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Ficha Técnica

Título original: Sinful in Satin


Título: Pecadora
Autor: M adeline Hunter
Capa: Neusa Dias
Imagem de capa: Picture Press/Fotobanco
ISBN: 9789892328430

Edições ASA II, S.A.


uma editora do Grupo LeYa
R. Cidade de Córdova, n.º 2
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© 2010, M adeline Hunter


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CAPÍTULO 1

O funeral de uma prostituta será sempre esparsamente concorrido, por muito notáveis e nobres que
possam ter sido os seus patronos.
Celia Pennifold não ficou, portanto, surpreendida com a escassez de presenças no funeral da sua mãe,
Alessandra Northrope. Compareceram principalmente mulheres, trajando conjuntos caros de bombazina
preta que ao final do dia já teriam sido descartados. Todas elas cortesãs, sabiam que Alessandra não
esperaria que usassem roupas de luto por mais que umas horas. Afinal, havia protetores que aguardavam
a sua companhia.
Estavam presentes alguns homens também. Viam-se cinco mancebos ao fundo. Pelos sorrisos
desrespeitosos e pela agitação, Celia percebeu que quatro deles faziam daquilo diversão. O quinto,
porém, parecia sofrer genuinamente pela morte da mulher linda e fascinante que se encontrava no caixão.
Alessandra recebera amiúde declarações de amor a par de ofertas generosas. Tivera a bondade de não
dar a conhecer àqueles cavalheiros profundamente comovidos que deixara de sentir necessidade de
encobrir o que fazia com sentimento.
Ora aí estava uma afirmação que podia ser feita sobre aquela prostituta em particular, pensou Celia.
Mesmo com duques a escrever-lhe poemas e jovens apaixonados a dedicar-lhe canções, Alessandra
Northrope sempre soubera exatamente quem e aquilo que era.
Bem poderia ter proporcionado à filha a mesma segurança de saber quem era.
– Cinco carruagens – sussurrou a voz de Daphne, a amiga. A observação acompanhou a toada
monótona do pastor. – Pergunto-me quem serão.
Celia reparara em todas à chegada. Alugadas e anónimas, tinham as cortinas corridas para proteger o
interior de olhos curiosos. – São patronos anteriores, presumo. Ou atuais. Homens de renome que não
querem ser vistos.
Se fossem anteriores, de que época? As possibilidades distraíram-na do ritual. Tentou não fixar o olhar
nas carruagens escuras. Resistiu ao impulso de se aproximar delas e espreitar lá para dentro para ver
exatamente quem tinha escolhido aquela maneira formal e secreta de se despedir de Alessandra.
– A sexta não traz patronos de época alguma – esclareceu Daphne. – São Audrianna e Verity que estão
lá dentro. Estão aqui por ti, Celia, mesmo sem darem a ver o rosto.
Celia apreciou o esforço das amigas. Dado que ambas haviam desposado recentemente homens de
posição social, Audrianna e Verity deviam usar de circunspeção em assuntos como este. O simples facto
de se saber que eram amigas da filha de Alessandra podia manchar a sua reputação.
Daphne, viúva e independente, não tinha marido nem um círculo social ao qual aplacar. No entanto,
também não mostrara verdadeiramente o rosto. Do chapéu preto de aba larga pendia uma quantidade
considerável de rede preta, encobrindo o seu cabelo muito claro e as faces de uma palidez perfeita.
Porém, insistira em acompanhar Celia, apesar de esta a ter aconselhado a não o fazer.
Celia perscrutou mais uma vez as cinco carruagens. Detetou pequenas frinchas nas cortinas de duas
delas e tentou esforçadamente perceber algo através das aberturas. Estavam demasiado distantes e só se
via escuridão.
A mão de Daphne tocou subtilmente na sua, recordando-lhe que devia concentrar-se nas orações.
Sentindo-se culpada, Celia prestou atenção ao momento mas não às palavras. Deixou-se levar pelas
memórias da mãe, umas boas e outras dolorosas. As mais pungentes eram as das últimas semanas. A
doença de Alessandra reunira-as após cinco anos de separação. Raivas do passado, mágoas ou cicatrizes
de pouco haviam importado durante aqueles últimos dias, tão doces.
Exceto uma.
Quando a cerimónia terminou e as mulheres se afastaram, Celia permitiu que a sua atenção recaísse
novamente sobre as carruagens. Quando passaram por si, olhou diretamente para cada uma delas, tanto
para receber as condolências do homem invisível que se encontrava no seu interior como para tentar
sentir a presença dele, na expectativa de o reconhecer posteriormente.
– Ele esteve aqui – disse Daphne depois de todas as carruagens partirem. – Tenho a certeza disso.
– Provavelmente esteve.
– Talvez me escreva. Talvez agora que ela está morta, ele se revele.
Daphne entrelaçou o braço no dela e acompanhou-a. – Sim, de facto.
– Estás só a fazer-me a vontade. Não acreditas que ele o faça.
– Não o fez até agora, por isso, não, não acredito que venha a fazê-lo.
Celia caminhou com mais determinação. – Foi cruel da parte dela não me dizer. Tenho o direito de
saber quem é o meu pai, mas ela fez pouco caso das minhas súplicas.
– Tenho a certeza de que teve as suas razões, Celia. Talvez seja melhor aceitares que tomou a decisão
mais acertada. Talvez lhe tenha permitido falecer em paz, a reserva que manteve sobre o assunto.
Celia reprimiu as lágrimas pela mulher que não voltaria a ver. – Sem dúvida que ela julgava estar a
fazer o melhor, nisto como em qualquer outra coisa que diga respeito à minha vida. Mesmo assim, nunca
conseguirei aceitar o facto de não saber o nome do meu pai.

– Não passou de conversa, claro. Uns rumores vagos. Eu nunca acreditei nisso.
– Mas outros acreditaram? – Jonathan espreitou pela frincha das cortinas. A maior parte da sua atenção
avaliava a missão que o tio lhe confiava, mas uma pequena parte permanecia alerta ao pequeno drama
que se desenrolava perto do túmulo.
– Talvez algumas pessoas tivessem acreditado. Não houve provas, apenas padrões e coincidências.
Fizeram com que os homens do poder desconfiassem numa altura em que abundavam as suspeitas,
quantas vezes sem fundamento. Daí a atual preocupação. Nenhum homem quer ver o seu nome ligado ao
dela durante aquela altura, devido aos rumores, não vá ficar injustamente mal visto.
O tio Edward transmitia-lhe a informação necessária numa voz arrastada que revelava a importância
menor que atribuía ao assunto. Deixava igualmente claro que partia do princípio de que Jonathan se
encarregaria daquela pequena tarefa, tal como se encarregara de tantas outras ao longo dos anos.
Jonathan afastou as cortinas um pouco mais. Ao pé da sepultura estava um punhado de mulheres, todas
de preto. A maior parte delas seria reconhecida por qualquer homem da cidade. Algumas eram amantes
bem mantidas, e outras eram as mais procuradas mulheres de prazer, que escolhiam os seus clientes de
entre a elite. Viviam numa pequena lua que orbitava em torno do planeta habitado pela alta sociedade, e
formava um mundo satélite até ao qual homens bem-nascidos viajavam com alguma frequência.
Nem todas as mulheres eram conhecidas do público. Duas delas pareciam estar deslocadas. Uma, alta e
esguia, permanecia invisível debaixo de véus que pendiam da aba larga do seu chapéu. A outra, loira e
mais baixa, não trazia chapéu algum.
Semicerrou os olhos para ver melhor o rosto da segunda mulher. A distância esbatia-lhe os traços mas,
sim, podia ser Celia. Estaria ali movida pelo sentimento de filha dedicada? Ou como herdeira da mãe, tal
como Alessandra planeara e tomara como certo? A sua postura era reta e orgulhosa e não parecia de todo
constrangida por se ver rodeada pelo tipo de mulheres que haviam sido as únicas amizades escolhidas
pela mãe.
– E se os rumores estivessem corretos? – perguntou ele a Edward, sem tirar os olhos da cabeça loira. –
E se eu descobrir que Alessandra teve mesmo conversas de almofada com o inimigo?
– A guerra acabou há muito. Não te está a ser pedido que investigues, muito menos que exponhas essas
coisas. Descobre apenas se ela deixou algum registo ou algo semelhante, com nomes que possam vir a
público. Traz-me o que descobrires. – Dirigiu-lhe um sorriso que constituía o único gesto caloroso que
Jonathan recebera de qualquer um dos seus parentes ao longo dos anos. – É muito simples. Alguns dias
de trabalho, no máximo.
Jonathan atendeu finalmente ao que o tio dizia. – Porquê eu, se é assim tão simples?
– Conhecia-la, não conhecias? Eras amigo dela. – A expressão de Edward permaneceu impassível,
mas Jonathan conhecia bem de mais a mente que presidia àqueles traços regulares e olhos escuros para se
deixar enganar.
– Amigos, sim. Não amantes, no caso de estar a pensar isso. Não sei os segredos dela. Também não vi
nada que desse credibilidade a esses rumores.
– Claro que não. Ainda assim, consegues movimentar-te no mundo dela melhor do que qualquer outra
pessoa, visto seres um amigo. – Edward gesticulou na direção da janela e das mulheres que estavam ao
lado da sepultura. Os habitantes do mundo de Alessandra. – Todas confiarão em ti unicamente por essa
razão. E também porque já o fazem naturalmente.
O tio aludia a um facto estranho, que Jonathan se tornara perito em explorar. Era verdade que as
pessoas confiavam nele. Por razões desconhecidas, os instintos delas diziam-lhes que o fizessem.
Escapava ao seu próprio entendimento, mas facilitava as missões que executava para Edward. Algo
ignóbeis, também, e vagamente desonrosas, por mais legítima que a causa fosse.
Não era claro, porém, o grau de legitimidade desta nova causa. Não que isso importasse realmente. Há
muito que deixara de debater estas questões. Um homem não conseguia singrar como investigador se
tomasse um partido. Fosse a executar um dever para o Ministério da Administração Interna ou a localizar
o ninho de amor de alguma esposa errante, cumpria-lhe a ele ser objetivo, se queria comer.
Espreitou novamente pela janela. Perguntou-se se daquela vez conseguiria manter-se objetivo.
Alessandra fora de facto sua amiga. Havia algo de repugnante na ideia de vasculhar a sua vida e o seu
passado. Parecia estar a traí-la.
Olhou de frente para o tio. – Seria melhor outro homem para este trabalho.
– Queremos-te a ti. Não há como prever o que pode vir a ser descoberto. Não podemos confiar num
detetive de Bow Street .
1

– Não me agrada. Seja como for, já era minha intenção regressar a França.
Edward tentou sorrir mas a sua boca acabou esticada numa linha fina, que denotava mais preocupação
do que bom humor. – Não quererás partir tão cedo. Estou a fazer progressos com Thornridge. Tenciono ir
eu próprio a Hollycroft na próxima semana para ver se os meus esforços deram fruto. Se for bem-
sucedido, quererás estar cá quando a meta for alcançada.
Fazia alusão a uma longa busca, de cuja conclusão Jonathan duvidava cada vez mais. Edward
permanecia o seu único aliado na luta pela obtenção do reconhecimento familiar que poria fim à
ambiguidade acerca da sua vida.
O tio não disse mais nada, mas pairava entre eles um velho entendimento. Edward ajudaria Jonathan se
Jonathan ajudasse Edward. Fora o tio que o recrutara durante a guerra e era ele que apadrinhava sempre
a sua ligação com o Ministério do Interior nas investigações para quais era enviado.
Normalmente, a alusão ao grande prémio faria com que Jonathan pusesse de lado quaisquer
inquietações. Naquele dia não. Não sabia bem porquê. Talvez a sensação de trair uma amiga fosse a
causa do seu desconforto. Possivelmente o engodo de Edward perdia o seu atrativo. Afinal, há longo
tempo que o isco estava já na água.
Vendo melhor, talvez fosse por hoje ter visto a filha de Alessandra. O temperamento enérgico, animado
e juvenil de Celia sempre o fizera sentir-se taciturno, sombrio e envelhecido.
A expressão de Edward ficou séria, como se visse algo que o perturbasse no rosto que tinha à frente. –
Há mais uma coisa.
– O que é?
– É possível... Não quis falar disto devido à amizade que pensas ter existido, mas há um indício de que
o ataque de que foste alvo na Cornualha está ligado a isto. É apenas um padrão que pode ser investigado;
nada mais. Nada de definitivo.
– Sabia disso e não me disse antes? Maldição! Sabe que tenho uma dívida a saldar. Se tem informações
sobre o homem que está por trás disso, quero...
– Garanto-te que é tudo muito inconclusivo. Contudo, um dos primeiros patronos dela foi um émigré,
como saberás. Conferiu-lhe estilo e educação. Há sinais de que esteve ligado a isto e temos razões para
pensar que ela continuou a vê-lo até ele morrer, há dois anos. Em privado e às escondidas.
Então os rumores encerravam uma nota de provocação. Jonathan não acreditava que Alessandra o
tivesse enviado conscientemente para uma armadilha e uma morte quase certa. Não queria pensar tal
coisa de uma mulher que quase fora uma mãe para ele.
Por outro lado, uma pessoa podia ver-se confrontada com escolhas duras neste mundo. Um agente com
missões de moralidade questionável não podia dar-se ao luxo de ter uma consciência demasiado
exigente. Isso era para si muito claro.
A cerimónia terminou. As mulheres afastaram-se, deixando a mulher loira e a amiga junto da sepultura.
– Tratas disto? – pediu Edward. – Tens de cumprir ordens, desta vez. Nada daquela independência
inconveniente que mostraste da última vez, quando foste para norte.
– Circunstâncias externas intervieram nessa altura, como saberá.
– Devias ter encontrado uma forma de afastar Hawkeswell quando descobriste que andava a meter o
nariz onde não era chamado. Devias...
– Avisei-o de que o fedor era tão grande que era inevitável que alguém o notasse. Não me culpe a mim
se foi constrangedor para o governo.
A carruagem prosseguiu por um caminho mais próximo da sepultura. Uma cabeça loira encarava as
carruagens que passavam. Quando se aproximaram, Jonathan viu o rosto adorável de Celia a uns escassos
três metros.
A criança angelical transformara-se numa mulher encantadora. Parecia conservar a mesma doçura,
embora talvez menos inocência. Olhava diretamente para a janela tapada, atestando a presença dos seus
ocupantes invisíveis.
O dia estava encoberto; à volta dela, porém, o mundo ganhava um pouco mais de vida, como se ela
exalasse um esplendor próprio.
Jonathan desviou o olhar da janela e deparou com a impaciência carregada do tio. – Sim, eu trato disto.

Celia apeou-se do cabriolé de Daphne. Ergueu os olhos para os três andares da casa de tijolo. Como a
maioria das casas daquela zona de Wells Street, parecia bem conservada. Era o tipo de habitação que
poderia albergar um mercador ou um artesão próspero.
– Parece ser um bairro decente e Bedford Square fica apenas a algumas ruas para este – comentou
Daphne. A sua inspeção não se limitara à casa. – Deve ser suficientemente segura, mesmo se ficares
sozinha durante alguns dias.
Celia tirou a mala do cabriolé. Ainda não dissera a Daphne que poderia ficar mais do que alguns dias.
Mas isso seria depois, assim que tivesse definido os seus planos.
– Ainda acho estranho a minha mãe nunca me ter dito nada acerca desta propriedade – declarou. – É
muito mais modesta do que a casa de Orchard Street. Suponho que tenha sido um dos seus patronos a
ceder-lha, para que ela a arrendasse.
Daphne desceu e atou as rédeas a um poste. – Talvez devas arrendá-la também, em vez de a vender.
– Pode ser que o faça. Não posso vender enquanto a relação dos bens não estiver concluída. Mr.
Mappleton disse que ainda podem ser apresentadas mais dívidas. Se assim for, vai escorregar-me por
entre os dedos como a outra casa, e tudo o resto.
Tirou a chave da bolsa e enfiou-a na fechadura.
– Felizmente está mobilada. Receei que acabasses a dormir no chão – comentou Daphne quando
espreitaram a primeira divisão. – Vais conseguir um preço melhor quando a arrendares, também.
Celia pousou a mala e percorreram calmamente o andar de baixo. Na parte da frente havia uma
agradável sala de estar, seguida de uma biblioteca. Ambas tinham uma mobília estofada em estado
apresentável, mesas robustas e carpetes simples mas de bom gosto. A biblioteca até dispunha de um
conjunto de livros. Examinou as lombadas e sorriu ao ver os pequenos tomos de poesia. A mãe sempre
adorara poesia e, ao aprovisionar aquela biblioteca, presumira que os inquilinos retirariam benefício do
seu próprio gosto.
Subiram as escadas até ao andar de cima, o dos quartos. O quarto da frente dava para a rua. Daphne
levantou a colcha da cama. – Tem lençóis, e parecem lavados. Aparentemente, os últimos inquilinos não
demoraram a sair. Para se adiantarem ao meirinho, talvez. Vamos fazê-la de novo, de qualquer forma,
para teres a certeza de que são limpos.
Celia encontrou lençóis num baú de vime e rapidamente deram a tarefa por terminada. Fizeram o
inventário dos outros quartos do piso e depararam com uma segunda escadaria nas traseiras da casa.
– Investigarei o sótão amanhã – declarou Celia, começando a descer. Parece estar tudo em ordem por
aqui, Daphne. E agora, já me deixas aqui sozinha mais sossegada?
– Não me opus a ficares aqui durante alguns dias.
Celia não conteve um risinho. – Não disseste nada, mas os teus olhos ficaram com aquela expressão
contida, de quando queres opor-te mas não te é dado fazê-lo.
Entraram noutra sala, de bom tamanho, com cadeiras de vime e um sofá, ao fundo das escadas das
traseiras. Tinha janelas grandes, que davam para o jardim. A vista deslumbrou Celia.
– Está virada para sul – observou Daphne. – É uma excelente divisão. Mesmo hoje, com o céu tão
nublado, há aqui uma luz agradável, e a perspetiva do jardim é revigorante.
– Suspeito que vá ser o meu sítio preferido – disse Celia. – Creio que as plantas se iam dar bem junto a
estas janelas. – A semente de uma ideia que fora plantada ao saber daquela casa começava agora a criar
raízes.
Inspecionaram a cozinha, mais abaixo, e Daphne preparou-se para se despedir. Regressaria de cabriolé
à sua propriedade, que ficava próximo de Cumberworth, no Middlesex. Daphne tinha lá um negócio, de
cultivo de flores e plantas para o mercado londrino. Durante os últimos cinco anos, fora também a casa
de Celia.
– Vamos ter saudades tuas – declarou Daphne, já a aproximar-se da porta principal. – Promete-me que
vais ter cuidado.
– É um bom bairro, Daphne. Ficarei em segurança.
– Imagino que não devesse pensar tanto como uma mãe em relação a ti. Tenho apenas mais quatro anos
do que tu. Deves achar as minhas preocupações uma tolice.
– Não és como uma mãe. És a irmã mais velha que eu sempre quis.
Ainda com algo semelhante a preocupação materna nos olhos, Daphne cruzou a soleira e desamarrou o
cabriolé. Celia ficou a ver a sua querida amiga afastar-se, com os véus do chapéu a flutuar na brisa de
inverno.
Se Daphne tinha um comportamento algo maternal era porque Celia se assemelhava muito a uma
criança quando elas se conheceram. Uma criança confusa e perdida, procurando refúgio junto de uma
estranha de quem ouvira dizer que tinha bom coração.
Fechou a porta e dispôs-se a acostumar-se à propriedade que constituíra o único legado de Alessandra
Northrope.
Bom, não era o único legado. Havia outro, caso Celia escolhesse reivindicá-lo.
1 Bow Street Runners: organização de «caçadores» de criminosos criada pelo tribunal de Bow Street, de Londres, e paga pelo governo,
considerada por alguns a primeira força policial da cidade. (N. da T.)
CAPÍTULO 2

C elia passou as horas que restavam de dia na luminosa sala das traseiras. Avaliou-a com o olhar e
imaginou-a mobilada de uma maneira muito diferente. Daquela ideia que germinava disparou um
caule suculento. Começaram a formar-se folhas.
Quando a noite caiu, retirou-se para o quarto. Não acendeu a lareira pois tencionava dormir em breve.
Acendeu uma única vela, vestiu a sua camisa de dormir mais quente, embrulhou-se em dois xailes de
malha grossa e sentou-se a olhar pela janela enquanto engendrava a utilização que daria à casa.
Confiava que quaisquer dívidas pendentes seriam reclamadas em tempo razoável. Teria de perguntar a
Mr. Mappleton, advogado e executor da mãe, quando teria a confirmação de que a casa seria realmente
sua.
As legalidades tinham de esperar, mas o resto não. Limparia a sala das traseiras no dia seguinte e
avaliaria se os planos que tinha para ela poderiam resultar. Depois iria às compras e faria provisão de
mantimentos para toda a semana, pelo menos. Quando Daphne voltasse dentro de três dias para a levar
para casa, explicaria que não tencionava regressar com ela à propriedade nos subúrbios de Londres.
Daria a notícia de que se iria lançar por conta própria e que planeava viver naquela casa que a mãe lhe
havia deixado.
Daphne não ia gostar. Ao fim de cinco anos, tinham passado a apoiar-se uma na outra mais do que a
maioria das pessoas julgaria. Chegara a altura, porém. A altura de forjar algum tipo de futuro para si
própria.
Percorreu o quarto com o olhar. As cortinas da janela e na cama pareciam novas e limpas, mas eram
feitas de simples musselina branca. A mobília possuía linhas elegantes, mas não uma talha dispendiosa.
A ausência de luxo ostensivo da casa contrastava com a outra casa de Orchard Street, aquela em que
Alessandra presidira a festas e serões e desempenhara o papel de grande senhora do demi-monde.
Celia preferia aquela, decidiu. Estava contente por não ter sido ocupada, para poder usá-la para si
própria.
Havia evidências de que os últimos inquilinos não tinham saído há muito tempo. Não havia panos a
proteger a mobília do pó. A despensa até tinha alguns secos. Quando elas entraram, hoje, o espaço não
parecera vazio. Tinha até uma atmosfera agradável. Doméstica...
Gelou. Os seus sentidos anularam todas as distrações. Perscrutou o silêncio assustador.
Sons tão subtis que poderiam nem sequer existir sussurravam pelo ar. Quis explicá-los e extingui-los,
mas o arrepio gelado na nuca não lho permitia.
Mais sons, em cima agora. Como os movimentos de um gato. Talvez tivesse entrado algum que andasse
perdido.
Os sons pararam. Permaneceu à escuta durante um bom tempo e quase se convenceu de que afinal não
ouvira nada digno de nota. Pusera grande cuidado em assegurar-se de que todas as portas estavam
fechadas. Não havia forma de lá entrar alguém.
Um passo no cimo das escadas para o sótão pregou-lhe um susto de morte. Não havia engano possível,
nem com os outros que se seguiram. Quem quer que estivesse lá em cima não tentava sequer fazer pouco
barulho. E descia as escadas que conduziam à porta do quarto.
Durante um momento terrível ficou paralisada de terror; depois a sua mente disparou. Agarrou num
atiçador da lareira fria e colou-se silenciosamente à parede que ficava ao lado da porta. Com sorte, o
intruso partiria conforme havia chegado, igualmente ignorante da sua presença. Mas, se assim não fosse...
Ergueu o atiçador, agarrando-o com ambas as mãos.
As botas chegaram ao fundo das escadas e pararam. Ela rezou para que prosseguissem, que descessem
mais um andar e depois saíssem para a rua.
Para seu horror, continuaram na sua direção. Pararam do lado de fora da porta. Ela incitou-as
silenciosamente a porem-se a andar dali para fora, pelas escadas abaixo. Desapareçam. Desapareçam.
A porta abriu-se. O coração subiu-lhe à boca. Susteve a respiração e não mexeu um músculo.
Surgiu um homem. Um homem alto, que entrou e se dirigiu para o centro do quarto. Ela viu uma casaca
escura e botas altas e o branco de um colarinho e de um plastrão. Vislumbrou um perfil, um olho escuro e
uma expressão intensa, e cabelo escuro amarrado num rabo de cavalo antiquado. Viu tudo isto numa série
de impressões douradas e difusas iluminadas pela vela distante.
Ele ficou a olhar para a vela única que indicava que não estava sozinho na casa. As suas costas ficaram
imediatamente rígidas e o estado de alerta mudou-lhe a aura. Ela reuniu coragem e avançou
silenciosamente na sua direção, preparada para usar o atiçador.
Ele desviou-se no instante em que ela desferiu o golpe, e apanhou-o com a mão. Depois, de rompante,
pegou nela também, deu meia-volta e atirou-a para a cama. Os xailes voaram e ela tombou sobre o
colchão.
Aterrorizada e ofegante, de pernas e braços abertos em cima da colcha, cravou os olhos nele. O seu
olhar de espanto era retribuído pelo olhar duro do homem, que continuava com o atiçador bem seguro na
mão.
Ela mal respirava no silêncio tenso que se seguiu. O olhar dele deslizou pela camisa de noite dela, até
à bainha dobrada que deixava a descoberto as pernas nuas.
Ele mexeu-se ligeiramente. Ela retesou-se, pronta para lutar se tivesse de ser. A mudança de posição
dele permitiu que a pálida luz da vela lhe iluminasse a face. Ela atentou ao belo rosto revelado e a raiva
substituiu-se abruptamente ao medo.
– Mr. Albrighton? O que faz aqui, a entrar sorrateiramente nesta casa e a deixar-me sem pingo de
sangue?
A expressão feroz dele desapareceu. – Peço desculpa, Miss Pennifold. Não sabia que estava aqui. Não
vi nenhuma luz ou lareira acesa. É uma altura inusitada para estar de visita à propriedade.
– Uma altura inusitada para eu estar de visita? Não tão inusitada quanto a sua presença, senhor. Afinal,
sou a proprietária desta casa. Qual é o seu motivo para estar aqui? Roubo?
– Dificilmente, Miss Pennifold. Com efeito, vivo aqui.

Mr. Albrighton colocou mais lenha na fogueira da biblioteca. Curvou-se sobre um pequeno armário e
retirou uma garrafa de licor. Serviu uma exígua porção para um copo minúsculo e levou-o Celia, que
estava sentada no sofá e embrulhada em xailes.
Ela convidara-o imediatamente a sair do quarto. Agora ali estavam, ele vestido para uma noite na
cidade e ela ainda em camisa de dormir, e muito consciente do seu desalinho.
– Não preciso de fortificante nenhum, Mr. Albrighton. Não sou nenhuma tonta que desmaia à mínima
provocação.
Ele encolheu os ombros e engoliu ele próprio o licor. Instalou-se numa poltrona próximo da lareira. A
luz desta realçava-lhe as feições e adequava-se à sensação de mistério e perigo que ele emanava,
consciente ou inconscientemente.
Celia sempre considerara Mr. Albrighton um homem irritantemente enigmático. Revelara pouco sobre a
sua personalidade nas ocasiões em que estivera nas festas da mãe. Era possível colocar a maior parte
dos homens numa ou noutra prateleira, catalogando-os segundo personalidade e intenções. Mas Mr.
Albrighton nunca fora um desses homens. Visto que nessa altura ele tinha apenas vinte e poucos anos, ela
considerara desconcertante aquela ambiguidade, e achava-o uma figura demasiado dramática.
Havia nele algo de afável, quase de intimidade, porém, o que contradizia e confundia ainda mais as
possíveis reações. A profundidade do seu olhar levava-nos a pensar que ele compreenderia as nossas
mágoas e problemas, ainda que o resto do mundo não o fizesse. Mas também havia algo que deixava
transparecer um lado sombrio e duro. Enquanto rapariga, decidira que ele era complicado de mais e
bastante perturbador. Por conseguinte, raras vezes haviam trocado mais do que cumprimentos, exceto
uma.
Agora, estava sentado naquela poltrona como se tivesse o direito de ali estar. O corpo dela ainda
estava tenso do choque da intrusão dele, mas ele recostara-se como um fidalgo rural vindo da caça às
codornizes. Além do mais, ele alegava ter realmente direito a lá estar.
Ela acreditava e não acreditava nele. Era esse o problema com Jonathan Albrighton. Nunca se sabia o
que nos reservava.
O silêncio tornou-se constrangedor. Para ela, não para ele. Ele parecia preparado para ficar ali sentado
sem o mínimo de conversação, alterando a atmosfera a seu bel-prazer, limitando-se a olhar na direção
dela, com as chamas a lançar reflexos dançantes nas suas botas brilhantes.
– Parece familiarizado com o local, é certo – concedeu ela. – No entanto, o advogado da minha mãe
disse que esta casa não tinha inquilinos; daí eu saber que mente a esse respeito.
– Primeiro chama-me ladrão, agora mentiroso. Felizmente, não me deixo insultar facilmente.
– Não espere perguntas educadas da minha parte, senhor. Tanto quanto sei, estou a falar com um
criminoso até me convencer do contrário.
– Criminoso, ora essa.
Não era claro para ela se o irritara verdadeiramente ou não. Não que se importasse muito com isso.
– Não ocupei a casa toda – disse ele. – Apenas um quarto, no sótão. Não o usei muito nos últimos anos,
mas o arrendamento foi legal, garanto-lhe, e por um período de dez anos.
Ela conseguiu acreditar na parte de não o usar muito. Tanto quanto se lembrava, ele tinha o hábito de se
ausentar da cidade. Desaparecera das reuniões da mãe por vários meses durante o ano em que Celia
vivera com ela, acabando por reaparecer, brevemente, mesmo antes de ela própria partir. Ela soube pela
mãe que ele se ausentara novamente logo a seguir.
– Já não vivia com a sua mãe quando o arrendamento foi acordado, e eu duvido que ela o tivesse
considerado digno de menção, caso tenha voltado a vê-la – acrescentou.
– Arrendou o quarto à minha mãe?
– Sim. Era apenas uma amiga, caso esteja com dúvidas.
– Não estou com dúvidas. – Só que estava, um pouco. Quem não o faria? Ele era um homem atraente,
embora houvesse nele algo de opressivo, sombrio; tinha uma figura alta, muito elegante. Alessandra não
fora indiferente à aparência dos homens e certamente apreciara a deste. – Já sabia que não era patrono
dela. Participou em algumas festas durante o ano em que vivi com ela, mas conheço os padrões da minha
mãe no que se refere a negócios.
– São os seus padrões, também?
Não detetou qualquer tom insultuoso na sua pergunta. Fê-la como se lhe perguntasse pela saúde.
Não fingiria com ele. Não fazia sentido. Ele sabia de tudo, tinha a certeza. A razão pela qual ficara na
casa de Orchard Street durante um ano e as razões pelas quais havia partido.
– Apesar de ter saído da casa da minha mãe, não contestei as lições que ela me deu sobre a vida. Os
seus padrões serão os meus, se um dia esperar alcançar sucesso e fama semelhantes na profissão dela.
Ele aceitou o que ela disse, como se, de facto, discutissem apenas a sua saúde. O rosto dele, amigável
na sua expressão, apesar de a luz do fogo lhe fazer sobressair a dureza elegante dos traços bem
desenhados e os olhos fundos, não mostrou reação. Não obstante, ela sentia emanar dele um interesse
intenso e aquela sensação de intimidade que ele provocava, convidando-a a confidenciar-se.
Ela agitou-se em resposta ao seu olhar direto. Não havia como confundir os pequenos formigueiros de
excitação. Não eram diferentes das reações que ele lhe provocava quando era mais nova, e continham
igualmente a mesma nota de perigo e medo.
Nessa altura ela fora jovem de mais para compreender o que tudo aquilo queria dizer. Presumira que as
reações sensuais requeriam a provocação de beijos e elogios e declarações de amor. Só com a
maturidade fora capaz de reconhecer o poder da subtileza, da distância, e até do silêncio naquelas coisas.
Reconhecia-o nele, também. Alessandra ensinara-lhe lições importantes para ser capaz de o ver,
mesmo quando oculto. A sua profissão dependia da capacidade de reconhecer o interesse de um homem,
mesmo quando ele não o admitia si próprio.
Ela insistiu no único tópico que interessava e tentou ignorar a consciência mútua que se instalara entre
eles, e como isso transformara a luz, o ar – tudo.
– Então tinha um quarto lá em cima, diz-me o senhor. Para quando escolhesse utilizá-lo, o que não
acontecia com frequência nos últimos anos. Quem vivia no resto da casa?
– Alessandra. Não sabia disso?
Não, não sabia.
– Retirava-se para esta casa quando se fartava do jogo – continuou ele. – Por poucos dias, a maior
parte das vezes. Chegavam a ser algumas semanas no final do verão, quando a cidade se esvaziava.
Celia olhou-o, furiosa. Desagradava-lhe a calma com que ele lhe transmitia a novidade desta parte
secreta da vida da mãe. Aquele homem sabia mais sobre a sua mãe do que ela própria. Achava aquilo
indecoroso e injusto. Porque haveria um homem que quase nunca estava em Londres, que nem sequer era
um amante, de partilhar uma parte da vida de Alessandra que a própria filha não conhecera?
Procurou controlar o seu temperamento. A raiva que sentia era a dor a falar, supunha. E alguma culpa e
arrependimento também. Não vivera com Alessandra tempo suficiente para aprender tudo, afinal. A sua
infância fora vivida no campo, não ali, e só se mudara para a cidade aos dezasseis anos. O tempo que
passaram juntas fora muito breve.
– Quero ver o documento que atesta que arrendou o quarto de lá de cima.
– Está no fundo do meu baú. Trago-lho assim que conseguir.
– O seu baú não está lá em cima?
– Só regressei recentemente à cidade. Deixei o baú com amigos e ainda não fui buscá-lo.
– Se esta é a sua casa de Londres, porque deixaria propriedade sua com os seus amigos? Parece-me
que inventou uma farsa julgando que sou estúpida ao ponto de acreditar que é tudo verdade. Não acredito
que tenha vivido aqui. Não me parece que ela o tenha feito também. Julgo que terá vindo espiar alguma
coisa esta noite e está a inventar uma mentira para eu não passar informação ao magistrado.
– Há alguma coisa que valha a pena espiar? Não imagino o que pudesse ser. Eu diria que a vida da sua
mãe era um livro aberto. Mais do que a da maior parte das mulheres.
O seu sorriso, breve e encantador, distraiu-a o suficiente e ela quase não reparou que ele não negara
nada. Agora que se recordava, Mr. Albrighton tinha o talento de dissimular com a maior das elegâncias.
Tinha uma maneira de não responder a perguntas, esquivando-se tão astuciosamente que quase passava
desapercebido.
– Visitou também a casa de Orchard Street ultimamente? – inquiriu ela.
– Não tenho direito a entrar naquela casa. Porque pergunta?
Mais uma vez, não negara.
– Esteve lá alguém, talvez hoje durante o funeral, ou antes. Visitei a casa com o executor esta tarde,
depois do funeral. Os papéis dela estavam demasiado arrumados. Nunca vi as gavetas da minha mãe tão
impecáveis.
– O mais provável é o advogado tê-las organizado para fazer o inventário. Os advogados são tipos
arrumados por natureza.
Foi uma boa resposta, mas errada. Mr. Mappleton ainda não tinha passado a propriedade em revista
quando ela reparara naquilo, e até fora ele a mencionar os documentos que faltavam. Ela duvidava,
porém, que Mr. Albrighton admitisse alguma vez ter entrado ilegalmente naquela casa, mesmo que o
tivesse feito. Tão-pouco, concedia ela, teria razões para o fazer.
A sala aquecera durante a conversa. Ela desejou poder desembaraçar-se de ambos os xailes. Optou por
tirar um deles com cuidado, certificando-se de que o outro a cobria o suficiente.
Ele observou, com a mesma placidez de sempre. Aquele olhar fê-la sentir-se como se tivesse acabado
de fazer algo escandaloso, arriscado e deliberadamente provocador.
– Mr. Albrighton, pode ter feito o arrendamento que alega, mas não pode ficar. Eu própria estabeleci
residência aqui e não quero a intrusão de um inquilino, do sexo masculino, para mais. Com certeza
compreende e concordará comigo.
– Compreendo, suponho, mas não concordo. Como disse, fiz um arrendamento, pago antecipadamente.
– Eu restituo-lhe os anos que faltam. – Não acreditava que fosse muito dinheiro. Não gostaria de retirar
qualquer quantia das suas poupanças.
– Não quero que me restitua dinheiro algum. Quero ter um pied-à-terre em Londres e foi nesse sentido
que cheguei a acordo a respeito deste com a proprietária de uma casa sossegada, numa rua sossegada.
Para meu uso quando estou na cidade. E agora estou na cidade.
– O senhor é uma complicação indesejada.
– Não preciso da sua aprovação, só da minha cama.
– Certamente que se considerar o assunto da minha perspetiva, compreenderá que não posso ter...
– Mal se dará conta de que aqui estou. Uso a entrada do jardim e subo pelas escadas das traseiras. Não
preciso de grandes cuidados e sou muito discreto. Atrevo-me a dizer que a maior parte dos vizinhos
nunca me viu.
– Seguramente que alguns o terão visto.
– É comum o bastante arrendarem-se quartos numa casa deste tamanho, neste bairro. Não afetará a sua
reputação, se é esse o seu receio. A minha presença no andar de cima não significará nada mais do que
significava quando a sua mãe residia aqui.
Deveria subentender que a sua presença não poderia manchar a reputação de uma mulher
irremediavelmente caída em desgraça por ser filha de Alessandra? Dificilmente poderia censurá-lo se
era isso que queria dizer. Era a pura verdade, e, com a morte da mãe, mesmo vivendo na obscuridade da
casa campestre de Daphne, a fama conseguira encontrá-la.
– Se bem me lembro, as suas visitas a Londres não costumam ser demoradas. Se eu concordar, ficará
muito tempo na cidade desta vez?
– Conto ficar quinze dias no máximo. E a menina... Ficará muito tempo a residir aqui ou regressará ao
sítio onde morava anteriormente?
– Planeio ficar permanentemente. Tenciono montar um negócio aqui.
– Vai viver sozinha?
– Conto ter outras mulheres a residir aqui no espaço de uma semana, aproximadamente. A privacidade
e o sossego que tanto deseja pertencerão ao passado se continuar aqui. – Ela tentou parecer muito
mundana, para incentivar a que ele ouvisse mais nas entrelinhas do que ela realmente dizia. – Conto ter
muitas visitas, também. Poderá haver bastante barulho, mesmo no sótão. Especialmente à noite.
Seguramente que as alterações não lhe agradarão.
Olhando-a, ele deixou que as insinuações pairassem longamente no ar. Ela acreditou que ele concluía o
pior sobre o tal negócio e que viver ali seria horrível, e escandaloso de mais.
– Não era isso que ela queria para si – declarou ele por fim. – Embora possa imaginar que um negócio
desses seja mais prático, e tenha potencialmente mais garantias. Quando tenciona começar?
– Em breve. De tal forma que nem lhe vale a pena desperdiçar o seu tempo a voltar a instalar-se. A
opção sensata seria...
– Interpreta-me mal. Pergunto-me se esperar pelo dia atrasará muito a minha partida.
– Atrasar? Julgaria que a informação de um desenvolvimento tão premente o levaria a partir, não a
ficar.
– No entanto, dado o seu plano, sinto-me tentado a deixar-me ficar pelo menos até ao lançamento do
seu novo empreendimento. O que provavelmente terá algo a ver com o encanto dos seus pés a
espreitarem por debaixo da bainha da sua camisa de dormir.
Ela escondeu-os rapidamente debaixo da camisa, mas os seus pés pouco tinham a ver com aquilo.
Nunca contara que aquele homem fosse tão audaz a anunciar o seu interesse. Mas fora-o, e agora ali
estavam, numa sala que quase tremia com a força da energia que fluía entre um homem e uma mulher.
Sentiu-se subitamente muito pequena. Pequena e vulnerável, e despida por aquele olhar misterioso.
Pôs-se em pé, para pelo menos ter liberdade de movimentos. Para correr, se necessário, embora
duvidasse que ele fosse perigoso nesse sentido.
Infelizmente, ele também se pôs em pé. Ela envolveu o corpo com o xaile como se fosse uma armadura
e tentou parecer formidável. Que trapalhada tinha arranjado.
– Tal como expliquei, Mr. Albrighton, mantenho os padrões da minha mãe no que respeita ao
nascimento e à riqueza de um homem.
Ele caminhou à volta dela, demasiado descontraído para seu gosto, tão alto quanto ameaçador. Ela não
parava de se virar para conseguir vê-lo. Ele acabou por se deter não muito longe dela, perto de uma
parede. Deixou-se encostar informalmente sobre o ombro e assumiu uma postura muito descontraída.
– Se procura alcançar fama e sucesso semelhantes, como disse. Acaba de apresentar um caminho
menos ilustre para a profissão. Ou compreendi mal?
Estaria a provocá-la? A querer desmascará-la? Suspeitava que sim, mas não tinha a certeza. E em parte
não conseguia tê-la porque ele estava a deixá-la inquieta, a pôr-se assim tão perto, com um olhar
acolhedor, convidativo e familiar que quase a incitava a confidências íntimas. Mr. Albrighton era
demasiado controlado para se permitir olhares lascivos ao abordar tal tópico. Ela preferiria que ele o
fizesse, porém. Assim, poderia pô-lo no lugar dele.
Tentou assumir uma certa pose de altivez, tal como a mãe fazia quando era confrontada.
– Independentemente do caminho que escolher, e da profissão, continuaria a ser uma presença
desadequada. Deixar-se ficar não lhe trará nada – declarou ela.
– Estou em desacordo. Deixar-me ficar, agora, durante uns meros cinco minutos, já me trouxe alguma
coisa.
– Não vejo o que possa ser, além do meu agastamento consigo.
– Não vê? – Ele sorriu com tanta subtileza que ela se perguntou se o teria imaginado. Ele afastou-se da
parede. Foi a custo que ela se manteve firme e dissimulou o efeito do medo, que lhe acelerava a
respiração. Não, não era medo. Era excitação.
– Deu-me a prova de que deixar-me ficar durante mais tempo me poderá trazer mais resultados,
independentemente da minha adequação ou desadequação. – Ele aproximou a mão de repente e pousou-
lhe dois dedos nos lábios. Ela quase desfaleceu. Sentiu os lábios pulsar com o contacto. – Não é tão
sofisticada que as suas reações não transpareçam, Miss Pennifold, e eu vejo mais do que agastamento.
Cavalheiros poderá haver que não especulem sobre as possibilidades presentes nesta sala esta noite, mas
eu não sou assim tão virtuoso.
Aquela tensão especial aumentou ainda mais com as palavras dele. Ele acabava de reconhecer, sem
rodeios, aquilo que ela julgara melhor ignorar. Os seus olhares cruzaram-se por cima do braço esticado
durante tempo de mais. Ela temeu que ele estivesse correto e que ela não tivesse sofisticação bastante
para esconder a sua agitação interior.
A mão dele baixou. Sorriu, para si próprio, desta vez. – Vou deixá-la agora. Trancarei a porta do
jardim antes de subir. Durma bem, Miss Pennifold.
CAPÍTULO 3

A suspeita de Celia de que alguém tivesse andado a inspecionar a outra propriedade de Alessandra
não era boa notícia para Jonathan. Nem o anúncio de que tencionava viver naquela casa, por muito
que se houvesse deleitado com o pequeno despique da noite anterior. Ainda procurava avaliar de que
forma ambas as revelações afetariam os seus planos, quando se levantou no dia seguinte.
Jonathan entrara de facto na casa de Orchard Street, antes de regressar àquela. Vira a arrumação a que
Celia aludira. Se ela estava correta, e a outra casa já tivesse sido inspecionada antes de qualquer um dos
dois a examinar, poderia haver um rival à procura da mesma informação que Edward. E esse rival
poderia não ter a mesma boa intenção de garantir que o passado de Alessandra não era revelado.
Qualquer idiota que tivesse como objetivo chantagear os patronos dela poderia arriscar uma entrada
ilegal para procurar algo que documentasse o envolvimento.
Ou – e ele não queria pensar naquilo, mas tinha de considerar a possibilidade – poderia realmente ter
havido atos de traição, e o homem envolvido precisava de ter a certeza de que Alessandra não deixara
provas que apontassem para ele.
Jonathan pensou na loira encantadora que dormia no andar de baixo. Homens desesperados faziam
coisas desesperadas. Se se desse o caso de Celia deparar com algum intruso que viesse à procura de
provas escondidas, ou se alguém concluísse que sabia demasiado sobre as diligências da mãe, ela
poderia estar em perigo. Ainda bem que ele ficaria ali a viver, então. Ela podia não querer a sua
proteção; no entanto, poderia ser-lhe necessária durante algum tempo.
Havia uma razão diferente que podia justificar o interesse de outra pessoa pelos papéis de Alessandra.
Podia ser alguém a procurar garantir que o próprio Jonathan não encontrava provas que o conduzissem
num caminho de vingança por causa dos acontecimentos na Cornualha, cinco anos antes. Era evidente que
ele seguiria essas provas até onde quer que elas conduzissem, caso as encontrasse.
Tornou-se sombrio como sempre acontecia quando se lembrava daquele desastre e do seu desfecho
fatal. Hoje era pior porque imagens vívidas daquela noite lhe tinham acorrido num sonho acordado, sem
dúvida provocado pela alusão que Edward fizera na carruagem. Aquela traição falhara o seu alvo, tendo
causado sim a morte de um rapaz inocente ao qual ele pagara alguns tostões para o guiar por uma parte
desconhecida da costa.
Já matara o suficiente na vida. Vira outros morrer também, alguns camaradas. Nada o preparara,
porém, para levar aquele rapaz para casa, à sua mãe, e ver uma dor tão profunda que ficava indiferente à
identidade do culpado.
Mas alguém ainda tinha de responder por aquela noite. Queria lá saber se encontrava uma lista dos
amantes de Alessandra, ou se mais alguém o fizesse e a publicasse. Concordara com aquela pequena
missão em seu próprio interesse, e pela hipótese improvável de poder finalmente acertar contas antigas.
Quanto a Celia, aquela propriedade também necessitava de uma busca exaustiva, mas dificilmente
poderia fazê-lo debaixo do nariz dela. Na noite anterior, passara rapidamente em revista a maior parte
das divisões do sótão, mas uma encontrava-se fechada à chave. Agora não podia forçar a entrada do
quarto do outro lado do corredor sem que Celia adivinhasse facilmente quem o tivesse feito.
Não encontrou água à porta do quarto quando a abriu. Também lhe pareceu improvável que a sua
senhoria lhe tratasse da roupa de quarto. Celia não se esforçaria por o acolher em sua casa, fossem quais
fossem as possibilidades latentes da noite anterior. Estimou que não seria apenas desejo de lhe causar
transtorno que estaria em jogo.
Jonathan não sabia onde ela estivera nos anos que se seguiram à saída da casa da mãe, mas nada nela
dava a entender que se tivesse iniciado na atividade. Existia a possibilidade de Celia nada saber sobre o
governo de uma casa.
Entregue a si próprio, desceu pelas escadas dos criados. Não lhe chegou som nenhum aos ouvidos
quando passou o segundo piso, onde ela tinha o seu próprio quarto, nem quando continuou a descer. Só
quando chegou ao fim da escada é que a viu, sentada na luminosa sala das traseiras com um bloco de
desenho no colo, muito concentrada nas janelas e no espaço e no que desenhava.
Trazia um vestido de suaves tons primaveris. Em conjunto com o cabelo e a pele clara, iluminava a
sala como um raio de sol. Ela parecera-lhe linda à luz da fogueira na noite anterior, mas agora a visão
deixava-o sem fôlego.
Seria um desperdício como alcoiceira de um bordel. Ele acreditava que as insinuações que ela fizera
naquela última noite tinham sido apenas mais uma tentativa para o incitar a sair, mas não podia ter a
certeza.
Ela sobressaltou-se quando ele a cumprimentou. Os seus olhos azuis escrutinaram-no da cabeça aos
pés mas não reagiu ao seu aspeto pouco cuidado. Uma vez que não era por culpa dele que não se
barbeara e trazia pouco mais do que camisa e calças, era mais do que justo. Ele não conseguia, porém,
deixar de recordar a rapariga angelical que vira na outra casa da mãe, e de imaginar as lições que
Alessandra lhe deveria ter ensinado durante aquele ano. Esconder qualquer sinal de agitação quando um
homem se apresentava assim fora provavelmente uma delas.
– Vim buscar água para me lavar. – A desculpa soou estúpida aos seus próprios ouvidos. O facto
tornar-se-ia suficientemente óbvio quando regressasse do jardim com um balde.
– Estava à espera que eu lha levasse lá a cima? – O tom de voz dela deixava transparecer curiosidade
genuína.
– Claro que não. Não é nenhuma criada.
– Pois não. Muito menos sua criada.
– A roupa de quarto, contudo, costuma ser disponibilizada quando se arrendam quartos individuais. –
Ele pensara adiar aquela queixa, mas o tom ressentido dela espicaçara-o um pouco. – Disse que não
precisava de grandes cuidados, mas não deixo de precisar de lençóis.
Ela limitou-se a olhar para ele e voltou ao desenho. Ele foi ao poço e tirou a água. Água fria. Levou-a
para dentro, tentando decidir se suportava o frio ou gastava o tempo necessário para a aquecer na lareira
do quarto.
– Vai sair hoje? – A pergunta dela apanhou-o a subir as escadas.
– É provável. Dentro de uma hora, durante algum tempo.
– Bom. – Comentou ela, sem levantar os olhos do desenho.
Aquele «bom» ausente e desdenhoso fê-lo reagir. Pousou o balde e atravessou a sala até conseguir
olhar para o desenho por cima do ombro dela.
Mostrava a própria sala, com uma boa perspetiva, dotada de prateleiras perto das janelas e tabuleiros
baixos no chão.
– Herdou o talento da sua mãe – declarou ele, enquanto o olhar lhe descia para a forma intrincada
como ela arranjara o cabelo. O ângulo da cabeça deixava à vista minúsculos fios errantes, como
pequenas penas abertas sobre o seu pescoço elegante. Estava tão perto que conseguia sentir o seu aroma
a lavanda, assim como fazer oscilar aqueles fios minúsculos quando expirava.
O lápis dela deteve-se na folha. Olhou para cima, tão rápido que foi impossível não notar que os olhos
dele já não se detinham no desenho, mas nela.
As faces ruboresceram-lhe, mas não em demasia. Olhou-o nos olhos por um instante. Aquele olhar ágil
e penetrante reconheceu aquilo que ele estava a fazer, e porquê, e não revelou perplexidade nem
desilusão. Por isso, tal como na noite anterior, ele não tentou esconder o seu agrado e o seu interesse
como normalmente faria.
A sua mente começou a apresentar-lhe múltiplas possibilidades. Agradáveis. Eróticas. Era complicado
de mais, porém. Ela era linda e desejável, e o interesse era mútuo – isso era certo – apesar da sua fingida
indiferença. No entanto, seguisse o caminho da mãe, ou estabelecesse de facto um bordel, ou apenas
vivesse em virtuoso isolamento, ela não era para ele.
Celia voltou a debruçar-se sobre o desenho, como se tivesse chegado à mesma conclusão. – Conhecia-
la bem, se sabia que ela tinha talento para a arte. Eu própria só me apercebi nos últimos meses em que
vivi com ela.
– Um desenho é suficiente para se saber se existe talento.
– E só viu um dos dela? Ou viu mais?
Ele hesitou. Era versado em revelar tão pouco quanto possível sobre a maior parte das coisas,
especialmente se elas interessavam a mais alguém e tinham a ver com as suas missões. Comentários
triviais podiam vir a prejudicá-lo e a arranjar-lhe problemas.
– Ela desenhava e pintava quando vinha para aqui – esclareceu ele. – Por isso vi mais alguns ao longo
do tempo.
– Estão cá? Esses desenhos?
– Penso que sim.
Ela olhou para a sala e também na direção dos quartos, que não conseguia ver dali. – Talvez os
encontre, quando tiver tempo para investigar o conteúdo desta casa. Primeiro, todavia, devo atender a
outras coisas. Como esta sala.
Ele quase lhe perguntou pelos planos que tinha para a sala, com aquelas prateleiras todas. Em vez
disso, regressou ao balde e subiu os degraus.
Investigar. Que palavra estranha para ela usar. Fosse qual fosse a razão para aquele tipo de diligência,
seria avisado da parte dele certificar-se de que investigava primeiro.

Ouvia-se o som das botas nas escadas, cada vez mais fraco, à medida que Mr. Albrighton se afastava,
com a água, para o quarto.
Celia esperara que ele, constatando que ela não faria nada em prol do seu conforto, decidisse mudar-se
para algum sítio onde pelo menos lhe fossem proporcionados serviços básicos. Em vez disso, não
pareceu importar-se de tratar dele próprio naquela manhã, e continuara a mostrar mais interesse por ela
do que era aceitável. Também encetara deliberadamente conversa com ela, como se quisesse provar que
podia.
Suspeitava que se fosse demasiado óbvia nos seus esforços para o incitar a sair ele pudesse ficar
deliberadamente. Poderia decidir que se tratava de uma competição que ele, evidentemente, tinha de
ganhar.
Provavelmente não ganhara nada em ter sido rude para com ele naquela manhã, e talvez o tivesse
deixado ainda mais firme no seu plano de se demorar por lá. Talvez se impusesse um pouco mais de
subtileza.
Ela não gostava de ser mal-educada e, suspeitava, nem sequer tinha tido muito sucesso. Seguramente
não mantivera a pose depois de ele entrar na sala. Mas também era difícil agir como se uma pessoa não
existisse, se essa pessoa nos acelerava o coração quando se punha mesmo ao nosso lado, e a sua simples
respiração nos provocava arrepios deliciosos nas costas.
Ela imaginou-o lá em cima, à espera que a água fria aquecesse num quarto pequeno do sótão. Há quanto
tempo estaria a usar o quarto naquela sua estadia em Londres? Não muito, parecia-lhe, se nem sequer
tinha lençóis para a cama nem toalhas.
Pousou o esboço e subiu ao seu próprio quarto. Abriu o baú de vime da roupa branca e retirou alguns
lençóis e toalhas. De qualquer forma, precisava de proteger o colchão que lá estava. Tão-pouco o queria
a pingar água no chão. Fornecer-lhe roupa branca não era bem o mesmo que aceitar a sua presença
naquela casa, ou fazer de criada dele. Se o fizesse viver como um prisioneiro, aquele quarto acabaria por
ficar tão fétido quanto a cela de uma prisão.
Não subiu em bicos de pés as escadas que levavam ao sótão, mas tentou não fazer barulho. Deixaria a
roupa à porta e partiria antes de ele perceber que estava lá.
O sótão tinha um corredor comprido. Um dos lados tinha três portas, o outro duas. Três das portas
estavam abertas. Ficou atenta a algum som que pudesse vir delas.
Nada. Avançando silenciosamente, dirigiu-se para o fundo do corredor, onde se viam duas portas, uma
em frente da outra. Ao passar pelas portas abertas, olhou para dentro. Todos os quartos estavam
mobilados com camas e armários simples. Se ela decidisse que queria mais inquilinos, havia espaço
suficiente para os ter.
Aproximou-se do cimo das escadas das traseiras. Ao fazê-lo, reparou que uma das portas afinal não
estava totalmente fechada. Um pequeno fio de luz escapava-se para o corredor, indicando que se
encontrava entreaberta. Saía ar frio do quarto, também. Barulho não, contudo. Nem movimento.
Inclinando a cabeça, espreitou para o quarto. Por um brevíssimo instante, o seu olhar incidiu na janela
e numa secretária com papéis e livros amontoados. A seguir, Mr. Albrighton absorveu completamente a
sua atenção.
Estava de costas para ela, virado para a janela, nu da cintura para cima e com o cabelo ainda por
amarrar. Ela seguiu a linha afunilada dos ombros às ancas, rendida à força delineada e esguia que as
roupas escondiam.
Ele tinha os braços estendidos, retos, um para cada lado. Em ambas as mãos segurava um livro enorme
e pesado. O esforço de os segurar daquela forma era visível. Os músculos, com a tensão, haviam
assumido formas masculinas maciças e definidas, e dir-se-ia que era obra de um escultor, de tão
perfeitos. As mãos faziam prova de uma força fascinante na sua reação ao peso que suportavam.
Ela esqueceu-se da intenção de deixar ficar a roupa e desaparecer dali. Esqueceu tudo, e ficou a olhá-
lo, fascinada. Há quanto tempo estaria ele naquela posição? Quanto tempo mais tencionaria continuar? Os
livros deviam estar a tornar-se mais pesados a cada momento que passava. Eram de bom tamanho e
tinham provavelmente perto de dez quilos cada um, para começar.
Ele ergueu lentamente os dois braços até os livros se tocarem por cima da cabeça. Depois, lentamente,
dolorosamente, voltou a baixá-los.
Os músculos dos ombros e dos braços retesaram-se, procurando resistir. Depois os das costas e até,
visivelmente, os das coxas. Mesmo com a janela aberta e o frio a entrar, tinha a pele reluzente de suar.
Tinha um aspeto magnífico. Mesmo belo. Ela sentiu uma comoção profunda, que a brisa fria não
conseguia aplacar. Ondas de excitação agitavam-se dentro dela como cordas de um instrumento que
fossem tangidas com malícia.
Ele levantou os livros mais uma vez. Iniciaram a sua descida. Desta vez não pararam, continuando a
desenhar um arco até ao nível das coxas.
Ele voltou-se.
Viu-a, claro. Ela mudara de posição para conseguir ver melhor através da abertura. Olhou diretamente
para Celia e tornou-se claro que soube que ela estivera a observá-lo. E porquê. Viu uma satisfação
perigosa nos seus olhos, e a constatação alarmante do deslumbramento dela. Ela praticamente o ouvia a
debater-se acerca do que fazer.
Celia esqueceu-se de ficar constrangida. Esqueceu-se de como se falava. Limitou-se a ficar ali
especada, com as toalhas na mão, a olhar para ele, porque não conseguia olhar para outro lado. O peito
dele exibia a mesma força e, mesmo agora, já sem o peso dos livros, o seu corpo mostrava aquelas linhas
tensas e fortes.
– Pode entrar – disse ele. Deixou cair os livros na cama. Ela viu que pelo menos tinha um cobertor. – É
sua propriedade.
– Eu... Eu trouxe umas... – Levantou os braços.
Ele não fez qualquer esforço para se aproximar e tirar a roupa das mãos dela. Limitou-se a ficar ali
parado, meio nu, a observá-la para ver se ela... O quê?
Ela conseguiu dominar-se e fingir maior compostura do que sentia. Entrou e deixou cair a pilha de
roupa na cama.
– Terá de ser você mesmo a fazê-la, contudo.
– Claro.
Agora devia ir embora. Correr sem olhar para trás. Só que ele estava apenas a alguns centímetros e,
Deus do Céu, era coisa digna de se ver. Parecia-lhe que imobilizara com uma espécie de poder invisível
que lhe sugava a capacidade de comandar as pernas.
Fingiu examinar o quarto, como proprietária que era, mas nunca o corpo dele lhe saiu da mira. Mais
uma vez reparou naqueles livros e papéis todos. Desta feita também viu as pistolas. Três, alinhadas em
cima da mesa, juntamente com os utensílios para as limpar. Para que precisaria um homem de três
pistolas prontas a disparar?
Ele reparou no interesse dela. – Não estão carregadas.
– É uma boa notícia, acho eu. Julguei que talvez pensasse matar alguém.
– Hoje não.
Estava a provocá-la. Esperava ela. Ou talvez não.
Ele percebeu que ela se questionava. – Não sou perigoso para si.
Ainda estava tão agitada que lhe respondeu sem quaisquer rodeios. – Não é? Eu acho que sim.
– Imagino que seja. – Indicou as pistolas. – Mas não desta maneira.
Não, não daquela maneira. Esforçou-se por se libertar do domínio dele, para que assim ele talvez não
representasse um perigo para ela, de nenhuma maneira. Era como subir a pulso por uma corda oscilante,
uma mão atrás da outra.
– Devia ter posto uma camisa quando me viu – admoestou ela.
Ele deu alguns passos em frente. Ela teria fugido se se conseguisse mexer. Sentiu os dedos dele no seu
queixo. Dedos firmes, um pouco ásperos, segurando-a, e aqueles olhos negros perscrutando os seus.
Demasiado profundos. Repletos de intimidade e de uma consciência apurada, lançavam um isco subtil
mas implacavelmente sedutor.
– Passou um ano na casa de Alessandra. Não é nenhuma inocentezinha. Não espere que me ponha com
cerimónias, como se o fosse. Não espere que a trate como uma criança ignorante em vez de uma mulher
desejável.
As faces dela estremeceram ao contacto da mão dele. Arrepios percorreram-lhe a pele até ao pescoço.
Ela só conseguia procurar os olhos dele, aqueles olhos negros tão próximos dos dela. Ele ia beijá-la,
tinha a certeza. Devia recuar e afastá-lo. Devia...
A mão dele afastou-se. Ele dirigiu-se para a lareira e pegou no balde de água. – Pode ficar se quiser.
Ou pode fugir se acreditar que é o que deve fazer.
Verteu a água para a bacia. Olhou para ela por cima do ombro. – Devo avisá-la, porém. Se ainda aqui
estiver quando eu terminar de fazer isto, não sairá tão cedo.
Ela conseguiu encontrar uma réstia de bom senso e foi-se embora. Não atempadamente, porém. Não
antes de ver o pano encharcado que ele usou para humedecer a pele e derramar fios de água que
serpenteavam de forma sensual sobre os seus músculos.

O «bom» com que Celia reagira quando ele anunciara que tencionava sair levou Jonathan a concluir
que a sua investigação pessoal teria de aguardar por outro dia. Presumiu que estava satisfeita por ele sair
de casa porque ela tencionava lá permanecer.
Ela poderia não desejar qualquer outro contacto com ele, se continuasse a mostrar tanta inclinação para
a seduzir. Aquilo não fazia parte de nenhuma estratégia engenhosa da parte dele, porém, por muito que
quisesse dizer a si próprio que sim. Na verdade, os avanços haviam sido impulsos que nada tinham a ver
com a sua missão, ainda que, em última análise, pudessem vir a auxiliá-la.
Quando seguia a cavalo para oeste, uma hora depois, descobriu que avaliara mal as intenções de Celia.
À sua frente viu um cabriolé com um cavalo alazão. A mulher loira que o conduzia trazia um vestido da
mesma cor suave que o de Celia, coberto por uma peliça lilás.
Não trazia chapéu ou touca, apesar do tempo agreste. Em vez disso, os seus caracóis dourados tinham
sido habilmente arranjados num estilo que também o remeteu para aquela manhã.
Abrandou o passo do cavalo e seguiu-a, perguntando-se onde ela iria, sabendo apesar disso que devia
regressar imediatamente a casa e aproveitar a ausência dela. No entanto, aquele cabelo e aquelas costas
prenderam a sua atenção. Admirou o aprumo da figura dela e aproveitou os vislumbres secretos que
roubava ao seu rosto sempre que a carruagem fazia uma curva.
Ela prosseguiu por ruas secundárias, acabando por enveredar por umas estrebarias a oeste de Hanover
Square. Ele não entrou e ficou a vê-la parar a carruagem, entregar as rédeas a um homem e desaparecer
num jardim.
Passou com o cavalo pelas estrebarias até onde ela parara. O jardim em questão surpreendeu-o.
Conhecia aquela casa muito bem. Não era um sítio onde esperaria ver a filha de Alessandra ser recebida.
– A espiar-me, Albrighton?
A pergunta surgiu ao mesmo tempo que o homem saiu da cocheira do outro lado das cavalariças. Vinha
a limpar as mãos a um lenço e os seus olhos azuis profundos olharam com expetativa para Jonathan.
– Se algum dia te espiar, Hawkeswell, tu nunca saberás.
– Confias de mais na tua subtileza. Que raio fazes nas traseiras da minha propriedade?
Era uma daquelas alturas em que quanto menos dissesse, melhor. – É um atalho.
O conde de Hawkeswell sorriu, o que de pouco serviu para moderar a expressão crítica dos seus
olhos. – Agora confias de mais na minha estupidez. Já que não perguntaste porque fiz as vezes de
cavalariço com aquela carruagem, em vez de deixar isso a um criado, presumo que saibas quem segurava
as rédeas. A razão desta discrição excessiva não é o que possas pensar.
Jonathan ficou profundamente irritado com o pressuposto de Hawkeswell de que qualquer pessoa
julgaria que a visita de Celia se destinaria à pessoa do conde.
– Não teci consideração alguma a respeito do assunto – declarou sem rodeios, depois de dominar o
mau génio. – Estava apenas de passagem, asseguro-te.
– O tanas que estavas. – Hawkeswell abriu o portão. – Amarra o teu cavalo e entra. A minha mulher
confinou-me à sala do pequeno-almoço. Podemos tomar café.
Jonathan desmontou, prendeu o cavalo e atravessou o jardim atrás de Hawkeswell. Os caminhos
serpenteavam por entre belos canteiros, que constituíam recantos abrigados. Por fim, passaram por uma
estufa e subiram alguns degraus até ao terraço. O anfitrião conduziu-o diretamente para a divisão que
fazia as vezes de sala de pequeno-almoço.
O café esperou. Instalaram-se em cadeiras estofadas, bebendo como se se tratassem meramente de
velhos amigos que se reviam ao fim de algum tempo. O ambiente, todavia, não era assim tão afável.
– A nossa visita é amiga de Verity, a minha mulher – principiou Hawkeswell, interrompendo o
silêncio. – Também é amiga de Audrianna, a mulher do Summerhays. Costumavam viver as três no
Middlesex com uma mulher chamada Daphne Joyes. Estão as três na biblioteca, a falar de modas e coisas
do género.
– A necessidade da tua discrição relativamente a esta visita é compreensível, então. É também injusta,
mas o mundo é assim mesmo.
– Então sabes quem ela é. Só eu é que não sabia, até recentemente. A própria Verity só soube da
história dela depois da morte de Alessandra Northrope. Imagina a nossa surpresa quando o anúncio de
um pasquim fazia referência a uma filha chamada Celia Pennifold. Eu devia ter insistido que Verity
pusesse um fim imediato à amizade delas, claro. Mas... – Encolheu os ombros.
Mas o conde de Hawkeswell gostava tanto da esposa que não conseguia obrigá-la a fazer nada, e a sua
mulher gostava tanto de Celia que não tomaria a iniciativa do rompimento. Jonathan nunca se cruzara com
Lady Hawkeswell, mas a lealdade que mostrava abonava a favor dela, ainda que pudesse ser pouco
avisada.
– Estou convencido de que não há qualquer razão para pensar que Miss Pennifold seja como a mãe –
retomou Hawkeswell em tom de confidência, tal como tantos outros se haviam confidenciado ao longo do
tempo.
Pelo menos aquele homem sabia a quem revelava os seus pensamentos. Haviam frequentado juntos a
universidade e Hawkeswell era um dos poucos amigos de Jonathan, ainda que não muito próximo. O
tempo, a distância e as obrigações tinham convertido em memórias antigas o melhor daquela amizade;
mas ainda valia alguma coisa, na visão de Jonathan, pelo menos.
– Foi generoso da tua parte permitires a continuação da amizade.
– Generoso? Permitir? – Hawkeswell riu. – Diabos, não sabes muito sobre casamento, pois não?
– Sobre os bons, não.
Hawkeswell desligou-se do tópico e dirigiu a atenção para o seu convidado. Os instintos de Jonathan,
por sua vez, ficaram alerta, pois a isso o obrigava a experiência.
– Não conto que me digas porque a seguias.
– Se estás determinado a pensar que a seguia, atribui isso apenas a um homem que se deixou distrair
dos seus afazeres diários por uma mulher encantadora. – Era, admitia, a mais profunda verdade.
Hawkeswell parecia divertido. – Uma das tuas respostas que não dizem coisa nenhuma. O que significa
que deve haver muito boas razões para tal. – É uma das tuas missões?
– Que ideia ridícula.
– Deveras. O que não quer dizer que esteja errada. Afinal, estás aqui e não no Norte, no Staffordshire.
Deve haver também uma razão para isso.
– Sentia falta da vida da cidade, tal como tu.
– E lá também deste o caso por terminado, não foi? Não espero que agradeças, a mim, a Summerhays e
a Castleford a ajuda que te demos.
Hawkeswell referia-se a uma missão que Jonathan terminara recentemente, aquela a propósito da qual
o tio Edward o acusara de ser demasiado independente. A chegada inoportuna e inesperada de
Hawkeswell ao Staffordshire no outono anterior quase deitara a perder uma investigação que se
desenrolava há meses. Jonathan não se importava que Hawkeswell e os outros dois homens tivessem
dado uma resolução mais cabal ao mistério daquela que ele próprio esperara conseguir. Só não queria
falar naquilo. Não podia discutir o trabalho que fazia para o Ministério do Interior, nem mesmo, à
partida, admitir que realizava investigações para eles.
– Foram vocês os três que descobriram a verdade por detrás daquela intriga? Então, por quem sois,
tenho de vos agradecer.
– Como se já não soubesses. – Hawkeswell desistiu de questionar, felizmente. – Vais ficar na cidade
durante algum tempo?
– Talvez um mês.
– Então jantemos todos juntos. Vamos contar-te como fomos espertos em expor o crime e tu podes fazer
de conta que ignoravas a história.
Lá estava ela novamente. A altura de partir. Jonathan pousou a chávena de café e ergueu-se. – Ora bem,
tenho de ir embora. Foi bom ver-te, mesmo inesperadamente.
– Se andas atrás de Miss Pennifold pela cidade, Albrighton, parece-me que voltaremos a esbarrar um
no outro inesperadamente.
CAPÍTULO 4

N aquela mesma tarde, Celia andava de um lado para o outro na vistosa sala de visitas da casa da
mãe, situada em Orchard Street, em Mayfair. O executor, o corpulento e calvo Mr. Mappleton,
desfiava agora as más notícias às quais apenas aludira no fugaz encontro do dia anterior, imediatamente
antes do funeral.
– Conforme indicado, esta casa deve ser vendida, para saldar as dívidas dela. A casa e o recheio
devem pagar a maior parte. A carruagem terá de ir, também, mas calculo que poderá ficar com o cabriolé
e a égua alazã.
– E a casa de Wells Street? – Rezou para que no seu cômputo final não tivesse surgido a necessidade
de vender também aquela.
– Por agora parece que será poupada. No entanto, se surgirem mais dívidas... Bom, como expliquei
anteriormente... – Mr. Mappleton limpou a testa com um lenço. Informar herdeiros de que, na verdade,
haveria pouco a herdar, desassossegava-o. – Não é um grande legado, receio. Enquanto advogado dela,
aconselhei menos extravagâncias, quero que saiba. Frequentemente.
– Por favor não se sinta culpado por uma situação que não é da sua responsabilidade. Nem deve pensar
que a minha mãe ignorava os seus conselhos. No entanto, muita dessa extravagância era necessária para a
sua profissão. Manter as aparências era tão importante para uma mulher como a minha mãe como para
uma duquesa.
Celia examinou as sedas cruas dos cortinados e o estilo clássico da mobília. Uma composição cuidada
de azuis e cremes em que cada pormenor tinha de ser pensado em prol do bom gosto, para que os
cavalheiros que a visitavam se sentissem em casa. Havia ilusões importantes a manter.
Nada mudara naquela sala desde que ela abandonara a casa, e a mãe, cinco anos antes. Ela e
Alessandra encontraram-se uma vez ou outra durante o tempo em que estiveram afastadas, mas nunca ali.
Celia não voltara a entrar na casa, a não ser durante os últimos dias da vida da sua mãe.
– Esta propriedade já está nas mãos de algum agente imobiliário, Mr. Mappleton?
– Pensei em tratar disso depois de a informar de tudo. Virei amanhã fazer um inventário e certificar-me
de que se consegue o melhor valor com a alienação da propriedade.
Ela deteve-se perto de uma mesa de mogno em cima da qual repousava um vaso chinês. Estava no sítio
exato em que Celia se encontrava quando Anthony lhe disse, delicada mas firmemente, que ela
interpretara mal as intenções dele.
Ela pensara que ele se referia a casamento quando lhe falava em ficarem juntos para sempre. Pensara
que ele a salvaria. Fora uma tonta.
Não, uma tonta não. Jovem e apaixonada, mas tonta não. Ainda demasiado inocente, apesar de todas as
lições da mãe; nada mais. Não é possível transmitir a experiência de lidar com a natureza humana, nem a
dureza com que o mundo impõe opção.
Fechou os olhos e preparou-se para experimentar mais uma vez a desolação que sentiu naquele dia.
Não aconteceu, à parte um pequeno eco. Há muito tempo que estava curada. Cinco anos a viver na casa
de Daphne, perto de Cumberworth, haviam-lhe dado tempo para crescer.
Já nem sequer culpava Anthony, há anos. Claro que um homem de boa família e de fortuna não se
casaria com a filha de Alessandra Northrope. Havia regras para essas coisas. Agora, Celia não só as
conhecia como também aceitava o seu poder.
– Visto que a casa ainda não está à venda, queria examinar os bens pessoais da minha mãe mais
cuidadosamente do que quando aqui estivemos ontem, Mr. Mappleton. Não tirarei nada de valor. No
entanto, se houver papéis privados e similares, cartas, por exemplo, vou levá-los comigo. É-me
permitido?
– Se me der a sua palavra em como não desfalcará a propriedade, não haverá problema. – Um sorriso
tosco foi o máximo que conseguiu para acompanhar aquela tentativa de humor. – Ainda não encontrei
nenhum livro de contabilidade entre os papéis que me esperam na biblioteca. Se por acaso o encontrar,
por favor separe-o e deixe-o visível, para podermos averiguar o que é o quê.
Ela aceitou estar alerta caso encontrasse algum livro desses.
– Será necessário que fique comigo? Gostaria de lhe dizer adeus sozinha. O enterro foi uma
experiência estranha e distante. Foi aqui que ela viveu a sua vida e deu o último suspiro, e é aqui que o
seu espírito permanece.
Mr. Mappleton olhou-a com um ar tão sério que ela se perguntou se ele iria começar a chorar. – Não
me parece que será necessário interferir com a sua despedida. Deixe-me dizer-lhe, Miss Pennifold, que a
sua mãe era uma mulher maravilhosa e brilhante. Espero que compreenda que o facto de não ter ido ao
funeral despedir-me dela não significa de forma alguma falta de estima pela sua mãe.
– Compreendo a sua ausência, Mr. Mappleton. Não senti qualquer insulto nela. Nem ela o sentiria.
Agradeço-lhe as suas amáveis palavras.
Ele despediu-se. Logo que ouviu a porta fechar, Celia foi para o quarto da mãe.
Resistiu à nostalgia provocada pela familiaridade dos aromas e do espaço. A maior parte das lições
tinham tido lugar ali, na privacidade daquele aposento. A mãe reclinava-se na chaise longue de seda
dourada e explicava-lhe a natureza do mundo e tantas coisas mais. Parecera-lhe natural quando a
conversa passara da forma de vestir e de receber para a forma de tocar e outros segredos íntimos.
Memórias mais recentes forçaram as outras a recuar, porém. Aquele quarto fora também a divisão em
que vira a mãe acamada, doente. Não haviam conversado muito nas últimas semanas mas, ainda assim, a
mãe conseguira dar-lhe mais algumas lições, e manifestara a convicção de que a filha deveria tomar o seu
lugar. Brindara Celia com histórias de glória, de triunfos e de fama. Conseguira arrancar a promessa de
que Celia pelo menos pensaria longamente sobre aquilo que rejeitava antes de voltar para sempre as
costas ao lugar que a esperava.
Celia inspecionou a gaveta da pequena escrivaninha. O conteúdo não era digno de nota, mas a sua
disposição ordenada fizera-a deter-se, no dia anterior, quando ela e Mr. Mappleton empreenderam uma
busca rápida aos livros.
Alessandra não era de arrumar assim cartas e papéis. Os espaços e baús que não contavam com os
cuidados da criada pessoal geralmente eram uma grande confusão.
Enfiou as cartas na bolsa, rumou ao quarto de vestir e abriu os guarda-fatos. As magníficas roupas de
Alessandra, todas das melhores modistas, brilhavam como flores enormes à luz da tarde. Também elas,
como tudo o que fosse de valor, seriam vendidas.
O toucador estava igualmente bem arrumado, o que era incomum. Mas, vendo bem, ela não o usava há
várias semanas. As suas poucas gavetas também estavam organizadas, o que era ainda menos de esperar.
Celia examinou as joias que tinham dentro e perguntou-se se alguma delas teria sido oferta do seu pai
incógnito. Nenhuma das caixas lhe dava qualquer pista.
O aposento não a ajudou em nada a descobrir a identidade dele. Decidiu explorar o sótão e lá deparou
com os quartos de arrumos. Para sua desilusão, não continham muito mais do que mobília velha. Viu um
baú que nada tinha além de roupa de há vinte anos, pelo menos. Esperara, presumira até, que a história da
mãe estaria espelhada naquela casa, documentada por papéis ou objetos.
Desceu à biblioteca e sentou-se à elegante escrevaninha embutida.
Nas gavetas encontrou pouca coisa de interesse, exceto um conjunto de gravuras antiquadas; mais uma
vez, reparou que estava tudo perfeitamente organizado.
Fora a sua mãe que o fizera, para pôr os assuntos em ordem? Talvez não quisesse que o advogado
visse desarrumação quando fosse fazer o inventário, depois da sua morte. Era uma explicação, a
explicação mais provável. Teria de ter sido antes de Celia vir para casa, e implicava que a mãe sabia
que o fim estava próximo.
Celia não conseguia, contudo, afastar a sensação de que alguém que não Mr. Mappleton e ela tinha
estado na casa a seguir à morte da mãe, e também examinara os seus bens pessoais.
Talvez tivesse sido o seu pai. Se ele não queria que a sua identidade fosse revelada, poderia ter vindo,
ou enviado alguém, para se certificar de que nenhuma prova da sua existência fosse encontrada na casa.
Entristecia-a pensar que ele podia ter-se dado a semelhantes esforços para frustrar as suas tentativas de
descobrir a verdade. Provavelmente pensava que ela lhe pediria dinheiro ou daria mau uso ao nome dele
se soubesse a sua identidade. A verdade era que desejava apenas preencher um vazio que carregara na
alma a vida inteira.
Continuou a vasculhar as gavetas e recantos da escrevaninha. A dada altura, enfiou os dedos numa das
pequeninas divisões e eles tocaram em algo. Tirou um papel dobrado em que estava escrito o seu nome.
Curiosa, abriu-o.

Minha querida Celia,


Se encontraste isto, com certeza estás à procura de dinheiro, joias ou, talvez, indícios que te levem
ao nome dele. Posso poupar-te um tempo considerável. Não encontrarás nada de valor aqui, e
conheceres a identidade do teu pai não te trará nada de bom.
A necessidade de observar o estilo necessário depauperou bastante as ofertas que recebi ao longo
dos anos. Como tantas vezes te disse, o teu verdadeiro legado é a tua educação, não o ouro. És mais
bonita do que eu, e mais afável, e cantas como um anjo. Já provaste que consegues tomar conta de ti
própria. A forma como escolheres viver no futuro é uma decisão que só a ti diz respeito. Não me
causas preocupação, o que é para mim um grande consolo.
Por favor fica a saber que, à exceção de um imprudente assunto do coração, foste a única pessoa
que amei. É minha esperança que regresses a casa antes de esta doença me levar, mas se assim não
for, compreenderei.
Mãe

Celia ficou a olhar para a carta. Começou a percorrer com os dedos a caligrafia elegante, e a dor que
durante dias se escondera despedaçou-lhe enfim o coração. Os olhos ardiam-lhe das lágrimas.
Havia regressado a casa, brevemente, por fim. Teria sido terrível ler aquela carta se assim não tivesse
acontecido.
Curvou-se sobre as mãos e a carta e chorou as suas despedidas.

– Tens de admitir que o meu plano é bom, Daphne. Permitirá que o negócio cresça, dando-te menos
trabalho – argumentava Celia dois dias depois.
Daphne ponderou a oferta que acabava de ser feita. Os seus olhos denotavam preocupação mas o seu
rosto delicado e perfeito permaneceu sereno, enquadrado pelo cabelo claro e bem penteado.
– A razoabilidade do teu plano não me escapa. Nunca pensei na possibilidade de aceitar uma sócia na
Flores Preciosas, só isso. Pensava também que te deixava aqui apenas durante alguns dias, enquanto
decidias o que fazer com a propriedade. Agora, porém, parece que tencionas estabelecer residência
permanente neste lugar.
Encontravam-se na sala das traseiras da casa de Alessandra de Wells Street. A luz do sol entrava pelas
janelas voltadas a sul, fazendo sobressair a pele clara de Daphne. Mesmo em dias encobertos, a sala
seria soalheira. E, tal como Daphne reparara naquele primeiro dia e Celia pudera constatar por si
própria, as amplas janelas e a exposição a sul tornavam a sala perfeita para o cultivo de plantas.
No ano anterior, o negócio de Daphne, a Flores Preciosas, prosperara. Agora algumas das melhores
casas de Mayfair haviam acordado com Daphne o fornecimento regular de plantas e flores dos jardins e
estufas que ela possuía perto de Cumberworth.
O transporte de todas aquelas plantas tornara-se uma tarefa árdua, contudo. Se existisse uma filial ali
em Londres, onde os vagões pudessem depositar flores e plantas, seria menos problemático distribuir as
encomendas.
– A sala teria calor suficiente para conservar plantas durante alguns dias, mesmo no inverno. Os pés de
flor poderiam ficar na despensa e na cave, que são frescas no verão – explicou Celia.
– Concordo que a propriedade vai ao encontro das nossas necessidades. Se hesito é porque não quero
que assumas o risco de uma sociedade – esclareceu Daphne. – Podemos fazer o mesmo sem ela.
– Preferia que aceitasses o dinheiro que poupei da renda que a minha mãe me deu enquanto foi viva e
me fizesses sócia. Mesmo que fique apenas com uma pequena percentagem, será um rendimento, que é
aquilo de que necessito para ficar a viver aqui. Tu terás o usufruto da casa e eu tratarei da entrega das
plantas.
Daphne sentou-se numa das cadeiras de vime. Normalmente compunha uma figura bela e cuidada mas,
naquele momento, tinha a testa franzida e os olhos receosos.
– Não é à tua proposta que resisto, Celia. A minha cabeça sabe que é uma boa proposta. O meu
coração, porém...
Ergueu uns olhos tristes. – Estás determinada a deixar-nos de vez, então?
Celia colocou-se atrás da cadeira, curvou-se e pôs os braços à volta dos ombros de Daphne. Encostou
a face ao rosto frio da amiga. – Há tempo de mais que dependo de ti. Um ano converteu-se em três e três
em cinco. Serei eternamente grata pelo lar que me proporcionaste, mas está na altura de construir o meu
próprio caminho.
– Se fazes isto por causa das más-línguas, não me interessa o que digam e não permitirei que tu...
– Não podes mudar o mundo, Daphne. O teu negócio continuará a ser prejudicado enquanto se souber
que vivo e trabalho contigo. A nossa sociedade será discreta e preservará tanto o teu negócio como a
reputação da nossa casa, proporcionando-me também um rendimento.
Daphne não respondeu e Celia percebeu que a amiga ainda se inquietava. Daphne não gostava de
pactuar com injustiças.
– Tenho vinte e três anos, Daphne. Agora possuo esta casa e, de qualquer forma, devo regressar ao
mundo. Tê-lo-ia feito mesmo que não tivessem relacionado o meu nome com o de Alessandra nos
anúncios fúnebres. Mas continuaremos juntas em todas as outras coisas.
– Se a Flores Preciosas perecer, podes perder esta casa.
– Não vamos perecer. Vamos florescer.
Daphne pousou a mão no braço ternurento da amiga. Celia não conseguiu ver o seu rosto recuperar a
compostura, mas sentiu-o no seu abraço.
– Seria muito mais fácil ter um sítio para onde trazer as plantas todas para serem distribuídas –
concluiu Daphne.
Celia começou a saltitar, agarrou nas mãos da amiga e fê-la levantar-se. – Não te arrependerás.
Nenhuma das duas se arrependerá. Podes usar o dinheiro que eu investir para construir outra estufa
aquecida e podemos vender fruta que cultivemos lá dentro fora de época por preços ridículos. Podemos
mandar vir a carroça grande quando tivermos flores a mais e vender às raparigas de Covent Garden.
Podemos...
Daphne deu uma palmadinha na face de Celia. – Primeiro saiu a Audrianna, depois a Verity, agora tu.
Receio ficar sozinha, Celia, e foi isso que se contrapôs ao teu ótimo plano.
– Vamos ver-nos tantas vezes que será como se eu nunca tivesse saído, e tu ainda tens Katherine e Mrs.
Hills.
– Suponho que tens razão. – Anuiu Daphne, pegando na bolsa. – Agora devo regressar a casa, para
junto delas. Vou escrever ao meu advogado acerca da sociedade e concretizá-la assim que a relação dos
bens da tua mãe estiver concluída.
Celia acompanhou-a à porta de casa. Daphne deteve-se. – Aceito as tuas razões para viver aqui, mas
não gosto que estejas sozinha, Celia. Quem me dera ter trazido a minha pistola para poder deixá-la
contigo.
– Não ficarei só durante muito tempo e estarei em segurança durante o pouco tempo que ficar. – Sentiu-
se um pouco culpada por não contar a Daphne sobre Mr. Albrighton. No entanto, a revelação só daria azo
a mais perguntas sem resposta.
Daphne despediu-se com um beijo. Celia ficou a vê-la subir para o cabriolé.
Suspeitava que muito em breve não seriam apenas Katherine e Mrs. Hill que a acompanhariam na
propriedade rural que albergava a Flores Preciosas. Daphne tinha o hábito de encontrar e acolher
mulheres em apuros, de respeitabilidade e histórias ambíguas.
Sem dúvida que encontraria mais, embora Celia por vezes pensasse que seria melhor que tal não
acontecesse. Aos vinte e sete anos, poderia estar na altura de a própria Daphne se decidir a abandonar o
santuário.

– Tem a certeza de que quer a prateleira assim, Miss Pennifold? Vai ficar esquisito.
Thomas, um rapaz de quinze anos, segurava a tábua para a segunda prateleira, fazendo má cara perante
a forma como os diferentes níveis da estrutura ficariam virados para as janelas e não para o espaço da
sala. Isto apesar de Celia ter explicado o objetivo e lhe ter mostrado o desenho.
– É assim mesmo, Thomas. Assim, o calor e a luz das plantas mais altas não fazem sombra às mais
baixas.
Ele encolheu os ombros e pregou a tábua no sítio.
Nos últimos dias Celia tinha-se dado a conhecer às lojas do bairro e anunciara que tinha uma tarefa
para um rapaz que percebesse de carpintaria. O pai de Thomas, que tinha um comércio de tecidos,
dispensara-o de bom grado para efetuar o trabalho.
Celia reparou que Thomas aplicava mais pregos na tábua do que ela planeara. Fora parcimoniosa a
comprar e teria de ir buscar mais. Enquando calculava a quantidade, barulhos subtis no andar de cima
comunicaram-lhe que Mr. Albrighton andava pela casa.
Ele insistira que ela mal daria pela sua existência. Ela descobria, contudo, que a presença dele na casa
não podia ser ignorada. Podia não o ver com frequência, mas não conseguia ignorá-lo.
Sabia, por exemplo, que ele permanecia no andar de cima durante a maior parte do dia. Ouvia-lhe os
passos no soalho. Tinham o condão de lhe lembrar que não desfrutara de privacidade total nem de
isolamento completo.
Quando o via, a experiência continha um grau de intimidade que não era possível evitar. Coabitavam
na mesma casa, afinal. Os seus espíritos partilhavam o espaço, ainda que os seus corpos raramente
ocupassem a mesma divisão. E ele já lhe tocara duas vezes. Era como deixar cair óleo, impossível de
limpar completamente.
Todas as manhãs, pelas dez, ele descia para se abastecer de água. Ela ganhara o hábito de lhe ouvir os
passos nas escadas. Depois do primeiro dia ele nunca mais se apresentou tão desalinhado, mas também
nunca se apresentava completamente vestido. De gravata não, claro, pois ainda não se barbeara. Colete,
tão-pouco. Punha um casaco comprido, para não parecer completamente desrespeitoso.
Parecia acabado de sair da cama quando lhe aparecia assim às dez da manhã. O cabelo comprido solto,
desalinhado e livre, e pescoço exposto, e barba rala a escurecer-lhe os maxilares – com Jonathan
naqueles preparos, até o cumprimento educado a perturbava. A sua presença relembrava-lhe que ele
estava por perto quando ela dormia. Senti-lo dava-lhe o conforto da segurança mas também a
desorientava a forma como reagia à presença dele.
Os passos pareceram-lhe mais fortes. Ele faria a sua incursão ao jardim dentro de breves momentos.
Não parecia importar-se com as inconveniências da posição de inquilino. A esperança que alimentara de
que estas o fizessem ir-se embora não dava qualquer fruto.
– Preciso de mais pregos, Thomas. Calculei mal a quantidade que usarias. Pega neste dinheiro. Por
favor vai e compra mais vinte a Mr. Smith.
Thomas pousou o martelo. Estendeu a mão jovem e calejada para receber o dinheiro, e saiu da sala
com a passada solta e gingante de um potro.
Mal ele saiu, as botas desceram as escadas. Celia começou a pensar na cor com que pintaria as
prateleiras. Verde? Branco? Forçou os pensamentos a desviarem-se da tensão que sentia aumentar no
corpo a cada passo.
Passara a aguardar com expectativa as raras vezes que via Mr. Albrighton, constatou ela para seu
desgosto. Queria que ele fosse embora, mas ao mesmo tempo não queria. Não se importava nem um
pouco que ele frustrasse os seus pequenos estratagemas para o incentivar a sair. Gostava das conversas
breves e do aspeto sensual e perigoso que ele tinha antes de se vestir para sair.
Riu-se de si própria. Aquela expectativa tonta revelava que era uma mulher demasiado só. Teria de
tratar depressa de contratar uma governanta se não queria ficar dependente daquelas interlocuções
insignificantes.
– Está a construir alguma coisa, estou a ver. – Comentou ele da porta, olhando para as duas prateleiras
de baixo. Aproximou-se e pegou no martelo. – Está a tratar disto sozinha?
– Contratei um rapaz. Acabo de o mandar buscar pregos. Acordou-o, o barulho das marteladas? –
Permitira que Thomas começasse de madrugada, especificamente para incomodar Mr. Albrighton.
– Não. Levanto-me cedo.
– E faz o quê?
– Se está curiosa, tem toda a liberdade para subir e ver. Não me parece que tenha voltado ao meu andar
desde a primeira manhã.
A memória daquela manhã acorreu-lhe subitamente, e ela sentiu o rosto aquecer. Ainda se lembrava de
quão mal se comportara na altura, e do estado hipnótico em que ficara.
– Tenho estado muito ocupada. – Indicou as prateleiras.
– Ah! Achei que talvez a tivesse assustado.
– Porque teria eu medo de si?
Ele encolheu os ombros. – Algumas mulheres têm.
Talvez tivessem medo por causa da forma como ele olhava para aquela mulher nesse preciso momento.
Sentiu o coração a bater com mais força, pela intimidade do olhar que agora a fixava.
Não permitiria que a enervasse. Era essa a intenção dele. Divertia-o, provocá-la com o que acontecera
naquele dia. – Talvez tenham medo por causa do seu cabelo. É tão desadequado que se diria prova de
uma inclinação temerária.
– Quer que o corte? Não gostaria que pensasse que sou leviano.
– Claro que gostaria. Mas não o corte por minha causa. O penteado de um inquilino não pesa na minha
vida atarefada. Diria mesmo que, se o cortasse, não iria sequer reparar.
– Magoa-me, Miss Pennifold. E eu a imaginar que aguardava o momento de me cumprimentar, todas
estas manhãs.
Ela sentiu novamente o rosto a aquecer. Deixou-a envergonhada pelo facto de ele o ter adivinhado,
limitando-se a sair com o balde para o jardim.
Ele estava certo. Andava a evitar o último piso da casa devido à presença dele. Não obstante, era de
uma grande arrogância presumir aquilo. Faria questão de lá ir entretanto, agora que estava instalada.
Precisava de ver que objetos da mãe estariam lá em cima, nos quartos ocupados com outras coisas que
não Mr. Albrighton.
Ficou a vê-lo avançar até ao fundo do jardim, contornar um arbusto, até chegar ao local. Depois, já no
poço, vislumbrou o cabelo preto. De balde na mão, com um andar tão suave e fluido que nenhuma água
vertia, regressou pelo carreiro, perdido em pensamentos, ignorando o escrutínio dela.
Era um homem atraente, sem dúvida. Perigoso, porém, pelas profundezas intangíveis que parecia
possuir. Ainda assim, desprendia-se dos seus olhos e das suas brincadeiras a intimidade de um velho
amigo. Era tão convidativa que ela tinha de se relembrar de que ele era, na verdade, um estranho.
Mas não funcionaria nos dois sentidos. Por muita intimidade e familiaridade que ela visse nos seus
olhos, eles não revelavam nada acerca do espírito que os regia.
Bom, nada não. Os pensamentos masculinos eram visíveis. Acabava de perceber neles a chama
constante do desejo, em segundo plano, mas presente. Não era só o coração dela que acelerava quando os
seus olhares se encontravam.
Ele era bom a esconder aquelas flâmulas. Ela via-as sempre, porém, saindo dele e percorrendo o ar até
ela. Via-as e sentia-as. Conhecia o desejo masculino em todas as suas formas e manifestações, e
conseguia detetá-lo da mesma maneira que algumas pessoas percebiam no ar a chegada da chuva.
Afinal, fora ensinada por uma especialista a conhecê-lo, senti-lo e usá-lo para seu próprio benefício.
Trinta minutos depois de Mr. Albrighton subir, a casa foi invadida pelos sons de uma grande agitação
vinda da rua. Gritos e assobios rasgaram a paz do dia.
Celia dirigiu-se apressadamente à sala da frente e olhou para fora. Viu Thomas na rua, com a cara
vermelha e o corpo tenso, rodeado de outros rapazes. Não era claro se queria lutar ou chorar.
– A servi-la, dizes tu? – troçou um dos perseguidores. – Ou será mais servir-te dela? – O rapaz riu
ruidosamente da sua própria piada e os amigos fizeram coro.
– Apanhaste uma das boas. – Provocou outro. – A mãe dela era das caras, é o que dizem. Carruagens
chiques e coisas assim. Não acho que tenhas capacidade para dar valor às da laia dela. És capaz de
precisar de ajuda – disse, agitando as sobrancelhas, com um sorriso lascivo.
Continuaram a atormentar Tom e não o deixaram sair do círculo. Eram só rapazes a ser isso mesmo,
mas o coração de Celia sentiu desalento e mágoa.
Alguém do bairro percebera quem ela era. Espalhara-se a palavra. Agora todos sabiam que a filha da
famosa Alessandra Northrope vivia entre eles. Agora tudo podia mudar.
Fechou os olhos e tentou combater a desolação que a fazia sentir-se vazia por dentro. Há anos que
sabia que era vulnerável a julgamentos cruéis em virtude do seu nascimento. Nunca, no entanto, havia
sido exposta a eles. Menos ainda quando vivera com Daphne.
Nem sequer quando vivera com a mãe, agora que pensava naquilo. Soubera que os teciam quando elas
passavam de carruagem pelo parque, na altura, mas não chegara sofrê-los. Contudo, a mãe avisara-a que
um dia testemunharia o desprezo em primeira mão. Celia apenas não fora capaz de prever o desalento
que o impacto da realidade lhe provocaria.
Teria Alessandra usado um nome diferente quando ia às compras naquele lugar? Talvez nunca tivesse
chegado a andar no meio das pessoas, limitando-se a ficar em casa.
Os rufiões começaram a empurrar Tom para um lado e para o outro, fazendo-o desequilibrar-se,
desafiando-o a erguer o pulso, o que lhe daria direito a uma sova. Ela desejou poder poupar Tom, e
arrependeu-se de o ter contratado. Ele não tinha hipótese alguma com os outros rapazes; poderia apenas
tentar a fuga, em vão.
Subitamente, pelo canto do olho, viu outra pessoa a aproximar-se. Não era um dos vizinhos, mas sim
um homem alto com roupa de cavalheiro e botas que avançavam com determinação. Mr. Albrighton
avançou para o grupo como alguém que fizesse um desvio rápido por aquelas paragens.
Deteve-se ao passar pelo punhado de rapazes. O barulho chamou-lhe a atenção. Naquele preciso
momento, o mais atrevido do grupo encaminhou-se, gingão, para a porta de Celia. Os amigos perderam o
interesse por Tom e incentivaram-no a continuar.
De repente, surgiu um braço, como uma barra de ferro, a impedir o avanço do rapaz.
– Onde vais, jovem?
– Tenho assuntos a tratar aqui, por isso trate de tirar o braço se não quer que lho parta.
– Não tens assuntos nenhuns a tratar nesta casa se não for a tua. Vai-te embora, já.
– Vá-se embora você. Aqui não gostamos de estranhos. Está a candidatar-se a chatices, e, para mais,
por causa de uma rameira.
O braço de Mr. Albrighton baixou-se. Com um sorrisinho triunfante, o rapaz deu mais um passo. Uma
mão veio pousar-lhe no ombro, detendo-o.
Celia não conseguia ver o que a mão fazia exatamente. Parecia estar pousada, simplesmente. Contudo,
os olhos do rapaz arregalaram-se e os joelhos deram de si. O rosto contorceu-se de dor.
Sem mais, o rapaz atravessou a rua disparado para junto dos amigos, como uma boneca de trapos
rejeitada por uma criança. Os rapazes agarraram-no e ele conseguiu equilibrar-se. De cara branca e
dentes arreganhados, olhou furiosamente para o homem que o derrotara sem sequer usar as duas mãos.
– Pega maldita – rosnou. – O meu dinheiro é tão bom como o seu e só faltava...
– Só faltava que te pusesses com insultos a quem quer que viva nesta casa. Vai-te já embora e não
voltes, ou eu também terei de voltar.
Os rapazes dispersaram. Tom desatou a correu, pousou uns pregos e moedas no degrau da porta e fugiu.
Mr. Albrighton apanhou o dinheiro e os pregos e bateu à porta.
Celia reprimiu a humilhação o melhor que conseguiu e abriu-a. Viu os rapazes a olhar do fundo da rua.
– Deixaram isto aqui para si. – O sorriso de Mr. Albrighton tentava aligeirar o incidente, mas pareceu-
lhe ver nele pena também. O que só a deixou mais constrangida. Foi a custo que conseguiu manter o
sorriso e a aparência de bom humor.
Pegou nos pregos e olhou para os rapazes. – Parece que o mundo inteiro me toma pela minha mãe.
– O seu inquilino não a toma por nada do género. E, ao contrário de rapazes imberbes, não é ávido a
julgar as escolhas que uma pessoa faz na vida, independentemente de onde estas a levarem. – Tirou um
cartão do casaco e entregou-lho, de maneira a que os rapazes vissem. – Se tiver mais algum problema
com eles, por favor informe-me.
Ela pegou no cartão, certificando-se de que era visto pelos olhos que observavam. Ele fez uma vénia e
afastou-se. Os rapazes também partiram e enveredaram por um beco.
Ela olhou para o cartão. Além do nome dele, não se via mais nada. Opaco. O cartão, apesar da sua
qualidade, não revelava praticamente nada. Um pouco como o homem que acabava de lho entregar.
CAPÍTULO 5

O café perto da Gray’s Inn estava apinhado ao meio-dia. Advogados e aprendizes que tinham
escritórios ali próximo liam jornais e fumavam charutos. O tilintar de chávenas nos pires
acrescentava notas musicais ao burburinho das conversas.
Jonathan reparou em Edward, acomodado num divã do outro lado, e foi sentar-se com ele. A saudação
de Edward consistiu num arquear de sobrancelhas como uma interrogação silenciosa.
– Surgiram alguns elementos inesperados no decorrer da missão – principiou Jonathan. – A filha
estabeleceu residência na propriedade de Wells Street. Raramente sai. Poderão passar-se alguns dias até
conseguir entrar e fazer uma busca completa aos bens que Alessandra possa ter deixado lá.
Edward não sabia do quarto do sótão. Ninguém sabia. A inexatidão do sítio onde Jonathan vivia
começara por ser uma precaução durante a guerra e havia-se tornado um hábito que lhe permitia gozar de
alguma privacidade. Jonathan preferia encontrar as pessoas nos mundos delas, não convidá-las para o
seu.
– Não fizeste progresso nenhum, por outras palavras – concluiu Edward.
– Revistei a maior parte do sótão. Não havia lá nada de interesse.
– E a outra casa?
– Fui lá na noite do funeral, mas alguém tinha lá estado antes de mim. A filha, desde logo, e mais
alguém, acha ela. É impossível saber se tem razão nas suas suspeitas. A escassez de papéis pessoais
leva-me a crer que possa ter. Ou então Alessandra não deixou nada digno de nota na casa. Sabia que
seria inspecionada por um executor, mesmo se mais ninguém o fizesse.
Edward bebeu o líquido espesso, franzindo a testa. – Qual das duas achas mais provável?
Jonathan pensou na mulher experiente com a qual por vezes conversava. Como muitos, Alessandra
confidenciara-se por vezes com ele, mas nada de relevante para aquela missão. – Julgo que, sabendo que
o fim estava próximo, ela escolheria queimar ou esconder qualquer coisa que pudesse revelar a sua
verdadeira identidade. Nem o livro de contas se encontrou, se é que tinha um, diz a filha.
– Essa filha acabará por sair da outra propriedade, mas claro que não podes acampar no jardim à
espera que isso aconteça. É estranho que ela tenha escolhido viver ali. Seria de pensar que, por esta
altura, já tivesse concluído que fugir como fez em miúda foi um erro. Teria tomado o lugar da mãe
praticamente sem esforço. Era uma rapariga muito bonita. Todos os homens aguardavam que a mãe dela a
iniciasse.
– Sabe muito acerca dela.
Edward corou até à raiz dos cabelos. – Por favor. Toda a gente sabia da rapariga, incluindo tu.
Alessandra passou um ano a pavoneá-la pela alta sociedade, a reunir ofertas, esperando uma fortuna do
primeiro protetor. Quando ela fugiu – a filha, claro está...
– O nome dela é Celia.
– Sim, Celia, isso mesmo. Quando ela fugiu no último minuto, foi o assunto do dia nos meus clubes.
Edward pousou o copo. – Então ela regressou à cidade, é isso? Aposto que também esse será o assunto
do dia muito em breve. Muitos dos que estavam interessados antes provavelmente ainda estarão, mesmo
não sendo ela já uma menina.
– É uma casa modesta, e não me parece que ela tencione adotar a profissão da mãe. Por aquilo que vi,
julgo que planeia viver discretamente. – Mentiu ele secamente. Na verdade, Celia falara-lhe de ter outras
mulheres a viver com ela. Provocara-o com insinuações de que estabeleceria um bordel. Pelo menos ele
presumira que se tratavam apenas de provocações, para o incentivar a sair. Talvez não fossem.
– Dá-lhe um ano e provavelmente aparece no teatro coberta de seda, a exibir as riquezas.
– No que respeita a profissões de mulheres, esta não é má, desde que o seja à maneira de Alessandra.
Edward achou a afirmação divertida. – Esqueço-me sempre de que não tens uma maneira normal de ver
as coisas. Mesmo com pegas, ao que parece.
– Sendo filho da amante de um homem poderoso, dificilmente poderia condenar outras amantes.
– Claro. Não foi minha intenção insinuar... – Edward corou novamente e decidiu beber mais café.
– Por falar em homens poderosos, quando visitará o conde? – Edward tentou esconder o seu pesar, mas
Jonathan soube a resposta assim que a pergunta foi formulada.
– Thornridge adiou a visita mais uma vez. Adivinha o tópico que tenciono abordar e não quer falar no
assunto.
– Ele nunca quis falar no assunto. Não é nada de novo. Tem de lhe deixar muito claro que não ando
atrás de dinheiro.
– Não vai acreditar. Ambos sabemos a razão pela qual ele não quer admitir que tu sejas o filho
bastardo do último conde. Suspeita que se trata apenas da ponta do icebergue. Não acredita que deixes as
coisas ficarem por aqui.
Jonathan não se manifestou, mas fervia com uma fúria contida. A recusa de Thornridge era
indesculpável e nunca se devera a ignorância. Ele sabia a verdade, e até fizera aplicar as intenções do
último conde a respeito da educação de Jonathan. Existira até uma renda que Jonathan repudiara há vários
anos por a sua continuidade exigir que desaparecesse. Thornridge continuava determinado a negar o
reconhecimento que lhe proporcionaria um caminho mais fácil, mesmo que fosse como bastardo de um
conde.
Edward fora o único membro da família a proporcionar-lhe esse reconhecimento, e mesmo a sua
aceitação era um assunto privado, apresentado anos antes como o primeiro passo de um longo jogo.
O jogo havia-se tornado muito longo, deveras.
– Talvez não devesse incomodar-me com a ponta do icebergue, tio. Talvez esteja na altura de o
implodir.
Edward fez um esgar. – É a tua vontade, tenho a certeza. Eu continuo a investigar em teu nome, contudo.
Podes desconfiar de que o faça, mas é verdade.
– Pergunto-me se investigações feitas por mim próprio não poderiam ser mais frutuosas. Tornei-me
bastante hábil nessas coisas nos últimos oito anos.
– Seria melhor que não o fizesses. Se ele começa sequer a suspeitar que andas à procura de quem
testemunhe as intenções do teu pai, destrói-te. Não conseguirei detê-lo.
– Ele não tem esse poder. Nenhum homem tem.
– Tu mais que todos os outros sabes que alguns homens têm. Afinal, já lhes serviste de agente.
Novamente um pico de raiva, com uma ponta de desânimo. – Por boas causas, só. – Por boas causas
principalmente, não só, infelizmente.
– Homens há que são menos seletivos. Não o provoques. Tem paciência e deixa que o faça à minha
maneira.
Jonathan levantou-se para sair antes que a reserva de boa vontade do dia se esgotasse. – Por agora
deixo o assunto consigo. Seria bom tratar, porém, de apresentar algum resultado.
Retirou-se de humor sombrio, o que indicava que, pese embora o seu esforço, não dominara a raiva
que a situação com o conde de Thornridge lhe instigava sempre que dela se ocupava. Um homem sensato
teria baixado os braços há muito, admitido a derrota e encontrado alguma paz.
Mesmo à saída quase esbarrou com um lacaio de libré vistoso que estava encostado ao edifício. O
indivíduo pôs-se imediatamente numa postura apropriada quando o viu.
– Mr. Jonathan Albrighton?
Jonathan assentiu com a cabeça. O criado entregou-lhe uma carta. Jonathan examinou o papel e o selo
e, surpreendido, rasgou-o.
Terça. Oito horas, Whist.

Castleford.

Quando Celia acordou no dia seguinte, o tempo estava muito encoberto. Percebeu que dormira até mais
tarde do que contava. Havia muitas coisas para fazer naquele dia. Não devia ter ficado tanto tempo na
cama.
Vestiu um roupão e embrulhou-se no seu xaile mais quente. Mr. Albrighton podia ter de ir buscar a sua
própria água, mas ela também tinha de o fazer. Não lhe era agradável atravessar o jardim num dia em que
o vento soprava com tanta força que lhe sacudia as portadas.
Quando abriu a porta do quarto, esperava-a um balde, com uma dose generosa de água. Mergulhou os
dedos na água. O tempo que ali permanecera neutralizara o pior do frio.
Só havia uma forma daquela água ter ali chegado. O gesto afigurou-se-lhe simultaneamente
enternecedor e surpreendente. Como saberia Mr. Albrighton que ela ainda não se levantara? Sorriu ao
pensar que ele pudesse procurá-la de manhã, quando descia as escadas, da mesma forma que ela o
procurava a ele.
Enquanto se vestia, ouviu as pancadas distantes e ritmadas de algum carpinteiro a trabalhar no bairro.
Recordaram-lhe que precisava de encontrar alguém para substituir o jovem Tom. Depois das
provocações do dia anterior, ele não voltaria. Era mais uma tarefa a acrescentar à lista de assuntos que
requeriam a sua atenção hoje.
De cabelo arranjado e touca e peliça na mão, desceu as escadas da frente. A cada passo, as pancadas
pareciam-lhe mais fortes. Constatou que vinham das traseiras da sua casa.
Decidiu verificar a sala de trás. Ao aproximar-se, ouviu uma mulher dizer: – Mesmo assim, acho que
devia mandar chamar um marceneiro.
– Ela entendeu que os pregos serviriam – replicou Mr. Albrighton.
– Usados devidamente, talvez servissem – foi a resposta doce e paciente, mas incisiva.
A voz daquela mulher pertencia a Verity. Por que carga de água teria vindo ela sem avisar, e com
Jonathan em casa?
Celia entrou na sala. Mr. Albrighton, de camisa e colete, estava de pé com o martelo na mão. Os
trabalhos de montagem apresentavam bons progressos. A aconselhá-lo, sentada ao seu lado com o
desenho do plano no colo, envergando um conjunto de viagem cor de safira, estava Verity, a grande
amiga de Celia, mulher do conde de Hawkeswell.
Verity reparou nela. – Seja bem aparecida. Vi a porta do jardim aberta e atrevi-me a entrar para ver a
tua nova casa. O teu carpinteiro disse que tinhas ido um bocadinho lá a cima, por isso fiquei a ajudá-lo
enquanto esperava.
Celia foi ter com ela e deu-lhe um abraço. – Espero que a minha amiga não tenha interferido
demasiado, Mr. Albrighton. O senhor não estava a contar com tipo de ajuda que ela parecia estar a dar-
lhe.
– Ao que parece, sou praticamente incompetente nesta tarefa, na opinião da senhora. – Mr. Albrighton
colocou mais uma tábua no sítio com uma firmeza que dava a entender que Verity estava a «ajudá-lo» há
já algum tempo.
– Apenas o incentivei a fazer melhor, senhor. Qualquer idiota junta duas tábuas se tiver vinte pregos
para gastar. Uma vez que os vi serem forjados um por um, nem o labor do ferreiro nem o dinheiro da
minha amiga devem ser desperdiçados.
Jonathan reagiu com um sorriso à chamada de atenção. Ténue. Celia aguardou que ele dissesse a Verity
que não se oferecera como carpinteiro, mas que havia tentado apenas fazer uma boa ação.
Em vez disso, ele engoliu o que quer que se tivesse sentido tentado a dizer. – Tem razão, senhora. A
sua preocupação com o uso excessivo de pregos é pertinente.
– Talvez possa desculpá-la, Mr. Albrighton, pois é uma amiga querida. A pessoa que a critica é Lady
Hawkeswell, e as condessas tendem a deter-se nos pormenores, por assim dizer.
– As minhas desculpas, minha senhora. – Concluiu ele, com uma vénia. – Claro, sendo a senhora
condessa está habituada a trabalho mais especializado do que o meu.
– Enquanto condessa, não saberia a diferença entre trabalho especializado e não especializado. Se sou
crítica é resultado da minha juventude num mundo muito diferente daquele em que me encontro agora.
Jonathan pegou num dos pregos. – Mais trinta minutos e deve ficar tudo pronto. Miss Pennifold, se
quiser ir com Lady Hawkeswell para outro lado, não me importarei.
Celia achou que era uma maneira excelente de dar por terminada a animada troca de palavras. Colocou
a touca e amarrou-a para o vento não a levar. – Vamos dar uma volta no jardim, Verity, e fugir às
marteladas.

Celia levou Verity para o fundo do jardim, e as pancadas recomeçaram. Verity não parava de olhar por
cima do ombro, para a casa. Franzia a testa de cada vez que isso acontecia.
– Anda aconselhar-me acerca deste canteiro ao lado da zona dos arbustos – instou Celia, arrastando-a
para o fundo do jardim.
– O teu carpinteiro não é lá muito bom – vaticinou Verity. – Devias ter-me escrito para eu te
recomendar um. Foi por ele ser tão bonito que o empregaste?
– Não recordo minimamente como me foi recomendado. A sério. Agora, olha para aqui. Acho que se
devem plantar já alguns bolbos, tu não?
Verity olhou novamente para a casa e uma nova expressão veio descompor-lhe a fronte alva. Olhou
para Celia. Olhou novamente para a casa. Olhou para Celia. Com curiosidade.
– Tinha umas botas muito boas. Isto é, para carpinteiro. A camisa e o colete também...
– Não me digas que vais criticar o homem por ele ter brio na aparência.
– Preocupa-me mais como é que um carpinteiro com tão pouco talento consegue comprar coisas
daquelas. Acho que não devemos deixá-lo sozinho na casa. Pode ser um daqueles sujeitos que se
apresenta como artesão com o objetivo de entrar nas moradias para as assaltar.
– Estás a ser desconfiada de mais. Então, a razão pela qual me parece que devem ficar aqui as flores
de primavera é o facto de estas árvores de cima fazerem sombra quando brotarem. Gostaria de
acrescentar outras pelo outono, e preciso da tua ajuda para decidir quais.
Verity olhou para a copa das árvores. A seguir fitou Celia diretamente nos olhos. – Não me parece que
tenha sido desconfiada de mais. Ocorre-me, no entanto, que posso ter errado ao presumir que ele era teu
carpinteiro.
Celia olhou para o solo argiloso. Vieram-lhe à mente histórias e explicações, todas elas mais
rebuscadas do que a ideia de Mr. Albrighton ser carpinteiro.
– O que te é este homem, Celia?
Celia ouviu uma diminuta nota de divertimento na voz de Verity. Levantou a cabeça e deparou com o
rosto adorável da amiga, livre de qualquer ruga. Um brilho endiabrado dançava-lhe nos olhos azuis.
– Não é o que estás a pensar.
– Tanto pior.
– Verity!
Verity riu-se, surpreendida consigo própria. – O que posso dizer? Ele é um deleite para os olhos, e ver
um homem bonito a usar as mãos – mesmo que nada bem nestas circunstâncias… ainda atrai a minha
atenção, não obstante o meu amor pelo Hawkeswell. – Olhou para trás mais uma vez. – Conta. Vá lá, ou
pensarei o que me aprouver.
– É meu inquilino. É tudo. Uma intrusão constrangedora e um aborrecimento embaraçoso. Herdei-o tal
como herdei a mobília, e ele não sai, por mais desconforto que eu me esforce por lhe provocar.
– Talvez seja o desconforto que o mantém aqui, embora possa não ser do tipo que pretendias. Parece-
me, agora que penso no assunto, que ele ficou ainda mais irresistível assim que entraste na sala.
Então Verity reparara na energia eletrizante durante a breve conversa. Celia aceitara que esta provinha
de si e da ligeira excitação que sentiu quando viu Jonathan ali de pé, com os braços nus e as mangas
arregaçadas, e a forma do seu corpo realçada pelo colete e as calças justas.
Verity enfiou o braço no de Celia e incitou-a a andar. – Devias mesmo trazer uma mulher mais velha
para a casa.
– Tenciono fazê-lo. Todavia, não é culpa minha ter herdado a propriedade com um inquilino do sexo
masculino já incluído.
– Não, não é. Ainda assim, terás de ter mais cuidado do que a maior parte das mulheres que fazem uma
descoberta semelhante.
Celia pensou na altercação do dia anterior, na rua, à porta de sua casa. – Começo a pensar que todos os
cuidados serão insuficientes e, como tal, desnecessários. Tiveste a amabilidade de não começar logo a
tirar conclusões sobre ele, e ele teve a amabilidade de não tecer comentários sobre o porquê de teres
entrado pela porta do jardim e não pela da frente. Mas a razão que presidiu a tais conclusões e à forma
como entraste não pode ser negada. Julgo que pouco fará à minha reputação o facto de eu vir ou não a
repudiar o maior legado de Alessandra.
O rosto de Verity corou. Os seus olhos azuis humedeceram-se. – Não concluí que ele era teu amante,
Celia. Jamais. Estava apenas a provocar-te. Quanto à minha entrada discreta, desculpa-me. Mesmo. Vou
dizer ao Hawkeswell que faço tenção de te cumprimentar no parque e que quero que me visites como
qualquer outra. Não é justo que...
– Nada disso. Não te culpo, nem ao teu marido. Por favor acredita. Sempre soube como seria. Não
estou irritada contigo por causa disso, nem minimamente insultada. Às vezes fico desanimada quando
vejo o pouco que ganho com a minha virtude, e isso tira-me do sério. É apenas isso que estou a dizer. A
minha reputação vale tão pouco como se tivesse aceitado o meu primeiro protetor aos dezassete anos.
Celia arrependeu-se imediatamente da sua honestidade impulsiva. Surpreendeu-a, porém, que Verity
não esboçasse qualquer reação e se limitasse a andar.
Regressaram aos arbustos, perto do poço.
Celia pensou no balde de água que a aguardara à porta. Fora muito simpático da parte de Mr.
Albrighton fazer aquilo quando percebera que ela ainda não se levantara. Mais do que ela havia sido com
ele. Provavelmente sentia pena, depois daqueles rapazes se referirem a ela como rameira.
Verity finalmente deu atenção ao canteiro que ficava diante dos arbustos. – Esta primavera, depois de
vermos o que cresce, podemos decidir que novas variedades adicionar.
– Agora é que falas de flores, Verity? Não tens nada a dizer sobre o tópico que, de forma indiscreta,
iniciei?
– Ainda estou a interiorizar a descoberta da tua história, Celia. Ainda é novo para mim.
– Só informei Daphne. Se mais alguém ficou a saber a verdade, foi por acidente.
– Não estou a censurar-te por não mo teres confiado. Sou a última pessoa que teria direito a fazê-lo,
tendo em carta os segredos que mantive de todas vós.
Verity referia-se ao tempo em que viveram juntas na Flores Preciosas. Havia uma regra na casa que
ditava que ninguém devia intrometer-se nas histórias das outras pessoas. Daphne dizia que por vezes as
mulheres tinham boas razões para deixar o passado para trás, o que se aplicava a todas elas, de uma
maneira ou outra.
Verity, contudo, fora a mais reservada, ao ponto de assumir uma nova identidade.
Fora um choque para todas descobrir, no verão anterior, que a mais calada e circunspecta de entre elas
tinha sido a que concretizara a rutura mais arrojada com o seu passado. Fora igualmente um alívio que,
depois de se ver confrontada com esse passado, Verity não só se reconciliasse com ele mas também
encontrasse uma felicidade gloriosa.
– Tento explicar-te que, uma vez que é tudo tão recente, ainda estou a adaptar-me às notícias, por assim
dizer – retomou Verity com gravidade. – Não te vejo de maneira diferente, querida amiga. Vejo-te,
contudo, num lugar diferente do de antes. E... – Mordeu o lábio inferior, sacudiu os ombros e prosseguiu.
– E constato que a tua insinuação não me escandaliza minimamente. Nem me parece que escandalizasse
Daphne. As outras, não sei dizer.
Celia riu, com tibieza. – Não sei se me sinta reconfortada ou insultada.
– Insultada não, espero. Não me escandaliza porque, embora não te falte humor e otimismo, sempre
tiveste uma postura muito prática.
Verity deu o braço a Celia e retomaram o passeio lado a lado. – Parece-me que qualquer mulher
prática avaliaria com grande franqueza os possíveis caminhos a tomar. Foi apenas isso que ouvi da tua
parte.
Celia deteve-se e fitou os olhos azuis de Verity. Não albergavam qualquer censura. Na Flores
Preciosas, elas haviam aprendido a amar-se sem julgamento, e esse preceito ainda regia a forma como se
tratavam.
– Os caminhos que tenho à disposição são poucos e, de uma forma geral, pouco apelativos, Verity. Há
cinco anos que os pondero. Posso ficar para sempre no santuário da Daphne, longe dos olhos e do
desprezo do mundo, mas igualmente longe da sua vitalidade, e arriscando-me a prejudicar a reputação de
todas as mulheres que vivam comigo. Ou posso ir para longe, mudar o meu nome e ter esperança de que a
minha história nunca me encontre. Talvez, se me dispuser a enganar um homem bom, consiga até casar.
– Ou podes viver a vida da tua mãe, que não era sem atrativos, parece-me. – Verity sorriu docemente. –
Rejeitaste-a quando eras criança por achares que era errado?
– Rejeitei-a porque exigia de mim um sentido prático mais forte do que aquele que eu conseguia ter aos
dezassete anos. E porque não quero dar ao meu pai, seja ele quem for, mais uma razão para me rejeitar. –
Uma memória nostálgica apoderou-se dela. Desviou o olhar para os arbustos, as árvores e o céu. – E
porque nesse tipo de vida não há lugar para o amor. Afeto sim. Mas qualquer coisa mais é certo partir-
nos o coração.
Verity indicou a casa e o jardim com um gesto largo. – Então a minha radiosa Celia encontra-se a
desbravar outro caminho para si própria. É tão caraterístico de ti.
Celia riu-se. – Acho que estou, de certa forma. E mais vale tratar disso depressa, se as plantas
começam a chegar esta semana. – Inclinou a cabeça. – Pararam as pancadas. Talvez Mr. Albrighton tenha
terminado.
Verity revirou os olhos. – Era melhor irmos ver os resultados. O teu Mr. Albrighton é bem-
intencionado, mas eu devia ter insistido que me entregasse o martelo para eu mesma fazer o trabalho
devidamente.
Estavam quase a chegar à porta do jardim quando Verity parou de repente. – Albrighton. Bem me
parecia que o nome me soava familiar quando o disseste, e agora lembro-me porquê. Um Mr. Albrighton
foi ver Hawkeswell no dia em que tu foste visitar-me e Audrianna também estava lá. Hawkeswell
comentou depois que se tratava do Albrighton que era magistrado no Staffordshire quando eles tiveram
aquela situação desagradável recentemente. Pergunto-me se será aparentado com o teu inquilino.
– Na verdade, acho que é o mesmo homem. – Jonathan visitara Lady Hawkeswell naquele dia?
Estiveram os dois na casa de Verity ao mesmo tempo? Seria possível que ele a tivesse seguido até lá?
Não havia razão nenhuma para o fazer. No entanto, a coincidência pareceu-lhe por demais peculiar.
– O mesmo? A sério? – disse Verity baixinho, como se receasse que alguém as escutasse. – Não
admira que tenha umas botas tão boas. Não só não é carpinteiro como também não se pode dizer que seja
o típico cavalheiro. Segundo o meu marido, Mr. Albrighton é o filho bastardo do último conde de
Thornridge. Ele chegou a admiti-lo quando andaram juntos na universidade.
Quando entraram na casa, já não o encontraram. O martelo estava pousado numa das prateleiras fundas
que acabara de montar. Celia sentia-se tocada por ele se ter dado ao trabalho de completar a tarefa, tal
como se sentira com a água que encontrara à sua espera. Decididamente, porém, ele não devia ter feito
aquilo. Os cavalheiros não faziam trabalho que pudesse calejar-lhes as mãos, pois não? Até o filho
bastardo de um conde devia ser mais cuidadoso.
– Vamos lá examinar o teu jardim da perspetiva desta bela janela – desafiou Celia. – Decidiremos
quais plantas eliminar para retirar melhor partido da vista.
Embora Celia participasse na tarefa, uma parte da sua mente ocupava-se com a revelação
surpreendente da linhagem de Mr. Albrighton. Um sentimento estranho alojou-se no seu coração e o seu
ânimo esmoreceu.
Desilusão. Era isso que sentia.
Ela pensara... Na verdade, não pensara de facto em alguma coisa. Mas experimentara um entusiasmo
revigorante na companhia dele. Comprouvera-se com a atração inegável que havia entre os dois.
Agora não poderia voltar a experimentá-la exatamente da mesma maneira. Se ele era filho bastardo de
Thornridge, seria normal que almejasse mais do que tinha atualmente, incluindo as vantagens sociais que
o seu sangue podia conceder-lhe. Experimentara aquela possibilidade enquanto estudante, e ao ser
recebido em casas como as do conde de Hawkeswell.
Mr. Albrighton não quereria fazer nada que pudesse interferir com o acesso a muitos outros meios
sociais que poderiam abrir-se a ele. Não quereria quebrar nenhuma das regras da sociedade.
O que significava que, se alguma vez acontecesse algo entre ele e ela, se o pulsar silencioso que existia
entre os dois encontrasse consumação, ela não poderia permitir-se acreditar que se trataria de algo mais
do que o divertimento de um cavalheiro com uma mulher que ele julgava própria apenas para distração.
O melhor que poderia esperar era o que Anthony planeara, e o pior poderia ser muito mais cruel. E, tal
como com Anthony, tudo o que se passasse entre eles seria afetado pelo nascimento dela, e pelo dele.
CAPÍTULO 6

O dia começara tarde e a visita de Verity atrasou ainda mais os planos de Celia. Já eram quase quatro
horas, portanto, quando finalmente amarrou a touca e vestiu a peliça de lã acobreada. Atravessou o
jardim até aos prados onde ficava o estábulo da sua égua.
Dava ela indicações para levarem o animal até ao cabriolé, quando Mr. Albrighton chegou. Não se
aproximou enquanto o cavalariço não foi embora, mas as suas botas altas caminharam até ela quando se
preparava para partir.
– Será sensato sair de cabriolé tão tarde, Miss Pennifold?
– Não menos do que o senhor sair agora a cavalo, Mr. Albrighton.
– O meu cavalo é mais rápido do que uma carruagem, e montado estou menos vulnerável do que alguém
que se desloca num veículo pequeno e aberto.
– O seu conselho é bem recebido, tal como, estou certa, é bem-intencionado. No entanto, estou
determinada a terminar uma tarefa necessária hoje. Terei muito cuidado, obrigada.
Ele não regressou ao estábulo como ela esperara, tendo continuado a caminhar ao seu lado. – Permita
que a acompanhe. Ultimamente as ruas não se têm revelado seguras em hora alguma e o cair do dia pode
apanhá-la sozinha.
– Não quero causar-lhe tal transtorno. Já abdicou da sua manhã para fazer aquelas prateleiras. Se fizer
algo mais, ficar-lhe-ei demasiado em dívida.
Para filho de um conde, aquele homem tinha uma veia temerária. Arriscara as mãos, com o martelo, e
agora não parecia preocupar-se com o facto de ser visto com ela em público. Talvez ele presumisse
apenas que esta última hipótese seria interpretada como o interesse de um homem pela próxima deusa do
demi-monde. O que, com certeza, era exatamente aquilo de que se tratava.
– Não é incómodo nenhum, Miss Pennifold. Insisto que aceite o meu auxílio. Sabe que deve fazê-lo. –
Pararam na cocheira. – Onde vai?
Ela olhou para os campos. O cavalariço trazia-lhes a égua. – Covent Garden.
– Agora insisto duplamente que me permita acompanhá-la. Não quero ouvir objeções. Ontem houve
uma grande manifestação ali perto, junto ao rio, e os ânimos ainda estão um bocado perturbados nos
bairros mais pobres.
Fiel à sua palavra, Jonathan não ouviu as suas objeções. Dez minutos depois estalava as rédeas
instalado ao lado dela no cabriolé. Deram início à breve viagem.
– A que sítio de Covent Garden se dirige? – indagou ele.
– Ainda não tenho a certeza. Começarei pela praça.
Teria sido um esgar de censura o que viu momentaneamente no rosto dele? Pois claro, foi mesmo isso
que lhe pareceu. Esperou que Mr. Albrighton não se tornasse um incómodo.
– Não é uma zona da cidade para se andar sem rumo ao final do dia, Miss Pennifold.
– Não vou sem rumo. A pessoa que procuro estará num de três sítios. Simplesmente não sei em qual
deles.
– Não procura uma localização, mas uma pessoa?
– Isso mesmo. Jonathan deverá permanecer na carruagem e eu seguirei a pé quando lá chegarmos. Será
melhor assim.
Ele pareceu cético, mas não a interrogou mais até chegarem à praça grande que albergava o mercado.
Celia pediu-lhe que parasse a carruagem; a seguir pôs-se em pé para examinar de uma perspetiva elevada
a multidão que ainda enchia a praça.
– Posso perguntar-lhe quem procura, Miss Pennifold?
Ela fixou os olhos semicerrados nos rostos que circulavam pelas bancas de flores distantes. – Estou à
procura de uma prostituta.
– Permita-me que a ajude. Ainda é um bocadinho cedo, mas... Ah! Ali está uma, nem a cinco metros da
carruagem. Mesmo ali, com o...
– Procuro uma prostituta em particular. Certamente não ficará escandalizado por saber que a filha de
uma prostituta tem amigas que são prostitutas.
– Fala como se tal fosse não apenas despropositado, mas também inevitável. Não é, especialmente
quando a filha em questão é amiga de uma condessa. Porque quer encontrar essa prostituta em particular
hoje?
– É minha intenção pedir-lhe para viver comigo. – O silêncio que se fez ao seu lado levou a que ela
olhasse para baixo. – Agora ficou escandalizado.
– De todo. Pensei que estivesse a brincar naquela primeira noite, mas se não fosse o caso, é
compreensível.
Ela não estava certa se descreveria a ponderação secreta em que por vezes incorria como
compreensível. – Porque diz isso? Quase mais ninguém o faria.
– As únicas pessoas que podem negar o apelo da segurança e do conforto são aquelas que dispõem de
ambos à partida. É compreensível que reconsidere a sua rejeição prévia dessa porção do seu legado.
– É muito progressista da sua parte.
– Serei a última pessoa a julgá-la se acabar por escolher esse caminho. O meu conselho é de outro tipo.
Tem a ver com os padrões que mencionou durante a nossa conversa daquela noite, na biblioteca. Não
pode dignificar a prostituta que procura hoje e ela só a prejudicará. Acredito que a sua mãe lhe tenha
explicado isto tudo.
Claro que havia explicado. Tal como explicara que o estatuto social do seu primeiro patrono
determinaria em grande medida se ela viria a desempenhar o seu ofício em salas de visitas forradas a
seda ou debaixo de uma ponte.
Debatia-se com a franqueza de Mr. Albrighton enquanto perscrutava novamente as bancas de flores.
Ele aguardava talvez que ela decidisse. Aguardava que ela concluísse que o luxo, a segurança e o
conforto justificavam a decisão. Proporia ele algum acordo, então, e poria cobro àquela tensão
eletrizante que até ali, com ela de pé ao lado dele, existia entre eles? Ou saberia também que os padrões
que ela mencionara naquela noite ditavam que ele nunca serviria, mesmo tendo nele o sangue de um
conde?
– Ali está ela. Estou a vê-la. Espere aqui, por favor. – Apanhou a saia e preparou-se para descer.
Uma mão agarrou-lhe no braço. Sentiu as nádegas a assentar no banco com uma pancada seca.
– Eu levo-a até ela e espero onde não a perca de vista. Não é demasiado cedo para andar por aí certa
fauna perigosa da noite.
Ela achou aquelas inclinações protetoras encantadoras e desnecessárias. Sobrevivera àquele bairro em
alturas piores do que aquela, e sabia como desencorajar aquela fauna de a abordar.
Ele circundou a praça até ela lhe dizer para parar. Ele insistiu em a ajudar a descer, mas pelo menos
não tentou acompanhá-la às bancas de flores. Abeirou-se delas sozinha e parou diante de uma durante um
bom minuto até a mulher de cabelo ruivo que atendia os clientes a ver.
– Celia? Julguei que os meus olhos pudessem estar a enganar-me. – A mulher saiu de trás da banca e
envolveu-a com braços afetuosos, maternais.
– Que bom ver-te, Marian. Já lá vão alguns meses, eu sei.
Marian afastou os ditos meses com um gesto displicente. – Se me trouxeste flores das tuas, sinto muito,
mas para hoje é tarde de mais. Podes ver que tenho bastantes para vender aqui mesmo e que o tempo está
a passar.
– Não trouxe flores, Marian. Trouxe uma proposta.
Os olhos de Marian denotaram surpresa, depois humor. – Foste uma boa menina ao pensares em mim,
querida, mas estou velha de mais e gasta, se acabaste por te decidir abraçar o ofício e procuras mais
pombas para o teu pombal. Os meus pêsames pela tua mãe. Teria ido, pelos velhos tempos, mas...
– Agradeço-te a lembrança, Marian. No entanto, não estou a recrutar da forma que pensas. Fizeste-me
um grande favor, há cinco anos, quando me falaste de Mrs. Joyes e do seu coração bondoso. Também
gostava, agora, de te proporcionar uma coisa boa.
Marian indicou a banca de flores. – Já o fizeste, não foi? Com aquele dinheirinho que me deste pude
começar isto, e as flores que te sobram e que às vezes me trazes ajudam mais do que imaginas. Consegui
erguer-me, mas continuo nos becos que conheço desde que nasci.
Celia receou que a ligação de Marian ao bairro pudesse interferir com a proposta. Também não
acreditava que Marian tivesse desistido completamente de ser prostituta. Não para sempre, pelo menos.
Se as flores do dia não pagassem a lenha e a comida, facilmente venderia outra coisa cuja procura era
sempre elevada. Mesmo na meia-idade, Marian era uma mulher bonita que atrairia o olhar de um homem
que procurasse prazer fácil.
– A minha proposta implicaria que deixasses o bairro, mas não é para muito longe, Marian. Poderias
cá vir com frequência. Preciso de alguém em quem possa confiar, e quem melhor do que a mulher que me
amparou quando eu fiquei sozinha e perdida?
– Perdida não, querida. Se não fossem as lágrimas que tinhas nos olhos, terias visto muito bem onde
estavas, e que isto não era lugar para alguém como tu.
Aquelas lágrimas haviam-lhe toldado o julgamento quanto ao perigo daquelas ruas, mas também ao
carácter impossível do que acabara de fazer. Fugir fora necessário, mas também uma imprudência, tendo
em conta que, ao deixar a mãe, não tinha a mínima ideia do local para onde iria ou do que iria fazer.
Só o inferno espera por ti nestes becos, querida. Há proxenetas à espreita em cada esquina, à
procura de raparigas como tu, e essa tua cara e esse teu cabelo garantem-lhes uma boa recompensa
da alcoiceira que te comprar. Tenho aqui dinheiro por isso vamos alugar uma carruagem e pôr-te em
casa agora.
Fora o que a prostituta ruiva dissera depois de escorraçar aos gritos um proxeneta persistente, daqueles
a que aludira. Quando Celia se recusara a regressar a casa, Marian falara-lhe da bela viúva que por
vezes visitava as floristas de Covent Garden, para distribuir o que restava das suas flores às mais pobres
de entre elas.
– Herdei uma casa, Marian. Vou fazer-me sócia de Daphne. Preciso de alguém que vá viver comigo e
pensei imediatamente em ti. Será uma vida segura, espero, e sei que te enquadrarás perfeitamente na
situação.
Os olhos de Marian brilharam com interesse enquanto ouvia Celia descrever melhor os seus planos.
Mais para o fim, porém, o brilho diminuiu quando Marian passou em revista a multidão da praça.
– Há uma jovem que seria melhor para ti – principiou. – Eu agora estou bem. Esta mulher, Bella, como
lhe chamo, passa fome. É só uma questão de tempo até ela descobrir uma forma de comer.
O coração de Celia encheu-se de alegria. Abraçou outra vez Marian. – Não quero que ela venha em vez
de ti, mas aceito que ela venha contigo. Se o destino dela é importante para ti a ponto de a propores como
tua substituta, então espero que te importe tanto que possas sacrificar a familiaridade destas ruas e vir
morar a pouco mais de um quilómetro daqui.
Os olhos de Marian encheram-se de lágrimas. O medo que ela tinha daquela mudança tornou-se visível,
mas também triste; uma esperança desesperada transparecia na forma como olhou para Celia. – Não é
próprio, tu com uma mulher como eu ao teu serviço.
– Ninguém saberá a tua história, Marian. Serás apenas a mulher sensata que cozinha para a filha de
Alessandra Northrope. Se a nossa casa for alvo de desprezo, penso que se deverá a mim.
Marian pôs-se muito direita e a sua figura pareceu-lhe formidável como na noite em que fez frente ao
proxeneta. – É isso que têm feito, então? Acabo com essa conversa se algum dia me chegar aos ouvidos.
Vou entender-me com esses que falam contra ti.
– Tens de estar comigo para fazeres isso, por isso está-me a parecer que aceitaste a minha proposta. –
Celia riu-se, pegou nas mãos de Marian e começou a dançar e saltitar de alegria até Marian começar a rir
também. Dançaram e esbarraram em baldes de flores até, sem fôlego, acabarem nos braços uma da outra.
– Vamos buscar as tuas coisas, e apanhar Bella, também – incitou Celia. – Estou de carruagem e tenho
um condutor que nos ajudará. – Apontou para o cabriolé, e para Jonathan.
Marian semicerrou os olhos. – Ele é tão bem-parecido à luz do dia como é ao anoitecer?
– Mais ainda.
– Um cavalheiro, a julgar pela figura. O que é que ele quer contigo?
Celia incitou Marian a avançar. – Nada. Depois explico tudo, mas ele não quis que eu viesse para aqui
sozinha, desprotegida; só isso.
Marian olhou-a de lado. – Acredita em mim, querida, pela maneira como ele olhava para ti há um
minuto, ele quer definitivamente alguma coisa.

Jonathan chegou à porta que ficava no extremo oeste de Piccadilly Street às nove e um quarto. A
fachada de pedra do edifício erguia-se, bem alta, à sua frente, com filas de janelas compridas iluminadas
por luzes que rasgavam a noite.
Os criados, trajando perucas, calças justas, sapatos e a restante libré de Castleford, esperavam-no. Um
deles abriu-lhe imediatamente a porta à chegada e, logo a seguir, outro pegou-lhe no chapéu e nas luvas.
Um terceiro, cuja sobrecasaca ostentava um bordado dourado que o assinalava como oficial importante
daquele exército, conduziu-o pelas escadas acima.
Os tetos eram altíssimos, cobertos de cornijas douradas e pinturas em relevo de deuses gregos a
divertir-se. Mais quadros revestiam as paredes. Como que para enfatizar o facto de o duque de
Castleford ser um dos homens mais ricos de Inglaterra, um óleo de Ticiano representando Zeus e Ariadne
– um quadro que constituiria a joia da coroa da maior parte das coleções de família – fora relegado para
uma parede obscura da escadaria. Devia entender-se com isto que a galeria e as salas de visitas
ostentavam trabalhos melhores do que os do mestre do Renascimento.
O criado conduziu-o por uma dessas salas, decorada, tal como os próprios criados, no estilo que se
popularizara durante os primeiros anos do reinado. O atual duque não fizera grandes mudanças na
decoração quando herdara o título e a casa. Não porque fosse indiferente, embora os seus hábitos
pudessem levar algumas pessoas a presumir isso. Castleford, pelo contrário, gostava do excesso daquele
precioso compartimento e das alusões a realeza e privilégio que ele comunicava.
Dois criados abriram de par em par as portas que se encontravam no outro extremo da sala, facultando-
lhe um acesso cerimonioso a uma divisão de proporções mais íntimas, consideravelmente menos
dourada. As janelas que ocupavam as três paredes deixavam entender que o sítio seria um refúgio
arejado em noites quentes de verão e que proporcionaria perspetivas agradáveis da cidade e do rio
durante o dia.
Os criados deixaram-no sozinho na sala. Jonathan arrependeu-se de ter chegado atrasado apenas quinze
minutos, em vez de trinta. As suas tentativas de garantir que não teria de suportar sozinho a presença de
Castleford provavelmente teriam sido vãs.
A carta fora mais uma convocatória do que um convite, e era tão presunçosa quanto o homem que a
enviara. A surpresa não residia no facto de a ter recebido, mas sim o seu tom imperioso. Havia questões
pendentes entre ele e Castleford, nenhuma das quais agradável, e ele nunca esperou que o duque voltasse
a contactá-lo.
Ocupou-se a examinar os quadros da sala. Vincadamente clássicos, e de execução mais recente, muito
provavelmente não teriam sido herdados. Mau grado a sua exuberância pessoal, o duque parecia preferir
composições organizadas na arte que comprava para si.
– Estás atrasado, Albrighton.
Jonathan deu meia-volta. Tristan St. Ives, duque de Castleford, olhava-o da lareira. Um dos painéis da
parede devia ocultar uma passagem.
Castleford parecia troçar sempre da sua própria posição e riqueza, embora tirasse o maior partido de
ambas. Naquele momento, o que a sua postura comunicava, subtilmente, era aborrecimento e privilégio, e
a expectativa da deferência que ele dizia considerar irritante.
Trajando uma indumentária que provavelmente custava centenas de libras, conseguia, com a sua
indómita e elegante cabeleira castanha e olhos diabólicos, quase dourados, relembrar a qualquer um que,
entre os direitos de que gozava um duque, figurava aquele de fazer o que quer que lhe desse no goto, e
quem não gostasse que fosse para o inferno.
Segundo o que Jonathan ouvira dizer, o duque continuava maioritariamente interessado em entregar-se
ao deboche e à bebida. No entanto, naquela noite, pareceu-lhe bastante sóbrio.
– Ao que parece, estou adiantado, Vossa Graça. Não atrasado. Whist, dizia a carta. Os outros dois
ainda não estão cá, a não ser que tenciones recrutar o teu administrador e o cavalariço para se juntarem a
nós.
– Os outros vêm às nove e meia. Para ti foi uma hora especial.
– Que honra.
– Não era minha intenção fazer-te honras.
– Isso já se sabe.
– Se assim é, porque o disseste?
– Para ser educado.
– Já dispensámos estes rituais entediantes, diria eu.
– Então disse-o para evitar uma discussão, se possível, rezando que os teus outros convidados
chegassem muito em breve.
Castleford atirou-se para um cadeirão com grandes almofadas. O corpo e a postura permaneciam
lânguidos, mas os seus olhos atravessavam Jonathan.
Teria sido melhor se estivesse bêbado, decidiu Jonathan.
– Hawkeswell vai chegar tarde. Chega sempre. É propositado, para enfatizar que o seu título precede o
meu em dois séculos e que não se impressiona comigo. Summerhays é aquele que mais provavelmente
chegará a horas, a não ser, claro, que tenham vindo juntos.
– Que bom da tua parte, reunires-nos ao mesmo tempo sob os teus magníficos tetos.
– Bom, tivemos os nossos momentos juntos há anos. Agora, estamos todos envolvidos naquele assunto
a norte. Precisamos de celebrar o nosso sucesso.
Jonathan esperou que não fosse realmente aquele o objetivo da reunião da noite. Todos acreditaram
que ele se encontrava em investigações quando Hawkeswell esbarrou com ele no Staffordshire, alguns
meses antes. Era verdade, mas não podia falar no assunto – Ouvi rumores de que o Ministério do Interior
tem uma dívida para com todos nós – disse ele. – O que se diz é que o assunto ficou resolvido muito mais
rapidamente devido à vossa ajuda.
– Devido à nossa interferência, queres dizer. Suspeito que tivesse terminado de forma diferente se não
fôssemos nós, também. Não me parece que te tivessem enviado lá para descortinar a verdade, antes para
a esconder, e talvez até para dar uma ajuda. O que tens a dizer sobre isto?
– Podes pensar o que te aprouver, e sem dúvida o farás, independentemente do que eu disser.
– O que não servirá de nada, bem sei. É típico em ti. A propósito, um dos nossos estimados pares
daquela região julgou por bem rebentar com os miolos na semana passada. Vão dar-lhe outro nome, claro
está. Acidente ou algo parecido. Um último pormenor a limpar naquela confusão antes de vires para
Londres, Albrighton?
– Penses o que pensares de mim, não sou nenhum assassino.
– Os soldados também não são. Contudo, no final, há pessoas que acabam mortas devido às suas ações.
Não me interpretes mal, não te censuro esse último pormenor. Alguém tinha de lhe recordar a saída
honrada. Eu próprio me deslocaria ao norte para o fazer, se necessário fosse.
– Porque não o fizeste?
Castleford reprimiu um bocejo. – Não me pareceu que ele fosse ter coragem para fazer a coisa certa. E
depois? Tinha de acontecer, para o bem de Inglaterra, mas não me agradava ser um dos soldados, se
fosse preciso ajudá-lo. É um alívio ele ter conseguido fazê-lo sozinho.
Só que ele não conseguira fazer nada sozinho e Castleford adivinhara-o.
O homem em questão não fora capaz de resolver o assunto com as suas próprias mãos, e aguardara que
Jonathan se encarregasse disso, como se encarregara de tantas outras coisas daquela história lamentável.
Evidentemente, Castleford e muitos outros presumiram a mesma coisa. Havia limites, porém, para o que
um homem podia justificar, por muito boa que a causa fosse. Até uma alma obscura tinha alguns
momentos de clareza moral.
A recusa de Jonathan fora um choque para um covarde que queria morrer num «acidente» com o bom
nome intacto. Jonathan não sabia quem finalmente teria puxado o gatilho depois de ele próprio ter
deixado o homem, a pistola e a biblioteca a tresandar a desespero e terror. Pensava que teria sido um
criado solidário, ou até a esposa.
– Então estás a dizer que tudo está bem quando acaba bem, independentemente da forma como se
alcança esse fim. – Não gostou do tom cansado e amargurado da própria voz. – Ainda bem que me fizeste
vir mais cedo, para poderes agraciar-me com a tua aprovação.
Aqueles olhos fixaram-se nele. O sorriso endureceu. O sarcasmo não escapara a Castleford. – Na
verdade, quis que viesses mais cedo para te dizer que não te culpo pelo que aconteceu em França há dois
anos. Não houve grande oportunidade para to dizer desde então.
– Queres dizer que já não me culpas a mim.
– Que diabo, nunca te culpei.
– Espero que não te culpes a ti, então. Não havia escolha.
– Há sempre uma escolha – rosnou ele. Depois relaxou, e encolheu os ombros. – Mas o dever chamava,
e tudo isso.
– Sim, tudo isso.
Nisto, chegou Summerhays, misericordiosamente nada atrasado. Castleford ficou logo mais bem-
disposto ao avistá-lo. – Espero que tenhas trazido bom dinheiro, Summerhays. Planeio fazer dupla aqui
com Albrighton, e, se bem me lembro, ele nunca bebe quando joga, por isso aquela cabeça vai continuar
a funcionar na perfeição.
– Lamentavelmente, ele não pode jogar sozinho, mas ver-se-á forçado a ter-te como parceiro com as
tuas jogadas erráticas – provocou Summerhays. Em seguida saudou Jonathan calorosamente. Não se viam
há anos. Também um velho amigo dos dias de estudante de Jonathan, Lord Sebastian Summerhays, irmão
de um marquês e um membro importante da Câmara dos Comuns, no passado conhecera suficientemente
bem suas as atividades para evitar fazer perguntas acerca delas.
– Soube que regressaste de França e moras cá há quase um ano – comentou Summerhays.
– Em Inglaterra sim. Raramente em Londres.
– Mas ficarás algum tempo em Londres, desta vez?
– Algum tempo.
Summerhays abriu o sorriso que fazia com que as mulheres desfalecessem e os homens verificassem os
cordões à bolsa. – Tens de nos fazer uma visita para conheceres a minha mulher, Audrianna. Já perguntou
por ti.
Jonathan não conseguia imaginar porquê. A sua confusão deve ter sido evidente, pois Summerhays
acrescentou: – É muito amiga de Lady Hawkeswell, que sabe algumas coisas a teu respeito. Dada a
curiosidade que se manifesta em minha casa, saberá bastante mais do que eu atualmente.
Summerhays esperou que Jonathan colmatasse as falhas de informação e satisfizesse a sua própria
curiosidade. Jonathan perguntava-se o que Lady Hawkeswell teria ou não dito acerca da sua visita à nova
casa de Celia.
O impasse silencioso foi interrompido por Castleford. – Ah! Aqui está Hawkeswell. Podemos deitar
mãos à obra, então. Tu e Summerhays podem poupar-nos tempo e pôr já as carteiras no meu cofre,
Hawkeswell.
O conde de Hawkeswell escarneceu ruidosamente. – Albrighton, podemos tirar à sorte se quiseres.
Não é justo forçar-te a ficar com ele, pois ser-te-á difícil suportar as perdas que ocorrerão por conta do
seu intelecto embriagado.
– Parece suficientemente sóbrio. Vou arriscar.
– Obrigado – disse Castleford. – Olhou Hawkeswell com soberba. – É terça-feira, ou já te esqueceste?
– Uhhhhh, terça-feira – troçou Hawkeswell, arregalando os olhos.
– Terça? E isso importa? – indagou Jonathan.
Summerhays aceitou o conhaque que um criado ofereceu e ocupou um lugar à mesa de jogar. – Aqui o
Tristan já não bebe às terças-feiras. É o dia de reunir as suas faculdades e se concentrar nos deveres.
Durante o resto da semana... – Esclareceu, encolhendo os ombros.
– Não acredites que fará alguma diferença – interveio Hawkeswell. – Nos outros dias fica em tão mau
estado que um dia de sobriedade dificilmente ajudará. Conta com jogadas bizarras e perdas monumentais.
Devias insistir mesmo que tirássemos à sorte.
Castleford ouviu as provocações com bom humor. Mas o duque sempre se comprouvera com a sua
reputação.
Jonathan ocupou a cadeira em frente ao anfitrião. – Se bem me lembro, metade do cérebro dele vale
mais do que a maioria dos cérebros inteiros, por isso arriscarei. Ainda bem que combinaste isto para
uma terça-feira, Castleford, para pelo menos não me arruinar sem luta.
– Oh, ele não escolheu a terça a pensar em ti – comentou Summerhays, enquanto dava a primeira mão. –
Foi por causa das meretrizes.
– Terça é o único dia em que não estão por aqui – explicou Hawkeswell, examinando as cartas. – Num
outro dia qualquer da semana a visita corre o risco de se deparar com pelo menos um par de nádegas
despidas nalgum canto da casa, prontas para a fornicação na eventualidade de o nosso amigo passar por
lá. Visto que o Summerhays e eu agora somos casados, teríamos de recusar caso ele nos convidasse para
o serão em qualquer outro dia que não à terça-feira.
Castleford olhou com resignação para Summerhays, à sua direita, e para Hawkeswell, à sua esquerda.
Depois olhou para o outro lado da mesa, para Jonathan.
– Tenho uma réplica inspiradíssima na ponta da língua, relacionada com esposas e nádegas despidas.
Desgraçadamente, não me atrevo a pronunciá-la porque...
– Porque alguém poderia desafiar-te para um... – concluiu Summerhays.
Castleford suspirou, com dramatismo. – Vês? Tornaram-se tão entediantes que até admira que consiga
suportá-los. A verdade é que só aceito a companhia deles às terças-feiras porque é uma altura em que me
aborreço a mim próprio. – Sorriu, um diabo reconhecendo, encantado, noutro homem, o seu potencial
demónio. – Tu, contudo, podes visitar-me sempre que quiseres.
Jonathan não esperava que aquela amizade antiga e errática fosse sequer reabilitada, quanto mais com
aquela rapidez e facilidade. Pareceu-lhe que não podiam censurar-lhe o facto de achar tudo um bocado
suspeito. Pelos olhares que Summerhays e Hawkeswell trocaram, também o pensavam.
– Sinto-me honrado. Não sei o que dizer.
– O teu primeiro lance será suficiente. Que seja dos bons, para darmos uma tareia a estes dois.
CAPÍTULO 7

– E stá resolvido, então – anunciou Marian. – Eu trato da comida e da cozinha e aqui a Bella trata da
limpeza, de te ajudar a vestir e das outras coisas. – Olhou para Bella, procurando confirmação.
Celia fez o mesmo. Bella não dissera grande coisa desde que a procuraram numa cave que ficava por
baixo de uma papelaria. As tentativas de Bella de tornar aquele sítio numa casa não tinham conseguido
fazer desaparecer a escuridão e a humidade, e a própria jovem não conseguiu opor-se quando Marian a
instruiu para reunir o que quisesse e as seguir.
De cabelo acobreado, magra e com uma debilidade que indiciava falta de comida, ela obedecera, sem
exprimir alegria ou irritação. Mr. Albrighton, que as conduzira à enxovia, mostrou grande gentileza para
com ela, pegando na pequena trouxa que ela fez com as roupas e segredando-lhe palavras
tranquilizadoras, como se suspeitasse que ela precisasse delas.
Bella encontrava-se agora sentada num banco próximo da lareira, extasiada com o seu calor. Não
contribuíra para a discussão das tarefas, mas respondera com um aceno de cabeça à divisão de tarefas
efetuada por Marian.
– Tu e eu vamos já para cima – disse-lhe Marian. – Há um quarto de bom tamanho que podemos
partilhar, no andar do cavalheiro, na ponta oposta.
Marian alarmara-se quando soube que Mr. Albrighton residia na casa. Pouco dada a confiar nos
homens, Marian provavelmente assumiria outro dever, o de dama de companhia.
– Antes de se retirarem, gostaria de falar sobre algumas regras da casa – interveio Celia. – Podem
achá-las um pouco estranhas, mas a minha experiência é que são extremamente eficazes para garantir a
coexistência pacífica entre mulheres. São as regras segundo as quais vivíamos com Daphne.
Marian acenou em concordância. – Se são boas para Mrs. Joyes, também o serão para nós.
– A primeira é não nos intrometermos na história e na vida umas das outras. Nem no passado, nem no
presente. O que significa que, Bella, se não quiseres contar-me acerca da tua família, ou da razão pela
qual estás sozinha, nunca to pedirei.
Bella inclinou a cabeça, desconcertada por este direito a manter a sua reserva.
– Todas contribuiremos para a casa conforme pudermos. As duas já concordaram com isso,
voluntariando-se para ajudar na sua manutenção. E se nos ausentarmos da casa com intenção de ficar fora
mais do que o tempo normal, informamos as outras, para ninguém ficar preocupado.
– Parece razoável – concordou Marian, voltando a acenar afirmativamente.
– Como mulheres independentes, devemos proteger-nos umas às outras e cada uma deve aprender a
proteger-se a si própria – prosseguiu Celia, explicando um outro importante preceito pelo qual se regera
durante os cinco anos que vivera com Daphne.
– Sem qualquer dificuldade. Estou muito habituada a defender-me e aqui à Bella também, uma vez por
outra. Não é assim, Bella?
– Então estamos conversadas quanto às regras básicas – concluiu Celia. – Há mais algumas de menor
importância, que explicarei depois.
Marian pôs-se em pé. – Então vou preparar banhos para nós na cozinha para nos lavarmos do passado
e, de manhã, começarmos de novo.
– Sim, seria bom – disse Bella. Era o primeiro contributo que dava para a conversa. Celia esperou que
fosse sinal de que vencera o seu medo.
Bella fez menção de seguir Marian, mas hesitou. Voltou para trás muito depressa, pegou na mão de
Celia com as duas mãos e levou-a aos lábios.
Fechou os olhos com força ao depositar um beijo na mão que segurava. Depois desapareceu,
apressando-se a alcançar Marian.

Os barulhos vindos da cozinha converteram-se em risinhos e passos a subir as escadas de trás. Na


biblioteca, Celia pousou o livro e ficou a ouvir Marian e Bella a subir para o corredor do sótão e depois
para o quarto que partilhariam.
Havia outros quartos lá em cima, além do delas e do de Mr. Albrighton. Um era usado para arrumos.
Celia espreitara lá para dentro quando mostrara a Marian as escolhas de que dispunham. Precisou de usar
a chave para entrar e, no escuro, reparou apenas que continha um velho baú.
No dia seguinte, ou depois, iria finalmente lá a cima ver o que a mãe deixara naquele refúgio. Talvez
ali se encontrasse alguma pista sobre o nome do seu pai.
Fora um dia preenchido e uma noite longa, e Celia sabia que também ela devia ir dormir. Mr.
Albrighton não voltara, mas ele certificar-se-ia de que as portas estavam bem fechadas quando o fizesse,
se é que o tencionava fazer.
Os acontecimentos do dia deixaram-na demasiado inquieta e não conseguia dormir. A casa, que
permanecera praticamente vazia nos últimos dias, parecia agora cheia com os novos espíritos que a
habitavam. Tirou a capa do prego, aconchegou-se bem, e saiu de casa para um passeio noturno pelo
jardim antes de se recolher.
Caminhou até aos arbustos e ao canteiro alqueivado que ficava à sua frente. Com certeza Verity só
precisara de um olhar para saber exatamente o que fazer com ele na primavera. Verity havia descoberto
uma verdadeira vocação quando vivera na Flores Preciosas, primeiro aprendendo tudo o que pôde com
Daphne e depois consultando livros e revistas e experimentando por si própria. O seu conde permitia-lhe
dar continuidade ao passatempo e a correspondência de Lady Hawkeswell com os especialistas em
horticultura de toda a Inglaterra era sempre retribuída.
Verity mostrara-se amável e não mencionara que o jardim tinha um ar abandonado. As breves visitas
da mãe não facilitavam uma manutenção regular, sem dúvida. Havia muito trabalho a fazer ali na
primavera.
Cogitava sobre o assunto e sobre as alterações que faria. Os seus pensamentos voltaram-se para a mãe
depois de alguns minutos. Recordou a outra casa, as reuniões vespertinas que a mãe gostava de organizar,
à moda francesa, e os jantares em que fazia questão que Celia cantasse.
Os homens que participavam eram todos de boa linhagem e grandes rendimentos, tivessem títulos ou
não. Devia ter-se lembrado daquilo. Claro que Jonathan teria de ter um ou outro, para ser incluído.
Tentou ignorar a estranha tristeza que pensar naquilo lhe provocava. Era uma tolice reagir assim. Mal o
conhecia. A intimidade que a partilha da casa propiciara, porém, parecia arruinada. O entusiasmo nunca
mais seria tão despreocupado. Havia regras no mundo que ele frequentava quando saía daquela casa. Um
homem na situação dele provavelmente calcularia cada ato e cada sorriso com essas regras em mente.
Forçou os pensamentos a regressar às festas da mãe. Muitos homens iam e vinham daquelas reuniões,
mas alguns reapareciam uma vez e outra. Tentou recordar os seus rostos e perguntou-se se alguns as
teriam frequentado durante anos. Seria possível que o seu pai não tivesse pertencido apenas ao passado
da mãe? Poderia ela tê-lo conhecido até numa dessas festas?
Foi percorrendo as suas memórias no caminho lento de regresso à casa. Quando se aproximou da porta
do jardim, uma sombra mexeu-se, à direita, onde estava um banco. Ao avançar, viu Mr. Albrighton
sentado, os seus escurecidos pela luz da lua.
– Está frio de mais para se estar sentado num jardim escuro – disse ela, depois de o cumprimentar.
– Está frio de mais para passear no jardim depois da meia-noite – replicou ele.
– Acaba de regressar? – indagou ela, levantando os olhos para o sótão. – Provavelmente já dormem, se
o seu receio era o barulho que fariam na excitação desta primeira noite.
– Já estou aqui há algum tempo. Passou por mim quando saiu. Estava tão absorta nos seus pensamentos
que decidi não a incomodar.
Ela sentou-se no banco ao lado dele e aconchegou a capa. – Não tão absorta. Ia muitas vezes passear à
noite no sítio onde vivia antes. Os jardins eram muito maiores porque estávamos no campo, mas não
ficava longe de Londres. Cultivávamos flores e plantas para venda. A minha querida amiga Daphne é
dona da propriedade, mas todas a ajudávamos conforme podíamos.
– É aí que tem estado desde que saiu da casa da sua mãe?
Ela fez um sinal de assentimento. – Depois Verity juntou-se a nós durante os últimos dois anos. E
Audrianna, agora mulher de Lord Sebastian Summerhays, também ficou connosco algum tempo antes de
se casar. É assim que conheço senhoras tão ilustres, no caso de se interrogar por que me visitava a
mulher de um conde.
Deu por si a falar-lhe das estufas e dos jardins de Daphne e da estranha família que todas haviam
criado naquela casa.
– E agora todas partiram – comentou ele. – Duas para casar, e Celia para...?
Ela riu-se com a inflexão e a pergunta. – Jonathan nem sequer ergueu uma sobrancelha hoje quando eu
fui buscar Marian e a amiga dela. No entanto, deve perguntar-se o que andarei a fazer. É verdade que fui
eu a proporcionar a pior especulação possível naquela primeira noite. Não se preocupe, Mr. Albrighton.
Não viverá por cima de um bordel.
– Não estava preocupado com isso.
O que não significava que ele não possa ter pensado que poderia acontecer. – Vou tornar-me sócia de
Daphne. É para isso que aquelas prateleiras são. Para plantas. – Descreveu o plano. Ele ouviu
atentamente. Ela via nos olhos dele que lhe prestava atenção.
Era muito fácil falar com ele. Saiu-lhe tudo naturalmente, os planos que tinha para a casa e para a
sociedade, e o seu desejo de forjar uma vida para si própria. – Fui viver com Daphne quando era ainda
muito jovem. Já não sou e estava na altura de partir. Julgo que ela o compreende, mesmo que deseje que
eu tivesse ficado.
– Foi generoso da parte dela acolhê-la. Provavelmente viu que era uma criança adorável, mas que não
deixava de ser uma criança e que precisava da ajuda dela.
– Era isso que pensava de mim naquela altura? Que eu era uma criança?
– Sim. Uma criança muito bonita e inocente. Demasiado jovem para o que a sua mãe planeara.
– Com dezassete anos já era mais velha do que algumas jovens que entram na profissão. É considerada
uma boa idade para o casamento, também.
– Algumas das raparigas que se tornam esposas ou amantes aos dezassete anos também são demasiado
infantis. Outras não. Não se trata de uma questão de idade.
Ela sentiu-se corar. Sabia por que razão ele dizia aquilo. – Lembra-se de mim a chorar naquele dia. A
minha desilusão é a razão pela qual me considerou infantil.
Ela esbarrara nele quando fugira de Anthony. Mr. Albrighton viera despedir-se da mãe, porque voltaria
a partir. Cega pelas lágrimas, correra direita a ele na sua fuga.
Ele segurara-a antes que ela caísse com a colisão. Sentara-a nas escadas e perguntara-lhe porque
chorava. Ela contara-lhe, àquele estranho que tinha o condão de inspirar confidências. Saíra-lhe, e ele
tudo absorvera com os seus olhos insondáveis.
Ele não fingia que aquele episódio não acontecera, ou que o havia esquecido. – Essa desilusão é-lhe
desculpável, independentemente da sua maturidade, Miss Pennifold.
– A minha mãe acabara de passar um ano a ensinar-me a não ter ilusões, e repreendeu-me por eu ter
esquecido a lição mais importante.
– Se não tivesse sentido nada, seria o sinal de que já estava empedernida. Existe uma grande diferença
entre um coração endurecido e a visão do mundo de uma criança.
– Acontece-lhe ainda ver essa criança quando olha para mim?
Ele voltou-se para ela e olhou-a muito diretamente. – De todo. Vejo apenas uma mulher, bela e
desejável, que à noite ilumina trilhos de jardins com a sua mera presença. O brilho da lua procura-a, tal
qual a uma flor branca. Mesmo ali ao pé dos arbustos, distinguia-se perfeitamente a sua figura na noite.
– Esteve a observar-me este tempo todo, aqui sentado? Porquê?
– A Celia sabe porquê.
Sim, sabia. Ouvi-lo a admiti-lo mudou tudo e conferiu imediatamente àquela conversa íntima uma nova
profundidade. Sentia a tensão deliciosa, a sensualidade e aquela excitação proibida.
– Talvez lamente que eu não esteja a planear um tipo diferente de negócio – brincou ela, para aligeirar
o ambiente, que subitamente pulsava com um potencial de sedução. Não obstante, continuava a perguntar-
se se ele não estaria a aguardar para ver quanto do legado ela aceitaria, tal como ameaçara naquela
primeira noite.
– Talvez, de alguma forma.
Bom, estava dito. Não podia dizer que não tinha sido avisada. Embora, naquele preciso momento, com
as confidências dela a uni-los e o calor dele junto a si, as implicações daquilo não parecessem muito
significativas. Ele era perfeitamente irresistível, tal qual as palavras de Verity, e ela não conseguia
importar-se muito com isso.
Ele virou novamente o rosto para si e ela viu o sorriso transformar-se numa expressão diferente, que
lhe fez descer um arrepio pelo corpo. Saboreou o tremor e todas as outras pequenas respostas à tensão
que existia entre os dois. Para seu alívio, as descobertas do dia nada haviam deitado a perder. Podia
haver um abismo social entre eles, mas aquele poder parecia transpô-lo durante algum tempo.
A mão dele começou a mover-se, hesitou, mas acabou por prosseguir. Pousou na face dela. O toque era
quente e seco. A ligação física intensificou de tal forma a ligação invisível, eletrizante, imperiosa, que
ela ficou sem fôlego.
Fá-los pedir sempre. Nunca que o tomem como certo. Especialmente com o primeiro beijo.
Ignorou a lição da mãe. Sentiu o beijo a vir e não o fez pedir porque não quis a interferência de
palavras.
A boca dele tomou a dela. O seu coração deu um salto e apercebeu-se de todas as sensações a pulsar
em uníssono pelo corpo todo. Presta atenção às respostas do teu corpo. Saboreia o prazer. Não
resistas e não será uma obrigação mas um doce jogo. Ela não teria sido capaz de resistir nem de
ignorar nada daquilo, mesmo que tivesse querido fazê-lo. Não precisou de se concentrar para sentir o
prazer. Este inundou-a.
Um beijo. Bastante longo. Mais longo do que o necessário, mesmo para um beijo roubado num jardim.
Um toque. Aquela mão no seu rosto, guiando e controlando subtilmente. Uma presença, misteriosa,
profunda e desconhecida que, no entanto, a preenchia e a envolvia e suscitava maior resposta do que
conseguiria explorar.
Ela sabia. Sabia que não iria mais além, ainda que o seu corpo estivesse agora voluptuosamente
sensível e aguardasse mais. Ainda que ele a houvesse encantado, sabia que o beijo não fora um acidente
impulsivo, mas um passo calculado. Um primeiro passo, apenas, ao qual talvez não se seguisse mais
nenhum.
Celia não ficou surpreendida com o que aconteceu nem com o que não aconteceu, com o que ele tomou
e com o que não tomou. O beijo terminou como começara, lento e sedutor, e sem palavras. Por fim,
aquela mão permaneceu no seu rosto e ele limitou-se a olhar para os olhos dela.
Agradava-lhe o facto de ele não falar. Ele não deu as desculpas exigidas dos homens às mulheres
respeitáveis, como se tais desculpas fizessem alguma diferença. Estava aliviada por ele não fingir que
ela era alguém que não era, e também por não se comportar como se aquele beijo encerrasse a sua
perdição.
Ele foi-se embora e deixou-a ali, no jardim, sentada onde ele havia estado. Ela agarrou-se à doce
alegria tanto tempo quanto pôde, contemplando os arbustos negros e perguntando-se se o luar a teria de
facto procurado na noite.

Jonathan acordou de mau humor. Bastara aquele beijo para o torturar durante a noite inteira.
Finalmente ouvira Celia entrar e subir as escadas de trás. Ouvira cada passo sem se mexer enquanto o
seu corpo a incitava a continuar, a subir ao seu andar, até à sua porta. Ele sabia que ela não o faria, o que
não o impedira de cerrar os maxilares até muito depois de os passos dela se perderem na direção do seu
próprio quarto, na parte da frente da casa.
Havia sido, decidira ele ao amanhecer, o beijo mais imprudente que alguma vez dera a uma mulher na
sua vida. Mas ela encantara-o tão completamente, ali sentada à noite, no jardim, falando-lhe do sítio onde
vivera e dos seus planos para aquela casa.
Admirava a forma como ela tentava criar um mundo para si própria e obter um rendimento que lhe
granjeasse a independência. Abonava a favor dela, e ela mostrara-se genuinamente contente com a sua
estratégia. Em resposta, ele mandara a sua sensatez às urtigas e beijara-a simplesmente porque o quis.
Porque precisava.
Ela arrebatara-o com o prazer vívido e fresco que retirara daquele beijo simples. Não lhe parecia que
alguma vez tivesse dado um beijo com tanta consciência de que a mulher não conhecia culpa, hesitação,
medo, expectativas ou arrependimentos. Ele duvidava que ela tivesse passado metade da noite acordada
a debater a sensatez do sucedido. Estava muito certo de que, se o tivesse feito, não teria chegado à
conclusão que havia sido um erro. Não pensaria assim. Não fora criada como as outras mulheres.
Esperava-o água tépida quando abriu a porta do quarto. Não sendo ideal, era melhor do que ir ele
próprio içar água fria de um poço. Perguntou-se se indicaria que pelo menos agora Celia não se
importava que ele estivesse lá.
Ao esticar-se para o balde, o olhar fugiu para a porta que ficava o outro lado do corredor. Deparou
com um cadeado de bom tamanho. Já debatera se haveria ou não de forçar a entrada.
Celia ausentava-se da casa vezes suficientes para ele espreitar os compartimentos dos andares de
baixo. Não descobrira nenhum esconderijo de papéis nem registos, nem nada que indicasse que
Alessandra deixara um historial dos seus amantes. O quarto do sótão que ficava à frente do seu serviria
provavelmente para arrumos. A sua missão só estaria completa depois de ver o que continha.
Celia tinha a chave. Não lhe parecia que ela tivesse passado muito tempo a examinar o conteúdo do
quarto, mas provavelmente usara a chave para pelo menos ver o que tinha no interior. Talvez um dia ela
voltasse a entrar lá, possivelmente com as suas duas novas criadas, para o limpar. Ele devia entrar lá
antes que tal acontecesse.
A Marian do cabelo ruivo espreitou por detrás da porta do quarto da outra ponta do corredor. Tinha um
pano húmido na mão.
– A água já deve estar um bocado fria, Mr. Albrighton. Vai levantar-se a esta hora a maior parte dos
dias, senhor? É difícil ter água quente para um inquilino sem sabermos os hábitos dele.
A água não fora obra de Celia. Claro que não. Não passara de um beijo, afinal.
– Já estou acordado há algumas horas. Não contava que me trouxessem água e não reparei mais cedo. –
Acostumara-se a esperar até às dez horas para ir ao poço, para que Celia tivesse privacidade durante a
manhã.
– Às oito está bom para si? Eu acordo com o nascer do dia. Não estou habituada à luz toda que temos
aqui em cima. – Atravessou o corredor. – Bella e eu lavamos hoje a roupa branca. Podemos entrar, tirá-
la e fazer a cama de lavado se quiser, ou pode deixá-la à porta se não quiser que entremos. Para nós é
igual.
– Entrem se quiserem, mas não toquem na mesa, nem sequer para limpar o pó. Posso perder alguma
coisa que fique fora de sítio.
Ela espreitou para trás dele, para dentro do quarto, e viu a mesa encostada à janela apinhada de
cadernos e papéis. – É um daqueles tipos estudiosos, não é?
– Mais curioso do que estudioso.
Ela inspecionou-o cuidadosamente, assim como ao quarto. – Não tem criado pessoal. Estava à espera
que tivesse.
– Viajo com muita frequência. Um criado só iria atrasar-me. – Um criado também nunca teria aceitado
as condições de algumas daquelas viagens dos últimos oito anos. Os criados têm critérios.
– Estou a ver que os contrata quando precisa – concluiu Marian. – Bella e eu podemos tratar das suas
coisas enquanto aqui está, se quiser. Da roupa para lavar e coisas assim. Não é tão bom como ter um
criado, claro. Não vamos ajudá-lo a tomar banho e a barbear-se, mas por dez pence lavamos e passamos
a ferro aquelas suas camisas boas.
– É melhor do que as levar a outro lado.
Chegaram a acordo quanto à roupa e demais tarefas. Quando terminavam, um grande alarido lá em
baixo acabou com o sossego da casa.
Marian pendurou o trapo na fechadura do quarto dos arrumos e limpou as mãos ao avental. – Devem ter
chegado as plantas. Tenho de ir ver se Miss Pennifold precisa de ajuda.
Plantas. Plantas por todo o lado. Celia contemplava a sala das traseiras, entusiasmado por ver o seu
plano ganhar vida, literalmente.
Vasos com globos verdes sobre pés muito direitos enchiam o patamar das escadas das traseiras. Uma
palma tão alta quanto ela guardava a entrada para a sala. Verity, muito elegante num conjunto encarnado
que punha em evidência o seu cabelo escuro e pele alva, pegava em vasos que Marian lhe trazia e
avaliava qual o melhor sítio para os mesmos nas prateleiras junto às janelas.
Daphne estava no centro da sala com um livro de registos aparado no braço. Acompanhara as carroças
naquela primeira entrega, para se assegurar de que tudo corria bem. Alta, esguia e pálida como a luz de
uma madrugada de inverno, os seus olhos de tom cinza observavam as plantas a ser encaminhadas para os
seus novos lares enquanto fazia anotações no livro.
Botas batiam pesadamente no chão. Um trabalhador carregava a custo um limoeiro num vaso alto e
largo.
– Devíamos entregar aquele imediatamente – comunicou Daphne. – Como é que vais tirá-lo daqui,
Celia?
– Disseste que os Robertson o queriam na próxima semana, não nesta. Vou ter ajuda, Daphne. Não
carregarei as plantas sozinha.
O homem esfregou as mãos. – É a última, Mrs. Joyes. Agora só faltam as flores.
– Ponham-nas na sala da frente – indicou Celia. – É fresca o bastante no inverno para as ter lá por um
dia. Quando o tempo estiver mais quente fazemos uso da cave que fica ao lado da cozinha, lá em baixo.
O homem, cansado, lá foi buscar as flores.
Celia dedicou-se a colocar vasos nas novas prateleiras, sempre com um ouvido à escuta e um olho em
Daphne. O destino conspirara contra ela e fizera com que as carroças da Flores Preciosas chegassem
enquanto Jonathan ainda se encontrava em casa.
Verity captou a atenção de Celia. Olhou deliberadamente para Daphne, a seguir para o teto, e ergueu as
sobrancelhas. Celia abanou a cabeça. Não, ainda não dera nenhuma explicação a Daphne acerca do
inquilino. Aparentemente, iria fazê-lo naquele dia, a não ser que Jonathan decidisse ficar no quarto
durante a próxima hora. Às vezes fazia-o. Havia dias em que não descia. Talvez...
Ouviram-se botas a começar a descer as escadas. Lá se ia o talvez.
Verity aumentou o volume dos movimentos e da conversa. Marian deu início a um ruidoso intercâmbio,
perguntando sobre a ementa para o jantar. Apesar do alvoroço crescente, como o rufar de um tambor cada
vez mais alto, as botas avançavam a um ritmo regular.
Na confusão da sala formou-se uma ilha de imobilidade. Daphne era o seu centro e a sua fonte.
Levantou os olhos do livro de contabilidade e fixou a escada, perplexa.
Jonathan mostrou-se, com traje de montar, lindo de morrer. Daphne limitou-se a olhar para ele durante
um bom tempo, dirigindo depois um olhar inquiridor a Celia.
– Receio que lhe tenhamos bloqueado a passagem com as plantas, Mr. Albrighton – disse Celia.
– Prometo não derrubar nenhuma. – Para manter a palavra teve de fazer algumas manobras estranhas,
mas não tardou a emergir do jardim.
Celia convidou-o a juntar-se a elas. Ele entrou, cumprimentou Verity de modo formal e olhou para o
jardim interior e para as plantas alinhadas nas prateleiras.
– Daphne, este é Mr. Albrighton, um inquilino. Mr. Albrighton, esta é Daphne, minha amiga querida.
– É um dos amigos de Hawkeswell – interrompeu Verity muito depressa. – Que coincidência! O meu
marido fala muito bem de si, Mr. Albrighton.
– Obrigado, senhora. Sinto-me honrado em saber que o faz.
Daphne sorriu muito graciosamente. Celia não se deixou enganar. Reparou na amiga a avaliar muito
cuidadosamente o homem, e a ficar um bocadinho desconfiada com aquilo que viu, tendo ele ou não a
amizade de um conde.
– Um inquilino, Celia? Que empreendedora.
– Ela herdou-me com a casa, infelizmente – avançou Jonathan.
– E escolheu ficar, estou a ver. É tão inconveniente fazer mudanças, não é? Embora seja uma
localização estranha para um homem como o senhor se alojar, Mr. Albrighton. Resguardada, e não
especialmente elegante. Os aposentos do Albany não seriam mais adequados?
– O tempo que estou em Londres não justifica ter habitação própria, nem uma morada melhor. Este
bairro serve os meus propósitos, mas agradeço o seu interesse.
– Um sítio sossegado, obscuro e anónimo serve os seus propósitos?
– Serve os de muitas pessoas, Mrs. Joyes. Seja numa rua a oeste de Bedford Square ou numa pequena
propriedade no Middlesex, há muitas razões pelas quais alguns de nós preferem retirar-se da sociedade
durante algum tempo.
O olhar de Daphne inflamou-se. Uma pincelada de cor tingiu a sua pele marmórea. Ele surpreendera-a
com a sua frontalidade. Celia tinha a certeza de que nunca a vira corar.
– Refiro-me a Miss Pennifold, claro – acrescentou ele. – Ela e eu temo-lo em comum, este desejo de
privacidade.
Daphne recuperou a fração de compostura que perdera. – Ao que parece, agora também têm esta casa
em comum.
Celia começou a achar que Daphne e Mr. Albrighton iam envolver-se numa discussão. Pela forma
como observava o intercâmbio, Verity também pensava o mesmo.
– A sua preocupação é admirável, Mrs. Joyes – tranquilizou Jonathan. – No entanto, Miss Pennifold já
se habituou à minha presença. Se quer protegê-la, considere que ela está muito segura comigo aqui e que
as senhoras não se verão expostas às vulnerabilidades que atingem a maior parte das mulheres que vivem
sozinhas.
Fez uma mesura e retirou-se então, desaparecendo no jardim. Daphne ficou a observá-lo, de olhos
semicerrados.
Por fim, deixou a janela e voltou a abrir o livro de contabilidade. – Não admira que já não quisesses
viver no campo, Celia.
– Não me mudei para aqui por causa de Mr. Albrighton, se é o que estás a insinuar. Eu herdei-o
mesmo. O quarto arrendado foi uma surpresa completa e a permanência dele um incómodo.
– Nunca duvidei que a descoberta do seu vínculo àquele quarto tenha sido uma surpresa. – Sorriu.
– Completamente.
– Ele é filho de um conde – salientou Verity. – O filho bastardo do último conde de Thornridge.
– Verity, visto que o amor te brindou na forma do filho de um conde, podes pensar que são todos
homens bons de carácter nobre. Lamentavelmente, a minha experiência mostrou-me que um título por si
só não faz de alguém um bom pai, nem um filho respeitável. Contudo, se a nossa Celia considera que ele
é um homem decente, e que está em segurança aqui com Marian e Bella, é só isso que importa.
– Estou em segurança. E embora ele seja um incómodo, não é uma presença tão invasiva como eu
receava. Quase nunca está em casa.
– É muito conveniente, então.
– Fez estas prateleiras – acrescentou Verity, tentando mais uma vez ajudar com um comentário
abonatório.
– O que provavelmente explica aqueles pregos todos. Parece ser o tipo de homem que quer ter muita
certeza de que as coisas ficam como ele pretende.
– Estou cansada de falar dele – anunciou Celia. – O dia de hoje marca o início da nossa sociedade,
Daphne, o que é muito mais interessante. Verity, penso que devíamos descer essas mais altas um degrau.
Daphne ficou a observar a grande azáfama das duas com as plantas, discutindo a posição de cada uma.
Celia continuou a sentir pousados em si os olhos da amiga mais velha.
– Ele tentou alguma coisa contigo, Celia? – A pergunta veio do nada, meia hora depois.
– Tentou alguma coisa? Quem?
– Como se não soubesses.
– Ah! Referes-te a Mr. Albrighton. Claro que não. Não sou estúpida, Daphne. Também não sou
nenhuma criança.
– Isso é verdade; não és nem estúpida nem nenhuma criança. És uma jovem mulher que sempre encarou
a vida com uma honestidade quase impiedosa. A minha pergunta foi por curiosidade, não crítica ou
julgamento. Nem se tratou do prelúdio de um conselho. Apenas me interroguei se aquele belo homem
teria tentado alguma coisa contigo.
– Não tentou. – Não tinha a certeza do que Daphne quisera dizer com «tentar alguma coisa», mas
entendeu que um beijo não contava.
– É uma pena – concluiu Daphne com ar meditativo, escrevinhando no livro de contabilidade. –
Imagino que as suas tentativas possam ser bastante agradáveis.
Celia abriu a boca. Olhou para Verity. Olharam ambas para Daphne, estupefactas. Depois começaram
as três a rir.
CAPÍTULO 8

C elia subiu as escadas para o sótão, segurando uma chave de bom tamanho. Parou no patamar
superior.
A porta que procurava ficava em frente ao quarto de Mr. Albrighton. Era o único espaço da casa que
ela não examinara cuidadosamente. Agora que as plantas haviam chegado e que ela tinha conseguido uma
carroça alugada para fazer as entregas nas casas na semana seguinte, havia tempo para dedicar àquela
tarefa necessária.
Não fora só a falta de tempo que a atrasara, admitiu. Ansiava ver o que estava ali guardado mas, ao
mesmo tempo, temia uma potencial desilusão. Poderia descobrir a verdade acerca do seu pai, como
esperava, ou não descobrir nada. Não suportaria lidar com a última hipótese, especialmente por não ter
mais nenhuma ideia de como procurar a verdade se nem as coisas da mãe a ajudavam.
O compartimento tinha o cheiro seco e poeirento que é costume encontrar nos sótãos não utilizados. O
frio da aragem inverniça que entrava pelas janelas e pelo telhado não diluía aquela atmosfera
característica.
Deixou uma frincha da porta aberta para entrar algum ar fresco e olhou atentamente para os objetos que
lá estavam armazenados. Havia muito mais do que ela esperara, não era apenas o baú que avistara.
No chão estava uma carpete enrolada. Empurrou a ponta com o dedo até conseguir ver-lhe o padrão e
reconheceu a tapeçaria de Aubusson que ornamentara o aposento privado de Orchard Street. A mãe tinha
muito orgulho naquela carpete.
Estavam duas aguarelas grandes encostadas à parede por trás do tapete. Também haviam decorado a
outra casa. Presentes de amantes, eram ambas esboços delicados de artistas franceses populares no final
do século anterior. Um era uma pintura de uma modelo nua que em muito se assemelhava a uma
Alessandra jovem.
Contornou algumas cadeiras e floreiras para conseguir investigar o maior dos três baús que enchiam o
pequeno espaço. Abriu-lhe a tampa e deteve-se. Uma soberba capa de pele tapava uma pilha de roupa.
Um exame rápido mostrou-lhe que o baú continha um guarda-roupa muito mais valioso do que aquele que
fora deixado na outra casa.
Passou ao baú seguinte. Havia mais peças de roupa dentro deste, mas eram menos vistosas. Protegiam
pequenos artigos decorativos feitos de porcelana e vidro, e outros objetos pessoais que talvez tivessem
valor sentimental para a mulher que os possuíra.
O terceiro baú foi o que mais a surpreendeu. Olhou para o seu conteúdo com uma mistura de nostalgia e
perplexidade.
Eram as suas coisas. O seu guarda-roupa, escolhido com tanto cuidado naquele ano, para ser usado no
parque e nos serões, encontrava-se perfeitamente dobrado no seu interior. Passando-o em revista,
deparou também com vestidos que nunca tinham sido usados, os encomendados às modistas para uma
jovem que debutaria numa sociedade muito especial.
Lembrou-se dos momentos passados a estudar estampas da moda e a escolher tecidos na loja. Tirou o
vestido de noite que fora o seu preferido. Na última prova, imaginara-se a presidir a uma festa na
qualidade de esposa de Anthony. Todos os rostos à sua volta eram um borrão na sua mente, à exceção do
dele.
Um som arrancou-o ao seu devaneio. Olhou para a porta e viu Mr. Albrighton, com a mão ainda na
maçaneta.
Ele entrou no compartimento, estudando rapidamente o seu conteúdo. – Então são arrumos. Julguei que
talvez considerasse arrendar o quarto a outro inquilino, ou usá-lo para alojar mais criados.
Ela voltou a dobrar o vestido e alisou a superfície brilhante de cetim com as pontas dos dedos. – Já
estava mais do que altura de ver o que se encontrava por detrás desta porta. Esperava um baú ou dois,
por aquilo que tinha espreitado. Não previa nada disto. – Indicou o fundo do quarto, mais longe da porta,
que não se encontrava à vista quando ela espreitava pela frincha.
Ele colocou-se ao seu lado e baixou o olhar. Ela viu que ele avaliava a seda que os seus dedos
tocavam.
– São as minhas coisas – disse ela, embora não tivesse de explicar. – Quando não as vi na outra casa,
parti do princípio de que as tivesse vendido, ou dado.
– É uma cor invulgar. Um castanho-mel claríssimo.
A descrição foi adequada, e melhor do que ela teria conseguido. – É um dos vestidos modestos, para o
olhar público.
– Há de outros géneros?
– Claro que sim. Não fui treinada para noiva. Eu sabia-o e mesmo assim permiti-me fingir que poderia
acontecer, como bem sabe.
Um sorriso gentil foi o reconhecimento da cáustica desilusão que ela sofrera naquele dia. Aqueles
olhos profundos chamavam por si e ela deixou-se prender na ligação durante um momento intemporal.
– Este, por exemplo, era um deles. – Desviou o olhar e foi tateando os vestidos até alcançar uma seda
da cor dos gerânios. Puxou-a para fora. – É um tom que não tem nada de recatado, mas é elegante e de si
não é escandaloso. – Todavia... – Esticou o vestido sobre o tronco e o colo. A parte de cima era
composta por renda e nada mais. – Só uma tonta esqueceria o futuro que lhe estava destinado se a mãe lhe
comprasse uma coisa destas, não lhe parece?
– Parece-me que não se enganou ao pensar que essa renda pudesse ser apropriada independentemente
da vida que fosse levar. Nem todos os maridos tratam as esposas como eternas virgens inocentes.
Ela riu-se e pôs o vestido de lado. – Então talvez o dê a Verity ou a Audrianna. Tenho razões para crer
que nenhum dos maridos ficará chocado.
– Hawkeswell e Summerhays? Garanto-lhe, nenhum dos dois se chocará.
Ela pôs-se de joelhos para procurar mais no fundo do baú. – Um para cada, então. Tenho a certeza de
que há outro de natureza semelhante.
Ele apoiou-se num joelho ao lado dela e esticou os braços, para ela colocar neles os luxuosos tecidos e
não no chão. Ela fez um monte que lhe chegou ao queixo antes de encontrar o vestido de suave tom pérola
que procurava. Desdobrou-o para examinar a gola baixa e o corpete muito fino.
– Este assentará muito bem a Verity, julgo eu – disse ela. – Não concorda?
– Seria impróprio pôr-me a imaginar Lady Hawkeswell com esse vestido.
– Pode pelo menos admitir que a cor a favorece.
– Julgo que a cor a favoreceria mais a si.
Ela olhou para ele e naqueles olhos profundos viu a imagem de si própria com aquele vestido, rodeada
de sedas luxuriantes em almofadas e lençóis e um homem alto e sombrio, cheio de mistério, admirando a
imagem erótica que ela compunha.
Sentiu o rosto aquecer, e outras partes do corpo também. Obrigou-se a colocar toda a sua atenção na
tarefa de dobrar o vestido, enquanto possibilidades e expectativas pulsavam entre os dois no silêncio
tenso.
Preparava-se para pegar na pilha de tecidos quando algo dentro do baú lhe chamou a atenção. Afastou
uma peliça cinzento-pomba, revelando uma pasta deitada no fundo. Levantou a capa.
– As pinturas e os desenhos dela – declarou. – É muito grossa. Talvez estejam todos aqui.
Ele espreitou, interessado. O ângulo em que se colocou aproximou-se dela. Perto o suficiente para ela
sentir o cheiro do sabonete que ele usara para se lavar. Perto o suficiente para apreciar as suas pestanas
espessas. Sentiu o coração bater mais depressa e receou gaguejar como uma colegial.
Tirou-lhe as roupas das mãos e rapidamente as enfiou do novo no baú. Olhou os outros objetos que
povoavam o quarto, tentando ignorar que ele continuava muito quieto ali ao seu lado, apoiado no seu
joelho, na verdade perto de mais. Ela imaginou-o a tocá-la novamente, e o beijo que se seguiria e...
Pensamentos imprudentes. Estúpidos. Ele não era para ela e ela não era para ele; pelo menos de
nenhuma forma respeitável. E, contudo, o seu corpo não se importava muito com isso e os seus
pensamentos não eram muito próprios. Na verdade, as coisas que a mãe lhe descrevera não paravam de
lhe surgir na mente, e algumas delas pareceram-lhe apelativas pela primeira vez na vida.
Forçou as imagens escandalosas a abandonar os seus pensamentos. – Deveria informar o executor
acerca destas coisas, não é assim? Aquela carpete é muito valiosa e um dos baús tem as peles dela.
Ele encolheu os ombros. – Mande-lhe a carpete, se se sentir culpada por não o fazer. Quanto ao resto,
de pouco valem roupas usadas que nem sequer serão da última moda. O valor não chega a ser
representativo. De qualquer forma, o conteúdo deste baú em particular também é seu, por isso não faz
parte dos bens dela.
– Pergunto-me porque estarão aqui. Imaginei que estivesse tudo na outra casa.
– Talvez fosse a forma dela de preservar para si aquilo que mais acarinhava. Se o executor não
soubesse que ela vivia aqui esporadicamente, nunca lhe ocorreria inventariar o conteúdo desta casa.
Poderia ele estar certo? Teria sido deliberado, um plano da parte de Alessandra para pelo menos lhe
deixar alguma coisa, além de uma reputação manchada e uma educação muito especializada?
– Parece-me que devo fazer o meu próprio inventário, mas está demasiado frio neste sótão para isso.
Levarei os baús para o meu quarto para ver tudo à vontade.
Ele pôs-se em pé e curvou-se para fechar o baú. – Permita-me. São pesados de mais para si, mesmo
com a ajuda de Marian.
Ele seguiu-a até ao segundo andar e ao quarto dela. Pousou o baú. – Talvez deva investigar um de cada
vez. Se os trouxer a todos para aqui, pouco espaço terá para andar.
Havia alguma verdade naquilo. O seu quarto não era grande e os outros baús eram de bom tamanho. –
Talvez seja o melhor. Obrigada.
O olhar dele fizera também uma espécie de inventário do conteúdo do quarto dela. A última vez que ali
estivera a escuridão era intensa e pouco dera para ver. Ela deu-se conta de que nunca tivera um homem
no quarto antes dele. Nunca, nem mesmo em criança. Aquele homem não deixava a masculinidade à porta
e a sua intrusão originava uma envolvência de intimidade.
– Não é o que esperaria da sua mãe – comentou ele, observando a musselina branca e lisa dos
cortinados das janelas e do dossel da cama.
– Pensava que seria cetim vermelho, porventura? – brincou ela, com voz firme, apesar de recear que
lhe falhasse.
– Não, mas mais da cidade e menos do campo.
Ela tocou no tecido simples. – Para mim, a simplicidade anónima destes cortinados é reconfortante, em
parte porque não revela nenhum gosto em particular. São muito práticos, também, apesar do que se possa
pensar. Podem lavar-se como a camisa de um homem.
O olhar dele procurou os cortinados, depois o dossel da cama, depois a própria cama. Por fim, pousou
nela. O quarto quase vibrava com a intensidade da presença dele.
– Pensa que este quarto nada revela sobre a sua atual ocupante, Miss Pennifold? A mim, parece-me que
constitui um testemunho eloquente sobre a mulher que o habita.
Ela não tinha a certeza se se tratava de um elogio, embora a forma como ele a olhava sugerisse que
teria sido essa a intenção.
Ali ficaram, mais tempo do que o necessário, com o baú que continha o espólio do ano que ela passara
com a mãe entre os dois. Ou talvez não tivesse sequer sido muito tempo. Talvez o seu coração lhe batesse
de tal forma que o tempo se desacelerava.
– Está a decidir se me beija outra vez? – perguntou ela.
– Quer que a beije outra vez?
– Claro que não.
– Claro? Conseguiu convencer-se de que não gostou? E pensava eu que era uma das raras mulheres que
não mentiam a esse respeito.
Apanhara-a. Fora estúpido apressar-se assim a negar quando gostara tanto. Aquilo não lhe escapara de
certeza. – Quis apenas dizer que não estava a propor outro beijo.
Ele riu discretamente, divertindo-se com o embaraço dela. – Ora bem, talvez tenha então gostado, mas
claro que não quer que volte a beijá-la.
– Sim, não, não tenho a certeza – admitiu ela. – Quem dera que a tivesse. Foi um beijo agradável.
– Então não o farei, se não tem a certeza.
Ela encolheu os ombros e desejou mostrar um aspeto sofisticado e não o ar de colegial tonta, como
verdadeiramente se sentia. – Foi só um beijo. Mais um beijo pouco viria a significar, mesmo que eu não
tivesse a certeza.
Ele esticou o braço e pousou-lhe a mão no rosto, tal como havia feito no jardim. Com o polegar,
aflorou-lhe os lábios, desencadeando um formigueiro que, intensificando-se, se espalhou pelo corpo dela.
Havia desejo nele. Ela viu-o na sua expressão tensa e sentiu-o no mistério que a excitava.
Mais um beijo, seguramente. Já. Ele iria...
– Só mais um não poderá ser, Celia. Nunca poderá voltar a ser só mais um beijo. Não finja que não
sabe isso.
Deixou-a. O quarto não voltou totalmente ao que era. Ele permaneceu como um odor que não
desvanecia rapidamente, como se a mobília e as paredes tivessem absorvido uma parte da sua energia
vital e durante dias a invasão da sua presença reverberasse, recordando-lhe a excitação que a aguardava
caso ela tivesse a certeza.
Olhou para os cortinados imaculados. O que teria ele visto neles que pudesse revelar algo sobre si?
Pureza virginal? Véus opacos, à semelhança dos cartões de visita dele?
Talvez tivesse visto apenas símbolos de uma mulher que decidia ainda que cores e padrões haveria de
acrescentar à sua vida.

Celia não saiu de casa durante os dois dias que se seguiram. Jonathan sabia-o porque também não saiu.
Ficou no quarto, aguardando que ela chamasse o cabriolé para visitar amigas ou tratar de outros
negócios. Com sorte, fá-lo-ia quando Marian e Bella fossem ao mercado, e ele teria tempo de procurar
sem risco de interrupção.
A vigília deixou-lhe tempo para ler os jornais e revistas que se acumularam durante o período em que
esteve ausente de Londres. Ele sabia que era uma tolice subscrever aquelas coisas quando não tinha
tempo para desfrutar delas. Os de França, porém, embora interessantes e informativos, só continham
pequenas notícias dos desenvolvimentos em Inglaterra e na Escócia, e agradava-lhe chegar a casa e
deparar com os relatórios completos.
Na tipografia para onde o seu correio era enviado viram-no chegar com agrado para levantar a grande
pilha que se acumulara. Agora amontoavam-se pilhas de papéis no seu quarto, que ele analisava
metodicamente. A maior parte descrevia experiências de química ou processos naturais, mas alguns
listavam novas espécies descobertas em longas viagens e vários relatavam desenvolvimentos industriais.
Ele preferia as investigações relacionadas com a ciência pura, embora as suas aplicações não o
entediassem. Sempre achara a certeza mais estimulante do que a ambiguidade, e o progresso da
compreensão das leis naturais fascinante. A solidez da ciência, as descobertas, pequenas mas seguras,
que podiam ser comprovadas uma e outra vez, contrastavam marcadamente com tudo o mais do que ele
conhecia do mundo.
No terceiro dia, debatia-se com um extenso tratado. Estava mal escrito, mas habitualmente isso não o
detinha. Naquele dia, porém, aquilo encorajou os seus pensamentos a divagar, maioritariamente para uma
imagem de Celia com aquele vestido de seda fina.
Não teve dificuldade em imaginá-la assim vestida, com o cabelo dourado preso num nó espesso e largo
que implorava libertação, e o suave rosado do tecido a complementar a sua beleza pálida; nem o tecido
fino colado aos seus seios, pressionando mamilos escuros eroticamente endurecidos. Uma mão de
homem, a mão dele, deslizava sobre aquela seda, fazendo com que os seios ganhassem volume, firmeza e
sensibilidade. Os seus olhos escureceram de prazer e brilharam intensamente, e ela...
Sons à sua volta vieram pôr um fim à sua fantasia. Ouviu Marian a chamar das escadas da frente, a
dizer a Celia para descer imediatamente e ver o que chegara à sua rua.
Curioso, pousou os papéis e também ele foi espreitar, ouvindo passos femininos a andar levemente no
andar de baixo. O seu quarto dava para o jardim, por isso entrou no quarto dos arrumos que ficava do
outro lado do corredor. Depois de ter carregado o baú para o quarto de Celia, ela não se lembrara de
voltar a trancar a porta, e ele não lhe chamara a atenção para o fazer. Bastava ela sair da casa para ele
terminar rapidamente aquela missão.
Lá em baixo, à frente da casa, parava uma carruagem vistosa. Era o tipo de veículo que procurava
impressionar. Das famílias que residiam em Londres no inverno, não havia mais de uma centena a usar
aquelas carruagens. Na dianteira, um belo par de cavalos, cujas rédeas eram controladas por um cocheiro
de libré, resfolgava e batia os cascos.
Ele abriu a janela para ver melhor. O lacaio desceu os degraus da carruagem. Um sujeito louro, de
aspeto germânico, saiu e pôs o chapéu na cabeça. Antes de a aba lhe tapar a visão, Jonathan reconheceu o
rosto. Anthony Dargent estava de visita a Celia.
CAPÍTULO 9

C elia tirou rapidamente o avental e ajeitou o cabelo. Instalou-se no canapé, na sala da frente.
Marian entrou com o cartão. Celia olhou para os olhos de Marian e reconheceu neles preocupação
e curiosidade.
– Fá-lo entrar, Marian. É um velho amigo.
Enquanto Marian fazia o que lhe fora indicado, Celia analisou nervosamente o compartimento. Os
estofos pareciam algo gastos à luz do dia. Nunca havia reparado. Naquela casa a mobília em geral era
bastante humilde, comparada com a outra casa de Alessandra.
Celia ouviu passos e sentiu o coração bater cada vez mais depressa. Cinco anos. Uma boa parte da sua
vida decorrera desde que fugira daquela sala naquele dia, desgostosa e desiludida.
De repente, Anthony surgiu à porta. Os nervos dela acalmaram quando o viu. O seu semblante perdera
aquela frescura da juventude. Os cinco anos decorridos haviam sido generosos com ele, porém, e a
maturidade tornara-o ainda mais atraente. Até o seu cabelo havia cooperado e a cor escurecera
ligeiramente, de modo que continuava dourado, mas menos louro.
Não podiam censurar-lhe o desejo de o ver menos bem conservado, pensou. Ajudaria se o rosto dele
tivesse ficado flácido e não possuísse ainda umas linhas tão regulares e tão finamente esculpidas.
Ele cumprimentou-a com uma mesura. Sempre fora um cavalheiro na forma de se comportar, com a mãe
e com ela.
Avançou logo a seguir até se encontrar em frente a ela, olhando-a tão intensamente que a assustou.
– Celia. – Disse o nome dela como se proferisse uma palavra que estivesse guardada tempo de mais
dentro de si. Tomou abruptamente a mão dela nas suas e beijou-a.
Ela desenredou a mão com toda a gentileza. – Anthony. É uma surpresa agradável ver-te. Não queres
sentar-te?
Ele considerou sentar-se ao lado dela. Ela reparou e indicou uma poltrona próxima. Ele seguiu a
indicação.
– Como me encontraste? – perguntou ela.
– Concluí que terias vindo para a cidade, para tratar dos bens da tua mãe, e telefonei a Mappleton para
lhe perguntar por ti. Imagina o meu espanto quando me disse que tinhas vindo morar para aqui. – Olhou
em redor, manifestamente pouco impressionado com o que via. – Onde estiveste? Cada vez que
perguntava à tua mãe, ela só me dizia que estavas para fora. Nunca explicou se isso queria dizer que
estavas no continente ou apenas noutro sítio de Inglaterra ou até de Londres.
– Não estava muito longe. Até vim periodicamente à cidade nos últimos anos. E tu, Anthony? Tens
passado muito tempo na cidade?
– Os meus deveres implicam grandes períodos de permanência no campo. Herdei a propriedade.
– E também casaste. Li sobre o acontecimento. Desejo-te as maiores felicidades para aquele que será
certamente um casamento maravilhoso.
O semblante dele ficou pesado. Anthony nunca tivera muito jeito para esconder os seus pensamentos e
emoções. Fora assim que ela tivera a certeza de que era apaixonado por ela. O que mais poderia
significar todo aquele profundo, sentido e visível desejo?
Ele corou e alguma daquela inocência regressou. – É um casamento excelente, por todas as razões
habituais. No entanto... – A cor rosada acentuou-se. – A verdade é que nunca deixei de pensar em ti,
Celia. À noite por vezes ouço-te a cantar, como cantaste naquela primeira tarde em que Stratton me levou
a um dos serões da tua mãe. Dou por mim a avaliar a beleza de todas as mulheres perante a tua e parece-
me sempre que ficam aquém. Continuaste a cativar-me durante cinco anos sem sequer estares presente na
minha vida.
Foi um bonito discurso, especialmente para Anthony, que não era conhecido pela sua eloquência. Era,
observou Celia, o tipo de discurso que ficaria muito bem como prelúdio a um pedido de casamento.
Só que a Anthony já não lhe assistia a escolha, pois não?
– Quantos elogios. – Celia certificou-se de que o seu sorriso era gentil mas formal. – Melhor seria
deixares-te cativar pela mulher honesta que está presente na tua vida.
– Não é de todo a mesma coisa. Ela tem a minha afeição e o meu respeito, mas... Não é como tu.
– Ao fim de cinco anos é pouco provável que saibas como eu sou, Anthony. Contudo, se conservas
lembranças agradáveis, não há nada de mal nisso. A todos nos são permitidas, independentemente das
nossas obrigações.
Ele inclinou-se para a frente, procurando encurtar a distância determinada pela poltrona que ela lhe
destinara. – E tu, Celia? Conservas lembranças agradáveis?
Conservava algumas, guardadas lá no fundo, demasiado agridoces para serem sujeitas a exame depois
do que acontecera. Emergiram agora, que ele a confrontava com aquele olhar grave. No entanto, eram
apenas as memórias que a tocavam, não o olhar em si. Os olhos dele, tão familiares outrora, pareciam
agora os olhos de um estranho.
Ele era um estranho, compreendeu. Cinco anos era muito tempo na vida de ambos. Nenhum dos dois
era a mesma pessoa que antes. Ela deixara seguramente de ser aquela criança.
– As lembranças estão um pouco vagas, agora. Pertencem a um capítulo antigo da minha vida. Mas foi
atencioso da tua parte procurares-me, dares-me as boas-vindas a Londres. É sempre bom ter um ou dois
amigos por perto a quem recorrer se houver problemas.
Um sorriso, gentil e indulgente. O mesmo sorriso que ele fizera quando lhe explicara o quão
erradamente ela interpretara as suas intenções.
– Não te procurei somente para te dar as boas-vindas à cidade, Celia. Deves sabê-lo. Outras mulheres,
com mães diferentes, podem fingir recato, mas a ti não te assenta bem.
Aquela distância tão próxima subitamente deixou-a desconfortável. Pôs-se em pé e afastou-se. Ele fez
menção de se levantar também.
– Não, por favor, fica aí – indicou ela. – Vamos deixar a etiqueta de lado. Seria melhor continuares na
tua poltrona. Falas na minha mãe e presumes coisas acerca de mim. Sabes, porém, que fugi de casa dela e
dos planos que ela tinha para mim. Por que razão julgas que mudei de ideias e que finjo recato agora?
Ele sorriu. Avaliou ostensivamente a sala. – Porque isto não te assenta bem. Devias viver em Mayfair,
não aqui. Devias ter uma boa carruagem e uma boa parelha, não o cabriolé que tens conduzido. Devias
usar sedas, não esses tecidos simples. Já não és nenhuma menina. Decerto compreendes agora que os
casamentos se fazem por razões económicas. Ao amor... podem beneficiar outras disposições.
Ela quase se riu, mas conseguiu conter o seu amargo divertimento. – Fico desarmada com a profusão de
luxo que consideras que eu mereço. Como também com a tua referência ao amor. Julgas que passei os
últimos cinco anos a suspirar por ti? – Foi a sua vez de esboçar um sorriso indulgente. – Mas tens razão.
Passei a aceitar a mecânica do mundo. Não te culpo pelo que aconteceu. Aquilo que eu queria de ti...
Aquilo que pensei que tu também querias... Bom, foi ingénuo. Se é amor que queres, talvez devas
procurar outra menina esperançosa.
Ele não aceitou bem o comentário. Homem nenhum aceitaria. A mãe avisara-a que muitos homens, e
aquele tipo em particular, julgavam que a atenção que dedicavam a mulheres assim era uma honra para
elas.
Ele fechou momentaneamente os olhos. O seu rosto deixava transparecer irritação. – Esperei tempo de
mais para me deixar desencorajar assim.
– Não devias ter esperado tempo nenhum.
– Não tive outra escolha. Foste embora, não foste? Depois de eu ter dado à tua mãe a pensão para os
teus dois primeiros anos. Ela passou o tempo a dizer que esperasse, por ti e pelo dinheiro, até eu concluir
que este último, pelo menos, nunca mais voltaria a pertencer-me. Tu, porém...
– Deste-lhe o dinheiro e ela não to devolveu depois de eu me ir embora? – A revelação foi como uma
bofetada. O choque destruiu-lhe a compostura.
– Ela tinha a certeza de que ias voltar, dizia. Um pequeno atraso, nada mais, dizia. – Ele olhava-a com
franqueza.
Sentiu um nó no estômago. Oh, mãe. Com livro contábil ou sem ele, havia de facto mais uma dívida a
ser cobrada sobre os bens. Não admira que ele não se tivesse coibido de a visitar, fazendo as suas
suposições e abordando o assunto sem grande cerimónia.
Ele voltou a examinar a sala. – Daqui a três meses detestarás esta casa, e este bairro. Nasceste para
mais do que isto. Eu cuidarei de ti, Celia. Não te faltará nada. Far-se-á como combinado originalmente,
como estava destinado a ser desde o dia em que nasceste.
Ele apenas dava voz àquilo que praticamente o mundo inteiro pensava. Ela sentiu-se corar, pois por
vezes também pensava assim.
– Eu nasci como nascemos todos, Anthony. Nua e inocente. A filha de uma meretriz não sai do ventre
da mãe com uma marca na testa e na alma, que seja herdada como a cor do cabelo.
– E tu, ainda és inocente, Celia? Quando falei com Alessandra pela última vez ela acreditava que ainda
eras.
– O quê...? Perguntaste-lhe acerca...? – Haviam falado dela, no fim como no início, como um artigo
para venda. – Como te atreves a interrogar-me, para te certificares de que a mercadoria não foi usada,
como se eu fosse uma... uma... É de mais para mim. Devo pedir-te que saias, agora.
– Por favor ouve-me primeiro. É do teu interesse fazê-lo.
– Não está no teu direito presumires saber quais são os meus interesses.
– É uma tolice insultares-me, Celia. Prometeste-me a tua inocência há muito tempo por causa do nosso
amor e dificilmente te escandalizará a minha curiosidade acerca da sua preservação. Atribuirei o teu
comportamento presente à surpresa por me veres novamente. Talvez tenha sido impaciente de mais, mas,
ao fim de cinco anos, é compreensível.
Aquela presunção de direito sobre ela assustou-a. – Devo insistir que saias agora.
Ele pôs-se em pé, mas não saiu. Para horror dela, avançou na sua direção. Ela recuou até as costas lhe
baterem na parede. As mãos dele seguraram-lhe o rosto e tentou beijá-la. Ela desviou-se o melhor que
conseguiu e a boca dele acabou em cima da sua face.
– Para com isto, Anthony! Vai-te embora, rogo-te – gritou.
As mãos dele seguraram-na melhor e começaram a forçá-la a voltar o rosto.
– A senhora convidou-te a sair, Dargent. Se és um cavalheiro, com certeza não quererás perturbá-la
mais e acatarás a sua vontade.
Celia viu-se subitamente livre e com Anthony a alguns passos de distância. Voltou-se para o sítio de
onde provinha a voz intrusa.
Mr. Albrighton surgira à porta da sala, vestido de negro da cabeça aos pés, exceto o branco intenso da
gravata e da camisa. Anthony dirigiu-lhe um olhar tenso, corando de ardor ou de raiva. Ela não sabia qual
dos dois.
Mr. Albrighton usara um tom de voz amigável. Não obstante, Celia não podia ignorar a forma como a
presença dele transformava o ar da sala com uma força arrebatadora. Anthony parecia ter sido ameaçado,
embora não tivesse sido verdadeiramente desafiado.
– Este é Mr. Albrighton – disse ela. – Ele é...
– Eu sei quem ele é. – Dargent olhou para Mr. Albrighton com um ar de suspeita. – O que estás aqui a
fazer?
– Sou amigo da família e estou de visita a Miss Pennifold para lhe apresentar as minhas condolências
pela morte da mãe dela. – Libertou a passagem. – Permite-me que te acompanhe à porta, Dargent.
Irritado com a interrupção, mas não tendo escolha, Anthony encaminhou-se para a porta. Olhou
furiosamente para ela, depois para Mr. Albrighton. – Amigo da família, está-se mesmo a ver, já que são
os dois farinha do mesmo saco, não é?

Jonathan acompanhou Dargent à porta da carruagem. Por pouco não resistia à tentação de atirar o
sujeito lá para dentro com as suas próprias mãos. Certificou-se de que a carruagem prosseguia. Depois
voltou para a casa.
Celia não tinha saído da sala de estar. Encontrava-se junto a uma janela, a ver Anthony partir. Vê-la
ali, assim, fê-lo parar.
Procurou na expressão dela vestígios de arrependimento, ou desilusão, relativamente àquele homem
que fazia parte do seu passado. A luz incidia sobre ela como sempre, e fazia cintilar as lágrimas que tinha
nos olhos e nas faces.
Ela não olhou para ele. Limpou as lágrimas com a mão. Outras tomaram o seu lugar. Sensibilizou-o,
aquele choro silencioso.
– Obrigada por me salvar mais uma vez. – A voz saiu-lhe lenta e entrecortada de emoção. – Ia tornar-
se uma cena embaraçosa.
E potencialmente perigosa. – Ele teve sorte por eu não ter cedido ao impulso de lhe ensinar a ter
maneiras.
– Ele não julga necessário tratar-me com educação. Se usar de maneiras com pessoas como eu, será
por condescendência, não cordura. Sei-o agora, mesmo que não o soubesse há muitos anos.
Pessoas como eu. Agora ele arrependeu-se verdadeiramente de não ter dado um tabefe no canalha. – É
demasiado compreensiva. É um tolo arrogante, e sempre o foi.
Ela limpou novamente os olhos e respirou fundo. – Ele pareceu ter medo de si.
– Sabia que estava a proceder mal e que merecia uma sova. Nessas circunstâncias, teria medo de
qualquer homem.
Ela encarou-o, por fim. Ele viu nos olhos dela um desalento que revelava que a visita a magoara
profundamente.
– Parece quase infantil, Mr. Albrighton. Ambos sabemos que ele veio propor um acordo corriqueiro.
Tais negociações são frequentemente francas e rudes, e até mesmo físicas, com persuasões calculadas
para atrair o interesse. Suspeito que os atrativos poderiam dar a volta à cabeça a muitas mulheres.
– Começam a dar à sua?
Ele franziu o sobrolho por a resposta dela não ter sido imediata e negativa. A ideia de ela ficar com
Dargent deixava-o furioso.
– O luxo tem os seus atrativos para mim, como para a maioria das mulheres – declarou ela por fim. –
E, afinal, foi-me ensinado que o amor é um bem transacionável. Na casa de Alessandra Northrope, a
virtude não era considerada virtuosa. – Riu-se um pouco do seu jogo de palavras. Com tristeza.
Era um som musical. A luz de inverno que entrava pela janela ficou dourada, e os olhos dela
cintilavam. Provava que era mais forte do que Dargent e as suas insinuações humilhantes. Mas lá no
fundo, porém, ele ainda via mágoa e confusão.
Devia retirar-se. Em vez disso, atravessou a sala, envolveu-a num abraço e beijou-a com força.
Ao fazê-lo, recebeu um banho de luz, rara, forte e quase dolorosa. Desejava-a tanto naquele momento
que teve de controlar implacavelmente os seus impulsos.
A expressão dela desarmou-o. Não havia mais sombras. O rosto dela resplandecia e os seus olhos
revelavam a excitação que a tornava dócil nos seus braços. Ele beijou-a novamente, sabendo que não
deveria, especialmente naquele dia. O beijo durou tempo de mais, tão doce que atentou contra a sua
sanidade. Arrancando bom senso sabe-se lá de onde, resistiu à boca convidativa e parou.
Quando começou a tentar afastar-se, ela colocou-lhe os braços à volta do pescoço. – Sei o que está a
pensar – disse ela, com a respiração a roçar o pescoço dele. – Que se arrisca a insultar com ações como
ele não insultou com palavras. Mas não é o mesmo.
– É, mais do que pensa. Desejo é desejo, independentemente da forma como se procura alcançar o
objeto do desejo.
Ela riu, com leveza. Um riso musical. Não havia nele notas tristes. O rosto dela permanecia a escassos
centímetros do seu e os seus narizes quase se tocavam. Os braços dele envolveram-na mais
completamente porque não havia outra resposta para aqueles olhos azuis que tão abertamente fitavam os
seus.
– Para mim, a diferença é abissal – declarou ela. – Ele fez-me sentir estúpida, como se merecesse o
insulto que me destinou. E o Jonathan faz-me sentir viva como nunca.
Percorreu-lhe o contorno da boca com um dedo brincalhão. Depois, habilmente, traçou-lhe uma linha
do maxilar à orelha.
Fora a mãe que lho ensinara. Era fácil esquecer o tipo de educação que ela recebera e a razão pela
qual Dargent se dirigira a sua casa, mas aquele pequeno gesto rapidamente lhe trouxe tudo à memória.
Era bom senti-la nos braços. Suave, quente e tão feminina. Um homem melhor contentar-se-ia com isso,
esperando distraí-la da visita recente. Quando ela ergueu os lábios, porém, convidando a outro beijo, ele
soube que não era um desses homens.
A febre da paixão irrompeu novamente dentro dele. E nela. Ela acompanhou-o, entreabrindo os lábios
para ele explorar, incitando mais calor e mais agressão. As mãos dela apertaram-lhe os ombros, depois
os braços, puxando-o mais para si e colando o seu corpo ao dele. O tempo desapareceu, e tudo à volta
deles também, enquanto se perderiam entre beijos e dentadas e gemidos.
Ele tinha de a sentir, de a conhecer. Cingia-a contra si com um braço enquanto a outra mão lhe descia
até à cintura e à anca, por curvas sinuosas.
Não demorou até lhe acariciar o seio perfeito e ela gemeu suavemente de prazer.
Excitadíssimo, louco por ela, procurou conduzi-la à mesma vertigem. Desde a sua juventude que não
desejava alguém tão profundamente. Dava-lhe prazer e retirava também o seu, equilibrando-se no limite
da implacabilidade.
Acariciou-lhe novamente o seio com a mão, para ela desfrutar ainda mais. Massajou o mamilo duro.
Ela regozijou-se com a sensação, de olhos fechados e lábios apartados.
– Se ele me fizesse sentir assim, eu provavelmente mentiria a mim própria acerca do resto – murmurou
ela.
Aquela alusão a Dargent fê-lo recuperar um pouco de racionalidade. O suficiente.
– E se não houver mentiras e for apenas isto?
– As pessoas constroem sempre uma história à volta do prazer. A história do casamento ou a história
do amor, ou pelo menos um breve relato de uma transação comercial.
– Nem sempre... Por vezes apenas é.
– Como agora, quer dizer.
Como agora. Só que havia uma história ali, e ele já não conseguia fingir que não. Tratava-se da visita
de Dargent.
Parou de a acariciar e abraçou-a com força. Ela tentou beijá-lo mas ele não deixou.
– Perdoe-me, Celia. Aproveitei-me dessa espécie de dor que traz consigo.
Soltou-a e recuou. Vê-la assim a sorrir, corada e radiante, quase fez com que voltasse a agarrá-la.
– Se num outro dia concluir que a virtude não é virtuosa, espero ser o primeiro a saber. – Começou a
afastar-se antes que aqueles olhos cintilantes o fizessem mudar de ideias. – E se aquele canalha voltar, ou
se voltar a insultá-la, seja de que maneira for, deve dizer-me.
CAPÍTULO 10

C elia observou a sala das plantas. As poucas que restavam tinham um ar solitário nas prateleiras. Em
breve chegariam mais, mas por agora completara o grosso da sua tarefa.
Depois de três dias de intenso labor, encontrou-se subitamente com pouco com que se ocupar. Foi para
a biblioteca escrever a Daphne notícias sobre o sucesso das primeiras entregas. Sossegá-la-ia
relativamente a Mr. Drummond, a quem escolhera para a ajudar, um homem que revelava ser um
empregado extremamente cordial e confiável.
O silêncio da casa não a deixava ponderar sossegadamente nas palavras a escrever. Mr. Drummond
indicara-lhe que Jonathan descera quando ela estava na carroça a procurar os lugares mais seguros para
transportar as plantas nas suas breves jornadas. Depois saíra. Ela ficou bastante satisfeita. Pelo menos
não teria de procurar formas de o evitar hoje.
Talvez lhe escrevesse também uma carta.

Caro Mr. Albrighton,


Obrigada pela sua ajuda no outro dia. Tenho a certeza de que compreenderá que eu não estava em
mim depois do choque da visita de Mr. Dargent. Sei que um homem experiente como o senhor nunca
daria importância, seja de que forma for, a alguns beijos concedidos num momento de perturbação
extrema. Seja como for, o que ocorreu torna difícil a situação atual nesta casa. Seguramente não se
sentirá confortável. Não me oporei de forma nenhuma se concluir que deve sair e procurar um novo
alojamento. Na verdade, tomei a liberdade de o ajudar nesse sentido. Por favor atente aos anúncios
no jornal que acompanha esta carta, e aos que assinalei que versam alojamento para cavalheiros.

Sentiu alguma satisfação ao compor mentalmente a carta, embora nunca fosse escrevê-la. Gostou do seu
tom sofisticado, tão diferente da forma como agira e se sentira quando o viu.
Esquecido o choque da visita de Anthony, a consciência da humilhação que sentira pelo que Mr.
Albrighton ouvira e vira, e a forma como, na sua angústia, se comportara para com ele, invadiu-a
implacavelmente. Agora não conseguia deixar de pensar naquilo.
Tão-pouco a deixava a memória do desalento que sentira quando regressara à casa depois de expulsar
Anthony. Estava a morrer por dentro. Mortificada e assustada. Chamara a si toda a sabedoria de
Alessandra para recuperar algum autodomínio e compostura.
Tê-lo-ia visto, ele? Fora por isso que a beijara? Teria querido reconfortá-la, ou deixara apenas que as
suas inclinações se aproveitassem da dor dela, conforme afirmara?
O que haveria ele de pensar dela, do facto de lhe permitido aquelas liberdades – tê-las encorajado, na
verdade – depois de se mostrar escandalizada com os avanços de Anthony?
Por vezes apenas é. Fora assim que ele falara daquela paixão. Mais uma ambiguidade de um homem
repleto delas.
Para os homens talvez pudesse apenas ser. Para as mulheres, contudo, o mundo exige que a
sensualidade tenha uma história se a mulher não for suficientemente corajosa para escrever a sua. E com
Jonathan Albrighton não poderia existir história nenhuma, tinha toda a certeza. Ela não seria adequada
para um homem na situação dele, e ele nunca seria adequado para ela, fosse qual fosse a vida que Celia
escolhesse.
Levantou-se abruptamente e foi ao quarto das traseiras. Tirou a peliça cinzenta do prego e colocou-a.
Apertou-a com dedos rápidos e determinados.
Bastava de plantas. Não voltaria a esconder-se de Jonathan, pensasse ele o que pensasse, nem de mais
ninguém. Tão-pouco permitiria que se voltasse a sentir humilhada pela visita de Anthony.
Tiraria proveito do dia, que por sinal estava muito bonito, e daria uma volta no parque. Se alguém
reparasse nela e apontasse e murmurasse que era filha daquela mulher, ignoraria a pessoa e ergueria a
cabeça como sempre fizera.

Hyde Park não estava muito concorrido, mas um número considerável de almas havia saído a meio do
dia para aproveitar o sol e a brisa suave. Celia encontrou um poste ao qual prender o cavalo e a
carruagem e começou a descer para tratar disso.
Luvas seguraram-lhe as rédeas do cavalo. – Permita que a ajude.
O cavalheiro, dono daquelas mãos, despachou-se com as correias e aproximou-se para a ajudar a
descer.
Estava a ser educado e amável para com uma mulher sem lacaio nem dama de companhia. Celia sabia,
contudo, que não fora apenas um coração bondoso que fizera com que lhe prestasse assistência. Quando
desceu viu interesse nos olhos dele.
Tê-la ia reconhecido? Talvez não. Poderia apenas estar esperançoso de que ela fosse o tipo de mulher
que não se prendesse por propriedades numa tal situação. Se se proporcionasse uma conversa, quem sabe
onde poderia conduzir?
Várias vezes vira já aquela centelha de possibilidade. Mesmo quando vivia com Daphne, mesmo com
homens que não faziam ideia de quem a sua mãe era, granjeara aquele tipo de atenção. Daphne dizia
sempre que se devia apenas ao facto de ela ser bonita, mas naquele dia ela sentia que talvez tivesse
mesmo nascido com uma marca na fronte, a mesma cuja existência negara a Anthony.
Ela não queria companhia; muito menos daquele tipo insinuante. Agradeceu e afastou-se, para desfrutar
do parque sozinha.
O sol não demorou a fazer-lhe maravilhas. Sentiu o ânimo fortalecer-se com o seu calor. Seguiu o
caminho que passava pelo reservatório, procurando pistas de flores primaveris que começassem a
desportar pelo chão com os seus caules verdes. Examinou as carruagens que passavam e as novas modas
das mulheres de sociedade que passeavam juntas.
Gozando de maior paz do que em qualquer um dos últimos dias, permitiu-se voltar a pensar na visita de
Anthony. Não nos insultos e na forma como terminara, mas no que ele lhe dissera e o que significaria
para o seu futuro. Refletia sobre o assunto quando uma sombra lhe tapou o sol. A sombra moveu-se ao
ritmo dela durante vários passos até ela erguer os olhos para ver o que a provocava.
Um homem alto e sombrio olhava para si de cima de um grande cavalo claro, ritmando o passo do
animal pelo seu próprio passo.
– Mr. Albrighton. Que coincidência encontrá-lo aqui também.
– Está um dia inusitadamente bonito para a época do ano – replicou ele. – Decidi que não deveria ser
desperdiçado. Pelos vistos, pensámos da mesma forma.
– Ou isso, ou seguiu-me até aqui.
– Porque faria eu tal coisa? – Apeou-se da montada e aproximou-se dela, com um sorriso cativante e o
cavalo seguro pelas rédeas.
– Não o nega, vejo; é mais uma das suas evasivas.
Afastou-se. Ele procurou-a. Ela fez-lhe saber com um olhar ríspido e um suspiro profundo que não
queria a sua companhia. Ele ignorou-os.
– Segui-a, é verdade – confirmou. – Sabia que lhe seria mais difícil evitar-me num sítio público do que
na sua própria casa. E isso que tem feito, não é? Evitar-me?
– É mais convencido do que pensava, se acredita nisso.
– O que não quer dizer que não seja verdade. Não sou o único a usar de evasivas.
Ela parou de andar e voltou-se para ele. – Sim, tenho andado a evitá-lo. Não era eu própria naquele
dia. A sua presença agora incomoda-me. Além disso, vim aqui para me deter a pensar em alguns assuntos
de grande importância para mim, e não para socializar consigo.
– Está a dizer que lamenta a paixão que sentiu, Celia? Se assim for, respeitá-lo-ei e apresentarei
renovadas desculpas por me ter aproveitado de si.
Face à persistência dele, ela suspirou. Ele olhava-a com tal amabilidade, e tal seriedade, que não seria
justo dar-lhe uma réplica espirituosa. Que homem atraente, pensou, como sempre. Excitante. A euforia
sensual que experimentara com ele não estivera longe dos seus pensamentos durante os últimos três dias,
mau grado toda a confusão e constrangimento que sentia. Agora era palpável, dominada mas ainda
presente.
– Ensinaram-me que o arrependimento serve aos tontos, portanto, não pode ser isso, pois não? Mas sei
que nunca poderá haver história alguma entre nós.
Ele não se opôs àquele último ponto. Claro que não. Ela retomou o caminho. Não tinha de ser mais
concreta com um homem daqueles. Ele partiria agora. Poderia até deixar casa de vez. Seria o melhor.
Este pensamento deixou-a vazia por dentro, e um pouco triste. Censurou essa sua reação. Que rapariga
estúpida que ainda conseguia ser às vezes.
Avançara já várias centenas de metros quando as botas dele vieram novamente caminhar ao seu lado. O
cavalo resfolegava atrás deles, no seu passeio soalheiro.
– Sobre que assunto de grande importância reflete, se não é sobre mim? – inquiriu ele.
– Reflito sobre o meu futuro, sobre quão imprudente fui com as vidas daqueles pelos quais assumi
responsabilidades. Descobri que tenho uma dívida a saldar que pode destruir tudo o que me esforcei por
conquistar. Como consequência, a minha independência pode revelar-se muito passageira.
– Tem andado a jogar sem que ninguém saiba, Celia? Porque se assim não for, não acredito que a
dívida seja assim tão grande.
– Tenho a certeza de que é maior do aquilo que eu posso pagar. Sei que a minha mãe deve a Anthony
Dargent uma grande soma de dinheiro e, se a dívida não for saldada, de certeza que ficarei sem a casa.

Celia continuava a caminhar, deixando-se absorver pela ponderação da dívida recém-descoberta. Não
mostrava desconforto por estar com ele, mau grado todas as suas queixas de constrangimento, o que
deixava Jonathan satisfeito.
Não poderá haver história alguma entre nós. Ele estava bastante certo do que ela quisera dizer com
aquilo. A educação que a mãe lhe dera ensinara-a a olhar o mundo sem piedade no que àquilo dizia
respeito. Não o podiam censurar por desejar que ela fosse menos sensível.
O trilho dividia-se à frente deles. Ela enveredou pelo caminho menos percorrido. Ele aguardou para
ver se, depois de procurar alguma privacidade, ela lhe confiaria o resto da história da dívida.
– Quando o ano que passei em Londres com a minha mãe estava a terminar, ela procurou arranjar-me
um primeiro protetor. Talvez já saiba disto – comentou ela, como se respondesse a uma pergunta dele
quando, de facto, nada inquirira.
Ele sabia. Todos os homens mais jovens da alta sociedade sabiam, e não eram poucos os que, numa
posição semelhante à dele, procuravam retirar o seu próprio benefício. Edward não fugira à verdade
quando dissera que Alessandra passara meses a criar expectativa na alta sociedade com respeito à
iniciação iminente de Celia.
Alessandra adivinhara que ele não aprovava e, por sua vez, fizera pouco dos escrúpulos dele. A
Jonathan parecera um pecado iniciar uma rapariga naquela vida, sendo ela tão jovem e inocente. A mãe
dela explicara – pacientemente, atendendo ao facto de estar a falavar com um jovem sobre algo que não
lhe dizia respeito – que eram a juventude e a inocência que garantiriam o triunfo de Celia.
– Sabia das intenções dela a seu respeito, sim.
– Bom, Anthony foi o escolhido. Foi assim que começou aquela horrível conversa com ele. Aquela que
tivemos imediatamente antes de eu sair da casa da minha mãe. Ele dizia-me, muito animado, que ela tinha
dado o seu consentimento. Foi assim que eu soube que ele não pensava minimamente em casamento.
Ele não sabia que Dargent tinha sido o escolhido. Os comentários que Celia fizera depois de Dargent
sair, naquele dia, agora faziam mais sentido e ganhavam mais significado. No entanto...
– Ele tinha riqueza suficiente, mas seria de esperar que ela escolhesse um nobre ou o herdeiro de um
título.
– Ela tê-lo-ia preferido, mas acreditava firmemente que eu devia ter algo a dizer. Ela sabia que eu
estava apaixonada por ele, por isso aceitou a proposta, que foi muito generosa.
– Era conveniente que amasse um dos candidatos adequados. Presumo que ela nunca teria cedido à sua
vontade caso se tivesse apaixonado por um homem desprovido de condições.
– Alessandra teve muitos meses para explicar a razão pela qual, amante ou patrono, nunca poderia ser
alguém sem fortuna.
O que, claro está, era uma razão pela qual não podia haver história alguma entre eles.
– Quando Anthony me visitou, no outro dia, disse que as negociações haviam progredido muito mais do
que eu imaginava. Afirmou que tinha adiantado a Alessandra os dois primeiros anos da minha pensão.
– Ela devolveu o dinheiro quando a Celia foi embora?
– Ele diz que não.
– Então é essa a dívida que a angustia, estou a ver.
Ela assentiu com a cabeça. – Devia ter esperado, imagino, para iniciar o negócio das plantas. Devia,
definitivamente, ter esperado antes de oferecer um teto a Marian e Bella. Agora ou perco a casa quando
ele reclamar a dívida contra os bens da Alessandra, ou envolvo-as numa vida que não corresponde que
lhes prometi. Que seria o oposto, na verdade.
– Está a convencer-se de que não tem outra escolha a não ser pagar a dívida com trabalho?
Arrependeu-se do tom incisivo que usou assim que falou, mas aquele pequeno debate dela estava a
enfurecê-lo. Não estava a gostar que ela o envolvesse naquilo como se ele não tivesse qualquer direito a
importar-se. E não tinha, o que não queria dizer que lhe agradasse. Quase conseguia ouvir a mente dela a
pesar, avaliar, chegando sempre a conclusões deveras muito práticas.
Ela parou de andar, irritada. – Estou a tentar determinar quais as minhas hipóteses, tanto as boas como
as más.
Era o que lhe faltava, deixar que ela se convencesse a si própria a atirar-se para os braços daquele
idiota. – Pergunto-me se compreenderá verdadeiramente o bom e o mau do que ele lhe oferece.
Segurança, sim. Luxo, até. Uma casa melhor e mais criados e até uma espécie de estatuto no mundo dele.
Tenho a certeza de que a sua mãe lhe explicou tudo isto.
– Pouco mais fez.
– Também lhe explicou o que acontece quando se retiram as sedas e se torna escrava sexual de um
homem?
Ela fulminou-o com o olhar. – Dificilmente seria ignorante. Alessandra não dispensou essa parte da
minha educação. Ensinou-me a manter um nível de dignidade.
Ele quase se riu. Claro que Alessandra não fora muito específica sobre o que acontecia quando as
coisas corriam muito mal. – Pediu o meu conselho. Ouça-me então, agora, já que debate as hipóteses que
tem. Haverá homens que a encorajarão a pensar que controla a situação, porque já preveem o prazer que
terão em vergá-la à vontade deles. Nem todos os cavalheiros são cavalheiros neste particular. Só para
que saiba.
– Obrigada pela lição, Mr. Albrighton. – Deu meia-volta e afastou-se pelo caminho por onde viera.
Ele alcançou-a com facilidade. Suportou aquele silêncio defensivo e disse a si mesmo que não fora
assim bruto para proveito próprio, mas apenas para a avisar.
Só que em parte havia sido para seu próprio proveito. Pensar que ela poderia entregar-se a Dargent –
por vontade própria, nada menos – fê-lo querer matar o homem.
Preparou o argumento seguinte para a dissuadir de sentir qualquer obrigação com respeito àquela
dívida. Antes de conseguir falar, porém, um pequeno drama começou a desenrolar-se diante dos dois.
Uma mulher que ele reconheceu seguia pelo caminho na direção deles. Alta, de cabelo escuro, vestia um
conjunto de passeio verde e trazia um mantelete debruado a peles por cima da peliça de veludo. Uma
mulher vestida de forma mais humilde acompanhava-a; uma criada, ao que parecia.
A mulher de cabelo escuro parou repentinamente quando os avistou aos dois. Olhou de imediato para a
relva lamacenta de um lado e do outro do caminho, como se procurasse uma fuga rápida. Constatando que
seria desavisado sair do trilho, endireitou as costas e prosseguiu, com uma expressão implacável.
Jonathan sentiu um prazer inoportuno ao transpor o espaço que os separava. Cruzou o olhar com o da
mulher, apesar de ela fazer todos os esforços para o evitar. Em resposta, ela olhou diretamente para ele e
para Celia ao passar e atirou a cabeça para trás com dramatismo, o nariz apontado ao céu.
Celia corou profundamente, mas um brilho férreo resplandeceu-lhe no olhar. Não voltou a falar até ele
a deixar no cabriolé.
– O conselho que deu acerca do meu problema é bem recebido, Mr. Albrighton, embora me parecesse
uma lição desnecessária, como aquelas que se dão às crianças.
– Não era minha intenção falar-lhe como a uma criança, mas a uma mulher envolvida no cálculo de
futuros custos e proveitos.
– Então a rejeição ostensiva daquela senhora não foi alheia aos seus propósitos, e contribuiu para me
lembrar que suporto custos sem ter qualquer proveito.
Ele ajudou-a a subir e montou o seu cavalo.
– A censura não foi dirigida a si. Ela provavelmente não faz a mínima ideia de quem é.
– Está a dizer que ela foi deliberadamente mal-educada... para consigo? Conhece-a?
– O bastante. É minha prima.

– Estou curioso acerca de uma coisa, tio – disse Jonathan. – Pode ter relevância para a minha busca.
Estavam os dois sentados na biblioteca de Edward, em frente a um fogo que lhes aquecia as botas. A
mulher de Edward retirara-se a seguir ao jantar, como sempre fazia quando Jonathan estava de visita.
Não podia negar ao marido a obrigação de lhe fazer sala, mas não se alongava para além das
formalidades, as quais, quando ela estava presente, eram deveras formais. Há muito tempo que devia ter
decidido que permanecer nas boas graças de Thornridge era mais importante do que permanecer nas boas
graças do marido.
Jonathan não se importava tanto quanto isso. As refeições, muito privadas, tinham muito menos
importância para si do que as conversas que se lhes seguiam. Edward não seria a família carinhosa que
Jonathan desejara enquanto rapaz, mas era o que tinha.
– E que coisa é essa? – indagou Edward, servindo-se de mais porto.
– Anthony Dargent. O que sabe sobre ele?
Edward encolheu os ombros. – É de boas famílias, do centro do país. Têm montes de dinheiro. O avô
negociou em mais comércio do que alguma vez admitiu e encheu os cofres. Lã. Algodão. Escravos,
também, é o mais certo. O Dargent provavelmente vale umas sete mil libras ao ano.
Mais do que suficiente para manter uma amante em grande estilo. Alessandra pedia uma soma
principesca por Celia e havia poucos jovens capazes de a assegurar. Ela acreditava que eu devia ter
algo a dizer, afirmara Celia. Que conveniente para Alessandra, e provavelmente uma sorte para Celia
que o homem que ela desejava correspondia às condições da mãe.
Perguntou-se se Alessandra teria tido desde o início a intenção de guardar a pensão só para si. O mais
certo é que não. Quando a filha partiu, provavelmente foi-se gastando com o tempo.
– Há alguma questão relacionada com o nome dele? – inquiriu.
– Nenhuma que eu conheça. É um sujeito de boa índole, enfadonho e estável quanto baste. Casou com a
filha de um sujeito igualmente bom e enfadonho, que, por sua vez, casara com a irmã de um visconde.
Sendo assim, suponho que o Dargent tenha conseguido ascender no mundo.
– E o pai dele? Também era bom e enfadonho?
– Nem tanto. – Edward acendeu um charuto e contemplou a névoa de fumo a esvanecer-se. – Mas não é
o que pensas.
Jonathan ainda não pensara nada. Mas seguramente não o diria a Edward. – Tem a certeza?
– O pai dele era muito religioso. Inusitadamente religioso. A ideia de que ele possa ter tido algum tipo
de ligação com Mrs. Northrope é absurda.
Semelhante coisa nunca ocorrera a Jonathan. No entanto, era evidente que ocorrera a alguém, por isso
agora tornava-se uma linha de raciocínio interessante. – Esteve ligado ao governo durante a guerra? O
pai, quer dizer.
– Informalmente. Passara três anos em França enquanto jovem, como uma espécie de missionário junto
dos camponeses franceses, que não mostravam grande vontade de ouvir. Já tinham os padres deles, não é
verdade? Mas ele ficou a conhecer muito bem a configuração de determinadas províncias. O exército
consultava-o uma vez por outra. Tu sabes, aquele tipo de perguntas: «Há cheias neste rio na primavera?»,
«Esta linha do mapa é uma estrada suficientemente boa para transportar um canhão?» – Encolheu os
ombros. – Nada de dramático.
Só que aquelas perguntas podiam dar alguma indicação dos potenciais movimentos do exército. O
exército fazia vinte perguntas para saber a resposta a uma, de modo a esconder o seu verdadeiro
interesse; mas alguém que soubesse dos desenvolvimentos militares no Continente provavelmente
conseguiria decifrar qual a pergunta que importava.
O pai de Dargent talvez fosse religioso de mais para ter uma ligação com Mrs. Northrope, mas o filho
não era tão exigente em relação à sua alma. Talvez Alessandra tivesse outra razão para juntar Celia e
Dargent, além das preferências desta e das condições apreciáveis do jovem. Talvez tencionasse usar a
filha como mais um recetáculo para as informações úteis que os homens tendiam a deixar escapar quando
estavam muito satisfeitos. Alessandra podia até tê-los emparelhado com esse fim em mente.
– Vi Miranda hoje – comentou Jonathan, mudando de tópico, como é da praxe nas conversas junto à
lareira.
A expressão relaxada de Edward endureceu. – Viste? Onde?
– No parque. Quase esbarrávamos um no outro.
– Ela cumprimentou-te?
– Se a rejeição ostensiva for uma forma de cumprimento, sim.
– Não finjas que te sentiste surpreendido, ou mesmo verdadeiramente insultado.
– De todo. No entanto, ela raramente vem à cidade, a não ser que o irmão também cá esteja. Thornridge
está em Londres?
Uma opípara baforada no charuto. Um suspiro profundo. – Parece-me que sim.
– Queria que obtivesse uma audiência com ele, para mim.
– Não seria sensato.
– Não seria sensato para si?
O desagrado de Edward começou a notar-se. – Para nenhum de nós.
– Discordo. Penso que está mais do que na altura de falar com ele. Posso simplesmente fazer-lhe uma
visita, imagino.
– Ele não te receberá.
– Dar-lhe-ei razões para me receber. Direi que o procuro em nome do Ministério do Interior e que
estou a investigar todos os homens que durante a guerra tinham influência no governo e visitavam uma
certa Vénus. Ele esteve lá várias vezes, pelo menos. Eu vi-o.
Edward soltou um suspiro de resignação. – Se fizeres isso, criarás um problema antes do tempo e não
conseguirás nada. Basta-te insinuar que ele foi desleal para lhe dares a desculpa de que precisa para
destruir qualquer tipo de vida que tenhas construído para ti próprio.
– Permita-me que avalie os meus próprios riscos e proveitos.
– Isso é que era bom. Tu afinal também queres é que eu dê o peito às balas.
Jonathan sempre se perguntara se Edward tinha medo de Thornridge. Suspeitava há muito que o
relacionamento com o sobrinho bastardo fosse uma forma de proteger o outro sobrinho, o conde.
Concluía agora com pesar que estava certo. Fosse por medo ou por calculismo, o tio Edward
provavelmente nunca defenderia Jonathan com palavras ou ações que pudessem irritar Thornridge.
Porque o faria?
Edward pareceu-lhe abatido e pesaroso. Um sorriso ténue de apaziguamento anunciou uma mudança de
tópico. – Onde tens estado alojado?
– Arrendei um quarto numa casa durante a minha permanência na cidade.
– Que coisa, não teres uma casa a sério. E se eu precisar de entrar em contacto contigo com urgência?
– Basta usar a caixa postal do costume.
Edward explodiu uma grande nuvem de fumo. Jonathan contribuiu com a sua. As duas nuvens pairaram
acima deles, para se deixarem levar pelas correntes de ar, seguindo caminhos diferentes.
CAPÍTULO 11

– S ónada
disse que mostras grande curiosidade relativamente a Mr. Albrighton, Celia. Não insinuei mais
– declarou Daphne. Contudo, o seu sorriso dizia o contrário.
– A minha curiosidade não tem a ver com ele, mas com a mulher que o desprezou com tanta crueldade.
E porque é que não haveria de estar curiosa? Se estivesse, o que não é o caso. Afinal, ele vive no meu
sótão.
– Se ela é prima dele, pode ser Lady Chesmont – sugeriu Verity. – Seria orgulhosa o bastante para o
fazer; mas, de resto, até é anorosa, acho eu. Um tanto apagada, e casada com um visconde, cujo título foi
atribuído apenas como distinção.
Verity fora buscar Celia a Wells Street e também não entrara pela porta das traseiras. Usara uma
carruagem alugada e anónima que a levara mesmo à porta, sem que tivesse sequer de sair.
Agora estavam sentadas na sala das traseiras de Daphne, na casa que ficava perto de Cumberworth, a
aproveitar a luz que a janela por detrás do sofá deixava entrar. Através das vidraças, Celia via a estufa e
Katherine no seu interior, a cuidar de uns vasos.
Katherine fora a última adição à casa de Daphne, mas ausentara-se quando as convidadas chegaram.
Ela sabia que as mulheres que tinham deixado a casa às vezes gostavam de recordar os bons velhos
tempos com Daphne. Não era desfeita nenhuma quando assim acontecia.
– Quanto à tua desculpa para estares curiosa acerca dele, deixa-me lembrar-te que eu vivi no quarto
que fica ao lado do teu e tu não ficaste curiosa acerca de mim – acrescentou Verity.
– Disparates! Claro que fiquei curiosa. Só nunca perguntei porque concordámos todas não o fazer. Não
tenho nenhum acordo semelhante com Mr. Albrighton, e ele merece uma boa dose de curiosidade, se
querem saber.
– Todo o homem atraente merece, imagino. – Daphne alimentou o fogo, regressou ao sofá e dirigiu um
olhar muito frontal a Celia.
Ao dar por si a ser inspecionada por Daphne, Celia sentiu-se corar. – Não é por ele ter uma boa figura.
É um enigma. É amigo do marido de Verity e do marido de Audrianna, é educado, e Verity diz que é filho
bastardo de um conde. Não obstante, parece que apareceu do nada já homem feito, pois não se lhe
conhece família ou história. Não está empregado no comércio mas também não aparenta ser rico. Parece-
me natural que eu ache tudo isto demasiado misterioso para me sentir tranquila.
– Não me oponho a falar sobre Mr. Albrighton se o desejas – afirmou Daphne. – No entanto, antes de
continuares, já comentei, Verity, que Mrs. Hill experimentou fazer um novo tipo de trifle na outra noite?
2

Tinha um bocadinho de limão nas natas.


– Parece delicioso – replicou Verity. – Eu também tenho queda por trifle, por isso hei de pedir-lhe a
receita. Será que o trifle tem este nome por ser servido em estanho? Era assim que o meu pai chamava
aos utensílios de casa quando eu era pequena. Estanhos.
– Que interessante. Podemos servir trifle a um homem numa taça de estanho, e depois ele vai divertir-
se com…
– Podemos regressar ao tópico em que estávamos? – interrompeu Celia, contundente.
Daphne fez um ar inocente. – Não me apercebi que nos tínhamos desviado dele, Celia.
Verity deu uma gargalhada. Ela e Daphne riram-se com vontade. Depois Daphne pegou-lhe na mão. –
Está bem, vamos retomar a conversa sobre o belo e demasiado misterioso Mr. Albrighton. Além do nome
da prima, aqui não descobrirás mais nada, temo. Somos tão ignorantes como tu.
– Achas que sim? Eu não. Não consigo evitar reparar que há aqui uma pessoa que tratou de se esquivar
completa e cuidadosamente a esta conversa.
Celia olhou diretamente para a pessoa em questão. Daphne e Verity também olharam na mesma
direção.
O silencioso objeto da atenção delas endireitou-se ligeiramente na cadeira que ocupava ao lado da
lareira. Os olhos de Lady Sebastian Summerhays arregalaram-se como os de uma criança apanhada a
roubar um torrão de açúcar.
– A Celia está correta, Audrianna? Possuis informação de interesse em relação a Mr. Albrighton? –
inquiriu Verity.
O olhar de Audrianna voou de uma para outra. Corou. Passou distraidamente a mão pelo cabelo
acobreado. Um hábito que tinha quando estava nervosa.
– É possível – murmurou. – Não devo dar-ta, porém, Celia. Mr. Albrighton poderia não gostar. Foi o
que Sebastian me disse.
– Lord Sebastian proibiu-te de nos contar? – perguntou Verity.
– Ele não proibiu. Apenas exprimiu a opinião de que seria melhor se eu não repetisse o que a mãe dele
me disse.
– Estava errado. – Celia soltou um risinho e inclinou-se para Audrianna. – O que é que ela disse? Para
com provocações e conta.
Audrianna resistiu apenas mais alguns momentos. – A educação dele foi paga pelo conde de
Thornridge. Ele admitiu-o quando andou a estudar com o Sebastian.
– Bem, é uma explicação isso, pelo menos – disse Celia. – A família assumiu alguma responsabilidade,
então. Reconhecem que a reivindicação dele não é infundada. No entanto, a prima dele foi
propositadamente mal-educada.
– O último conde morreu antes de Mr. Albrighton nascer – explicou Audrianna, deixando-se levar pelo
assunto. – A mãe estava grávida dele, porém, e o último conde sabia-o e tomou algumas providências.
Daí a educação. Podem ver no entanto, como tudo é ambíguo. O título passou para o sobrinho do conde,
que nega o parentesco.
– Deve ser desgastante – vaticinou Daphne. – Deve ser difícil viver sabendo que basta um sinal de
assentimento de uma pessoa para mudar consideravelmente as tuas oportunidades. Mesmo sendo
bastardo, se for reconhecido pela família como tendo o sangue deles, muitas portas se abrirão.
Celia ficou a pensar naquilo enquanto as amigas especulavam sobre as portas que poderiam abrir-se
caso esse reconhecimento alguma vez se desse.
Aquela informação explicava muita coisa. A razão pela qual a prima o ignorara tão ostensivamente. A
razão pela qual ele parecia tão desenraizado. A ausência de reconhecimento devia ser deveras
desgastante. Ele quereria obtê-lo, estava certa, mesmo se não lhe abrisse portas. Qualquer pessoa
quereria, independentemente da família de que se tratasse. As pessoas não eram feitas para viver alheias
aos seus laços familiares. Não era normal.
– Talvez o tenham reconhecido, de certa forma. Talvez se tenha aberto uma porta – acrescentou Verity,
pensativa, franzindo a testa nívea. – Aquele assunto a norte, perto da minha casa. Ele foi magistrado lá.
Não é uma posição que um homem obtenha por acidente, especialmente se for novo na região. Alguém
teve de usar de influência para que isso acontecesse.
A conversa cessou. A singularidade da obtenção daquela posição por parte de Mr. Albrighton deixou
Celia desconfiada. Ele não o ocupara por muito tempo.
– Talvez fosse por isso que Sebastian achou que Mr. Albrighton não ia gostar que eu falasse no seu
passado – comentou Audrianna. – Vejam com que rapidez descobrimos um mistério. Pode ser que
convenha a Mr. Albrighton que ninguém se debruce demasiado sobre o seu passado, ou o seu presente.
– Talvez devêssemos deixar o cavalheiro em paz, então, e falar de outras coisas – sugeriu Daphne. –
Audrianna, quando escreveste para nos dizer que vinhas ter connosco, mencionaste umas notícias. Peço-
te, diz-nos o que é.
Audrianna corou e sorriu como uma menina. – As minhas notícias são as melhores. Sebastian e eu
esperamos um feliz acontecimento no início do verão.
Mr. Albrighton foi esquecido na excitação que se seguiu. A conversa centrou-se em bebés, saúde e
preparativos. Contudo, ainda que Celia participasse, uma parte dela continuou a cogitar sobre as
novidades do dia.
Jonathan não escondera a identidade do pai. Há muitos anos que informara Lord Sebastian e
Hawkeswell. No entanto, também não procurou vê-la reconhecida publicamente. Nem poderia, se a
família se recusava a fazê-lo o mesmo. Devia estar ressentido por isso. Não seria humano se não
estivesse.
Seria isso o que o levava a Londres naquele momento, uma tentativa descobrir uma forma de obter esse
reconhecimento? Quando saía à noite, seria para passar pelas poucas portas que se tinham aberto
discretamente quando todas as outras permaneciam fechadas? Ele não lhe parecia ser alguém que
aceitasse a situação tal como estava.
Oh, sim, ele tinha expectativas, e não eram exatamente aquelas que ela imaginara. Não era um homem
que procurava apaziguar a sociedade para se agarrar à pequena vantagem que o seu nascimento lhe
conferira. Tratava-se de um homem que lutava ainda pela garantia dessa vantagem. Ele tinha mais a
perder, e mais a ganhar, do que ela julgara.
Não admira que não a tivesse contradito quando ela afirmou que não poderia haver história alguma
entre eles. Naquele momento, nenhum dos dois convinha ao outro. E se ela de facto seguisse o caminho
de Alessandra, ele nunca poderia ser um protetor, mesmo se alcançasse tudo o que esperava obter.
A consciência destas duras realidades ensombrou-lhe o dia. Não se deixou levar por isso, mas os risos
e gargalhadas e a tagarelice com as amigas pareceram-lhe vazios, distantes, até, a seguir. Era um inferno,
concluiu, encontrar um homem tão excitante e irresistível, mas saber também que não se atreveria a fazer
nada em nenhum sentido.
Só quando se encontrou na carruagem de Verity, regressando a Londres ao cair da tarde, é que a
melancolia se dissipou o suficiente para ela constatar que a sua fixação com o berço de Jonathan a
deixara cega.
A outra informação acerca dele, e aquele estranho trabalho como magistrado, eram muito mais
importantes, na verdade. Mr. Albrighton podia ser mais útil do que ela pensara. Ela tinha a certeza de que
ele aceitaria ajudá-la se lhe pedisse como devia ser. Coisa que provavelmente não devia fazer.
Por outro lado, ainda que não pudesse haver história alguma entre eles, poderia ser-lhe desculpada um
pouco mais de frivolidade se fosse tudo por uma boa causa.
2 Trifle: esta palavra pode ter os seguintes significados, entre outros, com os quais a autora compõe jogos de palavras nas frases seguintes:
1) um bolo de camadas, 2) peltre (liga de estanho), 3) divertir-se com. (N. da T.)
CAPÍTULO 12

A carta subiu com a água quente, de manhã. Com uma caligrafia clara e feminina, num papel impecável
e dobrado, a mensagem trazia-lhe um convite de Celia. Mr. Albrighton gostaria de jantar com Miss
Pennifold naquela noite, às oito?
Intrigado, escreveu uma mensagem de aceitação e enviou-a para baixo.
Naquela noite, Jonathan vestiu-se como se fosse sentar-se a uma mesa de vinte pessoas em Mayfair.
Fez o nó da gravata com todo o cuidado enquanto se perguntava se ela o receberia num daqueles vestidos
de seda. Poderia tratar-se de um jantar informal, claro, nesse caso ele pareceria um pouco ridículo.
Arriscou, contudo, contando que Celia saberia usar de maior cerimónia quando fosse necessário.
O jantar tinha um propósito, claro. Ela queria algo dele. Não podiam censurar-lhe o facto de desejar
que a razão fosse a mais apetecida. Seria muito agradável se ela tivesse decidido que a virtude não era
virtuosa, e que quisesse mais agora do que beijos roubados.
Rindo para si próprio, desceu pelas escadas da frente. Deteve-se ao passar pelo quarto de Celia.
Ouviam-se murmúrios femininos para lá da parede e da porta. Por impulso, bateu.
Fez-se silêncio lá dentro. A seguir, a porta abriu uma frincha, por onde Bella espreitou.
– Diga a Miss Pennifold que vim para a acompanhar à mesa, Bella.
Bella olhou por cima do ombro. Celia ficou logo visível pela abertura estreita. Bella retirou-se,
expedita.
– Mas que cavalheiro, Mr. Albrighton – comentou Celia. Tinha o cabelo penteado num estilo
elaborado, com minúsculas tranças entrelaçadas no alto da cabeça. Envergava o vestido de cetim
castanho-mel do baú, aquele que ela examinava quando ele a encontrou no quarto do sótão.
Estava deslumbrante. Sofisticada e elegante e muito feminina. Vestira-se de uma forma pensada para
tirar um homem do sério.
Queria alguma coisa, definitivamente.
Como também ele. Embora duvidasse que quisessem a mesma coisa, porém. Começou a pensar em
estratégias de sedução para garantir que, no fim do serão, as suas vontades estivessem alinhadas.
– Bella, o meu xaile, por favor.
As mãos de Bella surgiram atrás dela, segurando um xaile de croché em cor creme, salpicado de pés de
flores azul-escuros. Celia não trazia joias. Ele calculou que, se vendesse tudo o que possuía e se
endividasse até à ponta dos cabelos, conseguiria comprar safiras para lhe adornar a pele suave do
pescoço.
Ela esperou pacientemente que ele se desviasse. Caindo em si, ele ofereceu-lhe o braço.
– Vai ser Marian a cozinhar, por isso não espere um jantar francês – disse ela, ao descerem as escadas.
O cetim gracioso da saia ondulava, roçando-lhe as pernas. Ele sentiu a textura acariciá-lo apesar de não
lhe tocar diretamente na pele.
– Tenho a certeza de que será muito melhor do que os meus jantares habituais.
– As refeições faziam parte do contrato de arrendamento e eu tenho-me descuidado? Se assim for, peço
que me desculpe. Não sabia, já que nunca vi o documento. – Uma sobrancelha arqueou-se
pronunciadamente num olhar sugestivo.
– Trar-lho-ei amanhã.
A sala de jantar havia sido decorada com algumas das plantas e flores que restavam do envio de
Cumberworth. A única luz provinha apenas de dois candelabros pousados perto dos pratos que os
aguardavam. Celia esforçara-se por criar uma mesa acolhedora e cativante.
Bella e Marian serviam, envergando aventais limpos no seu papel de criadas de cerimónia. A sopa de
tartaruga provavelmente estava bastante boa, mas ele não prestou grande atenção ao sabor. Celia ficava
linda àquela luz. Parecia-lhe que os seus olhos se tornavam ainda maiores e mais profundos e que, se os
fitasse durante tempo suficiente, lhe via diretamente a alma.
– Ouvi um rumor acerca de si – referiu ela enquanto esperavam pelo prato seguinte.
Ele servia um bom vinho que ela dissera ter encontrado na cave. Concentrou-se no líquido vermelho. –
Não creio que eu seja suficientemente importante para justificar quaisquer rumores.
– Teve a ver com a mulher do parque, a sua prima, que o desprezou. Ela é irmã do conde de
Thornridge, não é assim? Lady Chesmont.
Marian apareceu com peixe acompanhado de um apetecível molho de citrinos. Aparentemente, alguns
dos frutos da laranjeira haviam sido retirados antes de aquela ser entregue aos Robertson.
– Tem falado com Summerhays? Hawkeswell? – Nunca lhes pedira para não revelarem o seu
parentesco com Thornridge, mas surpreendê-lo-ia que o tivessem feito. – Com as esposas?
– Então é verdade. É muito cruel da parte deles não o reconhecerem.
– Terão as razões deles, imagino. Não é cruel. Inconveniente sim, de certeza.
Ela fez uma expressão compadecida. – Pelo menos quando era criança foi cruel.
– Pode ser. Não me lembro. – Mas lembrava-se. A rejeição que sofrera por parte daquela família não
era algo de que alguém se esquecesse.
– Então a sua situação é conhecida de todos?
– Sim, claro. De todos. – Ele devia ficar por ali, mas os olhos azuis dela incitavam a confidências, e o
vinho e a sua presença impeliam-no à indiscrição. – Foi cruel apenas uma vez. Eu tinha nove anos. Foi há
muito tempo.
– O que aconteceu?
Ele não respondeu. Ela esperou, muito séria, muito interessada.
– A minha mãe levou-me a Hollycroft, a propriedade de Thornridge. Pediu para falar com o meu
primo, que acabava de atingir a maioridade. Ele recusou vê-la. Tínhamos percorrido uma boa distância e
ela não aceitou o seu repúdio. Sentou-se à frente da porta dele e declarou que ficava ali até ele a receber
ou até morrer. Eu sentei-me com ela.
A expressão mostrou perturbação. – Por favor não me diga que ele a deixou morrer de fome ali.
– Não exatamente, embora não lhe tivesse feito nenhum bem à saúde, que já não era boa. Ficámos ali
sentados durante três dias e três noites. Finalmente, Thornridge cedeu. Esperava convidados para uma
festa e não queria passar vergonha.
– Então encontrou-se com ele?
– Foi a única vez na vida que me encontrei com ele. De pouca coisa me lembro. Ela fez exigências. Ele
tinha a frieza de uma pedra. Choveram acusações do lado dela e insultos do lado dele. No fim, porém, ela
obteve dele o acordo de me educar. Acordaram também uma pequena pensão durante alguns anos, sob a
condição de eu não reivindicar qualquer parentesco.
Ele retomou a refeição, para indicar que não haveria mais pormenor nenhum. Lembrava-se de mais
pormenores do encontro entre a mãe e o primo do que aquilo que revelava, porém. Ao longo dos anos,
haviam-lhe ocorrido fragmentos, especialmente do que a mãe dissera e das afirmações que fizera. Não,
afirmações, não. Ameaças.
Celia examinou-o atentamente enquanto ele comia o peixe. Franzia ligeiramente o sobrolho,
desconcertada com o que percebia. – Como é que vive, se essa pensão terminou? Não vejo ocupação
nenhuma.
– Faz muitas perguntas a meu respeito. Há alguma razão?
– Estou curiosa. É tudo.
– Porque a beijei.
– Porque vive no andar de cima. E por causa daquele assunto a norte, e de ter sido magistrado lá. Eu
sabia disso, repare. Reconheci o seu nome de uma notícia de jornal que Verity me mostrou há meses.
Então ela começara a juntar as peças. Ele fingiu que não e esperou para ver onde aquilo levaria. Era
uma desculpa para observar as mudanças subtis nos seus olhos e na sua expressão, e o jogo de luzes que
as chamas operavam na sua pele.
– Ocorreu-me que o acesso a essa posição terá exigido a intervenção de homens importantes –
observou ela. – Jonathan nem sequer vivera alguma vez naquela região. Parece-me, por isso, que tem de
ter havido recomendações importantes dirigidas aos habitantes da zona. Depois lembrei-me de que
costumava desaparecer de repente e regressar inesperadamente durante a guerra, quando eu vivia com a
minha mãe. E desenvolvi uma teoria a partir de tudo isto.
Sorriu de satisfação. Os seus olhos provocavam-no.
– Se a sua teoria me granjeia convites para jantares privados nos quais usa vestidos de cetim,
dificilmente declararei que está errada.
– Nem sequer está interessado em saber qual é a minha teoria?
– Nem por isso. No entanto, julgo que ma comunicará na mesma.
Ela respondeu com um beicinho adorável à recusa dele de entrar no jogo. Depois, tal como ele
esperava, contou-lhe na mesma.
– Acho que é um daqueles homens que espiavam e faziam tarefas do género durante a guerra em
França. O que pensa disto?
– Fico aliviado por a sua teoria pelo menos não fazer de mim um homem maçador.
– Depois julgo que terá sido enviado para norte para descobrir o que se passava lá. Enviado por
homens importantes. Julgo que agora está à espera que eles lhe dêem novas instruções, para fazer mais
uma vez coisas semelhantes.
– Possui uma imaginação fértil.
– Há mais. Julgo que acedeu a esta inusitada ocupação porque alguém importante ouviu também os
rumores, há muitos anos, e lhe abriu esta porta quando a maioria das outras se apresentava fechada. –
Inclinou a cabeça para trás e agraciou-o com um olhar altivo. – Que tal lhe parece agora a minha
imaginação, Mr. Albrighton?
Marian chegou com galinha num molho rico. Depois de ela sair, ele serviu mais vinho a Celia. – Só fui
para França algumas vezes. Grande parte das minhas missões foram aqui mesmo, em Inglaterra.
Maioritariamente na costa. Está correta sobre a última parte também. Um homem importante abriu-me a
porta. – Ergueu o copo em saudação.
Os olhos dela arregalaram-se. – Está a dizer que acertei? Que adivinhei tudo?
– A maior parte. – Ela parecia tão admirada que ele se arrependeu de não ter dissimulado nada. Com
uma mentira, ela provavelmente teria desistido do assunto.
Só que ele não quisera mentir ou induzi-la em erro depois de ela se ter debruçado tão bem sobre a
questão. Lisonjeava-o que se tivesse sequer dado ao trabalho, e talvez até abrisse as suas próprias
portas, por assim dizer.
Ela fitava-o sem rodeios. Com tanta franqueza. Os seus olhos cintilavam, divertidos, mas ele não viu
nada de infantil neles. – Comigo, agora, também anda a espiar?
Ele não esperara aquilo. Maldição, ela era muito mais astuta do que ele pensara. Escondeu a surpresa
com uma risada. – Desmascarou-me! Os líderes das sociedades hortícolas do país pediram ao príncipe
regente que descobrisse os segredos das suas plantas.
Ela riu, e o som era musical. – Fico contente por saber que agora se encontra ocupado com tais
insignificâncias. É que gostaria de o contratar.
Surpreendia-o, mais uma vez. Ele baixara a guarda, devido ao vinho e à beleza daquela mulher. Fora,
com certeza, o plano dela e a razão daquele jantar, para começar.
– Terei de recusar, Miss Pennifold.
– Nem sequer deseja saber aquilo que pretendo que faça.
Ele não estava tão embriagado que não percebesse que o aguardavam sarilhos. – Não tem condições
para me pagar. Os meus honorários iriam empobrecê-la.
– Não pode ser assim tão caro. Afinal, vive aqui. Não em Park Lane. Podia pelo menos ouvir o meu
pedido antes de mo recusar.
Ele assentiu, resignado. – Perdoe-me. Fui rude. Diga-me o que pretende.
– É muito simples. Quero que descubra quem é o meu pai.
– Com que fim?
Ela revirou os olhos. – Preciso de um fim? Só quero saber. O Jonathan não quereria saber? É bastardo,
também, e tem essa informação, mas eu não.
– O meu pai reconheceu-me, ainda que os seus familiares não o tenham feito. Se o seu pai escolheu não
a reconhecer provavelmente teve as suas razões, e não gostará que alguém interfira.
– As razões dele são as mesmas que as de qualquer pessoa quanto ao que me diz respeito. Imaginou
que eu seguisse o caminho da minha mãe e não quis que o seu nome estivesse associado a isso. Contudo,
se eu não adotar a profissão dela, ele pode ter uma reação diferente. Eu também não espero que ele fique
a saber que o está a investigar, por isso pouca diferença faz se gosta ou não.
Se eu não... A questão ainda não estava completamente decidida, então.
– Não consigo obter-lhe informação do nada. Diga-me o que já sabe e eu decidirei se haverá alguma
hipótese de sucesso, no caso de concordar fazê-lo.
– É esse o problema. Eu não sei de nada. Esperei descobrir alguma pista nos papéis e bens, mas ela
desembaraçou-se de tudo que me pudesse conduzir a ele. – Ficou com uma expressão triste. Na verdade,
toda a sua postura entristeceu. – Só quero saber o nome dele, para que metade de mim não seja este
vazio. Foi cruel da parte dela vedar-me qualquer acesso a ele, mesmo à distância, num parque cheio de
gente.
Aquilo em si já era revelador. Alessandra não teria sido tão cuidadosa com a identidade de um homem
sem importância. Nem um homem insignificante gozaria do poder que exigia tal discrição.
Celia olhou-o, muito grave. Perdera qualquer ar de sedução ao abordar naquele assunto. Era importante
para ela descobrir o nome daquele homem. Ele compreendia porquê. Ela estava correta. Ele era filho
bastardo, mas pelo menos sabia a sua origem. Tentou imaginar como seria não saber.
Celia tinha vinte e três anos. Teria sido concebida no início da carreira de Alessandra. O pai poderia
ser aquele émigré francês de quem Edward já lhe falara. Ou um amante que pudesse ter surgido pouco
depois, com motivos para ser discreto nos seus relacionamentos.
Poderia até descobrir o nome do pai dela sem sequer tentar, enquanto conduzia a sua outra
investigação...
Ela franziu o sobrolho em resposta ao silêncio dele. Nos seus olhos surgiu determinação. Levantou-se
lentamente e a luz das velas incidiu sobre o doce castanho do vestido. Ondas de cetim percorreram-lhe o
corpo no trajeto até ao outro lado da mesa.
Colocou-se ao lado da cadeira dele. O aroma a lavanda inundou-o e sentiu o toque do cetim na mão.
Ela segurou-lhe o rosto entre as mãos suaves, delicadas, e inclinou-se para o beijar.
Um beijo deliberado. Com engenho e perícia. A língua dela entrou nele e brincou, provocando e
excitando. Não era um impulso, como no dia em que Dargent lá estivera. Tratara-se de Celia, movida
pela alegria e pela dor.
Esta noite, a filha de Alessandra Northrope concedia um favor.
Se o objetivo era levá-lo ao delírio, funcionara. O corpo dele reagiu selvaticamente. Aquele teatro de
cortesã não passava de uma manipulação calculada, porém, e ele iria acabar por pagar se permitisse que
tal acontecesse.
Puxou-a para o seu colo, para os seus braços. A expressão estudada dela transformou-se em perplexa
admiração. Até tentou esquivar-se quando ele começou a beijá-la, mas assim que as suas bocas se
tocaram ela cedeu, envolvendo-lhe o pescoço com um braço.
Comportou-se com ele de igual para igual naquele beijo, dando, tomando, oscilando entre o abandono e
a contenção. A boca aveludada dela, o calor do seu corpo nos braços dele, a instintiva pressão das coxas
no colo dele, aflorando a ereção, deixou-o fora de si. A sua mente ficou completamente concentrada no
toque dela, no sabor dela, nos seus arquejos de surpresa e os seus gemidos de abandono.
O cheiro dela, floral e almiscarado... A sua boca e a sua língua inebriavam-no, insinuando prazeres que
ela possivelmente não compreenderia... O seio dela, tão suave e feminino sob o cetim, deu-se à carícia
dele como se ela desesperasse pelo toque, enchendo-lhe a mão... O corpo dela mexia-se num balanço
suave, enlouquecendo-o naquela procura desenfreada de sensações... A luz, branca, imaculada e fresca,
envolvia-o, proporcionando-lhe plenitude e um prazer ditoso e perfeito.
Não houve pensamento a interferir. Nenhuma considerações. Ele pressionava-lhe o seio e ela
respondia com gemidos ansiosos no seu pescoço. O maravilhoso som feminino sobrepunha-se à luz,
transformando-se rapidamente em notas ansiosas, e depois desesperadas.
O vestido fora desenhado para ser despido. Jonathan não teve dificuldade em abrir as molas que o
prendiam. Reclamou a boca dela, invadiu-a enquanto fazia o cetim descer lentamente; depois puxou a
combinação com menos cuidado.
Teve de olhar para a pele de marfim sob a sua mão. Ela também olhou, de lábios entreabertos e olhos
como dois céus estrelados. Olharam ambos para os dedos dele, que lhe moldavam o seio, as respirações
impacientes cadenciadas. Um sorriso subtilíssimo testemunhava o prazer que o toque lhe provocava, e o
seio, branco com o mamilo escuro ao centro, ia ao encontro da carícia dele, ao mesmo tempo que as
ancas se pressionavam contra ele, e até a luz se obscureceu por um momento.
Ele quase não lhe tocava, atormentando-a. Ela fechou os olhos e respirou fundo. Ele continuou a tocá-la
e o rosto dela mostrou êxtase. A consciência dele concentrou-se no calor que o deixava duro e firme, na
solícita paixão dela e naquilo que se seguiria, que teria de acontecer agora, sem demora, quando ele a
tomasse e a ligasse tão completamente a si que a luz e aquele ditoso prazer jamais se perderiam.
Sussurros agora, do delírio dela. Sopros de assentimento e arquejos entrecortados por súplicas. Ele
beijou-lhe o pescoço descendo até ao peito, usando a língua o mais perversamente que conseguiu, para
que ela conhecesse o desejo desenfreado que era o dele, e a fome que lhe dilacerava a essência.
Doce, doce de mais, mesmo com a dolorosa necessidade. Ele viu-se com ela completamente nos
braços, já sem cetim, sentindo a sua pele contra a dele e provando-a, toda ela. As carícias seguiram o
trilho da sua imaginação, descendo até às pernas acetinadas, subindo até à carne sedosa. A melodia das
surpreendidas respirações intensificou-se, mais e mais, sublime agora, incitando-o...
Barulhos, altos, ao longe. As luzes douradas das velas engoliram a luz branca, deixando sombras
profundas e uma mesa. A mão de Celia agarrou-lhe o braço, os olhos azuis inexpressivos, os gritos
engolidos por uma inspiração profunda.
Alguém a tossir ali perto. Alto. Uma mulher a aclarar a garganta com tanta força que abanou a porta que
ficava atrás dele.
Ali permaneceram, imóveis, enquanto tomavam consciência daquele sítio, do mundo e da mulher que
exigia a atenção deles. Uma fúria primitiva rugia dentro dele, pela interrupção e a evidência de que seria
rejeitado.
A expressão de Celia acusou aquela reação. Baixou o olhar para o seio nu, surpreendida, parecendo
aflita com a perda de controlo. Tentou desajeitadamente vestir a camisa, profundamente corada agora,
piscando muito os olhos, como se o mundo ainda não se houvesse endireitado.
Lá conseguiram vesti-la. Ela regressou à cadeira. Como se aproveitasse a deixa, Marian abriu a porta,
apresentou uma tarte e serviu-a.
Quando ela se foi embora, Celia olhou para ele por entre a luz das velas, nos olhos a consciência plena
daquilo que havia ocorrido. Ele devolveu-lhe o olhar e imaginou-a despida dos pés à cabeça e dobrada
por cima da mesa, com aquele traseiro adorável virado para si.

As coisas haviam fugido um pouco ao seu controlo com Mr. Albrighton, admitiu Celia para si própria.
Controla a situação. Não cedas com demasiada facilidade. Acerta os termos do acordo antes de ir
além das primeiras carícias.
Alessandra devia estar a dar voltas na sepultura.
A sua filha esquecia-se de tudo. Entregara manifestamente de mais ao jantar, e poderia ter entregado
tudo se Marian não tivesse feito tanto barulho a ponto de os chamar aos dois à razão.
Celia esperou, naquela noite, pelo homem que provavelmente se apresentaria à porta do seu quarto
depois de a casa adormecer. Debateu o que fazer se ele fosse ter com ela. Não podiam censurá-lo se
pensasse que ela o aceitaria.
Tentou não imaginar o resto, mas continuava excitada e subjugada, ali deitada no escuro, esperando que
ele tivesse semelhante audácia. Os seios doíam-lhe, sensíveis a cada movimento que fazia. Um orvalho
fino cobria-lhe a pele. Sentia-o, no andar de cima, a decidir, desejoso.
Quando se tornou claro que ele não viria, o seu corpo lamentou-o mas a sua mente sentiu algum alívio.
Era melhor, claro. Não havia nenhum acordo. Termos nenhuns. Ela própria nem sequer queria que tal
acontecesse, se fosse sincera e encarasse o assunto com lucidez. Ele nunca serviria como protetor, se é
que ela escolhesse ter um. Naquele tipo de decisões, tem de se ser prático e pensar no futuro.
Fora delicioso, porém. Sublime. Nem sequer se vira forçada a procurar o prazer dentro de si, ou a tirar
aquele homem da sua mente para o fazer. Ele despertara-o dentro dela e ela não teve outra escolha senão
responder. As sensações foram provocantes e estimulantes e arrebatadoras, e só de pensar no olhar que
ele lhe dirigia enquanto comiam a tarte ficava novamente quente e húmida.
CAPÍTULO 13

J onathan apresentou-se à porta da casa de Castleford. O duque convidara-o a visitá-lo a qualquer altura
e ele estava prestes a descobrir se poderia de facto fazê-lo.
Certificara-se de que não fosse terça-feira. Não queria encontrar Castleford demasiado ocupado para
uma boa conversa. Também não queria encontrá-lo tão sóbrio que não pudesse ser indiscreto.
Seguiu-se o ritual com os criados de libré. Desta feita, o capitão levou-lhe o cartão numa salva e
deixou-o a aguardar naquela bela divisão das janelas, na qual tinham todos jogado cartas.
Sozinho, sem nada que o ocupar a não ser os quadros nas paredes, os seus pensamentos voltaram-se
para Celia. Andava a evitá-lo. Ocupara-se a manhã inteira especificamente com esse propósito.
A titilação do desejo não conseguia afastar reações mais sombrias às memórias do jantar da véspera.
Nem as imagens da sua ditosa aceitação, entusiasta até, do prazer. A verdade é que ele andava a divertir-
se com ela, e nem sequer sabia porquê. Achava-a linda, e fascinante na sua forma invulgar de ver a vida;
era verdade. Mas não tinha interesse nenhum numa ligação, muito menos daquelas que pudessem orientá-
la para um caminho que a conduzisse a outros homens no futuro.
Disse para si próprio que se ela não o tivesse beijado, as coisas nunca teriam chegado tão longe. Só
que sabia que ele próprio a teria seduzido, fosse como fosse. Assim que a viu naquele vestido, as
carícias tornaram-se inevitáveis.
Visualizou a veste escorregar-lhe pelo ombro, puxada pela mão de um homem. A mão dele, daquela
vez. O vestido assentava-lhe demasiado bem. Alessandra soubera que realçaria todos os atributos de
Celia quando o encomendara.
«Um dos vestidos para o olhar público», dissera Celia. Contido. Quase recatado. Desprovido de
excesso de todas as formas, e mais do que suficientemente modesto. Contudo, aquele tecido fluía como
água pelo corpo dela e insinuava mais das suas formas do um homem podia ignorar. Homem nenhum a
poderia ver com ele sem a imaginar nua, apesar de o vestido não ser escandaloso.
Tal como a própria Celia, aquele vestido combinava inocência e experiência, modéstia e a
sensualidade mais sofisticada. Um vestido de colegial, mas uma colegial ensinada por Alessandra.
– Sua Graça irá recebê-lo, senhor.
O anúncio fê-lo regressar ao compartimento e às janelas. Prometia a desejada prorrogação na forma de
outras coisas que lhe ocupassem a mente para além de Celia. Precisava de finalizar rapidamente a missão
de Edward, isso era certo. Estava na altura de deixar Londres, antes que seguisse o impulso de seduzir
primeiro e avaliar as consequências depois.
Seguiu a peruca branca pelas escadas acima até ao aposento do duque, que ocupava o piso por cima
dos salões. A peruca conduziu-o a um enorme quarto de vestir, onde Castleford, surpreendentemente,
estava a vestir-se.
Dois criados atarefavam-se de volta do duque, que se encontrava de pé, como um cavaleiro a ser
encerrado numa armadura em vez de um nobre a ser envolto em tecido de qualidade superior. Jonathan
sentou-se numa das muitas poltronas, assistindo ao espetáculo.
– Ainda bem que vieste – disse Castleford entre dentes, de queixo levantado, para que o criado número
um conseguisse apertar o primeiro botão da camisa sem amarrotar o colarinho.
– Lembras-te de me convidar, não lembras?
– Claro. Porque não me lembraria?
– Alguns homens só se lembram daquilo que dizem sóbrios quando estão sóbrios. – Era um estado em
que Castleford não se encontrava naquele momento. Apresentava-se bastante direito e a fala não era
entaramelada, mas os olhos eram os de um homem que já bebera durante o dia ou ainda sofria os efeitos
da noite anterior.
– Lembro-me de tudo. A única diferença comigo é o facto de me importar minimamente ou não querer
saber da coisa para nada.
O criado número dois apresentou-lhe as botas altas para sua aprovação. Castleford comunicou que
serviriam sentando-se numa cadeira. Com movimentos suaves que não deixavam transparecer o esforço,
o criado enfiou as botas pelas pernas compridas.
O outro homem aproximou-se com casacas na mão, mas Castleford enxotou-o e disse aos dois para
saírem. Depois espreguiçou-se, apoiou uma perna no braço da cadeira e sorriu a Jonathan como o diabo à
espreita da próxima alma a ser conquistada.
– Vieste cedo de mais. Devias vir à noite. Às dez é uma boa hora, amanhã. Há um combate de
pugilismo e depois podemos chamar umas rameiras. Espero que gostes das vulgares. Nunca percebi
como é que há homens que pagam cem libras por algo que pode ser comprado por um xelim.
– Não gosto delas demasiado vulgares.
– Eu gosto. Vulgares, vigorosas e divertidas. Nada de histórias tristes da pobreza que as levou ao
pecado. Há muitas que gostam do ofício. – Observou Jonathan com ar pensativo. – A Katyzinha é boa
para ti. Passaste muito tempo em França e provavelmente aprendeste a usar bem a língua. Ela gosta disso.
Bocejou e espreguiçou-se. – Amanhã à noite, então, a não ser que estejas ocupado com a tua missão
atual.
Era aquele o problema com os homens meio bebidos. Eram propícios a falar indiscretamente. Só que
aquela indiscrição fora planeada, suspeitava Jonathan.
– A guerra terminou há muito. Não há mais receios quanto à faixa costeira.
– Há sempre ocupação para um homem com as tuas capacidades. Só que desta vez não é o Ministério
do Interior, o que me deixa intrigado.
– Como é que sabes se é ou não é, se é que há alguma missão?
– Andei a perguntar. Não gostam quando faço isso. Enerva tantas pessoas. No entanto, obtenho sempre
uma resposta. Julgar-se-ia que sou um duque da realeza, tanta é a solicitude.
– Talvez tenham medo que os mates se não responderem.
– Talvez seja isso. – Ponderou naquilo e desatou a rir. – Acho que és capaz de ter razão. E eu aqui a
pensar que se tratava de deferência para com o meu título.
– É útil que reúnas essa informação toda que não deverias ter. Provavelmente estás na posse de mais
intrigas políticas do que qualquer outra pessoa.
Ele encolheu os ombros. – É mais divertido do que a tagarelice dos salões acerca da tontice da filha de
não sei quem que se deixou comprometer.
– Ocorre-me que poderás saber quem me enviou em missão, se não foi o Ministério do Interior. Não
que haja alguma, claro está.
– Claro. Não, não sei quem foi exatamente. Não tentei descobrir. Ainda não decidi se me importo
minimamente, repara.
Jonathan esperava que ele se importasse. Se Edward não o mandara bisbilhotar o passado de
Alessandra em nome do Ministério do Interior, então era em nome de quem? Não gostou de saber que
tratava dos assuntos de um homem cujo nome desconhecia.
– Vejo que vim na altura errada – disse ele. – Antes de ir, interrogo-me se nessa informação inútil que
a tua curiosidade acumulou, poderias procurar-me a resposta a uma pergunta.
Castleford olhou para o teto e gemeu de forma teatral. – Pareces Summerhays. Está sempre a
aborrecer-me com as perguntas políticas dele.
– Prometo que é apenas uma questão. Sabes alguma coisa sobre o pai de Anthony Dargent?
– De Dargent? O pai deixou a família para fazer trabalho missionário, não foi? Provavelmente foi isso
que fez de Dargent um idiota tão grande. Andou atrás da miúda daquela mulher, da Northrope, há uns
anos. Alguns pensavam que ele ia casar-se com ela, de tão perdido de amores que estava. Havia outros
que estavam aborrecidos por ele ter um caminho tão desimpedido.
– Era do conhecimento geral, não era?
– Lembro-me bem. Todos aqueles homens a salivar pela bela virgem. Nunca compreendi o fascínio que
têm por elas. As virgens. Por razões dinásticas é sensato casarmo-nos com uma, mas a primeira noite só
pode ser uma patetice.
– Então tu próprio não te interessaste?
– Credo, não. Nem pela mãe, embora ela fosse interessante. Via-se que sabia do ofício dela. Mas se eu
quisesse fornicar com uma mulher que me sujeita a serões e reuniões e espera diamantes pelo esforço,
mais valia casar-me.
– Ouvi dizer que muitos outros pensavam de maneira diferente. Mrs. Northrope era famosa por alguma
razão.
Castleford dirigiu-lhe um olhar inesperadamente direto. – Então é isso que estás a fazer. A apagar os
vestígios das indiscrições de outros. Só que parece que nem sequer tens a certeza de quem ele é, o que
não faz sentido nenhum.
– Não, não faz, o que deverá mostrar-te o quão ridícula é essa ideia.
– Certamente que o é, o que não significa que eu esteja errado. Quanto aos outros nos quais tão
astutamente me incitaste a pensar, presumo que todos tenham tido um título, tal como aqueles que a
cortejavam abertamente. Ou que pertencessem famílias de pares. Dizia-se que ela era muito rigorosa a
esse respeito, e que se dava apenas ao melhor sangue.
– O que representa uma boa quantidade de homens.
– Sim, uma grande fila. E alguns deles tiveram-na quando eu e tu ainda éramos rapazes. A não ser que
ela possuísse uma lista, trata-se de uma causa perdida.
Talvez não, visto que a causa era garantir que não havia lista nenhuma. No entanto, Jonathan tinha as
suas próprias razões para desejar que existisse a tal lista.
– Se os patronos de Mrs. Northrope foram a razão da tua visita, lamento ter sido de tão pouca utilidade.
– O tom de Castleford não possuía o sarcasmo que Jonathan esperara. Por isso, insistiu quando poderia
ter recuado.
– Foi mera curiosidade, provocada por alguns encontros fortuitos que tenho tido. Na verdade, vim
pedir-te um favor.
– Claro que vieste. – Os seus olhos brilhavam tanto de curiosidade como de resignação. – O preço será
uma boa farra amanhã à noite.
– Só o pugilismo e a bebida. As prostitutas vulgares, disperso.
Castleford suspirou. – Não é como se a vulgaridade delas seja contagiosa, Albrighton. Que raio de
coisa um homem ter de ser duque para seguir livremente as suas inclinações.
– Não é vulgaridade que receio apanhar, Vossa Graça.
Castleford foi apanhado de surpresa. O momento de sobriedade passou rapidamente, porém. – Que
favor é este? Vou divertir-me ou vai ser uma tarefa entediante?
– Quero que me obtenhas uma audiência com Thornridge.
Os olhos de Castleford iluminaram-se de surpresa; depois, de um humor negro. – Então vais confrontá-
lo? Finalmente?
– Quero ter uma conversa com ele. É tudo. – Castleford baixou ostensivamente a perna e fitou Jonathan
longa e atentamente. Jonathan ficou com a impressão de que o duque estava a decidir se a impulsiva
condescendência que mostrara para com o bastardo havia sido de facto inspirada.
– Uma conversa. Claro. – Sorriu. – Muito divertido. Estou decidido a procurar uma forma de o
encurralar, mas só se puder estar presente quando tiveres a tal conversa.
***

No dia seguinte, Celia saiu cedo de casa. Chegariam mais plantas daí a um dia, por isso queria aquele
tempo para si. Pegou no cabriolé e rumou para este, para a cidade. Lá, visitou Mr. Mappleton, como ele
lhe pedira por carta.
Uns papéis relacionados com os bens da mãe requeriam a sua assinatura. Depois de cumprir com as
formalidades, indagou acerca da resolução das dívidas.
– Estão todas cobertas, é meu prazer informá-la – garantiu Mr. Mappletown.
– Não surgiu mais nenhuma? Não há indicações nos registos dela de outras que possam estar
pendentes?
– Do meu conhecimento, não. Como sabe, nunca cheguei a encontrar nenhum livro de contas. É
possível, imagino, que ela tivesse apenas um registo mental. – Tons rosados surgiram nas suas faces
pálidas. – Sempre é mais discreto.
– Como é que soube das dívidas que estão agora a ser saldadas?
– Os credores e os lojistas procuraram-me. Apresentaram documentos. Na maioria dos casos, a sua
mãe tinha as suas próprias cópias. Ainda que não tivesse livro de contabilidade, tinha papéis.
– Mas se lhe for apresentada uma dívida, como executor, como é que sabe que ela ainda não foi paga?
– Só um idiota paga uma dívida sem obter documentação que ateste esse facto.
E Alessandra não era idiota nenhuma.
Celia despediu-se. Ao sair do edifício, um homem louro e alto aproximou-se dela, a sorrir.
Anthony tirou o chapéu e fez uma vénia pronunciada. – Celia, que feliz coincidência.
Ela olhou para a rua. A carruagem dele aguardava a vinte metros.
– Demasiada coincidência, Anthony. Penso que puseste alguém a seguir-me, hoje, e talvez nos outros
dias. Não tolerarei isso.
– Nunca seria tão deseducado. Apenas visitei Mappleton e soube que ele te esperava hoje. – Fez
aquele sorriso que ela já considerara afável. – Pensei visitar-te novamente em Wells Street, mas depois
da interferência da última vez... Preciso mesmo de te falar, Celia. Também quero mostrar-te uma coisa.
– Parece que vai chover, Anthony. Devo mesmo regressar a...
– Quero mostrar-te o pequeno contrato que a tua mãe assinou comigo. Não o dei a Mappleton nem pedi
ainda para ser ressarcido. Pareceu-me que eu e tu devemos falar acerca disto primeiro.
Até agora ela estava a gostar do dia, mas ele acabara de o arruinar. Quis ir-se embora mas, se ele
estava a dizer a verdade, não se atrevia.
Ele indicou a carruagem com o braço, como a convidá-la.
– Tenho a minha, obrigada. Preferiria ir atrás de ti para nenhum dos dois ter de se incomodar a vir
buscá-la.
– Como desejares. Direi ao cocheiro para ir devagar, para não te perderes.

A carruagem parou numa rua de casas altas a norte de Grosvenor Square. Celia encostou a sua atrás
dela. Um dos lacaios de Anthony desceu e veio segurar-lhe as rédeas.
– Vives aqui, agora? – perguntou ela a Anthony, inclinando a cabeça para apreciar as fachadas claras.
A resposta dele foi metade sorriso, metade assentimento, e acompanhou-a a uma porta. Usou uma chave
para entrar, o que Celia estranhou.
Compreendeu assim que a porta se abriu.
A casa estava vazia. Os salões altos devolviam o eco dos seus passos.
– É uma casa boa, no melhor bairro. A tua mulher vai achá-la muito adequada – comentou ela.
– Ela não liga muito à cidade.
– Então tu vais achá-la muito adequada.
– Assim o espero.
Ela atravessou a biblioteca, depois uma divisão que daria uma boa sala de pequeno-almoço. Não era
uma casa enorme, mas tinha espaço para receber. Não bailes, mas jantares ou reuniões mais privadas. A
disposição das divisões fazia-lhe lembrar a casa da mãe, a de Oxford Street. Até tinha um espaço perto
da sala de estar que poderia servir para sala de música.
Sentiu Anthony observar as suas reações. Parou junto a umas janelas que mostravam a possibilidade de
um jardim.
– Compraste-a? – indagou ela.
– É minha intenção fazê-lo.
– Por favor não o faças por minha causa, se é nisso que estás a pensar.
Ele não respondeu. Não se mexeu. Ela não se atreveu a fitá-lo. A atmosfera do quarto silenciou-se da
pior maneira, como se a casa inteira sustivesse a respiração.
– Estás à espera que te corteje, Celia? Recordo-te de que já o fiz.
Ela virou-se de frente para ele. – Não espero nada de ti. Não quero nada de ti. Expliquei isso.
– Esta casa ficará em teu nome, Celia. Também te atribuirei uma boa soma de dinheiro.
O olhar dela desviou-se para os tetos e paredes. Desejou que a proposta não tivesse qualquer atrativo,
mas era uma casa muito boa, que valia bom dinheiro, e ela era uma mulher muito prática.
Propriedade, joias e dinheiro, Celia. Exige sempre coisas que durem.
– Porquê, Anthony? Podias manter uma amante muito bem por muito menos. Há muitas mulheres que
gostariam de desempenhar esse papel, tenho a certeza.
Ele avançou para ela, com aquela intensidade.
Ela retesou-se e deu um passo atrás. Ele deve ter notado o receio, porque reconsiderou. Parou a três
metros e olhou para o rosto dela como se tivesse de memorizar cada centímetro.
– Foste a minha primeira grande paixão, Celia, e única, ainda. Passei anos a imaginar a nossa primeira
noite juntos e o tempo não matou o desejo. Pelo contrário. Disse que ficaríamos juntos para sempre e é
essa ainda a minha esperança e a minha intenção... Ser o teu primeiro amante, e teu único amante.
Palavras bonitas, outra vez. Ela ouviu cada uma delas, e outras que não foram ditas e eram muito menos
carinhosas. – E se tu não fores o meu primeiro amante?
Ele reagiu como ela pensava que reagiria. A sua expressão endureceu numa tentativa vã de conter a
raiva. Era de suprema importância para ele, a parte do primeiro e único.
A mãe falara-lhe de homens assim. Na verdade, contara com eles para competir pela filha de
Alessandra Northrope. Só que aquele tornara-se algo fanático para com a virgindade dela. Poderia não
ser um bom indicador, nem do seu afeto nem da forma como a trataria depois daquela primeira noite.
– Estás a dizer-me que existiu mais alguém? – O perigo na sua voz anunciava mais do que simples
raiva. – Fiz a pergunta em tua casa e tu evitaste-a.
– Tal como tenciono fazer agora. Importa tanto assim, Anthony? Falaste de amor quando me visitaste.
Se sou a tua única grande paixão, seguramente que esse assunto é uma questão menor.
Ele apertou os lábios. – Tenho direito de saber.
– Não, não tens, porque não me deixei impressionar por esta casa nem pela proposta. – Devia ter dito
aquilo logo, claro. Só que se tratava de uma boa casa e, atendendo ao zeloso ardor dele, ela poderia ter
conseguido um belo acordo antes de a aceitar. Uma pessoa tinha de pensar minimamente naquelas coisas
antes de as rejeitar. Prometera, até, à mãe que o faria.
Ele não o via da mesma maneira que ela. Com a cara vermelha do insulto e da raiva, pegou no casaco e
tirou uma folha dobrada de papel velino. Abriu-o com uma sacudidela rápida do pulso e entregou-lho.
– Tu não és responsável por isto, evidentemente. Mas a tua mãe foi, o que afetará os seus bens.
Ela pegou na folha e leu a caligrafia elaborada do escriturário. As palavras provocaram-lhe náuseas e
amaldiçoou silenciosamente a imprudência da mãe.
Não era um documento de venda. Anthony fora astuto de mais para tal. Em vez disso, tomava a forma
de um empréstimo a Alessandra, de oitocentas libras, para serem restituídas em dinheiro ou em géneros.
Os favores de Celia sem dúvida seriam «géneros».
– Parece que não te importas de me coagir para obteres o que desejas.
– Não tem nada a ver contigo. Irei ter com Mappleton e saldarei a dívida com os bens.
Ela imaginou-se a dizer a Marian e a Bella que perdera a casa. Marian sobreviveria e regressaria às
ruas que conhecia tão bem, e talvez à prostituição. E Bella... Podiam ambas recorrer a Daphne, pensou.
Duas mulheres desamparadas e sem abrigo procurando refúgio na Flores Preciosas.
Ela fora feliz lá, e provavelmente sê-lo-ia outra vez. Devia dizer a Anthony para fazer o que quisesse.
Devia dizer-lhe para falar com Mappleton e, a seguir, para ir para o inferno.
Olhou o papel velino, depois os ornamentos do teto. Imaginou os anos a passar, na casa de Daphne, e
outras mulheres indo e vindo, com ela sempre lá, suspensa como um inseto preso em âmbar.
– Preciso de pensar nisto, Anthony. Dá-me uma semana para o fazer, por favor.
CAPÍTULO 14

J onathan virou a última página da revista que lia. Assim que o fez, a sombria preocupação voltou a
invadi-lo. Não duvidava que Castleford arranjasse uma forma de os juntar, a ele e a Thornridge. O tio
Edward ia ficar furioso, mas estava na altura de resolver o assunto, de uma maneira ou de outra.
A expectativa daquele encontro despertava-lhe continuamente memórias da última vez que vira o
conde. Ele estava com fome, cansado e morto de frio quando o primo concordara em ver a mãe.
Numa biblioteca de tamanho monumental, Thornridge ouvira as exigências e ameaças da mãe,
aparentando muito mais idade do que os seus vinte e um anos, com aquela expressão dura e olhos frios e
escuros.
Jonathan pousou o jornal e foi até à janela. Grande parte daquele encontro não passava agora de uma
mancha indistinta. Algumas coisas continuavam vívidas, porém. Lembrava-se de todos os livros da
biblioteca, com capas como joias, fila após fila. Lembrava-se de o conde concordar proporcionar a
educação que o seu predecessor prometera. E lembrava-se de algumas das ameaças que a mãe proferira,
que não fizeram qualquer sentido até ele pensar nelas anos depois.
Então, agora, seria ele a forçar uma audiência com o primo. Não decidira ainda se desta vez formularia
as suas próprias ameaças.
Pesar aquela escolha ocupava-o, ali de pé, à luz da janela. Distraiu-o ao ponto de mal notar movimento
no jardim até Celia estar quase na casa. Quando reparou, quaisquer pensamentos sobre o encontro
iminente com Thornridge desapareceram-lhe da mente.
Não conseguia vê-la sem a desejar. Mesmo agora, àquela distância, memórias da sua jubilosa paixão
deixavam-no excitado. Não estava habituado àquela sensualidade incompleta, e ela estava a deixá-lo
louco.
Ela parecia tão embrenhada nos seus pensamentos quanto ele estivera, e sobre algo igualmente difícil
de decidir. Duvidava que reparasse em alguma coisa em seu redor, no seu passo lento, quase rígido,
descendo o caminho que seguia em direção a ele.
Ela parou e tirou a touca como se o laço lhe apertasse. Levantou a cabeça e olhou para a casa,
inspecionando-a com uma expressão de tristeza.
Depois deixou cair o olhar. Uma desorientação profunda apoderou-se dela. Não se mexia. Limitou-se a
ficar ali, e em vez da luz, parecia que eram as sombras do jardim a persegui-la.
Ele observava, esperando que se recompusesse, procurando a alegria de viver que lhe transformava o
rosto mesmo quando não sorria. Em vez disso ela permaneceu imóvel, mais parecida do que nunca com a
mãe.

A casa e o jardim pareciam-lhe estranhos. Desconhecidos. Desaparecera a sensação de estar em casa


que experimentara ali. Não pertencia àquele sítio. A decisão de fazer daquela a sua residência e se juntar
a Daphne no negócio fora um ato precipitado, não algo bem pensado.
Ela não era como Daphne Joyes ou Audrianna. Elas não tinham a mesma história nem educação do que
ela. A elegante frugalidade de Daphne fora aprendida ao longo de metade de uma vida. O seu bom berço
e educação tinham o condão de converter até uma existência precária em algo distinto.
A filha de Alessandra Northrope fora educada para outros fins, e com expectativas e valores
diferentes. O seu olhar registou as proporções da casa. Pensou nos estofos ligeiramente gastos. Durante
um ano, mais ou menos, aquilo tudo poderia satisfazê-la. A excitação da independência aguentá-la-ia
durante algum tempo.
Ela fora educada para um tipo de vida diferente noutras coisas além dos bens materiais, e a promessa
dessas coisas sempre se revelara um atrativo muito forte. A própria infâmia era um tipo de fama. Nos
últimos cinco anos ela experimentara uma virtuosa não-existência, na obscuridade. Tolerara-a porque era
temporária.
Agora, olhando para a casa, perguntava-se se não estaria melhor cumprindo com o plano da mãe e
aceitando Anthony como seu primeiro protetor. Imaginou-se dali a dez anos, a mudar plantas de lugar
enquanto perguntava a si mesma se Mr. Albrighton regressaria a Londres naquele ano.
Promete-me que pensarás no teu futuro, naquilo a que renuncias e naquilo que ganhas a cada
escolha. Promete-me que pesarás tudo justamente, sem a ilusão de não seres minha filha.
Fora uma promessa fácil de fazer a uma mãe moribunda. Ela achara que havia cumprido a promessa,
também. Só que agora, com as perdas e os proveitos tão claramente definidos, constatava que não.
– Parece perdida, Miss Pennifold.
Ela assustou-se e voltou-se. Jonathan não se encontrava a grande distância dela. Nem sequer o ouvira
aproximar-se.
– Talvez esteja – disse ela. – Os bispos diriam que os meus pensamentos poderiam conduzir ao pior
tipo de perdição, ainda que eu acredite que eles se enganam.
– Desejava então acreditar que eles estivessem certos?
– Talvez tornasse mais fáceis as minhas escolhas. – Teve de sorrir ao admiti-lo. Se conseguisse
acreditar que Anthony representava a condenação da sua alma, poderia não estar a debater o caminho a
tomar.
A simpatia dos olhos dele incentivava-a a abrir-se. Sentiu as palavras a ganhar volume dentro de si. Na
verdade, ele não tinha um rosto afável. Descrevê-lo-ia até como duro, uma vez que não fora suavizado
pelos efeitos de banquetes a mais, como acontecia com muitos homens da idade dele. Um rosto atraente,
para ela, pelo menos, mas talvez demasiado marcado pela vida para um homem que não podia ter muito
mais do que trinta anos.
Aqueles olhos, porém, mudavam-lhe o semblante. Ela via amizade neles, uma promessa de discrição, e
verdadeiro interesse, como se as palavras que ela dissesse a seguir fossem a única coisa do mundo que
ele ouviria.
– Penso no meu legado, tal como prometi à minha mãe que faria. Está mais do que na altura de o fazer.
Antes que me embrenhe demasiado num caminho, devo fazer uma avaliação justa de todos os outros.
O semblante dele ficou carregado. – Espero que o meu comportamento indesculpável não seja a causa
disto tudo.
– Indesculpável, ora essa. Sabemos ambos que lhe dei a melhor desculpa. Juro-lhe que não me
desencaminhou. No entanto, as suas palavras, no dia em que Anthony veio aqui, causaram-me alguma
confusão.
– Que palavras?
– Por vezes, apenas é, disse. Revelou a visão do homem, parece-me. A preferência do homem. Os
patronos da minha mãe provavelmente queriam que apenas fosse, muitos deles. Outros, claro, queriam
ensaiar uma grande aventura amorosa no palco do mundo. Mas ela nunca deixava que assim fosse.
Insistia sempre na existência de uma história que exigisse todos aqueles presentes caros. Sem uma
história, seja ela qual for, uma mulher não tem nada a ganhar.
– Se acredita nisso ainda é ignorante, mau grado todas as lições da sua mãe.
Ela achou aquilo encantador, e extremamente masculino, no toque de insulto que revelava. – Não faz
ideia do quão completas foram as lições da minha mãe. Fala de prazer como se fosse esse o ganho da
mulher. Mas eu sei que não preciso de um homem para o experimentar, não mais do que o Jonathan
precisa de uma mulher.
A insinuação dela pareceu deixá-lo um pouco escandalizado, ao ponto de ela ter de conter uma risada.
Logo a seguir, sentiu inevitavelmente a garganta a arder. Soube-lhe tão bem, aquele impulso de rir, que o
contraste que ofereceu com o seu estado de espírito lhe foi doloroso.
– A sua mãe não concedia apenas prazer a esses homens. Eles poderiam pagar alguns dinheiros a uma
qualquer mulher e ficavam com o assunto resolvido, se fosse só isso que procuravam.
– Ah! Então estou enganada. Talvez quisessem a história, ainda mais do que ela precisava. – Fez uma
careta. – Não tenho a certeza se quero viver as historietas e o fingimento, embora, imagino, consiga viver
a mentira, se necessário for. – Não queria seguramente a história de um primeiro para sempre por que
Anthony ansiava. O que não significava que não conseguia desempenhar o papel caso fosse necessário.
Ele pareceu subitamente muito formal. A simpatia desvanecera e o olhar ficou distante. – Imagino que
tenha razão. Mesmo comigo, provavelmente não poderia apenas ser.
– Consigo? Céus, está a fazer-se uma proposta, Mr. Albrighton?
Falou num tom provocante, mas ele não aceitou o repto.
– Se concluir que está disposta a receber propostas, eu não teria posses suficientes. Fá-lo-á da maneira
que ela lhe ensinou. A maneira inteligente.
Claro que seria assim, mas ela não achava que ele tivesse de o dizer tão diretamente. O que quer que
fosse que tivesse começado entre eles, ainda não terminara. Ou teria terminado, naquele jardim, naquele
momento?
Imaginou-se a preparar-se para o seu primeiro homem. Para Anthony. Ela conseguia fazer aquilo. Podia
até ter prazer, tal como Alessandra lhe ensinara. Não experimentaria excitação, porém. Ou alegria.
Independentemente da maneira como se sentisse, Anthony nunca faria parte disso, seria apenas o seu
agente. Imaginou o que sentiriam o seu coração e a sua alma, aguardando por Anthony, e eram as
ponderações calmas de uma mulher muito prática.
Libertou-se daquelas entediantes especulações e pensou no homem que tinha agora à sua frente.
Bastava vê-lo para sentir o sangue fluir mais depressa. Despertara a sua libido naquela primeira noite,
isso não mudara desde então. Uma ligação entre eles teria sido breve e tolhida pela discrição, mas, pelo
menos, teria sido uma aventura.
Chegou-se mais perto de Mr. Albrighton, de Jonathan. Dos seus olhos acolhedores e do seu perigo
misterioso. Queria transpor todas as distâncias que ele criara ali no jardim, por um último momento, pelo
menos.
Ele baixou os olhos para ela com uma expressão dura, agora talvez irritada. Ela pousou as pontas dos
dedos, apenas, na gravata dele, muito ao de leve.
– Nunca pode apenas ser, infelizmente – disse.
Ele agarrou a mão dela contra o peito e segurou-a ali, com firmeza. Ela sentiu o corpo dele na palma da
mão, firme, vibrando ao ritmo do seu coração. Não conseguiria tirá-la de lá, mesmo se quisesse.
– Parece que o seu debate consigo própria já foi ultrapassado. Muito além da questão da virtuosidade
da virtude, Celia.
A doçura do seu olhar enfeitiçou-a, como sempre fazia. Era uma doçura que muito contrastava com o
perigo iminente que ele por vezes transmitia. Estava a um mundo de distância das gélidas questões
práticas relativas a Anthony. A mágoa sufocava-a e foi difícil responder.
– Sim, passou há muito. – Há mais do que ela notara até este instante.
– E vai entregar-se àquele idiota?
– É um idiota tão bom como qualquer outro, e sê-lo-á mais generosamente do que a maioria.
– Não me diga. – O perigo fez-se presente, ameaçador.
Ela tentou retirar a mão que ele agarrara. Ele apertou-a mais, para ela não conseguir. O toque
comunicava-lhe o calor agressivo do corpo dele. Não conseguia ignorar a excitação que o acompanhava,
provocando-a como outras tantas línguas de fogo.
Havia sido treinada para sentir aquelas coisas ao máximo, não para as negar. Ansiava por mais
contacto, mais prazer, e que a alegre melodia do seu sangue se convertesse numa ária majestática. Uma
vez, pelo menos uma vez, antes de ela escolher um caminho definitivo, gostaria de conhecer a plenitude
que o prazer sensual podia atingir quando era verdadeiramente partilhado.
Ele estava irritado agora. Impassivelmente furioso. – Raios me partam se fico a vê-la fazer isso.
– A decisão é só minha. O Jonathan não tem voto na matéria.
– Isso é que era bom.
Ele olhou-a perigosamente, intensamente, mas não disse mais nada. Ela esticou-se para lhe beijar a
face, num gesto de amizade e em reconhecimento daquilo que haviam partilhado.
Ele afastou a cabeça, não lho permitindo. – Um último beijo, Celia?
– Um beijo de amizade, Jonathan. – Mas, sim, um último beijo também. Para si própria, para recordar.
– Eu disse que nunca poderia voltar a ser só mais um beijo. Seja qual for a sua decisão, isso não
mudou.
Foi-se embora. Deixou-a sozinha no jardim, mais triste e desanimada do que alguma vez esperara
sentir-se.
Muitos homens vão pensar que é como um leilão de cavalos. Deves deixar bem claro que não se
trata apenas de concederes o prémio ao melhor licitador, mas que qualquer ligação será sempre uma
escolha tua.
Uma escolha tua. Aparentemente, ela já fizera a sua, para o bem ou para o mal, apesar do que Jonathan
pensava. Fora inevitável, depois de admitir o lugar que ocupava no mundo, e a marca do seu nascimento.
Depois de deixar de lutar contra as regras do mundo. Alessandra soubera desde o início que ela chegaria
àquela decisão se escutasse a verdade.
Devia estar satisfeita, e confiante na sua escolha. Devia estar já a pensar nos vestidos e no luxo, e nos
confortos daquela casa elegante, e a alegrar-se por conseguir manter esta casa para Marian e Bella e
talvez outras como elas.
Em vez disso, sentia o coração arder de desgosto, e as lágrimas toldavam-lhe tanto a vista que teve de
virar as costas ao sol.

Ele tinha de sair de casa. Não havia como ficar ali naquele dia. Estava demasiado consciente da
presença dela e do seu espírito e de cada som distante que ela fazia. Tinha a certeza de que aquele desejo
ardente e aquela raiva preenchiam o edifício inteiro como uma névoa invisível. Cada minuto passado
dentro daquelas paredes era uma tortura.
Saiu e visitou Summerhays. Mal ouviu o que o homem disse durante as horas que passaram a falar.
Como consequência, contudo, Summerhays e Hawkeswell acompanhavam-no quando foi ter com
Castleford para o combate de pugilismo.
O duque não ficou satisfeito ao ver que ele não estava sozinho. – Por que raio trouxeste as duas
tiazinhas?
Summerhays riu-se.
Hawkeswell não. – Não vamos interferir com o vosso divertimento. Podem beber até cair que nós
continuamos a encorajar-vos.
– Não será a mesma coisa.
– Ora essa. Estás a dizer que a presença de dois indivíduos minimamente responsáveis torna
embaraçosa a tua ausência total dessa qualidade?
– Estou a pensar que, com dois anjos a tocarem harpa à orelha de Albrighton, o discurso que eu fizer na
outra estará condenado.
Instalaram-se de forma a ver bem o combate. No meio da confusão de homens aos gritos, procuraram o
homem das apostas, compraram bebidas e acenderam charutos.
Summerhays abriu aquele seu sorriso. – Estamos aqui na qualidade de anjos? O teu convite para nos
juntarmos a vocês foi muito seco, agora que penso nisso.
– Anjos não. Desculpas, talvez, para evitar que a festa se arraste até de madrugada. – Olhou para
Castleford, que recuperara da irritação e se ocupava a explicar a Hawkeswell qual dos pugilistas iria
ganhar. – Talvez me tenha enganado em presumir que o casamento vos fazia regressar a casa antes do
nascer do dia.
– Nem sempre. Mas sabendo das intenções de Castleford para as últimas horas, iremos despedir-nos
muito mais cedo.
– Também eu. Foi o que lhe disse, mas ele não acreditou que não me deixasse arrastar.
– Precisas que te arrastemos?
– Não. – Os amigos podiam evitar que ele saísse tão cedo que o duque se sentisse insultado, porém.
Não queria de todo estar ali. E grande parte da sua mente não estava. Estava sim no seu quarto, sofrendo
com a proximidade de uma mulher que lhe dissera nesse dia que a paixão deles não encaixava nos planos
dela.
Se ela pensava que ia aceitar aquilo e renunciar, estava muito enganada.
– É um facto que ele sabe escolher as prostitutas, se se estiver virado para isso. Atrevo-me a dizer que
poderia escrever um livro acerca delas – comentou Summerhays com ar ausente.
Não quero nenhuma das prostitutas dele.
Castleford ouviu. – É uma ideia esplêndida. Estás sempre a pregar que devo usar a minha posição para
praticar o bem, Summerhays. Parece-me que acertaste numa maneira de eu o fazer.
– Uma espécie de Vistas e Monumentos de Londres , só que com Vénus, Alcoiceiras e Mulheres
Secretas – acrescentou Hawkeswell.
– Precisaria de um título melhor do que esse – refutou Castleford. – Algo menos óbvio e mais poético.
– Se fores demasiado poético, o homem médio que aparecer na cidade não reconhecerá o valor do
tomo.
Castleford deixou-se envolver na tarefa. – O título pode esperar. No entanto, a formulação do conteúdo
interessa-me, surpreendentemente. Não vejo sentido em incluir as cortesãs mais celebradas, pois os
homens que comprariam o meu livro não têm hipótese alguma com elas. Para ser verdadeiramente útil,
deve restringir-se a mulheres acessíveis a qualquer pessoa com dinheiro.
Hawkeswell olhou para Summerhays e para Jonathan. – Que diabo, quase parece que ficou sóbrio de
repente. Acho que está levar o assunto a sério.
– Claro que estou. Um livro destes seria uma ótima dádiva para a humanidade. Quem me dera que
alguém me tivesse dado um da primeira vez que procurei mulheres nesta cidade.
A ideia não deixou de o ocupar durante os combates. Jonathan perguntava-se se Castleford estaria a
escolher os capítulos, apesar dos gritos de incentivo aos pugilistas em que apostara. Era verdade que os
olhos do duque pareciam mais sóbrios do que antes, como se grande parte da sua mente estivesse
entregue à nova aventura literária.
A de Jonathan também continuava entregue a outra coisa que não os golpes trocados no centro da sala.
Sentindo o tempo a passar, imaginou as mulheres da casa na sua rotina habitual. Visualizou Marian a
servir o jantar, depois Bella a lavar a loiça. Viu Celia, linda e luminosa, presidindo a tudo e fazendo-as
rir.
O último combate terminou depois da meia-noite. Castleford tentou persuadi-lo a continuar a apostar,
nos jogos que se seguiriam, para ocupar o tempo. Ele recusou e esgueirou-se com Summerhays e
Hawkeswell. Eles foram para casa, para a satisfação segura que os aguardava com as mulheres. Jonathan
ia ao encontro de uma mulher que estava determinado a seduzir.
CAPÍTULO 15

C elia pôs um pouco mais de lenha no fogo e começou a dobrar os vestidos de cetim que estavam
espalhados em cima da cama. O exame que fizera ao seu escandaloso guarda-roupa fora muito
prático. Desta vez não se dera ao prazer sensual dos tecidos. Em vez disso, examinara minuciosamente
cada peça de roupa, para ver se precisaria de algum arranjo, enquanto recitava as lições que a mãe lhe
ensinara.
Na pequena escrivaninha uma folha de papel em branco esperava. Um tinteiro encontrava-se à
disposição ao lado dela. Decidiu-se, deixou os vestidos e sentou-se. Estava na altura de escrever a
Anthony.
Compôs uma nota simples. Convidou-o a visitá-la e assinou o seu nome. Mal ele a visse,
compreenderia que havia ganho.
Olhou para o quarto. Aconteceria ali? Ele não quereria esperar. Ouviu a voz da mãe recitar. Não, aqui
não. Ainda não. As condições tinham de ser acordadas antes de ela lhe dar o que ele queria. Fá-lo-ia
comprar aquela casa em nome dela primeiro, e mobilá-la. E quando acontecesse, lá, finalmente, o título
de dívida que a mãe assinara aguardaria na pedra da lareira, para ser queimado assim que terminasse.
Depois de tudo acordado, não havia como recuar. Haveria outras cartas para escrever, então, a Verity e
Audrianna, e provavelmente até a Daphne. Elas poderiam ainda visitá-la com muita privacidade e
discrição depois de ela o fazer, talvez. Rezou para que sim. Senão, aquelas amizades seriam a verdadeira
perda e o verdadeiro preço a pagar.
Uma estranha mágoa invadiu-lhe o coração, demasiado galopante para ser aliviada por meras lágrimas.
À semelhança da tristeza, limitou-se a instalar-se nela, para ser assimilada nos dias que se seguiam, nos
quais viveria a realidade de quem era e se desembaraçaria das ilusões de quem tentara ser.
Voltou para a cama e acabou de dobrar os vestidos. Enquanto o fazia, sentiu uma mudança no silêncio
da casa, o que lhe captou a atenção. Sons subtis chegavam-lhe do andar de baixo. Movimento. Passos.
Jonathan regressara.
Ela parou e ficou à escuta daqueles sons, reveladores da sua presença. Reconfortaram-na, apesar de
isso estar errado. Fechou os olhos e viu-o no jardim, naquele mesmo dia, irritado. A imagem
transformou-se no rosto dele, antes de a beijar pela primeira vez. Tão doce que fora aquele beijo.
Foi arrancada ao devaneio. Os passos não seguiam o seu curso normal em direção ao sótão.
Aproximavam-se, no corredor daquele piso. O pânico perturbou-lhe os pensamentos.
Botas, perto da sua porta. Pararam. Depois, silêncio. Ninguém bateu. Ninguém falou. Ela sentiu-o
através da madeira. Sentiu aquela energia que ele irradiava tal como a intensidade.
Esperou. Nada. Talvez ele tivesse reconsiderado a razão que o conduzira ali. Os segundos pulsavam. A
ela, só lhe faltava suster a respiração.
Foi até à porta. Respirando fundo para acalmar os nervos, abriu-a.
Ele estava lá, de braços cruzados, encostado à ombreira.
– Ia ficar aí a noite inteira? – perguntou.
– Não tinha intenções disso.
Ele sabia que ela o ouviria se ainda estivesse acordada. Ela queria pensar que ele não batera à porta
nem chamara por consideração, mas ele não parecia lá muito atencioso nem afável naquele momento.
Bem pelo contrário.
– Queria dizer-me alguma coisa? Porque é que está aqui?
Ele avançou. Ela recuou instintivamente. Viu o rosto dele à luz da lareira quando ele entrou no quarto.
Ele respondeu à pergunta dela com um olhar direto que não necessitava de palavras. Tu sabes porque
estou aqui.
O olhar dele recaiu sobre as peças de roupa que estavam pousadas na cama. Aproximou-se e pegou
numa. O cetim suave caiu como uma cascata, contrastando com a sua mão masculina, tanto na forma como
na cor. – Julguei que havia apenas dois vestidos daqueles, e que ia dá-los às suas amigas.
– Havia mais. Guardei-os para mim.
O olhar dele desceu pelo corpo dela, deslizando sobre os seios e as ancas muito à semelhança do cair
do tecido que segurava. Ela tocou instintivamente o pano delicado do roupão que trazia.
– Gostaria de a ver vestida com um deles, um dia. Mas não esta noite.
Ela devia dizer-lhe para se ir embora. Era evidente. No entanto, ele dominava o espaço de tal forma
que ela mal conseguia formular as palavras. Irresistível, fora assim que Verity o apelidara. Se ela
soubesse o quão desadequada aquela palavra conseguia ser. Como agora. Ele parecia perigoso, mas da
melhor maneira. O seu sangue traiçoeiro rejubilou em reação à força masculina dele.
Ele aproximou-se da escrivaninha. A carta que estava lá pousada desviou-lhe a atenção. A sua cabeça
inclinou-se para a ler. Depois virou-se para ela, com o papel na mão.
– Não fará nada disto. Não agora. Não ainda.
Santo Deus, ele viera convencê-la a desistir. Viera salvá-la.
Ela recuperou a compostura, apesar do domínio que ele exercia no quarto. O quarto dela. Melindrava-a
que ele a fizesse explicar-se acerca de algo que constituía uma decisão sobre a vida dela.
– Farei o que quer que seja que decidir fazer, como afirmei esta tarde. É a última pessoa que eu
esperaria que me julgasse, seja qual for a minha decisão. Até disse por várias vezes que não o faria.
– Não estou julgá-la, Celia. Estou a dizer que não deve aceitar as condições deste idiota agora. –
Acenou com a carta.
– Não lhe permitirei que...
– Não! – Atirou a carta para a lareira. As chamas consumiram-lhe rapidamente as pontas e começaram
a queimar o resto.
Ela avançou vigorosamente para ele, furiosa. – Um gesto bonito, e sem sentido. A sua atitude
autoritária é presunçosa e a sua crítica é uma ofensa. Não sou nenhuma estúpida que certa tarde decidiu
arranjar uma maneira rápida de acumular vestidos novos, Jonathan. Há mais de cinco anos que reflito
sobre isto.
Ele olhou-a com uma expressão tensa e dura, os olhos doces, insondáveis e plenos de intensidades que
a faziam perder o fôlego. Puxou-a para si abruptamente, e segurou-lhe o rosto tal como ela lhe fizera
naquela noite no jardim. – Não estou a dizer não à decisão, Celia. Digo apenas que não será aquele
homem.
Ele fitou-a antes de ela poder responder. Antes de ela poder pô-lo no lugar dele. Lutou com valentia
para não deixar que aquele beijo surtisse qualquer efeito nela. Os seus pensamentos deixavam de fazer
sentido à medida que as sensações tomavam conta do seu corpo e o pesar secreto lhe irrompia do
coração, e, juntos, ameaçavam anular qualquer bom senso e determinação racional e prática.
Não devemos. Vai arruinar tudo. Arruinar-me a mim, receio, muito mais do que entregar-me a
Anthony.
Tê-lo-ia dito, por entre os arquejos que escapavam enquanto a boca dele lhe deixava o pescoço em
brasa? Não sabia. Ele não agia como se tivesse ouvido. Ou então não se importava.
Fá-los pedir sempre, Celia. Mesmo no primeiro beijo. Aquele homem não pedia permissão para nada.
Nunca pedira.
O abraço dele era bom de mais. Demasiado desejado. A sua força revelava-se demasiado excitante.
Ela não escolhera sucumbir ao desejo que sentiam um pelo outro, mas tão-pouco conseguiu resistir. O
fogo dele começou a consumir a determinação dela, à semelhança do que as chamas haviam feito ao
papel.
Ele acariciou o corpo dela, os seios, com mãos firmes, arrebatadoras e possessivas. Agarrou-a de
forma a moldá-la a ele. Os seus beijos instavam a que ela ardesse com ele. Ela sentia o canto do prazer.
Não era uma melodia, mas sim uma canção primitiva, latejante e quente, cujos ritmos aceleravam a cada
movimento.
Ela não podia negar aquele pulsar. Não podia fingir não sentir alegria por viver novamente aquela
gloriosa paixão. Não devia permitir-se... Por tantas razões... Mas não conseguia importar-se o suficiente
para parar.
Desistiu de lutar consigo própria. Capitulou e o seu coração vibrou de alívio e alegria. Sim, uma vez,
só por uma vez, merecia saber o que aquilo podia ser.
Tens de manter o controlo. De manter a dignidade. Não tinha dignidade, agora, nenhum autocontrolo.
Com aquele homem, não controlava nada. Nunca controlara. Devia tê-lo mandado embora, fosse de que
maneira fosse. Não deveria nunca...
As mãos dele deixaram-lhe o corpo para lhe segurar a cabeça num beijo forte e avassalador. Ela foi
acometida de um delírio febril e perdeu a noção dos seus pensamentos e do que restava da sua
resistência. Aproximou-se mais, mais, para sentir mais do corpo dele, mais de tudo.
Estendeu a mão e desatou o fio com que ele amarrava o cabelo, para este lhe cair junto ao rosto,
dando-lhe um ar de rufião. Traçou-lhe uma linha da nuca ao queixo, e depois puxou-lhe pela gravata. O
beijo tornou-se feroz, e quando ele parou ela estava sem fôlego, ofegante, sentindo o calor das dentadas
dele no seu pescoço e no seu peito, e as mãos dele novamente no seu corpo, acariciando-a com um toque
que revelava o desaparecimento do tecido.
Maravilhoso prazer. Deliciosa excitação. As sensações acumulavam-se, dando-lhe vontade de gemer e
gritar e cantar. Um novo tipo de ânsia dominou o seu corpo e a sua mente e ela beijou-o de novo,
agressivamente, para ele não se demorar de mais a responder àquela necessidade.
Uma tempestade de loucura dominou-os a ambos. Um redemoinho de calor e tensão sem quaisquer
pensamentos. Quando ele a levou para a cama, a sua fome rejubilou, triunfante, e o seu corpo implorou
silenciosamente que ele a deitasse e preenchesse aquele vazio doloroso que pulsava, pulsava,
desesperado quase, por alívio, tanto que a enlouquecia.
Em vez disso, ele deixou-a, sentou-se na cama e tirou as botas. Ela ficou ali, desassossegada e
perplexa, ao constatar que a impaciência dele não se assemelhava em nada à sua.
Ele despiu o casaco e puxou-a para si, menos paciente do que aparentara. Ela sentou-se no colo dele,
virada para ele, com os joelhos encostados às suas coxas. Encontravam-se no centro de uma tempestade,
mas nada mudara. Os ventos do desejo ainda uivavam dentro dela, e dele também, era evidente. Não
havia por que se apressarem, contudo, e o gesto dele recordara-lhe que existiam rituais dos quais deviam
desfrutar.
Ela acabou de tirar a gravata. Ele deixou, e acariciou-lhe as pernas. O roupão foi subindo debaixo
daquelas mãos firmes e ágeis até eles estarem pele contra pele. Quando ela lhe tirou, por fim, a gravata
do pescoço, o tecido alojou-se entre eles como uma poça de água, e as mãos dele exploraram-lhe as
coxas.
Aquilo perturbou-a e ela tratou do colete e da camisa dele com menos coragem. Desapertou os botões
sentindo o toque dele a deslizar-lhe por dentro da coxa. Cada vez que aquela titilação se aproximava
mais da sua vulva, ela deixava de respirar.
Ela tirou-lhe a camisa e inclinou-se para o beijar da orelha até ao ombro. Usou a língua para sentir o
gosto da pele dele, inclinando-se depois, para trás, para lhe acariciar o peito. Era um belo peito.
Elegante e musculoso, como se ele vivesse uma vida ativa. Mais forte do que seria de pensar, ao vê-lo
vestido. Passou os dedos pelas elevações, fascinada.
Ele olhou para o roupão dela. – Fecha à frente.
– Será mais fácil para ti.
As carícias dele subiram. – Estou ocupado.
Queria que fosse ela a fazê-lo. Ela abriu-o desajeitadamente, demasiado perturbada para usar do seu
saber. Uma timidez inusitada, que ela sabia não ter ali lugar, tingia o seu delírio. Era importante para ela,
compreendeu... O que ele pensava, e se lhe agradava.
Ela abriu o corpete, expondo os seios. Uma sensualidade profunda e intensa uniu-os a ambos. As mãos
dele acariciavam-lhe as pernas com firmeza e o seu olhar aprisionava o dela. Ela deslizou no colo dele
sentindo contra si o volume da sua ereção. A pressão era uma tortura.
As mãos dele seguraram-lhe o traseiro. – Sobe.
Ela apoiou-se nos joelhos, segurou o rosto dele entre as mãos e beijou-o com toda a perícia que
conseguiu. As mãos dele ocuparam-se das suas próprias roupas e quando ela voltou a sentar-se ele estava
nu e a combinação dela estava subida, amontoada à volta da cintura. Ele pressionava-a diretamente, duro,
concedendo-lhe um vago alívio que também lhe provocou espirais de prazer entre as coxas.
Carícias no seu seio, maravilhosas, tão eletrizantes. Uma embriaguez de sensação em ondas, em
crescendo, cada qual mais excitante, e ela cada vez mais sensível. O tecido suave já ia alto, bloqueando-
lhe a visão quando ele lhe tirou o vestido. Ficou nua, de frente para ele, fixando-se na expressão intensa
dele e no seu corpo robusto, definido, fascinada pela figura e pelo cheiro dele, tremendo nas suas mãos.
Aquela excitação era quase insuportável, mas temia que acabasse depressa de mais, rápido de mais,
definitivamente. Inclinou-se para trás e apoiou-se nos joelhos dele para ele poder acariciar-lhe os seios
mais completamente. Ele fê-lo, em toques firmes que desciam em vibrações pulsantes até ao seu centro,
onde aquelas espirais se contraiam, e ainda mais para baixo, provocando radiosos choques de prazer.
Beijos, agora, no seu corpo, no seu ventre. A tensão dele era palpável, uma ânsia eletrizante que ela
sentia no ar e no toque e no beijo dele, na forma como a manuseava.
Ela flutuava naquele torpor de sensualidade, experimentando tudo tão completamente quanto conseguia,
perguntando-se se haveria uma maneira de se sentir assim sempre. Esqueceu-se de si própria por um
instante intemporal, suspensa no prazer, desfrutando das mãos dele que a acariciavam em toques
possessivos, tão masculinos e firmes, que a faziam desejar mais e mais.
Ouviu as lições de Alessandra. Não estava certo apenas receber prazer. Deveria dá-lo, também.
Sentou-se direita, de novo, inquieta, numa excitação que se sobrepunha a qualquer vergonha ou
comedimento. Olhou-o diretamente nos olhos, para o seu brilho decidido, o desejo masculino que
constituía igual perigo.
Baixou depois o olhar para a junção dos seus corpos, o colo dele, e o monte dela. Recuou um pouco e
tomou-o nas mãos. Ela sabia fazer aquilo. Fora o mais fácil de aprender.
Começou por o acariciar devagar, depois com mais força. Contornou a ponta, depois envolveu-a na
totalidade. Viu o rosto dele contrair-se na sua firmeza e a linha da boca cerrar-se, e aqueles olhos
maravilhosos cada vez mais profundos.
Para cima, outra vez, mas desta feita ele não perguntou. Agarrou-lhe o rabo e levantou-a de modo a
conseguir pôr o seio dela na boca. O falo estava encostado à coxa dela, e era a mão dele que a tocava
agora, com a palma no monte dela e os dedos mais para trás, na pele intumescida e sensível que acusava
o contacto.
Completamente à mercê dele, ela agarrou-lhe os ombros e gemeu. Devido ao vigor com que ele lhe
chupava o mamilo e ao prazer assombroso, exuberante, que ele lhe proporcionava com a mão. Nada mais
existia além do corpo dela e do dele e da necessidade insuportável que ele a fazia sentir.
Mal conseguia ficar quieta. O torpor apossava-se dela e o desejo ardente enlouquecia-a. Ouviu-se
sussurrar, suplicar, pedir mais, sempre mais, oferecendo-se, o seu corpo, a sua alma, tudo, para ele lhe
dar o alívio que a obrigara a desejar.
Mãos firmes agarraram-lhe nas ancas, baixando-a devagar, tão devagar, devagar de mais no início.
Depois sentiu a carne firme empurrar, e soube porquê. A sua impaciência fez daquilo uma tortura. Foi
entrando, esticando, magoando, mas o torpor não se dissipou e a dor quase lhe soube bem. Ofegante, por
fim, ela agarrou nos braços dele e pressionou mais ainda. Estava colada a ele, num abraço protetor que a
puxava para si. Lutou contra o torpor para poder sentir tudo, ele dentro dela e à volta dela, a respiração
que transportava os murmúrios encorajadores, e poder recordar para sempre. Ele permitiu aquele
interregno de pungente contenção, mas ela sentiu a necessidade que o incitava e não seria ignorada.
Segurando-lhe nas ancas, ele movia-se e movia-a a ela também. Depois, ela sentiu-o, uma vez e outra,
preenchendo-lhe o corpo e os sentidos, anulando o que quer que restasse do seu autodomínio. E ela soube
na sua alma, sentindo a intimidade inundar-lhe o coração e anular as suas defesas, a força dele a
enfraquecê-la, concedendo muito mais do que a sua virgindade... Soube que Alessandra Northrope nunca
aprovaria o quanto a sua filha havia cedido àquele homem.

Ela era virgem.


Ele quis acreditar que aquilo o surpreendera. Conseguia encontrar razões para tal. Só que o adivinhara,
e isso não o detivera.
Devia sentir-se mais culpado, imaginava. Havia coisas que ele devia dizer agora, para poder
considerar-se um cavalheiro. Na neblina do seu contentamento, deitado com ela por cima dele, com os
joelhos dela ainda encostados às suas coxas e os corpos ainda unidos, a perspetiva de as dizer pareceu-
lhe de facto uma boa ideia.
Sentou-se com ela ainda ao colo, e levantou-se um pouco só para tirar os vestidos de cetim de cima da
cama e abrir os lençóis. Deitou-a e foi pôr mais lenha na fogueira.
Ela observou quando ele voltava para a cama, com os olhos brilhantes ainda, o rosto radiante. Não
seria nesse momento que ela decidiria se havia sido ou não um erro.
Estava tão linda, ali deitada, toda branco e ouro. Juntou-se a ela e tomou nos braços o seu calor de
cetim, para que a leveza que sentia dentro de si não se desvanecesse demasiado depressa.
– Magoei-te?
Ela virou-se para ele no seu abraço. Os seus dedos afloraram-lhe os lábios. – Não muito. Esperava
pior.
Já era alguma coisa.
Os olhos dela leram-lhe os pensamentos. – Não tinhas a certeza, mas não ficaste surpreendido, pois
não? Nem hesitaste. Seria seguro dizer que, independentemente do curso dos acontecimentos, eu não era
inocente nenhuma, afinal.
– Oficialmente eras.
– E agora trataste de garantir que oficialmente não sou. E que não haverá nenhum acordo com Anthony.
Não lhe escapou a nota acusatória do seu tom de voz. – A tua inocência era essencial para o acordo
que fizeram? Ele é mais idiota do que eu pensava.
– Não pareces arrependido por teres deitado tudo a perder. Talvez a tua consciência tenha um discurso
diferente quando formos todos expulsos desta casa.
– Ele não vai ficar com esta casa.
– Não podes propriamente evitá-lo.
Isso haveriam de ver mais tarde.
– Não estou nada arrependido, Celia. Se queres essa vida, não posso impedir-te, mas pelo menos agora
não te entregas a ele. Não me preocupa minimamente a possibilidade de ter interferido com a tua decisão
quanto a isso. Ele estava a chantagear-te para o fazeres. – Soou talvez um bocado bruto, por isso ele
acrescentou: – Disseste que tinha de ser uma escolha tua. E esta noite foi, e a tua escolha não recaiu sobre
Anthony.
– Não, escolhi-te a ti, com uma dose injusta de encorajamento da tua parte.
Diabos o levassem se ia desculpar-se por aquilo.
Não obstante, ele havia-a seduzido. Não existia outra palavra para aquilo. E ela era inocente, naquilo
que contava para estes assuntos.
Ela apoiou-se num braço e olhou para ele. O coração dele quase parou, tal era a sua beleza à luz da
lareira. Viu também que o transe passara e que ela refletia, agora ponderando sobre o que acabava de
acontecer.
– Não digas aquilo que te sentes obrigado a dizer – declarou ela, como se percebesse os seus
pensamentos mais profundos. – Não te ponhas agora todo correto e maçador e culpado comigo, quando há
uma hora não te importaste com nenhuma dessas coisas.
– Há uma hora eu não estava a pensar com clareza. A única coisa que sabia era que te queria.
– E agora tiveste-me. Não muda nada. Ainda escolherei o meu próprio caminho. Não quero que te
ponhas agora a distorcer as coisas de forma a criar uma história para mim. Não há nenhuma história que
seja apropriada para ambas. Limitou-se a ser, da mesma maneira que tu dizes que acontece, por vezes.
A maior parte dos homens mataria por uma intimidade assim descomplicada. No passado, também ele
próprio, mais do que uma vez. Mas então, porque tinha vontade discutir com ela agora e explicar que, na
verdade, nunca podia apenas ser, a menos que fossem dois estranhos encontrando-se na escuridão?
Satisfeita por o ter absolvido de qualquer culpa inconveniente, aninhou-se ao lado dele. – Será que a
Marian me vai ralhar?
– Talvez, se adivinhar. Provavelmente dirá que foste imprudente.
– Pelo menos não falará de pecado. Quanto a imprudente, não é a palavra que eu usaria.
– Corajosa?
– Suponho que essa seja apropriada, de certa forma. Mas não foi a primeira que me veio à mente.
Ele rolou para posicionar o corpo contra o dela, e ela olhou para ele. – Sedutora, então.
– Não fui eu a sedutora. Recordas-te?
– Foste muito sedutora. Tem-lo sido desde o início. De uma forma discreta, subtil e muito eficaz.
Ela ponderou naquilo e abanou ligeiramente os ombros, cedendo.
– Sedutora e encantadora e brilhante – completou ele. – Eu não sou de perder a cabeça por uma mulher,
Celia. Pelo menos fica a saber que não se trata de uma atração comum.
Ela pareceu corar. – Agora sou brilhante. Uma palavra peculiar.
– Diz tanto da tua inteligência como do teu encanto.
– Ora, muito obrigada, Jonathan. É muito poético da tua parte.
Ele ter-se-ia rido se ela não parecesse genuinamente sensibilizada. Ninguém lhe chamara poético antes;
isso era certo.
Ela observava muito atentamente o rosto dele, passando-lhe os dedos pela face. Estudava-o como
nunca o haviam feito e a sua expressão tornou-se grave e séria.
– Em que pensas? – perguntou ele.
– Estou a certificar-me de que me lembro, Jonathan. De ti e daquilo que sinto. Quero lembrar-me de
tudo como é, enquanto apenas é.
Ele não gostou do pressuposto factual de que não poderia existir nada mais entre eles. Tão-pouco
gostava de pensar para onde ela iria quando deixasse de ser brilhante com ele.
Inclinou a cabeça e beijou-a longamente. Depois afastou os lençóis. – Vou agora, para não correr o
risco de adormecer e ser descoberto aqui por Marian ou Bella.
– Podes voltar amanhã à noite, se quiseres.
Oh, ele queria. Ficou satisfeito com o convite, mas não lhe pareceu que ficasse à espera de ser
convidado caso não tivesse sido sugerido. Queria-a outra vez, naquele momento, mas seria pouco
atencioso. Ela dissera que ele não a magoara muito, mas de qualquer maneira magoara-a.
Ela deitou-se de lado, a vê-lo enfiar a roupa, não se envergonhando da sua nudez. A linha do seu corpo,
do ombro ao joelho, compunha uma curva sinuosa e fascinante. Ele olhou longa e intensamente para
aquela linha, para os seios dela, e para o seu rosto, sempre bem-humorado. Para o seu brilho.
Inclinou-se e beijou-a, e ali ficou, parado, a olhar para o rosto erguido, segurando-lhe o queixo.
Acorreram-lhe imagens eróticas dela de todo o género. Quase a procurou, para tornar pelo menos uma
delas realidade. Em vez disso, obrigou-se a afastar-se da cama e subiu até à sua cela monástica, onde
ficaria entregue à tortura até à noite seguinte.
CAPÍTULO 16

M arian reparou.
Na manhã seguinte levou a Celia o pequeno-almoço à cama, coisa que nunca fizera antes. Com o
rosto impassível, pousou o tabuleiro numa mesa, olhou para os ombros nus de Celia que os lençóis
revelavam, depois notou os vestidos de cetim que haviam sido empurrados da cama na noite anterior.
– Que coisas bonitas – disse, dobrando-se para apanhar alguns. – Caros de mais para estarem assim
num monte.
– Estava a examiná-los, a ver se precisariam de arranjos, quando... Quando...
– Quando se deixou distrair um pouco, não foi?
– Sim. Desorientei-me.
– Que peculiar. Deve ser alguma coisa no ar. Mr. Albrighton hoje de manhã também parecia estar a
sofrer de alguma desorientação. – Um sorriso endiabrado pairava-lhe nos lábios enquanto dobrava os
vestidos.
– Peculiar.
– Falando de distrações, Mr. Albrighton está a tomar banho na cozinha. Aquecemos água para ti a
seguir. – Deixou cair o roupão aos pés da cama.
Celia sentia-se satisfeita por não ter de fingir com Marian. Quando o banho ficou pronto, desceu.
A casa parecia-lhe diferente. Algo se alterara na luz e no movimento do seu corpo pelos espaços.
Claro que não fora a casa que mudara, mas sim ela própria.
Quando se aproximava das escadas da cozinha alguém a agarrou e a puxou. Jonathan encostou-a à
parede, olhando sempre para o corredor, de ouvido à escuta. Depois beijou-a de uma forma que mostrava
que a noite anterior em nada diminuíra o seu desejo.
– Estás linda – murmurou ele, entre beijos. – Gosto desse roupão.
– Não é nada bonito – replicou ela, rindo entre arquejos.
Ele olhou para ela mais uma vez. – Raios me partam. Tens razão. Vamos tirar-to outra vez. Não,
espera, aqui não dá. Marian e Bella. Está errado eu desejar que elas vivessem noutro lado?
– Pode ser compreensível, dada a situação, acho eu. – Foi ao encontro dele num beijo menos frenético
que se prolongou.
– Bem, preciso de tomar o meu banho, como tu tomaste o teu.
– Eu vou contigo, ajudar-te.
– Não, não vais. Vais prosseguir com o teu dia, tal como eu prosseguirei com o meu.
– Serei um inútil. Manda-as embora e sobe comigo, e passaremos o dia na cama.
Ela deu-lhe uma palmada divertida no peito. – A carroça da Flores Preciosas chega hoje ao início da
tarde. Queres que Daphne nos encontre na tua cama? Olha que ela tem uma pistola.
Ele beijou-a mais uma vez e depois afastou-se, relutante, e libertou-a. – Vai lá, então, tratar do teu
banho e dos teus deveres. Encontrarei uma forma de sobreviver. Talvez não pense em ti durante alguns
minutos, pelo menos.
Contente por ele a ter procurado, satisfeita por não se ter instalado qualquer constrangimento quando se
encontraram novamente, encantada por ele se ter saído com algumas palavras românticas, desceu para a
cozinha e para o seu banho.
O calor da água mexeu-lhe novamente com os sentidos. Uma memória de prazer percorreu-a, a par dos
torvelinhos líquidos. Pela primeira vez na vida, agradeceu mentalmente à mãe pela educação que lhe
ensinara que uma mulher deve sentir prazer sem arrependimentos. Existiam pecados no mundo, grandes
pecados, com certeza, mas a sensualidade não era um deles.
Viu-se imersa num transe de felicidade durante as horas seguintes. Pensamentos sobre Jonathan e até
sobre a mãe, sobre a iniciação da noite e até da noite que se seguiria, todos se misturaram na sua cabeça.
De uma maneira estranha, sentia-se mais próxima de Alessandra naquele dia do que alguma na vida. Mais
como uma igual, também, talvez, agora que já não era ignorante.
Ao fim da manhã, enquanto Celia aguardava as carroças e plantas, abriu o baú que fora trazido do sótão
por Jonathan. Os vestidos e outras peças de roupa há muito que tinham sido inspecionados e guardados
no seu guarda-fatos.
Pegou nas grandes capas que ainda estavam pousadas no fundo do baú. Há alguns dias olhara
rapidamente para as imagens que estavam por cima, mas agora queria estudar cada uma delas, e imaginar
a mãe a desenhá-las ou pintá-las. Queria sentir saudades de Alessandra e talvez conhecê-la melhor
através da sua arte.
– O que que tens aí? – perguntou Marian, entrando no quarto com lençóis lavados nos braços. O sangue
não fora muito, mas existira.
– As aguarelas e desenhos da minha mãe. – Pousou a pasta na escrivaninha que estava perto da janela,
e abriu-a. – Fê-los todos, ao longo do tempo.
Marian olhou por cima do ombro. – Aquele podia estar na montra de uma loja.
– Ela era muito talentosa. – A aguarela em questão mostrava o jardim daquela casa, no final do verão,
constatou. A mãe devia estar sentada no terraço quando a pintara.
– Se eu pintasse assim tão bem teria vendido alguns – declarou Marian.
– Talvez o tenha feito. Há tanta coisa acerca dela que eu não sei. – Virou as folhas, uma por uma, e
admirou as pequenas paisagens e quadros com Marian.
– Há aqui muitas – comentou Marian. – Vou deixar-te a apreciá-las. Vou levar Bella às compras para
ser ela fazê-las. Tem de deixar de ser tão tímida nestas coisas.
Marian saiu e Celia continuou a admirar o talento artístico da mãe. As aguarelas deram lugar a
desenhos, na sua maior parte paisagens, mas alguns eram esboços de pessoas. A meio da pilha, contudo,
deparou com um tipo muito diferente de pintura. Era um brasão, cuidadosamente desenhado a lápis, e
colorido. A folha seguinte tinha um desenho de teor similar, mas sem aguarela. Curiosa, folheou o resto.
Todas as folhas mostravam brasões, alguns dos quais ela reconheceu. Dez estavam pintados.
Virou-os, um por um. Ao virar um deles, reparou que havia números no verso da folha. Verificou os
outros e descobriu que havia números em todos. Alguns tinham poucos números, outros colunas
compridas, mas nos desenhos coloridos só havia dois números, um em cima e outro em baixo.
De testa franzida, observou-os; cada um tinha seis dígitos. Então, subitamente, compreendeu o que eram
e o que significavam.
A descoberta deixou-a admirada. Inspecionou os desenhos uma vez e outra, até Marian gritar que as
carroças tinham chegado.

– Segue-me. Tenho de te mostrar uma coisa. – Celia deu a ordem depois de as plantas terem sido
entregues e arrumadas. Levou Daphne ao seu quarto. Verity e Audrianna, que estavam de visita para
também poderem ver Daphne, seguiram-nas.
– Que quarto agradável – disse Verity ao entrar. – É muito fresco na sua simplicidade.
– Consegues acreditar que foi a minha mãe que o decorou assim? – perguntou Celia. – É tão diferente
da casa em que vivia a maior parte do tempo.
– Talvez a fizesse recordar a infância – sugeriu Daphne, mexendo na musselina. – Se assim for, é filha
de gente simples. Do campo, dir-se-ia.
A observação surpreendeu Celia. Era mesmo de Daphne compreender aquela casa de formas a que ela
não acedera. Ela via a mãe como uma Vénus, porque fora assim que a conhecera. Mas Daphne
provavelmente estava correta e aquela casa representava a verdadeira Alessandra, a que vivia no interior
da cortesã famosa. A mulher que a filha não chegara a conhecer.
Reuniu-as à volta de escrivaninha e abriu a grande capa. A maior parte das aguarelas e dos desenhos
estava agora em cima da sua cama. Só tinha os brasões lá dentro. – Olha o que encontrei. Vê, atrás.
Tenho a certeza de que estes números são datas.
Folhearam uns poucos, as quatro cabeças a espreitar ao mesmo tempo.
– Será um registo? – perguntou Audrianna, com o rosto doce cheio de perplexidade. – Como um diário,
acham? – Virou uma folha repetidas vezes. – Este nobre, nestas noites? Céus, conheço alguns destes
brasões. Agora poderá ser difícil manter-me séria quando estiver de visita a algumas senhoras com a mãe
de Sebastian.
– Tornou-se muito evidente de que era um registo assim que compreendi que podiam ser datas –
esclareceu Celia.
Verity levantou um dos papéis. – Oh, Céus. Este barão tem fama de ser muito rígido e muito rigoroso na
exigência de não pecar. Está sempre a fazer discursos acerca disso. – Virou a folha e examinou os
números. – Parece ter cometido alguns deslizes, há sete anos.
Olharam todas umas para as outras e contiveram as gargalhadas.
– Se se fica a saber, será o assunto da temporada – cogitou Audrianna. – Olha para aqui. Julgas que foi
o pai ou o filho? Apontou para uma das folhas.
– É uma boa pergunta – replicou Daphne. – Talvez não devamos presumir que foi o pai. Pode ter sido o
herdeiro.
Audrianna riu-se. – Que desmancha-prazeres, Daphne. Gostei particularmente da noção de este
visconde em particular ter cometido deslizes. Não gosto muito dele; é tão arrogante. Imagino que a
esposa dele, que é insuportavelmente presunçosa, ficasse escandalizada. Está muito certa de que ele a
adora.
– Podemos divertir-nos com esses depois – disse Celia, gesticulando para os desenhos. – Estes são
aqueles que me interessam. Estão pintados. São especiais. E são os únicos que não têm uma lista de
datas. Vejam, só têm duas. Uma no início e uma no fim. Parece-me que eram ligações regulares e que as
datas assinalam o início e o fim.
Espalhou as folhas pintadas na escrivaninha e depois retirou algumas, colocando-as de lado e deixando
apenas três. – Estes três são aqueles que se situam perto da altura em que fui concebida. Penso que um
deles representa o meu pai.
Olharam todas para as armas, habilmente representadas. – Este é o brasão do marquês de Enderby,
Celia. Tem a idade correta. – Tocou noutro. – Este é o barão Barrowleigh. Este último, creio, é o conde
de Hartlefield. Não tem mais do que quarenta e cinco anos agora, mas herdou o título muito novo.
– Não posso eliminá-lo por ser muito novo. Na altura, a minha mãe não era muito mais velha.
– Como conheces essa heráldica toda, Verity? Reconheci o de Enderby, mas não os outros – comentou
Audrianna.
Verity franziu os lábios. – Foi-me exigido que memorizasse muitos brasões. Como parte da minha
educação. A mulher do meu primo queria certificar-se de que eu não perdia nenhuma oportunidade em
relação a pessoas de estatuto superior devido à ignorância.
– Como vais descobrir qual deles é? – inquiriu Daphne. – Há dois a mais. Nem tens a certeza de que o
homem certo sabe que é teu pai.
– Acredito que saiba. Acho que fez com que Alessandra prometesse guardar segredo. – Colocou os
outros desenhos na pasta e fechou-a. Olhou para as amigas. – Achei que vocês talvez pudessem dar-me
uma mãozinha.
– Claro que faremos aquilo que pudermos, Celia – assentiu Audrianna.
– Fico aliviada por tu, em particular, estares de acordo, Audrianna. A mãe de Summerhays gosta de
estar a par dos boatos e era uma mulher incontornável na sociedade da altura. Pode ter ouvido coisas que
te confiará, se for incentivada.
– Ela não pensa em nada nisto como bisbilhotice, mas sim instrução – esclareceu Audrianna. – O que
significará planear dias inteiros com ela e suportar a sua companhia no esforço de criar intimidade. No
entanto, se ela se lembrar de quaisquer rumores, irá confiá-los, para ajudar a plebeia que é mulher do
filho a definir um rumo adequado na sociedade.
– Verei o que surge quando mencionar estes nomes junto das senhoras que me visitam, também –
propôs Verity. – Além disso, a tia de Hawkeswell virá em breve à cidade encomendar vestidos para a
temporada. Pode saber alguma coisa.
– Lamento, mas não te servirei de nada – disse Daphne. – Não tenho nenhum familiar que possa
incentivar a contar-me velhos mexericos.
Celia abraçou cada uma das amigas. – Pode não dar em nada, mas é um começo. Estou otimista pela
primeira vez na vida. Acho que vou conseguir identificá-lo.
– E quando conseguires? – indagou Daphne.
– Não sei. – Mas sabia, no fundo do seu coração.
A excitação que sentia, fruto deste pequeno progresso, daria lugar a apenas um desenlace depois de ela
saber o nome dele. Ela podia nunca mais voltar a ver o homem. Ele podia repudiar a ligação
permanentemente. Mas ela teria uma conversa com ele, de filha para pai, antes de isso acontecer.

Apenas é.
Aquelas palavras ocorreram-lhe várias vezes ao longo do dia. Ouvia-as ao recordar Celia a tirar a
combinação para expor os seios, com os olhos cintilantes e uma excitação que tinha tanto de inocente
como de impúdica.
Ele arriscava-se a enlouquecer enquanto esperava que a noite chegasse. Impondo algum controlo aos
pensamentos, procurou distrair-se, sem grande sucesso. Ao início da tarde, porém, a distração encontrou-
o a ele.
Descia a Strand, dando ao corpo algo para fazer além de o torturar, quando uma carruagem imponente
se precipitou para fora da fila de carruagens e executou uma paragem difícil mesmo à sua frente. Notou
com irritação que, nas mãos de qualquer outro cocheiro, o veículo poderia ter falhado o movimento
naquela viragem rápida, tendo-o matado.
Quando se aproximou, a porta da carruagem abriu-se.
– Entra.
Espreitou e viu Castleford refastelado no assento com uma mulher enroscada à sua volta.
– Talvez noutra altura, Vossa Graça.
– Oh, que diabo, entra! Terminámos, caso pretendas armar-te em padre hoje. – Ouviu o rumor dos
tecidos e dos corpos. Uma moeda brilhou. – Aqui tens, minha pomba. O meu homem leva-te a uma tipoia.
– Disse que me levava a casa – queixou-se uma voz de mulher. – Prometeu-me uma volta na sua
carruagem.
– E já demos uma. Tenho de falar aqui com este tipo. Não te preocupes, que regressas a casa em grande
estilo.
Um rosto bonito mostrou-se na carruagem, seguido de um corpo voluptuoso vestido para a noite. Um
lacaio veio ajudar a mulher a descer.
Uma vez cá fora, voltou-se e falou para a escuridão. – Prometeu-me incluir-me no livro, lembra-se?
Não se vai esquecer?
– Estás a caminho de ter o teu próprio capítulo, minha querida. Agora, toca a andar. Até breve.
Satisfeita com o que quer que conseguira com o acordo, a prostituta afastou-se com o lacaio. Jonathan
subiu para a carruagem.
– Que conveniente ver-te na rua agora mesmo – declarou Castleford em tom de boas-vindas. – Tenho
notícias.
O duque ainda estava meio deitado e, pelo aspeto, desperta a muito custo. Aquilo que se passara na
carruagem deixara um odor que levou Jonathan abrir as cortinas e o vidro.
Castleford reparou. – Que grosseiro da minha parte. Devia tê-la deixado ficar para poder...
– Não era necessário. – A referência vaga bastou para o deixar duro. Vendo bem, ele passara o dia a
meia haste, devido às memórias e à expectativa. – As notícias?
Castleford coçou a cabeça, o que apenas lhe desalinhou ainda mais o cabelo. Criado nenhum tratara
dele ainda. Parecia ter dormido com a roupa que trazia vestida. Três garrafas de vinho vazias rolavam no
chão.
Ele reparou no olhar observador de Jonathan e riu-se. – Passei a noite toda e o dia aqui dentro, caso
estejas a perguntar-te. É uma pesquisa para o meu livro. Sabias que podes fornicar com uma mulher de
seis maneiras diferentes numa carruagem sem te magoares nem provocares grande desconforto a
ninguém?
– Seis, dizes. Estou impressionado. Só consigo pensar em três, ou quatro, se formos muito liberais com
o significado de fornicar.
– Foi o que pensei. No entanto, ela disse-me que o fizera de seis maneiras. Claro que tinha de saber se
era verdade.
– Claro.
– Desaprovas, Albrighton? Estavas um bocadinho parecido com o meu tutor, ainda agora.
– Pequei o bastante na minha vida para não ter o direito de condenar a maior parte dos homens, muito
menos no que respeita a fornicar com mulheres.
Era verdade, especialmente no último ponto. Não podia ignorar que o homem à sua frente era capaz de
passar doze horas na sua carruagem a fornicar, mas nunca seduzira uma inocente. O que, para todos os
efeitos e propósitos, Jonathan havia feito e tencionava continuar a fazer.
Tão-pouco, suspeitava, mau grado todo o uso que fazia de prostitutas, Castleford havia alguma vez
encaminhado uma mulher para o ofício de se vender a si própria, coisa que porventura, Jonathan fizera
igualmente na noite anterior.
Nada daquilo importaria naquela noite, ou na noite seguinte, desde que Celia lhe abrisse a porta do
quarto. Mas, se naquele momento estava um bocadinho parecido com um tutor, em nada se devia ao
comportamento de Castleford.
– As notícias? – tentou outra vez.
Castleford bocejou e fechou os olhos. – Porque estavas a pé? Imagina a minha surpresa quando te
avistei por entre as cortinas no momento crucial do êxtase… Onde está o teu cavalo?
– Deixei-o numa taberna ao cimo da Strand. Queria dar uma volta, fazer um pouco de exercício. O que
estavas a fazer a olhar pela janela num momento desses?
– A certificar-me de que ela não estava a fingir. Elas às vezes fazem isso. Fazem sim senhor. Ver-te foi
um completo acidente. As cortinas mexeram-se um bocadinho.
Jonathan riu-se. – Perdoa-me, mas estou a imaginar-te no teu clímax, reparando em algo apesar da
distração considerável e a gritar ao cocheiro para parar os cavalos.
Castleford pareceu espantado com a perspetiva. – Não admira que ela se mexesse daquela maneira no
último momento e depois ficasse quieta como uma morta. Maldição! Pensou que estava a gritar com ela. –
Dobrou-se sobre a barriga, perdido de riso. – Chega, homem, chega!
– Para de imediato!
– Para imediatamente, com um raio! – Limpou os olhos. – Pobre mulher. Vai ficar com um capítulo,
definitivamente. Poderei ter de escrever isto em forma de biografia, para lhe fazer justiça.
Gritou ao cocheiro que continuasse. – Vamos dar a volta e levar-te ao teu cavalo.
Andaram. Jonathan esperou um minuto antes de tentar novamente. – As notícias? É acerca de
Thornridge?
– Ainda não. O tipo é escorregadio. Voltou para o campo. Isso pode ter de esperar algumas semanas.
Isto é sobre outra coisa. Bom, o que seria? – Franziu a testa, explorando a metade sóbria da sua mente. –
Ah, sim. O Dargent.
– O pai ou o filho?
– Ambos. O Dargent pai comunicava, de facto, com o exército durante a guerra, aconselhando-os sobre
o terreno. A notícia era que o Dargent filho o acompanhava frequentemente quando tal acontecia. O pai
sabia que estava doente, e era a forma de lhe passar a pasta, tal como se fazia, e queria que qualquer
reconhecimento futuro da ajuda que prestava beneficiasse o herdeiro, juntamente com a herança.
– Isso era do conhecimento geral?
Castleford deu de ombros. – Imagino que fosse do conhecimento de quem prestasse atenção. Não era
segredo, mas não foi publicado em nenhum panfleto.
Então Anthony ouvira as perguntas que eram feitas ao pai. Fora um descuido por parte do governo, mas
não era uma surpresa completa. Pai e filho eram honrados e leais, e quem esperaria que viesse daí algum
problema? O exército não estava propriamente a expor as suas estratégias ao colocar aquelas questões.
Ainda assim, não eram as notícias que Jonathan queria ouvir. Teria sido muito melhor se Alessandra
não tivesse tido segundas intenções ao atirar a filha para os braços de Anthony. Disse a si próprio que as
suspeitas e os boatos eram apenas isso e nada mais, mas a sua alma e os seus instintos – as partes dele
que ignorava por sua conta e risco – afastavam-se amplamente dessa suposição.
Ele estivera convicto de que a sua investigação ilibaria Alessandra, ou pelo menos deixaria a questão
em aberto. Agora, já não estava tão certo disso.
CAPÍTULO 17

J onathan decidiu que esperaria até às onze horas antes de descer ao quarto de Celia naquela noite.
Conseguiu aguentar até às dez.
Ouviu Marian e Bella a dirigirem-se para o quarto delas. Escutou a porta a fechar-se. Depois disso,
cada minuto lhe pareceu uma eternidade.
A discrição talvez fosse desnecessária. Marian sabia claramente o que se passara na noite anterior. A
sua oferta para preparar o banho de manhã, com aquela expressão inofensiva, neutra, dissera tudo.
Perguntou-se se ela teria repreendido Celia por ter sido imprudente. Talvez, por ter sido prostituta,
achasse que não tinha legitimidade para o fazer.
Desceu as escadas das traseiras e percorreu o corredor até ao quarto de Celia. O desejo consumira-o
dia inteiro e a cada passo que dava descartava o seu comedimento habitual. Chegou à porta dela
dilacerado pelo desejo.
Não teve de bater. A voz dela disse baixinho o seu nome mal ele lá chegou. Abriu a porta e teve uma
visão de encantador acolhimento.
Celia estava sentada perto de um lume forte, que aquecia o quarto, usando um dos seus vestidos de
cetim especiais, cujo rosa encantador concedia à sua pele um matiz do mesmo tom. O corpete consistia
num tecido diáfano, transparente, que deixava entrever os seios. Tinha o cabelo solto e penteado, o rosto
limpo e radiante, uma outra cadeira ao seu lado e uma garrafa de vinho pousada numa mesa pequena.
– Senta-te – convidou.
Ele não queria sentar-se. Queria agarrar nela e atirá-la para a cama e...
Sentou-se. Ela serviu-lhe vinho. Ele bebeu. A submissão à domesticidade da situação fez esmorecer os
picos mais agudos do seu desejo. Concluiu, enquanto permaneciam os dois ali sentados a beber o líquido
escuro, à luz do fogo vivo, que fora exatamente essa a intenção dela. Continuava a esquecer-se de que o
conhecimento de séculos acerca dos homens lhe fora transmitido.
Ela pareceu reconhecer o momento em que a tormenta se tornou mais controlável. Pousou o copo de
vinho e levantou-se. Ele fez menção de lhe tocar mas ela deteve-o com um gesto meigo. – Fica aí,
Jonathan. Tudo o que desejas será teu, e mais ainda.
Ela recuou, descalçando os chinelos. Era, tinha a certeza, uma das coisas mais eróticas que ele alguma
vez vira uma mulher fazer.
Desapertou dois botões do vestido, ao nível dos ombros, com audácia, sem desviar o olhar do dele. Os
olhos dela mostravam a consciência franca do que fazia e do prazer provocante que os seus movimentos
lentos criavam. Solto, por fim, o tecido brilhante deslizou-lhe pelo corpo até a deixar nua perante ele,
banhada pela luz dourada do fogo, com os olhos muito abertos, como se o momento a maravilhasse.
Novamente o passo erótico dos seus bonitos pés, desta vez para a frente, não para trás. Estava diante
dele, linda e pronta, o aroma subtil da excitação demasiado próximo para ser ignorado.
– Estou aqui sentada há duas horas, sem pensar em mais nada do que em ter-te aqui, esta noite – disse
ela.
– Eu passei a maior parte do dia sem pensar em mais nada. – Ele esticou o braço e, desde o ombro,
passou os dedos pelo corpo dela. Para sua surpresa, ela cobriu a mão dele com a sua, e levou-a até ao
seu monte.
– Só um bocadinho – disse, afastando as pernas. – Só o suficiente.
Ele virou a mão e acariciou-a devagar. O prazer espalhou-se em ondas dentro dela, transformando a
sua expressão. Ela permitiu que ele observasse, exigiu que o fizesse, e a excitação cresceu nele até a
tormenta o dominar de novo.
Ela surpreendeu-o, então, pela última vez, possivelmente. Graciosa, elegante, ajoelhou-se à frente da
cadeira e das pernas dele. Os seus dedos puxaram-lhe pelos botões da camisa até lhe descobrir o peito.
Inclinou-se para a frente, com os maravilhosos seios acomodados no colo dele e as costas nuas descendo
até à deliciosa sinuosidade das suas ancas. Ela beijou-lhe o peito, acariciando e lambendo, e deixando-o
tenso, firme e fora de si.
As carícias desceram e os dedos dela atarefaram-se novamente, com os botões das calças. A
expectativa converteu-se em implacável determinação e obstinada necessidade. A primeira carícia foi
pura sensação. Depois os beijos dela também desceram e a sua boca envolveu-o, e ele fechou os olhos,
submetendo-se àquela tortura perfeita.

– Como a conheceste? A minha mãe?


Ela apoiou-se num braço para fazer a pergunta. Jonathan estava nu. A sua roupa fora descartada na
ociosidade que se seguiu ao prazer. Estavam na cama dela entre os lençóis, pele contra pele. O lume
ardia brando, projetando feitos de uma luz pálida que dançavam por entre as sombras.
– Porque perguntas?
– Nunca te limitas a responder às perguntas, Jonathan? Evita-las sempre? Pergunto porque pensei muito
nela hoje.
– Por minha causa?
Ela riu-se. – Meu Deus, que convencido. – Mas ela sabia o que ele queria dizer. E o que ele receava,
imaginou. – Talvez por tua causa, um bocadinho. Tenho vindo a constatar, contudo, o pouco que
realmente sei sobre ela. Sobre esta casa, por exemplo. Sobre o passado dela.
Ele puxou-a para o seu abraço. – Ela conhecia a minha mãe. Quando a minha mãe ficou doente, ela
visitava-a. Quando ela morreu, Alessandra foi uma das poucas pessoas a ir ao funeral dela. Informou-me
anos depois que dissera à minha mãe que não havia problema em estar apaixonada pelo conde e em ser
amante dele, mas que devia exigir que ele lhe desse segurança financeira primeiro. A minha mãe
ignorara-a, bastante deliberadamente, ao que parece. Não sei porquê.
Eu sei. A mãe dele não quisera ser a meretriz do conde. Ou esperara mais do que isso, ou procurara
apenas uma ligação honesta.
Não lhe explicaria aquilo. Ele não precisava realmente de saber.
– Depois de eu sair da universidade, Alessandra escreveu e convidou-me a visitá-la caso precisasse de
uma amiga. Foi o que fiz, já que conhecia poucas pessoas na cidade nessa altura.
– Ela proporcionou-te uma entrée invulgar na sociedade, mas que não deixava de o ser, imagino.
Pudeste conhecer todos aqueles homens da nata da sociedade nas suas festas e jantares.
– Foi isso que ela pensou. Foi generoso da parte dela lembrar-se sequer de mim depois de todos
aqueles anos.
Explicava muita coisa, pensou Celia. A razão pela qual aquele jovem estava sempre lá, embora não
fosse elegível como patrono. A razão pela qual Alessandra lhe alugara o quarto do sótão. Ajudava o filho
de uma velha amiga que, em nome do amor incorruptível, descuidadamente acabara por não precaver a
situação dele.
– Ela sabia do teu trabalho para o governo? Na costa, e o resto?
– Acho que adivinhou. Nunca perguntava para onde eu ia quando me despedia dela, o que me leva a
crer que sim. Era como se ela soubesse que não devia perguntar. – Foi a vez dele de se erguer num braço.
A sua outra mão começou a acariciá-la. – Tens andando a pensar muito sobre isto. É de noite, já chega.
Precisas de distração, parece-me.
O seu toque lento não tardou a fazer com que lhe fosse impossível pensar. Ela fechou os olhos e deixou
que o prazer que irradiava daquela mão lhe percorresse o corpo.
– Quem te ensinou a usar a boca da forma que fizeste, Celia?
Ela abriu os olhos de surpresa. – Foi ela.
– Nunca o fizeste a sério?
– Vais ficar ciumento se tiver feito?
Ele olhou para a mão e ela avaliou-lhe a expressão. – Sim.
Ela não conseguiu decidir se achava aquilo encantador ou irritante. Decidiu-se pela primeira, mas
porque o prazer que sentia encorajava essa opção. No entanto, era melhor ele sentir ciúmes do que culpa.
Ela suspeitava que ele teria potencial para a última. Provavelmente ensinavam aos homens tudo sobre a
culpa na universidade.
O olhar dele atravessou-a. – Não vais dizer-me?
– É inegável que foste o meu primeiro homem daquela forma. Isso dificilmente poderia ser ocultado. O
resto não te cabe saber.
Um sorriso muito ténue formou-se. Uma nota de humor tornou-lhe o olhar mais doce. – Não és tão
esperta como julgas, Celia. Só isso, já me diz muito. O resto, consigo vê-lo nos teus olhos e ouvi-lo nos
teus gritos. Uma coisa é ter conhecimento destas coisas e outra ser experimentado nelas. Julgas que não
consigo perceber a diferença?
– Não me parece que estejas a reparar muito, numa coisa ou na outra.
Ele inclinou a cabeça e beijou-lhe o seio. – Oh, mas estou. Se te ensinaram que não repararia,
cometeram um erro. – Pegou nas mãos dela e ergueu-as acima da cabeça dela. – Terei de me certificar de
que também reparas, na eventualidade de te terem ensinado a ignorar o homem com quem estás.
Como é que ele conhecia aquela lição? Talvez adivinhasse apenas que fazia sentido para muitas
mulheres. Provavelmente era uma necessidade para a maior parte delas.
Ele não tinha de se certificar de nada. Ela não podia ignorar a pessoa com quem estava. Olhava-o
naquela luz maravilhosa, com o cabelo a cair-lhe sobre o rosto enquanto a acariciava. Mesmo com os
olhos fechados, mesmo quando ele inundava o seu corpo de prazer, com a boca nos seus seios para a
excitar e as mãos a percorrerem-lhe o corpo todo, mesmo quando o mundo inteiro se tornava um lugar
escuro de dilacerante e impaciente necessidade, de desejo latejante, ele estava lá.
Ele manteve sempre as mãos dela seguras acima da cabeça, para que ela apenas sentisse e se
submetesse, para que ela mal conseguisse mexer-se de modo a aliviar a fúria crescente. No fim, segurou
as pernas dela com as suas para lhe acariciar a fenda, fazendo as sensações explodir dentro dela, cada
qual mais intensa, até ela ficar louca, perdida, gritando e gemendo. Ela agarrou-o quando o corpo dele
cobriu o dela e lhe abriu os joelhos para que ela o aceitasse.
Foi o Céu. A perfeição. Ela não conseguia acreditar no prazer que sentia, no preenchimento e na
pressão, e na plenitude que a maravilhavam. Quando ele se mexia dentro dela, quando estava sobre ela,
quando a força dele a dominava e lhe provocava novos estremecimentos pelo corpo todo, ela não podia
senão aceitar, e gritar por mais, por alívio, para que o alarmante curso do prazer encontrasse a
finalização que parecia exigir. Quando isso aconteceu, quando o crescendo alcançou o pico e se desfez
no clímax, aí, só aí, ele não estava. Nem ela, na verdade, nem o mundo, ou o pensamento, nem mesmo o
seu corpo.
A seguir, a vigorosa consumação dele foi como um bálsamo. Ela adorava senti-lo dentro de si, tão
duro, tão forte, e o alívio que pulsava nele no final. Enrolou as pernas à volta dele e segurou-o contra si,
sentindo a sua respiração profunda no cabelo e os músculos tensos no seu abraço. Segurou-o assim tanto
tempo quanto pôde, com o corpo tocando completamente o dele, permitindo-se senti-lo todo, sentir tudo,
até mesmo a dolorosa comoção que encerra em si todo o perigo.
***

No dia seguinte fingiram que a noite anterior não tinha acontecido.


Jonathan achou um pouco ridículo fazê-lo à frente de Marian. Bella era outra questão. Parecia um
ratinho assustado que, suspeitava, conhecera uma vida difícil. Idolatrava Celia e provavelmente fazia
sentido manterem a discrição na presença dela.
Era difícil. Nem ele nem Celia conseguiram esconder a alegria dos seus olhos ao cumprimentarem-se
quando ele desceu no dia seguinte. As formalidades converteram-se numa brincadeira.
– A mesa está limpa e Marian ainda tem as panelas do pequeno-almoço fora, se quiser comer alguma
coisa, Mr. Albrighton. – Celia indicou uma mesa pequena na sala das traseiras enquanto passava algumas
plantas a Mr. Drummond.
– Não esperava refeições, Miss Pennifold.
– É prova de sabedoria não esperar nada que não esteja pago, senhor. Uma atitude despretensiosa
convida tanto mais à generosidade.
– Ainda ontem à noite pensava na sua grande generosidade, Miss Pennifold. – Ele tirara proveito dessa
generosidade naquela manhã, à semelhança da noite anterior. Sentou-se e ficou a vê-la conversar com
Mr. Drummond e dar ordens sobre que vasos de bolbos forçados iriam para onde.
A comida chegou exatamente quando ela terminava a tarefa. Sentou-se com ele enquanto ele comia.
Não falava, mas era impossível afastar aquela noite dos olhares que trocavam. As memórias pairavam
entre eles sem que tivessem de dizer uma palavra. Não obstante, ele sentiu que eram precisas palavras.
Elas tentavam formar-se desde que ele saíra de junto dela de madrugada.
– Vai sair hoje, Mr. Albrighton? – indagou Celia enquanto Bella levantava a mesa.
– Pensei fazê-lo.
– Talvez, antes de o fazer, possa conceder-me alguns minutos. Gostaria de lhe mostrar uma coisa.
Ele seguiu-a educadamente até à biblioteca. Ela fechou a porta depois de entrarem e esticou-se para o
beijar.
Não era suficiente. Agora nunca seria. Ele aproveitou a privacidade para a abraçar e beijar como era
devido. – Tens de me mostrar uma coisa na biblioteca várias vezes por dia – disse ele.
– Não era um pretexto para trocar alguns beijos secretos, Jonathan. Tenho mesmo uma coisa para te
mostrar. Olha para ali.
Pegou-lhe na mão e conduziu-o para uma mesa onde estava pousada uma capa, daquelas compostas por
dois cartões unidos revestidos de papel marmorizado. Ela abriu-a, revelando uma pilha de papéis de bom
tamanho. O de cima mostrava uma aguarela do jardim da casa. Ela pegou-lhe, juntamente com muitos
outros, para revelar o que estava por baixo. Mais desenhos, cada qual representando um brasão.
– Estavam nas coisas da minha mãe. Lembras-te daquele dia em que os encontrei no sótão, no fundo do
baú? Estavam por baixo das aguarelas, as do jardim e outras. Acho que contêm uma pista sobre o meu
pai. Disseste que poderias ser capaz de ajudar se eu tivesse mais informação. Agora tenho.
Apontou para os números que estavam na parte de trás e explicou a sua teoria de que se tratavam de
datas. Mostrou-lhe os dez que estavam pintados, que pareciam implicar relações longas, dos quais três
contemplavam o ano anterior ao seu nascimento.
Ele olhou fixamente para os timbres, e as suas datas, e as identidades que revelavam. Maldição. Celia
tropeçara na lista dos amantes de Alessandra que Edward queria que ele encontrasse.
– Achas que isto vai ajudar? – perguntou ela.
– Ajudar?
– Ajudar-te a descobrir qual deles é o meu pai?
– Vou levar isto tudo para o meu quarto e debruçar-me sobre o assunto.
Ela inclinou a cabeça para o lado, baralhada. – Porque precisarias de o fazer? Eu sei quem são estes
três homens. Enderby, Barrowleigh e Hartlefield. Verity identificou os brasões. Quanto ao resto... –
Gesticulou na direção do monte maior, sem cor. – Não são significativos.
Mas eram. Ele necessitava de passar um bom tempo com aqueles desenhos, e as suas datas, e alguns
livros de heráldica. Queria ver quais os que tinham datas muito mais recentes do que o nascimento de
Celia. Datas de há cerca de cinco anos, quando ele assumira uma missão nefasta na costa da Cornualha.
Precisava de...
Reparou que Celia o observava atentamente, como se visse mais do que a sua expressão costumava
revelar.
Jonathan voltou-se para os seus olhos confusos, preocupados, e a seguir para os desenhos.
Aguardavam-no respostas naquele monte de brasões, tinha a certeza. A verdade acerca de Alessandra e,
provavelmente, a pista para o homem cuja indiscrição resultara naquela armadilha. Com aqueles
desenhos, num dia ou dois podia descobrir tudo.
E depois? A questão apresentou-se sem contemplações.
Imaginou o rosto adorável que tinha diante de si, desiludido, quando também ela ficasse a saber de
tudo. O que pensaria e sentiria ela se descobrisse que a mãe havia traído o país e talvez até a sua própria
filha durante aquelas negociações com Anthony?
– Se não são significativos, talvez devas queimá-los – disse ele.
– Porque faria isso? São uma espécie de diário dela. São feitos pela sua mão. Ela deixou-me muito
pouco, especialmente sobre ela própria.
– São potencialmente constrangedores para alguns dos homens com quem teve ligações.
Uma centelha iluminou-lhe o olhar. – Só se forem vistos pela pessoa errada, e que compreenda os
números do verso. Duvido que tal aconteça. – Os seus dedos delicados pousaram no primeiro desenho
colorido. Agora, relativamente a estes três...
– Julgas ter circunscrito a busca, mas não podes ter a certeza.
– Vamos presumir que sim. Podes ajudar-me com esta busca?
Ele folheou os três desenhos. Eram nomes, para todos os efeitos. Era mais do que ele geralmente
dispunha em algumas das suas missões.
– Se te ajudar, o que vais fazer se descobrires quem ele é, Celia?
– Eu disse-te. Só quero saber o nome dele.
– Isso pensas tu, mas quando estiveres na sua posse não será suficiente. Penso que sentirás uma
necessidade irresistível de lhe falar.
Ela ficou tensa e olhou-o com menos doçura. – Vais recusar, para evitar que isso aconteça?
Ela não negara aquilo que ele pensava que iria acontecer. O que significava que já sabia que ele estava
certo. – Se abordares este homem, provavelmente ver-te-ás confrontada com insultos da parte dele.
Receio que, se te ajudar a descobrir quem ele é, acabes com o coração partido.
Ela vacilou na sua rigidez. Os seus olhos cintilavam agora, mas com lágrimas. – Será alguma coisa,
pelo menos. Ele terá de falar comigo para o fazer. Terá de se encontrar comigo e de me ver, e admitir que
sou filha dele para me repudiar dessa forma. Arriscar-me-ei ao coração partido, Jonathan, por alguns
minutos de reconhecimento da parte dele de que estou viva.
Ele quis argumentar, dissuadi-la. Quis dizer-lhe que não valia a pena. Mas sabia que ele próprio faria a
mesma coisa. O facto de o seu próprio pai o ter reconhecido como filho constituiu uma âncora para a sua
própria história, para quem ele sabia que era. A necessidade que Celia sentia de saber o nome daquele
homem com certeza não era uma coisa menor que pudesse facilmente ser posta de lado.
– Verei o que consigo saber – concluiu ele.
Ela esticou-se para o beijar. – Obrigada. Não te peço para fazeres nada que seja óbvio nem que possa
levá-lo a prejudicar-te. Pensei apenas que talvez pudesses fazer a tua investigação e procurar saber
discretamente.
Ele abraçou-a, duvidando que conseguisse fazer muitas perguntas sem que os homens em questão
ficassem a saber. Ainda assim, uma conversa com o tio Edward poderia possivelmente eliminar um, ou
dois até, com sorte.
Sentindo a suavidade quente dela nos braços, deixou que esta a distraísse de preocupações acerca do
custo último que a sua anuência teria para ela. Viu os desenhos na mesa por trás dela.
– Deixa aí a pasta, Celia. Quero olhar para os desenhos da tua mãe mais pormenorizadamente. Podem
ter mais revelações a fazer.
CAPÍTULO 18

– P reciso do teu conselho, Jonathan.


As palavras pairavam na noite, infiltrando-se no profundo contentamento que experimentava, ali
deitado no escuro com ela nos braços. O seu corpo envolvia o dela por trás e a sua mão segurava-lhe um
seio. O clímax dela fora violento no seu abandono e transportara-o consigo até ele sucumbir por fim.
A voz dela agora ajudava-o a recobrar, mas o êxtase continuava lá, vívido de mais para se converter
tão cedo numa memória. Formaram-se palavras para o descrever, palavras que minutos antes teriam sido
impossíveis. Perfeito. Assombroso. Puro. Imbuído de algo que um homem não cedia facilmente.
– Em relação às tuas plantas? – murmurou. – Não sou melhor jardineiro do que carpinteiro, receio.
– Em relação a uma amiga. Recebi uma carta de Audrianna ontem, já tarde – principiou ela. – Pedia
que a visitasse hoje. Não mencionou, porém, as instruções para que o fizesse com discrição. Certamente
não pode estar à espera de que eu a visite como se fosse uma das outras suas amigas.
– Parece que está.
– Não quero causar-lhe problemas, nem com o marido, nem com a mãe dele.
– Talvez devesses deixar que fosse ela a decidir se lhe causaria problemas, e a que ponto.
Ela ficou quieta um momento. Ele sentiu-a a debater o que fazer relativamente ao convite.
– Ela soube da minha mãe por acidente, pouco depois de casar – explicou. – Lembro-me do dia em que
foi à Flores Preciosas e me disse que já não podia ser minha amiga de forma pública. Chorou
terrivelmente, mas eu não esperava outra coisa, claro. Achei generoso Sebastian permitir sequer que ela
me visitasse.
– Se ela lhe obedecia na altura, não vai deixar de o fazer agora. Sebastian deve ter mudado de ideias
quanto ao assunto.
– Ou ela convenceu-o. – Soltou um risinho. – Pergunto-me como o conseguiu.
– Talvez tenha sido invulgarmente generosa. – Beijou-lhe o ombro. – Estava a pensar visitar Sebastian
hoje. Porque não me deixas acompanhar-te até lá?
Ela virou-se para ele e fitou-o. – Eras capaz? Admito que aproximar-me sozinha daquela porta... Fico a
imaginar o que poderia acontecer se eu tiver percebido mal e...
– És tão digna de entrar por aquela porta como qualquer outra mulher que ela conheça. É isso que diz, e
é verdade. Levamos a tua carruagem e vamos esta tarde.
– Será demasiado visível. Se te virem muito comigo o teu nome será ligado ao meu.
– Ninguém vai reparar em dois bastardos sem importância juntos num cabriolé, Celia. Nem, na tua
idade, comprometerá a tua reputação se o fizerem.
– Não é a minha reputação que me preocupa, Jonathan. As tuas expectativas são melhores do que as
minhas alguma vez serão. És tu quem deve ser cauteloso.
Ele posicionou-se em cima dela para olhar o seu rosto. – A minha reputação não será prejudicada por
eu ser visto contigo. É um absurdo.
Ela ia começar a falar, depois parou. Virou o rosto e evitou o olhar dele. O fogo mortiço dava pouca
luz e a sua expressão não era nítida, mas pareceu-lhe que ela estava mais triste do que zangada.
– De qualquer forma, iremos numa carruagem fechada, alugada. Talvez assim o mundo não veja o quão
imprudentes estão a ser ambos, tu e ela.

– Foi amável da parte do teu inquilino, acompanhar-te – comentou Audrianna naquela tarde, depois de
receber Celia e Jonathan.
Estavam sozinhas na saleta privada. Jonathan perguntara por Sebastian e ambos os homens haviam
saído imediatamente para a biblioteca.
– Ele agora é mais do que meu inquilino... – confidenciou Celia.
Audrianna sorriu. – Bem, quanto a amantes, ele provavelmente não será mau, diria.
– Supostamente, devias estar escandalizada.
– Todavia não estou. Imagina só.
– Por causa da minha mãe?
O rosto de Audrianna ficou carregado. – Que pergunta tola, Celia. A razão pela qual não estou
escandalizada é por tu seres uma mulher e ele uma bela figura, e porque desde que te conheço que as tuas
visões sobre a intimidade sensual sempre tiveram uma certa... Como direi... Ironia?
– Perdoa-me. Tens razão, foi uma pergunta tola. Desde que é do conhecimento público que sou filha de
Alessandra Northrope que facilmente vejo insultos, por vezes onde não existe nenhum.
Agora o rosto doce de Audrianna mostrava preocupação. – E por vezes existe?
– Claro. Estou grata por me teres recebido abertamente hoje, mas receio que possas vir a pagar o
preço. – Olhou para a porta. – A mãe do teu marido sabe que eu estou aqui?
Audrianna levou a mão ao cabelo acobreado e enrolou alguns caracóis na cabeça inclinada. – Por
sinal, partiu hoje de manhã para o campo. Duvido que volte antes de a temporada começar.
– Então és poupada às consequências de me receber.
– Oh, ela sabe. Tivemos uma grande discussão ontem, antes de eu te escrever aquela carta. Estive a
fazer-lhe perguntas sobre a tua mãe e os velhos boatos e ela percebeu finalmente que o meu interesse
significava que ainda eras minha amiga e, bom... – Encolheu os ombros.
– É isso que quero dizer! A nossa amizade tem-te causado problemas, mesmo sendo nós discretas. Será
muito pior se não o formos...
– Não, muito pelo contrário! Deixa-me dizer-te o que aconteceu. Ela arrastou Sebastian para a
discussão, o que foi muito idiota da parte dela, como já deveria saber. Ele ficou do meu lado e disse que
te receberia no futuro e que ela devia aceitar ou sair da casa. – Audrianna decidiu que o seu cabelo
estava suficientemente composto. As mãos foram pousar-lhe no colo e ela olhou em frente,
inocentemente. – Então, de certo modo, Sebastian ordenou que eu te recebesse, e, ao fazê-lo,
praticamente fez com que a mãe saísse de casa.
– Estou a ver. Que conveniente.
– Foi, não foi? Acredito que Sebastian ainda se congratula com o golpe de génio.
– Por falares na tua sogra... Antes de se ir embora, ela chegou a lembrar-se de algum boato acerca da
minha mãe?
– Ela lembrava-se de mais coisas do que eu esperava, mas os homens também eram de grande
interesse, não eram? Mencionou de passagem que Hartlefield não tinha nem herdeiro nem nenhuma filha,
apesar de, na altura da morte, já contar com três esposas.
– Apesar de ser possível que ele tenha tido a má sorte de casar com três mulheres estéreis, parece
que...
– Há pessoas que acham que pode ser problema do homem, perante evidências como esta. Se assim
for, se estiveres correta acerca dos desenhos, parece que o homem que procuras é Barrowleigh ou
Enderby.
– Ela disse alguma coisa de interessante sobre estes dois?
– Disse que a ligação de Enderby com Alessandra foi intensa mas breve, devido ao facto de ele se ter
apaixonado por outra mulher, com a qual posteriormente se casou. Quanto a Barrowleigh, o que se diz é
que ele queria casar com Alessandra, e que se danasse o mundo, mas ela não o queria como marido.
Talvez ele lhe tivesse pedido a mão porque sabia que estava de esperanças?
– Talvez. – Mas não necessariamente, porém. Não fora a única proposta de casamento que Alessandra
recebera ao longo dos anos. O prazer podia levar os homens a fazer declarações impulsivas.
Barrowleigh ou Enderby. Teria de descobrir tudo o que conseguisse sobre um e outro. Entusiasmava-a
estar assim tão perto, agora. Talvez nem sequer precisasse da ajuda de Jonathan.
– Ela sabia outras coisas, também. Outros rumores. – O tom de voz de Audrianna perdera a ligeireza.
– Que outras coisas?
Ela suspirou. – Dizia-se que um dos primeiros amantes da tua mãe era francês. Um émigré. Alguns
pensavam que ele tentava recolher informação para os Franceses durante a guerra. – Aproximou-se e
colocou a mão sobre a de Celia, apertando-a docemente. – Também se dizia que ela era os ouvidos dele.
Celia olhou para a expressão perturbada da amiga, depois para a mão reconfortante que segurava a sua.
Não conseguiu controlar-se e começou a rir-se. – Alessandra, espia? Audrianna, é absurdo. Porque
faria ela isso? Era do Yorkshire, por amor de Deus. Ainda se percebia na sua voz, por muito que ela
tentasse mascará-lo. Porque é que faria semelhante coisa?
– Dinheiro. Amor.
– Não acredito. São apenas as harpias a tecer fios feitos de ar. A própria ideia é mais do que ridícula.
– Pensei o mesmo. Tenho a certeza de que é tudo um engano. Nem sequer ia dizer-te. Pensei, porém,
que devias saber disto, já que procuras o nome do teu pai.
– Achas que este silêncio sobre a identidade do meu pai pode não ter nada a ver comigo mas com este
outro assunto?
– Pensa nisso, pelo menos. Talvez ele também ouvisse estes rumores e não quisesse que o seu nome
estivesse ligado ao dela de nenhuma maneira. Homens de boa reputação não quereriam ter de explicar
que ela não ouvira nada deles que pudesse ser passado ao amigo francês, pois não?
Muito provavelmente. A explicação tinha alguma lógica, independentemente de se sentir ultrajada pelo
facto de nome da mãe ser caluniado com aquele tipo de rumor.
Se Audrianna estivesse certa, se aquela fosse a razão pela qual a identidade do seu pai permanecera
secreta, então ele poderia não se importar assim tanto se se desse discretamente a conhecer a ele.

– Não vais dizer-me o que estás a fazer, pois não? – Sebastian formulou a pergunta do sofá da
biblioteca, onde lia um livro. Não levantou sequer os olhos.
– Estou a pesquisar sobre heráldica, por simples curiosidade – esclareceu Jonathan, virando uma
página. Havia centenas de escudos, muitos deles bastante semelhantes. Bastava uma cor para indicar uma
pessoa diferente, e ele não tinha cores exatas, apenas esboços toscos que copiara dos desenhos de
Alessandra.
Celia vira-o copiar os brasões coloridos na tarde em que ela revelara a sua teoria, e deixara-o sozinho.
Já não estava na biblioteca quando ele prosseguiu para os outros, ordenando-os pelos números numa
cronologia dos amantes que Alessandra julgara apropriado documentar.
– Ainda bem que Castleford não está cá. Ia dizer-te que estás a ser enfadonho.
– E mal-educado, também. E tu és tão generoso que nem me chamas a atenção. É por isso que uso a tua
biblioteca e não a dele.
– Também sou generoso o suficiente para te informar que, se tens questões de heráldica, há um sítio
onde podes obter respostas mais rapidamente do que em qualquer biblioteca.
– Duvido que o Colégio de Armas me receba e dê essas respostas, muito menos por simples
curiosidade.
– E eles têm mais alguma coisa para fazer? – Levantou os olhos do livro. – A não ser que não possas
partilhar a tua curiosidade por alguma razão, claro. A não ser que não seja tão simples como pretendes.
Ora aí estava uma afirmação direta. E informativa. – Tens razões para pensar que assim não seja?
– Absolutamente nenhuma, exceto não ser um tema comummente explorado por homens interessados em
investigações científicas.
– Eu interesso-me por muitas coisas.
Sebastian riu-se. – Isso é um facto. Normalmente apercebo-me disso, vagamente. Mas não desta vez.
Alguém está a ser extremamente discreto.
Parecia que sim, se nem Castleford nem Summerhays podiam saber da verdade, nem sequer vagamente.
Estava na altura de perguntar ao bom velho tio Edward quem era exatamente aquela pessoa muito
discreta.
– Foi generoso da tua parte permitires que a tua mulher receba Miss Pennifold – comentou, concluindo
que se impunha uma mudança de tópico, afastando da sua pessoa.
Sebastian fez um gesto pachorrento com a mão. – Duvido que ela seja a primeira pessoa com o seu tipo
de história a cruzar a porta da frente.
– Decididamente que não. Eu estive aqui antes, por exemplo.
Sebastian fez um sorriso pesaroso. – Não é a mesma coisa, de todo.
– Porquê? Porque a minha mãe se prendeu a um homem e permaneceu invisível e escondida?
– Porque não há nenhuma indicação de que vás adotar uma profissão que te marque irremediavelmente.
Essa improbabilidade de uma mácula permanente não é um facto confirmado no que respeita a Miss
Pennifold. O ano que ela passou com Mrs. Northrope não foi esquecido.
– Eu já matei, na minha profissão, Summerhays. Se isso não marca uma pessoa, não sei o que marcará.
– Se pretendes afirmar que o mundo é mais duro nos seus julgamentos para com as Miss Pennifolds do
que os Mr. Albrightons, só posso concordar. Não obstante, há rumores acerca de ambas as vossas
histórias e perspetivas futuras. As dela são da pior espécie, enquanto as tuas são as melhores. Isso conta
para a diferença, imagino.
Jonathan podia perguntar por que razão Summerhays albergava melhores perspetivas para ele, mas não
tinha de o fazer. Castleford devia ter cometido alguma indiscrição relativamente ao plano para se
encontrar com Thornridge.
Nesse momento, as senhoras entraram na biblioteca. Tinham posto as toucas e envergavam as peliças.
Jonathan levantou-se para as cumprimentar, juntamente com o anfitrião.
– O sol brilha no terraço e eu disse ao cozinheiro para nos trazerem chá – anunciou Lady Sebastian. –
Os cavalheiros desejariam acompanhar-nos?
As atenções de Jonathan viraram-se para Lady Sebastian, mas também observou Celia. Esta virou a sua
atenção para a biblioteca, apreciando o seu tamanho. No momento em que Sebastian aceitava o convite
da esposa, o olhar de Celia passava pelos livros que estavam no sítio onde ele e Sebastian se tinham
sentado.
Ele sentiu um estado de alerta percorrê-la. Quando se encaminhavam para o terraço, ele estava certo de
que ela havia reparado que o livro vizinho ao cadeirão dele versava heráldica.

***
Jonathan saiu nessa noite, como habitualmente fazia. Pela primeira vez Celia perguntou-se onde iria.
Percebeu que no passado nunca se sentira assim tão curiosa em relação a ele.
A seguir ao jantar sentou-se no quarto, para tentar escrever a Daphne, mas foi distraída com os
diversos acontecimentos do dia. A informação de Audrianna era a mais perturbadora. As memórias da
mãe de Sebastian, dos boatos sociais de há mais de vinte anos, não podiam ser desconsideradas. A
mulher podia ser uma provação para o filho e a esposa dele, mas ninguém podia duvidar do seu saber em
tais assuntos.
Tê-lo-ia feito, Alessandra? Recolher indiscrições dos homens importantes que procuravam os seus
favores, e passá-las ao seu amante francês? Ou a outra pessoa, outro homem? Se sim, tê-lo-ia feito por
amor, ou por dinheiro? Talvez houvesse uma razão muito boa que não constasse dos livros de contas.
Celia ponderou longamente o assunto, muito mais do que o necessário, sabia. Aceitou finalmente que
estava a evitar outras memórias do dia. Em particular, não queria pensar naquele livro de heráldica que
Jonathan consultava na biblioteca de Summerhays.
Ele não precisava de identificar os brasões coloridos da pasta da mãe. Ela fornecera-lhe aqueles
nomes. Ele poderia estar a confirmar a exatidão das identidades, claro, antes de fazer o que quer que
fizesse quando investigava. Ela desejou conseguir acreditar naquilo. Queria muito fazê-lo.
Dirigiu-se à escrivaninha e abriu a pasta. As aguarelas ainda se encontravam por cima dos outros
desenhos. Procurou os brasões que não estavam pintados, e começou a virá-los. Talvez houvesse algo
neles que pudesse ser-lhe útil para a ajudar. Perguntou-se o que poderia ser.
Observou os escudos e os listeis a passar, e os números alinhar-se quando compôs o monte que
mostrava os versos das folhas.
No fundo da pilha, ao terminar, reparou numa coisa que a fez sentir um aperto no coração. Os últimos
cinco tinham todos números de há cinco anos. Estavam juntos, agora, mas ela tinha a certeza de que de
manhã não estavam.
Aqueles brasões não tinham nada a ver com a questão da sua paternidade. Eram demasiado recentes.
Jonathan, porém, interessara-se por eles. Tanto que os separara. Teria usado a biblioteca de Summerhays
para investigar a que homens pertenciam?
As implicações daquilo começaram a apresentar-se. Uma dor surpreendente atravessou-lhe o coração.
Uma boa dose de humilhação acompanhou a dor. Ela escudou-se na raiva, o que não anulou a desilusão.
Fora estúpido pensar que existia alguma paixão livre das contabilidades que marcavam as vidas e os
corações das mulheres. Fora ingénua em acreditar que nada tinha a perder com aquele caso.
Provavelmente partilhava uma longa história com Jonathan, desde a primeira a noite em que o vira
naquela casa, ainda que não o tivesse percebido. Estava na altura de descobrir de que história se tratava.

Jonathan entrou na casa pelo jardim, como sempre fazia. Não se viam luzes, da rua, quando ele olhou
para a casa, a caminho das cavalariças.
Foi recebido pelo silêncio. Não era apenas o silêncio de uma casa que se recolhera mas um silêncio
mais quieto e mais penetrante. Parou no primeiro patamar das escadas das traseiras e pôs-se à escuta.
Normalmente havia sinais de vida no quarto de Celia. Naquela noite, porém, nem sequer uma tábua do
soalho rangia.
Ficara tempo de mais com Castleford. A condescendência do duque era acompanhada de exigências,
especialmente para homens como Jonathan Albrighton. Naquela noite Castleford parecia determinado a
envolver o convidado nos seus excessos. Fora necessária uma dose considerável de tato para escapar ao
deboche que fora planeado.
No quarto, acendeu uma vela e tirou o casaco, sempre a pensar no duque e nas suas mulheres, e na
estranheza daquela amizade renovada. Talvez Castleford tivesse concluído que, já que ele e Jonathan
Albrighton estavam destinados ao inferno, seria menos solitário dirigirem-se juntos para lá.
Desapertou a gravata e tirou-a. Quando o fez, o ar do quarto movimentou-se. Imediatamente alerta,
olhou para a porta.
Viu Celia, com um círio na mão. Tinha o cabelo louro solto e escovado, descendo-lhe em ondas suaves
pelos ombros e o peito. Ainda estava vestida com as roupas do dia, porém, e o brilho dos seus olhos não
era de expectativa.
Sentiu a raiva, e a desilusão, e uma emoção tão contundente que lhe deu a volta às entranhas. Ela
fechou a porta, ensaiando uma atitude casual. Ele soube naquele instante, porém, que aquela noite não
acabaria como as outras.
Ela apagou a chama do círio e foi tragada pelas sombras. Depois, a luz da vela dele e da janela
encontraram-na e ela passou novamente a ser, como sempre fora para ele, um oásis de luz dourada num
deserto de escuridão.
Ela dirigiu-se para a escrivaninha dele, cheia de pilhas de revistas e papéis. Espreitou alguns títulos. –
Tens interesses intelectuais variados, Jonathan. Não me surpreende. Embora as descobertas sobre
compostos químicos me pareçam algo obscuras. Por outro lado, talvez algumas delas tenham aplicações
práticas que possam interessar-te. Como venenos, por exemplo.
Então seria assim, aquela noite. Não podia censurá-la realmente, se ficara a saber de algo que o
indiciasse, bem como à vida que levara. Mas não tinha de gostar daquilo.
– Nunca usei veneno – afirmou.
– Ouvi dizer que não é de confiar, por isso provavelmente é sensato da tua parte. – Espreitou mais
algumas revistas. – Nada sobre heráldica. Julguei que fosse uma das tuas fascinações.
Ele procurou-a, para acabar com aquilo. Para a sossegar, ou para distrair, não sabia bem qual dos dois.
Ela levantou uma mão para travar o abraço e paralisou-o também com o olhar.
– Devia ter voltado aqui há muito tempo – disse, examinando o quarto e os artefactos da vida dele. –
Não devia ter permitido que permanecesses um mistério.
– Já não sou nenhum mistério para ti, e tu sabes disso.
– Antes gostara que o não fosses, talvez. – Nem a raiva conseguia endurecer a doçura do seu rosto, mas
trazia uma boa dose dentro dela, era bem evidente. – Julguei que estivesses de visita a Londres por um
curto período. Julguei que estivesses aqui entre missões ou investigações. Vejo agora que fui estúpida em
presumir isso.
Ele podia admiti-lo, ou podia mentir. Ou podia não dizer nada. A última opção era a sua escolha
habitual quando lhe faziam perguntas diretas sobre as suas atividades. Fê-lo novamente.
A fúria assomou ao olhar dela. – Vais insultar-me, recusando-te a falar? Vais ignorar as minhas
perguntas como se eu fosse uma meretriz que namoriscaste e que esperas ver desaparecer quando o
pagamento for feito?
– Não te insultei. Tu não fizeste nenhuma pergunta. Estás revoltada, mas eu não sei porquê. – Mas
sabia. A sensação de perda iminente dizia-lhe que sim. Espantava-o o quão vazia lhe parecia aquela
verdade, e o quanto ela queria crescer para o esvaziar a ele.
– Não sabes? – Ela aproximou-se dele e fitou o seu rosto. Examinou-o tão atentamente que se pensaria
que nunca o vira assim de perto. – Soube por Audrianna que houve rumores acerca da minha mãe, há
muitos anos. Sobre ela e um amante francês, e sobre a lealdade dela. Sabias disto?
– Sim. São apenas rumores. Nada mais.
– Os rumores são o bastante neste mundo. – Ela sondou os olhos dele, como se tivesse de se esforçar
para ver o que quer que fosse. – Jonathan, estás aqui por causa de uma missão? Estás a investigar a minha
mãe? Ou a mim?
– Tu não. Nem sequer ela, na verdade. Não estou a investigar. É uma palavra errada.
– Qual é a palavra correta?
– Foi-me pedido que visse se ela deixara um registo das suas ligações. O objetivo não era prejudicar
ninguém, mas proteger inocentes.
O semblante dela endureceu. Virou-lhe o rosto, consternada. – É verdade, então. Oh, meu Deus. –
Estugou o passo até à janela e olhou o jardim lá em baixo. – A sogra de Audrianna contou-lhe acerca
destas suspeitas. Não fizeram nenhum sentido para mim, mas se tu também...
– Não há provas de nada, nenhuma razão para se pensar que seria verdade.
– E, contudo, estás aqui.
– Apenas me pediram que me certificasse de que nenhum homem era prejudicado pela associação a tais
rumores.
Ela assentiu com a cabeça mas ele perguntou-se se o teria sequer ouvido. Pareceu acalmar-se, porém.
Ele não tinha a certeza de que aquilo seria uma boa notícia.
– Não tinha a ver contigo, Celia – tentou. – Deveria ser uma missão menor, para evitar embaraços a
homens que eram discretos e que, por sua vez, esperavam discrição. Ela proporcionou essa discrição
enquanto foi viva. Eu deveria certificar-me de que continuava a ser assim.
– Claro que tinha a ver comigo. – Olhou para ele por cima do ombro, soltando a raiva. – Estás aqui,
não estás? Estavas nesta casa naquela noite e ficaste para poderes fazer o que te foi solicitado, e
enganaste-me para alcançar o teu objetivo. Tens o que querias, os nomes dos que foram seus patronos ao
longo dos anos. Diria até que fizeste uma lista a partir dos desenhos. – Desviou o olhar. – Uma vez que a
tua missão está terminada, poderás partir, agora.
Ela ficou quieta, então, com as costas viradas para ele e o rosto para a janela, transformando-se numa
estátua de pedra.
– Se é o teu desejo, partirei. – Eram palavras duras de serem ditas. Ele quase se engasgou ao dizê-las.
Queria, sim, argumentar com ela, mas sabia que seria inútil fazê-lo.
Ela nem sequer respondeu.
Ele tornou a vestir o casaco e pegou em alguns objetos pessoais que estavam na mesa. Podia vir buscar
o resto mais tarde.
– Ela deu-te mesmo este quarto, Jonathan? Nunca cheguei a ver o documento.
– Deu, mas não há documento.
Por fim, ela voltou-se e olhou para ele. Ele aguardou, ao pé da porta, acalentando a esperança de que
ela dissesse mais alguma coisa, mas sabendo que, se o fizesse, não seria o que ele queria realmente
ouvir.
– O que aconteceu há cinco anos? – inquiriu ela. – Mostraste um interesse particular pelos desenhos
dessa altura, e pelos homens que identificavam.
Ele visualizou-se a acabar de consultar a capa naquela tarde. Fora descuidado e deixara os brasões
mais interessantes todos juntos. Celia reparara, quando a maior parte das pessoas não o faria.
– É um assunto pessoal – respondeu ele. – Um assunto privado, relacionado com uma das minhas
últimas missões que ocorreram durante a guerra.
– No entanto, pareceu-te que estes brasões poderiam ajudar-te com esse assunto pessoal – prosseguiu
ela. – O significa que no teu entender os rumores acerca da minha mãe poderão ser verdade.
Ela olhou-o longa e duramente. Já não parecia irritada. O quarto perdeu a atmosfera fria e hostil.
– É alguma coisa, pelo menos – disse ela. – A parte do assunto pessoal, privado. Faz mais sentido para
mim e de alguma forma tem menos de traição calculada, apesar das implicações das conclusões que tiras
acerca dos rumores.
Ele abriu a porta. Ela ficou com uma expressão triste, mas não disse nada. Ele veio na direção dela,
sentindo o coração apertar-se a cada passo que dava.
Pegou no rosto dela e olhou-o à luz do luar. Memorizou o toque da pele dela nas suas mãos e a maneira
como a sua simples presença iluminava o espaço.
– Lamento ter-te desiludido, querida. – Beijou-a e deixou que o breve contacto lhe marcasse a alma.
Depois foi-se embora, sabendo que ela não voltaria a falar-lhe.
CAPÍTULO 19

– P areces um condenado, Albrighton. Acorda, e o meu homem tratará de te lavar e barbear.


Jonathan abriu os olhos ao ouvir a ordem que lhe invadira um sono muito inquieto. A figura de
Castleford erguia-se acima dele. O duque estava vestido para o dia e tinha um aspeto muito diferente do
da última vez em que Jonathan o vira.
Recompondo-se um pouco, Jonathan reparou que estava estatelado num sofá do quarto de vestir do
duque. Acorreram-lhe memórias da noite anterior.
Depois de se despedir de Celia voltara àquela casa e fora levado para o aposento pelo criado.
Castleford olhara para ele e adivinhara que não fora o deboche, ainda em curso, a motivar o seu regresso.
Para sua surpresa, ordenara sumariamente à mulher que tinha na cama que saísse, vestira um roupão e
levara-o para o quarto de vestir, para uma longa conversa pontuada de muitos silêncios e bebida a mais.
Passou os dedos pelo cabelo. E gelou. – Mas que raio... – Apalpou a cabeça, tentando perceber o que
sentia e o que não sentia.
– Disse ao meu homem que o cortasse enquanto dormias – declarou Castleford. – Está muito melhor
agora. Ele fez um bom trabalho.
Jonathan olhou-o, furioso. – Isso é ir longe de mais.
– Não posso ser visto na cidade com um homem com um cabelo tão deselegante. Vais agradecer-me
assim que o vires. As mulheres vão fazer fila atrás de ti.
Jonathan deu um último toque nos caracóis curtos. A sua ira enfraqueceu, diluída no rescaldo de toda a
bebida.
– Que horas são? – perguntou, espreitando por uma janela.
– Nove horas, por aí.
Jonathan grunhiu. A garrafa de cristal sobre uma mesa próxima chamou-lhe a atenção. Tinham acabado
aquela há duas horas, se tanto. – Não dormiste de todo, pois não?
– É terça-feira, lamentavelmente, por isso, não. E se eu não durmo, tu também não. Já basta teres
interferido ontem à noite e teres-me aparecido com uma cara de funeral.
– Contava que, àquela altura, já tivesses terminado.
– Tento nunca terminar tão cedo. Ora bem, toca a levantar. Não deixo homem nenhum refastelado nos
meus aposentos, quando eu não posso fazê-lo.
– É impróprio da tua parte expulsares-me assim, e ainda mais impróprio teres-me cortado o cabelo sem
eu me aperceber. Pensei que os duques tinham melhores maneiras. – Sentou-se, surpreendido com a
sensação de tontura. E pelo regresso, recuperada a consciência, daquele vazio angustiante nas entranhas.
Castleford desceu o olhar, depois sentou-se e estudou-o. Ocorreu a Jonathan que devia levar a mal ou
temer aquele exame, mas estava demasiado exausto para se importar.
– Saíste daqui ontem à noite completamente normal, imperscrutável e duvidoso, como é habitual, e
regressaste tão perturbado que podia ter-te roubado a carteira aí mesmo onde estás. O que aconteceu nos
entretantos? Descobriste que na verdade és apenas um bastardo mediano e não o bastardo de um conde,
como a tua mãe te fez crer?
A questão restituiu-lhe a sobriedade mais rápido do que um balde de água fria ou um murro na cara.
Fitou Castleford, pensando em murros na cara num contexto menos metafórico.
– Ah! Então não foi isso. E preparava-me eu para dirimir o teu mau-humor, assegurando-te que a
parecença é notável. – De repente, Castleford pareceu aborrecido. – Deve ter sido uma mulher.
Expulsou-te, não foi? Provavelmente porque és, lamento dizer-te, aborrecido. – Pôs-se em pé. – Devo
tratar dos meus deveres, agora. Quando ao expulsar-te... Há pelo menos trinta quartos vazios aqui. Se
perdeste a tua cama juntamente com a mulher, podes ficar numa destas.
– É muito generoso.
– Sim, é. É o epítome do tipo de coisa que um duque generoso, magnânimo, poderia fazer. Alegra-te
por ser terça-feira.
– Fica a saber que o mais certo é eu não ficar mais animado por estar aqui. Não vou para o inferno
contigo.
Castleford sorriu, da forma que um pai sorriria a uma criança inocente. – Claro que irás, Albrighton.
Qualquer dia. Ambos vendemos as nossas almas há muito tempo.

Um pequeno abanão acordou Celia. A luz cegou-a quando abriu os olhos. Depois viu que a janela não
era a do seu quarto.
Olhou para o teto inclinado e a mesa atulhada. Um mal-estar intenso alojou-se imediatamente no fundo
do seu ventre. Devia ter adormecido a chorar.
Não fora capaz de proferir as palavras que impedissem Jonathan de partir, mas o pior dos sofrimentos
imobilizara-a depois de ele o fazer. Torturara-a permanecer naquele quarto, tão imbuído da vida e do
espírito dele, mas fora incapaz de se obrigar a sair. Por isso, entregara-se às suas emoções ali, com o
rosto enterrado na almofada cujo cheiro era o dele.
Não julgava que fosse possível sentir-se tão horrível. Mesmo depois de Anthony a desiludir, era ela
uma menina, mesmo quando aquela verdade lhe fora atirada para a cara, não ficara assim tão desolada.
Marian estava junto da cama, com uma expressão de preocupação nos olhos. Celia sentou-se e limpou
as lágrimas secas. Viu pela porta aberta que o quarto do outro lado do corredor também estava aberto.
Sons abafados vinham do seu interior, como se andasse por lá algum animal.
– A porta estava entreaberta – explicou Marian. – Não esperava encontrar-te aqui ao trazer água para
Mr. Albrighton esta manhã.
– Ele foi-se embora, Marian. Não será necessário trazer água amanhã.
Marian sentou-se ao lado dela e envolveu-a num abraço maternal. – Gostava de poder dizer alguma
coisa para te fazer sentir melhor. A verdade é que os homens são uns porcos por natureza, e não se lhes
conhece muita constância, e este não era pior nem melhor do que os outros, parece-me.
Ela pousou a cabeça no ombro de Marian. – Insulta os homens tanto quanto quiseres hoje, minha amiga.
Só não me digas que fui uma idiota. Já me sinto idiota que chegue.
Não era realmente verdade. Não se sentia assim tão idiota naquela manhã. Não da forma que se sentira
na noite anterior, aguardando os passos de Jonathan nas escadas. Agora apenas se sentia cansada,
desgastada e atordoada, invadida por uma dor muito particular.
Imaginou que aquilo fosse um verdadeiro desgosto amoroso, aquele sentimento terrível que
reverberava no vazio que sentia como uma fome crua, fazendo-a querer chorar novamente.
Ao que parecia, Celia acalentara mais ilusões românticas do que pensara relativamente a Jonathan.
Apesar da sua determinação em que acontecesse o contrário, deixara que ele tocasse mais do que o seu
corpo. Não escutara o mais importante das lições da mãe. Não conseguira controlar a paixão e o que ela
significava para si.
Contemplou os objetos pessoais dele. Em breve já lá não estariam. Um dia, ao regressar da visita a
uma amiga, encontraria o quarto tão vazio como ela se sentia agora, e ele teria saído para sempre da sua
vida.
Ela soubera que aquilo com ele seria breve. Só que não esperara que fosse tão breve. Nem que a
traição viesse manchar aquilo que haviam tido. Agora nem sequer podia entregar-se às memórias sem se
perguntar o que ele teria pensado durante o tempo todo e se todos os momentos teriam sido tingidos pela
mentira.
Os sons que chegavam do outro lado do corredor ficaram mais altos. Ela olhou naquela direção.
– Bella está lá dentro a limpar – explicou Marian. – Disse-lhe para mudar tudo para junto das paredes
e para dar uma boa esfregadela ao chão. Chegando o tempo mais quente, vamos arejá-lo e...
Um estrondo interrompeu-a, seguido de uma exclamação de Bella.
– Magoaste-te, Bella? – gritou Marian. – Disse-te para não tentares mudar a mobília sem a minha
ajuda.
– Estou bem – tranquilizou Bella, saindo do quarto. – Levantei uma ponta da carpete grande, para a
mudar de sítio, e isto caiu. Estava enfiada no rolo, bem lá para dentro. – Entrou no quarto com uma caixa
de madeira baixa.
Celia tirou-lha das mãos. Pousou-a na cama e abriu o trinco simples.
Lá dentro estavam pincéis, canetas e frascos de pigmentos coloridos. – É a caixa de pintura da minha
mãe. Vejam, este almofariz é para moer mais o pigmento. Estas tacinhas devem ser o que usava para
misturar a tinta.
– Vi uma na montra de uma loja uma vez – disse Bella. Até tinha uma gavetinha para o papel. –
Ajoelhou-se e espreitou a parte de trás da caixa. – Vejam, como esta. – Puxou por um canto da madeira e
abriu uma gaveta pouco profunda.
Tinha papel, de facto, várias folhas de diferentes texturas, todas mais pesadas do que o papel para
escrever. Bella tirou-as para fora, fascinada. Ao fazê-lo, revelou o que tinham por baixo.
Celia pegou num diário fino, de capa dura, como os que se vendiam nas papelarias. Abriu-o e viu filas
e filas de números na caligrafia graciosa da mãe.
– Galinha, farinha, sal – leu Marian por cima do ombro dela. Na verdade, Marian não sabia ler, mas
todas as mulheres conheciam aquelas palavras. – É o livro de contas da casa, parece.
Celia passou rapidamente os olhos pelas páginas. Não era apenas um registo daquilo que se comprava.
Também incluía o rendimento. Arqueou as sobrancelhas com alguns dos números. As atenções de
Alessandra não tinham saído baratas aos homens a quem concedia os seus favores.
Um padrão chamou-lhe a atenção. Uma despesa regular, com o seu nome ao lado. Deve ter sido o
dinheiro que ela enviava para o campo, para o seu sustento com as duas solteironas que a criaram. Todos
os débitos surgiam depois de um crédito, porém. Um montante similar entrava imediatamente antes de
sair.
Essas entradas estavam sempre acompanhadas de outro nome também, coisa que não acontecia com os
outros pagamentos que Alessandra recebera. Era um nome que ela reconhecia. Pertencia a um dos
brasões coloridos. Era o do marquês de Enderby.
Virou as páginas, mês após mês, e ano após ano, e viu o dinheiro a entrar e a sair. Não podia ser
coincidência. Tinha de ser dinheiro do pai dela e não o pagamento de favores. Ele contribuíra para a sua
subsistência quando ela era criança.
A mente dela fervilhava de excitação perante a descoberta. Tinha de dizer a Jonathan quando ele...
A sua alegria desapareceu tão rapidamente quanto surgira. A dor da noite anterior instalou-se nela
novamente. Não havia relatos a fazer a Jonathan, agora. Tão pouco lhe mostraria aquele diário, nem lhe
permitiria analisar aquele relato mais detalhado da vida da mãe.
Bella admirava os itens da caixa de pintura, pegando em cada frasquinho de pigmento seco e
segurando-o à luz da janela.
– Põe isso no sítio, vá – ralhou Marian.
– Deixa-a brincar com eles – contrapôs Celia. Fechou a tampa da caixa. – Leva-a para baixo, Bella.
Podes usar os pincéis e os pigmentos se quiseres. Eu fico com o livro, porém, para decidir o que fazer
com ele.

***

Caro Mr. Albrighton,


Foi-me dito por amigos que atualmente reside com o duque de Castleford, e confio que esta carta o
encontre aí. Certamente gozará de todos os confortos na bela casa de Sua Graça e alegro-me por
saber que deve estar satisfeito.
Quero informá-lo de que não é necessário prestar-me o favor que lhe solicitei. Encontrei a prova
que procurava no livro de contas da minha mãe, descoberto recentemente. Inclui pagamentos
regulares feitos a ela, para o meu sustento, por um dos homens que já haviam sido identificados como
possíveis pais.
Não se sinta desapontado por não ter conseguido encontrar o livro antes de mim, nem julgue que tal
não abona em favor das habilidades especiais que pretendiam que aplicasse nesta casa. Estava bem
escondido, e não contém nada que já não saiba de outras investigações que empreendeu nas últimas
semanas.
Ao que parece, a minha pequena demanda em breve estará terminada. Desejo-lhe o melhor para a
sua. Entretanto, não quer os seus bens pessoais? Se receia interferir com o meu dia, ou ter algum
encontro inesperado, saiba que me ausentarei da cidade e que não estarei em casa durante alguns
dias.
Miss Pennifold

Jonathan dobrou a carta e levou-a ao nariz. Ela não a perfumara; conseguiu sentir porém, subtilmente, o
aroma da lavanda que ela costumava usar.
Teve de sorrir, pela franqueza da carta e pelo facto de ela não ter resistido a reforçar que ele não
conseguira encontrar a prova que procurava, quando aquela estivera sempre na casa. Traíste-me, e nem
sequer fizeste um bom trabalho.
O resto da carta era menos divertido. Especialmente a parte sobre pagamentos regulares. Celia podia
presumir que serviam para a sustentar, mas também havia outras explicações.
O afastamento de Celia conferira uma nova vida às suas pequenas demandas, como ela dissera.
Dedicara-se a analisar aquilo que descobrira sobre Alessandra nas últimas semanas. Ainda estava
dividido quanto à veracidade dos rumores, mas se ela recebia pagamentos regulares de alguém,
especialmente de um antigo amante, com quem já não tinha uma ligação, não era certo que estes
servissem para sustentar uma criança nascida do amor. O homem poderia estar a comprar o silêncio de
Alessandra relativamente a quaisquer indiscrições ou até ser o agente para quem ela trabalhava.
As várias possibilidades ocupavam-no a caminho do parque. Edward escrevera-lhe para o apartado,
requisitando uma reunião. O tom impaciente da convocatória indicava que alguém, algures, se encontrava
incomodado por a missão de Jonathan não se cumprir com a rapidez pretendida.
Quando procurava o tio ao pé do reservatório, imaginou Celia a confrontar o homem que julgava agora
ser o seu pai. Fá-lo-ia, estava certo. Discretamente, talvez, o que não o tornaria mais oportuno do que
uma abordagem mais arrojada.
E se o homem não fosse pai dela, mas alguém que tivesse outras razões para efetuar pagamentos a
Alessandra ao longo dos anos, como seria, então?
Edward acenou-lhe e ele encaminhou o cavalo para lá.
– Está a pé, tio. Não o vi.
– O médico disse que devo fazer longas caminhadas todos os dias. Amarra o teu cavalo e acompanha-
me. É entediante e consome demasiado tempo.
Jonathan fez como lhe foi dito e seguiu ao seu lado. – Está doente?
– É apenas a velhice. Cobra o seu preço de dúzias de maneiras até morreres dela. – Edward mantinha
um passo firme, balançando uma bonita bengala ao ritmo da passada. – Não sei nada de ti há algum
tempo. Pareceu-me que devia averiguar o que se passa.
– Alguém está impaciente?
– Apenas estás inexplicavelmente lento. Há uma razão?
Havia uma razão muito boa. Ele evitara contar a Edward acerca dos brasões, em parte para proteger
Celia e em parte para ter tempo para descobrir o que pudesse sobre alguns dos patronos de há cinco
anos.
– Se lhe dissesse que descobri tudo e que tenho uma lista dos patronos dela, o que faria?
Edward parou de andar. Estudou o rosto de Jonathan, a sua própria expressão muito séria e grave.
– Estás na posse de uma lista assim?
– Não estou. Pergunto-me, contudo, o que farás com aquilo que eu encontrar. Descobri que esta missão
não me chegou da maneira habitual. O Ministério do Interior não o mandou ter comigo desta vez. Estou
curioso para saber quem foi.
Edward continuou a andar, mais depressa agora. Os seus olhos faiscavam por baixo da aba do chapéu.
– Quem te disse isso? Não quero nenhum idiota a interferir...
– Foi-me dito por alguém que habitualmente recebe informação correta.
– Disseste-lhe, a quem quer que tenha sido, que estavas a fazer isto? Ficaste louco?
– Não revelei nada. As minhas atividades não iludiram toda a atenção durante estes anos todos. Não
sou completamente invisível para os outros poderosos. Vejo que a minha pergunta o deixou agitado,
porém, por isso esqueçamos que a fiz.
– Maldição, eu que o diga.
Continuaram a andar e Edward acabou por conseguir controlar-se. – Queria perguntar-te a respeito da
filha – retomou.
– Chama-se Celia.
– Sim. É possível que ela tenha encontrado alguma coisa que tu não tenhas visto?
– É sempre possível, imagino. Mas é improvável. Mesmo que o tenha feito, como é que ela podia
perceber alguma coisa?
Edward ficou a remoer naquilo, de sobrolho franzido.
– Porque perguntas? – interpelou Jonathan.
– Muito subitamente, a história do passado distante de Alessandra tornou-se alvo de algum interesse
entre as senhoras de alguma idade, diz-me a minha mulher. Dir-se-ia que está em curso uma compilação
dos boatos que surgiram à volta dela. A mãe de Summerhays interrogou algumas velhas amigas que, por
sua vez, consultaram outras... Bom, é peculiar.
– Provavelmente foi apenas a sua morte recente que provocou isso. Talvez duas senhoras tenham
conversado sobre um ou outro ponto das suas memórias e procurassem averiguar qual delas estava certa.
– Não gostei, independentemente de como possa ter acontecido. – Edward trespassou-o com um olhar
ameaçador. – Conhece-la, à filha?
– Celia. Sim, conheço-a. Falei com ela como parte da minha investigação.
– É preciso que descubras se ela encontrou alguma coisa. Sê muito firme com ela. Oferece-lhe algum
dinheiro se tiver de ser. Aquele tipo de mulher responderá a dinheiro ou ameaças sem grande
dificuldade.
Aproximaram-se duas senhoras, num tête-à-tête. Jonathan deixou-as passar e a irritação que sentia
para com Edward esmoreceu.
– O que quer dizer com aquele tipo? – perguntou ele, assim que voltaram a ter privacidade.
Edward reprimiu um grunhido de impaciência. – Não estou na disposição de apaziguar as tuas
delicadas sensibilidades a respeito de mulheres destas, Jon. Não estou a falar da tua mãe. Não é a mesma
coisa. Mesmo se fosse, não interessa o que eu quis dizer. Isto é sério e tens de pensar no teu dever
primeiro e fazer os possíveis para arrancar dela o que for preciso. – Tentou um sorriso de
apaziguamento. – Tu sabes como tem de ser.
– Eu sei como tem de ser quando se trata se uma missão para Inglaterra. Estamos muito longe dos dias
em que a vulnerabilidade da costa justificava tudo, tio. Eu nem sequer sei quem me deu esta maldita
missão. Há limites para as coisas que farei para a executar, e insultar ou ameaçar ou magoar Celia
Pennifold está para além deles.
O rosto de Edward ficou vermelho. Dirigiu um olhar gélido a Jonathan. – Protestas demais, caro rapaz.
O que te é esta mulher para te pores assim tão defensivo? Seduziu-te? Seduziu, não foi?
– Não seduziu nada.
– Então seduziste-a tu. Não negues; vejo-o em ti. Talvez outros não consigam, mas não és um enigma
assim tão grande para mim. – Bateu impacientemente com a bengala no chão, num staccato veloz de
irritação. – Estás louco? Uma ligação com uma mulher dessas é...
– Não a conhece, por isso pare de se referir a ela dessa maneira. Uma mulher dessas. Esse tipo de
pessoa. Maldição, está a pôr-me...
– Não preciso de a conhecer. Pouco me importa se ela reza dia e noite. A mãe dela precede-a, ela foi
moldada para a mesma vida e homem nenhum na sociedade o esqueceu. Se tens alguma esperança de
obter o reconhecimento que procuras, acabarás imediatamente com este caso e esperarás que ninguém
tenha descorberto. Não faltava dares agora ao teu primo uma desculpa para te negar o reconhecimento.
– Diabos, ele vai fazê-lo de qualquer maneira, por isso não me venha outra vez com esse engodo.
Quero lá saber do que Thornridge vai pensar.
– Não queres, de facto? Vejo que ela te deu completamente a volta à cabeça. Bem, a mãe dela
conseguia, e sem dúvida que ela também consegue. – Pôs-se muito direito e fungou. – Para os meus
propósitos, vejo que ela te comprometeu grandemente.
– O que quer dizer com isso?
– Deixei de confiar em ti para executar esta missão. Estás dispensado. Encontrarei outro que não se
deixe desencaminhar por uma cara bonita. Os meus instintos dizem-me que ela sabe alguma coisa, e
tenciono descobrir o que é.
Edward avançou a passo resoluto, com a bengala a perfurar o chão e as costas direitas. A rigidez
militar da sua postura não anunciava nada de bom para Celia. Estava claro que o assunto não era assim
tão comezinho, como Edward dera a entender, naquele dia, na carruagem.
Jonathan foi atrás dele. – Ouça-me, tio. Que não lhe escape uma palavra do que eu disser, e que não
duvide da minha determinação. Não estamos em guerra e os atos desses anos não têm qualquer
justificação se forem cometidos agora. Nem por si, nem pelo homem que o instruiu, seja ele quem for. Se
enviar outro homem e ele fizer alguma coisa para maltratar, incomodar ou mesmo insultar Celia
Pennifold, eu certificar-me-ei de que ele paga por isso. Ela está sob a minha proteção, em todos os
sentidos.
Edward ficou a olhar para ele, espantado. – Não te atreverias.
– Atrever-me-ia sim. E acabando com ele, tio, tratarei de si a seguir.
Jonathan deixou Edward boquiaberto a olhar para si e regressou ao cavalo com passadas enérgicas.
Meia hora depois visitou Lady Sebastian Summerhays, para ver se ela sabia para onde Celia fora.
CAPÍTULO 20

A mansão intimidava-a. Alta, escura e vasta, com uma via de acesso que demorou ao seu cabriolé
vinte minutos para percorrer, transmitia poder e reclusão.
Celia passou as rédeas a um cavalariço e aceitou a sua ajuda para descer. A carruagem afastou-se,
deixando-a de frente para o edifício monstruoso. O seu coração batia demasiado rápido e uma excitação
aterrorizante paralisou-a. Forçou o pânico a recuar e abeirou-se da porta.
Um criado levou o seu cartão. Ela aguardou numa câmara pequena e bonita, que ficava próximo do
átrio de entrada, durante um bom bocado; tempo suficiente para contar os ladrilhos do chão e reparar que
as plantas dessa extremidade do caminho de acesso à casa, visíveis da janela pequena, precisavam de
mais cuidados.
O criado regressou, por fim, para transmitir que lamentava, mas o marquês de Enderby não se
encontrava em casa nesse dia.
– Prevê que regresse em breve?
– Não temos qualquer previsão.
– Estou disposta a aguardar. Não se trata de uma visita social.
– É desaconselhado que espere.
Por outras palavras, Enderby estava em casa, mas escolhera não a receber. Normalmente, não seria de
surpreender. Contudo, ela tinha a certeza de que ele sabia do parentesco entre eles. Ele sabia que se
recusava a receber a própria filha.
Sentou-se numa cadeira. – Por favor diga ao marquês que vim de longe. Não estou inclinada a sair até
me encontrar com ele a respeito de um assunto da maior importância para ambos.
O criado pareceu desconcertado. Não estava acostumado a pessoas que não obedeciam às regras.
Depois de alguma agitação, lá foi.
Regressou um quarto de hora depois, acompanhado de outro homem. Ela sabia o que aquilo queria
dizer. – Ele disse-lhe para me expulsar?
Um teve a decência de corar. – Estamos aqui para a escoltar à saída.
Era a mesma coisa. Ela sentiu-se tentada a fazê-los usar a força física. No entanto, visto não haver
público, ninguém para pensar mal do marquês, não pareceu valer o drama.
Fieis à sua palavra e às suas ordens, acompanharam-na à porta, atravessando-a, até ao pórtico e
descendo os degraus. Um deles fez sinal ao cavalariço para a conduzir à carruagem.
Ela percorreu a fachada com o olhar. Encontrar-se-ia ele lá em cima a observar? Um olhar sobranceiro
para a filha bastarda que ousara solicitar uma conversa? Devia haver uma lei que obrigasse a que ele a
recebesse. Homem nenhum devia poder gerar um filho e nem sequer o olhar nos olhos uma vez na vida.
Ele contava que ela partisse agora, reconhecendo o seu lugar, aceitando o repúdio. Isso é que era bom.
– Diga ao moço para ficar com a carruagem. Não preciso dela já de seguida.
Voltou para os degraus, subiu três, depois sentou-se no de cima. Olhou para os céus ameaçadores e
aconchegou a capa contra si.
– Diga ao marquês que não sairei daqui até ele me conceder uma audiência rápida. Cinco minutos é
tudo o que peço dele, nada mais, agora ou depois. Se ele me receber desta vez, não voltarei a ensombrar-
lhe a porta até ao dia da minha morte. Até ele o fazer, contudo, não sairei daqui.

Quando se instalou o crepúsculo, Celia chegava à conclusão de que não gostava muito do pai. Qualquer
esperança infantil que trouxera para aquela viagem fora anulada pelo frio que lhe congelava as nádegas,
na pedra onde estava sentada.
Como se o próprio céu procurasse puni-la pela sua insolência, começou a chover, então. Ela abriu a
sombrinha, para a água que pingava do pórtico não a encharcar.
Os cavalariços abrigaram-se. Ela ficou ali sentada, sozinha, desanimada. O que lhe dissera Jonathan,
naquela noite, sobre a vez em que a mãe fizera aquilo? Que eles tinham ficado sentados à frente da porta
durante dias. Celia não esperara realmente que o pai lhe fizesse aquilo também.
Mais além, no caminho de acesso à casa, as sombras mexeram-se. Ela semicerrou os olhos para ver se
era um animal. Pelo menos seria uma distração.
Afinal, avistou um cavalo. Um animal alto e branco conduzido por um homem. Aproximou-se, e ela
percebeu quem era. Quis gritar, pelo alívio e pela dor cortante dos estilhaços de um coração partido que
ainda não recuperara.
Jonathan aproximou o cavalo do pórtico e olhou-a. Não parecia importar-se minimamente com a lama,
nem sequer notar a chuva miúda que lhe escorria pelo chapéu e o sobretudo. Tinha um aspeto magnífico,
havia que o admitir. O frio e a humidade e os outros elementos da Natureza eram coisa pouca para
homens como ele.
– Há quanto tempo estás aqui, Celia? O dia inteiro?
– Cheguei logo a seguir ao meio-dia.
Ele desmontou. – Graças a Deus. Receei que tivesses começado ontem.
– Aluguei um quarto numa estalagem ontem à noite, para começar cedo hoje. Como me encontraste?
Limitaste-te a adivinhar qual deles era o meu pai?
– Fui ver Lady Sebastian, que disse que tinhas ido visitar Mrs. Joyes. Quando cheguei à Flores
Preciosas, disseram-me que tinhas vindo para aqui.
– Se Daphne te disso, devo tê-la preocupado.
– Ela pareceu aliviada quando soube que eu te seguiria. – Pousou uma bota no degrau, ao lado dela, e
inclinou-se. – Ele não vai receber-te Celia. Nem hoje à noite, nem amanhã, nem no dia seguinte. Anda
comigo.
Ela abanou a cabeça. – Se eu desistir agora, nunca o fará. Terá de ceder, se eu ficar, tal como
Thornridge fez com a tua mãe. Amanhã, se ele tiver um mínimo de decência, irá... – A voz falhou-lhe.
Cerrou os dentes, procurando recompor-se.
A noite caía depressa, agora. Jonathan deu-lhe o lenço, depois tirou o sobretudo. – Levanta-te.
Ela ergueu-se, bamboleante, nas pernas dormentes. – Cortaste o cabelo. Gosto.
– Uma vez que gostas, talvez eu também venha a gostar. – Um manto de lã cinzenta flutuou num arco
largo, vindo pousar sobre os seus ombros, por cima da capa. Ele enrolou-a no sobretudo e prendeu-o,
para vasculhar depois um saco de pele que trazia atado à sela. Regressou ao degrau com um pedaço de
papel e sentou-se ao lado dela.
Virando-se para fazer do degrau secretária, pôs-se a escrever. Dobrou o papel e dirigiu-se à porta.
Um criado abriu-a.
– Por favor entregue isto ao marquês. Diga-lhe que é de um agente que trabalha para o Ministério do
Interior.
Regressou e sentou-se novamente ao lado dela.
– O que escreveste? – perguntou ela.
– Disse-lhe que tens provas de que ele fez pagamentos regulares a Alessandra Northrope durante a
guerra, e que, se não tiverem sido para o propósito que tu julgas, eu devo presumir que foram para outro
propósito e seria obrigado a reportá-lo aos meus superiores.
– Talvez ele nunca tenha ouvido os rumores acerca da minha mãe. Então a tua nota não fará sentido.
– Estou a contar que um marquês ouça tudo o que é digno de nota.
Apesar das lágrimas, ela riu-se. – Jonathan, tu ameaçaste-o. Foi muito mau da tua parte.
– Muito mau. – Ele pegou na sombrinha, abriu-a e segurou-a para ela ficar protegida. – Não finjas que
não sabias que eu era capaz.
Ela pegou na outra mão dele. – Obrigada por tentares ajudar-me.
– Pode demorar um bocado, mas deve fazer com que aquela porta se abra.
Demorou um bom bocado, tanto que ela até duvidou se iria funcionar. Ficaram ali sentados,
silenciosos, na companhia um do outro, com a última discussão a quilómetros de distância e como
assunto para outra altura. Ela sentiu-se extraordinariamente reconfortada pela presença dele e recuperou
alguma da sua própria força, na intimidade que os envolvia aos dois.
A porta acabou por se abrir novamente. Jonathan pôs-se em pé e ajudou-a a levantar-se.
– Miss Pennifold, o marquês irá recebê-la – anunciou o criado.
Ela virou-se para Jonathan. – Estou com um aspeto horrível?
Ele tirou-lhe o sobretudo dos ombros. – Não poderias estar com um aspeto horrível, Celia. Estás
sempre linda.
Ela tentou compor a saia molhada. – Ele vai estar irritado, não vai? Porque fui eu que forcei isto. Por
causa do que tu escreveste.
– Ele vai estar muito irritado. Não leves muito a peito o que ele te disser.
– Vou tentar não o fazer. Vou... – Humedeceu os lábios. – De repente, fiquei morta de medo.
– Vai correr tudo bem. Eu espero por ti aqui. – Sorriu, tranquilizador, e acompanhou-a à porta.
Então, subitamente, ela viu-se de novo lá dentro, sozinha.

***
O criado conduziu-a para o interior da casa, para um pequeno aposento, próximo das escadas das
traseiras. Ela passou o caminho todo a pingar nos marfins e nas madeiras do chão.
Lá a deixou, numa saleta com uma mobília muito simples. Esperara melhor de um marquês, e daquela
casa.
Um grande armário, encostado a uma parede, tinha uma porta ligeiramente aberta. Espreitou. Foi
brindada por reflexos metálicos. Então, compreendeu a mobília. Não era uma divisão usada pela família
de um nobre. Era a copa do mordomo, onde se guardavam e contavam as pratas.
Aquilo magoou-a, mais do que pensara poder ainda ser possível naquela aventura miserável. Também
teve vontade de rir, porém. Não era necessário lembrar-lhe do seu lugar daquela forma. Afinal, só se
encontrava ali porque ficara cinco horas sentada num degrau de pedra.
Ele deixou-a novamente à espera. Não lhe trouxeram nada para beber. Nenhum líquido quente para a
aquecer. Nenhum criado veio acender o lume.
O objetivo, adivinhava, era enfatizar que ele havia sido forçado a aceitar aquele encontro e que ela não
o merecia. Provavelmente devia sentir-se amedrontada, ou insultada, ou triste. No entanto, ela tinha era
de se esforçar para conter uma excitação crescente.
Quando ele chegasse, quando estivessem cara a cara, nada daquilo iria importar. Seguramente que um
progenitor não podia ser cruel para a sua própria filha quando se encontrassem. Quando ele a visse, na
privacidade de um lugar onde mais ninguém poderia observá-los, alegrar-se-ia por ela ter vindo.
Apesar dos esforços que fazia para a controlar, a expectativa intensificou-se quando a porta finalmente
se abriu. Ela susteve a respiração ao ver um homem chegar. Ele encarou-a, mal entrando na saleta.
Ele não era o que ela havia imaginado aqueles anos todos quando pensava no pai. Mostrou-se mais
baixo do que o homem das suas fantasias, e algo pesado. Tinha o cabelo quase branco mas ela adivinhou
que, anos antes, teria sido como o dela.
Reparou sobretudo nos olhos dele naquele primeiro olhar. Mostravam a raiva que esperava, e uma boa
dose de impaciência e desdém. Ela não se importou, porque lhe pareciam muito familiares. Eram os
mesmos olhos que via ao espelho.
O coração dela encheu-se de alegria e de uma outra emoção tão angustiada que a sua compostura
vacilou. Ansiava por lhe tocar, nem que fosse só o contacto físico da manga do casaco. Talvez ele a
procurasse, também, como sempre esperara, e se abraçassem, e a raiva dele desaparecesse quando a
emoção paternal a mergulhasse num sentimento melhor.
Ele tirou um relógio de bolso e olhou-o, carrancudo. – Tem cinco minutos, Miss Pennifold. O que
deseja?
– Nada, apenas conhecê-lo.
– Deve pensar que sou um idiota se espera que acredite nisso. Eu sei quem é. Conheço bem o seu
nome. – Um tremor alterou-lhe momentaneamente a expressão. – Deu-me a palavra dela de que nunca lhe
falaria de mim. Fazia parte do acordo. Como se atreve a vir a esta casa?
– Ela nunca mo disse. Foi fiel à sua palavra. Eu descobri coisas nos papéis dela que me trouxeram até
si.
– Ela escreveu isto? – A ideia deixou-o perplexo. – Foi-me garantido que não. Foi-me dito que ela não
deixara nada que me implicasse.
– Não o fez, da maneira que teme. Eu vi os pagamentos no livro de contas. Estava escondido, e o
homem que enviou para revistar a casa dela nunca o teria encontrado.
Ele não negou ter contratado alguém para o fazer. – O livro mostra pagamentos meus entre os de muitos
outros, presumo. – Riu-se. O som era ríspido, zangado. – Quantos é que ela extorquiu com a ameaça de
escândalo? Eu tinha acabado de casar com uma mulher que amava ou nunca teria concordado em pagar o
dinheiro com que ela se armava em grande cortesã. Ela disse que o filho era meu, mas provavelmente
disse a mesma coisa a uma dúzia de homens e também lhes extorquiu dinheiro. Com uma mulher
daquelas, nunca se pode saber a verdade, não é assim? Diabos, eu continuo a não saber, mesmo se for no
seu interesse julgar que sim.
– Eu não julgo apenas que sim. Agora, tenho a certeza. – Avançou um pouco mais para ele. – O seu
espelho está tão distorcido que não consiga reconhecer a semelhança?
Durante o mínimo instante o olhar reconheceu-o, contrafeito, depois recuperou a frieza. – Só vejo a
filha bastarda de uma meretriz que encontrou forma de me extorquir dinheiro muito depois de os favores
terminarem. Nada mais.
Cada palavra e insinuação, cada careta de nojo, foram para Celia como uma bofetada. Sentiu o
comedimento abandoná-la a cada insulto.
– Já que não espero vê-lo mais, pai, devo alertá-lo para os seus erros agora, enquanto posso. Se ela
sabia que era meu pai, deve querer dizer que não houve mais nenhum patrono durante as poucas semanas
que o caso durou. Presumo que lho tenha exigido, e Alessandra era uma mulher honesta. Quanto aos seus
pagamentos, destinaram-se à minha subsistência. Cada tostão. A contabilidade dela mostra a entrada e a
saída do dinheiro.
– Se o diz.
– Se Alessandra Northrope quisesse extorquir-lhe dinheiro teria pedido muito mais do que a soma
miserável que recebia de si duas vezes por ano depois de o caso terminar.
Ele olhou-a, desconfiado. – Pensa que ela devia ter pedido mais, não é? Veio tentar obtê-lo para si,
agora?
– Vejo que herdei a minha inteligência de Alessandra e não de si, senhor. Não teria de o visitar para
pedir dinheiro, nem de me sujeitar ao seu desprezo a ponto de o ameaçar de escândalo para o conseguir.
Vim para, uma vez na vida, olhar o rosto do meu pai e ouvi-lo dirigir-se a mim. Vim para saber a
verdade sobre a minha ascendência, ainda que o senhor alegue que não sabe.
Ele não suavizou nem um bocadinho. O esgar de raiva não lhe desapareceu do rosto. – De facto, não
sei. Não tenho mão nas fantasias que fez na sua cabeça e nem quero saber delas. Não vejo nada de mim
em si, alivia-me dizer. E agora, a audiência terminou. Não se atreva a tentar repetir isto. Não se aproxime
de mim nem da minha família, nem espalhe boatos. Se o fizer, usarei a influência da minha posição para
me certificar de que a sua vida ficará muito desconfortável e que será incriminada como chantagista.
O repúdio foi o seu comunicado final. Saiu pela porta, cinco minutos depois de ter entrado.
Mal ele partiu, a indignação dela também desapareceu. Então, nada mais restou a não ser a dor da
desilusão e humilhação.

O barulho da porta arrancou Jonathan aos seus pensamentos. A maior parte deles centrara-se em Celia
e no tempo que passava, o que, esperava, indicaria que o encontro decorria melhor do que ele se atrevera
a esperar.
Celia saiu e a porta fechou-se atrás dela, tapando a luz que provinha do interior. Ali ficou, uma forma
escura, imóvel, tão silenciosa e parada que os seus instintos ficaram alerta.
Estendeu a mão para ela. Ela pareceu não a ver. Ele aproximou-se e, colocando-lhe o braço por cima
dos ombros, afastou-a do pórtico. Nesse momento, a carruagem dela contornava a casa.
Ele ajudou-a a entrar e prendeu o cavalo à parte de trás. A seguir, sentou-se ao lado dela e pegou nas
rédeas.
– Quero ir para casa – sussurrou ela, num tom tão categórico e distante que o arrepiou.
– Londres é demasiado longe, Celia. Vou levar-te para uma estalagem e...
– Londres não. Para casa.
Devia referir-se à casa de Mrs. Joyes, que ficava perto de Cumberworth. – São pelo menos quatro
horas, talvez mais, com o tempo. Estás com frio e...
– Por favor Jonathan. Ali há pessoas que me amam e que nunca me desprezaram como este homem
acaba de fazer.
Eu também não. Não o disse. Não importava agora, nem ela acreditaria. Ela deixara que ele a ajudasse
hoje, mas isso não significava que tinha esquecido a sua traição.
– Se apanhares uma febre, vou arrepender-me disto.
– Se apanhar uma febre, será por ter ficado sentada naquela pedra e será culpa dele, não tua. – A sua
voz era apática. – Pelo menos estarei em casa. E não suporto a ideia de ficar doente numa estalagem
estranha.
Ele pôs-se em pé, tirou o sobretudo e enrolou-o novamente à volta dela. Pelo menos a chuva estava a
parar. Com alguma sorte, as nuvens dissipar-se-iam, dando passagem a algum luar.
Pegou novamente nas rédeas e deu início ao que prometia ser uma viagem longa e amarga. Celia
permanecia tensa e silenciosa ao seu lado, tão infeliz com os seus pensamentos que ele duvidou que ela
reparasse no que quer que fosse.

Mrs. Joyes entrou na biblioteca onde Jonathan secava à lareira o corpo encharcado. Não a vira desde
que ela atendera às pancadas na porta, uma hora antes. Depois de entregar Celia às mulheres da casa,
Jonathan abrigara os cavalos e tratara deles, regressando depois à casa, onde acendera um fogo.
Ela olhou para a cadeira dele e para a mesa próxima. – Fico aliviada por Katherine finalmente lhe ter
dado atenção, Mr. Albrighton. Sei que me perdoará por não lhe ter dado as boas-vindas adequadamente.
– Estou mais confortável do que esperava, dadas as circunstâncias. – Ergueu um copo do brandy que
uma mulher jovem, calada e de cabelo escuro, chamada Katherine, encontrara num armário baixo. – Miss
Pennifold já está mais recomposta?
Mrs. Joyes sentou-se perto dele e, para sua surpresa, tirou outro copo do tabuleiro e serviu-se também
de um dedo de brandy. O seu cabelo, claro e comprido, caía-lhe sobre o roupão azul e o rosto, de uma
beleza distinta, mostrava pouca emoção.
– Ela não está de todo recomposta. Receei que a doença a tivesse dominado, mas não está quente e não
se notam tremores. Se tem alguma aflição, acho que é do espírito. Expressou grande alívio por estar aqui
e, contudo...
Ele aguardou que ela terminasse, se quisesse. Parecia procurar os seus pensamentos, formar uma
opinião.
– Não me parece que ela tenha encontrado o conforto que procurava – disse. – A minha companhia
seguramente não a arrancou à melancolia.
– Talvez depois de dormir se sinta melhor.
– Talvez, ou não. A Celia sempre viveu uma vida de poucas ilusões, repare. Eu diria que não
albergava nenhuma. Parece, porém, que afinal havia uma.
– Quer dizer que receia que ela tenha pouca prática em ultrapassar a desilusão, e possa não saber lidar
com esta?
– Que bem que coloca em palavras a preocupação que me ocupa o coração.
Era preciso estudar atentamente os olhos daquela mulher para ver qualquer preocupação. Estava lá,
porém. Pareceu-lhe que a postura serena era uma máscara. Talvez ela a tirasse para Celia, e para as
outras mulheres da casa.
– Ela sofreu mais desilusões do que julga. No passado, e talvez recentemente. Magoa-me que sofra
mais esta, mas acredito que a ultrapassará.
– Conhece-a melhor do que eu a esse respeito, parece. As suas palavras tranquilizam-me,
especialmente porque, acredito, experimentou algo semelhante na sua própria vida, e sabe daquilo que
fala.
Ele não esperara aquilo. Não sabia onde aquela mulher queria chegar com a conversa, mas suspeitava
que não queria acompanhá-la na viagem. – Experimentei, e tê-la-ia poupado a isso se pudesse. Tal como
a senhora, tenho a certeza. – Pousou o copo. – Agora tenho de procurar uma estalagem. Farei uma visita
amanhã, se o permitir, para ver como ela se encontra.
Mrs. Joyes examinou-o atentamente, enquanto os seus dedos esguios e longos faziam rodar o copo de
cristal que segurava com ambas as mãos. Pôs-se em pé e voltou a colocar o copo no tabuleiro.
– Já passa muito da meia-noite, Mr. Albrighton. Permita-me disponibilizar-lhe um quarto aqui e poupar
o estalajadeiro a ser acordado a esta hora. Por favor não recuse. Não é transtorno nenhum e é o mínimo
que podemos fazer depois de ter cuidado tão atenciosamente da nossa querida Celia.
CAPÍTULO 21

A familiaridade da sua antiga cama reconfortou-a. Também o quarto no qual passara cinco anos. Nada
mudara desde a sua partida. Talvez Daphne acreditasse que ela regressaria.
Não podia culpar a casa nem as suas ocupantes, se chegar ali não lhe proporcionara o refúgio que ela
esperara. A casa não tinha mudado, nem as mulheres que lá se encontravam.
Ela, porém, mudara. Devia ser essa a razão pela qual o regresso a casa não lhe proporcionara o
bálsamo de que necessitava. Ali fora apenas uma criança, mau grado os conselhos práticos, experientes,
que as outras lhe reconheciam. Não vivera experiências suficientes para falar com verdadeira autoridade
dos factos do mundo. Apenas recitara as lições que aprendera de Alessandra.
Deixara de ser assim. O breve tempo que passara longe dali envelhecera-lhe a alma com algumas
lições amargas. A daquele dia fora talvez a mais dolorosa. Ela evitava reviver o sentimento de
humilhação, envolvendo a sua consciência num manto espesso e escuro.
Desejou que a fuga pelo sono chegasse, mas a consciência do quarto e dela própria, da janela e da
casa, flutuava sobre a neblina mortal na qual se encontrava. E ouviu sons no quarto ao lado do seu.
Esforçou-se por estar mais atenta. A dor que sentia voltou a ameaçá-la e ela quase recuou. Os sons
intrigavam-na, porém. Era o antigo quarto de Verity que ficava ao lado do dela. Estaria de visita?
Seguramente que Daphne lho teria dito.
Talvez até o tivesse feito. Tudo o que Daphne dissera enquanto lhe tirava aquelas roupas molhadas lhe
parecera muito distante. Fora quase como ouvir uma conversa que tivesse lugar entre duas pessoas noutra
sala.
Ficou à escuta dos sons, aliviada por estes lhe permitirem sentir normalmente, de certa forma, mas
também por lhe servirem de distração. Achava-os cada vez mais curiosos e interessantes.
Atirando as roupas para trás, arrastou os pés até à porta, abriu-a e olhou para fora. O resto da casa
estava silencioso. Não lhe chegava barulho nenhum do quarto de Daphne, do outro lado, nem daquele que
Katherine usava, mais ao fundo do corredor.
Abriu a porta do quarto de Verity. Olhou lá para dentro. Sentiu uma onda de alívio tão profunda que o
seu espírito lhe doeu ao tentar contê-la.
Jonathan estava ao lavatório, de tronco nu, limpando o corpo da estrada e da chuva. Pareceu-lhe tão
belo agora como naquela manhã, logo a seguir à sua mudança para Wells Street; forte e esguio e, pese
embora toda a intimidade, ainda misterioso o suficiente para provocar um sobressalto no coração. Ela
aprendera que aquele mistério nem sempre escondia coisas boas, mas naquela noite não queria pensar em
nada daquilo. Apenas notava que a presença dele a reconfortava de tantas maneiras diferentes nesse
preciso momento e fazia reviver a Celia que era jovem e sensual e não tinha medo do mundo.
Ela ficou a vê-lo secar-se. Sentia a excitação insinuar-se no seu corpo, trazendo-lhe alegria.
Ele voltou-se, molhado ainda, caracóis negros sobre a testa, e olhou para ela.
– Ouvi sons. Pensei que talvez fosse Verity que estivesse de visita – disse ela.
Os olhos enigmáticos eram como sempre haviam sido – conhecedores, demasiado atentos, oferecendo
uma intimidade irresistível que só poderia ir num sentido.
– Não pensavas que fosse Verity, Celia.
Talvez não. Talvez esperasse que o quarto estivesse a ser usado pela única outra pessoa que naquela
noite não pertencia àquela casa.
– Ouviste-me abrir a porta, Jonathan? Pensei que estivesses treinado a prestar sempre atenção a essas
coisas.
– Eu ouvi-te. Estava à espera que decidisses se ias ficar.
Ela não tinha decidido, mas devia saber, não devia? Ele influenciou a decisão a seu favor ao permitir
que o observasse. Ainda o fazia, ali de pé, meio nu, o corpo esculpido pela luz das chamas. A memória
daqueles braços vigorosos à sua volta, abraçando-a, apoiando-a, conduzindo-a, fez descer arrepios de
desejo até às suas partes mais íntimas. Não só pelo prazer, mas também pela segurança e o conforto que
experimentava com ele.
Aguardava-a apenas uma dor paralisante se regressasse à sua cama. Preferia de longe a vitalidade que
voltara a animá-la naquele quarto. Havia ainda muito por resolver entre eles, mas adivinhava que ele
compreendia algo do que ela sentia agora, de formas que Daphne nunca compreenderia.
– Ficarei esta noite, parece-me – declarou, avançando para a cama e subindo.
Ele tirou o resto das roupas e juntou-se a ela. Chamou-a para o seu abraço e para o conforto do seu
corpo.
– Não choraste, pois não? – perguntou. – No caminho para cá não choraste e desde então também não,
parece-me.
– Lágrimas não mudarão nada. É o que é.
– Talvez fosse melhor. Não é nada promissor começarmos a aceitar a dor sem a chorar.
Ela achou o conselho ao mesmo tempo estranho e talvez sábio. Talvez com o tempo aquela reação
paralisante se tornasse atrativa porque protegia a pessoa da dor. Talvez deixasse vestígios que se
acumulavam com o tempo até se ter dificuldade em sentir o que quer que fosse.
– Choras quando sofres, Jonathan? – Ela não conseguia imaginá-lo.
– Os homens não choram tanto quando sofrem. Embebedam-se. Ou procuram uma luta para dar ou
receber pancada.
– Então não me podes dar conselhos. Se consegues ultrapassar desilusões sem chorar, porque havia de
ser diferente para mim?
– Porque não tens experiência em emborrachar-te nem em andar ao murro?
Ela teve de se rir. Foi estranho extrair aquilo do vazio que a habitava.
Ele beijou-a na cabeça. – Chorei pela última vez há cinco anos. Estava na costa e um acidente numa
missão matou um rapaz que me guiava. Nessa altura, eu estava tão habituado aos riscos que mal pensava
neles. Vira morte suficiente para ela mal me tocar. Mas aquele rapaz... Foi como um choque, o efeito que
teve em mim. Como se penetrasse numa alma revestida de ferro.
– Deve ter sido horrível.
– A morte dele foi. A minha resposta, porém... Embaraça-me confessar que a saboreei, Celia, porque
significara que ainda não estava empedernido. Naquele momento, senti-me completa e inequivocamente
vivo, como há tempo de mais não me sentia.
Ela ergueu o rosto para o dele. – É este o assunto pessoal de há cinco anos que te levou a estudar os
brasões?
Um dos olhos dele abriu-se e fitou-a. – És muito inteligente, ou então sou muito imprudente contigo.
Ela voltou a aninhar-se. – Não direi a ninguém. Na verdade, não sei de nada, pois não?
Não recebeu qualquer resposta. Em vez disso, ele verificou que os lençóis lhe tapavam bem a costas e
os ombros. – Agora devias dormir. O dia foi longo e duro para ti.
– Não me atrevo. Daphne pode encontrar-nos juntos de manhã e não vai reagir bem.
– Ninguém vai entrar neste quarto de manhã, Celia. Ninguém vai encontrar-nos juntos. Daphne vê mais
do que julgas, com aqueles olhos cor de cinza. Acho que me pôs neste quarto esperando que a minha
amizade pudesse ajudar-te a reencontrar-te contigo própria, depois da dela ter falhado.
Ela planeara aquilo? Possivelmente. Daphne tinha o dom de compreender os corações humanos.
Celia não adormeceu logo, porém. A suave estimulação da sua pele contra a de Jonathan incitava uma
agitação surda no seu sangue, por um lado. A confidência e o conselho dele ocupavam-lhe a mente, por
outro. Quanto mais pensava naquilo, mais aquilo a perturbava.
– Jonathan, estás a dormir? – sussurrou.
– Mmm.
– Jonathan, o que sentiste quando o rapaz morreu... Nunca voltaste a senti-lo? Não voltaste a sentir-te
inequivocamente vivo? – Aquilo parecia-lhe muito triste.
Ele suspirou. – Eu tencionava ser uma torre de renúncia contigo hoje, por várias razões. No entanto, já
que te recusas a dormir...
Virou-a e deitou-a de costas, posicionando o seu corpo de forma a que os seus quadris encaixassem nas
coxas abertas dela.
A cabeça dela esvaziou-se então dos pensamentos acerca do conselho que ele deu e das revelações que
fez. Sentiu a intimidade à sua volta e dentro dela e o clarão do prazer iluminou-lhe o espírito.
Ele beijou-a com doçura, com cuidado, como se procurasse fragilidades desconhecidas. Conduziu-a à
paixão lentamente e o prazer surgiu como uma brisa fresca e suave.
Depois de entrar nela não se moveu logo mas, preenchendo-a, começou por a beijar lentamente nos
lábios e no pescoço,
– Sim é a resposta à tua última pergunta – disse, roçando os lábios nos dela. – Já me senti
inequivocamente vivo desde essa noite na costa. A primeira vez que te beijei, e a primeira vez que te
tive. Agora mesmo, e todas as outras vezes que vivemos isto juntos. Estes casos têm sempre uma história,
disseste, e esta é a minha. – Beijou-a com mais firmeza, como se quisesse dela mais do que a sua boca.
Começou a mexer-se dentro dela. – Não desistirei facilmente, Celia.
Ela não estava em condições de lhe pedir que o fizesse. O cuidado que ele demonstrava fazia aquele
prazer tocar-lhe o coração. Até a conclusão foi suave e pungente, numa libertação mútua que reconciliou
a sua paixão, ainda que não houvessem resolvido as razões da discussão. O prazer e a excitação existiam
no seu mundo próprio, assim parecia, ou então a necessidade que ela sentia dele dominava-a mais do que
ela adivinhara.

Acordou sentindo o sol, mais animada do que no dia anterior. A mágoa e a humilhação transformaram-
se numa dor entorpecida, suportável. Daphne comentou como era bom vê-la recuperada.
Depois do pequeno-almoço Jonathan atrelou a égua de Celia à frente do cabriolé e o seu macho atrás, e
regressaram a Londres e à casa dela. Marian não disse uma palavra quando Jonathan entrou pela porta do
jardim depois de levar os cavalos ao estábulo. Ficou a vê-lo subir as escadas até ao seu quarto do sótão.
– A visita ao campo foi agradável, não foi? – perguntou, quando ele subiu.
– Em parte. A outra parte, nem tanto.
– Dizem que o ar do campo é benéfico para o sangue. Revigorante, dizem. Parece ter-te feito bem.
– Sinto-me muito revigorada.
– Diria que Mr. Albrighton também parece revigorado, se queres saber.
– Parece, não parece?
Bella ergueu os olhos das pedras da lareira, que esfregava, confusa. – A mim não me pareceu mais
saudável.
Bella não sabia por que razão Jonathan partira ou por quanto tempo, por isso o seu regresso parecera-
lhe normal.
Marian contemplou a expressão de perplexidade de Bella e suspirou novamente. – Não é mais
saudável, Bella. Revigorado. Assim, satisfeito e relaxado. – Abanou a cabeça e encaminhou-se para a
sala da frente, de espanador na mão. – É espantoso como há pessoas neste mundo que não conseguem ver
o que têm mesmo à frente do nariz. Às vezes deixas-me preocupada, Bella. A sério que sim.

– Disseram-me que prestaste um grande serviço a Miss Pennifold. – A observação casual de


Hawkeswell veio do nada. Não tinha absolutamente nada a ver com as conversas que decorriam na
biblioteca de Castleford.
Acabou eficazmente com todas as outras, contudo. Dois outros pares de olhos se juntaram aos de
Hawkeswell, fitando Jonathan.
Os velhos amigos podiam ser um verdadeiro incómodo, às vezes. – Um grande serviço é um exagero.
Ofereci uma pequena ajuda. Só isso.
– A acreditar na minha mulher, provavelmente salvaste-a de morrer de febre.
Um brilho de curiosidade dançou por trás de dois olhos brilhantes. – Salvaste uma mulher? Fazes jus
ao teu sangue. O seu nome também me é familiar. Eu conheço-a? – Castleford franziu a testa, ponderando
o assunto.
Passara pela biblioteca e vira os outros por acaso. Sendo sexta-feira, Summerhays e Hawkeswell
tinham ido visitar o hóspede do duque, não o próprio duque, mas ele entrara, de qualquer forma, apesar
de completamente bêbado e meio despido.
Para piorar uma situação social já complicada, Jonathan já não era realmente hóspede do duque. Viera
informar Castleford disso mesmo e agradecer-lhe a sua generosidade, mas através do tipo de
coincidência que só o inferno poderia congeminar, contudo, os cartões de Summerhays e de Hawkeswell
haviam chegado antes de ele conseguir fazê-lo.
O que os juntara aos quatro naquela biblioteca, numa tarde em que Jonathan precisava de fazer uma
coisa completamente diferente.
– Apenas me certifiquei de que regressava em segurança à casa perto de Cumberworth. A tagarelice
das senhoras fez do assunto mais do que é.
– Pennifold. Pennifold... – murmurava Castleford, no esforço de se lembrar.
– Dizem que o regresso aconteceu ao nascer do dia. Não te invejo o facto de teres de dormir naquela
estalagem de Cumberworth, ainda que fosse por apenas algumas horas – declarou Hawkeswell. – O
Summerhays e eu ficámos lá presos uma noite, e era rústica de mais para mim. Mas os percevejos
gostam.
Summerhays fez um sorriso matreiro. – Tanto quanto sei, ele não dormiu em nenhuma estalagem.
– Não? É verdade? Foi-te permitida a entrada na área de clausura do convento?
A atenção de Castleford foi despertada. – Convento? Descobriste um bom bordel campestre e não me
disseste, Albrighton?
Fez-se silêncio. Olharam todos para ele. Castleford sorriu em resposta, alheado.
Hawkeswell semicerrou eloquentemente os olhos azuis. – Ele refere-se à Flores Preciosas, Castleford.
A casa onde a minha mulher viveu durante dois anos, e onde a de Summerhays também viveu durante
algum tempo.
– Ah, estavas a usar a palavra metaforicamente, mas não da outra maneira. As minhas desculpas,
apesar de o meu equívoco não ser desprovido de sentido. – Devias ter mais cuidado.
Summerhays fitou os olhos ainda faiscantes de Hawkeswell.
– Castleford, não devias estar nos teus aposentos? Quem quer que lá esteja deve estar impaciente por
receber a tua atenção.
– Não está lá ninguém. Quem esteve saiu há horas.
– Então não devias estar a descansar para as atividades desta noite?
– Tu podes ter de descansar antes destas coisas, Summerhays. Eu estou sempre em perfeita forma. – Os
olhos de Castleford pareceram procurar algo que não estava lá enquanto a sua mente trabalhava. – Eu não
fui já a esse lugar, à Flores Preciosas? Julgo que me lembro, vagamente... – Os olhos abriram-se. –
Agora me lembro. Permitiram que dormisses lá, Albrighton? Diacho, a mim nem sequer me deixaram
entrar.
– Deixaram-no porque ele ajudou e protegeu um dos seus membros, enquanto tu irias apenas seduzi-las
e abandoná-las a todas se te fosse dada a oportunidade – replicou Hawkeswell numa voz arrastada. – E
depois, dois dos homens que estão aqui sentados neste momento pagariam caro com a sua felicidade
doméstica.
– O amor tornou-te quase insuportável, Hawkeswell. Além disso, não sabemos de facto se Albrighton
não seduziu pelo menos uma delas enquanto lá esteve. Não sei porque partem do princípio de que eu
seria um patife enquanto ele seria um santo.
– Mas não és?
Jonathan limitou-se a olhar para Castleford. Castleford devolveu o olhar, inocentemente.
– Não estou a dizer que tenhas seduzido alguma delas, claro – explicou Castleford. – Apenas realço
que eles – indicou os outros dois – não sabem de facto se o fizeste ou não.
– Claro que não – afirmou Hawkeswell. – Ele não ia pôr a cabeça de dois amigos nas guilhotinas das
suas esposas por se aproveitar indevidamente de uma das amigas delas. Além do mais, Mrs. Joyes, a
dona da casa, tem uma pistola, que está morta por usar em circunstâncias como estas. Ele teve a
diligência de ajudar Miss Pennifold quando a sua pequena demanda correu mal e nós teríamos ficado a
saber da pior maneira se ele se tivesse portado de forma imprópria.
– Pennifold. Novamente. Porque é que este nome me lembra alguma coisa? – resmungou Castleford.
Summerhays desviou ostensivamente a conversa para uma conferência que iria ter lugar na Sociedade
Real de Londres, mas Jonathan suspeitava que Summerhays reparara que o único homem que podia saber
a verdade não negara realmente a sedução.
As duas visitas despediram-se pouco depois. Summerhays ofereceu-se para proporcionar o acesso de
Jonathan à conferência e Hawkeswell disse que a esposa estaria recetiva a convidá-lo para jantar.
Depois de eles saírem, Jonathan sentou-se, para também ele se despedir da pessoa que restava na
biblioteca.
Exprimiu o seu apreço pela hospitalidade do duque e explicou que agora tinha aposentos para os quais
iria mudar-se.
E, de súbito, Castleford não lhe pareceu assim tão bêbado. O olhar que pousou em Jonathan mostrava
uma inteligência astuta.
– Acabo de me lembrar onde ouvi esse nome. Meteste-te com a filha daquela Northrope?
– Travei conhecimento com ela, obviamente.
– Julgo que esse conhecimento talvez seja aprofundado, se andas a fazer de cavaleiro andante com a
dama que se encontra em apuros. Julgo que foi ela quem te expulsou. Se isso te deixou sem cama... –
Olhou para a porta. – Os nossos grandes amigos vão irritar-se quando descobrirem. Hawkeswell dá-te
uma sova de meia-noite se a mulher ficar minimamente perturbada com isto.
– Então talvez não devas comunicar-lhe as tuas suspeitas infundadas e não comprovadas.
– Vou tentar, mas ele irrita-me e seria um prazer esfregar-lhe no nariz o quão errado ele está. – Pôs-se
em pé. – Pelo menos agora sei porque te tens armado dessa virtuosidade monótona. Aproveita o que quer
que seja enquanto podes, já que não pode durar muito.
– Isso não é necessariamente verdade.
– Com as tuas ambições, é definitivamente verdade. Tenho a certeza de que ela o sabe, e serás poupado
a uma cena. A mãe dela deve ter-lhe ensinado isso, juntamente com o resto. – Bocejou, espreguiçou-se e
encaminhou-se para a porta, presumivelmente para descansar, por fim, antes dos jogos noturnos que se
seguiriam.
Parou antes de sair. – Por falar nas tuas ambições, Thornridge virá brevemente à cidade. A liderança
do partido conservador requer a sua presença em algumas reuniões na próxima semana. Não conseguirá
evitar-me depois de lá estar, por isso arregaça as mangas para a batalha, seja ela qual for, que pensas
travar.
CAPÍTULO 22

– A manhã já vai alta. Tenho de me levantar – disse Celia entre risos.


Jonathan ignorou-a e continuou a depositar-lhe beijos como cócegas na curva do flanco.
– Porque tens de te levantar? Hoje chegam carroças de plantas? – perguntou ele por fim, sem falhar
nenhum pedacinho no seu esforço.
– Só na terça-feira.
– Então podes ficar o tempo que quiseres.
– É demasiado decadente, Jonathan. Bella e Marian estão levantadas há horas.
– As duas vão compreender, especialmente quando, muito em breve, te ouvirem gemer.
Provavelmente compreenderiam. Já não havia qualquer fingimento a respeito do que se passava
naquela casa. Marian até fazia piadas indecentes acerca do assunto. Era uma das coisas que haviam
mudado com o regresso de Jonathan.
– Terá de esperar por esta noite. – Atirou os cobertores para trás. – Tenho assuntos a tratar.
– Que assuntos? – Beijava-lhe o seio agora. A mão dele na coxa dela retinha-a.
– Eu não me limito a guardar plantas. Também preciso de encontrar vendedores para as flores de verão
que teremos. Preferia não ter de ficar num mercado a apregoá-las por mim própria, por isso preciso de
encontrar um homem que fique com o grosso da mercadoria. – A mão dele desceu-lhe da anca para o sítio
onde podia fazer-lhe maldades. Ela aproveitou a oportunidade para fugir.
Ele agarrou-lhe o tornozelo antes de ela escapar completamente. Ela olhou para trás, equilibrando-se
num pé.
– Volta – incitou ele, com um sorriso devastador. – Tu sabes que queres.
De facto queria, mas mal tinham deixado a cama nos três dias que se seguiram ao regresso de
Cumberworth, e havia coisas que ela precisava de fazer.
– Hoje à noite, prometo.
– Prometes o quê?
Ela riu-se e tentou libertar o tornozelo. – Tudo o que quiseres. Agora, preciso de ir lavar-me e vestir-
me.
Ele deixou-a. Ela atravessou o quarto e abriu a porta. Dois baldes de água aguardavam do outro lado.
Ora, aquilo era novidade. Não podia censurar Marian. Porquê carregar o de Jonathan até ao sótão,
quando ele acordava precisamente ali? Ainda assim, aqueles dois baldes simbolizavam coisas que iam
além da inconveniência prática.
Mergulhou os dedos, depois levou ambos para o lavatório. – Está quente. Deves usá-la agora, se fores
sensato.
Ele sentou-se na beira da cama. – É conveniente.
– Não é mesmo? Podes barbear-te quando subires.
– Tu primeiro. A água fria não me incomoda. – Ele pôs-se em pé e aproximou-se. Remexeu nos panos e
cheirou o sabonete dela.
Ela deitou água no lavatório. – Vou dizer a Marian para não fazer isto no futuro. Não sei no que ela
estava a pensar. É uma tolice teres de esperar.
– Eu não me importo. Julgo que será fascinante ver enquanto te lavas. – Colocou-se por trás dela e
pegou no sabonete. – Posso até ajudar.
– Não me parece... – Mas ele já humedecia o pano, com os braços à volta dela. Com carícias
lânguidas, humedeceu-lhe os braços, espremendo depois o pano e lançando-lhe gotas de água nos ombros
e no peito que lhe escorreram em pequenos fios pelas curvas do corpo.
Ele pegou no sabonete. – É divertido. Nunca lavei uma mulher antes.
– Estás a molhar o chão todo.
– Terei mais cuidado. – A voz e a respiração dele fizeram-lhe cócegas na orelha quando ele voltou a
abraçá-la para ensaboar as mãos. – O que eu quiser, hoje à noite? – As carícias subiam e desciam-lhe
pelos braços.
– Foi o que eu disse. – A voz falhou-lhe um pouco, devido à diversão que a lavagem provocava.
Ombros, agora, e costas e traseiro e... – Ela sobressaltou-se e olhou para ele por cima do ombro. – Estás
a ser muito minucioso.
– Não quero prestar-te um mau serviço. – Limpou novamente. Um tremor maravilhoso distribuiu-se por
cada parte dela. Deliberadamente, agora, ele tocou para a excitar, e o facto de estar de pé tornou as
sensações incrivelmente intensas. Ele aproximou-se mais, então, e posicionou a sua ereção entre as coxas
dela e contra o seu calor.
Ela teve de se encostar a ele para se apoiar. O seu corpo pulsava selvaticamente em redor da pressão e
ela mal conseguia respirar. Ele ensaboou novamente as mãos e acariciou-lhe lentamente o tronco e por
fim os seios.
Com o queixo contra a cabeça dela, deixou que as mãos se movimentassem sobre eles em círculos
voluptuosos. Ela mordeu o lábio, para não soltar um gemido, mas estava dentro dela, tão alto que a rua
inteira ouviria se lhe escapasse.
– Aquilo que eu quiser. Deixa-me pensar. – Ele torturava e brincava e ela contorcia-se contra a firmeza
dele. – Quero-te num daqueles vestidos de cetim. Deves estar já na cama quando eu chegar. Com
almofadas. Montes de almofadas. Quero-te já excitada quando chegar. Como estás agora.
Ela fechou os olhos e viu o que ele descrevia, e viu-se a ela própria aguardando em erótica
expectativa. Os dedos dele apertaram-lhe ligeiramente os mamilos, espalhando o prazer por todo o seu
corpo.
– E depois?
– É o que eu quiser, como disseste. – Afastou-se dela, então. Completamente.
Ela agarrou-se à beira do lavatório para se equilibrar. – Não vais deixar-me aqui assim!
– Pensei que tinhas coisas para fazer hoje.
– Jonathan.
Ele riu-se. Enlaçou-lhe o corpo com o braço. Os pés dela deixaram o chão e sentiu-se aterrar na cama.
Ele posicionou-se em cima dela e penetrou-a vigorosamente.
Levantou-lhe a perna e entrou novamente, mais fundo. Tremores maravilhosos despertaram em resposta
àquela força. Ela dobrou os joelhos até ao peito para poder ser ainda mais profundo, mais repleto, mais
completo. Erguendo-se acima dela em braços firmes, inclinando o rosto grave para ver o efeito que
provocava nela, ele retirou-se lentamente e entrou com força, numa união que a deixou arquejante,
frenética, erguendo as ancas de impaciência.
Selvagem, agora, a força e potência do movimento desencadeava prazeres que ela não conseguia
controlar. Os tremores espalharam-se numa onda veloz de perfeita sensação. Não terminou ali, repetindo-
se uma vez e outra, em ecos perfeitos de plenitude que faziam o seu corpo gritar repetidamente. Durou
para sempre, pareceu-lhe. Por fim, o tremor dele chegou tão fisicamente que abanou a cama.
Ele desabou em cima dela com um suspiro gemido. Ela abraçou-o tanto quanto conseguiu, partilhando
tudo o que pôde. Deixou a alma sentir aquela felicidade e não se importou que fosse imprudente permitir-
se amá-lo como fazia naquele momento.
***
– Planeia demorar-se todos os dias até quase ao meio-dia? – Marian pousou o prato à frente de
Jonathan, depois cruzou os braços. – Preciso de saber, para não estar a lavar as panelas se é para voltar a
fazer pequeno-almoço tão tarde.
Ele tentou parecer pesaroso. Celia, que tratava de algumas plantas ao pé do jardim, olhou para ele.
– Conto não descer assim tão tarde na maior parte dos dias. As minhas desculpas, se perturbei o
funcionamento da casa.
– Oh, já perturbou sobremaneira o funcionamento desta casa, Mr. Albrighton. Vindo o tempo bom, de
abrir as janelas, não tarda está a perturbar a rua inteira.
Marian regressou à cozinha. Jonathan terminou de comer e aproximou-se de Celia, que cortava folhas
esmaecidas de uma planta de folha larga.
Abraçou-a por trás enquanto ela trabalhava. – Perturbei não só o teu dia mas também o funcionamento
da casa. Foi mau da minha parte.
– Muito mau. Nem se vai ficar por aqui. Espera até Bella contar a Marian a confusão que fizemos com
a água. Pode não haver panos suficientes nesta casa para limpar tudo.
Houve bastante mais banho e carícias e brincadeiras com sabonete além daquele primeiro serviço que
ele lhe fizera. O ruidoso clímax fora um início, não um fim.
Ele moldou o calor do corpo dela contra si e sentiu novamente os afagos suaves do pano com que ela o
secara há menos de uma hora. Viu a sua nuca dourada descer, e a mente e o corpo dele conheceram
novamente o prazer insuportável que ela criara com a boca.
A memória fê-lo enrigicer uma vez mais de encontro a ela. Ela voltou o rosto para ele lhe ver o perfil.
– Estava convencida de que já te chegava – provocou.
Não chegava. Nunca chegava. Ele notou um subtil alheamento nela, porém, como se, mau grado a
intimidade do abraço, a mente dela ponderasse outras coisas.
Como a sua própria faria, quando ele o permitisse. Acabaria por ter de o fazer. Sentia-se satisfeito pela
alegria da manhã, porém, e pela desculpa para adiar tudo aquilo.
Libertou-a. – Vais a Mayfair para essas coisas de que tens de tratar? Levo-te no cabriolé, e amarro o
meu cavalo.
– Acho que vou esperar até amanhã para tratar disso e cuidar antes de assuntos da casa que são mais
próximos daqui. – Esticou-se e deu-lhe umas palmadinhas no rosto. – De qualquer maneira, ainda não te
barbeaste. Se quero fazer alguma coisa hoje, tenho de sair mais depressa do que tu.
Ele beijou-a e subiu as escadas para se barbear e acabar de se vestir, mas parou e olhou para Celia
antes de a escada o engolir. Apesar dos sorrisos luminosos e dos olhares íntimos, ela deixara alguma
daquela alegria jovial no quarto. Agora, ao podar a planta, olhava-a como se contivesse as respostas
para as questões da vida.

Celia parou a carruagem diante de um prédio de tijolo, na City. Perto da porta principal estava um
rapaz, que se ofereceu para levar o cavalo a passear enquanto ela estivesse ocupada. Ela deu-lhe algumas
moedas e dirigiu-se à porta, enquanto a carruagem se afastava.
Tirou uma carta da bolsa. Esperava-a quando descera do quarto de manhã. Chegara com o correio
matinal e ficara pela casa aguardando a altura de arruinar um dia que começara gloriosamente.
Entrou no edifício e procurou os escritórios de Mr. Harold Watson, advogado.
Mr. Watson solicitara-lhe que se apresentasse nos seus escritórios à uma hora. Já era uma e meia.
Esperava que já fosse tarde de mais. Não se importaria de ter alguns dias para se preparar para aquilo,
embora duvidasse que houvesse forma de o fazer.
O que sucederia era inevitável. Jonathan certificara-se de que o seria quando a seduzira, não era
assim? E ela permitira, mau grado o drama para tomar a grande decisão. Agora, em vez de uma vida de
segurança, teria as memórias de uma paixão maravilhosa que não lhe daria nada a ganhar, vivida durante
algumas semanas quando era jovem.
Dali a dez anos, o que pensaria da troca que fizera, e do que daí resultara? Que lhe perdoara facilmente
de mais a desilusão que ele lhe causara, para desfrutar daquele poder e da excitação? Que o prazer
assumira o comando ao ponto de ela se esquecer de ser sensata? Quando estava com ele evitava pensar
na despedida inevitável para isso não arruinar a alegria, mas não era estúpida ao ponto de o esquecer
realmente.
Um empregado encaminhou-a para o gabinete particular de Mr. Watson. Ali permaneceu,
desconcertada, sentindo a porta fechar-se atrás dela. Mal ouviu o cumprimento de Mr. Watson, que era
um homem franzino e baixo, com cabelo a pender para o grisalho e uma barba fora de moda. O convidado
que estava com ele captou toda a sua atenção.
– Não disse na sua carta que Mr. Dargent se encontraria aqui, Mr. Watson.
– Aconselhei-o a estar presente, Miss Pennifold. Como advogado dele, é meu dever tentar obter uma
solução amigável para a divergência quanto à propriedade.
– Não há divergência nenhuma – interveio Anthony, impaciente. – Não paro de lhe dizer isso mesmo.
Viu os papéis, Watson. Sabe que a minha a alegação é sólida.
– Mr. Watson está a tentar poupar-te ao escândalo de tornar conhecido o conteúdo completo do
contrato, Anthony. Não é verdade, Mr. Watson?
O expressivo inclinar de cabeça de Mr. Watson foi mais reação do que expressão de acordo. – É minha
experiência que, se duas partes de uma disputa falarem, o processo pode ser evitado.
– Eu não preciso do raio de um processo – fez saber Anthony. – Preciso do raio de um oficial de
justiça para cobrar o raio de uma dívida.
O acesso de raiva deixou o pobre Mr. Watson consternado. Parecia confuso quanto ao que fazer, agora
que a sua sensata estratégia tinha corrido tão mal.
– Deixe-nos – rosnou-lhe Anthony. Mr. Watson obedeceu com agrado.
– Pobre homem – comentou Celia, assim que se viu a sós com Anthony. – Foi bem-intencionado.
Contaste-lhe tudo, Anthony? Imagino que não. E, mesmo assim, ele percebeu o suficiente para querer
poupar-te ao embaraço.
O queixo de Anthony contraía-se. Os seus olhos queimavam. Era a imagem de um homem com o
controlo por um fio. – Uma semana, disseste. Uma semana e dizias-me. E não me chegou nada.
– Nesse ponto estive mal. No entanto, seguramente que, ao veres que não te chegava nada, a resposta
deve ter sido óbvia. Se eu tivesse aceitado a tua proposta, dificilmente guardaria segredo. As contas das
modistas já teriam começado a entrar.
Ele começou a andar pelo escritório num acesso de irritação. – Estás a ser precipitada, e estúpida.
– Não, Anthony, estou a ser honesta, tanto comigo como contigo. Podia ficar com o teu dinheiro e com
aquela bela casa. Podia representar o papel que tu idealizas de um grande, ainda que infame, caso de
amor. Seria uma mentira, contudo, porque já não te amo. Talvez te tenha amado, mas hoje em dia não.
– Estás a castigar-me; é isso. Por não me casar contigo. Por não ir contra tudo o que era esperado de
mim e abdicar de tudo por ti.
– Não te censuro por isso. Eu sei que tinha de ser assim. – Como ainda tinha de ser. A curiosa dor que
sentia no coração e o aperto na garganta não tinham nada a ver com Anthony. Conseguiu controlar as
emoções. Haveria tempo para aquilo quando chegasse a altura.
– Há uma coisa que devo dizer-te, Anthony. Explicará talvez o que quero dizer quanto ao não te mentir.
Pensas recomeçar de onde terminámos, há cinco anos. É impossível. Tens feito perguntas sobre minha
inocência com indecoroso interesse desde que nos reencontrámos. Fica a saber que já não ta posso dar,
por não ser já minha.
Ele ficou a olhar para ela. Ela sentiu alguma pena dele, mas o seu espanto não abonava a favor da sua
inteligência. Afinal, Anthony não pudera casar-se com ela, supostamente por ela ser daquele tipo de
mulher. Estava agora surpreendido por ela ser, de facto, aquele tipo de mulher?
O choque deu lugar à raiva. Um tipo muito especial de raiva. A de um homem ciumento, tanto mais por
não conhecer sequer o nome do rival.
Virou-lhe as costas abruptamente.
– Devemos despedir-nos como velhos amigos, Anthony, não dois personagens de uma ópera cómica
má.
Ele recusou-se a virar-se para ela. – Não temos de nos separar. Recusaste a minha proteção, o que
aceitarei, se tem de ser. Desperdiçaste a tua inocência com um idiota qualquer, quando eu teria tomado
conta de ti a vida inteira; mas é algo que não pode ser desfeito. Se tenho de me contentar com menos,
engulo o meu orgulho e faço-o. Diz-me apenas o que esperas por isso.
Céus, ele perguntava-lhe como comprar os seus favores, ainda que de forma menos exclusiva. Queria
saber como se juntar à fila.
– Não haverá nada, Anthony. Lamento se não fui clara em relação a isso.
Ele ficou um bom bocado sem se mexer. Depois dirigiu-se abruptamente para a porta e chamou Mr.
Watson.
– Vai enviar ao executor testamentário de Mrs. Northrope uma reclamação de crédito sobre aquela
propriedade – instruiu. – Espero receber um inventário do seu conteúdo no prazo de uma semana.

– Olá tio. – Edward assustou-se tanto que Jonathan viu o seu corpo sobressaltar-se. Depois o tio virou
o tronco todo para trás e olhou por cima do sofá da biblioteca para as portas do jardim, onde Jonathan se
encontrava.
– Mas que...? – Que andas a fazer, a entrar assim à socapa pelo jardim?
Jonathan aproximou-se e olhou para baixo. O rosto carrancudo de Edward vacilou. Lançou um olhar às
janelas e à porta, e ao sino que se encontrava à beira da lareira e que era usado para chamar os criados.
– Queria vê-lo, num encontro muito privado – declarou Jonathan. – Parece-me que está na altura de
termos uma conversa honesta acerca desta estranha missão que me deu, e sobre a tal lista que procurava.
– Tem-la?
– Tenho.
Edward esticou o braço. Jonathan contornou o sofá e sentou-se numa poltrona.
– Não a tenho dessa maneira. Vi-a. Sei os nomes. Sei as datas. – Levou os dedos à testa, para indicar a
sua localização. – Não tem a forma de uma lista normal ou de uma relação, e duvido muito de que alguém
reparasse sequer no que via se por acaso a encontrasse.
– A filha sabe?
– É Celia, tio. Miss Pennifold, para si. Agradecia que retivesse finalmente o seu nome.
– A tua Miss Pennifold sabe da lista?
– Não. Não sabe de nada. – Mentiu sem hesitação. Já o fizera tantas vezes na vida, e aquela mentira
tinha uma razão de ser tão boa como qualquer outra.
Edward descontraiu visivelmente. Olhou para Jonathan, à procura de algo. À espera.
– Aqueles rumores sobre Mrs. Northrope... Alguma vez se suspeitou que o marquês de Enderby fizesse
parte do esquema dela?
O rosto de Edward desfigurou-se com o choque. – O Enderby? Que autêntico disparate.
– Porquê? Havia alguns pares enamorados de Napoleão. Impressionados pela imponência imperial,
suponho. Ele podia ser um deles.
– Enderby? Estás louco? Tira imediatamente essa ideia da cabeça. Não te quero a difamá-lo por causa
de uma teoria que congeminaste a partir do nada.
– Eu nunca congemino a partir do nada. Ensinou-me a fazer melhor do que isso. Sabe que se coloco
questões a respeito de Enderby, é porque tenho razão para o fazer.
– Não tens razão para colocares questões a respeito de ninguém. Nunca te disseram para descobrir por
quem a Northrope sabia os segredos, ou a quem os passava, nem sequer se os havia, para começar. Só
ficaste de me trazer a porcaria de uma lista.
– Enderby está na lista.
Edward levou as mãos ao ar, exasperado. – Como estão muitos outros, presumo. Ele não foi, estou a
dizer-te.
– Tem a certeza?
– Sim, maldição! Tenho a certeza.
Jonathan acreditou nele. Eram boas notícias. Significava que os pagamentos que Celia encontrara no
livro de contas tinham sido de facto para o seu sustento. Houvera a possibilidade de, entre aquela
admissão e as implicações a que Jonathan aludira na nota que escrevera no degrau, Enderby escolher a
mentira da paternidade em detrimento da verdade sediciosa.
Já não lhe parecia assim. Jonathan estava satisfeito por poder colocar de lado a preocupação de que,
ao confrontar Enderby, Celia pudesse ter dado a um traidor uma razão para se preocupar com o
conhecimento que ela tinha daqueles pagamentos.
– Só há uma forma de poder ter a certeza, tio. Tem de saber a verdade por detrás dos rumores. Se sabe
que Enderby não esteve envolvido, deve saber quem esteve.
– Aí enganas-te.
– Não me parece. Julgo que não terei sido contratado para proteger a reputação de muitos homens, mas
de um único. Está a fazer isto para quem? Diga-me, ou vou ao Ministério do Interior e conto-lhes tudo a
respeito desta missão, que eles não iniciaram, e dos pagamentos de Enderby a Mrs. Northrope.
– Mancharias a reputação de um homem inocente? Um homem culpado apenas de se entreter algumas
vezes com uma prostituta?
– Espero que não esteja a tentar apelar à minha consciência. Faz muito tempo que a sua voz calma não
me sussurra ao ouvido. Não me tenho sentido muito complacente em relação a Enderby nos últimos dias,
por isso não me incomodaria que isto lhe trouxesse algum desconforto.
Edward fechou os olhos. Subitamente, ficou com um ar envelhecido. Cansado. – Não é o que julgas.
Não é bem o que eu disse.
– Porque não me surpreende ouvir isso?
– Limitei-me a simplificar as coisas. Era mais complicado. Menos claro. Não precisavas de saber
tudo, e ainda não precisas.
– Insisto em saber. Ou me diz ou eu descubro por mim próprio.
Edward suspirou profundamente. Levantou-se, caminhou pensativamente até uma prateleira e tirou um
charuto de uma caixa. Acendeu-o na lareira. Cinco baforadas depois, suspirou novamente.
– Alessandra Northrope não recolhia segredos. Espalhava-os. Só que não eram corretos. Havia um
homem a espiar pela França, e passavam-lhe coisas para ela lhe dizer. Algumas eram verdadeiras, mas
sem importância real. Para o jogo não ser visto pelo que era. Algumas eram falsas, contudo; concebidas
para atirar barras de ferro para a maquinaria estratégica de França.
A revelação surpreendeu Jonathan. Experimentou uma boa dose de alívio, também. Não queria pensar
que fora cego ao ponto de não ter percebido quem Alessandra era. Também se sentia satisfeito por Celia
poder agora saber a verdade sobre a sua mãe. Podia poupá-la àquela desilusão, pelo menos.
– O nome dele não está na lista que encontraste, por isso não te ponhas curioso acerca deles todos. Ela
não era estúpida. Não teria deixado nenhum registo.
– Ele era inglês, então? Não era o antigo amante francês?
Edward ignorou a pergunta. – Não podes dizer-lhe – advertiu. – A Miss Pennifold. Não podes.
– Claro. – Fá-lo-ia, porém, e Edward que fosse para o inferno. – Morreu alguém por causa da
informação correta que era insignificante? Era um jogo perigoso.
– Ninguém morreu. Era transmitida com muito cuidado. O momento da intervenção é tudo, como sabes.
Ela passava alguma coisa ao homem, algo que lhe dizia ter ouvido de outro patrono. A informação que
ele transmitia ao contacto, quando chegava a França, já ia tarde de mais para ser útil. Dava-lhe boa
imagem, porém. Preparava terreno para quando ela mencionasse coisas incorretas que lhes causariam
grandes problemas.
– Quem trabalhava com ela?
Ele abanou a cabeça. – Escolheram um homem de confiança que não era cliente habitual, para não
levantar suspeitas sobre a manobra. Eu próprio só depois da guerra soube o que tinha sido feito. Foi
iniciado pelo Ministro do Interior e pelas forças militares. Foi ordenado ao mais alto nível e tratado com
total discrição.
Contudo, alguém trabalhara com ela. Alguém «de confiança» fornecera-lhe essa informação para ela
transmitir.
Jonathan levantou-se para sair. Não saberia mais nada através do tio Edward. De qualquer maneira,
agora tinha tudo aquilo de que necessitava. – Não precisa da lista. Tinha razão. Nenhum dos homens que
estão envolvidos nisto figuram nela.
Olhou para trás ao atravessar as portas envidraçadas que davam para o jardim. Edward tinha uma
expressão aflita e os seus olhos revelavam uma preocupação considerável.
CAPÍTULO 23

M ontes de almofadas. Celia perguntou-se se as que amontoara na cama seriam suficientes. Teriam de
servir, já que eram todas as que tinha.
O fogo aquecia o quarto. Vinho aguardava na mesa. O cetim castanho-mel acariciava-lhe o corpo. O
resto seria fácil. Ele queria-a excitada, e a expectativa já a titilava.
Aquela noite ainda a passaria ali, da melhor maneira. Aquele quarto poderia não ser o seu durante
muito mais tempo, mas por agora continuava a ser a sua casa. Independentemente do que acontecesse no
futuro, recordaria aquela casa, aquele quarto e aquela paixão.
Deitou-se na cama, entre as almofadas. A suave sensualidade acolheu o seu peso. Perguntou-se se Mr.
Watson enviaria alguém para fazer o tal inventário no dia seguinte e se Anthony só precisaria de um
oficial de justiça para a expulsar a ela e aos outros. Teria de encontrar um advogado e descobrir se
conseguia pelo menos adiar aquilo.
Os acontecimentos do dia deviam entristecê-la ou preocupá-la, mas tal não acontecia. Rejeitar Anthony
libertara algo dentro dela. Fora uma decisão, supôs. Uma decisão melhor do que aquela que tomara
inicialmente a respeito dele. Estava muito orgulhosa da forma como se comportara naquele dia.
Lamentaria perder a vida que construíra ali, mas não se arrependeria da razão pela qual o fizera.
Teria conseguido ser tão forte se não tivesse conhecido Jonathan? Se ele não a tivesse seduzido e
bloqueado aquele outro caminho? Ele provavelmente pensava que a teria encaminhado para uma vida
como a da mãe, com aquele caso. Mas ela descobrira, sim, que não queria evitar as emoções profundas
que podiam surgir naquele tipo de intimidade, mesmo se o preço final fosse muito alto.
Perguntou-se o que diria Alessandra sobre aquilo. Nada de bom.
Sons familiares no andar de baixo comunicavam que Jonathan estava de regresso à casa. Em breve,
viria ter com ela. Fechou os olhos, sentindo o corpo reagir com uma vitalidade deliciosa.
Erótica, não vulgar, Celia. Compôs o vestido de uma forma que Alessandra aprovaria.

A visita a Edward deixara Jonathan numa disposição sombria. Reviveu a conversa muitas vezes no
caminho de regresso a Wells Street. Recordou as expressões do tio e estudou-as cuidadosamente. Viu o
momento exato em que Edward compreendera que as implicações da história que contava não tinham
escapado ao sobrinho.
Jonathan presumira que nada no seu comportamento revelara os seus pensamentos, mas, vendo bem,
Edward conhecia-o melhor do que ninguém; exceto, talvez, Celia. Bem o suficiente, porventura, para
presumir simplesmente que as conclusões não proferidas seriam óbvias para o homem para o qual mais
importavam.
Entrou na casa ainda mergulhado em pensamentos. Subiu as escadas oscilando entre a fúria explosiva e
a desolação mais profunda que jamais conhecera.
No primeiro patamar olhou o corredor que conduzia ao quarto de Celia. Seria melhor não ir ter com ela
naquele estado de espírito. Foi até à porta do quarto, para apresentar uma qualquer desculpa.
Abriu-a e deparou com o tipo de ambiente convidativo e cativante que Celia tanto talento tinha para
criar. Ardia um lume baixo e algumas velas, e uma garrafa de vinho aguardava ao lado das duas poltronas
que estavam à lareira. Um dos seus xailes de malha estava pousado no braço de uma poltrona, num toque
doméstico. Pormenores femininos, como a tacinha de verdes, mostravam conforto de que ali se
desfrutava.
A cama mostrava outros confortos, e um lado diferente da sua feminilidade. Ela já se encontrava lá,
com o corpo envolto em fofos montes de almofadas. A luz refletia nas ondas do cetim que lhe delineava
as costas e se concentrava em elegantes dobras à volta da cintura. Dali para baixo estava nua, com o rabo
redondo e as pernas definidas expostos à vista.
Era a imagem mais erótica e elegante que ele alguma vez vira.
Ela apoiou-se nos braços. O movimento fez-lhe afundar as costas e subir o rabo. O seu olhar conhecia
o efeito que tinha nele.
– Montes de almofadas, como pediste. A Marian provavelmente vai queixar-se de que roubei a dela –
disse.
Ele lembrou-se, então, das brincadeiras da manhã e da exigência que fizera de cetim e almofadas.
Parecia ter sido há tanto tempo.
– És tão bonita que às vezes é doloroso olhar para ti, Celia. Estás perfeita, e eu quero-te. No entanto,
não seria uma noite acertada, depois do dia que tive.
– Aconteceu alguma coisa má? O meu dia também foi desagradável. O que faz desta noite a noite
perfeita, não achas? Esqueceremos as agruras do mundo por um bocado. – Dobrou um joelho e o pé
agitou-se no ar. – O que quisesses, lembras-te?
Ele tirou a casaca e arrancou a gravata. Bebeu do vinho, vendo-a a provocá-lo com aquele pé e aquele
olhar sensual.
O que ele quisesse. Naquele momento queria libertar alguma daquela fúria antes que o despedaçasse.
Queria enterrar-se nela até o odor e os suspiros o tornarem imune àquela estranha maleita da alma.
Queria que os gritos dela afogassem a desagradável verdade que se desenhava na sua cabeça.
Continuou a despir-se. – Almofadas e cetim e o que quer que eu quisesse. Lembraste-te do resto?
– Oh, sim, Jonathan. Não vês? Estou pronta há bastante tempo.
Ele virou-a e ajoelhou-se ao lado dela na cama. Levantou-lhe bem as ancas com as almofadas e
afastou-lhe os joelhos. Tocou-lhe e as ancas moveram-se com o choque sensual. Acariciou gentilmente a
carne delicada e húmida.
Em breve ela gemia de impaciência. – Agora – disse entre dentes.
– Ainda não. – Ele baixou-se e perdeu-se no gosto e no cheiro dela. Usou a língua até não ouvir senão
gritos e o seu próprio sangue a pulsar na cabeça. A fúria finalmente venceu-o, tornando-o implacável. Fê-
la suplicar e o prazer que retirou ao forçar nela uma necessidade desesperada, deixando-a à sua mercê,
foi grandioso.
Fê-la atingir um clímax vigoroso, violento, com movimentos descontrolados e tremores que se
transformaram em gritos. A seguir levantou-se e voltou a virá-la, para o cetim lhe escorrer pelas costas e
o rabo se erguer numa posição erótica que instigava o seu delírio. Possuiu-a ardentemente,
selvaticamente, incapaz de contenção, e, fiel à sua palavra, ela deixou-o ter tudo aquilo que quisesse.

– Vamos até ao jardim – disse Celia. – A noite estava bonita e provavelmente não faz muito frio.
– Vais apanhar uma constipação.
– Levarei a minha camisa de noite mais razoável, os botins e a capa. É mais roupa do que a maioria
das mulheres leva à noite para o teatro.
Ele levantou-se da cama e pegou na roupa.
Ela pegou numa vela e desceram assim até ao andar de baixo e à porta do jardim. Jonathan vestira a
sobrecasaca e levava o colete e a gravata na mão. Deixou-os dentro da casa. Ela reparou. Não ficaria
com ela naquela noite.
O ar estava fresco mas sem ser em demasia. O brilho da lua era suficiente para iluminar os canteiros.
– Magoei-te? – perguntou ele depois de caminharem durante alguns minutos.
– Não. Percebi o que iria acontecer quando te vi. Apenas lamento que aquele estado de espírito tenha
voltado a apoderar-se de ti. Lamento que o meu corpo não te tenha proporcionado mais do que um alívio
momentâneo, já que não me parece que acredites que o resto de mim possa ajudar-te.
– Não é verdade. A tua mera presença ajuda.
– Bem, pelo menos é alguma coisa.
Prosseguiram o passeio, entre retalhos de sombra e luz difusa que se moviam com as nuvens.
– Celia, lembras-te de te contar sobre uma missão que tive na costa há cinco anos?
Ela assentiu com a cabeça. – Aquela em que o rapaz morreu.
– Aquilo aconteceu porque alguém revelou que eu estaria lá. Tinha havido uma traição. Recentemente,
tenho tentado descobrir quem estava por detrás disso.
Ela sentiu um aperto no coração. Regressavam aos temas da discussão. Não tinham voltado a falar
realmente sobre nada daquilo. Ela partira do princípio de que nunca o fariam.
– Pensas que pode ter sido a minha mãe, não é?
– Pensei que estava ligado aos rumores sobre a tua mãe. E estava. Só que os rumores estavam errados
e a ligação também.
Ele contou-lhe uma história estranha, sobre o facto de Alessandra ter trabalhado para o governo,
passando a um homem informação que lhe era dada, para enganar os Franceses.
– Então ela não era traidora nenhuma, Jonathan. Na verdade, era uma heroína!
– Isso é verdade. E não era um trabalho isento de perigo.
– Mas são boas notícias.
– Para a memória dela, são, e isso deixa-me contente. Por ti. Contudo, um dia, o homem que lhe dava a
informação disse-lhe para falar ao espião sobre algo que teria lugar na ilha. E não era informação falsa,
como habitualmente. Ela não sabia, e transmitiu-a.
E Jonathan quase foi morto. Houve um rapaz que morreu mesmo.
– E tu culpa-la? É por isso que...
– De todo. Culpo o homem que se aproveitou da confiança dela para tratar de um assunto privado.
Ela parou e abraçou-o. – Pensas saber quem é esse homem, não é verdade?
Ele puxou-a mais para si e envolveu-a nos braços. Não olhou para ela, mas sim para as sombras. – Só
o meu primo teria um motivo, e poderia também ser o homem a quem coubera o dever de trabalhar com
ela. Eu vi-o uma vez lá, na sua casa. No entanto, o seu brasão não se encontra entre os outros. Não me
parece que tenha sido um dos patronos.
– Tens a certeza de que foi ele que o fez? É uma coisa terrível para se fazer por mera irritação devido
à existência de um primo bastardo.
– Tenho bastante certeza. Muito em breve, saberei mesmo.
Ela pousou a cabeça no peito dele. Ele não suspirou, mas ela ouviu algo muito parecido. Queria pensar
que falar sobre o assunto com ele o ajudara, mas não acreditou que assim fosse.
– Não lhe bastava repudiar-me. Constrange-me admitir que acho isso desolador – disse. – Ele pode
não gostar que tenhamos o mesmo sangue, mas não há nada a fazer. Que tentasse provocar a minha
morte... – Por fim pareceu irritado, como se aquela emoção tivesse ganho uma dura batalha contra outra
emoção muito mais triste.
– O que vais fazer?
– Dizer-lhe que sei. Confrontá-lo com isso. Depois teremos uma conversa que ele tem estado a evitar
desde os meus nove anos.
Ele envolveu-a com o braço e tomou o caminho de regresso à casa. – E o teu dia mau, Celia? Se te
aborreci com o meu, deves contar-me o teu.
– Estive com Anthony. E o advogado dele. – Apontou para a casa. – Estou a contar que deixe
rapidamente de ser minha. Tenho andado a pensar que, de qualquer forma, também é grande de mais.
Agora sei o rendimento que as plantas darão. Vou falar com um agente imobiliário e ver a possibilidade
de arrendar outra casa. – Beliscou-o, brincalhona. – Certificar-me-ei de que tem um bom sótão.
– De quanto é a dívida que esse canalha tem por cobrar?
– Oitocentas libras. Quem diria que a minha mãe conseguia negociar tão bem?
– Brincas, mas eu sei que te entristece, Celia.
– Quando fico triste por causa de perder a casa, lembro-me da cara de Anthony quando lhe disse que
não o queria de forma alguma, por preço nenhum. A expressão dele deixa-me tão feliz que não consigo
ficar assim tão triste.
Ele não abriu a porta do jardim, mas sentou-a no banco que ficava ali próximo, onde a beijara pela
primeira vez. – Celia, antes de ter idade suficiente para rejeitar a renda que Thornridge pagava pelo meu
silêncio fiquei na posse de um pouco mais de mil libras. Tiras o que for preciso e livras-te do homem.
Ela não sabia o que dizer. O que era justo, pois não conseguia falar nem que quisesse. Ele olhava para
ela como se não acabasse de propor algo surpreendente. Ela sentia a garganta a queimar e uma doçura
tremenda a apertar-lhe o coração.
Ele interpretou mal o silêncio dela. – Não é o que estás a pensar. Não é nenhum pagamento como os
que a tua mãe recebia.
Claro que era, mas ele fazia-o com a mais generosa das intenções, e tinha o melhor tipo de proteção
como motivo.
– Sinto-me honrada pela tua proposta, Jonathan. Provavelmente é todo o dinheiro que tu tens, e o
rendimento que te proporciona deve ser o que te permite andar bem vestido.
Ele pegou-lhe na mão e ajudou-a a levantar-se. – Então tratarei disso amanhã.
Ela pôs-se em bicos em pés e beijou-o. – Não, não farás nada. Eu vou procurar outra casa. Também
não tentes fazê-lo sem o meu conhecimento. Não permitirei que dilapides o teu património porque a
minha mãe não cumpriu com o pagamento a Anthony.
Ele não contestou. Abriu a porta e conduziu-a para dentro de casa. – Parece-me que vou ficar aqui um
pouco mais, Celia.
– Eu despeço-me então, Jonathan. Boa noite.
Fechou a porta e deixou-o na escuridão, sem dúvida para contemplar o encontro que planeava ter com
Thornridge.
Ela também pensaria nele, imaginando o que poderia acontecer se Jonathan confrontasse aquela família
e exigisse o reconhecimento do parentesco. Duvidava que Jonathan desse início a uma batalha daquelas
sem armas na mão. Se a iniciava, esperava ganhar.
Ela esperava que sim. Queria que ele tivesse o que merecia. Imaginou-o a acompanhar aquela mulher
no parque, em vez de ser desprezado por ela. Se a imagem a desgostava, não era por não querer o melhor
para ele. Apenas sabia que se ele caminhasse ao lado da prima, Lady Chesmont, não poderia caminhar
também ao lado da filha de Alessandra Northrope.
CAPÍTULO 24

J onathan mergulhou a caneta no tinteiro e rabiscou no caderno, reconstruindo os pontos principais da


conferência da Sociedade Real de Londres a que assistira com Summerhays. Fora um convite
generoso, especialmente por a química não figurar entre os interesses do amigo. A astronomia tê-lo-ia
mantido acordado, não a cabecear como acontecera no dia anterior.
Estava quase a terminar quando ouviu passos pesados e rápidos nas escadas das traseiras. Uma
pancada na porta fê-lo pousar a caneta. Abriu-a e deparou com uma Bella em grande alvoroço.
– Tem de vir, senhor. Ele está a perguntar por si.
– Quem é?
– Está um homem à porta, todo cheio de pó de arroz, e de uniforme. Marian diz que é só um criado
mas... – Atirou-lhe um papelito. – Disse-nos para lhe dar isto, e que esperava. Celia não está em casa e...
Pegou no papel e leu as únicas duas palavras que tinha. Thornridge. Agora.
Agarrou no casaco e foi ter com o criado. Como seria de esperar, o homem estava vestido com a libré
de Castleford. Mais ninguém escreveria duas palavras e presumiria simplesmente que o mundo saberia
de quem eram.
O lacaio afastou-se e Jonathan saiu para a rua. A carruagem de Dargent impressionara o bairro, mas a
de Castleford atraíra uma multidão. As cabeças inclinavam-se para um lado e para o outro, procurando
espreitar o interior. Os rapazes admiravam os cavalos monumentais, em perfeita formação.
Jonathan abriu uma porta e saltou para dentro. – Estás a provocar uma cena.
Castleford afastou as cortinas e olhou para fora. – Isto só acontece porque as limitações de tempo não
me permitiram mandar procurar-te, e tive de vir eu próprio.
– Como me encontraste?
– Sofrendo uma aborrecidíssima perda de tempo. Mandei pedir a Hawkeswell a tua morada, para o
meu cocheiro descobrir que se tratava somente de uma tipografia qualquer. Depois lembrei-me de Miss
Pennifold. O meu advogado conhecia o advogado da mãe dela, que conhecia esta propriedade, e, assim,
aqui estou eu.
E não se limitava a estar ali. Apresentava-se aperaltado como um duque. O seu colarinho estava tão
teso que dava para cortar queijo. Um pingente na correia do relógio ostentava um rubi que chegaria para
pagar os salários de um condado inteiro durante um mês.
– Para onde é que estás a olhar? – perguntou ele.
– Nada. Só que... Não é terça-feira.
– Isto não podia esperar por terça. Vou encontrar-me com outro par, a pedido dele, a propósito de um
assunto de grande importância para ele. Atendendo à seriedade da carta, é conveniente estar sóbrio e
ostentar a minha posição, por assim dizer.
Saíram da rua de Celia. Castleford afastou as cortinas. Os olhos que a luz revelou não estavam tão
sérios como a vestimenta e as palavras faziam crer.
– Thornridge quer ver-te, Castleford? Pensei que fosse acerca do meu assunto.
– E será. Depois de estarmos lá dentro. Depois de eu ser recebido. Para garantir que o era, tratei de
fazer com que quisesse ver-me mais do que eu queria vê-lo a ele.
– Como é que fizeste isso?
Castleford desviou o olhar, pois algo lá fora lhe chamou a atenção. – Seduzi a irmã dele. Ele soube,
claro, e parece tê-lo encarado como um insulto pessoal, pelas palavras fortes que constavam da carta de
ontem. Exigiu que falássemos, por isso aqui estamos, a caminho.
Jonathan olhou para ele. Castleford devolveu-lhe o olhar, diabolicamente satisfeito com a sua própria
astúcia.
– Seduziu a minha prima, Vossa Graça? – Jonathan imaginou a mulher que o ignorara ostensivamente
no parque e que, sabia, levava uma vida monótona com um homem sem interesse. Não tivera a mínima
hipótese.
– Maldição! Parece-me que de facto é tua prima, agora que mencionas isso. Oficiosamente. No entanto,
nunca te fala. Não é como se eu te tivesse seduzido uma prima querida.
– Não devias tê-lo feito, Castleford.
– Pelo menos, está feito. Não sejas aborrecido. Seria ridículo de mais pensares em desafiar-me por
causa de uma parente que nega a tua existência. Além disso, não posso ter um homem como meu padrinho
num dia, se devo bater-me com ele, relativamente ao mesmo assunto, no dia seguinte.
– Agora sou teu padrinho? Contas que Thornridge te desafie por causa disto?
Castleford fez um encolher de ombros preguiçoso. – Bom, conto que alguém desafie alguém antes de o
dia acabar. Tu não?

O conde de Thornridge mantinha uma casa em Grosvenor Square onde habitualmente morava sozinho
quando estava na cidade. A mulher, uma beldade outrora celebrada do mercado matrimonial, decidira
subitamente, ao casar, que não se interessava pela vida de Londres. Ou assim fora apresentado. Jonathan
concluíra que Thornridge tendia a ser ciumento e que simplesmente fora mais fácil para ele exigir que a
esposa ficasse longe da tentação.
Atendendo à razão daquela visita, era improvável que Thornridge mudasse depressa de ideias acerca
dos perigos amorosos de Londres.
Só o cartão de Castleford foi entregue. Como se tratava dele, os criados permitiram a entrada de
Jonathan sem pestanejar. Nem questionaram a sombra que, pouco depois, acompanhou o duque à sala de
estar.
– Estás pronto? – murmurou Castleford ao aproximarem-se das portas. Era evidente que esperava um
bom espetáculo como pagamento do «trabalho» que a sedução lhe dera.
As portas abriram-se cerimoniosamente. Jonathan decidiu que estava tão preparado como em qualquer
outra ocasião.
Thornridge não mostrou a mínima pretensão de que se tratasse de uma visita social. Aguardava, a
postura ereta e o rosto severo. As boas-vindas que dirigiu ao duque pareceram curtas e forçadas.
Então, viu o rosto de Jonathan. O seu ficou vermelho.
Apesar da distorção provocada pela raiva, Jonathan estudou-o, fascinado. Vira Thornridge à distância
ao longo dos anos. Fora incapaz de resistir a fazê-lo. Por isso, o cabelo a pôr-se grisalho e a figura mais
cheia não foram surpresa. No entanto, não via o rosto do conde de tão perto desde os nove anos.
Eram parecidos. A semelhança fazia-se notar. O que talvez tenha proporcionado mais um motivo para a
proposta do tio Edward, aquele género de trabalho que tirava um homem de Londres durante meses a fio.
– Que raio é que ele está aqui a fazer? – exigiu saber Thornridge.
– Alegou que o assunto lhe dizia respeito. O conde acusou-me de ter seduzido a sua irmã e aqui o
Albrighton acusou-me de lhe ter seduzido a prima. Ao ver que você e ele se referiam à mesma mulher,
pensei que seria mais fácil tratar do assunto com ambos ao mesmo tempo. – Castleford avançou
lentamente até um sofá, sentou-se, cruzou as pernas e olhou inexpressivamente para o conde.
– Não o quero aqui. Não pôde estar a referir-se à mesma mulher, porque não há qualquer parentesco.
Ele não é...
– Que diabo, Thornridge, basta olhar para ele para se perceber que são aparentados. Metade da alta
sociedade já percebeu a verdade.
– Como se atreve a interferir!
Castleford fingiu confusão. – Encontro-me aqui a seu pedido. Foi o senhor que levantou esta questão
acerca do parentesco dele.
Thornridge virou as costas ao duque e olhou para Jonathan com um ar furioso. – Se pensa apresentar a
sua espúria alegação hoje, saiba que não o ouvirei.
– Não é por essa razão que estou aqui. Vim tirar a limpo se devo ou não matá-lo.
A expressão de Thornridge transfigurou-se. Atrás dele, Castleford sentou-se mais direito,
impressionado.
– Dá-se ao desplante de me ameaçar? – rugiu Thornridge.
– Se sei que um homem está determinado a ver-me morto, só me faltava ficar à espera que ele
avançasse.
A um passo de explodir de rancor, Thornridge quis avaliá-lo. – Essa acusação que acaba de insinuar é
completamente disparatada. Não tenho razão alguma para querer que morra.
Claro que tinha. Nada fazia sentido se não tivesse. – Tive uma longa conversa com o tio Edward
recentemente. Talvez ele tivesse demasiado medo para lho contar. Ele normalmente dá-lhe informações,
não dá? Acerca dos esforços que tem feito, em seu nome, para me manter ocupado, e longe, ao longo dos
anos. O fim da guerra representou um desafio mas, ainda assim, ele tem sido engenhoso.
Foi percetível o grau de tensão em que Thornridge ficou. – Ele poderá ter mencionado que o Jonathan
tem talentos que foram úteis a Inglaterra. Poupou-me aos pormenores.
– Isso é porque já os sabe. Seja como for, agora já conheço o papel especial que Alessandra Northrope
desempenhou durante a guerra. E sei que foi o Thornridge quem lhe disse que informações transmitir.
– Não sabe absolutamente nada.
– Mais ninguém tinha razões para lhe transmitir informação sobre uma missão que efetuei. Informação
muito precisa. Caí numa armadilha. Devia estar morto. Quem mais além de si quereria ver-me morto e
teria acesso aos pormenores da minha missão, bem como uma forma de passar essa informação ao
inimigo?
– Não tenho razão alguma para o querer ver morto, portanto a sua teoria é ilógica do início ao fim.
– Claro que tem. Antes não tinha a certeza. Durante anos pensei que as hipóteses de a história que a
minha mãe contava de um casamento no leito de morte com o meu pai ser verdadeira eram menos do que
prováveis. Agora sei que era verdade.
Thornridge parecia estar na iminência de rebentar. Não era só a raiva que o fazia contrair o rosto e
assumir a postura tensa de um homem pronto para o ataque. Perpassava-o igualmente uma boa dose de
estupefação e medo.
– Ousou falar em matar-me. Está tão certo do que sabe ao ponto de me desafiar para um duelo? Se o
julgarem por assassínio, aquilo que pensa saber não o salvará da forca.
– Se eu concluir que devo matá-lo, porque o desafiaria num campo de honra quando o Thornridge não
foi honrado? Poderei ter dedos a apontar para mim depois, mas garanto-lhe que prova alguma apontará.
Os olhos do primo arregalaram-se. Jonathan estava confiante de que a mente por trás daquele assombro
revia todas as missões nas quais tantas liberdades morais haviam sido tomadas em nome de um bem
maior.
No sofá, o parente do diabo sorria distraidamente de admiração, quase ronronando de prazer.
Muito subitamente, Thornridge lembrou-se da presença de Castleford. – Acaba de me ameaçar em
frente a uma testemunha.
– Ouvi apenas um homem a falar metaforicamente, Thornridge – declarou Castleford. – Toda a gente
diz coisas dessas o tempo todo. Ameaço o meu criado com suplício e esquartejamento pelo menos uma
vez por dia.
– Maldição! Não havia nada de metafórico naquilo!
Castleford semicerrou os olhos. – Se acredita nisso, então talvez deva acertar contas com ele de outra
forma. Infelizmente, se o que ele diz é verdade, duvido que um pedido de desculpas seja suficiente. Para
mim não seria, se soubesse que um homem tentara provocar a minha morte.
– É uma acusação diabólica, infundada, da parte de um homem que procura causar problemas –
protestou Thornridge atabalhoadamente. Afastou-se, agitado, de sobrolho profundamente franzido.
Jonathan permitiu que o primo ponderasse o que quisesse, da forma que quisesse. Castleford conseguiu
esticar-se um pouco mais no sofá sem parecer demasiado rude.
Thornridge voltou-se abruptamente, agora com uma expressão muito diferente. Apaziguadora. Quase
simpática.
– Talvez tenha sido demasiado brusco. Saber da sua existência na altura foi um choque; uma ligação
amorosa não combinava com o carácter do meu tio. Há sempre a hipótese de haver acusações espúrias,
depois da morte de um homem como ele. Mas, admitirei agora, há uma grande parecença. Está na altura,
julgo, de se fazerem as pazes.
Jonathan esperara a vida inteira para ouvir aquelas palavras e, agora que tal acontecera, a sua reação
parecia quase um lugar-comum. O que sentiu não tinha nada de gloriosa excitação nem de balsâmico
alívio. A expectativa de dias melhores não lhe estimulou a imaginação. Limitou-se a experimentar uma
satisfação profunda e intensa por aquela ambiguidade acerca de quem era e do que era ter sido
esclarecida. Não completamente, mas na parte que mais importava.
Naquele instante, pensou em Celia. Visualizou-a no pórtico da casa de Enderby, sentada à chuva.
Desejou que lhe tivesse sido oferecida uma resolução semelhante. Desejou poder possibilitar-lha.
– Iremos convidá-lo para a nossa casa nesta temporada – anunciou o primo. – Iremos recebê-lo e dar
nota do reconhecimento da sua paternidade. Impõe-se também um rendimento, imagino. Um pouco mais
do que rejeitou há alguns anos. O suficiente para lhe permitir viver pelo menos com algum estilo.
– Tudo isso é muito generoso. Não sei o que dizer.
A nota sardónica escapou ao primo. A Castleford não, como revelou o seu sorriso irónico.
– Um bom casamento, também – completou o primo. – Sim, será essencial. Encontraremos uma
rapariga com um bom dote. Uma aliança com uma família de posição e respeitabilidade inquestionáveis
fará muito pela sua reputação e dissipará quaisquer rumores que possam surgir acerca dos deveres que
desempenhou durante a guerra.
– Prefiro escolher a minha própria esposa.
– Sozinho, nunca obterá a esposa apropriada. Se reconhecermos o parentesco e o recebermos não
podemos arriscar-nos a ser objeto de escárnio por causa de um casamento impróprio. – Abriu um sorriso
largo, como se compreendesse a preocupação de Jonathan. – Não se preocupe. Iremos certificar-nos de
que é bonita.
– Ora, então vocês estão entendidos – anunciou uma voz vinda do sofá. – Thornridge, talvez possa
tratar da nossa questão num espaço mais curto de tempo.
O conde rodou os calcanhares, como se ficasse surpreendido por Castleford ainda lá estar. –
Efetivamente. Serei muito breve. Mas que raio anda a fazer? Como se atreve a interferir com a minha
irmã?
– Fiquei fascinado com a doçura dos seus modos. Foi muito mau da minha parte, concordo.
Compreendo que queira uma reparação, embora normalmente seja o marido a exigi-lo. Contudo, se
tivemos de nos bater, aqui o Albrighton aceitou ser o meu padrinho. Foi por isso que o trouxe. Diga-me o
nome do seu, e ele tratará de organizar tudo.
– Padrinho? Reparação? – Thornridge não conseguia esconder a sua inquietação. Acabava de contornar
uma ameaça à sua vida, para agora dar por si encurralado por outra. – Não o convidei a vir aqui para o
desafiar, Castleford. Maldição! Longe vão os dias em que os homens se batiam por coisas destas. Queria
apenas dizer-lhe para se afastar da minha irmã no futuro.
Castleford levantou-se. – Para isso, podia ter escrito uma carta. No entanto, farei todos os esforços
para a evitar no futuro. Deixá-lo-emos, então, para começar os seus planos de acolhimento a Albrighton
no seu ramo irregular da árvore genealógica.
Aquilo rendeu a Jonathan um último olhar fulminante do primo. Formou-se algo entre um sorriso e um
esgar. – Vejo que, de nós os dois, escolheu culpar-me a mim por o inimigo aceder àquela informação
acerca de si, na costa. Sou eu que tenho o que queria, afinal, apesar de ter sido o tio o traidor.
Jonathan não trocou o passo quando a revelação o alcançou, na porta, apesar de a última tirada o ter
atordoado mais do que qualquer pistola teria conseguido.

– Estás silencioso para um homem cuja fortuna acaba de dar uma reviravolta – disse Castleford.
Jonathan quisera despedir-se do duque na rua, à saída da casa do primo, mas Castleford, na sua
imprevisibilidade, insistira em o devolver ao lugar onde o encontrara.
– É uma vitória que inspira reflexão, não celebração, constato. E não é sem custos.
– A limitação da liberdade, queres dizer. A obrigação de se ser respeitável e entediante. Chegará o dia
em que sentirás nostalgia da tua velha e obscura insignificância, prevejo. Quanto mais baixo estiveres
posicionado no nosso mundo elevado, tanto mais sufocante esse mundo pode ser. Ainda bem que nasci
mesmo no topo, deixa-me que te diga.
– Posso escolher continuar obscuro e insignificante. As intenções que o meu primo tem para a minha
vida são mais pormenorizadas do que eu gostaria.
– Pareceu-me bastante previsível. Visto que não te mostraste relutante relativamente à renda nem às
ligações, devem ser os seus pensamentos sobre o casamento que são demasiado impositivos.
Deveras. Ele não tinha interesse naquele tipo de casamento, fosse qual fosse o dote da mulher. Se o
desejo ou a necessidade de dinheiro ou de respeitabilidade fossem tão grandes, ele próprio teria
seduzido uma mulher assim.
Os olhos do duque fecharam-se, deixando Jonathan entregue aos seus pensamentos. A carruagem parou,
por fim, à porta da casa de Celia. Jonathan saiu.
– Não te sentes minimamente tentado a levar isto avante, Albrighton?
Jonathan olhou para trás, para a carruagem. Assim de repente, Castleford pareceu-lhe alerta.
– Praticamente o admitiu – prosseguiu Castleford. – Se tentou fazer-to, sentiu-se ameaçado por ti, e um
bastardo não é ameaça. Seguramente agora quererás saber a verdade.
Jonathan olhou instintivamente por cima do ombro, para a casa e para a janela do segundo andar.
– Não sei bem se o quero saber, ou se consigo. Durante anos, o meu tio afirmou-me que procurava a
verdade.
– Pareceu-me que o teu tio serve um amo que não tem interesse em que tu saibas o que quer que seja.
Aquela história no final é muito intrigante.
– Peço-te que não o repitas. O meu primo procurou apenas criar problemas entre mim e o único
familiar que durante estes anos todos admitiu a minha existência. Quanto ao resto, a minha mãe não me
disse muito, além de o conde ter casado com ela no leito de morte. É tudo. Perguntava-me se seria
verdade, e agora julgo que sim, mas não é a mesma coisa que ser capaz de o provar. – Fechou a porta da
carruagem. – Obrigada pela tua ajuda, hoje. Imagino que seduzir a minha prima não te tenha causado
grande inconveniente.
Castleford riu-se. Espreitou pela janela. – Poderia contar-te tudo a respeito disso, mas, visto que ela
agora é oficialmente tua prima, seria impróprio.
– Deveras impróprio.
Castleford olhou para a casa. – Mesmo que acates os planos do Thornridge, não tens de abdicar dela.
Miss Pennifold compreenderá. Provavelmente não espera mais do que tem agora.
Fez sinal ao cocheiro para partir. Jonathan dirigiu-se para a casa.
Castleford provavelmente estava correto. Celia Pennifold não esperava mais. Aprendera com a dura
experiência, anos antes, que as lições da mãe acerca da forma como os homens da sociedade faziam
casamentos estavam mais do que certas. Poderia até aconselhá-lo a agarrar a proposta de casamento de
Thornridge. Poderia bem aceitar continuar a ser amante.
Era assim que se faziam as coisas, afinal. Era assim que estavam destinadas a ser.

Risos sobrepuseram-se ao silêncio da noite. Um corredor de luz rasgou a escuridão. Três homens
saíram juntos do Brooks, separando-se para procurar carruagens e cavalos.
Jonathan aguardava na sombra. Os três homens eram criaturas de hábitos, e o homem por quem
aguardava também, tal como o resto. Jonathan procurara conhecer a maior parte deles por curiosidade
mais do que qualquer outra coisa. Havia sempre a possibilidade, porém, de que a informação pudesse ser
útil.
Olhou para o relógio de bolso à luz de um candeeiro próximo. A não ser que naquela noite acontecesse
algo que perturbasse o padrão, o tio Edward não demoraria a sair do clube. Depois desceria a rua a pé
para procurar um carro de aluguer para o levar para casa. Edward não se dava à maçada de esperar que a
sua carruagem ficasse pronta, por isso, à noite, só a usava quando ia a algum jantar, ao teatro ou a um
baile.
Jonathan posicionou-se perto de um edifício que ficaria no caminho de Edward. Não fez qualquer
esforço para se esconder. Nunca ninguém o achava suspeito. O seu aspeto era demasiado bom para
causar alarme.
A porta do clube voltou a abrir-se. A luz mostrou o rosto e o cabelo de Edward, que disse algo ao
criado, pôs o chapéu e saiu.
Reparou em Jonathan quando se aproximou dele. Abrandou consideravelmente o passo. Agarrou com
mais força o cabo da bengala.
– Escondido no escuro em nome dos velhos tempos, Jon? Estás a ficar nostálgico?
Jonathan começou a acompanhá-lo. Escolheu o lado com a bengala, para Edward não conseguir erguê-
la tão facilmente. – Pensei em vê-lo hoje à noite sem impor a minha presença na sua casa.
Edward olhou em redor, avaliando o isolamento em que se encontravam.
– Terminei aquela missão, Edward. Também falei com Thornridge. Sei que foi ele quem deu a
Alessandra a informação para o governo. Julguei que estivesse a protegê-lo, com essa curiosidade acerca
dos registos e da lista de patronos. Ele confidenciou que, na verdade, estava a proteger-se a si próprio.
Estava certo quando disse que Alessandra não cometeria a estupidez de incluir o nome do seu espião nos
seus registos e documentos. Só precisava de ter a certeza.
Edward parou, ali mesmo na escuridão da rua, entre dois candeeiros. – Vou precisar da minha pistola,
Jonathan?
Não seria para se proteger, nem para entrar em nenhum duelo. – Não sei. Acha que sim?
– Não, a não ser que tu ou o teu primo me exponham publicamente. Os outros já sabem. O Ministério
do Interior. Os ministros. Nada me foi dito, mas tenho a certeza de que sabem. Imagino que nada foi feito
porque este traidor se tornou útil para eles.
– Pelo menos não tenta inventar desculpas. Concedo-lhe isso. Chamas as coisas pelos nomes.
– Sempre soube o que era.
– Então porque o fez? Dinheiro?
Edward continuou a andar, a postura menos correta, o passo algo abatido. – Dificilmente. Foi uma
mulher. Deus me ajude.
Jonathan percebeu que deveria mostrar-se escandalizado na pausa que se seguiu. Na verdade, achou a
resposta fascinante.
– Conhecia-a há dez anos e amei-a a maior parte deles. Puseram-na na prisão. Pensei que poderia
poupá-la àquilo. – Edward encolheu os ombros. – Alessandra aceitou-me como patrono e eu incentivei-a
a ser indiscreta a respeito das coisas que os outros clientes diziam de passagem. Não me passava pela
cabeça que ela acharia o meu interesse suspeito e fosse falar com o Ministério do Interior. Eles
certificaram-se de que as indiscrições continuavam.
– O tio tinha acesso a informação muito melhor do que as possíveis indiscrições do leito dela.
– Transmitir o que sabia das minhas funções no governo iria expor-me muito clara e rapidamente.
Pensei satisfazê-los desta outra forma e não ser um verdadeiro traidor, suponho. Reconfortava-me que a
maior parte da informação se revelasse inútil, ou ainda menos que isso.
– Exceto uma vez.
Edward ficou tenso. – Presumi que os pormenores da tua missão estivessem também incorretos, porque
eu seguramente saberia, caso se planeasse uma missão daquelas. Depois dos resultados desastrosos,
constatei que alguém detetara um padrão e suspeitara de mim. Que me usara. Nos últimos anos tornou-se
um jogo elegante. Eu fingia que não sabia que eles sabiam, e transmitia o que me faziam chegar.
– Dito assim, parece quase patriótico.
– Maldição! Eu sei o que era. O que eu era. Mas pouco mal resultou daquilo que fiz. Transmitir-lhes
informação errada revelou-se uma tática útil. Nunca te coloquei em risco, nem a nenhum dos outros com
quem trabalhava. Pelo menos não com conhecimento. Juro-te.
Pararam numa esquina e encararam-se na neblina escura. Não havia realmente mais nada a perguntar ou
dizer. Jonathan nem sequer sentia muita raiva. Achava irónico, porém, até escandaloso, que Edward não
tivesse sido obrigada a responder por aquilo de nenhuma forma, pública ou privada, antes daquela noite.
– Não te preocupava que um dia pudesses destinar uma missão a mim ou a outro homem e não seres o
titereiro, mas a presa?
Edward suspirou profundamente, como um homem faz quando tenta controlar uma emoção forte. – Foi
isso que aconteceu agora, Jonathan? Ou estás aqui de forma independente?
– A guerra terminou há muito, tio. Se ainda se enviam homens nesse tipo de missão, nada quero saber a
esse respeito. Quanto ao estar a agir por razões pessoais... – Não tentou fingir que Edward era isento de
culpa, mas aquele homem acreditara que não havia nenhuma missão na costa. Fora outro homem que
atendera a isso. – Com isto, o meu primo tem-lo dependente dele. Ele sabe de tudo e tem o seu destino, o
seu bom nome e talvez até a sua liberdade nas mãos. Imagino que ser um seu lacaio e viver com medo de
que ele o exponha seja castigo suficiente. Não tem de se preocupar, não preciso de uma vingança
particular.
Passaram por baixo de um candeeiro, então, cuja luz revelou o rosto de Edward. Afrouxada pelo
alívio, descolorida pelo medo, a sua expressão revelava a tortura dos últimos cinco minutos. Assim que
saíram da bolha de luz e regressaram à escuridão, Jonathan deteve-se. Edward prosseguiu, com a bengala
a arrastar-se no chão como uma perna coxa.
– Foi poupada, tio? A mulher pela qual fez isto?
Edward voltou-se e olhou para ele. – Sobreviveu. Vive com um artista perto de Nice, agora. – Voltou-
se novamente e continuou a andar, até a noite o absorver.
Jonathan seguiu na direção oposta. Quem diria que Edward trairia o seu país por amor a uma mulher?
No que respeitava às motivações de um traidor, contudo, pelo menos aquela Jonathan compreendia.
CAPÍTULO 25

– É estranho, apenas isso – concluiu Celia. – Encontrei outras duas casas que servirão, mas continua
incerto se herdo esta ou não.
– Talvez seja um plano de Mr. Dargent, deixar-te inquieta e preocupada. Assim, terá para sempre a tua
atenção – comentou Daphne.
Encontravam-se no meio do jardim, após um longo passeio pelos canteiros com Verity e Audrianna.
Audrianna estava agora numa mesa do terraço a registar as alterações que tinham decidido fazer,
enquanto Verity elaborava listas de plantas. Ninguém seria capaz de as reconhecer como as senhoras que
eram. Uma lama primaveril decorava-lhes as bainhas das saias e as botas, e toucas simples protegiam-
lhes a pele do sol.
– Anthony sabe que não pode ficar indefinidamente sem solução, Daphne. Tem de reclamar o crédito
ou perder o direito a ele. Quero acreditar que a sua disposição se tenha alterado, mas receio estar a
desbaratar o tempo de todas com os planos de hoje.
– Nunca se perde tempo passado com amigas. Isto é principalmente um pretexto para o fazer.
Foram até ao terraço. Audrianna pousou a caneta quando chegaram. – Está tudo aqui, mas tens de fazer
os teus desenhos, Celia. E receio que seja mais trabalho do que nós, mulheres, conseguimos fazer.
– Eu posso mandar para cá alguns dos nossos jardineiros – propôs Verity, sempre concentrada nas suas
listas. – Mas talvez Mr. Albrighton insista em ajudar. Está mortinho por te ser útil, Celia. – Ergueu os
olhos. – Em trabalhos de carpintaria e coisas do género.
Instalou-se entre elas um momento de quietude. Não foi longo. Coisa de alguns segundos, no máximo,
mas que se impôs.
A touca de Verity não pôde esconder o sorriso insinuante quando ela se debruçou sobre as suas listas.
De repente, Daphne pareceu quase composta de mais.
Celia olhou furiosamente para Audrianna, que se pôs muito vermelha.
– Saiu-me – confessou. – Esqueci-me completamente de que mo contaste em privado. Estávamos a
falar sobre o facto de ele ter ficado na casa de Daphne, contigo lá também, e Daphne saiu-se com uma
das suas piadas sem graça sobre triples e eu... Bem, eu... – Parecia tristíssima e arrependida, mas
também prestes a rir-se.
O braço de Daphne rodeou-lhe os ombros. – Não estamos a julgar, Celia. Se estás satisfeita, nós
também estamos.
Satisfeita. Uma palavra estranha. Imaginava que sim, que estava satisfeita. As coisas com Jonathan
estavam a ser seguramente muito boas naquela última semana. Não era só a sensualidade, que agora
parecia imbuída de novas emoções, mas também as pequenas coisas, como a maneira como ele a olhava
de manhã e os beijos que lhe dava quando se cruzavam.
Então porque é que às vezes sentia uma nostalgia a tingir-lhe a satisfação, como se vivesse uma
memória? Era um pouco assim que se sentia, ao dispor daquela casa que em breve poderia perder.
– Já que todas sabemos, e que agora tu sabes que todas sabemos, tenho um convite – anunciou
Audrianna. – Hoje à noite vamos ao teatro, Celia. Verity e Hawkeswell fazem-nos companhia no nosso
camarote. E, parece-me, Mr. Albrighton. Quero que venhas também.
– Não me parece que Jonathan fique satisfeito com a minha ida, Audrianna. Conta entender-se com
Thornridge brevemente. Não é um bom momento para ter o nome ligado ao meu, se espera concretizar
essas expectativas.
As amigas trocaram olhares. Compreendiam, claro. Aquelas mulheres queridas aceitavam-na, mas não
fingiam que o seu nascimento e a sua história não interessavam.
– Só vais estar sentada com ele num camarote, Celia – prosseguiu Verity. – Porque não deixas Mr.
Albrighton decidir se isso interfere com as suas expectativas?
Naquele momento, Verity pediu ajuda a Daphne para uma das listas. Audrianna inclinou a cabeça para
trás, para o sol lhe bater no rosto. – Os cheiros aqui fora são tão ricos, não achas, Celia? Consegue-se
sentir a Natureza a voltar à vida.
– As tuas circunstâncias provavelmente tornam-te mais sensível a tudo isso do que a maior parte das
pessoas, Audrianna, mas concordo que a primavera acorda os sentidos para a esperança, com a sua
promessa de novos começos.

Foi encontrar Celia no terraço, sentada no banco próximo da porta do jardim. O sol iniciara a sua
descida e a brisa arrefecera. Ela tirara a touca. Tinha um caderno pousado no colo, mas não desenhava.
Ele inclinou a cabeça para ver a página em que ela a trabalhava. – Estiveram a planear mudanças aqui
para fora, estou a ver.
– Foi um pretexto para nos vermos. – Indicou o desenho. – Isto nunca será concretizado. Mr. Watson
acabará por enviar alguém para fazer o inventário.
Ele sentou-se ao lado dela. – Não me parece, Celia. Tenho quase a certeza de que nunca virá.
Ela olhou para ele, baralhada. Depois a sua expressão compôs-se. – Jonathan, deste o dinheiro a
Anthony?
– Não. Obedeci aos teus desejos.
– Obrigada. Não conseguiria aceitar que o tivesses feito.
Ele pegou no caderno e virou as páginas para ver o que mais ela tinha desenhado. – Cheguei a falar
com Anthony, contudo, há alguns dias.
Pelo canto do olho, reparou no curioso ceticismo dela.
– Falaste, então?
– Mmm.
– O que disseste?
– Deixa-me ver se me lembro. O cumprimento habitual. Pedi-lhe uma palavra em privado. Recordei-
lhe que era um velho amigo da tua família, esse tipo de coisas. Foi muito cordial. Posso ter sugerido que
nenhum cavalheiro tentaria coagir uma mulher a entrar na sua cama pelos meios que ele estava a usar.
Sim, creio que isso também surgiu. Julgo que posso ter indicado também que não aceitaria bem que ele
tomasse mais alguma medida contra a propriedade.
– Visto que não houve nenhuma medida, pareces ter sido persuasivo.
– Já me disseram que a capacidade de persuasão é um dos meus talentos.
Os dedos dela seguraram-lhe o queixo e voltaram o rosto para si. – Jonathan, magoaste-o?
– Claro que não. O braço pode ter ficado um pouco dorido durante alguns dias, devido ao meu
entusiasmo com a conversa, que de alguma forma excedeu o dele. Contudo, não o magoei, na aceção que
um homem daria a essa palavra.
– Ameaçaste-o?
– Só um homem com uma consciência pesada tomaria o que eu disse como uma ameaça. É verdade que
sugeri que ele poderia querer questionar alguns conhecimentos comuns a meu respeito. Se o fez, e o
levaram a repensar o seu plano, nada teve a ver comigo. – Ele imaginou Dargent a procurar os homens
com que o pai se aconselhara durante a guerra. Anthony provavelmente não dormia bem desde então.
Celia olhou-o nos olhos. – Devia repreender-te. A minha mãe incentivou propostas e ele fez a melhor.
Por mais que eu agora não goste dele, não foi ele que quebrou as regras do jogo.
– Passou bem este tempo sem o dinheiro e continuará a ser assim. Nem foi ele a fazer a melhor oferta.
Apenas pertencia à família certa e tinha o teu amor inocente. Mas agora está feito. Se Mr. Watson não
escreveu para agendar o inventário até agora, nunca o fará.
Ela franziu o sobrolho a meio da resposta. Tanto que ele duvidava que tivesse ouvido o resto.
Compreendeu porquê. Não era próprio dele descair-se dessa forma. Era típico dela tê-lo apanhado em
falta.
– Como é que sabes que ele não fez a melhor oferta? A minha mãe confiou-te alguma coisa a respeito
disso?
– É irrelevante, Celia, e pertence ao passado distante. O que é importante agora é que podes construir
os teus canteiros e assentar as tuas raízes se assim o escolheres.
Ele bateu no desenho. Ela olhou para lá e sorriu. Mas a sua expressão voltou a ficar carregada.
Examinou-o minuciosamente, desconfiada.
Era aquele o preço de se deixar distrair por uma mulher encantadora. De se sentir tão confortável que
se esquecia de rever cada palavra três vezes antes de falar. – Celia, eu sei que ele não foi quem ofereceu
mais porque fui eu quem o fez. Não é o que tu julgas. Ia sair da cidade sabe lá Deus por quanto tempo.
A expressão dela desfez-se com o espanto. – Tu? Mas a que propósito o fizeste, se estavas de partida?
Porquê, deveras? Olhando para trás, pareceu-lhe um gesto de nobreza fútil. Na altura, pareceu-lhe o
correto. – Era um uso do dinheiro tão bom como qualquer outro, e eu esperava vir a ter acesso a mais.
Ainda eras demasiado inocente, Celia. Demasiado criança. Pensei poder atrasar aquilo alguns anos, nada
mais. – Encolheu os ombros. – A tua mãe pensava de maneira diferente e explicou que eu nunca seria um
protetor adequado para ti, fossem quais fossem as minhas intenções.
– Ela estava correta. Não terias sido.
Ela falava apenas daquilo que era a sua convicção e experiência. Das regras que conhecia. Não
obstante, ele não se importava com aquela sucessão de incompatibilidades que ela tomava como certas,
embora a reunião que ele tivera com Thornridge só viesse comprovar que ela tinha razão.
Os olhos dela humedeceram-se e o sorriso tremeu-lhe. – Não podes imaginar como isto me comove,
Jonathan. Podias ter-me dito antes. Eu não teria entendido mal nem pensado que tinhas tentado comprar-
me quando eu era criança. – Estava meio a rir e meio a chorar e, mesmo a sorrir, os olhos humedecidos
cintilavam. – Andava eu a pensar que Anthony ia salvar-me em nome do amor e o misterioso Mr.
Albrighton tentou fazê-lo em nome da decência. Admira que te ame, Jonathan?
Ela fungou e secou os olhos, sem se aperceber, talvez, daquilo que dissera. Ele reparou. Viu a alegria
que ela sentia por aquela pequena revelação de há tantos anos. Caía a noite, mas não à volta daquele
banco.
Ele continuava a não ser adequado para ela. Se ela viesse a querer um protetor, conseguiria um muito
melhor do que ele.
A não ser que estivesse apaixonada por ele. Sendo assim, poria de lado os seus melhores interesses.
Provavelmente poderia ficar com tudo o que Thornridge propusera, e com Celia também, tal como
Castleford havia previsto.
– É bom ouvir dizer-te que me amas, Celia. É bom que falemos disso, e da forma como o amor se
tornou parte daquilo que existe entre nós.
Ela parou de respirar a meio do suspiro. Encarou-o quase com temor, com uma pergunta no olhar.
Ele não conseguiu evitar sorrir, mas a expressão dela, na sua tristeza, tocou-o. – Falo do meu amor,
também, querida. És mais digna de ser amada do que alguma vez saberás.
Ela chorou, então, de verdade, com lágrimas que lhe iluminavam os olhos mil vezes mais.
Ele puxou-a para si. – Está mais do que na altura, parece-me, de decidir que história faremos, Celia.
Ela tinha a cabeça encostada a ele. Inspirou fundo, procurando controlar-se. – Aquela que começámos,
parece-me. As minhas amigas aceitam-na; as que interessam, quero dizer. Depois de falares com
Thornridge, depois de ele aceitar o que te é devido, será igualmente a única história a ser permitida. Só
que não quero presentes, Jonathan. Não quero que seja esse tipo de caso.
– Há muita sabedoria naquilo que dizes. Só que eu próprio não estou habituado às histórias normais.
Nem tu, como provaste. – Inclinou-lhe a cabeça para trás para lhe beijar os lábios. – Eu disse que não
desistiria facilmente. De nenhuma parte daquilo que temos. Nunca arriscaria a perder este amor que dizes
agora ter por mim. Julgo que devemos casar, Celia, para eu ter a certeza de que serás minha para sempre.
Uma alegria maravilhosa iluminava a expressão dela. Então, a Celia que havia sido educada por
Alessandra fitou-o com amor e doçura, mas com um excessivo sentido prático. – Obrigada pelas tuas
palavras, Jonathan. Sinto-me honrada, e lisonjeada, e nunca esquecerei este momento. Mas não pode ser.
Depois de convenceres o teu primo a fazer o que está certo, terás de levar um tipo de vida muito normal.
Mais normal do que a maioria, devo dizer.
– Já me encontrei com ele. Já pesei as minhas hipóteses. Não te peço em casamento por impulso, Celia.
Sei o que ganho, e o que posso perder.
Ela perscrutou os olhos dele. – Estás a falar a sério, não estás? Estás.
– Estou. Mais a sério do que alguma vez falei.
Outro longo olhar, repleto de receosa alegria. Então, a expressão mais maravilhosa suavizou-lhe o
rosto e o receio abandonou-a. Lançou os braços à volta do pescoço de Jonathan e beijou-o com paixão.
Inclinou a cabeça para olhar as janelas da casa, e os últimos raios flamejantes do sol poente
delinearam o seu corpo e perfil com um clarão alaranjado. Com uma alegria marota no olhar, pôs-se em
pé e sentou-se no colo dele, de frente para ele, com as pernas dobradas.
– Beija-me – sussurrou. – Beija-me e preenche-me, para que este assombro e o doce espanto que sinto
não me despedacem o coração de pura felicidade.
Ele beijou-a. Ela acomodou-se melhor e levantou a saia e a combinação. Num instante, ele estava
dentro dela, ligado a ela, balouçando num ritmo lento a caminho do êxtase, enquanto os suaves gemidos
dela clamavam o seu amor e envolviam Jonathan no seu brilho.

Foram ao teatro naquela noite. Celia levou o mantelete debruado a arminho da mãe sobre um vestido
branco com requintados apliques de renda. Jonathan alugou uma carruagem e foi buscá-la como se não
vivesse no sótão.
Ele apresentava-se sempre como um cavalheiro. Nunca a sua posição social era questionada, apesar de
oficialmente não a possuir. O seu porte e confiança comunicavam a verdade, concluiu ela, sentada à sua
frente na carruagem. Naquela noite, porém, a sua habitual informalidade tinha desaparecido e o seu
aspeto impecável resistiria a qualquer examinação.
A alegria da tarde não os abandonara. Riram e brincaram na carruagem, e mesmo chegados ao
camarote os seus sentimentos continuavam a ser evidentes. Jonathan não fingiu ser um mero
acompanhante de uma amiga das duas senhoras, e elas, por sua vez, repararam. Celia estava contente por
o seu segredo ter sido exposto, pois naquela noite, por mais que se esforçasse, não teria conseguido
esconder o seu amor.
Tanto Summerhays como a esposa os acolheram calorosamente. Lord Hawkeswell pareceu
surpreendido com a chegada deles.
– Ele não está a ser especialmente discreto – sussurrou-lhe Audrianna ao ouvido quando se sentavam
para ver a representação.
Não, não estava. Nem na maneira como a olhava, nem na maneira como a tratava. Era tudo muito
educado, mas não escondia os sinais da intimidade que revelava que pertenciam um ao outro.
Ele sentou-se ao lado dela. Ninguém do grupo fez qualquer tentativa para o evitar. Ela reparou em
olhares vindos de outros camarotes. Viu pessoas a reparar nos dois filhos bastardos no camarote de
Summerhays, que não tinham nada que ali estar.
Está louco. Completamente louco. Celia ouvia a voz na cabeça enquanto a representação se
desenrolava no palco, e o homem em causa às vezes olhava para ela com uma atenção ardente e
possessiva que dava a entender que pouco caso fazia da dramatização que se desenrolava lá em baixo.
Ele sacrifica o teu futuro tanto quanto o dele. É melhor ser uma amante abastada do que uma esposa
necessitada.
Reconheceu a voz de Alessandra. O fantasma tentara arruinar a sua felicidade quando se preparava
para a noite, mas ela expulsara-o. Agora, no teatro, observados pela sociedade que ele desafiara, ela não
escapava à repreensão materna.
Necessitada, não, queria ripostar. Não lhe falta engenho nem rendimento. Eu serei sócia da Flores
Preciosas. Não morreremos à fome.
É romântico e nobre e bom, agora, no entusiasmo inicial de uma nova paixão. Daqui a dez anos,
quando ambos desejarem os confortos da vida que ele rejeita, será tarde de mais para voltar atrás se
se casarem. Ele abre mão de demasiada coisa, e tu também.
Uma mão tocou na dela. Não era a de Jonathan. Audrianna estava sentada do outro lado de Celia e os
seus dedos enluvados entrelaçaram-se nos de Celia. Inclinou a cabeça para ela.
– Celia, pareces agitada, e estavas tão feliz quando chegaste.
Celia olhou a sala. Ainda se viravam cabeças, por vezes, para a ver. A atenção de Audrianna seguiu
naquela direção.
– Podes julgar que todos sabem quem és, mas a mim parece-me que admiram apenas a tua beleza –
disse ela.
– Parece-me improvável.
– Apenas porque nunca percebeste quão grande é. Seja como for, foi pena que Castleford não tenha
vindo, conforme combinámos. O nosso plano era tê-lo cá. Assim, ninguém prestaria mais do que uma
atenção passageira a qualquer outra pessoa do camarote. Lamentavelmente, enviou um recado a Sebastian
esta manhã dizendo que tinha de sair imediatamente de Londres e não podia vir.
– Provavelmente foi só uma desculpa, quando ficou a saber dos outros convidados.
Audrianna achou aquilo divertido. – Ele nunca te evitaria, Celia, e és a única que ele não conhece. É
amigo de todos os homens e mostrou uma generosidade peculiar para com Verity e comigo.
Entretanto, o marido de Audrianna solicitou a sua atenção e ela largou a mão de Celia.
A pequena conversa silenciara as repreensões. Não voltaram a interferir. Celia viu o espetáculo, sem
nunca esquecer o homem lindo e excitante que tinha ao seu lado e que proclamava o interesse que tinha
por ela de uma forma tão pública. Olhou também para as amigas com grande afeto, tocada pelo cuidado
que lhe dedicavam.
Fora tudo combinado, adivinhou. Por Jonathan e Summerhays, e talvez até as amigas. A presença dela,
ali, naquele camarote irrepreensivelmente respeitável, propriedade de um marquês, fora um passo
calculado, para Jonathan mostrar ao mundo que amava a mulher conhecida como Celia Pennifold, e não
se importava que um acidente de nascimento a houvesse tornado também filha de Alessandra Northrope.
CAPÍTULO 26

P rocurou apoio no parapeito da janela. Os primeiros raios de sol espreitavam por cima dos telhados,
além do jardim, conferindo uma beleza etérea à neblina da madrugada. Cheiros paradisíacos de
renovação vogavam até ela na brisa refrescante que lhe arrefecia e estimulava a pele.
O corpo forte de Jonathan debruçava-se sobre o dela. Os seus braços agarravam-na por trás e
suportavam-na, e uma mão envolvia-lhe o seio. O abraço dele mantinha-a constante face às investidas.
Ela sentiu-se inundada de prazer. Transformada. Os seus sentidos aguçaram-se imediatamente e ela
pôde observar mais, sentir mais e ouvir os sons mais subtis. Os tremores da plenitude impunham-se onde
os dois se uniam, depois intensificaram-se e alastraram-se por todo o seu corpo, em deliciosa expetativa,
na iminência da libertação.
Eclodiu dentro dela com uma força insuportável, prolongando-se, alimentada pelas estocadas cada vez
mais vigorosas, rápidas e profundas dele. O tremor do êxtase replicava-se por todo o seu ser,
preenchendo-a, e depois também para fora dela, para a neblina e a luz e os sons, e também para dentro
dele, ela tinha a certeza, até a união se estender além dos seus corpos.
Ele puxou-a para si e envolveu-a num abraço tão completo que colou todo o seu corpo ao dele.
Flutuaram juntos num prazer que reverberava com a beleza daquela preciosa intimidade.
– As carroças não tardarão a chegar – murmurou ela quando os seus pés tocaram finalmente o chão e a
respiração dos dois se acalmou. – Tenho de ir vestir-me.
Depositou-lhe um beijo no pescoço e ficou ali, como se não quisesse deixar de sentir o cheiro dela.
Deixou-a, por fim. – Vou ajudar, para não demorar muito.
Ela foi para o seu quarto lavar-se e vestir-se. Antes de descer as escadas, abriu uma porta que ficava
ao lado. O quarto não tinha nada de luxuoso, mas era de bom tamanho e muito mais conveniente que o do
sótão.
Mudaria Jonathan ali para baixo. Estava mais do que na altura de fazer aquela mudança. Já não era
inquilino nenhum; em breve, seria o dono da casa.
Avaliando a largura, perguntou-se de que mobília precisaria. Sem deixar a sua reflexão, ouviu Marian
chamar por Jonathan nas escadas, alertando-o de que tinha visitas.
Celia regressou ao quarto e olhou pela janela aberta, deparando com dois homens que amarravam as
rédeas dos cavalos a um poste. As vozes foram subindo até ela.
– Apenas disse que toma liberdades de mais a mandar-nos fazer recados como a dois lacaios –
declarou Hawkeswell.
– Ele não nos mandou. Pediu que o ajudássemos.
– Dissimulado de mais para o meu gosto. Se isto vir a revelar-se alguma espécie de brincadeira de
bêbados...
– A César o que é de César, Hawkeswell. Quando se decide a fazer alguma coisa, consegue usar de
muita persistência para a ver concluída, para o bem ou para o mal.
Hawkeswell subiu os degraus da porta. – É o mal que receio. – Olhou para o edifício e a seguir para
ambos os lados da rua. – Que sítio é este? Albrighton mora aqui?
– Segundo a minha mulher, sim. Devo dizer-te que se trata da casa de Miss Pennifold.
A cabeça de Hawkeswell virou-se logo. – A sério? Se a tua mulher sabe, a minha também, de certeza.
Serei eu o único que não tinha conhecimento deste caso?
– É o que me parece. Embora não perceba como não reparaste. Ele tinha ar de quem queria devorá-la,
ontem à noite, no teatro. – Summerhays ergueu o punho.
A pancada fez-se ouvir lá em baixo. Celia viu os dois homens entrar na casa. Vozes masculinas
trocaram cumprimentos, depois falaram mais baixo.
Celia saiu do quarto e desceu as escadas. A conversa parou quando ouviram os seus passos.
Desceu para onde os pudesse ver, parados à porta, e eles a pudessem ver a ela. Hawkeswell tinha ar
de se sentir desconfortável com a sua missão. Summerhays parecia ter estado a apaziguar os outros dois.
Jonathan parecia irritado. Iracundo. Ela nunca o vira assim.
Olhou para ela e depois para Summerhays, com um ar furioso. Ela pediu licença e dirigiu-se para as
traseiras da casa.
– Voltem e digam-lhe que não. – Jonathan não fez esforço para baixar a voz. Ela ouviu cada palavra. –
Ele não devia ter interferido. Não lhe pedi para o fazer.
– Não é um homem que julgue precisar de permissão para o que quer que seja, muito menos
interferências – disse Hawkeswell. – Eu ficaria tão irritado como tu estás. Concordo que ele foi longe de
mais.
– Devesse ou não fazê-lo, está feito – observou Summerhays. – Devias pelo menos saber o que ele
descobriu.
– Que diabo, não quero saber de nada disso.
– Bom, mas devias – retornou Summerhays. – Pelo teu futuro, e o dos teus filhos, devias.
Nenhum deles falou, então. Celia começou a mudar as poucas plantas que ainda estavam nas
prateleiras. Passou um bom bocado de tempo. Talvez eles murmurassem, para ninguém da casa os ouvir.
Para ela não os ouvir.
– Admito que Summerhays não deixa de ter razão, Albrighton – disse Hawkeswell. – Podes dizer-lhe
para ir para o inferno a seguir, mas, já agora, deves ouvi-lo.
Mais um silêncio prolongado, depois botas a percorrer o corredor. Jonathan entrou na sala das
traseiras e fechou a porta. Ainda estava irritado, mas talvez não estivesse tão indignado como antes.
– O que foi? – perguntou ela.
Ele suspirou de impaciência. – Um homem que eu conheço procurou informação em meu nome, sem a
minha permissão. Agora quer dar-ma a conhecer. Se eu não for ter com ele, o mais certo é aparecer aqui
embriagado um dia qualquer e fazer uma cena.
– Um conde e o irmão de um marquês fazem de mensageiros deste homem? Poderia este homem ser
Castleford? É tristemente célebre pelas suas cenas e bebedeiras, e vocês são amigos.
Ele riu-se um pouco. – Amigos. Imagino que possas dizer que somos amigos, de certa forma.
– Não sei tudo acerca do mundo, mas se um duque fez alguma coisa em nome da amizade, seria uma
estupidez ser mal-agradecido. – Deixou as plantas e foi ter com ele. – Fê-lo por ti?
Ele olhou-a com tal profundidade e doçura que a assustou. Parecia-lhe que era assim que um homem
olharia para a sua amada antes de embarcar numa longa viagem.
– Ele procurou informação sobre o meu nascimento, Celia. Procurou a prova de eu ser ou não bastardo.
Ela precisou de alguns momentos para compreender o que ele dissera. Então, a amplitude do
significado foi um choque.
– Sabias que era possível não seres?
– A minha mãe dizia que o conde se tinha casado com ela, mas pode ter sido uma história para fazer
uma criança sentir-se melhor com a sua sorte.
Reações confusas misturaram-se dentro dela. – Ele sabe que ela dizia isso? Thornridge? Foi por isso
que ele tentou...
– Sim.
Ele continuava a olhar para ela daquela maneira. Aquele olhar convidava-a a conhecer o temor que se
instalava no seu coração.
Vou perder-te. És louco, mas não tão louco. Homem nenhum renega algo como isto, quando lhe é
entregue como um presente do destino.
Ela sorriu com toda a confiança que conseguiu. – É maravilhoso, Jonathan. Se ele descobriu algo
importante ao ponto de mandar buscar-te a esta hora, julgo que te esperam as melhores notícias.
Ele não discordou. Face ao silêncio dele, sentiu um aperto de angústia no coração.
– Vem comigo, Celia.
Ela queria, nem que fosse apenas para estar um bocadinho mais com ele antes de tudo mudar. Todavia,
não conseguiria suportá-lo. Não conseguiria ouvir com compostura um duque explicar que era o homem
errado o que dava pelo nome de Thornridge.
– Não posso. As carroças. Lembras-te?
– Claro. – Ele tocou-lhe no rosto e inclinou-se para a beijar. – Regresso em breve. Provavelmente a
tempo de ajudar, tal como prometi.
A seguir, desapareceu, em direção aos homens que aguardavam, e ao seu verdadeiro destino.

– O que quer dizer com «Sua Graça está na cama»? – Hawkeswell proferiu a pergunta com tal
ferocidade que o criado, alarmado, recuou um passo.
– O que acabo de dizer, vossa excelência. Deu ordens para não ser perturbado até ao meio-dia.
Summerhays olhou para o relógio de bolso. – Quarenta minutos.
– Isso é que era bom! – reagiu Hawkeswell. – O mensageiro dele acordou-me a mim às nove horas
com o pedido urgente de que te fosse buscar, e a Albrighton, e que em seguida nos reuníssemos com ele
para tratar de um assunto de interesse crítico para o Parlamento e a nação. Diabos me levem se...
Reparou no criado, que recuava mais, com o traseiro apontado para a porta. – Onde vai?
– A lado nenhum, vossa excelência! Vossa excelência deseja alguma coisa?
– Uma garantia. Por favor diga-me que o duque pelo menos está na cama sozinho, e que esta
perturbação não se deve a nenhum deboche de última hora.
– Não lho saberia dizer, vossa excelência.
Hawkeswell dirigiu-lhe um olhar furioso.
– Não estive dentro do aposento do duque – apressou-se a acrescentar o criado.
– Hawkeswell! – repreendeu Summerhays.
– Suba e diga ao criado pessoal de Castleford para informar imediatamente o duque de que o conde de
Hawkeswell se encontra aqui, para tratar do assunto de urgência mútua. – Hawkeswell dispensou o
criado com um gesto. Voltou-se para Summerhays depois de a porta da agradável e arejada sala contígua
se fechar. – Seria mesmo dele, e tu sabe-lo. Fazer-me cavalgar pela cidade toda e constatar que com isso
sobrava algum tempo para uma rapidinha.
– Ninguém diria – anuiu Jonathan.
Hawkeswell voltou-se logo para ele. – Com os diabos, ele fez uma graça, Summerhays. Um bocado
indecente, até. Sentes-te melhor, Albrighton? Menos irritado, agora?
– Menos irritado.
– Imagino que passar meia hora a considerar a hipótese de se ser conde possa curar a maioria dos
homens de uma indignação justa. Até a ti.
A contemplação daquela hipótese contribuíra muito para apaziguar a sua irritação. A menos que tivesse
apontado uma pistola à cabeça de Thornridge, duvidava de que Castleford tivesse conseguido descobrir
algo de consequente. Ouviria o duque explicar o quão esperto tinha sido até então, agradecer-lhe-ia os
seus esforços, avisá-lo-ia de que não interferisse no futuro, e voltaria para Celia.
– Se o Castleford descobriu alguma coisa de útil, também tu poderias ter descoberto – comentou
Summerhays, pensativo. – No entanto, nunca o fizeste. O que deve significar que nunca tentaste.
– Confiei que outra pessoa o faria, duvidando sempre de que houvesse alguma coisa a descobrir. – A
primeira hipótese fora um erro e a segunda também, ao que parecia. – Parti do princípio de que se
houvesse alguma coisa, Thornridge reconheceria a minha paternidade e me proporia algum rendimento
para me desencorajar de exigir mais.
– Em vez disso, procurou tornar-te invisível.
Completamente. – Como consequência, ser invisível passou a ser a minha preferência.
– Ele não quer as partes entediantes, é isso que está a dizer – comentou Hawkeswell com Summerhays.
– Não quer as responsabilidades. Bom, não tens hipótese de decidir e escolher. O que for o teu
nascimento será a tua vida.
– Duvido que seja verdade. As provas teriam de convencer os examinadores mais críticos e mais
desconfiados. Poderia levar anos. Não é que eu não o queira, Hawkeswell. Não quero é dedicar a minha
vida a lutar por isso e a fazer depender disso todas as minhas outras escolhas.
A porta voltou a abrir-se. Entrou um criado diferente, com mais dourado e ornamentos na libré. Os
modos de Hawkeswell haviam convocado um oficial daquele exército.
– Sua Graça ordenou que fossem levados aos seus aposentos, vossa senhoria. Queriam seguir-me,
todos.

– Estou muito desagradado – anunciou Castleford quando eles lhe ocuparam o quarto de vestir. O
criado pessoal, que lhe abotoava um robe matinal de brocado azul-escuro, estacou e ergueu
pesarosamente os olhos.
– Não é contigo, homem. Anda lá com isso – reagiu Castleford. Arrojou um olhar furioso por cima da
cabeça do criado. – Andei uma semana em cima de um cavalo e só muito depois da meia-noite consegui
pousar o traseiro em casa. É assim tanto pedir algumas horas de sono?
Hawkeswell pareceu um pouco constrangido, mas não em demasia. – Porque não usar a carruagem e
poupar o traseiro? É o que faço em viagens longas.
– Precisava de andar depressa. – Castleford enxotou impacientemente o criado, antes de ele terminar
com os botões. Atirou-se para um sofá e encavalitou a cabeça numa mão. Uma satisfação consigo próprio
substituiu-se à irritação. – Deviam ter-me usado a mim durante a guerra, não a ti, Albrighton. Tenho jeito
para isto da investigação. As minhas capacidades analíticas até me impressionaram esta semana.
– Ser duque provavelmente ajuda, também.
– A investigar? Provavelmente.
– Também a impressionares-te e a convenceres-te a ti próprio de que tens direito a interferir.
Castleford olhou para Summerhays. – Estes dois estão irritadiços hoje, não estão?
– Talvez se explicares porque requisitaste a nossa presença, eles fiquem menos.
– Requisitou, uma ova – murmurou Hawkeswell.
Castleford ignorou-o. – Está feito, Albrighton. Sei tudo, e tenho provas de que o teu primo te usurpou o
título.
Jonathan riu-se. – Perdoa-me, mas estou certo de que exageras.
– De todo. Só precisei da frase que a tua mãe te disse. Afirmou que o último conde se casara com ela
no seu leito de morte. O que significava que ele ou tinha uma licença especial... E o meu advogado, que
consultou o Colégio dos Advogados garante-me que não há registo... ou casaram-se na Escócia, ou então
tratou-se do gesto sentimental e inconsequente de um homem apaixonado pela amante grávida.
– O último é o mais provável, infelizmente – constatou Summerhays.
– Foi a minha suposição, também, mas decidi verificar a segunda, não fosse o diabo tecê-las. – Olhou
muito inexpressivamente para Jonathan. – Sabias que as tuas propriedades incluem um encantador
pavilhão de caça mesmo na fronteira escocesa? Tens de prometer receber-nos a todos durante a
temporada de caça ao tetraz. Bebemos e damos uns tiros e divertimo-nos à brava. Hawkeswell também
pode vir, se prometer não fazer de menino da mamã e estar sempre a resmungar.
Uma sensação estranha despontou no peito de Jonathan. Castleford estava apenas a ser convencido e
presunçoso como sempre, a falar como se o assunto estivesse resolvido. Não obstante, algo nos olhos do
duque dava a entender que acreditava de facto naquilo.
– E então? – incitou Hawkeswell com irritação.
– Então fui lá. Daí o meu traseiro dorido. Não queria desperdiçar muito tempo nisto e pensei que o
melhor seria cortar caminho a cavalo. Fiz algumas perguntas educadas e discretas e...
– És incapaz de ser discreto, por isso já estás a dar a volta à história para ficares mais bem visto –
disse Hawkeswell.
Castleford suspirou. Virou-se para Summerhays. – De facto, está um chato, hoje. Mais do que o
costume. Sabes porquê?
– Quando veio buscar-me, resmoneava acerca do teu criado, que, com muito alarido e insistência, o
tirara da cama numa altura muito inconveniente.
Castleford pareceu consternado. – As minhas desculpas, Grayson. Não admira que estejas mal-
humorado. Nunca me ocorreu que homens casados fizessem dos seus prazeres actividades diurnas.
Aguardei especificamente até ao nascer do dia para enviar o meu homem, por essa mesma razão.
A justificação dificilmente apaziguou o homem casado em questão. Quando muito, intensificou-lhe o
olhar. – Continua, por favor. Quando paraste pela última vez, andavas a arrastar a tua triste figura pela
fronteira escocesa, parece-me, desprezando o teu título e as tuas prerrogativas, apontando pistolas à
cabeça de homens para descobrir o que querias.
– Com os diabos! Dir-se-ia que estavas lá comigo. Bom, resumindo e concluindo, encontrei-as, por
isso o que quer que tenha feito resultou.
– Encontraste quem? – perguntou Jonathan.
– As testemunhas. Ambas vivas, ainda, graças a Deus.
Chegou para toda a gente ficar calada de espanto durante um bom bocado.
– Se as tuas perguntas não foram corteses ou se andaste a distribuir dinheiro, não há como saber se
falaram a verdade, Castleford – alertou Summerhays. – Mesmo que o tenham feito, podem mudar de
história se Thornridge descobrir que isto aconteceu e os ameaçar, ou lhes pagar.
– Já lhes tinha pago. Foi por isso que os trouxe comigo. Lembrei-me que o teu primo tinha tentado
matar-te, Albrighton, e decidi que estes dois tipos podiam ter um destino triste quando reclamasses o teu
título.
Dois pares de olhos voltaram a sua atenção para Jonathan. Fez-se silêncio. Castleford olhou em volta,
perplexo por já não ser o centro da festa. Depois percebeu porquê.
– Ah. Eles não sabiam disto, pois não? Parece-me que fui indiscreto, Albrighton. – Encolheu os
ombros. – Está certo. Tudo se fica a saber, no final.
– As testemunhas? Onde estão? – perguntou Jonathan. A voz soou-lhe distante aos seus próprios
ouvidos. O dia tornara-se irreal, como se ele estivesse encerrado numa neblina invisível que, subtil mas
incontestavelmente, lhe alterasse a perceção.
– Mmm. Onde os terei posto? Lembro-me de que o mais velho cheirava mal; foi por isso que vim a
cavalo, para evitar a carruagem alugada. – Pôs-se em pé. – Esqueci manifestamente o que disse ao
administrador para fazer com ele. Vamos descobrir.
Assumiu a dianteira. Jonathan fechou a fila. O pulsar que sentia na cabeça e no peito revelavam uma
excitação que ele não conseguia apaziguar.
Se havia testemunhas, e Castleford as encontrara, tudo mudava.
CAPÍTULO 27

D aphne fechou o livro de contabilidade. Abriu a bolsa e tirou algumas notas de libra. – Estou
confiante de que no futuro será mais, Celia. Neste curto período, as vantagens de trazer as plantas
para aqui já se refletem no negócio. Com o que combinaste com Mr. Bolton para as flores de verão e os
contactos que estás a semear para fruta, no inverno, iremos florescer, tal como previste.
Celia guardou o dinheiro num bolso do avental. Estavam rodeadas de cor por todo o lado. As carroças
tinham trazido muitos vasos de flores em forçagem que nos dias seguintes levariam frescos aromas
primaveris e alegria a dezenas de lares.
Não conseguia alegrar-se com aquilo, nem com a companhia de Daphne. Jonathan tinha saído há
bastante tempo. Mais do que cinco horas. Começava a questionar-se se voltaria sequer.
Que estupidez. Claro que voltaria. Voltaria e olharia para ela daquela nova maneira, com o olhar
nostálgico que lhe vira de manhã. Explicaria que as suas expectativas implicavam que não poderia casar-
se com uma qualquer mulher. Teria de...
Ela esperava verdadeiramente que lhe comunicassem as melhores notícias. Emocionava-a que um
milagre da boa fortuna como aquele tivesse podido acontecer-lhe. Mas, a par daquela alegria, havia a
dor, que ela não conseguia afastar.
– Fico contente por o meu plano estar a resultar, Daphne. Só lamento que me prenda agora a esta casa.
Gostaria de regressar a Cumberworth contigo hoje, mas é preciso tratar destes vasos.
– Porque quererias regressar comigo? A tua vida agora é aqui. O teu homem está aqui.
Celia não disse nada. Daphne compreendeu bem de mais, e rápido, como lhe era próprio.
– Então é por isso que estás estranhamente calada hoje – comentou. – Estás desgostosa. Ele foi cruel
para ti?
– De todo. Este amor tem sido maravilhoso. Lindo. Tão emocionante que me esqueço de mim. – Teve
de sorrir, ao lembrar-se de todas as formas como ele lhe tocava o coração. – A última parte, o esquecer-
me de mim, foi um erro, parece-me.
Daphne esticou o braço e pousou afetuosamente a mão na de Celia. Não pediu pormenores mas
ofereceu o reconforto que a sua amizade poderia proporcionar. Provavelmente adivinhara, contudo.
Provavelmente concordava que Celia não devia nunca esquecer quem era, pois não seriam os outros a
lembrar-se.
Não lhes chegou nenhum som do jardim, mas ambas deram atenção à janela ao mesmo tempo. Sombras
moveram-se perto dos arbustos e Jonathan começou a descer o caminho. Celia agarrou irrefletidamente a
mão que cobria a sua.
Daphne pôs-se em pé e aproximou-se para a beijar. – Vou-me embora. Anda ter connosco se quiseres e
deixa instruções a Mr. Drummond sobre como entregar as plantas. Verity e Audrianna também não estão
longe, de todo, se precisares de conselho ou de consolo nos próximos dias.
Deu um beijo na face de Celia e saiu pela porta da frente no preciso momento em que Jonathan entrava
pela das traseiras.

Sentiu o aroma dos jacintos, que pairava junto à porta, ao aproximar-se da casa, antes de ver qualquer
uma das flores. Pela janela via-se apenas uma única flor. A mais linda e preciosa delas todas, de cabelo
dourado e tez pálida e olhos capazes de capturar estrelas.
Ela sorriu ao vê-lo entrar. Cumprimentou-o com um beijo e estendeu os braços para a densa tapeçaria
de cores vibrantes e texturas verdes que cobria as prateleiras.
– Chegou a primavera em todo o esplendor a uma sala de Londres – disse.
– Porque é que as pessoas vos compram aquilo que terão de sobra e de graça daqui a duas semanas?
– Os pequenos rebentos que se veem lá fora põem as pessoas impacientes. Quando o tempo começa a
melhorar, não conseguem esperar. Um vaso é suficiente para alguns, embora haja quem insista em ter
trinta.
Ele admirou as flores enquanto ela discorria sobre os nomes e as variedades. Celia falava
rapidamente, como se a conversa de circunstância a impacientasse mas também estivesse receosa de
abrir espaço para outro tópico.
Entretanto, lá terminou. Estavam lado a lado, olhando para o jardim interior. Ele sentiu o entusiasmo
dela e até a tensão da excitação que subjazia sempre que se encontravam. No entanto, a tristeza permeava
tudo aquilo e o coração dele também.
– Não estás curiosa acerca do que se passou com Castleford, Celia?
– Em pouco mais pensei desde que saíste. Foram boas notícias?
– As melhores. Bastou-lhe perguntar para as pessoas acorrerem a dizer-lhe tudo o que sabiam. Ficou a
saber daquilo que a mim me levaria uma vida inteira a descobrir, se é que conseguisse. Encontrou
testemunhas que têm um medo horrível do meu primo e a quem ele pagou bem para se calarem. Castleford
conseguiu aterrorizá-las ainda mais, e admitiram a verdade.
Ela abraçou-o. – Estou tão feliz por ti, Jonathan. Mais do que podes adivinhar. Vi-te atravessar o
jardim e pensei logo: Claro que é um conde. Como é que alguém poderia vê-lo sem o perceber
imediatamente? O teu primo sabia-o, sem dúvida. Podias ter apenas nove anos, mas ele provavelmente
viu em ti que o título não lhe pertencia verdadeiramente.
Possivelmente. Ou talvez a determinação de uma mulher sentada dias a fio na escadaria o tivesse dado
a entender. Mas as testemunhas, ambas criados que trabalhavam no pavilhão de caça, haviam sido pagas
desde o início, até antes de o primo atingir a maioridade. O mais provável era a família inteira estar
implicada. Até o tio Edward.
Bloqueou a dor da perda que sentiu por aquela relação e os seus velhos enganos. Sentou-se e puxou
Celia para o colo, para sentir o reconforto do calor feminino. Via o rosto dela enquadrado por flores. O
seu sorriso mostrava alegria, mas os seus olhos mostravam algo mais.
– Provavelmente devias procurar outro alojamento – disse ela.
– Se quiseres. Procuramos uma casa que fique mais próxima das tuas amigas.
Ela passou a língua pelos lábios e fez o possível por parecer sensata, não desorientada. – Deves fazer
a mudança sozinho, Jonathan. Não deves dar a ninguém razão para pôr em causa o teu carácter enquanto
não se resolve isto.
– Pode demorar anos. O meu primo fará tudo o que puder para o deter.
– Deves comportar-te com muita correção ou ele pode ser bem-sucedido nessa empresa. Tem muitos
amigos, e...
Ele silenciou-a com um beijo. – Parece-me que passaste as horas em que me ausentei a aplicar as
regras de Alessandra ao meu destino, tendo concluído que agora não te posso ter. É verdade, Celia?
– Não pode ser como tínhamos planeado. Sabes disso. Não podes casar-te com uma mulher como eu.
Quanto ao meu amor... Até casares...
– Diabos me levem se me caso com outra e só no leito de morte com a mulher que amo, como o meu
pai fez. – Afagou-lhe o rosto suave com a mão. – Demorei este tempo todo a voltar porque fui ao Colégio
dos Advogados, para pedir uma licença especial. Summerhays teve a bondade de usar a sua influência e
deve chegar dentro de alguns dias. Eu e tu casaremos imediatamente, para estar feito quando tudo o resto
começar.
– Agora falas como um louco. Estas pessoas têm regras para coisas como estas.
– Celia, todos os nobres do reino têm interesse em garantir que as únicas pessoas a ser pares são os
que nasceram como tal, e que um título não é passado erradamente devido a uma fraude. É a regra
principal. Há um processo para atender a alegações como esta. Só o meu nascimento importará; o
nascimento e a legalidade do casamento do conde. Eles não se importam com o meu carácter. Podia
fornicar com ovelhas o dia inteiro que não faria diferença.
Ela ia falar. Ele levou-lhe os dedos aos lábios para impedir mais declamações das regras práticas de
Alessandra. – Se alguém vier investigar a minha vida, verá que sou casado com uma mulher de bem que
foi sempre honesta no seu amor e na sua paixão.
Havia amor no olhar dela, mas também hesitação. – Não podes ter a certeza disto tudo, Jonathan. E se
estiveres errado?
– Tu és a luz da minha vida, Celia, de formas que nunca compreenderás. Disse-te uma vez que não
desistiria de ti facilmente. Agora não poderia desistir de ti por nada, nem mesmo para ser um Thornridge.
O receio abandonou-a e o saber mundano e prático desapareceu do seu olhar. Rodeou o pescoço dele
com os braços e riu-se.
– Não argumentarei mais, se estás tão determinado. Sinto-me orgulhosa de que me ames tanto assim e
que sejas verdadeiramente meu. É maravilhoso mas também assustador, Jonathan. Tão assustador que
admira que não tenhas negado. Podem ter de te dar o título, mas não têm de nos aceitar.
– Já sabes que alguns nos aceitarão. Já o fazem. Quanto aos restantes, viveremos como nos aprouver e
não nos preocuparemos muito com eles.
Ela beijou-o. Maravilhosamente. Habilmente. Encostou o rosto alvo ao dele e suspirou de satisfação.
– Não consigo conter esta felicidade dentro de mim, Jonathan. Tenho o coração tão cheio de amor que
parece que vou rebentar. Estou feliz de mais para chorar, mas não sei que mais fazer com toda esta
emoção.
Ele pôs-se em pé, erguendo-a nos braços. Dirigiu-se para as escadas. – Eu sei.
EPÍLOGO

C elia estava sentada no banco próximo da porta do jardim, aproveitando o sol quente do dia. Ao
fundo do caminho, perto dos arbustos, as túlipas de abril mostravam as suas cores garridas,
ondulando na brisa fresca.
Aguardava o regresso de Jonathan. Fora a outra reunião com respeito à sua petição. Thornridge dissera
que contestaria a pretensão ao título, como esperado. Assim como a legalidade do casamento e o direito
a qualquer herança. Iria arrastar-se, sem dúvida, e ser o assunto da temporada. Todo o tipo de
legalidades complicariam a resolução da questão, a maior parte das quais Celia não compreendia. Os
artigos dos jornais opinavam, porém, que era provável que Jonathan recebesse pelo menos a herança.
Entretanto, viveriam naquela casa, e ela não o lamentava. Ganhara afeição por ela e orgulho pela
sociedade que tinha com Daphne. Tratava-se igualmente de um bom jardim, concluiu, olhando para os
novos canteiros que tinham sido escavados, e outras melhorias. Haveria espaço para crianças.
Levou a mão instintivamente ao corpo quando pensou naquilo. Não conseguiu evitar rir-se. Ela e
Jonathan haviam-se casado mesmo a tempo.
Jonathan entrou no jardim, então, e dirigiu-se a ela. Tinha um ar feliz, o que não era incomum naqueles
dias. Sorriu, sentando-se ao seu lado, esticou as pernas e cruzou-as.
– Está calor suficiente, aqui? – perguntou. – Devias ter cuidado. O sol está quente, mas o ar ainda é
frio.
– Estou bem.
Por via das dúvidas, ele pôs-lhe o braço por cima dos ombros, para lhe dar mais calor. Ela pousou a
cabeça no ombro dele.
– Correu bem? – perguntou ela.
– Bastante. E também foi maçador e demorado, tal como esperava. Estavam lá vinte advogados, um
bispo, dois duques, três condes, e mais velino do que vi a vida inteira.
– Parece terrível.
– Não foi terrível, mas será moroso. Daquilo que percebo, primeiro vou a tribunal eclesiástico por
causa do casamento. Depois vou ao outro tribunal por causa da herança, depois de o casamento ser
validado. Depois vou à Câmara dos Lordes. Os advogados do meu primo não param de dizer «uma vez
par, sempre par». O Lorde Chanceler manifestou a opinião de que a tradição não se aplicava a homens
que usurpavam o título por atos criminosos. Um bispo discordou. O outro disse que a Câmara dos Lordes
pode considerar estes crimes como sendo de traição. E foi assim a tarde inteira. – Riu-se. –
Provavelmente estarei morto antes de tudo terminar.
– Não pareces muito preocupado com isso.
– É porque estou a exagerar. Demorará alguns anos, porém. Além disso, o que aconteceu quando eu
saía da instituição ocupa-me mais e é a razão da minha boa disposição. – Sorriu, matreiro. – O advogado
do meu primo veio ter comigo e pediu para me dar uma palavra.
– Para quê?
– Para discutir a minha renda.
Ela endireitou-se e olhou para ele, perplexa. – Ele quer dar-te dinheiro?
– Que coisa do diabo, não é? Não me parece que ele queira. Julgo que acredita que agora pareceria
mal se não o fizesse. Toda a gente sabe que sou filho do tio dele, de uma maneira ou de outra. Talvez
receie que, ao não ter este gesto, a questão maior seja influenciada para pior contra si. – Encolheu os
ombros e fechou os olhos.
– Ou, talvez, veja que o título acabará por lhe fugir e deseje incentivar-te a seres tão generoso como
ele, quando for teu.
– Que cínico da tua parte, Celia. – Beijou-a no nariz. – Tenho a certeza de que se trata do seu coração
generoso.
Ela aninhou-se novamente nele. – Qual era o valor da renda que te propôs?
Os olhos dele permaneceram fechados e voltados para o sol.
– Uma soma respeitável.
– Quão respeitável?
– Muito.
Ela bateu-lhe no ombro. – Quanto?
– Duas mil.
– Por ano?
– Mmm.
– É um bom rendimento, Jonathan.
– Foi o que pensei. Se o advogado me tivesse procurado antes da reunião, poderia ter aceitado. Como
acabava de suportar horas de tédio discursivo, decidi que merecia mais e contrapus com sete mil.
Ficámos entre os dois valores.
Mais de quatro mil libras por ano. – O que vamos fazer com o dinheiro?
– Podemos comprar-te um guarda-roupa novo, imagino. E algumas joias.
– Uma carruagem seria agradável, com uma bela parelha.
– Bem, se nos decidirmos a tal, conseguimos gastá-lo todo em menos de nada. – Rodeou o pescoço
dela com o braço e puxou-a para ele para a beijar. – Podes ficar com ele todo, para fazeres o que
quiseres, Celia. Eu tenho aquilo que quero aqui mesmo. – Tocou-lhe no ventre, depois num seio, numa
carícia.
Uma tosse discreta vinda do jardim fê-los virar aos dois. Viram Bella, muito vermelha com o que
testemunhara. – As minhas desculpas. Mas está aqui um homem para a ver, Celia. Está na sala de visitas.
Tenho aqui o cartão dele.
Jonathan levantou-se para pegar no cartão. Leu-o e ergueu as sobrancelhas. Entregou-o a Celia.
Mr. Mappleton estava de visita.

Mr. Mappleton era todo sorrisos quando o cumprimentaram. Dedicou a Celia uma vénia mais profunda
do que alguma vez fizera e dirigiu alguns comentários elogiosos a Jonathan. Celia partiu do princípio de
que Mr. Mappleton andava a ler os jornais sobre as expectativas consideráveis do marido.
Quando todos estavam sentados, o advogado sorriu ainda mais. – Vim por várias razões. Espero que
não se importem. Pensei que poderia poupá-los a uma visita ao meu escritório.
– É muito atencioso da sua parte. – Ela sempre gostara de Mr. Mappleton. Fora uma ajuda fiel para a
sua mãe.
– Sim... Bom, primeiro, queria informá-los de que a relação dos bens está concluída. Está tudo em
ordem. Não houve mais reclamações de crédito, por isso esta casa é sua de uma vez por todas.
– É bom saber. – Ela resistiu a olhar para Jonathan, que se certificara de que não haveria mas
revindicações.
– Venho também como emissário – prosseguiu Mr. Mappleton, mais sério. – É minha sincera esperança
que me ouça. As minhas palavras são literalmente do cavalheiro que me pediu para as dizer.
– Que cavalheiro? – perguntou Jonathan.
– Não tenho a liberdade de o dizer, senhor. Foi-me garantido que Miss Pennifold... Mrs. Albrighton...
Saberia da sua origem e significado. – Os seus olhos endiabrados brilhavam. – Julgo que não será uma
traição ao meu encargo se disser que foi um cavalheiro muito bem colocado.
– Ouçamos, então – concluiu Jonathan.
– Foi-me pedido que lhe dissesse, Mrs. Albrighton, que seria recebida se fizesse uma nova visita. É a
mensagem na sua completude.
Jonathan olhou para ela, sem parecer muito alegre com aquela abertura. Na verdade, também era assim
que ela se sentia. Levaria algum tempo até visitar novamente Enderby, independentemente das novas
ponderações do marquês. Fá-lo-ia, um dia, porém. Tratava-se do pai dela, não tratava?
– Obrigada, Mr. Mappleton. Compreendo, e aprecio a sua ajuda – devolveu ela.
– Está feito, então. Há mais uma coisa. – Mexeu no casaco e apresentou uma carta. – Foi deixada na
minha posse pela sua mãe. As instruções eram para lha entregar se algum dia casasse por amor. – Olhou
para ela, depois para Jonathan, e corou. – Como se eu pudesse ter a certeza! Foi o que lhe disse. Ela
garantiu-me que a filha me responderia honestamente à pergunta, se a formulasse.
Subitamente, pareceu consternado. – Talvez seja necessário perguntar isto em privado à senhora, Mr.
Albrighton. Sim, seria melhor, suponho. Que descuido da minha parte. Não estou acostumado a missões
tão peculiares...
– Não se aflija, senhor – adiantou Celia. – A presença do meu marido não é constrangimento para a
minha honestidade, sobretudo nesta pergunta. Foi por amor que casei, pode ter a certeza disso.
Mr. Mappleton olhou para ela com doçura. – Sim, acredito que o tenha feito, querida senhora. –
Ofereceu-lhe cerimoniosamente a carta.
A seguir, retirou-se. Celia sentou-se com a carta no colo. O papel parecia bastante recente. Não devia
ter sido escrita há muito tempo.
– Não vais lê-la? – perguntou Jonathan.
– Não sei se quero. Contém uma reprimenda por este casamento, tenho a certeza, e por ter sido
imprudente com o meu futuro.
Jonathan fez uma careta. – Se assim fosse, seria cruel e egoísta da parte dela sair da sepultura para te
afligir. Não me parece que o fizesse.
Ela tocou no papel com um tremor, para rapidamente abrir a carta.
Leu imediatamente o conteúdo e piscou os olhos com força, confusa com as palavras. Leu-a uma
segunda vez. Sentiu o coração inchado com as emoções que a invadiam. Começou a chorar
descontroladamente.
Jonathan chamou-a para o seu abraço. Pegou na carta e amarfalhou-a com a mão. – Vamos queimá-la;
se chegar mais alguma, não a lerás. Não quero ver-te assim perturbada apenas por ela não conseguir
aceitar que os planos que tinha para ti não eram aqueles que tu tinhas para ti própria.
Ela abanou a cabeça e esforçou-se por recuperar a compostura. – Não é o que julgas, meu amor. Não é
egoísta nem cruel. É uma carta maravilhosa. – Tirou-lha do punho fechado e desdobrou-a. Alisou a folha
no colo. – Tens de a ler comigo. Tens de a ler.
De cabeças juntas, unidos sob o abraço dele, leram a carta.

Minha querida, querida, Celia,


Se estás a ler isto, significa que te casaste. Significa, além do mais, que rejeitaste tudo o que te
ensinei, ao escolheres o teu marido pela menos prática das razões. Arriscaste o teu futuro, a tua
segurança, o teu coração e até a tua pessoa, em nome de uma emoção que, para a maioria das
mulheres, se revela transitória e caprichosa.
Quero que saibas que compreendo. Também eu já amei, uma vez. Embora me conduzisse à desilusão,
foi uma paixão gloriosa enquanto lhe foi dado durar. Se abraçaste a oportunidade de conhecer algo
semelhante para sempre, dificilmente poderei opor-me. Na verdade, é minha esperança sincera, ao
escrever esta carta, que um dia a leias, pois significará que não só encontraste um homem que é digno
do teu amor, como também sábio o suficiente para reconhecer a verdadeira beleza que tens dentro de
ti, e que também está disposto a arriscar tanto quanto tu para te ter na vida dele.
Rogo-te que te recordes de mim, Celia, e quando os teus filhos tiverem idade para compreender
talvez lhes fales de mim. Haverias de ter sido a cortesã mais magnífica que Londres alguma vez veria,
filha, mas choro de alegria ao pensar que podes encontrar a felicidade neste outro caminho.
Tens o meu amor, e a minha bênção.
Alessandra

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