um diálogo polêmico entre Jesus e um grupo de judeus, conflito que perpassa todo o evangelho desde o capítulo 1 e se encaminha para o desenlace, que acaba na paixão, cruz, morte e ressurreição de Jesus, o Filho de Deus, o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo (1.10s; 1.29). Os capítulos 7 e 8 formam uma unidade, mesmo que os vários diálogos que neles se apresentam, por vezes, nos pareçam um tanto desconexos. Alguns temas sobressaem como as várias afirmações de Jesus que começam com a fórmula ego eimi (eu sou). Aliás, o Evangelho de João, o quarto a ser escrito, se diferencia bastante dos sinóticos por sua linguagem e conteúdo. Trata-se da mesma mensagem centrada em Jesus, mas esse é diferente daquele que guarda o “segredo messiânico” como no Evangelho de Marcos (8.39), por exemplo. Em João, Jesus revela uma clara autoconsciência como o “enviado do Pai” (8.42). Ele é a imagem encarnada de Deus (1.1-14). Ele e o Pai são um só (10.30); ele conhece o Pai e guarda a sua palavra (8.55; 8.18s; 17.20-23). Jesus se apresenta como a luz do mundo, a água da vida, a porta, o caminho, a verdade, o pão da vida, o bom pastor. É uma torrente de palavras que João escolhe como identificadoras daquele que é o Filho de Deus, em quem o Pai se revela plenamente, mas os seus não o conheceram nem o receberam ou creram nele. João nos apresenta no capítulo 8, nos versos 31 a 36 uma verdade como prática de vida. Essa unidade acontece na subida de Jesus para Jerusalém no tempo da Festa dos Tabernáculos ou da Colheita, em que muitos romeiros iam celebrar no templo de Jerusalém. Dois rituais sobressaíam nessa festa: as libações de água, pelas quais a água era trazida solenemente do reservatório de Siloé, transportada para o templo e derramada sobre o altar dos sacrifícios. Esse rito era associado às orações para pedir chuva, e bem pode significar uma reminiscência de antigo ritual para causar chuva. Não por acaso, a necessidade de água para a vida aparece nas discussões rabínicas sobre a festa e seu significado. Talvez esse dado ajude a entender a afirmação de Jesus: Eu sou a água da vida. Outro rito da festa era a iluminação do Pátio das Mulheres no templo. Algumas informações atestam que o pátio ficava tão brilhante que todo o pátio de Jerusalém ficava também iluminado. Também essa informação ajuda a entender a afirmação polêmica de Jesus neste evangelho: Eu sou a luz do mundo. De qualquer forma, no evangelho essa festa é o cenário dos diálogos de Jesus com seus interlocutores. Para Dodd¹, teríamos aqui um exemplo da característica ironia joanina. Jesus, um profeta que vem da Galileia, chega para pregar a um grande público na capital. Nela, Jesus se apresenta como a palavra de Deus, como a luz da vida, como aquele que revela o sentido da vida, a vida eterna. Ele se mostra como quem conhece o Pai porque vem dele e por ele foi enviado (7.29) e isso se torna escandaloso para seus ouvintes. Na verdade, esses se dividem: uns creram nele, outros o contestam (8.30-33). Por trás do acontecimento público, as autoridades tramam contra a vida de Jesus (8.44; 59). O evangelho vai preparando seus leitores para o final da vida de Jesus e o significado de sua morte para a comunidade fiel.
No diálogo tenso de 8.31-36, temos então o seguinte:
v. 31: Jesus desafia aqueles que creram: se permanecerdes na minha palavra, sois verdadeiramente meus discípulos. Aqui temos algo típico da compreensão hebraica da palavra. Permanecer na palavra não é o mesmo que afirmar um dogma, é antes seguir a palavra do mestre, ficar firme, praticar a palavra que Jesus anuncia. Discipulado é seguimento, é praticar a palavra que torna a pessoa livre. Bortolini (1994) explica: a “adesão a Jesus [...] não é feita só de palavras. Ela exige prática, pois o ensinamento de Jesus é uma prática de vida. E a prática pressupõe sempre uma ruptura com o que não está a serviço da vida”. v. 32 e 33: Essa prática de vida diz respeito à verdade de Jesus: conhecereis a verdade e a verdade vos libertará. João atesta aqui um conceito de verdade e de liberdade diferente da concepção grega. Não é só o conhecimento que está em jogo, mas a vida na sua inteireza, a ação, a realidade vivida. A verdade em João é verdade encarnada numa pessoa: Jesus. Ele não apenas proclama a verdade, ele a encarna. Ele é verdadeiramente Filho de Deus, ele é a verdade que liberta do pecado, ele é Deus libertador. Mas os judeus são ciosos de sua origem e tradição e rebatem com ousadia: somos descendência de Abraão e jamais fomos escravos; como dizes tu: sereis livres? v. 34: Jesus avança no conflito: toda pessoa que comete pecado é escrava do pecado. Impossível não retomar aqui a narrativa da mulher adúltera, pois Jesus arriscou a sua vida para defender a pobre mulher. Nessa texto Jesus escutou a acusação dos homens piedosos e enfurecidos que lhe armaram a armadilha. E à acusação que redundaria no apedrejamento da mulher, ele contesta com autoridade. À pergunta “que dizes?” ele reage com autoridade: Aquele que dentre vós estiver sem pecado, seja o primeiro que lhe atire pedra (8.7). Um a um os piedosos foram se retirando, desde os mais velhos até aos últimos, ficando somente Jesus e a mulher. E então Jesus estabelece o diálogo restaurador e garantidor da vida: Mulher, onde estão os teus acusadores? Ninguém te condenou? (8.10). A mulher responde: Ninguém, Senhor. E Jesus lhe responde: Nem eu tampouco te condeno, vai e não peques mais (v. 11). No conflito aberto com os judeus, eles não querem debater este tema duro: quem comete pecado é escravo do pecado. Jesus, porém, não para por aí. v. 35: Os judeus argumentam que, sendo filhos de Abraão, são livres de tudo e todos. E isso que estavam vivendo num país ocupado pelos romanos deviam obediência às autoridades do império. Julgavam que a lei de Moisés os colocava num patamar acima da realidade de um país ocupado, que pagava caro por sua submissão. Arrogantemente fechavam os olhos à realidade do pecado, da submissão, da hipocrisia. Jesus contesta tal teologia. Ele os confronta com a realidade da vida e anuncia outra concepção de vida e liberdade. Quem comete injustiça é dominado pelo pecado e isso não só nas relações morais das pessoas individualmente. Há um sistema baseado na injustiça para com os mais pobres que nem sequer tem uma pombinha para levar ao sacrifício. Há pessoas com deficiência que são desprezadas e, ainda mais, tidas como responsáveis por seus infortúnios, numa maldade sem igual (9.1-34). Jesus defende essas pessoas e acusa quem não tem nem sabe exercer misericórdia, cuidado com quem sofre, numa palavra – amor. v. 36: Diante dessa outra compreensão da ação divina, Jesus proclama: Se o Filho vos libertar, verdadeiramente sereis livres. Aqui se percebe que o conteúdo da liberdade que Jesus proclama não é nem pode ser abstrato ou legalista. Não se restringe a uma “lei escrita”, a um princípio político ou a uma regra de boa convivência. A liberdade para a qual Jesus chama seus discípulos e discípulas é liberdade “para que tenham vida”, para que a vida seja salva, dignificada, liberta. Jesus rejeita o papel de juiz ou de quem tem o poder para condenar quem quer que seja. Ele vem para salvar, para libertar, para oferecer vida e uma nova chance renovada a cada momento. Nesse sentido, a menção de Abraão é equívoca na boca de quem o advoga. Jesus contesta essa manobra teológica quando em seguida afirma: Sois descendência de Abraão, contudo, procurais matar-me, porque a minha palavra não está em vós (v. 37). Eles não aceitam Jesus, rejeitam- no e, com isso, afirmam que Jesus é mentiroso. É por isso que mais adiante Jesus faz uma acusação feroz: Vós sois do diabo [...] Ele foi homicida desde o princípio e jamais se firmou na verdade [...]. Ele é mentiroso e pai da mentira. Mas porque eu digo a verdade, não me credes (8.44s). Entre a verdade e a mentira tem um abismo que separa a vida e a morte. E Jesus é caminho, verdade e vida.
Nossa reflexão
O debate sobre a verdade que liberta é colocado diante da mentira que
mata e está calcada na injustiça e na mentira. Esse debate cruza os tempos, não pode ser desviado da realidade da vida, nem ontem nem hoje. Não basta basear a vida em leis ou nomes de família. A verdade não é jamais uma conquista plena, é uma vocação que faz caminhar na verdade, na justiça, no direito, no amor. A verdade que liberta é uma caminhada, um seguimento que tem como promessa a vida eterna (8.51).
Charles Harold Dodd (07 de abril de 1884 - 21 de setembro de 1973) foi um estudioso do Novo Testamento galês e teólogo protestante influente.