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Carlos Eduardo de Senna Figueiredo

ENCONTROS
NA
AMÉRICA DO SOL
A era dos Projetos Nacionais

. Prefácio de Darcy Ribeiro o

antares
O Copyright Carlos Eduardo de Senna Figueiredo

Foto da capa e
diagramacáo
Maria Regina Pedrosa de Senna Figueiredo

Impresso no Brasil
Printed in Brazil

1983

CIP-Brasil. Catalogagáo-na-fonte
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.

Figueiredo, Carlos Eduardo de Senna. Para Regina,


F489e - Encontros na América do sol / Carlos Eduardo de Senna ao meu lado nos encontros.
Figueiredo ; prefácio de Darcy Ribeiro. — Rio de Janeiro :
Edigóes Antares, 1983.
1. Varsavsky, Oscar 2. Beer, Stafford 3. Maturana,
Humberto 4. Varese, Stéfano 5. América do Sul — Condi-
g0es sociais 6. América do Sul — Política e governo I. Ri-
bciro, Darcy II. Título
CDD — 309.18.
320.98
CDU — 308(8)
83-0171 32(8)

Direitos desta edigáo reservados a

Rua Visconde de Pirajó, 82 sala 304 Ipanema — 22.410 Rio de Janeiro, RJ


SUMARIO

Prefácio
Oscar Varsavsky
Stafford Beer

E:
Humberto Maturana
Stéfano Varese
PREFÁCIO

Este novo livro de Carlos Eduardo é muito bom de ler,


Principalmente para mim mas também para vocé. Aqui reen-
contro, bem retratados, alguns amigos queridíssimos. Aqui
rememoro, com gosto, idos nossos da diáspora latino-americana
que dispersou pelo mundo afora e ás vezes juntou, ocasional-
mente, milhares de intelectuais perseguidos em seus países. In-
clusive Carlos Eduardo e eu.
O exílio é sempre amargo. Tanto mais porque recai preci-
samente sobre as pessoas mais apegadas a seu país e mais
metidas nas lutas de seu povo. Sucede, porém, que As vezes o
exílio é fecundo e, por instantes, pode ser até gratificante. Isso
ocorre quando reúne um bom grupo de desterrados e os engaja
em projetos utópicos alheios, dando-lhes uma carona nas lutas
de outros povos por causas generosas.
Isso foi o que nos sucedeu a Carlos Eduardo, a mim e a
muitos companheiros mais, primeiro no Chile e depois no Peru.
No Chile, trabalhando como assessor de Salvador Allende,
eu me vi posto naquela terra de ninguém da vida social que é
onde me sinto mais a gosto: entre a realidade da história de
um povo numa instáncia de transformacóes revolucionárias e a
utopia concreta de seu próprio projeto de transfiguragáo.
Nunca participei de um empreendimento táo radical e táo
generoso. Ali repensáyamos com ousadia o mundo que era e
planejávamos, ainda mais ousadamente, os mundos que deviam
ser. Allende tentava uma faganha equivalente 4 de Lenin quando
o líder da revolugáo russa, rompendo com os clássicos — que
postulavam a revolugáo de Marx como o coroamento e a supe-
racáo do capitalismo mais maduro — procurava encontrar os
caminhos do socialismo do atraso que construiria o desenvol-
vimento económico-social onde o capitalismo fracassou.
A tentativa de Allende era ainda mais ousada. A partir da
precária sociedade chilena, mas dentro de uma conjuntura his-

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tórica excepcionalmente favorável, ele buscava as vias da edifi- desenvolvimento, com a idéia de que eles ativariam áreas do
cacáo do socialismo em liberdade, dentro de um regime pluri- país ou setores da economia, optamos pelo caminho oposto.
partidário. Vale dizer que o socialismo que devia florescer na
Com base na metodologia da experimentacáo numérica de-
Franca ou na Itália pela unificagáo dos seus grandes partidos
senvolvida por Oscar Varsavsky, queríamos colocar na compu-
de esquerda — o socialista e o comunista — queria medrar no
Chile, pelas máos de Allende. Nós, guiados por sua lucidez e tadora um simulacro da populagáo peruana com os índices de
temeridade, pensávamos o impensável até entáo, enfrentando, incrementos de todas as suas características mensuráveis, para
de um lado, a direita que conspirava e, do outro lado, a esquerda construir com ele o modelo de um Peru desejável para o ano
desvairada pela obsessáo de converter a vida chilena no caminho 2000, em termos de atendimentos das necessidades básicas de
cubano. todos os peruanos.
Mesmo hoje, passados tantos anos e depois do desastre, do Uma vez construído aquele ponto de chegada, retornaría-
assassinato de Allende e do drama em que mergulhou o povo mos á populacgáo existente em suas condigóes concretas de entáo,
chileno, eu continuo convencido de que ele teve uma boa chance para ir desenhando as linhas de agáo que lhe permitiria alcancar,
de acertar. Suficiente para que tentasse. Afinal, só náo erra quem passo a passo, aquelas metas.
jamais tenta acertar e só acerta quem ousa, aceitando a margem Esse procedimento visava superar a ideologia cepalina do
de risco que sempre existe. O certo é que a dircita chilena e a desenvolvimento pela industrializagáo substitutiva que, regida
reacáo internacional, mancomunadas contra o Chile socialista, pelas multinacionais, resulta na recolonizagáo industrial do país,
jamais tiveram dúvidas de que, sobrevivendo dois anos mais, como sucedeu com o Brasil. Em lugar da ilusáo de que acumu-
Allende consolidaria o socialismo em liberdade, abrindo amplas lando fábricas estrangeiras e grandes empresas agrárias de ex-
perspectivas para a revolugáo latino-americana. portagáo acabaríamos reproduzindo a Revolugáo Industrial e
Fracassamos, é certo, mas ficou — ao lado da ousadia teme- alcangcando o desenvolvimento autónomo — o que nunca deu
rária do Ché que dignificou as esquerdas burocratizadas — certo em lugar algum — nós prefigurávamos uma utopia con-
a ligáo inesquecível de que o socialismo em liberdade é alcan- creta, compreensível para toda a populagáo, a ser alcancada
gável e um dia há de concretizar-se. através do seu próprio esforco, etapa por etapa, em termos de
No Peru também trabalhamos juntos, Cásios Eduardo e níveis de empregos, de fartura alimentar, de facilidades educa-
eu, no Centro de Estudos de Participacáo Popular criado ali pela cionais, de servigos de saúde, de moradias, recreagáo, etc. etc.
Organizacáo Internacional do Trabalho e pelas Nagóes Unidas. Nosso modelo cibernético de sociedade socialista, lamenta-
Atendendo a um convite do presidente Velasco Alvarado, aju- velmente, náo póde ser montado. Assim é que o mundo deixou
dávamos a equipe do Sinamos, liderada por Carlos Delgado, a de ver, por via da experimentagáo numérica, uma utopia compu-
pensar a revolucáo peruana. tacional que permitisse jogar com números dentro de uma com-
Nessa tarefa esteve engajado todo uin amplo grupo de cien- putadora, em lugar de jogar com as pessoas dentro da história,
tistas e de ativistas políticos, peruanos e estrangeiros. Queríamos para prever os efeitos das políticas sociais. Eu, que sempre achei
nada menos que reverter as técnicas e as práticas do planeja- muito mais complicado desmontar e remontar uma sociedade
mento governamental. Em lugar de projetar para o futuro as do que uma vaca — com a capacidade de mugir melhor e de dar
andéncias naturais do crescimento da sociedade procurando in- mais leite — náo me consolo de que náo se tenha concretizado
crementar algumas delas ou de propor a criagáo de pólos de aquele experimento.

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Estou certo de que este livro de Carlos Eduardo que lembra
aquela aventura intelectual e fala de gente admirável como
Oscar Varsavsky e Stéfano Varese que sonhavam conosco a
utopia maquinística, será, também para o leitor, uma leitura 3
estimulante.
Darcy Ribeiro

1. Oscar Varsavsky

Si en vez de 100tíficos y 1000itares


tuviéramos 1000tíficos y 1O0itares. ..
O amigo Eric

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Queen Elizabeth's Drive é-uma rua suave que risca o bairro
de Southgate, ao norte de Londres, tendo no lado par uma fileira
de casas construídas por volta de 1920 e no outro, desdobran-
do-se ao longo do percurso, o majestoso e satisfeito Grovelands
Park. Em sua meiguice, as casas abrigam gente que pouco se
vé: moradores antigos, dedicados ocasionalmente ao cultivo
ritual dos jardins,. criangas cumprindo trajetórias instantáneas
da casa ao colégio, donas-de-casa em discretas visitas ao mer-
cado ou concedendo aos cachorros o prazer de se aliviarem
naquela beleza toda.
Moramos na casa de número 6, onde vencemos repetidos
invernos e observamos os pássaros, as plantas e os ventos, nos
diferentes sons e matizes governados pelas estagóes do ano. A
vida em Southgate pulsa em andamento largo, pausado, lá o
tempo se desfaz e os instantes se imitam. Os jardins e o parque
gelavam sob o manto de neve, voltavam a florir na primavera,
para outra yez se ausentarem, sob o frio, da capo. Mas a nossa
vidinha inglesa tinha os dias contados: em 1972, Darcy Ribeiro
telefonou de Paris convidando-me para enfrentar o “desafio

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peruano”. Darcy pretendia levar o seu amigo argentino Oscar Oscar queria um mundo melhor, ao nosso alcance, para
Varsavsky ao Peru, com o objetivo de desenvolver, com alguns vivermos nele. Náo lhe bastava sonhar com aquele mundo, ele
técnicos peruanos e estrangeiros, um projeto nacional coerente e queria construí-lo. Para isso, dizia, náo basta atuar, é preciso
socialmente 1esponsável, e me chamava para integrar o grupo ' falar muito sobre o assunto: resta definir este mundo melhor,
estrangeiro do projeto. Respondi que náo poderia aceitar ime- calcular se é viável e de que maneira é viável, predicar e agir
diatamente, porque estava nas vésperas de um compromisso com segundo o que essa visáo sugere. Para os mais apressados, é
Stafford Beer, para um trabalho no Chile, mas que o desafio era ocioso falar sobre o tema, trata-se de tomar o poder, sem mais
sedutor e eu o topava, para o ano seguinte. delongas. Mas a história recente, adverte Oscar, ensina que é
Para nosso espanto, tudo comegou como esperávamos e, em menos difícil tomar o poder do que saber usá-lo depois para
1973, Darcy completou a equipe destinada a calcular a utopia. ( alcangar os objetivos, por mais sinceros que sejam. Um motivo
Foi nessa ocasiáo que conheci Oscar Varsavsky. Seu porte pe- importante, dizia, é precisamente a definigáo incompleta dos
sado, sugerindo o de um velho pugilista portenho, seu gosto objetivos, nos seus diversos aspectos essenciais. Oscar via o pro-
pela vida e o seu prazer no convívio com os amigos disfargavam blema com os olhos do construtor que busca materiais úteis para
uma austera disciplina intelectual e uma firmeza ética imper- a obra que projeta e descarta os inúteis, por atraentes que sejam.
turbável. Sua grandeza de espírito e sua qualidade humana e i Essa simples atitude traz grandes viradas conceituais.
científica genuínas davam-lhe um valor inestimável. Em 1976, Esse mundo melhor, para Oscar, deve ser formulado através
a morte o surpreendeu em fase de super-nova: em plena explo- de um Projeto Nacional. Com a palavra projeto, Oscar acen-
sáo do seu poder criador. tuava o caráter consciente, voluntarista, da obra que se encara;
Sua origem profissional abarcava a pesquisa e o ensino da o termo nacional explica que o projeto se refere a países e náo
física e da matemática; durante a década dos anos cinqiienta ao mundo inteiro. Certamente, esse enfoque náo é novo, mas
escreveu e publicou ná Argentina, na Franga e nos Estados Uni- antes náo se podia levá-lo a prática porque faltavam os meios
dos um conjunto de trabalhos a respeito dos furdamentos da técnicos e o conhecimento necessário para fazé-lo. Hoje em dia,
mecánica quántica e sobre diversos campos da topologia. A explicava, já se pode falar da síntese dos rituais de planeja-
partir de 1960, inicia na Venezuela os seus trabalhos de “expe- mento, com a formulagáo de utopias e a análise política, a um
nivel útil. Já se dispóe da tecnologia capaz de manejar grandes
rimentacáo numérica” aplicada ás ciéncias sociais, chegando a
massas de dados em forma integrada e sistemática. Oscar mos-
formalizar o conceito de estilos de desenvolvimento, destinado
trou que chegou a hora de preparar projetos nacionais realizá-
a qualificar, de maneira integral, as transformagóes da socie- ' veis e avaliar as estratégias económicas, sociais e políticas que
«dade. Foi, entáo, o mais inventivo colaborador da CEPAL, do permitem cumpri-los.
CENDES e do Instituto de Cálculo da Universidade de Buenos Em geral, o que fazem os planejadores nas suas tentativas
Aires. de construgáo de pseudo-exemplos de projetos nacionais? Des-
Em 1967 denuncia a alienagáo científica no seu trabalho tacam um objetivo geral deslumbrante, o desenvolvimento, con-
sobre o colonialismo cultural nas ciéncias básicas e logo apre- ' ceito inspirador de modernizagóes e progresso, medido pela taxa
senta, com nítida clareza ideológica, a sua proposta a favor de
de crescimento do produto interno bruto. Crescer a 7% ao
um “modelo socialista criativo” que, longe de ser mais uma
' ano durante um par de décadas, fazendo brotar infra-estrutura,
espécie dentro do género dos modelos socialistas, é proposta de
indústrias básicas e fontes de energia, produzindo ago, auto-
impressionante autonomia conceitual. Sua atitude política toma
forma com a, sua idéia dos projetos nacionais. móveis e aeroplanos, afirmam, é um projeto nacional viável. Se

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a taxa é um pouquinho acima disso, torna-se um venerando mi- sociais, perceber de que estado inicial eles partem; deve consi-
lagre. Outros intentos frustrados de formulagáo de projetos na- derar essa condigáo inicial, o estado final que deveráo atingir
cionais chegam com os nomes abrangentes de marxismo, desen- e com que velocidade, ao longo do tempo. Para cada um dos
volvimentismo, misticismo hindu (ou seus congéneres, que podem grupos sociais, deve-se analisar a situacáo atual com respeito ás
ter como objetivo a salvagáo das almas e nada mais). Um pro- necessidades que achamos imperioso satisfazer; para cada um
jeto nacional pode entáo definir-se de muitas maneiras. Qual é a deles, deve-se considerar o grau, a forma e a velocidade com
forma mais prática, construtiva, de definir os objetivos de um que os objetivos seráo cumpridos.
projeto nacional? Deverá certamente ser mais concreta do que É totalmente distinto, para tomar decisóes, propor como
“liberdade, igualdade, fraternidade”, salvagáo das almas, ou os objetivo a participagáo total, em todas as decisóes, do capiau
conceitos enormemente vastos mencionados acima. Oscar assi- dos confins do país, em igualdade de condigóes com o universi-
nalava que, mesmo entre os planejadores, muitos já se incomo- tário da Capital, para dentro de 25 anos, mas só comegando
dam com o conteúdo ideológico escondido atrás da maneira apa- a existir daqui a 25 anos, sem preocupar-nos, sem assumirmos
rentemente táo neutra e “científica” de apresentar um objetivo nenhum compromisso, com o que possa ocorrer até aquele mo-
numérico, quantificado. Muitos se inquietam ao ver um país mento. É muito diferente dizer que haverá moradia decente
entendido como uma empresa, com o objetivo central de aumen- para todos os habitantes do país, dentro de 30 anos, todas pre-
tar o lucro. Aos cochichos, se interrogam sobre o conteúdo do vistas para aquela época, sendo que durante os 29 anos inter-
PIB, a finalidade do desenvolvimento e a parte que caberá a venientes náo tomamos nenhum compromisso. Se, por exemplo,
cada um dos cidadáos. Conformar-se com a proposigáo de uma
falamos de moradia, temos que dizer, para cada grupo social,
alta taxa de crescimento, comentava Varsavsky, é, em esséncia, como vivém hoje, como queremos que vivam no ano que vem,
pedir mais das mesmas coisas, o que só pode agradar a quem
dentro de 5 anos, dentro de 10 anos, dentro de 30 anos. Trata-
já está satisfeito.
se de dizer o mesmo para cada um dos demais grupos sociais,
-Mesmo os objetivos socialmente importantes, tais como a
revelando assim qual é a nossa verdadeira ideologia com res-
soberania nacional, a independéncia económica ou a participa-
peito ao povo, informando o que queremos realmente oferecer
gáo popular, náo sáo completamente definidos, faltam comple-
como satisfagáo das necessidades populares. E náo somente os
tar-se. Para Oscar, o ingrediente concreto que mais falta em
objetivos, mas a sua velocidade de cumprimento. Oscar náo
todas as tentativas de formulagáo de projetos nacionais é a con-
aceitava ideologia de contrabando; para ele, os objetivos devem
sideragáo explícita do que se quer dar ao povo. Referia-se ao povo
expressar uma ideologia com toda 'a clareza, devem redefini-la
náo em geral, náo indiscriminadamente, mas levando em conta
em termos concretos. Para isso, os objetivos náo podem estar
a realidade: a realidade atual nos diz que a populagáo está
dados por trés ou quatro indicadores quantitativos globais e de
dividida em grupos sociais que partem de condigóes de vida,
curto prazo. Ao contrário, devem expressar todos os aspectos
de informacáo, de participagáo nas decisóes, totalmente distintas. qualitativos do projeto: como seráo 'a educagáo, a participacáo
Há quem participa assiduamente, com muita influéncia, nas de- política, as cidades, o regime' de propriedade, a dependéncia
cisóes de tipo político, há quem participa com muita influéncia económica e cultural, e tudo isso num prazo muito maior do
nas decisóes de tipo tecnológico e há quem náo participa de que o dos planos anuais ou qiiingiienais, a fim de que as dife-
nenhuma decisáo. Segundo Oscar, para que um projeto possa
mn

rencgas aparegam.
levar-se a cabo, náo pode estar referido somente ao cidadáo Para ele, esse é um princípio básico que chamou de “prin-
e e

médio; o projeto tem de levar em conta cada um dos grupos cípio da ideologia explícita”: um projeto nacional náo deve

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formular-se em termos de taxas de crescimento ou outros indi- a essa pergunta poderemos expressar os objetivos nacionais do
cadores quantitativos globais, mas em termos de cumprir — ao jeito proposto. Selecionar os grupos sociais a serem levados em
longo de um período apreciável de tempo —- um conjunto de consideragáo é um trabalho em boa parte empírico, mas que já
diversos objetivos simultáneos que expressem com clareza todos tem seu lado ideológico importante. Evidentemente, náo teremos
os aspectos ideológicos. Para isso, esses objetivos devem estar a mesma categorizagáo dos grupos sociais feita por gente de ideo-
definidos primeiramente em suas características qualitativas e só logia política distinta. Cada um dá sua classificagáo de um país
depois quantificar-se para os diferentes grupos da populagáo. em grupos muito diferentes porque cada ideologia tem o seu
Oscar advertia que os diversos objetivos simultáneos náo critério de importáncia que informa o que há de apresentar.
sáo intercambiáveis uns pelos outros. Em particular, náo sáo Há quem se entretenha na descrigáo de 30 grupos sociais dife-
redutíveis á mesma unidade por meio de pregos, á maneira da rentes dentro do que habitualmente chamamos de classe média
teoria da utilidade. A liberdade, acrescentava, náo é comparável e acabe por englobar todo o resto da populagáo num só grupo.
a moradia, nem a igualdade a saúde. Cada uma é um objetivo Outros váo esmiucar com lentes o operariado e juntar todo o
á parte. Por isso, um governo marxista, orientado por um pro- restante num cesto só, porque os interessa menos. Á mesma coisa
jeto expressado em termos desenvolvimentistas, terminará con- acontece com as necessidades. Ao falar de necessidades, Oscar
vertido em capitalismo de Estado. O que Oscar chamava de salientava que o mínimo que se pode exigir é que náo sejam
princípio da ideologia explícita tende a evitar esses “desvios”, puramente materiais, pois essa etapa, para o nosso continente, já
além de facilitar a prédica. Mas náo diz a que nível e com que passou. Em algumas regióes da Ásia, é possível que a satisfacáo
detalhe e alcance os objetivos devem se expressar. É claro que das necessidades materiais seja um problema táo prioritário e
os objetivos náo sáo muito detalhados, mas devem dar critérios urgente que se possa esquecer do resto. Na América Latina, dizia,
para passar a um nível prático sem muita ambigiiidade; as me- salvo em lugares muito limitados, náo é suficiente falar apenas
didas concretas de curto prazo devem poder deduzir-se, em boa de necessidades materiais. Devemos falar também de necessidades
medida, do projeto. sociais, culturais e políticas. Entre as políticas, incluir as neces-
O que escutamos todos os dias é tamanha vagueza que sidades que usualmente náo se sentem como necessidades indi-
pouco serve como guia de agáo. Os objetivos sáo usualmente viduais, mas somente através da sociedade total do país, como,
formulados em nível “principista”, abarcam muito, e as suas po exemplo, o objetivo nacional de desenvolvimento regional.
conexóes com um plano pragmático náo sáo claras. Já se viu Devemos entáo expressar o projeto nacional através de um
como servem para justificar medidas totalmente contrárias. conjunto de objetivos simultáneos que o descrevem qualitativa-
Como Varsavsky fazia do seu princípio básico algo mais mente, num nível de trabalho nem muito abstrato, nem muito
efetivo do que um bom conselho? Ele juntava ao princípio uma detalhista. Varsavsky náo admitia comegar pelo lado da produ-
sugestáo construtiva: entreo nível principista e o pragmático, e, gáo e da inversáo. Produzir mais aco náo é um fim em si. Para
como nexo entre eles, há que intercalar um terceiro nível, nor- que servirá o ago? Qual é o método de produgáo? O que que-
mativo útil, construtivo, referido ao longo prazo, formado por remos fabricar com o ago? Sua tese se refere á construcáo do
objetivos que dáo critérios suficientes para tomar decisóes a futuro e o ponto de partida evidente é descrever o futuro que
nível pragmático, sáo uma interpretacáo do nível principista e nos agradaria. Trata-se de decidir quais sáo as necessidades hu-
cumprem o pedido no principio da ideologia explícita. manas que a sociedade deverá contemplar e dizer em seguida
Surge entáo, de saída, a pergunta sobre os grupos sociais como nos propomos satisfazé-las. A pergunta náo é ingénua se
e as necessidades de que se está falando. Só depois da resposta estáao em jogo náo só as necessidades materiais, como também

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as sociais, as culturais e as políticas. Esses sáo os fins últimos. Necessidades sociais:
Tudo deve girar em torno disso. Em suma, de acordo com 6. Seguranca social, inclusive solidariedade e integragáo
Oscar, os objetivos nacionais devem expressar-se em termos. de.
7. Acesso a informacáo e comunicagáo globais
necessidades humanas, individuais e. coletivas, materiais ou “es-
8. Núcleo social básico (família e outros)
pirituais”, de todo tipo..Um projeto nacional precisa: dizer de
quais necessidades a sociedade deye se preocupar, deixando o' 9. Forma de urbanizagáo
resto por conta dos indivíduos. Deve também dizer em que. 10. Igualdade na distribuigáo do produto e do prestígio
forma, grau e em que prazos se: propúe satisfazé-las, para cada: 11. Liberdades individuais garantidas; organizagáo da vida
grupo da populacáo. individual
Esse enfoque construtivo faz aparecer com nitidez meridisna 12. Limite e distribuigáo do tempo trabalhado para cada
as metas de distribuigáo, ao invés de limitar-se a declaracóes, idade
etéreas sobre a democracia, a liberdade e a justiga social. Mais
importante ainda, a descrigáo dessas necessidades náo só é.o. Necessidades culturais:
ponto de partida valorativo que servirá de guia, como servirá 13. Educagáo e treinamento
para definir todo o processo produtivo. 14. Ócio recreativo e esporte
Uma boa maneira de expressar uma ideologia é dar a lista
15. Ócio criativo, inovador: científico, artístico, artesanal
das necessidades humanas que a sociedade deve atender, pois
16. Imagem do mundo
o que nos orienta na selegáo das necessidades é o nosso sistema
de valores, a nossa visáo do mundo. É a nossa concepgáo das 17. Satisfagáo no trabalho: condigóes materiais, estímulos,
desalienagáo
coisas que nos. faz ““esquecer” convenientemente algumas neces-.
sidades, cujo- simples nome já suscita um compromisso. “Eles
Necessidades políticas:
náo conhecem a precisáo dos pobres”, escutei há pouco em
A

Minas. Quais sáo as necessidades é algo que deve decidir-se pre- 18. Participagáo em decisóes de diversos tipos e níveis
viamente á definigáo dos objetivos nacionais. Oscar propós uma 19. Autonomia nacional, de diversos tipos. Papel do país no
lista de 25 necessidades, a título de sugestáo puramente indivi- mundo
dual, que julgou poder cobrir mais ou menosa questáo, mas, 20. Propriedade pessoal; garantia e limites
obviamente, cada grupo que prepare um projeto nacional fará 21. Política de desenvolvimento regional para o país
a sua própria definigáo das necessidades. Sua proposta é que as 22. Liberdade para mudar o Projeto Nacional. Legado final
necessidades devem se referir ao seguinte: de recursos
23. Métodos de resolugáo de conflitos sociais
Necessidades físicas: ' 24. Política para o tamanho e estrutura da populagáo
Alimentagáo e vestuário 25. Estrutura institucional: organizagáo e classe de insti-
Moradia, seus equipamentos e servicos tuicdes.
as up

Outros bens duráveis


Definido o projeto nacional, mediante uma proposta que
Saúde indica o grau e a velocidade com que se pretende satisfazer cada
. Transporte e. outros servigos pessoais uma dessas necessidades, para cada um dos grupos sociais, é

22: 23
entáo perfeitamente possível chegar a critérios de decisáo que tempo e com os recursos escassos; dirá se podemos plantar os
sáo racionais num sentido muito mais satisfatório do que o da hectares requeridos, no prazo necessário, ou se devemos recorrer
racionalidade dos custos e benefícios. Porque, uma vez definidas á importagáo. Se devemos importar, é costume dar algo em
as necessidades, teremos definida a demanda básica que iremos troca; resta saber se entáo poderemos produzir bens exportáveis
atender: demanda de alimentos, demanda de informagáo, de- para comprar o que agora precisamos importar, e assim por
manda de participagáo, etc. Podemos entáo comegar a calcular diante.
realmente se hoje estamos em condigóes de satisfazer essa de- Já se percebe que podemos definir as necessidades generi-
manda. Há capacidade instalada para atendé-la? Naturalmente camene como, no exemplo da alimentacáo, dizer que será similar
vamos notar que a capacidade instalada hoje talvez alcance para a de um francés rico ou a de um desafortunado paraguaio, mas
satisfazer os nossos objetivos relativos á demanda deste ano e, há razóes para dar alguns detalhes adicionais sobre a quantidade
com muita sorte, para satisfazer a do ano que vem. Depois e composigáo da dieta, a forma da embalagem, a diversidade
disso, faltará capacidade. Os sapatos que necessitamos seráo de marcas e a publicidade.
em número superior ao que as nossas fábricas sáo capazes de Definir uma necessidade é como dar nome a uma variável;
produzir; nesse caso, sabemos que teremos de aumentar a nossa os diferentes graus e formas de satisfazé-la sáo os possíveis valo-
producáo de sapatos ou aumentar a nossa capacidade de impor- res dessa variável e entre eles se escolhe um. Assim, ensina
tar sapatos. Aí temos duas possíveis estratégias. Esse tipo de Oscar, cada possível proposta ou alternativa para atender em
alternativa é combinado com as diferentes possibilidades de algum grau uma necessidade, deve ser explícita e concreta a
construir fábricas de sapatos: fábricas de tipo artesanal, fábricas ponto de permitir estimar os seus custos físicos de produgáo (os
totalmente automatizadas, graus intermediários, buscar econo- recursos que requer), o grau em que satisfaz as expectativas dos
mias de éscala através de uma gigantesca fábrica, automatizada destinatários, os efeitos sobre o atendimento das demais metas.
ou náo, dividir essa enorme fábrica em muitas fábricas de tama- Há um exemplo que Oscar gostava de citar: dez anos de edu-
nho médio e assim atender — simultaneamente — a critérios de cacáo obrigatória náo custam o mesmo esforgo ao país, nem dáo
desenvolvimento regional e distribuigáo de tecnologia. Isso a mesma satisfagáo ou a mesma capacidade para a inovacáo e o
tudo, articulado com o resto das decisóes que se vai tomar sobre trabalho se estáo dedicados a memorizar textos ou se estáo vol-
o aumento de capacidade para satisfazer essa demanda que o tados para estimular o espírito criativo e crítico.
projeto nacional definiu, nos permite calcular quais sáo as inver-
Quando eu o conheci no Peru, Oscar já tinha experimentado
s0es que realmente devem ser feitas.
o seu método para a Venezuela, para o Brasil (na CEPAL, náo
O processo de planejamento passa entáo a marchar a partir no Brasil), para o Chile (também na CEPAL) e alguma coisa se
da demanda; a demanda é dada, é uma política, náo é mera fez na Argentina e na Bolívia. A conclusáo que tirava, mesmo
extrapolagáo do passado. A demanda é uma política consciente, dos experimentos mais breves, é que o seu método dá idéias,
voluntarista: queremos que os homens do campo, a partir do ajuda a pensar, ajuda a planejar, mostra inviabilidades, mostra
ano que vem, comam tal coisa, em tal quantidade; queremos que certos objetivos sáo praticamente inalcangáveis ou provo-
que a educacáo seja de tal tipo, etc. e, portanto, dada a nossa cam enguigos sérios, mais tarde, sobre as outras metas. Sendo
atual capacidade instalada, para conseguir isso, necessitamos assim, a simples eliminagáo de certos objetivos, por serem dema-
mais salas de aula, mais professores, mais hectares cultivados, siado otimistas, já ajuda muito ao planejador a pensar. Por outro
etc. O cálculo nos dirá se isso é possível de realizar fisicamente lado, o que lhe resultou, de certo modo, inesperado desse tipo
ou náo. Dirá se podemos produzir os professores suficientes, em de experimentos foi que se viu forgado a interpretar de um

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jeito diferente muitos dos conceitos usuais em economia. Con- outro lado, é ““empresacéntrico”, é centrado na empresa, lugar
ceitos como financiamento, poupanga, comércio exterior, pregos, onde se decide o qué e quanto produzir, e onde se distribuem
déficits de governo, emprego, desemprego, etc. Várias nocóes os ingressos que dáo direito ao que for produzido. Ao- Estado
desse tipo, com as quais se argumentam habitualmente, vistas cabem os servigos-de infra-estrutura física e institucional, e reme-
desse outro ponto de vista, desde esse outro tipo de racionali- diar os excessos mais aberrantes da distribuigáo da renda.
dade — que consiste em comegar pelos objetivos em termos de Cada projeto nacional propóe, entre outras coisas, um estilo
necessidades populares e passar a buscar qual é a estratégia de consumo que pode obedecer ou contrariar a tendéncia atual
para cumprir esses objetivos, usando os recursos que existem e ao “consumismo” opulento e obediente á publicidade, símbolo
os que se pode criar — se rearticulam em novo esquema, em de prestígio social e individualista. E o. estilo de. consumo tem
noyo enfoque, em novo paradigma, para usar o termo da moda influéncia decisiva sobre a produgáo e a tecnologia. Para um
no campo científico. projeto nacional “povocéntrico”, que se alicerga na distribuigáo
Paradigma é o termo preferido por T. Kuhn, o filósofo da do produto físico e náo do monetário, os pregos de mercado e o
ciéncia, para descrever o que acontece no campo científico quan- financiamento deixam de ser fetiches. Todos os pregos sáo polí-
do aparece alguma teoria nova ou alguma nova maneira de ticos e todo financiamento é automático, o dinheiro passa a ter
enfocar as coisas, que faz com que tudo se veja de outro jeito, um rol secundário, podendo até mesmo desaparecer.
de outro ángulo. O exemplo mais admirável é a passagem do Vale sublinhar que o projeto nacional náo se ocupa apenas
sistema de Ptolomeu ao de Copérnico. Antes de Copérnico, as dos objetivos finais da sociedade. Ocupa-se também das etapas
coisas eram vistas desde o ponto de vista de que a terra era o intermediárias, a partir da situacáo atual. Em conseqiéncia,
centro do universo e tudo girava ao seu redor. Depois, o sol deve ser constantemente reatualizado. Náo:'é dogma, náo é plano
passou a Ocupar o centro do sistema e a terra girar em torno do decretado. Deye-se entáo levar em conta que uma das caracte-
sol. Os fatos conhecidos eram os mesmos, havia uma quantidade rísticas importantes do projeto nacional é que ele muda, sofre
de coisas que se mantinham, mas todo o esquema, todo o enfo- modificagóes. Ele se modifica porque pode haver mudanga de
que da realidade astronómica e da realidade física mudou: tudo opiniáo quanto aos objetivos e ás estratégias para alcangá-los.
se interpreta de outra maneira. O exemplo é nítido e, guardando Um projeto nacional socialmente responsável buscará a máxima
as devidas proporgóes, se nota que o enfoque construtivo de participagáo possível. Naturalmente, a participagáo tem um
Oscar também nos leva a um terreno em que conceitos que eram limite: é muito difícil que participem das nossas decisóes os
vistos de uma certa maneira — e acerca dos quais havia grande que ainda náo nasceram. Mas se acreditamos na participagáo, o
insatisfagáo entre os que os usavam, porque náo levavam a nosso projeto deve propor mejos para que quando essa geragáo
solugóes eficientes para os graves problemas que enfrentavam se veja em condigóes de opinar, náo se encontre já estiolada
— passam a ser vistos de um jeito diferente (o que náo é garan- num sistema táo rígido que impega a sua participagáo. Isso quer
tia de éxito, mas se a perspectiva antiga fracassou, a visáo nova dizer preparar um estado de coisas tal que as próximas geragóes
talvez possa ajudar mais). Seu enfoque pode ser caracterizado tenham a máxima flexibilidade para mudar de projeto e se en-
como “povocéntrico”: comega-se dando metas de satisfagáo de frentem com o mínimo sectarismo. A propósito, isso já nos dá
necessidades populares, materiais ou náo, e as empresas devem algumas indicacóes práticas, por exemplo, sobre qual será o
produzir o necessário para cumpri-las, sabendo-se previamente conteúdo da educacáo.
que os recursos sáo suficientes. O Estado garante que o produ- Mas Varsavsky náo se empenhava pelo futuro somente, Ele
zido chegue ás máos da populagáo. O desenvolvimentismo, por achava que devemos trabalhar para o futuro, mas desde já.

26 27
Indignava-se com a afirmagáo de Keynes, quando disse que “no recurso e querer que dentro de vinte anos restem tantas para os
futuro estaremos todos mortos”. Para Oscar, o ilustre econo- que viveráo a partir daí. Surge o conceito de pregos de escassez,

Ros
mista inglés cometeu uma torpeza indigna de qualquer intelec- em contraste com os de mercado.
tual que se respeite; a frase é uma barbaridade totalmente Pois bem, uma vez delineado ideologicamente, a realizagáo
egoísta. Todos nós trabalhamos para o futuro, devemos pensar de um projeto nacional se converte em problema técnico. Resol-
nas geragóes futuras e também nas que vivem agora. vido o problema dos valores, sua implementagáo é mera questáo
Um projeto nacional trará também mais racionalidade ao prática. Com um projeto nacional, o objetivo da atividade social
debate político: gente que se mata por palavras talvez se ponha fica definido como o do cumprimento de metas que, em con-
de acordo ao definir o que se quer dar aos grupos sociais. Em junto, constituem um estilo de desenvolvimento. A pergunta ime-
lugar de palavras repletas de conotagáo emotiva, tais como so- diata é: podem cumprir-se, sáo viáveis? Em que condigóes?
cialismo, desenvolvimentismo, via chinesa ou americana, um pro- Que obstáculos devem ser vencidos para cumpri-las?
jeto explícito dá margem a pensar de maneira mais eficaz. A O método de Oscar verifica entáo a viabilidade física, social
situagáo atual, ao contrário, é que os projetos sáo implícitos, e política do projeto nacional. Prova-se a viabilidade física do
náo sáo declarados. E como náo sáo declarados, cada grupo projeto estudando se há alguma estratégia, ou maneira de satis-
político e o povo em geral se sentem no direito de interpretar fazer todas as metas para todos os grupos, nos prazos dados,
as acóes dos governantes como se tivessem certos objetivos. sem utilizar mais do que os recursos disponíveis ao comeco, e
Ninguém percebe que náo foram declarados e cada um os ima- os que se váo criando. Sáo vários os recursos a levar-se em
gina como bem quer. Assim sendo, todo o conflito político conta: recursos humanos, recursos naturais (inclusive hipóteses
se desenvolve sobre bases que náo sáo as mais racionais. A sobre o clima e outros fatores exógenos), capacidade instalada de
proposta de Varsavsky obriga a colocar as cartas na mesa, produgáo, infra-estrutura física e institucional, etc.
obriga a dizer o que se quer dar a cada setor da populacáo. E A cada maneira de combinar estes recursos para atingir os
em que prazos. Quem náo quiser dar nada a um setor impor- objetivos, Varsavsky chama de estratégia tecnológica. Mediante
tante, terá de calar a boca. o uso de coeficientes técnicos e hipóteses sobre os efeitos dos
Outro aspecto a sublinhar é o seguinte: entre os objetivos objetivos sobre estes coeficientes, calculam-se todos os tipos de
de um projeto nacional, deve-se também dizer algo sobre o grau recursos necessários para cumprir as metas ano a ano, até o ho-
de esgotamento dos recursos que se vai utilizar e isto tem im- rizonte vislumbrado, considerando-se distintas hipóteses acerca
portáncia fundamental sobre a questáo da contaminacáo am- dos fatores fora de controle. Se todas as estratégias tecnológicas
biental que tanta visibilidade ganhou recentemente. Os recursos que parecem boas e todas as estimativas razoáveis de coeficientes
podem ser esgotados no sentido físico — como no caso da Ve- técnicos produzem grandes brechas em algum dos recursos du-
nezuela que há pouco se assustou ao ver que a exploragáo das rante um período de tempo apreciável, entáo o projeto nacional
suas reservas de petróleo tinha apenas quinze anos pela frente náo tem viabilidade física.
— ou podem ser estropiados pela contaminagáo, pelo seu mau Por outro lado, se o projeto nacional tem viabilidade física,
uso. O projeto deve especificar se queremos deixar para a gera- passa-se ao teste da sua viabilidade social. Calcula-se ano a ano
cáo próxima uma selva amazónica deserta, um mar untado de os ingressos e egressos de cada grupo social, incluindo impostos,
petróleo, cidades atochadas de autopistas, etc. Isso já sugere, com subsídios e transferéncias. Analogamente, calculam-se os ingres-
um pouco mais de precisáo, o que pode ser a escassez de um sos e egressos das empresas, do governo e do setor externo. Se
recurso. Podemos dizer que temos tantas unidades de um certo nenhuma dessas contas apresenta grandes déficits ou se estes
déficits desaparecem por meio de pequenas mudangas instru-
28 29
mentais, entáo o projeto nacional é viável na estrutura distribu- encolher. Daí, Varsavsky dirigiu-se á Venezuela, onde quería-
tiva atual, isto é, tem viabilidade social. Se a estrutura atual
mos retomar o trabalho de operários da utopia, mas ignorávamos
que a morte o espreitava. Em outubro de 1976, dois meses antes
náo dá viabilidade ao projeto, ensaiam-se mudancas, medidas
mais profundas nos instrumentos de distribuigáo e logo se exa- de falecer, escreveu relatando seus planos de investigagáo e o
mina se essas medidas tém viabilidade política. O papel das peso da sua doenca.
forgas políticas tem tanta importáncia para a viabilidade de um
Caracas, 25/10/76
projeto nacional como a quantidade de terras cultiváveis ou a
de recursos humanos.
Caro Carlos: tu carta me dió mucha alegría pues hace rato
Nota-se que o método de Oscar náo permite a aceitagáo de
quería saber que era de vuestra vida. Perdí todo contacto
qualquer estratégia que faga um projeto nacional fisicamente
con Darcy y todas las direcciones limeñas, y espero ahora
viável, sem a preocupacáo dos valores humanos dos indivíduos
reanudar contactos por tu intermedio.
envolvidos. O projeto inclui todas as necessidades que meregam
La idea de trabajar juntos, contigo y con Jorge es muy
levar-se em conta como, por exemplo, a necessidade humana de
agradable, y haré lo posible por concretarla para la fecha
náo ser explorado nem oprimido. Por mais atraente que parega
que mencionas. Para eso es indispensable que envíen cuan-
“uma determinada estratégia totalitária, ela fica automaticamente
to antes sus curricula, sin olvidar lo referente a docencia,
excluída ao deixar de cumprir a necessidade de participacáo que aquí se considera un antecedente importante.
popular e a satisfacáo no trabalho, por exemplo. De todos modos, por razones personales mías es conve-
Muitas conseqiiéncias importantes decorrem do enfoque de niente que vean esto como simples posibilidad, de proba-
Varsavsky: ele desmistifica o princípio de autoridade científica e
bilidad baja. Ocurre que mis problemas de salud se inten-
tecnológica que hoje devotamos a instituigóes consagradas, e nos
sificaron: esa enfermedad extraña que tengo me hace muy
anima a duvidar de qualquer coisa que digam; leva-nos a um propenso a las infecciones, y parece que los gérmenes
estado de madureza, que é condigáo indispensável para atuar venezolanos se han dado cuenta. El asunto es que ya tuve
com liberdade. Já podemos deixar de aceitar qualquer linha de dos seguidas — la primera muy grave porque no fue ata-
desenvolvimento científico ou tecnológico oriunda de outras lati- cada a tiempo — y todavia estoy tomando antibióticos
tudes simplesmente porque é a última palavra. A tecnologia (e a
después de más de dos meses. Pero ayer me dió permiso
ciéncia) passa a condigáo de corolário dos objetivos do projeto el médico para levantarme, y ya ves que las fuerzas me
nacional. Tecnologia de que tipo? Ciéncia em que trilhos?
alcanzan para escribir a máquina, aunque no. para cami-
Ciéncia e tecnologia para destacar que tipo de problemas? Sáo
nar mas de diez pasos. Esto hace que tenga que cambiar
Perguntas que o projeto responde consistentemente.
todos mis planes. Yo estaba trabajando muy bien en Mé-
A idéia de Varsavsky é simples, poderosa e válida para
quem náo desacostumou de pensar. É como a matemática mo- rida: tuve dos meses de tranquilidad y buena salud que
derna que, dizem, é táo simples que somente uma crianga pode resultaron muy fructíferos; pero con el riesgo permanente
de una nueva infección ya no podré quedarme allí porque
entender.
estoy muy solo. El médico me lo prohibió. Puedo venir a
Apesar de que o método possa ser aplicado a qualquer
trabajar a Caracas — donde estoy ahora reponiéndome en
lugar em que o Estado tenha um papel importante, o nosso tra-
balho no Peru náo avangou como esperávamos. Fizemos ensaios casa de mi amigo Bemporad —, pero recién ahora tendría
limitados porque as altas esferas da tecnocracia resolveram se que empezar a concretar lugar y modalidad (lo mas pro-

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bable es el Departamento de Computación de la Univer-
Mis respetos a Regina y un abrazo para tí, los Ishi, los
sidad Central). Pero si mi salud no mejora notablemente
Zacha, Alba y demás amigos. A ver si vuelven a escri-
y no recupero pronto las fuerzas, tendré que volver a Bue-
bir pronto.
nos Aires, a pesar de algunos peligros de otro tipo que
eso implica, para un largo período de control permanente. Oscar
En este caso ya nada puedo decir sobre planes de trabajo.
A morte, na sua tonteira, ignorou os nossos planos. Mas
De todos modos como el costo de presentar los curricula
desconfio que Oscar náo está morto; está semeado e germina
es casi nulo, y además aquí los trámites demoran muchos
no exemplo da sua dedicagáo e do seu extraordinário poder
meses, creo que es conveniente iniciar el proceso. Tal vez
criador na dura missáo de compreender e melhorar a sociedade.
dentro de un año te sea muy útil venir a la UCV aunque
yo no esté. Mi tema de trabajo actual es el uso del enfoque Recapitulando a sua argumentacáo, como as condigóes de
constructivo en teoría del conocimiento; motivado por la vida de cada grupo social estáo dadas pelo grau e pela forma
necesidad de introducir conceptos como metas y recursos em que satisfazem as suas diversas necessidades ao longo do
y estrategias, y por otra parte para estudiar los problemas tempo, Oscar ressaltava que as necessidades que se deve le-
del razonamiento dogmático que dificultan la prédica. Uno var em conta sáo as que requerem algum esforgo social para
de los varios métodos para atacar estos problemas exige satisfazer-se, ou as que sáo muito afetadas por medidas de go-
la construcción de simuladores de los conceptos epistemo- verno. As 25 “dimensóes” sugeridas podem, por sua vez, sub-
lógicos y psicológicos pertinentes, y esto es lo que pienso dividir-se para o exame dos problemas de prazo mais curto.
proponer al Departamento de Computación como tema Para caracterizá-las melhor, deve-se dizer quais sáo as diferen-
concreto, si me contratan. tes possibilidades de satisfazé-las, ou seja, definir o domínio
En vez de explicar mas aquí, te envío un folletito de des- de respostas de cada uma dessas variáveis.
cripción general, que te pido pases a los amigos después A seguir se dá como exemplo uma lista de alguns critérios
de leerlo (o en vez, si te aburre). e opcóes possíveis para a satisfagáo dessas necessidades, segun-
do dois estilos típicos. Neste exemplo, reproduzo e resumo uma
Y ahora te pediré algunos favores pequeños, que espero
no te molesten mucho: longa lista comparativa e os comentários que ele incluiu no seu
Proyectos Nacionales, para ilustrar o que predicava, referindo-
— Dile a Benjamín que recibí y leí el folleto de divulga-
se a um país em estado de desenvolvimento comparável ao da
ción económica que me mandó. Me gustó mucho, y las
Argentina, na década de 1960:
ilustraciones son muy buenas. No encontré errores gran-
1. Alimentacáo e vestuário. Cada opgáo deverá definir o
des ni oscuridades. Felicitaciones. Que me escriba y por
nível de atendimento, segundo o seu conteúdo nutritivo, as
favor que me dé noticias de Alba.
normas médicas de preservacáo, a diversidade da oferta, o grau
— Consígueme la direción de Olintho; tengo que pedir- de requinte suportável, o tipo de atendimento e a participa-
le algo urgente. Nada más, gracias. El tomo 11 de Modelos cáo do consumidor. Como se atende a essa necessidade segun-
Matemáticos para el cual tu enviaste tu colaboración está do um projeto nacional consumista? Em boa medida, o estilo
suspendido sine die debido a la situación argentina: Cal- consumista é sinónimo do desenvolvimentismo; é uma proje-
cagno, que era el organizador, tiene demasiados problemas cáo otimista das sociedades do Terceiro Mundo atreladas á orien-
políticos y abandonó todos estos proyectos (en este mo- tagáo cultural e tecnológica da sociedade de abundáncia dos
mento no está en el país). Olvídate de eso. Hasta pronto. Estados Unidos. Esse estilo faz do cidadáo algo equivalente a

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33
consumidor, sendo que o consumo suntuário é a melhor indi- mobilizagáo da populacáo marginal parece ser condigáo impor-
cacáo de prestígio. A diversificagio de modelos e sua obsoles- tante para a viabilidade desse estilo). Diminui a diversidade e
céncia rápida reduz a vida útil dos bens duráveis, criando a obsolescéncia de modelos, bem como o conteúdo supérfluo dos
uma oferta de bens de segunda máo para os setores de baixos produtos. Desaparece a publicidade comercial, reorientando-se
ingressos, surgindo entre eles novas necessidades materiais an- a “criatividade” usada hoje nas vendas na diregáo de processos
teriormente desconhecidas. Os bens sáo recheados de conteúdo educativos realistas e na busca de novas solugóes técnicas para
supérfluo e sua venda se converte num cerimonial luxuoso com os problemas. Procura-se alcangar maior inovacáo na tecnologia
apelo freqiiente á sensualidade. Procura-se ampliar o consumo, social do que na física. Dá-se mais énfase á comunidade do
mas essa Organizagáo social náo incorpora a todos e surge um que ao individualismo e isolamento atuais, ao trabalho em grupo
contingente de “marginais” cada vez mais numeroso. Um cri- (o que náo elimina a necessidade de vida privada), á cooperagáo
tério importante para a integracáo social é ser aceito pelo siste- solidária, á máxima participagáo popular possível. No que diz
ma de créditos, contas bancárias, vendas a prazo, cartóes, etc., respeito á alimentagáo e ao vestuário, tomam-se medidas rápidas
mas o meio de pagamento mais importante continua sendo o para eliminar a desnutrigáo, especialmente a infantil. Em poucas
dinheiro. Quanto a alimentagáo, o estilo consumista faz dimi- décadas, toda a populagáo consome tanto alimento quanto os
nuir lentamente, mas sem eliminar, a desnutrigáo dos grupos de grupos de alta renda de hoje, com menor diversidade e pouco
baixos ingressos. Lamentavelmente, a publicidade os leva a pou- requinte, mas obedecendo-se a todos os requisitos nutricionais,
par alimentos para adquirir bens duráveis, em boa parte supér- médicos e bromatológicos.
fluos, o que náo favorece os níveis de mortalidade e desenvol- 2. Moradia. O projeto deve definir os diversos tipos de
vimento mental infantil. Aprofundam-se as diferengas qualitati- moradia (tipo precário, destinado a resolver os problemas urgen-
vas entre os alimentos e o vestuário dos diferentes níveis de tes, de curta vida útil; tipos intermediários com respeito a dura-
ingresso. Para os de cima, comer bem é símbolo de prestígio e gáo, servicos internos, qualidade dos materiais, taxa de ocupagáo,
base de toda uma pseudocultura. Para os mais pobres, há pouco etc; tipo ideal, que cumpra todas as exigéncias arquitetónicas e
controle bromatológico e médico dos seus alimentos, ainda que urbanísticas, segundo o estilo). O uso comum de creches, biblio-
náo se deparem com problemas de alimentacáo básica, exceto no tecas, áreas de lazer, lavanderias, etc. muda totalmente os custos
caso da populacáo marginal. O vestuário popular se barateia e o estilo de vida. O estilo consumista elimina todo o déficit dos
devido ás melhorias da produtividade e á introdugáo de novos grupos marginais em poucas décadas, com moradias de má qua-
materiais. lidade e servigos mínimos em bairros que aos poucos se conver-
Por outro lado, um estilo criativo, segundo Oscar, é uma tem em guetos. Para os grupos rurais continua a autoconstrugáo.
alternativa possível de cultura naciónal em “aceleragáo evolu- Para os de altos ingressos, multiplicam-se os bairros insulares,
tiva”, nas palavras de Darcy Ribeiro, solidária e socialmente bem urbanizados e de elevado custo de servicos básicos, cada
responsável. Classificam-se os bens e servigos em básicos e sun- dia mais sujeitos aos assaltos e mais dependentes das forgas de
tuários (classificagáo feita com ampla participagáo popular e seguranca particulares.
sempre renovada) e se garante a toda a populacáo um nível O projeto criativo elimina em uma ou duas décadas o déficit
mínimo de atendimento. O consumo supérfluo sofre uma cam- dos grupos marginais e de baixa renda com casas de tipo bom,
panha de desprestígio através da educacáo. Os grupos marginais com servigos completos, semiterminadas e urbanizagáo termi-
desaparecem em poucos anos, integrando-se aos trabalhadores de nada comunalmente. As novas moradias sáo adaptadas ao tipo
baixos ingressos, ganhando, assim, um papel social definido (a de núcleo social básico desejado, com blocos de apartamentos

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ou conjuntos de casas próximas, a fim de compartirem a má- também de baixa qualidade, nas associagóes gremiais (exames
xima quantidade de servicos. Estimula-se o desenvolvimento de ligeiros). O consultório privado cede lugar á clínica privada;
técnicas de pré-fabricacáo, novos materiais e novos desenhos. difusáo do seguro e da tecnologia intensiva em capital para os
3. Outros bens duráveis. Os estilos devem dar listas de grupos de altos ingressos. Inovacóes vindas do exterior. As dife-
bens básicos e náo básicos; incluem transporte, mobiliário, equi- rencas nas esperancas de vida se dilatam.
pamentos de cozinha, ar condicionado, etc. Nas pautas de um Para o estilo criativo, prevenir é melhor que curar. Á pre-
projeto consumista, em cerca de vinte anos 30% das famílias vencáo recebe mais recursos do que a cura. Trata-se do mesmo
teriam acesso ao automóvel, 50% á geladeira e mais de 90% ao tipo de alternativa que a de eliminar as condigóes sociais que
televisor. Grande diversificagáo do consumo de cúpula, oferta geram o crime, ao invés de perseguir os criminosos. Dá-se énfase
especializada por grupos de idade e por-ocupagáo dos consumi- á educacáo sanitária, controle contínuo, novas prioridades para
dores, mercado em expansáo gracas ás vendas a prazo dos novos a investigacáo médica, diminuigáo da mortalidade infantil e da
produtos. O estilo criativo traria ampla reorganizagáo durante a desnutrigcáo nos grupos de baixa renda. Como resultado de «um
primeira década e protegáo contra a entrada de movos modelos novo clima social, elimina-se a endemia de psicoses das classes
do exterior. Uso da publicidade no sentido contrário ao atual. médias e altas. Medicina gratuita, bem como distribuigáo gra-
O ensino faz entender que se pode viver sem televisor a cores, tuita dos remédios receitados. Todo estudante trabalha desde o
elevador com memória eletrónica e outros pequenos sacrifícios, início como auxiliar, sem descontinuidade nos seus estudos. A
com O propósito de aumentar o nível de vida da maioria. O populagáo é chamada a verificar leis causais no campo da saúde
consumidor será estimulado a participar da terminagáo do pro- pública.
duto, nas suas horas de ócio, obtendo-se assim maior diversi- 5. Transporte e outros servicos pessoais. As principais
dadé pessoal e simplificagáo da produgáo. alternativas estáo ligadas á política de urbanizagáo. O estilo con-
4. Saúde. O critério do aumento da esperanga de vida es- sumista mantém o carro próprio como a aspiragáo mais desejada
conde as diferencas entre grupos sociais e grupos de idade (entre pela populacáo, com forte apoio publicitário. Continua sendo o
os extremos da escala de ingressos, há décadas de diferenga entre setor “mais dinámico” da economia, justificando a construgáo de
as esperangas de vida); por isso náo pode ser usado como meta estradas e outras obras intensivas em trabalho. O comércio se
prática. Os estilos devem referir-se aos seguintes instrumentos: faz através de várias etapas intermediárias de comercializacáo,
controle do meio (vetores, contaminacáo, ruídos, higiene, etc); de caráter monopólico. Entre os outros servigos, destacam-se os
controle das propriedades neurotizantes da organizagáo social; destinados ao cultivo da beleza física, seguranga pessoal, mé-
fichas médicas contínuas; educagáo sanitária; organizacáo ins- todos de escapismo, etc.
titucional; centros de atengáo; tecnologia. Um projeto criativo trata os problemas de congestáo de
A resposta de um projeto consumista é dar baixa prioridade tráfego urbano principalmente por medidas reorganizativas: des-
á medicina preventiva (atende-se ao .paciente-cliente, náo a centralizacáo gradual das atividades, mudangas das horas de
enfermidade); a filosofia médica é atender a demanda como um entrada e saída do trabalho, otimizagáo das distáncias casa-
mercado qualquer. Pode-se esperar progressos importantes em trabalho. Estimulam-se os mercados comunais cooperativos e de
gerontologia (para os pacientes com dinheiro), enquanto as en- armazenagem comum por cada núcleo social.
fermidades mentais constituiráo um amplo mercado. Pouca aces- 6. Solidariedade, integracáo, seguranga. Varsavsky acen-
sibilidade para os grupos rurais e baixa qualidade para os grupos tuava que a inseguranga é um fator geral de insatisfagáo cuja
urbanos marginais. Os assalariados estáveis receberáo atengáo, importáncia aumenta na medida em que a sociedade se torna

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mais complexa e incompreensível. O homem comum se sente ciéncia ou vida íntima das atrizes, etc.), intensidade da comu-
ameagado por causas que náo conhece, nem percebe com cla- nicacáo “vertical” por meios centrífugos (do centro para o con-
reza. Daí a necessidade básica de solidariedade e integragáo no sumidor, o que facilita a censura e o controle) e por meios cen-
núcleo social básico e na sociedade em geral. trípetos (o usuário pede a informagáo que lhe interessa — bi-
Um projeto consumista intensifica a sensagáo de desam- bliotecas e outras formas menos desenvolvidas), intensidade da
paro e o espírito de competigáo pelos meios de vida. Prolife- comunicagáo “horizontal” (reunides, jornais murais, boletins,
ram-se as atividades ilegais. Há solidariedade gremial para de- assembléias, etc.).
fender os salários e os outros benefícios sociais. Os trabalhado- Que tipo de resposta dá um projeto consumista? Meios de
res sindicalizados teráo certa seguranga de trabalho e certo difusáo massivos controlados por empresas privadas, com um
apoio para a velhice e a doenga. Mas isso se dá a níveis insatis- grau acentuado de autocensura, financiados pela propaganda. O
fatórios porque os meios de divulgacáo engendram novas neces- conteúdo é quase totalmente recreativo, deixando muito pouco
sidades de consumo. Os ricos se sentem inseguros pelo aumento espago para a informagáo geral. As notícias sáo selecionadas
da criminalidade e da oposigáo política violenta. Clima geral de por monopólios internacionais de informagáo, chegam incomple-
insatisfacáo, ennui. Os custos dos servigos de vigiláncia e repres- tas e deformadas. Também se deformam os conceitos e valores.
sáo passaráo a ter a mesma magnitude que os de educagáo ou Comercializa-se todo tipo de sentimentos, orientando-os ao au-
saúde. Proliferagio dos corpos privados de guarda. A religiáo mento das vendas: dia das máes, dia dos pais, dia da professora,
já náo consola como mensagem espiritual; busca-se a seguranga venda de posters de revolucionários, uso do amor e do sexo
na superstigáo e crendices. para fins de publicidade. A populagáo é diferenciada em públicos
O estilo criativo estimula a solidariedade social ampla e ra- de culturas pouco miscíveis umas com as outras e só a TV con-
cional, ao invés da caridade. A luta competitiva é desprestigiada segue alcangar a populagáo em geral, semeando uma linguagem
e substituída lentamente pelo espírito de grupo, o que se conse- comum cada vez mais pobre e estereotipada. Predomínio dos
gue na medida em que a família nuclear se integra a um núcleo meios centrífugos e pouco estímulo á necessidade de buscar a
social mais amplo, com muito mais possibilidades. Seguranga informacáo desejada, poucas oportunidades de comunicagáo “ho-
total por velhice, falta de trabalho e acidentes. O país deixa de rizontal” entre grupos (alguma coisa se fará, mas localmente e
ser visto como uma empresa: ninguém pode ser “despedido”. O dentro do mesmo grupo, por exemplo, nos bairros).
Estado é o comprador seguro do produto das pequenas empre- Um projeto criativo torna imediatamente pública a proprie-
sas, dando-lhes seguranga em troca.. A polícia é constantemente dade de todos os meios centrífugos massivos: jornais, revistas,
renovada, educada e controlada. Diminui a criminalidade por TV, rádio, cinema. Mudanga profunda no conteúdo. Melhora o
e acesso centrípeto á informagáo, estimulando-se a inovagáo e am-
tornar-se desnecessária. Aumenta a seguranga contra a frustragáo
e O isolamento devido á maior participagáo e ao respaldo do pliando o horizonte de criatividade. Estímulo á comunicagáo
horizontal, intercomunal, campanhas de mobilizagáo para apoiar
de

núcleo social amplo. A seguranga espiritual é conseguida por


haver uma doutrina com objetivos explícitos comuns e execugáo o projeto nacional, o que dificulta a censura interna. Desaparece
RP Rd

comum: O projeto nacional. o efeito demonstracáo do consumo opulento, bem como a comer-
7. Acesso á informagáo e á comunicagáo global. Inclui cializagáo do sexo, sentimentos, valores e conceitos. O cidadáo
decisóss a respeito dos meios de difusáo (jornal, rádio, cinema, deixa de ser apenas um consumidor.
TV, teatro, etc.), censura (e o atraso na difusáo, que é um meio 8. Núcleo social básico. Um projeto nacional pode estimu-
disfarcado de censura), temas prioritários (política ou esporte, lar a formacáo de lagos solidários entre os diversos grupos,

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dando a cada membro da sociedade amor, seguranca e critérios solidariedade, confianca e seguranca. Os casamentos se man-
de comportamento. Há diversas possibilidades: família nuclear, tém, mas náo obrigatoriamente, e a responsabilidade pelas crian-
grupo pequeno de adultos, clá de famílias, comunidades rurais cas se reparte entre todos os adultos. A moradia, onde todos
ou bairros reduzidos, associacóes voluntárias e outras estruturas colaboram, está adaptada a este estilo de vida familiar social.
“moleculares”. O núcleo náo é uma célula política, porque náo tem de ser mais
O desenvolvimentismo faz da família clássica o seu núcleo homogéneo que uma família atual, mas constitui a primeira
social básico, mas os seus lacos internos se debilitam cada vez etapa de discussáo de qualquer projeto. Necessita-se um esforgo
mais devido á instabilidade do casamento em todos os grupos prolongado de educagáo, análise das fontes de conflito e desen-
sociais e á perda da autoridade dos pais face a sua pobreza de volvimento da personalidade.
valores sociais, sua inseguranca e sua precária imagem do mun- 9. Urbanizagáo. Cada projeto descreve o tipo de cidade
do. A família clássica é um dos mais importantes fatores de invia- desejada, destacando pelo menos o seguinte: tamanho, densida-
bilidade desse estilo. O consumismo estimula o papel das asso- de de populacáo, atividades principais, servigos físicos e cultu-
ciagóes “sás”, tais como os clubes desportivos. O local de tra- rais, distribuigáo residencial, comercial e industrial. O desen-
balho náo satisfaz como unidade social. volvimentismo mal consegue regular o crescimento das cidades
Um projeto nacional criativo deixa de considerar a famí- e das ligagóes interurbanas. Na Argentina que Oscar tomava
lia como a “molécula social”, substituindo-a por “polímeros” como exemplo, haveria o predomínio da megalópole La Plata-
maiores. Oscar via muitas razóes de peso para isso: a solidarie- Buenos Aires-Rosario-Paraná. Melhores instalagóes e remode-
dade limitada a pais e filhos é muito estreita e mesquinha, náo lacóes nas cidades pequenas, devido ao custo monetário da terra
deixa de ser egoísmo estendido. Corresponde á etapa histórica nas cidades grandes. Os centros administrativos públicos e pri-
da luta pela vida, da inseguranca e da competigáo entre os ho- vados continuam localizados no centro das cidades.
mens. A família nuclear também desestimula a criatividade, Um projeto criativo determina o planejamento físico racio-
pois dentro de quatro paredes é difícil enriquecer a intersub- nal, com sistemas hierárquicos de cidades e novas organizacóes,
jetividade, o intercámbio de idéias e o trabalho em grupo. De implantadas inicialmente á maneira de ensaios pilotos. Freia-se
acordo com Laing, a família clássica é fonte das enfermidades o crescimento das megalópoles. A populagáo dispersa diminui,
da alma. No estilo criativo, a criagáo deixa de ser monopólio mas aumenta a rural e a semi-rural, em cidades pequenas, dota-
dos artistas e dos cientistas, espalha-se a todos e de forma mais das de bons servigos e boa comunicagáo com as maiores. Favo-
profunda do que o mero folclorismo e as superficialidades rece o aparecimento de centros urbanos médios (de 30 a 100
atuais. Oscar acentuava que a educagáo dos filhos pela família mil habitantes). Tem-se em mente que os processos de maior
atual fracassou e que o melhor processo de socializagáo se faz criatividade que se viu na história — Grécia clássica, o Renas-
através do contato pessoal e íntimo com um grupo grande de cimento e a revolucáo científica e tecnológica — ocorreram
adultos e criangas de todas as idades. Resultados desse tipo se em condicóes de competicáo intelectual e política entre Estados-
encontram nas tribos pequenas, mas deve-se ter em mente que cidades vizinhas, muito pequenas em comparacáo com os gran-
esses clás estáo adaptados a situagóes estáticas, de duracáo se- des impérios, e com muitos elementos culturais comuns.
cular; o projeto criativo evolui. Oscar imaginava núcleos bási- 10. Igualdade na distribuigio do produto e do prestígio.
cos em que o máximo número de membros seria dado pela ne- Quanto a filosofia de distribuigio do produto, um projeto (de
cessidade de todos se conhecerem com a intimidade de parentes maneira confessada ou náo) pode manter a estrutura inicial e
próximos; essa intimidade é a base dos sentimentos de lealdade, distribuir só os incrementos, aumentar algumas fragózs a ex-

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pensas de outras, etc., em diferentes velocidades. Os critérios nenhuma atividade profissional em especial; ao talento indivi-
para fazer isso sáo conhecidos e dependem de cada estilo: laissez- dual dá-se o caráter de bem social, que todos aproveitam.
faire e política fiscal regressiva, política fiscal e salarial progres- 11. Organizagcáo da vida individual; liberdades garantidas.
sivas, violéncia através de expropriacóes massivas e mudanca As alternativas para a liberdade (valores possíveis para essa va-
do regime de propriedade (para os mais extremados a proprie- riável) váo do anarquismo ao totalitarismo absoluto de um uni-
dade é um roubo). No que se refere á distribuigáo do prestígio, verso concentracionário, passando pela falácia da “liberdade de
o meio principal para influir sobre esse fenómeno é a educacáo, oferta”, típica da visáo liberal. Em suma, trata-se de decidir o
pois envolve hábitos muito arraigados. sal grau de liberdade de cada indivíduo. É inegável que hoje as
O estilo consumista aumenta o ingresso médio, mas também liberdades individuais estáo mais limitadas do que pensamos;
aumenta a distáncia entre altos e baixos. Uma parte do grupo temos a liberdade de escolher somente entre o que o mercado
de ingressos médios passará a altos e será substituída pela ascen- oferece e, mesmo assim, se tivermos dinheiro para comprar. Mas
sáo de operários e empregados sindicalizados. Os grupos mar- o mercado só oferece pequenas variantes do mesmo teor; as dife-
ginais ficam ainda mais distantes. A característica social mais rencas entre duas escolas, duas marcas de cigarro, dois partidos
importante desse estilo (náo sendo o país imperialista) é a sua legais ou dois jornais parecem grandes simplesmente porque náo
incapacidade para incorporar toda a populagáo á atividade con- somos capazes de visualizar outras possibilidades. O mais grave
sumidora, por falta de recursos distributivos (e náo por falta de é ocultar liberdades possíveis: náo há maior escravo do que
producáo). Cresce o número dos “desnecessários” para o pro- quem náo vé suas cadeias. O ideal seria participar em toda de-
cesso produtivo e o mundo já náo comporta as migracóes em cisáo que imponha limitagóes. No que concerne ás necessidades,
como se sai o estilo consumista? As restrigóes mais sentidas, mas
massa da antiguidade. A sociedade consumista se sentiria alivia-
menos entendidas como perda de liberdade, sáo as decorrentes
da se os grupos “desnecessários”, subempregados e desempre-
dos baixos ingressos. O grande princípio regulador é a liberdade
gados, sumissem subitamente, engolidos pelo cháo. O controle
de gastar dinheiro. Mesmo para os afortunados, a liberdade “de
da natalidade é remédio pouco eficaz. Adia-se a solugáo e agra-
oferta” é limitada e governada pela enorme pressáo da propa-
va-se o problema. O prestígio é fungáo do ingresso monetário,
ganda. A liberdade de imprensa se limita á escolha entre os
traduzido por consumo, ou pela celebridade alcangada através
poucos jornais capazes de financiar essa atividade. A liberdade
dos meios de difusáo. de investigagáo se limita á escolha entre os poucos temas postos
O projeto nacional criativo de Oscar tende náo só a igual- na moda pelos grandes centros científicos internacionais (caso
dade da oportunidade, como também A de nível de vida material contrário, nada de financiamento). As associagóes profissionais
e satisfagáo das demais necessidades atendidas pela sociedade. se burocratizam e criam-se códigos de comportamento (éticas
Náo haverá interesse em destacar as diferengas entre os indiví- profissionais) restritivos. Freqiientes abusos de autoridade. Au-
duos. Há nível mínimo garantido, alcangado rapidamente pelo tocensura quase perfeita.
aumento de produgáo dos bens básicos, a custas dos bens de O projeto criativo, por outro lado, propóe muitos controles
consumo supérfluo. Para países como a Argentina dos anos 60, iniciais aos grupos de altos ingressos (poupanga forcada, proi-
Oscar via uma base real firme para resolver de imediato o pro- bigáo de remessa de dinheiro ao exterior, etc.). Liberdade de
blema da redistribuigáo do ingresso; as dificuldades sáo políticas escolha de trabalho e de núcleo social básico. Livre acesso á
e organizativas. As desigualdades de nível de vida material desa- informagáo e ao conhecimento. Liberdade para dissentir, criticar
parecem na segunda década. Náo se dá demasiado prestígio a e propor mudangas de estilo. Direito a vida privada.

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12. Tempo livre, organizagáo do tempo de trabalho. Por Um dos estilos exemplificados entende a educagáo princi-
tempo livre Oscar entendia o que náo é trabalhado. A decisáo palmente como “formagáo de recursos humanos”, ou seja, máo-
fundamental é a prioridade que se dá, dentro do tempo livre, ao de-obra adequada para uma indústria intensiva em capital. Au-
desenvolvimento da capacidade criadora dos indivíduos. Quanto menta lentamente a escolaridade dos grupos baixos; o ensino
ao tempo trabalhado, náo basta indicar o número de horas tra- técnico passa ás máos das empresas, deixando de fora os grupos
balhadas por semana, mas estudar alternativas de distribuigáo marginais que pouco obtém das escolas públicas. Os grupos
do tempo de trabalho ao longo do ano. Haverá estilos que pre- médios chegam á universidade e fazem carreiras curtas; os altos
ferem reduzir a jornada de trabalho a expensas da produgáo de seguem vias de maior prestígio, educagáo privada e cursos no
alguns bens. Uma alternativa racional é trabalhar o necessário exterior, de onde regressam ainda mais obedientes. Pouco esfor-
para cumprir as metas escolhidas e se sobrar tempo, tanto go de educacáo e reeducagáo de adultos. O educando é um
melhor. cliente, a educagáo um mercado mais, oligopólico. O conteúdo
No desenvolvimentismo náo se pode racionalizar o tempo socializante fica aos cuidados da TV e outros meios de difusáo
de trabalho porque isso requer um planejamento muito profun- bem adaptados á dependéncia cultural aceita pelo projeto. Algu-
do da producáo. O tempo ocioso se dedica á recreagáo, o que ma instabilidade resulta do ensino nas escolas confessionais onde
dá lugar a grande atividade produtiva e a servigos. se ensinam doutrinas menos hedonistas, em contradigáo com o
O estilo criativo elimina de saída o trabalho infantil e me- consumismo. Mas a cultura enlatada, via satélites e computado-
lIhora a organizagáo do tempo trabalhado: férias maiores, com res, Circuitos fechados de TV, etc., combate isso com tenaci-
alguma atividade educativa, etc. Desaparece o desemprego nos dade, O conteúdo da educagáo é um reflexo do que se ensina nos
primeiros dois anos e o subemprego em cinco. Organizam-se países líderes e se faz muito esforgo para adaptar o indivíduo
brigadas de trabalho encarregadas da distribuigáo dos bens de ao sistema.
consumo básico, com remuneragóes materiais e náo materiais. Um projeto criativo ideologiza, socializa, informa e treina,
Educagáo e treinamento constantes. Capacitagáo política para a em graus diversos, os diferentes grupos. Uma importante possi-
compreensáo profunda do projeto nacional. bilidade de educacáo assistemática se abre no núcleo social
básico. Trata-se de decidir como se desenvolve a educacáo siste-
13. Educacáo e treinamento. A primeira decisáo é definir
mática. O conteúdo da educacáo ideológica corresponde ás ca-
que porcáo da aprendizagem e do ensino será sistemática, pla-
racterísticas essenciais do estilo, á história e á antropologia cul-
nejada e conduzida em instituigóes especiais, deixando o resto
assistemático. O projeto deve também referir-se a remédios para tural (“ideologia comparada”). A socializagáo significa o ensino
do comportamento social, normas integrativas, formas de partici-
ye
as desastrosas condicóes iniciais educativas da maioria da popu-
lacáo adulta; divisio dos recursos educativos entre criangas e pacáo, formagáo do caráter, etc. Todo adolescente terá visto
adultos; papel dos cursos de pós-graduagáo e de reciclagem; funcionar e terá participado em alguma medida dos principais
reeducagáo dos professores, trabalhadores e funcionários públicos mecanismos sociais: fábricas, hospitais, agricultura, administra-
e sua adaptacáo ao novo estilo (a rigidez da burocracia ameaga gáo, etc., para ter uma idéia das dificuldades e complexidades
a viabilidade de qualquer projeto nacional revolucionário); cam- de cada um. Ressalta-se a importáncia da revolugáo tecnológica
panhas de alfabetizacáo; tipos de instituigio encarregadas da que permitiu o domínio da Natureza e como náo foi suficiente
educagáo sistemática: escolas, fábricas, núcleos sociais, etc.; tec- para resolver os problemas sociais. Estimula-se o espírito crítico
nologia: muito contato pessoal com docentes ou educagáo mediante análises comparativas. Para os jovens, o aprendizado
“enlatada”? axiomático e profundo de um grande ramo do saber (físico-quí-

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mica, sociologia, biologia, etc.). Para os adultos, atualizagáo Ninguém vai querer se limitar a observar passivamente os outros,
constante dos seus conhecimentos e ampliagáo da sua cultura. salvo quando se trate de talentos excepcionais. Estímulo ao tu-
Para as criancas, a informagáo é principalmente descritiva e rismo no país e ao intercámbio comunal. Muita recreacáo e
trata de desenvolver seu espírito prático, observagáo e intuigáo. descanso nos núcleos sociais básicos.
Estudo e trabalho sáo sempre simultáneos ou com alternáncia 15. Ócio criativo e inovador. Social, científico, artístico e
fregiiente. A extensáo da educagáo sistemática até os 15 anos artesanal. Deve-se decidir que importáncia se dará ao desenvol-
será total e imediata, para todos os grupos sociais. Até os 20, vimento geral de capacidade criadora. Na opiniáo de Oscar, a
numa década de prazo, e total, até o fim do século. Durante o decisáo que se toma a respeito é a que melhor define o estilo
período de transigáo, o problema principal sáo os marginais, os e a que maiores efeitos terá no longo prazo. Abrem-se diferentes
funcionários e os ativistas. A burocracia é um peso enorme para opcóes entre os possíveis sentidos que se dá á vida: mística,
a mudanca de estilo. Náo se adapta ás novas idéjas e nem sente hedonista, prometéica. O desenvolvimentismo náo estimula o
necessidade de aprofundar conhecimentos. Sáo “graduados”. ócio criativo e inovador. É limitado ás elites. Fomenta-se a cria-
Veja-se a dificuldade para mudar, mesmo ligeiramente, o curri- tividade fácil de comercializar, principalmente a expressáo
culum das escolas. A reeducagáo dos burocratas requer muito artística individual e os hobbies pouco criativos. O projeto
pensamento criativo. Os ativistas compdem outro grupo endure- criativo considera o ócio inovador como a atividade que dá
cido; já se tentou reeducá-los através de livrinhos vermelhos, sentido á vida do indivíduo; trata-se de tirar-1Ihe o caráter dema-
cuja compatibilidade com o estilo criativo, afirmou Oscar, ele siadamente individualista. Os campos em que a criatividade
náo seria capaz de demonstrar. A tarefa de ensinar é fundamen- pode se expressar incluem todas as atividades humanas e náo
tal; todos ensinam e todos aprendem, é a forma principal de haverá motivo para prestigiar uns mais que outros, como ocorre
solidariedade humana. Aprende-se a ensinar melhor, elimina-se hoje com a “arte”. A maior parte das inovacóes continuará ocor-
a esquizofrenia escola/realidade. Poucos professores se dedicam rendo profissionalmente, isto é, nas horas de trabalho, mas o
integralmente ao ensino. Desconfia-se dos métodos massivos de tempo de ócio criativo é um complemento importante porque
educacáo; a homogeneidade mental seria fatal para o projeto é livre de metas e prazos fixos e pearmite pensar com mais am-
criativo. Contato pessoal com o educador. Todas as instituigóes plitude e tranqiiilidade. Os núcleos sociais básicos organizaráo
educativas sáo públicas, gratuitas e abertas a todos. Maior par- oficinas, laboratórios e ateliers de todo tipo.
ticipagáo dos estudantes como auxiliares docentes, em todos os 16. Imagem do mundo. Inclui a atitude frente á morte, a
níveis. 4 preocupacáo com o que ocorrerá á sociedade futura, interpreta-
14. Ócio recreativo e esporte. Inclui turismo, jogos e di- cáo da evolucáo histórica, grau de dogmatismo e de toleráncia
vertimentos diversos que competem com o ócio criativo. No com ideologias minoritárias, imagem da sociedade ideal, coe-
desenvolvimentismo há muita preocupagáo sobre o que fazer réncia entre prédica e moral prática. No desenvolvimentismo, a
com o tempo livre (a ociosidade conduz ao vício). Difusáo cres- educacáo média ensina uma imagem mais ou menos racionalista,
cente de diversóes patológicas. Isso corresponderá ao maior liberal, individualista e estática, impregnada de um positivismo
gasto de consumo, salvo para os marginais. ingénuo. A imagem predominante na sociedade, difundida pelos
No caso do projeto criativo, há amplo apoio ao esporte, meios de comunicacáo massiva, é unidimensional no sentido
praticado em clubes comunais e de bairro, e no núcleo social dado por Marcuse, sendo ao mesmo tempo irracional, ahistó-
básico. O esporte profissional tenderá a desaparecer; os mais rica e fatalista, orientada pela busca do prestígio que os altos
dotados poderáo contribuir também para o ensino do esporte. ingressos dáo. Dicotomia entre valores declarados e praticados.

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Os problemas espirituais e a salvagáo no “além” continuam justa e igualitária náo é só um fim em si mesma, mas uma neces-
sendo a preocupagáo essencial de muita gente, ao que este estilo sidade para náo desperdigar a capacidade criadora que todos
os indivíduos tém em poténcia e que a sociedade atual deforma,
náo dá resposta. Acredita-se na neutralidade e pureza da ciéncia,
inibe e destrói. 4) Idéias gerais sobre os métodos de conheci-
sendo a física o seu modelo arquetípico. Dispende-se muito es-
mento, especialmente a ciéncia. Admite o risco e a incerteza
forgo para difundir a crenga em que este sistema social é satis-
como características de todas as nossas decisóes, das mais práti-
fatório e só precisa poucas corregóes e reformas ligeiras.
cas ás mais abstratas. Admite que os maiores problemas sáo
O projeto criativo, segundo Oscar, separa o problema em
realmente difíceis e náo se resolvem por receitas rápidas. Con-
quatro níveis distintos: 1) imagem da sociedade atual e sua
sidera o computador, o planejamento e a organizagáo com os
evolugáo histórica. Nisso coincide com o marxismo, em suas
linhas gerais, sobretudo em dois pontos cruciais — a imagem instrumentos típicos da nova era, ocupando o lugar do motor, do
do mundo de um sistema social, até os dias de hoje, é um ins- empresário em competigáo e do trabalhador sujeito á máquina.
trumento das classes dominantes para justificar o seu predo- Constata-se amplamente que a ciéncia humana náo é objetiva
mínio; o controle das forgas produtivas da economia é o que nem neutra pois escolhe ideologicamente os problemas que a
acaba por outorgar poder e predomínio, e o que explica os con- preocupam, ordena as investigacdes mediante recursos finan-
flitos e as transformagóes sociais mais profundas. Considera a ceiros controlados por instituigóes interessadas em manter certo
sociedade atual demente, imoral e suicida: demente por desfigu- sistema social, seus critérios de verdade e objetividade cientí-
rar a realidade quando está contra seus valores; imoral por tole- fica estáo viciados, salvo em algumas ciéncias puramente dedu-
rar a miséria dentro da abundáncia e a repressáo violenta na tivas e experimentais. O estado atual das ciéncias humanas per-
forma de torturas e Ódios raciais; suicida por criar armas capazes mite que se possa crer no que se deseja crer. Mas, apesar disso,
de calcinar a humanidade, por saturar o planeta de imundícies e a ciéncia é a melhor ferramenta que temos para saber e para
por ter como meta uma sociedade estancada e satisfeita com um mudar as coisas, desde que usada com autonomia.
certo nível de bem estar material. Todas as sociedades, prossegue 17. Satisfagáo no trabalho, alienagáo, condigóes materiais.
Oscar, foram até hoje dementes e imorais. Á nossa acrescenta a As condigóes que mais afetam o sentimento de alienagáo do
essas qualidades a sua capacidade de suicidar-se, por morte ou trabalhador sáo provavelmente a divisáo do trabalho, a tecnolo-
estagnacáo. Considera-se o mundo atual dividido em trés gran- gia, a organizagáo do processo produtivo, o grau de participagáo
des campos: grandes poténcias capitalistas, grandes poténcias nas decisóes e o que se produz. Os projetos diráo se haverá
socialistas e terceiro mundo dependente. Ainda que as simpatias especializagáo total ou rotagáo de tarefas, flexibilidade para in-
naturais desse estilo se inclinem para os países que, pelo menos, corporar modificagóes no processo produtivo, discussáo sobre o
deram um passo para a eliminacáo do sistema capitalista de seu papel social, etc. Há outros fatores em paralelo, tais como
organizacáo social, náo os toma de forma nenhuma como mo- a seguranca e sanidade, comodidades práticas, liberdade de agre-
delos. Seu principio guia é a independéncia cultural, a busca do miagáo, etc. Todos esses fatores influem sobre a produtividade.
seu caminho próprio. O projeto desenvolvimentista melhora as condigóes mate-
riais de trabalho nas empresas grandes e de tamanho médio:
2) Imagem da sociedade futura e seu sistema de valores.
música funcional, higiene, seguranga, creches, etc. Mas como
Sáo dados pelo projeto nacional criativo. 3) Cosmovisáo. A
considera o trabalho somente como um meio de ganhar dinheiro,
cosmovisáo criativa parte do desejo de influir sobre o futuro da
náo diminuirá a alienagáo atual dos trabalhadores e produzirá
evolucáo, e impedir que a humanidade se fossilize (ainda que de
insatisfagáo mesmo entre os que recebem bons salários. Isso é
barriga cheia, tal como o ideal sueco ou suígo). A sociedade

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a
fonte de conflitos que os grupos dominantes trataráo de contro- O principal objetivo do projeto criativo é que a partici-
lar através dos sindicatos, concedendo melhorias salariais e fa- pacáo seja profunda: cada um dispós dos elementos informati-
zendo notar quanto pior estáo os marginais. vos necessários para compreender o problema e o debate prévio
O estilo criativo procura desalienar ao máximo o trabalha- é amplo e claro. Estuda-se o problema da decisáo coletiva em
dor mas, como para isso náo há receitas seguras, dedicará muito regime de urgéncia, de importáncia crucial para o período de
talento criativo popular ao problema. Pode-se supor que o au- transicáo. Oscar náo era ingénuo a ponto de supor que no longo
mento da participacáo nas decisóes referentes ao trabalho, a prazo todos estariam em condicóes de opinar sobre qualquer
facilidade de receber treinamento para mudar de tarefa, a eli- coisa; isso já náo pode ocorrer numa sociedade pós-industrial,
minagáo de condicóes desagradáveis, etc., eliminaráo muitas mas estaráo capacitados para reconhecer suas próprias limita-
inconveniéncias desde o início. No entanto, prossegue Oscar, a c0es técnicas e para abster-se de opinar sem sentir-se frustrados.
experiéncia de muitos países mostra que a primeira reagáo de Nos casos de decisóes sobre a selecáo de tecnologia, Oscar pro-
muitos trabalhadores frente á diminuigáo da autoridade patro- pós uma espécie de Parlamento Tecnológico, onde todos tém o
nal é o absenteísmo e a baixa produtividade. Até que ponto se direito de levar problemas, opinar e votar,
pode converter essa atitude hostil num interesse auténtico por 19. Autonomia nacional ou dependéncia. Analisa-se essa
produzir depende da maneira como o novo estilo chega ao poder necessidade em quatro campos interligados: autonomia política,
e do grau de preparagáo prévia dos seus ativistas. O estilo económica, tecnológica e científica, e cultural. O desenvolvimen-
criativo'náo reconhece, já no médio prazo, uma “condigáo ope- tismo estabelece uma autonomia política formal, submetida a
rária” imutável; ninguém estará atado ou distanciado para sem- fortes pressóes externas, em geral exitosas. Incentiva as inver-
pre do trabalho manual. Pode-se esperar que a discussáo poSA sóes estrangeiras e busca financiamento internacional como ins-
do problema traga contribuigóes efetivas. trumento de política. Há perda quase total de autonomia nas
18. Participagáo nas decisóes. Analisa-se em trés campos decisóes económicas e penetragáo completa do mercado por mar-
diferentes, mas interligados: decisóes comuñitárias, decisóes na cas estrangeiras, por importagáo ou produgáo no país. Tratados
área da producáo'e decisóes de política nacional. Deve-se defi- de livre comércio que favorecem as grandes corporagóes multi-
nir 0s mecanismos de participagáo e avaliá-los continuamente. nacionais. Escassa autonomia tecnológica e cultural (salvo via
No consumismo náo haverá participacáo popular verdadeira em folclorismo). O país está integrado a um bloco de nacóes “oci-
nenhuma decisáo de importáncia para o país. A participagáo dentais”, do. qual é satélite. Exportagóes de tipo conhecido,
será canalizada aos problemas cómunais e locais, náo só para sem originalidade, de modo que só podem competir na base
obter máo-de-obra grátis para resolver esses problemas, como dos pregos baixos. Tradicionais na sua maior parte.
para descarregar as responsabilidades de resolvé-los sobre os O projeto criativo requer a máxima autonomia de pensa-
mesmos que os sofrem. Democracia formal, limitada a eleger mento e cultura e, portanto, a máxima independéncia política,
entre partidos comprometidos a defender o sistema. Voto secre- económica e tecnocientífica possível. Como a influéncia norte-
to para escolher entre o que é controlado de cima. Os grupos americana na América do Sul perderá peso relativo, pois essa
sociais dominantes sáo os donos e diretores de empresas, altos poténcia está declinando sua lideranca mundial em todos os
funcionários públicos e seus aliados militares e políticos. Os terrenos (embora isso náo signifique que náo possa haver atos
dirigentes sindicais e parte da “aristocracia operária” participa- irracionais e intervengóes anacrónicas durante .muitos anos
ráo um pouco desse poder. Os pequenos empresários diminuem ainda) e as outras grandes poténcias com vocagáo de domínio
em número e em participacio real. mundial — URSS, China e Japáo — se equilibram com os

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EEUU, daí resulta uma certa garantia de náo intervengáo vio- se fomenta especialmente a divisáo de trabalho entre regióes,
lenta. Além disso, a Europa Ocidental atua como elemento salvo por motivos geográficos contundentes.
estabilizador. Na auséncia de guerras, será relativamente fácil 22. Liberdade para mudar de estilo e legado de recursos.
conservar a soberania territorial e a independéncia política. Oscar As alternativas a escolher sáo conhecidas: estancamento visando
achava que a autonomia económica seria fácil de conseguir na convencer ás novas geragóes de que guardem fidelidade ao esti-
Argentina, gracas aos seus recursos humanos e de capital insta- lo: evolugáo, no sentido da promogáo do espírito crítico e cria-
lado; alimentagáo, vestuário, moradia, educagáo e saúde sáo tivo com respeito ao estilo, renoyando-o periodicamente. Os
necessidades que se pode satisfazer num grau mais que aceitá- projetos devem responder se os recursos naturais seráo esgo-
vel para toda a populagáo, com importagóss insignificantes tados até o horizonte do projeto nacional, se a atmosfera será
quando se renuncia ao consumo suntuário. Basta pensar na contaminada e se aos nossos descendentes deixaremos uma
hipótese de que o resto do mundo se meta numa guerra que a dívida externa impagável. Trata-se de definir a meta dos ““recur-
isole comercialmente, para concluir que aquele país pode seguir sos finais”.
adiante sem muitos apertos. A esse respeito, o estilo consumista náo é explícito, senáo
20. Propriedade pessoal, garantia e limites. No consumis- de uma maneira muito geral e abstrata. Pode-se crer que náo
mo, o sistema económico é um capitalismo corporacionista, se tomaráo medidas concretas para preservar os recursos natu-
neoliberal. Dá amplas garantias á propriedade individual, in- rais. A suposta satisfagáo das principais necessidades materiais
cluindo os meios de produgáo. Mas é também estatizante; os para todos os integrados ao sistema (salvo os marginais), a
grandes servigos de infra-estrutura (de rentabilidade duvidosa) existéncia de metas de consumo opulento visíveis e alcangáveis
e alguns ramos da produgáo básica (exigentes de inversóes volu- pelos mais empreendedores, o uso de drogas, a lavagem cerebral
mosas) ficam aos cuidados do Estado. Cada um é dono do que diária através dos meios de comunicacáo de massa, dificultam
póde comprar. enormemente o advento de movimentos realmente inconformis-
O projeto criativo náo admite a propriedade privada dos tas populares ou estendidos. O inconformismo se institucionali-
meios de produgáo, exceto para os pequenos empresários. Nada za, dando vazáo aos sentimentos de rebeldia, sem ameagar o
impede a posse pessoal de bens duráveis, mas é provável que no sistema.
longo prazo o problema se transfira ao núcleo social básico. O estilo criativo dá ampla liberdade, dada a imagem do
Esse é .m tema que é preferível náo esgotar previamente, mas mundo já descrita. Estimula-se o espírito criativo. Procura-se
levar a discussáo participante. deixar um volume de recursos finais suficiente para continuar
21. Política regional. Centralizagáo, federalismo, sistemas com o mesmo estilo durante outros 30 anos, se interessar aos
de cidades, organizagáo administrativa, sáo temas a definir no que decidiráo naquela época futura.
projeto. O estilo consumista muda pouco o existente; cada regiáo 23. Resolucáo de conflitos sociais. O corpo jurídico-insti-
luta pelo seu próprio desenvolvimento. Intentos limitados de tucional deve refletir algumas das grandes opgóes: autoritaris-
reforma agrária em algumas regióes, diminuindo as migragóes mo total, normas ditadas por grupos sociais dominantes, normas
internas. Pouco federalismo prático. ditadas com participacáo geral, provas de forga entre as partes
No caso do projeto criativo, há um grau apreciável de em conflito, etc. Para os transgressores de normas e promotores
planejamento regional, com participagáo crescente da popula- de conflitos, o espírito geral do estilo permitirá escolher alguma
cáo, visando um federalismo auténtico. Estimulam-se as comu- das opcóes clássicas: reeducacáo, prisáo, pena de morte, etc. No
nidades rurais e se freia o desenvolvimento de megalópoles. Náo estilo consumista, o sistema se irá tornando cada vez mais auto-

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ritário e rígido, exceto para as questóes de distribuigáo do in- como um capital instalado, e que deve adaptar-se ás metas
gresso entre os grupos integrados, onde haverá certa liberdade escolhidas, sob pena de ameagar a viabilidade física do projeto.
de manobra. Os conflitos sociais promovidos pelos marginais Isso implica um certo tipo de inversáo na criagáo de novas ins-
seráo reprimidos com violéncia. Os que tenham sua origem tituigóes e na ampliacáo e reconversáo das existentes. Hoje em
em trabalhadores sindicalizados seráo tratados, ma medida do dia, a técnica que mais se aproxima a- ¡isso é a management
possível, por negociagáo. O poder executivo tem amplos poderes. science, da qual náo se pode esperar muito, porque está orien-
O estilo: criativo repele todo autoritarismo. O corpo jurí- tada por critérios de rentabilidade monetária de empresas iso-
dico vai se formando com normas ditadas com participagáo geral ladas.
direta. A arma principal do estilo para resolver conflitos é a Ao nível das unidades produtivas, o estilo consumista dará
compreensáo do Projeto. Para os casos mais graves, organizam- lugar á preponderáncia de empresas grandes, filiais das gigan-
se brigadas de trabalho e reeducagáo que substituiráo' por com- tescas multinacionais e que por raz0es de mercado produzem
pleto as prisóes e estaráo controladas por assistentes sociais. para vários países da área, em conjunto. As empresas pequenas
24. Populagáo. As políticas de populacáo exigem decisóes e médias, sofrendo dificuldades de: financiamento, váo se con-
a respeito do tamanho e dersidade, -estrutura -por idade dese- yertendo em apéndices das maiores e adaptando sua produgáo
jada. para cada época, integragáo ou autonomia de grupos lin- ás necessidades: daquelas, até perder sua independéncia de de-
giiísticos ou étnicos distintos, mobilidade inter-regional, etc. cisáo. Muitas buscaráo a saída no cooperativismo, principal-
Para a Argentina, o estilo consumista náo adota política explí- mente nos meios rurais. A participagáo. do Estado na produgáo
citaa respeito do tamanho e densidade da populagáo e permite náo é desprezível como criador de economias externas para as
qualquer método de controle da natalidade: Provavelmente será corporagóes e provedor de servicos sociais para os grupos de
forgada a aceitar grandes massas de imigrantes por pressáo de menores ingressos. Algumas empresas grandes adotaráo o sis-
países vizinhos com problema de excesso de populagáo marginal. tema feudal -A japonesa: dar grande estabilidade aos seus em-
A pirámide de idades torna-se cada vez mais pesada na ponta. pregados e ás suas famílias (heranga de empregos), em troca de
Na Argentina, o estilo criativo náo promoveria o controle da lealdade á empresa e conformismo.
natalidade por por ser um país pouco povoado. Presta-se mais As instituigdes de segundo nível seráo muito burocráticas
atengáo á mortalidade infantil que á senil. Apoja-se com mode- e ineficientes, apesar da sua “modernizacáo”, por compra de
racáo a diversidade étnica e lingiiística. Aceita-se a imigragáo em computadores. Náo servem para coordenar a produgáo. As ins-
pequena quantidade e com critérios muito seletivos de afinidade tituigóes políticas e ideológicas de maior peso seráo as Forgas
com o projeto nacional. Armadas, certas embaixadas e as associagóes de empresários e
25. Estrutura institucional para o atendimento das necessi- trabalhadores, diretamente ou através de partidos políticos. Ha-
dades e organizagáo do país. As pessoas procuram certas insti- verá muita atividade formal de planejamento, em sintonia com
tuigóes para satisfazer suas necessidades diretas: hospitais, esco- os organismos internacionais, mas sem nenhuma autoridade efe-
las, mercados, comités políticos, clubes, etc. Ao mesmo tempo, tiva. :
demandam outras instituigóes que regulam, coordenam e fiscali- No estilo criativo .apareceráo muitas instituigóes novas,
zam as primeiras. Essas instituigdes podem estar organizadas de principalmente ligadas a atividades de participagáo e de ócio
maneiras muito distintas, com reflexos nos seus custos de ope- criativo, muito mal atendidas na atualidade: A maior novidade
ragáo e no servigo que oferecem. Esse tecido institucional é um será o núcleo social. básico multifamiliar. Os partidos políti-
dos recursos principais com que a sociedade conta inicialmente, cos conyerter-se-áo em 'instituigóes para promover redefinigóes

54 55
do estilo ou sua total transformagáo. A reorganizagáo mais ur- sulta de mostrar explicitamente como o conjunto de fatores em
gente e no segundo nível que deve funcionar com eficiéncia du- jogo leva diretamente a esses resultados. A novidade do méto-
rante todo o período de transicáo (primeiro qiiinqiiénio) — co- do é poder ser usado para avaliar a factibilidade de projetos
ordenacáo da produgáo, coordenagáo dos servicos sociais e cultu- nacionais: Oscar Varsavsky criou um ábaco para calcular a
rais, assessoramento ás outras instituigdes, avaliagdes e controle verdade dos nossos sonhos.
de qualidade, assisténcia social, planejamento de curto prazo,
informagóes básicas para as outras instituigóes, etc. As carac-
terísticas internas das instituigdes sáo claras: para seu funciona-
mento eficaz náo se dá énfase ao equipamento técnico (com a
única excegáo da informagáo mecanizada), senáo á reorgani-
zagáo de suas tarefas e á desalienagáo do seu pessoal. Nos anos
de transigáo controla-se muito a venalidade, a irresponsabilidade
e a sabotagem — sáo crimes contra a solidariedade social.
O que dizia Oscar sobre a viabilidade física desses dois
estilos? Os ensaios que fez indicaram que o estilo criativo é
viável e o consumista náo. O estilo consumista apresentou um
enorme estrangulamento externo, devido ao consumo opulento
e á tecnologia que este consumo requer. Por isso náo é viável
fisicamente, a menos que consiga enormes financiamentos ex-
ternos, ás custas de sacrificar muito a independéncia económi-
ca e os objetivos populares. Exige na realidade a instauragáo
de um fascismo sui generis: alianga militar/financeira muito re-
pressiva mas náo nacionalista.
O estilo criativo é facilmente viável nas suas variantes aus-
teras, porque o “setor de ponta” é a educagáo, que requer pou-
cos insumos importados. O nível alto de consumo é viável se
essa educagáo resultar num aumento apreciável de produtivi-
dade e inovagáo na tecnologia física e social. Depende entáo da
definigáo inicial correta do conteúdo qualitativo da educagáo.
O problema é a sua viabilidade política, pois há grupos podero-
sos que se opóem á mudanga. Os experimentos numéricos mos-
traram que entre Os recursos mais escassos para a viabilidade
desse projeto estáo o pessoal apto para os trabalhos de reorga-
nizagáo e reeducagáo nesse novo estilo, e os sistemas mecani-
zados de informagáo.
Para esses dois estilos, nenhuma dessas conclusóes é ines-
perada. A novidade do exemplo é o poder de convicgáo que re-

56
2. Stafford Beer

O diabo na rua, no meio do redemunho...


J. Guimaráes Rosa
E
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e de E
Em 1971, Stafford Beer recebeu uma visita inesperada
na sua casa, elegante cottage bem plantado em Surrey, no re-
quintado stockbrokers” belt de Londres. Eram dois jovens chi-
lenos, os dentes trincados de frio, a linguagem de forte travo
latino, e animados por estranha vibracáo. Um deles, talhado
em cobre e dono de densos bigodes em cara redonda, era Fer-
nando Flores que, dois anos depois, entáo com trinta anos de
idade, veio a ser Ministro da Fazenda do governo popular de
Salvador Allende.
Fernando e seu acompanhante assombraram Stafford e sua
mulher, Sallie, com relatos de turbuléncia revolucionária nas
Américas e prognósticos de conquista do poder pelos socialis-
tas no Chile. Aquela visita viria modificar para sempre a vida
daquele casal inglés.
Stafford era bem conhecido na Inglaterra e nos demais
países de língua inglesa como um dos pioneiros da pesquisa ope-
racional e da cibernética aplicada. A pesquisa operacional trata
da construgáo de modelos simbólicos, em geral matemáticos,
para a simulagáo de situagóes reais. Essa disciplina nasceu du-

61
rante a segunda grande guerra, quando os ingleses simulavam, lidade; frente a um determinado sistema, por exemplo, uma em-
mediante algebrismos engenhosos, as suas operagóes bélicas; presa, um animal ou uma aldeia, ele procurava desvendar as
daí o nome “operacional”. A cibernética, disciplina a que Nor- condicóes necessárias á sua factibilidade, ou seja, á sua evolu-
bert Wiener deu forma e perspectiva, também engendrada du- gáo no seio do ambiente que o envolvia. Stafford desembarcou
rante a guerra, trata das questóes de comunicacáo e controle nos no Chile armado com os princípios de um sistema viável gené-
animais, nas máquinas, nos sistemas dinámicos em geral. Staf- rico, princípios que ele desenvolvera a partir dos trabalhos de
ford destacou-se na aplicagáo dos princípios da cibernética e da Wiener e Ashby e aplicara, ao longo de vinte anos, ás situagóes
pesquisa operacional na administragáo de empresas, tornou-se mais diversas.
um consultor renomado e autor de livros premiados; na época Uma das idéias centrais da sua teoria corresponde a um
“em que ele encontrou os dois chilenos, dedicava-se principal- princípio de recursividade, que diz estar todo sistema viável
“mente ao ensino, na Universidade de Manchester. contido em sistemas viáveis, e conter, por sua vez, outros siste-
Stafford percebeu que os visitantes conheciam bem a sua mas viáveis. Isto quer dizer que. partindo-se de qualquer nível
obra e logo compreendeu o que eles queriam: aplicar os seus de observagáo, o modelo que descreve o sistema é redescober-
'ensinamentos, já náo em escala empresarial, como ele vinha fa- to em cada um: dos elementos do modelo original, e assim su-
'“zendo, mas em ámbito nacional, a toda a economia de um país cessivamente. Essa descrigáo em cadeia, ou modelo recursivo
¡do Terceiro Mundo. Fernando Flores era entáo dirigente da do sistema em estudo, lembra aquelas bonecas russas, idénticas
CORFO, Corporación de Fomento de la Producción, algo como umas ás outras. e que váo surgindo na medida em que se abre
o BNDE do Chile, e tinha decidido levar Stafford Beer para cada uma delas. Náo é rude a analogia entre uma das bonecas
e um dos níveis de agregacáo ou de observagáo de um sistema:
organizar a administragáo da economia chilena. Apesar do seu
enorme distanciamento político e dos riscos, apenas vislumbra- ela contém outras bonequinhas similares e está, ela mesma, con-
tida em outras bonecas que repetem a sua forma. Assim sendo,
dos, daquela aventura, Stafford aceitou o desafio e passou a via-
na descrigáo do sistema económico, um dos elementos será um
jar regularmente a Santiago, para chefiar um:grupo dedicado
setor industrial, ao descrever aquele setor industrial, um dos
ao desenvolvimento do ambicioso projeto.
elementos será uma empresa; um dos elementos da empresa será
O que Stafford trazia de novo? Trazia uma idéia — o em-
uma fábrica. A descrigáo ou modelo náo varia. Levando-se essa
prego das leis das organizagóes viáveis, a aplicagáo dos princí-
cadeia recursiva” ao extremo, o que se encontra ao final é o
pios: que garantem a uma organizacáo, de qualquer tipo, seja
neurofisiológica ou fabril, a sua efetiva adaptagáo a contextos
homem — a célula primeira de toda essa edificagáo integrado-
ra..E o homem, sem dúvida, tem se mostrado viável. De fato, a
em mudanga permanente. Ele sustentava que existem. regras
descrigáo ou modelo genérico que Stafford levou ao Chile nas-
fundamentais que, desobedecidas, levam qualquer sistema com-
ceu do estudo da organizagáo neurofisiológica da espécie hu-
plexo A instabilidade, a desadaptagáo e ao extermínio, ou ao
mana. '
crescimento explosivo. Para Stafford, os dilemas da centrali-
zacáo — descentralizagáo da economia, ou do planejamento cen- Outra idéia básica consistia em distinguir e relevar no sis-
tral — liberdade individual, bem como o problema do gigantis tema a área, Ó1gáo ou grupo geradores de políticas ou metas de
mo burocrático das nossas instituicóes, sáo matérias de inves- longo prazo, fungáo essencial á adaptagáo de qualquer organis-
tigacño experimental e passíveis de solugáo. mo á turbuléncia do seu meio externo. Seria trivial distinguir
Avesso a doutrinas económicas e a dogmas políticos, Staf- essas regides normativas identificando-as diretamente com a au-
ford utilizava simplesmente o que chamava de critério de viabi- toridade visível, mas náo é esse o caso. Trata-se de detectar, no

62 63
sistema ou organismo, a fonte produtora de metas futuras, que Surpreendi-o escrevendo e calculando, na sua letra cui-
muitas vezes está dispersa ou mal delineada e, por vezes, até dadosa, cercado de relatórios, cartas, anotacóes, ilhado num
contraposta á autoridade de fato. Na falta desses núcleos pros- espago de papéis, fumagas e cinzas. Bebemos e conversamos as-
pectivos, dá-se a catástrofe, fenómeno bem ilustrado no caso dos suntos de guerra, como convém fazer, no velho coragáo de um
dinossauros. império. Contudo, á diferenca das intermináveis conversas so-
Essas áreas, comumente designadas nas instituigdes moder- bre campanhas pretéritas, revividas com bravura nos sofás de
nas como de “planejamento”, se obstinam em contrariar per- couro do Athenaeum, nós falamos sobre os povos das minhas
manentemente as adaptagóes momentáneas do sistema ao seu latitudes, das suas utopias e das suas desesperangas renovadas.
ambiente, pois sabem ou sentem que, paradoxalmente, adaptar- Stafford entendia claramente que fora chamado para mon-
se bem é morrer, já que o mundo em que estamos metidos náo tar um instrumento de guerra. Como Arquimedes, que em Si-
se dispóe a parar sua metamorfose. racusa captou a energia solar com espelhos e feitos inéditos de
Assim, organizando os sistemas e os seus componentes se- engenharia para queimar as velas das naves romanas, esperava-
gundo um figurino apto a dar-Ihes viabilidade, e identificando se que Stafford levasse ao Chile os novos segredos da ciéncia
os centros de previsáo ou planejamento, Stafford trazia um ar- ou da secreta alquimia que ele cultivava, para reforgar a luta
ranjo sui generis, capaz de garantir um delicado equilíbrio en- do governo popular contra o passado e os seus representantes.
tre o comando central e a autonomia das partes componentes Naquela época, o Chile vivia tempos amargos. Salvador Al-
de uma organizagáo. Para ele, as questóes de participagáo e re- lende fora eleito Presidente da República, com 36% dos vo-
presentatividade numa organizagáo social sáo corolários dire- tos, em novembro de 1970. Em dois anos de governo comple-
tos desses princípios. tou O programa de reforma agrária iniciado seis anos antes por
Stafford soube do meu interesse pelo seu trabalho no Chile seu predecessor que náo conseguira cumprir senáo 20% dos
através de Jonathan Rosenhead, professor da London School planos. A reforma determinava que as propriedades rurais fos-
of Economics. Mandou-me um breve cartáo, convidando-me para sem inferiores a 80 hectares e que a terra restante fosse explo-
encontrá-lo num austero e talvez cansado clube inglés, situa- rada em regime cooperativo. As conseqiiéncias imediatas da
do nas cercanias do The Mall, o Athenaeum. O Athenaeum, rapidez dessa reforma e das abruptas intervengóes estatais na
fundado no comego do século passado, justifica o nome em vas- indústria foram a severa escassez de alimentos, a sabotagem,
ta fachada helénica, fustes, capitéis e volutas de permeio, ten- a fuga de máo-de-obra especializada e o bloqueio externo ao
do, no entanto, fracassado na defesa da claridade mediterránea crédito internacional, ás exportacóes de produtos chilenos, A
das suas paredes, contra a fuligem bárbara do ar londrino. Náo importacáo de pegas sobressalentes. Em dois anos, a agricul-
foi difícil descobrir onde se achava Stafford, entre os outros tura, a indústria e os transportes chilenos já rangiam por toda
membros do clube, cada um ausente á sua maneira, enfastian- parte, desafiando os desgastes, ao esticarem a sua vida útil
do jornais muito lidos, monologando, ou cultivando — na in- a limites insuspeitados. Inventavam-se pegas para as reposigóes,
projetavam-se novas máquinas para substituírem as estragadas,
tengáo de parar o tempo — o tranqiiilo prazer do diálogo. O
lugar de Stafford, envolto em fumaradas despedidas com fu- a imaginacáo dos trabalhadores e dos técnicos chilenos rompeu
ror por seu charuto, era rente ás janelas, de onde recebia a as comportas da imitagáo rotineira e passou a recriar a vida
luz da tarde que se deixava fazer leitosa, entrelagando-se ao industrial do país. Mas a ofensiva externa contra o governo era
fumo. tenaz e a economia do Chile era asfixiada pouco a pouco.

64 65
Sucediam-se os atos de sabotagem contra o governo, os nos fevar á estagáo, de um gesto privava os objetos, as capri-
atentados, as marchas das famílias com cassarolas pela liberda- chosas correntes d'água e as luzes, da vida que ele lhes havia
de, as fugas de capitais e as entradas de dólares para financiar
infundido previamente. No trem, voltando para Londres, tive
os paros. A populagáo chilena se preparava para uma guerra a impressáo de que havíamos visitado o Capitáo Nemo.
prolongada.
Após esses contatos iniciais e novos encontros em Londres
Após o nosso encontro no Athenaeum, Stafford foi a San- e na sua casa, revi Stafford no Chile, em janeiro de 1973. Ao
tiago e, ao voltar dessa viagem, convidou-nos para jantar na sua chegar a Santiago, instalei-me na casa de Mário Pedrosa, que lá
casa. O endereco era Firkins, Old Avenue, em Surrey. Sem nú- vivia exilado, e incorporei-me logo ao trabalho, na sede do
mero no portáo, sua casa tinha nome próprio, nome referente INTEC, Instituto de Investigaciones Tecnológicas. O Institu-
a beer. Stafford nos recebeu na plataforma da estagáo ferroviá- to, aos pés dos Andes, ocupava um prédio moderno, de um só
ria local e dali nos levou de carro até a porta da casa. Imenso, andar, abrindo-se em generosos pátios internos, jardins e peristi-
sufocado em tumulto de barbas, evocando a estampa de Sócra- los, onde o pessoal se encontrava depois do almoco. O real
tes ou a de um sátiro fora de época, Stafford entrou acenden- maravilhoso latino-americano ocorria ali: no ventre de uma re-
do, com vigorosas palmas, as luzes da casa e despertando jatos volucáo socialista, espantosamente constitucional, um grupo de
d'água, que se algavam e despencavam em tanques distribuídos pesquisadores, desenhistas e engenheiros, ás voltas com os prin-
no living room. A sala era recortada por canais, pontes e cha- cípios da homeostasis, calculava, media e projetava' sob a ins-
farizes, por onde flufam intempestivas correntes d'água, num piragáo de um Melquíades que visitava aquela Macondo de
estrondo de cataratas. Ele dava vida ás lámpadas, a mecanismos tempos em tempos.
e aos repuxos, batendo as máos, sem esconder o gozo, acaso di- Encontrei o trabalho avangado. O empenho do grupo, na-
vino, de animar as coisas inertes. A medida que chegava, ba- quele momento, consistia em pór em marcha um fluxo de infor-
tendo as palmas das máos, a casa ganhava vida, fazia-se rui- macóes atuais. Stafford costumava citar MacMillan, dizendo que
dosa, quente, prenhe de luz, como se a casa fosse a mulher. controlar uma economia é como tentar pegar um trem, guiando-
Em seguida, apareceu Sallie, alta, alegre, de beleza envolvente se pela tabela de horários do ano anterior; de fato, as estatísti-
e calma. Sallie reinava na sala de jantar e na cozinha, territó- cas estáo sempre obsoletas, as mais recentes referem-se a' meses
rios onde náo entravam as vertiginosas corredeiras de Stafford. e até a anos passados. E como as nossas economias manifes-
Ofereceu-nos um jantar que demonstrava o seu apurado conhe- tam surtos de crescimento e declínio, toma-se, com freqiiéricia, a
cimento da cozinha francesa. * decisáo errada, isto €, a que reforga precisamente a tendéncia
O escritório de Stafford era, outra vez, o espago de um que se quer atenuar. Stafford propunha vencer os retardos, en-
demiurgo, capaz de avivar-se, incontinenti, ao seu comando pre- raizando um sistema nervoso em tempo real na economia chile-
ciso. Ali, novamente, chafarizes enrouquecidos elevavam ner- na. Ao invés de usar os computadores como mausoléus de infor-
vosas massas d'Água que, ao baixar, se bifurcavam em córregos magáo passada, ele queria utilizá-los como máquinas quase-inte-
e ribeiróes, juntando-se aos rios do primeiro andar. Sua conver- ligentes, capazes de filtrar a informagáo, reconhecer o que im-
sa varava temas distantes — eventos na Índia, onde vivera, portava, testar hipóteses e sugerir agóes.
assuntos filosóficos que ele cultivava e percebeu serem do in- Em poucos meses os principais centros industriais do país
teresse de Regina, os números de Fibonacci, dispostos como foram integrados ao sistema proposto. Grupos de pesquisa ope-
lembranga ou adoragáo no perímetro de um tanque, as cangóes racional, revivendo o seu exercício em situagóes de perigo, cons-
de Isabel Parra, os vinhos de sabor meridional. Ao sair para truíram modelos simplificados das empresas da Área Social,

66 67
definindo indicadores de produgáo, de produtividade, de es- fato ocorresse, na eventualidade do problema agravar-se, sem
toques de matérias-primas, de produtos em processo, etc. Esses encontrar solugáo; caso todas as instáncias subordinadas ao Mi-
indicadores náo fluíam na sua dimensáo física real, mas con- nistro falhassem, ele seria informado do problema. A posigáo
vertidos a grandezas adimensionais, após tratamento estatístico. do Ministro seria equivalente á da nossa atencáo consciente,
Um único computador, de porte médio, instalado em Santiago, que náo pode estar vigiando constantemente o funcionamento
processava essa informacáo e indicava se um novo dado era dos nossos órgáos, mas que é chamada a intervir, quando isso
mera variagáo aleatória ou se fazia parte de uma tendéncia; se faz necessário.
neste último caso, o dado era significativo. Uma vez feita essa Nas suas apresentacóes na rádio canadense, levadas a cabo
análise, a máquina informava o resultado unicamente ao res- no outono de 1973, na série chamada Massey Lectures, Stafford
ponsável pela funcáo examinada. Resguardava-se assim a au- fez referéncia a uma famosa negociacáo entre o Rei Joño-Sem-
tonomia dos diversos níveis encarregados daquela operagáo. Terra e os seus baróes, ocorrida na Inglaterra, em 1215. Como
Os dados chegavam das fábricas localizadas em Santiago, resultado daqueles entendimentos, foi firmada a Magna Carta:
em Arica, em Puerto Montt, em toda parte, eram esmiucados era um documento a favor da descentralizagáo do poder e dos
pelo programa computacional e devolvidos — quando impor- direitos dos indivíduos, sendo muito citado ainda hoje, 767
tava — aos responsáveis diretos. A administragáo da empresa anos depois. Numa das suas dissertacóes, Stafford se lembrou
e a do setor ignoravam o andamento daquelas variáveis a nível de um verso relativo áquele evento, aprendido na sua meni-
de fábrica, exceto quando a solugáo de um problema náo era nice, e que terminava assim:
alcancada a tempo. A economia passava a ser governada como So it's thanks to that Magna Carta
o sistema autónomo do corpo humano, sendo estimulada, quan- that was signed with the barons of old
do necessário, através de ligacdes análogas aos canais simpáti- that in England today we can do as we like
cos e para-simpáticos da nossa fisiologia. — so long as we do as we're told.
Para os demais níveis de responsabilidade — empresa, se-
tor, economia global — índices específicos eram igualmente pro- A piada veio ilustrar o problema que até hoje enfrentamos
cessados e informados, por excegáo. A autonomia de cada nível — como harmonizar liberdade individual e coesáo social ao
funcional era sempre mantida, salvo quando sua inoperáncia mesmo tempo? Esse é um problema fatigado por discussóes sem
pudesse comprometer a viabilidade do sistema todo. O que acon- fim e que tem levado, invariavelmente, á mesma falácia: a falsa
tecia quando um problema grave, num dos níveis daquela es- dicotomia entre as nocóes de centralizacáo e descentralizacáo.
trutura em patamares, náo era resolvido? Passado um certo pe- Mas, um ligeiro exame do que constitui um sistema viável —
ríodo de tempo, funcáo da importáncia do assunto e tendo argumenta Stafford — mostra que a dicotomia é falsa. Por exem-
sido fixado a priori, com a participagáo das pessoas diretamen- plo, se o leitor fosse um sistema totalmente centralizado, ele
te envolvidas, a autonomia reservada áquela área era supera- náo poderia esquecer de avisar ao seu coracáo para bater e, por-
da, e um sinal era disparado ao nível imediatamente seguinte. tanto, na primeira distragáo, deixaria de viver. Por outro lado,
Isso se passa também com o sistema autónomo animal; por se fosse um sistema completamente descentralizado, abandona-
exemplo, em geral dedicamos pouca atengáo ao pé, mas se ele ria qualquer tarefa para borboletear atrás da primeira im-
é pisado, o problema ganha importáncia em seguida. Stafford pressáo nova. Nenhuma solugáo extrema lhe daria viabilidade.
náo previa que o Ministro fosse importunado com um pequeno Um sistema viável é constantemente bombardeado de estí-
problema numa fábrica de pregos. Mas náo impedia que esse mulos, sendo obrigado a atenuá-los, sob pena de transbordar

68 69
(fundir a cuca, no caso). Essa atenuagáo é feita por uma fun- minadores e dominados, é porque a nossa natureza é autori-
gáo central do sistema, que descarta todos os estímulos que tária e servil. Hoje, contudo, temos o método experimental nas
náo importam, os que náo tém releváncia para o seu ““mode- máos, cujo primeiro ensinamento é olhar, ver o movimento do
lo” de vida. Toda a variedade de estímulos descartada passa mundo. Com o seu auxílio, diz Stafford, podemos repensar as
entáo a ser absorvida por fungóes descentralizadas, passa a ser instituigóes e evoluir.
tratada de forma autónoma. Assim sendo, há partes do sistema Sua proposta náo se enquadrava no paradigma da cién-
viável que fazem o que bem lhes apetece mas, obviamente, essas cia clássica. O princípio básico desse paradigma, dessa “cién-
partes continuam pertencendo ao sistema e devem, em conse- cia normal”, consiste na dissecgáo de um problema num con-
qúéncia, levar em conta o “modelo” regulador central; sob esse junto de cadeias causais separáveis, na reducáo de um fenóme-
outro ponto de vista, cumprem ordens. no a uma colegáo de unidades ou partes independentes. É o
Na sociedade, diz Stafford, as regras desse jogo náo es- que usualmente se conhece por método científico, inaugurado
tao definidas. Na família, a limitagáo da autonomia das crian-
por Galileu. A aplicagáo sistemática desse método deu como
gas, face ao avanco contínuo da sua liberdade de agáo, é uma
resultado um avango enorme na compreensáo de muitos pro-
discussáo sempre recomecada; nesse caso, o resultado comum
blemas; em especial, sua aplicagáo aos fenómenos naturais re-
é a identificagió dos pais com a autoridade centralizadora,
sultou no assombroso desenvolvimento da física e da tecnolo-
coisa que náo os beneficia, ao contrário do que possa parecer
gia. Poréim, como demonstrou Bertalanffy, este avango depen-
aos filhos. As empresas e instituigdes de hoje tentam resolver
deu sempre de duas condicóes: que a interagáo entre as ““par-
o dilema através de recursos meramente administrativos e o fei-
tes separáveis” do fenómeno estudado náo exista ou, pelo me-
tico trai o feiticeiro: a burocracia aumenta. Montam estru-
nos, seja muito débil e que as relagóes que descrevem o compor-
turas piramidais que poderiam funcionar se os dirigentes ti-
tamento das partes sejam lineares, ou seja, que se possa somá-
vessem as suas cabecas aumentadas, na medida em que gal-
las, para inferir o comportamento do conjunto. Essas condigóes
gassem os cargos mais altos. Nesse caso, as chefias poderiam ab-
sáo em geral satisfeitas nas ocorréncias estudadas tradicional-
sorver a ampla variedade de informagóes que recebem e tomar
mente. A ciéncia clássica ocupou-se essencialmente do estudo de
boas decisóes a respeito da infinidade de problemas que as en-
problemas definidos por poucas variáveis, por cadeias causais
volvem. Mas as cabegas náo crescem; ao contrário, as moleiras
unidirecionais, do tipo uma-causa-um-efeito. Desenvolveram-se
fecham. A boa prática de trabalho — cada um responsável pe-
métodos robustos para a análise de problemas relativamente
los seus próprios atos — náo. se cumpre, apesar da retórica a
simples. Contudo, essas condigóes náo valem para as entidades
seu favor. Daí resulta uma oscilagáo constante entre os dois
chamadas “sistemas”, isto é, para conjuntos de elementos com
pólos: amplifica-se a burocracia para o exercício centralizado
fortes interrelagdes. Nesses casos, a aplicagáo dos métodos
das administragóes e as coisas acabam emperrando. Promove- analíticos usuais perde a elegáncia e fica-se sem fólego no es-
se a descentralizagáo, a burocracia desaparece, mas a descen- foro de dominar conjuntos de equagóes diferenciais simultá-
tralizacáo desvertebra o sistema. No entanto, a natureza dos neas náo lineares. O feitigo sufoca o feiticeiro.
sistemas viáveis, a de um ser vivo, por exemplo, ensina o segre- O paradigma da ciéncia clássica, o da causalidade num só
do: a dicotomia é enganosa, as duas dimensóes devem coexis- sentido, deu entáo lugar ao paradigma da complexidade organi-
tir em sutil paridade. zada. O tránsito de um enfoque ao outro se fez através de um
Stafford gostava de parodiar, dizendo que a armadilha é terceiro cánone — o da complexidade desorganizada — quan-
uma fungáo da natureza da presa. Entáo, se vivemos entre do- do se incorporaram á ciéncia clássica as nogóes probabilísticas

70 71
típicas da termodinámica. Esse terceiro paradigma é aceitável resultaráo do rompimento das fronteiras artificais entre as es-
para a descrigáo das situagóes nas quais há um número des- pecialidades.
medido de partes interrelacionadas; o estudo da distribuigáo Foi entáo que especialistas nessa coisa insólita que sáo os
probabilística das suas variáveis importantes é a chave para a seres vivos se juntaram a especialistas em campos aparentemen-
nossa compreensáo da sua natureza. te distantes, tais como a matemática, a lógica, a teoria da in-
Por outro lado, as situacdes em que existem muitas — mas formagáo e a psicologia, e engendraram a cibernética. A mate-
náo muitíssimas — partes interrelacionadas, escapam a esse mática, sendo pura tautologia, náo poderia gerá-la; tampouco
novo tratamento. Náo basta conhecer os elementos, mas as suas poderia fazé-lo a física, como puro fato. Era forgoso haver uma
relagóes mútuas, para conhecer o sistema todo. Sob esse pris- fecundacáo. A cibernética veio cruzar os departamentos das
ma, a psicologia náo se pode reduzir ao estudo das sensagóes ciéncias naturais. Sua questáo central é entender como os siste-
elementares, nem as ciéncias sociais podem se limitar ao estudo mas se organizam, sem se importar, dizia-se, que a materializa-
dos indivíduos em competigáo. Torna-se necessário conhecer tam- gáo se faca na carne ou no metal.
bém as características constitutivas, as que dependem das rela- Tratar de organizacóes significa entender como a estabi-
q0es específicas dentro dos conjuntos de unidades supostamen- lidade € alcancada e mantida. Fundamental para esse entendi-
te isoláveis. Daí a expressáo, aparentemente hermética, de que mento é o conhecimento do fluxo de informacóes no sistema,
o “todo é maior do que a soma das partes”, que diz simples- dos seus canais de transmissáo, seus retardos, amplificagóes e,
mente que as características constitutivas náo sáo explicáveis a em especial, das vias de realimentagáo que levam a informagáo
partir das características das partes isoladas. A natureza do relativa As respostas que o sistema dá aos diversos estímulos
complexo aparece como coisa nova, emergente. que o afetam. A cibernética veio em auxílio do estudo das es-
Uma vez notadas as diferengas entre os dois tipos de ocor- truturas organizadas e do projeto de organizacóes viáveis.
réncias, observou-se um fato notável: existem correspondéncias Retomando as condicóes de viabilidade defendidas por
surpreendentes ou isomorfismos entre os diferentes tipos de sis- Stafford, considere-se, por um momento, um sistema produtivo;
temas. Chegou-se ao ponto de propor uma teoria geral dos sis- por exemplo, uma empresa, um complexo industrial ou todo um
temas que se ocupasse dessas correspondéncias formais, de tal
setor económico. Interessava conhecer os sistemas dinámicos
maneira que o estudo de um tipo de fenómeno esclarecesse os
que os faziam funcionar: fluxos de materiais, energia, pessoal,
casos correspondentes. Muitos exemplos de isomorfismo foram
informacío, estoques, volumes de contas por cobrar, dinheiro
entáo estudados: comportamentos analógicos de aparatos elé-
tricos, hidráulicos e mecánicos, crescimento ou declínio de co- em caixa, etc. Esses elementos e as relagóes entre eles eram subs-
lónias animais e crescimento do número de publicagóes cien- tituídos por diagramas que passavam a ser uma linguagem co-
tíficas, competigáo entra plantas e entre animais, evolucáo in- mum a todos os trabalhadores de uma unidade produtiva. A
dependente de linguagens tribais e de grupos de mamíferos, ope- informagáo visual substituía os números e o jargáo especiali-
ragáo de circuitos elétricos e funcionamento das células nervo- zado, tornava-se um meio de comunicagáo notável para a exe-
sas (o que veio dar origem As máquinas computadoras), enfer- cugáo de uma contabilidade física. As pessoas envolvidas ti-
midades associadas a lesóes do cerebelo (tremores de propósito) nham a liberdade de estabelecer todos os indicadores que qui-
e oscilagóes de certas variáveis cruciais de um sistema produ- sessem. Assim, sendo cada variável sob controle comparada
tivo. Houve grande fecundagáo interdisciplinária, constatou-se com uma faixa taxonómica, na qual se classificava a atividade
que os maiores avangos que se pode esperar da ciéncia moderna medida em relagáo ao seu valor médio, a empresa, a fábrica ou o

72 73
setor poderiam se informar continuamente sobre qualquer alte- aos mecanismos sensoriais e motores que se processam ao lon-
racáo que pudesse interessá-los. go da espinha dorsal; as fungóes de coordenacáo das divisóes
Isso se fez ao nível das fábricas; ao nível das empresas tém o seu mecanismo análogo no funcionamento do amálgama
interessava conhecer os valores agregados dos indicadores de- mesencéfalo-medula-cerebelo; as atividades de previsáo e per-
finidos para o primeiro nível. A única forma de alertar os tra- cepgáo do mundo externo correspondem á operagáo do diencé-
balhadores das fábricas e das empresas sobre as alteragóes sig- falo, da glándula basal e do terceiro ventrículo; a área suprema
nificativas na imensa quantidade de dados que eles maneja- de controle, a de geracáo de critérios, vai corresponder ao cór-
vam era tratar a informagáo de uma maneira nova, descartando tex cerebral.
o enorme volume de variagóes aleatórias que náo tinham sen- Se isso vale para uma fábrica, vale também para a empre-
tido e levando os sinais de excegáo aos interessados. Cumpria- sa e para o setor. No caso da empresa, por exemplo, o modelo
se entáo a condigáo de viabilidade: tal como no caso do ser se repete; cada uma das fábricas passa a ser vista como um
vivo, irrompia um sinal para anunciar uma perturbagáo espe- componente elementar, já ao nível dos mecanismos reflexos de
cífica até chegar ao nível que pudesse atendé.-la. controle autónomo ou lateral. No caso do setor, cada uma das
Resolvia-se a questáo da autonomia separando-se os níveis empresas passa a ser percebida como uma unidade daquele tipo.
administrativos segundo os graus de autonomia requerida. Na Os graus hierárquicos dessa organizagáo funcional sáo envol-
sua Origem, isso corresponde ao modelo do sistema nervoso ventes, repetem-se como envelopes mais complexos, embora
humano. Essa é a correspondéncia formal estudada por Staf- similares.
ford. No caso do ser humano, existem trinta
e um pares de ner- No tratamento da informacgáo, as fábricas recebiam dados
vos ao longo da espinha dorsal que enervam a maior parte do de estoques, de producáo, de pessoal, etc. As empresas eram in-
corpo, sendo que a própria espinha dorsal é utilizada para abri- formadas da produgáo global das fábricas sob o seu comando,
gar o eixo central de comando. Transversalmente ao eixo cen- do nível geral de matérias-primas, etc. O setor se interessava
tral, opera o mecanismo dos reflexos autónomos, através de ner- sobre os valores ainda mais agregados, moleculares, resultantes,
vos enraizados no corpo inteiro. em última instáncia, dos indicadores “atómicos” iniciais.
Esse comando lateral opera ao longo dos diversos níveis O projeto de Stafford empolgou meios técnicos da Europa
da espinha dorsal, resultando assim um sistema bidimensional, e dos Estados Unidos, mas despertou críticas agudas. O gru-
que é a esséncia do segredo organizacional do corpo humano. po inglés editor de Science for People voltou-se contra o pro-
Os órgáos trabalham de forma autónoma (lateral), mas inte- jeto, acusando-nos de estar engendrando versáo latino-america-
grando a sua atividade local a um equilíbrio orgánico distri- na do Grande Irmáo, ao entregar um instrumento concentra-
buído verticalmente. A espinha dorsal é o tipo mais arcaico de dor de poder nas máos de um pequeno grupo dirigente. Em
estrutura nervosa. Na evolugáo, o cérebro brotou numa das suas abstrato, a crítica era correta. Certamente, nas máos de Pino-
extremidades. A chet, o sistema seria um pesadelo pior que os de Orwell. Mas
Analogamente á fisiologia do sistema nervoso somático do o que Science for People náo enxergava á distáncia era o me-
corpo humano, o modelo concebido por Stafford para dar via- canismo de defesa do projeto contra essa deformacáo tenebro-
bilidade a um sistema administrativo incluía cinco níveis de sa; defendíamos a participagáo profunda dos integrantes da in-
controle, compreendendo desde as atividades de “linha” até as dústria no trabalho e em todos os níveis do processo decisório.
funcóes normativas do sistema. No caso de uma fábrica, por Predicávamos a rotatividade dos postos de trabalho, a fim de
exemplo, as funcóes autónomas das suas divisdes correspondem permear a estrutura de comando industrial com um movimen-

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to contínuo de gente e impedir que um deles sequer se eterni- pistas se adiantaram, precipitando o cerco ao palácio antes da
zasse no seu cargo e, por via de conseqiiéncia, viesse a ampliar chegada dos seus companheiros, Allende soube aproveitar a
o seu poder sobre os outros. desarticulagáo inimiga e conter a ofensiva dos fachos. Com a
Com a vida política chilena era uma crise permanente, era ajuda do Gen. Pratts, Chefe do Exército, venceu a sedigáo em
comum ver a Capital tomada pelo povo, em febris demonstra- poucas horas. Restaram, no entanto, inúmeros focos de insur-
góes de apoio ao governo da Unidad Popular. Aos milhares, reicáo que passaram entáo a desfechar acóes isoladas: atiravam
homens, mulheres e criancas ocupavam as ruas, as pragas, as bombas, bloqueavam estradas, destruíam instalagóes elétricas,
avenidas, desfilavam sem parar num ritual colorido e ruidoso. cometiam atentados, espalhavam boatos alarmistas. Procuravam,
Conquistadas as ruas, abriam-s* clareiras na multidáo e nelas de todo jeito, interromper a vida constitucional do país.
os manifestantes dancavam, desfraldando bandeiras imensas, Nisso, o projeto de Stafford foi ameagado- pela organizagáo
num esplendor de cores, toadas, movimentos e gritos. As pas- fascista Patria y Libertad. Soubemos que tencionavam invadir e
seatas transmutavam-se invariavelmente em festas populares es- destruir o INTEC durante a noite e, para evitá-lo, o pessoal do
praiadas na cidade inteira. Os chilenos dangavam e agitavam projeto montou guarda durante noites seguidas, distribuindo-se,
lencos, assanhando as mulheres que, em bamboleios atrevi- armados, ao longo das janelas e pátios do Instituto. Para ven-
dos, sensuais, convertiam, por momentos, o combate político em cer o frio e o cansago, cada ponto de observacáo era coberto
ordálias de intenso erotismo. por duas pessoas, de tal forma que uma pudesse dormir um
Stafford deixou-se embruxar no Chile, enredar em encan- par de horas, enquanto a outra vigiava. Alguns, na cozinha,
tamentos, amar. Numa de suas cartas de 1973, escreveu: produziam café, sanduíches e empanadas para as trincheiras, es-
e
tendendo a sua arte culinária á preparagáo de um estoque de
(...) There is only one thing you say that is not right
coquetéis Molotov para amparar a defesa.
for me. Love is not a “rare flash”. Love for others is con- Felizmente, náo houve combate e, aos poucos, relaxou-se
suming me, and 1 will eventually vanish. 1 predict you a guarda. A defesa do INTEC, municionada de espingardas de
will go the same way. But that is for later. caga, revólveres e os artefatos provenientes da cozinha, difi-
cilmente teria resistido ao ataque esperado, bem munido das
O convívio de Stafford com o grupo era fraterno, intenso,
metralhadoras e das bombas que o fascismo vinha utilizando
efusivo. Na sua presenga, as reunióes de trabalho se convertiam
nas suas acóes. Por precaugáo, Stafford passou a refugiar-se no
sempre em prolongadas conversas, inspiradas nos temas do
litoral, num chalé em Las Cruces, perto de Valparaiso, duran-
momento. Náo raro, o trabalho e as discussóes davam lugar a
te as suas estadas no Chile. Tornou-se mais difícil manter boa
cantorias e dangas nas casas dos chilenos, noite adentro. Com
freqiiéncia, cabia-me, por ser brasileiro, iniciá-los no exótico comunicacáo entre ele, em Las Cruces, e o grupo em Santia-
ritual do samba, missáo que eu cumpria com relativa competén- go. Os camioneros em greve passaram a fechar as estradas, dis-
cia, considerando que os sambas arrancados a duras penas de pondo as suas carretas no meio da pista e espalhando grampos
suas vitrolas consistiam em marchinhas carnavalescas passadís- retorcidos, chamados “miguelitos”, cujas pontas afiladas rasga-
simas que alguns de seus intrépidos avós levaram das terras do vam os pneus dos carros. Como produto do desenho industrial
Brasil. autóctone, os “miguelitos” eram inovagdes admiráveis e de sin-
Em junho de 1973, algumas unidades militares tentaram gela eficácia; mas cumpriam uma fungáo aborrecida nas máos
um golp2 contra o governo popular. Porém, como alguns gol- dos camioneros.

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No inverno de 1973, informagóes em tempo real já fluíam perimentar, no modelo, as medidas económicas inspiradas na
com periodicidade diária, entre as fábricas, as empresas e a informagáo atualíssima, recebida na sala de operagóes, e apre-
Capital, e daí voltavam os dados excepcionais até os pontos de ciar, em seguida, os resultados prováveis dessas medidas, sem
origem. Utilizava-se um sistema de microondas e telex para li- sacrificar a populagáo através da imposicáo casuística de fór-
gar as unidades produtivas mais distantes a Santiago. Este con- mulas de algibeira. Essa experimentagáo, á luz da informagáo
junto passou a ser chamado de “sistema agora”, uma vez que vertida pelo “sistema agora”, recebeu o nome de “sistemas futu-
retratava, diariamente, as anormalidades do aparato produtivo ros”. Os terminais para o comando desses experimentos seriam
também instalados na Opsroom.
da Área Social.
Stafford queria que os dirigentes da economia chilena, e A informagáo recebida na sala de operagóes e a possibili-
o próprio Ministro Fernando Flores, estivessem em contato per- dade de ensaiar políticas e medidas corretivas de curto prazo,
manente e direto com os problemas da producgáo. Para isso, pro- permitiriam ao governo absorver a complexidade e a varieda-
de dos fatos da vida económica chilena, e intervir de maneira
jetou uma sala de operagdes, que ele denominava de Opsroom,
mais imediata nos pontos nevrálgicos da maquinaria produtiva.
para onde convergiam as informacóes de excegáo. Internamen-
Como as conseqiiéncias das medidas de governo resultam final-
te, a Opsroom tinha forma hexagonal e em cada uma das suas
mente da agáo recíproca de inúmeros agentes económicos, de
paredes viam-se telas para informacáo visual e luzes indicado-
obstáculos mal percebidos, e de restrigóes latentes, essas con-
ras dos setores industriais, das empresas e das unidades fabris.
segiiéncias, em virtude dessa reverberacáo “sistémica”, contra-
No centro, havia sete cadeiras com numerosos botóes de co-
riam muitas vezes a intuigáo e sáo visualizadas com demora.
mando nos bracos; pressionando-se diferentes combinagóes des-
O funcionamento da máquina de guerra idealizada por
ses botóes, podia-se selecionar, nas telas, a informagáo deseja-
Stafford Beer para o Chile de Allende consistia na experimen-
da — a produgáo de uma fábrica, o estado de uma empresa, a
tagáo sobre um modelo global da economia, embutido de da-
situacáo de um setor, segundo as variáveis escolhidas. As luzes dos reais extraídos no momento exato dos ensaios. Para ele,
alertavam os presentes para os problemas mais candentes, pul- essa organizacáo da gestáo económica daria condigóes de via-
sando freneticamente numa variedade de cores indicativas das bilidade ás indústrias e viria instigar a autonomia e a liber-
diversas classes de problemas existentes. Os filmes de ficgáo ci-
dade dos participantes.
entífica eram pálidos ensaios futuristas, comparados ao ambien-
te da Opsroom. O golpe militar de setembro de 1973 deitou por terra todas
as conquistas e as aspiragóes do projeto. Stafford se encontrava
Em junho de 1973, esta sala já recebia os dados diários
na Inglaterra, longe do terror desencadeado por Pinochet. Os
de alguns setores, mas nunca se chegou a alimentá-la com toda
a informagáo processada. A sala de operagóes era o coragáo do membros do time chileno salvaram ás pressas tudo o que pude-
ram — desenhos, programas computacionais, cálculos de indi-
“sistema agora”; dispensava o trabalho ciclópico da burocra-
cia estatal, filtrando a enorme variedade de informagóes e redu- cadores, procedimentos de análise estatística, etc. De Londres
zindo-a a proporcóes humanas. Mas Stafford náo entendia a Stafford passou a ajudar a saída dos técnicos perseguidos; di-
rigiu-os para a Inglaterra, Áustria, Itália, Franga, Canadá, Es-
gestáo económica como a administragáo de uma crise contínua.
tados Unidos e México.
Ele queria fornecer ao governo meios de prever as conseqiién-
cias futuras de decisóes atuais. E para isso, parte da equipe de O encontro com o Chile revirou a vida de Stafford. Atur-
Santiago, com assessoria de Londres, desenvolveu um modelo dido pelos acontecimentos de 1973, golpeado pela morte e pela
para a simulagáo da economia chilena. Esperava-se poder ex- prisáo de muitos amigos, partilhando a afligáo dos desterrados

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que, aos milhares, deixaram o Chile, Stafford desfez-se da casa
em Surrey e passou a viver numa pequena casa de pedras no
País de Gales. Fernando Flores, portador da última mensagem
escrita de Allende aos militares que o cercavam no La Moneda,
foi preso e mantido num cárcere gelado na ilha Dawson, por
mais de mil dias. Mil dias de solidáo, comentou-se. Depois, Fer-
nando e os outros integrantes da equipe, dispersos, empenhados
nas duras provas do exílio, perderam — para sempre? — a si-
nergia que os animava nas ensolaradas terras chilenas. Sombras
na América do Sol.

3. Humberto Maturana

Mas que coisa é o homem,


que há sob o nome:
uma geografia?
C. Drummond de Andrade
das pessoas
do se estreita e O reino
Há épocas em que O mun náo se toca-
idé ias se afu nil a, mis turando vidas que antes
e das os 20 saber
. Sta ffo rd e nós, O grupo de Santiago, vibram
vam dirigia O De-
Maturana era chileno e
que o biólogo Humberto nci as da Universi-
da Faculdade de Cié
partamento de Biologia fam os 0 texto “O
trabalhos, só conhec
dade do Chile. Dos seus lic ado em 1959,
ao cérebro do sapo”, pub
que o olho do sapo diz mei ros da ciber-
och e Pitts, apóstolos pri
juntamente com McCull do con hec imento
recentes no problema
nética. Suas incursóes desper tav am entre
das suas descobertas
e as implicagóss éticas E
nós imensa curiosidade. e log o sur giu a idéia de
Maturana
Finalmente conhecemos suas opinides.
enc ont ros ond e ele pudesse discutir as
promov er tituto de Investi-
s as pri mei ras reu nióes na sede do Ins
Fizemo Maturana?
O INTEC. O que disse
gaciones Tecnológicas, uin as € de seres vivos,
nte , Mat ura na falou de máq
Ini cia lme Em geral, as
ele, na oca siá o, enfeixava em livro.
assunto que pela natu-
sáo vist as COM O sis temas materiais definidos
máquinas prem
tes com pon ent es e pela funcáo que cum
reza das sua s par
83
ao Ooperarem como engenho humano. Ele mostrou, no entanto, certas instáncias, o objetivo se manifesta no produto da operagáo
que essa maneira de vé-las é ingénua pois náo diz como se da máquina, mas sempre fazemos referéncia ao objetivo quando
constituem. nos referimos ás máquinas porque isso ajuda a entender a sua
Obviamente, as máquinas se constituem como unidade e organizacáo. Acostumamo-nos, assim, a acreditar que o objetivo
sáo formadas por partes componentes, caracterizadas por certas ou fungáo sáo propriedades da máquina; porém, o objetivo per-
propriedades que governam as interacdes e as transformagóes tence ao domínio do observador e, a rigor, náo serve para carac-
dessas partes. Contudo, náo é evidente que a natureza dos com- terizar um tipo de organizagáo mecánica. Já o produto das ope-
ponentes náo importa e que as suas propriedades particulares ragóes da máquina, esse pode ser usado para tal fim, no> dominio
— salvo as que intervém nas interacóes e transformacóes no inte- descritivo: do observador. ;
rior do sistema — podem ser quaisquer. As propriedades signi- Maturana náo considerou as partes componentes ao definir
ficativas dos componentes se referem ás relagóes determinantes os sistemas vivos como máquinas. Preferiu assinalar a suá-orga-
da sua rede de interacóes e transformacóes. nizagáo mecánica, de tal forma que todas as suas propriedades
Maturana definiu a organizacáo de uma máquina como o derivassem dela; descreveu a classe de máquinas a que perten-
conjunto das relagóes que determinam a dinámica de intera- cem os sistemas vivos e salientou em seguida como as proprie-
c0es e transformacóes dos seus elementos componentes (no dades que os caracterizam resultam como po de e
espaco em que estáo definidos) e, por via de conseqiiéncia, os organizagáo. '
estados possíveis da máquina enquanto unidade. Ainda que essas Há um tipo especial de máquinas que mantém cel vai
relagóes náo sejam arbitrárias (pois as suas possibilidades estáo veis constantes ou, pelo menos, flutuando no interior de um
limitadas pelas propriedades dos componentes), a máquina, en- umbral de valores limitado. A crganizacáo dessas máquinas es-
quanto sistema, pode muito bem sé-lo, uma vez que é possível pecifica: os limites de variagáo admissíveis; sáo máquinas ho-
escolher componentes de tipo diverso que satisfagam as relagóes meostáticas, com “realimentagáo” interna. Convém notar que se
que definema sua organizagáo. Assim sendo, prosseguiu Matu- distinguimos uma “realimentagáo” através do meio externo á
rana, uma máquina, qualquer máquina, é um sistema que pode máquina, de tal forma que os efeitos de sua “saída” afetem a sua
materializar-se através de muitas estruturas diferentes e cuja or- “entrada”, estamos na verdade nos referindo a uma máquina
ganizagáo independe das propriedades dos componentes. Nor- maior, abrangendo também, na sua organizagáo determinante, o
malmente, frente a uma dada máquina, procedemos ao revés: meio externo e o circuito de “realimentagáo”. :
percebemos as propriedades dos componentes reais que em sua Maturana definiu por máquinas autopoiéticas as máquinas
trama de interacdes nos levam a induzir as relagóes que definem homeostáticas que mantém constante uma variável muito espe-
sua organizagáo. cial — a sua própria organizagáo. Isso quer dizer que a máquina
Quanto ao uso que se possa dar a uma máquina, ressaltou, autopoiética (que se faz a si mesma) é organizada cómo um
esse náo é um aspecto de sua organizagáo, mas parte do domínio conjunto de processos de produgáo de componentes, concátena-
em que ela opera, pertencendo entáo á nossa descrigáo da má- dos de tal maneira que os componentes produzidos sáo capazes
quina, num contexto mais amplo que ela mesma. Maturana de- de gerar'os processos que os criam e constituir a máquina como
teve-se nesse ponto, sublinhando a sua importáncia. Todas as uma unidade no espago físico. Beirando, mas sem cair na cir-
máquinas que o homem fabrica, ele as engendra com algum cularidade de uma tautologia, Maturana salientava quea máquina
objetivo: seja algo prático, como no caso de uma enxada, ou autopoiética especifica e produz continuamente a sua própria
gratuito, como no exemplo fugaz de um baláo de Sáo Joáo. Em organizacáo, mediante a producáo dos seus componentes, em

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condigóes de constante perturbagáo ambiental e compensacáo transformacgóes no qual o sistema, enquanto existe, mantém cons-
dessas perturbagóes. Entáo, analogamente ao termostato que tante a sua organizacáo. Mais tarde viemos a entender as impli-
mantém 'uma temperatura constante, a máquina autopoiética é cagóes desse conceito sobre o problema do conhecimento.
um sistema homeostático que tem a sua própria organizagáo Quais sáo as conseqiiéncias imediatas dessa organizagáo
como variável crucial. táo peculiar? A primeira, e mais importante, é a autonomia, o
Assim sendo, disse Maturana, as máquinas autopoiéticas que se traduz na subordinacáo de todas as suas transformagóes
sáo unidades cuja organizacáo é definida por um encadeamento á conservacáo da sua própria organizagáo. As máquinas náo
especial de processos ou relacóes de produgáo de componentes, autopoiéticas, chamadas por Maturana de máquinas alopoiéticas,
e náo pelos componentes mesmos, ou por suas relagóes estáticas. produzem no seu funcionamento algo diferente delas mesmas,
E como as relagóes de producáo de componentes só existem como como no exemplo do aviáo; náo sáo autónomas, pois as mudan-
processos, se esses processos se detém, as relagóes de produgáo cas que experimentam sáo subordinadas á geragáo de um pro-
desaparecem. .Assim, para que uma máquina seja autopoiética duto diferente delas. A segunda conseqiiéncia da organizagáo
€ necessário que as relagóes de produgáo que a definem sejam autopoiética é que essas máquinas possuem individualidade; isto
continuamente restauradas pelos componentes que elas engen- significa que ao manterem invariante a sua organizacáo, elas
dram. Além «disso, para que tais processos constituam uma má- conservam uma identidade que náo depende das suas interagóes
quina, devem entrosar-se como uma unidade no espago físico. com um observador, Já as máquinas alopoiéticas, as que pro-
Em suma, a articulagáo autopoiética de processos em uma uni- duzem algo distinto de si mesmas, tém uma identidade que
dade física diferencia as máquinas autopoiéticas de qualquer depende do observador e que, além disso, náo se determina no
outro tipo de unidade. Por exemplo, num aviáo há uma organi- seu funcionamento, uma vez que o produto desse funcionamento
zagáo em termos de processos, mas náo sáo processos de produ- é coisa distinta da sua organizagáo. Portanto, as máquinas auto-
gáo de componentes que participam da definigáo da sua orga- poiéticas sáo definidas como unidade unicamente por sua organi-
nizagáo; os componentes sáo produzidos por outros processos. zacáo; as suas operacóes estabelecem os seus limites no processo
Já no caso de uma célula, trata-se de um sistema autopoiético. de autopoiesis. Isso náo ocorre no caso das máquinas alopoié-
Nela, as relagóes que a constituem se produzem mediante a for- ticas, cujas fronteiras sáo fixadas pelo observador, ao indicar as
magáo de proteínas, ácidos nucléicos, etc., que determinam as superfícies de “entrada” e de “saída”, limitando, dessa mancira,
condicoes de proximidade física necessária para que esses com- o que pertence ao seu funcionamento.
ponentes mantenham as relagóes que os geram. Uma célula con- As máquinas autopoiéticas náo tém “entradas” nem “saí-
gelada, por outro lado, náo é um sistema vivo, mesmo que possa das”. É claro que estáo sujeitas ás incleméncias da sorte e expe-
vir a ser vivo, por aquecimento. O espago autopoiético é curvo e rimentam vários ajustes internos que compensam essas perturba-
fechado, no sentido de s2r determinado inteiramente por ele g0es. Todavia, qualquer mudanga interna que ocorra estará sem-
mesmo. z pre condicionada á conservacáo da organizagáo da máquina, o
Para Maturana, a organizacáo autopoiética implica proces- que vem constituir precisamente a definigio de autopoiesis.
sos articulados de tal maneira que produzem os componentes Sendo assim, toda relagáo entre a série de perturbagóes que pos-
constitutivos do sistema como unidade. Por isso, pode-se dizer samos perceber e as mudangas internas da máquina pertence ao
que cada vez que essa organizagáo se compóe num sistema real, domínio em que se observa a máquina, e náo á sua organizagáo.
o domínio de deformagóes que esse sistema pode compensar sem Esta é imperturbável, sob pena do sistema desfazer-se. Desse
perder a sua identidade torna-se domínio de perturbagóes ou jeito, Maturana explicava que a organizagáo das máquinas auto-

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poiéticas se mantém constante porque as relagóes entre os ele- tenha uma resposta única, comentou. Maturana evitava o em-
mentos componentes (que por sua vez estáo em mudanga con- pirismo extremado que julga a observagáo e a experimentagáo
tínua) também sáo invariantes. As máquinas autopoiéticas man- suficientes para revelar a natureza dos sistemas vivos, sem ne-
tém constantes as suas relagóes definitivas; a forma real em que nhuma análise conceitual. Da caracterizagáo proposta, Maturana
uma organizacáo desse tipo pode materializar-se varia em fun- derivava toda a fenomenologia desses sistemas, inclusive a evo-
cáo das propriedades dos elementos físicos que a realizam. Daí, lugáo e a reproducáo.
a possibilidade de existir muitas classes diferentes de máquinas Outro conceito que ele descartava é o de finalidade ou
autopoiéticas, mas todas elas com a mesma característica: qual- teleonomia dos sistemas vivos. Em geral se acredita que a orga-
quer interferéncia física no seu funcionamento, fora do seu nizacáo dos seres vivos é orientada a um fim, dotada de um
campo de compensacóes, acarretará a perda da sua autopoiesis. programa interno que a sua estrutura realiza. Náo só a onto-
Mais ainda, assinalou Maturana, a forma real em que se engen- genia é vista como um processo integral de desenvolvimento,
dra a organizacáo autopoética dessas máquinas determina as desde um ponto de partida até um estado adulto, segundo um
alteragóes que elas podem sofrer sem desintegrar-se e, portanto, o plano inato inerente á sua estrutura, como até mesmo a filo-
domínio de interagóes em que é possível observá-las. As má- genia se vé como uma história de transformagóes e adaptacóes,
quinas autopoiéticas plasmadas em sistemas físicos nos permi- através de geracóes sucessivas, destinada a cumprir o plano da
tem observá-las num domínio de interacóes exterior á sua orga- espécie, subordinando o indivíduo a esse fim. Mas, para Ma-
nizagáo. turana, finalidade ou objetivo náo sáo características da organi-
Por causa disso, podemos tratar uma máquina autopoiética zacáo de nenhuma classe de máquina. Essas nogdes pertencem
como se fosse alopoiética, como parte de um sistema mais amplo, ao campo dos nossos comentários a respeito das nossas agúes,
onde distinguimos as “entradas” (eventos perturbadores) e as ou seja, ao domínio das descrigdes e só servem para indicar,
“saídas” (mudangas ou adaptagóes), sem que a sua organizagáo quando nós. as aplicamos a uma máquina ou a um objeto, que
autopoiética varie. Podemos igualmente analisar uma máquina o estamos considerando num contexto mais amplo, O observador
autopoiética nas suas partes materiais definindo novos contextos convenciona algum uso para a máquina e considera o domínio
de observacáo; nesse caso, estaremos agindo independentemente dos seus estados, como suas respostas ou “saídas”. O nexo entre
da organizagáo autopoiética que as partes integram. , essas “saídas” e o ambiente, percebido pelo observador, é o que
Segundo Maturana, se os sistemas vivos sáo máquinas, sáo passa a ser chamado de objetivo da máquina, e está portanto
máquinas autopoiéticas; transformam a matéria neles mesmos, situado no. domínio de descrigóes do observador; está fora do
produzem a sua própria organizagáo. Para ele, a afirmagáo in- domínio da máquina.
versa também é verdadeira: se um sistema é autopoiético, entáo A organizagáo de uma máquina, seja autopoiética ou náo,
é vivo. Maturana considerava a nocáo de autopoiesis necessária e afirmava, determina somente as condicóes em que aparecem os
suficiente para caracterizar a organizagáo dos sistemas vivos. Ele seus diversos estados, os quais surgem como respostas necessá-
náo temia ferir o enigma das coisas animadas ao sugerir o de- rias a certas condicóes. Para Maturana, entáo, as nocóes de fina-
senho, o projeto, de um sistema vivo. lidade e de fungáo náo tém nenhum valor explicativo para o que
Os seres vivos sobre a Terra sáo provas existenciais da via- pretendem esclarecer. Servem apenas a um propósito prático
bilidade da organizagáo autopoiética. Mas essa modalidade de do observador. Em resumo, a teleonomia é apenas um artifício
organizagáo autopoiética, chamada de sistema ácido nucléico- para a descrigáo dos sistemas vivos, náo serve para entender a
proteína, náo nos permite induzir que a questáo da viabilidade sua organizacáo. Os sistemas vivos carecem de finalidade.

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Dispensando a nogáo de finalidade ao definir os sistemas por indivíduos no espago físico e consiste na série de transforma-
vivos, Maturana girava a natureza do problema e passava a con- g0es que eles podem experimentar como unidades autopoiéticas.
siderar a organizagáo do indivíduo, da unidade, como o problema O fato de que a ontogenia de um sistema vivo, isto é, a
central para a compreensáo da natureza desses sistemas. história das suas transformagóes, se efetue no espago físico, leva
Se um sistema vivo náo subordinasse todas as suas mudan- a que distintas classes de sistemas autopoiéticos tenham diferentes
cas á conservacáo da sua organizacáo autopoiética, ele perderia classes de ontogenia. Outra conseqiiéncia a que isso dá lugar é
esse fator que o define como unidade e se desfaria. De fato, que, para um observador, a ontogenia de um sistema autopoié-
esses sistemas se desintegram ao perder a sua organizacáo auto- tico reflete a história das suas interagóes com um ambiente inde-
poiética. É assim que, ensinava, em cada sistema vivo as mu- pendente, apesar de que, no sistema, todas as transformacgóes
dancas ou adaptacóes ocorrem sem interferir na sua organizagáo. sáo determinadas internamente, todas sáo indiscerníveis para o
Em conseqiiéncia, a ontogenia, vista como um processo, repre- sistema mesmo. A contínua correspondéncia, percebida por um
senta simplesmente a realizagio de um sistema que é, a todo observador, entre a conduta de um sistema autopoiético e o am-
instante, uma unidade. A nogáov de desenvolvimento náo surge biente é apenaso resultado da natureza homeostática da orga-
senáo no contexto da observagáo. nizagáo autopoiética, e náo da existéncia, nessa organizacáo, de
Maturana fazia a fenomenologia dos sistemas vivos depen- alguma representagáo do ambiente; nem o sistema precisa disso
der somente da sua condigáo de unidades autopoiéticas. Nem a para adaptar-se a um contexto mutável. Falar de representagáo
reproducáo nem a evolugáo entram na caracterizagáo da orga- do ambiente na organizacáo do sistema vivo, dizia Maturana,
nizagáo viva, pois sáo dependentes da existéncia das unidades. pode ser útil como metáfora, mas náo ajuda a revelar a organi-
A unidade, considerava Maturana, é a única condigáo necessária zagáo de um sistema autopoiético. Em suma, pode-se supor, por
para ter existéncia em um dado domínio. E o que especifica a exemplo, que quando um sapo grita, do ponto de vista do sapo,
natureza da unidade e o seu domínio de existéncia é a opera- é como se o universo inteiro gritasse.
cáo de distingáo, que a separa de um fundo e de outras unida- Mas nem os sapos nem os outros seres vivos estáo sozi-
des. Como diz o antigo provérbio, o comego do céu e da terra nhos. Cada vez que o comportamento de uma unidade gera um
domínio no qual a sua conduta é fungáo da conduta das outras
náo tinha nome. Pareceu-lhe oportuno assinalar que fazer uma
unidades, diz-se que elas estáo acopladas nesse domínio. Se-
distingáo pode ser uma operagáo material ou puramente con-
gundo Maturana, a natureza do acoplamento é determinada pelas
ceitual. Poética também, julgou um dia Marcel Duchamp, ao
organizacóes autopoiéticas das unidades. Um sistema gerado pelo
dizer “Eros, c'est la vie; Arroser la vie; Rose Selavie”. acoplamento de várias unidades autopoiéticas pode ser também
As unidades, em domínios de existéncia diferentes, podem autopoiético; seria este um sistema autopoiético de ordem supe-
ou náo interagir, dependendo da intersegáo dos seus domínios. rior. Se for autopoiético no espaco físico, é um sistema vivo.
Nos sistemas vivos, toda a sua fenomenologia se subordina á Isso aconteceu na Terra, com a evolucáo das células para se
conservacáo da sua unidade e, também, o aparecimento de uma converterem em metazoos; os sistemas autopoiéticos componen-
unidade determina o domínio da sua fenomenologia. Daí o tes passaram a subordinar-se á conservagáo da autopoiesis da
domínio das mudangas ontogénicas de cada indivíduo, incluindo unidade de ordem superior. Maturana sugere que a única limi-
a sua conduta, ser o domínio das trajetórias através das quais tagáo ao processo de formagáo de unidades autopoiéticas de or-
ele conserva a sua autopoiesis. Toda fenomenologia biológica, dem superior é aquela imposta pelas condigóes em que uma uni-
ensinava Maturana, é necessariamente determinada e realizada dade pode definir-se num espago determinado. A extensáo A

90 91
q
sociedade é forcosa, mas ainda náo se sabe se há um espago Junto a Heinz von Foerster, Maturana intensificou os en-
social em que a sociedade constitua uma unidade autopoiética, contros na sede do INTEC e na Sala de Operagóes, a Opsroom
nem quais seriam os componentes desse espago; o que se sabe de Stafford. Esses encontros, em geral culminados em amáveis
é que toda sociedade tem mecanismos de automanutencáo. Á tertúlias numa confeitaria no centro de Santiago, onde Heinz se
dificuldade, nesse caso, cabe ao observador ao fracassar na ope- comovia frente a inefáveis tortas de magá, serviram para a dis-
ragáo de distingáo num espago ou domínio fenomenológico em cussáo das implicacóes biológicas, epistemológicas e gnoseoló-
que o sistema é autopoiético. Essa dificuldade impede que o gicas do pensamento de Maturana, e para a avaliagáo crítica do
observador reconhega o sistema como unidade. Por outro lado, projeto de Stafford. As implicagóes políticas das idéias de Ma-
o observador, devido A sua própria estrutura cognitiva, ou seja, turana brotaram ao final, como estacóes terminais das suas
ao seu modo particular de autopoiesis, pode ser incapaz de inte- linhas de raciocínio.
ragir no espago em que o sistema é autopoiético e, portanto, Conversamos inicialmente sobre as implicacóes biológicas.
incapaz de observá-lo. Um sistema vivo é autopoiético e constitui uma unidade no
Em junho de 1973, Heinz von Foerster, diretor do Biolo- espaco físico. Sua autopoiesis determina as transformagóes que
gical Computer Laboratory da Universidade de lllinois, chegou ele pode experimentar, sendo que a perda da sua autopoiesis é a
e do
a Santiago atendendo a um convite da Universidade do Chile sua morte. Das implicacóes biológicas que Maturana salientou,
ilustre professo r a mais notável é que a caracterizacáo dos sistemas vivos como
INTEC, para uma estada de dez semanas. O
austríaco, radicado nos Estados Unidos desde a segunda grande sistemas autopoiéticos parece ter validade universal, ou seja, a
pas-
guerra, incorporou-se ás discussóes que Maturana dirigia e autopoiesis pode ser tomada como definigáo dos sistemas vivos
sou-a formalizar os conceitos e Os processos apresent ados. em qualquer parte do universo físico, por mais diversos que
Antes disso, logo ao chegar, Heinz esbocou o contexto sejam dos sistemas terrestres em outros aspectos. A fenomenologia
filosófico em que se encaixavam as idéias de Maturana, desta- biológica náo é mais que a fenomenologia dos sistemas autopoié-
cando várias escolas de pensamento voltadas na mesma diregáo, ticos no espago físico, dizia.
com respeito ao problema do conhecimento. Falou de Ludwig Entre as implicagóes epistemológicas, Maturana comentou
Wittgenstein que questionou a realidade criada pela linguagem que a dificuldade em compreender o mecanismo determinante
e advertiu que há formas que náo podem ser expressadas. Para da organizacáo do indivíduo náo será resolvida na base de argu-
se conhecer ou descrever um limite, é preciso estar dos dois mentos puramente evolutivos e genéticos. As tentativas de apli-
lados desse limite: estando de um lado só, dentro de um sistema, car nocóes preformistas, tais como o uso de conceitos de infor-
tal como uma linguagem, o exame das suas fronteiras é impos- magáo a nível molecular ou nogóes organísmicas estáo fadadas
sível. Há o que náo pode ser dito, dizia: “of what we cannot ao fracasso. Para Maturana, a chave para a compreensáo da
speak, we must remain silent”. Referiu-se a Spencer Brown que fenomenologia biológica é o entendimento da organizagáo do
levou adiante as teses de Wittgenstein e formalizou um cálculo indivíduo, isto é, da organizagáo autopoiética. Maturana demons-
a
de distingóes que batizou de Leis da Forma. Evocou a artilhari trou que tanto essa organizagáo quanto a sua origem sáo total-
lógico-matemática de Lars Lófgren, Gotthard Giinther e Gordon mente explicáveis em fungáo de nogóes puramente mecanísticas,
ensi-
Pask, e incluiu Carlos Castañeda, a quem um índio Yaqui dispensando qualquer conceito adicional. A idéia darwiniana de
nou que a realidade conhecida náo é única e, através das dia- evolugáo, com sua énfase na espécie e na selegáo dos mais aptos,
bruras do índio, se viu frente a paradoxos no mundo objetivo teve um impacto cultural maior do que a simples explicagáo da
das descricóes. origem e da diversidade dos sistemas vivos, argumentava. Teve

92 93
impacto sociológico, pois pareceu trazer uma justificativa cien- seu domínio cognitivo. Daí resulta que o domínio cognitivo de
tífica para a subordinacáo do destino dos indivíduos aos valores um sistema autopoiético equivale ao seu domínio condutual e,
transcendentais que se julgava inerentes á nogáo de Estado e so- na medida em que a conduta possa ser observada, equivale a seu
ciedade e dar uma explicagáo da fenomenologia social numa domínio de descrigóes. Maturana sustentava assim que toda
sociedade competitiva. Na história de uma sociedade baseada na conduta é expressáo de conhecimento e que todo conhecimento
discriminagáo e em idéias competitivas de poder, relevar a es- é conduta descritiva. Pode-se concluir, observava, que todo co-
pécie como entidade histórica perene, movida por indivíduos nhecimento é necessariamente relativo ao domínio cognitivo
transitórios e descartáveis, veio a calhar como explicagáo bioló- daquele que conhece e, portanto, está determinado por sua
gica para a sua estrutura sócio-económica. Ele náo negava que organizacáo. A ontogenia, entáo, é tanto um processo de espe-
é a humanidade, enquanto espécie, o que evolui, e que a com- cificagáo contínua do modo de autopoiesis de um organismo,
petigáo leva a cámbios evolutivos. Mas alertava para o uso da como também uma especificagáo do seu domínio cognitivo. Em
biologia desligado dos propósitos de quem enuncia aquelas no- conseqiiéncia, o conhecimento absoluto é intrinsecamente im-
c0es. Maturana insistia que a fenomenologia biológica € determi- possível.
nada pela fenomenologia individual e sem indivíduos náo há Outro resultado importante é o seguinte. Os sistemas auto-
fenomenología biológica nenhuma. Assim, já náo se pode usar poiéticos podem interagir, dando por resultado um acoplamento
a biologia para justificar a qualidade prescindível dos indivíduos condutual. A conduta de cada um torna-se fonte de perturba-
em benefício da espécie, da sociedade ou da humanidade, sob o g0es compensáveis para o outro. Surgem interagóes comunicati-
pretexto de que o seu papel é o de perpetuá-la. Biologicamente, vas; suas ontogenias passam a gerar um campo consensual de
concluía, os indivíduos náo sáo prescindíveis. Maturana imagi- condutas, eles deixam de ser taciturnos. Tal campo consensual,
nava uma sociedade intencionalmente constituída por seus com- onde há orientacáo recíproca de suas condutas, é um. domínio
ponentes como um: conjunto livre de qualquer hierarquizagáo lingúístico. Nesse campo consensual de interagóes, a conduta de
sistemática entre eles. Todos os assuntos desaguavam no tema cada organismo pode ser tratada como uma descrigáo conotativa
central: a construgáo da utopia. Mas até que ponto, indagava, da conduta do outro. No domínio do observador, trata-se de
a fenomenologia social pode ser considerada fenomenologia uma denotacáo consensual.
biológica? Já um sistema autopoiético capaz de interagir com os seus
As implicacóes gnoseológicas das suas idéias eram ainda próprios estados como, por exemplo, no caso de um organismo
mais instigantes. Entendemos que o domínio de interagóes de
dotado de sistema nervoso, e capaz de desenvolver com outros
uma unidade autopoiética é o domínio de todas as deformagóes
sistemas um domínio consensual lingiiístico, pode tratar os seus
que ela pode experimentar sem deixar de ser autopoiética, Para
próprios estados lingijísticos como fontes de deformagóes e, assim,
cada unidade, esse domínio é necessariamente limitado, uma vez
interagir lingiiisticamente num domínio lingiiístico fechado. Tal
que há deformagóss que ela náo pode sofrer sem perder a sua
identidade. Assim sendo, há agentes causadores de perturbagóes sistema, capaz de interagir com as representagóes das suas inte-
e deformagóes sobre um sistema autopoiético que um observador ragóes, é um observador. Um sistema vivo capaz de ser um
pode ver, mas que o sistema mesmo, ao sofrer a deformagáo, observador pode interagir com os seus próprios estados descriti-
náo pode descrever nem pode compensar. O domínio de todas vos, que sáo descrigóes lingiiísticas dele mesmo. Se ele assim o
as interacóes em que um sistema autopoiético pode participar faz de forma recursiva, gera um domínio de autodescrigóes lin-
sem perder a sua identidade foi definido por Maturana como gúísticas, torna-se um observador de si mesmo, um observador

94 95
de suas observacóes, um observador de suas autoobservagúes e, entre perturbacóes externas ou internas sobre as suas mudangas
por aí afora, suas descrigóes espiralam-se ao infinito. de estado. Para o sistema nervoso, náo há dentro nem fora. A
Vale assinalar, dizia Maturana, que o observador perma- distingáo entre causas externas e internas das mudangas de
nece sempre num domínio descritivo, isto é, num domínio cog- estado do sistema nervoso só pode ser feita por um observador
nitivo relativo. Náo é possível nenhuma descrigáo da realidade que percebe o organismo como unidade e define as suas fron-
absoluta. Essa descrigáo, se fosse possível, exigiria uma intera- teiras.
gáo com o absoluto que se quer descreyer, mas como a repre- Em belo arremate para aquele seminário, Maturana comen-
sentagáo que daí surgiria seria determinada pela organizagáo tou que na tentativa para explicar a autonomia, o pensamento
autopoiética do observador, a realidade cognitiva gerada desse clássico, na sombra de Aristóteles, criou o vitalismo, atribuindo
jeito dependeria do conhecedor e seria relativa a ele. O domínio aos sistemas vivos um elemento finalista imaterial. Depois de Aris-
descritivo é irremediavelmente fechado, náo tem saídas mediante tóteles, a história da biología ilustra muitas teorias que procuram
descricóes. Somos prisioneiros de nossa maneira de pensar. O justificar alguma forga organizadora especial. Mas os biólogos
trabalho poético nos assombra ao esbarrar nessas fronteiras, mas se frustravam ao encontrar nos seres vivos a mesma coisa que
O poeta se atormenta ao suspeitar que jamais conseguirá rom- viam no resto do mundo físico: cargas elétricas, tensóes super-
pé-las. ficiais, leis físicas carentes de propósito. “We murder to dissect”,
Houve uma reuniáo dedicada inteiramente ao exame do já foi dito. Daí, sob o impacto do pensamento cartesiano, brotou
sistema nervoso, descrito por Maturana como um sistema fe- o enfoque mecanicista, negando a necessidade de forgas imate-
chado. Operacionalmente, o sistema nervoso é uma rede fecha- riais organizadoras dos seres vivos. Com Darwin, a diversidade
da de neurónios em interagáo, de tal forma que uma alteragáo deixou de ser uma fonte de espanto na compreensáo dos seres
na atividade de um neurónio leva sempre a uma alteracáo na vivos, mas deslocou a curiosidade dos homens acerca da vida,
atividade dos demais, seja diretamente, através de efeitos sináp- do indivíduo para a espécie e da organizagáo da unidade viva
ticos, ou através de algum agente químico ou físico interme- para a sua origem ancestral. Hoje as duas correntes se entrela-
diário. Portanto, ensinava Maturana, a organizacáo do sistema cam; as explicacóes físico-químicas estáo ligadas ás nogúes evo-
nervoso como uma rede neuronal finita fica definida por relagóes lutivas. As dificuldades fundamentais, dizia, estáo vencidas. Mas
de circularidade nas interagóes neuronais através da rede. Os os biólogos ainda fracassam ao procurar entender globalmente
neurónios sensoriais e efectores, classificados dessa forma por a fenomenologia dos sistemas vivos. Muitos fogem A questáo,
um observador do organismo, no seu meio, náo escapam a essa
sem responder o que é um sistema vivo e o que eles tém em
circularidade, acrescentou, pois toda atividade na superfície sen-
comum que nos permitem dizer que sáo vivos. J. Monod, disse
sorial de um organismo resulta em atividade na superfície efecto- Maturana, tenta responder a essa pergunta postulando uma
ra, e toda atividade efectora conduz a alteragóes nas superfícies organizacáo teleonómica de natureza molecular e acaba por su-
sensoriais. É irrelevante que um observador possa ver o am- bordinar o indivíduo a um plano para a espécie; náo é impróprio
biente como algo intermediário entre as superfícies sensorial e supor que essa visáo insinua o fascismo. As nocóes teleonómicas
efectora do organismo, porque o sistema nervoso fica definido náo tocam a questáo essencial da organizagáo da unidade viva.
pela interagáo dos seus neurónios, com independéncia dos ele- O trabalho de Maturana, centrado no indivíduo, se orientava
mentos intermediários. Como rede neuronal fechada, o sistema numa diregáo nova.
nervoso náo tem “entradas” nem “saídas”, nem há relagóes Ele mostrou que somos vítimas da ilusáo de que a finali-
intrínsecas na sua organizagáo que lhe permitam discriminar dade da ciéncia é chegar a afirmagóes objetivas. Quem faz afit-

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macóes objetivas, acrescentava Heinz, sáo os objetos, mas os denotativo no qual até as nogóes subjetivas sáo expressadas de
objetos náo falam! Sujeitos fazem afirmacóes subjetivas! A forma denotativa, como se a sua existéncia fosse independente de
ciéncia, de acordo com Maturana, náo é um domínio de conhe- nós mesmos, como observadores. A cognigáo, para Maturana, é
cimento objetivo, mas um domínio de conhecimento subjetivo, um fenómeno biológico, condicionado á organizagáo e á estru-
tura do indivíduo.
dependente do sujeito, definido por uma metodologia que es-
As diferengas culturais, dizia, náo representam modos di-
miúga as propriedades do observador. A validade do conheci-
ferentes de tratar a mesma realidade objetiva, mas domínios cog-
mento científico está na sua metodologia, que determina a uni-
nitivos diferentes e legítimos; homens de culturas diferentes
dade cultural dos observadores. Observe-se o conceito de
vivem em realidades cognitivas diferentes, determinadas por
ordem. Trata-se de uma nogáo que o observador impúe ás suas
suas vidas no seio dessas realidades diversas. Náo há, portanto,
descrigdes de um fenómeno. Ordem náo existe, salvo na mente
uma cultura mais adequada do que outra. Os valores culturais
do observador. Por exemplo, as duas seqiiéncias numéricas se-
sáo sempre relativos ás culturas em que surgem e as culturas,
guintes estáo bem ordenadas: 1,2,3,4,5,6,7,8,9,10 e 5,10,2,9,8,
por sua vez, sáo relativas ás suas histórias. As diferengas cultu-
4,6,7,3,1. A aparente desordem da segunda desaparece quando
rais devem ser respeitadas, náo só porque representam valores
percebemos que os números obedecem estritamente a ordem
humanos, como porque sáo domínios cognitivos válidos.
alfabética dos seus nomes. A realidade, como a beleza, está no
Dada a natureza do nosso domínio cognitivo, podemos sem-
olho do observador. Mas nós náo vemos que náo vemos.
pre alargar ou diminuir esse domínio através das nossas expe-
Se a lógica do mundo colapsa na lógica das descrigóes do
riéncias. Por isso, náo interessa aos tiranos permitir que os
mundo, e se a linguagem constitui a sua própria lógica e mo-
homens olhem criticamente o sistema social em que estáo imer-
dela-as percepcóes e o pensamento de quem a usa, entáo a lógica
sos, já que isso ampliaria os seus limites éticos, podendo trans-
do mundo se encolhe na lógica da linguagem do observador. A
formar súditos dóceis em revolucionários.
questáo do solipsismo náo aborrece, vira pseudoproblema, pois
Os temas despertados naqueles encontros nos empolga-
a condigáo necessária para falar sobre isso é manejar uma lin-
vam, mas o assassinato de Allende e a derrubada do governo
guagem que é sempre um sistema consensual de interagdes, num popular em setembro de 1973 interromperam as nossas dis-
domínio cognitivo dependente do sujeito, o que vem negar o
cussóes com Maturana acerca do realejo secreto das coisas vivas
solipsismo.
e suas decorréncias lógicas. Nessa ocasiáo, Heinz havia deixado
Em geral se aceita que os homens sáo geneticamente equi-
o Chile e, esmagado sob um sentimento de déja vu, após o golpe,
valentes, mas se aceitarmos a nogáo de uma realidade objetiva
tentava levar Maturana para os Estados Unidos, onde lhe reser-
acessível á nossa cognigáo, a diversidade humana náo represen-
vavam as cadeiras de neuro-anatomia e neurofisiologia da visáo,
taria a multiplicidade intrínseca dos domínios cognitivos dos
em Chicago. Mas Humberto Maturana quis ficar em Santiago;
diferentes homens, mas apenas uma diferenga circunstancial no
justificou a sua decisáo afirmando que náo poderia abandonar os
acesso a essa realidade, e as diferengas culturais só refletiriam
seus estudantes chilenos.
modos diferentes de tratar uma mesma realidade objetiva. Os
confrontos culturais seriam sempre lutas entre a verdade e a Cinco anos mais tarde, o acaso determinou que o reencon-
mentira. Á crenga no acesso a uma realidade objetiva, susten- trássemos, no aeroporto de Lima, encurralados numa sala de
tava Maturana, nos leva á intoleráncia. passageiros. Conversamos ás carreiras, mas náo chegamos a
É desconfortável imaginar a cognigáo como um fenómeno concluir se algum dia refaríamos a utopia.
dependente do sujeito porque vivemos num domínio lingúístico

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4. Stéfano Varese

El sol tiene en el árbol


inquietudes de pájaros.
Martin Adán
Desde a guerra contra os chancas, ensina Lumbreras,
Cusco é o centro, o umbigo do mundo. Converte=se em lugar
legendário, adornado por templos que aprisionam a luz em pare-
des revestidas de ouro e prata, palácios suntuosos e imensos
recintos, chamados collcas, cobertos de belos tecidos. Pelas ruas
da capital do império transita a gente elegante da corte, nas
vestes coloridas, tecidas em fina lá e algodáo selecionado. Algu-
mas vezes, em dias de maior esplendor, cobrem-se com mantos
de plumas dos pássaros capturados na selva que prolifera ao
oriente, da montanha aos confins inalcangáveis do reino do Sol.
Alguns senhores se permitem levar em liteiras sobre os
ombros dos súditos, acompanhados por suas mulheres, sua guar-
da pessoal e seus serventes. A água brota por toda parte na
cidade, conduzida por canais bem desenhados e oferecida em
graciosas bicas e tanques talhados em pedra. Os senhores do
império freqiientam banhos especiais, temperados com água
quente natural, tirada das profundezas da terra.
No templo de Qori Kancha, auge do esplendor, encontra-se
um jardim com uma fonte ao centro e estátuas de pássaros, gado,

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pastores, plantas, feitas de ouro e pedras preciosas, todas em curacas — que sáo isentos de impostos — e dos artesáos, que
tamanho natural. O jardim é policromado em combinagóes de pagam tributo somente na forma do seu trabalho especializado.
Ouro e láminas de prata, incrustagóes de turquesas e conchas O segundo princípio da economia imperial é o da redistri-
trazidas da costa distante. Os tecidos, náo tanto o ouro, sáo a buigáo: os produtos sáo reunidos no centro e distribuídos pos-
indicagáo mais segura da riqueza da capital. A fortuna de uma teriormente aos diferentes grupos da populagáo. O imperador
cidade se traduz na sua provisáo de pegas de lá de alpaca, lhama e sua burocracia estatal sáo os privilegiados na troca, mas náo
ou vicunha e de algodáo. O imperador, chamado Ele, o Inca, existe a pobreza, tal como a toleramos no mundo civilizado. Ne-
mostra o seu reconhecimento aos súditos concedendo-lhes obsé- nhum povo é conquistado para ser empobrecido. Ao conquis-
quios em vestidos e tecidos; aos mais estimados entrega também tar uma nova regiáo, o império programa a sua produgáo e a
doces mulheres do reino. sua forga de trabalho; se é pobre, leva homens de outros lu-
Anualmente, o Inca reúne as jovens de todas as regióes gares, e se sobra populagáo, os incas a redistribuem. Toda re-
do império e destina as selecionadas a lugares chamados Aglla gio conquistada é bem analisada e as terras de cultivo divi-
Wasi, casa das escolhidas, onde passam a tecer e preparar co- didas em trés partes: uma para o Inca, outra para o Sol e outra
midas e bebidas para a corte. Desse grupo feminino, o impera- para a populagáo local. Os bens circulam através de trocas e
dor escolhe as suas esposas e as dos súditos. Algumas sáo man- tributos — o milho e a chicha, seu licor fermentado, ambos
tidas em estado de virgindade e encaminhadas ao culto solar. alimentos nobres oferecidos aos deuses durante as cerimónias
Mas a vida pomposa da corte náo se apóia somente no trabalho religiosas, centenas de tipos de batata e o chuño, a batata seca
dessas jovens e suas mestras; toda a populacáo paga tributo co- ao ser exposta ao Sol e ao frio lunar do altiplano, a quínua, as
letivo em forma de trabalho, para o palácio. O coletivismo da lhamas. Ao exercer o controle da redistribuigio dos produtos
sociedade incaica comega nos ayllus, comunidades rurais li- entre os celeiros da capital e as comunidades, e ao respeitar as
mitadas por vínculos primitivos de parentesco entre seus mem- particularidades políticas das regióes, o Inca assegura um cer-
bros; reunidos em tribos e unidades maiores, os ayllus incor- to equilíbrio entre os poderes locais e a centralizacáo estatal.
Seu estilo de conquista consiste em manter o povo explorado
poram suas tradigóes e suas dinastias na organizagáo política
como anteriormente e privilegiar os chefes locais na sua nova
do incanato.
condigáo de burocratas coloniais do Tahuantinsuyu, o império
Após a unificagio do império, alcangada mediante sutis
dos quatro quadrantes.
chantagens diplomáticas ou mesmo na franqueza das armas, Os
O Estado se beneficia do trabalho obrigatório de todo o
incas estabeleceram um princípio de reciprocidade: concedem
povo: os jovens sáo levados á aventura militar e as jovens re-
aos camponeses o direito de usarem a terra e recebem, na forma crutadas para as Aqlla Wasi; devem também trabalhar na cons-
de tributos, o trabalho coletivo na terra do imperador e na dos trugáo das gigantescas obras estatais — estradas, pontes, aque-
curacas ou chefes locais. Nessas terras, os representantes das dutos, palácios, fortalezas e templos. Em troca, o Inca lhes dá
comunidades cultivam o solo ao ritmo de cantos e dangas de protecáo física e espiritual. A estrutura social e económica do
caráter religioso. Outras formas de tributo sáo as mitas ou ser- império coincide, de certo modo, com a que fenece em terras
vigos pessoais e regulares no exército e nas grandes obras, du- distantes do centro do mundo, entre os povos bárbaros e im-
rante períodos limitados, e o pagamento em produtos téxteis piedosos da Europa.
feitos principalmente pelas mulheres. Todos os homens das co- A sociedade, como é certo, repete a ordem do universo.
munidades, entre 25 e 50 anos, sáo tributários, com excegáo dos Nos céus, o Sol protetor, fonte de vida e deus primordial; no

104 105
centro do mundo, o Inca, senhor de todos os homens, centro anos de Huayna Capac, o 11.” Inca, sáo transtornados por tre-
do império e pessoa sagrada. O povo trabalha, canta, reza e mores de terra, acompanhados de maremotos de grande ampli-
danca sob a protegáo infalível do Inca, filho do Sol, e de Vi- tude ao longo da costa. O palácio do Inca é atingido por um raio
racocha, deus supremo, senhor da terra, da água e da costa. e no ar véem-se cometas de aspecto pavoroso. Durante a festa
O universo, o tempo e a história, é sabido, cumprem ciclos de Capac Inti Raymi, em louvor ao Sol, viu-se um condor, o
harmoniosos: o Sol mora na sua casa meridional durante o mensageiro do Sol, perseguido e abatido por falcóes no meio
solstício de veráo e aí repousa trés dias; daí viaja para sua sede da grande praga de Cusco. Observa-se também um sinal de ine-
setentrional onde reside durante o solstício de inverno, lar em gável malefício: numa noite muito clara, a Lua aparece rodeada
que também repousa trés dias, para logo recomegar o ciclo. Nosso por um halo triplo — o primeiro cor de sangue, o segundo de
tempo, comenta Wachtel, no seu amargo A Visáo dos Vencidos, um negro verdoso, e o terceiro enfumacado. O presságio é cor-
foi precedido por quatro idades. A primeira é a dos homens retamente interpretado por um adivinho: o sangue anuncia a
de Viracocha e terminou com guerras e pestes. A segunda ida- proximidade de uma guerra cruel que desgarrará os descen-
de correspondeu aos homens sagrados e findou ao arder com a dentes do Inca, o negro significa a ruína da religiáo e do impé-
detengáo do Sol. A terceira idade era a dos homens selvagens río, e tudo se dissipará em fumo. De fato, o oitavo Inca havia
e foi afogada no dilúvio. A quarta idade, a dos guerreiros, aca- predito que no reinado do décimo segundo, o império seria
bou na decadéncia. Ao renascer mais uma vez o mundo, os in- apoderado por desconhecidos e destruído. Em honra ao deus
cas vieram regenerar os homens e inaugurar a quinta idade; Viracocha, criador e civilizador da humanidade, mandou cons-
o império vem coroar a sucessáo de quatro humanidades fra- truir um templo de espagos labirínticos, composto de doze cor-
cassadas. redores e um altar central.
O passado se junta ao presente nos cultos rendidos aos Longe, ao norte, muito além do Chinchay Suyu, os bru-
mortos durante o més aya marcay quilla, correspondente a no- xos de Texcoco também anunciam que o mundo será em bre-
vembro. A populagáo tira os defuntos das suas sepulturas para ve subjugado por desconhecidos. Durante os dez anos prece-
trazé-los outra vez ao mundo, presenteá-los com alimentos e dentes á chegada dos estrangeiros, ocorrem numerosos prodí-
bebidas e adorná-los com ricas prendas e plumas; em segui- gios funestos no mundo asteca: durante um ano inteiro, cada
da, para o regozijo dos mortos, todos dancam ao seu redor. Ao noite é assombrada por uma língua de fogo que aparece no
terminar o reencontro, os mortos — vivos durante as festas — oriente e se eleva aos céus; o templo de Huitzilopochtli arde
sáo levados em séquito pelas ruas da cidade, de casa em casa. de modo misterioso, sem causa aparente; o templo de Xiuh-
para logo finalizar o alegre dia na volta aos seus sepulcros, com tecuhtli é varado por um raio, desacompanhado de trováo, du-
novas oferendas. O tránsito entre o passado e o presente, nos rante uma chuva ligeira; os dias sáo alvoragados pela passa-
dois sentidos, náo está impedido. gem de cometas que cruzam os céus dirigindo-se ao oriente; uma
O mundo é coerente e pertence ao povo do incanato: aos tempestade agita as águas do lago do México, destruindo a me-
homens, filhos de Camac Pacha, o senhor Terra, netos de Vé- tade das casas da cidade. Nascem monstros, corpos de duas
nus, a estrela matutina e seu avó, todos descendentes do Sol; cabegas unidas a um só corpo e que desaparecem ao serem
e ás mulheres, filhas de Mama Cocha, a máe Oceano, netas de levados ao palácio da sala negra do grande Montezuma. O pro-
Vénus, a estrela vespertina e sua avó, todas descendentes da dígio mais espantoso é um estranho pássaro cinzento, capturado
Lua. Viracocha é o princípio de tudo. Porém, maus presságios, sobre o lago, e que, de maneira assombrosa, reflete estrelas e
prodígios e profecias anunciam o fim dos tempos. Os últimos cenas de guerra.

106 107
Na península também se anuncia a desordem do mundo morro, O fende e quebra e se dá contra uma árvore, a destroca
ao final dos treze conjuntos de vinte anos solares. Os maias em cavacos, como se fosse um fenómeno admirável, como se
difundem profecias que revelam o fim do inexorável curso do alguém a tivesse soprado do interior”.
tempo. Mas os povos cultos do continente náo ignoram o epi- Ao ouvir essas palavras medonhas, Montezuma se abate
sódio do Deus civilizador que, depois de reinar com justiga com angústia, o coragáo encolhido, cheio de grande temor. Para
e sabedoria, desapareceu misteriosamente, prometendo retornar. inspirar benevoléncia aos deuses, o imperador asteca envia ou-
Viracocha desapareceu andando sobre as águas do mar ociden- tro tipo de oferendas: frutos, ovos, aves e tortas. Sem conhecer
tal. No México, sabe-se que Quetzalcoatl partiu na diregáo do exatamente os propósitos divinos — quem sabe querem alimen-
oriente, podendo-se esperar o seu regresso ao fim de um ano tar-se com sangue? — manda matar outros dois prisioneiros
ce-acatl (52 anos). Os deuses háo de voltar. e salpicar os alimentos com seu sangue. Mas, para sua surpre-
Os astecas vivem exatamente o seu ano ce-acatl quando sa, os deuses repudiam a oferenda. Manda bruxos, encarrega-
um habitante da costa oriental do reino informa a Montezu- dos de afugentar os deuses, mas os esforgos sáo inúteis: os bru-
ma que viu navegar no meio do mar uma serra Ou montanha, xos regressam afirmando que “frente aos desconhecidos eles
dirigindo-se de um lado para outro, sem nunca chegar á praia. sáo como uns nadas”. Montezuma faz a última tentativa jun-
O imperador manda verificar a notícia que logo é confirmada: to aos feiticeiros, mas essa providencia também fracassa quan-
de fato, as montanhas singram as águas mexicanas e sobre elas do os feiticeiros se deparam com Tezcatlipoca sob a forma de
véem-se seres brancos com aparéncia humana. Montezuma des- um bébado que executa prodígios e prediz a ruína do México.
pacha embaixadores carregados de oferendas divinas: as jóias Montezuma abaixa a cabega e já náo fala mais. Fica assim
de Quetzacoatl. Os embaixadores cobrem o chefe dos estrangei- muito tempo, cabisbaixo e murmura: “Que remédio, meus for-
ros com os adornos do deus: máscara de turquesas, colar com tes?” Há terror, discórdias, gritos, espanto e choro nas terras
disco de ouro, espelho dorsal, braceletes de jade, escudo de mexicanas.
nacar, ouro e plumas de quetzal. Em resposta a esses obsé- Finalmente, Montezuma decide receber os desconhecidos
quios, o chefe bárbaro manda prender os embaixadores, dispara como se fossem deuses, vai ao seu encontro e lhes oferece cola-
o canháo e logo os liberta, ainda mal refeitos do terror. Ao res de flores e de ouro como sinal de hospitalidade. Frente ao
voltarem, Montezuma manda purificá-los com o sangue de dois chefe estrangeiro, pronuncia o discurso em que entrega ao eu-
prisioneiros — pois haviam conversado com os deuses — € ropeu o trono do México e suas casas reais. Dá-se a pilhagem;
|'
1] escuta o terrível relato. Os embaixadores contam que os cor- em gesto pouco comum entre os deuses, os homens de Cortés
pos dos desconhecidos ““sáo completamente cobertos e só as levantam o ouro “como se fossem macacos, como se tivessem
caras aparecem. Sáo brancas como se fossem de cal. Tém os o coragáo renovado e iluminado”. Passam logo a saquear o te-
cabelos amarelos ou negros e suas barbas sáo longas e também souro de Montezuma e fundem o ouro para reparti-lo em lin-
amarelas. Vém montados em seus-veados que sáo altos como gotes; durante a festa de Toaxcatl, promovem a depredagáo
os tetos e acompanhados de cachorros enormes, de orelhas e o massacre do templo. Segue-se a guerra e a morte pegajosa
amassadas, grandes línguas pendentes e olhos intensamente ama- da enfermidade dos gráos.
relos, capazes de derramar fogo. Quando produzem o trováo, Entre os maias de Yucatán, a divindade do invasor inspira
uma espécie de bola de pedra sai das entranhas das suas coisas menos convicgáo, pois já haviam recolhido náufragos espanhóis
e chove fogo e chispas e o fumo que daí sai é pestilento, pene- de expedigóes anteriores. Ao sul, o império inca está dividido
tra até o cérebro, causando mal estar; ao chocar-se contra um pela guerra civil, quando uns 260 homens armados, semelhan-

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tes aos que destruíram o império asteca, desembarcam nas suas Lua adoece, o tempo se reduz a um piscar de olhos, morre o
costas desertas. Os dois filhos de Huayna Capac, o bastardo coragáo das flores. Tudo desaparece, padecendo.
Atahualpa e o herdeiro legítimo do trono, Huascar, disputam Depois da morte de Atahualpa, sua cabega é cortada, le-
o. império. Após o desembarque, os invasores internam-se na vada a Cusco e enterrada. Mas os espanhóis náo sabem que
serra até Cajamarca onde encontram Atahualpa que acaba de debaixo da terra a cabega cresce e vai surgindo um corpo. Quan-
capturar Huascar e parte dos exércitos legítimos. Os partidá- do esse corpo estiver completamente restaurado, o Inca sairá
rios de Huascar véem nos desconhecidos a salvagáo e formam da terra, os invasores seráo expulsos e o antigo império re-
aliancas para restabelecer a ordem legítima. Preso, Atahualpa viverá.
é exortado para que abrace a fé cristá mas responde, com cién- As ribeiras dos rios da selva peruana sáo densamente po-
cia e verdadeira fé, que o único deus a adorar é o Sol. Olha voadas por sociedades nativas dedicadas ao cultivo dos solos
a Bíblia, tenta escutar o que diz e, sem obter resultado, atira aluviais, á pesca e á caga dos mamíferos que vivem ao longo
o livro ao cháo. Atahualpa é assassinado e comega a guerra dos cursos d'água. Nas margens do Apurimac, Ene, Perené,
da conquista que desassossega o país durante quarenta anos. Tambo e Alto Ucayali, vivem os campas, um dos grupos indí-
Espadas de ago contra langas guarnecidas de obsidiana, genas mais numerosos da selva alta peruana. As vertentes da
armaduras metálicas contra túnicas forradas de algodáo, arca- cordilheira retardam a chegada do invasor europeu: os cam-
buzes contra arcos e flechas, cavalos contra soldados a pé. Os pas náo sabem que os deuses do Tawantinsuyu foram mortos.
nobres guerreiros do incanato náo eliminam o adversário du- O território campa se estende por mais de 100.000 km, li-
rante o combate; trata-se de capturá-lo vivo para depois, so- mitando-se com o de outros grupos da selva — machinguenga,
mente na ocasiáo propícia, sacrificá-lo aos deuses. Os brancos piro, cunibo, cashibo e amuesha. Como a maioria das popula-
combatem de forma escandalosa, liquidam o adversário no c0es tribais do bosque tropical americano, os campas praticam
combate. O invasor triunfa. Sessenta anos após a chegada dos a agricultura de roca, integrando o seu cultivo á selva, genera-
bárbaros europeus, a populagáo peruana e mexicana está redu- lizando a plantacáo, utilizando o habitat natural sem modificar
zida a um décimo da que encontraram ao chegar. a diversidade das plantas preexistentes. Introduzem as plantas
A terra e a riqueza do império sáo repartidas entre os in- de seu interesse nos nichos das comunidades bióticas naturais:
vasores; o ouro dos templos e as mulheres dos Aqlla Wasi sáo agricultura mimética, aplicacáo racional de um conhecimen-
profanadas. Os bárbaros promovem a prostituigáo, ofício prós- to refinado acerca dos ciclos biológicos e sazonais, ciéncia. Os
pero na Europa e ainda desconhecido entre os nativos; iniciam campas classificam, por exemplo, mais de 70 variedades de
a prática da mendicáncia e do roubo. O mundo é assassinado. ivenki, a planta mágica e medicinal que para a botánica aca-
“Os estrangeiros vieram castrar o Sol!”. Wachtel cita a can- démica corresponde a uma só, o Cyperus piripiri. Ao imitar
tiga nahuatl: o bosque original, os campas demonstram um controle com-
pleto do precário equilíbrio da selva: uma camada delgada de
Deixai-nos morrer solo fértil, ameagada constantemente pela erosáo, mas capaz
deixai-nos perecer de sustentar abundante vida vegetal e animal, através de ci-
pois os nossos deuses já morreram. clos velozes em que a matéria prolifera, decai e se transforma
sem cessar.
Mas a terra se nega a devorar o cadáver do Inca, os abis- A sociedade campa vive de forma náo-nucleada, dispersa;
mos e as rochas entoam cangóes fúnebres, o Sol se apaga, a a unidade de residéncia mais permanente e auto-suficiente é

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a família nuclear e, em alguns casos, a família extensa polígi- membros do parentesco, procurando-se achar vínculos e afas-
na. Cada família nuclear ou extensa tem as suas moradias no tar suspeitas. Por fim, inicia-se a troca de presentes. Se o hós-
centro de um terreiro situado na parte central dos cultivos. Ao pede pede pousada, dormirá na káapa e se com ele viajam a
redor dos cultivos, a selva lhes dá protegáo e traz um rio ao esposa e os filhos, as mulheres dormiráo na intómoe e os ho-
seu alcance. A partir do terreiro, diversas trilhas, perceptíveis mens na káapa. Essa hospitalidade, que pode durar semanas,
somente para os campas, ligam as moradas com o rio e com será retribuída no futuro, e constitui a base de uma circulacáo
várias partes da selva: locais de caga e de pesca, rotas com- permanente de bens e de idéias, de cultura, garantindo a essa
plicadas que conectam a família com os vizinhos e outras fa- sociedade aparentemente dispersa sua coesáo e auto-identifica-
gáo étnica.
mílias campas mais distantes, caminhos que duram semanas
para serem palmilhados, e de uso exclusivo do xamá. No mundo campa, os homens sáo o movimento — cagado-
res, viajantes, comerciantes, guerreiros e candidatos a esposos;
A residéncia de uma família campa tem sempre dois ti-
com eles circulam os objetos e as notícias. As mulheres sáo a
pos de casas: a intómoe e a káapa. A káapa é a casa dos sol-
parte estável da sociedade encarregadas do cultivo, ligadas á
teiros, dos hóspedes, casa masculina; a intómoe é a casa fe-
terra, á intómoe e ás criangas; sáo depositárias da cultura em
minina, casa onde vive a família nuclear, onde se cozinha e
seus aspectos estáveis, transferem os elementos culturais de
se dorme. O homem vive nos dois tipos de casa ao longo da
uma geracáo a outra.
sua vida — o menino campa vive na intómoe até a puberdade,
quando recebe o cordáo sexual que levará sob a túnica. A partir Entre os campas, é sabido que o atzíri, o ser humano, se
desse momento, passa a residir na káapa, de onde sairá em encontra no meio de um cosmos ordenado verticalmente e cujos
viagens de caga e de comércio. Abandonar a intómoe é ex- extremos sáo o mundo uránico superior e o mundo subterráneo.
periéncia traumática de valor sagrado, drama arquetípico, nor- Mas o homem náo tem sua sorte definida pelo confronto entre
ma codificada no mito de Tzía, o pássaro que em tempos pri- o bem superior e o mal inferior; o ser humano é transeunte se-
mordiais cometeu incesto violando a própria máe, sendo depois guro para outras zonas cósmicas, independentemente do seu
morto pelo pai. comportamento moral. A morte abre novos caminhos, mas há
As káapa também abrigam os futuros maridos das filhas e outras mortes na vida de um campa que permitem subir ou bai-
os viajantes campas que chegam para fazer comércio. Se o vi- xar aos mesmos espacos sagrados. O sono, a visáo, o mito vivi-
sitante náo é um nosháninka, se náo pertence ao grupo fami- do, os caminhos iniciáticos podem dar lugar a contatos com
liar, deve conduzir-se com extrema prudéncia e observar as nor- esses mundos do além. No mesmo espago terrenal em que se
mas rituais. De início, anunciar a sua presenga ao longe com vive — a selva, as pequenas lagoas, as rochas, as grutas, Os
gritos especiais que seguem normas muito precisas. Náo é cor- grandes espagos abertos, sáo portas de acesso a esses mundos
dial (e pode resultar desastroso) surpreender os habitantes. escondidos. Os mortos ainda náo resignados á sua atual con-
Uma' vez no terreiro, o recém-chegado deverá aproximar-se da digáo de cidadáos de um outro mundo aparecem aos vivos em
káapa e, de costas, esperar, ás vezes por mais de uma hora, que busca de antigos lagos de parentesco ou amizade. A visáo da
o chefe da família o convide a entrar. Recebido em casa, sen- parte corpórea de um morto, a Peyári, parte condenada a va-
tados um frente ao outro, a mulher trará a mandioca cozinha- gar eternamente pela terra, separada da sua esséncia espiritual
da ou em estado de piárintzi ou masato, a bebida fermentada que tem entrada nos mundos superiores e inferiores, provoca
que dá início a longas conversas rituais num tom de voz espe- traumas místicos que podem levar á morte. Somente o shiripiá-
cial e de temática reiterativa. Informa-se o lugar de origem, os ri, o xamá, pode salvar alguém desse infortúnio; o shiripiári,

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conhecedor de todas as esferas cósmicas, viajante sabedor ravolta, representante de forgas negativas contra as quais é
dos elementos universais, é o único capaz de restabelecer a or- lícito lutar. Os brancos só sabem viver no tempo profano, tem-
dem momentaneamente perdida. po sem significado religioso. Os campas conhecem o tempo
Os europeus custaram a perceber o mundo espiritual cam- sagrado reversível que os transporta ao tempo mítico pri-
pa, tal a sutileza dos seus ritos de transigáo, ritos funerários, mordial e ao tempo futuro messiánico.
ritos de adivinhagáo e da exorcismo, chegando ao ponto de A ordem antiga e divina foi profanada e destruída pelos
negar abertamente a existéncia de qualquer via espiritual entre brancos, os campas decaíram. Entre eles e deus, que sempre es-
eles. A vida da sociedade campa é permeada de sacralidade in- teve distante, há agora um obstáculo intransponível: o conhe-
tensa. Á natureza náo é exclusivamente natural, pois o cos- cimento se desfez, os campas já náo sabem; antes, eles sabiam.
mos é uma criacáo divina, encharcado de sacralidade e tudo O contato com o sagrado, com a divindade, as viagens arrisca-
o que se encontra no mundo participa do mistério que se infil- das por terras misteriosas, sáo parte de uma existéncia perdida.
tra até nos simples gestos diários, obrigando o homem a har- Como restaurar o primordial? Como viver segundo o princfí-
monizar-se com as poténcias do universo, a fim de conservar pio, no tempo sem tempo já profanado pelos brancos? O ve-
sua integridade física e espiritual. O comércio é sagrado: na lho xamá das colinas de Chenkári confia nos jaguares do mun-
oferenda está implícita uma forga mística, fluido que une os do subterráneo, que sáo os antigos xamás mortos, para lutar
homens e revitaliza o grupo numa comunháo. Os homens bran- contra os colonos. Nada é capaz de enfrentar a forga dos ja-
cos e os andinos estáo excluídos do comércio campa. Quem guares, nem mesmo as trés doengas que vieram matar os campas.
recebe algo, adquire parte da esséncia do doador e se obriga, Mas o mundo está transtornado. Todo campa sabe que os
pelo menos, a dar um regalo equivalente em troca. “Quem machados, as armas e os instrumentos de metal que hoje che-
está em relagáo de comércio sagrado comigo sabe como saudar, gam por meio dos brancos e da populagáo andina sáo envia-
receber minha comida e meus dons, vem de longe trazendo tú- dos por deus para que os campas possam preparar seus culti-
nicas, achote, a pintura sagrada que defende dos inimigos vi- vos de mandioca e cagar com mais facilidade. Mas os colo-
síveis e invisíveis, vasos feitos com o barro dos rios Perené e nos mentem, dizem que os presentes náo procedem de deus e
Tambo, e o sal precioso.” querem que os campas paguem por eles, o que náo é verdadei-
A vocagáo ou chamada xamánica é a intuigáo desconcer- ro. Os brancos dessacralizam o comércio.
tante da profundidade do mundo, é ponto de partida para a Para os homens brancos, o mundo é um objeto que se
esfera do exemplar, visáo do tempo primordial em que tudo encontra A máo; a selva, os animais, o vento, os rios, as pedras,
estava contido, era mítica santificada pela presenga divina, qua- sáo objetos sem dimensáo transcendente, estáo aí para serem
litativamente diversa do tempo profano e irreversível de todos usados ou simplesmente vencidos. A civilizagáo ocidental se-
os dias. O xamá sabe que os brancos sáo a treva que deve culariza a natureza, o trabalho e os seus produtos. Já náo há
ser vencida em luta heróica; sáo o caos do final de cada ci- transcendéncia. Para o campa, todo objeto ou gesto tem um
clo cósmico. Mas o universo foi criadoe destruído várias ve- lugar no universo e atuar sobre ele altera a ordem cósmica.
zes e, quando o mundo apodrece, a divindade cansada e bené- O mundo náo se dá, é encontrado pelo campa, é mundo cele-
fica propicia uma dissolugáo e a ordem cósmica se inverte: o brado.
mundo de baixo, consumido e profanado, revira e passa para O longo processo de invasáo territorial iniciado pelos es-
cima, e o de cima, novo e sagrado, desaba e nova humanidade panhóis há quatro séculos e continuado nos dias de hoje pela
renasce. O homem branco é o sinal funesto de uma nova revi- sociedade peruana acuou e marginalizou os campas. As melho-

114 115
res terras aluviais, de fertilidade renovada anualmente pelas Stéfano, no dizer de Darcy Ribeiro, é um dos melhores
crescentes dos rios, foram ocupadas. Os campas se rebelaram antropólogos contemporáneos. Admirei a sua luta contra a cons-
mas terminaram se retirando para as partes mais altas da mon- ciéncia adulterada da maioria dos seus contemporáneos que
tanha, sofrendo a deterioragáo de suas relacóes com a selva. véem a selva como uma espécie de colónia doméstica ou terceiro
Encomiendas, obrajes, missúes, fazendas, exploragóes da bor- mundo interno, e contra a incapacidade da sociedade peruana
racha e da madeira, ocupacáo por camponeses andinos sem para compreender e adotar as milenárias experiéncias de adap-
terra, sáo diferentes faces do colonialismo de quintal de uma tacáo ecológica das minorias étnicas da Amazónia. Stéfano luta
economia mercantil-capitalista. O monocultivo dos missioná- por repensar e reinventar a relagáo entre a sua sociedade e a
rios, fazendeiros ou colonos acelera o desgaste dos recursos na- selva. Mas para a sua tristeza, a colonizagáo brutal se repete:
turais do bosque e do solo. Para o invasor, a mata náo é vista genocídio sob o pretexto de combater guerrilhas ou de permi-
como um aliado, mas como um obstáculo que deve ser ven- tir a International Petroleum Company ampliar a fronteira da
cido; trata-se de substituir o bosque pelo produto de turno que civilizagáo e do petróleo, enquanto os ministros, senadores e
o mercado nacional dependente solicita: a cana-de-agúcar da deputados competem em corrupcáo e idiotice; surtos de explo-
colónia, depois o café, o arroz, as frutas se alternam no papel ragáo económica acompanhados da opressáo dos nativos, cap-
de destruidores do delicado equilíbrio do bosque tropical. O tura de máo-de-obra escrava, lavagem cerebral aos cuidados do
resultado é imediato: de um lado, o lucro monetário de curto Instituto Lingiíístico de Veráo. A essa ocupagáo desordenada
prazo, de outro, o desaparecimento da mata, o surgimento de e cruel, Stéfano contrapóe a idéia dos projetos étnicos, em ar-
espagos estéreis, a destruigáo da fauna, a perturbacáo do equi- ticulagáo com a proposta dos projetos nacionais de Oscar Var-
líbrio ambiental. O ecocídio e o etnocídio compóem o custo savsky. Stéfano estende a idéia de projetos nacionais á dimen-
náo contabilizado do progresso ao longo dessas fronteiras. sáo étnica, entendendo por isso a reconstrugáo e organizagáo in-
A agonia dura há quatro séculos. Os espanhóis penetraram tencional de um projeto histórico global de uma etnia incluída
na selva logo depois da ocupagáo da costa e da serra, através no estado-nagáo etnicamente diferente e majoritário. Se uma etnia
dos mesmos passos que serviam para a comunicagáo do império já organizou o seu próprio estado nacional autónomo, seu projeto
incaico com a selva oriental; através de Jauja e de Huánuco che- histórico será um projeto nacional; porém, diz Stéfano, no seio
gam ao Amazonas trés anos antes da expedigáo de Orellana. de uma sociedade nacional multiétnica, os projetos étnicos se-
Procuram o El Dorado ou simplesmente o reino de Deus. Os ráo alternos e complementares do projeto nacional global; al-
próprios incas se refugiam em Vilcabamba e daí se confundem ternos por gozarem de uma autonomia suficiente para se cons-
com a selva. O campa já náo é senhor do seu universo. tituírem em programas históricos independentes, e complemen-
Do arcaico horizonte Chavin á emancipacáo bolivariana, tares enquanto solidários com o resto da coletividade nacional
dos albores do império incaico á chegada da Peruvian Corpora- e seu projeto integral.
tion e do Instituto Língiiístico de Veráo na selva: amazónica, Stéfano ressalta algo de importáncia crucial para a an-
o que apenas esbocei neste capítulo, este é o mundo de Sté- tropologia latino-americana comprometida com a construgáo de
fano Varese, é a matéria dos seus sonhos e pesadelos, é a sei- um futuro em que exista espago para a multietnicidade e para
va do seu pensamento utópico ou da verdade prematura que a participacáo económica, cultural, social, política e lingiística
norteia a sua visáo revolucionária. Sobre o universo dos cam- de toda a populagáo. O futuro sonhado por Stéfano é um fu-
pas, ele escreveu o belíssimo La Sal de los Cerros, de onde ti- turo socialista autogestionário no qual cada grupo social e
rei esses fatos. cada etnia possa contribuir e participar com autonomia e so-

116 117
lidariedade. Stéfano propóe aplicar a metodologia de Oscar a nistragáo pública. Significa garantir a cada etnia o uso dos
uma etnia, tomando-a como unidade inteligível; para o caso das meios de difusáo no seu próprio idioma, fomentar a atividade
etnias indígenas localizadas no contexto latino-americano, su- intelectual, universitária, editorial etc., na língua étnica.
gere partir da premissa de que sáo projetos históricos inter- Stéfano acentua o fato de que uma etnia — e a etnicidade
rompidos, detidos e frustrados mas, na grande maioria dos ca- — é um fenómeno histórico de longa duragáo que, na maioria


sos, ainda náo liquidados. dos casos, remonta a uma época anterior á formagáo das classes
Driblando a antropologia funcionalista e culturalista an- e que, nos casos concretos dos socialismos históricos, sobreviveu
glo-saxá e norte-americana, Stéfano se serve de categorias his- á revolucáo e convive ativamente com ela. Como se fez constar
tóricas para explicar os fenómenos sociais que a análise fun- da Segunda Declaragáo do Grupo de Barbados, em 1974, a et-
cional náo entende: rebelióes camponesas e nativas, movimen- nia é prévia ás classes e posterior a elas. Stéfano acrescenta
tos messiánicos, revolucóes ideológicas radicais, formas varia- que os fenómenos da etnicidade estáo muito mais vinculados A
das de vontade política e histórica de um povo sobre o seu dimensáo lingiiística do que á dimensáo sócio-económica. Daí
próprio destino. Quem poderia presumir, na antiguidade eu- sua assombrosa capacidade de sobrevivéncia; daí a presenca
ropéia, que os vascos e os celtas pudessem um dia reclamar os histórica dos zapotecos, dos quechuas, dos maias, dos campas
seus direitos étnicos e a sua autonomia política, depois de sé- e dos aymaras. Daí o enigma da América Latina, confluéncia de
culos de letargia histórica, comenta Stéfano. lutas, feixe de variantes impedidas, encruzilhada planetária.
Através do critério histórico, sugere, podemos também de- Stéfano, que bicho sairá dessa crisálida?
limitar espacialmente a etnia, levando em conta suas divisóes
lingúísticas sincrónicas, o grau e a antiguidade da diversificagáo
e as possibilidades de unificagáo das línguas. Para ele, a lín-
gua é importante náo só como índice sintético da etnicidade,
como também porque tem papel estratégico nas lutas pela so-
brevivéncia e pelo futuro étnico. Por isso, acrescenta, os esta-
dos autoritários ditam políticas repressivas sobre o uso das
línguas locais. As políticas totalitárias sempre buscaram domi-
nar as línguas e a linguagem, pois pressentem que uma deter-
minada sociedade ou etnia tem na sua língua náo apenas uma
forma de perceber o mundo, como também uma maneira de
sonhar com o futuro, de realizar projetos sobre o seu porve-
nir, a partir de uma percepgáo da sua própria identidade. Toda
discriminagáo contra um idioma, diz Stéfano, é uma agressáo
política contra a possibilidade de um povo realizar-se. Respei-
tar os direitos lingiísticos e cuturais de uma etnia, explica, sig-
nifica promulgar e fazer cumprir uma legislagáo que permita
a cada etnia usufruir em seu próprio território, ou no seu es-
paco social, do uso da língua materna, na escola, nas relagóes
dos cidadáos com as autoridades, com os tribunais, na admi-

118 119
Os encontros na América ocorreram em dias de sol, mas
a morte e as sombras sinistras das ditaduras impediriam que du-
rassem mais. Serviram, no entanto, para provar que na Améri-
ca Latina a solidariedade, a participagáo e a criatividade bro-
tam em condicóes políticas e culturais favoráveis. A intengáo do
autor é a de incitar a redescoberta da América; ao escrever este
livro quis cumprir o papel atribuído por Alejo Carpentier aos
escritores latino-americanos: o de Cronistas das Indias dos
nossos dias, dedicados a relatar a descoberta de novos mundos.

121
Los documentos que integran la Biblioteca PLACTED fueron reunidos por la ​Cátedra Libre
Ciencia, Política y Sociedad ​(CPS). Contribuciones a un Pensamiento Latinoamericano​, que
depende de la Universidad Nacional de La Plata. Algunos ya se encontraban disponibles en la
web y otros fueron adquiridos y digitalizados especialmente para ser incluidos aquí.

Mediante esta iniciativa ofrecemos al público de forma abierta y gratuita obras


representativas de autores/as del ​Pensamiento Latinoamericano en Ciencia, Tecnología,
Desarrollo y Dependencia (PLACTED) con la intención de que sean utilizadas tanto en la
investigación histórica, como en el análisis teórico-metodológico y en los debates sobre políticas
científicas y tecnológicas. Creemos fundamental la recuperación no solo de la dimensión
conceptual de estos/as autores/as, sino también su posicionamiento ético-político y su
compromiso con proyectos que hicieran posible utilizar las capacidades CyT en la resolución de
las necesidades y problemas de nuestros países.

PLACTED ​abarca la obra de autores/as que abordaron las relaciones entre ciencia,
tecnología, desarrollo y dependencia en América Latina entre las décadas de 1960 y 1980. La
Biblioteca PLACTED por lo tanto busca particularmente poner a disposición la bibliografía de este
período fundacional para los estudios sobre CyT en nuestra región, y también recoge la obra
posterior de algunos de los exponentes más destacados del PLACTED, así como investigaciones
contemporáneas sobre esta corriente de ideas, sobre alguno/a de sus integrantes o que utilizan
explícitamente instrumentos analíticos elaborados por estos.

Derechos y permisos

En la Cátedra CPS creemos fervientemente en la necesidad de liberar la comunicación


científica de las barreras que se le han impuesto en las últimas décadas producto del avance de
diferentes formas de privatización del conocimiento.

Frente a la imposibilidad de consultar personalmente a cada uno/a de los/as autores/as,


sus herederos/as o los/as editores/as de las obras aquí compartidas, pero con el convencimiento
de que esta iniciativa abierta y sin fines de lucro sería del agrado de los/as pensadores/as del
PLACTED, ​requerimos hacer un uso justo y respetuoso de las obras, reconociendo y
citando adecuadamente los textos cada vez que se utilicen, así como no realizar obras
derivadas a partir de ellos y evitar su comercialización.

A fin de ampliar su alcance y difusión, la Biblioteca PLACTED se suma en 2021 al


repositorio ESOCITE, con quien compartimos el objetivo de "recopilar y garantizar el acceso
abierto a la producción académica iberoamericana en el campo de los estudios sociales de la
ciencia y la tecnología".

Ante cualquier consulta en relación con los textos aportados, por favor contactar a la
cátedra CPS por mail: ​catedra.cienciaypolitica@presi.unlp.edu.ar

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