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O texto do Evangelho de João 8.

31-36 é instigadora e nos coloca diante de


um diálogo polêmico entre Jesus e um grupo de judeus, conflito que
perpassa todo o evangelho desde o capítulo 1 e se encaminha para o
desenlace, que acaba na paixão, cruz, morte e ressurreição de Jesus, o Filho
de Deus, o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo (1.10s; 1.29). Os
capítulos 7 e 8 formam uma unidade, mesmo que os vários diálogos que
neles se apresentam, por vezes, nos pareçam um tanto desconexos. Alguns
temas sobressaem como as várias afirmações de Jesus que começam com
a fórmula ego eimi (eu sou). Aliás, o Evangelho de João, o quarto a ser
escrito, se diferencia bastante dos sinóticos por sua linguagem e conteúdo.
Trata-se da mesma mensagem centrada em Jesus, mas esse é
diferente daquele que guarda o “segredo messiânico” como no Evangelho
de Marcos (8.39), por exemplo. Em João, Jesus revela uma clara
autoconsciência como o “enviado do Pai” (8.42). Ele é a imagem encarnada
de Deus (1.1-14). Ele e o Pai são um só (10.30); ele conhece o Pai e guarda
a sua palavra (8.55; 8.18s; 17.20-23). Jesus se apresenta como a luz do
mundo, a água da vida, a porta, o caminho, a verdade, o pão da vida, o bom
pastor. É uma torrente de palavras que João escolhe como identificadoras
daquele que é o Filho de Deus, em quem o Pai se revela plenamente, mas
os seus não o conheceram nem o receberam ou creram nele.
João nos apresenta no capítulo 8, nos versos 31 a 36 uma verdade como
prática de vida.
Essa unidade acontece na subida de Jesus para Jerusalém no tempo da
Festa dos Tabernáculos ou da Colheita, em que muitos romeiros iam
celebrar no templo de Jerusalém. Dois rituais sobressaíam nessa festa: as
libações de água, pelas quais a água era trazida solenemente do
reservatório de Siloé, transportada para o templo e derramada sobre o altar
dos sacrifícios. Esse rito era associado às orações para pedir chuva, e bem
pode significar uma reminiscência de antigo ritual para causar chuva. Não
por acaso, a necessidade de água para a vida aparece nas discussões
rabínicas sobre a festa e seu significado. Talvez esse dado ajude a entender
a afirmação de Jesus: Eu sou a água da vida. Outro rito da festa era a
iluminação do Pátio das Mulheres no templo. Algumas informações
atestam que o pátio ficava tão brilhante que todo o pátio de Jerusalém
ficava também iluminado. Também essa informação ajuda a entender a
afirmação polêmica de Jesus neste evangelho: Eu sou a luz do mundo. De
qualquer forma, no evangelho essa festa é o cenário dos diálogos de Jesus
com seus interlocutores. Para Dodd¹, teríamos aqui um exemplo da
característica ironia joanina. Jesus, um profeta que vem da Galileia, chega
para pregar a um grande público na capital. Nela, Jesus se apresenta como
a palavra de Deus, como a luz da vida, como aquele que revela o sentido da
vida, a vida eterna. Ele se mostra como quem conhece o Pai porque vem
dele e por ele foi enviado (7.29) e isso se torna escandaloso para seus
ouvintes. Na verdade, esses se dividem: uns creram nele, outros o
contestam (8.30-33). Por trás do acontecimento público, as autoridades
tramam contra a vida de Jesus (8.44; 59). O evangelho vai preparando seus
leitores para o final da vida de Jesus e o significado de sua morte para a
comunidade fiel.

No diálogo tenso de 8.31-36, temos então o seguinte:


v. 31: Jesus desafia aqueles que creram: se permanecerdes na minha
palavra, sois verdadeiramente meus discípulos. Aqui temos algo típico da
compreensão hebraica da palavra. Permanecer na palavra não é o mesmo
que afirmar um dogma, é antes seguir a palavra do mestre, ficar firme,
praticar a palavra que Jesus anuncia. Discipulado é seguimento, é praticar
a palavra que torna a pessoa livre. Bortolini (1994) explica: a “adesão a
Jesus [...] não é feita só de palavras. Ela exige prática, pois o ensinamento
de Jesus é uma prática de vida. E a prática pressupõe sempre uma ruptura
com o que não está a serviço da vida”.
v. 32 e 33: Essa prática de vida diz respeito à verdade de
Jesus: conhecereis a verdade e a verdade vos libertará. João atesta aqui um
conceito de verdade e de liberdade diferente da concepção grega. Não é só
o conhecimento que está em jogo, mas a vida na sua inteireza, a ação, a
realidade vivida. A verdade em João é verdade encarnada numa pessoa:
Jesus. Ele não apenas proclama a verdade, ele a encarna. Ele é
verdadeiramente Filho de Deus, ele é a verdade que liberta do pecado, ele
é Deus libertador. Mas os judeus são ciosos de sua origem e tradição e
rebatem com ousadia: somos descendência de Abraão e jamais fomos
escravos; como dizes tu: sereis livres?
v. 34: Jesus avança no conflito: toda pessoa que comete pecado é
escrava do pecado. Impossível não retomar aqui a narrativa da mulher
adúltera, pois Jesus arriscou a sua vida para defender a pobre mulher.
Nessa texto Jesus escutou a acusação dos homens piedosos e enfurecidos
que lhe armaram a armadilha. E à acusação que redundaria no
apedrejamento da mulher, ele contesta com autoridade. À pergunta “que
dizes?” ele reage com autoridade: Aquele que dentre vós estiver sem
pecado, seja o primeiro que lhe atire pedra (8.7). Um a um os
piedosos foram se retirando, desde os mais velhos até aos últimos, ficando
somente Jesus e a mulher. E então Jesus estabelece o diálogo restaurador
e garantidor da vida: Mulher, onde estão os teus acusadores? Ninguém te
condenou? (8.10). A mulher responde: Ninguém, Senhor. E Jesus lhe
responde: Nem eu tampouco te condeno, vai e não peques mais (v. 11). No
conflito aberto com os judeus, eles não querem debater este tema duro:
quem comete pecado é escravo do pecado. Jesus, porém, não para por aí.
v. 35: Os judeus argumentam que, sendo filhos de Abraão, são livres
de tudo e todos. E isso que estavam vivendo num país ocupado pelos
romanos deviam obediência às autoridades do império. Julgavam que a lei
de Moisés os colocava num patamar acima da realidade de um país
ocupado, que pagava caro por sua submissão. Arrogantemente fechavam
os olhos à realidade do pecado, da submissão, da hipocrisia. Jesus contesta
tal teologia. Ele os confronta com a realidade da vida e anuncia outra
concepção de vida e liberdade. Quem comete injustiça é dominado pelo
pecado e isso não só nas relações morais das pessoas individualmente. Há
um sistema baseado na injustiça para com os mais pobres que nem sequer
tem uma pombinha para levar ao sacrifício. Há pessoas com deficiência que
são desprezadas e, ainda mais, tidas como responsáveis por
seus infortúnios, numa maldade sem igual (9.1-34). Jesus defende essas
pessoas e acusa quem não tem nem sabe exercer misericórdia, cuidado
com quem sofre, numa palavra – amor.
v. 36: Diante dessa outra compreensão da ação divina, Jesus proclama: Se
o Filho vos libertar, verdadeiramente sereis livres. Aqui se percebe que o
conteúdo da liberdade que Jesus proclama não é nem pode ser abstrato ou
legalista. Não se restringe a uma “lei escrita”, a um princípio político ou a
uma regra de boa convivência. A liberdade para a qual Jesus chama seus
discípulos e discípulas é liberdade “para que tenham vida”, para que a vida
seja salva, dignificada, liberta. Jesus rejeita o papel de juiz ou de quem tem
o poder para condenar quem quer que seja. Ele vem para salvar, para
libertar, para oferecer vida e uma nova chance renovada a cada momento.
Nesse sentido, a menção de Abraão é equívoca na boca de quem o advoga.
Jesus contesta essa manobra teológica quando em seguida
afirma: Sois descendência de Abraão, contudo, procurais matar-me, porque
a minha palavra não está em vós (v. 37). Eles não aceitam Jesus, rejeitam-
no e, com isso, afirmam que Jesus é mentiroso. É por isso que mais adiante
Jesus faz uma acusação feroz: Vós sois do diabo [...] Ele foi homicida desde
o princípio e jamais se firmou na verdade [...]. Ele é mentiroso e pai da
mentira. Mas porque eu digo a verdade, não me credes (8.44s). Entre a
verdade e a mentira tem um abismo que separa a vida e a morte. E Jesus é
caminho, verdade e vida.

Nossa reflexão

O debate sobre a verdade que liberta é colocado diante da mentira que


mata e está calcada na injustiça e na mentira. Esse debate cruza os tempos,
não pode ser desviado da realidade da vida, nem ontem nem hoje. Não
basta basear a vida em leis ou nomes de família. A verdade não é jamais
uma conquista plena, é uma vocação que faz caminhar na verdade, na
justiça, no direito, no amor. A verdade que liberta é uma caminhada, um
seguimento que tem como promessa a vida eterna (8.51).

Charles Harold Dodd (07 de abril de 1884 - 21 de setembro de 1973) foi um estudioso
do Novo Testamento galês e teólogo protestante influente.

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