Você está na página 1de 4

João 9 - Desafios para uma Reflexão Bíblica sobre a Fé e a Marginalização

Prof. Dr. Paulo Roberto Garcia

Abordar a Bíblia a partir da dignidade do ser humano é uma das ricas portas de entrada
para compreender o texto sagrado. A busca pela dignidade do ser humano é reflexão
constante na caminhada do povo de Deus registrada na Bíblia.
Dentre as inúmeras possibilidades, podemos abordar a luta pela dignidade na luta contra o
preconceito e a marginalização. O material bíblico para isso é riquíssimo. Entre tantos,
optamos em trabalhar com o texto de João 9.
O texto está inserido nas reflexões de fé surgidas em meio a controvérsias que a
comunidade teve de enfrentar. Por isso, ele dá conta de uma realidade maior que a do
tempo de Jesus. Ao falar sobre a prática de Jesus, reflete também a situação da
comunidade cristã joanina do final do primeiro século. Em meio à realidade, o texto
levanta as controvérsias de sistemas religiosos diferentes, seus preceitos e preconceitos. É,
portanto, um texto que convoca ao discernimento.
Preconceito e Reino de Deus
O texto principia com a descrição do conflito criado pelo preconceito legalista frente à
realidade de um cego de nascença. Para a Lei judaica, a doença era sinal de castigo divino
sobre algum pecado que o portador dela tivesse praticado.
Com isso, o resultado prático era o de ninguém responsabilizar-se por aqueles que sofrem.
Se alguém estava enfermo, estava por castigo divino. A culpa do castigo era dele mesmo,
uma vez que foi por seu pecado que ele chegou à essa situação.
A situação se complica quando a pessoa que aparece na sociedade é alguém que nasceu
enferma. É uma questão séria, uma vez que, se a enfermidade é castigo por pecados,
alguém que nasce enfermo ou é pecador de ventre ou paga por pecados de outros.
A prática de Jesus ficou marcada por uma oposição a esse tipo de pensamento. É
conhecida nos textos bíblicos a presença de muitos enfermos à sua volta. No movimento
de Jesus, essas pessoas encontravam seu espaço e possibilidade de vida.
Nesse texto, contudo, a questão é levada mais a fundo. Nele o texto desmascara toda a
mentira da Lei judaica, uma Lei que, na época de Jesus e, mais intensamente ainda na
época vivida pela comunidade joanina, era exercida em nome de Deus para manter o
poder de grupos fincados no centro da vida religiosa e política.
Na época de João, esse grupo usava a Lei não apenas para excluir os enfermos, mas
também àqueles que professavam sua fé no Cristo (9.22).
João 9 - Desafios para uma Reflexão Bíblica sobre a Fé e a Marginalização - Jornada Ecumênica - Página 2

Uma Lei que exclui pessoas não pode ser justa, pois ela traz em sua filosofia o princípio de
que todo aquele que é diferente deve ser excluído.
O Reino de Deus foi a mensagem que consolou e fortaleceu a todos os excluídos dando-
lhes esperança e nova orientação de vida. Contudo, o Reino de Deus é critério de
discernimento para julgar as leis que organizam a vida e a sociedade. Esse texto é mostra
disso.
Desmascarando a Lei
O texto principia com uma dura realidade. Entre os seguidores de Jesus (e também da
comunidade de João, que nos legou esse texto) os preconceitos dessa Lei excludente estão
presentes.
A pergunta "quem pecou para que o homem nascesse cego" mostra como a Lei controla o
pensamento dos discípulos. A dificuldade deles está em descobrir onde se localiza o
pecado. Ou seja, a Lei, na concepção deles, está certa. Se ele está enfermo a culpa é dele,
pois em algum lugar de sua ascendência genealógica localiza-se um pecado que maculou
sua vida.
A frase de Jesus desmascara essa mentira. Nem ele, nem ninguém de sua família pecou.
Deste modo, a Lei está errada. A enfermidade não é lugar de castigo, é espaço de graça. A
comunidade de fé encontra na doença o lugar para o exercício de sua vocação de
solidariedade.
Com isso, essa Lei calcada na exclusão é desmascarada. A lei que exclui pessoas vai contra
a mensagem do Reino de Deus. O Reino de Deus é boa nova que devolve a vida. Tudo o
que exclui da vida pessoas é contra o Reino.
Enfrentando a Lei
A continuidade do texto mostra uma mudança radical nas atitudes do cego. Aquele que
vivia à margem, agora está pronto a entrar no Templo para enfrentar aqueles que o
excluíam da vida. O cego, agora curado, se torna o centro do relato.
Quem não muda de atitude são as autoridades religiosas. O cego, agora curado, é
declarado novamente pecador. A cura se deu em um sábado. Deste modo, quem o curou
era um pecador pois realizou esforço nesse dia chamado "santo".
No texto se confrontam duas atitudes. De um lado do líderes religiosos que querem checar
o milagre a luz dessa lei marginalizadora; do outro, do cego que frente aos
questionamentos apenas sabe que antes ele era cego e agora ele pode ver. De um lado a
burocracia legal, do outro a dimensão concreta da vida.
Se antes a enfermidade era sinal de pecado, agora é a cura. De qualquer modo, ele
continua à margem e termina sendo expulso da sinagoga. Agora por ser seguidor de um
pecador - Jesus.
João 9 - Desafios para uma Reflexão Bíblica sobre a Fé e a Marginalização - Jornada Ecumênica - Página 3

Essa realidade falava muito alto à comunidade de João. Eles também eram expulsos da
sinagoga por seguirem Jesus. Por isso esse texto atingia o âmago dos problemas
enfrentados por ela. Isso só confirmava a tese de que uma Lei que justifica uma exclusão,
justifica qualquer outra. Uma hora é o enfermo, outra é o seguidor de Jesus. Essa Lei não
pode ser de Deus!

A mensagem - desafio para os cristãos de todos os tempos


A cura do cego nesse texto ganha para a comunidade de João não apenas o sentido do
contar uma história, mas também uma mensagem muito profunda.
Para eles, o problema não era necessariamente a cegueira física, mas sim o ser excluídos
por crerem em Jesus.
O texto vai dizer que a cegueira é daqueles que não percebem a vontade de Deus; que se
escondem detrás de uma lei que exclui pessoas não possibilitando à vontade de Deus
manifestar-se.
Uma fé que coloque sobre o portador de uma doença a pecha de pecador, ou de portador
do pecado de outrem é contraria à fé cristã, e contra esse tipo de fé clama o Reino de
Deus. Isso vale não apenas para doenças, como também para outros fatores que
marcando a vida de pessoas, tornam-nas diferentes das dos demais, diferença essa que
seria uma suposta base para justificar a discriminação. A mensagem cristã chama a
comunidade à prática da solidariedade frente a essas pessoas ou grupos.
Também, a comunidade que tem seus olhos abertos à essa realidade da fé cristã, assume o
papel central de enfrentar e desmascarar as leis (que muitas vezes são chamadas de fé,
teologia, doutrina, etc.) que fundamentam-se sobre princípios que contrariam a
mensagem cristã.
Finalmente, a comunidade é chamada a assumir, profeticamente, seu lugar à margem da
sociedade que organiza a vida de acordo com esses princípios. No final do texto, o cego,
como a comunidade de João, termina excluído da sinagoga, à margem da história. Só que
uma margem profética, uma margem que clama contra aqueles que acreditam que esse
tipo de lei está certa.
Na margem é que encontramos o Senhor. Em uma realidade onde a exclusão faz parte do
cotidiano das pessoas, a margem é um espaço profético, um lugar de vida e fé em que os
primeiros cristãos descobriram o que é ser cristão em meio a dor e a segregação.
Jesus ouviu que o tinham expulsado, e, encontrando-o,
disse-lhe: Crês tu no Filho de Deus?
Ele respondeu, e disse: Quem é ele, Senhor, para que nele creia?
E Jesus disse-lhe: Tu já o tens visto, e é aquele que fala contigo.
João 9 - Desafios para uma Reflexão Bíblica sobre a Fé e a Marginalização - Jornada Ecumênica - Página 4

Ele disse: Creio, Senhor. E o adorou.


(Jo 9.35-37 - Ed. Almeida)

Prof. Dr. Paulo Roberto Garcia


primavera de 1994
Jornada Ecumênica
Mendes - Rio de Janeiro

Você também pode gostar