Você está na página 1de 239

Ficha Técnica

Título original: The Year of Living Scandalously


Autor: Julia London
Tradução: Paulo Moreira
Revisão: Domingas Cruz
Capa: Neusa Dias/Oficina do Livro, Lda.
ISBN: 978989741309469
"MEB"
QUINTA ESSÊNCIA
uma marca da Oficina do Livro – Sociedade Editorial, Lda
uma empresa do grupo LeYa
Rua Cidade de Córdova, n.º 2
2610-038 Alfragide – Portugal
Tel. (+351) 21 427 22 00
Fax. (+351) 21 427 22 01

Copyright da tradução portuguesa © 2015, Quinta Essência/Oficina do Livro.


© 2014, Julia London
Publicado com o acordo do editor original, Simon & Schuster, Inc.
Todos os direitos reservados de acordo com a legislação em vigor
E-mail: quintaessencia@oficinadolivro.leya.com
www.quintaessencia.com.pt
www.leya.pt

Esta edição segue a grafia do novo acordo ortográfico.


Para Jameson, o menino querido e especial
Prólogo

1793
West Sussex, Inglaterra

Todos os verões, na aldeia de Hadley Green, os residentes aguardavam com ansiedade dois eventos
significativos: o primeiro era a semana de junho em que o vigário fazia subir o seu corpo consumido
pela gota para uma carruagem emprestada e deixava o seu rebanho para visitar a irmã idosa em
Shropshire. Era a única semana do ano em que o púlpito podia ser roubado das mãos do vigário e a
forma como os jovens clérigos de passagem partilhavam o evangelho era notoriamente mais sucinta.
O segundo evento era a gala anual do final do verão, oferecida pelo conde de Ashwood. Era uma
celebração de boas colheitas e bons rendeiros e uma oportunidade de angariar fundos para os pobres
órfãos da paróquia de St. Bartholomew. O festival durava um dia inteiro, com comida e cerveja
suficientes para alimentar o exército do rei, assim como abundantes bens para venda fabricados
pelos aldeões mais habilidosos. Havia jogos para crianças e adultos e uma pequena banda que
entretinha os felizes convidados que escolhiam sentar-se às mesas enfeitadas com bandeirolas e
flores oriundas das invejáveis estufas e jardins do conde. Havia um par de botes num pequeno lago,
que os rapazes usavam para cortejar as raparigas enquanto as levavam a passear.
Tradicionalmente, os membros da Qualidade vinham de Londres para assistir à gala e ficavam
algum tempo como hóspedes do conde e da sua adorável – e notavelmente mais jovem – mulher,
Althea Kent, Lady Ashwood. A Qualidade partilhava o artesanato, a comida e a cerveja com os
residentes de Hadley Green, ainda que talvez menos artesanato e mais cerveja. Inevitavelmente, ao
fim do dia as pernas dos lordes e dos cidadãos comuns eram atadas juntas para uma corrida de três
pernas, sendo que os vencedores tinham prometido um beijo da própria condessa.
Dada a beleza invulgar de Lady Ashwood, a maioria dos mortais estava disposta a tentar a sua
sorte.
Era igualmente tradição que, quando o Sol começasse a pôr-se por trás dos imponentes olmos, os
habitantes da aldeia voltassem para casa nas suas carroças e carros e que os lordes e damas se
retirassem para a colossal residência georgiana do conde, onde se instalavam para uma noite de
deboche.
Essas noites eram matéria de lenda. Mais de um casamento fora ameaçado por essas atividades
noturnas e tinham sido vários os casamentos forjados devido a eventos comprometedores.
Em 1793, uma chuva torrencial de final de verão pôs fim às festividades ao início da tarde.
Aldeões e órfãos foram despachados para abrigos inferiores a Ashwood e os ilustres convidados do
conde levados para a residência deste, onde os esperavam criados que lhes entregaram toalhas e
avivaram as lareiras dos seus quartos.
A chuva constante continuou a cair durante o dia, arrefecendo o ar e enchendo os quartos de um
odor a humidade. Presos debaixo de teto, como animais bem cuidados, os convidados trataram de
procurar entretém. Divertiram-se modestamente a beber, a jogar e a namoriscar durante o longo
período de tarde que antecedeu a noite. Mas com o cair desta as apostas tornaram-se perigosamente
altas nas mesas de jogo, assim como o número de homens e mulheres que desapareciam do salão, a
que regressavam meia hora depois com as perucas desarranjadas.
Por cima das mesas de jogo e dos encontros amorosos, nos quartos escuros do piso principal,
havia um quarto de crianças onde estava Miss Lillian Boudine, sobrinha e protegida de Lady
Ashwood. Lily era uma órfã de oito anos que fora adotada pela tia Althea depois de perder os pais,
apenas com cinco anos, o que sucedera por ambos terem sucumbido a uma devastadora febre que os
levara apenas com quinze dias de intervalo. Seria de esperar que Lorde e Lady Ashwood tivessem
alterado os seus hábitos de modo a acomodar a menina, mas não fora esse o caso. As suas receções,
bailes e reuniões continuaram e Lily cresceu acostumada a ver figuras sombrias abraçar-se em
escadas envoltas em escuridão e a ouvir portas a serem fechadas e trancadas. Tinha ouvido também
muitos risinhos femininos e vozes baixas masculinas que lhes ordenavam silêncio. Conseguia detetar
o odor de perfume de mulher que pairava nos corredores entre os cheiros a velas de cera e a madeira
que ardia nas lareiras.
Nessa noite, Lily foi relegada para o quarto de crianças na companhia da ama, que tinha provado
grande quantidade da cerveja do conde e não conseguia manter abertos os olhos papudos. Dormia
ruidosamente numa cadeira junto à lareira.
Lily estava desejosa de sair do quarto para ir espreitar os adultos. Passou pela ama adormecida e
saiu para o corredor, tendo o cuidado de fechar a porta devagar atrás de si. Correu com pés ligeiros
para a escadaria e desceu para o seu esconderijo preferido, de onde podia observar as idas e vindas
dos adultos. Mas ao chegar ao primeiro andar achou-o mais escuro que o habitual. O tempo chuvoso
originara uma falta de velas, havendo apenas duas acesas no comprido corredor. Estava tão escuro
que Lily só detetou o casal que se abraçava quando um deles sussurrou qualquer coisa. O som
apanhou-a de surpresa e Lily escondeu-se rapidamente atrás de uma credência.
Mal conseguia distinguir as duas figuras envoltas em sombra por entre as pernas do móvel.
Estavam a beijar-se. Lily inclinou-se um pouco para fora do esconderijo para ver melhor, mas
perdeu o equilíbrio ao fazê-lo. Conseguiu apoiar-se nas duas mãos antes de cair sobre o tapete, mas
o pânico que sentiu fê-la arquejar levemente antes de se chegar para trás rapidamente, encostando-se
à parede e abafando a respiração com uma mão.
Passaram-se largos instantes antes que Lily se atrevesse a espreitar de novo. Ficou desiludida ao
descobrir que o casal se evaporara na escuridão. Lily levantou-se, olhou cuidadosamente em volta e
em seguida atravessou o corredor a correr até chegar ao seu esconderijo. Mas, ao chegar ao alto da
escada dual muito ornamentada que descia para os pisos inferiores, sentiu uma mão agarrá-la pelo
ombro. Lily soltou um grito de alarme quando foi obrigada a voltar-se e a encarar o rosto adorável
da tia Althea.
Althea não estava nada contente. O tom rubi dos seus lábios condizia com o igual tom do seu
vestido de veludo e tinha as faces muito coradas.
– O que pensa que está a fazer, Lily?
– Nada, tia! Só queria ver os vestidos de noite das senhoras! – respondeu a criança.
Lily usara aquela desculpa com sucesso anteriormente, mas Althea não a aceitaria nessa noite.
Apoiou ambas as mãos nos ombros de Lily e empurrou-a gentilmente pelo corredor.
– Sinceramente, o que hei de fazer consigo, querida? – censurou-a. – Volte para o quarto de
crianças! Sabe muito bem que parto para a Escócia amanhã. Tenho de acreditar que vai portar-se bem
na minha ausência.
– Eu porto! – apressou-se a prometer Lily.
– Não, Lily, basta das suas promessas vazias – retorquiu Althea com ar sério. – Nada desagrada
mais ao conde do que a menina portar-se mal e, se ele se fartar de si, que destino será o seu? –
Ajoelhou-se para olhar Lily nos olhos. – A sua mãe, a minha querida irmã, morreu. A nossa outra
irmã está doente. Isso faz com que sobre apenas a minha irmã mais nova, que vive na Irlanda, para
tomar conta de si. Quer mesmo ser irlandesa, Lily? Vou estar ausente muito tempo e, quando
regressar, é melhor que não encontre as queixas e as exigências do meu marido para que faça as
malas e nos deixe. A sério que tem de parar de espiar e de esconder-se por aí.
Lily sentiu-se assustada e culpada.
– Sim, tia, prometo do fundo do coração. – Estava a ser absolutamente sincera. Nunca era sua
intenção portar-se mal. Simplesmente acontecia.
A expressão da tia tornou-se mais suave e abriu-se num sorriso, que acompanhou uma festa no
queixo da menina.
– Céus, como me faz lembrar a Maria – disse, referindo-se à mãe de Lily. – Era um diabinho, tal
como a menina. Não era tão bonita, mas era igualmente vivaz. Tenho imensas saudades dela. E vou
ter imensas saudades suas. – Sorriu e beijou Lily na face. – Agora prove que vai portar-se bem, volte
para o quarto de crianças e não saia de lá. – Levantou-se e passou a mão pela cabeça de Lily. – Vá
antes que o conde a veja.
Lily percorreu o corredor numa corrida que só acabou no alto da escada dos serviçais que
conduzia ao segundo andar. Entrou no quarto de crianças e fechou a porta. A ama pareceu acordar,
mas voltou-se na cadeira e começou a ressonar. Olhando em volta, Lily subiu para o banco junto à
janela. Estava escuro e frio no exterior e a única luz que se via era a que saía da casa. Desenhou uma
linha na vidraça húmida e embaciada, deixando um rasto largo como o de um caracol.
O quarto de crianças nunca estava quente. Era demasiado grande para a única lareira que existia e
Lily sentia sempre frio ali. Pensou que seria agradável ter uma companhia, alguém com que partilhar
aquelas noites interminavelmente longas e aborrecidas.
O seu olhar foi atraído por um movimento no exterior. Lily encostou o rosto ao vidro e espreitou.
Era um cavaleiro. Viu-o passar a trote diante da luz vinda da casa e afastar-se. Lily sentou-se num
repente. Conhecia o cavaleiro. Ou melhor, conhecia o cavalo. Era o grande cavalo cinzento com
manchas pretas na garupa que pertencia a Mr. Scott, o entalhador. Lily vira-o muitas vezes antes
dessa noite, pois fora ele que esculpira a escada dupla que subia em torno da entrada principal para
o primeiro andar da casa.
Porque estaria ele em Ashwood nessa noite? Não pertencia à Qualidade. Que trabalho da madeira
teria ele para fazer no dia da gala? E porque partia debaixo de chuva e através do parque ao invés
de seguir pela estrada principal? Teria ele ficado quando os outros aldeões receberam ordem para se
irem embora?
Mas ali estava ele a partir, desaparecendo na noite escura.
Lily escreveu o seu nome na condensação acumulada no vidro, percebeu que estava a tremer de
frio e foi para a cama.
Algum tempo depois acordou ao som de gritos suficientemente altos para também acordarem a
ama.
– Cristo, deve ser um incêndio! – gritou a ama, empurrando Lily pelas escadas para o primeiro
andar, ela em roupa de noite e Lily em camisa de dormir.
Foram recebidas por uma confusão generalizada, com os convidados a gritarem uns com os outros
e pelo menos uma dama em pranto. O conde olhava para eles com ar carrancudo e Althea tinha o
rosto pálido.
A ama deu uma cotovelada num lacaio e perguntou, num murmúrio alto o suficiente para que a
ouvisse:
– O que aconteceu?
O lacaio, testemunha do tumulto, estava ansioso por contar tudo.
– Lady Ashwood estava a jogar às cartas, mas o conde recusou dar-lhe dinheiro, uma vez que não
queria que ela continuasse – explicou. – Mas sabe como é Lady Ashwood e não foi isso que a
impediu de continuar. Perdeu uma fortuna. Quando chegou a altura de pagar a dívida, foi buscar as
joias Ashwood para as dar como garantia. Mas tinham desaparecido.
– Como? As antigas? – perguntou a ama, horrorizada.
Até Lily conhecia as joias Ashwood; todos conheciam. Eram enormes rubis de valor incalculável,
oferecidos pelo rei Eduardo IV ao primeiro conde de Ashwood pela sua lealdade durante a Guerra
das Rosas. Os rubis – um conjunto composto por um pesado colar, brincos em forma de lágrima e um
diadema incrustado com as pedras maiores – eram guardados num cofre fechado no gabinete privado
do conde.
– Sim, as antigas – confirmou o lacaio com ar sombrio.
Nesse instante, Althea viu Lily e a ama no meio do tumulto e começou a avançar na sua direção.
– Aposto que foi um deles, com todas essas idas e vindas para trás de portas fechadas – continuou
o lacaio, vendo Althea aproximar-se. – Mas atente no que lhe digo, Annie, vão culpar um de nós.
– Enlouqueceu, Annie? E se o conde vos vê? – sussurrou Althea asperamente. Lançou um olhar
ansioso ao conde por cima do ombro, quase como se tivesse medo dele. Lily não a censurava; ele
parecia muito mau. A tia olhou para ela e sorriu timidamente. – Vão-se embora – disse para Annie.
A ama agarrou Lily pelo pulso e arrastou-a escada acima, mas a menina debateu-se, voltando-se
para olhar para trás até já não conseguir ver os adultos.

O dia seguinte amanheceu com um límpido céu azul. Havia grande agitação por causa da partida
anunciada da condessa para a Escócia. Todos sabiam que ela e o conde tinham discutido por causa
das joias até ao nascer do Sol.
Com os hóspedes devidamente ocupados com o pequeno-almoço ou ainda a dormir profundamente,
os criados foram reunidos na sala de jantar destes. Lily, que se esgueirara até lá pela cozinha, viu a
tia encostada ao aparador, pálida de exaustão.
O conde estava de pé, rodeado pelo seu secretário e pelo seu solicitador, com o lenço do pescoço
torto e as espessas sobrancelhas por pentear. Tinha as mãos cruzadas atrás das costas quando
informou os vinte e quatro serviçais de que encontraria o ladrão e que este seria enforcado.
Os serviçais encararam os três homens com preocupação.
O secretário do conde, Mr. Bowman, conduziu o interrogatório.
A tutora de Lily, Mrs. Penhurst, de quem ela tanto gostava, tremia. A ama chorava. Quando Mr.
Bowman perguntou a Mrs. Penhurst como era possível aceitar a sua palavra de que não roubara as
joias se dormia mesmo por baixo do gabinete onde eram guardadas, Lily não aguentou mais e saiu em
sua defesa. O conde tentou enxotá-la, mas Lily não se retirou, agarrando-se à mão deste.
– Acho que sei quem as roubou! – exclamou.
Todos os olhares se cravaram nela. Lily sentiu os joelhos cederem. O conde agarrou-a pelos
cotovelos e ela sentiu a dolorosa pressão dos seus dedos na carne.
– É mais uma das suas histórias, criança? – rosnou.
Lily fez que não com a cabeça.
– Como poderia saber quem roubou as joias? Viu o ladrão tirá-las?
– Não, senhor. – Tinha a voz trémula e o fôlego parecia tê-la abandonado.
O conde afastou-a com um som de desagrado.
– Mas vi-o afastar-se – balbuciou a criança, os olhos a encherem-se-lhe de lágrimas.
O conde e Mr. Bowman voltaram-se lentamente para a encarar. Imóvel como uma estátua, a tia
Althea tinha o olhar fixo nela.
– Foi o entalhador, M… Mister Scott – acrescentou, para o caso de o conde não saber quem era o
entalhador. – Vi-o ontem à noite, quando se afastava de Ashwood a cavalo através do parque, muito
depois de os aldeões se terem ido embora.
O conde semicerrou olhos.
– Era muito tarde para que estivesse a trabalhar – acrescentou Lily.
Os olhos negros do conde voltaram-se para Althea.
– A trabalhar? A trabalhar em quê? – perguntou.
– Numa reparação – respondeu friamente a tia Althea. – Num roupeiro.
Mr. Bowman brindou Lily com um olhar cético.
– Como pode ter a certeza de que era ele, Miss Boudine?
– Era o cavalo dele – respondeu Lily, logo receando ter-se enganado. – Era cinzento, com manchas
cinzentas em volta da cauda – disse alto para se convencer a si própria.
– Oh, não, querida – disse a tia Althea, sendo silenciada por um olhar do conde.
Depois, o conde dirigiu um súbito sorriso a Lily e avançou até junto dela.
– Vamos tomar um chá, Lillian? – perguntou e Lillian tentou lembrar-se se alguma vez ele tinha
pronunciado o seu nome de batismo antes.
Em questão de horas, Mr. Joseph Scott foi arrancado à sua mulher e três filhos e levado para um
anexo da propriedade Ashwood, onde foi mantido até à chegada do magistrado.
A notícia correu célere em Hadley Green e os mexericos depressa começaram. Viveria um ladrão
entre eles? Não tinha Mrs. Rollingwood comunicado recentemente o roubo de algumas das suas
galinhas? Não se tinha Mr. Clark queixado do roubo de vários sacos de farinha do seu armazém de
secos? E não era realmente pouco surpreendente que se tratasse de Mr. Scott? Todos sabiam que a
sua mulher se encontrava desesperadamente doente, mas os médicos de Londres não eram grátis. E
porque não dizia ele por onde tinha andado nessa noite? Afirmava não ter roubado as joias, mas não
dizia por onde andara na noite do roubo. A sua pobre mulher foi forçada a dizer a verdade, sob
ameaça de lhe interrogarem os filhos; o marido só tinha voltado para casa à meia-noite.
O magistrado, homem com fama de aplicar a justiça com rapidez e severidade, chegou a Hadley
Green quinze dias depois. O julgamento decorreu na casa dos comuns da aldeia. É bastante provável
que Mr. Scott, o entalhador, já soubesse que ia ser condenado antes de ser levado à presença do
magistrado, pois não podia dar uma resposta satisfatória quanto ao seu paradeiro na noite do
desaparecimento das joias. Ainda assim, muitos dos seus amigos e vizinhos tentaram tudo o que
estava ao seu alcance para convencer o magistrado do seu bom caráter. Seguiram-se-lhes as
testemunhas dos eventos da noite do crime.
Toda a aldeia se juntou no exterior para ouvir a apresentação do caso das joias desaparecidas ao
magistrado. Pouco depois do meio-dia, duas ornamentadas carruagens Ashwood fizeram a sua
aparição. Uma para levar o conde, que, como parte ofendida, assistira ao julgamento de Mr. Scott
durante toda a manhã. A segunda transportava Lily e a condessa, cuja viagem tinha sido adiada
indefinidamente. Lily não sabia porquê.
Olhou pela janela da carruagem para as pessoas reunidas na rua, muitas das quais tentavam olhar
para dentro da carruagem.
– Está ali tanta gente – observou, nervosa.
– Não são assim tantos – sossegou-a Althea. – Procuram apenas alguma diversão. Não fazem por
mal. E não estarão tantos lá dentro.
Lily não estava convencida. Sentiu-se subitamente tonta e presa de um suor frio e pegajoso.
– Não quero fazer isto, tia – disse, encolhendo-se no banco estafado a couro. – O conde não lhes
pode dizer o que vi?
– Não – respondeu a tia com um sorriso compreensivo. – Tem de ser a minha querida a dizer-lhes.
Lily sentiu um desconforto no estômago.
– Mas eu não sei o que dizer! – protestou.
– Tem de dizer apenas a verdade – respondeu Althea, inclinando-se subitamente para diante e
pousando uma mão no joelho da sobrinha. – Mas deve estar certa da verdade, Lily. Isso é o mais
importante. Deve ter a certeza do que viu naquela noite. Tem a certeza? Tem a certeza absoluta?
Lily pensou no que tinha visto. Tinham-se dito tantas coisas desde a dita noite; eram tantas as
pessoas que haviam chegado e partido de Ashwood. No entanto, ela tinha visto o cavalo de Mr. Scott
e as figuras no corredor. Assentiu solenemente. Queria agradar a Althea, garantir-lhe que seria capaz
de repetir o que vira.
Mas Althea parecia estranhamente triste. Encostou-se para trás, de novo com as mãos no próprio
colo.
– Tem a certeza absoluta, querida? – insistiu. – A noite estava muito escura, e estava tanta gente em
Ashwood. Tem a certeza de que viu Mister Scott?
Tinha estado muita gente. Mas Lily sentia que era a causa de todo aquele tumulto, que as pessoas
estavam ali reunidas naquele dia por causa do que ela dissera, e não queria envergonhar Althea, ou
fazê-la zangar por ter medo de repetir o que dissera.
– Tenho a certeza – garantiu de novo.
A tia sorriu, mas os seus olhos brilhavam de lágrimas.
A carruagem deteve-se. Lily sentiu o abanão provocado pela descida de um dos cocheiros.
Instantes depois, a porta abriu-se e as pessoas amontoaram-se na abertura, esticando os pescoços
para espreitarem o interior. Althea estendeu as mãos, puxou Lily para si e envolveu-a num abraço
apertado.
– Lembre-se de dizer apenas a verdade, meu amor. E não tenha medo que ninguém lhe quer mal. –
Deu-lhe um beijo na face e largou-a. – Vá lá, então. Mister Bowman acompanha-a até lá dentro.
Lily percebeu que Althea a deixava ir sozinha.
– Não vem, tia?
A tia fez que não com a cabeça.
– Desta vez, não.
– Mas tem de vir! – protestou Lily, verdadeiramente assustada.
– Não posso – respondeu Althea e uma lágrima desceu-lhe pela face. – Lamento, querida, mas o
meu marido… – Baixou os olhos e Lily ouviu o que lhe pareceu um soluço abafado. Althea levantou
o olhar e sorriu para Lily. – A minha irmã precisa de mim e já me atrasei demasiado. Vá, Lily. Estará
tudo terminado antes que dê por isso e voltarei para junto de si o mais depressa que puder, prometo.
– Miss Boudine! – Era Mr. Bowman, de pé junto à porta da carruagem, com a multidão curiosa
atrás de si. – Vamos, rapariga, o magistrado está à espera.
Lily olhou para Althea, desesperada pelos braços da tia. Mas esta sorriu e voltou a cabeça para a
porta da carruagem do seu lado.
– É uma menina corajosa – disse-lhe. – Consegue fazer qualquer coisa. Agora vá.
Lily desceu relutantemente pela abertura e foi de imediato rodeada por lacaios que a escoltaram
por entre a multidão.
– Deixem-nos ver a miúda! – gritou alguém e todos se acotovelaram para verem melhor. Os lacaios
continuaram a avançar, conduzindo Lily para o interior da sala dos comuns, atrás de Mr. Bowman.
Lá dentro não cabia mais ninguém. Quem não conseguira arranjar lugar sentado apertava-se contra
as paredes. O teto era baixo, o que fazia a sala parecer ainda mais lotada. Os lacaios tiveram de
abrir caminho por entre a massa de corpos. Assustada, Lily encostou-se tanto a um dos lacaios que
conseguiu cheirar a lã da libré deste. Ele fechou uma mão sobre o ombro da menina, segurando-a
com firmeza e empurrando-a para diante.
Foi levada até à frente da sala, onde ficou diante de um homem magro e ossudo. Estava sentado
atrás de uma mesa, com a sua peruca e toga judiciais. Olhou para Lily por cima dos óculos,
avaliando-a e franzindo o cenho como se a criança lhe desagradasse. O conde estava sentado numa
cadeira ornamentada à direita do magistrado, e, à esquerda deste, no que parecia uma caixa
construída à pressa, encontrava-se o acusado. Mr. Scott tinha as roupas sujas e a barba por fazer. Lily
conseguiu sentir o seu cheiro; tinha o aspeto e o cheiro de quem vivia numa caverna.
Evitou o olhar do acusado.
– Aproxime-se, aproxime-se – pediu o magistrado, fazendo sinal a Lily para que chegasse mais
perto. Mr. Bowman empurrou-a para diante. O magistrado apontou a beira da sua mesa, onde Lily
devia ficar. Ficou diretamente de frente para Mr. Scott, atrás do qual se sentava a sua família. A
mulher do acusado tinha a filha mais nova de ambos no colo e chorava. A filha mais velha tinha uma
expressão carrancuda e ao lado de Mr. Scott encontrava-se o seu filho mais velho, Tobin, que dirigiu
um olhar sombrio a Lily.
Lily tinha conhecido a família Scott quando Mr. Bowman a levara à cabana de Mr. Scott para
identificar o cavalo que tinha visto na noite da gala. Haviam saído todos para a ver e Mrs. Scott tinha
os olhos vermelhos e inchados, como naquele preciso momento. Lily só conhecia Tobin, que
costumava acompanhar o pai a Ashwood para o ajudar na construção da escada. Numas poucas
ocasiões, Tobin fora enviado para o exterior para tomar conta de Lily, porque Althea queria falar
com Mr. Scott em particular.
Tobin era alguns anos mais velho que Lily, talvez tivesse treze anos, e sempre fora muito amável
com ela. Nesse dia, contudo, os seus escuros olhos castanhos fitavam-na como se a quisesse
estrangular.
– Miss Boudine, jura solenemente que o que aqui disser hoje será a mais absoluta das verdades? –
perguntou o magistrado.
Lily cometeu o erro de olhar para a sua direita e viu todos os rostos que a fixavam atentamente.
Engoliu com dificuldade e assentiu com um gesto de cabeça.
– Fale!
– Sim, senhor – respondeu. Tinha os joelhos a tremer. Teve medo de desmaiar diante de toda
aquela gente. O conde ficaria zangadíssimo com ela. Faria com que fosse irlandesa. Sentiu o olhar do
velho perfurar-lhe as costas, como o olhar de Tobin lhe queimava o rosto.
– Pode prosseguir – disse o magistrado e, de repente, Mr. Bowman estava ao seu lado.
– Miss Boudine – disse este, fitando-a. – Faça o favor de contar a Sua Senhoria o que viu na noite
da gala de verão.
Era um prodígio que Lily conseguisse sequer falar. Mal se apercebia de estar a falar. A voz tremia-
lhe quase tanto como os joelhos ao contar ao magistrado sobre as figuras nas sombras do corredor e
sobre o cavaleiro do cavalo cinzento com manchas pretas.
– Identificou esse cavalo? – perguntou o magistrado.
– Eu… Eu…
– Identificou, sim, senhor – disse Mr. Bowman em tom suave. – Foi levada à residência de Mister
Scott dois dias depois dos acontecimentos e identificou o cavalo na propriedade deste como sendo o
que viu naquela noite.
– Isto é verdade? – perguntou o magistrado a Lily.
– Sim, senhor.
Mrs. Scott soltou um soluço abafado sobre a cabeça do bebé.
O magistrado olhou de novo fixamente para Lily.
– Jura sobre a Bíblia que o que aqui disse hoje é verdade?
Lily estava prestes a vomitar e a humilhar-se ainda mais, quando respondeu:
– Sim, senhor.
– Muito bem. – O magistrado recostou-se na sua cadeira e fez sinal a Mr. Bowman. Por sua vez,
este olhou para os lacaios e dirigiu-lhes um curto aceno de cabeça. Ato contínuo, Lily viu-se levada
da sala apinhada e metida na carruagem do conde.
A tia Althea e a sua carruagem tinham desaparecido.
Passou-se mais uma hora até o conde aparecer e tomar o seu lugar na carruagem, diante de Lily,
para a viagem até Ashwood. Olhou para ela apenas uma vez.
– Agiu bem – disse-lhe antes de voltar a sua atenção para a janela.
Lily veio a saber que, pouco tempo depois do seu testemunho, Mr. Bowman colocara a hipótese de
Mr. Scott e uma criada de Ashwood serem amantes, tendo trabalhado em conjunto para roubar as
joias. O facto de Mr. Bowman não conseguir apresentar a criada não impediu o magistrado de
considerar Mr. Scott culpado do roubo, condenando-o à morte na forca.
Nos dias que se seguiram a tia Althea pareceu de algum modo mais pequena. Mais velha. Não era a
mesma tia Althea alegre, o que chocou Lily.
Não era segredo que Althea e o conde estavam zangados. Por mais de uma vez, Lily foi acordada
pelos gritos de ambos a meio da noite. Durante o dia, a tia Althea mantinha Lily perto de si. Mas
andava distraída. Momentos havia em que Lily quase tinha a impressão de que enlouquecera,
particularmente quando vasculhava Ashwood em busca das joias desaparecidas.
Lily não percebia a busca.
– Se Mister Scott as levou, não podem estar aqui, pois não? – perguntava.
– Nunca se sabe – murmurava a tia em jeito de resposta.
No dia em que Mr. Scott foi enforcado pelo seu crime, Miss Penhurst levou Lily até ao pequeno
lago. Passearam de barco a remos, deslizando serenamente por entre os gansos enquanto Mr. Scott ia
ao encontro do Criador. Mas Lily estava desanimada. Acreditava que fora ela que fizera aquilo a Mr.
Scott. Tinha-o matado quando repetira o que vira. Miss Penhurst garantiu-lhe que a culpa não era
dela, que Mr. Scott tinha feito uma coisa muito errada e que não podia culpar mais ninguém além de
si próprio. Mas Lily não conseguia deixar de sentir que a culpa era sua. Não conseguia deixar de ver
o ódio no olhar de Tobin.
Tentou falar com a tia Althea sobre isso, mas esta recusou-se a discutir o assunto. Disse que era
uma tragédia, que estava terminado, e que Lily também não devia pensar nisso. Althea deixou de
tocar piano. Parecia mais magra a cada dia que passava e Lily temia que ela não se alimentasse
devidamente. Não era segredo que ela e o conde já nem sequer se falavam.
No final da semana, a tia Althea fez finalmente a sua viagem à Escócia. A vida retomou o seu
ritmo; Lily assistia às suas lições, praticava desenho e brincava com as bonecas.
A tia Althea regressou a Ashwood quase três semanas depois da sua partida. Vinha sorridente e
disse estar muito contente por ver Lily, de quem sentira imensas saudades enquanto estivera fora.
Mas Lily pareceu notar algo diferente nela. Havia distanciamento nos bonitos olhos cinzentos da tia.
Um dia, cerca de um mês depois do seu regresso da Escócia, Althea foi até ao quarto de crianças,
onde Lily fazia os seus trabalhos, ajoelhou-se e abraçou Lily.
– Tenho novidades – anunciou alegremente. – A menina vai para a Irlanda! – disse-o como se de
uma grande aventura se tratasse.
– Para a Irlanda? – gritou Lily, sentindo um peso no coração. Ia ser irlandesa. – Porquê, tia? Fiz
alguma coisa errada?
– Não, Lily, não! – exclamou a tia, prendendo uma madeixa de cabelo por trás de uma orelha da
sobrinha. – Só que a Lenora é muito mais capaz de cuidar de si como deve ser. Ela tem três filhas. A
sua prima Keira e as gémeas, Molly e Mabe.
Lily nunca as conhecera. Mas não queria estar com as primas, queria estar com Althea.
– Não, tia, a senhora cuida de mim! – protestou desesperadamente, agarrando-se ao braço da tia. –
Por favor, não faça de mim irlandesa! Por favor, não me mande embora!
– Ah, querida Lily, não estarei aqui para cuidar de si – respondeu Althea. – E não a posso deixar
sozinha com o conde, pois não?
– Porque não estará aqui? Onde estará? – perguntou Lily, frenética. – Posso iri consigo. Posso ser a
sua acompanhante.
Althea sorriu ao tomar o rosto de Lily entre as mãos, beijando-lhe os olhos lenta e
deliberadamente.
– Não pode ir para onde vou, meu amor. Pode apenas ir para a Irlanda. Nada de lágrimas, linda. É
o melhor. – E deixou Lily a soluçar a sua desilusão.
Lily acreditou que a culpa daquilo era sua. Que tinha obrigado a tia Althea a mandá-la embora
porque fizera com que Mr. Scott fosse enforcado. A culpa era sua.
A sua adorada tia morreu poucas semanas depois da chegada da menina à Irlanda, disseram-lhe que
se tinha afogado num trágico acidente de barco no mesmo lago onde Lily e Miss Penhurst haviam
passeado de barco durante uma longa tarde de verão.
Lily nunca esqueceria a nauseante sensação de culpa e remorso que parecia cortar-lhe a respiração
quando soube da notícia. Primeiro a mãe, depois a tia Althea e, no ano seguinte, a tia Margaret, na
Escócia. O que fazia com que restasse apenas Lorena, a mãe de Keira.
Lily sentiu-se responsável por tudo. O seu cérebro de oito anos foi assaltado por um turbilhão de
perguntas, perguntas que continuaram na idade adulta, sobre o porquê de as coisas terem acontecido
assim, sobre como as coisas poderiam ter sido diferentes se Althea não a tivesse enviado para a
Irlanda. Se não tivesse ido para a Irlanda, talvez estivesse com Althea no dia em que esta se afogara.
Talvez pudesse ter salvado a sua adorada tia.
Havia mais uma pergunta que queimava o coração de Lily, uma pergunta a que ninguém parecia ter
sido capaz de dar resposta durante a trágica sequência de eventos, e uma pergunta a que Althea
tentara tão desesperadamente dar resposta: onde estavam as joias?
Um

1808
Irlanda

Havia uma corrente palpável de excitação que percorria as gentes de Lisdoon, a propriedade dos
Hannigan. Tinham sido todos apanhados num frenético remoinho de atividade porque Lily Boudine se
preparava para partir para Itália.
Itália!
A sua prima, Keira Hannigan, não conseguia acreditar na boa sorte de Lily. Há muito que Keira
sonhava conhecer Itália e lugares idênticos. Conseguia imaginar-se a passear pelas piazzas, a
admirar a arte e a arquitetura e todos os cavalheiros italianos. Mas Keira tinha a certeza absoluta de
que não voltaria a deixar a costa ocidental da Irlanda, agora que os pais estavam decididos a que se
casasse.
Lily estava de partida como acompanhante paga de Mrs. Canavan. E Mrs. Canavan faria a viagem
na companhia do seu muito desejável filho, Mr. Conor Canavan. Lily usara a astúcia para conseguir o
seu emprego junto de Mrs. Canavan, pois estava decidida a iniciar um romance com o filho desta. O
facto de Mr. Canavan não saber que ia participar no romance não constituía impedimento para a
prima de Keira.
Lily não estava minimamente preocupada.
– Ele estima-me, Keira – disse confiantemente certo dia enquanto observava a sua figura imaculada
ao espelho. – Decerto ficará aliviado por saber que também o estimo. Não ficaria surpreendida se
ele se propusesse durante a nossa estadia em Itália.
Lily era muito segura de si, mas, por outro lado, nem ela nem Keira desconheciam o que era ter um
ego saudável. Keira e Lily eram consideradas notavelmente belas em County Galway, não lhes
faltando pretendentes. A mãe de Keira dizia que eram saídas do mesmo molde.
Keira nunca se esqueceria da primeira vez que vira Lily, quinze anos antes. A sua mãe alertara-a
para que fosse muito amável, porque a prima Lily era uma pobre órfã. Keira imaginava que todos os
órfãos eram destituídos de maneiras e vestiam trapos, tendo os olhos envoltos em olheiras
provocadas pela doença. Esperava que as únicas posses de uma órfã fossem um urso de peluche sujo
e gasto e uma taça de madeira.
Lily não era nada disso. Na verdade, revelara-se tão exótica que Keira ficara encantada. Na altura,
tinha oito anos e Keira nove, falava com um sotaque estranho para os ouvidos irlandeses da prima e
usava um vestido de seda carmesim. O seu cabelo era negro, como o de Keira, mas liso e comprido,
enquanto o de Keira era encaracolado. Tinha os olhos verdes, como os de Keira, mas com um tom
acinzentado e não com o verde profundo da Irlanda, como o pai de Keira dizia serem os da filha.
Lily exibira um sorriso rasgado ao descer da carruagem e estender a mão para que o pai de Keira a
beijasse.
– Como está? – cumprimentou com a devida cortesia. – Chamo-me Lily Boudine.
Keira julgara estar a olhar para uma princesa, não para uma órfã.
Pouco tempo depois, já Keira e Lily eram as melhores amigas e aliadas. Quinze anos volvidos, as
duas mulheres não seriam mais chegadas se fossem irmãs e tinham imensos pretendentes. A escolha
de Lily era Mr. Canavan. Ou talvez fosse mais correto dizer que a sua escolha desse mês era Mr.
Canavan. Tinha tendência para mudar de ideias.
Lily devia embarcar na sua viagem dentro de poucos dias e Keira e a prima, juntamente com Molly
e Mabe, as gémeas de dezoito anos, encontravam-se na sala de estar de Lisdoon, a preparar os meses
que Lily passaria longe de casa. A sala era grande, com três conjuntos de janelas com vista para o
parque nas traseiras da casa. Para além do parque ficava o mar. O mar não era visível de Lisdoon,
mas, quando as janelas estavam abertas, como nesse dia, o cheiro a ar puro e salgado era levado até
elas pela brisa leve.
A sala de estar estava decorada com ricos tecidos vermelhos e dourados e com espessos tapetes
belgas. Das paredes pendiam retratos de um metro e oitenta de antepassados Hannigan. Nesse dia,
contudo, a sala fora conquistada por figurinos e moldes de vestidos. Havia rolos de seda, musselina e
brocado, vindos de Dublin, espalhados por cima dos sofás de seda floral e das poltronas de veludo.
Esquecido no aparador, um serviço de chá em prata. A água tinha arrefecido há muito e nenhuma
delas tocara nos biscoitos.
Brian Hannigan, o patriarca da família, sentia-se perturbado pela confusão que se apoderara da sua
sala de estar.
– Não está certo – queixou-se à mulher, Lenora. – A sala devia ser um lugar de repouso para
todos.
– É temporário – garantiu Lenora, mas Brian não estava convencido e retirara-se para o seu
gabinete, amuado.
Lily, que era a destinatária dos vestidos concebidos a partir de três ou quatro moldes, tinha a sorte
de ter encontrado uma costureira de algum talento em Galway, Caitrin de seu nome. Esta estava em
Lisdoon para preparar o guarda-roupa de Lily e era grande adepta de copiar a moda mais recente.
Nesse momento, Caitrin encontrava-se a um canto da sala, a terminar um dos muitos vestidos
encomendados por Lily. Era um bonito vestido matinal castanho com guarnição verde-clara. Keira
estava ao lado de Caitrin, a admirar o vestido.
Atrás dela, sentadas a uma mesa redonda no meio da sala, tradicionalmente usada para jogar ou
tomar chá, a prima e as gémeas espreitavam avidamente os mais recentes modelos de moda vindos de
Londres.
– Tomem e olhem para isto – disse Lily, entusiasmada, apontando para um dos modelos. Molly e
Mabe inclinaram as cabeças morenas para o livro para verem o modelo. – É o modelo perfeito para
um casamento pela manhã.
Que imaginação tinha.
– Ele ainda não se propôs, Lily – lembrou Keira, examinando a manga do vestido matinal.
– Há de propor-se – respondeu Lily em tom confiante.
– Acho que é amoroso – opinou Mabe em tom sonhador.
– Sinceramente, não sei como consegues pensar nessas coisas – continuou Keira, desviando-se
para que um criado pudesse levar o serviço de chá. – Se estivesse no teu lugar, não conseguia pensar
em mais nada se não em Itália.
– Queres dizer se fosses tu e estivesses de partida para Itália – contrapôs Lily.
– Sinceramente que não pensarias em Mister Maloney nem por um instante, Keira? – perguntou
Molly, dirigindo um sorriso matreiro à irmã mais velha.
Keira revirou os olhos.
– Não pensaria, não – respondeu. – Além do mais, Loman Maloney não é o único cavalheiro da
Irlanda, caso não tenham reparado.
– Mas é o único que parece querer casar contigo – respondeu Molly, sorridente.
Keira não queria que lhe lembrassem esse facto. Mr. Maloney era um cavalheiro muito agradável,
cuja família tinha feito fortuna com os transportes marítimos. Parecia-lhe um homem de aspeto
agradável, mas a verdade é que lhe lembrava todos os outros cavalheiros muito simpáticos que
passeavam pela Irlanda como um bando de ovelhas. No caso de Mr. Maloney, a única diferença era
que a opinião que o pai tinha dele havia melhorado milagrosamente durante o inverno, o que o fizera
passar a considerar Mr. Maloney o par perfeito para a sua filha mais velha. Mr. Maloney levara a
sério o encorajamento entusiástico do pai, perseguindo abertamente a mão de Keira.
Keira tinha vinte e quatro anos. Já passara em muito a idade de casamento da maioria das jovens.
Sabia que falavam dela em County Galway, e não só, tanto por causa da idade como por não ter
noivo. Sabia que a sua relutância em aceder a um qualquer pretendente era motivo de grande
preocupação para os seus pais. Mas não conseguia contentar-se com alguém tão estável e previsível
como Loman Maloney. Sentia uma sensação, uma vibração em todo o corpo, que lhe dizia que a vida
era demasiado curta para se contentar com alguém tão sensaborão.
Ainda assim, o pai de Keira estava a perder a paciência. Quinze dias antes, dissera-lhe que, se ela
não conseguia um pretendente, sem dúvida que ele conseguiria.
– Acho que seria amoroso se tu e a Lily casassem no mesmo dia – disse Mabe. Estava deitada em
cima da mesa, com o queixo apoiado na mão. A fita que lhe prendia o cabelo comprido tinha-se
desatado. – Pensa nisso… como um duplo casamento!
– Com a Keira? – Lily soltou uma gargalhada. – Gostava de receber um mínimo de atenção no dia
do meu casamento, se não te importas. Além disso, a Keira nunca se casará – acrescentou, piscando
um olho à prima.
Keira não evitou uma gargalhada. Lily conhecia-a realmente bem.
– Lily.
O pai de Keira surpreendeu-as a todas. Estava de pé junto à porta, com as pernas robustas
afastadas e um papel na mão.
– Sim, tio? – respondeu Lily, levantando-se. – Estávamos outra vez a fazer muito barulho?
– Sim, mas não é por isso que aqui estou. Preciso de falar consigo imediatamente. Acompanhe-me.
– Porquê? – quis saber Keira.
O pai franziu o cenho em reprovação.
– Keira, estou a falar com a Lily. Vamos, Lily. – Deu meia volta e deixou a sala.
Lily trocou um olhar com a prima enquanto seguia o pai de Keira.
– Esperem aqui – ordenou Keira para Molly e Mabe, indo atrás de Lily. Mas Molly e Mabe
ignoraram a ordem e não tardaram a segui-la.
Além da mãe de Keira, que se encontrava junto às janelas abertas com ar muito pensativo, estava
um estranho no gabinete forrado com livros. Parecia ter cavalgado durante algum tempo; tinha as
botas cobertas de pó e manchas de lama nas mãos e no rosto. Estava imóvel, e desconfortável, num
quadrado de tapete, como se tivesse medo de sair do mesmo. Acenou educadamente com a cabeça
quando as mulheres entraram.
– Eu chamei a Lily – recordou o pai de Keira, mas nenhuma deixou o aposento.
Brian Hannigan estendeu um papel à sobrinha.
– São novidades bastante inesperadas – anunciou.
A rapariga desviou lentamente os olhos do mensageiro para contemplar o papel com suspeição.
Não fez qualquer movimento para pegar no mesmo.
– Que novidades? – quis saber Keira, espreitando por cima do ombro de Lily enquanto Molly e
Mabe se acotovelavam atrás dela, também elas tentando ver do que se tratava.
– Mabe e Molly, afastem-se, por favor – ordenou a mãe de Keira. Apertou as mãos com força atrás
das costas e sorriu para Lily. – Não tens nada que temer, Lily – disse, e Keira teve a sensação de que
a prima estremecera ao ouvir aquelas palavras.
– A sério que não! – trovejou o pai de Keira. – Esse papel diz que é a única herdeira de Ashwood,
com o devido título de condessa. – Sorriu-lhe. – Percebeu, Lily? A menina é condessa!
Era uma notícia incrível. Molly e Mabe guincharam de excitação. Keira agarrou e apertou os
ombros de Lily.
– És condessa, Lily!
– Mas como? – perguntou Lily, claramente confusa. – Como é possível que seja condessa de
Ashwood?
– Eu explico. – O pai de Keira desenrolou o pergaminho que tinha na mão. – Isto foi escrito por
Mister Theodore Fish, o agente que tem Ashwood a seu cargo – explicou, percorrendo a página com
o olhar até encontrar as linhas que procurava. – Pronto, cá está. – Aclarou a garganta e continuou: –
Após importante investigação e consulta com advogados de Londres, parece que Lily Boudine é a
única herdeira viva de Marcus Kent, o falecido conde de Ashwood, assim herdando imediatamente a
propriedade Ashwood. Mais, o título de condessa é legalmente atribuído se a única herdeira for uma
mulher, o que confere a Lily Boudine o título de condessa de Ashwood e todas as responsabilidades
e títulos a ele associados. Caso a mulher seja casada, as terras e títulos passarão naturalmente para o
seu marido. Se, contudo, herdar por direito próprio, continuarão a ser seus até à sua morte, sendo
transmitidos ao seu filho mais velho.
Levantou os olhos do pergaminho, com o rosto aberto num sorriso rasgado.
Molly e Mabe começaram a falar ao mesmo tempo, mas Lily conseguiu apenas abrir a boca de
espanto.
– Sente-se bem, Lily? – perguntou a mãe de Keira. – É uma notícia maravilhosa!
– Está surpreendida, Lenora – disse alegremente o pai de Keira. – E tem motivos para isso, Lily.
Pense bem, condessa por direito próprio! Mister Fish pede-lhe que o procure rapidamente, uma vez
que há assuntos que exigem a sua atenção imediata. – E estendeu-lhe de novo a carta.
Lily pegou-lhe de modo hesitante.
– Estou… Sem dúvida que estou surpreendida – concordou. – Mas já se esqueceu, tio? Parto para
Itália no final da semana.
– Itália! – troçou o pai de Keira. – Pode esquecer Itália, menina. A Keira irá no seu lugar. A
menina vai para Inglaterra, para assumir o seu lugar por direito!
– Itália! – gritou Keira. Era um presente de todo inesperado que lhe caía no colo. – Está a falar a
sério, pai?
– Ora, estou… assumindo que Mistress Canavan a leva. Certo é que não posso mandar nenhuma
delas – rematou, indicando Molly e Mabe com um gesto vago.
– Pai! – protestou Mabe.
– Não acredito! – gritou Keira alegremente. – A Lily é condessa e eu vou para Itália!
Mas Lily não dizia nada, limitando-se a olhar para o tio.
Brian Hannigan dirigiu um olhar infeliz à mulher.
– Ela não diz nada – reclamou, apontando para Lily. – Porque não fala ela? Cai-lhe um tesouro no
colo e fica muda!
– Por favor, Brian – interveio a mãe de Keira, avançando para passar um braço em volta dos
ombros de Lily. – É um choque tremendo, como pode imaginar-se.
– Isso significa que somos parentes de uma condessa? – perguntou Molly, entusiasmada.
– Sem dúvida que sim, rapariga – respondeu o pai de Keira com um sorriso. – Vá, vamos levar
este bom rapaz até à cozinha e alimentá-lo como deve ser, pois deve regressar de imediato e dizer
que a condessa vai a caminho!
O pai e as irmãs de Keira acompanharam alegremente o homem para fora do gabinete. Esta ouviu o
tagarelar de Molly e Mabe perder-se no corredor, sem dúvida enquanto massacravam o pobre homem
com perguntas. A mente de Keira estava envolta no turbilhão provocado por aquela improvável mas
muitíssimo excitante reviravolta nos acontecimentos. O seu desejo tinha-se tornado realidade! Mr.
Maloney teria de esperar, se estava assim tão disposto a casar com ela. Talvez estivesse ausente
tempo suficiente para ele se esquecer dela e se propor a outra. A sua mente começou a ser inundada
por uma cascata de possibilidades de liberdade.
Mas, ao olhar para a prima, Keira apercebeu-se de que Lily ainda não dissera palavra. Olhava
fixamente para o chão e tinha o rosto tão pálido como o vestido de musselina branca que envergava.
– Diz alguma coisa, Lily – pediu Keira.
– Não sei o que dizer – respondeu Lily.
– Acho que devíamos mandar imediatamente um bilhete a avisar Mistress Canavan – sugeriu a mãe
de Keira.
Lily assentiu. Mas continuava a olhar para o tapete, claramente absorta nos seus pensamentos.
Keira conhecia Lily possivelmente melhor do que qualquer outra pessoa e achou a reação da prima
muito estranha. Que mulher não ficaria em êxtase com a notícia de que recebera o título de condessa?
Nem por um instante imaginou que Lily estivesse tão apaixonada por Conor Canavan que não se
sentisse feliz por ter adquirido um título nobre e uma propriedade para governar.
A disposição de Lily não pareceu melhorar com o decorrer da tarde enquanto se escreviam mais
bilhetes, se traziam malas para baixo e as coisas de Keira eram arrumadas. Nem ao jantar, quando
Molly e Mabe a questionaram incansavelmente sobre Ashwood. Só depois de todos se deitarem
Keira teve finalmente oportunidade de falar com Lily em particular, sem as irmãs à sua volta ou os
criados a entrar e sair dos seus quartos para escolherem e emalarem os pertences de ambas.
Keira bateu suavemente à porta do quarto de Lily para não alertar Molly e Mabe, que dormiam nos
quartos contíguos ao dela.
– Entre – ouviu dizer baixinho.
Entrou rapidamente e fechou a porta sem fazer barulho.
O quarto de Lily estava mal iluminado; tinha apenas uma vela acesa sobre a mesa de cabeceira. As
janelas estavam abertas e a brisa fresca noturna fazia bailar os pesados reposteiros de brocado. Lily
estava sentada na cama, com a camisa de dormir vestida e a comprida trança de cabelo sobre o
ombro. Afastou o livro fechado que tinha no colo e recostou-se nas almofadas que tinha amontoado
atrás de si.
– Não te sentes bem? – perguntou Keira enquanto se aproximava da cama. – Mal disseste uma
palavra durante todo o dia.
– Sinto-me muito bem. Mas estive a pensar. – Uniu os joelhos junto ao peito e deu uma palmadinha
na cama. – Tenho uma ideia.
Keira apreciava sempre uma boa ideia, particularmente quando era divertida, e apressou-se a subir
para a cama de Lily, deitando-se de lado e apoiando a cabeça na sua palma da mão.
– Que ideia é essa? Vais ungir-me tua aia e oferecer grandes bailes? – Keira soltou uma
gargalhada.
Lily não se riu.
– Ouve o que tenho a dizer antes de recusares – pediu ansiosamente.
– Recusar?
– Keira, eu… Eu acho que devias ir para Ashwood. No meu lugar.
Keira bufou ao ouvir a absurda sugestão, mas o olhar de Lily era firme e frio.
– Eu? – gritou Keira. – E o que vou lá fazer?
– Tratar das coisas – respondeu Lily. – Fazer o que quer que seja que se espera que faça alguém
como eu, até eu regressar de Itália.
– Itália! Oh, Lily – exclamou Keira compreensivamente. – Admito que Mister Canavan é um
homem atraente… mas não fazes ideia de quais são os seus verdadeiros sentimentos. E mesmo que
estivesse muito apaixonado por ti, decerto saberás que não pode casar com uma condessa.
– Não sei nada disso – cortou Lily friamente. – Tenho uma ideia de quais são os seus sentimentos e
acredito que se duas pessoas se amam não é um título que se interpõe no seu caminho.
Keira não queria acreditar no que estava a ouvir.
– Estás louca, Lily? Ele não se declarou – insistiu.
Lily inclinou-se para ela e tomou a mão de Keira entre os seus dedos finos.
– Sabes muito bem os planos que fiz para a Itália – disse. – Sabes muito bem o que significa para
mim. Quero ir. E, além disso… tenho más recordações de Ashwood. Que não consigo enfrentar. Não
agora, pelo menos. Preciso mesmo de pensar em tudo e preparar-me para ir até lá. Tudo isto é muito
súbito e inesperado. Consegues perceber porque preciso de um pouco de tempo para… – Tocou com
os dedos na cabeça. – Aceita!
Keira não conseguia perceber o porquê de Lily ter tantas dificuldades para aceitar. Era condessa,
por Deus! Mas Keira lembrou-se de quando Lily chegara à Irlanda. Ouvira a prima contar a história
da noite do desaparecimento das joias tantas vezes que ocasionalmente, quando as nuvens carregadas
desciam sobre Lisdoon à noite e o cheiro a chuva impregnava o ar, quase acreditava que tinha
assistido a tudo com os seus próprios olhos.
Lily tinha um jeito dramático de contar os eventos que haviam originado a sua ida para a Irlanda.
Tinha recriado tantas vezes a noite do desaparecimento das joias que Keira aprendera algumas
passagens e era chamada a desempenhar o papel do conde ou do juiz.
Era muito divertido representar as suas peças dramáticas. Mas as representações tinham cessado
depois de receberem a notícia da morte da tia Althea em condições tão trágicas e inexplicáveis.
Lily não voltara a falar da noite do desaparecimento das joias. Não havia nada que a fizesse
reviver essa experiência. Ou falar da tia Althea. Era como se tivesse emparedado parte do seu
passado.
– Lily, querida – disse Keira. – Foi há tanto tempo. Decerto que essas recordações já não te
magoam.
– Parece-me que foi ontem – respondeu Lily baixinho.
Parecia realmente magoada. Keira adorava Lily e não suportava vê-la tão perturbada. Tentou
imaginar-se em Ashwood.
– Como poderia fazê-lo? – perguntou a Lily.
– De uma forma muito simples. Levarás contigo uma carta de Mister Fish. Dirás que fui eu que te
enviei e que estás ali para fazer o que for preciso até à minha chegada. Eles não poderão recusar.
Keira pensou no assunto.
– É uma propriedade muito grande? – quis saber.
– Muito! – respondeu Lily, inclinando-se para diante, esperançosa.
Keira imaginou-se a passear pelos terrenos de uma majestosa propriedade inglesa. Mas depois
pensou em Itália, nos cavalheiros italianos que esperava conhecer, na arte e na cozinha do país.
– Existem muitos cavalheiros nessa zona de Inglaterra?
– Keira!
– O que foi? – perguntou a prima inocentemente. – Não esperas que finja que entrei para um
convento, pois não?
Lily suspirou.
– Não – respondeu – e não sei se há cavalheiros. Suponho que sim. Vais aceitar, Keira?
– O pai nunca permitirá… – respondeu Keira com um sorriso.
– Ele não precisa de saber – cortou Lily de imediato. Perante o olhar espantado de Keira,
explicou: – Ninguém na Irlanda tem de saber, Keira. Nem o teu pai. Nem a Molly e a Mabe. –
Inclinou-se ainda mais para a prima, com a ponta da trança a tocar nos lençóis de linho entre ambas.–
Nem Mister Maloney.
E passou a ter toda a atenção da prima.
– Temos de encontrar-nos com Mistress Canavan em Dun Loughaire para embarcarmos. Podemos
explicar-lhe que houve uma mudança de planos.
Keira abriu muito os olhos. Conseguiriam realmente? Olhou para a porta, desceu da cama e correu
sobre o tapete Aubusson para a fechar. Os reposteiros foram varridos por uma forte rajada de vento;
cheirava a chuva e Keira dirigiu-se para as janelas, espreitando para se certificar de que ninguém
estivera à escuta antes de as fechar. Saltou agilmente para a cama, sentando-se ao lado de Lily.
– Diz-me o que tenho de fazer – pediu. – Só tenho de cuidar da casa até ao teu regresso?
– Sim, sim – apressou-se Lily a confirmar. – Mantém as coisas a andar, como sempre.
– Que coisas?
– As coisas que mantêm a propriedade a funcionar, creio. Não faço ideia. Calculo que tenhas de
autorizar a disponibilização de fundos para alimentação e coisas do género.
Parecia fácil o suficiente.
– Vamos supor que faço o que sugeres – disse Keira. – Irás ter comigo dentro de quanto tempo?
– Três meses – respondeu Lily, encolhendo os ombros.
A ideia parecia cada vez mais deliciosa. Era uma aventura e não havia nada de que Keira gostasse
mais do que de um pouco de aventura para animar os seus dias. Poderia fazer o que lhe apetecesse
durante três meses, sem ninguém que a obrigasse a fazer qualquer coisa totalmente diferente.
– Fazes isso? – insistiu Lily.
Keira suspirou.
– Por ti, Lily. Por ti, e porque te adoro – respondeu Keira docemente. – Ponho apenas uma pequena
condição. Tenho de ficar com o vestido matinal castanho com a guarnição verde.
Lily semicerrou os olhos.
– Isso é extorsão, Kiki.
– Nada disso. – Keira cruzou os braços e recostou-se na cama. – Eu adoro aquele vestido.

Keira envergava o vestido castanho com a guarnição verde no dia da sua chegada a Ashwood.
Levava a carta de Mr. Fish na bolsa de rede.
Desceu da carruagem alugada e olhou para a espantosa mansão georgiana. Era da cor da areia, com
uma dúzia ou mais de chaminés. O sol brilhava contra as vidraças das janelas e quase parecia que a
mansão também brilhava. Sim, pensou Keira, isto vai ser a minha maior brincadeira de sempre.
Dois

1808
Hadley Green

O leilão de cavalos de Ashwood começou precisamente às duas da tarde, no cercado. A chuva


recente tinha deixado tudo um pouco alagadiço, mas o sol brilhava e Declan O’Conner, o conde
irlandês de Donnelly, sentia-se bem-disposto. Adorava o cheiro a cavalos e achava que se não
houvesse um pouco de lama à mistura não era trabalho.
Declan era um criador famoso na Irlanda e em Inglaterra. Tinha-se interessado por cavalos ainda
rapaz e mal largara os calções quando começara a criar cavalos na Irlanda. Aos trinta e um anos,
criava cavalos para reis, princesas e duques e os seus cavalos tinha vencido algumas das mais
afamadas corridas de Inglaterra. Recentemente, tinha sido contratado por um conde dinamarquês para
procriar uma égua premiada e produzir um cavalo de corrida de primeira qualidade.
Quando os agentes ingleses do dinamarquês o abordaram, Declan aceitou com prazer o dinheiro do
conde. Não que precisasse, pois era um homem abastado por direito próprio. Mas a oferta surgira
numa altura em que Declan começava a aborrecer-se com a vida bucólica na Irlanda. A sua maldição
era padecer de um constante e peculiar anseio pelo longínquo – por terras, povos, luzes distantes.
Sentia uma forte necessidade de conhecer o mundo, uma necessidade quase tão grande como a que
sentia de estar perto de cavalos.
E Declan tinha aceitado o desafio do irlandês. Concordara acolher e acasalar a égua em Inglaterra,
onde os agentes do dinamarquês poderiam ver o animal ocasionalmente. Possuía uma pequena casa
citadina em Londres, mas, como precisava de espaço para os cavalos, arrendara Kitridge Lodge, no
West Sussex, ao seu bom amigo, o duque de Darlington. Kitridge, em tempos um castelo normando,
depois transformado em abrigo de casa, era demasiado velho e desatualizado para albergar a
quantidade de serviçais necessária a uma família tão ilustre e numerosa como os Darlington. Os
quartos eram pequenos e escuros, os corredores estreitos e sinuosos, mas era ideal para Declan. Não
precisava de uma legião de serviçais nem de companhia. Precisava apenas de um lugar onde comer e
dormir. O duque ficou agradado por arrendar o castelo a Declan pelo tempo que precisasse.
Quanto tempo seria? Declan não sabia. Nunca havia ficado muito tempo no mesmo lugar.
Arrendara a propriedade por um ano.
Durante esse ano, contudo, a culpa acabaria por levá-lo de volta à Irlanda como sempre acontecia.
Declan adorava a Irlanda, disso não havia dúvidas. Mas não precisava de ali estar. Existia todo um
mundo para além das suas costas, um mundo de que a Irlanda parecia muito distante. No entanto, a
sua irmã mais nova, Eireanne, estava lá, bem como a avó materna de ambos e as duas eram
responsabilidade sua.
O pai de Declan morrera quando este tinha apenas catorze anos, deixando-lhe Ballynaheath, a
enorme propriedade da família em County Galway. Declan desejava não ter perdido o pai como
desejava não ser conde. Não fora seu desejo ser responsável pela felicidade de Eireanne ou arranjar-
lhe casamento. Adorava a irmã e queria que esta fosse feliz. A ideia de lhe arranjar casamento com o
homem errado impedira-o de considerar qualquer pretendente adequado e agora, infelizmente, era
praticamente impossível encontrar um par para Eireanne.
Ao que parecia, Declan tinha má reputação, mesmo pelos padrões irlandeses, tendo ocorrido
alguns acontecimentos na sua vida que se tinham refletido de forma negativa na sua irmã. A avó
avisara-o que por causa da sua fama poucos irlandeses estariam dispostos a fazer uma oferta por
Eireanne. A jovem precisava, referira a avó, de ir para fora durante algum tempo. Para uma escola
para jovens abastadas. Mais concretamente, para uma escola em Lucerna, na Suíça, o Instituto Villa
Amiels, onde as jovens abastadas estabeleciam o tipo de relações que praticamente lhes garantia um
par na temporada de Londres.
Declan achara a ideia excelente e escrevera de imediato para a escola. Pouco antes da sua partida
para Inglaterra recebeu a notícia de que a candidatura de Eireanne fora recusada.
– Tens de partir para Inglaterra – disse-lhe a irmã em tom jovial quando lhe deu a notícia. – Não
me serve de nada andar tristonha em Ballynaheath, pois não?
Conhecia bem o irmão e sabia que ele estava desejoso de partir.
– Não te apoquentes, Eireanne – respondeu. – A escola parece-me um pouco pretensiosa.
Arranjamos uma melhor.
Eireanne sorrira, mas sabia tão bem como Declan que não existia uma escola melhor. E ele sentia
mais uma vez a responsabilidade por Eireanne chamá-lo de volta à Irlanda. Trataria de procriar a
égua, indo a Londres de vez em quando para um pouco de diversão e encontros de sociedade e
regressaria à Irlanda para ver Eireanne.
Mas nesse dia procurava um par para a égua e a venda de cavalos da propriedade Ashwood
incluía alguns cavalos famosos de corrida. Não encontrou nada que lhe agradasse, a não ser uma
potra vivaz que acreditava poder treinar para correr; conhecia uma senhora no Hertfordshire que
procurava um cavalo para oferecer ao marido.
Os cavalheiros reuniram-se na área em volta do cercado quando se aproximou o início do leilão.
Um a um, os moços de estrebaria conduziram os cavalos em torno do recinto enquanto o leiloeiro
registava as ofertas dos licitadores. A maioria dos cavalos – dois cavalos de tiro para carruagens e
dois castrados – não se vendeu por mais de dez libras cada. À medida que as suas propostas eram
aceites, os cavalheiros iam-se afastando do recinto. E quando a potra surgiu no cercado, em passo
alto e abanando vigorosamente a cabeça, restavam apenas alguns cavalheiros, um agente imobiliário,
um par de moços de estrebaria e o leiloeiro.
– A base de licitação é de dez libras, cavalheiros – anunciou o leiloeiro e, quase de imediato, um
jovem de ar muito afetado, com a sua gravata e brilhantes botas novas, tocou na aba do chapéu.
Os valores subiram rapidamente a partir daí. Dois homens desistiram quando a licitação
ultrapassou as treze libras. O que deixou apenas Declan e o jovem afetado das botas novas.
– Temos uma oferta de vinte libras – disse o leiloeiro. – Vinte libras pela potra. Alguém oferece
vinte e duas?
Declan assentiu com a cabeça.
– Tenho vinte e duas libras, cavalheiros. Alguém oferece vinte e três?
O jovem olhou para Declan enquanto levantava dois dedos em sinal de que fazia a oferta.
Declan sorriu. Não permitiria que um animal tão bom caísse nas mãos daquele pedante. Havia algo
que o jovem desconhecia: mais do que qualquer outra coisa, Declan detestava perder.
– Muito bem, vinte e três libras – confirmou o leiloeiro. – Alguém oferece vinte e cinco?
Vinte e cinco libras era demasiado pela potra, mas Declan estava decidido. Assentiu. Alguém
sussurrou com entusiasmo atrás dele; um par de cavalheiros tinha regressado ao recinto, como se
houvesse algo para ver.
O jovem desviou o olhar para a potra. Usava punhos de renda e o fino relógio de ouro era quase
ofensivamente brilhante. Parecia ter saído diretamente de uma alfaiataria para o leilão.
– Vinte e oito libras? – perguntou o leiloeiro. – Alguém oferece vinte e oito libras?
O jovem olhou de novo para Declan, que lhe dirigiu um sorriso frio.
O jovem levou um lenço com monograma ao nariz e negou com a cabeça.
– Vendida, então, àquele cavalheiro por vinte e cinco libras – anunciou o leiloeiro.
Declan sorriu e tocou na aba do chapéu numa saudação ao jovem.
– Senhor, se me permite – disse um homem.
– Sim? – respondeu Declan, olhando para o homem que surgira ao seu lado. Era o homem da
imobiliária, pequeno e magro, e tudo nele cheirava ao seu negócio.
– Parabéns pela oferta vencedora – cumprimentou o outro. – Se não se importa, a condessa gostaria
de recebê-lo no salão verde.
– A condessa – repetiu Declan, logo imaginando uma velha murcha enquanto calçava as luvas. –
Por que motivo, Mister…?
– Mister Fish – apresentou-se o homem, com um rápido aceno de cabeça. – Sou o agente da
condessa. – Não saberia responder-lhe, senhor, mas creio que ela tem uma forte ligação à potra.
– Nesse caso, não devia tê-la posto à venda – observou Declan distraidamente, saudando o
leiloeiro com um aceno de cabeça a passar por ele. – Mas pôs e a minha oferta venceu. Que mais há
a dizer?
Mr. Fish, com o seu nariz afilado e faces altas, sorriu brevemente.
– Talvez queira partilhar algum conselho quanto aos cuidados com o animal – disse.
Declan calculou que ela quisesse partilhar algo completamente diferente. Não seria a primeira vez
que era chamado a casa de uma senhora a pretexto de negócios. Pensou um pouco. Não tinha ido até
ali para esse tipo de desporto, mas não deixava de ser homem.
– Ela é velha? – perguntou distraidamente.
– Velha? – repetiu Mr. Fish, claramente confuso. – Não, senhor, é muito jovem.
– Graciosa?
A pergunta fez corar Mr. Fish. Levou a mão cuidada – Declan imaginou que nunca tivesse
levantado nada mais pesado que uma caneta – ao lenço do pescoço enquanto aclarava a garganta.
– Senhor, se me permite – insistiu –, a condessa pediu que concluísse a venda no salão verde.
Declan sorriu.
– E quem sou eu para dizer que não a uma condessa, não é verdade? Irei, Mister Fish.
– Muito bem. E posso dizer-lhe quem comprou a potra?
– Declan O’Conner, Lorde Donnelly – respondeu, calçando a outra luva antes de olhar para Fish. –
Mande entregar o animal em Kitridge Lodge – acrescentou antes de se dirigir para a casa.

Esperava uma mulher normal, com uma necessidade física simples.


Não estava à espera de uma impostora.
Não foi imediatamente evidente, porque a senhora comportava-se com os modos de uma condessa.
Não fez nada abertamente suspeito, como esquecer-se de levantar o dedo mínimo ao beber o chá ou
ignorar as devidas mesuras. Não, Declan soube que se tratava de uma impostora porque conhecia
Keira Hannigan desde sempre e ela não era condessa.
Mas parecia perfeitamente à vontade ao fingir ser uma.
Não imaginava o que fazia ela em Inglaterra, muito menos numa aldeia pequena como Hadley
Green. A última vez que a vira, se a memória não o atraiçoava, fora em County Galway (de onde
eram ambos), e Loman Maloney, cuja riqueza só tinha rival na sua ambição, cortejava-a habilmente.
Keira era uma Hannigan, filha de uma família católica influente e poderosa, conhecida pelos seus
cavalos e pelas suas tendências políticas. Era bela de uma maneira que Declan acreditava que só as
irlandesas podiam ser, com cabelos negros, pele branca e fulgurantes olhos verdes. Também possuía
o espírito vivo dos irlandeses, o que para Declan significava que tinha um bom sentido de aventura e
uma língua inteligente e por vezes afiada.
O que Declan considerou particularmente irritante foi o facto de Keira não parecer minimamente
chocada por ele ter descoberto o seu embuste naquela pequena aldeia inglesa adormecida. Bem pelo
contrário. Olhou para ele com atrevimento, como se acreditasse que ele pudesse desafiá-la
abertamente.
– Lady Ashwood, permita que lhe apresente Lorde Donnelly – disse Mr. Fish.
Passado o primeiro instante de choque, Declan pensou se deveria desmascará-la, mas calculou que
não tardaria a ser descoberta e a sofrer as devidas consequências. No entanto, não tinha qualquer
intenção de ser arrastado para o seu joguinho. Fora arrastado para um dos jogos dela anos antes, com
consequências desastrosas. Estava ali para comprar um cavalo. Nada mais.
– Boa tarde, milorde – saudou Keira. A voz dela penetrou-lhe a consciência, alojando-se no lugar
do que é familiar. Ela avançou para ele, arrastando a saia de montar verde-escura ao caminhar.
Atirou um chapéu ridiculamente garrido com uma borla dourada para cima do canapé quando passou
por ele. Andava como as mulheres belas, com passo leve, um certo balancear de ancas, um inclinar
atrevido de cabeça e um brilho nos olhos.
– Lorde Donnelly, apresento-lhe Lady Ashwood – disse Fish.
– Lady Ashwood? – Podia ter soltado uma gargalhada se não se sentisse tão estarrecido. Ela
dirigiu-lhe um sorriso atrevido.
– Lorde Donnelly ofereceu vinte e cinco libras pela potra, madame – informou Fish.
– Uma soma apreciável – opinou Keira agradavelmente. – Ainda que deva admitir que esperava
que rendesse um pouco mais. É um belo animal. Chá, milorde?
– Vinte e cinco libras é muito mais do que a potra vale. E prefiro uísque – respondeu Declan
secamente.
– Que sorte! Ainda bem que temos algum. Mister Fish?
Declan observou o aposento enquanto Mr. Fish se dirigia de imediato para o carrinho das bebidas.
O salão era tão impressionante como a própria mansão georgiana. As paredes estavam cobertas de
seda verde e creme que condizia com os pesados reposteiros. Os móveis eram revestidos, o tapete
espesso, e o sol entrava por três pares de janelas abertas que se erguiam até às sancas esculpidas. O
teto fora pintado de modo a parecer um céu azul de verão, completado com nuvens e sol e alguns
pássaros vermelhos em voo.
Declan desviou o olhar para Keira, que sorriu algo nervosa, ainda que um pouco descarada,
enquanto Mr. Fish servia três uísques. Mr. Fish entregou um a Keira, cuja educação como boa
rapariga irlandesa fazia com que não temesse aquela bebida, ao contrário das gentis damas dos
salões de Londres.
– Lorde Donnelly – comentou Fish amigavelmente enquanto lhe entregava um uísque –, a sua
reputação precede-o.
– Aparentemente, a minha reputação é a única de que se pode dizer isso – respondeu, cravando em
Keira um olhar incisivo.
Ela sorriu serenamente, bela como um retrato, completamente imperturbável. Uma madeixa de
cabelo encaracolado caída sobre a face parecia ferozmente negra contra a sua pele clara.
Mr. Fish pareceu algo confuso com a observação de Declan, mas, sendo um cavalheiro,
prosseguiu:
– Honra-nos que um homem com as suas aptidões de criador de cavalos se interesse pelos nossos
animais.
– Animais de quem? – perguntou Declan.
Mr. Fish franziu as sobrancelhas, ainda mais confuso.
– De Lady Ashwood, claro – respondeu.
– E Lady Ashwood pretende juntar-se a nós? – insistiu Declan, o olhar ainda fixo em Keira.
Mr. Fish pestanejou. Keira riu e avançou para eles, ajeitando a madeixa rebelde com um gesto
ansioso.
– Lorde Donnelly está a fazer prova do seu requintado humor irlandês, Mister Fish. Quer ter a
amabilidade de nos conceder um instante?
Espantado, Mr. Fish olhou para Keira. Ela sorriu brevemente e ergueu o copo.
– Se fizer favor – insistiu.
– Com certeza, madame. – Mas Fish parecia perfeitamente perplexo quando pousou o copo e saiu
da sala.
Quando fechou a porta, Keira pousou o copo e disse num sopro:
– Isto não é o que pensa.
– Não é o que penso? – troçou Declan. – Penso que está a fazer-se passar por uma condessa
inglesa, a menos que tenha encontrado um par verdadeiramente fortuito.
– Não, Declan, isto é Ashwood.
– Sim… e?
– E pertence a Lily. Não soube?
Ele não fazia ideia do que ela estava a falar.
– O que pertence à Lily?
– Ela herdou Ashwood – explico Keira. – Assim mesmo. Não troce de mim, pois sabe que é
verdade.
Tinha tomado conhecimento de que a propriedade do velho conde Ashwood passara para as mãos
de uma herdeira, mas nunca lhe havia passado pela cabeça que fosse Lily Boudine. Desconhecia
qualquer relação entre esta e Ashwood.
– Por que raio havia de saber de tal? – perguntou em tom irritado.
– Sinceramente – respondeu Keira, igualmente irritada. – Ela vinha de Ashwood. Todos sabiam
disso.
– Lamento, mas não sabia. Não tornei hábito meu estudar a história familiar de Lily Boudine! Mas
o que acho notável nesta esclarecedora conversa é não ter mencionado o facto de se fazer passar pela
sua própria prima.
– Não! – protestou Keira, olhando nervosamente para a porta. – Está completamente enganado!
– Onde está a Lily? – perguntou ele, incrédulo.
– Em Itália – suspirou Keira.
– Está a dizer-me que a sua prima está em Itália enquanto finge ser ela?
– Não estou a fingir – defendeu-se Keira. – Garanto que não vim para cá com intenção de ser
condessa, como é evidente. – Mas Declan não viu nada de evidente na resposta. – Ela pediu-me que
viesse e cuidasse das coisas por ela, porque agora a condessa é ela. Sim, claro, percebo que esteja
espantado, e acredite quando lhe digo que foi uma surpresa para todos, mas é a verdade. Enquanto
Lily ia para Itália com Mistress Canavan, eu vim para aqui em sua representação. Imagine a minha
surpresa quando cheguei e todos me tomaram pela Lily, pois parece que somos muito mais parecidas
do que julgava. E, sinceramente, Declan, a sugestão foi deles.
– Oh, imagino – respondeu Declan em tom cético. – O demónio tem rosto de anjo, Keira Hannigan.
Ela franziu o cenho.
– Já disse isso antes – observou.
– E volto a dizê-lo. – Não conseguia imaginar o que Keira e Lily andavam a tramar. Nunca
considerara Keira particularmente sensata, mas não podia acreditar que Lily concordasse com uma
fraude tão ridícula. – Que esquema engendraram as duas?
– Tem mesmo de usar a palavra esquema? – protestou a jovem. – É muito simples. A Lily tinha
prometido acompanhar Mistress Canavan.
Declan ergueu uma sobrancelha em sinal de ceticismo.
– Vim para cá para cuidar de tudo até ao seu regresso de Itália. Mas, Declan, nunca pensei
encontrar tudo tão desorganizado! O velho conde morreu e deixou Ashwood numa ruína financeira.
Não imagina a urgência. Havia o caso da pobre Hannah Hough, por exemplo. Um homem monstruoso
estava a tentar ficar com as terras de que é rendeira e anexá-las à sua propriedade e a pobre estava
em vias de ser despejada da única casa que conheceu, a casa onde nasceu e onde criou os três filhos.
Naturalmente, tive de agir.
– Assumindo a identidade de Lily? – perguntou Declan, incrédulo.
– É evidente que não queria fazê-lo – respondeu Keira com grande irritação. – Mas era imperativo
um documento com a assinatura da legítima proprietária da propriedade, a condessa, que proibisse a
venda ou a alteração do arrendamento daquelas terras, ou a Hannah Hough podia ficar sem elas. Não
tive alternativa.
Declan sabia que Keira era corajosa, mas aquilo era espantoso.
– Não percebe que o que fez é ilegal?
– Não – protestou Keira. – Quando regressar a Ashwood, a Lily vai pôr tudo como deve ser.
Afinal, ela pediu-me que olhasse por tudo. Tenho a carta que diz que a condessa é ela como prova.
– Pôr tudo como deve ser? As pessoas não apreciam ser enganadas, por mais que Lily lhe tenha
pedido e independentemente do papel que tem consigo – contrapôs Declan gravemente, fazendo-lhe
sinal para que o servisse de novo. – Isto é mesmo seu, Keira – acrescentou em tom zangado. – Age
primeiro e pensa depois. Não se importa com quem magoa.
Os olhos verdes da rapariga abriram-se muito. Ah, aqueles olhos. Eram a maldição de um homem,
aqueles olhos. Tinham vivido na sua memória muito para além do ponto de utilidade.
Keira pegou no decantador do uísque e serviu-o.
– Não está a prestar atenção – disse enquanto vertia o uísque. – Havia muita coisa para fazer, o que
eu tenho feito de forma diligente em representação da Lily. Além disso, descobri algo tão curioso que
até a sua natureza pouco curiosa se sentiria tentada a descobrir a verdade por trás da história.
– Garanto-lhe que não – respondeu ele, observando o brilho dos olhos dela enquanto bebia o
uísque. – Já agora, o venerável Mister Brian Hannigan sabe que a filha se faz passar por uma
condessa inglesa? E onde está a sua dama de companhia? Decerto que não permitiria que andasse por
Inglaterra sem uma dama de companhia.
– Isso não é da sua conta.
– O que significa que ele não sabe – contrapôs Declan.
– Valha-me Deus, porque o convidei para vir aqui? – queixou-se Keira, fazendo tenção de se
afastar dele. Mas Declan apanhou-a pelo pulso da mão que segurava o decantador.
– E Mister Loman Maloney? Ele sabe que o objeto da sua elevada estima e futuro de felicidade
está a perpetrar um embuste perfeitamente indefensável?
Keira ficou sensualmente vermelha.
– Mister Maloney está muito ocupado com os seus assuntos – respondeu de modo empertigado.
– O que significa, julgo, que também ele acredita que está em Itália.
Keira encolheu levemente os ombros.
Declan abanou a cabeça.
– Rapariga tonta – disse, o olhar fixo no rosto dela. – Dou-lhe vinte libras pela potra.
Keira franziu o cenho, desagradada.
– Mister Fish disse que tinha oferecido vinte e cinco.
– E disse bem – afirmou Declan, sem deixar de contemplar o seu rosto oval. – Mas isso foi antes
de saber o que anda a tramar. Vinte libras.
Ela inclinou a cabeça para trás, perfeitamente consciente de que estava a ser admirada.
– Não seja absurdo.
– Quinze – disse ele, tocando na madeixa sobre o rosto dela com a mão livre.
Keira brindou-o com um sorriso tímido.
– Foi uma sorte tremenda ter chegado quando cheguei, Declan. Quem olhava pelas coisas a Lily,
pergunto? Ninguém, a verdade é essa, até eu chegar.
Ele moveu a mão para a curva do pescoço dela.
– Deve sentir-se muito contente por pensar que como Maloney e o seu pai acreditam que se
encontra em Itália não há ninguém de olho em si, não é verdade? – Sorriu perante a ideia. – É a
felicidade do casamento, sem o casamento.
As faces cremosas de Keira puseram-se ainda mais vermelhas.
– Nunca tal me ocorreria, senhor.
O sorriso de Declan desvaneceu-se. Baixou a cabeça de modo a que os seus lábios ficassem a uma
brevidade dos dela.
– Nunca, Keira? – perguntou em voz baixa.
– Afaste-se – ordenou a rapariga, com um brilho de raiva no olhar.
Declan não obedeceu.
– Lembro-me de um velho ditado irlandês – disse. – Quem tem medo de se queimar não deve atear
fogos.
Abriu ligeiramente os lábios e pousou o olhar na boca dela. Algo se acendeu dentro de Declan.
– Não quero os seus conselhos, milorde – disse ela suavemente. – Quero a sua ajuda.
Ele olhou para a boca dela, imaginando tocar aqueles lábios fartos com os seus.
– Endoideceu – disse baixinho. – Eu não quero ajudá-la. Quero entregá-la às autoridades inglesas.
– Mas não o fará – respondeu ela. – Porque isso seria a ruína de Lily. Não importa o que pense de
mim, sei que gosta da Lily.
Ali estava algo que não podia negar. Lily fora a única pessoa que o defendera numa altura difícil
da sua vida e doía-lhe que Keira usasse esse momento da sua vida para comprar o seu silêncio. Era
demasiado ousada, demasiado provocadora. Segurou-a pelo queixo e empurrou-lhe a cabeça para
trás.
– Como consegue exasperar-me sempre? – perguntou.
– É o senhor que está a exasperar-me neste momento. – Tinha a boca diretamente por baixo da
dele. Esperava que ele a beijasse; ele conseguia ver-lhe os olhos semicerrados.
– Quinze libras – insistiu Declan.
– Sinto-me pouco inclinada a vender-lhe o animal, agora que se portou tão mal – respondeu Keira
e os seus lábios abriram-se num sorriso sensual.
– Já pensou que, se não me vender a potra por um preço justo, direi a todos quem é? Ou melhor,
quem não é?
– Não está à venda – respondeu Keira.
Keira Hannigan era assim, demasiado confiante para o seu próprio bem. Independentemente da sua
beleza, a impertinência da rapariga depois de o seu embuste ser descoberto irritava Declan a ponto
de temer o que podia fazer. Mas pensou em Lily, aparentemente a nova condessa de Ashwood, e, ao
mesmo tempo, a sua única amiga.
– Não brinque comigo, Keira – avisou em voz baixa. – Não tente incluir-me em nenhum dos seus
esquemas. E não espere que guarde os seus segredos desta vez.
Com um último olhar de desejo à boca da jovem, afastou-se dela e saiu da sala que ela usurpara.
Três

Mr. Fish entrou pela porta que Declan deixara aberta, o seu rosto magro tenso de preocupação.
– Está tudo bem, madame?
– Claro que sim! – respondeu Keira como se a pergunta fosse absurda. – Está tudo muito bem,
Mister Fish.
Não estava tudo bem. Tinha criado uma enorme confusão em Ashwood. Nunca quisera realmente
ser condessa de Ashwood, mas, agora que era, as coisas tinham-se complicado imenso, o que a fizera
sentir-se tão aliviada por encontrar um rosto familiar em Donnelly. E que surpresa, santo Deus, fora
vê-lo junto ao recinto dos cavalos, uma surpresa tão grande que o seu coração parara por um instante
e só por acaso não tinha tropeçado. Mas não podia descer até ao recinto e apresentar-se a Declan
sem correr o risco de ser descoberta quando ele a tratasse pelo nome, ou a acusasse abertamente de
ser uma fraude, e por isso fizera a única coisa que uma condessa podia fazer. Tinha pedido que o
levassem até si, rezando para que pudessem ter um momento a sós antes que ele a descobrisse
perante Mr. Fish.
Declan O’Conner, Lorde Donnelly de Ballynaheath, era o homem mais sedutor, atraente e
inspirador de sonhos que Keira alguma vez conhecera. Ainda que julgasse que tal seria impossível,
parecera-lhe ainda mais atraente quando entrara na sala, cheio de confiança, a cheirar a cavalo, com
as botas enlameadas e o cabelo pelos ombros. Um cabelo castanho espesso, que pedia os dedos de
uma mulher. Os seus olhos incrivelmente azuis pareciam atravessá-la. Os seus lábios deixavam-lhe
água na boca e conseguia imaginar as suas mãos grandes e largas a afagarem-lhe a pele.
Keira descobrira que era extremamente difícil ficar tão perto dele, sentir a mão dele sobre a sua
pele e ver a sua boca apenas a um nadinha da sua sem lhe tocar. Mas não lhe tocara. Sabia que não
podia tocar num homem como Declan O’Conner. Tocar num homem tão viril como ele só traria
problemas. Descobrira isso há muito tempo.
Declan era uma figura imponente e tempos houvera em que sentira algum medo dele. Sempre fora
considerado indomável, mesmo para County Galway. Quando andava a cavalo, cavalgava como se
fosse imortal e não temesse a morte.
– A única forma de conhecer realmente um cavalo é dar-lhe rédea solta – dissera certa vez, num
piquenique. – Se temerem pela vossa sorte e lhe derem rédea curta, nunca saberão do que um cavalo
é capaz.
Na altura, Keira achara-o bastante pomposo e ignorara as suas palavras arrojadas. Mas, depois,
ele sentara-a num cavalo demasiado indómito para rédea curta e nem se dera ao cuidado de a ajudar
a levantar-se depois de ser cuspida. Felizmente, dois cavalheiros tinha corrido em seu auxílio.
– Ele ofereceu vinte e cinco libras – disse um ansioso Mr. Fish, devolvendo-a ao presente. – Ele
honrou a oferta, não honrou?
Keira calculou que aquilo não ia correr bem. Sorriu.
– Eu não vendi a potra, Mister Fish.
– Como? – Mr. Fish pareceu confuso. – Não compreendo. Ele ofereceu vinte e cinco libras por
ela.
– Não quis vender-lha a ele – disse Keira. – Ele parece bastante sombrio, não parece? –
Sedutoramente sombrio.
– Sombrio?
– Pouco respeitável.
Mr. Fish pareceu ainda mais confuso.
– É um conde, Lady Ashwood…
– Estou dolorosamente ciente disso – interrompeu Keira. – Mas não quis vender-lhe a ele. E o
resto do leilão, Mister Fish? Que tal nos saímos?
Mr. Fish apertou os lábios no que a jovem entendeu ser um esforço tremendo para não discutir com
ela.
– Infelizmente, não tão bem como esperávamos – respondeu. – Tivemos ofertas de duas e treze
libras. A oferta pela potra era… crucial para as nossas necessidades.
Keira sentiu um súbito calor na nuca, mas forçou-se a sorrir.
– Não importa – respondeu descontraidamente. – Assim que o moinho estiver operacional, vamos
gerar dinheiro mais que suficiente para gerir Ashwood, não vamos?
Fora ideia sua reconstruir o moinho, que se encontrava parado havia décadas, de modo a gerar os
fundos de que Ashwood necessitava para pagar as suas despesas. A crua realidade dizia que dois
anos de seca tinham levado a que muitos rendeiros estivessem atrasados no pagamento das suas
rendas e, em consequência disso, Ashwood, a famosa propriedade de luxo, passava por uma grave
falta de fundos disponíveis para manter o seu devido funcionamento e ainda mais para realizar as
constantes reparações e renovações de que uma propriedade tão grande precisava invariavelmente. A
vontade de Mr. Fish era vender o gado de que não careciam. Mas Keira achava que precisavam de
um plano mais vasto e arrojado se quisessem sobreviver. Se ao menos soubesse o que fazer.
Mr. Fish fora contra a reabertura do moinho.
– Foi encerrado porque era preciso mais dinheiro do que aquele que gerava para o manter a
funcionar – explicara, quando Keira sugerira a reconstrução.
– Mas isso foi numa altura em que era unicamente utilizado por Ashwood. Imagine que
permitíamos a sua utilização por todo o West Sussex, e não só, que permitíamos a sua utilização por
todos os que precisassem de um bom moinho, mediante o pagamento de uma taxa – sugerira. –
Podíamos acrescentar-lhe um celeiro onde pudessem guardar o seu grão.
– Madame, o que sugere é que nos dediquemos a um comércio – retorquira Fish em tom
reprovador, como se aquilo fosse o mesmo que condená-la ao inferno.
E a jovem pensara que a Qualidade inglesa era muito peculiar nesse aspeto. Como se dedicar-se ao
comércio tornasse a pessoa inferior a um ser humano.
– É dedicarmo-nos à nossa sobrevivência – retorquira e Mr. Fish acabara por ceder por julgar que
ela era a condessa.
Naquele dia parecia terrivelmente desiludido com ela e não o podia censurar. Vinte e cinco libras
teriam contribuído imenso para a compra de géneros diversos, como velas e óleo, e para o
pagamento de salários.
– Não fique tão desiludido – disse em tom animado. – Temos muitos mais ferros ao lume, Mister
Fish. Mas agora deve dar-me licença. Esperam-me no orfanato.
As faces encovadas de Mr. Fish coraram. Os planos do pobre homem para endireitar o navio à
deriva que era Ashwood tinham sido novamente alterados.
O facto de Keira não ter a mínima ideia do que estava a fazer também não ajudava, mesmo tendo
alguém tão competente como Mr. Fish para a orientar. Não deixava de ser verdade que o pai a
consultava sobre os trabalhos a realizar em Lisdoon. Mas a verdade é que se tinha metido num
valente atoleiro e estava a afundar-se depressa. Sentiu-se furiosa consigo por ter perdido a venda da
potra.
Atravessou o corredor em passo enérgico, deixando para trás retratos e vasos chineses e consolas
muito polidas cheias de flores de estufa. Fugiu da duplicidade que tinha de enfrentar na sala, acenou
educadamente a um par de lacaios e sorriu para a criada que se apressou a sair do seu caminho.
Subiu por um dos lados da magnífica escada dupla e correu pelo amplo corredor que conduzia aos
aposentos principais da casa.
Na santidade dos seus aposentos privados, com paredes rosa e brancas e alegres padrões florais
nos revestimentos e reposteiros, Keira deixou-se cair no banco da penteadeira e esfregou a testa.
Sentia uma ligeira dor entre os olhos, o que não era invulgar nos últimos dias, tanto o embuste que
tinha de manter. Não deixava de ser verdade que podia ser culpada de alguns lapsos morais ao longo
da sua vida, mas quem não podia? Mas aquilo… Aquilo sucedera da forma que as coisas
costumavam suceder a Keira.
Fora precisamente como dissera a Declan. Ao chegar a Ashwood, com a carta de Mr. Fish, a sua
parecença com Lily era tal que, quinze anos depois, o velho e mordomo, Mr. Linford, assumira de
imediato que ela era Lily.
Keira tinha tentado corrigi-lo, mas o homem era surdo ou teimoso – ainda que ela não soubesse por
qual se decidir – e insistira que ela era a condessa, ao que todos a tinham mimado e parecido
genuinamente contentes pelo regresso da condessa, e… imediatamente, nessa mesma tarde, tinham-
lhe apresentado o problema de Hannah Hough, e Mr. Fish precisara imediatamente da assinatura da
condessa para pagar os salários. Na verdade, Keira vira-se tão sobrecarregada que não soubera o
que fazer. Sabia apenas que aquela pobre gente precisava dos seus salários e que a vida de Hannah
Hough dependia de Lily.
– Está a dizer-me que só Lady Ashwood pode impedir isto? – perguntara cuidadosamente Keira
nessa tarde fatídica.
– Sim, madame. Só a senhora! Não percebe porque estamos tão aliviados com a sua chegada?
Aquela pobre gente, cujo ganha-pão dependia de Ashwood, precisava de Lily, e Lily tinha estado
ausente. Na altura, a decisão de Keira de pôr o nome de Lily no papel parecera notavelmente
prudente. Calculara que teria a aprovação de Lily e, sinceramente, Lily tinha-lhe pedido que cuidasse
da propriedade. Garantidamente, não tinha outra opção que não salvar Hannah Hough.
Antes que tivesse tempo de dar por isso, Keira era a condessa. Pensando melhor, talvez não
tivesse sido a coisa mais prudente de se fazer. A mentira parecia tornar-se maior a cada dia que
passava. Keira continuava a acreditar na vinda de Lily e juntas explicariam a todos que Keira fizera
o que fizera em representação de Lily.
Depois, de entre todas as pessoas, aparecera Declan O’Conner.
O homem era tão irritante como atraente. Pensar que em tempos se imaginara apaixonada por ele! É
certo que era uma miúda, mas ainda assim. E, sim, havia o fantasma daquela coisa horrível que lhes
acontecera, um evento tão horrível que, mesmo oito anos volvidos, Keira ficava doente sempre que
pensava nele.
Mas também se lembrava de outra coisa desse dia. Recordava-se de Declan. De forma vívida e
dolorosa. Essa recordação levava-a a fazer coisas ridículas, como rejeitar o dinheiro que ele
oferecera pela potra.
Tudo acontecera numa desses dias extraordinariamente limpos junto ao mar calmo da Irlanda, em
que o sol derramava um brilho de ouro e prata sobre a superfície da água. Eireanne O’Conner tinha
convidado alguns amigos e conhecidos para um piquenique na propriedade da família, em
Ballynaheath, o tipo de coisas para que os criados são chamados a dispor grandes bancos e mesas
numa colina de difícil acesso, a erguer grandes tendas onde as damas possam abrigar-se, aguardando
depois nas suas librés, para que não falte sequer uma amora a alguns privilegiados de County
Galway.
Eireanne organizava os piqueniques porque pouco mais tinha com que se ocupar. O seu irmão e
tutor estava quase sempre longe de Ballynaheath, deixando Eireanne ao cuidado da avó que, apesar
de ser uma senhora adorável, aproveitava a idade avançada para se ausentar frequentemente com
algumas amigas viúvas.
Mas não faltava nada a Eireanne. Declan sempre satisfizera todos os desejos da irmã. Certa vez, o
pai dissera que o fazia para mitigar a culpa que sentia. Keira nunca percebera o que ele quisera dizer
com isso.
Todos sabiam quando Declan estava em Ballynaheath. Galway parecia sempre demasiado pequena
para ele, um sol demasiado quente e intenso para aquela terra. Quase se sentia a corrente de
excitação que acompanhava a sua chegada, alimentada pelas corridas de cavalos e pelos jogos de fim
de semana em Ballynaheath.
Não era um habitual nos piqueniques da irmã. Eireanne dizia que eram demasiado calmos para o
irmão. A verdade é que nesse dia não se encontrava em lugar visível e Keira lembrava-se de se ter
sentido desiludida por isso.
A paisagem, no alto de uma colina, era espetacular, com uma vista espantosa para o mar. Jarras
com flores silvestres enfeitavam as toalhas virginalmente brancas que cobriam as mesas. Fitas e mais
flores pendiam do alto das tendas. Tinham preparado um campo de lawn bowling e os cavalheiros
haviam despido casacos e gravatas para melhor jogarem. Tinham mesmo contratado um flautista e um
violinista de Connemara.
Keira, Lily e a amiga desta, Eve, tinham um plano para esse dia. Engendraram-no no dia anterior,
durante um passeio até ao pequeno lago atrás de Lisdoon, onde os Hannigan viviam há duzentos anos.
Tinham levado um cesto de piquenique e três canas de pesca. Tinham lançado descuidadamente as
linhas, que depois ignoraram por completo enquanto se perdiam em mexericos.
A conspiração teve início quando Eve anunciou o seu afeto por Mr. Brendan, um homem alto e
ruivo que chegara recentemente a County Galway. Ninguém parecia conhecê-lo muito bem, exceto a
velha Mrs. Russell. Foi ela que o apresentou, dando mesmo um jantar em sua honra, durante o qual,
Mr. Brendan deu a saber que viera de County Clare para County Galway a fim de vender a
propriedade da sua falecida mãe e que, uma vez na posse do dinheiro da sua herança, pretendia partir
para a América para fazer fortuna.
Partir para a América para fazer fortuna soava bastante exótico, especialmente para Eve.
Imaginara-se perdidamente apaixonada por ele. E falara acerca dele incessantemente, sobre o
elegante inclinar da cabeça quando falava e sobre os seus lábios finos e apetecíveis.
Keira percebera Eve perfeitamente, pois tivera pensamentos semelhantes acerca de Declan. Sabia
que era imprudente, porque, além de indómito, ele era sete anos mais velho que ela, mas isso nunca
impedira Keira de se sentir perigosamente intrigada com aquele homem. Tivera a sorte de dançar
com ele na festa de aniversário de Eireanne, na primavera anterior, e ele olhara-a com os seus olhos
espantosamente azuis e dissera-lhe que um dia ela arrebataria os corações dos homens. E no outono
acompanhara-o numa caçada e ele elogiara-a como esplêndida amazona.
Verdade fosse dita, tinha havido um encontro desconfortável em Lisdoon, no início desse verão, em
que Declan surgira acompanhado por Eireanne e os dois tinham desaparecido com o pai de Keira no
gabinete deste. Keira foi chamada um quarto de hora mais tarde. Eireanne estava sentada num canapé,
com as mãos no colo e a cabeça baixa. O pai de Keira estava de pé ao lado da sua secretária e
Declan encontrava-se plantado diante da janela, com os braços cruzados e uma expressão furiosa.
– Keira Rose Hannigan, incitou Miss O’Conner a ir a Galway com o propósito de conhecerem dois
cavalheiros? – trovejou o pai de Keira.
Keira desviou o olhar para Eireanne enquanto as suas faces coravam.
– Fomos… fomos comprar luvas, pai – balbuciou.
– E lancharam na taberna Lough Tarry, na companhia dos dois cavalheiros?
– E de Mistress Flannery! – gritou Keira, pensando como poderiam culpá-la por ter concordado
com um lanche arranjado por Mrs. Flannery. O facto de não ter dito aos pais por onde andara nesse
dia dificilmente lhe parecia um crime. Sempre fora uma rapariga aventurosa, sempre desejosa de
experiências, ignorando o decoro sempre que podia. Mas Declan e o pai tinham razão para estar
zangados com ela.
E, em certa ocasião, Keira dera com Declan a beijar uma mulher. Tinha ido a cavalo até
Ballynaheath e encontrara os dois atrás do estábulo. Ficara demasiado espantada para dar meia volta
e Declan vira-a. Ele chamara-lhe espionagem. Ela chamara-lhe acidente.
Keira nunca se esquecera dessa imagem, nem da lascívia que sentira ao imaginar Declan a fazer-
lhe o mesmo.
Na verdade, era nesse beijo que pensava na tarde em que decidira pescar com Lily e Eve. Estava
deitada num tapete de erva na margem do rio, de pernas cruzadas e braços a servirem de almofada, a
ouvir Eve tagarelar acerca de Mr. Brendan enquanto imaginava Declan a beijá-la.
– Tu ama-lo? – perguntou Lily a Eve, uma rapariga magra de cabelos claros que parecia mais nova
que os seus dezasseis anos.
– Amo – respondeu Eve, com um risinho infantil.
– Nesse caso, deves dizer-lho antes que parta! – exclamou subitamente Keira, imaginando-se a
confessar o seu amor a Declan. Imaginou-o a devorá-la com o seu olhar abrasador e como a beijaria.
Contudo, Lily parecia não concordar com a ideia de Keira.
– Uma dama nunca declara os seus sentimentos por um cavalheiro sem que os sentimentos deste
sejam conhecidos – observou.
– Pareces mesmo a mãe – respondeu Keira com desdém. A mãe estava sempre a dizer-lhe como
agir e pensar. – E porque não? É possível que ele sinta o mesmo e tenha receio de o dizer por temer
não ser correspondido. Além disso, os cavalheiros sentem-se muito lisonjeados com a estima das
damas. Vai fazer com que te aprecie, Eve.
– Mas ele vai partir para a América – notou Eve.
– Mas, se souber que o amas, manda buscar-te quando for rico.
Eve arquejou perante essa possibilidade enquanto Lily franzia o cenho pensativamente.
– E se ele te desdenhar – continuou Keira –, não terás de suportar a humilhação… porque terá
partido para a América.
A ideia fez corar Eve.
– Nunca – disse baixinho.
Mas com o correr da tarde a noção de que Eve devia declarar-se a Mr. Brendan tornou-se
imperativa. As três raparigas regressaram a Lisdoon e juntas escreveram uma carta a Mr. Brendan,
pedindo que se encontrasse com Eve junto à costa no dia seguinte. Tinham concluído que Eve devia
ter «algo muito querido» para oferecer a Mr. Brendan antes da partida deste. Essa coisa era uma
madeixa de cabelo, o que lhes pareceu terrivelmente romântico.
As canas de pesca, há muito esquecidas, tinham ficado no lago. Mandaram um rapaz buscá-las e
levar a carta a casa de Mrs. Russell, onde lhe disseram que devia esperar uma resposta de Mr.
Brendan.
Fecharam-se no quarto de Keira, principalmente para manterem as gémeas afastadas, e andaram de
um lado para o outro impacientemente.
O rapaz voltou com uma nota muito concisa de Mr. Brendan: Sim.
A resposta de Mr. Brendan resumia-se a isso, mas foi o suficiente para arrancar guinchos tão altos
das três que Molly pontapeou impacientemente a porta, pedindo que a deixassem entrar.
Na tarde do dia seguinte, Keira, Lily e Eve abandonaram os jogos e o piquenique e dirigiram-se
para os rochedos junto ao mar. Ninguém estranhou que as três raparigas quisessem colher flores
silvestres. Seguiram o caminho junto ao rio, pelo meio de um maciço de carvalhos ancestral e através
de prados repletos de flores silvestres de fim de verão, e pela beira dos pauis varridos pelo vento.
Quando chegaram aos rochedos onde os seus caminhos se separavam, Eve sorriu nervosamente e deu
mais uma volta no seu melhor vestido de musselina para aprovação das amigas.
Quando Eve começou a descer o caminho até à praia para ir ao encontro do seu amor, Keira sentiu
inveja daquela aventura. Mas tinha sido um jogo para ela, uma diversão em dia de verão, um infantil
sonho de amor.
Keira e Lily passearam pelo alto dos rochedos, contemplando o mar, colhendo flores e discutindo
o paradeiro de um colar dourado que ambas cobiçavam. Como Eve não regressasse passada uma
hora, Lily começou a mostrar preocupação. Keira argumentou que Eve e Mr. Brendan, tendo
declarado o seu mútuo amor, não suportavam separar-se. Mas Lily convenceu-a de que deviam
descer até à praia e procurá-la. Keira iria até à foz do rio, não fosse Eve ter-se enganado no caminho
para os rochedos. Lily iria até à praia. Voltariam a encontrar-se onde o caminho voltava para os
rochedos.
Keira seguira o caminho sinuoso que descia até aos vales onde o rio corria ao encontro do mar.
Não esperara encontrar ninguém, e muito menos Declan, pelo que o seu coração, o seu tolo coração
jovem, saltou uma batida ou duas ao aperceber-se que estava um homem no prado à sua frente e que
esse homem era ele.
Era destino. Tinha de ser destino.
Lembrava-se perfeitamente desse dia! Ele estava a cavalo, naturalmente, a experimentar um belo
cavalo negro. O animal seguia a trote lento, num ritmo suave e constante. Declan tinha-se deitado
sobre o dorso do cavalo. As suas coxas, endurecidas por anos de prática, mostravam-se visivelmente
tensas dentro das calças de montar enquanto controlava a velocidade do animal com as rédeas e o
corpo.
Pareceu-lhe magnífico, um exemplo perfeito da força do homem, e o coração de Keira começou a
bater desenfreadamente. Pensou em Eve a beijar Mr. Brendan. Tinha pensado no quanto desejava
sentir as mãos de Declan no seu corpo, e a boca dele na sua pele, e fora o desejo que a levara àquele
prado.
Declan vira-a ao voltar o cavalo num círculo largo. Olhara para ela com curiosidade, como se
fosse incongruente com a paisagem. O seu olhar azul e profundo erguera-se para além da cabeça da
rapariga, para o caminho atrás dela, evidentemente à procura de mais alguém enquanto puxava as
rédeas do cavalo.
– Keira? – chamara, parecendo ligeiramente preocupado.
O simples som do seu nome na boca dele fizera o seu corpo estremecer de desejo. Keira sentira-se
imediata e irremediavelmente apaixonada. Continuara a avançar até se encontrar a cerca de meio
metro do animal.
Declan desmontara e tirara o chapéu, passando depois uma mão pelo cabelo da cor das folhas
caídas dos carvalhos de outono com listas cor de mel.
– Está tudo bem? – perguntara. – Mandaram chamar-me?
Ela fez que não com a cabeça. Ele tinha um ar tão régio, tão belo no casaco de montar que lhe
moldava perfeitamente os ombros. Era uns bons quinze centímetros mais alto que ela. Keira
aproximou-se tanto que conseguiu ver-lhe a sombra da barba, imaginando como seria senti-la no
rosto.
– Onde estão as suas amigas? – perguntou ele, olhando para o caminho.
Ela não respondeu, antes afagando o nariz do cavalo.
– É lindo – observou.
Declan observara-a com curiosidade por um instante, desviando depois o olhar para o caminho
como se esperasse que alguém surgisse para o salvar.
– Porque não está no piquenique, rapariga?
Keira encolheu os ombros e olhou para ele pelo canto do olho.
– Não posso dizer-lhe – respondeu.
– Não?
– Hmmm, não. É segredo.
– A sério? – Ele pareceu duvidar. – Esse segredo envolve a Eireanne?
– Não – respondeu Keira, sorrindo. – Ela está no piquenique, claro. – Tinha-se aproximado mais
de Declan, afagando o pescoço do cavalo. – Como se chama ele? – perguntou.
– Fiddler. – Ele perdeu-se em pensamentos e tentou imaginar o que via quando olhava para ela.
Será que a achava bonita? Pensaria em beijá-la? Ou em colar a boca ao corpo dela? – Onde estão as
suas amigas, Keira? E as suas irmãs? Não devia andar por aí sozinha. Nunca se sabe quem pode
andar por estes vales.
– Foi o único que encontrei por aqui – respondeu, sorrindo para ele.
Os olhos dele semicerraram-se de suspeita, mas o canto da sua boca perfeita ergueu-se numa
espécie de sorriso preguiçoso.
– Keira Hannigan – murmurara enquanto o seu olhar se perdia no decote dela. – Sempre a tramar
alguma. Suponho que seja verdade o que se diz, que o diabo tem rosto de anjo.
O coração de Keira disparara! O cavalo resfolegara e lançara a cabeça para trás. Declan rodeara-a
com um braço para passar a mão pela crina do animal, sossegando-o.
– Calma – disse para o cavalo, mas sem desviar o olhar de Keira. – Onde estão as suas amigas?
– Estão ocupadas.
O olhar dele percorreu a totalidade do corpo de Keira.
– Volte para junto delas – disse, afastando-se dela e voltando-se para o corpo do animal.
Keira foi percorrida por um calor, por um fluido quente que achou muito agradável. Pensou no
abraço de Eve e de Mr. Brendan. Pensou na boca de Declan, macia e quente sobre a sua, e colocou
impulsivamente a mão sobre a dele.
O sorriso de Declan desvaneceu-se ligeiramente. Olhou para a mão dela sobre a sua e inclinou-se
para trás.
– Volte para o piquenique ou para casa. Não quero saber. Não devia estar aqui.
Ela sorriu de modo provocador, como vira a mãe sorrir para o pai.
– Tem medo de mim?
O olhar dele tornara-se sombrio ao desviar-se do corpo dela.
– É uma rapariga tola e incauta. Faz ideia de como um simples namoriscar pode ser perigoso para
uma rapariga tão bonita? Tenha cuidado, Keira.
Ele acha-me bonita. Aproximou-se mais.
– Não corro perigo, pois não?
Uma espessa madeixa de cabelo escuro caiu-lhe sobre a testa. O olhar dele subiu para a boca dela
no preciso momento em que Keira soltou inadvertidamente o ar que continha.
– Não faz ideia do que está a fazer – disse ele. – Vá para casa.
– Não quero ir para casa.
Ele surpreendera-a quando a agarrara pela cintura e a puxara para si. O cavalo relinchara e
afastara-se para o lado, para longe deles… ou pelo menos Keira assim achara. Os seus olhos
estavam cravados nos de Declan, um frio rio de azul. Nunca esquecera a sensação de ter a mão dele
na cintura.
Ele inclinou a cabeça para baixo, com os lábios a curta distância dos dela.
– Pense no que está a fazer. Repito, vá para casa.
Keira mal conseguia respirar. Tinha a cabeça inclinada para trás para poder olhá-lo nos olhos.
– Não.
Se a resposta o surpreendera, ele não o mostrara. O seu olhar percorrera-lhe o rosto enquanto ele
inclinava a cabeça para o lado para lhe ver a face e a orelha.
– As suas amigas estão à espreita entre as árvores? Isto é uma partida? Um qualquer tipo de
esquema?
A voz dele soava baixa e meiga, incendiando o que quer que fosse que Keira sentia. Paixão. Poder.
Ganância.
– Pensa tão mal de mim? – perguntou. – Estão muito ocupadas, garanto-lhe. Prometo não dizer a
ninguém que o encontrei aqui, se prometer que fará o mesmo.
Ele dirigiu-lhe um sorriso dúbio e afagou-lhe a face com as costas da mão. Keira reprimiu um
pequeno arquejo.
– Onde estão elas? – insistiu num murmúrio.
– Não posso dizer-lhe. Acredite.
– Acreditar. – Riu entre dentes. – Não acredito minimamente em si.
A mão dele tinha deslizado sobre a pele do peito dela. Keira sentira-se prestes a levitar a qualquer
momento, flutuando acima do prado, o seu coração enlouquecido a não a deixar descer.
Declan baixara a cabeça para encostar os lábios à orelha dela, dizendo:
– Um pequeno conselho, rapariga. Não provoque um homem feito, porque o seu apetite é muitas
vezes superior à sua vontade.
Ela perguntara-se imediatamente quão forte seria a vontade dele; a dela revelava-se incrivelmente
fraca naquele instante. Sentia-se atraída por ele, atraída pelo perigo, e não conseguia combater
aquela coisa que crescia dentro de si. Por isso, ignorando o conselho dele, pusera-se em bicos de pés
e encostara os lábios aos dele. Sentira-se pairar, tomada por uma emoção tão eletrizante que temera
que os seus joelhos cedessem.
Consegui. Consegui. Beijei o Declan O’Conner.
Se julgara que Declan retribuiria educadamente o beijo, estava errada, totalmente errada. Ele
lambera demorada e sensualmente a orla dos lábios dela. Quando Keira arquejara tomada por aquela
sensação, a língua dele arquejara para o interior da sua boca e o braço que a rodeava apertara com
mais força. Fora a coisa mais sensual e decadente que Keira poderia imaginar. Um calor explodira
dentro dela, espalhando-se do centro do corpo aos membros, subindo-lhe pelo pescoço e
provocando-lhe o formigueiro no couro cabeludo. Declan tomara o queixo dela numa mão e
inclinara-lhe a cabeça para a direita enquanto mergulhava mais fundo.
Nada mais segurava Keira além do braço dele. As suas pernas tinham deixado de funcionar e os
braços pendiam junto ao corpo.
E de repente, demasiado de repente, ele levantara a cabeça.
– Raios partam – murmurara, largando-a e afastando-se dela apressadamente, correndo uma mão
pelo cabelo. Curvara-se para apanhar o chapéu enquanto Keira se esforçava por recuperar o fôlego.
Dirigira-lhe um olhar ardente ao voltar-se de novo para ela. – Você, Keira Hannigan, é um perigo
para qualquer homem vivo. Vá-se embora. Vá ter com as suas amigas. Afaste-se de mim.
Keira percebera a forma como olhara para ela. O brilho de desejo nos seus olhos, percebendo pela
primeira vez na sua curta vida o poder de uma mulher sobre um homem.
– Vá-se embora!– ordenara ele bruscamente.
– Não pode dizer a ninguém que estive aqui – exigiu ela, sem fôlego, o coração ainda a bater de
êxtase. – Prometa que não diz a ninguém que me viu.
E isso rendera-lhe um olhar sombrio e acusador.
– O que está a esconder?
– Nada! Juro!
– Pode ter a certeza que não digo a ninguém – atirara ele secamente, saltando para cima do cavalo.
Não olhara para ela ao esporear o animal. O coração de Keira continuava acelerado, mas correu na
direção oposta, à procura de Lily e Eve.
Mas Eve não voltara do seu encontro. Encontraram-na horas mais tarde, com o rosto ferido e as
roupas ensanguentadas. Passados alguns dias, Eve saltara dos rochedos para o mar, pondo fim à vida
e à sua vergonha.
Mesmo passado tanto tempo, Keira não conseguia pensar naquele dia sem se sentir esmagada pela
culpa, pelo desgosto e pela tristeza. O seu ardil de então, como o atual, independentemente de quanto
o achara inocente, tinha corrido desgraçadamente mal. Desta vez, dava por si a assinar coisas que
deviam ter sido assinadas ao tempo, a realizar deveres que deviam ter sido deixados para Lily e a
confrontar-se com outro problema nada insignificante – acabara por acreditar que o homem que Lily
acusara de roubar as joias da tia Althea era o homem errado. Estava absolutamente convencida de
que tinham enforcado um homem inocente. Se isso fosse verdade, temia pelo que Lily pudesse fazer
quando descobrisse a verdade. A morte de Eve tinha-a destroçado. Keira acreditava que saber que
tivera parte na morte de um homem inocente decerto destruiria a prima.
Uma pancada na porta arrancou-a dos seus pensamentos.
– Entre – disse.
– Desculpe, m’dame – disse Betts, a sua camareira, entrando no quarto. – Lençóis lavados.
– Obrigada – Keira abanou a cabeça e levantou-se, sorrindo para Betts. – O vestido que lhe dei
serviu? – perguntou distraidamente enquanto calçava as luvas.
Betts corou.
– O corpete fica um pouco largo, m’dame, mas a minha irmã é boa com a agulha e linha. Ficou com
inveja, na verdade. O vestido é lindo.
– Fico muito contente por lhe servir – retorquiu Keira. – Diga à sua irmã que pode ficar com o
próximo que não me sirva. – Piscou um olho a Betts e saiu.
No vestíbulo, Linford entregou-lhe o chapéu e uma echarpe leve.
– Obrigada, Linford – disse alegremente. – Acha que vai chover?
– O meu joelho diz que sim, madame – respondeu Linford, fazendo uma profunda vénia.
– Excelente! Sabe Deus como precisamos. – Pôs a touca na cabeça, apertou as fitas azuis por baixo
do queixo e dirigiu-se para a porta. Louis, um dos criados, abriu-a para ela.
– Oh, os doces…
– Estão na carruagem, madame – disse Louis.
Ela sorriu, agradecida.
– O que faria sem si, Louis? Obrigada.
Saiu para o exterior e cumprimentou Paul, o cocheiro principal.
– B’dia, m’dame – respondeu o homem alegremente.
– O joelho do Linford diz que vai chover, Paul – avisou-o.
– Nesse caso, ainda bem que tenho a Agnes – disse ele, apertando as rédeas. – Não conheci animal
melhor para a lama.
Keira soltou uma gargalhada e deixou que Louis a ajudasse a subir para a carruagem, que começou
a avançar por entre a linha de olmos que ladeavam a estrada, deixando para trás os campos verdes
onde pastavam vacas e ovelhas. Voltaram para outra estrada, onde os pássaros tinham feito ninho no
alto das ruínas de pedra de casas antigas. Passaram por campos onde trabalhavam rendeiros, tendo
todos parado para tirar o chapéu ou acenar à sua passagem.
Ao chegarem à aldeia de Hadley Green, apareceram repentinamente crianças junto à carruagem,
chamando por Keira. Quando a carruagem se deteve para permitir a passagem de um homem e da sua
vaca leiteira, Keira abriu o retículo, pegou em algumas moedas e atirou-as pela janela. As crianças
lançaram-se sobre as moedas, e um adolescente, talvez uma cabeça mais alto que os outros, foi o
primeiro a levantar-se, com uma mão fechada em volta de uma moeda.
– Henry Beedle, desta vez tens de partilhar com o teu irmão! – gritou-lhe quando começaram a
andar.
– Sim, m’dame – gritou Henry em resposta, sorrindo.
Oh, aquele havia de ser um conquistador. Acenou um adeus às crianças enquanto a carruagem se
afastava.
À porta do orfanato de St. Bartholomew esperava-a a irmã Rosens, a diretora. Keira gostava muito
dela. Era uma mulher de meia-idade, muito alta, e há muitos anos que dirigia St. Bartholomew. Era
evidente que se preocupava com os seus internos e se esforçava constantemente para lhes dar
melhores condições de vida. Na verdade, a irmã Rosens tinha apresentado Keira a Lucy Taft. E Keira
interessara-se de imediato por aquela menina de nove anos. A irmã Rosens explicara-lhe que Lucy
era filha de um farmacêutico que morrera de forma inglória, tendo pegado fogo a si próprio quando
preparava uma qualquer tintura combustível. A mãe da criança morrera pouco tempo depois (alguns
diziam que de desgosto, outros que vergada ao peso das dívidas), tendo os credores levado todos os
seus pertences e deixado Lucy no orfanato. Era uma menina doce e Keira achava que podia ser
treinada para ter uma posição melhor na vida. Keira e a irmã Rosens tinham acordado que Lucy
devia começar a ir a Ashwood, onde ela própria ensinaria Lucy para que um dia se tornasse
governanta ou tivesse qualquer outro cargo adequado. Assim que acabasse os atuais trabalhos
escolares, a menina juntar-se-ia a Keira em Ashwood.
– Como está, irmã Rosens? – saudou Keira alegremente ao descer da carruagem com a caixa de
doces na mão.
– Muito bem, Vossa Senhoria. Voltou a trazer doces! Estraga estas crianças – rematou, olhando para
a caixa.
Keira abriu a caixa e sorriu quando a irmã Rosens se inclinou para examinar o conteúdo da
mesma.
– Madame, torna muito difícil honrar um voto de austeridade – disse a freira.
– Austeridade é restringir-se a apenas um – observou Keira.
A irmã Rosens sorriu e escolheu delicadamente um doce para si.
– Obrigada – agradeceu.
– Como estão as crianças? – quis saber Keira enquanto entravam juntas pelo portão que precisava
de óleo. Havia muito a fazer pelo orfanato, tantas eram as reparações necessárias. Todo o dinheiro
do orfanato era gasto na alimentação e no vestuário das crianças. Não sobrava nada para reparações.
Era preciso reconstruir os cercados para o gado e o telhado da ala dos rapazes deixava entrar água.
Um incêndio na capela, dois anos antes, obrigara a que a missa de domingo passasse a realizar-se no
pátio, ou na sala de jantar, quando o clima se mostrava inclemente.
– Tão bem como seria de esperar – respondeu a irmã Rosens. – Esta semana trouxeram-nos três
irmãos. A mãe morreu ao dar à luz e o pai não tinha qualquer desejo de tomar conta deles.
– Meu Deus – espantou-se Keira. Aquelas crianças sofreram golpes terríveis demasiado cedo nas
suas vidas. Era a primeira vez que Keira apreciava realmente a sua vida de luxo na Irlanda. Até
então, tinha tomado tudo como garantido.
Sentiu-se subitamente agarrada por um pequeno par de braços lançado em volta das suas pernas.
– Lucy, querida, tem de ter cuidado – observou Keira, baixando-se para a abraçar.
– Desculpe – disse Lucy, voltando os brilhantes olhos azuis para a caixa. – O que trouxe para nós?
– Miss Taft, esqueceu-se dos bons modos? – perguntou a irmã Rosens com ar grave. – Por causa
disso, só pode comer o último doce da caixa.
Castigada, Lucy baixou a cabecita loira.
– Desculpe, m’dame – murmurou.
– Tome – disse Keira. – Leve-os aos outros. E certifique-se que as crianças pequenas recebem a
sua parte. E veja se sobra um para si.
– Sim, m’dame – respondeu Lucy, animando-se de novo. E foi-se embora com a caixa.
As outras crianças que brincavam no pátio reconheceram imediatamente a caixa e depressa
rodearam Lucy, ansiosas por um doce.
Keira e a irmã Rosens continuaram o seu passeio, atravessando os jardins de que as crianças
cuidavam e deixando para trás uma velha fonte em ruínas.
– Aos poucos, as senhoras da Sociedade de Caridade para com os Órfãos de St. Bartholomew
conseguiram convencer-me a realizar novamente a gala de verão de Ashwood este ano, irmã – disse
Keira. – Soube que não se realiza há vários anos.
– Deus misericordioso, é uma excelente notícia! – exclamou a irmã Rosens. – As crianças sempre
gostaram imenso da gala. Este ano temos vinte e quatro órfãos. Vão ficar deliciados!
– Com um pouco de sorte, podemos angariar fundos para reparar algumas coisas por aqui –
observou Keira.
– Deus queira – suspirou a religiosa. – Há tanto que fazer. Aqui, venha ver – chamou, detendo-se
para abrir uma porta. – Isto era um berçário, mas as infiltrações no teto tornaram impossível a sua
utilização.
Sentiram um forte cheiro a míldio quando entraram na sala. Num dos cantos tinham sido
empilhados vários brinquedos de maiores dimensões, provavelmente para armazenamento. Keira
reparou num cavalo de baloiço em madeira. Era de fabrico artesanal, com as patas empinadas e a
cabeça atirada para trás.
– É amoroso – notou, apontando o cavalo de baloiço com a cabeça.
A irmã Rosens também olhou para o brinquedo.
– É, não é? Mister Scott fez vários brinquedos para o orfanato. Acho que não voltou a haver um
artesão como ele.
– Foi feito por Mister Scott? – perguntou Keira, fixando o olhar no cavalo. Inclinou-se para ver
melhor, passando os dedos sobre a crina esculpida. – Quer dizer que o conheceu, irmã?
– Conheci.
– Que tipo de homem era ele? – perguntou Keira com curiosidade.
A irmã Rosens olhou para ela.
– Que tipo de homem? Um bom homem, madame.
Disse-o com tanta convicção que Keira ficou surpreendida.
– Mas era um ladrão.
– Foi acusado de o ser e condenado – concordou a irmã –, mas nunca lhe conheci esse lado. Só sei
que, tendo três filhos, arranjava tempo para fazer brinquedos para os nossos órfãos. Era um homem
bom e generoso. – Apontou para a porta.
Ao sair, Keira estava cheia de dúvidas acerca de Mr. Scott. Onde estariam as joias que fora
acusado de roubar?
Quatro

Num quarto por cima da Taberna Grousefeather, em Hadley Green, Declan O’Conner estava deitado
de costas sobre a cama, com um braço por baixo da cabeça, enquanto via Penny, a criada, procurar as
meias.
– Caramba, que foi que lhes fiz desta vez? – murmurou enquanto enfiava a camisa pela cabeça.
Declan observou como o tecido deslizava sobre o traseiro nu da rapariga.
– Qual é a pressa? – perguntou.
– Não lhe disse? O meu irmão Johnny chega hoje. Esteve quase um ano fora, milorde. Mal posso
esperar para o ver.
– Onde esteve? – perguntou Declan despreocupadamente.
– Nã’sei ao certo. Em Londres, acho eu. Escreveu uma carta para casa, a minha mãe pediu ao velho
vigário que a lesse e a carta dizia que o Johnny chegava hoje, na carruagem das duas da tarde. –
Encontrou uma meia, enrolou-a à pressa e enfiou o pé dentro da mesma, puxando para a esticar ao
comprimento da perna. Fez o mesmo com a outra e vestiu o vestido, insensível ao olhar com que
Declan lhe estudava o corpo. Quando acabou de se vestir, deu meia volta, afastou o cabelo loiro dos
olhos e saltou para cima da cama para o beijar. – Próxima quinta? – perguntou, saltando de novo para
fora da cama.
– Não perderia a oportunidade.
– Isso é conversa fiada, q’rido, e você sabe. Um dia há de ir atrás da tal condessa para se divertir
a sério, numa cama como deve ser. Ouvi dizer que é muito bonita.
O bom humor de Declan desvaneceu-se um pouco.
– Nem que fosse a última mulher do mundo – respondeu.
– Como quer que não me aflija, sendo um homem tão atraente? E um homem de um conde, ainda
por cima.
– Homem de um conde, não. Um conde – corrigiu ele.
Penny franziu o cenho.
– Se é um conde, porque tem de fazer o que lhe manda aquele senhor?
Declan sorriu. Penny personificava aquilo de que mais gostava nos comuns. Títulos, protocolo,
nada disso lhes importava.
– Eu não faço o que me manda – voltou a corrigir. – Estou a criar um cavalo para ele.
– Onde está a diferença? – perguntou Penny em tom jovial.
– Há uma diferença importante. A criação de cavalos é o meu passatempo, não a minha ocupação.
– Mmm. – Penny dirigiu-lhe um sorriso algo cético. – Muito bem! Vou-me embora. Veja se não se
atrasa, milorde. Mistress Cornish não gosta de ter os quartos ocupados durante muito tempo, não se
dê o caso de aparecer algum viajante.
– Não me demoro – garantiu Declan, ficando a ver Penny sair porta fora, apanhando o cabelo num
carrapito ao sair.
Declan demorou algum tempo a vestir-se, fazendo uma pausa para acabar o copo de cerveja que
começara a beber antes de Penny lhe ter metido a mão dentro das calças. Apertou a gravata, passou
os dedos pelo cabelo e calçou as botas hessianas. Deteve-se diante do espelho. Tinha uma sombra de
barba no rosto. E o cabelo precisava de ser cortado. Observou o seu rosto por um instante. Estava a
envelhecer. Às vezes, perguntava-se quanto tempo conseguiria viver assim, sempre de um lado para o
outro, sempre em busca de uma nova melhor raça. De modo bastante casual, agradava-lhe a ideia de
ter filhos. Achava que gostaria de ter um filho a quem pudesse mostrar o mundo.
Declan afastou-se do espelho e pegou no chapéu.
– Basta de sentimentalismos por hoje – murmurou para consigo. A verdade é que a ideia de
assentar o deixava invulgarmente ansioso. Era quase como se conseguisse sentir os grilhões
apertarem-se em volta dos tornozelos. Eireanne dizia que ele era como um velho ganso cego, sempre
às voltas de um lado para o outro. Sorriu ao pensar na irmã. Não podia ter irmã mais agradável.
Merecia um irmão melhor. Doía-lhe que a vida dela não tivesse corrido como sem dúvida esperara.
Saiu da Grousefeather com Eireanne no pensamento e meteu pela Rua Direita de Hadley Green.
Estava um dia quente e bastante soalheiro. Pensou que podia ir até Horsham e dar uma vista de olhos
ao ruão de que lhe tinham falado. Era muito rápido e ágil, dissera o velho.
Perdido em pensamentos acerca do ruão, Declan foi andando tão distraidamente que, quando uma
mulher gritou «Milorde Donnelly!», cometeu o erro de olhar na direção de quem o chamava. Mrs.
Ogle, um dos membros mais importante da sociedade de Hadley Green, o que queria dizer que era
rica, e uma conhecida mexeriqueira, apanhara-o desprevenido. Tinha o braço no ar e acenava-lhe
furiosamente.
– Deus me valha – murmurou Declan, pensando em fugir quando ela avançou para ele, evitando
hábil e rapidamente uma carroça cheia de barulhentas galinhas em gaiolas, uma enorme poça de lama
e um par de transeuntes na sua ânsia de chegar junto dele.
– Como está, milorde? – perguntou, quase sem fôlego, apertando o coração com uma mão. Usava
uma touca de renda, que as mulheres elegantes há muito evitavam, e um casaco Spencer abotoado até
ao pescoço.
– Estou bem, Mistress Ogle. Obrigado. A senhora está muito bem, se me permite. Um verdadeiro
retrato de saúde. E agora que me certifiquei disso, devo seguir o meu caminho. – E saudou-a com um
toque na aba do chapéu.
Mas Mrs. Ogle não se deixou bater pela sua tentativa de partida apressada.
– Por acaso teve oportunidade de estar presente na venda de cavalos de Ashwood? – perguntou
antes que ele tivesse tempo de se ir embora.
Não conseguia imaginar porque havia de interessar-lhe se lá estivera ou não e ergueu uma
sobrancelha de curiosidade.
– Desculpe?
– A condessa está a vender uma boa parte do seu gado. Todos falam nisso.
– Mistress Ogle, porque havia a senhora de preocupar-se com isso?
– Oh, não me preocupo. Garanto-lhe que não me preocupo – assegurou, soltando uma alegre
gargalhada enquanto olhava em volta. Inclinou-se subitamente para ele e sussurrou: – Sei de fonte
segura que a condessa é absolutamente descomprometida.
Disse-o como quem partilha uma notícia vital, como a chegada dos franceses a costas inglesas, ou
o príncipe herdeiro ter entornado a cerveja.
– Está a tentar arranjar-me casamento, Mistress Ogle?
– Bem – respondeu a mulher com uma curta gargalhada e uma mão formal sobre o colarinho alto –,
não digo que seja uma casamenteira, nada disso, milorde. Mas sou adepta de saber quem fica bem
com quem.
– Bom dia, Mistress Ogle – disse Declan, começando a afastar-se.
– Milorde, espere, por favor! Tenho novidades! – gritou atrás dele.
Declan ergueu um protesto aos céus antes de se voltar de novo para ela.
– A condessa anuiu a realizar a gala anual de verão. É uma tradição de longa data de Ashwood,
mas que foi descurada em anos recentes, quando a saúde do conde começou a deteriorar-se. Toda a
Hadley Green será convidada e pessoas muito influentes de Londres.
Santo Deus, não haveria limite para a arrogância de Keira? Uma gala?
– Concretamente, em que é isso relevante para mim?
– É uma coisa de grande importância, milorde – respondeu Mrs. Ogle. – Atrevo-me a dizer que de
maior importância do que qualquer coisa a que possa ter assistido em Londres.
– Ridículo.
– Pois, ainda assim é uma excelente oportunidade para conviver com a Qualidade enquanto estiver
entre nós – continuou Mrs. Ogle. – É possível que um homem solteiro tenha interesse em saber que
estarão presentes várias debutantes. E a condessa, naturalmente, que, segundo qualquer que seja a
medida, é a mais desejável de todas.
Declan desejou que a dita condessa voltasse para a Irlanda, onde era o seu lugar.
– Nesse caso, é uma tremenda oportunidade para os solteiros – disse. – Estou certo que
aproveitarão ao máximo. Mas se é uma verdadeira casamenteira, madame, decerto terá reparado que
raramente cortejo mulheres descomprometidas, pois percebi que existe geralmente um motivo válido
para que não estejam comprometidas. Prefiro relações com mulheres que já se tenham fartado dos
seus maridos e procurem apenas um pouco de diversão.
Mrs. Ogle pareceu perder o ar. E depois corou.
– Oh! Esta agora, senhor!
Declan afastou-se antes que ela pudesse dizer mais alguma coisa. Especialmente sobre ela. Keira
Hannigan era demasiado mimada, teimosa, e sobretudo demasiado perigosa.
Também era bonita, com uns brilhantes olhos verdes e um sorriso matreiro capaz de vergar a
vontade do homem mais forte. Talvez ainda pior, sabia muito bem a atração que exercia sobre os
homens. Sim, a rapariga era demasiado ousada. Fazer-se passar pela prima! Era o bastante para valer
o seu desdém, mas fora a tarde em Ballynaheath, oito anos antes, que o fizera desprezá-la.
Uma tarde que continuava a persegui-lo. Ela enervava-o; fazia-o desejá-la de uma forma que não
estava habituado a desejar ninguém. Tinha-a deixado no meio do prado, sentindo os seus olhos
verdes deixarem uma cicatriz indelével na sua mente. A suavidade do seu corpo e a avidez do seu
beijo haviam-se combinado para o deixar incuravelmente excitado.
Sentia vergonha do seu desejo. Era um jovem de apenas vinte e três anos e cedera-lhe tão
rapidamente como se não tivesse domínio do seu corpo. Apercebendo-se do que estava a fazer, fugira
dela, deixando Fiddler correr livremente no regresso a Ballynaheath.
Keira Hannigan tinha dezasseis anos. O que fizera ele? Que loucura o invadira para se permitir
tais liberdades com ela?
Quando entrara no recinto dos cavalos, nesse dia, Mr. Cousins, um cavalheiro que acompanhara a
irmã ao piquenique, abordara-o.
– Graças a Deus que chega, milorde – dissera. – Por acaso viu a Keira Hannigan, a Eve
O’Shaugnessy ou a Lily Boudine?
– Porque pergunta? – retorquira Declan rudemente, entregando as rédeas ao moço de estrebaria.
Não sentia qualquer desejo de pensar nela.
– Ausentaram-se há algum tempo – explicara Mr. Cousins. – Foram-se embora.
Afinal, as amigas dela tinham estado por perto. Provavelmente à espreita. Troçara dele, o que
deixara Declan ainda mais irritado.
– Não as vi – mentira. – Mas não voltarão muito alegres.
– Milorde?
Declan não respondera e afastara-se.
Não soube que Lily e Keira voltaram para o piquenique meia hora depois, mas sem Eve, porque
estivera com Aileen, uma criada de cozinha, no quarto desta. Só soube que acontecera algo terrível e
horrivelmente errado várias horas depois, quando uma Keira Hannigan em lágrimas contou o plano
de mandarem Eve ao encontro de Mr. Brendan, admitindo ter visto Declan no prado junto ao rio no
decurso da sua história.
Tomou conhecimento da constituição de um grupo de busca e leu a censura no olhar de Mr. Cousins
e dos homens que o rodeavam, sendo evidente que tinham ouvido dizer que Declan negara ter visto
qualquer das raparigas.
Percebeu o que estavam a pensar – que podia ter salvado Eve se não tivesse estado com Keira, se
tivesse mantido as mãos longe de uma rapariga de dezasseis anos, tendo depois tentado esconder
esse facto.
Os homens encontraram Eve nessa noite. Não disse palavra, mas a sua aparência falava por ela.
Tinha o vestido rasgado e sujo de sangue e lama. O cabelo estava despenteado e sujo e os seus
olhos… Por Deus, aqueles olhos tinham-no perseguido todos aqueles anos. Tão vazios. Tão
desesperadamente vazios, como se lhe tivessem sugado a vida por completo.
A busca de Mr. Brendan revelou-se inútil. Em Galway especulou-se que tivesse fugido num navio
para a América.
Alguns dias mais tarde, Eve escapuliu-se da casa da sua família, subiu até ao alto dos rochedos de
Mohar e saltou. Declan estava entre os primeiros a dar com o seu corpo desfeito na costa onde o mar
a deitara.
Partiu da Irlanda pouco depois.
Keira e Lily foram mandadas para o Instituto Villa Amiels, em Lucerna, durante um ano.
Curiosamente, as gentes de Galway acabaram por culpar Declan pela desgraça de Eve. As
raparigas, diziam, eram demasiado jovens e tolas para saberem o que faziam, mas Declan devia ter
antecipado problemas quando encontrara Keira sozinha. Tinham razão. E ele vivia todos os dias com
o peso da morte de Eve. Já fazia parte de si e era um peso que o atormentava nos momentos mais
inesperados, uma faca que se cravava no seu íntimo. Declan acreditava que merecia a censura dos
outros.
Lily Boudine, no entanto, não acreditava que fosse digno de censura. Tinha ficado do seu lado mais
que uma vez, defendendo-o. Dizia que ele não tinha como saber. E insistia que era um homem bom. A
culpa, dizia Lily, era exclusivamente sua e de Keira.
Declan não era um homem bom, mas nunca esquecera a fervorosa insistência de Lily em contrário.
Declan não sabia se Keira lamentava o que acontecera. Continuava a mostrar-se tão alegre como
sempre e a ser bastante estimada na Irlanda.
Alguns anos antes, na festa de Natal, Keira apanhara Declan sozinho e tentara falar com ele sobre o
que acontecera no prado naquele dia. Estava linda, demasiado até, especialmente sob a luz fraca do
inverno, e os seus olhos pareciam brilhar ainda mais que o normal.
– Se eu soubesse – murmurara. – Se pudesse adivinhar, nunca teria… dito o que disse.
– Quer dizer que nunca me teria mentido? – respondera Declan numa voz sem entoação.
Ela franzira o cenho.
– Não tenho palavras para dizer o quanto lamento.
Tentou explicar o quanto lamentava, atrapalhando-se um pouco na tentativa de encontrar as
palavras certas. Declan não dissera nada enquanto ela falava. Quando terminou, sugeriu-lhe
simplesmente que não voltasse a falar com ele. E continuara a evitá-la, considerando-a o centro da
sua vergonha e desgosto.
Até àquele dia. Até ela reaparecer subitamente na sua vida, fazendo-se passar pela prima.
Sim, iria pagar bem caro quando o seu embuste fosse descoberto, e decerto que seria, porque Keira
também era descuidada. Como julgaria que a Inglaterra olharia para ela, nada menos que uma
católica irlandesa, depois de roubar a identidade de uma condessa? Pensariam que o fizera por
motivos criminais, se não por um qualquer desígnio político obscuro, dada a luta dos católicos pela
emancipação da Grã-Bretanha.
O melhor que tinha a fazer era manter-se afastado daquele fiasco e dos bonitos mas demoníacos
olhos da rapariga.
Cinco

Keira estava a tomar chá sozinha, depois de voltar do orfanato, o que era coisa rara devido à sua
agenda social. Mas sentia-se grata pela possibilidade de pensar no que a irmã Rosens tinha dito
sobre Mr. Scott. Lembrou-se do pequeno cavalo de baloiço, tão bem talhado. Keira pousou
subitamente o chá e levantou-se. Um criado abriu instantaneamente a porta e Keira saiu da sala,
dirigindo-se para a sala de música.
Fora uma mera coincidência que levara Keira a questionar a versão que Lily contara dos eventos e
que ela tão bem conhecia. Tinha encontrado uma carta escrita pela tia Althea para a sua mãe, que
nunca chegara a enviar, em que dizia que a sua vida com o conde era de infelicidade e que procurava
diversões. Keira não dera grande importância ao assunto. Não era segredo que os casamentos por
fortuna eram frequentemente infelizes.
Se não tivesse começado a fingir, e talvez a acreditar, que era uma princesa nesse castelo que era
Ashwood, e que por isso merecia um piano, talvez nunca se tivesse questionado.
Keira estava em Ashwood há pouco mais de um mês quando se lembrou do piano. Era uma ótima
pianista graças à insistência da mãe para que tivesse aulas, que isso melhoraria a sua vida. Minha
querida, nenhum homem no seu perfeito juízo se proporá pela sua língua impertinente, por isso
terá de ser pelos seus méritos. Outra vez.
Keira achara estranho que numa casa tão grande como Ashwood não existisse um piano e inquirira
Mr. Fish a esse respeito.
– Não sei que lhe diga, madame. Não temos piano.
– Temos, sim – corrigira Mrs. Thorpe, a governanta. – Lady Ashwood guardou-o no sótão depois
do Incidente.
«O Incidente.» Era assim que os habitantes de Hadley Green se referiam à infeliz partida de Mr.
Scott. Keira tinha a sensação de que tudo o que se passava em Ashwood tinha ocorrido Antes do
Incidente ou Depois do Incidente.
Perante os olhares de curiosidade de Mr. Fish e de Keira, Mrs. Thorpe acrescentara:
– Ela comprou-o para si, milady. Não se recorda?
– Oh, ah… sim! Acho que me recordo…
– Calculo que se lembrará quando o vir – continuara Mrs. Thorpe. – É tão bonito, vido diretamente
de Itália. Mas, assim que se foi embora, deixou de conseguir olhar para ele, tantas saudades suas
tinha, e mandou guardá-lo no sótão.
Não era curioso que Lily nunca tivesse revelado qualquer preferência pelo piano ou talento para o
instrumento? Tantas tinham sido as horas passadas por Keira ao piano e Lily nunca lhe dissera que
tinham trazido um de Itália de propósito para si.
Em seguida, Mr. Fish dera instruções a Linford, o mordomo, para que levasse o piano para a sala
de música para que a condessa o pudesse ver, e tocar, se ainda lhe agradasse.
O piano era totalmente do agrado de Keira; um instrumento que não se parecia com nada que
tivesse visto. Era feito de castanho e tinham gravado pautas de música na madeira. Keira precisou
apenas de olhar para ele, passar os dedos pelas teclas de marfim e ouvir os acordes para perceber
que era uma preciosidade. Mr. Fish tratou de chamar um homem de Londres para o afinar.
Keira deliciou-se a tocar para seu próprio prazer durante uma semana, até que, certa tarde, uma
rajada de vento dispersou a pauta que estava a usar. Na pressa para apanhar as folhas, derrubou o
banco. Reparou em algo estranho quando se baixou para o endireitar. Havia uma comprida marca na
parte de baixo do mesmo. Sentou-se no chão para o examinar melhor. Calculou que fosse a marca do
artesão, mas percebeu que se tratava de uma inscrição quando o observou melhor. Estava gravada ao
longo do bordo interior do banco. Sois a canção que toca no meu coração. Para A., o meu amor, a
minha vida, a única nota no meu coração. Sempre seu, JS.
– Valha-me Deus – disse Keira, correndo os dedos sobre a inscrição. Achara aquilo uma doçura.
Mas depois recordara-se de que Mr. Joseph Scott era um mestre entalhador e que devia ter sido ele
quem gravara a inscrição.
Quem seria A?
A resposta surgiu tão subitamente que Keira perdeu o fôlego e teve de se sentar.
– Não pode ser – murmurou, espantada, olhando de novo para a inscrição. Era a sua falecida tia, a
condessa de Ashwood. Althea Kent.
A descoberta era um completo escândalo e a imaginação de Keira incendiou-se com a ideia de que
o homem que roubara as joias de Lady Ashwood tinha feito aquele banco com uma inscrição tão
bela.
– Não se sente bem, madame?
Uma criada dera com ela sentada no chão e Keira magoou um dedo na pressa de se levantar e
endireitar o banco.
– Sinto-me muito bem, obrigada! – exclamara demasiado depressa. – Estava… apenas a ver, só
isso. Já é hora de almoço?
– Não, m’dame. Ainda são onze horas.
– Oh! – A criada tinha começado a limpar o pó e Keira não se atrevia a olhar de novo para o banco
com ela por perto. Por isso, arrumou-o debaixo do piano e saiu da sala.
Nesse dia, fechou a porta atrás de si e dirigiu-se para o piano. Ajoelhou-se e voltou-o para ver de
novo a inscrição. Elegantemente talhada, lindíssima, e a expressão de um sentimento adorável. Mr.
Scott amara a tia Althea. Keira endireitou o banco, sentou-se e começou a tocar.
Era uma coisa mínima e tonta, na verdade, mas a inscrição, ou melhor, o crime, não fazia sentido
para Keira. Um homem não faz um banco em cujas pernas curvas grava vinhas, folhas e flores,
acrescentando-lhes uma inscrição tão bonita em que professa o seu amor por uma mulher para depois
lhe roubar as joias.
Desejou que Althea ainda vivesse para poder perguntar-lhe, mas ela morrera muito jovem e de
forma trágica. Keira estivera com a tia poucas vezes, mas as recordações que tinha dela eram
agradáveis. Achava que a tia Althea seria a mais bonita das quatro irmãs, particularmente de espírito.
Era tão afetuosa e tão viva. A principal recordação de Keira era de que a tia Althea adorava a vida.
Recordava-se de como ela tentara incitar a mãe de Keira para que fizesse uma visita a Espanha. A
mãe de Keira nem queria pensar nisso, sendo Molly e Mabe tão novas. O que vais fazer, Lenora?
Viver a tua vida fechada nestas quatro paredes? São um confinamento! Keira não sabia o
significado de confinamento, mas tinha a certeza de que devia ser algo muito mau para que a tia
Althea não quisesse saber.
Teria Althea amado Mr. Scott? Claro que sim; aceitara a sua oferta do banco. E ele tinha-a
roubado? Não fazia sentido.
Keira estava tão convencida disso que conseguiu arranjar coragem na tarde seguinte, quando ela e
Mrs. Thorpe reviam as atividades da semana em Ashwood. Com o seu colarinho apertado até ao
queixo e o cabelo apanhado num carrapito, Mrs. Thorpe era a imagem da eficiência e não gostava de
conversas ociosas. Mas Keira levantou-se quando a governanta se preparava para sair da sala e
disse:
– Diga-me uma coisa, Mistress Thorpe.
– Sim, madame.
– Acha que a minha tia… Sabe se ela… – Não havia uma forma delicada de o dizer e Keira sentiu
a impaciência da governanta enquanto procurava as palavras. – A minha tia e Mister Scott… Sabe?
Mrs. Thorpe piscou os grandes e protuberantes olhos castanhos.
– Queira desculpar-me – insistiu Keira, começando a reunir os papéis com o rosto presa de um
incêndio.
– Não, minha senhora. Eu é que lhe peço desculpa. Mas não ouvia dizer o nome dele há quinze
anos.
– Não devia ter dito nada. Mas eu era tão nova, e…
– É verdade, era uma menina.
– Mas tenho pensado nisso desde então.
Mrs. Thorpe observou-a atentamente por um instante.
– Não tenho conhecimento pessoal dos factos – disse cuidadosamente –, mas penso que ela o
achava agradável, uma vez que o recomendou com grande entusiasmo a Lady Horncastle. Ele tinha
concluído uma secção da escada de Lady Horncastle quando… quando encontrou o seu destino. Acho
que a escada nunca foi terminada.
– Lady Horncastle – repetiu Keira pensativamente. – De Rochfield? – perguntou, pensando na
velha mansão das terras baixas.
– Essa mesmo – confirmou Mrs. Thorpe. – Era amiga de Sua Senhoria. Não se lembra dela?
– Só… muito vagamente – respondeu Keira timidamente.
– Seria de esperar que se recordasse dela. Sempre lhe trouxe doces. Era tão gulosa, na altura! A
Irlanda deve tê-la curado – notou a governanta, não sem um certo tom de reprovação. Toda a
população de Ashwood se sentia desgostosa por Keira não gostar de doces, tendo recusado
educadamente a tarte de maçã que lhe tinham apresentado ao jantar, noites antes. Aparentemente,
Keira tinha magoado a cozinheira.
Keira queria conversar com Lady Horncastle, mas as duas não tinham sido apresentadas e não
sabia ao certo o que fazer. Por sorte, surgiu uma oportunidade.
As senhoras da Sociedade de Caridade para com os Órfãos de St. Bartholomew (ou, como
gostavam de ser chamadas, a Sociedade) voltaram a visitá-la por causa da gala de verão. Hadley
Green inteira estava em pulgas por causa do evento e, apesar de ainda faltarem dois meses, Keira
recebia regularmente bilhetes da Sociedade com sugestões para a mesma. Deus era testemunha de
que não pretendia organizar um evento como o que as senhoras da Sociedade lhe descreviam, mas,
mais uma vez, Keira não podia fazer nada. O orfanato estava claramente necessitado de fundos.
Pensar que todas aquelas crianças precisavam do nome de Lily para que o evento se realizasse!
Keira calculava que Lily já teria chegado a Ashwood por ocasião do evento. Disse para consigo que
era a oportunidade perfeita. Ela planearia o evento e Lily ficaria com todos os créditos.
Nessa tarde particularmente solarenga tinha recebido a visita de Mrs. Felicity Morton, Mrs.
Robina Ogle e Miss Daria Babcock, todas com vestidos dourados semelhantes, possivelmente
comprados na única loja adequada de Hadley Green. Tinham ido em delegação para discutir a
possibilidade de se realizar uma corrida de cavalos durante a gala. Linford serviu chá e biscoitos no
terraço, à volta do qual bailavam jacintos, enchendo o ar com o cheiro dos seus rebentos
perfumados.
Keira ouviu atentamente a sugestão das senhoras de que se realizasse uma corrida que seria a joia
da pequena coroa da gala. Achavam que viria gente de longe pelo prazer de apostar nos cavalos e
que angariariam o dobro do esperado apenas com os jogos e com uma corrida de papagaios de
papel.
– Gosto muito de cavalos – revelou Keira, provocando enorme entusiasmo entre as senhoras. – Na
verdade, participei em algumas.
Aquela afirmação provocou um entusiasmo ainda maior.
– Vossa Senhoria tem de participar – chilreou Miss Babcock.
– Seria um prazer, mas, infelizmente, estou a meio de um processo de redução do número dos
nossos cavalos até ao inverno. – Não era minimamente verdade, mas achou que soaria plausível. Não
precisava de hastear a bandeira das dívidas sobre Ashwood. – Temo não ter cavalos suficientes para
uma tarde de corridas.
– Oh, mas Lady Horncastle tem imensos – notou Mrs. Ogle. – Tive a oportunidade de a encontrar
na loja de vestidos de Mistress Langley, onde me disse que recebera três cavalos ainda este mês.
– Três! – exclamou Mrs. Morton. – Porquê tantos? Sabe?
– São para o seu filho, Lorde Horncastle – explicou Miss Babcock, inclinando-se para diante com
a graça e a ânsia de uma jovem com algo muito interessante para contar.
Daria Babcock era bonita, mas Keira suspeitava que ela tinha plena consciência disso. Para ser
sincera, recordava-a dela própria nesse sentido. Não valia a pena fingir que não era verdade apenas
para manter as aparências. As flores no salão e os gatinhos que deambulavam por Ashwood – todos
prendas de admiradores seus – eram testemunho disso mesmo.
– Lorde Horncastle acha Rochfield bastante entediante e ameaçou mudar-se para a cidade –
revelou Daria. – A mãe não sabe viver sem ele, e procura diverti-lo com uma esposa, se conseguir
arranjar-lhe uma.
Mrs. Morton, que Keira considerava uma mulher perspicaz, cravou os pequenos olhos
semicerrados em Miss Babcock.
– E como sabe disso, Daria?
Miss Babcock encolheu timidamente os ombros e olhou para o prato dos biscoitos por sob a aba
do chapéu de verão.
– Ouvi dizer – respondeu.
– Talvez possa fazer-lhe uma visita, madame – sugeriu Mrs. Ogle a Keira. – Afinal, é por uma boa
causa.
Keira quase arquejou de deleite. Tinham acabado de lhe dar o motivo perfeito para fazer uma
visita a Lady Horncastle.
– Tem razão! – exclamou. – Tenho de a visitar imediatamente. – Vou pedir a Mister Fish que lhe
envie um bilhete o mais depressa possível.
Mrs. Ogle sorriu.
– Recorda-me imenso a sua tia, Lady Ashwood – observou. – Tem um sorriso adorável e olhos
brincalhões, tal como ela. E é muito generosa com o seu tempo e influência! Ela era um exemplo de
generosidade, sabia?
Keira sorriu orgulhosamente.
Mas o sorriso de Mrs. Ogle desvaneceu-se quando Linford serviu uma segunda chávena de chá.
– Lamento imenso o que aconteceu – disse.
– Obrigada – respondeu Keira. – Tenho pensado muito nela ultimamente. – Pousou a chávena por
um instante. – Na verdade, dei por mim a pensar no que terá acontecido às joias Ashwood, uma vez
que nunca foram recuperadas.
– Oh, aposto que foram vendidas por uma fortuna – alvitrou Mrs. Morton.
– Parece estranho que não tenham sido encontradas, depois de o ladrão ter sido levado à justiça –
continuou Keira cuidadosamente.
– É muito estranho e muito trágico – concordou Mrs. Ogle, misturando mel no chá. – Nunca
esquecerei o choque e a tristeza que foi saber que Lady Ashwood tinha posto fim à própria vida.
A surpresa de Keira foi tal que bateu com a colher na chávena, provocando um sobressalto nas
outras três mulheres.
– Como disse? – perguntou, encarando Mrs. Ogle.
Mrs. Ogle arregalou os olhos.
– A senhora… não sabiam, madame? Ela afogou-se…
– Acidentalmente – completou Keira.
De repente, Mrs. Morton inclinou-se para diante e pousou a mão sobre o braço de Keira.
– Pensámos que soubesse – disse gentilmente. – Não era segredo que Lady Ashwood se sentia
terrivelmente infeliz com o conde.
– Sim, mas… suicídio? – insistiu Keira.
Mrs. Morton olhou fixamente para Mrs. Ogle.
– Havia o bilhete – disse simplesmente.
– Um bilhete? Que bilhete?
– Encontraram um bilhete deixado por ela, em que confessava que tinha acabado com a própria
vida.
Espantada, Keira não conseguiu mais do que olhar para as mulheres.
– Que mais dizia? – conseguiu perguntar.
– Isso é algo que não lhe sei dizer – respondeu Mrs. Ogle. – Creio que só o falecido conde poderia
responder a isso. – Pegou na chávena de chá e sorveu um gole.
Keira pensou em Lily, a pobre e querida Lily, que ficara tão perturbada com a notícia. Sentir-se-ia
culpada.
De repente, Keira mal podia esperar para falar com Lady Horncastle.
Seis

O jovem Franklin Girard, Lorde Horncastle, era exatamente o tipo de homem que Declan gostava de
ter diante de si a uma mesa de jogo. Era jovem e precipitado e só recentemente tinha tomado posse
da sua herança. Como tantos outros jovens, era demasiado impaciente para jogos com apostas
elevadas, como depressa se comprovou nessa noite. Depois de perder bastante dinheiro, recusou-se a
parar de jogar, convencido, como tantas vezes acontece aos jovens, de que, se tivesse mais uma
oportunidade, mais uma mão, acabaria por recuperar tudo e não teria de dizer à sua mãe que tinha o
secreto vício do jogo.
Por regra, tais jogos nunca acabavam bem para homens como Horncastle.
Declan fora a Rochfield para ver o cavalo que tinha ganho ao jovem Horncastle. Se havia coisa
que se podia dizer do West Sussex é que era um bonito lugar da zona rural de Inglaterra. A paisagem
era verde e luxuriante, pontilhada por vacas e ovelhas. Ao aproximar-se de Rochfield, Declan
reparou num cavalo que pastava sozinho num prado com erva que lhe dava pelos joelhos. Fez-lhe
lembrar o prado da Irlanda onde Keira o encontrara naquele dia fatídico. E, sempre que pensava
nesse dia, vinham-lhe à memória os olhos vazios de Eve.
Keira, pensou, zangado, e os seus desavergonhados esquemas.
Em Rochfield, um amuado Horncastle – que ainda não tinha aprendido a arte de perder bem –
estava encostado à vedação, a observar sombriamente como o mestre de estrebaria passeava dois
póneis Fell pretos em torno do recinto. Os póneis eram bons e sólidos animais de trabalho, e bons
saltadores, mas não eram particularmente velozes. Ainda assim, Declan fez questão de os observar.
– Só tem estes? – perguntou.
– Há algum problema com o par? – retorquiu Horncastle em tom impaciente.
– Tem mais? – insistiu Declan.
– Um pónei galês – respondeu Horncastle. – É a minha mãe que o tem neste momento.
Era possível transformar um pónei galês num bom corredor.
– Tenho de dar uma vista de olhos ao galês – declarou Declan.
– Mas o galês ainda agora chegou – protestou ansiosamente o mestre de estrebaria, afagando o
pescoço de um Fell.
– Ali vem ele. Pode ir vê-lo – disse Horncastle, indicando o pasto atrás do recinto dos cavalos
com um aceno de cabeça. – Despache-se, está bem?
Declan seguiu o olhar de Horncastle. Avistou três cavaleiros, duas senhoras e um moço de
estrebaria, que regressavam ao recinto a trote. Uma das senhoras montava um velho cavalo de carga,
que acompanhava o galês. O galês trotava em passo alto e com o pescoço levantado, obviamente a
debater-se com os arreios. Declan percebeu que o animal tinha linhas excelentes e gostou do seu
espírito.
Ouviu uma gargalhada melodiosa e familiar quando os cavaleiros se aproximaram do recinto e
ergueu o olhar do peito do cavalo para a amazona. Deus o livrasse. Devia ter percebido que só uma
mulher podia montar tão bem a cavalo.
Os olhos de Keira brilhavam como o seu sorriso ao dirigir-se para o recinto, tal como naquele dia,
oito anos antes, que graças a ela lhe voltara de novo à mente. Inclinou recatadamente a cabeça.
– Boas-tardes, milorde – saudou.
– Frankie, não me disse que tínhamos visitas – protestou a outra mulher. Declan voltou o olhar para
ela. Tinha pelo menos o dobro da idade de Keira e usava uma touca de renda apertada por baixo da
papada. As mulheres de Hadley Green tinham preferência exagerada por aquele tipo de toucas.
– Mãe, permita que lhe apresente Lorde Donnelly – disse Horncastle em tom aborrecido.
– Lorde Donnelly! – exclamou a mãe, olhando para Declan. – Oh! Lorde Donnelly – repetiu,
conseguindo descer do cavalo sem a ajuda do moço de estrebaria, que tinha corrido a ajudá-la. – É
um prazer conhecê-lo, milorde. Soube que estava por estas paragens. Arrendou Kitridge Lodge?
– É verdade.
– Céus, que modos os meus. Tenho o prazer de lhe apresentar Lady…
– Não é necessário – interrompeu Keira alegremente. – Já tive o prazer de conhecer Sua Senhoria.
– O prazer? – perguntou Declan.
Keira gargalhou como se ele tivesse dito uma piada inocente.
– Lorde Donnelly, sabe muito bem que todas as ocasiões em que nos encontramos são,
verdadeiramente, uma delícia.
– Concordo que são verdadeiramente qualquer coisa – concedeu Declan. – Mas delícia não é a
primeira coisa que me ocorre. – Irritantes era uma palavra mais adequada. Deus lhe valesse. Era
preciso desplante para se exibir como ela o fazia. Não tinha consciência. Ou só a descobria uma vez
os factos consumados.
Aproximou-se do galês e pousou-lhe a mão no pescoço. O animal dirigiu-lhe um olhar de
curiosidade.
– Posso ajudá-la a desmontar? – perguntou Declan. – Quero dar uma vista de olhos à sua montada.
– Não é necess…
Declan agarrou-a abruptamente pela cintura e fê-la descer do pónei.
– Obrigada – disse uma ofegante Keira, assim que se viu no chão.
– Talvez queira afastar-se – avisou Declan, dirigindo-se para a cabeça do animal. Enfiou os dedos
por baixo do beiço do pónei para lhe sentir os dentes e fez força para baixo, obrigando-o a abrir um
pouco a boca. O animal teria dois anos, uma boa idade para o treinar de novo. Declan afagou o nariz
do pónei e passou-lhe a mão pelo pescoço, descendo até à espádua e à cernelha. Agachou-se e correu
as duas mãos pela mão do animal, procurando anormalidades. O seu olhar foi atraído por um
movimento à sua direita, onde um par de pequenas botas de montar surgiu na sua visão periférica. –
Declan ergueu o olhar. – Afaste-se, por favor.
Keira deu um pequeno passo atrás.
– Ele foi bem tratado – observou Horncastle com impaciência.
– O que está Sua Senhoria a fazer? – perguntou Lady Horncastle atrás de Declan. – Porque está a
observar o pónei daquela maneira?
Declan tateou o lombo e os quadris do animal, verificando também as patas traseiras. O pónei
resfolegou e tentou sacudi-lo com a cauda.
– Quero montá-lo – anunciou Declan.
– Por amor de Deus – murmurou o jovem. – Wills, vá buscar uma sela. – O mestre de estrebaria
suspirou, resignado, sabia que estava prestes a perder um bom pónei.
– Não compreendo – disse Lady Horncastle.
– Por favor, mãe.
Declan meteu as mãos por baixo do animal e desapertou a cilha da sela de amazona usada por
Keira. Esta continuava junto dele, observando-o com curiosidade, ainda com a chibata na mão.
– Está a habituar-se às selas de amazona? – perguntou distraidamente enquanto tirava a sela ao
galês.
– Como? – perguntou Lady Horncastle. – Como disse, Lorde Donnelly?
– Lorde Donnelly está a brincar comigo – respondeu Keira alegremente quando o mestre de
estrebaria apareceu com a sela. Declan teve a sensação de que o homem estava prestes a chorar.
– Para onde pretende levar o meu cavalo? – murmurou Lady Horncastle atrás dele.
– Por amor de Deus, mãe, não é da sua conta…
– Não é da minha conta? – insurgiu-se a mulher mais velha. – É da minha conta, sim, jovem, porque
estes cavalos são meus!
Declan teve pena do jovem Horncastle. Envergonhar a mãe em frente de outro lorde era mais um
dos seus fracassos.
– O que foi que fez, Frankie?
Nem Declan conseguia resistir a ouvir a resposta de Horncastle àquela pergunta, pelo que olhou
por cima do ombro. Mas Horncastle tomou a mãe pelo braço e arrastou-a consigo, subindo o caminho
até aos estábulos, longe de Declan e de Keira, onde depois iniciaram uma discussão acesa.
– O que foi que fez, milorde? – perguntou Keira, dando-lhe um toque com a ponta da bota.
– Se fosse a si, teria cuidado, condessa. Parece estar em todo o lado. O que anda a tramar hoje?
Está a planear um baile a fingir para celebrar o seu título falso?
Ela franziu o cenho de reprovação e lançou um olhar sorrateiro ao mestre de estrebaria, que estava
muito mais preocupado com o pónei do que com ela.
– Eu selo-o e já pode levar o alazão para desbastar – sugeriu Declan ao mestre de estrebaria.
O homem fez uma festa no nariz do pónei galês e afastou-se relutantemente com o outro cavalo.
– Porquê o seu interesse neste animal? – perguntou Keira com curiosidade. – Lady Horncastle
acaba de prometer que me deixa montá-lo na corrida de caridade.
– A sério? Vim aqui num esforço legítimo, não para prolongar uma absurda personificação e
passear numa sela de amazona. Quando passou a usar sela de amazona?
– Quando vim para Inglaterra – respondeu ela. – E, se quer saber, estou aqui por uma boa causa.
– Não quero. – Declan colocou a sela sobre o dorso do galês. – Não tenho qualquer desejo de
saber. Definitivamente, não quero saber.
– Vim aqui para fins de caridade – continuou Keira teimosamente.
– Hmmm – respondeu ele, indiferente. – Admito que pode precisar de ajuda para ir para o céu.
– Suponho que seja um entendido na matéria – retorquiu ela, o que lhe valeu um olhar irado de
Declan.
Keira ergueu o sobrolho como se o desafiasse a contradizê-la.
– Por favor, preciso de conversar consigo – insistiu.
– Não. Continuo firme no meu desejo de não querer saber o que anda a tramar.
– E custa-me admitir que preciso da sua ajuda – acrescentou Keira, como se ele não tivesse dito
nada.
– Não – repetiu Declan com maior firmeza. – Não quero ouvir nem mais uma palavra.
– Lady Horncastle conheceu o amante da minha falecida tia – disse baixinho.
Declan lançou um suspiro para o alto.
– Não lhe pedi que não me dissesse?
– Mas não tenho mais ninguém com quem falar, Declan – insistiu Keira, aproximando-se dele sem
perder de vista os Horncastle.
– Pouco me importa – contrapôs Declan, concentrando-se de novo no animal.
– Com quem mais poderia falar?
– Oh, não faço ideia… Com o seu vigário? Com o seu deus?
– Sinceramente, Declan! Sabe muito bem que não posso fazer tal coisa! – respondeu, claramente
aborrecida.
– Valha-me Deus, rapariga…
– Não está a perceber. A minha tia afogou-se de propósito – disse em voz baixa.
Sempre achara Keira extremamente exasperante, mas nunca a considerara louca até àquele instante.
Perigosa e louca.
– Afaste-se, por favor – disse ele, avançando e fazendo-a recuar um passo. – Não quero saber da
sua louca imaginação.
– Não é imaginação – protestou Keira. – A minha tia matou-se. O amante dela foi enforcado por um
crime que não cometeu. Acho que, inadvertidamente, a Lily pode ter tido alguma coisa a ver com
isso, o que a vai deixar destroçada.
– Não volto a avisá-la – insistiu Declan. Mas Keira pousou delicadamente a mão no seu braço. Ele
olhou para a pequena mão enluvada e recordou-se de outra ocasião em que ela lhe tocara no braço.
Uma recordação que provocou nele excitação. E raiva. Muita raiva. Não podia permitir que o
arrastasse para outro desastre. – Não…
– Lamento – disse ela baixinho. – Lamento imenso. Quantas vezes terei de pedir desculpa?
Estava a falar de outro tempo e de outro lugar, de uma recordação que ele queria evitar.
– Estamos a falar do seu atual embuste – disse Declan bruscamente. – E não quero tomar parte no
mesmo.
– Julga que não sei que estraguei tudo? – continuou a rapariga, obstinadamente. – Mas estou a fazer
o melhor que posso, e se conseguir encontrar as joias…
– Joias! – troçou Declan. – Agora são joias?
– Joias, Declan – confirmou, olhando para os Horncastle. – A sério que nunca ouviu a história? –
perguntou, falando baixo e depressa. – Foram roubadas quando a Lily vivia aqui, era ela uma
rapariguinha, e foi o testemunho dela que condenou um pobre homem à forca. E estou convencida de
que ele era o amante da tia Althea e não o ladrão. E depois a tia Althea afogou-se…
– Nada disso me diz respeito – cortou Declan, tentando rodeá-la. Mas Keira não se moveu.
– Sei que deve pensar que estou a ser egoísta, mas dou-lhe a minha palavra de que não é verdade.
Gostaria de saber a verdade para a poder contar à Lily, para que ela não tivesse de a descobrir como
eu descobri.
Declan viu-se forçado a admitir que ninguém conseguia argumentar como ela. Com aqueles olhos
tão ansiosamente cravados nele, as faces muito rosadas… Colocou a mão sobre a dela e inclinou-se
para diante. Os olhos de Keira acenderam-se de esperança.
– Não – disse muito suavemente.
Ela soltou um soluço de infelicidade e libertou a mão com um puxão.
– Você é impossível!
Declan bufou.
– Diz o roto ao nu! O que sou é absolutamente racional. Tente concentrar-se no que lhe vou dizer,
Keira. Não a ajudo mais vez nenhuma. Não guardo os seus segredos, nem digo que não a vi ou
que…
– Continua a defender-se com esse terrível mal-entendido de há oito anos, quando eu tinha apenas
dezasseis!
– Não foi um mal-entendido, mas uma prevaricação da sua parte e não me interessa se tinha
dezasseis ou sessenta anos.
Foram ambos surpreendidos por um grito agudo de Lady Horncastle e, quando olharam na sua
direção, viram que a senhora descia o caminho a correr, ao seu encontro.
Keira olhou para Declan.
– Não sei porque estive a gastar o fôlego.
– Nem eu – concordou ele no preciso instante em que uma agitada Lady Horncastle chegava junto
deles.
– Lady Ashwood, peço que me desculpe e perdoe. – Levou a mão à garganta. – O meu filho acaba
de me dar uma notícia extremamente perturbadora! – continuou, sem fôlego, antes de olhar para
Declan. – Não pode levar o meu pónei, senhor! Não sei que espécie de acordo julga ter com o
Frankie, mas acabo de o receber e ainda esta manhã prometi a Lady Ashwood que o podia montar nas
corridas da gala de verão! Não vou faltar à minha palavra para honrar uma vergonhosa dívida do
meu filho!
– Mãe, não pode falar assim com Lorde Donnelly! – exclamou Horncastle.
– Madame, tem a minha simpatia e o meu mais profundo respeito – disse Declan. Enfiou o pé no
estribo, sorriu para Lady Horncastle e subiu para o dorso do pónei. – Sabe reconhecer cavalos de
qualidade. Tudo o que quero é montá-lo um pouco.
Esporeou abruptamente o pónei e este reagiu como Declan esperava. Saiu pela porta para o pasto,
vencendo-a num único salto elegante. Declan ouviu os gritos de Lady Horncastle enquanto ele e o
pónei se afastavam pelos pastos verdes, assustando algumas vacas que se tinham aproximado
demasiado da casa.
Sim, o pónei podia ser treinado para correr. Declan sentiu os músculos do animal distenderem-se
quando aumentou a passada, sem deixar de manter um ritmo suave. Seria capaz de correr um dia
inteiro se o deixassem. Declan susteve o pónei, fazendo-o trotar, para depois o levar a galopar mais
uma vez antes de dar meia volta e se dirigir de novo para a casa. O pónei resfolegou, atirou a cabeça
e ergueu a cauda quando entraram no recinto a trote, agradado com o passeio. Já no recinto, Declan
desmontou com elegância. Keira estava encostada à vedação, com os braços cruzados e um pé
apoiado na base da mesma. Dirigiu-lhe um olhar furioso. Lady Horncastle estava do outro lado da
vedação, apertando o coração com uma mão. Também ela tinha um brilho furioso no olhar.
– Pregou-me um susto enorme, senhor – censurou.
– Peço que me perdoe, madame, mas ensinaram-me que esta é a melhor maneira de avaliar a
capacidade de um cavalo.
– Ou a tolice de um homem, conforme os casos – observou Keira.
– Diz isso como se percebesse de tolos, Miss Han…
– Podia ter partido o pescoço! – gritou Lady Horncastle.
– Infelizmente, não foi o caso – suspirou Keira.
Como era possível que ela acreditasse que tinha o direito de ficar horrorizada com o seu
comportamento?
– Não, madame, não parti. Nem em sonhos pensaria abandonar Hadley Green sem saber qual será a
sua sorte – atirou, acreditando subitamente no que dizia.
Keira dirigiu-lhe um olhar ameaçador. Ele respondeu com um sorriso.
– O que quer dizer com a sorte de Lady Ashwood? – perguntou Lady Horncastle.
– Na corrida – respondeu Declan suavemente.
– Vai sair-se muito bem com aquele pónei – afirmou Lady Horncastle com grande autoridade.
Declan sorriu.
– Lamentavelmente, madame, ainda tenho de cobrar uma dívida justa ao seu filho. – Pegou na mão
da senhora e inclinou-se para ela. – As minhas desculpas pelo incómodo.
Lady Horncastle ficou visivelmente desarmada com aquela afirmação.
– Mas… E Lady Ashwood montará o quê? – gritou. – Se levar o cavalo, vai tirar o alimento das
bocas dos órfãos, milorde!
– De todo – apressou-se a responder Declan. - Se a senhora desejar montar o pónei, pode negociar
esse privilégio comigo.
– Oh, pelo amor de Deus – cortou Keira, irritada. – Não farei tal coisa.
– Como queira, madame – disse ele, levando a mão ao chapéu numa saudação. – Este serve – disse
a Horncastle. – Mandarei alguém buscá-lo. Agora que já ocupei demasiado do vosso tempo, desejo-
vos um bom dia, senhoras.
Sorriu enquanto se dirigia do recinto para o estábulo, mas foi um sorriso ligeiro. Não saberia dizer
se por ter ganho um esplêndido pónei galês com uma mão bafejada pela sorte ou por Keira Hannigan
estar tão zangada com ele.
Sete

Os nervos de Lady Horncastle melhoraram imenso depois de se servir de uma generosa dose de
vinho na sua sala desordenada. Keira nunca tinha visto tanta bugiganga e quinquilharia numa só casa
e em circunstâncias normais teria achado divertido estar sentada ao lado de um bocejante leão de
porcelana, mas ainda se sentia bastante agitada por causa do comportamento de Declan.
Lorde Horncastle tinha subido as escadas numa fúria, após o que ouviram os seus passos no piso
de cima pelo que lhes pareceu uma eternidade antes que tornasse a descer, vestido para sair. Keira
desejou também poder calcar o chão com os seus passos.
– Um momento, menino! – gritou Lady Horncastle.
Keira ouviu um sonoro lamento antes de Horncastle aparecer à porta do pequeno salão.
Lady Horncastle pôs-se de pé e disse gravemente do alto da sua pequena figura:
– Sabe que Lady Ashwood se ofereceu, muito generosamente, para realizar uma corrida de cavalos
na sua gala de verão, cujas receitas serão doadas ao orfanato?
O olhar do filho desviou-se para Keira.
– É, realmente, muito generosa – observou secamente. Tinha perdido a cor nas faces antes rosadas
e olhava para a mãe com a fervilhante indignação da juventude. Mas teve o cuidado de não dizer
mais nada, optando por sair apressadamente de casa.
Ainda assim, Lady Horncastle não tinha vontade de deixar as coisas por ali. Dirigiu-se para a
janela para o ver partir.
– Veja-se a forma irresponsável como monta. Meu Deus, aquele rapaz esgota-me a paciência!
Keira sentiu-se ligeiramente desconfortável, talvez por se terem passado apenas alguns anos desde
que fora a sair, indignada, da sala dos pais.
– Decerto se lembra da criança adorável que ele era, Lady Ashwood. Costumava acompanhar-me
quando visitava a sua tia. Andava atrás de si como um cachorrinho, não era? Estava completamente
apaixonado por si.
Aquela coisa petulante tinha andado atrás de Lily? Keira forçou um sorriso.
– Devo confessar que era tão nova que mal me recordo, Lady Horncastle.
– Sabe, a Althea estava decidida a casar os dois, um dia. – Riu-se como uma menina perante essa
ideia enquanto Keira, por graça divina, conseguia não se engasgar com o chá.
– Ah, se o pai do Frankie não tivesse engolido aquele último pedaço de peixe – continuou Lady
Horncastle tristemente. – Bastou uma pequenina espinha para arrancar a vida ao meu marido, e
roubar ao meu filho a mão firme que precisava que o orientasse nestes últimos anos. – Limpou os
olhos com a ponta do guardanapo. – Eu tentei. A sério, sabe Deus que tentei. Mas o meu filho precisa
de uma mão de homem, não acha?
Keira pensou em Loman Maloney, o homem que o pai escolhera para ela. Loman seria o
companheiro perfeito para Frankie, sendo tão calmo e razoável. Demasiado calmo para o gosto dela.
– Deixa-se influenciar com demasiada facilidade por cavalheiros como Donnelly – continuou Lady
Horncastle.
Keira soltou um suspiro.
– O Donnelly é bastante impertinente, não é?
– E imprudente – apressou-se Lady Horncastle a acrescentar.
– Excessivamente – concordou Keira. – Parece não se importar com mais ninguém além dele
próprio. Não gosto nada dele – acrescentou em tom petulante.
– Pois, com certeza que não. É demasiado refinada para alguém assim. Merece muito melhor
calibre de conhecimentos, Lady Ashwood.
Sem dúvida que sim. Merecia… Não queria pensar no que merecia e pousou subitamente a
chávena do chá, desejosa de mudar de assunto.
– Tem uma escada muito interessante. Bastante parecida com a de Ashwood.
– Teria sido igualzinha à de Ashwood, ainda que numa escala menor, se não tem ocorrido o
Incidente. – Lady Horncastle voltou a cabeça para olhar para a escada. Subia em curva desde um dos
lados da entrada até um patamar com corrimão na extremidade oposta, onde deveria ir dar a outra
metade das escadas gémeas. Parecia algo desequilibrada a um olhar perspicaz, mas Keira achou que
a entrada de Rochfield era tão escura e estreita que isso passaria despercebido ao observador
normal. – Infelizmente, não voltou a haver um entalhador com um talento semelhante ao de Mister
Scott.
– Recorda-se dele? – perguntou Keira.
– Oh, claro que sim! – respondeu Lady Horncastle, recostando-se de novo na cadeira, com as mãos
sobre o colo. – Era um homem muito atraente. Tinha uns belos olhos castanhos e cabelo loiro-claro –
continuou, compondo a touca de renda.
– Parece-lhe… ser possível que a minha tia lhe tivesse estima?
A pergunta fez Lady Horncastle voltar a cabeça para ela num repente.
– Estima? Mas por que motivo pergunta uma coisa dessas?
Keira sentiu as faces a ferver.
– Eu, ah… porque acho que me lembro vagamente…
– Com todo o respeito, madame, não pode ter quaisquer memórias significativas. Era muito jovem
nessa altura. Althea podia ser infeliz no casamento com o conde, mas não era adúltera e devia ter
vergonha de fazer uma tal sugestão.
– Não quis dizer…
– Vou ser muito franca – continuou Lady Horncastle. – Mister Scott era um homem bastante
enganador. Tinha um grande talento de mãos e era bastante encantador com as palavras. A Althea não
devia ter confiado nele, mas, por outro lado, ela confiava bastante nos homens em geral.
– Ela confiava nele? – apressou-se a perguntar Keira, aproveitando aquela informação.
– Se confiava nele? Eu nunca disse tal coisa! Dificilmente imagino o que ela pensava dele. Quis
apenas dizer que o achava muito bom no seu trabalho, e que ele era realmente um bom profissional,
mas talvez saiba melhor do que ninguém como ele a enganou, no final.
Num instante, Keira era demasiado jovem para se lembrar. No seguinte, esperava que ela se
lembrasse muito bem.
– Sim – concordou Keira, fixando o olhar no tapete por um instante, não fosse Lady Horncastle ver
a dúvida nos seus olhos. – É evidente que era muito talentoso. A escada de Ashwood é magnífica.
Acho que Mister Scott deve ter passado muito tempo em Ashwood para a construir.
Os olhos de Lady Horncastle semicerraram-se astutamente.
– O que está a querer dizer, ao certo?
– Absolutamente nada – apressou-se a dizer Keira, fingindo inocência. – Estou simplesmente
curiosa, Lady Horncastle. Tenho tentado reconstituir as minhas memórias mais antigas.
Lady Horncastle pareceu sossegar um pouco ao ouvir tais palavras e permitiu-se mesmo um
sorriso.
– Não vale a pena – referiu. – Mister Scott morreu há muito tempo, tal como a sua adorável tia. Paz
à sua alma.
– Tem razão, claro – concordou Keira, algo acanhada. Bebeu um gole de chá. Pensou interrogar
Lady Horncastle sobre a morte da tia, mas não sabia ao certo como fazê-lo. – Calculo que a família
de Mister Scott ainda viva em Hadley Green – atirou de modo casual.
– Com certeza que não. Como poderiam ficar aqui, depois daquele horrível acontecimento?
Aquelas pobres crianças. Não tinham trabalho, ninguém que os sustentasse, e claro que nenhuma
pessoa decente queria o seu nome associado ao deles. Parece muito curiosa para um assunto tão
antigo e desagradável, Lady Ashwood.
– Não – respondeu Keira docemente. – É como lhe disse. Estou a tentar reconstituir algumas
memórias vagas. Tenho pensado na minha tia e na sua trágica morte…
– Não faça isso – cortou abruptamente Lady Horncastle. – Só a vai perturbar. Já lhe mostrei este
quadro? – perguntou Lady Horncastle, levantando-se subitamente e atravessando a sala. – Foi pintado
por um artista jovem, mas já bastante famoso.
Keira olhou para o quadro de uma paisagem pedestre que pendia de uma parede.
– É Rochfield – disse Lady Horncastle e Keira ficou a ouvi-la falar das origens do quadro
enquanto pensava que mais poderia perguntar-lhe acerca de Mr. Scott. Decerto que ninguém do
círculo de amigos da tia tivera qualquer lidação com ele. Mesmo em Ashwood, o único que falava
com ele ocasionalmente era Linford.
Linford! Keira ficou espantada por não ter pensado nisso antes! Claro que Linford teria lidado com
ele.
Com a mente em Linford, Keira deixou Rochfield pouco depois, conduzindo um cabriolé puxado
por um único cavalo. Mr. Fish fora contra, avisando-a de todos os tipos de perigos que poderiam
recair sobre a sua ilustre pessoa quando viajasse sozinha. Keira não se deixara intimidar
minimamente pelos seus avisos. Não suportava restrições aos seus movimentos, adorava a sua
liberdade e sentia-se perfeitamente à vontade no cabriolé. Gostava de imaginar que se sentiria
perfeitamente à vontade em qualquer lugar do mundo. A verdade é que adorava experiências novas e
diferentes.
Mas a sua distração era evidente pelo que só viu o cavaleiro quando já estava quase em cima dele.
O cavalo saltou da estrada, projetando o pobre homem. Keira susteve o cavalo e espreitou sobre a
traseira do cabriolé. O homem tinha-se posto de pé e estava a sacudir as calças.
– Peço imensa desculpa – disse-lhe. – Sente-se bem?
– Não estou ferido – respondeu o homem, agarrando o cavalo pela brida e voltando a montar com
facilidade. Incitou o cavalo com as rédeas e aproximou-se para a ver melhor. – Desculpe o que lhe
digo, madame, mas deve ter cuidado ao andar pelas estradas estreitas do campo.
– Tem toda a razão – afirmou ela, sorrindo.
– Talvez devesse ter um condutor – sugeriu o homem, também ele sorrindo ligeiramente.
– Um condutor? – repetiu Keira. E se ele era atraente, com o seu cabelo loiro e olhos azuis. – Só
porque não o vi, isso não significa que não seja capaz de conduzir uma simples carruagem, senhor.
– Podia discordar, mas a verdade é que faço questão de nunca discutir com senhoras atraentes.
Keira corou.
– Que outras regras tem relativamente a senhoras? – perguntou, sorrindo.
Ele soltou uma gargalhada.
– É uma informação que dificilmente posso revelar, a menos que conheça a senhora.
Ainda a sorrir, Keira examinou-o. Nunca dissera o seu nome; nunca dissera em voz alta que era
Lily Boudine. Tinha a sensação de que estava sempre alguém por perto para o dizer por ela e, se não
o dissesse, era como se de alguma forma não estivesse a mentir.
– Nunca digo o meu nome a um cavalheiro que não conheço – respondeu.
– Então permita que me apresente. Sou Mister Benedict Sibley.
– Boa tarde, Mister Sibley – saudou, pegando de novo nas rédeas.
– Queira desculpar, madame, mas decerto não pretende partir sem me dizer o seu nome. A mim, um
viajante ferido.
Keira soltou uma gargalhada.
– Está ferido?
– Lamentavelmente, não – respondeu Sibley, sorrindo.
Ela devolveu o sorriso.
– Tenha um bom dia, Mister Sibley – disse antes de arrancar, sem deixar de olhar para trás.
Ele continuava junto à estrada, a vê-la partir. Riu-se para consigo e tocou o cavalo com o chicote,
fazendo-o andar mais depressa.

Havia uma montanha de correspondência à sua espera à chegada a Ashwood e Keira depressa
esqueceu Mr. Sibley. Tinha tanto que fazer. Nunca imaginara que gerir uma propriedade desse tanto
trabalho! Havia ementas para planear e uma agenda social a seguir. Era preciso decidir que
elementos do pessoal fariam o quê e quanto devia ser gasto em artigos para a casa. Não admirava
que o seu pai estivesse sempre fechado com o seu secretário.
Keira estaria perdida sem Mr. Fish. Linford anunciou a chegada deste mais sobre o final da tarde.
Keira estava ocupada a arranjar mais um ramo de flores de estufa que entretanto chegara, cortesia de
um certo Mr. Anders, um solteirão com perda de cabelo e dedos ossudos. Linford depositou uma
pilha de cartas junto das outras que ainda tinha de ler.
– Mister Fish e outro cavalheiro, madame – anunciou.
– Graças a Deus, uma distração de tanta correspondência – disse Keira alegremente. – Quem é o
outro cavalheiro, Linford?
– Não sei dizer, madame. Creio que é um solicitador.
– Um solicitador? Não gosto muito de solicitadores. Querem sempre alguma coisa, como garantias
contra a propriedade ou dinheiro para o pagamento de serviços prestados muito antes da minha
chegada. – Sorriu e entregou o vaso com as flores a Linford.
O mordomo pegou nele e dirigiu-se para a porta.
– Linford… espere – pediu Keira, alcançando a porta. Não havia tempo como o presente e ela
nunca fora de andar com rodeios em volta de um assunto que lhe interessasse. – Tenho pensado que
talvez se recorde de Mister Scott.
O velho mordomo olhou para ela com o mais completo pasmo.
– Como disse?
– Mister Scott – insistiu Keira. – O homem que fez a escada.
Linford apertou de imediato os lábios e o seu rosto vermelhusco tornou-se mais sombrio.
– Quase não me lembro de nada, mas tenho muita curiosidade em saber mais sobre ele. Esperava
que me pudesse contar alguma coisa.
– Agora, madame? – perguntou o mordomo, olhando para a porta. – Mister Fish…
– Por favor, Linford. Só demora um minuto.
Linford desviou de novo o olhar para ela, com os lábios tão apertados que quase parecia terem
desaparecido.
– Não sei ao certo o que lhe diga – começou, devagar. – Era um homem decente.
– Acha que ele era culpado?
– Não me compete a mim julgar. – Parecia terrivelmente desconfortável. – Já posso mandar entrar
Mister Fish?
– Sim, por favor – respondeu Keira, sorrindo. – Obrigada.
O velho mordomo não lhe diria mais nada e Keira teve a impressão de que mais ninguém diria,
porque o que quer que tivesse acontecido a Mr. Scott, ela – ou melhor, Lily – tinha-o enviado para a
forca. O que poderiam dizer sobre Mr. Scott à pessoa que consideravam a sua executora? Que era um
homem bom, decente e inocente que Lily mandara mais cedo para a cova?
Declan, aquele maldito recalcitrante. Ele era o único que a podia ajudar a chegar ao âmago da
questão.
Mas naquele instante tinha um solicitador para conhecer.
No grande escritório de Ashwood, com o seu teto alto e cortinas de veludo, Keira endireitou os
ombros no seu novo vestido de musselina branca com uma faixa rosa. Tinha o cabelo apanhado com
uma fita rosa a condizer e usava um colar de pérolas ao pescoço. Mr. Fish entrou primeiro. Keira
ficou terrivelmente surpreendida ao ver o cavalheiro que o acompanhava. Era Mr. Sibley.
Sentiu um sorriso formar-se nos lábios enquanto avançava, de mão estendida.
– Como está, Mister Sibley? – cumprimentou, oferecendo-lhe a mão.
– Já se conhecem? – surpreendeu-se Mr. Fish.
– Conhecemo-nos por acaso – respondeu Keira.
– A condessa desmontou-me do meu cavalo – acrescentou Mr. Sibley, inclinando-se para a mão
que ela lhe estendia. Mas tinha os olhos postos em Keira.
Mr. Fish pareceu horrorizado com aquela admissão e Keira não evitou um sorriso.
– Ele garantiu-me que estava perfeitamente bem, Mister Fish.
– Lady Ashwood, é um enorme prazer conhecê-la formalmente – disse Sibley galantemente. –
Suspeitei que fosse a senhora quem conduzia a carruagem. Mas permita que lhe diga que os rumores
quanto à sua beleza não lhe fazem justiça.
Keira já tivera demasiados pretendentes para se deixar arrebatar por aquele tipo de galantarias.
– Pergunto-me se as suas palavras seriam tão amáveis caso se tivesse magoado – observou,
apontando para o sofá junto à lareira. – Peço-lhe que me desculpe.
– Não é necessário – apressou-se a dizer Mr. Sibley.
Keira não pôde deixar de reparar que os olhos dele a devoravam. Os dois cavalheiros esperaram
que ela se sentasse antes de levantarem as abas dos casacos e fazerem o mesmo, de frente para ela. A
gatinha que Mr. Green oferecera a Keira, e que esta batizara com o nome de Blanca, passou por entre
as pernas de Mr. Fish e foi esfregar-se numa bota de Mr. Sibley. Os dois homens ignoraram-na.
Linford estava junto deles, preparado para servir o chá. Keira fez-lhe sinal para que começasse.
– Veio da cidade, senhor? – perguntou a Mr. Sibley.
– É verdade. – Não conseguia afastar os olhos dela. Tinha um sorriso fácil e caloroso e o seu olhar
deteve-se no peito dela.
– Veio da cidade de propósito para falar comigo? – insistiu Keira, aparentando recato.
– Lamento não ter vindo mais cedo – respondeu Sibley. – A verdade é que vim para discutir um
assunto importante. A minha firma foi contratada pelo conde Eberlin.
– O conde…?
– O conde Eberlin. É um conde dinamarquês com ligações a Inglaterra.
– E o que tem o conde Eberlin a ver com Ashwood?
– O conde possui grandes propriedades na Dinamarca. No entanto, não é partidário de Napoleão e,
dada a incerteza no continente e o receio de que a Inglaterra vá para a guerra com a França, gostaria
de adquirir propriedades aqui, não chegue a altura de ter de abandonar a Dinamarca… por motivos
políticos. – Disse aquilo de uma maneira que fez Keira pensar que o assunto era mais grave do que
fazia parecer.
– Ele não pode adquirir Ashwood – retorqui Keira, com uma gargalhada.
– Com certeza que não. O conde adquiriu Tiber Park – disse Mr. Sibley. – Como decerto sabe, faz
fronteira com Ashwood a norte.
– Tiber Park! – exclamou Keira. Conhecia muito bem a propriedade. Era um dos seus lugares
preferidos para andar a cavalo. – Fico muito feliz por saber que alguém ficou com aquela pobre e
velha casa. É amorosa e é uma tragédia que esteja vazia. Está a ficar em ruínas.
– O conde Eberlin pretende iniciar o restauro dentro de duas semanas.
– Oh, isso são muito boas notícias – observou Keira alegremente. – Pode garantir a Sua Senhoria
que sou totalmente a favor do restauro. – Keira recostou-se, muito satisfeita consigo. Quanto mais
não fosse, podiam contar com a boa vizinhança de Ashwood.
Mas, quando desviou o sorriso para Mr. Fish, Keira notou que este olhava fixamente para Mr.
Sibley.
– Veio aqui para falar do restauro de Tiber Park? – perguntou secamente.
– E não só – respondeu Mr. Sibley, sorrindo para Keira. – A natureza da minha visita, madame,
prende-se com o facto de no processo de aquisição de Tiber Park o conde ter tomado conhecimento
da existência de algumas dúvidas quanto à verdadeira fronteira entre Ashwood e Tiber Park. Tem a
ver com uma vinculação caducada.
– O que caducou? – perguntou a jovem, incerta. Keira sabia o que eram vinculações, ou a prática
de cativar propriedades em participações ou fundos familiares para que as gerações futuras
mantivessem terras e seus rendimentos ao longo de sucessivas gerações. Era o que sucedia com a sua
casa na Irlanda, com a sua família a beneficiar dos rendimentos da vinculação, mas não sendo livre
para vender a propriedade, uma vez que os seus antepassados a tinham legado aos seus herdeiros.
Mr. Sibley tirou um documento do bolso do casaco. Desapertou o fio de couro que o mantinha
dobrado e estendeu-o sobre a mesa.
– As minhas desculpas por chamar a sua delicada atenção para este assunto, Lady Ashwood. Não é
o género de coisas com que se deseje sobrecarregar uma senhora, mas como é a única herdeira viva,
tenho de o fazer.
– Oh, Mister Sibley. Primeiro, permita que o desengane da noção de que sou muito delicada para
ouvir o que tem para dizer – retorquiu Keira com um leve sorriso. – Continue, por favor.
– Permita que resuma a questão. Parece que cem acres do domínio original de Tiber Park foram
oferecidos como prenda de casamento à filha do dono original da propriedade. Que casou com um
antepassado de Ashwood. Entende o que estou a dizer?
– Entendo, sim. Continue.
– A escritura e os ganhos dessa área continuaram a ser seus no casamento, ficando vinculados aos
seus herdeiros varões. O falecido conde de Ashwood, seu descendente, foi muito cuidadoso ao
estender o seu nome e herança a quaisquer herdeiras que lhe sobrevivessem, não se desse o caso de
morrer sem herdeiros homens. Mas esqueceu-se de vincular esses cem acres a uma mulher.
– Quer isso dizer…? – perguntou Keira, sentindo uma ligeira pontada de pânico no coração.
– Quer isso dizer que os cem acres ficaram desvinculados após a sua morte e que falta uma
cláusula adicional à vinculação original. Deste modo, como esses eram originalmente propriedade de
Tiber Park, Lorde Eberlin pretende pedir que a posse das terras seja incluída na sua propriedade.
Keira ficou estupefacta. Sabia perfeitamente a que terras se referia Mr. Sibley. Eram as mais
rentáveis da locação de Ashwood, as únicas que tinham produzido rendimentos constantes nos
últimos tempos. A falta de dinheiro vivo era tal que ela temia que a propriedade ficasse em ruínas
sem esses cem acres. Não podia passar esse problema a Lily, a somar às dúvidas sobre Mr. Scott e a
tia Althea. Por Deus, prometera cuidar de Ashwood, não destruí-la. O que Mr. Sibley dizia era muito
grave e se tivesse alguma dúvida a esse respeito bastaria olhar para o rosto pálido de Mr. Fish para
que a mesma se dissipasse.
– Posso perguntar-lhe se percebeu? – insistiu Mr. Sibley, como se ela fosse uma pateta.
– Percebi perfeitamente, Mister Sibley – respondeu Keira docemente, apesar da dificuldade para
dominar o seu temperamento irlandês. De repente, suspeitou que o «homem horrível» por detrás da
tentativa de desalojar Hannah Hough do seu pedaço de terra fértil era o conde dinamarquês. – No
entanto… devo discordar. Se a propriedade foi oferecida como presente de casamento a um
antepassado de Ashwood, ela pertence a Ashwood.
Ele dirigiu-lhe um sorriso paciente.
– Concordo que é uma interpretação possível – admitiu. – Mas efetuei uma investigação profunda e
acredito que também existe validade na teoria do conde. E vim a Hadley Green para continuar essa
investigação recorrendo aos registos paroquiais.
Keira levantou-se subitamente.
– Nesse caso, teremos de aguardar notícias suas. – Sorriu enquanto Mr. Fish e Mr. Sibley se
levantavam.
Como era mais alto que Keira, o olhar de Mr. Sibley percorreu-a de cima a baixo.
– Foi um prazer conhecê-la.
– Oh, o prazer foi meu – respondeu a jovem com um sorriso.
Sibley ficou visivelmente agradado. Olhou para Mr. Fish.
– Um bom dia para si – saudou, para depois sair da sala.
Keira voltou-se para o seu agente assim que ele saiu.
– Aquilo quer dizer o que eu penso? – perguntou.
– Creio que sim.
– Santo Deus – suspirou a rapariga. – O moinho, Mister Fish. Temos de ter o moinho a funcionar
muito em breve, se existir pelo menos a mínima possibilidade de perdermos aquelas terras.
– A reconstrução já começou – sossegou-a Fish.
– Temos de o empatar de alguma forma – sugeriu Keira. – Pelo menos até encontrarmos um
solicitador que perceba destas coisas – acrescentou.
– Já comecei a procurar – informou Mr. Fish. – Mas como o empatamos?
– Deixe isso comigo – respondeu ela. Se havia coisa para que tinha talento era para persuadir
cavalheiros a fazerem o que queria. – Só precisamos de um pouco de tempo, Mister Fish. Isto não
pode ser verdade.
Desejou que Mr. Fish mostrasse um pouco mais de certeza.
Oito

Mrs. Ogle ia dar uma super festa.


Declan não tinha qualquer intenção de comparecer no serão organizado por aquela velha metediça
e pouco ligara ao convite que ela lhe enviara. Mas depois encontrara Keira em Hadley Green. Estava
acompanhada de alguns elegantes… Juntava homens à sua volta como fitas para o cabelo, escolhendo
entre eles, descartando alguns e mantendo outros, e mudando frequentemente.
Na verdade, não passava de algo pequeno e ridículo e Declan sentiu-se insatisfeito consigo por
deixar que ela o perturbasse daquela maneira. Tinha saído bem-disposto da Taberna Grousefeather e
quase colidira com Keira em frente ao armazém de secos Clark’s. Ela usava um vestido castanho com
guarnição verde, que ele percebeu ser um excelente complemento para os verdes olhos irlandeses da
rapariga, aqueles malditos e belos olhos expressivos, tão travessos e cheios de vida. Ela sorriu
alegremente ao vê-lo, apesar dos últimos encontros de ambos. Afinal, Keira não era de se deixar
desanimar por alguns desentendimentos.
– Dia duit – disse, saudando-o em irlandês.
– Madame. O que a traz à aldeia? Há alguma vaga numa qualquer casa que pretenda preencher?
– Que divertido – respondeu ela.
Declan olhou para o homem que a acompanhava.
– Oh! – fez ela como se acabasse de lembrar-se da presença do cavalheiro. – Permita que lhe
apresente Mister Sibley. Mister Sibley, este é Lorde Donnelly. – Voltou-se para Declan e
acrescentou: – Mister Sibley veio de Londres.
Como se Declan quisesse saber.
– Mister Snibley – saudou secamente.
– Sibley, milorde – respondeu o outro com igual secura. – É um prazer conhecê-lo. Ouvi falar
muito bem de si.
– A sério? – perguntou Declan, dirigindo um olhar acusador a Keira.
Ela devolveu o olhar.
– A Mistress Ogle – explicou. – Ficou muito satisfeita por o ter convidado para o jantar que vai
oferecer. Mas eu disse-lhe que era provável que não comparecesse, pois prefere os cavalos às
pessoas. Conhece o ditado: diz-me com quem andas, dir-te-ei quem és.
Fora aquilo, aquela pequena observação ridícula e disparatada que lhe eriçara o pelo das costas.
Ela agia como se ele estivesse de alguma forma errado.
– Pelo contrário – retorquiu. – Gostaria muito de apreciar o seu sempre maior círculo de
conhecimentos.
Ela não ficou minimamente envergonhada com a observação. O seu rosto abriu-se num sorriso
largo.
– É uma ótima notícia para Mistress Ogle, porque agora pode contar com a nata de Hadley Green à
sua mesa.
– Eu não iria tão longe – contrariou Declan, deitando-lhe um olhar intencional.
– Então, milorde? É uma excelente companhia à mesa, por mais que os outros possam dizer – disse
ela, piscando-lhe o olho de forma matreira.
– Aguardamos a sua presença.
– Acredite que o prazer será meu – atirou Declan.
Keira tivera a audácia de sorrir como se ele a divertisse.
– Vamos, Mister Sibley? Mister Fish está à nossa espera.
– Ia sugerir o mesmo – disse o cavalheiro, estendendo o braço para que ela o tomasse. – Milorde.
– Mister Snivley.
– Sibley.
– Queira desculpar – disse Declan, fazendo uma vénia com os dedos entrelaçados atrás das costas
e recuando, permitindo que os dois passassem. Observou o passo ondulante de Keira, a forma como
caminhava ao lado do outro homem.
Matutou naquele encontro casual durante todo o caminho até Kitridge Lodge. Quando chegou, o seu
bom humor tinha diminuído consideravelmente. Chamou o seu homem para todo o serviço, Mr.
Noakes, pediu-lhe que entregasse a sua resposta afirmativa e o outro partiu de imediato para casa de
Mrs. Ogle.
Na noite marcada, no entanto, lamentou ter dito que comparecia. De repente, não lhe ocorria nada
pior do que Mrs. Ogle a tentar juntá-lo com uma das rústicas jovens de Hadley Green, todas atiradas
para a alta sociedade como vacas para um pasto. Já a estava a ouvir. Está na altura de casar,
milorde. Ou, uma das suas preferidas: Precisa de um herdeiro. Como se fosse um touro largado no
meio das vacas.
Há dez anos que ouvia a mesma coisa, mas não estava preparado para casar ou para ter um
herdeiro. Mas ali estava ele, vestido com fato formal, de colete e gravata brancos, preparado para
suportar o que só poderia ser um serão interminável. Tudo porque Keira Hannigan o irritara uma vez
mais.
Quando chegou, a pretensa condessa ainda não tinha aparecido, mas parecia que o resto de Hadley
Green estava ali. Os convidados amontoavam-se na sala de jantar sobrelotada. Alguém assassinava
um piano do outro lado da sala e as senhoras que procuravam observar os convidados ao mesmo
tempo que exibiam os seus adornos pioravam tudo ao obrigarem os cavalheiros a esmagar-se de
encontro aos móveis para que pudessem passar nas deambulações pelo aposento.
Declan mal tinha provado o vinho quando foi obrigado a conhecer três jovens solteiras. Suspirou.
E elas sorriram, prontas para a obrigatória conversa de circunstância, porque ele era um perfeito
cavalheiro. E ele gostava de mulheres.
Das três, destacava-se Daria Babcock, uma jovem bonita e elegante, de olhos castanho-escuros e
cabelo loiro. Era a mais intrigante de todas, simplesmente porque não parecia tremer de timidez, nem
tão acanhada que não conseguisse ouvir-lhe a voz.
– Soube que arrendou Kitridge Lodge – disse ela depois das habituais trivialidades acerca do
clima estival.
– Sim?
Ela sorriu timidamente.
– Há muito pouco com que manter as gentes de Hadley Green devidamente ocupadas, milorde.
Todos os dias nos levantamos desejosos de que alguém arrende uma propriedade ou venda um
cavalo, apenas para termos motivo de conversa à hora do chá.
Não evitou um sorriso perante a franqueza da jovem.
– É lamentável que não tenham nada melhor com que ocupar o chá.
– Oh, acho que ficaria surpreendido – respondeu ela com um sorriso tímido.
Talvez ficasse. Aproximou-se mais.
– Surpreenda-me, então.
Mas foi nesse preciso momento que Keira fez a sua entrada triunfal. Um súbito murmúrio percorreu
os presentes e Miss Babcock, distraída, voltou o pescoço para a porta e disse, ansiosa, num tom
cheio de jovem reverência:
– Julgo que a condessa chegou.
Se a pluma branca que se erguia acima das cabeças dos presentes pertencia a Keira, sem dúvida
que ela tinha chegado.
– Ora aí está alguém que vos pode surpreender e dar tema de conversa mais que suficiente para o
chá – observou Declan secamente.
– Claro que sim – apressou-se a concordar Miss Babcock – Todos a têm em elevada consideração.
É, realmente, muito generosa. Tem grande vontade de melhorar Ashwood e as circunstâncias dos
pobres órfãos de Saint Bartholomew.
Declan quase se engasgou com um segundo gole de vinho.
– Ela quer salvar os órfãos? – perguntou em tom jovial. – Geralmente, quer salvar-se a si própria.
– Desculpe?
– Era uma piada – desculpou-se Declan, sorrindo. – Estou a impedi-la de a ir cumprimentar.
Queira desculpar-me, Miss Babcock. – E afastou-se antes que ela pudesse fazer algo para o impedir.
Declan bebeu o resto do vinho e fez sinal ao criado para que o servisse de novo. Foi apanhado por
Mrs. Morton, que, naturalmente, tinha uma sobrinha solteira que a visitaria no final do mês. Enquanto
Mrs. Morton tagarelava acerca das excelentes qualidades da sobrinha, Declan avistou Keira. Teve de
admitir que parecia imenso uma condessa, capaz de rivalizar com alguns rebentos da aristocracia de
Londres. Resplandecia num vestido de seda branca com guarnição prateada. Na cabeça tinha uma
tiara etérea enfeitada com uma pluma incrivelmente branca que contrastava com o seu cabelo escuro.
Ao peito tinha um grande pregador de diamantes e esmeraldas que refletia a luz como uma pequena
estrela. Passeou pela sala, cumprimentando conhecidos com um sorriso deslumbrante, as suas
gargalhadas flutuando acima das conversas. Estava absolutamente encantadora. Sempre o fora.
A maioria dos homens presentes parecia gravitar à sua volta, admirando-a abertamente e
disputando a sua atenção. Com a sua aparência, e com o que todos os presentes calculavam ser a
fortuna que possuía, era a favorita de todos.
Keira não parecia minimamente reticente. Pôde ouvir a sua voz clara enquanto tagarelava sabe
Deus sobre o quê. Sentiu-se verdadeiramente espantado. Como podia ela pensar que não seria
descoberta antes do regresso de Lily?
Aquilo era ridículo. Não devia ter ido ao jantar. Só estava a exasperar-se. Ainda assim, colocou-se
no caminho de Keira. Os olhos da rapariga brilharam de satisfação quando o viu, como se gostasse
de o enervar, e curvou-se numa vénia cortês que lhe deu uma ótima vista do seu decote.
– Milorde – disse, erguendo a cabeça para ele.
Declan estendeu a mão para a ajudar a endireitar-se e sentiu o aroma do perfume que ela usava.
Foi imediatamente transportado para uma tarde quente e soalheira num prado da Irlanda.
– Pensei que não viria – disse ela retirando a mão, permitindo que os dedos raspassem a palma da
dele.
– Disse-lhe que viria.
– Sim, é verdade – admitiu Keira, com um encolher de ombros descuidado. – Mas parece que faz
tudo para me contrariar. – Ergueu uma sobrancelha perfeita numa interrogação muda.
– Não é de todo verdade – garantiu ele, percorrendo-a com o olhar. – Não pensei em si um instante
sequer.
Keira pestanejou e abriu mais o sorriso.
– A sério?
– A sério – respondeu Declan, inclinando-se ligeiramente para ela. – Miss Babcock contou-me
que, de repente, se interessa por órfãos. Qual é a sua intenção? Fazer deles o seu exército quando as
autoridades forem bater à sua porta?
– As crianças são adoráveis – respondeu Keira, atrevida. – Até o senhor se interessaria pela
caridade se as visse. E estou em crer que me expliquei muito bem. Deve confiar que estou a fazer o
que é correto, para bem da Lily.
– Confiar? Confiar não é a primeira palavra que me ocorre quando penso em si, rapariga –
respondeu ele.
– Aha. Está a ver? – Sorriu-lhe. – Sempre pensa em mim.
– Penso que não vai gostar de passar muitos anos numa prisão inglesa – contrapôs Declan, sorrindo
ele também.
– É muita amabilidade sua. Também penso em si, Declan. Acho que sente inveja.
– Inveja? – perguntou ele, incrédulo.
– Sim, inveja. Sente inveja por me terem em boa conta, e por estar a fazer o bem pela minha
querida prima Lily, o que é mais do que faz por... – Conteve-se subitamente e calou-se.
Declan observou-a mais de perto.
– Por quem? – perguntou Declan, apesar de saber que ela se referia a Eireanne.
– Não importa.
– Não, Keira. Por quem? – insistiu.
– Lady Ashwood? Peço desculpa por interromper – disse Mrs. Ogle, surgindo subitamente ao lado
de Declan –, mas Mister Patterson, primo de Mistress Morton, veio de muito longe…
– Sim, claro… – disse Keira, dirigindo um sorriso travesso a Declan. – Lorde Donnelly.
Ele inclinou a cabeça e ficou a vê-la afastar-se antes de ir em busca de mais um copo de vinho.
O vinho correu livremente, e durante muito mais tempo do que é costume num jantar, e Declan
começou a tornar-se familiar aos criados que circulavam por entre as duas dúzias de convidados.
Segundo lhe pareceu ouvir, havia um problema na cozinha.
– A Robina contratou uma cozinheira de Londres – comentou uma senhora corpulenta ao seu
acompanhante. – Disse que tinha cozinhado para Lorde Townsend. Mas ainda mal acabou a sopa.
Declan soltou um suspiro e bebeu mais vinho. Foi apresentado a mais duas jovens, uma das quais
com um peito impressionante. O vinho começou a subir-lhe à cabeça e fê-lo desculpar-se, dizendo
que precisava de apanhar ar. Foi até à varanda, perguntando-se se não teria bebido vinho suficiente
para encher uma das suas botas.
Infelizmente, a varanda não estava vazia. Keira estava lá, rodeada por um pequeno grupo de
admiradores. Não conseguiu ouvir o que dizia, mas ela falava com grande animação, acompanhando
a sua história com graciosos gestos de mãos. O seu pequeno grupo, compostos por três cavalheiros e
duas senhoras, bebia cada uma das suas palavras, rindo alegremente.
Como uma nuvem, o riso dela flutuava diretamente sobre a cabeça de Declan. Que não ficaria
minimamente surpreendido se essa nuvem se abrisse e chovesse sobre ele. Contemplou-a do outro
lado da varanda, insuportavelmente distraído por ela. Irritava-o. Nada voltara a ser o mesmo em
County Galway desde o que acontecera a Eve, mas Keira continuara com a sua vida como se nada se
tivesse passado. O seu encanto e a sua aparência eram um bilhete para um mundo que o tinha
censurado. Não que isso o preocupasse; frequentava a sociedade de Londres e isso chegava-lhe
perfeitamente. Mas irritava-o, mesmo assim. Não estava certo.
Keira voltou a cabeça na sua direção e viu-o. Declan seria capaz de jurar que vira um brilho de
atrevimento nos olhos dela. Foi o suficiente para o fazer avançar para a boca do lobo.
– Boa noite, milorde – saudou Keira, inclinando a cabeça quando se juntou ao grupo. – Chega no
momento certo, pois estamos a falar da festa de São Miguel.
– São Miguel. – Declan não via nada de particularmente interessante nesse dia.
– São Miguel – repetiu Keira, e um dos cavalheiros não conteve um risinho, como se fosse uma
piada só deles. – Mister Huxley diz que, na Escócia, a pessoa rouba cavalos na noite de São Miguel.
– É verdade, madame – confirmou Huxley, soltando uma gargalhada. – Pode-se deitar a mão ao
cavalo mais próximo, querendo fazer uma peregrinação. Ou a tradição assim o diz.
– Uma peregrinação até onde? – perguntou outro cavalheiro.
– Os escoceses celebram com um dia de corridas de cavalos – disse Declan, sem se dirigir a
ninguém em particular.
– Já participou em alguma dessas corridas? – quis saber Keira, pousando nele o olhar brilhante.
– Já – respondeu Declan, desejando poder beber mais vinho.
– Um dia, gostava de ir à Escócia – desejou Keira.
– E na Irlanda? – perguntou Mr. Huxley. – Acha que os irlandeses celebram a festa de São Miguel?
– Na Irlanda come-se ganso no dia de São Miguel – explicou Keira. – Há um ditado que diz que a
quem no dia de São Miguel ganso provar, não faltará dinheiro para as suas dívidas pagar.
– E o que vai fazer para celebrar o dia de São Miguel, aqui, em Inglaterra? – continuou Mr. Huxley.
Declan achou que o outro cravava nela um olhar demasiado admirador.
– Aqui? – Keira fingiu pensar cuidadosamente por um instante. – Um jantar de ganso – acabou por
dizer. – E depois roubo um dos belos cavalos de Lorde Donnelly.
O grupo riu-se.
– É melhor trancar os seus cavalos, milorde – brincou um dos cavalheiros.
– Não tenho nada a temer – respondeu Declan. – Estou certo de que a senhora já terá partido por
essa altura.
– Para onde quer que vá, milorde? – perguntou Keira alegremente, como se de um jogo se tratasse.
– Calculo que para a Irlanda ou mesmo para um lugar ainda mais distante.
– Ora essa! E abandonava-nos? – exclamou Huxley.
– Está a ver, milorde? Mister Huxley deseja que fique e roube o seu cavalo – continuou Keira com
um sorriso amplo.
Felizmente a sineta tocou, chamando-os para o jantar antes que alguém pudesse desafiar Keira a
roubar um dos cavalos. Quando o grupo se dirigiu para a porta, Keira olhou para Declan e dirigiu-lhe
um breve sorriso impertinente, como se estivesse muito satisfeita como a sua atuação. Declan
agarrou-a por uma mão e afastou-a do grupo.
– Um momento, condessa.
– Queira desculpar-me – disse ela, tentando libertar-se –, mas estou faminta.
– A festa de São Miguel? – questionou ele em voz baixa. – Pretende jogar este jogo absurdo
durante mais dois meses?
– Por amor de Deus – protestou Keira, libertando a mão. – Por essa altura a Lily já terá vindo para
cá. É perfeitamente possível que queira celebrar a festa de São Miguel.
– Pare com isto – avisou Declan. – Pare com este jogo de bonitos vestidos e de brincar com
cavalheiros como se fossem marionetas.
Os olhos dela arregalaram-se de fúria.
– Não é uma brincadeira – protestou. – Estou a manter as aparências até que a Lily chegue. E
parece-me que está de novo com inveja, Declan.
– Por amor de Deus, não se lisonjeie.
Aquilo só tornou o sorriso dela ainda mais amplo.
– O que quer que pense consigo a andar por aí pela calada, sempre à minha procura?
– Pela calada? – troçou Declan. – Desengane-se. Se a quisesse, seria minha num instante. Não
preciso de a procurar.
O sorriso de Keira tornou-se incendiário.
– Assim, sem mais nem menos? Acha que cairia aos seus malditos pés? – sussurrou, provocante. –
Nunca me terá, senhor.
Ele silenciou-a com um beijo. Não saberia explicar como aconteceu, mas num instante estava a
ouvi-la e no seguinte a beijá-la para provar o ridículo do que dizia. E Keira, só Deus sabia quanto,
deixava-o em ebulição. Ela não se deixou intimidar pelo facto de estar apenas a alguns metros de
dúzias de pessoas, nem pelo facto de a sua charada poder ser reduzida a cinzas por um bom
escândalo. Aninhou-se nele como se estivesse à espera daquilo, abrindo a boca ao seu beijo. Os seus
lábios eram uma delícia, macios e com um travo a vinho. Tocou a língua dela com a sua e sentiu o seu
corpo ceder, parecendo querer misturar-se com o dele.
Declan foi apanhado completamente desprevenido. O seu cérebro dizia-lhe que parasse, que se
afastasse dela, e que esquecesse aquele serão e a aldeia, mas o seu corpo e o seu coração diziam-lhe
que seriam precisos vinte homens para o arrancarem daquele beijo. A sua língua enrolou-se na dela e
os seus dentes mordiscaram o carnudo lábio inferior da rapariga. O desejo começou a rugir dentro
dele, dizendo à sua boca que queria mais.
Mas foi Keira quem se afastou primeiro. Separou-se repentinamente dele, passando um dedo pelo
lábio inferior enquanto o fitava, sorrindo quando se afastou sem dizer palavra, atravessando a
varanda e entrando na casa.
Deus me valha. Noutro tempo, e noutro lugar, tê-la-ia agarrado e mostrado o que poderia esperar
dele. Ali, teve de a seguir para o interior da maldita casa e sentir a maldição daquele beijo enquanto
se sentava, incapaz de lhe reagir.
A festa ia começar na pequena sala e Declan viu-se no meio de um frenesim de gente que
procurava o seu nome nos cartões sobre a mesa. Quatro criados contratados, de perucas e casacos,
tentavam ajudar, mas só com muito trabalho e alguns gritos de Mr. e Mrs. Ogle se conseguiu que
todos encontrassem os seus lugares.
Declan ficou sentado ao lado de Mrs. Ogle, que presidia ao jantar de uma das cabeceiras da mesa,
e Miss Babcock ficou à sua esquerda. Não tinha qualquer dúvida de que Miss Babcock tinha
arranjado maneira de ficar com aquele lugar e viu em várias expressões aborrecidas que algumas
mães tinham alimentado a esperança de que as suas filhas se sentassem ao seu lado.
Miss Babcock também tinha uma expressão algo triste e Declan calculou que ela soubesse o que se
tinha passado na varanda. Keira ficou sentada à sua frente e tentava alegremente evitar o seu olhar. À
direita desta ficou Mr. Anders, que, descobrira Declan, era filho de um rico proprietário de terras, e
herdeiro de uma renda de cinco mil libras anuais. Uma soma que sem dúvida lhe valera o direito de
se sentar ao lado da mulher mais desejada do condado. Declan estava certo de que se o outro
soubesse do embuste de Keira depressa fugia com as suas cinco mil libras.
Mr. Sniveling tinha sido alvo de alguma deferência por motivos que escapavam a Declan. E
também ele estava sentado ao lado de Miss Babcock. Não parecia especialmente agradado com o
arranjo e, no meio da confusão, tentara meter conversa com Keira por sobre a mesa, mas percebeu
que teria de gritar para que tal fosse possível.
Como uma rainha presidindo à sua mesa, Mrs. Ogle era toda sorrisos, orientando os criados
contratados como se a servissem todos os dias. O seu marido, um homem severo de nariz bolboso,
proferiu algumas palavras de boas-vindas e convidou todos a provarem a sopa de perdiz.
Mrs. Ogle pegou na colher de prata, sorriu serenamente e mergulhou-a na tigela à sua frente. Todos
os convidados a imitaram.
– Lorde Donnelly, já conhece Mister Anders? – perguntou Mrs. Ogle enquanto comia a sopa.
– Sim, já conheço.
– Lorde Donnelly e Lady Ashwood estiveram a falar-nos das tradições da festa de São Miguel, na
Irlanda – explicou Mr. Anders.
– Oh! Não sabia que se conheciam tão bem – disse Mrs. Ogle para Keira.
– Conhecem-nos há algum tempo – admitiu Keira.
– Há quem diga que há demasiado tempo – acrescentou Declan, erguendo o seu copo para Keira.
Os olhos de Mrs. Ogle e Miss Babcock arregalaram-se de surpresa. Mr. Anders pareceu
desagradado. Se Declan se tivesse inclinado e olhado para a esquerda, não ficaria surpreendido se
visse Sniveling apontar-lhe uma pistola.
Mas Keira soltou uma gargalhada.
– É verdade – respondeu. – Acho que há quem pense assim, milorde.
– É fantástico que se tenham encontrado em Hadley Green – observou Mr. Anders.
– O mundo é pequeno – concordou Keira.
– Alguns diriam que tem excesso de gente – acrescentou Declan.
Ao seu lado, Miss Babcock fez um som que sugeria um risinho.
– Vejo que Lorde Donnelly gosta de uma pequena provocação – disse diplomaticamente Mr.
Anders.
– Oh, é verdade – apressou-se a concordar Keira. – Temos uma alcunha para ele na Irlanda.
Chamamos-lhe Óinseach ou aquele que gosta de provocar. – Olhou para Declan e sorriu.
Um tolo, queria ela dizer, e Declan não evitou um sorriso.
– Touché.
– On-soch – tentou repetir Mrs. Ogle, rindo como uma rapariguinha. – É muito difícil de dizer, não
acham? Custa a entrar no ouvido. On-soch.
Miss Babcock também tentou repetir a palavra, ainda com menos sucesso que Mrs. Ogle. Declan
continuava a sentir-se espantado com o facto de Irlanda e Inglaterra existirem tão perto uma da outra,
de as suas histórias estarem intimamente relacionadas, mas, em muitas coisas, representarem
extremos opostos do mundo.
– Sempre achei muito interessante que a língua continue a existir em lugares como a Irlanda. – Mr.
Anders fazia um esforço admirável para não deixar cair a conversa. – Tem de nos falar da Irlanda,
Lady Ashwood.
– É linda – respondeu sem hesitar, pousando a colher. – County Galway em particular, onde vive a
minha família, assim como a de Lorde Donnelly. A propriedade da minha família, Lisdoon, ergue-se
no alto das colinas, e o verde abunda durante todo o ano. Seguindo o vale do rio, chegamos ao mar e
aos Rochedos de Mohar, que são deveras impressionantes. Não concorda, Lorde Donnelly?
– Sem dúvida – respondeu Declan, provando a sopa. Não era capaz de olhar para os rochedos sem
pensar em Eve. A sopa estava fria. Pegou de novo no copo.
– Lisdoon – repetiu Sniveling. – Soa tão lírico.
– A propriedade de Lorde Donnelly fica a norte de Lisdoon. Já deve ter ouvido falar nela. Chama-
se Ballynaheath.
– Ballynaheath – repetiu Sniveling, rindo entre dentes. – Não soa tão lírico, pois não? – Anders e
Mrs. Ogle riram com ele.
– Acho que soa muito bem – disse Miss Babcock, defendendo o nome.
Declan sorriu-lhe.
– Obrigado, Miss Babcock. Só um ouvido refinado seria capaz de perceber.
– Ballynaheath é linda – continuou Keira. – Sua Senhoria possui uma casa lindíssima com vista
para o mar. Sinto uma certa inveja dessa paisagem no verão. No inverno, contudo, acho que o vento e
a chuva podem ser bastante assustadores. Não lhe parece, milorde?
Ele apreciava os dias de inverno em Ballynaheath. Pareciam-lhe familiares.
– Não são assim tão terrivelmente assustadores – respondeu distraidamente. Quando era apenas um
menino, imaginava que aquele vento o arrebataria, levando-o para algum lugar emocionante.
– O mar é igualmente cativante – prosseguiu Keira. – Seria capaz de o admirar dos rochedos
durante horas.
Declan sentiu-se estremecer por dentro. Perguntara-se muitas vezes quanto tempo Eve ali
permanecera, a pensar no que ia fazer. Teria saltado de imediato? Ou teria precisado de arranjar
coragem para o fazer?
– É uma coisa viva e móvel, de cor e temperamento em constante mutação. Por vezes, parece
plácido, mas engole homens e embarcações. E, noutras alturas, quando se mostra agitado, atira os
seus presentes para a nossa costa. Certa vez, eu e o meu pai achámos uma arca com um serviço de
chá em porcelana.
– Não é tudo o que o mar atira para terra – acrescentou Declan e Keira baixou de imediato o olhar
para a sopa.
– Disse o seu pai, Lady Ashwood? – perguntou Mrs. Ogle, curiosa. – Julguei…
– O meu tio – corrigiu Keira, com um sorriso encantador. – Naturalmente, ele foi um pai para mim.
– Teve o cuidado de evitar o olhar que Declan fixara nela. – Acho o mar fascinante.
Subitamente, Declan imaginou Keira de pé nos pauis batidos pelo vento dos Rochedos de Mohar, a
olhar para o mar, com o cabelo a ondular atrás de si e o vestido colado ao corpo pelo sopro do
vento. Foi uma imagem breve, mas assustadoramente excitante.
– Não vejo o mar desde que era menina – suspirou melancolicamente Mrs. Ogle. – Disse muitas
vezes a Mister Ogle que uma viagem até à costa seria revigorante para ambos, e Brighton fica tão
perto! Mas ele não gosta de se afastar de casa.
– É uma pena – concordou Keira.
– É uma felizarda, Lady Ashwood, por ter tido uma oportunidade assim. E pensar nos receios de
Hadley Green inteira, quando nos deixou! – continuou Mrs. Ogle. – Só conseguíamos pensar em que
selvajaria a esperava na Irlanda. Agrade-me saber que foi tão bem recebida.
Keira estacou.
– Selvajaria? – perguntou, encarando Mrs. Ogle.
– É o que frequentemente se diz da Irlanda – respondeu Mrs. Ogle, sorvendo jovialmente a sopa.
– É o que dizem os ingleses – emendou Declan, algo friamente. – Os que nunca se aventuraram
para além do seu país. Existe um mundo fascinante para além da Inglaterra, cheio de paisagens que
nunca encontrarão aqui.
– Certamente – concedeu Mrs. Ogle. – Mas Lady Ashwood era uma criança e mesmo os lugares
mais belos podem ser assustadores. Dito isto, mesmo quando era criança, Miss Ashwood encontrava
favor onde quer que fosse – concluiu Mrs. Ogle, sorrindo afetuosamente para Keira.
– Ela tem um poder de persuasão notável – notou Declan.
– Céus, não é assim tão notável – contrariou Keira.
– Nada disso. Tenho de concordar com o Donnelly – interveio Sniveling. – Tive ocasião de passar
algum tempo com Sua Senhoria e a verdade é que me convenceu mais que uma vez de que estava
errado e ela certa.
Todos se riram educadamente da observação. Keira brindou Sniveling com um sorriso encantador.
– Espere até a conhecer há algum tempo – retorquiu Declan. – Deixar-se-á convencer por muito
mais do que a sua forma de pensar.
Os risinhos educados cessaram e instalou-se um silêncio desconfortável naquele lado da mesa.
Declan pensou que talvez fosse melhor não beber mais vinho.
Mas Keira sorriu e continuou a refeição.
– Vençam um homem numa corrida de cavalos e ele nunca mais se esquece – disse alegremente.
– Uma corrida! Tem de correr contra ele na gala de verão! – exclamou uma entusiasmada Miss
Babcock.
– Nem pensar! – respondeu Keira, soltando uma gargalhada. – Lorde Donnelly possui todos os
cavalos de corrida de qualidade do West Sussex. Em Ashwood só há cavalos de carga.
– Tem de lhe oferecer um cavalo, Lorde Donnelly – sugeriu animadamente Miss Babcock. – Uma
corrida seria muito emocionante!
– Oh, não, Miss Babcock. – Keira riu-se. – Ele havia de oferecer-me uma pileca para garantir que
vencia. Vou contar-lhe um segredo sobre Lorde Donnelly. Ele não gosta de perder.
Declan não fazia ideia de como ela sabia aquilo, mas tinha razão. E detestaria perder para ela. Por
outro lado, morreria feliz se a vencesse. Bebeu lentamente o vinho que ainda tinha no copo.
– Eu ofereço-lhe um cavalo para a corrida.
– Creio que isto é um desafio, madame – disse um sorridente Mr. Anders.
– Pode apostar que é um desafio – confirmou Declan, o olhar fixo em Keira.
Ela devolveu o olhar com a mesma firmeza.
– Não sei… se devo confiar na montada oferecida pelo meu adversário – duvidou.
– Não se quiser ganhar – resfolegou Sniveling.
– O desafio não depende do cavalo – continuou Declan –, mas da forma como é montado. Julguei
que o senhor, mais que qualquer pessoa, soubesse isso.
– Não é totalmente verdade, Donnelly – interveio Anders. – Uma velha pileca não corre tão
depressa como um potro, por mais hábil que seja o cavaleiro.
– Nesse caso, prometo oferecer-lhe o pónei galês que tanto cobiça – respondeu Declan. – Já
montou o animal, madame. Sabe que é tão bom como o melhor cavalo que possa encontrar em Hadley
Green.
– Pois sei – confirmou a jovem endireitando-se na cadeira. – Se me promete o galês, é com todo o
prazer que aceito o seu desafio. – Resplandecia como se já tivesse ganho.
– Creio que foi a senhora que me desafiou – corrigiu Declan, fazendo sinal a um criado para que o
servisse de mais vinho.
– Tem razão – admitiu ela, inclinando a cabeça. – Acho que sou sempre eu a lançar os desafios,
porque a verdade é que gosto de um bom desafio. Recuso-me a fugir deles.
As suas palavras arrancaram uma gargalhada a todos os que os ouviam.
Declan também se riu. Que prazer seria arrancar-lhe aquele sorriso travesso do rosto.
– Eu também gosto de um bom desafio – disse. – O que não me agrada são desafios tolos.
– Está a dizer que a corrida para fins de caridade é uma tolice? – perguntou Keira claramente
deliciada com o apoio que tinha dos comensais à sua volta.
– Não. Esse é um desafio que aceito com todo o prazer.
– Mas isso é esplêndido! – Mrs. Ogle levantou-se e bateu repentinamente com a colher na tigela,
conseguindo a atenção de todos. – Lorde Donnelly acaba de desafiar Lady Ashwood para uma
corrida na gala de verão! – exclamou.
Ergueu-se um coro de gritos de satisfação.
– Compreendo o seu desejo de apoiar os pobres órfãos – continuou Declan, apreciando a súbita
seriedade de Keira. – E o derrotado doa uma verba ao orfanato?
– Acaba de melhorar o meu desafio, não é verdade? Assim, não tenho como recusar – respondeu
Keira.
Os restantes convidados aplaudiram e foram vários os que prometeram acrescentar algum dinheiro
à verba que Keira pagaria.
– Pronto, pode ser que ainda faça um donativo significativo à sua obra de caridade preferida –
disse Declan. – Assumindo, claro, que tem uma verba a que estes cavalheiros possam somar os seus
contributos.
Foram vários os que se riram.
– Eu tenho essa verba, milorde – confirmou Keira. – E vós?
– Eu cubro o que esta boa gente acrescentar à sua.
– Então temos acordo.
– Muito bem – respondeu Declan jovialmente.
– Muito bem – repetiu ela, talvez um nada zangada.
– Oh, aí vem o veado! – exclamou Mrs. Ogle com certo alívio.
As atenções e estômagos vazios dos convidados voltaram-se para a refeição.
Depois de um jantar de veado morno e vegetais meio crus que só alguns conseguiram terminar, e
Declan não foi um deles, as senhoras retiraram-se para a sala de estar e os cavalheiros foram
servidos de porto antes de se juntarem a elas. Declan serviu-se de um duplo. Ainda se sentia
exasperado pela forma como correra o jantar. Keira era claramente sedutora, havia que admitir.
Todas aquelas pessoas a tinham em conta de uma verdadeira heroína.
Quando os cavalheiros se juntaram de novo às senhoras, uma jovem foi incitada a mostrar a sua
competência ao piano e um trio de cavalheiros entreteve o grupo com o seu canto.
Pareceu interminável.
Declan tomou mais um porto e viu como Keira conversava e sorria para Sniveling. Perdeu-a de
vista quando tomou outro porto, voltando a vê-la do outro lado de uma porta aberta. Estava no
corredor, com a capa sobre o braço e com Mrs. Ogle a saltitar à sua volta como um pássaro.
Sniveling também tinha o chapéu e a capa na mão.
Declan levantou-se e, por entre uma névoa turva e morna, dirigiu-se para a porta da casa, onde Mr.
e Mrs. Ogle se despediam de Keira. Juntou-se a eles e disse ao criado contratado:
– A minha capa.
– Lorde Donnelly! Porque não fica mais um pouco? – pediu Mrs. Ogle. – Pensámos jogar um jogo.
– Obrigado, mas está na altura de me retirar. – Olhou para Keira. – De partida tão cedo, condessa?
Ainda cá estão muitos dos seus admiradores.
Ela dirigiu-lhe o que ele considerou um sorriso condescendente.
– Nesse aspeto, tenho muita sorte – respondeu. – Nem todos somos tão admirados.
– Tenho a certeza disso. E arriscaria dizer que ser condessa cobra o seu preço a uma mulher. –
Declan aceitou a capa que o criado lhe entregou. – Talvez preferisse dar oportunidade a outra
pessoa.
– Lorde Donnelly, começo a pensar que alguma coisa afetou o seu bom humor – interveio Sniveling
secamente.
Uma resposta torta bailou na ponta da língua de Declan, mas não foi capaz de a pronunciar.
– O que quer dizer com isso? – limitou-se a perguntar.
– Que é bastante evidente que tem inveja das atenções que a condessa dispensa aos outros.
– Inveja? – atirou Declan, recuperando o tom, ainda que admitidamente algo entaramelado. – Se
considera que sinto alguma inveja de si, senhor, ilude-se ainda mais que ela. Estou muito satisfeito
por ela lhe ter dedicado os seus sorrisos, uma vez que não têm qualquer utilidade para mim, pois não
tenho qualquer uso a dar-lhes. Mas antes de ver o seu nome no primeiro lugar do seu cartão de
danças, posso garantir-lhe que ela nunca deixou ninguém com vontade de saltar no alto de um
penhasco.
Soube que tinha ido longe de mais assim que pronunciou aquelas palavras. Mrs. Ogle confirmou
isso mesmo com um arquejo audível. Keira pestanejou repetidas vezes, o seu rosto uma máscara de
palidez. Parecia magoada, o que fez com que Declan sentisse uma picada peculiar no fundo dos
olhos.
– Peça desculpas – rosnou Sniveling.
– Não farei tal – respondeu Declan secamente ao mesmo tempo que tentava perceber porque se
preocupava tanto por ter magoado a pequena intrujona. – Boa noite. – Não olhou para Keira.
Abandonou a casa e desceu o caminho até à rua, rosnando a um moço de estrebaria que fosse buscar
o seu cavalo.
Meia hora depois, chegou a um Kitridge Lodge envolto em sombras. O pequeno castelo rústico era
uma sombra escura contra o céu noturno de verão e a única luz visível era a da lareira acesa no
interior do mesmo.
Ainda no verão anterior a graciosa moradia estava cheia de luz e risos. Christie, duque de
Darlington e bom amigo de Declan, tinha ali estado com a sua mulher, antes a famosa cortesã
Katharine Bergeron. Christie desafiara o príncipe de Gales e a sua família para casar com ela.
Tiveram uma filha, uma criança que Declan fora ali de propósito para conhecer. Na altura, sentira
inveja do calor de Kitridge Lodge, do aconchego que encontrara no interior daquelas paredes quando
Christie, Kate e a sua filha ali estavam.
Não sentia o mesmo naquele instante. Nesse verão, a moradia estava vazia e cheia de correntes de
ar. Às vezes, parecia-lhe demasiado natural. Declan não sabia porquê. Ballynaheath não era vazia
nem ventosa, mas, por uma qualquer razão, aquela sensação de uma segunda pele para ele.
Mas Kitridge Lodge não passava de um refúgio temporário, de onde acabaria por partir. Partia
sempre. A sua irmã, Eireanne, dizia que ele sofria de fome de viagens. Não sabia o que o fazia andar
de um lado para o outro; sabia apenas que nunca encontrara um lugar que o fizesse sentir…
aconchegado.
Declan entregou o cavalo a um moço de estrebaria ensonado e entrou. Parou no meio do pequeno
vestíbulo, por baixo de um conjunto de armadura e duas espadas cruzadas. Sentiu o latejar da dor de
cabeça mesmo por cima dos olhos. Foi vinho a mais. Bebi vinho a mais, disse para consigo.
A verdade é que se sentia física e mentalmente mal. Nunca imaginara lamentar alguma coisa que
pudesse dizer a Keira Hannigan, não depois do que acontecera entre ambos na Irlanda, e muito menos
depois de descobrir o seu embuste em Hadley Green. Mas lamentava o que dissera. Tinha bebido
demasiado e permitido que a língua levasse a melhor sobre a mente. Continuava a vê-la falar da
Irlanda com o seu leve sotaque irlandês, com os olhos brilhantes e os dedos elegantes no pé do copo
de vinho. E o seu sorriso… Sim, lamentava o que tinha dito.
A dor de cabeça não lhe dava descanso.
Dirigiu-se para a pequena sala de visitas. Noakes tinha acendido a lareira e a sala estava
demasiado quente. Declan livrou-se da capa e da gravata e desabotoou o colete. Descalçou as botas
e atirou-as para um canto. Encheu um copo com uísque irlandês e sentou-se numa cadeira diante da
lareira, com os pés apoiados numa otomana, a pensar nos acontecimentos de um jantar a que
começara por não ter vontade de ir.
Fechou os olhos.
Nunca esqueceria a tarde na Irlanda por ela descrita ao jantar, de um dia depois do qual nada
voltara a ser igual. Admite, pensou. Aquele dia mudou-te. Não voltara a sentir que merecia ser feliz.
E nessa noite sentia-se ainda menos merecedor de felicidade. Tinha permitido que aqueles olhos lhe
levassem a melhor.
Foi despertado dos seus pensamentos por uma sunita pancada na porta, que o fez entornar o
uísque.
– Cad é sin? – perguntou, ensonado, engolindo o que sobrara do uísque antes de se dirigir para a
porta.
Quando se aproximou, teve a sensação de que alguém usava as duas mãos e uma bota para bater na
porta.
– Já vai! – gritou, irritado, antes de abrir a porta.
Uma nuvem de branco e prata passou por ele numa vertigem, entrando no pequeno vestíbulo e
deixando um aroma a alfazema atrás de si. Declan fechou a porta e deu meia volta enquanto Keira se
livrava do capuz da capa, revelando o cabelo escuro.
– O que…
Ela esbofeteou-o com toda a força.
Nove

A cabeça de Declan pareceu estalar tal a força da bofetada. Deu um passo atrás e estremeceu
enquanto levava a mão à face. Depois, desviou lentamente o olhar para ela.
– É um homem horrível e miserável – acusou-o, furiosa.
Ele não disse nada, limitando-se a olhá-la com os frios olhos azuis. Oh. Ela deu meia volta e
atravessou o corredor estreito até ao que parecia uma pequena sala de visitas. Estava fechada e
demasiado quente. Pensou que parecia uma caverna. Muito adequado.
Declan seguiu-a.
– Faça o favor de entrar – disse secamente, encostando-se de modo casual à ombreira da porta.
Keira descalçou as luvas.
– Como pode ser tão cruel? – perguntou, furiosa.
O olhar dele tornou-se sombrio e pareceu ter algo igualmente furioso para dizer, mas a sua
expressão suavizou-se de repente.
– Não sei – admitiu secamente.
A resposta surpreendeu Keira, mas a fúria que sentia fê-la continuar. Não questionava que o que
estava a fazer era errado, mas isso não lhe dava o direito de a tratar tão mal.
– Teve um comportamento condenável, esta noite, e para quê? Não lhe fiz mal nenhum!
A expressão dele tornou-se ameaçadora.
– Espera realmente que jogue o seu joguinho idiota e perigoso depois do que aconteceu em
Ballynaheath?
– A Dhia dhílis! – gritou Keira, erguendo as mãos ao céu. – Precisa de ir buscar histórias antigas?
– Histórias antigas? – Declan soltou uma gargalhada áspera. – A Eve morreu, Keira. Ou já se
esqueceu?
Como se ela pudesse esquecer. Fez que não com a cabeça e levou uma mão ao abdómen para suster
a sensação de náusea que aquela recordação lhe provocava.
– Não se passa um dia sem que me lembre – respondeu com voz trémula. – Mas, por Deus, Declan,
eu tinha dezasseis anos!
– Sim. E eu tenho, e sempre tive, perfeita consciência de que tinha dezasseis anos. Parece achar
que isso desculpa de alguma forma o seu comportamento, tanto agora como então. Mas dificilmente
lhe servirá de desculpa, agora como então.
Keira sentiu o rosto tomado por um calor de raiva e vergonha.
– Está bem. Mas também não desculpa o seu comportamento… então ou agora.
Declan apertou os lábios, dirigindo-lhe um olhar furioso… e depois correu as mãos pelo cabelo
com um suspiro.
– É verdade, não desculpa. – Deixou cair as mãos e passou por ela a caminho do aparador.
Keira reparou que ele não estava totalmente vestido. Tinha-o achado extremamente atraente no
traje formal que usara em casa de Mrs. Ogle, sendo evidente que a maioria das mulheres achara o
mesmo, julgando por tantos e constantes olhares na sua direção. Mas sem o casaco e o colete, e com
o colarinho da camisa desapertado, ela conseguia perceber a sua constituição perfeita, com os
ombros largos e tão musculados como as pernas. O seu rosto já tinha a sombra da barba e Keira
imaginou-o diante de si, sem um único trapo…
Percebeu que ele lhe estendia um copo de uísque. Os seus profundos olhos azuis estavam cheios de
remorso e de outra coisa, que ela reconheceu como uma dor surda e antiga. Que ela tinha como
constante companhia.
Keira pegou no copo que ele lhe oferecia e desviou o olhar. Não admirava que a desprezasse. Ela
pensava em coisas carnais enquanto ele revivia a tragédia de Eve. Keira nunca conseguira imaginar o
horror que ele sentira ao descobrir o corpo destroçado de Eve na costa batida pelas ondas. Essa
imagem provocou lágrimas súbitas, quentes e impotentes que Keira se apressou a engolir. Não
conseguia livrar-se da recordação, do remorso, da culpa. Não merecia livrar-se deles. Apesar da
impressão que pudesse transmitir aos outros, a recordação era demasiado dolorosa para ela, uma
recordação que lhe mantinha o coração apertado há oito longos anos. Não se passava um dia em que
não pensasse em Eve, em que não imaginasse o terror que Eve devia ter sentido. Desde esse dia,
Keira desenvolvera uma necessidade quase perversa de viver a vida. Uma vida que podia
desaparecer num piscar de olhos, e que não queria perder sem ter sentido, provado e respirado tudo.
Fechou os olhos com força e pressionou-os com os dedos.
– Hei de morrer a lamentar uma disparatada brincadeira de raparigas – disse baixinho.
– Não vamos pensar nisso agora – respondeu ele, afastando-se dela e bebendo o uísque de um
trago.
– Como posso não pensar? – A culpa, o remorso e a tristeza tinham passado a fazer parte de si,
como um rio que corresse dentro dela sem nunca parar, cavando a sua passagem sempre com maior
profundidade. Tinha a certeza que, se tivesse confessado a brincadeira quando Declan lhe perguntara
pelas amigas no prado, naquele dia, Eve ainda estaria viva. Keira achara que ao fazer segredo estava
a ser leal a Eve. Como poderia imaginar o que ia acontecer?
Isso não importava. Sempre se sentira totalmente responsável pelo que sucedera. Com um breve
gemido, Keira sentou-se numa cadeira ao mesmo tempo que pousava o copo. A sua mente foi
inundada por uma torrente de recordações, desse dia fatídico, dos dias que se lhe seguiram e da
ocasião em que tentara desajeitadamente desculpar-se perante Declan.
– Por favor, pare de me castigar – pediu, sentindo o peso da censura dele.
– Como disse?
– Pare de me castigar – repetiu. – Por favor… pare.
– Castigá-la? – repetiu ele, trocista. – Que disparate.
– Sabe que me castiga – reclamou ela, levantando o olhar para ele. – Despreza-me desde aquele
dia. Rejeitou todas as minhas tentativas para me desculpar.
Declan abanou a cabeça.
– Dificilmente o posso culpar por isso – continuou Keira, num tom de impotência. – Sabe Deus que
eu própria sinto desprezo por mim. Não tenho outra desculpa que não a de que tinha apenas dezasseis
anos, que desconhecia os modos do mundo, e que… achámos divertido! A Eve queria… Ela
imaginava-se apaixonada por ele, e com toda a sinceridade, Declan… – Fixou os olhos nos dele. –
Eu estava um nadinha apaixonada por si. Sabe que estava.
Ele olhou para o copo com o cenho carregado, mas não negou.
– Era jovem e tola e Deus sabe que não sabia o que fazia. – A voz de Keira estava impregnada do
desgosto que sentia. – Julga que se imaginasse que ele se aproveitaria dela de forma tão selvagem
não lho teria dito de imediato? Mas nunca me passou pela cabeça que pudesse acontecer algo tão
horrível? – Pressionou as têmporas com as pontas dos dedos. – Vivo diariamente com essa culpa.
Lamento imenso, Declan. Tenho imensa pena pelo que aconteceu, mas nunca lhe desejei mal nenhum,
nem à Eve, nem a ninguém.
Declan soltou um suspiro fatigado e sentou-se ao lado dela no canapé.
– Eu sei – respondeu com uma suavidade estranha nele. – Compreendo o que sente. Imagine a culpa
que sinto. Não posso dizer que não sabia o que se passava consigo em relação a mim. Se a tivesse
tratado como é devido a um cavalheiro, podia tê-la salvado.
Keira olhou para ele, surpresa.
– Você? – perguntou, incrédula. – Meu Deus, a culpa não foi sua, Declan. – Ele encolheu os ombros
e afastou o olhar. Keira percebeu que ele devia ter acreditado naquilo desde então. – Não, Declan –
continuou, apoiando a mão no joelho dele num gesto reconfortante –, a culpa não foi sua. Não a
poderia ter salvado, mesmo que não nos tivéssemos encontrado no prado.
– Agora já está, Keira – disse ele. – Ambos cometemos erros. Isso não tem qualquer importância
no presente.
Tinha toda a importância no presente, pensou Keira.
– Eu acho que tem.
Ele fez uma ligeira careta e abanou a cabeça.
– Não tem nada a ver com o seu embuste em Ashwood. Não pode desculpar-se dizendo que é muito
jovem para não saber o que está a fazer – retorquiu ele, levantando-se. Afastou-se um pouco, mas
depressa deu meia volta para lhe dirigir um olhar furioso. – Como é capaz? Como pode enganar uma
aldeia inteira e pessoas que têm por si uma elevada estima?
Keira já achava difícil suportar aquela situação sem que lha lembrassem.
– Já lhe disse que o faço para o bem da Lily…
– A Lily – escarneceu Declan, voltando-lhe as costas e dirigindo-se para a lareira.
– É verdade! Ashwood estava a afundar-se na ruína financeira quando cheguei, mas a carta que a
Lily recebeu não fazia qualquer menção a isso. Caso contrário, estou certa de que a Lily teria vindo
de imediato.
– Porque não veio ela? – perguntou Declan, voltando-se de novo para ela. – Como é possível que
saiba que é condessa, e que herdou uma propriedade, e não venha de imediato?
– A verdade é que tem más recordações de Ashwood – explicou Keira. Não tinha a certeza de
perceber por completo a ideia que a prima fazia daquele lugar. – Ela tinha uma ligação muito forte
com a tia Althea e sente-se responsável pelo que sucedeu a Mister Scott. Mas não fazia ideia dos
problemas financeiros ou das questões relacionadas com a vinculação.
Declan olhou de novo para ela.
– A vinculação?
Keira desejou não ter mencionado o assunto e abanou a cabeça como se não fosse nada.
– Uma questão relativa à vinculação dos nossos cem acres mais rentáveis. Mister Fish e eu vamos
resolver tudo, mas a questão é que não tive alternativa se não ajudá-la, e só a podia ajudar estando
aqui… E foi o que fiz.
– Keira. Rapariga! – exclamou Declan. Agachou-se diante dela, olhando-a diretamente nos olhos. –
Não pensou nas repercussões? É uma católica irlandesa, o que para muitos ingleses faz de si a mais
reles das criaturas. Está a fazer-se passar por uma condessa inglesa. Está a cometer um crime contra
a propriedade de Ashwood e pouco importam as suas boas intenções. Nem o desejo da Lily servirá
para a poupar. A Inglaterra não é uma terra sem lei. Pode dar por si em sarilhos bastante graves. Não
compreende isso? – perguntou suavemente.
Keira sentiu-se vacilar por um instante.
– Ela há de voltar antes que aconteça alguma coisa – insistiu teimosamente, desejando e rezando
para que fosse verdade. Não era destituída de inteligência e percebia que podia ver-se em sérios
apuros.
Declan abanou a cabeça e levantou-se.
– Está a jogar um jogo muito perigoso.
– Então ajude-me a encontrar as respostas de que necessito para que possa entregar tudo à Lily
assim que ela chegue – pediu Keira. – Algo se passou aqui, Declan, algo que pode magoar a Lily. A
minha tia matou-se. – Declan começou a fazer que não com a cabeça, mas Keira inclinou-se para ele.
– Estou verdadeiramente convencida que um homem inocente morreu por um crime que não cometeu
e que a Lily ajudou inadvertidamente com o seu testemunho. Acha que ela seria capaz de suportar tal
coisa depois do que aconteceu à Eve? Não posso deixar que saiba disto como eu soube, e ela vai
saber.
– Não sei se é realmente assim – respondeu Declan, aproximando-se da lareira. – Continua a tirar
conclusões apressadas. Continua a ser a mesma tola romântica e impulsiva de há oito anos.
Não podia culpá-lo por aquela opinião, mas dessa vez tinha a certeza. Levantou-se.
– Reparou na escada de Ashwood – perguntou. – Não admirou o intrincado trabalho da madeira?
– O que tem?
– Imagine o tempo que o homem deve ter demorado para talhar aquela incrível escada. Imagine as
horas que Mister Scott deve ter passado em Ashwood, na mesma casa, se não nos mesmos quartos,
que Lady Ashwood.
– Keira, sinceramente…
– E há a questão do piano que a condessa mandou vir de Itália – acrescentou rapidamente. – Foi
guardado no sótão após a morte dele. Consegue imaginar, Declan, que se guarde tão belo instrumento
musical num sótão poeirento quando a condessa continuou viva durante algum tempo? Ela não
conseguia tocá-lo porque ele tinha feito o banco onde se sentava, e na parte de baixo do mesmo há…
– Por Deus, desta vez excedeu-se na sua imaginação, Keira…
– … uma bonita inscrição. Que diz: «Sois a canção que toca no meu coração. Para A., o meu amor,
a minha vida, a única nota no meu coração. Sempre seu, JS.» – Keira sentiu que lhe faltava o fôlego
ao repetir aquelas palavras enquanto observava atentamente Declan, esperando que ele começasse a
entender. – As iniciais – apressou-se a acrescentar. – É evidente que JS era Joseph Scott, a pessoa
que talhou o banco. E A era a tia Althea.
Ele limitou-se a olhar para ela.
– Inventou um belo romance, rapariga.
– Que outra explicação existe? – gritou ela, profundamente exasperada.
– Não faço a mínima ideia. Mas finjamos por um instante que tem razão e que Mister Scott
estimava Lady Ashwood. Isso não faz dele um homem inocente. Já pensou que a sua estima podia não
ser correspondida? Ou que ela pudesse ter encontrado conforto nos seus braços, mas depois o
escarnecesse? Ou na possibilidade de ele tentar conquistar o seu afeto apenas para se aproximar das
joias? Os homens já fizeram muito pior. Pode haver um sem-número de razões para ele ter roubado
as joias.
– Não. Não posso acreditar – teimou Keira. – Ele amava-a. Pôs grande cuidado no que lhe
ofereceu. E um homem que ama uma mulher como ele a amava nunca faria nada para a prejudicar.
Tenho a certeza absoluta!
– O que percebe do amor, Keira Hannigan? O Loman Maloney ama-a assim tanto? Ou o Sniveling?
Ela abriu a boca de espanto, com a mente toldada pela ira que sentia.
– Nunca entendeu aquilo de que os homens são capazes – continuou Declan em tom zangado. – É
uma rapariga pateta, que inventa histórias românticas para justificar os seus enganos.
– Meu Deus. Tem mesmo um coração tão empedernido?
– Agora sou um coração empedernido por não acreditar na sua fantasia? Pergunto-lhe mais uma
vez, Keira, o que percebe do amor?
– Talvez não perceba nada – respondeu a rapariga, esforçando-se por manter a compostura. – Mas
sei o que sonho que seja o amor, o que acredito que é o amor, e o que espero que seja. Ao menos
tenho esperança, Declan. Ao menos não tenho pensamentos tão frios como os seus.
Por algum motivo, aquilo fez com que ele sorrisse tristemente e um impulso levou-o a tocar-lhe o
queixo com os dedos.
– Não são frios. São sinceros.
Ela desviou a cabeça do toque dele. Com um simples toque, o beijo inesperado e escaldante que
lhe dera em casa de Mrs. Ogle parecia queimá-la repentinamente.
– Pode acreditar no que quiser – respondeu. – Eu continuo a acreditar que um homem inocente foi
enforcado e preciso de descobrir se as minhas dúvidas têm uma base de verdade. Ninguém fala
comigo sobre o que aconteceu porque acreditam que sou a Lily. Acreditam que fui eu que mandei
aquele homem para a morte, e não vão contradizer a sua memória pública.
– E, havendo a mínima hipótese de isso ser verdade, o que pode fazer por ele agora? Não pode
fazer nada, Keira, porque está envolvida numa fraude tremenda. Vai ver-se em sérios apuros assim
que for descoberta. Ninguém terá tempo, nem inclinação, para esclarecer um enforcamento antigo.
Dhia, alguma vez pensa nas consequências das suas ações?
Merecia ouvir aquilo. Fechou os olhos. Não sabia como explicar-lhe a desesperada necessidade
que sentia de corrigir aquilo. Eve estava morta e não havia nada que pudesse fazer para mudar isso.
Mr. Scott estava morto e, apesar de não poder fazer nada para o trazer de volta, podia ao menos
repor o seu bom nome. Tinha a sensação de que a tia Althea desejaria que assim fosse.
Abriu os olhos e enfrentou o olhar de Declan.
– Já pensou que a Lily pode proceder a compensações quando chegar? Pode compensar a família.
Pode limpar o nome do pobre homem. Se era realmente inocente, ele merece-o.
Declan começou a abanar a cabeça, mas Keira deteve-o com um toque no braço.
– Não pode dizer-me que não. Tenho uma troca para lhe propor.
A expressão dele mudou. Os seus olhos azuis cravaram-se nela de uma forma que lhe provocou
palpitações íntimas.
– E o que poderia ter para trocar comigo? – perguntou sem entoação.
– Posso fazer com que Eireanne seja aceite no Instituto Villa Amiels.
Um clarão perpassou os olhos de Declan.
– Sei que não teve sucesso quando tentou inscrevê-la – continuou Keira. – Mas conheço as pessoas
certas. Podia tratar disso.
Ele moveu-se tão depressa que lhe arrancou um grito. Rodou sobre si mesma numa tentativa de
escapar, mas Declan apanhou-a. Voltou-a para si, encostando-a às costas do canapé, com os dedos
cravados nos braços dela.
– Sabe por que razão a Eireanne não foi aceite? Eu tenho todo o dinheiro que Madame Broussard e
o seu corpo docente poderiam desejar, mas ela recusou a minha irmã por causa do meu envolvimento
na morte de Eve O’Shaugnessy!
Keira arquejou. Nunca tendo ouvido tal, assumira que a recusa se devera à fama de libertino de
Declan gozava.
– Como?
– Uist – ordenou ele asperamente, mandando-a calar na sua língua nativa. – Era uma troca que
queria, não era? – perguntou, inclinando-se sobre ela, empurrando-a para trás. Os seus olhos eram
incomensuravelmente duros e escuros. – Terá de fazer melhor.
– Declan, não…
Agarrou-a pela parte de trás do pescoço, obrigando-a a aproximar o rosto do dele. Mergulhou o
olhar nos lábios dela.
– Mais uma vez, Keira, não percebe as consequências das suas ações.
Vendo as chamas no seu olhar e sentindo a pressão do corpo dele, algo selvaticamente abrasador
despertou em Keira. Tinha novamente dezasseis anos e sentia-se louca de desejo, temerária e
desesperada por um beijo dele. Enfrentou os olhos brilhantes do homem e respondeu ofegante:
– Sim, percebo.
Ele inclinou a cabeça e os seus lábios ficaram a um sopro dos dela.
– Maldita tola – grunhiu antes de reclamar a boca dela, antes de depositar um beijo poderoso e
húmido nos seus lábios. Tomou-lhe o lábio inferior entre os dentes e ela não conseguiu respirar. A
sua língua mergulhou na boca dela, abrindo-lhe os lábios e deslizando sobre os dentes em direção ao
inferno que ardia dentro dela. A mão de Keira procurou o rosto dele, os seus dedos raspando-lhe o
queixo e a aspereza da barba que começava a formar-se até chegarem ao canto da boca. O beijo foi
diferente, porque aquela era uma raiva muito diferente entre ambos. Teve a sensação que aquela
podia consumi-la por completo. Queria que a consumisse.
Declan meteu a mão por dentro da capa dela, por cima do peito, tomando-o e apertando enquanto
passava o polegar sobre o tecido que lhe cobria o mamilo.
Keira achou que devia parar, mas sentiu-se impotente perante a torrente de emoções e de desejo
que a inundava. Ele abriu o fecho da capa, que fez deslizar sobre os ombros dela, e continuou a
descer, pressionando a boca contra a carne revelada pelo decote da rapariga. Ela estava numa
encosta perigosa em que acabara de perder o equilíbrio, e temia cair com ele, indo para onde a
levasse.
Depois, sem aviso, Declan levantou a cabeça e atirou-a para um lado na pressa de se afastar dela e
voltar-lhe as costas. Keira cambaleou ligeiramente. A brusquidão dele surpreendeu-a. Tinha o pulso
acelerado e o coração ainda aos saltos.
– Escreva a maldita carta em favor da Eireanne – ordenou Declan rispidamente, olhando para ela
por cima do ombro. O brilho dos seus olhos era duro e inflexível.
Keira passou as costas da mão pela boca numa tentativa de apagar a sensação daquele beijo cálido
e opressivo enquanto Declan se aproximava do aparador para se servir de mais uísque. Levantou o
copo num brinde trocista.
– Então, Keira, temos acordo? Sláinte.
– Declan, eu… – começou, ignorando o tom dele.
– Não – cortou ele secamente. – Não tente fazer isto parecer menos mercenário do que é. Diga-me
o que pretende de mim.
Keira engoliu em seco.
– Eu… Quero encontrar os amigos de Mister Scott. Creio...
– Não é necessário – cortou Declan. – Não preciso de conhecer todos os seus pensamentos, apenas
o que tenho de fazer.
Ela irritou-se.
– Quero que encontre os amigos ou os familiares de Mister Scott e que os interrogue.
– Esplêndido – respondeu Declan, vazando o uísque. Pousou o copo e olhou para ela com
impaciência. – É tudo?
Se era tudo? Keira não era capaz de pensar com clareza, não com aquele beijo ainda a escaldar
dentro dela.
– Muito bem, Keira, pode ficar, tirar as roupas e permitir que se faça uma troca melhor… ou pode
sair.
Keira sentiu que lhe faltava o ar. Depois apanhou apressadamente a capa.
– Deve tratar-me como se fosse condessa, se quiser ser bem-sucedido.
– Oh! – exclamou ele, franzindo o cenho. – Afinal, existem regras? – Avançou para ela. – Muito
bem, muirnín, se a devo tratar como se fosse uma condessa. – Levou as pontas dos dedos aos lábios
dela e pressionou gentilmente.
Muirnín. Dito de um modo tão sarcástico, aquele termo carinhoso irlandês magoou-a.
O dedo dele soltou-se da boca da jovem e traçou uma linha na sua face.
Keira recuou para longe da mão de Declan e apertou a capa.
– Eu envio um mensageiro quando tiver uma pista que possa seguir.
Atravessou a sala, subitamente desejosa de se ir embora.
– A propósito, Keira – disse Declan, fazendo-a deter-se e olhar para trás. – Estou curioso acerca
de uma coisa. Quanto vai esperar o Maloney? Quanto tempo vai continuar com esta charada absurda,
até perder tudo?
Estava a troçar dela, o que doía ainda mais do que gostaria de admitir. Mal conseguia pensar em
Mr. Maloney sem sentir uma necessidade culpada de o evitar.
– Ele é um cavalheiro e acredita que vale a pena esperar por mim – respondeu em tom zangado,
saindo da sala numa fúria.
Ouviu o riso trocista dele ao sair a porta.
Idiota. Sentia-se furiosa por todos os sentimentos desesperados que nutria por Declan a
percorrerem como uma onda de calor. Parecia-lhe que tinha feito um acordo com o diabo, mas o seu
coração descuidado não queria saber. Keira desejava viver aquela vida.
Dez

Declan foi chamado alguns dias depois, numa tarde quente, quando recebia o cavalo austríaco.
Estava quase a conseguir esquecer aquela noite em Kitridge, e tinha a distração de um cavalo
magnífico que encontrara no Lancashire semanas antes, quando visitara o conde de Northrop.
Northrop tinha trazido o cavalo da Áustria, onde a constante ameaça de guerra deixara o animal
sem cuidados. Mas Northrop percebera o seu valor e a verdade é que dificultara o negócio a Declan,
mas este não partiria sem comprar o castrado e tratar dos cuidados com o mesmo até que pudesse
ser-lhe entregue.
Estava ansioso como uma criança no Natal quando a carruagem virou para os portões de Kitridge
Lodge, o castrado a trotar atrás dela. Ali, disse para consigo, era onde se sentia estável. Não se
sentia à deriva ali, a lutar com emoções e pensamentos conflituosos, como nos últimos dias. Não
gostava de se sentir agitado. Gostava de sentir que dominava tudo à sua volta, bem como o seu
trabalho.
O que significava que não gostava do ar do rapaz de cabelo ruivo com sorriso de dentes
intervalados de Ashwood que vinha a trotar atrás do seu cavalo.
O rapaz tirou a boina com um gesto impaciente e impingiu um pedaço de velino dobrado a Declan.
– De Sua Senhoria, senhor – disse.
Declan abriu o velino. Nele se lia: Campo da aldeia às três.
Fora tudo o que ela escrevera, uma cruel convocatória, como se ele não tivesse mais que fazer do
que esperar as ordens dela das alturas. Ele tinha cedido, acedido aos seus desejos, e ela pensava que
podia mandar nele? Declan dobrou o velino e guardou-o no bolso. Tirou uma moeda da bolsa que
trazia consigo e entregou-a ao rapaz.
– Preste muita atenção e transmita a mensagem à sua senhora exatamente como eu a dou, sim? Está
pronto?
O rapaz assentiu.
– Não.
O rapaz pestanejou. Olhou para o cavalo e para Declan novamente.
– Não, senhor?
– É tudo. Pode ir – disse e voltou a atenção para o cavalo.
Chegou uma segunda mensagem pela tarde, desta feita pelas mãos de um lacaio.
– Devo esperar pela resposta, senhor – disse o serviçal.
Declan resmungou e leu a mensagem. Talvez se tenha esquecido da sua promessa. Agora é tardia
a hora para avançar hoje, visto que me esperam para jantar em casa dos Morton esta noite.
Poderei eu, possivelmente, esperar que honre a sua palavra e se encontre comigo amanhã às duas
da tarde?
Declan fitou o lacaio.
– Um momento – disse, e entrou em casa em passo furioso, indo direito à biblioteca, onde escreveu
a sua resposta.

Claro que não me esqueci da minha promessa, senhora, nem me esqueci que a maneira
decente de uma dama pedir insistentemente a um cavalheiro para fazer qualquer coisa do
seu interesse é pedir afavelmente a sua ajuda, sem tiranias, e salpicar o seu gentil pedido
com pedidos por favor e obrigados. Esperarei por si no campo da aldeia amanhã, às duas
da tarde. Não se atrase, porque não irei esperar, e se fosse a si trazia a carta, que é a sua
parte nesta abominável aposta.
D.

Nessa noite, enquanto Declan se sentava para devorar o jantar preparado por Mrs. Noakes, o
lacaio de Ashwood voltou a aparecer. Entregou a mensagem e não esperou pela resposta.
Por favor, dizia. E obrigada.
Declan esforçou-se por conter um tímido sorriso. Não conseguiu.

Às duas horas em ponto, Declan estava preguiçosamente encostado a um poste de amarração no


campo da aldeia quando avistou Keira caminhando confiante pelo prado, com o seu vestido a deixar
um rasto entre as ervas atrás dela. Caminhou tão rápida e tão decidida que a rapariga que a seguia
apressadamente, presumivelmente trazida para manter especulações e mexericos no mínimo, mal a
conseguia acompanhar.
A dado momento, Keira tropeçou ligeiramente e endireitou-se com o que pareceu um pequeno
impropério. Parou diante de Declan, os olhos semicerrados e a brilhar como pequenas esmeraldas. A
rapariga arrastava-se atrás dela, ofegante.
– Bem! Aqui estamos, senhor! – disse ela em tom insolente.
– Keira.
– Permita que lhe apresente Lucy Taft – disse, apontando para a rapariga.
– Miss Taft – disse ele, acenando com a cabeça. A rapariga não respondeu, mas olhou-o de alto a
baixo.
– Lucy, seja uma querida e vá sentar-se ali um pouco, está bem? – pediu Keira, apontando para um
banco.
– Sim, m’dame. – Lucy apressou-se a sentar-se no banco, deixando-se cair gratamente sobre ele.
Keira cruzou firmemente os braços, inclinou-se para Declan e soltou um suspiro audível.
– Não pretendia magoar os seus frágeis sentimentos com uma mensagem incisiva, mas estava a ser
cuidadosa. Penso ser óbvio que a discrição, bem como a natureza do nosso acordo, é essencial neste
assunto. Quanto menos palavras em papel, melhor.
– A discrição é essencial para si – recordou Declan. – Não para mim. Tem um lindo chapéu,
mudando de assunto.
Ela corou ligeiramente e passou a mão pelo chapéu excessivamente adornado.
– Não pude evitar. O Linford andava por perto, mortinho para pegar na minha mensagem e dá-la ao
Wills para que a entregasse. E tudo para nada, pelos vistos, uma vez que o Linford se recusa a dizer-
me o que quer que seja.
– Dizer-lhe o quê?
– Quem eram os amigos de Mister Scott, claro – respondeu ela, olhando de relance para a pequena
Lucy. – Dou-lhe a minha palavra de que ele não é nem um pouco cooperante! «É uma história antiga,
minha senhora, e atrevo-me a dizer que, mesmo que eu próprio me recordasse de um ou dois nomes,
isso não teria qualquer utilidade para si», diz ele. Presume saber o que é útil para mim!
– E presume corretamente.
– Não se atreva a tomar o partido dele nisto! – queixou-se Keira. – Estou farta e prestes a explodir
de exasperação! – A cor da exasperação que sentia intensificou-se nas suas faces e pareceu,
incongruentemente, bastante encantadora.
Declan sentiu-se envergonhado. Tendo tido uma conversa algo severa consigo mesmo acerca do
perigo que Keira Hannigan representava para a sua felicidade e sanidade, era demasiado fácil ser
seduzido por um lampejo de graciosidade. O melhor era despachar aquilo o mais rapidamente
possível.
– Acalme-se, rapariga. Não está a tratar bem destes… afazeres.
– O quê? Que quer dizer? – perguntou ela, observando-o com curiosidade.
– Quero dizer que, se pretende saber algo sobre um homem morto há quinze anos, não pode entrar
assim numa taberna ou numa sala de estar e fazer perguntas ao primeiro que encontre. A memória das
pessoas é bastante curta e isto se estiverem sequer dispostas a responder.
– Talvez tenha uma ideia melhor, então – contrapôs Keira em tom irreverente.
Declan sorriu.
– Sugeria que encontrasse o padre dele.
Keira franziu o cenho, duvidosa.
– O padre dele.
– De certeza que algum padre confortou Mister Scott na sua hora mais sombria. Da mesma forma
que certamente confortou os seus amigos e família depois do seu infeliz falecimento.
Algo fez sentido e os olhos de Keira iluminaram-se subitamente, após o que sorriu, radiante.
– Declan! – exclamou. – Isso é brilhante, verdadeiramente brilhante… Admira-me não ter pensado
nisso antes! – continuou com exuberância.
– Admira-se – retorquiu ele pausadamente. – Pronto, aí tem, Keira. É a sua próxima tarefa –
continuou, puxando do relógio de bolso. Ainda tinha tempo de fazer uma visita a Penny.
– A minha próxima tarefa? – repetiu. – Quer dizer que vou ter de recorrer ao reverendo Tunstill?
– Se é ele o pastor do rebanho de Hadley Green, sim – respondeu Declan secamente.
– Mas ele é muito velho. E surdo.
– Então terá de falar em alto e bom som. Muito bem…
– Não se vai embora – atirou ela.
Não se podia dizer que não estava a desfrutar da sua indignação. Dava-lhe uma satisfação algo
perversa saber que não era o único a sentir-se frustrado.
– Vou, sim. Tenho um compromisso.
– O quê, na taberna? – escarneceu ela.
Era descarada. Tocou-lhe a cintura.
– Talvez uma ideia melhor, muirnín.
Keira corou tão intensamente que Declan não evitou um riso abafado. Gostava de a fazer corar e,
apesar de toda a sua arrogância feminina, isso era fácil.
– Disse que me ajudava – lembrou ela.
Declan reparou que ela não tinha recuado, continuando perto dele.
– Não tenho o dia todo para me dedicar ao seu pequeno mistério – retorquiu, evitando dizer que
poderia ser convencido a dedicar o tempo a algo mais agradável.
– Era esse o nosso acordo. Que ajudaria neste assunto – insistiu a rapariga.
– Em troca de uma carta que beneficie a Eireanne. Tem a carta?
– Como? – Keira olhou de relance para a rapariga – Eu… Claro que tenho a carta!
Não sabia mentir muito bem, o que tornava a gravidade do seu embuste ainda mais interessante.
– Se tem a carta, não se importará de me mostrar – sugeriu Donnelly.
Ela deu um passo atrás.
– Mostrar-lhe-ei a carta depois da sua conversa com o vigário.
– Atrevo-me também a dizer que não foi esse o nosso acordo. Prometeu-me uma carta pela minha
ajuda.
Os dedos de Keira brincavam com a pequena pérola que lhe pendia da orelha.
– Duvida da minha palavra? – perguntava, retorcendo-a.
Ele observou-a de modo despreocupado, o seu olhar penetrante viajando pela silhueta interessante
da rapariga.
– Onde está? – perguntou.
– Com… na carruagem.
Bela e mentirosa. Declan gostaria de reclamar um pedaço dela.
– Não tenho o dia todo – disse. – Vamos lá acabar com isto.
– Oh! – exclamou Keira, de novo sorridente, certamente surpreendida por ter ganho a primeira
pequena batalha – Bem, a minha carruagem está ali. Vamos? Lucy! Acompanhe-nos, querida!
Onze

Tinham tido uma pequena disputa na carruagem sobre quem iria entrar no vicariato e fazer as
perguntas. Keira, que não confiava no empenho de Declan em interrogar devidamente o vigário,
preferia que ela e Lucy o acompanhassem. Mas Declan apoiou as grandes mãos nas coxas
musculadas, inclinou-se para diante até o seu rosto estar apenas a centímetros dela e disse:
– Não. Arrastou-me até aqui para fazer as perguntas e, por Deus, farei todas as perguntas sem
precisar da sua ajuda.
Maldita orgulhosa.
– Muito bem – respondeu Keira, cruzando as mãos sobre o colo e olhando pela janela.
Mas Declan assustou-a ao segurar-lhe o queixo de repente, voltando o seu rosto para ele, ainda
mais próxima do que antes.
– Se pensa seguir-me, rapariga – disse, passando o seu olhar pela boca dela –, vai sofrer por isso.
Estamos entendidos?
Uma maldita orgulhosa e pomposa.
– Então, vá lá. Fui convidada para Foxmoor e não me posso atrasar.
– Devo lembrar-lhe que dificilmente seria minha vontade estar neste vicariato esta tarde. Mas
longe de mim impedi-la de tomar o seu chá – contrapôs Declan antes de sair.
– Longe de mim – imitou-o ela em voz baixa enquanto a cabeça perfeita de Lucy aparecia na porta
aberta da carruagem.
– O cavalheiro diz que terei de esperar aqui – disse em tom incerto.
– Ele não é um cavalheiro, querida, e sim um conde. Entre, entre – incitou-a, fazendo-lhe sinal para
que subisse.
A rapariga sentou-se no banco e olhou à volta, de olhos bem abertos. Lucy tinha chegado a
Ashwood apenas dois dias antes. Keira preparara um quarto com cama com dossel e um pequeno
cavalete para desenhar para ela. Tinha tapetes espessos, uma mesa de criança e cadeiras, e até um
conjunto de chá em miniatura. Keira pensou que aquilo deixaria Lucy feliz, mas a criança parecia
intimidada por tudo aquilo.
Keira percebera de imediato o seu erro; tudo era novo e diferente e Lily não estava habituada a
tantos luxos, a serviçais e a mais que um par de vestidos.
Keira esperava realmente mudar a sorte da pobre miúda e transformá-la numa governanta decente.
E tinha a noção de lhe ter ocorrido, depois de ouvir Daria Babcock contar os rumores que corriam
sobre a quantidade de tempo que Keira passara na companhia de Mr. Sibley, que muito jeito lhe daria
uma acompanhante. Lucy servia-lhe perfeitamente nesse sentido. Com nove anos, Lucy era jovem de
mais para perceber quais as intenções de Keira ou se ela tinha cometido erros no seu desempenho
como condessa. Sim, a pequena Lucy Taft era o perfeito cinto de castidade de Keira.
Esperaram durante um quarto de hora, Lucy passando silenciosamente as mãos pelas almofadas de
veludo, Keira de olhar ansiosamente fixo na pequena janela da carruagem, espreitando a porta de
madeira na cerca de pedra que rodeava o vicariato. Sabia por experiência própria que o vigário
podia reter alguém com longos discursos sobre coisas mundanas e, o que era pior, tinha tendência a
repetir-se. E se Declan não encontrasse maneira de desviar educadamente o velho homem de um
rumo de conversa não pretendido, retomando o assunto em causa? Afinal, não era um homem
particularmente paciente. Ou cívico.
Parecia que esperava há séculos e Keira não aguentou mais.
– Acompanhe-me, Lucy. Vamos acender umas velas na capela.
– Por quem? – perguntou a pequena.
– Por Lorde Donnelly. – Keira abriu a porta da carruagem. – Precisa desesperadamente da graça
divina. – Afastou o cocheiro, que saltara do lugar traseiro para a ajudar. Sacudiu a saia enquanto
Lucy saltava para o exterior e, com a mão firme sobre a dela, agarrou a saia e caminhou em direção
ao portão de madeira.
– Sentir-se-á indisposto? – perguntou Lucy enquanto se apressava a acompanhar Keira.
– Quem, Donnelly? – respondeu Keira casualmente. – Para além de qualquer redenção. É por isso
que devemos rezar pela sua alma imortal.
Keira entrou pelo portão de madeira para um jardim cheio de rebentos de verão, onde uma
confusão de ranúnculos amarelos e rosas balançava sobre os caules vergados pela brisa de verão.
Keira avançou em passo confiante. Tinha em mente deixar Lucy na capela a acender o máximo de
velas que pudesse enquanto ela procurava o cavalheiro. Mas, ainda antes de chegar à capela, a porta
abriu-se e Declan, o viril, atraente e altaneiro Declan, apareceu, seguido de perto por um
conversador reverendo Tunstill.
Declan tinha um olhar carregado, mas o reverendo Tunstill parecia irradiar
– Este é um dia verdadeiramente abençoado, sem dúvida! – exclamou com alegria. Rodeou um
Declan carrancudo e tomou a mão de Keira entre as suas mãos papudas. – Lady Ashwood, é uma
grande honra recebê-la no vicariato. É raro a condessa de Ashwood visitar a nossa humilde morada.
Sou vigário desta paróquia há quarenta e três anos e consigo lembrar-me de duas, não, estou
enganado, três visitas da condessa ao vicariato. A primeira, tinha eu acabado de ser ordenado, no
ano do Senhor de mil setecentos e sessenta e cinco. Era muito mais jovem na altura, evidentemente,
mas ainda assim um homem do clero, mas devo confessar que a achei adorável…
– Ah… desculpe, vigário, mas eu – começou Keira, esforçando-se por soltar a mão.
– … e encantadora, naturalmente, porque que condessa não é encantadora, pergunto, incluindo a
presente companhia.
– A minha mão, senhor – disse Keira, estremecendo ligeiramente
– Como?
– A minha mão – repetiu, fazendo força para se soltar do aperto.
O vigário baixou o olhar e riu-se.
– Está a ver? Sinto-me tão encantado com a sua beleza e charme, como decerto todos os homens,
que me esqueci que lhe segurava na mão.
Atrás dele, Declan revirou os olhos.
– E quem temos aqui, minha senhora? Esta bonita rapariga parece-me familiar, mas não me consigo
lembrar – disse, passando o dedo pelo lado do nariz enquanto olhava para Lucy.
– Esta é a menina Lucy Taft – explicou Keira. Conseguiu sentir o olhar penetrante de Declan
enquanto empurrava Lucy ligeiramente. – Manifestou o desejo de acender uma vela ou duas.
– Oh, céus, está alguém doente, Miss Taft? – perguntou o vigário. – Por quem quer acender uma
vela?
– Eu? Mas Sua Senhoria disse que…
– Lucy, querida, a caridade é algo que deve ser aproveitado na privacidade dos pensamentos de
cada um. Não seria correto exibir as suas intenções.
– Sim, claro, claro – concordou o vigário. – Dê ouvidos à condessa, menina, pois ela é muito
sábia. – Voltou-se para Keira e acrescentou: – Ainda há pouco recordei a Lorde Donnelly que é raro
vê-la nas nossas celebrações, senhora, e como a sua presença inspiraria tantos outros. Ao longo
destes estranhos quarenta anos, tenho vindo a reparar que há menos gente nos meses de verão, quando
os pensamentos se viram para o exterior, mas é importante que todos se mantenham vigilantes pelas
suas almas.
– O vigário acredita que todos precisam de alguma redenção – comentou Declan para Keira. – E
que, por um qualquer milagre, a senhora pode aliciá-los a que a recebam.
Dirigiu-lhe um sorridente olhar de aviso.
– Precisamente, precisamente – confirmou o vigário, pondo-se em bicos de pés e assentando de
novo os calcanhares no chão. – Nunca é tarde para trazer e converter uma alma errante, devolvendo-a
à luz de Cristo, nosso Senhor.
– Sem dúvida que alguns dos que caminham entre nós oscilam à beira do abismo – concordou
Declan, com os olhos azuis fixos em Keira.
– Talvez se tenham atirado por completo para o poço da escuridão – retorquiu Keira, retribuindo
prontamente o olhar.
– Oh, céus – disse o vigário, pondo a mão na farta barriga e rindo. – Atrevo-me a dizer que não há
razões para nos preocuparmos em Hadley Green!
– Ficaria surpreendido – disse Declan e o vigário riu-se de novo.
– Contudo, estou disponível para o ajudar. Basta pedir – informou Keira.
– É demasiado bondosa, Lady Ashwood! – rejubilou o vigário. – É uma dádiva divina ter
arranjado maneira de reabrir o moinho. Arranjou trabalho a muitos homens capazes e não há nada
mais purificante do que trabalho honesto e árduo.
Aquilo chamou a atenção de Declan, que olhou para ela de cenho franzido.
Por sua vez, Keira sorriu alegremente.
– Lembra-me tanto a falecida senhora sua tia – continuou o vigário. – A última vez que tive
oportunidade de falar com ela foi quando me recebeu em Ashwood numa manhã cruelmente fria.
Corria o inverno de mil oitocentos e dois, que foi extremamente frio, se bem se lembra. Ora, eu
lembro-me que a chuva gelava em pleno ar e picava como urtigas. Tínhamos uma vaca leiteira e…
– Desculpe, vigário, mas a pobre Lucy tem estado pacientemente à espera para acender as velas.
– Oh, sim, sim – disse o clérigo, pousando a mão sobre o ombro de Lucy. – Não a podemos
impedir de realizar os seus deveres cristãos. Venha, menina, vamos acender as suas velas. – O
vigário pegou-lhe na mão e Lucy lançou um olhar suplicante a Keira enquanto ele a levava em
direção à capela.
Quando desapareceram na escuridão da entrada, Declan chegou-se a Keira.
– Eu avisei-a – disse de modo brusco, tomando-a pelo braço e conduzindo-a de modo a caminhar
com ele em passo rápido.
– Vim salvá-lo – respondeu ela, tentando soltar o braço. – Sei como ele pode ser falador e, além
disso, não me recordo que tenha sido nomeado meu senhor e mestre!
– De que raio está a falar? – perguntou, ignorando-a. – Quer mesmo mais especulações e falatório
acerca de si? Mais do que já existe na aldeia?
– O quê? – perguntou Keira, atemorizada.
– Se acredita que ninguém está a dar à língua atrás das portas, é tola. – Empurrou a porta de
madeira da cerca. – É a senhora que precisa de ser salva – acrescentou rudemente enquanto a
apressava pelo portão.
O cocheiro preparava-se para descer do seu banco, mas Declan fez-lhe sinal para que ficasse onde
estava. Abriu a porta da carruagem, pôs as mãos na cintura de Keira e levantou-a, dispensando o uso
do degrau. Disse ao cocheiro para esperar pela rapariga e entrou depois de Keira, sentando-se no
banco oposto ao dela. Estendeu descontraidamente os braços até à parte de trás das almofadas e
esticou as pernas, ocupando todo o espaço para pernas da carruagem. Ele olhou-o com uma
expressão de reprovação.
– Então? – perguntou Keira, inclinando-se para diante e ignorando o olhar sombrio de Donnelly.
– Então, o quê?
– Sabe muito bem o quê. – Keira mudou a posição das pernas e da saia para evitar tocar nas pernas
largas e entroncadas do seu companheiro. – Ele sabia do paradeiro dos amigos de Mister Scott?
Um sorriso repentino e demoniacamente perverso mudou o semblante de Declan.
– Se quer saber o que aquele vaidoso me disse, terá de seduzir os meus lábios para que lho digam.
Keira soltou um suspiro de exasperação… mas o seu olhar fixou-se na boca aliciante dele.
– Com gentileza – disse ele.
Ela bufou.
Uma das fartas sobrancelhas de Declan elevou-se acima da outra.
– Pergunte-me com gentileza… aqui – continuou, levando um dedo à boca.
Era a última coisa que faria. A última das últimas, não importava o quão dolorosamente tentada
pudesse sentir-se a provar os seus lábios de novo. Ah, mas aquela memória não a largara nos últimos
dias! Dava por si a fantasiar acerca disso quando devia pensar noutros assuntos, imaginando em
segredo o desfecho daquele beijo se ele não estivesse tão zangado. Ridículo. Não estava tão
completamente louca. Uma coisa era desejo. Outra era originar um escândalo com Declan O’Conner.
Não tinha prometido a si mesma, depois de se tornar Lily, que por uma vez na vida iria fazer o que
estava certo?
– Um beijo, Keira – disse Declan suavemente. – É esse o preço.
Ela franziu o cenho perante o modo faminto com que ele a olhava, perante o confiante sorriso que
insinuava. Naquela boca.
– Apesar de tudo o que disse das minhas tolices, não tem decência, senhor. É do género que rouba
a virtude a uma mulher.
Ele riu e pegou-lhe na mão.
– Sou do género que gosta de dar prazer às mulheres – respondeu, beijando-lhe indolentemente a
palma da mão. – Há uma diferença notória.
Keira engoliu em seco.
– É só um beijo – insistiu despreocupadamente – A vossa virtude manter-se-á bastante intacta… a
menos que me peça com um por favor e com um obrigado que lha roube.
Keira tentou puxar a mão, mas ele prendeu-a. Sentiu um arrepio delicioso percorrer-lhe a espinha.
– Não o incomoda minimamente ser conhecido como um velhaco em cada recanto deste reino e na
Irlanda? – perguntou.
– Não.
– Não o quero beijar, Donnelly – disse a jovem. – Nenhum dos dois se importa com o que o outro
gosta, se bem se recorda. Por que razão havia de o beijar? – Teve de desviar o olhar dos olhos dele;
havia neles algo demasiado familiar. – Apenas quero a sua ajuda num assunto muito delicado.
Ele entrelaçou os dedos nos dela e deu-lhe uma pancadinha com o joelho.
– Então, onde está a minha carta? Na minha perspetiva, só existem duas possibilidades, se pretende
saber o que ouvi. Ou tem a carta para trocar ou me dá um beijo. Mas a informação não é de graça.
– Maldito convencido – murmurou, incrédula.
Declan riu baixo, mesquinho que era.
– São meras palavras. Já me chamaram muito pior. Onde está a carta?
Keira levantou ligeiramente o queixo e o aperto dos seus dedos intensificou-se.
– Não tive tempo suficiente… – começou.
– Claro que não.
– Tenho estado muito ocupada! – insistiu, tentando puxar a mão mais uma vez.
– A abrir moinhos, sim. Porém, não passa de uma desculpa esfarrapada. – Apertou a mão dela com
mais força.
– Isto é extorsão – acusou Keira, pondo a outra mão sobre o peito, já que, de algum modo, ele tinha
conseguido puxá-la para o seu lado sem esforço, até ela ficar praticamente ao seu colo.
– Chame-lhe o que quiser. – O olhar dele fixou-se na boca da jovem. – Mas, se quer saber o nome
do amigo mais próximo de Mister Scott, terá de me beijar agora, antes que a sua pequena sentinela
regresse para a salvar. Se não me beijar, não lhe direi, e terá de interrogar o maldito vaidoso.
Keira queria odiá-lo com todas as forças do seu ser, mas nunca tinha sentido um desejo tão
poderoso como quando ele expressou calmamente a sua exigência, olhando-a como se fosse água
para um moribundo. Era impossível reconciliar o desejo voraz que sentia com a compostura que
devia a Lily quando se fazia passar por ela. Para não falar do que devia a si mesma, ou a sua
promessa de fazer o que era correto, evitando o escândalo a todo o custo.
Mas também tinha prometido viver a vida, conhecer a emoção e o desafio enquanto podia. Não
comprometeria a sua virtude por isso… Ou sim?
Declan, aquele demónio, percebeu como se debatia e sorriu como se achasse divertido.
– Lady Ashwood!
O grito de Lucy, vindo do exterior, foi o suficiente para que Keira se decidisse num curto instante.
Beijou-o.
Devia ser apenas um curto toque de lábios, um apaziguamento, mas o braço firme de Declan
rodeou-lhe as costas, prendendo-a enquanto explorava demoradamente os seus lábios, enquanto Lucy
batia na porta da carruagem. Keira debateu-se. Ele mordiscou-lhe o lábio inferior, encostou a mão ao
peito dela e largou-a lentamente.
Keira encostou-se no seu banco, sem ar. Declan parecia abominavelmente descontraído, mas o seu
olhar azul não deixava o dela. O chapéu, percebeu Keira, estava torto. Tinha acabado de o endireitar
quando o cocheiro abriu a porta e Lucy espreitou.
– Entre, querida – convidou.
Lucy entrou lentamente e sentou-se ao lado de Keira, olhando para Declan com circunspeção.
– Hollingbroke – disse Declan.
Keira, que sentia as faces a arder, olhou para Declan.
– Como?
– Mister Edward Hollingbroke era o amigo mais antigo, e possivelmente o mais querido, de Mister
Scott. – Sorriu algo presunçosamente.
– Oh, o vigário lembrou-se, não foi? – perguntou ela com indiferença, sorrindo para Lucy, que
ainda observava Declan. Keira achou que a menina era esperta. Era evidente que percebera como ele
era dissoluto e réprobo.
– Com pormenores excruciantes – respondeu Declan, batendo na madeira da carruagem para
sinalizar ao cocheiro que podia partir. – Sei tudo o que há para saber sobre Mister Hollingbroke, dos
seus humildes primórdios até à sua humilde ocupação atual. Vive junto ao rio, a dois ou três
quilómetros da aldeia. Mantém-se solitário, segundo o vigário.
– Interessante – disse Keira calmamente. – Quando lhe fará uma visita?
Declan sorriu.
– Não serei eu, mas a senhora. Mister Hollingbroke é rendeiro de Ashwood.
– Julgo que ele seria mais facilmente persuadido pelas suas perguntas, milorde.
– Ora – disse Declan, encolhendo os ombros. – Terá de trabalhar para me convencer disso. – E
piscou-lhe o olho à frente de Lucy.
Keira teve a sensatez de não dizer nada, ignorando a pancadinha lúdica do pé de Declan enquanto
seguiam pela estrada de regresso à aldeia. Conversou com Lucy até chegarem ao campo da aldeia.
Quando a carruagem parou, Declan abriu a porta e saiu.
– Tenha um bom dia, Miss Taft.
– Tenha um bom dia, senhor – respondeu educadamente a menina. – Espero que recupere a saúde
em breve.
Surpreendido, Declan lançou-lhe um olhar intrigado, mas Keira mandou o cocheiro fechar a porta
antes que ele pudesse dizer coisa alguma.
Doze

– Nunca conseguirei compreender por que motivo as coisas foram deixadas ao abandono, Mister Fish
– referiu Keira certa tarde, enquanto reviam os livros.
– Também não saberia dizer, madame. Só comecei a trabalhar na propriedade Ashwood quando o
conde morreu, mas soube que tomou aversão ao gasto de dinheiro nos seus últimos anos. A sua
determinação em dar uma vida nova a Ashwood é uma bênção para todos nós.
Keira pensou em Lily. Parecia que se sentia mais ansiosa a cada libra gasta em Ashwood. Nunca
lhe passara pela cabeça o custo de manter uma propriedade como Ashwood em funcionamento. A
Lily chega no final do mês. Dizia isso para si mesma constantemente.
– Não é estranho – disse despreocupadamente – que tanto Lorde e Lady Ashwood se tenham
afogado?
– Bastante – concordou Mr. Fish.
– O que aconteceu ao conde, especificamente? – perguntou.
– Tinha ido pescar – respondeu Mr. Fish. – E não voltou. Creio que o rio engrossou por causa de
chuvas recentes e, apesar de não terem encontrado o corpo, recuperaram a sua cana desfeita e o
chapéu, que tinham ficado presos nos detritos a jusante. A maioria das pessoas daqui acredita que é
provável que se tenha inclinado para tirar um peixe do anzol e tenha caído. A corrente estava forte de
mais para que tivesse podido salvar-se antes de se afogar. Fui contratado pouco tempo depois, para
tratar das finanças.
– Foi quando mandou chamar a Lily – observou Keira despreocupadamente.
– Como?
Keira quase se engasgava com o erro. Riu-se.
– Quando me mandou chamar, Mister Fish.
– Sim, madame.
– Quem me dera ter vindo há dois anos, antes de tudo se tornar tão difícil como se tornou.
– Quanto a isso… Ainda acredito ser prudente o aumento das rendas – observou Mr. Fish.
Keira sorriu e abanou a cabeça.
– O senhor é persistente. Mas pergunto como poderão os nossos rendeiros pagar rendas mais
altas?
– Terão de produzir mais – respondeu o agente.
– É assim tão fácil? – perguntou a jovem, levantando o olhar para ele. – Não vejo como possam
produzir mais sem algum planeamento. Apostaremos no moinho. Caso se mostre lucrativo,
poderemos construir um celeiro.
– Um celeiro – repetiu Mr. Fish em tom duvidoso.
– Não digo que seja já. Mas, se outros usarem o nosso moinho, e virmos que é lucrativo, porque
não havemos de oferecer um local onde possam também guardar os seus cereais?
– Ainda nem concluímos os trabalhos no moinho antigo. Talvez devêssemos…
Foram interrompidos pela aparição de Linford.
– Desculpe a intromissão, madame. Mister Sibley veio visitá-la.
Keira levantou-se do seu lugar à secretária no momento em que Mr. Sibley entrou.
– Mister Sibley – disse, estendendo-lhe a mão.
O rosto do homem abriu-se num sorriso amplo ao atravessar a sala para a tomar.
– Lady Ashwood. Está com ótimo aspeto.
– Muito obrigada.
– O que o traz a Ashwood, Sibley? – quis saber Mr. Fish.
– Ah! – respondeu Sibley, sempre sorridente. – Lamento ter de ser eu a transmitir-lhe esta
mensagem, minha senhora, mas o conde Eberlin pediu-me que a avisasse de que não se chegou a
nenhum acordo acerca das terras e que não tem outra alternativa que não seja instaurar um processo
por isso.
Keira arquejou e olhou para um aturdido Mr. Fish.
– Peço imensa desculpa – disse Mr. Sibley, estremecendo de infelicidade.
As notícias eram as piores. Keira não fazia ideia de como aquelas coisas funcionavam, mas tinha a
certeza quase absoluta que defender-se de um processo contra Ashwood esgotaria a sua frágil
reserva de fundos. Pensou freneticamente no que fazer, no que dizer.
Teve uma ideia. Podia ver pela maneira como Mr. Sibley a olhava que ele estava apaixonado.
Esperava que o apreço de Mr. Sibley por ela pudesse atrasar a desgraça pelo menos até ao regresso
de Lily. Aproximou-se dele.
– Temo não compreender tudo – disse na sua voz mais suave. – Porque me quer o conde processar?
Não parece mesmo nada uma maneira amigável de resolver as nossas diferenças.
– Ele acredita que não tem escolha, madame – retorquiu Mr. Sibley. Por um breve instante,
permitiu que o seu olhar se demorasse nela. – A senhora deixou bastante claro que não concorda com
a sua interpretação da escritura original e das especificidades da vinculação. Ele pretende que seja
feita uma vistoria às terras e que os seus limites sejam corretamente estabelecidos.
– Que os limites sejam comprados e pagos, quer o senhor dizer – interveio Mr. Fish, bufando
sarcasticamente. – A interpretação do conde é incorreta, Mister Sibley. O senhor mesmo concordou
que a interpretação dele parecia incorreta.
– Eu disse que parecia – defendeu-se Mr. Sibley, ainda a olhar para Keira. – Mas, no entanto, há
quem discorde. Se de facto estiver correta, a senhora não precisa de temer a petição dele.
– Eu não a temo – retorquiu Keira calmamente. – Temo que o seu conde procure arruinar-me. – Deu
mais um passo na direção de Sibley. – Porque haveria ele de fazer isso?
Mr. Sibley riu como uma criança precoce.
– Madame, nada poderia estar mais longe da verdade. Ele espera ser um vizinho bom e de
confiança para si quando as remodelações em Tiber Park estiverem concluídas.
– Será que espera? Consegue perceber que terei de aumentar as rendas?
Mr. Sibley teve a decência de se mostrar algo desconfortável.
– Talvez se lhe propusesse um compromisso – sugeriu.
– Um compromisso! – exclamou Keira, como se fosse a melhor ideia que alguém pudesse ter,
olhando-o astutamente.
– Seria amável se nos deixasse conferenciar, a Lady Ashwood e a mim? – interveio Mr. Fish.
– Com certeza. Demorem o tempo que for necessário. Farei nova visita noutra altura – disse,
saindo da sala com um aceno de despedida.
Quando a porta se fechou atrás dele, Keira aproximou-se de Mr. Fish.
– Augh! – gritou enraivecida. – Este… este dinamarquês está a dificultar tudo. Vai obrigar-me a
aumentar as rendas! Que será de Mistress Hough? E dos Moncreiff? Sabia que o pequeno Bill
Moncreiff está muito doente?
– Acho que seria do melhor interesse de Ashwood prepararmos um acordo e apresentar-lho –
sugeriu Mr. Fish.
– Que tipo de acordo?
– Um acordo financeiro, mediante o qual Eberlin pagaria um valor justo pelas terras.
Keira não imaginava que alguma vez concordassem numa soma que pudesse substituir o lucro
perdido com aquelas terras.
– Não – disse, abanando a cabeça. – Precisamos de um procurador, Mister Fish, de alguém que
saiba tudo o que há para saber sobre vinculações e afins.
– Concordo. Contudo, não encontrará tal especialidade em Hadley Green. Teremos de procurar em
Londres. E, se me permite a indelicadeza, precisamos de dinheiro para recrutar um bom procurador.
– Dinheiro, sim, precisamos de dinheiro – disse ela, pensativa. – Espere aqui, se fizer favor.
Keira deixou Mr. Fish e dirigiu-se apressadamente para os seus aposentos. Abriu a primeira gaveta
da penteadeira e tirou uma pequena caixa de joias de veludo. Remexeu as joias e pegou numa
pregadeira de diamantes e esmeraldas. O pai tinha-lho oferecido em Lisdoon, por altura do seu
vigésimo primeiro aniversário. Keira nunca se tinha esquecido. O Sol já ia baixo no horizonte e as
velas haviam acabado de ser acesas. Tinha o seu vestido de seda azul preferido e sentia-se muito
bem vestida. O pai inclinara-se para ela, beijara-lhe o alto da cabeça e dissera: «É o brilho do olhar
deste velho, muirnín. Desejo-lhe o mais feliz dos aniversários.» Oferecera-lhe a pregadeira e Keira
ficara de boca aberta a olhar para ela. Molly, Mabe e Lily tinham-se juntado à sua volta enquanto a
erguia à luz.
Adorava a pregadeira. Usava-a com todos os seus vestidos. Prendia-a aos seus xailes para impedir
que as pontas caíssem, prendia-a no decote dos vestidos de noite e usara mesmo com uma corrente
para complementar um vestido de dia.
Talvez fosse o seu bem mais precioso. Mas era apenas um objeto. Não era uma casa, como a que
Hannah Hough estava prestes a perder. Não era o sustento que muitos rendeiros poderiam perder se
ela ficasse sem as terras.
E podia render uma boa quantia em Londres.
Quando regressou à sala, Mr. Fish estava de pé junto à secretária. Entregou-lhe a pregadeira em
silêncio e as pupilas de Mr. Fish dilataram-se.
– Isto é precioso, madame. Não pretende vendê-lo…
– Pretendo, de facto, Mister Fish. Precisamos do melhor procurador que houver.
O pobre homem pareceu atordoado. Keira colocou-lhe a pregadeira na mão e fechou-lhe os dedos
em volta da mesma.
– Agora que isto está decidido, vamos dar uma vista de olhos ao moinho? Gostaria de ver que
progressos fizeram – disse Keira, afastando-se de Mr. Fish e da pregadeira.
Era melhor não pensar nela nem na sua família. O melhor era pensar em tudo o que precisava de
ser feito.
Treze

Passou-se uma semana antes que Declan voltasse a ver Keira, uma semana em que, felizmente,
conseguira reencontrar o equilíbrio.
Não foi tarefa fácil, porque o pequeno demónio conseguira alojar-se debaixo da sua pele. Não
tinha percebido quanto até ter cometido o erro de visitar Penny. Durante a visita, Declan cometera um
erro tão grande que temia nunca recuperar. Fez algo que nunca lhe tinha acontecido e pediu a Deus
para que não tornasse a acontecer: proferiu o nome de Keira quando andava às voltas na cama com
Penny.
Não se podia dizer que fossem realmente voltas. Caramba, tinha sido um dia de experiências novas
para ele, em diferentes campos, mas nenhuma se podia chamar… volta.
Tentou explicar-se a Penny, mas, como habitualmente, ela fora direta ao assunto
– Não precisa de se explicar, milorde – disse em tom jovial. – Afinal, tudo tem um fim.
Sim, tudo tinha fim, mas nunca acabava assim.
A tarde com Penny deixara Declan insatisfeito com muitas coisas e a menor delas não era a
interminável incerteza quanto ao porquê de aquilo ter acontecido. Era um homem robusto,
absurdamente robusto, na verdade, com tendência para viver o momento, especialmente quando se
tratava de mulheres. Não devia estar muito habituado a fazer amor com uma mulher e a pensar noutra.
Especialmente nela, de entre todas as santas mulheres da Terra.
Declan não sabia o que se passava consigo, mas não conseguia afastar Keira do pensamento.
Conseguia vê-la sorrir, conseguia ouvi-la rir. Lembrou-se da forma ansiosa como falava das mais
pequenas coisas e o óbvio carinho pela criança que acolhera.
Como se não fosse bastante, ainda sentia nas palmas das mãos os seus seios pequenos. E o beijo…
Deus o ajudasse, sem dúvida que ela era inexperiente, mas era muito aplicada. E excitava-o como a
um rapaz ainda verde.
E Declan ocupou-se dos seus cavalos e conseguiu esquecer Keira. Chamou Mr. Evans, um afamado
ferreiro, para dar a sua opinião experiente sobre os cascos de um castanho, visto achar que sofria de
aguamento. O cavalo podia ficar coxo e, pelo menos, incapaz de correr. Tinha-o cruzado com uma
égua de alazão, nascida de um dos melhores corredores que Declan alguma vez vira.
Estavam a examinar o cavalo num prado. Mr. Evans tinha o casco no colo.
– Pode ser um aguamento – concordou. Pousou o casco e levantou-se. Mas, em vez de falar do
cavalo, olhou para além de Declan e acenou a alguém ao longe. – Aquilo é que é uma beleza, não
acha, milorde?
Declan seguiu o olhar de Mr. Evans e viu uma carruagem parar na estrada. Não sabia se havia de
chamar à carruagem de Ashwood uma beleza, mas era sempre diferente, dada a predileção da atual
condessa por plumagens. Com a desastrosa e ruidosa tarde com Penny ainda fresca na mente, e capaz
de lhe provocar o formigueiro quente da humilhação no pescoço, Declan, disse apenas:
– Se me dá licença. – E caminhou em direção à carruagem.
Um lacaio saltou do lugar traseiro e abriu a porta enquanto Declan se aproximava. Uma sombrinha
foi a primeira coisa a surgir pela abertura, abrindo-se numa esfera amarela e brilhante que oscilou
quando a portadora desceu da carruagem. Ergueu-se de repente sobre a cabeça de Keira, como se
fosse o seu sol pessoal. Ela sorriu e acenou a Declan com a mão enluvada. Não avançou muito pelo
campo, ficando-se pelos limites do mesmo, fazendo rodopiar o pequeno sol atrás da cabeça enquanto
ele se aproximava.
– Boa tarde, senhor! – saudou alegremente quando ele chegou à estrada.
Declan parou diante dela, observando-a com desconfiança enquanto ela tirava as luvas de trabalho.
Usava um vestido de dia amarelo-claro com um lenço de seda amarelo e verde de barras bordadas
que lhe pendia sobre os braços. Ao pescoço, uma cruz dourada pendia sobre um sedutor decote. O
chapéu tinha duas monstruosas plumas que pendiam e balançavam sobre o seu ombro ao sabor da
brisa.
Declan achou-a bastante encantadora. Como uma fruta de verão madura à espera de ser colhida e
devorada. Aperceber-se que pensava em fruta e em Keira ao mesmo perturbou-o. Deu um passo atrás
inconscientemente.
– Esplêndido dia, não? – perguntou ela, definitivamente imperturbável perante o seu olhar de
desconfiança.
– Que faz aqui? Onde está o seu pequeno cinto de castidade?
– Suponho que com essa observação se refira a Lucy Taft. Está em Ashwood, a ter a sua primeira
aula de música. Já agora, eu não estou aqui – disse e apontou para o campo. – Não vim por aqui para
o ver. Estou a caminho da aldeia. – Sorriu.
Declan franziu o cenho.
– Porque será que não acredito em si? – perguntou.
– É mesmo desconfiado da raça humana, Declan. A sério, vi-o e ao seu cavalo por acaso e pensei
ser cortês. Pode perguntar ao Louis, se duvida de mim – acrescentou, apontando espontaneamente
para o lacaio, que não se apercebeu que estava a ser implicado na conversa, pois encontrava-se
mesmo por baixo do rotundo cocheiro, a conversar.
– Perdoe-me o ceticismo, mas é raro que as coisas sejam tão simples como pretende que acredite –
lembrou Declan. – Espero ansiosamente que a verdade pule dos seus encantadores lábios.
– É demasiado obstinado, Declan.
– Obstinado?
– Inflexível. Sem graça . Um fóssil bastante velho…
– Já percebi a mensagem – respondeu ele secamente.
Keira sorriu de novo e olhou para trás dele por cima do ombro.
– Que se passa com o seu cavalo?
– Sofre de aguamento.
– Parece uma verdadeira desgraça. É?
– Não parou à beira da estrada para me perguntar pelo meu cavalo – disse ele. – Talvez devesse
apenas dizer o que deseja.
– Oh! Quase me esquecia – continuou ela, levando a mão ao pequeno retículo que lhe pendia do
pulso. – Tenho uma carta para si. – Tirou um velino dobrado e esticou o braço para lho entregar.
Declan pegou no velino.
– Viu-me por acaso neste campo. E, também por acaso, tinha uma carta para mim, certo? Acho que
a verdade começa a vir ao de cima.
Keira fungou e desviou o olhar.
A carta era dirigida a Madame Broussard, do Instituto Villa Amiels.
Donnelly olhou de novo para Keira.
– Não está selada – notou.
– Não está? – perguntou ela, fingindo-se inocente enquanto se inclinava para ver. – Devo ter-me
esquecido.
Declan desdobrou o velino e leu. Era uma bonita carta, um forte apoio a Eireanne e um
compromisso em seu nome.
– Evidentemente, fiz com que enviassem um duplicado ao maior benfeitor da escola, Mister
Forgionne – acrescentou Keira, enquanto Declan examinava a carta. – Sempre sentiu grande afeição
por mim. Perguntei-lhe se podia apressar a decisão para que Eireanne não tivesse que definhar em
Ballynaheath o inverno todo.
Declan dobrou lentamente a carta. Era o que precisava para a sua irmã, o que a poderia libertar da
reputação de Declan.
– Obrigado – disse, levantando o olhar para Keira. – Posso perguntar porquê agora?
– Eu dei-lhe a minha palavra – respondeu ela com um sorriso brilhante
Declan dirigiu-lhe um olhar de ceticismo.
– Não acredita em mim? – insistiu ela. Ele abanou a cabeça. Keira suspirou. – Bom. Vou precisar
da sua ajuda de novo.
– Estou abismado.
– Não precisa de fazer teatro, Declan – continuou Keira, revirando os olhos. Será assim tão
impossível acreditar que posso ser sua amiga e precisar da sua ajuda ao mesmo tempo?
– Sim.
– Escarneça o que quiser, mas não somos animais, senhor. Somos seres humanos, capazes de
muitos sentimentos complexos mas compatíveis.
Declan riu-se. Como podia uma mulher ser tão irritante e condenavelmente atraente ao mesmo
tempo?
– É esse tipo de disparates que ensinam às jovens senhoras nas escolas privadas, hoje em dia?
– Agora parece o meu pai a falar. É bastante evidente para mim que os homens são muito claros
nos seus desejos e quereres, e necessitam de alguma prática no cultivar de amizades que requeiram
mais sofisticação que um aperto de mão e uma aposta.
Declan riu sem reservas, chamando a atenção dos lacaios de Keira.
– Não preciso de prática, muirnín – contrapôs. – Atrevo-me a dizer que lhe poderia ensinar uma
coisa ou duas acerca de sentimentos compatíveis e complexos – continuou e o seu olhar desceu da
boca dela para a pequena cruz de ouro que tinha ao peito. Conseguia sentir a atração entre eles,
alimentada pela química que os juntava, e aproximou-se. – Peça com delicadeza e ensino-lhe como
ser digna da interminável espera do Maloney.
Ela voltou a cabeça para o lado e pensou no que ele tinha dito.
– Acho que podia, embora saiba que não o vai fazer, visto que nunca seremos muito amigos.
– Se fosse a si não teria tanta a certeza – disse Donnelly baixinho. – Ouvi dizer que os meus
poderes de persuasão com mulheres são algo desconcertantes.
Keira soltou uma gargalhada, mas começou a corar sob o olhar dele.
– Talvez o possa convencer a falar com Mister Hollingbroke em vez disso.
Deus lhe valesse, mas queria tocá-la, beijar a parte de pele corada na concavidade da sua garganta,
vê-la macia e nua perante ele. Não queria pensar em Hollingbroke nesse momento.
– Eu já lhe disse… Visite-o você mesma.
– Já o fiz – disse ela. – Fiz exatamente como sugeriu. Perguntei a Mister Fish onde o poderia
encontrar e fiz-lhe uma visita. Até tinha a desculpa perfeita para o fazer, visto que ele tinha a renda
em atraso. Mas foi malvado.
– Malvado?
– Recusou-se a sair de casa, pelo que entrei, como ele sugeriu. Fui muito simpática e nem perguntei
pela renda, mas ele deixou bem claro que não me queria ver e que me achava repugnante e
desprezível…
Aquilo despertou algo dentro de Declan.
– Como disse?
– Ele disse coisas horríveis sobre mim… Quero dizer, sobre a Lily – acrescentou com um leve
abanar de cabeça. – É um velho tacanho, Declan. Afirmou que não se importava se eu o despejasse,
que nunca iria encontrar outro rendeiro que conseguisse tirar mais daquelas terras do que ele, que eu
era uma mulher, que nunca falaria com uma mulher sobre rendas e afins e que eu tinha arruinado
vidas suficientes.
Declan sentiu-se surpreendentemente aborrecido com Hollingbroke, por mais razão que este
pudesse ter.
– Não estava ninguém consigo para a defender? O Fish? O seu lacaio?
– O Louis estava comigo e disse a Mister Hollingbroke que não podia falar comigo assim, mas eu
compreendi-o perfeitamente, Declan. Estava indignado com a perda do amigo e acha que fui eu que
provoquei a sua morte. Acredita que o amigo estava inocente, que foi injustamente acusado, e que fui
eu que acusei injustamente Mister Scott. Quer dizer, a Lily.
– Acho mais provável que seja uma pessoa grosseira que perdeu o sentido do que é próprio –
opinou Declan. – Eu falo com ele.
– A sério? – perguntou, com os seus olhos verdes a brilhar.
Arrependeu-se prontamente das suas palavras, pois o rosto de Keira era uma adorável coroa de
sorrisos, e começava a recear o que poderia fazer por aquele sorriso.
– Eu disse que o faria – respondeu rudemente. Guardou a carta de recomendação de Eireanne no
bolso do casaco.
– Obrigada, Declan – disse ela com gratidão. – Quando iremos visitá-lo?
– Nós, não. Eu. Eu vou visitá-lo – corrigiu com um gesto de mão que pretendia impedir a torrente
de perguntas que sabia que se seguiriam.
Como previra, ela ignorou o gesto.
– Mas quando? E se… E se fizer a visita a Mister Hollingbroke amanhã e depois passar por
Ashwood para comprar o cavalo de que gostou? Talvez tenha sido um pouco precipitada ao recusar a
venda.
Ele fungou.
– Queria dizer contrariadora.
– Vá lá, quando vai visitar Mister Hollingbroke?
Os seus olhos brilhavam. Declan sentia um desejo louco de encostar o rosto ao pescoço dela e
inalar o seu cheiro. O sorriso de Keira intensificou-se. Ela sabia, ela sabia muito bem, daquela
maneira que as mulheres têm de saber esse tipo de coisas, precisamente que efeito tinha nele. Estava
a manipulá-lo, a fazê-lo bailar como uma sombrinha e isso aborreceu Declan até mais não.
– Quando tiver tempo, não lhe sei dizer – respondeu Declan secamente. Voltou-lhe as costas e
percorreu o campo em sentido contrário até junto do seu cavalo e do ferrador.
– Obrigada, Lorde Donnelly! Oh, e boa sorte com o seu cavalo! – gritou Keira.
Boa sorte com o cavalo? Boa sorte com o seu coração tolo.
Catorze

Mr. Hollingbroke também não saiu de casa por causa de Declan.


Com um ombro encostado à ombreira da porta, de braços cruzados e chapéu inclinado sobre os
olhos, Declan suspirou de ansiedade.
– Então, senhor, o que perde por me receber? – insistiu.
– O que ganho com isso? – gritou Mr. Hollingbroke em resposta.
Era uma excelente pergunta.
– Talvez o possa ajudar a resolver o seu problema – sugeriu Declan. – Não é segredo nenhum que
se encontra endividado. Talvez possa ajudá-lo a encontrar uma maneira de saldar a dívida.
– O quê? Compromete-se a pagar a dívida por mim?
Declan não o tinha proposto de todo, mas pensou fazer quase tudo para acabar com aquilo de uma
vez por todas.
– Acho que só vai descobrir se abrir a porta.
Não ouviu nada durante algum tempo e a sua paciência esgotou-se. Mas, quando se preparava para
partir, ouviu o arrastar de uma cadeira num chão de madeira, seguido pelos passos irregulares de
alguém a atravessar a sala. A porta abriu-se.
– Entre – ouviu.
Mr. Hollingbroke, um homem de ombros caídos, tinha o cabelo grisalho e sujo e a barba por aparar
ainda mais grisalha e suja. Keira não tinha mencionado o quanto o velho era mal-arranjado.
Declan baixou a cabeça e entrou, detendo-se um instante para que os seus olhos se adaptassem à
escuridão e os seus pulmões ao cheiro pestilento a corpo sujo que enchia a pequena casa de duas
divisões.
– Cultivei esta terra durante quase quarenta anos e nunca tinha tido tantas visitas – disse o homem,
dirigindo-se para a lareira em passo desequilibrado. – Afinal, quem é o senhor?
– Lorde Donnelly – respondeu Declan, estendendo a mão por cima da mesa de madeira que os
separava.
– Grr – fez o velho, enxotando a mão bem estendida de Declan. – Isso não ajuda. Não me interessa
se é um senhor ou um apanhador de ratos.
– É muito cordial da sua parte – retorquiu Declan secamente, baixando a mão.
– Eu não o convidei – recomeçou o homem. – O senhor é o quê? O homem da condessa?
Declan tentou não comentar a sugestão.
– Vim porque acho que pode ter as informações que procuro. – Tirou uma pequena bolsa de couro
e lançou-a para a mesa de madeira entre os dois. – Deve estar aí o suficiente para saldar a sua dívida
a Ashwood. – E mais algum – calculou Declan.
Hollingbroke limitou-se a fitar a bolsa. Pegou num jarro e serviu um líquido castanho-escuro num
copo de estanho.
– Intrometeu-se nos meus negócios privados – disse, sentando-se na cadeira de madeira junto à
lareira sem sequer tocar na bolsa.
– Não me intrometi nos seus assuntos privados. Pouco me importa se o senhor paga a sua renda ou
não. Apenas lhe quero oferecer uma espécie de acordo: as suas rendas pagas em troca de alguma
informação relativa a Mister Joseph Scott.
Hollingbroke gelou. Depois, bateu violentamente com o copo de estanho na mesa.
– Foi ela que o mandou? – quis saber. – Isto tem alguma coisa a ver com ela?
– Quem? – perguntou Declan, momentaneamente confuso.
– A condessa, seu idiota d’um raio! – gritou o velho. – Ela apareceu aqui como se me fosse fazer
um favor. Nem me reconheceu! Costumava vir até aqui de pónei com a condessa e agora finge que
nunca me viu antes. Foi ela que o mandou!
Declan não confirmou nem desmentiu.
– Eu não o conheço – afirmou Hollingbroke, semicerrando os olhos – Por que razão havia eu de
querer dizer-lhe o que quer que seja?
Declan não mentia com facilidade, mas tinha tido a sensação que já estivera ali antes, e a ter a
mesma conversa. Viu as raparigas? Sentiu um aperto no estômago.
– Digamos que sou parte interessada – atalhou. – O senhor tem uma dívida que não pode pagar,
bem como informações que eu gostaria de ter.
– Parte interessada! – cuspiu o velho. – O quê, então ela também atou uma corda à volta do seu
pescoço?
– Desculpe?
– Essa mulher atou a corda à volta do pescoço do único homem a quem chamei amigo. Ela lesou-o.
Ela lesou-nos a todos! E agora chega na sua pomposa carruagem, como se nunca me tivesse
conhecido, como se nunca tivesse visto a minha cara! Pode atirar-me todas as suas moedas, senhor,
que não vai fazer diferença alguma. Ela não vai encontrar ninguém que consiga tirar mais do que eu
tirei deste estéril pedaço de terra. Estes terrenos absorvem mal. Consigo semear uns poucos cereais,
e, o que consigo, as malditas vacas pastam!
– Por que razão disse que ela atou a corda à volta do pescoço do seu amigo? – perguntou Declan. –
Não foi ele que se enforcou ao roubar joias de um valor incalculável?
Hollingbroke pareceu não saber o que dizer. Levantou-se de repente e bufou de indignação.
– Não vou discutir esse assunto consigo.
– Suponho que acredite que ele não cometeu o crime por ser o amante de Lady Ashwood –
declarou Declan bruscamente.
Hollingbroke contornou a mesa repentinamente, caminhando em direção a Declan com o punho
cerrado sobre o copo de estanho.
– Não sei quem é o senhor, mas não vai manchar o nome desse homem mais do que ela já manchou!
Joseph Scott era um bom homem, apostava a minha vida nisso! Não era um ladrão e ainda assim a
família dele sofre por causa das incautas acusações da senhora. Não permito que o calunie mais
ainda, por Deus. Não permito.
Hollingbroke falou de maneira tão firme e apaixonada que Declan não conseguiu evitar a dúvida.
Olhou para o velho, com o casaco esfarrapado e calças gastas, e o lenço encardido.
– Como pode ter tanta certeza? – insistiu.
– Vá para o inferno – ripostou Hollingbroke, voltando costas.
Declan parou-o colocando-lhe a mão no braço.
– Se realmente quer ver o bom nome do seu amigo limpo, vai dizer-me. Como pode ter tanta
certeza de que ele não roubou as joias?
– Porque ele estava aqui na noite em que supostamente as roubou. Tinha ovos. Ovos! Acredita? Um
ladrão que roubou joias de valor incalculável parou nesta velha casa para me trazer ovos do seu
próprio galinheiro. Sentou-se naquela cadeira e falou do tempo, de quando as chuvas iriam parar.
Sim, consigo ver o seu ceticismo. Vocês pensam que estão acima de nós, não é? Tive uma úlcera no
pé, senhor. Não pude andar durante algum tempo. Mister Scott vinha aqui depois do seu dia de
trabalho e tratava do meu terreno. Trouxe-me comida da sua dispensa. Era um homem cristão, senhor.
Ele não roubou aquelas joias. Se o tivesse feito, não teria vindo cá trazer-me uns malditos ovos.
Os ovos não provavam nem deixavam de provar coisa alguma, nem a afirmação de Hollingbroke
de que era um bom homem. Afinal, podia muito bem ter um caso fora do casamento. Mas Declan
concordava que ele podia ter razão. Não deveria estar mais preocupado em esconder as joias e
garantir um álibi do que com entregar ovos?
– Contou essa história no julgamento? – perguntou, curioso.
A expressão de Hollingbroke azedou.
– Contei. Riram-se de mim. Os seus, de Londres, riram-se dos ovos.
Declan conseguia imaginar. Aquele homem mal-arranjado a falar de ovos e o quão divertidas
deviam ter ficado as pessoas da Qualidade. Ainda assim, Declan não estava convencido.
– Mister Scott não apresentou uma defesa forte? Onde esteve ele mais nessa noite?
– Esteve aqui durante algum tempo – insistiu Mr. Hollingbroke. – E disse o mesmo no julgamento.
Mas não disse mais nada dessa noite.
– Por que razão?
Mr. Hollingbroke brindou-o com um sorriso azedo.
– Porque estava à lareira com a mulher e os filhos, senhor. Parece-me ser um cavalheiro nobre.
Pode adivinhar porque não falou ele . Não importaria se o fizesse. Juro que aquela desgraçada
rapariga podia apontar o dedo a qualquer um e eles acreditariam nas suas mentiras e fantasias. Ela
mandou um homem inocente para a forca e ainda assim dorme bem à noite.
– Não posso saber como ela dorme – disse Declan. – Há mais alguém que acredite no mesmo que o
senhor?
Hollingbroke riu-se, revelando a falta de um par de dentes.
– Todos acreditam no mesmo que eu. Mas não iriam admitir isso na altura, pois temiam por si.
– Porque temiam? De quem tinham medo? – perguntou Declan.
O sorriso de Mr. Hollingbroke desapareceu.
– De quem deixa um homem inocente ser enforcado.
– Quem? – perguntou Declan novamente e Mr. Hollingbroke encolheu os ombros. – Vá lá – insistiu
Declan, impaciente. – Foi há quinze anos. De certeza que já ninguém tem medo de dizer a verdade.
– Não é por si que temem agora. É a vergonha.
– Vergonha?
– Por terem deixado um homem inocente abraçar a morte. E é tudo o que tenho a dizer sobre este
assunto – rematou Hollingbroke, deixando-se cair pesadamente na sua cadeira.
– Obrigado, senhor – agradeceu Declan, abrindo a porta.
– Esqueceu-se das suas moedas – disse Hollingbroke. – Não as vou aceitar, pela honra do Scott.
– Então aceite para pagar a sua dívida – sugeriu Declan e saiu antes que o velho o pudesse
impedir.
Quinze

Keira sentia-se um pouco indisposta. Começava a vacilar perante o peso da sua mentira, cuja
enormidade começava a apoderar-se dela. Havia dias, como aquele, em que se perguntava se não
seria preferível estar casada com Mr. Maloney em vez de viver numa ansiedade constante.
Horas antes, as senhoras da Sociedade tinham-na visitado com Mrs. Lorquette e a sua filha bebé.
Mrs. Lorquette pretendia a honra de chamar Lily ao seu bebé e pedira a Keira que estivesse presente
no batizado.
– Seria uma honra se a minha filha tivesse o seu nome, madame – disse uma efusiva Mrs.
Lorquette.
Naturalmente, Keira não queria fazer uma desfeita às senhoras, mas mal podia olhar para aquele
lindo bebé sem sentir náuseas. Percebeu de imediato que se acedesse ao pedido Mrs. Lorquette
poderia nunca mais olhar para o bebé da mesma forma quando a verdade fosse descoberta.
Keira inventou uma desculpa.
– Fique à vontade para usar o nome, se gosta dele – dissera. – Mas não estarei em Ashwood no
domingo.
– Podíamos mudar a data – sugeriu Mrs. Lorquette. – Que tal no próximo domingo seguinte?
– Ah… acho que também vai ser bastante inconveniente – respondera Keira, estremecendo.
As senhoras ficaram muito desapontadas. Mrs. Lorquette pareceu magoada e Keira ficara abalada
desde a sua partida. A gravidade do que tinha feito ao assumir a identidade de Lily fazia-lhe latejar
as têmporas. Dormia mal e tentava descobrir uma solução para sair daquele atoleiro.
Sentia-se furiosa consigo mesma. Desapontada. Tinha sido bastante imprudente ao fazer o que
fizera! Antes desse erro colossal, não se apercebera de como a sua vida era simples e
despreocupada. Talvez demasiado simples, visto que não tinha compreendido as responsabilidades
de uma verdadeira condessa até fingir ser uma. Seria aquilo aventura? Seria essa a sensação de
viver?
Devia ter dito a Lily que não podia fazer o que lhe pedia e ido para Itália com Mrs. Canavan. O
que pensava que iria acontecer quando se mudasse para ali? Como não percebera que sucessivas
mentiras iriam magoar pessoas? Tinha criado uma confusão tão grande e profunda que não sabia
como, ou se conseguiria, sair dela sem magoar Lily. Ainda mais a si própria. E mais ainda a pequena
Lily Anna Lorquette. Muitíssimo mais Mr. Loman Maloney. Ficaria estarrecido se soubesse o que ela
fizera ali.
Com vinte e quatro anos, Keira não era melhor do que a rapariga tola e insensata que beijara Lorde
Donnelly numa soalheira tarde irlandesa.
Tudo isso fazia com que se sentisse decidida a pôr fim àquela charada. Não sabia exatamente como
o faria, mas fá-lo-ia antes que mais alguém saísse magoado.
Como pôr fim a tudo era o que lhe ocupava a mente naquela tarde, na sala verde. Sentou-se a olhar
pela janela arranjada com as flores oferecidas pelos seus admiradores. Lucy trabalhava com
dedicação, desenhando flores num vaso. O talento da rapariga para a arte precisava de ser
melhorado.
– Não quer ver? – perguntou Lucy.
– Hummm? – perguntou Keira, levantando o olhar. Lucy tinha voltado o cavalete para que Keira
pudesse ver os seus progressos. – Perdão. Tenho estado a pensar.
– Em quê? – perguntou Lucy com curiosidade.
– Em… Em quando poderei regressar à Irlanda – respondeu Keira sinceramente.
– Onde fica a Irlanda? – perguntou Lucy.
– Muito longe de Ashwood – admitiu Keira.
– Para além do mar da Irlanda – disse uma voz masculina atrás delas.
Lucy arquejou de surpresa; ela e Keira olharam para a porta.
– Boa tarde, Lorde Donnelly – cumprimentou Lucy, fazendo a sua melhor vénia até então.
– Boa tarde, Miss Taft – respondeu Declan. Ficou à porta com as mãos entrelaçadas atrás das
costas e uma madeixa de cabelo deliciosamente escuro caída sobre um olho. Estava vestido para
montar e as calças, notou Keira, sentindo um calor na nuca, assentavam-lhe como uma luva.
De todas as coisas que tinham acontecido ultimamente, a sua atração pelo diabólico homem era a
última complicação de que precisava. Levantou-se lentamente.
– Ah, aí está – disse Declan. – Foi difícil encontrá-la no meio de tantas flores. O Linford tinha as
mãos ocupadas e eu garanti-lhe que estava à minha espera.
Entrou na sala, olhando em volta. A sua aparência era magnífica. Keira não se lembrava de outro
homem que lhe conseguisse roubar a respiração como ele e o seu coração tolo começou a bater um
pouco mais depressa. Lembrara-se repentinamente do beijo na carruagem, e das coisas que ele lhe
dissera no prado quando o seu cavalo sofria de aguamento, ou do que quer que fosse. Por Deus, de
certeza que conseguia ter uma conversa séria com ele, sem imaginar todas as coisas inconvenientes
que não devia imaginar.
– Não há problema, senhor. A sua visita é sempre tão…
– Agradável?
– Inesperada.
Ele sorriu e continuou a explorar a sala, parando para examinar a pintura de Lucy.
– Muito bem, Miss Taft. São rosas, não são?
– Não, senhor. São narcisos amarelos e isto é uma ovelha.
– Uma ovelha? – repetiu Declan, algo confuso. – Vai perdoar a minha falta de olho artístico, mas
admito estar um pouco baralhado, com tantas benditas flores por aí.
– Sim, chegam muitas todas as semanas – concordou Lucy.
– Ao que parece, todas as flores de Inglaterra foram arrancadas por causa de Lady Ashwood.
Imagino que existam grandes extensões de terra nua onde antes cresciam.
Lucy não conteve um risinho.
– Lucy, querida – disse Keira, pegando num vaso cheio de rosas. Mr. Anders tinha ido demasiado
longe com a sua última oferenda. – Pode levar estas rosas a Mistress Thorpe? Ajude-a a distribuí-las
por vasos. Gostava de vê-los em todos os suportes, e são muitos, pelo que tem de ter paciência
quando a ajudar.
– Quer que vá agora? – perguntou Lucy.
– Sim.
Lucy franziu o cenho.
– Sim, m’dame – limitou-se a dizer, pegando relutantemente no pesado vaso que Keira segurava. –
Não sei porque temos de o fazer. Elas vão acabar por morrer.
– Como todos nós, e é por isso que é muito importante viver a vida ao máximo. Obrigada, Lucy.
A rapariga franziu o cenho e fez uma vénia a Declan.
– Bom dia, Miss Taft – disse Declan, devolvendo a vénia quando Lucy, que se esforçava para ver
por cima das flores, passou por ele.
Voltou-se para Keira quando a criança saiu.
– Ouvi-a dizer que se ia embora? – perguntou. – Antes de acabar de criar a desordem e o caos em
Hadley Green?
– Por Deus, senhor, parece quase desgostoso – respondeu ela com um sorriso insolente. – Pensava
que ia ficar satisfeito.
– Estou surpreendido. Parecia tão determinada em ficar aqui a dominar o seu pequeno reino.
– Sim, mas agora estou decidida a reparar a confusão que arranjei e a regressar à Irlanda para
aceitar o pedido de casamento de Mister Maloney. Irei viver em paz e o mais longe possível da
sociedade.
Ele brindou-a com um sorriso amplo, claramente divertido.
– A sério?
Ela ignorou aquele peculiar brilho nos olhos dele.
– Ria-se o que quiser, mas estava certo em relação a mim, Declan. Causei demasiados problemas e
juro nunca mais incomodar ninguém.
Donnelly ergueu uma sobrancelha cética ao aproximar-se dela.
– E o que causou essa repentina mudança de decisão? – perguntou, tocando-lhe na face e fazendo
com que o coração tolo da rapariga disparasse. – Acha que o pobre Mister Maloney já esperou o
suficiente?
Maloney! Não se queria lembrar dele de momento.
– Não!
– Nesse caso, talvez eu a assuste – continuou ele, tocando-lhe o lóbulo da orelha. – Talvez pense
que vai ceder à paixão e deixar que eu a arrebate, afinal.
O rosto de Keira aqueceu com a verdade daquela afirmação.
– Lisonjeia-se. De novo.
Donnelly brindou-a com um sorriso torto e desenhou uma linha até ao queixo dela.
– Então, como pretende reparar a confusão que arranjou?
Keira afastou-se do calor dos seus dedos.
– Não sei. Só sei que não posso manter as mentiras que contei – afirmou com total seriedade,
pressionando de repente as têmporas com os dedos. – Ou as expetativas que todos têm de mim.
Nunca imaginei que ser uma condessa fosse tão incrivelmente difícil. Como consegue? Como faz com
que Ballynaheath não o consuma, de corpo e alma?
Ele sorriu de compreensão, segundo lhe pareceu.
– Emprego homens excelentes. Diga-me… Aconteceu alguma coisa, muirnín?
A sua pergunta foi proferida baixinho e Keira sentiu um desejo repentino de lhe saltar para os
braços, de que ele remediasse tudo por ela. Infelizmente, fora ela a criar a confusão e só ela podia
corrigir tudo.
– Aconteceu tudo – disse. – É a gala, que parece crescer mais a cada dia que passa e não faço
ideia de como vou pagar tudo. E é a Lucy, a quem me estou a afeiçoar bastante. O que vai pensar de
mim quando souber a verdade? E agora, a Sociedade pediu-me para comparecer ao batizado de um
lindo bebé de olhos castanhos mais profundos e com o meu nome. Já se chama Lily, e a mãe, a sua
pobre e querida mãe, parecia ter imensa esperança de que eu fosse ao batizado e conferisse à criança
algum tipo de magia de condessa – continuou, bastante agitada. – Vai ficar bastante desapontada
quando descobrir a minha mentira! Como vai olhar para o bebé sem pensar nisso? E não será a única,
pois não? Atrevo-me a dizer que Mistress Ogle vai ficar desolada e Mistress Morton não lhe vai
ficar atrás, visto que se tornaram algo indispensáveis para a condessa e para a sua gala. Quero dizer,
para mim, claro, mas eu não sou eu, eu sou ela, e nunca pretendi realmente ser ela, especialmente a
pessoa que iria assistir ao batizado de uma menina com o seu nome. Mas… mas não se preocupe –
disse, cerrando o punho. – E ainda há pior. Esse homem, esse maldito homem, quer roubar terras a
Ashwood.
– O quê? Como? – perguntou Declan.
Ela fez que não com a cabeça.
– É tudo um pouco complicado, mas ele afirma que a vinculação dos nossos cem acres mais
lucrativos expirou e que ele tem direito a eles.
– Como acredita ele que isso é verdade? – perguntou De-clan.
– Oh, não o vou incomodar com pormenores. A questão é que precisamos de um procurador muito
bom para defender Ashwood do processo que ele pretende instaurar. Juro, Declan, que o estado das
finanças de Ashwood já é mau o suficiente sem perdermos terras, particularmente terras produtivas.
– Não percebo como pode instaurar um processo contra uma vinculação de Ashwood, mas eu
conheço um procurador – referiu Declan de imediato, tirando um lápis e um papel da mesa onde Lucy
estava a pintar. – Não encontrará melhor em Londres do que Mister Goodwin – disse, apontando algo
no papel. Entregou-lhe o papel com o nome e a morada de Mr. Goodwin em Londres.
– Oh! – exclamou, surpreendida por ter o seu problema resolvido tão depressa. Olhou para cima e
sorriu com gratidão. – Obrigada – agradeceu baixinho.
Algo relampejou nos olhos de Declan.
– Posso falar com ele, se preferir – propôs, mas Keira abanou a cabeça de imediato.
– Não, obrigada, Mister Fish é bastante versado nesse assunto. Não percebe, Declan? Foi por
todos estes motivos que cheguei à conclusão de que tenho de acabar com esta paródia e regressar à
Irlanda assim que Lily voltar. É a única coisa que posso fazer, depois de tudo o que já fiz.
Esperava que Declan dissesse que a tinha avisado. Mas ele não disse nada. Os seus resolutos olhos
azuis estavam fixos nela, a sua expressão impenetrável.
– Ouviu alguma palavra do que disse? – perguntou, confusa.
– Cada palavra disparatada – assegurou.
– Então, porque não fala? – quis saber ela. – Porque está aí especado? Esta é a sua oportunidade,
sabe? Pode dizer: «Eu avisei-a, Keira», ou «Merece cada pedacinho do seu mal-estar.» – Afastou-se
dele. – Devia chamar uma carruagem para me levar para casa – acrescentou colericamente. – E teria
razão. Mereço todas as maldades.
Declan não falou e ela voltou-se de novo para ele.
– Qual é o seu problema?
– Estou à espera que se lembre do bem que fez. Sim, não devia ter feito o que fez, rapariga, mas
isso não muda o muito bem que fez pela Lily. Pense nisso. Está a reparar tudo o que foi deixado a
apodrecer em Ashwood. Chamou a atenção para a condição severa daqueles órfãos; o que seria de
Miss Taft? Onde estaria aquela rapariga se não fosse você? Não estaria a pintar ovelhas e narcisos.
Keira abanou a cabeça, mas Declan tocou-lhe no braço.
– Esta manhã, passei a cavalo pelo moinho. Estão vinte homens a repará-lo porque existe um
moinho. Não tinham essa oportunidade à sua chegada, Keira. Fez o que a Lily lhe pediu e atrevo-me a
dizer que o fez muito bem.
Por muito lisonjeada que quisesse sentir-se com as palavras do homem, abanou a cabeça.
– Mal risquei a superfície. Ainda há muito mais a ser feito.
– Não aceita o que fez de bom? Esqueceu-se de Mister Scott? Ou da morte da sua tia?
– Não, claro que não – disse ela, pressionando de novo as têmporas com os dedos. – Eu acredito
que ele fosse inocente, Declan. Acredito mesmo. Mas pensei e matutei muito nestes últimos dias e o
que se pode fazer agora? O pobre homem já morreu há muito e fui tola por trazê-lo de volta após
estes anos todos. Talvez… talvez a Lily não precise de saber nunca.
Declan lançou-lhe um sorriso cáustico.
– O que quer que eu diga? Quer que diga que tinha razão, de novo? Muito bem, tinha razão, tinha
razão.
– Claro que tinha razão – disse ele, como se de uma conclusão prévia se tratasse. – Porém, a Lily
vai saber da mesma maneira que a Keira soube. É mesmo isso que quer? Acho que faz bem em dizer-
lhe para que ela não tenha de saber por estranhos, Keira – disse, entrelaçando os dedos nos dela –,
está a aprender coisas todos os dias. A Lily chega em breve e vai agradecer todo o conhecimento que
lhe puder passar. Faça-o pela Lily. Ela vai ter muito que suportar com as consequências do seu
engano. Não junte mais do que já juntou ao fardo dela.
Keira não podia ter ficado mais abismada.
– Desculpe? Não acredito no que estou a ouvir, Declan. Desdenhou-me por isto desde que me viu
aqui. Agora que quero ser verdadeira, quer que continue assim?
– A sinceridade seria a minha preferência, sim. Mas isto era antes de deixar isto prolongar-se tanto
tempo. Agora, tornou impossível corrigir isto sem algum tipo de acusação criminal contra si e temo
que se concretizasse mesmo com a intervenção de Lily. E agora amarrou-me à sua conspiração,
implorando-me para falar primeiro com o vigário e depois com Mister Hollingbroke. Acho que
devemos ir até ao fim.
Keira suspirou.
– Falou com Mister Hollingbroke? O que disse ele?
– Disse muitas coisas, e não há muitas que eu repetisse na sua gentil companhia. Mas, se uma coisa
garantiu, e com grande entusiasmo, foi que Mister Scott era um homem inocente.
Keira ficou boquiaberta. Era verdade! Finalmente, alguém que não ela tinha dito o que ela sabia
ser verdade! Mas ocorreu-lhe um pensamento e os seus olhos semicerraram-se perante Declan.
– Percebo que mesmo que o tenha tentado convencer de que Mister Scott era um homem inocente, e
que tenha apontado firmemente o erro do meu pensamento, foram as enunciações de um velho
excêntrico e demente com cabelo a sair-lhe das orelhas que provocaram esta mudança repentina de
opinião?
– É exatamente isso que estou a dizer. Quer saber porquê?
– Quero saber tudo – disse ela, sentando-se no canapé.
Declan sentou-se diante dela e contou-lhe tudo o que Mr. Hollingbroke lhe tinha dito.
Enquanto ouvia a história de Declan, conseguiu visionar Mr. Scott a ir até à casa com um monte de
ovos e talvez algum pão que a sua mulher tinha feito. Conseguiu ver os dois homens a beberem uma
caneca de cerveja, a falar sabe-se lá do quê, enquanto as horas passavam naquela noite chuvosa.
Aquela noite chuvosa.
Keira abanou repentinamente a cabeça.
– Há aqui algo que não faz sentido – notou. – Estava a chover nessa noite. Por que razão Mister
Scott iria sair para a chuva apenas para entregar ovos? Acho que Mister Hollingbroke se lembrou da
noite errada.
– É inteiramente possível – concordou Declan. – Mas isso não muda a sua crença bastante
vociferante de que Mister Scott foi injustamente acusado e enforcado.
– Mister Hollingbroke não o jurou durante o julgamento?
– Jurou – disse Declan. – Mas ninguém acreditou. É um homenzinho bastante estranho, afinal.
– Ninguém vai acreditar nele agora – retorquiu Keira, pensativa. Era o seu momento de vingança,
mas essa ideia foi substituída pela imagem de Lily Anna Lorquette e abanou a cabeça. – Não vale a
pena. Ninguém vai acreditar nele agora. – Levantou-se.
Declan imitou-a.
– Isto não é um baile social, Keira. Não pode simplesmente desistir por estar farta de dançar.
Ela lançou-lhe um olhar fulminante.
– Não estou a desistir. Estou apenas a fazer o que posso para manter Ashwood à tona até à chegada
da Lily. Não posso perseguir fantasmas. Sabe Deus que tenho o suficiente para me manter ocupada,
com a gala, o moinho e este maldito processo. – Mexeu-se, tentando passar por ele, mas Declan
agarrou-a pelo braço.
– Largue o meu braço.
Declan não largou o braço. Keira tentou escapar, mas Declan limitou-se a empurrá-la contra uma
mesa e segurou-a com o outro braço, prendendo-a eficazmente.
– Preste atenção, eu não vou permitir que abandone Mister Scott por se ter tornado um incómodo
para si.
Se não fosse pelos seus olhos azuis profundos, Keira iria duvidar que era o mesmo homem.
– O que provocou em si esta mudança repentina? – perguntou, colérica.
– A Lily mostrou-me uma bondade enorme em tempos e eu vou fazer o mesmo por ela. Além disso,
não me posso conformar com a injustiça. Também a sofri. Fui injustamente acusado de conspirar com
uma rapariga de dezasseis anos, se bem se lembra. Levantou esta pedra, Keira, e agora vai ter de ver
o que está por baixo dela.
– Largue-me – exigiu Keira. Sentia-se frágil, aprisionada, demasiado pequena em comparação com
a constituição muito maior do homem, completamente vulnerável perante a raiva dele. Sentiu também
algo mais, algo mais assustador – um choque selvagem de prazer, uma excitação tão profunda que
mal conseguia acompanhar a respiração. Colou-se a ele com todas as suas forças, mas foi como
colar-se a uma árvore. Ele nem pestanejou e decerto não se mexeu. – Não me pode dizer o que vou
ou não vou fazer, Declan.
Os olhos dele brilharam de determinação.
– Se não consigo apelar à sua perceção do que está certo, então forçá-la-ei a fazer o que está
certo.
Ela riu-se.
– Acredita mesmo que me consegue forçar à sua vontade?
– Gosto de achar que é persuasão – respondeu Donnelly com um sorriso ligeiro e perverso,
inclinando-se para ela e obrigando-a a dobrar-se para trás.
A pulsação dela disparou perigosamente.
– Podia gritar e a casa toda desabaria sobre nós. É isso que quer?
– Quero algo bastante mais delicioso – respondeu ele, baixando o olhar para os lábios dela. – Mas
fico satisfeito com a sua palavra.
O rosto de Keira começou a queimar.
– Bárbaro – murmurou sem ar.
– Se é assim que gosta. – O olhar dele era uma chama, incitando-a. Keira sentia o violento pulsar
de um desejo voraz e consumidor.
– Já reparei na forma como olha para mim – murmurou ele. – Sei que pensamentos povoam essa
sua pequena cabeça. Deseja-me e não tem medo que se saiba. – Pôs-lhe a mão no fundo das costas e
empurrou-a para a mesa enquanto a sua boca descia sobre a dela.
Keira deu um grito de protesto para a boca dele. Pressionou o peito dele com ambas as mãos, mas
Declan agarrou-a pelo pulso e segurou-o facilmente. Beijava-a tão cuidadosamente, tão habilmente,
que o desejo profundo de Keira começou a fervilhar. Ele tem razão, toda a razão.
A mão de Declan encontrou a face dela e os seus dedos desceram-lhe pelo queixo, segurando-a
firmemente enquanto assolava os seus lábios e boca. Ela sentia a excitação dele contra si, conseguia
sentir a maré de prazer a levantar-se dentro dela. As tesouras de podar caíram da mesa, seguidas
pelos lápis de Lucy. Não conseguia encontrar forças para voltar a cabeça. Estava desesperadamente
perdida numa excitação turva e num desejo abrasador e não confiava minimamente em si para
proteger a sua virtude.
A garganta de Declan emitiu um som rouco, um som de puro prazer.
Todas as lições, todos os cuidados desapareceram da cabeça de Keira. Ávida, encontrou a língua
dele, misturou a sua respiração com a dele, cingindo-se destemidamente contra a prova da sua
excitação. O cheiro dele, picante e masculino, espalhou-lhe fogo pelas veias. Quando ele lhe segurou
o rosto e aprofundou o beijo, Keira arqueou-se contra ele, deslizando as mãos para a cintura dele.
Declan respondeu com outro gemido e colocou-se entre as ancas dela.
O prazer daquele beijo, o cheiro erótico e o sabor de um homem viril e robusto eram a ruína de
Keira. A mão de Declan encontrou o peito dela, os seus dedos mergulharam no corpete do vestido,
roçando a sua pele, deslizando pelo mamilo, e Keira temeu desmaiar de desejo e, pior, de se entregar
a ele de bom grado e com avidez.
Declan inclinou-se para beijar a carne do peito que ameaçava saltar por cima do corpete e ela
arfou de prazer e agarrou-se à mesa. Sentia o corpo amolecer, abrir-se, a criar espaço para ele. As
mãos dele viajaram pelo corpo dela até às ancas, apertando-as, puxando-a para o seu corpo e
pressionando o seu corpo contra o dela. O desejo erótico tornou-se dor erótica. O corpo dela
respondeu perigosamente; ela queria senti-lo dentro dela e sentir todas as coisas que a iriam arruinar
completamente.
Keira estaria perdida nessa soalheira tarde se não tivesse ouvido vozes no corredor. Suspirou,
agarrou-o pela cabeça e empurrou-o para trás.
– Madame? – ouviu Mrs. Thorpe chamar.
– Ignore-a – murmurou Declan, mordiscando-lhe os lábios.
Mas Mrs. Thorpe e Lucy estavam a chegar e Keira afastou Declan e saltou da mesa, agachando-se
para apanhar as tesouras de podar e os lápis e ajeitando o corpete nervosamente.
Declan aproximou-se dela por trás e as suas mãos envolveram-lhe a cintura, a sua boca no pescoço
dela.
– Venha comigo para o castelo – sussurrou. – Venha agora. Não se demore, não hesite…
– A Dhia dhílis! – proferiu ela baixinho, afastando as mãos dele do seu corpo e afastando-se dele,
distanciando-se o mais possível. Olhou por cima do ombro e viu o desejo nadar nos seus olhos e a
protuberância nas suas calças. Não conseguia falar, não conseguia dizer o que queria…
– Aqui está a senhora! – exclamou Mrs. Thorpe, surgindo à porta.
Declan voltou-lhes as costas. Keira agarrou nas tesouras e lápis.
– Sim! Aqui estou, Mistress Thorpe.
– A Lucy disse que Sua Senhoria tinha chegado. E Mistress Ogle também, senhora – acrescentou
Mrs. Thorpe. – Quer que sirva chá?
Declan emitiu um som de desdém; Keira aproximou-se dela.
– Ai sim? – perguntou.
– Bom dia, Lady Ashwood. – Mrs. Ogle entrara atrás de Mrs. Thorpe.
– Mistress Ogle! Que... surpresa – disse Keira. A julgar pelo ar de choque no rosto de Mrs. Ogle, a
mulher tinha percebido o que acontecera ali momentos antes e Keira passou conscientemente os
dedos pela face, tentando em vão apagar as provas do seu desejo.
O olhar de Mrs. Ogle oscilou entre Keira e Declan, que se voltara parcialmente para ela e
cumprimentara com uma tímida vénia.
– Espero não interromper – disse Mrs. Ogle.
– Sim – respondeu Declan.
– Não! De todo, Mistress Ogle – respondeu Keira ao mesmo tempo. – Faça o favor. Sim, Mistress
Thorpe, queremos chá.
– Não queria perturbar – insistiu Mrs. Ogle, olhando para Declan com um sorriso ténue e
desconfiado.
– Não perturba nada! – assegurou Keira. – Lorde Donnelly estava já de saída.
Declan olhou para Keira como se esperasse que ela mandasse Mrs. Ogle embora para os dois
continuarem o seu encontro ardente. Keira desejava, e muito, poder fazê-lo, mas pousou as tesouras e
os lápis e conduziu a sua visitante a um lugar no canapé.
– Keira…
– Lorde Donnelly! – respondeu com uma gargalhadinha frenética, interrompendo-o antes que
pudesse dizer algo demasiado revelador. – As flores são mesmo bonitas. Obrigada por ter vindo –
chilreou, sorrindo docemente, desejosa que ele partisse.
Donnelly percebeu a mensagem, uma vez que se curvou lentamente e saiu, mas não sem antes lhe
dirigir um olhar profundo e ardente.
Dezasseis

Grayson Christopher, o duque de Darlington, mais conhecido por Christie por família e amigos, ficou
surpreendido quando Declan surgiu em Darlington House, em Londres. Verdade seja dita, Declan era
conhecido por desaparecer de tempos a tempos, mas raramente aparecia sem avisar.
Quando apareceu à porta de Christie, fê-lo a meio de uma tempestade de verão. Estava molhado e
enlameado e pediu desculpas por aparecer de forma tão inesperada antes de perguntar a Christie se
ainda tinha um pouco do uísque irlandês que lhe oferecera na sua última visita.
Claro que Christie ainda tinha algum, e ele e Declan sentaram-se no gabinete do segundo depois de
a encantadora mulher de Christie, Kate, e a filha de ambos, Allison, se terem retirado. Christie
tagarelou amavelmente acerca dos seus amigos comuns e da sua vida, mas Declan não conseguiu
concentrar-se no que dizia. Sentia-se ligeiramente distante, como se os seus pensamentos não
estivessem totalmente dentro daquelas quatro paredes.
– Posso impor-lhe a minha presença? – perguntou Declan ia a noite alta. – Arrendei a minha casa
da cidade a uns amigos – explicou, referindo-se à pequena casa citadina que tinha em Mayfair.
– Com certeza que sim – anuiu Christie. – Fique o tempo que desejar. Um mês, dois…
Não será por tanto tempo – riu Declan. – Serão apenas algumas noites.
Christie dirigiu-lhe um olhar de curiosidade.
– E depois? – perguntou.
– Depois? – repetiu Declan. Não fazia ideia. Soltou uma gargalhada. – Depois – disse de novo,
abanando a cabeça.
– Temos de organizar um encontro enquanto está connosco – disse Christie antes de os dois homens
subirem para os seus quartos.
– Não, por favor, não se incomode – apressou-se a dizer Declan.
– Não é incómodo nenhum e, para dizer a verdade, a minha mulher ficará desapontada se não o
fizermos – insistiu Christie, dando-lhe uma palmada nas costas. – Prepare-se para ser apresentado a
algumas jovens que desejariam casar com um conde irlandês.
No sábado à noite, Darlington House recebeu um pouco mais de cem convidados. As grandes portas
francesas haviam sido abertas para o terraço e tinham acendido lanternas de papel em torno do
enorme jardim. Estava uma bela noite e todos pareciam bastante animados, incluindo Declan.
O salão de baile estava cheio de mulheres bonitas, sendo a mais bela de todas Miss Nell Adams, a
solteira mais celebrada desse ano. Há muito que Declan acreditava que Miss Nell Adams era a
infame «passarinha», como a descrevera o Times, que fizera companhia a Lorde Frampton cerca de
um ano antes, quando a mulher deste fora de visita às antigas ruínas de Itália. A identidade da jovem
tinha sido muito bem guardada, uma vez que, diziam os rumores, era apenas uma debutante. A sua
reputação ficaria completamente arruinada se o seu nome fosse revelado e era garantido que
Frampton não falava no assunto. Mas isso não impedia a especulação entre os cavalheiros da ton.
No verão anterior, e por mero acaso, Declan conhecera Miss Adams numa reunião e suspeitara
imediatamente dela, porque lhe prodigalizara as suas atenções com demasiada facilidade,
especialmente tendo em conta que mal fora apresentada à sociedade. E nesse dia as suas suspeitas
aumentaram ainda mais. Tinha sido convidado para jantar na residência Brockton na terça-feira à
noite, tal como os Adams, e Miss Nell Adams tinha-lhe tocado no braço e sugerido que uma visita
sua seria bem recebida.
Surpreso, Declan brindara-a com um olhar penetrante.
– Os meus pais dão um passeio todas as tardes. Costuma começar às três – dissera ela com um
sorriso deliberado.
Curioso, Declan aceitara a oferta e fizera-lhe uma visita no dia seguinte. Miss Adams mostrara-se
muito recetiva. Sentara-se ao seu lado num canapé de pelúcia e assim que a dama de companhia –
uma velha governanta sem outra utilidade, calculou Declan – voltou costas, Miss Adams pousara uma
mão atrevida na sua coxa e olhara para ele sedutoramente por entre as pestanas semicerradas.
Declan retirara-se com a sensação de que podia ter ido até ao fim com ela. Mas de Miss Adams
não recebera nada mais que um casto beijo. Não conseguira provocar nela mais interesse. Keira
Hannigan tinha despertado nele uma loucura que o enfurecia e Declan temia ter perdido o juízo. Não
conseguia livrar-se daquela febre. Uma febre que o levara até Londres.
Claro que Declan sabia que Keira se encontrava em Londres. Todos em Hadley Green sabiam onde
se encontrava. Quando tomou conhecimento da sua partida, apesar de não conhecer o motivo exato,
calculou que tivesse sido para falar com Mr. Goodwin. E depois imaginou-a a passear-se por
Londres na companhia de outros cavalheiros. Achou que ela era tola, para arriscar tanto indo a
Londres. Realmente, não sabia porque se importava com gente como ela, mas, estranhamente,
Londres parecera-lhe subitamente a cidade da moda. Podia visitar Darlington e passar algumas noites
na cidade com as mulheres de Londres, que curariam a estranha dor que sentia.
Não acreditava que pudesse encontrar Keira. Londres era muito grande e, uma vez que
frequentavam círculos sociais diferentes, era impossível que os seus caminhos se cruzassem.
Tinha a certeza quase absoluta.
Declan tinha bebido um par de uísques e pensou pegar em Miss Adams pela mão e levá-la para o
parque nas traseiras da casa, mas quando começou a aproximar-se dela os seus olhos foram atraídos
por uma única pluma verde. Uma pluma que adornava uma coifa de cabelo negro, e isso fizera-o
deter-se. Conhecia aquelas costas esbeltas e a curva daquelas ancas. Teve uma súbita visão dos
botões pérola daquele vestido a serem desapertados um por um, revelando a pela cremosa das costas
dela. Imaginou a seda verde a deslizar-lhe dos ombros perfeitos e a descer pelo corpo, deixando
costas e ancas deliciosamente nuas, apenas com o cabelo negro e encaracolado sobre a pele.
Era uma imagem provocadora.
Até Declan perceber que os seus caminhos se tinham cruzado. Impossível! Era impossível que ela
pudesse estar ali, em Darlington House. Como teria conseguido?
Declan pôs-se imediatamente em movimento, abrindo caminho por entre os presentes, seguindo a
malfadada pluma verde. Perdeu-a de vista uma vez, logo avistando a ponta da mesma por cima do
ombro de um homem, agitando-se como se a sua dona risse ou conversasse com grande animação.
Declan escondeu-se atrás de um dos cavalheiros enquanto rodeava duas senhoras absortas na sua
conversa para chegar junto dela. Mas ao dirigir-se para ela foi intercetado por Lorde Ettinger, que
queria a companhia de Declan no salão de jogos. Quando este conseguiu esquivar-se já a pluma
verde tinha desparecido.
Atravessou a multidão de presentes, procurando-a, detendo-se ocasionalmente para cumprimentar
algum conhecido com quem se cruzava. Voltou a vê-la depois de contornar um par de cavalheiros.
Tinha acabado de dar a mão a Richard Link e dirigia-se para a pista de dança. Voltou a cabeça para
dizer algo a Link e viu Declan e os seus profundos olhos verdes arregalaram-se de surpresa.
– Dhia duit – disse ele.
– Ah! Ah! – balbuciou Keira, dirigindo um breve mas delicioso sorriso a Link. – Lorde Donnelly –
disse, olhando de novo para Declan. – O senhor… surpreende-me constantemente. – Os seus olhos
fixaram-se em Declan, que se curvou numa vénia.
– Decididamente, a surpresa é minha – garantiu Declan, ainda curvado. O vestido de Keira
assentava-lhe bem de uma forma demasiado provocadora. Não conseguia imaginar que existisse um
peito mais formoso e voluptuoso em toda a casa, nessa noite.
– Donnelly – disse Mr. Link e Declan lembrou-se da presença dele ali, à espera do seu par, porque
a música já tinha começado.
– Boa noite, Mister Link. Queira desculpar a interrupção, mas Miss…
– Conhecemo-nos há muitos anos – apressou-se a interromper Keira.
– Oh, compreendo – disse Mr. Link, fixando o olhar em Declan.
– Peço imensa desculpa, Mister Link, mas… devo… Acho que Lorde Donnelly me traz importantes
notícias de casa… – improvisou, dirigindo um olhar ao mesmo tempo esperançoso e de súplica a
Declan.
– Não, não tenho notícias – respondeu ele. – Nada. Na verdade, pensei que pudesse ter novidades
para mim. Não sabia que conhecia tão bem o duque de Darlington.
– Não? – Keira franziu o cenho.
– De todo.
– Pois… Muito bem – interveio Mr. Link. – É evidente que têm algumas novidades para trocar
entre vós. Fica para outra altura, Lady Ashwood.
– Mister Link… – começou, mas Link já tinha começado a afastar-se. – Obrigada – disse nas
costas dele. Mr. Link voltou à direita e desapareceu atrás de um grupo de convivas. Keira dirigiu um
olhar assassino a Declan. – Se não se importa, já tenho problemas suficientes sem precisar da sua
ajuda.
– Como consegue? – perguntou Donnelly, satisfeito por Link se ter ido embora.
Keira abriu o leque.
– Como consegue alguém estas coisas? – perguntou por sua vez. – Acredita sinceramente que
estaria aqui sem ser convidada?
– Com toda a sinceridade, Keira, acredito em qualquer coisa que esteja relacionada com a sua
pessoa.
Ela brindou-o com um sorriso descarado.
– Fique sabendo que a duquesa de Darlington convidou Lady Horncastle para este evento.
– Lady Horncastle? A velha está aqui? – perguntou ele, olhando em volta.
Keira conteve uma gargalhada.
– Está, sim. – Inclinou-se para ele. – Está decidida a encontrar um par adequado para o filho.
– Não tenho dúvidas de que não terá qualquer problema – murmurou Declan. Keira soltou um
risinho escondido pelo leque; era um encanto. – E agora está em Londres – continuou Declan. – Da
última vez que a vi estava decidida a regressar à Irlanda.
Keira sorriu com insegurança e as suas faces ficaram muito coradas, talvez por se lembrar, tal
como ele, do beijo que Declan lhe dera nesse dia.
– Mister Fish e eu viemos pedir o conselho de Mister Goodwin.
Declan riu entre dentes.
– Afinal, parece que, por uma vez, resolveu seguir o meu conselho. É possível que ainda haja
esperança para si.
Keira sorriu e inclinou graciosamente a cabeça.
– A minha disposição melhorou imenso, desde que fui tão rudemente dispensada da sua presença
no nosso último encontro.
– Não foi nada – disse ele, sorridente.
– Claro que fui.
Keira soltou uma gargalhada.
– Como entrou Lady Horncastle nisso? – perguntou Declan distraidamente.
A rapariga encolheu os ombros e olhou em volta da sala.
– Eu precisava de um lugar onde ficar – respondeu, observando os pares que dançavam. – Lady
Horncastle ficou felicíssima por poder ajudar-me. Viu nisso uma desculpa para procurar potenciais
pares para o filho. – Sorriu travessamente. – Desde que não se lembre de mim...
Declan sorriu.
– É perigoso para si estar aqui.
– Eu sei – concordou ela com um suspiro. – A sério que não tive alternativa. E a verdade é que
estou muito contente por aqui estar – continuou, olhando para ele de través. – Nunca teria vindo a
Londres, ou a um baile desta dimensão, sendo eu, não com tantas regras sociais quanto a quem se
associa com quem. Decerto que nunca aqui entraria pelo braço de Mister Maloney – acrescentou com
uma leve careta. – Eu quero viver, Declan. Quero experimentar aventuras e emoção enquanto posso.
Como Lily, posso viver, ao menos por algum tempo. Sei que é perigoso, mas também é… libertador.
Declan percebia o que ela queria dizer. Sentia o mesmo em relação à sua vida. Preferia andar pelo
mundo a experimentar o que a vida tinha para oferecer em vez de se deixar enferrujar em
Ballynaheath, a contar ovelhas e vacas e a reparar vedações. Olhou para Keira enquanto a jovem
admirava os bailarinos. Era preciso presunção para fazer o que ela fazia, mas também uma certa dose
de coragem.
– Não a preocupa ser descoberta? – perguntou, curioso.
– Estou a ser tola, não estou? – respondeu a jovem sorrindo e abanando a cabeça.
– Terrivelmente – concordou Declan. – Mas só os tolos descobrem o mundo. – Piscou-lhe o olho. –
Deve sentir-se satisfeita por se ter decidido a não dar meia volta e fugir.
– Oh, Declan. – Keira suspirou docemente. – O que quer que diga? Que tem razão?
Donnelly sorriu preguiçosamente e resistiu à tentação de lhe tocar.
– Confesso que nunca me canso de a ouvir dizê-lo.
Ela abanou a cabeça ao mesmo tempo que soltava uma curta gargalhada, cujo som foi com uma
pincelada de seda no coração de Declan.
– Pronto, Donnelly, agora já sabe. E agora diga-me, porque está em Londres?
Por sua causa.
– Por nenhuma razão que possa achar interessante, estou certo.
– Mmm – respondeu ela, olhando para ele com ar desconfiado.
– Dança, Lady Ashwood? – perguntou ele, oferecendo-lhe a mão.
– Dhia, será um engano dos meus ouvidos? – Sorriu e pousou a mão na dele. – Creio que começa a
achar-me tolerável.
Declan fechou os dedos em torno dos dela.
– Nada disso – retorquiu em tom jovial. – Estou apenas a ajudar uma compatriota a manter as
aparências. Uma verdadeira condessa teria um séquito desejoso de a levar a dançar.
– Meu herói – brincou ela, piscando-lhe o olho, permitindo que ele a conduzisse até à pista do
mesmo modo casual que ele achava que um homem normal desceria de um penhasco.
Dezassete

Declan era um excelente bailarino.


Ou talvez Keira estivesse simplesmente encantada com o seu sorriso fácil, com as suas rugas de
expressão nos cantos dos olhos, e com o modo firme como a segurava enquanto volteavam pela pista.
Era uma valsa, uma dança que ela e as irmãs tinham praticado na privacidade dos seus quartos. O pai
morreria de imediato se soubesse que alguma das suas filhas dançava de forma tão íntima com um
homem.
E Keira percebeu os receios do pai. A dança era inebriante. Rodopiaram por baixo de dois
enormes candelabros com dezenas de velas de cera, sobre um soalho de madeira polida e diante das
portas francesas por onde entrava uma refrescante brisa de verão. Declan movia-se com imensa
suavidade, enquanto a pressão da mão deste no fundo das suas costas indicava a direção que deviam
seguir. Segurava a sua outra mão bem alto na sua, conduzindo-a para um lado e para outro. A cauda
do vestido enrolou-se em torno da perna dele, tanto que a pressão a obrigou a chegar-se mais ao
corpo dele, com uma perna entre as dele, sentindo o amplexo quente e firme com que a segurava.
Keira nunca tinha dançado tão livremente. Estavam rodeados de pessoas, mas ela tinha perdido a
noção da sua presença. Havia-se perdido numa recordação de Declan, iniciada quando era pouco
mais que uma miúda. Mas aquilo era diferente. O que estava a viver não era um sonho de menina. Era
algo que sentia no mais profundo do seu ser, algo rodopiante que atiçava o desejo que sentia por ele.
Quando a dança chegou ao seu inevitável fim, Declan conduziu-a para fora da pista. Quis
agradecer-lhe, mas uma mulher fez a sua aparição junto deles, toda ela olhos em Declan,
acompanhando o olhar com um sorriso intencional.
– Meu caro Lorde Donnelly! – exclamou.
– Miss Adams – respondeu Declan com um sorriso fácil e encantador.
Pela forma como Miss Adams olhava para Declan, Keira percebeu que estava a mais. Foi
abruptamente assaltada pela recordação de que Declan sempre se movimentara num mundo diferente
do seu. Sempre fora o desejado conde indómito e despreocupado, enquanto Keira sempre fora a
destemida filha mais velha de Brian Hannigan, o cidadão mais influente de County Galway depois de
Donnelly, o que só era possível por se tratar de um homem abastado. O pai de Keira conseguira a sua
posição a negociar lã com o Continente, onde era usada no fabrico de uniformes. E usava
liberalmente a sua riqueza para influenciar o cenário político da Irlanda.
A família de Keira dedicava-se a todo o tipo de passatempos e de ocupações a que a ton inglesa
torcia o nariz.
Keira não era condessa. Não pertencia a uma família com um título social. Nunca teria entrado
naquele luxuoso salão de baile se não fosse o seu embuste. Nunca teria residido em casas tão bonitas
como aquela, cujas dimensões e riqueza de mobiliário ultrapassavam em muito tudo o que alguma
vez vira na Irlanda.
Foi a bela mulher de vestido de seda, aparência irrepreensível e sorriso lascivo que falava com
Declan naquele momento que a fez lembrar que assim era. Quando Declan se voltou para a mulher,
Keira afastou-se dele.
Aquele não era o lugar dela. Keira olhou em volta, contemplou a opulência e a grandeza de
Darlington House e percebeu que, de várias maneiras, tinha começado a acreditar na mentira que
criara no dia em que se tornara Lily.
Passou o resto da noite pensativa, dançando apenas ocasionalmente… mas uma das danças
pareceu-lhe tão mágica como a que partilhara com Declan. Evitara conversar, imaginando que quanto
menos dissesse mais segura estava. Mas era difícil estar só. Lady Horncastle estava claramente
orgulhosa por ter chegado na companhia da condessa e arrastava sucessivas pobres almas para o
lado de Keira.
– Minha querida Lady Ashwood, tem de conhecer Lorde Dithers – chilreou, de braço dado com o
velho visconde.
Keira acabou por conseguir escapar à atenção de Lady Horncastle. Desejava estar noutro baile,
particularmente depois de, ao vaguear por entre os presentes, ter visto Declan dançar com Miss
Adams.
Miss Adams parecia muito feliz por estar nos braços dele. Extremamente feliz. Keira não duvidava
que todas as mulheres se sentissem felizes por se verem nos braços de Declan. Tinha sabido da
rapariga do Grousefeather. Mrs. Norton falara-lhe interminavelmente de como pretendia juntar
Declan com Clarissa Pontleroy, a filha de Mr. Robert Pontleroy, um rico proprietário de terras de
South Downs. E era dolorosamente evidente para Keira que Daria Babcock cravaria os dentes em
Declan como um cão num osso ao mínimo encorajamento.
Keira tinha acabado de pedir um copo de ponche a um criado quando Declan surgiu ao seu lado e
disse:
– Desapareceu.
– Nada disso. Limitei-me a afastar-me, para que todas as senhoras possam ter a justa oportunidade
de obter a sua atenção.
– A sério? Pensei que me tinha abandonado na linha da frente da batalha para ser admirada por
todos os cavalheiros presentes nesta sala.
Keira ergueu o sobrolho.
– Devia casar-se, Declan. Sabe que a Eireanne adoraria ter a companhia de outra mulher em
Ballynaheath. – O criado chegou com o ponche. – Obrigada.
– Não posso crer que até a Keira ache que um homem deve casar só para oferecer uma
companheira à irmã – troçou Declan, fazendo que não com a cabeça quando o criado lhe ofereceu
ponche.
Keira encolheu os ombros e evitou o olhar dele.
– Calculo que existam motivos piores para casar – notou. – A minha família parece acreditar que
devemos casar simplesmente por casar.
– Temo que seja a armadilha da sociedade para todos nós – opinou Declan, sorrindo.
Keira bebeu um gole de ponche. Tinha um sabor um pouco ácido; franziu o cenho e olhou para o
copo.
– Foi liberalmente regado com gim – explicou Declan, rindo entre dentes perante a surpresa dela. –
Está em Londres, muirnín.
E ela percebeu que era por isso que precisava de toda a sua lucidez, razão por que lhe entregou o
copo. Declan deixou-o em cima de uma mesa próxima.
– Já conhece o parque nas traseiras da casa? – perguntou ele.
Keira negou com a cabeça.
– Gostaria de ir até lá agora? – continuou Donnelly.
– Está escuro.
Ele piscou-lhe um olho matreiro.
– Não se apoquente, rapariga. Eu saio do seu lado e protejo-a dos monstros que ali vivem. –
Endireitou-se e ofereceu-lhe o braço.
Ela olhou para o braço que lhe oferecia e imaginou-o a apertá-la contra si, envolvendo-a com os
braços e colando a boca à dela.
– A verdade é que preciso de apanhar um pouco de ar – concordou. Que tola era. E se fossem
descobertos? E se não fossem?
Keira deixou que ele a conduzisse para o exterior.

Não estava muito mais fresco no parque. Viam-se vários casais e grupos que passeavam e ouviam-se
risos. Declan e Keira passearam em silêncio pelo meio do relvado e Declan parou quando se
aproximaram de uma fonte particularmente interessante. Afastou-se dela, cruzando os dedos atrás das
costas e olhando para o céu.
– Está uma bela noite.
– Pois está – concordou Keira, olhando para ele.
Declan voltou-se subitamente para ela e o seu olhar percorreu-lhe o corpo. Estava a admirá-la.
Keira conhecia aquele olhar; tinha-o visto muitas vezes. Mas nunca a tinha feito sentir tão… vívida.
– O Sibley deve sentir-se mal na sua ausência – observou Donnelly.
– Quem? – respondeu ela com um sorriso intencional. – Pretende voltar para Kitridge Lodge? –
continuou. – Ou veio para passar uma longa temporada em Londres?
Ele pareceu pensar na pergunta por um instante. Ela achou que havia algo na sua expressão, alguma
coisa no seu olhar, uma centelha do que ela sentia.
– Claro que pretendo – respondeu Declan. – Os meus cavalos estão lá.
Talvez fosse da luz suave das tochas e da Lua. Keira não lhe chamaria exatamente desejo, mas uma
vontade.
– Com certeza, os seus cavalos – murmurou.
Ele olhou para baixo e afastou o cabelo da testa.
– Na verdade, decidi ajudá-la, Keira. Vou ajudá-la como puder até à vinda da Lily.
O coração dela falhou um batimento.
– Não é necessário. Sei o que pensa de mim e das coisas que faço, especialmente depois de a
Eve…
– Não, Keira. Não é por sua causa que sinto… – Abanou a cabeça. – O meu desapontamento, a
minha raiva, são comigo. Nunca me conseguirei perdoar, mas isso… tem de ser visto na devida
perspetiva. – Dirigiu-lhe um sorriso torto. – Estou muito mais preocupado com o seu crime atual. Em
boa consciência, não a posso abandonar. Como iria explicar ao seu pai que tinha ido parar a uma
prisão inglesa?
Ela tentou rir, mas a sua mente foi subitamente tomada pela imagem de uma cela escura e húmida.
– Assim que a Lily chegar, tem de me prometer que procura uma aventura nova e sincera, Keira.
O coração de Keira animou-se. A verdade é que tinha uma aventura ou duas em mente e Declan
estava envolvido.
Ele aproximou-se.
– Na Irlanda – apontou.
– Pretende mandar-me para casa? – perguntou Keira, pestanejando.
– Sim. Posso brincar com o assunto, mas o que está a fazer é crime. Receio que corra perigo grave
se for descoberta.
– Ah, mas o Declan protege-me dos monstros – respondeu ela, provocadora, dando-lhe uma
pancadinha no peito.
Declan apanhou-lhe a mão e prendeu-a contra o peito.
– Não pense nisso – avisou. – Ajudo-a no que puder, mas sabe que não pode haver mais nada.
– Não pretendia… – respondeu Keira, sentindo um incêndio nas faces.
– Oiça o que lhe digo. – Fechou a mão sobre a dela e aproximou-se mais. – Eu partilho o seu amor
pela liberdade. Ficar no mesmo lugar durante muito tempo não é para mim. Não sei dizer quanto
tempo ficarei em Kitridge Lodge ou mesmo em Inglaterra. Não seria capaz de lhe dar falsas
esperanças, por isso lhe digo que não poderei ajudá-la para além do regresso da Lily. Percebe o que
lhe digo?
Chocada, só conseguiu assentir com a cabeça. Nunca esperara mais e sem dúvida que não esperava
a ajuda dele. Talvez fosse a sugestão de que estava para muito breve o dia em que acabariam por se
separar que a fez sentir subitamente enjoada.
Ele sorriu carinhosamente e acariciou-lhe o pescoço.
– Vamos lá descobrir a extensão da culpa de Mister Scott e como morreu a sua tia – disse. –
Podemos começar pelos registos do julgamento.
– Sim – concordou Keira, afastando mentalmente a tristeza que sentia. – Quanto mais cedo
descobrirmos a verdade, mais cedo posso acabar com esta mentira abominável.
– Sim, pois, uma coisa de cada vez – continuou Declan, encostando casualmente a palma da mão ao
pescoço dela. O seu olhar procurou o dela e, ao luar, ela acreditou que havia nele pelo menos um
pouco de admiração.
– Não seria pior sermos discretos, pois não? – sugeriu Donnelly. – Afinal, não nos serviria de nada
que alguém achasse que existe algo mais na nossa relação. Podíamos ser suspeitos de conspiração.
– Deus proíba – respondeu Keira com um sorriso jovial. – Um tal rumor podia arruinar a minha
reputação. Ainda acreditam que lhe tenho estima. Ou o Declan a mim.
– Impossível – respondeu com um sorriso.
– Com certeza. – Keira devolveu-lhe o sorriso. – Tem-se em muito boa conta.
Declan alargou o sorriso e puxou-a para mais perto de si.
– A nossa união seria, no mínimo, infeliz – disse, beijando-a no canto da boca. – Está sempre a
desafiar-me.
Keira sentiu-se como se brilhasse por dentro. Cada toque da mão dele, cada pressão dos seus
lábios, fazia com que um novo choque de luz a percorresse.
– E o Declan dá-me ordens como se eu fosse uma criada – sussurrou junto da face do homem.
– Diz quem nunca obedece – observou ele, beijando-lhe os lábios.
Keira perdeu todas as inibições com aquele beijo. Percorreu-lhe o peito, o rosto e o queixo com as
mãos.
– Este será o nosso último beijo – disse.
– Que beijo? – perguntou Declan enquanto a sua boca descia para a dela. Posicionou a cabeça para
a beijar, a sua língua descendo aos confins da boca dela. As suas mãos percorreram-lhe o corpo,
subindo e descendo as costas da rapariga, antes de chegarem às ancas. Tomou o rosto dela nas mãos
e levantou-lhe a cabeça, olhando para ela de cima.
– Acabou-se – disse, passando-lhe um dedo pelos lábios. – Acabaram-se os beijos. Acabaram-se
os toques. – E beijou-a de novo.
– Nunca mais – disse Keira, rindo quando os lábios dele tocaram os seus.
O som de vozes apelou às consciências de Keira e de Declan e ele levantou a cabeça e olhou na
direção da casa.
– Temos público – murmurou e o seu tom não era de contentamento.
– Talvez seja melhor regressarmos ao baile antes que as mexeriqueiras comecem a planear o nosso
casamento – sussurrou Keira, espreitando a escuridão.
– É melhor – concordou Donnelly com um suspiro. Acariciou-lhe as costas e beijou-a uma vez
mais antes de a conduzir ao caminho principal.
No entanto, enquanto subiam o relvado em direção à casa, foram intercetados por Lady Horncastle
e outra mulher. Declan fez-lhe uma vénia.
– Vossa Graça – saudou.
Keira sentiu um aperto no estômago, curvando-se imediatamente numa vénia.
– Aqui está o senhor, Donnelly – disse a mulher. – Todos falam de si.
– De novo? – respondeu ele de modo encantador.
– Vossa Graça, permita que lhe apresente Lady Ashwood – disse Lady Ashwood animadamente. –
Lady Ashwood, a duquesa mãe de Darlington.
Keira sentiu uma nova tremura no estômago. A mulher era uma duquesa e não uma duquesa
qualquer. Darlington era um nome reverenciado em Inglaterra.
– Vossa Graça – cumprimentou.
A duquesa sorriu calorosamente.
– Olhe para si, minha querida, tão crescida. Lady Horncastle disse-me que a sobrinha da Althea
estava cá e fiquei encantada! Não a via desde que tinha seis anos. É bom ver que se fez uma bonita
mulher adulta, Lady Ashwood. Tem de vir a Londres mais vezes! O meu filho Harry acaba de
regressar de França…
– Tem muita coragem, para ir a França em tempos como estes – interveio um sorridente Declan,
estendendo o braço a Keira.
– Há quem diga que é um tolo – protestou Lady Darlington.
– Queira apresentar os meus cumprimentos ao Harry – pediu Declan. – Minhas senhoras. – Baixou
a cabeça numa saudação e levou Keira para longe.
– Obrigada – murmurou Keira.
Declan respondeu envolvendo a mão dela na sua e apertando-lhe levemente os dedos. Foi um gesto
simples, mas que fez com que Keira se sentisse segura junto dele, quase como se ele a protegesse do
seu próprio embuste.
– Quando regressa a Ashwood? – perguntou Declan ao entrarem no salão.
– Amanhã.
– Fique.
Foi uma única palavra, uma pequena e deselegante palavra, mas talvez a mais bela palavra da
língua inglesa. Ela queria ficar.
– Não posso – respondeu baixinho. – Tenho de regressar. Aconselhou-me a que não fugisse dos
meus problemas, recorda-se?
– Pensando melhor, acho que foi um conselho muito mau.
Ela sorriu.
– Quando volta? – quis saber.
Ele olhou para o outro lado da sala. Keira seguiu-lhe o olhar e viu Miss Adams.
– Não sei dizer – respondeu, piscando-lhe o olho. – Anime-se, Keira, e não se demore muito com
nenhum destes cavalheiros. Pensarão que está no mercado para casar. – Baixou a cabeça numa
despedida. – Boa noite, muirnín.
– Boa noite, milorde.
Ficou a vê-lo afastar-se. Ainda não tinha recuperado o fôlego e tentou inspirar quando o viu
colocar a mão sobre o ombro de outro homem e os dois começaram a rir. Não conseguiu. Céus,
Keira. Sabia o que era aquela coisa que sentia. Era intensa e devoradora, muito mais do que quando
tinha dezasseis anos. Aquela era uma sensação completa e robusta. Sensual. Consumidora.
Continuava a imaginar-se apaixonada por ele.
Dezoito

Keira adorava Londres, mas o encontro com a duquesa na noite anterior fora demasiado, mesmo para
ela. E Keira não podia deixar de pensar em quantas outras pessoas que se lembravam de Lily
andariam por Inglaterra ou estariam ao seu lado em bailes.
E foi com um certo alívio que Keira partiu de Londres pouco depois do seu encontro com Mr.
Goodwin. Este era um homem gorducho e jovial, com um nariz bolboso, que bombardeou Keira e Mr.
Fish com um sem-número de perguntas. No final da reunião de uma hora, Mr. Goodwin disse que
tinha muito que investigar e que daria notícias em breve.
Olhando para trás, Keira achou que o encontro tinha corrido suficientemente bem. Estava muito
contente por regressar a Ashwood e, ao subir os degraus da casa e entregar alegremente o chapéu a
Linford, percebeu que teria muitas saudades daquele lugar quando fosse obrigada a partir.
Mr. Fish voltou da cidade no dia seguinte. Também estava muito otimista relativamente à reunião
com Mr. Goodwin.
– Acho que ele nos vai ajudar – comentou. – Não há ninguém melhor que ele, madame.
Teria de agradecer a Donnelly por lhes ter dado o nome do homem da próxima vez que o visse.
Keira passou os dias seguintes a cuidar da lista interminável de afazeres. Também tocou piano e
tentou, em vão, ajudar Lucy com a sua arte. Sentiu-se muito contente por poder isolar-se durante
algum tempo, mas, inevitavelmente, acabou por ser chamada à aldeia para uma reunião relativa à
gala de verão.
Oh, a gala de verão! Não fosse por isso e Keira achava que poderia viver em paz. Mas as senhoras
de Hadley Green estavam completamente fascinadas com a mesma e parecia que a cada semana que
passava pensavam em mais coisas que era preciso fazer.
Nessa tarde, reuniram-se todas em casa de Mrs. Morton, que tinha posto mesas com toalhas de
linho no seu relvado para tomarem chá. As mesas estavam cobertas de porcelanas e serviços de chá,
de scones acabados de fazer e de flores. Keira e Lucy sentaram-se à mesa de Mrs. Morton,
juntamente com Mrs. Ogle, Miss Babcock e Lady Horncastle, que, na opinião de Keira, parecia um
pouco triste.
– Boa tarde a todas – começou Keira alegremente, indicando uma cadeira a Lucy. – Está um dia
glorioso, não acham?
– Lindo! – concordou Mrs. Ogle.
– Se acham que sim, atrevo-me a dizer que não passaram pelas provações e atribulações por que
passei – queixou-se Lady Horncastle.
– Tenho muita pena de o saber, madame – respondeu Keira. Outra vez¸ pensou. Em Londres, tinha
ouvido mais de uma vez as provações e atribulações a que fora sujeita Lady Horncastle,
maioritariamente relacionadas com o seu filho.
– Tive uma discussão com o Frankie – explicou Lady Horncastle, como se Keira tivesse
perguntado. – Arruinou-me por completo o dia!
– O dia inteiro, madame? – inquiriu secamente Mrs. Morton, mexendo o chá de modo casual.
Lady Horncastle ignorou a observação e voltou-se para Keira.
– Foi apresentada a Miss Reynolds, não foi? É uma rapariga adorável, com um rendimento de duas
mil libras por ano, se bem se lembra. Considero-a um ótimo partido, mas o meu filho nem quer ouvir
falar dela! – protestou, atirando com o guardanapo para exprimir o seu desagrado.
Keira lembrou-se de uma rapariga tímida com dentes pouco lisonjeiros.
– A sério? – perguntou descontraidamente, sorrindo para Lucy.
– Nem por um instante! – continuou Lady Horncastle secamente. – Anda de olho na Nell Adams, tal
como metade de Londres, mas garanto-vos que ela há de casar com Lorde Donnelly antes do final do
ano, se é que se casa mesmo! Não é segredo para ninguém que se tornaram muito próximos.
– Miss Adams? – perguntou Miss Babcock num tom bastante desiludido. – Mas quem é ela? Nunca
tinha ouvido falar dela.
– E nem ouviria, minha querida, mas ela é da cidade. Miss Adams é filha de um homem muito rico.
Constrói barcos.
– Navios, mais concretamente – precisou Mrs. Ogle.
– Navios, barcos, não importa. É um mercador. E, apesar de ser dono de uma fortuna considerável,
vem tudo do comércio. Ao menos, Miss Reynolds tem um barão entre os seus antepassados.
Acreditem que, se Miss Adams fosse filha do rei, continuaria a não ser minimamente adequada para
o Frankie. Além disso, está determinada a conquistar Lorde Donnelly e atrevo-me a dizer que ele
está igualmente decidido a ficar com ela.
– Oh! – exclamou Miss Babcock. Parecia tão desiludida como Keira se sentia.
– Surpreende-me que não tenha reparado, Lady Ashwood – continuou Lady Horncastle. – Ele
esteve três vezes com Miss Adams no baile dos Darlington…
– No baile dos Darlington? – Miss Babcock pareceu ainda mais desiludida. – Foi a um baile dos
Darlington?
– Três vezes – continuou Lady Horncastle. – E ele mal tirava os olhos dela durante toda a noite!
– Céus – surpreendeu-se Mrs. Morton. – Foi bastante observadora do que fazia Lorde Donnelly.
– Que mais podia eu fazer, com o Frankie por ali, em busca da atenção de Miss Adams? E pensar
que ele se imagina muito apaixonado por ela! Lud!
– Credo, não esteja tão abatida – consolou Mrs. Ogle e Keira endireitou-se e sorriu antes de
perceber que Mrs. Ogle estava a olhar para Miss Babcock.
– Não estou nada! – protestou Miss Babcock, esforçando-se por sorrir de modo convincente. – O
que… Acham que eu…? – Riu-se e sacudiu a mão. – Com certeza que não!
Lucy olhou para Keira com curiosidade.
– Isso quer dizer que Lorde Donnelly não vai voltar? – perguntou.
– Claro que volta – respondeu Mrs. Morton, dando uma palmadinha na mão da menina. Todos os
cavalheiros do Sussex virão ver Sua Senhoria, pois ela é um regalo para os olhos. Mas acho que
todas sabemos a quem dedica o seu afeto, não? – perguntou, lançando um olhar astuto em volta da
mesa.
– Credo! – exclamou Keira. Seria tão óbvio? Sentiu um calor na parte de trás do pescoço.
– Está entre amigas – continuou Mrs. Morton. – Além disso, acho que todas gostaríamos de assistir
a um casamento em Ashwood.
– Como?
– É certo que ele é o terceiro filho de um visconde, mas não deixa de pertencer a uma boa família –
disse Mrs. Ogle orgulhosamente, com um sorriso idêntico ao de Mrs. Morton. – A sua posição podia
fazer imenso por um jovem como ele.
– Por quem? – perguntou Keira, absolutamente espantada.
– Ora essa. Por Mister Sibley, claro – respondeu Mrs. Ogle.
– Mister Sibley?
– Ele tem uma profunda adoração por si – informou Mrs. Morton com um sorriso radiante.
– É possível, mas garanto que não sinto qualquer adoração por ele…
– Mister Sibley é um partido adequado para uma condessa – interveio Lady Horncastle com grande
autoridade. – É um terceiro filho. Não receberá nada além de uma pequena casa e um estipêndio.
– Obrigada, Lady Horncastle – disse Keira, imensamente aliviada.
– Na verdade, dificilmente encontrará um homem adequado para ela em todo o Sussex. Não,
minhas queridas, Lady Ashwood pode arranjar um partido muito melhor do que lhe podemos
oferecer.
– Tem alguém em mente? – perguntou Miss Babcock com voz triste.
– Na verdade, tenho. – Lady Horncastle endireitou-se na cadeira. – A minha querida amiga, a
duquesa mãe de Darlington, acha que o seu filho Harry, um visconde, se apaixonaria por si graças
aos seus atributos, Lady Ashwood.
A afirmação foi recebida com arquejos a toda a volta da mesa, mas Keira teve a sensação de estar
a afundar-se.
– Acha verdadeiramente possível? – guinchou Mrs. Morton.
– Não só acho possível, como acho provavelmente iminente.
– Como disse, Lady Horncastle? – apressou-se a perguntar Keira, antes que a levassem para a
capela para recitar os votos de matrimónio. – Eu nunca fui apresentada a esse cavalheiro.
– Um visconde, Lady Ashwood – disse uma emocionada Mrs. Ogle. – Que oportunidade tão feliz!
– Senhoras, por favor – insistiu ela. – Tenho pai e mãe e agradeço que não me arranjem
casamento.
Mrs. Ogle arregalou os olhos.
– O que foi? – perguntou Keira, olhando em volta.
As senhoras trocaram olhares entre si antes de Mrs. Morton dizer:
– Pai e mãe?
Keira sentiu um aperto no estômago. Era tão descuidada!
– A minha tia e o meu tio, naturalmente. São como pais para mim e tendo a pensar neles como tal.
Na verdade, gostaria de dar por terminada esta conversa sobre partidos, se não se importam.
– Oh, quase me esquecia! Souberam da novidade? – perguntou Miss Babcock, desejosa de lhe
fazer a vontade. – O doutor Creighton vai arranjar um aprendiz – anunciou, começando a discorrer
sobre o novo aprendiz do clínico.
Keira soltou um leve suspiro de alívio. Mas não deixou de reparar que Mrs. Ogle olhava para ela
de forma algo estranha.
Quando seguiam na carruagem a caminho de casa, nessa tarde, Lucy afastou o nariz da janela e
olhou para Keira.
– Vai casar com um visconde, m’dame?
Keira soltou uma gargalhada.
– Não, pequenina – respondeu. – Aida não conheci o homem certo. Lady Horncastle gosta de
imaginar essas coisas.
Lucy meditou naquelas palavras por um instante.
– Prefiro pensar que se vai casar com Lorde Donnelly – disse casualmente. – A sério que gostava
que assim fosse.
Keira também gostara, em tempos. Sorriu e passou um braço sobre os ombros de Lucy, puxando-a
para si.
– Tenho de lhe dizer uma coisa acerca de Lorde Donnelly, minha querida. Ele não é do género de
casar.
– Porque não? – perguntou Lucy com curiosidade.
Keira desejou saber a resposta àquela pergunta.
– Não sei – admitiu.
– Gosto imenso dele – disse Lucy, fazendo beicinho.
Ela também gostava imenso dele.
Dezanove

Poucos dias depois do seu regresso a Kitridge Lodge, Declan cumpriu a promessa de ajudar Keira.
Voltou mudado de Londres. Tinha afastado de si os perturbadores e sombrios pensamentos de
Keira e os seus olhos irlandeses, tinha desfrutado da companhia de outras mulheres, ainda que só nos
salões de dança, e regressara ao campo para ver uma égua que tinha acasalado com sucesso com um
cavalo austríaco.
Quando achou que era seguro para si visitar Ashwood, passou por Hadley Green para beber
algumas cervejas na Grousefeather, jogou um pouco às cartas e, depois de uma mão particularmente
má lhe ter esvaziado os bolsos, atravessou o jardim da aldeia em direção aos registos paroquiais.
Mrs. Ainsley, uma mulher viva e magra, recebeu-o com todo o prazer, especialmente depois de ele
elogiar a sua adorável gola de renda.
– Ricamente trabalhada – observou. – Sem dúvida que foi comprada em Londres. Na Queen’s
Lace, não é verdade?
– Na Queen’s! – exclamou a mulher, corando um pouco. – Não, milorde, foi feita por mim. – E
tocou-lhe ao de leve.
– Pela senhora? – continuou ele, fingindo surpresa. – Não há dúvida de que é muito talentosa,
madame.
Ela corou ainda mais, mas sorriu de orgulho.
– Bem… Acho que as minhas rendas me valem alguma admiração.
Pouco depois, Declan tinha o que fora procurar.
Em Ashwood, Linford conduziu-o até ao jardim, onde encontrou Keira com um grande chapéu de
jardinagem e avental, ocupada a cortar rosas. Lucy Taft estava com ela, naturalmente, também ela a
cortar.
– Ora, ora – disse Keira quando se juntou a elas. – O gato veio fazer ninho.
– Julgo que quer dizer o pássaro – corrigiu-a. Olhou para Lucy. – E como está a correr o seu dia? –
perguntou à criança.
– O meu? Muito bem – respondeu Keira alegremente, sem levantar os olhos do que estava a fazer.
– Não podia ser melhor.
– Isso são esplêndidas notícias, mas estava a falar com Miss Taft.
– Oh! – Keira levantou o olhar para ele, surpreendida.
– Estou muito bem, milorde – disse a pequena, fazendo uma vénia. Fixou o olhar em Declan. –
Miss Adams veio consigo?
– Lucy – censurou Keira, com uma gargalhada. – Lady Horncastle deu livre voz às suas opiniões –
explicou, ao ver o olhar de curiosidade de Declan.
– Percebo – disse ele, sorrindo para Lucy. – Não veio, não.
Lucy pareceu desiludida.
– Esteve ausente bastante tempo, Donnelly – observou Keira em tom ligeiro, voltando a cortar
rosas. – Deve ter-se divertido imenso em Londres.
– Foi muito agradável, sim – concordou, vendo Keira cortar uma rosa, que deixou cair no chão. – E
como foi Londres para si?
Keira curvou-se para apanhar a rosa e atirou-a descuidadamente para o cesto.
– Aceitável – disse, olhando para ele pelo canto do olho.
– Pelo menos foi a um baile. Seria de pensar que é do agrado de uma condessa.
– Oh, foi adorável – respondeu Keira, cortando várias rosas e atirando-as para dentro do cesto.
– Lady Ashwood pode vir a casar com um visconde – anunciou Lucy.
– Por amor de Deus, Lucy! – exclamou Keira. – Não deve repetir tudo que diz Lady Horncastle.
Ela tem tendência para criar ilusões.
– Um visconde? – interessou-se Declan.
Keira fez sinal com a mão para que não ligasse.
– Lady Horncastle e Lady Darlington conspiraram em torno do filho mais novo de Lady Darlington,
Lorde Raley.
Declan não se conseguiu impedir de bufar. Conhecia Harry e não havia homem mais dissoluto em
Inglaterra.
Mas aquele bufar de descrença valeu-lhe um olhar carregado de Keira. Os olhos dela fixaram-se
no seu rosto antes de se dedicar de novo à jardinagem.
– E o que o traz até Ashwood esta tarde? – perguntou descontraidamente.
– Achei que podíamos ir até Hadley Green, fazer uma visita aos registos paroquiais e dar uma vista
de olhos aos registos que discutimos.
– A sério? – Keira cortou mais flores, apesar de ter o cesto quase a abarrotar. – E aparecemos nos
registos e pedimos que nos mostrem séculos de arquivo? – perguntou, cortando mais uma rosa, mas
esta demasiado perto do botão. Atirou-a para o caminho. Lucy apanhou-a.
– Não – respondeu Donnelly pacientemente. – Fiz algumas perguntas a Mistress Ainsley, que teve a
amabilidade de me disponibilizar os registos do julgamento. Foram colocados numa sala de leitura
separada e estão só à espera de ser lidos.
Keira fixou nele uma expressão fria.
– Não vem? – perguntou Declan. Ela não respondeu; olhou para Lucy. Donnelly fez o mesmo. –
Tinha pensado que podíamos ir a cavalo.
– A Lucy ainda não aprendeu a montar.
Por mais que gostasse da menina, não sentia qualquer vontade de ter a sua presença por perto nesse
dia.
– Vou pedir a Mister Noakes que venha connosco – disse.
– Decerto tem mais que fazer do que fingir de dama de companhia – observou Keira, franzindo o
cenho.
Declan aproximou-se mais de Keira e o ritmo da tesoura de podar aumentou.
– Se não soubesse, diria que está a evitar-me. Ainda por cima, depois de me ter implorado que a
ajudasse.
– Eu não implorei que me ajudasse. Apelei ao seu sentido de decência. E não estou a evitá-lo –
afirmou ela, mas com a aba larga do chapéu a proteger-lhe o rosto do olhar dele. – Julga-me mal,
senhor. Os meus pensamentos prendem-se em assuntos mais urgentes.
Ele nem queria acreditar.
– Muito bem. Nesse caso, volto amanhã, para irmos a Hadley Green ver os registos do julgamento.
– Está bem. – Keira pegou no cesto e olhou para ele. – Combinamos à uma da tarde?
– Serve perfeitamente.
– Esplêndido – respondeu ela secamente. – Vamos, Lucy, está na hora das aulas de música.
Passou por ele sem dizer mais nada. O avental tinha-se desapertado e um dos atilhos arrastou pelo
chão atrás dela quando pegou em Lucy pela mão e deixou o jardim. Declan não saiu do mesmo lugar
até virarem uma esquina e deixar de as ver. Só então tirou o chapéu e passou uma mão pelo cabelo.
Mulheres, as malditas mulheres. Era precisamente por isso que Declan preferia a companhia dos
cavalos.
Estava tão aborrecido pela forma praticamente gélida como fora recebido por Keira que ele e Mr.
Noakes chegaram mais cedo no dia seguinte.
Quando Keira finalmente desceu dos céus das alturas pela grande escadaria, envergava um traje de
montar cinzento que lhe cingia o corpo e um chapéu idêntico ao de Declan alegremente empoleirado
na cabeça, com a grande diferença de ter um ramo de margaridas preso na banda.
Deteve-se na entrada para calçar as luvas. Declan olhou para o chapéu e depois para ela.
– Bonito enfeite – elogiou.
– Obrigada – agradeceu Keira, inclinando-se para se ver ao espelho.
– Está pronta?
– Já é uma da tarde? – perguntou ela, prendendo uma madeixa de cabelo atrás da orelha.
– Uma e dez.
Ela afastou-se do espelho e cravou nele os olhos verdes brilhantes.
– Nesse caso, estou pronta. – E, com essas palavras, saiu porta fora.
Declan seguiu-a. Tinham-lhe trazido um cavalo dos estábulos, um belo animal que se sentira
extremamente ofendido por lhe colocarem uma sela de amazona. Keira subiu para o cavalo com a
ajuda do moço de estrebaria.
Compôs a saia e enfiou os pés nos estribos sob o olhar de Declan e Noakes.
Uma vez pronta, olhou para Declan.
– A senhora primeiro – disse este, apontando para a estrada.
Ela pôs o cavalo a trote.
Declan e Noakes trocaram um olhar e seguiram-na.
Como Declan calculara, a viagem até Hadley Green foi interminavelmente longa, com Keira
tentando equilibrar-se na sela de amazona, e não por causa do tempo que demoraram a percorrer os
poucos quilómetros que os separavam da localidade, mas porque foi obrigado a ver-lhe o traseiro
balançar para cima e para baixo naquela ridícula sela. Julgava ter afastado pensamentos loucos da
sua mente, mas ali estava ele, a imaginar como seria o contacto daquele traseiro com a sua mão. E
também por causa das flores que ela tinha no chapéu. Porque as flores o irritavam. Declan não sabia
dizer porquê. Talvez por serem tão desgraçadamente excêntricas, tão semelhantes a Keira. Qualquer
que fosse a razão, aquelas duas coisas conspiraram para o deixar de mau humor quando chegaram a
Hadley Green.
Na aldeia, Keira saltou do cavalo antes que Declan tivesse tempo de prender o seu. Ficou à porta
do registo, à espera que ele a abrisse para ela entrar.
– Pode tomar conta dos cavalos, Noakes? – perguntou Declan.
– Sim, milorde – respondeu Noakes, já à procura de maçãs para os animais no seu alforge.
Declan dirigiu-se para a porta do registo. Olhou para Keira, que sacudia a saia. Abriu-lhe a porta e
afastou-se. Ela entrou num repente; Declan pediu a Deus que lhe desse paciência.
– Lady Ashwood! – exclamou Mrs. Ainsley quando a viu entrar. – Não a esperava!
– A sério? – perguntou Keira educadamente, desviando o olhar para Declan. – Lorde Donnelly tem
uma coisa para me mostrar.
– Não demoramos – garantiu este a Mrs. Ainsley e, pondo-lhe uma mão nas costas, conduziu Keira
para a sala de leitura. Nenhum dos dois falou.
Keira deambulou pela sala enquanto Declan retirava os registos encadernados a couro de um
pequeno arquivador. Tirou as luvas e o chapéu, após o que desapertou o colarinho do traje de montar
e o da camisa, o que permitiu que Declan lhe visse o fundo da garganta.
Donnelly afastou o olhar daquele pedaço de pele macia e retraiu-se de a beijar.
– Vamos a isto, está bem? – disse secamente, abrindo um registo forrado a couro e libertando uma
nuvem de poeira.
Keira abanou dramaticamente enquanto era acometida por um pequeno surto de espirros. Declan
retirou estoicamente um lenço do bolso e entregou-lho. Keira aceitou-o sem dizer palavra, assoou o
nariz e atirou-lho de volta.
– Obrigada – disse num tom áspero. – E agora, o que é isto?
– São registos. Nascimentos, mortes, processos judiciais e coisas do género. Mistress Ainsley
disse-me que um destes volumes contém o registo do julgamento efetuado pelo magistrado. Sugiro
que o encontremos e comecemos a procurar o julgamento.
– Muito bem – concordou Keira, afastando uma cadeira da mesa e sentando-se. Olhou o conteúdo
da pasta que Declan abrira. – Isto parece ser um registo de nascimentos – disse, levantando algumas
páginas entre o indicador e o polegar.
– Nesse caso, passe ao próximo.
Ela fez o que ele pedia. Encontraram o registo certo um quarto de hora depois. Era bastante
espesso, o que dava a entender que os pequenos crimes e as disputas entre vizinhos eram comuns em
Hadley Green. Na realidade, eram tantos que Keira entregou metade das páginas a Declan e os dois
começaram a procurar juntos.
– Encontrei! – gritou Keira pouco depois. – Veja, Declan, está aqui tudo – disse, entusiasmada. –
«Processo contra Joseph Baron Scott, no caso do roubo de joias no valor aproximado de vinte mil
libras da propriedade Ashwood» – leu alto.
Declan levantou-se, aproximou-se de onde ela estava sentada e olhou por cima do ombro de
Keira.
– São páginas e mais páginas – constatou esta, desanimada.
Declan sentou-se ao seu lado e procuraram juntos nas sucessivas páginas do registo. A tinta tinha-
se desvanecido e a letra era muito apertada, presumivelmente para poupar papel. Estavam tão perto
um do outro que Donnelly conseguia sentir o calor de Keira no braço. Ela tocava-lhe na mão ou na
perna para ter a sua atenção e depois inclinava-se mais para ele para lhe mostrar alguma coisa ou
pedir que clarificasse alguma palavra.
A cabeça dele encheu-se do aroma do perfume da jovem.
Estava a ser uma tarde entediante.
Foi Declan quem encontrou os relatos das testemunhas. Uma criada admitira ter visto Mr. Scott em
Ashwood naquela tarde. O testemunho de Lily, que os dois leram, era particularmente condenatório.
Havia testemunhos do caráter de Mr. Scott, como Mr. Hollingbroke afirmara, mas nada que
pudesse provar o seu paradeiro na noite fatídica. Até a sua mulher fora forçada a admitir perante o
tribunal que ele saíra nessa tarde e só voltara noite tardia.
Depois de lerem tudo, Keira levantou-se e contornou a mesa, com as mãos cruzadas sobre o fundo
das costas.
– Ele não roubou as joias – afirmou.
– Há qualquer coisa que não está bem – observou Declan, analisando as páginas espalhadas em
cima da mesa.
– O que quer dizer com isso?
– Não há qualquer referência à sua tia. Nenhum testemunho, nenhum registo de presença. Se fossem
realmente amantes, ela não o teria tentado salvar? – Olhou para Keira. – Porque não veio ela em sua
defesa?
Keira fez uma careta pensativa e abanou a cabeça.
– Talvez me tenha enganado – admitiu. – Talvez não fossem amantes.
– Mesmo assim – contrapôs Declan, levantando-se. – Acho que o magistrado podia tê-la chamado,
a haver algum motivo para Mister Scott ter estado na casa naquele dia. Afinal, foi ela quem o
contratou para construir a escada. Não deviam ter-lhe perguntado se o tinha contratado para fazer
mais algum trabalho? Se ela sabia de algum motivo para a sua presença ali, naquela noite? Porque
não a interrogaram?
– Para a pouparem ao dissabor do inquérito? – sugeriu Keira.
– Para a pouparem a um dissabor, estando em causa a vida de um homem? – contrapôs Declan.
– A Lily disse que a tia Althea foi à Escócia visitar a tia Margaret. Talvez já tivesse partido.
– Quanto tempo esteve ela ausente?
Keira abanou a cabeça.
– Não sei. Lembro-me que quando a Lily chegou à Irlanda as folhas já tinham caído. Foi no final do
outono, e foi a tia Althea que a enviou.
Declan pegou na primeira página do registo do julgamento e reviu as datas. O roubo tinha ocorrido
no dia 14 de julho. Mr. Scott fora julgado no dia 26 e enforcado no dia 30. Ficou surpreendido com a
rapidez com que o haviam enviado para a forca.
– Ela partiu antes da execução? Ela viu-o ser enforcado?
– Não sei como poderemos descobrir – admitiu Keira.
Declan olhou de novo para os papéis.
– Através de Mister Samuel Bowman, o secretário do conde, eis como. Ele investigou o crime a
pedido do conde. Vou falar com ele, se ainda estiver vivo.
– Está vivo e bem vivo – revelou Keira. – Fish falou nele por mais de uma vez. – Pegou nos papéis
e colocou-os na pasta. – Vou perguntar a Mister Fish onde o posso encontrar e conversar com ele.
Não precisa de se incomodar. – Entregou a pasta a Declan.
– Não é incómodo nenhum – garantiu ele, recolocando a pasta na caixa.
– Pois bem, prefiro que não continue a investigação.
Declan deu meia volta e olhou para ela, mas Keira estava a abotoar a roupa.
– O que se passa consigo? – perguntou.
– Não faço a mínima ideia do que está a falar. Eu estou bem.
– Conheço-a muito melhor do que julga, rapariga – insistiu ele. – Está irritada com qualquer coisa
e não faço a mínima ideia do que seja.
Keira suspirou.
– Nunca devia ter-lhe pedido que se comprometesse a ajudar-me – disse. – Agradeço o que fez,
sinceramente, mas… Eu posso fazer o que ainda precisa de ser feito. – Olhou para ele, percorrendo-
lhe o corpo com os olhos. – Não preciso de si, Declan. Eu consigo fazer o que tenho de fazer. E disse
que não queria tomar parte nisto – acrescentou, olhando-o fixamente. – Como tal, abdico da sua
participação. Agora, se me dá licença, tenho de me ir embora. Prometi à Lucy que a levava a passear
de barco. – Voltou-lhe as costas e saiu da sala.
Declan abriu a boca de espanto. Basicamente, ela tinha-o afastado da demanda da verdade acerca
da morte de Mr. Scott. E, apesar da ironia do aborrecimento que isso lhe provocava ser um pouco
desconcertante, Declan não deixava de estar furioso com ela.
Saiu atrás de Keira, sem sequer se despedir de Mrs. Ainsley.
– Não sou assim tão facilmente descartável, madame – atirou, sem se importar que alguém o
ouvisse.
– Não o estou a descartar, milorde. Como poderia eu fazer tal coisa? Mas não o devia ter
envolvido nisto. Quer ajudar-me?
Ele avançou até junto dela, agarrou-a por um pulso e imobilizou-a no passeio. Keira enfrentou-o, a
mão já no arção da sela, ao mesmo tempo que endireitava o chapéu.
– Obrigada. Acompanha-me?
– É só isso que posso esperar? – quis saber Declan. – Um delicado «obrigada, mas pode largar-
me»?
– Sinceramente, estava à espera de mais?
– Pode apostar que…
– Lorde Donnelly – cortou Keira docemente –, Mister Noakes não tem qualquer vontade de ouvir
os seus protestos.
Ele dirigiu-lhe um olhar furioso, fechou a boca que o espanto insistia em manter aberta, deu meia
volta e dirigiu-se para o cavalo. Se não fosse um cavalheiro, deixaria que a rapariga voltasse a casa
sozinha. Mas, como não era o caso, adiantou-se na firme intenção de se manter sempre à frente dela
no caminho de regresso. Não sabia porque se preocupava com ela, nem porque se permitia sentir e
pensar coisas que nunca lhe passariam pela cabeça antes ou porque passava temporadas em Londres
quando tinha trabalho para fazer apenas porque queria livrar-se daqueles pensamentos. Tinha-se
deixado conquistar por um sorriso cativante, o que era claramente uma falha sua.
Espantou-se quando Keira surgiu à sua esquerda. Conseguira apanhá-lo apesar da maldita sela de
amazona e isso irritou-o. Pôs o cavalo a trote mais largo, mas depressa tornou a vê-la pelo canto do
olho. Voltou a cabeça para olhar para ela. Montava como um maldito pavão, com postura ereta e
olhos na estrada, como se nada se passasse.
Declan olhou por cima do ombro. Noakes seguia tão atrás que nunca os apanharia. Voltou de novo
o olhar para o pequeno pavão. Faria ela aquilo para o atormentar? De repente, saiu com o cavalo da
estrada e lançou-o em corrida pelo prado, certo que se livraria dela. Mas Keira surpreendeu-o de
novo; era, de facto, uma excelente amazona. Não só o alcançou, como ainda o ultrapassou. Tinha
perdido o chapéu e seguia inclinada sobre o pescoço do cavalo, segurando com força o arção da sela
e as rédeas, montando de forma temerária e perigosa. Declan refreou a sua montada quando se
aproximaram de uma vedação de pedra, certo de que Keira iria cair.
O cavalo saltou por cima da vedação e Keira manteve-se na sela.
Declan sentiu o sangue ferver. Foi atrás dela. A sua montada não o desiludiu. Assim que percebeu
que lhe tinham dado rédea solta, o jovem animal ganhou terreno na perseguição à égua de Keira e
colocou-se ao lado dela. Declan inclinou-se sobre o pescoço do seu cavalo e apanhou as rédeas da
égua, detendo os dois animais de imediato. A égua relinchou de descontentamento, mas Declan
segurou-a com firmeza, voltando-lhe a cabeça até o animal deixar de ver o caminho.
Só então se imobilizou.
Declan saltou do cavalo, agarrou Keira por um pulso e puxou-a para o chão. Ela dirigiu-lhe um
olhar de fúria e desafio. E Declan fez a única coisa que podia fazer. Beijou-a. Com força, com a boca
a esmagar a dela, com a língua dentro da boca dela.
E de repente largou-a e afastou-se, zangado com o descuido dela, zangado por isso lhe ter
incendiado o sangue e fazê-lo desejá-la tão desesperadamente como naquele momento.
Keira recuou alguns passos. O seu peito subia e descia ao ritmo furioso da respiração. Olhou para
ele como se o quisesse morder, atirou a chibata para o chão e avançou para ele. Declan preparou-se
para apanhar, mas Keira surpreendeu-o mais uma vez. Saltou para ele, envolvendo-lhe o pescoço
com os braços e cruzando as pernas sobre a cintura do homem, e devolveu o beijo.
Apanhou-o completamente desprevenido, fazendo com que caísse desamparado por uma perigosa
encosta do seu coração. Também o fez perder o equilíbrio, e caíram os dois, com Keira por cima.
A queda não a perturbou minimamente e encontrou de novo a boca dele.
Declan rolou até ficar por cima dela.
– Devia estar fechada num convento – atirou.
– Admira-me que não tenha partido o seu maldito pescoço – ripostou ela. – Porque não me deixa
em paz?
– Deixá-la em paz? Estava a tentar fugir de si!
– Fugir de mim e voltar para Miss Adams? – acusou Keira, furiosa, ao mesmo tempo que tentava
livrar-se do peso do corpo dele.
Declan ficou estático e depois colou-a ao chão.
– Era disso que se tratava? Arriscou o seu maldito pescoço porque tem ciúmes?
– Eu não tenho ciúmes – respondeu Keira, debatendo-se de novo. – Mal me importo consigo.
– Para sua informação, Nell Adams é uma caçadora de fortunas e um perfeito aborrecimento.
– Não quero saber. Saia de cima de mim – exigiu ela, empurrando-o mais uma vez.
– Eu gosto de mulheres, Keira, e aprecio a sua companhia. Mas isso não significa que goste menos
de si.
Aquilo pareceu deixá-la ainda mais furiosa. Empurrou-o com mais força.
– Saia de cima de mim!
– Não quer que faça isso – rosnou ele.
– Valha-me Deus, porque não me deixa em paz? – protestou de novo.
– Porque não consigo! – rugiu Declan, beijando-a mais uma vez, e beijando-a como nunca tinha
beijado uma mulher. Não havia doçura ou ternura naquele beijo. Aquele foi um beijo repleto da
paixão e desejo desenfreados que o inflamavam, dominando-o por completo. A língua dela fugiu por
entre os dentes do homem, como se o provocasse. O seu corpo estava colado ao dele, os seus seios
cravados no peito dele, a perna firme entre as dele. O cheiro da pele e do cabelo de Keira, e a carne
suculenta da sua língua, eram ferozmente intoxicantes.
O cabelo dela soltou-se dos ganchos e uma espessa madeixa meteu-se entre eles. Declan enrolou-a
em volta de um dedo e esfregou-a na face dela. Que Deus lhe valesse, pois estava perdido nas
sensações do corpo dela e no sabor do seu cabelo. Pareciam dois selvagens, com o desejo a faiscar
entre eles.
Donnelly desapertou-lhe o casaco e depois a blusa. A sua mão apanhou o globo do peito de Keira,
enchendo a palma com ele, e Keira respondeu de modo febril. As suas mãos percorreram loucamente
o corpo do homem e ela mudou de posição debaixo dele para que pudesse sentir mais do seu corpo,
roçando os dedos sobre a sua ereção. Apertou-lhe o pescoço com os braços e chegou-se mais para
ele, devorando-lhe os lábios.
Ele mudou novamente de posição, procurou a bainha da saia dela e puxou-a para cima. Ela não o
impediu. Pelo contrário, pareceu colar-se ainda mais a Declan. Ele acariciou-a, correndo os dedos
sobre a pele sedosa da perna, detendo-se na carne macia da coxa. Keira arquejou, a boca colada à
dele, mas a sua coxa deu-lhe passagem e ele tocou-a entre as pernas.
Keira soltou um gemido suave quando Declan introduziu os dedos na abertura do seu sexo. Atirou
o pescoço para trás e deixou cair a cabeça enquanto o seu corpo subia ao encontro dele. Estou
perdida. Ele colou a boca à carne revelada pelo corpete aberto enquanto a acariciava, fazendo girar
os dedos no centro do desejo da rapariga, deslizando, penetrando profundamente nela. Ela começou a
arquejar, apertou as pernas em volta da mão dele e Declan tomou os seios eretos na boca, lambendo
e beijando o vale entre os dois. Sentiu o corpo dela contorcer-se e pulsar debaixo do seu, e sentiu-se
afundar numa espiral dourada de desejo, coroada pela vontade de entrar nela.
Não o fez. Pela primeira vez na sua vida adulta, não tomou aquilo que podia ser seu. Dessa vez era
diferente, demasiado profundo. Continuou a acariciá-la, o ritmo da sua mão subindo a compasso com
o arquejar de Keira. Ela começou a gemer baixinho e enterrou o rosto no ombro dele, atingindo o
clímax com um violento estremecimento. Ele também arquejava, cerrando os dentes com o pulsar da
sua ereção.
Passou-se um instante antes que Keira se afastasse suavemente dele. A mão de Donnelly continuava
entre as suas pernas. Tinha os lábios vermelhos e ligeiramente inchados dos beijos dele. Encararam-
se por um instante que, por mais impossível que pudesse ser, pareceu mais vivo que qualquer outro
momento na vida de Declan. Ele baixou lentamente a cabeça e beijou-a com ternura enquanto retirava
a mão de entre as pernas dela.
Keira rolou para longe dele e levantou-se. De costas para ele, sacudiu a saia e apertou o corpete.
Tinha o cabelo cheio de ervas. Declan não sabia que explicação podia ela encontrar para tal.
Levantou-se e tentou ajudá-la a compor o cabelo, mas Keira manteve-se de costas para ele e
continuou a tentar compor as roupas.
Declan não sabia o que dizer. Tinham ultrapassado um limite, mas não podia dizer que lamentasse.
Ainda sentia a dor da sua necessidade por satisfazer, ainda desejava estar com ela. Esperou,
antecipando a raiva dela, ou ao menos uma acusação. Keira voltou ligeiramente a cabeça para olhar
para ele por cima do ombro.
Declan preparou-se.
Mas Keira sorriu ao voltar-se para ele.
– Muito bem – disse. – Pode acompanhar-me na visita a Mister Bowman.
Aquela mulher… nunca conhecera ninguém como ela. Naquele instante, não sabia se devia beijá-la
de novo ou vergá-la à sua vontade. Pôs as mãos na cintura e baixou a cabeça.
– Se está tão decidida a ser a minha morte, mulher, terá de esforçar-se mais que isso.
O sorriso de Keira tornou-se mais profundo. E soltou uma curta gargalhada quando começou a
dirigir-se para onde estavam os cavalos.
– Oh, céus – disse distraidamente –, perdi o chapéu.
Vinte

Keira estava apaixonada. Não havia nada mais desaconselhável e inútil que pudesse sentir! O que
havia de fazer consigo? O problema não era Declan O’Conner corresponder aos seus sentimentos,
mas ser um homem que evitava compromissos a todo o custo.
Quando Mr. Noakes lhe entregou o chapéu que perdera na louca corrida de cavalos com Declan,
Keira pensou em Loman Maloney e tentou imaginar se seria possível perder o chapéu numa corrida
com ele. Não conseguiu formar essa imagem na sua cabeça. Sentiu-se mesmo algo enjoada por
tentar.
Keira dedicou-se à sua vida durante alguns dias, trabalhando diligentemente para se convencer que
não estava apaixonada e que tudo não passava de uma paixoneta irresponsável. Sentava-se à janela a
olhar para a propriedade. Almoçava com Lucy, sorrindo à conversa da menina, mas mal ouvindo uma
palavra do que dizia. Dedicou-se à jardinagem, tratou da correspondência, tocou piano e teve o
cuidado de não fazer nenhuma tolice ainda maior. Não amava Declan. Não podia amar Declan.
Mas talvez amasse, talvez. Talvez tão ardentemente como oito anos antes.
O único pensamento que parecia ajudá-la a afastar o pensamento de Declan era a necessidade de
falar com Mr. Bowman. Mr. Fish demorou algum tempo a conseguir a localização do homem, mas
acabou por descobrir onde ela podia encontrar o velho secretário.
Eram várias as razões por que mal podia esperar para estar de novo com Declan, mas incluíam a
novidade acerca de Mr. Bowman. Contudo, arranjar forma de falar com Declan sem que isso
levantasse suspeitas ou provocasse comentários era um ligeiro problema. Uma coisa era ele fazer-lhe
uma visita. Outra muito diferente era ela visitá-lo em plena luz do dia.
Com o passar dos dias começou a perguntar-se por que motivo Declan não a visitava. Decerto não
se manteria afastado depois do que se passara entre ambos. Decerto que algo fundamental se alterara
entre ambos… ou não? Mas Declan não a visitava e Keira começou a sentir-se estranha. Os seus
pensamentos de amor transformaram-se em dúvida.
Estava de mau humor quando Mr. Sibley a visitou. Recebeu-o na sala de música, onde tinha
praticado um pouco de piano.
– Mister Sibley – disse quando o anunciaram –, julguei que tivesse regressado a Londres.
– E regressei – confirmou o homem, inclinando-se sobre a mão que lhe estendia. – Voltei para
preparar a chegada do conde Eberlin. Ele chega a Tiber Park no final desta semana.
– Que bom – disse Keira distraidamente. Os seus pensamentos não podiam estar mais longe de Mr.
Sibley e do conde dinamarquês.
Mr. Sibley inclinou-se para que Keira o pudesse ver, sentada ao piano.
– Devo confessar, Lady Ashwood, que dei por mim à procura de uma desculpa para vir a Hadley
Green.
Keira imaginou Declan diante de si naquele momento. O seu coração tinha viajado pelo éter da
esperança em relação a ele, mas percebeu que a sua mente estava solidamente plantada em terra
firme. Ela conhecia Declan. Há anos que a sua reputação, e mais de um coração magoado,
alimentavam histórias pela Irlanda e Ballynaheath.
Ainda assim, depois do que acontecera…
Percebeu que Mr. Sibley a olhava de modo estranho.
– Fico contente por ter vindo – disse por cortesia.
– A sério?
O que vinha a ser aquilo? Voltou a atenção para o piano.
Mr. Sibley permaneceu ao lado do piano, a ouvi-la tocar. Mas Keira parou depois de tocar uma
nota no tom errado, pousando as mãos no colo.
– Continue – pediu ele. – Toca lindamente.
– É muita amabilidade sua, senhor. Tem algum assunto que queira discutir?
– Ah… não – respondeu Sibley algo timidamente.
– Confesso que hoje não disponho de muito tempo – disse Keira, sorrindo. – Estou bastante
envolvida com os órfãos de Saint Bartholomew e prometi levar-lhes uma caixa de laranjas esta
tarde.
Não tinha propriamente prometido e Mr. Anders ficaria desiludido se soubesse o que ela tinha feito
com as laranjas que lhe oferecera, mas não havia nada a fazer. Lucy e ela tinham contado
cuidadosamente as laranjas, ficando deliciadas quando perceberam que havia uma para cada criança
e até para as irmãs.
– É uma causa nobre – observou Sibley quando Keira se levantou e se dirigiu para a porta. – Posso
ajudar de alguma forma e a si e ao orfanato?
– Não se importa? – perguntou Keira, agradecida.
– Faço qualquer coisa. Só precisa de pedir.
– É muito amável. Precisamos de papagaios de papel.
– Papagaios?
– Consegue imaginar que lhes prometi papagaios? – respondeu Keira com uma gargalhada. – Foi
muito impetuoso da minha parte, mas adorava papagaios de papel quando era pequena, e há aquele
prado logo atrás das paredes do orfanato. Fiz a sugestão e mal pude acreditar quando soube que mais
de metade deles nunca tiveram esse prazer!
Mr. Sibley sorriu com indulgência.
– Com certeza que será possível encontrar alguns papagaios em Hadley Green.
– Seria de pensar que sim – concordou Keira. – Mas não encontrei nenhum.
– Muito bem – disse Mr. Sibley, enchendo o peito de ar. – As crianças terão os seus papagaios.
Voltou três dias depois com uma braçada de papagaios de todos os tamanhos e formas. Tinha-os
comprado em Londres, disse orgulhosamente.
– Oh! – exclamou Keira. – Nunca pensei… Não era minha intenção obrigá-lo a ir a Londres…
– A senhora é a personificação da bondade, Lady Ashwood – respondeu o homem com admiração.
– Era o mínimo que podia fazer por si.
Keira agradeceu-lhe graciosamente e sentiu-se obrigada a convidá-lo para que a acompanhasse. A
verdade é que estava agradecida pela diversão. A presença de Mr. Sibley impedia-a de pensar em
Declan. A culpa era sua, na verdade, por se ter apaixonado por um vagabundo.
Fez subir Lucy para uma carruagem, para irem entregar os papagaios a St. Bartholomew, e Mr.
Sibley acompanhou-as a cavalo. Estava uma tarde radiosa e Keira precisava desesperadamente de
sair de casa. Tinha-se passado uma semana desde que ela e Declan haviam rebolado na erva, uma
longa semana em que se sentira ao mesmo tempo apaixonada e infeliz.
Com a ajuda da irmã Rosens, Keira levou as crianças até ao prado para lançarem os papagaios.
Havia pelo menos uma dúzia de papagaios no ar e a visão dos mesmos sobre as copas das árvores
atraiu alguns cidadãos da aldeia, curiosos para verem o que se estava a passar. Uma hora depois, não
eram apenas as crianças a lançar os papagaios. Alguns aldeões, e mesmo várias irmãs, também o
fizeram.
Keira tinha tomado três rapazinhos sob a sua proteção, nenhum deles com mais de quatro ou cinco
anos. Escolheu um papagaio azul com flores amarelas. Lucy disse-lhe que condizia com o chapéu que
tinha na cabeça, o que a deixou deliciada.
– Fiquem sabendo que, em tempos, fui a melhor lançadora de papagaios de toda a Irlanda – contou
aos rapazes, que faziam uma linha ao seu lado. – Há um segredo para lançar bem um papagaio.
Querem saber qual é?
Os rapazes assentiram.
– O segredo – confidenciou, agachando-se ao lado deles –, é apanhar a direção certa do vento. E
têm de correr para o conseguir. Algum de vocês corre depressa?
– Eu! – respondeu o rapaz do meio, pondo a mão no ar.
– Eu sou mais rápido que tu – disse outro. E o terceiro, o mais pequeno dos três, limitou-se a
piscar os grandes olhos castanhos para Keira.
– O menino parece ser muito rápido – disse-lhe ela. – Acho que devia ser o meu ajudante. E os
meninos devem ajudar-me a vigiar o papagaio. Fazem isso? Muito bem – disse, entregando o cordel
preso a um pau ao mais pequeno. Desapertou as fitas que lhe prendiam o chapéu e atirou-o para o
chão antes de tomar o seu lugar entre dois dos rapazes. – Pronto – continuou, segurando o papagaio. –
Quando eu disser, corremos o mais depressa que pudermos e, quando formos suficientemente
depressa, o vento levanta o papagaio. E o senhor – acrescentou, dando uma palmadinha no ombro do
mais pequeno – tem de deixar o cordel desenrolar. Quando tivermos percorrido uma boa distância,
vamos mantê-lo no ar e fazer alguns truques.
O rapaz segurou nas duas extremidades do pau.
– Preparados? Vou contar até três. Um, dois, três! – Keira começou a correr e os petizes seguiram-
na. Soltou o papagaio, dando-lhe cordel quando o mesmo apanhou a brisa e começou a elevar-se,
gritando alegremente aos mais que deixassem desenrolar o cordel. Quando o papagaio subiu no ar,
alternou a condução do mesmo com os meninos. – Acompanhem-no! – incitou-os, enquanto o
papagaio rodopiava ao sabor da brisa. – E fiquem longe das árvores! – gritou quando se afastaram
dela, correndo com o papagaio, dando-lhe esticões e vendo-o voar de novo.
Ficou a vê-los por um instante, dando meia volta quando percebeu que sabiam o que fazer.
Quase colidiu com Declan.
Tinha o chapéu dela na mão. Enrolou um canto da boca num arremedo de sorriso.
– Encontrei isto e achei que seria a única pessoa que o podia ter perdido. De novo.
Keira sentiu um sorriso alegre iluminar-lhe o rosto.
– Realmente, tenho de ter mais cuidado para o manter na cabeça – disse, aceitando o chapéu.
Colocou-o na cabeça e apertou as fitas.
– Estava à sua procura – disse ele.
Keira ficou absurdamente encantada ao ouvir aquelas palavras.
– Como soube que estava aqui? – perguntou.
Ele dirigiu-lhe um sorriso matreiro e olhou para a dúzia de papagaios no ar.
– Fui a um almoço.
– Lorde Donnelly!
Keira quase soltou um gemido ao ouvir a voz de Mr. Sibley atrás de ambos.
– Veio lançar papagaios, milorde? – perguntou o outro quando chegou junto deles.
– Não – respondeu Declan. – E o senhor, Mister Snively?
– Então, senhor…
– Desculpe, Mister Sibley.
Um dos rapazes começou a chorar antes que Sibley pudesse dizer alguma coisa e Keira, usando
uma mão para proteger os olhos do sol, olhou na sua direção.
– Oh, céus, Mister Sibley. O papagaio ficou preso numa árvore. Poderia fazer o favor?
Mr. Sibley hesitou. Olhou para os rapazes, desamparados, ao pé da árvore, que olhavam para ele.
Depois olhou para Declan, semicerrando ligeiramente os olhos.
– Talvez Lorde Donnelly… – começou.
– Teria todo o prazer – disse Declan. – Mas magoei um joelho.
Mr. Sibley olhou para o joelho. Keira fez o mesmo. Pareceu-lhe perfeitamente bem. Sem dúvida
que Mr. Sibley pensou o mesmo, o que o fez lançar um olhar zangado a Declan.
– Um coice de um cavalo – continuou Declan descontraidamente, colocando o peso na outra perna,
como se desafiasse Sibley a questionar que joelho magoara.
– Nesse caso, eu acudo aos rapazes – disse Mr. Sibley como se anunciasse a sua partida para a
guerra. Dirigiu um cortês aceno de cabeça a Keira. – Madame. – E dirigiu-se para onde se
encontravam os pequenos.
– É intolerável – murmurou Declan.
– Foi Mister Sibley que nos conseguiu os papagaios – observou Keira. – Foi muito amável.
– Claro que foi – retorquiu Declan em voz arrastada. – Pensei que tinha voltado para Londres e
para o seu pequeno covil.
Keira estudou o rosto impassível de Declan.
– Ele veio preparar Tiber Park para a chegada do conde. – Sorriu astutamente. – Entre outras
coisas – acrescentou em tom presunçoso.
Declan dirigiu-lhe um olhar onde não havia curiosidade.
A sua despreocupação irritou Keira. Teria ele pensado na tarde dos dois.
– Mister Anders também me fez uma visita – continuou. – Ofereceu-me uma caixa de laranjas.
Declan ergueu uma sobrancelha.
– Está muito bem vista entre os homens solteiros do West Sussex, ao que parece.
– Pois estou.
Donnelly pensou no assunto enquanto cravava o olhar no dela.
– Dava-lhe os parabéns, mas já o faz muito bem sozinha. Deixo-a com os seus admiradores –
acrescentou, levando a mão ao chapéu e começando a afastar-se.
– Como? – reagiu ela ao vê-lo afastar-se. – O quê? Espere… Não, espere, milorde – insistiu,
aproximando-se dele meio a correr e meio a saltar.
Declan continuou a andar.
– Acho que está com ciúmes – disse enquanto tentava acompanhá-lo.
Ele bufou ao ouvi-la.
– Não seja absurda – retorquiu.
– Não precisa de ficar tão aborrecido – protestou Keira, irritada. – Prefiro pensar que veio
procurar-me por causa de Mister Bowman. Mister Fish disse-me onde o podia encontrar.
Ele deteve-se e encarou-a.
– Finalmente, progressos. Onde está ele?
– Em Rockingham – respondeu Keira. – Tenho pensado que podíamos fazer-lhe uma visita…
– Eu vou visitá-lo.
Keira ignorou o tom autoritário dele.
– Sim, está bem. Pensei que quisesse ir comigo.
– A sério? – respondeu Donnelly em tom amigável. – Pensei que preferisse ficar e permitir que
Mister Sibley a admirasse um pouco mais. Ou comer mais laranjas oferecidas por Mister Anders.
Imagino que tenha muito com que se manter ocupada.
Ela arquejou de surpresa e sorriu amplamente.
– Está com ciúmes.
Ele sorriu, algo constrangido.
– Não era esse o objetivo de acumular os seus muitos admiradores?
Sem dúvida que sim e o sorriso dela abriu-se ainda mais de satisfação.
– Pelo menos, eles vieram visitar-me para saber como estava.
– Ah! – O olhar de Declan percorreu-a de cima a baixo. – Foi a isto que chegámos? Se encorajou
aquele pobre almofadinha a antagonizar-me, foi incorreta com ambos.
– Não se mostra tão superior – respondeu ela de modo ligeiro. – Eu não encorajei ninguém, e não
achei pouco razoável pensar que podia sentir uma ponta de ciúmes, dado… O que… Tudo.
Sentiu que o seu rosto ficava mais quente e Declan, maldito fosse, manteve-se calmo e impassível,
como se tivesse frequentemente aquele tipo de conversas. Talvez tivesse. Talvez ela fosse mais uma
na sua longa lista de mulheres. E fora tola o suficiente para pensar…
Abriu a boca de espanto.
Ele ergueu uma sobrancelha.
– Passa-se alguma coisa? – perguntou.
– Na verdade, passa – respondeu Keira, brindando-o com um olhar furioso por baixo do chapéu. –
Acho que não existe homem mais exasperante que o senhor.
– O sentimento é inteiramente recíproco – concordou ele alegremente.
– Como é capaz de fingir que não se passou nada? – quis saber a jovem.
Ele olhou para onde as crianças lançavam os papagaios.
– Veja, eis que se aproxima o seu mais ardente admirador – disse, olhando de novo para ela. –
Keira, o que se passou entre nós foi agradável para os dois. Mas não é necessário atribuir-lhe outro
significado além disso. Eu vou visitar Mister Bowman.
Keira sentiu que perdia o fôlego. À parte a observação sobre as suas grandes ilusões, não podia
acreditar no que ouvia. Pareceu-lhe muito frio e distante, mesmo para Declan.
– Não está a falar a sério – protestou, acusadora. – Não acredito que esteja a falar a sério. Não é
nenhuma árvore, destituída de quaisquer sentimentos…
– Mister Sibley – disse Declan, olhando para além de Keira. – Esteve muito bem a retirar o
papagaio da árvore. É um ótimo trepador. Vê-lo subir a árvore fez-me pensar que tem praticado as
suas subidas em todo o tipo de lugares.
– Por Deus, Donnelly, é uma surpresa que nunca lhe tenham dado um tiro – respondeu friamente
Mr. Sibley.
Declan sorriu.
– Não discuto isso. Sendo assim, deixo-vos. Madame – disse num cumprimento a Keira, logo se
afastando.
– Voltamos aos papagaios, Lady Ashwood? – propôs Mr. Sibley, tocando-lhe no cotovelo.
Sibley estava absolutamente certo. Era uma pequena maravilha que Declan nunca tivesse levado
um tiro e, se percebesse de armas, Keira gostaria de ter essa honra.
– Voltamos, Mister Sibley – respondeu, caminhando ao seu lado até junto das crianças, imaginando
todas as formas deliciosas como Declan O’Conner podia encontrar a morte.
Vinte e um

Tinha ciúmes. Ciúmes loucos. E isso era uma surpresa para Declan. Mais, preocupava-o. O que lhe
teria sucedido? Vivera confortavelmente e livre de compromissos durante quinze anos. Tinha-se
deslocado à sua vontade entre a Irlanda e a Inglaterra, e também pelo Continente, antes da guerra.
Tinha-o feito sem os embaraços que eram as mulheres, algo que os seus amigos não tinham tido a
sorte de evitar. E, de repente, não conseguia pensar em mais nada que não o pior de todos os
embaraços. Keira Hannigan.
Para complicar tudo, descobrira nesse dia que enquanto pensava nela, e tentava afastar da mente o
seu aperto férreo, ela andava a lançar papagaios e a comer laranjas, cortesia dos seus muitos
admiradores. Com o Snively, por Deus! Não aspirava a mais que aquilo para o seu futuro? Loman
Maloney era uma escolha muito melhor.
O problema, disse um furioso Declan para consigo, é que se ela aceitava tão facilmente os afetos
de tantos homens, devia fazê-lo com homens de melhor calibre que Sniveling.
Só se podia culpar a si próprio pelo seu estado de espírito. A invulgar mistura de inocência e
desejo de viver de Keira fizera dele seu escravo. Tinha permitido que os seus instintos mais básicos
e puros levassem a melhor sobre o seu bom senso. Fora uma falha fatal e o motivo para se ter
mantido afastado dela todo o tempo que conseguira suportar a distância. E, apesar de se deixar
arrebatar por um momento, ou melhor, pelos seus muitos momentos, ela não deixava de ser Keira
Hannigan.
Se isso não conseguia pôr fim ao desejo que sentia, onde o levariam os seus sentimentos? Declan
era um homem que valorizava a sua liberdade para vaguear pelo mundo, criar cavalos e visitar os
amigos sempre que desejava. Não queria passar o resto dos seus dias preso em Ballynaheath.
Pensava oferecer a propriedade a Eireanne quando esta se casasse, passando a viver em Londres.
Nunca pensara em herdeiros, não a sério. Mas uma esposa, uma condessa irlandesa, significaria que
precisaria de uma casa, um lugar a que pudesse chamar o seu lar e a base para a criação dos seus
filhos, e Ballynaheath era isso mesmo. Ballynaheath era o seu legado.
Que loucura se apoderara dele! Estava a pensar em casamento. Se alguma vez se casasse, com
tantas mulheres no mundo, seria Keira Hannigan a prendê-lo a Ballynaheath. Era provável que a
banissem de Inglaterra quando se soubesse a verdade sobre o seu colossal embuste e isso se
conseguisse escapar a um castigo mais pesado pelo seu crime. Além disso, duvidava que a ideia de
limpar o nome de Scott, contribuir para o orfanato ou reparar um moinho tivesse qualquer peso
quando as autoridades soubessem do engano que perpetrara. Ela parecia esquecer-se de que era uma
irlandesa em Inglaterra, o que era suficiente para inclinar a lei contra ela, mesmo sem ter cometido
qualquer crime. Era uma mulher tonta que não fazia ideia de quanto os ingleses desprezavam os
católicos irlandeses. Vivia naquela país como vivera na Irlanda, de modo arrojado. E descuidado.
Eram sentimentos ridículos, o que sentia, e perguntou-se se não haveria um remédio para eles.
Teria de perguntar à Viúva Cleeney, da próxima vez que fosse a County Galway. Ela parecia ter
poções que curavam todas as maleitas.
Mas, entretanto, o que faria com aquele ardor que o consumia?
Foi a Rockingham na tarde do dia seguinte, na esperança de que a distância o curasse, como
sucedera aquando da sua ida a Londres. Não devia ter regressado, e talvez não o tivesse feito se o
irmão mais novo de Christie, Harry, não tivesse aparecido.
Naquele momento, era demasiado tarde.

Rockingham não chegava a ser uma aldeia. Não passava de alguns edifícios raquíticos com teto de
colmo construídos ao longo de uma rua estreita com algumas lojas sombrias e um ferreiro. Foi aí que
Declan perguntou onde podia encontrar Mr. Samuel Bowman.
– Bowman – repetiu o ferreiro pensativamente. – Não sei dizer, milorde. Mas, se vive por estas
bandas, o vigário saberá dizer-lhe onde.
A igreja era muito pequenas para os padrões ingleses, com uma capela de uma só sala e uma
plataforma num dos extremos, onde ficava o púlpito. Declan teve a felicidade de encontrar o vigário
lá dentro, a polir os objetos da comunhão. Era um homem largo e alegre, de cabelo preto rebelde,
que ocupava a maioria do espaço entre os bancos e o púlpito.
– Mister Samuel Bowman – repetiu com voz poderosa depois de Declan se apresentar e perguntar
pelo antigo secretário, uma voz que ressoou pela caverna que era a pequena igreja. Declan calculou
que manteria os seus paroquianos bem despertos durante a leitura do evangelho ao domingo. – Mr.
Bowman não perdia uma missa até a gota lhe levar a melhor.
– Sabe onde posso encontrá-lo? – perguntou Declan.
– Isso depende do que quer com ele, milorde. Não colocaria um paroquiano no caminho do perigo.
– Ele não tem nada a temer de mim. Pretendo apenas obter algumas informações a que ele pode ter
tido acesso quando esteve ao serviço do conde de Ashwood.
As sobrancelhas do vigário estremeceram.
– É melhor não lhe falar no conde – observou, continuando a polir.
– Porque não? – respondeu Declan, curioso.
– Nas palavras do próprio Mister Bowman, o conde de Ashwood arruinou-lhe a vida.
– Quer dizer Lady Ashwood…
– Não, o conde – insistiu o vigário.
Sem dúvida que aquilo contradizia o que Declan julgava saber.
– Como assim?
– Deve fazer essa pergunta a Mister Bowman. Na verdade, ele nunca partilhou os seus motivos
comigo, mas recusou sistematicamente todas as más palavras que lhe ouvi acerca do conde. – Pousou
o pano e franziu o cenho pensativamente. – É melhor que o leve até lá.
– Não o quero incomodar…
– Não é incómodo nenhum, milorde! Um pouco de ar fresco faz bem ao espírito. E acho que
precisa de quem o apresente. Mister Bowman não simpatiza com estranhos.
Esplêndido, pensou Declan, apreciando a ironia. Surgiu-lhe subitamente a imagem de Keira e
desejou ter um poste onde dar um pontapé.

O vigário entoou um hino durante o que Declan teve a sensação de ser uma viagem muito lenta até ao
interior. Na verdade, Declan temeu que a pileca do vigário, a que este dera o nome de Old Mabel,
não chegasse sequer ao fim da rua, mas a égua e vigário acompanharam-no estoicamente.
A cerca de quilómetro e meio da igreja, o vigário meteu por um caminho que levava ao interior da
floresta. Dificilmente se poderia considerar uma estrada, mas antes um caminho bastante percorrido.
Andaram aproximadamente mais quilómetro e meio até chegarem a um modesto solar, que o vigário
se deteve a admirar.
– Não é tão impressionante como outras casas da zona, mas é uma casa com muita história –
comentou o clérigo. – Foi construída durante o reinado de Henrique oitavo e oferecida à sobrinha-
neta de Cromwell. – Olhou para Declan. – Antes de Cromwell cair em desgraça, claro.
Parecia ter sido uma bela casa, em dado momento. Era feita de pedra, com grandes colunas que
sustentavam um pórtico. Mas a relva dera lugar às ervas daninhas e a argamassa estava a cair. Uma
das colunas tinha uma ligeira inclinação para a direita.
– Alertei Mister Bowman para que a mantivesse em bom estado, pois sou um defensor da
conservação do nosso passado. Mas Mister Bowman não quer saber. Ele não simpatiza com
estranhos.
– Já me tinha dito – respondeu Declan.
– Continuamos, milorde? – perguntou o vigário, impelindo a pileca para diante.
Pouco tinham avançado quando surgiu um ancião à porta com uma espingarda apontada aos dois.
– Então, Mister Bowman? – disse pacientemente o vigário, levantando as mãos. – Não há
necessidade disso. Baixe a arma, por favor.
– Quem é? – gritou o ancião. – Quem está aí?
– Ele não vê muito bem – disse o vigário para Declan. Depois dirigiu-se a Mr. Bowman. – É o
vigário Harcourt, que conhece muito bem. E está comigo o conde de Donnelly, da Irlanda.
Mr. Bowman baixou ligeiramente a arma e olhou para Declan.
– Da Irlanda? – estranhou. – O que anda a fazer com um maldito irlandês?
– Mister Bowman! Isso não são modos cristãos – observou gravemente o vigário. – Ele não tem
culpa de ser irlandês.
Declan dirigiu um olhar fulminante ao vigário, mas a atenção deste estava voltada para Mr.
Bowman.
– São todos uns sacanas – cuspiu Mr. Bowman com desprezo.
Com suprema paciência, Declan interveio.
– Não lhe tomo mais que o tempo absolutamente necessário, senhor.
– Não tem nada para tratar comigo – retorquiu Mr. Bowman, mas com a ponta da arma apontada
para o chão. – Pode ir-se embora.
– Acho bastante possível que tenha informações de que preciso, senhor – insistiu Declan. – Pode
fazer o favor de ouvir o que tenho a perguntar?
– Informações – escarneceu o ancião. – Que tipo de informações posso eu ter que lhe sejam de
alguma utilidade?
Antes que Declan pudesse responder, uma mulher pequena com colarinhos e touca de renda surgiu
na soleira da porta.
– Samuel! – exclamou. – Pouse a arma e convide os cavalheiros a entrar!
– Não os quero na minha casa – protestou Bowman.
– Não permito que trate as visitas dessa maneira abominável. Entrem, senhores – insistiu a mulher,
que tirou a arma a Mr. Bowman sem aviso nem esforço aparente e desapareceu no interior da casa.
O vigário desmontou e deixou o cavalo à solta, aparentemente sem temer que pudesse fugir.
– Vamos para dentro, Mister Bowman – disse.
Declan desmontou e prendeu o cavalo, seguindo cautelosamente os outros com a mão na arma que
tinha no bolso.
A casa estava cheia das recordações de uma vida longa. Havia pilhas de livros e de papéis nas
mesas da sala principal, assim como vários bordados em diferentes fases de conclusão espalhados
num canapé. Mrs. Bowman enxotou um gato com o pé e ofereceu a Declan a cadeira antes ocupada
pelo bichano, mas este agradeceu e permaneceu de pé. Tinha a sensação de que não iria demorar-se.
Mr. Bowman, por sua vez, sentou-se numa cadeira junto à lareira. Um gato saltou imediatamente
para o seu colo, onde se aninhou.
– Seja o que for que procura, não será aqui que encontra as respostas – avisou Declan, afagando o
gato. – Não vou ajudá-lo.
– Vou servir chá – anunciou Mrs. Bowman alegremente.
– Não traga absolutamente nada, Margaret! – ordenou Mr. Bowman, mas ela já tinha saído a porta.
– Com um pouco de mel, se não se importa, Mistress Bowman – gritou-lhe o vigário.
– Muito bem, vamos a isto – disse Mr. Bowman para Declan, coçando atrás das orelhas do gato.
– Vim aqui em nome de uma amiga – informou Declan. – Há quinze anos, acusou um ladrão em
Ashwood, em nome do conde…
– Por Deus, não se atreva a vir a minha casa falar-me nisso! – trovejou Bowman.
Declan foi surpreendido pela veemência da reação.
– Quero fazer-lhe uma única pergunta – continuou. – Por que razão Lady Ashwood não esteve
presente no julgamento de Joseph Scott na questão das joias roubadas?
– Valha-nos Deus – murmurou o vigário.
A mão de Mr. Bowman imobilizou-se na cabeça do gato. Subitamente, afastou o animal do colo e
fez um esforço para se levantar. O vigário correu a ajudá-lo, mas Mr. Bowman deu uma palmada na
mão que lhe estendeu.
– O senhor é uma criatura vil – cuspiu, apontando para Declan. – Não tem esse direito!
– O homem foi acusado de roubar as joias da senhora, mas ela não esteve presente no julgamento
para testemunhar que assim fora – apressou-se Declan a acrescentar. – Porque não lhe fizeram essa
pergunta? Ela estava ausente de Hadley Green? – pressionou Declan.
O rosto de Mr. Bowman recuperou a cor. Pôs-se mesmo algo arroxeado.
– Maldito irlandês, não faz ideia daquilo em que se está a meter!
– Talvez seja melhor sentarmo-nos – sugeriu o vigário.
Declan ignorou-o e aproximou-se mais de Mr. Bowman.
– Acho que faço uma ideia. Acredito que enforcaram um homem inocente, Mister Bowman, e julgo
que sabe alguma coisa a esse respeito.
O velho tremia.
– Vá-se embora. Saia imediatamente.
– Acho que devia fazer o que lhe pede, milorde – aconselhou o vigário, temeroso.
Mas Declan não sairia dali sem qualquer informação.
– Porque lhe pediu Lady Ashwood que abandonasse Ashwood após o julgamento?
– Está a ir longe de mais, seu cão irlandês. Deixe as coisas como estão.
– Por favor, senhores, por favor – pediu o vigário. – Sentem-se. Podemos discutir isto como
pessoas razoáveis…
– Onde estava a condessa, Mister Bowman? Porque não foi ela testemunhar em favor do amante?
Mr. Bowman ficou imóvel por um instante antes de se afundar na sua cadeira.
– Mister Bowman! – gritou o vigário. – Sente-se bem?
– Estou bem, estou bem – respondeu Bowman, afastando-o novamente. Pressionou os olhos com os
dedos como se lhe doessem.
Mrs. Bowman entrou na sala com um prato de biscoitos.
– O chá será… Santo Deus! O que aconteceu? Samuel, não se sente bem, querido?
– Acho que devia ir-se embora, milorde – sugeriu o vigário com firmeza. – Mister Bowman é um
homem idoso. Não devia ser sujeito…
Declan ignorou o vigário e ajoelhou-se abruptamente ao lado do velho.
– O que pretendo é limpar o nome de um inocente, Mister Bowman. Não lhe desejo nenhum mal,
senhor, mas gostaria de saber porque não esteve a condessa presente no julgamento.
Mr. Bowman abriu os olhos, vermelhos de lágrimas ou de raiva. Declan não conseguiu perceber.
– Ela não esteve presente. É tudo o que lhe direi.
– Porque foi enforcado Mister Scott tão rapidamente? Não se passaram cinco dias entre o dia em
que foi considerado culpado e o do seu enforcamento.
– Oh, céus – disse Mrs. Bowman.
– Está a perturbar a senhora – interveio o vigário em tom irritado.
Declan estudou o rosto de Mr. Bowman, a pele enrugada, as olheiras profundas e a linha dura da
boca. Mas viu algo mais. Viu culpa.
– Mister Scott estava inocente, não estava? – insistiu.
Mr. Bowman dirigiu um olhar furioso a Declan e apontou-lhe um dedo ossudo.
– Volto a avisá-lo, senhor. Há coisas que é melhor deixarmos em paz. Não pode advir nada de bom
das suas investigações. Percebeu? Nada de bom. E agora agradeço-lhe que saia e não volte a
aparecer à minha porta.
Declan suspeitou que o que quer que fosse que Mr. Bowman soubesse iria com ele para a cova,
assim como a culpa que sentia. Olhou para o vigário e para Mrs. Bowman, que cravou nele um olhar
de medo.
– Obrigado pelo tempo que me dispensaram – agradeceu, saindo porta fora.
– Senhor!
Declan deteve-se do outro lado da porta e olhou para trás.
– Houve alturas na minha vida em que, contra minha vontade, fui obrigado a fazer certas coisas
para proteger a minha família. Compreende?
Declan compreendia perfeitamente. Mr. Bowman fora obrigado a acusar um homem inocente.
Acenou com a cabeça em concordância.
– O senhor não passa de um tolo, por abrir feridas antigas – acrescentou Mr. Bowman acidamente.
Era possível. Mas, em boa consciência, Declan já não podia voltar atrás.
Vinte e dois

Os preparativos da gala começavam a consumir Keira. Consultavam-na acerca de tudo, quisesse ou


não. Parecia haver um fluxo contínuo de visitantes em Ashwood com o único propósito de falar sobre
os arranjos das mesas, do percurso de determinada corrida, ou do número de barcos que seria
permitido haver no pequeno lago. Havia discussões intermináveis relativamente à música e à comida,
ao artesanato e outros produtos. Mrs. Ogle, Mrs. Morton e as senhoras da Sociedade pareciam estar
constantemente em Ashwood, bem como o reverendo Tunstill, que acompanhava a irmã Rosens, do
orfanato. Além disso, Mr. Anders e Mr. Sibley continuavam a disputar a sua atenção.
Nesse dia, Keira, Mr. Graham, o jardineiro principal, e Mrs. Morton estavam a preparar o
percurso da corrida com recurso a velhos mapas amarelados da propriedade de Ashwood.
– Pode passar pelo belveder e depois pelo velho carvalho – sugeriu Mr. Graham, apontando para
uma marca no mapa. – Tenho a certeza que se lembra do velho carvalho, m’dame.
– Um velho carvalho? – repetiu Keira, olhando para o local do mapa que ele apontava. – Eu… A
verdade é que não me lembro muito bem – disse, sem deixar de fixar o mapa.
– A sério, m’dame? – retorquiu Mr. Graham instantaneamente. – Seria de esperar que se lembrasse.
A senhora e a filha de Mistress Thorpe subiram tão alto que não foram capazes de descer.
Demorámos quase uma tarde para as tirar de lá.
Keira levantou o olhar do mapa.
– Sim, já me recordo – disse apenas.
Conseguia sentir os olhares de todos fixos em si, bem como a sua curiosidade por ela não se
lembrar de algo assim.
– Leve-me lá! – gritou Lucy, algures debaixo da mesa. – Quero ver o carvalho!
– Lucy, por favor, saia daí – pediu Keira. – O carvalho terá de esperar. Há muito que fazer para
preparar a gala.
– Quem me dera que a gala já tivesse acabado – respondeu Lucy, petulante, saindo de baixo da
mesa e batendo em Mr. Graham ao fazê-lo.
Keira desejou exatamente o mesmo. Faltavam apenas quinze dias para a gala e Lily já devia ter
voltado. Pelos cálculos de Keira, Lily devia ter chegado na semana anterior. Calculou que o clima,
ou algo do género, a tivesse impedido de fazer a viagem de barco, mas estava certa de que Lily
voltaria antes da gala. Sem dúvida. Keira olhou para Lucy. Pensou na irmã Rosens e em Mr. Fish. Em
Linford, em Mrs. Thorpe e numa série de outras pessoas em Ashwood. Considerava-os seus amigos,
se não família.
– Este percurso serve, Mister Graham. Não concorda, Mistress Morton?
– Concordo – disse Mrs. Morton.
– Esplêndido – rematou Keira, afastando-se da mesa. Sentia-se um pouco indisposta ao imaginar o
que pensariam todas aquelas pessoas se fosse descoberta antes do regresso de Lily.
Não conseguia pensar nisso. A ideia enlouquecia-a.
Felizmente, Linford apareceu.
– Tem uma visita, madame – anunciou.
– Quem é agora, Linford? Mister Anders?
– Não, madame. É um cavalheiro. Tomei a liberdade de o levar para o escritório.
– É sempre mais um cavalheiro – observou Mrs. Morton, dirigindo um sorriso matreiro a Keira. –
Termino os preparativos com Mister Graham?
– Por favor – respondeu Keira, seguindo Linford a caminho do escritório.
Chegados ao escritório, Linford abriu a porta e anunciou:
– Lorde Eberlin, madame.
Eberlin, pensou ao entrar. Mas…
O homem que a esperava no escritório era muitíssimo atraente, alto, de ombros largos. Os seus
olhos eram tão escuros que quase pareciam negros. Tinha uma cabeça forte e cabelo cor de mel,
lábios finos e queixo quadrado. Não disse nada quando ela entrou, limitando-se a olhá-la, à espera
que fosse a primeira a falar.
Lorde Eberlin. O conde dinamarquês, o homem que estava a tentar roubar cem dos melhores acres
de Ashwood. O que lhe dissera Fish na véspera? Sim, que Mr. Goodwin lhe faria uma visita no final
da semana, com as suas descobertas preliminares. Empata-o, disse Keira para consigo.
O conde observou-a tão fixamente que Keira se sentiu estranhamente exposta.
– Lorde Eberlin. Finalmente, está em Inglaterra. – Deslizou até junto dele para lhe oferecer a mão.
– É verdade. – O conde hesitou, observando-lhe o rosto com curiosidade um instante antes de
pegar na mão que ela estendia e encostar levemente os lábios aos nós dos dedos de Keira. Largou-lhe
a mão e recuou. Ela notou de imediato que ele segurava um pequeno saco. – Desculpe a minha
intromissão – continuou, olhando friamente para o rosto dela. – Vim conhecer Tiber Park e quis
conhecer pessoalmente a minha vizinha mais próxima.
Tinha um sotaque estranho, que não era bem inglês nem continental, mas talvez uma mistura de
ambos.
– Seja bem-vindo – cumprimentou Keira com o sorriso mais acolhedor que conseguiu. – Peço
desculpa, milorde, mas se soubesse que nos visitaria hoje teria pedido ao meu agente, Mister Fish,
que se juntasse a nós.
– A minha visita é puramente social – garantiu Eberlin. Olhou-a com o olhar sinuoso que Keira
estava habituada a receber dos homens.
Mas em vez de sorrir apreciativamente, como a maioria faria, deu meia volta e dirigiu-se para a
janela, ainda a segurar o saco, e ali ficou, a olhar para o exterior.
– Procura alguma coisa em particular? – perguntou, espantada com o comportamento do seu
visitante.
– Estou a admirar a paisagem – respondeu ele. – Tem uma fonte impressionante.
Keira olhou pela janela. Os anjos erguiam as suas trombetas aos céus e a água jorrava pelas
aberturas das mesmas.
– É um acrescento relativamente novo à propriedade – observou o conde, olhando para ela.
O olhar dele era desconfortavelmente intencional. Não olhava para ela como os outros homens. O
seu olhar era frio e por vezes algo malicioso.
– Não estou certa quanto à data da sua construção – respondeu.
– Não?
Estranho.
– Fixou residência em Tiber Park? – perguntou-lhe.
Ele desviou o olhar do dela.
– Ainda não – respondeu –, uma vez que ainda há muito trabalho a fazer. Fixei residência, por
alguns dias, perto da igreja de Uppington.
Esplêndido. Esperava que ele se sentisse muito confortável ali e partisse depressa. Sorriu.
A expressão dele manteve-se impassível.
– Pensou… Pensou na igreja de Uppington desde o seu regresso a Ashwood?
– Se pensei? Não me recordo da igreja. Fica perto daqui?
O queixo dele estremeceu ligeiramente, como se rangesse os dentes.
– Muito perto, a uns três quilómetros, no máximo. – Observou-a como se esperasse que ela
perguntasse mais alguma coisa acerca da igreja ou que lhe dissesse que já se lembrava. Quando ela
não o fez, baixou o olhar para o saco que tinha consigo. – Há uma casa junto ao rio que corre entre as
nossas duas propriedades. Perto do velho moinho. – Levantou os olhos para ela. – Merece os
parabéns pelo trabalho que ali fez. Parece que vai ser um belo moinho.
– Assim espero – observou Keira. – Pode trazer o seu grão para ser moído, se desejar. Mister Fish
pode explicar-lhe tudo.
– Obrigado, mas não será necessário – respondeu Eberlin, sorrindo friamente. – Pretendo construir
o meu próprio moinho.
Keira pestanejou.
– O moinho será grande o suficiente para servir as nossas duas propriedades, e não só.
– Pois, parece que sim – assentiu ele. – Mas vou construir o meu.
O coração de Keira começou a bater mais depressa. Julgou perceber a intenção dele. Queria entrar
em concorrência direta com Ashwood.
– Onde? – perguntou, apesar de saber a resposta.
– A montante – confirmou o conde. – Nas terras que me serão devolvidas.
Não conseguia acreditar na ousadia do homem. Era capaz de ir a Ashwood dizer-lhe que lhe ia
roubar as terras e o moinho, e de um modo tão casual?
Riu levemente.
– Seria de pensar que o seu interesse é destruir Ashwood, o que faria com o seu moinho e o desejo
de adquirir aquelas terras, milorde. – Sorriu. – Estou certa de que não é essa a sua intenção.
– Pode pensar o que quiser – respondeu ele com suavidade.
– Acho que as terras são assunto aberto a diferentes interpretações – disse Keira com firmeza. –
Devo informá-lo que contratei um dos melhores solicitadores de Londres. E garantiu-me que as
coisas não são tão simples como queria fazer-me acreditar. – Era uma mentirinha, mas não queria
saber. – E, sinceramente, milorde, dois moinhos tão próximos?
– Os agricultores terão de escolher entre os dois, não é verdade? – respondeu Eberlin com um
encolher de ombros.
Porque teria ele tanto ódio a Ashwood? Keira não conseguia respirar. Aquele homem estava a
provocá-la ostensivamente.
– Veremos – contrapôs num tom tão casual como o dele. – Mas dificilmente poderemos resolver
isso hoje. Quem sabe noutra ocasião?
Ele não fez qualquer movimento para sair. Em vez disso, abriu o saco que continuava a segurar.
– Como sabe, a casa junto ao velho moinho estava abandonada há algum tempo. Mas encontrei
isto.
Keira susteve a respiração. Não ficaria minimamente surpreendida se ele tirasse um crânio humano
de dentro do saco. Mas era um cavalo de brincar que tinha perdido duas patas.
– Um brinquedo – disse. – Suponho que um dos antigos rendeiros o tenha esquecido.
– Custa-me a crer que seja um brinquedo de rendeiro. Foi confecionado com arte. Um brinquedo de
criança que pertencesse a um dos seus rendeiros certamente seria feito de palha ou algo do género.
Pensei que pudesse querê-lo – disse, estendendo o cavalo para ela.
– O quê? O brinquedo? – Não confiava nele, nem no cavalo sem patas. Como podia ele pensar que
ela se interessaria por algo assim. – Obrigada. Vou dá-lo às crianças de Saint Bartholomew.
Ele baixou lentamente a mão.
– Está bem – limitou-se a dizer.
Keira desejou que ele se fosse embora e olhou para a porta.
– Bem, obrigado por me receber, Lady Ashwood.
– Ora essa – respondeu ela friamente, evitando o olhar do homem ao dirigir-se para a porta.
Eberlin acompanhou-a, mas ao chegar à porta voltou a olhar para ela de modo muito frio e
calculista.
– Madame – disse, entregando-lhe o saco e saindo.
Assim que ele saiu, Keira atirou o malfadado saco com o brinquedo partido para cima de uma
cadeira. Quando teve a certeza absoluta de que o seu visitante tinha partido, fechou a porta, encostou-
se contra ela, pressionado o abdómen com as mãos. Desejou desesperadamente o regresso de Lily.
Não se permitiu pensar no que aconteceria quando Lily voltasse. Mas não suportaria que algo
acontecesse a Ashwood sob a sua direção.
Vinte e três

Linford informou Declan de que Lady Ashwood estava a ensinar Miss Taft a montar no parque
quando o mesmo chegou a Ashwood. Donnelly encontrou Keira a conduzir a égua de tiro pela brida
num círculo largo enquanto Lucy se agarrava ao animal.
Declan pôs o cavalo a passo lento quando se aproximou das duas.
– Ora, ora – disse Keira. Sorriu enquanto conduzia a égua num círculo em volta do cavalo do
recém-chegado. – Pensei que pudesse ter morrido.
– Morrido? – repetiu ele com um sorriso torto. – Antes de a Lily chegar e tudo ser revelado? Não
poderia – acrescentou, desmontando. – Miss Taft, como está a menina nesta bela manhã?
– Estou a aprender a montar – respondeu a criança de modo tenso. Tinha o rosto pálido e os nós
dos dedos estavam brancos da força que fazia para se segurar. O tempo estava quente e o seu rosto
apresentava-se um pouco transpirado. Keira, por sua vez, parecia muito fresca no seu traje de montar
azul-céu. Caía-lhe pelas costas um comprido rabo-de-cavalo preto e usava um chapéu elaborado
enfeitado com plumas. Declan não pôde deixar de pensar nos pássaros que teriam perdido as suas
plumas para a confeção daquele chapéu.
– Já posso desmontar? – perguntou Lucy.
– Quase não praticou, minha querida – respondeu Keira.
– Mantenha a calma – aconselhou Declan à menina. – O cavalo não lhe morde.
– Não serve de nada – interveio Keira, detendo a égua. – Parece que a Lucy tem medo de cavalos.
– Já montou com ela? – Tinha ensinado Eireanne a montar sentando-a à sua frente na sela.
– Mal consigo aguentar-me na sela sozinha – bufou Keira.
Aquilo arrancou um sorriso a Declan. Se havia coisa que se podia dizer de Keira Hannigan era que
conseguia montar em toda a sela.
– Miss Taft, gostaria de montar comigo? – perguntou. – Eu mostro-lhe como se usam as rédeas.
– Sim, milorde, por favor – respondeu Lucy, mas desequilibrou-se ligeiramente no seu entusiasmo
para descer da égua. Arquejou e inclinou-se, temerosa, sobre o pescoço do animal.
– Dhia, ela não tem remédio – murmurou Declan.
– É verdade – concordou Keira.
Declan desmontou e tirou Lucy de cima da égua.
– Permita-me – disse galantemente, oferecendo-lhe o braço quando a menina se viu em chão firme.
– Pode trazer a égua? – pediu a Keira.
– Com todo o prazer – respondeu ela, sorrindo abertamente ao passar por ele.
Viu-a enfiar o pé no estribo e montar sem dificuldade, perguntando-se como conseguia ser mais
tentadora de cada vez que a via. Ela pôs a égua a trote à frente de Declan e Lucy, com as plumas a
ondularem ao ritmo do passo do animal, e Declan perguntou-se com que frequência Snively ou
Anders tinham cirandado por ali para a admirarem na sua ausência.
Chegados aos estábulos, Keira mandou Lucy para dentro.
– Devo mandar vir chá? – perguntou a menina.
– Penso que é muito cedo, minha querida.
– Mas pede sempre chá quando tem visitas, m’dame.
– Oh! – admirou-se Declan. – E tem recebido muitas visitas para chá?
– Imensas – respondeu Lucy casualmente, parecendo estudar a forma como lhe assentava o traje de
montar, puxando as pontas do casaco.
– Santo Deus, Lucy, a menina exagera! – censurou Keira com uma gargalhada.
– Visitas de senhores? – perguntou Declan de modo casual.
– Senhores e senhoras. Sua Senhoria é muito estimada – respondeu Lucy. – A irmã Rosens diz que
ela é um espírito «indómal».
– Indelicado? – estranhou Keira.
– Indomável – corrigiu um sorridente Declan.
Lucy franziu o cenho e calou-se por um instante.
– Talvez – disse, insegura. – Devo pedir o chá?
– Pronto, está bem – acedeu Keira, passando a mão pela cabeça de Lucy com um sorriso terno
antes de a mandar embora. Voltou-se para Declan assim que a menina desapareceu numa esquina da
casa. – Posso falar consigo? – perguntou, indicando o jardim. – Preferia não ser vista. – E caminhou
na direção do portão de ferro.
– Ah! Tem novamente demasiados pretendentes? – perguntou Declan, seguindo-a.
– O quê? – Abriu o portão, atingindo-o no braço quando o fez.
Ele levou a mão ao portão e afastou-o deliberadamente ao passar.
– Parece muito agitada, condessa. Que se passa desta vez? O rei fez-lhe uma visita?
– A sério que pareço agitada? – perguntou ela, fingindo surpresa. – Não imagino porquê, milorde!
A única pessoa que me tem amizade desaparece…
– Não vou dizer que me perturba saber que Lady Horncastle desapareceu…
– Não foi ela, homem ridículo. Estava a falar de si! É o meu único amigo, desaparece, e enquanto
isso sou obrigada a suportar as maquinações de todo o condado! – continuou ela em tom dramático,
fazendo um gesto de braço que pretendia abranger todo o condado. – Tem sido um verdadeiro
martírio!
Declan foi incapaz de conter um sorriso.
– Comove-me deveras – brincou, curvando-se numa vénia galante. – Acho que sentiu a minha
falta.
– Por amor de Deus – irritou-se Keira, caminhando em passo rápido pelo caminho do jardim,
parando apenas uma vez para lhe dirigir um olhar zangado. – Venha, venha – chamou, incitando-o
com um gesto de mão.
Havia algo na sua voz que parecia indicar que Keira estava no limite do que os seus nervos
conseguiam aguentar.
– Muito bem – concordou ele, pondo-lhe a mão no fundo das costas. – Diga-me o que se passa.
Ela soltou um gemido.
– O que não se passa? As senhoras da Sociedade têm sido uma presença constante em Ashwood
por causa dos preparativos da maldita gala, Mister Fish tem estado em Londres, Lorde Eberlin
visitou-me e revelou-se um homem muito estranho, e agora foi Lady Horncastle que convidou Lady
Darlington para a gala, bem como o seu filho mais novo, com o expresso propósito de lhe arranjar
um par! E esse par sou eu! – gritou, apontando para si própria.
Eberlin? Declan abriu a boca de espanto.
– O que foi que disse? – perguntou.
– Sim. Concordo que é deveras chocante. Aparentemente, o maior desejo de Lady Darlington é que
eu encontre o amor e a felicidade com…
– Não foi isso – cortou Declan, fazendo que não com a cabeça. – Referiu-se a Lorde Eberlin.
Como conhece Lorde Eberlin?
Ela pareceu atónita com a pergunta.
– É o homem que comprou Tiber Park.
Declan olhou para ela sem conseguir acreditar.
– Também foi ele que me encarregou de criar um cavalo de corridas campeão.
Keira arquejou.
– Conhece-o?
– Não conheço, não, nunca fomos apresentados – clarificou Declan. – Tratei apenas com o seu
agente. Nunca me tinha dito quem tinha comprado o parque.
– Não havia razão para tal – disse ela, encolhendo os ombros.
– É uma coincidência muito improvável – observou Declan, franzindo o cenho. – Sabia que ele
viria a Inglaterra, mas não antes de haver um potro. E não fazia a mínima ideia que ele tinha
adquirido a propriedade.
– É um homem muito estranho – concordou Keira, esfregando subitamente os braços como se
tivesse frio. – Assustadoramente estranho.
– O que quer dizer com isso? – quis saber Declan.
– A verdade é que não sei como explicar – respondeu, pensativa. – Trouxe-me um brinquedo
estragado que encontrou numa casa abandonada.
Declan não conteve uma gargalhada.
– Talvez quisesse destacar-se dos outros.
Keira dirigiu-lhe um olhar fulminante e começou novamente a andar.
– Não troce de mim, por favor. Ele pretende arruinar Ashwood.
– Não se apoquente, rapariga. Há homens como ele em toda a parte.
– Que tipo de homens? – perguntou Keira, curiosa.
– O tipo de homens que aposta muito alto, como é evidente ser o caso de Eberlin, uma vez que está
decidido a ter o cavalo de corrida mais veloz de toda a Europa. Estou curioso para saber porque
adquiriu Tiber Park. Seria de esperar que o seu agente mencionasse o facto, especialmente depois de
saber que eu tinha arrendado Kitridge Lodge.
– Não só adquiriu a propriedade, como Mister Sibley me diz que parte da mesma vai abrir dentro
de duas semanas. Não se preocupe com isso, a sério… Não disse uma palavra a respeito dos
Darlington – queixou-se a rapariga.
Declan sorriu para ela.
– O que quer que lhe diga?
– Declan! Não ouviu uma palavra do que lhe disse? Lady Darlington pretende juntar o filho com a
Lily! Isto é, comigo.
Donnelly soltou uma gargalhada.
Keira gemeu.
– Será a minha ruína. Consegue perceber isso, não? Vão descobrir tudo e será a minha ruína.
– Tratando-se de Lorde Raley, será uma corrida para ver qual dos dois conhece a ruína primeiro,
para dizer o mínimo – respondeu Declan. – Não se apoquente. Essa é a última das coisas em que tem
de pensar. Conheço muito bem o Harry e ele nunca se casará. É um canalha e uma constante fonte de
preocupações para o irmão, o duque.
Keira soltou um suspiro. Inclinou a cabeça e observou-o.
– Apesar de toda a sua falta de sensibilidade, o senhor sabe acalmar-me.
Donnelly ficou surpreendido por ouvi-la dizer aquilo, e ainda mais surpreendido ficou quando ela
estendeu a mão e lhe passou os dedos pela barba que não cortava havia alguns dias. O toque da mão
dela provocou-lhe um estremecimento que ecoou em todas as fibras do seu ser.
– Por onde tem andado, Declan? – perguntou ela baixinho.
A fugir de si, muirnín.
– Não recebeu o bilhete que lhe enviei? – perguntou, cruzando os dedos com mais força sobre as
costas para manter as mãos longe dela. – Fui visitar Mister Bowman, como lhe disse.
Ela assentiu com a cabeça.
– Mas porque demorou tanto tempo? – insistiu.
Donnelly sentiu-se desconfortável, como se não tivesse uma resposta para aquela pergunta.
– Precisei de o procurar – disse vagamente. – Depois, quis ver de novo o registo do julgamento.
– O que descobriu?
– Com ele? Nada, além de culpa.
– Culpa! – Keira estremeceu. – Que lhe disse ele?
Declan não conseguia encarar aqueles olhos sem pensar em coisas que gostaria de fazer com ela.
Tomou-a pelo braço e conduziu-a num passeio.
– Mister Bowman recusou-se a falar do assunto, de todo. Na verdade, avisou-me para que não
investigasse. Mas tive a forte sensação de que havia ali alguma coisa, algo que ele pretende manter
escondido. Mister Bowman conhece o porquê de um homem inocente ter sido acusado, julgado e
enforcado. Infelizmente, não fala sobre o assunto.
– Talvez eu possa falar com ele – sugeriu Keira.
– Não creio. Ele deixou bem claro que não quer falar do assunto e não gosta de visitas. Recebe-as
à porta com uma arma na mão.
– Uma arma? Nesse caso, o que podemos fazer? – perguntou Keira com evidente frustração.
– Deve haver alguém que fale no assunto, além do Hollingbroke – sugeriu Declan. – Um criado ou
alguém da aldeia. Alguém que saiba o que aconteceu.
– Alguém, sim, mas quem? Estou a ficar sem tempo. A Lily já devia ter chegado.
– Tudo há de correr bem, Keira – disse ele, tentando sossegá-la.
Keira riu nervosamente.
– Para si, é muito fácil falar, Declan. Não sente o peso do meu embuste.
– Talvez não sinta o do seu, mas já conheci o peso do embuste – recordou-lhe e Keira baixou os
olhos, sentindo-se culpada. – Colocou-se nesta posição insustentável e agora tem de ir até ao fim.
Isso significa que tem de continuar a respirar, inspirando e expirando à vez.
Ela abanou a cabeça.
Declan tocou-lhe na mão.
– Olhe para mim, Keira. – Ela fixou nele um olhar preocupado. – Sabe tão bem como eu que tem de
continuar.
A rapariga fez que sim com a cabeça, aproximando-se de um banco e deixando-se cair
pesadamente sobre o mesmo.
Apesar de toda a irresponsabilidade de Keira, Declan sabia que ela nunca procurara aquilo.
Parecia genuinamente perplexa e arrependida. Agachou-se diante dela.
– Consegue aguentar mais uns dias, rapariga. Lembre-se de que é irlandesa! Pode fazer isto pela
Lily, porque sei que não quer entregar-lhe uma confusão sem ponta por onde se pegue quando ela
voltar a Ashwood.
– Sim, mas a Lily compreenderia se eu…
Declan interrompeu-a pegando-lhe no queixo e obrigando-a a olhar para ele de novo.
– Por uma vez na vida, pense nas consequências do que faz. Pense nas crianças que vão beneficiar
com a gala de verão. Pense em todos os residentes de Hadley Green que trabalharam a produção de
artigos para vender, para benefício daquelas crianças. Pense nos homens que agora têm emprego
graças à sua decisão de reconstruir o moinho, e nos rendeiros de Ashwood cujo ganha-pão se
encontra protegido com a sua presença aqui, um ganha-pão que ficaria ameaçado se o seu embuste
fosse descoberto antes de a Lily aqui estar para resolver tudo. Pense na Lucy, e nos filhos de Mister
Scott, que viveram todos estes anos sem um pai, e que o único pai que tiveram foi acusado de ser um
ladrão.
Keira deixou cair os ombros. Fechou os olhos, mas não disse nada.
– Não pode esquecer que são muitos os que dependem de si – continuou ele suavemente, dando-lhe
um toque na face.
Ela abriu os olhos e Declan sentiu uma corrente poderosa fluir entre ambos.
– Está bem – concordou Keira em voz baixa.
Donnelly percebeu a tensão emocional nas linhas do rosto dela. Nunca teria acreditado que seria
capaz de uma tal coisa, mas sentiu-se trise por ela, e sentiu um forte desejo de a ajudar, de a proteger.
Não conseguiu evitar dar-lhe um beijo. Ela soltou um som abafado quando o fez, um som que parecia
ao mesmo tempo de esperança e alívio. Declan levantou-se, puxando-a para si e beijando-a
longamente. A resposta do seu corpo foi rápida; o desejo trovejou dentro dele, insensibilizando-o a
tudo o resto. Queria provar a pele dela, senti-la debaixo dele.
– Venha ao castelo – disse, beijando-lhe o pescoço. – Venha ter comigo esta noite – insistiu
enquanto as suas mãos lhe percorriam o corpo.
– Será a minha desgraça – respondeu ela com voz áspera.
– Já está desgraçada, muirnín. Não quer viver, sentir a vida? Então, venha ter comigo.
– Não – recusou ela com voz débil.
Declan tomou a mão dela entre as suas e levou-a à boca, beijando-lhe os dedos.
– Quer ir ao meu encontro. Vejo-o em si – continuou, correndo as costas da mão pela face da
rapariga.
Keira afastou a face da mão dele.
– Vê o que quer ver – disse.
– Nesse caso, diga-me o que vejo – insistiu Donnelly, inclinando-se para a olhar nos olhos. – Diga-
me.
– Não é evidente? – gemeu ela. – Não se lembra daquela tarde na Irlanda?
Ele vacilou.
– Eu sei que se lembra – disse.
– Eu gostava de si – continuou ela. – Não era tão impetuosa como pensa. Gostava de si e esperava
por aquele momento. Ainda gosto. E continuo à espera do momento em que goste de mim como gosto
de si.
Donnelly não soube o que responder. Estava a pisar um chão perigoso, mas não podia prometer-lhe
mais do que lhe oferecia. O que, percebeu, era uma oferta bastante pobre. Desejava-a, mas a escolha
tinha de ser dela. Tomou o rosto dela nas mãos e desenhou-lhe uma linha na face.
Keira afastou-lhe a mão.
– Mas não sou nenhuma concubina. Talvez seja boa altura para me lembrar mais uma vez das
consequências das minhas ações – disse, passando por ele e começando a subir o caminho.
Donnelly percebeu que lhe doía ouvir as suas palavras usadas contra si. Pela primeira vez na sua
vida adulta, começou a perceber que não fazia ideia do que fazia com uma mulher. Desejava-a, mas
tinha receio de a possuir por completo. Ficou a vê-la afastar-se em passo vivo, com o cabelo a
ondear sobre as costas. Não a chamou. Claro que ela tinha razão. Ele era a epítome da hipocrisia.
Mas, em toda a sua vida, Declan nunca desejara uma mulher tão completamente como desejava
aquela mulher exasperante. Não sabia ao certo o que fazer e nunca tivera tantas incertezas acerca de
uma coisa.
Vinte e quatro

O coração de Keira batia como um tambor quando subiu os degraus da entrada de Ashwood. Abriu a
porta dupla com ambas as mãos e entrou, atirando o chapéu para cima de uma credência, seguido
pelas luvas de montar.
Declan O’Conner estava a dar cabo dela. A matá-la. Quando não atiçava nela um desejo
inimaginável, fazendo-a desejar tudo o que não podia nem devia imaginar, incitava-a a pensar em
consequências, a perceber que as suas ações tinham consequências graves nas vidas de outras
pessoas.
Como se ela não soubesse. Como se não acordasse e adormecesse todos os dias com esse
pensamento a consumi-la.
Keira viu-se ao espelho por cima da credência. Era tão ignorante! Declan tinha razão; ela nunca
pensava nas consequências. Não pensara nelas oito anos antes, como não pensara nelas ao descer da
carruagem pela primeira vez em Ashwood, nunca fora seu desejo que acontecessem tantas coisas.
– Mandei servir chá, Lady Ashwood – anunciou Lucy, surgindo à direita de Keira.
Perguntou-se há quanto tempo a menina estaria ali enquanto ela se deixava consumir e ignorava a
sua presença.
– Oh, sim, chá – disse Keira. – Obrigada, querida, mas não creio que Lorde Donnelly venha. – Os
santos fossem louvados por isso, ao menos. Não confiava em si com ele por perto, para dizer o
mínimo.
– Não é para ele, m’dame. É para Mister Fish e para o outro homem.
Keira parou de ajeitar o cabelo e voltou-se para Lucy.
– Mister Fish está cá?
Lucy assentiu com a cabeça.
– Não devia ter mandado servir chá? – perguntou.
– Nada disso, fez bem em mandar servir – respondeu Keira, colocando uma mão sobre o ombro de
Lucy. – Ainda faço de si condessa – continuou, o que lhe valeu um amplo sorriso da menina. – Acho
que ainda tem mais lições, hoje. Vá ter com Mistress Thorpe e encontramo-nos antes do jantar.
– Sim, m’dame – disse Lucy, dirigindo-se para a escada que Mr. Scott fizera.
Keira viu-se de novo ao espelho. Conseguia sentir os lábios de Declan na pele e quase conseguia
ver a marca da boca dele na sua face. Ajeitou de novo o cabelo, inspirou profundamente e dirigiu-se
para a sala verde.

Mr. Fish e Mr. Goodwin levantaram-se assim que Keira entrou.


– Mister Fish – saudou. – Mister Goodwin, que surpresa.
Mr. Goodwin fez-lhe uma vénia.
– É um prazer vê-la de novo, Lady Ashwood.
– Obrigada. – Indicou o canapé a ambos. Estava tudo menos com disposição para discutir o caso
Eberlin. – O chá não deve tardar – disse de modo ausente.
– Muito obrigado, mas devo regressar a Londres com a máxima brevidade possível – disse Mr.
Goodwin. – Tenho novidades que penso que deve ouvir.
– Oh! Por favor, sente-se, Mister Goodwin – convidou Keira, sentando-se numa cadeira.
– Vou ser franco, madame. As notícias não são particularmente boas – começou Mr. Goodwin,
sentando-se onde ela indicara. Mr. Fish permaneceu de pé. – Vim a Hadley Green para rever os
registos paroquiais, para ver se encontrava algo que contradissesse o que descobri até agora.
Infelizmente, a minha investigação sugere que a vinculação das terras em causa se encontra
precisamente na situação que Mister Sibley lhe descreveu. Legalmente, devia reverter para o
proprietário de Tiber Park. Não existe qualquer provisão para que a herde.
Keira ficou tão atónita que, inicialmente, nem conseguiu falar. A sua mente começou a processar
aquela improbabilidade e as suas repercussões.
– Decerto está enganado – afirmou por fim, levantando-se lentamente. Mr. Goodwin também se
levantou. – Não posso acreditar – continuou, olhando para ele. – Nunca ouvi tal coisa.
– Quem me dera que não fosse verdade, madame, mas é a lei e existem precedentes. Como disse,
pretendo rever os registos paroquiais, na esperança de encontrar algo que o contradiga. Talvez uma
provisão feita nos últimos anos, mas não alimento grandes esperanças. Como tal, penso ser melhor
negociar com os proprietários de Tiber Park. No mínimo, talvez consiga chegar a um acordo que a
compense de alguma forma pela perda das terras. Ficaria muito feliz se…
– Não, eu não vou negociar.
Disse-o num repente, sem pensar. Não venderia as terras de Lily, e muito menos a um homem que,
por motivos que compreendia, procurava a destruição de Ashwood.
– Se me permite, madame – interveio Mr. Fish. – Uma vez que nos foi apresentada a verdade legal,
porque não procura obter um negócio justo relativamente às terras?
– Os negócios justos não existem – retorquiu Keira energicamente. – E estou certa que não viria
dali nada de bom. Eu conheci Lorde Eberlin, Mister Fish. Ele não vai negociar. Não tardará a
destruir Ashwood.
Mr. Fish pareceu perplexo e, pensou Keira, algo impaciente.
– Ele disse-lhe tal coisa? – perguntou.
– Não, mas sei que tenho razão, senhor. Há qualquer coisa de perturbador em Lorde Eberlin e não
negociaria com ele mesmo que estivesse à vontade para o fazer.
– Mas… mas está à vontade para o fazer – argumentou Mr. Fish.
– Não estou – disse ela em voz baixa. Queria contar-lhe. Deus sabia que queria contar-lhe a
verdade. O que faria ele, sem a presença de Lily para a defender? – Tem de confiar em mim, Mister
Fish.
Mr. Fish pareceu espantado. Olhou para Goodwin quando um criado apareceu à porta, trazendo
consigo o serviço de chá. Keira deixou passar o criado e dirigiu-se para a porta.
– Mister Goodwin, por favor, verifique os registos paroquiais – pediu. – Espero, e desejo, que
encontre alguma coisa que nos ajude. Bom dia – disse, antes de sair da sala.
A sua mente trabalhava a toda a velocidade. Não venderia, nem negociaria com aquele homem.
Algo lhe dizia que era melhor avançar com os trabalhos no celeiro, porque Ashwood precisaria de
todos os rendimentos que pudesse gerar.

Sentindo uma inquietação incaraterística, Declan passou o final da tarde em Kitridge Lodge com um
copo de cerveja numa mão e uma arma na outra, disparando contra alvos dispostos em cima de uma
vedação. A sua única companhia era Mr. Noakes, que Declan mandou apanhar um dos dois baldes
que atingira, colocando-o de novo em cima da vedação.
– Sem dúvida que deve pensar que tem de cuidar de um louco irlandês – disse Declan ao estoico
zelador enquanto fazia pontaria, fechando um olho para o efeito. – E tem razão. – Disparou, falhando
por completo o balde. – Mas não é porque sou irlandês.
Sabiamente, Noakes não o questionou quanto à última afirmação.
Era porque Declan não sabia o que fazia. O problema de Keira, apesar de ser ela a culpada da sua
situação, afligia-o. Queria protegê-la de algum modo do que estava para vir. Pensou que se tratava de
uma necessidade primitiva, uma necessidade que nunca sentira daquela forma.
E o que significava realmente ter aqueles sentimentos, e por Keira, ainda por cima? Não havia
duas pessoas menos certas uma para a outra. Não fora sempre essa a verdade? Não continuava a ser
essa a verdade? Keira Hannigan tinha-lhe causado problemas durante anos. Mas aquilo era diferente.
Tinha um toque e um sabor diferentes. Mas não deixava de representar sarilhos.
Declan não sabia as respostas às suas perguntas. Tudo o que conseguia era desejar que Lily
regressasse a Inglaterra.
Os tiros e a cerveja não conseguiram acalmá-lo, pelo que Declan também passou uma noite
inquieta. Fez um esforço considerável para ler, mas não era grande amigo de leituras e os seus
pensamentos interrompiam constantemente as palavras que contavam a história dos povos nórdicos.
A dada altura, Declan adormeceu na cadeira, acordando com uma dor de pescoço quando o livro lhe
caiu do colo.
Também culpou Keira por isso.
No dia seguinte, depois de trabalhar com os cavalos, pensou em Penny. Há semanas que não a via e
ocorreu-lhe que talvez ela pudesse acalmar a inquietação que sentia de uma forma bastante
agradável.
Penny ficou contente ao vê-lo. Recebeu-o com um sorriso largo e atravessou o quarto com
movimentos exagerados de ancas para o receber.
– Uma cerveja, milorde? – perguntou.
– Uma cerveja não me matará a sede – respondeu ele, demorando o olhar no peito dela.
Penny dirigiu-lhe um sorriso provocador e inclinou-se para ele, os seios a centímetros do rosto de
Declan.
– Há um quarto vazio ao fundo do corredor – disse suavemente.
Declan sorriu.
– É melhor trazer cerveja – disse Declan com um sorriso, abrindo caminho por entre as mesas e
cadeiras e começando a subir a escada para os quartos.
Quando Penny apareceu, um quarto de hora depois, com um par de canecas, Declan estava sentado
à mesa com os pés em cima de outra cadeira. Convidou Penny a sentar-se à mesa com ele. Ela
dirigiu-lhe um olhar de curiosidade, mas sentou-se com todo o prazer.
– Sabe muito bem sentar-me um pouco – suspirou, cruzando os braços sobre a barriga e olhando
para ele, e depois para a cama, expectante.
Declan sorriu à sua antiga amante. Fora má ideia ir ali. Devia saber que não sentiria desejo de a
levar para a cama. Sendo sincero, tudo o que sentia por ela era uma amizade carinhosa. Os seus
pensamentos eram consumidos por um demónio de olhos verdes e cabelo da cor das asas de um
corvo.
– Como está o seu irmão? – perguntou.
– O meu irmão?
– O James?
– Quer dizer o Johnny. Oh, partiu de novo, milorde. Mal passou duas semanas em casa da minha
mãe antes de tornar a partir. – Cruzou os dedos sobre a nuca e espreguiçou-se. – Aquele anda sempre
em viagem. Quando ainda era rapazinho, era eu que tomava conta dele, e andava sempre à procura
dele para o levar para casa. Parecia que queria fugir.
Declan conhecia a sensação. Quando o pai morrera, deixando-lhe o título de conde, não quisera
assumir a responsabilidade, ou passar o resto dos seus dias preso a Ballynaheath. Mesmo, então,
temera não voltar a poder sair da Irlanda durante muito tempo.
– A verdade é que esse é o modo de vida dele – continuou Penny. – Não se sente feliz sem ver o
mundo, e coisas novas, todos os dias.
Declan entendia melhor que ninguém.
– Viveu em Hadley Green toda a vida? – perguntou a Penny, curioso.
– Como a minha mãe, antes de mim, e a mãe dela, antes disso – respondeu a rapariga, orgulhosa.
Declan foi subitamente tomado por uma ideia e inclinou-se para diante.
– Então, estava cá quando Mister Scott foi enforcado.
– Oh, sim, estava – confirmou Penny. – Note-se que era só uma menina, mas foi uma coisa
importante. O meu pai assistiu ao enforcamento e depois levou-nos doces. Vendiam-nos mesmo por
baixo do cadafalso.
– O que se dizia dele? De Mister Scott.
Penny encolheu os ombros.
– Que não passava de ladrão – respondeu de forma inequívoca, começando a massajar o joelho. –
Ele roubou as joias da condessa.
– Foi acusado de as roubar, sim, mas as joias nunca foram recuperadas.
– Pois, dizem que as enterrou algures por estas bandas. – Penny soltou um risinho abafado. – O
Johnny e eu escavámos meio Sussex à procura delas.
– Nunca houve nenhuma menção à sua inocência? – insistiu Declan.
– Céus, não! – riu Penny. – Oh, sim, o Louis diz que sim, mas o Louis era um rapazote. O que sabia
ele, eh?
– O Louis?
Penny sorriu timidamente.
– Um criado de Ashwood. Aparece por aí de vez em quando. O que… Julgava que as minhas
atenções eram só para si, milorde? – provocou.
– O que lhe disse o Louis? – perguntou Donnelly, sorrindo.
– Oh, não me lembro bem – respondeu a rapariga com um gesto afetado de mão. – Só que aquele
rapaz azarado caiu sobre a própria forquilha por causa disso.
Que rapaz azarado? Declan pousou a caneca.
– O que quer dizer? – perguntou.
– Não sei muito bem, milorde. Uma vez, o Louis disse que um rapaz de Ashwood morreu por falar
de mais. Não me lembro de ele ter dito mais nada. Nós não ficávamos propriamente à conversa, o
Louis e eu.
Um criado de Ashwood tinha a resposta que tanto procuravam. Como Linford e Mrs. Thorpe não
falavam, tinham assumido que mais ninguém lhes diria nada.
– Isto é importante, Penny? – insistiu Donnelly. – Que mais disse o Louis?
– Oh, era uma coisa insignificante – respondeu ela. – Estávamos a rir-nos da busca da porcaria das
joias. Toda a gente andava à procura. Todos sonhavam ficar ricos. O Louis disse que o único homem
de Ashwood que não acreditava que Mister Scott tivesse roubado as joias tinha sido encontrado
espetado numa forquilha. Eu digo que teve azar na queda.
Declan levantou-se num repente.
– Onde vai, milorde?
– Tenho de falar com o Louis – respondeu, pegando na bolsa das moedas. – Ele ainda é criado em
Ashwood?
– Sim, ainda… Mas porque quer falar com o Louis? Por causa do velho? – troçou Penny. – Isso foi
há muito tempo, senhor. Venha cá, que eu dou-lhe uma coisa de que deve gostar mais.
Declan atirou algumas moedas para cima da mesa, inclinou-se e deu um beijo no alto da cabeça de
Penny.
– Obrigado, Penny. Sabe sempre o que dizer. – Piscou-lhe o olho e saiu.
– Por esta não esperava eu – disse a rapariga, pegando nas moedas e enfiando-as no amplo decote.

***

Em Ashwood, Linford abriu a porta quando Declan bateu. Inclinou a cabeça idosa e disse:
– Sua Senhoria está a tomar chá com as senhoras da Sociedade, milorde. Devo informá-la de que
está aqui?
– Na verdade, gostaria de falar com o Louis. Ele está?
– O Louis? – repetiu Linford, franzindo levemente o cenho. – Posso perguntar se fez alguma coisa
que o ofendesse, milorde?
– Nada que se pareça. Mas creio que pode ter a resposta a uma pergunta que tenho na cabeça.
– Talvez eu também possa responder – ofereceu-se Linford.
– Não creio, Linford. É com o Louis que preciso de falar.
Linford não pareceu particularmente agradado, mas não deixou de fazer um breve aceno de
assentimento a Declan.
– Quer ter a amabilidade de aguardar na sala de visitas, milorde?
– Obrigado – disse Declan, passando pelo velho mordomo.
Esperou apenas alguns minutos até Louis entrar, com ar preocupado. Aparentava ser da idade de
Declan, o que fazia com que tivesse dezasseis ou dezassete anos no ano do enforcamento de Mr.
Scott. Louis percorreu a sala com o olhar, quase como se esperasse ser atacado por alguém.
– Milorde?
Declan passou pelo criado e fechou a porta, voltando-se depois para ele.
– Vou ser direto, senhor – disse-lhe. – O que sabe sobre a morte de... Scott?
O criado dirigiu-lhe um olhar inexpressivo.
– Milorde?
– Mister Scott, Mister Joseph Scott. Foi enforcado há uns quinze anos, por ter roubado as joias da
condessa.
O rosto de Louis perdeu a cor. Olhou para a porta.
– Não sei nada, milorde. Palavra de honra que não sei nada – respondeu. – Não passava de um
rapaz, na altura, e ignorava muitas coisas. Queira desculpar, mas estou a servir a condessa.
Tentou alcançar a porta, mas Declan interpôs-se no seu caminho.
– Oiça, não estou aqui para lhe arranjar problemas, mas porque acredito que um homem foi
enforcado por esse crime.
– Não sei nada sobre isso – insistiu Louis, tentando rodear Declan.
Dessa vez, Donnelly impediu-o pondo-lhe uma mão no peito e empurrando-o para trás.
– Creio que não sou o único que acredita que ele estava inocente, Louis. Julgo que há muitos outros
que também acreditam. Mas, infelizmente, a memória é curta em Hadley Green. E quando a Penny me
disse que partilhava o meu ceticismo, achei que devíamos conversar um pouco. Só quero saber
porque acredita que ele estava inocente.
Louis olhou para a mão de Declan no seu peito.
– Por favor, senhor, estou em Ashwood há dezoito anos. Se perder o meu emprego, não tenho para
onde ir. A minha velha mãe está doente e depende de mim para a sustentar.
Declan baixou a mão.
– Dou-lhe a minha palavra de que não perde o seu emprego – garantiu. – E, se perder, eu próprio
lhe arranjo outro. Diga-me o que quero saber.
– Nada – insistiu Louis. – Deus é testemunha de que não sei nada.
– Disse algo diferente à Penny.
O outro corou e baixou o olhar.
– A Penny devia ter tento na língua – protestou.
– Conte-me – insistiu Declan.
Louis soltou um suspiro resignado e fez um gesto com a mão.
– Aqui, ninguém acreditou que Mister Scott tivesse roubado as joias. E… Mister Caufield tentou
dizer ao velho conde, com os devidos modos, que não fora Mister Scott. Que vira Lady Ashwood e
Mister Scott no jardim em mais de uma ocasião. Mas Mister Caufield foi encontrado dias depois com
uma forquilha cravada no peito. Depois disso, ninguém se atreveu a dizer que achava que Mister
Scott estava inocente.
Parecia tudo muito simples depois de Declan ouvir o que Louis tinha para dizer. A condessa tivera
um caso, e o conde castigara o pobre homem, acusando-o de roubo, quando descobrira.
Mas homicídio?
– O que o faz pensar que a morte de Mister Caufield não foi um acidente trágico?
Louis soltou um gemido e olhou de novo para a porta.
– Sabe tão bem como eu, milorde, que quando um homem é mestre de estrebaria toda a vida não
deixa uma forquilha ao Deus dará – respondeu. – E muito menos tropeça e cai em cima dela.
Deus do céu.
– Se o que está a dizer é verdade, porque não salvou a condessa o homem de uma acusação falsa?
Porque não esteve no julgamento dele ou, ao menos, apresentou as joias para provar a sua
inocência?
Louis encolheu os ombros.
– Diz-se que foi ameaçada – respondeu. – O conde e ela tiveram uma discussão terrível na noite
em que as joias desapareceram. Até as criadas da cozinha ouviram, três pisos mais abaixo.
– Ele ameaçou-a? De quê? – quis saber Declan, tentando imaginar que espécie de ameaça
impediria uma mulher de salvar o seu amante da forca.
– Não sei, milorde – disse o outro, abanando a cabeça. – Foi há muito tempo. O que quer que tenha
sido, foi demasiado tarde para Mister Scott. Recordo-me de ela dizer isso mesmo ao capitão Corbett
no dia em que mandou Miss Boudine para a Irlanda. Ouvia-a dizer isso no caminho onde estava a
carruagem, enquanto ajudava a menina a subir. «Eu própria o enforquei. Não pude fazer nada», disse
ela. Nunca me esquecerei, porque me deu um arrepio nos ossos.
Atónito, Declan olhou para Louis. Althea Kent sabia. Sabia que Scott fora injustamente acusado e
não tinha feito nada. Ter-se-ia suicidado por causa da culpa que sentia?
– Onde posso encontrar o capitão Corbett? – perguntou.
– Isso é algo que não lhe sei dizer, senhor. Ele era amigo de Lady Ashwood e veio de Londres para
levar a menina. Vinha sempre da cidade. Sei-o porque alugava uma carruagem de Londres para que o
trouxesse.
Declan assentiu. Enfiou a mão na bolsa e tirou uma coroa que entregou a Louis.
– Foi muito útil – disse em jeito de agradecimento.
Louis aceitou a moeda, hesitante, e olhou para ele.
– Tenho a sua palavra de que não perco o meu emprego, senhor? – insistiu.
– Tem a minha palavra – garantiu Declan e Louis enfiou a coroa no bolso do colete. – Agora, se
fizer favor, diga à senhora que a vim visitar.
– Com certeza, milorde. – Louis dirigiu-se para a porta e abriu-a.
– Mais uma pergunta – lembrou-se Declan, atraindo de novo a atenção do criado. – Porque mandou
Lady Ashwood Miss Boudine para a Irlanda?
– Não sei, senhor – respondeu Louis com um encolher de ombros. – Calculo que a menina soubesse
de mais sobre a condessa e os seus amantes. Talvez deva perguntar-lhe a ela.
Vinte e cinco

Keira ficou ligeiramente alarmada quando Louis se inclinou para ela e lhe sussurrou ao ouvido que o
conde de Donnelly estava à espera para a ver. Assentiu e sorriu para Lady Horncastle, que estava
sentada à sua frente, continuando a falar animadamente sobre a probabilidade de fazer um arranjo
entre Keira e o filho mais novo de Lady Darlington.
– Ganha pelo menos quinze mil por ano – disse, do seu lugar à mesa no terraço, onde bebiam chá.
Mais abaixo, nos jardins, tinham começado a montar a tenda que seria erigida para a gala, daí por
apenas quatro dias.
– É considerado um muito bom partido por todos os que percebem dessas coisas – disse enquanto
olhava sabiamente para o grupo reunido, que incluía Mrs. Morton, Mrs. Ogle e Miss Babcock. – É
uma pena muito bonita, a do seu chapéu, para o deixar tão interessado em si, Lady Ashwood.
– O único interesse em mim vem da parte da sua mãe – respondeu Keira secamente.
– Mas, minha querida, é assim que as coisas são feitas – insistiu Lady Horncastle enquanto
levantava a chávena para que o lacaio pudesse servir mais chá. – Os cavalheiros dizem às suas mães,
que providenciam as apresentações.
– Mister Sibley não depende da sua mãe – observou Mrs. Morton.
– Nem Mister Anders – acrescentou Miss Babcock.
– Sinceramente! – retorquiu Lady Horncastle, bastante exasperada por a contradizerem. – Nenhuma
de vocês percebe como as coisas são feitas dentro da Qualidade como eu!
Keira não tinha a certeza que Lady Horncastle percebesse de todo. Não conseguia imaginar Declan
a precisar que a sua avó fizesse as apresentações por ele. Imaginava, sim, as mulheres a procurarem
apresentar-se a ele.
– Pensei ter percebido que o filho de Lady Darlington estava prometido para casar com uma
menina debutante – disse Mrs. Morton.
– Com a vossa licença, senhoras – interrompeu educadamente Keira. – Há um pequeno assunto do
qual tenho de tratar.
As senhoras levantaram-se prontamente.
– Está a falar de Lorde Merrick, o seu segundo filho? – disse Lady Horncastle a Mrs. Morton
enquanto Keira saía e as senhoras se sentavam de novo. – Com uma menina debutante da Escócia, de
entre todos os lugares! Ouvi dizer que para eles, no Norte, é normal não se banharem…
Seguida por Louis, Keira apressou-se a chegar à sala de visitas. Louis adiantou-se e abriu-lhe a
porta e ela viu Declan à janela a espreitar. Maravilhava-a que, de cada vez que o via, lhe roubasse
mais um pouco do seu ar. Parecia tão atraente, com o cabelo escuro sobre o colarinho, e o casaco tão
justo aos ombros. Virou-se quando ela entrou e sorriu da maneira mais doce, como se estivesse feliz
por vê-la, e o coração dela derreteu-se um pouco.
Ouviu Louis a fechar a porta atrás dela.
– As senhoras da Sociedade estão aqui.
– Meu Deus, tudo menos as senhoras da Sociedade – respondeu Donnelly num tom de alarme
trocista.
– Pelo amor de Deus, Declan, estão a arranjar partidos para mim aqui e ali. Se o veem aqui, vão
entrar todas em histeria matrimonial.
Ele riu-se.
– Não tem a mínima graça – avisou-o, dirigindo-se para o fundo da sala. – Não imagina como é
difícil suportar as suas constantes atenções enquanto finjo que sou alguém que não sou. Mas tenho de
voltar antes que se apercebam de onde estive. Porque veio?
– Para a ver.
Lá foi mais um pedaço do seu coração, derretido como manteiga, e sorriu timidamente.
– Não me sorria assim, rapariga. Não sou um dos seus pretendentes ingénuos – avisou Declan.
O seu sorriso abriu-se mais.
– Penso muitas coisas de si, senhor… mas nunca pensei que fosse um pretendente ingénuo – disse
baixinho.
Olharam-se durante um longo momento. O olhar de Declan escapou-se para a boca dela e o sangue
de Keira começou a aquecer.
– Se não pretende cortejar-me, o que o traz aqui hoje? – perguntou.
– Tenho notícias – disse ele. – Acho que podemos provar que Mister Scott era inocente se falarmos
com o capitão Corbett. Depois, podemos concentrar a nossa atenção em encontrar as joias que, se as
minhas suposições estiverem corretas, certamente estão nesta casa.
Keira pestanejou, surpreendida.
– Como? Aqui?
Declan contou-lhe o que tinha descoberto. Keira escutou num silêncio arrebatado, deixando-se
escorregar para uma cadeira enquanto tentava absorver tudo. Conseguia imaginar tudo: Lily a ver a
tia Althea e Mr. Scott juntos naquela noite chuvosa; Mr. Scott a fugir antes que os dois fossem
descobertos… mas sem as joias. Joseph Scott perdera a vida pela tia Althea. A sua família perdera
um pai e um marido pelo caso ilícito de Mr. Scott e Althea. Mr. Caufield também perdera a vida. E
Lily… Lily tinha posto tudo em movimento, inconscientemente. Como conseguia aguentar?
– Lembra-se do capitão Corbett? – perguntou-lhe Declan. – Foi o homem que acompanhou Lily à
Irlanda.
Keira ainda tentava absorver a verdade. Parecia que tudo em Ashwood estava preso por fios de
aranha e que o toque de um simples dedo seria o suficiente para que tudo ruísse. Começou a abanar a
cabeça. Não se lembrava de Corbett. Mas de repente surgiu-lhe uma imagem na cabeça de um homem
de peito largo e cartola que ajudava Lily a sair da carruagem. Keira lembrava-se dele. Tinha ficado
em sua casa um ou dois dias antes de regressar a Inglaterra; um homem jovial de gargalhadas longas
e fortes.
– Sim, claro. O capitão Corbett.
Declan aproximou-se de repente.
– Se falarmos com o capitão Corbett, teremos o que precisamos para limpar o nome de Mister
Scott.
As joias, as joias…
– Se as joias estão mesmo em Ashwood, então não tenho de me preocupar com Lorde Eberlin a
roubar as terras da Lily. Elas podiam ser o seguro de que ela precisa.
– Sim. Já teve notícias dela?
– Procuro-a todos os dias – afirmou Keira. – Ela disse que voltava dentro de três meses e os três
meses já passaram. Mas Declan, como iremos encontrar o capitão Corbett? Não sabemos onde está.
– É provável que esteja em Londres, segundo o Louis. Podia ir procurá-lo e regressar dentro de um
dia ou dois.
– Não pode ir, Declan. A gala é daqui a apenas quatro dias.
– Eu volto a tempo – respondeu ele impacientemente. Fitou-a com os seus olhos de um azul
insondável e ela não conseguiu imaginar que pensamentos navegavam neles. – Partirei de madrugada.
Não posso ficar parado sabendo o que sei sobre Mister Scott e não o usar para libertar a sua
memória.
– Mas como vai encontrar o capitão Corbett? – insistiu Keira.
– Vou perguntar por aí. Inquirir nos sítios que um cavalheiro do seu estatuto poderá frequentar. –
Os seus olhos percorreram-na de cima a baixo. – Tenho de ir – disse. – Se vou estar fora, ainda tenho
muito que fazer. – Levantou de novo os olhos para ela; olhou-a como se quisesse dizer mais alguma
coisa, mas manteve os lábios selados e dirigiu-se para a porta. Parou aí e voltou-se para olhar para
ela. – Estarei de volta assim que puder – disse antes de partir.
Keira ficou parada, a olhar para o sítio onde ele estivera pouco antes. Tinha medo de estar sozinha
quando Lily chegasse e a sua mentira fosse revelada a todos. Como aquela mentira a tinha marcado,
por Deus. Já não era a pessoa que fora em tempos.
Keira agarrou-se às costas de uma cadeira, enterrando os dedos no forro de seda, sentindo os
joelhos fracos. Não queria nada das coisas que tinha tirado – o nome, o título e aquela bela casa. Se
pudesse, desistiria naquele momento e fazia todo o caminho até casa, onde se deitaria a sonhar com o
homem e com a vida que nunca poderia ter. Deus do céu, onde está a Lily?
Ouviu o som distante de risos femininos. Keira engoliu em seco e obrigou-se a caminhar até junto
delas.

O dia passou a correr. Keira percorreu os jardins com Mr. Fish ao seu lado, inspecionando as
estruturas que os jardineiros montavam para a gala. Sorriu e acenou, dizendo que sim a múltiplas
coisas, para depois se perguntar distraidamente com o que tinha concordado. Precisava de pensar;
queria desesperadamente fugir e pensar. Como conseguiria procurar as joias sem chamar as atenções
para a sua pessoa?
Não tinha grande importância; não tinha tempo para procurar, visto que havia muito a fazer. Só uma
hora antes do jantar, enquanto tocava piano e Lucy praticava as suas letras, é que conseguiu pensar
nas joias. Pensou onde esconderia joias naquela casa.
Keira parou subitamente de tocar a meio de uma peça de que gostava especialmente, que a fazia
pensar na Irlanda, nos montes verdejantes, nos altos penhascos, e mar que se esmagava contra a sua
base.
Lucy olhou por cima da ardósia.
Keira levantou-se do banco e ajoelhou-se.
– M’dame? – perguntou Lucy, pousando a ardósia e o giz.
Keira virou o banco e passou os dedos pela inscrição.
Sois a canção que toca no meu coração. Para A., o meu amor, a minha vida, a única nota no meu
coração. Sempre seu, JS. Lágrimas turvaram-lhe a visão ao imaginar o esforço meticuloso para
entalhar aquela mensagem no banco para a mulher que amava.
– Passa-se alguma coisa de errado? – perguntou Lucy.
Keira voltou a pôr o banco na sua posição inicial e pegou na mão de Lucy, fazendo com que se
sentasse no banco.
– Lucy, querida, há uma coisa de que quero que se lembre sempre – disse. – Uma pessoa deve
sempre defender o que está certo, por muito desconfortável que seja.
Lucy pareceu confusa.
– Prometa-me isto, que, se não se lembrar de mais nada de mim, vai lembrar-se que tudo o que
possa ter feito foi por amor. Lembrar-se-á disso?
Lucy suspirou.
– Vai morrer? – perguntou.
Keira riu-se e abraçou a rapariga.
– Não, querida! Pelo menos, não hoje! – Recuou, agarrando Lucy pelos ombros – Quero que saiba
isto, está bem? Agora acabe as suas letras. Tenho de falar com Mistress Thorpe.
Aturdida, Lucy saiu do banco e voltou para a sua ardósia, olhando por cima do ombro para Keira.
Esta brindou-a com o sorriso mais feliz que conseguiu.
– É um olhar de preocupação que vejo, menina? Não tem com que se preocupar! Está tudo bem.
Se Lucy sabia que Keira mentia, não o mostrou.

Keira encontrou Mrs. Thorpe na arrecadação, a contar os lençóis lavados.


– Madame! – exclamou, pousando rapidamente o papel e a caneta. – Tocou? Não ouvi o sino…
– Não, não toquei – respondeu Keira, passando os dedos indolentemente por uma pilha de lençóis
dobrados. – Desculpe, Mistress Thorpe, mas gostaria de lhe perguntar algo, se fosse possível.
– Com certeza – disse Mrs. Thorpe como se fossem pedir-lhe um favor que não queria fazer.
– Lembra-se do capitão Corbett? – perguntou Keira, timidamente. – Ele levou-me à Irlanda.
– Lembro-me muito bem dele, de facto, madame – respondeu Mrs. Thorpe estoicamente. – Era um
amigo da senhora sua tia.
– Um querido amigo – concordou Keira, esperando por tudo que fosse verdade. – Estava a pensar
se saberia o que lhe aconteceu?
– O que lhe aconteceu? Nada, que eu saiba.
– Por acaso não sabe onde o encontrar?
Mrs. Thorpe juntou as mãos sobre o abdómen.
– Não tenho como saber, Lady Ashwood. Suponho que ainda esteja em Londres, mas não conheço o
capitão Corbett pessoalmente.
– Era um visitante frequente de Ashwood?
Mrs. Thorpe não disse nada durante um bocado.
– Decerto que se lembra, Lady Ashwood. Não se recorda de tantas horas que passou consigo, a
jogar xadrez? Acho que foi ele que a ensinou a jogar.
Xadrez? Keira não se lembrava de vez alguma ter visto Lily jogar xadrez!
– Claro que me lembro – mentiu. – E é por isso que gostaria de me assegurar que ele está bem de
saúde. Mas não faço a mais pequena ideia de onde procurar.
Mrs. Thorpe pensou astutamente no que ouvira e por um pequeno momento Keira temeu que a
governanta soubesse a verdade.
– Suspeito que ainda more em Cheapside – disse. – Pelo menos, alguém de lá pode saber o que é
feito dele.
– Cheapside – repetiu Keira.
– Sim, senhora, Cheapside é o que me vem à cabeça. Mais alguma coisa? – Mrs. Thorpe pegou de
novo no papel e na caneta.
– Sim. Tenho muito com que me ocupar amanhã. Por favor, certifique-se de que a Lucy termina as
suas lições.
Mrs. Thorpe ficou quase impercetivelmente rígida.
– Se assim o deseja – disse de forma algo seca.
Keira mal podia culpar a resposta seca de Mrs. Thorpe. Simplesmente, não queria a
responsabilidade por Lucy somada às muitas responsabilidades que tinha. Pobre Lucy! Que seria
dela se Keira fosse descoberta? Tinha de arranjar alguma solução para ela, de imediato. Já. Porque
iria a Kitridge Lodge dizer a Declan para procurar em Cheapside. Tinha de ser nesse mesmo dia,
porque Keira já se tinha decidido. Tinha a forte sensação de que o seu mundo poderia desaparecer
mais depressa do que desejava.
Vinte e seis

O som de alguém a bater-lhe à porta ecoou escada acima, pelo corredor, até aos aposentos de
Declan, onde este se preparava para ir para a cama. Que horas eram?
– Raios partam – murmurou.
Continuou a ouvir bater enquanto vestia as calças de camurça e uma camisa. Começou a descer as
escadas, passando os dedos pelo cabelo. Olhou para o relógio da cornija. Eram dez horas. Percorreu
mentalmente as apostas que tinha feito recentemente e percebeu que não tinha dívidas absurdas.
Ainda assim, agarrou na pistola, e com ela na mão caminhou até à porta da frente e voltou a ouvir
bater.
– Raios partam, já ouvi! – gritou, abrindo a porta. Piscou o olho à pequena e macia flor virada para
ele. Por baixo da mesma, e do chapéu de montar masculino ao qual estava presa, encontrava-se
Keira. Usava um vestido de montar contra cuja saia batia com a chibata. Keira olhou para a pistola e
depois para ele.
– Esperava alguém?
– Não esperava ninguém. – Encostou o braço à ombreira da porta, amparando-se.
– Que raio faz aqui, a estas horas? Veio a cavalo até aqui? – perguntou, olhando para além dela.
– Está lua cheia – disse ela, batendo com a ponta da chibata na perna dele. – Vim dizer-lhe que o
capitão Corbett vivia em Cheapside há uns anos atrás. E vim… para lhe dizer que tinha razão. – O
olhar dela deslizou para baixo, para o V aberto da camisa dele.
– Não era preciso ter feito este caminho todo para me dizer uma coisa tão dolorosamente óbvia,
mas já que se deu ao trabalho, bem me pode dizer no que tinha eu razão.
Keira suspirou.
– Tinha razão… quando disse que eu estava com algum medo – admitiu.
– Então – apreciou o corpo dela, casualmente –, o que teme, exatamente?
– Penso ser óbvio. – Tocou-lhe de novo com a ponta da chibata.
Declan apanhou a chibata.
– Nada é óbvio quando se trata de si, Keira Hannigan. O que teme?
– A si – sussurrou e fitou-o com aqueles olhos irlandeses.
Ele sentia uma profunda agitação, a necessidade absoluta de estar com aquela mulher da maneira
mais íntima possível. Sorriu ironicamente.
– Eu sou a última pessoa que deve temer. Prefiro imaginar que me conseguia convencer a matar
dragões. – Largou a chibata e agarrou-lhe o pulso. – Não tem absolutamente nada a temer de mim –
disse, puxando-a através da entrada. – Pelo contrário. – Fechou a porta com o pé e largou a pistola
numa credência. – Sou eu que a devia temer.
– A mim? – riu-se.
Tirou-lhe a chibata da mão e atirou-a para o chão.
– A si, certamente – disse Donnelly, agarrando-a pela cintura e puxando-a para o seu peito. Beijou-
a antes que pudesse falar, beijou-a antes que o seu medo de se aproximar demasiado do amor o
convencesse do contrário. – Mas nunca me tema. – repetiu e beijou-lhe o pescoço enquanto lhe tirava
o chapéu e o atirava para uma cadeira.
Tirou um gancho do cabelo dela e depois outro, largando-os enquanto a empurrava para o primeiro
degrau da escada em caracol.
– Se tiver de temer – sussurrou-lhe ao ouvido –, tema o tédio. – Beijou-a na face, na boca. Keira
não lhe resistiu; envolveu os braços à volta do pescoço do homem e tombou a cabeça para um lado
enquanto ele se apoderava do seu pescoço e lhe afastava o cabelo para que pendesse pelos ombros.
Levou-a pelas escadas com uma mão pela cintura. – Tema a propriedade – continuou Declan e, com a
mão livre, tirou-lhe as luvas, largando-as pelas escadas à medida que subia.
No cimo das escadas, encostou-a à parede e desabotoou-lhe habilmente o casaco de montar.
– Tema as sufocantes regras da sociedade – disse baixinho enquanto lhe tirava o casaco. – Tema os
ingleses, tema crianças com paus, tema cavalos verdes – acrescentou em boa medida enquanto lhe
desabotoava e puxava a camisa para fora da saia. Abriu a camisa e envolveu as mãos nos seios ainda
cobertos pela camisa interior, apertando-os, regularizando a respiração. – Tema tudo isso… mas
nunca me tema.
Keira abriu os lábios. Declan segurou-a contra si e levantou-a do chão, caminhando até ao quarto,
parando para fechar e trancar a porta. Levou-a para a cama e, apoiado num joelho, enfiou a mão por
baixo da saia e acariciou-lhe a barriga da perna. Fixou-se nos seus brilhantes olhos verdes.
– Isto só vai acontecer se assim desejar, Keira. Não será por mais razão nenhuma, está bem?
Ela segurou os joelhos com as mãos e, enquanto ele deslizava a mão pela sua perna, sussurrou:
– Sim.
Aquela palavra, tão suavemente proferida, tão libertadora, foi a perdição de Declan. Era de facto a
mulher que o seu coração procurava. Era irlandesa, arrojada e absurdamente tentadora. Olhou-a nos
olhos enquanto lhe tirava uma bota e uma meia, depois as outras. Ela observou-o com curiosidade
enquanto lhe tirava a segunda bota e a meia, subindo a mão pelo joelho dela antes de desatar a fita da
camisa interior. Viu as pontas de seda separarem-se, afastou cuidadosamente o tecido e fitou com
admiração os seios firmes e pequenos. Nunca se sentira tão poderosamente atraído por uma mulher,
tão fortemente estimulado como naquele momento.
Ergueu-se e pôs-se por cima dela, com um joelho na cama, e uma mão apoiada no espaldar,
obrigando-a a deitar-se de costas, fazendo-a abrir as pernas, ao mesmo tempo que pairava sobre ela.
– Ta tu go haliann – sussurrou, dizendo-lhe que era linda na língua que só para eles fazia sentido
naquela aldeia sonolenta de Inglaterra.
O sorriso dela foi instantâneo e suavemente sedutor, um sorriso que deixara Declan a lutar contra o
seu desejo antes de sequer ter começado. Os lábios dela passaram sobre os dele como água. O seu
toque era luz, mas tinha também uma ânsia delicada, provocando pequenos choques em cada sítio que
tocava. A sua língua deslizou para a boca dela e ela suspirou de profundo prazer. O som excitou-o,
rasgando a cortina da sua consciência, descendo até à virilha.
Deitou-se de lado, puxando-a para si, e encontrou o fecho da saia. Quando a tirou, deitou-se,
guiando-a para que o montasse, para que ele a pudesse ajudar com a camisa interior. Keira excitava-
o; não vacilou quando ele lhe levantou os braços, não ficou acanhada quando ele lhe puxou a camisa
interior por cima da cabeça. Permaneceu montada na zona da virilha, onde a força do seu desejo era
bastante evidente. Estava nua para ele, os seus mamilos escuros e eretos destacavam-se contra o
branco cremoso da sua pele, do ventre liso e suave, do pescoço longo e elegante. Caracóis grossos e
sedosos espalhados pelos ombros, e aqueles olhos, aqueles olhos irlandeses que brilhavam sobre
ele.
Era-lhe quase incompreensível que pudesse sentir um desejo assim por aquela mulher, de entre
todas as mulheres. Envolveu-lhe os seios com as mãos e levantou-se para os abocanhar. Keira puxou-
lhe a camisa e ele ajudou-a a livrar-se dela. As suas mãos acariciaram os seios dela, que sugou,
aproximando-se da loucura a cada toque. Os dedos dela passaram pelos mamilos dele, inflamando-o
enquanto ela lhe cobria o rosto com pequenos beijos.
Declan deitou-a de novo, abruptamente, e levantou-se, observando-a enquanto despia as calças. Os
seus lábios abriram-se quando ela o viu ereto, mas sem mostrar nenhuma apreensão virginal nem
desviar timidamente o olhar. Era destemida, mais do que qualquer mulher que havia conhecido, e só
isso fazia com que a amasse.
Percebeu que fora isso que o inquietara nos últimos tempos. Percebeu, quando o sentimento correu
dentro dele. Ele amava-a. Pela primeira vez na sua vida, Declan sabia que sentimento era esse, como
era amar verdadeiramente uma mulher.
Deitou-se docilmente sobre ela e começou a investida na sua pele e sentidos. O seu apetite pulsava
firmemente, fortalecendo-o, impelindo-o, procurando sair. Tratou dela com as mãos e a boca, fazendo
deslizar a mão por entre as pernas de Keira e sentindo um calor húmido entre elas, o pulsar do corpo
dela no vale do seu sexo. Os seus beijos tornaram-se ainda mais urgentes; mergulhou nela ainda mais,
explorando as suas profundezas, e Keira respondeu com tímidos suspiros e gemidos de prazer, com
as suas mãos, com a sua boca.
Apertou-lhe as ancas, levantou-lhe a perna e passou-a pela sua cintura. Queria provar a humidade
dela e mergulhou a cabeça entre as suas pernas. Keira arquejou de modo audível e colou-se a ele.
Segurou-lhe as ancas com firmeza; ela arrastou os dedos pelo cabelo dele enquanto a lambia,
sondando-a profundamente, remoinhando o núcleo dela.
– Declan – disse Keira, com a voz profunda e rouca. – Meu Deus, o que me está a fazer?
Ele não conseguia perceber a sinceridade da pergunta. Keira estava completamente submersa num
poço de desejo, flutuando debaixo dele, estremecendo a cada toque da sua boca ou mãos. Nunca teria
adivinhado como podia ser delicioso e decadente. Sentiu o seu corpo a ser puxado, arrastado para
aquele poço de desejo, carência e prazer; mas ela fervia sob a superfície.
– Leva-me ao desespero – confessou enquanto os seus dedos acariciavam o cabelo dele. – Acho
que podia perecer.
Ele gemeu e sugou-lhe a pele. A sensação era espantosa. Ela caía e voava ao mesmo tempo, a sua
libertação fora tão violenta que estremecera.
Ainda voava quando Declan subiu e se meteu entre as suas pernas, uma mão larga na sua coxa,
mantendo-a levantada.
– Não lhe posso tocar assim e não a ter por inteiro.
A sede que tinha dela era evidente nos seus olhos, no conjunto da sua boca, na sua respiração
irregular. Keira respondeu arqueando as costas na direção dele e pressionando o seio contra a sua
mão. Rosnou baixo, afagou-lhe o cabelo e a cara e afundou-se ainda mais entre as pernas dela. Ela
conseguia sentir a sua ereção na sua pele molhada, conseguia sentir o seu corpo a ajustar-se e abrir-
se para ele enquanto se colava delicadamente a ela.
Declan deslizou a ponta do polegar pelo mamilo e parecia que um fogo corria pelo corpo dela.
Beijou-lhe o seio, com a língua brincou com o mamilo, e Keira cravou os dedos nos ombros dele e
segurou com firmeza. Fechou os olhos e sentiu-se flutuar de novo, à deriva num mar de sensações
eróticas.
– É radiosa – disse ele, beijando-lhe o ombro. – Linda – Colou-se a ela, entrando lenta e
gentilmente no seu corpo, detendo-se ao encontrar resistência, e beijando-a com ternura, antes de a
penetrar. Keira arquejou com a sensualidade de o ter tão profundamente dentro de si, misturada com
uma dor atroz. As suas pernas tombaram quando ele se começou a mexer. Penetrou-a profundamente,
com um som gutural de prazer. Enterrou-lhe a cara nos seios, entrelaçou os seus dedos nos dela e
segurou-os com firmeza enquanto se mexia, lenta e cuidadosamente.
Keira sentiu-se apaixonada por Declan e também presa de uma ânsia. Era demasiado delicado,
demasiado atencioso. As suas defesas, o seu sentido de propriedade, os seus medos estilhaçaram-se
no momento em que ele entrou dentro dela e agora tê-lo-ia por completo. Mexeu-se com ele,
desejando senti-lo mais fundo, com mais força, misturando-se com ela e fazendo parte de si.
– Keira – balbuciou roucamente enquanto ela levantava os seios até à boca dele e se mexia com
ele. Com um gemido, ele pôs-lhe a mão nas costas, levantando-a e começando a mexer-se mais
fogosamente. Keira arqueou o corpo, sentindo outra explosão a nascer dentro dela.
Declan aliviou o seu peso; a sua investida e o seu ritmo aumentaram quando chegou ao núcleo dela.
Começou a mexer-se ao ritmo da urgência que ela sentia, investindo profundamente. Keira esticou-se
para o encontrar e encontrar aquela libertação de novo. Declan já tinha deixado as investidas
moderadas e delicadas, estava a nadar na corrente por eles criada, uma enchente de desejo que os
transportava.
Depois começou a acariciá-la, os seus dedos bailando no sexo dela enquanto a penetrava. A
libertação chegou numa grande onda. Ela gritou, agarrou-se aos lençóis, ergueu-se contra o corpo
dele, sentindo-o convulsionar-se dentro dela.
Instantes depois, sentiu o seu hálito quente no pescoço, o pulsar do coração dele contra o seu peito.
Sentiu os dedos dele no cabelo e a palma de uma mão colada ao rosto.
A experiência fora libertadora. Libertara o coração de Keira e a sua imaginação planava. Sentia-se
acima da Terra, acima da sua mentira. Não queria mais do que sentir o seu corpo duro junto ao seu,
maravilhada com a forma como um homem conseguia reunir e usar toda a sua força, como ele
acabara de fazer, contudo sem a magoar. Sentiu uma ligação com ele que não poderia ser quebrada
nem por palavras, nem pelo tempo, nem por outro ser.
Envolveu-se nos seus braços para que ficasse de frente para ele. Declan afastou-lhe o cabelo da
cara. Um pequeno sorriso surgiu nos cantos da boca dele enquanto se deitava de costas. Keira
imitou-o.
– Parece uma gata consolada, depois de encher a barriga de leite – disse, acariciando-lhe as
costas. – Sente-se bem? – perguntou, com uma voz mais suave.
– Perfeitamente – disse ela, pousando o queixo no peito dele.
Ele acariciou-lhe o queixo com as costas da mão.
– Por acaso já visitou a viúva Cleeney?
– A viúva Cleeney! – Ela riu-se. A viúva Cleeney vivia sozinha no bosque entre Ballynaheath e
Lisdoon. Tinha algumas cabras e dois ferozes galgos irlandeses que afastavam estranhos da sua porta
e apregoava que era curandeira.
– Sim, a viúva Cleeney – disse Declan, olhando-a com suspeita. – O meu pai contou-me uma vez
que ela usava artes negras nas suas curas e a verdade é que me sinto um pouco enfeitiçado
presentemente.
Keira soltou um risinho e beijou o peito dele.
– Sim, ria o que quiser – escarneceu. – Aí está, toda quente e rosada na minha cama. Devia pô-la
no seu pónei e mandá-la para casa, mas sinto-me completamente enfeitiçado e um escravo dos seus
esquemas.
– Ainda bem – disse Keira, mordendo ligeiramente um mamilo dele.
– Deus me acuda – suspirou Donnelly e passou-lhe a mão pelo cabelo, beijando-lhe o alto da
cabeça como se fossem amantes.
Amantes, pensou Keira. Soava deliciosa e excitantemente bem.
Vinte e sete

Deixaram-se estar preguiçosamente na cama de Declan, diante do lume que rugia na lareira que ele
acendera. Keira ainda estava sob o efeito daquela experiência extraordinária e profundamente
apaixonada por Declan. Quis observar-lhe o rosto e as mãos, sentir de novo os seus lábios nela. Mal
conseguia desviar os olhos dele. Mal conseguia disfarçar o que era, sem dúvida, o sorriso tolo que
lhe iluminava o rosto.
Declan respondeu às intermináveis perguntas que lhe fez. Perguntou-lhe o que faria uma vez
terminado o seu trabalho em Kitridge Lodge. Ele respondeu que gostaria de conhecer África.
– África – repetiu ela em tom sonhador. – É emocionante.
Donnelly traçou descontraidamente uma linha nas costas dela.
– Seria uma existência bastante difícil. Não existe nenhum dos luxos que temos aqui.
– Não me importa – respondeu Keira. – Gostaria muito de conhecer África, um dia. E Itália –
acrescentou, pensando que seria ali que estaria, não tivessem as coisas levado a volta que levaram.
– Itália? – surpreendeu-se Declan.
– Os meus pais foram lá em lua de mel e sempre tive vontade de lá ir.
– É magnífica – concordou ele.
Keira tocou-lhe o lábio inferior.
– Nunca tem saudades da Irlanda?
Ele pareceu pensar no assunto por um instante.
– Às vezes – acabou por dizer. – Quando estou fora, sinto principalmente a falta da Eireanne.
– Sempre gostei muito da Eireanne – revelou Keira.
Declan sorriu e afastou-lhe o cabelo do rosto.
– E ela sempre gostou muito de si. No entanto, tempos houve em que a vossa amizade me agradou
menos.
Keira sorriu.
– Não o culpo – disse, beijando-lhe o peito.
– Está mudada, muirnín.
– A sério? – perguntou ela, surpresa.
Ele assentiu com a cabeça enquanto lhe afagava o cabelo e lho puxava para os ombros.
– Já pensa nos outros e não apenas em si. É uma condessa extremamente boa.
Keira sorriu.
– É muito gratificante que a opinião que faz de mim melhorou tanto – disse, brincalhona. – Talvez o
possa encarregar de convencer o meu pai de que estou mudada.
– Então – defendeu-se ele, envolvendo-a com um braço e puxando-a para si para a beijar –, eu não
faço milagres.
Conversaram sobre a Irlanda e Keira fez uma lista das coisas de que tinha saudades; da família,
naturalmente, e dos ceilidhs, os festivais de folclore que costumavam realizar-se no verão.
Declan soltou um gemido.
– Não existe nada melhor, na minha opinião.
– Claro que diz isso por ter tido a generosidade de os realizar. Mas, como simples convidada, acho
as histórias, as danças e as cubas de uísque irlandês uma delícia.
– Admito que uma cuba de uísque é apelativa – concordou ele.
– Vá lá, deve sentir saudades de mais alguma coisa, além da Eireanne – insistiu Keira.
Ele pensou um pouco.
– As caçadas. Não há melhor do que caçar em Ballynaheath.
A rapariga achou a resposta curiosa, passando ele tão pouco tempo em Ballynaheath. A razão para
tal intrigou-a. Ballynaheath era uma propriedade imponente, um velho castelo que fora profunda e
artisticamente renovado ao longo dos anos. Erguia-se entre mil acres de terras arborizadas, com uma
vista arrebatadora sobre o mar e Keira sempre o considerara algo místico. Achava que qualquer
pessoa se sentiria feliz por se estabelecer ali e chamar-lhe o seu lar.
– Porque nunca casou? – perguntou abruptamente.
– Como? – Donnelly arqueou uma sobrancelha.
Ela voltou-lhe a mão para cima, colocando a palma da sua sobre a dele.
– Não me pode censurar por perguntar, pois não? É como o mundo funciona. Uma pessoa herda um
título e uma propriedade e casa para ter herdeiros.
– Raios me partam se existe uma mulher que não quer saber porque não tenho uma esposa –
respondeu Declan com sorriso fatigado.
– Não quer um herdeiro?
Olhou-a nos olhos, entrelaçando os dedos nos dela.
– Quer saber a verdade? – perguntou.
– Quero.
– A verdade é que não me interessa.
Ela abriu a boca de espanto.
– Não entendo porque não quer saber de algo tão importante – disse. – E o seu legado? E o seu
nome? E o seu título? Como pode não se interessar?
Donnelly riu-se do choque dela.
– Talvez tenha escolhido mal as palavras – admitiu –, mas o que me inspira não é a obrigatória
produção de um herdeiro. A minha inspiração é a liberdade. O mudo inspira-me. Tal como você,
muirnín, quero viver a vida e não me importo de abdicar do casamento, de herdeiros e das
responsabilidades que daí advêm.
Keira ficou surpreendida.
– Até parece que teria de abdicar de todos os prazeres do mundo se casasse.
– Não de todos – corrigiu ele com um piscar de olho travesso. – Mas se me casasse teria de
oferecer um lar adequado à minha mulher. O meu lar é Ballynaheath. Que está muito longe da vida
que conheço. Prefiro que fique para Eireanne.
– Mas, um dia, a Eireanne há de casar e ter o seu próprio lar – notou Keira. Pelo menos, esperava
que fosse verdade.
– Sim, mas vamos supor que Eireanne entra para a escola com a sua ajuda e que, depois, com a
idade assustadoramente madura de vinte e três anos, é apresentada na temporada de Londres. É
possível que algum cavalheiro consiga ignorar os rumores e se proponha e ela casará. E depois?
Restar-me-á um velho castelo com correntes de ar. Não, prefiro uma vida de vagabundo. Acima de
tudo, desejo ser livre e ir onde haja cavalos, amigos, boa comida e melhor vinho, e conhecer o
mundo à minha vontade.
Ele era muito poético. Keira nunca conhecera ninguém como Declan, alguém que não quisesse as
coisas que tinham sido ensinados a querer desde que se lembravam.
– Diga-me a verdade em relação ao Maloney – pediu Donnelly. Tem-lhe estima?
Ele dirigiu-lhe um olhar furioso.
– Não, pelo menos não dessa forma – respondeu. – O Loman é um homem muito amável. E é rico.
Declan riu.
– E nisso residem as bases de um casamento bem-sucedido.
– Não inteiramente. Ele pode ser bastante entediante. E não quer saber de grandes aventuras. É o
tipo de homem que gosta de ficar à lareira.
Declan sorriu compreensivamente e afagou-lhe o cabelo.
– Estava a falar muito a sério quando lhe disse que temesse a propriedade e a sociedade – disse
suavemente. – Sufocam-nos, se os deixarmos. Viva, Keira, viva o mais que puder antes que o
casamento e os filhos a prendam a uma lareira.
Keira não queria pensar nisso. Não queria pensar em sociedade ou em propriedade. Queria apenas
pensar em Declan e naquele momento singular e extraordinário da sua vida.

Algo acontecera a Declan nessa noite. Estar com Keira tinha sido uma experiência emocionante, tanto
que provocara nele espanto e alarme. Tentou ignorar o que sentia, mas era impossível. Fosse pela
irreprimível jovialidade da conversa dela, pelo brilho dos seus olhos irlandeses ou pela mera visão
de uma mulher bela, não conseguia dominar o que sentia. Sentimentos estranhos que se apoderavam
do seu coração. Por uma mulher que tivera a capacidade de o enlouquecer.
À uma da manhã, mandou-a levantar-se da cama e vestir-se, silenciando os seus protestos débeis
com um beijo.
– Já há demasiado falatório – explicou, sentindo uma vontade ainda maior de a proteger. – E quero
partir cedo para Londres.
Insistiu em acompanhá-la a casa.
Nos estábulos de Ashwood, Declan enxotou um moço de estrebaria ensonado com um pontapé e
ajudou Keira a guardar o cavalo. Ela olhou para ele uma vez mais quando saíram para o exterior.
– Boa viagem, Declan – desejou.
– Prometa-me que não se apoquenta, rapariga – disse ele, sorrindo. – A Lily chegará em breve e
tudo estará terminado. Poderá regressar à Irlanda em paz.
– É o que me diz sempre – disse ela, maliciosamente.
– Devo lembrar-lhe que, ainda não há dois dias, era isso que mais desejava? – Pôs-se atrás dela,
envolveu-lhe a cintura com os braços e beijou-lhe o pescoço.
– Eu disse muitas coisas, há dias.
– Seja forte – murmurou Donnelly, deixando-lhe um suave e demorado beijo nos lábios. Afastou-se
dela, levou a mão ao chapéu e dirigiu-se para o cavalo.
– Declan.
Ele deteve-se e olhou para ela.
Keira sorriu e ele sentiu de novo aquela peculiar sensação que era o amor no seu coração.
– Foi… magnífico.
Ele pensou em várias coisas para dizer, mas voltou para junto dela, envolveu-lhe os ombros com
um braço sob o luar de Ashwood e beijou-a. Keira devolveu o beijo com entusiasmo, como sempre
fazia. Mas afastou-se dele passado um instante.
– Vá-se embora, então – disse e afastou-se dele sem perder o sorriso, desaparecendo na noite ao
entrar na mansão.
Declan saiu de Ashwood a pensar na forma como Keira fora ao seu encontro nessa noite,
perfeitamente consciente do que aconteceria se o fizesse e da coragem de que devia ter precisado
para o fazer. Imaginou-se a fazer amor com ela ao luar, a descê-la do cavalo e a deitá-la sobre a erva
macia, permitindo que o seu hálito sensual lhe enchesse os pulmões, sentindo o corpo dela envolto no
seu.
Tinha-lhe tirado algo muito precioso nessa noite e o facto de lhe ter tirado a virtude fazia-o sentir
coisas que nunca sentira antes, coisas estranhas e enfeitiçantes, e ao mesmo tempo uma ameaça à sua
independência.
Declan não era tolo. Não queria que Keira deixasse Ashwood. Queria que permanecesse ali, para
lhe dar o prazer de a iniciar nas muitas e diferentes formas do amor. Mas era um homem prático e
sabia que o que quer que sentisse não poderia passar dali. Era a mais cruel das ironias que tivesse
sido a mentira grosseira de Keira a juntá-los, mas seria essa mentira a mantê-los separados. Ela iria
para a Irlanda e ele não.
Sentiria a sua falta quando partisse, mais do que conseguia explicar por palavras.
Vinte e oito

Na manhã seguinte, em Ashwood, Keira sentiu-se maravilhada por tudo parecer igual quando ela
tinha mudado tão profundamente. Parecia-lhe quase surreal que tivesse entregado a sua virtude,
confessando depois o seu amor a um homem que nunca teria.
O que de certa forma lhe lembrou o aviso da mãe. Lembrem-se de proteger as vossas pessoas,
minhas queridas, pois a vossa integridade é a coisa mais valiosa que oferecem a um marido. Se
fizerem mau uso do corpo, nenhum homem decente vos vai querer e ficarão com o vosso pai e
comigo, a coser meias para o resto das vossas vidas, costumava avisar a mãe.
Teria valido a pena o risco? Sim. Oh, sim. Sim.
Pensou em Declan, sempre presente na sua mente, mas tinha demasiado que fazer para ficar a
sonhar acordada. Havia uma pilha de correspondência para ler, Lucy desesperava por atenção e tinha
eclodido uma pequena crise relacionada com o percurso da corrida, porque parte das marcações fora
levada por uma chuva matinal.
No dia seguinte, a noite com Declan parecia-lhe quase um sonho distante. A constante pressão da
gala, a ansiedade que lhe provocava a sua mentira, a incessante espera por Lily e o momento em que
tudo terminaria tiraram-lhe o apetite.
À tarde, enquanto eram dados os últimos retoques nas tendas armadas no relvado, a pista de
corrida era redesenhada e o ringue de boxe instalado num dos estábulos, estando Lucy devidamente
ocupada com as suas aulas de música, Sibley fez-lhe uma visita.
Entrou no salão com o rosto aberto num sorriso caloroso.
– Condessa – disse, curvando-se sobre a mão dela. – Palavra que está mais bela de cada vez que a
vejo.
Pensou que ele dizia sempre coisas bastante previsíveis. Não olhe para mim como se fosse um dos
seus pretendentes de olhar meloso, dissera-lhe Declan. Mal ouviu o resto do que Sibley disse, tal a
presença de Declan nos seus pensamentos. Mas enquanto Sibley conversava amigavelmente sobre a
gala percebeu que ele estava verdadeiramente apaixonado por ela, e que não tinha feito nada para o
desencorajar, ou a Mr. Anders. Keira quis enterrar o rosto nas mãos. Tinha experimentado tantas
coisas maravilhosas, feito tantas coisas que nunca acreditaria ser capaz de fazer. Mas, de muitas
formas, continuava a ser bastante irrefletida e isso era algo que não apreciava em si.
O resto do dia passou-se envolto num turbilhão de visitas e operários. Keira arrastou-se para a
cama meia hora depois da meia-noite, levantando-se antes das primeiras luzes da manhã seguinte.
Era a véspera da gala, havia um milhão de coisas para fazer e Declan ainda não regressara de
Londres. Precisava dele e da sua força e do seu humor retorcido.
As senhoras da Sociedade chegaram imediatamente a seguir ao almoço, para acompanharem a
distribuição das bancas e das atividades. Keira acompanhou-as, supervisionando a colocação do
palco para o espetáculo de marionetas, que teve de ser deslocado depois de descobrirem que um
bando de pássaros tinha fixado residência numa árvore debaixo da qual se sentariam pessoas a
assistir.
Estava a decidir a melhor colocação para o palco com um dos jardineiros quando Louis se
aproximou.
– Queira desculpar, madame, mas Mister Fish chegou, acompanhado por dois cavalheiros. Pede
que venha de imediato.
– Cavalheiros? Que cavalheiros? – perguntou, desconfiada.
– Mister Sibley e Lorde Eberlin.
A pulsação de Keira disparou. Logo naquele dia! Mas não havia nada a fazer; não tinha como
evitar. Felizmente podia evitar uma conversa demasiado prolongada com a desculpa de ter
demasiadas coisas para supervisionar.
– Também chegou uma encomenda para si – acrescentou Louis.
– Uma encomenda?
– Sim, m’dame. Acabou de chegar.
A encomenda, que parecia uma caixa para chapéus, estava no átrio. Havia um bilhete preso à
mesma, com o sinete intacto. Keira abriu o bilhete.

Não me esqueci de que me desafiou para uma corrida. Se o pónei galês for bem montado,
pode vencer o meu garanhão. Levo-lho esta tarde para garantir que a sua sela de amazona
lhe assenta bem. Quanto ao chapéu, vi-o em Londres e achei-o tão absurdamente ridículo
que lhe ficaria lindamente, dado o seu gosto invulgar para chapéus. Creio que ficará muito
graciosa com ele.
D.

Um sorriso irreprimível espalhou-se de imediato pelo rosto de Keira. Dobrou a carta e guardou-a
no bolso antes de abrir a caixa. Era um chapéu de jardinagem de aba larga enfeitado com flores de
seda vermelhas. Nunca ficara tão deliciada com um presente e apressou-se a tirá-lo da caixa para o
admirar.
Ele pensou em mim.
– Os senhores estão na sala verde, m’dame – disse Louis atrás dela.
Keira pousou relutantemente o chapéu e seguiu Louis até à sala verde. Teve a sensação de entrar
numa geleira. Mr. Fish estava entre Lorde Eberlin e Mr. Sibley.
– Senhores – disse, logo olhando diretamente para Fish. – Não o esperava.
– Queira desculpar, Lady Ashwood, mas Lorde Eberlin insistiu imenso para que discutíssemos as
coisas de imediato.
De imediato? Desviou o olhar para Eberlin, que a observava friamente.
– Em que posso ajudá-lo, milorde?
O olhar sombrio do conde cruzou-se com o dela.
– Reparei que os preparativos da gala de verão estão quase concluídos. Parece que vai ser um
evento importante.
– Assim espero. O orfanato de Saint Bartholomew precisa de reparações urgentes.
– Pode contar com um donativo importante da minha parte – disse o conde.
Havia algo desconfortável na forma como olhava para Keira. Seria raiva?
– Obrigada – disse. – Em que posso ser-lhe útil, milorde?
– Presumo que a gala siga o padrão do passado – continuou ele, ignorando a pergunta. – Com
abundância de frivolidade às primeiras horas da manhã.
Disse-o de uma forma que soou quase malévola.
– É uma celebração, senhor – contrapôs Keira. – Pode chamar-lhe frivolidade, mas, na verdade,
trata-se de um festival.
– Com certeza – disse o outro pausadamente.
Keira ignorou o tom e a expressão do seu visitante.
– Tenho mesmo…
– Desculpe a intrusão. Tinha esperança de que tivéssemos resolvido as nossas diferenças antes.
Keira olhou para Mr. Fish, cuja expressão era inescrutável.
– Não estou certa de que seja possível.
– Possível? Nesse caso, o que vai fazer em relação aos nossos cem acres, Lady Ashwood?
A condescendência na voz dele irritou-a.
– Refere-se à propriedade de Ashwood que está a tentar surripiar? Sugiro que não façamos nada.
Eberlin sorriu afetadamente.
– Como o seu solicitador teve oportunidade de lhe dizer, aquelas terras não pertencem por direito a
Ashwood. Pertencem-me a mim. No entanto, compreendo a sua relutância em perder os proveitos que
dali advêm e vim oferecer-lhe uma compensação justa pela sua perda.
Keira suspeitou que Mr. Fish estivesse por trás daquilo.
– Não existe compensação justa que me possa oferecer por terras que são minhas, às quais não
acredito que tenha direito legal. – Viu Mr. Fish franzir o cenho e olhar para os pés, mas não quis
saber.
Eberlin aproximou-se, fixando os olhos nos dela.
– Não me parece que queira ver este assunto resolvido em tribunal, madame – disse.
O medo e o profundo desagrado que aquele homem lhe provocava tornaram-na ousada.
– Nada tenho a recear de um tribunal, senhor. Está a tentar usurpar a minha propriedade e creio que
qualquer tribunal concordará comigo.
– Acha. – Não era uma pergunta, mas uma afirmação.
– Acho.
O conde semicerrou os olhos.
– Podemos conversar em particular, Lady Ashwood?
Mr. Fish levantou subitamente a cabeça e dirigiu-lhe um olhar cauteloso.
– Para quê? Para que possa tentar intimidar-me? Não tenho nada para dizer que não possa ser dito
diante de Mister Fish ou de Mister Sibley.
O olhar do outro tornou-se mais sombrio.
– Mas eu tenho algo para lhe dizer que estou certo que não vai gostar de ouvir diante destes dois
cavalheiros.
Keira sentiu um formigueiro no fundo do pescoço. Não conseguia imaginar o que o conde poderia
ter para lhe dizer, mas este olhava para ela com fria determinação.
– Não recomendo que o faça – murmurou Mr. Fish.
– E eu sugiro que se arrependerá de não o fazer – disse de imediato Eberlin.
Mr. Fish olhou para ele com estranheza e até Mr. Sibley pareceu surpreendido. Keira sentiu uma
acidez no estômago. O que poderia ele saber? Não podia saber a verdade; tinha acabado de chegar
da Dinamarca.
– Se conversar consigo em particular puser fim a isto, assim farei. – Olhou para Mr. Fish,
subitamente preocupado, e acrescentou: – Por favor, saia, Mister Fish. Eu fico muito bem.
– Como queira – respondeu Mr. Fish num fio de voz. Parecia absolutamente desconsolado ao
abandonar a sala, mas não tanto como Mr. Sibley, que ainda tivera de enfrentar o olhar de Keira.
Quando a porta se fechou atrás dos dois, Keira cruzou os braços com força e olhou friamente para
Lorde Eberlin.
– O que quer que tenha para me dizer, peço-lhe que seja rápido. Tenho muito que fazer antes da
gala de amanhã e não pretendo entregar-lhe sequer uma folha de erva de Ashwood sem luta. Como
tal, parece-me que não há mais nada a dizer.
– É muito atrevida para uma mulher que pratica a arte do embuste – disse Eberlin em voz baixa.
Keira sentiu que o sangue lhe fugia do rosto.
– Não faço ideia do que quer dizer! Excedeu os limites, senhor…
– Guarde a sua indignação fingida para alguém que acredite na sua charada. Não sei quem é –
continuou o conde, avançando descontraidamente para ela, com um olhar que não pressagiava nada
de bom –, mas é evidente que não é a Lily Boudine.
– Isso é absurdo! – exclamou Keira, rezando para que os seus joelhos não traíssem a verdade. –
Não vou ficar a ouvir as suas calúnias. Vou dizer aos meus criados que o levem daqui imediatamente.
Já não é bem-vindo nesta casa, senhor!
– Não fará tal coisa, porque não é a Lily Boudine. Não sei quem é e o que anda a tramar, mas não
me importa. Mas creio que me entregará as terras em troca do meu silêncio, ou terá de responder a
algumas perguntas das autoridades, que não gostarão de saber que roubou um título e uma
propriedade. O que espera ganhar com isto? Um casamento? A riqueza dos Ashwood?
Keira forçou uma gargalhada que lhe soou oca.
– Se pensa que me assusta com acusações absurdas, vai ter uma desilusão. Ninguém vai acreditar
num disparate desses! É um estrangeiro, milorde, e está a tentar arranjar problemas com a finalidade
de roubar terras de Ashwood.
O olhar de Eberlin era frio e inflexível quando se aproximou dela.
– Estava preparado para lhe fazer uma oferta justa – disse. – Mas agora acho que prefiro que lhe
façam umas perguntas.
O coração de Keira batia loucamente. Não ficaria surpreendida se ele conseguisse ver através da
musselina do vestido dela.
– No entanto, dou-lhe uma última oportunidade. Mandarei lavrar os papéis para a transferência das
terras para Tiber Park, de forma totalmente graciosa. Vai assiná-los. Ou terá de enfrentar as
autoridades. A escolha é sua… seja quem for.
– Isto é absurdo. Já não é bem-vindo em Ashwood, senhor – atirou Keira. Não suportava olhar
para ele nem mais um instante. Não conseguia respirar. Mal conseguia sentir as pernas, mas
conseguiu caminhar até à porta. Que conseguiu abrir. – Bom dia, senhor – disse, olhando em frente.
Ele não se moveu de imediato, mas quando o fez foi para avançar lentamente, detendo-se junto à
ombreira para olhar Keira de cima a baixo antes de sair para o corredor atapetado.
Keira deu meia volta e agarrou-se às costas de uma cadeira, pensando que ia vomitar.
– Lady Ashwood! – exclamou Mr. Fish ao entrar na sala, instantes depois. – O que aconteceu? Não
se sente bem? Espere, vou buscar-lhe um copo com água. – Tentou tomá-la pelo braço, mas Keira
endireitou-se de repente.
– Desculpe, senhor. Não tomei o pequeno-almoço esta manhã.
– Devia comer alguma coisa – disse Fish, dirigindo-se para a porta. – Você! – gritou para alguém.
– Chame imediatamente o Linford.
– Não é necessário, Mister Fish…
– Está muito pálida, madame – disse o homem. – Parece indisposta.
Permitiu que ele a ajudasse a sentar-se enquanto pensava freneticamente como escapar a Mr. Fish.
Tinha de pensar. Tinha de pensar.
– Aqui está você, Linford – disse Mr. Fish quando o mordomo entrou. – Lady Ashwood não se
sente bem. Ainda não comeu. Traga-lhe alguma coisa... Pão, ou um pouco de queijo, se tiver. E chá.
– Imediatamente – disse Linford, saindo à pressa.
Mr. Fish levantou as abas do casaco e sentou-se diante de Keira, o seu rosto uma máscara de
preocupação.
– O que lhe disse ele, que a perturbou tanto?
Keira precisou de recuperar o equilíbrio, dando a entender que estava tudo bem com um gesto de
mão.
– O que seria de esperar – respondeu. – Quer as terras.
– Só isso? – perguntou Mr. Fish em tom cético.
– Ele, ah… – Olhou para o colo e pensou desesperadamente em como poderia explicar o facto de
ter estado à beira de desmaiar. – A sua proposta não foi a que se poderia esperar da sociedade
educada. – Ergueu o olhar para Mr. Fish.
O homem parecia absolutamente escandalizado. Olhou fixamente para ele, os olhos muito abertos,
logo fechando a boca num repente e levantando-se.
– É insultuoso – indignou-se. – Não tolerarei tal coisa.
– Mister Fish! Por favor, não se incomode. Eu não me intimido facilmente.
– Como cavalheiro e seu agente, Lady Ashwood, não posso ficar sem fazer nada enquanto ele a
insulta!
– Por favor, peço-lhe que esqueça isto – insistiu Keira, sentindo-se de novo indisposta. Eram
demasiadas mentiras e enganos e o seu peso era sufocante. – Não podemos tratar disto depois da
gala? Daqui a menos de vinte e quatro horas, chegarão imensas pessoas a Ashwood e de momento
não consigo pensar em mais nada.
– Sim, mas eu podia falar com ele…
– Preferia que não o fizesse. Por favor, Mister Fish. Esqueça.
Fish olhou para Keira como se quisesse discutir. Mas apertou os lábios e olhou para a janela, no
que ela considerou um supremo esforço para se conter.
– Muito bem – disse Fish secamente quando uma criada apareceu com um tabuleiro. – Se é esse o
seu desejo – acrescentou num tom de claro desagrado.
– Por agora, é.
– Darei expressão do meu desagrado quando lhe instaurarmos um processo em tribunal – continuou
Mr. Fish num tom tenso. – Garanto-lhe que um juiz não verá com olhar favorável a forma como a
hostilizou.
Um juiz. Keira não tinha pensado tão longe. Imaginou o conde acusá-la perante um juiz. Diante de
testemunhas, de toda a gente de Ashwood e de Hadley Green, de quem se habituara a gostar.
Reprimiu um estremecimento.
– Quero que coma alguma coisa, Lady Ashwood – pediu Mr. Fish. – Precisa de manter as forças. –
Saudou-a com um curto aceno de cabeça e abandonou a sala em passo agitado.
Keira agradeceu à criada e olhou para o prato com pão, queijo e uvas. Não queria comida. Queria
uísque, algo que pudesse anestesiar o medo surdo na sua barriga e dor terrível que sentia entre os
olhos.
Vinte e nove

Declan não encontrou Keira na mansão. O criado que lhe abriu a porta disse-lhe que a vira pela
última vez a passear com Miss Taft.
Percorreu os jardins à procura dela. Tinham colocado tendas e belvederes provisórios para a gala
e as tendas estavam cheias de compridas mesas, aparentemente para os bens e mercadorias que
seriam vendidos para angariar fundos para o orfanato. Também fora erguido um pequeno palco para
peças de teatro e espetáculos de marionetas. Havia uma plataforma para os músicos e mesas e
cadeiras dispostas debaixo dos enormes carvalhos. E um campo de badminton, outro de lawn-
bowling e, naturalmente, no prado junto ao lago, uma pista de quatrocentos metros para corridas de
cavalos. Os jardins tinham sido meticulosamente preparados para o evento. A relva tinha sido
aparada, as flores desabrochavam para onde quer que se olhasse e as gaiolas com pássaros
penduradas nas árvores ofereciam o seu fundo musical.
Declan orgulhou-se de Keira. Aquela gala de verão era um empreendimento extraordinário para
uma jovem e ela tinha feito um trabalho exemplar na sua organização, particularmente considerando
as circunstâncias invulgares. Tudo tinha um aspeto esplêndido.
Declan viu Keira e Lucy num barco a remos no lago. Keira tinha posto o chapéu que ele lhe
enviara, o que lhe agradou imenso. Não fazia ideia porque o fizera, especialmente dada a sua
ambivalência quanto a levar aquela paixão mais além do que já levara. Ma vira-o numa montra e
soubera de imediato que não havia outra mulher a quem ficasse tão bem como a ela.
À beira do lago, ocorreu-lhe que podia querer fazer Keira feliz com o presente, que queria ver o
seu sorriso luminoso e os seus olhos brilhantes cheios de gratidão. Nesse dia, ao vê-la com o chapéu,
tão fresca com uma rosa irlandesa, ficou contente por lho ter comprado.
Lucy foi a primeira a vê-lo, acenando-lhe com tanto entusiasmo que quase voltava o barco. Keira
soltou uma exclamação de pânico enquanto estendia a mão para Lucy e a fazia sentar. Passou-se
algum tempo até recuperarem o ritmo da remada, mas depois Lucy perdeu o seu remo, o que as
obrigou a remar em círculo durante algum tempo até Lucy conseguir chegar-lhe. Por fim, conseguiram
chegar à margem.
– Estivemos a remar! – declarou Lucy com entusiasmo.
– Sim, Miss Taft, eu vi – respondeu Declan, baixando-se para puxar o barco por entre os juncos.
– Fomos até ao outro lado – continuou, sem fôlego, enquanto Declan a tirava do bote para terra
firme. – Demorámos muito tempo e dói-me o braço, mas foi muito divertido. Lady Ashwood disse
que para vencermos a corrida de barcos de amanhã temos de remar até lá.
– A sério? – Declan olhou para Keira com curiosidade quando esta estendeu a mão para que a
ajudasse a sair do barco. O seu sorriso era tão belo e radiante como sempre, mas notou uma sombra
nos seus olhos.
– Vou participar nas corridas de barcos, de ovos e de três pernas – anunciou Lucy, mostrando os
dedos à medida que enumerava os eventos. – O Louis diz que participa na corrida de três pernas
comigo, e tem as pernas muito compridas, o que me leva a pensar que vamos ganhar. O que vai fazer,
milorde?
– Eu? Oh… pensei participar na corrida de cavalos.
– Ele acha que consegue vencer-me, Lucy – observou Keira alegremente.
– Mas... mas a m’dame é mais rápida – disse Lucy.
– Linda menina – elogiou Keira, soltando uma gargalhada.
– Amanhã veremos quem é mais rápido – desafiou Declan. – Se quiser ver os cavalos, Miss Taft,
já estão no estábulo.
Lucy arquejou.
– Posso? – perguntou, olhando para Keira.
– Só se prometer que não aborrece Mister Jepson.
– Prometo!
– Pode ir, então – disse Keira.
Lucy partiu a correr na direção dos estábulos, com o cabelo loiro a ondular ao vento.
– A corrida de barcos? – intrigou-se Declan, observando o chapéu dela. – Não fazia ideia de que
era tão versátil.
– Como? – perguntou Keira em tom ausente, olhando de novo para os barcos. – Ah, isso. Foi uma
decisão desta manhã. Como posso agradecer-lhe pelo chapéu, Declan? Adoro!
Ele sorriu.
– Fica-lhe bem – disse. Mas Keira não estava atenta. Observava Lucy por entre os olhos
semicerrados. – Keira? Nem parece a mesma.
– Estou certa de que assim é porque está a olhar para uma mulher condenada – respondeu, olhando
para ele.
– Como disse?
Ela assentiu com a cabeça.
– Não me parece que esteja condenada, muirnín.
– Oh, mas estou – insistiu ela enfaticamente. – O maldito Eberlin veio visitar-me hoje. – Olhou por
cima do ombro, como se suspeitasse que alguém estava à escuta, e murmurou: – Ele sabe, Declan.
– Sabe? O que sabe ele?
– De mim – respondeu a jovem. – Ele sabe de mim.
Era impossível. Declan abanou a cabeça.
– Sim, pois, sei o que deve estar a pensar, porque eu pensei o mesmo – continuou Keira. – Como
pode ele saber? É um estrangeiro! Acabado de chegar a Inglaterra! Como pode ele saber o que mais
ninguém sabe em toda a Inglaterra, além de si? – Fechou os olhos como se a mera sugestão fosse
dolorosa.
Declan tomou-a por um braço e fê-la caminhar em ritmo de passeio.
– Deve estar enganada. Porque acha que ele sabe?
– Porque mo disse de forma inequívoca. Veio fazer-me uma oferta pelas terras que pretende roubar
a Ashwood, que naturalmente recusei. Não posso assumir um papel que é da Lily por direito, e
depois vender as terras dela, especialmente aquelas terras. Ou posso? Quando recusei, ele insistiu
em conversar comigo em particular, e… disse que sabe que não sou a Lily Boudine, e que me
denuncia às autoridades se não lhe entregar as terras graciosamente. Por isso, estou absolutamente
condenada, uma vez que não lhe entrego as terras da Lily.
Declan ficou atónito. Deteve-se e obrigou Keira a olhar para ele.
– Quando foi isso? – perguntou.
– Nem há duas horas – gemeu a rapariga. – Deus sabe que sou merecedora desta calamidade. A
culpa é minha! Não devia…
– Pense, Keira – interrompeu Declan. – Como podia ele saber? É impossível. Ele fez bluff.
– També pensei nisso, mas é evidente que ele suspeita de mim.
Declan imaginou como Eberlin poderia saber. Estaria a fazer suposições? Declan recomeçou a
andar, levando Keira consigo.
– Em que termos ficou com o Eberlin?
– Nem sei. Eu neguei, claro, e não lhe dei tréguas. Ele disse que me daria uma última oportunidade
de lhe entregar as terras e que mandaria lavrar os papéis para o efeito. E disse-me que, se não os
assinasse, avisaria as autoridades de que não sou Lily Boudine.
Aquilo era um problema muito maior do que Declan poderia imaginar. Até então, a sua maior
preocupação era que Lily nunca chegasse a assumir a posição que era sua por direito. Mas aquilo…
– Deus me ajude… Sei que me tornei um pesado fardo para si, e juro que tentei diligentemente
pensar numa forma de reparar o que fiz sem a sua ajuda, a sério que sim – disse Keira. – Mas agora
não sei o que fazer, Declan.
– Ah, muirnín, teve uns dias miseráveis, não teve? – Passou-lhe o braço pela cintura e puxou-a
para si enquanto caminhavam. – Sejamos razoáveis em relação a isto. Eberlin não tem provas de que
não é quem diz ser e qualquer autoridade inglesa preferirá a sua palavra à dele. E disse que ia
preparar papéis para que os assinasse?
Ela fez que sim com a cabeça.
– Calculo que deva demorar pelo menos uma semana. Isso dá-nos tempo suficiente.
– Tempo? Tempo para quê? – quis saber Keira.
– Tenho novidades de Londres – revelou ele. – Corbett está realmente a viver em Cheapside. De
momento, contudo, encontra-se no campo e o seu mordomo disse-me que estará presente na sua gala,
amanhã.
Keira pestanejou
– Ele vai estar aqui? Lady Horncastle deve ter-lhe enviado um convite. Acho que ela convidou
Londres inteira – rematou, um pouco petulante.
– Mas isso é uma vantagem, Keira. Podemos falar com o Corbett e talvez conseguir o que
queremos para instigar um inquérito abrangente ao enforcamento de Mister Scott. Nessa altura,
poderá regressar à Irlanda. É possível que se possa ir embora no final da semana. Eberlin não pode
ficar com as terras sem a sua presença e dificilmente a poderá acusar na sua ausência.
– Para a Irlanda? – repetiu ela baixinho.
Declan apertou-lhe a cintura.
– Não tema o Eberlin – disse. – Ele quer as terras. Se achar que as vai ter, deixa-a em paz. Tem de
lhe dar razão para acreditar que assinará o acordo que ele possa apresentar-lhe. Isso vai dar-nos o
tempo de que precisamos.
Tinham chegado ao belveder no extremo oposto do pequeno lago. Havia sido decorado com
lanternas e flores de papel e tinham sido dispostas cadeiras em torno de uma mesa. Declan conduziu
Keira até lá e ficou junto ao parapeito, a olhar para o lago. Notou que ela tinha os ombros curvados e
o rosto escondido dele pela ampla aba do chapéu.
Declan tinha a certeza de que faria qualquer coisa para lhe tirar aquele fardo de cima. Ela podia
ser irritante, sim, mas apercebera-se de que também havia algo extremamente atraente no seu
destemor perante a vida.
Tocou-lhe o braço. Keira levantou o olhar para ele e havia um mar de dúvida nos seus brilhantes
olhos verdes.
– Vai correr bem – garantiu Donnelly em voz baixa. Keira fez uma careta de dúvida e abanou a
cabeça. Mas ele levantou-lhe o queixo e obrigou-a a olhar para ele. – Vai correr bem – repetiu,
baixando a cabeça para a beijar na comissura dos lábios. – Vai correr tudo bem – garantiu de novo,
antes de beijar uma única lágrima que corria pela face da rapariga. – A Keira tem coragem, sempre
teve. – Beijou-a na boca.
Keira pareceu afundar-se nele, abrindo a boca à dele e apertando-lhe a cintura com força, como se
não o quisesse largar. Como sempre, a sua resposta ardente privou Declan de pensamento racional.
Perdeu todo o bom senso e a mínima noção de decoro. O ar quente do verão parecia estalar ao redor
dos dois e sentiu a vontade insaciável de a ter a formar-se de novo dentro dele.
Levantou a cabeça e baixou o olhar para ela. Keira tinha os olhos brilhantes e os lábios húmidos
do beijo. Sentiu um enorme desejo de a possuir ali, no belveder, sem mais nem menos.
Mas a precária situação em que ela se encontrava não estava esquecida e Declan olhou na direção
da casa.
– Vamos, muirnín – disse, pegando-lhe na mão. – Vamos assistir à gala em favor dos órfãos?
Ela assentiu com um suspiro.
– Dou-lhe a minha palavra, senhor, de que se escapar a esta calamidade com a cabeça sobre os
ombros não volto a ser uma preocupação para si.
Apreciou a resolução dela, mas o voto não o confortou nem um pouco. Pensou que uma vida sem,
pelo menos, um pouco de preocupação podia ser um pouco aborrecida.
Trinta

Na manhã da gala, Keira esperava acordar com um céu carregado mas o sol brilhava e estava um dia
de sol sem nuvens. Esperava que ninguém viesse, mas vieram. Grupos deles. Em vagões, em coches
ornamentados, a cavalo, a pé. Esperava que acontecesse algum desastre, mas não aconteceu nenhum.
Vestiu-se para o dia com um vestido creme fresco de musselina e seda e usou o chapéu que Declan
lhe enviara de Londres. Prendeu flores na sua coroa e saiu para a gala.
Keira vagueou pelas tendas de artesanato e fez algumas compras para a sua família. Para Molly e
Mabe, lenços de linho bordados a seda vermelha. Para a sua mãe, uma gola e punhos de renda.
Encontrou uma bainha de faca em pele para o pai.
Visitou todos os jogos que estavam a decorrer nos jardins. Keira gostava especialmente do
concurso de arco e atraiu uma multidão quando foi chamada a demonstrar a sua destreza. Keira não
era muito hábil, contudo, algo que Lorde Frampton podia atestar, já que ela quase o trespassou com
uma flecha, para gáudio da multidão. Jogou bowls, assistiu ao boxe e foi mestre de cerimónias na
corrida do ovo.
As gentes de Hadley Green formavam uma multidão jubilante; os seus risos e gritos estridentes
preenchiam o ar de verão, juntamente com o cheiro de carneiro assado e cerveja, que corria
livremente de diversos barris espalhados pelos jardins. Keira juntou-se às senhoras da Sociedade
para um lanche no terraço, onde comeram comidas para palatos suaves, incluindo frango assado e
batatas.
Mas o que realmente satisfez Keira nesse dia foi que as crianças do Orfanato de St. Bartholomew
tiveram o melhor dia de sempre e a pequena Lucy Taft deliciou-se a fazer de sua anfitriã. Elas
seguiram-na como gansos, do badminton ao bowls, a pescar no lago e afagar os cavalos. As suas
gargalhadas pareciam sobrepor-se às dos adultos.
Keira parava frequentemente para falar com aqueles que tinham vindo. Todos a felicitaram pelo
sucesso da gala. Viu Declan duas vezes, ambas na companhia de Daria Babcock. Miss Babcock
segurava uma rosa de pé grande, que Keira sabia ser o prémio atribuído no bowls. Viu Mr. Sibley e
Mr. Anders mais vezes, já que ambos tentaram acompanhá-la no seu passeio.
De Londres tinha vindo um grande número de pessoas, cortesia de Lady Horncastle. Mas, para
grande alívio de Keira, Lady Darlington e o seu filho não estavam na assistência.
– Lorde Raley adoeceu – explicou Lady Horncastle. – Uma febre apanhada na sua viagem às Índias
Ocidentais. As condições são deploráveis por lá, admito. Naturalmente, Lady Darlington ficou em
Londres a cuidar do filho.
– As Índias Ocidentais? – perguntou curiosamente Mrs. Morton. – Mas eu pensava que tinha dito
que ele tinha vindo de Espanha.
– Não me recordo de ter dito nada desse género – respondeu Lady Horncastle.
Apesar do ótimo dia que estava a ter, uma parte de Keira esperava ansiosamente que, algures, um
desastre ocorresse. Mas nada aconteceu.
De cerveja na mão, a irmã Rosens disse-lhe que os bens e mercadorias estavam a vender-se a bom
ritmo e que o valor das apostas nos jogos era bom. Disse-lhe que um benfeitor misterioso tinha
doado cerca de cem libras para o orfanato.
– Vai ajudar-nos a repará-lo bem – disse ela, com os olhos brilhantes de delírio.
As corridas decorreram no final da tarde. Na corrida das três pernas, Keira apoiou Lucy e Louis
com mais vigor que ninguém, mas os dois sofreram uma queda azarada perto da linha de meta e
perderam. Redimiram-se, contudo, na corrida de barcos. Louis ocupou o lugar de Keira e navegou,
por assim dizer, para a vitória com Lucy.
O último evento da tarde foi a tão anunciada e grandemente antecipada corrida de cavalos. Parecia
que toda a Inglaterra tinha ouvido acerca da aposta entre Keira e Declan, tendo apostado em
conformidade.
Havia cinco corredores no total e as suas montadas foram trazidas do estábulo, uma a uma, sob um
coro de festejos do público. Declan surgiu ao lado de Keira enquanto o seu castrado cinzento era
levado através da multidão.
– Agarre-se bem à sua sela de amazona, senhora, porque eu pretendo ganhar – disse
amigavelmente.
– Então desejo-lhe sorte, milorde. Vai precisar dela – retorquiu ela enquanto o seu pónei galês era
levado do estábulo. Tinha uma sela completa no dorso. Declan ergueu o sobrolho numa interrogação
a Keira; a rapariga piscou-lhe o olho e afastou-se.
Lorde Horncastle, que, por razões que Keira nunca compreendera, se tinha tornado o mestre da
cerimónia apoiou-se na segunda trave da vedação e pediu a atenção de todos.
– Senhoras e senhores – disse, fazendo a vénia mais pronunciada que conseguiu do seu instável
apoio –, o evento principal do dia está prestes a começar. Lorde Donnelly apostou com Lady
Ashwood que ele igualaria e duplicaria cada libra que tivesse sido apostada em Lady Ashwood no
evento. Lady Ashwood, sendo uma senhora de elevado gabarito e criação superior, fez o mesmo
acordo. Até agora, foram apostadas quarenta e duas libras e dezoito dinheiros na vitória de Lady
Ashwood. Umas meras trinta e sete libras foram apostadas em Lorde Donnelly.
– E o cavalo? Em que cavalo vai ela correr? – alguém gritou na multidão.
– O cavalo, senhor, é do meu próprio estábulo – informou Lorde Horncastle.
– Perdido do seu estábulo, quer o senhor dizer – disse alguém e a multidão riu-se.
Lorde Horncastle, que já bebera umas quantas canecas nesse dia, sorriu condescendente, como se
tivesse dado o cavalo a Declan, em vez de o ter perdido num jogo de cartas.
– Posso afirmar que é um cavalo de corridas tão bom como o melhor que possam encontrar em
Inglaterra. Lady Ashwood tem todas as vantagens. Devemos deixar o resto com ela.
Todos os olhos se voltaram para Keira. Ela fez uma vénia alegremente e tirou o chapéu.
– Fiquem descansados que eu sou uma amazona adequada – disse, sorrindo para Declan. – Tenho
um bom pressentimento, milorde, de que irei ganhar hoje.
A multidão aplaudiu-a e vaiou Declan divertidamente, que tirou o chapéu e fez uma vénia
pronunciada.
– É uma coincidência de natureza celestial, então, minha senhora, que eu também me sinta muito
bem hoje. Penso que eu irei ganhar.
A multidão aplaudiu em delírio. Declan gesticulou grandiosamente em direção aos cavalos. Keira
atirou o chapéu para o lado e caminhou em direção ao pónei galês. Um murmúrio correu pela
multidão quando o rapaz da cavalariça juntou as suas mãos para a ajudar a subir. Keira colocou o pé
direito nas suas mãos, pegou na saia e montou quando foi levantada. Sorriu a quem a via e ajeitou a
saia de modo a que apenas se visse a parte de cima das meias.
– Garanto-lhes, é escandaloso – disse ela em resposta ao ar escandalizado das mulheres e ao grito
de aprovação dos homens. – Mas é por uma causa excelente. – Pôde ver o sorriso feliz de Lucy.
– Outro escândalo? – murmurou Declan, brincando com ela.
– Passei parte de um ano a viver escandalosamente. Ao menos, deixarei o orfanato bem dotado.
Declan sorriu a sua aprovação.
– Uma oponente de nível – disse ele e caminhou para o seu cavalo, lançando-se para a sela. – Está
preparada, então?
– Sim, totalmente. – Keira voltou o seu cavalo na direção da linha de partida, como fizeram Declan
e os outros três cavalheiros.
Lorde Horncastle trouxera cachecol vermelho de propósito para a ocasião e mostrou-o à multidão
alinhada na vedação. As vaias e os gritos de apoio continuaram enquanto eles alinhavam os cavalos
na linha de partida. Mr. Wilson, tomando o seu lugar ao lado de Keira, desejou-lhe sorte.
– Para si também – disse ela alegremente. Vários cavalheiros na multidão mostraram o seu apoio a
Keira, mas ainda mais senhoras mostraram o seu apoio para com Declan.
– Em circunstâncias normais, acreditaria que você teria a vantagem – disse ela ao que Declan
anuiu com a cabeça. – Mas hoje a vantagem é minha.
– Meu Deus, o que é aquilo? – perguntou ele quando Horncastle ordenou que se preparassem.
– Determinação – disse ela e antes que Declan pudesse falar, Horncastle largou o cachecol e gritou
Partida.
Keira partiu com um grito da multidão. Não conteve o pónei, antes dando rédea solta ao animal e
dobrando-se sobre o pescoço do mesmo. Sentia-se como se fugisse de Eberlin e do seu destino, do
dolo que causara na paróquia. Montaria assim até à Irlanda se pudesse, até à segurança da casa dos
seus pais, para o mais longe possível da rapariga frívola e tonta que tinha sido.
Mas os outros cavaleiros estavam nos seus calcanhares. Chegou à primeira curva, tocou com os
calcanhares nos flancos do pónei e este lançou-se para a frente. Keira deitou-se o mais que conseguiu
sobre o pescoço do pónei sem perder o equilíbrio. Conseguiu virar a cabeça e olhar para trás; os
outros cavaleiros tinham desaparecido, mas Declan aproximava-se pelo seu flanco.
Ouviu os gritos da multidão e viu a curva seguinte da pista.
– Ah! – gritou, batendo com o chicote na garupa do animal.
Quando fez a curva, Declan aproximou-se. Vislumbrou-o a cavalgar suavemente no seu castrado,
como se ainda nem tivesse começado a corrida. Mas Keira também não era inexperiente. O seu pai
sempre lhe dissera que ela tinha nascido para a sela e tinha intenção de o provar nesse dia. De
repente, cortou para a direita, batendo intencionalmente no castrado e desequilibrando-o quando
chegaram à parte plana da pista.
Keira deu de calcanhares e usou o chicote uma vez mais. O pónei baixou a cabeça e manteve-se à
frente do castrado. Cavalgaram assim, pescoço com pescoço, até que a pista começou a virar para a
linha de chegada. Keira seguia na pista de dentro e quando passaram a curva ela puxou o pónei um
pouco para fora da sua pista, cortando um pouco o caminho. O pónei desviou-se para as ervas e
Keira gritou uma vez mais, incentivando-o para diante e mais depressa. O seu cabelo já se tinha
soltado dos ganchos. A saia voava-lhe pelos joelhos. Sentia-se como se fosse cair a cada passada e
precisou de todas as suas forças para se manter montada.
Estava a virar para a linha de chegada, correndo na direção do caos, da revelação e das
consequências do que tinha feito e a única coisa que ela poderia fazer era vencer. Ao menos isso ela
tinha de fazer bem.
Mas Declan não era um homem que desistisse de uma corrida. Seguia tão perto de Keira que esta
conseguia ouvir a respiração elaborada do castrado; ele estava a ganhar vantagem sobre ela, tomando
a liderança no último quarto da pista. Mas o pequeno pónei galês era como Keira – não iria deixar o
enorme castrado ganhar, não dessa vez. O cavalo esticou-se ao lado de Keira; ela sentiu os músculos
do cavalo contraírem e relaxarem, contraírem e relaxarem, enquanto os seus cascos batiam a terra.
Não tinha a certeza de quem tinha ganho quando cruzaram a meta a toda a velocidade. Não soube
até ter parado e voltado o pónei e Declan, um radiante Declan, ter obrigado o seu cavalo fazer uma
vénia na direção dela.
A multidão gritava o seu nome. Declan levou o seu cavalo para o lado dela e olhou-a com uma
expressão de orgulho e admiração.
– Bem feito, muirnín – disse ele. – Muito bem feito.
– Ganhei? – perguntou ela sem fôlego.
Ele anuiu.
– Por um nariz.
Ela riu-se a afagou o pescoço do pónei enquanto recuperava o fôlego.
Tinha ganho.

No final da corrida, Declan sentiu algo estranho no peito, quase como se o seu coração estivesse a
inchar. De orgulho. De algo profundo.
Estava impressionado com o desempenho do pónei galês. Era rápido como fogo e não estava
disposto a perder terreno para o castrado. Mas o que lhe deu uma estranha sensação foi o cavalgar de
Keira. Ela tinha-o deixado estupefacto. Era uma amazona destemida e sem falhas, sem receio de
correr riscos e absolutamente concentrada em ganhar. Tinha admirado grandemente a sua coragem;
ela cavalgara melhor que muitos homens experientes que ele conhecia. A sua admiração teve o
contributo do facto de, à chegada, as faces dela terem o matiz rosado do seu empenho, o seu cabelo
estar em desalinho e emaranhado por causa da corrida e os seus olhos brilharem de excitação.
Declan estava mais que satisfeito por igualar e duplicar o prémio dela. O orfanato tinha recebido
cem libras apenas graças à corrida.
Queria falar com ela, dizer-lhe como estava orgulhoso da corrida que fizera, mas Keira tinha sido
engolida por uma multidão em júbilo e desaparecera.
Alguém fez chegar uma cerveja a Declan, que a bebeu, grato. Vagueou pela multidão, aceitando as
felicitações de uma corrida bem disputada. Os seus pensamentos centraram-se noutra tarefa:
encontrar o capitão Corbett.
Anders tinha feito bem ao apontar o dedo ao capitão antes nesse dia. O homem estava redondo e
tinha um farto cabelo grisalho, uma fartura ultrapassada apenas pela do seu bigode. Tinha um riso
ensurdecedor que se ouvia através dos jardins.
Quando as famílias e os aldeões começaram a abandonar a gala, ao final da tarde, e começaram os
preparativos para a festança noturna, Declan viu Corbett outra vez. Estava sentado debaixo de uma
árvore, com o chapéu no joelho. Tinha a caneca vazia ao seu lado. Parecia ter tido um dia muito
festivo.
Declan apanhou um criado que passava, tirou-lhe dois copos de cerveja e foi até onde Corbett
estava sentado.
– Boa tarde – saudou.
– Boa tarde, senhor! – respondeu Corbett alegremente, os seus olhos no par de copos de cerveja
que Declan segurava. – Deixe-me felicitá-lo por uma corrida bem disputada.
– Muito obrigado – agradeceu Declan. – Conde de Connelly, ao seu serviço.
– Eu sei muito bem quem é – disse Corbett jovialmente. – Eu sou o capitão Corbett, anteriormente
do alto-mar, mas agora de Londres. – Falava como se a sua língua tivesse sido solta pela cerveja.
– Eu também sei quem é – retorquiu Declan amigavelmente, agachando-se ao pé dele para lhe
servir mais cerveja.
Corbett tomou-a com um aceno gracioso e bebeu, sedento.
– Gostaria de ter uma conversa consigo – disse Declan.
– Comigo? Mas não somos conhecidos, ou somos, senhor?
– Não somos conhecidos, não. Mas talvez tenhamos conhecimentos comuns.
– Oh?
– Lady Ashwood, para começar.
– Ah! – Os olhos azuis do capitão enrugaram-se. – Tenho de confessar que ainda não falei com a
nossa amável anfitriã. Ela parecia um pequeno pássaro hoje, pairando aqui e ali. Aqui entre nós, é
bastante assustadora com um arco e uma flecha. – Riu-se. – Temia que ela não se lembrasse de mim
de todo, pois era uma coisa tão pequenina quando a vi pela última vez.
– Por falar nisso, capitão… há um assunto delicado que gostaria de abordar consigo.
Corbett parecia surpreso. Depois estarrecido.
– Isto tem alguma coisa a ver com dinheiro? Sei que apreciei as mesas de jogo mais do que devia
ter feito, mas eu pago as minhas dívidas.
Aquilo fez Declan sorrir e ele abanou a cabeça.
– Tem a ver com o que se passou aqui em Ashwood há quinze anos atrás.
Corbett ficou carrancudo e pensativo.
– Mister Joseph Scott, em especial.
Corbett franziu o sobrolho.
– Não sei de nada…
– Sei que ele não roubou as joias da condessa – disse Declan. Corbett olhou para Declan com ar
circunspeto, mas não negou. – Ele era o amante de Lady Ashwood, mas não um ladrão – afirmou
Declan.
Corbett levantou o sobrolho. Bebeu a cerveja e pôs o copo de lado.
– Parece ter uma opinião bastante firme.
– É a opinião de quem cá esteve que me deu razões para acreditar que é verdade.
Corbett assentiu com a cabeça como se tal não o tivesse surpreendido.
– São águas passadas, senhor. Aconteceu há quinze anos, pelas suas contas. Dificilmente interessa
agora, não é?
Declan ficou surpreendido.
– Devo discordar, senhor. Interessa à família de Mister Scott e ao seu nome, mesmo hoje. Pensei
que talvez soubesse a verdade. Apesar de tudo, a condessa confiou-lhe a escolta de Lily até à
Irlanda.
– Ach, era necessário que ela fosse – disse ele com um movimento de pulso. – Estava
constantemente debaixo dos pés do conde.
– Por que motivo? – perguntou Declan. – Ou ela foi enviada para a Irlanda porque sabia, mesmo
não estando ciente disso, do caso entre a condessa e o entalhador?
Corbett olhou para ele com um ar carrancudo.
– O que quer de mim?
– Esperava que me pudesse dar as peças que faltam no puzzle. Porque não o salvou ela da forca?
Porque acabou ela com a vida dele?
– Faz muitas perguntas – disse Corbett rapidamente.
– Mas você era amigo de Lady Ashwood. Porque não falou ela em nome do seu amante? –
perguntou Declan.
– Ela não teve escolha – referiu Corbett. – O conde manteve-a em Ashwood contra a vontade dela.
Não lhe permitia visitas, não lhe permitia que falasse.
– Ela não poderia ter enviado uma nota ao magistrado? – perguntou Declan.
Corbett olhou para ele como se ele fosse maluco.
– Deixe-me assegurar-lhe que Althea Kent era uma mulher corajosa. Ela poderia ter enviado uma
nota ao magistrado e não lhe faltavam mensageiros. Mas era bastante infeliz na sua união com o
conde e atrevo-me a dizer que qualquer mulher seria. Ele era um homem poderoso e rico, mas frio e
cruel. Ela não enviou uma nota ao magistrado porque temeu que ele concretizasse a sua maior ameaça
e enviasse aquela linda criança, a criada dela, para um abrigo de pobres em Londres se Althea se
atrevesse a falar. E ele tê-lo-ia feito, também, sem o mínimo peso de consciência.
Atordoado, Declan olhou para o homem.
– Mas… se Mister Scott não levou as joias, onde estão?
– Quem saberá? – perguntou Corbett, encolhendo os ombros. – Um criado levou-as, aposto. Elas
eram bastante valiosas. Althea procurou-as ela própria. Virou Ashwood do avesso à sua procura,
para provar que não tinham sido roubadas antes de Mister Scott ser enforcado. Mas nunca as
encontrou. – Corbett suspirou e bebeu o resto da sua cerveja. – Há muitos anos que não pensava
nesse horrível assunto – disse ele.
Declan fez sinal a um criado que passava, entregou-lhe a caneca vazia de Mr. Corbett e aceitou
uma cheia em troca.
– É importante que eu saiba mais uma coisa, senhor. A condessa… ela tinha-se começado a
questionar sobre o que tinha realmente acontecido, mas era muito chegada à sua tia. Lady Ashwood
tomou a sua própria vida?
Corbett abanou a cabeça.
– Essa é uma teoria. Dizem que ela deixou uma nota para o conde, mas não sei de ninguém que a
tenha visto. – Olhou para Declan. – Mas há outros que dizem que era uma boa nadadora. Não sei se
era, mas não acredito que Althea Kent se matasse.
Declan ficou atordoado e quase sem palavras.
– Tanta morte e tragédia por causa de um caso amoroso? Casos como este estão sempre a acontecer
entre a Qualidade.
– O conde era um homem implacável – disse Corbett. – Pronto, já tem a sua resposta. O que
pretende fazer com ela?
– Exonerar Mister Scott – respondeu Declan solenemente. E, com esperança, explicar a Lily o que
podia realmente ter acontecido à sua querida tia.
Corbett anuiu.
– É justo. Sem o conde, já ninguém tem motivos para temer a verdade, suponho. Agora, senhor, se
me der licença, gostaria de ir ter com a condessa outra vez.
– Venha – disse Declan e levantou-se, emprestando a sua mão ao capitão para o ajudar a levantar-
se também.
Foram juntos até à varanda por trás da casa, onde tinham sido postas mesas com velas e flores para
o jantar. Keira tinha-se arranjado e vestira um vestido da cor da névoa irlandesa. O seu cabelo estava
penteado e afastado da cara, mas caía-lhe pelas costas. Sorriu quando viu Declan e ele sentiu-se
automaticamente mais leve.
– Aí está o meu valente adversário – disse ela, com uma grande vénia. – Ouviu dizer? Mais de cem
libras foram doadas em resultado da nossa corrida.
– É tudo devido a si.
– Tive uma grande inspiração – brincou ela, virando o seu sorriso para Corbett.
– Senhora, apresento-lhe o capitão Corbett.
Declan viu uma sombra de trepidação passar pelos olhos dela, mas Keira tinha-se tornado uma
atriz completa.
– Capitão! Que prazer vê-lo outra vez! – exclamou, tomando a mão dele nas suas. – Passou-se
muito tempo, não é verdade?
– Ah, senhora, olhe para si agora, toda crescida – disse Corbett com uma ternura genuína. –
Sempre soube que seria uma beleza. Os seus olhos estão um pouco mais verdes do que me recordava
e o seu cabelo agora encaracolado… – Olhou para Keira de perto. – Contudo, tão amável como há
quinze anos atrás.
– Agradeço-lhe sinceramente – retorquiu Keira.
– Continuou com o xadrez, não foi? – perguntou Corbett jovialmente.
– Ah… não tanto como eu queria – respondeu ela, prendendo um caracol do cabelo atrás da
orelha.
– Venha e delicie um velho com as histórias das suas aventuras – pediu ele, levando Keira.
Keira olhou com um ar suplicante por cima do ombro; Declan piscou-lhe o olho. Ela respondeu-lhe
com um ligeiro revirar dos olhos e depois voltou o seu sorriso para o capitão Corbett como se ele
fosse o homem mais importante na sala.
Declan estava certo de uma coisa: ninguém acreditaria que aquela mulher não era uma condessa,
apesar do que Eberlin pensasse que ela sabia.
Ele não a viu mais até altas horas da noite. A dança corria a todo o gás, alimentada pelas copiosas
quantidades de cerveja que tinham sido consumidas durante o dia e noite.
Em pé na ponta do terraço, Declan conseguiu apanhar um vislumbre do vestido de seda azul que
Keira vestira para a noite atrás dos pinheiros do terraço. Espreitou pelo meio deles; Keira tinha as
costas coladas à parede e os olhos fechados.
– Lembro-me de a encontrar a si e à Lily com Eireanne atrás de umas plantas em Ballynaheath,
durante um baile de Natal.
Ela abriu os olhos e sorriu ironicamente.
– Está a referir-se ao único baile dado em Ballynaheath nos últimos cem anos?
– Nos últimos dez – corrigiu-a ele.
– Lembro-me bem. Tinha catorze anos.
– Catorze anos e já a planear o destino da Lily e do… qual era o nome do rapaz?
– Ciaran Dougal – recordou Keira com um sorriso cansado. – Lembra-se dele? Era apenas um
bocadinho mais velho que nós e não podia pensar em mais nada que não fosse navegar os mares
como o seu pai e o seu avô. De momento, não me consigo recordar porque estávamos tão
convencidas de que ele seria um bom partido para a Lily. Penso que talvez tivesse a ver com os seus
lindos olhos.
Declan sorriu.
– Mas arruinou tudo, sabe – disse ela, franzindo a cara em tom jocoso. – Pensar que a Lily podia
estar casada com um capitão da marinha, agora, se não tivesse interferido.
– Da próxima vez que a vir, pedir-lhe-ei desculpas de joelhos por lhe ter arruinado a sua hipótese
de felicidade.
Keira riu-se suavemente e bocejou outra vez.
– Está exausta. Devia ir deitar-se.
– Não me atrevo – disse ela abanando a cabeça. – Não até o último convidado se ter ido embora.
Mas não me oponho a apanhar um pouco de ar.
Declan queria envolvê-la nos braços. Queria ser ele a deitá-la, a perder-se nos seus braços.
– Permita-me – disse ele, oferecendo-lhe o braço. E guiou-a da varanda até ao relvado.
Deambularam por entre tendas e mesas vazias, passando por um barril de cerveja que tinha
tombado para o lado. Passaram pelo campo de bowls, onde as bolas ainda jaziam como no final de
um jogo.
– Estou orgulhoso de si, rapariga – comentou Declan. – O que conseguiu aqui, hoje, é tão
surpreendente como louvável. Devia estar orgulhosa do que fez pelo orfanato.
Keira abanou a cabeça e olhou para os pés.
– Houve tantos outros envolvidos – observou.
– Não, estou a falar de si. Nada disto seria possível sem si e nunca lhe poderão tirar isto.
Ela sorriu de forma algo tímida.
– Obrigada. Suponho que estou um pouco orgulhosa de mim mesma. Desejava apenas que pudesse
ter feito isto sem enganos.
– Sim – disse Declan. Caminharam um pouco mais, em direção ao lago, onde as tochas já
começavam a arder lentamente.
– Teve oportunidade de falar com o capitão Corbett? – indagou Keira. – Eu não me atrevi. Tive
medo que me descobrisse se eu fizesse perguntas.
– Sim – respondeu Declan e calmamente informou Keira sobre o que o capitão Corbett lhe tinha
dito acerca das razões pelas quais a tia dela não interviera por Mr. Scott e as suspeitas que rodeavam
a morte desta. Keira escutou-o em silêncio, atordoada. Quando ele acabou, já tinham chegado ao
belveder.
– Dhia – murmurou a rapariga. – Não sei o que dizer. – Olhou para o lago. – Pobre Lily. Vai achar
a verdade tão perturbadora.
– Pois vai – concordou Declan. – Adoraria saber onde estão as joias.
– Vai continuar à procura? – perguntou Keira.
Declan contemplou o relvado escuro por um instante.
– Suponho que sim – respondeu, percebendo nesse momento que o iria fazer. – Joseph Scott merece
que o faça, assim como a sua tia. Parece-me o mínimo que posso fazer, tendo em conta,
especialmente, que irei estar em Kitridge Lodge durante vários meses com uma égua prenha. –
Precisaria de algo que lhe ocupasse os dias e horas em que iria sentir a falta de Keira. – E não estará
aqui para me distrair com as suas galas e os seus chapéus – acrescentou com um leve sorriso.
Keira sorriu tristemente.
– Eu não quero ir Declan. Quero ficar para o ajudar a encontrar as joias. Quero pôr tudo como
deve ser. Se eu… – Absteve-se de dizer mais alguma coisa.
– Ah, Keira – disse ele. Pôs-lhe a mão na cintura, puxando-a para ele e beijou-a suavemente. Foi
um beijo triste, pensou ele, o tipo de beijo que dois amantes partilham quando se despedem.
Ele amava-a. Era essa a coisa estranha que tinha vindo a sentir, o estranho peso no fundo do seu
próprio ser. Amava Keira Hannigan de uma forma que nunca tinha amado algo ou alguém e desejava,
naquela noite estrelada de verão, saber o que fazer com isso, como era suposto acomodar esse
conhecimento na paisagem da sua alma inquieta.
Colocou as mãos no rosto dela, estudando-a com a pouca luz existente, o seu olhar passando pelas
suas delicadas feições, tentando reter a sua imagem e os seus olhos irlandeses tão claros e reais na
sua mente assim como ela era para ele nesse instante.
– Vou sentir a sua falta, muirnín. – Iria sentir a falta dela do mesmo modo que iria sentir falta de
respirar.
Keira agarrou o pulso dele.
– Eu vou sentir mais a sua falta – murmurou. E, com um suspiro calmo, fechou os olhos.
Declan beijou-a suavemente, mas um desejo mais forte rapidamente se impôs. Ela era quente e
suave nas suas mãos e ele percebeu que, dentro de pouco tempo, não a veria outra vez em Ashwood e
não teria aqueles olhos irlandeses a brilhar para ele. Não estaria a tocar-lhe assim outra vez.
Enfiou os dedos com força no cabelo que lhe descia pelas costas e aprofundou o beijo. Ela
cheirava a alfazema. Desviou a boca para o lóbulo da orelha dela, depois para o pescoço e para a
suave indentação da garganta dela, onde podia sentir a pulsação rápida dela sob os seus lábios.
Cravou os dedos na anca dela e subiu até aos seios, a sua boca no pedaço de carne por cima do
decote dela. Acima dele, Keira sufocava de prazer, inflamando o fogo do desejo que de repente
atingira Declan.
Ele gemeu com a vontade de estar dentro dela e impulsivamente agarrou-a pela cintura e virou-a,
colocando-a no banco que ocupava o interior do belveder, enquanto se ajoelhava num só joelho
perante ela.
– E o que pensa que vai fazer? – perguntou Keira com voz cadenciada. – Não vê que há
convidados em todo o lado?
– Convidados que estão bem com os seus copos e mais preocupados com os seus próprios
encontros amorosos – disse ele, tirando o sapato de cetim do pé dela. Segurou-lhe a perna com a mão
e beijou-lhe o tornozelo, com meia e tudo.
Keira soltou um risinho.
– Tenha cuidado com o meu sapato, senhor!
– Qual sapato? – perguntou ele e moveu a sua boca pela perna dela, pelo interior do joelho,
puxando a saia para cima enquanto subia.
– Declan O’Conner, está a levar-me por um caminho de devassidão – disse Keira enquanto lhe
agarrava os ombros com as mãos.
– Não parece importar-se. – Mordiscou-lhe a perna logo acima da meia, levantou a cabeça e pôs a
mão no interior da coxa dela. – Quer que pare? – perguntou suavemente.
O sorriso brincalhão de Keira desapareceu; a sua respiração tornou-se lenta e ofegante.
– Vamos ser descobertos – murmurou.
– Não se ficar muito quieta – disse ele, piscando-lhe um olho e enfiando a mão na abertura das
suas cuecas, sentindo as pregas maleáveis que lhe cobriam o sexo.
– Oh! – gemeu Keira.
Ele empurrou os dedos mais para dentro das dobras molhadas. Declan iria para o inferno por
aquilo, por a desejar tanto, mas não se importava. Tinha uma ereção e tudo o que lhe importava era
dar-lhe prazer e vê-la recebê-lo. Ela estava quente e húmida e ele acariciava-a sem piedade, os seus
dedos roçando o núcleo de prazer dela, deslizando lenta e longamente para o interior e de novo para
trás. Com cada batida da carne dela, com cada gemido que lhe chegava aos ouvidos, todas as veias
dele ardiam de desejo.
Imaginou entrar dentro dela, sentindo o bater do seu corpo no dele. Tirou a mão, agarrou nas
camadas de seda do vestido dela e puxou-as para cima dos joelhos, de modo a revelar-lhe as meias e
as cuecas.
A respiração de Keira rapidamente se tornou mais acelerada; os seus dedos agarraram-se à borda
do banco, como se estivesse a lutar para se manter no lugar.
Era insuportável para Declan. Agarrou-a pela cintura, puxando-a para mais perto. Então, colocou
os dedos na abertura das cuecas dela e rasgou-as.
– Declan! – murmurou Keira.
– Chiu – avisou-a, silenciando-a com um beijo longo e apaixonado que a deixou a precisar de ar
antes de ele voltar mais uma vez para o meio das pernas dela.
O seu cheiro imediatamente o excitou até à loucura.
Tocou com a língua nas pregas dela, fazendo-a sibilar, num esforço para não fazer barulho. Depois
tocou-lhe com a boca e ela ficou com um grito de prazer preso na garganta.
– Deus me ajude – gemeu enquanto a língua dele mergulhava dentro dela.
Nada o podia ter excitado mais do que aquela fraca prece e, com um gemido, Declan começou a
explorar a carne dela com a sua boca, banqueteando-se com a sua carne, o seu corpo inundado do seu
cheiro.
Quando colocou o cerne do prazer dela no meio da sua boca e lábios, os dedos dela afundaram-se
no cabelo dele e, agarrando tufos com as mãos, Keira contorceu-se, puxando-o para cima e depois
afastando-o, quando já não conseguia aguentar o prazer que lhe estava a dar. Ele não tinha qualquer
intenção de a deixar escapar e agarrou-lhe as coxas, prendendo-a firmemente, levando-a até ao limite
para depois se deixar ir quando ela baixava a cabeça sobre ele, sufocando os seus gemidos de
prazer, agarrando-se ao banco, enquanto ao mesmo tempo se levantava de encontro a ele.
E depois ela ficou deitada, completamente esgotada. Declan beijou-lhe as coxas, depois os joelhos
e em seguida acocorou-se a tentar recuperar o fôlego. Tirou um lenço do bolso e limpou a boca antes
de o usar para a limpar.
Lentamente, Keira levantou-se e baixou o vestido. Os seus olhos verdes estavam negros e o seu
cabelo uma confusão emaranhada. Olhou para ele durante longo momento, o afeto que lhe tinha
bastante evidente no seu sorriso preguiçoso e satisfeito.
– Você é um homem perverso, Declan. Diabhal.
– Obrigado – disse ele com um sorriso. Pôs-se de pé e sentou-se ao lado dela no banco. Keira
pegou no rosto dele e beijou-o até ele começar a rir e então endireitou-se, encostando-se a ele.
Ele entrelaçou os dedos nos dela. Não disseram nada, deixando apenas a brisa fresca passar por
eles. Um som de gargalhadas chegou-lhe aos ouvidos e Declan suspirou. Olhou para Keira
– Os seus convidados vão perguntar para onde terá ido – avisou.
– Dar uma volta – disse ela.
Declan preferiu pensar que tinha andado às voltas com ela.
Trinta e um

Keira não queria sair do belveder. Queria que a noite durasse para sempre. Mas prendeu
obedientemente o cabelo na nuca, sacudiu a saia e permitiu que Declan lhe ajeitasse o corpete.
Iniciaram o regresso, de mãos dadas.
– Acho que devo dedicar-me ao tiro com arco quando regressar à Irlanda – disse Keira
levianamente. – Até gosto. Não gosta?
Declan não respondeu, mas largou a mão dela. Ela reparou que ele estava a olhar para o caminho
escurecido. Seguiu o seu olhar e viu Linford correr em direção a eles. Correr. De olhos arregalados,
Keira olhou para Declan. O aspeto dele assemelhava-se ao dela – algo doente.
– Deus me guarde – murmurou.
– Madame – começou Linford, tentando recuperar o fôlego – Por favor, venha imediatamente.
– O que foi, Linford? O que aconteceu?
– Tem de vir.
O coração de Keira começou a bater mais depressa. Sabia o que tinha acontecido. Eberlin
concretizara a sua ameaça. Chamara as autoridades e agora teria de suplicar-lhes que acreditassem
nela. Correram atrás de Linford, mas, na orla do relvado, o mordomo virou para o jardim.
– Pela entrada dos criados – disse ele.
Keira olhou para Declan.
– Eberlin – sussurrou.
Declan assentiu.
– Vá com Linford. Eu vou descobrir o que se está a passar.
– Venha, madame – insistiu Linford e, chegando à casa primeiro que ela, segurou a porta da entrada
dos criados. Keira sorriu ansiosamente para Linford enquanto passava, mas os seus olhares não se
cruzaram.
Oh, Deus. Querido Deus. Sentia-se como se caminhasse para a forca enquanto avançava pelo
corredor. A sua barriga agitou-se e as palmas das mãos ficaram húmidas. Apertou as mãos,
pressionando-as contra o abdómen. Tinha sido tudo tão perfeito. Mas devia saber que a magia do dia
não duraria.
– Na sala de visitas – disse Linford.
Keira não fazia ideia de como o fez, como conseguiu andar pé ante pé, de modo a percorrer o
longo corredor até à frente da casa e à sala de visitas. À porta, fez uma pausa momentânea para
inspirar profundamente. Levantou o queixo. Podia ser o momento em que a reconheceriam mas teria
de o enfrentar com a máxima dignidade possível, apesar do seu enorme embuste.
Entrou pela porta e a respiração ficou-lhe presa na garganta. Não era Eberlin quem estava naquela
divisão, era Lily. Lily, com o seu cabelo preto de seda e olhos verde-escuros, que tanto se parecia
com Keira… Ou nem tanto.
– Kiki! – gritou Lily, prendendo Keira num abraço apertado.
Keira sentiu-se perigosamente perto de desmaiar de alívio.
– Pensei que nunca virias – disse, junto do pescoço de Lily.
– Eu sei, querida, estou terrivelmente atrasada. Mas o mau tempo tornou velejar impossível. – De
repente, recuou e agarrou Keira pelos ombros. – O que aconteceu aqui?
O olhar de Keira voou até Linford. E Louis, que olhava para Lily como se tivesse visto um
fantasma.
– Deixem-nos – pediu Keira suavemente.
Nenhum dos homens se mexeu.
– Por favor – implorou Keira.
Linford inclinou a cabeça e saiu. Louis também o fez, mas os seus passos eram mais lentos. Olhou
para Keira com um misto de confusão e talvez um pouco de desdém. Quando ouviu a porta fechar-se
atrás de si, Keira sorriu tremulamente para a prima.
– Oh, Lily… Tenho tanta coisa para te dizer, que nem sei por onde começar.
– Pelo princípio – disse Lily, sentando-se num sofá com ela. – Não entendo o que se está a passar
aqui. O Linford olhou para mim e pareceu-me doente. Foi buscar Mistress Thorpe à cama e a pobre
mulher não conseguia falar. Olharam para mim como se vissem um fantasma. Só o criado disse
alguma coisa. Pediu-me desculpas, que já tinham uma Lily Boudine. Que era a condessa. Imagina a
minha grande surpresa, Keira!
– Eu sei, é…
– Pensei que talvez não tivesses vindo a Ashwood, afinal de contas. E disse que sou a condessa,
que sou a Lily – continuou Lily, sem fôlego. – Perguntei a Mistress Thorpe se não se lembrava de
mim. Que me ensinara a escovar o cabelo. Mas ela não respondeu e apercebi-me que algo estava
terrivelmente errado. E apercebi-me na altura que tu tinhas vindo e que, por algum motivo, todos
pensaram que tu eras eu.
– Sim – respondeu Keira e apertou a mão de Lily. – Vou contar-te tudo.
– Oh, não – disse Lily, olhando Keira de perto. – Oh, não, Keira! – De repente, levantou-se do seu
lugar e caminhou até à janela, voltando-se depois para a prima. – De todas as coisas estúpidas e
imprudentes! – exclamou. – Porque farias isso? Como poderias não perceber o caos que podia
causar? – gritou.
– Por causa de Hannah Hough – redarguiu Keira, ganhando confiança enquanto engolia lágrimas de
alívio não derramadas. – Nunca quis que isto acontecesse, Lily. O que eu não daria para voltar atrás
e fazer tudo outra vez! Mas não posso. Só posso dizer-te que pensei que estava a fazer o que me
pediste para fazer.
– Ser eu? Eu nunca te pedi que fosses eu, Keira – disse Lily, incrédula. – Que raio vamos fazer
agora?
De seguida, Keira ficou sem reação. Não podia carregar mais aquele engano e cedeu, caindo de
joelhos como uma pedra, as saias em círculo à sua volta. Toda a frustração, medo e arrependimento
tinham caído sobre os seus ombros.
– Keira! – gritou Lily, alarmada, apressando-se até ela e caindo de joelhos ao seu lado. Atirou os
braços à volta de Keira e abraçou-a. – Céus – disse com voz calma. – O que aconteceu?
Keira contou-lhe tudo. Como a semelhança entre elas, auxiliada por quinze anos de ausência, era
bastante convincente e como a tinham confundido com Lily. Contou-lhe que nunca fora sua intenção
fazer o que fizera, mas que se dera o problema de Hannah Hough, que perderia a casa se a condessa
não fizesse alguma coisa, e os salários que precisavam de ser pagos, e a gala, e o misterioso conde
dinamarquês que tentara roubar cem acres e a tinha ameaçado, e o porquê de ela nunca ter dito a
ninguém a verdade.
– Oh, Kiki… Devias ter voltado para a Irlanda – suspirou Lily. – Ficares aqui só piorou tudo.
– Não podia – lamentou-se Keira. – Não os podia deixar a todos e não podia deixar Ashwood
afundar-se em ruína. E havia Mister Scott.
Lily ficou branca quando o nome foi mencionado.
– Mister Scott – repetiu ela, como se não confiasse em si própria para o dizer. Ficara
surpreendida. – O que pode esse homem ter a ver com o que quer que seja?
Keira gemeu. Fechou os olhos por um instante, ganhando coragem de seguida. Ofereceu a mão a
Lily e ajudou-a a subir para o sofá.
– Tenho notícias angustiantes – anunciou. – Mister Scott não roubou as joias.
Lily olhou fixamente para ela.
– O Declan e eu descobrimos a verdade – acrescentou Keira.
– Declan? Qual Declan?
– Donnelly – disse, estremecendo.
Lily saiu novamente do sofá.
– Eu sei o que estás a pensar – exclamou Keira. – É a mais estranha das coincidências que ele
esteja aqui a criar cavalos, em Kitridge Lodge, de entre todos os lugares possíveis! Não fazia ideia
que ele estava aqui, pela minha honra que não sabia, Lily. Ele… Limitou-se a aparecer, um dia. Vinha
ver os cavalos que pusemos para venda.
– Os cavalos? – gritou Lily, levando as mãos à cabeça como se aquilo a tivesse magoado. – O que
tem tudo isso a ver com Mister Scott?
– Mister Scott não roubou as joias da tia Althea. Ele era o seu amante.
Lily ficou boquiaberta.
– Isso é impossível – respondeu, irada. – Criaste uma bela fantasia…
– Não, não criei – insistiu Keira, levantando-se. Pegou na mão de Lily. – Vais acreditar em mim
quando vires o que tenho para te mostrar.
Levou a prima para fora da sala de visitas e atravessaram o corredor, passando por uma criada
surpreendida e dois criados desconfiados. Na sala de música, Keira acendeu um candelabro e puxou
Lucy para o piano.
– Lembras-te disto? – perguntou, apontando para o instrumento.
– Claro que sim. Era da Althea.
– Todos aqui acreditam que a Althea o encomendou para ti – disse Keira. Passou o candelabro a
Lily e virou o banco ao contrário. – Olha para aqui, Lily. Olha para a inscrição.
Num primeiro momento, Lily pareceu não conseguir ver. Então, Keira pegou-lhe de novo na mão,
fê-la ajoelhar-se e aproximou a luz. Lily inclinou-se para a inscrição, semicerrando os olhos. Leu-a,
pôs-se de cócoras e voltou a dobrar-se para a ler de novo.
– Não entendo – disse. – Eu não entendo.
– Oh, Lily – insistiu Keira em tom triste. – Mister Scott não roubou as joias. A tia Althea não se
afogou acidentalmente. Ela matou-se. Ou alguém a matou.
Lily empalideceu; olhou para Keira de boca aberta. Então, os seus olhos cerraram-se.
– Não percebo o que estás a tentar fazer, mas isso não é verdade – disse, aborrecida.
Keira tomou as mãos dela nas suas.
– É verdade, querida – insistiu solenemente, contando-lhe de seguida tudo o que sabia. A cada
golfada de ar, Lily ficava mais chocada, com os olhos fixos em Keira.
Um quarto de hora depois, Keira saiu da sala de música e chamou um criado.
– Por favor, vá chamar Lorde Donnelly – pediu. – Diga-lhe… – Olhou por cima do ombro para
Lily, sentada no chão, olhando incrédula para o tapete. – Diga-lhe que Lily Boudine chegou a
Ashwood.
Trinta e dois

Declan soube antes de o criado lhe dizer que Lily tinha regressado a casa; os rumores já começavam
a espalhar-se pela multidão. Tinha ouvido que algo bastante errado se passava com Lady Ashwood e
foi então que uma mulher lhe contou que havia duas, uma das quais aparecera na entrada quando os
outros se iam embora, e ele soube.
Declan encontrou Lily e Keira sentadas frente a frente num sofá na sala verde. Assim que o viu,
Lily correu para os seus pés.
– Milorde – disse suavemente, apressando-se a fechar a porta atrás dele. Quando o fez, Keira
levantou-se devagar. Os seus olhos, cheios de choque e ansiedade, fixaram-se nos de Declan.
– Perguntar-lhe-ia por si e pelos seus, mas creio que o apuro de Keira precisa da nossa atenção
imediata – referiu Lily enquanto passava por ele. Tinha os braços dobrados e as faces vermelhas. Era
muito parecida com Keira, mas de uma maneira mais suave. A cor dos seus olhos não era tão
ostensiva e o nariz não era tão pequeno. Existia, de facto, uma forte semelhança entre elas, que
Declan já conhecia, mas não havia como as confundir. Declan sabia que os criados mais antigos se
aperceberiam do seu erro a partir do momento em que vissem Lily.
– Sim – confirmou. – Os convidados estão cientes de que algo está errado.
– Meu Deus – disse Lily, desamparada.
– Lily – disse Declan, avançando e pegando na mão dela. – A Keira fez algo tão irracional que
pode nunca recuperar.
– Desculpe! – exclamou Keira.
– Mas está feito – continuou Donnelly, ignorando Keira. – E mesmo estando errada ao fazê-lo, fez
o melhor que pôde e fez coisas muito boas em seu nome. Ela manteve Ashwood a salvo, por agora,
de graves ameaças à propriedade. Ela pôs homens a reconstruir o velho moinho e fez planos para
lucrar com a moagem de cereais. Tomou o orfanato sob sua proteção e ajudou a angariar fundos para
renovar Saint Bartholomew. E também começou a reparar Ashwood. Ela foi extraordinária no seu
lugar, mas agora é altura de reconhecer a verdade e enviá-la para a Irlanda antes que alguém possa
colocar qualquer uma de vós em apuros.
– E deixar-me a resolver esta confusão? – perguntou Lily, retirando a mão da dele.
– A Keira cometeu um crime ao assumir a sua identidade – explicou ele. – Estou certo de que lhe
poderá fornecer proteção total da lei inglesa.
Ambas as mulheres olharam para ele, os seus olhos verdes bem abertos.
– Asseguro-lhe que o comum inglês achará um ato escandaloso uma católica irlandesa representar
o papel de uma condessa inglesa, por muito boas que fossem as suas intenções. Assumirão que as
razões por que o fez não foram por se tratar de uma rapariga tola, mas sim porque buscava um ganho
pessoal ou político.
– Mas ela tinha a minha permissão para fazer o que tivesse de ser feito – notou Lily.
– Diz a Lily – continuou Declan. – Não há nenhuma prova disso.
– Então escreverei uma carta agora – acrescentou Lily, olhando para a escrivaninha.
– A pergunta que certamente será feita será, tendo Keira essa carta, porque não a apresentou antes?
Keira e Lily trocaram um olhar preocupado.
– Sugiro que anunciemos a quem quer que ainda cá esteja reunido que a condessa por direito está
cá. A Keira e eu partimos para a Irlanda amanhã.
– O senhor? – perguntou Keira
Declan olhou para o seu belo rosto.
– Deve partir imediatamente e não posso permitir que viaje sozinha. Iremos a cavalo.
– Mas, e os seus cavalos? E a sua comissão para produzir um potro? – perguntou Keira.
Sim, e os seus compromissos? Ele mal tinha pensado nisso. A única coisa que sabia era que não
podia deixar Keira defender-se sozinha. Não saberia dizer quando tivera essa revelação. Sabia
apenas que, olhando para ela, não aceitaria outro cenário.
– Terei de confiar em Noakes para tratar disso na minha ausência. – Olhou para Lily. – E a Lily
deve confiar em Mister Fish. Ele irá orientá-la nos próximos dias.
– Mister Fish? – repetiu Lily, abanando a cabeça e pressionando as têmporas com os dedos. – Não
posso crer que isto está a acontecer. – Declan notou que as suas mãos tremiam.
– Eu vou chamar Mister Fish – disse Declan. – Pedirei ao Linford que prepare os convidados para
um anúncio – acrescentou, deixando as duas jovens a olhar uma para a outra, incertas.

Mr. Fish estava aturdido. Encontrava-se na sala de visitas, o seu olhar vagueando entre Keira e Lily,
sem perceber bem o que se passava. Keira mal podia olhar para ele, tão culpada se sentia.
– Não lhe posso pedir desculpas suficientes – disse Keira. – Nunca quis enganar ninguém tão
completamente, mas especialmente a si, Mister Fish. Foi meu amigo e conselheiro e… e Ashwood
estaria em ruínas se não tivesse sido por si.
Mr. Fish engoliu em seco e juntou as mãos atrás das costas.
– Não posso dizer que entendo o seu embuste – respondeu rispidamente. – Ou que não me sinto
dolorosamente enganado.
Keira ficou magoada ao ouvir aquilo, mas mordeu o lábio e assentiu com a cabeça. Merecia o seu
desdém, se não a sua completa censura.
– Não sei o que dizer para além disto – rematou Fish.
Declan lançou um breve mas tranquilizador sorriso a Keira, mas esta não se acalmou. Desprezava-
se por ter magoado Mr. Fish como magoara.
– Eu entendo, senhor. A minha grande esperança é que, um dia, arranje maneira de me perdoar…
Mr. Fish bufou.
Keira estremeceu.
– Mas até esse dia chegar, o meu maior desejo é que não culpe a Lily por isto. Ela é completamente
inocente e precisa da sua ajuda, agora mais do que nunca.
Mr. Fish olhou para Lily com um ar frio.
– Concordo que ela precisa, de facto, da minha ajuda.
– Então… o senhor fica? – perguntou Lily cautelosamente.
Mr. Fish pressionou os lábios enquanto pensava.
– Durante algum tempo, madame – concordou. – Durante algum tempo.
Lily suspirou de alívio.
– Não lhe posso agradecer o suficiente.
– Bem – disse Mr. Fish rapidamente –, Sua Senhoria sugere que informemos os convidados.
Concordo que isso deve ser feito, em nome de tudo o que é decente, pois essas pessoas puseram a
sua confiança em… Miss Hannigan.
Keira pensou que ia desfalecer enquanto via Mr. Fish sair. Percebeu, então, que estava a agarrar as
costas da cadeira com tanta força que lhe doíam os dedos.
– Então, vamos – disse Lily, estendendo a mão para Keira. – Vamos acabar com isto de uma vez
por todas. Já durou demasiado tempo.
Keira só conseguia fazer que sim com a cabeça. Lily passou o braço em volta dos ombros de Keira
e obrigou-a a andar. Declan abriu-lhes a porta e, quando passaram, tocou-lhe na mão.
– Anime-se, rapariga – disse-lhe.
Abraçando-se pelas cinturas, Keira e Lily dirigiram-se para a varanda, com Declan atrás delas.
Este tomou o seu lugar ao lado de Mr. Fish, que tinha, de facto, reunido os convidados
remanescentes. Keira olhou para cima. Começavam a aparecer na paisagem estrelada, engolindo as
estrelas à sua passagem. Desejava ser engolida por uma, também. Podia ouvir os murmúrios por
baixo dela, os suspiros quando as pessoas se aproximavam e viam Keira e Lily juntas.
Declan avançou.
– Vou dizer-lhes.
– Não – disse Keira. – Tenho de ser eu. – Fechou os olhos por um instante, para ganhar forças,
libertou o seu braço do apoio que era a cintura de Lily e avançou, ficando sozinha no primeiro degrau
do terraço. – Obrigada a todos por terem vindo hoje – disse numa voz que a surpreendeu pela força e
procurou caras conhecidas.
Estavam ali as senhoras da Sociedade e os seus maridos. Estava a irmã Rosens, ainda com uma
caneca na mão, e que nesse dia se rira como Keira nunca a ouvira rir. Estava ali Benedict Sibley,
com o seu olhar admirador de sempre. Estavam novos amigos, como o capitão Corbett, que ela tinha
descoberto ser um rabugento encantador. Estavam alguns membros do pessoal da casa, como os
criados e Linford e até mesmo Mrs. Thorpe. Todos olhavam para cima, nas suas expressões confusas
e curiosas.
– Obrigada – disse outra vez. – Conseguimos angariar mais de quatrocentas libras para o orfanato
hoje.
O anúncio mereceu uma salva de palmas comedida, mas era óbvio que o orfanato há muito estava
esquecido. Todos os olhares recaíam nela.
– E agora – continuou Keira, com os joelhos a tremer –, gostaria de apresentar a verdadeira
condessa de Ashwood, Lily Boudine. – Apontou para Lily e um murmúrio cresceu na plateia quando
as pessoas se voltaram umas para as outras e perguntaram se alguém podia repetir o que ela tinha
dito, pois de certeza haveria um engano.
Lily avançou e pegou na mão de Keira, apertando-a ligeiramente.
– Devem ter reparado nas nossas parecenças. Eu sou… Eu, na verdade, sou a prima de Lady
Ashwood, Keira Hannigan – continuou Keira, tremendo um pouco.
Houve mais suspiros e o burburinho ficou mais alto. Mesmo por baixo de Keira estava Mrs. Ogle,
que olhava para ela de boca aberta.
– É… algo realmente engraçado – continuou Keira. – Quando recebemos a notícia de que Lily tinha
herdado a propriedade e o título por ser a única herdeira sobreviva do falecido conde, ela já se tinha
comprometido a viajar para Itália. Pediu-me que viesse e tomasse conta das coisas até que ela
pudesse ocupar o seu lugar o que, naturalmente, não me podia recusar a fazer. Mas, quando cheguei,
pensaram que eu era ela…
Keira hesitou. Não, não, isto está tudo errado. Tinha de haver uma maneira melhor de lhes contar.
Olhou para Mr. Sibley, cuja expressão tinha mudado para incredulidade e, temia ela, nojo.
– Vá lá! – disse uma mulher. – Não nos deixe pendurados!
Lily voltou a apertar a mão de Keira, que aclarou a garganta.
– Pensaram que eu era a minha prima e pensava contar-vos tudo. Pensava, mas apareceu o assunto
urgente de Hannah Hough, que requeria a intervenção da condessa e… pareceu-me que Ashwood
precisava da sua condessa.
O seu olhar recaiu em Lady Horncastle, que parecia enraivecida. E a irmã Rosens… Deus lhe
valesse, que expressão de desalento!
– Devo enfatizar que Lady Ashwood não me pediu… para ser ela – tentou clarificar Keira. – Ela é
completamente inocente nisto, visto que ela não sabia…
– Eu pedi-lhe que viesse e tomasse conta das coisas – acrescentou Lily, com uma voz clara. – Ela
tinha o meu apoio total para fazer o que fosse necessário.
Houve mais burburinho, o som da confusão a crescer. E havia ira. Daria Babcock, a jovem que se
tornara amiga de Keira tinha um sorriso cínico. Mrs. Morton falava rapidamente ao ouvido de Mrs.
Ogle, com ar irritado e gesticulando. Mr. Anders pousou a sua caneca e afastou-se, abrindo caminho
entre a multidão. Keira estava agradecida, ao menos, por Lucy já estar deitada e não ter de ouvir
aquilo.
– Queria que todos ouvissem a verdade da minha boca – disse Keira. – Mas agora que Lady
Ashwood voltou a casa, a minha presença já não é necessária. Por isso agradeço-vos a todos… pela
amizade e simpatia para comigo e peço-lhes que sejam fiéis a Lady Ashwood – acrescentou Keira.
As lágrimas começaram a encher-lhe a garganta. Teve a sensação de que não conseguiria dizer nem
mais uma palavra e olhou para Lily. Lily sorriu e apontou para a porta atrás deles. Keira anuiu com a
cabeça e começou a andar nessa direção.
– Mentirosa! – gritou alguém. Keira engoliu um assomo de náusea. Não viu Declan mexer-se, mas
ouviu-o.
– Olhem para aqui! – exclamou em voz alta e firme.
Keira sobressaltou-se e voltou-se para trás. Declan estava em pé na ponta do terraço, de braços
abertos.
– Antes de condenarem, lembrem-se do bem que ela fez por todos vós! – vociferou. – O orfanato
foi muito beneficiado e, se não fosse pelo esforço dela hoje aqui, atrevo-me a dizer que não seria tão
beneficiado. Muitos de vocês foram postos a trabalhar na construção do novo moinho. Ela assegurou-
se de que os vossos salários eram pagos e que as rendas não eram aumentadas. Então, antes de a
julgarem, lembrem-se do que ela fez por Ashwood e por vós.
Voltou-lhes costas, com uma sombra nos olhos azuis. Apressou Lily e Keira para dentro de casa e
alguém gritou:
– Maldita intrujona! Volta para a Irlanda!
Declan cerrou os dentes e mandou as senhoras para casa à frente dele, enquanto os gritos
enraivecidos da multidão subiam de tom.
– Vou mandá-los embora – disse de imediato Mr. Fish, tornando a sair e deixando Declan, Lily e
Keira sozinhos. Declan olhou para Keira. – É uma mulher valente – disse-lhe. – Estarei de volta de
manhã. Esteja preparada para montar. Bem-vinda a casa, Lily – acrescentou, começando a percorrer
o corredor.
Keira viu-o partir. Nunca o tinha visto assim; nunca lhe vira uma expressão tão determinada.
Lily avançou, puxando Keira com ela. Percorreram corredores atapetados e subiram para as salas
rosa e creme, a que Keira chamara casa nos últimos meses. Lily atravessou a entrada e olhou à sua
volta.
– Passei horas aqui com a tia Althea – recordou melancolicamente.
– Como era ela? – perguntou Keira, fechando a porta atrás delas. – Tenho tantas perguntas sobre
ela.
– Linda – respondeu Lily com tristeza. – Uma princesa. Queria ser exatamente como ela. – Sentou-
se no cadeirão à frente da lareira, enquanto Keira começava a reunir algumas coisas. – Não posso
crer que a vida dela acabou de forma tão trágica. Deve ter-se sentido tão sozinha! Com tanto medo!
Conta-me outra vez – pediu Lily. – Conta-me tudo.
Keira contou-lhe tudo outra vez. Conversaram até às primeiras horas do dia, até Lily ter esgotado
todas as suas perguntas.
– Demoraste tanto tempo a regressar – disse Keira quando Lily se calou. – Foi Mister Canavan o
culpado?
Lily sorriu timidamente.
– Não. Mister Canavan não era tão excitante como eu pensava que fosse – admitiu com um sorriso
abatido. – Na verdade, foi o mau tempo e… Eu estava relutante em voltar aqui, Keira. Faltam-me
tantas memórias e, contudo, tenho sentimentos estranhos, desconfortáveis, em relação a este sítio.
Particularmente agora, depois do que me contaste sobre a Althea. Não sei mesmo o que pensar.
Deitou-se na cama, olhando para o dossel, e Keira deitou-se a seu lado.
– Acho este sítio adorável, Lily. Espero que faças as pazes com ele.
Conversaram até adormecerem.
Mas o sono de Keira foi inquieto. Acordou antes do amanhecer e acabou de arrumar as suas coisas,
esperando depois que Lily acordasse.
Quando, por fim, Lily abriu os olhos, viu Keira sentada no cadeirão, a olhar para ela.
– Keira? Que horas são?
– Sete e meia – respondeu Keira. – Lily, há uma última coisa que preciso de te contar. Há uma
menina, chamada Lucy Taft…
Lucy estava no quarto das crianças a tomar o pequeno-almoço sob o olhar atento de uma criada, que
olhou com desdém para Keira quando ela entrou.
Lucy, contudo, parecia estar normal, alegre.
– Bom dia, mamã – saudou, o que Keira considerou ser um excelente sinal de que Lucy não tinha
ouvido falar do caos da noite anterior.
– Betts, pode dar-nos licença por favor? – pediu Keira à criada.
A criada levantou-se e saiu da sala sem dizer uma palavra.
Obviamente sentindo que algo não estava bem, Lucy baixou a colher e olhou para Keira. Esta
ajoelhou-se ao pé de Lucy e pegou-lhe na mão. As lágrimas começavam a toldar-lhe a visão.
– Querida, há algo que preciso de lhe contar.
– O que é? – perguntou Lucy com a voz a tremer. Parecia não ter reparado em Lily, de pé à
entrada.
– Aconteceu uma coisa – disse Keira. – Na Irlanda, por acaso e eu… – Não sabia como dizer à
criança. – Eu tenho de regressar à Irlanda.
– Irlanda? – admirou-se Lucy. O queixo da menina começou a tremer e os olhos de Keira
encheram-se de lágrimas. – Mas quando?
– Agora, querida. Hoje.
– Hoje? – gritou Lucy, começando a soluçar. – Porquê?
Keira pegou nela e agarrou-a.
– Lamento imenso – murmurou. – É uma história um bocado comprida e poderá não a compreender.
Não tenho muito tempo, minha querida, mas quero que se lembre do que lhe disse. Lembra-se?
Lucy soluçou e fez que sim com a cabeça.
Keira tomou o rosto de Lucy nas mãos, penteou-lhe o cabelo para trás e beijou-lhe a face.
– Independentemente do que possa ouvir sobre mim, deve lembrar-se sempre que eu nunca quis
fazer mal. Lembre-se de que eu queria apenas… – Não havia palavras que pudessem explicar a uma
criança de nove anos o que ia no coração de Keira. – Eu só queria viver, Lucy – disse simplesmente.
– Não há mais nada que possa dizer em minha defesa, além disso. Queria viver, saborear a liberdade,
ser e fazer todas aquelas coisas que nunca serei ou farei outra vez. E no meio disso tudo encontrei-a a
si. Adoro-a, menina, e nunca pense o contrário.
– Então porque não posso ir consigo? – suplicou Lucy, em lágrimas que lhe desciam pelas
bochechas. – Prometo que me porto bem e que farei tudo o que me mandar.
O coração de Keira partiu-se. Lucy era mais uma consequência das suas ações impetuosas e
impulsivas. Pensava que estava a fazer bem à menina ao tirá-la do orfanato, mas apercebia-se de que
apenas a estava a magoar. Abraçou Lucy enquanto esta chorava, engolindo de volta as próprias
lágrimas.
– Não pode ir comigo, querida. Não desta vez – disse Keira, enquanto passava a mão pela cabeça
suave de Lucy, que estava inconsolável. – Vamos lá ver – continuou Keira baixinho. – Eu preciso de
si aqui! Tenho um grande favor a pedir-lhe. A minha prima voltou. Ela vai ser a condessa agora! Mas
ela não conhece ninguém em Ashwood e vai precisar de uma grande amiga. Vai ser amiga dela,
querida? Vai ser alguém com quem ela possa falar?
– Não, mamã! Eu quero ir consigo! – gritou Lucy.
– Oh, Lucy, eu dava o mundo para poder levá-la comigo, mas não posso. E a Lily precisa tanto de
si. Precisa mais de si do que qualquer de vós imagina.
Lily apareceu de repente, colocando-se ao nível delas.
– Lucy, estou muito feliz por conhecê-la – disse Lily, sorridente.
Lucy fungou e olhou pesarosamente para Lily.
– Ela é muito parecida consigo, mamã – disse a Keira, curiosa.
– Ela é mais bonita – admitiu Keira, sorrindo para Lily. Havia lágrimas a brilhar nos olhos da
prima. – E suspeito que vai gostar tanto de si como eu gosto. – Beijou Lucy mais uma vez e levantou-
se, deixando Lily a consolar a pequena enquanto saía em silêncio, o seu coração a partir-se mais um
pouco a cada passo.
Trinta e três

Se tivesse parado um minuto que fosse para pensar, de certeza que Declan se teria convencido que
era loucura fazer o que estava prestes a fazer. Mas devia estar louco, pois não podia abandonar Keira
agora. Ela tinha um lugar no fundo do seu coração. Amava-a e estava preocupado com a segurança
dela. Por isso, já tinha reunido as suas coisas e arrumado os alforges.
Estava pronto quando Mr. e Mrs. Noakes chegaram para trabalhar.
Mr. Noakes ficou chocado com o pedido de Declan para cuidar dos seus cavalos até que pudesse
voltar.
– Está indisposto, milorde? – perguntou ele.
– Não, mas faço falta na Irlanda. Espero regressar antes do inverno.
Mr. Noakes pareceu desnorteado, mas aceitou a explicação. Prometeu a Declan que os seus
cavalos seriam devidamente acompanhados até que regressasse. Declan não duvidava, mas sentia-se
miserável por deixá-los, principalmente a égua prenha. Nunca tinha deixado os seus cavalos para
trás. Nunca.
Selou o castrado e amarrou o pónei galês à sua montada. Com um último olhar para os cavalos nos
estábulos, Declan cavalgou para Ashwood.
Passavam apenas quinze minutos das nove da manhã quando chegou. Linford cumprimentou-o
friamente e Louis olhou-o diretamente nos olhos, com uma expressão de desafio. Parecia que, mais
uma vez, era considerado culpado pela sua associação com Keira. Dessa vez, no entanto,
surpreendentemente, não parecia afetado por isso. Só queria tirar Keira dali.
Encontrou Keira, Lily e Mr. Fish no salão. Compunham um trio solene e levantaram-se quando ele
entrou.
– Milorde – saudou Mr. Fish.
– Eberlin chamou a polícia – disse Keira. Parecia quase frenética.
Declan olhou para Mr. Fish.
– Isso é verdade? – perguntou.
– É. Recebi a informação de um amigo, esta manhã. Eberlin enviou um mensageiro à polícia para
informar que um crime extraordinário foi cometido aqui.
– As notícias correm muito depressa em Hadley Green – pensou alto Declan. – Quando tempo
demora a polícia a vir?
– Um dia, no máximo – respondeu Mr. Fish.
Declan olhou para Keira.
– Um dia de vantagem será suficiente. Duvido que a polícia nos persiga se Lady Ashwood não o
desejar. Mas é melhor ter a certeza – disse, dando a Keira algumas roupas que apanhara em
Kitridge.
– O que é isto? – perguntou Keira.
– Viajará mais depressa e leve vestida de homem.
Keira olhou para Lily, que assentiu.
– Vem Keira. Não há tempo para discutir isso.
As senhoras regressaram pouco tempo depois com Keira vestida com roupa de montar, que estava
firmemente apertada e enfiada dentro de um par de botas de montar, mas mesmo assim parecia que
estava a nadar dentro da roupa. O casaco de montar e o colete estavam mal vestidos, mas Declan
estava satisfeito que eles escondessem as suas curvas femininas. O casaco engoliu-a por inteiro. Ele
tirou uma faca da sua bota e cortou as mangas e a bainha do casaco.
– Agora sim – disse ele, dando um passo atrás. – Parece um menino doente.
– Por favor! – protestou Keira.
– O cabelo dela – disse Lily, ajudando Keira a enrolá-lo e a prendê-lo debaixo de um chapéu. Lily
atou um lenço à volta do pescoço de Keira para que pudesse engrossar a aparência do seu pescoço
delgado.
– Ainda me pareço como um menino doente? – perguntou Keira.
– Sim. Mas, mais importante, não parece uma mulher – disse Declan. – Faça as suas despedidas,
menina. Temos de ir embora.
Ele ficou de lado enquanto ela abraçava a prima.
– Peço imensas desculpas, Lily – disse Keira. – E Eberlin…
– Não chores – disse Lily e exibiu um sorriso para a sua prima. – Eu tratarei dele – declarou ela
com firmeza e Declan teve a nítida sensação que ela faria exatamente isso.
Keira olhou para Mr. Fish.
– Adeus, Mister Fish.
Ele assentiu, com a sua expressão estoica.
– Venha, Keira – disse Declan. – Saímos pela entrada dos criados.
Com um último olhar para Lily, Keira seguiu-o. Eles caminharam para fora onde os cavalos
estavam à espera. Declan sorriu tranquilamente para Keira e tocou na sua cara, tirando-lhe um
caracol da têmpora. Ela era linda aos olhos dele. Uma princesa irlandesa. Ele lamentava o que ela
tinha feito, mas já não acreditava que pudesse mudar uma vírgula ao que acontecera. Foi mais uma
admissão privada que fez o seu coração hesitar. Ele estava a deixar os seus cavalos por aquela
mulher. Fora uma transição dolorosa, aquele negócio do amor, mas ele supôs que verdadeiramente
não havia alegria sem dor.
– Vamos – disse ele e ajudou-a a subir para o dorso do pónei.
Começaram a subir a estrada privada que seguia para a floresta de Ashwood. Keira cavalgava
como um homem – silenciosamente, com a cabeça baixa, com o seu foco na estrada em frente. Eles
cavalgaram até o sol estar alto e depois pararam para comer qualquer coisa e dar água aos cavalos.
– Quanto tempo até ao mar? – perguntou Keira.
– Se conseguirmos dominar oitenta quilómetros por dia sem cansar indevidamente os cavalos,
devemos chegar a Pembroke em três dias.
Continuaram até a noite começar a cair e Keira queixou-se com fome. Declan encontrou um sítio
para acampar adequado, ao lado de um riacho. Keira desmontou do cavalo sozinha e começou a
juntar tanta lenha como aquela que via no pequeno espaço à volta deles enquanto Declan dava água
aos cavalos. Ele prendeu-os e deixou-os a pastar enquanto fazia uma fogueira com a lenha que Keira
tinha arrastado para o sítio no riacho. Assim que a fogueira começou a arder, Declan pôs os
colchonetes no chão, deitando-os lado a lado. Ele deitou-se e colocou os alforges de moda a fazer
uma espécie de almofada e depois esticou a mão para Keira, ajudando-a a descer.
Ela deitou-se de lado, olhando para a fogueira melancolicamente.
Declan tinha os ossos cansados, mas estava consciente do corpo dela ao lado do dele, as curvas
debaixo do casaco, pele macia como manteiga, e cabelo que cheirava a tempo de primavera. Queria
puxá-la para os seus braços, mas Keira parecia perdida nos pensamentos dela.
Declan fechou os olhos, à deriva num sono superficial. Nas margens distantes da sua consciência,
ele podia ouvir o ocasional bufar dos cavalos, o crepitar da fogueira e… um som estranho que o
despertou de um sono mais profundo. Ele ficou deitado com os olhos fechados até que percebeu o
que estava a ouvir. Keira estava a chorar silenciosamente.
Abriu os olhos e ouviu o som das lágrimas dela por uns momentos antes de rolar para o lado e
deslizar o braço à volta da barriga dela, puxando-a para o corpo dele.
– Não chore, muirnín. Tudo vai correr bem – murmurou.
– Criei uma terrível confusão – disse ela, pesarosa.
– Sim, de facto.
– Não concorde comigo – disse ela choramingando. – É absolutamente a pior coisa que pode
fazer.
Declan sorriu na noite e acariciou o cabelo dela. Na luz minguante do fogo, ele podia vê-lo preto
contra a sua mão, tão suave como cetim.
– Venha cá, rapariga tola – disse ele e moveu o cabelo dela para o lado para lhe beijar a nuca.
– Se tivesse a mínima noção das coisas, deixava-me aqui e deixava os lobos alimentarem-se de
mim.
– Não há suficiente de si para fazer uma refeição completa.
– Não tencionava alimentá-los o inverno todo – ironizou ela, virando-se para poder encará-lo. Ela
tocou-lhe na testa, os dedos a escorregarem pela face, até à boca dele. – Porque está a fazer isto? –
perguntou ela, calmamente. – Podia ter-me deixado para enfrentar as consequências. Estou totalmente
preparada para o fazer.
Ele não pôde deixar de sorrir com aquilo.
– São boas notícias. Ao menos, Keira Hannigan percebe que existem consequências para as suas
ações.
– Isto é de loucos, sabe, cavalgar por Inglaterra como um casal de bandidos.
Era interessante, pensou ele, que mesmo à média luz, ele podia ver o verde nos olhos dela.
– Pense nisto como a sua última aventura – sugeriu ele. – Não ficaria surpreendido se o seu pai a
mandasse para um convento depois disto.
Keira estremeceu.
– Essa seria a coisa mais gentil que ele me poderia fazer – disse ela, fazendo um sorriso enquanto
passava o dedo pelo lábio inferior dele. – Sabe o que penso?
– Não posso sequer imaginar.
– Então devo dizer-lhe. Sei que sou uma tola… Mas acho que possa ser ainda mais tolo que eu.
Declan riu.
– Porquê?
– Porque está aqui comigo agora.
O sorriso dela, os olhos, tudo nela o chamava. Ele tocou com os lábios dele nos dela e, enquanto
sabia que ela faria, Keira beijou-o de volta com toda a antecipação que ele sentiu nele.
A boca dela incendiou-o, e o corpo dela, comprimido contra o comprimento do dele, era
dolorosamente agradável. Não parecia importante que estivessem sobre uma tela de estrelas, na
floresta de Inglaterra – a intensidade entre eles foi como se fossem duas pessoas esfomeadas por algo
que só a outra pessoa podia dar. Declan virou-a de costas e colocou-se em cima dela, deslizando a
mão para dentro do casaco, encontrando a camisa, e bruscamente rasgando a abertura enquanto lhe
beijava a cavidade da garganta. Deslizou a mão para dentro da camisa e encheu-a com a suavidade
maleável do peito dela. Ele podia sentir a contração do suspiro de prazer de Keira sob os seus
lábios.
Estava louco por ela, completamente louco. O desejo engoliu-o, inundando-o no sabor e na
fragância dela. Keira gemeu suavemente enquanto se arqueava na palma da mão dele. Os cavalos
deslocaram-se; um tronco caiu da fogueira e Declan sentiu como se estivesse à deriva num sonho
carnal, um sonho no qual o coração dele batia com vida pela primeira vez em trinta e um anos de
vida. O coração dele batia por Keira.
Levou o peito dela à boca.
As mãos dela estavam dentro do casaco dele, depois deslizaram para dentro da camisa, as unhas
dela a rasparem o peito dele. Ela ofegava levemente e, quase como um torpor luxurioso, Declan
segurou a cara de Keira com a sua mão e levantou-a, procurando a boca dela com a dele. Keira
moveu-se contra ele numa maneira completamente feminina, devagar e suavemente, enquanto ele
chupava e mordiscava o corpo dela. O desejo dele inchava em cada veia, o coração dele inchava
com cada um dos pequenos suspiros de prazer, inundando Declan com emoções novas para ele. Ele
queria-a com um desespero esbaforido e, quando lhe tirou as calças pelas pernas abaixo e deslizou
para dentro do corpo dela, trincou os dentes contra o grito que estava na sua garganta, as palavras
que estavam na ponta da língua.
Amor. Eu sinto amor. Amo-te.
A perna de Keira levantou-se ao seu lado, fazendo pressão contra as suas costelas, incitando-o
mais fundo. Ela agarrou a cara dele com as mãos, beijou-lhe a boca e os olhos enquanto ele se movia
dentro dela. Ele moveu-a com o corpo dele e as suas mãos, moveu-a até ela começar a formar uma
onda. Quando Keira gritou na noite, ele perdeu-se dentro dela.
Foi requintado.
Momentos mais tarde – talvez minutos, talvez horas, talvez dias, Declan não sabia –, Keira agitou-
se e pressionou a cara no pescoço dele. Ele estava deitado de costas, a contemplar as estrelas da
noite de verão.
– Há uma coisa de que nunca me arrependerei – disse Keira, mordiscando a orelha dele. – Nunca
me arrependerei de si.
– O sentimento é inteiramente recíproco – respondeu ele, beijando-a no topo da cabeça.
– Eu ainda o amo – sussurrou ela.
Surpreendido, Declan chegou-se um pouco para trás para olhar para ela.
Keira sorriu timidamente e assentiu.
– Amei-o naquele dia no prado, e ainda o amo. Prefiro pensar que sempre o farei.
Declan não sabia como responder. Um milhão de pensamentos correram através da mente dele,
sendo que ele a amava também não era desses pensamentos o mais pequeno.
– Por amor de Deus, não pareça tão estupefacto – disse Keira. – Sabe perfeitamente que o sinto.
Suponho que sou como as outras mulheres na Irlanda, todas desesperadas pela atenção do conde de
Donnelly.
– Você… Você não é nada como as outras mulheres na Irlanda – assegurou Declan.
– Tenha cuidado, senhor. Aquilo soou perigosamente perto de admiração.
– É muito mais que admiração – disse ele, acariciando o cabelo dela. – Também a amo, menina.
Keira pestanejou. Os olhos arregalaram-se. Ela levantou-se nos cotovelos e sorriu-lhe.
– Que sonho estranho parece que estou a ter.
Ele sorriu.
– Aborreceu-me, exasperou-me e escandalizou-me. Mesmo assim, irei sempre guardá-la muito bem
no meu coração.
Ela contemplou-o um longo momento antes de baixar a sua cabeça.
– Isso, senhor, é a coisa mais querida que alguém alguma vez me disse. – Ela colocou a mão no
peito dele, mesmo em cima do coração, e fechou os olhos.
Declan fechou os olhos também. A manhã chegaria em breve e a realidade chegaria com ela.

Cavalgaram ao longo de todos os dias, parando apenas para descansar e dar água aos cavalos. A
Keira doía-lhe tudo; as suas pernas pareciam desfeitas quando desmontou do cavalo e mal tinha
forças para levantar os braços. Para ela, era notável que Declan parecesse sempre tão… forte.
Não obstante a dor ou o facto de ela estar a fugir de Inglaterra como uma criminosa, Keira
começou a achar aqueles dias a cavalgar por Inglaterra os melhores dias da sua vida. Nunca se
sentira tão livre. Estava livre de botões e laços e ganchos. Estava livre da sociedade e de senhoras a
quererem casá-la com os seus filhos. Estava livre para ser exatamente quem queria ser, e isso era
espetacular.
Cavalgaram até Keira se queixar que estava completamente imunda para sequer se suportar a ela
própria. Declan riu-se com isso, o seu olhar observando-lhe o cabelo não cuidado e a camisa suja.
– Acho que nunca a vi mais atraente – disse ele, com um piscar de olho. Mas, nessa noite,
encontrou um lago pequeno e, debaixo de um céu estrelado, enfrentaram a água fria e nadaram.
Juntos. Sem nenhuma roupa. Se Keira pensava que Declan lhe tinha mostrado antes todos os
patamares da sensualidade, foi agradavelmente surpreendida ao descobrir que havia novos
patamares.
Keira tomara decisões que tinham mudado a sua vida e não havia mais nada a fazer a não ser viver
com elas. Além disso, não queria pensar no assunto agora. Haveria muito tempo para pensar mais
tarde. Declan ficaria desapontado se soubesse que ela não se preocupava com as consequências do
que estava a fazer agora. Mas desta vez era diferente – desta vez, ela estava perfeitamente consciente
delas, mas tomara a decisão consciente de estar com Declan. Tinha uma oportunidade naquele
extraordinário bocadinho de felicidade e iria aproveitá-la.
Quando chegaram a Pembroke no início da noite do terceiro dia, tinham perdido o ferry que
transportava passageiros e gado pelo mar da Irlanda e foram forçados a esperar pelo ferry do dia
seguinte. Declan arranjou-lhes alojamento em nome de Mr. Sibley e filho, o jovem Mr. Sibley.
Riram-se disso e trataram-se por Sibley. Declan também pediu que providenciassem um banho
quente para o jovem Mr. Sibley, surpreendendo Keira.
Ela exclamou ao ver o banho quente que fora trazido, tirou rapidamente do corpo as roupas que
tinha vestido nos últimos dias e entrou na banheira, suspirando de prazer enquanto se derretia nas
águas.
– Acho que nunca tive um presente melhor, Mister Sibley – disse ela.
– Nem eu – admitiu Declan, beijando-a antes de a puxar para a sentar, de maneira a poder lavar-lhe
o cabelo. Keira fechou os olhos e saboreou a luxuosa sensação que isso lhe proporcionava. Quando
ele acabou, tirou as roupas e entrou na pequena banheira com Keira, as costas dela no peito dele.
Lavou-lhe os ombros metodicamente, massajando-os enquanto o fazia, depois foi até aos seios dela e
ao abdómen. A mão dele deslizou para o meio das pernas dela e massajou-a ali também, até que ela
gemeu de prazer.
Quando Keira flutuou de regresso ao pequeno quarto por cima de uma rua barulhenta em Pembroke,
virou-se na banheira e montou-o como ele a tinha ensinado a fazer, deslizando-lhe para baixo, vendo
o prazer no brilho dos olhos dele. Declan manteve os olhos na cara dela enquanto ela se movia nele.
As mãos dele percorriam o corpo dela e ele beijou-a aqui e ali, mas, principalmente, observava-a,
afastando-lhe o cabelo da cara para a poder ver até que o desejo o impossibilitasse de o continuar a
fazer.
Abraçou-a então, indo ao encontro dela, o seu aperto forte, a sua respiração quente na pele dela.
Explodiu quente e duro nela, estremecendo com a força do orgasmo.
Ficaram ali até a água arrefecer, depois pediram comida e vinho e dormiram agarrados.
Era a última vez que estariam juntos. Quando atravessaram para a Irlanda no dia a seguir, algo
mudara entre eles. Keira não sabia o que era, mas nalgum lugar dentro de si compreendia.
A aventura estava a chegar ao fim.
Trinta e quatro

Chegaram à aldeia de Galway três dias depois de entrarem em solo irlandês por Wexford. O verão
começava a dar sinais de declínio; Declan reparou que os dias eram cada vez mais curtos e as noites
mais frescas. Sentia que no final da viagem já não restaria sol.
A dor no seu peito aumentava à medida que se aproximavam de casa. Não era tão obtuso que não
soubesse o que era. Mas o que essa dor significava para ele era um assunto completamente diferente.
Ainda havia problemas no que a Keira dizia respeito – o crime que ela cometera em Inglaterra, por
um lado, mas isso acabaria por ser ultrapassado. Havia outra coisa, contudo, que não podia ser
ultrapassada: o desejo de Declan de ser livre.
Não sabia como conciliar o seu amor por Keira com a sua vontade de ser livre. Era algo que trazia
consigo desde o berço e não estava disposto a desistir desse bocado de si.
Pararam em Galway e ele entrou na loja para comprar um vestido a Keira. Mrs. MacDougal ficou
encantada.
– Para a sua irmã, então? – perguntou alegremente enquanto embrulhava a musselina cinzenta.
– Foi abençoada com uma natureza astuta, minha senhora – disse ele piscando o olho. Deixá-la
pensar o que quisesse sobre o vestido. Virou-se para sair da loja, mas aconteceu-lhe reparar numa
touca cheia de folhos. – Vou levar aquilo também – disse, voltando a pegar na sua bolsa.
– A touca! – exclamou Mrs. MacDougal. – Isso é tão simpático da sua parte, milorde, se não se
importa que o diga. Está na minha montra há meses a fio. Ah, mas a Eireanne vai ficar linda com ela,
não vai?
– É encantadora – disse ele vagamente e, minutos depois, com o vestido e a touca na mão, deixou a
loja e cavalgou de volta para o bosque, onde Keira o esperava.
Ela agradeceu-lhe pelas roupas, mas ele notou que mal olhou para elas. Pendurou num ramo um
cobertor de sela para lhe dar alguma privacidade para se mudar. Quando ela se vestiu, entregou-lhe
as roupas que usara durante todos aqueles dias. Ele enfiou-as num alforje e deu um passo atrás para a
admirar.
– Está linda. Ninguém irá suspeitar de que é o jovem Mister Sibley.
Ela sorriu e olhou para baixo, para o vestido.
– É lindo. E a touca! – exclamou ela. – Se não o conhecesse tão bem como conheço, diria que
começou a gostar de toucas.
Ele começara a gostar, sim, mas não era de toucas. Pegou na mão de Keira e beijou-lhe a palma.
– Então chegámos ao fim da viagem?
– Chegámos ao fim desta viagem, sim. Mas algo me diz que ainda agora comecei a minha própria
viagem.
Ele ergueu um sobrolho.
– Isso é muito misterioso, Mister Sibley. O que quer dizer?
Ela encolheu os ombros.
– Agora sou uma pessoa diferente. O quê, está surpreendido? Algo em mim está bastante diferente.
Consigo senti-lo. Aqui mesmo – disse ela, pressionando a mão no meio do tronco.
Oh, mas ele também o sentia.
Keira suspirou e colocou a touca na cabeça.
– Ficarei feliz quando esta provação chegar ao fim. – Atou as fitas de veludo debaixo do queixo e
abriu os braços. – Que tal estou?
O coração de Declan quase que parava.
– Parece um anjo, muirnín.
Ela riu-se.
– O diabo tem cara de anjo, não? – perguntou, recordando os tempos em que o conhecera pela
primeira vez em Ashwood.
– Sim – retorquiu Declan simplesmente. Nunca esqueceria aquilo tudo, nem um único momento.
Keira olhou para ele como se fosse dizer alguma coisa. Ele podia ver a tristeza nos seus olhos,
misturada com uma maturidade que nunca ali estivera. Pensou que ela lhe podia perguntar o que o
futuro traria, mas isso não aconteceu.
– Bem, vamos – disse ela, virando-lhe costas. – O meu pai vai querer todas as horas que restam no
dia para falar muito severamente comigo.
Ela podia fingir estar à vontade com ele, mas não o conseguia olhar nos olhos. O próprio Declan
estava em conflito consigo próprio; parecia que se aproximava um momento em que teria de tomar
decisões que lhe mudariam a vida e, Deus era sua testemunha, estava perdido em relação ao que
fazer.
Keira não disse nada enquanto cavalgaram para Lisdoon, mas, quando chegaram aos penhascos a
poucos quilómetros de casa dela, parou de repente.
Declan ficou surpreendido com isso e deu a volta com o seu castrado, mas Keira já tinha
desmontado do seu galês e estava a caminhar apressadamente em direção à berma do penhasco. O
coração de Declan parou.
– Keira! – gritou ele, saltando do cavalo. Correu atrás dela, apanhando-a mesmo antes de ela
chegar à berma. – O que está a fazer? Está bem?
– Estou muito bem – tranquilizou Keira, enxotando-o. – Sinceramente, Declan, pensava que eu ia
saltar? Não, eu não o queria assustar. Só queria… estou triste. Muito triste. É só isso. – Ela olhou
para o mar por um momento e depois dobrou-se.
– Meu amor…
Keira estendeu a mão, afastando-o dela.
– Eu disse que nunca me arrependeria e é verdade, nunca o farei – disse resolutamente, forçando-
se a levantar. – Nem dos momentos que passámos juntos, mesmo aqueles em que me tratou muito
mal.
– Keira…
– Vou sentir bastante a sua falta, Declan. – Olhou para ele expectante.
Ele engoliu e endireitou o laço da touca dela, passando-lhe a mão pelo braço.
– Também vou sentir a sua falta. – Queria dizer mais, mas não sabia como se exprimir.
Ela olhou para ele de boca aberta.
– É só isso que sabe dizer? Como me pode deixar ir, Declan? Como pode fingir que nada se passou
entre nós?
– Meu Deus, Keira – disse ele, estendendo um braço para ela, que se esquivou. Sentiu a dor no
peito aumentar mais um pouco. – Hei de amá-la sempre, Keira Hannigan. Toucas e tudo. Mas não sei
como mudar quem sou.
Keira parecia ter acabado de levar uma bofetada. Anuiu lentamente com a cabeça e depois olhou
para o mar.
– Nunca lhe pediria para ser algo que não é – respondeu, calmamente. – Nunca.
A expressão dela era desoladora e Declan tentou aproximar-se uma vez mais, mas Keira fugiu da
sua mão.
– Não – disse ela baixinho. – Por favor, não. É altura de seguirmos as nossas vidas, sim? –
Começou a caminhar em direção aos cavalos.
– Keira – disse ele.
– Não há necessidade de vir com paninhos quentes – retorquiu ela num tom ligeiro. – Já estamos na
Irlanda e ambos temos as nossas vidas e famílias separadas. Sempre soubemos isso, não é verdade?
– Deu meia volta e voltou para trás, olhando para ele. – Amá-lo-ei para sempre, Declan! Mas é
mesmo altura de seguirmos caminhos separados. – Voltou-se de novo e continuou a andar, deixando-o
ali a olhar para ela.
Ele viu-a montar a égua com a facilidade de uma cavaleira e olhar para ele.
– Não vem?
Ele avançou devagar, o olhar fixado nela, desconfiado.
Keira não voltou a olhar para ele durante o resto da viagem até Lisdoon.

À porta da mansão em Lisdoon houve uma grande agitação. A família de Keira levou-a para dentro
com os braços à volta dela e o pai deu uma pancada nas costas de Declan, agradecendo-lhe tê-la
escoltado desde Wexford, onde os dois disseram terem-se encontrado por acaso.
– Onde estão as tuas malas? – perguntou Mabe.
– Hão de vir – disse Keira, sorrindo para Declan enquanto a família a tentava levar mais para
dentro. – Muito obrigada, milorde. Não se preocupe. Tenho a certeza de que a Eireanne está ansiosa
por vê-lo regressado em segurança.
Declan estava no átrio com o pai dela, o seu olhar atravessando-a. Keira julgara que o seu coração
estava completamente despedaçado, mas descobrira naquele dia que ainda não tinha sido feito em
migalhas. Não até àquele preciso momento. Manteve o seu sorriso luminoso, escondendo-se atrás
dele, usando-o como escudo.
Molly, Mabe e a mãe de Keira levaram-na para o salão. A mãe, reparou Keira, estava obviamente
muito feliz por vê-la, mas continuava a olhá-la com ar desconfiado.
– Do que gostaste mais em Itália? – perguntou Molly no salão.
– Oh, da arte – respondeu Keira.
– Aí está a minha menina! – gritou o pai quando entrou no salão. Vinha sozinho. Keira sentiu um
aperto no peito; isso significava que Declan partira. Tinha-se ido embora da sua vida. Estava
verdadeiramente acabado.
O pai de Keira agarrou-a e fê-la girar.
– Bem, alimentaram-na bem em Itália, não foi? – perguntou ele, rindo bastante com Molly e Mabe.
– Já vi esse chapéu – disse, sagazmente, a mãe de Keira. – Esteve uma eternidade na montra de
Mistress MacDougal.
– Oh, sim… sim – assentiu Keira, tocando no chapéu.
– Como é que o tem?
– Gostei dele – respondeu ela da forma mais inocente que conseguiu.
– Que arte? – perguntou Molly, excitada. – Viste a Capela Sistina?
– Hum, não – disse Keira. – Estava fechada para obras.
– A capela? – perguntou a mãe.
– Sim – disse Keira, evitando o seu olhar.
– Porque estás a usar as tuas botas com esse vestido? – perguntou Mabe, olhando para os pés de
Keira.
– Onde disse que estavam as suas malas? – perguntou a mãe.
Keira podia sentir o calor a subir-lhe pela nuca. O pai estava feliz por a ver e Molly e Mabe
pareciam desesperadas por novidades e histórias de Itália. Mas a mãe, Deus a abençoasse, a mãe
sempre soubera quando algo não estava bem.
– Então? – perguntou ela enquanto lhe afastava o cabelo das têmporas.
– Não… não estão aqui – disse Keira cuidadosamente.
– Ah, não se apoquente, menina. Mandarei um rapaz buscá-las – disse o pai jovialmente. – É tão
bom tê-la em casa. Acho que nunca mais vou estar tanto tempo sem a ver!
– A sua cor está muito elevada, Keira. Sente-se bem? – perguntou a mãe enquanto punha a mão na
testa de Keira.
– Estou bem, eu… – Ela fechou os olhos. Estava apaixonada, estava desesperada, estava triste,
estava tanta, tanta coisa que nunca tinha sentido na Irlanda que não sabia como contar à família tudo
aquilo que era agora. Abriu os olhos. – Estou diferente.
Mabe bufou. Molly parecia um pouco invejosa. O seu pai riu-se e serviu pequenos copos de uísque
a todos. Mas a mãe de Keira manteve o olhar fixo nela.
– De que modo?
– Bem, isso… isso é uma história bastante interessante – respondeu Keira, recusando com a cabeça
o copo que o pai lhe oferecera. Afundou-se no sofá de seda e olhou para a floresta através das
janelas. – Uma história que acho que não estará interessada em ouvir, na verdade.
O sorriso do pai desvaneceu-se. A mãe suspirou e afundou-se no sofá ao lado dela. Molly e Mabe
ficaram boquiabertas de excitação.
– Minha querida menina – disse a mãe. – O que fez?
– Prepare-se, mãe – começou Keira –, pois fiz uma coisa extraordinariamente estúpida. Mais do
que uma, aliás. Pode até dizer-se… montes de coisas estúpidas.
– Queres dizer mais do que todas as coisas estúpidas que fizeste na Irlanda? – perguntou Mabe, a
sua voz cheia de entusiasmo.
– Sim – respondeu Keira e contou à família a sua extraordinária aventura, começando no dia em
que a carta de Ashwood chegara para Lily, há alguns meses.
Trinta e cinco

Poucos dias depois de Declan ter regressado a casa, Eireanne recebeu a carta para ingressar no
Instituto Villa Amiels. Estava fora de si com a excitação e tão preocupada com o que iria vestir que
Declan se viu obrigado a levá-la a Dublin para ela comprar roupa para a sua primeira viagem ao
estrangeiro.
Pela primeira vez, serviu-lhe passar uma quinzena a fazer pouco mais do que assinar o seu nome
em letras de câmbio. Não fizera mais do que amuar desde que chegara a Ballynaheath. A despedida
abrupta de Keira tinha-o magoado e ele convencera-se de que ela lhe tinha feito uma cortesia com
isso, pois assim que pensou ter perdido o coração para ela, foi lembrado de que se safara bem sem
ela. Então concentrou-se no futuro, nos seus cavalos e no planeamento do seu regresso a Kitridge
Lodge assim que os preparativos para a escola de Eireanne estivessem tratados e a viagem marcada.
Em Dublin, Eireanne e a avó de Declan foram todas as noites ao teatro ou à ópera. Declan vagueou
entre dois clubes de cavalheiros, mas não estava interessado em jogar. Não estava interessado em
mulheres. A única coisa pela qual mantinha algum interesse parecia ser um bom uísque irlandês.
Ajudava-o a silenciar os pensamentos na sua mente e a amainar a estranha palpitação no seu peito.
Declan não se sentia em si e, passados quinze dias, começou a perguntar-se se algum dia se sentiria
outra vez.
Quando ele e a família regressaram a Ballynaheath, já se tinha decidido. Iria regressar a Inglaterra
imediatamente, para a sua égua prenha e para os seus cavalos. Era lá que ele pertencia. Não ali, a
penar – e ele penava, por muito que lhe custasse admitir – pela mais tola mulher no planeta.
Declan estava tão enojado consigo mesmo que fez uma incaracterística caminhada pelos extensos
terrenos de Ballynaheath. Mais precisamente, saiu disparado do seu escritório em direção ao relvado
numa espécie de inquietação, mas, lá chegado, percebeu que não sabia realmente para onde ir. Então
vagueou sem rumo, tentando lembrar-se da última vez que tinha caminhado por Ballynaheath.
O que descobriu era arrebatador. Passou por lindas vistas sobre o mar e por densos e musgosos
bosques. Talvez fosse isso que achou mais encantador – a propriedade era lindamente verde. Toda a
Irlanda era verde, mas a sua propriedade parecia-lhe especialmente verde e a sua cor no final do
verão lembrava-lhe os olhos de Keira.
Declan anunciou nessa noite que se iria embora de Ballynaheath dentro de quinze dias.
Eireanne suspirou e pousou o garfo.
– Realmente, Declan, começo a acreditar que és inglês.
– Sou tão irlandês como tu, minha querida, mas tenho uma égua prenhe em Kitridge Lodge que
precisa da minha atenção. Para além disso, vais partir para a escola em breve. Que motivos tenho eu
para ficar aqui?
– Isso não faz a sua avó sentir-se particularmente amada – disse a avó, fungando.
Declan agarrou na mão dela e apertou-a.
– Se pensa, mesmo que por um momento, que não estou ciente da sua amizade com Mister Barney,
está enganada. Quando menos tempo eu aqui estiver, mais atenção pode devotar-lhe.
A avó riu-se.
– Não passo de uma velha com necessidade de companhia e a sua presença não afetará o meu
calendário social, milorde. Estou tão pouco preocupada tanto com a minha virtude como com os seus
cuidados, já que provou ser perfeitamente capaz de cuidar de si – disse ela. – Quando estará de
regresso a casa?
– Não sei dizer – admitiu ele. – Parece haver tão pouco para mim aqui atualmente.
– Há aqui mais coisas do que pensa – disse a avó enquanto se levantava do seu lugar, mandando
afastar o criado que corria para a ajudar. – E vê-lo-ia com os seus próprios olhos se ao menos se
desse ao trabalho de olhar em volta, milorde. Então, boa noite, meus queridos. Prometi a Mister
Barney um jogo de uíste esta noite.
– Boa noite, avó – disse Eireanne. Também ela se levantou da mesa. – Peço licença, Declan, mas
ainda tenho muito que fazer antes de ir. – Deu-lhe um beijo na face enquanto saía, deixando Declan
sozinho na sala de jantar.
Será que elas não percebiam que ele precisava da sua companhia aquela noite? Claro que não.
Estavam tão raramente juntos que elas não percebiam que ele precisava delas mais do que nunca.
Voltou ao seu escritório e, previsivelmente, pensou em Keira. Perguntou-se se Maloney a fora
visitar, se estariam a planear o casamento; seria o melhor para Keira, antes que chegassem notícias
de Inglaterra.
– Bá – fez, pondo o copo de lado.
Agora até o uísque o irritava.
Pelo fim da semana, determinou que visitaria Keira antes de se ir embora. Não podia perceber qual
o propósito que isso iria servir, para além de o atormentar, mas lá foi ele a trote até Lisdoon, no seu
castrado.
Keira, disse o mordomo, estava indisposta.
– Diga-lhe para se levantar – ordenou ele ao homem. – Diga-lhe que Lorde Donnelly gostaria de
lhe dar uma palavra.
O mordomo voltou passados uns minutos com dois criados.
– Peço perdão, milorde, mas a senhora está indisposta. Ela pede-lhe que regresse noutra altura.
Se Declan não tivesse ficado tão zangado, talvez se prostrasse ali mesmo nos degraus de Lisdoon.
Mas como ficara, esperava encontrar um coelho ou dois nos quais pudesse aliviar a sua frustração.
No final da semana seguinte, já não se podia entediar e cavalgar por Ballynaheath. Não tinha
companhia. As suas amizades eram poucas e parecia que toda a gente se tinha ido embora antes de
começarem as chuvas de outono. Restavam-lhe apenas horas vagas. Uma tarde, pediu que lhe
trouxessem os alforges para os poder encher e encontrou as roupas que Keira usara na viagem.
Esquecera-se de que as tinha enfiado ali.
Encostou a camisa à cara e inspirou o cheiro. Retirou as calças de montar e o colete e enfiou-os na
secretária, mas pôs a camisa de novo no alforge.
No sábado de manhã, o dia da partida de Eireanne, Declan e a avó levaram-na à porta, esperando
que as suas malas fossem carregadas no coche.
– Lembra-te de que és esperada no Natal – avisou ele.
– Claro! – disse Eireanne alegremente. Era bom ver o seu sorriso; ela sentia-se obviamente
excitada com aquela reviravolta na sua vida e Declan estava feliz por ela. – Vais-te embora amanhã
de manhã? – perguntou ela a Declan.
– Sim. – Ele olhou para o monólito de castelo que era Ballynaheath. – Vai ser uma maçada sem ti
por perto e sem mais ninguém para me divertir.
– Há os Hannigan – sugeriu a avó.
– Oh, sim, a Molly e a Mabe são um encanto e agora a Keira – disse Eireanne enquanto endireitava
as luvas. – Mas já que Keira faltou ao prometido com o Maloney, pode não estar muito interessada
em ver alguém neste momento.
Declan parou.
– Desculpa?
– Hum? – fez Eireanne distraída, esticando a mão para observar as suas novas luvas de seda.
– Disseste que a Keira faltou ao prometido.
– Sim. Não soubeste? Ela estava noiva do Loman Maloney, mas depois foi a Itália e, quando
voltou, desistiu.
– Isso é má educação, se quiseres saber – disse a avó de Declan. – E, sinceramente, ela não arranja
melhor que Mister Maloney.
Eireanne riu-se.
– Talvez goste de algum italiano.
– Sim, bem, não te ponhas com ideias sobre italianos – disse Declan, enquanto abria a porta do
coche. Eireanne sorria radiante enquanto punha os braços à volta da cintura dele e lhe dava um beijo.
Despediu-se da avó e ambos viram o coche de Eireanne afastar-se. Eireanne ficou fora da janela a
acenar até o coche fazer uma curva e ela não os poder ver mais.
– O castrado – disse Declan a um criado que aguardava.
– Onde vai? – perguntou a avó de Declan.
– Tenho um pequeno assunto a resolver – disse ele calmamente. Ela tinha desistido de Maloney?
Estaria louca? Estaria ele?
Quando Declan chegou a Lisdoon, saltou do cavalo antes de este parar e subiu os degraus dois a
dois até à porta. Bateu nela com o punho. Houve um pequeno contratempo quando o mordomo
informou Declan que Miss Hannigan não estava a receber visitas.
– Ela vai atender o raio desta visita – afirmou Declan, empurrando-o e a um criado, gritando o
nome dela.
Keira apareceu no andar de cima, debruçando-se sobre a balaustrada, com as irmãs a seu lado.
– Declan! – exclamou ela. – Que vem a ser isto?
Ela estava linda num vestido cor-de-rosa, deslumbrante.
– Venha aqui abaixo – ordenou ele, apontando para o chão a seus pés. – Venha cá abaixo de uma
vez e eu não farei desta visita um espetáculo mais dramático do que já está a ser.
– Não creio que seja possível torná-la mais dramática.
Ele fitou-a. Mal se conseguia conter para não subir as escadas a correr.
– Venha cá abaixo, Keira. De uma vez.
– O que fizeste agora? – perguntou Molly à irmã.
– O que vem a ser isto? – gritou Mr. Hannigan, aparecendo no átrio onde estava Declan, com o
guardanapo ainda na garganta. – Donnelly! Que raio está a fazer?
– Gostaria de dar uma palavra à sua filha – respondeu Declan, com o seu olhar em Keira.
– Isso não é possível – disse Mr. Hannigan, esbracejando para as suas filhas. – Voltem para os
vossos quartos! Não estão autorizadas a receber visitas… nenhuma de vocês!
– O que fiz eu? – lamuriou-se Mabe.
– Eu vou vê-la – disse Declan a Hannigan.
– Oiça bem, Donnelly…
– Pai, por favor. – Keira começou a descer as escadas, com um brilho nos olhos, o vestido a
arrastar atrás dela. – Irei falar com Sua Senhoria e certificar-me de que ele entende que ninguém
visita Lisdoon com maneiras tão bruscas.
– Não se arme em condessa comigo, menina – avisou-a Declan.
– Não me estou a armar em nada consigo – disse Keira enquanto parava à frente dele, os seus olhos
a brilhar. – Se tiver algo para me dizer, diga-o como um cavalheiro.
– Muito bem. Devo dizê-lo aqui? – perguntou ele, gesticulando para o espaço à volta deles.
Os olhos de Keira estreitaram-se. Ela apontou para uma sala diretamente à sua direita.
– O solário – disse ela e, com um gesto da cabeça, marchou para lá. Declan e Mr. Hannigan
seguiram-na.
No solário, Keira enxotou o pai.
– Pode ficar à porta se quiser, pai, mas deve compreender que só eu posso fazer ver a Lorde
Donnelly que o seu comportamento é insuportável!
– Não iremos tolerar isto, Donnelly! – gritou Hannigan quando Keira fechou a porta.
Ela voltou-se e cruzou os braços.
– Porque está aqui? Não devia estar em África ou noutro local qualquer?
– Porque faltou ao prometido com Maloney?
Um dos sobrolhos de Keira arqueou-se.
– Perdão, mas isso não é do seu interesse.
– Ah! – fez ele. – Quando esteve em Inglaterra fez da sua vida meu interesse, mas, uma vez na
Irlanda, o meu apoio já não é necessário, não é? Não, Keira, não o irei aceitar. Porque faltou ao
prometido com Maloney? Sabe muito bem que assim que as notícias do que aconteceu em Ashwood
chegarem à Irlanda, nenhum irlandês decente irá pedir a sua mão.
– Por favor, não tente dizer-me com quem devo casar – disse Keira.
– Raios partam se não há aqui algo estranho – declarou Declan, avançando para ela. – Algum tipo
de esquema e irei saber qual é. – Estava tão perto que Keira teve de afastar a cabeça para trás para o
poder olhar nos olhos.
– Só porque procurei a sua ajuda uma vez não significa que queira ou precise dela outra vez.
Ela estava tão exasperadamente bonita. Declan agarrou-lhe os ombros.
– O que está a fazer, Keira?
– Quer realmente a verdade?
– Sim!
O seu olhar suavizou-se subitamente e desceu para a boca dele.
– Estou grávida.
Disse-o tão baixinho que Declan não teve a certeza de que ela realmente o dissera. Ficou
boquiaberto a olhar para ela. Um milhão de emoções – surpresa, medo, júbilo – começaram a
percorrê-lo ao mesmo tempo.
– Está a brincar comigo.
– É verdade – disse ela. – Faltei ao prometido porque estou grávida. – Uma lágrima solitária caiu-
lhe do olho e desceu pela face.
A notícia quase tombou Declan. Largou Keira e deu uma volta com as mãos na cabeça, tentando
absorver tudo. O seu coração e os seus pensamentos corriam loucamente. Voltou-se para ela,
olhando-a.
– Porquê? – conseguiu dizer e agarrou-lhe o braço, puxando-a para perto de si. – Porque não me
disse?
– Porque iria fazer a coisa certa e ficar ligado a mim para sempre – disse ela, empurrando-o
abruptamente com as duas mãos no peito.
Declan estava pregado ao chão. Ia ser pai. Pai! Orgulho e amor cresceram dentro dele, juntamente
com a sua ira. Keira tinha tentado ocultar-lhe o bebé. Não sabia se a devia estrangular ou abraçar.
– Pensava que eu não iria descobrir? – perguntou ele incrédulo.
– Pensava que ia estar em África – disse ela por cima do ombro. – E aí já seria tarde de mais.
– Tarde de mais! – Em duas passadas, Declan agarrou Keira pelos ombros e obrigou-a a dar a
volta. – Que direito tem de me esconder isto? – quis ele saber. – Estou para ser pai e ia esconder-me
isso? Há quanto tempo sabe?
– Eu… Eu não sabia que estava grávida até se ter ido embora, pela minha saúde – afirmou ela
seriamente. – E não lhe mandei recado porque… porque não queria ser sua obrigação Declan! Deus
do céu, não queria ser aquilo que o amarra a Ballynaheath. Não sabe isso? Se há uma coisa na vida
que quero é ser livre. Nunca conseguirei isso, mas o senhor sim, e é a única pessoa que conheço que
entende. Nunca lhe tiraria isso. Não queria ver o ressentimento a crescer dentro de si, ano após ano.
Portanto, vá-se embora, por favor, vá. Ninguém irá saber e eu não contarei a vivalma.
– Caramba, Keira… – Tomou a cara dela nas mãos. – Sabe que quase só consegui pensar em si?
Sabe que sofri por si e desprezei-a por me libertar? Eu ia-me embora da Irlanda, Keira. Estava de
partida para Inglaterra quando ouvi a notícia… que Deus me ajude – disse ele, pensando como
estivera próximo de perder aquela mulher e a sua criança. – A rapariga mais tola que já conheci. –
Beijou-lhe a têmpora, a face, a boca outra vez. Beijou-a com amor, orgulho, com a leveza de espírito
que um novo começo trazia.
As mãos de Keira apertaram-se à volta da cintura dele, agarrando-se a ele.
– Quem é o tolo, Declan? O senhor queria vida e aventura. Irá desprezar-me por forçá-lo a fixar-se
quando o que quer é voar.
Ele passou-lhe a mão pela cabeça.
– Alguma vez lhe ocorreu que, com a mulher certa, eu não voaria sozinho? Pense nisso, muirnín.
Há lugares neste mundo à espera de serem explorados. Comidas para serem provadas, estranhas
bebidas para experimentar. Poderíamos fazer isso… você e eu e os nossos filhos podíamos fazer isso
– disse ele, descansando a mão no ventre dela.
Os olhos de Keira abriram-se de surpresa. Um sorriso começou a formar-se nos seus lábios.
– Está mesmo a falar a sério?
– Nunca falei tão a sério na minha vida. Amo-a, Keira Hannigan. E agora sei que não há vida, não
há aventura, sem si.
– Oh, Declan, não consegue imaginar como isso me faz feliz. – Ela suspirou e encostou a sua testa à
dele e riu-se. – Mas entende que isso faz de si mais tolo do que eu, certo?
Podia ser, mas ele era um tolo muito feliz. Beijou-a outra vez, só que agora mais profundamente, o
seu corpo a acordar com a possibilidade de ver aquela mulher todas as manhãs, com a vida que
poderiam ter, com a felicidade que podia ser sua.
Trinta e seis

Ashwood

A polícia demorou dois dias a chegar e, quando chegou, interrogou Lily infinitamente, até admitir que
não havia muito que pudesse fazer acerca da burla de Keira dentro dos limites da lei, não com Keira
ausente e com Lily sem vontade de continuar com o assunto.
Lily pensou que esse fosse o fim do assunto, mas não foi. Descobriu que era bastante assustador ser
condessa de uma propriedade tão grande, especialmente quando havia tanto ressentimento em relação
ao que Keira tinha feito. Sabia que era olhada com suspeita. Mrs. Morton dissera-lhe que havia muita
gente em Hadley Green que acreditava que ela e Keira tinham planeado aquele esquema por alguma
razão nefasta. Mesmo que não soubessem dizer qual era a razão nefasta, isso não impedia as línguas
de se agitarem e especularem.
A única pessoa que parecia ter aceitado Lily sem problemas era a pequena Lucy Taft. Mas a
menina ansiava por Keira. O coração de Lily estava com a criança – ela também tinha ansiado por
Althea.
Declan estava certo sobre Mr. Fish – esteve presente para a guiar pelo pântano de assuntos
económicos e legais relacionados com Ashwood. Declan também estava certo relativamente a Keira
– quanto mais Lily aprendia, mais entendia o trabalho notável que Keira tinha feito no seu lugar.
Esperava poder fazer o mesmo por Ashwood.
As horas mais difíceis eram quando o dia acabava e Lily era deixada a vaguear por Ashwood
sozinha. Era uma sensação estranha ver Ashwood através dos olhos de adulto. Apesar de a mansão
ter um tamanho imponente, não lhe parecia tão grande como quando era criança. E havia quartos que
pensara serem numa ala da casa quando eram na ala oposta.
Durante a primeira quinzena, Lily vagueou pela casa, olhando para todos os quartos, lembrando-se
de algumas coisas, alguns acontecimentos, e pensando noutros, constantemente lutando com uma
memória incompleta.
Além do mais, não tinha conseguido dormir bem desde que chegara – o que Keira lhe contara sobre
a sua tia e Mr. Scott oprimia-a. As notícias de que a tia Althea podia ter tirado a sua vida eram
devastadoras. Lily não conseguia evitar sentir-se, em parte, responsável por isso. Saberia ela que
Althea e Mr. Scott tinham um caso? Tentara juntar os bocados e pedaços da sua memória para formar
uma imagem mas havia demasiados buracos, deixando demasiadas dúvidas perturbadoras. Mas
talvez nenhuma mais do que aquela que sempre a assombrara: se a tia Althea e Mr. Scott eram de
facto amantes e Mr. Scott não tinha roubado as joias… então o que lhes tinha acontecido?
Depois de quase um mês sozinha em Ashwood, Lily exultou ao receber um par de cartas da Irlanda.
A primeira era de Molly, que escrevera com carradas de pontos de exclamação e palavras
sublinhadas que a gravidez de Keira fosse talvez o maior escândalo a que Galway assistira. Molly
escrevera como se Lily, de algum modo, soubesse da novidade de Keira, o que não tinha acontecido
e a chocou e escandalizou. Mas não estava muito surpreendida. Lily conhecia a sua espirituosa prima
muito bem e sabia que a precaução nunca fora uma das suas mais admiráveis qualidades.
A segunda carta era de Keira, também ela preenchida com palavras sublinhadas e pontos de
exclamação, tudo sobre Declan O’Conner. Tinham casado rapidamente, claro, e permaneciam felizes
em Ballynaheath, longe do escândalo e a planear uma aventura a África depois de o bebé nascer, no
ano seguinte. Declan queria encontrar uns cavalos árabes para fazer criação e Keira queria ver um
camelo. Parecia impossível a Lily que os dois se tivessem apaixonado depois da história passada,
mas supôs que tivessem acontecido coisas mais estranhas no mundo.
Keira também estava preocupada com Lily. Pedia desculpa pela confusão que causara e
aconselhou-a outra vez a manter distância de Eberlin. Recordou Lily de que ele, de algum modo,
suspeitava da verdade sobre ela e tinha, de acordo com Keira, os olhos do diabo.
Mas, na maior parte, a carta de Keira estava cheia de felicidade. Lily não sentia rancor da
felicidade de Keira, mas parecia-lhe um bocadinho injusto que ela tivesse sido deixada em Ashwood
a reparar os danos que Keira tinha causado, enquanto Keira planeava uma criança e um casamento
com alguém que amava.
Isso fez Lily aperceber-se de quão sozinha estava. Tinha saudades das primas, tinha saudades de
alguém a quem pudesse chamar amigo.
Não ajudava que o conde dinamarquês Eberlin parecesse determinado a destruir Ashwood. Ainda
tinha de conhecer o homem, mas, apesar disso, ele iniciara a construção de um moinho mais acima no
rio do que o moinho de Ashwood. Lily tinha recentemente recebido uma convocatória para aparecer
em tribunal, por causa dos terrenos em questão. Com a ajuda de Mr. Fish e Mr. Goodwin, estava
preparada para lutar pelo que era seu de direito, mas era assustador enfrentar tantos desafios sem
ninguém em quem se apoiar.
O outono estava a chegar numa tarde chuvosa quando Linford anunciou que ela tinha uma visita.
Ela olhou para o cartão-de-visita, viu o nome e recuou: Eberlin. O seu primeiro pensamento foi
recusar vê-lo. O segundo foi perguntar-lhe porque estava tão decidido a destruir Ashwood.
– Mande-o entrar, por favor – disse ela e ficou em pé, alisando o seu vestido cor de vinho.
Juntou as mãos à sua frente. Quando Eberlin entrou, ela ficou pasmada com a sua aparência. Não
soubera o que esperar – algo mais parecido com um gnomo, para ser sincera –, mas não estava à
espera daquele homem forte, bonito, com olhos castanhos penetrantes e cabelo dourado. Ele era alto
e tinha uns ombros grandes, maxilar quadrado. Também havia nele algo de vagamente familiar.
– Madame – disse ele, fazendo uma longa vénia.
Tinha um sotaque peculiar que ela não conseguia localizar.
– Lorde Eberlin. O que o traz por Ashwood neste lúgubre dia?
Ele aproximou-se, os seus olhos a atravessarem os dela.
– Achei que era altura.
– Altura de quê?
Um sobrolho escuro elevou-se.
– Não é óbvio?
Lily pestanejou. Keira estava certa – ele era uma homem estranho com um olhar duro.
– Óbvio? Pelo contrário, milorde, não há nada de óbvio na sua visita ou no mal que vai trazer a
Ashwood. – Ele aproximou-se mais, estudando o seu rosto. A pulsação de Lily estremeceu e ela
sentiu-se grata pelo criado que estava à porta. Havia algo perturbadoramente familiar em Eberlin…
mas o quê?
– É tão bonita como eu pensava – disse ele, com o seu olhar a vaguear-lhe o corpo, focando-se no
seu decote e na sua boca.– Talvez até mais.
Ela sentia-se estranhamente exposta.
– Desculpe?
Ele levantou o seu olhar castanho para o dela.
– Não sabe mesmo quem sou? Ou é adepta de jogos perigosos como a sua prima?
Uma pequena trepidação forçou Lily a dar um passo atrás.
– Acabei de o conhecer, senhor.
Ele sorriu. Em qualquer outra circunstância, ela poderia tê-lo considerado um sorriso fácil, bonito,
mas havia algo de sinistro nele que fez o sangue de Lily gelar. – Talvez isto lhe avive a memória. Eu
sou o Tobin. Já se lembra de mim?
Lily ficou boquiaberta. A sua pulsação começou a acelerar. Sabia realmente quem ele era, sabia
que ele era Tobin Scott, o filho de Joseph Scott. Não o via desde o dia do julgamento, em que ele a
olhara furioso. Não reconhecera o rapaz naquele homem.
– Tobin – disse ela baixinho. – Tobin… mal posso acreditar que é você.
– Surpreendida?
Chocada.
– Sim – disse ela. – Nunca soube… nunca soube para onde tinha ido.
Ele fingiu um sorriso.
– Aqui e ali.
– E o seu nome, Eberlin…
– Ah, sim. Esse título vem de uma propriedade que possuo na Dinamarca.
– Dinamarca, mas como…
– E agora voltei a Hadley Green e a Tiber Park com apenas um objetivo em mente. Gostaria de
saber qual é?
Lily pestanejou. Achava que não queria saber.
Ele voltou a sorrir e impulsivamente tocou-lhe na face. Lily encolheu-se e Tobin hesitou, os seus
dedos na pele dela, traçando casualmente uma linha desde a face até à boca.
– Destruir Ashwood – disse ele em voz baixa.
Lily arquejou e afastou-lhe a mão.
– Fica já avisada de que não descansarei até o ter conseguido – acrescentou ele.
Olhou outra vez para Lily e depois voltou-se e saiu da sala sem mais uma palavra, deixando-a atrás
dele, embasbacada e em choque.

Você também pode gostar