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EXORCISMO, PRÁTICA ESQUECIDA OU PRÁTICA RENEGADA PELO

RACIONALISMO?
Kenny Ogg1
Dr. Gerson L. Linden2

Resumo
O tópico de estudo do presente trabalho é a investigação do exorcismo em sua etimologia,
visão bíblica, ao longo da história da igreja, nos seus mais diferentes aspectos e
características, bem como a sua percepção na atualidade. A pergunta que pretende ser
respondida é sobre quais os fatores que levaram o exorcismo a deixar de ser uma prática
das igrejas. Sabe-se que era comum a prática do exorcismo nos tempos bíblicos, na igreja
primitiva e na idade média, o que aconteceu do iluminismo para frente? Também é
investigado a necessidade de se manter a prática do exorcismo na atualidade como parte
do cuidado pastoral e não ser simplesmente descartado como antiguidade. A metodologia
utilizada no presente artigo é a do tipo qualitativa. O procedimento técnico de
investigação utilizado foi a pesquisa bibliográfica. A pesquisa tem por fim uma
introdução geral ao assunto do exorcismo, abordando a temática de diversos ângulos,
etimológico, bíblico, histórico e trazendo as suas características gerais para a atualidade.

Palavras-chave: Exorcismo. Jesus Cristo. Oração. Demônios.

Abstract

The topic of study of this work is the investigation of exorcism in its etymology, biblical
view, throughout the history of the church, in its most diferente aspects and
characteristics, as well as its perception in the presente. The question to be answeered is
what factors led exorcism to cease of being a chuch practice. It is known that the practice
of exorcism was common in biblical times, in the early church and in the middle ages,
what happened from the enlightenment onwards? Also investigated is the need to
maintain the practice of exorcism today as part of pastoral care and not simply be
dismissed as antiquity. The methodology used in this article is the qualitative one. The
technical investigation procedure used was bibliographic research. The reserach aims at
a general introduction to the subject of exorcism, addressing the theme from various
angles, etymological, biblical, historical and bringing its general characteristics to the
present.

Keywords: Exorcism. Jesus Christ. Prayer. Demons.

1
Bacharel em Teologia, ULBRA, Canoas (2017). Pós-graduando em Teologia, Seminário Concórdia, São
Leopoldo (2019).
2
Bacharel em Teologia, Seminário Concórdia, São Leopoldo (1984). Mestrado em Novo Testamento,
Concordia Seminary, St. Louis, EUA (1993). Doutorado em Teologia Sistemática, Concordia Seminary, St.
Louis, EUA (2017). Professor de Teologia na ULBRA. Professor do Seminário Concórdia (1996-).
Introdução

O foco principal do presente trabalho é desmistificar ideias acerca de um assunto


que é um “tabu” dentro de muitas igrejas e um divisor de opiniões. O que foi o exorcismo
e o que é o exorcismo são questões que serão abordadas, bem como mostrar a sua
importância na história da igreja e na contemporaneidade. A metodologia utilizada foi a
pesquisa bibliográfica. A delimitação é trabalhar com o exorcismo na visão bíblica, não
abordando outras áreas que envolvem o tema, como demonologia, psicologia e
parapsicologia.

Exorcismo

Quando o assunto se trata de exorcismo, é comum as pessoas pensarem


diretamente em filmes que apresentam uma luta constante entre padres e demônios que
possuem crianças. A ficção com certeza agregou muito a fama do tema, pois não é
somente um filme sobre o assunto, são diversos3, que mostram diversas formas, diversos
demônios, diversas denominações cristãs lutando contra o mal, quando não é uma luta
em que envolve puramente a obra humana. Assim sendo, alguns autores, como Amorth,
falam de duas formas como esse tema é entendido pelas pessoas hoje, ambas
extremamente perigosas. Uma delas é exatamente esta que é retratada nos filmes e jogos,
um diabão com chifres, asas, rabo, que deixa um rastro de enxofre por todo canto e que
tem o poder de possuir qualquer pessoa4. Geralmente tem alguma ligação com invocações
da parte de magos e feiticeiros. Essa imagem é perigosa pelo simples fato de colocar o
diabo como alguém que pode dar conselhos e poder para as pessoas que o invocam,
transformando o inimigo maligno da humanidade como alguém supostamente
“amigável”. A segunda forma, talvez mais perigosa do que a primeira é proveniente dos
últimos séculos da humanidade onde o racionalismo triunfou e, infelizmente, também
dentro das igrejas. Isto levou as pessoas para uma certa ignorância nesses assuntos
sobrenaturais, não levando a sério, desprezando aquilo que é sobrenatural, desprezando a
figura do diabo e a ridicularizando como se ele não existisse (AMORTH, 2013, p. 8).

3
“O Exorcista”, “O Exorcismo de Emily Rose”, etc...
4
Pe. Gabriele Amorth afirma que embora sejam formas falsas provindas de crenças populares, elas
possuem um grande poder simbólico de representar uma figura quase humana decaída até o estado
animal, com traços animalescos, que mostram de maneira facilmente compreensível a corrupção e a
degradação produzidas pelo pecado (AMORTH, 2013, p. 19).
Essa mentalidade priva as pessoas de procurarem se defender contra os ataques
do diabo, que é o inimigo da humanidade e de Deus. Afinal de contas, se as pessoas devem
resistir às tentações, combater o inimigo, persistir na fé em Cristo, é de fundamental
importância que saibam o poder desse inimigo, que saibam que ele é o inimigo da fé cristã
e que ele quer a todo custo que as pessoas não creiam em Deus. Esta é tida como uma das
estratégias mais utilizadas pelo diabo nos dias de hoje, de fazer com que as pessoas
duvidem de sua existência, assim ele pode agir livremente sem ser incomodado
(AMORTH, 2013, p. 8).
A Escritura aponta diversas vezes para os poderes do diabo, a começar pela
tentação em Gênesis 3 que levou à queda do ser humano, de um estado de perfeição para
um estado de imperfeição, de morte e inimizade com Deus. Uma leitura do livro de Jó
também pode levar a uma melhor compreensão do poder do diabo para a destruição, basta
ver o que ele fez com Jó e a sua família. O próprio Jesus chama o diabo de “príncipe deste
mundo”5 duas vezes no Evangelho de João. Primeira delas em 12.31: “Chegou o momento
de este mundo ser julgado, e agora o seu príncipe será expulso”. E, posteriormente em
João 16, 8.11: “Quando ele vier, convencerá o mundo do pecado, da justiça e do juízo...
do juízo, porque o príncipe deste mundo já está julgado”. Também em 1 João 5.18-19:
“Sabemos que todo aquele que é nascido de Deus não vive em pecado, porque quem é
nascido de Deus guarda a si mesmo, e o Maligno não pode tocar nele. Sabemos que somos
de Deus e que o mundo inteiro jaz no Maligno. ”6
Precisa-se estar consciente do poder do inimigo7. Porém, acima de tudo, é preciso
estar consciente e convicto da verdade fundamental da Escritura, a vitória de Cristo na
cruz por todos nós, a sua vitória redimiu a humanidade com Deus, perdoou os pecados e
também venceu absolutamente as forças malignas. A Escritura é clara sobre a vitória de
Cristo como está escrito em Colossenses 2.15: “E, despojando os principados e as
potestades, publicamente os expôs ao desprezo, triunfando sobre eles na cruz. ” Também
em 1 Pedro 2.24: “...carregando ele mesmo, em seu coro, sobre o madeiro, os nossos
pecados, para que nós, mortos para os pecados, vivamos para a justiça. Pelas feridas dele
vocês foram sarados. ” E em 1 Jo 3.8: “Aquele que pratica o pecado procede do diabo,

5
Algumas traduções o colocam como “chefe deste mundo”.
6
Outros versículos: 1 Pe 5.8-9, 2 Co 11.14, Jo 8.44, Ap 2.10.
7
Pe. Gabriele Amorth define a atividade do demônio como dupla, uma que se define como extraordinária
e outra como ordinária. A extraordinária que é mais rara de acontecer seria os males maléficos, até
mesmo a possessão. E a atividade ordinária, que nenhum cristão jamais negou ou colocou em discussão
é a de tentador, aquele que tenta o homem ao mal (AMORTH, 2013, p. 20).
porque o diabo vive pecando desde o princípio. Para isto se manifestou o Filho de Deus:
para destruir as obras do diabo. ” Por isso, quando o assunto tratado é exorcismo, deve-
se ter a noção fundamental de que a batalha já foi vencida na cruz. Não existe uma batalha
espiritual na forma como as pessoas imaginam ou como é mostrado na mídia fictícia,
como se os demônios pudessem vencer os anjos e todo o Reino Celestial, como se Jesus
fosse inferior ao diabo ou como se eles lutassem de igual para igual, nada disto é verdade,
a batalha já está vencida (KOCH, 1978, p.70).

Em todas as religiões existem histórias de possessão, quer se trate do


animismo, do islamismo, do budismo, do judaísmo ou do cristianismo.
Os métodos de exorcismo são igualmente diversos. Porém, uma
libertação autêntica, definitiva ocorre somente através de Cristo. Só ele
tem poder e autoridade para livrar o homem do poder de Satanás. “O
filho do homem tem sobre a terra autoridade. ” (Mc 2.10) (KOCH,
1978, p.105).

A palavra latina exorcizo é um empréstimo do grego com origem na terminologia


legal, a sua raiz no grego era horkos, que, quer dizer “um juramento”. No sentido jurídico
grego e latino, exorcizar significava “fazer um juramento”, e em latim, tornou-se quase
um sinônimo de coniuro, “fazer um juramento juntos”. Com o tempo, o verbo composto
coniuro foi usado como uma forma intensificada do verbo iuro, “juro”, e no latim tardio
passou a ter um sentido de “implorar”. No latim medieval, a palavra coniuro produziu a
palavra em inglês “conjurar”, onde o seu sentido religioso e jurídico inicial foi substituído
pelo seu sentido mágico (YOUNG, 2016, p.18). Conforme Young (YOUNG, 2016, p.18):
“A dificuldade de separar o exorcismo da magia ocorre, portanto, no nível linguístico,
‘conjuração’ é uma atividade do mágico e do exorcista”8 (YOUNG, 2016, p.18).

Exorcismo e a Escritura

O termo “exorcismo” como se encontra na Escritura, vem do grego exorkizo, que,


segundo o dicionário, quer dizer adjurar, ou seja, acusar sob juramento, intimar em nome
de Deus, suplicar insistentemente, neste sentido, exorcismo não é como um ritual

8
Os cristãos nos primeiros séculos alegavam que a identidade religiosa do exorcista, e não a sua
habilidade, era o fato determinante no sucesso do exorcismo, mas isto também é aplicável a muito dos
rituais mágicos, muitos grimórios medievais e modernos exigem que o oficiante seja um sacerdote, ou
pelo menos, um cristão batizado (YOUNG, 2016, p. 19).
prescrito e mais como uma oração, um pedido de socorro a Deus (GINGRICH, 2012, p.
77).
O termo em si aparece somente duas vezes no Novo Testamento, em Mateus 26.63
e em Atos 19.13, coincidentemente, neste texto de Atos é onde também aparece pela única
vez a palavra “exorcista” no Novo Testamento9. Mesmo com poucos aparecimentos da
palavra em si, existem diversas passagens que relatam exorcismos com bastante precisão,
principalmente da parte de Jesus. Em Marcos 1.27-28 encontramos o relato da cura de
um endemoniado em Cafarnaum, correspondente também ao texto de Lucas 4.31-37.
Também após a cura da sogra de Pedro, Jesus expulsa demônios e cura pessoas como
mostra o relato em Marcos 1.32-34, correspondente ao texto de Mateus 8.16-17 e Lucas
4.40-41. Em Marcos 3.20-30 Jesus é acusado pelos escribas de expulsar demônios pelo
poder de Belzebu, também encontrado em Mateus 12.22-32 e Lucas 11.14-23. No relato
de Marcos 5.1-20 Jesus expulsa o demônio do endemoninhado geraseno, talvez um dos
textos mais conhecidos referente a expulsão de demônios, também relatado em Mateus
8.28-34 e Lucas 8.26-39.
No relato de Marcos 7.24 Jesus expulsa o demônio da filha da mulher fenícia,
também relatado em Mateus 15.21-28. Em Marcos 9.14-29 Jesus expulsa um espírito
surdo e mudo de um menino, também relatado em Mateus 17.14-21 e Lucas 9.37-43. E
ainda, um relato em Mateus 9.32-34, onde Jesus também expulsa um espírito mudo de
um homem. Dos discípulos, temos a autoridade que o próprio Cristo deu a eles para
expulsar demônios quando os chamou em Marcos 3.13-19, correspondente ao texto de
Mateus 10.1-4 e Lucas 6.12-16. Também em Lucas 10.17-20, o texto bíblico nos mostra
que os setenta enviados expulsaram muitos demônios em nome de Cristo. Mais tarde na
história bíblica, em Atos 16.16-18, Paulo expulsa um espírito adivinhador de uma jovem.
E, em Atos 19.11-16 temos um relato de um exorcismo que não deu certo feito pelos
filhos de Ceva, que inclusive teve o efeito contrário e os sete filhos de Ceva acabaram
apanhando do demônio e fugiram humilhados como mostra o relato.
Sobre a importância destes relatos bíblicos, Amorth comenta:

O Evangelho é claríssimo ao apresentar a luta frontal entre Cristo e o


demônio. Jesus, desde cedo, tem de combater e vence Satanás na sua
atividade corrente de tentador: a vida pública de Jesus começa com a
página das tentações. Mas também o vence na sua atividade
extraordinária, libertando as pessoas por ele possuídas. Mas há dois

9
Atos 19.13: “E alguns judeus, exorcistas ambulantes, tentaram invocar o nome do Senhor Jesus sobre
pessoas possuídas de espíritos malignos, dizendo: Ordeno que saiam pelo poder de Jesus, a quem Paulo
prega. ”
aspectos que quero destacar primeiro, a importância desta luta, e,
segundo, a sua originalidade. O poder de Cristo sobre os demônios é
fortemente sublinhado pelos Evangelhos e reconhecido pelos próprios
demônios. Por quê? Porque, como afirma São João, Cristo veio “para
destruir as obras de Satanás” (1Jo 3,8); veio, como afirma o próprio
Jesus, “para destruir o reino do demônio e instaurar o Reino de Deus”
(cf. Lc 11,20), veio, como dirá São Pedro a Cornélio, “para nos libertar
da escravidão de Satanás” (At 10,38). O diabo, “príncipe deste mundo”
(Jo 14,30), como Jesus o chama, ou “deus deste mundo” (2Cor 4,4),
como é chamado por Paulo, era o forte que se sentia seguro do seu
domínio; Jesus é o mais forte, que o desarma e tira dele tudo o que tinha
usurpado dos Seus. A importância desta luta direta, desta vitória total,
é fundamental para compreender a obra da redenção. Falei também da
originalidade desta luta porque Jesus fez determinadas escolhas e
propôs determinados ensinamentos a respeito do demônio. Não
demonstrou que estava vinculado às ideias do seu tempo, em que a
própria existência do demônio era tida como motivo: os fariseus
acreditavam na sua existência, mas os saduceus, não. Jesus falou
claramente da ação de Satanás contra Deus (pense, por exemplo, nas
explicações que ele próprio dá às parábolas do trigo e do joio e à do
semeador); libertou os endemoninhados, fazendo clara distinção entre
a libertação do demônio e a cura de uma doença (foram certos teólogos
e biblistas modernos, verdadeiros trapalhões e traidores do Evangelho,
quem confundiram e fundiram num só os dois aspectos); concedeu este
importantíssimo poder aos Apóstolos, depois aos discípulos e, por fim,
a todos aqueles que viriam a acreditar nEle, numa crescente doação que
apenas a estupidez de uma determinada fatia da cultura contemporânea
não soube identificar, procurando mesmo negá-la (AMORTH, 2008, p.
15-16).

O quadro de histórias bíblicas é vasto sobre o assunto10. Mas um texto chama mais
a atenção do que os outros pela sua variante textual, e este, será estudado com maior
detalhe a seguir.

Mateus 17. 14-21

Quando eles chegaram para junto da multidão, um homem se


aproximou de Jesus, ajoelhou-se e disse: Senhor, tenha pena do meu
filho, porque ele tem convulsões e sofre muito; pois muitas vezes cai no
fogo e outras tantas cai na água. Apresentai-o aos seus discípulos, mas
eles não puderam curá-lo. Jesus exclamou: Ó geração incrédula e
perversa! Até quando estarei com vocês? Até quando terei de aguentá-
los? Tragam o menino até aqui. E Jesus repreendeu o demônio, e este
saiu do menino; e, desde aquela hora, o menino ficou curado. Então os
discípulos, aproximando-se de Jesus, perguntaram em particular: Por
que motivo nós não pudemos expulsá-lo? Jesus respondeu: Por causa
da pequenez da fé que vocês têm. Pois em verdade lhes digo que, se
tiverem fé como um grão de mostarda, dirão a este monte: “Mude-se

10
Algumas passagens bíblicas que mostram a proibição e o desprezo por todo o tipo de feitiçaria: Ex 7.11-
12, Ex 22.18, Lv 19.26,31, Lv 20.6,7, Dt 18.9-14, 1 Sm 28, 2 Rs 21.5-6, 2 Cr 10.13-14, Is 2.6,8,19, Jr 27.9,10,
Zc 10.2, Ml 3.5, At 8.9, 16.16, 19.19, Gl 5.19-21, 2 Tm 3.8 e Ap 21.8, 22.15.
daqui para lá”, e ele se mudará. Nada lhes será impossível. [Mas esse
tipo de demônio só pode ser expulso por meio da oração e jejum.]

Este texto é intrigante pois mostra um exorcismo que os discípulos tentaram fazer
e falharam, eles simplesmente não puderam expulsar o demônio. Em particular, eles
perguntaram a Jesus o motivo de não poderem expulsar o demônio e a resposta foi “Por
causa da pequenez da fé que vocês têm”. Robert Bennett afirma que: “Os discípulos
estavam começando a formar um entendimento mecânico da Palavra” (BENNETT, 2013,
p.117-118).
Era como se eles estivessem se esquecendo de que só estavam falando em nome
e por autoridade de Jesus, e não por eles mesmos, como se fosse algum tipo de magia,
uma conjuração. Bennett ainda afirma que isto deveria ser uma espécie de precaução para
quem é chamado para falar as palavras de exorcismo de Jesus. O poder é de Jesus e ele é
único exorcista (BENNETT, 2013, p.118).
Após Jesus denunciar a fé de seus discípulos e alertá-los acerca da pequena fé
deles ou da falta de fé, ele realiza o exorcismo e cura o menino. Com uma simples palavra,
Cristo expulsou o demônio e curou o menino. A questão que fica em aberto é porque os
seus discípulos não puderam expulsar o demônio, qual foi o real motivo ligado a falta de
fé deles?
No texto, e no seu paralelo em Marcos (9.14-29), temos a seguinte frase final:
“Mas esse tipo de demônios só pode ser expulso por meio da oração e jejum”. O relato
em Marcos apenas fala da oração, e traz somente o [e jejum] como variante textual e não
a frase inteira, do contrário de Mateus, em que a frase toda é uma variante textual. Por
isso alguns autores afirmam que se deve omitir este versículo de Mateus.

Estas últimas palavras, que constituem o v. 21, com quase toda a certeza
devem ser omitidas do texto de Mateus, com base na autoridade do
Codex Sinaiticus, do Codex Vaticanus e das antigas versões Siríaca e
Egípcia. Devem ter sido importadas de Marcos 9.29 no interesse da
harmonização (TASKER, 1988, p. 133).

E, também, Omanson:

Não existe razão suficiente que poderia ter levado copistas a omitir esse
versículo numa variedade tão grande de manuscritos, caso fosse,
originalmente, parte do texto de Mateus. Com frequência, copistas
inseriam num Evangelho material que se encontra em outro. Neste caso,
parece que o acréscimo de “Mas esse tipo não senão por meio de oração
e jejum”, que aparece na maioria dos manuscritos, foi tirado do paralelo
em Mc 9.19 (OMANSON, 2010, p. 27).

Omanson também comenta sobre a variante textual presente no texto de Marcos:

À luz da crescente ênfase dada ao jejum, na Igreja Antiga, é


compreensível que um copista tenha acrescentado ao texto, em forma
de comentário, a locução “e com jejum”, que acabou por fazer parte do
texto da maioria dos testemunhos. Entre aqueles que se opuseram a esse
acréscimo estão importantes representantes dos tipos de texto
alexandrino e ocidental (OMANSON, 2010, p. 82).

Mas e se for considerado o jejum? Dentro de uma perspectiva de leitura em cima


da variante textual, o Novo Testamento não chega a ordenar o jejum, como se fosse um
tipo de regra prescrita, mas era uma prática comum entre os judeus, tanto que Jesus
mostrou aos que o faziam como se deveria fazer o jejum de forma correta (Mt 6.16-18).
E ele diz que é algo que deve ser feito em segredo, e não como um ritual ou “algo para se
mostrar aos outros”.
Em Atos 13.2-3, enquanto a igreja jejuava e orava, eles enviavam a Paulo e
Barnabé para a sua primeira viagem missionária. Também em Atos 14.23, antes de
elegerem os presbíteros, eles oraram e jejuaram. Mas o que é o jejum de fato? “O jejum
é uma disciplina por meio da qual a pessoa não se alimenta com o objetivo de manter o
foco em Deus e nas questões espirituais” (BB da Reforma, p.1837). Era uma prática
comum no judaísmo do primeiro século, era exercitado por diversas razões, como
disciplina espiritual, como auxílio para a oração ou ainda como uma forma de
autopunição pelo pecado, até mesmo, evidenciando um certo desprezo para com o corpo
(BB da Reforma, p.1553).

O jejum era conhecido e praticado tanto no Antigo como no Novo


Testamento. Daniel jejuou e orou durante três dias (Dn 9.3 e 10.3). Jesus
jejuou quarenta dias no deserto. Algumas centenas de anos mais tarde,
a igreja católica transformou o jejum em obra meritória. Na igreja
evangélica, por outro lado, o jejum é praticamente desconhecido.
(KOCH, 1978, p. 88).

Mas o jejum não foi algo que Jesus institui, embora o ensinou como fazer da forma
correta. A oração por outro lado é algo ensinado e instituído por Cristo (Mt 6.5-13; Jo
14.13-14). Dentro dessa leitura em cima da variante, a soma dos dois, jejum e oração,
neste texto em específico, dá a entender que é o “remédio conjunto” contra certos tipos
de demônios. Evidente que este artigo não tem a pretensão de entrar nos méritos dos tipos
de demônios, pois abriria um leque de estudos em demonologia, que não cabe por agora.
Mesmo se a variante textual for desconsiderada (o “e jejum”), o texto de Marcos
ainda fala da oração. E este é o ponto, a dedicação de orar era algo que os discípulos
pareciam não ter entendido, e isso se refletia na sua falta de fé, pois para orar e pedir ajuda
a Deus é necessário a fé e este parece ser o ponto que fica em evidência no exorcismo
deste texto. A falta de confiança em Jesus, Robert Bennett afirma:

Este exorcismo precisava de oração, mas para oração ser efetiva, fé


também é necessária. Novamente, exorcismo é o resultado da Obra de
Jesus, não dos apóstolos. Jesus realizou todos os exorcismos, mesmo
aqueles realizados por ordem dos apóstolos. Os apóstolos falharam
porque estavam tentando expulsar o demônio com seu próprio poder,
em vez do poder de Jesus? Uma possibilidade é que eles começaram a
perder o rumo e o foco. Seja qual for o caso, após o fracasso deles, Jesus
disse: “ó geração infiel, quanto tempo devo estar com vocês? Sem fé,
não há poder para exorcizar. O poder de expulsar demônios reside em
Jesus, isto é, em Seu nome. Simplesmente falando o nome dele não é
suficiente. A ordem para “esconjurar” deve ser falada na fé de que Jesus
será a força ativa no exorcismo. Embora Jesus tenha ordenado que os
apóstolos fossem exorcistas, eles é que são aqueles que estão embaixo
da autoridade de Jesus. No entanto, sugiro que eles tenham perdido a fé
na autoridade que lhes foi dada. É a autoridade de Jesus que efetua a
cura, não apenas a recitação de Seu nome (BENNETT, 2013, p.119).

Pode-se reafirmar novamente o mesmo alerta que Bennett dá aos seus leitores, o
poder é de Jesus Cristo, ele é o exorcista, e isto deve ficar como uma precaução para os
que são chamados a exorcizar em nome de Jesus Cristo (BENNETT, 2013, p.118). Um
contraponto interessante é relembrar aqui a história dos filhos de Ceva em Atos 19, que
justamente por não terem tido a fé em Jesus e apenas tendo tentado usar o seu nome,
acabaram por apanhar do demônio e ainda sofrer uma humilhação pública (At 19.11-17).

Exorcismo na história da Igreja Primitiva

No mundo antigo, os hebreus praticavam exorcismos (At 19.13), mas diferente


deles, Jesus exerceu este poder para demonstrar Seu próprio domínio contra o Demônio.
Tanto expulsar os demônios, quanto fazer milagres, em geral são provas da divindade de
Jesus Cristo, que depois legou este poder aos apóstolos, aos seus seguidores, ou seja, a
todos os cristãos conforme Marcos 16.17: “Estes sinais acompanharão aqueles que
creem: em meu nome, expulsarão demônios...” (AMORTH, 2013, p. 48).
A teologia do exorcismo no cristianismo primitivo foi sustentada pela crença de
que Deus transmitiu aos crentes o carisma de expulsar demônios, tanto para demonstrar
a assimilação do crente com Jesus através do batismo, como também, para demonstrar a
vitória de Cristo sobre o diabo. Apesar dos demônios permanecerem no mundo, a vitória
de Cristo foi completa e Deus permitiu que eles continuassem seu trabalho pelo menos
parcialmente, para que os cristãos pudessem demonstrar sua adesão à verdadeira fé
exorcizando-os (YOUNG, 2016. p. 29).
Muitos cristãos nos primeiros três séculos de cristianismo expulsavam demônios
em nome de Jesus. Na verdade, isto tinha uma grande importância apologética, porque os
primeiros cristãos testemunhavam para os pagãos, que com os seus nomes de imperadores
e deuses não conseguiam fazer nada, mas, muitas pessoas dentre os cristãos, em nome de
Jesus Cristo expulsava demônios (AMORTH, 2013, p. 48)11. Isso também atraía pagãos
endemoninhados a se dirigirem a cristãos para serem libertados. Tertuliano confirma a
eficácia com que os cristãos libertam dos demônios tanto dos próprios cristãos, quanto
também dos pagãos. Ele ainda insiste na eficácia do exorcismo não somente em pessoas,
mas também sobre a vida social que é cheia de idolatrias e de influências maléficas
(AMORTH, 2008, p. 17).

Justino relata:

“Cristo nasceu por vontade do Pai para salvação dos que creem e ruína
dos demônios. Podeis convencer-vos mediante o que vedes com os
vossos olhos. Em todo o universo e na vossa cidade [Roma] existem
numerosos endemoninhados que os outros exorcistas, encantadores e
magos, não conseguiram curar. Muitos de nós cristãos, pelo contrário,
ordenando-lhes em nome de Jesus Cristo, crucificado sob Pôncio
Pilatos, curamo-los reduzindo à impotência dos demônios que os
possuíam” (Apologia, VI, 5-6). (Justino apud AMORTH, 2008, p. 18).

Cipriano relata:

“Vem ouvir com os teus próprios ouvidos os demônios, vem ve-los com
os teus olhos nos momentos em que, cedendo às nossas esconjuras, aos

11
Amorth cita Justino, Irineu, Testuliano e Orígenes, pais da igreja que mencionam em seus escritos estes
fatos. Amorth também diz que insiste neste caráter apologético do exorcismo buscando os pais da igreja,
porque nos tempos atuais, parece que nos encontramos exatamente na posição oposta, onde os cristãos
já não buscam nenhum auxílio e compreensão na Igreja, mas sim com magos, outras religiões e seitas.
nossos flagelos espirituais e à tortura das nossas palavras, abandonam
os corpos daqueles de quem se tinham apoderado” (Contra Demétrio,
c. 15). (Cipriano apud AMORTH, 2008, p. 18).

O Padre Amorth acrescenta ainda a contribuição das palavras do exorcismo


utilizadas pelos padres mais antigos da Igreja, de que possivelmente, elas ajudaram para
a formulação dos Credos.

Por exemplo, o próprio Justino, no seu Diálogo com Trifão, apresenta-


nos um texto de exorcismo muito rico: “Todo e qualquer demônio a
quem se dê uma ordem em nome do Filho de Deus – gerado antes de
toda a criatura, que nasceu de uma Virgem, fez-se homem submetido
ao sofrimento, foi crucificado pelo seu povo, sob Pôncio Pilatos,
morreu, ressuscitou dos mortos e subiu aos céus –, todo e qualquer
demônio, digo, ordenado em força deste nome, é derrotado e
subjugado”. Por seu lado, Orígenes, no seu texto contra Celso, é mais
extenso: “A força do exorcismo reside no nome de Jesus que é
pronunciado enquanto, ao mesmo tempo se anunciam os fatos relativos
à sua vida”. Orígenes, em comparação com os seus antecessores,
acrescenta elementos novos. Diz-nos que, no nome de Jesus, os
demônios podem ser expulsos, não apenas das pessoas, mas também
das coisas, dos lugares, dos animais (AMORTH, 2008, p. 19).

A prática do exorcismo foi se desenvolvendo para duas direções. A primeira é


libertar possessos dos poderes do diabo, e a segunda, como parte integrante do Batismo
onde recebia muito valor porque desse modo era ressaltado que o catecúmeno tinha sido
liberto de Satanás e entregue a Cristo (AMORTH, 2008, p. 19).
Aqui se sustenta um ponto muito interessante, pois desde o século III, o exorcismo
começou a fazer parte integrante do batismo, o rito do batismo, que era algo simples na
época, começou a sofrer transformações litúrgicas e passou a ser mais uma “luta
dramática contra o diabo” (YOUNG, 2016, p. 29)12. Francis Young cita três autores que
dão teorias de como esse processo aconteceu.

Kelly, acreditava que as origens dos exorcismos residem na doutrina


dos “demônios do pecado”, espíritos maus que correspondiam aos
pecados que fixaram residência nos não-batizados. Para Toon
Bastiaensen, os primórdios do exorcismo pré-batismal foram
encontrados na controvérsia donatista no norte da África, onde a ideia
de exorcizar objetos como óleo, água e sal gradualmente passaram a ser

12
A partir do século IV, autores cristãos latinos (mais notavelmente Agostinho) começaram a minimizar
ou reinterpretar em termos não exorcistas, rituais dramáticos do exorcismo pré-batismal estabelecido
como parte da liturgia no terceiro século. Enquanto isso, o exorcismo de endemoninhados fora dos ritos
do batismo foi gradualmente se transformando de um carisma leigo e uma forma de cura espiritual em
um milagre que era a preservação de indivíduos santos (YOUNG, 2016, p.31).
aplicados aos catecúmenos. A controvérsia donatista estava preocupada
com os cristãos que haviam sucumbido à apostasia durante os períodos
de perseguição, se poderiam ser readmitidos na igreja ou não, mas
também incluiu discussão de se os bens da igreja marcados pelos pagãos
exigiam exorcismo, como uma forma de purificação. E Elizabeth
Leeper argumentou que o exorcismo pré-batismal, cujo original
propósito foi uma renúncia dos poderes do mal, foi importado de
Alexandria a Roma pelo herege Valentinus em meados do segundo
século. Qualquer que seja a verdade, o exorcismo foi estabelecido como
parte do rito de batismo em Roma por cerca de 250 (YOUNG, 2016,
p.30).

A liturgia de exorcismo praticada em Roma foi encontrada na Traditio Apostolica,


que era uma coleção de cânones e regulamentos litúrgicos13 relacionados principalmente
à igreja romana, onde o texto latino mais antigo remete entre 375 e 400, embora tenha
uma possível atribuição original a Hipólito de Roma (170-235), é certo que contém
elementos que antecedem o quarto século (YOUNG, 2016, p. 30).
João, o Diácono, descreveu a liturgia do batismo no final do século V no Norte da
África, onde contém a parte do exorcismo pré-batismal e que consistia em onze etapas:
1. Catequese. 2. Exsuflação (Insulto ou a remoção do demônio). 3. Recepção do sal
(Símbolo da preservação espiritual da alma). 4. Renúncia as armadilhas do diabo. 5.
Recepção do Credo Apostólico. 6. Escrutínio (exame de fé do candidato). 7. A primeira
unção, nas orelhas e no nariz (Simboliza a proteção contra a entrada de um espírito
imundo). 8. A segunda unção, no peito (Simboliza a pureza do coração). 9. Retirar as
roupas (nudez, sinal de purificação). 10. Batismo. 11. Colocação das roupas e unção final
(representa o status sacerdotal do novo crente) (YOUNG, 2016, p.33)14.
No ano de 416, o Papa Inocêncio I, devido à grande quantidade de trapaceiros e
charlatães, estabeleceu que os exorcismos apenas podem ser administrados sob
autorização episcopal15, instituindo assim, o sacramental do exorcistado. Já na Igreja

13
A referência mais antiga a um ritual escrito de exorcismo extra-batismal ocorre no Sacramentário
Gregoriano, onde durante o serviço de ordenação de um exorcista, um libellus (livrinho) é colocado nas
mãos do exorcista com as palavras: “Receba isto, guarde na memória, e tenha o poder de colocar as mãos
sobre um energúmeno, seja batizado ou catecúmeno”. Essa forma de palavras implica que, além dos ritos
pré-batismais, o libellus também continha um ritual para exorcizar batizados. A fórmula do Sacramentário
Gregoriano deriva do sétimo cânone do quarto Concílio de Cartago (398) e o Statuta ecclesiae antiqua faz
referência a ordenação de exorcistas, mas não menciona o libellus (YOUNG, 2016, p.44).
14
Essa liturgia de exorcismo pré-batismal está presente em algumas igrejas até hoje na liturgia de Batismo,
como vemos na Igreja Luterana (IELB): “Queridos pais e padrinhos, peço que respondam em nome e em
lugar desta criança as perguntas a seguir, que ressaltam o que Deus opera nela através do Batismo: Você
renúncia ao diabo, a todas as suas obras e a todo o seu procedimento? Então responda: ‘Sim, eu
renuncio’” (Culto Luterano, 2015, p. 131).
15
Uma carta do Papa Inocêncio I (378-417) ao Bispo de Gubbio pode ser interpretada como uma evidência
de que qualquer sacerdote ou diácono poderia ser designado um exorcista estabelecendo o precedente
para a jurisdição episcopal sobre exorcismos (YOUNG, 2016, p.44).
oriental, o exorcismo sempre foi visto como um carisma, uma capacidade pessoal que
todos os crentes podem ter, no oriente seguiu-se com essa prática de liberdade carismática
sem ter alguma disciplina específica (AMORTH, 2008, p. 22; AMORTH, 2013, p. 48).

Exorcismo ao longo dos séculos

Do século VI até o século XII foi um tempo de grande equilíbrio na parte de


exorcismos, a prática de exorcismos fazia parte do cuidado pastoral da Igreja. Também é
um período com grandes fórmulas litúrgicas de exorcismo. Surgem as primeiras
representações dos exorcistas e também de Satanás. Até o século XII, os teólogos e o
povo rejeitavam a crença nas bruxas e nem sequer pensavam em perseguir
endemoninhados (AMORTH, 2008, p.23).
Do século XII até o XV é um período de muitas tristezas para a igreja. O período
antes da Reforma é marcado pelas imensas catedrais e Papas teocratas. Em 1252,
Inocêncio IV autorizou a tortura contra hereges e em 1326, João XXII autorizou pela
primeira vez a inquisição contra as bruxas (AMORTH, 2008, p.24).

De 1340 a 1450 a Europa é assolada pela peste negra, uma epidemia


que extermina inúmeras vidas humanas com tantas outras
consequências: ruína dos valores morais, difusão de lutas civis de todo
o gênero, divisões na Igreja. No meio destas tragédias, surgiu a mania
de demonizar todas as coisas: mas não uma forma de demonização que
conduzisse a um maior número de exorcismos e, consequentemente, à
cura ou à libertação; pelo contrário, conduziu apenas à destruição.
(AMORTH, 2008, p. 23-24).

Do século XVI ao século XVII, o Padre Amorth relata:

Este foi verdadeiramente o período da loucura, o período em que os


exorcismos cederam lugar às perseguições. A história é a mestra de
vida, embora freqüentemente seja definida num tom crítico, como
mestra de vida que ninguém escuta. E ao descrever este período, que é
o período mais negro de todos, vem o desejo de ser objetivo, porque
considero que tem muito para ensinar ao nosso tempo. É um fato
consumado naquele tempo: onde já não se fazem exorcismos, o seu
lugar passa a ser ocupado pelas perseguições; onde se fazem exorcismo,
a mentalidade também, e os problemas igualmente. Onde o demônio
não é combatido e expulso mediante os exorcismos, os homens são
demonizados e mortos. (AMORTH, 2008, p. 25).
O auge da perseguição contra as bruxas atingiu o seu maior nível nos anos entre
1560 e 1630. Mas, existe uma coisa muito interessante que Amorth relata que é: “onde
continuaram os exorcismos, não houveram fogueiras, ou estas foram reduzidas ao
mínimo” (AMORTH, 2008, p.26).
Da parte católica romana, as opiniões nessa época eram dividas. Os franciscanos
defendiam o uso frequente de exorcismos elaborados como uma espécie de ajuda quase
mágica para com a fé popular. Os jesuítas promoviam o exorcismo como uma ferramenta
evangelística, mas baseado mais no uso com relíquias do que com uma liturgia própria.
Alguns dominicanos abordaram o exorcismo com suspeita, como uma porta por onde
espiritualidades entusiastas e heréticas poderiam entrar na igreja. E o clero diocesano
desconfiava do entusiasmo que era despertado pelas ordens religiosas (YOUNG, 2016, p.
100-101).
A teologia na ortodoxia luterana também resgata a ligação do exorcismo com o
cuidado pastoral, como diz este texto de Johann Ludwig Hartmann (1640-1680):

Em geral, a possessão satânica nada mais é do que uma ação do diabo


pela qual, com a permissão de Deus, os homens são instados a pecar e
ele ocupa seus corpos para que possam perder a salvação eterna. Assim,
a possessão corporal é uma ação pela qual o diabo, com permissão
divina, possui homens piedosos e homens ímpios de tal maneira que
habita o corpo deles não apenas de acordo com a atividade, mas também
de acordo com a essência, e os atormenta, seja pelo castigo ou pela
disciplina e prova dos homens, e pela glória da justiça divina,
misericórdia, poder e sabedoria (HARTMANN apud MAYES, 2017, p.
1)16.

No século XVIII, após o período da Idade Média, a caça às bruxas parou de “um
dia para o outro”, mas não aconteceu algo que se esperava, de que a igreja voltaria à
prática comum de exorcismos. Amorth diz: “a perseguição substituiu os exorcismos; onde
continuaram a realizar os exorcismos, não houve perseguição; portanto, era necessário
recuperar os exorcismos” (AMORTH, 2008, p. 27).
Mas não aconteceu dessa forma. O excesso do passado, a demonização de tudo,
levou o assunto para uma nova etapa na história onde houve um completo desinteresse
pelo demônio e assuntos referentes, como o exorcismo.

16
Mayes ainda afirma que aprender com a teologia pastoral luterana clássica antes do Iluminismo é de
grande valor para todos os crentes que acreditam que o que é descrito em Marcos 1.34 pode acontecer
ainda hoje. Ele também afirma que nos últimos vinte anos se descobriram diversas notas em escritos
pastorais da Ortodoxia Luterana (MAYES, 2017, p.1).
Houve exageros quando se demonizaram todas as coisas; a reação
conduziu a este exagero, conduziu à queda da doutrina sobre o demônio.
O demônio passou a ser um símbolo, um boneco; quando muito passou
a ser visto como a ideia abstrata do mal. Mas deixou de ser considerado
como ser pessoal que atua em profundidade... Esta brusca passagem,
que se manteve viva por mais três séculos, foi depois influenciada pela
cultura popular, que teve grande influência nos ambientes eclesiásticos,
especialmente nas universidades, com fortes repercussões nos bispos e
sacerdotes; a religiosidade do povo ressentiu-se com um
enfraquecimento generalizado e, como sempre acontece quando a fé
sofre um abalo, com tendências para aderir à superstição que, no nosso
tempo, encontrou a sua raiz nas várias expressões do ocultismo.
(AMORTH, 2008, p. 27-28).

Esses assuntos foram ainda mais deixados de lado por conta dos racionalistas, dos
iluministas, de diversos cientistas do século passado que viviam contestando o
cristianismo e qualquer coisa espiritual. Ainda temos durante o século XX, o
materialismo, o ateísmo ensinado às massas pelo comunismo e também o consumismo
absurdo do mundo ocidental. Todas essas influências também entraram dentro das
universidades e seminários onde quase não se fala mais do demônio, menos ainda sobre
o exorcismo. As linhas teológicas são tantas, que muitos teólogos e biblistas modernos
sequer aceitam a existência de demônios e as ações demoníacas. Veem até os exorcismos
de Jesus como linguagem cultural da época e não como uma prova de sua divindade e de
sua vitória sobre o mal17 (AMORTH, 2008, p. 28).

Exorcismo e Lutero

Não é novidade que Lutero18 fala do demônio diversas vezes. Temos referências
nos Artigos de Esmalcalde, no Catecismo Maior, e nas mais variadas cartas que Lutero
escreve descrevendo ataques do demônio e possíveis causas como influências

17
Para saber mais sobre toda a história do exorcismo ao longo dos anos, será deveras útil a leitura
completa do livro de Francis Young, “A History of Exorcism in Catholic Christianity” onde ele mostra toda
a história, bem como as liturgias utilizadas. Ele parte da perspectiva católica, mas comenta algumas coisas
da perspectiva protestante também.
18
Kurt Koch descreve um sonho que Lutero teve em seu livro. Lutero foi atormentado pelo diabo. O diabo
abriu um grande rolo e lançou-lhe em rosto os pecados que cometera. No final, Lutero perguntou:
“Acabou?”, “não”, gritou o diabo, e trouxe um segundo rolo, mais um longo registro de pecados. E mais
um terceiro rolo. Depois disso, o diabo não apresentou mais nada. “Você esqueceu algo”, disse Lutero
com ar de triunfo, “escreva em cada rolo, bem depressa: “O sangue de Jesus Cristo, o Filho de Deus,
purifica-nos de todo o pecado.” O diabo vociferou uma terrível maldição e sumiu. (KOCH, 1978, p. 90-91).
demoníacas19. Mas um ponto interessante e que poucas pessoas sabem, é que temos o
relato de um exorcismo que Lutero fez sobre uma moça possessa. Estará relatado neste
presente artigo, para se observar a forma litúrgica do Reformador ao lidar com esta
situação. Será transcrito o exorcismo relatado no artigo do Mayes “Demon Possession
and Exorcism in Lutheran Orthodoxy. Concordia Theological Quarterly Volume 81:3-4
– julho/outubro de 2017.

Tradução própria:

Trouxeram ao Dr. Lutero uma jovem possessa, ele a inquiriu se conseguia


professar o credo, ela não conseguiu chegar ao segundo artigo. Dr. Lutero falou: “Eu o
conheço bem, demônio. Você quer que alguém te faça uma grande cerimônia contigo e
te celebre grandemente. Não encontrarás nada disso comigo”. Lutero mandou trazê-la
ao seu sermão no outro dia, terminado o culto, levou-a para a sacristia e chamou outros
servos da igreja para auxiliar. Lutero disse aos estudantes e futuros pregadores da Palavra
que nada dissessem de diferente, se encontrassem a si mesmos numa situação semelhante.

1. Ele começou dizendo: “Agora, em nosso tempo, as pessoas não deveriam


expulsar demônios como na época dos Apóstolos e depois deles, quando era
necessário fazer milagres e sinais em prol do Evangelho, para confirmá-lo como
nova doutrina, o que não é necessário no nosso tempo, pois o Evangelho está
confirmado. E se alguém quer expulsá-los como era feito naquela época, tenta
Deus”.
2. “Ninguém deve expulsar os demônios com conjurações, por comando, como no
papado ou como alguns de nós fazem, mas deve expulsá-los com orações e
desdém. Pois o diabo é um espírito orgulhoso, que não suporta orações e
desprezo, mas deseja uma cerimônia. Entretanto, ninguém deve fazer uma
cerimônia a ele, mas deve desprezá-lo o máximo possível”.
3. “Aquele que quer expulsar o diabo, deve fazê-lo através da oração, de uma
maneira que não prescreva ao Senhor Cristo regra, nem meio ou matéria, nem
tempo, lugar ou modo que Ele deve expulsar o diabo, pois isso é tentar Deus.
Mas nós persistimos na oração tanto, batemos e chamamos à porta por tanto

19
Outra leitura importante é o livro de Robert H. Bennett, “I am Not Afraid, Demon Possession and
Spiritual Warfare”, das páginas 129-135, onde ele descreve e comenta um pouco dos diversos escritos de
Lutero sobre o demônio, bem como de outros teólogos luteranos modernos.
tempo, até que Deus ouça a nossa oração, como Ele mesmo diz: ‘pedi e dar-se-
vos-á, buscai e achareis, batei e abrir-se-vos-á’ (Mt.7).
4. O Dr. Lutero impôs as mãos sobre a virgem, ele comandou aos servos para que
fizessem o mesmo, e comandou que dissessem depois dele: a) O Credo dos
Apóstolos; b) O Pai Nosso; c) Depois o Dr. Lutero disse estas palavras: Jo 14,
“’Em verdade, em verdade vos digo, tudo aquilo que pedires ao meu Pai em meu
Nome, isto Ele vos dará. Até agora não pedistes nada em meu nome. Pedi e
recebereis, e vossa alegria será completa’”. Depois disso, Lutero pediu para que
Deus, em seu poder, resgatasse e salvasse aquela jovem dama do espírito
maligno, em nome de Cristo, a fim de que fosse louvado, honrado e glorificado.
Depois disso, ele empurrou a moça com o pé e espancou o diabo, dizendo: “diabo
orgulhoso, querias que eu fizesse uma cerimônia para ti, mas não
experimentarás isso. Faça o que quiseres, eu não desistirei”.

Opressões e possessões

Há uma diferença entre possessão demoníaca e opressão demoníaca. A possessão


tem a ver com a perda de controle pessoal, a opressão está vinculada com a influência
externa de algum mal sobre a pessoa. Quanto à possessão demoníaca, há dois tipos. A
possessão espiritual e a possessão corporal. A primeira está conectada com a falta de fé,
o estado natural de todo ser humano sem a fé salvadora em Cristo Jesus, nosso Senhor.
Como está escrito na Escritura Sagrada, “pela natureza, somos filhos da ira” (Ef. 2.4).
Contudo, o diabo não controla os corpos dos possuídos, eles possuem um servo arbítrio.
Este tipo de possessão é diretamente atacado no Batismo. A segunda forma de possessão,
a possessão corporal, precisa ser precisamente avaliada para não ser confundida com
doença. Por este motivo, é necessário averiguar junto a especialistas se trata-se de um
caso de possessão corporal (MAYES, 2017, p. 2). Pode-se pegar exemplos bíblicos para
facilitar. Um caso de opressão demoníaca seria o episódio de Saul que foi atormentado
por um espírito maligno (1 Sm 16.14-23), mas ele não perdeu o seu controle mental, ou
seja, não foi possuído. E um caso de possessão seria o famoso relato do endemoninhado
geraseno (Mc 5.1-20), onde é apresentado o relato de um homem possuído e
completamente fora de si.
Alguns autores fazem mais divisões acerca da opressão demoníaca. Kurt Koch
cita em seu livro (KOCH, 1978, p.30), o Dr. Lechler que durante 35 anos, foi o médico-
chefe de um dos maiores sanatórios neurológico da Alemanha. Ele descreve em primeiro
lugar a opressão simples, que pode permanecer em um estado latente por muitos anos até
que um dia se manifeste. Em segundo lugar, a demonização, que é quando o demônio
reage a qualquer tentativa de assistência espiritual. Em terceiro lugar, a obsessão, onde o
indivíduo percebe que está cercado por poderes malignos e constantemente sofre
controles por parte desses poderes. E em quarto lugar, a possessão, em que o indivíduo é
habitado por demônios. Para este psiquiatra, estas quatro etapas formam uma unidade e
são apenas diferentes graus de intensidade de um só problema (KOCH, 1978, p.30).

O Padre Amorth também faz quatro divisões neste tópico da opressão. A primeira
delas é a possessão diabólica, que seria a possessão, quando o demônio possui de fato a
pessoa. O segundo gênero é a vexação diabólica, que seria uma agressão espiritual do
Diabo, Amorth (AMORTH, 2016, p. 64) diz que é de longe o que mais tem casos por
culpa de imprudências pessoais em consultar bruxos, médiuns, feiticeiros. Ocorrem
consequências por causa dessas consultas, ferimentos, queimaduras, pesadelos, sinais de
um mal que se apega a pessoa. A terceira seria a obsessão diabólica¸ que seria uma forma
de agressão espiritual onde o demônio comunica pensamentos e alucinações muito fortes
contra a mente da pessoa. Por vezes, a pessoa perde o domínio e fica sujeito a
pensamentos repetitivos, obsessivos com coisas terríveis. E a quarta e última, seria a
infestação diabólica, que seriam os distúrbios que acontecem sobre a casa, sobre os
animais, objetos, o que está na volta da pessoa, é nesta seção que entra, por exemplo,
portas e janelas abrindo e fechando, sons, passos, vozes, batidas na parede e diversas
outras anormalidades (AMORTH, 2016, p. 61-69).

Características malignas

Existem alguns sintomas que identificam uma possessão, sintomas primários: 1.


Saber de coisas secretas, como predizer o futuro (At 16.16), saber encontrar coisas ou
pessoas perdidas ou saber coisas demasiadamente complexas que não sabia antes.
Evidente que há aqueles, que para estas coisas, se utilizam de espírito malignos, mas isso
não significa que estão possuídos, mas recebem a assistência deles. 2. Saber línguas nunca
antes aprendidas. O diabo pode também prender a língua e alguém (Lc 11.14). 3. Força
sobrenatural (Mc 5.2-3), muito superior ao anterior ou em relação ao tamanho da pessoa
(MAYES, 2017, p. 2-3).

Alguns sintomas secundários: 1. Gritos de horror e desespero (Mc 5.5). 2.


Blasfêmia contra Deus e zombaria contra o próximo que é cristão. 3. Deformação dos
movimentos, movimentos como de fera, contorção facial, risada imodesta, cusparadas,
ranger de dentes, remoção das vestes e auto laceração (Mc 9.20; Lc 8.26). 4. Pândega
inumana, comer além da capacidade normal. 5. Tormento no corpo, ferimentos incomuns,
marcas no próprio corpo e nos corpos dos que vivem próximo. 6. Moção extraordinária
dos corpos, por exemplo, um velho possuído correr mais rápido que um cavalo. 7.
Amnésia, ou seja, não lembrar das coisas que fez. 8. Melancolia, depressão. 9. Tentativas
de suicídio para acelerar a morte (Mc 9.18). 10. Outras ocorrências sobrenaturais
(MAYES, 2017, p. 2-3).

O autor Kurt Koch, ao analisar o endemoninhado geraseno, identifica oito


sintomas da possessão. 1. Mc 5.2, o endemoninhado tinha um espírito imundo, em outras
palavras, um outro ser havia se incorporado nele. 2. Mc 5.3, o possesso possuía uma força
extraordinária. Ninguém conseguia prendê-lo. 3. Mc 5.4, a terceira característica é o
paroxismo, o acesso de raiva, ele despedaçava correntes e arrebentava qualquer coisa que
o prendia. 4. Mc 5.7, a quarta característica é a quebra da unidade, personalidade dividida.
Ele procura ajuda junto a Jesus e ao mesmo tempo o teme. 5. Mc 5.7, a quinta
característica é a resistência e a oposição a fé cristã e às coisas espirituais. O autor ainda
relata que no aconselhamento, constantemente, se manifesta este tipo de resistência ao
aconselhamento cristão. 6. Mc 5.7, a sexta característica é a hiperestesia, uma capacidade
metafísica sobrenatural, o geraseno era clarividente, imediatamente sabia quem era Jesus.
7. Mc 5.9, a sétima característica é a variação ou mudança de voz, uma legião falava
através do geraseno20. 8. Mc 5.13, a oitava característica é a transferência. Os demônios
entraram nos porcos (KOCH, 1978, p. 49).

O autor chama a atenção para o fato de que a segunda, a terceira e a quarta


características são semelhantes às de doenças mentais, mas não iguais. Já as outras
características restantes não fazem parte das classificações da psiquiatria, nenhum doente

20
Como exemplo disto, pode-se observar o filme “O diabo e o padre Amorth”, um documentário sobre o
assunto disponível no Netflix que retrata um exorcismo assistido e autorizado pelo Vaticano. E a
característica que nenhum psiquiatra consegue explicar, é justamente a mudança de voz.
mental é clarividente, fala com outras vozes, fala em outras línguas, e desconhecem
totalmente o fenômeno da transferência (KOCH, 1978, p. 49).

Evidentemente que muitos sintomas também são sintomas de doenças mentais21,


e é por isto que autores (Amorth, Koch, Bennet) que trabalham com exorcismo
recomendam que antes se consulte uma equipe médica preparada para isto, e depois, em
último caso, um exorcista. Também na Igreja Católica, no Rituale Romanum Tit. X, são
mencionadas quatro indicações de possessão. 1. Conhecimento de línguas não
aprendidas. 2. Conhecimento a respeito de coisas secretas e distantes. 3. Manifestação
sobrenatural de força. 4. Aversão a coisas divinas e eclesiásticas (KOCH, 1978, p. 51).
Dentro de todos estes aspectos, como reconhecer um possesso?

Em primeiro lugar, existe uma regra bem simples e fácil. As pessoas


que se dizem possessas, não estão. Os verdadeiramente possessos não
sabem que estão, e se soubessem, não o diriam. É preciso também
lembrar que, através de aconselhamento errado ou mesmo extremista,
algumas pessoas ficam convencidas de que estão possessas (KOCH,
1978, p.52)22.

Alguns fenômenos podem ser observados para a identificação como mostra Kurt
Koch23. O primeiro deles é a resistência. Quando alguém ora com uma pessoa que tem
doença mental, ela tem a tendência a ficar mais calma, recebe a oração de forma mansa.
Em um caso de possessão, a resistência se manifesta, a pessoa pode acabar blasfemando,
ameaçar a pessoa que está orando, até mesmo cuspir na Bíblia ou jogá-la para longe.

21
Sobre isto, Kurt Koch em toda a sua segunda parte de seu livro trabalha comparando sintomas de
doenças comparando com sintomas de operações demoníacas. Ele trabalha esquizofrenia, epilepsia,
depressão, neurose, doença psíquica, demência senil, e outras precauções para casos questionáveis de
operação demoníaca. O interessante é que o autor mostra sintomas típicos e atípicos e faz a comparação
com casos de possessão. E, geralmente, a principal diferença, é a blasfêmia, a pessoa possessa não
suporta ouvir a Palavra de Deus, o nome de Cristo, não consegue ouvir orações e tudo o que tem a ver
com a igreja. Diversos sintomas de doenças mentais são muito semelhantes a possessões, mas essa parece
ser o ponto principal (KOCH, 1978, p. 108 – 165).
22
Kurt Koch também dá testemunho de seu cuidado pastoral ao cuidar das pessoas: “Em toda a minha
vida eu nunca disse a qualquer pessoa que ela estava possessa, mesmo que, depois de algum tempo, eu
tivesse esta impressão. Não temos o direito de levar alguém a enfrentar uma diagnose de tamanho peso….
Se algumas coisas vão mal em nossa vida, não devemos por logo a culpa na feitiçaria e nos demônios. E
sejamos também cautelosos em não dizer que a outra pessoa está possessa, sem que o fato esteja
comprovado. Existem muitos fenômenos naturais que nada têm a ver com o domínio satânico” (KOCH,
1978, p. 53-54).
23
O conselho principal dele é: “Entregue a sua vida a Jesus. Peça a iluminação do Espírito Santo. Se
possível, procure adquirir conhecimentos de medicina. Devemos recorrer a todos os meios de ajuda que
Deus nos dá, nossa inteligência, nossa experiência e, sobretudo, um coração renascido e cheio do Espírito
Santo” (KOCH, 1978, p. 52).
O segundo é o transe, os possessos podem entrar em transe durante a oração, pois
o diabo não quer permitir que suas vítimas ouçam a oração e a Palavra de Deus, ou seja,
tenta deixar inconsciente a pessoa possessa para que não escute a oração. Um doente
mental jamais agiria assim (KOCH, 1978, p. 54). Koch também afirma que os possessos
têm muitas vezes aptidões para a clarividência, o que pode vir a ser embaraçoso para os
que estão orando por ele, pois os possessos podem revelar pecados secretos das pessoas
que estão orando por ele. E por último, às vezes, quando os possessos entram em transe,
eles falam em línguas que não aprenderam, novamente um ponto forte que mostra a
diferença entre a doença mental, uma pessoa com doença mental jamais falará em línguas
que nunca aprendera antes24 (KOCH, 1978, p. 55).

Questionamentos e cuidado pastoral

Algumas questões certamente são levantadas quando abordamos tópicos como


exorcismo, demônios e opressões malignas. Uma delas é: Pode um cristão ser possuído
por um demônio? A Bíblia não registra nenhum caso de possessão de crentes, nem mesmo
de opressão do diabo para com um cristão, pelo menos enquanto viviam uma vida de
obediência a Jesus. Existem histórias como a de Ananias e Safira, cristãos que resistiram
conscientemente ao Espírito Santo, caindo em pecado e não buscando o perdão, sofrendo
assim as consequências e influências malignas. Mas, mesmo assim, não foi o caso de uma
opressão e nem possessão, e sim de uma tentação maligna25 (KOCH, 1978, p. 161).
Outra questão, para que fique bem claro: Como uma pessoa opressa é libertada?
A resposta desta pergunta é justamente a ênfase da Bíblia toda, não só quando o assunto
é possessão, mas também de uma nova vida, de perdão dos pecados, de estarmos
novamente ligados a Deus, da Obra de Cristo pela humanidade. E da mesma forma,
também é assim que acontece com as opressões demoníacas, qualquer pessoa que aceitar
Jesus como seu Senhor e Salvador, e que tiver o objetivo de segui-lo poderá ser libertada
de qualquer forma de opressão demoníaca (KOCH, 1978, p. 162-164).
Talvez mais um grande questionamento que pode vir a surgir, é se o contato com
um opresso ou um possuído, ou a intercessão pelo mesmo pode trazer algum dano

24
Koch cita o exemplo de um médium brasileiro, Mirabelli, que consegue falar vinte e cinco línguas
quando está em transe (KOCH, 1978, p. 55).
25
Os autores quando abordam este assunto, relatam diversas experiências onde cristãos impenitentes
sofreram de opressões, e, também, cristãos que foram consultar cartomantes e espíritas, essas pessoas
correm o risco de sofrerem algo (AMORTH, 2013; KOCH, 1978).
prejudicial para o cristão, se pode ser perigoso ou não. Não há nenhuma referência bíblica
sobre a transferência de forças malignas para cristãos. E as Escrituras também não
registram qualquer caso de agressão demoníaca a seguidores autênticos de Cristo (KOCH,
1978, p. 166).
Muito pelo contrário, sabemos que Cristo prometeu que ninguém será capaz de
arrebatar os seus discípulos de suas mãos, como está escrito em João 10.28: “Eu lhes dou
a vida eterna; jamais perecerão, e ninguém as arrebatará da minha mão”. O Apóstolo
Paulo afirma em 2 Ts 3.3: “Mas o Senhor é fiel. Ele os fortalecerá e os guardará do
Maligno”. Também em Rm 8.38: “Porque eu estou bem certo de que nem a morte, nem
a vida, nem os anjos, nem os principados, nem as coisas do presente, nem do porvir, nem
os poderes, nem a altura, nem a profundidade, nem qualquer outra criatura poderá nos
separar do amor de Deus, que está em Cristo Jesus, nosso Senhor. ” A Escritura ainda
exorta para que os cristãos orem uns pelos outros, como está escrito em 1 Tm 2.1: “Antes
de tudo, pelo que se façam súplicas, orações, intercessões e ações de graças em favor de
todas as pessoas”.

Conclusão

Como pode-se notar ao longo do trabalho, exorcismo faz parte do cuidado


pastoral. Não deve ser um ofício desprezado por simples questões racionais, ou simples
bordões como “só acredito vendo”. Portanto, como resposta ao título deste artigo,
“Exorcismo, prática esquecida ou prática renegada pelo racionalismo? ” Sim. Sim, ambas
as coisas, em proporções diferentes. Foi esquecida e renegada, esquecida porque em um
determinado período a igreja estava preocupada com outras soluções para uma
demonização de tudo.
Renegada, porque o racionalismo combateu tudo o que poderia vir a ser
sobrenatural, formando em parte, a mentalidade que nós temos hoje. No entanto, salvam-
se as exceções que permaneceram firmes na luta espiritual e o preservaram até hoje,
alguns destes, são os autores consultados e citados neste artigo. Robert H. Bennett alerta
no final de seu livro: “Mesmo hoje, o aviso deve ser dado: Satanás está ativo, e possessão
demoníaca continua sendo um problema pastoral que a Igreja deve responder para a vida
de seu povo” (BENNET, 2013, p. 167).
Deve-se lembrar sempre de que Cristo está com os seus e os protege de todo o
mal. Ele é o único caminho, ele é a salvação, e sobre a sua vitória, os cristãos são
vitoriosos. É por isso que exorcismo é uma oração, um pedido para aquele que tem todo
o poder e autoridade, e não porque o ser humano pode fazer algo, pois ele não pode. Mas
se recorre a Cristo, e ele, como Senhor de todas as coisas, age em favor das suas ovelhas,
por puro amor. A ação do exorcista, do pastor, é apenas uma extensão das ações de Cristo,
um meio, uma resposta. A conclusão deste artigo se dá com uma citação do Pe. Gabriele
Amorth, um especialista na área, que com toda a sua experiência, conforta a todos que se
aventuram na ajuda espiritual em Cristo Jesus:

Posso dizer, aos meus colegas sacerdotes, que é sobretudo um


ministério de conforto, de aproximação a Deus e à Igreja. Algumas
pessoas pensam que os exorcistas demonizam tudo e que, nesse sentido,
a sua presença é nociva. Mas é exatamente o contrário: o exorcista
tranquiliza, afasta falsos medos, colabora eficazmente para a
pacificação das consciências e para a paz entre os indivíduos. Foi o que
vimos no período mais negro da história dos exorcismos: onde se
faziam exorcismos, não se demonizavam nem se matavam as pessoas.
Ter muitos exorcistas significa dar um grande auxílio para acalmar os
ânimos. E significa também aconselhar e consolar as pessoas com
palavras da fé, e não com os truques dos magos, a quem as pessoas
recorrem, muitas vezes porque não encontram entre os sacerdotes,
quem as ouça (AMORTH, 2008, p.31).

Muito mais poderia ser dito sobre o tema, e muitas questões a mais poderiam ser
abordadas. Por isso é recomendado a leitura dos livros citados neste artigo para um maior
aprofundamento temático.
“Porque eu estou bem certo de quem nem a morte, nem a vida, nem os anjos, nem
os principados, nem as coisas do presente, nem do porvir, nem os poderes, nem a altura,
nem a profundidade, nem qualquer outra criatura poderá nos separar do amor de Deus,
que está em Cristo Jesus, nosso Senhor (Romanos 8.38-39) ”.

Referências bibliográficas.

AMORTH, Gabriele. Vade Retro, Satanás!. Trad. Alda da Anunciação Machado; São
Paulo: Editora Canção Nova, 2013.

AMORTH, Gabriele. Exorcistas e Psiquiatras. Trad. Ana Paula Bertolini; São Paulo:
Editora Palavra & Prece, 2008.
AMORTH, Gabriele. O Exorcista explica o mal e suas armadilhas. Rio de Janeiro:
Editora Petra, 2016.

BENNETT, Robert H. I am Not Afraid, Demon Possession and Spiritual Warfare. Saint
Louis: Concordia Publishing House, 2013.

Bíblia Sagrada. Trad. João Ferreira de Almeida. Revista e Atualizada no Brasil. Edição
Revista e Atualizada no Brasil, 3° ed. São Paulo: Sociedade Bíblica do Brasil, 2017.

Bíblia de Estudo da Reforma. São Paulo: Sociedade Bíblica do Brasil, 2017.

Culto Luterano: Liturgias e orações. Porto Alegre: Editora Concórdia, 2015.

FORTEA, José Antonio. Interview with an Exorcist – Na insider’s look at the Devil,
Demonic Possession, and the Path to Deliverance. West Chester: Ascension Press, 2006.

LEVACK, Brian P. The Devil Within – Possession and Exorcism in the Christian West.
New Haven and London: Yale University Press, 2013.

KOCH, Kurt. Ocultismo, Demônios e Exorcismos – Como libertar opressos e


endemoninhados. Belo Horizonte: Editora Betânia, 1978.

MAYES, Benjamin T.G. Demon Possession and Exorcism in Lutheran Orthodoxy.


Concordia Theological Quarterly Volume 81:3-4 – julho/outubro de 2017.

MIDELFORT, Erik H. C. Exorcism and Enlightenment, Johann Joseph Gassner and the
Demons of Eighteenth-Century Germany. New Haven and London: Yale University
Press, 2003.

OMANSON, Roger L. Variantes Textuais do Novo Testamento. Trad. Vilson Scholz.


Barueri, SP. Sociedade Bíblica do Brasil, 2010.

TASKER, R. V. G. Mateus, introdução e comentário. São Paulo; Editora: Sociedade


Religiosa Edições Vida Nova e Associação Religiosa Editora Mundo Cristão, 1988.

YOUNG, Francis. A History of Exorcism in Catholic Christianity (Palgrave Historical


Studies in Witchcraft and Magic). Basingstoke: Palgrave Macmillan, 2016.

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