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Alfabetização Cultural

a luta íntima por uma nova humanidade

propostas para uma pedagogia de autodeterminação


baseada na arteducação pela transformação

A compreensão da resistência faz com que se perceba a ‘astúcia’ das classes


oprimidas como um modo de defesa contra as classes dominantes. Esta astúcia
é social na medida em que faz parte da rede social da classe oprimida. Essa
sagacidade se mostra claramente no uso de sua linguagem, em sua arte, em
sua música e até mesmo na sua filosofia. O corpo dos oprimidos desenvolve
uma imunização para defender-se das duras condições a que é submetido.

Paulo Freire
Alfabetização: Leitura do Mundo, Leitura da Palavra
Freire & Macedo, 1990
Este Artigo faz parte do livro
Alfabetização Cultural:
A luta íntima por uma nova humanidade,
Editora Alfarrabio, SP: 2004.

2 Alfabetização Cultural: a luta íntima por uma nova humanidade


1.3 Em busca de uma metodologia
de libertação

Este capítulo foi escrito originalmente em janeiro de 2000, como artigo para a
Revista Sem Terra. Foi publicado em vários jornais sindicais, e tem sido usado
como texto pedagógico em diversas universidades desde então. Não pretendo
modificá-lo, apesar do contexto extraordinário e histórico dos últimos dois anos,
onde encontramos os atentados de 11 de setembro nos EUA, a queda da Argentina
em 21 de dezembro, as invasões do Afeganistão, da Palestina e do Iraque, as crises
explícitas da América Latina e do mercado financeiro mundial, e a eleição de
Lula. Embora a atual conjuntura possa ter desatualizado o tom do artigo, acredito
que seu argumento principal continua relevante. E acredito que é interessante
manter sua integridade, como registro do momento em que decidi trocar meus
sapatos universitários efetivos, no País de Gales, pelos chinelos de aprendizagem
e colaboração com o MST, na luta antiimperialista na América Latina.

H á dois anos atrás, cheguei aqui esperando um confronto:


um confronto entre o Brasil divulgado e o Brasil escon-
dido. Esperava um país violento, mas romântico; pobre, mas
animado; perigoso, mas sedutor; a capital mundial do samba
e do futebol. Imaginava cidades cheias de feiras de artesanato,
frutas e pássaros tropicais, o mundo mítico das florestas a-
mazônicas com seus rios sem fronteira, um povo miscigena-
do, cantando e tocando violões e tambores em pequenas
vilas coloridas e tradicionais, tranças de culturas e sonhos
modernos e antigos, todos integrados pela loucura do carna-
val. Nunca poderia ter imaginado as mudanças que a-
conteceriam em minha vida!
Esperava um confronto comigo mesmo. Apesar de ter
morado e participado durante sete anos da luta cultural na
Irlanda do Norte e de estar participando de um movimento
comunitário no Sul empobrecido do País de Gales – dois
países celtas colonizados pela Inglaterra e considerados um
terceiro mundo dentro do primeiro mundo – esperava um
confronto com os limites de minha perspectiva. Estava pronto
a enfrentar qualquer cegueira do hemisfério norte em busca
de novos instrumentos para mapear as novas subjetividades
e as relações no neoliberalismo. Desejava buscar novas idéias
e práticas para enfrentar a revolução política e cultural que
já desorientou nossas identidades, fragmentou nossas comu-
nidades e sindicatos e privatizou nossas lutas. Cheguei enfim,
determinado a arriscar tudo para aprender como ler e trans-
formar esse novo mundo injusto.
Mas nunca me imaginei viajando com uma multidão de
famílias excluídas, em cima de um caminhão, cantando e
gritando, sentindo o pulso de um sonho coletivo. Nunca me
18
Uma performance imaginei testemunhando místicas18 de coragem e esperança
evocativa sem diálo- dentro das florestas, embaixo de lona e dentro de prédios
gos, tipicamente acom-
panhada de narração condenados. Nunca me imaginei colaborando com comunida-
escrita por líderes da des massacradas e invisibilizadas, construindo monumentos para
região, que abriam to-
do evento do MST. A
uma proposta de mudar o mundo – com chinelos, sementes,
mística é destinada a giz, lona, própolis, violões e arroz com feijão. Não imaginava
renovar os valores, porque não sabia nada sobre o Movimento Sem Terra.
princípios e símbolos
do movimento, atra-
vés da dramatização
dos momentos de luta
e das suas idéias sig-
nificativas.

Um mundo, uma luta: painel intercomunitário, resultado da colaboração


entre 14 militantes culturais da Irlanda do Norte e Nicarágua, que pintamos
em Derry, 1993. No canto inferior esquerdo, 10 pedras em pé lembram os
10 militantes que morreram na prisão numa greve de fome em 1981, na luta
por uma república irlandesa socialista. No canto inferior direito, o vulcão da
reforma agrária, necessária para democratizar a América Latina. Duas his-
tórias e propostas distintas de luta, trocadas e unidas através do diálogo,
seguindo a metodologia freiriana. Comemoramos a metodologia na prática:
colocamos duas pessoas tendo as orelhas no lugar das bocas, afirmando a
importância de ouvir ativa e criativamente.

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Durante vinte anos de militância, nunca encontrei uma
proposta tão prática, ética e inspiradora, experimentando
para solucionar todas as desigualdades na produção de
alimentos, saúde, educação e gênero através da democra-
tização da terra e uma pedagogia de educação baseada nas 19
Paulo Freire (1921-
idéias de Paulo Freire19. 1997), educador e pe-
dagogo brasileiro. Exi-
Surpreendeu-me que uma tal proposta existisse, porque lou-se depois do golpe
já havíamos estudado na Inglaterra a questão agrária no hori- militar de 1964, cola-
borando com o gover-
zonte distante da América Latina durante campanhas de soli-
no do Chile e Guiné
dariedade a Cuba, El Salvador, Guatemala, Nicarágua e Bissau. Tornou-se co-
Chiapas. Encontrei as idéias de Paulo Freire com quinze anos nhecido mundialmen-
te por seu livro Peda-
de idade. Nunca esquecerei a euforia que senti quando ter- gogia do Oprimido.
minei de ler Pedagogia do Oprimido num café de Londres, 20
Augusto Boal
em 1972!). Já integrávamos os métodos freirianos nas campa- (1930-), atual diretor
nhas socialistas pelos direitos humanos e contra as armas nu- do Centro Teatro do
cleares no final dos anos 70; e os adaptávamos aos métodos Oprimido, no Rio de
Janeiro.
no Teatro do Oprimido, do teatrólogo brasileiro Augusto Boal20,
nos bairros excluídos de Manchester (Inglaterra) e Derry (Irlan-
da do Norte) nos anos 80 e 90. Invisibilizado: A corda
azul na capital mundial
Mas apesar de tudo isso e da do carnaval separa os
amizade com educadores brasileiros jovens turistas do Cen-
tro e do Sul do país –
e militantes latino-americanos, nunca pagantes de cerca de
havia encontrado nada escrito sobre R$500,00 (dependen-
o MST até ler um artigo antipático do da fama do bloco)
para dançar a música de
sobre o Movimento na revista Time, seu grupo preferido –
em janeiro de 1998, no avião entre do povo de Salvador
São Paulo e Florianópolis, em minhas que dança nas ruas. Os
artistas nacionais, em
primeiras horas no Brasil. cima dos trios elétricos
Brasil. Mesmo depois de sete patrocinados por em-
presas transnacionais
anos de conflito na Irlanda do Norte euro-americanas, des-
e algumas colaborações na África, o filam no mesmo nível
toque íntimo com uma guerra civil dos olhos dos incluídos
que assistem de seus
não-declarada foi chocante: esbarrar apartamentos seguros,
em tantos indigentes invisibilizados e atrás de grades altas e
‘deficientes’ vulneráveis catando lixo chaveadas. A equipe
que segura a corda do
e pedindo esmola, num país tão rico apartheid é reforçada
e fértil; ver o medo em tanto arame pela polícia militar, pe-
lo batalhão de choque
farpado, tantos muros com cacos de e uma mídia somente
vidro e tantas grades num país tão preocupada com o es-
imenso, bonito e disponível; enfrentar petáculo, nesse evento
único e carismático.

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Dança nas sobras do uma humanidade tão
mito: Centenas de
trabalhadores infantis faminta e sedenta, em
seguem cada trio elé- tanta terra seca e quei-
trico, pisam para a- mada, num país tão re-
massar as latas de
alumínio de cerveja e pleto de vida. E tanto
refrigerante, reco- silêncio e timidez no país
lhendo-as num ritmo do carnaval!
contínuo que vale
cerca de 50 centavos Tanto silêncio,
por saco de lixo com- passividade e medo em
pleto. Quando desco-
bri que existe cerca um povo tão resistente
de cinqüenta milhões e honesto. O país intei-
de brasileiros lutando
ro me pareceu uma
para sobreviver com
salário mínimo me- cicatriz aberta, um mo-
nor que US$ 75,00/ numento de cinco sé-
mês, entendi a neces-
sidade de acelerar a
culos de massacres
reforma agrária por escondidos, injustiças
meio de ocupações normalizadas, línguas
de terra improdutiva
mas fértil, e a resis-
destruídas, arquivos queimados, identidades analfabetizadas,
tência ideológica e notícias desinformadas e auto-estima mutilada – uma peri-
militar do Estado gosa história tremendo sob uma amnésia coletiva.
brasileiro.

Escola dos excluídos: Quantos


brasileiros sabem que hoje
existem mais de 200 mil famí-
lias acampadas embaixo de
lona, preparando-se para a
legalização da ocupação pelo
Ministério da Reforma Agrária?
Esse ambiente provisório pode
durar até cinco anos, onde os
acampados constroem um
lento processo de retomada de
sua humanidade, aprendendo
a ler e escrever, se organizar
coletivamente, resgatar ervas
medicinais (como na imagem
ao lado, uma farmácia co-
munitária), cuidar da terra, criar
crianças independentes, ensi-
nar novas relações de gêneros
e se tornar auto-sustentáveis. Ao
invés de arriscar a vida, os acam-
pados desocupam as áreas
quando há risco de confronto
com pistoleiros e policiais.

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Agrovila de lama: Quantos brasileiros sabem que
somente a partir do momento da legalização de
posse os assentados começam a construir sua nova
comunidade de agrovilas e escolas? E quantos sabem
da existência das escolas agroecológicas, onde de
manhã os jovens estudam ciências, história, geo-
grafia, línguas, religião, educação física e os modos
de produção numa perspectiva antiimperialista, e à
tarde, nas aulas práticas, experimentam a nova
proposta na sua horta coletiva? Esse movimento
social – o maior da América Latina hoje – não
somente critica o imperialismo, mas procura cons-
truir uma nova sociedade socialista no país com a
maior desigualdade de renda do mundo.

A partir da minha primeira cola-


boração com o MST, em abril de 1998,
como professor visitante de teatro co-
munitário na Universidade do Estado de
Santa Catarina, entendi porque existe
uma cerca de silêncio ao redor da pro-
posta do Sem Terra.
Se esta proposta fosse relevante somente para os
excluídos, não seria tão reprimida nas cidades do país. Ainda
hoje, os governos brasileiros, um após o outro, precisaram
desumanizá-la e os governos neoliberais da Europa e dos
Estados Unidos precisam invisibilizá-la absolutamente, por-
que ela pode oferecer esperança numa época sem visão,
solidariedade numa época de tolerância zero e inspiração
numa época de fatalismo e autodestruição. Enquanto existem
no mundo inteiro tantos milhões de desempregados isolados,
prisioneiros, jovens se suicidando, consumidores se silen-
ciando com medo de perder seu trabalho, homens e mulhe-
res se encarcerando em casas e carros trancados com medo
de suas próprias ruas, o neoliberalismo precisa apropriar,
desvalorizar ou silenciar qualquer alternativa digna e possível.
Depois de conhecer a aldeia Pataxó idealizada, o
pataxopping e o museu de descobrimento em Coroa Ver-
melha21, o projeto neoliberal foi se revelando uma mentira 21
Ver 5.1, Retomando
sádica, transparentemente banal, vulnerável e repressiva. a história.
Porém, ao se definir o neoliberalismo como mentira vulnerá-
vel, corre-se o risco de subestimar seu novo poder revo-
lucionário – o poder íntimo, prazeroso e envolvente de sua
microtecnologia cultural.

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Apropriação ideológica: A bandeira do comunismo,
ressignificada, com símbolos em ouro e incrustada de
diamantes. A publicidade da empresa nessa revista
francesa comemora o acesso ‘democrático e justo’ à
produção da riqueza, no mercado livre neoliberal.

Para enfrentar a inteligência e o al-


cance desse poder, precisamos reconhecer
a cultura como a arena da luta pela subje-
tividade e reconhecer nossa subjetividade
como uma força política e objetiva, não uma
dispersão pequeno-burguesa no verso da
pauta, nem uma dinâmica para ‘animar’
platéias passivas no início ou no final da
pauta de transformação social. Para enten-
der a ameaça profunda do novo poder,
quero oferecer a seguinte definição do
significado de cultura:

A cultura é normalmente entendida como a arte produzida


para galerias e teatros por gênios criativos em isolamento.
Essa crença nos tem desviado e inferiorizado por séculos.
Tem sido usada para nos convencer de que a cultura é
irrelevante a nossa vida e para nos excluir da construção de
idéias e interpretações. Resultou na idéia de que não possuímos
técnicas culturais. Mas, sobretudo, essa mentira tem sido
usada para nos desencorajar de participar da construção de
nossa própria cultura e identidade.
A cultura expressa nossa relação com a produção e reprodução
da vida; por isso, vem do verbo cultivar. Interpreta e define
nossa relação econômica, política e social com o mundo. É
como nós trabalhamos, comemos, pensamos, nos vestimos,
organizamos, sentimos, escolhemos nossos amores, amamos,
nos divertimos, refletimos, lembramos, falamos, rimos,
choramos, transamos, nos vemos, educamos nossas crianças
e enterramos nossos mortos. É como entendemos a nós
mesmos no mundo e como vivemos esse entendimento.
Estamos o tempo todo herdando, adaptando, selecionando,
construindo e passando valores e interpretações – talvez bem
contraditórios – através de nossa vida cotidiana. Se não
22
Derry Frontline, 1988.
fazemos nossa própria cultura, podemos ser dominados e
Ver Teatro de Autodeter- apropriados sem perceber. Podemos viver – também trabalhar,
minação, Dan Baron. amar e sonhar – contra nossos próprios interesses.22

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Com essa definição, podemos entender a subjetividade
como a história cultural e a matriz social dinâmica de nossa
motivação. A motivação não pode ser definida simplesmente
como conscientização, como uma reflexão em preto-e-branco
de idéias políticas ou um debate moral. Ela tem uma profunda
ligação com nossa história pessoal, familiar, comunitária,
nacional e, hoje, explicitamente global, gravada em nossa
mente, nosso corpo, nossas emoções, nossos sentidos e nossas
relações – com os vivos, os mortos e aqueles que ainda não
nasceram. Está ligada a nossas necessidades humanas e
comunica a ligação entre nossa mente, nosso corpo e nossas
capacidades emocionais. Estamos ainda aprendendo sobre
essas ligações, mas sabemos que um corpo rígido e inerte
tende a produzir uma mente passiva e alienada; uma mente
medrosa e rígida tende a produzir um corpo inibido e fecha-
do; o prazer proibido e culpado tende a adoecer a auto-
estima e a enrijecer a motivação do ser humano.
Ainda mais profundamente, nos comunicamos a todo
momento através de nosso corpo, em particular com nossos
olhos e nosso tom de voz. O conteúdo verbal é somente a
dimensão óbvia de nossa comunicação. Nossos próprios
gestos comunicam inconscientemente as histórias e heranças
de um mundo dominado há séculos por valores e violações
de exploração. Se nossa história de resistência existe
(in)conscientemente em nossa mente e nosso corpo, ela se
confunde com a história cultural dominante, cheia de viola-
ções justificadas e normalizadas. Mas, é certo: nosso corpo
fala e pode subverter a comunicação verbal.
O neoliberalismo é perigoso porque entende e utiliza
tais conhecimentos como base de sua propaganda e tem novas
armas culturais para implementar suas estratégias de manipula-
ção: as tecnologias revolucionárias de informação, edição, di-
vulgação e sedução, que transformam o espaço público em
espaço íntimo e o espaço íntimo em espaço público. Por meio
da visualização, dramatização e erotização de nossas necessida-
des humanas em cada espaço existente – desde as enormes
paredes dos edifícios até o visor do celular – seus conceitos e
valores de competição, desumanização, vaidade e privatização
penetram e colonizam não somente nosso país, nossa casa, nosso
quarto e nossa mente, mas também nossa comida, nosso corpo,
nossa imaginação, nosso imaginário e nosso próprio tesão.

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Autismo cultural: Jovens curtindo as ilhas
de comunicação no Instituto Cultural Itaú,
em São Paulo. Além da penetração dos
valores e narrativas ideológicas do neoli-
beralismo, quais são os efeitos psicoemo-
cionais e sociais dessa tecnologia isola-
dora? Quais são os efeitos subjetivos do
consumo contínuo de narrativas irrespon-
díveis, que não requerem o contar ou
trocar de histórias nem a expressão ativa
de ouvir e dar sentido? A nova micro-
tecnologia, que está transformando nossos
espaços familiares e escolares em ilhas
de comunicação, está certamente pro-
duzindo novas linguagens e capacidades
que estamos apenas começando a enten-
der. Mas será que o aumento da violência – entre pessoas jovens de todas as classes sociais – está
ligada com as horas e anos de comunicação monológica e não-expressiva? É cedo para avaliar a nova
microtecnologia. Mas será que suas qualidades compulsivas e monológicas não nos permite desenvolver
e praticar a nossa própria autoridade, não permite a troca de histórias como metáforas, no processo
de fazer novas histórias democráticas coletivas?

O neoliberalismo aprendeu – e está aperfeiçoando essa


aprendizagem o tempo inteiro – a colonizar e explorar nossa
subjetividade, como nova matéria-prima para transformar (sem
força visível) em motivação compulsiva e produtos alienados,
para o novo mercado global.
No passado, o colonialismo entendeu a importância
de uma amnésia coletiva para a colonização da mente.
Destruiu a língua indígena para apagar e reescrever as
memórias e histórias coletivas do povo ‘descoberto’ e mutilou
seu autoconhecimento, sua autoconfiança e sua auto-estima,
para incapacitar sua imaginação política. Mas não conseguiu
pacificar os colonizados. Mesmo com a implantação da
perspectiva do sacrifício do Cristo e a proibição do prazer
corporal, para que o desejo se tornasse crime e a visão sensorial
de uma utopia humana e terrestre se tornasse impossível, o
colonialismo dependeu da força física para manter sua
autoridade. Pois subestimou os efeitos do sofrimento profundo
que causou, e subestimou a subjetividade criativa e persistente
de seus escravos, não somente porque não a entendeu ou
temeu, mas porque não a reconheceu como humana. Mas
essa violência provocou resistência e estratégias apropriadas e
efetivas nas lutas anticoloniais.
O neoliberalismo aprendeu com esse passado. Enten-
dendo a necessidade humana de criar sua própria cultura e

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identidade, afirma e escraviza nossa criatividade e sensibilidade
pessoal a serviço do consumismo. Entendendo a necessidade
de haver uma memória para se orientar, apropria e esvazia
nossas histórias coletivas em logomarcas para nos localizar e
direcionar em seu mundo. Entendendo a necessidade humana
de ter prazer, vocaliza e canaliza nossos desejos através de
suas ofertas de conforto e suas promessas sexuais. Enten-
dendo a necessidade humana de cicatrizar as histórias e a
autoconfiança mutilada, oferece gratificação imediata como
justiça através da venda de nosso futuro e do futuro do pla-
neta. Entendendo a necessidade humana de analisar e
solucionar qualquer injustiça que se aproxime demais e
ameace transparecer sua repressão camuflada, disciplina e
direciona nossa curiosidade e imaginação
aos dramas de suas estrelas e campeões –
os deuses de nosso século – que incor-
poram os valores do palco de seu mercado.
Sua exploração prazerosa – seu alcan-
ce e sua profundidade – é recente e nos
torna cúmplices involuntários. Suas parabó-
licas – as caravelas do século XXI – estão
fora de cada uma de nossas casas. Seus
shoppings – as catedrais do século XXI –
estão definindo um paraíso palpável e apa-
rentemente acessível a todos. Com certeza,
muitos reconhecem que a bandeira da
liberdade individual é a mentira que escon-
de o inferno do consumismo. Mas o medo
silencioso, a passividade, a timidez, a falta de
auto-estima, o isolamento e a

Retail terapia: A visualização, erotização


e dramatização das necessidades humanas
num palco-vitrine de uma loja em
Bergen, Noruega. Através de comoventes
manequins humanos, o mercado cultiva
o desejo pela aura sociocultural do
produto na platéia admiradora e afir-
mativa. Cumplicidade autoritária e co-
dependente na construção de um senti-
mento ilusório de autodeterminação.

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Apropriação: Um outdoor em
qualquer capital no país, anunciando
o provedor Terra, a ‘Internet da liber-
dade’, explorando a ressonância dos
conceitos-chave num Brasil faminto
pela reforma agrária e liberdade huma-
na. A pobreza da linguagem do pro-
testo embaixo do outdoor revela muito
mais de que uma carência de recursos.
Demonstra uma falta de reconhe-
cimento sobre o significado da cultura
e a falta de preocupação com o diálogo
e sua manifestação visual.

amnésia de um povo mutilado, sem memória


histórica consciente e autêntica, são solo fértil
para a estratégia de adoração, valorização,
afirmação e interpretações acessíveis e confortá-
Ousadia neoliberal: Na frente do veis da cultura neoliberal. E ela nos chama inti-
alojamento do MST – São Paulo, em
2000, encontrei esse outdoor ousado
mamente, a cada segundo, numa linguagem de
e explicitamente ideológico. Satirizan- escolha pessoal para atuar em seu palco e sentir
do a linguagem de Fidel Castro, um a aura efêmera da admiração de uma platéia
dos maiores ícones da América Latina
(com seus olhos fechados e seu dedo
faminta por conseguir a mesma afirmação. Nos-
didático no ar), essa intervenção pú- sas próprias emoções podem acabar traindo
blica está comemorando um diálogo nossa própria sabedoria.
histórico e íntimo entre América Latina
e América do Norte no novo mercado Podemos protestar, mas o neoliberalismo
invisível do século XX. Sua implicação sabe como isolar, desumanizar e definir qualquer
é clara: a luta acabou. Não vale mais
lutar pela independência. A época de oposição como irracional, antiquada e antidemo-
liberdade e igualdade já chegou. crática. Podemos gritar contra a privatização, a

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Prazer ideológico: Um video-
game desafia o jogador a des-
manchar o império autocrático
de ‘um ditador (de aparência
explícita) de uma ilha na Amé-
rica Central’ que engana seu
povo com contas escondidas.
Convida o jogador a libertar a
população usando táticas psico-
lógicas, econômicas, políticas e
militares, implantando os co-
nhecimentos da luta moderna
através do prazer de vencer.

globalização e a banalização da vida. Mas suas mídias estão


seduzindo nossas crianças, nossos jovens e adultos, para
privatizar a luta pela justiça e pela terra, através de nossa
própria linguagem de libertação.
Podemos tentar obstruir ou inviabilizar a midiatização
de nossa vida através de intervenções eletrônicas ou polí-
ticas. Mas essa censura somente provocará um grito de recla-
mação contra nossa intervenção. Precisamos de outra estra-
tégia, nova e apropriada.
Além de buscar a democratização dos meios de
comunicação, temos que aprender a ler crítica e culturalmente
nosso ambiente e a nós mesmos, e compreender a efetividade
cultural das novas linguagens audiovisuais, para reconhecer
por que a cultura neoliberal está cultivando uma subjetividade
individualista, narcisista e dependente no espaço pessoal vazio
dentro de nossa própria cultura de resistência.
Portanto, além da necessidade de desenvolver o que
podemos chamar de alfabetização cultural, temos que re-
conhecer que o imperialismo está explorando várias fraquezas-
chave do socialismo: a falta de compreensão sobre o quanto
a subjetividade é central; a falta de uma práxis de intimidade,
afirmação, empatia, curiosidade, diálogo, comunidade e
espaços democráticos de autodeterminação. E mesmo onde
existe um discurso que valorize a necessidade de construir

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uma nova cultura política e popular, falta-nos saber como
sustentar uma subjetividade empática, solidária e cooperativa.
Por isso, a luta política contra o neoliberalismo precisa
se tornar uma luta cultural. Na atual conjuntura midiatizada,
a cultura tem se tornado – talvez sempre tenha sido – nossa
principal ferramenta de transformação social. Ela constitui a
legislação subjetiva, sem a qual nenhum projeto de trans-
formação política e econômica pode se tornar humano, con-
vincente, autêntico e prático.
Mas que armas, ferramentas e estratégias usaremos?
Precisamos de novos conhecimentos e táticas culturais para
enfrentar as sofisticadas estratégias do consumismo, de novos
métodos culturais, apropriados para responder às expectativas
frustradas que ele criou e continuará criando. As frustrações
e as novas feridas e doenças psicoemocionais que estamos
acumulando geram uma violenta tensão autodestrutiva e
explosiva em todos os espaços sociais: no corpo individual,
em casa, nas escolas, nos bairros, nas instituições e movimentos
sociais, das periferias ao centro das cidades e no meio rural.
Se quisermos uma alternativa à militarização absoluta de todo
o espaço civil, uma cultura de resistência não será suficiente.
A resistência precisa de barricadas: comportamentos,
reflexos e organizações disciplinados e fechados para sobreviver.
Por isso, as culturas de resistência tendem a desenvolver duas
vozes: uma voz externa e outra voz interna. A voz externa é
coletiva, unificada, pública, urgente, acusatória, imperativa e
retórica; a interna é pessoal, reflexiva, o sussurro de medo,
ansiedade, fragilidade e autodúvida, audível no escuro do
quarto e nos silêncios entre os gritos e os tiros. Devido à
violência cotidiana e institucionalizada dessa guerra não-
declarada, a cultura de resistência precisa valorizar sua voz
externa de oposição – o grito de ordem, de acusação e de
justiça – e se censurar e endurecer para sobreviver. Essa voz
da guerra – culturalmente tão masculina porque a luta de
classe e de casta tem se dado historicamente entre homens
organizados – tem suas armas e valores adequados: lágrimas
secas e punhos de raiva e protesto. Sonha-se com um futuro
sem barricadas, um horizonte de empatia sem limites ou
sacrifícios, mas pode-se somente discursar e cantar sobre um
mundo de diversidade de escolha e prazer para seus netos.

14 Alfabetização Cultural: a luta íntima por uma nova humanidade


A voz interna, atrás da barricada, precisa esperar e
permanecer calada até o final da guerra. Algumas vezes, existe
uma tensão entre ela e a voz externa – uma necessidade de
se revelar para falar sobre as crises escondidas pela exigência
da luta. Mas, em geral, a voz interna carece de autoconfiança
por não ter sua história documentada, por não ter a permissão
ou o espaço público para se conhecer, se ouvir e dialogar, e
por que sua linguagem não é valorizada. Porém, essa voz –
culturalmente tão feminina porque historicamente tem sido
reprimida no mundo subjetivo e encarcerada principalmente
em isolamento silencioso – é um arquivo de conhecimentos e
métodos de empatia e cuidado.
Porque o mundo interno é a matéria-prima do con-
sumismo, essa voz interna precisa se tornar corajosa, auto-
confiante e independente da barricada. Precisa de espaços
seguros e abertos, com visões amplas para experimentar e se
transformar. Claro que durante uma guerra é perigoso se abrir,
é perigoso revelar a voz interna, incerta e vulnerável. Mas para
que se construa uma pauta de transformação, motivadora,
de proposição e libertação pessoal, num processo coletivo,
essa voz precisa falar. Portanto, precisaremos transformar a
cultura de resistência numa cultura de libertação, onde as
duas vozes possam dialogar para que se apóiem uma na outra,
se alimentem e se fortaleçam na realização de uma vida justa,
democrática e cooperativa.
Essa transformação é lenta e difícil. Seu processo é cheio
de resistências: o medo de perder o que já foi conquistado; o
medo de trair uma história de sangue, sacrifício e solidariedade;
e o medo de entrar no futuro sem uma identidade ou um
caminho certo. Não é fácil durante a guerra relaxar e abrir o
punho para deixar ler a palma da mão. Serão precisos novos
riscos, princípios e estratégias. Porém, sem esse processo de
libertação será impossível cultivar essa voz interna, a de um
novo ser humano com sua própria motivação para construir
uma nova sociedade cooperativa. Será impossível romper com
os vícios da velha cultura que tendem a voltar como um câncer
no futuro. E será impossível resistir ao sorriso do neoliberalismo.
Assim, precisaremos debater e definir os valores e
princípios de libertação que sustentarão e transformarão a
resistência. Mas temos que aprender a praticá-los. Como

Em busca de uma metodologia de libertação 15


militantes, precisaremos demonstrar respeito pela fragilidade,
humanidade, individualidade, prazer, necessidades, conheci-
mentos e sentimentos de cada pessoa. Precisaremos colaborar,
não dirigir. Escutar e perguntar, não pré-julgar. Abrir e dialogar,
não discursar. Empatizar e entender, não condenar. Experi-
mentar e participar, não apressar e dominar. Valorizar a resis-
tência (pessoal e coletiva) como conhecimento, não margi-
nalizá-la ou ignorá-la. Entender e afirmar os princípios de di-
versidade, autodisciplina e prazer consciente numa cultura
de libertação em relação aos princípios de unidade, disciplina
coletiva e sacrifício numa cultura de resistência.

Se pudermos integrar uma metodologia e uma cultura


de libertação numa proposta econômica e política cooperativa
e convincente, poderemos enfrentar e ocupar a mentira e o
vazio espiritual que estão no centro do neoliberalismo. Acredito
que o projeto de democratização da terra e de produção
agroecológica, coletiva e auto-sustentável do MST tem uma
profunda capacidade de impulsionar esse projeto. Precisamos
socializar sua proposta, censurada nas comunidades explo-
radas, excluídas, alienadas e educacionais das cidades, para
inspirar uma nova cultura de esperança e participação. As
cidades (onde reside a grande maioria do povo) com certeza
têm desafios próprios que não cabem na experiência e cultura
política do MST e o Movimento também carrega, inevita-
velmente, as marcas de suas histórias de violentação, resis-

16 Alfabetização Cultural: a luta íntima por uma nova humanidade


tência e formação. Precisamos continuar buscando e cons-
truindo uma metodologia, uma pedagogia e uma estratégia
de libertação que possam:

(i) Formar educadores e coordenadores comunitários com


metodologia de libertação;
(ii) Desenvolver projetos comunitários (facilitados por coorde-
nadores da própria comunidade) que resgatem, estudem
e iluminem suas histórias de sobrevivência, conflito e
resistência; projetos que identifiquem e comemorem os
valores e as narrativas apropriadas e coerentes com uma
cultura de libertação;
(iii) Desenvolver uma pedagogia de libertação pessoal e
comunitária que:
– sensibilize e afirme os conhecimentos
– descolonize a mente e o corpo
– desenvolva a alfabetização cultural
– cultive a automotivação e a autodisciplina
– desenvolva a auto-estima
– afirme e demonstre processos coletivos
– libere e comemore o prazer de experimentar e inovar
(iv) Introduzir e sustentar uma práxis de libertação na política,
na produção, na educação (em cada disciplina curricular),
nos projetos sociais e na cultura cotidiana de cada
comunidade urbana e rural.

Na crise econômica de janeiro de 1999, os olhos do


mundo se voltaram para o Brasil. Aqui, ninguém sabia. Mas o
Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional dispararam
seu alarde para reestabilizar o país. A queda de sua economia
ameaçou a frágil estabilidade da América Latina. A crise
econômica da América Latina ameaçou a frágil estabilidade
dos Estados Unidos – um país com 2,5 milhões de prisioneiros,
uma cultura nacional que treme diante da violência e do terror,
absolutamente dependente do lucro das dívidas externas dos
países do terceiro mundo para bancar sua dívida interna. O
Brasil – com os ‘pulmões e a saliva’ do mundo – é elo crítico
na corrente neoliberal. Um palco central no mundo. Sua
subjetividade coletiva é uma força significativa para o futuro.
Uma proposta libertadora nesse palco reverberará!

Em busca de uma metodologia de libertação 17

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