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O Libertino dos meus Sonhos

Série Os Eckleys - Livro Três


Tatiana Mareto
O LIBERTINO DOS MEUS SONHOS @ 2021. Todos os direitos reservados. Obra
protegida pela Lei 9.610 de 1998 (Lei de Direitos Autorais).
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expressa da autora.
É proibida a reprodução parcial da obra, mesmo que de forma gratuita, sem a indicação
dos créditos autorais.
Essa uma obra de ficção. Qualquer semelhança com pessoas ou fatos reais é mera
coincidência.
Plágio é crime. Crie, não copie.

Capa: Tatiana Mareto


Edição e diagramação: Tatiana Mareto
Revisão: Narjara Pedroso

Para saber mais sobre a autora, visite


https://tatianamaretoromances.com
Created with Vellum
Dedico esse livro a duas de minhas autoras favoritas, Tessa Dare e
Lorraine Heath. Obrigada por me ajudarem, mesmo que sem
saberem, a sair de um incapacitante bloqueio de autora.
Contents

Alerta de gatilhos

Prólogo
Capítulo primeiro
Capítulo segundo
Capítulo terceiro
Capítulo quarto
Capítulo quinto
Capítulo sexto
Capítulo sétimo
Capítulo oitavo
Capítulo nono
Capítulo décimo
Capítulo décimo primeiro
Capítulo décimo segundo
Capítulo décimo terceiro
Capítulo décimo quarto
Capítulo décimo quinto
Capítulo décimo sexto
Capítulo décimo sétimo
Capítulo décimo oitavo
Capítulo décimo nono
Capítulo vigésimo
Capítulo vigésimo primeiro
Capítulo vigésimo segundo
Capítulo vigésimo terceiro
Epílogo
Nota da autora
Sobre a autora
Capítulo primeiro
Alerta de gatilhos

Olá, leitoras!
Antes de começarmos, preciso informar que esse livro possui
alguns gatilhos que podem ser desconfortáveis para pessoas
sensíveis ao tema.
A história tem gatilhos para
- Depressão,
- Importunação sexual,
- Luto.
O livro é um romance entre pessoas adultas que fazem sexo e,
por isso, contém muitas cenas eróticas descritivas.
Se você entende que esses gatilhos e temas não são obstáculo
para sua leitura, então seja bem-vinda ao mundo dos Eckleys!
Prólogo
Londres, 1895

McFadden Garden
C E
: os Eckleys não se apaixonavam. Bem, eles se
apaixonavam, claro, por muitas mulheres ao mesmo tempo. No caso
de Caroline, sua prima-irmã, por muitos homens. Aquele sentimento
romântico que unia os casais apaixonados, esse não fazia parte da
história da família.
Até que seu irmão mais velho se rendeu ao amor e, alguns anos
depois, Caroline também se casou. Sua convicção sobre o destino
malfadado de um Eckley foi sepultada com a constatação de que
ele, também, estava apaixonado. Não era uma paixão qualquer.
Charles amava a sua melhor amiga.
Talvez tenha acontecido naquela vez em que nadaram
escondidos na praia privativa de Greenwood Park, a propriedade
litorânea dos McFaddens. Pode ter sido quando ficaram presos na
vila durante um temporal e dividiram um cobertor para não
morrerem de frio. Não que fossem morrer de verdade, mas estava,
sim, muito frio. Teve também a vez em que ele adoeceu e ela
permaneceu ao seu lado durante muitas noites, mesmo que sua
mãe expressamente proibisse. Charles só sabia que ele não se
lembrava mais de uma época em que ele não amasse Olivia
Trentham.
Era por aquele motivo que estava ali, naquele baile, vestindo seu
melhor terno e apalpando uma caixa de veludo escondida dentro do
bolso do colete. Não gostava de bailes — ia por causa dela.
Escolhera aquele em especial porque a data representava um
momento marcante de sua vida: quando fechou seu primeiro
negócio. Não via o casamento como um negócio, mas seria incrível
se Olivia aceitasse seu pedido naquele mesmo dia.
Sim, ele queria casar-se com ela. Dois outros Eckleys se
casaram e estavam bem de saúde, então o casamento não o
mataria. Olivia era uma dama. De que outra forma poderia ficar com
a mulher que amava sem desonrá-la perante a sociedade que ela
tanto respeitava?
Já refletira sobre tudo que estaria abandonando. Uma vida de
libertinagem. Noites de jogatina. Uma casa pequena e silenciosa.
Liberdade. Nada daquilo importava sem ela. Olivia trazia cor ao
cinza nublado de seu olhar e era música para a monotonia de seus
dias. Ele passaria uma vida feliz ao lado dela e tinha certeza de que
também a faria feliz. Talvez ela não o amasse de volta, mas Charles
estava tão entorpecido pelo sentimento que imaginou-se amando
pelos dois.
Alguns conhecidos diriam que amar tanto era fraqueza, ele
discordava. Sentia-se mais forte ao lado dela. Apalpou novamente o
bolso, confirmou que a caixinha estava ali e disparou para a
varanda. Ele a vira sair pelas portas duplas pouco depois de
terminar uma quadrilha e não retornara, ainda. Não a encontrou à
vista e debruçou-se por cima da balaustrada para examinar o jardim.
Aonde ela fora? Charles recusava-se a acreditar que ela, tão
recatada, teria se embrenhado na quase escuridão e arriscado a
sua reputação.
Olhou para os lados e confirmou que ninguém o observava. Não
que fosse um problema, ele já pretendia casar-se com ela. Apenas
não queria que fosse por um escândalo, preferia que ela lhe
dissesse sim. Seguiu silencioso pelos caminhos de pedra enquanto
seus olhos buscavam pelos lugares que ele estaria se quisesse
conversar em privado com uma mulher. Parou ao ouvir um ruído de
risadas.
À sua frente estavam Olivia e Nicholas, seu irmão mais novo.
Charles escondeu-se entre sebes e flores para não ser visto. O que
eles faziam ali? Esticou o pescoço para ver melhor e quase caiu
para trás no meio dos espinhos. Os risos cessaram porque eles
estavam se beijando.
Não era um beijo digno de um Eckley. Nicholas era um
cavalheiro digno e comedido, mesmo que estivesse com uma dama
na escuridão de um jardim. Ele apenas segurou-lhe a face com as
duas mãos e deitou sua boca na dela. Olivia queria ser beijada —
segurava-o pelo casaco para mantê-lo próximo. Durou menos de um
minuto e deixou Charles devastado.
O buraco em seu peito era maior do que se tivesse tomado um
tiro de canhão. Deu meia volta, esgueirou-se pelas sombras até
ganhar as ruas. Seu coração poderia ter parado de bater e ele não
perceberia — estava arrasado. A decepção causava dor física e,
para aplacá-la, Charles fez o que sabia melhor: afogou-se em
bebida e perdeu-se no corpo de outra mulher.
Olivia não seria dele. Nunca. Não naquela vida. Ela gostava de
seu irmãozinho e Charles amava os dois o suficiente para manter-se
distante. Não importava o quanto doesse, em algum momento ele a
esqueceria e voltaria a viver em paz. Talvez quando ela e Nicholas
se casassem, tivessem uma dúzia de filhos e fossem morar no sul.
Exceto que eles nunca se casaram. O cortejo durou alguns
meses, mas acabou com cada um seguindo caminhos diferentes. O
Conde de Salisbury, pai de Olivia, faleceu e ela entrou em luto. O
tempo passou, Charles se tornou um canalha incorrigível e nunca
mais desafiou os planos do destino. Os Eckleys não deveriam se
apaixonar.
Capítulo primeiro
Londres, 12 de abril de 1898

Grosvenor Square
C
. Na primeira vez, pensou ter entendido errado. Na segunda,
acreditou que havia alguma informação equivocada. Na terceira,
teve certeza de que estava sendo traído.
— Maldição! — Atirou o papel já amassado por seus dedos
nervosos por sobre a mesa. — Inferno! Canalha! Pusilânime!
Aquilo não podia estar acontecendo. Depois de tantos meses de
dedicação àquele negócio, depois de tantos investimentos vultosos
para viabilizar toda a estrutura de distribuição exigida pelo
remetente da carta, o homem não poderia simplesmente colocar
outro em seu lugar. Poderia?
Charles serviu-se de uma dose de uísque e virou tudo de uma
vez. Girou ao redor da escrivaninha de seu escritório até parar de
frente para ela e apoiar seu corpo sobre os dois braços. Baixou a
cabeça e fechou os olhos, tentando se impedir de pegar um navio e
ir ao encontro do maldito que o estava fazendo perder o controle.
— Charles? — A voz do irmão o fez abrir os olhos e virar-se para
a porta. — Está tudo bem?
— Não — ele rosnou e caminhou até o aparador de bebidas para
servir-se de outra dose. Pegou a carta amassada e atirou sobre o
irmão. — Veja você mesmo.
Nicholas pegou o papel e o abriu. Apesar de ser o mais jovem,
era o Eckley mais centrado — menos impulsivo, mais racional,
afastado dos escândalos e bem-vindo em todos os eventos sociais
da aristocracia. E estava morando com Charles desde o início do
ano, quando retornou de Oxford depois de formar-se com láureas
em Contabilidade.
— Bharat Gupta não é aquele amigo de Anthony que gosta de
enviar presentes de conotação sexual? — perguntou.
— Esse mesmo! Um maldito! Um traidor! — Ele mais uma vez
finalizou a bebida em um só gole.
— Você terá que fazer melhor do que ofendê-lo para que eu
compreenda sua indignação, irmão. — Nicholas se sentou. Era
esperado que o destempero de Charles fosse durar mais tempo do
que o jovem teria disposição de aguardar em pé. — O que o homem
fez para irritá-lo?
Ele também se sentou e passou os dedos trêmulos pelos
cabelos desalinhados. Estava tão furioso com a correspondência
que não conseguia controlar seu ímpeto — e Charles era muito
impetuoso.
— Temos negócios, ou tínhamos, era o que acreditava. Gupta é
fabricante das mais cobiçadas sedas indianas na Europa e está
expandindo para as Américas. Seu antigo distribuidor não o estava
mais satisfazendo e ele dispensou o homem. Desde então estamos
em contato e ele me garantiu que fecharíamos um contrato
exclusivo.
— Na carta, ele sugere que virá conhecer futuros parceiros.
— Sim, o maldito mudou de ideia! — Ele se levantou outra vez e
encheu o copo com uísque. — Nick, eu estou há meses perdendo
tempo com esse patife! Investi milhares de libras na compra e
locação de locais de armazenamento e em navios! Envolvi Robert
no negócio e agora o canalha vem dizer que “não está certo” sobre
nossa parceria?
O irmão evitou que ele consumisse a terceira dose de uísque em
seguida. Pegou o copo e o tomou para si, bebericando o líquido
âmbar.
— O que o fez mudar de ideia?
— E eu sei? O homem de repente decidiu que seu parceiro
comercial precisa ser respeitável! Eu não sou respeitável, afinal?
Um breve silêncio indicou que o irmão tinha dúvidas quanto à
resposta da pergunta. Nicholas bebeu outro gole do uísque e apoiou
o copo de vidro sobre a madeira escura da escrivaninha. Seus olhos
permaneceram alguns instantes focados no objeto em suas mãos
até que ele os ergueu e fitou o irmão mais velho com uma
expressão condescendente.
— Sua reputação é péssima — Nicholas sentenciou. — Em
pouco mais de um ano você triplicou seu patrimônio, mas seu nome
é usado como sinônimo de jogador compulsivo e libertino. Entre a
aristocracia você é visto como uma hiena que espreita o animal
ferido para alimentar-se dele. As mulheres o consideram um
péssimo partido. Você tem dinheiro, irmão, mas poucas pessoas
gostam de você.
A sinceridade era uma maldição dos Eckleys, assim como a
libertinagem. Não que Nicholas lhe estivesse contando alguma
novidade — Charles sabia que poucos o tinham em consideração.
Ele nunca jogava para perder, nem nas mesas de jogos, nem nos
negócios. Também não se importava em passar por sobre os
adversários como um trator de demolição. Talvez ele fosse mesmo
um desalmado, uma hiena que espreitava a morte para saciar-se da
carcaça, um canalha que achava a aristocracia tediosa e preferia a
companhia das prostitutas e dos jogadores inveterados como ele.
Charles apenas não acreditava que isso pudesse afetar seus
negócios daquela forma. Por que raios sua interação com as
pessoas importaria quando o assunto era sua capacidade de gerir
adequadamente um negócio?
— Gupta é um imbecil — insistiu. — Porém, preciso dar um jeito
de resolver isso. Investi tempo e dinheiro demais para perder esse
contrato.
— Imagino que você encontrará a solução, mas posso lhe
oferecer uma sugestão?
— Entretenha-me.
Nicholas riu e se levantou.
— Poderia considerar tornar-se um homem respeitável por
algum tempo. O tal Gupta está vindo a Londres, então mostre para
ele que você é o quarto filho de um marquês, mesmo que isso não
signifique nada. Depois que o contrato estiver assinado, volte à sua
vida de devassidão, jogatina e ódio à aristocracia.
— Eu não odeio a aristocracia. Desprezo-a, é diferente.
O irmão riu antes de virar-se e sair. Maldição! O dia estava tão
ruim a ponto de constrangê-lo a aceitar aquele tipo de admoestação
vinda de seu irmão caçula? Desde quando Nicholas virara a voz da
razão para orientá-lo em como agir com seus negócios?
Não tivesse investido todas aquelas libras, mandaria Gupta e
sua esquisitice para os infernos, porém, não podia perder tanto. E
não era apenas ele — suas perdas refletiriam no irmão gêmeo, que
se tornara seu parceiro comprando dois navios para a distribuição
das sedas Gupta pelas Américas. Então, precisaria dar um jeito de
superar a concorrência e ganhar aquele contrato.
Talvez Charles precisasse de ajuda. Ele nem mesmo sabia o que
deveria fazer caso quisesse seguir os conselhos de Nicholas. O que
significava ser um homem respeitável, afinal?
Londres, 13 de abril de 1898
Brook Street

Aquela era a quinta correspondência que Olivia Trentham abria com


o mesmo conteúdo: uma mensagem ameaçadora e uma notificação
para pagamento. Os remetentes variavam, mas todos queriam a
mesma coisa — receber os valores que lhes eram devidos.
Ela não entendia de onde aquelas cartas vinham. Desde que seu
pai, o Conde de Salisbury, morrera e a mãe entrara em um estado
irreversível de melancolia, permanecendo trancada na propriedade
de Hampshire sem receber ninguém ou sair do quarto, Olivia era a
responsável pela família. As finanças, no entanto, eram
administradas pelo Sr. Johnessy, um homem de confiança de seu
pai que fora nomeado por ele em seu testamento.
O Sr. Johnessy não disse que havia problemas financeiros. A
família acabara de sair do luto e Annabelle debutaria naquela
temporada. Elas tinham diversos compromissos sociais para cumprir
e muitas despesas com vestidos e jantares. Seus olhos correram
pelas cartas empilhadas e ela não sabia se havia dinheiro para
pagar nenhum daqueles credores. Precisava falar com o
administrador. Redigiu um bilhete apressado, com letra trêmula, e o
amassou antes de decidir entregá-lo ao homem. Se não entendesse
minimamente do que se tratavam aqueles números, teria que aceitar
qualquer resposta do Sr. Johnessy.
Olivia precisava de ajuda.
Seus olhos vagaram pelas estantes cheias de livros. O pai lia
sobre tudo e duas das quatro paredes do escritório eram tomadas
por prateleiras abarrotadas com enciclopédias, compêndios e
tratados sobre agricultura, botânica, mecânica, medicina e até
mesmo anatomia. Certo, anatomia era parte da medicina, mas Olivia
costumava classificar esses livros de forma diferente em sua mente.
As figuras e explicações sobre o corpo humano eram, digamos,
fascinantes.
Encontrou o que queria na última prateleira da estante na parede
em frente à mesa onde estava. Arrastou a escada até o objeto de
seu interesse, retirou as sapatilhas e subiu os degraus até conseguir
alcançar o livro de capa de couro azul e letras douradas. Folheou
até achar o sumário para confirmar que ali estavam os assuntos que
precisava conhecer, e perdeu o equilíbrio.
O livro despencou de sua mão e ela se encolheu na expectativa
do “blam!” que não veio. Ao abrir os olhos, deparou-se com Charles
Eckley ao pé da escada, encarando-a com uma expressão divertida
e segurando o livro fujão.
— Compêndio de administração e finanças? — Ele franziu as
sobrancelhas enquanto girava o calhamaço de um lado para o outro.
— Por que diabos você está lendo isso?
A desvantagem de se ter amigos muito próximos era essa: eles
entravam sem ser anunciados, visitavam em horários inadequados
— e até impróprios — e praguejavam sem decoro na sua frente. A
vantagem: eles sempre estavam presentes para ampará-la quando
precisava. Charles ergueu a mão para ajudá-la a descer antes que
ela formulasse uma resposta.
O que diria a ele? Que estava enfrentando dúvidas quanto à
lisura de seu administrador porque cobradores começaram a enviar
cartas assustadoras para a Casa Salisbury? Talvez fosse uma ótima
ideia, já que Charles era brilhante nos negócios.
Sua família era amiga dos Eckleys desde que ela tinha dez anos.
Lembrava-se pouco de uma época em que não frequentava a
propriedade litorânea do Marquês de Granville, pai de Charles, e
corria pelos campos e costas marítimas com a brisa em seus
cabelos. Lembrava-se menos ainda de um tempo em que não era
amiga de Charles. Ele, o irmão gêmeo Robert e o mais novo,
Nicholas, que tinha a mesma idade dela, eram suas referências de
amizade — mesmo que fossem homens.
Com tanta intimidade, o decoro acabava ignorado em quase
todas as ocasiões. Como nessa, em que as mãos sem luvas de
Charles seguravam as suas enquanto ela descia os degraus.
— Bom dia, Charlie — Olivia desconversou.
— Bom dia, Livvy. — Ele sorriu e fez uma reverência para
provocá-la. — Estudando economia agora?
— Não exatamente, mas gostaria de compreender alguns termos
que me são alheios.
— Pergunte-me. — Charles entregou a ela o livro.
— Não é Nicholas o Eckley formado em economia?
— Nick é formado em contabilidade — ele a corrigiu. Olivia
indicou que deveriam se sentar próximos à lareira e tocou a sineta
para chamar a criada. Em segundos, Adalind apareceu no escritório
e ela solicitou um bule de chá. — Eu sou formado pela experiência.
Ela riu. Ajeitou as saias depois de acomodar-se em uma poltrona
coberta com tecido estampado e percebeu que permanecia
descalça. Seus pés, cobertos apenas por meias pretas com
bordados, estavam satisfeitos pela liberdade — mas ela tinha que
escondê-lo das vistas de seu convidado.
— Muito bem, senhor experiente. O que é uma hipoteca?
Charles franziu as sobrancelhas e levou cinco segundos para
respondê-la.
— É uma forma de garantir um empréstimo. Bancos costumam
hipotecar bens de raiz quando emprestam grandes quantias de
dinheiro, principalmente se duvidam da solvência do devedor. Bem,
atualmente bancos hipotecam tudo que veem pela frente. Por que
me pergunta isso?
Olivia suspirou. Era muito ruim que a explicação didática de seu
amigo a fizesse entender, de súbito, que havia três dessas
hipotecas sobre bens do condado — inclusive sobre a propriedade
de Hampshire, uma de suas favoritas.
— Quando um banco diz que vai executar uma hipoteca… isso
se dá porque o empréstimo em questão não foi pago?
A expressão de Charles mudou de confusão para alerta
imediato. Adalind interrompeu a conversa ao trazer o chá e
depositou a bandeja sobre a mesinha ao lado da poltrona de Olivia.
Ela se levantou para servir duas xícaras e percebeu que ele a
seguia com o olhar, como se tentasse desvendar algum mistério
escondido por trás de seus movimentos.
— O que está havendo, Livvy? Você não precisa de enigmas
comigo. Diga-me o problema.
Ela deveria saber que Charles não seria facilmente ludibriado
nem ofereceria respostas sem compreender as dúvidas. Sem muitas
opções, confiando que o amigo era qualificado para auxiliá-la a
entender o que havia naquelas correspondências, ela entregou a ele
uma xícara de chá e saltitou pelo escritório até a escrivaninha.
Pegou o papel do banco que estava sobre uma pilha de cartas de
cobrança e entregou a Charles.
— O que é isso? — Ele disse, sacudindo o papel.
— Recebi algumas correspondências com esse teor, hoje. Na
verdade, essas cartas estavam direcionadas ao Sr. Johnessy, o
administrador, mas foram entregues aqui por engano. Abri-as sem
notar o destinatário e fiquei bastante confusa com o conteúdo.
Charles virou o papel, examinou o timbre, levou vários segundos
encarando-o com as duas sobrancelhas franzidas e a expressão
“homem de negócios” que ela adorava — e tinha um pouco de medo
também, era verdade.
— O banco pretende executar três hipotecas. Três. Todas em
bens do Conde de Salisbury, inclusive a propriedade de Hampshire.
— Acho que isso eu entendi. Significa que uma dívida não foi
paga, é isso?
— Três dívidas, Livvy. Seu pai deixou vocês em uma situação
financeira ruim?
Ela bebericou o chá, certa de que aquela era uma pergunta cuja
resposta não tinha.
— Eu não sei. Não acredito que meu pai tenha feito isso.
— Então foi o tal Sr. Johnessy. Onde encontro esse maldito?
— Ele é advogado, tem um escritório na Piccadilly e…
Charles se levantou. Virou o conteúdo da xícara em um só gole e
agarrou o papel com força, indicando que a conversa se encerrara.
Olivia quase pôde ver fumaça saindo por suas narinas, a fúria
pulsando em suas veias. Não podia permitir que o amigo saísse
daquela forma. Levantou-se, também, e o impediu de seguir em
frente segurando-o pelo braço.
— Fique — pediu. — Diga-me o que precisa de mim e, depois,
vá ter com o Sr. Johnessy. Você está irritado demais e acabará
fazendo algo de que se arrependerá. Não quero ter que pagar sua
fiança nem ler sobre você nas páginas policiais, Charlie.
Ele olhou para a mão dela segurando-o pelo antebraço e se
acalmou. Sentou-se outra vez e pressionou a ponte do nariz — um
gesto recorrente de quando estava aborrecido.
— Por que acha que preciso de algo de você?
— Por que mais me visitaria às dez da manhã em uma terça-
feira?
A provocação era legítima, porém, Charles a visitava com certa
frequência e quase sempre sem aviso. Ele simplesmente aparecia
na Casa Salisbury quando queria — e ela estava tão acostumada
àquelas aparições que sentia falta quando ele não ia. Por vezes
chegava durante o almoço ou depois das dez da noite. Olivia tinha
plena certeza de que Charles não tinha um pingo de respeito por
qualquer regra de decoro vigente na sociedade.
— Certo, você é inteligente demais para meu próprio bem.
Porém, não me impedirá de enfrentar esse futre chamado Johnessy.
Ele precisa dar explicações sobre essas hipotecas vencidas.
— Tudo bem, agradeço a sua ajuda. Confesso que não entendo
de finanças e esses números pouco representam para mim. Estou
preocupada.
Em um movimento impulsivo, Charles dobrou o corpo e estendeu
o braço em sua direção. Olivia se ajeitou na cadeira no instante em
que ele segurou sua mão. Um segundo depois, arrependeu-se do
que fez e retomou a postura.
— Não fique preocupada. Resolveremos isso, sim?
Ela assentiu.
— Então me diga, em que posso ajudá-lo?
Charles limpou a garganta com um pigarro e ela bebericou um
gole do chá enquanto aguardava o discurso que viria. A bebida já
estava fria.
— Estou para receber um potencial parceiro de negócios e o
homem é um tanto excêntrico. Ele exige que todos os seus
contratos sejam fechados com homens respeitáveis.
O riso que rompeu sua garganta foi impossível de controlar e
saiu junto ao chá que acabara de levar a boca. Olivia quase cuspiu
tudo sobre Charles e precisou de alguns segundos para retomar o
fôlego. Se havia um adjetivo que ela não era capaz de associar ao
homem à sua frente, esse seria “respeitável”. Poderoso? Sim, ele
era. Arrogante? Com certeza. Tinha um bom coração? Ah, ele tinha.
Indecente? O mais indecente dentre todos os libertinos daquela
cidade. Respeitável? Não. Ela o amava do fundo de seu coração,
mas não o considerava um homem de respeito.
— Alegra-me saber que eu a divirto — ele debochou. — Mas
meu problema é real e não estaria aqui me submetendo a esse
papel ridículo se não precisasse.
— Desculpe-me, não quero fazer troça de seu problema. O que
precisa de mim, Charlie? — A voz dela saiu esganiçada porque
Olivia ainda lutava contra a vontade de rir. — Quer que eu fale bem
de você para esse parceiro de negócios?
— Deus, não! Quero que me diga como fingir que estou
regenerado para enganá-lo por alguns dias. Vocês, mulheres, estão
sempre analisando os homens para escolherem bons partidos. O
que faria com que me escolhessem?
— Dinheiro, título, uma posição na Câmara dos Lordes, todos os
dentes na boca — ela disparou sem nem refletir. Era verdade que
fazia algum tempo em que todos os seus momentos livres eram
ocupados na tentativa de encontrar um marido. Antes do
falecimento do pai, Olivia era bem vista por todos os cavalheiros
solteiros. Teve um relacionamento breve com Nicholas Eckley,
acreditou que se casaria com ele, mas descobriu que confundia os
sentimentos de amizade com algo mais.
E então veio o luto, o afastamento dos eventos, a clausura, o
preto e, ao que tudo indicava, a falência. Se aquelas cartas
representassem o que ela acreditava que representavam, ela
precisaria de um bom casamento para tirar os Trentham da miséria.
— Tenho dinheiro e dentes, mas não me importo com a Câmara
dos Lordes e sou o quinto na linha de sucessão do marquesado —
ele bebeu um gole do chá e tentou esconder uma careta. — Não há
nada mais?
— Você perguntou o que faz uma mulher escolher um marido,
mas a pergunta está incorreta. Quer saber o que faz com que
homens considerem os outros respeitáveis, pois duvido que seu
parceiro pense como uma mulher.
Charles apoiou a xícara na mesa de centro e cruzou os braços à
frente do peito.
— Estou ouvindo.
— Não acredito que precise de mim para uma opinião masculina
— ela deu outra risada. — Bem, homens costumam ser respeitados
por seus títulos, por sua situação financeira e por constituírem uma
família. Creio que nessa ordem.
— Que Deus me livre de casamento — Charles rosnou. — Sou
incapaz de dedicar-me a uma esposa e filhos, não sou como meus
irmãos. Não tenho título, nunca terei, e sou rico como Creso. Mas,
um maldito casamento?
— Blasfemar não vai ajudar sua causa — ela o observou.
Charles já tinha cruzado e descruzado as pernas diversas vezes e
não conseguia parar de remexer-se na poltrona. Ou estava sentado
sobre um ninho de percevejos, ou muito nervoso. — Você pode
mentir, já que está disposto a enganar o pobre homem.
— Mentir sobre o quê?
— Você pode fingir que se casará com uma dama acima de
qualquer suspeita e que pertença a uma família tradicional.
Casamentos elevam reputações desde que foram inventados.
— E onde encontrarei uma dama de boa família que concorde
em mentir para me ajudar? Você tem alguma sugestão?
Ela dobrou o corpo para frente como se fosse contar um
segredo. Olivia não tinha planejado nada daquilo antes de ouvir o
pedido desesperado de Charles — ela não se recordava de tê-lo
visto desesperado antes, era verdade —, mas a oportunidade bateu
à sua porta e era tolice não aproveitá-la. Se o amigo precisava
convencer um negociante qualquer sobre sua respeitabilidade, ela
poderia tomar parte do jogo e fazer o que ele sabia melhor:
negociar.
— Já encontrou.
Thanet, julho de 1889
Rhode Port

Aquele tinha sido um dia muito ruim. Seu cavalo teve que ser
sacrificado depois de uma queda causada por sua
irresponsabilidade e não havia nenhuma mulher ou garrafa de
uísque na qual ele podia afogar suas mágoas. Anthony, o mais novo
Marquês de Granville, dera ordens estritas para que todas as
bebidas da casa fossem trancadas em segurança — o que era um
absurdo, já que Anthony adorava beber. Por que ele não podia?
O sol começava a se pôr quando Charles se sentou à beira da
praia. Aquela era a enseada particular dos McFadden, seus vizinhos
de propriedade, porém, era comum que os Eckleys a invadissem.
Claro que os McFadden sabiam e fingiam se importar, mas não se
importavam tanto assim. O mar estava agitado, ventava muito e a
areia estava úmida a ponto de molhar seu traseiro depois de vinte
minutos. Apesar disso, o ruído intermitente da arrebentação o fez
sentir paz.
Ainda faltavam algumas horas para que a taberna em Thanet
abrisse e ele pudesse ir até lá beber e seduzir alguma das
prostitutas locais. Não que elas precisassem ser seduzidas, o que
lhes importava era uma boa quantia de dinheiro enfiada em seus
corpetes. Charles não ligava — ele adorava mulheres, adorava estar
dentro delas e adorava ser mimado por elas.
Seus pensamentos estavam naquele tom de impurezas quando
uma presença conhecida se fez sentir. O vento carregou o cheiro de
lavanda de Olivia até suas narinas e ele praguejou baixinho quando
ela se sentou ao seu lado. Ajeitando os vestidos volumosos e
dobrando as pernas, a menina ficou em silêncio por pelo menos dez
minutos antes de começar a tagarelar.
— Fiz para você — ela estendeu um objeto à sua frente. Charles
relutou em virar-se para olhá-la, pois não sabia se a umidade em
seu rosto era decorrente da maresia ou de uma lágrima. — Vamos,
pegue. Você vai gostar.
Ele virou o pescoço e ela estava ali. Os cabelos açoitados pela
ventania, porém ainda restritos a um penteado jovial. Grandes olhos
castanhos emoldurados por cílios longos e…
Olivia tinha quinze anos. Charles a via como uma menina
desengonçada desde que ela usava vestidos curtos, mas aquela
não era mais a idade de uma garotinha. Ainda assim, ela era Olivia.
Sua amiga — e nas mãos dela havia um objeto estranho. Parecia
um pé de coelho, mas por que ela lhe daria um amuleto da sorte?
— O que é isso? — Ele pegou o objeto na mão. Tinha uma tira
de couro que o transformava em uma espécie de pingente, mas era
grande demais para ser usado em um colar.
— Pedi que fizessem para você com pelos da crina de
Selvagem.
Charles franziu a testa enquanto tentava examinar o objeto na
pouca luz. O sol desaparecia rápido no horizonte e logo eles
estariam na completa escuridão. Ela não deveria estar ali com ele.
— Isso é um pouco bizarro.
— Há alguns anos, Annabelle achou um cão na rua e o levou
para casa. Nós cuidamos do bichinho, mas ele estava muito
debilitado e morreu algumas semanas depois. Ela ficou inconsolável
e papai fez um parecido para ela.
— Ele arrancou pelo de um cachorro morto e fez um pingente?
— Charles provocou, levando a mão à boca para fingir estar
horrorizado.
— Você é impossível — ela se levantou e bateu a areia da saia.
— Consegue transformar todo gesto em uma piada e ridicularizar
qualquer coisa que represente sentimentos.
Olivia saiu pisando fundo na areia. Burro. Ele fazia aquilo com
frequência — assustava-a ou ofendia-a sem a intenção de ofender.
Em uma coisa ela tinha razão: ele não sabia lidar com sentimentos.
Sempre que as coisas conduziam a um momento emotivo em que
ele precisaria abrir seu coração, Charles fazia alguma coisa
desagradável e afastava todo mundo.
Não podia deixar que ela saísse daquela forma. Levantou-se e,
em três passos, estava ao lado dela. Segurou-a pela mão e a fez se
virar para si. Balançou o pingente macabro com a crina de
Selvagem na frente dela e, depois de se certificar que ela o vira,
colocou a coisa no bolso.
— Desculpe-me. Não quis desfazer de seu gesto.
— Pode ajudar a superar a perda se você guarda uma
lembrança de quem se foi. Sei que está sofrendo, então…
— Eu não estou sofrendo, de onde tirou isso?
Olivia suspirou e, mordendo o lábio inferior, levou a mão
enluvada até ele. Charles pensou em sair correndo ou enrijecer o
corpo até se transformar em pedra. O que ela estava fazendo, a
mulher iria tocá-lo? Antes que sua mente formulasse uma reação,
os dedos delicados deslizaram por sua bochecha e o fizeram sentir
uma centena de arrepios diferentes.
— Dessa lágrima seca aqui. Do fato de você não ter aparecido
na casa desde que Selvagem foi sacrificado. Da experiência. Não é
fácil perder o melhor amigo.
— Selvagem não era meu melhor amigo.
— Ele era. — A diabinha sorriu. — Você pode fingir que é uma
rocha, Charles Eckley, mas não me engana. Por dentro dessa casca
dura há um coração de ouro e um homem sensível.
Cristo, de onde ela tirava aquelas coisas? Desde quando havia
alguma sensibilidade dentro dele e, pior ainda, como ela sequer
poderia imaginar isso? Olivia era jovem, sonhadora e acreditava que
todas as pessoas eram boas. Talvez algum dia ela se desapontasse
com ele a ponto de compreender o quanto sombria sua alma
poderia ser.
Não seria aquele dia. Respirando fundo, Charles ofereceu o
braço para que pudessem voltar para a mansão antes que
começassem a procurá-la.
Capítulo segundo
Londres, 13 de abril de 1898

Brook Street
M ?
Charles já se arrependera de procurar sua amiga para
aconselhamento. Era uma ideia ruim desde sua concepção — Olivia
era uma jovem que vivia em um mundo de fantasia da aristocracia
que era incompatível com seus problemas do mundo real. Por mais
ridículo que seu plano fosse, ele tinha um objetivo concreto.
Mas ele sempre corria para ela em qualquer situação. Olivia era
seu destino quando estava satisfeito com o trabalho, quando estava
irritado com o trabalho, quando ganhava ou perdia nas mesas de
jogos, quando terminava um dia exaustivo nos canteiros de obras e
sua casa parecia vazia demais para recebê-lo. Ele gravitava ao seu
redor e o fazia sem perceber.
Tocou o bolso onde estava o amuleto de sorte que ela lhe
presenteara anos atrás e suspirou. Foi quando ela dissera que
guardar consigo uma parte de quem partira ajudava a superar o luto.
Não sabia se ela estava certa, mas mantinha aquele pedaço de
couro com pelos de animal em sua posse desde então. Não era por
Selvagem. Ele amava o cavalo, mas a presença que o amuleto
representava era o cuidado de Olivia. Ele não a perdera, porque
nunca a tivera, mas vivia de luto pelo amor que lhe era negado.
Quando mais jovens, ele a queria tanto que cogitou casar-se
com ela — mas seus planos se frustraram no instante em que
Charles a vira beijar seu irmão Nicholas no jardim dos McFadden.
Ali ele teve certeza de que não merecia Olivia — Nick era um
homem muito melhor do que ele —, mas o envolvimento não passou
de um cortejo desajeitado. Depois que se afastaram, veio o
falecimento do Conde de Salisbury e muito tempo já tinha passado.
Era tarde demais. Ele já estava contaminado pela sujeira do
submundo e ela era uma joia preciosa que não deveria se envolver
com alguém que só pensava em ficar cada vez mais rico. Olivia
merecia um homem gentil, um lorde com título e uma família cuja
ascendência pudesse ser rastreada até a Guerra das Flores.
Precisava parar de divagar e voltar ao tema central da conversa:
ela estava fora de si.
— Você está sóbria? — perguntou. Olivia franziu a testa e o
encarou por longos segundos.
— Claro que estou! Charles! Eu sou uma dama, não me dou a
esse tipo de imoralidade.
— Só estando fora de seu juízo perfeito para sequer considerar
uma proposta dessas — ele reprimiu a vontade de passar as mãos
pelos cabelos e arrancar alguns tufos. — Não fingirei um noivado e
não farei isso com você.
O olhar dela despencou para o tapete e permaneceu ali
enquanto os dedos pequenos e com unhas muito bem cortadas
batucavam de leve sobre os joelhos. Olivia torceu os lábios para a
direita, depois para a esquerda e ergueu os olhos para encontrar os
dele. Ela estava aborrecida.
— Sou tão indesejável assim que nem para uma trapaça eu
sirvo?
Sim, ela estava fora de si. Tinha que estar, para falar uma
bobagem daquelas. Claro que Olivia não entenderia seu problema
em aceitar aquela proposta absurda. Era difícil manter uma postura
indiferente diante dela e ele se desafiava toda vez ao insistir em vê-
la com frequência. Se fosse obrigado a simular afeto, acabaria
sendo descoberto por qualquer tolo que lhes prestasse atenção —
porque Charles não precisaria fingir. Por anos ele desejou beijá-la,
possuí-la, tomá-la para si e não haveria qualquer necessidade de
fingimento.
— Livvy, digamos que a sua ideia seja boa: casamento dignifica
o homem. Não acredito nisso, mas a sociedade parece crer que sim.
Se fizermos isso, você terminará arruinada no final. Não posso
arriscar prejudicar sua reputação a troco da minha.
— Mas não é essa a minha proposta — ela sorriu erguendo um
lado dos lábios. — Não precisaríamos fingir um noivado, você pode
apenas me cortejar. Você ainda é jovem, o tal comerciante não
espera que homens de vinte e sete anos já estejam casados,
espera? Mas, se estiver cortejando uma dama de comportamento
irrepreensível e boa posição social, isso deporia a seu favor. E, no
final, eu também preciso de ajuda.
Ela era esperta demais. Por que raios ele ainda estava ouvindo
aquela proposta irracional? Ou, talvez, fosse racional demais e não
o deixasse na posição de recusar.
— Que tipo de ajuda?
— Simples. Você finge me cortejar, passamos algum tempo
juntos para que todos acreditem e o ajudo a apresentar-se
respeitável para a sociedade que despreza. Você me ajuda a
resolver os problemas financeiros da família, seja eles quais forem,
e a me tornar desejável para outros homens. Assim eu consigo um
marido com título antes do final da temporada.
Ele olhou para a xícara em sua mão e de volta para ela, cujos
dedos se retorciam sobre o colo enquanto apertavam o tecido da
saia do vestido.
— Sem condições.
Charles levantou-se. Ela fez o mesmo.
— Por favor, não saia assim. Pense. Preciso de você, Charles.
Lá estava Olivia Trentham segurando-o mais uma vez. Tocando-
o com aquela mão feminina perfeita sem luvas ou barreiras que o
impedissem de sentir o calor de sua pele. Ela nem mesmo estava
usando sapatos! Os olhos, castanhos e expressivos, o fitavam com
angústia e ele só conseguia pensar em jogá-la sobre uma superfície
e possuí-la até que suas forças se exaurissem. Cristo, como ele
podia negar qualquer coisa àquela mulher? Se ela o pedisse para
saltar no Tâmisa, ele o faria imediatamente.
— O que devo fazer?
Ela sorriu.
— Tudo que você detesta. Frequentaremos alguns bailes e
jantares, mostraremos a todos o quanto você se regenerou e,
quando o seu homem chegar, ele cairá de amores por você. Em
contrapartida, você esfolará o Sr. Jhonessy, me ajudará a salvar as
finanças da família e a conquistar pretendentes.
— Você tem pretendentes?
O simples pensamento o deixou nauseado. Claro que ela tinha
pretendentes. O que ele esperava, que Olivia fosse morrer
solteirona? Bem, talvez sim. Depois que ela terminou o
compromisso com Nicholas, ele a imaginou como uma santa
imaculada sobre um pedestal e dentro de uma redoma de vidro.
Intocada, pura e disponível para veneração — somente.
— Eu tinha. Alguns se casaram durante meu período de luto e os
que continuam solteiros estão cortejando outras damas. A maioria
deles. Há outros que me interessam, no entanto. E eu preciso me
casar com um nobre, Charles. Sabe disso, estava no testamento de
papai.
Olivia abriu seu caderninho, o maldito caderninho de couro que
ele desejava tanto conhecer o conteúdo, e passou os olhos por
algumas páginas. Charles odiava aquele testamento. Foi a única
coisa desprezível que Salisbury fizera enquanto vivo — condicionar
a herança de suas três filhas a casamentos com homens da
aristocracia. Não, não bastava que fossem aristocratas, os maridos
tinham que ter títulos.
Títulos! Se havia algo que ele desprezava mais do que títulos,
eram pais decidindo com quem suas filhas deveriam se casar. Por
que Salisbury, um homem que ele até considerava progressista,
obrigava suas filhas a arrumarem maridos titulados, ele não sabia.
Só alimentava a sua certeza de que jamais teria Olivia para si.
— Você tem uma lista de pretendentes, então.
— Potenciais pretendentes. Alguns favoritos, como o Duque de
Greystone.
Charles começou a tossir. Sua garganta secou, fechou e ardeu
como se ele estivesse no árido de um deserto africano — aqueles
que ele conheceu quando era um garotinho e de cujo clima rigoroso
pouco recordava. Greystone? Por que raios aquela mulher insistia
em se envolver com todos os seus parentes e amigos?
Não que Greystone fosse um grande amigo, mas era um dos
poucos nobres da alta aristocracia que ele tolerava. Charles não
estava nem pronto, nem desejoso de ajudá-la a seduzir o maldito.
Ele nem sequer podia imaginá-la como uma sedutora sem que isso
o partisse em mil pedaços.
— O duque não parece tentado a se casar.
— Ah, ele é esquivo. Porém, é um duque e precisa de herdeiros.
Como não há um irmão que possa manter o ducado na família, ele
certamente buscará uma esposa em breve.
Ele bufou. Claro que era um péssimo negócio aceitar aquela
proposta ridícula, mas a ideia era ruim desde a gênese — era nesse
momento que ele lamentaria ter sido fraco e corrido para ela, como
sempre fazia. Teria que ajudá-la com finanças e pretendentes em
troca de fingirem um processo de sedução. Sim, era um péssimo
negócio. Charles não se considerava um homem forte o suficiente
para resistir aos desejos mundanos e havia poucas coisas que ele
desejava mais do que seduzir a mulher à sua frente. O que ele faria
se pudesse realmente seduzi-la? Ela terminaria arruinada e não
haveria perdão para seus atos.
Era indigno também que se aproveitasse do desespero que ela
aparentava para se beneficiar. Como um bom amigo e um homem
digno, Charles deveria apenas ajudá-la sem qualquer
contraprestação. Havia um problema: ele não era digno. Gupta tinha
razão, Charles não passava de um canalha entregue à própria
devassidão.
— É um bom acordo — ele estendeu a mão para ela. — E você
deve ouvir todas as minhas orientações durante esse período.
Inclusive quanto aos possíveis candidatos a marido.
— Estamos combinados.
Com um aperto de mão vacilante, Olivia Trentham selou um
pacto com o diabo — mas Charles sabia que era a sua alma que iria
para o inferno.
Londres, 14 de abril de 1898
Brook Street

Olivia passou a noite remoendo suas decisões apressadas.


Costumava agir de forma coordenada e organizada, sempre
seguindo um plano, e fizera tudo ao contrário desde que descobriu
os problemas financeiros e Charles a procurou com um pedido de
ajuda inusitado. Arrependeu-se de oferecer uma proposta
indecorosa ao maior libertino em atividade de Londres. Arrependeu-
se de ter-se mostrado tão favorável a uma encenação fraudulenta
para enganar uma pessoa que nem conhecia. Repreendeu-se por
animar-se pela oportunidade de ter um pretendente de mentira e
poder exibi-lo nos eventos.
E nunca teve tanta certeza de nada em sua vida. Faria qualquer
coisa para cuidar de sua família e brincar de cortejo com seu melhor
amigo era o mínimo de esforço. Não faria mal a ninguém, não
causaria a ruína de ninguém e não tiraria o dinheiro de ninguém. A
única pessoa que poderia sofrer com sua mentira seria ela própria
— e Olivia acreditava estar blindada contra qualquer charme que
Charles Eckley pudesse exercer sobre as outras pessoas.
Naquela manhã, acordou disposta a revelar a verdade aos
irmãos. Esperou que todos se reunissem na mesa para o desjejum e
contou a eles antes que descobrissem pelos jornais.
— Tenho duas coisas importantes a dizer. Uma: estamos
possivelmente com dívidas vultosas e não podemos esbanjar nada
até termos certeza do que vai acontecer. Duas: Charles Eckley está
me cortejando oficialmente.
A reação das irmãs foi um pouco diferente do que esperava.
Annabelle deixou cair o pãozinho em que passava manteiga e
Margaret engasgou com o chá. Daniel apenas franziu as
sobrancelhas e esperou que ela prosseguisse com as explicações.
— Quem a está cortejando? — Foi Annabelle quem falou
primeiro.
— Charles Eckley.
Mais engasgos e objetos caindo completaram a entrega
desastrosa da informação. Os irmãos não acreditariam naquela
história sem algum comprometimento de sua parte.
— Mentira! — Margaret gritou. — Quando foi que isso
aconteceu?
— É por isso que ele vem sempre aqui? Oh, vocês andam se
encontrando sozinhos em horários bastante impróprios! Você está
arruinada, Livvy?
— Calma, Belle. — Ela precisou erguer uma mão para conter a
enxurrada de palavras da irmã. — Não estou arruinada, se
estivesse, ele não estaria me cortejando e sim conseguindo uma
licença de casamento. Também não aconteceu nada impróprio entre
nós. Charles é um grande amigo e nós decidimos que talvez o
casamento seja um bom negócio para ambos.
— Um bom negócio? — Daniel questionou. — Pensei que vocês
só se casariam por amor e essas coisas de meninas.
— O amor pode ser superestimado — ela mentiu. Olivia
acreditava no amor e que nunca seria feliz em um casamento com
um homem que não pudesse amar. Aquele foi o motivo de ter
colocado fim ao cortejo de Nicholas anos atrás. Ainda assim,
Charles não seria seu marido, então a mentira era inofensiva. —
Vocês não estão mesmo preocupados com o problema financeiro?
Pela forma inconclusiva com a qual os irmãos a olharam, ela
teve certeza de que eles não entendiam a possibilidade de ficar sem
dinheiro. Talvez nem ela mesma entendesse, porém, não queria
arriscar perder tudo. Até que lhe garantissem que tudo estava
resolvido com o patrimônio da família e que a palavra “executar” não
significava que ficariam sem nada, ela se preocuparia com o futuro.
— Oras, se você se casará com um homem rico, não teremos
que temer problema algum. — Annabelle moveu os ombros.
— Ele não é rico, ele é muito rico! — A voz de Margaret saiu alta
demais. — Então vão se casar por dinheiro?
— A maioria dos casamentos da sociedade são por dinheiro,
Maggie — Annabelle explicou. — E não é como se Olivia estivesse
fazendo um negócio ruim… Charles é o sonho de qualquer mulher
que tenha menos de sessenta anos.
— Annabelle! — Olivia bateu com os talheres na mesa. — Por
Cristo! Isso é forma de se referir a nosso amigo?
— Não estou mentindo. — A irmã moveu os ombros. — Quem
não suspirou por ele que atire pedras, mas aposto que há vidraças
demais pelo caminho.
Céus, ela precisava encerrar aquela conversa. Não prestava
atenção nos atributos físicos de Charles Eckley, agia sempre como
se ele fosse uma garota com a voz grossa demais. Ou os braços
peludos demais. Houve uma vez em que ela o viu sem camisa e
isso tornou muito difícil continuar fingindo que ele não era um
homem másculo e viril, mas Olivia logo se convenceu de que aquele
espécime estava fora de seu alcance. Ela amava a amizade deles,
não faria nada que pudesse estragá-la.
— Podemos parar de usar adjetivos exagerados por agora?
Espero que aprovem minha decisão e que compreendam que ela foi
tomada pensando no bem-estar da família. De todos vocês.
As irmãs deram as mãos a ela e Daniel se levantou para abraçá-
la. Talvez devesse contar a parte em que o cortejo não conduziria a
um casamento, mas foi egoísta. Se eles soubessem que estava
disposta a mentir e fazer outras coisas espúrias sem pensar nas
consequências, perderia o respeito que tinha dos irmãos. Sua
consciência estava tranquila com seus pecados, mas não suportaria
ser rejeitada por aqueles que tanto amava.
Thanet, julho de 1891
Rhode Port

Aquele era o verão mais quente que Olivia já experimentara. Com


certeza, o verão mais quente de toda a Inglaterra. As temperaturas
estavam tão altas que os passarinhos não saíam das fontes do
imenso jardim da propriedade dos Eckleys. Alguns pousavam em
sua janela com os biquinhos abertos. Os cavalos mal conseguiam
trotar, quanto mais galopar.
Ela nunca se importou com as vestimentas femininas até aquele
verão de 1891. O calor que a consumia a fazia desejar arrancar as
anáguas, as calçolas e usar somente vestidos sem manga — o que
seria um escândalo no estilo pacote completo. Uma jovem de
dezessete anos sem calçolas? Ela iria direto para as principais
páginas de fofocas, se não para o inferno.
Era por volta das duas da tarde quando Olivia desistiu de se
refrescar com um leque e saiu na direção da brisa marinha. Não
esperava, no entanto, que o sol estivesse tão quente a ponto de
fazê-la não conseguir caminhar até a enseada. Para evitar uma
insolação, ela se refugiou em uma construção próxima aos
estábulos que já fora usada muitas vezes como esconderijo em
brincadeiras. Foi quando uma voz masculina atraiu sua atenção.
Do outro lado da construção havia um homem domando um
cavalo em uma área cercada que ficava em uma espécie de quintal.
Não era um empregado da propriedade nem o cavalariço que ela
conhecia. Olivia deu alguns passos com uma das mãos à frente do
rosto para evitar cegar-se pelo sol e quase caiu para trás quando o
reconheceu. O domador era Charles Eckley e ele não estava
usando nada além de suas calças de montaria.
Aquilo era muito indecente — e incrivelmente interessante.
Homem e animal se moviam em sintonia como se estivessem
bailando. A ausência de roupas deu a Charles um aspecto
selvagem. Ela nunca vira um homem sem camisa. Será que todos
eram como ele? Todos tinham músculos proeminentes nas costas,
braços fortes e peludos, barrigas firmes e aquele tórax coberto de
pelos que desaparecia convenientemente por dentro das calças?
Dava para entender por que mulheres não eram autorizadas a
ver nada daquilo. Era bastante difícil resistir à tentação de tocá-lo.
— Olivia Trentham. Poderia parar de me espiar e trazer-me um
pouco de água fresca?
A voz grave de Charles a fez sobressaltar-se. Maldição! Ela
detestava ser flagrada fazendo coisas erradas — preferia fazê-las
sem que ninguém soubesse, como todas as damas que conhecia.
— Não estou espiando. Ia refrescar-me na praia.
— Entendo. Mas, já que está aqui, traga-me água. Estou
morrendo de sede.
Ela olhou ao redor e encontrou um jarro com um copo, ambos
apoiados sobre um toco de madeira onde, antes, fora uma árvore.
Tirou rapidamente as luvas de pelica, encheu um copo com água e
levou até Charles. Ele amarrou o cavalo — um garanhão de
pelagem preta e olhar ameaçador — na cerca e se aproximou com
um sorriso sem-vergonha. Olivia detestava aquele sorriso, fazia com
que ela tivesse vontade de socá-lo.
Bem, mulheres não saíam por aí socando pessoas. Ela entregou
a ele o copo de água e Charles o despejou sobre a cabeça. Olivia
prendeu a respiração. O que ele estava fazendo? A água escorreu
dos cabelos escuros pela face suada até o peito desnudo e ela não
conseguia parar de olhar o trajeto que uma gota saliente fazia por
aquela pele lustrada e quente. Deveria estar quente, não deveria?
— Obrigado.
— Pensei que estivesse com sede.
— Faz muito calor, um banho é mais refrescante do que um gole
de água. O que faz por aqui?
— Já disse, ia até a praia.
— Não está vestindo roupa de banho.
— Não ia tomar banho, só queria refrescar-me um pouco. Não
aguento mais ficar em casa com as crianças e aquela tia que não
para de perguntar sobre meus pretendentes.
Charles riu e pulou a cerca. Com um movimento ágil ele transpôs
o obstáculo como se ele nem existisse. Claro, ele era alto. Muito
alto. Estava mais alto que o irmão Robert e isso significava muita
coisa. Será que chegaria aos dois metros de altura? Olivia pegou-se
mais uma vez olhando diretamente para ele, para aquela estrutura
massiva de ossos e músculos que veio na sua direção e pegou uma
toalha para se secar.
Sim, o calor a estava deixando um pouco desorientada. Toda
aquela fascinação por Charles, seu amigo irritante que servia
apenas para provocá-la e fazê-la sujar os vestidos em passeios
nada ortodoxos pela propriedade, não era normal. Porque não era
fascinação. Era efeito da insolação e da visão de um homem sem
roupas pela primeira vez. Claro que era.
— E como vão seus pretendentes?
Olivia bufou. Ele conseguia irritá-la a ponto de trazê-la para a
realidade.
— Não seja tolo! Eu debutarei somente na próxima temporada.
Como posso ter pretendentes?
— Você deve ter pelo menos uma lista dos solteiros mais
cobiçados. — Charles cruzou os braços à sua frente. A toalha
estava pendurada no ombro dele e o movimento fez com que os
músculos se ajuntassem e contraíssem de uma forma que ela ainda
não tinha visto. Os livros de anatomia que o pai tinha na biblioteca
não apresentavam imagens tão ilustrativas. — Ou me diga que você
não tem alguns nomes rabiscados naquele seu caderninho de capa
de couro?
— Não é da forma como você pensa. — Ela desviou o olhar.
Estava vendo mais do que deveria. — Nós, mulheres, somos
colocadas no mercado assim que debutamos. Preciso pelo menos
saber quem são os potenciais compradores.
— Parece horrível. — Charles pegou o jarro de água, serviu
outro copo e bebeu. Ainda bem que não jogou sobre a cabeça,
daquela vez. — Mercado, compradores. Você faz parecer que é um
leilão de matrizes.
— O que é um leilão de matrizes?
Ele riu. Olivia não se sentia constrangida ao fazer perguntas
tolas para ele, porque, apesar das risadas e provocações, Charles
não agia como se a julgasse.
— É uma venda. Quando precisamos de uma égua, ou uma
vaca, ou ovelha para reproduzir na fazenda, nós nos reunimos e…
— Que horror! — Olivia interrompeu-o estendendo uma mão. Ser
comparada a uma égua a nauseou. — Bem, não sei se você está
errado. No final, o que os homens querem de nós é subserviência,
talento para gerir a casa e filhos.
Charles passou por ela e pegou sua camisa para vestir. A
conversa pareceu deixá-lo incomodado, como se ele não fizesse
ideia alguma de como funcionava a cabeça masculina — mesmo
sendo um homem. Aquele era um problema dos Eckleys. Eles
viviam tão dissociados das regras sociais que quase nunca
entendiam como as coisas eram.
— Por isso não pretendo me casar. — Ele se virou de novo para
ela. Abotoava os últimos botões da camisa. Que alívio! Assim ela
não precisava continuar fingindo que não era atraída por aquela
explosão de masculinidade. — Jamais trataria uma mulher como
uma matriz.
— Ah, é? E como trataria, Sr. Eckley? Quais seriam suas
expectativas para uma esposa?
Ele suspirou e sorriu mais uma vez. Segurou-a pela cabeça, uma
mão de cada lado, e beijou o topo de seus cabelos. Suas mãos
estavam úmidas e fedidas, mas tão quentes que quase a fizeram
entrar em combustão.
— Um dia conversamos sobre isso, Livvy. Agora preciso cuidar
de alguns assuntos masculinos.
Capítulo terceiro
Londres, 15 de abril de 1898

Grosvenor Square
—V ?
Nicholas atirou o jornal do dia sobre o irmão, que estava sentado
à mesa da sala de refeições. Era um lindo dia de primavera e o
cheiro insuportável de flores vindo dos jardins vizinhos irritava as
narinas de Charles. Com calma, pegou o exemplar do Morning
Chronicle e colocou-o à sua frente.
— Bom dia, Nick.
— Não seja cínico comigo, Charles. Do que se trata isso?
O irmão abriu o jornal e enfiou o dedo sobre uma das notícias da
coluna da sociedade. A notícia era uma fofoca fabricada sobre
alguém que afirmava que Charles Eckley estivera muito interessado
em Olivia Trentham em uma festa a qual ele não compareceu. A
notícia, em tom de revelação, dava detalhes do quanto ele se
deslumbrara com a dama e que um cortejo estava em andamento.
Ah, como ele odiava aquela bobagem e tudo que representava a
aristocracia e sua podridão! Preferia não ter que lidar com nada
daquilo, mas Gupta o deixara sem opções.
— Eu e Olivia estamos nos entendendo.
— Convenientemente depois que você recebeu uma carta que o
colocou em uma posição bastante difícil perante um futuro parceiro
comercial?
Charles afastou o jornal e serviu-se de café.
— Você é inteligente demais e já entendeu o que está havendo.
Saiba que a ideia foi dela.
— Olivia teve a ideia de mentir sobre o envolvimento de vocês
para enganar Bharat Gupta e a sociedade londrina como efeito
colateral?
Faltava-lhe paciência para um moralista na família.
— Nick, você sabia que eles estão com dívidas?
A pergunta pegou o irmão de surpresa. Nicholas sentou-se no
lado oposto da mesa e serviu-se do desjejum enquanto mantinha
uma expressão de dúvida e confusão.
— Muitas dívidas?
— Ainda não sei, porém, o Banco de Londres está executando
três hipotecas.
— Três? — O irmão parecia não acreditar naquele absurdo.
— Hoje vou até o administrador dos bens e pretendo encurralá-
lo.
Charles deixou de fora que pretendia surrar o homem até que
seu rosto estivesse tão distorcido que ninguém conseguiria
reconhecê-lo. Nicholas levou uma garfada de comida à boca
enquanto pensava sobre a situação. Desde que parara de cortejar
Olivia, o relacionamento dos dois esfriou a ponto de quase não se
verem. O irmão passava todo o tempo em Oxford e Charles nunca
descobriu se ele ainda sentia algo pela amiga.
De toda forma, eles eram os Eckleys mais próximos dos
Trentham e mantiveram contato com a família mesmo depois do
falecimento do conde. Por isso sentiam-se responsáveis por eles de
alguma forma.
— Por que você aceitou de bom grado que ela coloque sua
reputação em risco? Ela pode acabar arruinada, Charles!
— Sei disso, mas essa é a forma que encontrei para cuidar
deles. — Ele bebeu o restante do café e se levantou. — Se eu
estiver envolvido com ela, poderei exigir que o tal Sr. Jhonessy
transfira para mim a administração dos bens do condado.
— Ainda assim, é um plano ruim.
— Concordo, e ainda assim foi ideia dela.
Nicholas bufou, levantou-se e intendeu sair da sala.
— Pretende revelar a verdade para mais alguém?
— Não, não quero que ninguém saiba. Preciso que todos
acreditem que estou regenerado ou o próprio Gupta não acreditará.
Conto com sua discrição.
O irmão não estava satisfeito com suas explicações, o que não o
importava muito. Charles tinha certeza de que suas decisões nos
dois últimos dias foram tomadas no ímpeto do desespero e que seu
pênis guiara boa parte delas, mas ele carecia de filtros morais que o
impedissem de fazer a coisa errada se fosse beneficiar-se dela. E,
no grau máximo de sua confiança, acreditava que não arruinaria
Olivia e que seria capaz de conduzir a farsa profissionalmente.
Todos ganhariam, então não havia motivos para se repreender.
Havia dezenas de coisas que clamavam por sua atenção, mas
Charles tinha que dedicar-se integralmente ao seu novo
personagem. Vestiu-se como um aristocrata, pegou a carruagem e
seguiu para a Piccadilly, onde encontraria Malcom Jhonessy. O
escritório do homem era bem localizado e mobiliado, com um
secretário bem-vestido e quase escondido atrás de um monte de
papéis. Aquele não era o local de trabalho de um perdedor, o que o
fez confirmar que estava lidando com um criminoso.
— Sr. Charles Eckley para o Sr. Jhonessy. — Ele entregou um
cartão para o homem de óculos e cabelos ondulados que se
levantou ao vê-lo entrar.
— O senhor tem horário marcado?
— Não, mas o Sr. Jhonessy vai me receber ou retornarei aqui
com a polícia de Londres.
O secretário retirou um lenço do bolso interno de seu paletó e
limpou o suor da testa. Virou e revirou o cartão de visitas de Charles
antes de cruzar uma porta. Um minuto depois, retornou para indicá-
lo que caminho seguir.
Malcom Jhonessy era mais velho do que ele esperava. Com os
cabelos grisalhos e óculos pendurados na ponta do nariz,
datilografava alguma coisa em uma máquina de escrever. Charles
se sentou e aguardou até que o homem terminasse o documento
para dar-lhe a atenção que precisava.
— O senhor deve saber que não se ameaça um advogado, Sr.
Eckley.
Charles bufou. Ele teria um pouco de dificuldade em manter a
compostura diante de uma figura como aquela.
— Não fiz ameaça alguma. Estou aqui em nome de Lady Olivia
Trentham.
A cor desapareceu da face rosada do velho advogado. Agora
estamos entendidos, calhorda.
— Creio que Lady Olivia possa falar por si. — O Sr. Jhonessy
ajeitou os óculos. — De que ela precisa, fundos?
Paciência não era uma virtude que Charles cultivava. Não foi
sendo tolerante que ergueu seu império e ninguém — nenhuma
pessoa — o conhecia por sua mansidão. Claro que o advogado à
sua frente não fazia ideia de quem ele era ou não o provocaria
daquela forma. Com um puxão, ele arrancou do bolso a carta
enviada pelo banco para os Trentham e jogou-a sobre a mesa. Pela
expressão do advogado, ele não conhecia o documento.
Charles sabia que aquele tipo de cobrança deveria ir para o
administrador — e que a ele estava endereçada —, o que o fez
imediatamente desconfiar de que alguém estava tentando alertar a
família Trentham sobre algo. Não expressou sua teoria para Olivia,
porque não queria fazê-la sofrer com preocupações infundadas,
porém, ele tinha quase certeza de que estava certo.
— Ela precisa… não, eu preciso compreender por que o
condado de Salisbury está com três hipotecas em atraso. Hipotecas
estas que foram feitas depois do falecimento do conde, quando os
bens estavam sob sua administração.
O velho engasgou. Pegou a carta, correu os olhos por ela,
deixou-a cair sobre a mesa, ajeitou os óculos, tirou-os, colocou-os
outra vez. Charles manteve-se com os braços cruzados no peito
enquanto esperava uma resposta.
— Não lhe devo explicações — disse, por fim. — Apesar de falar
em nome de Lady Olivia…
Ele precisou de dois passos e um movimento para agarrar o Sr.
Jhonessy pelo colarinho e erguê-lo da cadeira. Puxou o homem até
sua altura, fazendo-o dobrar por sobre a mesa, e o aproximou-se de
si.
— Talvez seja mesmo melhor que não me explique nada. Se eu
confirmar que esteve gastando o dinheiro do condado e dilapidando
o patrimônio de um menino de treze anos, terei que esquecer que
os duelos são proibidos desde o início do século e arrastá-lo para
um.
— O senhor não pode…
— Eu posso — Charles o interrompeu mais uma vez. —
Façamos um acordo: você preparará e assinará um documento
transferindo para mim a administração dos bens de Daniel
Trentham, o sétimo conde de Salisbury, e eu não voltarei aqui com
um destacamento policial para prendê-lo.
Ele o soltou e o advogado voltou desfeito para sua cadeira.
Passou as mãos pelos cabelos ensebados duas vezes antes de
olhar de esguelha para a máquina de escrever.
— Não farei isso. Não sei se posso confiar no senhor.
— O senhor não pode confiar em mim, mas só sairei daqui com
esse documento assinado. Se se recusar a atender minha
exigência, terei que carregá-lo pelo colarinho até as autoridades.
O suor formava pequenas gotículas na testa do advogado. A
sala era quente, mal iluminada e com cheiro de poeira. O Sr.
Jhonessy nada disse por um minuto inteiro. Charles pegou o relógio
em seu bolso e confirmou que já gastara tempo demais com aquele
mentecapto, e estava pronto para dar o segundo passo em seu
plano quando o homem finalmente começou a escrever.
Depois de sair dali, Charles submeteria o documento a seus
advogados para que conferissem a validade. Ele não confiava no
administrador e imaginava que encontraria outros problemas
quando investigasse a fundo os livros e transações comerciais do
condado.
— Amanhã envio os livros para seu escritório, Sr. Eckley.
— Não darei tempo para que altere nenhum registro. Saio com
eles agora mesmo.
O advogado arregalou os olhos.
— Mas são muitos! Há mais de uma dezena de volumes e…
— Separe-os.
Sem dar maiores explicações, Charles saiu do prédio e contratou
três moleques que vagavam pela Picadilly. Com mais braços seria
mais fácil carregar todas as “dezenas e volumes” para sua casa.

Olivia não estava certa de que Charles a visitaria naquele dia, mas
esperava que ele cumprisse o ritual de aparecer sem marcar hora.
Já se havia passado o desjejum e o relógio marcava quase onze e
meia. Ela girava pelo escritório depois de empilhar a
correspondência de três formas diferentes. Pegou a coleira para
passear com os Spaniels e desistiu. Subiu para seu quarto e
espalhou suas joias pela cama, mas não conseguiu estabelecer
uma forma adequada de organizá-las. Estava prestes a perder a
compostura e mandar um bilhete até a Grosvenor Square quando os
cães começaram a latir.
Tobby detestava Charles. O cãozinho latia sem parar sempre
que via o Eckley e só parava depois que ralhavam com ele ou o
trancafiavam no quarto. Olivia desceu apressada antes mesmo de
qualquer anúncio.
Encontrou seu convidado sendo recebido por Daniel, o conde de
treze anos que nem sempre tinha um comportamento muito
aristocrático.
— Você não deveria estar em Eton, menino?
— Saí por uma semana para o aniversário de falecimento de
papai — Daniel confessou. O irmão estava com as roupas
encardidas, provável resultado de suas excursões pelo jardim e pela
estufa. — Teremos uma cerimônia daqui a três dias.
Charles encarou Daniel e o segurou pelo ombro.
— Não sabia que era por agora, mal sei a data de meu próprio
aniversário. Como está se sentindo?
— Estou bem. Sou um homem, preciso estar sempre bem, não é
mesmo?
Não, ele não precisava. Olivia quis intervir e dizer que o irmão
estava equivocado e que homens também podiam demonstrar
tristeza pela perda de entes queridos, mas Charles agiu à sua frente
— sem nem perceber que ela estava ali.
— Um homem sabe que sua força não está nos sentimentos,
mas em seu caráter. Você pode sofrer, Daniel, e isso não o fará
fraco ou inferior.
O menino balançou a cabeça e os dois permaneceram alguns
instantes em silêncio. Ela deu alguns passos na direção deles para
que a notassem. Daniel saiu em disparada na direção do jardim e a
deixou sozinha para interrogar Charles sobre suas descobertas.
Nem sempre ele aparecia bem-vestido para visitá-la — algumas
vezes ele mais parecia ter saído de um acidente de trem. Ela nunca
se importou porque a amizade borrava a percepção que deveria ter
de um homem com trajes adequados. Quantas vezes nadaram
juntos na praia de Thanet sem nem mesmo se preocuparem em
vestir roupas de banho? Quantas vezes ela amarrou as saias nos
tornozelos para correr atrás dele pelo campo e quantas vezes ela já
o vira em mangas de camisa — ou até mesmo sem ela — durante
um jogo de rounders ou futebol?
Naquele momento, o filtro que a impedia de compreender
Charles como um homem desfocou. Ele estava ali, à sua frente,
com um sorriso enigmático que não entregava nenhuma pista do
seu humor. Usava traje completo para o dia e tinha os cabelos
penteados como se estivesse preparado para um… encontro. Não,
ele não estava ali para cortejá-la de verdade. Tudo que fariam dali
para frente não passava de uma farsa. Claro que fora a conversa à
mesa que a estava fazendo pensar coisas inadequadas.
— Obrigada por dizer a Daniel que ele pode sofrer pela perda do
pai. Meu irmão precisa de uma referência masculina e você parece
ser a única que o Conde de Salisbury respeita.
O sorriso de Charles cresceu e, no mesmo instante, morreu. Ele
tinha um envelope pardo nas mãos e entregou-o a ela com a
expressão subitamente severa.
— Não sei se concordará com o que fiz, mas precisava de
autonomia para descobrir sobre os problemas que o condado
possivelmente enfrenta.
Olivia passou os olhos pelo conteúdo do papel timbrado e
assinado. Se não entendia sobre finanças, entendia menos ainda
sobre termos usados por advogados. Mas aquele documento
transferia a administração do condado para Charles. Alívio. Havia
poucas pessoas em quem ela confiava tanto quanto aquele homem
à sua frente.
— O Sr. Jhonessy disse algo?
— Confesso que não lhe dei muito tempo de se explicar. Depois
de sair do escritório, passei no Banco de Londres e descobri que o
homem vem desviando fundos do condado desde antes de seu pai
falecer, Livvy. Essas hipotecas foram realizadas por causa de
empréstimos que ele pegou a juros elevados e sem qualquer
justificativa.
Seu coração saltou uma batida, quase parou e disparou em um
ritmo alucinado. Ela apertou o papel nas mãos até quase amassá-lo.
Charles se aproximou. Segurando suas mãos entre as dele,
recuperou o documento com gentileza — tanta gentileza que Olivia
mal o reconheceu. O toque levou poucos segundos e a deixou mais
atordoada do que a notícia. O homem não usava luvas. Por que ele
nunca usava as benditas luvas?
Mesmo que ela estivesse com as mãos cobertas, o calor da pele
masculina ultrapassou a pelica e irradiou por todo o seu corpo. A
boca secou e ficou difícil respirar. O que estava acontecendo com
ela?
— O que devemos fazer? — A pergunta serviu para romper o
encantamento, mesmo que as mãos continuassem unidas. —
Estamos falidos, Charlie?
— Há muitas dívidas, porém não consegui ainda rastrear todas.
Pedirei a Nicholas que me ajude, mas as hipotecas já foram
quitadas. O condado possui muitos investimentos, duvido que
chegue à falência por isso.
— Quem as quitou? Como isso aconteceu?
Charles olhou para baixo e fitou demoradamente suas mãos
para, depois, soltá-las como se estivessem em chamas. Sem dar
maiores indicações de que qualquer coisa o afetava, ele passou os
dedos pelos cabelos e os ajeitou.
— Fiz um acordo com o banco. Se me der licença, preciso
retornar para o trabalho.
— Você quer almoçar conosco? — ela disparou a pergunta sem
refletir. Talvez não estivesse ainda preparada para deixá-lo ir sem
entender todas as nuanças do que Charles estava lhe dizendo. —
Nossa cozinheira fez cordeiro assado.
— Isso torna bastante difícil recusar o convite. — Ele sorriu e
colocou o chapéu de volta na cabeça. — Porém, preciso cuidar de
muitas coisas, Livvy. Volto a vê-la amanhã.
Com uma reverência curta, ele se virou e cruzou a porta na
direção da rua. Ela permaneceu no mesmo lugar por algum tempo,
confusa e ainda desorientada. Lembrava-se de um sem-número de
interações constrangedoras com Charles Eckley. Talvez porque
aquela fosse uma família que não se importava com regras sociais
nem diferenças entre gêneros, ela passou bastante tempo na
companhia dos meninos mais novos e nunca os viu como nada
além de bons amigos.
Bem, aquilo não era verdade. Aos dezoito, Olivia tinha certeza
de que amava Nicholas Eckley. Eles tinham a mesma idade, mas o
jovem não parecia vê-la com os mesmos olhos até fazerem vinte e
dois — quando trocaram um beijo escondido no jardim dos
McFadden. Cristo! Ela poderia ter sido flagrada e estaria arruinada
em uma fração de segundo, fadada ao casamento com um homem
que ela admirava, porém, não estava mais apaixonada.
Ainda assim, seus delírios românticos nunca envolveram o
Eckley devasso. Nicholas era um perfeito cavalheiro, Charles era
um libertino incorrigível — junto ao seu irmão gêmeo Robert. Olivia
deu uma risada baixa ao se lembrar de quando o surpreendeu em
uma posição indecorosa com a filha de uma das empregadas da
propriedade. Não foi engraçado. Ela gritou com ele, bateu com os
punhos fechados em seu peito, porque não admitia que ele
arruinasse uma jovem sem casar-se com ela.
— Livvy! — Annabelle chamou e interrompeu o fluxo de
memórias. — Convidei Mary e Esther para o chá das cinco de
amanhã. Charles nos acompanhará ao sarau dos McFaddens?
Ela se esquecera completamente do sarau.
— Claro, ele nos acompanhará. Vamos subir, temos que provar
os vestidos novos.
Antes, ela escreveria um bilhete e pediria que Bradley
entregasse ao homem que estava ocupando espaço demais em
seus pensamentos.
Capítulo quarto
Thanet, julho de 1891

Rhode Port
D
e retornar para Rhode Port um pouco mais embriagado do que
deveria, Charles tropeçou nas pedras que decoravam o jardim ao
redor da casa e desabou no chão. Bateu com a cabeça em alguma
coisa e sentiu uma dor aguda irradiando da cabeça até o dedão do
pé. Ele sabia que não devia competir com homens mais velhos e
experientes na arte de beber, porém, não havia desafio que Charles
Eckley dispensasse sem enfrentar.
Tentou se levantar e percebeu que a paisagem estava girando.
Voltou a se deitar e fechou os olhos por algum tempo. Seria sorte se
não despejasse o conteúdo de seu estômago ali mesmo e tivesse
que entrar em casa fedendo a cerveja e vômito azedo. Enquanto se
concentrava para não perder completamente a compostura, ouviu
vozes femininas que ecoavam não muito distantes.
Era o que faltava, ser pego pelas damas que estavam
hospedadas na propriedade. Decidiu esperar que elas passassem e
desaparecessem antes de tentar sair daquele esconderijo — mas
percebeu que as vozes vinham de dentro da casa. A conversa era
entre Caroline, a prima que acabara de retornar de outra viagem,
Olivia e mais duas mulheres cujos risinhos não reconheceu.
— Você acha que o duque vai querer casar com você? — Olivia
perguntou.
— Bem, ele precisa se casar. Prover um herdeiro para o ducado
é uma das muitas tarefas que Aiden acumula. Eu sou a mulher ideal
para isso, não acham?
Mais risos. Nem a própria Caroline acreditava no que ela estava
dizendo.
— Você jamais seria ideal para o casamento, querida — uma
mulher disse.
— Eu achava que você iria ser um solteirona — Olivia sussurrou
a última palavra. — Porque, digamos, você é…
— Arruinada, eu sei, todos sabem, e se eu não fosse, não
estaríamos tendo essa conversa. Mas eu amo Aiden Trowsdale e
estou disposta a aceitar as maledicências do casamento para ficar
com ele.
Charles rolou para o lado, apoiou-se pelos joelhos e mãos e
ergueu o corpo. A náusea o abateu e o obrigou a engolir a bile que
amargava sua boca. Sentou-se com algum esforço e recostou-se na
parede da casa.
— E você, Lady Olivia? Percebo que vem atraindo a atenção de
alguns cavalheiros aqui em Thanet.
— E desde quando há cavalheiros em Thanet, Lady Felicia? —
Caroline provocou. — Olivia ainda é uma menina, só vai debutar no
ano que vem. Não tem que pensar em pretendentes.
— Mas ela é muito bonita e bem-nascida. Vai conseguir um
marido antes da metade da temporada, tenho certeza.
Aquela conversa era detestável. Charles não sabia quem era
Lady Felicia, mas podia imaginar Olivia constrangida com aquele
assunto de pretendentes e maridos mais uma vez. Visualizou-a
olhando para baixo e com as bochechas coradas pela vergonha e
quis entrar no meio daquela reunião feminina para arrancá-la dali.
Mas Lady Felicia tinha razão. Olivia não demoraria a conquistar
uma dúzia de pretendentes e se casaria em um piscar de olhos, se
quisesse. E ela queria. Fora criada para ser esposa e mãe como
todas as damas da aristocracia. Mesmo convivendo com eles, os
Eckleys, e demonstrando alguns ares de rebeldia durante sua
estada em Rhode Port, ela era perfeitamente adequada na presença
de outras pessoas e um diamante já lapidado aos olhos da
aristocracia.
Charles pôs-se de pé. Precisava parar de pensar em Olivia
porque eles nunca ficariam juntos. Ele a queria além da sanidade e
sabia que não era correto nem mesmo cogitar desejá-la tanto. Ela
era sua amiga, muito jovem, pura e ingênua — e ambicionava
casar-se com um lorde da alta aristocracia e exercer uma função
importante na sociedade. Como ele não poderia ofertar nada disso
— afinal, para que servia o quarto filho de um marquês? —,
precisava livrar-se daqueles sentimentos.
— Senhor? — Outra voz feminina atraiu a sua atenção. Era
Beatrice, a filha da cozinheira. — Está tudo bem?
Não estava, mas ficaria. Tudo que ele precisava para parar de
pensar em Olivia era perder-se em outra mulher. Era assim que
resolvia seus problemas: com álcool e uma dama em sua cama.
Álcool ele já tinha consumido bastante, faltava-lhe o complemento.
— Acho que preciso de ajuda — ele se levantou e deu dois
passos na direção de Beatrice. Ela sorriu ao vê-lo se aproximar. —
Você prepararia um banho para mim?
— Posso pedir que seu valete…
— Se eu quisesse que meu valete me ajudasse, teria pedido. —
Charles levou as mãos até a cintura dela e a puxou, pressionando-a
contra seu corpo ansioso. — Preciso de coisas que ele certamente
não saberá fazer.
Ela deu outra risada e gemeu ao senti-lo duro. Afastou-se com
uma expressão de lascívia e desapareceu pela porta dos fundos.
Charles fechou os olhos e as imagens estavam borradas. Não havia
mais nada que o perturbasse. Ajeitando a camisa para dentro das
calças e abotoando o colete, ele seguiu Beatrice para garantir que
seus problemas estivessem resolvidos até o dia seguinte.
Londres, 16 de abril de 1898.
Casa de jogos de Riderhood

Parecia inútil tentar concentrar-se no trabalho, então Charles fez o


que precisava para exorcizar Olivia de sua mente e corpo: deixou os
relatórios de lado e arrastou Nicholas para o clube de Riderhood.
Aquela não era a primeira vez que ele passava tempo demais na
companhia da mulher que o tentava. Sentado em uma mesa de
pôquer — que considerava o jogo preferido de todo canalha —, ele
deixou que sua sorte espoliasse todos os adversários até que
desistissem de enfrentá-lo.
Esperava que o mesmo acontecesse quando Gupta chegasse,
porque estava pronto para esmagar a concorrência. Queria o
contrato, queria a vitória e a conseguiria a qualquer custo. Não que
os investimentos perdidos o deixariam pobre, Charles sempre
poderia usar os navios para outra finalidade que não transportar
seda. O que o incomodava era a traição, era a promessa rompida
do homem que lhe garantira um contrato e agora se prendia a
valores morais estúpidos.
— Vou pagar e aumentar.
Ele jogou três fichas no pote ao ver que recebera outro valete.
Nicholas e o Bruce Harrison, o Barão Stafford, baixaram as cartas e
se retiraram da partida. Se ele não era capaz de poupar nem
mesmo o irmão de sua fúria, quem iria querer enfrentá-lo?
— Dê-me cartas — Richard Cadden, o Duque de Greystone, se
sentou no lugar desocupado por Stafford.
— O pote máximo é de um xelim. Estamos jogando baixo, hoje.
— Todos sempre jogam baixo com você. Aumento para uma libra
— o duque jogou uma moeda na direção do crupiê.
— Se eu fosse você, não faria isso — Nicholas alertou. — Há
dias em que ninguém bate Charles no pôquer e hoje é um desses
dias.
— Quero arriscar.
Charles estava incomodado com a mera presença de Greystone.
Depois de saber que Olivia o considerava um pretendente — um
potencial pretendente —, ele passou a enxergar o duque pela lente
do inimigo. Precisava retomar seu controle e parar de agir como
uma besta enciumada. O duque era um parceiro de negócios e um
dos poucos que não estava de olhos e garras sobre seu contrato
com Gupta.
O jogo prosseguiu sem que ele conseguisse manter sua
performance incrível. Não perdeu, mas também não arrasou com as
pobres almas que decidiram enfrentá-lo naquela tarde.
— Greystone, você está no mercado de casamentos?
O duque deixou as fichas que acabara de pegar caírem ao chão.
— Que pergunta horrível de se fazer, Eckley.
— É uma pergunta simples. Afinal, você é um duque e tem
aquela lista de compromissos que todo duque precisa cumprir, entre
eles produzir um herdeiro.
— Tem razão. — Greystone conseguiu recuperar as fichas e
atirou algumas no pote. — Digamos que estou pescando.
Charles cobriu a aposta e baixou suas cartas. Virou-se na
cadeira e fitou demoradamente o perfil aristocrático de Greystone.
Ele adoraria quebrar aquele nariz. Estaria comparando Olivia com
uma truta? Balançou a cabeça tentando afastar o desejo de sangue.
Como podia condenar no amigo um comportamento que lhe era tão
comum?
— Então mantenha sua vara longe de Olivia Trentham.
A mesa inteira virou-se para ele. Aqueles homens nem mesmo
deveriam ter lido o Morning Chronicle, já que a notícia de seu cortejo
saíra na seção de fofocas. Era provável que ainda não soubessem
da sua farsa.
— Ora, ora, você está colocando sua marca sobre a dama?
Sim, ele quebraria o nariz aristocrático de Greystone se ele
ousasse comparar Olivia com outro animal qualquer.
— Digamos que ela é minha amiga há mais de uma década e
que eu não quero vencê-lo também nessa disputa, meu caro. Há
outras damas disponíveis que podem se interessar nas suas iscas,
deixe Olivia Trentham em paz.
Greystone riu e a conversa não prosseguiu porque Gregory
Newcombe juntou-se ao grupo. Um imbecil. Nascera em Nova
Iorque, mas mudou-se para Londres quando ainda era um infante e
vivia da herança suja deixada pelo pai. Casou-se com a filha de um
visconde para salvar o homem da ruína e acabou milagrosamente
aceito na sociedade, fazendo com que alguns tolos acreditassem
que isso o tornava um homem respeitável. Charles o desprezava.
Francis Hughes puxou uma cadeira e também colocou uma libra
no pote. O crupiê deu as cartas.
— Vocês já souberam da novidade? — Newcombe disparou. —
O navio de Bharat Gupta aporta amanhã.
Ele sabia, mas não entregaria seus contatos privilegiados aos
abutres. Tinha preocupações que iam além da chegada do indiano e
detestava não estar envolvido de corpo e alma em uma negociação
que se mostrava potencialmente truculenta.
— Não tenho interesse nele, não participarei da concorrência
que abrirá por seu empreendimento — Hughes respondeu.
— Eu pretendo participar, mesmo que nem sequer imagine o que
o homem tem em mente. — Newcombe baixou suas cartas e
aumentou a aposta em dez libras. Charles cobriu.
— Vocês agora estão jogando para valer? — Greystone se
surpreendeu, mas também cobriu a aposta.
— Por mim, eu manteria os valores modestos, mas parece que
Newcombe também está disposto a me desafiar — Charles
constatou.
— Não é só nas cartas que pretendo desafiá-lo, Eckley. Sei que
você acreditava que o contrato com Gupta estava em suas mãos,
mas agora terá que competir com homens mais capazes do que
você. Seu sobrenome não valerá muita coisa.
O crupiê pigarreou. Hughes se retirou e Newcombe mostrou uma
trinca de reis. Mão excepcional para quem entrara na partida
apenas para provocá-lo. Greystone soltou uma imprecação e baixou
sua bela sequência de três a sete. Charles colocou seu full house de
valetes e ases sobre o feltro verde, organizando carta a carta, e
pegou as fichas do pote.
— Eu vencerei qualquer disputa entre nós, Gregory. Lembre-se
disso quando apostar outra vez.
Com um movimento de cabeça, ele pediu licença e saiu da
mesa. As perdas foram baixas, fazia tempo que Charles não jogava
para empobrecer ninguém — o que importava era a mensagem.
Todos sabiam que meter-se em uma mesa de pôquer com ele era
flertar com a derrota, e Newcombe precisava entender isso.
Ele demonstrava confiança, mas estava preocupado. Perdera o
medo de lançar-se de cabeça nos negócios porque não se
importava em fracassar — mas aquele contrato com Gupta já
envolvia mais do que seu próprio orgulho. Vencer Newcombe e
outros janotas como ele não era mais um prazer solitário, estava se
tornando uma necessidade.
Isso significava que ele precisava afastar Gupta daqueles
paspalhos e fazer-se um homem de caráter irrepreensível. Talvez só
fingir que cortejava uma das melhores damas de Londres não fosse
suficiente.

Os Trentham adoravam o chá das cinco. Essa era uma tradição que
faziam questão de seguir e um convite para o chá na Casa Salisbury
era disputado entre as jovens damas, tanto solteiras quanto
casadas, desde a época de sua mãe. Naquela tarde, as convidadas
eram Mary Price e Esther White. A primeira era filha do Barão
Greystoke e estava em sua segunda temporada aos vinte e um
anos. A segunda, filha do Conde de Thorndike, era da idade de
Annabelle e debutara naquele ano. Ambas solteiras e de
comportamento irrepreensível.
Bem, nem tanto. Mary e Esther eram como Annabelle — damas
impecáveis na superfície, mas fenômenos da natureza na essência.
Diante de outras mulheres, principalmente as mais velhas,
demonstravam decoro e educação. Nos eventos sociais e na
presença de homens, agiam como se esperava delas e
conversavam sobre o clima, sobre vestidos e sobre caridade.
Mas, quando se reuniam…
— Você precisa nos contar tudo sobre seu affair com Charles
Eckley. — Mary bebericou um gole de chá. As damas estavam
sentadas em almofadas no chão, sem sapatilhas e de frente para a
lareira que queimava em fogo brando. — A notícia está em todos os
lugares.
Ela não estava nem um pouco surpresa depois de todo cuidado
que Charles tivera para que a fofoca se espalhasse — o homem até
inventou uma história falsa e divulgou para um jornal de reputação
duvidosa para garantir que todos na alta aristocracia recebessem a
notícia.
— Não temos um affair. — Era verdade. — Ele está me
cortejando oficialmente, mas não é o único.
Essa parte ainda estava para se tornar uma verdade verdadeira,
mas, por seu conhecimento das regras invisíveis da sociedade,
damas cortejadas tinham mais chance de serem cortejadas, o que
representava um paradoxo interessante. Quanto mais homens
interessados nela, mais homens se interessariam. A fraude com
Charles poderia levá-la a encontrar seu futuro marido, se tudo desse
certo.
— Você não pode dizer só isso e se safar! — Esther atirou-lhe
uma almofada e quase atingiu a xícara de chá em sua mão. —
Sabemos que são amigos, como foi que isso evoluiu para um
cortejo? Ele declarou que gosta de você?
— Ele não declarou nada. Olha, precisamos conversar sobre
nosso próximo passo em relação ao projeto em Whitechapel.
— Não quero falar sobre o projeto — Esther insistiu. — Quero
saber sobre o seu cortejo. Você ainda não teve essa experiência,
Livvy!
— Eu já fui cortejada! — ela protestou. — Ou se esqueceram
que me comprometi com Nicholas Eckley?
— Certo, mas isso foi há duzentos anos! — Annabelle provocou.
— E Nicholas é um exemplo de propriedade e decoro. Estamos
curiosas sobre como é ser cortejada por um libertino declarado.
Olivia suspirou. Ela não tinha como responder àquelas
perguntas. Seu relacionamento com o devasso era pura amizade e
não, ele não queria se casar com ela. Precisava inventar alguma
coisa para acalmar a agitação das meninas e reforçar sua história.
Talvez não fosse tão difícil. Passou as mãos na saia e limpou o suor
que se acumulou em suas palmas antes de disparar mentiras sobre
as amigas.
— Charles é um homem honrado e muito respeitador. — Risadas
súbitas a silenciaram por um instante. — Não riam, ele é
respeitador. Sei que não possui título nem é bem-visto pela
aristocracia, mas creio que essa percepção mudará em breve. O
que importa é que ele gosta de mim.
— Vocês já se tocaram? — Mary perguntou.
— Já se beijaram? — Esther completou.
— Já fizeram mais do que se beijar? — Annabelle a fez cuspir o
chá que levara à boca pela segunda vez no mesmo dia.
— Céus, vocês são implacáveis! — Olivia pegou um guardanapo
para limpar a sujeira em sua saia. — Claro que não fizemos nada
disso, foi apenas ontem que ele pediu permissão para me cortejar! E
eu jamais faria “mais do que beijar” antes de me casar, Annabelle!
A irmã moveu os ombros.
— Podemos falar do projeto em Whitechapel? — Olivia insistiu.
— Papai disse que tem um lugar para usarmos. É uma casa
abandonada cujo proprietário foi assassinado e nenhum herdeiro
clamou os bens. Segundo ele, a propriedade pode ser adquirida por
uma barganha.
— Credo, Esther, não quero trabalhar na casa onde alguém foi
assassinado! — Annabelle fez o sinal da cruz.
— Ninguém foi assassinado na casa, Belle! O que importa é se
teremos fundos para adquiri-la. Não precisamos de um homem, mas
temos o dinheiro?
A pergunta de Esther ficou suspensa no ar por alguns instantes.
O projeto era algo que Olivia queria muito desenvolver. Nessa casa,
fariam um abrigo temporário para crianças e jovens sem lar que
precisavam de um banho quente, uma refeição e uma cama.
Também acolheriam crianças cujas mães viúvas precisassem
trabalhar. A coroa pouco fazia pelas classes menos favorecidas e
havia muita miséria e sofrimento pelas ruas e Londres. As quatro
pretendiam ajudar no que podiam sobre aquele assunto.
Quem tivera a ideia foi Margaret, depois de uma aula específica
na escola de jovens damas de Caroline Eckley-McFadden e Agatha
McFadden, a Condessa de Cornwall. Com uma metodologia de
ensino pouco convencional, Lady Caroline levou as jovens para um
passeio até Whitechapel e Shadwell para que ouvissem os clamores
dos necessitados. Só que a irmã era menor de idade e não podia
executar sua ideia sozinha, por isso as quatro amigas decidiram
fazê-lo.
Havia um problema, porém, que ia além da boa vontade: elas
viviam de mesadas suficientes para suas necessidades de acordo
com a sociedade. Não lhes sobrava muito para gastar em caridade.
— Livvy — Mary sussurrou e rompeu o silêncio. Com um
movimento de cabeça nada sutil, indicou que alguém mais se
juntara ao grupo. As damas se viraram e lá estava ele.
— Boa tarde, miladies.
Mary, Esther e Annabelle pularam de seus lugares e se
colocaram de pé assim que ouviram a voz grave cumprimentá-las.
Ajeitaram os vestidos e o encararam com sorrisos constrangidos por
terem sido pegas em uma situação informal. Damas como elas não
foram treinadas para lidar com homens como Charles. Ele
intimidava ao mesmo tempo que as fazia suspirar.
Mais acostumada com a presença do amigo, Olivia se levantou e
o interpelou, quase querendo empurrá-lo para fora da sala de chá.
Não sabia se estava irritada porque ele insistia em chegar silencioso
como uma alma penada ou se porque não queria a amigas
suspirando por seu… céus, ele não era nada seu que justificasse
um sentimento de possessividade. Charles seduzia metade das
mulheres de Londres e ela nunca se incomodou. Antes.
— Boa tarde, Sr. Eckley. O que o traz à casa Salisbury?
Ele franziu as sobrancelhas ao ouvi-la dirigir-se a ele com tanta
formalidade. Bem, alguém ali precisava ser formal para mostrar que
a casa Salisbury não era um antro de devassidão. Charles estava
sem paletó, sem gravata e, como já era de costume, sem luvas — e
jamais deveria aparecer na frente de suas amigas daquele jeito.
— Vim vê-la. — Ele segurou sua mão e levou até os lábios.
Calor e maciez quase fizeram seus ossos derreterem. — Não pude
deixar de ouvir que estão precisando de um homem para ajudá-las
com um projeto.
— Ouviu incorretamente — Annabelle disparou. A irmã seria um
fracasso em sua primeira temporada se não aprendesse a controlar
a língua, porém Olivia nem mesmo queria que ela se domesticasse.
Se não fossem capazes de amar Annabelle por seu coração imenso
e sua beleza, então não a mereciam. — Precisamos de fundos, não
de homens.
Charles sorriu e as mulheres suspiraram mais alto. Esther tinha a
mão espalmada na frente do peito.
— Entendo. Que tipo de empreendimento pretendem
desenvolver? Gosto de investir em novidades.
— Ah, Sr. Eckley, não será um empreendimento — Mary
explicou. — Trata-se de caridade. Queremos construir uma casa de
apoio para jovens sem lar e mães que precisam de auxílio com seus
filhos durante o dia.
Sem ser convidado — porque ele não precisava mesmo de
convite na casa Salisbury —, Charles se sentou em uma poltrona.
Olivia nem mesmo tentou impedi-lo, apenas apressou-se em servir
uma xícara de chá para o intrometido. As damas se sentaram outra
vez na iminência de ouvi-lo.
— Mães viúvas ou mães solteiras?
— Viúvas — Esther disse.
— Qualquer uma — Annabelle corrigiu. Todas olharam para ela.
— O que foi? Negariam auxílio a uma criança porque ela é
bastarda?
— Não, eu não negaria. — Mary balançou a cabeça. — Mas isso
não deporia contra nosso projeto?
— O projeto é para ajudar quem precisa — Olivia disse. — Se for
a mãe de um bastardo, que seja. Foi esse nosso compromisso, não
foi?
Todas balançaram a cabeça. Charles bebia seu chá enquanto as
observava em silêncio. Como seus momentos de silêncio eram
raros, Olivia suspeitou que ele estava planejando algo.
— Vocês têm uma proposta interessante. Por que não realizam
um evento para arrecadar fundos? As mulheres da aristocracia não
adoram caridade? Convidem muitas das casadas com acesso a
maridos ricos.
Annabelle arregalou os olhos e encarou Esther White, que fez
um gesto concordando com algo que não fora dito. Um evento era
uma ideia fabulosa, mas também incomum. Mulheres solteiras não
realizavam saraus, bailes ou jantares durante a temporada. Mesmo
que fossem damas respeitáveis, poucas famílias de estirpe se
interessariam por um convite vindo delas.
— Não sei se dará certo. O que faríamos, um jantar beneficente?
Quem organizaria?
Charles se levantou. As mulheres se sobressaltaram outra vez,
como se os movimentos dele causassem uma onda intangível que
as atingisse sem precisar tocá-las.
— Livvy, posso conversar com você em particular?

Charles teve certeza de que seria imortal caso sobrevivesse àquele


teatro. Mais dois dias daquela tortura e seu corpo acabaria
estendido duro no meio do Hyde Park. Boiando no Serpentine,
talvez. O que lhe deu para aceitar aquela loucura de fingir cortejar a
mulher por quem era apaixonado desde os vinte anos? Por que
raios não assumiu seu fracasso e livrou-se desse tormento ao lado
daquela que ele sempre desejou e não poderia ter?
Ela estava linda naquela tarde. Mesmo com os cabelos desfeitos
e os pés sem sapatos, conseguia fazê-lo perder o fôlego, o rumo
dos pensamentos e o bom-senso. Bem, Charles duvidava que
tivesse algum bom-senso para perder. Os cabelos cacheados e
fartos estavam mal contidos em um penteado apressado e os
bordados floridos nas meias pretas que apareciam displicentemente
por baixo do vestido só o faziam querer subir a saia para vê-los
melhor.
— Annabelle, por que você não nos leva para ver o vestido que
usará no sarau amanhã? — Uma das amigas se levantou e agarrou
Annabelle pela mão, que levou alguns segundos para entender o
que ela pretendia. A outra amiga se juntou ao plano.
— Ah, eu adoraria ver seu vestido!
— Vamos até meu quarto. — Annabelle indicou o caminho para
as amigas. — Livvy, Charles, esperem-nos aqui. Já retornamos.
A piscadela nada discreta que ela lhe lançou fez com que
Charles tivesse certeza de que as três inventaram uma desculpa
para deixá-los a sós — e não obrigar Olivia a dizer sim para seu
pedido indecoroso. Ele comumente se esquecia de que, na
sociedade, não era adequado que mulheres solteiras
permanecessem sem acompanhante na presença do homem que as
cortejava. Regra estúpida. Se ele fosse devassar Olivia, não o faria
no meio da biblioteca e com as portas abertas. Ou talvez fizesse.
Algumas imagens impróprias formadas em sua mente o
distraíram.
— O que você quer, Charlie?
As imagens, somadas à voz rouca e feminina dela, só serviram
para torná-lo duro como granito. Charles se ajeitou na cadeira para
esconder a manifestação bruta de seu desejo.
— Creio que tenho uma ideia para seu projeto. Um evento de
final de semana em Rhode Port.
Ela o encarou com dúvidas. Pegou um bolinho e mordeu
enquanto sua cabecinha maquinava a sugestão dada pela metade.
Insatisfeita, abriu o caderno de capa de couro desbotado que
carregava consigo para todo lugar. Charles nunca descobriu se era
um diário ou uma Bíblia. Esperava que fosse a primeira opção.
— O marquês daria o evento em favor do nosso projeto?
— Se conversarmos com Rosamund, ela achará a ideia fabulosa
e a apoiará. Tenho certeza.
— Pode ser uma boa ideia e aproveitaremos para convencer as
pessoas presentes da sua respeitabilidade. Você já tinha isso
planejado quando veio aqui?
Era quase ofensivo que ela pensasse que ele planejava qualquer
coisa com antecedência. Nenhuma das boas ideias e nada do
sucesso de Charles poderia ser atribuído à sua capacidade de
planejar e organizar. Ele era impulsivo, imediatista e acostumado a
realizar suas melhores transações comerciais em uma mesa de
pôquer ou bilhar.
— Eu vim aqui para pedir ajuda com um projeto meu, porém,
acredito que passar algum tempo em Rhode Port ajudará a nós
dois.
— Qual é o seu projeto? — Ela deu outra mordida no bolinho e
seus lábios se encheram de açúcar, que foi retirado com a língua.
Sim, ele morreria antes do final de semana.
— Gupta, o homem que pretendo enganar com minha
respeitabilidade, chegou hoje. O navio dele aportou a pouco e o
hotel já está cercado por abutres interessados na corrida do ouro.
Preciso isolá-lo desses agourentos, pelo menos por um tempo.
— Oh, então irmos para Rhode Port seria sua forma de livrar-se
da concorrência.
— Genial, não?
Olivia bebeu um gole de chá e abriu o caderninho. Passou os
dedos pelas páginas, concentrada, e mordeu o lábio inferior. Era
demais. Ele se levantou e foi até o aparador de bebidas. Abriu uma
garrafa intocada de conhaque e serviu-se de uma dose. Não,
precisava de duas doses.
— Nem tanto — ela disparou. — Esse indiano não é amigo de
seu irmão?
— Sim, ele é amigo de Anthony. O que quer dizer com “nem
tanto”?
— Oras, Charlie, se ele é amigo do marquês e vai para um
evento oferecido pelo marquês, você estará em segundo plano.
Quem monopolizará as atenções será…
— O marquês — ele completou a frase, entendendo onde ela
queria chegar com o argumento. — E você vê problema nisso, pelo
visto.
— Claro que vejo. Esse evento deve ser tanto para afastar o
homem de seus adversários quanto para colocar você em evidência,
então ele deve ser oferecido por você.
Ela começou a escrever no caderninho e um silêncio incômodo
pairou sobre a biblioteca. Charles virou o restante de seu drinque
em um gole e serviu-se de mais.
— Há apenas um problema. Eu não tenho propriedades nas
quais possa oferecer eventos desse tipo.
— Nenhuma? — Olivia parou de escrever e ergueu o olhar para
fitá-lo recostado no batente da janela. — Com tanto dinheiro você
nunca pensou em adquirir uma propriedade no campo?
— Meu dinheiro é investido e reinvestido na cidade, Livvy — ele
voltou a se sentar de frente para ela. — Tenho duas propriedades,
uma na Escócia e outra na Irlanda, mas não creio que seja boa ideia
irmos para tão longe quando o Parlamento está em sessão.
Balançando a cabeça, Olivia voltou a rabiscar naquele maldito
caderno. Charles decidiu esperar que ela terminasse o que
estivesse fazendo. Recostou-se na poltrona, cruzou as pernas,
remexeu-se no assento, enfiou os dedos no colarinho apertado e
acabou abrindo um botão. Isso a fez parar e olhar diretamente para
seu pescoço.
— Botões devem ficar fechados, Charles — ela ralhou. — Creio
que o evento deva acontecer em Hampshire.
— Minha família não tem propriedades em Hampshire. Você
sugere…
— Estou falando de Summerwood Hill — ela o interrompeu. —
Você agora é o administrador de nossas finanças, estaria em
evidência já que o anfitrião tem apenas treze anos e prefere brincar
de jardinagem ao invés de realizar atividades aristocráticas.
Ele deveria rir, mas Olivia estava falando sério. Ela sempre
assumia uma postura erudita e severa quando tinha ideias que
considerava boas. Mesmo que aquela não fosse, ela parecia
acreditar que sim.
— Não. Prefiro apostar minhas fichas em Rhode Port. Não tenho
talento para ser mestre de cerimônias, Livvy. Se existem limites para
minhas habilidades, entreter dezenas de almofadinhas
endinheirados por um final de semana ultrapassa todos eles.
Ela fechou o caderninho e o colocou sobre a mesinha. Dobrou o
corpo para frente e, ignorando qualquer regra de decoro, segurou as
mãos dele entre as suas. Charles quase pulou para trás e caiu da
poltrona ao sentir o calor e a pele macia de Olivia.
— Estarei ao seu lado para ajudá-lo. Prometi que o ajudaria e
vejo essa como a melhor oportunidade dentre todas que podem
surgir. Um final de semana em Summerwood Hill, daqui há duas
semanas. Transferiremos o memorial em homenagem a papai para
essa data, assim haverá mais motivos para nos reunirmos. É uma
ideia sem defeitos. Diga sim, Charlie.
Cristo. Ele diria sim para qualquer bobagem que Olivia falasse
apenas para que ela continuasse tocando-o daquela maneira. Sua
resposta foi interrompida pela chegada das três mulheres que
voltavam risonhas do andar de cima. Ao vê-las entrando, Olivia
soltou-o e retomou sua postura irrepreensível.
Capítulo quinto
Londres, 17 de abril de 1898

Grosvenor Square
O .A
Charles e abriu as cortinas, permitindo que muita luz atingisse seus
olhos. Ele rosnou, detestando aquele humor matinal que sempre
contagiava as pessoas e do qual queria fugir.
— Bom dia, senhor.
— Saia. — Charles enfiou-se debaixo do cobertor. — Feche
essas cortinas e saia.
— Lamento, senhor, mas tenho ordens suas para acordá-lo às
oito.
— Estou revogando minha ordem.
O mordomo puxou o cobertor e o jogou no chão.
— Recebi ordens para ignorar uma eventual revogação. O Sr.
Nicholas o aguarda, os senhores têm compromisso com o marquês.
Uma brisa fria soprou pelas janelas abertas e atingiu seu corpo
nu. Charles praguejou e tentou pegar o cobertor, mas foi impedido
por Ashford.
— Você não pode ser tão bom no que faz! — reclamou.
— Sou ótimo, senhor, por isso me contratou. Seu banho está
preparado, creio que deva lavar-se antes que a água esfrie.
Ele praguejou mais um pouco e saiu na direção do banheiro.
Costumava acordar cedo — a vida dos homens de negócios não era
a mesma da aristocracia. Não se fazia eventos que seguiam
madrugada afora ou se trocava a noite pelo dia —. Isso não
significava que acordasse todos os dias de bom humor, ao contrário,
Charles rosnava, resmungava e blasfemava toda manhã como se
aquela fosse a primeira.
Olhou-se no espelho e passou a mão pelo queixo. A barba
nascendo pinicou seus dedos. Enfiou-se na banheira morna
desejando que a água estivesse gelada. Só assim conseguiria tirar a
cabeça de Olivia Trentham e concentrar-se no que era importante:
seu contrato com Bharat Gupta. Por isso precisava barbear-se,
vestir-se como um rei e comparecer àquele maldito compromisso
com Anthony. Seu irmão marquês estava oferecendo um brunch
para recepcionar o indiano.
— Como foi seu dia de ontem? — Nicholas perguntou assim que
o encontrou descendo as escadas.
— Suportável. Sabe se Anthony mandou uma carruagem buscar
Gupta?
— Pode ter certeza de que sim. Nosso irmão era um libertino,
mas sempre foi o melhor anfitrião que conhecemos. Não sei por que
o indiano não se hospedou na Casa Granville.
— Crianças demais. — Charles riu. — Vamos, não quero chegar
atrasado para o brunch.
— Olivia vai?
A pergunta o fez tropeçar nas próprias pernas. Mesmo sabendo
que não havia mais nada entre o irmão e Olivia, o nome dela
sempre soava diferente na boca dele. Charles tinha ciúmes de
Nicholas e não havia nada que pudesse fazer para evitar aquele
sentimento horrível.
O problema não eram seus ciúmes, mas ter se esquecido de
convidá-la.
— Eu não a convidei.
Nicholas balançou a cabeça.
— Então mande avisá-la imediatamente. — O irmão foi até o
aparador da sala de entrada e pegou um papel e uma caneta. —
Vocês inventaram essa farsa para impressionar Gupta, não pode
perder essa oportunidade.
Charles odiava que seu irmão mais novo tivesse razão. Não
importava o quanto aquele teatro fosse conduzi-lo à loucura, ele
precisava encená-lo como se estivesse no Royal Albert Hall. Se isso
significava passar horas e mais horas de cada dia com Olivia
pendurada em seu braço, então assim seria.
— Ashford! — ele berrou pelo mordomo, que apareceu
imediatamente à sua frente. — Preciso que envie uma nota à Casa
Granville. Diga ao marquês que Nicholas e eu nos atrasaremos
alguns minutos.
— Aonde vamos?
— Buscar a mulher responsável por melhorar minha reputação
aos olhos da sociedade.
Nicholas riu, mas seguiu-o porta afora. Charles orientou o
cocheiro a levá-los até a Casa Salisbury, onde arriscaria encontrar
Olivia dormindo. Esperava que ela estivesse mais engajada no
projeto do que ele e que não se importasse em ser arrancada de
casa tão cedo — e sem um aviso.

— Milady. — Bridget entrou no quarto enquanto Olivia ainda estava


despertando. Sentada à janela, tentava concentrar-se em um
romance de Tolstoi. — A senhorita tem visitas.
Ela fechou o exemplar novíssimo de Anna Karenina e encarou a
camareira. O relógio sobre sua cabeceira marcava oito e trinta e era
cedo demais para estar acordada, quanto mais para receber visitas.
Só havia uma pessoa que costumava aparecer na casa em horários
impróprios, mas essa pessoa não costumava ser anunciada como
“visita”.
— A visita se identificou?
— É o Sr. Charles com o irmão, milady. Eles insistiram para falar
com a senhorita mesmo Adalind tendo avisado…
— Está tudo bem, Bridget. — Olivia levantou-se e deixou o livro
sobre o aparador. Olhou-se no espelho oval que ficava próximo da
porta do closet e suspirou. Ainda estava de camisola e levaria pelo
menos meia hora para vestir-se adequadamente. — Diga a Charles
que já descerei.
— Ele pediu para entregar isso à milady.
A camareira lhe estendeu um papel dobrado.

“Vista-se rápido, precisamos sair. Planos de última hora”.

O bilhete estava rabiscado com a letra de Charles e sugeria algo


urgente. Sem saber do que se tratava e sem tempo para descer e
perguntar, achou melhor atender ao pedido — que soava como uma
ordem. Por que mesmo ela se metera a ajudar aquele malcriado
com seus problemas? Olivia sempre questionava os deveres da
amizade quando Charles agia daquela forma. Ao mesmo tempo que
ela adorava tê-lo por perto, porque sabia que, naquele momento,
ninguém cuidaria da família melhor do que ele.
— Bridget, ajude-me. Preciso de um vestido para o dia, vamos
pegar qualquer um que esteja apresentável e que não precise ser
passado, engomado ou batido. O amarelo?
— Esse está engomando, milady. E o verde-claro que chegou
ontem da modista?
Sim, o verde era uma opção. Além de adequado para os dias de
primavera, ainda era novo. Olivia sentiu uma súbita vontade de
arrumar-se para aquele encontro inesperado, um desejo de
descobrir o que Charles queria tão cedo. Ao invés de ficar irritada
por ele não aprender a respeitar o mínimo das convenções sociais
— o horário! —, ela estava excitada pela presença dele ali.
Quando foi que Olivia se sentiu excitada por alguma coisa? Ela
não lembrava. Também não entendia aquele comportamento que
não condizia com sua educação e com o papel para o qual foi
preparada durante a vida: uma dama, uma esposa, uma mãe. Além
de não ser adequado excitar-se — a mera palavra já era indecorosa
demais —, mentir e enganar pessoas não era algo que deveria
agitá-la daquela forma.
Os devaneios a distraíram enquanto Bridget fechava o
espartilho, o vestido e ajeitava seus cabelos em um penteado. Vinte
minutos depois, estava pronta para qualquer desafio que a manhã
representasse. Bem, talvez nem todos. Ao chegar ao saguão,
encontrou Charles e Nicholas — e rever seu ex futuro noivo a
deixou um tanto quanto nervosa.
— Livvy. — Charles aproximou-se imediatamente e segurou sua
mão. — Anthony está oferecendo um brunch pela chegada de
Gupta e preciso que me acompanhe.
— Agora?
— Sim.
Ele tinha uma expressão canalha que a irritava e a encantava ao
mesmo tempo. Era uma expressão típica dos Eckley, que conjugava
sobrancelhas grossas e arqueadas com um sorriso que erguia
apenas um canto dos lábios.
— Imagino que tenha se esquecido de mencioná-lo quando
esteve aqui ontem à tarde. Como Annabelle ainda nem deve ter
acordado, levarei Bridget como minha acompanhante.
A camareira já estava acostumada a segui-la, mas Olivia
esperava que não fosse precisar dela durante a temporada. Afinal,
iria com Annabelle a todos os eventos — menos aquele. Como não
era um baile ou sarau que pudesse auxiliar na conquista de um
marido adequado para a irmã, ela perdoaria Charles por fazê-las
perder a oportunidade.
— Estamos ligeiramente atrasados. Podemos ir?
— Claro. Se você me permitir cumprimentar Nicholas antes de
sairmos pela porta…
Charles estava tão próximo e tão presente que quase não a
permitiu ver o outro Eckley atrás dele. Aquele não era um
comportamento incomum. Desde o rompimento com Nick, ela
percebera que Charles sempre se colocava entre eles, sempre a
permitia livrar-se de uma conversa constrangedora ou cumprimentos
que pudessem levá-la a um silêncio incômodo. Mas dois anos já
haviam se passado. Ela e Nicholas não tinham um compromisso
formal e nem mesmo sentimentos que justificassem aquela aparente
proteção.
— É um prazer revê-la, Livyy.
Nicholas se aproximou e, ultrapassando o corpanzil do irmão,
segurou sua mão e levou os dedos aos lábios. Foi impossível não
comparar o que não podia ser comparado. Os dois irmãos eram
muito diferentes. Enquanto o toque de Charles era firme, quente e
se assemelhava a um ataque, o de Nicholas era suave. Ela mal
sentiu o beijo sobre a luva de seda.
— Vamos — Charles insistiu. — Anthony não gosta de esperar,
eu não tolero atrasos e preciso causar uma boa impressão.
Ela segurou o braço dele e pressionou o cotovelo com seus
dedos. Aquele homem enorme ao seu lado não demonstrava, mas
Olivia sabia que ele também ficava nervoso e ansioso quando seus
negócios estavam em jogo.
— Fique tranquilo, mulheres sempre oferecem boas desculpas
para atrasos.
Charles grunhiu e a conduziu até a carruagem. Ele estava de
mau-humor, Olivia suspeitava que fosse por estar bastante
insatisfeito com a situação. Fingir que a cortejava, deixar a
libertinagem e os jogos em segundo plano, posar de homem
respeitável para uma sociedade que o desprezava o mesmo tanto
que ele a desprezava era demais para o Charles que ela conhecia.
Ainda assim, ele estava demonstrando empenho em seu papel e
isso a animava.
Permaneceram em silêncio durante o trajeto até a Casa
Granville. Fazia algum tempo que ela não ia até a casa londrina dos
Eckleys — a Marquesa de Granville costumava dar muitas festas,
mas ela estivera de luto por tempo demais. A residência não mudou
nada desde sua última visita e o mordomo que os recebeu ainda era
o mesmo. Taciturno, com um olhar sempre distante e uma voz que
parecia vinda direto das catacumbas de uma pirâmide, Raja se
parecia com um cadáver.
— Sejam bem-vindos, senhores e senhorita. O marquês e a
marquesa aguardam no jardim.
O dia estava lindo, com sol e brisa que tornava a temperatura
agradável. Olivia animou-se ao saber que o evento seria ao ar livre.
Seguiu pendurada no braço de Charles até a lateral da casa e
manteve-se ereta e com postura impecável para cumprimentar os
anfitriões.
Seus olhos correram pelo jardim assim que pisaram no espaço
aberto. Havia poucas pessoas, uma mesa retangular repleta de
iguarias e várias mesas redondas cobertas com toalhas rendadas,
cada uma rodeada por quatro cadeiras. A decoração era quase
inexistente, toda garantida pelas flores do próprio jardim.
— Finalmente, chegaram! — Anthony Eckley, o Marquês de
Granville, se aproximou. Ele era o irmão mais velho e o mais
elegante dos cinco. Tinha a postura aristocrática ideal, mesmo que
seu comportamento fosse o oposto do esperado pela sociedade.
Ainda assim, sua reputação anterior era pouco relevante em um
mundo que estava sendo dominado pelo dinheiro, não pelos títulos.
— É um prazer revê-la, Lady Olivia.
O marquês beijou seus dedos e a carranca de Charles pareceu
aumentar. Ela precisaria conversar com ele sobre isso. Os homens
da aristocracia fingiam bom humor tanto quanto as mulheres.
— Tive que buscar Olivia e sabe como são as mulheres. Elas
precisam de três semanas para colocar um vestido.
— Que vocês gastam três minutos para retirar. — A marquesa se
aproximou. — Lady Olivia, venha comigo. Vamos deixar que os
meninos resolvam coisas de meninos.
Rosamund Eckley segurou-a pela mão livre e a fez desprender-
se de Charles. O desencaixe a deixou desconfortável. Ela estava
entre amigos. Por que se sentia mais segura ao lado de apenas
um? Era tolice. Estava apegada a Charles, porque ele sabia de seus
problemas financeiros e estava trabalhando para resolvê-los. Com
certeza, preferia sentar-se com as outras mulheres para conversar
assuntos femininos ou nem tanto, já que Caroline Eckley-McFadden,
a excêntrica prima dos Eckleys estava presente. E ela conversava
sobre tudo, menos sobre assuntos femininos.
Olivia e Bridget foram conduzidas a uma mesa onde Caroline
Eckley-McFadden conversava com duas mulheres estrangeiras.
Seus instintos lhe disseram que eram esposa e filha do homem que
Charles pretendia impressionar, já que uma era nitidamente mais
velha do que a outra. As duas pareciam bastante interessadas no
que Caroline dizia, mas era comum fascinar-se por um Eckley até
sem motivos.
— Sra. Gupta, permita-me apresentar-lhe Lady Olivia. Ela é uma
amiga antiga da família do marquês.
A mulher mais velha levantou-se e segurou as duas mãos de
Olivia entre as suas. Aquele era um cumprimento diferente do que
ela esperava.
— É um prazer conhecê-la. Pode me chamar Ishani. Esta é
Saira, minha filha. Estamos muito felizes em visitar a Inglaterra outra
vez.
— Sente-se conosco, Livvy. — Caroline deu dois tapinhas em
uma cadeira ao seu lado. — Estava falando sobre nossa escola
para as Gupta.
— A irmã de Olivia estuda lá. — Rosamund, a marquesa, serviu
mais chá para todas. — Annabelle também estudou, não?
— Sim, as duas. Eu não tive essa oportunidade, mas a escola é
maravilhosa. Minhas irmãs adoram.
— Fico impressionada que mulheres queiram estudar. — Ishani
Gupta estava surpresa. — Mais ainda que homens achem isso
natural.
Caroline começou uma dissertação sobre as diferenças de
educação e no quanto a sociedade seria melhor se todos tivessem
as mesmas oportunidades. Enquanto ela discursava sobre uma
igualdade de gênero que quase poderia ser considerada uma
traição à Rainha, Olivia bebericava o chá e observava seu entorno.
Mesmo sabendo que deveria dedicar atenção às mulheres Gupta, já
que seria providencial se elas a adorassem, seus olhos acabaram
pousando onde estava Charles.
Ele também discursava entusiasmado sobre alguma coisa para
um grupo de cavalheiros — incluindo o indiano. Usava trajes
adequados e era o homem mais bonito entre os que ali estavam. Ela
não deveria achá-lo tão bonito, deveria?
— Vou até a mesa servir-me de alguns bolinhos — ela disse,
levantando-se. — Desejam algo?
— Traga-me uma fatia de bolo.
Caroline pediu e as demais mulheres disseram estar satisfeitas.
Olivia caminhou até a mesa para ouvir melhor a conversa dos
homens. Ela queria perceber qualquer coisa que pudesse ajudar
Charles, mas acabou interpelada por alguém com quem não
esperava interagir naquela manhã. Aliás, com quem ela não
esperava interagir depois que assumira um dos mais respeitáveis
títulos da Inglaterra — e todas as mulheres solteiras passaram a
suspirar por ele.
— Ele é um narrador bastante apaixonado — o Duque de
Greystone disse. Olivia olhou ao redor para confirmar se era com
ela mesma que ele falava. — Entendo por que as mulheres o acham
interessante. Poucos homens conseguem defender suas ideias com
tanto afinco.
— Perdão, Vossa Graça, mas não faço ideia do que está
falando.
Greystone riu e fez uma mesura dobrando o corpo.
— Eu é que peço perdão, milady. Mas a vi deslumbrada pelo
discurso do Sr. Eckley e não resisti a fazer um comentário.
Olivia endireitou a coluna outra vez e continuou colocando
comida no prato. Aquela era a primeira vez que o duque se dirigia a
ela com tanta espontaneidade. Greystone era jovem, por volta dos
trinta anos, e herdara o ducado há pouco tempo. Seu pai falecera há
menos de quatro meses, mas homens não precisavam cumprir o
mesmo período de luto das mulheres. Desde que assumira o título,
tornou-se o partido mais desejado entre todas as solteiras. Mary
Price teria um ataque apoplético se soubesse que estavam
conversando em um brunch.
— O Sr. Eckley é muito inteligente. É bom ouvi-lo discursar.
— Imagino que ele tenha outros talentos para que milady tenha
aceitado seu cortejo. Afinal, ele é um quarto filho…
— Sim, ele possui diversos outros talentos. — Olivia apoiou o
prato na mesa, um pouco disposta demais a defender Charles. A
ponto de interromper um duque. — Se Vossa Graça se aproximou
com a intenção de ofendê-lo, alerto que está perdendo seu tempo.
— Jamais faria isso! — Greystone riu e colocou um pãozinho
inteiro na boca. — Somos amigos, parceiros de jogos. Frequento a
casa dos Eckleys há anos e observo que milady sempre demonstrou
certa preferência por Charles. Uma pena que ele tenha demorado
tanto tempo para decidir-se… agora creio que outros candidatos à
sua mão possam oferecer um casamento mais vantajoso para a
filha de um conde.
Ela piscou diversas vezes enquanto olhava diretamente para o
sorriso dele. O duque tinha a postura relaxada de quem estava
conversando com uma velha amiga — ou de quem estava flertando.
Claro que ele não estava flertando com ela. Certo? A dúvida a
deixou nervosa. Se Greystone se aproximou dela porque tinha
interesse em conhecê-la melhor, isso poderia atrapalhar a fluidez de
seu plano. Ou não.
Parte do plano era obter ajuda de Charles e essa ajuda consistia
tanto na organização de suas finanças quanto na conquista de um
bom partido. Se o duque se aproximou dela por acreditar que ela
era cortejada, por que não aproveitar a atenção?
— Eu e o Sr. Eckley não temos um compromisso formal ainda —
ela jogou uma isca para ver se fisgava Greystone. — Imagino que
os outros candidatos possam ter sua chance.
O duque sorriu. Era um belo sorriso que ela já notara tantas
outras vezes e nunca tivera a oportunidade de admirar tão de perto.
— Se por acaso milady estiver no sarau dos McFaddens e por
acaso houver um espaço vazio em sua caderneta de dança, eu
poderia pleitear uma quadrilha? Ou a polca, talvez?
Céus. Ele estava mesmo flertando. Olivia endireitou ainda mais a
coluna e tentou não deixar que ninguém percebesse que havia sinos
tocando e uma horda de invasores gritando dentro dela. Aquele era
o primeiro flerte sério que ela recebia e vindo justamente de um
duque. Não era qualquer duque, era aquele duque. Depois do
casamento de Aiden Trowsdale alguns anos atrás, não sobrou
nenhum solteiro da alta nobreza. Todos eram velhos demais ou
comprometidos demais — menos aquele.
— Se por acaso milorde atender ao sarau, reservar-lhe-ei uma
dança.

O que o maldito Greystone estava fazendo ao lado de Olivia? Por


que ela estava conversando com ele como se fossem velhos
amigos? Alvoroçado com a exibição improvisada de sua proposta
para a distribuição da seda de Gupta, ele a perdeu de vista para
reencontrá-la sendo cortejada por aquele patife.
Cortejada? Não, obviamente que não. Mas ele mandaria a
amizade com Greystone para o fundo do Tâmisa se o canalha
continuasse rodeando a sua mulher.
Charles fechou os olhos e colocou as mãos nas têmporas.
Aproveitou que Anthony estava em um interminável falatório sobre o
mercado americano em concorrência com o mercado inglês para
respirar profundamente e colocar os pensamentos no lugar. Ela não
é sua. Ela merece um marido como Greystone, um duque e um
membro atuante do Parlamento.
Suas decisões não eram tomadas pela razão quando o assunto
era Olivia Trentham. Charles virou-se e a convidou a aproximar-se
com um gesto de cabeça. Ela hesitou, mas despediu-se do duque
com uma mesura e veio em sua direção. Senti-la ao seu lado foi
como uma lufada de ar fresco depois de um dia de calor.
— Senhores, gostaria de apresentar-lhes Lady Olivia. — Ele a
introduziu aos homens, mesmo aos que já a conheciam.
— É um prazer conhecê-la, minha jovem — Gupta fez uma
reverência desajeitada. — Bharat Gupta.
— O prazer é meu, senhor.
— Se me dão licença, preciso comer algo. — Ele tratou de
dispensar a companhia dos homens com quem já estava há mais de
uma hora para afastar Olivia dos olhares interesseiros de
Greystone. Depois descobriria se o duque estava realmente
interessado nela ou se apenas queria causar uma cena. —
Acompanha-me, milady?
Olivia sorriu e assentiu, segurando-o pelo braço. Ao invés de
seguir com ela de volta para a mesa do brunch, Charles fez uma
volta por entre as mesas e levou-a até outra parte do jardim. As
sebes e flores nos fundos eram menos vistosas, mas podiam
escondê-los dos outros convidados. O que era um problema, porque
isso poderia comprometê-la.
Não que Charles estivesse realmente preocupado com isso. Só
que ele amava Olivia, aquele tipo de amor que não toleraria vê-la
obrigada a nada, por isso recusava-se a dar vazão a seus desejos e
arruiná-la. Arruinada, ela só teria uma escolha: ficar com ele. E ele
não queria tê-la por falta de opções, mas porque seu amor era
correspondido.
Nada disso aconteceria e seus pensamentos estavam uma
bagunça desde que a vira conversando com Greystone. Tudo
desabou e sua concentração se perdeu inteiramente. Um dia ela se
casará, seu tolo. O que fará? Provavelmente, ele se mudaria para
os Estados Unidos para viver com Leonard em sua vida de
devassidão. Se a ver em uma interação inocente com um amigo já o
deixou tão desorientado, vê-la beijar outro homem seria sua morte.
Sua segunda morte.
— Pensei que ia comer — ela provocou, recostando-se na
balaustrada que dava para a rua. Sorte. O jardim não era isolado a
ponto de fazer com que eles estivessem em um escândalo apenas
por ficarem a sós.
— E eu pensei que isso na sua mão fosse comida. — Charles
pegou um dos bolinhos que estavam no prato que Olivia segurava.
— Sua prima Caroline está esperando essa fatia de bolo. Por
que viemos para cá?
— De onde conhece Greystone?
Olivia franziu a testa e o fitou com uma expressão confusa.
— De vários eventos sociais, desde quando ele ainda era o
herdeiro do ducado. Ele é um de seus concorrentes?
— Não, ele investe seu dinheiro em outras coisas. Greystone
quer cortejar você?
— Céus, Charles, de onde saiu esse interrogatório? — Ela riu. —
Por favor, não leve tão a sério a sua função de cuidar da família, não
precisa agir como se fosse meu pai. E se ele quiser?
Ele suspirou e também se recostou no parapeito, olhando para o
movimento de ir e vir da rua. Cavalos, carruagens e pessoas
misturadas em um espaço que quase não lhes cabia. Quando fosse
reconstruir St. James, precisava garantir ruas maiores.
— Devo alertá-la que Richard Cadden não é um homem que
leva mulheres a sério.
— Vocês têm isso em comum, então.
Ela tornaria aquela conversa bastante difícil. Olivia não era
acostumada a levá-lo a sério porque Charles sempre fez o seu
melhor para ser considerado uma piada. Não queria que ela olhasse
para ele e visse o que seus olhos diziam — que ele a amava e a
queria além da decência. Sempre que a conversa entre eles entrava
na perigosa zona dos sentimentos ele dava um jeito de desviá-la
para lugares mais seguros.
— Mas eu não partirei seu coração.
— Oh, Charlie, nem ele. O Duque de Greystone é um dos
melhores partidos da temporada e eu adoraria ser cortejada por ele,
claro. Mas não estou apaixonada por ele.
— Agora, não. Mas eu sei que mulheres têm esses delírios
românticos e que meros mortais jamais são capazes de atingir seus
padrões. Se ele se aproximar, quem garante que você não criará
uma fantasia em que já estão casados, morando em Greystone
Farm com três crianças de cabelos escuros e olhos azuis?
Ela deu uma risada e lá estava ele transformando um assunto
sério em uma brincadeira mais uma vez.
— De todas as mulheres de Londres, eu sou a menos suscetível
a devaneios. Pare de ser tão protetor e me ajude. Se Greystone
estiver querendo se aproveitar de mim, como saberei?
Antes que ele pudesse respondê-la, Olivia colocou a mão
enluvada sobre a dele e apontou para um cão que tentava se
desviar de uma carruagem. O pobre animal estava sujo de poeira e
com o pelo embaraçado.
— Charles, veja! Precisamos salvá-lo. — O tom de sua voz era
aflito. — Se permanecer na rua, será atropelado. Veja como
ninguém se importa com o cãozinho!
— É um cão de rua, Livvy. Deve estar cheio de doenças.
— Se você não fizer nada, eu farei. Não deixarei que morra
pisoteado por cavalos.
Charles se esquecera por um momento de como ela era
apaixonada por cães e de como o comportamento dela podia mudar
de um instante para outro. A comedida Olivia logo deu lugar a uma
mulher determinada que passou uma das pernas por sobre a
balaustrada na intenção de atirar-se no meio da rua. O movimento
expôs as meias pretas que ela usava e o vestido se ergueu quase a
ponto de expor os laçarotes da calçola. Cristo! Ele não sabia se a
agarrava para impedir aquele absurdo ou se aproveitava a
oportunidade de ver partes do corpo dela que jamais veria.
Ele acabou escolhendo a primeira opção. Adoraria ver Olivia
despida, mas não na frente de todo mundo. Algumas pessoas que
passeavam pela via já viravam os pescoços para vê-la quase
pulando a mureta do jardim e, se ele estava com ciúmes de uma
conversa com Greystone, poderia matar quem visse as panturrilhas
dela.
— Acalme-se, eu o resgatarei! — Charles segurou-a pela cintura
e a fez voltar para dentro do jardim. O corpo de Olivia apoiou-se no
seu e a maciez do contato quase o fez abandonar a razoabilidade e
beijá-la. Estava cortejando-a, poderia beijá-la, se ela consentisse.
Mas, se fizesse aquilo e fosse pego, ele a arruinaria a não ser que
se casassem. O que também representaria a ruína dela. — Fique
aqui, já trarei o saco de pulgas.
Charles pulou o muro do jardim e cruzou a rua até o cão. O bicho
latiu e rosnou quando o viu, acuando-se em um beco cheio de
entulhos. Ele virou para o jardim e Olivia continuava ali, com as
mãos agarrando a borda da mureta.
— O bicho é arisco, ele está fugindo da gente desde cedo. —
Uma criada que limpava tapetes nos fundos da casa onde
trabalhava tentou ajudá-lo. — Se quiser pegá-lo, precisa usar uma
isca. Espere que trarei um pedaço de carne. — A mulher
desapareceu pela porta e retornou com um toucinho defumado que
cheirava bem. O estômago de Charles roncou, porque ele ainda não
havia se alimentado o suficiente desde que acordara. — Ofereça
isso a ele, deve atraí-lo para o senhor.
Ele agradeceu com um movimento de cabeça e balançou o
toucinho na frente do buraco, onde o cão tentava se manter
escondido.
— Venha cá, pulguento. Se eu não levá-lo comigo, Olivia não me
perdoará. Você não vai me fazer ficar mal diante de todas essas
pessoas, vai?
O cachorro deu mais alguns latidos e rosnados, seguidos de dois
passos na direção de Charles.
— O que você está fazendo?
A voz de Nicholas ecoou pelo espaço aberto, quase abafada
pelo ruído dos cascos de cavalos que batiam no pavimento de
pedras. Charles se virou para confirmar que se tornara a nova
atração do brunch — todos os convidados estavam apoiados na
mureta para vê-lo em ação. O quão patético aquilo era? Esperava
que Gupta gostasse de animais e achasse seu gesto heroico.
— Resgatando esse mal-agradecido — ele berrou. — Venha,
criatura, não me faça implorar.
— Dê um passo até ele e ofereça as costas da sua mão para ele
cheirar! — Olivia disse, e ela estava quase pulando o beiral de novo.
— Precisa ganhar a confiança do pobrezinho.
Ele não queria ganhar a confiança de ninguém, queria retornar
para o brunch e comer alguma coisa sem ter que aguentar o Duque
de Greystone tentando seduzir Olivia ou sem preocupar-se em
pegar uma doença mortal ao resgatar um cão sarnento. Mas, como
a chegada de Bharat Gupta a Londres representava a expiação de
seus pecados, ele não se safaria com facilidade.
— Venha, bicho. — Charles fez o que Olivia orientou. — Pegue o
toucinho, está tão cheiroso que sou capaz de comê-lo antes de
você.
Levando o pedaço de carne até a boca, ele simulou que o
mastigava. O cão ganiu e se aproximou mais, cheirando-o até
sentar-se à sua frente. Charles baixou o toucinho e ofereceu um
pedaço ao bicho, que aceitou. Logo o pulguento o estava permitindo
acariciar-lhe o pelo ensebado e cheio de nós.
— Use isso para pegá-lo.
A criada que forneceu o toucinho se aproximou com um cobertor
velho que cheirava a poeira. O animal olhou desconfiado para ela,
mas preferiu continuar comendo a fugir. Também permitiu que
Charles o enrolasse com o pedaço de pano e o pegasse no colo.
Ao retornar para a Casa Granville segurando o cão nos braços,
seus olhos procuraram por ela. Olivia estava sorrindo e tinha as
duas mãos sobre o peito. Valia a pena embolar-se em um bicho sujo
para fazê-la sorrir.
Capítulo sexto

O
transformou-se em caos. Olivia sabia que era responsável por ele,
mas não conseguiu se importar com isso enquanto banhava o cão
pulguento com a ajuda de criados e dos filhos de Anthony e
Rosamund Eckley. As crianças estavam eufóricas porque não havia
cães na Casa Granville — ela se lembrava de que a família não era
muito afeita a animais de estimação. Phillip, o primogênito do
marquês, estava quase dentro da tina de madeira que usavam como
banheira.
Ela estava ali para ajudar Charles a se mostrar um homem
respeitável e o que fizera? Convencera-o a ir ao resgate de um cão
perdido. Ao menos a Sra. Ishani Gupta pareceu considerá-lo
bastante romântico ao fazer as vontades da mulher amada. Ah, se
ela soubesse…
— Quando terminar de banhá-lo e secá-lo, pode mantê-lo em
uma guia até que eu retorne? — perguntou ao jovem criado que
esfregava o pelo encardido.
— Claro, milady. Ele é um bom garoto, vai ficar bem depois que
acabarmos com essas pulgas. Milady vai ficar com ele?
— Sim, eu vou. — A resposta saiu automática, com se não
houvesse opção. Afinal, o que poderia fazer depois de praticamente
obrigar Charles a retirá-lo das ruas? — Cuide dele para mim até que
possa levá-lo para casa.
Depois de secar as mãos e confirmar que seu vestido não estava
arruinado pelos respingos de espuma e água, Olivia deixou a
bagunça nos fundos da casa e seguiu atrás de Charles. Perguntou
aos criados onde ele estava e ninguém parecia tê-lo visto.
Considerando a imundície em sua roupa depois do resgate,
imaginou que ele procuraria outra para trocar. Como conhecia todos
os cômodos da Casa Granville, ela apenas subiu as escadas na
direção dos quartos e entrou naquele que costumava pertencer aos
gêmeos.
Claro que foi uma péssima decisão. Aliás, aquele poderia ser
considerado o dia oficial das escolhas ruins. Foi uma ideia horrorosa
abrir a porta sem bater antes, estar ali sem sua acompanhante ou ir
atrás de Charles, porque queria agradecê-lo pelo que ele fez. Ficou
ainda pior por encontrá-lo sem camisa, de costas para ela, lavando-
se com um pano embebido em água.
Tudo bem. Aquela não era a primeira vez que ela o via. Aquelas
costas não lhe eram novidade, eram? Charles era indecente, ele
ficava constantemente despido quando estavam em Thanet.
Inventava desculpas para perambular sem camisa pela propriedade,
escandalizando até os homens com quem cruzava. Os Eckleys
eram daquele jeito.
Mas Olivia não se lembrava dos detalhes daquelas costas, nem
que elas eram tão grandes. Aqueles músculos já estavam ali antes?
As cicatrizes ela tinha certeza de que não. Céus, havia dois furinhos
na região lombar, bem onde a calça começava a cobri-lo. Ela
continuou descendo o olhar pelo volume redondo das nádegas e
pelas coxas que estufavam o tecido.
O que estava acontecendo com ela? Há meia hora estava
suspirando pela atenção recebida do Duque de Greystone e, então,
suspirava confusa com a confirmação de que seu amigo com quem
fingia um cortejo era um homem e tanto.
Como ele pareceu não percebê-la, Olivia deu alguns passos
para trás na intenção de sair da mesma forma que entrou — em
silêncio. Falhou. Tropeçou em um vaso decorativo que ficava
próximo da porta e quase caiu ao chão com o artefato de porcelana.
O barulho fez Charles se virar e o que ela viu foi ainda mais
assustador. Um torso masculino forrado por um tapete de pelos
escuros que seguia até o cós da calça — cujos botões estavam
abertos.
— Por tudo que é mais sagrado, Olivia Trentham! O que diabos
está fazendo aqui? —ele ralhou, mas não procurou se cobrir.
Agarrar um lençol ou esconder-se no banheiro deveria ser a reação
mais lógica, não deveria?
— Eu vim… eu queria… acho melhor eu…
Nenhuma frase completa saiu de sua boca. Olivia nunca se
sentiu intimidada por Charles Eckley e, naquele momento, estava
com as costas coladas na parede como se o homem fosse capaz de
mantê-la ali apenas com o olhar. E ele a olhava não como se ela
fosse a Livvy, sua amiga de infância, mas uma presa invadindo o
perímetro do caçador.
Sem pressa alguma, Charles pegou uma camisa sobre a cama e
começou a vestir-se. Seus olhos acompanharam os movimentos
dele.
— Onde está o sarnento?
— Os criados o estão banhando. — Ela se recompôs. — Eu o
levarei para casa assim que o brunch terminar. Vim aqui para
agradecê-lo.
— Vocês estava na iminência de lançar-se na rua, eu não tive
muita opção. — Charles abotoou a camisa e ela não conseguiu
parar de olhá-lo. — O fedorento destruiria esse seu vestido bonito
cheio de rendas.
Olivia sentiu sua boca seca no instante em que os dedos longos
dele tocaram nos babados que cobriam seu colo. Quando foi que
ele chegou tão perto? Fez-se um silêncio ruidoso em que as batidas
de seu coração retumbavam escandalosas e ela teve medo que ele
pudesse ouvi-las. O dedo de Charles, aquele mesmo que se
enrolara no laço de fita em seu pescoço, subiu trilhando um caminho
sinuoso até tocar-lhe o queixo. Foi tão suave, tão sutil que ela mal
notou o deslizar em sua pele. Foi suficiente para incendiá-la em um
lugar onde não sabia que podia pegar fogo.
Seus olhos baixaram. O peito de Charles subia e descia no ritmo
da respiração e a proximidade entre eles era demais para o decoro.
A porta estava entreaberta, mas ela estava no quarto de um
homem, sozinha, e ele nem mesmo estava completamente vestido.
— Vamos descer. — Ele rompeu o fio invisível que os mantinha
paralisados e se afastou bruscamente, virando-se de costas. —
Espero que imaginem que você esteja cuidando do cachorro.
Ela também esperava. Continuou se apoiando na parede até que
suas pernas, moles como pudim, recuperassem as forças — e até
que Charles vestisse o colete e o paletó para acompanhá-la até o
andar de baixo.
Londres, 17 de abril de 1898
Brooke Street

— Hoje temos o sarau dos McFadden! — Annabelle invadiu o quarto


de Olivia por volta das quatro da tarde. — É normal estar muito
animada pelo primeiro grande evento da sua temporada de estreia?
Depois da estreia, é claro.
O sorriso na face da irmã a fez sorrir, também. Assim que
chegou do brunch na Casa Granville, Olivia se trancou no quarto e
permaneceu ali, deitada, com a cabeça enfiada no travesseiro
enquanto as imagens da manhã passavam em uma repetição
interminável na frente de seus olhos fechados. Seu dia era sempre
tão organizado e planejado, sua vida representava toda uma
programação a ser cumprida, e foram necessários poucos dias para
que tudo se transformasse em puro caos.
Por tudo o que era sagrado, o que estava havendo? Conhecia
Charles há mais de uma década, convivia com ele diariamente,
sabia de todas as suas impertinências e indecências, estava
acostumada à falta de decoro e às bebedeiras. Nada disso a afetara
antes — até aquele bendito acordo em que fingiriam um cortejo. O
combinado girou uma chave que abriu a porta para um
compartimento secreto dentro dela e Olivia não sabia se queria
saber o que tinha lá dentro.
Ela não gostava da desordem. Não gostava do inesperado, da
surpresa e da aventura — queria uma vida tranquila, calma,
previsível. Queria ser uma dama, a esposa de alguém e mãe de
crianças lindas e felizes. Sabia que seu marido seria um conde ou
um marquês, talvez um duque — e ela seria uma condessa, uma
marquesa ou uma duquesa que atuava na sociedade para melhorá-
la de alguma forma.
Queria tudo o que fora acusada de fantasiar — inclusive as
crianças de olhos azuis e cabelos escuros correndo por um campo
verde na primavera. Não era isso que o pai previra para ela ao
decidir que deveria se casar com um nobre com título? Segurança,
uma posição na sociedade, a garantia de um futuro brilhante? E aí
veio Charles Eckley para fazê-la se esquecer desses planos e
gastar uma tarde inteira delirando sobre ombros, braços, músculos e
pelos. Seriam eles macios? Os pelos, não os músculos. Céus, ela
estava mesmo desvairando.
— É normal, Belle. — Olivia sentou-se e ajeitou as almofadas em
suas costas. A irmã pulou sobre a cama. — Eu também estava
nervosa e muito ansiosa por meu primeiro baile. Você estará entre
amigos, então será mais fácil agora do que foi antes, na presença
da rainha.
— Não fiquei nervosa com a rainha. — Annabelle se deitou e
abraçou um travesseiro. — Mas estou com a possibilidade de
conhecer o meu futuro marido. Quero alguém que me ame. Sei que
amor é opcional e bastante incomum nos casamentos, mas adoraria
me casar com alguém que olhe para mim como Charles olha para
você. Mesmo que papai tivesse outros planos.
Olivia teve uma súbita crise de tosse. De onde Annabelle tirara
aquilo?
— Você não quer um homem assim. Charles é um libertino, ele
olha de forma libidinosa para todas as mulheres.
Annabelle riu e se levantou. A irmã era exageradamente
romântica e costumava delirar sobre sentimentos onde eles não
existiam.
— Ele nunca olhou de forma libidinosa para mim. Charles é
nosso amigo há anos, ele me vê como uma irmã e percebemos isso
na forma como cuida de nós. Sim, ele olha para algumas mulheres
como um libertino faria, mas é diferente com você. Por que ele a
estaria cortejando?
Talvez ela tivesse que contar a verdade para evitar aquele tipo
de confusão. Toda a sociedade deveria acreditar que outro Eckley
fora apreendido pelas amarras do amor ou, pelo menos, que ele
estava disposto a formar uma família dentro dos padrões exigidos.
Mas sua irmã não podia ficar iludida achando que o flerte entre eles
não era um teatro. Porque era.
Charles jamais se interessaria de verdade por uma mulher como
ela. Olivia era recatada, usava roupas sóbrias e de acordo com o
decoro, era bem-vista por todas as mulheres da sociedade, bem-
recebida em todos os eventos e até mesmo despertava o interesse
de alguns cavalheiros da aristocracia. Charles gostava de mulheres
que se rendiam aos prazeres carnais, que usavam cabelos soltos e
vestidos com decotes — aquelas que frequentavam os clubes, as
tabernas e os prostíbulos de Londres.
Ela não gostava daquela distinção que pairava sobre homens,
mulheres e crianças. Incomodou-a ver que Greystone considerava
Charles um partido ruim por não ser tão aristocrático quanto ela
merecia, incomodava-a saber que havia mulheres que, por seus
comportamentos e vestimentas, eram rejeitadas em determinados
grupos.
E talvez a incomodasse que todos pensassem que apenas o
título de nobreza significava a excelência de um homem. Ela
conhecia péssimos exemplos que não honravam a história de suas
famílias, então por que considerar todos os nobres como homens
decentes sendo que não eram?
— Belle, preciso confessar para você uma coisa. — Olivia
segurou as mãos da irmã. — Charles não está me cortejando de
verdade. Estamos, digamos, fingindo para um bem maior. Assim ele
pode passar mais tempo conosco e nos ajudar com o problema das
finanças e eu posso ajudá-lo a parecer respeitável.
A porta do quarto foi escancarada e três criaturas peludas
entraram correndo e latindo. O cão resgatado, cujos pelos
embolados já tinham sido cortados, era perseguido pelos dois
Spaniels da família. Assustada, a criatura ainda sem nome pulou
sobre a cama e refugiou-se no colo de Olivia. Tobby e Bobby
subiram atrás e continuaram a rosnar e a protestar pela presença do
intruso.
— Então tudo isso é uma espécie de farsa. Ele ganha
respeitabilidade e você ganha um protetor e atrai mais atenção dos
homens solteiros.
— É mais ou menos isso. E parece que está dando certo, pois o
Duque de Greystone me notou hoje, no brunch.
Annabelle afagou o cão resgatado e ele lambeu sua mão.
— Certo, agora faz sentido. Não imaginei que você fosse abrir
mão da herança assim tão facilmente.
— Isso faz com que eu pareça fútil — Olivia resmungou.
— Não é futilidade querer cumprir os desejos póstumos de papai
nem querer receber os bens que eles nos dedicou. Mas você é uma
mulher decente e muito adequada, Livvy. Não costuma fazer as
coisas apenas porque quer, mas porque são as coisas certas a se
fazer.
Ela quis ignorar aquela afirmação. Estava começando a se
cansar de ser vista como um exemplo de pureza e propriedade.
— Então você agora sabe: eu e Charles somos uma farsa.
— Sei. E isso não muda em nada o que disse. Ainda quero um
marido que me olhe como Charles Eckley olha para você. Um que
seja capaz de pular um muro e colocar-se em uma posição de
humilhação apenas porque você pediu que ele resgatasse essa
criaturinha muito feia. Vou começar a me arrumar para o sarau,
quero estar deslumbrante.
A irmã saiu sem permitir que ela replicasse. O que poderia dizer?
A menina fantasiava. Tinha apenas dezenove anos e ainda vivia as
ilusões dos livros de romance que lia. Bem, Olivia também adorava
romances, mas não era uma sonhadora como Annabelle e as
amigas. Ela, Mary e Esther viviam em no mundo dos sonhos e
aquilo a preocupava — a vida real podia ser bem mais complicada
que a vida das mocinhas de Jane Austen ou das irmãs Brönte.
Deixando o cão medroso no chão, ela se sentou à sua
escrivaninha e abriu seu caderno. Rabiscou algumas das situações
do dia e projetou alguns eventos que poderiam ajudá-la a ajudar
Charles. O evento em Hampshire era seu principal trunfo, mas havia
outros momentos em Londres que precisava considerar. Não podia
mais se deixar deslumbrar por discursos inflamados ou cães
abandonados. Ela tinha uma missão. Olivia Trentham com uma
missão era imbatível.

Londres, 17 de abril de 1898


McFadden Garden
Ele detestava dançar. Detestava bailes, saraus, jantares e outros
eventos da aristocracia. Por uma temporada inteira, Charles evitou
aqueles eventos como evitava doenças venéreas, mas sua paz se
acabara. Maldito fosse Gupta e suas exigências ridículas que o
obrigavam a relacionar-se com aquela gente outra vez.
O desprezo de Charles pela aristocracia começou sem marco
definido, ele apenas acordou um dia compreendendo que não
pertencia ao grupo. O quarto filho de um marquês não tinha valor
algum para a alta sociedade britânica. Se a nobreza não o
respeitaria, ele também não se esforçaria mais para respeitá-la ou
conviver com ela. Estava declarada a sua ruptura com a
aristocracia.
Ele também detestava aquele lugar. Foi ali, na McFadden
Garden, há três anos, que Olivia e Nicholas partiram seu coração e
ele nunca mais conseguiu encontrar todos os cacos para remendá-
lo. Desde então, nunca mais visitou a residência londrina da família
McFadden. Se voltasse àquele jardim, encontraria os restos de sua
alma que ficou para trás naquela fatídica noite?
O passado precisava permanecer no passado, mas lá estava ele
de volta, com traje completo e chapéu, usando uma gravata tão
brilhante quanto os milhares de luzes que iluminavam a magnífica
entrada, sendo anunciado por um criado elegante.
— Senhores Charles e Nicholas Eckley.
Após uma temporada inteira de abstenções, sua chegada
causou certo impacto. Não que ele desejasse ser visto — ele
precisava. Aquelas pessoas ali tinham que acreditar que Charles
Eckley estava retornando para o rumo esperado, para os padrões
de respeitabilidade estabelecidos por sabe-se lá quem. Enquanto
descia as escadas na direção do salão de baile dos McFaddens,
seus olhos procuravam por ela. Mesmo que todos o vissem, ele não
via ninguém. Vestiu um sorriso e balançou a cabeça em
cumprimentos estéreis até que a encontrou.
De pé em um canto, ela estava acompanhada de Annabelle e
outra jovem dama que conhecera na biblioteca da Casa Salisbury
dias antes. Com um vestido da sua cor preferida e cabelos
perfeitamente arrumados em um penteado da moda, Olivia tornava
muito difícil resistir-lhe. Como poderia fingir indiferença diante de
tamanha beleza?
— Circularei por aí. — Nicholas disse. — Precisa de mim para
alguma coisa?
— Não, divirta-se.
Charles sabia que seria mais fácil se o irmão não estivesse por
perto. Céus! Ele era uma besta ciumenta. Por vezes acreditava que
um demônio tivesse fugido do inferno para se apossar de seu corpo
e tomar decisões ruins — ou fazer coisas desprezíveis em seu lugar.
Ele não odiava o demônio, achava-o uma companhia agradável,
mas precisava estar em posse de suas faculdades mentais naquela
noite.
Um garçom ofereceu champanhe. Ele pegou uma taça e
caminhou displicente na direção do grupo de mulheres, tentando
não parecer nem ansioso, nem frio demais. A cada passo que dava,
seu coração martelava mais alto. Qualquer um que dele se
aproximasse poderia ouvi-lo retumbar em seu peito. Patético.
— Boa noite, miladies — cumprimentou-as com uma reverência.
— Lady Olivia, gostaria de reservar a sua primeira dança.
A jovem que a acompanhava arregalou os olhos. Olivia sorriu e
estendeu para ele o caderno de danças ainda vazio. Charles não
sabia se tinha raiva — porque os homens eram burros o suficiente
para não ver o quanto ela era maravilhosa — ou se respirava em
alívio — porque nenhum outro a teria nos braços antes dele naquela
noite. Escreveu seu nome na primeira dança, que seria uma valsa, e
maldisse em silêncio quem escolheu a seleção de músicas.
Quis escrever seu nome em todas as danças. Quis reivindicar
Olivia como sua, marcá-la para os olhares de todos e deixar claro
que aquela mulher era sua. Exceto que ela não era e homens
respeitáveis não dançavam várias vezes com a mesma dama em
um mesmo baile. Eles não tinham nenhum compromisso formal,
então teria direito a uma segunda dança. Escolheu a polca e
também escreveu seu nome nela.
— Você já conhece Lady Mary Price. — Olivia apontou para a
amiga de grandes olhos verdes e cabelos louro-escuros. — Ela é a
filha mais nova do Barão Greystoke.
Charles segurou a mão estendida da jovem e roçou os lábios em
seus dedos. A moça tinha uma postura tão ereta quanto as outras
damas e era mais do mesmo da aristocracia. Antes que pudesse
livrar-se das mulheres e procurar alguma atividade masculina, a
pequena orquestra começou a tocar. Os casais se organizaram na
pista de dança. Ele suspirou. Malditas fossem as convenções
sociais.
Olivia estava ansiosa quando segurou sua mão e o acompanhou
até a pista. Primeiro, ele pensou que fosse um nervosismo
decorrente da farsa que estavam encenando, mas percebeu que ela
queria dançar. Com ele? Não, ela dançaria com qualquer homem
que assinasse aquele caderno em branco. Ela adorava música e
festas, ele sabia disso desde que eram jovens e usavam roupas
curtas.
Talvez ele pudesse tê-la tirado para dançar outras vezes, mas
Charles não era forte o bastante para suportar tê-la em seus braços.
Naquela noite, ele pagaria todos os pecados que cometeu e os que
ainda cometeria. Teria crédito com o divino por submeter-se a
tamanha tortura. Nos primeiros acordes da bela peça clássica de
Strauss, ele segurou-a com uma mão nas costas e começou a girar
pelo salão.
— Pensei que não viria. — ela disparou, assim que se sentiu
segura para conversar. — Você chegou tarde.
— Desculpe-me, tive alguns contratempos no trabalho.
— O indiano vem ao sarau?
— Não, ele teve outros compromissos. Isso significa que há mais
gente influente querendo recebê-lo para me tirar da disputa.
Precisarei de sua ajuda com aquele evento em Hampshire, Livvy.
— Venha me visitar amanhã — ela quase sussurrou. Próxima
demais. — Faremos uma lista e enviaremos os convites. Vamos
marcar para o próximo final de semana.
O sorriso malicioso que ela lhe lançou fez com que Charles
sentisse seus ossos doerem. Ele nunca deveria ter aceitado aquele
acordo — Gupta não valia o sofrimento de tê-la em seus braços sem
poder beijá-la. Sobrava-lhe a decência de sorrir de volta e
empenhar-se de dar a ela a melhor experiência de valsa de sua
vida. Por longos sete minutos ele manteve os olhos nos dela, cuidou
de guiá-la com maestria e garantiu que todos estivessem olhando
quando, ao final da dança, conduziu-a de volta até suas amigas.
Capítulo sétimo

E
. Suas amigas dançaram com cavalheiros
distintos. Sua irmã dançara com Lorde Ambrose, um jovem visconde
de olhos vibrantes e muito elegante. Todas estavam ali,
conversando animadas sobre seus parceiros e ela se sentiu um
pouco deslocada. O que diria?
Se fosse a verdade, teria que falar que nunca, jamais, em
nenhuma hipótese imaginou que Charles pudesse valsar tão bem.
Era como se a valsa tivesse sido criada para que ele a dançasse.
Também teria que dizer que ele a segurava com firmeza e gentileza
ao mesmo tempo que mantinha uma proximidade escandalosa
durante a dança. Precisaria contar que ele cheirava a sândalo e
roupa limpa, masculino e elegante. E, por fim, teria que confessar
que desejou, por mais de uma vez, recostar-se no ombro dele para
pedir que a beijasse.
Céus. Ela quis ser beijada por Charles Eckley. O ponche não
estava tão forte assim, estava? Certo, ela precisava mentir.
— Você foi a sensação da noite — Esther provocou. — Confesso
que estava cética quanto a esse seu cortejo pelo Sr. Eckley.
— Brett também estava. — Mary Price se aproximou. Brett era
seu irmão mais velho, o herdeiro do baronato. — Afinal, ele é um
Eckley.
— Dois Eckleys já se casaram, suas bobas — Annabelle a
defendeu, como se ela precisasse. — E qualquer um pode ver que
Charles adora Olivia. Menos ela, pelo visto.
— Você tem outros pretendentes, Olivia?
Não, ela não tinha, e isso a preocupava o suficiente para achar
que precisava daquela farsa para ajudá-la. Já com vinte e quatro
anos, não era mais uma jovem debutante que atraísse a atenção
dos melhores partidos. Se não conseguisse um bom casamento
naquela temporada, ficaria oficialmente velha demais para despertar
o interesse de um marido decente.
— Sim. O Duque de Greystone demonstrou interesse em me
cortejar.
Era uma meia verdade. O duque demonstrou interesse, sim, mas
não pedira para cortejá-la. Mary, Esther e Annabelle arregalaram os
olhos.
— Um duque! — Esther deu um gritinho.
— Jovem e bonito! — Mary bateu palmas.
— Rico, jovem e muito bonito! — Esther corrigiu-a. — Você já
deveria colocá-lo em primeiro lugar no seu caderninho, Olivia!
Ela precisava sair do toalete. Aquela conversa era outra que a
faria perder a cabeça, ainda mais depois que todas descobrissem
que Greystone não estava tão interessado nela. Bem, eles estavam
flertando, não estavam?
— Certamente — Olivia desconversou. — Vou voltar para o
salão, meninas. Vamos, Belle? Seu cartão está cheio, logo os
pretendentes virão para reivindicar a próxima dança.
A irmã a seguiu até o salão e Charles não estava mais a vista.
Havia muita gente conversando e ela sentiu uma súbita vontade de
beber uma taça de champanhe. Uma, apenas uma, não seria uma
transgressão tão grande. Aproveitando um garçom que passava
com uma bandeja cheia de taças borbulhantes, Olivia pegou uma
para si e outra para Annabelle e voltou para o lugar onde as damas
costumavam se reunir.
Ainda estava um pouco zonza pela dança, pela conversa e pela
efervescência da bebida quando foi interpelada pelo duque. A irmã
acabara de ir para a pista de dança com Lorde Bentham, seu par na
quadrilha, e ela ainda tinha quatro danças até a polca que Charles
reservara. O salão estava cheio e as pessoas tinham pouco espaço
para circular, mas a presença do Duque de Greystone ao seu lado
não era coincidência.
— Milady. — Ele segurou-a pela mão. — É um prazer revê-la.
— Vossa Graça. — ela sorriu. — Então o senhor apareceu.
— Por acaso. — O duque beijou-lhe os dedos. — Há alguma
dança ainda disponível em seu cartão?
Ela engoliu um gole do champanhe e ergueu o cartão para ele
sem nada dizer. O duque sorriu — um sorriso que a lembrou
bastante um Eckley — e escreveu seu nome na valsa logo antes da
polca. Pendurou de volta o cartão em seu pulso e afastou-se,
deixando-a em um êxtase confuso. Ela não podia se deixar perder
pelo caminho, mas seria difícil seguir em linha reta recebendo tanta
atenção masculina.
Londres, abril de 1898

Casa de jogos de Riderhood


Cartas, uísque e uma mulher em seu colo — essa sempre foi a sua
combinação preferida. O Paraíso seria se a mulher em questão
tivesse dedos habilidosos e estivesse com as mãos dentro de suas
calças. Foi por isso que Charles procurou o clube de Riderhood
assim que terminou de lidar com a burocracia de comparecer ao seu
primeiro sarau depois de alguns anos. Ele precisava de qualquer
coisa que o distraísse de Olivia.
— Vejam se não é o terceiro Eckley prestes a se comprometer.
— O Duque de Greystone se sentou à mesa de vinte e um antes de
iniciada a quinta rodada. Charles já limpara os bolsos de dois
cavalheiros e estava prestes a deixar o próprio irmão sem fichas. —
Como ficaremos sem nossos mais firmes representantes da
resistência?
Greystone era um imbecil. Talvez sua opinião estivesse
obnubilada pela excessiva interação do duque com Olivia. Uma
interação que ele nunca percebera e que estava começando a irritá-
lo — principalmente depois de vê-lo valsando com ela no sarau.
Aquela visão fez com que o demônio se apossasse dele outra
vez e determinou que precisava ir embora daquele lugar.
— Não existe resistência quando estamos falando sobre lindas e
sedutoras damas. — Riderhood se aproximou e serviu uma dose de
seu conhaque especial para os jogadores. — Você deveria pensar
nisso, Greystone. Pretende que seu título morra com você?
— Eu me importo quase nada com o título. — O duque jogou
uma moeda sobre a mesa. — Dê-me cartas.
— Esse é o único motivo pelo qual eu o aceito em minha mesa
— Charles resmungou. Seu humor não estava dos melhores por
culpa do próprio Greystone. — Mas pensei que estivesse cogitando
se casar, já que decidiu direcionar sua atenção para uma dama
específica. Distribua as cartas, Roger.
O crupiê distribuiu as cartas e o jogo teve início. A sorte
acompanhava Charles como uma maldição.
— Do que está falando?
— Não seja cínico. — Charles rosnou enquanto arrumava a mão.
— Eu o vi dançando com Olivia.
— Tem lugar para mais um? — Grant Sawbridge, um dos mais
poderosos industriários do ramo das ferrovias puxou uma cadeira.
— Preciso de distração depois de enfrentar mais um dos tediosos
eventos da aristocracia.
— Pensei que gostasse dos McFadden. — Nicholas colocou
suas últimas moedas no pote. — Espero que esteja preparado para
perder, Charles está outra vez imbatível.
— O que é curioso, já que sorte e amor não são compatíveis. —
Sawbridge pagou a aposta mínima.
— Não sei o que o amor tem a ver comigo — ele grunhiu mais
uma vez. — E eu sempre sou imbatível, irmãozinho. Eu não perco,
deixo que ganhem.
— Parece-me que nosso colega está com o humor anuviado
pelos ciúmes — Greystone provocou. — Dancei com uma dezena
de damas solteiras hoje, Eckley. Lady Olivia não é sua propriedade,
então, até que estejam comprometidos, eu dançarei com ela sempre
que ela quiser.
— Eu solicitei educadamente que se mantivesse longe dela.
— E eu nunca disse que atenderia à sua solicitação.
Os homens se entreolharam, mas, como Charles não reagiu à
provocação, o jogo prosseguiu. Roger, o crupiê, era a figura mais
silenciosa e atenta. Riderhood também acompanhava a jogatina de
longe, já que o clube ainda não estava em seu melhor horário. O
relógio badalou duas horas da manhã e o ruído da engenhoca fez
com que sua cabeça latejasse.
A besta do ciúme estava fora de controle, então seu corpo
demandava grande quantidade de energia para evitar que ele
subisse por sobre a mesa de carteado, agarrasse um duque pela
gravata e o esfolasse ali mesmo, no meio de todas aquelas
pessoas. No fundo, ele era um tolo. Envolvera-se naquela tragédia
Shakespeariana com um propósito. Se não seria o homem a ficar
com Olivia, talvez pudesse escolher qual maldito a desposaria para,
ao menos, garantir que ela tivesse um marido decente. O marido
que lhe daria acesso aos bens que Salisbury deixou.
Charles não entendia o que estava errado. A pilha de fichas à
sua frente e o copo de conhaque em sua mão esquerda indicavam
que ele tinha tudo o que queria — tudo o que precisava para não
mais se importar. Não mais se importar com Olivia nem com a
fanfarrice barata de Greystone. Não. Ele tinha quase tudo. Instantes
após Nicholas jogar as cartas e se retirar da partida, Daisy Campbell
entrou no salão e se aproximou da mesa.
Ela era o que lhe faltava — mas não o que ele queria.
— Boa noite, cavalheiros. — Daisy desfilou até posicionar-se
atrás dele e colocar as duas mãos em seus ombros. Todos ali
sabiam quem ela era. — Vejo que o Sr. Eckley continua a
empobrecê-los.
— Somos teimosos. — Greystone jogou as cartas, desistindo. —
Tentarei minha sorte com os dados antes que fique sem fundos.
A mulher baixou a cabeça e, roçando o penteado exuberante na
pele sensível de seu pescoço, passou a língua por sua orelha. Em
um dia qualquer, Charles teria terminado a partida e arrastado-a
para uma alcova escura. Não, em um dia qualquer ele a puxaria
para seu colo e a obrigaria a acompanhá-lo enquanto eliminava
seus adversários — e, depois, faria amor com ela em uma alcova
escura.
Aquele não era um dia qualquer.
— Senhores. — Charles expôs sua mão vencedora. — Foi um
prazer espoliá-los. Se me dão licença, preciso conversar com a Srta.
Campbell. — Em seguida, recolheu as fichas e entregou-as ao
moleque que zanzava pelas mesas para auxiliar os clientes. — Leve
isso para o caixa. Fique com uma das azuis.
Daisy não entendeu a urgência com que ele a empurrou até um
lugar privado e agarrou a borda de seu colete para beijá-lo,
atribuindo seu comportamento à luxúria que sempre havia entre
eles. Seu corpo enrijeceu e seu pênis agitou-se nas calças. O beijo
era morno e sensual. Charles enfiou as mãos pelo decote indecente
que ela usava e afrouxou o espartilho. Os seios saltaram pelo tecido
e ele os tocou com alguma pressa. Subiu a barra da saia e ergueu
Daisy sobre a mesa daquele escritório, mas, ao posicionar-se entre
ela, percebeu que não estava pronto.
Não estava nem perto de estar pronto. Seu corpo ardia de
desejo, mas era por outra mulher. Sua boca ansiava por um beijo —
o beijo de outra mulher. Ele queria tocar outro par de seios e
afundar-se na intimidade proibida daquela que povoava seus
pesadelos mais deliciosos.
Era por aquele motivo que mantinha uma proximidade distante
de Olivia Trentham. O excesso de horas ao seu lado, combinado
com algumas interações excêntricas e muito sensuais — incluindo-
se uma valsa quase escandalosa — o deixaram incapacitado.
Depois de tê-la nos braços, não queria nenhuma outra.
— Precisamos conversar. — Ele se afastou, baixou as saias de
Daisy e virou de costas. — Não foi para isso que a trouxe aqui.
Era mentira. Ele a levara ao escritório privado para saciar-se
dela e acalmar a luxúria que o consumia, como fazia há anos. Só
que, daquela vez, não conseguiu parar de pensar em Olivia
Trentham nem um maldito instante. Ela estava impregnada nele
como não estivera, antes. Eles conversavam, trocavam olhares e
ele a tocava, claro, mas havia um comedimento que garantia os
limites que ele não podia atravessar. Os limites estavam cedendo.
— Não? — A amante escrutinou-o com olhos sagazes de quem
decifrava um enigma. — É verdade, então. Você está mesmo
cortejando uma dama.
Aquela reação de surpresa já o estava fatigando.
— Céus, por que diabos todo mundo acha isso um absurdo
incrível?
— Talvez seja por que você sempre bradou pelos quatro cantos
de Londres que jamais se casaria. — Ela o circulou enquanto
deixava que seu indicador deslizasse de um ponto a outro de seu
peito. — Ou porque você despreza a aristocracia e tudo que vem
dela. Também pode ser porque até dois ou três dias atrás não havia
indícios de que cortejasse ninguém, quanto mais uma dama.
Sim, era provável que fosse por aqueles motivos. Um canalha
que se professava irremediavelmente solteiro não começaria a
cortejar uma jovem solteira — pura, casta e de família tradicional —
de um dia para outro sem um bom motivo.
— Não importa. Precisamos conversar sobre nosso arranjo.
— Está me dispensando? — Ela ergueu uma sobrancelha. Daisy
vestia um tom de verde inebriante e que combinava com seus
cabelos loiros, que usava preso em um coque elaborado. Naquele
momento, pareceu perturbada com a ideia de que fosse ser
abandonada.
— Não, não é o que pretendo. Gostaria que me esperasse.
Depois que me casar, poderei manter uma amante. Enquanto
estiver nesse enfadonho processo de cortejo e noivado, preciso
evitar falatório a nosso respeito.
Outra mentira, a mais deslavada. Ele não se casaria, porém, não
confiava em Daisy o suficiente para contar-lhe a verdade. Ela riu e o
deboche em seu tom era perceptível.
— Vocês, homens, são incríveis. Quer dizer que eu devo esperá-
lo enquanto finge um comportamento para adequar-se às regras da
sociedade que você despreza porque decidiu arrumar uma esposa?
Qual é o motivo disso agora?
— O casamento com uma família tradicional me ajudará nos
negócios.
Ela deu uma risada alta.
— Então isso é por dinheiro.
— Há algo que eu faça que não seja? Eu desprezo a sociedade,
Daisy, mas não desprezo mais dinheiro. Sempre será por dinheiro.
Ela deu outra risada audível e saiu do escritório onde estavam.
Não respondeu que sim, nem que não, apenas saiu e o deixou ali.
Parado, com as mãos nos quadris, olhando para a porta aberta.
Maldita fosse aquela compulsão por Olivia.
Capítulo oitavo
Thanet, julho de 1892

Rhode Port
C . N ,
ser três. Ele não tinha certeza de quanto tempo passara rolando na
cama ardendo em febre, só sabia que um anjo cuidava dele durante
a doença — e era por isso que sabia que estava delirando. Ele não
era do tipo que atrairia o interesse de anjos, se estes viessem à
Terra.
Seu corpo estava dolorido e sua cabeça pesada. Quando abriu
os olhos e confirmou que estava em seu quarto, surpreendeu-se ao
ver Olivia sentada em uma poltrona ao seu lado. Ela segurava um
livro, concentrada. Uma de suas sobrancelhas estava erguida e a
expressão em sua face era a de quem não estava entendendo muito
do que lia. Na capa de couro estava escrito “doenças do espírito”
em letras douradas. Mas o que diabos era aquilo?
Ele tentou se levantar. A dor quase o paralisou, mas o que o fez
desistir pelo meio do caminho foi perceber que estava despido. Nu.
Sem roupas, apesar de coberto por um lençol branco. E Olivia
estava ali com ele. Sozinha, pelo que podia perceber. Olivia,
sozinha, em seu quarto. Maldição! Quem tinha permitido aquele
desvario?
— Livvy?
Ela ergueu os olhos, fechou os livros e sorriu, fazendo com que o
sol brilhasse durante a noite. Charles voltou a recostar a cabeça —
ele só se perdia em poesia quando estava muito bêbado ou muito
doente.
— Você acordou! — O peso dela no colchão fez com que ele se
alarmasse. — Fiquei preocupada dessa vez, pensei que o
perderíamos.
Olivia levou a mão até sua testa e ele não teve forças para
afastá-la. Poderia rolar para o lado e despencar da cama, mas
acabaria exposto.
— O que houve? Por que está aqui?
A mão deu lugar a um pano embebido em água fresca.
— Não se lembra? Você chegou todo molhado de madrugada e
adoeceu em seguida. Não sabemos onde esteve nem o que
aconteceu.
— Eu estava sóbrio?
Ela riu.
— Com certeza, não.
— Parece que fui atropelado por uma carruagem. Há quantos
dias estou aqui?
— Três. Sua febre começou a ceder agora, mas está alta ainda
— ela substituiu o pano por outro. — Vou buscar algo para você
comer.
— Livvy — ele conseguiu segurá-la pelo braço antes que ela se
levantasse e fosse para longe. Sabia que ela não deveria estar ali,
mas não estava pronto para deixá-la. — Você não precisa fazer
isso. Há… há criados.
— Claro que sim, mas não é para isso que servem os amigos?
Cuidar uns dos outros?
Displicente, ela dobrou o corpo e o beijou na bochecha. Charles
podia morrer naquele instante e morreria feliz. Observou-a ajeitar o
lençol ao seu redor, levantar-se e sair pela porta enquanto desejava
que o mundo acabasse para poder eternizar o momento. A maciez
dos lábios dela em sua pele. O cheiro de lavanda. Queria poder
fechar os olhos e emoldurar a imagem daquele sorriso.
Mas Deus não seria tão benevolente com um pecador.
Pretendendo vestir-se antes que ela retornasse — se é que a
deixariam retornar —, Charles se arrastou até o banheiro e enfiou-
se na primeira calça que viu pendurada no encosto de uma cadeira.
Sua imagem no espelho estava horrível. Havia marcas roxas
debaixo dos olhos, manchas vermelhas pelo pescoço e peito e sua
pele ardia como se houvesse fogo debaixo dela. Voltou para a cama
tremendo de frio e ajeitou alguns travesseiros atrás de si para
manter-se sentado.
Olivia trouxe uma bandeja com sopa. O relógio bateu onze
horas. Onze.
— Você precisa ir. — Charles tentou demonstrar que estava
bem. Sua alma estava sendo arrancada pelos poros, mas ele devia
expulsá-la dali. — Pode deixar que eu tomo toda a sopa. Vá para
seu quarto.
— Nem pensar! — A proposta a ofendeu. — Estou há três dias
dormindo sentada nessa poltrona, não será agora que o vi acordado
que o abandonarei.
— Você está dormindo aqui? — Ele quase pulou da cama. —
Por Cristo, Olivia! Quem permitiu esse absurdo?
— Charlie, estamos em Rhode Port. — Ela se dobrou sobre ele
para amarrar um guardanapo ao redor de seu pescoço. — As
convenções sociais não entram nesta casa. Meus pais não estão
aqui, somos apenas nós.
Apenas nós. Que tipo de argumento ele teria contra isso? Olivia
era jovem, mas tinha direito de ser a dona de seu destino. Não era
assim que os Eckleys criavam meninos e meninas? Não foi assim
que Caroline cresceu? Se ela queria passar a noite em seu quarto,
ela passaria. Se queria sentar-se ao seu lado na cama e alimentá-lo,
ela faria.
Ali, em Rhode Port, todos eram livres — até meninas bem
nascidas da alta sociedade. Que os pudores ficassem em Londres.
Ele sorriu e assentiu, abrindo a boca para receber uma colherada de
sopa. Sim, ele morreria feliz, mas que o inferno o deixasse ficar
alguns minutos a mais.
Londres, 18 de abril de 1898
Grosvenor Square

Charles rolou pela cama. Havia algo estranho. Abriu os olhos,


ergueu o tronco e olhou ao redor. Estava de bruços e sua visão teve
alcance limitado, mas suas narinas captaram um aroma diferente.
Não tinha nada a ver com o cheiro irritante da primavera que
sempre o despertava toda maldita manhã. Afinal, ele não tinha
lavandas em seu jardim.
O ruído de uma cortina sendo aberta o fez virar-se para
esquerda. O sol quase o cegou, revelando a silhueta de um anjo.
Céus, ele estava morto? Não se lembrava de ter feito nada tão
perigoso na noite anterior que pudesse colocá-lo em risco de morrer.
Talvez os adversários comerciais tivessem decidido vencer a disputa
pelo contrato atirando contra sua cabeça.
Não, ele não estava morto. Não havia anjos no inferno.
— Bom dia, Charlie.
Olivia. Com um movimento rápido, ele se virou de barriga para
cima e puxou o lençol para cima. Seus dedos tocaram tecido — ele
estava de calças. Havia também uma camisa branca amarrotada
cobrindo seu peito.
— Certo, quem morreu? — Charles pressionou as têmporas com
as duas mãos. Também não se lembrava de ter bebido tanto para
acordar de ressaca. Ou delirando. Alguém tinha que ter morrido
para que Olivia Trentham amanhecesse em seu quarto.
— Oh, ninguém morreu! — Ela abriu outro par de cortinas. —
Vim para decidirmos a lista de convidados. Precisamos enviar hoje
os convites se queremos que o evento aconteça no próximo final de
semana.
Ele se sentou e esfregou os olhos. Olivia vestia branco e cinza,
uma combinação perfeita. Os cabelos estavam arrumados sobre a
cabeça e ela carregava o caderno de anotações e um sorriso
simpático.
— Você tem a mínima noção de que não se entra no quarto de
um homem solteiro para acordá-lo, não tem?
Ela balançou a cabeça e abriu o terceiro par de cortinas. A
claridade dentro do quarto era quase insuportável.
— Ashford me garantiu que você estava vestido — ela se
defendeu.
— Ah, então está tudo bem. Afinal, ver minhas partes íntimas é o
único perigo que sua presença aqui representa.
— Não seja sarcástico, Charles Eckley — Olivia desapareceu
pela porta do banheiro e ele ouviu ruído de água. — Como se fosse
a primeira vez que entro em seu quarto. Sério, que tipo de perigo
você pode me causar?
Aquela era uma pergunta ridícula. Charles listaria facilmente pelo
menos dez tópicos com tudo de mais errado que poderia fazer com
ela — e não estaria nem começando. Olivia era a mulher mais
correta e casta que ele conhecia, porém, bastante ingênua em
relação ao que ele representava.
Como ela poderia saber? Durante todos aqueles anos em que
foram amigos, ele nunca deixou que nenhuma centelha da paixão
que sentia por ela escapasse. Ninguém sequer desconfiava que ele
a amava e que seu corpo doía por não poder tê-la. Que todas as
mulheres em sua cama serviram apenas para tentar substituí-la.
Que todas falharam e que ele se sentia miserável por usá-las
sabendo que eram apenas um pretexto para não enfrentar a sua
covardia.
Como Olivia poderia ter medo de ser arruinada por ele se ele
nunca a tratou com uma mulher? Ela voltou para o quarto sem as
luvas e atirou uma toalha em sua direção.
— Preparei um banho. Vou aguardá-lo no escritório, não demore.
Charles se levantou. Talvez devesse mostrar-lhe um pouco do
perigo, assim não teria mais que acordar com uma provocação
daquelas. Exceto que ele desejava ser acordado por ela todas as
manhãs. Em seus sonhos ela usava menos roupas e o despertava
com lábios quentes e mãos macias, porém ele aceitaria Olivia da
forma que ela viesse.
Ela permaneceu paralisada no meio do quarto enquanto ele se
aproximava e a rodeava.
— O que veio realmente fazer aqui, Livvy? Poderia ter mandado
uma nota que eu a encontraria na Casa Salisbury. — Ele parou à
frente dela, próximo demais para sua própria sanidade. Ela cheirava
a roupa limpa e frescor da manhã, mas olhou para o tapete antes de
encará-lo. Aquilo significava que estava confusa, nervosa ou
escolhendo as palavras para respondê-lo. — Por que decidiu entrar
no meu quarto às… — Charles desviou o olhar para o relógio sobre
sua cômoda — oito da manhã?
— Eu quis vê-lo quando acordei e não pude esperar. — A
sinceridade o atingiu como uma bala de canhão. Se não fosse sólido
como uma rocha, Charles teria sido derrubado pela força do que
aquelas palavras representavam. Talvez ele estivesse exagerando,
prendendo-se à esperança de que aquela mulher um dia o notasse
além da amizade. — Você não ficou no sarau para nossa segunda
dança.
— Tive que resolver assuntos urgentes e você parecia bem-
acompanhada por Greystone.
— Eu estava. Ele é divertido e bem-humorado, mas…
— Mas?
Charles cruzou os braços e observou o movimento do pescoço
dela enquanto engolia as palavras que não diria. Olivia estava
escondendo alguma coisa.
— Tenho medo de me enganar. Eu gostaria de me casar com
alguém de quem gostasse, alguém que se importasse comigo além
das referências sociais e que pudesse me despertar a paixão,
Charlie.
Morrer afogado no Tâmisa era rápido demais. Aquele plano, que
abriu as portas dos nove círculos do inferno e liberou todos aqueles
demônios pela Terra, o mataria de fome. Amarrado em um porão.
Sem ver a luz do sol por meses até que seu corpo definhasse pela
desnutrição. Era a tortura merecida por mentir e enganar e por não
contar a maldita verdade para ela.
Eu me importo com você além de qualquer referência social. Eu
posso despertar em você toda paixão que quiser. Posso fazê-la uma
rainha. Posso ser seu servo, se quiser.
Covarde. Ele era um grande covarde que conquistava uma
cidade inteira, mas não conseguia conquistar a mulher que
desejava.
— Se Greystone não perceber o quanto você é o melhor partido
da temporada, ele é um imbecil. Parta para outro.
— Eu gostei de dançar com ele — ela continuou a lhe contar
coisas que Charles não estava nada interessado em saber.
Precisava de uma bebida. Será que um drinque antes do desjejum o
mataria mais rapidamente? — Mas ele foi bastante polido e correto,
mantendo-me na distância adequada.
— Ainda bem, senão eu teria que esmurrá-lo na próxima vez que
o encontrasse.
— Mas você não me manteve a uma distância adequada.
Parecia que ele não conseguia mais mantê-la a distância
alguma, já que a desajuizada estava ali, no meio de seu quarto,
disparando bobagens sobre uma dança com um maldito duque
antes mesmo de ele conseguir abotoar a camisa.
— Eu sou um libertino, Olivia. — Charles deu de ombros e olhou
ao redor. Como não havia uísque em seu quarto? Ele precisava
ordenar que uma garrafa ficasse sempre à sua cabeceira. — E não
estou sinceramente interessado nessa conversa. Por que não conta
sobre suas aventuras com Greystone para Annabelle e suas
amigas?
— Porque elas não entenderiam minha dúvida! — Olivia
começou a girar pelo quarto. — Nenhuma dama solteira entenderia.
Segure-me de novo, como fez ontem. Eu quero ter certeza.
Ela estava completamente fora de si.
— Livvy, você passou a noite acordada comparando-me com
Greystone?
— Não. — Ela respondeu rápido demais. — Quero dizer, não foi
a noite toda. E eu não comparei. Quero dizer, comparei. Você é meu
amigo, ele parece ter interesse em cortejar-me, mas você dançou
comigo como… como…
— Como se você fosse a única, a mais bela e a mais preciosa
criatura daquele salão.
Por Cristo, como ele quis dizer aquilo! Como quis segurá-la pelo
queixo, fazê-la olhar em seus olhos e pronunciar cada sílaba de um
“eu amo você, Olivia Trentham”. Charles ensaiara aquela frase
dúzias de vezes antes de vê-la com Nicholas no jardim para nunca
dizê-la.
— Isso. — Ela lhe sorriu. — Você é um ator excelente!
Charles fechou os olhos e passou os dedos pelos cabelos. Olivia
precisava sair dali, precisava deixá-lo acordar, barbear-se e beber
pelo menos uma dose de veneno antes de começar a provocá-lo. As
imagens da maldita dança voltaram à sua mente — se é que elas o
deixaram em paz alguma vez. Depois de ter seduzido e se deitado
com metade das mulheres de Londres, era ridículo que uma simples
valsa o deixasse tão… tão excitado.
— Greystone é mesmo um imbecil.
Ele abriu os olhos outra vez para encontrá-la perto demais.
— Vamos, Charlie, ajude-me a entender.
Olivia segurou-o pelos dois braços e colocou um em sua cintura.
Seus dedos agarraram o tecido branco do vestido como se
tomassem as próprias decisões. A outra mão deslizou sem que ele
pretendesse e entrelaçou-se na dela. Com uma pegada firme,
Charles puxou-a para si. Ela soltou um gemido alto, mas não o
empurrou, não o estapeou nem tentou se afastar.
— Não foi assim que dançamos ontem.
— Não foi. — Ele não conseguia tirar os olhos dos dela. A besta
estava solta outra vez e seria muito difícil controlá-la.

Olivia deveria estar preocupada. Ela estava no quarto de um homem


seminu e com a porta fechada. Não, não era um homem, era
Charles Eckley. Ele era seu amigo, ela se sentia segura com ele e,
desde a noite passada, não conseguia tirá-lo de seus pensamentos.
Mas era irrelevante que fosse um amigo de longa data. Se
alguém soubesse daquilo, sua reputação estaria arruinada para
sempre e ela podia dar adeus a um casamento decente. Para ela,
para Annabelle e até para Margaret. Ela não deveria ter ido até a
Grosvenor Square e insistido com Ashford para acordar Charles.
Não deveria nem mesmo estar se sentindo tão confusa e… Céus,
ela estava outra vez excitada.
Seu coração batia fora de ritmo e sua respiração estava
acelerada. Seu corpo inteiro vibrava em uma intensidade incomum.
Ela não se lembrava de se sentir assim com frequência. Não, ela
tinha certeza que nunca se sentira assim — como se fogos de
artifício pudessem explodir de cada um de seus poros.
Aquela era a diferença entre as duas valsas. Com Greystone foi
agradável e ela se divertiu, mas com Charles ela ficou zonza como
se a dança a tivesse chacoalhado por inteira. Claro que ela deveria
preferir aquela que foi agradável. A escolha entre um acidente de
trem e um passeio pelo Hyde Park era óbvia. Então por que ela
estava ali querendo se sentir exatamente como quando esteve nos
braços de Charles, ao som de Strauss?
— Confesso que nenhuma mulher seria capaz de valsar nessas
condições — ela divagou. — É bastante distrativo.
— Dizem que a valsa é uma dança escandalosa. Foi assim que
Greystone segurou você, Olivia?
Não!
— Ele foi bastante cavalheiresco.
Aquela era uma resposta horrível.
— Claro que ele foi. — Charles sorriu. Aquele sorriso Eckley que
erguia apenas um canto dos lábios e que hipnotizava todas as
pessoas em um raio de quilômetros. Petrificava qualquer um que
olhasse para ele. O sorriso era uma espécie de Medusa. — Sabe
por que você está confusa? Porque lhe falta experiência. Com
quantos homens já valsou?
— Antes do luto?
— Sim, desde antes do luto. Desde o seu debute.
A lista não era longa. Olivia não era extremamente popular nos
eventos e não conquistou uma horda de pretendentes ao longo de
suas duas temporadas. Aquela era a primeira temporada de
Annabelle, mas a irmã já era muito mais requisitada e sempre
estava com o cartão de danças preenchido antes mesmo da
primeira se iniciar.
— Com Robert… Nicholas… alguns pretendentes do passado…
Greystone… você.
— E quantos deles a cortejaram? — Charles dobrou o corpo e
aproximou os lábios dos ouvidos dela. — Quantos tentaram levá-la
para passear no jardim? Quantos tentaram beijá-la?
Aquela lista era bem menor.
— Nicholas.
Charles paralisou na posição em que estava. Ela sentiu o ar
morno da respiração masculina em seu pescoço e o cheiro de
manhã cedo a estava embriagando. O que ela ainda estava fazendo
ali, permitindo que ele a mantivesse cativa entre os braços e a
parede de músculos e ossos que compunha o peito dele?
— Seu único beijo foi aquele trocado com Nick?
Ela se afastou alguns centímetros para conseguir encará-lo.
— Como você sabe?
— Isso não vem ao caso. Foi?
Olivia não conseguiu responder, apenas balançou a cabeça
afirmando. Apesar das rígidas regras de comportamento para
mulheres como ela, a maior parte das damas acabava sucumbindo
à sedução de um toque, um beijo, um encontro às escondidas.
Suas amigas beijaram vários cavalheiros diferentes. Esther dizia
que era uma forma de saber se ela poderia casar-se com ele — se o
beijo não a fizesse sentir formigamentos pelo corpo nem dobrar os
dedos do pé, ela não se casaria. Olivia e Mary riram e zombaram da
exigência, mas Mary também já beijara sua quota de pretendentes.
Ela esperava que Charles fosse rir dela. Esperava que ele a
chamasse de puritana, que fizesse alguma piada sobre partes
íntimas ou qualquer coisa que pudesse constrangê-la, mas ele nem
mesmo se moveu. Fitou-a por algum tempo e a intensidade de seu
olhar a deixou zonza — de novo. Suas pernas fraquejaram quando
ele dobrou o corpo mais uma vez e seus lábios tocaram-na em uma
região escondida atrás de sua orelha.
Céus, o que ele estava fazendo? Afaste-o! Empurre-o! Uma
parte de seu cérebro gritava para que ela tomasse uma atitude, mas
a outra parte derreteu com o calor daqueles lábios em sua pele e
com a dureza daquele corpo em contato com o seu. A boca dele
deslizou para seu pescoço e Charles usou os dedos para afrouxar a
gola de sua linda blusa de babados. Seus joelhos viraram gelatina e
ela precisou ser amparada pelo braço firme que permanecia em sua
cintura.
Ele continuou traçando uma linha sinuosa, lenta, na direção de
sua boca — e ela se esqueceu de como respirar. De olhos
fechados, Olivia apenas sentiu quando a mão dele deslizou para
sua nuca e Charles arrastou o queixo sem barbear por sua
bochecha. Aquilo era um tipo de feitiço. Bruxaria. Nunca ouvira que
homens fossem capazes de transformar os cérebros das mulheres
em mingau. Ela não conseguia pensar, não conseguia reagir,
apenas esperava ansiosa que ele fizesse o que ela sabia que ele
faria.
Mas Charles não fez. Olivia tinha os lábios entreabertos na
expectativa de um beijo que não veio. Confusa, abriu um olho,
depois o outro, e o viu pairando sobre si como se aguardasse
paciente que ela despertasse de um sonho.
— Essa é a experiência que me falta?
Olivia nem saberia dizer como reencontrou sua voz. Charles
garantiu que ela estivesse firme de pé para soltá-la.
— Se um dia Greystone a fizer se sentir assim, case com ele.
— E se ele não me fizer sentir assim?
— Procure coisa melhor.
Sem dizer mais nada, ele a deixou ali e trancou-se no banheiro.
Olivia olhou ao redor para garantir que todas as suas peças
estavam no lugar. Passou as mãos pelo corpo querendo ter certeza
de que não tinha se esfacelado, virado pó e se espalhado pelo belo
tapete em tons de azul e creme. O formigamento por seu corpo
indicava que algo muito estranho estava acontecendo — e Olivia
não sabia lidar com nada que fosse estranho, inesperado e um
pouquinho assustador.
Capítulo nono

P
preparou Charles para a pior decisão ainda a ser tomada: a de
quase beijar Olivia. Se uma valsa o desorientou a ponto de
dispensar os carinhos de Daisy, tocá-la daquela forma acabaria com
qualquer sanidade que lhe restasse.
Seu corpo estava dolorido. Mesmo enfiado na banheira com
água fria até o pescoço, sua mente insistia em manter vivas as
imagens e sensações do que acabara de acontecer. Burro. Não, ele
não era burro. Charles estava reinventando a burrice desde que
recebera a maldita carta de Bharat Gupta. Ele era impulsivo e
inconsequente, mas estúpido… aquela era a primeira vez.
Fechou os olhos e deixou que suas mãos tocassem onde ele
mais precisava de atenção. Tentou fingir que ela estava ali. Fingir
que beijou aquela boca, despiu-a daquelas roupas e atirou-a em sua
cama para tomar posse do que deveria lhe pertencer, mas não
conseguiu. Sua mente sabia que Olivia não era sua e jamais seria.
Ele tentou, tentou e tentou, mas acabou frustrado.
Nervoso, ansioso e insatisfeito, Charles vestiu-se precariamente
e desceu. Se Olivia tinha coragem de invadir seu quarto e não fugir
quando ele se aproximava, podia vê-lo sem colete, sem paletó e
com alguns botões abertos. Seria ótimo se ele conseguisse
escandalizá-la, assim não teria mais que suportar aquela tortura.
Encontrou Ashford pelo caminho e pediu que servisse o desjejum
imediatamente — precisava alimentar a besta antes que ela fugisse
do calabouço.
Ela estava sentada à sua mesa. Nicholas lia alguma coisa em
uma cadeira próxima da lareira e Olivia rabiscava naquele maldito
caderno, desfrutando da mesma intimidade que ele tinha na Casa
Salisbury.
— Charles. — Ela ergueu os olhos ao ouvi-lo chegar. — Tomei a
liberdade de rascunhar uma lista prévia de convidados. Preciso da
sua aprovação.
— O evento é seu.
Olivia suspirou e indicou que ele deveria se sentar. Bastou um
olhar para que ele compreendesse. Não havia sinal de que ela
estivesse constrangida ou afetada pelo que acabara de acontecer.
Charles arrastou uma cadeira e sentou-se ao lado dela.
— O evento é nosso. — Ela empurrou o caderninho em sua
direção. — Selecionei nobres, apenas homens casados e suas
esposas. Há alguns solteiros de interesse, assim como algumas
solteiras. E apenas três comerciantes, nenhum dos quais imagino
que seja seu concorrente.
A letra dela era linda. Tudo que Olivia fazia era com extremo
capricho e cuidado. Charles colocou seus óculos de leitura, segurou
o caderno em suas mãos e conferiu os nomes. Havia dez famílias
completas, incluindo as de suas amigas, e dez pessoas solteiras,
incluindo o Duque de Greystone. Ele estava começando a se cansar
de ver, ouvir e lembrar de Greystone.
— Por que estamos convidando homens solteiros? Eles
raramente fazem caridade.
— Porque o evento também pode ser usado para me ajudar a
conseguir um bom marido para Annabelle. — Ela pegou o caderno
de volta e começou a escrever em outra folha. — Tenho certeza de
que você conseguirá criar situações em que todos os homens
possam contribuir para o nosso projeto.
— Você considera Greystone um pretendente para Belle?
Ela parou de escrever e o fitou. Nicholas também deixou a leitura
de lado e observou. Ele estava na casa de Riderhood nas duas
vezes em que Charles enfrentou o duque por sua proximidade com
Olivia. Não dava para deixar seus sentimentos mais expostos para
que todos percebessem nem se ele pintasse uma placa e colocasse
à frente de sua casa. Além de estúpido, ele estava inconsequente.
— Greystone é um ótimo pretendente para qualquer mulher
solteira — ela desconversou. — Mas eu imagino que ele esteja
realmente interessado em mim.
Nicholas fechou o livro no instante em que um criado entrou com
o desjejum. A comida foi servida em uma bandeja farta colocada
sobre a escrivaninha. Charles estava faminto, poderia comer um
cordeiro inteiro naquela manhã e ainda assim haveria um buraco
dentro de si. Não tinha fome de alimento. Não era seu corpo que
clamava por comida — era sua alma que precisava ser nutrida.
Estúpido, inconsequente e completamente fora de seu juízo. O que
restaria para o dia seguinte? Acordaria atirando moedas pelo meio
da rua?
— Pois bem. — Ele pegou um sanduíche e deu uma mordida. —
Vamos emitir convites para todos. Pedirei que Ashford vá à gráfica,
você vai escrevê-los?
— Os convites precisam ser distribuídos hoje, Charlie. É
indelicado convidar com menos de uma semana de antecedência e
não temos tudo isso. Pedirei que Annabelle e Margaret me ajudem e
escreveremos todos os convites à mão. Farei também um rascunho
da programação e conversaremos mais tarde.
Ele assentiu, balançando a cabeça. Olivia pegou um bolinho
doce e deu uma mordida. O creme fresco de framboesas manchou
seus lábios, tornando-os mais vermelhos e mais brilhantes do que já
eram. Ele se ajeitou na cadeira para acomodar a ereção persistente
que não cedeu desde o momento em que ela entrou em seu quarto.
Aquela mulher sempre foi uma tentação, mas nunca uma tentação
tão presente. Charles não tinha tanta força de vontade assim para
manter-se longe do que queria.
No fundo, seu irmão tinha razão. Olivia terminaria aquele mês
completamente arruinada — e ele não sabia se repudiava a ideia.
— Tenho muitos compromissos hoje, inclusive com Bharat
Gupta. — Ele bebeu um gole de café preto e se levantou. — Se
puder, avise a Daniel que passarei para pegá-lo às duas.
— O que pretende fazer com ele?
— Sairemos para cavalgar. Um homem precisa da companhia de
outros homens. Se ele continuar naquela casa repleta de mulheres,
daqui a pouco estará bordando ou remendando vestidos e meias.
Olivia deu uma risada e também se levantou. Fechou o
caderninho e o enfiou em sua bolsa.
— Há algum problema em bordar ou remendar, Charlie?
— Não, nenhum. Mas ele é um conde, por tudo que é mais
sagrado!
Ela se aproximou e colocou uma mão apoiada em seu peito.
Manteve-a ali por algum tempo, os dedos vacilantes sobre o tecido
fino que o cobria, mas não o impedia de sentir todo o calor daquele
toque. Os olhos dela se fixaram em seu pescoço, desceram pelo
colarinho aberto até encontrar a própria mão. Durou poucos
segundos e fez um estrago ainda maior em sua armadura.
— Daniel vai adorar cavalgar. Obrigada por cuidar dele. De nós.
E ela se afastou, deixando o escritório e um rastro de
devastação. Talvez não fosse apenas Olivia que estivesse arruinada
no final do mês. Ele duvidava que fosse permanecer inteiro.
Londres, 18 de abril de 1898.
Brooke Street

Olivia precisava de uma amiga, um diário e uma garrafa de vinho.


Os três, em qualquer ordem e imediatamente. Depois de sair da
casa de Charles — e de uma interação muito, muito esquisita —, ela
estava tão desorientada que se esqueceu de metade da sua lista de
afazeres antes mesmo de chegar à Casa Salisbury.
O que ela esperava ao enfiar-se no quarto de um libertino? Se
bem que aquela não era a primeira vez. Por que antes aquela
intimidade não a incomodava? Ou talvez não fosse a intimidade que
a incomodasse, mas o que ela estava sentindo em relação a ela.
Ela queria se concentrar no que tinha pela frente — a temporada
de Annabelle, o evento em Hampshire, o Duque de Greystone.
Queria elaborar um roteiro detalhado com tudo que aconteceria nas
próximas duas semanas, traçar planos e estratégias para garantir
que seus objetivos fossem atingidos. E tudo que sua mente fazia era
mostrar a mesma imagem vez após vez até torná-la exausta.
— Adalind! — chamou a governanta ao escritório. — Preciso que
envie notas à Lady Mary e Lady Esther.
A criada aguardou paciente e em silêncio até que dois papéis
distintos lhe fossem estendidos. Olivia escrevia em ritmo acelerado
e não ergueu os olhos de seu trabalho enquanto dava ordens.
— Pedirei que Bradley vá imediatamente. Algo mais?
— Sim. Meus irmãos, todos eles. Peça que venham aqui. E
preciso de um cardápio de três dias, com todas as refeições, para
um evento em Hampshire. Farei ainda as contas exatas, mas serão
cinquenta e oito convidados. Prepare e venha para discuti-lo
comigo. É urgente, portanto delegue suas outras funções.
— Vamos para Hampshire, milady?
— Amanhã. Teremos convidados em três dias e preciso que tudo
esteja perfeito até lá.
— Então tudo estará perfeito. Ah, milady recebeu flores. Eu as
coloquei no salão de chá com o respectivo cartão.
O coração de Olivia saltou uma batida.
— Flores?
— Sim. Vieram do Duque de Greystone, milady. — A criada
sorriu. — Ele mesmo veio trazê-las e ficou desapontado ao saber
que milady não estava. Permita-me dizer que ele é um homem
muito bonito!
Adalind saiu apressada do escritório antes que Olivia sequer
conseguisse responder. Curiosa, ela foi até o salão ver as flores e
emocionou-se ao ver que ele incluíra algumas lavandas no arranjo.
Lavandas! Ele tivera o cuidado de escolher as flores que ela
adorava e foi entregá-las pessoalmente. Se aquela não era a
intenção de cortejo mais declarada que ela já vira, Olivia mudaria
seu nome do meio.
Ela não sabia dizer o que fez o duque despertar para aquele
interesse em agradá-la, porém, não tinha nem tempo para refletir.
Como ele era convidado para o final de semana, aproveitaria a
oportunidade para descobrir mais sobre suas intenções e, talvez,
conquistar o marido dos sonhos.
Também não tinha tempo para pensar no outro homem que a
estava perturbando. Não, não era falta de tempo — ela não podia se
dar ao luxo de pensar em Charles como se ele fosse algo além de
seu melhor amigo. O que seria de si se descobrisse que gostava
daquele libertino um pouco além da amizade? Isso já dera errado
antes, com Nicholas. Ela confundiu os sentimentos e acabou
magoando a si e a ele. Não queria cometer o mesmo erro duas
vezes.
Afogaria os sentimentos indesejados em trabalho duro. Quando
os irmãos chegaram, ela colocou Annabelle e Margaret para
escrever e informou a Daniel sobre a cavalgada com Charles. O
menino ficou exultante e disparou para os fundos. Se ela o conhecia
bem, ele passaria horas escovando o pelo do cavalo e conversando
com ele sobre o passeio da tarde.
Depois de uma hora, chegaram Esther e Mary — e elas também
foram orientadas a preparar os convites. O trabalho aconteceu em
ritmo frenético no escritório da Casa Salisbury e o almoço foi servido
lá mesmo, sem as formalidades recorrentes. Era uma e meia da
tarde quando Olivia conseguiu terminar de selar todos os envelopes
para envio. Ela segurou um em suas mãos e sorriu, confiante de
que aquele era o convite mais inusitado que aquelas famílias
receberiam.
Em cera azul e vermelha, podia-se ver o brasão dos Eckleys e o
do condado de Salisbury. Decidida a associar as duas famílias para
garantir o protagonismo de Charles, ela achou excêntrico enviar
convites com dois selos.
— Pronto! — Enfiou o último envelope em uma bolsa de couro.
— Bradley fará a entrega dos convites e teremos o restante da tarde
livre para arrumarmos nossas coisas para a viagem.
E ela estaria soterrada de atividades para não ter que pensar em
nada que não fosse o plano. Depois do almoço ela separou,
embalou, organizou e conferiu o cardápio que Adalind preparou
duas vezes. Realizou ajustes e rabiscou pelo menos umas dez
folhas de seu caderno com tudo que parecia importante para que o
final de semana transcorresse com tranquilidade — da disposição
dos quartos até os assentos na mesa de refeições.
Os nobres ficariam no terceiro andar, com mais privacidade.
Haveria crianças, então ela acomodou os casais com filhos no
mesmo corredor do berçário. Sua família ficaria no segundo andar,
em seus próprios quartos. A mãe ficava na parte mais isolada, há
mais de um ano reclusa no quarto do sótão. Talvez ela não
descesse, então a suíte principal ficaria vazia. Charles e Nicholas
foram acomodados com a família, em quartos separados.
Summerwood Hill era uma mansão e comportava o dobro de
convidados. Ela tinha uma planta rascunhada de todas as
acomodações e determinou até a cor da roupa de cama de cada
quarto. Fez uma lista interminável de observações que entregaria
aos criados no dia seguinte, assim que chegasse. Como a anfitriã,
tinha que estar em Hampshire antes de todos. Se pretendia
impressionar Bharat Gupta, aquela era a sua oportunidade mais
valiosa. O mesmo valia para o Duque de Greystone — naquele
evento, ele veria todas as suas qualidades para considerá-la uma
duquesa ideal.
Porque era claro que Olivia daria uma ótima duquesa. Foi criada
para ser o melhor que poderia e acabou escondendo no fundo de
sua memória as transgressões cometidas em Rhode Port. A
propriedade dos Eckleys era seu refúgio, o lugar onde ela se
permitia ser quem ela quisesse sem se preocupar com as regras. Ao
sair de lá, retomava a postura de dama irrepreensível.
As tarefas e a viagem a afastaram de Charles. Para sua sorte,
ela nem mesmo o viu chegar para levar Daniel para a cavalgada.
Quando a manhã seguinte chegou, Olivia estava pronta para um
experimento do que seria sua vida depois de casada — e ansiosa
por isso.
Hampshire, 21 de abril de 1898.
Sumerwood Hill

Depois do episódio em seu quarto, as coisas esfriaram entre ele e


Olivia. Ela era uma garota esperta e tratou de afastar-se dele.
Tentou assustá-la e obteve sucesso. A família Trentham foi dias
antes para preparar tudo para os convidados, o que o fez recolocar
os pensamentos no lugar. Dedicou-se ao trabalho e a encantar
Gupta como se ele fosse uma Naja.
Hampshire era longe, quente e o lugar perfeito para isolar o
indiano e sua família dos sanguessugas de Londres. Para garantir
que ninguém atrapalhasse o desdobrar de seu plano, Charles fez
um acordo com Grant Sawbridge e garantiu um trem inteiro para
levar os convidados à propriedade de Salisbury. Como o conde tinha
apenas treze anos e ele era o atual administrador do condado e
pretendente de Olivia, não precisou nem se esforçar para ser visto
por todos como o grande anfitrião do evento.
Alguns nobres faziam parte da seleta lista elaborada por Olivia.
Ou eram amigos das famílias, ou de interesse para o “Projeto
Whitechapel”, como denominara a ideia de construir uma casa de
apoio para mães sem maridos. Pecadoras ou viúvas. Charles não
contou, mas adorou a ideia. Caso elas não conseguissem o
financiamento do projeto por seus próprios esforços de
convencimento, ele faria uma doação anônima e garantiria a sua
execução. A sociedade estava acostumada a fazer caridade, mas
ajuda de verdade não vinha de pequenas doações para orfanatos
ou igrejas — e aquele projeto era uma ajuda de verdade.
Nobres não eram concorrentes. A maioria não competia com ele
pela distribuição da seda, porque o contrato com Gupta exigia muito
investimento prévio. Os burgueses que poderiam ser concorrência
foram cuidadosamente excluídos do evento em Hampshire. Por fim,
o trem chegou à estação repleto de pessoas com quem Charles
mantinha relacionamentos razoáveis e que não o atrapalhariam em
seu objetivo — e ele ainda aproveitaria para avaliar o estado da
propriedade e descobrir se ela fora negligenciada pelo administrador
anterior.
— Que casa magnífica! — Ishani Gupta disse, assim que saíram
da carruagem e se depararam com a construção de três andares e
diversos metros quadrados de área. — Essa é a propriedade
principal da família?
— É a preferida deles. — Charles ofereceu o braço para que ela
o acompanhasse. — Vamos entrar, tenho certeza que Olivia adorará
passear com a senhora pelo primeiro andar e mostrar os quadros de
todos os condes desde o primeiro.
Os Trentham os receberam entusiasmados. Outras carruagens
também pararam no pátio de entrada da mansão e os convidados,
um total aproximado de cinquenta pessoas, foram descendo. Daniel,
que estava com um traje completo de dia, tomou a frente das irmãs
para cumprimentar todos que chegavam.
— A família deve tê-lo em grande consideração, Sr. Eckley. —
Gupta se aproximou por trás dele. Charles percebeu que estava há
muitos minutos parado no mesmo lugar enquanto observava o
cenário depois de entregar Ishani Gupta para os cuidados de Olivia
e Annabelle — Deixá-lo responsável pela administração de um
condado sendo ainda tão jovem.
— O falecido conde era muito amigo de meu pai — ele explicou.
— Mas seria mais lógico que ele deixasse o marquês como
responsável, já que Anthony é mais velho e mais… mais adequado.
Sim, o marquês era mais adequado em tudo, mas os Trentham
eram a sua família de afinidade. Anthony mal se relacionava com
Olivia, a diferença de idade entre eles fez com que uma amizade
nunca se consolidasse. Talvez ele pudesse dizer isso a Gupta, mas
as comparações com o irmão sempre o irritavam a ponto de desistir
da sutileza. Não havia defesa mais satisfatória e eficiente do que o
ataque.
— Sou um administrador feroz, Sr. Gupta. — Charles indicou que
o indiano deveria seguir para o salão masculino. Preferia continuar
aquela conversa com uma dose de uísque e um charuto. —
Salisbury escolheu um advogado medíocre que quase afundou o
condado em dívidas. Eu assumi as responsabilidades, porque é
assim que sou: eu assumo aquilo em que vejo potencial.
Gupta sorriu e balançou a cabeça. Aquele era um teste? Porque
ele se sentia testado, observado e avaliado desde que o maldito
colocou os pés em Londres. Charles não estava acostumado a ser
pressionado nem a agir conforme se esperava dele. Aquela farsa
estava ameaçada desde o primeiro dia. Não demoraria muito para
que perdesse a paciência com aquela bobagem.
Os homens foram se reunindo no salão masculino do falecido
Salisbury. Apesar de ser o dono de tudo e anfitrião, Daniel era
considerado jovem demais para participar de um encontro como
aquele — o que tornou Charles o responsável por definir a
programação do restante do dia e dos dois mais que se seguiriam.
— Espero que estejam se servindo do melhor uísque e dos
charutos mais caros que o dinheiro pode comprar. — Ele fechou a
porta do salão. Havia um criado disponível para atendê-los, parado
como uma estátua ao lado de uma estante de livros. As janelas
estavam todas abertas e o sol brilhava radiante, fazendo com que
muita luz natural penetrasse no ambiente. — Sejam todos bem-
vindos a Sumerwood Hill.
Miles Westphallen, o Visconde Whitby, ergueu seu copo.
— É sempre um prazer participar dos eventos dos Eckleys.
Vocês e os McFadden sabem se divertir.
— Mas o evento não é organizado por Salisbury? — O Barão
Stafford perguntou.
— Salisbury tem treze anos. — Grant Sawbridge gargalhou. —
Está claro que esse evento foi organizado pelo nosso amigo Eckley
para garantir que sua futura esposa tenha o que deseja. O que é
mesmo, um projeto de caridade?
— Sim, é um projeto de caridade. Espero que tenham vindo
preparados.
O salão foi preenchido de vozes resmungando e risadas. Charles
se serviu de uma dose de uísque e recostou no batente da janela.
Três dias ali, com aquelas pessoas, fingindo ser um homem melhor
do que ele era. Dois jantares, duas noites de dança e música. Duas
valsas com Olivia em seus braços — sem que ele pudesse arrastá-
la para uma sala escura ou invadir seu quarto durante a noite. Dois
almoços. Três dias inteiros entretendo e enganando seus amigos.
Virou sua bebida toda de uma vez. O amargor do malte nem
mesmo o incomodava mais.
— Qual é a programação do dia? — Isaac McFadden, marido de
sua prima Caroline, perguntou.
— Preparei uma cavalgada pela propriedade. Faremos uma
caçada.
— Caçada? — Aiden Trowsdale, o Duque de Shaftesbury,
lamentou. — Não poderei participar dessa, meu caro Eckley. Se
minha esposa souber que estou atirando em animais indefesos por
diversão ela me imporá um celibato que não estou disposto a
tolerar.
— Vossa Graça não precisa se preocupar. Não caçaremos
animais indefesos.
— Não? — Greystone demonstrou curiosidade. — O que será,
então?
— Tesouros — ele provocou. Durante o tempo que teve sem
precisar lutar contra a distração que Olivia vinha representando,
Charles preparou uma série de jogos para entreter os convidados e
garantir que eles esvaziassem os bolsos. — Como eu disse antes,
preparem suas carteiras. Os prêmios encontrados não serão
recebidos, mas ofertados ao trabalho de caridade das damas.
Mais resmungos e risadas. Ele sabia que aqueles homens ali,
todos selecionados, adoravam jogos. Aproveitaria para unir seu
objetivo — o de demonstrar sua adequação social e sua devoção à
formação de uma família — ao de Olivia. No final, deixá-la feliz era o
que o satisfazia.
Capítulo décimo

U
. Algumas das mulheres também queriam sair a cavalo
e foram convidadas a participar, já que não haveria tiros nem
animais sendo assassinados. Charles não gostava da ideia de
massacrar criaturas mais fracas apenas pelo prazer de pendurar um
troféu na parede. Nisso ele e Olivia combinavam — mas ele não
tinha o mesmo amor pelos animais que a impulsionava. Talvez fosse
uma necessidade de defender aqueles que ninguém defendia.
Depois que os cavalos foram selados, a maioria dos homens
partiu atrás dos tesouros escondidos. Ele enviara Ashford um dia
antes com instruções precisas para os criados de Sumerwood Hill e
esperava que tudo estivesse como planejara.
— Posso ir com vocês? — Daniel os interceptou antes que
saíssem. Vinha montado em seu cavalo de pelo avermelhado, um
dos mais belos que Charles já vira.
Não era comum permitirem crianças em eventos como aqueles,
mas Daniel Trentham era o dono da casa.
— Será um prazer tê-lo conosco, milorde — Charles autorizou.
— Mas mantenha-se ao meu lado, você ainda não cavalga muito
bem.
Aquela última parte foi dita em voz baixa, só para que ele
ouvisse. O menino assentiu, animado, e a comitiva pôs-se em
direção ao bosque. Era um bosque de árvores esparsas, com
clareiras onde se podia fazer piqueniques e um curso de água onde
a família e convidados costumavam pescar. Charles não ia com
frequência a Sumerwood Hill, mas tinha boa memória. Bastava uma
vez para que não mais se esquecesse do que vira.
As mulheres que se juntaram à cavalgada eram Ishani Gupta, a
Marquesa de Granville, a filha do meio de Miles Westphallen e
Olivia. As outras preferiram descansar ou participar de atividades na
casa. Algumas, como Caroline, decidiram nadar. Charles observava
tudo, mas sua atenção estava então dividia entre Daniel e Olivia.
Seguiram lentamente por entre as árvores até chegarem a uma
clareira e deparem-se com a primeira brincadeira. Havia uma
espada cravada em uma pedra e a indicação de que ela deveria ser
removida para que a próxima pista fosse revelada.
— De onde surgiu essa criatividade toda? — Edward McFadden
foi o primeiro a desmontar. — Não sabia que os Eckleys tinham
senso de humor.
— Fale pelos outros Eckleys. — Anthony também desceu do
cavalo. — Eu sou bastante bem-humorado e criativo.
Rosamund, a marquesa, deu uma risada abafada sobre seu
cavalo. O marido a fitou como se ela lhe tivesse cravado uma adaga
nas costas. Eles tinham um casamento perfeito. Quase dez anos
depois de se conhecerem, mantinham o mesmo relacionamento de
quando se encontraram em Paris pela primeira vez.
— Vocês estão se esquivando do jogo — Charles resmungou.
Desmontou e ajudou Daniel a fazer o mesmo. — Vamos, tentem
retirar a espada.
Como se estivessem em uma das histórias sobre o Rei Arthur, os
homens se revezaram tentando arrancar a espada da pedra. Não
tiveram sucesso. Ele os observou de braços cruzados enquanto seu
olhar eventualmente vagava para Olivia. As mulheres desceram
todas de seus cavalos e estavam recolhendo flores pela clareira.
Nenhuma delas parecia interessada na caçada falsa dos homens.
— Daniel — Charles chamou o menino e se ajoelhou para ficar
da mesma altura dele. — Suba no cavalo e tente puxar a espada de
cima. Não conte para ninguém o que descobrir, apenas siga a pista.
Ele pretendia deixar que a brincadeira se estendesse por mais
tempo, mas o céu estava se fechando e uma chuva estragaria seus
planos. Como raramente planejava qualquer coisa, queria que o
jogo saísse perfeito. Sussurrou a dica no ouvido do conde e esperou
que ele cumprisse o que lhe fora dito. Com uma expressão falsa de
surpresa, Daniel se aproximou da espada, afastou o Visconde
Whitby e o Barão Stafford e, com um puxão de cima, arrancou o
artefato.
— Isso é trapaça! — Greystone reclamou. — Por que não disse
que tínhamos que estar montados?
— É uma caça ao tesouro, Richard. — Charles o provocou,
chamando-o pelo nome de batismo. O duque lhe lançou um olhar
ferino. — Se vocês souberem como encontrá-lo, não terá graça.
Daniel começou a procurar a pista na espada para que o jogo
prosseguisse.
— Um dia será um pai excelente, Sr. Eckley. — Bharat Gupta
aproximou-se sem que ele percebesse. — É comovente ver a forma
como cuida dessa família.
— Em verdade, quem cuida deles é Olivia. Desde que o pai
faleceu, há dois anos.
— Não seja modesto. O menino refere-se a você como a um
irmão ou um pai. Poucos jovens respeitariam um estranho como ele
respeita você.
Talvez ele devesse ofender-se com o ceticismo do indiano, mas
Charles já sabia que aquele homem não acreditava em sua
honradez nem respeitabilidade. Provavelmente, nem ele.
— Os Trentham são amigos antigos dos Eckleys, não sou um
estranho para Daniel. Sou a figura masculina mais presente em sua
vida desde o falecimento do pai, há dois anos.
— Entendo. Imagino que ele deva ter recebido muito bem a
notícia de que se casará com sua irmã mais velha.
Charles suspirou. Não se casaria com ela, mas era bom que
Gupta acreditasse nisso.
— Ficamos bastante agradecidos pelo convite para um final de
semana em Hampshire — Gupta retomou a conversa. — Não
conheço essa parte da Inglaterra e minha Saira ficará muito feliz
com a companhia de outras jovens.
— As irmãs de Olivia são da idade da sua filha, estou certo de
que se darão muito bem. Eu que agradeço por aceitar nosso
convite. Talvez possamos falar de negócios mais tarde.
— Ah, não pretendo falar de negócios por enquanto. Diga-me,
Sr. Eckley, quando pretende propor à Lady Olivia? Será ainda neste
final de semana?
A risada que Charles precisou represar em seu peito fez com
que engasgasse e tivesse uma breve crise de tosse. Disfarçou com
um lenço à frente da boca. Esperava que pedir Olivia em casamento
não fizesse parte da programação, pois isso afastaria todos os
possíveis pretendentes em que ela tivesse interesse. Greystone
inclusive.
— Ainda não. Quero que ela tenha certeza de que sou a melhor
escolha.
Gupta franziu as sobrancelhas e olhou ao redor. Depois fixou a
atenção em Daniel, que recebia alguma ajuda de Anthony.
— Você a ama, Sr. Eckley?
Charles paralisou. A resposta para aquela pergunta era fácil,
mas ele não tinha certeza se confessá-la para o indiano deporia a
seu favor. Alguns homens consideravam o amor um sinal de
fraqueza. Precisava arriscar. Se Gupta se casou por amor,
certamente respeitaria quem fizesse o mesmo.
Olhou ao redor. Ninguém os estava ouvindo, então sentiu-se
seguro em dizer.
— Absurdamente.
O alívio que sentiu ao confessar seus sentimentos foi também
absurdo. Manter o desejo e a paixão estrangulados dentro de si era
doloroso e o deixava em constante mau-humor, ao contrário do que
pensara o Conde de Cornwall.
— Creio que não seja segredo que o considero um homem
descuidado, Sr. Eckley. — Gupta também tinha suas confissões a
fazer. — Apesar de demonstrar habilidade nos negócios, suas
atitudes são deveras preocupantes. Mas tenho que dizer: esses dias
em que estou na Inglaterra já me fizeram considerar se não estive
equivocado.
Por essa ele ainda não esperava. Estaria o plano insensato de
Olivia dando certo?
— Gosto de dizer que sou arrojado, Sr. Gupta. Não teria
construído um império se não fosse.
— Que seja arrojado. Mas dias atrás o senhor resgatou um
animal quase selvagem para agradar à sua dama. Hoje vejo o
cuidado que tem com o irmão dela e percebo que é uma atenção
recorrente. Diz que Lady Olivia cuida da família, mas vejo que o
senhor também o faz. Ishani disse que ela não parou de falar no
senhor.
— Ela?
— Sim, sua Lady Olivia. — Gupta sorriu. — Por que posterga o
pedido? Ela não parece precisar de outro homem para cuidar dela.
— O senhor também acredita que o casamento dignifica o
homem?
— Qualquer casamento, não. Já o amor, esse, sim, é capaz de
mover montanhas, causar guerras e selar a paz. Não concorda, Sr.
Eckley?
Aquela conversa estava fora de controle, assim como sua vida
desde que aquele maldito indiano decidira aparecer. Charles quis
continuar a confessar sua alma e dizer que era tudo culpa dele, de
Gupta. Que ele estava feliz e agora parecia caminhar por um campo
cheio de armadilhas de caçadores.
— O amor é superestimado. Quase ninguém se casa por amor
entre a aristocracia.
— Sua família e amigos parecem discordar.
— Olivia não me ama, Sr. Gupta.
E ela merece um marido melhor, mais adequado e que possa
garantir a ela a posição que ela almeja. Pronto, lá estava ele
disparando mais verdades que o faziam sofrer. O indiano tornou a
vaguear o olhar e parou por alguns instantes sobre as mulheres.
— Minha Ishani também não me amava. — Gupta revelou.
Charles cruzou os braços e o encarou. A conversa começava a ficar
interessante quando outra pessoa também tinha seus problemas
para contar. — Quando nos conhecemos ela me desprezava, mas
nossas famílias tinham decidido o casamento e não havia nada que
ela pudesse fazer. Eu poderia recusá-la, mas isso a arruinaria.
Decidi, então, conquistá-la e veja onde chegamos. — O indiano
continuava olhando para elas e, em dado instante, Ishani Gupta o
percebeu. A mulher sorriu e baixou o olhar, tímida. — Depois de
tantos anos ainda há a chama da paixão entre nós. Talvez Lady
Olivia não o ame absurdamente, mas o que o impede de conquistá-
la, Sr. Eckley?
Sim, a conversa estava oficialmente fora de controle. Ele não
esperava que Gupta fosse um romântico, que não fosse recriminá-lo
por confessar que estava em um cortejo onde só uma das partes
queria cortejar e, pior ainda, que sugerisse que ele investisse na
sedução da Olivia. Aquela era a ideia mais estúpida e tentadora que
ele já ouvira. Estúpida porque não daria certo. Tentadora porque era
um adendo relevante ao plano do falso cortejo. Ao invés de brincar
de enviar flores e valsar em bailes, ele teria que se empenhar em
um processo rigoroso de sedução para agradar ao indiano.
Sedução. Nisso ele era bom — e podia dizer que já começara.
No dia em que tentou assustar Olivia para que ela saísse de seu
quarto e nunca mais voltasse ele desempenhou um papel bastante
eficiente.
Seus olhos se fixaram nela. Carregando um ramalhete inteiro
nas mãos, ela ria enquanto ouvia alguma das histórias de
Rosamund. Como se percebesse que estava sendo observada,
Olivia ergueu o olhar e sorriu. Foi um breve momento, mas Charles
entendeu que havia algo ali. Algo no ar, pairando entre eles, que o
deixou ridiculamente esperançoso.
Gupta colocou a mão em seu ombro.
— Espero que esse final de semana termine com um pedido de
casamento.
Talvez o final de semana não terminasse como o indiano
desejava, mas aquela tarde estava prestes a se transformar em
tragédia. Enquanto conversavam, Daniel abriu o cabo da espada e
retirou um papel amarelado. O movimento fez com que a lâmina
acertasse seu cavalo no flanco e o animal disparou, desgovernado.
Houve um segundo de pânico. O menino gritou, o cavalo
relinchou, outros animais se assustaram e a espada caiu ao chão
enquanto Daniel e sua montaria desapareciam em alta velocidade
pelo bosque. Tudo foi muito rápido e a reação de quem assistia à
cena foi gritar ou tentar correr atrás do animal desgarrado.
Em menos de um minuto, Charles estava montando seu
garanhão e galopando atrás do jovem conde. Não importava que
Anthony estivesse mais perto ou que houvesse outros dez homens
por ali, era ele quem deveria tomar uma atitude. Daniel era sua
responsabilidade — e ele o deixara sem a devida supervisão para
se engajar em uma discussão ridícula sobre amor, casamento e
pedidos que ele nunca faria.
Charles não confirmou se mais alguém o seguia ou se tentavam
ajudar no resgate. Aproveitou-se da sua experiência como cavaleiro,
extraiu toda velocidade de sua montaria e, em poucos minutos,
estava pareado com Daniel. O cavalo que ele montava, no entanto,
se assustou, tropeçou e desabou. Charles conseguiu segurar o
menino no ar, antes que ele caísse junto.

Em um minuto ela estava conversando sobre a temporada, sobre


moda e sobre projetos sociais com algumas mulheres muito
espirituosas e, no minuto seguinte, estava com as duas mãos no
pescoço para garantir que seu coração não pulasse pela garganta.
Olivia não viu o que aconteceu, apenas ouviu alguns gritos, a
voz de Charles chamando por Daniel e o barulho das patas do
cavalo em disparada. Ao perceber que seu irmãozinho perdera o
controle de sua montaria, ela também saiu correndo na direção dele
e foi segura por Anthony Eckley.
— Calma, Livvy — O marquês disse, próximo de seu ouvido. —
Charles é um ótimo cavaleiro, ele trará seu irmão de volta.
— Eles podem se ferir! — Ela não conseguiu prestar atenção em
seu interlocutor. Os olhos estavam fixados na parte arborizada para
onde tinham ido os cavalos. — Daniel adora animais, mas é
péssimo sobre uma sela.
As mãos de Rosamund tocaram-na nos ombros.
— Charles não permitirá que ele se machuque. Você sabe que
ele adora vocês como se fossem a família dele, e os Eckleys são
capazes de tudo para cuidar da família.
Ela suspirou e um soluço escapou de seu peito. Sim, os Eckleys
tinham sempre a família em primeiro lugar. As palavras da
marquesa lhe trouxeram conforto e a deixaram ainda mais confusa
com os episódios dos últimos dias. Olivia sempre soube que ele era
um amigo querido, o melhor amigo, mas não tinha pensado no
quanto a família Trentham era importante para Charles.
As visitas fora de hora, a presença constante, o excesso de zelo
e proteção — ele fazia isso porque estava cuidando deles. Como se
fossem sua família.
A constatação aqueceu seu coração, mas não fez desaparecer a
apreensão.
— Vou atrás deles. — Edward McFadden colocou o cavalo em
movimento. — Isaac e Sawbridge, venham comigo.
Ishani Gupta também se aproximou dela e segurou-a pelo braço.
Por minutos inteiros, ela aguardou, olhando para um ponto
específico no amontoado de árvores, até que todos retornassem.
Charles vinha no chão, conduzindo os dois animais pelo arreio,
enquanto Daniel estava montado no garanhão. O cavalo do conde
mancava e seguia mais devagar. Os outros cavaleiros vinham
acompanhando.
A partir daquele momento, Anthony não conseguiu segurá-la
mais — ele nem mesmo tentou. Ignorando decoro, retidão e
qualquer comportamento socialmente aceitável que ela devesse
adotar, Olivia disparou na direção deles, ajudou Daniel a descer do
cavalo e o abraçou como se o irmão ainda fosse um bebê.
— Eu estou bem, Livvy! — Daniel a afastou. — Acho que o
cavalo se assustou com alguma coisa, mas o Charles me segurou
no ar! Eu quase caí, mas ele me pegou. Você precisava ver como
ele fez!
O menino girava para lá e para cá imitando os movimentos
alegadamente heroicos de Charles. Anthony, Rosamund e a família
Gupta se aproximaram para ajudar com os cavalos. Olivia abraçou
outra vez o irmão, beijou-o nos cabelos suados e olhou para o
homem que o salvara.
Ele estava com o traje parcialmente desfeito. Gravata frouxa,
sem casaco, camisa encardida, colete com dois botões abertos e os
cabelos bagunçados. Suado, com poeira na pele e nas mãos,
Charles Eckley era o homem mais bonito que existia em toda
Londres. Não, em todo o mundo. Naquele momento ali, em que ele
segurava o arreio de dois cavalos e a fitava com as duas
sobrancelhas unidas e os lábios comprimidos em uma linha fina, ela
quis se esquecer de que estavam em público e abraçá-lo.
Mas Olivia nunca se esquecia de quem ela era e de sua posição
na sociedade. Com um sorriso e o coração ainda disparado, ela se
aproximou dele e sussurrou um “obrigada” para que ninguém mais
ouvisse.
— Ele está ferido. — Charles indicou o cavalo de Daniel. —
Creio que um pouco de repouso seja o suficiente para que se
recupere.
— Vamos retornar para a casa — Anthony decidiu. — Já tivemos
muitas emoções por hoje. Podemos continuar a caçada amanhã.
— Talvez eu prefira pagar para não ter que caçar tesouros —
Miles Westphallen provocou.
— Faremos um leilão dessa espada entre os homens. — Aiden
Trowsdale recuperou o artefato caído. — De onde surgiu isso? É
coisa sua, Edward?
O Conde de Cornwall proferiu uma imprecação inadequada para
os ouvidos das mulheres e desculpou-se com um aceno de cabeça
depois. Olivia nunca concordou tanto com o Marquês de Granville e
com Miles Westphallen. Todo o episódio durou poucos minutos.
Desde que ela percebeu a fuga do cavalo até o retorno de Charles
não se passou nem meia hora — e, ainda assim, foi o suficiente
para exauri-la emocionalmente. Olivia precisava de um chá de
camomila e uma banheira de água morna.
— Daniel, siga em meu cavalo. Conduzirei vocês a pé.
Charles determinou e ninguém o contestou. Depois de todos
montados em seus respectivos animais, seguiram em trote mais
lento para acompanhar o cavalo ferido. O marquês e o Sr. Gupta
continuavam conversando, mas Charles manteve uma postura
distante e silenciosa. Havia tantos tons de sombras em seu
semblante que Olivia não conseguiu compreender o que ele estava
sentindo. Eles não se falavam há dias e também não se falaram
desde que ele chegou a Hampshire. Ela decidiu trotar ao seu lado
para ajudá-lo na condução dos animais, mas ele não pareceu nem
mesmo notá-la ali.
Quando já estavam próximos da mansão, notaram uma comoção
entre os criados. Um menino veio correndo interpelá-los.
— Lady Olivia! Lady Olivia! — O garoto quase tropeçou para
chegar até ela. — Aconteceu um acidente na vila. Os criados estão
indo ajudar.
A comitiva parou imediatamente.
— Que acidente? — Perguntou Charles.
— É a reforma que estão fazendo na Igreja. Houve um
desmoronamento, senhor.
Charles piscou e inspirou uma grande quantidade de ar. Olhou
ao redor como se realizasse cálculos mentais e entregou o arreio do
cavalo avermelhado ao garoto.
— Conduza-o para os estábulos. Ele está ferido, seja gentil. —
Acariciou a crina do cavalo machucado, que relinchou em retorno.
— Sim, senhor.
O garoto saiu com o animal ferido. Charles entregou o arreio do
seu próprio cavalo para o irmão Nicholas.
— Nick, leve Daniel para casa. Vou com os criados ajudar no
resgate.
De novo, Charles não avisou a ninguém, não explicou o que faria
nem mesmo se despediu do homem a quem deveria impressionar.
Começou a correr na direção da vila, sabendo que selar um cavalo
demoraria demais — e ele tinha pressa.
— Vou com ele. — Anthony Eckley deu uma guinada em seu
animal.
— Vamos. — Grant Sawbridge também demonstrou
solidariedade.
Para agravar a situação, começou a chover. O céu se fechou,
transformando a tarde em noite, e a água desabou sem piedade
sobre suas cabeças. As mulheres galoparam de volta para a
mansão e os homens se dividiram. Trowsdale, Greystone e Isaac
McFadden seguiram com Anthony e Sawbdrige. Edward e os outros
seguiram com as mulheres.
Se momentos antes ela não teve coragem de abandonar as
convenções, naquele Olivia não ficaria como mera espectadora do
caos à sua frente. Aquela era a propriedade ancestral de sua família
e ela conhecia todas as pessoas daquela vila. Com um movimento
brusco, mudou o rumo de sua égua e disparou na direção de
Charles.
O animal pisoteava a terra já lamacenta e cavalgar estava
perigoso. Ela acabou chegando até ele antes dos outros homens, já
que era mais leve.
— Suba!
Ela estendeu a mão indicando que ele deveria montar. Charles a
fitou por breves instantes e não recusou: segurou a sela do cavalo
e, com um pisão firme no estribo, acomodou-se atrás dela. Olivia foi
imediatamente obscurecida por braços enormes que lhe tomaram as
rédeas e a égua saiu galopando para onde Charles a estava
guiando.
Com movimentos firmes e rápidos, ele a empurrou para frente,
fazendo-a se sentar parte sobre a sela, parte sobre suas pernas, e
se ajustou sobre o lombo da égua. Ela já vira Charles montar sobre
o pelo, porém, aquela demonstração de destreza a deixou quase
sem fôlego. Ele a mantinha segura entre seus braços, equilibrava-se
sobre a montaria e a conduzia velozmente pela lama.
Foi fácil saber quando chegaram ao destino, porque havia uma
grande comoção em andamento e um monte de gente indo de um
lugar para outro. Uma balbúrdia ao redor dos escombros do que
antes era um prédio. Charles pulou da égua antes que ela parasse e
foi até o grupo de homens que se amontoava diante da devastação.
A curiosidade a impulsionou a desmontar e acompanhá-lo.
— Charles Eckley — ele se identificou para o pároco, que
distribuía ordens e tinha uma linha de sangue escorrendo da
cabeça. — O que houve aqui?
— Não sabemos dizer ao certo, senhor. Estávamos trabalhando
na remoção do telhado quando tudo veio abaixo. Foi antes da
chuva.
Charles passou as mãos nos cabelos, que agora estavam
ensopados. O vestido que ela escolhera também deveria estar
arruinado, mas, diante de tamanha destruição, ela não conseguia
pensar em sua aparência.
— Há feridos?
— Muitos. Dois homens acabaram de ser retirados, mas há pelo
menos três soterrados. Não sabemos se estão vivos.
Olivia olhou em direção a onde o pároco apontava e viu um dos
feridos. Ela não tinha força nem habilidade para remover pedras ou
ajudar no resgate, mas cuidar de machucados e doenças era quase
uma especialidade. Sabendo que não fora notada ainda,
encaminhou-se até os homens que precisavam de atendimento
médico. Um deles era Bruce Peaton, dono da única loja de
miscelâneas da vila. O outro era o filho de Thomas Crew, o padeiro.
— Boa noite, sou Lady Olivia Trentham. Em que posso ajudar?
Martina Peaton, irmã de Bruce, entregou a ela um rolo de
bandagem.
— Curativos, milady. Sabe fazê-los? Quase todos os homens
têm escoriações.
Ela assentiu. Limpar e enfaixar ferimentos era um trabalho
bastante feminino e seria útil até que um médico chegasse — se ele
fosse chegar. A chuva só aumentava e o resgate parecia que estava
ficando cada vez mais difícil. Homens gritavam, ordens eram dadas
e ela não conseguia concentrar-se integralmente em sua tarefa,
porque estava preocupada com a segurança de seus amigos.
— Milady é médica? — Elisa Thompson, a filha mais nova do
pároco, se aproximou dela. A menina estava toda molhada, com
água escorrendo pelo rosto e os cabelos grudados na cabeça —
ainda assim, carregava água limpa e medicamentos de um lado
para o outro, ajudando as mais velhas.
— Sou uma dama. Não sabia que as mulheres são as melhores
curandeiras que existem?
A menina sorriu e concordou. Outros feridos chegaram, alguns
com sangue escorrendo e não adiantava nada tratá-los se estavam
imundos. As mulheres os faziam retirar as camisas, obrigavam-nos
a se limparem e depois medicavam e enfaixavam os machucados.
O resgate continuava, os gritos um pouco silenciados pelo ruído da
chuva batendo na cobertura de lona sob a qual estavam.
O lugar estava caótico, mas todo mundo tentava ajudar de
alguma forma. Enquanto limpava e enfaixava os ferimentos, Olivia
observou o ir e vir de homens carregando entulhos e distraiu-se com
a figura de autoridade que Charles representava. Ele tirou o colete,
dobrou as mangas da camisa, arrancou a gravata e se embrenhou
no meio do prédio desmoronado junto dos outros homens que ele
nem conhecia — e ainda assim, continuou distribuindo ordens e
sendo ouvido e respeitado.
Ela desejou que o tal Gupta estivesse ali, naquele momento.
Precisou resistir à vontade de ir até o homem e arrastá-lo para a vila
na intenção de mostrar: ali estava um homem respeitável. Charles
não era aristocrático, ao contrário, ele parecia um burguês e se
comportava como um. Mas ninguém poderia dizer que ele não
comandava todos os espaços, que não liderava todos que
estivessem ao seu redor.
Capítulo décimo primeiro

O S H
. Olivia não percebeu que estava tarde e não se
importou com sua reputação porque ali, naquela vila do interior de
Hampshire, não havia alta sociedade, jornais de fofocas ou
matronas que adoravam esmiuçar os escândalos enquanto outro
maior — ou mais interessante — não aparecesse. No meio daquele
caos encharcado e cheirando a óleo queimado, ela se sentiu viva.
Foi como se tivesse retornado à juventude, quando podia correr
livre pela propriedade dos Eckleys sem que ninguém a julgasse,
ninguém a recriminasse. Ela foi útil, pôde ajudar homens feridos e
rever pessoas que fizeram parte de sua vida de uma forma ou de
outra, mas com quem ela não mais conviveu desde que debutou.
Quando Charles parou ao lado dela, que estava agachada
acariciando o pelo de um gato de rua, e ofereceu a mão para que se
erguesse, ela entendeu que era hora de ir. Despediu-se do bichano
e da criança que observava a tudo e o seguiu até sua égua, que
estava amarrada em um poste de iluminação.
— Conseguiram retirar todos dos escombros? — ela perguntou.
Charles estava ajustando a sela lateral, que tinha se desprendido
parcialmente. A chuva já havia cessado.
— Dois homens não sobreviveram.
As sombras também estavam em sua voz. Ela nunca o vira tão
soturno, tão duro e tão atraente quanto naquela noite. As luzes
tremeluziam sobre seu semblante embrutecido e refletiam sobre
seus olhos escuros que não continham estrelas nem lua, apenas
nuvens.
— Eu sinto muito. — Foi tudo que ela pôde dizer. Ele terminou
de prender a sela e ofereceu a mão para que ela subisse.
— Será mais fácil se você montar primeiro.
— Irei a pé.
— Charles, você está exausto. Não faz sentido algum caminhar
se ela aguenta nós dois. Se não quiser dividir o cavalo comigo, eu
posso ir com Anthony ou com o Duque de Greystone. Talvez ele
queira me oferecer uma carona.
Olivia acariciou o pescoço de Miss Gretha. Ela adorava aquele
nome, foi o nome de sua boneca preferida na infância e o que ela
escolheu para a égua assim que a ganhou de presente do pai. Uma
onda de nostalgia a atingiu — ela também estava cansada. O dia foi
muito mais intenso do que esperava e produziu muitas histórias para
seu diário.
— Não pretendo iniciar uma discussão com você agora, Livvy.
— Nem eu. — Ela cruzou os braços na frente do corpo e
recusou-se a subir. — Seja menos teimoso e monte de uma vez.
Ele baixou o olhar e pressionou a ponte do nariz. Olivia já
esperava uma explosão de fúria que não veio. Ao invés de ralhar
com ela, brigar ou debochar como sempre fazia, Charles
simplesmente desistiu e subiu no lombo da égua. Acomodou-se na
sela, inadequada para se montar daquela forma, e a puxou para
cima. Olivia mal conseguiu pisar no estribo e já estava estatelada no
colo dele — colidindo com uma massa de músculos e ossos que
pareciam sempre muito tensos.
Com cuidado, ela se ajeitou para ficar em uma posição mais
ereta. Charles soltou uma imprecação baixa e fechou os olhos,
fazendo-a sentir um fluxo irresistível de sangue subir para aquecer
suas bochechas. Eles já haviam compartilhado diversas situações
constrangedoras no passado, mas era… passado. Olivia cresceu,
amadureceu e não mais perambulou por Rhode Port fazendo
estripulias de menina. Não houve mais encontros escandalosos com
Charles, nem conversas secretas ou banhos de mar depois do pôr
do sol.
E ela não sabia que sentira falta de nada disso até aquele
momento. Até o instante em que se sentiu envolvida outra vez pelos
braços fortes e se acomodou recostada no peito firme e macio. Era
como estar escorada em uma imensa barreira feita de granito e lã,
que protegia e aconchegava ao mesmo tempo.
Embalada pelo trote de Miss Gretha, ela fechou os olhos e
esvaziou a mente. Esperava que ninguém na casa a julgasse por
estar nos braços do maior libertino de Londres ainda na ativa. Talvez
pudessem acreditar que estivesse com uma crise de hipotermia. Um
caso de vida ou morte que justificasse estar sacolejando sobre o
lombo de um cavalo, no colo de um homem que não era seu marido,
pressionando os quadris em contato com… céus! Mesmo depois
dos livros de anatomia, ela ainda se surpreendia com aquela parte
do corpo masculino.
O grupo de resgate retornou silencioso e desmontou ainda no
estábulo, entregando os animais exaustos para os cuidados do
cavalariço e sua equipe. Antes de voltar para a casa, Charles foi
conferir a saúde do cavalo de Daniel e ela foi amparada pelo
Marquês de Granville. Olivia não estava preparada para entrar, para
separar-se dele, para encerrar o momento. Enquanto se permitia
conduzir por Anthony, que a empurrava para frente com uma mão
em suas costas, ela queria voltar correndo e abraçá-lo. Charles, não
o marquês. Ela queria abraçar Charles, enfiar o rosto em seu peito
molhado e agradecer.
Mas ele parecia pouco disposto a conversar. Com ela, com
qualquer outra pessoa — ele parecia precisar ficar sozinho. Olivia
não sabia por que os eventos da tarde pareceram afetá-lo mais do
que aos outros.
Ela subiu um pouco atordoada para seu quarto. As emoções
transbordavam por seus poros e Olivia quis lavá-las embora
mergulhando na banheira. Precisou de uma bucha, uma barra de
sabão e muita espuma para começar a se limpar, mas nem a água
morna surtiu o efeito que precisava. Esfregou cada parte de seu
corpo, quase esfolou a pele de tanto esfregar e, ainda assim,
continuava como se estivesse coberta por uma camada de
espinhos. Tudo nela formigava.
O banho durou vinte minutos. Eram quase oito horas quando ela
finalmente deixou o espaço controlado do banheiro para aventurar-
se em seu quarto. Bridget a aguardava para vesti-la e cada puxão
no espartilho a obrigou a silenciar um grito. Além de formigar, estava
sensível.
— Bridget, avise que o jantar deve ser servido às oito e meia em
ponto. Preciso de uns minutos aqui, vou escrever os eventos do dia
no diário.
— Pois não, milady.
A camareira desceu. Ninguém desconfiaria de sua mentira —
Olivia sempre escrevia no diário em vários momentos do dia e da
noite. Ela precisava distrair a família porque faria algo que não
deveria e para o que necessitava privacidade. Depois de girar três
voltas ao redor do próprio eixo e ameaçar abrir a porta outra meia
dúzia de vezes, ela se lançou no corredor e procurou o quarto onde
Charles estava.
Aquela deveria ser a vigésima vez que se colocava em um
cômodo fechado com aquele Eckley, mas em nenhuma estava com
pensamentos indecorosos. Céus, ela estava com pensamentos
indecorosos em relação a Charles? Como poderia ser tão
imprudente, mesmo sabendo do que libertinos eram capazes?
Olivia entrou no quarto e fechou a porta.
— Quem está aí? — A voz veio do quarto de banho. O coração
dela disparou. Por favor, que ele não esteja despido.
— Sou… sou eu.
Charles colocou a cabeça na porta e confirmou que era mesmo
ela. Olhou ao redor — estava sozinha. A porta fechada. O coração
deu uma pirueta quando ele saiu do banheiro vestindo apenas suas
ceroulas. Nenhuma outra barreira de tecido que a impedisse de
admirar as formas simétricas, nada ordinárias e incrivelmente
grandes daquele homem. Tudo o que sempre esteve ali e ela nunca,
nunca imaginou que pudesse ser tão… tão hipnotizante.
— Certo, precisamos ter uma conversa sobre limites. Você
perdeu completamente o juízo? Quando foi que adquiriu essa mania
de entrar nos quartos dos homens quando eles estão sem roupas?
Ele cruzou os braços no peito — o que não serviu em nada para
distraí-la, já que passou a observar os antebraços e seus músculos
contraídos. Aquela era uma explicação gráfica do por que homens
deviam usar mangas compridas e abotoadas nos punhos. Era quase
impossível concentrar-se em qualquer outra coisa enquanto sua
visão era atraída por aqueles braços peludos.
— Não tenho mania alguma de entrar em quartos, menos ainda
de homens e ainda mais se estiverem sem roupas. Você… você
poderia ter vestido alguma coisa antes de vir aqui falar comigo.
— E perder a oportunidade de ver suas bochechas corando? —
Charles não sorriu, apesar da zombaria. Ele mantinha a expressão
indecifrável e o olhar feroz. Olivia nunca se sentiu tão indefesa. — O
que você quer, Livvy?

O que ela queria?


Charles fez a pergunta com medo da resposta. Todos os seus
músculos doíam e ele não conseguia pensar claramente desde que
tivera aquela conversa com Gupta. Os eventos que a sucederam
serviram apenas para deixá-lo mais tenso. Deveria ter retornado
para casa. Não deveria nem mesmo ter aceitado que Olivia fosse
com ele até a vila. Além dos riscos para a reputação dela, colocou-a
em contato direto com toda aquela destruição e sofrimento.
Ela não parecia tão afetada quanto ele esperava, mesmo depois
de ter ajudado nos cuidados de homens feridos e de saber que,
naquela noite, duas pessoas haviam morrido bem à frente deles.
Olhando-a ali, Charles sabia que algo a incomodava — ela tinha
aquele olhar ansioso e torcia os lábios de um lado para o outro.
— Estou coçando. — Ela esticou o braço perfeitamente coberto.
— Formigando. Quero que isso passe, mas não sei a causa. Não
sei por que estou coçando, Charles.
O que diabos ela estava falando?
— Você quer que eu coce você?
De novo, fez a pergunta ansiando para que a resposta fosse
não. Por Deus, não! Ele mantinha os braços cruzados para não cair
na tentação de tocá-la — porque ele queria muito segurá-la nos
braços e afundar o rosto em seus cabelos depois de um dia difícil.
Aquele foi um dia bem difícil.
— Não. Eu quero… você poderia descruzar os braços?
Mesmo sem entender o que ela pretendia, ele obedeceu. Olivia
se aproximou e, parecendo sem jeito e posição, envolveu seu tronco
em um abraço. Charles não entendeu nem questionou o gesto.
Talvez estivesse sonhando, então prendeu a respiração e se
manteve imóvel. Se ele contraísse um músculo, acordaria e, se
acordasse, ela não o estaria abraçando mais.
Era provável que Olivia o estivesse agradecendo por resgatar
Daniel. Quando seus olhos se encontraram, algumas horas atrás,
ele soube que ela queria agradecê-lo e não encontrou a forma
adequada de fazê-lo. Estavam em público e só lhe era permitido
uma reverência. Ali, naquele momento, ela poderia ser outra vez a
menina travessa e transgressora que passava longas temporadas
em Rhode Port.
Antes que pudesse dizer que faria qualquer coisa para garantir a
segurança da família, ela acariciou suas costas com as duas mãos
espalmadas. Ele sentiu um formigamento em seus dedos do pé.
Excesso de chuva, com certeza. Depois, ela virou o pescoço e
enfiou o nariz em seu peito. O formigamento subiu, escalando suas
pernas e se concentrando em uma parte específica de sua
anatomia. Aquelas ceroulas não cobriam nada. Se Olivia se
afastasse um centímetro ela se depararia com a manifestação de
seu desejo por ela.
As mãos dela deslizaram das costas para frente e se
posicionaram em seus ombros. Charles quis afastá-la, mas ele não
era nem forte, nem digno o suficiente para se preocupar com a
honra de Olivia naquele momento.
— Você disse que me faltava experiência — ela murmurou,
hesitante. — Há dias eu vou e volto para o mesmo lugar e tudo
começou quando dançamos no sarau dos McFaddens. Não,
começou antes, quando… — Olivia pausou e umedeceu os lábios
com a língua. — Estou ficando louca por querer beijar você?
Sim, completamente louca. Mas ele preferiu a resposta mais
fácil. A que poderia levá-la ao lugar onde ele gostaria de vê-la.
— Não. É normal procurar conforto físico depois de experimentar
emoções tão intensas.
— É isso, então? Eu estou emocionalmente exaurida pelo que
aconteceu ao longo do dia e você é confortável?
— Provavelmente.
— Você me beijaria para fazer isso passar? Para colocar um fim
na angústia que está fazendo meu corpo coçar e pinicar como se eu
tivesse caído em um arbusto de urtigas?
Charles reprimiu uma risada. Ele a beijaria por quaisquer razões
que ela inventasse, porém, duvidava que aquilo fosse passar. Não
importava o que ela estivesse sentindo, um beijo só agravaria a
situação. De novo, ele escolheu o caminho mais fácil. O que a
levaria diretamente para sua boca.
— Sim, se for para ajudá-la.
— Ninguém precisa ficar sabendo. Seria um segredo entre
amigos.
— Creio que eu saiba guardar segredos.
Ela sorriu e fechou os olhos. Se havia um convite mais explícito
do que aquele, Charles desconhecia. Sim, ele iria para o Inferno,
mas antes provaria o Paraíso. Levou uma mão até os cabelos dela,
segurou-a pela nuca e mergulhou nos lábios que representavam seu
começo e seu fim.

Olivia Trentham nunca fora beijada nem sabia nada sobre beijos.
Essa foi a certeza que teve assim que a boca de Charles deitou
sobre a sua e todo o seu corpo amoleceu. Primeiro, ela achou
estranho que o beijo fosse tão molhado e quente. Os lábios dele
eram macios e os dela estavam rígidos e confusos pelo ataque
delicado, porém intenso. Ela sentiu que os dedos dele se abriam
para penetrar em seu penteado e que ele ajustava a posição de seu
pescoço para que o beijo fosse mais… para que o beijo encaixasse
melhor.
E então ele deslizou a outra mão para a bochecha dela,
acariciou-a com o polegar e passou a língua por seus lábios. Olivia
mal podia acreditar na ousadia daquele toque.
— Abra-se para mim — Charles murmurou contra a sua pele.
— Eu não sei o que…
— Shhh. — Ele deslizou o polegar para seu lábio inferior e o
posicionou ali. — Fique assim.
O que se deu a seguir foi ainda mais ousado: ele voltou a beijá-la
e, dessa vez, a língua a invadiu como um conquistador saqueando
uma cidade. Devastador. Delicioso. Entorpecente. Olivia se perdeu
em uma espiral de sensações inéditas e irresistíveis que a fizeram
reagir como uma devassa. Agarrou-o com mais força, enlaçou-o
pelo pescoço e colou seu corpo ao dele.
Olivia não sabia o que a sustentava, porque suas pernas não
eram mais capazes de cumprir a função. Talvez fosse a outra mão
de Charles, que desceu para sua cintura e exercia uma pressão
suave em suas costas. Ela estava nos braços dele, sendo devorada
pela boca com a qual sonhara uma ou duas noites atrás — e
entendeu o que ele falava sobre conforto.
Aquele beijo a fez sentir-se melhor. Atordoada pelos sentidos,
que estavam agitados e obnubilados pelo calor, pelo contato da pele
nua contra a sua e pelo sabor. O beijo tinha um gosto peculiar de
especiarias, uma nota de cravo e era alcoólico quase a ponto de
embriagá-la.
Um rosnado chamou a sua atenção. Pensou que fosse Charles
— ele tinha o hábito de grunhir e rosnar quando algo não estava do
seu agrado. Será que ela beijava tão mal que o amigo estava
achando a experiência desagradável? Era improvável. Olivia não
era uma grande entendedora de beijos, mas sabia que aquele
volume rígido contra o qual ela estava esmagada era um indicador
de que ele estava aproveitando o momento.
O rosnado deu lugar a um latido. Charles interrompeu o beijo e
virou o pescoço para o lado.
— O que essa criatura medonha está fazendo aqui?
Olivia olhou para a cama e lá estava ele: Fedorento, o cão
resgatado, de pé sobre o colchão e latindo irritado.
— Ele deve ter entrado sem que ninguém percebesse. — Olivia
desvencilhou-se de Charles e sentiu seu corpo ainda flácido. Deu
um passo para frente e quase caiu. Que efeito estranho era aquele?
— Venha, Fedorento, você está fazendo um escândalo
desnecessário.
O cão deu mais um latido e pulou em seus braços. Charles
respirou fundo e pressionou a ponte do nariz. Ele estava
arrependido de tê-la beijado, era claro. Estava aliviado por ter se
livrado da melhor amiga grudenta que decidira importuná-lo por
causa de uma perturbação emocional. Ela entendia, o dia fora
mesmo extenuante para quem, como ela, tinha uma vida pacata e
sem grandes acontecimentos. E ele tinha razão — Olivia precisava
de acolhimento.
— Vocês nomearam o cão “Fedorento”?
Ela riu.
— Foi você quem escolheu.
— Bem, não podemos negar que ele cheira melhor, agora. —
Charles cruzou os braços outra vez. — Melhor você ir. Se alguém
subir e pegar você aqui…
Ela olhou o relógio. Oito e meia. Estava quase atrasada para o
jantar e ela nunca se atrasava — ainda mais se foi ela quem marcou
o horário. Parou na frente do espelho pendurado na parede e ajeitou
o penteado que ele desfizera e saiu do quarto sem dizer adeus.
Talvez ele considerasse uma falha em sua educação. Olivia não
tinha como explicar que jamais seria capaz de dizer adeus a Charles
e que estava ainda menos apta a despedir-se naquela noite. Por
isso, ela apenas saiu, levando Fedorento no colo, e desceu
apressada as escadas para fingir que tivera alguma emergência.
Bem, a emergência fora real — ela apenas precisava inventar uma
que não a arruinasse em definitivo.
Capítulo décimo segundo

N , O C
inteligente, mas estava enganado. Completamente errado, bastante
equivocado em suas percepções sobre o dia. Era possível que ela
estivesse abalada, sim, mas o conforto físico só a fez se sentir
melhor enquanto estiveram juntos no quarto.
Ele faltou ao jantar, o que poderia ser um problema se Nicholas
não tivesse convencido a todos que a chuva o deixara com um
resfriado. Sem saber o quanto o irmão estava ciente da farsa que
eles encenavam, Olivia apenas lamentou o infortúnio e pediu que o
mordomo garantisse que ele recebesse um caldo de carne em seus
aposentos.
Como os convidados eram todos amigos de longa data, ninguém
se importou muito com a ausência de Charles. Depois de comerem,
os homens se dirigiram para o salão de jogos para beber vinho do
porto e jogar bilhar e as mulheres foram conversar no salão privado
da condessa viúva. A mãe também não apareceu, mas isso já era
esperado.
Quando todos se recolheram para seus quartos, com a
promessa de que o dia seguinte seria de muitas atividades ao ar
livre — afinal, não estava mais chovendo —, ela se perdeu nos
pensamentos. Deitada em sua cama, Olivia rolava de um lado para
o outro sem conseguir adormecer. A coceira e a dormência
passaram, mas ela sentia uma comichão inconveniente que lhe
subia pelas pernas até o pescoço. E calor. Calor em demasia para
uma noite agradável de primavera. Seus dedos dos pés estavam
frios, quase gelados, mas suas coxas ardiam como se estivessem
em chamas. O pescoço também estava quente, quase como se ela
estivesse febril.
Poderia estar doente, mas não acreditava na hipótese. Algo
naquele dia a fez despertar — para o que, ainda não sabia. O
problema: ela não conseguia desligar o que a estava deixando
agitada, ansiosa, nervosa e precisava de algo que ela não
compreendia.
Passou a noite em claro revivendo o beijo e isso não ajudou a
melhorar a situação. Rabiscou páginas e mais páginas em seu
diário e não escreveu nenhuma palavra coerente. Acendeu uma
lamparina e abriu Anna Karenina para prosseguir em sua leitura e
descobrir que queria algo diferente. Precisava dos livros de
Annabelle.
A irmã adorava livros proibidos e os escondia em um baú na
biblioteca. Olivia não sabia por que eram proibidos, apenas tinha
uma vaga impressão de que eram sexualmente apelativos e
mulheres não podiam ler, falar ou pensar sobre sexo. Claro que não
podiam, veja como ela estava depois de um simples beijo!
Exceto que não teve nada de simples no beijo de Charles. Ela
não imaginava que se pudesse beijar daquela forma, com tantos
sentidos envolvidos. E língua. Cristo! Eles se beijaram usando a
língua e aquilo tinha que ser uma coisa dos libertinos. Claro que era.
Por isso eles eram depravados, devassos que não respeitavam a
moral.
Enrolada em seu roupão, ela pegou uma lamparina e desceu as
escadas em silêncio. A casa estava toda escura, ainda faltavam
uma ou duas horas para amanhecer. A chuva, que dera uma trégua,
voltou a cair insistente e o vento assoviava pelas janelas fechadas.
Olivia foi até a biblioteca, acendeu algumas luzes e procurou os
livros da irmã. Pegou o primeiro da pilha, um pouco empoeirado por
não ser lido há muito tempo, e se acomodou em um chaise longue
ao lado da lareira.
Distraiu-se com o conteúdo logo no início da leitura. Uma dama
que decide se entregar de alma e corpo para o amor de sua vida, já
que estava destinada a um casamento sem amor com um homem
cruel. Eles se amavam desde jovens, mas a diferença de classes
sociais os manteve separados. Como ela não queria viver sem
provar a paixão, decidiu experimentar uma tórrida noite de prazeres
sexuais com seu amado.
Olivia esperava sentir repulsa pela história, mas acabou sofrendo
com a protagonista e seus infortúnios românticos — e se
envolvendo com a narrativa do encontro de amor. As descrições
eram bastante cruas e indecentes. Algo nela acendeu como velas
na noite de Natal.
— Lady Olivia?
Uma voz masculina ecoou pela biblioteca e a assustou. Olivia
derrubou o livro, quase caiu da cadeira ao tentar pegá-lo e não foi
rápida o suficiente para escondê-lo. O Duque de Greystone, em
roupas pouco decorosas, flagrou-a cometendo um crime que
poderia arruiná-la por completo.
— Milorde! — Ela sentou em cima do livro. — O que faz desperto
tão tarde?
— Perdi o sono e decidi dar uma caminhada, mas está
chovendo. Foi quando vi as luzes acesas.
Ela fechou o roupão até o pescoço, garantindo que nenhuma
parte estivesse exposta. Greystone estava despojado, com a camisa
para fora da calça, sem colete ou gravata e os cabelos castanhos
claros desarrumados. Sim, ele era bonito demais para ser de
verdade. Parecia os mocinhos de livros, aqueles que só existiam
nos sonhos das mocinhas.
— Também não consegui dormir e vim procurar um livro para ler.
O duque foi até o aparador de bebidas e se serviu de um
drinque. A chuva aumentou e o barulho do vento criava um
ambiente fantasmagórico.
— E encontrou?
Oh, sim, ela tinha encontrado. Apenas não podia mostrar o que
estava lendo para o duque. Puxou o exemplar de Anna Karenina e
exibiu a capa com ornamentos em dourado para sua companhia.
Greystone se sentou em uma cadeira à sua frente e pegou o livro
nas mãos. O coração de Olivia estava acelerado e ela sentia
vontade de rasgar as roupas e atirar-se em um lago gelado, mas
duvidava que Richard Cadden fosse o responsável por isso.
Também duvidava que ele fosse ser capaz de aplacar aquela
agonia.
— Tolstoi. Não pensei que gostasse de romances, Lady Olivia.
Quais outras surpresas milady esconde por trás de sua retidão e
decoro?
Aquele era um péssimo momento para flertes, mas ela não podia
dispensar a companhia de Greystone quando pensava que ele seria
o seu marido ideal.
— Toda dama acaba sonhando com um pouco de romance,
milorde.
— E milady gostaria de se casar por amor?
— Sim. Se puder escolher, casarei com o homem por quem
estiver apaixonada.
— Precisarei me esforçar para conquistar seu coração, então?
Ela não sabia como respondê-lo. Por sorte, não precisou. Antes
que a situação se tornasse constrangedora — ou perigosa —, a
biblioteca foi novamente invadida. Daquela vez por jovens
abelhudas que queriam uma aventura literária. Margaret e Ishani
Gupta, cujas idades eram equivalentes, entraram silenciosas e
ficaram da cor da morte ao ver que não estavam sozinhas.
— Parece que ninguém dorme nessa casa. — Greystone riu.
— Nós… nós queríamos… quer dizer, Ishani queria…
— Não precisam dar explicações sobre o que fazem em suas
casas, senhoritas. — O duque se levantou, bebeu o restante do
conhaque e fez uma reverência curta. — Se me dão licença, tentarei
cochilar um pouco antes que seja obrigado a participar de outra
aventura com Charles Eckley.
As três mulheres viraram o pescoço para vê-lo se retirar.
Margaret colocou a mão no peito e suspirou.
— Ele tem um belo traseiro.
— Pelo amor de Deus, Maggie! — Olivia rosnou. — Isso lá é
coisa para uma dama da sua idade falar?
— Não me diga que também não notou que ele é lindo e está
muito interessado em você? Vamos, Livvy, dois pretendentes?
Nunca imaginei que você fosse uma conquistadora.
— Eu jamais terei dois pretendentes — Ishani divagou. — Papai
escolherá o melhor marido para mim, assim não haverá competição.
— Deve ser chatíssimo casar com quem o pai escolhe — Maggie
balançou a cabeça.
— O que vocês duas vieram fazer aqui, na verdade? — Olivia
interrompeu a conversa. Como ela se casaria para satisfazer seu pai
e para atender aos seus ditames, acabaria tendo o mesmo destino
de Ishani Gupta: um casamento por conveniência.
— Eu queria mostrar a Ishani os livros proibidos de Annabelle.
— E desde quando você sabe que Annabelle tem livros
proibidos?
Margaret moveu os ombros para cima e para baixo como se
respondesse que aquilo não era importante. Olivia levantou e puxou
o livro que precisou esconder. Claro que as duas meninas também
estavam atrás daqueles exemplos de luxúria e perdição.
— Certo, sentem-se aqui. Se vocês vão ler essas obscenidades,
que sejam supervisionadas por alguém adulto.
As três se acomodaram no tapete, em almofadas fofas e tendo o
fogo alaranjado da lareira como companhia. A história da
desventura de amor terminou com um final feliz — a mocinha
desistiu do casamento com o nobre para ficar com homem de sua
vida. Ao final do livro, tanto Ishani quanto Maggie limpavam lágrimas
e comemoravam a vitória do amor. Ela tentava entender por que o
sentimento, tão supervalorizado pelas mulheres, não era a regra
para casamentos na aristocracia. E como faria para conjugar os
dois, já que, apesar de saber que o Duque de Greystone era o
melhor partido da temporada, ele não despertava qualquer paixão
nela.

Ele deveria ter passado a noite em claro. Talvez fosse adequada


uma penitência rigorosa. Jejum, chibatadas, um dia inteiro ajoelhado
sobre o milho, a masmorra ou a pena de morte. Que direito ele tinha
de tocar em Olivia? Com ousara beijá-la?
Mas Charles teve a melhor noite de sua vida e nada mais
parecia importar. Dormiu como uma pedra e sonhou com bocas,
línguas e abraços. Ele nem sequer se arrependia de tê-la segurado
em seus braços e tomado-lhe a boca como se sua vida dependesse
daquele beijo. Era o que Olivia queria, não era? Por que ele
resistiria à mulher que passou anos desejando?
Não desceu para o jantar, porque estava se sentindo como um
Rei, como Alexandre, o Grande — e não queria ser importunado em
seus delírios. Se ele visse Olivia flertando com Greystone, talvez
chamasse o homem para um duelo. Duelos não existiam mais, mas
ele os faria retornar à moda só porque se sentia imbatível. Tinha um
sorriso insuportável nos lábios que não condizia com o que
pensavam dele: um homem soturno, ranzinza e sempre disposto a
arrancar algumas vísceras para chegar aonde queria.
Acordou cedo demais. Não havia sol do lado de fora, só uma
chuva intensa e interminável que deixou a manhã escurecida,
cinzenta e melancólica. Seu sorriso se ampliou. Aquele era o clima
perfeito. Vestiu-se com um traje elegante para causar boa
impressão e desceu para interrogar os criados sobre eventuais
danos causados pelo temporal. Também queria saber se havia
fundos suficientes para a manutenção da propriedade e quem
estava cuidando da condessa viúva.
Seu relógio marcava cinco e meia. Talvez os criados ainda
estivessem dormindo, mas havia um delicioso cheiro de pão assado
vindo da cozinha. Seu estômago protestou pelo desejo de algum
alimento sólido. A mentira que Nicholas inventou sobre sua reclusão
rendeu-lhe um delicioso caldo de carne como jantar, mas Charles
era um homem grande demais para se satisfazer com uma refeição
leve.
Enquanto resolvia uma discussão interna sobre aparecer na
cozinha para assaltar a comida — e deixar de lado o personagem
do homem respeitável que agia como um nobre — ou esperar até o
desjejum, ouviu barulho de vozes vindas da biblioteca. Três vultos
femininos se formaram na penumbra. Elas se assustaram ao vê-lo e
deixaram cair alguma coisa que seguravam.
— Charles! — Margaret se aproximou dele. A menina vestia uma
camisola e tinha os cabelos soltos. — Você está melhor? Ficamos
preocupados com sua saúde ontem.
— Estou ótimo. — Ele sorriu. — Forte como um touro. O que faz
fora da cama e com essas roupas?
— Estávamos lendo os livros de Annabelle.
— Maggie! — Olivia protestou e quase calou a irmã com as
mãos. — Você não pode contar isso às pessoas.
— Mas não estou falando com “as pessoas”. É o Charles, ele
não é como uma de nós? Como uma das garotas?
Ele não conseguiu evitar uma risada sonora demais para o
silêncio da casa.
— Você pode confiar em mim, Maggie. — Charles afagou a
cabeça da menina. — Mas, se está de posse de literatura proibida,
precisa garantir que ninguém pegue você.
— Sim, senhor.
— Agora, voltem para a cama. Você e a Srta. Gupta, cujo
segredo também terei que guardar.
A filha de Bharat Gupta estava visivelmente embaraçada por ter
sido flagrada e saiu em disparada atrás da pequena diabinha dos
Trentham. O que Maggie e Belle tinham de subversivas, Olivia
sobrava em propriedade e decoro. Como ele adoraria arrancar cada
centímetro daquela camada de verniz social que a mantinha sempre
ereta, sempre adequada e sempre correta!
Exceto que ela estava dando alguns sinais de rebeldia — a
mesma que ele via quando eram jovens em Rhode Port. Pediu para
que ele a beijasse. Permitiu que a irmã e a amiga lessem romances
eróticos. E envolveu-se com o resgate dos homens na vila,
misturando-se com a plebe e fazendo exatamente o contrário do
que pregava a cartilha do bom comportamento da aristocracia. Algo
o fez sorrir ao vê-la segurando aquele livro nas mãos — talvez fosse
orgulho.
— Livvy, espere. — Charles impediu que ela passasse por ele.
— Vamos conversar.
Ela assentiu, abraçando o livro contra o peito.
— Vou apenas devolver isso para o seu lugar. Você me espera
trocar de roupa?
— Sim, eu espero. — Ele levou a mão até ela e pegou o livro.
Olivia não resistiu. Algo entre eles se rompeu, chacoalhou depois do
beijo. Havia barreiras que Charles não ousava ultrapassar e que não
estavam mais erguidas. — Deixe comigo, eu quero saber o que
andavam lendo.
— Charlie…
— Acalme-se, eu não deixarei que saibam que é seu.
— De Annabelle.
— Não deixarei que saibam que é de nenhuma de vocês. — Ele
fez um sinal de juramento. — Agora vá. Vista-se e me encontre na
cozinha.
— Na cozinha?
— Estou faminto.
Ele estava e não era apenas por comida. Seus olhos
observaram-na seguir na direção da escadaria e depois subir cada
degrau com um saltinho apressado — e seu corpo reagiu como
sempre. As barreiras que foram derrubadas também o liberaram
para desejá-la sem limites. Não que houvesse limites antes. Mas
Charles se sentia sujo. Era errado desejar aquele anjo de pureza e
virtude até descobrir que ela também era uma mulher com desejos
mundanos.

A cozinha da casa principal era grande, bem aparelhada e cheirosa.


Charles adorava o cheiro de comida, o aroma do bacon, dos
vegetais frescos e do pão que parecia sempre estar no forno de
cozinhas como aquela. Não entendia por que os nobres detestavam
suas cozinhas, por que sequer pisavam nelas. Os Eckleys
adoravam frequentar os espaços que ninguém gostava e a chegada
de Charles causou certo rebuliço entre a cozinheira e suas
ajudantes.
Metade delas reclamou da presença de um homem e a outra
metade suspirou. Ele estava acostumado a causar as duas reações
nas mulheres.
— Há algo que possa fazer pelo senhor? — A cozinheira
perguntou, limpando a mão no avental branco. Ele se distraiu com
uma criada que retirava um tabuleiro do forno.
— Sim, minha senhora, eu estou com fome. Se não se importar,
vou rodar por aqui e encontrar algo para comer.
— Pedirei que preparem uma refeição para o senhor. — A
mulher se apressou a colocar-se na frente dele. Charles sorriu e
piscou o olho para a criada que segurava o tabuleiro. Ela o estava
encarando. — Onde devo mandar servi-la?
— Vocês não precisam se incomodar em me servir. Deixem que
eu mesmo preparo minha refeição.
Talvez a cozinheira fosse ter um ataque apoplético e cair
desmaiada ali mesmo na frente dele, mas Olivia apareceu para
intervir. Ela se vestiu às pressas — o penteado era um mero coque
no alto de sua cabeça e o vestido estava mal abotoado.
— Lady Olivia. O Sr. Eckley quer… ele quer se servir.
— Imagino que queira. Sra. Broody, poderia nos dar um minuto?
A senhora não precisa sair da cozinha, porém, temos um assunto
importante para tratar.
— Um minuto e dois daqueles pãezinhos. — Charles apontou
para o tabuleiro, ainda na mão da criada. Ou ela estava horrorizada,
ou fascinada com a presença dele ali.
A mulher passou as mãos pelo cabelo e se afastou. Ele não era
conhecido como o terror da criadagem por seu bom comportamento.
Depois de conseguir um prato com presunto, ovos e os benditos
pães, foi com Olivia até a mesa que ficava no meio da cozinha e se
sentou. Bateu no banco ao seu lado e indicou que ela deveria
ocupá-lo. Ela pareceu confusa por um instante até se sentar do lado
oposto.
Bem, ele não podia esperar que aquele beijo fosse despi-la de
todo o decoro que cultivara ao longo dos anos.
— O que deseja, Charlie?
Você.
— Gostaria de me desculpar por ontem. Depois de tudo que
aconteceu, você estava cansada, nervosa e eu agi como um…
— Não precisa — ela o interrompeu. — Podemos fingir que o
beijo nunca aconteceu.
Charles franziu as sobrancelhas e a fitou. Olivia estava inquieta e
com olheiras. Teria passado a noite inteira devorando literatura
obscena? Aquilo seria outro sonho tornado realidade.
— Acha que estou me desculpando por beijá-la?
— Não está?
— Não, não estou. Eu me sinto mal por não ter conversado com
você depois que presenciou seu irmão em perigo e cuidou de
homens feridos em um desabamento. Imagino que estivesse muito
frágil para ter ido até mim, mas eu me tranquei no quarto e a deixei
enfrentar tudo sozinho. Porém, não me arrependo de tê-la beijado.
Você não era a única em busca de conforto físico.
Ela ergueu as sobrancelhas e se acomodou melhor no banco.
Espalmou as mãos sobre a mesa e passou alguns segundos
flexionando os dedos. Alguns cachos desprenderam de seu
penteado e, daquela vez, Charles não se refreou. Levou a mão até
ela e colocou-os atrás de suas orelhas. Olivia ergueu a cabeça e o
encarou.
— Daniel está bem. Ele não parou de falar sobre o quanto
heróico você foi. Esqueceu-se de que outros homens foram ajudar
no resgate, passou a noite idolatrando-o como a um semideus.
Ordenei que buscassem um médico na cidade para atender aos
feridos e a vila ficará em luto por dois dias pelos falecidos. Eu não
os conhecia. — Ela disparou muitas palavras de uma vez e quase o
deixou zonzo. — Fora isso, creio que você esteja enganado. O beijo
não me ajudou a me sentir melhor.
— Não ajudou? — Ele mordeu um pãozinho e ofereceu o outro
pedaço a ela.
— Passei a noite inquieta. Ainda estou. Eu fui procurar aquele
livro indecente que você viu e não estou me sentindo muito bem.
Olivia colocou um pedaço do pão na boca e mastigou. Ele estava
enganado — não foi o acidente com Daniel nem o desabamento na
vila que a deixaram sem dormir aquela noite. Ela estava agitada por
causa do beijo. Ele sorriu. Por que diabos demorara tanto para
tomar a decisão de beijá-la?
— Eu dormi como um bebê. Estou me sentindo revigorado e
muito bem. O que a aflige?
— Estou com calor. — Ela continuou mastigando. — E fico
relembrando o que aconteceu como se não tivesse sido suficiente.
— Imaginei que você poderia sentir-se assim.
— Imaginou e não me contou? Deixou-me acreditar que
entregar-me a um momento de devassidão ajudaria o meu estado
emocional sabendo que não faria diferença?
Charles se levantou e se sentou no banco ao lado dela. Olivia
não saltou para trás nem o reprimiu. Ela continuava ignorando os
riscos de se aproximar demais de um homem como ele. Mesmo
diante dos criados — que nem sequer estavam prestando atenção
na conversa —, ele segurou uma mão dela entre as suas, levou até
os lábios e beijou-lhe a palma. Ela emitiu uma interjeição alta
demais. Um gemido que ecoou em sua virilha.
— Não disse que não faria diferença, mas é possível que seu
estado emocional não seja o responsável por esse mal-estar. —
Charles dobrou o corpo e levou os lábios até os ouvidos dela. — O
problema pode ser físico.
— Não entendo.
— Talvez você devesse ler mais livros proibidos. — Ele riu e
resvalou a boca em sua bochecha antes de endireitar a coluna.
Olivia estremeceu outra vez. — Você tem vinte e quatro anos, Livvy,
e está descobrindo agora que seu corpo nem sempre obedece ao
decoro da sociedade. Talvez você queira algo que lhe digam que
não é permitido, mas você não vai parar de querer só por isso.
Ela o fitava com os lábios divididos e uma expressão de
curiosidade. Charles arrastou-se para mais perto, apenas alguns
centímetros mais perto.
— Era sobre isso que queria conversar?
— Não, eu queria saber se você estava bem. Descobri que não,
mas por um motivo diferente do que imaginava.
— E há alguma solução recomendada para minha indisposição,
senhor sabe-tudo?
Você não tem ideia da solução, minha querida. Charles
precisava tomar uma decisão. Se ele ultrapassasse aquela barreira,
ela seria a última. Aquele foi o motivo pelo qual se reprimiu por
tantos anos. Se a tocasse além do decoro, não conseguiria voltar
atrás. Não queria voltar atrás. Saber que ela o desejava o tornou
invencível.
— Gupta sabe que você não me ama. — Ele optou por uma via
transversal. Olivia gostava de história e de planos, então tudo podia
fazer parte do plano. — Mas pensa que eu a amo e gostaria de ver
um pedido de casamento até o final do evento.
A mudança brusca de assunto a deixou confusa. Olivia percebeu
que eles continuavam com as mãos unidas e pegou o outro
pãozinho. Mordeu e ofereceu a ele o outro pedaço, em uma
repetição do que Charles fizera antes. Para não precisar soltá-la, ele
mordeu o alimento enquanto ela o segurava.
— Isso é um pouco mais sério do que planejamos.
— Isso vai impedi-la de conquistar Greystone. Se ele achar que
estamos noivos, recuará.
— Acha que é necessário?
— Conquistar Greystone?
— Não, seu bobo. — Ela riu. — Pedir-me em casamento.
— Não é necessário, mas podemos estreitar nossos laços.
Talvez possamos demonstrar um pouco mais de entusiasmo quando
estivermos juntos.
Ela olhou ao redor. Os criados continuavam ignorando-os como
se nem estivessem ali. A cozinheira distribuía ordens para o preparo
do desjejum e o relógio pendurado indicava seis e vinte. Ninguém
despertaria antes das oito, ainda mais com a chuva torrencial que
não cessava. As ajudantes corriam para lá e para cá picando
vegetais e preparando os alimentos da primeira refeição do dia.
— Essa seria a sua solução para meu problema? Vou me sentir
melhor depois que fingirmos com mais entusiasmo?
O deboche evidente na voz dela o fez sorrir. Charles levou outra
vez a mão dela até os lábios e beijou. Desceu a boca até o pulso em
uma linha sinuosa e lenta, porém mais curta do que desejava.
— Se você quiser se arriscar mais, Livvy, eu posso te mostrar
várias soluções para sua indisposição.
— Se eu me arriscar e for pega…
— Não seremos pegos — ele a interrompeu. Incomodou-o que
ela não se importasse em beijar Nicholas em um jardim, arriscando
sua reputação, enquanto temia fazer o mesmo com ele. Afaste os
ciúmes, Charles. Eles nunca o levaram a lugar algum. — Eu nunca
sou pego.
— O que devo fazer?
— Nada. Apenas espere por mim.
Capítulo décimo terceiro

E . O
com a cabeça em jogar com um libertino viciado em carteado?
Olivia perdeu antes mesmo de começarem a partida. Mas precisava
fazer alguma coisa para recuperar o controle de sua vida — e se
Charles tivesse como acalmar o maremoto de sensações que
causava uma devastação dentro dela, então que ela apostasse
tudo.
A chuva não cessou. Os convidados acordaram e foram
encaminhados para o salão de refeições. Os criados estavam
fazendo um serviço impecável, mas a situação fora da casa não era
das melhores.
— Milady — Hawkes, o mordomo, a interpelou ainda no salão de
refeições. — Temos um problema grave com as estradas.
— Que tipo de problema?
— Elas estão interditadas. A chuva alagou a via de acesso à vila
e causou uma cratera na estrada para a ferrovia. Não temos como
sair da propriedade, assim como ninguém pode chegar até
Summerwood Hill.
Aquele era realmente um problema grave, porém ela esperava
que fosse fácil de resolver quando o solo secasse. Se a chuva
parasse em algum momento.
— Isso significa que podemos não ter como voltar para Londres
na segunda-feira, Hawkes?
— O estrago na estrada é irreparável, milady. Teremos que abrir
outra passagem para as carruagens, porém está tudo alagado. Nem
cavalos conseguem passar.
— Certo. Mantenha essa informação em sigilo por enquanto.
Não vamos alarmar os convidados. Se tivermos de permanecer por
algum tempo, a casa possui suprimentos para quantos dias?
— Pedirei à Sra. Bowes que faça um levantamento.
Olivia agradeceu. A notícia a deixou ainda mais alerta e nervosa.
Havia um pequeno baile programado para aquela noite e a
orquestra certamente não conseguiria chegar. Ela teria que inventar
uma desculpa ou dizer a verdade e atrapalhar a diversão de todos.
Se eram aquelas as provações que precisaria enfrentar quando
casada, talvez devesse repensar sua vontade de arrumar um
marido. Era melhor permanecer solteira a ter que lidar com
desmoronamentos a alagamentos toda vez que se retirasse para o
campo.
Ela olhou para o movimento no salão. Os convidados estavam
alegres e conversavam animadamente. Não havia separação por
idade, então os jovens também frequentavam o mesmo espaço dos
adultos. Daniel perambulava como o pequeno conde que era.
Desviou sua atenção para o relógio — dez e meia. A celebração em
homenagem a seu pai teria lugar na capela que ficava na
propriedade, mas isso também seria atrapalhado pela chuva.
Sem dizer nada a ninguém, considerando que não dariam por
sua falta, Olivia subiu as escadas até o sótão, onde ficava reclusa a
sua mãe. Desde que chegaram ela evitou visitá-la com a intenção
de que Elizabeth Trentham se sentisse compelida a sair do quarto,
porém sabia que isso não aconteceria mais. Não entendia o que
afastava a mãe da vida social e até mesmo dos filhos. Não entendia
que amor era aquele que a fizera morrer em vida porque não podia
mais ficar junto do marido. Olivia desejava e temia aquele tipo de
sentimento — ela não queria nem mesmo correr o risco de passar
pelo que a mãe passava.
— Milady. — A camareira levantou-se imediatamente ao vê-la
entrar no quarto. A mãe estava sentada em uma cadeira olhando
para o lado de fora. Para a chuva. — Ia chamá-la, a condessa
gostaria de vê-la.
Ela duvidava, mas aceitou a mentira. Aproximou-se da cadeira e
ajoelhou-se ao lado de Elizabeth, segurando-lhe a mão envelhecida.
A mãe era uma mulher jovem, mas definhava há quase dois anos.
Sua pele estava fina como a seda. O toque era craquelado. Olivia
cogitou que a mãe pudesse se quebrar como o gelo do lago no
inverno.
— Bom dia, mamãe. Chegamos ontem de Londres e você está
com a casa cheia de convidados, como gostava. Não quer descer
para vê-los?
Elizabeth virou-se para ela com um movimento lento de pescoço.
Os olhos claros como os de Annabelle a miraram por breves
instantes e a mãe forçou um sorriso. Levou a mão até seus cabelos
e os afagou, como fazia durante a infância.
— Você sempre quis ser uma anfitriã. Aproveite seu momento.
— O contato visual se rompeu e Elizabeth voltou a encarar a chuva.
— Quero ver meus filhos. Peça que venham.
Olivia levantou-se e beijou o topo da cabeça da mãe. Uma
lágrima caiu sobre os cabelos grisalhos e ralos. A mãe tinha
quarenta e cinco anos, mas parecia ter vinte a mais. Envelheceu
tanto em poucos meses que talvez nem ela a reconhecesse, se não
tivesse certeza de que aquela mulher ali era Elizabeth Trentham.
— Faremos um tributo ao papai hoje. Você não vai participar?
Nenhuma resposta. O corpo da mãe estava ali, mas a mente
dela vagou para outro lugar. Ela vestia um sorriso distante e seu
olhar parecia ultrapassar as fronteiras do vidro embaçado, perdido
em algum lugar onde ninguém a encontraria. Talvez fantasiasse
estar com o marido.
— Meus irmãos virão vê-la — Olivia informou à criada e saiu.
Depois de fechar a porta, recostou-se nela e cobriu o rosto com as
mãos, sem conseguir evitar que as lágrimas contidas derramassem.
Seu corpo deslizou para o chão até que ela se reduzisse a uma
menina encolhida chorando pela morte dos pais.
Porque Olivia perdeu o pai e a mãe dois anos atrás. Um partiu
de corpo, a outra, de alma. Ela precisou lidar com a morte, os
irmãos pequenos e uma casa imensa sem que seu coração
estivesse remendado — e foi planejando, organizando e mantendo
tudo sob controle que ela conseguiu superar.
Ela limpou o rosto com as costas das mãos e respirou fundo.
Não queria ficar ali chorando pelas perdas enquanto havia tanta vida
pela frente. Precisava descer, garantir que os convidados
estivessem entretidos e rever os planos do dia. Ergueu a cabeça e
se deparou com uma sombra enorme que escureceu o corredor.
Charles.
Ele estendeu a mão para que ela se levantasse e passou o
polegar por sua bochecha para secar a última lágrima intrusa. Sem
dizer nada, encarava-a com as sobrancelhas unidas e os braços
quase abertos, como se oferecesse um abrigo. Por um instante ela
quis abrigar-se ali, naquele abraço, e ficar para sempre. Ele
entendeu seu clamor silencioso, tomou a iniciativa e a puxou de
encontro ao seu peito.
— Como me achou aqui?
— Estava observando você. — Charles levou uma das mãos até
seus cabelos e os acariciou. — Ela está bem?
— Ela mal me notou. Talvez eu pudesse insistir, talvez eu
devesse insistir, mas toda vez que mamãe se fecha e finge que não
existo, eu…
As lágrimas vieram outra vez e Olivia enfiou o rosto naquele
espaço quente e aconchegante formado pelo peito sólido e o abraço
de Charles. Ela estava soluçando e não sentiu vergonha de fazer
isso na frente dele. Não era a primeira vez — nem que ele a
acalentava, nem que ela se debulhava em pranto em seus braços.
— Não precisa me explicar, Livvy. Acho que já é hora de
conseguirmos alguns médicos novos para sua mãe. Buscaremos na
França, Alemanha, Itália… se preciso for, traremos curandeiros das
Américas.
O tom de voz dele era autoritário e determinado. Charles não
tinha ideias, tomava decisões. Não parecia importar-se por não ser
oficialmente responsável pela família — ele mandaria e distribuiria
ordens quando achasse que fosse preciso.
Talvez fosse preciso. Ela gostaria de tentar mais um pouco. Os
médicos que estavam cuidando dela não identificavam o problema
de Elizabeth — era melancolia, diziam, mas nada faziam. A
melancolia a mataria em poucos meses mais, se nada fosse feito.
Era perceptível que nem comer a mãe estava comendo.
— Charles, as estradas estão interditadas.
— Sim, Hawkes me contou. Imagino que seu caderninho tenha
um plano para caso o plano não dê certo.
— Eu tenho dois planos para cada plano que não der certo. —
Ela riu. Ele sempre a fazia rir quando estava se sentindo mal.
Daquela vez, no entanto, era diferente. Algo na forma como a mão
dele acariciava sua nuca, ou como ela se desfazia naquele carinho
sem perceber. — Os convidados sabem?
— Apenas que não terá mais caça ao tesouro. Garanto que
estão celebrando isso agora mesmo enquanto fumam os charutos
de Salisbury.
Ela riu outra vez e ergueu os olhos vermelhos. Os dele estavam
mais escuros sob a pouca luz do corredor. Intensos. O polegar dele
deslizou para seu queixo, acariciou-o e extraiu-lhe um gemido
constrangedor. De onde viera aquilo?
— Lembra que combinamos que eu ajudaria quando se sentisse
assim?
— Assim como?
— Indisposta, triste, magoada, chateada, ansiosa. Quando você
se sentisse mal por qualquer motivo.
— Não me recordo de tantas cláusulas em nosso acordo. Tem
certeza que combinamos isso?
Charles lhe ofereceu o melhor sorriso Eckley e a segurou com as
duas mãos, uma de cada lado de sua face.
— Se eu não a fizer sentir-se melhor, pode me punir e zombar o
quanto quiser.
Ele então deitou a boca sobre a dela e a beijou. Não foi nada
como na noite anterior. Foi suave, molhado e sem língua. E breve.
Muito breve. Durou bem menos do que ela desejava que durasse,
mesmo que Olivia jamais fosse confessar isso em voz alta. Ela o
enlaçou pelo pescoço e forçou os lábios a se aproximarem
novamente. Charles repetiu o beijo e deslizou a boca até sua orelha.
Envolveu um lóbulo na boca, sugou e quase a dissolveu em
sensações.
— Parece-me que eu tinha razão. — disse o devasso.
Ele se afastou e garantiu que ela estivesse de pé e firme. Quase
firme. Olivia sentia que balançava como um galho seco na ventania
e que desabaria a qualquer tempo, se não fosse amparada. Tinha
que haver alguma droga nos lábios daquele homem. Álcool? Ele
tinha gosto de conhaque, mas o gosto não embriagava, certo? Seria
ópio? O ópio a deixaria ardendo em fogo e mole como pudim ao
mesmo tempo?
Não. Havia outra coisa naquele beijo que a fazia tão bem. Olivia
descobriria em breve. Ela só precisava prová-lo algumas vezes
mais.

Ainda não era meio-dia e Charles já se perguntara pelo menos dez


vezes por que diabos nunca beijara aquela mulher. Bem, ele já tinha
a resposta, porque agora ele não conseguiria mais tirar as mãos
dela. Afastar a boca da dela. Ele a estava observando, prestando
atenção em cada movimento, concentrando-se para não
transparecer que seus olhos estavam cravados sobre ela.
Impedindo-se de cruzar a distância e tomá-la nos braços.
Mais uma vez aproveitou-se da fragilidade dela para beijá-la.
Não estava arrependido nem se sentindo mal por aquilo — Olivia
queria ser beijada. Charles não era ingênuo e aquela não era a
primeira mulher em sua vida. Ele sabia bem quando uma dama
estava sexualmente excitada e a sua melhor amiga — o amor de
sua vida — estava mais iluminada do que Londres no Natal.
Mudaria de nome se não fosse ser ele a satisfazê-la. O diabrete
que sussurrava em seus ouvidos dizia que Olivia era dele e seu
corpo tomara todas as decisões importantes desde a noite anterior.
Talvez tenha sido o medo de perder Daniel por um descuido, a
exaustão de participar de um resgate e vê-la ali, encardida e
molhada, despida de qualquer nobreza enquanto cuidava de feridos
como se fossem iguais. Ou talvez tenha sido porque, pela primeira
vez desde que se conheciam, ela o procurara querendo
experimentar aquele contato físico.
— Temos um problema — ela disse, tão logo desceram do
quarto da condessa viúva. — Com a chuva, não temos como fazer o
memorial em homenagem a papai nem a orquestra chegará para o
baile.
— Pensei que você tinha planos para isso.
— Eu tenho, mas devo contar com sua ajuda. Precisamos de
pessoas para falar no memorial, já que o pároco não deve vir, e
precisamos de música para o baile. Pedirei que algumas damas
toquem, mas todas querem dançar, então faremos revezamentos.
Descubra que homens sabem tocar e quem pode presidir a
cerimônia de hoje.
Ele apenas assentiu. Olivia falava rápido e dava ordens que ele
não queria, mas cumpriria sem questionar. Resistiu à vontade de
despedir-se com um beijo e afastou-se, indo na direção do salão de
jogos. Tinha certeza de que encontraria os homens ali, e não errou.
— Parece-me que estamos encarcerados pela chuva, amigos —
disse. — Teremos que nos contentar com a insuportável companhia
uns dos outros.
— Contanto que tenha bebida e possamos jogar, não faço
objeções a tolerá-los por um dia — Edward McFadden provocou.
— Gostaria de agradecer formalmente aos Duques de
Shaftesbury e de Greystone, ao Sr. Sawbridge, a Isaac McFadden e
ao meu irmão marquês pela ajuda de ontem. Espero que continuem
bebendo e comendo e se divertindo, apesar dos imprevistos.
— Céus, que formalidade nauseante. — Anthony revirou os
olhos. — Não foi comigo que aprendeu esses modos.
— Deixe o homem fingir elegância para a sua pretensa noiva,
Granville — Sawbridge implicou. — Ele está claramente tentando
impressionar Lady Olivia.
Charles encarou o industriário com uma expressão de “você
ultrapassou alguns limites”. Mal sabia Sawbridge que ele estava,
sim, tentando impressionar alguém, mas não era Olivia Trentham.
— Creio que ela já esteja impressionada — Bharat Gupta
insistiu. — Ele salvou a vida do irmão dela, que mulher não ficaria
tocada por um gesto como esse?
Era melhor não retrucar ou a conversa prosseguiria por
caminhos inóspitos. Charles não queria conversar sobre Olivia nem
sobre a possibilidade de ela se apaixonar por ele, como Gupta
acreditava que aconteceria. Bastava que eles encenassem até o
fim. Aquela mulher estava fora de seu alcance.
— Senhores, preciso de voluntários para o baile de hoje à noite.
Como estamos com as estradas encharcadas, não temos músicos e
Lady Olivia planejou um revezamento de talentos. Quem dos
senhores toca algum instrumento?
Os homens se entreolharam. Parecia certo que Olivia teria mais
sucesso com as mulheres, sempre muito dispostas a exibir seus
talentos musicais.
— Isaac toca. — Edward jogou o irmão aos leões. — Piano e
violino.
— Isaac é perfeito. — Sawbridge moveu os ombros. — Existe
algo que esse homem não faça melhor do que todos os outros?
— Por favor, não exagerem. Posso entretê-los com alguma peça
ao piano, sim, porém, sabem que Caroline desejará dançar.
— Agradecemos sua disponibilidade. Não exigiremos demais de
ninguém. E você, Anthony?
O marquês bebeu um longo gole de seu conhaque.
— Uma música ao violino e é o suficiente.
— Deixe de ser miserável — Greystone se intrometeu. —
Ofereço meus talentos ao público.
Charles trincou o maxilar e quase quebrou um dente. Aquele
maldito pretendia disputar a atenção de Olivia monstrando-se
talentoso e solícito, mas ele não estava mais disposto a ceder. Se
ontem Charles acreditava que o duque poderia ser o melhor marido
para ela, hoje ele queria tomá-la para si.
— Nick, preciso de ajuda para fazer o memorial de hoje à tarde
— ele disparou na direção do outro irmão. — O pároco não poderá
vir.
— Certo, e eu tenho perfil de quem sabe recitar a Bíblia?
— Considerando que você é o único Eckley que não carrega a
alcunha de libertino, esperava que ao menos fosse religioso. —
Charles zombou e os homens riram.
Nicholas, que estava escondido atrás de um copo de bebida,
apoiou seu drinque sobre uma mesinha e se aproximou dele.
Colocou as duas mãos em seus ombros e sussurrou.
— Irmão, eu acho que você deveria falar no memorial. Mesmo
que não conheça bem os versículos da Bíblia, ainda é capaz de
falar bem do falecido Salisbury. Ele sempre foi uma espécie de pai
para nós. Olivia certamente apreciará mais esse gesto.
— De onde vocês todos tiraram que pretendo cair nas graças de
Lady Olivia?
— Tem razão, afinal, ela já aceitou seu cortejo — Aiden
concordou. O duque prestava atenção em tudo ao seu redor, não
perdia um comentário.
— Ela aceitou o cortejo, mas isso não significa que ela vá se
casar com ele — Greystone provocou. — Há outros candidatos.
— Você, por exemplo? — Charles se virou e cruzou os braços.
Ele e Greystone se encararam por alguns segundos e a vontade de
encher de socos a cara debochada do duque quase o fez perder a
compostura na frente dos amigos.
— Rapazes. — Gupta entrou no meio. — Se vocês continuarem
se enfrentando, Lady Olivia ficará sem pretendentes até o final de
semana acabar. Sr. Eckley, creio que seu irmão tem razão. Canalize
esse sentimento para as belas palavras que proferirá em favor do
pai dela.
— Sentimento? — Anthony estranhou. — O único que existe
entre Charles e Olivia é o de competição permanente. Eles
passaram a vida provocando um ao outro.
— Exatamente, milorde. — Isaac decidiu participar do momento
“exponha o segredo de Charles Eckley”. Se ele não estivesse
acostumado à resiliência e não amasse os malditos que estavam
naquela sala, já teria arrancado alguns sorrisos daquelas caras. —
Vocês Eckleys sabem muito pouco uns dos outros. Provocação e
desdém é uma demonstração de amor ainda mais evidente do que
uma declaração expressa.
Anthony ergueu as sobrancelhas em epifania e terminou de
beber seu drinque. Cristo. Agora todo o salão acreditava que ele
cortejava Olivia porque era apaixonado por ela. Mesmo que fosse a
verdade, ele não pretendia que ninguém soubesse. Seus
sentimentos deveriam ser um segredo guardado — ele não queria
ser associado a romance, corações partidos nem nada do tipo.
— Acho que precisamos gastar essa energia em alguns jogos.
— Sawbridge quebrou o silêncio que se estabelecera. — Espero
que estejam com os bolsos cheios. Vamos apostar em favor do
projeto de caridade das mulheres.
Ela queria evitar as mulheres, mas era impossível, já que ela era a
anfitriã do evento que organizara em sua própria casa. Seu medo
era de que todas percebessem — que estivesse escrito nas linhas
de seu rosto que ela estivera chorando e que fora consolada com
um beijo. Dois. Sentia-se triste, confusa e quente, e tinha certeza de
que alguém notaria isso.
Para sua sorte, um evento que contava com Caroline Eckley-
McFadden e Rosamund Eckley não teria um minuto de tédio. As
duas eram capazes de animar qualquer tarde morrinhenta e foi o
que fizeram ao propor jogos de adivinhação. Olivia pôde manter-se
sentada, agarrada a uma xícara de chá, fingindo ser parte da
decoração enquanto as jovens animadas disputavam quem
conseguia acertar o que Rose estava desenhando.
— Conte-me. — Esther empurrou-a para o lado e se sentou,
ocupando mais espaço do que precisava.
— Contar o que, exatamente?
— Não é a chuva que a deixou assim. Poderia ser, mas você não
está triste, está ausente. O que causou isso, foi seu pretendente?
Olivia respirou fundo e bebericou o chá.
— Qual deles? — provocou, mesmo sabendo de quem Esther
falava. A amiga bateu nela com uma almofada, quase derrubando a
bebida quente.
— Não seja arrogante, Olivia Trentham! Claro que falo do Eckley,
aquele que não para de olhar para você como se fosse atacá-la a
qualquer instante. Céus, ele é muito intenso! Não sei o que faria se
a atenção dele se virasse para mim.
A sugestão a perturbou. Olivia ajeitou-se no sofá e fitou Esther
White enquanto se segurava para não dizer que Charles era dela e
que nenhuma outra mulher poderia sequer pensar em disputar a
atenção dele. Quanta tolice! Ela nem sequer seria capaz de contar
quantas mulheres ele já tivera e quantas ainda teria, já que Charles
jurava que não se casaria.
Nada daquilo era de sua conta. Olivia não possuía Charles, ele
era o melhor amigo e, bem, um especialista em beijos — mas era
apenas isso.
— Fui ver minha mãe, isso me deixou triste.
— Já disse, não é tristeza. Agora mesmo você se agitou quando
mencionei que ele poderia dedicar alguma atenção para mim. Livvy,
imagino que Annabelle já tenha dito isso antes, mas você já
percebeu que realmente gosta do Sr. Eckley?
Ela riu.
— Claro que eu gosto dele. Não seja boba, ele é meu amigo.
— Você gosta dele como um homem, não como um amigo.
— Não gosto! — A risada assumiu tons histéricos. — Por que
vocês insistem em me dizer isso?
— Bem, pode ser porque você precisa ouvir? Veja, isso não
parece um problema, afinal, você não acredita em casamentos por
amor?
Claro que ela acreditava, mesmo que tivesse medo. Olivia temia
o amor porque viu o que ele fez com sua mãe depois da morte do
pai — e não queria o mesmo para si.
— Você acredita? — Ela devolveu a pergunta.
— Sim! Por que acha que insisto em testar os cavalheiros que
me cortejam? — A amiga deu uma piscadela. — Quero saber se
eles me despertam a paixão, se terei com eles a conexão física que
complementa a espiritual. Minha mãe acha que estou louca, que
homens servem para nos fazer filhos e garantir um sustento digno,
porém, eu espero mais deles. E quero dar um pouco mais de mim.
Annabelle acertou um dos desenhos e saiu saltitando pelo salão.
Olivia sorriu pensando que a irmã era espontânea e divertida,
enquanto ela era apenas adequada. Annabelle tinha paixão pela
vida, pelas pequenas coisas e não aceitava nada que fosse menos
do que merecia. Ela, Olivia, era resiliente e preparada para receber
o pouco que quisessem lhe ofertar.
Bem, ela fora. Algo dentro dela estava remexido e Olivia não
sabia mais no que acreditar.
— Acho que também quero mais, Esther. — Ela suspirou. — O
problema é que Charles não gosta de mim dessa forma. Ele não
será meu marido.
— Por que não? Ele não está cortejando você?
— Está, mas eu o conheço. Casamento não é algo que ele
planeje para o futuro e eu não sou o tipo de mulher que ele deseja.
Esther deu uma risada alta e as mulheres olharam para elas.
Com um gesto de mão, a amiga deu a entender que estava rindo de
uma piada.
— Livvy, não existe isso que você está falando. Só espero que
você não permita que o marido certo saia voando pela janela só
porque está morrendo de medo de se comprometer com ele.
Esther levantou-se e a deixou mais confusa do que antes.
Precisava ocupar a cabeça, então deixou as mulheres na euforia do
jogo e escondeu-se no escritório munida de seu caderno.
Rascunhou um esboço sobre as mudanças dos planos do dia,
rabiscou algumas palavras no que ela considerava seu diário e
chamou a Sra. Bowes, a governanta, para tratar de assuntos da
propriedade.
Aquela era sua vida desde o falecimento do pai: tratar de
assuntos variados que envolviam a vida de muita gente. Olivia nem
mesmo tivera tempo de dedicar-se à procura de um pretendente.
Aquela não era a sua temporada. As investidas do Duque de
Greystone a surpreenderam e deveriam deixá-la radiante, mas ela
também não tinha tempo de se empolgar com o cortejo do melhor
partido: sua irmã ainda não tinha um pretendente.
— Pois não, milady. Hawkes disse que gostaria de me falar.
A governanta era uma mulher austera e muito respeitável.
Trabalhava com a família havia décadas e morava na vila.
— Tenho algumas perguntas sobre minha mãe e sobre a
manutenção da casa. Preciso saber se os fundos destinados a
Summerwood Hill foram repassados conforme cronograma.
— Sim, milady. — A Sra. Bowes não hesitou. — Por duas vezes,
precisei solicitar os valores ao Sr. Jhonessy porque estavam
atrasados, porém, fui atendida prontamente.
— Entendo. Preciso informar que o novo administrador é o Sr.
Eckley. Descobrimos que o Sr. Jhonessy estava desviando fundos
do condado.
A Sra. Bowes fez o sinal da cruz três vezes.
— Lamento ouvir isso, milady. Podemos confiar no Sr. Eckley?
— Ele é um dos homens mais confiáveis que existe. — Ela sorriu
ao sequer cogitar a hipótese de que Charles pudesse fazer qualquer
coisa que lhes prejudicasse. — Eu o escolhi e espero que estejam
dispostos a acolher todas as suas orientações e ordens. Está tudo
preparado para o baile? O salão foi decorado conforme orientei?
— Tanto a decoração quanto o cardápio, milady. Tudo está
conforme suas planilhas. Ah! O Sr. Hawkes disse que o pároco virá
a cavalo para o memorial do falecido conde.
— Ah, isso é excelente. Isso é tudo, Sra. Bowes, pode se retirar.
Olivia bateu com a caneta no caderninho. Charles agradecia aos
criados, a quem chamava empregados. Aquele não era um costume
da aristocracia, mas a educação não deveria ser um costume —
deveria ser uma regra.
— Sra. Bowes! — Ela chamou a governanta antes que a mulher
deixasse o escritório. — Obrigada por todo o esforço com o evento.
A sisuda senhora a fitou com olhos esbugalhados e lábios
entreabertos. Talvez fosse dizer que ela não precisava agradecer,
talvez fosse perguntar se estava com febre. Limitou-se a agradecer
de volta e sair. Aquela foi uma experiência interessante. Olivia
nunca contestou a sabedoria das regras sociais nem a necessidade
de mantê-las, mas gostou de rompê-las ali, naquele instante.
Ela voltou a escrever e relatar todos os eventos do dia seguinte,
enfatizando o beijo. Por um instante, considerou que Charles Eckley
a estava afetando de alguma forma. Em outro, entendeu que ela
precisava de mudanças. Tinha responsabilidades, mas devia prestar
mais atenção em si.
Levantou-se, foi até a biblioteca e procurou outro dos livros
proibidos de Annabelle. Queria saber mais do amor e da paixão que
Esther tanto enaltecia, que fazia com que Charles fosse um devasso
e que provocava sua irmãzinha a consumir aquele tipo de literatura.
Pegou um de capa vermelha e trancou-se ali — com a chave girada
na porta — até a hora de se reencontrar com seus convidados.
O almoço foi servido da mesma forma do desjejum, sem a
formalidade de uma mesa posta. Todos puderam interagir mais
livremente e comer em pé, se assim quisessem. Por volta de duas
da tarde, todos se recolheram para seus quartos para descansar e
ela voltou para o escritório. Precisava entender o que estava
acontecendo, mas optava por ignorar qualquer coisa que pudesse
causar mais perturbação do que uma mãe reclusa, duas estradas
interditadas e cinquenta convidados para entreter.
Capítulo décimo quarto
Thanet, julho de 1892

Rhode Port
O . P
estava em apuros — já deveria passar bastante de meio-dia e ela
ainda não retornara da praia. Já prevendo a bronca que levaria da
mãe, juntou suas coisas, colocou sobre Fantasia, montou e disparou
na direção da mansão dos Eckleys. A mãe não sabia onde ela
estava, acreditava que a filha descansava tranquila em seu quarto.
Mas Olivia detestava descansar à tarde. Ela tinha tanta energia e
gostava da praia. O mar, a brisa e a areia eram suas melhores
companhias quando estava em Thanet.
Precisava retornar a égua de onde a retirara. O cavalariço
dormia quando ela entrou, pé ante pé, no estábulo para pegar
emprestado o animal que Charles lhe presenteara. Aquele também
era um segredo — ninguém podia saber que Fantasia era dela.
Homens não davam presentes a mulheres, a não ser que
estivessem para se casar. Como Charles não seguia as convenções
sociais, no dia em que ela fez dezoito anos, ganhou Fantasia para
que pudesse cavalgar pela propriedade sem precisar pedir.
— Milady? — O cavalariço a viu chegando.
— Sr. Mullighan — ela sussurrou. — Espero que não se importe
por eu tê-la levado.
— Não, milady, o Sr. Eckley ordenou que a égua esteja sempre
pronta para quando desejar.
— Poderia cuidar dela, então?
O jovem ruivo e cheio de sardas assentiu e pegou o arreio de
sua mão. Olivia respirou aliviada — um problema a menos para
lidar. Se ela tivesse perdido o almoço, provavelmente ficaria de
castigo até o fim de sua vida. Deu meia volta para afastar-se do
estábulo quando ouviu ruídos que se assemelhavam aos grunhidos
de um animal. Teria algum cão se perdido por aquela região?
Estaria ferido?
Os sons vinham da parte dos fundos do estábulo. Naquele
momento, o medo de ser punida por sua indisciplina foi superado
pela necessidade de ajudar um pobre animal em sofrimento. Em
silêncio para não assustar o cão — ela tinha certeza de que era um
cão! —, Olivia cruzou a distância até a porta traseira do barracão e
se pendurou em uma divisória das baias.
Ao invés de deparar-se com um filhote ferido ou perdido, quem
surgiu à sua frente foi Charles Eckley. Não, o que surgiu foram as
costas dele, cujos flancos estavam entrelaçados pelas pernas
desnudas de alguma mulher. Os ruídos que ela ouvira eram
gemidos e aquela era a cena mais indecente que já vira em toda a
sua curta vida.
Claro que Olivia nunca vira nada realmente indecente. Ela era
uma dama muito própria e cheia de pudores. Ao menos tentava ser.
Evitava a companhia de Caroline, porque ela era escandalosa e
sempre estava envolvida em atividades indecorosas. Pretendia ser
um exemplo de virtude para suas irmãs mais novas e aquilo…
aquilo não era nada do que ela já havia visto.
Ela quis desaparecer dali, mas acabou caindo e batendo o
traseiro no chão quando se soltou da divisória. O blam! atraiu a
atenção do casal, e logo a figura imensa de Charles estava parada
diante dela.
— Olivia Trentham, o que diabos está fazendo?
Ele não a intimidaria depois do que ela presenciara. Olivia
levantou-se, bateu o feno de seu vestido úmido e olhou para cima
para encará-lo.
— Eu é que pergunto o que você estava fazendo. Desonrando
uma dama no meio do estábulo?
— Eu não a estava desonrando e estávamos nos fundos. —
Charles cruzou os braços na frente do peito. Sua camisa estava
aberta e as calças não estavam exatamente no lugar. — Você está
muito longe de casa, mocinha.
— Não sou mocinha. — Sua voz saiu esganiçada. Ela estava
irritada com ele, aborrecida com toda aquela promiscuidade. Por
que ainda se deixava afetar? Olivia sempre soube que Charles não
tinha nenhum decoro. — Pare de fornicar com as mulheres em
lugares como esse, Charlie. Você é melhor do que isso e elas não
merecem tamanho desrespeito.
Ele baixou o olhar e fitou o feno no chão por alguns segundos.
Quando voltou a encará-la, estava rindo. O maldito sorriso Eckley.
Aquelas covinhas eram uma distração irritante.
— Tantos anos de amizade e você ainda não me conhece, Livvy.
Eu não sou nem um pouco melhor do que isso.
Não adiantava discutir com quem tinha uma percepção tão
negativa de si. Por vezes, ela tentou mostrar o quanto Charles era
um homem de bom coração, gentil e até mesmo adorável. Ele
parecia não enxergar seu valor ou acreditar que quartos filhos não
tinham lugar na sociedade. Um dia, talvez, ela conseguisse
convencê-lo do contrário.
Hampshire, abril de 1898
Summerwood Hill

Correspondências. Charles só conseguia pensar nelas enquanto


revirava seu quarto e procurava onde enfiara as cartas que trouxera
de Londres. Parecia ridículo sentar para respondê-las quando não
seria capaz de enviá-las, mas ele precisava de qualquer coisa para
fazer enquanto esperava o dia passar. Não estava acostumado ao
ócio. Os homens casados estavam desfrutando de suas esposas e
os solteiros ele esperava que se ocupassem de interagir com as
damas — já que estavam ali para isso. Ele tinha uma dor
permanente na virilha. Maldita hora que decidira beijar Olivia.
Achou as cartas amarradas com sisal e desceu até o escritório
para deparar-se com ela. Rabiscando em seu caderno, Olivia não o
percebeu entrar até que ele se serviu de um conhaque. Queria
manter-se bêbado, mas aquela quantidade de álcool não o afetava
mais.
— Poderíamos trocar esse malte por um chá — ela debochou
sem sequer erguer os olhos para vê-lo. — Homens respeitáveis
bebem tanto assim?
Charles virou o drinque em um só gole.
— Não faço a menor ideia. — Ele colocou as cartas por sobre a
mesa e puxou uma cadeira. — Importa-se se eu responder à minha
correspondência?
— Quer se sentar aqui?
Ela ameaçou se levantar, mas ele a segurou pelo pulso.
— Tem espaço para nós dois na mesa, Livvy. Não quero ver os
segredos do seu diário, fique tranquila.
— Segredos? Estou planejando o memorial de papai. Fui
informada de que o pároco virá, então está tudo dentro do esperado.
— Ótimo. Melhor do que termos que aguentar Isaac lendo a
Bíblia. Falaremos algumas palavras sobre Salisbury, não é mesmo?
Olivia baixou o olhar e fitou a caneta em suas mãos. Ele não
deveria ter mencionado o pai.
— Você sempre toma todas as suas decisões assim? Na hora,
por impulso?
Os olhos dela estavam úmidos, mas Olivia sorria.
— Da mesma forma que você precisa planejar tudo. Não sabe o
quanto isso é irritante!
— Concentre-se nas suas cartas. Preciso continuar meu
planejamento irritante.
Era quase impossível concentrar-se em qualquer coisa com
Olivia ali. Mesmo que Charles lesse dez vezes cada frase de cada
relatório, seus pensamentos desviavam para uma superfície
qualquer e ele se pegava imaginando como seria possui-la ali.
Precisava dar vazão àquele desejo incontrolável e não tinha como
fazer isso. Daisy ficara em Londres. Talvez uma das criadas?
Não. Ele não queria uma das criadas. Não queria Daisy. Seus
olhos vagaram para ela, compenetrada enquanto elaborava sua
caligrafia feminina em uma folha amarelada e ele soube que, depois
de prová-la, nunca mais conseguiria se deitar com outra mulher.
Estava arruinado.
Os relatórios não traziam nada que o irritasse e o fizesse
canalizar a energia para outro lugar. Os amigos estavam dormindo
ou fazendo sexo — o que o deixava ainda mais tenso — e não
tinham tempo para uma luta de boxe ou para o carteado. Seria
ótimo para sua libido se pudesse socar o nariz de Greystone, mas o
duque desapareceu depois do almoço.
— Ora, que ótimo encontrar alguém mais acordado. — A voz de
Bharat Gupta o distraiu dos devaneios assassinos. — Sr. Eckley,
Lady Olivia. O que podemos fazer nessa enorme casa enquanto a
chuva nos priva de passearmos pelo exterior?
Como o homem do recinto, Charles deveria ter uma resposta
para a pergunta. Exceto que ele só sabia trabalhar e suas diversões
eram nada respeitáveis.
— Depende de qual atividade procura. — Ele fechou a carta que
estava lendo e se levantou.
— Por favor, não se levante. Posso lhes fazer companhia?
Adoraria adiantar minha leitura e aqui parece claro e silencioso o
suficiente.
Ter o indiano como companhia poderia ser proveitoso — mas o
homem não queria falar de trabalho. Gupta se sentou próximo à
lareira e começou a folhear um livro em seu idioma. Charles não
conseguiria ficar ali. Tudo o distraía, até o ruído da caneta riscando
o papel o estava incomodando. Ele levantou e pegou outro drinque,
mesmo ante o olhar recriminador de Olivia.
Sinto muito, meu amor, mas se eu não posso ter você, terei que
me consolar com o uísque.
— Sr. Gupta, o senhor deseja um chá? — ela perguntou,
provocativa.
— Adoraria um massala. Sua cozinheira saberia preparar?
— A cozinheira tem um livro de receitas que está sempre
animada para usar. Pedirei a ela que descubra como preparar um
massala para o senhor. Por favor, deem-me licença.
A tentação em forma de mulher deixou o escritório e o coração
de Charles voltou a bater. Quando ela retornou, saltitante, ele parou
de respirar, mas Gupta estava pronto para se engajar em uma
conversa interessante.
— Então, Sr. Eckley, imagino que esteja ansioso por minha
decisão quanto ao contrato, mas espero que entenda que eu não
quero me apressar. O distribuidor anterior me aborreceu
profundamente e não quero cometer os mesmos erros.
O distribuidor anterior era estúpido. Charles serviu uma dose
dupla de uísque e se sentou na poltrona à frente do indiano.
Ponderou o que diria sem parecer arrogante — o que ele era —,
mas foi surpreendido pela interrupção de Olivia. Sem deixar de
remexer em papéis e livros na escrivaninha que fora do falecido
conde, ela decidiu envolver-se na conversa.
— O senhor tem toda razão em ser cauteloso — ela disparou.
Gupta ergueu as sobrancelhas e virou-se na direção da criatura
petulante. — Afinal, imagino que queira um homem arrojado para
cuidar de seus negócios.
— Com certeza. — O indiano fechou o livro. — Eu me considero
um homem ousado e desejo o mesmo para meus parceiros
comerciais.
Olivia sorriu e os encarou.
— O senhor me parece bastante ousado, Sr. Gupta. E
respeitável, claro. Seu parceiro comercial deve ser um homem bem-
visto em todos os círculos, principalmente os comerciantes. Claro
que o senhor não está considerando ninguém da alta aristocracia,
não é mesmo?
— Não, creio que não esteja…
— Os aristocratas não estão acostumados a trabalhar. — Olivia
fechou o caderninho e começou a rabiscar um papel qualquer. —
Veja meus convidados… só nós estamos acordados!
A diabinha era genial. Charles recostou na poltrona para
observar aquela interação porque ele entendeu onde ela pretendia
chegar.
— Minha escolha certamente recairá sobre um homem que não
dorme. — Gupta riu. — Por que o senhor está acordado, Sr. Eckley?
— Ah, Charles não dorme! — Ela não o permitiu responder. —
Ele é uma máquina, não trabalha mais horas porque o dia acaba
com vinte e quatro. Antes de o senhor chegar, ele estava
respondendo cartas de seus gerentes.
Bharat Gupta olhou para ele, que moveu os ombros indicando
que não tinha como retrucar com a verdade.
— Não gosto de deixar serviço acumulado — justificou. —
Quando voltarmos a Londres só precisarei enviar as respostas, se
elas já estiverem prontas.
A conversa foi interrompida pela chegada de uma criada, que
trouxe uma bandeja com biscoitos, duas xícaras de chá massala e
um recado para Olivia. Charles já bebera aquele chá quando
estivera nas Índias, mas ele fora um garoto. Lembrava-se de ter um
sabor delicioso, porém bem menos entorpecente do que o álcool.
— Espero que seu chá esteja a contento, Sr. Gupta. — Olivia
saiu de trás da escrivaninha. — Se me dão licença, preciso receber
o pároco que acabou de chegar e me arrumar para o memorial.
Ela saiu valsando do escritório, como se o baile já tivesse se
iniciado. O indiano estava rindo sozinho — ele também entendeu o
que ela pretendia: enaltecê-lo, fazer com que Gupta percebesse que
Charles tinha todas as qualidades essenciais para se tornar o novo
distribuir das sedas.
— Eu sinceramente não sei o que você está esperando para se
casar com essa mulher, Sr. Eckley. — Bharat Gupta bebericou seu
chá. — Se fosse eu, não a deixaria escapar de mim.
Capítulo décimo quinto

O G T
. A celebração marcaria o
aniversário de dois anos de seu falecimento e a família mandou
restaurar um retrato antigo para reinaugurá-lo naquele dia. O quadro
já estava pendurado na parede e fora coberto com um pano preto
para preservar a imagem até a cerimônia.
Cadeiras foram colocadas em linha, divididas em dois grupos, e
um púlpito foi montado à frente do quadro. O pároco da vila ainda
estava abalado pelo desabamento da igreja, mas Olivia garantiu que
o condado financiaria a construção de uma nova. Isso se Charles
garantisse que eles tinham recursos para tanto — e ela esperava
sinceramente que sim. Os convidados, vestindo roupas sóbrias e
sem adornos, ocuparam seus lugares e receberam velas dentro de
um castiçal de vidro.
Ela foi a primeira a chegar. Estava com seu vestido preferido do
meio luto, uma composição de cinza com roxo que cobria dos
pulsos ao pescoço e dispensava o uso de luvas longas quando saía
de casa. Os cabelos foram presos bem esticados em um coque
simples, decorados com um adorno de véu. Brigitte fez um ótimo
trabalho, porque nenhum cacho rebelde se soltara para importuná-
la.
A cada nova vela acesa, Olivia sentia-se grata por estar entre
amigos. Por ter decidido fazer aquele evento em Hampshire, por
transferir o memorial para a sua casa de infância, por aquele plano
ridículo para ajudar Charles a fingir ser o que ele já era. As irmãs
chegaram e se colocaram ao seu lado na primeira fila. Daniel
chegou por último e se sentou na outra ponta. Ele estava com a
cabeça baixa e não cumprimentou ninguém ao entrar.
Talvez ela devesse questionar os modos do irmão, mas ele sofria
mais do que elas a falta do pai. Decidiu buscá-lo para que se unisse
ao restante da família, mas Charles entrou no salão e desviou
completamente a sua atenção.
Ele estava todo de preto. Olivia nunca vira um traje como aquele
— ela nem sequer sabia que havia camisas masculinas pretas, ou
de qualquer outra cor que não fosse o branco. Mas Charles Eckley
não era um homem comum, então ele não apareceria com uma
vestimenta comum. Paletó, camisa, gravata e colete, tudo preto, de
corte impecável, combinando com as sombras que ainda
escureciam seu olhar.
Os olhos dele a encontraram primeiro e Olivia sentiu-se
constrangida pela intensidade do contato visual. Esther White tinha
razão, ela apenas não entendia o que aquilo significava. Em seguida
ele se sentou ao lado de Daniel. Não disse uma palavra, não olhou
para o menino, apenas se sentou ali. Ela suspirou — deixaria que os
dois se entendessem.
— Boa tarde a todos. — O pároco assumiu o púlpito, trajando
vestes tradicionais. — Estamos hoje aqui reunidos para
homenagear o grande homem que foi George Trentham, que tão
prematuramente nos deixou há dois anos.
Uma lágrima molhou seus cílios. Olivia Trentham não chorava
em público. Ela passou o braço ao redor do ombro de Margaret,
porque a irmã já estava soluçando. Annabelle segurou sua outra
mão. A cerimônia levaria por volta de duas horas e até lá as irmãs já
teriam se desidratado.
Depois das palavras iniciais, houve uma celebração religiosa e
então o momento dos filhos dizerem algumas palavras. Ela se
levantou, encontrando apoio em seu caderno, e se dirigiu ao púlpito.
Havia gente demais e Olivia admitiu que isso era bom. Seu pai era
amado. Sua família tinha muitos amigos. Puxou um papel dobrado
de dentro do caderno e o apoiou no objeto de madeira à sua frente.
Limpou a garganta com um pigarro e decidiu que seria breve.
— Meu pai foi tudo que o Sr. Farrell disse, então não me
repetirei. Falarei do George que poucos conheciam: ele era um
marido amoroso e um pai brincalhão. Papai não perdia a
oportunidade de nos colocar para dormir, não nos relegava aos
cuidados de babás, passava todo o tempo livre na presença dos
filhos, não nos excluía dos eventos e agora imagino que esse
comportamento pouco comum tenha sido o que o aproximou do
finado Caleb Eckley.
Alguns risos a fizeram se sentir melhor. Por mais reverencial que
fosse a cerimônia, seu pai era um homem de bom humor e não
desejaria mais tristeza.
— Ele se casou por amor e amou todos os frutos dessa união,
inclusive os cães que Annabelle insistia em trazer para casa. —
Mais risos. As irmãs continuavam chorando e Daniel se mantinha
inabalável, porém amparado pelos braços fortes de Charles. —
Alguns aqui lamentam a perda de um homem honrado e cumpridor
de seus deveres. Nós lamentamos a perda do nosso melhor amigo.
Ela se virou e puxou o pano, que revelou a magnitude do
trabalho de restauração de Etienne Seville, um artista francês amigo
de Rosamund. Os convidados todos aplaudiram e ela voltou para
seu lugar. Nem as irmãs, nem Daniel demonstraram o desejo de
falar — e estavam comovidos demais para fazer o uso da palavra. O
pároco se preparou para encerrar a cerimônia quando Charles se
levantou.
Chamando a atenção toda para si — pelo gesto inesperado e
pela figura excêntrica —, ele assumiu o púlpito e levou quase um
minuto para iniciar sua fala. Não havia nenhum papel, nenhum
rascunho, nada que indicasse que ele preparou um discurso.
— Boa tarde. Salisbury era bem mais jovem do que meu pai,
mas ainda assim eles eram bons amigos. Essa amizade uniu
nossas famílias e sou grato todo dia por isso. Quando ficamos
órfãos, ele nos acolheu como a seus filhos, mesmo que já não
fôssemos crianças. Lembro-me de todos os momentos de
cavalgadas, reuniões masculinas e da primeira vez que ele me
levou a um clube de cavalheiros. Ele merece ser lembrado pelo bem
que fez a todos que o cercavam, mesmo quando fazer o bem não
estava na moda.
Da mesma forma abrupta que sequestrou a palavra, Charles
retornou para seu assento deixando um silêncio reflexivo no ar.
Daniel o abraçou e Olivia sentiu uma onda de calor aquecendo-a
desde os dedos do pé. A cerimônia terminou como estava planejada
e todos foram para o salão principal, onde uma farta mesa com
comidinhas os aguardava.
Ela quis ir até Charles para agradecer, mas teve o braço
agarrado por Rosamund e acabou sendo envolvida pelas mulheres,
que queriam conversar sobre assuntos femininos. Como Ishani
Gupta estava entre elas, Olivia decidiu permanecer ali para ajudar
na construção da reputação dele. Quando teve um momento de
intervalo e foi até a mesa de comida pegar um copo de ponche, não
o viu mais.

Tendo duas irmãs, Olivia estava pouco acostumada à privacidade.


Annabelle e Margaret frequentemente invadiam seu quarto,
dormiam na sua cama e reviravam suas coisas. Naquela noite, em
especial, a situação estava ainda mais fora de controle. A maioria
das mulheres estava reunida na suíte principal — que estava vazia
— enquanto se arrumava para o baile.
Não seria um baile formal e isso parecia animar ainda mais as
convidadas. Elas estavam adorando a oportunidade de se
apresentarem, principalmente as solteiras. Como o final de semana
em Hampshire não tinha como objetivo casar nenhuma delas, Olivia
se aproveitou do momento para contar sobre o Projeto Whitechapel.
Uma duquesa que se tornou viúva muito jovem, uma condessa
que adorava projetos de caridade e uma ex-libertina que tinha como
objetivo ajudar mulheres a superarem o que ela chamava de
“opressão da sociedade” eram bons alvos. Também estavam
presentes outras esposas e futuras esposas que poderiam querer
mostrar que eram boas almas para a aristocracia.
— Então vocês pretendem construir um orfanato — Agatha
McFadden, a condessa de Cornwall, perguntou. Uma camareira
ajustava seu espartilho enquanto outra cuidava dos grampos em
seu cabelo.
— Não é um orfanato, pois não seria para crianças órfãs. Não
somente. — Olivia explicou enquanto Bridget arrumava os laços em
seu vestido. — Temos mais intenção de oferecer um lugar paras as
crianças cujas mães precisam trabalhar.
— Isso é bastante útil. — Elizabeth Trowsdale, a duquesa de
Shaftesbury, demonstrou interesse. — E vocês precisam do que,
exatamente? Financiamento?
— Nossas mesadas não atendem aos custos do projeto — Mary
Price lamentou. — Meu pai acha uma tolice investir mais dinheiro
em mães viúvas, além de ter ficado escandalizado por
pretendermos ajudar mães solteiras.
— O estigma da ilegitimidade que só recai sobre nós e sobre as
crianças. — Caroline suspirou. — Terei que sentar com meus sócios
principais para discutirmos, mas creio que haja orçamento para
investir em projetos de caridade.
— Não tenho sócios nem mesada, mas acesso ilimitado a fundos
que geralmente são usados para esse fim. — A duquesa sorriu. —
Conte com minha participação.
Outras mulheres comentaram positivamente. O apoio de
Caroline era importante para Olivia, mas não impactava em outras
damas. O apoio de uma duquesa, mesmo de origem plebeia, era
bastante impactante. A conversa sobre o projeto a deixou animada e
bastante otimista com o futuro da casa de apoio — se elas tivessem
como adquirir o imóvel, conseguiriam pagar empregados e as
despesas com o dinheiro que recebiam de seus pais. Em breve, de
seus maridos.
Mas Olivia não estava apenas otimista — estava confusa.
Enquanto Bridget puxava, abotoava e esticava partes do seu
vestido, ela se olhava no espelho e procurava traços que a
identificassem. Suas certezas foram abaladas e ela nem mesmo
sabia o que a fazia duvidar que seus planos fossem fazê-la feliz.
Marido nobre — ela estava perto de conseguir um. O Duque de
Greystone deu vários indicativos de que se interessava em um
cortejo mais direto e bastava que ela lhe desse um sinal
autorizando. Uma dama irrepreensível e que fosse útil para a
sociedade — seu comportamento era impecável há anos e seu
projeto social parecia apto a sair do papel.
E tudo que ela queria — tudo em que ela pensava — eram os
lábios de Charles. A mão grande de Charles segurando-a pela nuca,
puxando-a para mais perto. O sabor alcoólico de sua língua. O calor
de seu corpo seminu. As sensações que ela experimentou com ele
estavam obscurecendo sua razão e isso nunca acontecera.
Por um instante ela se sentiu como as páginas amareladas do
seu diário. Aquelas que ela escreveu e apagou tantas vezes que
deixou as folhas marcadas e manchadas. Havia tudo escrito, nada
que alguém pudesse ler. Sentiu-se uma história já contada que não
interessava mais, perdida em um daqueles livros que empoeiravam
nas estantes, porque ninguém tinha coragem de descartá-los.
Assim que todas ficaram prontas, as mulheres desceram para
encontrarem-se com os cavalheiros já esperando no salão enquanto
bebiam e conversavam. Ela se surpreendeu ao ver Anthony Eckley
dedilhando um violino — Olivia sabia que os Eckleys tocavam
instrumentos, mas o marquês não parecia ser do tipo que se
apresentava em bailes. Seus olhos vagaram pelo salão atrás de
Charles e seus lábios sorriram involuntariamente quando o viu
conversando com Gupta.
— Como faremos com a sequência das músicas? — Annabelle
perguntou, fazendo-a desviar a atenção.
— Não creio que seja importante. Quem se sentir à vontade
pode assumir os instrumentos e tocar uma peça.
— E como organizaremos um cartão de baile, Livvy? Se não
soubermos a dança…
Olivia segurou as duas mãos da irmã. Annabelle era maravilhosa
e espontânea, mas precisava aprender a relaxar nos eventos
sociais. A culpa era dela. Sempre podando seus galhos, sempre
polindo uma joia que já brilhava ao natural.
— Belle, assim que a música começar, o cavalheiro tira a dama
de seu interesse para dançar. Somos apenas alguns amigos e
estamos nos divertindo. O que acha de evitarmos a burocracia?
A irmã arregalou os olhos.
— Você está me assustando. Nunca a vi evitar a burocracia ou
não ter pelo menos três projetos diferentes para um evento. — Ela
riu. — Bem, se assim será, anuncie que o baile vai começar, porque
eu, Esther e Mary estamos muito animadas para dançar bastante!
Talvez ela também estivesse, ao mesmo tempo que temia se
perder outra vez nos braços de Charles. Não que ela pretendesse
evitá-lo, apenas não sabia como reagiria fazendo isso em público.
Como ela poderia tocá-lo na frente de outras pessoas sem que
percebessem a devastação que o toque causava?
Com a classe que esperavam dela, Olivia se colocou no meio do
salão e limpou a garganta, fazendo com que todos a notassem. Um
silêncio necessário se fez enquanto ela sorria e mantinha as mãos
elegantemente cruzadas na frente do corpo.
— Boa noite. Espero que, apesar da chuva incessante e das
estradas interditadas, todos estejam se divertindo. Nosso baile hoje
é um pouco diferente e não obedeceremos às tradições. Quem tiver
uma peça musical para nos presentear, fique à vontade para
escolher seu instrumento e tocar. O acervo de Salisbury é enorme,
temos até uma Harpa. — Ela apontou para o enorme objeto dourado
que reluzia debaixo de um lustre. — Não se esqueçam de dançar.
Boa diversão a todos!
Os amigos aplaudiram o pequeno discurso de abertura e
Madeline Westphallen se sentou ao piano. Ela vinha sendo
cortejada pelo herdeiro do Duque de Norfolk, mas Olivia não o
convidou — ela não o considerava cavalheiro o suficiente nem
acreditava que aquele evento tinha espaço para um perdulário que
fazia fama desrespeitando a burguesia. A irmã, Diana, pegou o
violino e as duas iniciaram uma peça de Strauss. Valsas eram mais
fáceis de tocar e provavelmente seriam a sensação da noite.
Como anfitriã, ela não aceitou convites para dançar. Optou por
circular pelo salão, sorrir e garantir que tudo estivesse perfeito ao
invés de se divertir rodopiando nos braços de alguém. Havia dois
convites que ela aceitaria — o de Charles, porque queria, e o de
Greystone, porque devia. Sua razão ainda a conduzia para um
casamento profícuo e adequado com um duque, o desejo de seu
falecido pai. Nenhum dos dois sequer se aproximou dela até por
volta da meia-noite, quando o duque a interpelou perto da
poncheira.
— Lady Olivia. — Greystone fez uma reverência curta. —
Imagino que já esteja entediada de bancar a cerimonialista.
— Uma dama nunca se cansa de seu papel. — Ela lhe sorriu.
— Imagino que não. Gostaria de fazer um dueto?
Olivia piscou algumas vezes. Estava exausta e talvez não tenha
entendido corretamente o que disse o duque.
— Dueto?
— Sim. Toco piano, mas não sou excelente. Se estiver a quatro
mãos, talvez me sinta encorajado a compartilhar uma peça.
Ele queria tocar com ela! Olivia não sabia por que se sentiu
aliviada em não ser tirada para uma valsa, mas se sentar ao piano
com Greystone parecia bem mais interessante do que atirar-se em
seus braços.
— Será uma honra tocar com milorde.
— Então vamos, ou logo alguém assume nosso assento.
Sem qualquer decoro, Greystone segurou-a pela mão e a
arrastou para o instrumento. Ela poderia ter se sentido ultrajada,
mas decidiu que nada mais a ofenderia depois do que ousara fazer
no quarto de Charles Eckley.

Estava declarada guerra ao Duque de Greystone. Tão logo o


maldito se aproximou do piano com Olivia para fazer um dueto com
ele, Charles decidiu que ela não se casaria com aquele aristocrata
arrogante. O ciúme o envolveu em sombras. Não havia mais nada
que pudesse fazer — ele não se importava com a herança que ela
tinha a receber, com a reputação que Gupta exigia para o contrato,
com o marido nobre que ela merecia. Enquanto a via sentada ao
lado daquele canalha, sorrindo ao interpretar um dos minuetos de
Bach, toda certeza que tinha era de que ele a teria para si.
Mas precisava que ela o quisesse também.
Um Eckley nunca tomava uma mulher sem a certeza de que ele
era a sua única escolha. Todas as damas com quem se deitou
desejaram estar com ele. Todas as damas que beijou ansiaram por
sua boca. Charles teria Olivia, mas só depois que ela procurasse
por ele. Daquela vez, a iniciativa teria que vir dela.
A música durou intermináveis sete minutos. Casais se formaram
e dançaram ao som das notas bem executadas pelas quatro mãos.
Tocaram juntos como se fosse um hábito. Charles não sabia
manusear o piano, não era como seu irmão gêmeo que dominava
qualquer instrumento e tinha um talento especial com o violoncelo
nas mãos. Robert era apaixonado, romântico e sensível — ele era
força bruta e resistência. Manteve os braços cruzados e os olhos
cravados na dupla, lamentando o sorriso sincero que Olivia tinha
estampado enquanto tocava.
Uma salva de palmas encheu o salão de baile quando a música
acabou. Aquela foi, sem dúvida, a mais bela apresentação da noite.
Isaac e Caroline ocuparam os instrumentos e surpreenderam a
todos com uma peça conjunta — poucos ali conheciam o lado
musical da prima Eckley —, e ele virou as costas para sair.
Precisava de um pouco de ar puro, mesmo que a chuva o impedisse
de deixar a casa. Marchou até o jardim de inverno, de onde ainda se
podia ouvir a música ecoando, mas não precisava ver nada nem
ninguém.
Aquele era um belíssimo lugar, com enormes painéis de vidro e
janelões que permitiam a luz do dia entrar. Havia flores por todos os
lados, bancos, mesas e bancadas que simulavam um jardim
externo, porém protegido dos rigores do clima.
Apoiou as duas mãos em uma bancada, baixou a cabeça e
respirou profundamente. Não dava para ver nada, se olhasse para
fora, apenas a água que caía e molhava tudo. O céu estava pesado
e denso como seu humor. Ele não estava acostumado a sentir-se
assim, nem mesmo em relação à Olivia. Amava-a sem aquela
sensação horrível de perda. O que o fizera acreditar que ela nunca
seria de outro homem? Que nenhum outro a tocaria, nenhum outro
a teria nos braços, nenhum outro se deitaria com ela?
— Charles? — A voz de Olivia ecoou pelo espaço e refletiu no
teto envidraçado. Ele continuava de cabeça baixa e olhos fechados.
Ao ouvi-la, ajeitou a coluna e a observou vindo em sua direção.
Apenas duas lamparinas acesas deixavam o jardim em uma
penumbra aconchegante. — Você não pode se esconder ou vai
colocar todo o plano a perder.
Que se dane o plano.
— Precisava de um pouco de tranquilidade. Não estou mais
acostumado a bailes, se me entende.
Ela se aproximou e colocou uma mão em seu ombro. Charles
sentiu seus músculos endurecerem no esforço de não ceder, não
contar a ela toda a verdade. Aquilo, sim, acabaria com o plano.
— Pensei que teríamos que exibir um pouco mais de
empolgação com nosso cortejo. — Ela estava perto demais para
aquele tipo de conversa. — Você nem mesmo me tirou para dançar.
— Tem razão, mas pensei que Greystone faria isso. Então me
afastei.
— Não pude agradecê-lo pelo memorial — Olivia desconversou
e recostou a cabeça em seu ombro. — Papai sempre teve muito
orgulho do homem que você estava se tornando. Uma pena que ele
não o viu prosperar.
Charles fechou os olhos. Que se danasse o decoro também.
Virou-se para o lado e, com movimentos cautelosos, segurou Olivia
em seus braços. Ela apoiou as duas mãos abertas em seu peito e o
acariciou com os dedos delicados. As saias dela embolaram entre
suas pernas e ele a embalou suavemente no ritmo da valsa que
Caroline tocava ao piano.
Não a tirou para dançar na frente de todos, mas não perderia
outra valsa com ela.
— Eu respeitava muito o seu pai. Foi uma honra homenageá-lo
hoje. — As mãos dele deslizaram para cima e para baixo,
acariciando-a nas costas. — Acho que precisamos parar com isso.
— Isso?
— Nós dois em lugares escondidos, sozinhos, com você em
meus braços.
Ela olhou para baixo, para onde os corpos se uniam. Enfiou as
mãos por dentro do casaco que ele vestia e o envolveu com os
braços, recostando a cabeça em seu peito.
— Não tem problema se for segredo.
— Segredo ou não, ainda estarei arruinando você. Para onde
acha que esse conforto físico vai nos levar, Olivia?
— Não sei. É muito errado se eu quiser descobrir antes de
descartar a possibilidade?
Nada é errado se você quiser, meu amor.
— Então continuamos com o combinado, mas você precisa me
impedir de ir até onde não quiser que eu vá. Porque eu não tenho
freios, eu não sei parar.
Os olhos dela encontraram os dele e estavam sorrindo. Sem
dizer nada, Olivia depositou um beijo em seu peito e ele sentiu
quando as mãos dela puxaram sua camisa de dentro da calça e
tocaram-lhe a pele. A música continuava no outro salão e eles
fingiam que dançavam enquanto algo muito mais indecente
acontecia. A carícia o despertou e o fez puxá-la para mais perto.
Seu corpo ansiava pelo dela e precisava aliviar-se com qualquer
contato.
O controle o abandonou por completo quando as mãos dela
deslizaram para a frente e, por baixo da camisa, se emaranharam
nos pelos de seu peito. Charles a segurou pela nuca, atacou-lhe a
boca e a carregou para o lugar mais escuro do jardim.
Ela era virgem e quase intocada, então beijá-la com aquela
voracidade poderia assustar mais do que excitar — ele apenas não
tinha mais como evitar dar vazão aos sentimentos. Os anos de
desejo reprimido desaguaram como a tempestade temporã quando
ele a ergueu, colocou-a sentada sobre um aparador de pedra e ela
cruzou as pernas ao redor de seus quadris para mantê-lo ali.
Charles gemeu sem medo de serem ouvidos, invadiu-a com a língua
e explorou os recônditos daquela boca que tinha sabor de frutas
vermelhas e baunilha. Ela se ajeitou sobre o aparador e arrastou o
traseiro para frente, encaixando-o perfeitamente entre suas coxas e
quase fazendo com que ele tomasse uma decisão bastante
permanente.
Quando foi que sua Olivia se tornou aquela criatura cheia de
malícia e que sabia como estimulá-lo em locais que ela nem sequer
deveria saber que existiam no corpo masculino? Benditos fossem os
livros que ela lia escondido.
— Isso é… — ela remexeu os quadris em contato com sua
ereção. Charles interrompeu o beijo. Ele estava à beira de um
colapso. — Isso é intrigante.
— Isso sou eu desejando o que não posso ter — ele rosnou no
ouvido dela.
— Então você me deseja? Ainda é inusitado para mim como
funciona o desejo.
— Livvy — Charles evitou uma risada e fitou-a dentro dos olhos
—, nossos corpos foram feitos para reagir dessa forma quando se
envolvem. Eles procuram um ao outro até se encontrarem onde
querem se unir.
— Você está me dizendo que ele — ela baixou o olhar para onde
sua ereção pulsava dolorida — sabe o que fazer?
Daquela vez ele não conseguiu evitar e abafou uma gargalhada
nos cabelos dela.
— Sim, ele sabe. Você também sabe, Livvy, mas há um
problema com essa conexão: ela só passa quando ambos nos
satisfazemos.
— E você pretende me satisfazer? Agora? Aqui?
— Eu não posso. — Charles roçou o maxilar no pescoço dela.
Olivia gemeu. Aquele som era a música que seus ouvidos queriam
ouvir. — Não tenho esse direito.
Ela se ergueu e pressionou os quadris contra ele antes de colar
os lábios em seu ouvido.
— Então beije-me, Charles. O quanto você quiser, até onde você
quiser, apenas me beije.
Decoro. Decência. Ele não gostava daquelas palavras. Recato.
Pureza. Ele repudiava aquelas também. Todas elas faziam parte do
vocabulário recorrente da mulher que acabara de pedir para que ele
a devassasse em um jardim. Sobre uma superfície fria de pedra. Em
uma noite chuvosa de primavera. Aquela era a sua oportunidade de
decidir se demonstraria ser um homem honrado para os padrões da
aristocracia — ou se daria à mulher que amava o prazer que ela lhe
pedia.
Era uma escolha muito fácil. Charles enfiou os dedos por entre
os cachos dos cabelos de Olivia e arrancou os grampos pelo
caminho. Mantendo-a firme, levou os lábios aos dela e recebeu de
bom grado o gemido de libertação que escapou daquela boca que
tanto desejava. Lento, Charles usou a outra mão para abrir cada
pequeno botão perolado da gola do vestido. Era uma linda peça,
com babados e laços, mas tudo que ele precisava era que aquele
monte de tecido sumisse.
Olivia sabia que não deveria ter bebido aquela taça de vinho branco
durante o jantar. Era seguro culpar a bebida — cuja quantidade
consumida não embriagaria nem os cães — ao invés de
responsabilizar-se pelo que acontecia: ela estava inequivocamente
e sexualmente atraída por Charles Eckley e aquilo era bastante
assustador.
Assustador e incapacitante, porque ela não conseguia pensar
claramente enquanto ele a beijava com lábios, língua, mãos e corpo
inteiro. Enquanto ele — aquela parte específica de sua anatomia a
qual ela atribuíra personalidade — insistia em provocá-la por
debaixo das saias. Ou enquanto os dedos dele afastavam a gola do
vestido e expunham pedaços de pele que ninguém deveria ver.
Ela já o vira quase por inteiro, mas Charles era um devasso.
Quem deveria manter o decoro era ela. Não era? Talvez fosse tarde
demais.
O vento fresco do lado de fora a fez estremecer. Charles
massageava seu pescoço e deslizava o beijo do maxilar até a
orelha, passando a língua em um ponto sensível escondido próximo
a seu ouvido. A massagem desceu, escorregou enquanto afastava o
tecido e a expunha para a escuridão. Ela fechou os olhos quando o
sentiu tocar a curva de seus seios. Sobressaltou-se. Queria
desesperadamente que ele fizesse alguma coisa e tinha medo de
que, mais uma vez, essa coisa não fosse suficiente.
Nos livros de romance que ela lia, aquele contato físico não era
descrito. Nos livros de Annabelle, em especial aquele que a
mocinha decidiu entregar-se ao seu amado, a intimidade era
integral: corpos nus, lençóis e gemidos. Céus! Ela queria chegar
àquele ponto com ele? Com Charles? Por tudo que era mais
sagrado, aquele homem era seu melhor amigo. Ele a conhecia por
dentro como ninguém, ele sabia de suas fraquezas e já a vira em
seu pior. Estaria ela ansiando que ele também a conhecesse por
fora?
— Ah, Livvy — ele murmurou com a boca marcando sua pele e a
distraiu dos pensamentos. — Você é linda.
Ela não se achava linda, mas o elogio fez seu peito inflar.
Charles continuou traçando uma linha imaginária em sua pele até
beijá-la ali, onde sua mão estava. Olivia mordeu o lábio para reprimir
um grito ao senti-lo descer a parte superior do vestido, acariciar-lhe
os seios por sobre o espartilho e beijar onde eles formavam um
vale.
Descobriu que ele tinha razão — o corpo sabia o que fazer — ao
deitar as costas para trás e permitir que Charles tivesse mais
acesso. Ele a explorava com a língua enquanto afrouxava cada laço
do espartilho até soltá-lo. Puxando-a para mais perto e
pressionando seus quadris contra ela, Charles capturou um mamilo
entre os dentes e o sugou.
As sensações expandiram dentro dela, escaparam por seus
poros, fizeram-na agarrá-lo pelo colarinho do casaco. Olivia poderia
se desfazer ali mesmo, se não fosse um ruído que os alertasse.
Charles imediatamente a soltou e se virou de costas, mantendo-a
oculta atrás de si enquanto observava o espaço.
— Quem está aí?
Nenhuma resposta fez com que ela ficasse ainda mais
apreensiva. Se fosse pega naquelas condições, estaria arruinada
para sempre e nenhum nobre iria querê-la depois de um escândalo.
Não importava que fosse ainda virgem — ela podia fazer o que
quisesse desde que não fosse pega. Não pretendia fazer nada que
colocasse sua virgindade em risco, ao menos não ali, naquele
jardim. Porém, conhecia damas que já tinham se deitado com
alguns cavalheiros e tinham fama irrepreensível.
Depois de quase um minuto de um quase silêncio, uma figura
pequena apareceu cheirando o chão aos pés de Charles. Era
Fedorento, o cão resgatado que se esgueirava pela casa inteira sem
que ninguém percebesse. O bicho deveria ser o guardião da virtude
de Olivia, pois era a segunda vez que os interrompia antes que
fosse tarde demais.
Charles voltou a encará-la e retirou o casaco para cobri-la até
que Olivia conseguisse ajustar o vestido.
— Desculpe-me. — Ele suspirou. — Você não deveria permitir
que um libertino a toque dessa forma.
— Ou eu não deveria permitir que um libertino me toque em um
jardim, onde podemos ser pegos. — Ela riu. — Não se desculpe,
Charles. A não ser que se arrependa.
Ele segurou sua face com as duas mãos, obrigando-a a encará-
lo. Os olhos ainda continham sombras e Olivia não sabia se elas
continuavam ali ou se foram e voltaram.
— Eu não me arrependo de nada.
Nem ela. A forma mais simples que encontrou de fazê-lo
acreditar naquilo foi espelhando seu gesto: segurou sua face com as
duas mãos e roçou os lábios nos dele.
Capítulo décimo sexto

H . N
abril, não daquela forma. Não deveria haver estradas encharcadas
nem desmoronadas e eles não deveriam estar presos dentro de
casa. Mas era o que estava acontecendo naquele final de semana
caótico em que nada — absolutamente nada — saiu da forma como
ele esperava.
Graças a Deus.
Depois de sair do jardim de inverno e de deixar Olivia bastante
desorientada com aquela demonstração entusiasmada demais de
desejo, Charles teve que ir até o estábulo conversar sobre o cavalo
de Daniel. O animal, que se ferira no dia anterior, ainda sentia
muitas dores e estava irritadiço. Como não seria possível trazer um
veterinário da cidade até que a chuva cessasse em definitivo e as
estradas voltassem a ser transitáveis, ele foi solicitado pelo
cavalariço para uma solução.
— O cavalo não será sacrificado. — Charles segurou o bolso
interno de seu colete. O talismã de Olivia permanecia ali para
lembrá-lo de que toda vida importava. — Esse ferimento pode ser
tratado e a pata não está inchada.
— A pata está boa, senhor, mas esse corte…
Charles se aproximou do animal e o bicho relinchou, nervoso.
Precisou distraí-lo com uma maçã enquanto tocava o ferimento para
confirmar que a laceração era profunda e estava infeccionando.
— Teremos que cauterizar a ferida — ele determinou. —
Precisamos de uma faca, fonte de calor, ácido carbólico e panos
limpos. Também precisamos de um pouco de láudano.
O cavalariço ficou observando-o confuso.
— Acho que conseguimos isso na cozinha…
— Não ache, menino! Corra e vá buscar o que pedi.
Mais uma vez o animal relinchou nervoso. Seria difícil cauterizá-
lo sem levar um coice, mas algo precisava ser feito. Não dava mais
para costurar, já havia alguma infecção instalada no ferimento.
Charles passou a mão na própria coxa, onde tinha uma ferida
parecida com aquela e que curara da mesma forma: com uma faca
quente e um pedaço de couro para morder.
Permaneceu ali acariciando a crina do cavalo até que o
cavalariço retornasse — com o que ele pediu e com ela. Enrolada
em um xale e usando um roupão de flanela mais adequado a uma
noite de outono, Olivia já parecia pronta para dormir, mas estava ali,
enlameando suas roupas nos estábulos.
— O que aconteceu? — ela perguntou, aproximando-se do
animal.
— Ele precisa de cuidados e não há como trazermos o
veterinário. O que faz fora da cama, Livvy? Está chovendo, veja seu
cabelo.
Charles acariciou a trança que pendia pelos ombros dela e
retirou alguns respingos de chuva.
— Fui solicitar um leite morno para Daniel e vi a movimentação
na cozinha. O que pretende fazer, uma cauterização?
— Sim, não podemos deixar que o ferimento infeccione.
— Para que o láudano?
— Para anestesiá-lo.
Olivia também franziu as sobrancelhas, incrédula. Aquela
deveria ser a primeira vez que alguém se importava em garantir que
um cavalo não sentisse dor em uma simples intervenção, mas ele
não se preocupava apenas com a dor. Charles sabia que o animal
precisava estar tranquilo para que a cauterização desse certo.
Usando uma vela, Charles esquentou a faca. Demorou cinco
vezes mais do que se estivesse em um fogão ou uma lareira,
porém, era o fogo que tinham disponível. Enquanto isso,
ministraram com cuidado o láudano para o cavalo, que cuspiu uma
parte, mas aceitou o restante assim que começou a sentir os efeitos
da sedação. Sonolento, o animal cambaleou e acabou deitando no
chão do estábulo. Olivia ficou apreensiva ao ver o bicho naquelas
condições e ele não podia negar que era arriscado. Nunca
ministrara láudano a um animal, então tudo podia dar errado.
Mas não daria. Com a faca de lâmina quase alaranjada, Charles
se aproximou do ferimento e cauterizou as duas bordas. O cavalo
despertou, relinchou, quis se levantar, quase caiu, foi amparado pelo
cavalariço e derrubou Charles no meio de um monte de feno. Para
evitar que o objeto incandescente inflamasse o feno, ele o segurou
de mau jeito e se queimou na lateral do abdômen. O pequeno
acidente foi rapidamente controlado e o bicho continuou quase
adormecido.
— Pronto. Amanhã você passará o unguento com mel de
abelhas e mantenha o ferimento livre de moscas. Acha que pode
fazer isso?
— Sim, senhor. Com certeza.
Ele se levantou de onde estava e conferiu o rasgo em seu colete
e sua camisa causados pela faca. Aquelas eram roupas de boa
qualidade!
— Você se feriu? — Olivia se aproximou, puxando o casaco para
expor o rasgo. Mal dava para ver o que acontecera e tinha pouco
sangue, já que a faca estava muito quente.
— Não foi nada de mais. Vamos retornar para a casa.
— Pegarei os primeiros socorros e o encontro em seu quarto.
Não houve tempo para dissuadi-la. Olivia marchou apressada na
direção da mansão como se a vida de alguém estivesse em risco. A
vida, não, mas a virtude, com certeza. Cristo! Ele pressionou a
ponte do nariz e voltou para a casa temendo o que mais poderia
acontecer naquela noite. Foi para o quarto, fechou a porta à chave e
começou a se despir com cuidado para não arruinar mais ainda
suas vestimentas.
Pendurou o casaco cheio de feno em uma cadeira. Retirou a
gravata, dobrou-a e colocou sobre a cômoda. Embolou o colete e a
camisa em um canto do banheiro. Olhou-se no espelho oval de
moldura de madeira e examinou o pequeno corte. Nada que uma
limpeza e uma dose de uísque não resolvessem. Sentou-se e
arrancou os sapatos, arremessando-as para o canto do quarto.
Estavam sujos de lama e possivelmente inutilizados. As calças
tinham lama até os joelhos e muito feno grudado. Abriu os botões
para abri-las quando ouviu batidas à porta.
Maldição, Olivia! Decidiu ignorá-la, mas as batidas continuaram.
Daquele jeito, ela acordaria alguém naquele corredor. Charles
respirou fundo e girou a chave, abrindo a porta. Olivia quase caiu
para dentro de seu quarto. Tinha lama na barra do roupão, o xale
em suas costas e seus cabelos estavam úmidos. Ela segurava uma
caixa de madeira pintada de branco e com uma cruz vermelha na
tampa.
— Agora pode trancar de novo. — Ela sorriu e apoiou a caixa
sobre a cômoda. Retirou o xale e o pendurou exatamente por cima
de seu casaco.
— Como disse?
— Trancar a porta. — Olivia apontou para a chave em sua mão.
— Não vai querer que entrem de surpresa e nos peguem aqui, vai?
Talvez fosse uma ótima ideia, assim ele seria obrigado a casar-
se com ela de uma vez. Isso resolveria metade de seus problemas
— mas iria obrigá-la a um casamento indesejado. Além de perder a
herança deixada pelo pai. Não. Forçar Olivia a casar-se com ele não
era solução, era mais um problema. Era injusto. Charles colocou a
chave outra vez na maçaneta e trancou a porta.

Charles tinha um ferimento muito pequeno em seu abdômen. Por


cima de uma camada de músculos e pelos. Ele estava sem camisa
e com os botões da calça abertos. Olivia podia ver uma trilha
daqueles mesmos pelos descendo até onde ele estava. Ele. Talvez
ela precisasse aprender um nome melhor para aquela parte do
corpo de Charles, já que insistia em tratá-la como se fosse uma
entidade.
Ela se aproximou e levou a mão até o corte, fazendo-o se retrair
e dar um passo para trás.
— O que pretende fazer?
— Tratar isso.
— Tire o roupão. Está molhado e imundo.
Olivia baixou o olhar e percebeu que ele tinha razão. Ela trocou
os sapatos por chinelos secos quando entrou, mas a barra do
roupão estava suja de lama e grama. A decisão de tirar o roupão, no
entanto, era complicada. Estava com uma camisola simples por
baixo, uma peça um tanto indecente, com colarinho de renda e
botões.
Não podia mais dizer que estava entre amigos e que Charles era
“uma das garotas”, como Margaret supunha. Apesar de pensar
assim antes, depois do primeiro beijo trocado, ela já sabia que ele
era qualquer coisa, menos uma garota. Depois do encontro no
jardim de inverno, Olivia sentia o calor lhe subir pelas panturrilhas só
de vê-lo tão despido. Estaria ela pronta para despir-se na frente dele
também?
Os olhos dele a fitavam com paciência e aquele tom de
escuridão que a confundia. Os lábios eram uma linha grossa,
carnuda e úmida que a faziam recordar-se de quando esteve ali.
Irresistíveis. Olivia soltou o laço do roupão e o retirou, colocando-o
sobre o xale. Sentiu-se exposta, mas não desconfortável. Ele nunca
a deixava desconfortável.
— Deixe-me limpar esse corte.
Ela abriu a caixa de primeiros socorros e retirou uma gaze.
Embebeu-a com ácido carbólico e levou até o corte. Charles
manteve-se imóvel enquanto ela passava o tecido por sobre o
ferimento, que parecia parte cauterizado, parte queimado. Abaixou-
se para examinar se havia algum objeto estranho no corte e o tocou
com os dedos. Tentou ser delicada, mas Charles emitiu um gemido
baixo que a consternou.
Na posição em que estava, ela não sabia se o gemido fora de
dor ou constrangimento. Seus olhos vagaram pela rigidez do
abdômen e pelos músculos que pareciam empilhados para atrair a
atenção de quem ousasse encará-los. O desenho dos pelos a
conduzia ao vislumbre de…
Charles a puxou para cima e a fez parar de filosofar sobre partes
do corpo masculino.
— Você tem uma chance de sair intocada daqui agora, Livvy —
ele falou devagar, marcando as palavras. Segurava-a pelos ombros
e mirava dentro de seus olhos. — Se ficar, vamos continuar de onde
fomos interrompidos mais cedo.
Céus! Aquilo era uma ameaça? Ele estava dizendo que a
arruinaria ali, naquele quarto, na sua própria casa? O que
significava continuar de onde foram interrompidos? Até onde ele
pretendia ir e até onde ela estava disposta a permiti-lo? Parecia uma
proposta.
Olivia engoliu um bolo amargo de saliva. Sua boca estava seca e
entreaberta, como se ela quisesse responder, mas fosse impossível
dizer qualquer coisa. Seu silêncio fez com que ele a soltasse e
desse um passo para trás, aumentando a distância entre eles. Não.
Volte aqui. Ela ainda não estava pronta para deixá-lo ir e fora por
isso que preparara aquela farsa de buscar leite para o irmão. Daniel
não se importava com leite morno à noite há anos. Ela nem mais
oferecia, mas queria perambular pela casa, procurá-lo pelos
cômodos, estar ali para caso ele também estivesse.
Aquele corte também não requeria a sua atenção, mas foi
utilizado como desculpa para justificar sua entrada — e
permanência — no quarto de Charles.
— Você vai me beijar?
A voz saiu aguda, como se fosse pecado apenas perguntar
aquilo. O canto da boca dele se ergueu.
— Por inteiro. Em lugares onde você nunca imaginou que
pudesse ser beijada.
Os olhos dela vagaram para onde as mãos estiveram minutos
antes. O peito dele subia e descia em uma respiração calma, porém
intensa. As calças estavam penduradas nos quadris e tudo dele
estava ali, como se não houvesse nada que a impedisse de vê-lo.
De apreciá-lo.
Olivia queria ser beijada em lugares onde nunca seria beijada
depois que se casasse. Porque ela sabia que, apesar de seus
desejos, casamentos na aristocracia não eram impulsionados pela
paixão. Hesitante, ela deu um passo à frente. Charles contraiu o
maxilar e os olhos dele ficaram ainda mais escuros. Outro passo e
eles estavam a menos de um braço de distância. Ele balançou o
corpo, jogando o peso de um lado para o outro. Cruzou os braços e
se manteve rígido. Seu queixo estava duro como uma pedra de
granito — assim como parecia estar aquela parte do seu corpo.
Mais um passo e ela estendeu os braços, segurou-o pela face e
roçou os lábios nos dele.
Toda vez que as bocas se tocavam, Charles reagia como se
ansiasse por aquele encontro. Descruzando os braços, ele segurou-
a pela cintura, arrastou-a para a cama e a atirou sobre o colchão,
engatinhando por sobre seu corpo até pairar em cima dela. Olivia
parou de respirar ao senti-lo se acomodar, pesado e duro sobre si.
Ele era quente, firme e cheirava a sândalo. Os lábios estavam
macios e a beijavam com calma. Ela o sentiu acariciando-a pelo
pescoço, colo e braços enquanto a língua procurava espaço para
acariciá-la por dentro.
Os dedos de Charles abriram um dos botões de sua camisola. A
boca dele deslizou para o pescoço e para o lugar escondido atrás
de sua orelha e Olivia gemeu. O ruído, um pouco constrangedor, o
fez sorrir. Outro botão foi aberto e ela sentiu a respiração acelerar.
Mais um botão se foi. Um movimento de quadril fez com que a
dureza dele a tocasse no espaço entre as suas pernas e ela gemeu
outra vez. Charles perdeu a paciência e livrou-se de todos os botões
com um puxão rápido.
Nada rasgou, nada se desfez. A boca continuou seu caminho
pelos espaços desbravados e descobertos até que ele usou as duas
mãos para descer-lhe a camisola pelos ombros. O tecido manteve-a
aprisionada, sem conseguir abrir os braços ou movê-los para longe
da lateral de seu corpo. Seus seios estavam subitamente expostos e
ela nunca se sentiu tão tentada a pedir que ele a tocasse como
naquele momento.

Ela era linda. Nem em todas as suas fantasias mais indecentes ele
imaginou aquele momento. Olivia, a criatura mais pura que existia,
presa debaixo de si. Nua da cintura para cima. Com a pele marcada
por seus beijos e com a respiração frenética de quem ansiava pelo
prazer que ele poderia lhe dar. Só ele. Nenhum outro homem
poderia vê-la daquela forma. Nenhum outro poderia olhar para
aqueles seios. Nem tocá-los.
Olivia era sua. Ela o queria, ela estava excitada por ele. Charles
começou reivindicando o mamilo direito. Colocou-o na boca e
acariciou com a língua, fazendo com que ela se debatesse e
arqueasse as costas. Cada gemido de aprovação o autorizava a
seguir em frente. Fechou os lábios ao redor do mamilo e o sugou.
— Charles.
Isso, diga meu nome. Com a mão livre, ele acariciou o outro seio
e pressionou os quadris contra ela.
— Solte-me — Olivia resmungou. — Eu quero tocar você.
— É melhor que não me toque. — Charles lambeu o outro
mamilo. — Deixe-me dar-lhe o conforto que precisa, pelo qual
anseia.
— E você?
Ele ergueu o olhar para vê-la ali, rendida às suas carícias.
— Eu ficarei satisfeito ao satisfazer você.
Era verdade. Uma verdade patética que o faria ser piada no
salão de Riderhood pelo resto de sua vida caso algum dos homens
soubesse. Naquele instante, ele não se importava com o que seu
corpo precisava. Queria fazê-la gemer mais, gritar, desfazer-se em
sua boca. Queria marcá-la como sua. Garantir que seria o primeiro a
dar a ela o maior prazer físico que ela pudesse sentir.
Charles deslizou a mão até os tornozelos dela e retornou-a,
erguendo a camisola até amontoá-la na metade das coxas. Olivia se
remexeu quando ele colocou seu peso sobre o colchão e
serpenteou os dedos até acariciá-la em sua intimidade. Ele sugava
lentamente cada mamilo enquanto roçava nos cachos que a
cobriam na região mais escondida de seu corpo. Ajeitou-se por
sobre ela e puxou a camisola um pouco mais para baixo, prendendo
ainda mais os braços dela em um cárcere de tecido.
Ela continuou a resmungar que queria ser solta, mas ele não
podia ser tocado. Uma carícia poderia fazê-lo explodir. Sua ereção
pulsava enquanto as mãos subiam mais a outra extremidade da
camisola até expor Olivia por inteiro. Quase. Era o suficiente para
que ele tivesse uma visão privilegiada do sexo feminino com que
tanto sonhou. Sim, ela era mais bonita do que ele sequer poderia
imaginar. O triângulo de pelos no centro de suas pernas provocou-o
a deslizar para o chão e puxá-la até que Olivia ficasse meio
pendurada para fora da cama.
— Você confia em mim? — Charles perguntou, ajoelhado na
frente da mulher que adorava. Ela ergueu a cabeça e a balançou.
— Sim.
— Mesmo que eu mantenha seus braços presos? Mesmo que eu
a toque aqui?
Dobrando o corpo, ele soprou-lhe os pelos pubianos e
posicionou as duas mãos em sua virilha. Olivia gemeu e se retorceu,
confusa e ansiosa.
— Sim, eu confio.
— Então eu vou beijá-la, assim como prometi que faria.
Charles usou os dois polegares para abrir-lhe os lábios e expor a
feminilidade intocada, onde o clitóris também pulsava. Olivia tremia.
Ele ergueu-lhe uma perna e depositou beijos lentos e molhados
desde o dedão do pé. Ela riu, sentindo cócegas ao ser acariciada
pela língua na panturrilha, e gemeu quando ele lhe beijou a parte
interna da coxa. Repetindo o gesto com a outra perna, Charles
deixou-a aberta, com os calcanhares apoiados na beirada do
colchão. Olivia ergueu a cabeça para vê-lo e, aproveitando a
atenção, ele levou um dedo à boca, umedeceu-o com saliva e o
conduziu ao botão do prazer feminino.
— Oh, Deus! — Olivia desabou outra vez na cama. Ele fez
círculos lentos com o indicador e logo substituiu o dedo pela língua.
— Oh, Deus! Isso é… o que você está fazendo?
— Isso é um beijo, minha querida. — Charles riu, deslizando a
língua por toda a extensão do sexo dela. — Você quer que eu pare?
— Não! Quero dizer… não, por favor, não pare.
Claro que ele não pararia. Nunca mais. Provar o gosto da boca
de Olivia deixou-o desorientado. Viciado. Provar aquele gosto
deixaria-o alucinado. Charles não seria mais capaz de sobreviver
sem poder sentir aquele calor, aquela textura, o sabor da mulher
que ele amava. Não haveria outro prazer que não o de dar prazer a
Olivia. Aceitaria tornar-se celibatário, nunca mais possuir outro
corpo feminino, se pudesse adorá-la daquela forma todos os dias.
Com cuidado, lambeu e sugou o clitóris enquanto acariciava-lhe
a entrada. Olivia agarrou os lençóis e os puxou com força quando
ele a penetrou com a língua. Os pés dela apoiaram em seus ombros
e o empurraram, fazendo-o se afastar.
— O que está acontecendo comigo? — perguntou, trêmula.
Charles se ergueu e se sentou ao lado dela enquanto acariciava-lhe
os cabelos.
— É ruim quando beijo você aqui em baixo? — Ele deslizou a
mão para a feminilidade úmida.
— Não, mas eu sinto como se fosse explodir. Como se eu
fosse… como se algo fosse sair de dentro de mim.
Charles dobrou-se e a beijou nos lábios, fazendo-a provar o
próprio gosto.
— Isso é bom. Quando a sensação voltar, deixe que ela controle
você. Não lute contra ela, apenas permita que ela se apodere de
todos os seus sentidos.
— Solte-me.
Olivia debateu-se e Charles terminou de abrir os botões da
camisola, libertando-a da clausura. Tão logo pôde mexer outra vez
os braços, ela o puxou para baixo e o beijou. Inexperiente, o toque
de lábios era suave e vacilante, porém determinado. Ele rolou para
cima dela, empurrou-a contra o colchão e voltou para o lugar de
onde saíra: para o meio de suas pernas.
Daquela vez, Olivia não resistiu. Obedeceu-o e deixou o prazer
dominá-la enquanto Charles a sugava lentamente em seu centro de
prazer. Para evitar que os gemidos fossem ouvidos pelo corredor,
ele lhe entregou um travesseiro.
— Morda quando quiser gritar.
Ela agarrou o objeto com as duas mãos e cravou-lhe os dentes.
Charles penetrou-a com um dedo, depois com dois, e acariciou-a
por dentro da mesma forma que acariciava por fora.
— Charles!
O gemido saiu abafado. Ele sugou com mais ritmo e manteve a
cadência de movimentos de entrada e saída até que ela irrompesse
em espasmos gloriosos de prazer.
Em um instante ela estava inteira, no outro, transformara-se em luz.
Olivia viu a erupção que fez com que tudo ficasse turvo e nebuloso
por vários minutos enquanto seu corpo se desmanchava nos lábios
experientes de Charles Eckley. O grito escapou de sua garganta
sem que pudesse controlá-lo. Suas pernas tremiam. Seu coração
saltava as batidas, de tão acelerado. Todos os sentidos
maximizaram enquanto ele a beijava em um lugar que ela mal sabia
que existia.
Bem, claro que ela sabia. Olivia sabia que havia algo ali que
suscitava tanto furor social. Algo que os homens queriam e que as
mulheres não deveriam entregar. Ela entendia de anatomia e tivera
a oportunidade de ver algumas figuras quase explícitas. A
curiosidade a fizera levar um espelho até o meio das pernas para
observar a parte mais complicada do corpo das mulheres — ao
menos era o que lhe diziam.
Mas ela nunca se tocara, nada além do necessário para a
higiene íntima. Seria incapaz de saber que aquela era a fonte de um
prazer irresistível. Sua mente estava um tumulto de pensamentos e
sensações quando seu corpo foi puxado para cima do colchão e ela
se viu deitada por sobre o peito de Charles. Ele também respirava
com dificuldade. Teria compartilhado o mesmo prazer que ela
sentira?
— Estou arruinada? — Olivia afundou o nariz no peito desnudo.
Era um lugar aconchegante. Aquele abraço a fazia se sentir em
casa.
— Incontestavelmente. — Ele beijou-lhe os cabelos. —
Irrevogavelmente.
— Oh, céus! — A percepção de que ela estava envergonhada,
porém, não arrependida, atingiu-a. Não estava nem mesmo
preocupada. — E agora? Todos saberão o que fiz?
— Não é como se tivesse uma marca na sua testa, Livvy. — Ele
riu. — Ninguém vai perceber, não há rastros físicos do que fizemos.
Era impossível que não houvesse. Olivia ainda sentia as mãos
dele sobre ela, a boca dele sobre ela, a língua dele tocando-a em
lugares impróprios e absurdamente satisfatórios.
— Você disse que ia me beijar. — Ela se ergueu e o encarou.
Charles tinha os lábios vermelhos e os cabelos desgrenhados como
se tivesse feito uma atividade física extenuante. — Isso pareceu
mais que beijar.
— Tem razão, foi mais do que beijar. Agora você está exausta e
precisa dormir. Vamos dar um jeito de restituí-la para seu quarto.
— Como você pode ter feito isso estando vestido? — Ela o
interrompeu. Nem mesmo ouviu o que Charles estava dizendo. Sua
mente continuava trabalhando em tudo que a deixava curiosa. —
Suas calças… você as recolocou?
— Eu não as tirei.
— Mas nós… nós fizemos amor, não fizemos?
Ele riu outra vez e ela se sentiu muito tola. Estava falando
bobagens na frente de um homem experiente como se ele tivesse o
dever de explicar-lhe aquelas coisas.
— De certa forma, sim. — Charles acariciou-lhe os cabelos e ela
descobriu que adorava quando ele fazia aquilo. — Mas eu não me
despi.
— Então como você… o que você…
Ele ergueu o indicador e ela entendeu. Embriagada pelo prazer,
Olivia não percebeu que a invasão bem-vinda em seu corpo fora
causada por aqueles dedos enormes e rudes. A mão de Charles
não era a mão de um aristocrata — ele trabalhava duro e cultivava
calos e cicatrizes. Também era a mão que a tinha feito delirar em
êxtase e gritar o nome dele.
— Volte para seu quarto, Livvy.
— E ele? — Ela apontou para o volume impressionante que
parecia querer saltar das calças meio abertas. — Por que continua
assim?
— Você precisa parar de chamá-lo de “ele”. Não é como se fosse
uma pessoa.
— Que nome dá a ele?
Charles chacoalhou a cabeça. Quando nervosa, Olivia falava
demais. Naquele momento ela estava nervosa, curiosa e ainda
excitada. Acabara de descobrir um prazer físico que talvez nunca
mais sentisse e não queria encerrar o contato entre eles.
— Pênis?
— Céus, parece tão vulgar!
Ele deu uma gargalhada alta e logo abafou-a com um
travesseiro. Apenas a família dormia naquele andar, mas não seria
bom para nenhum dos dois que Annabelle ou Margaret os flagrasse
tendo aquelas intimidades.
— É o nome mais adequado para “ele”.
— Então o seu pênis… — A palavra soou estranha na boca de
Olivia. Pecaminosa. — Por que está assim?
— É como ele fica quando deseja uma mulher. Achei que já
tivéssemos estabelecido que eu a desejo.
— Mesmo depois de ter essa mulher?
— Livvy, não sei o que você acha que aconteceu entre nós,
então me permita explicar. Meu pênis — Charles apontou para a
própria virilha — não chegou nem perto de onde ele gostaria de
estar, que é aqui — a mão dele vagou para o meio das pernas dela.
— Por isso ele continua assim e continuará enquanto você estiver
linda, nua e perfeita na minha frente.
Por Deus, ele era muito indecente! Olivia nunca ouvira palavras
tão grosseiras e tão incríveis. Nos livros proibidos a narrativa era
mais floreada, mais polida. Por um instante, ela se sentiu uma
mulher poderosa, capaz de mover montanhas e vencer uma guerra
sozinha apenas por ser capaz de provocar aquela reação no corpo
de um homem como Charles. Ela estava perdida, devassada e
ainda mais curiosa.
— Posso vê-lo?
Outra risada e, daquela vez, Charles não a abafou.
— Essa é uma ideia horrível.
— Você me viu inteiramente nua. — E ela percebeu que
continuava despida. Toda a vergonha e o decoro a abandonaram.
Estavam mortos em uma sarjeta qualquer. Esquecidos do lado de
fora daquele quarto. — Parece justo que eu o veja também.
— Se houvesse justiça nesta situação, eu estaria dentro de você
neste exato momento. — Mais obscenidades. Olivia estava ficando
cada vez mais excitada com toda aquela imoralidade, mas Charles
estava impassível. Os olhos escuros e luxuriosos a devoravam, mas
ele não movia nenhum músculo para tocá-la. — Se quiser vê-lo, vá
em frente.
Vá em frente. Ela se sentou sobre as pernas e o encarou. Um
único sinal, um sorriso de canto de boca, fê-la levar as duas mãos
até os botões e terminar de abri-los. O pênis — e ela nunca
conseguiria chamá-lo daquilo em nenhuma outra ocasião — saltou
para fora das calças assim que encontrou oportunidade. Enorme,
grosso e incisivo. Quase uma entidade. E parecia apontar para o
que queria.
Olivia não sabia o que estava fazendo e não conseguiu evitar
tocá-lo. Os dedos acariciaram de leve a ponta lustrosa e espalharam
por ali uma substância gelatinosa e morna que ela não sabia de
onde vinha. Charles soltou um gemido rouco e fechou os olhos.
— Desculpe-me. — Ela puxou a mão de volta. — Não queria
machucá-lo.
— Não me machucou. Muito pelo contrário. Mas garanto que
você poderá me matar se fizer isso outra vez.
Ela estava se sentindo especialmente poderosa naquela noite.
Invencível. Então desafiou-o e repetiu o gesto, daquela vez
deslizando os dedos até a base. O gemido veio mais longo. Olivia
concentrou-se na tarefa de examinar e acariciá-lo enquanto
imaginava como ele caberia dentro de uma mulher.
Não caberia, era a conclusão mais lógica.
— Você não poderia estar dentro de mim porque ele é grande
demais?
A pergunta saiu sem que ela conseguisse controlar as palavras.
O que ela tinha bebido para falar tantas indecências de uma só vez?
Sempre fora bastante desinibida com Charles, mas havia limites que
uma mulher não ultrapassava com um homem, não importava o
quão amigos fossem. Para onde tinham ido os limites?
— Ele cabe perfeitamente onde precisa caber. — Charles
segurou a mão dela e a afastou. — Mas não tenho o direito de
clamar a sua virgindade. Ela pertence a quem você quiser entregá-
la.
— Ao meu marido, claro.
— Não. — A mão dele segurou seu queixo e o ergueu, fazendo-
a encará-lo. — Ao homem que você quiser entregá-la. A escolha é
sua, deve ser sua.
— Mas os homens não exigem se casar com mulheres virgens?
— Alguns, sim. Os que valem a pena não ligam tanto para esse
detalhe.
— Greystone?
— Nem ele, nem nenhum dos homens com quem me relaciono
reduzem uma dama à sua barreira. — Charles levantou-se. — Volte
para seu quarto, Olivia. Você precisa sair daqui antes que seja tarde
demais.
Capítulo décimo sétimo

F
. Já era madrugada. Olivia nunca se sentira tão
bem — revigorada como se tivesse dormido por uma semana
inteira, ao mesmo tempo exausta como se tivesse realizado
exercícios físicos intensos. Suas pernas estavam ainda bambas
quando ela cruzou a escuridão do corredor até seu quarto. Fechou a
porta atrás de si e ouviu seu próprio coração ribombar no peito.
O que acabara de fazer? Os Eckleys sempre tiveram um efeito
estranho sobre ela, desinibindo-a e permitindo-a fazer o que
quisesse, mas ela nunca imaginou que chegasse ao ponto de fazer
amor com um deles. Com Charles. Céus, ela tinha mesmo feito
amor com Charles Eckley?
Seus pensamentos estavam baralhados e anuviados pelas
sensações que ainda reverberavam por seu corpo. Teve o ímpeto de
lavar-se, mas desistiu. Queria mantê-las mais um pouco. Jogou-se
na cama, agarrou seu caderninho e começou a rabiscá-lo. Escreveu
páginas e mais páginas relatando os eventos da noite quase tão
bem quanto nos livros proibidos. Não, ela os descreveu com mais
detalhes. Os livros de Annabelle não lhe permitiram vislumbrar com
tanta clareza o quanto aquele momento era íntimo, intenso e
libertador. Usou palavras lascivas, minuciou tudo que seus olhos
viram e que seus membros sentiram. Nunca mais teria coragem de
ler aquelas obscenidades, porém, precisava registrá-las.
E se acordasse e fosse tudo um sonho? O delírio de uma mente
inquieta. A farsa de fingir que era cortejada por Charles, a
insistência de Esther e os comentários que sugeriam que ela nutria
sentimentos românticos por seu melhor amigo estavam-na fazendo
ter sonhos pervertidos. Enfiou o caderno dentro da gaveta de sua
mesinha de cabeceira e se enfiou debaixo das cobertas. Continuou
pensando em todos os beijos da noite até ser arrebatada pelo sono.
Acordou por volta de dez e meia da manhã. Olivia nunca
acordava tarde e ela tinha dezenas de convidados para cuidar.
Pulou da cama assustada quando Bridget começou a abrir as
cortinas e o sol quase a cegou.
Sol.
— Parou de chover!
— Sim, milady. O dia amanheceu muito bonito e claro.
Olivia olhou-se no espelho e procurou as evidências da boca de
Charles por todo o seu corpo. Não havia nenhuma. Ele sabia
mesmo o que dizia — era impossível que percebessem o que
fizeram. Exceto que ela sabia e nada mais seria o mesmo depois da
noite passada.
— Bridget, meus convidados já acordaram?
— Quase todos. O Duque de Shaftesbury continua em seus
aposentos.
— E o Sr. Eckley?
Seu coração disparou. Será que falar nele revelaria a inquietude
em seu peito?
— Ele está com os homens reparando a estada, milady. — A
camareira suspirou. — Ninguém esperava que um homem daquele
fizesse trabalho braçal, mas tanto ele quanto Lorde Isaac McFadden
pegaram pás e enxadas e foram ajudar os criados.
Ela esperava que Charles se enfiasse em lama e mato para
fazer qualquer coisa. Depois de vê-lo no resgate dos sobreviventes
do desabamento, Olivia imaginava que ele estaria comandando a
operação de recuperação da estrada. Pelo que ela se lembrava de
Rhode Port, sabia que Isaac McFadden também era um homem
acostumado a trabalhar. Foi exatamente isso que seduziu a antes
fútil Caroline.
A notícia a tranquilizou. Todos estavam acordados e bem, havia
sol e as estradas estavam sendo restauradas. Talvez pudessem
voltar a Londres dentro da programação. Olivia dispensou a
camareira e fechou-se no quarto de banho — não queria que
ninguém a visse despida. Mergulhou na banheira com água morna e
permaneceu ali por intermináveis minutos. Fechou os olhos.
Esfregou-se com a esponja. Lavou os cabelos. Nada adiantou para
afastar o pensamento em Charles. Ela o via, sentia seu cheiro, ouvia
sua risada.
Vestiu-se e desceu — precisava arrumar algo para se distrair.
Esperava que alguns jogos com as mulheres, ou um passeio pela
propriedade fossem opções possíveis. Encontrou o brunch sendo
servido no jardim de sua mãe e agradeceu porque a Sra. Bowes
compreendia suas listas. Se fizesse sol, o desjejum deveria ser
servido ao ar livre. Se não fizesse sol, no salão de refeições.
— Oras, parece-me que alguém teve uma noite atribulada —
Agatha McFadden disse ao vê-la chegar.
— Bom dia, miladies. Senhoras. — Ela fez uma reverência para
provocá-las. — Tive dificuldade de dormir. Preocupava-me que a
chuva não cessasse nunca.
— Ah, preocupou-me também. — A esposa do Visconde Whitby
limpou a boca depois de morder um bolinho de creme. — Miles tem
assuntos de trabalho e ele fica especialmente irritante quando não
cumpre sua agenda.
Olivia compreendia o sentimento. Ela já estava agonizando pelos
problemas com a programação.
— E sua agenda de hoje, Livvy? — Annabelle inquiriu. —
Teremos um passeio até a vila? Cavalgada no bosque?
— Seria uma cavalgada. — Olivia serviu-se de torradas, ovos,
presunto e bolinhos. Sentia um espaço vazio crescendo em si e
precisava preenchê-lo com comida. — Mas o bosque estará com
muita lama e isso pode afetar os cavalos. Melhor se fizermos um
passeio até a vila. Vocês gostariam de fazer compras no incrível
comércio local?
Ela riu e foi seguida pelas damas que prestavam atenção nela.
Não havia nada de especial no comércio da vila, porém mulheres
adoravam qualquer pretexto para comprar novos acessórios.
— Estou precisando de um chapéu — Caroline, que não usava
chapéus, decidiu.
— E eu quero uma sombrinha nova. — Esther se levantou. — Se
me dão licença, vou trocar minhas sapatilhas por botas de
caminhada.
O programa feminino viria em ótima hora. Por mais que seu
corpo reivindicasse mais contato com Charles e sua mente não
conseguisse parar de pensar nele, Olivia precisava se controlar. Não
havia forma melhor de garantir aquele controle se não o visse
durante boa parte do dia. Até o almoço, pelo menos, ela estava
salva.

Quebrar pedras e mover grande quantidade de terra de um lado


para o outro manteria Charles ocupado tempo o suficiente para que
ele não sucumbisse à tentação de tomar Olivia em seus braços na
frente de todo mundo e causar o escândalo que pretendera evitar
por toda a sua vida. Ser útil e prestativo era apenas a razão
subsidiária por trás de sua participação na restauração da estrada
que ligava a propriedade até a ferrovia.
Enquanto estava ali, entre homens comuns que falavam sobre
assuntos ordinários, ele se sentiu bem melhor. Não precisava fingir
uma plenitude de espírito que não possuía nem os modos que não
aprendera. Também não precisava vestir uma camisa, o que foi
libertador. Mesmo que o sol estivesse muito quente, preferia a
liberdade do vento batendo em sua pele do que o incômodo de uma
roupa de linho que pinicava.
Talvez tenha sido por isso que ele não retornou para a casa nem
na hora do almoço — preferiu comer com os empregados e outros
homens da vila que foram chamados para ajudar. Sabia que isso
não ajudaria sua causa com o indiano e percebeu que não estava
se dedicando ao contrato como deveria. Não, ele não estava nem
mesmo se importando com o contrato. Cada fibra do seu ser
pensava em Olivia, desejava Olivia e fantasiava situações em que
ela se entregaria a ele sem restrições.
Como era estúpido! Terminaria aquele final de semana
fracassando nas duas coisas mais importantes de sua vida, o
trabalho incluso.
— Teremos que encerrar por hoje — Donaldson, um dos
empregados, decidiu. Ele era o organizador daquela operação e
Charles preferiu não se utilizar de sua posição de administrador
para desestabilizar a liderança entre os homens. — Já está
escurecendo e falta bem pouco para deixarmos a estrada
transitável.
— Milady esperava que os convidados pudessem retornar para
Londres amanhã cedo. — Keating, outro empregado, apoiou-se em
uma pá e limpou o suor da testa com a mão encardida.
— Há um trem saindo ao meio-dia — Isaac McFadden ponderou.
— Creio que ninguém se importará em passar uma manhã extra em
Hampshire.
Os empregados assentiram, recolheram as ferramentas e
retornaram exaustos para suas casas. Ele não estava exausto,
apenas inquieto. Pretendia fatigar o corpo para que ele parasse de
tomar as decisões no lugar de sua cabeça, que se recusava a
pensar. Falhou. Mesmo moído de tanto trabalho e sentindo os
músculos arrebentados, ele ainda a queria como nada no mundo.
Ao chegar à casa principal, seu maior anseio era por um banho e
pelo aconchego de seus braços.
O que estava à sua disposição, no entanto, era uma cena
nauseante. No salão principal estavam reunidos os solteiros e eles
se aventuravam por um jogo bastante impróprio: o jogo da verdade.
Charles costumava usá-lo como desculpa para beijar jovens damas,
mas pensou que as pessoas naquela sala fossem maduras o
suficiente para evitar o tipo de brincadeira que causava ruínas e
alimentava as colunas de fofoca. Onde estariam os convidados
casados? Por que diabos decidiram deixar um grupo de mulheres e
homens solteiros sozinhos em um salão — aberto, claro — em um
entretenimento que poderia acabar com todas as reputações
presentes?
E por que raios ele se importava com a reputação alheia?
Espiando pela janela, Charles pôde ver que Greystone estava na
posição oposta a Olivia. Aquela era a melhor posição para um
confronto direto no jogo e, caso eles se enfrentassem, o maldito
sempre escolheria não dizer a verdade para ser punido.
Não, ele não podia continuar vendo aquilo. Entrou pelos fundos e
o cão Fedorento começou a latir ao vê-lo. Não conseguiu livrar-se
do animal, que o perseguiu por toda a casa até invadir seu quarto e
acomodar-se em sua cama.
— Você podia decidir implicar com aquele duque almofadinha. —
Charles reclamou enquanto despia-se das vestes encardidas. —
Veja se não enche a minha cama de pelos.
Fedorento latiu e aninhou-se nos travesseiros. Ele odiava aquele
cão. Encheu a banheira e transformou a água em lama tão logo
entrou. A espuma estava marrom e ele precisou trocar a água duas
vezes até poder mergulhar no banho e relaxar por míseros minutos.
O relógio badalou sete horas e Charles sabia que não devia atrasar-
se para o jantar. Já passara tempo demais se escondendo a céu
aberto, precisava participar do evento que estava acontecendo por
sua causa.
Vestiu-se e descobriu que também odiava gravatas. Coletes
também o irritavam. Era provável que o ódio por roupas e animais
feiosos nada tivesse a ver com aquelas coisas, mas com seus
sentimentos perturbados. Desceu as escadas com os cabelos mal
penteados e ainda muito úmidos e descobriu que as perturbações
estavam só começando.
— Onde estão todos? — perguntou a Hawkes, que andava para
lá e para cá como se estivesse também confuso.
— Muitos dos convidados decidiram jantar em seus quartos,
senhor. Aparentemente o dia foi de muitas atividades externas e
alguns tiveram sinais de insolação pelo calor.
Ou estavam querendo mais momentos a sós com suas
mulheres. Charles não era capaz de criticá-los.
— E o jantar está sendo servido no salão de refeições?
— Não. Milady orientou que devêssemos servi-lo no salão
principal. Os mais jovens estão se divertindo muito com jogos e
brincadeiras, se o senhor me entende.
Ele entendia. Charles foi até o salão principal e encontrou um
cenário de extrema alegria — e quase ficou enjoado. O casal Gupta
estava ali, apenas observando uma espécie de dança das cadeiras
coordenada por Margaret e Saira. A jovem Gupta deu-se muito bem
com a subversiva Maggie, o que talvez pudesse depor a seu favor
em algum momento.
— Ora vejam quem decidiu aparecer! — Stafford provocou.
Sempre era provocação. — Pensei que tinha retornado para
Londres sem se despedir, Eckley.
— A estrada ainda não está pronta e não sou mal-educado como
alguns de vocês, Stafford. O que fazem?
— É uma espécie de jogo, creio — Greystone respondeu. —
Porém imagino que esteja velho demais para compreender as
complexas regras de Lady Margaret.
A menina deu uma risadinha e suspirou. Charles estalou os
dedos e os fechou em punhos. Ela só tem dezessete anos, nem
pense em aproximar-se dela ou eu o mato. Olivia levantou-se e veio
até ele. Ao perceber que se aproximava demais, freou seu ímpeto e
cruzou as mãos à frente do corpo.
— Você deve estar faminto. — Estendeu a mão para que
Charles a segurasse. O que ela pretendia? — Venha, vamos
preparar algo para comer.
Ela não usava luvas. Tudo naquela noite parecia atentar contra o
decoro, o que deveria deixá-lo em êxtase. A presença de Greystone
ali colocava-o em constante estado de competição. Charles
segurou-lhe a mão e a seguiu até a mesa onde serviram a refeição.
Sem perguntar o que ele desejava comer, Olivia começou a
preparar um sanduíche com carne de cordeiro e muito molho.
Entregou o prato e serviu uma taça de vinho tinto, indicando que
deveria se sentar para comer.
Por um instante, ele sentiu-se em uma dimensão alternativa.
Aquele não parecia o mesmo mundo que deixara de manhã quando
se juntou aos empregados. O casal Gupta demonstrava afeto
público. Daniel participava das brincadeiras e homens e mulheres
solteiros interagiam além do que lhes permitiam as regras sociais.
Parecia uma dimensão bem melhor, então ele decidiu aproveitar.
O que de ruim poderia acontecer?

Olivia estava cansada de entreter as pessoas. Nunca pensou que


fosse tão difícil agir com propriedade absoluta durante tanto tempo.
Estava quase entendendo quem desistia das regras de decoro para
viver livremente, mas não pretendia desistir. Ainda.
Quando viu Charles chegar ao salão, o alívio a atingiu como se
tivesse forma e matéria e pesasse duas toneladas. Ela foi elevada e
esmagada pela sensação de desopressão que a fez voltar a respirar
em bastante tempo. Quis ir até ele a cada hora do dia, mas decidiu
dar-lhe espaço. Ela também precisava de um tempo para pensar em
tudo que representou a noite anterior, em tudo que a estava
chacoalhando por dentro. Em escolhas e decisões que em algum
momento teria que tomar.
Mas o seu melhor amigo, o homem que a estava
desencaminhando, mantinha uma expressão soturna que
combinava com ele, mas não a permitia aproximar-se. Decidiu que
poderiam conversar mais tarde. Decidiu não ir até o quarto dele
nunca mais, mas precisavam conversar em algum momento. E a
sós.
— Senhores e senhoritas, vamos nos recolher. — Bharat Gupta
se levantou com a esposa segurando seu braço. — Continuarei
minha leitura no quarto. Lorde Shaftesbury me prometeu levar até
sua propriedade amanhã cedo e imagino que o duque queira sair
logo após o raiar do sol.
— Crystal Place é próxima — Charles ponderou. — Se me
permitem, irei com vocês para poder cavalgar um pouco.
— Sua companhia será muito bem-vinda, Sr. Eckley. Tenha uma
boa noite.
A ausência do casal Gupta foi como se todos os adultos saíssem
e deixassem a casa aos cuidados de jovens inconsequentes. O
consumo de álcool entre os homens aumentou e as mulheres
decidiram por jogar aquele estranho jogo da verdade mais uma vez.
Olivia suspeitou que o objetivo de Esther White ao insistir naquela
brincadeira fosse porque ela queria algo do Barão Stafford.
Bem, ele era solteiro, bonito e jovem. Tinha todos os dentes na
boca, um título e uma situação financeira estável. Lembrou-se de ter
enumerado aquelas mesmas características dias atrás, informando
a Charles o que fazia de um homem um bom partido.
Havia apenas um problema: Olivia não queria brincar. Queria
sentar-se ao lado de Charles e conversar com ele. Perguntar sobre
o dia. Saber novidades sobre a estrada. Não aguentava mais o
assunto desinteressante dos nobres solteiros, que insistiam em falar
de suas próprias qualidades e ignorar que elas tinham um cérebro.
E, exceto Annabelle, todas as damas pareciam dispostas a fingir
imbecilidade apenas para serem admiradas por homens que não as
viam como seres pensantes.
Teria ela sempre se incomodado com aquilo?
— Lady Esther, a senhorita está burlando as regras! — Stafford
disse, fingindo ralhar com ela. — É a segunda vez que essa garrafa
aponta para mim.
— Milorde, não é possível que uma lady como eu burle qualquer
coisa. — Esther piscou várias vezes em uma demonstração pífia de
ingenuidade. — A garrafa parece adorá-lo.
— Terei que escolher a punição, dessa vez. Se continuar
revelando verdades a meu respeito, Greystone terá munição para
zombar de mim pelo resto de nossas vidas.
— Milorde é tão misterioso! — Ela piscou mais. — Qual punição
ele deve receber?
— Dez minutos trancado na adega! — Mary Price vibrou.
— E desde quando trancar um homem em uma adega é
punição? — Greystone reclamou. — Meia hora trancado no
vestíbulo.
— Meia hora? — O barão passou os dedos pelos cabelos. —
Você me pagará por isso, Greystone.
O duque sorriu e indicou para onde Stafford deveria se dirigir.
Claro que a punição tinha um objetivo chocante: isolar o barão para
que a dama que se interessasse por ele fosse encontrá-lo na
escuridão de um quarto trancado. Sem luzes e sem pudores. Todos
fingiriam não ver o que viram e as reputações seriam mantidas
incólumes como se nada indecente tivesse acontecido.
Não era a primeira vez que brincava daquilo, mas Olivia nunca
escolhia a punição. Que as outras damas arriscassem suas ruínas,
ela nunca esteve disposta a isso. Chegou sua vez de girar a garrafa
e Esther White precisou atender a um misterioso chamado da
natureza. Não houve comentários. Saira e Margaret trocaram
risinhos cúmplices. Seu olhar capturou o de Charles, que os
observava com o maxilar travado. Se ele fosse tão forte como ela
acreditava, quebraria um dente.
A garrafa apontou para o Duque de Greystone. As mãos de
Charles se fecharam em punhos e seu corpo se ergueu como se
suas costas pudessem cobri-los com a escuridão da noite. Não
havia ninguém mais percebendo que ele estava prestes a pular
sobre o duque e dizimá-lo?
— Creio que também terei que escolher a punição. — Greystone
virou um gole de seu uísque. — Já bebi demais para ser capaz de
revelar uma verdade sem contar segredos horríveis.
— Ah, duvido que milorde tenha qualquer segredo horrível —
Mary Price provocou. — Está dizendo isso para que também o
achemos um homem misterioso.
O duque sorriu. Ele era incrivelmente bonito e sedutor, mas
Olivia só conseguia olhar por através dele.
— Ainda assim, escolho a punição. O que devo fazer?
— Milorde deve ir até o estábulo e retornar — Margaret disparou.
— Sem suas botas.
Ela e Saira Gupta começaram a rir. Greystone ampliou o sorriso
e encarou Olivia enquanto começava a tirar as botas. Charles se
levantou e, como um tornado, saiu do salão.
— Levarei pelo menos vinte minutos para chegar até lá. — O
duque indicou. — Esperem por mim.
Tão logo ele saiu, restaram apenas as damas. Mary olhou para
Olivia e se levantou, indo na direção da mesa de comida. Ela fingia
servir-se de alguma coisa para poder olhar para fora. Seu interesse
no duque era óbvio, mesmo que não houvesse nenhuma disputa por
sua atenção. Olivia também se levantou. Apesar do risco de ser mal
interpretada, ela precisava achar Charles. Precisava aproveitar a
oportunidade criada por aquela brincadeira imoral para vê-lo, para
falar com ele. Não que ela soubesse o que dizer, mas precisava
dizer qualquer coisa.
O problema: ela não sabia onde ele estava. Subiu às pressas
para o segundo andar, mas o que encontrou em seu quarto foi o cão
Fedorento dormindo sobre os travesseiros. O animalzinho virou de
barriga para cima ao vê-la. Não havia sinal de que Charles estivesse
por ali, então ela desceu outra vez e foi até o lugar onde ele
costumava gostar de se refugiar: a cozinha.
Não o encontrou. Parou no meio do cômodo com as duas mãos
na cintura e os olhos esquadrinhando cada pedacinho escuro da
cozinha quando sentiu duas mãos que a seguravam. Soltou um
suspiro de desafogo que logo virou uma interjeição de susto — as
mãos não eram de Charles, mas do Duque de Greystone.
— Eu sabia que você viria.
Ele a virou para si e a pressionou contra seu peito. Olivia o
empurrou com as duas mãos e se afastou.
— Milorde enlouqueceu? Não pode me tocar dessa forma.
— Calma, Lady Olivia. — O duque estendeu os braços e se
manteve a alguns passos de distância. — Não me importo que
goste de manter a personagem. Adoro jogos sensuais.
— Jogos?
— Ora, milady veio até mim…
— Eu não vim até… céus, isso é uma grande confusão! Eu vim
aqui…
O duque encerrou a distância entre eles e a puxou outra vez. Os
corpos se chocaram e Olivia quis bater naquele homem abusado
que tinha a ousadia de achar que podia agarrá-la daquela forma
imprópria. Levou a mão para trás para agarrar uma das panelas que
ficavam penduradas por sobre a ilha central quando foi novamente
puxada — daquela vez para longe de Greystone.
Suas costas se chocaram com o peito de Charles antes que ela
conseguisse pegar uma frigideira de cobre. Ele nada disse, apenas
avançou contra o duque e o jogou no chão. Alguns utensílios caíram
e fizeram barulho.
— Você está louco, Eckley? Vai atrair a atenção da casa inteira.
— Você pode ter certeza de que nunca me viu louco. Verá, se
ousar tocar em Olivia outra vez.
O duque se levantou e ajeitou o casaco.
— Pensa que é dono da dama, Eckley? Por acaso fez o pedido,
decidiu encerrar sua vida de solteiro para estabelecer-se com ela?
Ah, você já dispensou Daisy Campbell?
Olivia quis perguntar quem era Daisy, mas o punho de Charles
atingiu o nariz de Greystone e a noite esquisita transformou-se em
caos completo. Os dois homens se engalfinharam, rolando pelo
chão enquanto distribuíam socos um no outro.
— Vocês dois, parem com isso! — Ela acendeu duas lamparinas.
O mordomo apareceu na cozinha, enrolado em um roupão. —
Hawkes, faça alguma coisa!
— Er, milady, eles são grandes demais! Se eu interferir, talvez
acabe morto!
— Então busque homens grandes!
O mordomo voltou por onde veio. Olivia tentou puxar Charles
pelas costas, mas ele continuava esmurrando Greystone, que
também o atingia com golpes vigorosos. As mulheres que estavam
no salão vieram ver o que estava havendo. Stafford e Esther White
deixaram o esconderijo e o barão tentou se intrometer na contenda.
Dois empregados chegaram com Hawkes e quatro homens foram
necessários para separar os brigões.
Havia sangue e roupas rasgadas por todo lado. Mãos feridas,
olhos inchados, cortes na testa, lábios partidos — como se eles
tivessem saído de uma luta de boxe em que ambos perderam. Aos
ser afastado de Greystone, Charles debateu-se e se soltou dos
braços de um dos criados que o segurava. Olhou ao redor e, sem
falar nada ou responder qualquer pergunta que estivesse no ar,
marchou para fora da casa.
Capítulo décimo oitavo

V ?
Sim, ele estava. Completamente fora de si. À menor sugestão de
que Olivia poderia participar daquela brincadeira com Greystone,
Charles sentiu vontade de socar algo. Deixou o salão para evitar a
tentação, mas foi ludibriado pelo destino ao ouvir os resmungos dela
vindos da cozinha.
Mas aquela cena de horror em que ele arrebentou a face do
duque janota e também sofreu com os punhos firmes de Greystone
seria a sua ruína. Não apenas seus sentimentos estavam expostos,
também estavam suas feridas. Sua reputação nunca se recuperaria
das sucessivas falhas de comportamento. Com a cabeça quente e
sabendo que não seria capaz de se controlar caso continuasse ali,
Charles disparou rumo aos estábulos.
— Charles.
A voz dela quase o fez tropeçar e cair. Olivia tinha um efeito
peculiar sobre ele: bastava que ela o chamasse para que ele
paralisasse e não conseguisse seguir para longe dela. Seus
músculos travaram no mesmo lugar e ele se virou para vê-la
correndo em sua direção.
— Volte para dentro, Olivia.
— Não, eu não vou voltar. O que deu em você? Por que saltou
sobre Greystone e quase o matou?
— Por quê? — Ele passou os dedos ensanguentados pelos
cabelos. — Então você queria que ele a beijasse ali, no meio da
cozinha?
— Claro que não, eu disse isso a ele. Creio que o duque tenha
compreendido mal minhas intenções. Mas não era preciso agir
como um animal furioso, eu teria me soltado e explicado tudo.
— Eu agi como um animal furioso porque eu sou um, Livvy.
Tantos anos convivendo comigo e ainda não entendeu que sou
assim? Impulsivo, bruto, quase rude. Sou tudo que um nobre com
título importante não é.
Ela se aproximou, forçando-o a dar um passo para trás. Estava
imundo, não podia tocá-la daquele jeito. Charles já maculara demais
aquela mulher para manchá-la com sangue.
— Eu o conheço bem, e o Charles que se diz bruto, rude e
impulsivo não bateria em um amigo por nada. Não aconteceu nada,
eu não permitiria que acontecesse. Veja seu rosto… vamos entrar.
— Não. Se eu voltar para lá, vou terminar o serviço que comecei.
Só ficarei satisfeito quando aquele sorriso cínico de Greystone
estiver do outro lado de sua cabeça.
— Céus, você realmente enlouqueceu! O que ele fez para que
perdesse a cabeça?
— Ele ousou tocá-la. Eu o avisei que não fizesse isso.
— E por que o duque não poderia me tocar? Isso não deveria
dizer respeito apenas a mim? Vocês, homens, acham que…
— Porque você é minha! — ele disparou e a fez arregalar os
olhos de surpresa. — Você é minha e nenhum outro tem o direito de
tocá-la como eu toquei.
Algumas luzes acenderam no terceiro andar. Havia outras
acesas no primeiro. Eles estavam causando uma cena e não havia
mais volta. Olivia piscou várias vezes e passou as mãos pelos
braços depois de um sopro de vento frio. Ao invés de sair correndo,
ela deu mais dois passos na sua direção.
— Eu sou sua.
— Minha. Absolutamente minha, Olivia Trentham.
Ela sorriu. Não foi um sorriso amplo ou alegre, foi mais uma
demonstração diabólica de quem se preparava para executar um
plano. Com mais alguns passos ela se aproximou por completo e
acariciou sua face ferida com as costas das mãos.
— Dói?
— Agora, não.
— Doerá se eu beijar você?
Por Cristo, não.
Charles balançou a cabeça para os lados. O sorriso dela
aumentou. Olivia deslizou o corpo pelo dele, ficou na ponta dos pés
e roçou-lhe a boca com lábios macios.

Em um instante ele estava sujo, ensanguentado e preocupado com


a reputação de Olivia Trentham. No instante seguinte, estava com
ela em seus braços, beijando-a como se ninguém estivesse olhando
para eles.
Mas estavam. Charles não tinha certeza, mas apostaria todas as
suas fichas que olhos julgadores estavam observando-os e que ele
não teria outra atitude a tomar depois daquele beijo: seria obrigado
a casar-se com Olivia. Céus! O simples cogitar já chacoalhou suas
entranhas e o fez aprofundar o beijo, devorá-la com língua e lábios e
puxá-la para tão perto que teve medo de quebrá-la. Ela seria dele.
Somente dele. Para sempre.
Ignorando a plateia silenciosa, Charles a segurou nos braços e
começou a andar.
— O que você está fazendo? — ela perguntou, mas ele não
estava disposto a parar de beijá-la para responder. — Charles, para
onde vamos?
— Confie em mim.
Talvez ele não conseguisse chegar ao destino, mas morreria
tentando. Não podia voltar com Olivia para a casa, não queria expô-
la à vergonha às onze da noite. Também não a deixaria sozinha em
seu quarto — ele seria incapaz de afastar-se dela. Restavam-lhes
poucas opções e ele ficou grato por ter passado o dia com os
empregados para descobrir a existência daquela cabana.
A pequena construção ficava encoberta pelas árvores do bosque
e não era visível da casa principal. Era usada como cabana de caça
pelo falecido Conde de Salisbury e mantida sempre organizada e
limpa, mesmo depois de sua morte. Os criados acreditavam que
honravam a memória do patrão de quem muito gostavam. Ele
esperava encontrar madeira para o fogo e uma cama macia para
passarem a noite. Aquilo seria suficiente.
Em algum momento durante a caminhada, as bocas se
afastaram e Olivia recostou a cabeça em seu ombro. Esperava que
ela ainda não estivesse arrependida de ter-se envolvido com ele,
porque não tinha mais volta. Charles sabia que ela não o amava e
que ficaria muito aborrecida por saber que perderia o direito à
herança do pai, mas ele poderia comprar-lhe outros bens. Poderia
enchê-la de presentes, dar a ela acesso ilimitado aos seus fundos
para que ela mesma comprasse o que quisesse. E garantiria que o
Projeto Whitechapel se realizasse.
— Chegamos.
Charles abriu a porta empurrando-a com o pé. Olivia ergueu a
cabeça e olhou ao redor, demonstrando que ela talvez se lembrasse
do lugar onde estavam.
— É a cabana de caça de papai?
Ele balançou a cabeça e a colocou no chão. Seu corpo
começava a sentir os sinais da exaustão e a dor das lacerações
causadas por Greystone estava excruciante.
— Acenderei a lareira. Você poderia ver se tem água para que
eu lave meu rosto?
— Por que estamos aqui? — ela perguntou antes de decidir se o
atenderia.
— Porque eu causei um escândalo na frente de todos os
convidados em Sumerwood Hill e teremos que suportar as
consequências dele. — Charles ajoelhou-se à frente da lareira e
colocou lenha empilhada para tentar fazer algum fogo. Sua visão
estava embaçada e ele via alguns pontos escuros que certamente
nada tinham a ver com a pouca luz do ambiente. — Não queria que
você fosse admoestada pelo que aconteceu.
— Acha que nos viram?
— Viram e ouviram. Creio que não há outra saída, Livvy.
Amanhã teremos que anunciar nosso casamento.
Uma orquestra inteira tocava dentro dele por aquela
possibilidade. Ao mesmo tempo, Charles não queria que isso
acontecesse. Não daquela forma, porque ela seria obrigada a
aceitá-lo. Ele queria fazê-la feliz — para isso, ela deveria ter o direito
de escolher o marido, não ser forçada a assumir aquele que a
arruinou.
— Entendo.
A voz dela ficou mais baixa, indicando que se afastara. Ele
acendeu o fogo e permaneceu ali, encarando o calor alaranjado que
crepitava e lentamente ia envolvendo toda a lenha. Sangue pingou
por sobre sua calça e o fez levar a mão até a face para descobrir
que havia um corte sobre sua sobrancelha. Maldito fosse Greystone!
Seu corpo amoleceu como a madeira incandescente e Charles
mal percebeu quando colapsou sobre o tapete. Mãos femininas o
ampararam e evitaram que batesse de cabeça em algum lugar.
— Você precisa descansar. Há quanto tempo não come nada?
— Eu almocei.
— Por Cristo, Charlie! — Olivia o puxou para cima, tentando
fazê-lo se erguer. As pernas não obedeciam a seu comando.
Precisou se concentrar e empenhar toda a força que lhe restava
para segui-la até a cama. — Terei que voltar à casa para buscar
algo.
Não. Ele balançou a cabeça, sentindo-a quase desprender-se do
corpo, e desabou sobre um travesseiro. Macio. Charles sentiu
quando o colchão afundou ao seu lado e o frescor de água limpa
escorreu por sua face.
— Estou apenas exausto. Você não vai a lugar algum, eu a
trouxe aqui para protegê-la.
Os dedos de Olivia começaram a trabalhar em suas roupas,
abrindo os botões da camisa que vestia. Ela subiu por cima dele,
colocando o joelho perto demais de suas partes íntimas e fazendo-o
estremecer.
— E pretendia proteger-me arruinando-me em definitivo?
Ela passou o pano limpo por seu pescoço e peito, limpando
todos os rastros de sangue e sujeira que estavam ali. Talvez ele
terminasse com um olho roxo e algumas escoriações, mas não era
nada que Charles já não tivesse experimentado antes. Ele ergueu
os braços e acariciou-a nos ombros, envolvendo-lhe o pescoço com
as mãos. Olivia fechou os olhos. Ela continuava por sobre ele, com
uma de suas pernas entre os joelhos, com o corpo dobrado e os
cabelos desfeitos pendendo na sua direção. Era uma posição
erótica.
Erguendo as costas, ele a empurrou para trás e a beijou. Uma
dor aguda como a pontada de uma espada quase o fez recuar, mas
não havia sofrimento maior do que ficar mais um segundo sem
beijá-la. Olivia deixou cair o pano e o enlaçou pelo pescoço,
acomodando-se em seu colo. Devagar, Charles recostou-se na
cabeceira e a ajeitou sobre si, fazendo com que os quadris se
encaixassem com perfeição.
— Eu não entendo por que dizem isso. — A fricção do corpo
dela fez com que ele abafasse um gemido. — Arruinar. A última
coisa que eu faria no mundo seria degradá-la de qualquer forma. —
Ele acariciou-a nos cabelos. Olivia o fitava com uma ternura que ele
ainda não vira naqueles olhos castanhos.
Ela retribuiu o gesto e também o acariciou nos cabelos. Passou
os dedos pelos contornos da face como seu irmão Robert fazia para
vê-lo. Resvalou o polegar pelo ferimento no supercílio, depois pelo
lábio partido. Depositou um beijo ali e voltou a observá-lo. Ele
estava fora de si, mas não interromperia aquela breve exploração.
— Vamos mesmo nos casar?
— Precisamos. Sinto muito. Sei que não era isso que queria, sei
que isso contraria os desejos de última vontade de seu pai e não
queria manchar a memória dele, mas…
— Charlie. — Olivia o silenciou com outro beijo breve. — Papai
adorava você. Ele era um conde, claro que acreditava que eu
deveria me casar com um nobre titulado. Você sabe que os
casamentos na aristocracia servem ao sangue e à propriedade,
então um duque talvez fosse o ideal de marido que ele tinha. A
herança foi um incentivo a mais, mas nenhum pretendente que eu
escolhesse precisaria dela. Ele jamais me obrigaria a casar se eu
não quisesse. Papai casou por amor. Se eu escolhesse você, ele
entenderia.
O coração dele saltou duas batidas. Não, parou de bater por
completo. O ar ficou aprisionado em seus pulmões enquanto ele
inspirava, lentamente, as palavras que saíam dela. Sorvia cada uma
como um bálsamo para suas feridas — tanto as do corpo quanto as
da alma. Claro que ela não o havia escolhido, mas era satisfatório
ao menos sonhar que sim.
— Não queria que fosse obrigada a nada.
Ela o beijou uma terceira vez.
— Vamos dormir um pouco? Você precisa.
Ele não queria dormir. Queria perder-se nela. Mergulhar tão
fundo naquela mulher que não mais conseguiria encontrar o
caminho para a superfície. Mas ela tinha razão: ele precisava
descansar. Sem esperar uma resposta, Olivia se levantou e o
ajudou a retirar a camisa e os sapatos. Empurrou-o para os
travesseiros e o cobriu com um lençol, mesmo que não estivesse
frio. Depois virou-se de costas e, com habilidade, abriu seu vestido
para retirá-lo. Trajando apenas suas roupas de baixo, ela se deitou
ao lado dele e se cobriu até o pescoço.

Ela não conseguiu dormir. Não conseguiu nem mesmo fechar os


olhos. Seus ouvidos zumbiam. Fazia calor. Olivia quis retirar as
calçolas e ficar só com a chemise, mas não teve coragem. Seu
coração martelava tão forte que talvez fosse ouvido na casa
principal. Encarou o teto por pelo menos meia hora. Não havia
relógio onde estavam e não era possível saber quanto tempo se
passara desde que chegaram àquela cabana e Charles lhe disse
que se casariam.
Eles se casariam.
Era lógico e razoável. Era necessário. Ela gritou com ele no meio
do quintal. Até os cavalos a ouviram dizer coisas que uma mulher
recatada não diz a um homem. Talvez a vila o tivesse ouvido dizer
que ela era dele. Em situações como aquela, só uma atitude salvava
a reputação da dama envolvida: o casamento. Qualquer casamento
servia, mas quem a desposaria depois que Charles Eckley
estabeleceu sua marca sobre ela?
Ela também não queria qualquer um.
Olivia rolou na cama de um lado para o outro. Afastou as
cobertas. Virou-se de lado e encarou as costas dele. Sereno,
Charles estava dormindo há algum tempo. Seu peito subia e descia
em um ritmo cadenciado. Ela resistiu à tentação de tocar-lhe a pele
bronzeada e marcada por algumas cicatrizes. Onde ele as teria
ganhado? O que o ferira?
Aquele era seu futuro marido. O homem que ela mais conhecia
no mundo e o mais misterioso de todos. O menino que a ensinou a
cavalgar, a nadar, a subir em árvores e a enganar as
acompanhantes e tutoras para viver sem rumo certo em Rhode Port.
O homem com quem ela ralhou por desvirtuar as criadas. Que ela
viu chorar. Que a amparou no pranto.
Ela se virou para o teto outra vez.
— Não consegue dormir? — A voz dele a assustou. Charles
girou na cama e ficou de frente para ela. A única luz do quarto era a
que vinha da lareira e da lua brilhante do lado de fora.
— Não.
— Quer conversar?
Ela balançou a cabeça para os lados. Virou-se para ele e puxou
o lençol até cobri-lhe a boca. Charles sorriu com aqueles lábios
inchados que estavam ainda mais bonitos do que antes. Olivia
sentiu mais calor e um desconforto entre as pernas. O que aquele
homem estava fazendo com ela? Como ela podia estar tão
fascinada por ele se nunca — nunca! — sequer considerou-o como
uma companhia do sexo masculino?
— Quer ajuda para dormir?
Sim. Com olhos arregalados, ela respondeu sem palavras.
Charles aproximou-se. Seu corpo grudou ao dela, por cima do lençol
— que não fez diferença alguma. Olivia foi engolfada por calor e
dureza, esmagada contra uma muralha firme que pulsava. O
coração dele também batia forte, mas aquele homem não se
abalava por nada.
Sem tirar os olhos dela, ele a beijou. Começou com um toque
suave de lábios, que umedeceu com a língua, até que ela se abriu
para recebê-lo. Segurando-a pela nuca, Charles invadiu-lhe a boca
com calma e intensidade, fazendo-a perder a compostura e agarrá-
lo pelos ombros. Se aquela era a ajuda que ele tinha para oferecer,
não daria resultado. Olivia seria incapaz de adormecer estando tão
excitada.
Charles afastou os lençóis, atirando-os longe. Abriu cada botão
da chemise enquanto mantinha sua boca ocupada e desamarrou
cada laço das calçolas. Ele era tão habilidoso que ela mal sentiu o
tecido desprendendo de seu corpo e indo parar no chão do quarto.
Cada pedaço descoberto recebia um beijo molhado. Uma das mãos
dele deslizou para seu centro de prazer e acariciou-lhe os pelos.
Olivia gemeu, ansiosa, e arqueou-se para frente. Ela queria mais
contato e tinha uma boa ideia do que isso significava.
— Tire. — Levou a mão até as calças dele e tentou abrir os
botões. Era um pouco difícil concentrar-se enquanto ele traçava um
caminho de seu pescoço até os seios com a língua.
— Tem certeza?
— Tire — ela repetiu, conseguindo desabotoar a peça de roupa.
Seus dedos roçaram na ereção macia e a vontade de segurá-lo nas
mãos quase a dominou. Só não fez isso porque Charles se afastou
e, sentando na cama, despiu-se.
Céus, ele era lindo. Maldita fosse a noite que não permitia ver
todas as nuances daquela pele bruta, coberta de pelos e cicatrizes.
Tão masculina. Charles era pura potência e virilidade e, naquele
momento, era dela.
Você é meu. Um soluço escapou de seu peito quando o
pronome possessivo fez com que o desejo aumentasse. Foi naquele
instante que ela compreendeu o que ele sentira antes. Se eu sou
sua, você é meu. Pelo menos naquela noite, enquanto estavam
apenas os dois em um delírio febril da madrugada, não havia mais
ninguém na vida de Charles que pudesse levá-lo dela.
Enquanto ela estava distraída em pensamentos, ele desceu até
o meio de suas pernas e a beijou outra vez em sua intimidade.
Havia tanta umidade que ela quase se constrangeu ao tê-lo ali, mas
Charles soltou uma imprecação ao assaltá-la com a boca que
indicou um prazer imenso em saboreá-la. Era ainda mais excitante
saber que ele a desejava, também.
Olivia esperou ser dominada pela mesma sensação de
abandono da outra vez, mas ele não a levou até aquele ponto. Seu
corpo tremia sobre o colchão quando ele retornou para sua boca e a
puxou para cima, fazendo-a sentar-se sobre seus quadris. A ereção
latejava em suas costas, tangendo-lhe as nádegas.
— Eu quero fazer amor com você — ele sussurrou em seu
ouvido e fez com que todos os seus membros formigassem.
Não havia palavras para responder à pergunta não feita. Aquela
era uma afirmação. Uma decisão. Ela também queria, mesmo que
não tivesse muita certeza do que fazer. Mais uma vez, Olivia
preferiu o gesto às palavras e dobrou-se para beijá-lo. Charles a
tocou em sua feminilidade e espalhou a umidade por todo lado. Ela
sentiu como se pudesse escorregar e cair de seu colo, o que a
constrangeu ainda mais. Segurando-a pelos quadris, ele a fez
apoiar os joelhos em seu abdômen e, erguendo as pernas,
manteve-a quase no ar.
Olivia sentiu a protuberância resvalando em suas coxas.
— Muitos preferem outra posição — ele disse, ajustando os
quadris. — Mas eu gosto dessa porque você controla até onde quer
ir.
— Eu não sei o que fazer, Charlie. — Ela balançou
vigorosamente a cabeça ao senti-lo, grande e grosso, muito perto de
sua intimidade.
— Lembra-se do que eu disse? O corpo sabe o que quer. O que
você quer agora, Livvy?
O que ela queria? Fechou os olhos e se permitiu sentir. Ele lhe
fornecia apoio, mas ela pendia para baixo como se precisasse
estreitar a conexão. Sua entrada pulsava e espasmos a faziam
contrair na direção dele. Sem pensar muito, Olivia baixou os quadris
devagar. A masculinidade inchada preencheu-lhe na entrada. Ele
estava duro como uma barra de aço, mas também era suave e
sedoso. Charles a auxiliou a se erguer e a sensação de vazio a
incomodou.
— Vá até onde você aguentar — ele rosnou. Os olhos estavam
cravados nela, prestando atenção em todos os seus movimentos. —
Deixe o peso de seu corpo agir.
— Você é muito grande. — Ela arfou ao senti-lo preenchendo-a
outra vez. Charles se sentou e a segurou pelas costas, firmando-a.
Os corpos estavam muito perto e ele a beijou. Olivia perdia a
sanidade com aqueles lábios.
— Sente-se sobre mim — sussurrou outra vez. O polegar
circulou-lhe o botão intumescido do clitóris enquanto a boca desceu
para capturar-lhe um mamilo. Olivia se contorceu e perdeu o
controle do próprio corpo, libertando-se e permitindo que ele a
preenchesse ainda mais.
Doeu. Uma sensação aguda, lancinante, a fez paralisar. Ele
percebeu que algo a incomodava e voltou a beijá-la na boca. Olivia
quis levantar-se, mas ele delicadamente a manteve no lugar.
— Dói. — Um beijo em sua orelha a fez estremecer. — Mas
passa. — Outro beijo a fez amolecer. — Daqui a pouco você só
sentirá prazer. — Charles passou a língua dentro de seu ouvido e
ela quase chorou pela sobrecarga de sensações. Era tão bom, mas
causava tanta agonia ao mesmo tempo, que Olivia não sabia o que
sentir. — Confie em mim.
Eu confio. Ela o abraçou, enlaçando-o pelo pescoço e relaxou. O
corpo desceu mais até que os corpos se unissem por completo. Não
havia nada dele que estivesse fora dela. Era impossível que aquele
homem tão grande coubesse ali, mas Charles tinha razão. Ao
percebê-la tranquila, ele desceu a boca outra vez para os seios e
passou a língua por um mamilo. Olivia arqueou as costas para trás.
Aquela era a reação óbvia para o que ele fazia. Ao afastar-se de seu
peito, ela pôde vê-los unidos como se tivessem sido feitos para se
encaixarem.
À medida que ele sugava seus seios e acariciava-lhe a
intimidade, Olivia sentiu uma intensa vontade de se mover. Ergueu e
baixou os quadris, forçando-o para fora e para dentro. Não doía
mais, mas Charles não pareceu conseguir continuar o que estava
fazendo.
— Céus, Livvy! — Ele encostou a testa na dela. — Eu não vou
aguentar. Prometo cuidar de você depois, mas eu preciso gozar.
Ela não entendeu muito do que ele disse, mas aquele simples
movimento pareceu despertar um gigante adormecido. Charles a
segurou firme com as duas mãos e ergueu-a até que os corpos se
desencaixassem. Olivia forçou-se para baixo e o encapsulou outra
vez, fazendo-o gemer mais uma vez — ela já sabia que o ir e vir era
a fonte do prazer dele. Da mesma forma que os beijos a levavam à
beira de um precipício, era aquela a carícia que ele precisava.
Benditos fossem os livros de Annabelle.
Por todos os anos que passou desejando Olivia, tê-la em seus
braços o fez sentir como se uma espécie de benevolência divina o
estivesse recompensando por sua paciência. Ela era sua, finalmente
sua, inteiramente sua.
E estava matando-o.
Maldita hora em que a deixara ficar por cima — ela se movia
lentamente e vê-la naquele estado de êxtase o deixava ainda mais
em ponto de explodir. Bendita hora em que a deixara ficar por cima
— tendo o controle, Olivia não sentia todo o desconforto de um
corpo masculino esmagando-a e podia entregar-se livremente ao
prazer.
Enquanto ela o cavalgava, auxiliada pelo apoio nos quadris, ele
gemia e rosnava em sua boca, marcando sua pele com grunhidos.
Ela era deliciosa. A fragrância de lavanda o inebriava e o sabor
salgado e ácido do corpo suado o alimentava. Charles levou o
polegar até o clitóris e o esfregou, fazendo com que ela se
debilitasse e quase desabasse sobre ele.
Aproveitando a oportunidade, ele a segurou firme e passou a
mover os quadris ao encontro dela. Olivia fechou os olhos e tombou
a cabeça para trás. Isso, meu amor, venha comigo. Vê-la tão
entregue ao prazer o excitou a ponto de fazê-lo não suportar mais.
Ergueu-se, atacou-lhe a boca e estocou firme e ritmado, com força e
cadência até Olivia soluçar seu nome enquanto cravava as mãos
em seus braços.
— Charles!
A força do clímax quase o derrubou de volta ao colchão. Charles
não se lembrava de um orgasmo tão intenso. Seu corpo inteiro
estremeceu e ele a segurou com tanta força que temeu feri-la. Ela
também estava agarrada a ele e os dois desabaram juntos entre os
lençóis, permanecendo embolados por vários minutos.
Céus! Ele nunca tinha feito amor antes. Eram ambos virgens.
Anos de libertinagem não o prepararam para o deslumbramento que
era possuir a mulher que amava.
Bem, eles tinham mesmo que se casar. Depois de causar um
escândalo e deflorá-la em uma cabana, ele também arriscou
engravidá-la. Como era estúpido. Mas o sorriso tímido e sincero de
Olivia o fez imaginar que ela estava satisfeita. Não o odiava, não o
repudiava, não o criticava por tolher dela a escolha.
Talvez ela já tivesse feito a sua escolha — ela poderia ter se
decidido por ele.
Não. Ele não podia se iludir de novo como naquela noite no
jardim dos McFadden. Olivia estava carente, solitária e confusa,
mas isso não significava que ela sentia algo por ele além da
amizade. Não fantasie, Charles Eckley. Viva e aproveite o momento,
apenas o momento. Foi com esse humor que ele a agarrou e puxou
as cobertas por sobre eles, beijando-a na testa.
— Agora você pode dormir.
Ela já estava de olhos fechados e ressonando antes que ele
sequer considerasse o quanto sua vida estava prestes a mudar.
Poderia ter causado uma má impressão em Gupta e não se
importava. Poderia perder o contrato e ainda seria capaz de rir, de
gargalhar e agradecer ao indiano por aquela ideia imbecil de
escolher um homem respeitável. Foi graças àquela tolice que ele
acabou enredado com o amor de sua vida — e que se tornaria a sua
esposa em breve.
Muito breve. Charles mobilizaria o irmão marquês e os amigos
titulados para ajudá-lo a conseguir uma licença antes do prazo,
porque ele não suportaria mais continuar sem Olivia em sua cama.
Caso ninguém o ajudasse, fugiria com ela para Gretna Green.
Exceto que ele não faria isso, porque deixaria que ela escolhesse o
casamento dos sonhos e daria a ela tudo que sempre sonhou.
Acabou adormecendo enquanto seus pensamentos voavam
longe com a brisa da noite. Tinha tudo que queria e precisava
naquela cabana e desejou que a noite durasse para sempre, mas o
sol acabou por acordá-lo apenas poucas horas depois. O sol e
batidas à porta. Olivia ainda dormia serena em seu abraço, mas ele
precisava ver quem estava ali.
Esfregou o olho e quase gritou de dor — esquecera-se de que
estava ferido. Praguejou em silêncio, acomodou-a nos travesseiros,
puxou a cortina para escurecer um pouco mais o quarto e vestiu as
calças sem muito cuidado com a aparência. Fosse quem fosse, teria
que ir embora. Abriu a porta e deparou-se com seu irmãozinho
Nicholas, que portava um sorriso constrangido e vestia roupas de
cavalgada.
— Posso entrar?
Charles olhou para a cabana. Havia três cômodos pequenos. Ele
estava na sala e não havia porta isolando o quarto. Então a resposta
de Nicholas era óbvia: o irmão não podia entrar nem se sua vida
dependesse disso.
— Olivia está dormindo. — Ele saiu e fechou a porta atrás de si.
Cruzou os braços ante o frescor da manhã porque não tivera o
cuidado de vestir uma camisa. — Mandaram você aqui?
— Não, não há quase ninguém acordado. Eu decidi vir antes que
Anthony resolvesse caçá-lo por toda Hampshire. Ele quer arrancar
suas partes íntimas.
— Quem diria que o maior dos libertinos ia se tornar um defensor
da moral alheia. — Charles deu uma risada baixa. — Eu vou me
casar com ela, Nick. Anthony não poderia mesmo pensar que eu
desonraria Olivia e não arcaria com as consequências.
O irmão suspirou. A resposta não foi satisfatória.
— É isso que ela é para você? Consequência?
Ele descruzou os braços e segurou Nicholas pelos ombros.
Mirou dentro dos olhos castanhos do irmão e disse aquilo pela
primeira vez como se fosse verdade.
Porque era. Era a maior verdade de todas e Charles já estava
exausto de não gritá-la para o mundo.
— Eu amo Olivia. Amo há tanto tempo que não me recordo de
um momento em que não a tenha amado. Casar-me com ela é o
que mais desejo neste mundo. Mais do que dinheiro, contratos ou
qualquer outra coisa que já tenha conquistado.
Nicholas sorriu.
— Ainda bem. Eu temia que você estivesse sendo apenas
irresponsável.
— Vá embora. Assim que me colocar apresentável, eu vou até a
casa principal conversar com todos. Diga a Greystone que vou
matá-lo assim que chegar lá.
— O duque foi embora. Seguiu para Londres há quase uma
hora. E você não está em condições de ficar apresentável. Já se viu
em um espelho?
O irmão deu uma risada e se afastou, deixando-o ali com uma
sensação de satisfação. O maldito Richard Cadden desistiu de
importunar Olivia. Claro, o homem não podia ser tão insistente a
ponto de perseguir uma mulher que certamente se casaria com
outro homem depois do que aconteceu.
Retornou para dentro da cabana e a encontrou desperta,
sentada na cama, enrolada no lençol. Linda como uma ninfa da
floresta com aqueles cabelos fartos caindo em cascatas por seus
ombros. Charles queria possuí-la outra vez — ele jamais teria o
suficiente dela —, mas precisava ter cuidado para não assustá-la ou
machucá-la com seu ardor. E precisavam retornar antes que fossem
atrás deles. Fugir com uma dama e esconder-se em uma cabana de
caça era demais até mesmo para um Eckley.
— Bom dia. — Ele começou a recolher as roupas que estavam
espalhadas para que pudessem se vestir.
Olivia se levantou, enrolada no lençol, e o abraçou. Charles
largou tudo o que estava fazendo para segurá-la nos braços e
beijar-lhe os cabelos. As roupas voltaram a cair pelo chão.
— Quem estava lá fora?
— Nick. Parece que Anthony deseja me transformar em caça e
Greystone voltou para Londres.
— Oh. Então precisamos retornar. — Ela beijou-lhe o peito
despido e o acariciou nas costas. — Gostaria de expressar que
concordo com sua crítica ao verbo.
— Que verbo?
— Arruinar. Eu não me sinto nem um pouco arruinada. — Olivia
ergueu os olhos e o encarou, sorrindo. — Gloriosa, sublime,
irradiando luz por todos os poros, talvez.
Charles sorriu. Capturou-lhe os lábios de manhã cedo e a fez
desmanchar em seus braços por breves instantes.
— Você acordará todo dia se sentindo ainda mais brilhante que o
sol, minha querida.
Ela arregalou os olhos.
— Todo dia?
— Todo. Dia. Agora vamos nos vestir, precisamos enfrentar a
família.
Capítulo décimo nono

D , . E
longa extensão do pátio externo até o jardim, onde o desjejum seria
servido na área coberta, e durante todo o trajeto Olivia imaginou o
que diria às pessoas. Sua mente bolou os mais variados discursos
para explicar a Annabelle, Margaret e às amigas por que se deitara
com um homem com quem ainda não se casara. Cada passo
significava uma mudança de abordagem até que ela desistiu.
Não havia nada a dizer. Nada a explicar. Ela amava aquele
homem há anos e passara a desejá-lo fisicamente. Se antes
Charles Eckley era seu melhor amigo, ele se tornou seu amante e
aquela foi a melhor decisão impulsiva que ela já tomara.
Ele se manteve à sua frente por um passo. Não se tocaram até o
momento em que cruzaram a porta dos fundos. Os criados os
observavam com curiosidade e espanto. Charles tinha um olho roxo
quase fechado e uma lesão no lábio inferior. Sua bochecha direita
estava avermelhada. Nada daquilo tirou-lhe a arrogância masculina
de entrar nos ambientes e agir como se deles fosse dono.
Oferecendo o braço para que ela o segurasse, ele garantiu que
entrassem juntos para enfrentar o que fosse preciso. Estavam entre
amigos. Ninguém ali os julgaria, se tomassem a decisão correta.
— Está pronta? — Charles perguntou antes de seguir para o
jardim.
— Estou faminta.
Ele riu e não havia nada melhor para romper com um clima de
tensão do que uma boa galhofa entre amigos. Com a mão grande e
quente sobre a sua, Charles a conduziu para o jardim e todos —
sem exceção — se viraram para vê-los chegar. Até Tobby e Bobby
vieram correndo e latindo. Fedorento pulou nas calças de Charles
irritado, mordendo e sacudindo o tecido. Ele mantinha uma aura
serena que não combinava com o homem que ela conhecia. Em
situações de pressão, Charles Eckley costumava manter o nível de
fúria em elevação constante.
O Marquês de Granville se levantou imediatamente. Rosamund o
puxou de volta pela manga do casaco, mas Anthony continuou
encarando-os com a expressão de quem tinha contas a acertar com
o irmão mais novo.
— Bom dia milordes. Miladies. — Charles puxou uma cadeira
para que ela se sentasse ao lado de Annabelle. A irmã a olhava
como se Olivia tivesse duas cabeças ou três olhos. Aquele era o
preço que pagava por se tornar uma devassa quando todos
acreditavam que fosse uma santa. — Gostaria de fazer um pequeno
pronunciamento para não mais atrapalhar essa agradável refeição.
Como alguns devem ter visto ontem, o cortejo entre mim e Lady
Olivia chegou ao fim. Eu a pedi em casamento na noite passada e
ela aceitou.
— Ela aceitou. — Caroline enfiou uma garfada de ovos com
presunto na boca. — Parece-me que ela não tinha outra escolha,
não é mesmo, Charles?
— Como imagino que você não tenha acompanhado a nossa
conversa, minha querida prima, foi Lady Olivia quem me beijou na
frente de todos.
Alguns homens riram. Charles era bom em fazer troça das
críticas que recebia e mudar o rumo de qualquer conversa
desagradável. Ainda assim ela o cutucou nas costelas, fazendo com
que ele soltasse um ganido de dor.
— Quando se casam? Amanhã? — O Marquês de Granville
rosnou e Olivia quase deu uma risada. Quando estavam irritados, os
Eckleys agiam exatamente iguais.
— Por cristo, Anthony. — Rosamund bateu com os talheres nos
pratos. — Não haja como se todos aqui não tivessem arruinado
suas esposas antes do casamento. O importante é que o menino vai
assumir a responsabilidade pelo que fez.
— Ele não é um menino!
— Eu não arruinei ninguém antes de me casar! — Miles
Westphallen protestou.
— Nem eu. — Isaac mordeu uma torrada. — Não se pode
arruinar uma libertina, creio eu.
— Calem-se, todos vocês! — Charles tentou reassumir o
controle que nunca teve. — Rose está certa, Anthony. Você não tem
nenhuma moral para me criticar. E sim, eu me casaria amanhã, mas
quero que Olivia tenha o casamento de seus sonhos, então ela
escolherá como e quando isso vai acontecer. Ao contrário de outros
Eckleys, não fugirei para Gretna Green para me casar.
Nicholas e Edward deram risadas. Anthony bufou e Rosamund
acariciou-o no braço, indicando que estava tudo bem.
— Onde estão Gupta e o duque? — ela perguntou, tentando
mudar o assunto. — Foram a Crystal Place?
— Sim. Shaftesbury adora exibir suas posses para todos — Nick
a respondeu. — Eles devem voltar para a corte de lá, mesmo.
— E nós retornaremos assim que terminamos o desjejum? —
Charles perguntou. Ele se sentou ao seu lado e, depois de se servir,
apoiou a mão esquerda sobre sua perna. Por debaixo da mesa
ninguém conseguia vê-lo, mas ela o sentia e isso era o suficiente.
— Voto nesse sentido. — Edward McFadden concordou. —
Tenho negócios me esperando.
— E três crianças — Agatha lembrou. — Imagino que Lavinia
esteja morrendo de saudades do pai.
O conde sorriu e beijou a bochecha da esposa. A intimidade
entre eles era um estimulante para que mulheres decidissem se
casar por amor. Não apenas aquele casal, mas outros que estavam
presentes na mesa eram homens e mulheres apaixonados que se
uniram não pelo dinheiro ou pela posição social, mas porque se
amavam e não conseguiam viver separados.
Olivia deixou seus olhos percorrem rostos e gestos para fixar-se
na mão grande de Charles sobre seu vestido. Observou o polegar
que a acariciava com suavidade, mesmo que ela não fosse senti-lo
debaixo de muitas camas de tecido, a forma como ele estava perto
dela, como a olhava eventualmente para confirmar se ela estava
bem, se estava comendo ou se algo a incomodava.
Seu coração preencheu-se de algo que não lhe era novo — mas
não era o mesmo. Ela era uma mulher que amava a família e as
amigas. Amava os amigos, também. Mas aquele sentimento era
diferente. Havia mais do que a amizade unindo-os. Havia algo que
ela estava morrendo de medo de falar em voz alta, mas que não
tinha mais como evitar sentir.

Retornar para Londres significava enfrentar algumas novas


realidades. A primeira delas: Olivia não mais percebia as rédeas de
sua vida nas mãos. Durante um período de tempo ela se submeteu
a tudo e a todos, foi a filha perfeita e a dama mais respeitada dentre
todas. Mas o seu pai faleceu e ela assumiu novas funções que lhe
conferiram muita liberdade. Ela não pretendia abrir mão daquela
liberdade.
Olhou para seu noivo e suspirou. Estava sendo tola. Charles
nunca a podou. Ao contrário, ele não a tratava como uma flor
delicada — ele a respeitava e a incentivava a fazer o que quisesse.
Eles eram amigos acima de tudo. Mesmo que ele não a amasse
daquela forma dos livros, ele a amava de alguma forma. Era
suficiente. Não era?
A segunda nova realidade, talvez a mais difícil de lidar, era sua
nova posição social. Seus planos de casamento com um nobre
titulado significavam a manutenção de seu status social. Ela
continuaria sendo uma queridinha nos eventos sociais. As matronas
continuariam a considerá-la uma lady de comportamento
irrepreensível e ela manteria o mesmo círculo de convivência de
quando fizera dezoito anos e debutara na sociedade.
Casar-se com Charles a catapultaria para outro lugar. Era um
lugar ainda misterioso, cujo vislumbre ela só tivera durante os
verões em Rhode Port. Charles pertencia a um mundo que ficava no
meio do caminho entre as classes trabalhadoras — e pobres — e a
aristocracia tradicional, que estava à beira da falência absoluta. Ela
arriscava dizer que não existiam mais os aristocratas tradicionais —
os que não se renderam à burguesia e ao trabalho, tiveram que
vender todas as suas propriedades e viviam como animais
empalhados. Restava-lhes a aparência de um passado de glória,
porque o presente era vazio, oco, recheado de palha seca.
O “mundo do meio” era desconhecido para Olivia. Chegar a
Londres arruinada e noiva de um Eckley — aquele que não era
marquês, portanto não tinha a passabilidade social necessária para
pertencer à aristocracia — a obrigaria a descobri-lo muito
rapidamente.
— Nem creio que teremos um casamento para planejar! — Mary
Price a fez sair de seus devaneios. O trem acabara de partir na
direção de Londres e as mulheres estavam todas sentadas
próximas umas das outras. — Já pensou em como vai ser, Livvy?
Seu futuro marido parece disposto a deixar o controle todo em suas
mãos.
Ah, ela pensara em seu casamento de duzentas formas
diferentes. Havia um plano para cada membro da nobreza que
pedisse sua mão: se fosse um duque, casariam na St. George. Se
fosse um conde, talvez em outro lugar, mas ela preferia na
propriedade dele — qualquer que fosse. Tinha também um projeto
para caso desposasse um visconde, um barão e até mesmo um
estrangeiro. Em nenhuma das suas fantasias ela se casava com um
quarto filho, sem direito a título, sem bom trânsito na nobreza — e,
ainda assim, só naquela última ela parecia feliz.
— Eu mal fiquei noiva, Mary. Estou um pouco atordoada, ainda.
— Claro que está. — Esther segurou-lhe as mãos. — Por isso
vamos ajudá-la. Temos que conseguir uma agenda com Madame
Lloris! Você precisa de um vestido exclusivo.
— Ah, Madame Lloris não vai se recusar a atendê-la! —
Annabelle estava animada. — Tenho certeza que o dinheiro Eckley
abrirá um horário especial para que ela possa fazer o vestido de
Olivia.
A mão de Rosamund segurou a dela e a surpreendeu. A
marquesa era uma ótima companhia e muito talentosa em sua arte,
mas poucas vezes se mostrava com o perfil de quem consolava.
— Olivia, sei que Charles pode ser bastante intenso, mas creio
que você o conheça melhor do que eu. Você nos diria se algo não
estivesse bem, não diria?
Todas pararam de falar. O entusiasmo entrou em suspensão pela
hipótese de algo estar acontecendo que pudesse tê-la levado ao
caminho de um casamento indesejado. Olivia não percebeu quando
seus olhos seguiram na direção dele — de Charles — e se fixaram
no semblante masculino. Como ela nunca notara o quanto ele era
viril? O perfil de seu futuro marido parecia ter sido talhado por um
machado. Bruto. Rude. Capaz de espalhar calor por cada parte do
seu corpo.
Olivia quis sair dali, ir até ele e beijá-lo. Sentar-se em seu colo,
despi-lo, pedir que ele a amasse como fizera na noite anterior. Suas
entranhas latejaram.
— Eu diria. — Ela sorriu. — Mas está tudo muito bem.
— Claro que está. Nunca a vi tão apaixonada assim. —
Annabelle moveu os ombros.
— Ah, então você também percebeu? — Mary Price suspirou. —
Chega a ser desconfortável ver como eles se encaram. Como
poderei aceitar um marido que não me olhe como esse homem olha
para Olivia?
Ela deveria ralhar com as amigas. Dizer que estavam erradas e
que entenderam tudo errado. Mas não estavam. Era inesperado e
bastante assustador, mas Olivia estava apaixonada — muito
apaixonada — por seu melhor amigo.
Londres, 25 de abril de 1898
Brooke Street

A Casa Salisbury recebeu a família de volta com bastante


entusiasmo. Adalind chegou a perguntar sobre a condessa viúva,
mas Olivia apenas balançou a cabeça indicando que não havia nada
para dizer. Estavam todos exaustos da viagem e a governanta
mandou que se refrescassem para o almoço. Charles fez questão
de acompanhar os criados e ajudar com as malas até entrar no
quarto de Daniel Trentham e fechar a porta para garantir uma
conversa privada com o jovem conde.
Daniel cruzou os braços e recostou na janela. O menino tinha
uma postura aristocrática irritante — ele se daria muito bem como o
Conde de Salisbury.
— Você poderia ter me pedido antes de propor a Olivia.
Charles esperava aquela abordagem. Por mais jovem que fosse,
Daniel era o homem da casa, ou seria, um dia.
— Talvez, se eu não lhe tivesse destruído a reputação, teria
tempo de fazer um pedido formal.
— Sabe que eu deveria chamá-lo para um duelo por isso.
— Tenho muita sorte que decidiu não fazê-lo. — Charles riu. —
Eu não teria chance contra você e sua irmã ficaria viúva antes de se
casar.
O menino descruzou os braços e se aproximou, hesitante. Parou
a pouca distância dele e o abraçou. Não como dois amigos que se
cumprimentam, mas como um irmão abraça o outro. Como um filho
abraça o pai. Charles ajoelhou-se para chegar à altura de Daniel.
— Eu jamais lhe faria mal — o jovem conde disse. — E estou
muito feliz que Olivia vá se casar com você. Ela merece ser feliz e
sei que você a faz muito feliz.
— Passarei a administrar todo o seu dinheiro.
— E terá que cuidar de Maggie e Belle. — Daniel riu. — Acredite,
elas são muito inconvenientes.
— Você dá a sua bênção para nosso casamento? — Charles
estendeu a mão. O menino a segurou e apertou como um adulto.
— Se você a ferir, eu terei que matá-lo. Com ou sem duelo.
— Não se preocupe com isso. Se eu ferir Olivia, matarei a mim
mesmo.
Os dois se abraçaram outra vez, mas se soltaram ao
perceberem que tinham plateia. Olivia os observava sorrindo e
estava linda. Bem, ela era linda. Ou ele a adorava tão intensamente
que não se importava com sua aparência física. Não, ele se
importava. Ela era linda com todas as suas características,
exatamente como ela era. Com longos cabelos fartos e rebeldes,
que se recusavam a permanecer conforme a moda ditava. Com
olhos grandes e expressivos que pareciam dizer sem palavras. Com
lábios fartos que convidavam para uma viagem. Não, um mergulho.
Eles eram como a praia de Kent no verão, como uma enseada. A
enseada secreta e privada onde apenas ele poderia nadar.
Charles levantou-se e despediu-se sem palavras do seu futuro
cunhado. Aquela sempre foi sua família, ele estava feliz em poder
torná-la oficial.
— Almoça conosco? — Olivia perguntou assim que se
encontraram no corredor.
— Não posso, tenho que trabalhar. Há contratos,
correspondências, uma grande obra em St. James e Gupta. Preciso
descobrir se nosso pequeno escândalo afetou a percepção do
indiano sobre mim.
Ela suspirou e colocou as mãos sobre ele para ajeitar a gravata.
Como vestiu-se às pressas, Charles imaginava estar uma bagunça
completa, mas pretendia livrar-se de algumas peças da
indumentária assim que chegasse ao seu escritório.
— Se afetou, então Gupta é um imbecil — ela disparou e riu da
própria imprecação. — Mas acredito que ele não seja, então você se
surpreenderá.
Esperava surpreender-se. Olivia terminou de refazer o nó e
alisou o tecido da camisa e do paletó com as duas mãos abertas.
Aquela mulher não tinha ideia do efeito que exercia sobre ele ou o
estava provocando, por isso Charles dobrou o corpo para frente e a
beijou. Foi rápido, suave e quase o fez empurrá-la para dentro de
qualquer dos quartos para repetir o que fizeram naquela
madrugada.
— Vejo você à noite?
A diabinha, que parecia também ler pensamentos, encarou-o
sorrindo.
— Acha que só porque vamos nos casar eu encerrarei minhas
visitas indecorosas e fora de hora? Pretendo chegar aqui tarde,
depois do jantar, e cheirando a tabaco.
Teve que despedir-se dela, porque senão não sairia mais dali.
Daquele momento, daquele abraço. Mandou a carruagem voltar
para casa, pegou o cavalo e saiu peregrinando por St. James para
conferir seu projeto de reestruturação de uma área na King Street.
Ele estava apostando cada vez mais no crescimento daquela parte
da cidade, que tinha sido eleita a mais nova favorita da classe
burguesa.
Cavalgou até Cornhill, comeu uma torta de rins com cerveja no
Simpsons, voltou para a Piccadilly, para seu escritório que não
costumava frequentar, e surpreendeu seu secretário. Chauncey era
um homem leal e que coordenava todas as ações de investimentos,
organizava a correspondência que era enviada para a Grosvenor
Square e não estava acostumado a lidar diretamente com o patrão.
— Hoje trabalharei aqui — Charles explicou, diante da
perplexidade de Chauncey. — Só me interrompa se alguém morrer
ou estiver morrendo. Preciso de café, silêncio e pó para dor de
cabeça.
Ele ainda não estava sentindo nenhuma dor insuportável, mas o
ferimento no supercílio latejava. Sem nada que o interrompesse,
conseguiu colocar todo o trabalho atrasado em dia, escreveu
algumas cartas novas e uma especial, que seria enviada para
Leonard, seu irmão que estava nos Estados Unidos. Se as coisas
não dessem certo com Gupta, ele precisaria de um plano
alternativo. Não era um homem de planos, mas também não era um
homem de família e em alguns dias estaria casado e responsável
por três jovens e um condado inteiro. Estava na hora de diminuir os
riscos e ser menos impulsivo.
Passou a tarde confinado no escritório e, por isso, deveria
regalar-se com uma noite de bebida e jogos no Riderhood. Parte
sua quis fazer exatamente isso e seu cavalo foi até o meio do
caminho. Já avistava as luzes do clube de cavalheiros quando freou
o animal e olhou para as luzes da cidade. Era aquilo que queria?
Espoliar alguns trouxas que ousavam disputar pôquer com ele,
encher os bolsos e beber uísque até ficar bêbado? Depois voltaria
para casa com um vazio no peito e passaria a noite rolando pela
cama na incerteza do que lhe faltava — era o que faria depois de ter
dormido com Olivia Trentham em seus braços?
Não.
Charles deu meia volta e parou na joalheira Strewbury, na
Picadilly Circus. A loja estava fechada, mas nenhuma loja se
fechava para ele. Bateu à porta de vidro com vigor até que ela
quase se desencaixasse — o que não aconteceu apenas porque o
próprio Strewbury, enrolado em um roupão de seda com uma
estampa exótica, veio recebê-lo.
— Pelos céus, Sr. Eckley! O senhor pretende jogar meu
estabelecimento no chão?
A porta se abriu e ele entrou. Não tinha pressa, mas não
pretendia perder tempo. Charles detestava perder tempo.
— Preciso de um anel de noivado.
— O senhor vai se casar? — O joalheiro levou uma mão à boca,
espantado. — Mas isso é um grande evento e totalmente
inesperado.
— Ele tem que ser grande, magnífico e único. Minha noiva
precisa carregar algo especial no dedo, então me mostre seus
exclusivos.
Strewbury o fitou com uma expressão de dúvida — atender ou
não atender um cliente inconveniente que nem sequer tinha os
melhores modos? A pesada carteira de dinheiro que Charles
colocou sobre o balcão envidraçado decidiu por ele. O joalheiro
abriu uma gaveta e retirou um embrulho escuro cheio de anéis de
diamantes, um mais exagerado do que o outro. Nenhum combinava
com Olivia.
— Esses são os meus mais caros e exclusivos. Cada peça é
única.
— Não servem. Você tem algo com ametistas?
— Ametistas? Não são a primeira escolha para anéis de
noivado.
— Melhor ainda, significa que não corro o risco de ver outro
parecido por aí. Vamos, Strewbury, eu pago o que for preciso.
Ametistas e diamantes?
O joalheiro suspirou, fez um gesto com as mãos pedindo que ele
esperasse e desapareceu por uma porta de madeira. Charles
aproveitou para girar ao redor e observar as vitrines com algumas
peças que deveriam custar o valor de uma casa. Ele não entendia
por que pessoas gastavam fortunas em joias, mas estava ali para
comprar o anel mais caro que existisse apenas para agradar à
noiva. Cinco minutos depois, Strewbury retornou com uma caixa de
veludo repleta de anéis de todas as cores. Rubis, esmeraldas,
topázios, ametistas e outras pedras solitárias, cravejadas com
diamantes, de ouro amarelo ou branco.
Eram lindas peças, mas ele só se importava com aquela que
fosse combinar com sua Olivia. Pegou os anéis de pedras roxas
com suas mãos brutas e os observou com cuidado. Dois chamaram
a sua atenção de imediato e um acabou escolhido. Se fechasse os
olhos, Charles podia vê-la usando a pedra de sua cor favorita que
combinava com quase todos os seus vestidos.
— Levarei esse. — Ele entregou o anel para o joalheiro.
— Excelente escolha. Mandarei polir a pedra e amanhã…
— Strewbury — Charles interrompeu —, se eu fosse esperar até
amanhã, não teria vindo a essa hora fazê-lo abrir a loja. Levarei o
anel agora, apenas me diga o valor.
— Mas a pedra…
— Está brilhante o suficiente para mim. Minha noiva pode trazê-
lo para polir depois, se ela achar necessário.
O pobre homem levou a mão ao peito em desalento, como se
Charles estivesse cometendo um erro terrível. Mesmo assim,
colocou o anel em uma caixa individual e informou o valor.
— Ele custa mil e duzentas libras, Sr. Eckley. Mando o
faturamento para seu escritório?
— Amanhã, sem falta. Chauncey tomará as providências para
pagá-lo. Obrigado pela disponibilidade, Strewbury. Imagino que
minha futura esposa vá frequentar a sua loja mais vezes.
— Saberei o nome dela?
— Lady Olivia Trentham.
Charles enfiou a caixa do anel no bolso, saiu e conduziu o cavalo
na direção da Brook Street.
Capítulo vigésimo

M A
jogo de cartas para notá-la ali, segurando um livro sem conseguir
prestar qualquer atenção nele. Qualquer interação entre Anna
Karenina e Vronsky deixava-a no meio do caminho entre as nuvens
do Paraíso e o calor ardente do Inferno, porque ela projetava a sua
própria história nos personagens.
Não havia relação nenhuma entre a trágica história de amor
russa e a sua — que não era uma história de amor. Ainda assim, ela
pensou em Charles o dia inteiro e o formigamento entre suas pernas
indicava tanto que ele estivera ali quanto que desejava que ele
retornasse para o mesmo lugar.
O relógio badalou oito horas e ele ainda não fora visitá-las.
Durante o dia, Olivia manteve-se ocupada: garantiu que o irmão
retornasse para Eton em segurança, organizou a despensa da casa
com Adalind e tomou notas de tudo que precisava para o casamento
— desde uma data até a ajuda de suas amigas, porque não
conseguiria fazer tudo aquilo sozinha.
Mas, depois do jantar, a vontade de confortar-se nos braços dele
a fez amuar-se em um canto com seu livro. Olivia pouco entendia da
paixão e não pretendia se abater por sentimentos tão intensos, só
não conseguiu evitar. Levantou-se, foi até o aparador de bebidas e
serviu uma dose de uísque. Não queria beber, apenas fechar os
olhos e sentir o cheiro para fingir que ele estava por perto. Bem,
talvez ela devesse tomar um gole e ver se o álcool a anestesiava.
Um ruído fez com que os três cães, que estavam deitados em
almofadas, saíssem correndo pela casa. O coração de Olivia deu
um salto e duas cambalhotas porque Tobby e Bobby só se agitavam
assim por um motivo: ele estava chegando.
— Boa noite, miladies.
Descabelado e com um inchaço protuberante no olho direito, ele
parecia muito cansado quando recostou no batente da porta para
cumprimentá-las. As irmãs sorriram ao vê-lo.
— Boa noite, Charlie! — Margaret ergueu as cartas. — Estamos
jogando snap! Quer participar?
— Claro que quero. Você não sabe que adoro jogar cartas?
A menina se ajeitou no chão para dar lugar a ele. Antes, Charles
se aproximou de Olivia e beijou sua mão. Ela estava trêmula e o
calor daqueles lábios quase a fez derreter e escorrer pelo tapete.
— Isso é para mim? — Ele indicou o copo de uísque em sua
mão.
— É, claro. Para quem mais seria?
Com um sorriso e um longo gole no drinque, Charles acomodou-
se ao lado das meninas e entrou na partida. Ela também se sentou
no chão e decidiu participar. Mesmo que tudo entre eles estivesse
mudado, a amizade permanecia intacta. A vontade de passar horas
conversando ou fazendo outra atividade lúdica era a mesma de
antes. O desejo foi uma adição bem-vinda ao relacionamento já
muito sólido que tinham.
E isso a fazia feliz.
O jogo se estendeu por mais uma hora até que ela decidiu
interrompê-lo. A rotina da casa era uma coisa da qual não desistiria
e que ainda podia controlar, então ela o faria.
— Maggie, hora de dormir. — Olivia se levantou. — Annabelle,
amanhã temos o clube de leitura de Lady Cecelia, então temos que
despertar cedo, porque nossa tarde será ocupada. Para seus
quartos, as duas.
Com alguns resmungos esperados, as irmãs se levantaram,
despediram-se de Charles e subiram as escadas. Os cães saíram
em disparada atrás delas, embolando-se no tecido das saias.
Fedorento ficou observando Charles como se precisasse vigiá-lo.
Olivia começou a recolher alguns pertences que foram deixados
espalhados e guardou os livros na estante. Ele terminou de beber o
uísque e se levantou. Cambaleou e recostou-se na parede, levando
a mão até a cabeça.
Olivia foi em sua direção e segurou-lhe o rosto, fazendo-o olhar
para ela.
— Você está bem?
— Estou morrendo de dor. — Charles confessou e pendeu a
cabeça para a frente. Ela o soltou e deixou que ele se apoiasse em
seu ombro. Não era fácil sustentar o peso daquele homem imenso.
— Chamarei um médico para vê-lo. — Olivia acariciou-lhe os
cabelos e ele a envolveu com os dois braços, puxando-a pela
cintura. — Você comeu, Charles?
— Não preciso de médico e sim, eu comi. Passei a tarde no
escritório comendo, bebendo café e pensando em você. — Um beijo
em seu pescoço a fez estremecer. — Preciso de um banho morno, é
só isso.
— Isso eu posso providenciar. — Ela continuou a acariciá-lo nos
cabelos. Macios, suados e longos, com pequenos cachos que se
enrolavam em seus dedos quando ela os enfiava naquele
emaranhado de fios que cheirava a poeira e óleo queimado. Charles
sempre vinha até ela com o cheiro da cidade. — Vamos subir?
Ele se afastou um pouco e a encarou. O corte no lábio inferior
estava cicatrizando.
— Se eu subir, não conseguirá me mandar embora depois.
— Não pretendo mandá-lo embora.
A boca dele capturou a dela antes que Olivia pudesse dizer mais
alguma coisa. Os braços se estreitaram ao seu redor e a fizeram
sentir o quanto a proposta o agradou. O beijo entre eles estava cada
vez melhor — ela já sabia o que esperar, já entendia a pressão dos
lábios e já ansiava pela língua que a invadia. Charles gostava de
beijar com a língua e ela não tinha qualquer reclamação.
Sem mais palavras, ela o puxou para o andar de cima. Seu
quarto ficava muito perto do das meninas, mas elas já sabiam o que
acontecera em Hampshire. Nenhuma das duas era tão inocente.
Olivia suspeitava que fosse a mais ingênua das três, então decidiu
não se importar. Fechou a porta com a chave e preparou um banho
para Charles.
Enquanto esperava a banheira encher, teve uma súbita
preocupação. Poderia acostumar-se a dormir com ele. Se isso
acontecesse, como ela faria para enfrentar uma cama vazia outra
vez?
— Charlie, onde vamos morar quando nos casarmos?
— Onde você quiser. — Ele veio do quarto arrancando as peças
de roupa. Já não tinha mais gravata nem colete e estava abrindo os
botões da camisa. Uma distração poderosa. — Escolha qualquer
casa que esteja disponível e ela será sua. Se não tiver nenhuma
disponível, construiremos uma. Eu tenho várias propriedades
espalhadas por Londres.
— Podemos ficar aqui?
Charles retirou a camisa e a visão do peito nu a deixou bastante
distraída. Nem sabia mais por que estava fazendo aquelas
perguntas. A banheira encheu e ela adicionou alguns sais
calmantes.
— Essa casa pertence ao condado. Poderemos ocupá-la até que
Daniel seja adulto para reivindicá-la, se for esse o seu desejo.
Ele abriu os botões e as calças caíram ao chão, revelando-o por
inteiro. Olivia quase caiu sentada para trás. Na madrugada anterior
ela o vira na escuridão. Charles era uma sombra, um borrão, um
conjunto de músculos e pelos capazes de despertar-lhe sensações
intensas e inesquecíveis. Ali ele se apresentava finalmente.
Masculino, vigoroso, quase selvagem.
Passando por ela, cuja decência morrera desnutrida em algum
momento naquela viagem para Hampshire, ele entrou na banheira e
ela blasfemou pela espuma que o escondeu.
— Podemos ficar aqui enquanto escolhemos uma casa? Dará
tempo de fazermos isso com calma e posso continuar cuidando de
tudo.
Olivia se afastou, deu as costas para ele, e fingiu que organizava
uma pilha de toalhas. Suas mãos tremiam — ela também queria se
despir e entrar ali com ele. Aconchegar-se no calor daquele corpo.
— Providenciarei um contrato e faremos depósitos mensais na
forma de aluguel. Assim não estaremos usando indevidamente os
bens de seu irmão. Livvy, olhe para mim.
Ela se virou. Charles estava relaxado e com a cabeça recostada
na beirada da banheira. Seu banheiro era feminino demais, com
azulejos decorados, flores e uma banheira branca de louça. Aquele
homem não combinava com um ambiente tão delicado.
— Você quer entrar?
Ah, sim, por favor.
— Não pretendo incomodá-lo.
— Precisa de ajuda para se despir?
— Eu… não, consigo fazê-lo sozinha.
— Então venha. Prometo não olhar se você não quiser.
A banheira era grande, mas Charles era imenso. Eles dois
certamente não caberiam ali. Ou caberiam, se ela ficasse no colo
dele. Sobre ele. Encaixada nele. Céus. As imagens que sua mente
formaram durante o dia, enquanto tentava ler qualquer coisa — até
mesmo um relatório de despesas — a estavam afetando
severamente. Olivia levou as mãos aos botões de seu vestido e
começou a abri-los. Um por um, até que não sobrasse mais nada
que mantivesse a camisa no lugar. Em seguida livrou-se da saia,
retirou as meias e desfez os laços da calçola. Sentiu-se corajosa
para abrir o espartilho e livrar-se da chemise.
Ele mantinha os olhos fechados e a respiração tranquila,
respeitando a promessa que fizera há pouco. Parecia injusto. Se ela
não pôde vê-lo na noite anterior, ele também não pôde vê-la. Se ela
tinha o direito de desejá-lo e de apreciá-lo à luz, ele também tinha.
Não tinha?
— Você pode olhar, agora.

Ele podia, mas não devia. Cada vez que ele a via nua, que via mais
dela, tornava-se quase impossível respeitar a promessa de não fugir
para se casar. Que se danasse tudo. Ele esperou anos por aquele
momento, queria aproveitá-lo quantas vezes fosse possível. Abriu
os olhos e virou-se para ela, que se aproximava com uma barra de
sabão, uma toalha e nada mais cobrindo-lhe o corpo.
Olivia apoiou o sabão e pendurou a tolha antes de entrar na
água. Charles memorizou cada movimento, cada flexão dos
músculos e tendões, a localização de cada pequena cicatriz ou
marca que a distinguisse. Ela colocou os pés ao lado de seus
quadris e desceu lentamente para sentar sobre suas coxas. Charles
ergueu as costas e eles ficaram face a face — ou quase. Nem assim
ela ficava do seu tamanho. Era a mesma posição da noite anterior,
então sabia que eles se encaixavam bem, apesar de tudo.
— Vou lavar seus cabelos. — Ela pegou um pequeno balde ao
lado da banheira, encheu de água e jogou sobre sua cabeça. —
Eles cheiram como uma fábrica.
— É o cheiro de quem trabalha. Incomoda você?
Olivia esfregou as mãos e fez espuma nos cabelos enquanto o
acariciava com as pontas dos dedos. Aquela era uma espécie de
tortura.
— Não, eu adoro. É autêntico. Eu sempre sei quando você está
se aproximando.
Enchendo o balde outra vez, ela despejou mais água sobre ele
para tirar o sabão. Esfregou a barra nas duas mãos e espalhou mais
espuma por seus ombros, peito, até descer pela água e tocá-lo no
abdômen.
— Eu não sei o que você fez comigo, mas foi algo poderoso. —
Olivia divagou enquanto o tocava. Parecia ainda fascinada com o
corpo masculino, com o que ele poderia oferecer-lhe. — Você sabe
que eu o adoro… somos amigos… — Ela ergueu os olhos e o
encarou. — Mas não consigo mais parar de pensar em você como…
As frases foram deixadas incompletas, porque as mãos dela
encontraram sua ereção inquieta. Talvez fosse um pouco difícil não
notá-la ali, clamando por atenção.
— Você pensa em mim como um marido?
— Não somente. Como um amante.
Ele levou as duas mãos até a face dela, puxou-a para perto e a
beijou. Olivia gemeu e o segurou com força.
— Você me deseja. — A constatação o deixava radiante. — Não
se preocupe, é recíproco.
Charles se levantou, espalhando água para todo lado e
erguendo-a consigo. Pegou as toalhas e esfregou rapidamente em
seu próprio corpo, depois esfregou o dela, segurou-a nos braços e
marchou firme para a cama. O gesto indicava que ele já estava farto
de banho.
Depositou-a no colchão, entre os lençóis arrumados, e subiu por
cima dela. Olivia se remexeu para lhe dar mais espaço e Charles se
acomodou entre as pernas dela. Ele sabia o que ela queria, mas
daria o que ela precisava. Encarou-a com os olhos escuros de
desejo, pressionou o membro rígido contra sua barriga arqueada e a
beijou. Devorou-a com lábios e língua enquanto suas mãos
deslizavam por todo o corpo feminino para que elas também o
memorizassem. Abriu-lhe a feminilidade com os polegares,
acariciou-a em seu centro de prazer e desceu os beijos até os seios.
— Oh, Charles!
Ela choramingou no instante em que ele capturou um mamilo
entre os dentes. Olivia teria uma superabundância de sensações e
ele esperava que ela gritasse. Gritasse por ele, gritasse seu nome,
implorasse pelo orgasmo. Com uma das mãos ele massageou os
seios, com a boca ele os sugou, com a língua ele os lambeu. Ela se
contorcia e arqueava na direção da outra mão, que acarinhava a
intimidade.
Um dedo deslizou pela entrada úmida e ele quase abandonou
tudo que estava fazendo. Olivia não estava inchada ou dolorida,
mas completamente receptível às suas carícias. Charles adicionou
outro dedo e ela gemeu mais alto. Circulou-lhe o clitóris com o
polegar e não parou até que ela se contraísse em espasmos que
não podia controlar enquanto entoava seu nome com a uma oração.
Charles. Charles. Charles.
Sem suportar mais um minuto, ele segurou-lhe o corpo ainda
convulsionando do clímax e a penetrou. Olivia agarrou-o pelos
ombros e o puxou para poder beijá-lo, cruzando as pernas ao redor
de seus quadris. Ele esperou que a sofreguidão diminuísse para
mover-se. Para fora e para dentro. Lento e firme. Rude. Batendo
carne com carne. Fazendo-a soluçar pelo prazer que ainda pulsava
em seus músculos.
A entrega de Olivia o desarmou desde a primeira vez. Ela era
uma mulher de paixões, que precisou moldá-las às regras da
sociedade — ou seja, escondê-las. Mas ali, com ele, ela pôde
libertá-las. Charles queria perpetuar o momento, torná-lo eterno,
impedir que os ponteiros do relógio girassem para imortalizá-los
naquele instante. Era suficiente saber que ele a teria para sempre
em seus braços, que um plano absurdo os conduziu àquele destino.
Com a mente girando e o corpo em êxtase, ele estocou mais
duas vezes até o ápice. Olivia enfiou a face em seu pescoço e
mordiscou a carne enquanto murmurava frases com pouco sentido.
Fique comigo. Fique. Charles virou-se na cama para aliviar seu peso
sobre ela. Continuaram unidos, um emaranhado de membros e
fluidos, por muitos minutos enquanto seus corações se acalmavam.

— Preciso ir. — Ele disse. Olhava para o teto e para o caleidoscópio


de luzes formado pela lamparina e a iluminação externa. O vento
farfalhava as árvores e criava sombras que mudavam de forma
depois de algum tempo observando-as. Olivia estava deitada com a
cabeça em seus pés e os pés em sua cabeça. Charles os
massageava como os indianos faziam. As dezenas de livros vindos
das Índias nunca lhe foram úteis até descobrir que eram fantásticos
ensinamentos para o sexo.
— Não.
— Não?
— Você não precisa ir. Também não quero que vá. Então, fique.
— É quase meia-noite. — Charles se revirou para puxar seu
relógio no bolso do colete e a caixa de veludo de Strewbury caiu ao
chão. Ele se esquecera completamente de entregá-lo a ela. Olivia
tinha aquele efeito estranho sobre ele, o da amnésia. Enfiou a caixa
de volta no bolso. Aquele não era o melhor momento para
presenteá-la com um anel de noivado, mesmo que a hipótese de
possuí-la usando apenas aquela joia obscena fosse ridiculamente
sensual. — Em Hampshire conseguimos controlar o escândalo
porque estávamos entre poucas pessoas, mas, se me pegarem
dormindo aqui…
— Vamos nos casar, dane-se o que as pessoas pensam.
Oras, se ela não ficava ainda mais linda falando grosserias?
Charles dobrou-se e a puxou para cima, fazendo-a aterrissar sobre
seu peito e a beijou.
— Isso significa que teremos que apressar um pouco as coisas.
Longos noivados e casamentos grandiosos não combinam com
damas que dormem na cama de seus noivos, ou vice-versa.
— Podemos apressar. — Ela se aconchegou por sobre ele e
acomodou uma perna em sua virilha. — Eu já tive planos grandiosos
de casamentos elegantes em St. George, mas tudo isso parece tão
estéril, agora. Minhas amigas ficarão frustradas, talvez Annabelle
pense que estou doente, mas ficarei bem mais satisfeita com um
casamento em que me sinta confortável e entre amigos. E que
garanta que possamos fazer isso sem que cause fofocas, claro.
Ele deu uma risada, que cessou no instante em que a mão dela
desceu pelo abdômen dele e se enrolou em seus pelos pubianos.
Seu pênis mal acabara de descansar e já entrava em modo de
combate outra vez. Não podia negar — Charles adorava aquela
Olivia desperta para os próprios desejos e sentimentos, a Olivia que
ele sempre soube que estava ali, esperando para ocupar o seu lugar
e se tornar uma mulher independente, dona de si, segura de sua
própria identidade.
— Fazer isso sempre causará fofocas. — Ele a beijou outra vez
e grunhiu ao ser envolvido por dedos macios e ávidos. —
Principalmente porque eu quero fazer isso toda vez que a vejo. Não
importa onde, nem quando.
Olivia não pareceu prestar atenção nele nem no que ele dizia.
Estava envolvida com as carícias que fazia, com os beijos que
distribuía, com o súbito interesse por tocá-lo. Não, não era súbito.
Ela já demonstrara interesse por aquela parte da anatomia antes —
só estava ficando mais experiente. A boca dela serpenteou por sua
trilha de pelos até trombar com seu membro já ereto o suficiente
para reivindicar sua presença.
— Eu posso beijá-lo?
Charles demorou algum tempo para entender a pergunta. Talvez
ainda não tivesse entendido quando a respondeu:
— Você pode beijar o que quiser.
Era verdade, afinal. Mas ele não esperava que ela fosse beijá-lo
ali. O que ela de fato fez. Continuou a trilha com a língua até
contornar sua masculinidade e lambê-lo como se ele fosse uma
iguaria doce. O toque era tímido e hesitante, mas ele poderia
explodir e se transformar e pó ali mesmo.
Talvez fosse a certeza de que nunca a teria. Ou a tola percepção
de que sexo era apenas sexo. Mas Charles descobriu que fazer
amor com a mulher que ele amava era uma experiência
transcendental. Aquela não era a primeira vez, tampouco a
segunda, e ele se surpreendia com as reações de seu corpo ainda
assim.
— O que devo fazer? — ela perguntou, puxando-o dos
devaneios.
— Qualquer coisa que quiser.
— Estou falando sério! — Olivia se sentou entre suas pernas
abertas enquanto acariciava-lhe o membro e os testículos. Charles
ergueu a cabeça para observá-la e percebeu que seria capaz de
atingir o clímax com aquela mera visão. — Você me beija aqui — a
mão dela tocou a feminilidade escondida — e eu quero beijá-lo aqui.
— Ela se dobrou e tocou-lhe a ponta úmida com os lábios. — Mas
quero saber como fazer para satisfazê-lo.
Bem, um Eckley jamais rejeitaria a oportunidade de ensinar a
uma mulher sobre a arte do prazer. Ainda mais se aquela mulher
fosse se tornar a sua esposa em… dois dias? Não seria rápido o
suficiente. Talvez ele precisasse conversar com ela sobre isso
depois.
— Coloque-o na boca.
— Todo?
A surpresa em sua voz o fez rir.
— Não, meu amor. O quanto você quiser. Mas é mais gostoso
quando você o envolve com a boca ao invés de apenas beijá-lo.
— Ah. Eu devo chupá-lo.
Por tudo o que fosse mais sagrado, sim! Ele nem teve tempo de
balançar a cabeça em concordância. Olivia se acomodou em uma
posição que considerava confortável e encapsulou suas partes
masculinas com os lábios mais macios e quentes que ele já
imaginara sentir ao seu redor, fazendo-o quase atingir o êxtase
antes do desejado.
Ele precisava tomar nota de que sua futura esposa era também
uma potencial devassa. Perfeita.
Capítulo vigésimo primeiro
Londres, 25 de abril de 1898

Casa de jogos de Riderhood


U .R C
o único a perceber a ausência de Charles Eckley naquela noite —
esse era o comentário geral que circulava no clube de Riderhood.
— Pelo menos hoje teremos chance de ganhar. — Stafford jogou
algumas fichas na mesa. — Não aguento mais ser saqueado por
aquele Eckley.
— Sorte sua que o irmão não está mais na Inglaterr. — Hughes
implicou e cobriu a aposta.
— Deus nos livre de Leonard. Ele é imbatível em qualquer jogo.
— O barão virou suas cartas. — Não sei o que tem essa família,
ainda bem que os tenho como amigos.
— Não sei o que eles têm, mas sei que Greystone ficou sem a
garota e ainda ganhou um olho roxo.
A provocação veio de Newcombe. O duque odiava aquele
almofadinha que se achava importante apenas porque caíra nas
graças de um conde. O problema era que o babaca tinha razão: até
aquele momento, ele havia perdido uma batalha importante para
Charles. Não apenas a batalha, perdera uma maldita aposta e a
chance de saldar algumas dívidas importantes do seu ducado.
— Eu não fiquei sem a garota. Enquanto eles não forem
declarados casados, ainda posso vencer.
— Vencer o quê?
Riderhood se aproximou da mesa. O crupiê distribuiu as cartas e
os homens começaram a fazer as apostas.
— A aposta que Vossa Graça fez comigo. De que venceria
Charles Eckley e se casaria com Lady Olivia — Newcombe
respondeu.
— Essa já era, meu amigo. — Stafford lhe deu um tapinha no
ombro. — Eles passaram uma noite inteira juntos. Charles declarou
em claro e bom som que ela pertence a ele. A moça está marcada.
— Marcada ou não, ela ainda não se casou com ele.
Richard apostou uma quantia exagerada de dinheiro. Ele já tinha
bebido mais uísque do que deveria e precisava de soluções, não de
amigos impertinentes lhe dizendo o que perdera.
— E o que pretende fazer para mudar a situação? — Hughes
retirou-se da partida. — Quando você pensa assim, imagino que
tenha planos para uma nova investida.
— Uma que não represente o outro olho roxo? — Newcombe
continuou a provocá-lo.
— Calem-se. Eu apenas preciso que Lady Olivia veja o Eckley
como ele é. Um mulherengo viciado em jogos, uísque e sexo. Ela é
uma dama da alta sociedade, mas também é uma mulher sensível e
apaixonada. O que ela fará quando souber que seu futuro marido
mantém uma amante fixa morando em St. James?
Os homens ficaram em silêncio por alguns segundos. Stafford
pagou a aposta do duque e baixou suas cartas. Richard o venceu
com um straight flush e puxou todas as fichas para si.
— O maldito não está blefando! — O barão surpreendeu-se.
— Agora, eu preciso acompanhar os desdobramentos. Como
Lady Olivia saberá que Charles mantém uma amante? Vai contar a
ela?
As duas perguntas de Hughes ficaram no ar. Richard limitou-se a
olhar para o amigo e sorriu antes de levantar-se e recolher os
espólios da noite. Talvez o excesso de álcool não o tivesse
desorientado tanto. Aquele era um plano excelente e ele nem
precisava sujar as mãos.
Londres, 26 de abril de 1898
Brooke Street

Olivia acordou como nos livros de romance. Aquilo era bom. E


trágico. Exceto que não havia nada de trágico em despertar com a
luz do sol bruxuleando pelo tecido translúcido das cortinas e o canto
dos pássaros. Nem com a visão das nádegas musculosas do
homem com quem passara a noite. Céus! Ela nunca se imaginou
encarando as partes íntimas de ninguém. Os bons modos diziam
que ela deveria olhar para o lado. Para a janela, para uma
rachadura na parede, para o próprio dedão do pé — mas ela estava
olhando para Charles nu, de costas, enquanto ele se dobrava para
vestir as calças.
Se havia qualquer dúvida quanto ao que ela sentia por ele, essa
dúvida se dissipou naquela noite. A amizade de longa data garantia
que ela o conhecesse bem, que ela o respeitasse e o admirasse. O
desejo sublime por aquele corpo masculino gritava que ela não
estava errada quando se percebeu apaixonada por Charles Eckley.
Atirou-se com a cabeça nos travesseiros. Amar o marido não era
ruim, era? Aquele deveria ser seu principal objetivo ao procurar um
casamento: alguém por quem se apaixonasse. Olivia riu sozinha. O
homem que amava sempre esteve ao seu lado e ela quase o
perdeu.
— Bom dia. — Ele pendeu por cima dela e os cabelos castanhos
emolduraram sua face. — Há um banho quente esperando por você.
Imagino que vá querer se lavar.
Ela queria? Lembrou-se nitidamente de tudo que aconteceu
naquela noite. Sentou-se na cama para perceber que havia fluídos
em lugares inimagináveis e que aqueles lençóis precisavam ser
trocados. Não, queimados. Todos os criados saberiam que ela teve
uma noite de pura degradação com um libertino em sua cama.
Pulou da cama, enrolando-se em um lençol, e arrastou-se para o
banheiro anexo. Examinou-se no espelho de corpo inteiro antes de
entrar no banho. Aquela peça era linda, de corte oval e moldura de
bronze que pesava uns oitenta quilos. A visão que Olivia teve
também era linda. Seu corpo estava repleto de marcas vermelhas,
algumas arroxeadas, todas reflexo da boca e das mãos de Charles
durante os momentos mais intensos do ato sexual. Ele era grande,
um amante vigoroso e ela adorava toda aquela virilidade. As marcas
eram de prazer. Representavam a mesma Olivia em uma nova
roupa: a de uma mulher satisfeita, que se sentia tão bem quanto
nunca antes.
E essa mulher tinha muitas coisas para fazer durante o dia. A
principal delas era organizar um casamento o mais rápido que
pudesse. A escolha era dela e ela escolhia não passar mais noites
longe de Charles.
Quando retornou para o quarto, encontrou-o já vestido e uma
bandeja com chá e bolinhos na mesinha próxima à lareira.
— O que é isso?
— Seu desjejum. — Ele a segurou pela cintura e a puxou para
um beijo breve. — Estive na cozinha, convenci uma criada a
preparar essa bandeja e não se preocupe: ninguém saberá que
dormi nesse quarto.
— Como não saberão se você apareceu na cozinha às oito da
manhã?
— Primeiro, lembre-se que já a visitei mais cedo — Ele pontuou
enquanto a beijava outra vez. — Segundo, eu entrei em um dos
quartos e fiz uma pequena desordem na cama. Pensarão que eu
passei a noite aqui, mas sozinho.
O cuidado que ele dispensava a ela aqueceu seu coração. Olivia
enrolou-se em um roupão e se serviu de uma xícara de chá. O
cheiro dos bolinhos fez seu estômago saltar. Estava faminta.
Sentou-se e colocou um inteiro na boca, mastigando com alguma
ferocidade. Não costumava acordar com tanta fome, como se seu
interior estivesse vazio. Charles pegou um sanduíche de queijo e
beijou-a nos cabelos.
— Preciso ir. Tenho compromissos na obra em St. James e
finalmente me encontrarei com Gupta depois de Hampshire.
— Essa obra em St. James, do que se trata?
— Estou renovando uma área com novas casas, prédios e muito
comércio. Grant Sawbridge é meu sócio.
— Parece importante. — Olivia se levantou, foi até ele e o beijou
por uma última vez naquela manhã. Charles tinha os lábios doces
como creme de baunilha e ela soube que passaria o dia miserável
pensando nele. Que força poderosa era aquela, a da paixão! —
Venha à noite para conversarmos sobre o casamento.
Ele sorriu e saiu, deixando-a para trás com sua fome sem fim e
uma aura de fadas e anjos com trombetas cantarolando ao seu
redor.
Não havia tempo para aquelas bobagens românticas. Depois de
consumir tudo que tinha na bandeja e vestir-se sem a ajuda de
Bridget — o que fez com que seus cabelos estivessem
desorganizados em uma trança mal feita —, Olivia desceu e
arrastou Annabelle para as compras. Ela ainda não havia desistido
de casar a irmã, mesmo que sua atenção estivesse um pouco
pulverizada naquele momento. Elas precisavam de acessórios e
tinham que começar a ver sobre os preparativos do casamento.
Aproveitou e levou Esther e Mary consigo. Quanto mais amigas
para mantê-la não pensando em Charles e em tudo que eles fizeram
na noite anterior, mais ela garantiria a sua sanidade até à noite. No
que aquele homem a havia transformado?
Não, ela não podia responsabilizá-lo por isso. Tirando o fato de
que ele a fizera amá-lo de uma forma que jamais imaginou amar seu
melhor amigo, tudo que acontecera desde Hampshire era sua estrita
responsabilidade — inclusive passar uma noite de perversão
acordada.
— O que você acha desse tecido?
Annabelle cutucou-a enquanto segurava um pedaço de seda. Ela
andava distraída demais e isso estava fazendo com que todas
prestassem atenção nela.
— Um pouco extravagante. — Olivia examinou a peça. Tinha
uma cor amarela esfuziante que parecia conter toda a luz do sol. —
Se for para um vestido de dia e se for para pequenos detalhes…
— Não é para nenhum vestido, Livvy! Onde está a sua cabeça?
— Mary reclamou.
— Provavelmente, no noivo devasso dela. — Annabelle entregou
o tecido ao vendedor. — Separe dez metros para mim. — Olivia se
esqueceu que meu quarto fica ao lado do dela.
Mary e Esther se entreolharam e arregalaram os olhos. Ela quis
esconder-se entre um monte de renda para evitar aquela conversa.
Claro que as amigas iriam querer saber dos detalhes.
— Certo, precisamos de uma xícara de chá. Agora.
Esther decidiu e começou a empurrá-las para fora da loja de
tecidos. Não havia lugar menos discreto para falar de sua vida
íntima do que uma casa de chá. Para sua sorte — ou azar —, o
grupo foi interpelado pelo Duque de Greystone. Ele tinha um olho
mais roxo do que o de Charles e se aproximou sorrindo.
— Bom dia, miladies.
Nenhuma das mulheres sorriu de volta.
— Vossa Graça é muito atrevido em dirigir a palavra para minha
irmã. — Annabelle se emplumou como um galo de briga.
— Entendo sua indignação, Lady Annabelle. Mas gostaria de
dizer que estou profundamente envergonhado pelo que fiz. — O
duque se virou para ela com uma expressão quase sincera de
arrependimento. — Lady Olivia, perdoe-me. Compreendi mal suas
intenções naquela noite. Não pretendia forçá-la a nada.
Olivia quis deixar o outro olho dele roxo. Ficou irritada com
Charles pela selvageria, mas entendia que Greystone ultrapassara
todos os limites da decência. Ele não podia supor que ela queria
fornicar com ele apenas por estar na cozinha de sua própria casa.
Maldita fosse aquela brincadeira.
Apesar de tudo, ele parecia sincero. Não precisava ser amiga
dele — não pretendia tornar-se grande amiga de nenhum outro
homem —, mas preferia preservar o bom relacionamento com um
duque jovem, bonito e que precisava recuperar a amizade com seu
futuro marido. Talvez, se ela não se ressentisse pelo que houve,
isso pudesse afetar na decisão de Charles sobre Greystone.
— Aceito suas desculpas, milorde. — Ela fez uma reverência e
ele recolocou o chapéu. — Se nos dá licença, temos compromissos
importantes que nos esperam.
As quatro mulheres foram até a casa de chá da Sra. Bloom e
Olivia agradeceu que o estabelecimento não estava cheio. Ainda
eram dez e meia e ela já tinha fome outra vez, por isso pediu torta
de morangos. Sentadas em uma mesa no canto, próxima da janela
que dava para um belo jardim de jacintos, as amigas se sentiram
confortáveis para interrogá-la.
Não. Elas queriam interrogar sua irmã.
— Belle, diga-nos o que ouviu essa noite.
Annabelle bebeu um gole de chá e suspirou.
— O som dos apaixonados. — Ela riu. — Não se enganem, ouvir
sua irmã mais velha passar a noite com seu futuro cunhado não é a
coisa mais divertida a se fazer na madrugada. Charles Eckley cria
padrões muito difíceis de serem superados pelos pretendentes que
me aparecerem.
Olivia cuspiu o chá que acabara de levar à boca.
— Não acredito que esteja dizendo isso, Annabelle! E você não
pode ter ouvido…
— Quer que eu repita algumas de suas falas?
— Não! — Ela balançou veemente a cabeça para os lados. —
Por que se surpreendem? Não sabiam que passamos uma noite
juntos em Hampshire?
— Ah, sim, sabíamos. Mas você agora vai passar todas as noites
com ele? — Mary perguntou.
Sim.
— Claro que não. Ontem foi… ele estava ferido, exausto e eu…
na verdade, o que fiz foi…
— Livvy, — Esther colocou a mão sobre a dela — não fique
nervosa. Se quiser falar nisso, fale. Se não, vamos entender. Não
vamos?
As outras duas assentiram. Ela olhou ao redor. Seria melhor
fingir que aquela conversa nunca se iniciou, exceto que ela queria
muito falar sobre Charles. Sobre tudo.
— Simplesmente não consigo resistir. — A frase saiu em tom de
confissão. — O desejo que sinto por ele é além de tudo que já
imaginei.
— E, pelo visto, ele também a deseja da mesma forma. — Mary
suspirou. — Ah, isso é um sonho se tornando realidade. Vejam se
não é como nas histórias de livros?
— Não quero que meu casamento seja como nos livros. Lá os
finais são sempre suspeitos.
— Nos meus livros, os finais são felizes. — Annabelle comeu um
pedaço de torta. — Não sabote a sua felicidade, Livvy. Aproveite a
oportunidade, agora que finalmente perceberam que se amam.
— Não percebemos.
— Vocês não se amam? — Esther duvidou.
— Eu o amo. Mas ele…
O assunto pausou. Olivia não sabia dizer o que Charles sentia
por ela. Sentia de verdade. Eram amigos, havia todo aquele desejo,
aquele fogo que incendiava os lugares por onde passava, mas era
só isso? Aquela necessidade, a agonia de estar com ele o tempo
todo, a ânsia de fundir-se a ele e se transformar em um ser — será
que ele sentia o mesmo?
— Não importa se ele me ama dessa forma. — Ela decidiu. —
Somos ótimos juntos. Eu terei um casamento melhor do que a
maioria das nossas conhecidas, então estou satisfeita com o que
conquistei.
Claro que ela estava.
— Estranho encontrarmos com um duque em uma loja de
tecidos. — Mary mudou a conversa para outro rumo.
— Espero que ele tenha entendido que não pode mais cortejar
Olivia. Não gostei das atitudes dele em Hampshire. Você é muito
boa, Livvy. Eu o teria desprezado.
— Não se despreza um duque. — Esther se assustou. — Mas
também não gostei do que ele fez.
— Vamos nos esquecer de Greystone. Estou comprometida com
outro homem, agora. — E ela nem mesmo estava muito chateada
com o incidente, já que ele a jogou nos braços de Charles. — O que
acham de seguir com nossa agenda? Temos que conseguir horário
na modista ou não haverá vestido de casamento.

Passava das cinco quando os compromissos terminaram. O último


foi o clube de leitura que terminou logo após o chá. Olivia estava
cheia de tanto tomar Earl Grey — aquele era o quarto chá do dia —
e exausta do dia. Annabelle falava como uma papagaia, animada
com a possibilidade de receberem convites para o prestigioso baile
dos Norfolk. Sua cabeça doía um pouco, apenas o suficiente para
fazer com que precisasse de sua cama.
— Milady.
Um menino de calças curtas e botinas muito gastas interpelou-as
antes que chegassem à rua. Como a carruagem Salisbury era muito
grande, elas preferiram pegar um carro de aluguel para circular pela
congestionada Londres.
— Pois não?
— Pediram que lhe entregasse isso.
Isso era um papel quase amassado, dobrado ao meio e
rabiscado às pressas. Ela não identificou a caligrafia, mas o bilhete
dizia que ela deveria ir à casa de Charles com urgência. Como não
tinha nenhum compromisso com ele que fosse urgente, a
mensagem era uma incógnita — e indicava problemas. A mera
hipótese de que algo ruim pudesse ter acontecido deixou-a bastante
nervosa. Afinal, se não fosse algo ruim, por que ela estaria sendo
convocada às pressas por um bilhete escrito por alguém que ela
provavelmente não conhecia?
— Precisamos ir à Grosvenor Square. — Ela agarrou a mão de
Annabelle e disparou para a rua. Parou o primeiro carro que passou
vazio e arrastou a irmã para dentro.
— O que houve?
— Um bilhete misterioso de Charles. Bem, imagino que tenha
vindo dele. Só sei que parece importante.
— Então eu deveria ir para casa. Se o seu noivo a está
chamando…
— Não seja tola, Belle. Não é para esse tipo de coisa que você
está pensando que estou indo até lá.
— Você não sabe o que estou pensando.
— Pode ter certeza de que sei.
Olivia manteve-se segurando as mãos da irmã. Uma voz
imaginária sussurrava em seus ouvidos que havia problemas
adiante. Não imaginava que tipo de contratempos sua vida
praticamente perfeita poderia ter naquele momento, mas ela
raramente ignorava a voz imaginária.
O táxi não foi rápido o suficiente. Quando chegaram em frente à
casa de Charles, seu coração já tinha parado de bater pelo menos
três vezes. Ele parou, voltou disparado, saltou várias batidas.
Parecia uma sinfonia desafinada e seu peito estava repleto de
instrumentos cacofônicos quando bateu à porta.
Ninguém atendeu. Aquele era um indicativo de que a voz tinha
razão. Ela bateu um pouco mais e rodeou a casa até a porta dos
fundos, que estava destrancada. A pouca luz quase as engoliu
quando as duas mulheres entraram pela cozinha. Não havia
nenhum criado à vista, nem mesmo Ashford.
— Charles? — ela chamou, mas o silêncio indicava que a casa
estava vazia. Aquela casa nunca estivera vazia antes, o que isso
poderia indicar?
— Que tipo de brincadeira é essa? — Annabelle abriu a porta do
escritório, vazio, e da biblioteca, também vazia. — Não tem ninguém
aqui.
— Vou subir. Espere-me.
Escalando os degraus de dois em dois, segurando a barra do
vestido para não tropeçar, ela chegou ao segundo andar em
segundos. Ruídos vindos do quarto de Charles fizeram-na ir
diretamente para lá. A porta estava entreaberta e o que ela viu fez
seu coração parar de vez. O ar foi sugado de seus pulmões e Olivia
bateu com as costas na parede, sem conseguir manter-se de pé
sem ajuda.
Sobre a cama estava uma linda mulher, com um negligee
vermelho, em uma pose bastante indecorosa. Ao vê-la, a mulher
gritou e puxou um lençol para cobrir-se.
— Quem é você?
A pergunta saiu sem que ela conseguisse evitar. Quem é você,
linda mulher de vermelho, que está na cama do homem que eu amo
como se… como se fosse sua amante?
— Daisy Campbell. — A mulher se aproximou com cuidado. —
Creio que não fomos apresentadas.
O nome martelou em sua cabeça. Ele tinha forma e densidade e
estava saltitando por seu crânio enquanto o som da voz dela
continuava ecoando pelo quarto. Daisy Campbell. Olivia já ouvira
aquele nome antes.
Você já dispensou Daisy Campbell?
— O que você está fazendo aqui?
— Eu fui convidada. — A mulher se levantou e vestiu um roupão
de seda. — Você veio para se juntar a nós?
— Eu também fui convidada, mas tenho certeza de que não
pretendo me juntar a… nós?
— Eu e Charles. Você trabalha para ele? Para o Sr. Eckley?
— Não, eu não trabalho. Eu… o que mesmo disse que veio fazer
aqui?
— Olha, se você não trabalha para Charles nem veio fazer um
ménage conosco, creio que esteja perdida. Precisa de alguma
ajuda?
Ela estava perdida. Destroçada, arrasada, sem rumo. Seus olhos
rodaram por todo o quarto procurando indícios que não estavam ali,
mas não era preciso nada mais para entender o que estava
havendo. Aquela mulher era a amante de Charles. Ou uma delas, já
que Daisy Campbell pareceu disposta a fazer qualquer coisa que
incluísse três pessoas. Se Olivia não estivesse tão chocada, ela
talvez vomitasse naquele tapete persa ridiculamente caro que
decorava o quarto de Charles.
— Não preciso de ajuda. — Ela estendeu a mão para
cumprimentar Daisy. — Meu nome é Lady Olivia Trenham. Foi um
prazer conhecê-la, Srta. Campbell, mas é melhor que eu me vá.
Ela não podia continuar ali. Sentia tanta dor de cabeça que
talvez pudesse explodir se não saísse imediatamente daquele
quarto. Daquela casa. Mas a mulher se surpreendeu ao ouvir seu
nome e começou a se vestir para segui-la.
— Lady Olivia, espere!
As palavras flutuavam pelo ar, então ela precisava correr mais.
Quase caiu ao descer as escadas. Passou por Annabelle como se a
irmã não estivesse ali. Irrompeu pela porta principal como se ela não
estivesse trancada. Atirou-se na rua, na semiescuridão do
entardecer, quando as luzes ainda estavam sendo acesas e as
pessoas começavam a sair de seus trabalhos.
Daisy Campbell era a amante de Charles. Não, essa não era a
questão, porque ele tinha um passado que Olivia conhecia. Daisy
Campbell ainda era a amante de Charles, mesmo depois que eles
estavam juntos, realizando todas aquelas coisas obscenas e
maravilhosas na cama. Ele a convidara para a sua casa, para o
quarto que nem ela ocupara, e deu a ela uma chave para entrar.
Uma chave.
Não havia motivos para assombro. Os homens tinham amantes.
A maioria deles. Quase todos, não? Não. Os que amavam suas
esposas não as tinham. Os apaixonados eram fiéis. Anthony Eckley,
o maior libertino de Londres, se tornou um homem fiel à sua
Rosamund. Então o susto era porque Olivia esperava que Charles
fosse seguir os passos do irmão.
Esperava que ele lhe fosse fiel. A traição era uma adaga fina que
sua mente segurava com mãos firmes e cravava diversas vezes em
suas costas.
Ele é um libertino. Uma facada.
Ele tem outras mulheres. Outra facada.
Por que ele se satisfaria com você? Facada.
Você acreditava mesmo que seria a única? Facada.
Talvez Annabelle estivesse vindo atrás dela. Talvez correndo,
talvez gritando. Olivia não conseguiu ouvir nem ver — seus olhos
estavam afogados em lágrimas. Estava tudo tão escuro, tão confuso
e tão barulhento que ela continuou correndo até que, de repente,
não viu mais nada.
Capítulo vigésimo segundo

E . A
Gupta no Savoy e, ao olhar-se no grande espelho do saguão
principal do hotel, percebeu que seu olho roxo estava tão feio
quanto antes. Puxou o relógio do bolso e a caixinha do anel de
noivado resvalou em sua mão. Ele precisava entregá-lo a Olivia.
Não haveria ocasião especial. Não haveria nada elegante ou
grandioso que o permitisse fazer um pedido de casamento digno de
sua futura esposa.
Talvez um jantar em um restaurante caríssimo ou durante uma
apresentação no teatro. Charles podia pendurar-se no meio da
Picadilly e declarar-se. Mas ele não era um homem romântico.
Olhou o relógio e suspirou. Seis horas. Já podia ir para casa.
Sua definição de noite perfeita mudara desde aquela bendita
viagem a Hampshire. Queria aconchegar Olivia em um abraço,
sentar-se de frente para a lareira e beber um bom malte. Preferia
que não houvesse roupas envolvidas, mas também estaria feliz se
eles estivessem devidamente vestidos e rodeados de amigos e
parentes.
Cavalgou até a Grosvenor Square na intenção de se lavar e
vestir uma roupa limpa antes de ir até a Casa Salisbury. Decidiu
entregar o anel enquanto as mulheres estivessem reunidas no salão
da família, assim as irmãs presenciariam o momento. Desistiu de se
lavar tão logo entrou em casa — era melhor deixar que Olivia o
lavasse.
As imagens que imediatamente se formaram fizeram-no
endurecer. Charles parecia um jovem tolo e permanentemente
excitado desde que dera vazão aos sentimentos por ela.
— Ashford! — berrou pelo mordomo enquanto retirava o casaco
e pendurava, por conta própria, no vestíbulo. — Ashford! Onde você
se enfiou?
Procurou na cozinha e no quarto da criadagem até lembrar-se de
que dera folga ao homem para que fosse visitar a mãe idosa em
Hertfordshire. Desde a viagem para Hampshire ele dera folga a
quase todos os criados, permitindo que fizessem horários reduzidos
e ainda não restabelecera o bom andamento da casa. Subiu
apressado para seu quarto e quase teve um ataque do coração ao
ver Daisy sentada em sua cama.
— Oh, Charles! Que bom que chegou, estava nervosa
esperando!
Ele levou poucos segundos para se lembrar de que Daisy tinha
uma chave de sua casa, mas não imaginava o que ela estava
fazendo ali. Não a convidara. Podia dizer que se esquecera
completamente dela, o que era desrespeitoso e um indicativo do
quanto a sua vida estava diferente. Esperava que a mulher não
estivesse ali para reatar qualquer compromisso que tivessem, pois
ele se sentiu subitamente um canalha. Bem, ele era um. Deveria ter
lhe dito a verdade muitos dias atrás.
— O que houve, Daisy? Por que está nervosa?
A mulher levantou-se e estendeu-lhe um papel com as mãos
trêmulas. Estava vestida da cabeça aos pés, mas as roupas
pareciam ter sido colocadas de qualquer jeito.
— Você me enviou isso?
Charles abriu o papel. Era um bilhete com sua assinatura, porém
não tinha sido escrito por ele. Bem, aquela também não era a sua
assinatura, mas uma imitação mal feita. No bilhete, pedia que Daisy
se encontrasse com ele. Não, o conteúdo era bem mais obsceno do
que aquilo. Poderia mesmo ter sido algo que ele escrevesse.
— Com certeza não fui eu. Não é minha caligrafia e eu estive
sóbrio durante todo dia para lembrar caso tivesse escrito algo assim.
Aliás, nunca estive tão sóbrio em minha vida. Como diabos isso
chegou até você?
— Um garoto foi até a casa e me entregou. O problema não é
esse, Charles. Ela esteve aqui.
Ela?
— Ela quem?
— Sua Olivia.
Ele precisou apoiar-se na cômoda ou seu corpo desmoronaria.
Os joelhos fraquejaram e quase o derrubaram ao chão, mas Charles
não tinha tempo para isso.
— Olivia a viu aqui? No meu quarto?
— Vestida de vermelho, como pede o bilhete. Em uma posição
nada inocente. Eu me apresentei, pensei que fosse uma criada até
perceber que ela se vestia com elegância aristocrática. Alguém
armou uma cilada para você.
Alguém armou uma cilada para ele.
Charles não conseguiu pensar claramente, sua mente anuviada,
escurecida pelo pavor. Olivia vira a sua amante — ex-amante! —,
em seu quarto, em vestes indecentes. Se ele conhecesse Daisy, as
vestes seriam aquelas que importara da França um ano atrás. A sua
noiva, a mulher que ele amava, deparou-se com outra mulher
seminua em sua cama. E ela deveria estar furiosa. Ou pior, ela
poderia estar magoada.
Era mais fácil lidar com uma mulher furiosa, que lhe atirasse
coisas e gritasse. Charles sabia que a fúria, a explosão de raiva,
ajudava a minimizar a mágoa e facilitava o perdão. Mesmo que não
tivesse feito nada errado, ele ainda ajoelharia à frente de Olivia e
imploraria para que ela o ouvisse.
— Preciso falar com ela.
Disparando escada abaixo, ele só pensava em correr até a Casa
Salisbury. Tropeçou no tapete e derrubou um vaso de porcelana, o
que o atrasou e permitiu que Daisy o alcançasse. Ela o segurou pelo
braço e o fez virar-se para ela.
— Eu irei com você. Será mais fácil acreditar se ela ouvir de
mim, não acha?
— Tem razão, vamos em minha carruagem. Não, vamos pegar
qualquer táxi na rua, preparar uma carruagem sem criados
demoraria demais.
Charles escancarou a porta no instante em que um cavalo
dobrou a esquina e veio em sua direção. O animal ofegante trazia
seu irmão Anthony — que estava sempre elegante e bem-vestido,
mas parecia bastante desgrenhado naquela noite. O marquês
desmontou apressado e o encarou com uma expressão que
indicava problemas.
— Ainda bem que o encontrei em casa.
— Seja o que for, terá que esperar. Preciso ir até a Casa
Salisbury.
— Então você já sabe?
— Sei o quê?
Anthony colocou as duas mãos em seus ombros e Charles se
chacoalhou para livrar-se do contato. O irmão balançou a cabeça e
pressionou a ponte do nariz — outro sinal de que havia algo muito
errado.
— Olivia sofreu um acidente. Não sei dizer como, Annabelle não
viu direito, mas ela foi atingida por uma carruagem quando
atravessava a rua.
Londres, 27 de abril de 1898
Brooke Street

Se ele estava desorientado antes, perdeu completamente a


consciência do que acontecia ao seu redor ao receber a notícia de
Anthony. Não se lembrava de como chegara à Casa Salisbury nem
de quem o acompanhara até ali. Não tomou conhecimento de
ninguém, ignorou toda e qualquer convenção social que o impedisse
de chegar até a beira da cama de Olivia e estava ali, segurando a
mão dela enquanto ela dormia.
Só que ela não estava dormindo.
— Não sabemos se ela sobreviverá — disse o médico. — Ela
sofreu um trauma na cabeça e só nos resta esperar que acorde.
Assim que o homem saiu, Charles mandou que chamassem
outro médico. Quando chegou, deu o mesmo diagnóstico usando
palavras mais difíceis.
— A lady sofreu uma concussão. O estado dela é grave e só
saberemos amanhã se ela vai sobreviver.
Já era amanhã e ela ainda estava desacordada. Claro que
Charles mandou vir um terceiro médico, que ainda não chegara. E,
depois que o homem falasse a mesma bobagem, ele mandaria vir
um médico do exterior. Talvez um xamã ou um curandeiro, qualquer
um que tirasse Olivia daquele estado.
Annabelle não viu o que aconteceu. Elas estavam juntas, mas
Olivia saiu correndo da casa e entrou na frente dos veículos. Era
difícil de imaginar Lady Olivia Trentham tão fora de seu juízo a ponto
de causar aquele tipo de acidente. O condutor da carruagem que a
atingiu prestou socorro, ela foi imediatamente levada para casa,
mas permanecia inconsciente já por várias horas.
— Você precisa descansar. — Nicholas colocou uma mão em
seu ombro. Charles se remexeu. Ele não queria contato, não queria
consolo. Precisava descobrir quem havia feito aquilo e tinha certeza
de que mataria o responsável. — Não comeu nada até agora e já é
quase noite.
— Eu preciso é que o maldito médico venha vê-la! Não é
possível que nem uma fortuna seja capaz de conseguir um
profissional competente nesta cidade!
— Trouxemos o Dr. Davies de Thanet. Ele era o médico da vila
que cuidava de todos nós, lembra-se?
Sim, ele se lembrava. Se alguém poderia cuidar de sua Olivia,
aquele era Davies. Não pensara no homem antes, mas Charles não
pensara em absolutamente nada desde que ouvira as palavras
saindo da boca de Anthony.
— Quando ele chega?
— Ashford foi recebê-lo na London Bridge. Venha comigo,
Charlie, deixe que Annabelle fique com a irmã.
Ele aceitou ser arrastado para fora do quarto. Bebeu um copo de
água e duas doses de uísque, mas não conseguiu comer nada. O
cheiro de alimento embrulhou seu estômago e quase o fez vomitar.
Permaneceu no salão de entrada com o irmão até a chegada do
médico. Estava depositando esperanças demais no Dr. Davies, mais
ainda em uma cura milagrosa para Olivia, mas precisava acreditar
que ela fosse melhorar.
Não havia um mundo em que Olivia Trentham não existisse. Ao
menos para ele.
— Seja bem-vindo, Davies. — Nicholas apertou a mão do
homem já idoso, mas que guardava uma expressão astuta. —
Providenciaremos comida e seus aposentos para que descanse um
pouco.
— Agradeço, meu jovem. Mas creio que deva ver a paciente
primeiro. Fui informado de que ela bateu a cabeça e isso é muito
grave.
Muito grave. Charles respirou aliviado porque o médico entendeu
seu desespero sem que ele precisasse explicar. Nicholas concordou
e conduziu o Dr. Davies para o quarto de Olivia. Ele seguia
observando, preocupado, evitando interferir porque seria capaz de
fazer uma bobagem. Manteve-se distante enquanto ela era
examinada pela terceira vez e a falta de palavras estava lhe
drenando a sanidade.
Davies levou mais de meia hora medindo, conferindo,
balançando a cabeça e soltando interjeições que ninguém
compreendia. O silêncio pesava uma tonelada quando ele
finalmente se virou para a família e, com a expressão de derrota,
fechou sua maleta.
— Não há nada que possamos fazer. Ela sofreu uma concussão
e só nos resta observar. Seria ideal que ela acordasse em um dia
depois do acidente, mas a medicina ainda não é precisa quando se
trata de ferimentos no crânio.
As palavras se embaralharam em sua cabeça. Não havia nada
que se pudesse fazer. Como poderia esperar? Esperar que ela
acordasse? Que ela morresse? Charles não sabia esperar. Ele não
tinha paciência, nunca tivera. Foi por isso que decidiu ganhar muito
dinheiro — suas decisões faziam com que as coisas acontecessem.
E todo o dinheiro que tinha não era capaz de fazê-la acordar? De
despertá-la para a vida que ainda tinham que viver juntos?
Sem se dar conta das pessoas ao seu redor, ele se ajoelhou ao
lado da cama. Segurou os dedos de Olivia e os beijou. Não houve
nenhuma reação. Beijou-lhe o braço, o ombro, a bochecha, os
lábios pálidos. Ela permaneceu inerte.
— Concussões são misteriosas, meu rapaz. — Davies colocou a
mão sobre seu ombro. Por que diabos as pessoas achavam que
podiam ou deviam consolá-lo? — Ela pode se levantar amanhã
como se nada tivesse acontecido, apenas com uma grande dor de
cabeça.
— Ou ela pode nunca acordar. — Charles se levantou.
— Isso pode acontecer, mas…
— Descobrirei quem fez isso — ele interrompeu o médico. Olhou
para Nicholas, Margaret, Annabelle e Adalind. Todos estavam no
quarto querendo o mesmo que ele. — Vocês devem cuidar dela.
Davies, eu pagarei o triplo do que você receberia em situações
como essa, apenas não saia do lado desta cama.
— Você vai sair? — Nick interpelou-o antes que cruzasse a
porta.
— Fique com ela não importa o que houver. Você me promete?
— Claro que prometo, mas o que você pretende fazer, Charles?
— O que eu jurei que faria se alguém ferisse Olivia.
Ninguém compreendeu sua promessa — ou ameaça —, e ele
não fez questão de explicar. Seu destino poderia ser St. James,
onde estava Daisy. Ele deveria investigar o garoto que entregou o
bilhete, mesmo que todos os garotos por ali fossem iguais. Talvez
devesse ir à polícia e reportar um crime, pois a pessoa que quis
prejudicá-lo acabou causando o acidente. Essa pessoa deveria
responder por homicídio.
Mas a polícia não estaria tão motivada a encontrar o culpado
quanto ele. Era provável que considerasse que tudo não passou de
um mero acidente. Charles não podia deixar que a justiça
resolvesse aquele problema. E, apesar de saber tudo que deveria
fazer, deixou que seus pés o conduzissem para a casa de jogos de
Riderhood. Se havia alguém que sabia de tudo que acontecia
naquela Londres, essa pessoa se chamava Thomas Riderhood e ele
faria qualquer coisa para que o homem contasse quais de seus
desafetos chegaria àquele ponto.
Londres, 27 de abril de 1898
Casa de jogos de Riderhood

Primeiro, ele bebeu. Uma garrafa de conhaque e muita observação


depois, Charles estava pronto para o que tinha que fazer. Não que o
álcool lhe desse mais coragem. O que ele tinha que fazer não
requeria coragem, mas uma enorme dose de estupidez. O álcool o
fazia bem mais estúpido.
— Thomas.
— Não lhe servirei mais nada, Eckley. — Riderhood recostou-se
no balcão. — Vá para casa, vá para a sua noiva.
— Minha noiva está morta.
O homem se empertigou e apoiou com as duas mãos sobre a
madeira lisa que estava limpando segundos atrás.
— Morta?
— Alguém tentou me prejudicar distribuindo bilhetes pela cidade
e isso causou um acidente. Olivia está desacordada sobre uma
cama e nenhum dos médicos que a examinou disse que ela
sobreviverá.
— Mas ela ainda respira?
— O que importa, Thomas? — Ele bateu com a mão sobre a
madeira. — Eu quero saber quem causou isso e tenho certeza de
que você sabe.
— Como eu saberia?
— Foi Newcombe? — Charles ignorou a pergunta feita. —
Aquele maldito está se roendo por dentro porque Gupta ainda
prefere fechar o contrato comigo. Ele seria capaz de tudo para me
tirar da jogada.
— Newcombe é um patife, mas… veja, se eu te disser o que sei,
o que fará com a informação?
— O que farei? — Ele se debruçou por sobre o balcão e agarrou
Riderhood pelo colarinho, puxando-o para perto. — Eu o matarei.
Simples assim.
— Então acho melhor você voltar para casa.
— Se não me disser, matarei você. — Ele puxou o homem para
ainda mais perto.
— Eckley, eu respeito a sua família e não quero que ninguém
mate ninguém. Prometa-me que não fará nada estúpido.
— Certo, eu prometo. — Charles voltou a se sentar e virou o
último gole do conhaque. Claro que ele não estava prometendo
nada. Faria o oposto do que Riderhood lhe pedira no instante
seguinte em que obtivesse a informação. — Quem?
— Greystone. Entendi que ele fez alguma aposta e isso
significava casar-se com Lady Olivia. Ele prometeu que mostraria a
ela o tipo de canalha que você é.
Charles não esperou que Riderhood terminasse de falar. Como
foi tolo! Claro que o maldito duque estava por trás daquela
convocação misteriosa de Daisy até sua casa. Richard Cadden
estava na mesa de jogos quando sua ex amante chegou e ele a
dispensou. Exceto que ele não a dispensara, ele a colocara em
espera, acreditando que o plano com Olivia seria apenas
temporário. Aquele miserável tinha a informação que precisava para
causar uma cena em que Charles pareceria infiel e qualquer um
saberia o quanto isso abalaria Olivia.
Seus pés o conduziram para o salão de jogos e suas mãos
arrancaram Greystone da cadeira onde ele estava. Os homens se
levantaram, mas ninguém interferiu. Charles estava possuído pela
besta, aquela que se libertara semanas atrás e ainda não retornara
para a gaiola. Ergueu o duque do chão, apertando-lhe o pescoço até
que o homem não mais tocou o assoalho com os pés.
— Você a matou.
— Não sei o que está falando! — Greystone se debateu. — Eu
não matei ninguém, solte-me!
— Sabe, claro que sabe! — Charles enfiou a mão livre no bolso
e retirou o bilhete que Daisy lhe mostrara, atirando-o sobre o feltro
verde da mesa de vinte e um. — Foi você quem escreveu isso, não
foi?
— Nunca vi isso na vida. — O duque tossiu. — Você está me
machucando, Eckley, mas que diabos!
— Eu ainda vou machucá-lo bem mais. Mas não será aqui, nem
agora. Diga, foi você quem escreveu esse bilhete?
Os homens apenas olhavam o espetáculo que lhes era
proporcionado. Greystone olhou para baixo e assentiu, movendo a
cabeça mesmo que o pescoço estivesse nas garras de Charles.
— Fui eu! Satisfeito? Eu só queria que Olivia visse quem você é.
Pelo visto, deu certo…
Charles soltou o homem e deu um passo para trás. Suas mãos
continuavam em punhos fechados e ele bufava pelo nariz como um
touro. Todos os animais bestiais estavam soltos dentro dele e
decididos a morder, arranhar e estraçalhar.
— Ela foi atingida por uma carruagem graças a essa sua
brincadeira. — Ele mal reconheceu a voz que saiu de sua garganta.
Firme, calma, impassível. — Talvez ela nunca mais acorde. Olivia
pode nunca mais recobrar a consciência. Você pode tê-la matado,
Richard. É por isso que vamos nos encontrar no parque St. James
amanhã, antes do nascer do sol. Levarei minhas pistolas.
Stafford deu uma gargalhada sonora e Riderhood se colocou
entre os dois. Charles não precisava mais de nenhuma espécie de
contenção.
— O que acabou de acontecer aqui? — Newcombe demonstrou
confusão.
— Pensei ter entendido que o Eckley desafiou Greystone para
um duelo. — Stafford riu.
— Eu o desafiei.
— Duelos não existem. — Stafford deu outra risada. Charles
estava a um passo de arrancar-lhe a cabeça ali mesmo. Seria um
banho de sangue e atrapalharia seus planos, então desistiu. — Você
bebeu demais, Eckley.
— Duelos existem. Eles apenas não são mais usados, são
ilegais e os praticantes podem ser condenados à morte. O que é
uma grande piada, não acham? Eu não me importo que duelos não
sejam mais usados. Que tenham sido banidos. Greystone pagará
pelo que fez com Olivia em um esporte justo e com regras ou eu o
caçarei e pendurarei seus pedaços por toda Londres. Ele decide.
Amanhã, Parque St. James, antes do nascer do sol.
Ele não esperou para ver as faces assustadas ou ouvir as
gargalhadas que certamente se seguiriam àquela fala. Stafford tinha
razão, ele bebera demais. Estava embriagado. Mas ele
compreendia todas as consequências daquela ameaça. Se
duelassem, ele mataria o duque e seria preso e executado por
homicídio. Se não duelassem, ele mataria o duque assim mesmo —
e teria o mesmo destino.
De qualquer forma, Charles não esperava sobreviver a Olivia. Se
ela morresse, ele morreria com ela.
Londres, 28 de abril de 1898
Brooke Street

Água gotejava em uma bacia de metal. Ping. Ping. Ping. O ruído


intermitente a estava enlouquecendo. Olivia quis gritar e pedir que
parasse, mas estava muda. Também não conseguia enxergar ou
ouvir qualquer outra coisa que não fosse aquele barulho
insuportável. Sua cabeça doía. Depois de muito tempo, ela não
saberia dizer quanto, fez-se silêncio. Um silêncio ensurdecedor que
aos poucos levou a dor embora.
Ela abriu os olhos e se sentou. As paredes estavam claras e isso
a incomodou tanto quanto o ruído da água. Olhou para o lado e viu
Annabelle paralisada como se tivesse visto uma assombração.
— Você acordou!
A irmã estendeu os braços mas não a tocou. Levou a mão à
boca e saiu correndo do quarto, gritando alguma coisa que Olivia
não entendeu. Uma pontada pungente a fez tocar a cabeça. Havia
uma protuberância dolorida próxima à sua nuca que a fez lembrar-
se do que acontecera.
Uma traição, a frustração, e a escuridão absoluta. Ela não viu o
que aconteceu, mas lembrava-se de sair correndo da casa de
Charles e de acordar na sua cama. Aquele era o dia seguinte? Sem
hesitar, colocou as pernas para fora da cama, ficou de pé e
caminhou até sua penteadeira.
— Lady Olivia, a senhorita deveria estar na cama.
O Dr. Davies entrou no quarto acompanhado de suas duas
irmãs. Por que o médico de Thanet estava em Londres?
— Estou me sentindo ótima. — Não era verdade, mas Olivia não
costumava adoecer. Ficar de cama era uma espécie de tortura.
— Deixe-me examiná-la. Milady sofreu uma concussão e está
desacordada há dois dias.
Dois dias?
— Mas eu me sinto muito bem. — Ela se sentou na beirada da
cama e permitiu que o médico fizesse os exames que considerava
necessários. O coração martelava inquieto dentro do peito,
revelando uma angústia que provavelmente tinha nome e
sobrenome. — Charles, ele… ele esteve aqui?
Apesar de tudo o que desencadeou aquele momento, ela queria
vê-lo. Lembrava-se de ter ido até a casa dele depois de um bilhete
suspeito e um encontro estranho com Greystone. Lá encontrou-se
com ela, Daisy Campbell, que só podia ser a amante de Charles.
Todas as peças se encaixavam. Mas Olivia resistia em acreditar que
ele estivesse sendo-lhe infiel. Porque manter uma amante era
infidelidade se tinham um compromisso, não era?
Precisava conversar com ele, ouvir dele o que tudo aquilo
significava. O que Daisy, uma deusa loira que se cobria de seda
vermelha, significava. Era provável que fosse gritar com ele e bater
nele, mas também queria ouvi-lo. O silêncio de suas irmãs indicava
que talvez ele não compartilhasse daquela necessidade de se
explicar.
— Ela acordou? — Nicholas invadiu o quarto. Olivia trajava
apenas uma camisola branca e sentiu-se exposta, mas não tinha
mais forças para preocupar-se com decoro. A agonia em seu peito
cresceu, multiplicou, transformou-se em soldadinhos que a
perfuravam com suas pequeninas espadas.
— Acordei. Parece que isso é um evento importante e vocês
colocarão uma matéria no Chronicle.
— Tínhamos dúvidas de que se recuperaria, milady. — Foi
Davies quem explicou. — Em casos como o seu, apenas o tempo
pode dizer se a pessoa sobreviverá ou terá sequelas permanentes.
— Eu podia morrer?
— Sim, mas felizmente não morreu. Com mais um ou dois dias
de repouso, creio que possa retomar todas as suas atividades.
Ela sorriu. O relógio badalou cinco horas — era bastante cedo
para que todos estivessem acordados.
— Vocês passaram a noite aqui? Todos vocês?
— Sim, foi uma ordem de Charles — Margaret disparou. — Não
sei vocês, mas eu não tenho coragem de descumprir uma ordem
dele.
Annabelle fitou a irmã com um olhar mortífero.
— Então ele esteve aqui?
— Sim, esteve. E eu preciso sair para avisá-lo que você está
bem antes que seja tarde demais. — Nicholas se apressou em
direção à porta.
Olivia levantou-se e empurrou o médico para o lado.
— Nick, espere! — Ela seguiu o futuro cunhado pelo corredor,
mas ele não parecia disposto a parar. — Se não me esperar,
correrei até você e o médico me disse que devo repousar.
— Repousar significa ficar na cama. O que você quer, Livvy?
— O que está acontecendo? O que não querem me contar? Por
que estão tão esquisitos quando falo de Charles?
Nicholas voltou alguns degraus na escada, segurou-a pelos
braços e sorriu. Talvez estivesse muito confusa, mas quele sorriso
era o mais triste que ela já vira.
— Greystone planejou uma crise entre vocês. Foi ele quem
escreveu os bilhetes que a levaram a conhecer, de uma forma
bastante equivocada, Srta. Campbell.
As pontadas na cabeça a fizeram apoiar-se na balaustrada do
corredor. Annabelle segurou-a por trás.
— Nick, pare. Ela não está em condições de saber isso agora.
— Não, não pare. — Ela abriu uma mão espalmada na frente da
irmã, silenciando-a com o gesto. — Eu quero ouvir tudo e nem
pensem em mentir para mim para me poupar de nada. Continue!
— Charles o desafiou para um duelo.
Se ela já não estava em condições de se manter em pé, suas
pernas bambearam de vez e Olivia precisou ser amparada pelo
homem à sua frente. Nick segurou-a nos braços e desceu as
escadas, colocando-a sentada em um sofá no hall de entrada. Tudo
ficou escuro de repente e, com uma piscada, a luz retornou. A
cabeça latejava.
— Duelos não existem.
— Bem, talvez você possa repetir isso mais uma vez para ver se
ele escuta. Porque não importa quem tenha dito a mesma coisa,
Charles não consegue ouvir. Ele está fora de si.
— E por que diabos você está aqui e não tentando fazer-lhe
retomar a razão?
— Anthony foi até ele. Se há alguém que pode…
— Não, Nick! — Ela o interrompeu também e levantou-se. As
pontadas na cabeça aumentaram, mas dor alguma a faria parar. —
Charles se sente intimidado por Anthony, ele jamais cederá ao
marquês. Onde será esse duelo? Leve-me até lá.
— De jeito algum. — Nicholas balançou a cabeça, negando.
— Você não pode ir até lá, Livvy. Precisa repousar — Annabelle
insistiu.
— Para o inferno com o repouso! — ela blasfemou outra vez.
Estava realmente passando tempo demais com o libertino com
quem pretendia se casar. — Onde, Nick?
— Sinto muito, Livvy, mas não posso dizer.
— Então eu sairei no meio da rua e perguntarei até que alguém
me diga. Melhor, irei até o clube de cavalheiros. Tenho certeza de
que lá sabem de tudo.
Como ninguém acreditou que ela fosse capaz de sair pela rua de
camisola, Olivia passou por todos e abriu a porta. O ar fresco a
atingiu e a claridade de uma manhã iminente indicava que o tal
duelo já deveria ter até mesmo acabado. Um soluço a fez perceber
que não estava respirando até então. Ela olhou para os lados, para
as ruas quase vazias, e decidiu que era cedo demais para desistir.
Voltou para dentro, subiu as escadas, ignorou todas as vozes e
mãos que a tentavam impedir, e vestiu-se com o primeiro vestido
que encontrou pendurado. Qualquer dor que sentisse já havia
desaparecido. Ela tinha um plano: iria até o clube de cavalheiros e
rezaria para que o duelo não tivesse acontecido. Mas aquele era um
péssimo plano.
— Eles foram ao Parque St. James. — Nicholas entrou à sua
frente. — Anthony não deixará que esse duelo aconteça.
— Então não haverá mal se eu for até lá.
Ele suspirou e baixou a cabeça. Olhou para os próprios sapatos
por alguns segundos.
— Eu a levarei. — Nicholas pegou o próprio casaco e colocou
sobre os ombros dela. — Venha comigo.
— Você acha que Anthony impedirá uma tragédia? — Oliva
pausou. Ela não costumava ter ideias impulsivas, nunca confiava
em suas decisões imediatas, mas havia algo que ela sentia que
precisava fazer. — Confia no seu irmão?
— Anthony não permitirá que Charles se machuque nem que
machuque ninguém. Se não acreditasse nisso, eu não estaria aqui.
— Certo. Então você precisa me deixar no St. James e fazer-me
um favor. Eu contarei no caminho.
Capítulo vigésimo terceiro

O S . J
Londres. Charles ouvira diversas histórias sobre como eles
aconteceram. Lendas que eram passadas por gerações. Antes,
contadas com orgulho, até serem consideradas marcas
vergonhosas na trajetória de alguém ou de alguma família. Duelos
não existiam mais na Inglaterra há décadas. Tinham sido banidos
com sucesso por volta de 1840 e os infratores eram punidos
severamente.
Naquela manhã, Charles estava ansiando pela punição. Não
esperava toda aquela desordem no que deveria representar o fim de
sua existência terrena, mas descobriu pela experiência que homens
eram grandes fofoqueiros. A notícia de seu desafio correu por toda a
cidade e uma multidão se aglomerou para vê-lo matar ou morrer
antes mesmo do sol nascer.
— Não deixarei que faça isso.
Anthony, que substituiu Nicholas como seu padrinho, já tinha
escondido as pistolas e estava plantado na sua frente como uma
estátua de mármore. Se Charles tivesse uma marreta, já o teria
transformado em pedaços. Estava há duas noites sem dormir,
embriagado e com as vestes incompletas. Para não se apresentar
de forma desonrosa no dia de sua morte, colocou um casaco por
cima da camisa meio aberta e por fora das calças. Nem os
mendigos de Whitechapel se vestiam tão mal.
— Anthony, se você continuar a me atrapalhar, será o primeiro
que matarei hoje. Não me importa que seja marquês, nem que seja
meu irmão. Saia da minha frente.
Ele não se importava. Desde que chegara à sua casa e vira
Daisy à sua espera, desde que soubera do acidente — nada mais
importava. Cada descoberta o deixava ainda mais preparado para o
que aconteceria: matar o Duque de Greystone. Ele seria condenado
à pena capital depois, mas nunca pretendeu sair vivo daquele duelo.
— Charlie, você mal consegue ficar de pé. Como pretende
atirar? E se Greystone acertá-lo e sair vivo? Sua vingança terá sido
por nada!
— Cale a boca, Anthony! — Ele empurrou o irmão com as duas
mãos e cambaleou para frente. O marquês deu dois passos para
trás, mas não cedeu. Alguns metros adiante estavam Greystone e
Stafford, ambos aguardando que o Eckley mais velho colocasse
juízo em sua cabeça. — Saia. Da. Minha. Frente!
O burburinho de vozes da multidão o estava deixando com dor
de cabeça. O duque e seu padrinho decidiram se aproximar. Charles
imaginou que o maldito fosse fugir, porque Richard estava morrendo
de medo de enfrentá-lo. Ele não tinha medo, não havia mais nada
que pudesse perder. Desviando de Anthony, projetou-se na direção
do adversário na intenção de jogá-lo no chão e terminar aquela
contenda usando as próprias mãos. Gritos vindo de algum lugar o
fizeram interromper a passada.
Charles reconhecia aquela voz. Era a mesma que sempre o fazia
paralisar. Temendo que pudesse estar louco, virou-se devagar para
onde todos estavam olhando e a viu. Abrindo espaço por entre a
plateia e correndo em sua direção, ela estava enrolada em um
casaco masculino, com o cabelo solto e usando sapatilhas. Mas era
ela. Era Olivia. Viva.
E bastante irritada.
— Graças a Deus. — Anthony murmurou com a intenção de que
ninguém ouvisse. O sol começava a nascer atrás deles e irradiava
tons alaranjados sobre a pele fantasmagórica da mulher que parou
a um braço de distância deles, expirou em alívio e atirou-se em seus
braços.
Graças a Deus. Ele levou alguns segundos para entender que
ela estava mesmo ali e que o estava abraçando, tempo demais que
a permitiu afastar-se e esmurrar-lhe o peito com as duas mãos
fechadas em punhos.
— Você enlouqueceu? — Ela bateu de novo. — Tem ideia do
que está fazendo? — E bateu uma outra vez. — Que insensatez é
essa de desafiar Greystone para um duelo? Duelos são ilegais,
banidos e uma demonstração ridícula de masculinidade! Você quer
ser preso? Quer morrer?
Ela o socou outra vez, fazendo com que Charles a segurasse
pelos punhos. Não que ela estivesse ferindo-o, mas temia que o
excesso pudesse lhe fazer mal. Ainda não entendia como ela estava
de pé à sua frente, pois ele a vira quase morta sobre uma cama e os
médicos não lhe deram muitas esperanças.
Será que ele já tinha morrido e estava no céu? Claro que não.
Charles não iria para o céu.
— Acalme-se, Livvy. O que você está fazendo aqui? Quando
acordou? Quero dizer, como chegou até aqui?
Fascinado, Charles passou as mãos por ela inteira. Cabeça,
pescoço, braços, segurou-lhe as mãos entre as dele. Ela bufava de
irritação e tudo que ele queria fazer era beijá-la ali, no meio de todo
mundo. Não o fez porque ela não parava de brigar.
— Desde quando isso importa? Eu acordei e você não estava lá
porque estava aqui brincando de dar tiros nos outros! — Ela o
estapeou novamente. — Vamos voltar para casa.
— Não, não vamos. — Ele respirou fundo e se afastou de todos,
andando para trás. — Desafiei Greystone para um duelo, não vou
fugir.
Olivia virou-se para o outro lado e percebeu o duque e o barão
se aproximando. Com uma expressão assassina, ela marchou até
os dois e desferiu um tapa em Greystone. A plateia, que já tinha se
dissolvido em parte ao perceber que o duelo talvez se arrastasse
por muito tempo, entoou um “oh” de espanto. Afinal, quem ousava
sequer levantar a mão para um duque?
Mas ela não estava de posse de suas faculdades mentais
plenas.
— Vossa Graça deveria se envergonhar! Que ardil horroroso
para com um amigo! Falsificar bilhetes para me fazer conhecer a
Srta. Campbell em uma situação daquelas!
— Lady Olivia, estou imensamente feliz por vê-la bem. —
Richard massageou o queixo onde a mão dela o atingiu. A diabinha
tinha mais força do que aparentava. — O Eckley deu a entender que
estava morta.
— Bem, ele é um pouco dramático e exagerado, mas eu poderia
ter morrido e milorde seria o culpado! Espero que nunca mais se
dirija a mim, que não cruze mais meu caminho e que se mantenha
distante das minhas irmãs. Vossa Graça é uma pessoa horrível.
Coloque um fim nesse maldito duelo!
Outras interjeições pulularam na plateia. Ela não apenas
estapeara o duque, Olivia cortou relações com ele ali, na frente de
todo mundo, expondo um fato privado como se não fosse a dama de
modos rigorosos que interpretara nos últimos anos.
— E você! — Ela dirigiu mais uma vez sua ira para Charles. —
Você ia mesmo matar alguém para se vingar? Não consigo acreditar
nisso! Você iria morrer e me deixar aqui, Charles? Quanto egoísmo!
Eu já perdi meu pai, minha mãe vive enclausurada em Hampshire e
agora você quer me fazer perder você também? Já não chega de
perder as pessoas que amo?
As mãos dela, que estavam erguidas em punhos, desabaram na
lateral de seu corpo. Os ombros subiam e desciam pela respiração
acelerada e ela o encarava com tanta mágoa que aquela explosão
só podia ser sincera. E, de todas as verdades que Olivia disse, só a
última parte importou a Charles. Ele se aproximou mais uma vez e a
observou cauteloso.
— Livvy. — Estendendo os braços, Charles demonstrou que
queria abraçá-la. — Eu não queria lhe fazer nenhum mal. Fiquei tão
perdido ao saber que você poderia morrer que… eu não saberia
viver sem você.
— Ah, e eu saberia? — Olivia continuava brava, magoada e
muito nervosa. Precisava falar, desabafar, e ele tinha que ouvi-la. —
Então veio aqui se transformar em alvo para ter uma morte digna
sem nem sequer pensar em como eu ficaria miserável sem você? —
Ela se apoiou no peito dele com as mãos espalmadas. — Droga,
Charles, eu me apaixonei por você! Não vou aceitar perdê-lo agora!
Ele não sabia se ria descontrolado do acesso de fúria e da
quantidade de blasfêmias que ela proferira naquele intervalo de
tempo ou se desabava de joelhos por aquela declaração
inesperada. Talvez fosse melhor ouvi-la dizer outra vez para ter
certeza de que nada daquilo estava sendo causado pelo excesso de
álcool.
— Você…
— Eu amo você. — Ela bateu nele outra vez. — Não me importa
se eu estiver sozinha nessa aventura, eu entendo que você não
acredite em amor, paixão, esse tipo de coisa que os homens
chamam de ilusão feminina. Eu o amo e isso é suficiente. Não me
importo nem se você continuar um libertino… não. Talvez eu me
importe, sim, porque eu quase morri de verdade quando soube que
você tinha uma amante e a vi linda e gloriosa na sua cama. Céus,
eu estou com ciúmes! Não morri pelo acidente, mas morrerei de
ciúmes, porque eu quero você só para mim. Você me enfeitiçou,
Charles Eckley, e estou me sentindo egoísta, também. Não posso
perder você e não vou dividir você.
Daquela vez ele teve que dar uma gargalhada. Ela usou a
mesma arma que ele passou anos sacando quando as coisas
ficavam muito tensas, quase românticas e ele poderia revelar seus
sentimentos: o humor. Olivia estava falando sério, mas havia uma
carga de humor em suas palavras que fez seus irmãos rirem. Até
Stafford, que observava o desenrolar da confusão, riu.
Mas não era engraçado. Tentando manter a sanidade depois que
ela dissera que o amava — o que a fazia muito mais corajosa do
que ele —, Charles levou a mão até o bolso interno do paletó e
retirou o amuleto da sorte. Pendurou-o no dedo e exibiu para Olivia,
que não o reconheceu de imediato.
— Você lembra, Livvy? Lembra-se de quando me deu isso?
Ela pegou o objeto nas mãos e ergueu as sobrancelhas.
— O amuleto que fiz com o pelo de Selvagem! Você o guardou
por todo esse tempo?
— Ele nunca saiu do meu bolso. Fica do lado esquerdo do colete
desde que você o entregou para mim e disse que manter conosco
uma lembrança daqueles que amamos serviam para amenizar a dor
da perda.
— Você ainda sofre por Selvagem?
Ela pareceu confusa. Charles riu, fechou as mãos dela ao redor
do objeto e beijou-lhe os dedos.
— Eu sofri dois dias pelo cavalo. Não é por ele que mantenho o
amuleto, é por você. Eu o guardo aqui — Charles colocou uma das
mãos sobre o coração — para ter uma parte de você comigo todos
os dias. Para amenizar o fato de que eu nunca poderia ter você.
— Não sei se entendo.
Ele guardou o amuleto outra vez no bolso, passou os braços ao
redor da cintura dela e a puxou para perto. Estava imundo e
cheirava como uma destilaria. Não deveria nem sequer aproximar-
se de Olivia naquelas condições, quanto mais tomá-la em um
abraço tão íntimo. O burburinho aumentou. Ele não conseguia ouvir
mais nada além das batidas de dois corações.
— Acho que não sou bom falando dos meus sentimentos. Nunca
contei a ninguém e tentei esconder de todas as formas que a
amava. Não sou digno de você, Olivia, mas eu também sou egoísta.
Eu a amo há anos. Eu sempre a amei. Você é o motivo pelo qual eu
me levanto toda manhã, a razão pela qual sorrio, o propulsor que
me faz seguir em frente e acreditar que posso conquistar o mundo.
Nunca mais conseguirei viver sem você ao meu lado. Não sei como
passei tanto tempo sem fazer isso.
E ele a beijou ali, no meio de todo mundo.

— Pronto, o espetáculo acabou. Vão embora para suas casas,


todos vocês! — Anthony bradou para a plateia.
Havia uma plateia, certo? Olivia não sabia. Ela não conseguia
ouvir nada desde que chegou ao parque. Também não conseguia
ver nada que não fosse aquele homem desgrenhado que a
abraçava e beijava como se tivesse o direito.
Exceto que ele tinha, porque ela queria tanto aquele beijo que
teria tomado a iniciativa não fosse ele o devasso incorrigível. Mas
não podia durar tanto quanto ela desejava, porque, além de estarem
em público, eles ainda tinham contas a ajustar.
Ela se afastou, empurrando-o pelos ombros, e fitou dentro dos
olhos de ébano.
— Daisy Campbell.
Charles baixou o olhar e seus lábios formaram um sorriso fino e
constrangido.
— Ela gostaria de conversar com você — confessou. — Íamos
procurá-la quando fui avisado do seu acidente.
— Iam procurar-me para quê? Saiba que não pretendo me juntar
a vocês para…
— Livvy! — Ele colocou o polegar em seus lábios e a silenciou.
— Não quero que se junte a nós para nada. Foi tudo um mal-
entendido causado por Greystone. Daisy e eu… nós não estávamos
mais juntos desde que começamos a encenar nosso plano.
— Que plano? — O marquês interferiu.
— Nada que seja da sua conta, Anthony. Será que poderiam nos
dar alguma privacidade?
— Privacidade no meio do St. James? — Foi Nicholas quem
disse. Finalmente! O Eckley mais novo chegara bem a tempo. —
Eles estavam fingindo aquele cortejo para que Gupta pensasse que
Charles queria se endireitar.
— Que tolice. — Anthony riu. — Desde quando ele precisava
fingir que cortejava Olivia? Charles sempre foi apaixonado por ela.
— Pelos céus, vocês poderiam ser menos indiscretos e não falar
de mim como se eu não estivesse aqui?
— Oras, meu irmão, você acabou de confessar que a ama.
Estamos apenas confirmando que já sabíamos.
Os dois Eckleys permaneceram ali e Olivia também quis rir. Era
pura sorte que suas irmãs não estivessem por perto, ou teriam a
mesma atitude.
— Por que a Srta. Campbell foi até a sua casa se não havia mais
nada entre vocês? Por que ela acreditaria no bilhete?
— Porque eu não cheguei a romper nosso acordo. — Charles
segurou-lhe a face entre as mãos. Olivia queria irritar-se com ele.
Queria muito ficar zangada. Mas desesperou-se tanto ao saber que
ele poderia morrer, que poderia perdê-lo para sempre, que estava
disposta a ouvir o que havia para ser dito. Disposta a perdoar o que
tivesse para ser perdoado. — Sei que fui um canalha, mas acredite
em mim. Sempre foi só você, Olivia. Meu coração sempre pertenceu
exclusivamente a você.
— Isso também é uma coisa horrível de se dizer. — Ela cruzou
os braços. — Como será se nos casarmos?
— Se nos casarmos, eu passarei todos os dias que me restarem
sendo o melhor marido, pai e amigo que você merecer.
— Então você deve desculpas à Srta. Campbell. E a mim. E a
todas as mulheres que você usou nesse tempo.
— Posso colocar uma faixa no meio da Picadilly, se isso a fizer
feliz.
Ele enfiou a mão por dentro do casaco e Olivia pensou que fosse
pegar o amuleto mais uma vez — mas segurou nas mãos uma caixa
de veludo. Ela arregalou os olhos, sabendo o que costumava conter
dentro de objetos como aquele. Como nas cenas dos livros ou nas
peças de teatro, Charles ajoelhou-se à sua frente e abriu a caixa
para exibir um anel com uma ametista obscena cravejada de
diamantes.
— Não tive a oportunidade nem de fazer o pedido, nem de
entregar-lhe o anel, mas descobri que não há tempo melhor do que
o agora para fazer o que meu coração quer fazer. Olivia Trentham,
você aceitaria se tornar a minha esposa?
Sim.
Sim para todas as vezes que ele perguntasse.
O passado dele não importava, porque ela conhecia cada
segredo sujo daquele homem e isso não a impediu de amá-lo. Ela
conhecia cada falha, cada imperfeição, e apesar disso, apaixonou-
se. Acreditava que ele era maravilhoso de qualquer jeito.
— Sim, Charlie. Nada me fará mais feliz do que me casar com
você.
Com um sorriso amplo nos lábios fartos que ela queria beijar
outra vez, ele retirou o anel da caixa e colocou em seu dedo. Coube
perfeitamente e era a joia mais bonita que Olivia já vira. Não era um
diamante tradicional, como suas amigas estavam usando depois de
noivarem, mas era a sua pedra preferida. Ele sabia. Ele sempre
soube. Como ela nunca enxergou o que estava bem à sua frente?
— Nick, você trouxe o que lhe pedi?
O amigo assentiu e retirou um envelope pardo do bolso interno
de seu casaco para lhe entregar.
— O que é isso?
— Quando soube desse duelo, pedi que Nicholas me fizesse um
favor. Ele me deixou aqui e foi até a London Bridge comprar isso. —
Ela entregou o envelope a Charles. Ele franziu as sobrancelhas
quando o abriu.
— Passagens para a Escócia?
— Você pode não querer fugir para Gretna Green para se casar,
Charles Eckley, mas eu não sairei daqui sem garantir que você será
meu ao anoitecer.
Ele deu uma gargalhada.
— E seu casamento grandioso?
— Posso ter tudo isso depois. A sociedade adora festas, não
importa o motivo. Agora, tudo que eu quero é você.
A expressão no rosto dele ficou dura e Charles travou o maxilar.
Entregou as passagens para o marquês e segurou Olivia nos braços
mais uma vez.
— Anthony, usarei o vagão da família. — Ele beijou-a
rapidamente. — Voltaremos amanhã.
— Mandei reformar a mobília mês passado. — O marquês
balançou a cabeça. — Tentem não quebrar nada, por favor.
Talvez ela devesse se horrorizar. Aqueles homens eram
indecentes e, independente da posição social, falavam todo tipo de
obscenidade na frente de qualquer pessoa. Faziam piadas de cunho
sexual. Incluíam mulheres em assuntos de trabalho e ouviam suas
opiniões como se elas importassem. Mas Olivia conviveu tempo
demais com aquela família para surpreender-se ou incomodar-se
com aquilo.
Na verdade, gostava mais de quem era quando estava com
Charles. Gostava mais do que podia fazer quando incentivada por
ele. Gostava mais de conversar quando ele estava lá para ouvi-la.
Foi por isso que ela ficou na ponta dos pés e o beijou, garantindo
que o escândalo fosse ocupar todos os jornais de fofocas por
semanas a fio.
Talvez ela devesse preocupar-se com sua reputação impecável.
Ou com a que tentara construir para Charles. Mas suspeitava que
Gupta não ligasse tanto assim para modos aristocráticos e que ela
mesma não queria mais ser impecável.
Charles a segurou nos braços, ergueu-a do chão e caminhou
com ela no colo até a carruagem Granville, que os esperava. As
pessoas ainda presentes emitiam sons escandalizados pela
ausência de decoro e Olivia riu diante da incoerência da vida.
Semanas atrás, seu melhor amigo a procurou com um problema e,
ao invés de torná-lo um homem respeitável, acabou descobrindo
que ele já era bom demais para ser mudado.
Ah, ele era um libertino, mas agora seria dela. Apenas dela.

Londres, 29 de abril de 1898


Brooke Street

Annabelle segurava a mão de Olivia enquanto admirava o anel e


fazia mais perguntas do que Charles estava disposto a responder.
Depois do duelo fracassado, eles foram para a estação de trem e
seguiram para Gretna Green, a cidade mais próxima da fronteira
com a Inglaterra, onde poderiam casar-se apenas com a mera
declaração de vontade.
Era por isso que Charles não fazia planos: eles davam errado.
Planejara um casamento cheio de pompa e elegância para Olivia e
ela — ela! — quis fugir para a Escócia. Não que estivesse
reclamando. Depois de toda confusão causada pelo Duque de
Greystone, tudo que ele mais queria era passar aquele tempo
sozinho com ela.
Depois que conseguiram retornar a Londres, ele ordenou que
Ashford embalasse suas coisas e levasse tudo para a Casa
Salisbury. No dia seguinte, prepararia um contrato e depositaria
valores mensais pelo uso da casa para garantir que nada do
patrimônio de Daniel fosse utilizado de forma indevida.
Tudo aconteceu muito rapidamente. Do momento em que Olivia
apareceu correndo no parque St. James, passando pela declaração
de amor que combinava com tudo que eles eram, até a viagem para
se casarem, Charles não teve tempo para entender o que tudo
aquilo significava.
— Não acredito que teve a coragem de casar-se sem mim! —
Annabelle esbravejou. — Vocês precisam se casar de novo, aqui na
Inglaterra.
— Creio que as leis não funcionem assim. — Olivia riu.
— Então finjam que estão se casando. Façam uma cerimônia
forjada, mas façam! Quero ser a madrinha de alguém.
As mulheres continuaram conversando. Claro que haveria uma
festa, cerimônia ou o que mais Olivia quisesse. Ele bebeu um gole
de chá — porque estava ainda sentindo os efeitos da bebedeira
anterior e queria estar sóbrio para quando tivesse a sua noite de
núpcias — e recostou-se na poltrona. O fogo crepitava na lareira
enquanto as três irmãs discutiam sobre o dia seguinte.
Aquela seria a sua noite de núpcias. Afinal, ele nem mesmo
tentou fazer amor com Olivia durante a viagem. Ela estava ainda
convalescendo da concussão. Aquela seria, também, a primeira
noite que passaria no seu novo quarto, em sua nova cama. Queria
apreciá-la como se fosse única.
Estava em paz pela primeira vez em muito tempo. Nada o
perturbava, nada o fazia querer passar a noite em claro jogando ou
bebendo para trabalhar duro no dia anterior. A gana de vencer,
espoliar, conquistar estava domada. Finalmente contida, como se
todas as feras tivessem se recolhido para suas jaulas.
— Não recebemos convite para nenhum outro evento recente. —
Margaret remexeu nas cartas. — Isso significa que seremos
ostracizadas? Quando eu for apresentada à sociedade seremos
párias indesejadas que só poderão se misturar com a plebe?
Bem, lá estava a sua perturbação.
— Provavelmente, teremos alguma resistência da sociedade
agora que eu sou um escândalo e que estou casada com um
homem de reputação duvidosa. — Olivia respondeu. Sempre
diplomática e usando palavras educadas enquanto ele queria xingar
toda a aristocracia.
— Não precisa enganar a menina. — Ele se ajeitou no assentou.
— Minha reputação é péssima, esteja eu casado com uma lady ou
não.
— Entendo. Então quer dizer que eu não preciso mais agir como
a sociedade espera de mim?
— De onde saiu isso, Maggie?
A menina deu alguns saltos na direção da irmã, sentou-se no
chão ao lado dela e segurou-lhe as mãos.
— Livvy, até agora eu me esmerei para ser uma verdadeira
dama, porque não queria desapontá-la. Mas eu odeio portar-me
dessa forma. Não quero conversar sobre o clima e fingir que sou
burra para conquistar um marido. Se um homem não gosta de mim
pelo que sou, então melhor que fique solteira.
Charles deu uma risada. Aquela perturbação era de Olivia, não
sua.
— Gosto de como ela pensa.
— Cale-se, Charlie — sua esposa resmungou. —
Conversaremos sobre isso depois. Estamos para receber visitas,
tentem ao menos fingir que são educadas.
— Visitas? — Ele não queria ver ninguém. Esperava que a noite
se encerrasse cedo para poder trancar-se com Olivia no quarto. —
Quem visita as pessoas depois das oito?
— Você? — Ela riu e se levantou. — Creio que eles estejam para
chegar.
As meninas também não sabiam da visita surpresa. Olivia
deixou-os na sala de convivência e desapareceu na direção da
cozinha. Pouco depois, bateram à porta e os convidados chegaram.
A família Gupta foi anunciada por Ashford, que se tornaria o novo
mordomo da Casa Salisbury.
Margaret e Annabelle receberam Saira e levaram a jovem para o
salão feminino. Olivia retornou animada e pediu que Bharat e Ishani
Gupta se juntassem a eles naquela sala íntima que apenas a família
costumava frequentar. Ele estava bastante confuso com a
movimentação inesperada e apenas levantou-se, cumprimentou os
recém-chegados e ofereceu uma bebida ao indiano.
— Ah, adoraríamos um chá. Não costumo beber quando trato de
negócios.
Negócios?
— E vamos tratar de negócios? — Charles estava deveras
curioso.
— Sim, vamos. Se você quiser, claro. Combinei com sua esposa
de vir aqui, mesmo sabendo que é um horário inadequado, porque
amanhã partirei para o litoral para ficar algum tempo em Rhode Port
e queria deixar tudo organizado com os advogados. Para isso,
precisava de sua concordância.
Olivia convidou Ishani para conversar do outro lado da sala.
Charles serviu uma xícara de chá para Gupta, mesmo que não
soubesse muito bem o que estava fazendo. O indiano não pareceu
reprovar suas habilidades de anfitrião.
— Confesso que não estou entendendo.
— Vim falar do contrato de distribuição das sedas, Sr. Eckley. A
exclusividade é sua, se ainda a quiser.
— Minha?
Aquela noite estava começando a se tornar muito interessante.
Charles já dera por perdida aquela batalha, ciente de que seu
comportamento animalesco nos últimos dois dias representava o
sepultamento de sua reputação. Gupta jamais confiaria em um
homem tão irascível e impulsivo para cuidar de seus negócios.
Confiaria?
— Em verdade, nenhuma concorrência seria capaz de batê-lo,
Sr. Eckley. Você e seu irmão gêmeo têm fama internacional e, tendo
um terceiro Eckley nos Estados Unidos, dificilmente outro
interessado em minha proposta teria uma melhor contraprestação.
Mas o que me fez decidir por você foi porque desistiu do contrato
para ficar com a mulher que ama.
Charles olhou para a xícara de chá em sua mão. Ele tinha
certeza de que não bebia desde a noite anterior ao duelo. Teria
alguém colocado uísque naquela mistura de ervas?
— Então você descobriu que eu era um homem respeitável
quando abdiquei completamente da minha reputação? Foi isso?
Bharat Gupta dobrou-se para frente e olhou ao redor. Confirmou
que as mulheres não estavam prestando atenção neles e bebeu um
gole de chá.
— Deixe-me contar um segredo, Sr. Eckley. Nunca gostei da
aristocracia inglesa. Muito arrogante, cheia de pudores e indolente.
Pouco me importa a opinião que tenham. Um homem respeitável,
para mim, é aquele que cuida da família, dos amigos, dos negócios.
Você se mostrou respeitável quando deixou tudo para lutar pelo
amor de sua vida. Quem diria que sou romântico?
Sim, tinha uísque no chá — e ele fora servido para Gupta. Só
estando ébrio para dizer aquelas bobagens, mas Charles não
reclamaria de nada. Ele desistiu de tudo por Olivia, até da própria
vida. Ele desistiria de novo, e outra vez, e quantas fossem
necessárias. Quem diria que ele também era romântico?
— A minuta do contrato continua sobre minha mesa.
— Pedirei que os advogados entrem em contato amanhã. Pode
ser amanhã ou…
— Amanhã está ótimo. — Charles estendeu a mão para
cumprimentá-lo. — Será um prazer fazer negócios com você, Gupta.
O indiano ergueu a xícara para um brinde de chá. Depois
daquela conquista, Charles Eckley poderia mesmo se considerar
invencível.

Ele estava se achando invencível. Olivia sabia pela forma como


girou a chave da porta que Charles tinha os mais elevados níveis de
arrogância naquela noite.
— Você planejou isso.
Não foi uma pergunta. Ela se sentou à frente da penteadeira e
começou a retirar os grampos dos cabelos. Depois de dois dias
quase inteiros viajando, precisava relaxar em uma banheira cheia de
água morna. Seus dedos tocaram o calombo em sua nuca e ela
sentiu uma fisgada dolorida.
— Se está falando da visita surpresa de Gupta, eu apenas dei
notícias dos últimos acontecimentos e convidei-o para vir até aqui
resolver as pendências comerciais entre vocês.
Charles posicionou-se atrás dela e assumiu a tarefa de desfazer
o penteado.
— Nada disso me importava mais, contanto que eu tivesse você.
Ela virou-se e abraçou-o pelos quadris. Estava de frente para a
massiva masculinidade que já anunciava a sua presença querendo
escapar da prisão de tecido. Deixou que seus dedos retirassem a
camisa de dentro das calças e começou a abrir-lhe os botões.
— Mas aposto que ficará mais feliz se puder ter as duas coisas.
Gupta seria um tolo se não fechasse esse contrato com você e ele
sabia disso. Não tive participação alguma nisso.
— Ah, você teve. — Charles soltou o último grampo e seus
cabelos caíram em cascatas pelos ombros. Ela já estava atacando
os botões da calça. — Você ajudou a moldar o homem que sou,
hoje.
— Tomarei isso como um elogio. — Olivia acariciou-o por dentro
do tecido e o fez gemer. — Mas você também ajudou a moldar a
mulher que sou e agora terá que lidar com uma esposa muito
entusiasmada.
Com um rosnado baixo, ele a levantou e a arrastou para a cama.
Arrancou a camisa, deixou a calça deslizar pelas pernas e quase
rasgou-lhe o vestido ao irritar-se com os pequeninos botões
perolados que fechavam a parte de trás.
Nas primeiras vezes em que fizeram amor, ele foi comedido,
delicado e descobriu-a como se reverenciasse a uma deusa.
Daquela vez, Charles era pura excitação e força bruta. As roupas
desapareceram sem que ela conseguisse vê-lo retirando-as e ele
não a beijou, atacou sua boca como um corsário saqueando um
navio inimigo.
Ela descobriu que gostava daquele ímpeto. Gostava da força, de
bater carne com carne e das mordiscadas leves que ele distribuía
por sua pele enquanto a explorava por inteiro. Adorava quando ele
prendia seus mamilos entre os dentes, quando os pressionava entre
os dedos e quando avançava feroz sobre sua intimidade.
Talvez um dia aquele desejo intenso fosse passar, mas ela
esperava que demorasse bastante. Queria sentir aquele prazer — o
de ser arrebatada por sensações para depois adormecer exausta
nos braços de Charles — toda noite.
— Já disse hoje que amo você? — ele perguntou, beijando toda
a extensão de sua feminilidade. Olivia arqueou sobre o colchão. Ela
não precisava de banho morno para se sentir melhor, só da língua
de Charles acariciando-a por todo lugar.
— Talvez — gemeu, querendo puxá-lo para cima. — Mas não
faço objeções quanto a dizer de novo.
Ele mergulhou em sua intimidade e permaneceu em silêncio
enquanto lambia, sugava e a penetrava com os dedos, estimulando-
a por completo. Os únicos sons do quarto eram de seus gemidos
incontidos. Nem constrangimento ela tinha mais.
— Eu a amava antes disso. — Charles voltou a beijá-la na boca
e continuou a acariciá-la. Olivia estava à beira do ápice e não
precisou muito para desfazer-se nos dedos habilidosos que a
tocavam. Ele a penetrou enquanto as ondas do clímax ainda
arrebatavam-na e fez com que os efeitos do orgasmo ficassem mais
intensos. — Mas confesso que é muito melhor amá-la por completo.
As primeiras estocadas foram profundas e lentas. Olivia teve
muito tempo para pensar no que ele dissera no parque St. James,
que sempre a amou. Não precisou esmiuçar a memória para
encontrar as diversas manifestações do amor de Charles por ela
durante aqueles anos. Todas as vezes em que ele esteve ali,
protegendo-a, incentivando-a, orientando-a, ouvindo-a, apenas.
Todas as vezes em que ele fez por ela o que ninguém faria. Ela
sempre o viu como seu melhor amigo, mas o que havia entre eles
era muito maior do que a bela amizade que nutria pelos outros
Eckleys.
Com um movimento rápido, ela empurrou Charles para o
colchão. Pego de surpresa, ele desabou de costas e desencaixou-
se dela. Olivia queria o controle daquela vez. Queria vê-lo chegar ao
clímax no seu próprio tempo, queria ser ela a determinar o ritmo e a
intensidade do momento. Engatinhou por sobre ele e, já
familiarizada com a posição, acomodou-se sobre o membro rígido.
Eles se encaixavam com perfeição. Charles tentou se erguer
para beijá-la, mas Olivia o manteve com as costas grudadas nos
lençóis. Ele podia subjugá-la, se quisesse, mas aquele homem
sempre a deixaria guiar. Com as duas mãos acariciando-lhe o peito
musculoso, ela se moveu para cima e para baixo enquanto
observava-o expandir-se dentro dela.
A posição era prazerosa para ela, também. Ficou difícil controlar
o ritmo à medida que a expansão dele estimulava um ponto
específico dentro dela — e provocava-a a gemer, choramingar,
gritar. Percebendo-a próxima de outro voo, Charles levou o polegar
até seu centro de prazer e a incentivou a saltar. Maldito fosse aquele
homem! — era para controlá-lo e, no final, ele continuava com o
jogo nas mãos.
Quando ela sentiu as contrações do êxtase, ele agarrou-a pelos
quadris e imprimiu movimentos mais fortes até despejar-se dentro
dela com um urro gutural.
— Precisamos mudar para outro quarto — ele disse, estirado
sobre a cama enquanto ela se aninhava em seu peito. — Deus nos
livre de suas irmãs ouvindo isso toda noite.
— Há um quarto desocupado no terceiro andar, mas…
— Terceiro andar é ótimo. — Charles abraçou-a e virou-se de
lado, mantendo-a naquela concha de calor. — Quanto mais longe de
ouvidos humanos, melhor.
Um latido fez com que os dois se levantassem. Fedorento estava
enfiado nas almofadas do sofá próximo à lareira e se incomodou
com o excesso de atividade noturna.
— Precisaremos nos livrar dos ouvidos caninos, também — ele
completou. — Vou preparar um banho, tente não dormir. Temos que
conversar sobre o Projeto Whitechapel.
— Há algo para conversarmos? — Ela apoiou-se nos cotovelos.
— Claro que há. Você está casada com um homem podre de rico
e que ganhará ainda mais dinheiro. Amanhã eu disponibilizarei
acesso aos fundos que você precisar para desenvolver o
empreendimento que quiser.
Ela sorriu. Ajudara-o a conquistar seu sonho, ele estava
retribuindo-lhe.
— Mesmo que meu empreendimento seja apenas caridade?
— Mesmo que seu empreendimento seja construir um abrigo
para cães abandonados e fedidos. — Ele a beijou rapidamente.
— Gosto da forma como pensa.
Charles balançou a cabeça, rindo, e levantou-se. Caminhou
preguiçoso para o banheiro anexo e Olivia suspirou. Ela também
sempre o amou, de uma forma ou de outra. E tinha que concordar,
era muito melhor amá-lo por completo.
Epílogo
Londres, 24 de dezembro de 1900
B S

Ele chegou em casa cedo. Deixou trabalho para trás, dispensou


todos os empregados para que pudessem passar o Natal com suas
famílias, deu a todos um bônus especial e passou antes na loja de
Madame Lloris para pegar os presentes das meninas.
Aquele seria um Natal especial. Depois de quase quatro anos de
reclusão, Elizabeth Trentham estaria com eles para as celebrações.
Ainda era uma surpresa para Olivia — ele temia que algo desse
errado e não queria magoar sua esposa no dia que ela mais
adorava. Mas recebera ótimas notícias do Dr. Brian, o especialista
que acompanhava sua sogra há dois anos.
Charles procurou por toda a Europa, mas foi ali mesmo, na
Inglaterra, que descobriu uma clínica que vinha tendo resultados
muito bons no tratamento daquele tipo de melancolia. Depois de
oferecer uma quantia obscena de dinheiro para que a condessa
viúva pudesse receber todo o tratamento em sua própria residência
de Hampshire, com as necessárias viagens até a clínica, ele vinha
acompanhando a evolução de Elizabeth e estava bastante satisfeito.
Encontrou-se com Daniel nos estábulos. O menino dobrara de
tamanho nos últimos meses e ele estava ansioso para introduzi-lo
ao clube de Riderhood.
— Ainda bem que chegou. Olivia está parecendo um general
distribuindo ordens, só mesmo você para distraí-la.
— Você está aqui cumprindo alguma tarefa ou só fugindo? —
Charles conduziu o cavalo à baia e acariciou a crina do animal, que
agradeceu o carinho. — Porque se estiver fugindo, tenho algo
importante para você fazer.
— Qualquer coisa deve ser melhor do que enfrentar Olivia e seu
caderninho.
— Pois bem. Pegue a carruagem e vá à London Bridge receber
sua mãe.
O jovem conde paralisou com a mão no ar. Ele estava
escovando o pelo de seu cavalo e o bicho reclamou, enfiando o
focinho em seu peito.
— Minha mãe?
— Ela está chegando para o Natal. Recebi uma mensagem
confirmando que ela e o Dr. Brian Thompson embarcaram no trem
que chega às seis.
Daniel sorriu, largou a escova ao chão e abraçou Charles. Havia
poucas demonstrações de afeto que não o constrangiam, a maioria
delas vinha da família Trentham — que era bastante afetuosa e
adorava abraços.
— Não acredito que você conseguiu. — Os olhos do menino
estavam mareados. — Ela está curada?
— Não fui eu quem conseguiu e creio que ela não esteja ainda
curada. Estou confiante que o Dr. Brian é um ótimo médico e vem
dedicando muita atenção à sua mãe. Ela voltará para vocês, Daniel.
— Voltará para nós. — O conde limpou os olhos e ajeitou o
casaco. — As meninas já sabem?
— Será uma surpresa. Contarei assim que entrar.
— Se isso não distrair minha irmã obsessiva por organização,
nada mais fará. Você é sempre nossa salvação, Charles.
Os dois se despediram e ele entrou pela porta dos fundos.
Adorava passar pela cozinha para furtar qualquer tipo de iguaria que
estivesse esfriando sobre a mesa ou fogão. A cozinheira costumava
escandalizar-se com ele, mas acostumou-se e passou a ignorá-lo.
Seguiu o rastro do aroma de lavanda que estava espalhado pela
casa para encontrar Olivia olhando para o alto enquanto Ashford e
Bradley se equilibravam em escadas para pendurar uma decoração
no salão de jantar.
A casa estava toda decorada com guirlandas, enfeites de tecido
e muita iluminação. Nem as mais exclusivas lojas de Londres tinham
fachadas tão brilhantes quanto a Casa Salisbury. O Natal era a festa
preferida do falecido conde e ele transmitiu aquela animação para
as filhas.
— Receberemos a rainha para o jantar? — ele provocou. Olivia
sorriu ao vê-lo e veio na sua direção, segurando o caderninho que
acabara de fechar.
— Não seja bobo. Sabe que sou perfeccionista e que adoro
luzes. O que achou dessas?
Charles olhou para cima. Havia lamparinas minúsculas
penduradas por todo o teto, transformando-o em uma trama de luz.
— Quem vai acender tudo isso?
Ashford pigarreou e sorriu de cima da escada. Charles quis rir
bem alto — ele adorava quando seu mordomo intrometido era
submetido aos devaneios de sua esposa. Apesar de a alta
sociedade ter deixado de convidá-los para eventos e recusar com
frequência os convites para a Casa Salisbury, Olivia descobriu que
era mais divertido festejar com os plebeus: a “nova sociedade”
formada por pessoas sem sangue azul ou título, mas que tinham
muito dinheiro, prestígio e não se importavam nem um pouco com
um escândalo ou outro.
— Você viu Daniel? Ele se escondeu para não acompanhar
Margaret até a confeitaria.
Ele deixou um pasta com documentos por sobre o aparador e
tomou sua esposa nos braços. Dois anos de casados e o desejo de
beijá-la não esmoreceu.
— Por que precisamos ir até a confeitaria? Nossa cozinheira não
é capaz de preparar um bolo?
— Claro que ela é! — Ela virou o rosto para receber um beijo na
bochecha. Olivia ainda sabia como provocá-lo. — Mas encomendei
uma torta de abacaxi que só essa confeitaria tem.
— Abacaxi?
— Uma fruta exótica, tropical, deliciosa! — Olivia descobriu
algumas vasilhas que estavam sobre o outro aparador e pegou uma
bolinha de açúcar nos dedos. Mordeu um pedaço e ofereceu o outro
a Charles. — Vamos, prove!
Dois anos de casados e ela ainda não percebia o efeito que
causava nele. Charles segurou-a pelo pulso, abocanhou o doce
passando a língua por seus dedos açucarados e os chupou até o
final. Olivia soltou um gemido constrangido que foi abafado por sua
boca em um beijo lânguido.
— É mais saboroso assim. — Ele provocou, beijando-a outra
vez. — Certo, seremos apenas nós ou teremos convidados para a
noite?
— Bem, eu convidei toda a sua família. Como o marquês está
em Londres e como Nicholas ainda está solteiro, convidei todo
mundo. Até Caroline e Isaac confirmaram. Esse será um jantar dos
Eckleys, pelo visto.
— Você convenceu Rosamund a não ser a anfitriã?
— Foram os abacaxis. — Ela deu uma risadinha e se soltou do
abraço. — Tenho uma surpresa para você e não consigo segurar
mais o segredo. Todos os seus irmãos virão. Até mesmo Leonard e
Robert.
Aquela era uma verdadeira surpresa. Robert morava na Escócia,
em um castelo medieval isolado de todo mundo, e tinha acabado de
ter uma filha. E Leonard… ele mesmo não sabia onde estava o
irmão, como diabos Olivia o encontrara?
— Bem, acredito que você quase conseguiu me superar. A
minha surpresa pode não ser tão difícil de obter como a presença de
Leonard em qualquer evento civilizado, mas espero que seja mais
esperada do que o reencontro com meus irmãos.
— Oh, você também tem uma surpresa para mim?
Olivia disse no instante em que os cães saíram correndo pela
casa. Os barulhos na porta da frente e o movimento canino a
levaram a suspeitar de quem estava chegando. Ela olhou para
Charles, que lhe sorriu e indicou com a cabeça que deveria
confirmar suas suspeitas. Com uma das mãos espalmadas no peito,
Olivia saiu correndo para o salão de entrada. Ele esperou alguns
segundos e a reencontrou já nos braços de Elizabeth.
A sogra tinha uma aparência muito melhor do que quando a vira
pela última vez, um ano atrás. Olivia ia visitar a mãe sempre que
podia, estava ansiosa pelo tratamento surtir efeitos, mas não
esperava que fosse tê-la para o Natal ainda naquele ano.
Comemorou como uma vitória quando a mãe começou a caminhar
pela propriedade e reassumiu alguns dos cuidados com a casa.
Vendo-a soluçar no ombro da mãe, Charles teve ainda mais certeza
de que faria qualquer coisa — até o que não estivesse ao seu
alcance — para que Olivia tivesse tudo o que quisesse.
— É um prazer tê-la em casa, Lady Elizabeth — ele
cumprimentou a sogra assim que o abraço se encerrou. — Fez uma
boa viagem?
— Os trens estão cada vez mais modernos. Foi bastante rápido,
mas estou exausta.
— Seus aposentos estão esperando, milady! — Adalind também
estava emotiva. — Preparamos o quarto rosa, com vista para o
jardim.
— Adoro ver as flores. Leve-me até lá.
As duas mulheres subiram as escadas e deixaram-nos sozinhos.
Daniel e o Dr. Brian estavam conversando do lado de fora da casa,
apontando para as construções e envolvidos em algum assunto que
não lhe interessava.
— Você poderia me matar do coração! — Olivia bateu-lhe no
braço para chamar a sua atenção. — Como conseguiu isso?
— O Dr. Brian sugeriu. Sua mãe precisa voltar a vê-los com mais
frequência e a festa de Natal pareceu uma ideia excelente.
— As memórias não lhe farão mal?
— O médico disse que ela precisa viver o luto de forma
saudável. — Charles levou a mão até a face de Olivia e a acariciou.
— Eu espero que ele tenha razão, meu amor, porque quero ver esse
brilho nos seus olhos todos os dias.
— Esse será um dos melhores Natais. Mas não pense que me
superou em surpresas. Você pode ter alcançado um feito incrível,
mas eu tenho algo que o deixará de joelhos.
Charles cruzou os braços e a fitou. Olivia apoiou o caderninho
em uma mesinha, limpou os olhos para livrar-se das lágrimas e
pegou uma caixa que estava debaixo da imensa árvore decorada
que enfeitava o hall. Entregou-lhe o objeto e indicou que deveria
abri-lo. A fita que envolvia a caixa era delicada e a tentação de
arrebentá-la foi enorme, então ele precisou de muita resiliência para
desfazer o laço e retirar a tampa.
Dentro havia um pedaço de tecido. Ele apoiou o objeto e retirou
o tecido, que se transformou em uma roupa pequenina. Branca,
como uma camisola feita para…
Bebês.
— Você tem certeza? — Ele viu o sorriso aumentar nos lábios
deliciosos dela.
— Acha que mandaria fazer isso se não tivesse? Fui a uma
consulta há uma semana e os exames confirmam. Estamos
esperando um bebê.
Charles não sabia o que fazer. Não havia nenhuma ideia de
como reagir àquela notícia — que era maravilhosa e assustadora ao
mesmo tempo. Seus irmãos tinham filhos e eram felizes. Adoravam
suas esposas e seus rebentos e provavelmente devem ter recebido
a notícia com palavras bonitas, românticas e apaixonadas.
Ela permaneceu parada esperando. Ele se aproximou e
encostou a mão sobre a barriga que não apresentava nenhum
indício de que carregava uma criança. Não, ele estava errado. Claro
que ela apresentava. Olivia estava mais curvilínea, com seios
maiores, doloridos e bastante entusiasmada para o sexo. Charles
não poderia saber que aqueles eram sintomas de uma gravidez,
mas era bem possível que fossem.
Acabou reagindo da forma como ela previra: ajoelhou-se no chão
e encostou a cabeça no abdômen de sua esposa. Abraçou-a pelos
quadris e a manteve ali, perto como se o gesto pudesse fazer com
que o bebê percebesse a sua presença.
— Já dá para senti-lo?
— Ainda não. — Ela acariciou-lhe os cabelos. — Você não
gostou na minha surpresa?
Céus! O que ela estava dizendo?
— Olivia Eckley, você conseguiu me deixar sem palavras pela
primeira vez desde que nos conhecemos. — Charles se levantou e
beijou-a nos lábios. — O que disse o médico sobre os cuidados com
a gravidez? Nós podemos…
— Claro que podemos.
Ele a suspendeu nos braços e marchou na direção da escada.
— Então você descobrirá agora o quanto essa notícia me deixou
um homem radiante. Mais brilhante do que todas aquelas luzinhas
que você pendurou no teto.
— Ah, mais brilhante do que minhas luzinhas, jamais!
Ele parou no meio da escada e a beijou. Ela envolveu-lhe o
pescoço com os braços.
— Paramos debaixo de um visgo.
— Não há visgo nessa casa.
— Você é muito esperta. — Ele a beijou outra vez. — Eu a amo.
Olivia sorriu e recostou a cabeça em seu ombro.
— Feliz Natal, meu amor. Agora vamos, eu não quero ouvir que
me ama. Quero que me mostre.
Nota da autora

Olá, minhas leitoras queridas.


Antes de começar a nota desse livro, queria contar para vocês
uma história difícil para qualquer autora: eu escrevi Charles e Olivia
durante um enorme bloqueio.
Foi a primeira vez que isso me aconteceu. Sempre planejei e
executei meus livros da forma como desejei, nunca experimentei
nenhuma espécie de dificuldade para colocar no papel as minhas
ideias. Mas imagino que o final do isolamento social e a retomada
precária da “vida normal” tenha me afetado mais profundamente do
que eu imaginava.
Por esse motivo, o livro demorou a sair. Precisei do dobro de
tempo para organizar as ideias e a inspiração, que sempre me
ajudou, dessa vez me confundiu bastante. Alivia-me saber que esse
bloqueio acabou e que o livro 4 já está planejado, estruturado e a
caminho. Mas eu gostaria de contar isso para vocês porque sempre
sou o mais honesta possível.
Agora, vamos aos fatos interessantes dessa história. O que
queria trazer de curiosidade aqui é sobre a condição da mãe de
Olivia. Ela tem depressão, que foi desencadeada pelo falecimento
súbito do amor da vida dela, e não foi tratada de forma adequada
porque a depressão, como conhecemos hoje, não existia (como
existe hoje). Tanto que a palavra que uso para defini-la é a palavra
comum na época: melancolia.
Baseei a maioria do que coloquei no livro na obra The Anatomy
of Melancholy, do médico inglês Robert Burton. O manuscrito foi
publicado em 1621 e republicado diversas vezes nos séculos que se
seguiram. Também usei como base o texto Melancholia and
Depression de Asa Jansson, disponível aqui.
Achei importante trazer informações corretas, mesmo que a
depressão não seja um tema principal no livro, porque doenças
mentais ainda sofrem muito preconceito e são banalizadas muitas
vezes, principalmente por pessoas que se recusam a compreender
o quanto elas são sérias e precisam de tratamento.
Sobre a autora

Tatiana Mareto é sagitariana, gosta de se comunicar, adora transformar sentimentos em


palavras. Mora em Cachoeiro de Itapemirim, é professora e advogada e começou a
escrever aos doze anos, sendo autora de diversos textos não acabados, muitas poesias
não publicadas e alguns originais empoeirados. Inspira-se com música e tem uma trilha
sonora para todos os capítulos – das suas histórias e da sua vida. Se apaixona com
facilidade pelos próprios personagens e coleciona crushes literários.
Capítulo primeiro

T L
M S ’ . O barman lhe serviu uma bitter ale ao vê-lo
recostar-se no balcão e outro homen que estava ali se afastou. Ele
bebeu um gole da cerveja, limpando a espuma dos lábios com a
língua. Gostava de ser temido, assim não precisava lidar com
ninguém com quem não desejasse falar.
Desde que Nathaniel se fora ele estava como aquela cerveja:
amargo e gelado. Não que o amigo lhe fizesse bem, mas Nate era,
ao menos, alguém com quem dividir o passado. Talvez devesse
treinar outro cara, devesse resgatar outra alma perdida para
caminhar ao seu lado — mas isso o faria ser como Nolan Fitzgerald.
E Leonard odiava Nolan.
Não tinha tempo para lamentar sobre o passado recente.
Nathaniel fizera a sua escolha: saíra com Lucille, a mulher por quem
se apaixonara, em busca do irmão desaparecido pelo litoral dos
Estados Unidos. Ele também fez a própria escolha: iria embora de
Nova York assim que achasse o homem que destruiu sua vida.
Ou seja, em breve.
— Sr. Eckley?
Um homem que cheirava como se nunca tivesse tomado um
banho recostou no balcão ao seu lado.
— Depende de quem seja você.
— Sou o informante. Tenho algo para o senhor.
Leonard virou um longo gole da bitter ale e bateu com a caneca
de metal no balcão. O homem estendeu-lhe um papel dobrado e,
com um movimento positivo de cabeça, foi embora. O conteúdo era
um nome e um endereço.
Não era a primeira vez que alguém lhe dizia saber onde Michael
Razinski estava, mas ele precisava que, daquela vez, não
terminasse em um beco sem saída. A última vez em que ele o viu,
estava lutando por sua vida em um navio naufragando no Golfo do
México. Mesmo que as possibilidades de Razinski sobreviverem
fosse poucas, Leonard sabia que o maldito ficaria vivo até que ele
mesmo pudesse matá-lo.
Havia um pequeno problema: o informante lhe dizia que seu alvo
estava nas Índias. Não era como pegar um trem até Seattle ou um
navio que o conduzisse até o Brasil. As Índias ficavam ridiculamente
distantes de onde ele estava e não havia caminho fácil ou seguro.
Mesmo com toda a tecnologia dos mais modernos navios a vapor, a
viagem era cansativa e quase insuportável.
Talvez ele precisasse de mais motivos para perseguir Razinski
até as Índias. Mas que motivo seria melhor do que a vingança?
— Sr. Eckley?
Outra voz o afastou de suas conjecturas. Leonard virou-se para
se deparar com uma face conhecida, um dos seguranças do
Gênesis.
— Barry. O que o traz aqui?
Com um aceno de cabeça, ele pediu duas cervejas. Qualquer
pessoa que o conhecesse minimamente sabia que não era prudente
ter nenhuma espécie de conversa em um bar sem uma bebida para
acompanhar.
— O Sr. Fitzgerald gostaria de lhe falar.
— Não tenho nada para tratar com Nolan. Volte lá e diga isso a
ele.
O segurança bebeu metade da cerveja em um gole.
— Direi, mas creio que o senhor deveria me acompanhar. O Sr.
Fitzgerald anda tramando algo.
— Algo que me envolva?
— Não sei dizer, senhor. Porém ele o chamou e isso pode
significar alguma coisa.
Era provável que Barry estivesse correto. Aquele maldito do
Nolan Fitzgerald, proprietário do Gênesis, estava muito quieto. Por
mais comedido que o homem fosse, não lhe era comum apenas
desaparecer depois de ser desafiado e humilhado. E foi exatamente
aquilo que Nathaniel fez: humilhou-o.
Leonard jogou uma moeda sobre o balcão e terminou sua
bebida. Limpou os lábios com a manga do paletó e indicou que
Barry deveria ir à frente. Um homem prevenido nunca permitia
ninguém às suas costas, e ele podia se dizer um homem bastante
prevenido.
Millicent já tinha rascunhado cinco versões da mesma carta e todas
jaziam rasgadas ou emboladas na lata de lixo. Seus dedos estavam
sujos de tinta — ela insistia em usar uma antiga caneta tinteiro que
era quase uma relíquia — e seu vestido estava manchado com
vários tons de azul. Erguendo o papel com a sexta tentativa de
produzir um argumento minimamente aceitável para a sua admissão
na Universidade de Calcutá, teve certeza de que aquela ainda não
era a carta que deveria enviar.
Como era difícil justificar os motivos pelos quais uma mulher de
vinte e sete anos preferia estudar engenharia a se casar e constituir
família!
— Senhorita? Seu pai aguarda para o almoço.
Uma das empregadas bateu à porta do quarto. Millicent enfiou o
rascunho na primeira gaveta de sua escrivaninha e ajeitou os papéis
para parecer que estivera escrevendo em seu diário. Não queria que
ninguém visse seus projetos ou lesse suas divagações. Queria
apenas convencer os pais de que a melhor coisa a se fazer era
permitir que ela estudasse nas Índias. Afinal, aquele era o costume
na Inglaterra: enviar as solteironas para o mais longe possível e,
assim, evitar a vergonha que elas representavam para a família.
Exceto que ela não era inglesa e seus pais pouco se importavam
com o que ela fazia ou deixava de fazer — contanto que eles não
soubessem de nada.
— Estou descendo.
Precisava trocar a saia manchada, antes. Arrancou-a e vestiu
outra com uma cor extravagante qualquer. Ela comumente usava
vermelho, azul, verde e amarelo em tons bem escandalosos e que
chamavam mais atenção do que os letreiros da Quinta Avenida.
Talvez fosse porque Millicent gostasse de cores e de se parecer
com um jardim florido. Também podia ser porque ela nunca era
notada, então criava situações em que todos a veriam de uma forma
ou de outra.
O pai quase nunca almoçava em casa, mas marcou aquela
espécie de reunião para lhe dizer sua resposta sobre o pleito de
semanas atrás. Ela encontrou ele e a mãe sentados no salão de
refeições, mas nenhum dos dois interrompeu suas atividades para
recepcioná-la.
— Boa tarde, papai. Mamãe.
— Sente-se, Millicent. — Oswald Ryan indicou uma cadeira
próxima e fechou o jornal que estava lendo. — Estamos aqui porque
eu e sua mãe temos um compromisso em Boston amanhã e não
retornaremos pelas próximas semanas.
— Entendo. E já há uma resposta para meu pedido?
— Sim, há. Você pode estudar, não a impediremos. Mas terá que
estudar aqui mesmo, em Nova York. E terá que ser filosofia ou
matemática ou inglês, para que possa lecionar nas escolas
fundamentais. Afinal, já que não vai se casar outra vez, melhor que
arrume uma profissão.
Millicent estendeu o guardanapo sobre suas pernas enquanto
tentava controlar a respiração. Sabia bem que não era prudente
demonstrar qualquer espécie de fraqueza diante do pai — ele não
respeitava quem não considerava forte.
— Eu tenho pretensão de estudar engenharia, papai. Em
Calcutá.
A mãe deixou o garfo cair sobre o prato, fazendo um ruído
estridente. O pai deu uma risada que morreu lentamente ao
perceber que ela estava falando sério. Quando conversava com a
família Millicent nunca dava sinais de suas emoções, apenas
mantinha uma expressão serena e controlada que a fazia parecer
quase uma máquina.
— Está fora de cogitação. Não autorizarei que vá para as Índias.
— Uma das melhores faculdades de engenharia é em Calcutá e
eles aceitam mulheres desde 1876. Eu poderei me formar e
trabalhar com…
— Millicent, — o pai a interrompeu — engenharia é uma
profissão de homens. Veja, você deveria estar casada a essa altura.
Sabemos que isso não acontecerá e por isso podemos permitir que
estude, mas não fantasie.
— Ouça seu pai. — A mãe finalmente disse algo. — Ele é o
homem mais sábio que conheço e ele a ama. Só está pensando no
melhor para você.
Claro que a mãe estaria do lado do marido. Marianne Ryan era
uma típica esposa dos industriários estadunidenses: sempre
apoiando o marido, sempre prestes a atender todos os seus
desejos, sempre posando perante a sociedade. E também era claro
que o pai a amava — Millicent não duvidava que os dois a
amassem, mas de uma forma bastante estranha. Era um amor sem
afeto, sem cuidado, sem proximidade.
Ela passou a infância sendo tratada por babás, amas e tutoras.
Estudou em casa com as melhores professoras, mas não tinha a
presença materna ou paterna. Ela mal os via. Eles não sabiam o
que a afligia, seus temores ou suas angústias. Também não sabiam
do que ela gostava e o que a fazia feliz.
— Tenho certeza de que sim, mamãe. — Ela foi
condescendente. — Porém imaginei que, como vocês estão sempre
viajando, eu poderia…
— Pensou incorretamente. — Oswald a interrompeu uma
segunda vez. — Está decidido e pretendo iniciar minha refeição
agora. Posso indicá-la para as melhores faculdades de Nova York,
mas você não irá para as Índias.
Aquele era um revés inesperado. Millicent não deveria ter
acreditado tanto na benevolência e no desapego de seu pai. No
fundo, ele era apenas mais um homem que via mulheres como
apêndices masculinos. Toda liberdade que lhe concediam era, na
verdade, desleixo.
Ela precisava de um plano alternativo. Não estava pronta para
desistir de seu sonho de sair de casa e viver uma aventura para
estudar o que mais desejava. Havia coisas que Millicent decidira
fazer e algumas delas se tornaram prioridade desde que sua melhor
amiga, Lucille, se rebelou contra a sociedade e a família para fugir
de um casamento horrível.
Talvez ainda houvesse uma saída. Ela precisava descobrir qual
era.
Tão logo pisou no Gênesis, Leonard sabia que não deveria estar ali.
Não era mais bem-vindo no lugar que ajudara a fundar. Seu lar.
Vários olhos o fitavam de esguelha e alguns poucos o observavam
sem qualquer discrição. Como ele não ainda não havia desenvolvido
chifres, o assombro causado por sua presença no Gênesis tinha
algo a ver com sua convocação ao clube. Será que aquelas pessoas
se esqueceram de quem ele era?
Ele era. Por mais que Leonard continuasse mantendo a sua
alcunha de Diabo de Nova York, sua fama estava enfraquecida
desde que ele se afastara do clube. Alguns homens pensaram que a
ruptura com Nolan o enfraquecera. Outros acreditavam que ele só
era forte se estivesse na companhia de Nathaniel. Estavam todos
enganados, mas o respeito era algo que se conquistava. O de
Leonard estava estremecido e ele precisava recuperá-lo.
— Quer que o acompanhe? — Barry perguntou.
— Não, ainda sei o caminho.
— O escritório agora fica no segundo andar. O primeiro está
sendo remodelado.
Leonard assentiu. Outro lembrete de que as coisas com ele não
eram permanentes. O Gênesis não era mais seu clube, aqueles
homens não eram mais seus empregados, aquele não era mais o
seu domínio.
Seguiu pelos corredores familiares até a nova sala de Nolan
Fitzgerald. O antigo “chefe” estava de costas examinando uma
estante de livros e não se deu ao trabalho de virar-se quando ele
entrou.
— Você já tem o dinheiro para me pagar?
Leonard baixou o olhar e pressionou a ponte do nariz. Sim,
Nolan estava tramando algo.
— Pagar?
— A dívida que temos.
Aquela seria uma conversa bastante difícil.
— Não lhe devo nada, Nolan. Por que me chamou aqui?
O chefe virou-se e sorriu. Leonard costumava respeitá-lo como a
um irmão mais velho, mesmo que tivessem a mesma idade. Aquele
homem o salvara de outro episódio traumático na vida e o resgatara
de uma situação que o destruiria. Leonard seria capaz de matar e
morrer por Nolan Fitzgerald até descobrir que tudo não passou de
uma farsa. Ele foi traído, enganado e não estava disposto a perdoar.
— Claro que deve. Salvei sua vida, portanto ela pertence a mim.
Se vai rebelar-se como seu amigo Nathaniel, então deverá pagar o
mesmo preço que ele.
O homem caminhou até uma escrivaninha, abriu uma gaveta e
retirou alguns papéis presos por elástico. Folheou-os rapidamente e
encarou Leonard, ainda sorrindo.
— Não entregarei meus bens para você apenas porque
despreza o fato de que a escravidão foi abolida neste país.
— Sabe o que é isso, Leo? — Nolan ignorou seu comentário e
apontou para os papéis. Ele se aproximou, apenas o suficiente para
ver que tratavam-se de contratos e promissórias. — Você reconhece
seu nome nesses documentos?
— Não.
— Uma pena. Esses são cópias, os originais estão com seus
verdadeiros credores. Pelo que parece, você fez várias dívidas pela
cidade e não pagou nenhuma. Dívidas com homens muito
perigosos.
Ele deu mais alguns passos até a mesa e pegou os documentos.
Havia sua assinatura em todos eles, mas Leonard tinha certeza de
que jamais os assinara. Os credores eram homens horríveis,
criminosos como Nolan que usavam as pessoas para chegar ao
topo e as descartavam quando elas não mais lhes serviam.
Suas mãos recolheram um abridor de cartas sobre a mesa e, em
meio segundo, Leonard empurrou Nolan até a parede, ergueu-o do
chão e encostou o objeto pontiagudo em seu pescoço. O maldito
nem mesmo tremeu. Ao contrário, ele riu.
— O que você fez? — A pergunta saiu por entre os dentes como
um rosnado.
— Garanti que você estivesse inexoravelmente atado a mim.
Acha que cheguei onde cheguei sem proteger meu investimento?
Leonard apertou-o com mais força. Uma gota de sangue
escorreu do lugar onde o abridor de cartas puncionava a carne.
— Você acha que tenho medo de você, Nolan? Pensei que me
conhecesse um pouco melhor do que isso.
O clique de uma pistola indicou que sim, o “chefe” o conhecia
melhor do que isso. Claro que havia seguranças armados
esperando um confronto e prontos para atirar. E também era claro
que eles não atirariam a não ser que fosse para evitar a morte do
patrão — mas atirariam, no final. Porque Leonard não costumava
apontar uma arma para alguém se não estivesse disposto a
ultrapassar alguns limites.
Ele deu dois passos para trás e colocou o abridor de cartas
sobre a mesa.
— Pague-me e essas promissórias desaparecerão. — Nolan
determinou. — Meus advogados o procurarão amanhã com os
contratos. Transfira tudo que tem para mim e não precisará mais
preocupar-se com esses credores.
— Você quer me levar à ruína? É isso?
— Mais ou menos isso. — O bastardo ajeitou os documentos até
formar uma pilha perfeitamente simétrica. — Não gosto de ser
traído. Se você não quer continuar trabalhando para mim, posso
aceitar liberá-lo se estiver arruinado, destruído, sem nenhum
centavo para se reerguer. Quero todo o seu patrimônio, todo o seu
dinheiro, seus investimentos.
— E se eu recusar?
Nolan pegou o telefone e fingiu que pedia uma ligação.
— Terei que pedir aos seus credores que executem a dívida.
Você sabe que alguns deles não gostam muito de envolver a justiça,
então provavelmente terá que lidar com cães de guarda iguais ao
seu amigo Nathaniel.
Os dois homens trocaram olhares, mas nenhuma outra palavra.
Leonard não daria a Nolan o prazer de colocar as mãos imundas em
seu dinheiro. Procuraria cada credor falso e negociaria com eles
cada centavo que precisasse pagar, mas não cederia à chantagem.
— Não tenho medo de você. Faça o que quiser, mas poupe os
advogados. Você não verá a cor do meu dinheiro.
Leonard saiu da mesma forma que entrou. Virou as costas e
refez seus passos, deixando o Gênesis para trás. Daquela vez, de
forma definitiva.
O Marquês que me Amava

Anthony Eckley, o Marquês de Granville, é o maior libertino da


Europa. Já seduziu mais mulheres do que qualquer homem vivo,
mas ele também é um espião a serviço da Coroa Britânica. Mesmo
desejando afastar-se das missões, ele se vê obrigado a ir a Paris
para investigar um possível traidor que está vendendo segredos
britânicos para a França.
Rosamund Taylor está disposta a aceitar o casamento planejado
por seu pai como seu destino e só precisa viver uma aventura antes
de se tornar a esposa de alguém. Depois de uma negativa de seu
pai, ela forja um compromisso com um conde e consegue viajar
para a capital francesa onde pretende se tornar uma das pupilas de
Madame Beaury-Saurel, uma das maiores pintoras da França.
Os destinos de Anthony e Rosamund se entrelaçam quando
ela o encontra em uma posição comprometedora e eles selam
um acordo. Entre mistérios, crimes e reputações arruinadas,
eles precisarão lidar com sentimentos inesperados e tomar
decisões que mudarão para sempre suas vidas.

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O Lorde das Sombras

Um homem marcado pelo passado


Robert Eckley era jovem e destemido quando descobriu que
podia perder tudo em apenas uma noite. Sozinho e com uma filha
recém-nascida para criar, ele precisou fugir para o mais longe
possível para mantê-la em segurança. Refugiado em um castelo nas
Terras Altas escocesas, por três anos ele lidou com a desconfiança
e a superstição dos habitantes locais que o apelidaram de Lorde das
Sombras, até que uma nova babá chegou para desorganizar toda a
sua rotina perfeitamente estabelecida.
Uma mulher tentando redimir seus pecados
Grace era a filha perfeita do vigário Hugh MacAlister. Ajudava na
paróquia, cuidava dos doentes e das pessoas necessitadas e
lecionava para as crianças da vila de Dornie até que uma
tempestade a fez tomar a decisão de trabalhar para o Lorde das
Sombras. Surpresa ao descobrir que o misterioso e recluso dono do
castelo era, na verdade, um homem sofrido, ela não resistiu aos
impulsos de conhecê-lo melhor - e permitir que um sentimento
inesperado emergisse entre eles.
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Um Duque para Chamar de Meu

Uma mãe em fuga para salvar seus filhos.


Elizabeth Collingworth está deixando Londres com seus dois
filhos pequenos, tentando escapar dos riscos de uma epidemia.
Durante a fuga, recebe a ajuda de Lady Agatha Trowsdale, uma
jovem dama aristocrática que se compadece da situação e acolhe a
família em sua carruagem.
O Duque de Shaftesbury precisa escolher uma esposa.
Aiden Trowsdale precisa se casar para garantir um herdeiro para
o ducado e auxiliar sua irmã em sua aventura pela sociedade, mas
acaba decidindo contratar outra governanta para administrar os
criados e a casa. Suas opções são poucas até que seu uma linda
dama de cabelos dourados cruza seu caminho e desmaia em seus
braços.
Mas ela não é uma dama.
Ela parece a solução de seus problemas e se transforma em
outra tormenta em sua vida. Certo de que homens em sua posição
não se casam por amor, o duque precisará escolher entre seu dever
e seu coração.
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Um Conde para Curar meu Coração

Agatha Trowsdale guarda um segredo terrível.


Depois de uma longa viagem para as Américas, a jovem irmã do
Duque de Shaftesbury retorna para Londres com um segredo que
pode destruir a sua vida. Tudo que ela quer é se manter longe dos
eventos da temporada, mas seu irmão insiste que precisa retornar
para a sociedade e se casar.
Ele foi abandonado por sua noiva.
Edward McFadden, o Conde de Cornwall, está arrasado com um
noivado rompido e decide casar-se por conveniência. É mais seguro
negociar uma esposa do que ser humilhado novamente.
Depois do reencontro, um escândalo.
Nos jardins da Trowsdale House, Edward e Agatha se envolvem
em um escândalo de proporções inimagináveis e só há uma opção
para contê-lo: casarem-se. Logo descobrem que parece impossível
não sucumbirem ao desejo e à paixão — mas o segredo que ela
carrega será capaz de destruir tudo que construíram.

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Uma noite para seduzir uma libertina

Ele vai se casar e precisa aprender sobre sedução.


Isaac McFadden é um cavalheiro de reputação irretocável que se
mantém virgem à espera do casamento. Ao decidir cortejar uma
dama italiana para estabelecer uma família, descobre que sua
inexperiência pode atrapalhá-lo no processo.
Ela é uma libertina sem respeito pelas regras sociais.
Caroline Eckley é livre, não guardou sua castidade, não deseja
se casar e prefere passar as noites nos clubes de cavalheiros. Foi
criada entre homens que a ensinaram a não admitir restrições — e
pretende ensinar outras mulheres a pensarem como ela.
Uma proposta irrecusável abalará seu mundo perfeito.
Quando Isaac pede que Caroline o ajude, ela precisa fugir das
investidas românticas do homem mais lindo, encantador e cobiçado
de Londres. Em um jogo de gato e rato, eles se estranham e se
entendem em uma sequência de eventos que a levará a confrontar
seus projetos de vida.

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Uma Lady para me dar um Coração

O fantasma de um amor impossível.


Na sua terceira temporada, Wilhelmina McFadden sabe que não
conquistou um pretendente porque todos os homens que se
aproximam dela querem apenas seu dote. Fechada para o amor
desde uma desilusão do passado, ela deseja se casar apenas com
quem lhe ofereça algo interessante em troca.
Um homem querendo ascender socialmente.
Grant Sawbridge tem tudo que um homem pode desejar, menos
o sangue azul. Rico, poderoso e conhecido como “homem sem
coração”, ele anseia por desposar uma mulher nobre e, assim,
forçar sua aceitação na sociedade que ainda valoriza mais o
nascimento do que o caráter.
Um plano quase perfeito.
Depois de um escândalo abalar a família McFadden, Sawbridge
faz uma oferta a Wilhelmina: casar-se com ele para silenciar as
fofocas e ela poderá ter a retribuição que deseja. O que ele não
esperava era que sua jovem esposa fosse descobrir que havia um
coração em seu peito apenas para esmagá-lo em seguida.
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Uma Donzela para redimir um Canalha

Ele precisa provar a sua inocência.


Acusado de assassinato, Nathaniel McFadden quer impar o seu
nome. Para isso ele traça um plano que consiste em deixar Nova
Iorque e sair em uma jornada em busca do irmão ferido.
Ela precisa fugir de um casamento horrível.
Prometida a um marquês muito mais velho, Lucille Smith quer
ser arruinada e procura o famigerado Nathaniel para ajudá-la.
Quando ele recusa, ela decide fugir e se esconde na carroça do
homem ao descobrir que ele sairá da cidade.
Dois destinos unidos pelo acaso.
Juntos em uma jornada em busca do que desejam, a donzela
persegue sua ruína e o canalha, a sua redenção. Mas, depois de
enfrentarem capangas, criminosos, policiais e noivos determinados
para atingir seus objetivos, eles seriam capazes de dizer adeus e
assumirem suas novas vidas?

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Uma Princesa para Desafiar o meu Destino

Uma princesa com o destino traçado.


Hurit está predestinada a substituir o xamã de sua tribo. Desde
os doze anos a visão consolidou sua conexão com os deuses.
Quando um homem branco é encontrado quase morto no território
de sua tribo, ela descobre que estava equivocada sobre a
mensagem enviada por eles.
Um homem querendo mostrar seu potencial.
Emile McFadden seguiu o irmão até os Estados Unidos porque
queria viver aventuras. Depois de uma infância doente e uma
juventude reclusa por sua saúde fragilizada, ele só queria que todos
percebessem que se tornou um homem — mas acaba envolvido em
um crime que culmina com seu corpo alvejado e boiando no oceano
Atlântico.
Um final surpreendente.
Uma Princesa para Desafiar o meu Destino encerra a série
Amores em Kent com a história do amor impossível entre um nobre
inglês e uma princesa nativa americana, que decidiram desafiar tudo
e todos para viverem o seu felizes para sempre.
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