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FAJE – Departamento de Teologia


Disciplina: Escritos Joaninos – 2020/1º
Professor: Johan Konings
Aluno: Edmilton de Almeida Lima
Data: 15 de Maio de 2020
Exegese de João 8,32

1. Prévio

Meu interesse pelo texto escolhido se dá pela pertinência de aprofundar as expressões


“verdade” e “liberdade”. Aprofundar tais expressões gera a missão de proporcionar ao meio
pastoral, que atuo, um diálogo sobre o conhecimento da verdade e perceber na vida dos
agentes pastorais uma busca de liberdade em superar certos determinismos enraizados na
maneira de experimentar a fé e de olhar a vida, com suas demandas e desafios. É partindo do
concreto da vida que se pode refletir acerca da verdade da experiência com Jesus Cristo vivo e
ressuscitado na vida da Igreja, onde sua missão deve ser alicerçada em suas raízes mais
profundas. A experiência batismal exige uma busca gradativa do amadurecimento do evento
morte e ressurreição de Jesus Cristo, que capacite um testemunho mais eficaz dos cristãos,
para serem sal e luz no mundo hodierno.

2. Texto escolhido:
v. 32: “... e conhecereis a verdade, e a verdade vos tornará livres”.

3. Verificação do texto e da tradução

Na Bíblia de Estudos Palavras-Chave Hebraico e Grego o trecho em estudo aparece da


seguinte forma: “e conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará.” Apresentamos os
verbetes das duas expressões em questão, “verdade” e “libertará”, que se encontram no
Dicionário Grego do Novo Testamento de James Strong, que está inserido na Bíblia de
Estudos Palavras-Chave Hebraico e Grego.

A. Verdade (άλήθεια) = (alētheia): verdade: - verdadeiro, verdadeiramente, verdade,


veracidade. Substantivo de alēthēs, verdadeiro. “Aquilo que não está oculto, mas aberto e
pode ser conhecido; por isso, verdade. O que fica evidenciado em relação aos fatos (Jo
5,33; 16,7; Mc 5,33). Referindo-se àquilo que é verdadeiro por si mesmo, à pureza de toda
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espécie de erro ou falsidade (Mc 12,32). Verdade: amor à verdade, tanto em palavras
quanto em conduta, sinceridade, veracidade (Jo 20,21)” (STRONG, J. 2010, p. 2049).
“No Novo Testamento, de maneira especial, a verdade divina, ou a fé e a prática da
verdadeira religião, é chamada de “verdade”, ou por ser verdadeira por si mesmo e derivada
do Deus verdadeiro, ou como declaração da existência e da vontade do Deus único e
verdadeiro, em oposição à adoração de falsos ídolos. Por isso, a palavra alētheia veio a
significar verdade divina, a verdade evangélica, em oposição às fábulas pagãs e judaicas (Jo
1,14.17; 8,32.40; 16,13; 18,37). Por isso, o Senhor Jesus é chamado de “a verdade”, a verdade
encarnada, o mestre da divina verdade (Jo 14,6). Verdade se refere à conduta conformada à
verdade, integridade, probidade, virtude, uma vida conformada aos preceitos do evangelho (Jo
3,21)” (STRONG, J. 2010, p. 2049-50).

B. (έλευθερόω) = (eleutheroō), liberar; isentar (de responsabilidade moral, cerimonial ou


mortal). Libertar, tornar-se livre. Tornar livre (έλύθερος) = (eleutheros): livre. “Tornar livre,
liberar do poder e do castigo do pecado, o resultado da redenção (Jo 8,32.36; Rm 6,18.22); de
um estado de calamidade e morte (Rm 8,2.21); do poder da condenação advinda da lei de
Moisés (Gl 5,1). Para uma análise mais completa, a expressão έλευθερία (eleutheria),
liberdade (legítima ou licenciosa, principalmente em sentido moral ou cerimonial).
Substantivo de eleutheros, uma pessoa livre. Liberdade do jugo da lei mosaica (2 Cor 3,17; Gl
2,4; 5,1.13), também do jugo das observâncias externas em geral (1Pe 2,16); do domínio dos
apetites e das paixões pecaminosas (Tg 1,25; 2,12); de um estado de calamidade e morte (Rm
8,21)” (STRONG, J. 2010, p. 2182).

O trecho em questão se apresenta da seguinte forma na Bíblia de Jerusalém: “e


conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará”. A nota de rodapé “a” explica: “Verdade é a
expressão da vontade de Deus a respeito do homem, tal foi transmitida por Cristo
(8,40.45;17,17). Ela se opõe ao “mundo” (1,9) como uma espécie de meio ético: aqueles que
pertencem ao “mundo”só podem odiá-lo (15,19; 17,14-16), aqueles que são “da verdade”
obedecem à mensagem de amor que Cristo nos transmitiu da parte de Deus (18,37; 1Jo 3,18-
19). Eles são santificados pela verdade como também pela Palavra de Cristo (17,17; 15,3).
Uma vez que essa verdade nos é dada por Cristo, este pode afirmar que ele é a Verdade que
nos conduz ao Pai (14,6), assim como, depois de sua volta para junto do Pai, é o Espírito que,
conduzindo-nos em toda a verdade (16,13), será a Verdade (1Jo 5,6), ou o Espírito de verdade
(14,17).
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A Bíblia TEB possui a seguinte versão: “conhecereis a verdade e a verdade vos fará de
vós homens livres”. A nota de rodapé “p”apresenta que no, texto joanino, a verdade é a
realidade de Deus à medida que ele é a plenitude da vida verdadeira e pode associar a ela os
homens que ele criou. Esta verdade se manifesta e se comunica em Jesus. Segue-se daí que a
fé nele também é conhecimento e acolhimento da verdade (1,14.17; 14,6.17; 15,26; 16,7.13;
17,17-19; 18,37-38; 1Jo 1,6.8; 2Jo 1). Na nota “q”, no tocante a verdade, não se trata da
liberdade política nem da autonomia interior à qual pode chegar o sábio refletindo sobre o seu
ser-homem. A liberdade em relação à mentira (8,44) e à morte (8,24.51) também é capacidade
de viver em plenitude (10,10) na comunhão do Filho e do Pai (17,3). Esta liberdade
escatológica é um dom vinculado à verdade que se recebe em Jesus.

4. O texto no contexto do livro

O lugar no contexto amplo, dentro da obra, encontra-se no livro dos sinais (1,19 –
12,50). Em relação ao lugar no contexto imediato, anteriormente, temos o trecho que trata de
Jesus se referindo aos judeus que creram nele: “Se permanecerdes em minha palavra, sereis
verdadeiramente meus discípulos” (Jo 8,31). Aqui, “João põe em cena aqueles judeus que
aderiram a Jesus (v. 30), mas só até certa altura: na realidade, eles não são mais confiáveis na
sua fé que os que acreditavam por causa dos sinais (2,23-24; cf. 7,31)” (KONINGS, 2005, p.
186).

Posteriormente a Jo 8,32, aparecem os judeus, os quais respondem a Jesus, que são


descendentes de Abraão e que nunca foram escravos de ninguém. E ainda indagam Jesus,
perguntando: “como podes dizer: Vós nos tornareis livres?” (Jo 8,33). A partir do texto
escolhido, vemos que Jesus continua a conversar com os judeus sobre escravidão, pecado e do
Filho que liberta aqueles que são escravos. Jesus ainda menciona que alguns buscam matá-lo,
devido a não aceitação de sua palavra. Ele enfatiza que foi enviado pelo Pai, e que eles fazem
o que ouvis do Pai (Jo 8,34-38). A escravidão dos judeus em questão é bem pior que a
escravidão imposta por qualquer autoridade real. Jesus explicita a verdadeira escravidão:
“quem pratica o mal é escravo do pecado” (KONINGS, 2005, p. 187). Aderindo ao Filho,
Jesus Cristo, eles serão, verdadeiramente, livres.

O presente trecho de Jo 8,32 fala de Jesus como a verdade a ser conhecida pelos
corações que estejam abertos à proposta de amor do Pai, como o “caminho, verdade e a vida”
(Jo 14,6). Assim “o caminho da vida aberto pela verdade que é a revelação acolhida na fé.
Ainda não é claro, neste momento, o que significa a “liberdade”, mas logo mais se poderá
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tirar a conclusão” (BEUTLER, 2016, p. 224). O Verbo encarnado, que veio para ser luz num
mundo de trevas, encarnou-se para se dar em obediência ao Pai. O Filho veio como enviado
do Pai para que todos se salvem. No entanto, a verdade a ser conhecida se deparou com
muitos sinais de escravidão e trevas no contexto da época, em relação à classe religiosa
judaica, que não aceitava Jesus como Filho de Deus. A legalidade extrema se tornou a
escravidão que está apegada ao tradicionalismo religioso judaico, sem obras de amor ao
próximo e que consistem no cumprimento de práticas religiosas que não fazem valer o amor
de Deus pelo gênero humano.

Não bastaram aos judeus terem crido em Jesus Cristo. Fica claro que esses “judeus que
passaram a crer não assumiram para si a nova realidade da comunidade cristã” (KONINGS,
2005, p. 186). Não permaneceram nas palavras de Jesus e, consequentemente, não se
tornaram seus discípulos. Assim, o leitor compreenderá que conhecer experiencialmente a
Jesus mudará a realidade de aprisionamento em conceitos herméticos para uma vida de
liberdade na pessoa do Filho, que age por seu Espírito Santo, aderindo à proposta de salvação
dada pelo Pai.

5. Intertextualidade

O autor do quarto evangelho possui o conhecimento das grandes tradições sinóticas.


João realiza uma reelaboração dessas tradições, com mais segurança e profundidade em
relação aos seus antecessores. Para João, a fidelidade consiste em perceber e exprimir a
profundidade o alcance e a revelação de Deus nos acontecimentos da salvação, que se realiza
em Jesus. Comparando com os sinóticos, aparece no quarto evangelho as controvérsias em
Jerusalém (7 – 8 e 10). O trecho que estamos estudando trata, exatamente, de uma
controvérsia que envolve Jesus e judeus acerca da verdade e liberdade. A linguagem no
evangelho de João é bem diferente. João trata de temas opostos, como por exemplo: luz -
trevas, glória de Deus – glória que vem dos homens e o tema paradoxal em questão, verdade –
mentira.

Em Jo 14,6, vemos como Jesus é a verdade enquanto Filho encarnado, a expressão do


Pai, através de suas palavras e ações. Jesus acolhe todos aqueles e aquelas que abraçam a fé
na comunhão no Pai. No texto “Eu nasci e vim ao mundo para dar testemunho da verdade”
(Jo 18,37a), vemos a aceitação da verdade de Deus. Depois da pergunta que Pilatos fez a
Jesus acerca se ele era rei, temos aqui a superação da realeza que aponta para o aspecto
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escatológico que Jesus inaugura. Assim, de forma pacífica, Jesus faz valer a vontade do Pai,
através de sua missão, que se manifestou em sua vida pública.

Nas cartas joaninas, a verdade é conhecida, no sentido semítico como: “que habita em
nós” (2Jo 1 – 2), como um princípio de vida moral: “caminhamos” (=vivemos) segundo suas
diretivas (3Jo 3 – 4), “fazendo a verdade” (3,21; 1Jo 1,6), agimos em conformidade com
aquilo que ela exige de nós. As primeiras testemunhas da tradição apostólica possuíam a
experiência fecunda com a fé em Cristo, que permaneciam firmes no seu seguimento.

Na enérgica carta aos gálatas, Paulo trata da liberdade para aqueles que não estavam
submetidos à Lei, mediante a filiação divina. Gl 4,1-11 apresenta a Lei de Moisés como
provisória. Como herdeiro das promessas de Deus, o judeu, estando sob o regime da Lei, não
passava de escravo (Gl 4,3). A encarnação do Filho de Deus, nascido sob a Lei, foi para
resgatar os que viviam também sob a Lei. Chegaram os tempos messiânicos, que levam a
termo a longa espera dos séculos. Mediante a plenitude desse novo tempo, todo aquele que
estava sob a Lei receberia a adoção filial e, sendo filhos, “enviou Deus aos nossos corações o
Espírito do seu Filho, que clama: Abba, Pai! De modo que já não és mais escravos, mas filho.
E se és filho, és também herdeiro, graças a Deus” (Gl 4,6-7). Todo aquele e aquela que acolhe
Jesus no coração não é mais escravo, submetendo-se a Lei, mas acolhendo a vida nova de
filho e filha de Deus, no Filho, e em plena liberdade, pelo dom do Espírito.

Tal noção de liberdade é muito mais ampla se compreendida na dimensão da


responsabilidade. “É ter e viver um compromisso que realmente realize nossa vocação e nosso
status de eleitos de Deus” (KONINGS, 2005, p. 188). Somos destinados a sermos livres em
Jesus Cristo: “É para a liberdade que Cristo nos libertou” (Gl 5,1). Paulo reforça,
constantemente, a consequência do risco dos gálatas a voltarem ao regime da Lei, da
escravidão, em vistas de perder a liberdade encontrada em Cristo. Assim, a liberdade consiste
na participação e permanência no projeto de Deus, que leva aos que aderem ao seguimento de
Cristo a tornarem-se “servos” da comunidade dos seguidores do Senhor, evitando todo tipo de
egoísmo (Gl 5,1.13).

A expressão liberdade tem sua variante “libertar” bem caracterizada no Antigo


Testamento, onde Deus quer libertar seu povo escravizado no Egito: “Por isso desci a fim de
libertá-lo da mão dos egípcios, e para fazê-lo subir desta terra para uma terra boa e vasta, terra
que mana leite e mel” (Ex 3,8a). A libertação realizada por Deus tem uma finalidade. A
tradição javista “enfatiza não só a libertação de Israel dos egípcios, mas também o objetivo
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dessa intervenção: a entrada na terra prometida. Essa terra que mana leite e mel” (BERGANT;
KARRIS, 2014, p. 95).

Em Ex 12,1-14, mostra a Páscoa antes da saída do Egito. A paráfrase da Hagadá de


Péssach nos apresenta que este acontecimento fundante para a fé do povo de Israel não será
apenas uma lembrança do passado, mas um memorial, pois cada vez que a comerdes, a
Páscoa lhe acontecerá. Este evento será celebrado como a poderosa ação salvífica de Deus na
história do povo de Israel, “tornando-se sinal perene e universal da libertação divina do
homem” (TILLESSE, 1984, p. 79). Da libertação, o povo caminha para a Aliança com Deus,
sendo sua pertença. Podemos perceber que o evento salvífico proporcionou aos hebreus a
“sair da fatalidade para criar a sua própria liberdade” (TILLESSE, 1984, p. 80). A verdade da
libertação dos hebreus não foi assimilada de forma positiva pelos judeus do tempo de Jesus.
Eles estavam presos a esquemas ritualísticos e, mesmo se gabando por serem descendentes de
Abraão, ainda não tinham entendido a liberdade dada por Deus, que culminou em sua Aliança
e que chegou ao seu cumprimento em Jesus.

Ao lado dessas tradições bíblicas, Beutler aponta para outras evidências que tiveram
influência no evangelho segundo João. O tema da liberdade em Jo 8 atraiu influências da
cultura indiana. As comunidades nas quais surgiu o quarto evangelho eram, na maioria,
compostas de judeus da diáspora de língua grega, no qual denominamos de “judeu-cristãos
helenistas”. No entanto, não se pode deixar de ressaltar a grande influência do helenismo
sobre os conceitos joaninos e paulinos de liberdade. Atesta-se que no “estoicismo alcança-se a
liberdade permitindo à razão examinar e descobrir as próprias raízes” (BEUTLER, 2016, p.
225). Para João, a liberdade está na abertura à palavra reveladora de Deus.

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