqueza de Edmund para o dia.
Gavin esperava em silêncio. A única parte dele que se movia era um
músculo na mandíbula, contraindo-se e descontraindo-se. O luar prateado
brilhava nas maçãs do rosto até parecerem lâminas de punhais. A boca
firme e reta formava uma linha severa acima de uma covinha no queixo. Os
olhos cinzentos estavam negros de raiva, quase tão negros quanto os
cabelos que se encaracolavam e se escapavam pela gola do casaco de lã.
Somente longos anos de árduo treino como cavaleiro lhe permitiam um
rígido controlo externo. Por dentro estava a ferver. Nessa manhã tinha
ouvido que a mulher que amava se casaria com outro, iria para a cama com
outro homem, e os seus filhos pertencer-lhe-iam. O seu primeiro impulso
fora cavalgar diretamente para a fortaleza de Valence e exigir que ela
negasse o que ele ouvira. Mas o seu orgulho deteve-o. Este encontro com
ela havia sido combinado há semanas, então obrigou-se a esperar até que
pudesse vê-la novamente, voltar a abraçá-la e ouvi-la dizer-lhe, dos seus
próprios lábios doces, o que queria ouvir. Ela não se casaria com ninguém
além dele. Disso tinha a certeza.
Perscrutou o vazio da noite, atento ao som de cascos de cavalo; mas o
campo estava silencioso, uma massa de escuridão quebrada apenas pelas
sombras mais escuras. Um cão esquivou-se, furtivo, de uma árvore a outra,
olhando para Gavin, desconfiado do homem silencioso e imóvel. A noite
trouxe de volta memórias da primeira vez que ele e Alice se tinham
encontrado nessa clareira, um lugar abrigado do vento, aberto ao céu.
Durante o dia, um homem poderia passar a cavalo por ela e não reparar,
mas à noite as sombras transformavam-na numa caixa de veludo negro,
apenas com tamanho bastante para guardar uma joia.
Gavin conhecera Alice no casamento de uma das suas irmãs. Embora os
Montgomery e os Valence fossem vizinhos, raramente se viam. O pai de
Alice era um bêbado. Pouco se importava com as suas propriedades; viveu
– e forçou a mulher e as cinco filhas a viver – tão miseravelmente como
alguns servos. Foi por um sentido de dever que Gavin assistiu a um
casamento lá, como representante da sua família, dado que, na verdade, os
seus três irmãos se recusaram a fazê-lo.
Tinha sido nesse monte de esterco e de negligência que Gavin viu Alice –
a sua bela e inocente Alice. No começo não podia acreditar que ela
pertencia a essa família de filhas gordas e feias. As suas roupas eram dos
mais ricos tecidos, os seus modos delicados e refinados e a sua beleza...
Sentara-se a olhá-la, como vários dos outros jovens fizeram. Ela era
perfeita; cabelos loiros, olhos azuis, uma boca pequena que ele ansiava por
fazer sorrir a qualquer custo. Naquele momento, antes mesmo de lhe falar,
apaixonou-se por ela. Mais tarde, teve de abrir caminho à força entre os
homens para chegar ao lado dela. A sua violência pareceu chocar Alice e os
seus olhos baixos, a voz suave, tinham-no hipnotizado ainda mais. Ela era
tão tímida, tão reticente que mal conseguia responder às suas perguntas.
Alice era tudo e muito mais do que podia esperar, virginal e, no entanto,
feminina.
Naquela noite, pediu-lhe que se casasse com ele. Ela brindou-o com uma
expressão assustada e por um momento os olhos assemelharam-se a safiras.
Depois, baixou a cabeça e murmurou algo sobre a necessidade de perguntar
ao pai.
No dia seguinte, Gavin apareceu diante do bêbado para pedir a mão de
Alice, mas o homem disse-lhe algumas idiotices do género de que a mãe
precisava da jovem. As suas palavras soaram estranhamente hesitantes,
como se repetisse um discurso aprendido de memória. Nada do que Gavin
lhe disse fez com que Valence mudasse de ideia.
Gavin saiu desgostoso, enraivecido por haver sido impedido de ter a
mulher que queria. Não tinha cavalgado até muito longe quando a viu. O
seu cabelo estava descoberto, brilhante à luz do entardecer, e o rico veludo
azul do seu vestido refletia a cor dos seus olhos. Estava ansiosa por ouvir
qual fora a resposta do pai. Gavin comunicou-lha, furioso, e então viu as
suas lágrimas. Alice tentou escondê-las, mas ele podia senti-las bem como
vê-las. Em segundos, desmontou e puxou-a do seu cavalo. Não se lembrava
de como aquilo acontecera. Um minuto depois, estava a confortá-la. Logo a
seguir, estavam aqui, neste lugar secreto, as roupas removidas e envoltos
nos espasmos da paixão. Não sabia se deveria desculpar-se ou alegrar-se. A
doce Alice não era uma serva que se atirasse ao feno; era uma dama, que
um dia seria sua mulher. Além disso, uma virgem. Disso tinha a certeza
quando viu duas gotas de sangue nas suas coxas esguias.
Dois anos! Isso fora há dois anos. Se ele não tivesse passado a maior
parte do tempo na Escócia, a patrulhar as fronteiras, teria exigido que o pai
dela lhe desse a mão de Alice em casamento. Agora que tinha voltado,
planeava fazer exatamente isso. Na verdade, se necessário, iria ao rei com a
sua súplica, Valence não era razoável. Alice contou a Gavin as conversas
com o pai, implorando e suplicando por ele, mas sem sucesso. Uma vez,
mostrou-lhe uma contusão que recebeu pela sua insistência a favor de
Gavin. O jovem ficara louco de raiva. Desembainhara a espada e teria ido
atrás do homem se Alice não se tivesse agarrado a ele, de lágrimas nos
olhos, implorando-lhe que não fizesse mal ao pai. Não poderia recusar nada
ante a visão das suas lágrimas, portanto, embainhou a espada e prometeu
que iria esperar. Alice garantiu-lhe que o pai acabaria por ver a razão.
Assim, continuaram a encontrar-se secretamente como crianças
desobedientes – uma situação que desagradava a Gavin. No entanto, Alice
implorou-lhe que não falasse com o seu pai, deixando que fosse ela a
persuadi-lo.
Gavin mudou de posição e escutou novamente. Ainda reinava apenas o
silêncio. Nessa manhã ouvira dizer que Alice casaria com Edmund
Chatworth, aquele pedaço de lama. Chatworth pagava grandes somas ao rei
para que não fosse chamado a lutar em qualquer guerra. «Ele não era um
homem», pensou Gavin. Chatworth não merecia o título de conde. Pensar
em Alice casada com alguém como ele ultrapassava a sua imaginação.
De repente, todos os sentidos de Gavin ficaram em alerta ao ouvir os sons
abafados de cascos do cavalo no solo húmido. Ficou instantaneamente ao
lado de Alice que caiu nos seus braços.
– Gavin – sussurrou ela –, meu doce Gavin. – Agarrou-se a ele, quase
como se estivesse aterrorizada.
O jovem tentou afastá-la para que pudesse ver o seu rosto, mas ela
prendeu-o com um tal desespero que não se atreveu a fazê-lo. Sentiu a
humidade das suas lágrimas no pescoço e toda a raiva que o invadira
durante o dia abandonou-o. Abraçou-a junto ao corpo, murmurando
palavras carinhosas junto à sua pequena orelha, acariciando-lhe os cabelos.
– Diz-me, o que aconteceu? O que te magoou tanto?
Ela afastou-se para poder fitá-lo, segura de que a noite não poderia trair a
ausência de vermelhidão nos seus olhos.
– É terrível – sussurrou Alice com voz rouca. – É de mais para suportar.
Gavin ficou um pouco tenso quando se lembrou do que tinha ouvido
sobre o seu casamento.
– É verdade, então?
Ela fungou delicadamente, tocou com um dedo no canto do olho e fitou-o
através dos cílios.
– O meu pai não pode ser persuadido. Cheguei a recusar comida para
fazer com que mudasse de ideia, mas ele mandou uma das mulheres… Não,
não vou contar-te o que elas me fizeram. Ele disse que... Oh, Gavin, não
posso repetir as coisas que me disse. – Sentiu que o corpo de Gavin
enrijecia.
– Irei ter com ele e...
– Não! – exclamou Alice quase freneticamente, apertando entre as mãos
os seus braços musculosos. – Não podes! Quero dizer... – Baixou os braços
e os cílios. – Quero dizer, já está feito. O noivado foi assinado e
testemunhado. Não há nada que alguém possa fazer agora. Se o meu pai
cancelasse, ainda teria de pagar o meu dote a Chatworth.
– Eu pagarei – disse Gavin com dureza.
Alice deitou-lhe um olhar de surpresa; depois, mais lágrimas juntaram-se
nos seus olhos.
– Não importaria. O meu pai não me permitirá casar contigo. Sabes isso.
Oh, Gavin, o que devo fazer? Serei forçada a casar com um homem que não
amo. Olhou para ele com tanto desespero que Gavin a apertou contra si.
– Como posso suportar perder-te, meu amor? – sussurrou contra o seu
pescoço. – És a minha carne e o meu sangue, sol e noite. Eu… eu morrerei
se te perder.
– Não digas isso! Como poderás perder-me? Sabes que sinto o mesmo
por ti.
Ela afastou-se para o olhar, subitamente mais feliz.
– Então amas-me? Amas-me verdadeiramente, de modo que, se o nosso
amor for testado, continuarei segura de ti?
Gavin franziu a testa.
– Testado?
Alice sorriu por entre as lágrimas.
– Mesmo que case com Edmund, continuarás a amar-me?
– Casar! – Ele quase gritou enquanto a empurrava para longe dele.
– Pretendes casar com esse homem?
– Tenho escolha? – Ficaram ambos em silêncio, Gavin olhando para ela,
Alice com os olhos recatadamente baixos. – Então, irei embora.
Desaparecerei da tua vista. Não precisarás olhar para mim novamente.
Ela estava a preparar-se para montar no cavalo quando ele reagiu.
Agarrou-a com força, puxando a sua boca para a dele até a magoar. Não
havia palavras, não eram necessárias. Os seus corpos entendiam-se, mesmo
que não pudessem concordar. A rapariga tímida tinha desaparecido. No seu
lugar estava a Alice apaixonada que Gavin conhecia tão bem. As mãos
femininas despiram freneticamente as roupas dele até ficarem rapidamente
empilhadas no chão.
Ela soltou uma risada rouca ao vê-lo nu diante de si. O seu corpo era
musculoso devido aos muitos anos de treino. Era uma boa cabeça mais alta
do que Alice, que frequentemente se elevava sobre os homens. Os ombros
eram largos, o peito fortemente grosso. No entanto, tinha as ancas esguias e
o ventre era liso, os músculos divididos em sulcos. As coxas e a barriga das
pernas exibiam músculos fortalecidos por anos de uso de armaduras
pesadas.
Alice deu um passo para trás e respirou fundo entre os dentes, devorando-
o com os olhos. As mãos estenderam-se para ele como se fossem garras.
Gavin puxou-a para si, beijou a pequena boca que se abria amplamente
sob a dele, enquanto a língua dela mergulhava na boca dele. Aproximou-a
mais e a sensação do seu vestido contra a pele nua excitava-a. Os lábios
masculinos moveram-se para a sua face, para o seu pescoço. Com a noite
toda ainda pela frente, ele tinha intenção de passá-la a fazer amor com ela.
– Não! – exclamou Alice impaciente enquanto se afastava com
brusquidão. Afastou o manto dos ombros, indiferente ao tecido caro.
Empurrou as mãos de Gavin para longe da fivela do cinto.
– És muito lento – declarou sem rodeios.
Gavin franziu momentaneamente a testa, mas à medida que camada após
camada das roupas de Alice caía por terra, os sentidos levaram a melhor.
Ela ansiava-o tanto como ele a ela. Assim, o que importava se ela não
quisesse perder tempo demasiado antes que os seus corpos estivessem
unidos pele com pele?
Gavin teria gostado de saborear o corpo esbelto de Alice durante algum
tempo, mas a jovem puxou-o rapidamente para o chão e com a mão guiou-o
de imediato para dentro dela. Então ele parou de pensar sobre os jogos de
amor preliminares ou beijos demorados. Alice estava debaixo dele,
instigando-o. A voz dela era áspera enquanto dirigia o seu corpo, com as
mãos nos seus quadris, enquanto o empurrava cada vez com mais força. A
certa altura Gavin preocupou-se com a possibilidade de a magoar, mas ela
parecia glorificar-se na força dele.
– Agora! Agora! – exigiu debaixo dele e emitiu um som baixo e gutural
de triunfo quando ele a obedeceu.
Logo a seguir, afastou-se para longe dele. Havia-lhe dito repetidamente
que o fazia por causa dos seus pensamentos antagónicos, enquanto
reconciliava o seu estado de solteira com a sua paixão. No entanto, ele teria
gostado de tê-la abraçado por mais tempo, desfrutado mais do seu corpo,
talvez até mesmo fazer amor com ela novamente. Seria um ato de amor
lento dessa vez, agora que o fogo da primeira paixão fora extinto. Gavin
tentou ignorar o sentimento de vazio dentro de si, como se tivesse acabado
de provar algo, mas ainda não estivesse saciado.
– Tenho de ir embora – disse ela, sentando-se e começando o intrincado
processo de se vestir.
Gavin gostava de observar as suas pernas esbeltas enquanto enfiava as
meias leves de linho. Pelo menos observá-la ajudou a dissipar um pouco do
vazio. Inesperadamente, lembrou-se de que, em breve, outro homem teria o
direito de tocá-la. De repente, desejou magoá-la, como ela estava a magoá-
lo.
– Também tenho uma proposta de casamento.
Alice parou instantaneamente, com a mão na meia e observou-o,
esperando por mais.
– A filha de Robert Revedoune.
– Ele não tem filhas, apenas filhos, ambos casados – reagiu Alice
imediatamente. – Revedoune era um dos condes do rei, um homem cujas
propriedades faziam com que as de Edmund parecessem as da propriedade
de um servo. Levara algum tempo, mas Alice usara os dois anos passados
por Gavin na Escócia para averiguar e descobrir a história de todos os
condes, de todos os homens mais ricos da Inglaterra, antes de decidir que
Edmund seria a presa mais apetecível.
– Não ouviste dizer que os dois filhos morreram há dois meses de uma
terrível doença?
Alice fitou-o.
– Mas nunca ouvi falar de uma filha.
– Uma rapariga chamada Judith, mais jovem do que os seus irmãos. Ouvi
dizer que foi preparada pela mãe para a Igreja e que é mantida enclausurada
na casa do pai.
– Ofereceram-te essa Judith em casamento? Mas ela seria a herdeira do
pai, uma mulher rica. Por que haveria de oferecê-la a...? – parou,
lembrando-se de ocultar os seus pensamentos de Gavin.
Ele virou o rosto na sua direção e ela podia ver os músculos da sua
mandíbula contraídos, o luar a brilhar no seu peito nu, ainda levemente
coberto de suor pelo ato de amor.
– Por que ofereceria ele esse prémio a um Montgomery? – concluiu
Gavin por ela num tom frio. Noutros tempos, a família Montgomery tinha
sido suficientemente rica para despertar a inveja do rei Henrique IV. O rei
declarara toda a família como traidora e depois começara a desmantelar a
poderosa família. Fora tão bem-sucedido que só agora, cem anos mais
tarde, a família começava a recuperar uma parte do que havia perdido. Mas
as memórias da família Montgomery estavam intactas e nenhum deles se
importava de lembrar o que haviam sido noutros tempos.
– Pelos braços direitos dos meus irmãos e do meu também – disse Gavin
depois de uns momentos. – As terras Revedoune fazem fronteira com a
nossa, ao norte, e ele tem medo dos escoceses. Percebeu que as suas terras
serão protegidas, caso se alie à minha família. Um dos trovadores da Corte
ouviu-o dizer que os Montgomery, se mais não produzissem, criavam
varões que sobrevivem. Então, parece que sou uma boa oferta para a filha
dele, se ao menos lhe fizer varões.
Alice estava quase vestida agora e olhou para ele.
– O título passará pela filha, certo? O teu filho mais velho seria um conde
e tu, quando Revedoune morrer.
Gavin virou-se bruscamente. Não tinha pensado nisso, nem tão pouco lhe
importara. Era estranho que Alice, que ligava tão pouco a bens materiais,
tivesse pensado primeiro nisso.
– Então vais casar com ela? – perguntou Alice, em pé diante dele,
observando-o a vestir rapidamente a roupa.
– Ainda não tomei uma decisão. A proposta só chegou há dois dias, e
depois pensei...
– Já a viste? – interrompeu Alice.
– Quem? Referes-te à herdeira?
Alice cerrou os dentes. Às vezes, os homens podiam ser tão
insuportáveis. Recompôs-se.
– Ela é linda, eu sei – disse Alice em lágrimas. – Quando estiveres casado
com ela, nunca mais te lembrarás de mim.
Gavin levantou-se rapidamente. Não sabia se estava zangado ou não. A
mulher falava dos casamentos de ambos com outras pessoas como se não
afetassem em nada o relacionamento entre eles.
– Não a vi – respondeu em voz baixa.
De repente, a noite parecia estar a fechar-se sobre ele. Queria ouvir Alice
negar a conversa sobre o casamento dela, mas em vez disso viu-se a falar da
possibilidade do seu próprio casamento. Desejava fugir – fugir das
complexidades das mulheres e regressar à solidez e à lógica dos seus
irmãos.
– Não sei o que vai acontecer.
Alice franziu a testa quando ele lhe pegou no braço e a conduziu até junto
do cavalo.
– Amo-te, Gavin – disse ela rapidamente. – Aconteça o que acontecer,
sempre te amarei, sempre te desejarei.
Ele apressou-se a erguê-la para a colocar na sela.
– Deves regressar antes que alguém dê pela tua ausência. Não
gostaríamos que essa história chegasse aos ouvidos do bravo e nobre
Chatworth, não é?
– És cruel, Gavin – acusou ela, mas não havia som de lágrimas na sua
voz. – Devo ser punida pelo que está fora das minhas mãos, pelo que não
posso controlar?
Ele não tinha resposta.
Alice inclinou-se para a frente e beijou-o, mas sabia que a sua mente
estava em outro lugar e isso assustou-a. Puxou as rédeas bruscamente e
galopou para longe.

1 O capuz francês era um tipo de chapéu feminino popular na Europa Ocidental no século XVI.
Caracteriza-se por uma forma arredondada em contraste com o «Inglês» angular. É usado sobre
uma touca e tem um véu preto preso às costas. (N. da T.)
Capítulo Dois

Já era muito tarde quando Gavin avistou o castelo Montgomery. Apesar de


todos os seus bens lhes terem sido roubados por um rei ambicioso, estas
muralhas continuavam pertença deles. Há mais de quatrocentos anos que ali
habitara um Montgomery – desde que William tinha conquistado a
Inglaterra, trazendo consigo a já rica e poderosa família normanda.
Ao longo dos séculos, o castelo tinha sofrido ampliações, reforços e
renovações, até que as suas muralhas, de quatro metros de espessura,
cercavam mais de três hectares. Dentro, a terra fora dividida em duas
partes: a muralha exterior e a interior. A muralha exterior alojava os
criados, os cavaleiros da guarnição e todas as centenas de pessoas e animais
que eram necessárias para administrar o castelo. A muralha exterior
também abrigava e protegia a muralha interior, onde ficavam as casas dos
quatro irmãos Montgomery e dos seus servos privados. Nenhuma árvore
tinha permissão para crescer a menos de um quilómetro do castelo;
qualquer inimigo teria de se aproximar sob céu descoberto.
Durante quatro séculos, os Montgomery tinham defendido a fortaleza
contra um rei avarento e guerras privadas entre os senhores feudais. Foi
com orgulho que Gavin olhou para as muralhas eminentes que eram a sua
casa. Conduziu o cavalo em direção ao rio, em seguida desmontou e
conduziu-o pela estreita passagem do rio. Além do enorme portão principal,
essa era a única entrada. O portão principal estava coberto por uma ponte
levadiça com lanças afiadas, que podia ser levantada ou baixada por meio
de cordas. Àquela hora da noite, os guardas teriam de acordar cinco homens
para levantá-la. Assim, Gavin dirigiu-se à estreita entrada privada, a cerca
de quatrocentos metros da muralha com dois metros e meio de altura que
levava à entrada das traseiras, sendo o topo das muralhas guardado por
homens que andavam de um lado para o outro durante toda a noite. Gavin
esboçou um aceno de cabeça aos guardas quando a sua presença foi notada.
Nenhum homem que valorizasse a sua vida dormia enquanto estava de
serviço.
Durante o reinado do rei Henrique VII, o atual rei, a maioria dos castelos
havia caído em declínio. Quando subira ao trono, há dezasseis anos, em
1485, decidiu quebrar o poder dos grandes barões. Baniu exércitos privados
e colocou a pólvora sob o controlo do governo. Como os barões deixaram
de poder travar guerras privadas com fins lucrativos, viram as suas fortunas
diminuírem. A manutenção dos castelos era muito dispendiosa e, umas após
outra, as grossas muralhas foram sendo abandonadas e trocadas pelo
conforto e a conveniência de uma casa senhorial.
Mas havia aqueles que, através de uma boa gestão e trabalho árduo, ainda
mantinham o uso das poderosas estruturas antigas. Os Montgomery
pertenciam a esse tipo de família e eram respeitados em toda a Inglaterra. O
pai de Gavin havia construído uma forte e confortável casa senhorial para
os seus cinco filhos, mas no interior das muralhas do castelo.
Uma vez no interior da muralha, Gavin viu que havia muita atividade.
– O que aconteceu? – perguntou ao rapaz do estábulo que levou o seu
cavalo.
– Os amos acabaram de voltar de um incêndio na aldeia.
– Grave?
– Não, milorde, só algumas casas dos mercadores. Não havia necessidade
de os amos terem ido até lá. – O jovem encolheu os ombros, como se
dissesse que não havia nenhuma maneira de compreender os nobres.
Gavin deixou-o e entrou na casa senhorial, construída contra a antiga
torre de pedra, que agora era usada para pouco mais que armazenamento.
Os irmãos preferiam o conforto da casa grande. Vários dos cavaleiros
estavam a acomodar-se para dormir e Gavin cumprimentou alguns deles
enquanto subia apressadamente a larga escada de carvalho até aos seus
aposentos no terceiro andar.
– Aqui está o nosso irmão transviado – comentou Raine alegremente. –
Miles, achas que ele passa as noites a cavalgar pelo campo, sem levar em
conta as suas responsabilidades? Metade da aldeia poderia ter sido destruída
pelo fogo, se agíssemos como ele.
Raine era o terceiro dos irmãos Montgomery, o mais baixo e mais
musculoso dos quatro, um homem poderoso e forte. A sua aparência seria
imponente no campo de batalha, e certamente o era, mas, na maior parte do
tempo, como agora, os olhos azuis estavam sempre sorridentes e tinha as
faces marcadas por fundas covinhas.
Gavin olhou para os irmãos mais novos, mas não sorriu.
Miles, com as roupas enegrecidas de fuligem, deitou vinho num copo e
ofereceu-o a Gavin.
– Recebeste más notícias? – Miles era o irmão mais novo, um homem
sério com olhos cinzentos penetrantes que não perdiam nada. Raramente
sorria.
Raine ficou imediatamente contrito:
– Passa-se algo de errado?
Gavin aceitou o vinho e afundou-se pesadamente numa cadeira de
nogueira entalhada, de frente para a lareira. A sala onde se encontravam era
espaçosa, com um chão de carvalho coberto em parte por tapetes orientais.
Nas paredes havia pesadas tapeçarias de lã com cenas de caça e das
Cruzadas. O teto compunha-se de traves pesadas e arqueadas, tanto
decorativas quanto funcionais. Gesso branco preenchia o espaço entre as
vigas. Era o quarto de um homem e a grande mobília escura estava talhada
de uma forma intrincada. No extremo sul havia uma janela de sacada com
assentos forrados de tecido vermelho. O vidro das janelas gradeadas era de
França.
Os três irmãos estavam vestidos com roupas simples e escuras. Camisas
de linho, levemente franzidas no pescoço, ajustavam-se aos corpos; por
cima, longos gibões de lã chegavam-lhes às coxas e um casaco pesado,
curto e de mangas compridas, passava por cima do gibão. As pernas dos
homens, expostas a partir do cimo da coxa, estavam envoltas em calças de
lã escuras, que ressaltavam as protuberâncias maciças dos músculos. Gavin
usava pesadas botas de cano alto até aos joelhos. Da anca pendia uma
espada numa bainha de pedras preciosas.
Gavin bebeu um longo gole do vinho, depois observou silenciosamente
enquanto Miles voltava a encher o copo. Não podia compartilhar a sua
infelicidade sobre Alice – nem mesmo com os irmãos.
Quando Gavin não falou, Miles e Raine trocaram olhares. Sabiam onde
Gavin estivera e podiam adivinhar que notícia lhe havia dado um ar tão
infeliz. Raine conhecera Alice uma vez, devido à discreta insistência de
Gavin, e viu nela uma frieza que lhe desagradou. Mas para o enfeitiçado
Gavin, Alice era a perfeição numa mulher. Apesar do seu ponto de vista,
Raine sentia pena de Gavin.
Miles era diferente. Não o comovia o menor vestígio de amor por uma
mulher. Para ele eram todas iguais e serviam para a mesma finalidade.
– Robert Revedoune enviou outro mensageiro hoje – disse Miles,
quebrando o silêncio. – Julgo que está preocupado que, se a filha não
conceber um filho em breve, possa morrer e deixá-lo sem nenhum herdeiro.
– Ela está doente? – perguntou Raine. – Era o humanitário dos irmãos,
sempre preocupado, fosse com uma égua ferida ou um servo doente.
– Não me constou – respondeu Miles. – O homem está louco de dor pela
perda dos filhos e por ter apenas uma filha insignificante. Comenta-se que
bate na mulher regularmente como punição por não lhe dar mais filhos
varões.
Raine franziu a testa por cima da taça de vinho. Não gostava que
batessem nas mulheres.
– Vais dar-lhe a resposta? – pressionou Miles, uma vez que Gavin se
mantinha em silêncio.
– Que um de vocês a leve – propôs Gavin. – Faz com que Stephen
regresse da Escócia ou tu, Raine, precisas de uma esposa.
– Revedoune quer apenas o filho mais velho para a filha – sorriu Raine. –
Caso contrário, estaria mais do que disposto.
– Porquê tanta resistência? – comentou Miles enfurecido. – Tens vinte e
sete anos e precisas de uma esposa. Essa Judith Revedoune é rica e traz um
condado com ela. Talvez por seu intermédio os Montgomery comecem a
recuperar o que já tivemos.
«Alice estava perdida para ele e quanto mais cedo enfrentasse isso, mais
cedo poderia começar a curar-se», decidiu Gavin.
– Está bem. Concordo com o casamento.
Raine e Miles soltaram imediatamente a respiração que não tinham
percebido que estavam a reter.
Miles pousou a taça de vinho.
– Pedi ao mensageiro para ficar. Esperava transmitir-lhe a tua resposta.
Quando Miles saiu da sala, o sentido de humor de Raine impôs-se.
– Ouvi dizer que ela é apenas desta altura – disse, com a mão perto da
cintura – e tem dentes do tamanho dos de um cavalo. Além disso…
***

A velha torre era cheia de correntes de ar; o vento assobiava através das
fendas. O papel oleado sobre as janelas de pouco servia para evitar o frio.
Alice dormia confortavelmente, nua sob um edredão de linho, forrado
com penas de ganso.
– Milady – sussurrou Ella à ama. – Ele está aqui.
Sonolenta, Alice virou-se.
– Como ousas acordar-me?! – disse com um sussurro feroz. – Quem está
aqui?
– O homem da casa dos Revedoune. Ele…
– Revedoune! – exclamou Alice enquanto se sentava, agora totalmente
desperta. – Vai buscar-me o roupão e traz-me o homem até aqui.
– Aqui? – A criada ficou horrorizada. – Não, milady, não pode. Alguém
poderia ouvi-la.
– Sim – concordou Alice distraidamente. – É um risco muito grande.
Deixa-me vestir. Vou encontrar-me com ele debaixo daquele olmo, junto à
horta.
– À noite? Mas...
– Vai lá agora! Diz-lhe que estarei lá em breve.
– Alice enfiou rapidamente os braços no roupão, um manto de veludo
carmesim grosso forrado com pele de esquilo cinzento. Enrolou um cinto
largo na cintura e deslizou os pés para uns chinelos de couro macio tingidos
de ouro.
Passara quase um mês desde que vira Gavin e durante todo esse tempo
não tinha recebido nenhuma palavra dele. Mas, alguns dias depois do
encontro na floresta, ouvira dizer que ele se casaria com a herdeira
Revedoune. De um extremo ao outro de Inglaterra, estava a ser anunciado
um torneio para celebrar a boda. Todos os homens importantes estavam a
receber convites; todos os cavaleiros com destreza foram convidados a
participar. A cada palavra que ouvia, Alice ficava mais ciumenta. Como
teria gostado de se sentar ao lado de um marido como Gavin e assistir a um
torneio organizado para celebrar as suas próprias núpcias! Mas nenhum
plano idêntico estava a ser feito para o casamento dela.
No entanto, apesar de tudo o que ouviu sobre os planos, em lugar nenhum
encontrou alguém que pudesse dizer uma palavra sobre Judith Revedoune.
A jovem era um nome sem rosto e sem corpo. Duas semanas antes, Alice
tinha tido a ideia de contratar um espião que fizesse averiguações sobre essa
esquiva Judith, para descobrir como ela era e com o que se via forçada a
competir. Deu ordens a Ella para que a criada a alertasse sobre a chegada
desse homem, independentemente da hora.
O coração de Alice batia rapidamente enquanto corria pelo caminho do
jardim cheio de ervas daninhas. «Essa Judith é um sapo absoluto», dizia
Alice para si mesma. «Tem de ser.»
– Ah, milady – disse o espião quando Alice estava perto. – A sua beleza
ofusca o esplendor da Lua. – Agarrou-lhe na mão e beijou-a.
Aquele homem enojava-a, mas era o único que conseguira encontrar que
tinha acesso à família Revedoune. O preço que teve de lhe pagar era
ultrajante! Tratava-se de um homem viscoso, oleoso, mas pelo menos tinha
sido bom a fazer amor.
– Quais são as notícias? – perguntou, impaciente, enquanto retirava
apressadamente a mão. – Viu-a?
– Não... De perto, não...
– De perto? Viu-a ou não? – exigiu saber Alice, fitando-o diretamente nos
olhos.
– Sim, vi-a – respondeu ele firmemente. – Mas ela está muito protegida. –
Queria agradar àquela beldade loira, então sabia que devia esconder a
verdade. Tinha visto Judith Revedoune, mas só de longe, enquanto se
afastava da mansão montada a cavalo, rodeada pelas suas damas de
companhia. Nem sequer tinha a certeza de qual era a herdeira.
– Por que é mantida guardada? Não tem uma mente sã, por isso não a
deixam andar livremente?
De súbito, teve medo daquela mulher que o interrogava tão asperamente.
Havia poder naqueles frios olhos azuis.
– Há, obviamente, rumores. Não é vista por ninguém, excetuando as
damas de companhia e a mãe. Viveu toda a vida entre elas e foi sempre
preparada para a Igreja.
– A Igreja? – Alice começou a sentir que parte da tensão a deixava. Era
do conhecimento geral que sempre que uma filha deformada ou retardada
nascesse, se a família fosse rica o suficiente, era-lhe concedida uma pensão
e entregue aos cuidados das freiras.
– Então acha que ela poderia ter uma mente fraca ou ser deformada de
alguma maneira?
– Por que outro motivo haveriam de mantê-la tão escondida durante a
vida inteira, milady? Robert Revedoune é um homem duro. A mulher ainda
coxeia desde que ele a atirou pelas escadas. Decerto não ia querer que as
pessoas vissem que tem um monstro como filha.
– Mas não tem a certeza de que seja essa a razão pela qual ela está
escondida?
Ele sorriu, sentindo-se mais seguro.
– Que outra razão poderia haver? Se ela fosse sã e completa, não a
exporia aos olhos do mundo? Só a ofereceu em casamento depois de ser
forçado a fazê-lo devido à morte dos seus filhos, não foi? Que homem
permitiria que a sua filha ingressasse na Igreja? Só quando um homem tem
muitas filhas permite isso.
Alice contemplava tranquilamente a noite. O seu silêncio fez com que o
homem ficasse mais ousado. Inclinou-se para perto dela, colocou a mão
sobre a dela e sussurrou-lhe ao ouvido:
– Não tem razão para temer, milady, não haverá uma noiva bonita que a
tire da cabeça de Lorde Gavin.
Apenas a respiração bruscamente sustida de Alice deu alguma indicação
de que tivesse ouvido. Até o mais comum dos homens sabia sobre ela e
Gavin? Com o talento de uma grande atriz, virou-se e sorriu ao homem.
– Fez um bom trabalho e será... devidamente recompensado. – Não
deixou a mínima dúvida quanto ao significado das suas palavras.
O homem inclinou-se e beijou-a no pescoço.
Alice afastou-se, dissimulando a repulsa que a invadia.
– Não, não esta noite – sussurrou num tom íntimo. – Amanhã. Há que
tomar disposições para que possamos estar mais tempo juntos. – Passou a
mão sob o tabardo2 solto, ao longo da sua coxa, e sorriu sedutoramente
quando ele ficou sem fôlego.
– Tenho de ir embora – disse ela com aparente relutância.
Não havia um indício de sorriso no seu rosto quando estava de costas
para ele. Alice tinha mais uma diligência para fazer antes de voltar para a
cama. O jovem do estábulo ficaria feliz por ajudá-la. Ela não permitiria que
nenhum homem falasse livremente de Gavin e dela... e este pagaria pelas
suas palavras.
***

– Bom dia, pai – disse Alice, alegremente, enquanto se inclinava para


roçar os lábios na face do velho deformado e imundo. Estavam no segundo
andar da torre, que era uma única sala aberta. Este era o grande salão: uma
divisão que os guardiões utilizavam para comer e dormir e para todas as
atividades diárias.
Olhou para o copo vazio do pai.
– Venha cá! – dirigiu-se bruscamente a um criado que passava. – Traga
mais cerveja para o meu pai.
Nicolas Valence pegou na mão da filha entre as dele e fitou-a com
gratidão.
– És a única que se importa comigo, minha linda Alice. Os outros, a tua
mãe e as tuas irmãs, tentam impedir-me de beber, mas tu entendes como
isso me conforta.
Ela afastou-se dele, escondendo a sensação ao seu toque.
– Mas é claro, querido pai. Isso é porque o amo. – Sorriu-lhe docemente.
Depois de todos aqueles anos, Nicolas ainda se admirava que ele e a sua
feia e baixinha esposa pudessem ter criado uma jovem tão adorável. A
pálida beleza de Alice contrastava fortemente com a sua própria escuridão.
E, quando as outras se enfureciam com ele e lhe escondiam a bebida, Alice
roubava garrafas para ele. Era verdade, ela amava-o. Ele também a amava.
Acaso não lhe dava as poucas moedas que tinha para que comprasse
roupas? A sua adorável Alice usava seda enquanto as irmãs usavam tecidos
fiados em casa. Teria feito qualquer coisa por ela. Por acaso não havia
negado a sua mão a Gavin Montgomery, seguindo as instruções de Alice?
Nicolas não entendia obviamente por que não queria uma jovem casar com
um homem tão forte e rico como Gavin. Mas Alice tinha razão. Pegou no
copo que agora estava cheio e esvaziou-o de um trago. Ela tinha razão,
agora iria casar com um conde. Claro que Edmund Chatworth não era nada
parecido com um daqueles Montgomery bonitos, mas Alice sempre soubera
o que era melhor.
– Pai – disse Alice sorrindo –, gostaria de um favor seu.
Ele bebeu ainda um terceiro copo de cerveja. Às vezes os favores de
Alice não eram fáceis de serem concedidos e mudou de assunto.
– Sabias que um homem caiu da muralha ontem à noite? Um estranho,
aparentemente ninguém sabe de onde veio.
A expressão de Alice mudou. Agora o espião não contaria a ninguém
sobre Gavin ou que ela indagara quanto à herdeira Revedoune. Descartou
rapidamente o pensamento. A morte do homem não significava nada para
ela.
– Quero ir ao casamento da mulher Revedoune com Gavin.
– Queres um convite para o casamento da filha de um conde? – Nicolas
estava incrédulo.
– Sim.
– Mas não posso! Como poderia?
Desta vez Alice acenou ao servo para que se fosse embora e ela própria
encheu o copo do pai.
– Tenho um plano – apressou-se a dizer com o seu mais doce sorriso.

2 Tabardo – uma túnica exterior curta e sem mangas estampada com um brasão, usado por um
cavaleiro sobre a sua armadura. (N. da T.)
Capítulo Três

O fogo subia enfurecido pela parede de pedra e devorou, faminto, o


segundo andar da loja do mercador, construída em madeira. O ar estava
denso com o fumo e os homens e as mulheres que formavam uma fila para
passar os baldes de água já estavam enegrecidos. Apenas os olhos e os
dentes permaneciam brancos.
Gavin, nu da cintura para cima, usava vigorosamente o machado de cabo
comprido para desbastar o prédio junto à loja vizinha, já incendiada. A
força com que se aplicava não traía o facto de que há dois dias que
trabalhava assim.
A cidade onde o prédio ardia e onde havia três outros reduzidos a cinzas
pertencia-lhe. Era circundada por muralhas de três metros e meio, que
desciam pela colina do grande castelo Montgomery. Os impostos desta
cidade sustentavam os irmãos Montgomery; em contrapartida, os cavaleiros
protegiam e defendiam os habitantes.
– Gavin! – berrou Raine acima do rugido das chamas. Também ele estava
sujo de fumo e de suor. – Sai daí! O fogo está próximo de mais!
Gavin ignorou a advertência do irmão. Nem sequer ergueu o rosto para a
parede em chamas e que ameaçava cair sobre ele. As suas machadadas
tornaram-se mais vigorosas enquanto lutava para derrubar a madeira seca
que revestia as paredes de pedra mais baixas, de modo a que o homem que
esperava no chão pudesse encharcá-las com água.
Raine sabia que não adiantava gritar com Gavin. Fez um sinal fatigado
para que os homens exaustos atrás dele continuassem a arrancar a madeira
da parede. Estava esgotado, embora tivesse dormido quatro horas – mais
quatro do que Gavin. Sabia por experiência que, enquanto um centímetro
quadrado da propriedade de Gavin estivesse em perigo, o irmão não iria
dormir, nem se permitiria descansar até que fosse seguro.
Raine permaneceu no solo, sustendo a respiração ao mesmo tempo que
Gavin trabalhava ao lado e sob a parede em chamas. Iria desabar a qualquer
momento e Raine só podia esperar que Gavin acabasse em breve a sua
tarefa e pudesse descer da escada até à segurança do chão. Raine proferiu
todas as blasfémias que conhecia enquanto o irmão namoriscava com a
morte. Os mercadores e os servos arquejaram quando a parede de fogo
oscilou de um lado para o outro. Raine pensou que gostaria de forçar Gavin
a descer da escada, mas sabia que a sua força não era maior do que a do
irmão mais velho.
De repente, as madeiras caíram dentro das muralhas de pedra. Gavin
desceu imediatamente pela escada. Mal Gavin tocou no chão, Raine deu um
salto na direção do irmão e derrubou-o, atirando-o para longe da cortina de
fogo.
– Maldição, Raine! – uivou Gavin junto ao ouvido de Raine, abafado sob
o seu peso. – Estás a esmagar-me. Afasta-te!
Raine estava demasiado acostumado com Gavin para se ofender.
Levantou-se devagar, os músculos doridos do esforço dos últimos dias.
– Então esse é o agradecimento que recebo por te salvar a vida? Por que
diabo ficaste tanto tempo lá em cima? Mais uns segundos e terias sido
assado.
Gavin levantou-se rapidamente, com o rosto enegrecido de fuligem,
virado para o edifício que acabara de deixar. O fogo estava contido dentro
das muralhas de pedra e não iria passar ao prédio vizinho. Quando ficou
convencido de que os edifícios estavam seguros, voltou-se para o irmão.
– O que poderia fazer? Deixar que tudo pegasse fogo? – perguntou
enquanto flexionava o ombro. Estava raspado e sangrava onde Raine o
tinha arrastado pelo cascalho e detritos. – Se o fogo não tivesse sido
interrompido, poderia não ter uma única cidade.
Os olhos de Raine brilharam.
– Preferia perder cem edifícios a perder-te.
Gavin sorriu. Os dentes brancos brilharam num contraste com a escuridão
do rosto sujo.
– Obrigado – agradeceu baixinho. – Mas acho que prefiro perder um
pouco de pele a outro prédio. – Virou-se e foi dirigir os homens que
molhavam a estrutura do edifício vizinho ao que ele demolira.
Raine encolheu os ombros e optou por se afastar. Gavin era o dono dos
bens da família desde que tinha dezasseis anos e levava muito a sério as
suas responsabilidades. O que era dele, era dele e lutaria até à morte para
mantê-lo. No entanto, mesmo o servo mais indigno e o pior dos ladrões
recebiam dele um tratamento justo enquanto residissem na propriedade
Montgomery.
A noite ia adiantada quando Gavin voltou à mansão. Encaminhou-se até à
sala de inverno, ao lado do grande salão que servia como sala de jantar da
família. O chão estava coberto de tapetes grossos de Antioquia. Aquela sala
era uma adição recente e fora revestida por um novo tipo de painéis em
madeira de nogueira que parecia tecido. Uma extremidade da sala era
ocupada por uma enorme lareira. Na cornija de pedra que a encimava
haviam sido esculpidos os leopardos heráldicos da família Montgomery.
Raine já estava lá, limpo e vestido de lã preta, com uma enorme bandeja
de prata à sua frente, cheia de carne de porco assado, pedaços de pão
quente, maçãs secas e pêssegos. Planeava comer até à última migalha.
Grunhiu e apontou para uma grande tina de madeira cheia de água quente
fumegante colocada diante de uma lareira crepitante.
A fadiga estava a apoderar-se de Gavin. Despiu as braccas – uma peça
apertada composta por calças e roupa interior –, descalçou as botas e entrou
na tina. A água causou um efeito desagradável nas bolhas e escoriações
recentes. Uma jovem criada surgiu das sombras e começou a lavar as costas
de Gavin.
– Onde está o Miles? – perguntou Raine entre os pedaços de comida.
– Mandei-o a casa de Revedoune. Ele lembrou-me que o noivado deveria
ser concretizado hoje. Foi em meu nome como procurador. – Gavin
inclinou-se para a frente, deixando que a rapariga o lavasse. Não olhou para
o irmão.
Raine quase se engasgou com um pedaço de carne de porco.
– Tu o quê?
Gavin olhou para cima, surpreendido.
– Disse que enviei Miles como meu representante para o noivado com a
herdeira Revedoune.
– Céus, homem! Não tens um pouco de senso comum? Não podes enviar
outra pessoa como se fosses comprar uma égua premiada. Trata-se de uma
mulher!
Gavin olhou fixamente para o irmão. A luz do fogo destacou as covas
profundas das suas faces quando flexionou os músculos do maxilar.
– Estou ciente de que é uma mulher, se não fosse, não me veria forçado a
casar com ela.
– Forçado! – Raine recostou-se na cadeira, incrédulo. Era verdade que,
enquanto os três irmãos mais novos tinham viajado livremente pelo país,
visitando castelos e mansões na França e até na Terra Santa, Gavin estava
acorrentado a um livro de contabilidade. Tinha vinte e sete anos e há onze
anos – excetuando a recente revolta na Escócia – que mal saíra de casa.
Gavin não sabia que os irmãos frequentemente faziam concessões pelo que
consideravam a sua ignorância sobre as mulheres, além das filhas das
classes mais baixas.
– Gavin – começou Raine pacientemente –, Judith Revedoune é uma
dama, filha de um conde. Foi ensinada a esperar certas coisas da tua parte,
como cortesia e respeito. Deverias ter ido dizer-lhe pessoalmente que
queres casar com ela.
Gavin estendeu o braço para que a criada lhe passasse um pano
ensaboado sobre ele. A frente do vestido de lã grossa da jovem estava
molhada e ressaltava os seios fartos. Ele fitou-a e sorriu, sentindo os
primeiros sinais de desejo. Então voltou os olhos para Raine.
– Mas eu não quero casar com ela; certamente não é tão ignorante para
pensar que vou desposá-la por qualquer motivo além das suas terras.
– Não podes dizer-lhe isso! Deves fazer-lhe a corte e...
Gavin levantou-se da tina e ficou de pé, enquanto a criada subia para um
banquinho e despejava água quente sobre ele para depois o enxugar.
– Ela será minha – afirmou sem rodeios. – Fará o que lhe disser. Tenho
conhecido muitas damas de linhagem e sei como são. Passam a vida
sentadas nos seus aposentos, a costurar e a coscuvilhar, enquanto comem
frutas com mel e engordam. São preguiçosas e estúpidas; tiveram tudo o
que desejaram. Sei como tratar essas mulheres. Há uma semana, mandei
trazer de Londres algumas tapeçarias de Flandres, cenas idiotas, como
ninfas a brincar na floresta, para que ela não se assuste com cenas de
guerra. Vou pendurá-las no seu quarto e em seguida pôr-lhe à disposição
todos os fios de seda e agulhas de prata de que possa precisar, e ela ficará
satisfeita.
Raine permaneceu sentado em silêncio e pensou nas mulheres que
conhecera nas suas viagens pelo país. A maioria delas correspondia à
descrição de Gavin, mas havia mulheres inteligentes e fulgurosas, mais
como companheiras dos maridos.
– E se ela quiser envolver-se nos assuntos da propriedade?
Gavin saiu da tina e pegou na toalha de algodão macio que a criada lhe
entregou.
– Não se intrometerá no que é meu. Fará o que lhe disser ou vai
arrepender-se.
Capítulo Quatro

A luz do sol fluía pelas janelas abertas e derramava-se obliquamente no


chão coberto de juncos, brincando com minúsculos grãos de poeira que
brilhavam como partículas de ouro. Era um dia perfeito de primavera, o
primeiro de maio. O sol brilhava e no ar flutuava aquela doçura que só a
primavera podia trazer.
A sala, ampla e arejada, ocupava metade do quarto andar da casa de
madeira e de tijolo. As janelas viradas para o sul deixavam entrar luz
suficiente para aquecer o ambiente. Era uma sala simples, porque Robert
Revedoune não desperdiçava dinheiro em coisas que considerava frívolas,
como tapetes e tapeçarias.
Naquela manhã, no entanto, a sala não parecia tão escassa. Cada cadeira
estava coberta com um respingo de cor. Havia roupas em todos os lugares.
Belas, exuberantes e novas, todas faziam parte do dote de Judith
Revedoune. Havia sedas da Itália, veludos do Oriente, caxemiras de
Veneza, algodões de Trípoli. Joias piscavam por toda a parte: em sapatos,
cintos, tiaras. Havia esmeraldas, pérolas, rubis. Tudo isso colocado sobre
um fundo de peles: zibelina, arminho, castor, esquilo, cordeiro preto
encaracolado, lince.
Judith estava sentada sozinha no meio de todo esse esplendor, tão
silenciosamente que alguém que entrasse no quarto não a teria visto, exceto
que a sua figura ofuscava o brilho de qualquer tecido ou joia. Tinha os pés
pequenos envoltos em couro verde macio, forrado e bordado com pele de
doninha branca, pontilhada de manchas pretas. O vestido ajustava-se
estreitamente no corpete e as mangas compridas iam dos pulsos à cintura,
que revelava a sua aparência esbelta. O decote quadrado era descido e
ressaltava os seios fartos de Judith. A saia formava um sino suave que
balançava levemente quando ela caminhava. O tecido era dourado, frágil e
pesado, iridescente e cintilante ao sol. Um estreito cinto de couro dourado,
coberto de esmeraldas, rodeava-lhe a cintura. Na testa ostentava uma fina
corrente de ouro, com uma grande esmeralda suspensa no meio. Um manto
de tafetá verde-esmeralda aconchegava-lhe os ombros totalmente forrado de
arminho.
Em outra mulher o brilho do seu vestido verde e dourado poderia ter sido
esmagador. Mas Judith era mais bonita do que qualquer vestido. Embora
pequena, as suas curvas tiravam o fôlego aos homens. O cabelo ruivo caía-
lhe pelas costas até à cintura e terminava em cachos abundantes. Tinha um
queixo firme que conservava erguido. Mesmo agora, enquanto pensava nos
eventos horríveis que viriam, os lábios mantiveram-se macios e cheios. Mas
o que chamava a atenção eram os olhos. De um dourado rico e profundo
apreendiam a luz do Sol e refletiam-na sobre o ouro do seu vestido.
Virou a cabeça ligeiramente para olhar para o belo dia lá fora. Em
qualquer outro momento teria ficado satisfeita com o tempo, desejando
cavalgar pelos prados floridos e perfumados, mas naquele dia sentava-se
muito quieta, tomando cuidado para não se mover, nem enrugar o vestido.
No entanto, não era a sua roupa que a mantinha tão quieta, mas o peso dos
pensamentos. Aquele era o dia do seu casamento – um dia que há muito
temia e que acabaria com a sua liberdade e a felicidade tal como a conhecia.
De repente, a porta abriu-se e as duas criadas entraram na grande sala.
Estavam ruborizadas por terem regressado a correr da igreja, onde tinham
ido dar uma primeira espreitadela ao noivo.
– Oh, milady – disse Maud. – Ele é muito bonito! Alto, cabelos pretos,
olhos pretos e uns ombros… – Esticou os braços em toda a sua extensão,
com um suspiro dramático. – Não entendo como passou através das portas.
Teve de fazê-lo de lado. – Os olhos dançaram enquanto observava a ama.
Não gostava de ver Judith tão infeliz.
– Ele anda assim – acrescentou Joan, atirando os ombros para trás até as
omoplatas quase se tocarem e dando vários passos longos e firmes pela sala.
– Sim – concordou Maud. – É orgulhoso, tão orgulhoso quanto todos
aqueles homens Montgomery, que agem como se fossem donos do mundo.
– Gostaria que fosse assim – Joan deu uma risadinha, depois revirou os
olhos para Maud, que se esforçou por não rir com ela.
Contudo, Maud estava mais interessada na ama e, apesar de todas as suas
brincadeiras, Judith não tinha esboçado um sorriso. Maud agarrou-lhe na
mão e fez sinal a Joan para se manter em silêncio.
– Milady – disse calmamente –, há alguma coisa que deseja? Tem tempo,
antes de ir para a igreja. Talvez…
Judith sacudiu a cabeça.
– Já não é possível ajudar-me. A minha mãe está bem?
– Sim, está a descansar antes de seguir a cavalo para a igreja; é uma
distância longa e o seu braço... – Maud parou, sensível ao olhar de dor da
sua ama. Judith culpava-se pelo braço partido de Helen. A sua própria
consciência era suficiente sem os lembretes desajeitados de Maud. A criada
teve vontade de dar um pontapé a si mesma. – Então, está pronta? –
perguntou gentilmente.
– O meu corpo está pronto. São apenas os meus pensamentos que
precisam de mais tempo. Tu e a Joan podem tomar a minha mãe ao vosso
cuidado?
– Mas, milady...
– Não – interrompeu Judith. – Gostaria de ficar sozinha. Pode ser o meu
último momento de privacidade durante algum tempo. Quem sabe o que o
amanhã trará? – Virou-se e olhou para fora da janela.
Joan preparava-se para responder às palavras melancólicas da ama, mas
Maud deteve-a. Joan não conseguia entender Judith. Era rica, aquele era o
dia do seu casamento e, além disso, ia casar com um cavaleiro jovem e
bonito. Por que não estava feliz? Encolheu os ombros, resignada, enquanto
Maud a empurrava para a porta.
Os preparativos para o casamento haviam requerido semanas inteiras.
Seria uma festa complexa e sumptuosa, que custaria ao pai as rendas de um
ano. Ela tinha anotado cada registo de compra, principalmente os milhares
de pedaços de tecidos necessários para fazer uma grande tenda que
abrigasse os convidados e a comida que ia ser servida: mil porcos, trezentos
bezerros, cem bois, quatro mil pastéis de veado, trezentos barris de cerveja.
A lista era infinita.
Tudo por algo que ela desesperadamente não queria.
A maior parte das jovens era educada para pensar no casamento como
parte do futuro. Não era o caso de Judith. Desde o dia do seu nascimento
criaram-na de forma diferente. A mãe já estava desgastada pelos abortos e
por anos ao lado de um marido que a espancava sempre que tinha
oportunidade, até que finalmente a sua filha nasceu. Helen olhou para a
minúscula vida ruiva e entregou-lhe o coração. Embora nunca se opusesse
ao seu marido, por aquela criança enfrentaria o próprio diabo. Queria duas
coisas para a sua pequena Judith: proteção contra um pai brutal e violento e
a garantia de nunca cair nas mãos de homens semelhantes.
Pela primeira vez em muitos anos de casamento, Helen enfrentou o
marido que tanto temia e exigiu que a filha estivesse destinada à Igreja.
Robert pouco se importava com o que acontecesse à mãe ou à filha. O que
lhe importava uma filha? Tinha dois filhos varões da sua primeira mulher e
tudo o que esta mulher chorona e medrosa lhe tinha dado foram bebés
mortos e uma filha inútil. Rindo, aceitou que a criança fosse dada às freiras
quando tivesse a idade certa. Mas, para mostrar àquela criatura lamechas o
que pensava da sua exigência, atirou-a pelas escadas de pedra. Helen ainda
coxeava como resultado de uma perna partida em dois sítios, mas valera a
pena. Manteve a filha com ela em total privacidade. Às vezes nem mesmo
se lembrava de que era casada. Gostava de imaginar que era viúva e morava
sozinha com a sua encantadora filha.
Foram anos felizes em que exercitou a filha para a carreira exigente de
uma freira.
Agora, de tudo isso, não restava nada. Judith iria tornar-se uma esposa,
uma mulher sem mais poder do que o permitido pelo seu marido e senhor.
Judith não sabia nada da vida de uma esposa, costurava mal e não sabia
tricotar. Ninguém lhe tinha ensinado a permanecer sentada e quieta por
horas, permitindo que os servos trabalhassem no seu lugar. Pior ainda:
Judith nem sequer sabia o significado de subserviência. Uma esposa devia
manter os olhos baixos para o marido e pedir os seus conselhos sobre tudo.
Mas Judith aprendera que um dia seria abadessa, a única mulher que era
considerada igual aos homens. Olhava para o pai e para os irmãos de frente,
nunca vacilando, nem mesmo quando o pai lhe levantava o punho. Isso, por
algum motivo, parecia divertir Robert. O seu orgulho não era comum entre
as mulheres. Nem tão pouco entre a maioria dos homens, na verdade.
Andava com os ombros para trás e as costas direitas.
Nenhum homem iria tolerar que, com voz calma, e imparcial, analisasse
as relações do rei com os franceses ou expressasse as suas opiniões radicais
sobre o tratamento dos servos. As mulheres deviam falar sobre joias e
adornos. Judith, em vez disso, costumava permitir que as criadas
escolhessem a sua roupa, mas, quando faltavam dois alqueires de lentilhas
nas despensas, a sua raiva era indomável.
Helen tinha feito um enorme esforço para ocultar a filha do mundo
exterior. Temia que qualquer homem pudesse vê-la e desejá-la e Robert
aceitaria o enlace. Isso equivaleria a perdê-la. Judith deveria ter entrado no
convento aos doze anos, mas a mãe não conseguia suportar separar-se dela.
Manteve-a ao seu lado, ano após ano, egoisticamente e, afinal, todos os seus
esforços tinham-se dissolvido.
Judith tivera meses para se acostumar à ideia de casar com um estranho.
Não o tinha visto e nem queria vê-lo; sabia que estaria o suficiente com ele
no futuro. Não conhecia outros homens além do pai e dos irmãos, portanto,
esperava uma vida com um homem que odiava as mulheres e lhes batia,
inculto e incapaz de aprender qualquer coisa, exceto o uso da força. Sempre
tinha planeado escapar de uma existência assim; agora sabia que era
impossível. Dali a dez anos seria parecida com a mãe: trémula, sempre
receosa e com um olhar vigilante?
Judith levantou-se e o pesado vestido dourado caiu no chão com um
roçagar agradável. Não seria assim! Nunca mostraria medo àquele homem.
Sentisse o que sentisse, manteria a cabeça erguida e o olhar firme.
Por um momento, sentiu os ombros descaírem. Estava com medo desse
estranho que devia ser seu amo e senhor. As suas criadas riam e falavam
dos amantes com alegria. Poderia o casamento de um nobre ser assim?
Seria um homem capaz de amor e ternura, tal como uma mulher? Saberia
em breve.
Voltou a endireitar os ombros. «Iria dar-lhe uma oportunidade», pensou
consigo mesma. Seria como o seu espelho: quando ele se mostrasse gentil,
seria gentil. Mas, se ele fosse como o seu pai, pagar-lhe-ia na mesma
moeda. Nenhum homem havia mandado nela e nunca o faria. Essa era a sua
primeira jura.
– Milady! – chamou Joan animadamente, entrando no quarto. – Lá fora
estão Sir Raine e o seu irmão, Sir Miles. Vieram vê-la. – Joan fitou
exasperada a ama, quando Judith a contemplou fixa e inexpressivamente. –
São os irmãos do seu marido. Sir Raine quer conhecê-la antes do
casamento.
Judith assentiu e levantou-se para receber os visitantes. O homem com
quem se casaria não demonstrava qualquer interesse nela. Até o noivado
havia sido feito por procuração e agora não era ele, mas os irmãos, que
vinham cumprimentá-la. Respirou fundo e forçou-se a parar de tremer.
Estava mais assustada do que imaginava.
***

Raine e Miles desceram, lado a lado, a larga escadaria em espiral da casa


dos Revedoune. Só tinham chegado na noite anterior, pois Gavin insistira
em adiar o enlace iminente pelo maior tempo possível. Raine tentou
convencer o irmão mais velho a visitar a noiva, mas ele recusou. Disse que
a veria por muitos anos – então por que começar cedo a maldição?
Quando Miles regressara do compromisso, depois de oficiar o contrato,
fora Raine a questioná-lo sobre a herdeira. Como de costume, Miles disse
pouco, mas Raine sabia que ele estava a esconder algo. Agora que Raine
tinha visto Judith, percebeu o que era.
– Por que não contaste a Gavin? – acusou Raine. – Sabes o quanto teme
que se trate de uma herdeira feia.
Miles não sorriu, mas os olhos brilharam ao recordar a visão da sua
cunhada.
– Pensei que talvez lhe fizesse bem-estar errado ao menos uma vez.
Raine sufocou o riso. Gavin às vezes tratava o irmão mais novo como se
ele fosse um menino em vez de um homem de vinte anos. O silêncio de
Miles em não mencionar a Gavin a beleza da sua noiva era um pequeno
castigo para tanto autoritarismo que Gavin frequentemente demonstrara
para com o irmão mais novo. Raine deu uma risada curta.
– Pensar que Gavin ma ofereceu e nem sequer tentei! Se a tivesse visto
antes, lutaria por ela. Achas que é tarde de mais?
Se Miles respondeu, Raine não o ouviu. Os seus pensamentos estavam
fixos na sua primeira memória da baixinha cunhada, cuja cabeça mal lhe
chegava ao ombro. Havia apreciado esse detalhe antes de lhe ver o rosto.
Depois de a olhar nos olhos, ouro tão puro e rico como o da Terra Santa, já
não viu mais nada. Judith Revedoune tinha-o enfrentado com um olhar
inteligente e sereno, como se estivesse a avaliá-lo. Raine limitara-se a olhar,
incapaz de falar, enquanto se sentia arrastado pela corrente daqueles olhos.
Ela não exibia um sorriso afetado, nem ria infantilmente, como quase todas
as jovens donzelas: olhava-o de igual para igual, e essa sensação era
inebriante. Miles teve de dar-lhe uma cotovelada para que falasse. Raine
não ouviu uma única palavra de ninguém, mas limitou-se a ficar de pé e a
olhar fixamente. Imaginou-se a levá-la para longe daquela casa e de todas
as pessoas para torná-la sua. Sabia que devia partir antes de ter outros
pensamentos indecentes sobre a esposa do irmão.
– Miles – disse, com as faces profundamente sulcadas pelas covinhas,
como sempre lhe sucedia, quando continha o riso –, talvez possamos fazer
com que o nosso irmão mais velho pague por nos exigir demasiadas horas
no campo de treinamento.
– O que estás a planear? – Os olhos de Miles ardiam de interesse.
– Se a memória não me falha, acabo de ver uma anã hedionda de dentes
podres e um traseiro incrivelmente gordo.
Miles começou a sorrir. Na verdade, tinham visto um verdadeiro
espantalho ao descer as escadas.
– Entendo. Não temos de mentir, mas nada nos obriga a dizer toda a
verdade.
– É o que eu penso.
***

Ainda era de manhã cedo quando Judith seguiu as criadas pelas escadas
de madeira até ao grande salão no segundo andar. O chão fora coberto de
junco fresco; as tapeçarias que estavam guardadas haviam sido penduradas
e o chão entre a porta e a parte de trás do salão era um caminho de pétalas
de rosas e de lírios. Passaria por ali quando voltasse da igreja – uma mulher
casada.
Maud caminhava atrás da ama, segurando bem alto a longa cauda do
frágil vestido dourado e o manto orlado de arminho. Judith fez uma pausa
antes de sair de casa e respirou fundo para ganhar coragem.
Os olhos levaram um momento para se adaptarem à forte luz do Sol e
avistarem a longa fila de pessoas que tinham comparecido para testemunhar
o casamento da filha de um conde. Não estava preparada para receber os
aplausos que a saudaram, gritos de boas-vindas e de prazer ante a visão de
tão esplêndida jovem.
Judith sorriu em resposta, acenando com a cabeça para os convidados,
servos e mercadores que também tinham vindo assistir às festividades.
O trajeto para a igreja seria como um desfile, criado para mostrar a
riqueza e a importância do conde do rei, Robert Revedoune. Mais tarde,
poderia gabar-se de que muitos condes e barões tinham vindo homenagear o
casamento da filha. Os menestréis conduziram a procissão, anunciando com
entusiasmo a passagem da bonita noiva. Judith foi colocada num cavalo
branco pelo seu próprio pai, que esboçou um sinal de aprovação quanto ao
seu vestido e porte. Ela montou de lado para esta ocasião auspiciosa;
tratava-se de uma posição invulgar para ela e que a incomodava, mas
dissimulou. A mãe cavalgava atrás, ladeada por Miles e Raine. Uma
multidão de convidados seguia por ordem de importância.
Com um grande estrépito de címbalos, os menestréis começaram a cantar
e a procissão pôs-se a caminho. Moviam-se lentamente, seguindo os
músicos e Robert Revedoune, que conduzia o cavalo da filha pelas rédeas.
Apesar de todos os seus votos e juramentos, Judith descobriu que ficava
mais nervosa a cada passo; a curiosidade sobre o noivo começou a
consumi-la. Sentou-se ereta, mas semicerrou os olhos na direção da porta da
igreja, onde se encontravam duas figuras de pé: o padre e o estranho que
seria seu marido.
Gavin não estava tão curioso. Ainda se sentia enjoado com base na
descrição de Raine: aparentemente, a jovem era simplória e feia. Tentou
desviar os olhos da procissão que se aproximava rapidamente, mas o
barulho dos menestréis e os gritos ensurdecedores dos milhares de servos e
de mercadores, que se alinhavam no caminho, impediam-no de ouvir os
seus próprios pensamentos. O seu olhar foi atraído involuntariamente para o
desfile. Não se apercebera de que estavam tão perto!
Quando ergueu o rosto e viu uma jovem de cabelo ruivo montada na sela
de um cavalo branco, não fazia ideia de quem poderia tratar-se, e levou um
minuto a perceber que era a sua noiva. O sol brilhava sobre ela como se
fosse uma deusa pagã revivida. Fitou-a boquiaberto. Depois esboçou um
sorriso. Raine! Era de esperar que Raine mentisse! Gavin ficou tão aliviado
e tão feliz que, inadvertidamente, abandonou o portal da igreja e desceu a
escadaria, de dois em dois e depois de três em três degraus. O costume
ditava que o noivo esperasse até que o pai da noiva a desmontasse do
cavalo e a acompanhasse até à escadaria para apresentá-la ao seu novo amo.
Mas Gavin queria vê-la melhor. Sem ouvir os risos e aplausos dos
espetadores, afastou o sogro para o lado, com um empurrão, e colocou as
mãos na cintura da noiva para a tirar do cavalo.
De perto, era ainda mais bonita. Os olhos de Gavin deleitaram-se com
aqueles lábios macios, carnudos e convidativos. A sua pele era límpida,
cremosa e pura, mais suave do que o melhor cetim. E, quando finalmente a
olhou nos olhos, esteve prestes a soltar uma exclamação.
Gavin sorriu-lhe extasiado e ela devolveu o sorriso, expondo os dentes
brancos e regulares. O rugido da multidão trouxe-o de volta à realidade.
Gavin colocou-a relutantemente no chão e ofereceu-lhe o braço, apertando a
mão sobre a dela como se ela pudesse tentar fugir. Tinha toda a intenção de
manter esta nova posse.
Os espetadores ficaram totalmente satisfeitos com o comportamento
impetuoso de Gavin Montgomery e deram voz à sua aprovação. Robert
franziu o cenho ao ser empurrado para o lado e depois viu que cada um dos
convidados tinha um sorriso nos lábios.
A cerimónia de casamento foi realizada no adro da igreja, para que todos
pudessem testemunhar o enlace, porque dentro não caberiam. O padre
perguntou a Gavin se aceitaria Judith Revedoune para sua esposa. Gavin
olhou para a mulher que estava ao seu lado, com os cabelos soltos até à
cintura, onde formava cachos perfeitos.
– Aceito – respondeu.
Em seguida, o padre perguntou a Judith, que olhava para o seu prometido
com a mesma franqueza. Este vestia cinzento da cabeça aos pés. O gibão e
o casaco de ombros largos eram de veludo italiano macio. O casaco estava
totalmente forrado de um vison escuro, que formava um colarinho largo no
pescoço, e uma borda estreita na parte dianteira. O seu único ornamento era
a espada pendurada no quadril, o punho incrustado com um grande
diamante que brilhava sob a luz do Sol.
Embora as criadas tivessem dito que Gavin era bonito, Judith não
esperava encontrar um homem com tal poder e força, mas algum jovem
delicado e loiro. Observou o seu espesso cabelo negro que se encaracolava
ao longo do pescoço, viu os lábios que lhe sorriam e, em seguida, os olhos
que, de súbito, lhe provocaram um arrepio na espinha. Para deleite da
multidão, o padre teve de repetir a pergunta. Judith sentiu as faces a arder
quando disse:
– Sim. – Estava indubitavelmente disposta a aceitar Gavin Montgomery.
Fizeram juras de amor, honra e obediência. Seguiu-se a troca de alianças
enquanto a multidão, temporariamente silenciosa, soltava bramidos que
ameaçavam o telhado da igreja. Quando o dote de Judith foi lido para os
convidados e espectador, dificilmente podia ser ouvido. Judith e Gavin, dois
belos jovens, contavam com o afeto de todos. Os noivos receberam cestas
com moedas de prata, que atiraram ao povo junto aos degraus. Em seguida,
o casal seguiu o padre até ao interior da igreja, tranquila e relativamente
escura.
Gavin e Judith ocuparam lugares de honra no coro, acima da multidão de
convidados. Pareciam crianças pelo modo como trocaram olhares furtivos
durante a longa e solene missa. Os convidados observavam com adoração,
encantados por esta união que começava como um conto de fadas. Os
menestréis já estavam a escrever as canções que entoariam mais tarde,
durante o banquete. Os servos e os mercadores encontravam-se fora da
igreja e trocavam comentários sobre as roupas requintadas dos hóspedes e,
acima de tudo, sobre a beleza da noiva.
Mas havia uma pessoa que não estava feliz. Alice Valence sentou-se ao
lado da figura gorda e sonolenta do seu futuro marido, Edmund Chatworth,
e encarou a noiva com todo o ódio da sua alma. Gavin tinha feito papel de
idiota! Até mesmo os servos haviam rido dele quando desceu as escadas a
correr ao encontro daquela mulher, como um menino que corre em direção
ao seu primeiro cavalo.
Como poderia alguém pensar que aquela cadela ruiva era linda? Alice
sabia que as sardas sempre acompanhavam os cabelos vermelhos.
Desviou o olhar de Judith e fixou Gavin. Era ele quem a enfurecia. Alice
conhecia-o melhor do que ele mesmo. Embora um rosto bonito pudesse
fazê-lo saltar como um palhaço, ela sabia que as suas emoções eram
profundas. Havia-lhe dito que a amava e era verdade. Iria lembrá-lo o mais
rapidamente possível. Não permitiria que a esquecesse quando estivesse na
cama com aquele demónio ruivo.
Alice olhou para as suas mãos e sorriu. Ela possuía um anel... sim. Um
pouco mais calma, olhou novamente para o casal de noivos enquanto um
plano se formava na sua mente.
Viu que Gavin pegava na mão de Judith para beijá-la, ignorando Raine
que lhe lembrava que estavam na igreja. Alice sacudiu a cabeça. Essa tola
nem sabia como reagir. Deveria ter baixado os olhos e ficado ruborizada.
No que lhe dizia respeito, sabia corar de uma forma muito conveniente.
Mas Judith Revedoune limitou-se simplesmente a olhar para o marido,
atenta a cada um dos seus movimentos, enquanto ele pressionava os lábios
nas costas da mão dela. «Nada feminina», pensou Alice.
Naquele momento, Alice não era ignorada; alguém estava a observá-la.
Raine, que se encontrava lá em cima no coro, cravou os olhos em Alice e
notou o cenho franzido que enrugava a sua testa perfeita. Sem dúvida
alguma, a jovem não tinha ideia de que estava a fazer isso, pois sempre
tivera o cuidado de mostrar apenas o que devia ser visto.
«Fogo e gelo», pensou. A beleza de Judith assemelhava-se a fogo,
contrastando com a palidez gelada da loira Alice. Sorriu ao pensar na
facilidade com que o fogo derretia o gelo, mas depois lembrou-se que tudo
dependia do calor do fogo e da grandeza do bloco de gelo. O irmão era um
homem sensato e sensível, racional em todos os aspetos, exceto um: Alice
Valence. Gavin adorava-a e ficava louco quando alguém insinuava as falhas
dela. A sua nova esposa exercia atração sobre Gavin e ao mesmo tempo
sentia-se atraída por ele, mas por quanto tempo? Poderia superar o facto de
que Alice havia roubado o seu coração? Raine esperava que sim. Ao olhar
de uma mulher para a outra, percebeu que Alice poderia ser uma mulher
para adorar, mas Judith era uma mulher para amar.
Capítulo Cinco

No final da longa missa de casamento, Gavin pegou na mão de Judith e


conduziu-a pelos degraus até ao altar, onde se ajoelharam diante do
sacerdote enquanto ele os abençoava. O homem santo deu a Gavin o beijo
da paz, que ele transmitiu à esposa. Deveria ter sido um beijo simbólico;
mas embora terminasse rapidamente, os lábios de Gavin permaneceram
sobre os dela, fazendo com que Judith o fitasse, os olhos dourados
refletindo ao mesmo tempo prazer e surpresa.
Gavin esboçou um amplo sorriso, cheio de pura alegria, agarrou-lhe
novamente na mão e levou-a para fora da igreja, quase a correr. Uma vez no
exterior, a multidão atirou uma chuva de arroz, que, pela enorme
quantidade, foi quase mortal. Ele ergueu Judith para a sentar na sela, e a sua
cintura era muito fina, ainda que envolta em muitas camadas de tecido.
Gavin gostaria de sentá-la na sua montada com ele, mas já tinha faltado
amplamente aos costumes quando a vira pela primeira vez. Ia a pegar nas
rédeas do cavalo, mas Judith conduziu o seu próprio animal e Gavin ficou
satisfeito: a sua esposa devia ser uma boa amazona.
Os noivos encabeçaram a procissão de volta à casa senhorial de
Revedoune. Gavin segurava a mão dela com força quando entraram no
grande salão, recentemente limpo. Judith olhou para as pétalas de rosas e os
lírios espalhados pelo chão. Há apenas umas horas, essas flores tinham-lhe
parecido o prenúncio de algo terrível, que estava prestes a acontecer. Agora,
fitando os olhos cinzentos de Gavin que lhe sorriam, a ideia de ser sua
esposa não parecia assim tão horrível.
– Daria qualquer coisa para conhecer os vossos pensamentos – disse
Gavin, aproximando os lábios do seu ouvido.
– Estava a pensar que este casamento não parece tão terrível como
imaginava.
Gavin ficou atordoado por um momento e em seguida atirou a cabeça
para trás e soltou uma gargalhada. Judith não fazia ideia de que o insultara e
elogiara na mesma frase. Uma jovem bem treinada nunca teria admitido que
não gostava da ideia de se casar com o homem escolhido para ela.
– Bem, minha esposa – disse com os olhos brilhantes. – Estou mais do
que satisfeito.
Foram as primeiras palavras que trocaram. Não tiveram tempo para mais.
Os noivos tinham de se colocar à frente de uma fila para saudar as centenas
de convidados que iriam felicitá-los.
Judith permaneceu serena junto ao marido, sorrindo para cada um dos
convidados. Conhecia muito poucos deles, dado que a sua vida fora tão
isolada. Robert Revedoune estava de lado, vigiando a filha para se certificar
de que não cometesse erros. Não teria a certeza de se ter libertado dela até
que o casamento fosse consumado.
Judith tinha-se preocupado com o facto de que as suas roupas fossem
excessivamente ricas, mas, enquanto observava os convidados,
murmurando «obrigado», percebeu que o seu traje era conservador. Os
convidados estavam vestidos com cores de pavão: vários deles com todas
num só corpo. As mulheres usavam vermelhos, púrpuras e verdes. Havia
quadrados, listas, brocados, apliques e bordados exuberantes. O dourado e o
verde de Judith destacavam-se pela sua discrição.
De súbito, Raine agarrou Judith pela cintura, levantou-a bem acima da
sua cabeça, e depois aplicou um sonoro beijo em cada face.
– Bem-vinda ao clã Montgomery, irmãzinha – disse-lhe num tom suave,
as faces sulcadas por covinhas profundas.
Judith gostou dessa franqueza e abertura. Miles veio a seguir. Conhecera-
o quando se apresentara como procurador de Gavin. Desta vez, fitara-a
como um dos falcões das cavalariças.
Miles continuava a olhá-la de uma forma estranha e penetrante e ela
desviou os olhos para o marido, que parecia estar a repreender Raine por
algum gracejo sobre uma mulher feia. Raine, mais baixo do que Gavin,
estava vestido com uma jaqueta de veludo preto, orlada a prata; as covinhas
profundas e os olhos azuis sorridentes faziam dele um homem bonito. Miles
era tão alto quanto o irmão mais velho, mas de constituição mais leve. Dos
três, as roupas de Miles eram as mais brilhantes e luxuosas: usava um gibão
verde-escuro de lã e um casaco verde brilhante, forrado com pele de
zibelina preta. Os quadris estreitos estavam cingidos por um cinto largo de
couro cravejado de esmeraldas.
Os três eram fortes e elegantes, mas, estando juntos, Gavin ofuscava os
outros. Pelo menos, aos olhos de Judith. Gavin sentiu que ela o fitava e
virou-se na sua direção. Pegou-lhe na mão e depositou um beijo nos seus
dedos. Judith sentiu o coração acelerado quando Gavin colocou a ponta de
um dedo na boca, tocando a língua.
– Penso que deverias esperar um pouco, irmão, embora compreenda a
razão de tal impaciência – comentou Raine com uma gargalhada.
– Fala-me outra vez das herdeiras gordas e sobrealimentadas.
Gavin soltou a mão da esposa com relutância.
– Podes rir de mim como te aprouver, mas sou eu quem a possui, por isso,
serei o último a rir. Ou talvez «rir» não seja a palavra certa.
Raine soltou um som gutural e deu uma cotovelada em Miles.
– Anda, vamos ver se podemos encontrar mais deusas de olhos dourados
neste lugar. Dá um beijo de boas-vindas à tua nova cunhada e vamos
embora.
Miles ergueu a mão de Judith e beijou-a prolongadamente, sem desviar os
olhos por um instante.
– Creio que vou reservar o beijo para um momento de maior intimidade –
disse antes de seguir o irmão.
Gavin colocou o braço possessivamente em volta dos ombros de Judith.
– Não deixes que te incomodem, estão só a brincar.
– Gosto bastante das brincadeiras deles.
Gavin sorriu-lhe e depois soltou-a bruscamente.
Tocá-la quase o incendiou. Ainda faltavam muitas horas para se deitar
com ela. Se queria chegar ao final do dia, teria de manter as mãos longe
dela.
Mais tarde, quando Judith aceitou um beijo de uma mulher mirrada,
condessa de algum lugar, usando um vestido cintilante de cetim púrpura,
sentiu que Gavin se enrijecia ao seu lado. Seguiu a direção dos seus olhos
até uma mulher tão bonita que vários homens a fitavam boquiabertos.
Quando ela ficou diante da noiva, Judith surpreendeu-se com o ódio que
incendiava aqueles olhos azuis. Sentiu-se quase tentada a fazer o sinal da
cruz como meio de se proteger. Risos chamaram a atenção de Judith e viu
que várias pessoas se divertiam com o espetáculo dessas duas mulheres,
belas e muito diferentes, face a face.
A loira passou rapidamente junto a Gavin, recusando-se a encontrar os
seus olhos e Judith notou uma expressão de dor no rosto do marido. Foi um
encontro intrigante e desconcertante, que não conseguiu entender.
Por fim, a receção terminou. Todos os convidados haviam felicitado os
recém-casados, o pai de Judith tinha dado a cada pessoa um presente, de
acordo com a sua importância e, finalmente, as trombetas soaram indicando
que o banquete iria começar.
Enquanto os convidados felicitavam os noivos, as mesas haviam sido
armadas no grande salão e já estavam a abarrotar de comida: galinha, pato,
perdiz, cegonha, faisão, carne de porco e de vaca. Havia tortas de carne e
doze tipos de peixes. Abundavam legumes, temperados com especiarias do
Oriente. Os primeiros morangos da estação seriam servidos, bem como
algumas romãs raras e caras.
A riqueza da propriedade era visível nos pratos de ouro e prata utilizados
pelos convidados mais importantes sentados na mesa principal, numa
plataforma ligeiramente elevada. Judith e Gavin tinham copos iguais: altos,
finos, feitos de prata com bases finamente trabalhadas de ouro.
No centro, havia uma área aberta, onde cantavam os bardos e atuavam os
artistas. Havia dançarinas do ventre, que se moviam sedutoramente,
acrobatas e uma trupe itinerante que representava uma peça. O barulho era
tremendo e enchia o imenso hall, cuja altura era de dois andares.
– Não comes muito – observou Gavin, tentando não gritar, mas era difícil
ser ouvido acima de todo aquele ruído.
– Não! – Ela olhou-o com um sorriso. A ideia de que aquele estranho era
seu marido cruzava a sua mente com insistência. Gostaria de tocar a
covinha do seu queixo.
– Vem – propôs ele e pegou-lhe na mão para a ajudar a levantar-se.
Ouviram-se aplausos, gritaria, gargalhadas e obscenidades dispersas,
enquanto Gavin levava a esposa para fora do grande salão, mas ninguém
virou a cabeça.
Saíram lá para fora. Passaram pelos campos, cheios de flores primaveris
que roçavam o comprido vestido de Judith. À direita estavam as tendas de
quem iria participar no torneio no dia seguinte. Em cada tenda flutuava um
estandarte identificando o seu ocupante, e, por toda a parte, dominava o
leopardo dos Montgomery. O estandarte mostrava três leopardos colocados
em sentido vertical, bordados com fios de ouro reluzentes sobre um campo
verde-esmeralda.
– São todos teus familiares? – perguntou Judith e Gavin olhou por cima
da sua cabeça.
– Primos e tios. Quando Raine disse que éramos um clã, não estava a
mentir.
– És feliz com eles?
– Feliz? – Gavin encolheu os ombros. – São Montgomery – disse, o que
para ele parecia responder à pergunta.
Pararam numa pequena colina, de onde se viam as tendas lá em baixo. Ele
segurou-lhe a mão, enquanto Judith espalhava as saias para se sentar. Gavin
estendeu-se ao seu lado, a todo o comprimento, com as mãos atrás da
cabeça.
Judith sentou-se de costas para o seu rosto, com as pernas de Gavin
esticadas diante dela. Apreciou a curva dos músculos acima do joelho, onde
se arredondavam para a coxa. Judith sabia sem sombra de dúvida que cada
uma das suas coxas era maior que a cintura dela. Inesperadamente,
estremeceu.
– Estás com frio? – perguntou Gavin, imediatamente alerta. Soergueu-se
nos cotovelos e observou quando ela sacudiu a cabeça. – Espero que não te
tenhas importado em sair por um tempo. Vais pensar que não tenho boas
maneiras – primeiro na igreja e agora isto, mas estava muito barulho e
queria que ficássemos a sós.
– Também eu – admitiu ela sinceramente enquanto se virava para encará-
lo.
Gavin levantou uma mão e pegou num dos seus caracóis, observando
como se enrolava no seu pulso.
– Fiquei surpreendido ao ver-te; tinha ouvido dizer que eras feia. – Os
olhos brilharam quando enrolou a madeixa de cabelo entre os dedos.
– Onde ouviste isso?
– Toda a gente era de opinião que se Revedoune mantinha a filha
escondida, só podia ser por esse motivo.
– Pelo contrário, eu era mantida escondida dele.
Judith não disse mais nada, mas Gavin havia compreendido. Não gostava
muito desse homem brigão, que punia os fracos e se acobardava diante dos
fortes.
Gavin sorriu-lhe.
– Estou muito satisfeito contigo. És mais do que um homem poderia
esperar.
De súbito, Judith lembrou-se do doce beijo na igreja. Como seria beijar
de novo, sem pressa? Tinha tão pouca experiência com os costumes entre
homens e mulheres.
Gavin ficou sem fôlego quando a viu a fixar a sua boca. Um rápido olhar
para o Sol indicou-lhe que ainda faltavam muitas horas para tê-la só para si.
Não começaria o que não poderia terminar.
– Devemos voltar – disse bruscamente. – O nosso comportamento fará
com que as más-línguas falem por vários anos. – Ajudou-a a levantar-se e
ao tê-la tão perto baixou os olhos para o seu cabelo, inalando a sua
fragrância especial. Sabia que o sol o tinha aquecido e a sua única intenção
era dar um beijo casto nos seus cabelos, mas Judith ergueu o rosto para lhe
sorrir. Em instantes, abraçou-a e pousou os lábios nos dela.
O pouco conhecimento que Judith possuía sobre homens e mulheres
provinha de conversas escutadas das suas criadas, que riam à gargalhada e
comparavam as façanhas amorosas de um homem com outro. Então Judith
reagiu ao beijo de Gavin, não com a reticência apropriada de uma dama,
mas com todo o entusiasmo que sentia.
Colocou as mãos atrás da sua nuca e os lábios abriram-se sob os dele.
Encostou o corpo ao dele. Como era forte! Os músculos do seu peito eram
duros contra a suavidade dos seus seios, as coxas assemelhavam-se a ferro.
Gostava da sensação dele, do cheiro dele. Os braços apertaram-se em redor
do corpo másculo.
De súbito, Gavin recuou, com a respiração ofegante.
– Pareces saber demasiado sobre beijar – constatou, enraivecido. – Tens
beijado muito?
A mente e o corpo de Judith estavam demasiado cheios da novidade de
sensações excitantes para ter percebido o seu tom.
– Nunca beijei nenhum homem. As minhas criadas disseram-me que era
agradável, mas é mais do que isso.
Ele olhou-a fixamente, sabendo reconhecer uma resposta sincera quando
ouvia uma.
– Vamos voltar agora e rezar para que o Sol se ponha dentro em pouco.
Judith afastou as faces ruborizadas para longe e caminhou atrás dele.
Seguiram lentamente de regresso ao castelo, sem que nenhum falasse.
Gavin parecia absorto na construção de mais uma tenda. Se não estivesse a
agarrar a mão da esposa com tanta força, ela teria pensado que a esquecera.
Como estava a olhar para o lado contrário, Gavin não viu Robert
Revedoune, que os esperava. Mas Judith viu. Reconhecendo raiva nos olhos
dele, preparou-se para o enfrentar.
– Sua cabra! – sibilou Robert. – Caminhas ofegante atrás dele como uma
cadela no cio. Não vou ter toda a Inglaterra a rir de mim! – Levantou o
braço e baixou as costas da mão contra o rosto de Judith.
Gavin precisou de um momento para reagir. Não imaginaria um pai a
esbofetear a filha. Quando tomou consciência, descarregou o punho no
rosto do sogro, deixando-o estendido no chão e completamente atordoado.
Judith fitou o marido. Os olhos dele haviam escurecido e o maxilar
transformara-se em granito.
– Não se atreva a tocar-lhe novamente – ordenou Gavin, com uma voz
baixa e letal. – O que é meu, eu guardo e cuido. – Deu outro passo na
direção de Revedoune.
– Por favor, não – disse Judith e agarrou no braço do marido. – Estou
ilesa e fizeste-o pagar por uma pequena bofetada.
Gavin não se moveu. Os olhos de Robert Revedoune passaram da filha
para o genro. Sabia que era melhor não falar. Levantou-se devagar e
afastou-se.
Judith puxou a manga do marido.
– Não deixes que ele estrague o dia: ele não sabe nada, exceto usar os
punhos. – A sua mente rodopiava. Os poucos homens que conhecera teriam
pensado que era um direito do pai bater na filha. Talvez Gavin só pensasse
nela como uma propriedade, mas algo na forma como falara fez com que
Judith se sentisse protegida, quase amada.
– Anda cá, deixa-me olhar-te – disse Gavin, num tom revelador de que
estava a tentar ao máximo controlar-se.
Deslizou as pontas dos dedos sobre os seus lábios, procurando contusões
ou cortes. Ela estudou a sombra do queixo, até onde as suíças se estendiam
sobre a pele barbeada. O contacto enfraqueceu-lhe os joelhos. Levantou a
mão e colocou a ponta de um dedo na cova do seu queixo. Ele interrompeu
a sua exploração e olhou-a de frente. Ambos ficaram em silêncio por um
longo momento.
– Devemos voltar – disse ele, muito entristecido. – Agarrou-lhe o braço e
conduziu-a de volta ao castelo.
Tinham demorado mais tempo do que imaginavam. A comida havia sido
retirada e as mesas de cavalete estavam desmontadas e empilhadas contra a
parede. Os músicos afinavam os instrumentos, preparando-se para tocar
para o baile.
– Gavin – chamou alguém –, vais tê-la para o resto da vida. Não precisas
monopolizá-la hoje também.
Judith agarrou-se ao braço de Gavin, mas foi rapidamente atraída para um
círculo de dançarinos enérgicos. Enquanto a empurravam e a puxavam com
passos vigorosos e rápidos, tentou não desviar os olhos do marido. Não
queria perdê-lo de vista.
A risada de um homem fez com que erguesse o rosto.
– Irmãzinha – disse Raine –, ocasionalmente, deverias reservar um olhar
para nós.
Judith sorriu-lhe, pouco antes que um braço forte a fizesse rodopiar,
levantando-a do chão. Quando voltou para o lado de Raine, disse:
– Como posso ignorar homens tão bonitos como os meus cunhados?
– Falaste muito bem, mas se os teus olhos não mentem, o meu irmão é o
único a colocar a luz das estrelas nesses pedaços de ouro.
Mais uma vez alguém empurrou Judith para longe e, quando foi levantada
no braço do homem, viu Gavin a sorrir para uma mulher baixa e bonita,
com um vestido de tafetá púrpura e verde. Judith observou a mulher tocar o
veludo no peito de Gavin.
– Onde está esse sorriso? – perguntou Raine quando ela regressou até
junto dele. Virou-se e olhou para o irmão.
– Acha-la bonita? – perguntou Judith.
Raine controlou-se para não rir em voz alta.
– Feia! Ela é um ratinho castanho e Gavin não lhe pegaria. – Porque toda
a gente já o fez, pensou.
– Ah! – suspirou. – Vamos sair daqui e beber um pouco de sidra. –
Agarrou-lhe no braço e levou-a para o lado oposto da sala onde estava
Gavin.
Judith ficou quieta na sombra de Raine e observou Gavin conduzir a
mulher de cabelos castanhos para a pista de dança. Cada vez que ele tocava
na mulher, uma rápida sensação de dor atravessava o peito de Judith. Raine
estava absorvido em alguma conversa com outro homem. Ela pousou a taça
e caminhou lentamente, a coberto das sombras do corredor, até lá fora.
Atrás da mansão havia um pequeno jardim murado. Toda a sua vida,
quando precisava ficar sozinha, Judith tinha ido para aquele jardim. A
imagem de Gavin agarrando a mulher nos seus braços estava marcada a
fogo diante de seus olhos. Mas por que deveria importar-se? Nem o
conhecia há um dia. Então o que importava se ele tocasse em mais alguém?
Sentou-se num banco de pedra, escondido do resto do jardim. Poderia
estar com ciúmes? Nunca tinha experimentado a emoção na sua vida, mas
tudo o que sabia era que não queria ver o seu marido a olhar ou a tocar
noutras mulheres.
– Pensei que te encontraria aqui.
Judith ergueu os olhos para a mãe e depois voltou a baixá-los.
Helen sentou-se rapidamente ao lado da filha.
– Passa-se alguma coisa? Ele tem sido indelicado contigo?
– Gavin? – perguntou Judith lentamente, gostando do som do nome. –
Não. Ele é mais do que gentil.
Helen não gostou do que viu no rosto de Judith. Também o dela mostrara
essa expressão noutros tempos. Agarrou os ombros da filha, embora o
movimento lhe fizesse doer o braço ainda por curar.
– Deves ouvir-me! Adiei demasiado esta conversa contigo. Todos os dias
esperava que alguma coisa impedisse esse casamento, mas não foi assim.
Vou dizer-te uma coisa que precisas saber. Nunca, nunca deves confiar num
homem.
Judith queria defender o marido.
– Mas Gavin é um homem honrado – disse ela, teimosamente.
Helen deixou cair as mãos sobre o colo.
– Ah, sim, eles são honrados e sinceros entre eles, para os seus homens,
mesmo para os seus cavalos; mas, para o homem, uma mulher significa
menos do que o seu cavalo. Uma mulher é mais facilmente substituída,
menos valiosa. Um homem é incapaz de mentir ao mais vil dos seus
vassalos e não se importa de inventar as maiores histórias para a sua esposa.
Não tem nada a perder. O que é uma mulher?
– Não! – exclamou Judith. – Não posso acreditar que todos os homens
sejam assim.
– Então terás uma vida longa e infeliz, como no meu caso. Se tivesse
aprendido isso com a tua idade, a minha vida teria sido diferente.
Acreditava estar apaixonada pelo teu pai. Cheguei a dizer-lhe isso. Ele riu-
se de mim. Sabes o que significa para uma mulher entregar o seu coração a
um homem e ver que ele o recebe com uma risada?
– Mas os homens amam as mulheres... – começou Judith. Não podia
acreditar nas palavras da mãe.
– Eles amam as mulheres, mas somente aquela cuja cama ocupam e,
quando se cansam dela, amam outra. Há apenas uma ocasião em que uma
esposa tem qualquer controlo sobre o marido, e isso acontece quando ela é
novidade para ele, quando a magia da cama domina o homem. Então ele vai
«amar-te» e poderás controlá-lo.
Judith levantou-se, ficando de costas para a mãe.
– Não! Nem todos os homens podem ser assim. Gavin é... – Não
conseguiu terminar.
Alarmada, Helen dirigiu-se à filha e parou diante dela.
– Não me digas que pensas que estás apaixonada por ele. Judith, minha
doce Judith, dezassete anos nesta casa e não aprendeste nada, não viste
nada? O teu pai era assim em outros tempos. Acredites ou não, também fui
bonita e agradava-lhe. É por isso que te digo essas coisas. Pensas que
gostaria de revelá-las à minha única filha? Preparei-te para a Igreja, para te
poupar. Por favor, presta atenção. Tens de te afirmar perante ele desde o
início; então, vai escutar-te. Nunca demonstres medo. Quando a mulher
deixa transparecer o seu medo, o homem sente-se forte. Se impuseres
exigências desde o início, talvez te escute. De contrário, será tarde de mais.
Haverá outras mulheres e...
– Não! – gritou Judith.
Helen olhou-a com uma enorme tristeza. Não podia salvar a filha da dor
que a esperava.
– Preciso voltar para junto dos convidados. Vens comigo?
– Não – respondeu Judith suavemente. – Vou daqui a pouco. Preciso de
pensar algum tempo.
Helen encolheu os ombros e saiu pelo portão lateral. Não havia mais nada
que pudesse fazer.
Judith sentou-se quieta no banco de pedra, os joelhos dobrados sob o
queixo. Defendera o marido contra o que a mãe dissera. Pensou
repetidamente em centenas de maneiras de mostrar que Gavin era muito
diferente do seu pai, na sua maioria criadas a partir da sua imaginação.
Os seus pensamentos foram interrompidos pelo som da abertura do
portão. Uma mulher magra entrou no jardim. Judith reconheceu-a
imediatamente. Vestia-se de modo a prender a atenção das pessoas. O lado
esquerdo do corpete era de tafetá verde; o direito era vermelho. As cores
estavam invertidas na saia. Os movimentos eram estudados. Do seu banco
escondido atrás das madressilvas, Judith observou. A sua primeira
impressão ao vê-la na fila de receção foi que Alice Valence era linda, mas
agora ela não parecia assim. O queixo parecia fraco, a boca era pequena e
de lábios apertados, como a revelar o mínimo possível. Os olhos brilhavam
como gelo. Judith ouviu uns pesados passos masculinos do outro lado do
muro e dirigiu-se ao portão mais pequeno que a mãe usara para sair. Queria
dar privacidade à mulher e ao amante, mas as primeiras palavras fizeram-na
parar. Era uma voz que havia reconhecido.
– Por que me pediste que me encontrasse contigo aqui? – perguntou
Gavin, num tom rígido.
– Oh, Gavin – exclamou Alice, pousando as mãos nos seus braços. –
Estás tão frio comigo. Conseguiste esquecer-me? O teu amor por esta nova
esposa é assim tão forte?
Gavin franziu a testa, sem lhe tocar, mas também sem se afastar.
– Podes falar-me de amor? Implorei que te casasses comigo, propus
aceitar-te sem um dote. Ofereci-me para reembolsar o teu pai do que deu a
Chatworth, mas mesmo assim recusaste casar comigo.
– Guardas-me rancor por isso? – reagiu ela. – Não te mostrei as contusões
que o meu pai me fez? Não te contei as vezes em que me trancou sem
comida ou água? O que deveria fazer? Encontrava-me contigo quando
podia, dei-te tudo o que tinha para dar a um homem, contudo, é assim que
me retribuis. Já amas outra. Diz-me, Gavin, alguma vez me amaste?
– Por que falas do meu amor por outra? Não disse que a amo. – A sua
irritação permaneceu inabalável. – Casei-me porque a oferta era boa, essa
mulher traz riquezas, terras e um título também, como tu mesma me
assinalaste.
– Mas quando a viste... – apressou-se Alice a dizer.
– Sou um homem e ela é linda. Claro que fiquei agradado.
Judith tinha intenção de deixar o jardim. Quando viu o marido com a
mulher loira, quis ir embora, mas foi como se o seu corpo se transformasse
em pedra e não pudesse mover-se. Cada palavra que ouviu da boca de
Gavin enterrou uma faca no seu coração. Ele havia implorado a essa mulher
que se casasse com ele e aceitava Judith, por causa da sua riqueza, como
uma segunda escolha. Ela era uma tola! Encarara o seu toque, as suas
carícias, como uma centelha de amor, mas não era assim.
– Então não a amas? – insistiu Alice.
– Como poderia? Passei menos de um dia com ela.
– Mas podias amá-la – respondeu Alice categoricamente e virou a cabeça
para um lado. Quando o olhou novamente, havia lágrimas nos seus olhos –
grandes, lindas e brilhantes. – Podes garantir que nunca a amarás?
Gavin permaneceu em silêncio.
Alice suspirou pesadamente e depois sorriu através das lágrimas.
– Esperava que pudéssemos encontrar-nos aqui. Pedi que nos mandassem
um pouco de vinho.
– Preciso voltar à festa.
– Não vai demorar muito – disse ela docemente enquanto o conduzia a
um banco contra a parede de pedra.
Judith observou Alice, fascinada. Estava a assistir ao desempenho de uma
grande atriz. Vira a maneira como Alice virara a cabeça e habilmente
colocara a unha no canto do olho para produzir as lágrimas necessárias. As
palavras dela eram melodramáticas. Judith observou Alice a sentar-se
cuidadosamente no banco, evitando esmagar o tafetá duro do vestido, e
depois serviu duas taças de vinho. Num processo lento e elaborado fez
deslizar um grande anel do seu dedo, abriu a tampa articulada e, lentamente,
derramou um pó branco na sua bebida.
Quando começou a beber o vinho, Gavin tirou-lhe a taça da mão e atirou-
a com força pelo jardim.
– O que estás a fazer? – perguntou.
Alice inclinou-se languidamente contra a parede.
– Gostaria de acabar com tudo, meu amor. Posso resistir a qualquer coisa,
se estivermos juntos. Suportarei o meu casamento com outro, e que
desposes a outra, mas preciso ter o teu amor. Sem ele não sou nada. – As
pálpebras descaíram lentamente e ela exibia um olhar de tal paz, como se já
fosse um dos anjos de Deus.
– Alice – disse Gavin, enquanto a agarrava nos braços –, não podes
querer tirar a própria vida.
– Meu doce Gavin, não entendes o que o amor é para uma mulher. Sem
ele já estou morta. Porquê prolongar a minha agonia?
– Como podes dizer que não tens amor?
– Amas-me, Gavin? Só a mim e a mim só?
– Claro. – Ele curvou-se e beijou-a na boca, o vinho ainda nos seus
lábios. O pôr do Sol reavivou a cor aplicada nas suas faces. Os cílios
escuros lançavam uma misteriosa sombra sobre o seu rosto.
– Jura! – insistiu ela com firmeza. – Tens de jurar que só me amarás a
mim e a mais ninguém.
Parecia um pequeno preço a pagar para evitar que ela se matasse.
– Juro.
Alice levantou-se rapidamente.
– Preciso voltar agora, antes que notem a minha ausência. – Parecia
completamente recuperada. – Não me esquecerás? Nem mesmo esta noite?
– sussurrou ela contra os seus lábios, introduzindo as mãos nas suas roupas.
Sem esperar por resposta, furtou-se ao seu alcance e atravessou o portão.
O som de aplausos fez com que Gavin se virasse. Judith estava ali, com o
vestido e os olhos brilhando, refletindo o pôr do Sol.
– Que atuação fantástica – comentou enquanto baixava as mãos. – Há
anos que não me divertia tanto. Essa mulher deveria experimentar o palco
em Londres. Constou-me que há necessidade de bons comediantes.
Gavin avançou na sua direção com a raiva estampada no rosto.
– Pequena mentirosa e falsa! Não tens o direito de me espiar!
– Espiar-te! – rugiu ela. – Saí do salão para tomar um pouco de ar depois
de o meu esposo – pronunciou a palavra com ironia – me deixar sozinha. E,
aqui no jardim, testemunhei como esse mesmo esposo rastejava aos pés de
uma mulher cheia de maquilhagem, capaz de manipulá-lo com o estalar do
dedo mindinho.
Gavin recuou o braço e esbofeteou-a. Uma hora antes, teria jurado que
por nada no mundo seria capaz de magoar uma mulher.
Judith bateu contra o chão, aterrando numa massa de cabelos enredados e
seda dourada. O reflexo do Sol parecia ter-lhe aproximado uma tocha.
Gavin ficou instantaneamente arrependido. Estava desgostoso de si
mesmo e do que tinha feito. Ajoelhou-se para ajudá-la a levantar-se.
Ela afastou-se dele com os olhos brilhantes de ódio. A sua voz era tão
calma, tão seca, que ele mal podia ouvi-la.
– Disseste que não querias casar comigo, que só o fizeste pela riqueza que
te trago com o dote. Também não queria casar-me contigo. Recusei-me até
que, diante dos meus olhos, o meu pai partiu um braço à minha mãe, como
se fosse um galho. Não tenho amor por esse homem, mas tenho ainda
menos por ti. Pelo menos, ele é um homem sincero. Não jura amor eterno
diante de um sacerdote e de centenas de testemunhas, para jurar esse
mesmo amor a outra, apenas uma hora depois. Gavin Montgomery és mais
baixo do que a serpente no Jardim do Éden, e sempre amaldiçoarei o dia em
que me uniram a ti. Fizeste um juramento a essa mulher e agora farei outro.
Juro diante de Deus que lamentarás o dia de hoje. Podes obter a riqueza que
desejas, mas nunca me entregarei a ti de livre vontade.
Gavin afastou-se de Judith como se ela se tivesse transformado em
veneno. A sua experiência com mulheres limitava-se a prostitutas e
amizades com algumas das damas da corte. Todas elas eram recatadas e
castas como Alice. Que direito tinha Judith de lhe fazer exigências, de
amaldiçoá-lo, de fazer juras perante Deus? Um marido era o deus de uma
mulher e, quanto mais cedo aprendesse isso, melhor.
Gavin agarrou num punhado de cabelos de Judith e puxou-a para ele.
– Vou possuir o que quiser e quando quiser e, se assim for, deverás ficar
grata. – Soltou-a e voltou a empurrá-la para o chão. – Agora levanta-te e
prepara-te para te tornares minha esposa.
– Odeio-te – murmurou ela.
– O que me interessa isso? Também não te amo.
Os seus olhos encontraram-se: aço cinza contra ouro. Nenhum dos dois se
moveu até que chegaram as mulheres encarregadas de preparar Judith para
a sua noite de núpcias.
Capítulo Seis

Um quarto especial fora preparado para os noivos. Um grande canto dos


aposentos superiores tinha sido separado em torno de uma das lareiras.
Havia uma enorme cama, coberta com lençóis de linho macio e uma colcha
de pele de esquilo cinzento, forrada com seda carmesim. Pétalas de rosa
estavam espalhadas sobre a cama.
As criadas de Judith e várias das convidadas ajudaram a despir a noiva.
Quando ela estava nua, afastaram as cobertas para trás e Judith deitou-se. A
sua mente não prestava atenção ao que acontecia em seu redor. Continuava
a apelidar-se de idiota. Em poucas horas tinha esquecido dezassete anos do
que aprendera ser verdade sobre os homens. Por algumas horas acreditara
que um deles poderia ser bom e amável, capaz até mesmo de amar. Mas
Gavin era como todos; talvez pior do que os outros.
As mulheres riram com estardalhaço do silêncio de Judith. Mas Helen
sabia que havia mais do que apenas nervosismo envolvido no
comportamento da filha. Sussurrou uma oração silenciosa, pedindo a Deus
que ajudasse a filha.
– És uma mulher afortunada – murmurou uma mulher mais velha ao
ouvido de Judith. – No meu primeiro casamento vi-me na cama com um
homem cinco anos mais velho que meu pai. Agora surpreendo-me que
ninguém o ajudasse a cumprir os seus deveres.
Maud soltou uma risadinha.
– Lorde Gavin não precisará de ajuda – aposto nisso.
– Talvez Lady Judith precise de ajuda, e eu ofereceria os meus... ah...
préstimos de boa vontade – riu outra pessoa.
Judith mal as ouviu. Tudo o que se lembrava de ouvir era o seu marido
prometendo o seu amor a outra mulher, a maneira como abraçava Alice e a
beijava. As mulheres puxaram o lençol para que tapasse os seios de Judith.
Alguém lhe penteou o cabelo para que tombasse numa suave cascata sobre
os ombros nus e repousasse em densos cachos ruivos em torno dos seus
quadris.
Através da porta de carvalho, as mulheres ouviram o ruído dos homens
que chegavam com Gavin carregado aos ombros, com os pés virados para a
frente e já meio despido. Os homens gritavam as suas ofertas de ajuda e as
apostas quanto à competência do seu desempenho para a tarefa que o
esperava. Ficaram em silêncio enquanto o colocavam de pé e olhavam para
a noiva que esperava na cama. O lençol acentuava os ombros cremosos e as
curvas cheias dos seios. A luz das velas salientava as sombras por cima do
lençol. A garganta exposta pulsava com vida. O rosto denotava uma
expressão firme e séria que lhe escurecia os olhos como se deitassem
chispas. Os lábios eram duros, como se tivessem sido esculpidos em algum
cálido mármore vermelho.
– Mãos à obra! – gritou alguém. – Vão torturá-lo a ele ou a mim?
O silêncio estava quebrado. Gavin foi rapidamente despido e empurrado
para a cama. Os homens observaram avidamente quando Maud afastou as
cobertas, proporcionando-lhes um vislumbre dos quadris e das coxas nuas.
– Agora, lá para fora! – ordenou uma mulher alta. – Deixem-nos em paz.
Helen deitou um último olhar à filha, mas Judith fitava as mãos cruzadas
no colo e não via ninguém.
Quando a pesada porta se fechou, o quarto de repente parecia
estranhamente silencioso e Judith teve a dolorosa consciência do homem ao
seu lado. Gavin ficou sentado, olhando para ela. A única luz no quarto era
das chamas que ardiam na lareira em frente aos pés da cama. A luz dançava
nos seus cabelos, brincava com as sombras da sua delicada clavícula.
Naquele momento, ele não se lembrava de terem discutido. Nem possuía
pensamentos de amor. Só sabia que estava na cama com uma mulher
desejável. Moveu a mão para lhe tocar no ombro e ver se a pele era tão
suave quanto parecia.
Judith afastou-se bruscamente dele.
– Não me toques! – exclamou com os dentes cerrados.
Gavin fitou-a, surpreendido. Havia ódio nos seus olhos dourados, tinha as
faces ruborizadas. Se possível, a sua raiva tornava-a ainda mais bonita.
Nunca havia sentido um desejo tão violento. Rodeou-lhe o pescoço com a
mão e enterrou o polegar na carne macia.
– És minha esposa – afirmou em voz baixa. – És minha!
Ela resistiu-lhe com todas as suas forças, mas de nada valiam comparadas
com as dele. Gavin atraiu facilmente o rosto de Judith para o dele.
– Nunca te pertencerei! – cuspiu antes que os seus lábios a silenciassem.
Gavin tencionava ser gentil com ela, mas Judith enfureceu-o. Aquela
mulher fazia com que quisesse amaldiçoá-la, inspirando o desejo de voltar a
bater-lhe. Mas, acima de tudo, queria possuí-la. A sua boca desceu
brutalmente sobre a dela.
Judith tentou afastar-se; ele estava a magoá-la. Não era o beijo doce da
tarde, mas sim um castigo para discipliná-la. Tentou empurrá-lo ao pontapé,
mas o lençol que os separava prendia-lhe os pés e mal conseguia mexer-se.
– Vou ajudar-te – disse Gavin e rasgou o lençol, puxando-o de debaixo do
colchão. A sua mão ainda segurava o pescoço de Judith, mas, quando o
lençol foi atirado ao chão e ela ficou exposta em toda a sua nudez, ele
reduziu a força com que a apertava e fitou-a. Encarou maravilhado os seios
fartos, a cintura estreita, as ancas redondas. Depois voltou a examinar o
rosto dela, com os olhos brilhantes. Os lábios estavam vermelhos do seu
beijo e de repente não havia nenhum poder na terra que pudesse impedi-lo
de tomá-la. Agiu como um homem faminto, desesperado por comida, que
mataria ou mutilaria para conseguir o que desejava.
Empurrou-a para o colchão e Judith viu a expressão dos seus olhos. Não a
compreendeu, mas sentiu medo. Ele planeava mais do que bater-lhe. Disso
ela tinha certeza.
– Não! – sussurrou e lutou contra ele.
Gavin era um cavaleiro experiente. Judith tinha tanta força contra ele
como um mosquito diante de um pedaço de granito. E ele prestou-lhe tanta
atenção como a um inseto. Não fez amor com ela, mas usou o seu corpo.
Gavin estava longe de pensar no prazer dela, como em qualquer outra coisa
além do que desejava e tão desesperadamente precisava. Moveu-se em cima
da jovem, apartando-lhe as pernas com uma coxa. Beijou-a de novo, com
força.
Quando Gavin sentiu a minúscula membrana que o deteve, ficou
momentaneamente perplexo. Mas mergulhou, indiferente à dor que causava
a Judith. Quando ela gritou, ele silenciou os seus lábios com os dele e
continuou.
Depois de terminar, rolou para o lado, com um braço pesado sobre os
seus seios. Para ele, havia sido um alívio; para Judith, nada semelhante a
prazer.
Dentro de minutos, ela ouviu a sua respiração lenta e soube que ele tinha
adormecido. Deslizou silenciosamente de baixo do seu braço e saiu da
cama. O cobertor de peles de esquilo tinha sido arremessado ao chão. Ela
apanhou-o e envolveu o corpo. Olhou para o fogo, dizendo a si mesma que
não iria chorar. Por que deveria chorar? Casara-se contra sua vontade com
um homem que jurou, no dia do seu casamento, que nunca a amaria, nunca
poderia amá-la. Um homem que lhe dissera que não era nada para ele. Que
razão tinha para chorar quando a vida diante dela parecia ser tão agradável?
Poderia esperar anos em que pouco mais faria, exceto dar-lhe filhos e passar
a vida em casa, enquanto ele passearia no campo com a sua bela Alice?
Não o faria! Encontraria a sua própria vida e, se possível, o seu próprio
amor. O marido passaria a significar o mínimo possível aos seus olhos.
Manteve-se em silêncio, controlando as lágrimas, e somente parecia
relembrar a doçura do beijo de Gavin naquela tarde, tão diferente do seu
ataque dessa noite.
Gavin mexeu-se na cama e abriu os olhos. No início, não se lembrava
onde estava. Virou a cabeça e viu a cama vazia ao seu lado. Ela tinha ido
embora! Cada polegada da sua pele ficou tensa, até que notou Judith diante
da lareira. Esqueceu o medo repentino, aliviado por ela ainda estar com ele.
Judith parecia estar num outro mundo, nem mesmo o ouviu pôr-se de
costas. Os lençóis estavam abundantemente manchados de sangue e Gavin
franziu a testa. Sabia que a magoara, mas desconhecia o motivo. Alice tinha
sido virgem quando a possuíra, mas não demonstrara qualquer dor.
Pousou novamente o olhar na esposa, tão pequena e sozinha. Era verdade
que não a amava, mas usara-a com dureza. Uma donzela não merecia ser
violada.
– Volta para a cama – disse suavemente, com um leve sorriso. Faria amor
com ela lentamente, como um meio de desculpa.
Judith endireitou os ombros.
– Não, não vou – reagiu com firmeza. Deveria começar por não deixar
que ele a controlasse.
Gavin olhou para as suas costas, boquiaberto. A mulher era impossível!
Fazia de cada frase uma competição de forças. Com o maxilar apertado,
levantou-se da cama e ficou diante dela.
Na verdade, Judith ainda nunca o tinha visto despido e o peito nu, coberto
de pelos escuros sobre a pele bronzeada pelo sol, atraiu os seus olhos. Ele
parecia fabuloso.
– Não aprendeste que tens de vir até mim quando te chamar?
Judith ergueu o queixo e fitou-o.
– Não aprendeste que não te darei nada de livre vontade? – rebateu.
Gavin estendeu a mão e agarrou num cacho de cabelos da anca dela,
enrolando-o sobre o pulso várias vezes, puxando Judith para mais perto de
si, enquanto ela cedia e se encolhia de dor. A colcha caiu e ele puxou a sua
pele nua contra a dele.
– Agora usas a dor para conquistares o que quiseres – sussurrou ela –,
mas, no final, vou ganhar porque te cansarás de lutar.
– O que ganharás com isso? – perguntou, os lábios perto dela.
– Liberdade de um homem que odeio, um bruto, mentiroso, desonesto... –
Parou quando ele a beijou. Não era o beijo de há uma hora, mas um beijo
terno.
A princípio, Judith negou-se a reagir, mas as suas mãos pousaram nos
braços dele. Eram duros, os músculos proeminentes e a pele emanava calor.
Tomou consciência dos pelos do peito dele contra os seus seios.
Quando o beijo aumentou de intensidade, Gavin soltou-lhe o cabelo e
envolveu-lhe os ombros com os braços. Moveu-a para que a cabeça dela se
encostasse à curva do seu ombro.
Judith desistiu de pensar. Era um aglomerado de sensações – todas elas
novas e inimagináveis. Aproximou-se, passando as mãos sobre as costas
dele, sentindo como os músculos se moviam, tão diferentes da suavidade
das suas próprias costas. Gavin começou a beijá-la nas orelhas,
mordiscando os lóbulos. Emitiu uma risada baixa e gutural quando os
joelhos de Judith cederam e ela desfaleceu contra a força do braço dele atrás
das suas costas. Ele inclinou-se, colocou o outro braço sob os seus joelhos,
sem que a sua boca lhe abandonasse o pescoço e levou-a para a cama.
Deitando-a, beijou-lhe o corpo desde a testa até aos dedos dos pés. Judith
ficou em silêncio, apenas com os sentidos despertos.
Não demorou muito a ser incapaz de suportar mais beijos. Tinha uma dor
absurda por todo o corpo e puxou-lhe o cabelo para lhe beijar melhor a
boca. Perdeu-se nos lábios masculinos, com avidez, com ganância.
Os sentidos de Gavin também estavam abalados. Desconhecia o lazer de
fazer amor com uma mulher, como o fazia nessa noite, e nunca imaginara
um tal gozo. A paixão de Judith era tão feroz quanto a sua própria, mas não
apressaram o ato sexual. Quando ele se deitou sobre ela, os seus braços
agarraram-no com firmeza, puxando-o para mais perto. Não houve dor para
Judith desta vez: ela estava pronta e moveu-se com ele, lentamente no
início, até que explodiram juntos no clímax.
Por fim, Judith caiu num sono profundo, exausta, com a perna atirada
sobre a de Gavin, os cabelos enrolados ao redor do braço dele.
Mas Gavin não adormeceu imediatamente. Sabia que esta era a primeira
vez para aquela mulher suave que tinha nos braços, mas de certa forma
sentia como se também acabasse de perder a virgindade. Essa era
certamente uma ideia absurda. Não poderia lembrar-se de todas as mulheres
que levara para a sua cama. Mas essa noite foi infinitamente diferente.
Nunca havia experimentado tal paixão. As outras mulheres recuavam,
quando ele estava mais excitado. Mas Judith, não. Dera-lhe tanto quanto ele
lhe tinha dado.
Afastou uma madeixa de cabelo do pescoço dela e segurou-a, deixando
que a luz do fogo brincasse com os fios. Aproximou-a do nariz, depois dos
lábios. Ela mexeu-se contra o seu corpo e ele aconchegou-se mais. Mesmo
no sono, ela queria-o por perto.
Os olhos cinzentos de Gavin ficaram pesados. Pela primeira vez desde
que conseguia lembrar-se, estava satisfeito e saciado. Ah, mas havia o
amanhã. Sorriu antes de adormecer.
***

Jocelin Laing devolveu o alaúde ao estojo de couro e esboçou um aceno


quase impercetível à loira antes de ela sair do salão. Naquela noite houve
várias ofertas de mulheres para compartilhar as suas camas. A excitação do
casamento, e especialmente a visão do belo casal despido e enfiado na
cama, enviou muitas pessoas em busca do próprio prazer.
O cantor era um jovem particularmente bonito; olhos quentes e escuros
sob cílios longos e espessos; os cabelos escuros terminavam em ondas na
pele perfeita, que se estendia sobre as maçãs salientes do rosto.
– Ocupado esta noite? – gritou um dos outros cantores, a rir.
Jocelin sorriu enquanto fechava o estojo do alaúde, mas não respondeu.
– Invejo um homem com uma noiva como essa. – O outro homem acenou
com a cabeça para as escadas.
– Sim, ela é linda – concordou Jocelin. – Mas há outras.
– Não como ela. – O homem aproximou-se do amigo. – Alguns de nós
vão encontrar-se com algumas das damas de honor da noiva. És bem-vindo
para nos acompanhar.
– Não! – recusou Jocelin calmamente. – Não posso.
O cantor brindou Jocelin com um olhar malicioso, pegou no seu saltério e
saiu do grande salão.
Quando a enorme sala ficou em silêncio e o chão coberto de centenas de
colchões de palha para os servos e convidados de menor importância,
Jocelin subiu as escadas. Interrogou-se como a mulher com quem ia
encontrar-se poderia ter arranjado um quarto privado. Alice Valence não era
rica e, embora a sua beleza tivesse conquistado o anel e a promessa de
casamento de um conde, não era uma das pessoas mais importantes. Nessa
noite, quando o castelo estava a transbordar de convidados, só os noivos
tinham um quarto para eles. Os outros convidados compartilhavam os leitos
instalados nos quartos das senhoras ou no quarto principal. As camas eram
grandes – geralmente de dois metros e meio – e, com as pesadas cortinas ao
redor, quase pareciam quartos individuais.
Jocelin não teve dificuldade em entrar no quarto reservado às mulheres
solteiras; vários homens já haviam deslizado furtivamente pela porta. Foi
fácil ver as cortinas a abrirem-se, deixando ver a loira. Aproximou-se dela
rapidamente, uma vez que apenas vê-la o encheu de desejo. Alice estendeu
os braços, faminta por ele, quase violenta na sua paixão e qualquer tentativa
feita por Jocelin para prolongar o prazer de ambos encontrou resistência.
Ela era como uma tempestade, plena de relâmpagos e trovões.
Quando tudo acabou, não quis que Jocelin lhe tocasse. Sempre atento ao
humor de uma mulher, ele obedeceu ao seu desejo não expresso. Nunca
tinha visto uma mulher que não quisesse ser abraçada depois de fazer amor.
Começou a vestir as suas roupas apressadamente descartadas.
– Vou casar-me daqui a um mês – afirmou ela calmamente. – Então virás
ao castelo do meu marido.
Jocelin não comentou. Ambos sabiam que ele estaria lá: apenas se
interrogou sobre quantos outros homens ela convidara.
***

Um único raio de sol entrou pela janela e o calor fez cócegas no nariz de
Judith. Sonolenta, enxotou-o e tentou virar as costas, mas algo a segurava
pelos cabelos. Abriu os olhos preguiçosamente e viu a estranha cama de
dossel. Quando se lembrou de onde estava, sentiu o rosto ficar quente. Até
o seu corpo parecia corar.
Moveu a cabeça para o outro lado da cama e olhou para o marido
adormecido. Os seus cílios eram curtos, grossos e escuros e a barba
começava a crescer nas faces. Adormecido, as maçãs do rosto não eram tão
proeminentes. Até a covinha no queixo parecia relaxada.
Gavin estava deitado de lado, de frente para ela, e Judith vagueou o olhar
pelo seu corpo. O peito largo estava generosamente coberto de pelos
escuros e encaracolados. Os músculos formavam montículos grandes e bem
modelados. Os braços estavam cobertos por um músculo redondo e firme.
Os olhos desceram até ao ventre duro e liso. Só depois de um momento
baixaram um pouco mais. O que viu não parecia tão poderoso agora, mas,
enquanto observava, a sua masculinidade começou a crescer.
Arquejou e os seus olhos voaram de volta para os dele. Gavin estava
acordado, observando-a, e os olhos ficavam mais escuros a cada momento.
Já não era o homem descontraído que ela vira ao despertar, mas um homem
cheio de paixão. Judith tentou afastar-se, mas Gavin continuava a prendê-la
pelos cabelos. O pior era que ela realmente não queria resistir. Lembrou-se
de que o odiava; porém, mais do que isso, lembrou-se do prazer de quando
ele fizera amor com suavidade.
– Judith – sussurrou ele num tom de voz que lhe provocou arrepios nos
braços.
Gavin beijou-lhe o canto da boca. Judith fez ligeiramente força contra os
seus ombros, mas, mesmo com aquele ligeiro toque, os seus olhos
fecharam-se em sinal de rendição. Ele beijou-lhe a face, o lóbulo da orelha.
Então, no meio da sua respiração arquejante, a boca masculina desceu sobre
a dela. A língua tocou docemente a ponta da dela. Judith recuou assustada.
Gavin sorriu-lhe, como se a entendesse. Na noite anterior, Judith pensara ter
aprendido tudo o que havia para saber sobre o amor entre um homem e uma
mulher, mas agora pensava que talvez soubesse muito, muito pouco.
Os olhos de Gavin emitiam um tom cinzento-escuro quando a puxou
novamente para si. Humedeceu os lábios dela, demorando-se sobretudo nos
cantos internos. Ela apartou os dentes para o provar. O seu sabor era melhor
do que o mel mais rico: quente e frio, macio e firme. A jovem explorou a
sua boca, enquanto ele explorava a dela. Não pensava em timidez. Na
verdade, não pensava em nada.
Judith passou as mãos sobre o seu corpo, enquanto ele baixava a cabeça
para o seu pescoço, correndo a língua ao longo do pulso que ali ressoava.
Ela reclinou instintivamente a cabeça para trás, a sua respiração mais
profunda, mais rápida.
Quando os lábios e a língua de Gavin tocaram nos seus seios, quase
gritou. Pensou que talvez pudesse morrer sob essa tortura. Tentou puxar a
cabeça dele de volta à sua boca, mas ele soltou uma risada profunda e
gutural que a fez estremecer. Talvez, afinal, ele a possuísse.
Quando pensou que iria perder a cabeça, ele moveu-se em cima dela, com
a mão acariciando-lhe o interior das coxas até que ela estremeceu de desejo.
Quando a penetrou, ela gritou. Não havia alívio para o seu tormento.
Agarrou-se a ele, rodeando-lhe a cintura com as pernas, enquanto levantava
as ancas ao encontro de cada estocada. Por fim, quando se sentia prestes a
explodir, experimentou as contrações que a aliviaram. Gavin desmoronou
sobre ela, segurando-a tão perto que quase não conseguia respirar. Mas,
nesse momento, era-lhe, na verdade, indiferente que respirasse de novo.
Uma hora depois, as criadas vieram vestir Judith, acordando os recém-
casados. De repente, retomou perfeitamente a consciência de que o seu
corpo e os cabelos estavam enroscados em Gavin. Maud e Joan tinham
várias coisas a dizer sobre o abandono de Judith. Os lençóis estavam
manchados e havia mais roupas de cama no chão do que na cama. A colcha
de pele de esquilo estava do outro lado do quarto junto à lareira.
As criadas ajudaram Judith a levantar-se e a lavar-se. Gavin descansava
preguiçosamente na cama e observava cada movimento.
Judith não olhava para ele, não podia. Estava envergonhada até ao mais
fundo da alma. Detestava o homem. Ele era tudo o que ela odiava; vil,
mentiroso, enganador, ganancioso. No entanto, deixara o orgulho de lado
quando ele lhe tocara. Fizera-lhe uma promessa – e a Deus – de que não
receberia nada dela, mas ele tomou mais dela do que lhe queria dar.
Mal notou quando as criadas lhe enfiaram uma fina camisa de linho sobre
a cabeça e depois um vestido de veludo verde-escuro. O vestido tinha sido
bordado com intrincados desenhos de ouro. A parte dianteira da saia foi
dividida, revelando uma larga faixa de anáguas de seda. As mangas eram
tufadas e recolhidas nos pulsos, com pequenos cortes em alguns lugares, e o
forro de seda verde-claro foi puxado através dos cortes.
– Aqui tem, milady – disse Maud, entregando a Judith uma grande caixa
de marfim.
Judith olhou perplexa para a criada enquanto abria a caixa. Sobre um
forro de veludo preto estava um grande colar de filigrana de ouro e os fios
minúsculos eram tão finos como o seu cabelo. Ao longo do fundo do colar
havia uma fieira de esmeraldas, muitas delas perfeitamente combinadas em
tamanho, nenhuma delas maior do que uma gota de chuva.
– É linda… – sussurrou Judith. – Como é que a minha mãe...
– É o presente de casamento do seu esposo – corrigiu Maud com os olhos
brilhantes.
Judith podia sentir os olhos de Gavin nas suas costas. Rodou sobre os
calcanhares e encarou-o. A visão dele na cama, a sua pele tão morena
contrastando com a brancura dos lençóis, enfraqueceu-lhe os joelhos.
Necessitou de muita força de vontade, mas dobrou um joelho e fez uma
vénia.
– Obrigada, milorde.
Gavin cerrou o maxilar frente a tamanha frieza. Havia esperado que o
presente a suavizasse um pouco. Como podia ser tão ardente na cama e tão
fria e altiva fora dela?
Judith virou-se de novo para as suas criadas e Maud apertou os botões do
vestido que faltavam. Joan entrançou a camada superior do cabelo da ama e
permeou as tranças com fitas douradas. Antes de terminarem, Gavin
ordenou que saíssem do quarto. Judith não o olhou enquanto ele se
barbeava apressadamente e vestia um gibão e umas calças castanho-escuro,
com um casaco de lã castanho-claro por cima, forrado de lince dourado.
Quando ele deu um passo na sua direção, Judith teve de lutar para
acalmar o seu precipitado coração. Gavin ofereceu-lhe o braço e conduziu-a
ao andar de baixo, onde os convidados aguardavam.
Assistiram à missa juntos, mas desta vez não se olhavam nos olhos nem
ele lhe beijou a mão.
Permaneceram solenes e sóbrios ao longo de toda a cerimónia.
Capítulo Sete

O terreno no exterior da mansão revedoune transbordava de agitação e o ar


estava carregado de entusiasmo. Por toda a parte havia estandartes
coloridos, tremulando nas arquibancadas e nas tendas que cobriam o
terreno. As roupas brilhavam à luz do Sol como pedras preciosas. Crianças
corriam entre os grupos de pessoas e vendedores, com grandes caixas
penduradas no pescoço, apregoavam as suas mercadorias, desde frutas e
tortas a relíquias sagradas.
A arena em si era um campo coberto de areia, de cem metros de
comprimento, ladeada por duas paliçadas de madeira e uma ao meio. A
paliçada interna media apenas um metro e vinte de altura, mas a exterior
tinha dois metros e meio. O espaço interior destinava-se aos escudeiros e
aos cavalos dos participantes. Do lado de fora da paliçada alta, a classe
mercantil e os servos pressionavam-se para verem melhor os jogos e os
combates.
As damas e os cavaleiros que não participavam sentaram-se em
arquibancadas colocadas a uma altura suficiente acima das paliçadas para
verem tudo. As arquibancadas tinham coberturas e estavam assinaladas com
os estandartes de seda que exibiam as cores das diversas famílias. Vários
setores exibiam os leopardos do clã Montgomery.
Antes de o torneio começar, os cavaleiros desfilaram com as suas
armaduras. A qualidade e a modernidade das armaduras variavam
consideravelmente, dependendo da riqueza de cada um. As antigas tinham
cota de malha, outras, mais modernas, placas de metal costuradas sobre
couro. Os cavaleiros mais ricos usavam a nova armadura Maximiliana, da
Alemanha, que cobria o homem da cabeça aos pés com aço inoxidável, sem
deixar um centímetro desprotegido. Era uma defesa pesada, ultrapassando
os cinquenta quilos. Sobre os elmos ondulavam plumas com as cores do
cavaleiro.
Judith caminhava com Gavin até à zona do torneio, aturdida com todo o
barulho e os cheiros que os rodeavam. Era novo e emocionante aos seus
olhos, mas Gavin tinha pensamentos contraditórios. A noite havia sido uma
revelação. Nunca desfrutara de tanto prazer com uma mulher como
acontecera com Judith. As suas cópulas eram frequentemente encontros
apressados ou secretos com Alice. Gavin não amava a mulher que havia
desposado – muito pelo contrário, enfurecia-o falar com ela –, mas nunca
conhecera uma paixão tão desinibida.
Judith viu que Raine se aproximava deles, estava vestido com a armadura
completa para o torneio. O aço estava gravado com pequenas flores-de-lis
em ouro. Transportava o elmo debaixo do braço e caminhava como se
estivesse habituado ao enorme peso da armadura. E assim era.
Sem se dar conta, Judith soltou o braço do marido ao reconhecer o
cunhado. Raine aproximava-se em passo rápido, um sorriso com covinhas
no rosto, um sorriso que transformara muitos joelhos femininos em água.
– Olá, minha irmãzinha – saudou com um sorriso. – Esta manhã acordei a
pensar que tinha sonhado com tanta beleza, mas vejo que ainda és mais
bonita do que me lembrava.
Ela ficou encantada.
– E tu tornas o dia mais brilhante. Vais participar nos eventos? – acenou
com a cabeça na direção do campo coberto de areia.
– Miles e eu vamos participar do torneio.
Nenhum dos dois parecia estar ciente de que Gavin os olhava com a testa
franzida.
– O que significam essas fitas que vejo os homens a usar? – inquiriu
Judith.
– Uma dama pode escolher um cavaleiro do seu gosto e dar-lhe um
presente.
– Então, posso dar-te uma fita? – concluiu ela, sorrindo.
Raine ajoelhou-se imediatamente diante dela, as dobradiças da armadura
rangendo e o aço batendo contra o aço.
– Ficaria muito honrado.
Judith levantou o véu transparente que lhe cobria o cabelo e tirou uma das
fitas de ouro das tranças. Era óbvio que as criadas conheciam bem os
costumes.
Raine sorriu-lhe enquanto apoiava a mão no quadril e ela amarrava a fita
ao redor do seu braço. Antes de terminar, Miles acercou-se pelo lado oposto
dela e ajoelhou-se também.
– Não favorecerias um irmão sobre o outro, certo?
Nesse dia, ao olhar para Miles, Judith descobriu o que outras mulheres
haviam descoberto sobre ele desde a puberdade. Na véspera fora uma
virgem e desconhecia o significado do seu olhar intenso. Corou e inclinou a
cabeça para colocar uma segunda fita no braço do outro irmão.
Raine apercebeu-se do rubor e começou a rir.
– Não comeces com ela, Miles – riu, pois as mulheres de Miles eram um
motivo regular de piadas no castelo dos Montgomery. Stephen, o segundo
dos irmãos, costumava queixar-se de que o jovem tinha engravidado metade
das criadas antes dos dezassete anos e a outra metade antes dos dezoito
anos. – Não vês que Gavin está a fulminar-nos com o olhar?
– Vejo os dois a fazerem figura de idiotas – afirmou Gavin com um
grunhido. – Há mulheres de sobra aqui. Vão procurar uma delas para se
pavonearem como asnos.
Assim que Judith acabou de amarrar o nó da fita em Miles, os dedos de
Gavin cravaram-se no braço, obrigando-a a afastar-se.
– Estás a magoar-me! – acusou ela, tentando inutilmente soltar-se.
– Ainda te magoarei mais se voltares a exibir-te diante de outros homens.
– Exibir-me! – puxou o braço, mas só conseguiu que Gavin a segurasse
com mais força. À sua volta, cavaleiros ajoelhavam-se diante das damas,
recebendo fitas, cintos, mangas de vestidos, até joias, e mesmo assim ele
acusava-a de se exibir.
– Uma pessoa desonesta acredita sempre que os outros o são. Talvez
procures acusar-me dos teus próprios defeitos.
Gavin parou e fitou-a com os olhos escuros.
– Só te acuso do que sei que é verdade. És uma mulher ardente, e não
tolero que te faças de rameira para os meus irmãos. Agora senta-te aqui e
não causes mais conflitos entre nós. – Virou-se e afastou-se com grandes
passadas, deixando Judith sozinha nas arquibancadas guarnecidas com o
escudo dos Montgomery.
Por um momento, os sentidos de Judith deixaram de funcionar; não via
nem ouvia nada. O que Gavin tinha dito era injusto. Poderia não ter
atribuído importância à questão, só que ele acabava de atirar-lhe à cara o
que faziam em privado – isso era imperdoável. Ela errara ao corresponder
às suas carícias? Se assim fosse, como se evitava? Mal conseguia lembrar-
se dos acontecimentos da noite. Aos seus olhos, era tudo uma deliciosa
névoa de veludo vermelho. As mãos dele no seu corpo haviam emitido
ondas de prazer através dela; depois disso, lembrava-se de muito pouco. No
entanto, ele atirara-lhe isso em cara, como se ela fosse imunda. Pestanejou
para conter as lágrimas de frustração. Tinha razão em odiá-lo.
Subiu os degraus para se sentar nos lugares dos Montgomery. O marido
deixara-a sozinha para ir ao encontro dos familiares. Judith manteve a
cabeça erguida e recusou-se a demonstrar que sentia vontade de chorar.
– Lady Judith.
Uma voz suave penetrou finalmente nos seus sentidos e, ao virar-se,
deparou com uma mulher mais velha vestida com o hábito escuro de uma
freira.
– Permita que me apresente. Conhecemo-nos ontem, mas não creio que o
recorde. Sou Mary, a irmã de Gavin. – Mary olhava para as costas do irmão.
Era estranho que ele se ausentasse, deixando uma mulher sozinha. Todos os
seus quatro irmãos – Gavin, Stephen, Raine e Miles – eram extremamente
corteses. No entanto, Gavin não tinha sorrido uma única vez à sua esposa e,
embora não participasse dos jogos, ia a dirigir-se às tendas. Mary não
compreendia nada.
***

Gavin caminhou por entre a multidão até às tendas erguidas ao fundo da


arena. Muitas pessoas davam-lhe palmadas nas costas e piscavam-lhe o
olho. Quanto mais se aproximava das tendas, mais alto se ouvia o som
familiar do ferro e do aço. Esperava que a sanidade da guerra simulada o
acalmasse.
Mantinha os ombros para trás e olhava em frente. Ninguém teria
adivinhado a raiva cega que o dominava. Ela era uma bruxa! Uma bruxa
magistral, cheia de artimanhas! Tudo o que conseguia pensar era que queria
bater-lhe e fazer amor com ela ao mesmo tempo. Tinha ficado ali parado,
observando como ela sorria tão docemente aos seus irmãos; mas, quando o
olhou, era como se ele fosse algo detestável.
Apenas conseguia pensar no modo como ela tinha estado com ele durante
a noite, no fervor dos seus beijos, na avidez dos seus abraços, mas só depois
de a forçar a ir até ele. Violara-a na primeira vez e usara a dor dos seus
cabelos torcidos ao redor do seu braço para lhe ordenar a vir até ele na
segunda vez. Mesmo na terceira vez, teve de agir contra o seu protesto
inicial. No entanto, ela rira e deu aos seus irmãos fitas de ouro – ouro como
os seus olhos. Se era capaz de demonstrar tanta paixão por ele, depois de ter
admitido que o odiava, como seria com um homem que amasse? Ao
observá-la com Raine e Miles, imaginara-os a tocá-la e a beijá-la. De
repente, foi difícil controlar-se e afastou-a para evitar atirá-la ao chão.
Queria magoá-la e fizera-o. Isso dera-lhe uma certa satisfação, mas não
prazer. Na verdade, a expressão de Judith só o deixara mais furioso. A
maldita mulher não tinha o direito de olhar para ele com tanta frieza.
Irado, apartou a aba da tenda de Miles. Como Miles estava no campo,
deveria estar vazia, mas não foi o caso. Ali estava Alice, os olhos
suavemente descidos, a sua boca pequena serenamente submissa. Era um
alívio bem-vindo para Gavin, depois de passar o dia anterior com uma
mulher que o maltratara e depois o enlouquecera com o seu corpo. Alice era
o que uma mulher deveria ser: calma, súbdita de um homem. Sem pensar no
que fazia, agarrou-a e beijou-a violentamente. Ela derreteu-se nos seus
braços sem opor resistência e isso regozijou-o.
Alice nunca tinha visto Gavin de tão mau humor e silenciosamente
agradeceu a quem quer que fosse responsável. No entanto, apesar de todo o
seu desejo, não era idiota. Um torneio era algo demasiado público,
especialmente quando tantos parentes de Gavin acampavam nas
proximidades.
– Gavin – sussurrou contra os seus lábios –, este não é o momento, nem o
lugar adequado.
Ele afastou-se imediatamente, sentindo que naquele momento não
suportaria outra mulher relutante.
– Vai, então! – disparou quando saiu da tenda.
Alice seguiu-o com o olhar e a testa suave franzida. Era óbvio que o
prazer de dormir com a sua nova esposa não o afastara de si; contudo,
mesmo assim, não era o mesmo Gavin que ela conhecia.
***

Walter Demari não conseguia tirar os olhos de Judith, que permanecia


tranquilamente no pavilhão dos Montgomery, ouvindo atentamente as
saudações dos seus novos familiares. Observara-a a cada minuto, desde a
primeira vez que a vira, quando ela saiu do castelo para ir até à igreja. Tinha
visto Judith escapar para o jardim murado atrás da torre, captara o olhar no
seu rosto quando ela voltou. Invadia-o a sensação de conhecê-la a fundo, e
mais do que isso... amava-a. Adorava a sua forma de andar, com a cabeça
erguida, o queixo firme, como se estivesse disposta a enfrentar o mundo,
independentemente do que pudesse acontecer. Amava os seus olhos, o nariz
pequeno.
Passara a noite sozinho, a pensar nela, imaginando-a como sua.
Agora, depois de uma noite sem dormir, começou a interrogar-se por que
razão ela não lhe pertencia. A sua família era tão rica quanto a dos
Montgomery, talvez mais. Visitava com frequência a mansão Revedoune e
fora amigo dos irmãos de Judith.
Robert Revedoune tinha acabado de comprar várias tortas fritas a um dos
vendedores e segurava uma caneca de agraço3.
Walter não hesitou nem perdeu tempo a explicar o que se tornara uma
obsessão para ele.
– Por que não me ofereceu a jovem? – acusou, pairando sobre o homem
sentado.
Robert levantou a cabeça, surpreendido.
– O que te aflige, rapaz? Devias estar na arena com os outros.
Walter sentou-se e passou a mão pelo cabelo. Não era um homem
desinteressante, mas também não era bonito. Tinha olhos de um azul
indefinido e um nariz muito proeminente. Os lábios eram finos, sem forma,
e podiam expressar crueldade. O cabelo castanho-claro estava
cuidadosamente enrolado para dentro em volta do pescoço.
– A jovem, sua filha – repetiu. – Por que não a ofereceu em casamento
para mim? Era amigo dos seus filhos. Não sou rico, mas as minhas
propriedades rivalizam com as de Gavin Montgomery.
Robert encolheu os ombros enquanto comia uma torta. A geleia escorria
das pontas crocantes e ele bebia grandes goles do refresco azedo.
– Há outras mulheres ricas para ti – observou, evasivo.
– Mas não como ela! – contestou Walter com veemência.
Robert fitou-o surpreendido.
– Não vê que ela é linda? – indagou Walter.
Robert vagueou o olhar pelos pavilhões que o separavam da filha.
– Sim, vejo que ela é linda – anuiu, desgostoso. – Mas o que é a beleza?
Desaparece com o tempo. A mãe dela já foi assim e vê como é agora.
Walter não precisava virar a cabeça para ver a mulher nervosa e emaciada
que se sentava na borda do assento, pronta a levantar-se de um salto se o
marido decidisse esbofeteá-la. Ignorou o comentário de Robert.
– Por que a manteve escondida? Que necessidade havia de mantê-la longe
do mundo?
– Foi ideia da mãe dela – explicou Robert com um leve sorriso. – Pagou
pela guarda da menina e não me fez diferença. Por que vieste fazer-me
essas perguntas agora? Não vês que o torneio está prestes a começar?
Walter agarrou Robert pelo braço. Conhecia bem o homem e sabia que
ele era um cobarde.
– Porque a quero. Nunca vi uma mulher tão bonita na minha vida.
Deveria ser minha! As minhas terras fazem fronteira com as suas. Teria sido
um bom enlace, mas nem sequer a mostrou.
Robert afastou o braço do jovem.
– Tu, um bom enlace? – zombou. – Olha para os Montgomery que
cercam a jovem: há Thomas, com quase sessenta anos de idade. Tem seis
filhos, todos vivos, cada um com filhos varões por sua vez. Ao seu lado está
Ralph, o primo, com cinco filhos varões. Segue-se Hugh com...
– O que tem isso a ver com a sua filha? – interrompeu-o Walter, furioso.
– Filhos varões! – berrou Robert ao ouvido do jovem. – Os Montgomery
produzem mais varões que qualquer outra família em Inglaterra. E que
filhos! Observa a família a que agora pertence a minha filha. O mais novo,
Miles, ganhou as esporas no campo de batalha antes dos dezoito anos e já
foi pai de três filhos das servas. Raine passou três anos a viajar pelo país, de
torneio em torneio. Saiu vencedor e ganhou uma fortuna própria. Stephen
serve agora na Escócia com o rei, e já lidera exércitos, embora tenha apenas
vinte e cinco anos. Por último, vem o primogénito que, aos dezasseis anos,
se viu órfão com propriedades para administrar e irmãos para cuidar. Não
tinha tutores que o ensinassem a ser homem... Que jovem aos dezasseis
anos de idade poderia fazer o que ele fez? Quase todos choramingam
quando não se lhes faz a vontade.
Virou-se novamente para Walter.
– Agora perguntas-me por que entreguei Judith a esse homem? Se não
consegui engendrar filhos varões capazes de sobreviver, talvez ela me dê
netos fortes e saudáveis.
Walter ficou furioso. Perdera Judith simplesmente porque o velho
sonhava com netos.
– Eu poderia dar-lhe filhos! – ripostou Walter, com os dentes cerrados.
– Tu? – Robert desatou a rir. – Quantas irmãs tens? Cinco? Seis? Perdi-
lhes a conta. E o que fizeste? É o teu pai que administra as propriedades. Tu
limitas-te a caçar e a andar atrás das servas. Agora vai e não venhas
novamente choramingar para cá. Se tenho uma égua que quero procriar,
entrego-a ao melhor garanhão. Vamos ficar por aqui. – Virou-se para
observar o torneio e esqueceu Walter.
Mas Demari não era um homem para ser dispensado tão facilmente. Tudo
o que Robert dizia era verdade. Walter tinha feito pouca coisa de mérito na
sua curta vida, mas apenas porque não se vira forçado a fazê-lo como os
homens de Montgomery tinham sido. Em caso de necessidade, ante a morte
prematura do pai, Walter não duvidava que teria desempenhado uma
posição de responsabilidade, tão bem, ou melhor, do que qualquer outro.
Quando deixou as arquibancadas, era um homem mudado. Uma semente
havia sido plantada na sua mente e essa semente começou a crescer.
Enquanto presenciava o início dos jogos com o leopardo Montgomery de
ouro a brilhar por toda parte, e ao vê-lo sob o sol, começou a pensar nele
como um inimigo. Queria provar a Robert e aos Montgomery, mas
principalmente a si mesmo, que não iria ficar para trás em relação a eles.
Quanto mais olhava para os estandartes verdes e dourados, maior era a
certeza de que odiava os Montgomery. O que haviam feito para merecer as
terras ricas de Revedoune? Por que teriam o que deveria ter sido dele?
Aguentara, durante anos, a companhia dos irmãos de Judith, mas nunca
tinha recebido nada em troca. Agora, quando havia algo que queria e
deveria ter tido, foi-lhe negado por causa dos Montgomery.
Walter deixou a cerca e começou a andar em direção ao pavilhão dos
Montgomery. A crescente raiva ante a injustiça que sentia dava-lhe
coragem. Conversaria com essa Judith, passaria tempo com ela. Afinal, ela
era sua por direito, ou não?

3 Agraço – um licor de ácido feito a partir do sumo azedo de maçãs silvestres, uvas verdes, etc.,
anteriormente muito utilizado para fins culinários e outros. (N. da T.)
Capítulo Oito

Judith fechou a porta do quarto com tanta força que até as paredes de pedra
pareciam estremecer. Assim terminava o seu primeiro dia de casada, que
poderia facilmente qualificar-se como o mais horrível da sua vida. Deveria
ter sido feliz, um dia cheio de amor e de risos – mas não com um marido
como o dela! Gavin não tinha perdido uma oportunidade para humilhá-la.
De manhã, acusara-a de ser uma prostituta diante dos seus irmãos.
Quando se afastou e a deixou sozinha, Judith conversou com outras
pessoas. Um homem, Walter Demari, tivera a amabilidade de sentar-se ao
lado dela e explicar o funcionamento do torneio. Pela primeira vez naquele
dia, começou a divertir-se. Walter tinha um talento para assinalar o ridículo
e ela apreciou muito o seu sentido de humor.
De súbito, Gavin reapareceu e ordenou-lhe que o seguisse. Judith não
queria fazer uma cena em público, mas, na privacidade da tenda de Raine,
disse a Gavin tudo o que pensava do seu comportamento. Deixava-a
sozinha e entregue a si própria, mas, quando ela demonstrava algum prazer,
reaparecia para lho tirar. Era como os meninos que não querem um
brinquedo, mas também o negam a qualquer outro. Gavin respondera
ironicamente, mas Judith registou com satisfação que ele não sabia o que
dizer.
A chegada de Raine e de Miles interrompeu a discussão. Mais tarde, ela
regressou com Miles ao torneio. Foi então que Gavin realmente a humilhou.
Assim que Alice Valence apareceu, praticamente correu atrás dela. Parecia
devorá-la, mas ao mesmo tempo olhava-a com devoção, como se ela fosse
santa. A Judith não passou despercebido o olhar de triunfo que Alice lhe
enviou de soslaio. Então, desviou o rosto, endireitou as costas e pegou no
braço de Miles. Não deixaria ninguém ver como tinha sido publicamente
envergonhada.
Mais tarde, no jantar, Gavin ignorou Judith, embora estivessem sentados
lado a lado na mesa alta. Ela riu do bufão e fingiu estar contente quando um
bardo extremamente bonito compôs e cantou uma ode à sua beleza. Na
verdade, mal o ouviu. A proximidade de Gavin exercia um efeito
perturbador sobre ela, sem lhe permitir desfrutar de nada.
Depois da refeição, as mesas de cavalete foram desmontadas e
empurradas contra a parede para dar espaço ao baile. Depois de uma dança
juntos, para salvar as aparências, Gavin começou a rodopiar com uma
mulher após outra nos seus braços. Judith recebeu mais convites para
dançar do que poderia aceitar, mas depressa alegou fadiga e subiu a correr
as escadas para a privacidade do seu quarto.
– Um banho – exigiu a Joan, a quem arrastou de um canto da escada,
onde estava entrelaçada com um jovem. – Traz-me uma tina e água quente.
Talvez possa lavar um pouco do fedor do dia de hoje.
Ao contrário do que Judith acreditava, Gavin estivera muito consciente da
presença da esposa. Não houve um momento em que não soubesse onde ela
estava ou com quem. Havia aparentemente conversado durante horas com
um homem no torneio. Ria de cada uma das suas palavras, sorrindo-lhe até
o homem estar obviamente embevecido.
Gavin tinha-a afastado para o seu próprio bem. Sabia que Judith ignorava
o efeito da sua presença nos homens. Era como uma criança. Tudo era novo
para ela. Olhava para o homem sem esconder nada, sem reservas, rindo
abertamente do que ele dizia. Gavin viu que o homem tomava essa
cordialidade como algo mais profundo.
Gavin tencionava explicar-lhe isso, mas, quando ela o atacou, acusando-o
de todos os tipos de insulto, de como ele se estava a comportar, teria
preferido morrer em vez de explicar os seus atos. Receava que o impulso o
levasse a envolver-lhe a garganta encantadora com as mãos e a estrangulá-
la. Por sorte, a breve aparição de Alice acalmara-o. Alice era como um gole
de água fresca para quem acabara de sair do inferno.
Agora, com as mãos apoiadas nos fartos quadris de uma jovem pouco
atraente, viu Judith subir as escadas. Não dançou com ela, receoso de que
pudesse desculpar-se. «Por que motivo?», interrogou-se. Havia sido gentil
com Judith até àquele momento no jardim quando ela começou a agir de
forma insana, fazendo juramentos que não tinha o direito de fazer. Ao
separá-la do homem que obviamente interpretava mal os seus sorrisos, agira
bem; no entanto, ela fê-lo sentir-se como se tivesse feito algo de errado.
Esperou um pouco, dançou com mais duas mulheres, mas Judith não
voltou ao grande salão. Impaciente, subiu as escadas. Nesses breves
segundos, imaginou todo o tipo de coisas que ela poderia estar a fazer.
Ao abrir a porta do quarto, Judith estava submersa até ao pescoço numa
tina de água fumegante, com o cabelo ruivo apanhado no cimo da cabeça,
num macio aglomerado de caracóis. Tinha os olhos fechados e a cabeça
apoiada na borda da banheira. A água devia estar muito quente porque o
rosto estava levemente humedecido com suor. Ao vê-la, todos os seus
músculos se retesaram. Era maravilhosa quando o olhara de testa franzida,
enfurecendo-o, mas agora parecia a inocência personificada. De repente,
compreendeu que era isso que queria dela, que isso era tudo o que
precisava. Que importava que ela o desprezasse? Era dele e só dele. Com o
coração a palpitar, fechou a porta atrás de si.
– Joan? – perguntou Judith languidamente. Como não recebeu resposta,
abriu os olhos. Bastou ver a expressão de Gavin para lhe adivinhar os
pensamentos. Apesar de tudo, o seu coração começou a bater rapidamente.
– Deixa-me sozinha – conseguiu sussurrar.
Ele ignorou-a enquanto avançava com os olhos escuros ficando mais
escuros. Inclinou-se sobre ela, e agarrou-lhe o queixo com a mão. Judith
tentou afastar-se, mas ele segurou-a com força. Beijou-a rudemente no
começo; mas depois o aperto dos dedos e o beijo tornaram-se suaves,
profundos.
Judith sentiu-se à deriva. O prazer da água quente, a mão apoiada na sua
face e o beijo enfraqueceram-na. Ele afastou-se e fitou-a nos olhos, aqueles
olhos de um dourado ardente. Todos os pensamentos de ódio desapareceram
deles. Havia apenas a proximidade dos seus corpos. A fome mútua superou
qualquer hostilidade.
Gavin ajoelhou-se junto à tina e apoiou a mão atrás do pescoço de Judith.
Voltou a beijá-la e deslizou os lábios pela curva do seu pescoço. Estava
húmida e quente e o vapor que se elevava da água era como a sua paixão,
crescente. Estava pronto, mas queria prolongar o prazer, arrastá-lo até ao
limite da dor. As suas orelhas eram macias e cheiravam ao sabonete com
aroma de rosas que ela usava.
De repente, queria vê-la por inteiro. Gavin colocou as mãos sob os braços
de Judith e levantou-a. Ela soltou uma exclamação de surpresa ante o
movimento inesperado e o impacto do ar frio depois do calor da água. Uma
toalha macia e morna pendia ao alcance do braço e Gavin envolveu-a nela.
Judith não falou. No fundo, enterrado na sua mente, estava o conhecimento
de que as palavras quebrariam o feitiço. Gavin tocava-lhe ternamente, sem
exigências severas, e sem a magoar. Sentou-se num banco diante do fogo e
colocou-a entre as suas pernas como se fosse uma criança.
Se alguém lhe tivesse descrito aquela cena, Judith teria negado que isso
pudesse acontecer e diria que Gavin era um bruto insensível. Não sentiu
nenhum embaraço pela sua nudez enquanto ele permanecia completamente
vestido, maravilhando-se apenas com a magia do momento. Gavin secou-a
cuidadosamente. Era um pouco desajeitado, demasiado brusco às vezes,
mas outras vezes muito terno.
– Volta-te – ordenou e ela obedeceu permitindo que lhe secasse as costas.
Por fim, Gavin atirou a toalha para o chão e Judith conteve a respiração.
Mas ele não falou. Limitou-se a deslizar os dedos pelo sulco profundo da
sua coluna. A jovem sentiu calafrios. Um único dedo dizia mais do que uma
centena de carícias.
– És linda – sussurrou com voz rouca, apoiando as palmas das mãos sobre
a curva das suas ancas. – Tão bonita.
Judith susteve a respiração e não se moveu, mesmo quando sentiu os
lábios do marido no pescoço. Aquelas mãos moviam-se numa tortura lenta
até ao ventre, ao longo das costelas, até aos seios, que o esperavam,
suplicantes. Judith soltou a respiração reprimida e encostou-se a ele, a
cabeça repousando no seu ombro, a boca dele ainda no seu pescoço. Ele
passou as mãos sobre ela, tocando a pele, explorando o seu corpo.
Quando Judith estava quase louca de desejo, levou-a para a cama. Em
segundos, as suas roupas estavam no chão e deitou-se ao lado dela. Ela
puxou-o para si, procurou a sua boca. Gavin riu da cobiça das suas mãos,
provocando-a, mas não havia nenhuma zombaria nos seus olhos cinzentos.
Havia apenas o desejo de prolongar o prazer de ambos. Um brilho acendeu-
se nos olhos de Judith e ela soube que seria a última a rir. As mãos
desceram. Quando encontrou o que procurava, deixou de haver riso nos
olhos dele. Estavam negros de paixão quando a puxou para baixo.
Poucos segundos depois ambos soltaram um grito em uníssono, ambos
libertados do doce tormento. Judith sentia-se esgotada, os ossos fracos,
enquanto Gavin se afastava parcialmente, caindo para o lado, com uma
perna cruzada sobre a dela, o braço sobre os seus seios. Ela suspirou
profundamente antes de adormecer.
***

Judith acordou na manhã seguinte, espreguiçando-se como um gato


depois de uma sesta. Deslizou o braço pelo lençol, mas apenas encontrou o
vazio. Então, abriu bruscamente os olhos. Gavin tinha ido embora e, a
julgar pelo sol que entrava pela janela, a manhã já ia adiantada. O seu
primeiro pensamento foi sair apressadamente, mas a cama aquecida e a
recordação da noite anterior mantiveram-na entre os lençóis. Virou-se para
o lado, deslizando a mão pela marca funda no colchão ao seu lado e
enterrou o rosto na almofada. Ainda tinha o cheiro de Gavin. Com que
rapidez chegara a identificar o cheiro dele.
Sorriu, sonhadora. A noite anterior tinha sido paradisíaca. Recordou os
olhos de Gavin, a sua boca... Ele preenchia todas as suas visões.
Uma leve pancada na porta fez com que o coração batesse
descompassado. Depois acalmou-se abruptamente quando Joan a abriu.
– Está acordada? – perguntou Joan, com um sorriso experiente no rosto.
Judith sentia-se bem de mais para se ofender.
– Lorde Gavin levantou-se cedo e está a colocar a armadura.
– Armadura? – Judith sentou-se bruscamente na cama.
– Só para participar nos jogos. Não entendo porquê; sendo o noivo, não
necessita fazê-lo.
Judith recostou-se na almofada. Ela entendia. Naquela manhã poderia ter
voado do alto da torre e pousar com leveza no chão. Sabia que Gavin devia
sentir o mesmo. O torneio era apenas uma maneira de despender a sua
energia.
Atirou as cobertas para trás e saltou da cama.
– Tenho de me vestir. É tarde. Achas que perderemos a sua participação?
– Não – riu Joan. – Chegaremos a tempo.
Judith pôs rapidamente um vestido de veludo azul-índigo sobre um saiote
de seda azul-claro. Na cintura tinha um cinto fino de couro azul macio
cravejado de pérolas.
Joan limitou-se a pentear o cabelo da ama e cobriu-o com um véu de gaze
azul transparente, bordado com pequenas pérolas. Era mantido no lugar por
uma tiara de pérolas entrançadas.
– Estou pronta – disse Judith, impaciente.
Encaminhou-se rapidamente para o terreno onde se realizava o torneio e
ocupou o seu lugar no pavilhão dos Montgomery. Os seus pensamentos
guerreavam uns com os outros. Teria imaginado o que se passara na noite
anterior? Fora um sonho? Gavin fizera amor com ela. Não havia outra
palavra para isso. Claro que ela não tinha experiência, mas era impossível
que um homem tocasse numa mulher como ele a tocara sem sentir nada por
ela. O dia pareceu-lhe, de imediato, mais luminoso. Talvez fosse uma tola,
mas estava disposta a tentar fazer com que o casamento resultasse bem.
Judith esticou o pescoço para ver o extremo do campo do torneio,
procurando ver o marido, mas havia demasiadas pessoas e cavalos no
caminho.
Deixou silenciosamente as arquibancadas e caminhou em direção às
tendas. Deteve-se junto à cerca exterior, alheia aos servos e mercadores que
se aglomeravam em torno dela. Passaram alguns minutos antes que o visse.
Gavin em trajes normais era um homem imponente, mas com armadura era
formidável. Montava um enorme cavalo de guerra cinzento-escuro, com
arreios de sarja e couro verde, estampado e pintado com leopardos
dourados. Movia-se facilmente na sela, como se os cinquenta quilos da
armadura não pesassem nada. Judith viu o escudeiro entregar-lhe o elmo, o
escudo e, finalmente, a lança.
O coração de Judith subiu-lhe à garganta e quase a sufocou. Essa
modalidade de jogo era perigosa. Observou sem fôlego enquanto Gavin
avançava no seu grande cavalo, de cabeça baixa, e o braço firme. A sua
lança atingiu o escudo do adversário exatamente quando o seu próprio
escudo também recebia um golpe. As lanças quebraram-se e os homens
cavalgaram para as extremidades opostas do campo para obter outras novas.
Felizmente, as lanças usadas na batalha eram mais fortes do que as de
madeira usadas nos jogos. O objetivo era quebrar três lanças sem cair. Se
um homem fosse derrubado antes dos três confrontos, deveria pagar o valor
do seu cavalo e da armadura ao adversário e não era uma soma
insignificante. Tinha sido assim que Raine fizera uma fortuna no circuito de
torneios.
Mas por vezes os homens ficavam feridos. Acidentes aconteciam
constantemente. Judith sabia disso e observou receosa quando Gavin voltou
a cavalgar. De novo, nenhum dos homens perdeu os estribos.
Uma mulher perto de Judith soltou um risinho idiota, mas só prestou
atenção quando ouviu o comentário:
– O marido dela é o único homem que não tem nenhum presente;
contudo, ela deu fitas de ouro aos seus irmãos. O que pensas de uma
meretriz dessas?
As palavras eram maliciosas e destinadas aos ouvidos de Judith. Porém,
quando ela se virou, ninguém demonstrou interesse por ela. Olhou para os
cavaleiros que andavam entre os cavalos, ou se encontravam no extremo do
campo, perto dela. O que a mulher dizia era verdade. Todos os cavaleiros
tinham fitas ou mangas tremulando nas suas lanças ou elmos. Raine e Miles
tinham várias e num braço cada um usava uma fita de ouro já desfiada.
Judith só pensou em correr pela borda do campo e alcançar Gavin antes
da terceira carga. Os torneios eram uma novidade para ela e ignorava o
perigo do seu ato. Os cavalos de guerra, criados por força, tamanho e
resistência, eram treinados para ajudar um cavaleiro em tempos de guerra e
usavam os cascos grandes para matar tão facilmente como um homem
usava uma espada.
Não ouviu os suspiros e exclamações enquanto homem após homem
refreavam os cavalos para afastá-los da mulher que se lançava a toda a
velocidade para o extremo do campo. Também não se apercebeu de que
vários espectadores nas arquibancadas a haviam visto e agora estavam de
pé, sustendo a respiração.
Gavin desviou os olhos do seu escudeiro quando recebeu uma nova lança.
Notara o silêncio que se fizera entre a multidão. Viu Judith imediatamente e
percebeu que não havia nada que pudesse fazer. Antes que pudesse
desmontar, já ela o teria alcançado. Olhou fixamente, esperando, com todos
os músculos rígidos.
Judith não possuía uma fita para lhe dar, mas sabia que deveria dar-lhe
um presente. Ele era seu marido e era dela! Judith tirou o véu de gaze
transparente enquanto corria pela areia e voltou a colocar a tiara de pérolas
sobre o cabelo.
Ao chegar junto de Gavin, estendeu-lhe o véu.
– Um presente – disse com um sorriso tímido.
Durante um momento, ele não se mexeu. Depois levantou a lança e
baixou-a até ela. A jovem apressou-se a atar firmemente uma ponta do véu
à lança. Em seguida, olhou-o e sorriu. Ele inclinou-se para a frente, colocou
a mão atrás da sua nuca e quase a levantou do chão enquanto a beijava. Foi
um beijo duro acentuado pelo frio do elmo contra a sua face. Quando a
soltou, e os seus calcanhares se afundaram na areia, Judith ficou aturdida.
A jovem não tomara consciência do súbito silêncio reinante, mas Gavin,
sim. A sua esposa tinha arriscado a vida para lhe dar um presente. Então,
ergueu a lança em sinal de triunfo. O seu sorriso pareceu alargar-se de um
lado ao outro do elmo.
O rugido de aprovação da multidão foi ensurdecedor.
Ao virar-se, Judith viu que todos os olhos estavam postos nela. Cobriu o
rosto com as mãos para ocultar o rubor. Miles e Raine correram das laterais,
colocaram os braços protetoramente em torno dela e conduziram-na para
um lugar seguro.
– Se não tivesses agradado tanto a Gavin, dava-te uma surra pelo que
fizeste – disse Raine.
Por entre novos aplausos, Gavin desarmou o adversário. Judith não
gostou de ser o alvo de tantas risadas. Recolheu as saias e voltou o mais
rapidamente possível ao castelo. Talvez alguns minutos a sós no jardim
ajudassem as suas faces a recuperar a cor natural.
***

Alice entrou bruscamente na tenda do conde de Bayham, um lugar rico,


feito de finas sedas e tapetes bizantinos, erguida para maior comodidade de
Edmund Chatworth.
– Passa-se alguma coisa? – perguntou uma voz grave atrás dela.
Alice rodou sobre os calcanhares e deparou com Roger, o irmão mais
novo de Edmund. Estava sentado num banco baixo, sem camisa, enquanto
deslizava cuidadosamente a lâmina da espada ao longo de uma pedra de
amolar que girava com o pé. Era um homem bonito, de cabelos loiros com
reflexos mais claros devido ao sol, nariz aquilino, boca firme. Por baixo do
olho esquerdo havia uma cicatriz que em nada prejudicava a sua boa
aparência.
Alice lamentava muitas vezes que Roger não fosse o conde em vez de
Edmund. Ia a responder à sua pergunta, mas interrompeu-se. Não podia
contar-lhe a raiva que sentira ao ver a esposa de Gavin a dar espetáculo na
frente de várias centenas de pessoas. Alice tinha-lhe oferecido um presente,
mas ele não aceitara, dizendo-lhe que já havia rumores demasiados sobre
eles e não causaria mais.
– Brincas com o fogo, sabes? – disse Roger enquanto deslizava o polegar
ao longo da lâmina da espada. Como Alice não fez qualquer comentário,
prosseguiu: – Os homens de Montgomery não veem as coisas como nós.
Para eles, o certo é certo e o errado é errado. Não há meios-termos.
– Não faço ideia daquilo a que te referes – respondeu Alice com altivez.
– Gavin não ficará satisfeito quando descobrir que lhe mentiste.
– Não menti!
Roger arqueou uma sobrancelha.
– Que motivo lhe deste para casares com o meu irmão, o conde?
Alice deixou-se cair num banco ao lado de Roger.
– Não pensavas que a herdeira fosse tão bonita, pois não?
Os olhos de Alice emitiram chispas quando o fitou.
– Ela não é bonita! Tem o cabelo ruivo e certamente deve estar coberta de
sardas. – Sorriu maliciosamente. – Tenho de perguntar que creme usa para
dissimular as da cara. Gavin não a achará tão desejável quando vir...
Roger interrompeu-a.
– Estive na cerimónia do leito e vi uma grande parte do seu corpo. Não
havia sardas. Não te iludas. Acreditas que podes segurá-lo, quando ele está
sozinho com ela?
Alice levantou-se e caminhou até à entrada da tenda. Não deixaria que
Roger visse a sua preocupação. Tinha de manter Gavin. Tinha de mantê-lo a
qualquer custo. Ele amava-a, profunda e sinceramente como ninguém a
amara na vida. Precisava tanto disso quanto precisava da riqueza de
Edmund. Não permitia que as pessoas lhe vissem o íntimo; escondia bem as
suas mágoas. Em criança, havia sido uma linda filha nascida entre um
bando de irmãs feias e enfermiças. A mãe dera todo o seu amor às outras,
considerando que Alice recebia atenção suficiente das amas e dos visitantes
do castelo. Desprezada pela mãe, voltou-se para o pai em busca de amor.
Mas a única coisa que Nicolas Valence amava vinha de uma garrafa. Alice
aprendeu a conquistar o que não lhe era dado. Manipulou o pai para lhe
comprar roupas bonitas e caras e a sua beleza aumentou ainda mais o ódio
que as irmãs sentiam por ela. Além de Ella, a sua velha serva, ninguém a
tinha amado, até encontrar Gavin. No entanto, todos esses anos de luta,
tentando obter algumas moedas, fizeram que desejasse tanto a segurança
financeira quanto o amor. Gavin não era suficientemente rico para lhe dar
essa segurança, mas Edmund era.
Agora, a metade do que precisava estava a ser-lhe roubada por uma bruxa
ruiva. Alice não era alguém para se sentar de braços cruzados e deixar que
fosse o futuro a cuidar de tudo. Lutaria pelo que ela queria…
– Onde está Edmund? – perguntou a Roger.
Ele acenou com a cabeça para a cortina de linho que separava a parte de
trás da tenda.
– A dormir. Vinho e comida em demasia – respondeu, desgostoso. – Vai
ter com ele. Precisará de alguém que lhe segure a cabeça dorida.
***

– Calma, irmão! – ordenou Raine a Miles. – Dói-lhe a cabeça o suficiente


sem precisar de bater contra um poste de tenda.
Transportavam Gavin sobre o escudo, com as pernas penduradas na borda
e os pés a arrastar na terra. Tinha acabado de derrubar o seu segundo
adversário quando a lança do homem escorregou e se elevou, pouco antes
da queda. O golpe atingiu Gavin logo acima da sua orelha, com força
bastante para lhe amassar o elmo. Gavin viu tudo negro e ouviu um
zumbido na cabeça que abafava todos os outros ruídos. Conseguiu ficar na
sela, mais por preparação física do que por força, enquanto o cavalo girava
e voltava para o extremo do campo. Gavin olhou para os irmãos e para o
seu escudeiro, fez um sorriso de dor e caiu lentamente nos seus braços
erguidos para ampará-lo.
Raine e Miles mudaram o irmão para um colchão de palha dentro da
tenda deles. Retiraram o elmo danificado e colocaram uma almofada sob a
sua cabeça.
– Vou buscar um médico – disse Raine ao irmão. – E tu vai procurar a
esposa. Não há nada que uma mulher goste mais do que um homem
indefeso.
Alguns minutos depois, Gavin começou a recuperar a consciência.
Alguém lhe colocava água fria no rosto quente. Mãos frescas tocaram-lhe
na face. Abriu os olhos, aturdido. Tinha a cabeça às voltas. A princípio, não
conseguia lembrar-se de quem estava a ver.
– Sou eu, Alice – sussurrou ela. – Gavin estava feliz por não haver ruídos
mais fortes. – Vim cuidar de ti.
Ele sorriu um pouco e fechou os olhos novamente. Havia algo que
deveria lembrar-se, mas não podia.
Alice viu que na mão direita ele ainda apertava o véu que Judith lhe dera.
O mesmo que conseguira soltar da sua lança quando caiu do cavalo. Não
gostou do que isso parecia significar. Tirou-lho da mão e atirou-o ao chão.
– Ele está muito ferido? – perguntou ansiosamente uma mulher do lado
de fora da tenda.
Alice inclinou-se para a frente e colou os lábios na boca dormente de
Gavin, guiando-lhe um braço para que rodeasse a sua cintura.
A luz que penetrava na tenda aberta e lhe incidia no rosto e a pressão nos
lábios fizeram com que Gavin abrisse os olhos. Em seguida, recuperou os
sentidos. Viu a sua esposa, ladeada pelas figuras carrancudas dos irmãos, a
olhar para ele fixamente, enquanto abraçava Alice. Ele afastou-a e tentou
sentar-se.
– Judith – sussurrou.
Toda a cor desapareceu do rosto da jovem. Os seus olhos eram escuros e
enormes. Fitou-o com uma expressão de novo carregada de ódio. Depois,
converteu-se subitamente em frieza.
Gavin tentou soerguer-se, mas a rápida mudança de pressão no seu crânio
causou-lhe uma dor insuportável. Por sorte, tudo voltou a ficar escuro e
deixou-se cair pesadamente na almofada. Judith girou rapidamente sobre os
calcanhares e abandonou a tenda, seguida de perto por Miles, como se
quisesse protegê-la de algum mal.
Raine olhou para o irmão com uma expressão sombria.
– Filho da mãe... – começou, mas interrompeu-se ao notar que Gavin
estava de novo inconsciente. Raine virou-se para Alice, que o fitava,
triunfante. Agarrou-lhe no braço e ergueu-a com violência.
– Planeaste tudo isto! – acusou. – Céus! Como é possível que tenha um
irmão tão idiota? Não vales uma única das lágrimas que fizeste derramar a
Judith, mas temo que já lhe tenhas causado muitas.
Raine ficou ainda mais enfurecido ao ver um leve sorriso nas comissuras
da boca dela. Sem pensar, recuou o braço e esbofeteou Alice com as costas
da mão, sem a largar. Quando ela o olhou, Raine susteve a respiração com o
que viu. Alice não estava zangada. Em vez disso, fitava a boca dele. Havia
o inconfundível fogo da paixão nos seus olhos.
Ficou chocado e enojado como nunca se sentira na sua vida. Atirou-a de
encontro a um poste da tenda com tanta força que ela mal conseguia
respirar.
– Afasta-te de mim! – disse baixinho. – Teme pela vida, se os nossos
caminhos se cruzarem novamente.
Quando ela se foi embora, Raine voltou-se para o irmão, que começava a
mover-se. Um médico que viera cuidar da cabeça dorida de Gavin
aguardava, tremendo a um canto da tenda. A fúria dos Montgomery não era
um espetáculo agradável.
Raine falou com o homem por cima do ombro.
– Ocupe-se dele e se tiver algum tratamento que lhe cause mais dor, use-
o. – Virou-se e saiu da tenda.
Era noite quando Gavin acordou de um sono profundo, induzido por
qualquer droga que o médico o fizera beber. Estava sozinho na tenda
escura. Oscilou cautelosamente as pernas sobre a borda da cama e sentou-
se. Tinha a sensação de que alguém lhe fizera um corte profundo no canto
de um olho, passando pela parte de trás da cabeça até ao outro olho, e que
agora as duas metades estavam a separar-se. Apoiou a cabeça nas mãos,
fechando os olhos contra a dor terrível.
Pouco a pouco conseguiu abri-los. O seu primeiro pensamento foi de
estranheza por se ver sozinho. O seu escudeiro ou os irmãos deveriam estar
com ele. Endireitou as costas e teve consciência de uma nova dor. Havia
dormido várias horas sem tirar a armadura e cada articulação, cada
dobradiça, tinham-se cravado, através do couro e do feltro, na sua pele. Por
que razão o escudeiro não o despira? Geralmente o rapaz era muito
consciente e responsável.
Algo no chão chamou-lhe a atenção. Inclinou-se e levantou o véu azul de
Judith. Tocou-lhe com um sorriso, lembrando-se claramente de como ela
correra para ele, sorrindo, com os cabelos soltos ao vento. Nunca se sentira
tão orgulhoso na vida, como quando ela lhe entregara o presente, embora
tenha sustido a respiração quando Judith se aproximara tanto dos cavalos de
guerra. Passou os dedos pela fieira de pérolas e encostou o tecido à face.
Quase podia sentir o perfume do seu cabelo, mas isso era obviamente
impossível depois de o véu ter estado junto ao seu cavalo suado. Pensou no
seu rosto erguido para ele. Esse era um rosto pelo qual valia a pena lutar!
Então Gavin pareceu lembrar-se de uma mudança nela. Voltou a deixar
cair a cabeça entre as mãos. Faltavam peças ao puzzle. Doía-lhe tanto a
cabeça, que tinha dificuldade em recordar. Via uma Judith diferente, que
não sorria, nem rosnava como na primeira noite do casamento, mas uma
Judith que o olhava como se ele já não existisse. Foi uma luta para encaixar
todas as peças. Lembrou-se gradualmente do golpe da lança contra a sua
cabeça e depois de alguém a falar-lhe.
De repente, tudo ficou claro. Judith tinha-o surpreendido abraçado a
Alice. Era estranho que não conseguisse lembrar-se de ter procurado o
conforto de Alice.
Gavin teve de usar toda a sua força de vontade para se pôr de pé e tirar a
armadura. Estava demasiado cansado e enfraquecido para caminhar com
tanto peso. Por muito que lhe doesse a cabeça, tinha de encontrar Judith e
falar com ela.
Duas horas depois, Gavin encontrava-se dentro do grande salão. Tinha
procurado por toda a parte a esposa, sem conseguir encontrá-la. Cada passo
causava-lhe tanta dor que agora estava quase cego com a dor constante e o
cansaço de combatê-la.
Através de uma névoa, viu Helen que transportava uma bandeja de
bebidas para alguns convidados. Esperou que voltasse e puxou-a para um
canto escuro do corredor.
– Onde está Judith? – perguntou com um sussurro rouco.
Os olhos de Helen fulminaram-no.
– Agora, pergunta-me onde ela está? Fê-la sofrer, como todos os homens
fazem sofrer as mulheres. Tentei salvá-la. Disse-lhe que todos os homens
são vis, criaturas malignas que não merecem confiança, mas ela não quis
escutar-me. Não, defendeu-o. O que ganhou com isso? Na noite de núpcias
vi o seu lábio ferido. Bateu-lhe antes mesmo de se deitar com ela. E esta
manhã muitas pessoas viram o seu irmão expulsar da tenda aquela vadia da
Valence, a sua rameira. Preferia morrer a contar-lhe onde ela está!
Arrependo-me de não ter tido a coragem de nos matar às duas, antes de
entregar Judith em mãos como as suas.
Se a sogra disse mais alguma coisa, Gavin não a ouviu. Já ia a afastar-se.
Encontrou Judith, minutos depois, sentada ao lado de Miles num banco
do jardim. Gavin ignorou a carranca malévola do irmão mais novo. Não
queria discutir. Apenas desejava ficar a sós com Judith, abraçá-la como na
noite anterior. Talvez, então, a sua cabeça parasse de latejar.
– Vamos para dentro – disse em voz baixa, com dificuldade.
Ela levantou-se imediatamente.
– Sim, milorde.
Gavin franziu levemente a testa e ofereceu-lhe o braço, mas ela pareceu
não ter visto o seu gesto. Caminhava lentamente para que Judith pudesse
andar ao seu lado, mas ela mantinha-se um passo atrás. Por fim, conduziu-
os à mansão e subiram ao quarto.
Depois do ruído que dominava o salão, o quarto era um paraíso e ele
deixou-se cair num banco almofadado para tirar as botas. Olhou para cima e
viu Judith de pé ao lado da cama, imóvel.
– Por que me olhas assim?
– Espero as vossas ordens, milorde.
– As minhas ordens? – franziu a testa, pois qualquer movimento
provocava-lhe mais dores na cabeça. – Então, despe-te e deita-te na cama. –
Estava intrigado com ela. Por que não se enfurecia com ele? Ele saberia
como lidar com a raiva dela.
– Sim, milorde – respondeu Judith, num tom de voz monótono.
Já despido, Gavin caminhou lentamente para a cama. Judith já estava
deitada, tapada até ao pescoço, e com os olhos fixos no dossel. Ele enfiou-
se debaixo das cobertas e aproximou-se dela. A sua pele contra a dele era
reconfortante. Passou a mão pelo seu braço, mas Judith não reagiu.
Inclinou-se sobre ela, começou a beijá-la, mas a jovem não fechou os olhos
e os lábios não corresponderam.
– O que te aflige? – questionou Gavin.
– O que me aflige, milorde? – repetiu ela calmamente, sem se alterar,
olhando-o nos olhos. – Não sei a que se refere. Estou às suas ordens, pois
que sou vossa, como tantas vezes me repetiu. Diga-me o que desejar e
obedecerei. Quereis copular comigo? Então, obedecerei. – Moveu a coxa
contra a dele e Gavin levou alguns minutos a perceber que ela tinha aberto
as pernas para ele.
Fixou-a, horrorizado. Sabia que a crueza não era natural para ela.
– Judith – começou –, queria explicar-te o que aconteceu esta manhã.
Eu...
– Explicar, milorde? O que deveis explicar-me? Explicais os vossos atos
aos vassalos? Sou tão vossa como eles. Dizei-me apenas como posso
obedecer e fá-lo-ei.
Gavin começou a afastar-se dela. Não lhe agradava a forma como Judith
olhava para ele. Pelo menos, quando o odiava havia vida nos seus olhos.
Agora não havia nada. Saiu da cama. Sem saber o que fazia, vestiu o gibão
e calçou as botas, atirou as outras roupas sobre o braço e abandonou o
quarto frio.
Capítulo Nove

No silêncio do castelo montgomery, Judith abandonou a enorme cama vazia


e enfiou os braços num vestido de veludo verde-esmeralda forrado de pele
de marta. Era de manhã cedo e os servos do castelo ainda dormiam. Desde
que Gavin a tinha deixado na soleira da propriedade da sua família, Judith
quase não conseguira dormir. A cama parecia grande de mais e vazia para
se sentir em paz.
Na manhã seguinte àquela em que Judith se negara a responder às suas
carícias, Gavin exigira que partissem para a sua casa. Judith obedecera,
falando com ele apenas quando necessário. Viajaram durante dois dias,
antes de chegarem aos portões de Montgomery.
Ao entrar no castelo, ficou impressionada. Os guardas no topo das duas
torres maciças que ladeavam o portão mandaram-nos parar, embora
pudessem ver os estandartes com os leopardos Montgomery. A ponte
levadiça foi baixada sobre o fosso largo e profundo e o pesado portão de
aço foi erguido. A muralha exterior era alinhada com casas modestas e
limpas, estábulos, o arsenal, cavalariças e galpões de armazenamento. Outro
portão teve de ser aberto antes de entrarem na área do recinto interior onde
viviam Gavin e os irmãos. A casa tinha quatro andares com janelas de
montante no último andar. No centro havia um pátio de tijolos e Judith
podia ver um jardim com árvores de fruto florescendo atrás de um muro
baixo.
Queria comentar com Gavin o que pensava da sua administração, mas ele
não lhe dera oportunidade. Tinha feito pouco mais do que distribuir
algumas ordens e depois abandonou-a no meio da bagagem. Coube a Judith
apresentar-se aos serviçais.
Durante a semana anterior, Judith familiarizara-se com o castelo
Montgomery e considerara-o um lugar agradável para trabalhar. Os criados
não tinham objeções à direção de uma mulher. Enterrou-se em tarefas e
esforçou-se para não pensar no relacionamento do marido com Alice
Valence. Na maioria das vezes Judith era bem-sucedida. A solidão só a
atormentava de noite.
Um barulho no pátio fê-la correr até à janela. Era muito cedo para os
criados estarem por perto e só a um Montgomery seria permitido entrar
através do portão mais pequeno das traseiras. A luz era demasiado fraca
para dizer quem desmontava dos cavalos, lá em baixo.
Voou pelas escadas até ao grande salão.
– Tenha cuidado, homem – gritou Raine. – Acha que eu sou feito de ferro
para aguentar tanta sacudidela?
Judith parou ao fundo da escada. O cunhado estava a ser transportado
para a sala, com os pés em primeiro lugar, tendo uma perna fortemente
enfaixada.
– Raine, o que te aconteceu?
– Maldito cavalo! – explodiu com os dentes cerrados. – Não consegue ver
para onde vai, mesmo nos dias mais claros.
Ela aproximou-se enquanto os seus homens o colocavam numa cadeira
junto à lareira vazia.
– Devo concluir que foi o teu cavalo que causou isso? – sorriu.
Raine parou de franzir a testa e as covinhas ruborizaram-se.
– Bem, talvez tenha sido em parte culpa minha. Ele tropeçou num buraco
e atirou-me ao chão. Caí em cima da minha perna e ela quebrou-se.
Judith ajoelhou-se imediatamente e começou a tirar a ligadura do pé que
estava apoiado num banquinho.
– O que estás a fazer? – perguntou ele num tom áspero. – O meu médico
já cuidou disso.
– Não confio nele. Quero ver com os meus próprios olhos. Se não estiver
bem fixo, poderás ficar coxo.
Raine olhou-a fixamente e em seguida chamou o seu escudeiro.
– Traz-me um copo de vinho. Tenho a certeza que ela não ficará satisfeita
até me causar mais dor, e vai chamar o meu irmão. Por que deverá dormir
quando estamos acordados?
– Não está aqui – respondeu Judith em voz baixa.
– Quem não está aqui?
– O teu irmão. O meu marido – esclareceu Judith sem rodeios.
– Onde foi ele? Que negócio o chamou?
– Receio não saber. Deixou-me na soleira da porta e foi-se embora. Não
me falou de qualquer assunto que precisasse da sua atenção.
Raine pegou no cálice de vinho que o seu vassalo lhe estendia e observou
a cunhada, que lhe apalpava o osso da perna. Pelo menos a dor impediu-o
de dar vazão a toda a raiva que sentia pelo irmão. Não tinha dúvidas de que
Gavin havia deixado a sua bela esposa para ir atrás de Alice, essa prostituta.
Apertou a borda do cálice com os dentes enquanto Judith tocava na fratura.
– Está somente um pouco deslocado – observou. – Agarre-o pelos ombros
– disse ela a um dos homens de Raine. – Eu puxarei a perna.
***

O pesado cendal da tenda estava coberto de água. Na parte alta juntavam-


se grossas gotas que caíam no interior enquanto a chuva sacudia o tecido.
Gavin praguejou sonoramente, atingido por mais gotas de água na cara.
Desde que tinha deixado Judith, quase não parara de chover. Estava tudo
molhado. Pior do que a chuva era o temperamento dos seus homens, mais
negro ainda do que o céu. Há mais de uma semana que vagueavam pelo
interior, acampando num lugar diferente a cada noite. Preparavam a comida
à pressa, entre aguaceiros, e, consequentemente, estava quase sempre meio
crua. Quando John Bassett, o chefe dos vassalos, lhe perguntara o motivo
daquela viagem sem destino, Gavin tinha explodido. O olhar de sarcasmo
de John fez com que Gavin evitasse os seus homens.
Sabia que todos se sentiam angustiados e ele também estava. Mas, pelo
menos, ele sabia o motivo da viagem aparentemente inútil. Ou não?
Naquela noite, na casa do pai de Judith, quando ela se mostrara tão fria com
ele, tinha decidido dar-lhe uma lição. Ela sentia-se segura num lugar onde
passara a vida, cercada de amigos e familiares. Mas ousaria agir tão
desagradavelmente quando estivesse sozinha numa casa estranha?
Resultou bem quando os irmãos decidiram deixar o casal recém-casado
sozinho. Apesar da chuva que gotejava através das frestas da tenda, Gavin
começou a sorrir ante uma cena imaginária. Podia vê-la enfrentando alguma
crise, talvez algo catastrófico, como a cozinheira a queimar uma panela de
feijão. Ficaria frenética de preocupação e enviaria um mensageiro ter com
ele, para lhe suplicar que voltasse e a salvasse do desastre. O mensageiro
não seria capaz de encontrar o seu amo, dado que Gavin não estava em
nenhuma das suas propriedades. Ocorreriam mais calamidades. Ao
regressar, Gavin encontraria uma Judith, chorosa e arrependida, que cairia
nos seus braços, grata por vê-lo novamente, aliviada por ele ter vindo salvá-
la de um destino pior do que a morte.
– Oh, sim! – disse ele, sorrindo. – Toda a chuva e o desconforto valeriam
a pena. Ele falaria asperamente com ela e, quando a visse completamente
arrependida, secaria as suas lágrimas com beijos e levá-la-ia para a cama.
– Milorde?
– O que se passa? – Gavin sobressaltou-se quando a deliciosa visão foi
interrompida, exatamente quando estava prestes a imaginar o que permitiria
que Judith fizesse no quarto, a fim de obter o seu perdão.
– Desejávamos saber, sir, quando poderemos voltar a casa para escapar a
esta chuva amaldiçoada.
Gavin ia a grunhir que não era da conta do homem, mas fechou a boca e
sorriu.
– Voltaremos amanhã. – Judith estava sozinha há oito dias. Era tempo
suficiente para que tivesse aprendido um pouco de gratidão... e humildade.
***

– Por favor, Judith – implorou Raine, agarrando-lhe no antebraço. – Estou


aqui há dois dias e não me dedicaste um momento do teu tempo.
– Isso não é verdade – riu ela. – Ontem à noite passei uma hora a jogar
xadrez contigo e ensinaste-me alguns acordes no alaúde.
– Eu sei – reconheceu ele, insistindo no tom suplicante e com as covinhas
a aparecer nas faces, embora não sorrisse. – Mas é tão horrível estar aqui
sozinho. Não posso mexer-me por culpa desta maldita perna, e não há
ninguém que me faça companhia.
– Ninguém? Há mais de trezentas pessoas aqui. Sem dúvida uma delas...
– Mas interrompeu-se, quando Raine a fitou com olhos tão tristes que ela
riu. – Tudo bem, mas só um jogo. Tenho muito que fazer.
Raine ofereceu-lhe um sorriso deslumbrante quando ela se instalou do
outro lado do tabuleiro de xadrez.
– És fantástica neste jogo. Nenhum dos meus homens consegue vencer-
me, como o fizeste na noite passada. Além disso, precisas descansar. O que
fazes o dia todo?
– Ponho em ordem o castelo – respondeu Judith com simplicidade.
– Sempre me pareceu que estava em ordem – objetou Raine enquanto
movia um peão para a frente. – Os administradores...
– Os administradores! – exclamou ela bruscamente enquanto manobrava
o bispo para atacar. – Não se importam tanto como os donos de uma
propriedade. É preciso vigiá-los, verificar as contas, ler as entradas diárias
e...
– Ler. Sabes ler, Judith?
Ela ergueu o rosto, surpreendida, com a mão na rainha.
– Mas é claro. Tu, não?
Raine encolheu os ombros.
– Nunca aprendi. Os meus irmãos, sim, mas não era coisa que me
interessasse. Nunca conheci uma mulher que soubesse ler. O meu pai dizia
que as mulheres não podiam aprender essas coisas.
Judith fitou-o com uma expressão desgostosa enquanto a sua rainha
colocava o rei do adversário em perigo mortal.
– Julgo que deverias aprender que uma mulher pode muitas vezes
ultrapassar um homem, até mesmo um rei. Penso que ganhei o jogo. –
Levantou-se.
Raine olhou para o tabuleiro, estupefacto.
– Não podes ter vencido tão depressa! Nem dei por isso. Mantiveste-me a
falar para que não pudesse concentrar-me – acusou, olhando-a de soslaio. –
Além disso, dói-me tanto a perna que me custa pensar.
Judith fitou-o momentaneamente preocupada, mas logo começou a rir.
– Raine, és um mentiroso de primeira. Agora tenho de ir embora.
– Não, Judith – pediu ele, agarrando-lhe na mão e começando a beijar-lhe
os dedos. – Não me deixes! – implorou. – Na verdade, estou tão entediado
que posso enlouquecer. Por favor, fica comigo. Só mais um jogo.
Judith desatou a rir. Colocou a outra mão no seu cabelo, quando ele
começou a fazer promessas ultrajantes de amor eterno e gratidão, se ela lhe
fizesse companhia por mais uma hora.
Foi assim que Gavin os encontrou. Havia esquecido em grande parte a
beleza da esposa. Não estava vestida com os veludos e peles que usara no
casamento, mas com um simples vestido de macia lã azul. Tinha o cabelo
puxado para trás numa longa e grossa trança castanho-avermelhado. Se
dúvidas houvesse, a roupa simples tornava-a ainda mais bonita e
encantadora do que nunca. Era a inocência personificada, mas as curvas
generosas do corpo mostravam que era uma mulher.
Judith foi a primeira a dar-se conta da presença do marido. O sorriso no
seu rosto desapareceu imediatamente e todo o seu corpo enrijeceu.
Raine sentiu a tensão na sua mão e ergueu o rosto interrogativamente.
Seguiu a direção dos seus olhos e viu o irmão franzindo o cenho. Não havia
dúvida quanto ao que Gavin pensava da cena. Judith começou a afastar a
mão de Raine, mas ele reteve-a firmemente para não dar a impressão de
culpabilidade frente ao irmão irritado.
– Tenho tentado persuadir Judith a passar a manhã comigo – disse Raine
num tom despreocupado. – Há dois dias que estou encerrado neste quarto
sem nada para fazer, mas não consigo convencê-la a dedicar-me mais do
seu tempo.
– E sem dúvida que já tentaste por todos os meios – troçou Gavin, com o
olhar cravado na esposa que o encarava com frieza.
Judith afastou bruscamente a mão de Raine.
– Tenho de voltar ao meu trabalho – declarou num tom rígido e saiu da
sala.
Raine atacou primeiro, antes que Gavin tivesse a oportunidade de fazê-lo.
– Onde estiveste metido? – perguntou. – Apenas três dias de casados e
deixas a tua mulher na soleira da porta, como se fosse uma mala.
– Ela parece ter lidado bem com a situação – comentou Gavin, deixando-
se cair pesadamente numa cadeira.
– Se estás a insinuar algo desonroso...
– Não, nada disso – retorquiu Gavin francamente. Conhecia bem os
irmãos e Raine não desonraria a cunhada. Mas a cena havia sido um choque
doloroso após o que ele imaginara… e desejara. Encontrá-la à espera dele. –
O que aconteceu com a tua perna?
Raine sentiu-se envergonhado ao confessar que tinha caído do cavalo,
mas Gavin não riu como faria em circunstâncias normais. Levantou-se com
um ar cansado.
– Preciso cuidar do meu castelo. Estou fora há muito tempo e tenho a
certeza de que está prestes a cair-me em cima.
– Eu não contaria com isso – comentou Raine enquanto estudava o
tabuleiro de xadrez para passar em revista cada uma das jogadas feitas pela
cunhada. – Nunca conheci uma mulher que trabalhasse como Judith.
– Bah! – exclamou Gavin condescendente. – Quanto trabalho pode uma
mulher fazer numa semana? Bordar cinco ells4 de tecido?
Raine ergueu o rosto, surpreendido.
– Não disse que ela fez trabalho de mulher, disse que nunca vi uma
mulher trabalhar como ela.
Gavin não entendeu, mas também não pediu explicações. Na qualidade de
senhor do castelo, tinha muito que fazer. O castelo parecia sempre decair
significativamente quando se ausentava durante um tempo.
Raine adivinhava os pensamentos do irmão e despediu-o com uma frase
alegre:
– Espero que encontres algo para fazer.
Gavin não fazia ideia daquilo a que o irmão estava a referir-se e esqueceu
as palavras quando saiu da mansão. Continuava furioso por a cena com que
sonhara ter sido destruída. Mas, pelo menos, havia esperança. Judith ficaria
feliz por ele ter voltado para resolver todos os problemas surgidos durante a
sua ausência.
Nessa manhã, ao cavalgar pelos recintos, Gavin estava tão ansioso por
chegar junto da sua mulher chorosa que não notou qualquer mudança.
Agora observou alterações subtis. As casas do recinto exterior pareciam
mais limpas, quase novas na verdade, como se tivessem sido reparadas e
caiadas há pouco. Os esgotos que corriam ao longo da parte de trás dos
edifícios pareciam ter sido esvaziados recentemente.
Deteve-se em frente das cavalariças onde os falcões eram treinados.
Tinham diversas espécies: merlins, peregrinos, gaviões, falcões macho. O
seu falcoeiro estava diante do edifício, um falcão atado pela perna a um
poste, enquanto o homem balançava lentamente um isco sobre o pássaro.
– É um novo isco, Simon? – perguntou Gavin.
– Sim, milorde. É um pouco mais pequeno e pode ser balançado mais
depressa. A ave é forçada a voar com mais velocidade e a atacar com mais
precisão.
– Boa ideia – aprovou Gavin.
– Não é minha, senhor, mas de Lady Judith. Ela fez a sugestão.
Gavin olhou-o fixamente.
– Lady Judith sugeriu um isco melhor a um mestre falcoeiro?
– Sim, milorde – sorriu Simon, revelando a falha de dois dentes. – Não
sou tão velho que não saiba apreciar uma boa ideia quando ouço uma. A
senhora é tão inteligente quanto é bela. Veio aqui na manhã seguinte à da
sua chegada e observou-me durante muito tempo. Em seguida, com toda a
doçura do mundo, fez-me algumas sugestões. Entre milorde, e veja os
novos poleiros que construí. Lady Judith disse que os antigos eram a causa
das patas feridas das aves. Explicou-me que ácaros minúsculos se metem
neles e ferem os pássaros.
Simon ia a antecedê-lo para o interior, mas Gavin não o seguiu.
– Não quer ver? – estranhou Simon, desgostoso.
Gavin não tinha recuperado do facto de que o seu falcoeiro grisalho
aceitara o conselho de uma mulher. Gavin tentara fazer centenas de
recomendações a Simon, tal como o seu pai, mas, tanto quanto sabia, o
homem sempre fizera o que queria e não o que se pretendia dele.
– Não – respondeu Gavin. – Verei mais tarde que mudanças introduziu a
minha mulher. – Não conseguiu afastar o sarcasmo da voz enquanto rodava
sobre os calcanhares. Que direito tinha a mulher de interferir com os seus
falcões? As mulheres gostavam certamente tanto deles como os homens e
Judith teria, sem dúvida, o seu próprio falcão, mas o cuidado com os falcões
era um trabalho de homem.
– Milorde! – chamou uma jovem serva e depois corou ante o olhar feroz
do amo.
Fez-lhe uma vénia e estendeu-lhe uma caneca.
– Pensei que talvez gostasse de um refresco.
Gavin sorriu à jovem. Aqui, pelo menos, tinha uma mulher que sabia agir
corretamente. Olhou-a nos olhos enquanto bebia; depois a sua atenção foi
atraída para a bebida. Era deliciosa.
– O que é isso?
– São os morangos da primavera e o sumo das maçãs do ano passado
depois de serem fervidos, com um pouco de canela.
– Canela?
– Sim, milorde. Lady Judith trouxe-a da sua casa.
Gavin devolveu bruscamente a caneca vazia à jovem e virou as costas.
Agora estava realmente a ficar irritado. Tinham enlouquecido todos?
Dirigiu-se com passo apressado até ao outro extremo do recinto, onde
estava o seu armeiro. Pelo menos naquele lugar quente, de ferro forjado,
estaria a salvo da interferência de uma mulher.
Recebeu-o uma visão chocante. O armeiro, um homem enorme, nu da
cintura para cima, com os músculos ressaltando nos braços, estava sentado
junto a uma janela… a costurar.
– O que é isso? – inquiriu Gavin irritado, já cheio de suspeitas.
O homem sorriu e exibiu ao alto dois pequenos pedaços de couro.
Correspondiam ao projeto para uma nova articulação que poderia ser usada
na armadura de um cavaleiro.
– Veja, como isto é feito. A articulação fica muito mais flexível. Bem
pensado, não é?
Gavin cerrou o maxilar com força.
– Onde foste buscar essa nova ideia?
– Caramba, a Lady Judith! – respondeu o armeiro; depois, encolheu os
ombros quando Gavin saiu precipitadamente do barracão.
«Como é que ela se atreveu a isto!», pensou. Quem era ela para interferir
nas suas coisas, para fazer mudança após mudança, sem pedir a sua
aprovação? Aquelas propriedades eram dele! Se fossem necessárias
mudanças, seriam feitas por ele.
Encontrou Judith na despensa, uma ampla divisão anexada à cozinha,
separada da casa para evitar incêndios. Tinha a cabeça e os ombros
enterrados dentro de um enorme barril de farinha, mas o cabelo ruivo era
inconfundível. Deteve-se a pouca distância, tirando o máximo partido da
sua altura.
– O que fizeste na minha casa? – berrou.
Judith afastou imediatamente a cabeça para fora do barril com tanta
brusquidão que quase bateu com ela na borda. Apesar da altura de Gavin e
da sua voz sonora, não tinha medo dele. Até ao dia da boda, há menos de
duas semanas, nunca estivera perto de um homem que não estivesse
zangado.
– A vossa casa? – respondeu com uma voz letal. – Diga-me, por favor, o
que sou. A serviçal da cozinha? – indagou, enquanto mostrava os braços,
cobertos de farinha até aos cotovelos.
Estavam rodeados de criados do castelo que se apoiavam contra as
paredes com medo, mas que não teriam perdido uma cena tão fascinante por
nada.
– Sabes perfeitamente quem és, mas não permitirei que interfiras nos
meus negócios. Alteraste demasiadas coisas: o meu falcoeiro, até mesmo o
meu armeiro. Deves cuidar das tuas próprias tarefas e não das minhas!
Judith fulminou-o com o olhar.
– Então, dizei-me o que devo fazer, se não posso falar com o falcoeiro ou
com quem mais precisar de conselho.
Gavin ficou intrigado por um momento.
– Bem... coisas de mulheres. Deves fazer as coisas de todas as mulheres.
Costurar. Inspecionar a comida e a limpeza e... e preparar cremes para o
rosto. – Sentiu que a última sugestão foi inspirada.
As faces de Judith ardiam e os olhos brilhavam com pedacinhos de vidro
dourados.
– Cremes para o rosto! – rosnou. – Então agora sou feia e preciso de
cremes para o rosto! Talvez também devesse preparar escurecedor para os
cílios e rouge para as minhas faces pálidas.
Gavin ficou momentaneamente desconcertado.
– Não disse que eras feia, mas apenas que não deves pôr o meu armeiro a
costurar.
Judith apertou o queixo com firmeza.
– Então não voltarei a fazê-lo. Deixarei que a vossa armadura fique rígida
e pesada antes de falar com o homem novamente. O que mais posso fazer
para vos agradar?
Gavin fitou-a. A discussão estava a escapar-lhe por entre os dedos.
– Os falcões – referiu debilmente.
– Então deixarei que as aves morram com as patas feridas. Mais alguma
coisa?
Gavin quedou-se, emudecido, sem resposta.
– Agora suponho que nos entendemos, milorde – prosseguiu Judith. –
Não devo proteger-lhe as vossas mãos, devo deixar as aves morrerem e
passar os meus dias a preparar cremes de rosto para dissimular a minha
fealdade.
Gavin agarrou-a pela parte superior do braço e levantou-a do chão para
que se enfrentassem.
– Maldita sejas, Judith! Não te disse que és feia! És a mulher mais bonita
que já vi. – Olhou para a sua boca, tão perto da dele.
Os olhos da jovem suavizaram-se e conferiu à voz um tom mais doce do
que mel.
– Nesse caso, posso dedicar o meu pobre cérebro a algo mais do que
estimuladores de beleza?
– Sim – sussurrou Gavin, enfraquecido pela sua proximidade.
– Ótimo – manifestou-se ela com firmeza. – Então, há uma nova ponta de
flecha sobre a qual gostaria de conversar com o armeiro.
Gavin pestanejou de espanto; em seguida, colocou-a no chão com tanta
força que os dentes da jovem rangeram.
– Não deves... – Interrompeu-se enquanto fitava os seus olhos
desafiadores.
– Sim, milorde?
Ele saiu da cozinha, furioso.
***

Raine sentou-se à sombra da muralha do castelo, com a perna enfaixada


estendida, tomando a nova bebida de canela de Judith e comendo pãezinhos
ainda quentes do forno. De vez em quando tentava suster uma risada
enquanto observava o irmão. A ira de Gavin era visível em cada um dos
seus movimentos. Montou o cavalo como se um demónio o perseguisse e
enfiou a lança furiosamente através do fantoche de palha que representava o
seu inimigo.
A discussão da despensa corria de boca em boca. No dia seguinte,
chegaria aos ouvidos do rei em Londres. Apesar do seu regozijo, Raine
sentiu pena do irmão. Tinha sido derrotado publicamente por uma jovem.
– Gavin – chamou. – Dá descanso ao animal e vem sentar-te aqui um
pouco.
Gavin obedeceu relutantemente ao irmão, ao perceber que o seu cavalo
estava coberto de espuma. Atirou as rédeas ao escudeiro e foi sentar-se ao
lado do irmão, com um ar cansado.
– Toma um refresco – ofereceu Raine.
Gavin ia a pegar na caneca e parou.
– É a nova bebida dela?
Raine sacudiu a cabeça ao ouvir o tom do seu irmão.
– Sim, foi Judith que a preparou.
Gavin virou-se para o escudeiro.
– Traz-me uma cerveja da adega – ordenou.
Raine começou a falar, mas viu que o irmão vagueava os olhos pelo pátio.
Judith tinha saído da mansão e atravessava o campo de treino coberto de
areia, em direção à fila de cavalos de guerra amarrados na borda. Gavin
observava-a ardentemente; depois, quando ela parou junto aos cavalos, ia a
levantar-se.
Raine agarrou o braço do irmão e obrigou-o a sentar-se outra vez.
– Deixa-a em paz. Só vais iniciar outra briga, que, sem dúvida, perderás
novamente.
Gavin abriu a boca para falar e voltou a fechá-la, quando o escudeiro lhe
entregou uma caneca de cerveja.
Logo que o rapaz se afastou, Raine retomou a palavra:
– Não fazes mais nada, além de berrares com a mulher?
– Eu não... – começou Gavin; então parou e bebeu mais cerveja.
– Olha bem para ela e diz-me uma única coisa que ela tenha de errado. É
suficientemente bonita para rivalizar com o sol. Trabalha o dia todo para
manter a tua casa em ordem. Tem todos os homens, mulheres e crianças,
incluindo Simon, a comer na mão dela. Até mesmo os cavalos de guerra
pegam deliciosas maçãs da sua palma. É uma mulher com sentido de humor
e joga xadrez como ninguém. O que mais poderias querer?
Gavin não tinha tirado os olhos dela.
– O que sei do seu humor? – admitiu, entristecido. – Nem sequer me
chama pelo meu nome.
– Tinha motivos para fazê-lo? – acusou Raine. – Alguma vez lhe disseste
uma palavra amável? Não te entendo. Vi-te cortejar as servas com mais
ardor. Acaso uma beleza como Judith não merece palavras doces?
Gavin virou-se para ele.
– Não sou um simplório para que um irmão mais novo me ensine como
agradar a uma mulher. Já saltava de cama em cama das mulheres, enquanto
ainda estavas com a tua ama de leite.
Raine não respondeu, mas os seus olhos bailavam. Absteve-se de
mencionar que tinham apenas quatro anos de diferença.
Gavin deixou o irmão e dirigiu-se à mansão onde pediu que lhe
preparassem um banho. Sentado na água quente, teve tempo para pensar.
Por mais que odiasse admiti-lo, Raine estava certo. Talvez Judith tivesse
razão para o tratar com frieza. O casamento deles começara com o pé
esquerdo. Fora muito mau ter-lhe batido na primeira noite, uma pena que
ela tivesse entrado na sua tenda, quando menos deveria.
Mas isso era passado. Gavin lembrou-se do seu juramento, que não
receberia nada dela de bom grado, exceto o que tomava. Sorriu enquanto
ensaboava os braços. Tinha passado duas noites com ela e sabia que era
uma mulher de grande paixão. Quanto tempo poderia manter-se fora da sua
cama? Raine também estava certo, quando mencionou o talento do irmão
para cortejar uma mulher. Há dois anos, tinha feito uma aposta com Raine
sobre certa condessa gélida. Num tempo surpreendentemente curto, Gavin
estava na cama dela. Existia uma mulher que não pudesse conquistar,
quando assim se propunha? Seria um prazer dobrar a sua esposa arrogante.
Seria doce com ela e cortejá-la-ia até ela lhe implorar que fosse para a cama
dela.
Então, ela seria sua, pensou, quase rindo em voz alta. Seria sua
propriedade e nunca mais voltaria a intrometer-se na sua vida. Teria assim
tudo o que desejava: Alice para amar e Judith para lhe aquecer a cama.
***

Lavado e vestido com roupas limpas, Gavin sentia-se como se fosse um


novo homem. Estava exultante com a ideia de tentar seduzir a sua adorável
esposa. Encontrou-a nos estábulos, suspensa precariamente do muro de uma
divisória, falando com suavidade a um dos cavalos de guerra enquanto o
ferrador limpava e aparava um casco coberto de pelos. O primeiro
pensamento de Gavin foi dizer-lhe para se afastar da besta antes que se
magoasse. Em seguida, descontraiu-se. Ela parecia dar-se muito bem com
cavalos.
– Esse animal não se deixa domar com facilidade – disse Gavin
serenamente, enquanto se aproximava para ficar ao lado dela. – Tens jeito
com cavalos, Judith. – Ela virou-se para ele com um olhar desconfiado.
O cavalo captou o seu nervosismo e deu um coice. O ferrador quase não
conseguiu desviar-se antes que o casco o atingisse.
– Acalme-o, milady – ordenou o homem sem olhar para trás. – Ainda não
terminei e não conseguirei fazê-lo se ele se mexer.
Gavin ia a abrir a boca para perguntar ao homem que direito tinha de falar
com a sua ama daquela maneira, mas Judith não pareceu ofender-se com as
palavras do homem.
– Vou fazê-lo, William – respondeu ela enquanto segurava as rédeas do
cavalo firmemente e acariciava o nariz macio. Não ficou magoado, pois
não?
– Não! – respondeu o ferrador num tom áspero. – Bem, já está! – virou-se
para Gavin. – Milorde! Ia a dizer-me alguma coisa?
– Sim. Costumas dar ordens à tua ama como acabas de fazer?
William ficou vermelho.
– Só quando preciso – ripostou Judith. – Vá lá, William, por favor, e
cuide dos outros animais.
O homem obedeceu de imediato. Judith encarou Gavin com um olhar de
desafio. Em vez da raiva que esperava, ele sorriu.
– Não, Judith – disse ele. – Não vim discutir contigo.
– Ignorava que existia outra coisa entre nós.
Gavin estremeceu. Depois, estendeu a mão e pegou na da esposa,
puxando-a relutantemente atrás dele.
– Vim perguntar se poderia dar-te um presente. Vês o garanhão na
divisória do fundo? – perguntou, apontando quando lhe largou a mão.
– O escuro? Conheço-o bem.
– Não trouxeste nenhum cavalo da casa do teu pai.
– O meu pai preferiria perder todo o ouro que possui do que um dos seus
cavalos – retorquiu ela, referindo-se às carroças carregadas de riquezas que
a tinham acompanhado até à propriedade de Montgomery.
Gavin encostou-se ao portão de uma divisória vazia.
– Aquele garanhão produziu belas éguas. São mantidas numa granja de
criação a certa distância. Pensei que talvez amanhã pudesses acompanhar-
me e escolher uma.
Judith não entendia a sua bondade repentina, nem lhe agradava.
– Há palafréns5 aqui que são suficientes para as minhas necessidades –
disse ela.
Gavin ficou silencioso por um momento, observando-a.
– Odeias-me assim tanto ou tens medo de mim.
– Não tenho medo! – assegurou Judith, com as costas tão direitas como
uma barra de ferro.
– Então acompanhas-me?
Judith olhou-o fixamente e assentiu secamente.
Gavin sorriu-lhe – um sorriso genuíno – e Judith lembrou-se
inesperadamente de algo que parecia distante, o dia do seu casamento,
quando ele lhe sorrira assim muitas vezes.
– Então esperarei o amanhã impaciente – reagiu Gavin antes de deixar os
estábulos.
Judith ficou a observá-lo, franzindo a testa. O que quereria aquele homem
dela? Que razão tinha para lhe dar um presente? Não pensou
demoradamente sobre o assunto por muito tempo, pois havia muito trabalho
a ser feito. O lago dos peixes era um lugar que ela havia negligenciado e
que precisava desesperadamente de limpeza.

4 Ells – Qualquer uma das várias unidades históricas de medida, originalmente baseadas no
comprimento do braço ou antebraço, mas depois padronizadas em outros comprimentos, como o
inglês de 45 polegadas (114 centímetros). (N. da T.)

5 Palafrém – Um cavalo dócil usado para equitação comum, especialmente por mulheres. (N. da T.)
Capítulo Dez

O grande salão da casa senhorial brilhava com a luz trémula das lareiras.
Alguns dos homens mais favorecidos de Montgomery jogavam cartas,
dados, xadrez, limpavam armas ou simplesmente descansavam. Judith e
Raine estavam sentados sozinhos no extremo oposto da sala.
– Por favor, toca essa música, Raine – pediu Judith. – Sabes que não sou
dotada para a música. Disse-te isso esta manhã, e que prometi jogar uma
partida de xadrez contigo.
– Queres que toque uma música tão longa como as tuas ausências? –
dedilhou dois acordes no alaúde. – Aqui está. Tenho a certeza de que toquei
tanto quanto o tempo que precisas para me derrotar – brincou.
– Não tenho culpa que te deixes derrotar com tanta facilidade. Só usas os
peões para atacar e não te proteges dos ataques dos outros.
Raine olhou-a fixamente, boquiaberto, e depois começou a rir.
– Isso é uma demonstração de sabedoria ou um insulto sem adornos?
– Raine – começou Judith –, sabes exatamente o que quero dizer. Gostaria
que tocasses para mim.
O cunhado sorriu-lhe. A luz das chamas brilhava no seu cabelo castanho-
avermelhado e o vestido de lã ressaltava o corpo tentador. Mas a beleza dela
não era o que ameaçava enlouquecê-lo. Por vezes, a beleza existia até entre
as servas. Não. Era a própria Judith. Raine nunca tinha conhecido uma
mulher com a sua honestidade, a sua lógica, a sua inteligência. Se Judith
tivesse nascido homem... sorriu. Se Judith tivesse nascido homem, não
estaria em tal perigo de se apaixonar irremediavelmente por ela. Precisava
afastar-se da jovem quanto antes, embora a sua perna não estivesse
totalmente curada.
Raine olhou por cima da cabeça de Judith e viu Gavin encostado à
ombreira da porta, observando o perfil da esposa iluminado pelas chamas.
– Vem cá, Gavin – chamou. – Vem e toca para a tua mulher. A perna dói-
me em demasia para apreciar o que quer que seja. Tenho dado lições a
Judith, mas em vão. – Os olhos brilhavam ao olhar para a cunhada, mas ela
limitou-se a fixar as mãos que mantinha cruzadas no regaço.
Gavin avançou.
– Alegra-me saber que há algo que a minha mulher não faz na perfeição –
riu. – Sabes que hoje mandou limpar o lago dos peixes? Constou-me que os
homens encontraram um castelo normando no fundo. – Interrompeu-se
quando Judith se levantou.
– Peço que me desculpem – disse num tom sereno. – Acho que estou
mais cansada do que imaginava e quero retirar-me. – Sem mais uma
palavra, abandonou o salão.
O sorriso desapareceu do rosto de Gavin que se afundou numa cadeira
almofadada.
Raine olhou para o irmão com simpatia.
– Amanhã tenho de regressar às minhas propriedades.
Se Gavin ouviu, não comentou.
Raine fez sinal a um dos servos para que o ajudasse a chegar ao seu
quarto.
***

Judith contemplou o quarto com novos olhos. Já não era somente dela.
Agora que o marido regressara a casa, tinha o direito de compartilhá-lo com
ela. Compartilhar o quarto, compartilhar a cama, compartilhar o seu corpo.
Despiu-se apressadamente e enfiou-se sob os lençóis. Tinha dispensado as
criadas mais cedo, pois desejava algum tempo a sós. Embora Judith
estivesse cansada após as atividades do dia, fitava a cama de dossel com os
olhos muito abertos. Decorrido muito tempo, ouviu passos do lado de fora
da porta.
Susteve a respiração durante uns momentos e então os passos afastaram-
se, hesitantes. Era obviamente um alívio, disse para si mesma, mas isso não
aquecia a cama fria. Por que havia Gavin de desejá-la?, pensou, com os
olhos cheios de lágrimas. Passara, sem dúvida, a última semana com a sua
amada Alice. A sua paixão estaria completamente esgotada e não precisava
da esposa.
Apesar dos seus pensamentos, o cansaço do longo dia acabou por levá-la
a dormir.
Acordou muito cedo, quando ainda estava escuro no quarto. Só a luz
fraca do amanhecer entrava através das persianas. O castelo inteiro ainda
estava adormecido e Judith achou o silêncio agradável. Sabia que não podia
dormir mais, nem queria. Esse momento, ainda escuro da manhã, era o seu
favorito.
Vestiu-se rapidamente com um simples vestido de lã azul-escuro. Os
sapatos de couro macio não fizeram qualquer ruído nos degraus de madeira,
nem enquanto caminhava por entre os homens que dormiam no grande
salão. Lá fora, a luz era de um cinzento-escuro, mas os seus olhos
ajustaram-se rapidamente. Junto à mansão havia um pequeno jardim
murado. Tinha sido uma das primeiras coisas que Judith vira na sua nova
casa e uma das últimas a que poderia prestar atenção. Havia fileiras de rosas
com grande variedade de cores, mas os botões estavam quase ocultos
debaixo das hastes mortas, nos arbustos muito negligenciados.
A fragrância das flores na frescura matutina era embriagadora. Judith
sorriu quando se inclinou sobre um dos arbustos. As outras tarefas haviam
sido necessárias, mas a poda das rosas era um trabalho de amor.
– Pertenciam à minha mãe.
Judith soltou uma exclamação ante a voz tão próxima. Não tinha ouvido
ruído de passos.
– Onde quer que fosse, colhia pedaços do caule de rosas de outras pessoas
– continuou Gavin enquanto se ajoelhava ao lado de Judith, tocando num
dos botões.
O momento e o lugar pareciam sobrenaturais. Quase conseguiu esquecer
que o odiava. Voltou-se e continuou a podar.
– A tua mãe morreu quando eras pequeno? – perguntou baixinho.
– Sim. Muito pequeno e o Miles quase não a conheceu.
– O teu pai não voltou a casar?
– Passou o resto da vida a chorar por ela. Durante o pouco tempo que lhe
restava. Morreu três anos depois dela. Eu tinha apenas dezasseis anos.
Judith nunca o ouvira falar com tanta tristeza. Na verdade, pouco detetara
na voz de Gavin, além de raiva.
– Eras muito jovem para lidares com a administração das propriedades do
teu pai.
– Tinha menos um ano do que tens agora e pareces saber perfeitamente
como administrar esta propriedade. Muito melhor do que o fiz nessa altura,
e do que tenho feito até agora. – Havia admiração na sua voz, mas também
um pouco de mágoa.
– Mas a mim prepararam-me para este trabalho – apressou-se a dizer. –
Tu foste treinado como um cavaleiro. Deveria ser-te mais difícil aprender o
que fazer.
– Disseram-me que te tinham preparado para a Igreja – observou,
surpreendido.
– Sim – confirmou Judith enquanto passava a outra roseira. – A minha
mãe desejava que eu escapasse à vida que ela conheceu. Passou a infância
num convento, onde foi muito feliz. Foi apenas quando se casou que... –
Judith interrompeu-se, sem querer terminar a frase.
– Não entendo como a vida num convento de freiras poderia preparar-te
para o que fizeste aqui. Pelo contrário, imaginava-te a passar os dias,
rezando.
Ela sorriu-lhe quando ele se sentou no caminho de cascalho ao seu lado.
O céu começava a adquirir um tom rosado. À distância, ouvia o barulho dos
criados.
– Na sua maioria, os homens pensam que a pior coisa que pode acontecer
a uma mulher será ver-se sem a companhia de um homem. Garanto-te que a
vida de uma freira está longe de ser vazia. Pensa no Convento de Sainte
Anne. Quem julgas que administra essas terras?
– Nunca me ocorreu essa questão.
– A abadessa administra propriedades que fazem com que as do rei
pareçam pobres. As tuas e as minhas caberiam num rincão de Sainte Anne.
No ano passado, a minha mãe levou-me a visitar a abadessa. Passei uma
semana ao seu lado. É uma mulher constantemente ocupada, que dirige o
trabalho de milhares de homens e acres de terra. Ela não... – os olhos de
Judith brilharam – … tem tempo para o trabalho de mulher.
Gavin ficou sobressaltado um momento, mas logo desatou a rir.
– Boa estocada. «O que tinha dito Raine sobre o sentido de humor de
Judith?» – Aceito a correção.
– Julguei que deverias saber mais sobre conventos, já que a tua irmã é
freira.
Um brilho especial iluminou o rosto de Gavin ante a menção à irmã e
sorriu.
– Não consigo imaginar Mary a administrar as propriedades de ninguém.
Mesmo quando criança era tão doce e tímida que parecia de outro mundo.
– Por isso a deixaste entrar no convento.
– Era a sua vontade, e quando herdei as propriedades do meu pai, ela
deixou-nos. Queria que ficasse aqui e não casasse se não quisesse, mas ela
queria estar perto das irmãs.
Gavin olhou fixamente para a esposa, pensando que ela estivera muito
próximo de passar a vida num convento. A luz do Sol parecia fogo nos seus
cabelos ruivos. Ao olhá-lo assim, sem raiva ou ódio, deixava-o sem alento.
– Ai! – Judith quebrou o feitiço enquanto olhava para o dedo, picado pelo
espinho de uma rosa.
– Deixa-me ver – pediu Gavin enquanto segurava a sua mão pequena na
dele. Limpou uma gota de sangue da ponta do dedo e depois levou-o aos
lábios, fitando-a nos olhos.
– Bom dia!
Os dois ergueram o rosto para a janela por cima do jardim.
– Lamento interromper a cena de amor – anunciou Raine da janela da
mansão –, mas os meus homens parecem ter-me esquecido e, com esta
maldita perna, estou quase convertido num prisioneiro.
Judith tirou a mão de entre as de Gavin e desviou o olhar, ruborizada.
– Vou ajudá-lo – disse Gavin, levantando-se. – Raine decidiu que vai
partir hoje. Talvez possa colocá-lo a caminho. Vais acompanhar-me esta
manhã para escolheres a tua égua?
Ela assentiu com a cabeça, mas não voltou a olhar para ele, até que saísse
do jardim.
– Vejo que estás a fazer progressos com a tua mulher – comentou Raine
enquanto Gavin o ajudava bruscamente a descer as escadas.
– Teria progredido mais se alguém não tivesse começado a gritar pela
janela – lamentou Gavin amargamente.
Raine desatou a rir. Doía-lhe a perna e não lhe agradava a perspetiva de
fazer uma longa viagem até outra propriedade, de modo que estava de mau
humor.
– Nem sequer passaste a noite com ela.
– O que tens a ver com isso? Desde quando averiguas onde durmo?
– Desde que conheci Judith.
– Raine, se tu...
– Não te atrevas a dizê-lo. Por que julgas que vou partir com a perna a
meio da cura?
Gavin sorriu.
– Ela é encantadora, não é? Dentro de poucos dias vou tê-la a comer na
minha mão. Então verás onde vou dormir. As mulheres são como falcões: é
preciso deixá-los passar fome até que estejam desesperados por comida;
então é fácil domesticá-los.
Raine parou na escada, com o braço a rodear o ombro de Gavin.
– És um tolo, irmão. Deves ser o maior de todos os tolos. Não sabes que o
mestre é muitas vezes o servo do seu falcão? Quantas vezes já viste homens
que transportam o seu falcão favorito preso ao pulso, mesmo na igreja?
– Estás a dizer disparates – retorquiu Gavin – e não gosto que me
chamem tolo.
Raine cerrou os dentes, pois Gavin dera-lhe um abanão na perna.
– Judith vale por dois como tu e por cem daquela cabra gélida que julgas
amar.
Gavin parou ao fundo da escada, deitou um olhar malévolo ao irmão e
afastou-se tão rapidamente que Raine teve de apoiar-se à parede para não
cair.
– Não voltes a mencionar Alice! – advertiu o irmão mais velho com voz
letal.
– Falarei dela quando me apetecer, raios! Alguém tem de o fazer. Está a
arruinar-te a vida e a deitar por terra a felicidade de Judith. E Alice não vale
uma madeixa do cabelo de Judith.
Gavin ergueu o punho e deixou-o cair.
– Fico contente por te ires embora hoje. Não quero ouvir-te dizer nem
mais uma palavra sobre as minhas mulheres. – Virou-se e afastou-se com
grandes passadas.
– As tuas mulheres? – gritou Raine. – Uma é dona da tua alma e à outra
trata-la com desprezo. Como podes chamá-las de tuas?
Capítulo Onze

Havia dez cavalos dentro da área cercada. Cada um era elegante e forte,
com longas pernas que inspiravam visões de animais a galope por campos
floridos.
– Devo escolher um, milorde? – perguntou Judith, enquanto se inclinava
sobre a grade da cerca. – Fitou Gavin ao seu lado, observando-o com
desconfiança. Durante toda a manhã ele tinha-se mostrado excecionalmente
agradável; primeiro no jardim e agora ao oferecer-lhe um presente.
Ajudara-a a montar e segurara-lhe no braço quando ela, num gesto pouco
senhorial, se inclinou sobre a cerca. Judith podia entender a sua irritação e
as suas expressões carrancudas, mas aquela gentileza inesperada causava-
lhe desconfiança.
– Qualquer um que te agradar – respondeu Gavin, sorridente. – Todos
foram domados e estão prontos para arreios e uma sela. Vês algum de que
gostes?
Ela olhou para os cavalos.
– Não há um que não goste. Não é fácil escolher. Creio que é aquele, o
negro.
Gavin sorriu ante a sua escolha, uma égua com um passo alto e elegante.
– É tua – afirmou. – Então, sem lhe dar tempo a ajudá-la, Judith estava no
chão e atravessou o portão. Poucos minutos depois, o palafreneiro de Gavin
tinha a égua selada e Judith montada no dorso do seu animal.
Era maravilhoso voltar a montar um cavalo de raça. À direita de Judith
estendia-se o caminho até ao castelo. À sua esquerda, a densa floresta, um
campo de caça para os Montgomery. Sem pensar, tomou o caminho para a
floresta. Passara tempo demasiado, confinada a paredes e apinhada entre as
pessoas. Os grandes carvalhos e faias pareciam-lhe convidativos, os ramos
entrelaçados por cima, formando um refúgio privado. Judith não olhou para
trás para ver se a seguiam; limitou-se a lançar-se em linha reta para a
liberdade.
Cavalgava velozmente para testar a égua e a si mesma. Eram compatíveis,
como sabia que seriam. O animal gostava tanto da corrida como Judith.
– Calma agora, ternura – sussurrou Judith quando estavam bem dentro da
floresta. A égua obedeceu, escolhendo delicadamente o caminho entre as
árvores e os arbustos. O solo estava coberto de samambaias e de folhagem
seca acumulada em centenas de anos. Era um tapete macio e silencioso.
Judith respirou profundamente o ar limpo e fresco e deixou que a sua
montada escolhesse o rumo.
O som da água corrente chamou a atenção de Judith, assim como a da
égua. Por entre as árvores corria apressado um rio profundo e fresco e o sol
brilhava entre os galhos pendentes. Judith desmontou e conduziu a égua até
à água. Enquanto a égua bebia em silêncio, Judith arrancou pedaços de erva
macia e começou a esfregar os flancos do animal. Tinham galopado vários
minutos antes de chegar à floresta e a égua estava suada.
Judith envolveu-se nessa agradável tarefa, glorificando o dia e a água
correndo. A égua ergueu as orelhas e escutou, alerta, e depois retrocedeu
com nervosismo.
– Calma, rapariga – tranquilizou-a Judith, acariciando o pescoço macio. A
égua recuou outro passo, desta vez com mais ímpeto, atirou a cabeça para
trás e relinchou. Judith deu meia-volta para agarrar as rédeas do animal
assustado e falhou.
Um javali aproximou-se, farejando o ar. Estava ferido e tinha os olhos
minúsculos vidrados de dor. Judith tentou novamente agarrar as rédeas da
sua égua, mas o javali iniciou o ataque e a égua, enlouquecida de medo,
afastou-se a galope. A jovem pegou nas saias e começou a correr, mas o
javali era mais rápido do que ela. Judith deu um pulo para um ramo baixo,
agarrou-o e começou a erguer-se. Fortalecida por toda uma vida de trabalho
e de exercício, balançou as pernas para outro ramo, quando o javali quase a
alcançava. Não era tarefa fácil manter-se na árvore por causa do ataque do
animal enlouquecido, que abanava repetidamente o tronco.
Por fim, Judith conseguiu pôr-se de pé no ramo mais baixo, enquanto
segurava outro por cima da sua cabeça. Ao olhar para baixo, deu-se conta
de que estava muito acima do chão. Fixou o javali com um terror cego; os
nós dos dedos haviam embranquecido devido à força com que se agarrava
ao ramo por cima dela.
***
– Temos de nos dispersar – ordenou Gavin ao seu homem, John Bassett. –
Não somos suficientes para irmos aos pares e ela não pode estar muito
longe. – Gavin tentava manter um tom de voz calmo. Estava furioso com a
esposa por se ter afastado a galope num cavalo desconhecido por um
bosque que lhe era estranho. Mantivera-se de pé junto dos cavalos e dos
seus homens, observando-a a afastar-se. Esperava que, quando chegasse à
orla da floresta, voltasse. Demorou um momento a perceber que Judith
estava a internar-se na floresta.
Agora não podia encontrá-la. Era como se tivesse desaparecido, engolida
pelas árvores.
– John, tu vais para norte, contornando as árvores. Tu, Odo, vais para sul.
Tentarei o centro.
No interior da floresta reinava o silêncio. Gavin ouvia atentamente,
tentando perceber qualquer sinal da mulher. Tinha passado uma grande
parte da sua vida ali e conhecia cada centímetro do bosque. Sabia que a
égua se encaminharia provavelmente para o rio que corria através do centro.
Chamou várias vezes por Judith, mas não obteve resposta.
Então o seu garanhão espetou as orelhas.
– O que se passa, rapaz? – perguntou Gavin, de ouvido alerta. O cavalo
deu um passo atrás, com as narinas dilatadas. O animal estava treinado para
a caça e Gavin reconheceu os sinais. – Agora, não – disse ele. – Mais tarde
vamos procurar a presa.
O cavalo não pareceu entender, mas sacudiu a cabeça contra as rédeas.
Gavin franziu a testa, mas deixou-o à vontade. Nesse momento, ouviu o
ruído do javali que atacava a base da árvore. Um instante depois, viu-o.
Preparava-se para conduzir a montada dando a volta para passar longe da
besta, mas avistou algo azul em cima da árvore.
– Por Deus! – sussurrou ao perceber que Judith estava presa na árvore. –
Judith! – chamou, mas não obteve resposta. – Daqui a um momento estarás
a salvo.
O cavalo baixou a cabeça, preparando-se para o ataque, enquanto Gavin
desembainhava a longa espada que levava junto à sela. O garanhão, bem
treinado, correu até passar muito perto do javali e Gavin inclinou-se para
fora da sela, apertando as fortes coxas, enquanto se dobrava e enfiava a
espada pela espinha do animal. O javali soltou um grunhido e agitou as
patas antes de morrer.
Gavin saltou rapidamente da sela e recuperou a arma. Quando olhou para
Judith, ficou atónito com o puro terror estampado no seu rosto.
– Passou o perigo, Judith. O javali está morto. Não pode fazer-te mal. – O
seu terror parecia desproporcionado em relação ao perigo, dado que a
jovem estava suficientemente segura na árvore.
Ela não respondeu, mas continuou a olhar para o chão, o seu corpo tão
rígido quanto uma lança de ferro.
– Judith! – exclamou num tom brusco. – Estás ferida?
Ainda assim, ela não respondeu nem reconheceu a sua presença.
– Bastará um pequeno salto – disse, erguendo os braços para ela. – Larga
o ramo acima e apanhar-te-ei.
Ela não se mexeu.
Gavin ficou perplexo, lançou um olhar desconcertado ao javali morto e
voltou a observar o rosto aterrorizado da esposa. Havia outra coisa além do
javali que a assustava.
– Judith é a altura que te causa medo? – perguntou ele calmamente e
moveu-se para a linha do seu olhar vago.
Gavin não tinha a certeza, mas pareceu-lhe que ela assentia levemente
com a cabeça. Agarrou-se ao ramo mais baixo, perto dos seus pés e subiu
facilmente até ficar ao lado dela. Rodeou-lhe a cintura com o braço, mas ela
não deu nenhum sinal de que estivesse ciente da sua presença.
– Escuta-me, Judith – pediu num tom de voz baixo e sereno. – Vou pegar-
te nas mãos e baixar-te até ao chão. Tens de confiar em mim. Não tenhas
medo. – Foi preciso soltar-lhe as mãos, e ela agarrou-se aos seus pulsos, em
pânico. Gavin procurou apoio num ramo e baixou-a até ao chão.
Quando os pés da jovem haviam tocado na terra, ele desceu de um salto e
tomou-a nos braços. Judith agarrou-se a ele desesperadamente, tremendo.
– Calma, agora – sussurrou enquanto lhe acariciava a cabeça. – Estás a
salvo.
Judith continuou a tremer e Gavin sentiu que os seus joelhos cediam.
Ergueu-a nos braços e levou-a até junto de um tronco de árvore, onde a
sentou e abraçou como se ela fosse uma criança. Tinha pouca experiência
com mulheres fora da cama e nenhuma com crianças, mas sabia que o medo
dela era enorme.
Estreitou-a firmemente, o mais forte que pôde sem a esmagar. Afastou-
lhe o cabelo da face onde ela começara a transpirar. Embalou-a e abraçou-a
com mais força ainda. Se alguém lhe tivesse dito que estar a poucos metros
do chão poderia causar tanto terror, teria rido, mas agora não achava graça.
O medo de Judith era muito real e sentiu o coração apertado ao vê-la sofrer
assim. O seu pequeno corpo tremia, o coração palpitava como o de um
pássaro e Gavin sabia que tinha de inspirar-lhe uma sensação de segurança.
Começou a cantar, baixinho no começo, sem prestar atenção às palavras. A
sua voz era rica e reconfortante. Entoou uma canção de amor, sobre um
homem que regressara das Cruzadas para encontrar o seu verdadeiro amor,
esperando por ele.
Pouco a pouco sentiu que Judith começava a relaxar contra o seu corpo e
o terrível tremor diminuía. Deixou de apertá-lo com tanta força, mas Gavin
não a soltou. Sorriu e beijou-lhe a fronte e continuou a trautear a melodia. A
respiração da jovem tornou-se mais regular até que levantou a cabeça do
seu ombro. Judith afastou-se, mas ele reteve-a com firmeza. A necessidade
que Judith tinha da sua proteção tranquilizava-o de um modo estranho,
embora Gavin afirmasse que não gostava de mulheres dependentes.
– Vais pensar que sou uma idiota – murmurou ela.
Ele não respondeu.
– Não gosto de alturas – prosseguiu Judith.
Ele sorriu e abraçou-a.
– Já me dei conta – riu. – Embora não gosto seja pouco para o que vi. Por
que razão lugares altos te inspiram tanto medo? – Agora, ria, feliz por ela
ter recuperado e ficou surpreendido quando o seu corpo enrijeceu. – O que
disse? Não fiques irritada.
– Não estou irritada – assegurou ela tristemente, relaxando novamente,
confortável nos seus braços. – Não gosto de pensar no meu pai… é só isso.
Gavin obrigou-a a apoiar outra vez a cabeça no seu ombro.
– Conta-me – pediu num tom sério.
Judith conservou-se um momento em silêncio. Quando retomou a
palavra, fê-lo com uma voz tão baixa, que ele mal conseguia ouvi-la.
– Na verdade, lembro-me de pouca coisa. Só perdura o medo. As minhas
criadas só me contaram muitos anos depois. Quando tinha três anos, algo
perturbou o meu sono. Saí do quarto e fui até ao grande salão, cheio de
luzes e música. O meu pai estava acompanhado pelos amigos, todos eles
embriagados. – Expressava-se num tom frio, como se contasse uma história
sobre outra pessoa. – Ao ver-me, o meu pai pareceu idealizar uma grande
brincadeira. Pediu uma escada e subiu por ela, comigo debaixo do braço, e
sentou-me num parapeito alto. Como disse, não me recordo de nada. O meu
pai e os amigos adormeceram e pela manhã as criadas foram à minha
procura. Demoraram muito tempo a encontrar-me, se bem que deva tê-las
ouvido a chamarem-me. Aparentemente estava tão assustada que não
conseguia falar.
Gavin acariciou-lhe o cabelo e recomeçou a embalá-la. O pensamento de
um homem a colocar uma criança de três anos a seis metros acima do chão
e, em seguida, deixando-a ali toda a noite, dava-lhe a volta ao estômago.
Agarrou Judith pelos ombros e afastou-a dele.
– Mas agora estás a salvo. Vê como o chão está tão perto.
A jovem sorriu-lhe, hesitante.
– Foste bom para mim. Obrigada.
Aquele agradecimento não satisfez Gavin. Era triste pensar que a jovem
havia sido tão duramente maltratada na sua curta vida, a ponto de o consolo
do marido lhe parecer uma dádiva dos céus.
– Não viste os meus bosques. O que te parece, se ficarmos aqui por algum
tempo?
– Mas há trabalho...
– És um demónio para o trabalho. Nunca te divertes?
– Não tenho a certeza de saber como fazê-lo – respondeu ela com
franqueza.
– Bem, hoje vais aprender. Hoje o dia será dedicado à colheita de flores
silvestres e ao acasalamento dos pássaros. – Arqueou as sobrancelhas para
ela e Judith deu uma risada muito pouco habitual nela. Gavin estava
encantado. Os olhos da jovem eram quentes, os lábios curvavam-se
docemente e a sua beleza era deslumbrante.
– Então anda – convidou ao mesmo tempo que a punha de pé. – Aqui
perto há uma colina coberta de flores e onde vivem alguns pássaros
extraordinários.
Quando os pés de Judith tocaram no chão, o tornozelo esquerdo cedeu
debaixo dela. Apoiou-se no braço de Gavin.
– Magoaste-te – observou enquanto se ajoelhava para lhe analisar o
tornozelo. Ao virar-se, notou que Judith mordia o lábio. – Vamos mergulhá-
lo na água fria do ribeiro para que não inche. – Ergueu-a nos braços.
– Posso andar se me ajudares um pouco.
– E perder a minha condição de cavaleiro? Como sabes, ensinam-nos as
regras do amor cortês, que são muito rígidas sobre belas damas em apuros.
Devem ser levadas em braços sempre que possível.
– Então sou apenas um meio para promover o teu estatuto de cavaleiro? –
perguntou Judith, muito séria.
– Claro, pois és um fardo difícil de carregar. Deves pesar tanto como o
meu cavalo.
– Não é verdade! – protestou ela veementemente e então viu que os olhos
lhe brilhavam. – Estás a provocar-me!
– Não afirmei que o dia era para a diversão?
Ela sorriu e apoiou-se contra o seu ombro. Era agradável estar tão perto.
Gavin colocou-a na beira do ribeiro e depois tirou-lhe cuidadosamente o
sapato.
– É necessário tirar a meia – exigiu com um sorriso. – Observou com
deleite enquanto Judith levantava a saia do longo vestido e revelava o topo
da meia, presa com uma liga acima do joelho. – Se precisares de ajuda... –
ofereceu-se, lascivo, enquanto ela enrolava a meia de seda ao longo da
perna.
Judith permitiu que Gavin lhe banhasse suavemente o pé na água fria.
Quem era aquele homem que lhe tocava com tanta gentileza? Não poderia
ser o mesmo que a esbofeteara, que ostentara a amante diante dela e a tinha
violado na noite de núpcias.
– Não parece estar muito magoado – disse ele, fitando-a.
– Não, não parece – confirmou Judith em voz baixa.
Uma brisa súbita agitou uma madeixa de cabelo sobre os seus olhos.
Gavin afastou-a com suavidade.
– O que achas de fazer uma fogueira e assarmos esse javali hediondo?
– Seria uma boa ideia – respondeu com um sorriso.
Gavin ergueu-a da margem e lançou-a alegremente ao ar. Judith agarrou-
se ao seu pescoço, assustada.
– Talvez comece a gostar desse teu medo – riu ele, estreitando-a contra si.
Levou-a para a outra margem do ribeiro até uma colina que estava
realmente coberta de flores silvestres e acendeu uma fogueira por baixo de
uma saliência rochosa. Em minutos, regressou com um pedaço de javali
selvagem, já limpo, e colocou-o a assar sobre o fogo. Não permitiu que
Judith se movesse ou lhe prestasse qualquer ajuda. Enquanto a carne assava,
e já havia lenha bastante, Gavin afastou-se de novo e voltou após alguns
momentos com o tabardo6 levantado sobre as ancas, como se carregasse
alguma coisa.
– Fecha os olhos – disse e, quando ela obedeceu, derramou uma chuva de
flores sobre Judith. – Como não podes ir até elas, então elas devem vir até
ti.
A jovem fitou-o. Tinha o regaço e o chão à sua volta cobertos de um
tapete de botões perfumados.
– Obrigada, milorde – agradeceu com um sorriso resplandecente.
Gavin sentou-se ao seu lado, com uma mão atrás das costas, inclinando-
se sobre o seu corpo.
– Tenho outro presente – anunciou, oferecendo-lhe três frágeis flores de
columbine7.
Eram belas e delicadas flores, brilhando à luz do Sol, em tons de violeta e
branco. Judith tentou pegar-lhes, mas ele afastou-as do seu alcance. Ela
fitou-o, surpreendida.
– Não são gratuitas. – Gavin estava novamente a brincar com ela, mas a
expressão do seu rosto mostrava que não percebera. Sentiu um arrepio de
remorso por tê-la magoado tanto, que a levava a olhá-lo daquela maneira.
De repente, Gavin interrogou-se se seria melhor do que o sogro. Deslizou
levemente um dedo pela sua face.
– É um pequeno preço a pagar – acrescentou suavemente. – Gostava de
ouvir que me chamavas pelo meu nome próprio.
Os olhos de Judith arregalaram-se e recuperaram o calor.
– Gavin – pronunciou baixinho enquanto ele lhe entregava as flores. –
Obrigada, meu... Gavin pelas flores.
Ele suspirou languidamente e recostou-se na erva, com as mãos atrás da
cabeça.
– Meu Gavin! – repetiu. – Soa bem. – Moveu a mão e enroscou
ociosamente uma madeixa do seu cabelo na palma da mão. Ela estava de
costas para ele enquanto reunia as flores para formar um buquê. «Sempre
ordenada», pensou.
De repente, ocorreu-lhe que há anos que não passava um dia tão
agradável nas suas próprias terras. As responsabilidades do castelo
assediavam-no sempre, mas em poucos dias a sua mulher tinha organizado
as coisas de tal forma que podia estender-se sobre a erva, sem pensar em
nada, para observar o voo das abelhas e a textura sedosa dos cabelos de uma
mulher.
– Ficaste realmente irritado por causa das sugestões que dei a Simon? –
perguntou Judith.
Gavin quase não se lembrava de quem era Simon.
– Não! – sorriu. – Simplesmente não gostei que uma mulher conseguisse
o que eu não podia alcançar, e não tenho tanta certeza de que esse novo isco
seja melhor.
Judith voltou-se para o encarar de frente.
– É, sim. Simon concordou instantaneamente. Estou segura de que os
falcões vão pegar mais presas agora e... – Interrompeu-se ao vê-lo rir. – És
um homem vaidoso.
– Eu? – contrapôs Gavin, apoiando-se nos cotovelos. – Sou o menos
vaidoso dos homens.
– Não acabaste de dizer que estavas irritado porque uma mulher fez o que
não conseguiste?
– Oh... – exclamou Gavin, enquanto voltava a descontrair-se na erva, com
os olhos fechados. – Não é o mesmo. Um homem fica sempre surpreendido
quando uma mulher faz algo além de costurar e criar filhos.
– Ora, que coisa! – exclamou Judith desgostosa; em seguida, pegou num
punhado de erva com um torrão de terra agarrado e atirou-lho à cara.
Ele abriu os olhos surpreendido e depois limpou a terra da boca. Estreitou
os olhos.
– Pagarás por isso – garantiu, avançando cautelosamente para ela.
Judith retrocedeu, temendo a dor que sabia que lhe causaria. Ia a levantar-
se, mas ele agarrou-lhe o tornozelo nu e prendeu-o com força.
– Não... – protestou, antes que ele se atirasse sobre ela... e começasse a
fazer-lhe cócegas. Judith ficou surpreendida e depois desatou a rir.
Encolheu os joelhos até aos seios tentando proteger-se das mãos dele, mas
Gavin era impiedoso.
– Retiras as palavras?
– Não – arquejou. – És vaidoso e pretensioso, mil vezes mais do que
qualquer mulher.
O marido deslizou os dedos para cima e para baixo nas suas costelas até
ela se desfazer em riso.
– Por favor, para – gritou a jovem. – Não aguento mais!
As mãos de Gavin acalmaram e ele aproximou-se do seu rosto.
– Dás-te por vencida?
– Não – recusou ela, mas acrescentou rapidamente: – Embora não sejas
tão vaidoso como eu pensava.
– Isso não é maneira de pedir desculpas.
– Foram-me arrancadas sob tortura.
Gavin sorriu-lhe. O pôr do Sol dourava-lhe a pele e o cabelo espalhado à
sua volta assemelhava-se a um crepúsculo ardente.
– Quem és tu, minha esposa? – sussurrou, devorando-a com os olhos. –
Amaldiçoas-me num momento e enfeitiças-me no seguinte. Desafias-me até
ter vontade de te matar; depois sorris-me e deslumbras-me com a tua
beleza. Não és como nenhuma outra mulher que já conheci. Nunca te vi
enfiares uma agulha para costurar, mas vi-te, mergulhada até aos joelhos, na
lama do lago dos peixes. Montas tão bem como qualquer homem, mas
encontro-te no cimo de uma árvore, tremendo como uma criança, presa de
um medo mortal. És a mesma, de um momento para o outro? Alguma vez
foste a mesma pessoa dois dias seguidos?
– Sou Judith. Não sou mais ninguém, nem sei como ser outra pessoa.
Gavin acariciou-lhe a têmpora. Depois, inclinou-se e roçou os lábios nos
dela. Estavam quentes do sol e doces. Mal tinha começado a saborear os
lábios dela quando o céu se abriu de repente com uma enorme explosão de
trovões e começou a verter sobre eles uma verdadeira torrente de água.
Gavin pronunciou um palavrão, que Judith nunca tinha ouvido antes.
– Para a saliência da rocha! – indicou e depois lembrou-se do tornozelo
dela. Pegou-lhe e correu com ela nos braços para o refúgio, onde o fogo
crepitava e chiava devido ao gotejar da gordura da carne. Aquele repentino
aguaceiro não melhorou em nada o humor de Gavin. Dirigiu-se, furioso, até
junto do fogo. Um lado da carne estava queimado, preto; o outro cru.
Nenhum deles pensara em dar a volta ao assado.
– És uma má cozinheira – acusou, aborrecido por aquele momento
perfeito ter sido destruído.
Ela fitou-o com um olhar inexpressivo.
– Sou melhor costureira do que cozinheira.
Gavin fitou-a e depois começou a rir.
– Boa resposta. – Estudou a chuva que caía lá fora. – Devo ver como está
o meu cavalo. Não posso deixá-lo sob esta chuva com a sela colocada.
Sempre preocupada com o bem-estar dos animais, Judith voltou-se para
ele.
– Deixaste o teu pobre cavalo sozinho todo este tempo?
Ele não gostou do tom de comando dela.
– Então, faz o favor de me dizeres onde está a tua égua? Importas-te tão
pouco com ela que não sabes o que lhe aconteceu?
– Eu... – começou. Estivera tão concentrada em Gavin que não tinha
pensado no animal.
– Então, faz os teus deveres, antes de me dares ordens.
– Não estava a dar-te nenhuma ordem.
– Então, o que era?
Judith afastou-se dele.
– Vai lá, então. O teu cavalo está à espera debaixo de chuva.
Gavin ia a replicar, mas mudou de ideias e saiu para a chuva.
Judith sentou-se esfregando o tornozelo, repreendendo-se. Parecia estar
sempre a irritar o marido. Depois deteve-se. O que interessava que o
enraivecesse? Por acaso, não o odiava? Ele era um homem vil e desonroso e
um dia de bondade não mudaria os seus sentimentos de ódio por ele. Ou
poderia?
– Milorde.
Ela ouviu a voz como se viesse de longe.
– Milorde Gavin, Lady Judith. – As vozes aproximaram-se.
Gavin resmungou baixinho, ajustando a cilha que acabara de se soltar.
Esquecera-se completamente dos seus homens. Que magia lhe lançara
aquela pequena bruxa para ter esquecido o cavalo e, pior ainda, os seus
homens que os procuravam com tanto afinco? Agora eles cavalgavam à
chuva, molhados, com frio e sem dúvida com fome. Por mais que lhe
agradasse regressar para junto de Judith, talvez passar a noite com ela,
primeiro devia pensar nos seus homens.
Levou o cavalo a passo através do riacho e subiu a colina. Nessa altura,
eles já teriam visto a fogueira.
– Não está ferido, milorde? – perguntou John Bassett quando se
encontraram, com a água a escorrer-lhe pelo nariz.
– Não – replicou Gavin secamente, sem olhar para a mulher que se
apoiava no rebordo da rocha. – Fomos apanhados pela tempestade e Lady
Judith magoou o tornozelo – começou a explicar, mas deteve-se ao ver que
John olhava intensamente para o céu. Um aguaceiro de primavera
dificilmente era uma tempestade; além disso, Gavin e a esposa poderiam ter
montado um só cavalo.
John era um homem mais velho, um cavaleiro do pai de Gavin, e tinha
experiência em lidar com jovens.
– Compreendo, milorde. Trouxemos a égua da senhora.
– Maldição... maldição... maldição! – murmurou Gavin. Agora ela fizera
com que mentisse aos seus homens. Aproximou-se da égua e ajustou a cilha
selvaticamente.
Mesmo com toda a dor no tornozelo magoado, Judith correu rapidamente
na sua direção.
– Não sejas tão rude com a minha égua – disse, possessiva.
Ele virou-se para ela.
– E tu, não sejas tão rude comigo, Judith!
***

Judith olhava silenciosamente por entre as persianas semicerradas,


observando a noite estrelada. Vestia um roupão de damasco azul-índigo,
orlado de seda azul em torno do pescoço, na parte da frente, e em torno da
bainha bordada com arminho branco. A chuva havia passado e o ar da noite
estava fresco. Afastou-se relutantemente da janela para a sua cama vazia.
Judith sabia qual era o seu problema, embora odiasse admiti-lo. Que tipo de
mulher era se estava morrendo pelas carícias de um homem que a
desprezava? Fechou os olhos e quase sentia as mãos e os lábios desse
homem no seu corpo. Não tinha orgulho, deixando que o corpo traísse a
mente? Despiu o roupão e deslizou, nua, para a cama gelada.
O seu coração quase parou quando ouviu passos pesados pararem fora da
porta do quarto. Aguardou, sustendo a respiração, por um longo momento,
antes que os passos recuassem pelo corredor. Então, bateu com o punho na
almofada de penas e foi só muito, muito tempo depois que conseguiu
dormir.
Gavin ficou parado do lado de fora da porta por alguns minutos antes de
ir para o quarto que agora usava. O que havia de errado com ele?,
interrogou-se. De onde lhe vinha esta nova timidez com as mulheres? Ela
estava pronta para ele. Tinha visto isso nos seus olhos. Nesse dia, pela
primeira vez em várias semanas, tinha-lhe sorrido e, pela primeira vez,
chamara-o pelo seu nome próprio. Poderia arriscar-se a perder essa pequena
conquista, forçando a sua entrada no quarto e voltar a correr o risco de
provocar novo ódio?
O que importava se estuprasse Judith de novo? Acaso não tinha gostado
naquela primeira noite? Despiu-se rapidamente e deslizou para a cama
vazia. Não queria violá-la novamente. Não. Queria que ela lhe sorrisse, o
chamasse pelo seu nome e lhe estendesse os braços. Da sua mente tinham
desaparecido todos os pensamentos de triunfo. Adormeceu, lembrando o
modo como ela se agarrara a ele quando estava assustada.

6 Tabardo – peça de roupa que consiste numa parte traseira e numa parte frontal sem mangas e com
um buraco para a cabeça, às vezes usado para proteger as roupas por baixo quando se executa uma
tarefa. (N. da T.)

7 As flores de columbine simbolizam fé, esperança e amor. (N. da T.)


Capítulo Doze

Gavin acordou muito cedo depois de uma noite de sono agitada. No castelo
já havia algum movimento, mas os ruídos ainda eram abafados. O seu
primeiro pensamento foi para Judith. Queria vê-la. Seria verdade que no dia
anterior ela lhe tinha sorrido?
Vestiu-se rapidamente com uma camisa de linho e um grosso gibão de lã,
preso com um amplo cinto de couro. Cobriu as pernas musculosas com
meias de linho que atou aos calções que usava como tanga. Em seguida,
desceu apressadamente as escadas até ao jardim, onde cortou uma rosa
vermelha perfumada, com as pétalas beijadas por gotas peroladas de
orvalho.
A porta do quarto de Judith estava fechada. Gavin abriu-a sem fazer
barulho. Ela dormia, com uma mão enrolada no cabelo que estava
espalhado sobre os ombros nus e a almofada ao seu lado. Pousou a rosa na
almofada e afastou delicadamente uma madeixa da sua face.
Judith abriu os olhos lentamente. Parecia parte dos seus sonhos ver Gavin
tão próximo. Tocou-lhe no rosto com suavidade, apoiando o polegar no
queixo, sentindo a barba crescida e os dedos nas faces. Parecia mais jovem
do que habitualmente, as linhas de expressão e preocupação haviam
desaparecido dos seus olhos.
– Julguei que não eras real – murmurou, fitando-o nos olhos que se
suavizaram.
Ele moveu a cabeça ligeiramente e mordeu-lhe a ponta do dedo.
– Sou muito real. És tu quem parece um sonho.
Ela sorriu-lhe maliciosamente.
– Então os nossos sonhos agradam-nos muito, não é verdade?
Gavin riu, enquanto a rodeava com os braços e esfregava a face na pele
macia do seu pescoço, deleitando-se com os gritinhos de protesto, pois a
barba ameaçava arrancar-lhe a pele.
– Judith, doce Judith – sussurrou, mordiscando-lhe o lóbulo da orelha. –
És sempre um mistério para mim. Não sei se te agrado ou não.
– Importavas-te muito, se não me agradasses?
Afastou-se dela e tocou-lhe na têmpora.
– Sim, penso que me importaria.
– Milady!
Ambos levantaram os olhos quando Joan irrompeu pelo quarto.
– Mil perdões, milady – pediu Joan, rindo entredentes. – Não sabia que
estava tão ocupada, mas já se faz tarde e há muitos que a reclamam.
– Diz-lhes que esperem – replicou Gavin acalorado, abraçando
fortemente Judith, que tentava afastá-lo.
– Não! – exclamou a jovem. – Quem me procura, Joan?
– O padre pergunta se desejam começar o dia sem missa. O braço direito
de Lorde Gavin, John Bassett, diz que chegaram alguns cavalos de
Chestershire. Três comerciantes de tecidos desejam que se inspecionem as
suas mercadorias.
Gavin enrijeceu e soltou a esposa.
– Diz ao padre que estaremos lá e vou ver os cavalos depois da missa e
quanto aos mercadores... – parou, desgostoso. – Sou ou não o amo desta
casa? – interrogou-se.
Judith pousou a mão no seu braço.
– Diz aos mercadores que armazenem as suas mercadorias e assistam à
missa connosco. Falarei com eles depois da missa.
– Então? – dirigiu-se Gavin à criada. – Já te disseram o que deves fazer.
Agora vai.
Joan fechou a porta nas suas costas.
– Tenho de ajudar a minha ama a vestir-se.
Gavin começou a sorrir.
– Eu farei isso. Talvez encontre algum prazer neste dia, além das
obrigações.
Joan sorriu maliciosamente à ama, antes de fechar a porta e deslizar para
o corredor.
– Agora, milady – disse Gavin, voltando-se de novo para a esposa. –
Estou às vossas ordens.
Os olhos de Judith cintilaram.
– Mesmo que as minhas ordens se refiram aos teus cavalos?
Ele gemeu, fingindo-se atormentado.
– Foi uma briga idiota, não foi? Estava mais irritado com a chuva do que
contigo.
– Por que razão a chuva havia de irritar-te? – brincou ela.
Gavin inclinou-se sobre ela.
– Impediu-me de praticar um exercício que muito desejava.
Judith apoiou uma mão no seu peito e sentiu que o coração palpitava com
força.
– Esqueceste que o padre nos espera?
Ele inclinou-se para trás.
– Bem, então levanta-te para te ajudar a vestires-te. Se não posso provar,
pelo menos posso olhar.
Judith olhou-o nos olhos por um momento. Há quase duas semanas que
não fazia amor com ela. Talvez a tivesse deixado, mal haviam casado, para
ir encontrar-se com a amante. Mas Judith percebeu que Gavin era seu
naquele momento e decidiu aproveitar essa posse ao máximo. Havia muitos
que lhe elogiavam a beleza, mas geralmente descartava-os como
bajuladores. Sabia que as curvas do seu corpo eram muito diferentes da
magreza de Alice Valence. Mas anteriormente Gavin desejara aquele corpo.
Interrogou-se se poderia fazer com que aqueles olhos passassem novamente
de cinzento a preto.
Puxou lentamente uma borda da colcha para trás e estendeu um pé
descalço; depois recolheu-a até meio da coxa e flexionou os dois pés.
– Creio que o meu tornozelo está bastante recuperado, não te parece? –
esboçou um sorriso inocente, mas ele não estava a olhar para o seu rosto.
Muito lentamente, afastou a coberta da anca firme e redonda, depois
expôs o umbigo e o ventre liso. Levantou-se lentamente para fora da cama e
ficou, de pé, diante dele à luz do amanhecer.
Gavin olhou-a fixamente. Há semanas que não a via nua. Apreciou as
pernas longas e esbeltas, as ancas redondas, a cintura fina e os seios fartos,
de mamilos rosados.
– Que se dane o padre! – murmurou Gavin enquanto estendia a mão para
tocar na curva da anca.
– Não blasfeme, milorde – advertiu Judith seriamente. Gavin olhou-a,
surpreendido.
– Espanta-me sempre que tenhas querido esconder tudo isso sob o hábito
de uma freira – suspirou Gavin com força sem deixar de a fitar e com as
palmas das mãos a doer com desejo de lhe tocar. – Sê boa menina e vai
buscar a tua roupa. Já não aguento esta doce tortura. Mais um momento e
violar-te-ia diante dos olhos do padre.
Judith virou-se para a arca da roupa e dissimulou um sorriso. Perguntava-
se se isso poderia chamar-se violação.
Vestiu-se sem pressa, desfrutando dos olhos postos sobre ela e do seu
silêncio tenso. Enfiou uma camisa de algodão fino bordada com minúsculos
unicórnios azuis. Mal lhe chegava a meio da coxa. Seguiram-se os culotes a
combinar. Depois, colocou a perna na borda do banco onde Gavin se
sentava, rígido, e puxou cuidadosamente as meias de seda pelas pernas, a
fim de prendê-las com as ligas.
Estendeu a mão pela frente dele para agarrar o vestido de caxemira
castanha de Veneza. Leões de prata estavam bordados na frente e ao longo
da bainha. As mãos de Gavin tremiam quando abotoou os botões nas costas.
Um cinto de filigrana de prata completou o traje, mas Judith não conseguia
fechar a simples fivela sem ajuda.
– Pronto – disse depois de lutar muito tempo com as roupas não
cooperativas.
Gavin deixou escapar a respiração que estava a conter.
– Darias uma excelente criada – riu a jovem, rodopiando num mar de
castanho e prata.
– Não – contrapôs Gavin sinceramente. – Morreria em menos de uma
semana. Agora desce comigo e não me provoques mais.
– Sim, milorde – respondeu Judith, obediente, com os olhos a brilhar.
***

Dentro da muralha interior havia um longo campo coberto com uma


pesada camada de areia. Era aqui que os homens de Montgomery e os seus
vassalos principais treinavam. Um boneco de palha balançava de uma
espécie de patíbulo e era o alvo das estocadas dos homens, ao passarem
com os seus cavalos de guerra. Um anel preso entre dois postes também era
um objeto de treino para mais passos com a espada e a lança. Outro homem
atacava um poste de dez centímetros de espessura, profundamente cravado
no chão, segurando a espada com as duas mãos.
Gavin sentou-se pesadamente num banco na beira do campo de treino.
Tirou o elmo e passou a mão pelo cabelo molhado de suor. Tinha os olhos
transformados em poços escuros, as faces retraídas e os ombros doloridos
de cansaço. Haviam passado quatro dias desde a manhã em que ajudara
Judith a vestir-se. Durante esse tempo tinha dormido muito pouco e comido
ainda menos, pelo que agora os seus sentidos estavam tensos.
Inclinou a cabeça para trás contra a parede de pedra, pensando que não
poderiam acontecer mais desgraças. Várias casas dos servos tinham pegado
fogo e o vento arrastara fagulhas para a granja dos laticínios. Ele e os seus
homens tiveram de combater o fogo durante dois dias, dormindo no chão
onde quer que caíssem. Uma noite vira-se obrigado a permanecer nos
estábulos, onde uma égua entrara em trabalho de parto de um potro mal
posicionado. Judith ficou com ele durante a noite, segurando a cabeça do
animal, entregando panos e unguentos a Gavin antes que ele os pedisse.
Nunca se sentira tão perto de alguém como dela nesse momento. Ao
amanhecer, com um sentimento de triunfo, ficaram juntos e observaram o
pequeno potro a dar os primeiros passos vacilantes.
Porém, apesar de toda essa proximidade em espírito, os seus corpos
estavam tão distantes como sempre. Gavin tinha a sensação de que a
qualquer momento poderia enlouquecer de tanto a desejar. Limpou o suor
dos olhos enquanto olhava para o outro lado do pátio e viu Judith a
encaminhar-se na sua direção. Ou era pura imaginação sua? Ela parecia
estar em todos os lugares diante dos seus olhos, mesmo quando estava
ausente.
– Trouxe-te uma bebida fresca – disse ela, estendendo-lhe uma caneca.
Ele fitou-a atentamente.
Judith colocou a caneca ao lado dele no banco.
– Sentes-te bem, Gavin? – perguntou, colocando uma mão reconfortante
na sua testa.
Ele agarrou-a violentamente e puxou-a para baixo. Os seus lábios
procuraram os dela, famintos, obrigando-os a abrirem-se. Não lhe ocorreu
que a jovem pudesse resistir; nada mais importava.
Judith rodeou-lhe o pescoço com os braços e correspondeu ao beijo com
igual ganância. Nenhum deles se importava que metade do castelo estivesse
a observar. Não havia mais ninguém além dos dois. Gavin moveu os lábios
para o seu pescoço, mas sem suavidade; agia como se fosse devorá-la.
– Milorde! – exclamou alguém, impaciente.
Judith abriu os olhos e deparou com um rapazinho que esperava com um
papel enrolado na mão. De repente, lembrou-se de quem era e onde estava.
– Gavin, há uma mensagem para ti.
Ele não afastou os lábios do seu pescoço e Judith teve de se concentrar
muito para não esquecer o mensageiro.
– Milorde – insistiu o rapaz. – É uma mensagem urgente. – Era muito
jovem, ainda nem tinha barba e aqueles beijos pareciam-lhe uma perda de
tempo.
– Dá cá! – exclamou Gavin e arrebatou o pergaminho das mãos do rapaz.
– Agora vai embora e não me incomodes mais.
Atirou o papel para o chão e atentou uma vez mais nos lábios da sua
esposa.
Mas Judith tomara agora plena consciência de que estavam num lugar
público.
– Gavin – repreendeu severamente, lutando para descer do seu colo. –
Tens de ler isso.
Ele olhou-a enquanto se erguia, com a respiração ofegante.
– Lê tu – pediu enquanto pegava na caneca que Judith lhe levara, com a
esperança de que a bebida lhe esfriasse o sangue.
A jovem desenrolou o papel com uma expressão preocupada e
empalideceu à medida que foi lendo.
Gavin ficou logo preocupado.
– São más notícias? – Quando ela o fitou nos olhos, ficou sem fôlego,
pois a frieza voltara a marcar presença. Os seus belos, quentes e
apaixonados olhos lançavam-lhe adagas de ódio.
– Sou triplamente idiota! – exclamou com os dentes cerrados enquanto
lhe atirava o pergaminho à cara. Girou sobre os calcanhares e dirigiu-se à
mansão com largas passadas.
Gavin agarrou no pergaminho que tinha no colo.

Queridíssimo
Envio-te esta carta em segredo para poder falar-te livremente do
meu amor. Amanhã vou casar-me com Edmund Chatworth. Reza por
mim, pensa em mim, como te terei nos meus pensamentos. Nunca te
esqueças que a minha vida te pertence. Sem o teu amor não sou nada.
Conto os instantes até que volte a ser tua.
Com todo o amor,
Alice
– Algum problema, milorde? – perguntou John Bassett.
Gavin pôs a missiva de lado.
– O pior que já tive. Diz-me, John, tu que já és maduro, acaso sabes algo
sobre as mulheres?
John riu entredentes.
– Nenhum homem sabe, milorde.
– É possível dares o teu amor a uma mulher, mas desejares outra quase a
ponto de enlouqueceres?
John abanou a cabeça enquanto observava o amo a seguir com os olhos a
silhueta da esposa, que se afastava.
– Esse homem também deseja a mulher que ama?
– Sem dúvida! – respondeu Gavin. – Mas talvez não... não da mesma
maneira.
– Ah, compreendo. Um amor sagrado, como o que se oferece à Virgem.
Sou um homem simples. Se fosse comigo, iria ficar com o amor profano.
Creio que, se a mulher fosse encantadora na cama, o amor acabaria por vir.
Gavin apoiou os cotovelos nos joelhos, a cabeça entre as mãos.
– As mulheres foram criadas para tentar os homens; são o diabo em
pessoa.
John sorriu.
– Creio que se encontrasse esse Velho Arranhão8, bem poderia agradecer-
lhe por essa parte maldosa.
***

Para Gavin, os três dias seguintes foram um inferno. Judith negava-se a


dirigir-lhe a palavra e nem sequer o olhava. Aproximava-se dele o mínimo
possível e quanto mais arrogante e altiva se mostrava mais o enraivecia.
– Fica! – ordenou uma noite quando ela ia a sair da sala no momento em
que ele entrou.
– Claro, milorde – acedeu com uma reverência. Judith mantinha a cabeça
baixa, sem o fitar.
Em certa ocasião Gavin acreditou ver-lhe os olhos vermelhos, como se
tivesse chorado. Isso não poderia ser, é claro. Que razão tinha aquela
mulher para chorar? Era ele o único a ser punido, não ela. Havia
demonstrado que queria ser bondoso, mas ela preferia desprezá-lo. Bem,
isso já havia acontecido no passado e iria superá-lo novamente.
No entanto, os dias foram passando e Judith continuava a mostrar-se fria.
Gavin ouvia-a rir, mas, quando se aproximava, o sorriso morria no rosto da
jovem. Sentia vontade de esbofeteá-la, forçá-la a responder-lhe; até mesmo
a sua raiva era preferível a essa maneira de olhar, como se ele não estivesse
presente. Mas Gavin não podia magoá-la. Queria abraçá-la e até pedir
desculpa. Desculpa porquê? Passava os dias a galopar e a treinar
exageradamente, mas à noite não conseguia dormir. Encontrou-se à procura
de desculpas para se aproximar dela, só para ver se poderia tocar-lhe.
Judith tinha chorado até quase ficar doente. Como poderia ter esquecido
tão depressa que ele era um homem tão vil? No entanto, apesar de toda a
angústia provocada pela carta, precisou conter-se para não correr para os
seus braços. Odiava Gavin, mas o seu corpo ardia por ele a cada momento,
de cada hora, de cada dia.
– Milady – disse Joan em voz baixa. – Muitos dos criados tinham
ultimamente aprendido a andar em bicos de pés perto dos amos. – Lorde
Gavin pede que vá ter com ele ao salão principal.
– Não irei! – replicou Judith sem hesitar.
– Disse que é urgente. Trata-se de algo relacionado com os seus pais.
– A minha mãe? – perguntou imediatamente preocupada.
– Não sei. Ele só disse que precisava falar com a senhora imediatamente.
Quando Judith viu o marido, compreendeu que havia algum problema
muito grave. Os seus olhos pareciam carvões pretos. Os lábios estavam tão
apertados que se haviam reduzido a uma linha fina no rosto.
Descarregou imediatamente a sua fúria contra ela.
– Por que não me disseste que estavas prometida a outro antes de mim?
Judith estava perplexa.
– Disse que estava comprometida com a Igreja.
– Sabes que não me refiro à Igreja. Então e esse homem com quem rias e
namoriscavas no torneio? Deveria ter-me dado conta.
Judith sentiu que o sangue lhe palpitava nas veias.
– De que deveríeis ter-vos dado conta? Que qualquer homem seria um
marido mais adequado do que vós?
Gavin deu um passo à frente, com um ar ameaçador, mas Judith não
recuou.
– Walter Demari apresentou uma reclamação sobre ti e sobre as tuas
terras. Para reivindicá-la matou o teu pai e tem a tua mãe em cativeiro.
Judith esqueceu imediatamente toda a raiva. Sentia-se atordoada e fraca.
Agarrou-se a uma cadeira para não cair.
– Quem foi morto? Quem tem em cativeiro? – conseguiu sussurrar.
Gavin acalmou-se um pouco e colocou uma mão no seu braço.
– Não era minha intenção dar-te a notícia desta maneira. Mas esse homem
reivindica o que é meu!
– Vosso? – Judith olhou-o fixamente. – O meu pai foi assassinado, a
minha mãe sequestrada, as minhas terras usurpadas... E ousais mencionar o
que haveis perdido?
Ele afastou-se dela.
– Vamos falar sensatamente. Foste prometida a Walter Demari?
– Nunca.
– Tens a certeza?
Ela limitou-se a fulminá-lo com o olhar.
– Ele diz que só libertará a tua mãe se fores ter com ele.
Ela virou-se instantaneamente.
– Então, irei.
– Não! – exclamou Gavin e obrigou-a a sentar-se novamente. – Não
podes! És minha!
Ela olhou para ele fixamente, concentrada nos seus problemas.
– Se sou vossa e as minhas terras são vossas, como pensa este homem
apoderar-se de tudo? Mesmo que lute contra vós, não pode lutar contra
todos os vossos parentes.
– Demari não planeia fazê-lo. – Os olhos de Gavin perfuraram os dela. –
Foi-lhe dito que não dormimos juntos. Pede uma anulação: que declares
diante do rei a tua aversão por mim e o teu desejo por ele.
– Se fizer isso, libertará a minha mãe, ilesa?
– É o que ele diz.
– Se eu não fizer essa declaração diante do rei, o que acontecerá à minha
mãe?
Gavin fez uma pausa antes de responder.
– Não sei, não posso dizer o que será dela.
Judith ficou em silêncio por um momento.
– Nesse caso, devo escolher entre o meu marido e a minha mãe? Devo
escolher se vou ceder às exigências gananciosas de um homem que mal
conheço?
A voz de Gavin era diferente de tudo o que já ouvira antes. Soava fria,
como aço endurecido.
– Não, não escolherás.
Levantou bruscamente a cabeça.
– Talvez briguemos com frequência dentro das nossas próprias
propriedades, mesmo dentro dos nossos quartos, e posso ceder diante de ti
muitas vezes. Podes mudar os iscos do falcoeiro e posso enraivecer-me
contigo, mas agora não vais interferir. Se estiveste comprometida com ele
antes do nosso casamento, ou mesmo se passaste a adolescência na cama
com ele, pouco me importa. Agora, trata-se de guerra, e não discutirei isso
contigo.
– Mas a minha mãe...
– Vou tentar resgatá-la sã e salva, mas não sei se poderei.
– Então deixai que vá até ele. Deixai-me tentar persuadi-lo.
Gavin não cedeu.
– Não posso permitir isso. Agora tenho de reunir os meus homens.
Partiremos amanhã ao amanhecer. – Virou-se e saiu do salão.
***

Judith ficou de pé, junto da janela do seu quarto por muito tempo. A
criada veio para despi-la e enfiou os braços da ama num roupão de veludo
verde forrado com vison. Judith mal notou a sua presença. A sua mãe, que a
havia amparado e protegido toda a sua vida, era ameaçada por um homem
que Judith mal conhecia. Recordava-se vagamente de Walter Demari apenas
como um jovem simpático que conversara com ela sobre as regras do
torneio. Porém, lembrava-se claramente que, segundo Gavin, ela havia
seduzido o homem.
Gavin. Gavin. Gavin. Sempre ele. Todos os caminhos conduziam ao seu
marido. Ele exigia, ele ordenava o que ela deveria fazer, sem lhe dar
alternativa. A sua mãe seria sacrificada pela possessividade feroz de Gavin.
Mas o que teria feito se lhe fosse dada hipótese de escolha?
De repente, os seus olhos emitiram chispas douradas. Que direito tinha
aquele homenzinho odioso de interferir na sua vida? Assumia o papel de
Deus, quando forçava os outros a obedecer aos seus desejos. Lutar!, gritava
a sua mente. A mãe ensinara-a a ser orgulhosa. Acaso Helen desejaria que a
sua única filha ficasse calma e sossegada diante do rei e cedesse de boa
vontade a um peralvilho presunçoso só porque esse homem assim o
decretava?
Não, nada disso! Helen não teria desejado semelhante coisa. Judith
voltou-se para a porta, sem ter a certeza do que ia fazer, mas uma ideia,
provocada pela sua nova raiva, deu-lhe coragem.
– Então, os espiões de Demari dizem que não dormimos juntos e que o
nosso casamento pode ser anulado – murmurou enquanto caminhava pelo
corredor deserto.
As suas convicções mantiveram-se firmes até abrir a porta do quarto
ocupado por Gavin. Viu-o diante da janela, perdido nos seus pensamentos,
com uma perna apoiada no parapeito. Uma coisa era fazer nobres bravatas
de orgulho, mas outra bem diferente era enfrentar o homem que, todas as
noites, encontrava motivos para evitar a cama da sua esposa. O rosto gélido
de Alice Valence flutuou diante dela. Judith mordeu a língua e a dor susteve
as lágrimas. Tinha tomado uma decisão e agora devia respeitá-la; no dia
seguinte o marido iria para a guerra. Os pés descalços não fizeram ruídos no
chão coberto de juncos, quando se deteve a poucos metros atrás dele.
Gavin sentiu a sua presença, mais do que a viu. Virou-se devagar,
sustendo a respiração. Os cabelos de Judith pareciam mais escuros à luz das
velas e o verde do veludo fazia brilhar a riqueza da sua cor. O vison escuro
enfatizava a cremosidade da pele. Ficou sem palavras. A proximidade dela,
o silêncio do quarto, a luz das velas, era ainda melhor do que nos seus
sonhos. Ela olhou-o fixamente; em seguida, desapertou devagar o cinto do
roupão e fê-lo deslizar languidamente sobre a sua pele macia, até cair aos
seus pés.
O olhar de Gavin percorreu-a de alto a baixo, como se não fosse capaz de
apreender plenamente toda a sua beleza. Só quando a olhou nos olhos,
notou que estava perturbada. Aquela expressão era medo? Como se…
esperasse que ele a rejeitasse? A possibilidade pareceu-lhe tão absurda que
quase soltou uma gargalhada.
– Gavin – sussurrou ela.
Mal tinha terminado de murmurar o seu nome quando a puxou para os
seus braços e a levou para a cama, os lábios já presos aos dela.
Judith não tinha apenas medo dele, mas também de si mesma, o que ele
sentiu, enquanto a beijava. Gavin tinha esperado muito tempo que ela viesse
ao seu encontro. Ficara longe dela semanas a fio, com a esperança de que
Judith aprendesse a confiar nele. No entanto, agora, enquanto a abraçava,
não sentia a grande sensação do triunfo.
– O que se passa, querida? O que te preocupa?
Aquele interesse por ela deu-lhe vontade de chorar. Como poderia
explicar-lhe a sua dor?
Quando ele a levou para a cama e a luz da vela dançou sobre o seu corpo,
sobre os seios subindo e descendo a cada respirar, esqueceu tudo, menos a
proximidade dela. Desembaraçou-se rapidamente da roupa e estendeu-se ao
lado dela. Queria saborear o contacto da sua pele, centímetro a centímetro,
lentamente.
Quando a tortura se tornou insuportável, apertou-a ferozmente contra o
seu corpo.
– Judith, senti a tua falta.
Ela levantou o rosto para que a beijasse.
Tinham passado demasiado tempo separados para avançarem devagar. A
mútua necessidade era urgente. Judith apertou um punhado de carne e
músculos nas costas de Gavin, que ofegou e soltou uma gargalhada rouca.
Quando as suas mãos o apertaram novamente, ele agarrou em ambas com
uma das suas e segurou-as sobre a sua cabeça.
Ela lutou para se libertar, mas ele era muito forte. Quando a penetrou, ela
sufocou um grito e levantou as ancas ao encontro dele. Gavin soltou-lhe as
mãos e Judith puxou-o cada vez mais para dentro dela. Fizeram amor
rapidamente, quase com rudeza, antes de obterem a libertação que
buscavam. Então Gavin caiu sobre ela, os seus corpos ainda unidos.
Deviam ter adormecido, mas algum tempo depois Judith foi acordada
pelo lento movimento rítmico de Gavin. Meio sonolenta, meio excitada,
começou a responder-lhe com movimentos sensuais e vagarosos. Minuto a
minuto, a sua mente foi-se perdendo nas sensações do corpo. Não sabia o
que desejava, mas não estava satisfeita com a sua posição. Não se deu conta
da surpresa de Gavin quando o empurrou para o lado, sem que os corpos se
separassem. Um momento depois, ele estava deitado de costas e ela
montava-o.
Gavin não perdeu tempo a questionar-se. Deslizou as mãos do seu ventre
até aos seios. Judith arqueou a cabeça para trás e o seu pescoço, tão liso e
macio na escuridão excitou-o ainda mais. Agarrou-lhe as ancas e os dois
perderam-se na crescente paixão. Explodiram juntos num flash de estrelas
azuis e brancas.
Judith caiu sobre Gavin e ele segurou-a contra o seu corpo. A cabeleira
ruiva envolveu os seus corpos embebidos de suor, como um casulo de seda.
Nenhum deles mencionou o que lhes passava pela cabeça. No dia seguinte
Gavin partiria para a batalha.

8 Old Scratch ou Mr. Scratch (Velho Arranhão) é o nome do diabo. Faz parte do inglês médio
falado até ao século XV. (N. da T.)
Capítulo Treze

A mansão dos Chatworth era uma casa de tijolo de dois andares, com
janelas de pedra esculpida e vidros importados. Era comprida e estreita e
em cada extremo havia uma janela de sacada com vitrais. Atrás da casa
estendia-se um encantador pátio murado. O relvado de dois acres na frente
era exuberante e ao fundo situava-se uma reserva florestal de caça privada
do conde.
Três pessoas iam a sair desse bosque, caminhando pelo relvado em
direção à mansão. Jocelin Laing, com o alaúde pendurado no ombro,
rodeava com os braços a cintura de duas criadas da cozinha, Gladys e
Blanche. Os olhos quentes e escuros de Jocelin tinham-se nublado ainda
mais devido à tarde passada a satisfazer as duas mulheres gananciosas. Mas
Jocelin não as considerava gananciosas. Para ele, todas as mulheres eram
joias, para serem apreciadas segundo o seu próprio brilho especial. Não
havia ciúme ou possessividade nele.
Infelizmente, não era esse o caso das duas mulheres. Nesse momento,
ambas estavam desgostosas por deixar Jocelin.
– Vieste por causa dela? – perguntou Gladys.
Jocelin virou a cabeça e fitou-a até que ela desviou o olhar e corou.
Blanche não era tão difícil de intimidar. – É muito estranho que Lorde
Edmund te tenha permitido vir. Mantém Lady Alice como uma prisioneira e
nem sequer permite que ela saia a cavalo, a menos que seja com ele.
– E Lorde Edmund não gosta de sacudir o seu delicado traseiro no lombo
de um cavalo – chilreou Gladys.
Jocelin parecia perplexo.
– Julguei que se tratasse de um enlace de amor, uma mulher pobre casada
com um conde.
– Amor! Bah! – riu Blanche. – Aquela mulher não ama ninguém a não ser
a si mesma. Pensava que Lorde Edmund era um simplório que poderia usar
como desejasse, mas ele não é nada simples e está longe de sê-lo... Sabemos
muito bem... Não é, Gladys... Dado que vivemos aqui há anos, verdade?
– Oh, sim – concordou Gladys. – Ela pensou que poderia dirigir o castelo.
Conheço o género dela, mas Lorde Edmund preferia incendiar tudo isto do
que dar-lhe rédea livre.
Jocelin franziu a testa.
– Nesse caso, por que se casou com ela? Poderia ter escolhido entre tantas
mulheres, Lady Alice não possuía terras para oferecer nessa aliança.
– Ela é linda – respondeu Blanche com um encolher de ombros. – Ele
gosta de mulheres bonitas.
Jocelin sorriu.
– Começo a gostar desse homem. Estou plenamente de acordo com ele. –
Brindou Blanche e Gladys com olhares lascivos, que as fizeram baixar o
rosto, com as faces coradas.
– Jocelin – prosseguiu Blanche –, ele não é como tu.
– Não, mesmo – anuiu Gladys enquanto passava a mão pela coxa de
Jocelin.
Blanche fitou-a com um olhar de censura.
– Lorde Edmund gosta apenas da sua beleza e não se importa com a
mulher em si.
– Como faz com a pobre Constance – acrescentou Gladys.
– Constance? – repetiu Jocelin. – Não a conheço.
Blanche riu.
– Olha para ele, Gladys. Agora tem duas mulheres, mas preocupa-se que
não conheça uma terceira.
– Ou preocupa-se sempre que há alguma mulher que não conhece? –
questionou Gladys.
Jocelin levou a mão à testa, fingindo desespero.
– Fui descoberto. Estou perdido!
– Estás mesmo – riu Blanche quando começou a beijar-lhe o pescoço. –
Diz-me, tesouro, és fiel a alguma mulher?
Ele começou a mordiscar-lhe a orelha.
– Sou fiel a todas as mulheres... por um tempo.
Chegaram à mansão, rindo.
– Onde estiveste? – sibilou Alice, mal Jocelin entrou no grande salão.
Blanche e Gladys correram para as suas tarefas em partes diferentes da
casa.
Jocelin estava imperturbável.
– Sentiu a minha falta, milady? – sorriu, pegando-lhe na mão e beijando-a
depois de ter a certeza de que não havia ninguém por perto.
– Nada disso! – respondeu Alice sinceramente. – Não, no sentido que dás
às palavras. Passaste a tarde com essas rameiras enquanto permanecia aqui
sozinha?
Jocelin ficou imediatamente preocupado.
– Sentiu-se só, milady?
– Oh, sim, senti-me só! – exclamou Alice, deixando-se cair num assento
forrado junto à janela. Ela era tão delicadamente adorável como quando a
vira pela primeira vez no casamento da família Montgomery; mas agora
tinha um olhar mais retraído, como se tivesse perdido peso, e movia os
olhos nervosamente de um lado para outro. – Sim – afirmou sem erguer a
voz. – Estou sozinha. Não tenho ninguém aqui que seja meu amigo.
– Como é possível? O vosso marido deve amar sem dúvida uma mulher
tão bela como sois.
– Amar-me! – riu ela. – Edmund não ama ninguém. Mantém-me aqui,
como a um pássaro numa gaiola. Não vejo ninguém, não falo com ninguém.
– Virou-se para olhar um vulto no quarto, o seu belo rosto retorcido de ódio.
– Exceto ela! – rugiu.
Jocelin olhou para o vulto mergulhado na sombra, sem saber se estava
alguém por perto.
– Mostra-te, pequena rameira – troçou Alice. – Deixa que ele te veja em
vez de te ocultares como uma ave de rapina. Orgulha-te do que fazes.
Jocelin forçou a vista até distinguir uma jovem dar um passo à frente.
Tinha uma silhueta esbelta e caminhava de cabeça baixa, com os ombros
inclinados para diante.
– Olha para cima, rameira! – ordenou Alice.
Jocelin susteve a respiração, quando fitou os olhos da jovem. Era bonita –
não com a beleza de Alice nem da mulher que ele tinha visto como uma
noiva, Judith Revedoune, mas, no entanto adorável. Foram os olhos que lhe
prenderam a atenção. Eram dois lagos violeta, transbordando com todos os
problemas do mundo. Nunca tinha visto tamanho tormento e desespero.
– Ele pô-la atrás de mim como um cachorro – explicou Alice, retomando
a atenção de Jocelin. – Não posso dar um passo sem que me siga. Uma vez
tentei matá-la, mas Edmund reanimou-a. Ameaçou trancar-me durante um
mês se voltasse a magoá-la. Eu… – Nesse preciso momento, Alice percebeu
que o marido se aproximava dela.
Era um homem baixo e gordo, com grandes papadas, olhos pesados e
sonolentos. Ninguém imaginaria que por trás daquele rosto poderia ter uma
mente que não era das mais simples. Mas Alice tinha descoberto muito bem
a sua astúcia e inteligência.
– Vem ter comigo – sussurrou a Jocelin antes que ele esboçasse um leve
aceno de cabeça a Edmund e abandonasse o salão.
– Os teus gostos mudaram – observou Edmund. – Esse não se parece
nada com Gavin Montgomery.
Alice limitou-se a olhá-lo. Sabia que não adiantava contestar. Estava
casada há apenas um mês e, de cada vez que olhava para o marido,
lembrava-se da manhã seguinte ao casamento. Passara a noite de núpcias
sozinha.
Pela manhã, Edmund chamara-a. Era um homem diferente do que Alice
tinha conhecido pela primeira vez.
– Confio que tenhas dormido bem – dissera Edmund em voz baixa,
observando-a com os seus pequenos olhos no rosto demasiado gordo.
Alice pestanejou com uma expressão coquete.
– Senti-me... só, milorde.
– Agora, podes deixar de fingir! – ordenou Edmund, levantando-se da
cadeira. – Então, julgavas que poderias governar-me e às minhas
propriedades, não é verdade?
– Eu... não faço ideia do que quereis dizer – balbuciou Alice, fitando-o
com os olhos azuis.
– Tu... todos vocês, toda a Inglaterra, pensam que sou um tolo. Esses
cavaleiros musculosos com quem te envolvias consideram-me um covarde,
porque me recuso a arriscar a vida, combatendo pelo rei. O que me
interessam as batalhas alheias? Só me preocupam as minhas.
Alice ficou atónita, sem palavras.
– Ah, minha querida, onde está aquele olhar sedutor, aquele sorriso de
covinhas que dedicas aos homens, que se babam pela tua beleza?
– Não compreendo.
Edmund atravessou a sala até um armário alto e serviu-se de um pouco de
vinho. Era uma divisão grande e arejada, situada no último andar da
encantadora mansão da propriedade de Chatworth. Todos os móveis eram
de carvalho ou nogueira, finamente esculpidos, com peles de lobo e de
esquilo lançadas sobre as costas das cadeiras. O copo por onde agora bebia
era feito de cristal com pequenos pés de ouro.
Ostentou o cristal à luz do Sol. Havia palavras em latim na base, que
garantiam boa sorte ao proprietário.
– Tens alguma ideia da razão por que me casei contigo? – Não deu
qualquer oportunidade de resposta a Alice. – Tenho a certeza de que deves
ser a mulher mais vaidosa de Inglaterra. Pensaste provavelmente que estava
tão cego quanto esse enamorado Gavin Montgomery. Sei, pelo menos, que
nunca te interrogaste por que um conde como eu iria querer casar com uma
pobretona, que se deitava com qualquer homem que tivesse o equipamento
para lhe agradar.
Alice levantou-se.
– Não vou continuar a ouvir!
Aproximando-se, Edmund empurrou-a bruscamente para a obrigar a
sentar-se de novo.
– Quem julgas que és para decidires o que vais fazer ou não? Quero que
entendas uma coisa: não me casei contigo por amor ou porque estava
enfeitiçado pela tua suposta beleza.
Afastou-se dela e serviu-se de outro copo de vinho.
– A tua beleza! – troçou. – Não consigo ver o que Montgomery desejaria
com uma «tábua» como tu, quando tem aquela mulher Revedoune... Essa
sim, é uma mulher capaz de agitar o sangue de um homem.
Alice tentou atacar Edmund com as mãos transformadas em garras, mas
ele afastou-a facilmente.
– Estou cansado destes jogos. O teu pai possui duzentos acres no meio
das minhas propriedades. Esse velho nojento ia vendê-las ao conde de
Weston, que há anos tem sido meu inimigo e do meu pai. Sabes o que teria
acontecido às minhas propriedades se Weston possuísse terras no meio
delas? Um riacho corre por ali. Se ele construísse um dique, eu perderia
centenas de acres de lavoura e os meus servos morreriam de sede. O teu pai
foi muito estúpido em não perceber que eu só queria essa propriedade.
Alice limitava-se a olhar. Por que não lhe falara o pai sobre essas terras
que Weston queria?
– Mas, Edmund... – balbuciou no seu tom de voz mais suave.
– Não me dirijas a palavra. Durante os últimos meses mantive-te vigiada.
Conheço cada homem que levaste para a cama. E esse Montgomery!
Mesmo no seu casamento lançaste-te para os braços dele. Sei da cena no
jardim. Suicidares-te, tu! Sabes que a mulher dele viu o teu joguinho? Não,
julgo que não. Embriaguei-me para não ouvir que toda gente zombava de
mim.
– Mas, Edmund...
– Disse-te que não falasses comigo. Segui para diante com o casamento
porque não podia suportar que as terras fossem para Weston. O teu pai
prometeu-me as escrituras quando lhe desses um neto.
Alice recostou-se na cadeira. Um neto! Quase sorriu. Quando tinha
catorze anos ficara grávida e uma velha bruxa da aldeia encarregou-se de
retirar o feto. Alice quase morrera por causa da hemorragia, mas ficara
alegre por se livrar do pirralho. Nunca destruiria a sua figura esbelta pelo
bastardo de um homem. Nos anos seguintes, com todos os homens que teve,
não voltara a engravidar. Até ficou feliz por aquela operação a ter deixado
estéril. Agora, Alice sabia que a sua vida se tornara um inferno.
***

Uma hora depois, quando Jocelin acabou de tocar para um grupo de


jovens cozinheiras, moveu-se ao longo da parede do grande salão. A tensão
no castelo de Chatworth era quase insuportável. Os servos eram
desordenados e desonestos. Pareciam aterrorizados com o amo e a sua
senhora e não perderam tempo a contar a Jocelin os horrores da vida no
castelo. Nas semanas seguintes ao casamento, Edmund e Alice haviam
discutido violentamente. Até que, um dos servos, contou, entre risos, que o
lorde descobriu que Lady Alice gostava de uma mão forte. Então Lorde
Edmund trancou-a longe de todos, impediu-a de todas as diversões e,
sobretudo, de desfrutar da sua riqueza.
Sempre que Jocelin perguntava a razão dos castigos de Edmund, os
criados encolhiam os ombros. Tinha algo a ver com o casamento da
herdeira Revedoune e Gavin Montgomery. Tudo começara nessa altura e
tinham ouvido frequentemente Lorde Edmund gritar que não faria figura de
idiota. Já havia matado três homens que supostamente eram os amantes de
Alice.
Todos riram quando o rosto de Jocelin ficou branco como um
pergaminho. Agora, enquanto se afastava dos servos, jurou deixar pela
manhã o castelo de Chatworth. Era muito perigoso continuar ali.
Um leve ruído, vindo de um canto escuro do corredor, sobressaltou-o.
Acalmou o seu coração acelerado e riu do seu nervosismo. Os seus sentidos
indicaram-lhe que havia uma mulher nas sombras e ela estava a chorar.
Quando se aproximou da jovem, ela recuou como um animal selvagem
encurralado.
Era Constance, a mulher que Alice odiava tanto.
– Tranquiliza-te – disse calmamente, num tom baixo, ronronando. – Não
vou fazer-te mal. – Moveu cuidadosamente a mão para lhe tocar nos
cabelos. Como ela o fitava receosa, sentiu o coração partido. Quem poderia
ter maltratado aquela mulher para a tornar tão assustada?
A jovem apertava o braço contra um dos lados, como se lhe doesse algo.
– Deixa-me ver – pediu gentilmente e tocou-lhe no pulso.
Passaram uns momentos antes que ela soltasse o braço o suficiente para
que pudesse tocar-lhe. A pele não estava ferida e nem tinha ossos partidos
como inicialmente suspeitara. Mas a luz escassa permitiu-lhe ver que estava
avermelhada, como se alguém lhe tivesse dado um valente beliscão.
Desejou abraçá-la, confortá-la, mas o terror da jovem era quase palpável.
Ela tremia de medo. Ele sabia que seria mais aconselhável deixá-la ir do
que impor-lhe a sua presença por mais tempo. Deu um passo atrás e ela
fugiu rapidamente. Jocelin seguiu-a com o olhar durante longo tempo.
A noite ia adiantada quando entrou no quarto de Alice. Ela esperava-o,
com os braços abertos e ansiosos. Apesar de toda a sua experiência, Jocelin
ficou surpreendido com a violência da sua atitude. A mulher cravou as
unhas na pele das suas costas, a sua boca procurando a dele, mordendo-lhe
os lábios. Afastou-se com o cenho franzido e ela rugiu de irritação.
– Planeias deixar-me? – exigiu, semicerrando os olhos. – Outros já
tentaram deixar-me. – Alice sorriu quando viu a sua expressão. – Vejo que
já te inteiraste sobre eles – riu. – Se me agradares, não haverá motivos para
te juntares a eles.
Jocelin não gostou das ameaças. O seu primeiro impulso foi sair. Então, a
vela à beira da cama tremulou e ele tornou-se agudamente consciente de
como ela era linda, como mármore frio. Sorriu, com os olhos escuros
brilhando.
– Seria tolo em ir embora – disse enquanto deslizava os dentes ao longo
do seu pescoço.
Alice inclinou a cabeça para trás e sorriu, cravando de novo as unhas na
sua pele. Desejava-o rapidamente, com toda a força possível. Jocelin sabia
que estava a magoá-la e também sabia que ela gostava. Não recebeu
qualquer prazer do seu ato de amor. Era uma demonstração egoísta das
exigências de Alice. No entanto, obedeceu, sem nunca abandonar a ideia de
deixá-la e àquela casa no dia seguinte.
Por fim, ela gemeu e empurrou-o para longe dela.
– Agora, vai – ordenou e afastou-se.
Jocelin sentiu pena dela. O que era a vida sem amor? Alice jamais seria
amada, porque não sabia amar.
– Satisfizeste-me – disse em voz baixa quando ele abria a porta. – Ele
distinguiu as marcas que as suas mãos haviam feito naquele fino pescoço e
podia sentir as feridas das unhas nas suas costas. – Vejo-te amanhã –
prometeu antes que ele saísse.
«Não, se puder escapar», disse Jocelin para si mesmo enquanto
caminhava pelo corredor escuro.
– Vem cá, rapaz! – chamou Edmund Chatworth enquanto abria a porta do
quarto, inundando o corredor com luz das velas. – O que estás a fazer aqui,
a percorrer o corredor à noite?
Jocelin encolheu os ombros e voltou a apertar as calças, como se tivesse
acabado de responder a um apelo da natureza.
Edmund olhou fixamente para Jocelin e depois para a porta fechada do
quarto da sua mulher. Ia a dizer algo e depois encolheu os ombros, como a
indicar que não valeria a pena prosseguir com o assunto.
– Consegues manter a boca fechada, rapaz?
– Sim, milorde – respondeu Jocelin cautelosamente.
– Não me refiro a um assunto insignificante, mas a um maior, mais
importante. Se não falares, ganharás um saco de ouro. – Estreitou os olhos.
– Se não o fizeres, ganharás a morte.
– Ali – murmurou Edmund enquanto se afastava e se servia de uma
garrafa de vinho. – Quem teria pensado que alguns golpes iriam matá-la?
Jocelin dirigiu-se imediatamente ao outro lado da cama. Constance estava
deitada, com a cara desfigurada, as roupas arrancadas do corpo, penduradas
por uma costura em torno da cintura. Tinha a pele coberta de arranhões e de
pequenos cortes; grandes manchas roxas formavam-se nos seus braços e
nos ombros.
– Tão jovem – sussurrou Jocelin enquanto caía pesadamente de joelhos.
Os olhos estavam fechados e os cabelos eram uma massa emaranhada de
sangue seco. Quando se inclinou e puxou o corpo suavemente para levantá-
la nos braços, sentiu a sua pele fria. Afastou ternamente o cabelo para longe
do rosto sem vida.
– Essa maldita cadela desafiou-me – pronunciou Edmund atrás de Jocelin
e olhou para a mulher que tinha sido sua amante. – Disse que preferia
morrer a dormir comigo de novo. – Bufou de escárnio. – De certo modo, só
lhe dei o que ela desejava. – Bebeu o último gole do vinho e virou-se para ir
buscar mais.
Jocelin não se atreveu a olhar para ele. As suas mãos estavam
pressionadas sob o corpo da jovem.
– Toma! – exclamou Edmund enquanto atirava uma bolsa de couro para
junto de Jocelin. – Quero que te livres dela, ates algumas pedras e a atires
ao rio. Só não deixes que se saiba o que aconteceu aqui esta noite A notícia
poderia causar problemas. Direi que ela voltou para junto da família. –
Bebeu mais vinho. – Maldita rameira! Não valia o dinheiro que gastava
para vesti-la; só conseguia arrancar-lhe qualquer movimento se lhe batesse,
se não ficava como um tronco inerte debaixo de mim.
– Então, por que a conservasteis? – inquiriu Jocelin calmamente enquanto
retirava o manto para envolver com ele a jovem morta.
– Por aqueles malditos olhos dela. Os mais bonitos que já vi. Via-os em
sonhos. Encarreguei-a de vigiar a minha mulher e relatar-me o que
acontecesse, mas a rapariga era uma má espia. Nunca me dizia nada. – Riu
entredentes. – Creio que Alice lhe pagava para se certificar de que não
falava – prosseguiu Edmund enquanto se afastava de Jocelin e da rapariga.
– Bom. Já foste pago. Agora, leva-a e faz o que quiseres com o corpo.
– Um padre...
– Aquele velho saco de gases? – riu Edmund. – Nem o anjo Gabriel
conseguiria acordar o homem depois de ele beber a sua habitual garrafa de
vinho noturno. Se quiseres, diz tu alguma bênção, mas não chames mais
ninguém! Entendido? – Teve de contentar-se com o aceno de Jocelin. –
Agora sai daqui. Estou cansado de olhar para a cara feia dela.
Jocelin não disse uma palavra. Sem olhar para Edmund, agarrou
Constance nos braços.
– Então, rapaz! – exclamou Edmund, surpreendido. – Não levaste o ouro.
– Deixou cair a bolsa sobre o ventre do cadáver.
Jocelin usou toda a força que lhe restava para manter os olhos baixos. Se
o conde visse o ódio que ardia neles, Jocelin não viveria para escapar de
manhã. Abandonou o quarto em silêncio, carregando o cadáver pelas
escadas e saiu para a noite estrelada.
A mulher do empregado do estábulo, uma velha gorda e desdentada, a
quem Jocelin tratara com respeito e até mesmo carinho, tinha-o alojado
num quarto sobre os estábulos. Era um sítio abrigado no meio de fardos de
feno. Era tranquilo e privado. Poucas pessoas sabiam da sua existência.
Levaria a jovem para lá, iria lavá-la e preparar o seu corpo para ser
enterrado. Pela manhã levá-la-ia para fora das muralhas do castelo e iria
conceder-lhe um enterro apropriado. Talvez não num terreno sagrado,
abençoado pela igreja, mas pelo menos em algum lugar livre e longe do
fedor do castelo de Chatworth.
A única maneira de chegar ao seu quarto era trepar por uma escada
encostada à parede exterior dos estábulos. Acomodou, cuidadosamente,
Constance sobre os ombros e levou-a para cima. Uma vez no interior,
depositou-a ternamente sobre uma cama macia de feno e acendeu uma vela
ao lado dela. A visão dela no quarto de Edmund fora um choque, agora era
um horror. Jocelin mergulhou um pano num balde de água e começou a
lavar o sangue coagulado no seu rosto. Sem que se desse conta, os olhos
encheram-se-lhe de lágrimas ao tocar na carne martirizada. Tirando uma
faca da anca, cortou o que restava do vestido e continuou a banhar as suas
contusões.
– Tão jovem – sussurrou. – E tão bonita. – Ela era bonita ou tinha-o sido
e mesmo agora, na morte, o seu corpo era encantador: esbelto e firme,
embora se vissem demasiado as costelas.
– Por favor.
As palavras foram sussurradas tão baixo que Jocelin quase não as ouviu.
Virou a cabeça e viu que a jovem tinha os olhos abertos; pelo menos, um
deles, já que o outro estava inchado.
– Água... – ofegou, com a boca seca e engelhada.
A princípio, ele só conseguiu encará-la com incredulidade e depois
esboçou um sorriso de orelha a orelha.
– Viva! – sussurrou. – Viva! – Apressou-se a trazer um pouco de vinho
com água e depois levantou cuidadosamente a cabeça na cova do braço,
enquanto lhe levava um copo aos lábios inchados.
– Devagar... – recomendou, sem deixar de sorrir. – Muito devagar.
Constance recostou-se contra ele, franzindo a testa enquanto tentava
engolir, revelando contusões profundas no pescoço.
Ele passou a mão sobre o seu ombro e percebeu que ainda estava frio ao
toque. Que tolo fora ao dá-la por morta, só porque Edmund assim o dizia! A
jovem estava congelada. Era isso o que fazia que parecesse tão fria. Estava
deitada no cobertor dele e, como Jocelin não conhecia outra maneira de
aquecer uma mulher, estendeu-se ao lado dela e envolveu-a nos braços,
enquanto tapava os dois com o cobertor, muito preocupado. Nunca sentira
isso ao deitar-se com uma mulher.
Já era tarde quando Jocelin acordou com a jovem entre os seus braços.
Ela mexeu-se em sonhos, fazendo trejeitos por causa do seu corpo dorido.
Jocelin levantou-se e colocou um pano frio na sua testa, que acusava o
início de febre.
Agora, à luz do dia, Jocelin começou a ver a situação com realismo. O
que havia de fazer com a jovem? Não podia anunciar que estava viva.
Edmund levaria Constance para o seu lado, assim que ela se recompusesse.
Eram poucas as probabilidades de que sobrevivesse a uma segunda tareia.
Se Edmund não a matasse, Jocelin tinha a certeza de que Alice o faria.
Jocelin olhou ao redor da pequena divisão com novos olhos, analisando. Era
íntimo, bem protegido contra ruídos exteriores e difícil de atingir. Com
sorte e muito cuidado, poderia mantê-la escondida até que ela estivesse
bem. Se a mantivesse viva e a salvo, preocupar-se-ia depois com o que
fazer com ela.
Levantou-lhe a cabeça e deu-lhe mais do vinho aguado, mas a sua
garganta inchada aceitou muito pouca quantidade.
– Joss! – chamou uma mulher ao fundo da escada.
– Maldição! – exclamou em voz baixa, amaldiçoando pela primeira vez
na vida ser tão assediado pelas mulheres.
– Joss, sabemos que estás aí. Se não desceres, vamos subir.
Abriu caminho por entre um labirinto de fardos de feno até à porta aberta
e sorriu a Blanche e a Gladys.
– Está uma bela manhã, não está? O que podeis desejar de mim,
encantadoras senhoras?
Gladys soltou uma risadinha.
– Devemos gritar para que todo o castelo escute?
Voltou a sorrir e, depois de um último olhar por cima do ombro, desceu a
escada. Colocou um braço ao redor dos ombros de cada mulher.
– Talvez pudéssemos conversar com a cozinheira esta manhã. Estou
morto de fome.
Os quatro dias seguintes foram um inferno para Jocelin. Nunca se havia
visto obrigado a manter um segredo e os seus constantes subterfúgios eram
exaustivos. Se não fosse a mulher do criado do estábulo, não teria sido bem-
sucedido.
– Não sei o que tens escondido aí em cima – disse a velha –, mas já vivi o
suficiente para não me surpreender com nada. – Pôs a cabeça de lado,
admirando a beleza de Jocelin. – Suponho que seja uma mulher. – Riu ante
a expressão do seu rosto. – Oh, sim, vejo que é uma mulher. Agora, tenho
de aplicar-me a descobrir por que é preciso mantê-la escondida.
Jocelin abriu a boca para falar, mas ela levantou a mão.
– Não há necessidade de explicar. Ninguém ama um mistério mais do que
eu. Deixa-me resolver o mistério e vou ajudar-te a impedir que as outras
mulheres subam ao teu quarto, embora isso não seja fácil, dado serem tantas
as que te perseguem. Alguém deveria conservar-te em vinagre, rapaz. Não
conheço outro capaz de agradar a tantas como tu.
Jocelin virou as costas, exasperado. Estava preocupado com Constance e
quase toda a gente tinha começado a notar a sua distração. Excetuando
Alice, que cada vez exigia mais de Jocelin, chamando-o constantemente
para tocar o alaúde e todas as noites para a sua cama, onde a violência que
ela desejava o fatigava cada vez mais. Além disso, tinha de ouvir
constantemente o ódio de Alice contra Judith Revedoune e sobre a visita
que Alice tencionava fazer ao rei Henrique VII para obter Gavin
Montgomery de volta.
Olhou em volta para verificar se alguém o observava enquanto subia a
escada para o seu pequeno sótão. Pela primeira vez, Constance estava
acordada. Sentou-se, envolvendo o corpo nu com a manta. Durante dias,
enquanto ela estava aturdida pela febre, Jocelin cuidara dela,
familiarizando-se com o seu corpo quase tanto quanto com o seu. Não lhe
ocorreu pensar que era um estranho para ela.
– Constance! – exclamou alegremente, sem se dar conta do seu medo.
Ajoelhou-se ao lado dela. – Como é bom ver os teus olhos novamente. –
Tomou-lhe o rosto entre as mãos para examinar as contusões que estavam a
cicatrizar rapidamente, graças à sua juventude e aos cuidados de Jocelin.
Começou a destapar-lhe os ombros nus para examinar os outros ferimentos.
– Não – sussurrou ela, apertando a manta.
Jocelin fitou-a surpreendido.
– Quem és tu?
– Ah, doçura, não tenhas medo de mim. Sou Jocelin Laing. Viste-me
antes com Lady Alice, não te recordas?
Ante o nome de Alice, os olhos de Constance voaram de um lado para o
outro. Jocelin envolveu-a nos braços, um sítio onde ela tinha passado muito
tempo, embora não soubesse. Tentou libertar-se, mas estava demasiado
fraca.
– Já passou tudo. Estás a salvo. Estás aqui comigo e não permitirei que
alguém te faça mal.
– Lorde Edmund... – murmurou ela contra o seu ombro.
– Não, ele não sabe que estás aqui. Ninguém sabe. Só eu. Mantive-te
oculta de todos. Ele julga que estás morta.
– Morta? Mas...
– Calma. – Acariciou-lhe o cabelo. – Haverá tempo para conversar mais
tarde. Primeiro, tens de curar-te. Trouxe-te uma sopa de cenouras e
lentilhas. Consegues mastigar?
A jovem assentiu com a cabeça; embora não parecesse relaxada, não
estava tão tensa. Jocelin amparou-a com o braço esticado.
– Podes sentar-te? – Ela assentiu de novo e ele sorriu como se estivesse a
presenciar uma verdadeira façanha.
Jocelin adotara o costume de levar tigelas de comida quente para o
celeiro. Ninguém parecia estranhar que ele carregasse o alaúde sobre o
ombro e o estojo do alaúde nas mãos. Mas todas as noites enchia o estojo
com comida que esperava dar forças ao corpo febril de Constance.
Segurou na tigela e começou a dar-lhe de comer, como se ela fosse uma
criança. A jovem estendeu a mão para lhe tirar a colher, mas as mãos
tremiam demasiado e não conseguiu segurá-la. Quando não conseguiu
comer mais, fechou os olhos de cansaço. Teria tombado se Jocelin não a
tivesse agarrado. Demasiado fraca para protestar, deixou-se embalar no seu
colo e adormeceu facilmente, sentindo-se protegida.
Quando Constance acordou estava sozinha. Levou alguns momentos a
lembrar-se onde se encontrava. O jovem de grossas pestanas negras que
cantarolava ao seu ouvido não poderia ter sido real. O que era real eram as
mãos de Edmund Chatworth sobre a sua garganta e as de Alice torcendo-lhe
os braços, puxando-lhe os cabelos, qualquer método que causasse dor e não
deixasse marcas visíveis.
Horas mais tarde, Jocelin voltou, tomou Constance nos seus braços e os
dois aconchegaram-se profundamente sob o seu manto. Não tinha
consciência da passagem do tempo. Pela primeira vez na sua vida, os
desejos das mulheres não o governavam. Constance dependia
completamente dele, o que lhe provocava uma emoção que nunca tinha
conhecido antes, o começo do amor. O amor que havia distribuído por todas
as mulheres estava a concentrar-se numa paixão feroz e ardente.
Mas Jocelin não era um homem livre. Havia outros que o vigiavam.
Capítulo Catorze

O longo e fino cabedal preto do chicote serpenteava furiosamente pelas


costas do homem que já estavam cobertas de marcas sangrentas. A vítima
gritava a plenos pulmões de cada vez que o chicote o golpeava e retorcia
freneticamente as mãos amarradas a um poste com tiras de couro cru.
John Bassett olhou para Gavin, que esboçou um breve aceno de cabeça.
Gavin não tinha estômago para o castigo, e ainda tinha menos respeito pelos
gritos efeminados do homem.
John Bassett cortou as tiras de cabedal e o homem caiu sobre a erva.
Ninguém fez qualquer movimento para ajudá-lo.
– Devo deixá-lo? – perguntou John.
Gavin olhou para o castelo, do outro lado do estreito vale. Levara duas
semanas a encontrar Walter Demari. O homenzinho astuto parecia mais
interessado em jogar ao gato e ao rato do que em conseguir o que queria.
Durante a semana anterior, Gavin tinha acampado fora das muralhas,
planeando o ataque. Dirigira-se às muralhas e tinha desafiado os guardas do
portão, mas as suas palavras foram ignoradas. No entanto, mesmo enquanto
os desafios eram feitos, quatro homens de Gavin cavavam silenciosamente
sob as antigas muralhas. Mas as muralhas eram profundas e os alicerces
largos. Levaria muito tempo para penetrar no castelo e Gavin temia que
Demari se cansasse de esperar pela rendição de Gavin e matasse Helen.
Como se não tivesse problemas suficientes, um dos seus homens, aquela
criatura lamuriando aos seus pés, decidira que, como era um dos cavaleiros
dos Montgomery, poderia considerar-se próximo de Deus. Durante a noite,
Humphrey Bohun tinha cavalgado para a cidade mais próxima e estuprado a
filha de um comerciante, uma jovem de catorze anos; em seguida, voltara
para o acampamento com um ar triunfante. Ficou desconcertado com a
raiva do Lorde Gavin quando o pai da jovem o inteirou sobre o que
acontecera à filha.
– Não me interessa o que faças com ele. Certifica-te apenas de que esteja
fora da minha vista durante as próximas horas. – Gavin puxou as pesadas
luvas de couro de onde pendiam sobre o seu cinto. – Chama-me o Odo.
– Odo? – O rosto de John refletiu uma expressão dura. – Milorde, não
pode estar a pensar em viajar novamente para a Escócia.
– Tem de ser. Já discutimos sobre isto antes. Não tenho homens
suficientes para declarar um ataque a fundo ao castelo. Contempla-o bem!
Parece que um golpe de vento desmoronaria o resto das pedras, mas juro
que os normandos sabiam construir fortalezas. Julgo que é feito de rocha
fundida. Se quisermos entrar antes do fim do ano, precisarei da ajuda de
Stephen.
– Nesse caso, deixai-me ir no seu lugar.
– Quando foi a última vez que estiveste na Escócia? Tenho alguma noção
de onde estará Stephen e amanhã de manhã vou levar quatro homens e
procurá-lo.
– Necessitareis de mais proteção do que podem dar-lha apenas quatro
homens.
– Quantos menos formos, mais depressa cavalgaremos – obstou Gavin. –
Não posso dividir os meus homens. Se levar comigo a outra metade, ficarás
desprotegido. Esperemos que Demari não note a minha ausência.
John sabia que Lorde Gavin tinha razão, mas não gostava que o amo
partisse sem uma boa guarda. Aprendera, no entanto, há muito que não
adiantava discutir com um homem tão teimoso como Gavin.
O homem estendido aos pés deles gemeu, chamando-lhes a atenção.
– Tira-o da minha vista! – ordenou Gavin e caminhou a grandes passadas
na direção em que os seus homens estavam a construir uma catapulta.
Sem pensar, John colocou um braço forte sob o ombro do cavaleiro e
levantou-o.
– Tudo isto por culpa daquela pequena vagabunda! – sibilou o homem,
sangrando pelos cantos da boca.
– Cala-te! – ordenou John. – Não tinhas o direito de tratar essa rapariga
como uma pagã. Eu teria feito com que te enforcassem. – Arrastou o
homem ensanguentado para o extremo do acampamento, onde John lhe deu
um empurrão que o deitou por terra. – Agora vai e não voltes.
Humphrey Bohun tirou a erva da boca e seguiu com a vista John, que se
afastava.
– Oh, voltarei e, na próxima vez, serei eu a agarrar no chicote.
***

Os quatro homens encaminharam-se num silêncio absoluto para os


cavalos que os esperavam. Gavin não informara ninguém, exceto John
Bassett, da sua viagem para encontrar Stephen. Os três homens que o
acompanhavam tinham combatido ao lado de Gavin na Escócia e
conheciam a paisagem escarpada e selvagem. O grupo viajaria o mais
rápido possível, com muito pouco peso, sem um arauto a transportar a
bandeira dos Montgomery diante deles. Todos os homens vestiam de
castanho e verde com a intenção de passarem despercebidos o mais que
pudessem.
Deslizaram em silêncio para as selas e afastaram-se do acampamento
adormecido, cavalgando a passo.
Estavam a uns meros quinze quilómetros do acampamento quando foram
cercados por vinte e cinco homens usando as cores de Demari.
Gavin desembainhou a espada e inclinou-se para Odo.
– Vou atacar e abrir caminho através deles. Escapa-te e tenta chegar junto
de Stephen.
– Mas, milorde! Eles vão matá-lo!
– Faz o que te digo – ordenou Gavin.
Os homens de Demari cercaram lentamente o pequeno grupo. Gavin
olhou em volta para encontrar o ponto mais fraco. Fitaram-no com
arrogância, como se soubessem que a batalha já estava ganha. Então Gavin
viu Humphrey Bohun. O violador sorriu de prazer ao ver o seu antigo amo
encurralado.
Gavin soube imediatamente onde tinha errado. Falara com John sobre a
sua viagem na frente daquele pedaço de esterco. Gavin acenou com a
cabeça para Odo, desembainhou com as duas mãos a sua longa espada de
aço e carregou. Os homens de Demari ficaram desconcertados. Tinham
ordens para levar Lorde Gavin prisioneiro e haviam suposto que, quando
Gavin se visse superado em número por mais de seis para um, se renderia
docilmente.
Esse momento de hesitação custou a vida a Humphrey Bohun e permitiu
que Odo escapasse. Gavin atacou o traidor que morreu antes de poder
desembainhar a espada. Um após outro caíram sob a espada de Gavin, que
emitia reflexos cintilantes sob os raios do amanhecer. O animal bem
adestrado de Odo saltou sobre os cadáveres e os cavalos relinchantes e
galopou para a segurança da floresta. Não teve tempo de ver se alguém o
seguia. Odo manteve a cabeça baixa e moldou-se à silhueta do cavalo.
Gavin tinha escolhido bem os seus homens. Os dois que o
acompanhavam retrocederam os cavalos; os animais estavam treinados para
seguir as ordens dadas através dos movimentos dos joelhos dos donos. Os
três homens lutaram valentemente e, quando um deles caiu, Gavin sentiu
uma parte de si mesmo cair. Eram os seus homens e unia-os uma relação
estreita.
– Cessar! – ordenou uma voz acima do embater do aço contra o aço e dos
gritos de angústia.
Os homens recuaram rapidamente e, quando os olhos serenaram,
começaram a avaliar os danos. Pelo menos quinze dos atacantes de Demari
estavam mortos ou feridos, incapazes de permanecer nas suas montadas.
Os cavalos dos homens agrupados no meio ainda se mantinham firmes,
garupa a garupa, formando um círculo. O homem à esquerda de Gavin tinha
um corte profundo no cimo do braço. Gavin, ofegante com o esforço, estava
coberto de sangue, mas muito pouco era dele.
Os restantes homens de Demari olhavam em silencioso tributo aos
combatentes desarmados.
– Levem-nos! – ordenou o homem que parecia ser o líder dos atacantes. –
Mas, cuidado, para que Montgomery não sofra nenhum dano. É necessário
com vida.
Gavin voltou a levantar a espada, mas de repente sentiu uma dor
penetrante e as mãos ficaram imobilizadas. Um fino chicote fora lançado e
tinha os braços presos aos lados.
– Amarrem-no.
Mesmo amarrado, quando Gavin foi puxado do cavalo, atingiu com o pé
a garganta de um dos homens.
– Têm medo dele? – inquiriu o líder. – De qualquer maneira, morrerão se
não me obedecerem. Amarrem-no a essa árvore. Quero que veja como
tratamos os cativos.
Capítulo Quinze

Judith estava ajoelhada no jardim de rosas, com o regaço cheio de flores.


Gavin já se ausentara há um mês, sem que tivessem notícias nos últimos
dez dias. Não houve um momento em que não olhasse por uma janela ou
uma porta para ver se chegava algum mensageiro. Vacilava entre o desejo
de vê-lo e o temor do seu retorno. Ele exercia muito poder sobre ela, como
o demonstrara quando ela tinha ido ao seu quarto na noite antes de partir
para lutar pelas suas terras. No entanto, sabia perfeitamente que ele não
tinha a mesma ambiguidade nos seus sentimentos para com ela. Para Gavin,
só a loira Alice existia; a sua esposa era apenas um brinquedo para ser
usado quando precisava de diversão.
Ouviu um entrechocar de armas enquanto uns homens atravessavam o
portão duplo que separava a muralha interna do exterior. Levantou-se
rapidamente, deixando cair as rosas ao mesmo tempo que pegava nas saias
e começava a correr. Nenhum deles era Gavin. Judith soltou a respiração
suspensa, baixou as saias e andou mais calmamente.
John Bassett, montado no seu cavalo de combate, parecia muitos anos
mais velho do que quando partira algumas semanas antes. Os cabelos,
grisalhos nas têmporas, estavam ainda mais brancos. Tinha olheiras, com
círculos escuros por baixo. Um dos lados da cota de malha estava rasgado e
as bordas manchadas de sangue. Os outros homens não tinham melhor
aspeto: rostos abatidos e as roupas rasgadas e sujas.
Judith ficou em silêncio enquanto John desmontava.
– Ocupa-te dos cavalos – disse ela a um moço da estrebaria. – Zela para
que sejam bem cuidados.
John olhou para ela por um momento; depois, resignado, fez menção de
se ajoelhar para lhe beijar as mãos.
– Não! – opôs-se Judith, pressurosa. Era demasiado prática para deixar
que ele desperdiçasse mais energia no que, para ela, era um gesto inútil.
Rodeou-lhe a cintura com o braço, guiando o braço dele sobre os seus
ombros.
John ficou rígido, desconcertado com a familiaridade da sua pequena
ama. Então, sorriu-lhe carinhosamente sobre a sua cabeça.
– Vem sentar-te junto à fonte – propôs ela, conduzindo-o até ao lago
forrado de azulejos junto à parede do jardim. – Joan! – exclamou. – Chama
algumas das criadas e manda que alguém da cozinha traga comida e vinho.
– Sim, milady.
Virou-se de novo para John.
– Ajudar-te-ei a tirares a armadura – decidiu, antes que ele pudesse
protestar.
Mulheres acorreram do interior do castelo e em breve os quatro homens
ficaram nus da cintura para cima e as armaduras foram enviadas para
reparação. Cada um dos recém-chegados comeu vorazmente das tigelas o
guisado quente e espesso.
– Não me haveis perguntado notícias – observou John entre colheradas,
mantendo o cotovelo levantado para que Judith pudesse limpar e ligar a
ferida do seu lado.
– Tu as darás – respondeu ela. – Se fossem boas, o meu marido teria
regressado contigo. Posso esperar mais tempo por más notícias.
John pousou a tigela e olhou para ela.
– Está morto? – perguntou, sem o fitar.
– Não sei – respondeu John num tom sereno. – Fomos atraiçoados.
– Atraiçoados! – exclamou ela, pedindo desculpa, quando percebeu que
lhe provocara dores.
– Um dos cavaleiros da guarnição, um homem novo chamado Bohun,
escapou de noite para revelar a Demari que Lorde Gavin planeava sair ao
amanhecer em busca do irmão para pedir ajuda. Lorde Gavin não tinha ido
longe quando o cercaram.
– Mas não o mataram? – sussurrou Judith.
– Julgo que não. Não encontrámos o seu corpo – respondeu John com
dureza, voltando à comida. – Dois dos homens que cavalgaram com o meu
amo foram mortos… mortos de um modo que decerto me pesa. Não
estamos a lidar com um homem comum, mas com um demónio!
– Não houve nenhuma mensagem a pedir resgate ou qualquer palavra de
que o têm prisioneiro?
– Não. Nada. Nós os quatro devemos ter chegado momentos depois da
batalha. Ainda restavam alguns homens de Demari e combatemo-los.
Ela amarrou o último nó da ligadura e ergueu o rosto.
– Onde estão os outros homens? Não é possível que restem somente
quatro.
– Continuam acampados fora das muralhas de Demari. Vamos em busca
de Lorde Miles e dos seus homens. A perna de Lorde Raine ainda não teve
tempo de sarar.
– Crês que Miles será capaz de libertar Gavin? – John não respondeu,
mas concentrou-se no guisado.
– Vá lá. Podes dizer a verdade.
Ele fitou-a.
– O castelo é forte. Só pode ser tomado sem reforços se montarmos cerco.
– Mas isso levaria meses!
– Sim, milady.
– Quanto a Gavin e à minha mãe que estão prisioneiros lá? Não seriam os
primeiros a morrer de fome se faltasse a comida?
John fixou a tigela.
Judith levantou-se, cerrando os punhos e cravando as unhas nas palmas
das mãos.
– Há outra maneira – declarou serenamente. – Irei ter com Walter Demari.
John ergueu bruscamente a cabeça com uma sobrancelha arqueada.
– O que podeis fazer que os homens não podem? – perguntou
cinicamente.
– Tudo o que for exigido de mim – respondeu Judith num tom calmo.
John quase atirou a tigela pelo ar. Em vez disso, agarrou-lhe o braço e a
sua mão forte quase a magoou.
– Não! Não sabeis o que estais a dizer. Julgais por acaso que lidamos com
um homem sensato? Creis que ele libertará Lorde Gavin e a vossa mãe se
lhe deres o que ele deseja? Se tivésseis visto como deixou os homens que
cavalgavam com Lorde Gavin – acrescentou –, não pensaríeis sequer em
entregar-vos a esse Demari. Não havia necessidade de tal tortura, mas ele
parecia fazê-lo por prazer. Se ele fosse um homem, tomaria em
consideração a vossa ideia, mas não é.
Ela sacudiu o braço até que John a soltou.
– O que mais se pode fazer? Um cerco certamente causaria a morte dos
prisioneiros, sem qualquer dúvida, mas afirmas que um cerco é a única
maneira de atacar. Se eu entrasse no castelo, talvez pudesse encontrar Gavin
e a minha mãe e organizar-lhes uma fuga.
– Uma fuga! – rosnou. – John tinha esquecido que ela era Lady Judith e
tinha autoridade para lhe dar ordens. Nesse momento somente a via como
uma rapariga jovem e inexperiente. – Como sairíeis? Existem apenas duas
entradas, ambas bem guardadas.
Judith endireitou os ombros, de queixo levantado.
– Temos alternativas? Se Miles liderasse um ataque, Demari certamente
mataria Gavin, assim como a minha mãe. Amas tão pouco Gavin que não te
importas se ele morre ou não?
De repente, John compreendeu que ela tinha razão. Também sabia que
seria ele quem a entregaria nas mãos sangrentas de Walter Demari. Judith
chegara-lhe ao coração quando mencionou o amor por Lorde Gavin. John
não poderia amar mais o jovem do que se ele fosse seu próprio filho. Judith
estava certa ao dizer que havia uma hipótese de salvar Gavin se ela se
rendesse. O lorde poderia mandá-lo enforcar por colocar em perigo Lady
Judith, mas só lhe restava obedecer-lhe.
– Estais em busca de martírio – comentou John em voz baixa. – O que
impedirá Demari de vos matar também?
Judith sorriu-lhe e colocou as mãos no seu ombro, pois sabia que tinha
vencido.
– Se ele me matasse, perderia as terras de Revedoune. Se não aprendi
mais nada, pelo menos descobri a que extremo os homens chegarão pelas
minhas propriedades. – Os seus olhos cintilaram por um momento. – Agora,
vem até lá dentro para falarmos mais à vontade. Temos muitos planos a
traçar.
John seguiu-a, aturdido. A jovem agia como se estivessem a preparar o
menu para um piquenique na floresta em vez da sua entrega a um carniceiro
como um cordeiro ao matadouro.
Judith queria partir imediatamente, mas John convenceu-a a esperar que
ele e os seus homens descansassem um pouco. Na verdade, esperava
dissuadi-la da sua loucura e encontrar um plano alternativo, mas a lógica de
Judith desconcertava-o.
Por cada razão que lhe apresentava para que ela não fosse, Judith dava-
lhe dez mais sensatas por que deveria ir. Acabou por concordar com ela.
Não havia outra maneira de salvar os prisioneiros… se ainda estivessem
vivos.
Mas, oh, como temia a ira de Lorde Gavin! Confessou isso a Lady Judith.
Ela riu.
– Se ele estiver em condições suficientes para extravasar a sua ira, beijar-
lhe-ei a mão em sinal de agradecimento.
John sacudiu a cabeça, maravilhado. Aquela mulher era muito esperta.
Não invejava a Lorde Gavin a tarefa de domá-la.
Não podiam levar muitos homens – não podiam deixar a propriedade
desprotegida – e muitos dos cavaleiros de Gavin esperavam por eles diante
do castelo de Demari. Deveriam agradecer por serem apenas dois dias de
viagem até à propriedade de Demari.
Judith trabalhou sem parar enquanto John descansava e comia. Ordenou o
carregamento de várias carroças com cereais e carnes em conserva para
serem consumidas no acampamento. Outra carroça foi destinada às suas
roupas: as mais belas sedas, veludos, brocados, caxemiras, juntamente com
um grande baú de ferro repleto de joias. Quando John murmurou algo sobre
a ostentação das mulheres, Judith chamou-o à razão.
– Walter Demari deseja uma mulher que ele acredita ser bela. Queres que
me apresente diante dele vestida de tecidos rústicos? Diria que mudou de
ideias e mandaria atirar-me para o fundo de um poço. Deve ser um homem
vaidoso ou não exigiria que uma mulher que mal conhece repudie o seu
marido e a reivindique como o seu verdadeiro amor. Portanto, vou jogar
com a sua vaidade e vestir as minhas roupas mais requintadas.
John fitou-a durante um momento e depois virou as costas. Não sabia se
deveria elogiá-la ou enfurecer-se consigo mesmo por não ter pensado antes
no que ela acabara de dizer.
Apesar da serenidade que mostrava ao mundo, Judith estava assustada.
Por mais que tentasse, não lhe ocorria um plano alternativo.
Ficou acordada toda a noite, pensando. Demari não enviara nenhuma
mensagem pedindo algo pela troca dos reféns. Talvez já tivesse matado
Gavin e Helen e Judith estivesse prestes a entregar-se sem nenhuma razão.
Passou as mãos sobre o ventre; sabia que ainda estava duro e liso, mas tinha
a certeza de que carregava um filho de Gavin. O bebé era parte do motivo
por que se empenhava tanto em salvar o marido?
Quando o Sol se ergueu, Judith vestiu vagarosamente um vestido de lã
prático. Estava estranhamente serena, quase como se caminhasse para uma
morte certa. Foi até à pequena capela para ouvir missa. Rezaria por todos:
pelo marido, pela mãe e pelo filho por nascer.
***

Walter Demari estava sentado diante de uma mesa de madeira no grande


salão da propriedade do seu pai. Em outras épocas, a mesa tinha sido um
móvel finamente esculpido, mas com o tempo a maioria das cabeças dos
animais tinha-se quebrado e os pescoços ficado lisos. Walter pontapeou,
distraído, um frango que bicava as calças cingidas às suas pernas curtas e
finas. Estudou o pergaminho que tinha na frente e recusou olhar para o que
o rodeava. O pai negava dar-lhe outra coisa, exceto aquela velha torre,
decrépita e degradada. Walter enterrou o ressentimento no mais fundo de si
e concentrou-se na tarefa que tinha diante dele. Quando estivesse casado
com a herdeira das terras de Revedoune, o pai deixaria de tratá-lo como se
não existisse.
Atrás de Walter estava Arthur Smiton, um homem que Walter
considerava seu amigo. Arthur ajudara-o em todas as ocasiões,
reconhecendo que a encantadora herdeira deveria ter sido dele e não de
Gavin Montgomery. Para retribuir a Arthur a sua lealdade, Walter tinha-o
nomeado o seu segundo em comando. Tinha sido Arthur quem conseguira
capturar Lorde Gavin.
– Arthur – queixou-se Demari –, não sei como redigir a mensagem. E se
ela não vier? Se, na verdade, odeia o esposo, por que se arriscaria tanto por
ele?
Arthur não deixou transparecer as suas emoções.
– Esquecei-vos da velha que temos prisioneira? Não é a mãe da rapariga?
– Sim – anuiu Walter, voltando a dar atenção ao pergaminho que tinha
diante dele. Não era fácil pedir o que queria. Queria casar-se com Lady
Judith em troca da liberdade do seu marido e da sua mãe.
Arthur esperou um momento atrás de Walter e depois afastou-se para se
servir de uma taça de vinho. Precisava de um estômago firme para suportar
as lamentações de Walter. O jovem enamorado provocava-lhe náuseas.
Walter tinha regressado do casamento de Montgomery com a herdeira
Revedoune tão fascinado pela noiva que mal conseguira fazer outra coisa a
não ser falar dela. Arthur fitou-o enojado. Walter possuía tudo: terras,
riqueza, família, esperança para o futuro. Não era como ele, que se havia
erguido da lama em que nascera. Tudo o que possuía havia sido adquirido
através da inteligência, da força física e, muitas vezes, da traição e da
mentira. Era capaz de tudo para conseguir o que desejava. Ao ver o inútil
Walter apaixonado pela jovem Revedoune, Arthur desenvolveu um plano.
Não tardara muito a descobrir que havia brigas entre os recém-casados.
Arthur, apenas um cavaleiro na guarnição de Walter, despertara, no entanto,
a atenção do amo, ao sugerir que Judith poderia pedir uma anulação do seu
matrimónio para se casar com Walter. Arthur não atribuía qualquer
importância à rapariga, mas pelas terras de Revedoune valia a pena lutar.
Walter ofereceu resistência quanto a atacar Robert Revedoune, mas Arthur
sabia que Revedoune não se deteria diante de nada para manter a filha
casada com um Montgomery. Tinha sido fácil matar o velho uma vez que
ele lhes permitiu, como amigos, que franqueassem as muralhas do seu
castelo. A sua esposa, Helen, seguiu-os docilmente e Arthur riu,
reconhecendo uma mulher bem domada quando via uma. Admirava
Revedoune por isso.
– Milorde – anunciou um servo nervoso. – Há visitantes lá fora.
– Visitantes? – repetiu Walter com os olhos nublados.
– Sim, milorde. É Lady Judith Montgomery, rodeada pelos seus
cavaleiros.
Walter levantou-se de um salto, derrubando a mesa enquanto seguia atrás
do criado.
Arthur agarrou-o pelo braço.
– Suplico que tenha cuidado, milorde. Talvez seja uma armadilha.
Os olhos de Walter ardiam.
– Que armadilha poderia haver? Os homens não vão lutar e colocar em
perigo a sua dama.
– Talvez a própria dama...
Walter soltou-se com um empurrão.
– Estás a ir demasiado longe. Se não tiveres cuidado, ainda vais parar à
mesma adega que Lorde Gavin. – Saindo precipitadamente da velha torre,
apartou os juncos secos a pontapé. As advertências de Arthur haviam
penetrado no seu cérebro; subiu a estreita escada de pedra até ao topo da
muralha para ter a certeza de que era realmente Lady Judith que esperava lá
em baixo.
Não havia como confundi-la. O cabelo castanho-avermelhado que lhe
caía pelas costas não podia ser confundido com o de mais ninguém.
– É ela – sussurrou excitado, após o que pareceu voar pelas escadas e
através do pátio até ao portão principal.
– Abre homem! – berrou ao porteiro. – Rápido! – O pesado portão com
lanças nas pontas foi levantado aos poucos. Walter aguardava com
impaciência.
– Milorde – disse Arthur ao seu lado. – Não podeis permitir que ela entre
com os seus homens. São mais de cem. Poderíamos ser atacados aqui
dentro.
Walter desviou os olhos do portão que rangeu em protesto enquanto se
elevava. Sabia que Arthur tinha razão, mas não sabia o que fazer.
Arthur cravou os olhos escuros nos olhos azuis desbotados de Walter.
– Sairei a cavalo para a saudar. Não podeis arriscar-vos. Irei apenas até à
fila dos arqueiros. Quando me tiver certificado de que é Lady Judith, os
meus homens e eu escoltá-la-emos através do portão.
– Sozinha? – inquiriu Walter, ansioso.
– Pode entrar com um guarda pessoal se insistir, mas mais nenhum. Não
podemos permitir que toda a sua guarnição entre no castelo – repetiu.
O portão foi levantado e a ponte levadiça baixada. Arthur montou a
cavalo e saiu, seguido por cinco cavaleiros.
Judith conservava-se imóvel na sua montada, enquanto observava a
elevação do portão. Precisou de toda a sua coragem para não fugir. Aquele
velho castelo podia estar a desmoronar-se em vários lugares, mas de perto
era espantoso. Dava-lhe a sensação de estar prestes a engoli-la.
– Ainda há tempo para partirmos, milady – observou John Bassett,
inclinando-se para a frente.
Seis homens cavalgavam na sua direção e ela sentiu um enorme desejo de
virar as costas e fugir, mas nesse momento o seu estômago deu uma volta e
teve de engolir um súbito ataque de náuseas; o filho recordava-lhe a sua
presença. O pai e a avó do bebé estavam dentro daquelas muralhas velhas e,
se pudesse, iria tirá-los dali.
– Não! – respondeu a John com mais força do que realmente sentia. –
Tenho de tentar cumprir a minha missão.
Quando o líder dos homens que se aproximavam estava perto de Judith,
adivinhou imediatamente que ele era o instigador de toda a trama.
Recordava Walter como suave e gentil, mas os olhos escuros e zombeteiros
daquele homem não mostravam qualquer fraqueza. As suas roupas
brilhavam com joias de todas as cores, variedades e tamanhos. O cabelo
escuro estava coberto por um pequeno gorro de veludo, cuja larga faixa
ostentava pelo menos cem pedras preciosas. Quase parecia uma coroa.
– Milady! – saudou ele, inclinando-se, sem desmontar. – O seu sorriso era
zombeteiro, quase insultuoso.
Judith fitou-o com o coração a palpitar. Havia uma frieza naqueles olhos
que a assustava. Não seria um homem fácil de dominar.
– Sou Sir Arthur Smiton, segundo em comando de Lorde Walter Demari,
que vos envia as boas-vindas.
«Boas-vindas», pensou Judith, controlando-se para não lhe cuspir a frase
na cara, pensando no seu pai assassinado, no seu marido e na sua mãe em
cativeiro, e em várias vidas perdidas. Inclinou a cabeça para ele.
– Tendes a minha mãe cativa?
Olhou-a especulativamente, como se tentasse entendê-la. Ela não tinha
recebido nenhuma mensagem, mas sabia o que precisava de fazer.
– Sim, milady.
– Nesse caso, irei vê-la. – Judith instigou o cavalo para a frente, mas
Arthur agarrou as rédeas. Os cem cavaleiros, que rodeavam a jovem,
desembainharam as espadas.
Arthur não perdeu o sorriso.
– Não podeis pensar em franquear as nossas muralhas com tantos
homens.
– Pretendeis que entre sozinha? – indagou, horrorizada. Era o que
esperava, mas talvez pudesse convencer Smiton a permitir que alguns dos
seus homens a acompanhassem. – Quereis que deixe a minha criada para
trás? Ou o meu guarda pessoal?
Ele observou-a atentamente.
– Um homem. Uma mulher. Nada mais.
Judith assentiu, sabendo que seria inútil discutir. Pelo menos teria John
Bassett consigo.
– Joan – chamou quando se virou e viu a serva a olhar para Arthur
especulativamente. – Prepara a carroça com os meus bens e segue-me.
John… – Ao virar-se, percebeu que ele já estava a dar ordens para que se
instalasse um acampamento diante das muralhas do castelo.
Judith atravessou a cavalo a ponte levadiça, sob o portão de pedra em
arco, com as costas muito direitas. Interrogou-se sobre se alguma vez
deixaria com vida aquelas muralhas. Walter Demari esperava no interior
para ajudá-la a desmontar. Judith recordava-o como um jovem gentil, nem
bonito, nem feio, mas agora detetava nos olhos azuis uma personalidade
fraca; tinha o nariz demasiado grande e os lábios finos pareciam cruéis.
Ele fitou-a.
– Sois ainda mais bonita do que me lembrava.
Judith vestira-se com cuidado naquela manhã. Uma tiara de pérolas
rodeava-lhe a cabeça. Junto ao corpo usava um saiote de seda vermelha
com uma larga borda de pele branca. O vestido era de veludo castanho, a
bainha bordada a ouro. As mangas eram estreitas, salvo no ombro, onde o
veludo se abria e a seda vermelha assomava. O decote era pronunciado e os
seios ressaltavam sobre o tecido. Ao caminhar, erguia a anágua de veludo e
expunha a seda orlada de pele por baixo.
Judith conseguiu sorrir àquele traidor, mesmo quando se afastou das mãos
que lhe rodeavam a cintura.
– Lisonjeais-me, milorde – disse ela, mirando-o através das pestanas.
Walter ficou encantado.
– Deveis estar cansada e a precisar de um refresco. Gostaríamos de ter
preparado comida, mas não a esperávamos.
Judith não queria que ele pensasse no motivo daquela visita inesperada.
Enquanto observava o olhar de adoração de Walter, entendeu que lhe
convinha passar por uma jovem tímida, uma recém-casada envergonhada.
– Por favor – disse, com a cabeça inclinada –, gostaria de ver a minha
mãe.
Walter não respondeu, mas continuou a observá-la: os espessos cílios que
tocavam na pele macia, as pérolas na testa, ecoando a brancura da pele.
John Bassett avançou, com os dentes cerrados. Era um homem robusto,
tão alto como Gavin, mas mais pesado devido à idade. O cabelo grisalho só
acentuava a dureza do seu corpo.
– A senhora deseja ver a mãe – pronunciou num tom grave. A voz era
serena, mas irradiava poder.
Walter mal reparou em John, de tão absorto que estava por Judith. Mas
Arthur estava muito consciente dele e reconheceu o perigo. Havia que
eliminar John Bassett quanto antes. Aquele homem, à solta no castelo,
podia causar muitos problemas.
– Claro, milady – anuiu Walter, oferecendo-lhe o braço. Qualquer pessoa
teria pensado que se tratava de uma visita de cortesia.
Chegaram à entrada da torre que se situava no primeiro piso; em tempo
de guerra, os degraus de madeira eram cortados para que a entrada ficasse a
vários metros do chão. Judith estudou o interior enquanto atravessavam o
grande salão em direção aos degraus de pedra. Era um lugar sujo, repleto de
pedaços de ossos entre os juncos secos no chão. Cães cheiravam
preguiçosamente os restos de alimentos. As janelas profundamente
rebaixadas não tinham persianas de madeira e, em alguns lugares, as pedras
tinham-se desprendido, porque as fendas estavam a abrir. Interrogou-se
sobre se aquela estrutura tão pobre era indicativa da má administração do
lugar. Tencionava descobrir.
Helen estava sentada numa cadeira, num pequeno quarto, aberto nas
espessas paredes de pedra do terceiro andar. Carvão vegetal ardia num
braseiro de bronze; a torre fora construída antes de serem inventadas as
lareiras.
– Mãe! – sussurrou Judith e correu para apoiar a cabeça nos joelhos da
mãe.
– Minha filha! – exclamou Helen arquejante e puxou Judith para os seus
braços. Passou um tempo até que as lágrimas se acalmassem o suficiente
para que pudessem falar. – Estás bem?
Judith assentiu. Depois olhou para os homens que continuavam presentes.
– Não podemos falar em privado?
– É claro. – Walter virou-se para a porta. – Também deveis sair – disse a
John Bassett.
– Não. Não deixarei a minha ama sozinha.
Walter franziu o sobrolho, mas não queria perturbar Judith.
– Devias ter saído com eles – repreendeu Judith severamente quando
Walter e Arthur foram embora.
John sentou-se pesadamente numa cadeira junto ao braseiro de carvão.
– Não as deixarei sós.
– Mas desejo um pouco de privacidade para falar com a minha mãe!
John não respondeu e nem olhou para ela.
– É um homem teimoso – disse Judith a Helen, com uma expressão
desgostosa.
– Sou teimoso porque não cedo que mandeis em todas as oportunidades?
– ripostou ele. – Pelo vosso lado, sois teimosa bastante para rivalizar com
um touro.
Judith abriu a boca para responder, mas a risada de Helen deteve-a.
– Vejo que estás bem, minha filha. – Virou-se para John. – Judith é tudo o
que sempre desejei que ela fosse, e ainda mais – disse carinhosamente,
acariciando o cabelo de sua filha. – Agora conta-me por que estás aqui.
– Eu... Oh, mãe – balbuciou a jovem e as lágrimas começaram a subir-lhe
novamente aos olhos.
– O que se passa? Podes falar à vontade.
– Não, não posso! – contestou, acaloradamente, e deitou um olhar de
esguelha a John, ali tão perto.
John fitou-a com uma expressão tão séria que quase teve medo dele.
– Não deveis duvidar da minha honestidade. Conversai com a vossa mãe.
Nenhuma palavra do que ouvir será repetida.
Sabendo que podia confiar nele, Judith relaxou enquanto se sentava sobre
uma almofada aos pés da mãe. Queria conversar, precisava
desesperadamente de conversar.
– Quebrei uma promessa que fiz a Deus – confessou em voz baixa.
A mão de Helen deteve-se um momento sobre a cabeça da filha.
– Conta-me – sussurrou.
As palavras saíram-lhe da boca num atropelo. Judith contou como havia
tentado obter repetidas vezes um pouco de amor no seu casamento, mas
todos os seus esforços haviam sido em vão. Nada do que fizesse poderia
soltar o laço que unia Alice Chatworth a Gavin.
– E a tua promessa? – quis saber Helen.
– Prometi que não lhe daria nada por minha própria vontade. Mas, na
noite anterior à sua partida para vir aqui, entreguei-me a ele livremente. –
Corou ao pensar naquela noite de amor, nas mãos e nos lábios de Gavin no
seu corpo.
– Ama-lo, Judith?
– Não sei. Odeio-o, amo-o, desprezo-o, adoro-o, não sei! Ele é tão grande
– há tanto dele – que me devora. Quando entra numa sala, enche-a. Mesmo
quando o odeio mais, quando o vejo a abraçar outra mulher ou lendo uma
carta dela, não consigo livrar-me dele. – Isso é amor? – perguntou enquanto
olhava suplicante para a mãe. – É amor ou meramente posse do diabo? –
Ele não é gentil comigo. Tenho a certeza de que não tem amor por mim.
Chegou a dizer-me isso. O único lugar em que é bom para mim é...
– Na cama? – Helen sorriu.
– Sim – anuiu Judith e desviou o olhar, ruborizada.
Passaram-se vários segundos antes que Helen replicasse.
– Perguntas-me sobre o amor. Quem sabe menos disso do que eu? O teu
pai também tinha esse poder sobre mim. Sabias que uma vez lhe salvei a
vida? Na noite anterior, tinha-me espancado e, na manhã seguinte, quando
saí a cavalo com ele, tinha o olho negro e inchado. Cavalgávamos sozinhos,
longe da escolta, e o cavalo de Robert assustou-se e derrubou-o. Ele caiu
num pântano, ao longo da margem norte de uma das propriedades. Quanto
mais se mexia mais se afundava. Tinha o corpo todo dorido da tareia e o
meu primeiro pensamento foi afastar-me a cavalo e deixá-lo morrer, mas
não pude. Sabes o que fez quando o salvei? Troçou de mim e chamou-me
idiota.
Fez uma breve pausa antes de continuar:
– Conto-te isto para te mostrar que entendo esse poder. É o mesmo que o
meu marido tinha sobre mim. Sei o poder que Gavin tem sobre ti, pois o
meu próprio casamento era assim. Não posso dizer que era amor. Tão pouco
posso dizer que no teu caso o seja.
Permaneceram um momento em silêncio, com o olhar fixo no braseiro.
– E agora venho resgatar o meu marido como resgataste o teu – comentou
Judith. – Mesmo que o teu tenha vivido para te espancar novamente e o
meu para voltar para outra mulher.
– Sim – concordou Helen tristemente.
– O facto de ter um filho muda as coisas?
Helen quedou-se pensativa.
– Talvez no meu caso tivesse mudado se os primeiros tivessem vivido,
mas os três nasceram mortos, todos rapazes. Depois vieste tu, uma menina...
– Não terminou a frase.
– Pensas que as coisas teriam sido diferentes se o primeiro tivesse
sobrevivido e fosse um varão? – insistiu Judith.
– Não sei. Não acredito que ele espancasse a sua primeira esposa, que lhe
deu filhos varões. Mas era mais novo nessa altura. – Interrompeu-se
bruscamente. – Judith, estás à espera de um filho?
– Sim. Há dois meses.
John levantou-se de um salto, batendo com a armadura e a espada de aço
contra a pedra.
– Haveis feito toda esta viagem a cavalo, estando grávida! – acusou. –
Até então tinha-se mantido tão quieto que as duas mulheres esqueceram a
sua presença. Levou a mão à testa. – Enforcar-me será muito pouco. Lorde
Gavin vai torturar-me quando se inteirar disso. Eu mereço.
– Quem vai dizer-lhe? Juraste guardar segredo! – Judith levantou-se de
imediato, fulminando-o com os olhos dourados.
– Como pensais manter isso em segredo? – inquiriu ele com uma voz
plena de sarcasmo.
– Quando a gravidez estiver evidente, pretendo estar muito longe deste
lugar. – Os seus olhos suavizaram. – Não dirás nada, pois não, John?
A expressão de Bassett não mudou.
– Não tenteis essa sedução comigo, milady. Guardai-a para esse canalha
do Walter Demari.
A risada de Helen interrompeu-os. Era bom ouvi-la rir; as gargalhadas era
um som muito pouco escutado na sua infeliz vida.
– Faz-me bem ver-te assim, minha filha. Temia que o matrimónio te
domasse e quebrasse o teu caráter.
Judith não lhe prestava atenção. John tinha ouvido de mais. Acabara de
dizer muitas coisas íntimas na sua presença. Agora as suas faces
começavam a ruborizar-se.
– Não – suspirou John. – Seria preciso mais do que um simples homem
para domar esta mulher. Não rogueis mais nada, jovem. Não direi nada do
que ouvi, exceto a vosso pedido.
– Nem mesmo a Gavin?
Ele lançou-lhe um olhar preocupado.
– Ainda não o vi. Daria qualquer coisa para saber onde o têm preso, e se
está bem.
– Judith! – exclamou Helen, atraindo a atenção dos dois. – Ainda não me
contaste por que estás aqui. Walter Demari mandou buscar-te?
John sentou-se pesadamente na cadeira.
– Estamos aqui porque Lady Judith disse que deveríamos vir. Não escuta
a razão.
– Não havia outra solução – reagiu Judith, sentando-se novamente. – O
que te disseram? – perguntou à mãe.
– Nada. Fui… trazida para aqui depois da morte de Robert. Há uma
semana que não falo com ninguém. Nem mesmo a serva, que leva o bacio
para o esvaziar, me dirige a palavra.
– Então não sabes onde têm Gavin?
– Não. Só agora deduzi pelas tuas palavras que também ele está
prisioneiro. O que pretende Lorde Demari?
– A mim – respondeu Judith com simplicidade e então baixou os olhos
antes de explicar brevemente o plano de Walter para anular a boda.
– Mas não pode haver anulação se estás grávida de Gavin.
– É verdade – concordou Judith enquanto desviava o olhar da mãe e o
pousava em John. – É um dos motivos por que devemos guardar segredo.
– O que vais fazer, Judith? Como esperas salvar a tua vida, a de Gavin, a
de Joan, e a deste homem? Como vais escapar destes muros de pedra?
John grunhiu em sinal de acordo.
– Não sei – respondeu Judith exasperada. – Não consegui encontrar
alternativa. Pelo menos agora tenho uma hipótese de tirá-los daqui, mas
primeiro preciso encontrar Gavin. Só assim…
– Trouxeste a Joan? – interrompeu Helen.
– Sim – confirmou Judith, sabendo que a mãe tinha alguma ideia.
– Faz com que Joan procure Gavin. Quando se trata de encontrar um
homem, ninguém melhor do que ela para o fazer. É pouco mais do que uma
cadela no cio.
Judith assentiu com a cabeça.
– Agora, quanto a Walter Demari? – continuou Helen.
– Só o vi algumas vezes.
– É de confiança?
– Não! – exclamou John. – Nem ele nem aquele sabujo do seu segundo
em comando são de confiar.
Judith ignorou-o.
– Demari acha-me bonita. E pretendo continuar a ser bonita até encontrar
Gavin e planear a fuga.
Helen olhou para a filha, tão encantadora à luz das brasas.
– Sabes muito pouco de homens – observou. – Os homens não são como
livros de contas, onde se adicionam números e se obtém uma soma
invariável. São todos diferentes… e muito mais poderosos do que tu ou eu.
De repente, John levantou-se e olhou para a porta.
– Eles voltaram.
– Escuta-me, Judith – disse Helen apressadamente. – Pergunta à Joan
como deves lidar com Walter. Ela sabe muito sobre os homens. Promete-me
que seguirás os seus conselhos e não te deixarás levar pelas tuas próprias
ideias.
– Eu…
– Promete-me! – exigiu Helen, com as mãos segurando a cabeça da filha.
– Darei o meu melhor. Não posso prometer mais.
– Isso basta-me.
A porta abriu-se com violência e não se pronunciaram mais palavras.
Joan e uma das criadas do castelo vieram buscar Judith, que devia preparar-
se para jantar com Sua Senhoria. A jovem despediu-se apressadamente da
mãe e seguiu as mulheres, com John junto aos seus calcanhares.
Enquanto Judith lavava o rosto e as mãos, olhou para Joan.
– Sabes onde têm Lorde Gavin?
– Não, milady – respondeu Joan com desconfiança. Não estava habituada
a ser interrogada pela sua ama.
– Poderias averiguar?
– Sem dúvida. – Joan sorriu. – Este é um castelo cheio de coscuvilheiros.
– Precisarás de moedas de prata para conseguir essa informação?
Joan ficou chocada.
– Não, milady. Bastará que pergunte apenas aos homens.
– E eles vão dizer-te só porque perguntaste?
Joan estava a ganhar confiança. A sua encantadora ama sabia pouco além
de propriedades e contas.
– É muito importante a maneira como se pergunta a um homem.
Judith optara por um vestido de tecido prateado. A saia dividia-se na
frente e deixava a descoberto uma ampla superfície de cetim verde-escuro.
As mangas, forradas a cetim verde, eram grandes e em forma de sino,
caindo graciosamente do pulso até metade da saia. Tapou o cabelo com um
capuz francês bordado com flores-de-lis prateadas.
Judith sentou-se num banquinho enquanto Joan lhe ajeitava o capuz.
– E se uma mulher quisesse obter alguma coisa de Lorde Walter?
– Desse homem! – exclamou Joan, acalorada. – Não confiaria nele,
embora esse Sir Arthur, que o segue como a um cão, não seja mal parecido.
Judith virou-se para encarar a criada.
– Como podes dizer isso? Arthur tem olhos muito duros. Qualquer um
pode ver que é um homem ganancioso.
– Lorde Walter também não o é? – Joan obrigou a ama a rodar a cabeça,
sentindo-se superior naquele momento. – É igualmente ganancioso,
traiçoeiro, brutal e egoísta. É tudo isso e muito mais.
– Então, por que...?
– Porque com Artur é sempre o mesmo. Uma mulher saberia o que
esperar dele, e isso seria o que melhor se adaptasse aos seus interesses. Com
isso é fácil lidar.
– No caso de Lorde Walter não é o mesmo?
– Não, milady. Lorde Walter é uma criança, no corpo de um homem.
Muda com o vento. Agora quer uma coisa, mas, quando a tiver, deixará de
querê-la.
– Isso também se aplica às mulheres?
Joan caiu de joelhos diante da ama.
– Deveis escutar-me com atenção. Conheço os homens como mais nada
neste mundo. Lorde Walter arde por vós agora. Está louco de desejo e,
enquanto mantiver essa fúria dentro dele, estareis a salvo.
– A salvo? Não entendo.
– Ele matou o vosso pai, milady. Tem a vossa mãe e o vosso marido como
prisioneiros só por causa dessa paixão. O que será de vossas senhorias
quando esse fogo se apagar?
Judith continuava sem entender. Quando ela e Gavin faziam amor, o fogo
só se extinguia alguns momentos. Na verdade, quanto mais tempo
passavam na cama, mais ela o desejava.
Joan começou a falar com uma paciência exagerada.
– Nem todos os homens são como Lorde Gavin – disse, adivinhando os
pensamentos de Judith. – Se vos entregardes a Lorde Walter, deixareis de
ter domínio sobre ele. Para homens desse tipo, a caça é tudo.
A jovem começava a entender.
– Como posso afastá-lo de mim? – Estava totalmente disposta a entregar-
se a cem homens se com isso salvasse a vida dos seres amados.
– Ele não vos forçará. Precisa de acreditar que vos cortejou e conquistou.
Podeis pedir-lhe o que quiserdes e ele anuirá de bom grado, mas é preciso
ser inteligente e agir com astúcia. Ele estará ciumento. Não deveis dar a
entender o vosso interesse por Lorde Gavin. Deixai-o acreditar que o
desprezais. Acenai-lhe com a cenoura diante do nariz, mas sem permitir que
a morda.
Joan levantou-se e deu um último olhar crítico ao vestido da sua ama.
– Quanto a Sir Arthur? – persistiu Judith.
– Lorde Walter manda nele… e, no pior dos casos, pode ser comprado.
Judith levantou-se sem deixar de fitar a sua criada.
– Crês que alguma vez aprenderei tanto sobre os homens?
– Só quando eu aprender a ler – respondeu Joan, rindo da impossibilidade
dessa situação. – Por que quereis saber tanto sobre homens, tendo Lorde
Gavin? Ele vale mais que todos os meus homens juntos.
Quando saíram do quarto e desceram as escadas para o grande salão,
Judith pensou: «Tenho realmente Gavin? Desejo-o?»
Capítulo Dezasseis

– Milady! – disse Walter, pegando na mão de Judith. – Ela manteve os


olhos baixos, como por timidez. – Passou muito tempo desde a última vez
que vos vi, mas pareceis ter ficado mais adorável. Vinde sentar-vos à mesa
comigo. Preparámo-vos um jantar.
Conduziu-a até uma longa mesa colocada sobre um estrado. A toalha de
mesa era velha e manchada e os pratos de estanho cheios de amolgaduras.
Quando se sentaram, virou-se para ela.
– O vosso quarto é confortável?
– Sim – respondeu ela com serenidade.
O homem sorriu, inchando um pouco o peito.
– Vamos, milady, não precisais temer-me.
«Temer-te?», pensou enraivecida, sem desviar os olhos, e depois
recompôs-se.
– Não é medo o que sinto, mas estranheza. Não estou habituada à
companhia dos homens e aqueles que conheci... não foram bondosos
comigo.
Ele agarrou-lhe uma mão.
– Corrigiria isso se pudesse. Sei muito a vosso respeito, embora mal nos
conheçamos. Sabíeis que era amigo dos vossos irmãos?
– Não – respondeu ela, atónita. – Ignorava-o. Foi quando o meu pai me
prometeu a vós em casamento? – indagou com inocência e os olhos muito
abertos.
– Sim... Não... – gaguejou Walter.
– Ah, compreendo, milorde, foi depois da morte prematura dos meus
queridos irmãos.
– Sim, foi depois – sorriu Walter.
– Os meus pobres irmãos tinham muito poucos amigos. Fico feliz que
tenham contado convosco por um tempo. Quanto ao meu pai… Não quero
falar mal de um morto, mas estava sempre a esquecer onde guardava as
coisas. Talvez se tenha esquecido de onde guardou o acordo de
compromisso matrimonial entre nós.
– Não houve... – começou Walter e depois bebeu um gole de vinho para
afogar as suas próprias palavras. Não podia admitir que esse documento não
existia.
Judith colocou uma mão trémula no seu antebraço.
– Disse algo de errado? Ireis castigar-me?
Walter voltou-se rapidamente para ela e notou que havia lágrimas nos
seus olhos.
– Doce Judith – murmurou, beijando-lhe apaixonadamente a mão. – O
que há de errado com o mundo para que uma encantadora inocente como
vós receeis tanto os homens?
Judith limpou ostensivamente uma lágrima.
– Perdoai-me. Conheci tão poucos e... – Baixou os olhos.
– Então! Dai-me um sorriso. Pedi-me qualquer coisa, qualquer tarefa ou
presente, e não o recusarei.
Judith ergueu os olhos imediatamente.
– Gostaria de ter um quarto melhor para a minha mãe – declarou com
firmeza. – Talvez no mesmo piso que o meu.
– Milorde! – interrompeu Sir Arthur, sentado do outro lado de Judith e
que escutara atentamente cada uma das palavras trocadas. – Há demasiada
liberdade no terceiro piso.
Walter franziu o sobrolho. Queria muito agradar à sua doce e tímida
cativa, e ser repreendido diante dela pelo seu segundo em comando não
beneficiava em muito esse objetivo.
Arthur compreendeu de imediato o seu erro.
– Apenas quero dizer, milorde, que ela deveria ter um guarda de
confiança para o seu próprio bem. – Olhou para Judith. – Dizei-me, milady,
se pudésseis ter apenas um homem, quem escolheríeis?
– John Bassett – apressou-se ela a responder. – Sentiu vontade de morder
a língua, mal havia pronunciado as palavras.
Arthur brindou-a com um olhar presunçoso antes de voltar a olhar para
Walter.
– Vindo da própria boca da dama, ela acaba de escolher o guarda de Lady
Helen.
«Assim, fico sem ajuda, se tentar escapar», pensou Judith. Sir Arthur
olhava para ela como se pudesse ler-lhe a mente.
– Uma excelente ideia! – exclamou Walter. – Estais satisfeita, milady?
A jovem não tinha uma desculpa que lhe permitisse manter John; mas
talvez a sua ausência lhe desse mais liberdade de ação.
– Agradar-me-ia muito, milorde – respondeu num tom doce. – Sei que
John cuidará bem da minha mãe.
– Agora, podemos dedicar-nos a assuntos mais agradáveis. O que vos
parece uma caçada para amanhã?
– Caçar, milorde? Eu...
– Sim. Podeis falar-me com franqueza.
– É um desejo tolo.
– Podeis expressá-lo – afirmou Walter com um sorriso tolerante.
– Só saí há muito pouco tempo da minha casa, e estava sempre confinada
a uma parte das propriedades. Nunca vi um desses castelos antigos. Rir-vos-
eis de mim!
– Nada disso – riu Walter.
– Gostaria de ver tudo, os estábulos, currais, até mesmo a granja.
– Nesse caso, amanhã, faremos um percurso completo – aquiesceu com
um sorriso. – É um pedido simples e faria qualquer coisa para vos agradar,
milady. – Os olhos ardiam ao fitá-la e Judith baixou os cílios,
principalmente para evitar que ele visse a raiva que brilhava nos dela.
– Milorde – disse suavemente –, creio que estou muito fatigada. Podereis
desculpar-me?
– Claro. Um desejo vosso é uma ordem para mim. – Levantou-se e
ofereceu-lhe a mão enquanto ela se levantava.
John manteve-se muito próximo atrás dela, com os braços cruzados no
peito.
– Gostaria de falar com o meu guarda por um momento – pediu a jovem,
acercando-se dele sem esperar resposta. – Sir Arthur nomeou-te guarda da
minha mãe – informou sem preâmbulos.
– Não aceitarei. Lorde Gavin...
– Silêncio! – ordenou ela, apoiando uma mão no seu braço. – Não quero
que nos escutem. Que razão darias para não saíres de perto de mim? Aquele
idiota pensa que já lhe pertenço.
– Mostrou-se atrevido?
– Não, ainda não, mas vai tentar. Tens de ficar com a minha mãe. Não
creio que Sir Arthur a deixe sair daquele lugar húmido se recusares. Ela não
resistirá ali por muito tempo.
– Pensais demasiado na vossa mãe e muito pouco em vós mesma.
– Não, estás enganado. Encontro-me a salvo, mas ela poderia ficar doente
dos ossos. Se estivesse num quarto húmido, exigiria o mesmo.
– Estais a mentir – acusou John secamente. – Se não fosseis tão teimosa,
poderíeis estar a salvo na vossa casa.
– Agora, vais dar-me sermões? – protestou Judith, exasperada.
– É inútil. Só ficarei com Lady Helen se prometerdes não fazer idiotices.
– Claro, posso até mesmo jurar, se quiseres.
– Falais em demasia, mas não há tempo para discutir. Eles vêm aí.
Esperarei mensagens com frequência. Talvez isso me impeça de pensar nas
torturas que Lorde Gavin me aplicará.
Quando Judith e a sua criada ficaram sozinhas, Joan soltou uma
gargalhada.
– Nunca vi uma representação igual à desta noite, milady – riu. –
Poderíeis representar em Londres. Onde haveis aprendido o truque de tocar
com a unha num olho para produzir lágrimas?
Judith respirou fundo. As palavras de Joan trouxeram uma imagem vívida
de Alice nos braços de Gavin.
– Aprendi o truque de uma mulher que vive no meio de mentiras –
respondeu, sombria.
– Quem quer que seja tem de ser insuperável. Eu mesma estava meio
convencida. Espero que tenhais conseguido o que desejáveis.
– Como sabes que desejava algo?
– Que outra razão há para uma mulher mostrar as suas lágrimas a um
homem?
Judith pensou novamente em Alice.
– Não, na verdade – murmurou.
– Haveis conseguido o que desejáveis? – insistiu Joan.
– Em grande parte. Mas esse Arthur fez-me cair numa armadilha. John
tinha sido enviado para vigiar a minha mãe. Guardá-la, bah! Como podem
dois prisioneiros, trancados, guardarem-se? O meu homem de armas foi
convertido em dama de companhia, fechado à chave, e estou novamente
sozinha contigo para organizar a fuga de todos.
Joan desfez os laços dos lados de Judith.
– Não duvido que ele afastou John porque lhe convinha.
– Tens razão, mas Lorde Walter é um tolo. Perde pela língua. Precisarei
ter mais cuidado e só falar com ele longe de Sir Arthur.
– Isso, milady, pode ser a tarefa mais difícil de todas. – Joan puxou as
cobertas para a sua ama.
– O que vais fazer, Joan? – perguntou Judith ao ver que a criada passava
um pente pelo cabelo castanho.
– Vou encontrar Lorde Gavin – respondeu com um sorriso. – A serva e a
ama estavam a assumir um papel mais igualitário. – Amanhã, quando nos
virmos, terei notícias dele.
Judith quase não ouviu a porta a fechar-se atrás da sua criada. Julgava que
estava demasiado preocupada para dormir, mas não foi assim. Adormeceu
quase instantaneamente.
Walter e Arthur encontravam-se num dos lados do grande salão. As
mesas tinham sido retiradas e os homens de armas estendiam os seus
colchões cheios de palha no chão para passar a noite.
– Não confio nela – disse Sir Arthur em voz baixa.
– Não confias nela! – explodiu Walter. – Como podes dizer uma coisa
assim depois de a teres visto? Ela é uma flor delicada. Foi tão castigada e
maltratada que tem medo de qualquer cenho franzido.
– Não parecia muito assustada quando exigiu um quarto melhor para a
mãe.
– Exigiu! – explodiu Walter. – Ela não é capaz de exigir! Não faz parte do
seu caráter. Estava apenas preocupada com o bem-estar de Lady Helen, e
esse é outro exemplo da sua doçura.
– Com essa doçura obteve bastante de vós esta noite. Quase vos levou a
admitir que não havia um acordo escrito de casamento com o pai.
– O que é que isso interessa? – replicou Walter. – Ela não quer estar
casada com Gavin Montgomery.
– Como estais tão certo disso?
– Constou-me…
– Bah! Rumores! Nesse caso, por que veio aqui? Não pode ser tão tola
que acredite que não corre perigo aqui.
– Estás a insinuar que sou capaz de a magoar? – acusou Walter.
Arthur olhou-o fixamente.
– Não, enquanto ela for novidade. – Conhecia bem o amo. – Necessitais
desposá-la antes de irdes para a cama. Só assim a possuireis realmente. Se a
tomardes agora sem a bênção da Igreja, ela pode vir a odiar-vos como dizeis
que odeia o marido.
– Não necessito que me dês conselhos sobre mulheres! Sou eu o amo!
Não tens deveres a cumprir?
– Sim, milorde – sorriu Arthur, irónico. – Amanhã devo ajudar o meu
amo a mostrar as nossas defesas à prisioneira. – Afastou-se no preciso
instante em que Walter lhe atirou uma taça de vinho à cabeça.
***

Judith acordou muito cedo enquanto o quarto ainda estava às escuras.


Recordou imediatamente a promessa de Joan de que pela manhã traria
notícias de Gavin. Afastou rapidamente o cobertor e enfiou um roupão de
brocado bizantino, cor de canela, com flores mais claras do que o forro de
caxemira creme. O colchão onde Joan devia dormir estava vazio. Judith
apertou os dentes com raiva e de repente começou a preocupar-se. Se Joan
também a tivesse abandonado? Se Arthur a tivesse descoberto a espiar?
A porta abriu-se quase em silêncio e Joan, com olhos inchados, caminhou
em bicos de pés.
– Onde estiveste? – perguntou Judith num sussurro tenso.
Joan levou a mão à boca para abafar o grito que estivera prestes a emitir.
– Milady, que susto me haveis pregado! Por que não estais na vossa
cama?
– Como te atreves a perguntar-me por que não estou na minha cama? –
sibilou Judith antes de conseguir controlar-se. – Vá lá. Fala. Dá-me notícias.
Soubeste alguma coisa sobre Gavin? – pegou no braço da criada e puxou-a
até à cama. Ali, sentaram-se de pernas cruzadas no espesso colchão de
penas.
Mas os olhos de Joan não conseguiam enfrentar diretamente o intenso
olhar dourado da sua ama.
– Sim, milady. Encontrei-o.
– Ele está bem? – pressionou Judith.
Joan respirou fundo e apressou-se a fazer a descrição.
– Foi difícil encontrá-lo. Está bem, vigiado em todos os momentos e a
entrada é... difícil – sorriu. – Mas, por sorte, um dos guardas pareceu gostar
muito de mim e passámos muito tempo juntos. Que homem! Esteve toda a
noite...
– Joan! – exclamou Judith bruscamente. – Estás a ocultar-me algo,
verdade? O que se passa com o meu marido? Como está?
Joan olhou para a ama e começou a falar, mas depois escondeu o rosto
entre as mãos.
– É demasiado horrível, milady. É incrível que pudessem fazer uma coisa
dessas a um nobre como ele. Nem o pior dos servos é tratado dessa
maneira.
– Diz-me – ordenou Judith num tom mortífero. – Conta-me tudo.
Joan ergueu a cabeça, lutando contra as lágrimas e as náuseas.
– Poucos servos do castelo sabem que ele está aqui. Trouxeram-no
sozinho durante a noite e... atiraram-no lá para baixo.
– Lá para baixo?
– Sim, milady. Há um espaço por baixo da cave; pouco mais do que um
buraco cavado entre os alicerces da torre... A água do fosso penetra pelo
chão e coisas... coisas viscosas… reproduzem-se lá.
– É onde mantêm Gavin?
– Sim, milady – confirmou Joan em voz baixa. – O teto do buraco é o
piso da cave; trata-se de um buraco muito profundo. A única maneira de
descer é por uma escada.
– Viste esse lugar?
– Sim, milady. – A jovem inclinou a cabeça novamente. – Também vi
Lorde Gavin.
Judith agarrou os braços da serva com ferocidade.
– Viste-o e só agora me dizes?
– Custou-me a acreditar que... aquele homem fosse Lorde Gavin. – Joan
ergueu os olhos, com o tormento gravado no rosto. – Ele era sempre tão
galhardo, tão forte, mas agora é pouco mais do que pele e osso. Os olhos
são círculos negros que nos queimam. O guarda, o homem com quem
passei a noite, abriu o alçapão e segurou uma vela. Que fedor! Mal
conseguia ver naquela escuridão. Lorde Gavin – ao princípio não tive a
certeza de que era ele – tapou os olhos ante o simples brilho de uma vela. O
chão, milady... estava cheio de bichos rastejando! Não havia um só lugar
seco. Como é que dorme, se não tem onde estender-se?
– Tens a certeza de que esse homem era Lorde Gavin?
– Sim. O guarda roçou-o com o chicote e ele afastou a mão e fitou-nos
com ódio.
– Reconheceu-te?
– Creio que não. No começo acreditei que assim fosse, mas, agora, julgo
que não está em condições de reconhecer ninguém.
Judith desviou o olhar, pensativa. Joan tocou-lhe no braço.
– É demasiado tarde, milady. Não demorará muito tempo neste mundo.
Não pode durar mais do que alguns dias, no máximo. Esqueça-o. Está pior
do que morto.
Judith lançou-lhe um olhar duro.
– Não acabas de dizer que está vivo?
– Apenas meio vivo. Mesmo que fosse tirado hoje, a luz do Sol iria matá-
lo em instantes.
Judith saiu da cama.
– Tenho de vestir-me.
Joan contemplou as costas direitas da ama. Sentia-se contente por ela ter
abandonado qualquer ideia de resgate. Mas aquele rosto magro e emaciado
continuava a atormentá-la. Ainda assim, Joan estava desconfiada. Há muito
tempo que vivia com Judith e sabia que a sua pequena ama raramente
deixava um problema sem solução. Tinha havido momentos em que a
deixava completamente exausta por arrumar e reorganizar algo para que
Judith pudesse observá-lo de todos os ângulos. A ama jamais se dava por
vencida. Caso se concentrasse na colheita de um campo antes de uma certa
data, este era ceifado, mesmo que Judith tivesse de ajudar na tarefa.
– Vou precisar de uma roupa de pano tosco, muito escuro, como a que
usam os servos, Joan, e de botas de cano alto: não importa que sejam
demasiado grandes, porque posso amarrá-las com força. Também preciso de
um banco. Terá de ser comprido, mas suficientemente estreito para caber
através do alçapão. Também necessito de uma caixa de ferro, não muito
grande, mas uma que possa carregá-la no cinto atada ao estômago.
– Ao estômago? – conseguiu balbuciar Joan. – Não estareis a pensar...?
Acabo de explicar-vos que ele está quase morto, que não pode ser
resgatado. Não podeis levar-lhe um banco e pensar que ninguém vai notar.
Alimentos, talvez, mas... – O olhar de Judith deteve-a. A ama era uma
mulher pequena, mas, quando aqueles olhos dourados se tornavam tão
duros como agora, não havia como desobedecer. – Sim, milady – disse
Joan, mansamente. – Um banco, botas, roupas de servos e... uma caixa de
ferro com cinto à medida do vosso estômago – acrescentou, sarcástica.
– Sim, à medida do meu estômago – concordou Judith, sem humor. –
Agora ajuda-me a vestir. – Retirou um saiote amarelo de seda do grande
baú junto à cama. Tinha vinte botões de pérolas do pulso até ao cotovelo.
Por cima, deslizou um vestido de veludo dourado com mangas largas e
pendentes. Da cintura até ao chão, pendia um cinto de cordões de seda
castanha, cravados de pérolas.
Joan pegou num pente de marfim e começou a desenredar os cabelos da
ama.
– Não o deixeis antever que vos preocupais com Lorde Gavin.
– Não preciso que me digas isso. Vai à procura das coisas de que
necessito e não deixes que ninguém te veja com elas.
– Não posso andar por aí com um banco, sem que ninguém me veja.
– Joan!
– Sim, milady. Farei o que me ordenais.
Horas mais tarde, depois de passar a manhã a acompanhá-la na visita a
estábulos e granjas, Walter disse:
– Deveis estar muito cansada, milady; tudo isso deve certamente
interessar-vos muito pouco.
– Oh, pelo contrário! – sorriu Judith. – As muralhas do castelo são tão
espessas! Elas são tão espessas! – exclamou com os olhos arregalados e
uma expressão inocente. – O castelo era simples. Possuía uma grande torre
de pedra de quatro pisos dentro de uma única muralha de três metros e meio
de espessura. Havia alguns homens no topo, mas pareciam sonolentos e não
muito alertas.
– Talvez milady gostasse de inspecionar a armadura dos cavaleiros em
busca de defeitos – sugeriu Arthur, enquanto a observava atentamente.
Judith conseguiu manter um rosto inexpressivo.
– Não entendo do que me falais, sir – respondeu, confusa.
– Nem eu, Arthur! – acrescentou Walter.
Arthur não contestou. Limitou-se a fitar Judith e ela compreendeu que
tinha um inimigo. O cavaleiro tinha interpretado com facilidade o seu
interesse pelas fortificações. Virou-se para Walter:
– Estou mais cansada do que pensava. Foi realmente um longo percurso.
Talvez devesse descansar.
– Sem dúvida, milady.
Judith queria afastar-se dele, libertar-se daquela mão, que pousava com
demasiada frequência no seu braço ou na sua cintura. Foi um alívio quando
ele a deixou junto à porta do quarto. Desabou sobre a cama completamente
vestida. Durante toda a manhã só pensara no que Joan lhe contara sobre
Gavin. Imaginava-o meio morto na imundície daquele lugar horrível onde o
mantinham.
A porta abriu-se, mas não prestou atenção. Às mulheres da nobreza
raramente se lhes permitia privacidade. As criadas passavam o tempo a
entrar e a sair do quarto. Porém, soltou uma exclamação ofegante, ante o
contacto de uma mão masculina no seu pescoço.
– Lorde Walter! – exclamou, percorrendo rapidamente o quarto com o
olhar.
– Não tenhas medo – disse em voz baixa. – Estamos sozinhos.
Encarreguei-me disso e os servos sabem que aplico duros castigos se me
desobedecem.
Judith estava desconcertada.
– Tens receio de mim? – perguntou, os olhos bailando. – Não há razão.
Não sabes que te amo? Amei-te desde a primeira vez que te vi. Esperava no
meio da procissão que te seguiu até à igreja. Devo dizer-te como te vi? –
pegou numa madeixa do seu cabelo e enrolou-a em torno do braço. – Saíste
para a luz do Sol e foi como se o dia escurecesse ante o teu esplendor. O teu
vestido dourado, os teus olhos dourados.
Ergueu a madeixa de cabelo, esfregando-a com os dedos da outra mão
contra a sua palma.
– Como desejei tocar nesses finos fios! Nesse momento soube que
estavas destinada a ser minha. Mas casaste com outro! – acusou.
Judith estava assustada, não por ele ou pelo que poderia fazer-lhe, mas
pelo que perderia se a tomasse agora. Enterrou o rosto nas mãos, como se
estivesse a chorar.
– Milady! Minha doce Judith! Perdoa-me. O que fiz? – inquiriu Walter,
perplexo.
Ela fez um esforço para se recompor.
– Sou eu quem deve pedir perdão. É que os homens...
– Os homens o quê? Podes contar-me tudo. Sou teu amigo.
– De verdade? – inquiriu ela, com olhos suplicantes e demasiado
ingénuos.
– Sim – sussurrou Walter, confortando-a o melhor que pôde.
– Nenhum homem foi meu amigo até agora. Primeiro, o meu pai e os
meus irmãos... Não, não falarei mal deles!
– Não há necessidade – disse Walter enquanto lhe tocava nas costas da
mão com as pontas dos dedos. – Conhecia-os bem.
– E depois, o meu marido! – exclamou Judith com raiva.
Walter pestanejou.
– Então, não gostas dele? É verdade?
Quando o fitou, os seus olhos dourados brilharam com tanto ódio que
ficou desconcertado. Por um momento teve a sensação de que lhe era
dirigido e não ao marido.
– Todos os homens são iguais! – exclamou, com raiva. – Só querem uma
coisa da mulher e, se ela não a der de bom grado, é forçada. Sabeis como
como é horrível a violação para uma mulher?
– Não, eu... – Walter estava confuso.
– Os homens sabem pouco das coisas mais refinadas da vida: a música e a
arte. Gostaria de acreditar que existe um homem em algum lugar da terra
que não me apalpe nem faça exigências.
Walter lançou-lhe um olhar astucioso.
– E se encontrasses um homem assim, como o recompensarias?
Ela sorriu docemente.
– Amá-lo-ia de todo o meu coração – respondeu com simplicidade.
Ele levou-lhe a mão aos lábios e beijou-a com ternura. Judith baixou os
olhos.
– Vou guardar essas palavras – afirmou Walter num sussurro. – Porque
sou capaz de tudo para conquistar o teu coração.
– Não pertencerá a mais ninguém – sussurrou Judith.
Ele soltou a mão dela e levantou-se.
– Vou deixar-te descansar. Lembra-te que sou teu amigo e estarei por
perto se precisares de mim.
No momento em que ele saiu, Joan entrou dissimuladamente.
– Lady Judith! Ele não...?
– Não se passou nada – garantiu enquanto se recostava contra a cabeceira
da cama. – Consegui dissuadi-lo.
– Dissuadi-lo! Por favor, explicai-me… Não, não o façais. Não tenho
nenhuma necessidade de saber como dissuadir um homem que deseje fazer
amor comigo. O que quer que tenha feito foi bom. Podereis mantê-lo à
distância?
– Não sei. Ele considera-me ingénua e acobardada. Não sei quanto tempo
poderei mantê-lo enganado. Odeio-me quando minto assim! – Judith virou-
se para a criada. – Está tudo preparado para esta noite?
– Sim, embora não tenha sido fácil.
– Vais ser bem recompensada quando sairmos daqui… se sairmos. Agora,
vai buscar outras mulheres e prepara-me um banho. Esse homem tocou-me
e necessito esfregar-me.
***

John Bassett andava de um lado para o outro no quarto, com passos


pesados. O dedo do pé da bota tropeçou em algo enterrado nos juncos e
deu-lhe um pontapé, irado. Um osso velho e seco voou, disparado contra a
parede distante.
– Uma dama de companhia – amaldiçoou. – Trancado dentro de um
quarto, sem liberdade alguma e tendo por única companhia uma mulher que
o receava.
Na verdade, não era culpa dela que ele estivesse ali. Virou-se e olhou para
ela, enrolada debaixo de um cobertor, diante do braseiro. Ele sabia que as
suas longas saias escondiam um tornozelo gravemente torcido que não
permitira que a filha visse.
De repente, esqueceu a raiva. De nada servia deixar-se remoer por esse
sentimento.
– Sou uma má companhia – disse ele enquanto movia um banquinho para
o outro lado do braseiro e se sentava. Helen fitou-o com um olhar
assustado. Ele conhecera o seu marido e envergonhava-se por também lhe
inspirar medo. – Não sois vós que me enfureceis, milady, mas aquela vossa
filha. Como poderia uma mulher serena e sensata como vós ter gerado uma
jovem tão teimosa? Queria resgatar dois prisioneiros, mas agora tem três
para salvar e sem ajuda, a não ser a daquela criada tresloucada.
Voltou-se e viu que Helen sorria com puro orgulho.
– Orgulhai-vos de semelhante filha? – observou, atónito.
– Sim. Ela não tem medo de nada e sempre pensa nos outros primeiro.
– Deveríeis tê-la ensinado a temer – criticou John ferozmente. – Por
vezes, o medo é bom.
– Se fosse vossa filha, tê-la-ia ensinado a temer?
– Tê-la-ia ensinado a... – começou John e interrompeu-se. – Pelos vistos,
de nada serviam os castigos; tinha a certeza de que Robert Revedoune lhe
causara muita dor. Virou-se para Helen e sorriu. – Não acredito que pudesse
ser ensinada. Mas se ela fosse minha filha... – Ele sorriu mais amplamente.
– Se fosse minha filha, estaria orgulhoso dela. Mas duvido que tal beleza
pudesse nascer de algo tão feio como eu.
– Oh, mas não sois nada feio – opinou Helen, ruborizada.
John olhou-a fixamente pela primeira vez. Durante o casamento, quando
a vira, parecera-lhe uma mulher desleixada e velha, mas agora dava-se
conta de que não era uma coisa nem outra. Um mês longe de Robert
Revedoune tinha-lhe feito muito bem. Não parecia tão nervosa como antes
e as faces cavadas estavam a encher-se. Apesar da touca de viúva, que lhe
cobria o cabelo, podia ver que era castanho-avermelhado, mais escuro do
que o de sua filha. Quanto aos olhos pareciam ter diminutas manchas
douradas.
– Por que me olhais assim, sir?
Com a sua habitual brusquidão, John disse-lhe o que pensava.
– Não sois velha.
– Farei trinta e três anos este ano – respondeu ela. – É uma idade
avançada para uma mulher.
– Bah! Sei de uma mulher de quarenta que... – Deteve-se e sorriu. –
Talvez não devesse contar a uma dama essa história, mas, de qualquer
modo, aos trinta e três anos, estais longe de ser velha. – De repente ocorreu-
lhe uma ideia. – Sabeis que agora sois uma mulher rica? Sois uma viúva
com grandes propriedades e em breve tereis homens a bater à vossa porta.
– Não – riu ela, com as faces coradas. – Estais a brincar.
– Uma viúva rica e bonita, além disso – brincou ele. – Lorde Gavin terá
de abrir caminho entre eles à espada para afugentá-los e eleger-vos um
marido.
– Marido? – Helen ficou repentinamente séria.
– Vamos, não façais essa cara! – ordenou John. – Poucos são como aquele
vilão que conhecestes.
Helen pestanejou ante aquela expressão que deveria ter-lhe parecido
grosseira. Mas vinda de John, era uma declaração do facto.
– Lorde Gavin encontrará um bom marido para vós.
Helen fitou-o como se o apreciasse.
– Haveis sido casado, John?
Ele demorou um momento antes de responder.
– Sim, uma vez quando eu era muito jovem. Ela morreu da peste.
– Não houve filhos?
– Não, nenhum.
– Ama… amava-la? – perguntou Helen timidamente.
– Não – respondeu John sinceramente. – Ela era uma criatura simples.
Infelizmente, não suporto a estupidez, nem num homem, nem num cavalo,
nem numa mulher. – Riu entredentes devido a algum pensamento privado. –
Uma vez gabei-me de que só entregaria o meu coração a uma mulher que
soubesse jogar bem xadrez. Sabeis que cheguei a jogar uma partida com a
rainha Elizabeth?
– Ela ganhou?
– Não – respondeu, desgostoso. – Não era capaz de se concentrar no jogo.
Tentei ensinar o jogo a Gavin e aos irmãos, mas eles são piores do que
algumas mulheres. Só o pai conseguia desafiar-me.
Helen olhou para ele com seriedade.
– Conheço o jogo. Pelo menos, sei mover as peças.
– De verdade?
– Sim. Ensinei Judith a jogar, embora ela nunca conseguisse derrotar-me.
Era como a rainha: sempre preocupada com outros problemas. Não podia
concentrar-se, como o xadrez merecia.
John hesitou.
– Se vamos passar aqui algum tempo, talvez possais dar-me algumas
lições. Apreciaria qualquer ajuda.
John suspirou. Talvez fosse uma boa ideia. Pelo menos ajudaria a matar o
tempo.
Capítulo Dezassete

O quarto de Judith estava tão silencioso como o resto do castelo de Demari


quando ela começou os seus preparativos para descer ao fosso onde estava
Gavin.
– Dá isto ao guarda – disse Judith, entregando a Joan um odre de vinho –
e ele dormirá toda a noite. Poderíamos incendiar barris de óleo ao lado dele,
que não acordaria.
– O que vai acontecer quando Lorde Gavin vos vir? – murmurou Joan.
– Julguei que pensavas que ele estava quase morto. Agora não fales mais
e faz o que te digo. Está tudo pronto?
– Sim. Senti-vos melhor? – inquiriu Joan, preocupada.
Judith assentiu, engolindo saliva ao recordar o seu recente enjoo.
– Se ficou algo no estômago, perdê-lo-eis quando entrardes naquele fosso
repugnante.
Judith ignorou o comentário.
– Agora vai e dá o vinho a esse homem. Vou esperar um pouco e depois
sigo-te.
Joan esquivou-se do quarto sem fazer ruído, uma arte que aprendera
durante longos anos de prática. Judith esperou nervosamente durante quase
uma hora. Amarrou a caixa de ferro sobre o estômago e deslizou o vestido
de lã áspera pela cabeça. Se alguém tivesse reparado na serva que
caminhava silenciosamente por entre os cavaleiros adormecidos, só veriam
uma mulher em estado avançado de gravidez, com as mãos na parte inferior
das costas, para apoiar o peso da barriga. Judith teve alguma dificuldade em
descer as escadas de pedra, sem corrimão, que levavam à cave.
– Milady? – chamou Joan num sussurro.
– Sim. – Judith dirigiu-se à única chama de vela que Joan segurava. – Ele
está a dormir?
– Sim. Não vos chegam os roncos?
– Não consigo ouvir nada, além do palpitar do meu coração. Coloca a
vela em algum sítio e ajuda-me a desatar esta caixa.
Joan pôs-se de joelhos enquanto a ama levantava as saias até à cintura.
– Por que precisáveis da caixa? – inquiriu Joan.
– Para armazenar os alimentos, para manter os… ratos longe da comida.
Joan estremeceu enquanto as mãos frias lutavam para desatar os nós do
couro cru.
– Há mais do que ratos lá em baixo. Por favor, milady, ainda estais a
tempo de mudar de ideia.
– Estás a oferecer-te para ires no meu lugar?
A exclamação de horror de Joan foi a sua resposta.
– Então, cala-te. Pensa em Gavin, forçado a viver ali.
Enquanto as duas mulheres puxavam a tampa do alçapão, o ar viciado do
poço fê-las virar a cabeça para o lado.
– Gavin! – chamou Judith. – Estás aí?
Não obteve resposta.
– Dá-me a vela.
Joan entregou o castiçal à ama e desviou o olhar. Não queria voltar a
olhar para o fosso.
Judith esquadrinhou o buraco negro à luz da vela. Tinha-se preparado
para o pior e não fora em vão. No entanto, Joan enganara-se quanto ao
fundo do poço. Não era totalmente desprovido de uma área seca – ou pelo
menos relativamente seca. O chão de terra inclinava-se para longe das
paredes de pedra, de modo que um canto era apenas lama em vez da água
infestada de lodo. Nesse canto Judith avistou uma figura encurvada. Só os
olhos brilhantes que a miravam lhe indicaram que a silhueta encolhida no
canto estava viva.
– Dá-me a escada, Joan. Quando eu tiver chegado ao fundo, envia-me
primeiro o banco e depois a comida e o vinho. Compreendeste?
– Não gosto deste lugar.
– Nem eu. – Não foi fácil para Judith descer aquela escada para o inferno.
Não se atrevia a olhar para baixo. Não havia necessidade de ver o que
estava no chão; conseguia sentir o cheiro e ouvir os movimentos rastejantes.
Pousou a vela sobre uma pedra saliente da parede, mas não olhou para
Gavin. Sabia que ele lutava para se endireitar.
– O banco – ordenou Judith para cima. – Não era fácil manobrar a pesada
peça pela escada e sabia que os braços de Joan estavam prestes a
desconjuntar-se. Foi mais fácil levantá-lo e colocá-lo contra a parede, ao
lado de Gavin. A caixa de comida veio em seguida, depois um grande odre
de vinho.
– Pronto! – exclamou enquanto colocava os alimentos na borda do banco
e em seguida dava um passo na direção do marido. Então compreendeu por
que Joan dissera que o considerava meio morto. Estava enfraquecido,
abatido e com as maçãs do rosto, que eram salientes, encovadas.
– Gavin – chamou em voz baixa e estendeu-lhe a mão, com a palma para
cima.
Gavin moveu lentamente a sua mão débil e imunda para lhe tocar, como
se esperasse vê-la desaparecer. Quando sentiu a sua carne quente contra a
dele, olhou-a, surpreendido.
– Judith. – O nome soou áspero, a voz rouca pelo desuso prolongado e
pela garganta ressequida.
Judith pegou na dele firmemente entre as suas e ajudou-o a erguer-se para
se sentar no banco. Segurou o odre de vinho e levou-lho aos lábios. Passou
um bocado até que ele compreendesse que devia beber.
– Devagar – indicou Judith enquanto ele começava a engolir grandes
goles do líquido espesso e doce. Ela pôs o odre de lado, retirou um frasco
rolhado da caixa e começou a alimentá-lo com um guisado rico e
encorpado. A carne e os legumes haviam sido cozidos até se transformarem
numa pasta fácil de mastigar.
Gavin comeu pouco antes de se recostar contra a parede, com os olhos
fechados de cansaço.
– Há muito tempo que não tenho comida. Um homem não aprecia o que
tem até que lhe seja tirado. – Descansou um momento, depois voltou a
sentar-se e olhou para a esposa. – Por que vieste até aqui?
– Para te trazer comida.
– Não. Não me referia a isso. Por que estás nas propriedades de Demari?
– Tens de comer, em vez de falar, Gavin. Se continuares a comer, vou
contar-te tudo. – Deu-lhe um pedaço de pão escuro mergulhado no guisado.
Gavin voltou a dedicar atenção à comida.
– Os meus homens estão aí em cima? – perguntou, com a boca cheia. –
Julgo que posso ter esquecido como se caminha, mas, quando tiver comido
um pouco mais, estarei mais forte. Fizeram mal em enviar-te aqui.
Judith não tinha calculado que a sua presença levaria Gavin a acreditar
que estava livre.
– Não – respondeu, pestanejando para conter as lágrimas. – Não posso
tirar-te daqui... ainda.
– Ainda? – Ele olhou-a. – O que estás a dizer?
– Estou sozinha, Gavin. Os teus homens não estão lá em cima. Continuas
cativo de Walter Demari, como a minha mãe e agora John Bassett.
Ele parou de comer, com a mão suspensa sobre o frasco. Abruptamente,
como se ela não tivesse dito nada, continuou a mastigar.
– Conta-me tudo – disse sem rodeios.
– John Bassett disse-me que Demari te tinha capturado e à minha mãe.
John não via nenhuma forma de te resgatar, exceto através do cerco ao
castelo. – Judith parou como se tivesse terminado a história.
– Por isso vieste? Com a ideia de me salvares? – Fitou-a, com os olhos
cavados e ardentes.
– Gavin, eu...
– Diz-me, por favor, como esperavas consegui-lo? Pensavas
desembainhar uma espada e ordenar a minha libertação?
Judith cerrou os dentes.
– Vou degolar o John por isto.
– Foi o que ele disse – murmurou a jovem.
– O quê?
– Disse que John sabia que ficarias zangado.
– Zangado? – replicou Gavin. – As minhas propriedades ficaram
desprotegidas, os meus homens sem liderança, a minha mulher é mantida
presa por um louco e dizes que estou zangado? Não, esposa, não. Estou
muito mais do que zangado.
Judith endireitou as costas e cerrou os dentes.
– Não havia outra solução. Um cerco teria sido a tua morte.
– Um cerco, sim! – anuiu ele, enraivecido. – Porém, há outras maneiras
de tomar este castelo.
– Mas John disse...
– John! John é um cavaleiro, não um líder. O seu pai seguiu o meu, assim
como ele me segue. Deveria ter recorrido a Miles ou mesmo a Raine, apesar
da sua perna partida. Matarei John assim que lhe puser a vista em cima.
– Não, Gavin, ele não tem culpa. Disse-lhe que viria sozinha se não me
trouxesse.
A luz da vela conferiu fulgor aos seus olhos. O capuz de lã tinha caído
deixando o cabelo a descoberto.
– Tinha-me esquecido de como és bela – disse em voz baixa. – Não
vamos continuar a brigar. Não podemos alterar o que está feito e agora diz-
me o que se passa lá em cima.
Ela contou-lhe como conseguira um quarto melhor para a sua mãe, mas
também como havia condenado John a tornar-se prisioneiro.
– Mas é melhor assim – continuou. – Ele não me permitiria vir aqui.
– Oxalá tivesse estado presente para te impedir. Não deverias estar aqui,
Judith.
– Mas tinha de trazer-te comida! – protestou ela.
Gavin fitou-a com um suspiro e depois esboçou um sorriso.
– Compadeço-me do pobre John por ter de lidar contigo.
Ela olhou-o, surpreendida.
– Ele disse o mesmo de ti. Fiz assim tanto mal?
– Sim – respondeu Gavin sinceramente. – Colocaste em perigo um bom
número de pessoas, e qualquer resgate será agora muito mais difícil.
Ela baixou o rosto para as mãos.
– Anda, olha para mim. Há muito tempo que não vejo nada bonito e que
estivesse limpo. – Gavin entregou-lhe o frasco vazio.
– Trouxe mais comida e uma caixa de metal para mantê-la lá dentro.
– Além de um banco – acrescentou Gavin, sacudindo a cabeça. – Judith,
os homens de Demari vão saber quem enviou estas coisas quando as virem.
Tens de levá-las de volta.
– Não! Precisas delas.
Gavin fitou-a. Afinal, limitara-se a queixar-se dela.
– Judith! – sussurrou. – Obrigado. – Levantou a mão, como se fosse
tocar-lhe na face, mas parou.
– Estás irritado comigo – afirmou ela sem rodeios, pensando que era por
isso que ele não lhe tocava.
– Não quero sujar-te. Estou imundo. Sinto coisas a rastejarem pela minha
pele, mesmo agora que estás tão perto de mim.
Judith pegou-lhe na mão e guiou-a até à sua face.
– Joan disse que estavas meio morto. Mas acrescentou que fitaste o
guarda com um olhar de desafio. Se ainda podias odiar, não estavas tão
perto da morte. – Inclinou-se para ele e Gavin roçou-lhe os lábios. Judith
tinha de contentar-se com isso; ele negou-se a contaminá-la mais com o seu
toque.
– Escuta-me, Judith. Preciso que me obedeças. Não vou tolerar
desobediências, compreendes? Não sou John Bassett, a quem consegues
manipular com o dedo mindinho. E, se me desobedeceres, o preço será de
muitas vidas, sem dúvida.
– Sim – assentiu ela, desejosa de receber indicações.
– Antes de me capturarem, Odo conseguiu fugir do cerco e foi procurar
Stephen, à Escócia.
– O teu irmão?
– Sim, não o conheces. Ele será inteirado de tudo o que Demari fez e
acorrerá de imediato. É um guerreiro experiente e essas velhas muralhas
não resistirão muito tempo diante dele. Mas vai demorar vários dias para
chegar da Escócia… mesmo que o mensageiro tenha conseguido encontrá-
lo rapidamente.
– Então, o que devo fazer?
– Deverias ter ficado em casa e esperado com o teu bastidor de bordar –
replicou ele, desgostoso. – Assim, teríamos tido tempo. Agora, deves
conseguir tempo para agirmos. Não concordes com nada do que Demari
propuser. Fala com ele das coisas das mulheres, mas não fales da anulação
do nosso casamento, nem das tuas propriedades.
– Ele considera-me uma tola.
– Que Deus proteja todos os homens de mulheres tão tolas como tu.
Agora tens de ir.
Ela levantou-se.
– Vou trazer mais comida amanhã.
– Não! Manda a Joan. Ninguém reparará nessa gata que se escapa de uma
cama para outra.
– Mas virei disfarçada.
– Quem tem uma cabeleira como a tua, Judith? Se uma madeixa escapar,
serás reconhecida. Se fores descoberta, não haverá razão para manter o
resto de nós com vida. Demari tem de pensar que aceitarás os seus planos.
Agora vai e obedece-me, pelo menos uma vez na vida.
Ela levantou-se e assentiu enquanto se virava para a escada.
– Judith – sussurrou. – Beijar-me-ias de novo?
Ela sorriu feliz e, antes que ele pudesse detê-la, rodeou-lhe a cintura com
os braços, aproximando-o dela. Podia sentir a mudança no seu corpo, o peso
que perdera.
– Fiquei assustada, Gavin.
Ele levantou-lhe o queixo.
– És mais valente do que dez homens juntos. – Beijou-a ansiosamente. –
Agora vai e não voltes mais.
Judith subiu a escada quase a correr para sair daquela cave escura.
Capítulo Dezoito

O castelo estava silencioso quando Arthur permitiu finalmente que a sua


raiva explodisse. Sabia que deveria dominar o temperamento, mas tinha
visto demasiado num só dia.
– Sois um tolo! – pronunciou Arthur com um sorriso sarcástico. – Não
vedes como essa mulher vos manuseia como um harpista domina um
saltério9?
– Não te excedas – avisou Walter.
– Alguém deve fazê-lo! Estais tão cego que ela poderia cravar-vos um
punhal entre as costelas e murmuraríeis Obrigado.
Walter olhou subitamente para a sua caneca de cerveja.
– Ela é uma mulher doce e adorável – disse em voz baixa.
– Doce! Bah! É tão doce como um limão. Está aqui há três dias e quanto
haveis progredido nas negociações para a anulação do matrimónio? O que
diz ela quando lhe perguntais? – Não lhe deu tempo para responder. – Essa
mulher tem uma perda auditiva conveniente. Por vezes, limita-se a olhar
com um sorriso quando lhe fazeis uma pergunta. Dir-se-ia que é surda e
muda. Nunca a pressionais, olhando-a em vez disso com outro sorriso
estúpido.
– Ela é uma mulher linda – contrapôs Walter em defesa.
– É sedutora, sem dúvida – reconheceu Arthur e sorriu para si mesmo. –
Judith Montgomery também começava a agitar-lhe o sangue, embora não
do modo sagrado com que afetava Walter. – Mas o que adianta a sua beleza
se não estais mais perto do objetivo do que quando ela chegou?
Walter bateu com a sua taça na mesa.
– É uma mulher, com os diabos, e não um homem com quem se possa
argumentar. Há que cortejá-la e conquistá-la. As mulheres devem ser
amadas. Além disso, existe a recordação do pai e do vil marido com quem a
casaram. Eles assustaram-na.
– Assustaram-na! – bufou Arthur. – Nunca vi uma mulher menos
assustada na minha vida. Uma mulher assustada teria ficado em casa, na sua
cama, atrás das muralhas do seu castelo. Essa, no entanto, veio a cavalo até
aos nossos portões e...
– E não pede nada! – retrucou Walter, triunfante. – Apenas pediu um
quarto melhor para a sua mãe, um pedido simples. Passa os dias comigo e
proporciona-me uma companhia agradável. Nem sequer fez perguntas sobre
o destino do marido. Isso demonstra que não se interessa por ele.
– Não estou assim tão seguro – observou Arthur, pensativo. – Não me
parece natural que se interesse tão pouco por ele.
– Garanto-te que o odeia! Não sei por que não o matas para encerrar o
caso. Casar-me-ia com ela em cima do cadáver desse homem, se o
sacerdote o permitisse.
– Então teríeis o rei em cima. Ela é uma mulher rica. O pai tinha o direito
de entregá-la a um homem em matrimónio, mas ele está morto. Agora só o
rei tem esse direito. A partir do momento em que o marido está morto, ela
converte-se em pupila do rei e os produtos das suas propriedades serão dele.
Acreditais que o rei Henrique entregaria uma viúva rica ao homem que
torturara e matara o seu marido? Se a possuirdes sem sua permissão, ele
ficaria ainda mais irritado. Disse-vos mais do que uma vez: a única maneira
é ela apresentar-se diante do rei e pedir publicamente para ser libertada dos
vínculos matrimoniais e declarar que vos quer ser entregue. O rei Henrique,
que ama muito a rainha, deixará comover-se por esses sentimentalismos.
– Então, estou a proceder corretamente – insistiu Walter. – Estou a fazer
com que a mulher me ame. Vejo-o nos seus olhos quando me fita.
– Volto a repetir que sois tolo! Apenas vedes o que desejais. Não estou
seguro que ela não esteja a planear algo, uma fuga talvez.
– Fugir de mim que não a mantenho cativa? Ela é livre para ir onde
quiser.
Arthur olhou para o homem com repulsa. Não só era um idiota como
também estúpido. Se Arthur não fosse cauteloso, todos os seus planos
cuidadosamente arquitetados seriam destruídos por uma deusa de olhos
dourados.
– Dizeis que ela odeia o marido?
– Sim. Sei-o de certeza.
– Tendes provas, além das coscuvilhices da criadagem?
– Ela nunca fala dele.
– Talvez o ame tanto que a magoe demasiado falar nele – insinuou
Arthur, sarcástico. – Talvez devêssemos testar esse ódio.
Walter hesitou.
– Já não estais tão seguro dela?
– Estou! O que planeias?
– Vamos tirar o marido do fosso, trazê-lo diante dela e observar a sua
reação. Chorará horrorizada ao vê-lo como deve estar agora ou ficará
contente por vê-lo tão torturado?
– Ficará contente – assegurou Walter.
– Esperemos que tenhais razão, mas não o creio.
***

O novo quarto que Judith tinha conseguido para Lady Helen era grande,
arejado e limpo. Uma sólida divisória de madeira havia sido pregada nas
paredes do terceiro piso, criando o quarto. Estava afastado do resto do
castelo, protegido por uma porta de carvalho com dez centímetros de
espessura.
Havia poucos móveis. Uma cama grande coberta de linho pesado ocupava
um canto. Um colchão de palha encontrava-se no lado oposto do quarto.
Duas pessoas, sentadas junto ao braseiro aceso, inclinavam as cabeças sobre
um tabuleiro de xadrez colocado em cima de uma mesa baixa.
– Haveis ganho novamente! – exclamou John Bassett, atónito.
Helen sorriu-lhe.
– Pareceis satisfeito.
– Sim. Pelo menos estes dias não foram aborrecidos. – No decurso do
tempo em que estavam juntos, John tinha visto muitas mudanças nela.
Havia aumentado de peso e as faces perdiam as cavidades. Além disso,
mostrava-se mais relaxada na sua presença. Já não desviava a vista de um
lado para o outro. Na verdade, raramente afastava os olhos do companheiro.
– Acreditais que a minha filha está bem? – perguntou Helen, devolvendo
as peças de xadrez às suas posições originais.
– Só posso deduzir que sim. Julgo que, se ela tivesse sofrido algum dano,
o saberíamos. Não me parece que Demari demorasse a condenar-nos ao
mesmo destino.
Helen assentiu com a cabeça. Considerava refrescante a dura franqueza
de John depois de ter vivido com mentiras por tanto tempo. Não voltara a
ver Judith desde aquela primeira noite e, se não fosse a serenidade de John,
teria adoecido de preocupação.
– Outro jogo?
– Não. Necessito de um descanso dos vossos ataques.
– É tarde. Talvez... – começou ela, renitente a ir para a cama e deixar
aquela agradável companhia.
– Quereis sentar-vos ao meu lado um momento? – perguntou ele,
levantando-se para atiçar as brasas.
– Sim – acedeu ela com um sorriso. – Aquela era a parte do dia que mais
lhe agradava: ser levada de um lado para o outro nos braços fortes de John.
Tinha a certeza de que o seu tornozelo estava curado, mas ele não
perguntou e ela não mencionou o facto.
John baixou os olhos para a cabeça apoiada no seu ombro.
– Cada dia vos pareceis mais com a vossa filha – comentou enquanto a
transportava para uma cadeira mais perto do fogo. – É fácil ver onde ela foi
buscar a sua beleza.
Helen não respondeu, mas sorriu contra o seu ombro, deleitando-se com a
força dele. John tinha acabado de depositá-la na cadeira quando a porta se
abriu de par em par.
– Mãe! – exclamou Judith, correndo para os braços abertos de Helen.
– Estava preocupada contigo – reagiu Helen ansiosamente. – Onde te
mantiveram? Fizeram-te mal?
– Que notícias há? – interrompeu a voz grave de John.
Judith afastou-se da mãe.
– Não, estou ilesa. Não pude vir antes por falta de tempo. Walter Demari
mantém-me ocupada todos os momentos. Quando menciono que quero
visitar-vos, encontra um lugar para me levar. – Sentou-se num banquinho
que John colocou atrás dela. – Quanto a notícias, vi o Gavin.
Nem John nem Helen abriram a boca.
– Eles têm-no num buraco por baixo da cave. É um lugar hediondo. Não
viverá muito tempo ali. Fui vê-lo e...
– Entraste no fosso? – inquiriu Helen, atónita. – Estando grávida! Não
podias. Colocaste a vida do bebé em risco.
– Silêncio! – ordenou John. – Deixai que nos fale de Lorde Gavin.
Judith olhou para a mãe, que geralmente se acobardava ao tom duro de
um homem, mas Helen limitou-se a obedecer sem demonstrar medo.
– Ele enfureceu-se comigo por ter ido e disse que já havia preparado o
nosso resgate. Enviou um dos seus homens em busca do seu irmão Stephen.
– Lorde Stephen? – exclamou John, sorrindo. – Ah, sim, se resistirmos
até à sua chegada, estaremos salvos. Ele é um bom guerreiro.
– Foi o que Gavin disse, que mantivesse Demari longe de mim o máximo
que puder, a fim de dar a Stephen tempo para trazer os seus homens.
– O que mais disse Lorde Gavin?
– Muito pouco. Passou a maior parte do tempo a fazer a lista dos meus
erros – respondeu Judith desgostosa.
– Consegues manter Demari à distância? – questionou Helen.
Judith suspirou.
– Não é fácil. Se me toca no pulso, a mão desliza até ao meu cotovelo. Se
coloca a mão na minha cintura, desliza até às minhas costelas. Não respeito
esse homem. Se fosse capaz de se sentar e conversar sensatamente comigo,
entregar-lhe-ia metade das terras Revedoune a troco da nossa liberdade. Em
vez disso, oferece-me grinaldas de margaridas e poemas de amor. Há
momentos em que tenho vontade de gritar de frustração.
– E Sir Arthur? – quis saber John. – Não o imagino a fazer grinaldas de
margaridas.
– Não. Limita-se a observar-me. Nunca escapo aos seus olhos. Sinto que
planeia algo, mas não sei o quê.
– Será o pior, sem dúvida – afirmou John. – Como lamento não poder
ajudar!
– Não. De momento não preciso de ajuda. Resta-me esperar que Lorde
Stephen chegue e negoceie ou lute – o que tiver de ser feito. Então, falarei
com ele.
– Falar? – John arqueou uma sobrancelha. – Stephen é pouco dado a
discutir os seus planos de batalha com mulheres.
Ouviu-se uma pancada na porta.
– Tenho de ir embora. Joan está à minha espera. Não sei se me convém
que Demari saiba da minha presença aqui.
– Judith. – Helen agarrou no braço da filha. – Cuidas bem de ti?
– Quanto me é possível. Estou cansada... só isso. – Beijou a face da mãe.
– Preciso ir.
Quando ficaram sozinhos, John virou-se para Helen.
– Não choreis – disse severamente. – Não vai ajudar em nada.
– Eu sei – reconheceu Helen. – Mas ela está tão sozinha. Sempre esteve
sozinha.
– E vós? Também não haveis estado sempre sozinha?
– Não tem importância. Sou velha.
John agarrou-a com força pelos braços e ergueu-a até ele.
– Não sois velha! – exclamou apaixonadamente e beijou-a.
Helen nunca havia sido beijada por um homem, exceto pelo marido e só
no início do seu casamento. Assustou-se com o frio que lhe percorreu a
espinha. Correspondeu ao beijo, rodeando o pescoço de John com os
braços, atraindo-o para mais perto dela.
Ele beijou-lhe a face, o pescoço, com o coração palpitando aos seus
ouvidos.
– É tarde! – sussurrou; depois pegou-lhe ao colo e levou-a para a cama.
Ajudava-a todas as noites a desabotoar o vestido simples, já que Helen não
tinha uma serva. Fora sempre respeitador e desviava os olhos enquanto ela
se deitava na cama. Agora, colocou-a de pé junto à cama e virou-se para ir
embora.
– John – chamou ela –, não vais ajudar-me com os botões?
Ele virou-se para ela, com os olhos escuros de paixão.
– Esta noite, não. Se te ajudasse a despires-te, não subirias sozinha para
essa cama.
Helen fitou-o com o sangue a palpitar por todo o corpo. As suas
experiências com um homem na cama tinham primado pela brutalidade,
mas agora, ao observar John, compreendeu que com ele seria diferente.
Como seria enroscar-se com prazer nos braços de um homem? Mal
reconheceu a sua própria voz quando falou:
– Mesmo assim, vou precisar de ajuda.
John acercou-se dela.
– Tens a certeza? És uma dama. Eu sou apenas vassalo do teu genro.
– Tornaste-te muito importante para mim, John Bassett. Agora quero que
sejas tudo para mim.
Ele tocou-lhe no capuz que lhe cobria os cabelos e puxou-o
completamente.
– Vem cá, então – sorriu. – Deixa que me encarregue desses botões.
Apesar das palavras ousadas que Helen pronunciara, John inspirava-lhe
algum receio. Começara a amá-lo nos últimos dias e queria dar-lhe algo.
Não possuía nada para lhe oferecer, exceto o corpo. Entregou-se como uma
mártir. Sabia que os homens recolhiam um grande prazer da cópula, embora
para ela tivesse sido só algo rápido e sujo. Não fazia ideia de que poderia
ser diferente.
Ficou surpreendida quando John demorou tempo a despi-la. Esperava que
lhe erguesse as saias sobre o rosto para acabar de uma vez com aquilo. John
parecia gostar de lhe tocar. Percorreu-lhe as costas com os dedos, causando-
lhe pequenos calafrios. Tirou-lhe o vestido pela cabeça e em seguida a
camisa. Afastou-se dela e olhou-a enquanto ela estava apenas vestida com a
camisola de algodão fina e as meias. Sorriu calorosamente como se o corpo
dela lhe agradasse. John colocou as mãos na sua cintura e depois tirou a
camisola. Pousou imediatamente as mãos nos seus seios e Helen ofegou de
prazer. Voltou a beijá-la e ela manteve os olhos abertos, fitando-o
maravilhada. Aquela suavidade emitiu ondas de prazer por todo o seu
corpo. Encostou os seios à lã áspera do seu gibão. Fechou os olhos e
apoiou-se contra ele. Nunca experimentara essa sensação antes.
John afastou-a para começar a tirar a roupa. O coração de Helen batia
descompassado.
– Deixa-me fazê-lo – ouviu a própria voz e recuou ante a sua ousadia.
John sorriu-lhe com a mesma expressão que ela sentia, uma paixão
crescente.
Era a primeira vez que Helen despia um homem, excetuando os visitantes
a quem ajudava a tomar banho. O corpo de John era forte e musculoso e ela
tocava-lhe na pele de cada vez que uma peça de roupa caía por terra.
Roçou-lhe no braço com os seios e pequenas faíscas percorreram-lhe o
corpo.
Quando ficou nu, John levantou Helen nos braços e colocou-a
cuidadosamente na cama. Ela teve um momento de pesar ante a ideia de
que o prazer terminara e começaria a dor, mas John ergueu-lhe o pé e
pousou-o no seu colo. Enquanto Helen observava sem fôlego, desatou a liga
e tirou a meia de algodão, beijando cada centímetro de pele à medida que
percorria o caminho. Quando chegou aos dedos do pé, Helen não conseguiu
resistir mais. O seu corpo estava estranhamente fraco e o coração latejava-
lhe na garganta. Estendeu os braços para que ele viesse até ela, mas viu o
chamamento recusado.
John estendeu a mão para a outra perna. Helen sabia que não podia
suportar mais. O corpo começava a ansiar por ele. John riu com voz rouca e
afastou-lhe as mãos. Passou uma eternidade antes que ele removesse com
beijos a outra meia.
Helen recostou-se contra as almofadas, debilitada. John aproximou-se
dela, beijou-a e ela cravou as mãos nos seus ombros. Ele passeava as mãos
firmemente pelos seus lados. Helen pressionou-se contra ele, sentindo que
estava pronto para ela. Mas a tortura não havia terminado. John inclinou a
cabeça até aos seus seios, descrevendo círculos com a língua e mordiscando
os mamilos cor-de-rosa e duros. Helen gemia, movendo a cabeça de um
lado para o outro na almofada.
John colocou lentamente uma perna sobre a dela. Depois cobriu-a com
todo o seu peso. Como ela se sentia bem! Ele era tão forte e pesado.
Quando a penetrou, Helen gritou. Sentia-se como uma virgem inexperiente
em questões de prazer. O marido tinha usado o seu corpo, mas John fazia
amor com ela.
A sua paixão era tão intensa quanto a de John e alcançaram o clímax
juntos numa tremenda explosão. Ele puxou-a para perto de si e pôs um
braço e uma perna em cima dela, como se temesse vê-la escapar. Helen
aproximou-se ainda mais dele. Se possível, teria gostado de deslizar para
dentro da sua pele. O seu corpo começava a relaxar do delicioso prazer após
uma noite de amor. Adormeceu com a suave respiração de John no ouvido e
no pescoço.
***

Judith sentou-se na mesa alta entre Walter e Arthur. Mordiscava a carne


mal cozinhada, incapaz de engolir. Mesmo que tivessem sido os mais
deliciosos pratos, seria o mesmo. Colocara uma anágua de seda creme e por
cima um vestido de veludo azul-púrpura. As grandes mangas pendentes
estavam forradas de cetim azul bordado com minúsculas meias-luas de
ouro. Um cinto de filigrana de ouro com uma fivela definida com uma
única safira grande rodeava-lhe a cintura.
As mãos de Walter tocavam-lhe constantemente: nos pulsos, no braço, no
pescoço. Não parecia notar que estavam num lugar público. Mas Judith
tinha plena consciência dos vinte e cinco cavaleiros que a observavam
descaradamente. Sentia a especulação nos seus olhos. Ao espetar com o
garfo um pedaço de carne, desejou que fosse o coração de Walter. Era
difícil engolir o próprio orgulho.
– Judith – sussurrou Walter ao seu ouvido com voz rouca. – Poderia
devorar-te. – Pressionou os lábios contra o seu pescoço e a jovem sentiu-se
sacudida por tremores de repulsa. – Porquê esperar? Não te dás conta de
que te amo? Não sentes o meu desejo?
Judith manteve-se rígida, recusando-se a permitir que o corpo se
afastasse. Walter mordiscou-lhe o pescoço, roçou-lhe o ombro com o nariz,
sem que ela pudesse expressar o que sentia.
– Milorde – conseguiu dizer, após engolir várias vezes com dificuldade –,
haveis esquecido as vossas próprias palavras? Dissestes que tínhamos de
esperar.
– Não posso – reagiu ele, ofegante. – Não posso esperar mais.
– Mas assim terá de ser! – contrapôs Judith com mais raiva do que
pretendia demonstrar e empurrou a mão dele violentamente. – Escutai-me!
O que aconteceria se cedesse à minha paixão e vos permitisse vir à minha
cama? Não pensais que uma criança seria feita? O que diria o rei se nos
apresentássemos diante dele com a minha barriga inchada? Quem
acreditaria que a criança não era do meu marido? Não haverá anulação se
levar um filho vosso. Sabeis que um divórcio é concedido pelo papa. Ouvi
dizer que leva anos.
– Judith... – começou Walter e depois interrompeu-se. – As palavras dela
faziam sentido e também apelavam à sua vaidade. Como se lembrava de
Robert Revedoune dizendo que entregava a filha à família Montgomery
porque desejava netos varões. Pelo seu lado, estava muito seguro de poder
ter com ela filhos varões! A jovem tinha razão; caso se acoplassem,
gerariam um filho no primeiro acasalamento. Bebeu um bom trago de
vinho, sentindo um misto de orgulho e de frustração.
– Quando nos apresentaremos diante do rei, milorde? – perguntou Judith
sem rodeios. Talvez pudesse fugir durante a viagem.
Embora estivessem sentados à mesa do jantar, Walter prestava pouca
atenção aos presentes. Foi Arthur quem respondeu:
– Estais ansiosa por declarar diante do rei o vosso desejo de que o vosso
casamento seja anulado?
Judith não respondeu.
– Então, milady, somos amigos. Podeis falar livremente. Sentis uma
paixão tão profunda por Lorde Walter que não podeis esperar para declará-
la ao mundo?
– Não gosto do teu tom – interferiu Walter. – Ela não tem de provar nada.
É convidada e não prisioneira. Nada a obrigou a vir até aqui.
Arthur sorriu, estreitando os olhos.
– Sim, ela veio livremente – disse ele em voz alta. – Depois, quando
estendeu a mão pela frente de Judith para pegar num pedaço de carne,
baixou a voz. – Mas por que haveis vindo, milady? Ainda não recebi uma
resposta.
A refeição parecia horrivelmente longa para Judith e não via a hora de se
retirar. Quando Walter virou as costas para falar com o seu camareiro,
Judith aproveitou a oportunidade para se levantar da mesa. Subiu
apressadamente as escadas, com o coração a palpitar. Quanto tempo mais
poderia resistir a Walter Demari? A cada momento que passava os seus
avanços tornavam-se mais atrevidos. Parou de correr e encostou-se à pedra
fria da parede, tentando recompor-se. Por que nunca deixava de acreditar
que poderia lidar com tudo sozinha?
– Ei-la aqui!
Judith ergueu os olhos e viu Arthur a pouca distância. Estavam sozinhos
numa profunda concavidade das espessas paredes.
– Estás à procura de um lugar por onde fugir? – Sorriu maliciosamente. –
Não há ninguém, estamos sozinhos. – Estendeu o braço musculoso e
rodeou-lhe a cintura, puxando-a para perto dele. – Onde está essa língua
afiada? Vais tentar convencer-me de que não devo tocar-te? – Acariciou-lhe
o braço. – És tão bonita que qualquer homem pode perder a cabeça. Quase
compreendo que Walter não se decida a possuir-te. – Olhou para o rosto
dela. – Não vejo medo nesses olhos dourados, mas gostaria de vê-los
resplandecer com a chama da paixão. Crês que poderia fazê-los arderem por
mim?
Os seus lábios duros desceram sobre os dela, mas Judith não sentiu nada e
permaneceu rígida. Ele apartou-se.
– És uma cabra gélida – rugiu e depois apertou-a com mais força. Judith
sentiu que lhe faltava o ar, e teve de abrir a boca. Arthur aproveitou a
oportunidade para beijá-la novamente. Agarrou-a outra vez, empurrando a
língua para dentro da boca de Judith. O abraço magoava-a e a boca dele
enojava-a.
Arthur afastou-se um pouco, afrouxando os braços, mas não a soltou. Os
olhos mostraram raiva em primeiro lugar e depois passaram à troça.
– Não, não és fria. Nenhuma mulher com esses olhos e esses cabelos o
poderia ser... Mas quem derrete o gelo? Walter com os seus beijos na mão
ou talvez seja esse teu marido?
– Não! – exclamou Judith e apertou os lábios com força.
Arthur sorriu.
– Embora Walter não pense assim, és má atriz. – A expressão de Arthur
tornara-se dura. – Walter é um idiota, mas eu não sou. Julga que vieste a
este lugar por amor a ele, mas eu não acredito. Se eu fosse uma mulher,
usaria a minha beleza para libertar os meus seres amados. Planeias negociar
com o corpo a liberdade da tua mãe e do teu marido?
– Soltai-me! – exigiu Judith, retorcendo-se nos seus braços.
Arthur reteve-a com mais firmeza.
– Não podes fugir-me. Nem tentes sequer.
– E quanto a Walter? – desafiou ela.
Arthur riu.
– Manipulas bem o jogo, mas lembra-te que estás a brincar com o fogo e
te queimarás. Crês que temo um lixo como Demari? Faço dele o que quero.
De onde pensas que saiu essa ideia da anulação?
Judith parou de lutar.
– Ah, sim, agora já me prestas atenção. Escuta: Walter será o primeiro a
possuir-te, mas depois serás minha. Quando ele se cansar de ti e começar a
procurar outras mulheres, serás minha.
– Preferia dormir com uma víbora – sibilou Judith enquanto Arthur lhe
cravava os dedos no braço.
– Nem sequer para salvares a tua mãe? – murmurou ele num tom de voz
letal. – Já fizeste muito por ela. O que mais serias capaz de fazer?
– Nunca o sabereis!
Ele voltou a apertá-la.
– Não? Julgas que tens algum poder porque dominas o idiota do Demari,
mas vou mostrar-te quem manda aqui.
– O que… o que quereis dizer com isso?
Ele sorriu.
– Em breve o saberás.
Judith tentou recompor-se dos terríveis pressentimentos que lhe causaram
aquelas palavras.
– O que ireis fazer? Magoar a minha mãe?
– Não. Não sou tão pouco subtil. Só quero um pouco de diversão.
Agradar-me-á ver como te contorces. Quando tiveres tido o suficiente, vem
para a minha cama à noite e conversaremos.
– Nunca!
– Não sejas tão precipitada. – De repente, Arthur soltou-a. – Preciso ir.
Deixo-te a pensares nas minhas palavras.
Quando ficou sozinha, Judith permaneceu muito quieta, respirando fundo
para se acalmar. Virou-se para se dirigir ao quarto, mas sobressaltou-se ao
ver que um homem se mantinha parado, em silêncio, nas sombras, reclinado
languidamente contra a parede oposta do salão. Tinha um alaúde pendurado
nos amplos ombros e estava a cortar as unhas com uma faca. Judith não
sabia o que a levou a olhar para ele, exceto talvez que poderia ter ouvido
algumas das ameaças de Arthur. No entanto, os olhos fixaram-se nele, que
não a fitou. Porém, de repente, ergueu o rosto. Os olhos azul-escuros
refletiam tanto ódio que ficou atónita. A jovem levou a mão à boca e
mordeu o dorso.
Virou-se e correu pelo corredor até ao seu quarto onde se atirou para cima
da cama. As lágrimas vieram aos poucos, subindo do fundo do ventre até se
libertarem.
– Milady – sussurrou Joan, acariciando-lhe os cabelos.
Tinham-se tornado mais íntimas nos últimos dias, diminuindo a diferença
social entre as duas.
– Magoou-vos?
– Não, eu mesma me magoei. Gavin disse que deveria ter ficado em casa
a bordar. Receio que tivesse razão.
– A bordar? – repetiu a criada, sorrindo. – Teríeis enredado os fios, pior
do que haveis enredado as coisas aqui.
Judith ergueu o rosto, horrorizada. Depois, reconheceu por entre
lágrimas:
– É uma sorte contar contigo. Por um momento, senti pena de mim.
Levaste comida a Gavin ontem à noite?
– Sim.
– Como te pareceu?
Joan franziu o sobrolho.
– Mais fraco.
– Como posso ajudá-los? – interrogou-se Judith. – Gavin indicou-me que
devia esperar pelo seu irmão Stephen, mas por quanto tempo? Tenho de
tirar Gavin daquele buraco!
– Sim, milady, tem mesmo.
– Mas como?
Joan ficou muito séria.
– Só Deus pode dar essa resposta.
Nessa noite, foi Arthur a responder à pergunta de Judith. Sentaram-se à
ceia, uma refeição de sopa e guisados. Walter estava silencioso, quieto, sem
tocar em Judith como costumava fazer, mas fitava-a pelo canto do olho,
como se estivesse a analisá-la.
– Gostais da comida, Lady Judith? – inquiriu Arthur.
Ela assentiu com a cabeça.
– Esperemos que o entretenimento também lhe agrade.
Ela ia a perguntar-lhe ao que se referia, mas não o fez. Não queria dar-lhe
essa satisfação.
Arthur inclinou-se para olhar para Walter.
– Não vos parece que é hora, milorde?
Walter ia a protestar, mas pensou melhor. Pelo visto, tratava-se de algo
que ele e Arthur tinham discutido ao pormenor. Walter acenou com a mão
para dois homens de armas que esperavam junto à porta e estes retiraram-
se.
Judith não conseguia engolir a comida que tinha na boca e foi preciso
empurrá-la com vinho. Sabia que Arthur planeava algum truque e queria
estar preparada. Percorreu o salão com um olhar nervoso. Uma vez mais ali
estava o homem que tinha visto no corredor naquela tarde. Era alto e magro,
com cabelos loiro-escuros com alguns fios mais claros. A mandíbula forte
definia uma linha firme acima de um queixo com uma covinha. Mas foram
os olhos que a perturbaram. Mostravam um azul-escuro e intenso que ardia
com o fogo do ódio e esse ódio era-lhe dirigido. Ele hipnotizava-a.
O súbito e invulgar silêncio do salão, bem como o som do arrastar de
correntes, desviaram-lhe a atenção. A luz intensa do grande salão impediu
Judith de reconhecer logo como humana a silhueta que os dois cavaleiros
trouxeram de rastos. Era mais um montão de trapos fedorentos do que um
homem. Foram esses poucos segundos de não reconhecimento que a
salvaram. Percebeu que Arthur e Walter a olhavam, vigiando-a. Judith
fitou-os perplexa e com uma expressão interrogativa. Percebeu que a figura
arrastada para o salão era Gavin. Em vez de voltar a fitá-lo, manteve os
olhos cravados em Walter. Assim, teria tempo para pensar. Por que o
apresentavam assim? Acaso não sabiam que ela desejava correr para ele e
ajudá-lo?
A resposta apresentou-se de imediato quando percebeu que era
exatamente o que Arthur desejava vê-la fazer. Queria demonstrar a Walter
que ela não odiava o marido.
– Não o reconheceis? – perguntou Walter.
Judith ergueu o rosto, fingindo surpresa ao olhar para o homem imundo a
ser conduzido para o salão. Depois começou a sorrir, muito lentamente.
– É como sempre quis vê-lo.
Walter deixou escapar um grito de triunfo.
– Tragam-no aqui! A minha encantadora dama deve vê-lo como desejava
que ele estivesse – declarou a todos os presentes. – Deixem-na desfrutar
deste momento. Ela ganhou-o.
Os dois guardas trouxeram Gavin até à mesa. O coração da jovem
ameaçava saltar-lhe do peito. Agora, Judith não poderia arriscar-se a
cometer erros. Se demonstrasse compaixão pelo marido, sem dúvida
causaria muitas mortes. Levantou-se com mão trémula e ergueu a taça de
vinho. Atirou-lhe o conteúdo à cara.
O líquido pareceu reanimar Gavin, que olhou para ela. O rosto magro e
descarnado denotou surpresa. Em seguida, perplexidade. Olhou lentamente
para Walter e Arthur, que estavam ao lado da sua mulher.
Demari colocou um braço possessivamente sobre os ombros de Judith.
– Vê agora quem a abraça – vangloriou-se.
Antes que alguém pudesse reagir, Gavin lançou-se por cima da mesa para
atacar Walter. Os guardas que seguravam as correntes viram-se arrastados
para a frente, tropeçaram e caíram nos pratos de comida. Walter não
conseguiu afastar-se com a rapidez bastante e as mãos imundas de Gavin
apertaram-se em torno do pescoço do homem mais baixo, de aparência
elegante.
– Agarrem-no! – exclamou Walter debilmente, atacando com as unhas as
mãos que lhe apertavam o pescoço.
Judith estava tão aturdida como os guardas. Gavin já devia estar meio
morto, mas ainda lhe restavam forças para fazer com que dois homens se
desequilibrassem e quase matar o seu captor.
Os guardas recompuseram-se e puxaram as correntes em torno dos pulsos
de Gavin. Foram necessários três poderosos puxões antes de conseguirem
libertar Walter. Passaram uma pesada corrente pelas costelas de Gavin. Ele
gemeu de dor e caiu sobre um joelho por um momento antes de se
endireitar.
– Vais pagar-me com a vida – disse Gavin com os olhos cravados em
Walter antes que lhe pusessem outra corrente à volta das costelas.
– Levai-o! – ordenou Walter enquanto esfregava o pescoço magoado.
Estremeceu sem desviar os olhos de Gavin.
Quando Gavin foi removido, Walter desabou sobre a cadeira.
Judith compreendeu que naquele momento ele estava mais vulnerável.
– Isto foi muito agradável. – Sorriu e depois virou-se rapidamente para o
trémulo Walter. – Não, é claro, que não me refiro ao que ele vos fez... Não
era isso, mas alegra-me saber que ele me viu com alguém por quem sinto...
afeto.
Walter olhou para ela e endireitou-se um pouco.
– Mas, na realidade, deveria estar zangada convosco – acrescentou a
jovem e baixou os olhos sedutoramente.
– Porquê? O que fiz?
Não é correto trazer uma tal imundície à presença de uma dama. Ele
parecia tão faminto. Creio que, antes, era a comida o que o excitava. Como
poderá ver o que tenho agora enquanto tudo o que pensa é em comida e nos
bichos que rastejam pela sua pele?
Walter olhou-a pensativo.
– Tendes razão. – Virou-se para alguns homens que permaneciam junto à
porta. – Digam aos guardas que lhe deem banho e o alimentem. – Estava
extasiado. Arthur havia prognosticado que Judith choraria quando visse o
marido em tal estado, mas ela havia sorrido!
Só Joan sabia o que aquele sorriso custara à sua ama.
Judith afastou-se de Walter. Desejava sair dali e, especialmente, estar
longe dele. Manteve a cabeça erguida enquanto caminhava por entre os
servos.
– Essa mulher merece o que a espera! – comentaram alguns homens perto
dela.
– Nenhuma esposa tem o direito de tratar assim o seu marido.
Todos e cada um deles desprezavam-na. Ela mesma também começava a
odiar-se. Judith subiu lentamente as escadas até ao terceiro piso, querendo
apenas privacidade. Mas, ao chegar ao topo das escadas, um braço rodeou-
lhe a cintura e viu-se atirada contra o peito de um homem que parecia de
ferro. Um punhal aproximou-se da sua garganta e a lâmina afiada quase lhe
perfurou a pele delicada. Judith tentou afastar aquele braço, mas de nada
serviu.

9 O saltério é um instrumento semelhante a uma harpa. (N. da T.)


Capítulo Dezanove

– Diz uma só palavra e corto-te essa cabeça de víbora – ameaçou uma voz
grave, que ela nunca ouvira antes. – Onde está John Bassett?
Judith mal podia falar, mas aquele não era um homem a quem
desobedecer.
– Responde! – insistiu ele enquanto reforçava o aperto do braço e a adaga
se pressionava mais contra a sua garganta.
– Com a minha mãe – sussurrou ela.
– Mãe! – cuspiu-lhe ao ouvido. – Que essa mulher amaldiçoe o dia em
que deu à luz um ser como tu!
Judith não conseguia vê-lo. O braço que lhe apertava as costelas mal lhe
permitia respirar.
– Quem sois? – indagou, ofegante.
– Sim, bem podes perguntar. Sou teu inimigo e gostaria de acabar com a
tua vil existência agora mesmo, se não precisasse de ti. Onde prenderam
John?
– Não… não consigo respirar.
Ele hesitou. Depois reduziu a pressão, afastando um pouco a adaga do seu
pescoço.
– Responde!
– Há dois homens do lado de fora da porta do quarto que ele compartilha
com a minha mãe.
– Que piso? Vá, responde – ordenou enquanto a apertava mais uma vez. –
Não penses que alguém virá salvar-te.
De repente, foi de mais para Judith e ela começou a rir. Suavemente no
início, mas ficando cada vez mais histérica a cada palavra.
– Salvar-me? Quem poderia salvar-me? A minha mãe está prisioneira. O
meu único guarda também é mantido prisioneiro. O meu marido está no
fundo de um fosso. Um homem que detesto tem o direito de me pôr as mãos
diante do meu marido enquanto outro me sussurra ameaças ao ouvido.
Agora sou atacada por um desconhecido no escuro do corredor!
Colocou as mãos no antebraço dele, aproximando a adaga da garganta.
– Rogo-lhe, quem quer que sejais. Acabai com a minha vida, imploro-
vos. De que me serve? Devo ficar a testemunhar o assassinato de todos os
meus amigos e familiares? Não desejo viver para assistir a esse final.
O braço do homem diminuiu a pressão. Afastou a mão que empunhava a
adaga. Embainhou a lâmina, agarrou-a pelos ombros e virou-a. Judith não
se surpreendeu ao reconhecer o menestrel do grande salão.
– Quero saber mais – disse o homem, com uma voz menos áspera.
– Porquê? – inquiriu, encarando os seus olhos azuis mortíferos. – Sois um
espião enviado por Walter ou Arthur? Já falei demasiado.
– Sim, é verdade – concordou ele, sem rodeios. – Se fosse um espião,
teria muito que contar ao meu amo.
– Ide informá-lo, então! Acabemos com isto de uma vez!
– Não sou um espião. Sou Stephen, o irmão de Gavin.
Judith fixou-o com os olhos arregalados. Sabia que era verdade. Por isso
se sentira atraída por ele. Havia algo nas atitudes de Stephen, se não na sua
aparência, que lhe recordava Gavin. Sem que se desse conta, lágrimas
corriam-lhe pelas faces.
– Gavin garantiu-me que virias. Disse que eu enredara tudo, mas que tu
voltarias a pôr tudo no devido lugar.
Stephen pestanejou.
– Quando o viste para que te tenha dito isso?
– Na segunda noite em que cheguei aqui. Desci até junto dele, no fosso.
– No...? – Stephen tinha ouvido falar do sítio onde o seu irmão era
mantido prisioneiro, mas sem conseguir aproximar-se de Gavin. – Anda,
senta-te aqui – convidou, levando-a até um assento junto da janela. – Temos
muito que falar. Conta-me tudo desde o início.
Stephen escutou atentamente e em silêncio enquanto ela narrava o
assassinato do pai, a reivindicação das suas propriedades e a decisão de
Gavin de contra-atacar Walter.
– Gavin e a tua mãe foram feitos prisioneiros?
– Sim.
– Então o que fazes aqui se Demari não pediu um resgate? Deverias estar
a dar ordens aos servos.
– Não esperei até que ele pedisse. Vim com John Bassett e fomos bem
recebidos no castelo.
– Sim, presumo – expressou Stephen num tom sarcástico. – Agora Walter
Demari tem todos: a ti, Gavin, à tua mãe e o segundo em comando do meu
irmão.
– Não sabia o que mais fazer.
– Podias ter mandado chamar algum de nós! – exclamou Stephen,
furioso. – Até Raine, com a perna partida, teria podido fazer melhor do que
tu, uma mulher. John Bassett deveria saber...
Judith pousou uma mão no braço de Stephen.
– Não o culpes. Ameacei que viria sozinha, se ele não me trouxesse.
Stephen baixou o rosto para a sua mão pequena e depois voltou a encará-
la.
– E o que vi lá em baixo? Os servos do castelo dizem que odeias Gavin e
farias qualquer coisa para te livrares dele. Talvez queiras dar o teu
casamento por terminado.
Judith afastou rapidamente a mão. Stephen começava a lembrar-lhe a
conduta de Gavin e enfureceu-se.
– O que sinto por Gavin é entre ele e mim, e não para que outros se
intrometam.
Os olhos de Stephen emitiram chispas. Agarrou-lhe no pulso até ela
cerrar os dentes de dor.
– Então é verdade que te importas por esse Walter Demari?
– Não, não o quero!
Ele apertou-a com mais força.
– Não me mintas!
A violência dos homens sempre havia enraivecido Judith.
– És igual a Gavin! – cuspiu. – Vês apenas o que desejas ver. Não, eu não
sou tão desonesta como o teu irmão. É ele quem se arrasta aos pés de uma
mulher má. Mas não me rebaixarei a tanto.
Stephen pareceu desconcertado e afrouxou a pressão.
– Que mulher má? A que desonestidade te referes?
Judith soltou o pulso e massajou-o.
– Vim salvar o meu marido porque ele me foi dado diante de Deus e
porque agora carrego o seu filho. Tenho a obrigação de tentar ajudá-lo, mas
não o faço por amor a ele – insistiu, acaloradamente. – Ele só ama essa
loira! – deteve-se e examinou o pulso.
A gargalhada de Stephen fez com que levantasse os olhos.
– Alice – pronunciou com um sorriso. – Então, é disso que se trata? Não é
uma guerra séria pelas propriedades, mas uma briga de amante, um
problema de mulheres.
– Mulheres?
– Silêncio, seremos ouvidos.
– É mais do que um problema por mulheres, asseguro-te! – sibilou ela.
Stephen ficou sério.
– Mais tarde poderás ajustar contas com Alice, mas tenho de certificar-me
de que não te apresentarás diante do rei para pedires uma anulação. Não
podemos perder as propriedades Revedoune.
Então era por isso que ele se importava tanto com o que ela sentia por
Walter. Não interessava que Gavin a traísse com outra. Que Deus a
protegesse se alguma vez pensasse em se apaixonar por outro homem.
– Não posso anular o casamento, se estou grávida.
– Quem mais sabe dessa gravidez? Certamente não Demari?
– Só a minha mãe e John Bassett... e a minha criada.
– Gavin, não?
– Não. Não houve tempo de lhe dizer.
– Bem, ele já tem bastante em que pensar. Quem conhece este castelo a
fundo?
– O administrador-chefe. Está aqui há doze anos.
– Tens sempre a resposta apropriada – observou Stephen desconfiado.
– Por mais que tu e o teu irmão pensem de outra forma, tenho um cérebro
para raciocinar e olhos para observar.
Ele analisou-a sob a luz escassa.
– Foste corajosa em vir aqui, embora estivesses a agir erradamente.
– Devo tomar isso como um elogio?
– Como quiseres.
Judith estreitou os olhos.
– A tua mãe deve ter ficado contente por os seus filhos mais novos não
serem como os dois primeiros.
Stephen olhou para ela e depois esboçou um sorriso.
– Não duvido que tornes a vida interessante ao meu irmão. Agora para de
provocar-me e deixa-me procurar uma solução para esta confusão que
desencadeaste.
– Eu! – exclamou ela, mas deteve-se. Ele tinha obviamente razão.
Stephen ignorou a sua explosão.
– Conseguiste que Gavin fosse limpo e alimentado, embora os teus
métodos desagradassem ao meu estômago
– Terias preferido que corresse a abraçá-lo? – inquiriu ela
sarcasticamente.
– Não. Agiste bem. Não acredito que ele esteja em condições de viajar e,
como se encontra, seria um estorvo para nós. Mas ele é forte. Em dois dias,
com os devidos cuidados, vai recuperar o suficiente para podermos escapar.
Tenho de sair do castelo para procurar ajuda.
– Os meus homens estão lá fora.
– Sim, eu sei. Mas os meus homens não estão aqui. Quase cheguei
sozinho ao inteirar-me de que Gavin precisava de mim. Os meus homens
seguem-me, mas vão demorar pelo menos mais dois dias a chegar. Tenho de
reunir-me a eles e trazê-los até aqui.
Judith tocou novamente no seu braço.
– Voltarei a ficar sozinha.
Stephen sorriu, acariciando-lhe o queixo com um dedo.
– Sim, é verdade! Mas vais conseguir... Encarrega-te de que Gavin seja
cuidado e recupere as forças... Quando voltar, vou tirar-vos a todos daqui.
Ela assentiu e depois baixou o rosto.
Stephen ergueu-lhe o queixo e fitou-a nos olhos.
– Não fiques zangada comigo. Pensei que querias que Gavin morresse e
agora vejo que não é assim.
A jovem sorriu hesitante.
– Não estou zangada. Só estou farta deste lugar, daquele homem que me
toca, do outro...
Stephen pousou um dedo nos seus lábios.
– Resiste um pouco mais. Conseguirás?
– Vou tentar. Começava a perder a esperança.
Ele inclinou-se para a beijar na testa.
– Gavin tem sorte – sussurrou. Depois, levantou-se e deixou-a só.
Capítulo Vinte

– Já o viste? – Perguntou Judith enquanto se levantava da cama. Era a


manhã seguinte à noite em que vira Stephen e agora perguntava a Joan o
que descobrira sobre Gavin.
– Sim – respondeu Joan. – Voltou a ser bonito. Temia que a imundície
daquele lugar lhe tivesse tirado a boa aparência.
– Pensas demasiado nas aparências.
– E talvez penseis pouco de mais! – replicou Joan.
– Mas Gavin está bem? Esse lugar horrível não o pôs doente?
– Tenho a certeza de que a comida que lhe haveis enviado o manteve
vivo.
Judith fez uma pausa.
– Quanto à mente? Como reagiu ao facto de a esposa lhe ter atirado vinho
à cara? Traz-me essa roupa de serva que usei. Foi lavada?
– Não podeis visitá-lo – disse Joan categoricamente. – Se vos
surpreenderem...
– Traz-me o vestido e não me dês mais ordens.
***

Gavin estava prisioneiro dentro de uma divisão aberta na base da torre.


Era um sítio horrível, onde não chegava luz alguma. A sua única entrada era
uma porta de carvalho e ferro.
Joan parecia estar muito familiarizada com os guardas que se
encontravam de cada lado da porta. A disciplina era frouxa na propriedade
de Demari e Joan usara isso em seu benefício. Piscou o olho sedutoramente
a um dos homens.
– Abre! – gritou Joan diante da porta. – Trazemos alimentos e remédios
enviados por Lorde Walter.
Uma mulher velha e suja abriu cautelosamente a enorme porta.
– Como sei que vens da parte de Lorde Walter?
– Porque te digo – respondeu Joan, empurrando-a para entrar. – Judith
seguiu-a com a cabeça baixa e o capuz de lã áspera tapando
cuidadosamente o cabelo.
– Aí está – disse a mulher, irritada. – Só dorme e fez pouco mais desde
que veio para aqui. Está sob os meus cuidados e faço um bom trabalho.
– Sem dúvida! – comentou Joan sarcástica. – A cama parece imunda!
– Mais limpa do que onde ele estava.
Judith deu uma pequena cotovelada à criada para impedir que ela
continuasse a provocar a velha.
– Deixa-nos então e vamos cuidar dele – ordenou Joan.
A mulher, com os cabelos grisalhos e gordurosos, a boca cheia de dentes
apodrecidos, parecia ser estúpida, mas não era. Viu a mulher mais baixa dar
uma cotovelada na outra e notou que a jovem de mau génio se acalmou de
imediato.
– Bem, de que estás à espera? – questionou Joan.
A velha queria ver o rosto oculto por baixo do capuz.
– Tenho de ir buscar alguns remédios – disse ela. – Há outros que estão
doentes e precisam de mim, mesmo que este não precise. – Agarrou num
frasco e passou pela mulher que a intrigava. Quando estava perto da vela,
deixou cair o frasco. A mulher, assustada, levantou os olhos, dando à velha
um breve vislumbre deles. A luz das velas dançava naquelas lindas esferas
douradas. A velha fez o possível para não sorrir abertamente. Só vira
aqueles olhos numa pessoa.
– És desajeitada e estúpida – sibilou Joan. – Sai antes que deites fogo a
esses trapos que usas.
A mulher deitou um olhar malévolo a Joan, antes de sair ruidosamente do
quarto.
– Joan! – exclamou Judith, mal ficaram sozinhas. – Sou eu quem te
pegará fogo, se voltares a tratar alguém assim.
Joan ficou chocada.
– Que importância tem ela?
– É uma criatura de Deus, como tu e eu. – Judith teria continuado, mas
sabia que era inútil. Joan era uma snobe incurável; menosprezava qualquer
pessoa que não fosse melhor do que ela. Judith aproximou-se do marido,
preferindo aproveitar o tempo a cuidar dele em vez de dar um sermão à sua
criada.
– Gavin – chamou em voz baixa enquanto se sentava na beira da cama. –
A luz das velas brilhava sobre ele, brincando com as sombras das maçãs do
seu rosto e a linha do queixo. Tocou-lhe na face. Era bom vê-lo limpo de
novo.
Gavin abriu os olhos e o cinza intenso tornou-se ainda mais escuro à luz
das velas.
– Judith – sussurrou.
– Sim, sou eu. – Sorriu enquanto atirava o capuz do manto para trás e
revelava os cabelos. – Agora que estás limpo, tens melhor aspeto.
A expressão de Gavin era fria e dura.
– Não tenho de te agradecer por isso ou talvez penses que me limpaste o
vinho que me atiraste à cara?
– Gavin! Acusas-me erradamente! Se corresse para ti, Walter teria
acabado com a tua vida.
– Não te teria convindo?
Ela recuou.
– Não vou brigar contigo. Discutiremos o assunto quando estivermos
livres. Vi o Stephen.
– Aqui? – exclamou Gavin ao mesmo tempo que tentava sentar-se e as
mantas destapavam o peito nu.
Tinha passado muito tempo desde a noite em que Judith fora abraçada
contra aquele peito. A pele bronzeada pelo sol prendia por completo a sua
atenção.
– Judith! – chamou Gavin. – Stephen está aqui?
– Esteve aqui – respondeu, fixando-o. – Voltou para encontrar os seus
homens.
– E os meus? O que estão a fazer? A vadiar diante das muralhas?
– Não sei. Não perguntei.
– Supostamente que não o farias – repreendeu irritado. – Quando volta
ele?
– Com sorte, amanhã.
– Falta menos de um dia. Por que estás aqui? Só tens de esperar um dia.
Se te descobrem aqui, haverá grandes problemas.
Judith cerrou os dentes.
– Poderias fazer outra coisa que não fosse discutir? Vim até este inferno
porque estavas prisioneiro. Arrisquei muito para ver se te cuidavam bem,
mas amaldiçoas-me à mínima oportunidade. Diga-me, sir, o que lhe
agradaria?
Ele fitou-a.
– Tens muita liberdade neste castelo, certo? Parece que vais onde queres,
sem nenhum impedimento. Como sei que Demari não te está a esperar lá
fora? – Gavin agarrou-lhe no pulso. – Estás a mentir-me?
Judith soltou-se com um torção.
– Surpreende-me a tua vileza. Que razão tens para me chamar mentirosa?
Foste tu a mentir-me desde o início. Podes acreditar em tudo o que quiseres.
Fiz mal em ajudar-te. Talvez nesse caso estivesse agora mais tranquila. Ou,
mais ainda, deveria ter aceitado Walter Demari quando ele me pediu em
casamento, o que certamente me teria libertado de viver contigo.
– É o que eu pensava – replicou Gavin, cruel.
– Sim, é o que pensavas! – exclamou Judith da mesma forma. A raiva por
aquelas insinuações e acusações cegava-a tanto como a ele.
– Milady! – Joan interrompeu a discussão. – Precisamos de ir. Já
passámos demasiado tempo aqui.
– Sim – concordou Judith. – Tenho de ir.
– Quem espera para acompanhar a minha esposa de volta ao quarto dela?
Judith limitou-se a olhá-lo, demasiado furiosa para contestar.
– Lady Judith! – insistiu Joan. Judith virou costas ao marido.
Quando estavam junto à porta, Joan sussurrou à ama:
– Não adianta tentar falar com um homem quando ele está corroído de
ciúmes.
– Ciúmes! – protestou Judith. – Para sentir ciúmes é necessário que o
outro nos interesse. Obviamente, eu não lhe interesso. – Endireitou o capuz
para dissimular o cabelo.
Joan ia a responder enquanto abriam a porta e saíam da cela. Deteve-se
bruscamente com o corpo rígido. Judith, atrás dela, ergueu o rosto para ver
o que causava a preocupação da serva.
Ali estava Arthur, com as mãos nos quadris, as pernas abertas, o rosto
mostrando um esgar. Judith baixou a cabeça e virou-se, esperando não ter
sido reconhecida.
Arthur caminhou na sua direção, com o braço estendido.
– Lady Judith, gostava de falar convosco.
Para Judith, os três degraus que levavam ao quarto de Arthur foram o
trajeto mais longo que a jovem fizera na vida. Os joelhos tremiam-lhe de
medo e, pior ainda, era o enjoo que sentia frequentemente de manhã e lhe
subia à garganta. A sua impetuosidade arruinara provavelmente os planos
de Stephen e... e... não podia deixar de pensar qual seria o resultado se o
cunhado não chegasse a tempo.
– És uma idiota – comentou Arthur quando estavam sozinhos no seu
quarto.
– Já me chamaram assim antes – replicou com o coração acelerado.
– Ir vê-lo à luz do dia! Nem sequer conseguiste esperar pela noite.
Judith mantinha a cabeça baixa, concentrando-se nas mãos.
– Diz-me, que planos tinhas? – interrompeu-se Arthur bruscamente. –
Sou um idiota ao pensar que isto poderia ter funcionado. Sou mais estúpido
do que o homem a quem sirvo. Como planeavas libertar-te dessa teia de
mentiras?
Ela ergueu o queixo.
– Não vos direi nada.
Arthur estreitou os olhos.
– Ele vai sofrer as consequências e esqueces-te da tua mãe? Tinha razão
em desconfiar de ti. Sabia muito bem, mas também me deixei cegar por ti.
Agora estou tão profundamente enredado quanto tu. Sabes quem Lorde
Walter vai culpar quando descobrir que os seus planos fracassaram?
Quando souber que não terá a mão da bela Revedoune? Não será a ti,
mulher, mas a mim. Será como uma criança a quem se deu poder.
– Quereis que me compadeça? Haveis sido vós a destruir a minha vida, de
tal modo que a minha família e eu estamos à beira da morte.
– Então, compreendemo-nos mutuamente. Não nos importamos um pelo
outro. Queria as tuas terras e Walter o teu corpo. – Interrompeu-se e olhou-a
fixamente. – Embora o teu corpo também me tenha intrigado muito nos
últimos dias.
– Como esperais livrar-vos do enredo que haveis provocado? – perguntou
Judith, mudando de assunto e virando o jogo contra ele.
– Bem podes perguntar. Resta-me um único caminho. Preciso de levar
essa anulação até ao fim. Não comparecerás diante do rei, mas assinarás um
documento onde conste que desejas uma anulação. Será elaborado de modo
a que ele não possa recusar o teu pedido.
Judith soergueu-se da cadeira, invadida por outro enjoo mais forte.
Correu para o canto do quarto até ao bacio de cerâmica e esvaziou o
estômago do seu parco conteúdo. Quando se recompôs, virou-se para
Arthur.
– Perdoai. O peixe da noite passada devia estar estragado.
Arthur serviu uma taça de vinho aguado. Ela agarrou-a com mãos
trémulas.
– Estás grávida – afirmou ele sem rodeios.
– Não, não estou! – mentiu Judith.
O rosto de Arthur endureceu.
– Devo chamar uma parteira para que te examine?
Judith olhou para a taça de vinho e abanou a cabeça.
– Não podes pedir uma anulação – continuou ele. – Não tinha pensado em
que pudesses ter concebido tão cedo. Parece que nos afundamos mais e
mais na pilha de dejetos.
– Ireis contar a Walter?
Arthur bufou.
– Esse idiota julga que és pura e virginal. Fala em amar-te e em
compartilhar a vida contigo. Ignora que és duas vezes mais inteligente que
ele.
– Falais demasiado – observou Judith, já com o estômago mais calmo. –
O que desejais?
Arthur fitou-a com admiração.
– És uma mulher inteligente além de bela. Gostaria de ser teu dono. –
Sorriu e depois ficou sério. – Walter vai descobrir a tua traição e a tua
gravidez. É apenas uma questão de tempo... Dar-me-ias um quarto das
terras de Revedoune se te tirasse daqui?
Judith pensou com rapidez. As propriedades significavam pouco para ela.
Não era mais seguro contar com Arthur do que esperar por Stephen? Se
recusasse a proposta de Arthur, ele revelaria tudo a Walter e todos estariam
condenados… quando Walter se cansasse dela.
– Sim, dou-vos a minha palavra. Somos cinco e, se libertardes todos em
segurança, um quarto das minhas terras será vosso.
– Não posso garantir que todos saiam…
– Todos nós ou não haverá contrato.
– Sim – aceitou ele. – Sei que estás a falar a sério. Preciso de tempo para
organizar as coisas e deves apresentar-te para o jantar. Lorde Walter ficará
furioso se não estiveres ao seu lado, sorrindo.
Judith recusou aceitar o seu braço quando saíam do quarto. Arthur
compreendeu que o desprezava, mais ainda por se ter voltado contra o seu
amo e isso provocou-lhe o riso. A ideia de lealdade para com uma pessoa
além de si mesmo divertia-o.
Quando a porta da casa se fechou atrás deles, o quarto pareceu ficar
vazio. Durante alguns momentos, reinou o silêncio. Em seguida, ouviu-se
um leve deslizar debaixo da cama. A velha saiu cautelosamente do seu
esconderijo. Com um grande sorriso, voltou a olhar para a moeda que
apertava firmemente na mão.
– Prata! – sussurrou. O que o amo daria para saber o que acabara de
ouvir? Ouro! Não entendera tudo, mas tinha ouvido Sir Arthur chamar
estúpido a Lorde Walter. Sabia, além disso, que ele planeava atraiçoar o seu
senhor em troca de alguma terra que a mulher de Montgomery possuía.
Havia também algo sobre um bebé que a dama esperava. Isso parecia muito
importante.
***

Judith sentava-se em silêncio perto de uma grande janela no salão. Vestia


uma anágua cinza-clara e um vestido de lã flamenga, rosa-escuro. As
mangas eram forradas com pele de esquilo cinzento. O Sol estava a pôr-se
no horizonte, tornando o salão mais escuro a cada momento. Começava a
perder uma parte do medo que a invadira naquela manhã depois de falar
com Arthur. Olhou para o sol poente com gratidão. Só faltava um dia para
que Stephen voltasse e resolvesse tudo.
Não tinha visto Walter desde o jantar. Convidara-a para ir passear a
cavalo com ele, mas não aparecera para levá-la. Judith presumiu que estava
ocupado com qualquer assunto do castelo.
Começou a preocupar-se quando o Sol se pôs e as mesas foram colocadas
para o jantar. Nem Arthur nem Walter tinham aparecido. Enviou Joan para
que averiguasse o que podia, mas isso não foi suficiente.
– A porta de Lorde Walter está selada e guardada. Os homens não
responderam a nenhuma pergunta, embora tivesse usado toda a minha
persuasão.
Algo estava errado! Judith entendeu isso quando, depois de se retirar com
Joan para o seu quarto, ouviu que alguém corria o ferrolho da porta pelo
lado de fora. Nenhuma das duas dormiu muito.
Pela manhã, Judith optou por um severo vestido de lã castanho-escuro,
sem adornos nem joias. Aguardou em silêncio. Por fim, o ferrolho foi
descerrado e um homem, vestido com cota de malha como para combate,
entrou no seu quarto.
– Segui-me – limitou-se a dizer.
Quando Joan tentou acompanhar a sua ama, foi empurrada para trás e a
porta fechada com ferrolho por fora. O guarda conduziu Judith à câmara de
Walter.
A primeira visão que teve ao abrir-se a porta foi o que restava de Arthur,
acorrentado à parede. Desviou o rosto, sentindo o estômago às voltas.
– Não é um belo espetáculo, milady?
Ergueu o rosto e avistou Walter, descansando numa cadeira almofadada.
Os seus olhos injetados de sangue e a atitude demonstravam que estava
muito embriagado. Arrastava ligeiramente as palavras.
– Claro que não sois uma verdadeira dama, segundo descobri. –
Levantou-se e parou um momento enquanto tentava equilibrar-se. Em
seguida dirigiu-se a uma mesa e serviu-se de mais vinho. – As damas são
verdadeiras e boas, mas tu, doce beleza, és uma prostituta. – Caminhou na
sua direção e Judith permaneceu imóvel. Não havia por onde fugir.
Agarrou-lhe o cabelo, puxando-lhe a cabeça para trás. – Agora, sei tudo. –
Virou a cabeça de Judith, forçando-a a contemplar a figura ensanguentada.
– Olha bem para ele. Disse-me muitas coisas antes de morrer. Sei que me
julgas estúpido, mas não sou tão estúpido que não consiga controlar uma
mulher. – Forçou-a a olhar para ele. – Fizeste tudo isto pelo teu marido, não
foi? Vieste aqui para encontrá-lo. Responde: quanto terias feito para salvá-
lo?
– Teria feito qualquer coisa – respondeu ela serenamente.
Walter fitou-a e sorriu, empurrando-a depois para longe dele.
– Ama-lo assim tanto?
– Não é uma questão de amor. Ele é meu marido.
– Mas eu ofereci-te mais amor do que ele poderia oferecer-te – acusou
Walter com lágrimas nos olhos. – Toda a Inglaterra sabe que Gavin
Montgomery morre de amor por Alice Chatworth.
Judith não tinha resposta para dar. Os lábios finos de Walter
transformaram-se num esgar.
– Não continuarei a tentar chamar-te à razão. Ultrapassaste todas as
oportunidades.
Aproximou-se da porta e abriu-a.
– Levai essa coisa e atirai-a aos porcos. Quando haveis terminado com
ele, trazei Lorde Gavin e acorrentai-o no mesmo lugar.
– Não! – gritou Judith, correndo para Walter e colocando as duas mãos no
seu antebraço.
– Por favor, não lhe causeis mais dano. Farei o que disserdes.
Ele bateu com a porta.
– Sim, farás o que eu disser e vais fazê-lo diante desse marido por quem
te prostituis.
– Não! – sussurrou Judith.
Walter sorriu ao vê-la empalidecer. Virou-se e abriu a porta novamente e
observou como os guardas arrastavam o cadáver de Arthur.
– Vem cá! – ordenou quando ficaram novamente sozinhos. – Vem cá e
beija-me como beijas o teu marido.
Ela abanou a cabeça aturdida.
– De qualquer maneira, ireis matar-nos. Para quê obedecer-vos? Talvez a
nossa tortura tenha um fim mais rápido, se desobedecer.
– És realmente astuta – sorriu Walter. – Quero que seja o oposto, pois por
cada coisa que me negares, cortarei um pouco da carne de Lorde Gavin.
Ela fitou-o horrorizada.
– Sim, compreendeste-me.
Judith mal conseguia pensar. «Stephen, não demores mais do que
disseste», implorou silenciosamente. Talvez pudesse adiar o sofrimento de
Gavin até que Stephen e os seus homens iniciassem o ataque. A porta
voltou a abrir-se e entraram quatro guardas corpulentos, trazendo Gavin
acorrentado. Desta vez, Walter não havia corrido riscos.
Gavin olhou de Walter para a esposa.
– Ela é minha – disse em voz baixa e deu um passo em frente. – Um dos
guardas golpeou-o com o punho da espada na cabeça e Gavin caiu para a
frente, inconsciente.
– Acorrentem-no! – ordenou Walter.
Os olhos de Judith encheram-se de lágrimas ante a bravura de Gavin.
Mesmo estando acorrentado, tentava lutar. Tinha o corpo magoado e
maltratado, debilitado pela fome, mas mesmo assim lutava. Poderia ela
fazer menos? A sua única hipótese residia em ganhar tempo até que
Stephen chegasse. Faria o que Walter pedisse.
Ele viu a resignação nos seus olhos.
– Uma decisão sábia – riu Walter quando Gavin foi acorrentado com
anéis de ferro em torno dos pulsos. Dispensou os guardas. Soltou uma
gargalhada e atirou um copo de vinho ao rosto de Gavin. – Acorda, amigo.
Não deves dormir enquanto tudo que quero acontece. Ocupaste o meu
porão por muito tempo e sei que não pudeste lá desfrutar da tua esposa.
Olha para ela. Não é linda? Estava disposto a travar uma batalha por ela.
Agora descubro que não será preciso. – Estendeu a mão. – Vem aqui, minha
dama, vem para o teu amo.
A bota de Gavin disparou contra Walter que mal teve tempo de
retroceder.
Um pequeno chicote pendia sobre uma mesa lateral. O couro ainda estava
manchado com o sangue de Arthur. Walter deu uma chicotada, abrindo um
lenho no rosto de Gavin, mas o prisioneiro não pareceu notar. Ergueu
novamente a perna, mas Walter estava fora do seu alcance.
Quando Walter ergueu o chicote pela segunda vez, Judith correu a pôr-se
diante do marido, abrindo os braços para o proteger.
– Afasta-te! – rugiu Gavin. – Lutarei nas minhas próprias batalhas.
Judith apenas podia sibilar ante o absurdo daquelas palavras. Ele tinha os
dois braços acorrentados a uma parede que já estava coberta com o sangue
de outro homem, mas pensava que poderia lutar contra um louco. A jovem
afastou-se.
– O que quereis? – perguntou a Walter com voz desmaiada. – Podia sentir
os olhos de Gavin perfurando-lhe as costas.
– Vem cá – disse ele lentamente, tendo o cuidado de se pôr fora do
alcance dos pés de Gavin.
Judith hesitou, mas sabia que era preciso obedecer. Agarrou-lhe na mão
estendida, embora aquela carne viscosa lhe provocasse calafrios.
– Que mão tão bonita – elogiou Walter, erguendo-a diante dos olhos de
Gavin. – Vamos, não tens nada a dizer?
Gavin virou os olhos para Judith e um calafrio fê-la estremecer.
– Minha querida, creio que nos agradaria ver mais do teu corpo
requintado. – Walter voltou-se para Gavin. – Tenho-o visto e apreciado com
frequência. Ela foi feita para um homem ou devo dizer para muitos
homens? – Walter fixou Judith, com uma expressão dura. – Ordenei-te que
nos deixes ver o que está por baixo dessas roupas. Interessas-te tão pouco
pelo teu esposo que lhe negarias um último olhar?
Com mãos trémulas, Judith dedicou-se aos laços do vestido da lã
castanha. Queria demorar o máximo de tempo possível.
– Ah, és demasiado lenta! – Walter soltou uma gargalhada enquanto
atirava a taça para o lado e desembainhava a espada. Cortou o corpete do
vestido com um só golpe e enfiou os dedos no decote da camisa. As unhas
rasgaram a pele macia do pescoço. A roupa interior foi arrancada de igual
modo.
Judith curvou-se como para se cobrir, mas a ponta da espada de Walter
contra o seu ventre forçou-a a erguer-se.
Os seus ombros brancos deram lugar aos seios fartos que, apesar da
angústia, se erguiam orgulhosos. Mantinha a cintura estreita, ainda não
distendida pela criança. As pernas eram compridas e esbeltas.
Walter observava-a maravilhado. Não tinha imaginado que ela fosse tão
bonita.
– Por tanta beleza vale a pena matar – sussurrou Walter.
– Tal como te matarei por isso! – gritou Gavin. Esforçava-se
violentamente para se libertar das correntes.
– Tu! – riu Walter. – O que podes fazer? – Agarrou Judith com o braço
em torno da cintura e fê-la girar para que encarasse o marido, acariciando-
lhe os seios. – Crês que podes arrancar as correntes da parede? Olha bem
para ela, pois será a última coisa que verás.
Deslizou a mão até ao ventre de Judith.
– Olha também para aqui. Agora está liso, mas logo crescerá com o meu
filho.
– Não! – gritou Judith.
Walter apertou-lhe a cintura com o braço até que ela não podia respirar.
– Plantei aqui a minha semente e ela crescerá. Pensa nisso enquanto
apodreceres no inferno!
– Não pensaria em nenhuma mulher em que tivesses tocado – disse Gavin
sem desviar os olhos da sua esposa. – Preferia copular com um animal.
Walter afastou Judith.
– Lamentarás essas palavras.
– Não, não! – exclamou a jovem ao ver que Walter avançava para Gavin
com a espada empunhada.
Walter estava muito embriagado e a lâmina passou distante das costelas
de Gavin, sobretudo porque ele se esquivou agilmente.
– Fica quieto! – gritou Walter e apontou novamente, desta vez para a
cabeça do seu prisioneiro. A arma, manejada com tanta imprecisão, não
atingiu o alvo visado, mas apanhou-o de lado. A larga lâmina atingiu a
orelha de Gavin e a sua cabeça pendeu para a frente.
– Adormeceste? – berrou Walter, atirando a espada para o lado e atacou a
garganta de Gavin com as próprias mãos.
Judith não perdeu tempo. Correu para a espada, e, sem pensar no que
fazia, agarrou no punho com as duas mãos e enterrou-a com toda a força
entre as omoplatas de Walter. O homem manteve-se direito por um
momento. Depois, virou-se muito devagar e olhou para Judith antes de cair.
Ela engoliu em seco. Começava a perceber que tinha matado um homem.
Sem aviso prévio, um enorme estrondo sacudiu a torre até aos alicerces.
Não tinha tempo a perder. A chave que abria os anéis de ferro dos pulsos de
Gavin estava pendurada na parede. Assim que abriu os anéis, Gavin
começou a mexer-se. Recuperou o equilíbrio antes de cair e abriu os olhos.
A sua esposa estava a pouca distância com o corpo nu salpicado de sangue.
Walter jazia aos seus pés com uma espada ressaltando das costas.
– Cobre-te! – ordenou, furioso.
No turbilhão de acontecimentos, Judith tinha esquecido a sua nudez. As
vestes formavam um amontoado de roupas cortadas e inúteis. Abriu um baú
colocado aos pés da cama. Estava cheio de roupas de Walter. Ela hesitou.
Não queria tocar em nada daquele homem.
– Toma! – exclamou Gavin, atirando-lhe uma túnica de lã. – É adequado
que uses o seu traje. – Dirigiu-se à janela, sem lhe dar tempo para contestar.
Na verdade, não teria podido. A enormidade de ter matado um homem
pesava sobre ela.
– Stephen está aqui – anunciou Gavin. – Cavou um túnel por baixo da
muralha e as pedras desmoronaram. – Acercou-se de Walter, apoiou um pé
sobre as costas do morto e retirou a espada. – Cortaste-lhe a coluna –
observou Gavin calmamente. – Tomarei nota para não te virar as costas. És
hábil.
– Gavin! – Uma voz familiar chamou do lado de fora da porta.
– Raine! – sussurrou Judith enquanto as lágrimas começavam a subir-lhe
aos olhos. Gavin destrancou o ferrolho.
– Estás bem? – inquiriu Raine, abraçando o irmão.
– Sim, tanto quanto se pode esperar. Onde está Stephen?
– Lá em baixo, com os outros. O castelo foi facilmente tomado assim que
a muralha caiu. A serva e a tua sogra estão à espera com John Bassett, mas
não conseguimos encontrar Judith.
– Está aqui – respondeu Gavin friamente. – Cuida dela enquanto vou à
procura de Stephen. – Passou por Raine e saiu do quarto.
Raine entrou. No primeiro momento não viu Judith, que estava sentada
num baú aos pés da cama, vestida com uma túnica de homem. As pernas
nuas apareciam por baixo da bainha. A jovem fitou-o com os olhos cheios
de lágrimas, como uma criança abandonada, enchendo-o de compaixão.
Raine atravessou a divisão a coxear, com a perna ainda fortemente ligada.
– Judith – sussurrou e estendeu-lhe os braços.
Judith não hesitou em procurar o conforto da sua força. Estava a soluçar.
– Matei-o – disse por entre lágrimas.
– A quem?
– Walter.
Raine estreitou-a com mais força e os pés da jovem deixaram de tocar no
chão.
– Acaso não merecia morrer?
Judith enterrou o rosto no seu ombro.
– Eu não tinha esse direito, Deus...
– Silêncio! – ordenou Raine. – Fizeste o que devia ser feito. Diz-me, de
quem é o sangue que mancha a parede?
– De Arthur. Era o segundo no comando de Walter.
– Vá lá, não chores tanto. Tudo ficará bem. Anda até lá abaixo para que a
tua criada te ajude a vestires-te. – Não queria saber por que estavam as
roupas da cunhada espalhadas no chão e cheias de golpes.
– A minha mãe está bem?
– Mais do que bem. Olha para John Bassett como se ele fosse o Messias.
Ela afastou-se dele.
– Estás a blasfemar!
– Eu não, a tua mãe. O que dirás quando ela acender velas aos seus pés?
Judith ia a repreendê-lo, mas sorriu. As lágrimas secaram-lhe nas faces e
abraçou-o com força.
– É tão bom voltar a ver-te.
– Como sempre, tratas melhor o meu irmão do que a mim – observou
uma voz solene da porta.
Ela ergueu o rosto e viu Miles, com os olhos cravados nas suas pernas
nuas. Judith havia passado por demasiadas coisas e não se ruborizou. Raine
pousou-a no chão e ela correu a abraçar Miles.
– Têm sido dias ruins? – perguntou o jovem, estreitando-a.
– Mais do que ruins.
– Bem, tenho novidades que te alegrarão – informou Raine. – O rei
convoca-te à Corte. Parece que ouviu tantos comentários sobre ti depois do
teu casamento que deseja ver por si próprio a nossa irmãzinha de olhos
dourados.
– À Corte? – surpreendeu-se Judith.
– Pousa-a no chão! – ordenou Raine a Miles, fingindo irritação. – É um
abraço demasiado longo para ser um abraço de afeto fraternal.
– É apenas uma nova moda que se usa. Oxalá se imponha – suspirou
Miles ao depositá-la no chão.
Judith olhou para eles e sorriu. Em seguida, rompeu novamente em
lágrimas.
– É bom ver-vos aos dois. Vou vestir-me – disse ao virar-se.
Raine tirou o manto e envolveu-a nele.
– Vai lá, então. Iremos esperar lá em baixo. Partiremos hoje. Não quero
voltar a ver este lugar.
– Nem eu – sussurrou Judith. – Embora não olhasse para trás, levava na
mente uma imagem vívida do quarto.
Capítulo Vinte e Um

– Sabes da criança? – Perguntou Stephen a Gavin enquanto caminhavam


lado a lado no pátio do castelo de Demari.
– Fui informado – replicou ele friamente. – Vamos sentar-nos aqui, à
sombra. Ainda não me habituei à luz do Sol.
– Eles mantiveram-te num fosso?
– Sim, durante quase uma semana.
– Não pareces muito enfraquecido. Davam-te de comer?
– Não. Jud... a minha esposa mandava comida pela serva.
Stephen olhou para o que restava da velha torre.
– Ela arriscou-se muito para vir aqui.
– Não se arriscou nada. Queria tanto Demari quanto ele a queria.
– Não fiquei com essa impressão quando falei com Judith.
– Então estás errado! – afirmou Gavin em voz alta.
Stephen encolheu os ombros.
– Ela é assunto teu. Raine disse que foram chamados à Corte. Podemos
viajar juntos, também vou comparecer perante o rei.
Gavin estava cansado e só queria dormir.
– O que deseja o rei de nós?
– Ver a tua esposa e apresentar-me uma.
– Vais casar?
– Sim, com uma rica herdeira escocesa que odeia todos os ingleses.
– Sei o que é ser odiado pela esposa.
Stephen sorriu.
– Mas a diferença é que tu te importas e eu não. Se ela não se comportar
adequadamente, tranco-a e nunca mais a verei. Direi que é estéril e adotarei
um filho que herdará as suas terras. Por que não fazes o mesmo com essa
tua esposa se ela te desagrada?
– Nunca mais a ver? – reagiu Gavin e conteve-se ao ver que o irmão se
ria.
– Ela mexe-te com o sangue? Não precisas responder, porque a vi. Sabes
que a ameacei de morte, depois de a ver atirar-te vinho à cara? Agarrou-me
no punhal e implorou-me que lhe acabasse com a vida.
– Enganou-te – comentou Gavin, desgostoso. – Como a Raine e a Miles.
Eles sentam-se aos pés dela e fixam-na embevecidos.
– Falando de olhos embevecidos, o que pensas fazer com John Bassett?
– Deveria casá-lo com ela. Se Lady Helen se parecer com a filha, vai
tornar-lhe a vida num inferno. Seria pouco castigo para a sua estupidez.
Stephen ria à gargalhada.
– Estás mudado, irmão. Judith obceca-te.
– Sim, como um furúnculo no traseiro. Anda. Vamos apressar a nossa
gente a deixar este lugar.
***

Fora da propriedade de Demari estava o acampamento que Gavin tinha


deixado. John Bassett ignorava a existência do túnel que Gavin mandara
escavar sob as muralhas, pois ele não revelava todos os seus planos a
nenhum dos seus homens. Quando Gavin foi feito prisioneiro e John
retornara ao castelo de Montgomery, os homens que Gavin escolhera
continuaram com a escavação. Tinham demorado vários dias, embora
ninguém dormisse mais do que algumas horas diárias. Enquanto os homens
avançavam, sustinham a terra sobre as cabeças com fortes vigas. Quando
estavam a chegar ao outro lado, construíram uma fogueira no interior do
túnel. Uma vez, as vigas incendiaram-se, e uma parte da muralha
desmoronou-se com um barulho ensurdecedor.
Na confusão que se seguiu à tomada do castelo, e enquanto o grupo
levantava o acampamento, Judith conseguiu escapar para ficar um tempo
sozinha. Havia um rio na floresta, por trás das tendas. Caminhou entre as
árvores e encontrou um lugar isolado onde estaria oculta, mas capaz de
apreciar o som e a visão da água.
Só então se deu conta de como havia estado tensa durante a semana
anterior. As incessantes mentiras que contara enquanto Walter a mantinha
cativa e a dissimulação haviam-na esgotado. Era bom sentir-se tranquila e
livre novamente. Nesses breves momentos, não pensaria no marido nem em
qualquer outro dos seus muitos problemas.
– Também procuras conforto – disse uma voz calma.
Ela não ouvira ninguém a aproximar-se. Ao erguer o rosto, avistou Raine
que lhe sorria.
– Vou-me embora, se quiseres ficar sozinha. Não quero incomodar-te.
– Não me incomodas. Vem sentar-se ao meu lado. Só queria afastar-me
do barulho e das pessoas por um tempo.
Raine sentou-se ao lado dela. Esticou as compridas pernas e encostou as
costas a uma pedra.
– Esperava que as coisas tivessem melhorado entre ti e o meu irmão, mas
não parece que assim seja – manifestou-se o jovem sem preâmbulo. – Por
que mataste Demari?
– Porque não havia outra saída – respondeu Judith, inclinando a cabeça e
fitando-o com os olhos cheios de lágrimas. – É terrível ter tirado a vida a
alguém.
Raine encolheu os ombros.
– Por vezes, é necessário. E Gavin? Não te explicou isso? Não te
confortou pelo que fizeste?
– Quase não me tem dirigido a palavra – confessou ela com franqueza. –
Mas falemos de outras coisas. A tua perna está melhor?
Raine ia a responder, mas ambos olharam para o rio quando ouviram uma
risada de mulher. Helen e John Bassett caminhavam à beira da água. Judith
preparava-se para chamar a mãe, mas Raine deteve-a. Pensava que os
amantes não deviam ser incomodados.
– John... – disse Helen, olhando-o com amor. – Creio que não posso
suportar isto.
John afastou-lhe ternamente uma madeixa de cabelo da face. Ela parecia
uma jovem radiosa.
– É necessário. Não será mais fácil para mim perder-te. Ver-te casada com
outro.
– Por favor – murmurou ela. – Não consigo suportar a ideia. Não haverá
outra solução?
John apoiou as pontas dos dedos nos lábios dela.
– Não, não o repitas. Não podemos casar-nos. Só nos restam estas poucas
horas – é tudo.
Helen rodeou-lhe o peito com os braços, estreitando-o o mais forte que
podia. John abraçou-a até quase a esmagar.
– Deixaria tudo por ti – sussurrou ela.
– E eu daria qualquer coisa se pudesse ter-te. – Encostou o rosto ao topo
da cabeça dela. – Vamos, vamos! Alguém pode ver-nos aqui.
Ela assentiu e os dois afastaram-se, lentamente, abraçados pela cintura.
– Eu não sabia – disse Judith finalmente.
Raine sorriu-lhe.
– Acontece às vezes. Eles vão superar a dor. Gavin vai encontrar um novo
marido para a tua mãe e ele preencherá o seu leito.
Judith virou-se para ele e os olhos assemelhavam-se a uma labareda.
– Um novo marido? – sibilou. – Alguém que preencha a sua cama! Os
homens não pensam em mais nada?
Raine contemplava-a maravilhado. Era a primeira vez que a via irada
contra ele. Não se sentia meramente fascinado pela sua beleza, mas pelo seu
temperamento. Sentiu de novo um estremecimento de amor por ela e sorriu.
– No caso das mulheres, não há muito mais em que pensar – brincou,
meio a sério.
Judith ia replicar até que viu o riso nos olhos de Raine, as covinhas nas
suas faces.
– Não há solução para eles?
– Nenhuma. Os pais de John nem sequer são nobres de nascimento e a tua
mãe era casada com um conde. – Colocou a mão no seu braço. – Gavin
encontrará um homem bom para ela, que saiba administrar bem as suas
propriedades e a trate com bondade.
Judith não lhe respondeu.
– Tenho de ir – declarou Raine num tom brusco e levantou-se
desajeitadamente. – Maldita fratura! – protestou com veemência. – Uma
vez sofri um ferimento com um machado na perna e não me doeu tanto
como esta fratura.
A jovem ergueu o rosto.
– Pelo menos, soldará bem – declarou com os olhos a brilhar.
Raine estremeceu ao lembrar a dor de quando Judith lhe endireitara a
perna.
– Se voltar a precisar de um médico, terei cuidado para não recorrer a ti.
Não sou homem o suficiente para suportar o teu tratamento. Queres
regressar ao acampamento?
– Não. Ficarei sentada aqui sozinha por algum tempo.
Ele perscrutou o lugar. Parecia não oferecer perigo, mas nunca se estava
seguro.
– Volta antes do pôr do Sol. Se não te vir antes de escurecer, virei buscar-
te.
Judith assentiu e olhou novamente para a água enquanto ele se afastava.
A preocupação de Raine por ela fazia com que se sentisse protegida.
Lembrou-se da alegria que lhe inspirava a presença dele no castelo. Entre os
seus braços sentia-se segura. Então por que não o olhava com paixão? Era
estranho que experimentasse só um afeto fraternal por um homem que a
tratava com tanta gentileza, enquanto o seu marido...
Não pensaria em Gavin enquanto estivesse naquele lugar calmo.
Qualquer lembrança dele deixava-a irritada. Ele acreditara nas palavras de
Walter de que estava grávida dele. Judith levou as mãos ao ventre num
gesto protetor. O seu filho! O que quer que acontecesse, o bebé seria sempre
dela.
***

– Que planos tens para ela? – indagou Raine enquanto se acomodava,


com exagero, numa cadeira na tenda de Gavin. Stephen sentou-se a um lado
para afiar um punhal.
Gavin estava do outro lado, comendo. Não fizera mais nada desde que
saíra do castelo.
– Suponho que te referes à minha esposa – disse Gavin enquanto espetava
um pedaço de porco assado. – Pareces muito preocupado com ela – acusou.
– E tu pareces ignorá-la! – contra-atacou Raine. – Ela matou um homem
por ti. Isso não é fácil para uma mulher e mesmo assim nem sequer lhe falas
disso.
– Que consolo poderia dar-lhe depois de os meus irmãos lhe terem dado
tanto?
– Ela não encontra o suficiente em outro lugar.
– Querem que o meu escudeiro traga as espadas? – perguntou Stephen,
sarcástico. – Ou talvez prefiram armadura completa?
Raine relaxou de imediato.
– Tens razão, Stephen. Oxalá este outro meu irmão fosse tão sensato
como tu.
Gavin fulminou Raine com o olhar e voltou-se para a comida.
Stephen observou Gavin a comer durante um momento.
– Raine, estás a interpor-te entre Gavin e a sua esposa?
Raine encolheu os ombros e acomodou a perna.
– Ele não a trata bem.
Stephen sorriu, compreensivo. Raine sempre havia sido um defensor dos
oprimidos. Apoiava qualquer causa que sentia ser necessário. O silêncio
entre os irmãos ficou pesado até que Raine se levantou e saiu da tenda.
Gavin seguiu-o com a vista. Depois, saciado finalmente, empurrou o
prato. Levantou-se e dirigiu-se ao seu catre.
– Ela está grávida desse homem – disse, passado algum tempo.
– De Demari? – perguntou Stephen. Ante o aceno de concordância de
Gavin, emitiu um assobio. – O que vais fazer com ela?
Gavin deixou-se cair numa cadeira.
– Não sei – respondeu calmamente. – Raine diz que não a confortei, mas
como poderia? Ela matou o amante.
– Foi forçada?
Gavin deixou pender a cabeça.
– Não acredito. Não, isso não é possível. Ela podia andar pelo castelo à
vontade. Veio ter comigo ao fosso e também quando me tiraram de lá e me
encerraram num calabouço da torre. Se a tivessem forçado, não disporia de
tanta liberdade.
– É verdade, mas a visita dela não significa que desejava ajudar-te?
Os olhos de Gavin faiscaram.
– Não sei o que ela deseja. Parece estar do lado de quem a tem. Quando
veio até mim, disse que tinha feito tudo pelo meu bem. No entanto, quando
estava com Demari pertencia-lhe por inteiro. É uma mulher astuta.
Stephen deslizou o polegar ao longo da lâmina do punhal, testando-o.
– Raine parece ter muito boa opinião dela, e Miles também.
Gavin bufou.
– Miles é novo de mais para saber que as mulheres têm algo além do
corpo. Quanto a Raine… há muito tempo que tem defendido a causa de
Judith.
– Podias declarar que a criança é de outro e repudiá-la.
– Não! – exclamou Gavin quase com violência e em seguida desviou o
olhar.
Stephen riu.
– Ainda ardes por ela? É linda, mas há outras mulheres bonitas. Que me
dizes de Alice? A quem declaraste amar?
Stephen havia sido o único confidente de Gavin relativamente a Alice.
– Ela casou há pouco com Edmund Chatworth.
– Edmund, aquele monte de esterco? Não lhe propuseste casamento?
O silêncio de Gavin foi a sua resposta.
Stephen voltou a embainhar o punhal.
– As mulheres não são dignas de tanta preocupação. Traz para a cama a
tua esposa e nunca mais penses no assunto. – Colocou ponto final na
conversa e levantou-se. – Creio que vou dormir. Foi um dia longo. Vemo-
nos amanhã.
Gavin sentou-se sozinho na sua tenda; a escuridão intensificava-se
rapidamente. «Deixá-la de lado. Repudiá-la», pensou. Bem podia fazê-lo, já
que ela estava grávida de outro homem. Mas não podia imaginar-se sem ela.
– Gavin… – Raine interrompeu-lhe os pensamentos. – Judith voltou?
Disse-lhe que não deveria ficar fora depois do pôr do Sol.
Gavin levantou-se, com os dentes cerrados.
– Pensas demasiado na minha mulher. Onde estava ela? Vou encontrá-la.
Raine sorriu ao irmão.
– Junto ao riacho, por ali – apontou.
***

Judith estava ajoelhada à beira do riacho, agitando a água límpida e fresca


com a mão.
– É tarde. Tens de regressar ao acampamento.
A jovem ergueu o rosto, sobressaltada. Gavin estava diante dela em toda
a sua pujança; os olhos cinza pareciam mais escuros na penumbra do ocaso.
Denotava uma expressão fechada.
– Não conheço estes bosques – continuou. – Pode haver perigo.
Judith levantou-se com os ombros muito direitos.
– Isso convir-te-ia, verdade? Uma esposa morta é certamente melhor do
que uma esposa desonrada. – Levantou as saias e passou por ele.
Gavin agarrou-lhe no braço.
– Precisamos conversar seriamente e sem nos enraivecermos.
– Houve alguma outra coisa entre nós, exceto a raiva? Diz o que queres.
Estou cansada.
A expressão dele suavizou-se.
– O fardo da criança cansa-te?
Judith levou as mãos ao ventre. Depois endireitou-se, com o queixo
erguido.
– Este bebé nunca será um fardo para mim.
Gavin olhou para o outro lado do rio, como se lutasse com um grande
problema.
– Por tudo o que aconteceu desde então, acredito que, quando te
entregaste a Demari, o fizeste com boas intenções. Sei que não me amas,
mas ele também tinha prisioneira a tua mãe. Só por ela terias arriscado o
que fizeste.
Judith assentiu, franzindo ligeiramente a testa.
– Não sei o que aconteceu depois de teres vindo para o castelo. Talvez
Demari tenha sido gentil e precisasses de bondade. Talvez mesmo no
casamento... te oferecesse amabilidade.
Judith não conseguia falar enquanto a bílis lhe subia à boca.
– Quanto à criança, podes mantê-la e não vou repudiar-te, como talvez
devesse fazê-lo. Porque, de facto, se a verdade for conhecida, talvez uma
parte da culpa seja minha. Vou cuidar da criança como se fosse minha e
herdará algumas das tuas terras. – Gavin fez uma pausa e olhou para ela. –
Não dizes nada? Tentei ser honesto... e justo. Creio que não poderias pedir
mais.
Judith levou um momento a recompor-se. Falou com os dentes muito
apertados:
– Justo! Honesto! Não conheces o significado dessas palavras. Fixa-te no
que dizes. Estás disposto a admitir que vim ao castelo por motivos
honrosos, mas, depois disso, insultas-me horrivelmente.
– Insulto-te? – surpreendeu-se Gavin.
– Sim, insultas-me. Acreditas que sou tão vil que me entregaria
livremente a um homem que ameaçava a minha mãe e o meu marido –
porque diante de Deus assim o és. Dizes-me que precisava de bondade!
Sim, preciso, porque nunca a recebi de ti. Mas não sou leviana ao ponto de
quebrar os meus votos diante de Deus por um pouco de atenção. Uma vez
quebrei o meu juramento, mas não vou fazê-lo novamente. – Desviou o
olhar, ruborizada ante a recordação.
– Não sei do que estás a falar – começou Gavin, perdendo de vez a calma.
– Falas por enigmas.
– Insinuas que sou uma adúltera. É um enigma?
– Carregas no ventre o filho desse homem. Que mais posso chamar-te?
Ofereci-me para cuidar da criança. Deverias agradecer que não te repudie.
Judith olhou-o fixamente. Gavin não perguntava se a criança era dele.
Considerava que as palavras de Walter eram as verdadeiras. No casamento,
a mãe de Judith havia dito que um homem acreditaria no servo mais baixo
antes de acreditar na sua esposa. Era verdade. E se Judith negasse ter
dormido com Walter? Acreditaria nela? Não haveria maneira de provar as
suas palavras.
– Não tens mais nada a dizer? – acusou Gavin, com os lábios cerrados.
Judith fulminou-o com o olhar, sem uma palavra.
– Devo supor que estás de acordo com as minhas condições?
A jovem decidiu seguir-lhe o jogo.
– Afirmas que darás ao meu filho as minhas terras. Sacrificas pouco.
– Mantenho-te ao meu lado. Poderia repudiar-te.
Ela riu.
– Claro que poderias. Os homens têm esse direito. Vais manter-me
enquanto me desejares. Não sou tola. Deveria receber algo mais do que
apenas uma herança para o meu filho.
– Queres pagamento?
– Sim, por ter ido buscar-te ao castelo. – As palavras doíam. Estava a
chorar por dentro, mas negava-se a mostrá-lo.
– O que desejas?
– Que a minha mãe seja dada em matrimónio a John Bassett.
Gavin arregalou os olhos.
– Agora és o familiar masculino mais próximo – assinalou Judith. – Tens
esse direito.
– John Bassett é...
– Não precisas dizer-me. Sei muito bem. Mas não vês que ela o ama?
– O que tem o amor a ver com isso? Há propriedades a serem
consideradas, propriedades a serem unidas.
Judith apoiou as mãos nos seus braços, com um olhar de súplica.
– Não sabes o que significa viver sem amor. Entregaste o teu e não tenho
nenhuma hipótese de o conquistar. Mas a minha mãe nunca amou um
homem como ama John. Está na tua mão dares-lhe o que ela mais quer.
Rogo-te, não permitas que o teu ódio por mim te impeça de deixar que ela
tenha alguma felicidade.
Ele observou-a. Era tão linda, mas também viu uma jovem solitária.
Tinha sido tão duro com ela que precisara de Walter Demari, mesmo que
por alguns instantes? Ela dissera que havia dado o seu amor a outra, mas
naquele momento não conseguia lembrar-se do rosto de Alice.
Tomou Judith nos seus braços. Lembrou-se de como estava assustada
quando fora atacada pelo javali. Apesar dessa falta de coragem, havia
enfrentado um inimigo como se fosse capaz de matar dragões.
– Não te odeio – sussurrou, abraçando-a e escondendo o rosto no seu
cabelo. – Certa vez Raine tinha-lhe perguntado o que havia de errado com
ela, e agora Gavin fazia a pergunta a si mesmo. Se ela carregava o filho de
outro homem, não era culpa dele por deixá-la desprotegida? Durante toda a
vida deles de casados, Gavin apenas se lembrava de ser amável com ela
uma vez: no dia que passaram juntos na floresta. Agora a sua consciência
incomodava-o. Só tinha planeado aquele passeio para a conquistar e trazê-la
de volta ao leito nupcial. Pensara apenas em si mesmo e não nela. Inclinou-
se e colocou a mão sob os seus joelhos, erguendo-a nos braços. Sentou-se
na relva perfumada, de costas contra uma árvore e enroscou-a nos seus
braços.
– Conta-me o que se passou no castelo – pediu com suavidade.
Ela não confiava nele. Sempre que confiava nele, Gavin voltava a atirar-
lhe as palavras à cara. Mas o seu contacto físico reconfortava-a. «Esta
sensação é tudo o que compartilhamos», pensou Judith. «Entre nós só existe
a luxúria. Não há amor nem compreensão – muito menos, confiança.»
Judith encolheu os ombros, negando-se a revelar-lhe alguma coisa. Tinha
os lábios muito perto do pescoço de Gavin.
– Já passou tudo. É melhor esquecer.
Gavin franziu o sobrolho; queria obrigá-la a falar, mas a sua proximidade
era mais do que podia suportar.
– Judith – sussurrou, procurando-lhe os lábios.
Ela rodeou-lhe o pescoço com os braços e puxou-o para mais perto. A sua
mente obscureceu ante o toque dele. Foram esquecidas quaisquer ideias de
compreensão e confiança.
– Senti a tua falta – sussurrou Gavin contra o seu pescoço. – Sabes que,
quando te vi pela primeira vez no fosso de Demari, pensei que estava
morto?
Ela inclinou a cabeça, oferecendo a Gavin o fino arco da sua garganta
esbelta.
– Eras como um anjo que trazia luz, ar e beleza àquele… lugar. Tinha
medo de tocar-te com receio de que não fosses real… ou que fosses real, e
ficaria destruído se me atrevesse a tocar-te. – Puxou os cordões atados do
lado do vestido.
– Sou muito real – sorriu Judith.
Gavin estava tão encantado com o seu olhar que a atraiu para si e a beijou
profundamente.
– Os teus sorrisos são mais raros e mais preciosos do que os diamantes.
Vi tão poucos… – O seu rosto ensombrou-se de repente, perdido em
recordações.
– Poderia ter matado os dois quando vi que Demari te tocava.
A jovem olhava para Gavin horrorizada e depois tentou afastar-se.
– Não! – recusou ele e abraçou-a. – Dar-me-ás a mim, teu marido, menos
do que a ele?
Judith estava numa posição incómoda, mas conseguiu retirar a mão e dar-
lhe uma bofetada.
Os seus olhos deitavam chispas, quando lhe pegou na mão, juntando-lhe
os pequenos dedos. Mas, de repente, elevou a mão à boca e beijou-a.
– Tens razão. Sou um tolo. Combinado. Ficou tudo para trás. Esta noite,
vamos apenas olhar para o futuro. – A sua boca capturou a dela e Judith
lutou contra qualquer raiva. Na verdade, não pensava em nada enquanto as
mãos dele vagueavam sob as suas roupas.
Estavam famintos um do outro, mais do que famintos. A fome que Gavin
havia experimentado no fosso não era nada comparada com o que sentia por
ter prescindido da mulher.
O vestido de lã azul-índigo foi rasgado, assim como as anáguas de linho.
O tecido despedaçado aumentou a paixão e as mãos de Judith lutaram com
as roupas de Gavin. Mas as mãos dele eram mais rápidas que as dela. Em
instantes, as suas roupas estavam num monte em cima das dela.
Judith puxou-o freneticamente para ela e Gavin igualou e superou o seu
ardor. Em poucos instantes consumavam o ato de amor numa violenta
explosão que os levou às estrelas e os deixou exaustos.
Capítulo Vinte e Dois

– Ele julga-se melhor do que nós – disse Blanche, rancorosa. Estava com
Gladys na pequena granja de Chatworth, enchendo jarros com vinho para a
refeição das onze horas.
– Sim – replicou Gladys, mas com menos amargura. Sentia muito a falta
de Jocelin, mas não se enfurecia tanto com isso como Blanche.
– Que assunto o manterá afastado de nós? – perguntou Blanche. – Ele
passa pouco tempo com ela. – Fez um sinal com a cabeça para cima,
referindo-se ao quarto de Alice Chatworth. – E raramente está no salão.
Gladys suspirou.
– Parece passar a maior parte do seu tempo sozinho, no palheiro.
Blanche interrompeu subitamente a sua tarefa.
– Sozinho! Estará mesmo sozinho? Não tínhamos pensado nisso. Haverá
uma mulher lá em cima?
– Gladys riu.
– Por que quereria Jocelin apenas uma mulher quando pode ter muitas?
Qual das mulheres falta no castelo? A menos que seja uma das servas, não
conheço ninguém que possa ter estado ausente por tanto tempo.
– Então, o que mais poderia reter um homem como Jocelin? Ei, tu! –
chamou Blanche a uma jovem serva que ia a passar. – Acaba de encher
estas canecas.
– Mas eu... – a jovem ia a protestar, mas Blanche deu-lhe um beliscão no
braço. – Está bem! – cedeu ela, chorosa.
– Vem, Gladys! – exclamou Blanche. – Enquanto Jocelin está ocupado
em outro lugar, vamos pôr fim a este mistério.
As duas mulheres saíram da pequena granja e percorreram a curta
distância que as separava dos estábulos.
– Olha! Ele retira a escada de cada vez que sai – observou Blanche. –
Caminhou silenciosamente para os estábulos, seguida de perto pela amiga.
Blanche levou um dedo aos lábios e apontou para a esposa gorda do criado
do estábulo. – O velho dragão está de vigia – sussurrou.
As raparigas pegaram na escada, tomando cuidado para não fazer
barulho. Encostaram-na à parede externa, com a extremidade apoiada
contra a abertura do quarto de Jocelin. Blanche levantou as saias e subiu.
Quando estavam lá dentro, diante dos fardos de feno que lhes bloqueavam a
visão, chegou-lhes uma voz feminina.
– Jocelin? És tu?
Blanche sorriu a Gladys, plena de um triunfo malicioso, e abriu o
caminho para a zona aberta.
– Constance!
O rosto encantador da mulher ainda estava maltratado, mas começava a
cicatrizar. Constance recuou até apoiar as costas contra um fardo de feno.
– Com que então és o motivo por que Jocelin nos abandona. Pensei que
tivesses saído do castelo – disse Gladys.
Constance limitou-se a sacudir a cabeça.
– Não! Ela não foi! – cuspiu Blanche. – Viu Jocelin e decidiu que tinha de
ser dela. Não suportava partilhá-lo.
– Isso não é verdade – murmurou Constance, com o lábio inferior a
tremer. – Quase morri e ele cuidou de mim.
– Sim e tu cuidas dele, não? Que bruxaria usaste para encantá-lo?
– Por favor…, não quis fazer nenhum mal.
Blanche não estava a escutar as suas súplicas. Sabia que não era Jocelin
quem fizera as marcas que Constance tinha no rosto e no corpo. Só poderia
ter sido obra de Edmund Chatworth.
– Responde. Lorde Edmund sabe onde estás?
Constance arregalou os olhos, horrorizada.
Blanche riu.
– Vê bem, Gladys, ela é a amante do lorde, mas atraiçoa-o com outro.
Que te parece se a devolvermos ao amo?
Gladys olhou para a jovem aterrorizada com simpatia.
Contudo, Blanche agarrou nos braços da amiga, e cravou-lhe as unhas na
carne macia.
– Ela atraiçoou-nos, mas hesitas quando te falo em pagar-lhe na mesma
moeda. Esta cadela desavergonhada tirou-nos o Joss. Tinha Lorde Edmund,
mas queria mais. Não estava satisfeita com um só homem, mas desejava-os
todos aos seus pés.
Gladys virou-se para Constance com um olhar de ódio.
– Se não vieres connosco, diremos a Lorde Edmund que Jocelin tem
estado a esconder-te – sorriu Blanche.
Constance seguiu-as silenciosamente pela escada. Não se permitia pensar,
apenas tinha em mente que deveria proteger Jocelin. Em toda a sua vida,
ninguém lhe tinha oferecido ternura. O seu mundo estava cheio de pessoas
como Edmund, Blanche e Alice. Porém, durante quase duas semanas, tinha
vivido um sonho nos braços de Jocelin; ele tinha falado com ela, cantado
para ela, apertara-a nos seus braços e fizera amor com ela. Sussurrava que a
amava e ela acreditou nele.
Seguir Blanche e Gladys era como despertar de um sonho. Ao contrário
de Jocelin, Constance não traçava planos para quando abandonassem o
castelo de Chatworth, quando estivesse completamente curada. Sabia que o
tempo que haviam tido naquele sótão seria o único que iriam viver. Por isso,
seguiu docilmente as mulheres, aceitando o seu destino; nunca lhe passou
pela mente a ideia de escapar ou de resistir. Sabia para onde elas a levavam
e, quando entrou no quarto de Edmund, o peito apertou-se, como cingido
por tiras de ferro.
– Fica aqui, enquanto vou chamar Lorde Edmund – ordenou Blanche.
– Ele virá? – perguntou Gladys.
– Oh, sim, quando ouvir o que tenho para lhe dizer. Não a deixes sair da
sala.
Blanche regressou pouco depois com um furioso Edmund logo atrás. Não
gostava que lhe interrompessem o jantar, mas o nome de Constance fizera-o
seguir a presunçosa criada. Ao entrar no quarto, bateu com a porta e
trancou-a, com os olhos cravados em Constance, ignorando as expressões
nervosas das duas criadas.
– Então minha doce Constance, afinal não morreste. – Edmund colocou a
mão sob o seu queixo para a obrigar a levantar a cara. Apenas viu
resignação. Os hematomas obscureciam a sua beleza, mas ela ficaria
curada. – Esses olhos – sussurrou – perseguiram-me por muito tempo.
Ouviu um barulho atrás de si e rodou sobre os calcanhares, apanhando as
duas servas a tentarem abrir sub-repticiamente o ferrolho da porta.
– Aqui! – ordenou e agarrou o braço da mais próxima, Gladys. – Onde
pensam que vão?
– Cumprir os nossos deveres, milorde – respondeu Blanche com a voz
trémula. – Somos as suas mais leais servidoras.
Gladys tinha lágrimas nos olhos quando os dedos de Edmund se lhe
cravaram na pele. Tentou soltar-se.
Edmund atirou-a ao chão.
– Vocês julgam que poderiam trazê-la aqui e deixá-la como se fosse parte
de uma bagagem? Onde tem estado?
Blanche e Gladys trocaram olhares. Não tinham pensado nisso. Apenas
queriam afastar Constance de Jocelin para que tudo fosse como antes,
quando Jocelin fazia amor com elas e as divertia.
– Nã… não sei, milorde! – gaguejou Blanche.
– Tomam-me por um idiota? – replicou Edmund e avançou para ela. – A
rapariga tem estado bem escondida ou teria sabido. Seria informado sobre a
presença dela, através das coscuvilhices do castelo.
– Não, milorde, ela... – Blanche não tinha rapidez mental suficiente para
inventar uma história. A língua atraiçoou-a.
Edmund parou e olhou para Gladys encolhida aos seus pés.
– Há alguma coisa nesta história que escondem. A quem tentam proteger?
– Agarrou no braço de Blanche e torceu-o dolorosamente atrás das costas.
– Milorde! Está a magoar-me!
– Farei pior do que isso se me mentires.
– Foi Baines da cozinha – disse Gladys em voz alta, querendo proteger a
amiga.
Edmund soltou o braço de Blanche enquanto ponderava na resposta.
Baines era um homem profundamente detestado, mal-humorado, sabia
disso. Mas Edmund também sabia que Baines dormia na cozinha, onde não
tinha privacidade suficiente para esconder uma rapariga maltratada até que
se curasse. Teria provocado rumores por todo o castelo.
– Estás a mentir – acusou Edmund com uma voz mortífera e avançou
lentamente para ela.
Gladys afastou-se dele, rastejando por entre os juncos.
– Milorde! – rogou, tremendo com todas as fibras do corpo.
– É a tua última mentira – garantiu ele, agarrando-a pela cintura. Ela
começou a lutar ao compreender que a levava na direção da janela aberta.
Blanche olhava horrorizada enquanto Edmund arrastava Gladys para a
janela. A serva agarrou-se à estrutura da janela, com toda a força dos seus
braços, mas não era adversária para a força de Edmund. Ele deu-lhe um
empurrão nas costas e Gladys voou para diante, golpeando o ar com a
queda. O seu grito, enquanto caía do terceiro piso para o pátio, pareceu
fazer estremecer as paredes.
Blanche permanecia imóvel, com os joelhos tremendo e o estômago às
voltas.
– Agora, quero saber a verdade – exigiu Edmund, voltando-se para
Blanche. – Quem a escondeu? – acenou para Constance, que se mantinha
em silêncio, encostada à parede. O assassinato de Gladys por Edmund não a
surpreendera. Era o que ela esperara.
– Jocelin – sussurrou Blanche.
Ao ouvir o nome, a jovem levantou a cabeça.
– Não! – Não podia suportar que Jocelin fosse atraiçoado.
Edmund sorriu.
– Esse bonito cantor? – O mesmo que havia transportado Constance
naquela noite. Um facto que Edmund esquecera. – Onde dorme? Como
pôde mantê-la despercebida?
– No palheiro, por cima dos estábulos. – Blanche mal conseguia falar.
Mantinha os olhos fixos na janela. Apenas um momento antes, Gladys
estava viva. Agora o seu corpo jazia despedaçado e esmagado no
pavimento.
Edmund assentiu diante da resposta de Blanche. Sabia reconhecer a
verdade quando a ouvia. Deu um passo na direção da mulher, que se
encolheu e recuou com medo, colando as costas à porta.
– Não, milorde. Disse-lhe o que desejáveis saber. – Ele continuou a
avançar na sua direção, com um leve sorriso no rosto. – Trouxe-lhe
Constance. Sou uma serva leal.
Edmund gostava daquele terror. Demonstrava o seu poder e a sua força.
Parou diante dela, levantou a mão gorda para acariciar a linha da sua
mandíbula. Ela tinha os olhos cheios de lágrimas. Lágrimas de medo.
Continuou a sorrir, quando a esbofeteou.
Blanche caiu no chão, com a mão na cara. O olho desse lado começava a
ficar roxo.
– Vai! – disse, com um meio-sorriso, enquanto abria a porta de par em
par. – Aprendeste uma boa lição.
Blanche estava fora do quarto antes que a porta se fechasse. Desceu as
escadas a correr e saiu pelo salão. Continuou a correr pelo pátio do castelo e
saiu pelo portão aberto. Não respondeu aos chamamentos dos homens de
cima das muralhas. Só sabia que queria estar longe de qualquer coisa que
tivesse a ver com a propriedade Chatworth. Só parou quando as dores dos
lados a obrigaram. Depois, continuou a pé, sem olhar uma única vez para
trás.
***

Jocelin meteu quatro ameixas no interior do gibão. Sabia como Constance


gostava de fruta fresca. Nas últimas semanas, a sua vida tinha começado a
girar em torno do que Constance gostava ou não gostava. Observando-a a
desabrochar, pétala a pétala, tinha sido o que de mais delicioso lhe
acontecera na vida. A gratidão que ela demonstrava por cada prazer, por
pequeno que fosse, reconfortava-o, embora o coração lhe doesse ao pensar
na vida anterior da jovem, a quem um simples buquê de flores podia fazê-la
chorar.
E na cama! Sorriu com lascívia. Não era tão mártir, a ponto de renunciar a
todos os prazeres egoístas. Constance queria recompensá-lo pela sua
bondade e queria demonstrar-lhe o seu amor. No início, a expectativa da dor
tornara-a rígida, mas a sensação das mãos de Jocelin no seu corpo, sabendo
que não iriam magoá-la, deixava-a louca de paixão. Era como se quisesse
reunir todo o amor da sua vida em poucas semanas.
Jocelin sorriu ao pensar no seu futuro juntos. Ele deixaria de viajar,
assentaria e construiria uma casa para os dois. Teriam vários filhos de olhos
violeta. Nunca na sua vida quisera mais do que a liberdade, uma cama
confortável e uma mulher quente. Mas nunca estivera apaixonado.
Constance mudara toda a sua vida. Só mais alguns dias e ela estaria em
condições de suportar a longa viagem. Iriam embora.
Jocelin assobiava quando saiu da mansão e passou pela cozinha em
direção aos estábulos. Deteve-se, petrificado, quando viu a escada
encostada na parede. Ultimamente nunca se esquecera de remover a escada.
A mulher do criado do estábulo vigiava-a por ele e Jocelin recompensava-a
com muitos sorrisos e alguns abraços genuinamente afetuosos. Não temia
por si, mas apenas por Constance.
Percorreu a correr os últimos metros e subiu pela escada a toda a pressa.
O seu coração palpitava violentamente enquanto revistava o pequeno
quarto, como se pudesse encontrá-la sob o feno. Sabia, sem dúvida, que
Constance não partiria por sua vontade. Não, ela era como uma corça:
tímida e receosa.
Com os olhos nublados pelas lágrimas, desceu pela escada. Onde a
encontraria? Talvez algumas das mulheres estivessem a brincar e a
encontrasse a salvo em algum canto, mastigando um bolo de passas. Jocelin
não acreditava nisso, mesmo quando imaginava a cena.
Não se surpreendeu ao ver Chatworth aos pés da escada, ladeado por dois
guardas armados.
– O que lhe haveis feito? – acusou Jocelin, saltando do segundo degrau da
escada e atacando diretamente o pescoço de Edmund.
O rosto de Edmund começava a ficar roxo quando os homens
conseguiram libertá-lo e afastar Jocelin. Seguraram-no firmemente pelos
braços.
Edmund levantou-se e sacudiu a poeira, observando desgostoso a sua
roupa arruinada. O veludo nunca mais seria o mesmo. Esfregou o pescoço
magoado.
– Pagarás isto com a vida.
– O que lhe fizeste, monte de esterco? – proferiu Jocelin
desdenhosamente.
Edmund soltou uma exclamação. Ninguém jamais se atrevera a falar-lhe
assim. Recuou a mão e deu um murro no rosto de Jocelin, cortando-lhe a
comissura da boca.
– Sim, vais pagar por isto.
Colocou-se fora do alcance dos pés de Jocelin, mais cauteloso do que
tinha sido. Atrás daquele rosto emboscava-se um homem que ele não
imaginava que existisse. Pensava que Jocelin era apenas mais um jovem
bonito.
– Vou gostar disto – zombou. – Passarás a noite na masmorra e amanhã
verás o teu último amanhecer. Sofrerás todo o dia, mas talvez sofras mais
esta noite. Enquanto sofres nessa cela, possuirei a mulher.
– Não! – gritou Jocelin. – Ela não fez nada. Deixai-a ir. Pagarei por tê-la
tomado.
– Pagarás, sim. Quanto ao teu nobre gesto, não faz sentido. Não tens nada
para negociar. Eu tenho-vos a ambos. Ela na minha cama; a ti, para
qualquer outro prazer que me ocorra. Levem-no para que medite nas
consequências de desafiar um conde.
***

Constance estava sentada à janela do quarto de Edmund. O ânimo tinha-a


abandonado. Nunca mais veria Jocelin, nem ele a abraçaria, jurando que a
amava mais do que a Lua amava as estrelas. A única esperança era que ele
tivesse conseguido escapar. Constance vira a maneira como Blanche tinha
fugido do quarto e rezara para que a mulher tivesse ido avisar Jocelin. Sabia
que Blanche se importava com ele; tinha-a ouvido a chamá-lo. Sem dúvida
fora procurá-lo e encontravam-se ambos a salvo.
Constance não sentia ciúmes. Na verdade, só queria a felicidade de
Jocelin. Se lhe tivesse pedido para morrer por ele, fá-lo-ia de bom grado. O
que importava a sua pobre vida?
Uma agitação no pátio e um raio de sol sobre uma cabeça familiar
chamaram-lhe a atenção. Dois guardas corpulentos arrastavam quase de
rastos Jocelin, que lutava. Diante dos seus próprios olhos, um dos homens
golpeou Jocelin com força na clavícula, fazendo com que ele caísse para um
lado. O jovem levantou-se com dificuldade. Constance susteve a respiração.
Queria chamá-lo, mas sabia que o colocaria num perigo ainda maior. Como
se a sentisse, ele contorceu-se e olhou para a janela. Constance ergueu a
mão. Através das lágrimas, podia ver o sangue no seu queixo.
Enquanto os guardas arrastavam Jocelin, Constance percebeu de repente
para onde o levavam e o seu coração parou. A cela do castigo era um
invento horrível: uma divisão em forma de frasco lapidada nas entranhas da
rocha sólida. O prisioneiro era baixado através da garganta estreita da rocha
por uma roldana. Uma vez lá dentro, não podia sentar-se, nem permanecer
de pé, mas deveria estar meio agachado, com as costas e o pescoço
continuamente dobrados. O ar era escasso e muitas vezes não havia comida
ou água. Ninguém poderia durar mais do que alguns dias e só os mais fortes
sobreviviam.
Constance viu que os guardas amarravam Jocelin à roldana e o baixavam
para aquele buraco infernal. Observou por alguns instantes enquanto a
tampa da cela estava a ser presa e depois desviou o olhar. Já não havia
esperança. No dia seguinte Jocelin estaria morto, se aguentasse a noite toda,
pois Edmund certamente inventaria alguma tortura adicional.
Sobre uma mesa havia um grande jarro de vinho e três copos. Eram para
uso privado de Edmund, que reservava para si os mais belos objetos.
Constance agiu sem pensar, porque a sua vida estava acabada. Um último
ato era necessário para completar a ação. Quebrando um copo contra a
mesa, pegou na base dentada e dirigiu-se à janela, sentando-se na cadeira
almofadada.
Era um dia lindo e o verão estava em flor. Constance mal sentiu a ponta
afiada quando cortou um pulso. Olhou para o sangue a fluir do seu corpo
com uma sensação de alívio.
– Em breve – sussurrou. – Em breve estarei contigo, meu Jocelin.
Constance cortou o outro pulso e recostou-se contra a parede, com um
pulso no colo, o outro no parapeito da janela e o sangue escorrendo na
argamassa das pedras. Uma suave brisa de verão agitou-lhe os cabelos e ela
sorriu. Certa noite, ela e Jocelin haviam ido ao rio, passando a noite
sozinhos nas gramíneas suaves. Haviam voltado muito cedo na manhã
seguinte, antes de o castelo estar completamente acordado. Tinha sido uma
noite de paixão e de palavras de amor sussurradas. Lembrava-se de cada
palavra que Jocelin lhe tinha murmurado.
Gradualmente, os seus pensamentos foram-se tornando mais lentos, quase
como se estivesse a dormir. Constance fechou os olhos e sorriu levemente
com o sol a acariciar-lhe o rosto e a brisa no cabelo. Por fim, deixou de
pensar.
***

– Rapaz! Estás bem? – perguntou lá de cima uma voz áspera a Jocelin.


Ele estava aturdido e custou-lhe entender aquelas palavras.
– Rapaz? – chamou a voz novamente. – Responde!
– Sim – conseguiu pronunciar Jocelin.
Chegou-lhe um forte suspiro.
– Joss está bem – disse uma voz de mulher. – Põe isso à volta do corpo e
eu puxo-te para cima.
Jocelin estava demasiado atordoado para compreender o que se passava.
As mãos da mulher guiaram o seu corpo pela garganta da rocha e depois
puxaram-no até ao ar fresco da noite. O ar – a primeira respiração real que
tinha tido em várias horas – começou a limpar-lhe a mente. Tinha o corpo
dormente e rígido. Quando tocou no chão com os pés, desamarrou a correia
da roldana.
O criado do estábulo e a sua gorda esposa encararam-no.
– Tesouro, tens de partir imediatamente – disse ela. – Conduziu-o através
da escuridão até ao estábulo.
A cada passo, a cabeça de Jocelin tornava-se mais consciente. Tal como
nunca antes de Constance havia experimentado o amor até recentemente,
tão pouco conhecera o ódio. Mas agora, ao atravessar o pátio, olhou para a
janela escura de Edmund. Odiava Edmund Chatworth, que agora tinha
Constance no seu leito.
Quando estavam nos estábulos, a mulher voltou a falar:
– Tens de ir quanto antes. O meu marido pode ajudar-te a passar pela
muralha. Toma. Preparei-te um saco de comida que te durará alguns dias, se
fores prudente.
Jocelin franziu o cenho.
– Não, não posso ir. Não posso deixar Constance com ele.
– Sei que não irás até que saibas – murmurou a velha.
Virou-se e fez sinal a Jocelin para que a seguisse. Acendeu uma vela com
a que estava na outra parede e levou Jocelin até uma divisória vazia. Um
pano cobria vários fardos de feno. A mulher retirou o pano lentamente.
No início, Jocelin não acreditou nos seus olhos. Tinha visto Constance
uma vez assim, quando pensara que estava morta. Ajoelhou-se ao seu lado e
tomou o corpo gelado nos seus braços.
– Ela está com frio – disse num tom autoritário. – Traz cobertores para
que possa aquecê-la.
A velha pôs uma mão no ombro de Jocelin.
– Não chegariam todos os cobertores do mundo. Ela está morta.
– Não, não está! Já esteve assim antes e...
– Não te tortures. Perdeu todo o sangue. Não lhe resta uma gota.
– Sangue?
A mulher afastou o pano para trás e mostrou os pulsos sem vida de
Constance, com as veias cortadas e expostas. Jocelin observou-a em
silêncio.
– Quem foi? – sussurrou ele finalmente.
– Ela suicidou-se. Ninguém o fez.
Jocelin olhou de novo para o rosto de Constance, percebendo finalmente
que a havia perdido. Inclinou-se e beijou-lhe a testa.
– Agora está em paz.
– Sim – disse a mulher, aliviada. – E tu tens de ir embora.
Joss libertou-se da mão insistente da mulher e caminhou resolutamente na
direção da mansão. O grande salão estava a abarrotar de homens que
dormiam em colchões de palha. Jocelin retirou silenciosamente uma espada
da parede onde estava no meio de muitas armas. Os seus sapatos macios
não fizeram barulho enquanto subia as escadas para o terceiro piso.
Um guarda dormia na frente da porta de Edmund. Jocelin sabia que não
teria a mínima oportunidade se o guarda acordasse, pois a força de Jocelin
não se comparava à de um cavaleiro experiente. O homem não emitiu
qualquer som quando Jocelin lhe cravou a espada no ventre.
Jocelin nunca tinha matado um homem e fazê-lo não lhe deu prazer.
A porta de Edmund não estava trancada. Ele sentia-se seguro no seu
próprio castelo, no seu quarto. Jocelin empurrou a porta. Não gostava do
que faria, nem desejava demorar-se sobre o cenário deleitando-se como
alguns teriam feito. Agarrou os cabelos de Edmund nas suas mãos. Os olhos
de Chatworth abriram-se e arregalaram-se ao ver Jocelin.
– Não!
Foi a última palavra que Edmund Chatworth pronunciou. Jocelin
degolou-o com a espada. Na morte, o conde repugnava tanto Jocelin como
em vida. Jocelin atirou a espada para o lado da cama e encaminhou-se para
a porta.
***

Alice não conseguia dormir. Há semanas que não conseguira dormir bem
– desde que o menestrel deixara de ir à sua cama. Ameaçara-o
repetidamente, mas sem sucesso. Jocelin tinha-se limitado a fixá-la através
dos seus longos cílios e não dizia nada. Na verdade, estava um pouco
intrigada que um homem a tratasse tão mal.
Atirou as cobertas da cama para trás e vestiu um roupão. Os pés não
fizeram nenhum barulho no chão coberto com juncos. No corredor, Alice
percebeu que algo estava errado. A porta do quarto de Edmund estava
aberta, o guarda estava sentado numa posição estranha. Curiosa,
aproximou-se. Os seus olhos estavam acostumados à escuridão e o corredor
estava iluminado apenas pelas tochas ao longo da parede.
Um homem saiu do quarto de Edmund, sem olhar para a direita nem para
a esquerda, e caminhou em linha reta até ela. Viu o gibão coberto de
sangue, antes de lhe ver o rosto. Alice soltou uma exclamação abafada e
levou a mão à garganta. Quando ele parou diante dela, mal o reconheceu. Já
não era um jovem sorridente, mas um homem que a olhava com audácia.
Sentiu um pequeno arrepio na espinha.
– Jocelin.
Ele passou por ela como se não a tivesse visto ou não se importasse com
a sua presença. Alice seguiu-o com o olhar e depois encaminhou-se
lentamente para o quarto de Edmund. Passou sobre o corpo do guarda
morto, com o coração palpitante. Ao ver o cadáver de Edmund, com o
sangue ainda a escorrer do pescoço degolado, sorriu.
Alice dirigiu-se à janela, pôs a mão no peitoril, cobrindo uma mancha
deixada pelo sangue da outra inocente no dia anterior.
– Viúva – sussurrou. – Uma viúva! – Agora tinha tudo: riqueza, beleza e
liberdade.
Durante um mês escrevera cartas, suplicando um convite para a Corte do
rei Henrique. Quando o tinha recebido, Edmund riu dela, dizendo que se
recusava a gastar dinheiro em tais frivolidades. Na verdade, na Corte não
poderia atirar servas pelas janelas, como no seu próprio castelo. «Agora,
poderia ir à Corte do rei sem que ninguém a impedisse», decidiu Alice.
E haveria Gavin! Ah, sim, também se encarregara disso. Aquela rameira
de cabelos vermelhos tivera-o demasiado tempo. Gavin era dela e
continuaria a ser. Se pudesse livrar-se da sua esposa, então seria dela
completamente. Não lhe negaria vestidos de tecidos dourados. Não, Gavin
não lhe negaria nada. Acaso não era capaz de conseguir o que desejava?
Desejava Gavin Montgomery novamente e iria tê-lo.
Alguém cruzou o pátio, chamando-lhe a atenção. Jocelin dirigia-se à
escada que levava ao topo da muralha, com um saco de couro sobre o
ombro.
– Fizeste-me um grande favor – sussurrou. – E agora vou retribuir-to. –
Não chamou os guardas. Em vez disso, ficou em silêncio, planeando o que
faria, agora que estava livre de Edmund. Jocelin tinha-lhe dado muitas
coisas – acesso a uma grande riqueza –, mas, acima de tudo, devolvera-lhe
Gavin.
Capítulo Vinte e Três

Fazia calor na tenda. Gavin não conseguia dormir. Levantou-se e baixou o


rosto para Judith, que dormia tranquilamente com um ombro nu exposto
sobre o lençol de linho. Agarrou nas roupas sem fazer barulho, sorrindo
para a silhueta imóvel da mulher. Tinham passado uma boa parte da noite a
fazer amor e ela estava exausta. Mas ele não estava. Não, longe disso. Amar
Judith parecia atear nele um fogo inextinguível.
Tirou um manto de veludo de uma arca; em seguida, afastou o lençol que
cobria Judith e envolveu-a no manto. A jovem aninhou-se contra o seu
corpo, como uma criança, sem acordar, dormindo o sono dos inocentes.
Gavin levou-a para fora da tenda, fez um sinal de cabeça aos guardas de
plantão e encaminhou-se para a floresta. Inclinou a cabeça e beijou a sua
boca amaciada pelo sono.
– Gavin – murmurou ela.
– Sim, sou eu.
Judith sorriu contra o seu ombro, sem abrir os olhos.
– Para onde me levas?
Gavin riu e estreitou-a contra si.
– Interessa-te?
A jovem sorriu ainda mais, sempre com os olhos fechados.
– Não, nada – sussurrou.
Ele soltou uma profunda gargalhada. Depositou-a na margem do riacho e
ela começou a acordar gradualmente. A frescura do ar, o som da água e a
suavidade das ervas acresceram a qualidade onírica da situação.
Gavin sentou-se ao lado dela, sem lhe tocar.
– Disseste uma vez que tinhas quebrado um juramento feito diante de
Deus. Que juramento foi esse? – Ficou tenso, aguardando a sua resposta.
Não tinham voltado a falar da temporada que ela vivera no castelo de
Demari, mas Gavin ainda desejava saber as coisas que haviam acontecido
lá. Desejava ouvi-la negar o que sabia ser verdade. Se amava Demari, por
que o matara? Se caíra nos braços de outro homem, não era culpa de Gavin?
Estava convencido de que o juramento em questão era o que tinha feito
diante de um padre e de centenas de testemunhas.
A escuridão dissimulou o rubor de Judith. Ignorava a direção da linha de
pensamento de Gavin. Apenas se recordava de ter ido até à cama dele, antes
que partisse para a batalha.
– Sou um ogre tão grande que não podes abrir-te comigo? – perguntou em
voz baixa. – Diz-me apenas isso, e não te pedirei mais nada.
Aos olhos dela tratava-se de algo íntimo, mas era realmente verdade;
Gavin não pedia muito. Havia lua cheia e a noite estava brilhante. Manteve
os olhos virados para o outro lado.
– No dia do nosso casamento fiz um juramento... e quebrei-o.
Gavin assentiu. Era o que havia receado.
– Sei que o quebrei quando fui para a tua cama naquela noite – continuou.
– Mas esse homem não tinha o direito de afirmar que não dormíamos
juntos. Eram problemas nossos que apenas nós devíamos solucionar.
– Não te entendo, Judith.
A jovem ergueu o rosto, sobressaltada.
– Falo do juramento. Não foi isso que me perguntaste? – Viu que ele
continuava sem entender. – No jardim, quando te vi com… – Interrompeu-
se e desviou novamente o olhar. A lembrança de Alice nos seus braços
ainda era demasiado vívida, e muito mais dolorosa agora do que nessa
altura.
Gavin fitou-a, tentando lembrar-se. Quando finalmente recordou,
começou a rir.
Judith virou-se para ele, fulminando-o com o olhar.
– Estás a rir-te de mim?
– Oh, sim! Que voto de ignorância! Eras virgem, quando o fizeste.
Portanto, não podias conhecer os prazeres que terias na minha cama e
ignoravas que não poderias prescindir de mim.
A jovem fitou-o e depois levantou-se.
– És um homem vaidoso e insuportável. Faço-te uma confidência e ris-te
de mim! – Atirou os ombros para trás, envolta no manto, e preparou-se para
se afastar dele.
Com um sorriso lascivo no rosto, Gavin deu um forte puxão no manto e
arrancou-lho. Judith abafou uma exclamação e tentou cobrir-se.
– Vais voltar ao acampamento agora? – provocou-a, enrolando o manto
de veludo e colocando-o atrás da cabeça.
Judith observou-o, estirado na relva, sem sequer olhar para ela. Com que
então julgava-se vencedor, não?, pensou.
Gavin permaneceu quieto, esperando a qualquer momento que ela
voltasse e implorasse as suas roupas. Ouviu um sussurro nos arbustos e
sorriu com confiança. Judith era demasiado pudica para regressar ao
acampamento sem as suas roupas. Durante um momento, reinou o silêncio.
Depois ouviu um restolhar rítmico de folhas, como se...
Levantou-se de imediato, seguindo o som.
– És mesmo travessa! – riu, de pé, diante da esposa. – Ela compusera um
vestido muito discreto de folhas de árvores e ramos de vários arbustos.
Sorriu-lhe, triunfante.
Gavin colocou as mãos nas ancas.
– Alguma vez ganharei uma discussão contigo?
– Provavelmente não – respondeu Judith, presunçosa.
Gavin riu com um ar demoníaco. Estendeu a mão e arrancou-lhe aquela
frágil roupagem.
– A sério? – replicou, agarrando-a pela cintura e erguendo-a no ar. O luar
transformava em prata as curvas desnudas do seu corpo. Ergueu-a nos
braços, rindo ante a sua exclamação assustada. – Não te ensinaram que uma
boa esposa não discute com o marido? – troçou.
Sentou-a no ramo de uma árvore, com os joelhos ao nível dos seus olhos.
– Assim, pareces mais encantadora do que nunca. – Fitava o seu rosto
com olhos sorridentes mas quedou-se petrificado ao detetar um puro terror
nos seus olhos.
– Judith! – sussurrou. – Esqueci-me do teu medo. Perdoa-me. – Teve de
lhe apartar as mãos para que soltasse o ramo da árvore; tinha os nós dos
dedos brancos. Mesmo quando já estava solta, foi preciso baixá-la junto ao
tronco, arranhando-lhe o traseiro nu na casca áspera – Judith, perdoa-me –
sussurrou uma vez mais enquanto ela se lhe agarrava.
Levou-a de volta até à margem do rio e envolveu-a no manto, segurando-
a no colo e abraçando-a. A sua estupidez enfureceu-o. Como tinha podido
esquecer algo tão importante como o seu terrível medo de alturas? Ergueu-
lhe o queixo e beijou-a docemente na boca.
De repente, o seu beijo transformou-se em paixão.
– Abraça-me – sussurrou ela, desesperadamente. – Não me deixes.
Gavin surpreendeu-se com a premência na sua voz.
– Não, tesouro. Não te deixarei.
Judith sempre fora uma apaixonada, mas agora estava em frenesim. A
boca apreendeu a dele e os lábios percorreram-lhe o pescoço. Nunca fora
tão agressiva.
– Judith – murmurou ele. – Doce, doce Judith. – O manto descaiu e os
seus seios nus apertaram-se contra ele, insolentes e exigentes. A cabeça de
Gavin começou a girar.
– Vais tirar essas roupas? – perguntou ela num sussurro enrouquecido,
deslizando as mãos sob o tabardo solto. – Gavin mal conseguiu suportar
apartar-se do seu corpo por alguns instantes até remover a roupa. Tirou
rapidamente o gibão pela cabeça e em seguida a camisa. Não se incomodara
a vestir roupa interior quando saíra da tenda.
Judith empurrou-o para o chão e inclinou-se sobre ele. Gavin permaneceu
quieto, quase sem poder respirar.
– Agora és tu que pareces assustado – riu ela.
– Estou – admitiu com olhos brilhantes. – Vais saciar-te comigo?
A mão da jovem moveu-se sobre o seu corpo, deleitando-se com a pele
macia e a espessa camada de pelos no seu peito. Depois, baixou-a aos
poucos, descendo.
Gavin arquejava e os olhos escureciam.
– Faz o que quiseres! – pronunciou num tom rouco. – Só não retires essa
mão daí.
Judith riu num tom gutural, invadida por uma onda de poder. Tinha-o sob
o seu controlo. Mas no momento seguinte, ao sentir o seu membro duro na
mão, percebeu que ele tinha o mesmo poder sobre ela. Estava louca de
desejo. Pôs-se em cima dele, inclinou-se e procurou avidamente a sua boca.
Gavin permaneceu imóvel e deixou-a mover-se sobre ele, mas em breve
deixou de conseguir ficar quieto. Agarrou-lhe nas ancas para guiá-la, com
mais força, mais rapidamente. A sua ferocidade começava a igualar a de
Judith.
Então, explodiram juntos.
***

– Acorda, minha louca! – riu Gavin, dando uma palmada nas nádegas
nuas de Judith. – O acampamento já acordou e virão à nossa procura.
– Que nos procurem – murmurou Judith e envolveu-se mais no manto.
Gavin pairava de pé sobre ela, com aquele corpo entre os seus tornozelos.
Nunca havia experimentado uma noite como a que acabara de passar. Quem
era a sua esposa? Uma adúltera? Uma mulher que passava de um amor a
outro, ao sabor do vento? Ou era boa e gentil, como os seus irmãos
pensavam? De qualquer maneira, era um demónio quando se tratava de
fazer amor.
– Queres que chame a tua criada para te vestir aqui? Joan terá, sem
dúvida, alguns comentários a fazer.
Quando Judith, sonolenta, pensou nos sorrisos maliciosos de Joan,
demorou pouco tempo a ficar completamente acordada. Sentou-se, olhou
para o rio e aspirou profundamente o ar fresco da manhã. Bocejou,
espreguiçou-se e o manto caiu, expondo os seios fartos e impudicos.
– Por Deus! – exclamou Gavin. – Cobre-te ou nunca chegaremos a
Londres e à Corte do rei.
Judith sorriu-lhe, sedutora.
– Talvez preferisse ficar aqui. Na verdade, a Corte não deve ser tão
agradável.
– Sem dúvida – reconheceu Gavin. – Depois, curvou-se para a envolver
no seu manto e levantou-a suavemente nos braços. – Anda. Regressemos.
Miles e Raine vão deixar-nos hoje e preciso falar com eles.
Voltaram para a tenda em silêncio. Judith aconchegava-se contra o ombro
de Gavin. «Não poderia ser sempre ser assim?, pensou. Ele era gentil e
terno quando queria. «Por favor, Deus», rezou «permite que isto dure entre
nós. Que não voltemos a discutir.»
Uma hora depois, Judith caminhava entre Raine e Miles pela mão de
ambos. Formavam um grupo absurdo: dois homens robustos vestidos com
roupas de viagem de lã pesada, e, entre eles, Judith mal lhes chegando aos
ombros.
– Vou sentir falta de ambos – disse Judith, apertando-lhes as mãos. – É
bom ter toda a minha família perto, embora a minha mãe raramente se
separe de John Bassett.
Raine riu.
– Parece-me ouvir ciúmes nessa confissão.
– Sim – concordou Miles. – Acaso não te bastamos?
– Gavin parece bastar – provocou Raine.
Judith riu com as faces coradas.
– Existe alguma coisa que um irmão faça que os outros não saibam?
– Raramente – admitiu Raine, olhando para Miles por cima da cabeça de
Judith. – Há obviamente a questão de onde o nosso irmãozinho passou a
noite anterior.
– Com Joan – respondeu Judith sem pensar.
Os olhos de Raine brilharam de riso enquanto os de Miles permaneceram
indecifráveis, como sempre.
– Se… sei, porque Joan falou muito sobre ele – balbuciou Judith.
As covinhas de Raine aprofundaram-se.
– Não deixes que Miles te assuste. Está curioso para saber o que disse
essa mulher.
Judith sorriu.
– Conto-te da próxima vez que te vir. Talvez assim decidas visitar-nos
mais cedo do que planeavas.
– Muito bem! – Raine riu. – Agora, na verdade, temos de ir. Não seríamos
bem-recebidos na Corte, a menos que pagássemos para entrar, e não posso
permitir-me esses luxos.
– Ele é rico – replicou Miles. – Não te deixes enganar.
– Nenhum de vocês me engana. Obrigada por todo o vosso tempo e
preocupação. Obrigada por escutarem os meus problemas.
– Queres que choremos todos em vez de aproveitar a ocasião para beijar
uma mulher deliciosa? – contrapôs Miles.
– Por uma vez tens razão, irmãozinho – concordou Raine enquanto
levantava Judith do chão e lhe dava um beijo em cada face.
Miles fez o mesmo, rindo-se do irmão.
– Não sabes tratar as mulheres – protestou ao mesmo tempo que erguia
Judith nos braços e depositava um beijo muito pouco fraternal nos lábios da
jovem.
– O que significa isso, Miles? – perguntou uma voz mortífera.
Judith apartou-se do cunhado e virou-se para Gavin que os observava
com olhos nublados.
Raine e Miles trocaram olhares. Era a primeira vez que Gavin mostrava
algum ciúme palpável.
– Coloca-a no chão antes que este homem te trespasse com a espada –
recomendou Raine.
Miles reteve Judith por um momento mais, observando-a.
– Quem sabe se não valeria a pena – lamentou e pousou-a gentilmente no
chão.
– Em breve voltaremos a ver-nos – dirigiu-se Raine a Gavin. – Talvez
possamos reunir-nos todos no Natal. Gostaria de conhecer essa dama
escocesa com quem Stephen vai casar.
Gavin colocou uma mão possessiva no ombro de Judith e puxou-a para
perto dele.
– Até ao Natal! – despediu-se. – Os irmãos montaram nos cavalos e
afastaram-se.
– Suponho que não estejas realmente zangado? – questionou Judith.
– Não – suspirou Gavin. – Mas não gostei de ver um homem a tocar-te.
Nem mesmo o meu próprio irmão.
Judith respirou fundo.
– Se vierem no Natal, o bebé já terá nascido.
«O bebé», pensou Gavin. «Não “o meu bebé”, ou “o nosso bebé”, mas “o
bebé”.» – Não gostava de pensar na criança.
– Vem. Temos de levantar o acampamento. Passámos demasiado tempo
aqui.
Judith seguiu-o, pestanejando para conter as lágrimas. Não mencionavam
os dias passados no castelo de Demari nem falavam do bebé. Deveria dizer-
lhe que a criança só poderia ser dele? Deveria implorar que a ouvisse e
acreditasse nela? Podia contar os dias e dizer-lhe o tempo de gravidez, mas
em determinada ocasião Gavin havia insinuado que ela poderia ter-se
deitado com Demari durante os festejos da boda. Voltou à tenda para dar
indicações às criadas, que tinham de arrumar a bagagem.
Acamparam cedo naquela noite. Não havia pressa para chegar a Londres
e Gavin apreciava o tempo da viagem. Começara a sentir-se próximo da
esposa. Conversavam frequentemente como se fossem amigos. Gavin
surpreendeu-se a partilhar segredos de infância com ela, revelando-lhe o
medo que sentira quando o pai morreu e o deixou com tantas terras para
administrar.
Sentou-se a uma mesa com um livro de contabilidade aberto na sua
frente. Era preciso anotar e justificar cada penny gasto. Era um trabalho
aborrecido, mas o seu administrador tinha ficado doente com febre e Gavin
não podia confiar as contas aos seus cavaleiros.
Bebeu um gole de uma caneca de sidra e procurou a esposa com o olhar.
Estava sentada num banquinho junto à entrada aberta da tenda, com um
novelo de fios azuis no colo. As mãos lutavam com um longo par de
agulhas de tricô. Enquanto a observava, ela enredava cada vez mais o seu
trabalho manual. Tinha o rosto encantador distorcido pelo esforço e a
pequena ponta da língua assomava entre os lábios. Gavin voltou a debruçar-
se sobre os livros e percebeu que aquela tentativa para tricotar era um
esforço para lhe agradar. Ele expressara-lhe com frequência o seu desagrado
quando ela interferia nos negócios do castelo.
Gavin teve de sufocar uma gargalhada ao ouvi-la rezingar contra o fio,
murmurando algo em voz baixa. Acalmou-se.
– Judith, talvez possas ajudar-me. Não te importas de pôr isso de lado? –
perguntou com toda a seriedade que conseguiu reunir. Tentou não sorrir
enquanto ela atirava de bom grado os fios e as agulhas contra a parede da
tenda.
Gavin apontou para o livro.
– Gastámos demasiado nesta viagem, mas não sei porquê.
Judith virou o livro para ela. Finalmente algo que compreendia! Deslizou
os dedos pelas colunas, movendo os olhos de um lado para o outro. De
súbito, parou.
– Cinco marcos de pão! Quem está a cobrar tanto?
– Não sei – respondeu Gavin sinceramente.
– Limito-me a comê-lo, não a cozê-lo.
– Bem, tens estado a comer ouro! Vou encarregar-me imediatamente do
assunto. Por que não me mostraste isso antes?
– Porque, minha querida esposa, pensei que pudesse dirigir a minha vida
sozinho. Ai do homem que pense dessa maneira!
Judith olhou-o fixamente.
– Vou ajustar contas com esse padeiro! – assegurou, encaminhando-se
para a saída.
– Não deverias levar o tricô? Talvez não encontres o suficiente com que
te ocupares.
Judith olhou por cima do ombro para Gavin e viu que ele estava a brincar.
Devolveu o sorriso, pegou no novelo e atirou-lho.
– Talvez sejas tu quem tem de se manter ocupado. – Apontou
intencionalmente para os livros, e saiu da tenda.
Gavin permaneceu sentado por um momento, rodando o novelo entre as
mãos. A tenda ficara demasiado vazia com a ausência de Judith.
Aproximou-se da aba aberta e encostou-se ao poste, observando-a. Judith
nunca gritava com um servo, mas de alguma forma fazia-os trabalhar mais
do que ele. Encarregava-se da comida, da lavagem da roupa, da instalação
do acampamento, tudo com facilidade. Contudo, nunca parecia nervosa e
ninguém imaginava como lidava com seis coisas ao mesmo tempo.
A jovem terminou a conversa com o homem que tinha a carroça
carregada de pão. O homem baixo e gordo retirou-se, sacudindo a cabeça.
Gavin sorriu divertido; sabia bem como o padeiro se sentia. Quantas vezes
tinha perdido uma discussão com Judith, embora pudesse ter razão. Ela
sabia retorcer as palavras até fazer com que uma pessoa esquecesse os seus
próprios pensamentos.
Gavin seguiu-a com a vista, enquanto ela percorria o acampamento.
Deteve-se para provar o guisado numa panela e falar com o escudeiro de
Gavin, que estava sentado num banquinho, a polir a armadura do amo. O
jovem assentiu com um sorriso e Gavin adivinhou que lhe havia indicado
alguma pequena mudança nesse simples processo. E a mudança seria para
melhor. Nunca tinha vivido ou viajado com tanto conforto, e com tão pouco
esforço da sua parte. Pensou nas vezes em que, ao sair da tenda pela manhã,
havia pisado um monte de esterco de cavalo. Agora duvidava que Judith
permitisse que a lama e os dejetos se amontoassem no chão. Nunca tinha
visto um acampamento tão limpo.
Judith pareceu sentir que ele a olhava. Virou-se sorridente, desviando a
atenção das galinhas que inspecionava. Gavin sentiu um nó no peito. O que
sentia por ela? Importava que carregasse o filho de outro homem? Apenas
sabia que a desejava.
Atravessou a relva e agarrou-lhe no braço.
– Vem comigo para dentro.
– Mas eu devo...
– Preferes que façamos amor aqui fora? – inquiriu, arqueando uma
sobrancelha.
Judith sorriu encantada.
– Não, não me parece.
Fizeram amor vagarosamente, saboreando o corpo um do outro até que a
paixão crescesse. Era isso o que Gavin adorava ao fazer amor com Judith: a
variedade. Ela nunca parecia ser a mesma duas vezes. Se numa ocasião se
mostrava calma e sensual, na seguinte era agressiva e exigente. Em alguns
momentos, ria e provocava; noutros, gostava de experimentar novidades e
era quase acrobática. Mas, independentemente do que ela era, adorava amá-
la. Até o pensamento de tocá-la o excitava.
Estreitou-a, com o nariz enterrado nos seus cabelos. Ela moveu-se contra
ele como se pudesse aproximar-se mais, o que era impossível. Gavin
beijou-lhe o topo da cabeça, sonolento, e adormeceu.
***

– Estais a apaixonar-vos por ele – comentou Joan na manhã seguinte


enquanto penteava os cabelos da ama. – A luz que atravessava as paredes
da tenda era suave e de várias tonalidades. Judith usava um vestido de uma
macia lã verde, com um cinto de couro trançado em volta da cintura. Até
mesmo as roupas simples de viagem sem adornos ressaltavam o brilho da
pele. Os olhos eram as únicas joias de que precisava.
– Suponho que te referes ao meu marido.
– Oh, não! – replicou Joan, despreocupadamente. – Referia-me ao homem
das empadas.
– Como… te deste conta?
Joan não respondeu.
– Não é correto que uma mulher ame o seu marido?
– É, se o seu amor for correspondido. Mas tende cuidado e não vos
apaixoneis ao ponto de vos sentirdes despedaçada, se ele for infiel.
– Ele quase não sai da minha vista – defendeu-o Judith.
– É verdade, mas o que se passará na Corte do rei? Não ficareis sozinha
com Lorde Gavin. Estarão lá as mulheres mais belas de Inglaterra. Qualquer
homem desviaria o olhar.
– Cala-te! – ordenou Judith. – Cuida do meu cabelo.
– Sim, milady – anuiu Joan, trocista.
Durante todo o dia de viagem Judith pensou nas palavras de Joan. Acaso
começava a apaixonar-se pelo marido? Uma vez, tinha-o visto nos braços
de outra mulher, o que a enfurecera. Mas o que a deixara zangada, de facto,
era a falta de respeito que isso representava. Contudo, agora a ideia de vê-lo
com outra mulher fazia-a sentir como se pequenos dardos de gelo lhe
atravessassem o coração.
– Estás bem, Judith? – perguntou Gavin do cavalo ao lado dela.
– Sim... Não.
– O que se passa?
– Estou preocupada com a Corte do rei Henrique. Há muitas… mulheres
bonitas lá?
Gavin olhou para Stephen por cima da cabeça da jovem.
– O que tens a dizer, irmão? As mulheres na Corte são formosas?
Stephen olhou para a cunhada, sem sorrir.
– Creio que vai saber por si própria – respondeu calmamente e em
seguida desviou o cavalo para se juntar aos seus homens.
Judith voltou-se para Gavin.
– Não queria ofendê-lo.
– Não o ofendeste. Embora não tenha comentado a sua preocupação,
Stephen teme o seu casamento iminente e não posso criticá-lo. A jovem
odeia os ingleses e certamente fará da sua vida um inferno.
Judith assentiu e olhou de novo para a estrada.
Foi quando pararam para o jantar que conseguiu escapar-se por alguns
momentos. Encontrou um arbusto de framboesas selvagens nas margens do
acampamento e começou a encher a saia da sua túnica.
– Não deverias estar aqui sozinha.
Judith soltou uma exclamação abafada.
– Assustaste-me, Stephen.
– Se eu fosse um inimigo, agora poderias estar morta… ou então
sequestrada e mantida para pedido de resgate.
Judith fitou-o.
– És sempre tão sombrio, Stephen, ou é apenas essa herdeira escocesa que
te preocupa tanto?
Stephen respirou fundo.
– Sou assim tão transparente?
– Não para mim, mas para Gavin. Senta-te um pouco comigo. Parece-te
que podemos ser totalmente egoístas e comermos todas estas framboesas?
Conheces a tua escocesa?
– Não – respondeu Stephen, levando à boca uma framboesa aquecida pelo
sol. – Ela ainda não é minha. Sabias que o pai a fez Laird10 do clã MacArran
antes de morrer?
– Uma mulher que herda um clã por conta própria? – Os olhos de Judith
refletiam uma expressão distante.
– Sim – anuiu Stephen, desgostoso.
Judith recompôs-se.
– Então não sabes como ela é?
– Oh, sim, sei! Tenho certeza de que é baixa, morena, e enrugada como
uma pinha.
– É velha?
– Talvez seja uma pinha jovem e gorda.
Judith riu ante o seu ar de fatalidade.
– Como são diferentes os quatro irmãos. Gavin é irascível – gelo num
momento e fogo um segundo depois. Raine é riso e brincadeira e Miles é...
Stephen interrompeu-a com um sorriso.
– Não tentes explicar-me como é Miles. Esse rapaz tenta povoar toda a
Inglaterra com os seus filhos.
– O que me dizes de ti? Que lugar te corresponde? És o segundo filho,
mas pareces-me o menos fácil de conhecer.
Stephen desviou o olhar.
– Não foi fácil quando era um rapazinho. Miles e Raine tinham-se um ao
outro, Gavin ocupava-se das propriedades e eu...
– Estavas sozinho.
Stephen fitou Judith, atónito.
– Enfeitiçaste-me! Em poucos momentos contei-te mais sobre mim do
que alguma vez disse a qualquer outra pessoa.
Os olhos de Judith cintilaram.
– Se essa tua herdeira escocesa não te tratar bem, avisa-me e arrancar-lhe-
ei os dois olhos.
– Primeiro, esperemos que tenha os dois olhos.
Romperam ambos à gargalhada.
– Apressemo-nos a comer esta fruta ou teremos que partilhá-la. Se não
me engano, vem aí o meu irmão mais velho.
– Vou encontrar-te sempre na companhia de outros homens? – Gavin
franziu-lhes o sobrolho.
– Vais saudar-me sempre com uma crítica? – replicou Judith.
Stephen soltou uma gargalhada.
– Creio que vou regressar ao acampamento. – Inclinou-se e beijou a testa
de Judith. – Se precisares de ajuda, irmãzinha, também sei arrancar os olhos
das pessoas.
Gavin agarrou o irmão pelo braço.
– Ela também te enfeitiçou?
Stephen olhou de volta para a cunhada, que tinha os lábios manchados de
rosa-escuro devido às framboesas.
– Sim. Se não a quiseres...
Gavin lançou-lhe um olhar de desagrado.
– Raine já a pediu.
Stephen riu e afastou-se.
– Por que te afastaste do acampamento? – quis saber Gavin enquanto se
sentava ao lado dela e tirava um punhado de framboesas do seu colo.
– Chegaremos a Londres amanhã, não é?
– Sim. O rei e a rainha não te assustam, pois não?
– Não, eles não.
– O que te assusta, então?
– As… mulheres da Corte.
– Estás com ciúmes? – riu ele.
– Não sei.
– Como poderia ter tempo para outras mulheres quando estás perto?
Esgotas-me a tal ponto que mal consigo manter-me sobre o meu cavalo.
Ela não riu com ele.
– Só há uma mulher que me mete medo. Separou-nos antes. Não deixes
que ela...
A expressão de Gavin endureceu-se.
– Não fales dela. Tratei-te bem e não me intrometo no que fizeste com
Demari. Mas tu queres aprisionar-me a alma.
– Ela é a tua alma? – perguntou Judith em voz baixa.
Gavin fitou os seus olhos quentes, a pele suave e perfumada. As noites
passadas de paixão invadiram-lhe a memória.
– Não me perguntes – sussurrou. – Só tenho certeza de uma coisa: que a
minha alma não me pertence.
***

A primeira coisa que Judith notou em Londres foi o mau cheiro. Julgava
conhecer todos os odores que os humanos poderiam criar, pois tinha
passado verões em castelos assolados pelo calor e pelo excesso de
população. Mas nada a preparara para Londres. Esgotos abertos corriam de
cada lado das ruas de paralelepípedos, transbordando de todo o tipo de lixo.
De cabeças de peixe e vegetais apodrecidos aos conteúdos dos penicos,
tudo estava nas ruas. Porcos e ratos corriam livremente, comendo o lixo e
espalhando-o por toda a parte.
As casas, edifícios de madeira aliada a pedra, tinham dois ou três andares
de altura; estavam tão perto umas das outras que pouco ar e nenhum sol
circulavam entre eles. O horror que Judith sentiu deve ter-se notado no
rosto, pois tanto Gavin como Stephen se riram dela.
– Bem-vinda à cidade dos reis – comentou Stephen.
Uma vez dentro das muralhas de Winchester, o ruído e mau cheiro eram
menores. Um homem veio encarregar-se dos cavalos e assim que Gavin
ajudou Judith a desmontar do dela, ela virou-se para dar ordens sobre as
carroças com a bagagem e o mobiliário.
– Não – contrapôs Gavin. – Tenho a certeza de que o rei foi informado da
nossa chegada, e não vai gostar de esperar enquanto pões ordem no seu
castelo.
– As minhas roupas estão limpas? Não estão muito amarrotadas? – Judith
tinha-se vestido com esmero naquela manhã, com uma anágua de seda preta
e um vestido de veludo amarelo brilhante. As longas mangas penduradas
estavam revestidas com finíssima zibelina russa. Havia também uma larga
orla de zibelina ao longo da bainha do vestido.
– Estás perfeita. Agora vamos para que o rei te veja.
Judith tentou acalmar o coração palpitante com a ideia de conhecer o rei
de Inglaterra. Ignorava o que a esperava, mas nunca imaginara que o salão
fosse tão comum. Homens e mulheres sentados jogavam xadrez e outros
jogos. Três mulheres sentavam-se nos banquinhos aos pés de um homem
bonito que tocava um saltério. Não via nenhum homem que pudesse ser o
rei Henrique de Inglaterra.
Judith ficou espantada quando Gavin parou diante de um homem vulgar,
de meia-idade; tinha olhos azuis e cabelos brancos e ralos. Parecia muito
cansado.
A jovem recompôs-se e apressou-se a fazer uma vénia.
O rei pegou-lhe na mão.
– Aproximai-vos da luz para que possa ver-vos. Ouvi muitos comentários
sobre a vossa beleza. – Levou-a para o lado, pairando sobre ela, pois tinha
um metro e oitenta de altura. – Sois tão bonita quanto me haviam dito. –
Vem cá, Bess – disse o rei – e vê Lady Judith, a esposa de Gavin.
Ao virar-se, Judith deparou com uma bela mulher de meia-idade.
Surpreendera-se ao descobrir que aquele homem era o rei, mas não havia
dúvida de que aquela mulher era a rainha. Era uma mulher majestosa e
segura de si mesma, a ponto de poder mostrar-se gentil e generosa. Os seus
olhos expressavam boas-vindas a Judith.
– Majestade! – saudou Judith com uma reverência.
Isabel estendeu a mão.
– Condessa! – exclamou a rainha. – Sinto-me muito feliz por haveis
vindo passar algum tempo connosco. Disse algo de errado?
Judith sorriu ante aquela sensibilidade.
– É a primeira vez que me chamam «condessa». Passou pouco tempo
desde a morte de meu pai.
– Sim, foi uma tragédia, não foi? E o homem que cometeu a ação?
– Está morto – respondeu Judith com firmeza, lembrando-se muito bem
da sensação da espada a afundar-se na espinha de Walter.
– Vinde. Deveis estar cansada depois da viagem.
– Não, não estou.
Isabel sorriu afetuosamente.
– Então, talvez gostásseis de vir aos meus aposentos tomar um pouco de
vinho.
– Sim, Majestade, gostaria.
– Vais desculpar-me, Henrique?
Judith percebeu subitamente que tinha virado as costas para o rei. Deu
meia-volta, com as faces ruborizadas.
– Não vos preocupeis comigo, jovem – manifestou-se o rei, distraído. –
Tenho a certeza de que Bess vai colocar-vos a trabalhar nos planos para o
casamento do nosso filho mais velho, Artur.
Judith sorriu e fez-lhe uma reverência, antes de seguir a rainha pela ampla
escadaria até ao andar superior.

10 Laird é um nome genérico para o dono de uma propriedade escocesa grande e de longa data,
aproximadamente equivalente a um escudeiro na Inglaterra, mas ainda superior na Escócia. Na
ordem de precedência escocesa, um laird está abaixo de um barão e acima de um cavalheiro. (N. da
T.)
Capítulo Vinte e Quatro

Alice estava sentada num banquinho diante de um espelho, numa grande


sala do último andar do palácio. Ao seu redor havia cores intensas em
abundância: cetins púrpura e verde, tafetás escarlates, brocados alaranjados.
Cada tecido, cada peça, tinha sido escolhida como um instrumento para
chamar a atenção para si mesma. No casamento de Judith Revedoune tinha
visto os vestidos da noiva e Alice sabia que o gosto da herdeira tendia para
as cores simples, tecidos finos e de boa qualidade. Alice queria chamar a
atenção de Gavin com as suas roupas brilhantes.
Usava uma anágua rosa pálido, com as mangas bordadas de tranças
negras que desciam em redemoinhos. O seu vestido de veludo carmesim
tinha profundas aberturas de lado e na saia foram aplicadas enormes flores
silvestres de todas as cores conhecidas. O seu orgulho residia na pequena
capa que lhe cobria os ombros. Era de brocado italiano, com chamativos
animais entretecidos no tecido; cada um tinha o tamanho de uma mão
masculina, em tons de verde, púrpura, laranja e preto. Tinha a certeza de
que ninguém a superaria nesse dia.
Era muito importante que Alice chamasse a atenção porque voltaria a ver
Gavin. Sorriu para a sua imagem refletida no espelho. Precisava, sem
dúvida, do amor de Gavin depois daquela fase horrível que passara com
Edmund. Agora que era viúva, podia recordar Edmund quase com carinho.
É claro que o pobre homem só agira assim por uma questão de ciúmes.
– Olha para esta tiara! – ordenou subitamente à sua serva, Ella. – Parece-
te que essa pedra azul combina com os meus olhos ou é demasiado clara? –
Arrancou o círculo dourado da cabeça com um gesto furioso. – Maldito seja
o ourives! Deve ter usado os pés para fazer uma obra tão desinteressante.
Ella retirou a tiara das mãos coléricas da ama.
– O ourives é o mesmo que trabalha para o rei, o melhor de toda a
Inglaterra, e a tiara é a mais bonita que ele criou – tranquilizou-a Ella. – A
pedra parece clara, mas não há nenhuma que pudesse igualar a cor intensa
dos vossos olhos, milady.
Alice voltou a olhar para o espelho e começou a acalmar-se.
– É isso realmente o que pensas?
– Sim – respondeu Ella sinceramente. – Nenhuma mulher poderia
rivalizar com a vossa beleza.
– Nem mesmo aquela cadela da Revedoune? – perguntou Alice, negando-
se a usar o nome de casada de Judith.
– Sem dúvida, milady. Não estais por acaso a planear algo… que se
oponha aos ensinamentos da Igreja, pois não?
– Como poderia estar a planear o que lhe faço contra os ensinamentos da
Igreja? Gavin era meu antes que ela o tomasse, e voltará a ser meu!
Ella sabia por experiência que era impossível chamar Alice à razão,
quanto ela tinha algo em mente.
– Lembrais-vos que estais de luto pelo vosso marido, como ela pelo pai?
Alice riu.
– Imagino que sentimos o mesmo por esses homens. Constou-me que o
seu pai era ainda mais desprezível do que o meu amado marido.
– Não faleis assim dos mortos, milady.
– Não me repreendas ou mando-te servir outra pessoa. – Era uma ameaça
familiar a que Ella já não prestava atenção. O pior castigo que Alice poderia
imaginar era privar uma pessoa da sua companhia.
Alice levantou-se e alisou o vestido. Todas as cores e texturas brilharam e
competiram entre si.
– Parece-te que ele vai reparar em mim? – perguntou sem fôlego.
– Quem não repararia?
– Sim – concordou Alice. – Quem poderia não reparar?
***

Judith permanecia de pé em silêncio ao lado do marido, aturdida pelos


muitos convidados do rei. Gavin parecia à vontade com todos eles, como
um homem respeitado, cuja palavra é valorizada. Era bom vê-lo num
ambiente que não fosse estritamente pessoal. Apesar de todas as suas brigas
e disputas, ele cuidava dela e protegia-a. Sabia que ela não estava
acostumada a multidões, portanto, mantinha-a perto dele, sem a forçar a
misturar-se com as mulheres, onde se teria visto entre desconhecidas.
Recebeu muitas provocações a esse respeito, mas sorriu de bom humor, sem
constrangimento, ao contrário do que a maioria dos homens teria feito na
sua situação.
As compridas mesas de cavalete estavam a ser armadas para o jantar; os
trovadores organizavam os seus músicos e os acrobatas ensaiavam os seus
números.
– Estás a divertir-te? – perguntou Gavin, sorridente.
– Sim, mas é tudo muito barulhento e movimentado.
– Vai ficar pior – advertiu, sorrindo. – Diz-me se te sentires cansada e
iremos embora.
– Não te importas que me mantenha tão perto de ti?
– Importava-me se não estivesses. Não te quereria em liberdade entre esta
gente. Há muitos jovens – e velhos, também – que te devoram com os
olhos.
– Deveras? – reagiu Judith, inocentemente. – Não tinha notado.
– Não os provoques, Judith. A moral da Corte é muito fugaz e não
gostaria que te visses presa em alguma trama devido à tua ingenuidade.
Mantém-te comigo ou com o Stephen. Não te aventures sozinha. A menos
que... – Os seus olhos ensombraram-se ao recordar Walter Demari – desejes
encorajar alguém.
Judith ia a dizer-lhe o que pensava das suas insinuações, mas um certo
conde – jamais recordaria tantos nomes – veio falar com Gavin.
– Vou ter com o Stephen – disse ela e caminhou ao longo da enorme sala
até onde estava o cunhado, apoiado à parede atapetada.
Stephen, como Gavin, estava vestido com um traje luxuoso de lã escura.
O de Stephen era castanho, o de Gavin cinzento. Os duplos coletes,
ajustados ao corpo, eram também de lã escura finamente tecida. Judith não
pôde evitar um arrepio de orgulho por estar acompanhada de homens tão
magníficos.
Judith reparou numa jovem bonita, de rosto sardento, com um nariz
arrebitado que olhava insistentemente para Stephen por trás das costas do
pai.
– Ela parece gostar de ti – comentou Judith.
Stephen não levantou os olhos.
– Sim – concordou, abatido. – Mas os meus dias estão contados, não é
verdade? Dentro de poucas semanas vou ter uma amostra de mulher de pele
escura pendurada no meu braço, e terei de suportar os seus berros, ante
qualquer coisa que faça.
– Stephen! – riu Judith. – Essa mulher não pode ser tão má como pensas.
Nenhuma mulher poderia ser. Pensa no meu caso. Gavin não me tinha visto
antes do nosso casamento. Acreditas que também estava convencido de que
eu era horrível?
Stephen baixou os olhos para o rosto dela.
– Não sabes quanto invejo o meu irmão. Não só és bela, mas inteligente e
bondosa também. Gavin é o mais afortunado dos homens.
Judith sentiu que o sangue lhe afluía ao rosto.
– Bajulas-me, mas gosto de te ouvir.
– Não sou nenhum bajulador – reagiu Stephen sem rodeios.
De repente, a atmosfera agradável que reinava no salão mudou e tanto
Stephen como Judith olharam para as pessoas ao seu redor, sentindo que
uma parte da tensão se lhes dirigia. Muitas pessoas olhavam para Judith –
algumas apreensivas, algumas com sorrisos falsos, outras com perplexidade
– sem compreenderem o que se passava.
– Já viste o jardim, Judith? – sugeriu Stephen. – A rainha Isabel tem lírios
belíssimos e as suas rosas são magníficas.
Judith fitou-o com o sobrolho franzido, percebendo que ele a queria fora
do salão por algum motivo. Várias pessoas afastaram-se para o lado,
permitindo-lhe que visse o motivo da tensão. Alice Chatworth entrava no
salão com um ar majestoso, de cabeça erguida, um sorriso quente no rosto.
O sorriso era para uma única pessoa: Gavin.
Judith observou-a atentamente. Na sua opinião, o vestido parecia
espalhafatoso e mal combinado. Não encontrou beleza alguma naquela pele
pálida, nem nos olhos, claramente obscurecidos por meios artificiais.
A multidão ficou mais calma enquanto o «segredo» de Alice e Gavin
circulava em sussurro de uma pessoa para outra. Judith desviou a atenção
da mulher para observar o marido. Gavin fitava Alice com uma intensidade
que era quase tangível, como se estivesse hipnotizado por ela, e nada
pudesse quebrar o contacto visual. Ela avançou lentamente na sua direção e,
quando estava perto, estendeu-lhe a mão. Gavin pegou-lhe e beijou-a
longamente.
A gargalhada do rei ouviu-se acima dos pequenos sons do salão.
– Aparentemente, os dois conhecei-vos bem.
– Na verdade – respondeu Gavin, sorrindo lentamente.
– Sem dúvida – replicou Alice, fitando-o com um sorriso recatado, de
lábios fechados.
– Penso que gostaria de ver o jardim agora – disse Judith rapidamente e
aceitou o braço estendido de Stephen.
– Judith... – começou Stephen quando estavam sozinhos no lindo jardim.
– Não me fales dela. Não podes dizer nada que me conforte. Sempre
soube da existência dela, desde o dia do nosso casamento. – Contemplou
um roseiral, que espalhava a sua pesada fragância no ar. – Ele nunca me
mentiu a respeito dela. Não me ocultou que a ama, nem tentou fingir que
sente carinho por mim.
– Basta, Judith! Para com isso. Não podes aceitar essa mulher.
Judith voltou-se para o cunhado.
– Que mais queres que faça? Diz-me o quê, por favor! Ele acredita que eu
sou perversa em cada coisa que faço. Se vou até ele quando é mantido em
cativeiro, acredita que fui em busca do meu amante. Se concebo o seu filho,
acredita que pertence a outro.
– A criança é de Gavin?
– Vejo que te disse que acredita que o meu bebé é de Demari.
– Por que não lhe contas a verdade?
– Para que me chame mentirosa? Não, obrigada. Esta criança é minha,
não importa quem é o pai.
– Para Gavin, Judith, seria muito importante saber que a criança é dele.
– Vais a correr contar-lhe? – inquiriu ela, acaloradamente. – Derrubarás a
amante para te acercares dele? A notícia vai fazê-lo muito feliz, tenho a
certeza. Assim, terá as propriedades Revedoune, um herdeiro a caminho e a
sua loira Alice para amar. Perdoa-me se sou suficientemente egoísta para
querer manter alguma pequena coisa para mim, por um tempo.
Stephen sentou-se num banco de pedra e observou-a. Sabia que era
melhor não confrontar o seu irmão mais velho num momento em que estava
tão enfurecido. Uma mulher como Judith não merecia tanta negligência,
nem que Gavin a tratasse daquela maneira.
– Milady – chamou uma mulher.
– Estou aqui, Joan – respondeu Judith. – O que queres?
– As mesas estão preparadas para o jantar e deveis vir.
– Não, não vou. Diz, por favor, que estou indisposta. O meu estado
servirá de desculpa.
– Deixareis que essa rameira fique com ele? – gritou Joan. – Tereis de
estar presente.
– Concordo, Judith – apoiou Stephen.
Joan girou, sem se ter apercebido da presença de Stephen. Ficou
ruborizada. Ainda não havia ultrapassado a surpresa ante a beleza
impressionante dos homens da nova família da sua ama. Até mesmo o
modo como se moviam fazia-a estremecer de desejo.
– Planeias atacá-lo aqui? – inquiriu Judith. – Por vezes, esqueces-te onde
estás, Joan.
– São os homens que me obrigam a esquecê-lo – murmurou a criada. –
Lorde Gavin perguntou por vós.
– Sinto-me feliz por ele se lembrar de mim – comentou sarcástica.
– Sim, lembrei-me de ti – disse Gavin do portão. – Vai – ordenou à
criada. – Gostaria de falar com a minha mulher a sós.
Stephen levantou-se.
– Também irei. – Dirigiu um olhar duro ao irmão e depois afastou-se.
– Não me sinto bem – declarou Judith. – Preciso ir para o meu quarto.
Gavin agarrou-lhe o braço e aproximou-se dela. Os olhos dela miraram-
no com frieza. Quanto tempo se passara desde que o tinha olhado assim!
– Judith, não voltes a odiar-me.
Judith tentou afastar-se dele.
– Humilhas-me e não posso demonstrar raiva? Ignorava que me
consideravas uma santa. Talvez devesse pedir para ser canonizada.
Gavin riu da sua arguta inteligência.
– Não fiz nada além de olhar para ela e beijar-lhe a mão. Não a via há
bastante tempo.
Judith esboçou um sorriso trocista.
– Olhar para ela? – sibilou. – Os juncos à volta quase se incendiaram.
Gavin baixou o rosto e fitou a mulher com uma expressão surpreendida.
– Estás com ciúmes? – perguntou calmamente.
– Daquela loira que deseja o meu marido? Não! Encontraria uma
candidata mais digna, se tivesse ciúmes.
Os olhos de Gavin faiscaram por um momento. Até então, nunca tinha
permitido que alguém falasse mal de Alice.
– Essa raiva desmente-te.
– Raiva! – exclamou, mas depois acalmou-se. – Sim, enraivece-me que
exibas a tua paixão à vista de todos. Envergonhaste-me diante do rei. Não te
deste conta de como todos me olhavam e sussurravam? – Desejava magoá-
lo. – Quanto ao ciúme, é preciso amar para que essa emoção ocorra.
– E não me amas? – indagou ele friamente.
– Nunca te disse isso, pois não? – Judith não podia interpretar a sua
expressão. Não sabia se havia ou não magoado Gavin. Mas, mesmo que
assim tivesse sido, as suas palavras cruéis não a satisfaziam.
– Acompanha-me, então – disse ele, pegando-lhe no braço. – O rei está à
nossa espera para jantarmos e não vais insultá-lo com a tua ausência. Se
desejas verdadeiramente acabar com os rumores, deves representar o papel
de esposa apaixonada.
Judith seguiu-o sem se opor, estranhamente esquecida da sua ira.
Como convidados recém-chegados e merecedores de honras especiais,
Gavin e Judith foram sentados ao lado do rei e da rainha; Judith à direita do
rei; Gavin à esquerda da rainha e ao lado de Gavin, Alice.
– Pareceis nervosa – disse o rei Henrique a Judith.
Ela sorriu.
– Não, é apenas a viagem e a gravidez que me cansam.
– Grávida, tão cedo? Tenho a certeza de que Lorde Gavin está
especialmente satisfeito com isso.
Judith sorriu, mas não pôde dar uma resposta.
– Gavin – murmurou Alice para que ninguém mais ouvisse as suas
palavras –, há tanto tempo que não te via. – Abordava-o com cautela, pois
sentia que as coisas haviam mudado entre eles. Não esquecera obviamente
o seu amor por ela ou não a teria olhado daquela maneira. Contudo, mal
acabara de beijar-lhe a mão quando os seus olhos se puseram a esquadrinhar
o salão e só pararam quando viu a esposa a retirar-se. Momentos depois,
tinha-a abandonado para seguir Judith.
– As minhas condolências devido à morte precoce do teu marido –
pronunciou Gavin friamente.
– Vais pensar que sou cruel, mas lamento muito pouco a sua morte –
murmurou Alice tristemente. – Ele era... desagradável comigo.
Gavin fitou-a com aspereza.
– Mas acaso não era o marido que escolheste?
– Como podes dizer isso? Fui forçada a aceitar esse casamento... Oh,
Gavin, se ao menos tivesses esperado… agora poderíamos estar juntos. Mas
tenho a certeza de que o rei nos permitiria casarmos. – Ela pousou a mão no
seu braço.
Ele contemplou aquela mão fina e pálida e depois voltou a fitá-la nos
olhos.
– Esqueces que estou casado? Que tenho uma esposa?
– O rei é um homem compreensivo. Escutar-nos-ia. O teu casamento
pode ser anulado.
Gavin voltou-se para a comida no seu prato.
– Não me fales de anulação. Ouvi essa palavra o suficiente para me durar
uma vida. Ela carrega uma criança. Nem mesmo o rei dissolveria um
casamento nestas condições.
Gavin dedicou sua atenção à rainha e começou a fazer perguntas sobre o
casamento do príncipe Artur com Catalina11, princesa de Espanha.
Alice manteve-se em silêncio, pensando nas palavras de Gavin.
Tencionava averiguar por que estava ele cansado da palavra «anulação» e
por que se referia ao bebé da sua esposa como «uma criança» quase como
se não o tivesse gerado.
Uma hora depois, as mesas estavam levantadas e empilhadas contra a
parede, dando espaço para quem desejasse dançar.
– Queres dançar comigo? – perguntou Gavin à esposa.
– Devo pedir permissão? – inquiriu ela, olhando para Alice, que estava
sentada entre vários jovens admiradores.
Gavin cravou-lhe os dedos no braço.
– Estás a ser injusta comigo. Não fui eu quem distribuiu os lugares para o
jantar. Estou a fazer tudo o que está ao meu alcance para te tranquilizar, mas
há algumas coisas que não posso controlar.
«Talvez esteja a agir de forma irracional», pensou ela.
– Sim, dançarei contigo.
– Ou talvez prefiras passear pelo jardim – sorriu ele. – A noite está
quente.
Ela hesitou.
– Vem comigo, Judith.
Mal haviam franqueado o portão quando ele a estreitou entre os braços e
a beijou com voracidade. Judith agarrou-se-lhe desesperadamente.
– Minha doce Judith – sussurrou o jovem. – Não sei como posso
continuar a suportar a tua raiva. Magoa-me profundamente que me olhes
com ódio.
Ela fundiu-se contra Gavin. Nunca havia estado tão perto de lhe declarar
o seu amor. Poderia confiar nele, acreditar nele?
– Sobe até lá acima comigo. Vamos para a cama e não voltemos a
discutir.
– Estás a dizer-me palavras ternas com a esperança de que não seja fria na
cama? – replicou ela, desconfiada.
– Digo palavras ternas porque as sinto. Não quero que me sejam atiradas
à cara.
– Eu... desculpa. Fui cruel contigo.
Gavin voltou a beijá-la.
– Ocorrer-me-á alguma maneira para que me peças desculpa pelo teu
temperamento precipitado.
Judith deu uma risadinha e ele sorriu calorosamente, acariciando-lhe a
têmpora.
– Vem comigo… se não queres que te possua no jardim do rei.
Ela perscrutou aquele lugar escuro, como se estudasse a hipótese.
– Não! – riu ele. – Não me tentes. – Agarrou-lhe a mão e conduziu-a
pelas escadas até ao último andar da mansão. O enorme quarto havia sido
dividido em pequenos quartos para a noite com biombos de carvalho
desdobráveis.
– Milady! – murmurou Joan, sonolenta, quando os ouviu aproximarem-
se.
– Esta noite não precisaremos dos teus serviços – dispensou-a Gavin.
Joan revirou os olhos e esgueirou-se pelo labirinto de biombos.
– Ela está de olho no teu irmão – observou Judith.
Gavin arqueou uma sobrancelha.
– Que te importa o que Stephen faz com as suas noites?
Judith sorriu-lhe.
– Quanto a ti, desperdiças a nossa com conversas inúteis. Vou ajudar-te
com esses botões.
Gavin tornara-se bastante eficiente a despir a esposa. Quando começou a
tirar as suas próprias roupas, Judith sussurrou:
– Deixa que seja eu a fazê-lo. Esta noite serei o teu escudeiro.
Desabotoou o cinto que segurava o gibão sobre o seu ventre duro e liso e
fê-lo deslizar pela cabeça. Seguiu-se a túnica de mangas compridas, que pôs
a descoberto o peito e a parte superior das coxas entre a calça e as roupas
íntimas.
Uma grossa vela ardia junto à cama. Judith empurrou Gavin para perto da
luz, estudando o seu corpo com interesse. Embora o tivesse explorado com
as mãos, era a primeira vez que o fazia com os olhos. Deslizou as pontas
dos dedos pelos músculos do seu braço e pelo ventre ondulado.
– Agrado-te? – perguntou ele, com os olhos escurecidos.
A jovem sorriu-lhe. Às vezes, ele parecia ser um rapazinho, preocupado
com o facto de ela poder ou não gostar dele. Sem contestar, moveu-se na
cama e desabotoou-lhe a calça, atirando-a para longe das pernas
musculosas. Gavin ficou imóvel, como se receasse quebrar o feitiço. Judith
deslizou as mãos pelos lados, desde os pés até aos quadris, e desatou
habilmente o calção de linho preso à cintura por um cadarço. Percorreu-lhe
todo o corpo com as mãos.
– Agradas-me – disse, por fim, beijando-o. – E eu, agrado-te?
Ao invés de responder, empurrou-a para a cama e deitou-se em cima dela.
A sua paixão era tanta que não podia esperar por ela muito tempo, mas
Judith também precisava dele com igual premência.
Mais tarde, Gavin estreitava-a, de ouvido atento à sua respiração serena.
Interrogava-se sobre quando se apaixonara por ela. Talvez já estivesse
apaixonado quando a levara para casa e a abandonara na soleira da porta.
Sorriu ao lembrar a sua própria fúria por ela ousar desafiá-lo. Beijou-lhe a
testa adormecida. Judith continuaria a desafiá-lo, mesmo quando tivesse
noventa anos. Na verdade, a ideia era atrativa.
Quanto a Alice? Quando havia deixado de amá-la? Acaso a tinha amado
alguma vez? Talvez tivesse sido somente a paixão de um jovem por uma
bela mulher. Ela era linda, sem dúvida, e nessa noite ficara surpreendido ao
vê-la novamente; o seu brilho de certo modo ofuscara-o. Alice era uma
mulher gentil, suave e boa, tão doce quanto Judith era ácida. Mas nos
últimos meses ele tinha aprendido a gostar de um pouco de vinagre na
comida.
Judith moveu-se nos seus braços e aproximou-a um pouco mais.
Acusava-a de desonestidade, mas realmente não acreditava nas suas
próprias palavras. Se estava grávida de outro homem, então, tinha-o
concebido enquanto tentava proteger o seu marido. Equivocadamente, sem
dúvida, mas no fundo por bondade. Renunciaria à própria vida para salvar a
mãe, e até mesmo um marido que não a tratava bem.
Abraçou-a com tanta força que ela despertou, lutando para respirar.
– Estás a estrangular-me! – ofegou.
Ele beijou-lhe o nariz.
– Nunca te tinha dito que gosto de vinagre?
Ela olhou-o sem compreender.
– Que tipo de esposa és? – questionou Gavin. – Não sabes como ajudar o
teu marido a dormir? – Esfregou as ancas contra o corpo dela e a jovem
arregalou os olhos. – Dormir assim iria causar-me muitas dores. Não
gostarias disso, não é verdade?
– Não – sussurrou ela com os olhos meio fechados. – Não tens de
suportar tanta dor.
Era Gavin quem estava excitado. Judith estava envolta numa luz
vermelha e prateada. Ele deslizou as mãos sobre o seu corpo, como se
nunca lhe tivesse tocado antes e a sua carne fosse algo novo. Depois de
familiarizar as palmas das mãos com aquela pele macia, começou a
explorá-la com os olhos.
Judith gritou com uma ânsia desesperada, mas ele limitou-se a rir e
afastou-lhe as mãos dos seus ombros. Quando ela estava a tremer de desejo,
penetrou-a e vieram-se juntos quase instantaneamente. Adormeceram,
entrelaçados, com Gavin ainda em cima dela.
Na manhã seguinte, quando Judith despertou, Gavin havia desaparecido.
A cama estava deserta e vazia. Joan ajudou-a a vestir um vestido de veludo
castanho, com um decote quadrado e acentuado. As mangas estavam
forradas com pele de raposa. Sobre o peito e ao redor da cintura usava
cordões dourados, presos no ombro com um alfinete de diamantes. Durante
o jantar, haviam falado sobre um dia de caça com arcos e ela queria
participar.
Gavin esperava-a ao fundo da escada, com os olhos a dançar de prazer.
– Que dorminhoca! Tinha a esperança de te encontrar na cama e talvez
juntar-me a ti. – Ela sorriu provocadora.
– Queres que voltemos?
– Não, agora não. Tenho notícias a dar-te. Falei com o rei e ele concorda
em permitir que John Bassett se case com a tua mãe. – O rei Henrique era
galês, descendente de plebeus.
Judith olhou-o fixamente.
– Isso não te agrada?
– Oh, Gavin! – Judith lançou-se dos degraus para os seus braços.
Estreitou-o com tanta força pelo pescoço que ele quase sufocou.
– Muito obrigada, milhares de vezes, obrigada.
Ele abraçou-a, rindo.
– Se soubesse que reagirias assim, teria conversado com o rei ontem à
noite.
– Ontem à noite não poderias assimilar mais do que tiveste – disse Judith
secamente.
Ele riu e apertou-a até ela implorar por liberdade aos gritos, pois estava
quase a sofrer uma fratura das costelas.
– Acreditas que não? – desafiou-a Gavin. – Provoca-me um pouco mais e
vou levar-te para a cama e manter-te lá até que estejas demasiado dorida
para andar.
– Gavin! – protestou ela, ruborizada. – Olhou ao redor para ver se alguém
estivera a ouvir.
Ele soltou uma risada e beijou-a levemente.
– A minha mãe sabe do casamento dela?
– Não. Pensei que talvez gostasses de lhe dizer pessoalmente.
– Tenho vergonha de confessar que nem sei onde ela está.
– Mandei John encarregar-se do alojamento dos meus homens. Suponho
que a tua mãe esteja perto dele.
– É verdade, ela não costuma sair do seu lado. Obrigada, Gavin. Foste
muito gentil em me concederes esse favor.
– Oxalá pudesse conceder-te tudo o que desejasses – retorquiu
suavemente.
Judith olhou-o, maravilhada.
– Vai, então – sorriu. – Dá a notícia à tua mãe e depois junta-te a mim no
pátio para a caçada. – Colocou-a no chão e fitou-a, preocupado.
– Estás em condições de montar a cavalo?
Era a primeira vez que mencionava a criança sem raiva.
– Sim – respondeu ela, sorridente. – Estou muito bem. A rainha Isabel diz
que o exercício me fará bem.
– Sim, mas não exageres – advertiu Gavin.
Ela sorriu e virou-se, reconfortada por aquele interesse. Sentia-se leve de
felicidade.
Judith desceu as escadas e saiu do grande salão. O enorme pátio, que
estava dentro das muralhas vigiadas, abarrotava de gente. O barulho era
quase ensurdecedor, pois homens e mulheres gritavam com os criados e os
criados gritavam uns com os outros. A desorganização era tal que Judith se
perguntou como tudo era feito. Ao fundo do pátio havia um largo edifício.
Os cavalos galopavam pelo lado de fora, seguros pelos criados. Era
obviamente o estábulo.
– Ah, se não é a pequena ruiva! – murmurou uma voz ronronante que fez
com que Judith estacasse de imediato. – Vais a caminho de um encontro
com um amante, quem sabe?
Judith olhou fixamente para Alice Chatworth. A sua inimiga – cara a
cara.
– Deves recordar-te de mim, sem dúvida – prosseguiu Alice suavemente.
– Conhecemo-nos no teu casamento.
– Lamento não ter podido assistir ao teu, embora Gavin e eu
partilhássemos a tua mensagem de amor eterno – respondeu Judith no
mesmo tom.
Os olhos de Alice dispararam fogo azul e o seu corpo enrijeceu.
– Sim, é lamentável que tudo tenha acabado tão cedo.
– Acabado?
Alice sorriu.
– Não te inteiraste? O meu pobre esposo foi assassinado enquanto
dormia. Agora, sou viúva e estou livre. Oh, sim, muito livre. Supus que
Gavin te tinha contado... Ele estava muito interessado no meu novo... ah,
estado civil.
Judith rodou sobre os calcanhares e afastou-se a passo largo. Não, ela não
sabia que Alice havia enviuvado. Agora só ela se interpunha entre aquela
mulher e Gavin. Já não havia Edmund Chatworth para os estorvar.

11 Catarina de Aragão em espanhol: Catalina de Aragón foi princesa de Espanha. (N. da T.)
Capítulo Vinte e Cinco

Judith continuou a caminhar na direção dos estábulos, embora não tivesse


ideia para onde ia. A sua mente apenas estava consciente do facto de que
Alice Chatworth era viúva.
– Judith.
Ergueu o rosto e conseguiu sorrir à mãe.
– Vais participar na caçada de hoje?
– Sim – respondeu, perdida a alegria do dia.
– O que se passa?
Judith tentou sorrir.
– É que vou perder a minha mãe, só isso. Sabias que Gavin deu permissão
para o teu casamento com John Bassett?
Helen olhou para a filha. Não falou nem sorriu. Aos poucos, a cor
desapareceu do seu rosto. Caiu desfalecida nos braços da filha.
– Socorro! – conseguiu exclamar Judith.
Um jovem alto que estava perto correu para elas e ergueu Helen
rapidamente.
– Para os estábulos – indicou Judith. – Onde não haja sol.
Quando ficaram à sombra, Helen começou a recuperar quase
instantaneamente.
– Estás bem, mãe?
Helen olhou significativamente para o jovem, que compreendeu.
– Vou deixá-las sozinhas – disse ele e afastou-se antes que Judith pudesse
agradecer-lhe.
– Eu... não sabia – começou Helen. – Quero dizer, ignorava que Lorde
Gavin estivesse inteirado do meu amor por John.
Judith conteve uma gargalhada.
– Pedi-lhe permissão há algum tempo, mas ele queria consultar o rei. O
vosso casamento será pouco habitual.
– E em breve – murmurou Helen.
– Em breve…? Mãe!
Helen sorriu como uma criança apanhada numa travessura.
– Sim... na verdade... vou ter um filho dele.
Judith deixou-se cair em cima de um fardo de feno.
– Daremos à luz ao mesmo tempo? – perguntou Judith, maravilhada.
– Quase!
Judith começou a rir.
– Há que tomar disposições rapidamente para que o bebé tenha direito a
um apelido.
– Judith! – Ao erguer a cabeça viu que Gavin se aproximava delas. – Um
homem disse-me que a tua mãe se sentiu mal.
A jovem levantou-se e agarrou-lhe o braço.
– Vamos. Temos de conversar.
Momentos depois, Gavin meneava a cabeça, incrédulo.
– E pensar que acreditei que John Bassett fosse um homem sensato!
– Está apaixonado. Homens e mulheres fazem coisas insensatas quando
estão apaixonados.
Gavin fitou os seus olhos dourados, que brilhavam como nunca à luz do
Sol.
– Estou bem ciente disso.
– Por que não me disseste que ela estava viúva? – perguntou Judith em
voz baixa.
– Quem? – inquiriu Gavin, sinceramente desconcertado.
– Alice! Quem mais?
Ele encolheu os ombros.
– Não me ocorreu dizer-te – sorriu. – Quando estás perto de mim, tenho
outros pensamentos.
– Estás a tentar mudar de assunto?
Gavin agarrou Judith pelos ombros, levantando-a do chão.
– Maldição! Não sou eu quem vive obcecado por essa mulher, mas tu! Se
não posso fazer-te raciocinar devidamente, vou tentar abanar-te para que
entendas. Queres que te abane em público?
Ele sacudiu a cabeça, surpreendido, quando ela lhe sorriu docemente.
– Prefiro participar na caçada. Podes ajudar-me a montar no meu cavalo?
Gavin fixou-a um momento e depois depositou-a no chão. Nunca
entenderia as mulheres.
***

A caçada foi emocionante para Judith, que levava um pequeno falcão


num poleiro preso à sua sela. O seu falcão derrubou três grous e ela ficou
satisfeita com a caçada do dia.
Gavin não teve tanta sorte. Acabara de montar, quando uma criada lhe
sussurrou uma mensagem ao ouvido. Stephen queria encontrar-se com ele
por assuntos particulares, a cinco quilómetros das muralhas do castelo.
Pedia-lhe que não falasse a ninguém sobre o encontro, nem mesmo à
esposa. Gavin ficou intrigado com a mensagem, pois não lhe parecia de
Stephen. Abandonou o grupo de caça enquanto Judith estava concentrada
no voo do seu falcão, amaldiçoando o irmão por afastá-lo de uma visão tão
encantadora.
Gavin não foi direto ao local indicado, mas amarrou o cavalo a certa
distância e aproximou-se cautelosamente, com a espada desembainhada.
– Gavin! – exclamou Alice, levando a mão ao peito. – Pregaste-me um
susto horrível!
– Onde está Stephen? – quis saber Gavin, continuando a perscrutar em
redor, desconfiado.
– Gavin, por favor, afasta essa espada. Assustas-me! – Alice sorria, mas
os seus olhos não denunciavam qualquer temor.
– Foste tu que me chamaste aqui, e não Stephen?
– Sim, era a única maneira para trazer-te aqui. – Baixou os olhos. –
Pensei que não virias por mim só.
Gavin embainhou a espada. Era um lugar calmo e isolado, semelhante
àquele onde costumavam encontrar-se.
– Ah, então também recordas esses tempos. Vem sentar-te ao meu lado.
Temos muito que conversar.
Gavin olhava para ela e, sem querer, começou a compará-la com Judith.
Alice era bonita, sim, mas a sua pequena boca, com o sorriso de lábios
fechados, parecia pouco generosa e quase mesquinha. Os olhos azuis
lembravam mais o gelo do que safiras. A combinação de vermelho, laranja
e e verde parecia chocante ao invés de brilhante, como costumava recordar
as suas roupas.
– As coisas mudaram tanto que te sentas tão longe de mim?
– Sim, é verdade. – Gavin não viu o breve franzido de sobrancelha que
cruzou a testa pálida da jovem.
– Ainda estás zangado comigo? Repeti-te vezes sem conta que me
casaram contra minha vontade com Edmund. Mas agora que estou viúva
poderemos...
– Alice – interrompeu-a –, por favor, não fales mais sobre isso. – Tinha de
dizer-lhe, mas temia fazê-la sofrer. Ela era tão suave e delicada, tão incapaz
de suportar as dores da vida. – Não deixarei Judith, nem por anulação, nem
divórcio ou qualquer outro meio antinatural.
– Não... não entendo. Agora temos a oportunidade de ficarmos juntos.
Ele cobriu a mão dela com a sua.
– Não, não temos.
– Gavin, o que estás a dizer?
– Comecei a amá-la – respondeu simplesmente.
Os olhos de Alice faiscaram por um momento, mas não tardou a
recompor-se. – Mas disseste que não te apaixonarias. No dia do teu
casamento, prometeste que não a amarias.
Gavin quase sorriu com a recordação. Dois juramentos haviam sido feitos
naquele dia. Judith tinha jurado não lhe entregar nada de boa vontade,
apenas o que ele tomasse. De que forma encantadora havia quebrado esse
juramento! Também ele quebrara o seu juramento.
– Não te lembras de que ameaçaste acabar com a própria vida? Teria feito
ou dito qualquer coisa para te impedir.
– Mas agora já não te importa o que faça com a minha vida?
– Não, não se trata disso! Sabes que terás sempre um lugar no meu
coração. Foste o meu primeiro amor e jamais te esquecerei.
Alice ergueu o rosto para ele, de olhos arregalados.
– Falas como se eu já estivesse morta. Acaso ela se apoderou do teu
coração sem me deixar nada?
– Disse-te que tinhas uma parte, Alice. Não nos faças isso. Deves aceitar
o que aconteceu.
Alice sorriu e os olhos começaram a encher-se de lágrimas.
– Devo aceitar com a fortaleza de um homem? Gavin, sou uma mulher.
Uma mulher débil e frágil. Mesmo que o teu coração tenha esfriado para
mim, o meu ainda arde mais quando te vejo. Sabes o que foi estar casada
com Edmund? Tratava-me como uma serva; trancava-me constantemente
no meu quarto.
– Alice...
– Adivinhas por quê? Porque me mandou vigiar no dia do teu casamento.
Sim, ele soube que estivemos sozinhos no jardim. Também se inteirou dos
momentos em que estivemos sozinhos na tua tenda. Lembras-te do beijo
que me deste com tanta emoção, na manhã após o teu casamento?
Gavin assentiu, não querendo ouvir aquela confissão.
– Durante a nossa vida de casados, nem por um momento deixou de
recordar-me o tempo que passei contigo. Mas aguentei tudo, de boa
vontade, quase com alegria, sabendo que me amavas. Cada noite solitária
que passei acordada, pensava em ti e no teu amor por mim.
– Basta, Alice.
– Diz-me... – insistiu ela em voz baixa. – Alguma vez pensaste em mim?
– Sim – respondeu Gavin com sinceridade. – No princípio sim. Mas
Judith é uma boa mulher, gentil, generosa e amorosa. Nunca pensei que me
enamoraria dela. Bem sabes que foi um casamento de conveniência.
Alice suspirou.
– O que vou fazer agora? O meu coração é teu. Como sempre foi e
sempre será.
– Isso não servirá de nada, Alice. Entre nós está tudo acabado. Agora
estou casado e amo a minha esposa. O teu caminho e o meu têm de separar-
se.
– Que frio te mostras! – Alice tocou-lhe no braço e deslizou a mão até ao
seu ombro. – Em outros tempos não eras tão frio.
Gavin lembrava-se claramente de como faziam amor. Cego pelo seu amor
por ela, acreditava que qualquer coisa que ela fizesse era a maneira
adequada. Mas agora, depois de vários meses de paixão com Judith, a ideia
de se deitar com Alice quase o repugnava. A maneira como ela não
suportava o contacto físico antes nem depois da cópula. Não, com Alice era
puro sexo, um impulso animal, nada mais.
Alice viu a expressão no seu rosto, mas não a interpretou. Continuou a
acariciá-lo até lhe tocar no pescoço. Então, Gavin levantou-se
imediatamente. Alice também se levantou, mas considerou a relutância dele
ao seu toque como um sinal do seu desejo crescente por ela. Colou-se
audaciosamente a ele, rodeando-lhe o pescoço com os braços.
– Vejo que te recordas – sussurrou, erguendo o rosto para ser beijada.
Gavin apartou-a com suavidade.
– Não, Alice.
A jovem fulminou-o com o olhar, cerrando os punhos de cada lado do
corpo.
– Sentes-te tão acobardado por essa mulher que a receias?
– Não – exclamou Gavin surpreendido, tanto pelo seu raciocínio, como
pela sua explosão. A raiva não parecia natural em alguém sempre tão doce.
Alice percebeu rapidamente que cometera um erro ao revelar as suas
verdadeiras emoções. Pestanejou até que grossas lágrimas se formaram
como pedras preciosas.
– Isto é uma despedida – sussurrou. – Nem sequer posso ter um último
beijo? Não podes negar-mo, depois de tanto nos termos amado.
Era tão delicada e ele amara-a tanto. Enxugou-lhe uma lágrima da face
com a ponta de um dedo.
– Não! – sussurrou. – Não te negaria um último beijo. – Tomou-a
suavemente nos braços e beijou-a com doçura.
Mas Alice não queria doçura. Gavin tinha esquecido a sua violência.
Enfiou-lhe a língua na boca, roçando os dentes contra os seus lábios. Ele
não experimentou o ardor imediato de antes, mas uma leve sensação de
aversão. Queria afastar-se daquela mulher.
– Preciso ir – disse, escondendo a sua repulsa.
Mas Alice sentiu que algo estava muito errado. Esperava dominá-lo
através desse beijo, mas não fora assim. Pelo contrário, Gavin estava mais
distante do que antes. Mordeu a língua para não soltar palavras duras e
conseguiu uma expressão adequadamente triste, enquanto ele caminhava
por entre as árvores até ao cavalo que o esperava.
– Maldita seja essa cadela! – pronunciou Alice com os dentes cerrados.
Aquela bruxa de cabelos ruivos tinha-lhe roubado o seu homem!
Ou, pelo menos, pensava que tinha. Alice começou a sorrir. Talvez aquela
mulher Revedoune pensasse que conquistara Gavin, que poderia manobrá-
lo com o seu dedo mindinho. Mas estava enganada! Alice não permitiria
que alguém tomasse o que era dela. Não, iria lutar pelo que lhe pertencia e
Gavin era dela... ou voltaria a sê-lo.
Tinha-se esforçado muito para chegar onde estava: na Corte do rei e perto
de Gavin. Até permitira que o assassino do seu marido escapasse.
Observaria aquela mulher e descobriria o seu ponto fraco. Então recuperaria
o que era dela. Mesmo que em seguida resolvesse desfazer-se de Gavin,
essa decisão teria de ser sua e não dele!
Gavin voltou rapidamente para a caçada. Tinha-se ausentado muito
tempo, mas esperava que ninguém tivesse dado pela sua falta. Elevou uma
oração silenciosa de agradecimento por Judith não o haver visto a beijar
Alice. Nenhuma explicação no mundo a teria apaziguado. Mas tudo isso
havia terminado. Fora difícil, mas tinha esclarecido tudo com Alice e agora
estava livre dela para sempre.
Gavin viu a sua esposa à frente, balançando o isco para atrair o seu falcão
de volta ao poleiro. De repente, desejou-a de forma intensa. Incitou a
montada até estar quase a galope quando alcançou Judith. Inclinou-se para
diante e tirou-lhe as rédeas.
– Gavin! – gritou Judith enquanto se agarrava à sela e o seu falcão agitava
as asas de medo.
As pessoas que os rodearam riam à gargalhada.
– Estão casados há quanto tempo?
– Não há tempo suficiente! – chegou a resposta.
Gavin parou os dois cavalos a certa distância, numa clareira isolada.
– Gavin! Perdeste a cabeça? – acusou Judith.
Ele desmontou do seu cavalo e, em seguida, tirou-a do dela. Sem dizer
uma palavra, começou a beijá-la com voracidade.
– Estava a pensar em ti – sussurrou. – Quanto mais pensava, mais a
minha necessidade... crescia.
– Sinto a tua necessidade. – Ela olhou em volta. – Este é um lugar bonito,
não é?
– Não poderia ser mais bonito.
– Sim, poderia – contrapôs a jovem enquanto se deixava beijar.
O doce ar do verão ao ar livre aumentava a paixão, assim como a ideia
ligeiramente travessa de que estavam a fazer algo indevido num sítio
inapropriado. Judith riu quando Gavin fez um comentário sobre os
numerosos filhos do rei Henrique. Ele interrompeu o seu riso com os lábios.
Desfizeram-se apressadamente das roupas um do outro e fizeram amor
como se não se vissem há anos. Saciados, permaneceram abraçados,
envoltos na cálida luz solar e no delicado aroma das flores silvestres.
Capítulo Vinte e Seis

Alice olhava por cima das cabeças dos muitos homens que a rodeavam para
o homem magro, loiro, bonito, encostado à parede. Ele tinha uma expressão
pensativa no rosto que ela reconheceu como a de alguém apaixonado.
Embora Alice sorrisse docemente para um homem próximo, não estava a
ouvi-lo. Tinha a mente completamente absorta naquela tarde, quando Gavin
lhe confessara que amava a esposa. Observou-o enquanto segurava a mão
da mulher e a conduzia pelos intrincados passos de uma dança. A Alice não
lhe importava ter vários homens jovens aos seus pés. Ser desprezada por
Gavin só a fez desejá-lo mais. Se ele houvesse jurado que ainda a amava,
talvez tivesse considerado uma das muitas propostas de casamento que lhe
faziam. Mas Gavin rejeitara-a e agora sabia que tinha de o conseguir. Só
existia uma coisa que estorvava os seus planos e que Alice planeava
remover.
O jovem loiro olhava para Judith com fascínio, sem nunca desviar o
rosto. Alice reparara nele durante o jantar quando fitava a mesa elevada,
sem pestanejar, enquanto olhava insistentemente para Judith. Alice
percebeu que a mulher era estúpida de mais para tomar consciência de um
admirador, pois Judith nunca apartava os olhos de Gavin.
– Dão-me licença? – murmurou Alice poderosa e afastou os homens que
a rodeavam para se dirigir ao jovem encostado à parede.
– É linda, não é? – comentou Alice, rangendo os dentes com as palavras.
– Sim – sussurrou ele e a palavra saiu-lhe do mais fundo da alma.
– É triste ver uma mulher como ela tão infeliz.
O homem virou-se e olhou fixamente para Alice.
– Não parece infeliz.
– Não, porque dissimula bem, mas a sua infelicidade existe.
– Sois Lady Alice Chatworth?
– Sim, e vós?
– Alan Fairfax, minha linda condessa – respondeu, curvando-se e
beijando-lhe a mão. – Ao vosso serviço.
Alice soltou uma risada alegre.
– Não sou eu quem necessita dos vossos serviços, mas Lady Judith.
Alan observou novamente os dançarinos.
– É a mulher mais bonita que já vi – sussurrou.
Os olhos de Alice soltaram chispas como vidro azul.
– Já lhe haveis confessado o vosso amor?
– Não! – respondeu ele, franzindo a testa. – Sou um cavaleiro, fiz um
juramento de honra e ela é uma mulher casada.
– Sim, é, embora esse matrimónio seja muito infeliz.
– Ela não parece ser infeliz – repetiu o jovem, enquanto observava o
objeto do seu afeto que fitava ardentemente o marido.
– Conheço-a há muito tempo e é realmente infeliz. Ainda ontem chorava,
dizendo-me que necessita desesperadamente de alguém para amar. Alguém
que seja doce e gentil com ela.
– O marido não o é? – Alan estava preocupado.
– Poucos o sabem – respondeu Alice quase num sussurro –, mas ele bate-
lhe com frequência.
Alan voltou a observar Judith.
– Não acredito nas vossas palavras.
Alice encolheu os ombros.
– Não é minha intenção espalhar rumores. É minha amiga e gostaria de
ajudá-la. Não ficarão na Corte por muito tempo, e eu esperava que, antes de
partirem, a minha querida Judith pudesse encontrar alguns momentos de
prazer.
Lady Judith era de facto adorável e o seu cabelo radioso contribuía para
tal. A tonalidade de um dourado-avermelhado era visível sob um véu de
gaze transparente. O tecido de prata do seu vestido ressaltava curvas
exuberantes. Todavia, o que mais chamava a atenção de Alan e que parecia
ser ainda mais impressionante do que a sua beleza era a vitalidade que
parecia emanar. Olhava para todos, do rei aos servos, com uma calma que
demonstrava que se interessava por todos. Nunca ria, nem namoriscava,
nem se fingia uma donzela tímida. Alan estava realmente fascinado. Teria
dado qualquer coisa para que o fitasse uma única vez com aqueles cálidos
olhos dourados.
– Gostaríeis de vê-la a sós?
Os olhos de Alan cintilaram.
– Sim, gostaria.
– Então vou encarregar-me disso. Ide até ao jardim que a enviarei à vossa
presença. Somos grandes amigas e ela sabe que pode confiar em mim. –
Alice interrompeu-se e pôs uma mão no braço de Alan. – Sem dúvida estará
preocupada com a possibilidade de que o marido a encontre. Dizei-lhe que
ele está comigo e então saberá que não há perigo de ser descoberta.
Alan assentiu. Não lhe desagradava a ideia de passar algum tempo com a
dama e tinha de aproveitar aquela oportunidade, pois o marido raramente a
perdia de vista.
Judith encontrava-se junto a Gavin, bebendo uma caneca de sidra fria.
Estava com calor por causa da dança e era agradável encostar-se à pedra
fria e observar os outros. Um homem aproximou-se com uma mensagem
para Gavin, que transmitiu em voz baixa, ao seu ouvido. Gavin franziu o
sobrolho.
– Más notícias? – inquiriu ela.
– Não sei. Alguém necessita ver-me.
– Não sabes quem é?
– Não. Estive a falar com um comerciante de cavalos sobre uma égua.
Talvez seja isso. – Virou-se e acariciou-lhe a face. – Ali está Stephen. Fica
com ele. Não demorarei muito.
– Se puder encontrar uma maneira de passar entre as mulheres que o
rodeiam! – riu ela.
– Faz o que te digo.
– Sim, milorde – troçou ela.
Gavin meneou a cabeça, mas sorriu; depois virou-se e saiu.
Judith foi ao encontro de Stephen, que tocava um alaúde e cantava para
um grupo de mulheres bonitas e adoráveis. Stephen dissera-lhe que
pretendia aproveitar totalmente os seus últimos dias de liberdade.
– Lady Judith?
– Sim. – Virou-se para uma criada que não reconheceu.
– Há um homem que vos espera no jardim.
– Um homem? O meu esposo?
– Não sei, milady.
Judith esboçou um sorriso. Gavin planeava, sem dúvida, alguma
travessura ao luar.
– Obrigada – agradeceu, saindo do salão para o jardim. O jardim estava
escuro e frio, com muitas sombras secretas que revelavam a presença de
vários casais entrelaçados.
– Lady Judith?
– Sim. – Não era possível ver claramente, mas tratava-se de um jovem
alto, elegante, com os olhos brilhantes, um nariz proeminente e os lábios
um pouco grossos de mais.
– Permiti que me apresente. Sou Alan Fairfax, de Lincolnshire.
Judith saudou-o com um sorriso enquanto ele lhe beijava a mão.
– Procurais alguém?
– Julguei que o meu esposo estivesse aqui.
– Não o vi.
– Então, conhecei-lo?
O jovem sorriu, mostrando dentes brancos.
– Tenho-vos observado e sei perfeitamente quem vos rodeia.
Judith fitou-o, surpreendida.
– Bonitas palavras, sir.
Alan ofereceu-lhe o braço.
– Vamos sentar-nos aqui um momento enquanto esperamos o vosso
esposo?
Ela hesitou.
– Como estais a ver, o banco encontra-se à vista. Não vos peço nada,
exceto um pouco de conversa com um cavaleiro solitário.
O banco encontrava-se diretamente sob uma tocha brilhante fixada na
parede do jardim. Judith podia ver o acompanhante com mais clareza. Tinha
uns lábios sensuais, um nariz fino e aristocrático. Os olhos eram quase
negros na escuridão. Judith sentia-se cautelosa. O último homem com quem
se havia sentado e conversado fora Walter Demari o que a levara à
calamidade.
– Pareceis-me nervosa, milady.
– Não estou habituada aos costumes da Corte. Tenho passado muito
pouco tempo na companhia de homens que não sejam meus familiares.
– Gostaríeis de sanar esta falta? – encorajou-a.
– Não tinha pensado nisso. Tenho o meu esposo e os meus cunhados.
Aparentemente, bastam-me.
– Mas aqui, na Corte, uma dama pode desfrutar de mais liberdade. É
aceitável ter muitos amigos, homens e mulheres. – Alan retirou-lhe a mão
do regaço. – Gostaria muito de ser vosso amigo.
Judith afastou a mão bruscamente, franzindo as sobrancelhas, e levantou-
se.
– Tenho de voltar para o salão e para o meu esposo.
Alan também se levantou e ficou ao lado dela.
– Não haveis por que recear. Ele está a distrair-se na companhia da vossa
amiga, Alice Chatworth.
– Não! Estais a insultar-me!
– Por favor, não era essa a minha intenção – protestou Alan,
desconcertado. – O que disse?
Então Gavin estava com Alice! Talvez tivesse tomado disposições para a
manter ocupada com outro homem no jardim. Mas ela não tinha nenhum
desejo de permanecer com um desconhecido.
– Tenho de ir – apressou-se a responder, girando sobre os calcanhares.
– Onde estiveste? – perguntou Gavin, vindo ao seu encontro antes que ela
chegasse ao salão.
– Com o meu amante – justificou, muito serena. – E tu?
Ele apertou-lhe os braços com força.
– Estás a provocar-me?
– Talvez.
– Judith!
A jovem fulminou-o com o olhar.
– Lady Alice não estava particularmente bonita esta noite? O tecido
dourado condiz com o cabelo e os olhos, não te parece?
Gavin afrouxou o aperto no braço, sorrindo ligeiramente.
– Não reparei nela. Estás com ciúmes?
– Tenho motivos?
– Não, Judith, não tens. Já te garanti que a afastei da minha vida.
Ela reagiu, trocista:
– A seguir, vais dizer-me que agora o teu amor me pertence.
– E se o disser? – sussurrou Gavin com tanta intensidade que Judith quase
sentiu medo.
O seu coração palpitou.
– Não sei se te acreditaria – disse num tom sereno. – Talvez receasse que,
ante essa declaração, ela respondesse com palavras iguais? E se ele as
recebesse com escárnio? Se nos braços de Alice, quando estivessem
deitados, ridicularizasse o que para ela era uma questão de vida ou morte?
– Vem para dentro. Já é tarde.
O que havia na voz de Gavin que a levava a desejar consolá-lo?
***

– Vais embora amanhã? – perguntou Gavin, enxugando o suor da testa. –


Tinha estado a treinar desde o amanhecer no longo campo coberto de areia
do rei. Havia muitos cavaleiros e escudeiros presentes de toda a Inglaterra.
– Sim – respondeu Stephen com um ar lúgubre. – Sinto-me como se
estivesse a caminhar para a forca.
Gavin riu.
– Não será assim tão mau. Pensa no meu casamento e como resultou.
– Sim, mas só existe uma Judith.
Gavin sorriu e arranhou a pesada armadura que usava.
– Sim, e ela é minha.
Stephen devolveu-lhe o sorriso.
– Isso significa que está tudo bem entre vocês?
– Está a compor-se. Judith tem ciúmes de Alice e passa a vida a acusar-
me de convivência com ela, mas acabará por compreender.
– E quanto a Alice?
– Deixou de me interessar. Disse-lhe isso ontem.
Stephen soltou um assobio.
– Disseste à tua Alice, a quem tanto amavas que agora preferes outra? No
teu lugar, temeria pela vida.
– Talvez de Judith, mas não de alguém tão doce como Alice.
– Doce? Alice Chatworth? Estás verdadeiramente cego, meu irmão.
Como sempre, Gavin ficou irritado quando alguém falava mal de Alice.
– Não a conheces como eu. Ficou muito magoada quando lhe disse, mas
aceitou regiamente, como esperava. Se Judith não me tivesse capturado tão
completamente, ainda pensaria em Alice como uma possível esposa.
Stephen achou por bem não comentar mais.
– Hoje à noite planeio uma farra com álcool das grandes. Vou beber tudo
o que houver no castelo. Então, será menos duro conhecer a minha famosa
prometida. Gostarias de te juntar a mim? Celebraremos os meus últimos
momentos de liberdade.
Gavin sorriu ante a perspetiva.
– Sim. Ainda não celebrámos a nossa fuga do castelo de Demari. Tão
pouco te agradeci, Stephen.
Stephen deu uma palmada nas costas do irmão.
– Devolverás o favor quando precisar de ti.
Gavin franziu o sobrolho.
– Talvez possas encontrar-me um homem para substituir John Bassett.
– Fala com Judith – propôs Stephen, com os olhos brilhantes. – Talvez ela
própria seja capaz de dirigir os teus homens.
– Não penses em dar-lhe uma ideia dessas. Queixa-se de que tem muito
pouco para fazer aqui.
– A culpa é tua, irmão. Não a manténs ocupada?
– Tem cuidado! Posso começar a desejar que a tua herdeira escocesa seja
tão feia como pensas que é.
***

Judith estava sentada no grande salão entre um grupo de mulheres. Todas


elas, incluindo a rainha, ocupavam posição atrás de belos bastidores de
madeira de pau-rosa e bronze. As suas mãos voavam habilidosas e
rapidamente sobre o tecido e belas cores de seda fluíam das suas agulhas.
Judith mantinha-se silenciosa numa cadeira, também com um pedaço de
bordado diante dela; mas limitava-se a olhá-lo, sentindo-se embaraçada,
sem saber o que fazer. Pelo menos Gavin podia fazer o seu treino, mesmo
que estivesse longe de casa. Contudo, tinha-a proibido de limpar o tanque
de peixes do rei, a sua despensa ou qualquer outra coisa do género.
– Creio que o bordado é a mais feminina das artes, não concorda,
Majestade? – disse Alice calmamente.
A rainha Isabel nem sequer ergueu o rosto.
– Talvez dependa de cada mulher. Já vi algumas que sabem usar um arco,
mas mantêm a sua feminilidade, enquanto outras que pareciam ser doces e
desempenham todas as artes do sexo feminino na perfeição têm um íntimo
cruel.
Judith levantou a cabeça, surpreendida, quando uma risadinha escapou de
uma jovem bonita ao lado dela.
– Não estais de acordo, Lady Isabel? – quis saber a rainha.
– Oh, sim, Majestade, certamente. – As duas mulheres trocaram olhares
de cumplicidade.
Alice, furiosa por ter sido colocada no seu lugar, insistiu:
– Mas acreditais que uma verdadeira mulher desejaria usar um arco? Não
compreendo para quê, se as mulheres estão sempre protegidas por homens.
– Acaso uma mulher não deve ajudar o seu esposo? Uma vez interpus-me
diante de uma flecha que estava destinada a John – disse Lady Isabel.
Várias das mulheres soltaram exclamações horrorizadas. Alice olhou
desdenhosamente para a mulher de olhos verdes.
– Mas uma verdadeira mulher não poderia cometer um ato de violência.
Não é verdade, Lady Judith? Quero dizer, uma mulher não pode matar um
homem, certo?
Judith baixou os olhos para o seu bastidor vazio, sem bordado.
Alice inclinou-se para a frente.
– Não poderíeis matar um homem, verdade Lady Judith?
– Lady Alice! – exclamou a rainha Isabel num tom áspero. – Acredito que
interferis em assuntos que não são da vossa incumbência.
– Oh! – Alice fingiu-se surpreendida. – Ignorava que a destreza de Lady
Judith com uma espada era segredo. Não voltarei a falar sobre isso.
– Não, com efeito – atacou Lady Isabel –, pois já haveis dito tudo.
– Milady! – pronunciou Joan em voz alta. – Lorde Gavin quer a vossa
presença imediatamente.
– Passa-se alguma coisa? – inquiriu Judith, levantando-se rapidamente.
– Não sei – respondeu Joan com uma expressão estranha e vazia no rosto.
– Como sabeis, milady, ele não suporta que vos mantenhais longe da sua
vista por muito tempo.
Judith lançou-lhe um olhar de espanto.
– Apressai-vos. Ele não gosta de esperar.
Judith conteve-se para não repreender a sua criada diante da rainha.
Virou-se e desculpou-se ante as mulheres, feliz por ver que os olhos de
Alice faiscavam de raiva. Quando estavam longe, Judith voltou-se para a
sua criada.
– Não sabes manter-te no lugar.
– Só vos quis ajudar. Essa gata iria fazer-vos em pedaços. Não podeis
enfrentá-la.
– Ela não me assusta.
– Pois deveria assustar-vos. É uma mulher má.
– Sim – concordou Judith. – Estou ciente disso. Sinto-me grata por me
teres tirado daquele lugar. Quase prefiro a companhia de Alice ao bordado,
mas as duas coisas juntas são insuportáveis! – suspirou. – Suponho que
Gavin não mandou chamar-me?
– Por que deveria mandar-vos chamar? Não acredita que lhe agradará ver-
vos?
Judith franziu o sobrolho.
– Portai-vos como uma tonta – disse Joan, arriscando-se a receber
palavras duras da sua ama. – Esse homem deseja-vos, mas não vos dais
conta.
Lá fora, sob a intensa luz do Sol, Judith esqueceu-se completamente de
Alice. Gavin estava inclinado sobre uma grande tina de água, nu da cintura
para cima, lavando-se. Judith aproximou-se silenciosamente por trás dele;
depois, inclinou-se e mordiscou-o no pescoço. No momento seguinte,
ofegou quando Gavin girou e a enfiou na tina. Ambos ficaram igualmente
surpreendidos.
– Judith! Magoaste-te? – perguntou Gavin, estendendo a mão para a
ajudar.
Ela empurrou-lhe a mão bruscamente, limpando a água dos olhos. O
vestido estava encharcado e arruinado, o veludo carmesim colado ao seu
corpo.
– Não, seu pedaço de bruto desajeitado. Tomas-me por um cavalo de
combate, para me tratares como um animal? Ou talvez penses que sou o teu
escudeiro? – Apoiou a mão na borda da tina para se levantar, mas os pés
resvalaram e voltou a cair. Abafou um protesto enquanto olhava para Gavin.
Tinha os braços cruzados sobre o peito e um largo sorriso estampado no
rosto.
– Estás a rir de mim! – sibilou, enfurecida. – Como te atreves…?
Ele agarrou-a pelos ombros e ergueu-lhe o corpo a pingar água.
– Posso apresentar as minhas desculpas? Não estou propriamente calmo
desde o episódio de Demari. Tardei demasiado a reconhecer a tua mordidela
como expressão de carinho. Não deverias esgueirar-te por trás de mim sem
qualquer aviso.
– É escusado receares, pois não acontecerá novamente – replicou Judith,
sombria.
– Não conheço outra mulher, minha pequena esposa, que pareça tão
tentadora enquanto mantida numa tina de água. Gostava de te empurrar
novamente.
– Não te atreverias!
Sorrindo, Gavin baixou-a lentamente até que os dedos dos seus pés
roçaram a água.
– Gavin! – exclamou, meio suplicante.
Estreitou-a contra si, mas o contacto com o seu corpo frio fê-lo espirrar
bruscamente.
– Bem mereces – riu ela. – Espero que congeles.
– Contigo por perto? Duvido. – Levantou-a nos braços. – Vamos para o
nosso quarto para que te tire essas roupas molhadas.
– Gavin, não podes pensar...
– Pensar, quando te tenho nos braços, é uma perda de tempo. Se não
queres chamar mais atenção sobre ti, fica em silêncio e deixa-me agir à
minha maneira.
– E se eu não quiser?
Gavin esfregou a face contra a dela, molhada.
– Verás que essas lindas bochechas ficarão muito vermelhas.
– Então estou cativa?
– Sim – admitiu ele com firmeza e levou-a pelas escadas.
A rainha Isabel caminhava ao lado do esposo. Pararam ao ver que Gavin
acabava de atirar Judith para dentro de água. Isabel teria ido em defesa da
jovem, mas Henrique deteve-a.
– São somente brincadeiras de amor. Agrada-me quando vejo um casal
tão apaixonado. Nem sempre um casamento por conveniência resulta em
tanta felicidade.
Isabel suspirou.
– Alegra-me ver que se amam. Não tinha a certeza de que existisse amor
entre eles. Lady Alice parece pensar que Lady Judith não é uma esposa
adequada para Lorde Gavin.
– Lady Alice? – inquiriu o rei. – Aquela mulher loira?
– Sim. A viúva de Edmund Chatworth.
Henrique assentiu com a cabeça.
– Gostaria de vê-la casada quanto antes. Estive a observá-la e brinca com
os homens como um gato com um rato. Dá a impressão de interessar-se por
um, depois por outro distinto. Os homens enamoram-se da sua beleza e
suportam qualquer coisa. Não me agradaria vê-los chegar a um duelo. Mas
o que tem essa mulher a ver com Lorde Gavin e a sua encantadora esposa?
– Não tenho a certeza – respondeu Isabel. – Há rumores de que, noutros
tempos, Gavin esteve muito apaixonado por Lady Alice.
O rei acenou com a cabeça na direção de Gavin, enquanto ele erguia a
esposa nos braços.
– Pois não é assim agora, como todos podem ver.
– Talvez nem todos possam ver. Lady Alice provoca constantemente a
rival.
– Devemos pôr fim a essa situação.
– Não. – Isabel pousou a mão no braço do marido. – Não podemos dar
ordens. Creio que só conseguiríamos enfurecer ainda mais Alice, e ela é o
tipo de mulher que descobriria uma maneira de expressar a sua vontade,
independentemente das ordens recebidas. Na minha opinião, o melhor é a
tua ideia de casá-la. Conseguirás encontrar-lhe um marido?
O rei seguiu com a vista Gavin, que levava a esposa para a mansão,
provocando-a e fazendo-lhe cócegas; o riso de Judith ressoou através do
pátio.
– Sim, encontrarei um marido para Lady Alice e rapidamente. Não quero
que nada se interponha entre esses dois.
– És um bom homem – elogiou Isabel, sorrindo para o seu marido de alta
estatura.
Henrique riu entredentes.
– Só para alguns, minha querida. Pergunta aos franceses quem é um bom
rei ou não.
Isabel mudou o tema com um gesto da mão.
– És demasiado brando, demasiado bom para eles.
Henrique curvou-se e beijou-lhe a testa.
– Se fosse um rei francês, tenho certeza de que dirias o mesmo do inglês.
Ela sorriu-lhe com amor. O monarca riu e apertou-lhe o braço.
Havia outra pessoa muito interessada no jogo dos Montgomery. Alan
Fairfax tinha avançado, com a mão no punho da espada, quando viu Gavin
atirar Judith para dentro da tina. Então olhou à sua volta com ar culpado.
Um homem podia tratar a sua esposa da maneira que quisesse e Alan não
tinha o direito de interferir.
Presenciou de imediato a preocupação de Gavin com Judith. Observou
como ele a tirou da água, a abraçou e a beijou. Essa não era a conduta de
nenhum homem que castigava a esposa! Alan franziu as sobrancelhas
quando começou a perceber que havia feito figura de idiota. Quando voltou
à mansão encontrou Alice Chatworth a atravessar o grande salão.
– Gostaria de trocar umas palavras convosco, milady – disse ele,
apertando-lhe o braço.
Ela abafou uma exclamação de dor, mas sorriu.
– Claro, Sir Alan. Podeis dispor do meu tempo à vontade.
Ele levou-a para um lado do salão, até à sombra.
– Haveis-me usado e isso não me agrada.
– Usei-vos? Por favor, diga-me como, sir.
– Não façais o papel de virgem tímida. Conheço os homens que
frequentam o vosso leito. Não vos falta inteligência, sem dúvida, e tenho a
certeza de que me haveis manipulado para os vossos propósitos.
– Soltai-me ou vou gritar!
Alan cravou-lhe os dedos com mais força.
– Acaso não vos agrada, milady? Dizem-me os meus amigos que não tem
aversão à dor.
Alice fulminou-o com o olhar.
– O que quereis insinuar?
– Que não gosto de ser usado. As vossas mentiras, milady, poderiam ter
ocasionado um grave problema a Lady Judith e eu teria sido a causa.
– Não haveis dito que desejáveis alguns momentos a sós com ela? Não fiz
nada mais do que proporcionar-vos a oportunidade.
– Mediante armadilhas! Ela é uma mulher honrada e feliz no seu
matrimónio. E não sou um vilão capaz de recorrer à violação.
– Então deseja-a, não? – Alice sorriu.
Ele apressou-se a soltá-la.
– Que homem não a deseja? É linda.
– Não! – sibilou Alice. – Não é tão bonita como... – Deteve-se.
Alan sorriu.
– Como vós, Lady Alice? Não, estais errada. Há vários dias que tenho
observado Lady Judith e aprendi a conhecê-la. Não é apenas bonita no
exterior, mas por dentro também. Quando for uma velha e tiver perdido o
seu resplendor, é tão adorável que continuará a ser amada. Mas vós, pelo
contrário, sois apenas bela por fora. Se vos tirassem essa beleza, só
permaneceria uma mulher queixosa, de mente malvada e inclinada a
crueldade.
– Odiar-vos-ei por isso! – assegurou Alice num tom mortífero.
– Algum dia, cada segundo que haveis passado a odiar vai transparecer no
vosso rosto – assinalou Alan calmamente. – Sejam quais forem os vossos
sentimentos por mim, não acrediteis que podereis usar-me novamente. –
Virou-lhe as costas e deixou-a sozinha.
Alice seguiu com a vista a silhueta que se afastava. Mas a sua vingança
era contra Judith e não contra Alan. Aquela mulher era a causa de todos os
seus problemas. Nada tinha sido o mesmo desde que Gavin decidira casar
com aquela maldita. Agora, Alice via-se insultada por um jovem por causa
da dissimulação dessa Revedoune. Alice estava mais determinada do que
nunca a pôr fim a um casamento que considerava errado.
***

– Minha doce Judith, fica na cama – murmurou Gavin junto à sua face
sonolenta. – Precisas descansar e a água pode ter-te provocado um
resfriado.
Judith não respondeu. Saciada com o ato de amor, sentia-se sonolenta e
lânguida.
Gavin esfregou o nariz contra o seu pescoço mais uma vez e levantou-se
da cama. Vestiu-se rapidamente, sem deixar de observá-la. Quando estava
vestido, despediu-se com um sorriso, beijou-a na face e saiu do quarto.
Stephen cruzou-se com ele ao fundo da escada.
– Não posso dar um passo sem ouvir mais rumores sobre ti.
– O que se passa agora? – perguntou Gavin, desconfiado.
– Dizem que castigas a tua esposa, a atiras para as tinas de água e a exibes
diante de toda a gente.
Gavin sorriu.
– É verdade.
Stephen devolveu o sorriso do irmão.
– Agora entendemo-nos. Julguei que não soubesses como tratar uma
mulher. Ela está a dormir?
– Sim. Não descerá até amanhã. – Gavin arqueou uma sobrancelha. –
Pensei que tinhas um barril de vinho pronto.
– E tenho – sorriu Stephen. – Não queria que te sentisses diminuído por
me veres beber o dobro de ti.
– Tu! O meu irmão mais novo? – rugiu Gavin. – Não sabias que me
embebedei pela primeira vez ainda não tinhas nascido?
– Não acredito!
– É verdade. Vou contar-te a história, embora seja muito longa.
Stephen deu uma palmada nas costas do irmão.
– Dispomos de toda a noite. Só amanhã nos arrependeremos do que
fizemos.
Gavin riu entredentes.
– Vais arrepender-te com a tua feia noiva escocesa, mas eu vou colocar a
minha cabeça cansada no colo da minha bela esposa e permitir gentilmente
que ela me mime.
Stephen emitiu um gemido de dor.
– És um homem cruel!
Para os dois irmãos, aquela noite foi um momento especial de reencontro.
Celebraram a vitória sobre Demari e a boa sorte de Gavin no casamento; e
lamentaram juntos a perspetiva das bodas de Stephen.
– Vou devolvê-la ao seu povo se ela me desobedecer – garantiu Stephen.
– O vinho que bebiam era tão mau que tiveram de filtrá-lo por entre os
dentes, mas nenhum deles notou.
– Duas mulheres desobedientes! – exclamou Gavin com voz arrastada,
levantando a caneca. – Se Judith me obedecesse, pensaria que algum
demónio lhe tinha roubado a mente.
– E só te deixara o corpo? – sugeriu Stephen com luxúria.
– Vou desafiar-te para um duelo por essa sugestão – protestou Gavin,
buscando desajeitadamente a espada.
– Ela não me aceitaria – lamentou-se Stephen enquanto enchia de novo a
sua caneca.
– Achas? Ela parecia muito satisfeita com Demari. – Gavin havia passado
da felicidade à tristeza numa questão de segundos, como só um bêbado
poderia.
– Não, ela odiava o homem.
– Mas está grávida dele! – exclamou Gavin, como um rapazinho à beira
do choro.
– Não tens cérebro, irmão? A criança é tua, não de Demari.
– Não acredito em ti.
– É verdade. Ela contou-me.
Gavin, sentado na mesa sólida, ficou calado um momento. Depois, quis
levantar-se, mas tinha a cabeça às voltas.
– Tens a certeza? Por que não me contou?
– Disse que queria manter alguma coisa para si mesma.
Gavin deixou-se cair na cadeira.
– E o meu filho é «alguma coisa» e nada mais?
– Não. Não compreendes as mulheres.
– E tu sim? – indignou-se Gavin.
Stephen voltou a encher a caneca do irmão.
– Não mais do que tu, sem dúvida. Talvez menos, se isso for possível.
Raine poderia explicar-te melhor do que eu o que Judith quis expressar. Ela
disse que já possuías as terras Revedoune e Alice, por isso não queria dar-te
mais.
O rosto de Gavin ensombrou-se quando se levantou. De repente,
acalmou-se e voltou a sentar-se, com um leve sorriso no rosto.
– Ela é uma bruxa, não é? Rebola as ancas diante de mim até me
enlouquecer de desejo. Amaldiçoa-me quando troco umas poucas palavras
com outra mulher.
– Outra mulher que tu mesmo admitiste amar.
Gavin acenou com a mão, como se isso não importasse.
– Mas ela tem a chave que abre todos os segredos e nos liberta da tensão
que existe entre nós.
– Não vejo nenhuma objeção da tua parte – observou Stephen.
Gavin riu entredentes.
– Não, nenhuma da minha parte, mas tenho sido relutante em... impor-me.
Supus que Demari significava algo para ela.
– Só há um meio para salvar o teu pescoço ingrato.
Gavin sorriu.
– Passa-me esse vinho. Esta noite temos mais para celebrar, além da tua
princesa escocesa.
Stephen pegou na caneca antes que Gavin pudesse tocar-lhe.
– És um irmão cruel.
– Aprendi com a minha esposa. – Gavin sorriu e voltou a encher a caneca.
Capítulo Vinte e Sete

– Não posso permitir isto! – Disse Ella, com as costas muito direitas. Estava
de pé ao lado de Alice numa pequena câmara dividida do castelo.
– Desde quando permites ou não o que desejo? – ripostou Alice
desdenhosa. – A minha vida é coisa minha, e a ti só te cabe ajudares-me a
vestir.
– Não é certo que vos lanceis nos braços desse homem. Não há um dia
em que alguém não vos peça em matrimónio. Não podeis contentar-vos
com um deles?
Alice voltou-se para a criada.
– Para que ela fique com Gavin? Antes morrer.
– Na verdade, desejai-o para vós? – insistiu Ella.
– O que é que isso interessa? – reagiu Alice enquanto ajustava o véu e a
tiara. – É meu e continuará a ser meu.
A escada estava escura quando saiu do quarto. Alice não tardara a
inteirar-se de que a Corte do rei Henrique era um lugar fácil para descobrir
o que queria saber. Havia muitos que estavam dispostos, por um preço, a
fazer qualquer coisa que ela pedisse. Os seus espiões tinham-na informado
de que Gavin estava lá em baixo, na companhia do irmão, longe da esposa.
Alice sabia o quão confuso um homem poderia ficar com a bebida e
planeava aproveitar a oportunidade em seu benefício. Com a mente toldada
pela bebida, ele não seria capaz de resistir-lhe.
Praguejou quando, ao chegar ao grande salão, não havia sinal de Gavin
nem do irmão.
– Onde está Lorde Gavin? – perguntou Alice duramente a uma serva que
bocejava. O chão estava a abarrotar de servos que dormiam em colchões de
palha.
– Saiu. É tudo o que sei.
Alice agarrou o braço da jovem.
– Para onde foi?
– Não faço ideia.
Alice tirou uma moeda de ouro do bolso e viu os olhos da rapariga
brilharem.
– De que serias capaz por uma como esta?
A jovem despertou completamente.
– De qualquer coisa.
– Bom – sorriu Alice. – Então escuta-me com atenção.
***

Judith despertou de um sono profundo ao ouvir um leve arranhar na


porta. Estendeu o braço antes de abrir os olhos, apenas para encontrar o
lado da cama de Gavin vazio. Sentou-se, franzindo as sobrancelhas, e
depois lembrou-se de ele ter dito algo sobre despedir-se de Stephen.
O arranhar na porta continuou. Joan, que muitas vezes ficava a dormir
com a ama quando Gavin se ausentava, não estava no quarto.
Relutantemente, Judith atirou as cobertas para trás e enfiou os braços nas
mangas do roupão de veludo verde-esmeralda.
– O que se passa? – perguntou ao abrir, deparando com uma criada.
– Não sei, milady – respondeu a serva com um sorriso malicioso. – Foi-
me dito que milady era necessária e deveria vir imediatamente.
– Quem disse isso? O meu esposo?
A serva encolheu os ombros como resposta.
Judith franziu o sobrolho. Na Corte pululavam as mensagens anónimas e
todos elas pareciam levá-la a lugares onde não lhe interessava estar. No
entanto, talvez a mãe precisasse dela. Era provável que Gavin estivesse
demasiado embriagado para subir as escadas e necessitasse da sua ajuda.
Sorriu ao pensar no sermão que lhe daria.
Seguiu a serva pelas escadas de pedra escuras até ao andar de baixo.
Parecia mais escura do que de costume. Algumas das tochas nas paredes
não tinham sido acesas. Talhados dentro das paredes de três metros e meio
de espessura havia quartos pequenos e feios, que os hóspedes mais nobres
não frequentavam. A serva deteve-se diante de um desses quartos, que
ficava perto da escadaria circular e íngreme.
A jovem dirigiu um olhar incompreensível a Judith e desapareceu na
escuridão. Judite sentiu-se ofendida por esse ar de mistério e ia a protestar
quando uma voz de mulher lhe chamou a atenção.
– Gavin – sussurrou a mulher audivelmente.
Era um sussurro de paixão. Judith ficou petrificada no lugar. Alguém
acendeu uma mecha e aproximou-a de uma vela. Então, Judith pôde ver
tudo com nitidez. O corpo magro e ossudo de Alice, nu da cintura para
cima, estava meio debaixo de Gavin. A luz da vela revelou a pele bronzeada
do cavaleiro – não havia nada escondido. Estava deitado sobre o ventre,
com as pernas nuas cobrindo as de Alice.
– Não! – murmurou Judith com a mão na boca e os olhos cheios de
lágrimas. Desejava que fosse um pesadelo, mas não era. Ele tinha-lhe
mentido repetidas vezes. E estivera tão perto de acreditar nele!
Retrocedeu, afastando-se deles. Gavin não se movia; Alice com a vela na
mão, observava Judith, e sorriu-lhe daquela posição.
– Não! – Foi tudo o que Judith pôde dizer. Retrocedeu cada vez mais para
trás, sem reparar que a escada não tinha corrimão.
Com pés inseguros, Judith nem sequer se deu conta de que havia dado um
passo em falso, perdendo o equilíbrio e voando pelo ar. Gritou quando caiu
um degrau, depois dois, cinco. Freneticamente tentou agarrar-se, gritando
de novo quando o corpo caiu de lado e completamente fora da escada.
Judith caiu no chão, lá em baixo, com um baque terrível, embora a sua
queda tivesse sido um pouco amortecida pelo colchão de um dos cavaleiros
do rei Henrique.
– O que foi isso? – perguntou Gavin com voz arrastada enquanto tentava
levantar a cabeça.
– Não foi nada – murmurou Alice com o coração a palpitar-lhe de pura
alegria. Talvez a mulher tivesse morrido na queda e então Gavin seria outra
vez somente dela.
Gavin soergueu-se num cotovelo.
– Meu Deus, Alice! O que fazes aqui? – Vagueou o olhar pelo corpo nu.
O único pensamento que lhe ocorreu foi que não havia percebido que ela
era tão magra. Não sentia desejo algum por aquele corpo que tinha amado
noutros tempos.
A alegria de Alice morreu ante a expressão dos seus olhos.
– Não te… recordas? – perguntou com voz entrecortada.
Na verdade, a reação de Gavin deixara-a atónita. Até esse momento
tomara por garantido que, quando o tivesse nos seus braços, ele voltaria a
ser seu.
Gavin franziu o sobrolho. Estava bêbado, era verdade, mas não tanto que
não se lembrasse da noite anterior. Sabia muito bem que não tinha ido para
a cama de Alice, nem a convidara para a dele.
Estava pronto a lançar a acusação, quando, de repente, o grande salão
abaixo deles se encheu de luzes e de ruído. Os homens gritavam entre si.
Por fim, ouviu-se um bramido que abanou as vigas.
– Montgomery!
Gavin saltou da cama com um único movimento, enfiando
apressadamente a túnica pela cabeça. Desceu os degraus dois a dois, mas
deteve-se na última curva da escada em espiral. Judith jazia logo abaixo
num colchão, os cabelos ruivos numa massa emaranhada sobre a cabeça,
uma perna dobrada por baixo do corpo. Por um momento, o coração do
jovem parou de bater.
– Não toquem nela! – ordenou com um grunhido gutural enquanto saltava
os últimos degraus e se ajoelhava ao lado dela. – Como? – murmurou
tocando-lhe na mão e procurando a pulsação no pescoço.
– Parece ter caído pelas escadas – esclareceu Stephen, ajoelhando-se ao
lado da cunhada.
Gavin levantou a cabeça e viu Alice no patamar, cingindo o roupão com
um leve sorriso. Sentiu que faltava uma peça no quebra-cabeças, mas não
tinha tempo para a procurar.
– O médico foi chamado – disse Stephen, segurando a mão de Judith, que
não abria os olhos.
O médico chegou lentamente, vestido com um roupão luxuoso com gola
de pele.
– Dai-me espaço – exigiu. – Tenho de ver se há ossos fraturados.
Gavin retrocedeu e observou o homem a passar as mãos sobre o corpo
inanimado de Judith. «Por quê? Como?», interrogava-se sem cessar. «O que
estava ela a fazer nas escadas a meio da noite?» Os olhos fixaram-se em
Alice. A mulher mantinha-se em silêncio, refletindo um ávido interesse no
rosto enquanto o médico examinava Judith. O quartinho onde Gavin havia
despertado na cama, entre os braços de Alice, situava-se no topo das
escadas. Sentiu que empalidecia ao olhar de novo para a esposa. Judith
tinha-o visto na cama com Alice! Ela recuara provavelmente muito alterada
para olhar onde pisava, e isso explicava a queda. Mas como soubera onde
encontrá-lo? Só mediante a informação de alguém.
– Ao que parece, não há nenhum osso fraturado – afirmou o médico. –
Levai-a para a cama e deixai-a repousar.
Gavin murmurou uma prece de agradecimento, após o que se inclinou e
ergueu o corpo amolecido da esposa. A multidão de pessoas ao seu redor
soltou uma exclamação quando ele a levantou. O colchão e o roupão da
jovem estavam encharcados em sangue.
– Ela perde a criança – disse a rainha Isabel junto a Gavin. – Levai-a para
cima. Farei com que a minha própria parteira a observe.
Gavin sentia o sangue de Judith no braço através das mangas da sua
túnica. Alguém lhe pousou uma mão forte no ombro e não precisou olhar
para saber que se tratava de Stephen.
– Milady! – exclamou Joan, arquejante, quando Gavin entrou no quarto
transportando Judith.
– Acabo de voltar e não a encontrei. Está ferida! – A voz de Joan
mostrava o amor que sentia pela sua ama. – Ficará bem?
– Não sabemos – respondeu Stephen.
Gavin colocou gentilmente a esposa na cama.
– Joan, traz água quente da cozinha e procura lençóis limpos – indicou a
rainha Isabel.
– Lençóis, Majestade?
– Para absorver o sangue. Ela vai perder o bebé. Quando tiveres
conseguido os lençóis, chama Lady Helen. Ela quererá estar com a filha.
– Minha pobre ama – sussurrou Joan. – Ela queria tanto esse bebé. –
Havia lágrimas na sua voz quando saiu do quarto.
– Ide embora – insistiu Isabel, virando-se para os dois homens. – Deveis
deixá-la. Não servireis de nada agora. Nós cuidaremos dela.
Stephen rodeou os ombros do irmão com o braço, mas Gavin soltou-se.
– Não, Majestade. Não irei... Se estivesse ao lado dela esta noite, não
estaria ferida.
Stephen ia a falar, mas Isabel deteve-o. Sabia que seria inútil.
– Podeis ficar. – Acenou com a cabeça para Stephen e ele retirou-se.
Gavin acariciou a testa de Judith enquanto olhava para a rainha.
– Dizei-me o que fazer.
– Tirai-lhe o roupão.
Gavin desatou cuidadosamente a peça de vestuário e levantou Judith com
suavidade, fazendo deslizar os braços das mangas. Ficou horrorizado ao ver
o sangue nas suas coxas. Por um momento permaneceu imóvel olhando-a.
Isabel observava-o.
– O parto não é uma visão agradável.
– Isto não é um parto, mas um... – Não conseguiu terminar.
– A gravidez estava, sem dúvida, num estado avançado para que haja
tanto sangue. Será, na verdade, um parto, embora com resultados menos
agradáveis.
Ambos ergueram o rosto. A parteira, uma mulher gorda e rubicunda,
irrompeu pelo quarto.
– Quereis matar de frio a pobre jovem? – acusou. – Não precisamos de
homens! – dirigiu-se a Gavin.
– Ele vai ficar – decidiu a rainha Isabel com firmeza.
A parteira fitou Gavin por um momento.
– Nesse caso, trazei água. A criada leva tempo demasiado para a carregar
pelas escadas.
Gavin reagiu imediatamente.
– É o esposo, Majestade? – perguntou a parteira quando Gavin saiu.
– Sim, e este era o seu primeiro filho.
A mulher gorda bufou.
– Deveria ter cuidado melhor dela, Majestade, e não deixá-la vaguear
pelos corredores durante a noite.
Assim que Gavin colocou a água no interior do quarto, a mulher
continuou a dar-lhe ordens.
– Procurai alguma roupa para a manter aquecida.
Joan, que tinha entrado atrás de Gavin, revirou um baú e entregou-lhe um
vestido de lã quente. Gavin vestiu Judith com todo o cuidado, sem desviar
os olhos do sangue que escoava lentamente dela. A testa de Judith cobriu-se
de suor e ele enxugou-a com um pano molhado.
– Ela vai ficar bem? – sussurrou.
– Não posso garantir. Depende de podermos retirar todo o feto e
conseguirmos parar a hemorragia. – Judith gemeu e moveu a cabeça.
– Mantende-a quieta ou ela vai dificultar-nos o trabalho.
– Judith... – disse Gavin em voz baixa. – Não te movas. – Pegou-lhe nas
mãos e ela começou a movê-las e abriu os olhos.
– Gavin? – sussurrou.
– Sim, mas não fales. Mantém-te quieta e descansa. Em breve estarás
bem.
– Bem? – Ela não parecia ter plena consciência do seu estado. Em
seguida, sacudiu-a uma violenta contração. As mãos da jovem apertaram as
de Gavin e fitou-o, perplexa. – O que aconteceu? – Só então começou a
focar a vista. A rainha, a sua criada e outra mulher estavam ajoelhadas ao
seu lado, olhando-a com preocupação. Outra contração sacudiu-lhe o corpo.
– Vamos lá! – disse a parteira. – Temos de massajar-lhe o ventre para
ajudá-la.
– Gavin! – exclamou Judith assustada, ofegante depois da última dor.
– Calma, meu amor. Em breve estarás bem. Teremos outros filhos.
Judith arregalou os olhos, horrorizada.
– Outros filhos? O meu bebé? Estou a perder o bebé? – A voz elevou-se
quase histericamente.
– Por favor, Judith – rogou Gavin, acalmando-a. – Teremos outros.
Outra dor trespassou a jovem, que olhava para Gavin, recuperando a
memória.
– Caí pelas escadas – disse em voz baixa. – Vi-te na cama com a tua
prostituta e caí pelas escadas.
– Judith, este não é o momento...
– Não me toques!
– Judith – repetiu Gavin, quase implorando.
– Desilude-te que não tenha morrido? Como o meu filho que está morto?
– pestanejou para afastar as lágrimas. – Vai ter com ela. Queria-la tanto.
Fica com ela e boa sorte!
– Judith... – Gavin queria falar, mas a rainha Isabel agarrou-lhe o braço. –
Talvez seja melhor sairdes.
– Sim – concordou, vendo que Judith se recusava a olhar para ele. –
Stephen esperava junto da porta, com as sobrancelhas arqueadas numa
pergunta. – Perdeu a criança e ainda não sei se ela própria se salvará.
– Vamos para baixo – propôs Stephen. – Elas não vão permitir que fiques
com ela?
– Judith não permite – respondeu Gavin inexpressivo.
Stephen não voltou a falar até estarem fora da mansão. O Sol começava
agora a nascer e o céu estava cinzento. A perturbação causada pela queda
de Judith fizera com que os habitantes do castelo se levantassem mais cedo
do que o habitual. Os irmãos sentaram-se num banco junto à muralha do
castelo.
– Por que andava ela pelo corredor à noite? – quis saber Stephen.
– Não sei. Quando nos separámos, caí numa cama, a mais próxima no
topo das escadas.
– Talvez tenha acordado, descobriu que não estavas e saiu à tua procura.
Gavin não respondeu.
– Há alguma coisa que me estás a ocultar.
– Sim. Quando Judith me viu, eu estava na cama com Alice.
Stephen nunca havia até então expressado uma opinião sobre o irmão,
mas naquele momento o seu rosto ensombrou-se.
– Podias ter causado a morte de Judith, e porquê? Somente por essa
cadela... – Interrompeu-se ao ver o perfil triste de Gavin. – Estavas
demasiado bêbado para desejar uma mulher. Se desejavas fazer amor, Judith
esperava-te no quarto.
Gavin olhou para o outro lado do pátio.
– Não a levei para a cama – afirmou em voz baixa. – Estava a dormir e
ouvi um barulho que me acordou. Encontrei Alice ao meu lado. Mas não
estava tão bêbado na noite passada que a tivesse levado para a minha cama
e não me recordar.
– O que aconteceu então?
– Não sei.
– Sei eu! – exclamou Stephen com os dentes cerrados. – És um homem
sensato em tudo, exceto quando se trata dessa bruxa!
Pela primeira vez, Gavin não defendeu Alice.
Stephen continuou:
– Nunca foste capaz de vê-la como ela é. Não sabes que ela dorme com
metade dos homens da Corte?
Gavin virou-se e fitou-o.
– Não ponhas essa cara de incrédulo. É troçada por todos os homens e
tenho a certeza que pela maioria das mulheres. Do moço do estábulo ao
conde, ela não se importa, contanto que tenham o equipamento necessário
para a satisfazer.
– Se ela é assim, talvez seja por minha culpa. Era virgem quando a possuí
pela primeira vez.
– Virgem? – riu Stephen. – O conde de Lancashire jura havê-la feito sua
quando ela tinha apenas doze anos de idade.
A expressão de Gavin era de incredulidade.
– Olha o que te fez. Dominou-te, usou-te, e tu permitiste. Até lhe
suplicaste mais. Diz-me, que método usou para te impedir que amasses
Judith desde o início?
Gavin olhava-o fixamente sem o ver. Revivia a cena no jardim no dia do
seu casamento.
– Ela jurou matar-se se eu amasse a minha esposa.
Stephen encostou a cabeça contra o muro de pedra.
– Pelos pregos do Cristo! E acreditaste? Essa mulher mataria de boa
vontade milhares de pessoas antes de colocar em risco um fio de cabelo da
sua própria cabeça.
– Mas pedi-lhe que se casasse comigo – insistiu Gavin. – Antes de ouvir
sequer falar de Judith, pedi-lhe que se casasse comigo.
– No entanto, ela preferiu escolher um conde muito rico.
– Mas o pai dela...
– Gavin, não consegues olhá-la com olhos de ver? Acreditas que o
bêbado do pai, alguma vez na vida deu uma ordem a alguém? Nem mesmo
os servos lhe obedecem! Se fosse um homem enérgico, ela poderia escapar-
se tão facilmente, com liberdade para se encontrar contigo no campo, à
noite?
Era difícil para Gavin acreditar em tudo aquilo sobre a sua Alice. Ela era
tão bonita, tão delicada, tão tímida. Quando o fitava com grandes lágrimas
nos olhos, derretia-lhe o coração. Recordou como ficara quando ela
ameaçou suicidar-se. Teria feito qualquer coisa por ela, embora então já
estivesse extremamente atraído por Judith.
– Não estás convencido – disse Stephen.
– Não estou seguro. É muito difícil matar os velhos sonhos. Ela é uma
mulher linda.
– Sim, e apaixonaste-te por essa beleza. Nunca te questionaste sobre o
que mais havia debaixo dela. Afirmas que não a levaste para a cama. Então,
como apareceu ali?
Ao ver que Gavin não respondia, Stephen continuou:
– A rameira despiu-se e deitou-se ao teu lado. Depois mandou alguém
chamar Judith.
Gavin levantou-se. Não queria ouvir mais nada.
– Tenho de ir ver se Judith está bem – murmurou e regressou à mansão.
Toda a sua vida, desde os dezasseis anos, Gavin tinha sido responsável
pelas propriedades e pelos homens. Nunca dispusera de tempo livre, como
os irmãos, para cortejar as mulheres e aprender a conhecer-lhes o caráter.
Na verdade, as mulheres que passaram pela sua cama desapareceram
rapidamente. Nenhuma havia passado algum tempo com ele, rindo e
conversando. Ele crescera, acreditando que todas as mulheres eram como se
lembrava da mãe: bonitas, doces e suaves. Alice sempre parecera ser o
epítome desses traços e, como resultado, apaixonara-se por ela quase
imediatamente.
Judith tinha sido, de certo modo, a sua primeira mulher. A princípio,
enfurecera-o por não ser obediente como uma dama deveria ser. Preferia
intrometer-se nos seus livros de contabilidade em vez de se preocupar com
as sedas de cores usadas em bordados. Era de uma beleza estonteante, mas
parecia não se dar conta. Não passava horas dedicada às roupas. Na
verdade, era Joan que muitas vezes escolhia o traje da sua ama. Judith
parecia ser tudo o que era indesejável e pouco feminina. No entanto, Gavin
apaixonara-se por ela. Era sincera, corajosa, generosa – e fazia-o rir. Alice,
em troca, nunca tinha demonstrado o mínimo sentido de humor.
Gavin deteve-se do lado de fora da porta do quarto de Judith. Tinha a
certeza de que já não amava Alice, mas seria ela tão traiçoeira quanto
Stephen dissera? Como Raine e Miles também diziam? Como havia
aparecido na sua cama, exceto pela razão que Stephen apresentara?
A porta abriu-se e a parteira saiu para o corredor. Gavin agarrou-lhe o
braço.
– Como está ela?
– A dormir. A criança nasceu morta.
Gavin respirou fundo para se acalmar.
– A minha esposa vai recuperar?
– Não sei. Perdeu muito sangue. Não sei se era do bebé ou talvez tenha
sofrido algum dano interno com a queda.
Gavin empalideceu.
– Não dissestes que ela perdia o sangue da criança? – recusava acreditar
que houvesse outro problema.
– Há quanto tempo estais casados?
– Quase quatro meses – respondeu, surpreendido.
– Era virgem quando a haveis tomado?
– Sim – confirmou ele, lembrando-se da dor que lhe causara.
– A gravidez estava avançada, a criança estava bem formada. Diria que
ela concebeu nos primeiros dias de casados... Talvez por isso tenha perdido
tanto sangue, porque a criança estava muito crescida. É muito cedo para
dizer.
Virou-se para se retirar, mas Gavin agarrou-lhe no braço.
– Como sabereis?
– Se a hemorragia parar e ela ainda estiver viva.
Gavin soltou-lhe o braço.
– Dizeis que está a dormir. Posso vê-la?
A velha riu entredentes.
– Oh, os jovens! São insaciáveis. Deitam-se com uma mulher enquanto a
outra espera. Agora rondais a primeira. Deveríeis escolher entre uma e
outra.
Gavin engoliu a resposta, mas o seu cenho franzido fez com que a mulher
deixasse de sorrir.
– Sim, podeis vê-la – respondeu finalmente a mulher em voz baixa.
Depois virou-se e dirigiu-se às escadas.
***

A chuva caía como chicotes cortantes. O vento dobrava as árvores quase


ao meio. Relâmpagos lançavam feixes de luz e, ao longe, uma árvore
fendeu-se ao meio e caiu. Mas as quatro pessoas que rodeavam o pequeno
caixão, depositado há pouco na terra, não reparavam na torrente fria. Os
seus corpos balançavam com o vendaval, mas não o notavam.
Helen estava de pé junto a John, com o corpo amolecido, inclinando-se
pesadamente contra ele. Tinha os olhos secos e congestionados. Stephen
permanecia ao lado de Gavin, pronto a ajudar se o irmão precisasse dele.
John e Stephen trocaram olhares, a chuva correndo-lhe pelos rostos,
ensopando-lhes as roupas. John levou Helen vagarosamente para longe da
pequena sepultura e Stephen fez o mesmo com o irmão. A tempestade
desencadeara-se de repente, depois que o padre começara a ler o serviço
oficioso sobre o pequeno caixão.
Stephen e John pareciam estar a conduzir duas pessoas cegas e
desamparadas através do cemitério. Levaram Helen e Gavin para um
mausoléu e deixaram-nos lá enquanto foram buscar os cavalos.
Gavin deixou-se cair pesadamente num banco de ferro. A criança tinha
sido um varão. O seu primeiro filho. Aos seus ouvidos ressoava cada uma
das palavras que havia dito a Judith sobre essa criança, pensando que não
era dele. E o bebé estava morto por causa dele. Ocultou a cabeça entre as
mãos.
– Gavin – disse Helen, sentando-se ao lado dele e rodeando-lhe os
ombros com um braço. – Haviam-se falado muito pouco, desde aquele dia
em que Helen se lamentara aos gritos por não haver matado a filha em vez
de permitir que ela casasse com ele. Mas, ao longo dos meses, muitas coisas
tinham mudado. Helen descobrira o que era amar alguém e agora
reconhecia o amor nos olhos de Gavin. Via a dor que lhe causava a perda do
filho e o medo de perder Judith.
Gavin virou-se para a sogra. Esquecera qualquer hostilidade entre ambos.
Viu-a e lembrou-se apenas que Helen era a mãe da mulher que ele amava.
Abraçou-a, mas sem apertá-la. Não. Foi Helen quem o abraçou e sentiu o
calor das suas lágrimas através do vestido ensopado pela chuva. Por fim,
também Helen desafogou a sua própria dor através das lágrimas.
***

Joan estava sentada perto da sua ama adormecida. A cor de Judith havia
desaparecido e tinha o cabelo húmido de suor.
– Em breve estará bem – respondeu Joan à pergunta não formulada de
Gavin.
– Não estou assim tão seguro – respondeu ele, tocando na face quente da
sua esposa.
– Foi uma queda terrível a que ela deu – observou Joan, olhando
fixamente para Gavin.
Gavin limitou-se a assentir, mais preocupado com Judith do que com
qualquer conversa.
– O que pensais fazer com ela? – continuou Joan.
– O que posso fazer? Só espero vê-la bem quanto antes.
Joan acenou com a mão de forma depreciativa.
– Não. Refiro-me a Lady Alice. Que castigo planeais aplicar-lhe pela
patifaria que ela fez? – bufou Joan. – Uma patifaria que poderia ter custado
a vida a milady!
– Não digas isso – rugiu Gavin.
– Volto a perguntar-vos: em que castigo haveis pensado?
– Cala-te, mulher! Não sei de nenhuma patifaria.
– Não? Então, nesse caso direi o que devo dizer. Há uma serva na cozinha
que chora rios de lágrimas. Tem uma moeda de ouro e diz que Lady Alice
lha deu para levar a minha ama até onde estáveis na cama com essa
meretriz. A jovem disse que teria feito qualquer coisa pelo dinheiro, mas
não havia pensado em assassinato. Considera-se culpada pela morte do bebé
e pela possível morte de Lady Judith. Teme ir para o inferno pelo que fez.
Gavin compreendeu que era hora de encarar a verdade.
– Gostaria de ver essa mulher e de falar com ela – disse ele em voz baixa.
Joan levantou-se.
– Vou buscar a rapariga se conseguir encontrá-la.
Gavin permaneceu sentado junto a Judith, observando-a. Notou que
estava a recuperar a cor natural. Algum tempo mais tarde, Joan voltou,
puxando uma serva assustada e encolhida atrás dela.
– É esta a porca! – exclamou, dando um forte empurrão à jovem. – Olha
para a minha pobre ama, que está ali estendida. Mataste um bebé e é
possível que ela também morra. Uma dama que nunca fez mal a ninguém.
Sabes que me ensinou muitas vezes a não maltratar a escória como tu?
– Silêncio! – ordenou Gavin. – A serva estava, obviamente, com muito
medo. – Conta-me o que sabes sobre o acidente da minha esposa.
– Acidente! – repetiu Joan com uma gargalhada, mas calou-se ante o
olhar de Gavin.
A rapariga, varrendo furtivamente com o olhar os cantos do quarto,
narrou a sua história em frases desconexas e hesitantes. Por fim, lançou-se
aos pés de Gavin.
– Por favor, milorde, salve-me, Lady Alice vai matar-me!
O rosto de Gavin não mostrou nenhuma piedade.
– Pedes-me ajuda? Que ajuda prestaste à minha esposa ou ao nosso filho?
Queres que te leve onde enterraram a criança?
– Não. – A serva chorava desesperadamente, tocando com a cabeça no
chão.
– Levanta-te! – ordenou Joan. – Sujas o chão deste quarto!
– Leva-a daqui! – mandou Gavin. – Não suporto vê-la.
Joan agarrou a criada pelos cabelos e puxou-a violentamente para cima,
arrastando-a ao pontapé até à porta.
– Joan – interferiu Gavin. – Leva-a a John Bassett e diz-lhe que a
mantenha segura.
– Segura? – explodiu Joan e depois o olhar endureceu. – Sim, sir – anuiu
com uma voz falsamente submissa. Fechou a porta, torcendo o braço da
rapariga atrás das suas costas. – Mata o bebé da minha ama e devo protegê-
la! – murmurou. – Não. Vou encarregar-me de que receba o que merece.
No topo da escada em espiral, a mão de Joan apertou com mais força o
braço da serva aterrorizada.
– Basta! Fica quieta! – grunhiu John Bassett que nunca se afastara muito
da porta do quarto de Judith nos últimos dias. – É esta a mulher que Lady
Alice subornou? – Não havia uma só pessoa no castelo que ignorasse a
história da traição de Alice.
– Oh, por favor, sir – rogou a jovem, caindo de joelhos. – Não deixeis que
me matem. Não voltarei a fazer nada assim.
Joan tentou falar, mas John cravou-lhe um olhar irritado e levantou a
criada. Joan permaneceu de pé por vários minutos, seguindo-os com o olhar
enquanto se afastavam.
– Que pena que ele a tenha levado. Poderias ter-me poupado o trabalho –
pronunciou uma voz calma atrás dela.
Joan girou para encarar Alice Chatworth.
– Preferia ver-vos a vós ao fundo da escada – disse Joan com desprezo.
Os olhos azuis de Alice emitiram chispas.
– Pagarás isto com a vida!
– Aqui? Agora? – espicaçou Joan. – Não. Não é esse o vosso modo de
agir. Contratais gente para fazer o trabalho sujo no vosso lugar e depois
fingis ser uma dama inocente.
Nunca ninguém se atrevera a dizer tais coisas a Alice!
– Então? Por que hesitais? – provocou Joan.
Alice sentiu-se tentada a dar um forte empurrão à jovem, mas Joan
parecia forte e Alice não podia arriscar-se a perder a luta.
– Depois do que me disseste, tem cuidado com a tua vida – advertiu
Alice.
– Cuidarei das minhas costas, porque pessoas como vós atacam por aí. –
Joan fitou a mulher e depois começou a rir. Não parou enquanto subiu as
escadas até chegar ao quarto da ama.
A parteira e Gavin zelavam Judith.
– A febre começou – anunciou a anciã em voz baixa. – Agora as orações
ajudarão tanto como qualquer outra coisa.
Capítulo Vinte e Oito

Judith estava a sonhar. Sentia o corpo quente e dorido e tinha dificuldade


em concentrar-se no que acontecia. Ali estava Gavin, sorrindo-lhe, mas o
seu sorriso era falso. Atrás dele os olhos de Alice Chatworth brilhavam
triunfantes.
– Ganhei – sussurrou a mulher. – Ganhei!
Judith despertou aos poucos. Saiu do sonho com nervosismo pois parecia-
lhe tão real como a dor do corpo. Sentia-se como se tivesse dormido
durante vários dias numa tábua. Moveu a cabeça para um lado. Gavin
dormia numa cadeira junto à cama. Até adormecido parecia tenso e disposto
a levantar-se de um salto. Estava abatido e as maçãs do rosto sobressaíam
por baixo da pele. Há vários dias que não se barbeava e tinha círculos
escuros sob os seus olhos.
Judith ficou perplexa por alguns instantes, interrogando-se por que
motivo Gavin parecia tão cansado e o seu corpo lhe doía tanto. Moveu a
mão sob as cobertas e tocou no ventre. Já não estava tão duro e ligeiramente
arredondado, mas afundado e macio. E horrivelmente vazio!
Então, lembrou-se de tudo! Lembrou-se de Gavin na cama com Alice,
embora lhe tivesse dito que já não se importava com ela, que já não a queria
e Judith começara a acreditar nele. Começara a sonhar com um bom futuro
para ambos, na felicidade que teriam quando o bebé nascesse. Que idiota
havia sido!
– Judith! – murmurou Gavin com uma voz estranhamente rouca. Sentou-
se rapidamente ao lado dela na cama, apalpando-lhe a testa com a mão. – A
febre passou – disse, aliviado. – Como te sentes?
– Não me toques – sussurrou. – Afasta-te de mim!
Gavin assentiu com a cabeça, os lábios numa linha fina e firme.
Antes que qualquer dos dois pudesse falar de novo, a porta abriu-se,
dando entrada a Stephen. A expressão preocupada no seu rosto deu lugar a
um amplo sorriso ao ver que ela estava acordada. Acercou-se a passo rápido
do lado oposto da cama.
– Doce irmãzinha – murmurou. – Nós pensámos que poderíamos perder-
te. – Tocou-lhe suavemente no pescoço.
Ao ver um rosto familiar e amado, Judith sentiu lágrimas nos olhos.
Stephen franziu o sobrolho e olhou para o irmão, mas Gavin abanou a
cabeça.
– Vamos, tesouro – disse Stephen, apertando Judith nos seus braços. –
Não chores! – sussurrou enquanto lhe acariciava os cabelos.
– Era um menino? – murmurou ela.
Stephen limitou-se a assentir.
– Perdi-o! – gritou, desesperada. – Nem sequer teve a oportunidade de
viver e perdi-o. Oh, Stephen, desejava tanto esse menino. Teria sido bom,
gentil e muito bonito!
– Sim – concordou Stephen. – Alto e moreno como o pai.
Os soluços de Judith rasgaram-na.
– Sim. Pelo menos o meu pai tinha razão quanto a ter um neto varão. Mas
está morto!
Stephen olhou por cima da cabeça dela para o irmão. Não sabia quem era
o mais desesperado, Gavin ou a mulher que ele confortava.
Gavin nunca vira Judith chorar. Ela havia-lhe mostrado hostilidade,
paixão, humor, mas nunca aquela dor horrível. Sentiu uma profunda tristeza
por ela não partilhar o seu desgosto com ele.
– Judith – disse Stephen. – Tens de descansar. Estiveste muito doente.
– Há quanto tempo estou doente?
– Três dias. A febre quase te arrancou a nós.
Ela fungou e depois afastou-se bruscamente dele.
– Stephen, não deverias estar em viagem? Chegarás atrasado ao teu
próprio casamento.
Ele assentiu com uma expressão sombria.
– Tinha de casar com ela esta manhã.
– Então abandonaste-a no altar.
– Espero que tenha percebido o meu atraso antes de chegar até esse
ponto.
– Enviaste-lhe alguma mensagem?
Stephen abanou negativamente a cabeça.
– Para falar verdade, esqueci-me. Estávamos muito preocupados contigo.
Não sabes como estiveste próximo da morte.
Na realidade, Judith sentia-se fraca e extremamente cansada.
– Agora tens de voltar a dormir.
– E irás ter com a tua noiva? – perguntou Judith enquanto ele a ajudava a
deitar-se.
– Sim, agora que sei que a febre cedeu.
– Promete-me – exigiu ela, cansada. – Não gostaria que começasses o teu
casamento como começou o meu. Quero algo melhor para ti.
Stephen olhou rapidamente para o irmão.
– Sim, prometo. Partirei dentro de uma hora.
Ela assentiu, fechando os olhos.
– Obrigada – sussurrou e adormeceu.
Gavin levantou-se da cama ao mesmo tempo que o irmão.
– Também me esqueci do teu casamento.
– Tinhas outras coisas em mente – respondeu Stephen. – Ela ainda está
zangada contigo?
Gavin deitou um olhar cínico ao irmão.
– Mais do que zangada, diria.
– Fala com ela. Explica-lhe o que sentes. Conta-lhe a verdade sobre
Alice. Ela acreditará em ti.
Gavin olhou para a esposa adormecida.
– Tens de preparar a tua bagagem. Essa tua noiva escocesa vai esfolar-te.
– Se isso fosse tudo o que ela deseja, o meu couro, dá-lo-ia de boa
vontade.
Os dois homens saíram do quarto, fechando a porta. Gavin abraçou o
irmão.
– No Natal – disse, sorrindo. – Traz-nos essa tua esposa para o Natal.
– Sim. Vais falar com Judith?
Gavin assentiu.
– Quando ela estiver mais descansada e eu com banho tomado.
Stephen sorriu. Gavin não saíra daquele quarto durante os três dias de
febre. Stephen deu uma palmada afetuosa no irmão, virou-se e afastou-se
pelo corredor.
***

Quando Judith acordou novamente, estava escuro no quarto. Joan dormia


num colchão perto da porta. A cabeça de Judith estava mais leve e sentia-se
mais forte e com muita fome.
– Joan – sussurrou.
A jovem levantou-se imediatamente.
– Milady – disse, muito sorridente. – Lorde Gavin disse que estáveis
melhor, mas não acreditei nele.
– Quero um pouco de água – pediu Judith através dos lábios ressequidos.
– Sim. – Joan riu alegremente e aproximou o copo dos lábios da ama. –
Não tão depressa – disse enquanto Judith bebia com avidez.
A porta abriu-se e Gavin entrou com uma bandeja de comida.
– Não quero vê-lo – declarou Judith com firmeza.
– Sai! – ordenou Gavin a Joan.
A criada pousou o copo e saiu apressadamente.
Gavin colocou a bandeja em cima de uma pequena mesa ao lado da cama.
– Estás a sentir-te melhor.
Judith olhou-o com firmeza, mas não respondeu.
– Trouxe-te um pouco de caldo e um pedaço de pão. Deves estar com
muita fome.
– Não quero nada de ti. Nem comida, nem companhia.
– Estás a portar-te como uma criança, Judith – disse ele com grande
paciência. – Falaremos disto novamente quando te sentires bem.
– Pensas que o tempo me fará mudar de ideias? Acaso o tempo me
devolverá o meu bebé? Permitirá que o abrace, o ame, veja a cor dos seus
olhos?
Gavin afastou as mãos da bandeja.
– Também era meu filho. Também o perdi.
– Então, pelo menos aprendeste isso! Deveria sentir pena pela tua
tristeza? Nem sequer acreditavas que ele fosse teu. Ou também mentiste
sobre isso?
– Não te menti, Judith. Se quiseres ouvir-me, conto-te tudo.
– Ouvir-te? – replicou com um ar sério. – Acaso me ouviste alguma vez?
Desde que nos casámos tenho tentado agradar-te, mas havia pouca coisa
que podia fazer que não te enfurecesse. Sentia sempre que estavas a
comparar-me com outra pessoa.
– Judith – insistiu, tirando-lhe a mão do colo.
– Não me toques. O teu contacto repugna-me.
Os olhos do jovem passaram de cinzento a negro.
– Tenho algo a dizer-te, e é o que farei, mesmo que tentes impedir. Muito
do que disseste é verdade. Estive apaixonado por Alice, ou pensei que
estava. Apaixonei-me por ela antes mesmo de ouvir uma palavra da sua
boca. Inventei uma imagem de mulher e ela converteu-se nessa imagem.
Nunca passámos muito tempo juntos, apenas breves momentos de vez em
quando. Na verdade, nunca soube como ela era realmente; apenas via nela o
que desejava ver.
Judith não respondeu. Gavin não conseguia ler-lhe os pensamentos.
– Lutei contra amar-te – prosseguiu. – Estava convencido de que o meu
coração pertencia a Alice. Mas agora sei que estava enganado, Judith. Há
muito tempo que te amo. Talvez te tenha amado desde o início. Sei agora,
com certeza, que te amo com todo o meu coração e toda a minha alma.
Fez uma pausa e observou-a, mas a expressão dela não mudou.
– Devo cair nos teus braços e declarar igualmente o meu grande amor por
ti? É isso o que esperas de mim?
Gavin ficou atónito. Talvez tivesse sido isso o que esperava.
– A tua luxúria matou o meu filho!
– Não foi a minha luxúria! – protestou Gavin acaloradamente. – Fui
enganado. Fizeram-me cair numa armadilha. Stephen e eu bebemos de mais
juntos. Poderia ter-me deitado com um leopardo e não saberia!
Judith esboçou um sorriso gélido.
– Desfrutaste do leopardo e das suas garras, como antes?
Gavin lançou-lhe um olhar frio.
– Tentei explicar-te a minha conduta, mas não me escutas. Declarei-te o
meu amor. O que mais posso fazer?
– Ao que parece, não compreendes. Não me importa que me ames ou
não. O teu amor carece de validade, porque o dás livremente a quem o
reclame. Em outros tempos teria feito qualquer coisa para ouvir essas
palavras, mas elas já não são doces. A morte do meu filho tirou da minha
mente contos de fadas, como o amor.
Gavin recostou-se, olhando para ela. Não sabia o que mais dizer.
– Equivoquei-me em todos os aspetos. Tens direito a estar zangada.
– Não. – Judite sorriu. – Não estou zangada, nem te odeio. Simplesmente
a vida contigo ficou intolerável.
– A que te referes?
– Implorarei ao rei que peça o meu divórcio ao Papa. Creio que nem
mesmo o Papa me exigirá que viva contigo depois disso. Reterás a metade
da minha terra e... – Interrompeu-se quando Gavin se levantou.
– Vou mandar-te a Joan. Tens de comer – disse Gavin e depois saiu do
quarto.
Judith recostou-se na almofada. Sentia-se exausta. Como poderia
acreditar que ele a amava quando tudo que podia ver era Alice assomando
debaixo do seu corpo nu?
***

Judith permaneceu na cama mais três dias. Dormia muito e comia


obedientemente, mas estava tão em baixo que a comida significava pouco
para ela. Recusava-se a ver qualquer pessoa, especialmente o marido.
Preferindo manter as suas opiniões para si mesma, Joan mal falava com a
ama.
Na manhã do quarto dia, Joan puxou para trás as cobertas de Judith.
– Hoje, não ficareis na cama. Há muito trabalho a ser feito e necessitais
de exercício. – Joan pegou num roupão novo que estava aos pés da cama.
Um roupão para substituir o de veludo verde manchado de sangue. Este era
de veludo cinzento com uma larga gola de vison, uma bainha, também de
vison, ao longo da frente e ao redor. Um intrincado bordado de ouro corria
em volta dos ombros.
– Não quero levantar-me – protestou Judith e virou-se para o outro lado.
– Mas é o que fareis!
Judith ainda estava demasiado fraca para resistir. Joan tirou facilmente a
ama da cama e ajudou-a a vestir o roupão de veludo. Conduziu Judith para
um assento no recesso da janela.
– Agora ficai aqui enquanto coloco lençóis limpos.
A brisa de verão refrescava agradavelmente o rosto de Judith. Tinha uma
vista maravilhosa do jardim. Recostou-se ao vão da janela e observou as
pessoas lá em baixo.
– Gavin? – disse alguém junto ao jovem em voz baixa. – Estava sentado
sozinho no jardim, um lugar onde passava muito tempo ultimamente.
Virou-se rapidamente para a voz familiar. Era Alice, com a pele
esplendorosa à luz do amanhecer. Gavin havia adiado propositadamente o
confronto com ela. Não confiava nas suas próprias reações.
– Como ousas aproximar-te de mim?
– Por favor, deixa-me explicar...
– Não. Não podes explicar nada.
Alice desviou o rosto, levando uma mão aos olhos. Quando voltou a olhá-
lo, havia grandes lágrimas brilhantes. Gavin interrogou-se como era
possível que aquelas lágrimas tivessem tido em outros tempos o poder de
comovê-lo. Como eram diferentes as de Judith! Grandes soluços
dilacerantes, que pareciam destroçá-la. Judith chorava de dor, não para
aumentar a sua beleza.
– Só fiz isso por ti – disse Alice. – O meu amor por ti é tão forte que...
– Não me fales de amor. Duvido que conheças o significado dessa
palavra. Sabes que interroguei a rapariga a quem pagaste para levar Judith
até junto de ti? Planeaste bem, não foi?
– Gavin, eu...
Ele agarrou-a pelos braços e sacudiu-a.
– Mataste o meu filho! Isso não significa nada para ti? Quase mataste a
minha esposa – uma mulher que amo. – Empurrou Alice para longe dele. –
Poderia levar-te diante de um tribunal pelo que fizeste, mas sinto-me tão
culpado como tu. Fui um idiota em não ter compreendido como eras.
Alice levantou a mão e esbofeteou-o. Ele permitiu, sentindo que o
merecia.
– Sai da minha frente. Sinto-me tentado a apertar-te o pescoço.
Alice rodou sobre os calcanhares e fugiu do jardim.
Ella saiu das sombras.
– Disse-vos que não o procurásseis. Disse-vos que esperásseis. Ele está
muito zangado e bem o mereceis. – Ella ficou perplexa quando a ama se
encaminhou para um beco situado atrás da cozinha.
Alice apoiou-se à parede. Os ombros tremiam-lhe.
Ella aproximou-se da ama e aconchegou-lhe a cabeça nos seios fartos.
Desta vez, Alice chorou sinceramente.
– Ele amava-me – disse ela por entre soluços sentidos. – Amava-me e já
não me ama. Não tenho mais ninguém.
– Silêncio, querida! – acalmou-a Ella. – Estou aqui. Sempre estarei. – Ella
estreitou-a, como quando Alice era uma menina encantadora que chorava
pela falta de atenção da mãe. – Lorde Gavin é apenas um homem, mas há
outros. Sois tão bonita. Haverá muitos homens que vos amarão.
– Não! – ripostou Alice com tanta violência que todo o corpo lhe
estremeceu. – Só o quero a ele, quero Gavin. Outro homem não me serve!
Ella tentou acalmar a ama, mas não conseguiu.
– Então, ireis tê-lo – assegurou ela finalmente.
Alice ergueu a cabeça, com os olhos e o nariz vermelhos e inchados.
– Prometes-me?
Ella assentiu.
– Acaso não vos dei sempre o que desejáveis?
– Sim – reconheceu a jovem. – E vais trazer-me Gavin?
– Juro.
Alice esboçou um pequeno sorriso e, num raro impulso carinhoso, beijou
Ella ao de leve na face.
Os olhos da velha criada encheram-se de lágrimas. Faria obviamente
qualquer coisa por aquela doce jovem, que era tão mal compreendida pelos
que a rodeavam.
– Vamos para cima – disse Ella meigamente. – Vamos planear um vestido
novo.
– Sim – sorriu Alice, fungando ruidosamente. – Esta manhã um mercador
trouxe algumas lãs francesas.
– Vamos vê-las.
Judith tinha presenciado da janela uma parte da cena, só até ao momento
em que o marido se virou para falar com a amante.
– Joan, gostaria de falar com o rei – disse, afastando-se da janela.
– Não podeis pedir ao rei Henrique que suba até aqui, milady.
– Não é essa a minha intenção. Tens de me ajudar a vestir e vou descer
para falar com ele.
– Mas...
– Não discutas comigo!
– Sim, milady! – anuiu Joan com voz rouca.
Uma hora mais tarde, Judith apareceu no grande salão, apoiando-se
pesadamente no braço da criada.
Um jovem veio saudá-la.
– Alan Fairfax, milady, se não vos recordais.
– Claro que me recordo. – Judith conseguiu esboçar um pequeno sorriso.
– Sois muito amável em ajudar-me.
– É um prazer. Desejais ver o rei?
Ela assentiu gravemente. Deu o braço a Alan que a conduziu até à câmara
real. Era uma sala elegante, com um teto de grandes vigas, painéis de
madeira e soalhos de carvalho cobertos com tapetes persas.
– Condessa! – exclamou o rei ao vê-la. Tinha um manuscrito iluminado12
no colo. – Não deveríeis ter abandonado o leito tão cedo. – Colocou o livro
de lado e tomou-lhe o outro braço.
– Sois ambos muito amáveis – agradeceu ela, enquanto Alan e Henry a
ajudavam a sentar-se. – Gostaria de falar convosco, Majestade, sobre um
assunto particular.
O rei esboçou um aceno de cabeça a Alan e o cavaleiro deixou-os a sós.
– Que assunto é tão importante que vos obrigou a cansar-vos para falar
comigo?
Judith baixou os olhos.
– Gostaria de me divorciar.
O rei Henrique ficou em silêncio durante um momento.
– O divórcio é um assunto sério. Tendes motivos?
Havia dois tipos de divórcio e três razões para cada um. O melhor que
Judith podia pedir era uma separação, permitindo-lhe viver separada do
esposo para o resto da vida.
– Adultério – elucidou em voz baixa.
Henrique estudou a resposta.
– Se o divórcio for autorizado por esse motivo, nenhum dos dois poderá
voltar a casar-se.
– Não quero fazê-lo. Entrarei num convento, como fui preparada.
– E Gavin? Negar-lhe-íeis o direito de tomar uma nova esposa que lhe
daria filhos?
– Não – sussurrou. – Ele tem os seus direitos.
O rei observava-a atentamente.
– Então, neste caso, teremos de procurar um divórcio que declare o vosso
casamento nulo e sem efeito. Não estais ligados por vínculos de parentesco?
Judith voltou a abanar a cabeça, pensando em Walter Demari.
– E Gavin? Não estava comprometido com outra?
Judith ergueu o queixo.
– Propôs casamento a outra mulher.
– Quem é essa mulher?
– Lady Alice Chatworth.
– Ah... – Henrique suspirou e recostou-se na cadeira. – E agora a dama
está viúva e ele quer desposá-la?
– Na verdade.
O monarca franziu o sobrolho.
– Não gosto de divórcio, mas também não gosto que os meus condes e as
minhas condessas sejam infelizes. Isso ficar-vos-á muito caro. Tenho a
certeza de que o Papa exigirá a doação de uma capela ou de um convento.
– Assim farei.
– Lady Judith, permiti que pondere no assunto. Falarei com as demais
pessoas implicadas, antes de tomar uma decisão. – Alan – chamou –, levai a
condessa para o seu quarto e encarregai-vos de que possa descansar.
Alan esboçou um largo sorriso e acorreu para ajudar Judith a levantar-se.
– Lady Judith parecia muito triste – comentou a rainha Isabel que entrou
na sala no momento que Judith se retirava e se sentou ao lado do marido. –
Sei como se sente depois de ter perdido um filho.
– Não se trata disso. Ou pelo menos a criança não é tudo o que a aflige.
Pediu o divórcio de Gavin.
– Não! – exclamou a rainha, deixando cair o tecido no colo. – Nunca vi
duas pessoas mais apaixonadas. Discutem, é verdade, mas vi como Lorde
Gavin a levantou nos braços e a beijou.
– Parece que Lady Judith não é a única mulher que Gavin beija.
Isabel ficou em silêncio. Poucos homens eram fiéis às esposas. Ela sabia
que mesmo o seu marido, às vezes...
– Lady Judith pede o divórcio por esse motivo?
– Sim. Gavin parece ter proposto casamento a Lady Alice Chatworth
antes do seu enlace com Judith. É um contrato verbal e o motivo do
divórcio, isto é, se essa mulher aceitar Gavin.
– Aceitará! – exclamou Isabel, furiosa. – Para ela será uma alegria ficar
com Gavin. Esforçou-se muito por conquistá-lo.
– Do que estás a falar?
A rainha pôs rapidamente o marido a par dos rumores que circulavam
pelo castelo sobre o motivo por que Lady Judith havia caído das escadas e
abortado.
Henrique franziu a testa.
– Não gosto desses acontecimentos entre os meus súbditos. Gavin deveria
ter sido mais discreto.
– Há algumas dúvidas se ele levou a mulher para a sua cama ou se ela
mesma se colocou ali.
O rei riu entredentes.
– Pobre Gavin! Não queria estar na sua situação.
– Falaste com ele? Não creio que deseje o divórcio – assegurou Isabel.
– Mas se estava comprometido com Lady Alice antes do seu casamento...
– Neste caso por que motivo ela se casou com Edmund Chatworth?
– Compreendo – anuiu o monarca, pensativo. – Vou investigar isso a
fundo. Há mais aqui do que parece à primeira vista. Falarei com Gavin e
com Lady Alice.
– Espero que essas conversações demorem muito.
– Não compreendo.
– Se Judith tiver permissão para se separar do esposo, o seu casamento
vai realmente acabar; mas, se eles forem forçados a permanecer juntos,
poderiam compreender que se amam.
Henry sorriu afetuosamente para a sua esposa. Ela era uma mulher
inteligente.
– Vou levar muito tempo antes de enviar uma mensagem ao Papa. Onde
vais? – perguntou ao ver que ela se levantava.
– Desejo trocar umas palavras com Sir Alan Fairfax. Talvez ele esteja
disposto a ajudar uma dama em apuros.
O rei brindou-a com um olhar intrigado e depois voltou a pegar no
manuscrito.
– Sim, minha querida. Tenho a certeza de que lidarás com tudo isso sem a
minha ajuda.
Duas horas depois, a porta do quarto de Judith foi aberta com violência.
Gavin entrou em grandes passadas com o rosto obscurecido pela fúria.
Judith levantou o olhar do livro que tinha no colo.
– Pediste o divórcio ao rei! – vociferou ele.
– Sim, pedi – respondeu ela com firmeza.
– Pensas revelar as nossas divergências ante o mundo?
– Sim, se for necessário para me libertar de ti. Gavin fulminou-a com o
olhar.
– Que mulher tão teimosa! Nunca vês mais além da tua opinião? Alguma
vez raciocinas?
– A tua ideia de raciocinar não é a mesma que a minha. Queres que te
perdoe por adultério uma e outra vez. Já o fiz muitas vezes, mas agora não
posso mais. Pretendo livrar-me de ti e entrar num convento, como deveria
ter feito há muito tempo.
– Um convento! – exclamou ele, incrédulo e depois sorriu, zombeteiro.
Deu um rápido passo em direção à esposa e rodeou-lhe os ombros com um
braço. Levantou-a da cama e a sua boca cobriu a dela. Não foi um beijo
suave, mas mesmo na sua brutalidade deixou Judith excitada. Colocou os
braços à volta do seu pescoço, estreitando-se violentamente contra ele.
Gavin soltou-a de repente e deixou-a cair no colchão de penas. Os lados do
colchão macio ergueram-se ao redor dela.
– Pois vai-te convencendo que nunca te libertarás de mim. Quando
estiveres disposta a admitir que sou o homem de que necessitas, vem
procurar-me. Talvez te aceite ao meu lado outra vez. – Virou-se e saiu do
quarto antes que Judith pudesse dizer uma palavra.
Joan estava de pé na ombreira da porta, com um olhar de adoração no
rosto.
– Mas, como se atreve…? – balbuciou Judith e interrompeu-se ante a
expressão da sua criada. – Por que me olhas assim? – perguntou.
– Porque vos equivocais. Esse homem ama-vos, já vos disse, mas não
quereis escutá-lo. Estive do vosso lado desde que se casaram, mas agora
não estou, milady.
– Mas aquela mulher... – protestou Judith com uma voz estranha e
suplicante.
– Não podeis perdoá-lo? Ele pensou que a amava. Seria menos homem se
estivesse disposto a esquecê-la quando viu pela primeira vez a sua linda
esposa? Estais a exigir-lhe muito.
– Mas o meu bebé! – exclamou Judith, com lágrimas na voz.
– Expliquei-vos a traição de Alice. Por que continuais a atirar a
responsabilidade para o vosso esposo, milady?
Judith ficou em silêncio durante um momento. A perda da criança doía-
lhe muito. Talvez quisesse culpar alguém e Gavin fosse a pessoa adequada
para carregar com tudo. Porém, sabia que Joan dizia a verdade com respeito
a Alice. Naquela noite, as coisas tinham acontecido com demasiada rapidez.
Mas agora, passados vários dias, dava-se conta de que Gavin tinha estado
demasiado inerte sobre o corpo de Alice.
– Ele diz que vos ama – prosseguiu Joan com uma voz mais calma.
– Fazes mais alguma coisa além de escutares atrás das portas? – acusou
Judith.
Joan sorriu.
– Gosto de saber o que acontece com aqueles que me interessam. Ele
ama-vos, milady. O que sentis por ele?
– Eu... eu não sei.
Joan soltou uma praga que escandalizou a ama.
– A vossa mãe deveria ter-vos ensinado mais algumas coisas, além dos
registos de contabilidade, milady. Não me parece ter visto uma mulher tão
apaixonada como estais por Lorde Gavin. Não haveis desviado os olhos
dele, desde que desmontou daquele cavalo branco no dia do vosso
casamento. No entanto, sempre lhe haveis resistido… e ele a vós –
acrescentou antes que Judith pudesse interromper. – Por que não deixais de
brigar e fazeis mais bebés? Gostaria de ter um para cuidar.
Judith sorriu, embora os olhos se lhe enchessem de lágrimas.
– Mas ele não me ama, na realidade. Mesmo que assim fosse, está furioso
comigo. Se fosse ter com ele e lhe dissesse que não quero o divórcio, que
eu... eu...
Joan soltou uma gargalhada.
– Nem sequer conseguis dizê-lo. Ama-lo, não é verdade?
Judith fez uma pausa, muito séria, antes de responder.
– Sim, amo-o.
– Agora, devemos traçar os nossos planos. Não podeis ir procurá-lo; dar-
lhe-íeis motivos para se regozijar por muitos anos. Além disso, não
saberíeis como fazê-lo, mostrando-vos fria e lógica em vez de chorar e
suspirar.
– Chorar e…? – Judith parecia ofendida.
– Dais-vos conta do que quero dizer, milady? Certa vez, haveis dito que
eu dava muita importância à aparência das pessoas e respondi que atribuíeis
muito pouca. Pelo menos uma vez tereis de usar a vossa beleza em
benefício próprio.
– Mas como? Gavin já me viu de todas as maneiras. A minha aparência
não terá qualquer efeito sobre ele.
– É isso o que pensais? – riu Joan. – Ouvi-me e dentro de alguns dias
teremos Lorde Gavin a rastejar aos vossos pés.
– Seria bom para variar – sorriu Judith. – Sim, gostaria disso.
– Então, deixai as coisas por minha conta. Lá em baixo está um mercador
de tecidos italiano e...
– Não preciso de mais roupas! – protestou Judith, olhando para os quatro
grandes baús que tinha no quarto.
Joan sorriu com um ar misterioso.
– Deixai que me encarregue dos homens. Limitai-vos a descansar, porque
necessitareis de todas as vossas forças.
***

A notícia de que Judith pedia o divórcio espalhou-se por toda a Corte


como um incêndio. O divórcio não era incomum, mas Judith e Gavin
tinham-se casado há pouco tempo. A reação do povo da Corte foi estranha.
As mulheres – herdeiras órfãs e jovens viúvas – aglomeravam-se em torno
de Gavin, percebendo que o seu longo romance com Alice Chatworth
terminara. Obviamente, a sua adorável esposa não o controlara. Para elas,
Gavin era um homem sem vínculos amorosos que em breve necessitaria de
escolher uma delas como esposa.
Mas os homens não correram para Judith. Não eram dados a atuar
primeiro e a pensar depois. A rainha mantinha Judith ao seu lado, dando-lhe
um tratamento preferencial ou, como os homens a viam, guardando-a como
uma ursa aos seus filhotes. Os homens também sabiam que era incomum
para o rei Henrique manter um casal separado na Corte. O rei não gostava
do divórcio e geralmente mandava embora os súbditos que se encontravam
nessa situação. Na verdade, Lady Judith era linda, encantadora e muito rica,
mas com muita frequência um homem sentia os olhos de Gavin em cima
dele quando contemplava durante muito tempo essa beleza de olhos
dourados. Mais de um expressou a opinião de que uma boa tareia teria
impedido Judith de trazer as suas divergências a público.
– Milady?
Judith levantou os olhos do livro e sorriu a Alan Fairfax. O vestido novo
que usava era extremamente simples. Tinha um decote quadrado e mangas
longas e apertadas. Descia até aos pés, de modo que formava um pequeno
amontoado de tecido no chão quando ela se levantava. Para caminhar,
precisava de colocar uma parte da saia sobre o braço. Os lados estavam
amarrados com força. Mas a verdadeira originalidade do vestido residia na
cor: negro como a noite. Não havia cinto, nem manto. A rodear-lhe o
pescoço pusera um colar de filigrana de ouro com grandes rubis. Judith
tinha o cabelo solto, caindo-lhe pelas costas. Hesitara ante o vestido negro,
perguntando-se até que ponto era adequado; não suspeitara que o negro
fizesse brilhar a sua pele como uma pérola. O ouro do colar refletia o tom
dos seus olhos e os rubis ficavam em segundo plano sob o fulgor da sua
cabeleira dourado-avermelhado.
Alan quase não conseguiu conter-se para não fitar boquiaberto. Pelo
visto, Judith ignorava que estava a enlouquecer os homens da Corte, e não
só o seu esposo.
– Tencionais permanecer aqui dentro num dia tão lindo? – conseguiu
finalmente articular.
– Assim parece – sorriu ela. – Para falar verdade, há vários dias que não
me afasto muito destas paredes.
Ele ofereceu-lhe o braço.
– Então talvez vos apeteça passear um pouco comigo?
Judith levantou-se, aceitando o seu braço.
– Seria um verdadeiro prazer, amável senhor. – Segurou-lhe o braço com
firmeza, feliz por conversar novamente com um homem. Há vários dias que
todos pareciam evitá-la. O pensamento fê-la rir em voz alta.
– Algo vos diverte, milady? – inquiriu Alan.
– Ocorreu-me que deveis ser um homem corajoso. Na última semana,
comecei a temer que talvez tivesse peste ou algo ainda pior. Basta olhar
para um homem e ele foge como se corresse um risco mortal.
Foi a vez de Alan rir.
– Não sois vós quem os afugenta, mas o vosso esposo.
– Mas possivelmente… em breve deixará de ser meu esposo.
– Possivelmente? – repetiu Alan, arqueando uma sobrancelha. – Ouço
uma nota de incerteza?
Judith manteve-se um instante em silêncio.
– Temo ser muito transparente.
Ele cobriu-lhe a mão com a dele.
– Estáveis muito zangada e com razão. Lady Alice... – interrompeu-se ao
notar que ela ficava rígida. – Foi indelicadeza da minha parte mencioná-la.
Haveis, então, perdoado ao vosso esposo?
Judith sorriu.
– É possível amar sem perdoar? Se for possível, então esse é o meu
destino.
– Por que não o procurais, colocando um final a esse distanciamento?
– Oh, não conheceis Gavin, Lorde Alan. Teria de suportar a sua
arrogância e o seu sermão sobre a minha rebeldia.
Alan riu entredentes.
– Então precisais que ele venha por vontade própria.
– É o que diz a minha criada, embora não me tenha dado nenhuma lição
sobre como consegui-lo.
– Só há uma maneira. O vosso esposo é um homem ciumento, milady. Se
dedicardes parte do vosso tempo a outro, Lorde Gavin não demorará a
reconhecer o seu erro.
– Mas que homem? – perguntou Judith dado que conhecia tão poucas
pessoas na Corte.
– Ofendeis-me profundamente – riu Alan, levando a mão ao peito,
fingindo desespero.
– Vós? Mas não tendes interesse algum na minha causa!
– Neste caso, devo forçar-me a passar algum tempo na vossa companhia.
Será, indubitavelmente, uma tarefa muito difícil, mas estou a dever-vos um
favor.
– Não me deveis nada.
– Devo, sim. Fui usado para vos fazer vítima de uma artimanha, milady, e
gostaria de compensar-vos.
– Uma artimanha? Não sei a que vos referis.
– É um segredo meu... Agora, não falemos mais de assuntos sérios. Este é
um dia para apreciar.
– Sim – concordou ela. – Sabemos pouco um do outro. Falai-me de vós.
Alan sorriu, provocador.
– Tive uma vida longa e interessante. Creio que a minha história nos
levaria o dia inteiro.
– Neste caso, começai agora mesmo – riu Judith.

12 Manuscrito iluminado – um manuscrito em que o texto é complementado com decoração como


iniciais, bordas (marginalia) e ilustrações em miniatura. (N. da T.)
Capítulo Vinte e Nove

Alan e Judith afastaram-se do ruído e da confusão da casa real e


caminharam na direção do parque arborizado que rodeava as muralhas do
castelo. Revelou-se uma longa caminhada, mas que ambos desfrutaram com
alegria.
Foi uma tarde interessante para Judith. Compreendia agora que tinha
conhecido poucos homens na vida. Alan era divertido e o dia passou
rapidamente. O jovem estava fascinado com aquela mulher tão bem-
educada. Riram juntos ante as confissões de Judith, que contou como as
suas criadas costumavam levar-lhe em segredo contos românticos para que
ela os lesse em voz alta. Alan estava seguro de que Judith não tinha plena
consciência de quão pouco ortodoxa havia sido a sua infância. Foi apenas
no final da tarde que ela falou da sua vida de casada. Contou como havia
reorganizado o castelo de Gavin e mencionou de passagem as suas
conversas com o armeiro. Alan começou a compreender a causa das
explosões de Gavin. Seria preciso um homem ter uma grande força de
vontade para ser capaz de ficar de lado e permitir que a esposa impusesse as
suas próprias ordens.
Conversaram e riam até que o Sol baixou no céu.
– Temos de regressar – disse Alan. – Mas detesto dar por terminada a
diversão.
– Concordo – sorriu a jovem. – Foi realmente agradável e estou feliz por
me afastar da Corte, onde há demasiados rumores e maledicência.
– Não é um lugar ruim – a menos que se seja o objeto da maledicência.
– Como sou agora? – replicou Judith, estremecendo.
– Sim. Fazia anos que não se contava com tão bom tema de conversa.
– Sir Alan – riu ela. – Que cruel sois comigo! – Enfiou o braço no dele e
sorriu.
– Encontrei-os! – sibilou uma voz a pouca distância. – É aqui que se
escondem?
Judith voltou-se e deparou com Alice de pé, ao lado deles.
– Ele será meu em breve! – gabou-se Alice e aproximou-se de Judith. –
Quando se livrar de ti, virá para mim.
Judith retrocedeu um passo. A luz nos olhos azuis de Alice era
antinatural. Os seus lábios curvavam-se e mostraram os dentes irregulares e
tortos, que habitualmente ocultava com tanto cuidado.
Alan interpôs-se entre Alice e Judith.
– Afastai-vos, Lady Alice! – ameaçou em voz baixa.
– Estás a esconder-te atrás do teu amante? – gritou Alice, ignorando Alan.
– Não podes esperar pelo divórcio antes de procurares outros homens?
A mão de Alan apertou o ombro de Alice.
– Ide embora e não regresseis. Se voltar a ver-vos perto de Lady Judith,
será diante de mim que respondereis.
Alice ia a dizer algo mais, mas a mão de Alan cravada no seu ombro
impediu-a. Virou as costas e afastou-se a passo largo.
Alan voltou-se para Judith, que seguia a mulher com o olhar.
– Pareceis um pouco assustada.
– Estou mesmo – reconheceu ela, esfregando os braços. – Essa mulher
dá-me calafrios. Antes acreditava que ela fosse minha inimiga, mas agora
quase me inspira compaixão.
– Sois bondosa. A maioria das mulheres odiá-la-ia pelo que vos fez.
– Também a odiava. Talvez ainda sinta o mesmo, mas não posso culpá-la
por todos os meus problemas. Muitos foram causados por mim mesma e
por….
Interrompeu-se e baixou os olhos.
– E pelo vosso esposo?
– Sim – sussurrou ela. – Por Gavin.
Alan estava muito perto dela. A escuridão descia rapidamente e tinham
passado juntos o dia inteiro. Talvez fosse a luz delicada nos seus cabelos e
olhos, mas ele não pôde evitar beijá-la. Tomou o queixo dela na mão e
ergueu-lhe o rosto. Os seus lábios encontraram os dela.
– Doce e encantadora Judith – sussurrou –, preocupa-se demasiado com
os outros e muito pouco consigo.
Judith sobressaltou-se, mas a carícia de Alan não lhe pareceu ofensiva,
nem tão pouco muito excitante. Manteve os olhos abertos e observou os
cílios de Alan contra a sua face. Os seus lábios eram suaves e agradáveis,
mas não acenderam o fogo nela.
Um momento depois, o chão abriu-se e brotou o inferno. Judith foi
violentamente separada de Alan e atirada contra uma árvore. Por um
instante perdeu os sentidos. Olhou em redor, aturdida. Alan estava no chão,
com sangue a escorrer pelo canto da boca. Esfregava o queixo, flexionando-
o. Gavin inclinou-se, disposto a atacá-lo outra vez.
– Gavin! – gritou Judith e atirou-se ao esposo.
Gavin afastou-a sem lhe prestar atenção.
– Como vos atreveis a tocar no que me pertence? – rosnou ao cavaleiro. –
Pagareis isto com a vida!
Alan pôs-se imediatamente de pé e levou a mão à espada. Os dois
olhavam-se fixamente sem falar, com as narinas dilatadas de raiva.
Judith colocou-se entre os dois homens, enfrentando Gavin.
– Queres lutar por mim depois de me haveres abandonado
voluntariamente?
Ao princípio Gavin não pareceu ouvi-la, nem mesmo reparar na sua
presença. Pouco a pouco, afastou os olhos de Alan para fitar a esposa.
– Não fui eu quem te abandonou – disse ele calmamente. – Foste tu.
– Mas deste-me motivo! – justificou ela. – Foste tu que durante todo o
nosso casamento resististe, sempre que tentei oferecer-te amor.
– Nunca me ofereceste amor – foi a resposta dele.
Judith olhava-o fixamente, esquecendo a sua fúria.
– Não fiz outra coisa desde que nos casámos, Gavin. Tentei fazer e ser o
que desejavas de mim, mas querias que eu fosse... ela! Não poderia ser
ninguém além de mim mesma. – Judith inclinou a cabeça para dissimular as
lágrimas.
Gavin deu um passo na direção dela, mas voltou-se para olhar Alan com
ódio. Judith sentiu a tensão e ergueu o rosto.
– Se lhe tocares num só fio de cabelo, vais arrepender-te – advertiu.
Gavin, com o sobrolho franzido, quis dizer algo, mas aos poucos acabou
por sorrir.
– Tinha começado a pensar que a minha Judith já não existia – sussurrou.
– Mas só estava oculta sob um manto de doçura.
Alan tossiu para dissimular o riso que ameaçava escapar.
Judith endireitou-se e atirou os ombros para trás. Afastou-se dos dois
homens, desgostosa por eles rirem dela.
Gavin observou-a um momento, dividido entre a sua briga com Alan
Fairfax e o desejo de correr atrás da sua esposa. Judith ganhou facilmente a
competição. Gavin deu três passos largos e abraçou-a, erguendo-a do chão.
Alan apressou-se a deixá-los sozinhos.
– Se não ficares quieta, pôr-te-ei no ramo de uma árvore até que não
consigas mover-te. – A horrível ameaça imobilizou-a. Gavin sentou-se no
chão com ela e segurou-lhe os braços. – Assim gosto mais – disse ao vê-la
mais calma. – Agora falarei e tu escutarás. Humilhaste-me em público.
– Não! – interrompeu-se. – Não digas nada até eu ter terminado. Posso
suportar que me ridicularizes no meu próprio castelo, mas já estou farto de
que o faças diante do rei. E agora a Inglaterra em peso troça de mim.
– Pelo menos isso dá-me um certo prazer – reagiu Judith, presunçosa.
– A sério, Judith? Isto deu-te prazer?
Ela apressou-se a pestanejar.
– Não, não me deu. Mas a culpa não é minha.
– Tens razão. És inocente da maior parte. Mas disse que te amava e pedi-
te perdão.
– E eu disse...
Pousou-lhe dois dedos sobre os lábios e afogou-lhe as palavras.
– Estou cansado de brigar contigo. És minha esposa, pertences-me, e
quero tratar-te como tal. Não haverá divórcio – os seus olhos escureceram.
– Tão pouco voltarás a passar a tarde com jovens cavaleiros. Amanhã
deixaremos este lugar cheio de coscuvilhices e voltaremos para casa. Lá, se
for necessário, vou trancar-te numa torre e só eu terei a chave. Demorará
muito tempo a acalmar as risadas de toda a Inglaterra, mas pode conseguir-
se. – Fez uma pausa, sem que Judith falasse. – Lamento pela armadilha que
Alice preparou. Também derramei muitas lágrimas pelo filho que
perdemos, mas divorciarmo-nos não mudará o passado. Só espero deixar-te
grávida logo, para que isso cure a tua ferida. Mas, se não acreditas que seja
assim, não importa: vou fazer as coisas à minha maneira.
Gavin afirmara tudo isso com determinação. Judith, sem responder,
permaneceu quieta nos seus braços.
– Não tens nada a dizer? – perguntou ele.
– O que poderia dizer? Não acredito que me permitas dar uma opinião.
Ele não a fitava, mas contemplava o campo verde à distância.
– Repugna-te assim tanto a ideia?
Judith não pôde conter-se mais e desatou a rir. Gavin observou-a com
estranheza.
– Dizes que me amas, que me manterás afastada de todos, exceto de ti,
encerrada numa torre, onde passaremos noites de paixão. Admites que a
mulher que juraste amar foi falsa e preparou armadilhas. Dizes-me tudo isto
e perguntas se me repugna a ideia. Deste-me o que mais quis desde que te vi
na igreja pela primeira vez.
Ele continuava a olhá-la.
– Judith... – murmurou, hesitante.
– Amo-te, Gavin! – sorriu ela. – É assim tão difícil de entender?
– Mas há três dias... o divórcio...
Desta vez foi ela quem lhe pousou dois dedos nos lábios.
– Pediste-me perdão. Também poderás perdoar-me?
– Sim – sussurrou Gavin enquanto se inclinava e a beijava. Mas afastou-
se bruscamente. – E o que me dizes desse homem que te beijou. Vou matá-
lo!
– Não! Foi apenas uma demonstração de amizade.
– Pois não me parecia…
– Estás a encolerizar-te outra vez? – acusou ela, com chispas no olhar. –
Passei dias inteiros a ver como as mulheres te manobravam.
Ele riu entredentes.
– Deveria ter gostado, mas não foi assim. Arruinaste-me para toda a vida.
– Não compreendo.
– As mulheres só falavam de roupas e… – os olhos de Gavin cintilavam –
… de cremes para o rosto. Tive problemas com os livros de contabilidade e
nenhuma delas soube ajudar-me.
Judith ficou imediatamente preocupada.
– Voltaste a deixar que algum padeiro nos roubasse? – quis levantar-se. –
Anda, vamos. Tenho de tratar disso sem demora.
Gavin apertou-a com mais força.
– Não irás! Deixa lá os registos! Não podes usar a tua doce boca para algo
que não seja tagarelar?
A jovem sorriu-lhe com um ar inocente.
– Pensei que era apenas tua propriedade e tu o dono.
Gavin ignorou o sarcasmo.
– Pois vem, escrava, e encontremos uma guarida secreta neste bosque
escuro.
– Sim, meu amo! Irei de boa vontade. – Caminharam de mãos dadas para
a floresta.
Porém, Judith e Gavin não estavam sozinhos. As suas palavras de amor,
as suas brincadeiras, haviam sido testemunhadas por Alice. Observava-os
com os olhos azuis febris.
– Vinde, pequena! – exclamou Ella enquanto puxava a ama à força pela
mão.
Ella olhou com ódio para o casal que caminhava por entre as árvores,
com os corpos entrelaçados. «Esses diabos brincavam com Alice!», pensou.
Provocavam-na e riram dela até enlouquecer a pobre menina. Mas pagariam
bem caro, jurou.
***

– Bom dia – sussurrou Judith e aninhou-se para mais perto do marido. –


Ele beijou-lhe o topo da cabeça, sem responder. – Vamos mesmo embora
hoje?
– Se quiseres.
– Oh, sim, quero. Estou cheia de tanta coscuvilhice, de olhares maldosos
e de homens que me fazem perguntas indecentes.
– Que homens? – Gavin franziu o sobrolho.
– Não me confundas – replicou ela. – De repente, sentou-se na cama,
deixando cair as cobertas. – Tenho de falar com o rei, agora mesmo! Não
posso permitir que siga em frente com o divórcio. Talvez se possa deter o
mensageiro.
Gavin puxou-a para deitá-la na cama ao lado dele. Deslizou os dentes
pelos tendões do pescoço. Fizera amor com ela na floresta no dia anterior e
na maior parte da noite passada, mas estava longe de se sentir saciado.
– Não há necessidade de tanta pressa. O Papa não receberá nenhuma
mensagem.
– Como? – estranhou Judith, afastando-se de Gavin. – O que estás a
dizer? Há vários dias que pedi o divórcio ao rei.
– A mensagem não foi enviada.
Judith afastou-se violentamente dele.
– Gavin! Exijo uma explicação. Falas por enigmas.
Gavin sentou-se na cama.
– O rei Henrique revelou-me a tua solicitação e perguntou se eu também
queria o divórcio. Respondi que era um absurdo imaginado por ti enquanto
estavas zangada comigo. Disse-lhe que te arrependerias num curto espaço
de tempo.
Judith abriu a boca para falar, com os olhos arregalados.
– Como te atreveste? – balbuciou por fim, ofegante. – Tinha todo o
direito…!
– Judith… – Interrompeu ele –, um divórcio não pode ser concedido a
cada esposa que se enfureça com o marido. Em breve não restariam
matrimónios.
– Mas não tinhas o direito…
– Tenho todo o direito. Sou teu marido e amo-te. Quem pode ter mais
direitos que eu? Agora vem cá e deixa de falar.
– Não me toques! Como posso encarar o rei depois do que me disseste?
– Encaraste-o todos estes dias e não pareces ter sofrido nenhum dano. –
Gavin olhava cobiçoso para os seus seios nus.
Ela cobriu-se com as cobertas até ao pescoço.
– Troçaste de mim!
– Judith! – exclamou Gavin em voz baixa e ameaçadora. – Suportei
muitas coisas neste caso. Suportei as risadas e o ridículo, tudo com intenção
de te apaziguar. Mas já basta. Se não te comportares devidamente, vou
deitar-te sobre os meus joelhos para dar uma boa surra nesse bonito traseiro.
Agora vem cá!
Judith ia desafiá-lo, mas acabou por sorrir e aconchegou-se contra o seu
peito.
– Por que tinhas tanta certeza de que não me divorciaria de ti?
– Sabia que te amava o bastante para proibi-lo. Ter-te-ia realmente
encerrado numa torre antes de ver-te nos braços de outro.
– Mas suportaste as brincadeiras sobre o divórcio.
Gavin emitiu uma risada depreciativa.
– Não tinha intenções de fazê-lo. Ignorava que a tua raiva chegaria a ser
do conhecimento público. Esqueci-me obviamente até que ponto a Corte é
coscuvilheira. Aqui ninguém faz nada sem que todos saibam.
– Como se espalhou a notícia?
Gavin encolheu os ombros.
– Através de uma criada, suponho. Como se espalhou a armadilha de
Alice?
Judith levantou a cabeça.
– Não menciones o nome dessa mulher!
Gavin voltou a estreitá-la contra o peito.
– Não há lugar para o perdão no teu coração? Essa mulher ama-me, tal
como em outros tempos acreditei amá-la. Tem feito tudo por esse amor.
Judith soltou um suspiro exasperado.
– Ainda não consegues pensar mal dela, pois não?
– Ainda tens ciúmes? – inquiriu, sorridente.
Ela fitou-o com uma expressão muito séria.
– De certo modo, tenho. Ela sempre será uma mulher perfeita aos teus
olhos. Interpretas tudo o que fez como atos de amor. Acreditas que é uma
mulher pura e perfeita, e sempre acreditarás. Enquanto eu…
– Tu o quê? – provocou-a.
– Eu sou terrena. Represento a mulher que tens e podes possuir. Alice
representa o amor etéreo.
Ele franziu o sobrolho.
– Diz-me que estou errado, mas por que mais ela teria feito o que fez?
Judith abanou negativamente a cabeça.
– Por ganância. Ela acredita que és dela e que te roubei. Não te ama mais
do que me ama… exceto que tu tens como lhe dar algum prazer ao corpo...
por mais breve que seja.
Gavin arqueou uma sobrancelha.
– Estás a insultar-me?
– Não, mas escuto os rumores que andam por aí. Os homens queixam-se
da sua inclinação pela violência.
Gavin abafou uma exclamação.
– Não vamos falar mais sobre isso – disse ele friamente. – És a minha
esposa e amo-te, mas, mesmo assim, não quero que te enfureças com ela e
não vou escutar que maldigas uma mulher tão infeliz. Ganhaste e ela
perdeu. Isso deveria bastar-te.
Judith pestanejou para conter as lágrimas.
– Amo-te, Gavin. Amo-te profundamente, mas receio que não tenha o teu
amor por inteiro enquanto essa doença por Alice Chatworth continuar a
corroer-te o coração.
Gavin franziu a testa, estreitando-a com mais força.
– Não tens motivos para sentir ciúmes dela.
Judith ia a falar, mas calou-se. De que serviriam as suas palavras? Sempre
teria de ceder um pedaço do coração do seu marido a uma gélida beleza
loira. E não havia palavras que pudessem alterar esses sentimentos.
***

Despedir-se dos seus conhecidos na Corte não foi fácil para Judith. A
rainha, em especial, tornara-se sua amiga. No momento de fazer uma
reverência diante do rei, a jovem sentiu-se corar. Lamentava o espalhafato
por ter pedido o divórcio, mas, se não tivesse percebido o seu erro, ela e
Gavin não estariam juntos agora. Ao levantar a cabeça para o rei, sorriu.
Saber que Gavin a amava e que ela o amava e que isso valia todo o
embaraço e provocação.
– Sentiremos a falta do vosso belo rosto – sorriu o rei Henrique. – Espero
que volteis a visitar-nos em breve.
Gavin colocou um braço possessivamente sobre os ombros da esposa.
– É o belo rosto dela ou a diversão que proporcionou?
– Gavin! – exclamou Judith, horrorizada.
O rei atirou a cabeça para trás e soltou enormes gargalhadas.
– É verdade, Gavin – disse depois de algum tempo. – Juro que não me
divertia assim há tanto tempo. Tenho a certeza de que não haverá
casamentos tão fascinantes como este.
Gavin devolveu o sorriso do rei.
– Então podeis observar o de Stephen. Acabei de ouvir que a sua noiva
escocesa o ameaçou com uma adaga na noite de núpcias.
– Feriu-o? – quis saber o rei, preocupado.
– Não – foi a sorridente resposta –, mas imagino que também não pôde
dominar a personalidade dele. Talvez a mulher tivesse motivos para se
encolerizar. Afinal, Stephen chegou às próprias bodas com três dias de
atraso.
O rei Henrique sacudiu a cabeça, incrédulo.
– Não invejo o homem. – Voltou a sorrir. – Pelo menos tudo está bem
com um dos irmãos Montgomery.
– Sim – reconheceu Gavin, acariciando o braço de Judith. – Na verdade,
está tudo bem.
Terminaram as despedidas e abandonaram o grande salão. Tinham levado
a maior parte do dia a tratar da bagagem para iniciar a viagem de volta. Na
realidade, deveriam ter esperado até ao dia seguinte, mas toda a gente
parecia ter tanta pressa de partir como Judith e Gavin. Contando o tempo
passado no castelo de Demari e a estadia na Corte, levavam muitas semanas
de ausência.
Quando montaram nos cavalos e se despediram das várias pessoas que se
reuniram para saudá-los, apenas um observava com preocupação. Alan
Fairfax não conseguira ficar um momento a sós com Judith, como esperava.
De manhã cedo, Alice Chatworth havia abandonado o castelo, com os seus
servos e pertences. Todos na Corte pareciam acreditar que a mulher aceitara
a derrota quando Judith e Gavin se reconciliaram. Mas não era essa a
opinião de Alan. Sentia que conhecia muito bem Alice. Ela tinha sido
humilhada e procuraria vingança.
Quando o pátio ficou limpo e o grupo Montgomery estava fora das
muralhas do castelo, Alan montou no seu cavalo e seguiu-os a uma discreta
distância. Não fazia mal ser cauteloso, pelo menos até que Lady Judith
estivesse segura dentro das muralhas do seu próprio castelo.
Alan sorriu e flexionou o queixo dorido, onde Gavin o havia atingido no
dia anterior. Não havia expressado abertamente os seus medos de Alice,
pois sabia que Lorde Gavin acreditava que ele tinha uma preocupação não
cavalheiresca pela sua esposa. «Talvez fosse verdade», pensou Alan.
«Talvez no início.» Finalmente, quando a conheceu melhor, começou a
olhar para ela como se de uma irmã mais nova se tratasse.
Suspirou e quase riu em voz alta. Pelo menos podia reconhecê-lo: pela
maneira como ela olhava para Lorde Gavin, não havia esperança para mais
nada.
Capítulo Trinta

A temperatura da água quente era algo de celestial contra a pele nua de


Judith. Porém, melhor do que a água era a liberdade. Não havia
coscuvilhices da Corte, fazendo comentários sobre a sua conduta
indecorosa. Na verdade, a conduta deles era agora, efetivamente, muito
indecorosa para um conde e a sua condessa, proprietários de vastas terras.
Haviam viajado durante três dias quando avistaram o belo lago azul, com
um recanto isolado e oculto por salgueiros chorões. Nesse momento, Gavin
e Judith penduravam-se neles e brincavam como crianças.
– Oh, Gavin! – murmurou Judith numa voz entre o riso e o sussurro.
O riso de Gavin ecoou profundamente na sua garganta, quando a tirou da
água e voltou a atirá-la. Há uma hora que brincavam na água, perseguindo-
se, no meio de beijos e de carícias. As roupas estavam amontoadas na
margem enquanto se moviam sem estorvos na água.
– Judith – sussurrou Gavin, aproximando-se –, fazes com que esqueça os
meus deveres. Os meus homens não estão acostumados a semelhante
descuido.
– Nem eu estou acostumada a tanta atenção – replicou ela, mordiscando-
lhe os ombros.
– Não! Não comeces de novo. Tenho de regressar ao acampamento.
Ela suspirou, mas sabia que ele tinha razão. Caminharam até à margem
onde Gavin se vestiu rapidamente e esperou impaciente pela esposa.
– Gavin – sorriu ela –, como queres que me vista se me olhas assim?
Volta ao acampamento e seguir-te-ei daqui a pouco.
– Não me agrada deixar-te sozinha – protestou ele, franzindo o sobrolho.
– Estamos muito perto do acampamento. Nada me acontecerá.
Gavin inclinou-se para lhe dar um abraço apertado.
– Desculpa se te protejo em demasia. É que estive quase a perder-te por
causa da criança.
– Não foi por isso que estiveste quase a perder-me – ripostou ela.
Ele riu e deu-lhe uma palmada no traseiro molhado.
– Veste-te, rapariga atrevida, regressa quanto antes ao acampamento.
– Sim, milorde – anuiu ela, sorrindo.
Ao ficar sozinha, Judith vestiu-se com vagar, desfrutando daquela solidão
que lhe permitia um momento para refletir. Os últimos dias haviam sido de
felicidade. Gavin era finalmente dela. Não ocultavam o seu mútuo amor.
Uma vez vestida, não regressou ao acampamento, mas sentou-se em
silêncio sob uma árvore, apreciando aquele sítio aprazível.
Mas Judith não estava sozinha. A pouca distância havia um homem que
mal se afastara dela desde o começo da viagem, embora Judith nunca o
tivesse visto, nem suspeitasse de que estava tão próximo. Alan Fairfax
mantinha-se discretamente oculto, mas vigiava sem a incomodar, onde
pudesse ver o verde-esmeralda do vestido de Judith, mas suficientemente
longe para não interferir na sua privacidade. Depois daqueles dias a segui-
la, começava a relaxar. Interrogara-se várias vezes sobre o que fazia ali,
quando ela tinha o marido que quase não saía do seu lado.
Alan amaldiçoava-se pela sua estupidez e não ouviu os passos que se
aproximavam por trás. Uma espada desceu ao lado da sua cabeça com uma
força brutal. Caiu para a frente, com a cabeça pendendo sobre o peito e
desabou sobre as folhas do chão da floresta.
Sem aviso, Judith sentiu que lhe tapavam a cabeça com um capuz e lhe
imobilizaram os braços atrás das costas, quando ofereceu resistência. O
tecido sufocante abafou-lhe os gritos. Foi atirada sobre o ombro de homem
e ficou quase sem conseguir respirar.
O sequestrador passou junto ao corpo inerte de Alan e lançou um olhar
interrogativo à mulher montada.
– Deixa-o. Ele dirá a Gavin que ela desapareceu. Gavin virá até mim e
veremos qual de nós ele escolhe.
O rosto do homem não revelou o que pensava. Limitava-se a cobrar o
dinheiro e a realizar a tarefa encomendada. Colocou o corpo de Judith sobre
a sela e seguiu Alice Chatworth através da floresta.
Alan despertou algum tempo depois, com os pensamentos confusos e
uma horrível dor de cabeça. Ao levantar-se, teve de se apoiar a uma árvore.
À medida que a visão clareava, lembrou-se de Judith e compreendeu que
precisava de encontrar Gavin para que pudessem procurá-la. Dirigiu-se aos
tropeções rumo ao acampamento.
Gavin encontrou-o a meio do caminho.
– O que fazes aqui? – acusou. – Não te bastou teres tocado na minha
esposa na Corte? Pensas que vou poupar-te novamente a vida?
– Judith foi sequestrada! – exclamou Alan, levando uma mão à cabeça
latejante.
Gavin agarrou o homem mais baixo pela gola da roupa, erguendo-o do
chão.
– Se lhe tocaste num só fio de cabelo eu...
Alan soltou uma exclamação, esquecendo a dor de cabeça e libertou-se da
mão de Gavin.
– És tu quem pode tê-la magoado. Embora não acredites, Lady Alice é
capaz de qualquer patifaria e abandonaste Judith desprotegida.
– O que estás a dizer?
– Que és idiota! Alice Chatworth sequestrou a tua mulher, fê-la
prisioneira – e nada fazes senão falar.
Gavin olhou-o fixamente.
– Alice... a minha esposa... não acredito em ti!
Alan virou-lhe as costas.
– Acredites ou não em mim, não perderei mais tempo com conversas.
Vou atrás dela sozinho.
Gavin não voltou a pronunciar palavra; rodou sobre os calcanhares e
regressou ao acampamento. Em poucos minutos, ele e vários dos seus
homens selaram os cavalos e alcançaram Alan.
– A mansão de Chatworth?
– Sim – respondeu Alan gravemente.
Foram as únicas palavras trocadas enquanto os nobres cavaleiros
cavalgavam lado a lado seguindo os captores de Judith.
***

– Bem-vinda à minha casa – saudou Alice quando o capuz foi tirado do


rosto de Judith. A jovem sequestrada respirava com dificuldade. – Não te
agradou o passeio? Sinto muito. Tenho a certeza de que uma mulher da tua
laia só está habituada ao melhor da vida.
– O que queres de mim? – indagou Judith, tentando aliviar a dor dos
ombros, pois as cordas em redor dos pulsos quase lhe deslocavam os
braços.
– De ti, não quero nada – esclareceu Alice. – Mas tens o que é meu e
quero a sua devolução.
Judith ergueu o queixo.
– Referes-te a Gavin?
– Sim – escarneceu Alice. – Refiro-me a Gavin. Ao meu Gavin.
Eternamente meu.
– Então por que não aceitaste quando te propôs casamento? – perguntou
Judith calmamente.
Alice arregalou os olhos. Os lábios curvaram-se num grunhido, expondo
os dentes, e as mãos formaram garras que procuraram o rosto da jovem.
Judith afastou-se e as garras não a alcançaram.
Ella agarrou fortemente o braço da ama.
– Vamos, tesouro, não vos altereis. Ela não merece.
Alice pareceu relaxar.
– Por que ides descansar? – apaziguou Ella. – Eu ficarei aqui. Deveis
mostrar a vossa melhor aparência quando Lorde Gavin chegar.
– Sim – reconheceu Alice. – Tenho de estar mais bela do que nunca. –
Saiu sem olhar para Judith.
Ella sentou o corpo grande e flácido numa cadeira perto daquela a que
Judith estava amarrada e pegou num novelo de tricô.
– De quem é esta casa? – perguntou Judith.
Ella não ergueu o rosto.
– É a propriedade de Chatworth, uma das que a minha Lady Alice possui
– respondeu orgulhosa.
– Por que estou aqui?
Ella fez uma breve pausa no tricô e depois retomou-o.
– Porque a minha ama deseja ver novamente Lorde Gavin.
– Acreditas nisso? – reagiu Judith, perdendo a compostura. – Crês que
essa louca só quer ver o meu esposo?
Ella atirou a malha para o colo.
– Não vos atreveis a chamar louca à minha ama! Não a conheceis como
eu. Não levou uma vida fácil. Há motivos… – Cruzou o quarto a grandes
passadas até à janela.
– Bem sabes que está demente, certo? – insistiu Judith calmamente. – Ela
está louca. A rejeição de Gavin levou-a à loucura.
– Não! – gritou a anciã donzela, mas acalmou-se. – Lorde Gavin não
rejeitaria a minha Alice. Nenhum homem poderia rejeitá-la. É formosa e
sempre foi. Inclusive quando era um bebé, era a mais bela que alguém já
tinha visto.
– Estás com ela desde que era uma criança?
– Sim. Estive sempre com ela. Tinha passado a idade de poder ter filhos
meus quando ela nasceu. Entregaram-na aos meus cuidados e foi como uma
dádiva do céu para mim.
– Serias capaz de fazer qualquer coisa por ela, não é verdade?
– Sim – afirmou Ella sem hesitar. – Faria qualquer coisa por ela.
– Até matar-me para que ela fique com o meu esposo.
Ella fitou Judith com uma expressão preocupada nos velhos olhos.
– A morte não está em causa. É que Lady Alice precisa voltar a estar com
Lorde Gavin, e não o permitis. Sois egoísta. Haveis roubado o homem dela,
sem ter piedade ou simpatia pela dor da minha ama.
Judith sentiu que estava a perder as estribeiras.
– Ela mentiu, enganou-me, fez tudo o que podia para me tirar o meu
esposo. Uma das suas armadilhas traiçoeiras custou a vida do meu filho.
– Um filho! – sussurrou Ella. – A minha adorável ama não pode ter
filhos. Não sabeis o quanto quis um filho de Lorde Gavin? Até isso lhe
haveis roubado. É justo que tenhais perdido o que deveria ter sido de Lady
Alice.
Judith ia dizer algo, mas parou. A criada estava tão louca como a sua
ama. Não importava o que alguém dissesse, defenderia Alice.
– O que pensais fazer comigo?
Ella percebeu que Judith estava mais calma e retomou o tricô.
– Sereis nossa... hóspede por alguns dias. Lorde Gavin virá e passará
algum tempo com Lady Alice. Quando voltarem a estar juntos,
compreenderá que a ama. Só faltam alguns dias, talvez apenas algumas
horas para que vos esqueça, pois na verdade já estava enamorado de Lady
Alice muito antes de vos conhecer. O casamento deles teria sido
verdadeiramente por amor, não por interesse, como o vosso. Agora a minha
ama é uma viúva rica, que pode contribuir com vastas terras para a família
Montgomery.
Judith permanecia em silêncio e observava o movimento das agulhas de
Ella a tricotar. A velha tinha uma expressão de satisfação no rosto. Havia
muitas perguntas que Judith gostaria de fazer: por exemplo, como planeava
Alice libertar Gavin para que pudessem casar? Mas a prudência impediu
que as formulasse. Teria sido inútil.
***

Durante toda a feroz cavalgada até à mansão Chatworth, Gavin


permaneceu em silêncio. Não podia acreditar que encontraria Judith
prisioneira de Alice. Sabia que ela cometera enganos na Corte e não
ignorava o que constava a seu respeito, mas na verdade não encontrava
maldade naquela mulher. Ainda a considerava uma mulher de natureza
doce, que cometera erros, devido ao seu amor e à sua adoração por ele.
O portão da frente estava aberto. Gavin lançou um olhar triunfante a
Alan: não era um lugar onde se mantivesse cativa uma herdeira.
– Gavin. – Alice exclamou, correndo pelo pátio ao encontro dele. – Tinha
esperança de que viesses visitar-me. – Estava mais pálida do que nunca com
um vestido de seda azul a combinar com os seus olhos.
Gavin desmontou e manteve-se rígido, distante dela.
– A minha esposa está aqui? – perguntou friamente.
Alice arregalou os olhos.
– A tua esposa? – perguntou inocentemente.
Alan esticou a mão e agarrou o antebraço da mulher.
– Onde está ela, sua cadela? Não tenho tempo para os teus jogos!
Gavin deu um forte empurrão ao jovem que o atirou contra o seu cavalo.
– Não voltes a tocar-lhe! – advertiu e virou-se para Alice. – Quero uma
resposta.
– Entrai – convidou Alice, mas interrompeu-se ao ver a expressão de
Gavin. – Ela não costuma visitar-me.
– Neste caso, vamos embora. Sequestraram-na e temos de procurá-la. –
Virou-se para montar de novo no cavalo.
– Não, Gavin, não me abandones! – exclamou, lançando-se para ele. –
Por favor, não me deixes sozinha!
Gavin virou-se para a afastar.
– A vossa esposa está aqui.
Ao virar-se, Gavin avistou Ella de pé na soleira da porta.
– A mulher está aqui, a salvo. Mas não continuará tão segura se causardes
dano à minha Lady Alice.
Gavin pôs-se ao lado da gorda anciã em segundos.
– Estás a ameaçar-me, velha bruxa? – Virou-se para Alice. – Onde está
ela? – gritou.
Dos olhos de Alice transbordavam grossas e encantadoras lágrimas. Não
disse uma palavra.
– Estás a perder tempo! – advertiu Alan. – Temos de deitar abaixo esta
mansão até encontrá-la.
Gavin deu um passo para a mansão.
– Não vais encontrá-la!
Gavin rodou sobre os calcanhares. A voz era uma versão distorcida da de
Alice: estridente e aguda. A sua boca pequena, contraída e repuxada para
trás numa careta, mostrava os dentes irregulares e tortos. Como era possível
que nunca tivesse reparado nesse pormenor?
– Está onde nem tu nem homem algum poderão encontrá-la – continuou
Alice, deixando cair pela primeira vez a sua máscara de doçura diante de
Gavin. – Consideras-me capaz de dar o meu melhor quarto a essa
prostituta? Ela merece apenas o fundo do fosso!
Gavin deu um passo para ela, sem poder acreditar naquela drástica
mudança. Não se parecia sequer remotamente com a mulher que havia
amado.
– Não sabes que ela se entregou a muitos homens, pois não? Que a
criança que perdeu nem sequer era tua, mas sim do Demari. – Alice pôs-lhe
uma mão no braço. – Eu poderia dar-te filhos varões! – acrescentou,
lasciva. – A voz e o rosto eram uma caricatura da mulher que ele acreditara
conhecer.
– Foi por isto que negligenciaste Judith? – pronunciou Alan em voz
baixa. – Vês agora o que todos os outros vemos?
– Sim, vejo! – exclamou Gavin, repugnado. Desgostoso.
Alice retrocedeu com um olhar enlouquecido. Recolheu as saias, virou-se
e afastou-se a correr dos cavaleiros, seguida por Ella.
Quando Alan começou a persegui-la, Gavin disse:
– Deixa-a! Prefiro recuperar a minha mulher antes de punir Alice.
Alice corria de um edifício para o outro, escondendo-se, espreitando,
olhando furtivamente em redor. Gavin fitara-a, como se ela lhe causasse
repulsa. Algures na sua mente, sabia que Ella a seguia, mas não parecia ser
capaz de pensar a não ser numa coisa de cada vez. Nesse momento, só
podia compreender que outra mulher lhe tinha roubado o amante. Subiu
apressadamente os degraus da torre, assegurando-se de que ninguém a
seguisse.
Judith ergueu o rosto. Alice estava na ombreira da porta, com o cabelo
emaranhado, o véu torto.
– Bem! – exclamou Alice, com um brilho selvagem nos olhos. –
Acreditas que vais tê-lo de volta?
Judith encolheu-se contra as cordas. Tinha a garganta irritada de tanto
gritar, mas as paredes eram demasiado grossas para que fosse ouvida.
Alice atravessou o quarto e retirou uma lamparina de barro com óleo
quente do braseiro. Uma mecha flutuava sobre o óleo, pronta para ser
acendida. Alice segurava o recipiente com cuidado enquanto caminhava em
direção à sua prisioneira.
– Ele não vai achar-te tão adorável quando o óleo tiver comido metade do
teu rosto.
– Não! – sussurrou Judith e recuou o máximo que pôde.
– Causo-te medo? Faço da tua vida um inferno como fizeste da minha?
Era uma mulher feliz antes que te intrometesses. A minha vida não tem sido
a mesma desde que ouvi o teu nome pela primeira vez. Tinha um pai que
me amava. Gavin idolatrava-me. Um conde rico pediu-me em casamento.
Mas roubaste-me tudo. O meu pai mal me reconhece, Gavin odeia-me, o
meu marido rico está morto e tudo por tua culpa.
Afastou-se de Judith e enterrou a lamparina de óleo mais fundo entre as
brasas.
– Tem de estar quente, fervendo. O que pensas que acontecerá quando
perderes a tua beleza?
Judith compreendeu que era impossível conseguir que ela raciocinasse,
mas tentou.
– O que pretendes fazer-me não vai trazer de volta o teu marido. Quanto
ao teu pai, nem sequer o conheci.
– O meu marido! – troçou Alice, desdenhosa. – Acaso julgas que o quero
de volta? Era um porco. Mas em algum momento amou-me. Mudou depois
de assistir ao teu casamento. Levaste-o a acreditar que eu não era digna
dele.
Judith não podia falar. Mantinha os olhos fixos na lamparina que ia
aquecendo.
***
– Milorde! – disse Ella, nervosa. – Tendes de vir. Sinto receio.
– O que se passa, velha bruxa? – perguntou Gavin.
– A minha ama. Temo por ela.
Gavin teria feito grandes esforços para evitar causar dano a uma mulher.
Mesmo depois de ver Alice como realmente era, não podia exigir que lhe
dissesse onde estava Judith. Mas agarrou o braço de Ella.
– O que estás a dizer? Estou farto deste jogo do gato e do rato. Onde está
a minha esposa?
– Eu não queria fazer mal algum – sussurrou Ella. – Só tentei trazer-vos
de volta a Lady Alice, porque era o que ela desejava. Tento sempre dar-lhe
o que deseja. Mas agora estou com medo. Não desejo que Lady Judith sofra
qualquer dano.
– Onde está? – insistiu Gavin, apertando-lhe o braço com mais força.
– Ela fechou a porta com chave e…
– Vamos! – ordenou Gavin e empurrou a mulher. – Ele e Alan seguiram-
na pelo pátio até à torre. «Por favor, meu Deus!», orou Gavin. «Não deixeis
que nada aconteça a Judith.»
Às primeiras pancadas descarregadas contra a porta, Alice deu um salto.
Sabia que o ferrolho não resistiria muito tempo. Tirou de entre as roupas
uma adaga longa e afiada e encostou-a à garganta de Judith, enquanto
desatava as cordas.
– Vamos! – ordenou enquanto segurava a lamparina de óleo na outra mão.
Judith sentiu o fio da lâmina contra o pescoço e o calor da lamparina de
óleo fervente perto da face. Sabia que o menor movimento poderia assustar
a nervosa Alice, fazendo-a derramar o óleo ou enterrar a adaga na sua
garganta.
– Para cima! – ordenou Alice a Judith para que subissem lentamente por
uma estreita escada de madeira até ao telhado. Alice mantinha-se longe das
bordas. Rodeava Judith com um braço, segurando a faca contra o pescoço
da jovem.
Gavin, Ella e Alan derrubaram a porta segundos depois. Quando viram a
divisão vazia, seguiram Ella pelas escadas. Os três ficaram petrificados ao
verem Alice com uma expressão enlouquecida, ameaçando Judith.
– Minha doce Lady Alice... – começou Ella.
– Não me dirijas a palavra! – ordenou Alice, apertando as mãos. –
Prometeste que o recuperarias para mim, mas ele odeia-me. Sei que sim!
– Não! – exclamou Ella, dando um passo adiante. – Lorde Gavin não vos
odeia, milady. Protege a esposa porque é sua propriedade, só por isso.
Agora vamos conversar. Tenho a certeza de que Lorde Gavin compreenderá
o que se passou.
– Não! – escarneceu Alice. – Olha para ele! Despreza-me. Fita-me como
se eu fosse o mais detestável dos insetos. E tudo por essa rameira ruiva!
– Não lhe faças mal! – advertiu Gavin.
Alice soltou uma gargalhada.
– Não lhe fazer mal? Vou fazer-lhe pior do que isso. – Levantou mais alto
a lamparina de óleo fervente. – Está muito, muito quente. Vai encher-lhe a
cara de cicatrizes. O que dirás quando ela deixar de ser tão bonita?
Gavin deu um passo à frente.
– Não! – guinchou Alice. – Sobe para ali! – ordenou a Judith,
empurrando-a mais para a borda, perto do cano de uma chaminé.
– Não! – sussurrou Judith. Embora estivesse muito assustada, o seu terror
das alturas era ainda maior.
– Obedece-lhe – disse Gavin em voz baixa, percebendo finalmente que
Alice estava louca.
Judith assentiu e aproximou-se da beira do telhado. À sua frente estava o
cano da chaminé. Judith agarrou-o, com os braços muito rígidos.
Alice começou a rir.
– Tens medo de estar aqui! És como uma menina. E tu preferes esta
cadela! Eu sou uma verdadeira mulher.
Ella colocou uma mão no braço de Gavin que ia avançar. As duas
mulheres estavam numa posição precária. Judith tinha os olhos vidrados de
medo e os nós dos dedos brancos pela força com que apertava os tijolos.
Alice meneava a adaga e a lamparina de óleo fervente na mão.
– Sim – disse Ella. – Sois uma verdadeira mulher. Descei daí e Lorde
Gavin talvez possa compreendê-lo.
– Estás a tentar enganar-me? – perguntou Alice.
– Alguma vez te enganei?
– Não – respondeu Alice e sorriu por um instante à anciã. – És a única
pessoa que sempre me tratou com bondade.
O momentâneo lapso de distração fez com que Alice cambaleasse. Ella
agarrou freneticamente a sua amada ama, empurrando-a para a segurança
do telhado de ardósia da mansão. Alice tentou agarrar-se à criada ao mesmo
tempo que Ella caiu pelo lado da casa, demorando alguns segundos antes de
bater ruidosamente no chão de pedras abaixo. Alice caiu para trás, longe do
limite da borda, graças ao sacrifício da sua criada. Mas a lamparina de óleo
fervente na sua mão caiu sobre ela, derramando líquido desde a sua testa,
pela face. Alice começou a dar gritos horríveis.
Gavin deu um salto através do telhado para onde Judith ainda se agarrava,
imóvel. O seu medo extremo de alturas levara-a a que se aferrasse à
chaminé com mão de ferro, salvando-lhe a vida.
Os gritos de Alice enchiam o ar. Gavin libertou os dedos da esposa do
tijolo, um a um, e estreitou-a contra si. Estava tensa e com o coração
palpitante.
– Olha o que me fizeste! – gritou Alice no meio das dores. – Ella!
Mataste a minha Ella, a única que me amava de verdade.
– Não – arguiu Gavin, olhando para o rosto mutilado de Alice com uma
enorme piedade. – Não fui eu, nem Judith que te fizemos mal. Foste tu
mesma. – Virou-se para Alan enquanto erguia Judith nos braços. – Não a
deixes morrer. Talvez essa cicatriz seja o justo castigo pelas suas mentiras.
Alan olhou com desagrado para a mulher encolhida e caminhou em
direção a ela.
Gavin levou Judith pelas escadas para o quarto abaixo. Ela demorou
alguns minutos para relaxar.
– Já acabou, meu amor – sussurrou Gavin. – Estás segura agora. Ela não
poderá voltar a fazer-te mal. – Abraçou-a com muita força.
Os gritos de Alice, pouco mais que gemidos roucos, aproximaram-se.
Gavin e Judith observaram como Alan a conduzia para baixo. Alice deteve-
se e lançou a Judith um último olhar cruel, e depois virou-se quando viu a
expressão de pena nos olhos de Judith. Alan levou-a do quarto.
– O que será dela? – perguntou Judith em voz baixa.
– Não sei. Poderia entregá-la ao tribunal, mas julgo que talvez já tenha
sido punida o suficiente. A sua beleza não voltará a servir de armadilha aos
homens.
Judith olhou para ele surpreendida e analisou a sua expressão.
– Olhas-me como se me visses pela primeira vez – observou ele.
– Talvez seja assim. Estás livre dela.
– Disse-te que já não a amava.
– Sim, mas sempre houve uma parte de ti que era dela, uma parte que eu
não podia alcançar. Agora já não lhe pertences. És meu. Total e
completamente meu.
– Isso agrada-te?
– Sim – sussurrou ela. – Agrada-me muito.

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