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Alerta de gatilhos
Prólogo
Capítulo primeiro
Capítulo segundo
Capítulo terceiro
Capítulo quarto
Capítulo quinto
Capítulo sexto
Capítulo sétimo
Capítulo oitavo
Capítulo nono
Capítulo décimo
Capítulo décimo primeiro
Capítulo décimo segundo
Capítulo décimo terceiro
Capítulo décimo quarto
Capítulo décimo quinto
Capítulo décimo sexto
Capítulo décimo sétimo
Capítulo décimo oitavo
Capítulo décimo nono
Capítulo vigésimo
Capítulo vigésimo primeiro
Capítulo vigésimo segundo
Capítulo vigésimo terceiro
Epílogo
Nota da autora
Sobre a autora
Capítulo primeiro
Alerta de gatilhos
Olá, leitoras!
Antes de começarmos, preciso informar que esse livro possui
alguns gatilhos que podem ser desconfortáveis para pessoas
sensíveis ao tema.
A história tem gatilhos para
- Depressão,
- Importunação sexual,
- Luto.
O livro é um romance entre pessoas adultas que fazem sexo e,
por isso, contém muitas cenas eróticas descritivas.
Se você entende que esses gatilhos e temas não são obstáculo
para sua leitura, então seja bem-vinda ao mundo dos Eckleys!
Prólogo
Londres, 1895
McFadden Garden
C E
: os Eckleys não se apaixonavam. Bem, eles se
apaixonavam, claro, por muitas mulheres ao mesmo tempo. No caso
de Caroline, sua prima-irmã, por muitos homens. Aquele sentimento
romântico que unia os casais apaixonados, esse não fazia parte da
história da família.
Até que seu irmão mais velho se rendeu ao amor e, alguns anos
depois, Caroline também se casou. Sua convicção sobre o destino
malfadado de um Eckley foi sepultada com a constatação de que
ele, também, estava apaixonado. Não era uma paixão qualquer.
Charles amava a sua melhor amiga.
Talvez tenha acontecido naquela vez em que nadaram
escondidos na praia privativa de Greenwood Park, a propriedade
litorânea dos McFaddens. Pode ter sido quando ficaram presos na
vila durante um temporal e dividiram um cobertor para não
morrerem de frio. Não que fossem morrer de verdade, mas estava,
sim, muito frio. Teve também a vez em que ele adoeceu e ela
permaneceu ao seu lado durante muitas noites, mesmo que sua
mãe expressamente proibisse. Charles só sabia que ele não se
lembrava mais de uma época em que ele não amasse Olivia
Trentham.
Era por aquele motivo que estava ali, naquele baile, vestindo seu
melhor terno e apalpando uma caixa de veludo escondida dentro do
bolso do colete. Não gostava de bailes — ia por causa dela.
Escolhera aquele em especial porque a data representava um
momento marcante de sua vida: quando fechou seu primeiro
negócio. Não via o casamento como um negócio, mas seria incrível
se Olivia aceitasse seu pedido naquele mesmo dia.
Sim, ele queria casar-se com ela. Dois outros Eckleys se
casaram e estavam bem de saúde, então o casamento não o
mataria. Olivia era uma dama. De que outra forma poderia ficar com
a mulher que amava sem desonrá-la perante a sociedade que ela
tanto respeitava?
Já refletira sobre tudo que estaria abandonando. Uma vida de
libertinagem. Noites de jogatina. Uma casa pequena e silenciosa.
Liberdade. Nada daquilo importava sem ela. Olivia trazia cor ao
cinza nublado de seu olhar e era música para a monotonia de seus
dias. Ele passaria uma vida feliz ao lado dela e tinha certeza de que
também a faria feliz. Talvez ela não o amasse de volta, mas Charles
estava tão entorpecido pelo sentimento que imaginou-se amando
pelos dois.
Alguns conhecidos diriam que amar tanto era fraqueza, ele
discordava. Sentia-se mais forte ao lado dela. Apalpou novamente o
bolso, confirmou que a caixinha estava ali e disparou para a
varanda. Ele a vira sair pelas portas duplas pouco depois de
terminar uma quadrilha e não retornara, ainda. Não a encontrou à
vista e debruçou-se por cima da balaustrada para examinar o jardim.
Aonde ela fora? Charles recusava-se a acreditar que ela, tão
recatada, teria se embrenhado na quase escuridão e arriscado a
sua reputação.
Olhou para os lados e confirmou que ninguém o observava. Não
que fosse um problema, ele já pretendia casar-se com ela. Apenas
não queria que fosse por um escândalo, preferia que ela lhe
dissesse sim. Seguiu silencioso pelos caminhos de pedra enquanto
seus olhos buscavam pelos lugares que ele estaria se quisesse
conversar em privado com uma mulher. Parou ao ouvir um ruído de
risadas.
À sua frente estavam Olivia e Nicholas, seu irmão mais novo.
Charles escondeu-se entre sebes e flores para não ser visto. O que
eles faziam ali? Esticou o pescoço para ver melhor e quase caiu
para trás no meio dos espinhos. Os risos cessaram porque eles
estavam se beijando.
Não era um beijo digno de um Eckley. Nicholas era um
cavalheiro digno e comedido, mesmo que estivesse com uma dama
na escuridão de um jardim. Ele apenas segurou-lhe a face com as
duas mãos e deitou sua boca na dela. Olivia queria ser beijada —
segurava-o pelo casaco para mantê-lo próximo. Durou menos de um
minuto e deixou Charles devastado.
O buraco em seu peito era maior do que se tivesse tomado um
tiro de canhão. Deu meia volta, esgueirou-se pelas sombras até
ganhar as ruas. Seu coração poderia ter parado de bater e ele não
perceberia — estava arrasado. A decepção causava dor física e,
para aplacá-la, Charles fez o que sabia melhor: afogou-se em
bebida e perdeu-se no corpo de outra mulher.
Olivia não seria dele. Nunca. Não naquela vida. Ela gostava de
seu irmãozinho e Charles amava os dois o suficiente para manter-se
distante. Não importava o quanto doesse, em algum momento ele a
esqueceria e voltaria a viver em paz. Talvez quando ela e Nicholas
se casassem, tivessem uma dúzia de filhos e fossem morar no sul.
Exceto que eles nunca se casaram. O cortejo durou alguns
meses, mas acabou com cada um seguindo caminhos diferentes. O
Conde de Salisbury, pai de Olivia, faleceu e ela entrou em luto. O
tempo passou, Charles se tornou um canalha incorrigível e nunca
mais desafiou os planos do destino. Os Eckleys não deveriam se
apaixonar.
Capítulo primeiro
Londres, 12 de abril de 1898
Grosvenor Square
C
. Na primeira vez, pensou ter entendido errado. Na segunda,
acreditou que havia alguma informação equivocada. Na terceira,
teve certeza de que estava sendo traído.
— Maldição! — Atirou o papel já amassado por seus dedos
nervosos por sobre a mesa. — Inferno! Canalha! Pusilânime!
Aquilo não podia estar acontecendo. Depois de tantos meses de
dedicação àquele negócio, depois de tantos investimentos vultosos
para viabilizar toda a estrutura de distribuição exigida pelo
remetente da carta, o homem não poderia simplesmente colocar
outro em seu lugar. Poderia?
Charles serviu-se de uma dose de uísque e virou tudo de uma
vez. Girou ao redor da escrivaninha de seu escritório até parar de
frente para ela e apoiar seu corpo sobre os dois braços. Baixou a
cabeça e fechou os olhos, tentando se impedir de pegar um navio e
ir ao encontro do maldito que o estava fazendo perder o controle.
— Charles? — A voz do irmão o fez abrir os olhos e virar-se para
a porta. — Está tudo bem?
— Não — ele rosnou e caminhou até o aparador de bebidas para
servir-se de outra dose. Pegou a carta amassada e atirou sobre o
irmão. — Veja você mesmo.
Nicholas pegou o papel e o abriu. Apesar de ser o mais jovem,
era o Eckley mais centrado — menos impulsivo, mais racional,
afastado dos escândalos e bem-vindo em todos os eventos sociais
da aristocracia. E estava morando com Charles desde o início do
ano, quando retornou de Oxford depois de formar-se com láureas
em Contabilidade.
— Bharat Gupta não é aquele amigo de Anthony que gosta de
enviar presentes de conotação sexual? — perguntou.
— Esse mesmo! Um maldito! Um traidor! — Ele mais uma vez
finalizou a bebida em um só gole.
— Você terá que fazer melhor do que ofendê-lo para que eu
compreenda sua indignação, irmão. — Nicholas se sentou. Era
esperado que o destempero de Charles fosse durar mais tempo do
que o jovem teria disposição de aguardar em pé. — O que o homem
fez para irritá-lo?
Ele também se sentou e passou os dedos trêmulos pelos
cabelos desalinhados. Estava tão furioso com a correspondência
que não conseguia controlar seu ímpeto — e Charles era muito
impetuoso.
— Temos negócios, ou tínhamos, era o que acreditava. Gupta é
fabricante das mais cobiçadas sedas indianas na Europa e está
expandindo para as Américas. Seu antigo distribuidor não o estava
mais satisfazendo e ele dispensou o homem. Desde então estamos
em contato e ele me garantiu que fecharíamos um contrato
exclusivo.
— Na carta, ele sugere que virá conhecer futuros parceiros.
— Sim, o maldito mudou de ideia! — Ele se levantou outra vez e
encheu o copo com uísque. — Nick, eu estou há meses perdendo
tempo com esse patife! Investi milhares de libras na compra e
locação de locais de armazenamento e em navios! Envolvi Robert
no negócio e agora o canalha vem dizer que “não está certo” sobre
nossa parceria?
O irmão evitou que ele consumisse a terceira dose de uísque em
seguida. Pegou o copo e o tomou para si, bebericando o líquido
âmbar.
— O que o fez mudar de ideia?
— E eu sei? O homem de repente decidiu que seu parceiro
comercial precisa ser respeitável! Eu não sou respeitável, afinal?
Um breve silêncio indicou que o irmão tinha dúvidas quanto à
resposta da pergunta. Nicholas bebeu outro gole do uísque e apoiou
o copo de vidro sobre a madeira escura da escrivaninha. Seus olhos
permaneceram alguns instantes focados no objeto em suas mãos
até que ele os ergueu e fitou o irmão mais velho com uma
expressão condescendente.
— Sua reputação é péssima — Nicholas sentenciou. — Em
pouco mais de um ano você triplicou seu patrimônio, mas seu nome
é usado como sinônimo de jogador compulsivo e libertino. Entre a
aristocracia você é visto como uma hiena que espreita o animal
ferido para alimentar-se dele. As mulheres o consideram um
péssimo partido. Você tem dinheiro, irmão, mas poucas pessoas
gostam de você.
A sinceridade era uma maldição dos Eckleys, assim como a
libertinagem. Não que Nicholas lhe estivesse contando alguma
novidade — Charles sabia que poucos o tinham em consideração.
Ele nunca jogava para perder, nem nas mesas de jogos, nem nos
negócios. Também não se importava em passar por sobre os
adversários como um trator de demolição. Talvez ele fosse mesmo
um desalmado, uma hiena que espreitava a morte para saciar-se da
carcaça, um canalha que achava a aristocracia tediosa e preferia a
companhia das prostitutas e dos jogadores inveterados como ele.
Charles apenas não acreditava que isso pudesse afetar seus
negócios daquela forma. Por que raios sua interação com as
pessoas importaria quando o assunto era sua capacidade de gerir
adequadamente um negócio?
— Gupta é um imbecil — insistiu. — Porém, preciso dar um jeito
de resolver isso. Investi tempo e dinheiro demais para perder esse
contrato.
— Imagino que você encontrará a solução, mas posso lhe
oferecer uma sugestão?
— Entretenha-me.
Nicholas riu e se levantou.
— Poderia considerar tornar-se um homem respeitável por
algum tempo. O tal Gupta está vindo a Londres, então mostre para
ele que você é o quarto filho de um marquês, mesmo que isso não
signifique nada. Depois que o contrato estiver assinado, volte à sua
vida de devassidão, jogatina e ódio à aristocracia.
— Eu não odeio a aristocracia. Desprezo-a, é diferente.
O irmão riu antes de virar-se e sair. Maldição! O dia estava tão
ruim a ponto de constrangê-lo a aceitar aquele tipo de admoestação
vinda de seu irmão caçula? Desde quando Nicholas virara a voz da
razão para orientá-lo em como agir com seus negócios?
Não tivesse investido todas aquelas libras, mandaria Gupta e
sua esquisitice para os infernos, porém, não podia perder tanto. E
não era apenas ele — suas perdas refletiriam no irmão gêmeo, que
se tornara seu parceiro comprando dois navios para a distribuição
das sedas Gupta pelas Américas. Então, precisaria dar um jeito de
superar a concorrência e ganhar aquele contrato.
Talvez Charles precisasse de ajuda. Ele nem mesmo sabia o que
deveria fazer caso quisesse seguir os conselhos de Nicholas. O que
significava ser um homem respeitável, afinal?
Londres, 13 de abril de 1898
Brook Street
Aquele tinha sido um dia muito ruim. Seu cavalo teve que ser
sacrificado depois de uma queda causada por sua
irresponsabilidade e não havia nenhuma mulher ou garrafa de
uísque na qual ele podia afogar suas mágoas. Anthony, o mais novo
Marquês de Granville, dera ordens estritas para que todas as
bebidas da casa fossem trancadas em segurança — o que era um
absurdo, já que Anthony adorava beber. Por que ele não podia?
O sol começava a se pôr quando Charles se sentou à beira da
praia. Aquela era a enseada particular dos McFadden, seus vizinhos
de propriedade, porém, era comum que os Eckleys a invadissem.
Claro que os McFadden sabiam e fingiam se importar, mas não se
importavam tanto assim. O mar estava agitado, ventava muito e a
areia estava úmida a ponto de molhar seu traseiro depois de vinte
minutos. Apesar disso, o ruído intermitente da arrebentação o fez
sentir paz.
Ainda faltavam algumas horas para que a taberna em Thanet
abrisse e ele pudesse ir até lá beber e seduzir alguma das
prostitutas locais. Não que elas precisassem ser seduzidas, o que
lhes importava era uma boa quantia de dinheiro enfiada em seus
corpetes. Charles não ligava — ele adorava mulheres, adorava estar
dentro delas e adorava ser mimado por elas.
Seus pensamentos estavam naquele tom de impurezas quando
uma presença conhecida se fez sentir. O vento carregou o cheiro de
lavanda de Olivia até suas narinas e ele praguejou baixinho quando
ela se sentou ao seu lado. Ajeitando os vestidos volumosos e
dobrando as pernas, a menina ficou em silêncio por pelo menos dez
minutos antes de começar a tagarelar.
— Fiz para você — ela estendeu um objeto à sua frente. Charles
relutou em virar-se para olhá-la, pois não sabia se a umidade em
seu rosto era decorrente da maresia ou de uma lágrima. — Vamos,
pegue. Você vai gostar.
Ele virou o pescoço e ela estava ali. Os cabelos açoitados pela
ventania, porém ainda restritos a um penteado jovial. Grandes olhos
castanhos emoldurados por cílios longos e…
Olivia tinha quinze anos. Charles a via como uma menina
desengonçada desde que ela usava vestidos curtos, mas aquela
não era mais a idade de uma garotinha. Ainda assim, ela era Olivia.
Sua amiga — e nas mãos dela havia um objeto estranho. Parecia
um pé de coelho, mas por que ela lhe daria um amuleto da sorte?
— O que é isso? — Ele pegou o objeto na mão. Tinha uma tira
de couro que o transformava em uma espécie de pingente, mas era
grande demais para ser usado em um colar.
— Pedi que fizessem para você com pelos da crina de
Selvagem.
Charles franziu a testa enquanto tentava examinar o objeto na
pouca luz. O sol desaparecia rápido no horizonte e logo eles
estariam na completa escuridão. Ela não deveria estar ali com ele.
— Isso é um pouco bizarro.
— Há alguns anos, Annabelle achou um cão na rua e o levou
para casa. Nós cuidamos do bichinho, mas ele estava muito
debilitado e morreu algumas semanas depois. Ela ficou inconsolável
e papai fez um parecido para ela.
— Ele arrancou pelo de um cachorro morto e fez um pingente?
— Charles provocou, levando a mão à boca para fingir estar
horrorizado.
— Você é impossível — ela se levantou e bateu a areia da saia.
— Consegue transformar todo gesto em uma piada e ridicularizar
qualquer coisa que represente sentimentos.
Olivia saiu pisando fundo na areia. Burro. Ele fazia aquilo com
frequência — assustava-a ou ofendia-a sem a intenção de ofender.
Em uma coisa ela tinha razão: ele não sabia lidar com sentimentos.
Sempre que as coisas conduziam a um momento emotivo em que
ele precisaria abrir seu coração, Charles fazia alguma coisa
desagradável e afastava todo mundo.
Não podia deixar que ela saísse daquela forma. Levantou-se e,
em três passos, estava ao lado dela. Segurou-a pela mão e a fez se
virar para si. Balançou o pingente macabro com a crina de
Selvagem na frente dela e, depois de se certificar que ela o vira,
colocou a coisa no bolso.
— Desculpe-me. Não quis desfazer de seu gesto.
— Pode ajudar a superar a perda se você guarda uma
lembrança de quem se foi. Sei que está sofrendo, então…
— Eu não estou sofrendo, de onde tirou isso?
Olivia suspirou e, mordendo o lábio inferior, levou a mão
enluvada até ele. Charles pensou em sair correndo ou enrijecer o
corpo até se transformar em pedra. O que ela estava fazendo, a
mulher iria tocá-lo? Antes que sua mente formulasse uma reação,
os dedos delicados deslizaram por sua bochecha e o fizeram sentir
uma centena de arrepios diferentes.
— Dessa lágrima seca aqui. Do fato de você não ter aparecido
na casa desde que Selvagem foi sacrificado. Da experiência. Não é
fácil perder o melhor amigo.
— Selvagem não era meu melhor amigo.
— Ele era. — A diabinha sorriu. — Você pode fingir que é uma
rocha, Charles Eckley, mas não me engana. Por dentro dessa casca
dura há um coração de ouro e um homem sensível.
Cristo, de onde ela tirava aquelas coisas? Desde quando havia
alguma sensibilidade dentro dele e, pior ainda, como ela sequer
poderia imaginar isso? Olivia era jovem, sonhadora e acreditava que
todas as pessoas eram boas. Talvez algum dia ela se desapontasse
com ele a ponto de compreender o quanto sombria sua alma
poderia ser.
Não seria aquele dia. Respirando fundo, Charles ofereceu o
braço para que pudessem voltar para a mansão antes que
começassem a procurá-la.
Capítulo segundo
Londres, 13 de abril de 1898
Brook Street
M ?
Charles já se arrependera de procurar sua amiga para
aconselhamento. Era uma ideia ruim desde sua concepção — Olivia
era uma jovem que vivia em um mundo de fantasia da aristocracia
que era incompatível com seus problemas do mundo real. Por mais
ridículo que seu plano fosse, ele tinha um objetivo concreto.
Mas ele sempre corria para ela em qualquer situação. Olivia era
seu destino quando estava satisfeito com o trabalho, quando estava
irritado com o trabalho, quando ganhava ou perdia nas mesas de
jogos, quando terminava um dia exaustivo nos canteiros de obras e
sua casa parecia vazia demais para recebê-lo. Ele gravitava ao seu
redor e o fazia sem perceber.
Tocou o bolso onde estava o amuleto de sorte que ela lhe
presenteara anos atrás e suspirou. Foi quando ela dissera que
guardar consigo uma parte de quem partira ajudava a superar o luto.
Não sabia se ela estava certa, mas mantinha aquele pedaço de
couro com pelos de animal em sua posse desde então. Não era por
Selvagem. Ele amava o cavalo, mas a presença que o amuleto
representava era o cuidado de Olivia. Ele não a perdera, porque
nunca a tivera, mas vivia de luto pelo amor que lhe era negado.
Quando mais jovens, ele a queria tanto que cogitou casar-se
com ela — mas seus planos se frustraram no instante em que
Charles a vira beijar seu irmão Nicholas no jardim dos McFadden.
Ali ele teve certeza de que não merecia Olivia — Nick era um
homem muito melhor do que ele —, mas o envolvimento não passou
de um cortejo desajeitado. Depois que se afastaram, veio o
falecimento do Conde de Salisbury e muito tempo já tinha passado.
Era tarde demais. Ele já estava contaminado pela sujeira do
submundo e ela era uma joia preciosa que não deveria se envolver
com alguém que só pensava em ficar cada vez mais rico. Olivia
merecia um homem gentil, um lorde com título e uma família cuja
ascendência pudesse ser rastreada até a Guerra das Flores.
Precisava parar de divagar e voltar ao tema central da conversa:
ela estava fora de si.
— Você está sóbria? — perguntou. Olivia franziu a testa e o
encarou por longos segundos.
— Claro que estou! Charles! Eu sou uma dama, não me dou a
esse tipo de imoralidade.
— Só estando fora de seu juízo perfeito para sequer considerar
uma proposta dessas — ele reprimiu a vontade de passar as mãos
pelos cabelos e arrancar alguns tufos. — Não fingirei um noivado e
não farei isso com você.
O olhar dela despencou para o tapete e permaneceu ali
enquanto os dedos pequenos e com unhas muito bem cortadas
batucavam de leve sobre os joelhos. Olivia torceu os lábios para a
direita, depois para a esquerda e ergueu os olhos para encontrar os
dele. Ela estava aborrecida.
— Sou tão indesejável assim que nem para uma trapaça eu
sirvo?
Sim, ela estava fora de si. Tinha que estar, para falar uma
bobagem daquelas. Claro que Olivia não entenderia seu problema
em aceitar aquela proposta absurda. Era difícil manter uma postura
indiferente diante dela e ele se desafiava toda vez ao insistir em vê-
la com frequência. Se fosse obrigado a simular afeto, acabaria
sendo descoberto por qualquer tolo que lhes prestasse atenção —
porque Charles não precisaria fingir. Por anos ele desejou beijá-la,
possuí-la, tomá-la para si e não haveria qualquer necessidade de
fingimento.
— Livvy, digamos que a sua ideia seja boa: casamento dignifica
o homem. Não acredito nisso, mas a sociedade parece crer que sim.
Se fizermos isso, você terminará arruinada no final. Não posso
arriscar prejudicar sua reputação a troco da minha.
— Mas não é essa a minha proposta — ela sorriu erguendo um
lado dos lábios. — Não precisaríamos fingir um noivado, você pode
apenas me cortejar. Você ainda é jovem, o tal comerciante não
espera que homens de vinte e sete anos já estejam casados,
espera? Mas, se estiver cortejando uma dama de comportamento
irrepreensível e boa posição social, isso deporia a seu favor. E, no
final, eu também preciso de ajuda.
Ela era esperta demais. Por que raios ele ainda estava ouvindo
aquela proposta irracional? Ou, talvez, fosse racional demais e não
o deixasse na posição de recusar.
— Que tipo de ajuda?
— Simples. Você finge me cortejar, passamos algum tempo
juntos para que todos acreditem e o ajudo a apresentar-se
respeitável para a sociedade que despreza. Você me ajuda a
resolver os problemas financeiros da família, seja eles quais forem,
e a me tornar desejável para outros homens. Assim eu consigo um
marido com título antes do final da temporada.
Ele olhou para a xícara em sua mão e de volta para ela, cujos
dedos se retorciam sobre o colo enquanto apertavam o tecido da
saia do vestido.
— Sem condições.
Charles levantou-se. Ela fez o mesmo.
— Por favor, não saia assim. Pense. Preciso de você, Charles.
Lá estava Olivia Trentham segurando-o mais uma vez. Tocando-
o com aquela mão feminina perfeita sem luvas ou barreiras que o
impedissem de sentir o calor de sua pele. Ela nem mesmo estava
usando sapatos! Os olhos, castanhos e expressivos, o fitavam com
angústia e ele só conseguia pensar em jogá-la sobre uma superfície
e possuí-la até que suas forças se exaurissem. Cristo, como ele
podia negar qualquer coisa àquela mulher? Se ela o pedisse para
saltar no Tâmisa, ele o faria imediatamente.
— O que devo fazer?
Ela sorriu.
— Tudo que você detesta. Frequentaremos alguns bailes e
jantares, mostraremos a todos o quanto você se regenerou e,
quando o seu homem chegar, ele cairá de amores por você. Em
contrapartida, você esfolará o Sr. Jhonessy, me ajudará a salvar as
finanças da família e a conquistar pretendentes.
— Você tem pretendentes?
O simples pensamento o deixou nauseado. Claro que ela tinha
pretendentes. O que ele esperava, que Olivia fosse morrer
solteirona? Bem, talvez sim. Depois que ela terminou o
compromisso com Nicholas, ele a imaginou como uma santa
imaculada sobre um pedestal e dentro de uma redoma de vidro.
Intocada, pura e disponível para veneração — somente.
— Eu tinha. Alguns se casaram durante meu período de luto e os
que continuam solteiros estão cortejando outras damas. A maioria
deles. Há outros que me interessam, no entanto. E eu preciso me
casar com um nobre, Charles. Sabe disso, estava no testamento de
papai.
Olivia abriu seu caderninho, o maldito caderninho de couro que
ele desejava tanto conhecer o conteúdo, e passou os olhos por
algumas páginas. Charles odiava aquele testamento. Foi a única
coisa desprezível que Salisbury fizera enquanto vivo — condicionar
a herança de suas três filhas a casamentos com homens da
aristocracia. Não, não bastava que fossem aristocratas, os maridos
tinham que ter títulos.
Títulos! Se havia algo que ele desprezava mais do que títulos,
eram pais decidindo com quem suas filhas deveriam se casar. Por
que Salisbury, um homem que ele até considerava progressista,
obrigava suas filhas a arrumarem maridos titulados, ele não sabia.
Só alimentava a sua certeza de que jamais teria Olivia para si.
— Você tem uma lista de pretendentes, então.
— Potenciais pretendentes. Alguns favoritos, como o Duque de
Greystone.
Charles começou a tossir. Sua garganta secou, fechou e ardeu
como se ele estivesse no árido de um deserto africano — aqueles
que ele conheceu quando era um garotinho e de cujo clima rigoroso
pouco recordava. Greystone? Por que raios aquela mulher insistia
em se envolver com todos os seus parentes e amigos?
Não que Greystone fosse um grande amigo, mas era um dos
poucos nobres da alta aristocracia que ele tolerava. Charles não
estava nem pronto, nem desejoso de ajudá-la a seduzir o maldito.
Ele nem sequer podia imaginá-la como uma sedutora sem que isso
o partisse em mil pedaços.
— O duque não parece tentado a se casar.
— Ah, ele é esquivo. Porém, é um duque e precisa de herdeiros.
Como não há um irmão que possa manter o ducado na família, ele
certamente buscará uma esposa em breve.
Ele bufou. Claro que era um péssimo negócio aceitar aquela
proposta ridícula, mas a ideia era ruim desde a gênese — era nesse
momento que ele lamentaria ter sido fraco e corrido para ela, como
sempre fazia. Teria que ajudá-la com finanças e pretendentes em
troca de fingirem um processo de sedução. Sim, era um péssimo
negócio. Charles não se considerava um homem forte o suficiente
para resistir aos desejos mundanos e havia poucas coisas que ele
desejava mais do que seduzir a mulher à sua frente. O que ele faria
se pudesse realmente seduzi-la? Ela terminaria arruinada e não
haveria perdão para seus atos.
Era indigno também que se aproveitasse do desespero que ela
aparentava para se beneficiar. Como um bom amigo e um homem
digno, Charles deveria apenas ajudá-la sem qualquer
contraprestação. Havia um problema: ele não era digno. Gupta tinha
razão, Charles não passava de um canalha entregue à própria
devassidão.
— É um bom acordo — ele estendeu a mão para ela. — E você
deve ouvir todas as minhas orientações durante esse período.
Inclusive quanto aos possíveis candidatos a marido.
— Estamos combinados.
Com um aperto de mão vacilante, Olivia Trentham selou um
pacto com o diabo — mas Charles sabia que era a sua alma que iria
para o inferno.
Londres, 14 de abril de 1898
Brook Street
Grosvenor Square
—V ?
Nicholas atirou o jornal do dia sobre o irmão, que estava sentado
à mesa da sala de refeições. Era um lindo dia de primavera e o
cheiro insuportável de flores vindo dos jardins vizinhos irritava as
narinas de Charles. Com calma, pegou o exemplar do Morning
Chronicle e colocou-o à sua frente.
— Bom dia, Nick.
— Não seja cínico comigo, Charles. Do que se trata isso?
O irmão abriu o jornal e enfiou o dedo sobre uma das notícias da
coluna da sociedade. A notícia era uma fofoca fabricada sobre
alguém que afirmava que Charles Eckley estivera muito interessado
em Olivia Trentham em uma festa a qual ele não compareceu. A
notícia, em tom de revelação, dava detalhes do quanto ele se
deslumbrara com a dama e que um cortejo estava em andamento.
Ah, como ele odiava aquela bobagem e tudo que representava a
aristocracia e sua podridão! Preferia não ter que lidar com nada
daquilo, mas Gupta o deixara sem opções.
— Eu e Olivia estamos nos entendendo.
— Convenientemente depois que você recebeu uma carta que o
colocou em uma posição bastante difícil perante um futuro parceiro
comercial?
Charles afastou o jornal e serviu-se de café.
— Você é inteligente demais e já entendeu o que está havendo.
Saiba que a ideia foi dela.
— Olivia teve a ideia de mentir sobre o envolvimento de vocês
para enganar Bharat Gupta e a sociedade londrina como efeito
colateral?
Faltava-lhe paciência para um moralista na família.
— Nick, você sabia que eles estão com dívidas?
A pergunta pegou o irmão de surpresa. Nicholas sentou-se no
lado oposto da mesa e serviu-se do desjejum enquanto mantinha
uma expressão de dúvida e confusão.
— Muitas dívidas?
— Ainda não sei, porém, o Banco de Londres está executando
três hipotecas.
— Três? — O irmão parecia não acreditar naquele absurdo.
— Hoje vou até o administrador dos bens e pretendo encurralá-
lo.
Charles deixou de fora que pretendia surrar o homem até que
seu rosto estivesse tão distorcido que ninguém conseguiria
reconhecê-lo. Nicholas levou uma garfada de comida à boca
enquanto pensava sobre a situação. Desde que parara de cortejar
Olivia, o relacionamento dos dois esfriou a ponto de quase não se
verem. O irmão passava todo o tempo em Oxford e Charles nunca
descobriu se ele ainda sentia algo pela amiga.
De toda forma, eles eram os Eckleys mais próximos dos
Trentham e mantiveram contato com a família mesmo depois do
falecimento do conde. Por isso sentiam-se responsáveis por eles de
alguma forma.
— Por que você aceitou de bom grado que ela coloque sua
reputação em risco? Ela pode acabar arruinada, Charles!
— Sei disso, mas essa é a forma que encontrei para cuidar
deles. — Ele bebeu o restante do café e se levantou. — Se eu
estiver envolvido com ela, poderei exigir que o tal Sr. Jhonessy
transfira para mim a administração dos bens do condado.
— Ainda assim, é um plano ruim.
— Concordo, e ainda assim foi ideia dela.
Nicholas bufou, levantou-se e intendeu sair da sala.
— Pretende revelar a verdade para mais alguém?
— Não, não quero que ninguém saiba. Preciso que todos
acreditem que estou regenerado ou o próprio Gupta não acreditará.
Conto com sua discrição.
O irmão não estava satisfeito com suas explicações, o que não o
importava muito. Charles tinha certeza de que suas decisões nos
dois últimos dias foram tomadas no ímpeto do desespero e que seu
pênis guiara boa parte delas, mas ele carecia de filtros morais que o
impedissem de fazer a coisa errada se fosse beneficiar-se dela. E,
no grau máximo de sua confiança, acreditava que não arruinaria
Olivia e que seria capaz de conduzir a farsa profissionalmente.
Todos ganhariam, então não havia motivos para se repreender.
Havia dezenas de coisas que clamavam por sua atenção, mas
Charles tinha que dedicar-se integralmente ao seu novo
personagem. Vestiu-se como um aristocrata, pegou a carruagem e
seguiu para a Piccadilly, onde encontraria Malcom Jhonessy. O
escritório do homem era bem localizado e mobiliado, com um
secretário bem-vestido e quase escondido atrás de um monte de
papéis. Aquele não era o local de trabalho de um perdedor, o que o
fez confirmar que estava lidando com um criminoso.
— Sr. Charles Eckley para o Sr. Jhonessy. — Ele entregou um
cartão para o homem de óculos e cabelos ondulados que se
levantou ao vê-lo entrar.
— O senhor tem horário marcado?
— Não, mas o Sr. Jhonessy vai me receber ou retornarei aqui
com a polícia de Londres.
O secretário retirou um lenço do bolso interno de seu paletó e
limpou o suor da testa. Virou e revirou o cartão de visitas de Charles
antes de cruzar uma porta. Um minuto depois, retornou para indicá-
lo que caminho seguir.
Malcom Jhonessy era mais velho do que ele esperava. Com os
cabelos grisalhos e óculos pendurados na ponta do nariz,
datilografava alguma coisa em uma máquina de escrever. Charles
se sentou e aguardou até que o homem terminasse o documento
para dar-lhe a atenção que precisava.
— O senhor deve saber que não se ameaça um advogado, Sr.
Eckley.
Charles bufou. Ele teria um pouco de dificuldade em manter a
compostura diante de uma figura como aquela.
— Não fiz ameaça alguma. Estou aqui em nome de Lady Olivia
Trentham.
A cor desapareceu da face rosada do velho advogado. Agora
estamos entendidos, calhorda.
— Creio que Lady Olivia possa falar por si. — O Sr. Jhonessy
ajeitou os óculos. — De que ela precisa, fundos?
Paciência não era uma virtude que Charles cultivava. Não foi
sendo tolerante que ergueu seu império e ninguém — nenhuma
pessoa — o conhecia por sua mansidão. Claro que o advogado à
sua frente não fazia ideia de quem ele era ou não o provocaria
daquela forma. Com um puxão, ele arrancou do bolso a carta
enviada pelo banco para os Trentham e jogou-a sobre a mesa. Pela
expressão do advogado, ele não conhecia o documento.
Charles sabia que aquele tipo de cobrança deveria ir para o
administrador — e que a ele estava endereçada —, o que o fez
imediatamente desconfiar de que alguém estava tentando alertar a
família Trentham sobre algo. Não expressou sua teoria para Olivia,
porque não queria fazê-la sofrer com preocupações infundadas,
porém, ele tinha quase certeza de que estava certo.
— Ela precisa… não, eu preciso compreender por que o
condado de Salisbury está com três hipotecas em atraso. Hipotecas
estas que foram feitas depois do falecimento do conde, quando os
bens estavam sob sua administração.
O velho engasgou. Pegou a carta, correu os olhos por ela,
deixou-a cair sobre a mesa, ajeitou os óculos, tirou-os, colocou-os
outra vez. Charles manteve-se com os braços cruzados no peito
enquanto esperava uma resposta.
— Não lhe devo explicações — disse, por fim. — Apesar de falar
em nome de Lady Olivia…
Ele precisou de dois passos e um movimento para agarrar o Sr.
Jhonessy pelo colarinho e erguê-lo da cadeira. Puxou o homem até
sua altura, fazendo-o dobrar por sobre a mesa, e o aproximou-se de
si.
— Talvez seja mesmo melhor que não me explique nada. Se eu
confirmar que esteve gastando o dinheiro do condado e dilapidando
o patrimônio de um menino de treze anos, terei que esquecer que
os duelos são proibidos desde o início do século e arrastá-lo para
um.
— O senhor não pode…
— Eu posso — Charles o interrompeu mais uma vez. —
Façamos um acordo: você preparará e assinará um documento
transferindo para mim a administração dos bens de Daniel
Trentham, o sétimo conde de Salisbury, e eu não voltarei aqui com
um destacamento policial para prendê-lo.
Ele o soltou e o advogado voltou desfeito para sua cadeira.
Passou as mãos pelos cabelos ensebados duas vezes antes de
olhar de esguelha para a máquina de escrever.
— Não farei isso. Não sei se posso confiar no senhor.
— O senhor não pode confiar em mim, mas só sairei daqui com
esse documento assinado. Se se recusar a atender minha
exigência, terei que carregá-lo pelo colarinho até as autoridades.
O suor formava pequenas gotículas na testa do advogado. A
sala era quente, mal iluminada e com cheiro de poeira. O Sr.
Jhonessy nada disse por um minuto inteiro. Charles pegou o relógio
em seu bolso e confirmou que já gastara tempo demais com aquele
mentecapto, e estava pronto para dar o segundo passo em seu
plano quando o homem finalmente começou a escrever.
Depois de sair dali, Charles submeteria o documento a seus
advogados para que conferissem a validade. Ele não confiava no
administrador e imaginava que encontraria outros problemas
quando investigasse a fundo os livros e transações comerciais do
condado.
— Amanhã envio os livros para seu escritório, Sr. Eckley.
— Não darei tempo para que altere nenhum registro. Saio com
eles agora mesmo.
O advogado arregalou os olhos.
— Mas são muitos! Há mais de uma dezena de volumes e…
— Separe-os.
Sem dar maiores explicações, Charles saiu do prédio e contratou
três moleques que vagavam pela Picadilly. Com mais braços seria
mais fácil carregar todas as “dezenas e volumes” para sua casa.
Olivia não estava certa de que Charles a visitaria naquele dia, mas
esperava que ele cumprisse o ritual de aparecer sem marcar hora.
Já se havia passado o desjejum e o relógio marcava quase onze e
meia. Ela girava pelo escritório depois de empilhar a
correspondência de três formas diferentes. Pegou a coleira para
passear com os Spaniels e desistiu. Subiu para seu quarto e
espalhou suas joias pela cama, mas não conseguiu estabelecer
uma forma adequada de organizá-las. Estava prestes a perder a
compostura e mandar um bilhete até a Grosvenor Square quando os
cães começaram a latir.
Tobby detestava Charles. O cãozinho latia sem parar sempre
que via o Eckley e só parava depois que ralhavam com ele ou o
trancafiavam no quarto. Olivia desceu apressada antes mesmo de
qualquer anúncio.
Encontrou seu convidado sendo recebido por Daniel, o conde de
treze anos que nem sempre tinha um comportamento muito
aristocrático.
— Você não deveria estar em Eton, menino?
— Saí por uma semana para o aniversário de falecimento de
papai — Daniel confessou. O irmão estava com as roupas
encardidas, provável resultado de suas excursões pelo jardim e pela
estufa. — Teremos uma cerimônia daqui a três dias.
Charles encarou Daniel e o segurou pelo ombro.
— Não sabia que era por agora, mal sei a data de meu próprio
aniversário. Como está se sentindo?
— Estou bem. Sou um homem, preciso estar sempre bem, não é
mesmo?
Não, ele não precisava. Olivia quis intervir e dizer que o irmão
estava equivocado e que homens também podiam demonstrar
tristeza pela perda de entes queridos, mas Charles agiu à sua frente
— sem nem perceber que ela estava ali.
— Um homem sabe que sua força não está nos sentimentos,
mas em seu caráter. Você pode sofrer, Daniel, e isso não o fará
fraco ou inferior.
O menino balançou a cabeça e os dois permaneceram alguns
instantes em silêncio. Ela deu alguns passos na direção deles para
que a notassem. Daniel saiu em disparada na direção do jardim e a
deixou sozinha para interrogar Charles sobre suas descobertas.
Nem sempre ele aparecia bem-vestido para visitá-la — algumas
vezes ele mais parecia ter saído de um acidente de trem. Ela nunca
se importou porque a amizade borrava a percepção que deveria ter
de um homem com trajes adequados. Quantas vezes nadaram
juntos na praia de Thanet sem nem mesmo se preocuparem em
vestir roupas de banho? Quantas vezes ela amarrou as saias nos
tornozelos para correr atrás dele pelo campo e quantas vezes ela já
o vira em mangas de camisa — ou até mesmo sem ela — durante
um jogo de rounders ou futebol?
Naquele momento, o filtro que a impedia de compreender
Charles como um homem desfocou. Ele estava ali, à sua frente,
com um sorriso enigmático que não entregava nenhuma pista do
seu humor. Usava traje completo para o dia e tinha os cabelos
penteados como se estivesse preparado para um… encontro. Não,
ele não estava ali para cortejá-la de verdade. Tudo que fariam dali
para frente não passava de uma farsa. Claro que fora a conversa à
mesa que a estava fazendo pensar coisas inadequadas.
— Obrigada por dizer a Daniel que ele pode sofrer pela perda do
pai. Meu irmão precisa de uma referência masculina e você parece
ser a única que o Conde de Salisbury respeita.
O sorriso de Charles cresceu e, no mesmo instante, morreu. Ele
tinha um envelope pardo nas mãos e entregou-o a ela com a
expressão subitamente severa.
— Não sei se concordará com o que fiz, mas precisava de
autonomia para descobrir sobre os problemas que o condado
possivelmente enfrenta.
Olivia passou os olhos pelo conteúdo do papel timbrado e
assinado. Se não entendia sobre finanças, entendia menos ainda
sobre termos usados por advogados. Mas aquele documento
transferia a administração do condado para Charles. Alívio. Havia
poucas pessoas em quem ela confiava tanto quanto aquele homem
à sua frente.
— O Sr. Jhonessy disse algo?
— Confesso que não lhe dei muito tempo de se explicar. Depois
de sair do escritório, passei no Banco de Londres e descobri que o
homem vem desviando fundos do condado desde antes de seu pai
falecer, Livvy. Essas hipotecas foram realizadas por causa de
empréstimos que ele pegou a juros elevados e sem qualquer
justificativa.
Seu coração saltou uma batida, quase parou e disparou em um
ritmo alucinado. Ela apertou o papel nas mãos até quase amassá-lo.
Charles se aproximou. Segurando suas mãos entre as dele,
recuperou o documento com gentileza — tanta gentileza que Olivia
mal o reconheceu. O toque levou poucos segundos e a deixou mais
atordoada do que a notícia. O homem não usava luvas. Por que ele
nunca usava as benditas luvas?
Mesmo que ela estivesse com as mãos cobertas, o calor da pele
masculina ultrapassou a pelica e irradiou por todo o seu corpo. A
boca secou e ficou difícil respirar. O que estava acontecendo com
ela?
— O que devemos fazer? — A pergunta serviu para romper o
encantamento, mesmo que as mãos continuassem unidas. —
Estamos falidos, Charlie?
— Há muitas dívidas, porém não consegui ainda rastrear todas.
Pedirei a Nicholas que me ajude, mas as hipotecas já foram
quitadas. O condado possui muitos investimentos, duvido que
chegue à falência por isso.
— Quem as quitou? Como isso aconteceu?
Charles olhou para baixo e fitou demoradamente suas mãos
para, depois, soltá-las como se estivessem em chamas. Sem dar
maiores indicações de que qualquer coisa o afetava, ele passou os
dedos pelos cabelos e os ajeitou.
— Fiz um acordo com o banco. Se me der licença, preciso
retornar para o trabalho.
— Você quer almoçar conosco? — ela disparou a pergunta sem
refletir. Talvez não estivesse ainda preparada para deixá-lo ir sem
entender todas as nuanças do que Charles estava lhe dizendo. —
Nossa cozinheira fez cordeiro assado.
— Isso torna bastante difícil recusar o convite. — Ele sorriu e
colocou o chapéu de volta na cabeça. — Porém, preciso cuidar de
muitas coisas, Livvy. Volto a vê-la amanhã.
Com uma reverência curta, ele se virou e cruzou a porta na
direção da rua. Ela permaneceu no mesmo lugar por algum tempo,
confusa e ainda desorientada. Lembrava-se de um sem-número de
interações constrangedoras com Charles Eckley. Talvez porque
aquela fosse uma família que não se importava com regras sociais
nem diferenças entre gêneros, ela passou bastante tempo na
companhia dos meninos mais novos e nunca os viu como nada
além de bons amigos.
Bem, aquilo não era verdade. Aos dezoito, Olivia tinha certeza
de que amava Nicholas Eckley. Eles tinham a mesma idade, mas o
jovem não parecia vê-la com os mesmos olhos até fazerem vinte e
dois — quando trocaram um beijo escondido no jardim dos
McFadden. Cristo! Ela poderia ter sido flagrada e estaria arruinada
em uma fração de segundo, fadada ao casamento com um homem
que ela admirava, porém, não estava mais apaixonada.
Ainda assim, seus delírios românticos nunca envolveram o
Eckley devasso. Nicholas era um perfeito cavalheiro, Charles era
um libertino incorrigível — junto ao seu irmão gêmeo Robert. Olivia
deu uma risada baixa ao se lembrar de quando o surpreendeu em
uma posição indecorosa com a filha de uma das empregadas da
propriedade. Não foi engraçado. Ela gritou com ele, bateu com os
punhos fechados em seu peito, porque não admitia que ele
arruinasse uma jovem sem casar-se com ela.
— Livvy! — Annabelle chamou e interrompeu o fluxo de
memórias. — Convidei Mary e Esther para o chá das cinco de
amanhã. Charles nos acompanhará ao sarau dos McFaddens?
Ela se esquecera completamente do sarau.
— Claro, ele nos acompanhará. Vamos subir, temos que provar
os vestidos novos.
Antes, ela escreveria um bilhete e pediria que Bradley
entregasse ao homem que estava ocupando espaço demais em
seus pensamentos.
Capítulo quarto
Thanet, julho de 1891
Rhode Port
D
e retornar para Rhode Port um pouco mais embriagado do que
deveria, Charles tropeçou nas pedras que decoravam o jardim ao
redor da casa e desabou no chão. Bateu com a cabeça em alguma
coisa e sentiu uma dor aguda irradiando da cabeça até o dedão do
pé. Ele sabia que não devia competir com homens mais velhos e
experientes na arte de beber, porém, não havia desafio que Charles
Eckley dispensasse sem enfrentar.
Tentou se levantar e percebeu que a paisagem estava girando.
Voltou a se deitar e fechou os olhos por algum tempo. Seria sorte se
não despejasse o conteúdo de seu estômago ali mesmo e tivesse
que entrar em casa fedendo a cerveja e vômito azedo. Enquanto se
concentrava para não perder completamente a compostura, ouviu
vozes femininas que ecoavam não muito distantes.
Era o que faltava, ser pego pelas damas que estavam
hospedadas na propriedade. Decidiu esperar que elas passassem e
desaparecessem antes de tentar sair daquele esconderijo — mas
percebeu que as vozes vinham de dentro da casa. A conversa era
entre Caroline, a prima que acabara de retornar de outra viagem,
Olivia e mais duas mulheres cujos risinhos não reconheceu.
— Você acha que o duque vai querer casar com você? — Olivia
perguntou.
— Bem, ele precisa se casar. Prover um herdeiro para o ducado
é uma das muitas tarefas que Aiden acumula. Eu sou a mulher ideal
para isso, não acham?
Mais risos. Nem a própria Caroline acreditava no que ela estava
dizendo.
— Você jamais seria ideal para o casamento, querida — uma
mulher disse.
— Eu achava que você iria ser um solteirona — Olivia sussurrou
a última palavra. — Porque, digamos, você é…
— Arruinada, eu sei, todos sabem, e se eu não fosse, não
estaríamos tendo essa conversa. Mas eu amo Aiden Trowsdale e
estou disposta a aceitar as maledicências do casamento para ficar
com ele.
Charles rolou para o lado, apoiou-se pelos joelhos e mãos e
ergueu o corpo. A náusea o abateu e o obrigou a engolir a bile que
amargava sua boca. Sentou-se com algum esforço e recostou-se na
parede da casa.
— E você, Lady Olivia? Percebo que vem atraindo a atenção de
alguns cavalheiros aqui em Thanet.
— E desde quando há cavalheiros em Thanet, Lady Felicia? —
Caroline provocou. — Olivia ainda é uma menina, só vai debutar no
ano que vem. Não tem que pensar em pretendentes.
— Mas ela é muito bonita e bem-nascida. Vai conseguir um
marido antes da metade da temporada, tenho certeza.
Aquela conversa era detestável. Charles não sabia quem era
Lady Felicia, mas podia imaginar Olivia constrangida com aquele
assunto de pretendentes e maridos mais uma vez. Visualizou-a
olhando para baixo e com as bochechas coradas pela vergonha e
quis entrar no meio daquela reunião feminina para arrancá-la dali.
Mas Lady Felicia tinha razão. Olivia não demoraria a conquistar
uma dúzia de pretendentes e se casaria em um piscar de olhos, se
quisesse. E ela queria. Fora criada para ser esposa e mãe como
todas as damas da aristocracia. Mesmo convivendo com eles, os
Eckleys, e demonstrando alguns ares de rebeldia durante sua
estada em Rhode Port, ela era perfeitamente adequada na presença
de outras pessoas e um diamante já lapidado aos olhos da
aristocracia.
Charles pôs-se de pé. Precisava parar de pensar em Olivia
porque eles nunca ficariam juntos. Ele a queria além da sanidade e
sabia que não era correto nem mesmo cogitar desejá-la tanto. Ela
era sua amiga, muito jovem, pura e ingênua — e ambicionava
casar-se com um lorde da alta aristocracia e exercer uma função
importante na sociedade. Como ele não poderia ofertar nada disso
— afinal, para que servia o quarto filho de um marquês? —,
precisava livrar-se daqueles sentimentos.
— Senhor? — Outra voz feminina atraiu a sua atenção. Era
Beatrice, a filha da cozinheira. — Está tudo bem?
Não estava, mas ficaria. Tudo que ele precisava para parar de
pensar em Olivia era perder-se em outra mulher. Era assim que
resolvia seus problemas: com álcool e uma dama em sua cama.
Álcool ele já tinha consumido bastante, faltava-lhe o complemento.
— Acho que preciso de ajuda — ele se levantou e deu dois
passos na direção de Beatrice. Ela sorriu ao vê-lo se aproximar. —
Você prepararia um banho para mim?
— Posso pedir que seu valete…
— Se eu quisesse que meu valete me ajudasse, teria pedido. —
Charles levou as mãos até a cintura dela e a puxou, pressionando-a
contra seu corpo ansioso. — Preciso de coisas que ele certamente
não saberá fazer.
Ela deu outra risada e gemeu ao senti-lo duro. Afastou-se com
uma expressão de lascívia e desapareceu pela porta dos fundos.
Charles fechou os olhos e as imagens estavam borradas. Não havia
mais nada que o perturbasse. Ajeitando a camisa para dentro das
calças e abotoando o colete, ele seguiu Beatrice para garantir que
seus problemas estivessem resolvidos até o dia seguinte.
Londres, 16 de abril de 1898.
Casa de jogos de Riderhood
Os Trentham adoravam o chá das cinco. Essa era uma tradição que
faziam questão de seguir e um convite para o chá na Casa Salisbury
era disputado entre as jovens damas, tanto solteiras quanto
casadas, desde a época de sua mãe. Naquela tarde, as convidadas
eram Mary Price e Esther White. A primeira era filha do Barão
Greystoke e estava em sua segunda temporada aos vinte e um
anos. A segunda, filha do Conde de Thorndike, era da idade de
Annabelle e debutara naquele ano. Ambas solteiras e de
comportamento irrepreensível.
Bem, nem tanto. Mary e Esther eram como Annabelle — damas
impecáveis na superfície, mas fenômenos da natureza na essência.
Diante de outras mulheres, principalmente as mais velhas,
demonstravam decoro e educação. Nos eventos sociais e na
presença de homens, agiam como se esperava delas e
conversavam sobre o clima, sobre vestidos e sobre caridade.
Mas, quando se reuniam…
— Você precisa nos contar tudo sobre seu affair com Charles
Eckley. — Mary bebericou um gole de chá. As damas estavam
sentadas em almofadas no chão, sem sapatilhas e de frente para a
lareira que queimava em fogo brando. — A notícia está em todos os
lugares.
Ela não estava nem um pouco surpresa depois de todo cuidado
que Charles tivera para que a fofoca se espalhasse — o homem até
inventou uma história falsa e divulgou para um jornal de reputação
duvidosa para garantir que todos na alta aristocracia recebessem a
notícia.
— Não temos um affair. — Era verdade. — Ele está me
cortejando oficialmente, mas não é o único.
Essa parte ainda estava para se tornar uma verdade verdadeira,
mas, por seu conhecimento das regras invisíveis da sociedade,
damas cortejadas tinham mais chance de serem cortejadas, o que
representava um paradoxo interessante. Quanto mais homens
interessados nela, mais homens se interessariam. A fraude com
Charles poderia levá-la a encontrar seu futuro marido, se tudo desse
certo.
— Você não pode dizer só isso e se safar! — Esther atirou-lhe
uma almofada e quase atingiu a xícara de chá em sua mão. —
Sabemos que são amigos, como foi que isso evoluiu para um
cortejo? Ele declarou que gosta de você?
— Ele não declarou nada. Olha, precisamos conversar sobre
nosso próximo passo em relação ao projeto em Whitechapel.
— Não quero falar sobre o projeto — Esther insistiu. — Quero
saber sobre o seu cortejo. Você ainda não teve essa experiência,
Livvy!
— Eu já fui cortejada! — ela protestou. — Ou se esqueceram
que me comprometi com Nicholas Eckley?
— Certo, mas isso foi há duzentos anos! — Annabelle provocou.
— E Nicholas é um exemplo de propriedade e decoro. Estamos
curiosas sobre como é ser cortejada por um libertino declarado.
Olivia suspirou. Ela não tinha como responder àquelas
perguntas. Seu relacionamento com o devasso era pura amizade e
não, ele não queria se casar com ela. Precisava inventar alguma
coisa para acalmar a agitação das meninas e reforçar sua história.
Talvez não fosse tão difícil. Passou as mãos na saia e limpou o suor
que se acumulou em suas palmas antes de disparar mentiras sobre
as amigas.
— Charles é um homem honrado e muito respeitador. — Risadas
súbitas a silenciaram por um instante. — Não riam, ele é
respeitador. Sei que não possui título nem é bem-visto pela
aristocracia, mas creio que essa percepção mudará em breve. O
que importa é que ele gosta de mim.
— Vocês já se tocaram? — Mary perguntou.
— Já se beijaram? — Esther completou.
— Já fizeram mais do que se beijar? — Annabelle a fez cuspir o
chá que levara à boca pela segunda vez no mesmo dia.
— Céus, vocês são implacáveis! — Olivia pegou um guardanapo
para limpar a sujeira em sua saia. — Claro que não fizemos nada
disso, foi apenas ontem que ele pediu permissão para me cortejar! E
eu jamais faria “mais do que beijar” antes de me casar, Annabelle!
A irmã moveu os ombros.
— Podemos falar do projeto em Whitechapel? — Olivia insistiu.
— Papai disse que tem um lugar para usarmos. É uma casa
abandonada cujo proprietário foi assassinado e nenhum herdeiro
clamou os bens. Segundo ele, a propriedade pode ser adquirida por
uma barganha.
— Credo, Esther, não quero trabalhar na casa onde alguém foi
assassinado! — Annabelle fez o sinal da cruz.
— Ninguém foi assassinado na casa, Belle! O que importa é se
teremos fundos para adquiri-la. Não precisamos de um homem, mas
temos o dinheiro?
A pergunta de Esther ficou suspensa no ar por alguns instantes.
O projeto era algo que Olivia queria muito desenvolver. Nessa casa,
fariam um abrigo temporário para crianças e jovens sem lar que
precisavam de um banho quente, uma refeição e uma cama.
Também acolheriam crianças cujas mães viúvas precisassem
trabalhar. A coroa pouco fazia pelas classes menos favorecidas e
havia muita miséria e sofrimento pelas ruas e Londres. As quatro
pretendiam ajudar no que podiam sobre aquele assunto.
Quem tivera a ideia foi Margaret, depois de uma aula específica
na escola de jovens damas de Caroline Eckley-McFadden e Agatha
McFadden, a Condessa de Cornwall. Com uma metodologia de
ensino pouco convencional, Lady Caroline levou as jovens para um
passeio até Whitechapel e Shadwell para que ouvissem os clamores
dos necessitados. Só que a irmã era menor de idade e não podia
executar sua ideia sozinha, por isso as quatro amigas decidiram
fazê-lo.
Havia um problema, porém, que ia além da boa vontade: elas
viviam de mesadas suficientes para suas necessidades de acordo
com a sociedade. Não lhes sobrava muito para gastar em caridade.
— Livvy — Mary sussurrou e rompeu o silêncio. Com um
movimento de cabeça nada sutil, indicou que alguém mais se
juntara ao grupo. As damas se viraram e lá estava ele.
— Boa tarde, miladies.
Mary, Esther e Annabelle pularam de seus lugares e se
colocaram de pé assim que ouviram a voz grave cumprimentá-las.
Ajeitaram os vestidos e o encararam com sorrisos constrangidos por
terem sido pegas em uma situação informal. Damas como elas não
foram treinadas para lidar com homens como Charles. Ele
intimidava ao mesmo tempo que as fazia suspirar.
Mais acostumada com a presença do amigo, Olivia se levantou e
o interpelou, quase querendo empurrá-lo para fora da sala de chá.
Não sabia se estava irritada porque ele insistia em chegar silencioso
como uma alma penada ou se porque não queria a amigas
suspirando por seu… céus, ele não era nada seu que justificasse
um sentimento de possessividade. Charles seduzia metade das
mulheres de Londres e ela nunca se incomodou. Antes.
— Boa tarde, Sr. Eckley. O que o traz à casa Salisbury?
Ele franziu as sobrancelhas ao ouvi-la dirigir-se a ele com tanta
formalidade. Bem, alguém ali precisava ser formal para mostrar que
a casa Salisbury não era um antro de devassidão. Charles estava
sem paletó, sem gravata e, como já era de costume, sem luvas — e
jamais deveria aparecer na frente de suas amigas daquele jeito.
— Vim vê-la. — Ele segurou sua mão e levou até os lábios.
Calor e maciez quase fizeram seus ossos derreterem. — Não pude
deixar de ouvir que estão precisando de um homem para ajudá-las
com um projeto.
— Ouviu incorretamente — Annabelle disparou. A irmã seria um
fracasso em sua primeira temporada se não aprendesse a controlar
a língua, porém Olivia nem mesmo queria que ela se domesticasse.
Se não fossem capazes de amar Annabelle por seu coração imenso
e sua beleza, então não a mereciam. — Precisamos de fundos, não
de homens.
Charles sorriu e as mulheres suspiraram mais alto. Esther tinha a
mão espalmada na frente do peito.
— Entendo. Que tipo de empreendimento pretendem
desenvolver? Gosto de investir em novidades.
— Ah, Sr. Eckley, não será um empreendimento — Mary
explicou. — Trata-se de caridade. Queremos construir uma casa de
apoio para jovens sem lar e mães que precisam de auxílio com seus
filhos durante o dia.
Sem ser convidado — porque ele não precisava mesmo de
convite na casa Salisbury —, Charles se sentou em uma poltrona.
Olivia nem mesmo tentou impedi-lo, apenas apressou-se em servir
uma xícara de chá para o intrometido. As damas se sentaram outra
vez na iminência de ouvi-lo.
— Mães viúvas ou mães solteiras?
— Viúvas — Esther disse.
— Qualquer uma — Annabelle corrigiu. Todas olharam para ela.
— O que foi? Negariam auxílio a uma criança porque ela é
bastarda?
— Não, eu não negaria. — Mary balançou a cabeça. — Mas isso
não deporia contra nosso projeto?
— O projeto é para ajudar quem precisa — Olivia disse. — Se for
a mãe de um bastardo, que seja. Foi esse nosso compromisso, não
foi?
Todas balançaram a cabeça. Charles bebia seu chá enquanto as
observava em silêncio. Como seus momentos de silêncio eram
raros, Olivia suspeitou que ele estava planejando algo.
— Vocês têm uma proposta interessante. Por que não realizam
um evento para arrecadar fundos? As mulheres da aristocracia não
adoram caridade? Convidem muitas das casadas com acesso a
maridos ricos.
Annabelle arregalou os olhos e encarou Esther White, que fez
um gesto concordando com algo que não fora dito. Um evento era
uma ideia fabulosa, mas também incomum. Mulheres solteiras não
realizavam saraus, bailes ou jantares durante a temporada. Mesmo
que fossem damas respeitáveis, poucas famílias de estirpe se
interessariam por um convite vindo delas.
— Não sei se dará certo. O que faríamos, um jantar beneficente?
Quem organizaria?
Charles se levantou. As mulheres se sobressaltaram outra vez,
como se os movimentos dele causassem uma onda intangível que
as atingisse sem precisar tocá-las.
— Livvy, posso conversar com você em particular?
Grosvenor Square
O .A
Charles e abriu as cortinas, permitindo que muita luz atingisse seus
olhos. Ele rosnou, detestando aquele humor matinal que sempre
contagiava as pessoas e do qual queria fugir.
— Bom dia, senhor.
— Saia. — Charles enfiou-se debaixo do cobertor. — Feche
essas cortinas e saia.
— Lamento, senhor, mas tenho ordens suas para acordá-lo às
oito.
— Estou revogando minha ordem.
O mordomo puxou o cobertor e o jogou no chão.
— Recebi ordens para ignorar uma eventual revogação. O Sr.
Nicholas o aguarda, os senhores têm compromisso com o marquês.
Uma brisa fria soprou pelas janelas abertas e atingiu seu corpo
nu. Charles praguejou e tentou pegar o cobertor, mas foi impedido
por Ashford.
— Você não pode ser tão bom no que faz! — reclamou.
— Sou ótimo, senhor, por isso me contratou. Seu banho está
preparado, creio que deva lavar-se antes que a água esfrie.
Ele praguejou mais um pouco e saiu na direção do banheiro.
Costumava acordar cedo — a vida dos homens de negócios não era
a mesma da aristocracia. Não se fazia eventos que seguiam
madrugada afora ou se trocava a noite pelo dia —. Isso não
significava que acordasse todos os dias de bom humor, ao contrário,
Charles rosnava, resmungava e blasfemava toda manhã como se
aquela fosse a primeira.
Olhou-se no espelho e passou a mão pelo queixo. A barba
nascendo pinicou seus dedos. Enfiou-se na banheira morna
desejando que a água estivesse gelada. Só assim conseguiria tirar a
cabeça de Olivia Trentham e concentrar-se no que era importante:
seu contrato com Bharat Gupta. Por isso precisava barbear-se,
vestir-se como um rei e comparecer àquele maldito compromisso
com Anthony. Seu irmão marquês estava oferecendo um brunch
para recepcionar o indiano.
— Como foi seu dia de ontem? — Nicholas perguntou assim que
o encontrou descendo as escadas.
— Suportável. Sabe se Anthony mandou uma carruagem buscar
Gupta?
— Pode ter certeza de que sim. Nosso irmão era um libertino,
mas sempre foi o melhor anfitrião que conhecemos. Não sei por que
o indiano não se hospedou na Casa Granville.
— Crianças demais. — Charles riu. — Vamos, não quero chegar
atrasado para o brunch.
— Olivia vai?
A pergunta o fez tropeçar nas próprias pernas. Mesmo sabendo
que não havia mais nada entre o irmão e Olivia, o nome dela
sempre soava diferente na boca dele. Charles tinha ciúmes de
Nicholas e não havia nada que pudesse fazer para evitar aquele
sentimento horrível.
O problema não eram seus ciúmes, mas ter se esquecido de
convidá-la.
— Eu não a convidei.
Nicholas balançou a cabeça.
— Então mande avisá-la imediatamente. — O irmão foi até o
aparador da sala de entrada e pegou um papel e uma caneta. —
Vocês inventaram essa farsa para impressionar Gupta, não pode
perder essa oportunidade.
Charles odiava que seu irmão mais novo tivesse razão. Não
importava o quanto aquele teatro fosse conduzi-lo à loucura, ele
precisava encená-lo como se estivesse no Royal Albert Hall. Se isso
significava passar horas e mais horas de cada dia com Olivia
pendurada em seu braço, então assim seria.
— Ashford! — ele berrou pelo mordomo, que apareceu
imediatamente à sua frente. — Preciso que envie uma nota à Casa
Granville. Diga ao marquês que Nicholas e eu nos atrasaremos
alguns minutos.
— Aonde vamos?
— Buscar a mulher responsável por melhorar minha reputação
aos olhos da sociedade.
Nicholas riu, mas seguiu-o porta afora. Charles orientou o
cocheiro a levá-los até a Casa Salisbury, onde arriscaria encontrar
Olivia dormindo. Esperava que ela estivesse mais engajada no
projeto do que ele e que não se importasse em ser arrancada de
casa tão cedo — e sem um aviso.
O
transformou-se em caos. Olivia sabia que era responsável por ele,
mas não conseguiu se importar com isso enquanto banhava o cão
pulguento com a ajuda de criados e dos filhos de Anthony e
Rosamund Eckley. As crianças estavam eufóricas porque não havia
cães na Casa Granville — ela se lembrava de que a família não era
muito afeita a animais de estimação. Phillip, o primogênito do
marquês, estava quase dentro da tina de madeira que usavam como
banheira.
Ela estava ali para ajudar Charles a se mostrar um homem
respeitável e o que fizera? Convencera-o a ir ao resgate de um cão
perdido. Ao menos a Sra. Ishani Gupta pareceu considerá-lo
bastante romântico ao fazer as vontades da mulher amada. Ah, se
ela soubesse…
— Quando terminar de banhá-lo e secá-lo, pode mantê-lo em
uma guia até que eu retorne? — perguntou ao jovem criado que
esfregava o pelo encardido.
— Claro, milady. Ele é um bom garoto, vai ficar bem depois que
acabarmos com essas pulgas. Milady vai ficar com ele?
— Sim, eu vou. — A resposta saiu automática, com se não
houvesse opção. Afinal, o que poderia fazer depois de praticamente
obrigar Charles a retirá-lo das ruas? — Cuide dele para mim até que
possa levá-lo para casa.
Depois de secar as mãos e confirmar que seu vestido não estava
arruinado pelos respingos de espuma e água, Olivia deixou a
bagunça nos fundos da casa e seguiu atrás de Charles. Perguntou
aos criados onde ele estava e ninguém parecia tê-lo visto.
Considerando a imundície em sua roupa depois do resgate,
imaginou que ele procuraria outra para trocar. Como conhecia todos
os cômodos da Casa Granville, ela apenas subiu as escadas na
direção dos quartos e entrou naquele que costumava pertencer aos
gêmeos.
Claro que foi uma péssima decisão. Aliás, aquele poderia ser
considerado o dia oficial das escolhas ruins. Foi uma ideia horrorosa
abrir a porta sem bater antes, estar ali sem sua acompanhante ou ir
atrás de Charles, porque queria agradecê-lo pelo que ele fez. Ficou
ainda pior por encontrá-lo sem camisa, de costas para ela, lavando-
se com um pano embebido em água.
Tudo bem. Aquela não era a primeira vez que ela o via. Aquelas
costas não lhe eram novidade, eram? Charles era indecente, ele
ficava constantemente despido quando estavam em Thanet.
Inventava desculpas para perambular sem camisa pela propriedade,
escandalizando até os homens com quem cruzava. Os Eckleys
eram daquele jeito.
Mas Olivia não se lembrava dos detalhes daquelas costas, nem
que elas eram tão grandes. Aqueles músculos já estavam ali antes?
As cicatrizes ela tinha certeza de que não. Céus, havia dois furinhos
na região lombar, bem onde a calça começava a cobri-lo. Ela
continuou descendo o olhar pelo volume redondo das nádegas e
pelas coxas que estufavam o tecido.
O que estava acontecendo com ela? Há meia hora estava
suspirando pela atenção recebida do Duque de Greystone e, então,
suspirava confusa com a confirmação de que seu amigo com quem
fingia um cortejo era um homem e tanto.
Como ele pareceu não percebê-la, Olivia deu alguns passos
para trás na intenção de sair da mesma forma que entrou — em
silêncio. Falhou. Tropeçou em um vaso decorativo que ficava
próximo da porta e quase caiu ao chão com o artefato de porcelana.
O barulho fez Charles se virar e o que ela viu foi ainda mais
assustador. Um torso masculino forrado por um tapete de pelos
escuros que seguia até o cós da calça — cujos botões estavam
abertos.
— Por tudo que é mais sagrado, Olivia Trentham! O que diabos
está fazendo aqui? —ele ralhou, mas não procurou se cobrir.
Agarrar um lençol ou esconder-se no banheiro deveria ser a reação
mais lógica, não deveria?
— Eu vim… eu queria… acho melhor eu…
Nenhuma frase completa saiu de sua boca. Olivia nunca se
sentiu intimidada por Charles Eckley e, naquele momento, estava
com as costas coladas na parede como se o homem fosse capaz de
mantê-la ali apenas com o olhar. E ele a olhava não como se ela
fosse a Livvy, sua amiga de infância, mas uma presa invadindo o
perímetro do caçador.
Sem pressa alguma, Charles pegou uma camisa sobre a cama e
começou a vestir-se. Seus olhos acompanharam os movimentos
dele.
— Onde está o sarnento?
— Os criados o estão banhando. — Ela se recompôs. — Eu o
levarei para casa assim que o brunch terminar. Vim aqui para
agradecê-lo.
— Vocês estava na iminência de lançar-se na rua, eu não tive
muita opção. — Charles abotoou a camisa e ela não conseguiu
parar de olhá-lo. — O fedorento destruiria esse seu vestido bonito
cheio de rendas.
Olivia sentiu sua boca seca no instante em que os dedos longos
dele tocaram nos babados que cobriam seu colo. Quando foi que
ele chegou tão perto? Fez-se um silêncio ruidoso em que as batidas
de seu coração retumbavam escandalosas e ela teve medo que ele
pudesse ouvi-las. O dedo de Charles, aquele mesmo que se
enrolara no laço de fita em seu pescoço, subiu trilhando um caminho
sinuoso até tocar-lhe o queixo. Foi tão suave, tão sutil que ela mal
notou o deslizar em sua pele. Foi suficiente para incendiá-la em um
lugar onde não sabia que podia pegar fogo.
Seus olhos baixaram. O peito de Charles subia e descia no ritmo
da respiração e a proximidade entre eles era demais para o decoro.
A porta estava entreaberta, mas ela estava no quarto de um
homem, sozinha, e ele nem mesmo estava completamente vestido.
— Vamos descer. — Ele rompeu o fio invisível que os mantinha
paralisados e se afastou bruscamente, virando-se de costas. —
Espero que imaginem que você esteja cuidando do cachorro.
Ela também esperava. Continuou se apoiando na parede até que
suas pernas, moles como pudim, recuperassem as forças — e até
que Charles vestisse o colete e o paletó para acompanhá-la até o
andar de baixo.
Londres, 17 de abril de 1898
Brooke Street
E
. Suas amigas dançaram com cavalheiros
distintos. Sua irmã dançara com Lorde Ambrose, um jovem visconde
de olhos vibrantes e muito elegante. Todas estavam ali,
conversando animadas sobre seus parceiros e ela se sentiu um
pouco deslocada. O que diria?
Se fosse a verdade, teria que falar que nunca, jamais, em
nenhuma hipótese imaginou que Charles pudesse valsar tão bem.
Era como se a valsa tivesse sido criada para que ele a dançasse.
Também teria que dizer que ele a segurava com firmeza e gentileza
ao mesmo tempo que mantinha uma proximidade escandalosa
durante a dança. Precisaria contar que ele cheirava a sândalo e
roupa limpa, masculino e elegante. E, por fim, teria que confessar
que desejou, por mais de uma vez, recostar-se no ombro dele para
pedir que a beijasse.
Céus. Ela quis ser beijada por Charles Eckley. O ponche não
estava tão forte assim, estava? Certo, ela precisava mentir.
— Você foi a sensação da noite — Esther provocou. — Confesso
que estava cética quanto a esse seu cortejo pelo Sr. Eckley.
— Brett também estava. — Mary Price se aproximou. Brett era
seu irmão mais velho, o herdeiro do baronato. — Afinal, ele é um
Eckley.
— Dois Eckleys já se casaram, suas bobas — Annabelle a
defendeu, como se ela precisasse. — E qualquer um pode ver que
Charles adora Olivia. Menos ela, pelo visto.
— Você tem outros pretendentes, Olivia?
Não, ela não tinha, e isso a preocupava o suficiente para achar
que precisava daquela farsa para ajudá-la. Já com vinte e quatro
anos, não era mais uma jovem debutante que atraísse a atenção
dos melhores partidos. Se não conseguisse um bom casamento
naquela temporada, ficaria oficialmente velha demais para despertar
o interesse de um marido decente.
— Sim. O Duque de Greystone demonstrou interesse em me
cortejar.
Era uma meia verdade. O duque demonstrou interesse, sim, mas
não pedira para cortejá-la. Mary, Esther e Annabelle arregalaram os
olhos.
— Um duque! — Esther deu um gritinho.
— Jovem e bonito! — Mary bateu palmas.
— Rico, jovem e muito bonito! — Esther corrigiu-a. — Você já
deveria colocá-lo em primeiro lugar no seu caderninho, Olivia!
Ela precisava sair do toalete. Aquela conversa era outra que a
faria perder a cabeça, ainda mais depois que todas descobrissem
que Greystone não estava tão interessado nela. Bem, eles estavam
flertando, não estavam?
— Certamente — Olivia desconversou. — Vou voltar para o
salão, meninas. Vamos, Belle? Seu cartão está cheio, logo os
pretendentes virão para reivindicar a próxima dança.
A irmã a seguiu até o salão e Charles não estava mais a vista.
Havia muita gente conversando e ela sentiu uma súbita vontade de
beber uma taça de champanhe. Uma, apenas uma, não seria uma
transgressão tão grande. Aproveitando um garçom que passava
com uma bandeja cheia de taças borbulhantes, Olivia pegou uma
para si e outra para Annabelle e voltou para o lugar onde as damas
costumavam se reunir.
Ainda estava um pouco zonza pela dança, pela conversa e pela
efervescência da bebida quando foi interpelada pelo duque. A irmã
acabara de ir para a pista de dança com Lorde Bentham, seu par na
quadrilha, e ela ainda tinha quatro danças até a polca que Charles
reservara. O salão estava cheio e as pessoas tinham pouco espaço
para circular, mas a presença do Duque de Greystone ao seu lado
não era coincidência.
— Milady. — Ele segurou-a pela mão. — É um prazer revê-la.
— Vossa Graça. — ela sorriu. — Então o senhor apareceu.
— Por acaso. — O duque beijou-lhe os dedos. — Há alguma
dança ainda disponível em seu cartão?
Ela engoliu um gole do champanhe e ergueu o cartão para ele
sem nada dizer. O duque sorriu — um sorriso que a lembrou
bastante um Eckley — e escreveu seu nome na valsa logo antes da
polca. Pendurou de volta o cartão em seu pulso e afastou-se,
deixando-a em um êxtase confuso. Ela não podia se deixar perder
pelo caminho, mas seria difícil seguir em linha reta recebendo tanta
atenção masculina.
Londres, abril de 1898
Rhode Port
C . N ,
ser três. Ele não tinha certeza de quanto tempo passara rolando na
cama ardendo em febre, só sabia que um anjo cuidava dele durante
a doença — e era por isso que sabia que estava delirando. Ele não
era do tipo que atrairia o interesse de anjos, se estes viessem à
Terra.
Seu corpo estava dolorido e sua cabeça pesada. Quando abriu
os olhos e confirmou que estava em seu quarto, surpreendeu-se ao
ver Olivia sentada em uma poltrona ao seu lado. Ela segurava um
livro, concentrada. Uma de suas sobrancelhas estava erguida e a
expressão em sua face era a de quem não estava entendendo muito
do que lia. Na capa de couro estava escrito “doenças do espírito”
em letras douradas. Mas o que diabos era aquilo?
Ele tentou se levantar. A dor quase o paralisou, mas o que o fez
desistir pelo meio do caminho foi perceber que estava despido. Nu.
Sem roupas, apesar de coberto por um lençol branco. E Olivia
estava ali com ele. Sozinha, pelo que podia perceber. Olivia,
sozinha, em seu quarto. Maldição! Quem tinha permitido aquele
desvario?
— Livvy?
Ela ergueu os olhos, fechou os livros e sorriu, fazendo com que o
sol brilhasse durante a noite. Charles voltou a recostar a cabeça —
ele só se perdia em poesia quando estava muito bêbado ou muito
doente.
— Você acordou! — O peso dela no colchão fez com que ele se
alarmasse. — Fiquei preocupada dessa vez, pensei que o
perderíamos.
Olivia levou a mão até sua testa e ele não teve forças para
afastá-la. Poderia rolar para o lado e despencar da cama, mas
acabaria exposto.
— O que houve? Por que está aqui?
A mão deu lugar a um pano embebido em água fresca.
— Não se lembra? Você chegou todo molhado de madrugada e
adoeceu em seguida. Não sabemos onde esteve nem o que
aconteceu.
— Eu estava sóbrio?
Ela riu.
— Com certeza, não.
— Parece que fui atropelado por uma carruagem. Há quantos
dias estou aqui?
— Três. Sua febre começou a ceder agora, mas está alta ainda
— ela substituiu o pano por outro. — Vou buscar algo para você
comer.
— Livvy — ele conseguiu segurá-la pelo braço antes que ela se
levantasse e fosse para longe. Sabia que ela não deveria estar ali,
mas não estava pronto para deixá-la. — Você não precisa fazer
isso. Há… há criados.
— Claro que sim, mas não é para isso que servem os amigos?
Cuidar uns dos outros?
Displicente, ela dobrou o corpo e o beijou na bochecha. Charles
podia morrer naquele instante e morreria feliz. Observou-a ajeitar o
lençol ao seu redor, levantar-se e sair pela porta enquanto desejava
que o mundo acabasse para poder eternizar o momento. A maciez
dos lábios dela em sua pele. O cheiro de lavanda. Queria poder
fechar os olhos e emoldurar a imagem daquele sorriso.
Mas Deus não seria tão benevolente com um pecador.
Pretendendo vestir-se antes que ela retornasse — se é que a
deixariam retornar —, Charles se arrastou até o banheiro e enfiou-
se na primeira calça que viu pendurada no encosto de uma cadeira.
Sua imagem no espelho estava horrível. Havia marcas roxas
debaixo dos olhos, manchas vermelhas pelo pescoço e peito e sua
pele ardia como se houvesse fogo debaixo dela. Voltou para a cama
tremendo de frio e ajeitou alguns travesseiros atrás de si para
manter-se sentado.
Olivia trouxe uma bandeja com sopa. O relógio bateu onze
horas. Onze.
— Você precisa ir. — Charles tentou demonstrar que estava
bem. Sua alma estava sendo arrancada pelos poros, mas ele devia
expulsá-la dali. — Pode deixar que eu tomo toda a sopa. Vá para
seu quarto.
— Nem pensar! — A proposta a ofendeu. — Estou há três dias
dormindo sentada nessa poltrona, não será agora que o vi acordado
que o abandonarei.
— Você está dormindo aqui? — Ele quase pulou da cama. —
Por Cristo, Olivia! Quem permitiu esse absurdo?
— Charlie, estamos em Rhode Port. — Ela se dobrou sobre ele
para amarrar um guardanapo ao redor de seu pescoço. — As
convenções sociais não entram nesta casa. Meus pais não estão
aqui, somos apenas nós.
Apenas nós. Que tipo de argumento ele teria contra isso? Olivia
era jovem, mas tinha direito de ser a dona de seu destino. Não era
assim que os Eckleys criavam meninos e meninas? Não foi assim
que Caroline cresceu? Se ela queria passar a noite em seu quarto,
ela passaria. Se queria sentar-se ao seu lado na cama e alimentá-lo,
ela faria.
Ali, em Rhode Port, todos eram livres — até meninas bem
nascidas da alta sociedade. Que os pudores ficassem em Londres.
Ele sorriu e assentiu, abrindo a boca para receber uma colherada de
sopa. Sim, ele morreria feliz, mas que o inferno o deixasse ficar
alguns minutos a mais.
Londres, 18 de abril de 1898
Grosvenor Square
P
preparou Charles para a pior decisão ainda a ser tomada: a de
quase beijar Olivia. Se uma valsa o desorientou a ponto de
dispensar os carinhos de Daisy, tocá-la daquela forma acabaria com
qualquer sanidade que lhe restasse.
Seu corpo estava dolorido. Mesmo enfiado na banheira com
água fria até o pescoço, sua mente insistia em manter vivas as
imagens e sensações do que acabara de acontecer. Burro. Não, ele
não era burro. Charles estava reinventando a burrice desde que
recebera a maldita carta de Bharat Gupta. Ele era impulsivo e
inconsequente, mas estúpido… aquela era a primeira vez.
Fechou os olhos e deixou que suas mãos tocassem onde ele
mais precisava de atenção. Tentou fingir que ela estava ali. Fingir
que beijou aquela boca, despiu-a daquelas roupas e atirou-a em sua
cama para tomar posse do que deveria lhe pertencer, mas não
conseguiu. Sua mente sabia que Olivia não era sua e jamais seria.
Ele tentou, tentou e tentou, mas acabou frustrado.
Nervoso, ansioso e insatisfeito, Charles vestiu-se precariamente
e desceu. Se Olivia tinha coragem de invadir seu quarto e não fugir
quando ele se aproximava, podia vê-lo sem colete, sem paletó e
com alguns botões abertos. Seria ótimo se ele conseguisse
escandalizá-la, assim não teria mais que suportar aquela tortura.
Encontrou Ashford pelo caminho e pediu que servisse o desjejum
imediatamente — precisava alimentar a besta antes que ela fugisse
do calabouço.
Ela estava sentada à sua mesa. Nicholas lia alguma coisa em
uma cadeira próxima da lareira e Olivia rabiscava naquele maldito
caderno, desfrutando da mesma intimidade que ele tinha na Casa
Salisbury.
— Charles. — Ela ergueu os olhos ao ouvi-lo chegar. — Tomei a
liberdade de rascunhar uma lista prévia de convidados. Preciso da
sua aprovação.
— O evento é seu.
Olivia suspirou e indicou que ele deveria se sentar. Bastou um
olhar para que ele compreendesse. Não havia sinal de que ela
estivesse constrangida ou afetada pelo que acabara de acontecer.
Charles arrastou uma cadeira e sentou-se ao lado dela.
— O evento é nosso. — Ela empurrou o caderninho em sua
direção. — Selecionei nobres, apenas homens casados e suas
esposas. Há alguns solteiros de interesse, assim como algumas
solteiras. E apenas três comerciantes, nenhum dos quais imagino
que seja seu concorrente.
A letra dela era linda. Tudo que Olivia fazia era com extremo
capricho e cuidado. Charles colocou seus óculos de leitura, segurou
o caderno em suas mãos e conferiu os nomes. Havia dez famílias
completas, incluindo as de suas amigas, e dez pessoas solteiras,
incluindo o Duque de Greystone. Ele estava começando a se cansar
de ver, ouvir e lembrar de Greystone.
— Por que estamos convidando homens solteiros? Eles
raramente fazem caridade.
— Porque o evento também pode ser usado para me ajudar a
conseguir um bom marido para Annabelle. — Ela pegou o caderno
de volta e começou a escrever em outra folha. — Tenho certeza de
que você conseguirá criar situações em que todos os homens
possam contribuir para o nosso projeto.
— Você considera Greystone um pretendente para Belle?
Ela parou de escrever e o fitou. Nicholas também deixou a leitura
de lado e observou. Ele estava na casa de Riderhood nas duas
vezes em que Charles enfrentou o duque por sua proximidade com
Olivia. Não dava para deixar seus sentimentos mais expostos para
que todos percebessem nem se ele pintasse uma placa e colocasse
à frente de sua casa. Além de estúpido, ele estava inconsequente.
— Greystone é um ótimo pretendente para qualquer mulher
solteira — ela desconversou. — Mas eu imagino que ele esteja
realmente interessado em mim.
Nicholas fechou o livro no instante em que um criado entrou com
o desjejum. A comida foi servida em uma bandeja farta colocada
sobre a escrivaninha. Charles estava faminto, poderia comer um
cordeiro inteiro naquela manhã e ainda assim haveria um buraco
dentro de si. Não tinha fome de alimento. Não era seu corpo que
clamava por comida — era sua alma que precisava ser nutrida.
Estúpido, inconsequente e completamente fora de seu juízo. O que
restaria para o dia seguinte? Acordaria atirando moedas pelo meio
da rua?
— Pois bem. — Ele pegou um sanduíche e deu uma mordida. —
Vamos emitir convites para todos. Pedirei que Ashford vá à gráfica,
você vai escrevê-los?
— Os convites precisam ser distribuídos hoje, Charlie. É
indelicado convidar com menos de uma semana de antecedência e
não temos tudo isso. Pedirei que Annabelle e Margaret me ajudem e
escreveremos todos os convites à mão. Farei também um rascunho
da programação e conversaremos mais tarde.
Ele assentiu, balançando a cabeça. Olivia pegou um bolinho
doce e deu uma mordida. O creme fresco de framboesas manchou
seus lábios, tornando-os mais vermelhos e mais brilhantes do que já
eram. Ele se ajeitou na cadeira para acomodar a ereção persistente
que não cedeu desde o momento em que ela entrou em seu quarto.
Aquela mulher sempre foi uma tentação, mas nunca uma tentação
tão presente. Charles não tinha tanta força de vontade assim para
manter-se longe do que queria.
No fundo, seu irmão tinha razão. Olivia terminaria aquele mês
completamente arruinada — e ele não sabia se repudiava a ideia.
— Tenho muitos compromissos hoje, inclusive com Bharat
Gupta. — Ele bebeu um gole de café preto e se levantou. — Se
puder, avise a Daniel que passarei para pegá-lo às duas.
— O que pretende fazer com ele?
— Sairemos para cavalgar. Um homem precisa da companhia de
outros homens. Se ele continuar naquela casa repleta de mulheres,
daqui a pouco estará bordando ou remendando vestidos e meias.
Olivia deu uma risada e também se levantou. Fechou o
caderninho e o enfiou em sua bolsa.
— Há algum problema em bordar ou remendar, Charlie?
— Não, nenhum. Mas ele é um conde, por tudo que é mais
sagrado!
Ela se aproximou e colocou uma mão apoiada em seu peito.
Manteve-a ali por algum tempo, os dedos vacilantes sobre o tecido
fino que o cobria, mas não o impedia de sentir todo o calor daquele
toque. Os olhos dela se fixaram em seu pescoço, desceram pelo
colarinho aberto até encontrar a própria mão. Durou poucos
segundos e fez um estrago ainda maior em sua armadura.
— Daniel vai adorar cavalgar. Obrigada por cuidar dele. De nós.
E ela se afastou, deixando o escritório e um rastro de
devastação. Talvez não fosse apenas Olivia que estivesse arruinada
no final do mês. Ele duvidava que fosse permanecer inteiro.
Londres, 18 de abril de 1898.
Brooke Street
U
. Algumas das mulheres também queriam sair a cavalo
e foram convidadas a participar, já que não haveria tiros nem
animais sendo assassinados. Charles não gostava da ideia de
massacrar criaturas mais fracas apenas pelo prazer de pendurar um
troféu na parede. Nisso ele e Olivia combinavam — mas ele não
tinha o mesmo amor pelos animais que a impulsionava. Talvez fosse
uma necessidade de defender aqueles que ninguém defendia.
Depois que os cavalos foram selados, a maioria dos homens
partiu atrás dos tesouros escondidos. Ele enviara Ashford um dia
antes com instruções precisas para os criados de Sumerwood Hill e
esperava que tudo estivesse como planejara.
— Posso ir com vocês? — Daniel os interceptou antes que
saíssem. Vinha montado em seu cavalo de pelo avermelhado, um
dos mais belos que Charles já vira.
Não era comum permitirem crianças em eventos como aqueles,
mas Daniel Trentham era o dono da casa.
— Será um prazer tê-lo conosco, milorde — Charles autorizou.
— Mas mantenha-se ao meu lado, você ainda não cavalga muito
bem.
Aquela última parte foi dita em voz baixa, só para que ele
ouvisse. O menino assentiu, animado, e a comitiva pôs-se em
direção ao bosque. Era um bosque de árvores esparsas, com
clareiras onde se podia fazer piqueniques e um curso de água onde
a família e convidados costumavam pescar. Charles não ia com
frequência a Sumerwood Hill, mas tinha boa memória. Bastava uma
vez para que não mais se esquecesse do que vira.
As mulheres que se juntaram à cavalgada eram Ishani Gupta, a
Marquesa de Granville, a filha do meio de Miles Westphallen e
Olivia. As outras preferiram descansar ou participar de atividades na
casa. Algumas, como Caroline, decidiram nadar. Charles observava
tudo, mas sua atenção estava então dividia entre Daniel e Olivia.
Seguiram lentamente por entre as árvores até chegarem a uma
clareira e deparem-se com a primeira brincadeira. Havia uma
espada cravada em uma pedra e a indicação de que ela deveria ser
removida para que a próxima pista fosse revelada.
— De onde surgiu essa criatividade toda? — Edward McFadden
foi o primeiro a desmontar. — Não sabia que os Eckleys tinham
senso de humor.
— Fale pelos outros Eckleys. — Anthony também desceu do
cavalo. — Eu sou bastante bem-humorado e criativo.
Rosamund, a marquesa, deu uma risada abafada sobre seu
cavalo. O marido a fitou como se ela lhe tivesse cravado uma adaga
nas costas. Eles tinham um casamento perfeito. Quase dez anos
depois de se conhecerem, mantinham o mesmo relacionamento de
quando se encontraram em Paris pela primeira vez.
— Vocês estão se esquivando do jogo — Charles resmungou.
Desmontou e ajudou Daniel a fazer o mesmo. — Vamos, tentem
retirar a espada.
Como se estivessem em uma das histórias sobre o Rei Arthur, os
homens se revezaram tentando arrancar a espada da pedra. Não
tiveram sucesso. Ele os observou de braços cruzados enquanto seu
olhar eventualmente vagava para Olivia. As mulheres desceram
todas de seus cavalos e estavam recolhendo flores pela clareira.
Nenhuma delas parecia interessada na caçada falsa dos homens.
— Daniel — Charles chamou o menino e se ajoelhou para ficar
da mesma altura dele. — Suba no cavalo e tente puxar a espada de
cima. Não conte para ninguém o que descobrir, apenas siga a pista.
Ele pretendia deixar que a brincadeira se estendesse por mais
tempo, mas o céu estava se fechando e uma chuva estragaria seus
planos. Como raramente planejava qualquer coisa, queria que o
jogo saísse perfeito. Sussurrou a dica no ouvido do conde e esperou
que ele cumprisse o que lhe fora dito. Com uma expressão falsa de
surpresa, Daniel se aproximou da espada, afastou o Visconde
Whitby e o Barão Stafford e, com um puxão de cima, arrancou o
artefato.
— Isso é trapaça! — Greystone reclamou. — Por que não disse
que tínhamos que estar montados?
— É uma caça ao tesouro, Richard. — Charles o provocou,
chamando-o pelo nome de batismo. O duque lhe lançou um olhar
ferino. — Se vocês souberem como encontrá-lo, não terá graça.
Daniel começou a procurar a pista na espada para que o jogo
prosseguisse.
— Um dia será um pai excelente, Sr. Eckley. — Bharat Gupta
aproximou-se sem que ele percebesse. — É comovente ver a forma
como cuida dessa família.
— Em verdade, quem cuida deles é Olivia. Desde que o pai
faleceu, há dois anos.
— Não seja modesto. O menino refere-se a você como a um
irmão ou um pai. Poucos jovens respeitariam um estranho como ele
respeita você.
Talvez ele devesse ofender-se com o ceticismo do indiano, mas
Charles já sabia que aquele homem não acreditava em sua
honradez nem respeitabilidade. Provavelmente, nem ele.
— Os Trentham são amigos antigos dos Eckleys, não sou um
estranho para Daniel. Sou a figura masculina mais presente em sua
vida desde o falecimento do pai, há dois anos.
— Entendo. Imagino que ele deva ter recebido muito bem a
notícia de que se casará com sua irmã mais velha.
Charles suspirou. Não se casaria com ela, mas era bom que
Gupta acreditasse nisso.
— Ficamos bastante agradecidos pelo convite para um final de
semana em Hampshire — Gupta retomou a conversa. — Não
conheço essa parte da Inglaterra e minha Saira ficará muito feliz
com a companhia de outras jovens.
— As irmãs de Olivia são da idade da sua filha, estou certo de
que se darão muito bem. Eu que agradeço por aceitar nosso
convite. Talvez possamos falar de negócios mais tarde.
— Ah, não pretendo falar de negócios por enquanto. Diga-me,
Sr. Eckley, quando pretende propor à Lady Olivia? Será ainda neste
final de semana?
A risada que Charles precisou represar em seu peito fez com
que engasgasse e tivesse uma breve crise de tosse. Disfarçou com
um lenço à frente da boca. Esperava que pedir Olivia em casamento
não fizesse parte da programação, pois isso afastaria todos os
possíveis pretendentes em que ela tivesse interesse. Greystone
inclusive.
— Ainda não. Quero que ela tenha certeza de que sou a melhor
escolha.
Gupta franziu as sobrancelhas e olhou ao redor. Depois fixou a
atenção em Daniel, que recebia alguma ajuda de Anthony.
— Você a ama, Sr. Eckley?
Charles paralisou. A resposta para aquela pergunta era fácil,
mas ele não tinha certeza se confessá-la para o indiano deporia a
seu favor. Alguns homens consideravam o amor um sinal de
fraqueza. Precisava arriscar. Se Gupta se casou por amor,
certamente respeitaria quem fizesse o mesmo.
Olhou ao redor. Ninguém os estava ouvindo, então sentiu-se
seguro em dizer.
— Absurdamente.
O alívio que sentiu ao confessar seus sentimentos foi também
absurdo. Manter o desejo e a paixão estrangulados dentro de si era
doloroso e o deixava em constante mau-humor, ao contrário do que
pensara o Conde de Cornwall.
— Creio que não seja segredo que o considero um homem
descuidado, Sr. Eckley. — Gupta também tinha suas confissões a
fazer. — Apesar de demonstrar habilidade nos negócios, suas
atitudes são deveras preocupantes. Mas tenho que dizer: esses dias
em que estou na Inglaterra já me fizeram considerar se não estive
equivocado.
Por essa ele ainda não esperava. Estaria o plano insensato de
Olivia dando certo?
— Gosto de dizer que sou arrojado, Sr. Gupta. Não teria
construído um império se não fosse.
— Que seja arrojado. Mas dias atrás o senhor resgatou um
animal quase selvagem para agradar à sua dama. Hoje vejo o
cuidado que tem com o irmão dela e percebo que é uma atenção
recorrente. Diz que Lady Olivia cuida da família, mas vejo que o
senhor também o faz. Ishani disse que ela não parou de falar no
senhor.
— Ela?
— Sim, sua Lady Olivia. — Gupta sorriu. — Por que posterga o
pedido? Ela não parece precisar de outro homem para cuidar dela.
— O senhor também acredita que o casamento dignifica o
homem?
— Qualquer casamento, não. Já o amor, esse, sim, é capaz de
mover montanhas, causar guerras e selar a paz. Não concorda, Sr.
Eckley?
Aquela conversa estava fora de controle, assim como sua vida
desde que aquele maldito indiano decidira aparecer. Charles quis
continuar a confessar sua alma e dizer que era tudo culpa dele, de
Gupta. Que ele estava feliz e agora parecia caminhar por um campo
cheio de armadilhas de caçadores.
— O amor é superestimado. Quase ninguém se casa por amor
entre a aristocracia.
— Sua família e amigos parecem discordar.
— Olivia não me ama, Sr. Gupta.
E ela merece um marido melhor, mais adequado e que possa
garantir a ela a posição que ela almeja. Pronto, lá estava ele
disparando mais verdades que o faziam sofrer. O indiano tornou a
vaguear o olhar e parou por alguns instantes sobre as mulheres.
— Minha Ishani também não me amava. — Gupta revelou.
Charles cruzou os braços e o encarou. A conversa começava a ficar
interessante quando outra pessoa também tinha seus problemas
para contar. — Quando nos conhecemos ela me desprezava, mas
nossas famílias tinham decidido o casamento e não havia nada que
ela pudesse fazer. Eu poderia recusá-la, mas isso a arruinaria.
Decidi, então, conquistá-la e veja onde chegamos. — O indiano
continuava olhando para elas e, em dado instante, Ishani Gupta o
percebeu. A mulher sorriu e baixou o olhar, tímida. — Depois de
tantos anos ainda há a chama da paixão entre nós. Talvez Lady
Olivia não o ame absurdamente, mas o que o impede de conquistá-
la, Sr. Eckley?
Sim, a conversa estava oficialmente fora de controle. Ele não
esperava que Gupta fosse um romântico, que não fosse recriminá-lo
por confessar que estava em um cortejo onde só uma das partes
queria cortejar e, pior ainda, que sugerisse que ele investisse na
sedução da Olivia. Aquela era a ideia mais estúpida e tentadora que
ele já ouvira. Estúpida porque não daria certo. Tentadora porque era
um adendo relevante ao plano do falso cortejo. Ao invés de brincar
de enviar flores e valsar em bailes, ele teria que se empenhar em
um processo rigoroso de sedução para agradar ao indiano.
Sedução. Nisso ele era bom — e podia dizer que já começara.
No dia em que tentou assustar Olivia para que ela saísse de seu
quarto e nunca mais voltasse ele desempenhou um papel bastante
eficiente.
Seus olhos se fixaram nela. Carregando um ramalhete inteiro
nas mãos, ela ria enquanto ouvia alguma das histórias de
Rosamund. Como se percebesse que estava sendo observada,
Olivia ergueu o olhar e sorriu. Foi um breve momento, mas Charles
entendeu que havia algo ali. Algo no ar, pairando entre eles, que o
deixou ridiculamente esperançoso.
Gupta colocou a mão em seu ombro.
— Espero que esse final de semana termine com um pedido de
casamento.
Talvez o final de semana não terminasse como o indiano
desejava, mas aquela tarde estava prestes a se transformar em
tragédia. Enquanto conversavam, Daniel abriu o cabo da espada e
retirou um papel amarelado. O movimento fez com que a lâmina
acertasse seu cavalo no flanco e o animal disparou, desgovernado.
Houve um segundo de pânico. O menino gritou, o cavalo
relinchou, outros animais se assustaram e a espada caiu ao chão
enquanto Daniel e sua montaria desapareciam em alta velocidade
pelo bosque. Tudo foi muito rápido e a reação de quem assistia à
cena foi gritar ou tentar correr atrás do animal desgarrado.
Em menos de um minuto, Charles estava montando seu
garanhão e galopando atrás do jovem conde. Não importava que
Anthony estivesse mais perto ou que houvesse outros dez homens
por ali, era ele quem deveria tomar uma atitude. Daniel era sua
responsabilidade — e ele o deixara sem a devida supervisão para
se engajar em uma discussão ridícula sobre amor, casamento e
pedidos que ele nunca faria.
Charles não confirmou se mais alguém o seguia ou se tentavam
ajudar no resgate. Aproveitou-se da sua experiência como cavaleiro,
extraiu toda velocidade de sua montaria e, em poucos minutos,
estava pareado com Daniel. O cavalo que ele montava, no entanto,
se assustou, tropeçou e desabou. Charles conseguiu segurar o
menino no ar, antes que ele caísse junto.
O S H
. Olivia não percebeu que estava tarde e não se
importou com sua reputação porque ali, naquela vila do interior de
Hampshire, não havia alta sociedade, jornais de fofocas ou
matronas que adoravam esmiuçar os escândalos enquanto outro
maior — ou mais interessante — não aparecesse. No meio daquele
caos encharcado e cheirando a óleo queimado, ela se sentiu viva.
Foi como se tivesse retornado à juventude, quando podia correr
livre pela propriedade dos Eckleys sem que ninguém a julgasse,
ninguém a recriminasse. Ela foi útil, pôde ajudar homens feridos e
rever pessoas que fizeram parte de sua vida de uma forma ou de
outra, mas com quem ela não mais conviveu desde que debutou.
Quando Charles parou ao lado dela, que estava agachada
acariciando o pelo de um gato de rua, e ofereceu a mão para que se
erguesse, ela entendeu que era hora de ir. Despediu-se do bichano
e da criança que observava a tudo e o seguiu até sua égua, que
estava amarrada em um poste de iluminação.
— Conseguiram retirar todos dos escombros? — ela perguntou.
Charles estava ajustando a sela lateral, que tinha se desprendido
parcialmente. A chuva já havia cessado.
— Dois homens não sobreviveram.
As sombras também estavam em sua voz. Ela nunca o vira tão
soturno, tão duro e tão atraente quanto naquela noite. As luzes
tremeluziam sobre seu semblante embrutecido e refletiam sobre
seus olhos escuros que não continham estrelas nem lua, apenas
nuvens.
— Eu sinto muito. — Foi tudo que ela pôde dizer. Ele terminou
de prender a sela e ofereceu a mão para que ela subisse.
— Será mais fácil se você montar primeiro.
— Irei a pé.
— Charles, você está exausto. Não faz sentido algum caminhar
se ela aguenta nós dois. Se não quiser dividir o cavalo comigo, eu
posso ir com Anthony ou com o Duque de Greystone. Talvez ele
queira me oferecer uma carona.
Olivia acariciou o pescoço de Miss Gretha. Ela adorava aquele
nome, foi o nome de sua boneca preferida na infância e o que ela
escolheu para a égua assim que a ganhou de presente do pai. Uma
onda de nostalgia a atingiu — ela também estava cansada. O dia foi
muito mais intenso do que esperava e produziu muitas histórias para
seu diário.
— Não pretendo iniciar uma discussão com você agora, Livvy.
— Nem eu. — Ela cruzou os braços na frente do corpo e
recusou-se a subir. — Seja menos teimoso e monte de uma vez.
Ele baixou o olhar e pressionou a ponte do nariz. Olivia já
esperava uma explosão de fúria que não veio. Ao invés de ralhar
com ela, brigar ou debochar como sempre fazia, Charles
simplesmente desistiu e subiu no lombo da égua. Acomodou-se na
sela, inadequada para se montar daquela forma, e a puxou para
cima. Olivia mal conseguiu pisar no estribo e já estava estatelada no
colo dele — colidindo com uma massa de músculos e ossos que
pareciam sempre muito tensos.
Com cuidado, ela se ajeitou para ficar em uma posição mais
ereta. Charles soltou uma imprecação baixa e fechou os olhos,
fazendo-a sentir um fluxo irresistível de sangue subir para aquecer
suas bochechas. Eles já haviam compartilhado diversas situações
constrangedoras no passado, mas era… passado. Olivia cresceu,
amadureceu e não mais perambulou por Rhode Port fazendo
estripulias de menina. Não houve mais encontros escandalosos com
Charles, nem conversas secretas ou banhos de mar depois do pôr
do sol.
E ela não sabia que sentira falta de nada disso até aquele
momento. Até o instante em que se sentiu envolvida outra vez pelos
braços fortes e se acomodou recostada no peito firme e macio. Era
como estar escorada em uma imensa barreira feita de granito e lã,
que protegia e aconchegava ao mesmo tempo.
Embalada pelo trote de Miss Gretha, ela fechou os olhos e
esvaziou a mente. Esperava que ninguém na casa a julgasse por
estar nos braços do maior libertino de Londres ainda na ativa. Talvez
pudessem acreditar que estivesse com uma crise de hipotermia. Um
caso de vida ou morte que justificasse estar sacolejando sobre o
lombo de um cavalo, no colo de um homem que não era seu marido,
pressionando os quadris em contato com… céus! Mesmo depois
dos livros de anatomia, ela ainda se surpreendia com aquela parte
do corpo masculino.
O grupo de resgate retornou silencioso e desmontou ainda no
estábulo, entregando os animais exaustos para os cuidados do
cavalariço e sua equipe. Antes de voltar para a casa, Charles foi
conferir a saúde do cavalo de Daniel e ela foi amparada pelo
Marquês de Granville. Olivia não estava preparada para entrar, para
separar-se dele, para encerrar o momento. Enquanto se permitia
conduzir por Anthony, que a empurrava para frente com uma mão
em suas costas, ela queria voltar correndo e abraçá-lo. Charles, não
o marquês. Ela queria abraçar Charles, enfiar o rosto em seu peito
molhado e agradecer.
Mas ele parecia pouco disposto a conversar. Com ela, com
qualquer outra pessoa — ele parecia precisar ficar sozinho. Olivia
não sabia por que os eventos da tarde pareceram afetá-lo mais do
que aos outros.
Ela subiu um pouco atordoada para seu quarto. As emoções
transbordavam por seus poros e Olivia quis lavá-las embora
mergulhando na banheira. Precisou de uma bucha, uma barra de
sabão e muita espuma para começar a se limpar, mas nem a água
morna surtiu o efeito que precisava. Esfregou cada parte de seu
corpo, quase esfolou a pele de tanto esfregar e, ainda assim,
continuava como se estivesse coberta por uma camada de
espinhos. Tudo nela formigava.
O banho durou vinte minutos. Eram quase oito horas quando ela
finalmente deixou o espaço controlado do banheiro para aventurar-
se em seu quarto. Bridget a aguardava para vesti-la e cada puxão
no espartilho a obrigou a silenciar um grito. Além de formigar, estava
sensível.
— Bridget, avise que o jantar deve ser servido às oito e meia em
ponto. Preciso de uns minutos aqui, vou escrever os eventos do dia
no diário.
— Pois não, milady.
A camareira desceu. Ninguém desconfiaria de sua mentira —
Olivia sempre escrevia no diário em vários momentos do dia e da
noite. Ela precisava distrair a família porque faria algo que não
deveria e para o que necessitava privacidade. Depois de girar três
voltas ao redor do próprio eixo e ameaçar abrir a porta outra meia
dúzia de vezes, ela se lançou no corredor e procurou o quarto onde
Charles estava.
Aquela deveria ser a vigésima vez que se colocava em um
cômodo fechado com aquele Eckley, mas em nenhuma estava com
pensamentos indecorosos. Céus, ela estava com pensamentos
indecorosos em relação a Charles? Como poderia ser tão
imprudente, mesmo sabendo do que libertinos eram capazes?
Olivia entrou no quarto e fechou a porta.
— Quem está aí? — A voz veio do quarto de banho. O coração
dela disparou. Por favor, que ele não esteja despido.
— Sou… sou eu.
Charles colocou a cabeça na porta e confirmou que era mesmo
ela. Olhou ao redor — estava sozinha. A porta fechada. O coração
deu uma pirueta quando ele saiu do banheiro vestindo apenas suas
ceroulas. Nenhuma outra barreira de tecido que a impedisse de
admirar as formas simétricas, nada ordinárias e incrivelmente
grandes daquele homem. Tudo o que sempre esteve ali e ela nunca,
nunca imaginou que pudesse ser tão… tão hipnotizante.
— Certo, precisamos ter uma conversa sobre limites. Você
perdeu completamente o juízo? Quando foi que adquiriu essa mania
de entrar nos quartos dos homens quando eles estão sem roupas?
Ele cruzou os braços no peito — o que não serviu em nada para
distraí-la, já que passou a observar os antebraços e seus músculos
contraídos. Aquela era uma explicação gráfica do por que homens
deviam usar mangas compridas e abotoadas nos punhos. Era quase
impossível concentrar-se em qualquer outra coisa enquanto sua
visão era atraída por aqueles braços peludos.
— Não tenho mania alguma de entrar em quartos, menos ainda
de homens e ainda mais se estiverem sem roupas. Você… você
poderia ter vestido alguma coisa antes de vir aqui falar comigo.
— E perder a oportunidade de ver suas bochechas corando? —
Charles não sorriu, apesar da zombaria. Ele mantinha a expressão
indecifrável e o olhar feroz. Olivia nunca se sentiu tão indefesa. — O
que você quer, Livvy?
Olivia Trentham nunca fora beijada nem sabia nada sobre beijos.
Essa foi a certeza que teve assim que a boca de Charles deitou
sobre a sua e todo o seu corpo amoleceu. Primeiro, ela achou
estranho que o beijo fosse tão molhado e quente. Os lábios dele
eram macios e os dela estavam rígidos e confusos pelo ataque
delicado, porém intenso. Ela sentiu que os dedos dele se abriam
para penetrar em seu penteado e que ele ajustava a posição de seu
pescoço para que o beijo fosse mais… para que o beijo encaixasse
melhor.
E então ele deslizou a outra mão para a bochecha dela,
acariciou-a com o polegar e passou a língua por seus lábios. Olivia
mal podia acreditar na ousadia daquele toque.
— Abra-se para mim — Charles murmurou contra a sua pele.
— Eu não sei o que…
— Shhh. — Ele deslizou o polegar para seu lábio inferior e o
posicionou ali. — Fique assim.
O que se deu a seguir foi ainda mais ousado: ele voltou a beijá-la
e, dessa vez, a língua a invadiu como um conquistador saqueando
uma cidade. Devastador. Delicioso. Entorpecente. Olivia se perdeu
em uma espiral de sensações inéditas e irresistíveis que a fizeram
reagir como uma devassa. Agarrou-o com mais força, enlaçou-o
pelo pescoço e colou seu corpo ao dele.
Olivia não sabia o que a sustentava, porque suas pernas não
eram mais capazes de cumprir a função. Talvez fosse a outra mão
de Charles, que desceu para sua cintura e exercia uma pressão
suave em suas costas. Ela estava nos braços dele, sendo devorada
pela boca com a qual sonhara uma ou duas noites atrás — e
entendeu o que ele falava sobre conforto.
Aquele beijo a fez sentir-se melhor. Atordoada pelos sentidos,
que estavam agitados e obnubilados pelo calor, pelo contato da pele
nua contra a sua e pelo sabor. O beijo tinha um gosto peculiar de
especiarias, uma nota de cravo e era alcoólico quase a ponto de
embriagá-la.
Um rosnado chamou a sua atenção. Pensou que fosse Charles
— ele tinha o hábito de grunhir e rosnar quando algo não estava do
seu agrado. Será que ela beijava tão mal que o amigo estava
achando a experiência desagradável? Era improvável. Olivia não
era uma grande entendedora de beijos, mas sabia que aquele
volume rígido contra o qual ela estava esmagada era um indicador
de que ele estava aproveitando o momento.
O rosnado deu lugar a um latido. Charles interrompeu o beijo e
virou o pescoço para o lado.
— O que essa criatura medonha está fazendo aqui?
Olivia olhou para a cama e lá estava ele: Fedorento, o cão
resgatado, de pé sobre o colchão e latindo irritado.
— Ele deve ter entrado sem que ninguém percebesse. — Olivia
desvencilhou-se de Charles e sentiu seu corpo ainda flácido. Deu
um passo para frente e quase caiu. Que efeito estranho era aquele?
— Venha, Fedorento, você está fazendo um escândalo
desnecessário.
O cão deu mais um latido e pulou em seus braços. Charles
respirou fundo e pressionou a ponte do nariz. Ele estava
arrependido de tê-la beijado, era claro. Estava aliviado por ter se
livrado da melhor amiga grudenta que decidira importuná-lo por
causa de uma perturbação emocional. Ela entendia, o dia fora
mesmo extenuante para quem, como ela, tinha uma vida pacata e
sem grandes acontecimentos. E ele tinha razão — Olivia precisava
de acolhimento.
— Vocês nomearam o cão “Fedorento”?
Ela riu.
— Foi você quem escolheu.
— Bem, não podemos negar que ele cheira melhor, agora. —
Charles cruzou os braços outra vez. — Melhor você ir. Se alguém
subir e pegar você aqui…
Ela olhou o relógio. Oito e meia. Estava quase atrasada para o
jantar e ela nunca se atrasava — ainda mais se foi ela quem marcou
o horário. Parou na frente do espelho pendurado na parede e ajeitou
o penteado que ele desfizera e saiu do quarto sem dizer adeus.
Talvez ele considerasse uma falha em sua educação. Olivia não
tinha como explicar que jamais seria capaz de dizer adeus a Charles
e que estava ainda menos apta a despedir-se naquela noite. Por
isso, ela apenas saiu, levando Fedorento no colo, e desceu
apressada as escadas para fingir que tivera alguma emergência.
Bem, a emergência fora real — ela apenas precisava inventar uma
que não a arruinasse em definitivo.
Capítulo décimo segundo
N , O C
inteligente, mas estava enganado. Completamente errado, bastante
equivocado em suas percepções sobre o dia. Era possível que ela
estivesse abalada, sim, mas o conforto físico só a fez se sentir
melhor enquanto estiveram juntos no quarto.
Ele faltou ao jantar, o que poderia ser um problema se Nicholas
não tivesse convencido a todos que a chuva o deixara com um
resfriado. Sem saber o quanto o irmão estava ciente da farsa que
eles encenavam, Olivia apenas lamentou o infortúnio e pediu que o
mordomo garantisse que ele recebesse um caldo de carne em seus
aposentos.
Como os convidados eram todos amigos de longa data, ninguém
se importou muito com a ausência de Charles. Depois de comerem,
os homens se dirigiram para o salão de jogos para beber vinho do
porto e jogar bilhar e as mulheres foram conversar no salão privado
da condessa viúva. A mãe também não apareceu, mas isso já era
esperado.
Quando todos se recolheram para seus quartos, com a
promessa de que o dia seguinte seria de muitas atividades ao ar
livre — afinal, não estava mais chovendo —, ela se perdeu nos
pensamentos. Deitada em sua cama, Olivia rolava de um lado para
o outro sem conseguir adormecer. A coceira e a dormência
passaram, mas ela sentia uma comichão inconveniente que lhe
subia pelas pernas até o pescoço. E calor. Calor em demasia para
uma noite agradável de primavera. Seus dedos dos pés estavam
frios, quase gelados, mas suas coxas ardiam como se estivessem
em chamas. O pescoço também estava quente, quase como se ela
estivesse febril.
Poderia estar doente, mas não acreditava na hipótese. Algo
naquele dia a fez despertar — para o que, ainda não sabia. O
problema: ela não conseguia desligar o que a estava deixando
agitada, ansiosa, nervosa e precisava de algo que ela não
compreendia.
Passou a noite em claro revivendo o beijo e isso não ajudou a
melhorar a situação. Rabiscou páginas e mais páginas em seu
diário e não escreveu nenhuma palavra coerente. Acendeu uma
lamparina e abriu Anna Karenina para prosseguir em sua leitura e
descobrir que queria algo diferente. Precisava dos livros de
Annabelle.
A irmã adorava livros proibidos e os escondia em um baú na
biblioteca. Olivia não sabia por que eram proibidos, apenas tinha
uma vaga impressão de que eram sexualmente apelativos e
mulheres não podiam ler, falar ou pensar sobre sexo. Claro que não
podiam, veja como ela estava depois de um simples beijo!
Exceto que não teve nada de simples no beijo de Charles. Ela
não imaginava que se pudesse beijar daquela forma, com tantos
sentidos envolvidos. E língua. Cristo! Eles se beijaram usando a
língua e aquilo tinha que ser uma coisa dos libertinos. Claro que era.
Por isso eles eram depravados, devassos que não respeitavam a
moral.
Enrolada em seu roupão, ela pegou uma lamparina e desceu as
escadas em silêncio. A casa estava toda escura, ainda faltavam
uma ou duas horas para amanhecer. A chuva, que dera uma trégua,
voltou a cair insistente e o vento assoviava pelas janelas fechadas.
Olivia foi até a biblioteca, acendeu algumas luzes e procurou os
livros da irmã. Pegou o primeiro da pilha, um pouco empoeirado por
não ser lido há muito tempo, e se acomodou em um chaise longue
ao lado da lareira.
Distraiu-se com o conteúdo logo no início da leitura. Uma dama
que decide se entregar de alma e corpo para o amor de sua vida, já
que estava destinada a um casamento sem amor com um homem
cruel. Eles se amavam desde jovens, mas a diferença de classes
sociais os manteve separados. Como ela não queria viver sem
provar a paixão, decidiu experimentar uma tórrida noite de prazeres
sexuais com seu amado.
Olivia esperava sentir repulsa pela história, mas acabou sofrendo
com a protagonista e seus infortúnios românticos — e se
envolvendo com a narrativa do encontro de amor. As descrições
eram bastante cruas e indecentes. Algo nela acendeu como velas
na noite de Natal.
— Lady Olivia?
Uma voz masculina ecoou pela biblioteca e a assustou. Olivia
derrubou o livro, quase caiu da cadeira ao tentar pegá-lo e não foi
rápida o suficiente para escondê-lo. O Duque de Greystone, em
roupas pouco decorosas, flagrou-a cometendo um crime que
poderia arruiná-la por completo.
— Milorde! — Ela sentou em cima do livro. — O que faz desperto
tão tarde?
— Perdi o sono e decidi dar uma caminhada, mas está
chovendo. Foi quando vi as luzes acesas.
Ela fechou o roupão até o pescoço, garantindo que nenhuma
parte estivesse exposta. Greystone estava despojado, com a camisa
para fora da calça, sem colete ou gravata e os cabelos castanhos
claros desarrumados. Sim, ele era bonito demais para ser de
verdade. Parecia os mocinhos de livros, aqueles que só existiam
nos sonhos das mocinhas.
— Também não consegui dormir e vim procurar um livro para ler.
O duque foi até o aparador de bebidas e se serviu de um
drinque. A chuva aumentou e o barulho do vento criava um
ambiente fantasmagórico.
— E encontrou?
Oh, sim, ela tinha encontrado. Apenas não podia mostrar o que
estava lendo para o duque. Puxou o exemplar de Anna Karenina e
exibiu a capa com ornamentos em dourado para sua companhia.
Greystone se sentou em uma cadeira à sua frente e pegou o livro
nas mãos. O coração de Olivia estava acelerado e ela sentia
vontade de rasgar as roupas e atirar-se em um lago gelado, mas
duvidava que Richard Cadden fosse o responsável por isso.
Também duvidava que ele fosse ser capaz de aplacar aquela
agonia.
— Tolstoi. Não pensei que gostasse de romances, Lady Olivia.
Quais outras surpresas milady esconde por trás de sua retidão e
decoro?
Aquele era um péssimo momento para flertes, mas ela não podia
dispensar a companhia de Greystone quando pensava que ele seria
o seu marido ideal.
— Toda dama acaba sonhando com um pouco de romance,
milorde.
— E milady gostaria de se casar por amor?
— Sim. Se puder escolher, casarei com o homem por quem
estiver apaixonada.
— Precisarei me esforçar para conquistar seu coração, então?
Ela não sabia como respondê-lo. Por sorte, não precisou. Antes
que a situação se tornasse constrangedora — ou perigosa —, a
biblioteca foi novamente invadida. Daquela vez por jovens
abelhudas que queriam uma aventura literária. Margaret e Ishani
Gupta, cujas idades eram equivalentes, entraram silenciosas e
ficaram da cor da morte ao ver que não estavam sozinhas.
— Parece que ninguém dorme nessa casa. — Greystone riu.
— Nós… nós queríamos… quer dizer, Ishani queria…
— Não precisam dar explicações sobre o que fazem em suas
casas, senhoritas. — O duque se levantou, bebeu o restante do
conhaque e fez uma reverência curta. — Se me dão licença, tentarei
cochilar um pouco antes que seja obrigado a participar de outra
aventura com Charles Eckley.
As três mulheres viraram o pescoço para vê-lo se retirar.
Margaret colocou a mão no peito e suspirou.
— Ele tem um belo traseiro.
— Pelo amor de Deus, Maggie! — Olivia rosnou. — Isso lá é
coisa para uma dama da sua idade falar?
— Não me diga que também não notou que ele é lindo e está
muito interessado em você? Vamos, Livvy, dois pretendentes?
Nunca imaginei que você fosse uma conquistadora.
— Eu jamais terei dois pretendentes — Ishani divagou. — Papai
escolherá o melhor marido para mim, assim não haverá competição.
— Deve ser chatíssimo casar com quem o pai escolhe — Maggie
balançou a cabeça.
— O que vocês duas vieram fazer aqui, na verdade? — Olivia
interrompeu a conversa. Como ela se casaria para satisfazer seu pai
e para atender aos seus ditames, acabaria tendo o mesmo destino
de Ishani Gupta: um casamento por conveniência.
— Eu queria mostrar a Ishani os livros proibidos de Annabelle.
— E desde quando você sabe que Annabelle tem livros
proibidos?
Margaret moveu os ombros para cima e para baixo como se
respondesse que aquilo não era importante. Olivia levantou e puxou
o livro que precisou esconder. Claro que as duas meninas também
estavam atrás daqueles exemplos de luxúria e perdição.
— Certo, sentem-se aqui. Se vocês vão ler essas obscenidades,
que sejam supervisionadas por alguém adulto.
As três se acomodaram no tapete, em almofadas fofas e tendo o
fogo alaranjado da lareira como companhia. A história da
desventura de amor terminou com um final feliz — a mocinha
desistiu do casamento com o nobre para ficar com homem de sua
vida. Ao final do livro, tanto Ishani quanto Maggie limpavam lágrimas
e comemoravam a vitória do amor. Ela tentava entender por que o
sentimento, tão supervalorizado pelas mulheres, não era a regra
para casamentos na aristocracia. E como faria para conjugar os
dois, já que, apesar de saber que o Duque de Greystone era o
melhor partido da temporada, ele não despertava qualquer paixão
nela.
E . O
com a cabeça em jogar com um libertino viciado em carteado?
Olivia perdeu antes mesmo de começarem a partida. Mas precisava
fazer alguma coisa para recuperar o controle de sua vida — e se
Charles tivesse como acalmar o maremoto de sensações que
causava uma devastação dentro dela, então que ela apostasse
tudo.
A chuva não cessou. Os convidados acordaram e foram
encaminhados para o salão de refeições. Os criados estavam
fazendo um serviço impecável, mas a situação fora da casa não era
das melhores.
— Milady — Hawkes, o mordomo, a interpelou ainda no salão de
refeições. — Temos um problema grave com as estradas.
— Que tipo de problema?
— Elas estão interditadas. A chuva alagou a via de acesso à vila
e causou uma cratera na estrada para a ferrovia. Não temos como
sair da propriedade, assim como ninguém pode chegar até
Summerwood Hill.
Aquele era realmente um problema grave, porém ela esperava
que fosse fácil de resolver quando o solo secasse. Se a chuva
parasse em algum momento.
— Isso significa que podemos não ter como voltar para Londres
na segunda-feira, Hawkes?
— O estrago na estrada é irreparável, milady. Teremos que abrir
outra passagem para as carruagens, porém está tudo alagado. Nem
cavalos conseguem passar.
— Certo. Mantenha essa informação em sigilo por enquanto.
Não vamos alarmar os convidados. Se tivermos de permanecer por
algum tempo, a casa possui suprimentos para quantos dias?
— Pedirei à Sra. Bowes que faça um levantamento.
Olivia agradeceu. A notícia a deixou ainda mais alerta e nervosa.
Havia um pequeno baile programado para aquela noite e a
orquestra certamente não conseguiria chegar. Ela teria que inventar
uma desculpa ou dizer a verdade e atrapalhar a diversão de todos.
Se eram aquelas as provações que precisaria enfrentar quando
casada, talvez devesse repensar sua vontade de arrumar um
marido. Era melhor permanecer solteira a ter que lidar com
desmoronamentos a alagamentos toda vez que se retirasse para o
campo.
Ela olhou para o movimento no salão. Os convidados estavam
alegres e conversavam animadamente. Não havia separação por
idade, então os jovens também frequentavam o mesmo espaço dos
adultos. Daniel perambulava como o pequeno conde que era.
Desviou sua atenção para o relógio — dez e meia. A celebração em
homenagem a seu pai teria lugar na capela que ficava na
propriedade, mas isso também seria atrapalhado pela chuva.
Sem dizer nada a ninguém, considerando que não dariam por
sua falta, Olivia subiu as escadas até o sótão, onde ficava reclusa a
sua mãe. Desde que chegaram ela evitou visitá-la com a intenção
de que Elizabeth Trentham se sentisse compelida a sair do quarto,
porém sabia que isso não aconteceria mais. Não entendia o que
afastava a mãe da vida social e até mesmo dos filhos. Não entendia
que amor era aquele que a fizera morrer em vida porque não podia
mais ficar junto do marido. Olivia desejava e temia aquele tipo de
sentimento — ela não queria nem mesmo correr o risco de passar
pelo que a mãe passava.
— Milady. — A camareira levantou-se imediatamente ao vê-la
entrar no quarto. A mãe estava sentada em uma cadeira olhando
para o lado de fora. Para a chuva. — Ia chamá-la, a condessa
gostaria de vê-la.
Ela duvidava, mas aceitou a mentira. Aproximou-se da cadeira e
ajoelhou-se ao lado de Elizabeth, segurando-lhe a mão envelhecida.
A mãe era uma mulher jovem, mas definhava há quase dois anos.
Sua pele estava fina como a seda. O toque era craquelado. Olivia
cogitou que a mãe pudesse se quebrar como o gelo do lago no
inverno.
— Bom dia, mamãe. Chegamos ontem de Londres e você está
com a casa cheia de convidados, como gostava. Não quer descer
para vê-los?
Elizabeth virou-se para ela com um movimento lento de pescoço.
Os olhos claros como os de Annabelle a miraram por breves
instantes e a mãe forçou um sorriso. Levou a mão até seus cabelos
e os afagou, como fazia durante a infância.
— Você sempre quis ser uma anfitriã. Aproveite seu momento.
— O contato visual se rompeu e Elizabeth voltou a encarar a chuva.
— Quero ver meus filhos. Peça que venham.
Olivia levantou-se e beijou o topo da cabeça da mãe. Uma
lágrima caiu sobre os cabelos grisalhos e ralos. A mãe tinha
quarenta e cinco anos, mas parecia ter vinte a mais. Envelheceu
tanto em poucos meses que talvez nem ela a reconhecesse, se não
tivesse certeza de que aquela mulher ali era Elizabeth Trentham.
— Faremos um tributo ao papai hoje. Você não vai participar?
Nenhuma resposta. O corpo da mãe estava ali, mas a mente
dela vagou para outro lugar. Ela vestia um sorriso distante e seu
olhar parecia ultrapassar as fronteiras do vidro embaçado, perdido
em algum lugar onde ninguém a encontraria. Talvez fantasiasse
estar com o marido.
— Meus irmãos virão vê-la — Olivia informou à criada e saiu.
Depois de fechar a porta, recostou-se nela e cobriu o rosto com as
mãos, sem conseguir evitar que as lágrimas contidas derramassem.
Seu corpo deslizou para o chão até que ela se reduzisse a uma
menina encolhida chorando pela morte dos pais.
Porque Olivia perdeu o pai e a mãe dois anos atrás. Um partiu
de corpo, a outra, de alma. Ela precisou lidar com a morte, os
irmãos pequenos e uma casa imensa sem que seu coração
estivesse remendado — e foi planejando, organizando e mantendo
tudo sob controle que ela conseguiu superar.
Ela limpou o rosto com as costas das mãos e respirou fundo.
Não queria ficar ali chorando pelas perdas enquanto havia tanta vida
pela frente. Precisava descer, garantir que os convidados
estivessem entretidos e rever os planos do dia. Ergueu a cabeça e
se deparou com uma sombra enorme que escureceu o corredor.
Charles.
Ele estendeu a mão para que ela se levantasse e passou o
polegar por sua bochecha para secar a última lágrima intrusa. Sem
dizer nada, encarava-a com as sobrancelhas unidas e os braços
quase abertos, como se oferecesse um abrigo. Por um instante ela
quis abrigar-se ali, naquele abraço, e ficar para sempre. Ele
entendeu seu clamor silencioso, tomou a iniciativa e a puxou de
encontro ao seu peito.
— Como me achou aqui?
— Estava observando você. — Charles levou uma das mãos até
seus cabelos e os acariciou. — Ela está bem?
— Ela mal me notou. Talvez eu pudesse insistir, talvez eu
devesse insistir, mas toda vez que mamãe se fecha e finge que não
existo, eu…
As lágrimas vieram outra vez e Olivia enfiou o rosto naquele
espaço quente e aconchegante formado pelo peito sólido e o abraço
de Charles. Ela estava soluçando e não sentiu vergonha de fazer
isso na frente dele. Não era a primeira vez — nem que ele a
acalentava, nem que ela se debulhava em pranto em seus braços.
— Não precisa me explicar, Livvy. Acho que já é hora de
conseguirmos alguns médicos novos para sua mãe. Buscaremos na
França, Alemanha, Itália… se preciso for, traremos curandeiros das
Américas.
O tom de voz dele era autoritário e determinado. Charles não
tinha ideias, tomava decisões. Não parecia importar-se por não ser
oficialmente responsável pela família — ele mandaria e distribuiria
ordens quando achasse que fosse preciso.
Talvez fosse preciso. Ela gostaria de tentar mais um pouco. Os
médicos que estavam cuidando dela não identificavam o problema
de Elizabeth — era melancolia, diziam, mas nada faziam. A
melancolia a mataria em poucos meses mais, se nada fosse feito.
Era perceptível que nem comer a mãe estava comendo.
— Charles, as estradas estão interditadas.
— Sim, Hawkes me contou. Imagino que seu caderninho tenha
um plano para caso o plano não dê certo.
— Eu tenho dois planos para cada plano que não der certo. —
Ela riu. Ele sempre a fazia rir quando estava se sentindo mal.
Daquela vez, no entanto, era diferente. Algo na forma como a mão
dele acariciava sua nuca, ou como ela se desfazia naquele carinho
sem perceber. — Os convidados sabem?
— Apenas que não terá mais caça ao tesouro. Garanto que
estão celebrando isso agora mesmo enquanto fumam os charutos
de Salisbury.
Ela riu outra vez e ergueu os olhos vermelhos. Os dele estavam
mais escuros sob a pouca luz do corredor. Intensos. O polegar dele
deslizou para seu queixo, acariciou-o e extraiu-lhe um gemido
constrangedor. De onde viera aquilo?
— Lembra que combinamos que eu ajudaria quando se sentisse
assim?
— Assim como?
— Indisposta, triste, magoada, chateada, ansiosa. Quando você
se sentisse mal por qualquer motivo.
— Não me recordo de tantas cláusulas em nosso acordo. Tem
certeza que combinamos isso?
Charles lhe ofereceu o melhor sorriso Eckley e a segurou com as
duas mãos, uma de cada lado de sua face.
— Se eu não a fizer sentir-se melhor, pode me punir e zombar o
quanto quiser.
Ele então deitou a boca sobre a dela e a beijou. Não foi nada
como na noite anterior. Foi suave, molhado e sem língua. E breve.
Muito breve. Durou bem menos do que ela desejava que durasse,
mesmo que Olivia jamais fosse confessar isso em voz alta. Ela o
enlaçou pelo pescoço e forçou os lábios a se aproximarem
novamente. Charles repetiu o beijo e deslizou a boca até sua orelha.
Envolveu um lóbulo na boca, sugou e quase a dissolveu em
sensações.
— Parece-me que eu tinha razão. — disse o devasso.
Ele se afastou e garantiu que ela estivesse de pé e firme. Quase
firme. Olivia sentia que balançava como um galho seco na ventania
e que desabaria a qualquer tempo, se não fosse amparada. Tinha
que haver alguma droga nos lábios daquele homem. Álcool? Ele
tinha gosto de conhaque, mas o gosto não embriagava, certo? Seria
ópio? O ópio a deixaria ardendo em fogo e mole como pudim ao
mesmo tempo?
Não. Havia outra coisa naquele beijo que a fazia tão bem. Olivia
descobriria em breve. Ela só precisava prová-lo algumas vezes
mais.
Rhode Port
O . P
estava em apuros — já deveria passar bastante de meio-dia e ela
ainda não retornara da praia. Já prevendo a bronca que levaria da
mãe, juntou suas coisas, colocou sobre Fantasia, montou e disparou
na direção da mansão dos Eckleys. A mãe não sabia onde ela
estava, acreditava que a filha descansava tranquila em seu quarto.
Mas Olivia detestava descansar à tarde. Ela tinha tanta energia e
gostava da praia. O mar, a brisa e a areia eram suas melhores
companhias quando estava em Thanet.
Precisava retornar a égua de onde a retirara. O cavalariço
dormia quando ela entrou, pé ante pé, no estábulo para pegar
emprestado o animal que Charles lhe presenteara. Aquele também
era um segredo — ninguém podia saber que Fantasia era dela.
Homens não davam presentes a mulheres, a não ser que
estivessem para se casar. Como Charles não seguia as convenções
sociais, no dia em que ela fez dezoito anos, ganhou Fantasia para
que pudesse cavalgar pela propriedade sem precisar pedir.
— Milady? — O cavalariço a viu chegando.
— Sr. Mullighan — ela sussurrou. — Espero que não se importe
por eu tê-la levado.
— Não, milady, o Sr. Eckley ordenou que a égua esteja sempre
pronta para quando desejar.
— Poderia cuidar dela, então?
O jovem ruivo e cheio de sardas assentiu e pegou o arreio de
sua mão. Olivia respirou aliviada — um problema a menos para
lidar. Se ela tivesse perdido o almoço, provavelmente ficaria de
castigo até o fim de sua vida. Deu meia volta para afastar-se do
estábulo quando ouviu ruídos que se assemelhavam aos grunhidos
de um animal. Teria algum cão se perdido por aquela região?
Estaria ferido?
Os sons vinham da parte dos fundos do estábulo. Naquele
momento, o medo de ser punida por sua indisciplina foi superado
pela necessidade de ajudar um pobre animal em sofrimento. Em
silêncio para não assustar o cão — ela tinha certeza de que era um
cão! —, Olivia cruzou a distância até a porta traseira do barracão e
se pendurou em uma divisória das baias.
Ao invés de deparar-se com um filhote ferido ou perdido, quem
surgiu à sua frente foi Charles Eckley. Não, o que surgiu foram as
costas dele, cujos flancos estavam entrelaçados pelas pernas
desnudas de alguma mulher. Os ruídos que ela ouvira eram
gemidos e aquela era a cena mais indecente que já vira em toda a
sua curta vida.
Claro que Olivia nunca vira nada realmente indecente. Ela era
uma dama muito própria e cheia de pudores. Ao menos tentava ser.
Evitava a companhia de Caroline, porque ela era escandalosa e
sempre estava envolvida em atividades indecorosas. Pretendia ser
um exemplo de virtude para suas irmãs mais novas e aquilo…
aquilo não era nada do que ela já havia visto.
Ela quis desaparecer dali, mas acabou caindo e batendo o
traseiro no chão quando se soltou da divisória. O blam! atraiu a
atenção do casal, e logo a figura imensa de Charles estava parada
diante dela.
— Olivia Trentham, o que diabos está fazendo?
Ele não a intimidaria depois do que ela presenciara. Olivia
levantou-se, bateu o feno de seu vestido úmido e olhou para cima
para encará-lo.
— Eu é que pergunto o que você estava fazendo. Desonrando
uma dama no meio do estábulo?
— Eu não a estava desonrando e estávamos nos fundos. —
Charles cruzou os braços na frente do peito. Sua camisa estava
aberta e as calças não estavam exatamente no lugar. — Você está
muito longe de casa, mocinha.
— Não sou mocinha. — Sua voz saiu esganiçada. Ela estava
irritada com ele, aborrecida com toda aquela promiscuidade. Por
que ainda se deixava afetar? Olivia sempre soube que Charles não
tinha nenhum decoro. — Pare de fornicar com as mulheres em
lugares como esse, Charlie. Você é melhor do que isso e elas não
merecem tamanho desrespeito.
Ele baixou o olhar e fitou o feno no chão por alguns segundos.
Quando voltou a encará-la, estava rindo. O maldito sorriso Eckley.
Aquelas covinhas eram uma distração irritante.
— Tantos anos de amizade e você ainda não me conhece, Livvy.
Eu não sou nem um pouco melhor do que isso.
Não adiantava discutir com quem tinha uma percepção tão
negativa de si. Por vezes, ela tentou mostrar o quanto Charles era
um homem de bom coração, gentil e até mesmo adorável. Ele
parecia não enxergar seu valor ou acreditar que quartos filhos não
tinham lugar na sociedade. Um dia, talvez, ela conseguisse
convencê-lo do contrário.
Hampshire, abril de 1898
Summerwood Hill
O G T
. A celebração marcaria o
aniversário de dois anos de seu falecimento e a família mandou
restaurar um retrato antigo para reinaugurá-lo naquele dia. O quadro
já estava pendurado na parede e fora coberto com um pano preto
para preservar a imagem até a cerimônia.
Cadeiras foram colocadas em linha, divididas em dois grupos, e
um púlpito foi montado à frente do quadro. O pároco da vila ainda
estava abalado pelo desabamento da igreja, mas Olivia garantiu que
o condado financiaria a construção de uma nova. Isso se Charles
garantisse que eles tinham recursos para tanto — e ela esperava
sinceramente que sim. Os convidados, vestindo roupas sóbrias e
sem adornos, ocuparam seus lugares e receberam velas dentro de
um castiçal de vidro.
Ela foi a primeira a chegar. Estava com seu vestido preferido do
meio luto, uma composição de cinza com roxo que cobria dos
pulsos ao pescoço e dispensava o uso de luvas longas quando saía
de casa. Os cabelos foram presos bem esticados em um coque
simples, decorados com um adorno de véu. Brigitte fez um ótimo
trabalho, porque nenhum cacho rebelde se soltara para importuná-
la.
A cada nova vela acesa, Olivia sentia-se grata por estar entre
amigos. Por ter decidido fazer aquele evento em Hampshire, por
transferir o memorial para a sua casa de infância, por aquele plano
ridículo para ajudar Charles a fingir ser o que ele já era. As irmãs
chegaram e se colocaram ao seu lado na primeira fila. Daniel
chegou por último e se sentou na outra ponta. Ele estava com a
cabeça baixa e não cumprimentou ninguém ao entrar.
Talvez ela devesse questionar os modos do irmão, mas ele sofria
mais do que elas a falta do pai. Decidiu buscá-lo para que se unisse
ao restante da família, mas Charles entrou no salão e desviou
completamente a sua atenção.
Ele estava todo de preto. Olivia nunca vira um traje como aquele
— ela nem sequer sabia que havia camisas masculinas pretas, ou
de qualquer outra cor que não fosse o branco. Mas Charles Eckley
não era um homem comum, então ele não apareceria com uma
vestimenta comum. Paletó, camisa, gravata e colete, tudo preto, de
corte impecável, combinando com as sombras que ainda
escureciam seu olhar.
Os olhos dele a encontraram primeiro e Olivia sentiu-se
constrangida pela intensidade do contato visual. Esther White tinha
razão, ela apenas não entendia o que aquilo significava. Em seguida
ele se sentou ao lado de Daniel. Não disse uma palavra, não olhou
para o menino, apenas se sentou ali. Ela suspirou — deixaria que os
dois se entendessem.
— Boa tarde a todos. — O pároco assumiu o púlpito, trajando
vestes tradicionais. — Estamos hoje aqui reunidos para
homenagear o grande homem que foi George Trentham, que tão
prematuramente nos deixou há dois anos.
Uma lágrima molhou seus cílios. Olivia Trentham não chorava
em público. Ela passou o braço ao redor do ombro de Margaret,
porque a irmã já estava soluçando. Annabelle segurou sua outra
mão. A cerimônia levaria por volta de duas horas e até lá as irmãs já
teriam se desidratado.
Depois das palavras iniciais, houve uma celebração religiosa e
então o momento dos filhos dizerem algumas palavras. Ela se
levantou, encontrando apoio em seu caderno, e se dirigiu ao púlpito.
Havia gente demais e Olivia admitiu que isso era bom. Seu pai era
amado. Sua família tinha muitos amigos. Puxou um papel dobrado
de dentro do caderno e o apoiou no objeto de madeira à sua frente.
Limpou a garganta com um pigarro e decidiu que seria breve.
— Meu pai foi tudo que o Sr. Farrell disse, então não me
repetirei. Falarei do George que poucos conheciam: ele era um
marido amoroso e um pai brincalhão. Papai não perdia a
oportunidade de nos colocar para dormir, não nos relegava aos
cuidados de babás, passava todo o tempo livre na presença dos
filhos, não nos excluía dos eventos e agora imagino que esse
comportamento pouco comum tenha sido o que o aproximou do
finado Caleb Eckley.
Alguns risos a fizeram se sentir melhor. Por mais reverencial que
fosse a cerimônia, seu pai era um homem de bom humor e não
desejaria mais tristeza.
— Ele se casou por amor e amou todos os frutos dessa união,
inclusive os cães que Annabelle insistia em trazer para casa. —
Mais risos. As irmãs continuavam chorando e Daniel se mantinha
inabalável, porém amparado pelos braços fortes de Charles. —
Alguns aqui lamentam a perda de um homem honrado e cumpridor
de seus deveres. Nós lamentamos a perda do nosso melhor amigo.
Ela se virou e puxou o pano, que revelou a magnitude do
trabalho de restauração de Etienne Seville, um artista francês amigo
de Rosamund. Os convidados todos aplaudiram e ela voltou para
seu lugar. Nem as irmãs, nem Daniel demonstraram o desejo de
falar — e estavam comovidos demais para fazer o uso da palavra. O
pároco se preparou para encerrar a cerimônia quando Charles se
levantou.
Chamando a atenção toda para si — pelo gesto inesperado e
pela figura excêntrica —, ele assumiu o púlpito e levou quase um
minuto para iniciar sua fala. Não havia nenhum papel, nenhum
rascunho, nada que indicasse que ele preparou um discurso.
— Boa tarde. Salisbury era bem mais jovem do que meu pai,
mas ainda assim eles eram bons amigos. Essa amizade uniu
nossas famílias e sou grato todo dia por isso. Quando ficamos
órfãos, ele nos acolheu como a seus filhos, mesmo que já não
fôssemos crianças. Lembro-me de todos os momentos de
cavalgadas, reuniões masculinas e da primeira vez que ele me
levou a um clube de cavalheiros. Ele merece ser lembrado pelo bem
que fez a todos que o cercavam, mesmo quando fazer o bem não
estava na moda.
Da mesma forma abrupta que sequestrou a palavra, Charles
retornou para seu assento deixando um silêncio reflexivo no ar.
Daniel o abraçou e Olivia sentiu uma onda de calor aquecendo-a
desde os dedos do pé. A cerimônia terminou como estava planejada
e todos foram para o salão principal, onde uma farta mesa com
comidinhas os aguardava.
Ela quis ir até Charles para agradecer, mas teve o braço
agarrado por Rosamund e acabou sendo envolvida pelas mulheres,
que queriam conversar sobre assuntos femininos. Como Ishani
Gupta estava entre elas, Olivia decidiu permanecer ali para ajudar
na construção da reputação dele. Quando teve um momento de
intervalo e foi até a mesa de comida pegar um copo de ponche, não
o viu mais.
H . N
abril, não daquela forma. Não deveria haver estradas encharcadas
nem desmoronadas e eles não deveriam estar presos dentro de
casa. Mas era o que estava acontecendo naquele final de semana
caótico em que nada — absolutamente nada — saiu da forma como
ele esperava.
Graças a Deus.
Depois de sair do jardim de inverno e de deixar Olivia bastante
desorientada com aquela demonstração entusiasmada demais de
desejo, Charles teve que ir até o estábulo conversar sobre o cavalo
de Daniel. O animal, que se ferira no dia anterior, ainda sentia
muitas dores e estava irritadiço. Como não seria possível trazer um
veterinário da cidade até que a chuva cessasse em definitivo e as
estradas voltassem a ser transitáveis, ele foi solicitado pelo
cavalariço para uma solução.
— O cavalo não será sacrificado. — Charles segurou o bolso
interno de seu colete. O talismã de Olivia permanecia ali para
lembrá-lo de que toda vida importava. — Esse ferimento pode ser
tratado e a pata não está inchada.
— A pata está boa, senhor, mas esse corte…
Charles se aproximou do animal e o bicho relinchou, nervoso.
Precisou distraí-lo com uma maçã enquanto tocava o ferimento para
confirmar que a laceração era profunda e estava infeccionando.
— Teremos que cauterizar a ferida — ele determinou. —
Precisamos de uma faca, fonte de calor, ácido carbólico e panos
limpos. Também precisamos de um pouco de láudano.
O cavalariço ficou observando-o confuso.
— Acho que conseguimos isso na cozinha…
— Não ache, menino! Corra e vá buscar o que pedi.
Mais uma vez o animal relinchou nervoso. Seria difícil cauterizá-
lo sem levar um coice, mas algo precisava ser feito. Não dava mais
para costurar, já havia alguma infecção instalada no ferimento.
Charles passou a mão na própria coxa, onde tinha uma ferida
parecida com aquela e que curara da mesma forma: com uma faca
quente e um pedaço de couro para morder.
Permaneceu ali acariciando a crina do cavalo até que o
cavalariço retornasse — com o que ele pediu e com ela. Enrolada
em um xale e usando um roupão de flanela mais adequado a uma
noite de outono, Olivia já parecia pronta para dormir, mas estava ali,
enlameando suas roupas nos estábulos.
— O que aconteceu? — ela perguntou, aproximando-se do
animal.
— Ele precisa de cuidados e não há como trazermos o
veterinário. O que faz fora da cama, Livvy? Está chovendo, veja seu
cabelo.
Charles acariciou a trança que pendia pelos ombros dela e
retirou alguns respingos de chuva.
— Fui solicitar um leite morno para Daniel e vi a movimentação
na cozinha. O que pretende fazer, uma cauterização?
— Sim, não podemos deixar que o ferimento infeccione.
— Para que o láudano?
— Para anestesiá-lo.
Olivia também franziu as sobrancelhas, incrédula. Aquela
deveria ser a primeira vez que alguém se importava em garantir que
um cavalo não sentisse dor em uma simples intervenção, mas ele
não se preocupava apenas com a dor. Charles sabia que o animal
precisava estar tranquilo para que a cauterização desse certo.
Usando uma vela, Charles esquentou a faca. Demorou cinco
vezes mais do que se estivesse em um fogão ou uma lareira,
porém, era o fogo que tinham disponível. Enquanto isso,
ministraram com cuidado o láudano para o cavalo, que cuspiu uma
parte, mas aceitou o restante assim que começou a sentir os efeitos
da sedação. Sonolento, o animal cambaleou e acabou deitando no
chão do estábulo. Olivia ficou apreensiva ao ver o bicho naquelas
condições e ele não podia negar que era arriscado. Nunca
ministrara láudano a um animal, então tudo podia dar errado.
Mas não daria. Com a faca de lâmina quase alaranjada, Charles
se aproximou do ferimento e cauterizou as duas bordas. O cavalo
despertou, relinchou, quis se levantar, quase caiu, foi amparado pelo
cavalariço e derrubou Charles no meio de um monte de feno. Para
evitar que o objeto incandescente inflamasse o feno, ele o segurou
de mau jeito e se queimou na lateral do abdômen. O pequeno
acidente foi rapidamente controlado e o bicho continuou quase
adormecido.
— Pronto. Amanhã você passará o unguento com mel de
abelhas e mantenha o ferimento livre de moscas. Acha que pode
fazer isso?
— Sim, senhor. Com certeza.
Ele se levantou de onde estava e conferiu o rasgo em seu colete
e sua camisa causados pela faca. Aquelas eram roupas de boa
qualidade!
— Você se feriu? — Olivia se aproximou, puxando o casaco para
expor o rasgo. Mal dava para ver o que acontecera e tinha pouco
sangue, já que a faca estava muito quente.
— Não foi nada de mais. Vamos retornar para a casa.
— Pegarei os primeiros socorros e o encontro em seu quarto.
Não houve tempo para dissuadi-la. Olivia marchou apressada na
direção da mansão como se a vida de alguém estivesse em risco. A
vida, não, mas a virtude, com certeza. Cristo! Ele pressionou a
ponte do nariz e voltou para a casa temendo o que mais poderia
acontecer naquela noite. Foi para o quarto, fechou a porta à chave e
começou a se despir com cuidado para não arruinar mais ainda
suas vestimentas.
Pendurou o casaco cheio de feno em uma cadeira. Retirou a
gravata, dobrou-a e colocou sobre a cômoda. Embolou o colete e a
camisa em um canto do banheiro. Olhou-se no espelho oval de
moldura de madeira e examinou o pequeno corte. Nada que uma
limpeza e uma dose de uísque não resolvessem. Sentou-se e
arrancou os sapatos, arremessando-as para o canto do quarto.
Estavam sujos de lama e possivelmente inutilizados. As calças
tinham lama até os joelhos e muito feno grudado. Abriu os botões
para abri-las quando ouviu batidas à porta.
Maldição, Olivia! Decidiu ignorá-la, mas as batidas continuaram.
Daquele jeito, ela acordaria alguém naquele corredor. Charles
respirou fundo e girou a chave, abrindo a porta. Olivia quase caiu
para dentro de seu quarto. Tinha lama na barra do roupão, o xale
em suas costas e seus cabelos estavam úmidos. Ela segurava uma
caixa de madeira pintada de branco e com uma cruz vermelha na
tampa.
— Agora pode trancar de novo. — Ela sorriu e apoiou a caixa
sobre a cômoda. Retirou o xale e o pendurou exatamente por cima
de seu casaco.
— Como disse?
— Trancar a porta. — Olivia apontou para a chave em sua mão.
— Não vai querer que entrem de surpresa e nos peguem aqui, vai?
Talvez fosse uma ótima ideia, assim ele seria obrigado a casar-
se com ela de uma vez. Isso resolveria metade de seus problemas
— mas iria obrigá-la a um casamento indesejado. Além de perder a
herança deixada pelo pai. Não. Forçar Olivia a casar-se com ele não
era solução, era mais um problema. Era injusto. Charles colocou a
chave outra vez na maçaneta e trancou a porta.
Ela era linda. Nem em todas as suas fantasias mais indecentes ele
imaginou aquele momento. Olivia, a criatura mais pura que existia,
presa debaixo de si. Nua da cintura para cima. Com a pele marcada
por seus beijos e com a respiração frenética de quem ansiava pelo
prazer que ele poderia lhe dar. Só ele. Nenhum outro homem
poderia vê-la daquela forma. Nenhum outro poderia olhar para
aqueles seios. Nem tocá-los.
Olivia era sua. Ela o queria, ela estava excitada por ele. Charles
começou reivindicando o mamilo direito. Colocou-o na boca e
acariciou com a língua, fazendo com que ela se debatesse e
arqueasse as costas. Cada gemido de aprovação o autorizava a
seguir em frente. Fechou os lábios ao redor do mamilo e o sugou.
— Charles.
Isso, diga meu nome. Com a mão livre, ele acariciou o outro seio
e pressionou os quadris contra ela.
— Solte-me — Olivia resmungou. — Eu quero tocar você.
— É melhor que não me toque. — Charles lambeu o outro
mamilo. — Deixe-me dar-lhe o conforto que precisa, pelo qual
anseia.
— E você?
Ele ergueu o olhar para vê-la ali, rendida às suas carícias.
— Eu ficarei satisfeito ao satisfazer você.
Era verdade. Uma verdade patética que o faria ser piada no
salão de Riderhood pelo resto de sua vida caso algum dos homens
soubesse. Naquele instante, ele não se importava com o que seu
corpo precisava. Queria fazê-la gemer mais, gritar, desfazer-se em
sua boca. Queria marcá-la como sua. Garantir que seria o primeiro a
dar a ela o maior prazer físico que ela pudesse sentir.
Charles deslizou a mão até os tornozelos dela e retornou-a,
erguendo a camisola até amontoá-la na metade das coxas. Olivia se
remexeu quando ele colocou seu peso sobre o colchão e
serpenteou os dedos até acariciá-la em sua intimidade. Ele sugava
lentamente cada mamilo enquanto roçava nos cachos que a
cobriam na região mais escondida de seu corpo. Ajeitou-se por
sobre ela e puxou a camisola um pouco mais para baixo, prendendo
ainda mais os braços dela em um cárcere de tecido.
Ela continuou a resmungar que queria ser solta, mas ele não
podia ser tocado. Uma carícia poderia fazê-lo explodir. Sua ereção
pulsava enquanto as mãos subiam mais a outra extremidade da
camisola até expor Olivia por inteiro. Quase. Era o suficiente para
que ele tivesse uma visão privilegiada do sexo feminino com que
tanto sonhou. Sim, ela era mais bonita do que ele sequer poderia
imaginar. O triângulo de pelos no centro de suas pernas provocou-o
a deslizar para o chão e puxá-la até que Olivia ficasse meio
pendurada para fora da cama.
— Você confia em mim? — Charles perguntou, ajoelhado na
frente da mulher que adorava. Ela ergueu a cabeça e a balançou.
— Sim.
— Mesmo que eu mantenha seus braços presos? Mesmo que eu
a toque aqui?
Dobrando o corpo, ele soprou-lhe os pelos pubianos e
posicionou as duas mãos em sua virilha. Olivia gemeu e se retorceu,
confusa e ansiosa.
— Sim, eu confio.
— Então eu vou beijá-la, assim como prometi que faria.
Charles usou os dois polegares para abrir-lhe os lábios e expor a
feminilidade intocada, onde o clitóris também pulsava. Olivia tremia.
Ele ergueu-lhe uma perna e depositou beijos lentos e molhados
desde o dedão do pé. Ela riu, sentindo cócegas ao ser acariciada
pela língua na panturrilha, e gemeu quando ele lhe beijou a parte
interna da coxa. Repetindo o gesto com a outra perna, Charles
deixou-a aberta, com os calcanhares apoiados na beirada do
colchão. Olivia ergueu a cabeça para vê-lo e, aproveitando a
atenção, ele levou um dedo à boca, umedeceu-o com saliva e o
conduziu ao botão do prazer feminino.
— Oh, Deus! — Olivia desabou outra vez na cama. Ele fez
círculos lentos com o indicador e logo substituiu o dedo pela língua.
— Oh, Deus! Isso é… o que você está fazendo?
— Isso é um beijo, minha querida. — Charles riu, deslizando a
língua por toda a extensão do sexo dela. — Você quer que eu pare?
— Não! Quero dizer… não, por favor, não pare.
Claro que ele não pararia. Nunca mais. Provar o gosto da boca
de Olivia deixou-o desorientado. Viciado. Provar aquele gosto
deixaria-o alucinado. Charles não seria mais capaz de sobreviver
sem poder sentir aquele calor, aquela textura, o sabor da mulher
que ele amava. Não haveria outro prazer que não o de dar prazer a
Olivia. Aceitaria tornar-se celibatário, nunca mais possuir outro
corpo feminino, se pudesse adorá-la daquela forma todos os dias.
Com cuidado, lambeu e sugou o clitóris enquanto acariciava-lhe
a entrada. Olivia agarrou os lençóis e os puxou com força quando
ele a penetrou com a língua. Os pés dela apoiaram em seus ombros
e o empurraram, fazendo-o se afastar.
— O que está acontecendo comigo? — perguntou, trêmula.
Charles se ergueu e se sentou ao lado dela enquanto acariciava-lhe
os cabelos.
— É ruim quando beijo você aqui em baixo? — Ele deslizou a
mão para a feminilidade úmida.
— Não, mas eu sinto como se fosse explodir. Como se eu
fosse… como se algo fosse sair de dentro de mim.
Charles dobrou-se e a beijou nos lábios, fazendo-a provar o
próprio gosto.
— Isso é bom. Quando a sensação voltar, deixe que ela controle
você. Não lute contra ela, apenas permita que ela se apodere de
todos os seus sentidos.
— Solte-me.
Olivia debateu-se e Charles terminou de abrir os botões da
camisola, libertando-a da clausura. Tão logo pôde mexer outra vez
os braços, ela o puxou para baixo e o beijou. Inexperiente, o toque
de lábios era suave e vacilante, porém determinado. Ele rolou para
cima dela, empurrou-a contra o colchão e voltou para o lugar de
onde saíra: para o meio de suas pernas.
Daquela vez, Olivia não resistiu. Obedeceu-o e deixou o prazer
dominá-la enquanto Charles a sugava lentamente em seu centro de
prazer. Para evitar que os gemidos fossem ouvidos pelo corredor,
ele lhe entregou um travesseiro.
— Morda quando quiser gritar.
Ela agarrou o objeto com as duas mãos e cravou-lhe os dentes.
Charles penetrou-a com um dedo, depois com dois, e acariciou-a
por dentro da mesma forma que acariciava por fora.
— Charles!
O gemido saiu abafado. Ele sugou com mais ritmo e manteve a
cadência de movimentos de entrada e saída até que ela irrompesse
em espasmos gloriosos de prazer.
Em um instante ela estava inteira, no outro, transformara-se em luz.
Olivia viu a erupção que fez com que tudo ficasse turvo e nebuloso
por vários minutos enquanto seu corpo se desmanchava nos lábios
experientes de Charles Eckley. O grito escapou de sua garganta
sem que pudesse controlá-lo. Suas pernas tremiam. Seu coração
saltava as batidas, de tão acelerado. Todos os sentidos
maximizaram enquanto ele a beijava em um lugar que ela mal sabia
que existia.
Bem, claro que ela sabia. Olivia sabia que havia algo ali que
suscitava tanto furor social. Algo que os homens queriam e que as
mulheres não deveriam entregar. Ela entendia de anatomia e tivera
a oportunidade de ver algumas figuras quase explícitas. A
curiosidade a fizera levar um espelho até o meio das pernas para
observar a parte mais complicada do corpo das mulheres — ao
menos era o que lhe diziam.
Mas ela nunca se tocara, nada além do necessário para a
higiene íntima. Seria incapaz de saber que aquela era a fonte de um
prazer irresistível. Sua mente estava um tumulto de pensamentos e
sensações quando seu corpo foi puxado para cima do colchão e ela
se viu deitada por sobre o peito de Charles. Ele também respirava
com dificuldade. Teria compartilhado o mesmo prazer que ela
sentira?
— Estou arruinada? — Olivia afundou o nariz no peito desnudo.
Era um lugar aconchegante. Aquele abraço a fazia se sentir em
casa.
— Incontestavelmente. — Ele beijou-lhe os cabelos. —
Irrevogavelmente.
— Oh, céus! — A percepção de que ela estava envergonhada,
porém, não arrependida, atingiu-a. Não estava nem mesmo
preocupada. — E agora? Todos saberão o que fiz?
— Não é como se tivesse uma marca na sua testa, Livvy. — Ele
riu. — Ninguém vai perceber, não há rastros físicos do que fizemos.
Era impossível que não houvesse. Olivia ainda sentia as mãos
dele sobre ela, a boca dele sobre ela, a língua dele tocando-a em
lugares impróprios e absurdamente satisfatórios.
— Você disse que ia me beijar. — Ela se ergueu e o encarou.
Charles tinha os lábios vermelhos e os cabelos desgrenhados como
se tivesse feito uma atividade física extenuante. — Isso pareceu
mais que beijar.
— Tem razão, foi mais do que beijar. Agora você está exausta e
precisa dormir. Vamos dar um jeito de restituí-la para seu quarto.
— Como você pode ter feito isso estando vestido? — Ela o
interrompeu. Nem mesmo ouviu o que Charles estava dizendo. Sua
mente continuava trabalhando em tudo que a deixava curiosa. —
Suas calças… você as recolocou?
— Eu não as tirei.
— Mas nós… nós fizemos amor, não fizemos?
Ele riu outra vez e ela se sentiu muito tola. Estava falando
bobagens na frente de um homem experiente como se ele tivesse o
dever de explicar-lhe aquelas coisas.
— De certa forma, sim. — Charles acariciou-lhe os cabelos e ela
descobriu que adorava quando ele fazia aquilo. — Mas eu não me
despi.
— Então como você… o que você…
Ele ergueu o indicador e ela entendeu. Embriagada pelo prazer,
Olivia não percebeu que a invasão bem-vinda em seu corpo fora
causada por aqueles dedos enormes e rudes. A mão de Charles
não era a mão de um aristocrata — ele trabalhava duro e cultivava
calos e cicatrizes. Também era a mão que a tinha feito delirar em
êxtase e gritar o nome dele.
— Volte para seu quarto, Livvy.
— E ele? — Ela apontou para o volume impressionante que
parecia querer saltar das calças meio abertas. — Por que continua
assim?
— Você precisa parar de chamá-lo de “ele”. Não é como se fosse
uma pessoa.
— Que nome dá a ele?
Charles chacoalhou a cabeça. Quando nervosa, Olivia falava
demais. Naquele momento ela estava nervosa, curiosa e ainda
excitada. Acabara de descobrir um prazer físico que talvez nunca
mais sentisse e não queria encerrar o contato entre eles.
— Pênis?
— Céus, parece tão vulgar!
Ele deu uma gargalhada alta e logo abafou-a com um
travesseiro. Apenas a família dormia naquele andar, mas não seria
bom para nenhum dos dois que Annabelle ou Margaret os flagrasse
tendo aquelas intimidades.
— É o nome mais adequado para “ele”.
— Então o seu pênis… — A palavra soou estranha na boca de
Olivia. Pecaminosa. — Por que está assim?
— É como ele fica quando deseja uma mulher. Achei que já
tivéssemos estabelecido que eu a desejo.
— Mesmo depois de ter essa mulher?
— Livvy, não sei o que você acha que aconteceu entre nós,
então me permita explicar. Meu pênis — Charles apontou para a
própria virilha — não chegou nem perto de onde ele gostaria de
estar, que é aqui — a mão dele vagou para o meio das pernas dela.
— Por isso ele continua assim e continuará enquanto você estiver
linda, nua e perfeita na minha frente.
Por Deus, ele era muito indecente! Olivia nunca ouvira palavras
tão grosseiras e tão incríveis. Nos livros proibidos a narrativa era
mais floreada, mais polida. Por um instante, ela se sentiu uma
mulher poderosa, capaz de mover montanhas e vencer uma guerra
sozinha apenas por ser capaz de provocar aquela reação no corpo
de um homem como Charles. Ela estava perdida, devassada e
ainda mais curiosa.
— Posso vê-lo?
Outra risada e, daquela vez, Charles não a abafou.
— Essa é uma ideia horrível.
— Você me viu inteiramente nua. — E ela percebeu que
continuava despida. Toda a vergonha e o decoro a abandonaram.
Estavam mortos em uma sarjeta qualquer. Esquecidos do lado de
fora daquele quarto. — Parece justo que eu o veja também.
— Se houvesse justiça nesta situação, eu estaria dentro de você
neste exato momento. — Mais obscenidades. Olivia estava ficando
cada vez mais excitada com toda aquela imoralidade, mas Charles
estava impassível. Os olhos escuros e luxuriosos a devoravam, mas
ele não movia nenhum músculo para tocá-la. — Se quiser vê-lo, vá
em frente.
Vá em frente. Ela se sentou sobre as pernas e o encarou. Um
único sinal, um sorriso de canto de boca, fê-la levar as duas mãos
até os botões e terminar de abri-los. O pênis — e ela nunca
conseguiria chamá-lo daquilo em nenhuma outra ocasião — saltou
para fora das calças assim que encontrou oportunidade. Enorme,
grosso e incisivo. Quase uma entidade. E parecia apontar para o
que queria.
Olivia não sabia o que estava fazendo e não conseguiu evitar
tocá-lo. Os dedos acariciaram de leve a ponta lustrosa e espalharam
por ali uma substância gelatinosa e morna que ela não sabia de
onde vinha. Charles soltou um gemido rouco e fechou os olhos.
— Desculpe-me. — Ela puxou a mão de volta. — Não queria
machucá-lo.
— Não me machucou. Muito pelo contrário. Mas garanto que
você poderá me matar se fizer isso outra vez.
Ela estava se sentindo especialmente poderosa naquela noite.
Invencível. Então desafiou-o e repetiu o gesto, daquela vez
deslizando os dedos até a base. O gemido veio mais longo. Olivia
concentrou-se na tarefa de examinar e acariciá-lo enquanto
imaginava como ele caberia dentro de uma mulher.
Não caberia, era a conclusão mais lógica.
— Você não poderia estar dentro de mim porque ele é grande
demais?
A pergunta saiu sem que ela conseguisse controlar as palavras.
O que ela tinha bebido para falar tantas indecências de uma só vez?
Sempre fora bastante desinibida com Charles, mas havia limites que
uma mulher não ultrapassava com um homem, não importava o
quão amigos fossem. Para onde tinham ido os limites?
— Ele cabe perfeitamente onde precisa caber. — Charles
segurou a mão dela e a afastou. — Mas não tenho o direito de
clamar a sua virgindade. Ela pertence a quem você quiser entregá-
la.
— Ao meu marido, claro.
— Não. — A mão dele segurou seu queixo e o ergueu, fazendo-
a encará-lo. — Ao homem que você quiser entregá-la. A escolha é
sua, deve ser sua.
— Mas os homens não exigem se casar com mulheres virgens?
— Alguns, sim. Os que valem a pena não ligam tanto para esse
detalhe.
— Greystone?
— Nem ele, nem nenhum dos homens com quem me relaciono
reduzem uma dama à sua barreira. — Charles levantou-se. — Volte
para seu quarto, Olivia. Você precisa sair daqui antes que seja tarde
demais.
Capítulo décimo sétimo
F
. Já era madrugada. Olivia nunca se sentira tão
bem — revigorada como se tivesse dormido por uma semana
inteira, ao mesmo tempo exausta como se tivesse realizado
exercícios físicos intensos. Suas pernas estavam ainda bambas
quando ela cruzou a escuridão do corredor até seu quarto. Fechou a
porta atrás de si e ouviu seu próprio coração ribombar no peito.
O que acabara de fazer? Os Eckleys sempre tiveram um efeito
estranho sobre ela, desinibindo-a e permitindo-a fazer o que
quisesse, mas ela nunca imaginou que chegasse ao ponto de fazer
amor com um deles. Com Charles. Céus, ela tinha mesmo feito
amor com Charles Eckley?
Seus pensamentos estavam baralhados e anuviados pelas
sensações que ainda reverberavam por seu corpo. Teve o ímpeto de
lavar-se, mas desistiu. Queria mantê-las mais um pouco. Jogou-se
na cama, agarrou seu caderninho e começou a rabiscá-lo. Escreveu
páginas e mais páginas relatando os eventos da noite quase tão
bem quanto nos livros proibidos. Não, ela os descreveu com mais
detalhes. Os livros de Annabelle não lhe permitiram vislumbrar com
tanta clareza o quanto aquele momento era íntimo, intenso e
libertador. Usou palavras lascivas, minuciou tudo que seus olhos
viram e que seus membros sentiram. Nunca mais teria coragem de
ler aquelas obscenidades, porém, precisava registrá-las.
E se acordasse e fosse tudo um sonho? O delírio de uma mente
inquieta. A farsa de fingir que era cortejada por Charles, a
insistência de Esther e os comentários que sugeriam que ela nutria
sentimentos românticos por seu melhor amigo estavam-na fazendo
ter sonhos pervertidos. Enfiou o caderno dentro da gaveta de sua
mesinha de cabeceira e se enfiou debaixo das cobertas. Continuou
pensando em todos os beijos da noite até ser arrebatada pelo sono.
Acordou por volta de dez e meia da manhã. Olivia nunca
acordava tarde e ela tinha dezenas de convidados para cuidar.
Pulou da cama assustada quando Bridget começou a abrir as
cortinas e o sol quase a cegou.
Sol.
— Parou de chover!
— Sim, milady. O dia amanheceu muito bonito e claro.
Olivia olhou-se no espelho e procurou as evidências da boca de
Charles por todo o seu corpo. Não havia nenhuma. Ele sabia
mesmo o que dizia — era impossível que percebessem o que
fizeram. Exceto que ela sabia e nada mais seria o mesmo depois da
noite passada.
— Bridget, meus convidados já acordaram?
— Quase todos. O Duque de Shaftesbury continua em seus
aposentos.
— E o Sr. Eckley?
Seu coração disparou. Será que falar nele revelaria a inquietude
em seu peito?
— Ele está com os homens reparando a estada, milady. — A
camareira suspirou. — Ninguém esperava que um homem daquele
fizesse trabalho braçal, mas tanto ele quanto Lorde Isaac McFadden
pegaram pás e enxadas e foram ajudar os criados.
Ela esperava que Charles se enfiasse em lama e mato para
fazer qualquer coisa. Depois de vê-lo no resgate dos sobreviventes
do desabamento, Olivia imaginava que ele estaria comandando a
operação de recuperação da estrada. Pelo que ela se lembrava de
Rhode Port, sabia que Isaac McFadden também era um homem
acostumado a trabalhar. Foi exatamente isso que seduziu a antes
fútil Caroline.
A notícia a tranquilizou. Todos estavam acordados e bem, havia
sol e as estradas estavam sendo restauradas. Talvez pudessem
voltar a Londres dentro da programação. Olivia dispensou a
camareira e fechou-se no quarto de banho — não queria que
ninguém a visse despida. Mergulhou na banheira com água morna e
permaneceu ali por intermináveis minutos. Fechou os olhos.
Esfregou-se com a esponja. Lavou os cabelos. Nada adiantou para
afastar o pensamento em Charles. Ela o via, sentia seu cheiro, ouvia
sua risada.
Vestiu-se e desceu — precisava arrumar algo para se distrair.
Esperava que alguns jogos com as mulheres, ou um passeio pela
propriedade fossem opções possíveis. Encontrou o brunch sendo
servido no jardim de sua mãe e agradeceu porque a Sra. Bowes
compreendia suas listas. Se fizesse sol, o desjejum deveria ser
servido ao ar livre. Se não fizesse sol, no salão de refeições.
— Oras, parece-me que alguém teve uma noite atribulada —
Agatha McFadden disse ao vê-la chegar.
— Bom dia, miladies. Senhoras. — Ela fez uma reverência para
provocá-las. — Tive dificuldade de dormir. Preocupava-me que a
chuva não cessasse nunca.
— Ah, preocupou-me também. — A esposa do Visconde Whitby
limpou a boca depois de morder um bolinho de creme. — Miles tem
assuntos de trabalho e ele fica especialmente irritante quando não
cumpre sua agenda.
Olivia compreendia o sentimento. Ela já estava agonizando pelos
problemas com a programação.
— E sua agenda de hoje, Livvy? — Annabelle inquiriu. —
Teremos um passeio até a vila? Cavalgada no bosque?
— Seria uma cavalgada. — Olivia serviu-se de torradas, ovos,
presunto e bolinhos. Sentia um espaço vazio crescendo em si e
precisava preenchê-lo com comida. — Mas o bosque estará com
muita lama e isso pode afetar os cavalos. Melhor se fizermos um
passeio até a vila. Vocês gostariam de fazer compras no incrível
comércio local?
Ela riu e foi seguida pelas damas que prestavam atenção nela.
Não havia nada de especial no comércio da vila, porém mulheres
adoravam qualquer pretexto para comprar novos acessórios.
— Estou precisando de um chapéu — Caroline, que não usava
chapéus, decidiu.
— E eu quero uma sombrinha nova. — Esther se levantou. — Se
me dão licença, vou trocar minhas sapatilhas por botas de
caminhada.
O programa feminino viria em ótima hora. Por mais que seu
corpo reivindicasse mais contato com Charles e sua mente não
conseguisse parar de pensar nele, Olivia precisava se controlar. Não
havia forma melhor de garantir aquele controle se não o visse
durante boa parte do dia. Até o almoço, pelo menos, ela estava
salva.
V ?
Sim, ele estava. Completamente fora de si. À menor sugestão de
que Olivia poderia participar daquela brincadeira com Greystone,
Charles sentiu vontade de socar algo. Deixou o salão para evitar a
tentação, mas foi ludibriado pelo destino ao ouvir os resmungos dela
vindos da cozinha.
Mas aquela cena de horror em que ele arrebentou a face do
duque janota e também sofreu com os punhos firmes de Greystone
seria a sua ruína. Não apenas seus sentimentos estavam expostos,
também estavam suas feridas. Sua reputação nunca se recuperaria
das sucessivas falhas de comportamento. Com a cabeça quente e
sabendo que não seria capaz de se controlar caso continuasse ali,
Charles disparou rumo aos estábulos.
— Charles.
A voz dela quase o fez tropeçar e cair. Olivia tinha um efeito
peculiar sobre ele: bastava que ela o chamasse para que ele
paralisasse e não conseguisse seguir para longe dela. Seus
músculos travaram no mesmo lugar e ele se virou para vê-la
correndo em sua direção.
— Volte para dentro, Olivia.
— Não, eu não vou voltar. O que deu em você? Por que saltou
sobre Greystone e quase o matou?
— Por quê? — Ele passou os dedos ensanguentados pelos
cabelos. — Então você queria que ele a beijasse ali, no meio da
cozinha?
— Claro que não, eu disse isso a ele. Creio que o duque tenha
compreendido mal minhas intenções. Mas não era preciso agir
como um animal furioso, eu teria me soltado e explicado tudo.
— Eu agi como um animal furioso porque eu sou um, Livvy.
Tantos anos convivendo comigo e ainda não entendeu que sou
assim? Impulsivo, bruto, quase rude. Sou tudo que um nobre com
título importante não é.
Ela se aproximou, forçando-o a dar um passo para trás. Estava
imundo, não podia tocá-la daquele jeito. Charles já maculara demais
aquela mulher para manchá-la com sangue.
— Eu o conheço bem, e o Charles que se diz bruto, rude e
impulsivo não bateria em um amigo por nada. Não aconteceu nada,
eu não permitiria que acontecesse. Veja seu rosto… vamos entrar.
— Não. Se eu voltar para lá, vou terminar o serviço que comecei.
Só ficarei satisfeito quando aquele sorriso cínico de Greystone
estiver do outro lado de sua cabeça.
— Céus, você realmente enlouqueceu! O que ele fez para que
perdesse a cabeça?
— Ele ousou tocá-la. Eu o avisei que não fizesse isso.
— E por que o duque não poderia me tocar? Isso não deveria
dizer respeito apenas a mim? Vocês, homens, acham que…
— Porque você é minha! — ele disparou e a fez arregalar os
olhos de surpresa. — Você é minha e nenhum outro tem o direito de
tocá-la como eu toquei.
Algumas luzes acenderam no terceiro andar. Havia outras
acesas no primeiro. Eles estavam causando uma cena e não havia
mais volta. Olivia piscou várias vezes e passou as mãos pelos
braços depois de um sopro de vento frio. Ao invés de sair correndo,
ela deu mais dois passos na sua direção.
— Eu sou sua.
— Minha. Absolutamente minha, Olivia Trentham.
Ela sorriu. Não foi um sorriso amplo ou alegre, foi mais uma
demonstração diabólica de quem se preparava para executar um
plano. Com mais alguns passos ela se aproximou por completo e
acariciou sua face ferida com as costas das mãos.
— Dói?
— Agora, não.
— Doerá se eu beijar você?
Por Cristo, não.
Charles balançou a cabeça para os lados. O sorriso dela
aumentou. Olivia deslizou o corpo pelo dele, ficou na ponta dos pés
e roçou-lhe a boca com lábios macios.
D , . E
longa extensão do pátio externo até o jardim, onde o desjejum seria
servido na área coberta, e durante todo o trajeto Olivia imaginou o
que diria às pessoas. Sua mente bolou os mais variados discursos
para explicar a Annabelle, Margaret e às amigas por que se deitara
com um homem com quem ainda não se casara. Cada passo
significava uma mudança de abordagem até que ela desistiu.
Não havia nada a dizer. Nada a explicar. Ela amava aquele
homem há anos e passara a desejá-lo fisicamente. Se antes
Charles Eckley era seu melhor amigo, ele se tornou seu amante e
aquela foi a melhor decisão impulsiva que ela já tomara.
Ele se manteve à sua frente por um passo. Não se tocaram até o
momento em que cruzaram a porta dos fundos. Os criados os
observavam com curiosidade e espanto. Charles tinha um olho roxo
quase fechado e uma lesão no lábio inferior. Sua bochecha direita
estava avermelhada. Nada daquilo tirou-lhe a arrogância masculina
de entrar nos ambientes e agir como se deles fosse dono.
Oferecendo o braço para que ela o segurasse, ele garantiu que
entrassem juntos para enfrentar o que fosse preciso. Estavam entre
amigos. Ninguém ali os julgaria, se tomassem a decisão correta.
— Está pronta? — Charles perguntou antes de seguir para o
jardim.
— Estou faminta.
Ele riu e não havia nada melhor para romper com um clima de
tensão do que uma boa galhofa entre amigos. Com a mão grande e
quente sobre a sua, Charles a conduziu para o jardim e todos —
sem exceção — se viraram para vê-los chegar. Até Tobby e Bobby
vieram correndo e latindo. Fedorento pulou nas calças de Charles
irritado, mordendo e sacudindo o tecido. Ele mantinha uma aura
serena que não combinava com o homem que ela conhecia. Em
situações de pressão, Charles Eckley costumava manter o nível de
fúria em elevação constante.
O Marquês de Granville se levantou imediatamente. Rosamund o
puxou de volta pela manga do casaco, mas Anthony continuou
encarando-os com a expressão de quem tinha contas a acertar com
o irmão mais novo.
— Bom dia milordes. Miladies. — Charles puxou uma cadeira
para que ela se sentasse ao lado de Annabelle. A irmã a olhava
como se Olivia tivesse duas cabeças ou três olhos. Aquele era o
preço que pagava por se tornar uma devassa quando todos
acreditavam que fosse uma santa. — Gostaria de fazer um pequeno
pronunciamento para não mais atrapalhar essa agradável refeição.
Como alguns devem ter visto ontem, o cortejo entre mim e Lady
Olivia chegou ao fim. Eu a pedi em casamento na noite passada e
ela aceitou.
— Ela aceitou. — Caroline enfiou uma garfada de ovos com
presunto na boca. — Parece-me que ela não tinha outra escolha,
não é mesmo, Charles?
— Como imagino que você não tenha acompanhado a nossa
conversa, minha querida prima, foi Lady Olivia quem me beijou na
frente de todos.
Alguns homens riram. Charles era bom em fazer troça das
críticas que recebia e mudar o rumo de qualquer conversa
desagradável. Ainda assim ela o cutucou nas costelas, fazendo com
que ele soltasse um ganido de dor.
— Quando se casam? Amanhã? — O Marquês de Granville
rosnou e Olivia quase deu uma risada. Quando estavam irritados, os
Eckleys agiam exatamente iguais.
— Por cristo, Anthony. — Rosamund bateu com os talheres nos
pratos. — Não haja como se todos aqui não tivessem arruinado
suas esposas antes do casamento. O importante é que o menino vai
assumir a responsabilidade pelo que fez.
— Ele não é um menino!
— Eu não arruinei ninguém antes de me casar! — Miles
Westphallen protestou.
— Nem eu. — Isaac mordeu uma torrada. — Não se pode
arruinar uma libertina, creio eu.
— Calem-se, todos vocês! — Charles tentou reassumir o
controle que nunca teve. — Rose está certa, Anthony. Você não tem
nenhuma moral para me criticar. E sim, eu me casaria amanhã, mas
quero que Olivia tenha o casamento de seus sonhos, então ela
escolherá como e quando isso vai acontecer. Ao contrário de outros
Eckleys, não fugirei para Gretna Green para me casar.
Nicholas e Edward deram risadas. Anthony bufou e Rosamund
acariciou-o no braço, indicando que estava tudo bem.
— Onde estão Gupta e o duque? — ela perguntou, tentando
mudar o assunto. — Foram a Crystal Place?
— Sim. Shaftesbury adora exibir suas posses para todos — Nick
a respondeu. — Eles devem voltar para a corte de lá, mesmo.
— E nós retornaremos assim que terminamos o desjejum? —
Charles perguntou. Ele se sentou ao seu lado e, depois de se servir,
apoiou a mão esquerda sobre sua perna. Por debaixo da mesa
ninguém conseguia vê-lo, mas ela o sentia e isso era o suficiente.
— Voto nesse sentido. — Edward McFadden concordou. —
Tenho negócios me esperando.
— E três crianças — Agatha lembrou. — Imagino que Lavinia
esteja morrendo de saudades do pai.
O conde sorriu e beijou a bochecha da esposa. A intimidade
entre eles era um estimulante para que mulheres decidissem se
casar por amor. Não apenas aquele casal, mas outros que estavam
presentes na mesa eram homens e mulheres apaixonados que se
uniram não pelo dinheiro ou pela posição social, mas porque se
amavam e não conseguiam viver separados.
Olivia deixou seus olhos percorrem rostos e gestos para fixar-se
na mão grande de Charles sobre seu vestido. Observou o polegar
que a acariciava com suavidade, mesmo que ela não fosse senti-lo
debaixo de muitas camas de tecido, a forma como ele estava perto
dela, como a olhava eventualmente para confirmar se ela estava
bem, se estava comendo ou se algo a incomodava.
Seu coração preencheu-se de algo que não lhe era novo — mas
não era o mesmo. Ela era uma mulher que amava a família e as
amigas. Amava os amigos, também. Mas aquele sentimento era
diferente. Havia mais do que a amizade unindo-os. Havia algo que
ela estava morrendo de medo de falar em voz alta, mas que não
tinha mais como evitar sentir.
M A
jogo de cartas para notá-la ali, segurando um livro sem conseguir
prestar qualquer atenção nele. Qualquer interação entre Anna
Karenina e Vronsky deixava-a no meio do caminho entre as nuvens
do Paraíso e o calor ardente do Inferno, porque ela projetava a sua
própria história nos personagens.
Não havia relação nenhuma entre a trágica história de amor
russa e a sua — que não era uma história de amor. Ainda assim, ela
pensou em Charles o dia inteiro e o formigamento entre suas pernas
indicava tanto que ele estivera ali quanto que desejava que ele
retornasse para o mesmo lugar.
O relógio badalou oito horas e ele ainda não fora visitá-las.
Durante o dia, Olivia manteve-se ocupada: garantiu que o irmão
retornasse para Eton em segurança, organizou a despensa da casa
com Adalind e tomou notas de tudo que precisava para o casamento
— desde uma data até a ajuda de suas amigas, porque não
conseguiria fazer tudo aquilo sozinha.
Mas, depois do jantar, a vontade de confortar-se nos braços dele
a fez amuar-se em um canto com seu livro. Olivia pouco entendia da
paixão e não pretendia se abater por sentimentos tão intensos, só
não conseguiu evitar. Levantou-se, foi até o aparador de bebidas e
serviu uma dose de uísque. Não queria beber, apenas fechar os
olhos e sentir o cheiro para fingir que ele estava por perto. Bem,
talvez ela devesse tomar um gole e ver se o álcool a anestesiava.
Um ruído fez com que os três cães, que estavam deitados em
almofadas, saíssem correndo pela casa. O coração de Olivia deu
um salto e duas cambalhotas porque Tobby e Bobby só se agitavam
assim por um motivo: ele estava chegando.
— Boa noite, miladies.
Descabelado e com um inchaço protuberante no olho direito, ele
parecia muito cansado quando recostou no batente da porta para
cumprimentá-las. As irmãs sorriram ao vê-lo.
— Boa noite, Charlie! — Margaret ergueu as cartas. — Estamos
jogando snap! Quer participar?
— Claro que quero. Você não sabe que adoro jogar cartas?
A menina se ajeitou no chão para dar lugar a ele. Antes, Charles
se aproximou de Olivia e beijou sua mão. Ela estava trêmula e o
calor daqueles lábios quase a fez derreter e escorrer pelo tapete.
— Isso é para mim? — Ele indicou o copo de uísque em sua
mão.
— É, claro. Para quem mais seria?
Com um sorriso e um longo gole no drinque, Charles acomodou-
se ao lado das meninas e entrou na partida. Ela também se sentou
no chão e decidiu participar. Mesmo que tudo entre eles estivesse
mudado, a amizade permanecia intacta. A vontade de passar horas
conversando ou fazendo outra atividade lúdica era a mesma de
antes. O desejo foi uma adição bem-vinda ao relacionamento já
muito sólido que tinham.
E isso a fazia feliz.
O jogo se estendeu por mais uma hora até que ela decidiu
interrompê-lo. A rotina da casa era uma coisa da qual não desistiria
e que ainda podia controlar, então ela o faria.
— Maggie, hora de dormir. — Olivia se levantou. — Annabelle,
amanhã temos o clube de leitura de Lady Cecelia, então temos que
despertar cedo, porque nossa tarde será ocupada. Para seus
quartos, as duas.
Com alguns resmungos esperados, as irmãs se levantaram,
despediram-se de Charles e subiram as escadas. Os cães saíram
em disparada atrás delas, embolando-se no tecido das saias.
Fedorento ficou observando Charles como se precisasse vigiá-lo.
Olivia começou a recolher alguns pertences que foram deixados
espalhados e guardou os livros na estante. Ele terminou de beber o
uísque e se levantou. Cambaleou e recostou-se na parede, levando
a mão até a cabeça.
Olivia foi em sua direção e segurou-lhe o rosto, fazendo-o olhar
para ela.
— Você está bem?
— Estou morrendo de dor. — Charles confessou e pendeu a
cabeça para a frente. Ela o soltou e deixou que ele se apoiasse em
seu ombro. Não era fácil sustentar o peso daquele homem imenso.
— Chamarei um médico para vê-lo. — Olivia acariciou-lhe os
cabelos e ele a envolveu com os dois braços, puxando-a pela
cintura. — Você comeu, Charles?
— Não preciso de médico e sim, eu comi. Passei a tarde no
escritório comendo, bebendo café e pensando em você. — Um beijo
em seu pescoço a fez estremecer. — Preciso de um banho morno, é
só isso.
— Isso eu posso providenciar. — Ela continuou a acariciá-lo nos
cabelos. Macios, suados e longos, com pequenos cachos que se
enrolavam em seus dedos quando ela os enfiava naquele
emaranhado de fios que cheirava a poeira e óleo queimado. Charles
sempre vinha até ela com o cheiro da cidade. — Vamos subir?
Ele se afastou um pouco e a encarou. O corte no lábio inferior
estava cicatrizando.
— Se eu subir, não conseguirá me mandar embora depois.
— Não pretendo mandá-lo embora.
A boca dele capturou a dela antes que Olivia pudesse dizer mais
alguma coisa. Os braços se estreitaram ao seu redor e a fizeram
sentir o quanto a proposta o agradou. O beijo entre eles estava cada
vez melhor — ela já sabia o que esperar, já entendia a pressão dos
lábios e já ansiava pela língua que a invadia. Charles gostava de
beijar com a língua e ela não tinha qualquer reclamação.
Sem mais palavras, ela o puxou para o andar de cima. Seu
quarto ficava muito perto do das meninas, mas elas já sabiam o que
acontecera em Hampshire. Nenhuma das duas era tão inocente.
Olivia suspeitava que fosse a mais ingênua das três, então decidiu
não se importar. Fechou a porta com a chave e preparou um banho
para Charles.
Enquanto esperava a banheira encher, teve uma súbita
preocupação. Poderia acostumar-se a dormir com ele. Se isso
acontecesse, como ela faria para enfrentar uma cama vazia outra
vez?
— Charlie, onde vamos morar quando nos casarmos?
— Onde você quiser. — Ele veio do quarto arrancando as peças
de roupa. Já não tinha mais gravata nem colete e estava abrindo os
botões da camisa. Uma distração poderosa. — Escolha qualquer
casa que esteja disponível e ela será sua. Se não tiver nenhuma
disponível, construiremos uma. Eu tenho várias propriedades
espalhadas por Londres.
— Podemos ficar aqui?
Charles retirou a camisa e a visão do peito nu a deixou bastante
distraída. Nem sabia mais por que estava fazendo aquelas
perguntas. A banheira encheu e ela adicionou alguns sais
calmantes.
— Essa casa pertence ao condado. Poderemos ocupá-la até que
Daniel seja adulto para reivindicá-la, se for esse o seu desejo.
Ele abriu os botões e as calças caíram ao chão, revelando-o por
inteiro. Olivia quase caiu sentada para trás. Na madrugada anterior
ela o vira na escuridão. Charles era uma sombra, um borrão, um
conjunto de músculos e pelos capazes de despertar-lhe sensações
intensas e inesquecíveis. Ali ele se apresentava finalmente.
Masculino, vigoroso, quase selvagem.
Passando por ela, cuja decência morrera desnutrida em algum
momento naquela viagem para Hampshire, ele entrou na banheira e
ela blasfemou pela espuma que o escondeu.
— Podemos ficar aqui enquanto escolhemos uma casa? Dará
tempo de fazermos isso com calma e posso continuar cuidando de
tudo.
Olivia se afastou, deu as costas para ele, e fingiu que organizava
uma pilha de toalhas. Suas mãos tremiam — ela também queria se
despir e entrar ali com ele. Aconchegar-se no calor daquele corpo.
— Providenciarei um contrato e faremos depósitos mensais na
forma de aluguel. Assim não estaremos usando indevidamente os
bens de seu irmão. Livvy, olhe para mim.
Ela se virou. Charles estava relaxado e com a cabeça recostada
na beirada da banheira. Seu banheiro era feminino demais, com
azulejos decorados, flores e uma banheira branca de louça. Aquele
homem não combinava com um ambiente tão delicado.
— Você quer entrar?
Ah, sim, por favor.
— Não pretendo incomodá-lo.
— Precisa de ajuda para se despir?
— Eu… não, consigo fazê-lo sozinha.
— Então venha. Prometo não olhar se você não quiser.
A banheira era grande, mas Charles era imenso. Eles dois
certamente não caberiam ali. Ou caberiam, se ela ficasse no colo
dele. Sobre ele. Encaixada nele. Céus. As imagens que sua mente
formaram durante o dia, enquanto tentava ler qualquer coisa — até
mesmo um relatório de despesas — a estavam afetando
severamente. Olivia levou as mãos aos botões de seu vestido e
começou a abri-los. Um por um, até que não sobrasse mais nada
que mantivesse a camisa no lugar. Em seguida livrou-se da saia,
retirou as meias e desfez os laços da calçola. Sentiu-se corajosa
para abrir o espartilho e livrar-se da chemise.
Ele mantinha os olhos fechados e a respiração tranquila,
respeitando a promessa que fizera há pouco. Parecia injusto. Se ela
não pôde vê-lo na noite anterior, ele também não pôde vê-la. Se ela
tinha o direito de desejá-lo e de apreciá-lo à luz, ele também tinha.
Não tinha?
— Você pode olhar, agora.
Ele podia, mas não devia. Cada vez que ele a via nua, que via mais
dela, tornava-se quase impossível respeitar a promessa de não fugir
para se casar. Que se danasse tudo. Ele esperou anos por aquele
momento, queria aproveitá-lo quantas vezes fosse possível. Abriu
os olhos e virou-se para ela, que se aproximava com uma barra de
sabão, uma toalha e nada mais cobrindo-lhe o corpo.
Olivia apoiou o sabão e pendurou a tolha antes de entrar na
água. Charles memorizou cada movimento, cada flexão dos
músculos e tendões, a localização de cada pequena cicatriz ou
marca que a distinguisse. Ela colocou os pés ao lado de seus
quadris e desceu lentamente para sentar sobre suas coxas. Charles
ergueu as costas e eles ficaram face a face — ou quase. Nem assim
ela ficava do seu tamanho. Era a mesma posição da noite anterior,
então sabia que eles se encaixavam bem, apesar de tudo.
— Vou lavar seus cabelos. — Ela pegou um pequeno balde ao
lado da banheira, encheu de água e jogou sobre sua cabeça. —
Eles cheiram como uma fábrica.
— É o cheiro de quem trabalha. Incomoda você?
Olivia esfregou as mãos e fez espuma nos cabelos enquanto o
acariciava com as pontas dos dedos. Aquela era uma espécie de
tortura.
— Não, eu adoro. É autêntico. Eu sempre sei quando você está
se aproximando.
Enchendo o balde outra vez, ela despejou mais água sobre ele
para tirar o sabão. Esfregou a barra nas duas mãos e espalhou mais
espuma por seus ombros, peito, até descer pela água e tocá-lo no
abdômen.
— Eu não sei o que você fez comigo, mas foi algo poderoso. —
Olivia divagou enquanto o tocava. Parecia ainda fascinada com o
corpo masculino, com o que ele poderia oferecer-lhe. — Você sabe
que eu o adoro… somos amigos… — Ela ergueu os olhos e o
encarou. — Mas não consigo mais parar de pensar em você como…
As frases foram deixadas incompletas, porque as mãos dela
encontraram sua ereção inquieta. Talvez fosse um pouco difícil não
notá-la ali, clamando por atenção.
— Você pensa em mim como um marido?
— Não somente. Como um amante.
Ele levou as duas mãos até a face dela, puxou-a para perto e a
beijou. Olivia gemeu e o segurou com força.
— Você me deseja. — A constatação o deixava radiante. — Não
se preocupe, é recíproco.
Charles se levantou, espalhando água para todo lado e
erguendo-a consigo. Pegou as toalhas e esfregou rapidamente em
seu próprio corpo, depois esfregou o dela, segurou-a nos braços e
marchou firme para a cama. O gesto indicava que ele já estava farto
de banho.
Depositou-a no colchão, entre os lençóis arrumados, e subiu por
cima dela. Olivia se remexeu para lhe dar mais espaço e Charles se
acomodou entre as pernas dela. Ele sabia o que ela queria, mas
daria o que ela precisava. Encarou-a com os olhos escuros de
desejo, pressionou o membro rígido contra sua barriga arqueada e a
beijou. Devorou-a com lábios e língua enquanto suas mãos
deslizavam por todo o corpo feminino para que elas também o
memorizassem. Abriu-lhe a feminilidade com os polegares,
acariciou-a em seu centro de prazer e desceu os beijos até os seios.
— Oh, Charles!
Ela choramingou no instante em que ele capturou um mamilo
entre os dentes. Olivia teria uma superabundância de sensações e
ele esperava que ela gritasse. Gritasse por ele, gritasse seu nome,
implorasse pelo orgasmo. Com uma das mãos ele massageou os
seios, com a boca ele os sugou, com a língua ele os lambeu. Ela se
contorcia e arqueava na direção da outra mão, que acarinhava a
intimidade.
Um dedo deslizou pela entrada úmida e ele quase abandonou
tudo que estava fazendo. Olivia não estava inchada ou dolorida,
mas completamente receptível às suas carícias. Charles adicionou
outro dedo e ela gemeu mais alto. Circulou-lhe o clitóris com o
polegar e não parou até que ela se contraísse em espasmos que
não podia controlar enquanto entoava seu nome com a uma oração.
Charles. Charles. Charles.
Sem suportar mais um minuto, ele segurou-lhe o corpo ainda
convulsionando do clímax e a penetrou. Olivia agarrou-o pelos
ombros e o puxou para poder beijá-lo, cruzando as pernas ao redor
de seus quadris. Ele esperou que a sofreguidão diminuísse para
mover-se. Para fora e para dentro. Lento e firme. Rude. Batendo
carne com carne. Fazendo-a soluçar pelo prazer que ainda pulsava
em seus músculos.
A entrega de Olivia o desarmou desde a primeira vez. Ela era
uma mulher de paixões, que precisou moldá-las às regras da
sociedade — ou seja, escondê-las. Mas ali, com ele, ela pôde
libertá-las. Charles queria perpetuar o momento, torná-lo eterno,
impedir que os ponteiros do relógio girassem para imortalizá-los
naquele instante. Era suficiente saber que ele a teria para sempre
em seus braços, que um plano absurdo os conduziu àquele destino.
Com a mente girando e o corpo em êxtase, ele estocou mais
duas vezes até o ápice. Olivia enfiou a face em seu pescoço e
mordiscou a carne enquanto murmurava frases com pouco sentido.
Fique comigo. Fique. Charles virou-se na cama para aliviar seu peso
sobre ela. Continuaram unidos, um emaranhado de membros e
fluidos, por muitos minutos enquanto seus corações se acalmavam.
E . A
Gupta no Savoy e, ao olhar-se no grande espelho do saguão
principal do hotel, percebeu que seu olho roxo estava tão feio
quanto antes. Puxou o relógio do bolso e a caixinha do anel de
noivado resvalou em sua mão. Ele precisava entregá-lo a Olivia.
Não haveria ocasião especial. Não haveria nada elegante ou
grandioso que o permitisse fazer um pedido de casamento digno de
sua futura esposa.
Talvez um jantar em um restaurante caríssimo ou durante uma
apresentação no teatro. Charles podia pendurar-se no meio da
Picadilly e declarar-se. Mas ele não era um homem romântico.
Olhou o relógio e suspirou. Seis horas. Já podia ir para casa.
Sua definição de noite perfeita mudara desde aquela bendita
viagem a Hampshire. Queria aconchegar Olivia em um abraço,
sentar-se de frente para a lareira e beber um bom malte. Preferia
que não houvesse roupas envolvidas, mas também estaria feliz se
eles estivessem devidamente vestidos e rodeados de amigos e
parentes.
Cavalgou até a Grosvenor Square na intenção de se lavar e
vestir uma roupa limpa antes de ir até a Casa Salisbury. Decidiu
entregar o anel enquanto as mulheres estivessem reunidas no salão
da família, assim as irmãs presenciariam o momento. Desistiu de se
lavar tão logo entrou em casa — era melhor deixar que Olivia o
lavasse.
As imagens que imediatamente se formaram fizeram-no
endurecer. Charles parecia um jovem tolo e permanentemente
excitado desde que dera vazão aos sentimentos por ela.
— Ashford! — berrou pelo mordomo enquanto retirava o casaco
e pendurava, por conta própria, no vestíbulo. — Ashford! Onde você
se enfiou?
Procurou na cozinha e no quarto da criadagem até lembrar-se de
que dera folga ao homem para que fosse visitar a mãe idosa em
Hertfordshire. Desde a viagem para Hampshire ele dera folga a
quase todos os criados, permitindo que fizessem horários reduzidos
e ainda não restabelecera o bom andamento da casa. Subiu
apressado para seu quarto e quase teve um ataque do coração ao
ver Daisy sentada em sua cama.
— Oh, Charles! Que bom que chegou, estava nervosa
esperando!
Ele levou poucos segundos para se lembrar de que Daisy tinha
uma chave de sua casa, mas não imaginava o que ela estava
fazendo ali. Não a convidara. Podia dizer que se esquecera
completamente dela, o que era desrespeitoso e um indicativo do
quanto a sua vida estava diferente. Esperava que a mulher não
estivesse ali para reatar qualquer compromisso que tivessem, pois
ele se sentiu subitamente um canalha. Bem, ele era um. Deveria ter
lhe dito a verdade muitos dias atrás.
— O que houve, Daisy? Por que está nervosa?
A mulher levantou-se e estendeu-lhe um papel com as mãos
trêmulas. Estava vestida da cabeça aos pés, mas as roupas
pareciam ter sido colocadas de qualquer jeito.
— Você me enviou isso?
Charles abriu o papel. Era um bilhete com sua assinatura, porém
não tinha sido escrito por ele. Bem, aquela também não era a sua
assinatura, mas uma imitação mal feita. No bilhete, pedia que Daisy
se encontrasse com ele. Não, o conteúdo era bem mais obsceno do
que aquilo. Poderia mesmo ter sido algo que ele escrevesse.
— Com certeza não fui eu. Não é minha caligrafia e eu estive
sóbrio durante todo dia para lembrar caso tivesse escrito algo assim.
Aliás, nunca estive tão sóbrio em minha vida. Como diabos isso
chegou até você?
— Um garoto foi até a casa e me entregou. O problema não é
esse, Charles. Ela esteve aqui.
Ela?
— Ela quem?
— Sua Olivia.
Ele precisou apoiar-se na cômoda ou seu corpo desmoronaria.
Os joelhos fraquejaram e quase o derrubaram ao chão, mas Charles
não tinha tempo para isso.
— Olivia a viu aqui? No meu quarto?
— Vestida de vermelho, como pede o bilhete. Em uma posição
nada inocente. Eu me apresentei, pensei que fosse uma criada até
perceber que ela se vestia com elegância aristocrática. Alguém
armou uma cilada para você.
Alguém armou uma cilada para ele.
Charles não conseguiu pensar claramente, sua mente anuviada,
escurecida pelo pavor. Olivia vira a sua amante — ex-amante! —,
em seu quarto, em vestes indecentes. Se ele conhecesse Daisy, as
vestes seriam aquelas que importara da França um ano atrás. A sua
noiva, a mulher que ele amava, deparou-se com outra mulher
seminua em sua cama. E ela deveria estar furiosa. Ou pior, ela
poderia estar magoada.
Era mais fácil lidar com uma mulher furiosa, que lhe atirasse
coisas e gritasse. Charles sabia que a fúria, a explosão de raiva,
ajudava a minimizar a mágoa e facilitava o perdão. Mesmo que não
tivesse feito nada errado, ele ainda ajoelharia à frente de Olivia e
imploraria para que ela o ouvisse.
— Preciso falar com ela.
Disparando escada abaixo, ele só pensava em correr até a Casa
Salisbury. Tropeçou no tapete e derrubou um vaso de porcelana, o
que o atrasou e permitiu que Daisy o alcançasse. Ela o segurou pelo
braço e o fez virar-se para ela.
— Eu irei com você. Será mais fácil acreditar se ela ouvir de
mim, não acha?
— Tem razão, vamos em minha carruagem. Não, vamos pegar
qualquer táxi na rua, preparar uma carruagem sem criados
demoraria demais.
Charles escancarou a porta no instante em que um cavalo
dobrou a esquina e veio em sua direção. O animal ofegante trazia
seu irmão Anthony — que estava sempre elegante e bem-vestido,
mas parecia bastante desgrenhado naquela noite. O marquês
desmontou apressado e o encarou com uma expressão que
indicava problemas.
— Ainda bem que o encontrei em casa.
— Seja o que for, terá que esperar. Preciso ir até a Casa
Salisbury.
— Então você já sabe?
— Sei o quê?
Anthony colocou as duas mãos em seus ombros e Charles se
chacoalhou para livrar-se do contato. O irmão balançou a cabeça e
pressionou a ponte do nariz — outro sinal de que havia algo muito
errado.
— Olivia sofreu um acidente. Não sei dizer como, Annabelle não
viu direito, mas ela foi atingida por uma carruagem quando
atravessava a rua.
Londres, 27 de abril de 1898
Brooke Street
O S . J
Londres. Charles ouvira diversas histórias sobre como eles
aconteceram. Lendas que eram passadas por gerações. Antes,
contadas com orgulho, até serem consideradas marcas
vergonhosas na trajetória de alguém ou de alguma família. Duelos
não existiam mais na Inglaterra há décadas. Tinham sido banidos
com sucesso por volta de 1840 e os infratores eram punidos
severamente.
Naquela manhã, Charles estava ansiando pela punição. Não
esperava toda aquela desordem no que deveria representar o fim de
sua existência terrena, mas descobriu pela experiência que homens
eram grandes fofoqueiros. A notícia de seu desafio correu por toda a
cidade e uma multidão se aglomerou para vê-lo matar ou morrer
antes mesmo do sol nascer.
— Não deixarei que faça isso.
Anthony, que substituiu Nicholas como seu padrinho, já tinha
escondido as pistolas e estava plantado na sua frente como uma
estátua de mármore. Se Charles tivesse uma marreta, já o teria
transformado em pedaços. Estava há duas noites sem dormir,
embriagado e com as vestes incompletas. Para não se apresentar
de forma desonrosa no dia de sua morte, colocou um casaco por
cima da camisa meio aberta e por fora das calças. Nem os
mendigos de Whitechapel se vestiam tão mal.
— Anthony, se você continuar a me atrapalhar, será o primeiro
que matarei hoje. Não me importa que seja marquês, nem que seja
meu irmão. Saia da minha frente.
Ele não se importava. Desde que chegara à sua casa e vira
Daisy à sua espera, desde que soubera do acidente — nada mais
importava. Cada descoberta o deixava ainda mais preparado para o
que aconteceria: matar o Duque de Greystone. Ele seria condenado
à pena capital depois, mas nunca pretendeu sair vivo daquele duelo.
— Charlie, você mal consegue ficar de pé. Como pretende
atirar? E se Greystone acertá-lo e sair vivo? Sua vingança terá sido
por nada!
— Cale a boca, Anthony! — Ele empurrou o irmão com as duas
mãos e cambaleou para frente. O marquês deu dois passos para
trás, mas não cedeu. Alguns metros adiante estavam Greystone e
Stafford, ambos aguardando que o Eckley mais velho colocasse
juízo em sua cabeça. — Saia. Da. Minha. Frente!
O burburinho de vozes da multidão o estava deixando com dor
de cabeça. O duque e seu padrinho decidiram se aproximar. Charles
imaginou que o maldito fosse fugir, porque Richard estava morrendo
de medo de enfrentá-lo. Ele não tinha medo, não havia mais nada
que pudesse perder. Desviando de Anthony, projetou-se na direção
do adversário na intenção de jogá-lo no chão e terminar aquela
contenda usando as próprias mãos. Gritos vindo de algum lugar o
fizeram interromper a passada.
Charles reconhecia aquela voz. Era a mesma que sempre o fazia
paralisar. Temendo que pudesse estar louco, virou-se devagar para
onde todos estavam olhando e a viu. Abrindo espaço por entre a
plateia e correndo em sua direção, ela estava enrolada em um
casaco masculino, com o cabelo solto e usando sapatilhas. Mas era
ela. Era Olivia. Viva.
E bastante irritada.
— Graças a Deus. — Anthony murmurou com a intenção de que
ninguém ouvisse. O sol começava a nascer atrás deles e irradiava
tons alaranjados sobre a pele fantasmagórica da mulher que parou
a um braço de distância deles, expirou em alívio e atirou-se em seus
braços.
Graças a Deus. Ele levou alguns segundos para entender que
ela estava mesmo ali e que o estava abraçando, tempo demais que
a permitiu afastar-se e esmurrar-lhe o peito com as duas mãos
fechadas em punhos.
— Você enlouqueceu? — Ela bateu de novo. — Tem ideia do
que está fazendo? — E bateu uma outra vez. — Que insensatez é
essa de desafiar Greystone para um duelo? Duelos são ilegais,
banidos e uma demonstração ridícula de masculinidade! Você quer
ser preso? Quer morrer?
Ela o socou outra vez, fazendo com que Charles a segurasse
pelos punhos. Não que ela estivesse ferindo-o, mas temia que o
excesso pudesse lhe fazer mal. Ainda não entendia como ela estava
de pé à sua frente, pois ele a vira quase morta sobre uma cama e os
médicos não lhe deram muitas esperanças.
Será que ele já tinha morrido e estava no céu? Claro que não.
Charles não iria para o céu.
— Acalme-se, Livvy. O que você está fazendo aqui? Quando
acordou? Quero dizer, como chegou até aqui?
Fascinado, Charles passou as mãos por ela inteira. Cabeça,
pescoço, braços, segurou-lhe as mãos entre as dele. Ela bufava de
irritação e tudo que ele queria fazer era beijá-la ali, no meio de todo
mundo. Não o fez porque ela não parava de brigar.
— Desde quando isso importa? Eu acordei e você não estava lá
porque estava aqui brincando de dar tiros nos outros! — Ela o
estapeou novamente. — Vamos voltar para casa.
— Não, não vamos. — Ele respirou fundo e se afastou de todos,
andando para trás. — Desafiei Greystone para um duelo, não vou
fugir.
Olivia virou-se para o outro lado e percebeu o duque e o barão
se aproximando. Com uma expressão assassina, ela marchou até
os dois e desferiu um tapa em Greystone. A plateia, que já tinha se
dissolvido em parte ao perceber que o duelo talvez se arrastasse
por muito tempo, entoou um “oh” de espanto. Afinal, quem ousava
sequer levantar a mão para um duque?
Mas ela não estava de posse de suas faculdades mentais
plenas.
— Vossa Graça deveria se envergonhar! Que ardil horroroso
para com um amigo! Falsificar bilhetes para me fazer conhecer a
Srta. Campbell em uma situação daquelas!
— Lady Olivia, estou imensamente feliz por vê-la bem. —
Richard massageou o queixo onde a mão dela o atingiu. A diabinha
tinha mais força do que aparentava. — O Eckley deu a entender que
estava morta.
— Bem, ele é um pouco dramático e exagerado, mas eu poderia
ter morrido e milorde seria o culpado! Espero que nunca mais se
dirija a mim, que não cruze mais meu caminho e que se mantenha
distante das minhas irmãs. Vossa Graça é uma pessoa horrível.
Coloque um fim nesse maldito duelo!
Outras interjeições pulularam na plateia. Ela não apenas
estapeara o duque, Olivia cortou relações com ele ali, na frente de
todo mundo, expondo um fato privado como se não fosse a dama de
modos rigorosos que interpretara nos últimos anos.
— E você! — Ela dirigiu mais uma vez sua ira para Charles. —
Você ia mesmo matar alguém para se vingar? Não consigo acreditar
nisso! Você iria morrer e me deixar aqui, Charles? Quanto egoísmo!
Eu já perdi meu pai, minha mãe vive enclausurada em Hampshire e
agora você quer me fazer perder você também? Já não chega de
perder as pessoas que amo?
As mãos dela, que estavam erguidas em punhos, desabaram na
lateral de seu corpo. Os ombros subiam e desciam pela respiração
acelerada e ela o encarava com tanta mágoa que aquela explosão
só podia ser sincera. E, de todas as verdades que Olivia disse, só a
última parte importou a Charles. Ele se aproximou mais uma vez e a
observou cauteloso.
— Livvy. — Estendendo os braços, Charles demonstrou que
queria abraçá-la. — Eu não queria lhe fazer nenhum mal. Fiquei tão
perdido ao saber que você poderia morrer que… eu não saberia
viver sem você.
— Ah, e eu saberia? — Olivia continuava brava, magoada e
muito nervosa. Precisava falar, desabafar, e ele tinha que ouvi-la. —
Então veio aqui se transformar em alvo para ter uma morte digna
sem nem sequer pensar em como eu ficaria miserável sem você? —
Ela se apoiou no peito dele com as mãos espalmadas. — Droga,
Charles, eu me apaixonei por você! Não vou aceitar perdê-lo agora!
Ele não sabia se ria descontrolado do acesso de fúria e da
quantidade de blasfêmias que ela proferira naquele intervalo de
tempo ou se desabava de joelhos por aquela declaração
inesperada. Talvez fosse melhor ouvi-la dizer outra vez para ter
certeza de que nada daquilo estava sendo causado pelo excesso de
álcool.
— Você…
— Eu amo você. — Ela bateu nele outra vez. — Não me importa
se eu estiver sozinha nessa aventura, eu entendo que você não
acredite em amor, paixão, esse tipo de coisa que os homens
chamam de ilusão feminina. Eu o amo e isso é suficiente. Não me
importo nem se você continuar um libertino… não. Talvez eu me
importe, sim, porque eu quase morri de verdade quando soube que
você tinha uma amante e a vi linda e gloriosa na sua cama. Céus,
eu estou com ciúmes! Não morri pelo acidente, mas morrerei de
ciúmes, porque eu quero você só para mim. Você me enfeitiçou,
Charles Eckley, e estou me sentindo egoísta, também. Não posso
perder você e não vou dividir você.
Daquela vez ele teve que dar uma gargalhada. Ela usou a
mesma arma que ele passou anos sacando quando as coisas
ficavam muito tensas, quase românticas e ele poderia revelar seus
sentimentos: o humor. Olivia estava falando sério, mas havia uma
carga de humor em suas palavras que fez seus irmãos rirem. Até
Stafford, que observava o desenrolar da confusão, riu.
Mas não era engraçado. Tentando manter a sanidade depois que
ela dissera que o amava — o que a fazia muito mais corajosa do
que ele —, Charles levou a mão até o bolso interno do paletó e
retirou o amuleto da sorte. Pendurou-o no dedo e exibiu para Olivia,
que não o reconheceu de imediato.
— Você lembra, Livvy? Lembra-se de quando me deu isso?
Ela pegou o objeto nas mãos e ergueu as sobrancelhas.
— O amuleto que fiz com o pelo de Selvagem! Você o guardou
por todo esse tempo?
— Ele nunca saiu do meu bolso. Fica do lado esquerdo do colete
desde que você o entregou para mim e disse que manter conosco
uma lembrança daqueles que amamos serviam para amenizar a dor
da perda.
— Você ainda sofre por Selvagem?
Ela pareceu confusa. Charles riu, fechou as mãos dela ao redor
do objeto e beijou-lhe os dedos.
— Eu sofri dois dias pelo cavalo. Não é por ele que mantenho o
amuleto, é por você. Eu o guardo aqui — Charles colocou uma das
mãos sobre o coração — para ter uma parte de você comigo todos
os dias. Para amenizar o fato de que eu nunca poderia ter você.
— Não sei se entendo.
Ele guardou o amuleto outra vez no bolso, passou os braços ao
redor da cintura dela e a puxou para perto. Estava imundo e
cheirava como uma destilaria. Não deveria nem sequer aproximar-
se de Olivia naquelas condições, quanto mais tomá-la em um
abraço tão íntimo. O burburinho aumentou. Ele não conseguia ouvir
mais nada além das batidas de dois corações.
— Acho que não sou bom falando dos meus sentimentos. Nunca
contei a ninguém e tentei esconder de todas as formas que a
amava. Não sou digno de você, Olivia, mas eu também sou egoísta.
Eu a amo há anos. Eu sempre a amei. Você é o motivo pelo qual eu
me levanto toda manhã, a razão pela qual sorrio, o propulsor que
me faz seguir em frente e acreditar que posso conquistar o mundo.
Nunca mais conseguirei viver sem você ao meu lado. Não sei como
passei tanto tempo sem fazer isso.
E ele a beijou ali, no meio de todo mundo.
T L
M S ’ . O barman lhe serviu uma bitter ale ao vê-lo
recostar-se no balcão e outro homen que estava ali se afastou. Ele
bebeu um gole da cerveja, limpando a espuma dos lábios com a
língua. Gostava de ser temido, assim não precisava lidar com
ninguém com quem não desejasse falar.
Desde que Nathaniel se fora ele estava como aquela cerveja:
amargo e gelado. Não que o amigo lhe fizesse bem, mas Nate era,
ao menos, alguém com quem dividir o passado. Talvez devesse
treinar outro cara, devesse resgatar outra alma perdida para
caminhar ao seu lado — mas isso o faria ser como Nolan Fitzgerald.
E Leonard odiava Nolan.
Não tinha tempo para lamentar sobre o passado recente.
Nathaniel fizera a sua escolha: saíra com Lucille, a mulher por quem
se apaixonara, em busca do irmão desaparecido pelo litoral dos
Estados Unidos. Ele também fez a própria escolha: iria embora de
Nova York assim que achasse o homem que destruiu sua vida.
Ou seja, em breve.
— Sr. Eckley?
Um homem que cheirava como se nunca tivesse tomado um
banho recostou no balcão ao seu lado.
— Depende de quem seja você.
— Sou o informante. Tenho algo para o senhor.
Leonard virou um longo gole da bitter ale e bateu com a caneca
de metal no balcão. O homem estendeu-lhe um papel dobrado e,
com um movimento positivo de cabeça, foi embora. O conteúdo era
um nome e um endereço.
Não era a primeira vez que alguém lhe dizia saber onde Michael
Razinski estava, mas ele precisava que, daquela vez, não
terminasse em um beco sem saída. A última vez em que ele o viu,
estava lutando por sua vida em um navio naufragando no Golfo do
México. Mesmo que as possibilidades de Razinski sobreviverem
fosse poucas, Leonard sabia que o maldito ficaria vivo até que ele
mesmo pudesse matá-lo.
Havia um pequeno problema: o informante lhe dizia que seu alvo
estava nas Índias. Não era como pegar um trem até Seattle ou um
navio que o conduzisse até o Brasil. As Índias ficavam ridiculamente
distantes de onde ele estava e não havia caminho fácil ou seguro.
Mesmo com toda a tecnologia dos mais modernos navios a vapor, a
viagem era cansativa e quase insuportável.
Talvez ele precisasse de mais motivos para perseguir Razinski
até as Índias. Mas que motivo seria melhor do que a vingança?
— Sr. Eckley?
Outra voz o afastou de suas conjecturas. Leonard virou-se para
se deparar com uma face conhecida, um dos seguranças do
Gênesis.
— Barry. O que o traz aqui?
Com um aceno de cabeça, ele pediu duas cervejas. Qualquer
pessoa que o conhecesse minimamente sabia que não era prudente
ter nenhuma espécie de conversa em um bar sem uma bebida para
acompanhar.
— O Sr. Fitzgerald gostaria de lhe falar.
— Não tenho nada para tratar com Nolan. Volte lá e diga isso a
ele.
O segurança bebeu metade da cerveja em um gole.
— Direi, mas creio que o senhor deveria me acompanhar. O Sr.
Fitzgerald anda tramando algo.
— Algo que me envolva?
— Não sei dizer, senhor. Porém ele o chamou e isso pode
significar alguma coisa.
Era provável que Barry estivesse correto. Aquele maldito do
Nolan Fitzgerald, proprietário do Gênesis, estava muito quieto. Por
mais comedido que o homem fosse, não lhe era comum apenas
desaparecer depois de ser desafiado e humilhado. E foi exatamente
aquilo que Nathaniel fez: humilhou-o.
Leonard jogou uma moeda sobre o balcão e terminou sua
bebida. Limpou os lábios com a manga do paletó e indicou que
Barry deveria ir à frente. Um homem prevenido nunca permitia
ninguém às suas costas, e ele podia se dizer um homem bastante
prevenido.
Millicent já tinha rascunhado cinco versões da mesma carta e todas
jaziam rasgadas ou emboladas na lata de lixo. Seus dedos estavam
sujos de tinta — ela insistia em usar uma antiga caneta tinteiro que
era quase uma relíquia — e seu vestido estava manchado com
vários tons de azul. Erguendo o papel com a sexta tentativa de
produzir um argumento minimamente aceitável para a sua admissão
na Universidade de Calcutá, teve certeza de que aquela ainda não
era a carta que deveria enviar.
Como era difícil justificar os motivos pelos quais uma mulher de
vinte e sete anos preferia estudar engenharia a se casar e constituir
família!
— Senhorita? Seu pai aguarda para o almoço.
Uma das empregadas bateu à porta do quarto. Millicent enfiou o
rascunho na primeira gaveta de sua escrivaninha e ajeitou os papéis
para parecer que estivera escrevendo em seu diário. Não queria que
ninguém visse seus projetos ou lesse suas divagações. Queria
apenas convencer os pais de que a melhor coisa a se fazer era
permitir que ela estudasse nas Índias. Afinal, aquele era o costume
na Inglaterra: enviar as solteironas para o mais longe possível e,
assim, evitar a vergonha que elas representavam para a família.
Exceto que ela não era inglesa e seus pais pouco se importavam
com o que ela fazia ou deixava de fazer — contanto que eles não
soubessem de nada.
— Estou descendo.
Precisava trocar a saia manchada, antes. Arrancou-a e vestiu
outra com uma cor extravagante qualquer. Ela comumente usava
vermelho, azul, verde e amarelo em tons bem escandalosos e que
chamavam mais atenção do que os letreiros da Quinta Avenida.
Talvez fosse porque Millicent gostasse de cores e de se parecer
com um jardim florido. Também podia ser porque ela nunca era
notada, então criava situações em que todos a veriam de uma forma
ou de outra.
O pai quase nunca almoçava em casa, mas marcou aquela
espécie de reunião para lhe dizer sua resposta sobre o pleito de
semanas atrás. Ela encontrou ele e a mãe sentados no salão de
refeições, mas nenhum dos dois interrompeu suas atividades para
recepcioná-la.
— Boa tarde, papai. Mamãe.
— Sente-se, Millicent. — Oswald Ryan indicou uma cadeira
próxima e fechou o jornal que estava lendo. — Estamos aqui porque
eu e sua mãe temos um compromisso em Boston amanhã e não
retornaremos pelas próximas semanas.
— Entendo. E já há uma resposta para meu pedido?
— Sim, há. Você pode estudar, não a impediremos. Mas terá que
estudar aqui mesmo, em Nova York. E terá que ser filosofia ou
matemática ou inglês, para que possa lecionar nas escolas
fundamentais. Afinal, já que não vai se casar outra vez, melhor que
arrume uma profissão.
Millicent estendeu o guardanapo sobre suas pernas enquanto
tentava controlar a respiração. Sabia bem que não era prudente
demonstrar qualquer espécie de fraqueza diante do pai — ele não
respeitava quem não considerava forte.
— Eu tenho pretensão de estudar engenharia, papai. Em
Calcutá.
A mãe deixou o garfo cair sobre o prato, fazendo um ruído
estridente. O pai deu uma risada que morreu lentamente ao
perceber que ela estava falando sério. Quando conversava com a
família Millicent nunca dava sinais de suas emoções, apenas
mantinha uma expressão serena e controlada que a fazia parecer
quase uma máquina.
— Está fora de cogitação. Não autorizarei que vá para as Índias.
— Uma das melhores faculdades de engenharia é em Calcutá e
eles aceitam mulheres desde 1876. Eu poderei me formar e
trabalhar com…
— Millicent, — o pai a interrompeu — engenharia é uma
profissão de homens. Veja, você deveria estar casada a essa altura.
Sabemos que isso não acontecerá e por isso podemos permitir que
estude, mas não fantasie.
— Ouça seu pai. — A mãe finalmente disse algo. — Ele é o
homem mais sábio que conheço e ele a ama. Só está pensando no
melhor para você.
Claro que a mãe estaria do lado do marido. Marianne Ryan era
uma típica esposa dos industriários estadunidenses: sempre
apoiando o marido, sempre prestes a atender todos os seus
desejos, sempre posando perante a sociedade. E também era claro
que o pai a amava — Millicent não duvidava que os dois a
amassem, mas de uma forma bastante estranha. Era um amor sem
afeto, sem cuidado, sem proximidade.
Ela passou a infância sendo tratada por babás, amas e tutoras.
Estudou em casa com as melhores professoras, mas não tinha a
presença materna ou paterna. Ela mal os via. Eles não sabiam o
que a afligia, seus temores ou suas angústias. Também não sabiam
do que ela gostava e o que a fazia feliz.
— Tenho certeza de que sim, mamãe. — Ela foi
condescendente. — Porém imaginei que, como vocês estão sempre
viajando, eu poderia…
— Pensou incorretamente. — Oswald a interrompeu uma
segunda vez. — Está decidido e pretendo iniciar minha refeição
agora. Posso indicá-la para as melhores faculdades de Nova York,
mas você não irá para as Índias.
Aquele era um revés inesperado. Millicent não deveria ter
acreditado tanto na benevolência e no desapego de seu pai. No
fundo, ele era apenas mais um homem que via mulheres como
apêndices masculinos. Toda liberdade que lhe concediam era, na
verdade, desleixo.
Ela precisava de um plano alternativo. Não estava pronta para
desistir de seu sonho de sair de casa e viver uma aventura para
estudar o que mais desejava. Havia coisas que Millicent decidira
fazer e algumas delas se tornaram prioridade desde que sua melhor
amiga, Lucille, se rebelou contra a sociedade e a família para fugir
de um casamento horrível.
Talvez ainda houvesse uma saída. Ela precisava descobrir qual
era.
Tão logo pisou no Gênesis, Leonard sabia que não deveria estar ali.
Não era mais bem-vindo no lugar que ajudara a fundar. Seu lar.
Vários olhos o fitavam de esguelha e alguns poucos o observavam
sem qualquer discrição. Como ele não ainda não havia desenvolvido
chifres, o assombro causado por sua presença no Gênesis tinha
algo a ver com sua convocação ao clube. Será que aquelas pessoas
se esqueceram de quem ele era?
Ele era. Por mais que Leonard continuasse mantendo a sua
alcunha de Diabo de Nova York, sua fama estava enfraquecida
desde que ele se afastara do clube. Alguns homens pensaram que a
ruptura com Nolan o enfraquecera. Outros acreditavam que ele só
era forte se estivesse na companhia de Nathaniel. Estavam todos
enganados, mas o respeito era algo que se conquistava. O de
Leonard estava estremecido e ele precisava recuperá-lo.
— Quer que o acompanhe? — Barry perguntou.
— Não, ainda sei o caminho.
— O escritório agora fica no segundo andar. O primeiro está
sendo remodelado.
Leonard assentiu. Outro lembrete de que as coisas com ele não
eram permanentes. O Gênesis não era mais seu clube, aqueles
homens não eram mais seus empregados, aquele não era mais o
seu domínio.
Seguiu pelos corredores familiares até a nova sala de Nolan
Fitzgerald. O antigo “chefe” estava de costas examinando uma
estante de livros e não se deu ao trabalho de virar-se quando ele
entrou.
— Você já tem o dinheiro para me pagar?
Leonard baixou o olhar e pressionou a ponte do nariz. Sim,
Nolan estava tramando algo.
— Pagar?
— A dívida que temos.
Aquela seria uma conversa bastante difícil.
— Não lhe devo nada, Nolan. Por que me chamou aqui?
O chefe virou-se e sorriu. Leonard costumava respeitá-lo como a
um irmão mais velho, mesmo que tivessem a mesma idade. Aquele
homem o salvara de outro episódio traumático na vida e o resgatara
de uma situação que o destruiria. Leonard seria capaz de matar e
morrer por Nolan Fitzgerald até descobrir que tudo não passou de
uma farsa. Ele foi traído, enganado e não estava disposto a perdoar.
— Claro que deve. Salvei sua vida, portanto ela pertence a mim.
Se vai rebelar-se como seu amigo Nathaniel, então deverá pagar o
mesmo preço que ele.
O homem caminhou até uma escrivaninha, abriu uma gaveta e
retirou alguns papéis presos por elástico. Folheou-os rapidamente e
encarou Leonard, ainda sorrindo.
— Não entregarei meus bens para você apenas porque
despreza o fato de que a escravidão foi abolida neste país.
— Sabe o que é isso, Leo? — Nolan ignorou seu comentário e
apontou para os papéis. Ele se aproximou, apenas o suficiente para
ver que tratavam-se de contratos e promissórias. — Você reconhece
seu nome nesses documentos?
— Não.
— Uma pena. Esses são cópias, os originais estão com seus
verdadeiros credores. Pelo que parece, você fez várias dívidas pela
cidade e não pagou nenhuma. Dívidas com homens muito
perigosos.
Ele deu mais alguns passos até a mesa e pegou os documentos.
Havia sua assinatura em todos eles, mas Leonard tinha certeza de
que jamais os assinara. Os credores eram homens horríveis,
criminosos como Nolan que usavam as pessoas para chegar ao
topo e as descartavam quando elas não mais lhes serviam.
Suas mãos recolheram um abridor de cartas sobre a mesa e, em
meio segundo, Leonard empurrou Nolan até a parede, ergueu-o do
chão e encostou o objeto pontiagudo em seu pescoço. O maldito
nem mesmo tremeu. Ao contrário, ele riu.
— O que você fez? — A pergunta saiu por entre os dentes como
um rosnado.
— Garanti que você estivesse inexoravelmente atado a mim.
Acha que cheguei onde cheguei sem proteger meu investimento?
Leonard apertou-o com mais força. Uma gota de sangue
escorreu do lugar onde o abridor de cartas puncionava a carne.
— Você acha que tenho medo de você, Nolan? Pensei que me
conhecesse um pouco melhor do que isso.
O clique de uma pistola indicou que sim, o “chefe” o conhecia
melhor do que isso. Claro que havia seguranças armados
esperando um confronto e prontos para atirar. E também era claro
que eles não atirariam a não ser que fosse para evitar a morte do
patrão — mas atirariam, no final. Porque Leonard não costumava
apontar uma arma para alguém se não estivesse disposto a
ultrapassar alguns limites.
Ele deu dois passos para trás e colocou o abridor de cartas
sobre a mesa.
— Pague-me e essas promissórias desaparecerão. — Nolan
determinou. — Meus advogados o procurarão amanhã com os
contratos. Transfira tudo que tem para mim e não precisará mais
preocupar-se com esses credores.
— Você quer me levar à ruína? É isso?
— Mais ou menos isso. — O bastardo ajeitou os documentos até
formar uma pilha perfeitamente simétrica. — Não gosto de ser
traído. Se você não quer continuar trabalhando para mim, posso
aceitar liberá-lo se estiver arruinado, destruído, sem nenhum
centavo para se reerguer. Quero todo o seu patrimônio, todo o seu
dinheiro, seus investimentos.
— E se eu recusar?
Nolan pegou o telefone e fingiu que pedia uma ligação.
— Terei que pedir aos seus credores que executem a dívida.
Você sabe que alguns deles não gostam muito de envolver a justiça,
então provavelmente terá que lidar com cães de guarda iguais ao
seu amigo Nathaniel.
Os dois homens trocaram olhares, mas nenhuma outra palavra.
Leonard não daria a Nolan o prazer de colocar as mãos imundas em
seu dinheiro. Procuraria cada credor falso e negociaria com eles
cada centavo que precisasse pagar, mas não cederia à chantagem.
— Não tenho medo de você. Faça o que quiser, mas poupe os
advogados. Você não verá a cor do meu dinheiro.
Leonard saiu da mesma forma que entrou. Virou as costas e
refez seus passos, deixando o Gênesis para trás. Daquela vez, de
forma definitiva.
O Marquês que me Amava