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CRISTOLOGIA

E
SOTERIOLOGIA

Prof. Nelson Célio de Mesquita Rocha

Rio de Janeiro – RJ

E-mail: nelsonceliorocha@gmail.com
CRISTOLOGIA E SOTERIOLOGIA 1

Prof. Nelson Célio de Mesquita Rocha

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO
1. UM MUNDO PLURIRELIGIOSO E UMA MODERNIDADE EM CRISE
2. IMPLICAÇÕES DO EVENTO CRISTO
2.1. Uma verdadeira concepção de Deus (Teologia)
2.2. Um conceito correto de ser humano (Antropologia)
2.3. Uma real visão da salvação (Soteriologia)
3. O PLANO BÁSICO DA CRISTOLOGIA
3.1. A distância entre Deus e o homem
a) Transcendência e alteridade
b) Um regime de encarnação
c) O drama adâmico – o mal
d) Do estado de Adão à mediação de Cristo
3.2. A aliança entre Deus e o homem
a) Similitude entre o Antigo Testamento e o Novo Testamento
b) A Lei, seu valor permanente e seu complemento
3.3. A encarnação, lugar do Mediador
a) Uma habitação na carne
b) A encarnação persegue o ofício de mediador
c) A exaltação de Cristo: uma assunção da humanidade
3.4. A ascensão de Cristo, seu lugar à direita do Pai e o Reino do Pai
a) A ascensão e o senhorio de Cristo
b) Do reino de Cristo ao reino do Pai
c) Uma humilhação no coração da exaltação?
d) Um Cristo fora da carne – O “Extra Calvinisticum”
3.5. A Redenção
a) Obediência e contemplação
b) O mistério pascal
c) Cristo “em nosso lugar”
3.6. Participar da graça de Cristo
a) Recusa de uma contiguidade de Cristo no crente
b) A fé como operação secreta do Espírito
c) Trabalho contínuo do Espírito
d) Um lugar de testemunho interno do Espírito
4. OS TÍTULOS CRISTOLÓGICOS
4.1. O problema cristológico no cristianismo primitivo
4.2. O papel cristológico no pensamento teológico dos primeiros cristãos
4.3. Em que consiste o problema cristológico no Novo Testamento?
4.4. O método elaborado por Oscar Cullmann
4.5. Os títulos cristológicos mais importantes utilizados no Novo Testamento
4.6. Classificação dos títulos – O plano da obra cristológica de Oscar Cullmann
4.7. Os títulos cristológicos relativos à obra terrena de Jesus Cristo
4.7.1. Jesus, o Profeta
a) O profeta do fim dos tempos no judaísmo
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c) O profeta do fim dos tempos segundo o Novo Testamento


c) Jesus: “O verdadeiro Profeta” no cristianismo-judaico tardio
d) Jesus o Profeta, como solução do problema cristológico do Novo Testamento
4.7.2. Jesus, o Servo Sofredor de Deus
a) O “Ebed Yahvé” no judaísmo
b) Jesus e o “Ebed Yahvé”
c) Jesus: o “Ebed Yahvé” no cristianismo primitivo
d) A doutrina do “Ebed Yahvé” como solução do problema cristológico
4.7.3. Jesus, o Sumo Sacerdote ()
a) O sumo sacerdote, figura ideal do judaísmo
b) Jesus e a concepção de sumo sacerdote
c) Jesus o sumo sacerdote segundo o cristianismo primitivo
4.8. Os títulos cristológicos relativos à obra futura de Jesus
4.8.1. Jesus, o Messias ()
a) O Messias no judaísmo
b) Jesus e o Messias
c) A Comunidade Primitiva e o Messias
4.8.2. Jesus, o Filho do Homem
a) O Filho do Homem no judaísmo
b) Jesus e a idéia do Filho do Homem
c) Foi a Cristologia do Filho do Homem representada por um meio particular no seio do
Cristianismo Primitivo?
d) A Noção do “Filho do Homem” segundo o Apóstolo Paulo
e) O Filho do Homem em outros escritos do Novo Testamento
4.9. Os títulos cristológicos relativos à obra presente de Jesus
4.9.1. Jesus, o Senhor
a) O título de “Kyrios” nas religiões helenistas, orientais e no culto ao Imperador
b) O “Kyrios” no judaísmo
c) “Kyrios Iesous” e o Cristianismo Primitivo
d) “Kyrios Christos” e a divindade de Cristo
4.9.2. Jesus, o Salvador ()
a) O título “Soter” no judaísmo e no helenismo
b) Jesus o Salvador no Cristianismo Primitivo
4.10. Os títulos cristológicos relativos à pré-existência de Jesus
4.10.1. Jesus, o “Logos”
a) O “Logos” no helenismo
b) O “logos” no judaísmo
c) A idéia do “Logos” aplicada a Jesus
4.10.2. Jesus, o Filho de Deus
a) O Filho de Deus no Oriente e no Helenismo
b) O “Filho de Deus” no judaísmo
c) Jesus e o título “Filho de Deus”
d) A fé do Cristianismo Primitivo em Jesus o Filho de Deus
4.10.3. Jesus chamado Deus (

CONCLUSÃO
BIBLIOGRAFIA
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INTRODUÇÃO
Por que uma Cristologia? Uma Cristologia é necessária, porque pode apresentar a pessoa e a
obra de Jesus Cristo, o Filho de Deus que se fez carne e habitou entre os homens e as mulheres, a
fim de ensiná-los a fazer a vontade do Pai. Toda a base da Teologia está fundamentada na
Cristologia, pois se não houver uma boa Cristologia, não poderá haver uma boa Teologia.
1. UM MUNDO PLURIRELIGIOSO E UMA MODERNIDADE EM CRISE
Na presente exposição consta uma visão panorâmica da atual situação em que se encontra o
nosso mundo, que é um mundo plurireligioso, com uma experiência de modernidade em crise com
suas diversas propostas e paradigmas.
A experiência da humanidade está marcada pela tensão que flui da correria exacerbada por um
sentido que possa garantir vida através do ter em detrimento do ser. A crise tem a sua base na
estrutura que implicou numa preocupação pelo que a pessoa tem, esquecendo-se do mais
importante, que é o que se deve ser de fato, pessoa, gente, ser humano. Parece que ser humano hoje
não tem mais sentido. O que se tem, ou o que se poderá ter virou objeto de idolatria, a ponto de
haver um atropelamento, um passar por cima de todos os valores verdadeiramente considerados
humanos do ponto de vista que a Palavra de Deus aponta. Parece que a felicidade está bem distante
de todos nós; parece que não há mais saída. O que é certo se torna errado, e o que é errado torna-se
certo. É uma sociedade invertida.
Os valores que estruturam a vida humana estão marcados pela exaltação do fator econômico,
pela busca de bem-estar, pelo anseio de sucesso a todo custo, pelo culto à privacidade e a dedicação
à família.1 Nesse contexto, parece que a Igreja não encontra meios para pregar e viver a sua
mensagem fundamentada no Evangelho. Se a Igreja está presente no mundo, por que tantas
evidências negativas? Não é ela a comunicadora da mensagem de Deus aos povos? Algumas
questões são fundamentais: o viver numa sociedade pluralista e secularizada, o sentir o influxo do
individualismo, o exótico fenômeno da volta ao sagrado e o ser rodeado por uma diversidade de
religiões oferecendo a sua salvação.2
Um mundo plural. Em tudo se constata uma pluralidade. Há pluralidade nos partidos
políticos, nas ideologias, nas diversas estruturas da família, na economia, na justiça, na religião... A
globalização motivada pelo poder econômico veio influenciar todos os segmentos da existência
humana a ponto de tudo o que se faz torna-se dependente desse poder. O impacto atinge todas as
classes sociais, e chega a níveis dramáticos.3 Essa nova realidade veio para ficar e se impor, 4 pois
não se pode mais excluir os que têm correntes ideológicas diferentes dos cristãos.
No campo religioso, todos os países estão experimentando esse impacto. No Brasil, por
exemplo, nesses últimos tempos têm surgido muitas seitas novas, bem como grupos denominados
cristãos, e assim, parece haver uma dificuldade para a pregação evangélica. O Brasil possui em seu
bojo o cruzamento de três tradições: a européia, a africana e a indígena; formando, portanto, o Brasil
de hoje, sobretudo o Brasil católico e protestante histórico. 5 Daí a pluralidade que decorre também
dessas tradições.
Essa pluralidade geral traz consequências que traçam um perfil de individualidade, a ponto de
cada pessoa formar os seus conceitos acerca do mundo e de Deus, respectivamente. Cada um tem o
seu modo de vida, e também a sua salvação. Agindo-se desta maneira, concomitantemente, constroi-
1
MIRANDA, M. F. (1992). Um Homem Perplexo, p. 5.
2
Ibidem, p. 7.
3
MIRANDA (1992). Como ser cristão numa sociedade pluralista, p 10.
4
Cf. Ibidem, p 11.
5
BINGEMER, M. C. (1993). Alteridade e Vulnerabilidade, pp 36-37.
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se um modo autônomo e individual, determinado por uma forma de existir, estabilizando-se a


maneira de não haver uma preocupação com outras visões de outras pessoas ou grupos. 6 Não só
através dos meios de comunicação, mas também há religiões que promovem o individualismo, onde
cada uma tem seus projetos de salvação pelo “segure-se quem puder”.
Portanto, numa sociedade pluralista cabe ao indivíduo construir, diante daquilo que lhe é
oferecido, a sua própria identidade social. 7 Constroi-se uma personalidade deformada e desprovida
de firmeza. Pessoas por não terem uma boa estrutura, ficam titubeantes em todos os ângulos da
existência, sem saber onde encontrar refúgio. Formam-se várias personalidades: opressores,
oprimidos, viciados, dependentes de diversos meios, assassinos, pornográficos, pornofônicos,
promíscuos, prepotentes, impotentes... É o produto da confusão reinante e que parece não ter mais
fim. Um mundo plural e uma modernidade em crise.
Uma modernidade em crise. A modernidade tem em si características principais como, por
exemplo, pensar não mais mítica, mas historicamente; regendo-se não mais pelos parâmetros
religiosos, mas por uma nova visão em que não se conhecem absolutos.8 Nesse contexto o
cristianismo não aparece mais como o que possui a única palavra salvífica. O conceito de eternidade
não tem mais o seu lugar, e o tempo vivido é apenas restrito ao que é em si, e desprovido de
esperança por um mundo melhor.
O homem moderno caminha para frente confiando apenas nas suas energias, quer dominar o
mundo com as suas ideias pela ciência e pela técnica.9 É o homem querendo se afirmar como Deus,
como ser supremo. Com isso, vai se esquecendo de cuidar do semelhante e da criação; esquece-se de
ser dom de Deus; da responsabilidade que lhe confiou o Criador: cuidado em relação à criação. Com
isso vai se tornando um solitário. As fobias tomam conta do indivíduo. Enquanto isso, o medo vai
imperando, e ninguém sai mais de casa a qualquer hora do dia ou da noite por causa da violência
criada pelo próprio homem em sua ganância. Os grupos humanos encontram-se acorrentados e
escravizados ao mais prepotente e terrível opressor: eles mesmos. 10
Diante de tanto progresso o ser humano não encontra resposta para as questões mais cruciais
de sua existência. Percebem-se tantas religiões e grupos que levantam algumas bandeiras, mas sem
sucesso. Há até certa percepção que acentua uma vida espiritual tentando se afirmar por alguns
pressupostos, mas ao mesmo tempo em que o homem é extremamente religioso é também
materialista.
O que fazer diante de tanta negatividade? Que resposta tem o cristianismo, a Igreja para as
questões que preocupam o homem moderno? Além disso, já está se tratando de uma chamada Pós-
Modernidade. Esse campo plural e diversificado apresenta grandes desafios à proposta do
cristianismo, que tenta mostrar os contornos do rosto de Deus que lhes foram revelados ao longo da
história e da experiência de sua tradição.11

2. IMPLICAÇÕES DO EVENTO CRISTO


O Evento Cristo, conforme nos garantem os relatos evangélicos nos possibilitam ter um perfil
que produz uma nova sensibilidade, uma percepção verdadeira do que se entende a respeito de Deus,
do ser humano e da salvação. Esse evento, em sua origem, apresenta o perfil para o resgate da
verdadeira maneira de existir na história, ainda que transtornada pelo pecado, sinônimo do
afastamento de Deus e do próximo.

6
Ibidem, p 38.
7
MIRANDA (1992), p 12.
8
BINGEMER (1993). Crise da Modernidade e Questão Religiosa, p 17.
9
BINGEMER (1992), p 18.
10
BINGEMER (1993). Aleteridade e Vulnerabilidade, p 20.
11
BINGEMER (1993), p 39.
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O evento Cristo nos possibilita ter de forma marcante:

2.1. Uma verdadeira concepção de Deus (Teologia)


O que as pessoas venham a pensar de modo correto acerca de Deus se constitui um desafio
para que a Teologia se posicione, não somente por um ângulo de transcendência, mas pelo de se
incumbir e de formar uma consciência de práxis histórica. A Teologia no que concerne à sua própria
definição tem a pretensão de ser palavra organizada, reflexão sobre Deus, que se constitui a questão
fundamental da fé e da própria existência humana.12
Não se pode olvidar que o centro do fenômeno religioso em todas as religiões é Deus.13 Deus
faz parte das tradições religiosas de todo o mundo, ainda que a modernidade tenha tentado aniquilar
todo o horizonte de compreensão acerca da divindade. O espaço da existência humana por muito
tempo foi preenchido e marcado pela concepção que levou a uma crise, e que jogou para longe o
conceito de Deus. Daí, a pós-modernidade caminha sob vários pontos cambaleantes, que tentam
desestruturar o que sobre Deus verdadeiramente se pode pensar e experimentar na trajetória da
existência humana.
Fala-se muito em tempos pós-modernos. Os tempos pós-modernos no fundo, preconizam a
desaparição mesma de Deus e de qualquer rastro de sua existência. 14 Passou-se a viver numa
estrutura fragmentada por ideologias e práticas desprovidas de segurança que não são evocadas pela
Palavra de Deus. Ao mesmo tempo em que o homem tenta se afirmar como um ser religioso,
buscando parâmetros para a sua vida pelo exercício de uma fé em Deus, mistura-se no emaranhado
de ideologias, chegando também a certas conclusões providas de ambiguidades.
Conceber o que se deve pensar sobre Deus não pode partir de premissas elaboradas
simplesmente pela imaginação humana desprovida de uma teologia que viabilize pensar na história e
não acima dela. O que se pode denominar de uma boa teologia é a que não está aquém do processo
histórico, mas em seu conteúdo inserida, tomando parte em todos os acontecimentos que se
sucedem.
O Evento Cristo, verdadeiramente se constitui a premissa mais forte para essa concepção. A
divindade de Cristo e sua existência encontram base na ressurreição, logo, a fé na ressurreição de
Jesus, desde que foi proclamada no dia de Pentecoste e depois deste, não vai simplesmente garantir
consistência no que se crer dele, mas crer nele e esperar algo dele. O que se pode esperar é a
salvação.15 A fé na ressurreição de Jesus é fundamental para a existência da comunidade de fé. Jesus,
segundo os relatos evangélicos, vai delinear tudo o que se pode refletir para se conceber acerca de
Deus; destarte, tudo o que se crê de Jesus é depositado na fé. 16
Jesus, através dos relatos do Novo Testamento, principalmente nos evangelhos, revela quem é
de fato Deus. Deus é um Deus de amor, de pura misericórdia, não distante das pessoas, mas
penetrando na existência humana a ponto de permitir que o seu próprio Filho se entregasse por nós.
Segundo as Escrituras Jesus morreu pelos nossos pecados. 17 Esse acontecimento é revelador da
novidade de Deus, de seu ser trinitário. Jesus foi vítima de expiação pelos nossos pecados. O que
significa essa afirmação? Tem o seu significado no sentido de que Deus não quis que seu Filho

12
Ibidem, p 71.
13
Ibidem, pp 54-58.
14
BINGEMER (1993), p 55.
15
MOINGT, J. (1995). El Hombre Que Venía de Dios, Volume II, p 89. Esse teólogo tenta resgatar a partir da
Cristologia segundo os relatos dos evangelhos uma concepção de Deus na História em sua ação trinitária, partindo de
modo inverso segundo o que consta na tradição determinada pelos concílios da Igreja nos séculos de História da Igreja.
16
Ibidem, p 89.
17
MOINGT (1995), p 96ss. Esse teólogo descreve de modo profundo e indubitável o significado dessa entrega,
revelando, portanto, o verdadeiro Deus que se entrega por amor à criação.
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morresse, não existiu nenhum propósito predeterminado a fim de que Jesus viesse ao mundo para
morrer, mas foi a sua fidelidade ao Pai, a compreensão que passou a ter do que constava nas
Escrituras, à semelhança dos profetas, entendeu que tinha de ir às últimas consequências no sentido
garantir a nossa salvação.18 Jesus é o Deus que veio para servir. Deus é um Deus de serviço, porque
ama profundamente e se interessa por suas criaturas, e deseja ensinar isso a elas, ainda que sejam
rebeldes em relação ao Criador.
Apesar de toda a rebeldia do povo de Israel, conforme se entende esse perfil no Antigo
Testamento e repetindo-se também na história posterior, Deus executa a sua paciência e amor. As
vias da salvação implicam certa intuição de Deus, conforme a que se encontra nos profetas: Deus é
tardio na sua cólera e cheio de misericórdia; é Deus de paciência e amor.19 Diante disso, constata-se
que a morte de Jesus tem uma intenção salvífica, e Deus se vinga ressuscitando a Jesus dentre os
mortos em benefício de todos.20 Logo, Jesus em sua trajetória dava a seus sofrimentos um sentido
salvífico; sua morte convertida em ressurreição é obra do Deus de amor, que não contemplou a
miséria humana desinteressadamente, antes exercitou o seu amor de modo integral.
Utiliza-se a palavra resgate no Novo Testamento não em outro sentido, senão no que tange ao
se fazer servo da classe social mais baixa. Jesus não veio para ser servido, mas para servir e dar a
sua vida em resgate por muitos. Isso significa que ele veio dar a sua vida. Não através da expiação
somente, mas de serviço à humanidade antes de sua morte. Este pensamento teológico é importante
para que se possa compreender quem é Deus segundo tudo o que Jesus realizou para a nossa
salvação. Em João 13.12-17 consta o relato simbólico de lavar os pés, assim como o de compartilhar
a Ceia Eucarística, ocasião em que expressa Jesus o sentido de sua vida e de sua morte, que enuncia
a continuação das palavras que têm valor de testamento, portanto, salvífico e não expiatório. Nessa
passagem o Deus que mostra Jesus não é outro senão o Deus de serviço à humanidade.
A palavra do Pai é a missão, o mandamento confirmado a seu Filho. Jesus se entrega
voluntariamente, por amor aos homens tanto quanto a seu Pai.21 Esse é o ato de se dar, de se
entregar sem barreiras. Verificar os textos bíblicos: Rm 8.21-32; Gl 2.20-21; Ef 4.32-5.2; 5.25.
Jesus conquistou para nós o direito de chamar Deus de Pai. Por trás dessa paternidade está
tudo o que nos garante a vida plena. Não está Ele distante da nossa história, antes caminha conosco,
nos possibilitando vencer todas as adversidades.
Mas também Jesus nos ensina a ter uma concepção de Deus como o totalmente outro; aquele
que veio em nosso favor. Logo, somos colocados diante da verdade de que devemos amar uns aos
outros, assim como Deus nos amou (Jo 13.34). O próximo é também um absoluto, pois está na mira
do ensino de Jesus.22 Respeitar o semelhante é respeitar a Deus e respeitar a Deus é respeitar o
próximo. Pensar assim nos leva a refletir numa antropologia equilibrada e resgatar o verdadeiro
sentido de se conceber Deus na história, determinando parâmetros dimensionadores do
relacionamento que encontra o seu êxito no comportamento ético comprometido com as bases do
Reino de Deus que é o serviço.
O conceito que os fariseus do tempo de Jesus tinham acerca de Deus era o que eles mesmos
achavam de si, quando exerciam o monopólio religioso no sentido de oprimir as classes mais baixas
da sociedade. Mas, vem Jesus andando e comendo com os pecadores, mostrando uma nova
identidade de Deus.23 Surge, portanto, um conflito entre o que se pensava acerca do Deus dos

18
Ibidem, p 98.
19
Ibidem, p 101.
20
Ibidem, p 107.
21
MOINGT, J. El Hombre Que Venía de Dios: Uma vitória do Amor. Uma vitória do Amor, pp 115, 117. Esse
teólogo argumenta enfocando o Dom e o Resgate, que culmina no profundo amor de Deus pelos homens, assumido por
Jesus de Nazaré.
22
MOINGT (1995), pp 150-151.
23
Ibidem, pp 159-168.
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pais, tal como foi formado nas mentalidades e nas instituições religiosas do passado, e o que veio a
existir historicamente através de Jesus de Nazaré. Era preciso crer em Jesus e reconhecê-lo como o
revelador da novidade de Deus. Deus é um Deus que existe para os homens, que não os deixam
sozinhos em suas misérias, e que trabalha a fim de que sejam mais humanos, unindo-os num laço de
amor fraterno. Um Deus que quer fazer novas todas as coisas e se relacionar com os homens. 24
Deus foi revelado em Jesus. Ele é o próprio Deus. Um Deus próximo. Um Deus de amor. Era
preciso reconhecer Jesus como o enviado do Pai. Verificar Jo 8.18-19; 14.5-10, onde está escrito
que, quem conhece a Jesus também conhece o Pai. Através de Jesus pode-se compreender quem é
Deus.25 O Deus de Jesus é seu Pai. A palavra de Deus se converteu na palavra de Jesus, que
interpela os homens a darem uma resposta de compromisso, de serviço ao próximo, e de poderem
chamar Deus de Pai, tendo como fundamento a projeção de Deus em Jesus com a mesma verdade
que Jesus tinha no Pai. A paternidade de Deus é o dom da vida, e a garantia de que não estamos
sozinhos à mercê do mal.
Diante dessa concepção de Deus a partir do evento marcante da pessoa e obra de Jesus, basta
que se busque viver essa realidade, que tem sua fonte nos relatos da Palavra de Deus, e muito mais,
na certeza de que o Deus de Jesus é o nosso Pai. Sabendo de fato quem é Deus, pode-se ter a
percepção exata do ser humano, que é tratado no ponto seguinte.

2.2. Um conceito correto de ser humano (Antropologia)


Encontramos no Evento Cristo o verdadeiro resgate do humano, que precisa ser repensado em
termos de valor, de feitura do Criador, bem como sua imagem. Somente se resgata esse ser a partir
da reflexão e da práxis evangélica, observando todo o contexto vivido intensamente por Jesus de
Nazaré, que deu a sua vida a fim de fazer feliz a raça humana - objeto do amor da Trindade.
O ser humano é valor em si mesmo, ainda que esteja no mais profundo do abismo, no vale da
sombra da morte. Isso é o valor que se dá à vida quando se investiga a experiência de Jesus junto ao
Pai, no sentido de não ser pusilânime ao defender a causa de quem estava sendo oprimido e
injustiçado, antes estando na linha de frente do combate em favor da vida. Ele mesmo disse: “Eu vim
para que tenham vida...” (Jo 10.10). Não somente investigar a vida do Filho de Deus, mas viver sua
experiência, que é a conversão do mal para o bem, do pecado para a graça, das trevas para a luz.
A única via para se compreender e se desenvolver uma antropologia de qualidade é a do relato
evangélico, para recorrer e não desembocar numa rua sem saída, antes permitir alcançar o ser de
Jesus, efetuando passo a passo a história de sua pessoa. 26 Como Filho de Deus, que é base da
pregação da Igreja, Jesus sempre procurou fazer a vontade do Pai, vivendo uma relação de amor,
sendo obediente e pagando o preço pela obediência. Essa relação de amor ensina ao homem que este
deve também viver nessa condição, pois o princípio estabelecido através desse relacionamento
singular caracterizou o que os homens devem realizar entre si na história.27 Jesus viveu uma
existência totalmente entregue a Deus. Em sua experiência marcante também deixou o legado de que
o Criador chama o ser à existência, convocando-o a ser pessoa, e esta não se constitui a si mesma
completamente sozinha, em solidão e clausura, mas na comunhão de uns com os outros em amor. 28
Logo, o verdadeiro conceito de pessoa e de ser humano se entende em Jesus de Nazaré. Como Jesus
construiu a sua pessoa se compreende na perspectiva de que a sua atividade e liberdade de

24
Ibidem, p 163.
25
Ibidem, pp 229-246.
26
Ibidem. Página 210.
27
MOINGT (1995), p 210. É enfatizado tudo isso no sentido de se apresentar Jesus como o verdadeiro paradigma do
relacionamento de amor com o Pai, concebendo-se o significado real da expressão que se atribui a Jesus: “Pai, em
Tuas mãos ponho o meu espírito”, como uma de suas últimas palavras da cruz.
28
MOINGT (1995), p 214.
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consciência acontecem a todo indivíduo. Construiu-se como pessoa de Filho de Deus, através da
obediência radical a Deus, identificando-se como puro Deus entre os homens e as mulheres.
Todas essas atividades referentes à vida de Jesus de Nazaré concorreram para formar a sua
pessoa, o ser-sujeito. Um duplo movimento acontecia, pois, Jesus saía de si mesmo em direção ao
outro que estava em aflição, tornando possível uma reconciliação com Deus e consigo mesmo. Isto é
amor. Amor que é movimento em direção ao outro. A própria morte de Jesus é traduzida em amor.
Não existe maior prova de amor do que esta: de alguém dar a sua própria vida em favor de
outrem (Jo 15.13). Ao penetrar na história Jesus assumiu a condição de servo por amor sem as
marcas do pecado, em plena condição humana, negando o igualar-se a Deus, ou mesmo pretendendo
elevar-se por cima de nós outros, antes ocupando o último lugar (Fp 2.6-8). Cristo como
acontecimento absoluto de autocomunicação de Deus aos homens fez-se homem de Deus e o caso
único da consumação essencial da realidade humana, que consiste em que o homem exista perdendo-
se no mistério absoluto que é Deus. 29 A existência histórica de Jesus como Filho de Deus e Filho do
Homem deu garantia à humanidade, de poder ser reconhecida a partir do valor que é em si mesma
como criação de Deus. Cristo é o Filho de Deus enquanto é este homem, posto que sua pessoa de
Filho é a consumação, nele e por ele, da vocação de todo o homem para chegar a ser filho de Deus. 30
O resgate antropológico, resgate do ser humano, encontra na pessoa de Deus revelada em
Cristo, um Deus que tem existência histórica; que faz história com os homens.

Três pressupostos de Deus no evento Cristo agindo na história: 31

1. A manifestação de Deus na história pertence a seu ser, é da ordem dele ser manifestado;
2. A exteriorização de Deus se converte em autor da nossa salvação;
3. A exteriorização de Deus no acontecimento de Jesus morto e ressuscitado é um ato de
kenosis.

Assim, encontra-se na história um Deus que dialoga com o homem, que se revela por meio da
linguagem. Destarte, entende-se que é uma história de criação e de salvação. Encontramos no Antigo
Testamento Yahveh dizendo EU SOU.
Não se pode olvidar que foi na história que o Verbo se fez carne, e habitou entre nós, cheio de
graça e de verdade (Jo 1.14). Nascido de uma mulher32 para se constituir o caminho que conduz o
homem a Deus chamando-o de Pai. A tradição de Israel, em seu bojo, esperava a vinda do Servo de
Yahveh, de uma intervenção expressa de Deus na história, de uma ação de geração, de um
nascimento (Is 49.1-6).33 Jesus, sendo Filho de Maria por obra e graça do Espírito Santo, significa
que pertence à raça humana e sua história.
Jesus foi concebido pelo Espírito Santo. Quem é o Espírito Santo? É a força divina, força de
vida, fonte da palavra; tem Ele um poder fecundante e ao mesmo tempo, santificante. Estes atributos
do Espírito conferidos em Jesus mostram que no ser humano existem também todas as possibilidades
vitais, que o impulsionam a viver e fazer história, à semelhança de Jesus de Nazaré. O Verbo em
pessoa é o princípio que põe a história em movimento, dá-lhe sentido.34 Isto para a antropologia é
algo extremamente importante e resgatador de valores esquecidos por uma sociedade que encontra

29
Ibidem, p 222.
30
Ibidem, p 222.
31
MOINGT (1995), p 224.
32
Ibidem, pp 258-269. É detalhada com muita precisão a importância da história da concepção de Jesus de Nazaré,
nascido de uma mulher, a virgem Maria, mostrando a verdadeira e segura, a plena humanidade do Filho de Deus.
33
MOINGT (1995), p 261. El Hombre que venía de Dios.
34
Ibidem, p 289.
CRISTOLOGIA E SOTERIOLOGIA 9

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nos seus deuses falsos (ideologias perversoras) o deslocamento de tudo o que pode tornar a vida
sadia.
Ao observar nos relatos neotestamentários a vida de Jesus, agindo no poder do Espírito Santo
em favor dos que sofrem, interessando-se pelos mais diversificados problemas latentes dentro e fora
de cada pessoa, nos desafia a um resgate de tudo o que implica em vida abundante. Se Jesus manteve
um relacionamento íntimo com o Pai, quis reivindicar que todo o homem e o homem todo precisa
encontrar sentido para viver a sua vida a partir desse relacionamento, através de uma abertura de
coração e serviço que culmina em adoração. Desta maneira, Jesus é o paradigma da pessoa humana;
é a síntese entre o humano e o divino.
Deus, por outro lado, se manifesta em Jesus tal como é em si mesmo. Deus existe em Jesus
como em si mesmo, numa comunhão de existência, com o Pai que lhe dá toda a sua razão de ser. O
Deus de Israel é o Deus de Jesus Cristo, e se revela na história aos seres humanos não falando
unilateralmente, mas em intercâmbios de palavras que vão pontuando a história, dialogando com os
homens, de sorte que esta história se torne a sua.
Deus restabelece o relacionamento pessoal com o homem. O homem responde pessoalmente à
proposta de Deus, obedecendo à sua vontade que implica realização da justiça e do amor efetivo.
Essa decisão e o diálogo de Deus com o homem são vivenciados na história. O Deus do diálogo,
da eleição e da aliança não aniquila a história humana. O ser humano é imagem de Deus pela sua
estrutura dialógica e pela sua capacidade de ser responsável. O ser humano foi criado por Deus para
ser seu cooperador. O homem não é o dono do mundo, mas é seu administrador. 35 Logo, para
resgatar o verdadeiro lugar de ser humano na história, com consequências antropológicas profundas,
deve-se observar e colocar em prática tudo o que se refere à práxis histórica de Jesus de Nazaré. A
partir desse resgate pode o homem assumir a sua verdadeira mordomia em relação a todos os
elementos constitutivos da coroa da criação de Deus.
E, tendo a verdadeira concepção de Deus e do ser humano, segundo o ensino cristológico, este
ficaria incompleto, sem a verdadeira concepção de salvação, a qual Deus providenciou de forma
maravilhosa.

2.3. Uma real visão da salvação (Soteriologia)


As implicações do Evento Cristo na história dos humanos modelaram todos os ângulos que
estavam providos de egoísmo e individualidade; estes que prosuziram obras da mente cauterizada
pelo mau uso do desejo, que se tornou idolátrico, causando sofrimento no semelhante. Que
implicações de salvação? Que salvação?
Jesus Cristo é revelador e realizador único da salvação.36 Deus se revela ao vir ao nosso
encontro para nos salvar, e assim o faz, em Jesus de Nazaré. O discurso soteriológico não pode
deixar de prescindir da salvação que se concretizou no Filho de Deus feito Filho do Homem. A obra
da salvação se define a partir da pessoa e dos atos todos de Jesus de Nazaré. Ele se entregou por
“nós”, segundo o que está nos textos neotestamentários: 1 Co 15.3; 2 Co 5.14; Rm 8.32; Gl 1.4;
2.20; etc. A expressão “hyper”, em grego, apresenta um significado profundo para a humanidade, em
dimensões salvíficas profundas: por causa de nós, por nós e em nosso lugar.
O texto de Romanos 3.23-24 não é apenas um relato ou a simples informação da transgressão
do homem como pecador, mas envolve aspectos teológicos e doutrinários, no sentido de que, como
Palavra de Deus, o seu ensino molda e aperfeiçoa o caráter. “Todos pecaram”, significa o pecado
definido como “transgressão da lei”. É a falta de conformidade com a Glória de Deus. É o
afastamento de Deus, e consequentemente o afastamento também dos outros seres humanos. O

35
RUBIO, A. G. (1992). Unidade na Pluralidade: III Capítulo.
36
MIRANDA, M. F. Jesus Cristo, obstáculo ao diálogo religioso. REB 57, fasc. 226, junho/1997, Vozes, pp 253-
264.
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pecado aborrece a santidade de Deus e obscurece a vida humana. Até mesmo a natureza geme por
causa do pecado. Diante disso, lemos em Paulo que “Não há um justo sobre a face da terra”.
Destarte, somente a justificação mediante a entrega de Jesus Cristo por nós, nos assegura a
redenção. “Justificados” significa “declarados justos diante de Deus”, isto é, livres da condenação.
“Justificar” era um termo legal que significava assegurar um veredicto favorável, absorver, vindicar,
declarar justo, utilizado nos antigos tribunais romanos. Nas Escrituras é um ato de Deus, que é
oferecido pela salvação em Jesus Cristo, segundo o Novo Testamento.
A salvação em Jesus Cristo é vista mediante três pontos fundamentais:

1. Foi processada fora de nós (extra). É exclusivamente pela graça (xáriti dià). Não teve a
participação do homem, por estar morto em seus delitos e pecados (Ef 2.1-10). Só Jesus
Cristo, sem pecado, pode realizar essa obra maravilhosa.
2. Foi providenciada para nós. Em favor da humanidade, pois, é da vontade de Deus que
todos sejam salvos (Rm 3.29; Jo 3.16). “Deus amou o mundo de tal maneira”, esta é a
mais profunda afirmação da história da salvação.
3. Foi realizada em nós (intra). Essa salvação é aplicada dentro do homem, gerando nele uma
consciência alicerçada pela dimensão do Espírito Santo, que nos faz compreender a
suficiência da obra do Filho de Deus. Jesus Cristo é o “Emanuel”, o Deus em nós.

A intimidade de Jesus com Deus, que Ele chamava de Pai, seja pela sua obediência (Jo 5.30),
seja pela atividade comum (Jo 5.19; 10.30), seja pelas suas palavras que são as do Pai (Jo 12.49),
demonstra ser este o amor de Deus pela humanidade. Daí ser Jesus Cristo a manifestação da
bondade de Deus e de seu amor pelos homens (Tt 3.4; 1 Jo 4.9). Amor realmente vivido no interior
da história, de modo perfeito e definitivamente incondicionado pelo ser humano.37
É preciso observar que se trata de uma salvação da história.38 O pensamento escatológico
garante a espera de uma salvação para todos, não extra-histórica, mas intra-histórica como resposta
positiva diante de todos os males que fazem a humanidade sofrer. A salvação tem um sentido todo
especial a ponto de encorajar o ser humano a viver diante de todas as realidades, onde se pode
recuperar o que somos e aquilo que somos capazes de reconhecer como a causa de significado para
nós mesmos e para os outros. Essa salvação é prometida ao homem como uma vida inteiramente
nova. Logo, pode-se pensar no Reino de Deus antevisto como o reinado dos valores de justiça, paz,
liberdade e fraternidade, que dão significado pleno à existência humana. Jesus Cristo é justamente o
que aparece claramente como a figura de destaque da esperança de seu povo. E, nesse contexto, não
existe nenhuma barreira que possa estancar o reinado de Deus e a história, que têm o seu seguimento
na intenção de construir um futuro melhor pela realização do evento Cristo já no aqui e agora da
caminhada.
Os dois pontos principais dessa realização são a liberdade e o amor fraterno. 39 O cristianismo
sozinho conhece e ensina a salvação, que é sua verdade central que considera Jesus como Senhor e
Salvador, pleiteando sua expiação pela morte, e se entrando na Igreja como a comunidade dos
redimidos, pela abundância do fruto do Espírito (Gl 5. 22-23).40 Na parábola das ovelhas e dos
bodes o critério de julgamento divino é simples se nós tivermos alimentado o faminto, acolhido o
estranho, vestido o nu, e visitado o enfermo e o preso (Mt 25.31-46). Isso é considerado o fruto do

37
MIRANDA, M. F. REB 57, fascículo 226 de junho de 1997, p 254.
38
MOINGT, J. El Hombre que venía de Dios, pp 53-58.
39
Ibidem, p 35.
40
HICK, J. The Rainbow of Faith. The Pluralistic Hypothesis (1995). Salvation. Parable of the Sheep and the
Goats, the criterion of divine julgament is simply whether we have fed the hungry, welcomed the stranger, clothed the
naked, and visited the sick and imprisioned ( Matt 25 31-46).
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Espírito, o que define a salvação em Jesus como o caminho concreto, a transformação do ser
humano gerando uma ação transformadora. Eles não são primariamente filosofias ou teologias, mas
caminhos de salvação/libertação, como fruto da ação do Espírito Santo, que desconhece limites de
espaço e tempo, de etnias, culturas e religiões. 41
Que salvação anunciar na situação presente da humanidade? Este problema condiciona o
acesso através da fé. Não se trata de outro problema: não se pode proclamar que Jesus é chefe e
salvador, libertador da humanidade, sem dizer de quais perigos livra, e sem saber que salvação
propõe.42 Essa salvação é a coragem para encarar o futuro, quando a pessoa reconhece ser ela
mesma ainda que viva num mundo de ambiguidades; mesmo diante da morte que rodeia o homem.
Aí sucede o que ensina a Bíblia como Palavra de Deus, em que o clamor do povo no exílio é o
lamento de um povo que tem Deus como auxílio, encontrando-o na misericórdia, que é traduzida em
libertação da escravidão. Esta salvação é a esperança militante que determina a atuação do homem
na história, numa vida sempre por vir a ser, considerando que essa esperança não depende de nós
mesmos, mas da fé em Deus. A coragem de existir só se dá na experiência do encontro com Deus,
não imediatamente a fé em haver encontrado Deus, mas em ser surpreendido por Ele. 43 A coragem
de existir se fundamenta no Deus que aparece quando há a angústia e até mesmo a dúvida.
É importante saber que o homem não pode voltar à vida sem o ato de fé, sem crer que Jesus é
o Salvador. Através de Jesus, Deus começa uma nova história, assumindo um compromisso de vida,
possibilitando ao homem uma vida plena de sentido histórico. Essa iniciativa sendo divina é realizada
no humano, como sendo a gratuidade que transcende a todos os pontos negativos da desumanidade.
Retomando-se o texto de Mateus 25.31-46, considerando fruto do Espírito o acolhimento,
percebe-se claramente que, por outro lado, o salvo é o que se abre para Deus e para o próximo. Os
que são declarados benditos não o são somente por haver feito o bem em seu nome, por motivos de
fé, senão simplesmente por compaixão com os que sofrem; os outros são malditos pela falta de
coração; tiveram a oportunidade de aderir ao projeto de Jesus, que é a causa humana, e não se
importaram, uma vez que o sabiam, entretanto não a realizaram. Destarte, Jesus é o salvador que
tem uma salvação universal; ele salva da morte aquele que se entrega a ele.
Jesus é o único mediador e definitivo autor da salvação, dando cumprimento a todas as suas
possibilidades, libertando os homens do jugo do pecado e abrindo um acesso direto a Deus em si
mesmo. O Filho de Deus se entregou por nossa salvação, o Deus presente na cruz, reconciliando
consigo o mundo (2Co 5.19), era Ele quem obrava essa reconciliação indo às últimas consequências.
Logo, podemos pensar na salvação como obra de vida, e que contrasta com todas as tradições
religiosas dos escribas e fariseus opressores daqueles que não podiam se defender.
Como mediador Jesus faz o seu convite magistral (Mt 11,25-30). Depois da retumbante
oração e grande louvor ao Pai, caracteristicamente descritivo do espírito fervoroso de Jesus, ele que
possuía total e completa percepção do conhecimento de Deus, elabora um convite imemorável.
“Vinde a Mim”- o convite é lançado a qualquer pecador que perceba a sua condição pecaminosa e
que possa reconhecer a necessidade de servir a Deus. “EU”- é enfático: Jesus Cristo pode mostrar
ao cansado o descanso de que tanto precisa, bem como dar-lhe confiança para com Deus. “Jugo”-
contrasta com o jugo da Lei. Jesus oferece um jugo que se deriva do próprio conhecimento de Deus.
É o verdadeiro caminho para Deus através da pessoa do Messias. O Seu jugo é suave. Plenifica a
vida humana. Contrasta com os jugos dos romanos, que impunham ao povo altas taxas, impostos
caros; e dos fariseus, que impunham meticulosa observação da lei. O grande convite de Jesus põe fim
a todo tipo de escravidão, porque é o convite para a salvação.

41
MIRANDA, M. F. REB 57, fascículo 226, página 259; MOINGT (1995), p 37.
42
MOINGT (1995), p 37.
43
MOINGT (1995), p 40.
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A vitória sobre o pecado e a morte, a plenitude do que a fé cristã entende como salvação é a
realização definitiva e perfeita do ser humano, em todas as suas dimensões, em Deus, sob a ação do
Espírito Santo.44 Ainda que nosso conhecimento seja fragmentado e imperfeito, contextualizado e
limitado, podemos testemunhar ao mundo a vitória de Jesus sobre a morte, que é a sua ressurreição,
da qual fazemos parte, sendo essa a nossa proclamação em fé.
A implicação do evento Cristo no campo soteriológico elucida o fato de que Deus se importa
com a sua criação, de que podemos viver plenamente no caminho que foi aberto por Jesus Cristo, o
único mediador da vida, para que possamos existir não somente para nós mesmos, mas também para
o próximo em todas as suas dimensões.

3. O PLANO BÁSICO DA CRISTOLOGIA

O plano básico da cristologia45 tem como elementos fundamentais os pressupostos elementares


da Cristologia de João Calvino. Esses elementos se encontram nas obras desse teólogo reformador;
através de suas obras,46 e principalmente nas Institution de la religion chrestienne (Institutas da
Religião Cristã),47 obra básica de Calvino.
Sendo o objetivo da cristologia segundo Calvino é refletir de forma sistemática, afirma-se que
é mais estritamente teológica do que histórica. Sendo assim, é fundamental a inserção de
comentários bíblicos de Calvino,48 pois Calvino comentou quase todas as partes da Bíblia. Ainda,
faz-se necessário observar que as Prédications 49 de Calvino contribuíram, juntamente com a
consulta que fez nos textos de Confessions e de Catéchismes.50 Esses escritos, não são, certamente
de Calvino, salvo o Catéchisme de l’Eglise de Genève, de 1545.51 Os catecismos deram uma grande
contribuição, pois eram textos eclesiais, fazendo parte do corpo oficial da Igreja, no sentido de
instruir seus membros na fé cristã.
Em se tratando da cristologia, segundo a exposição sistemática de Calvino, este não se
desconecta da exposição cristológica da uma medição única da pessoa de Jesus Cristo, de seu ser
trinitário e do mistério de sua procedência eterna, de sua pré-existência, do mistério de sua
encarnação, de sua dupla natureza ou de suas virtudes sobrenaturais. Desta maneira, Sto. Tomás
44
MIRANDA, M. F. (1997). REB 57. Fascículo 226, p 259.
45
GISEL, P. Le Christ de Calvin. Collection <<Jésus et Jésus-Christ>> dirigée par Joseph DORÉ, n.44. Paris:
Désclée, 1990. 205p.
46
Cf. WENDEL, F. Calvin, Souce et évolution de sa pensée religieuse, Genève, Labor et Fides, 19852 (primeira
parte, p. 3-75); GANOCZY, A. Calvin, Théologien de l’Eglise et du ministère, Paris, Cerf, 1964, cap. 1 da primeira
parte: <<l’homme et le milieu>>, sem contar sua tese sobre o jovem Calvino, mais complexa e detalhada (Le jeune
Calvin, Genève et évolution de sa vocation réformatrice). Reporta-se igualmente à coleção L’Aventure de la
Reforme. Entre as obras de Calvino, conta-se: Institution de la religion chrestienne, obra central de Calvino, com
inúmeros argumentos.
47
Cf. GISEL, P. Le Christ de Calvin, pp. 24-25.
48
Os comentários se acham no Corpus Reformatorum, a partir do Vol. 51 (= Opera Calvini 23 ss.). De acesso fácil em
francês moderno foram notadamente publicados pela Labor et Fides, Genève, les Commentaires de la Genèse, de
l’Evangile de Jean, de l’Epître aux Romains, des Epîtres aux Galates, Ephésiens, Philippiens et Colossiens. Como
apresentação, se referirá notadamente a Dieter SCHELLONG, Calvins Auslegung der synoptischen Evangelien,
München, Kaiser, 1969. In: GISEL, P. Le Christ de Calvin, p. 25.
49
Os textos se encontram no Corpus Reformatorum, em paralelo aos textos de comentários. STAUFFER, Richard se
utilizou deles em função da temática do <<primeiro artigo>> In: Dieu, la création et la providence dans la
prédication de Calvin, Berne, Lang, 1978. O autor não escondeu as diferenças que foram encontradas entre a
l’Institutution e a prédication. In: Le Christ de Calvin, p. 25.
50
Olivier Fatio editou os textos sobre o título Confessions et Catéchismes de la foi réformée, Genève, Labor et Fides,
1986. Para aceitação do adjetivo reformado, cf. supra n. 12. In: Le Christ de Calvin, p. 25.
51
Ver o texto In: Confessions et Catéchismes de la foi reformée, p. 25-110 (com apresentação). In: Le Christ de
Calvin, p. 25.
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procedeu em sua Suma Teológica (cf. Ia Qu. 27 ss. Pela <<procedência>> e o que se segue, as
<<relações>>, as <<pessoas>>, e IIIa onde os Qu, l a 27 são consagrados ao mistério da encarnação
e os Qu. 27 ss. Unicamente de sua inscrição real na carne, do que ele tem feito e sofrido). 52
A relação entre o homem e Deus é deliberadamente focalizada numa dimensão tomada em sua
efetividade. O drama adâmico tem um desdobramento, com implicações na articulação cristológica,
que transparece no bojo do Novo Testamento. As reflexões agostinianas, que são percebidas
nitidamente em Calvino, sobressaem em sua Cristologia. Nelas perpassam o estatuto da integridade
do homem na criação, seu prejuízo na relação com Deus e com a criação pela via do pecado, e sua
restauração em Cristo, o Novo Adão. Este modo de refletir a cristologia tem como base a noção de
Imagem de Deus, dada plenamente e obscurecida em Adão. Porém, essa imagem foi manifestada
plenamente em Jesus Cristo. E a partir de um regime cristológio-pneumatológico essa imagem é
restaurada no ser humano. Ela é novamente chamada a se configurar de modo pleno e definitivo na
pessoa e na obra de Jesus Cristo, sob o dínamis (poder) do Espírito Santo, com implicações
profundas na pessoa, fazendo surgir verdadeiros elementos de humanidade.
Uma vez que o plano básico da cristologia se desenvolve dessa maneira até aqui mencionada,
faz-se perceber uma relação intrínseca do Antigo com o Novo Testamento. A distância entre Deus e
o homem é desfeita pela nova aliança estabelecida por Deus, a fim de que o homem tenha a sua
trajetória normal de uma existência plena. Para isso, a função de Cristo como mediador tem seu
valor, pelo fato da encarnação marcar o lugar central do Mediador. A pessoa e a obra de Cristo são
inscritas na criação mesma. Para que seja bem percebida a sua ação mediadora, três ofícios, 53
segundo Calvino, são refletidos: Profeta, Rei e Sacerdote. 54
A ressurreição de Cristo e a sua ascensão marcaram definitivamente a vitória de Deus sobre
tudo o que impede a vida. Vitória sobre a morte, sendo esta morte símbolo da separação entre Deus
e o homem. Assim, a redenção foi configurada de tal modo, em Cristo, através de quem se pode
participar de sua graça. Uma relação com Deus, através da pessoa e da obra de Jesus Cristo, que
marcou a redenção não somente do indivíduo, mas também de toda criação.

3.1. A distância entre Deus e o homem


Os pontos que seguem mostram o plano de fundo da cristologia, que apresenta um dado forte
que é o teocentrismo. Esse teocentrismo se desenvolve mediante um regime de encarnação, sem
deixar de perceber o drama adâmico da queda e do estado “em Adão” à mediação de Jesus Cristo.

a) Transcendência e alteridade - A cristologia acha-se caracterizada de maneira


profundamente teocêntrica.55 É uma teologia que recorre aos motivos básicos da soli Deo gloria e
Sursum corda. Ela é teocêntrica em toda a sua profundidade, porque subordina radicalmente o
homem a Deus.56 Essa linha cristológica está sob o impacto dos princípios da Reforma, no sentido de
destacar a transcendência absoluta de Deus e sua alteridade total em benefício do homem. Constata-
se que Deus é soberano e que há uma distância entre Deus e o homem. Não há nenhuma confusão

52
GISEL, P. Le Christ de Calvin, p. 27.
53
Cf. CULLMANN, O. Cristologia del Nuevo Testamento, Die Christologie des Neven Testaments. Vésion
castellana: Carlos T. Gattiononi. Methopress Edirorial y Gráfica, Buenos Aires-Argentina. 389p. Há uma classificação
mais detalhada. O plano da obra: I. Títulos que caracterizam a obra terrena de Cristo: Profeta, Servo de Deus e Sumo
Sacerdote; II. Títulos da obra escatológica de Cristo: Messias e Filho do Homem; III. Títulos da obra presente de
Cristo: Senhor e Salvador; IV. Títulos que caracterizam a pré-existência de Jesus: Logos, Filho de Deus e Deus.
54
GISEL, P. Le Christ de Calvin, p. 28.
55
GISEL, P. Le Christ de Calvin, pp. 29-32.
56
Cf. GANOCZY, A. Calvin, théologien de l’Eglise et du ministère, Paris, Cerf, 1964, p. 75. In: Le Christ de Calvin,
p. 29.
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entre o divino e o humano. E somente existe teologia cristã onde se respeita, conforme a Escritura,
essa distância, que separa Deus de sua criatura. 57
Esse teocentrismo é percebido nitidamente através de um acento fortemente marcado pelo
tema da criação, mergulhada na doutrina da “Providência”58 e concomitantemente, pelo tema da
“Predestinação”.59 Estas matérias contêm uma prioridade absoluta e secreta de Deus que o homem
não pode compreender. Significa que o homem não tem nenhuma participação. O mundo criado é
para o homem com uma forte figura de antecedência. Deus criou todos os elementos naturais e
inseriu o homem e a mulher nesse cenário. Sendo assim, este mundo tem de ser recebido como o
desenvolvimento de uma aliança ou através de um regime eclesial. Esse acolhimento tem de ser
configurado por uma ordem de instituição acompanhada de sua cristalização, através de uma
Escritura. Esta maneira de pensar enfatiza a necessidade da Igreja e dos sacramentos. 60
O teocentrismo não tem nada a ver com uma linha deísta, como a que desabrochou,
posteriormente, no Século XVIII, por exemplo, influenciando as teologias de veia liberal, 61 que
afirma Deus como criador, mas sendo o homem senhor do seu destino. O teocentrismo em foco
cristaliza a redescoberta original da Reforma, tomando juntamente a sua maneira, a pregação central
de Lutero. A natureza de sua pregação tem seu fundamento na “Justificação pela Fé”, e não pelas
obras. Não pode ser produzida pelo homem, mas é uma justiça que é primeiro, um feito de Deus.
Deus é justo. A sua justiça é dada ao homem. Em última instância, ela somente é recebida e não
produzida pelo homem. Isto é denominado de o “Primado da Graça”. Primado que é somente de
Deus, com suas repercussões e seus efeitos, diferidos no nível de ordem crente e eclesial. Significa o
primado de Cristo sobre a Igreja, que é o seu senhorio permanente. É também o primado da
Escritura sobre a tradição.62
O teocentrismo firma-se antes de tudo por uma assimetria fundamental, que trata da relação
entre o homem e Deus.63 Significa que Deus se mantém independentemente, fora de toda a
linearidade mais direta, fora de toda homogeneização espacial, temporal e finalmente
<<ontológica>> entre Deus e o homem, entre Deus e o mundo. O traço característico de Deus é
marcadamente vertical, perpendicular, sobre um modo heterogêneo. Toda relação entre o homem e
Deus, entre o criado e Deus, torna-se definitivamente recusada. Não há possibilidade de falar do ser
a propósito de um ou de outro. Uma tal perspectiva não será possível e verdadeira, senão por uma
via de uma ruptura original64 que se inscreveu no coração das realidades em causa. O homem
também é bem de Deus, mas não poderá entender o seu conceito de ser, exclusivamente por sua
própria conta.
O teocentrismo acentua o fato de ir ao encontro de uma realidade eclesial forte.65 Apresenta
uma marca forte em todos os níveis: filosófico, político e estritamente eclesial.

57
Op. Cit., p. 111. Para um diagnóstico mais semelhante sobre uma clara crítica. GANOCZY, A., op. cit. p. 404 s. In:
Le Christ de Calvin, p. 29.
58
GISEL, P. La création, pp. 226-229.
59
Na última edição das Institutas, a Predestinação teve seu lugar no Livro III, cap. XXI ss. (cujo termo da obra da
redenção, cristológica e penumatológica), enquanto que a edição de 1539/41 toma o lugar diretamente com a
Providência (como segundo Tomás de Aquino, cf. Somme théologieque, Ia. Qu. 23, art. I, respectivamente., in fine,
onde ela é dita pars providentiae). In: Le Christ de Calvin, p. 30.
60
GISEL, P. Le Christ de Calvin, p. 30.
61
GISEL, P. Le Christ de Calvin, p. 31.
62
GISEL, P. Le Christ de Calvin, p. 31.
63
GISEL, P. Le Christ de Calvin, pp. 31-32.
64
Cf. Proposta de RICOEUR, P. Le Mal, Genève, Labor et Fides, 1986, 1987 2, p. 6 e <<La Réforme e sa reprise
possible aujourd’hui>>, In: Humain à l’image de Dieu, Genève, Labor et Fides, 1989, p. 192 ss. In: Le Christ de
Calvin, p.32.
65
GISEL, P. Le Christ de Calvin, p. 32. Observação crítica de P. Gisel, quanto ao forte poder da instituição em
Calvino.
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b) Um regime de encarnação – Em continuidade, segue-se uma reflexão sobre o


teocentrismo na teologia relacionado a um regime de encarnação.66 Essa teologia é inteiramente
ocupada do mistério a que remete, por sua vez, a um Deus cuja alteridade e diferença permanecem
irredutíveis. Há, portanto, um paradoxo, nesse sentido, mas por outro lado, há uma lógica profunda.
Essa lógica atesta uma heterogeneidade, que parece ser tomada como sem compromisso com a
realidade. No entanto, aponta essa heterogeneidade para uma não-confusão de Deus com a matéria
criada. Isso faz refletir profundamente, antes de tudo, na materialidade dada para ser entendida,
indiretamente, como algo que veio de Deus. Não tem a intenção de reenviar, sobre seus confins, a
uma metafísica englobada e hierarquizada, que requer de uma maneira ou de outra, uma olhada
mediante uma facticidade, ou seja, um caráter próprio da condição humana segundo o qual cada
homem se encontra sempre já comprometido com uma situação em que ele não escolheu. Essa
condição é dada e contemplada desse modo verso Deus, tendendo a se concorrer ou se excluir.
Esse mistério divino tem um duplo aspecto, que é tomado também da alteridade de Deus.
Assim, não se percebe uma facticidade, unilateralmente imposta pela teologia calvinista. Antes, o que
se articula é uma forte teologia da criação e a necessidade de uma passagem por um momento de
revelação. Este ponto é decisivo para se atentar à Palavra da Escritura e também a uma teologia do
Espírito Santo. Porque há uma dialética entre a Escritura e o Espírito. A Escritura conduz a pensar
no Deus outro e numa realidade histórica, radicalmente em regime de instituição.67 Ela contempla o
único senhorio de Deus e, ao mesmo tempo, uma Igreja eminentemente organizada. Assim, reúne
uma instância sob a Lei e uma leitura cristológica, que obriga a sublinhar a face humana e histórica
de Cristo, bem como o seu ser essencialmente escatológico (sua exaltação).
O centro da cristologia contém elementos que parecem difíceis, mas assinalam uma
articulação.68 Primeiro é preciso considerar a característica já mencionada da cristologia que é o
teocentrismo, evocando uma dupla dimensão de facticidade69 e de espessura. O primeiro termo
assinala um ser para além, e uma contingência que não se vê confundida com Deus. O segundo
termo indica que este ser divino não está simplesmente à disposição, apropriado. Faz direito a uma
realidade que se impõe e não entende abrir alguma possibilidade de naturalismo ou positivismo em
sua expressão. Isto porque, teologicamente, se tem de afirmar que a realidade mesma é dada, sob o
regime de uma genealogia, sobre a base da qual ela se destaca e pode unicamente ser recebida.
Na linguagem calvinista essa realidade é justamente “obra”, obra de Deus. Não se pode
compreender a realidade, finalmente como eco, mas como testemunho do Deus criador, quando ela
se relaciona a Deus que é para a sua glória.
A realidade como obra de Deus é tratada também na questão 25 do Catecismo da Igreja de
Genebra, elaborado por Calvino:

Por que se crê que Deus é “Criador do céu e da terra”? – Porque se ele foi manifestado a nós pelas suas
obras, é preciso que por elas nós o reconheçamos (Sal 104; Rom 1.20). Porque nosso entendimento
escapa de compreender sua essência. Mas o mundo nos é como um espelho o qual nós o podemos
contemplar segundo aquilo que nos é dado a conhecer. 70

66
GISEL, P. Le Christ de Calvin, pp. 33-37.
67
GISEL, P. Le Christ de Calvin, p. 34.
68
GISEL, P. Le Christ de Calvin, p. 34.
69
FERREIRA , A. B. H. Novo Dicionário da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1986.
“Facticidade”. S. f. Filos. Caráter próprio da condição humana através da qual cada homem se encontra sempre já
comprometido com uma situação não escolhida.
70
Catéchisme de l’Eglise de Genève, pergunta 25. In: Le Christ de Calvin, pp. 34-35.
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A realidade é outorgada, segundo a perspectiva calvinista, na sua facticidade e em sua forma


de ser testemunha. Assim, faz ressoar juntamente as diferentes noções de criação (a realidade), de
instituição (a aliança) e de encarnação. Estes termos não são sinônimos, mas eles refletem um sobre
o outro por sua vez. A aceitação destes termos se torna rica e necessária. Tudo criado é instituído
com forte poder da Palavra. A obra é inscrita em aliança. A encarnação é remetida a uma ordem de
instituição desenvolvida em aliança histórica. A instituição não é formal, nem talvez reportada a
qualquer pacto ou contrato de partida. Ela, ao contrário, sobressai de um antecedente irredutível e,
para o homem, ela é dada com o mundo mesmo. É algo que já faz parte da criação desde o ato de
instituição.
Sobre tudo isso, pode-se igualmente afirmar que, a realidade criada é dada por uma parte,
como estatuto instituído; e o regime de encarnação é a outra parte. A duas partes são as faces
diferentes de uma mesma necessidade.71 Esta necessidade contempla, portanto, uma revelação.
Assim, o mundo, seja “mudo” ou “obscurecido”, realidade que o homem tenha perdido, é na medida
exata onde ele não entende o ponto capital que é Deus. 72
Uma interrogação que parta do homem sobre Deus, não se trata da essência divina, mas a
problemática se desdobra pela temática da relação Deus/homem, tomada em sua efetividade,
havendo uma incompreensibilidade original, da parte do homem, de saber quem de fato é Deus. As
especulações do homem, por causa de sua visão torcida, se tornaram frívolas, fabricando ídolos e os
colocando no lugar de Deus.73
O mesmo gesto reformador desconfia também de toda e qualquer realidade intermediária, que
seja realidade terceira. Este é um ponto que toca por excelência a questão relacionada a cristologia,
juntamente com seus derivados sacramentais e eclesiológicos.74 Uma boa doutrina cristã deve ser
considerada, em efeito, somente esta, em Cristo, pois nele há a união de duas naturezas: a divina e a
humana. Assim, na teologia calvinista, há uma conjunção, no grau de uma unidade de pessoa, ou
seja, uma pessoa e duas naturezas, relacionadas a Cristo. Não haverá lugar para uma natureza de
Cristo.75 Este ponto é bem claro na cristologia de Calvino, e, principalmente, quanto à mediação
única de Jesus Cristo. Esse é um estilo que não aceita qualquer mediação terceira.

c) O drama adâmico – o mal – O drama adâmico76 é tomado mediante o desenvolvimento do


pensamento agostiniano. Esse desenvolvimento é constituído de estado de integridade, perda e
restauração.77 Existe um contraste que se dá no pensamento propriamente tipológico, entre Adão-
Novo Adão. Deixa-se, portanto, perceber sistematicamente o tema do mediador no sentido de se
aplicar a Cristo, positivamente.
O tema referente ao drama adâmico é terreno da reflexão propriamente cristológica. Não há
nenhuma surpresa, no sentido de que a cristologia não se efetua sem uma problemática relativa à
salvação, que é o inverso de um pecado ou de uma desgraça. Para Calvino, a reflexão cristológica
71
GISEL, P. Le Christ de Calvin, p. 35.
72
O vínculo entre conhecer a Deus e a vida do homem (o conhecimento que o homem tem de si mesmo), é constante
segundo Calvino. O “Catéchisme de Genève” começa pela questão e a resposta seguinte: <<Qual é a principal
finalidade da vida humana? – É esta de conhecer a Deus>>. A primeira frase da l’Institution diz: <<... é isto que é
conhecer a Deus, cada um de nós também se conhece>>, o primeiro capítulo tem por título: <<O conhecimento de
Deus e o nosso são correlatos, é meio desta ligação>>. O capítulo I do Livro II desenvolve a mesma problemática. In:
Le Christ de Calvin, p. 35.
73
CALVINO, J. Institutas. I, V, 11. In: Le Christ de Calvin, p. 36.
74
GISEL, P. Le Christ de Calvin, p. 36.
75
Cf. por exemplo, mais claro o testemunho de uma grande perspicácia teológica: VON BALTHASAR, H. U. Litrugie
cosmique, Paris Aubier, 1947. P. 155 ss. In: Le Christ de Calvin, p. 37.
76
GISEL, P. Le Christ de Calvin, pp. 38-44.
77
Sobre este drama, cf. WIDMER, G.-Ph. <<La “dramatique” de l’image de Dieu chez Calvin>>, In: Humain à
l’imagem de Dieu, p. 213-229. In: Le Christ de Calvin, p. 38.
CRISTOLOGIA E SOTERIOLOGIA 17

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aparece mais particularmente inscrita numa perspectiva onde ela é centralmente questão do homem,
de sua existência, e também de seu destino. Teologicamente, isto significa: de sua vocação humana,
o que permite, provavelmente, de situar de entrada o eixo mais importante da cristologia calvinista.
Esse eixo mais importante constitui a temática do acabamento, da realização. Essa temática refere-se
ao estado do Mediador, que não é redutível a uma questão de salvação ou da reparação do pecado.
É uma temática que ultrapassa essa questão. De modo concreto, é uma mediação de Cristo que
aparece em efeito desde já inscrita <<antes>> do pecado, na boa criação de Deus, diante de todos os
bens concedidos, sem cessar, por Deus.78
O pecado é considerado como orgulho ou presunção. Esta característica está relacionada à
famosa frase “Como Deus, sereis” (Gn 3.5). É estabelecido um contraste entre orgulho e
obediência.79 Assim, compreende-se o pecado <<em Adão>> segundo a problemática do orgulho, na
linha reformadora. Portanto, a linha da Reforma procura buscar o primado de Deus e a finitude
humana. Essa finitude humana somente pode ser vista como positiva, na seguinte ordem: na criação,
com seu regime de instituição, que comporta um feito de mediação na história, pela dimensão da
aliança e Escritura, subdeterminados por Cristo, imagem de Deus. 80
Calvino sempre interpreta o pecado em correspondência com uma renovação cristológico-
pneumatológica.81 A figura de Cristo significa que Deus labora no coração da humanidade. Os fiéis
que recebem a Cristo não o fazem por sua própria vontade, mas somente pela vontade divina; pela
ação do Santo Espírito (João 1. 12-13; 1 Coríntios 12. 3). O homem em seu autofechamento perdeu
a sua liberdade. O estado de Adão em sua integridade ficou profundamente pervertido, ao ponto que
a imagem de Deus nele, tornou-se obscurecida.82 Assim, o homem não é mais o mesmo homem. 83
A restauração do homem, reciprocamente, a sua natureza e vontade, que são profundamente
humanas, somente se encontrarão renovadas em Cristo, o mediador dessa ação. Calvino escreveu de
maneira clara a esse respeito:

Logo, se, quando Deus nos converte ao zelo do [que é] reto, uma pedra se transforma em carne, está
eliminado tudo quanto é de nossa própria vontade: [o] que lhe toma o lugar procede todo de Deus. Digo
que a vontade é supressa não até onde é vontade, pois que na conversão do homem permanece íntegro
[o] que é primeira natureza; digo, ademais, ser criada nova, não que a vontade comece a existir, porém,
que de má em boa se muda.84

Observando ainda a cristologia, segundo a visão calvinista, percebe-se uma distinção clara
entre “cousas terrenas” e “cousas celestes”, numa perspectiva que tem seu paralelo na função
teológica, que se apresenta no contexto que se relaciona com a distinção luterana entre Lei e
Evangelho. Assim escreveu Calvino:

Chamo “cousas terrenas” [aquelas] que não dizem respeito a Deus e Seu reino, à verdadeira justiça, à
bem-aventurança da vida futura, mas, ao contrário, têm significado e nexo em relação à presente vida,
e, de certo modo, se lhe contém dentro dos limites. “Cousas celestes” [chamo] o puro conhecimento de
Deus, o sentido da verdadeira justiça e os mistérios do Reino Celeste. Na primeira classe estão a ciência
política, a economia doméstica, todas as artes mecânicas e as disciplinas liberais; na segunda, o

78
GISEL, P. Le Christ de Calvin, p. 38.
79
CALVINO, J. Institutas, II, III, 13. In: Le Christ de Calvin, p. 40.
80
GISEL, P. Le Christ de Calvin, p. 40.
81
GISEL, P. Répondre du présent entre héritages et déplacements. Paris, 2001, p. 6.
82
CALVINO, J. Institutas, II, I, 11. In: Le Christ de Calvin, p. 43.
83
GISEL, P. Le Christ de Calvin, pp. 42-43.
84
CALVINO, J. Institutas, II, III, 6. In: Le Christ de Calvin, p. 43.
CRISTOLOGIA E SOTERIOLOGIA 18

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conhecimento de Deus e da divina vontade e a norma de plasmar a vida em conformidade com essa
[vontade].85

Observa-se que, ao tratar dessas cousas ditas “celestes”, Calvino quer dizer que são <<abolidas
pelo pecado>>, enquanto que as primeiras se acham <<corrompidas>>.86 Assim, o homem não faz o
que é bom e dirige a sua atenção para a realidade de maneira egoísta. É uma situação que precisa ser
olhada com precisão teológica bem voltada para o presente. 87

d) Do estado de Adão à mediação de Cristo – A percepção que se tem de uma carga de


miséria é, pois, num sentido, retrospectivo. Tem seu começo na desobediência do homem, no ato de
querer ser “como Deus”. Calvino denomina de “orgulho”, como já foi enfocado. O homem não pode
de alguma maneira, fazer sentir essa sua miséria fora de Cristo. Ele não pode designar claramente a
visão concreta ou os traços específicos de sua existência, sem uma verdadeira percepção de sua
realidade. Ele não pode perceber com clareza essa situação. Fora de Cristo tudo se transforma em
confusão.
Calvino sublinha a força do pecado original e também a força da redenção de forma precisa. 88
Essa força tem seu fundamento no Deus que se mostra redentor em Jesus Cristo, parâmetro que
distingue verdadeiramente a situação do homem, e o recoloca na sua verdadeira posição na
história.89 Um Deus que é claramente sujeito e que não cessa de ser. Um Deus que estabeleceu todas
as coisas e que é amor, pode redimir o homem e a criação.
O recurso marcante da figura de Cristo significa, por sua vez, uma pertença e uma
representação. Significa a imagem de um “chefe”, assegurando concretamente uma mediação. Em
Cristo repousa o temor de Deus. Nele existe uma plenitude, de levar avante a natureza de mediador.
Há uma noção de dependência na relação entre a pessoa redimida e Cristo, conforme João 15,
tomada em sentido tipológico. Ela corresponde, em todo caso, ao que é preciso afirmar sobre o
estado do homem em Adão. Ele não se move, em efeito, senão no sentido de causalidade exterior e
não mais de imitação moral na condição em Adão. Calvino recorre decisivamente ao Cristo, numa
correspondência estritamente instrutiva, segundo escreveu:

Logo, outra cousa não fruímos da justiça de Cristo, senão que nos é um exemplo proposto para
imitação? Quem ature tão grande sacrilégio? Pois que, se está fora de controvérsia que, mediante
comunicação, é nossa a justiça de Cristo, e desta [a decorrer] a vida, segue-se, ao mesmo tempo, que
foram ambas assim perdidas em Adão como em Cristo se recuperam. De igual modo, assim se hão
infiltrado o pecado e a morte através de Adão como são abolidos por meio de Cristo. 90

Em relação à aliança estabelecida aos antigos pais, Calvino faz uma releitura dessa aliança,
sobretudo através da temática da Promessa e da eleição. Ele se refere ao apóstolo Paulo, através de
suas epístolas aos Gálatas 3 e Romanos 10, no sentido de dizer sobre o fim e a recapitulação de tudo
em Cristo, <<cujo ofício é o de recolher do estado de dissipação>>. 91 Isso acentua o fato de que
Deus nunca se mostrou propício ao povo antigo, nem jamais lhe conferiu a esperança da graça, sem
o Mediador. Esse Mediador é o que consuma a redenção, e que somente em Cristo se cumpriu essa

85
CALVINO, J. Institutas, II, II, 13. In: Le Christ de Calvin, pp. 43-44.
86
CALVINO, J. Institutas, II, II, 12. In: Le Christ de Calvin, p. 44.
87
Cf. o artigo de GISEL, P. Répondre du présent entre héritages et déplacements. Paris, 2001. 21p.
88
GISEL, P. Le Christ de Calvin, pp. 44-46.
89
Cf. CALVINO, J. Institution, II.
90
CALVINO, J. Institutas, II, I, 6. In: Le Christ de Calvin, p. 45.
91
CALVINO, J. Institutas, II,V I, 2. In: Le Christ de Calvin, p. 46.
CRISTOLOGIA E SOTERIOLOGIA 19

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consumação. Assim, o estado de bem-aventurança e de felicidade da Igreja somente pode ser


encontrado na pessoa de Jesus Cristo.92
Concluindo esta parte, foi visto sucessivamente a prioridade de Deus. Um Deus que é sujeito e
que se move em favor de sua criação, ainda que o homem tenha pecado. Deus é Pai e cuida de sua
criação. A realidade originária de Jesus Cristo na condição de redentor, de mediador entre Deus e o
homem, faz-se perceber pela via da Sagrada Escritura e da Igreja. E, para ser mediador, Jesus Cristo
assumiu o regime de encarnação, no sentido de fazer configurar uma nova existência não
transtornada pelo pecado, recolocando tudo no seu devido lugar. Assim, através de Cristo, esse tipo
de distância entre Deus e o homem é suprimida.

3.2. A aliança entre Deus e o homem


Ao tratar da aliança entre Deus e o homem, refere-se de modo profundo, ao “Quadro e
substrato da cristologia”.93 A ordem de uma aliança é o mesmo que uma ordem histórica. Já os
desenvolvimentos relativos à Lei e as suas relações entre os dois Testamentos se apresentam no
coração da cristologia segundo Calvino, assunto que segue nesta parte.

a) Similitude entre o Antigo Testamento e o Novo Testamento – Na relação entre os dois


Testamentos, situa-se o ponto em que a cristologia de Calvino é bem considerada como original. 94
De bom grado, relacionar o Antigo e o Novo Testamentos, contemplará o desenvolvimento dos
mistérios da Igreja, na linha de um desenvolvimento progressivo. Isso quer dizer, sobre o sentido de
uma evolução em direção a uma verdade mais plena e tocada posteriormente. Esse toque contempla
as desvalorizações e também as incompreensões, que puderam se desenvolver na relação do
pensamento judaico, quando este não é simplesmente na leitura do Antigo Testamento. A postura de
Calvino é irredutível, acerca de tais perspectivas, principalmente fundada sobre a idéia de um
desenvolvimento.
A posição de Calvino é direfetne da postura de Lutero. O pensamento de Lutero é todo
ocupado da distinção entre Lei e Evangelho.95 Isto não significa que a posição de Lutero seja
originalmente menos desprovida de legitimidade teológica. O corpo luterano Lei-Evangelho96 não é a
expressão de enunciados verdadeiros em si mesmos. O enunciado da Lei e o enunciado do
Evangelho, que virão se superpor, um e outro e cada um por sua parte, são mesmos, dois textos,
cada um com seu conteúdo e suas diferenças. Mas, é preciso observar que Antigo e Novo
Testamento, expostos por sua vez, cada um em seus conteúdos, expressam uma dialética interna da
verdade.
A postura de Calvino aparece de forma dupla. Ela afirma ao mesmo tempo uma similitude
entre o Antigo e o Novo Testamento, e também uma diferença. A primeira toca a <<substância>>; a
Segunda toca a <<dispensação>> ou a <<maneira>>.97 A similitude aparece como claramente mais
importante. Ela toca a verdade em sua profundidade, a verdade teológica. Esta verdade trata de
Deus, do homem e de sua relação. É essa verdade a <<doutrina>>, onde aparece notadamente o
vocabulário, segundo Calvino:

92
CALVINO, J. Institutas, II, VI, 2. In: Le Christ de Calvin, p. 46.
93
GISEL, P. Le Christ de Calvin, pp. 47-61.
94
GISEL,P. Le Christ de Calvin, p. 47.
95
GISEL, P. Le Christ de Calvin, p. 48.
96
GISEL, P. Le Christ de Calvin, p. 48.
97
GISEL, P. Le Christ de Calvin, p. 48.
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Das [considerações] precedentes já se pode claramente evidenciar que todos os homens quantos, desde o
início do mundo, Deus tem agregado à sorte de Seu povo, hão-Lhe sido aliados pela mesma Lei e pelo
vínculo da mesma doutrina que vige entre nós. 98
E, na verdade, com uma palavra se podem ambos explicar. O pacto de todos os ancestrais tanto nada
difere do nosso em substância e na própria realidade que, em última instância, [lhe] é um e o mesmo.
Varia [lhes], no entanto, a forma da dispensação. 99
Eu, na verdade, aceito de bom grado as diferenças que se registram na Escritura, mas, de tal modo que
nada derroguem à unidade já estabelecida como se haver de ver quando as haveremos de tratar na
[devida] ordem... Todas estas [diferenças] digo serem de tal natureza, e comprometo-me a haver de
demonstrá-[lo], que dizem respeito ao modo de administração, antes que à substância.100

Toda a posição teológica de Calvino tem como base seu teocentrismo, tomado em conta com
reprises e correspondências quanto à posição referente a Cristo. Aparece a verdade teológica que
sobressai a uma ordem que se sustenta na radical ruptura com as linearidades cronológicas, com as
ordens de uma espacialidade homogênea ou com as realidades criacionais e históricas. Essas
realidades se apresentam sob uma ordem de encarnação, no sentido de ser buscado em seu
testemunho. Assim, toda a argumentação de Calvino se reduz em afirmar as diferenças internas do
desenvolvimento da aliança histórica e da unidade de um fundamento, que é Cristo.
O tratamento calvinista da similitude ente o Antigo e o Novo Testamento 101 confirma este
ponto essencial, sobre Cristo. Ele coloca em efeito uma leitura do Antigo como do Novo
Testamento, em relação ao sentido da verdade, de uma realidade escatológica, isto é, sancionada
pela temática da esperança e da <<imortalidade>>, condensada historicamente pela noção de
Promessa. É esta a visão do Antigo Testamento que Calvino se prende mais prontamente, que seja
incapaz de valorizar a força teológica. Uma visão que baixe as realidades de um lado estritamente
históricas, de valor todo ao mais documentário, quando ela não os propõe como ilustração de uma
posição justamente ultrapassada pelo Evangelho, de uma posição tida por antiga e caduca, evocada
por fazer contraste com a única verdade. 102
A argumentação escriturística de Calvino é freqüentemente de referência paulina. Ela sublinha
em que o Evangelho estava prometido na Lei. No Antigo Testamento, não cessa de dizer sobre uma
aliança baseada não sobre os méritos do povo, mas bem somente na misericórdia de Deus, uma
aliança gratuita, em outros termos, uma aliança evangélica. Ainda, para Calvino os judeus foram
alvo da mesma Palavra vivificante e segundo o mesmo regime de eleição, por uma comunicação
<<especial>>, não pela <<geral>>, que <<se expande no céu e sobre a terra em todas as
criaturas>>.103 A Promessa é a mesma que no Evangelho, como também o Reino que ela abre; o
fundamento é, pois cristológico.104
A similitude entre os dois Testamentos aparece fortemente sublinhada, segundo a abordagem
teológica de Calvino. Mas, não ignora, contudo, as diferenças. 105 O desdobramento da aliança pode

98
CALVINO, J. Institutas, II, X, 1. In: Le Christ de Calvin, p. 49.
99
CALVINO, J. Institutas, II, XI, 1. In: Le Christ de Calvin, p. 49.
100
CALVINO, J. Institutas, II, VI, 2. In: Le Christ de Calvin, p. 46.
101
CALVINO, J. Institutas, II, X, 1-8.
102
GISEL, P. Le Christ de Calvin, p. 49-50.
103
CALVINO, J. Institutas, II, X, 7. In: Le Christ de Calvin, p. 50.
104
CALVINO, J. Institutas, II, X, 9-22. In: Le Christ de Calvin, p. 50. A fim de ilustrar estes pontos, Calvino passa
em revista as diferentes figuras e momentos de aliança segundo o Antigo Testamento.
105
CALVINO, J. Institutas, II, XI, 1-14. In: Le Christ de Calvin, pp. 51-52. Calvino enumera cinco diferenças entre
o Antigo e o Novo Testamento que são: a) A meditação da vida futura – de esperança – é conduzida no Novo
Testamento de feitio mais direto; 2) O Antigo Testamento apresenta mais a verdade por <<imagens>> e
<<sombras>>, o Novo Testamento testemunha da <<presença viva>>; nota-se aqui em particular uma ordem
<<cerimonial>> - esta de Moisés – se torna toda especialmente inscrita no tempo e deverá cessar com o complemento
CRISTOLOGIA E SOTERIOLOGIA 21

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bem testemunhar da mesma realidade e do mesmo tipo de eleição. A aliança não é reduzida a uma
pura sorte de eventos sempre e de novo retomados, como se a relação entre Deus e o homem venha
a se inscrever sobre o fundo de uma repetição essencial que não tomará jamais verdadeiramente
corpo.
Se for correto relacionar a perspectiva calvinista em matéria de correspondência entre os dois
Testamentos, bem como o seu teocentrismo essencial, é de fato, entrada e requerimento para se
sublinhar a mesma perspectiva, que se abre numa tomada de conta mais séria da materialidade
essencialmente bíblica. Assim, a tradição reformada, marcou a piedade de numerosas gerações. 106
Através das diferentes figuras ou de paradigmas veterotestamentários se dirá, em efeito,
frequentemente uma identidade, pessoal e coletiva.

b) A Lei, seu valor permanente e seu complemento – O outro aspecto que acentua a ordem
ampla da aliança, na qual se inscreve a cristologia, tem ao lado a reflexão fundamental nas relações
entre Antigo e Novo Testamento. 107 Teologicamente, este tema aparece com toda propriedade nos
dois Testamentos, compreendendo seus traços importantes. A questão da Lei é carregada de
diversas entradas para reflexão, que não podem ser negligenciadas. Ela se situa no coração da
Reforma, na medida mesma onde a pregação original dos reformadores108 se articula em torno da
liberdade cristã e da justificação pela fé.
Os dois Testamentos e o tratamento da Lei, marcam juntamente a teologia construída por
Calvino. A própria tradição reformada, também recorre de modo marcante a esses temas. Portanto,
constará a seguir uma exposição referente à Lei, e particularmente à exposição e o comentário
acerca do Decálogo, constituindo um dos pedaços dominantes de todo o catecismo reformado.
Também, o “Catéchisme de l’Eglise de Genève” (542, escrito por Calvino), consagra suas questões
131 a 232 (Catecismo composto de 373 questões, e são todas dispostas em quatro partes: <<dos
artigos da fé>>, que compreende o “Credo”; <<da Lei>> justamente; <<da oração>>, com o Pai
Nosso; <<dos sacramentos>>). Outro catecismo é o “Catéchisme de Heidelberg” (1563, de
inspiração calvinista), das questões 92 a 115, inscritas numa seção que toma por título geral <<do
reconhecimento>>, seção terceira e da perspectiva antes pneumatológica (a questão da Lei parece
estruturar juntamente a disposição do catecismo, que pode ser conferido no início da primeira parte,
consagrada à <<a miséria do homem>>, miséria justamente conhecida pela <<Lei de Deus>>). 109
O tema da Lei tem um alto grau de importância, por isso se encontra arraigado nas
“Confissões de Fé”.110 Sendo assim, na perspectiva da Reforma, a questão da Lei ocupa seu lugar de

consagrado pelo Cristo, complemento que confirma a verdade, mas transmudada; 3) O Antigo Testamento dá a Lei em
sua letra, o Evangelho é <<doutrina espiritual de vida e de justiça, gravada nos corações (II Cor. 3:6s.)>> (Pt. 7); 4)
Paralela e mais ligada ao precedente, segundo o dizer de Calvino, esta Quarta diferença se anuncia em termos de
servidão e de liberdade; 5) Enfim, do Antigo ao Novo Testamento, se passa uma circunscrição de eleição centrada
sobre um único povo, de sua explosão em direção a todas as nações e ao coração íntimo de cada um.
106
GISEL, P. Le Christ de Calvin, p. 53. Pode-se pensar, por exemplo, nos sonhos e nos ideais dos <<puritanos>> e
dos pioneiros na América do Norte.
107
GISEL, P. Le Christ de Calvin, pp. 53-61.
108
É necessário destacar o tratado quase emblemático, de LUTHER, <<Traité de la liberté chrétienne>> (allemand:
<<De la liberé de l’homme chrétien>>, 1520), reproduzido In: “Ouvres”, t, II, Genève, Labor et Fides, 1966, p. 274-
306 (ver também <<Du serf-arbitre>>, 1525, réponse à Erasme, “Ouvres”, t. V, 1958, p. 11-236)? Quanto a Calvino,
se tem assinalado, desde já, p. 23, quanto ao capítulo sobre a liberdade, fazendo parte integrante da primeira edição da
“Institution”. Nessa edição, o tema da liberdade cristã é colocado na parte III, cujo ensinamento geral da
<<regeneração>> e da vida no Espirito. A temática se constitui juntamente no capitulo XIX, depois os diferentes
desenvolvimentos relativos à justificação, e antes o capítulo sobre a oração. In: Le Christ de Calvin, p. 53.
109
GISEL, P. Le Christ de Calvin, p. 54.
110
GISEL, P. Le Christ de Calvin, p. 54. Ver “La Confession de foi des Eglises réformées de France” (denominada
de “La Rochelle”, 1559, redigida a partir de um projeto de Calvino. Projeto esse modificado sobretudo pelo que
CRISTOLOGIA E SOTERIOLOGIA 22

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importância que aparece de forma incontornável. Pergunta-se: considerando a acepção mais precisa
sobre a Lei, qual é o seu lugar na reflexão acerca de Cristo?
Para Lutero, a Lei é entendida segundo duas perspectivas que são claramente distintas. Ele
tratou sobre um duplo uso da Lei. 111 As duas perspectivas são: a civil e a espiritual. A primeira é sem
relação direta do Evangelho. Ela se situa antes na linha de uma teologia geral da criação e da
providência. É a lei que abrange a todos, que é essencialmente para permitir, no presente, o
deslocamento das forças do caos, num espaço que seja habitação para o homem e no qual o
Evangelho pode ser a ele pregado. A segunda perspectiva é a espiritual. Unicamente evangélica e
teológica, que propriamente se pode falar. É aí que se dá a pregação luterana em toda a sua força e
grandeza, com sua perspicácia espiritual. A Lei faz que o homem se reconheça como pecador. Não
somente isso, mas radicalmente o provoca a ser perfeito. Ela conduz o homem, indiretamente, à
força excepcional do Evangelho; à sua realidade positiva, realidade justamente contrastada com a
Lei.
A perspectiva calvinista é sensivelmente diferente. Segundo Calvino, na sua obra “Instituition”,
começa logo de entrada por dizer sobre o vocábulo da Lei, pois ele a entende como “forma de
religião, tal que Deus a publicou pela mão de Moisés”. 112 A Lei contempla uma definição mais
profunda, do que unicamente a denominação única de Decálogo. A Lei, designa, antes de tudo, um
regime de vida, específica e particular. Calvino faz uma releitura desse regime da Lei em função de
sua finalidade e ocorrência.
A finalidade da Lei tem em mira que o povo seja de fato “reino sacerdotal para Deus”. Que
esse povo seja “elevado à dignidade real”, que seja “feito participante da glória de Deus”. A
plenitude dessa finalidade é justamente desenvolvida mediante a pessoa e a obra de Jesus Cristo,
segundo o Novo Testamento. Calvino chega a uma conclusão: Jesus Cristo é o fim da Lei. Jesus
Cristo é alma ou o espírito que vivifica a letra. E, caso seja efetivado de outra forma será
considerado mortal. Esse “fim da Lei” significa realização, <<acabamento>>. 113
Diante da Lei o homem se torna maldito. Quanto à observação dessa Lei de forma integral,
será devida inteiramente à justiça de Deus. Agindo-se de uma outra maneira, contrária, esta
obediência não será encontrada senão de forma nula em cada um. Assim, é preciso justamente
proceder segundo essa obediência, pois enquanto não se guarda a Lei, não se pode fazer outra coisa,
senão que perder toda a coragem.114 Mas, quanto à pregação do Evangelho, que fala propriamente
de modo especial, que Deus por sua bondade gratuita, recebe a todos sem o concurso das obras.115
O homem nada pode fazer em prol de sua salvação, pois ela é inteiramente de Deus. 116
As promessas da Lei e a gratuidade de Deus são manifestadas no Evangelho, e são
perceptivelmente desenvolvidas através dele. Quanto à impossibilidade do homem de observar a Lei,

concerne aos cinco primeiros artigos), em seu artigo 23. Ver também “La Confession helvétique” posterior (de 1566,
de inspiração calvinista, e pois tem sido freqüentemente atribuída à versão francesa de Bèze), que compreende um
capitulo, o décimo-segundo, intitulado <<da Lei de Dieu>>. Verifica-se que a << “Confession de la Foi” a qual todos
burgueses e habitantes de instrução façam uso na Igreja e na dita vila>>, de 1536 é devido provavelmente, ao
reformador Guilaume Farel (se sabe que sua adoção ou não foi relacionada ao conflito que terminou pela expulsão de
Calvino e de Farel para fora de Genebra), comportou em seu ponto três, o texto do Decálogo (cf. “La vraie pieté”,
Genève, Labor et Fides, 1986, p. 39-53, In: Le Christ de Calvin, p. 54).
111
GISEL, P. Le Christ de Calvin, p. 55.
112
CALVINO, J. Institutas, II, VII, 1. In: Le Christ de Calvin, p. 55.
113
GISEL, P. Le Christ de Calvin, p. 56. Para o Novo Testamento, Calvino dá as referências à Epístola aos Hebreus,
a de Paulo aos Romanos, aos Coríntios e aos Gálatas.
114
CALVINO, J. Institutas, III, XIX, 4,5. In: Le Christ de Calvin, p. 56.
115
CALVINO, J. Institutas, III, XVII, 3. In: Le Christ de Calvin, p. 55. Mas, Calvino dirá freqüentemente que <<em
seu Cristo>>, Deus <<recebe as obras dos fiéis, <<não coloca em conta a imperfeição que existe>>.
116
Como falar da salvação para nossos contemporâneos? Cf. a obra de MIRANDA, M. F. A Salvação de Jesus
Cristo. São Paulo: Loyola, 2004, pp. 14-15.
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Calvino recusa expressamente buscar alguma razão. Esta curiosidade não deve ser alvo de
especulações, porque o mais importante é saber que Deus se revelou em Jesus Cristo, ao trazer a
salvação que alcança o ser humano de forma integral.117
As três utilidades da Lei 118 são matérias que eficazmente produzem efeito, no sentido de se
compreender o seu objetivo. São elas: moral, cerimonial e a Nova Lei. 119 Sobre a Lei Moral, se
entende por oposição à Lei cerimonial (tudo particularmente o sacrifício pelo perdão), que é como
em testemunho todo o Novo Testamento 120 simplesmente abolida quanto ao seu uso. Enquanto a Lei
Moral está relacionada aos preceitos e a Lei cerimonial aos sacrifícios, a Nova Lei está relacionada
ao Evangelho. Calvino chama de “o principal”, porque seu uso se move no sentido de ser a Lei que
vem depois.
O terceiro uso da Lei é visto como instrumento necessário, por se entender que é a vontade de
Deus. Necessário, porque o “homem espiritual” não está ainda livre do fardo da carne, pois ele vive
num regime de criação, não num regime dourado e desde já escatológico. O homem deve pois ser
incitado e confirmado em obediência. A Lei é acompanhada da graça, e que nela é conhecida o
Mediador, e que ela é a imagem da perfeita justiça. Deste estatuto, de graça perfeitamente revelada,
e do Espírito Santo conduzindo o coração. Nessa perspectiva, a Lei não é mais maldição, mas
unicamente exortação. Assim, Jesus não se revelou para abolir a Lei, mas para a cumprir. 121

3.3. A encarnação, lugar do Mediador


As reflexões anteriores têm seus eixos centrados nas relações entre os dois Testamentos, e
também a propósito da Lei que tem como finalidade mostrar o seu cumprimento. O cumprimento da
Lei é Cristo. O Cristo se inscreve em continuidade com a aliança, tomando em si o respectivo
cumprimento, manifestando de pronto, com toda claridade, a verdade que é sustentada para sempre.
No prolongamento das reflexões cristológicas, será abordado o ensino acerca dos três ofícios
de Cristo, segundo a cristologia de Calvino:122 o Cristo como Profeta, Rei e sacrificador
(Sacerdote).123 Esse ensinamento permanece também na cristologia reformada com suas marcas
específicas. Esses ofícios estão relacionados com a aliança e seu cumprimento.
É importante ressaltar que, esses ofícios, não se restringem especificamente à teologia
reformada, mas estão mesmo relacionados com toda teologia cristã. Essa relação tem a ver com as
duas naturezas de Cristo: a divina e a humana. Relação que acentua o vínculo entre a misericórdia
eterna de Deus e a obra crística da redenção, que se fundamenta nos méritos de Cristo e sua
obediência.

a) Uma habitação na carne – O Evangelho segundo João 1.14 assim relata: “E esta Palavra
se fez carne, e habitou entre nós, e temos contemplado sua glória”.124 Esta proposição é tradicional e
clássica, tanto no que concerne à união das duas naturezas, como naquilo que toca sua distinção.
Assim, é expresso com precisão que, segundo Calvino, não há equívocos nem restrições acerca da
união das duas naturezas. Não pode haver uma mistura, mas uma união. Existem as diferenças entre
as duas naturezs, mas há uma só pessoa, como expressa Calvino:

117
MIRANDA, M. F. A Salvação de Jesus Cristo. São Paulo: Loyola, 2004, p. 15.
118
GISEL, P. Le Christ de Calvin, p. 57.
119
GISEL, P. Le Christ de Calvin, p. 57. Lutero trata de sois usos da Lei, de forma separada, enquanto que Calvino
trata de três usos que constituem quase uma cadeia articulada.
120
GISEL, P. Le Christ de Calvin, p. 57.
121
GISEL, P. Le Christ de Calvin, p. 60.
122
CALVINO, J. Institutas, II, XV, 1-6.
123
GISEL, P. Le Christ de Calvin, pp. 63-81.
124
CALVINO, J. Comentário do Evangelho de João, 1,14 (1553). “et cette Parole a été faite chair, et a habité entre
nous, et avons contemplé as glorie”.
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Com efeito, que se diz o Verbo haver-Se feito carne [Jo 1.14], não se deve assim entender como se haja
sido [Ele] ou convertido em carne, ou confusamente misturado à carne; ao contrário, porque do ventre
da Virgem para Si escolheu um templo em que habitasse, e [Aquele] Que era o Filho de Deus Se fez o
Filho do Homem, não mediante confusão de substância, mas mercê de unidade de pessoa. Pois, na
verdade, afirmamos [ser] a Divindade assim associada e unida à humanidade que a cada natureza
permaneça integral sua propriedade e, todavia, dessas duas se constitua um Cristo único. 125

A manifestação de Cristo na carne, segundo Calvino, é privilegiada quanto ao sentido


linguístico da expressão “habitação”, que se opõe a uma estrita “conversão” da Palavra na carne, e
que se abre antes sobre a imagem do “Templo”. É o lugar onde a Palavra se acha primeira e antes de
tudo, “manifestada”.126 Isto significa que Cristo se revestiu de nossa carne. 127 De modo central,
valoriza-se a expressão de 1 Timóteo 3. 16: “Deus manifestado na carne”. A encarnação tem
primeiro e antes de tudo, a ver com a temática da revelação. Essa revelação supõe e busca enfatizar
um “abaixamento” de Deus, em Cristo.128 Esse estado não está diretamente ligado à questão da
redenção, articulada como autora da cruz, da morte ou do sacrifício, mas do Filho que é feito
homem e que é Deus conosco. Deus se revelou plenamente em Cristo, na carne humana. Deus que se
tornou um ser humano, no sentido de valorizar a vida do ser humano e de toda a criação.
Jesus Cristo assegura uma mediação essencial que se insere fora do pecado, de modo
veemente. Esta é a força de sua mediação. O sentido objetivo desse processo implica em que Deus e
homem são diferentes. O homem não é Deus. Há uma assimetria. Assim, a base indicada de uma
vinda em carne, será a que permite haver a particularidade, no sentido de que o homem pode ir a
Deus, ou pelo menos de contemplar essa imagem achegada de Deus, Cristo, à qual tem de se
conformar através dela.
A encarnação é a benevolência e a misericórdia de Deus, que conduz seus filhos a Ele. É meio
do homem se achegar a Deus. Isso aconteceu pela encarnação de Cristo. Essa noção de mediação
pela figura de Cristo cabeça e recapitulação da humanidade, poderá ser claramente anterior e
independente do pecado.129 E, quanto se fala estritamente de redenção, enquanto que abaixamento
na carne é encarnação que seja requerida pela “queda” ou pelo pecado, que num sentido, agrava a
distância entre Deus e o homem. A encarnação será então, unicamente, inscrita na obra da redenção,
como sua possibilidade e sua garantia, como o penhor da benevolência de Deus e da reconciliação.
130

Na realidade, Cristo foi conformado à imagem de Deus, no sentido de tudo quanto de


excelência foi impresso no próprio Adão. 131 Que Adão chegasse à glória de seu Criador através do
Filho Unigênito.132 É assim, justamente, que o homem pode-se achegar a Deus: através da mediação
de Cristo. Uma medição que se deu na carne humana. Deus se fez um de nós. Isso não quer dizer

125
CALVINO, J. Institutas, II, XIV, 1. In: Le Christ de Calvin, p. 64.
126
GISEL, P. Le Christ de Calvin, p. 64.
127
CALVINO, J. Institutas, II, XII, 3 e 4.; XIII, 1. In: Le Christ de Calvin, p. 65.
128
CALVINO, J. Institutas, II, XII, 1, 2. In: Le Christ de Calvin, p. 65.
129
GISEL, P. Le Christ de Calvin, p. 66. Opinião atribuída à Escola Scotista, segundo a qual a encarnação não fez de
Cristo de fato o mediador, por causa do pecado, pois será igualmente inscrita em toda a eternidade, fora do pecado.
Este questionamento, da redenção fora do pecado causa problema para Calvino. Ele repugna em muito especular as
questões do porquê das coisas, preferindo comentar e pensar sua fatualidade. Deixa de nos relatar finalmente ao
secreto, que só pertence a Deus mesmo. Assim, a propósito “destes que dizem que se Adão não tivesse caído, o Filho
de Deus seria ponto principal aparecido em carne”.
130
CALVINO, J. Institutas, II, XII, 5. In: Le Christ de Calvin, pp. 66-67.
131
CALVINO, J. Institutas, II, XII, 6.
132
Sobre esta temática cf. MIRANDA, M. F. A Salvação de Jesus Cristo, pp. 44-45.
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que somos como Deus, mas que podemos nos achegar a Deus através de Jesus Cristo. De
realizarmos nossa humanidade segundo a vida e a obra de Jesus Cristo.

b) A encarnação persegue o ofício de mediador – A encarnação se inscreve numa estrutura


onde o ofício primeiro de Cristo é o de Mediador. Ofício que vai além da encarnação propriamente
dita, e, sobretudo, que comanda um jogo, a realidade e o seu desdobramento. Sobre isso, o ponto
anterior destacou o plano básico sobre o qual se lança o sentido da encarnação. Ainda há lugar para
se desenvolver alguns pontos que são inerentes a essa encarnação. 133

1. Através da encarnação nos tornamos filhos de Deus, por graça. A encarnação nos
restitui à graça de Deus, para que sejamos de novo, feitos seus filhos e herdeiros do seu Reino. 134 A
encarnação se inscreve numa perspectiva pensada por sua vez, histórica e aberta sobre uma
universalidade. Pode-se falar aqui da economia ou da história da salvação, da mesma humanidade, e
com isto se pode compreender acerca do processo da obra de Cristo. Calvino trata primeiro de uma
marca genealógica e recapituladora, no sentido de que o Redentor é “filho de Abraão” e “filho de
Davi”.135 Também, “descendente dos judeus segundo a carne”.136 Ainda nessa recapitulação, da
noção sublinhada nesta acepção, revestida da imagem do “filho do homem”, 137 que assim pode-se ver
sobre o “novo Adão”. A referência é a Gálatas 4, com a menção do envio do Filho “nascido de
mulher e sujeito à Lei”. Deste modo é que a temática da encarnação e da herança se abre como um
dos pontos de cristalização desta perspectiva. 138 Encontra-se também a menção frequente de Cristo
como “primeiro nascido dentre as criaturas”.139 Consequentemente, se ajusta como provavelmente
que, desta perspectiva, que a pessoa e a obra de Cristo sejam essencialmente tomadas em relação
com um “Reino” 140 e, ao mesmo tempo, se sustentará uma certa subordinação a Deus o Pai.

2. O lugar e a realidade da encarnação.141 O lugar que se inscreve a encarnação constitui


uma veia histórica ou genealógica. São objetos de um verdadeiro trabalho interno, de uma realidade
quase dramática. Longe de pensar que a encarnação de Cristo se apresente fora de lugar, sem
natureza em qualquer sorte excepcional. Ela aparece antes como inserção no mundo conflitual do
homem, onde se jogam essencialmente as oposições de uma mortificação na carne e de uma
vivificação no Espírito,142 que é uma realidade que se reporta a Deus. Em tudo isso, se destaca uma
ordem de “associação” e de “fraternidade” partilhadas, e por sua vez superiores. Essa que “separa”
Cristo “do lugar comum” e que tem a marca do Espírito. Assim se diz que Cristo é “santificado do
Santo Espírito”.
Um dos pontos do debate de Calvino contra Lutero está no nível em que trata do tema da
“comunicação de propriedades”, a troca do que é propriamente divino e do que é propriamente
humano em Cristo. Ele escreve, por exemplo, da “De la Cène du Christ” (1528): 143 “porque

133
GISEL, P. Le Christ de Calvin, pp. 68-81.
134
CALVINO, J. Institutas, II, XII, 2. In: Le Christ de Calvin, p. 68.
135
CALVINO, J. Institutas, II, XII, 3; XIII, 1e 3. In: Le Christ de Calvin, p. 68.
136
CALVINO, J. Institutas, II, XIII, 1 e 3. In: Le Christ de Calvin, p. 68.
137
CALVINO, J. Institutas, II, XIII, 1 e 2. In: Le Christ de Calvin, p. 68.
138
CALVINO, J. Institutas, II, XII; XIII, 1; XVII, 5; Cf. também a referência: Romanos 8,17. In: Le Christ de
Calvin, p. 68.
139
CALVINO, J. Institutas, II, XIII, 2; XIV, 2. In: Le Christ de Calvin, p. 68.
140
Cf. MIRANDA, M. F. A Salvação de Jesus Cristo, pp. 31-36.
141
GISEL, P. Le Christ de Calvin, p. 68.
142
CALVINO, J. Institutas, II, XIII, 2. In: Le Christ de Calvin, p. 68.
143
“Oeuvres”, vol. VI, Genève, Labor et Fides, 1964, p. 52. In: Le Chrsit de Calvin, p. 70. Ler-se também com
proveito o texto da “Dispute sur la divinnité et l‘humanité du Christ” de 1540 (WA 39/ 2 p. 93 ss.), que contém bem
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divindade e humanidade são em Cristo, portanto, uma única pessoa, a Escritura, a causa desta
unidade pessoal, atribuída também à divindade toda esta que chega à humanidade, e
reciprocamente”.
O pensamento de Calvino aborda uma teologia que se poderá chamar, ulteriormente, teologia
do paradoxo. É uma teologia que terá o prazer de afirmar, por exemplo, que a grandeza da divindade
é toda incluída na figura do menino Jesus ou no crucificado (se dirá aqui justamente falar enquanto
de uma morte de Deus sobre a cruz em Jesus Cristo), como também ela amará igualmente sublinhar,
reciprocamente, uma figura humana em Deus.
Lutero não é o único teólogo que expressa o seu modo de pensar, sem contar também outros
autores, de ter ido assaz longe, no sentido de refletir sobre a “mudança de propriedades”. Podem-se
bem encontrar os predecessores da tradição da Igreja. Outros são ao contrário, antes resistindo a
esta inclinação. Este é o caso notadamente de Calvino.
Calvino, formalmente, recusa de modo veemente a toda “mudança de propriedades” pensada
po Lutero. Em seus textos de 1536, entende-se uma distinção como segue:

Assim também falam as Escrituras a respeito de Cristo: atribuem-Lhe, por vezes, [cousas] que importa
sejam referidas especificamente à [Sua] humanidade; por vezes, [cousas] que [Lhe] compitam
exclusivamente à divindade; de quando em quando, [cousas] que abarquem a uma e outra natureza,
[mas] não sejam bastante próprias de nenhuma das duas separadamente. E, na verdade, com tão grande
fervor exprimem esta conjunção de uma dupla natureza que subsiste em Cristo, que, algumas vezes, as
façam comunicar-se entre si, tropo [este] que foi pelos antigos chamado de []
[idiomaton koinonia – comunhão de propriedades]. 144

Jesus Cristo tem sido “antes de Abraão”, logo, não pode convir a sua humanidade, mas deve
ser atribuída a sua divindade. Mesmo quando o apóstolo Paulo chama, por exemplo, “primeiro
nascido de todas as criaturas” ou de “que ele tem sido antes de todas as coisas” e que “todas as
coisas subsistem por ele”. Inversamente, “é da natureza humana unicamente” que ele cresce em idade
e em sabedoria, ou sua ignorância acerca do último dia. A comunicação de propriedades se
comprova, e é notadamente, “pelo que diz S. Paulo, que Deus comprou a Igreja pelo seu próprio
sangue” (Atos 20, 28).
Calvino entende se situar expressivamente de um lado contra Nestório e sua divisão de
naturezas. Calvino sublinha haver a unidade de pessoa. Sobre o outro lado, contra Eutico – loucura
enraivecida – que afirma ser tudo em si uma unidade, destruindo, portanto, as duas naturezas.
Calvino se mostra clássico e tradicional, se referindo sempre à união hipostática.

c) A exaltação de Cristo: uma ascenção da humanidade – Para ir mais adiante à


compreensão do estatuto e da relevância da encarnação, como da função mediadora de Cristo, é
preciso se referir a um momento acerca do tema da exaltação de Cristo. 145
A exaltação de Cristo se dá primeiro como um tema escriturístico, ou seja, fundamentado na
Sagrada Escritura. O hino de Filipenses 2. 6-11 que segue abaixo transcrito é a base escriturística
dessa reflexão:

as formulações bastante radicais, mesmo se elas precisam ler com o espírito, a distinção mais clara que Lutero faz
entre um nível “abstrato” (não sem vínculo com a “filosofia”, recusada na matéria) e a teologia que trabalha sobre um
dado concreto (cf. igualmente, sobre este ponto, a “Dispute sur la phrase le Verbe a été fait chair”, WA 39/2, p. 3-5).
Teologicamente domina em todo caso, segundo Lutero, um mais forte acento colocado sobre a unidade, cf. por exe:
com a encarnação, “humanité et divinité s’interpénètrent (...). L’unité (...) est union plus grande et plus ferme que
celle de l’âme et du corps” (argumento 2 da primeira Disputa assinalada aqui).
144
CALVINO, J. Institutas, II, XIV, 1. In: Le Christ de Calvin, p. 70-71.
145
GISEL, P. Le Christ de Calvin, pp. 72-81.
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Ele, que é de condição divina, não considerou como presa a agarrar o ser igual a Deus. Mas despojou-
se, tomando a condição de servo, tornando-se semelhante aos homens, e por seu aspecto, reconhecido
como homem; ele se rebaixou, tonando-se obediente até à morte, e morte numa cruz. Foi por isso que
Deus o exaltou soberanamente e lhe conferiu o Nome que está acima de todo nome, a fim de que ao
nome de Jesus todo joelho se dobre, nos céus, na terra e debaixo da terra, a toda língua confesse que
Jesus Cristo é o Senhor, para a glória de Deus Pai. 146

Pode-se juntar a essa citação neotestamentária as numerosas passagens onde a Escritura fala
do “Senhor glorificado”. Esta passagem foi comentada por Calvino,147 e por isso, tem destaque neste
lugar.
Num primeiro momento de reflexão, se poderá pensar que a elevação é consecutiva à
ressurreição. Que ela é em efeito ou uma outra maneira de tomar-se conta, naquilo que coincide com
a ascensão, tema central em perspectiva calvinista. Que ela é ligada a este abaixamento que culmina
com a morte na cruz e que, de uma certa maneira, ela o segue. O desenvolvimento do texto
acontece, quando se coloca em evidência em conjunto com o seu sentido. Ou, se uma tal maneira de
ver não seja falsa, ela aparece contudo, parcial, mas sob um exame mais atento terá de ser focalizada.
O que aparece, contudo, é o Servidor obediente. Esse abaixamento é visto no coração da cruz,
voluntariamente assumido.
Calvino não trata temática e sistematicamente da questão da elevação, mas de examinar o seu
significado. O significado é encontrado na elevação e abaixamento que o acompanham, não
constituíndo dois estados separados e consecutivos. Sua relação será antes dialética, mesmo se ela é
igual, e se é verdade afirmar que ela aparece diferenciada segundo as linhas e os momentos
históricos.
A propósito de abaixamento e de elevação, e justamente nestes termos, toda uma série de
debates148 ocuparam assaz de forma central a ortodoxia posterior aos reformadores, no fim do
século XVI e no início do século XVII. É daí que vem a expressão de dois “estados” de Cristo,
expressão consagrada nas dogmáticas protestantes clássicas, o que retoma a parte IV da
“Dogmatique” de Karl Barth,149 mas segundo uma perspectiva e uma ordem própria.
Há um certo perigo de se isolar os termos em questão, sobre os dois “estados”
<<separados>>, e não sem vínculo com a primeira tentação>. Por isso, é necessário haver uma
concentração que atesta uma relação entre a humanidade e a divindade de Cristo. 150
Uma exaltação de Cristo em sua forma pré-pascal tem de ser profundamente refletida.151 Essa
exalação é antes de tudo uma exaltação do ser humano em Jesus Cristo; uma exaltação pré-pascal.
Essa exaltação é jogada de maneira diferente, somente para depois da Páscoa e da Ascensão.
Sublinha-se e moldura a realidade da encarnação: as fraquezas, as enfermidades e as doenças
diversas ligadas à carne de uma parte, a progressão ou a maturação em sabedoria e conhecimento
que se atam, na outra. Jesus Cristo não é um homem como os outros, da mesma posição ou sobre o
mesmo plano.152 Assim, não se pode entender e se reportar a Jesus Cristo em sua encarnação, sem a
146
A BÍBLIA TEB, Filipenses, 2, 6-11.
147
CALVINO, J. Commentaire de l’Epître aux Philippiens, 2, 6-11. In: Le Christ de Calvin, p. 72 ss.
148
GISEL, P. Le Christ de Calvin, p. 73. Os debates se perfilam sobre o plano básico das discussões em que se
opuseram teólogos luteranos e reformados. A formulação foi fornecida, historicamente, pelo lado luterano, as teses
propostas pelos reformados em matéria que estiveram cristalizadas em relação ao que se pode ter como o enunciado
típico de sua posição própria.
149
GISEL, P. Le Christ de Calvin, p. 73.
150
GISEL, P. Le Christ de Calvin, pp. 73 ss.
151
GISEL, P. Le Christ de Calvin, pp. 73-79.
152
CALVINO, J. Commentaire de l’Evangile de Jean, 3,29; 8, 14; 8,16; 8, 17-18; 10,36. In: Le Christ de Calvin, p.
74.
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essência divina. Mas, que se faz antes acompanhar o tema do Servidor, reenviando ao Pai e ao
Espírito que santifica. Tais são, em efeito, duas as marcas centrais e constantes que se grifam sobre a
visão do Filho assumindo a humanidade: Filho que triunfa sobre o pecado porque se sustenta
justamente no Pai.153
A unção de Cristo pelo Espírito Santo encontra uma conexão profunda com o batismo e com
o símbolo da pomba que a ele está ligado. Unção significa que Cristo recebeu o poder de conduzir
seu ofício de redentor na carne. Cristo é habilitado e qualificado para seu serviço específico. Pode-se
afirmar que se opera aqui a junção entre o abaixamento e a elevação, o serviço na carne e a
capacidade de assumir a sua missão, capacidade que deve ser reconhecida.
É necessário notar que, quanto à questão do poder de Jesus Cristo, é este um poder que lhe é
conferido em sua humanidade. O poder que lhe permite justamente realizar inteiramente seu destino
de homem. Não é um poder que tocará a universalidade da providência, mas ao contrário, é esse
poder que lhe permitirá “triunfar sobre Satã”. É antes, realizar o que Adão não conseguiu. Aqui há
uma relação profunda com Gênesis 3. E, o importante é que o triunfo de Cristo como homem,
acontece no coração da fraqueza, da fragilidade e das tentações da carne. Isto tudo acontece no
coração da condição humana. 154
É justamente neste ponto que se destaca o estatuto de Cristo como mediador, segundo a
profundidade da cristologia. As coisas seguem rigorosamente juntas: isto porque Jesus Cristo é
homem – este homem santificado pelo Espírito e exaltado, mas com todas suas propriedades e seu
destino de homem. É assim que ele pode ser propriamente mediador. Não saber distinguir este
ponto, que é fundamental, não se poderá entender as perspectivas soteriológicas.
Como Deus manifestado em carne, Jesus Cristo é o autor da vida,155 Luz do mundo, imagem
de Deus manifestado a todos.156 Permanece, desta forma, a reflexão na perspectiva da mediação de
Jesus Cristo. É um título que provoca uma reflexão acerca de Cristo na figura de Servidor, em face
de seu Pai. A imagem do Servidor indica uma certa subordinação, o que é diferente quando se reflete
sistematicamente a relação intra-trinitária entre o Pai e o Filho.157
Mas, é importante observar que, na condição humana, Jesus era servo, estando, pois, submisso
ao Pai. E, na condição de divina, era igual a Deus, portanto, era Deus encarnado. Por ser plenamente
mediador, Jesus Cristo deveria se fazer e foi feito, em nossa carne, sujeito ao Pai. Para ser mediador,
foi necessário que Jesus Cristo se fizesse homem. Aí está o valor de sua mediação, com o objetivo de
fazer que as pessoas se aproximem de Deus.
Jesus Cristo como verdadeiramente humano, participou não somente da sua vida junto ao Pai e
também das pessoas, mas também como homem na sua exaltação. A humanidade de Cristo aparece
certamente realizada, no sentido de que a nossa humanidade pode ser também realizada, não por
nosso próprio poder, mas por causa da pessoa e obra de Jesus Cristo. Essa humanidade de Cristo
realizada, mostra que é a maneira verdadeira de se assumir o ser humano, e que é base vivificante
para que, de fato, a pessoa possa se desenvolver. A maneira de se viver a humanidade é a que se
deve provavelmente chamar de “espiritual”. Vida espiritual é vida no Espírito e na “relação essencial
com Deus”, que não pode senão esta, de se passar, para por uma transformação, e finalmente por
uma morte e uma recriação.158
Chama-se a atenção para o fato de que a exaltação de Cristo não é estritamente pós-pascal.159
O que precedeu, pois, foi o que é isto justamente, a verdade da figura humana de Cristo.
153
GISEL, P. Le Christ de Calvin, pp. 74-75.
154
GISEL, P. Le Christ de Calvin, p. 76.
155
CALVINO, J. Commentaire de l’Evangile de Jean, 5,27. In: Le Christ de Calvin, p. 76.
156
CALVINO, J. Commentaire de l’Epître aux Colossiens, 1, 15. In: Le Christ de Calvin, pp. 76-77.
157
GISEL, P. Le Christ de Calvin, p.77.
158
GISEL, P. Le Christ de Calvin, p. 77.
159
GISEL, P. Le Christ de Calvin, p. 78.
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Humanidade não reconhecida e escarnecida sobre a cruz, e que se acha agora revelada. Assim, há
uma continuidade essencial. Esta verdade humana de Cristo, doravante exaltada diante de Deus, não
apareceu acessível, em seu estatuto de encanação, senão que aos olhos da fé. Ela apresenta alguma
coisa essencialmente escondida. Não é obra que se contemple com os olhos naturais.
Uma reflexão da exaltação pascal é peremptória, onde se sublinha a humanidade de Cristo
como tal.160 Uma exaltação de Cristo, de articular justamente a encarnação, na medida onde ela se
mobiliza em afirmar e de significar uma exaltação de Cristo, que compreende intrinsecamente sua
humanidade. Dar-se uma olhada retrospectiva. Uma olhada que permite ver que a vida de Cristo
deu-se no corpo e na humanidade, o que não é uma humilhação, mas é subvertida de qualquer modo,
no interior, no corpo, e esta humanidade em sua realidade mais “natural” (marcada de fato pelo
pecado), se manifestou para se realizar em verdade.
A ressurreição retira, em efeito, o estatuto de humilhação e não conduz ao fim, a um prejuízo.
Ela proclama que a cruz, longe de ser um naufrágio onde todos afundam, está finalmente em lugar de
um triunfo. De aparente negação, a cruz é transformada em afirmação. Esta afirmação consiste de
que Jesus Cristo se revelou e é Filho de Deus. 161
A cruz foi assumida voluntariamente por Jesus Cristo, e não se pode dizer que a cruz seja
causa da ressurreição, como se através dela, Cristo tivesse quitado o “mérito” de ser exaltado. De
uma ponta a outra, a perspectiva está reportada a Deus. Tem-se a causa a manifestação de um
processo que, por sua vez, está inscrito na encarnação e proposta ao crente. E que, por sua vez, se
dá justamente como um processo de revelação.162
A glória de Cristo que revela a ressurreição não se apresenta como a visibilidade manifestada
de uma divindade essencial de Cristo, por assim dizer abstrata. É antes, a glória de seu ser e de sua
pessoa de mediador. A sua mediação está intrinsecamente tomada em relação com a sua obra. A
exaltação pascal tem o sentido de que é ela que porta também algo de novo.
Esse algo novo é marcado por fé e esperança, que se articulam principalmente como resultado
da ressurreição. Nossa salvação é certa e inteiramente contida na morte de Cristo sobre a cruz. E, a
realidade nova, do Cristo proposta depois da Páscoa, apresenta algumas modificações significativas.
A relação da humanidade, pois, da obra, realizada na carne e na figura do mediador, permanece, de
modo decisivo. Mas o corpo de Cristo é dito “glorioso”, porque ele obteve uma vida celeste, uma
vida nova.163 Essa vida nova de Cristo não está mais sujeita a morte, nem a corrupção. É uma vida
imortal.
É importante observar que as fraquezas e as fragilidades inerentes à carne, que se acham
radicalmente ultrapassadas pela ressurreição, não são estritamente as fragilidades ligadas à condição
de pecado unicamente. Elas se revelam, num sentido, de uma fraqueza constitutiva do estado
criatural-original de Adão. Desde então, a ressurreição, assim que a ascensão e a ordem do Espírito
que se inaugura, antecipa, atesta e se abre sobre um Reino do Pai, que está mais além que a origem
em Adão.

3.4. A ascensão de Cristo, seu lugar à direita do Pai e o Reino do Pai


Este ponto que segue,164 está plenamente unido com o ponto que precede centrado na
encarnação. O fio condutor que atravessa os dois pontos, e que finalmente os relaciona, deve ser
esquadrinhado do lado do primado referente ao tema da figura mediadora de Cristo. Esta figura

160
GISEL, P. Le Christ de Calvin, pp. 79-81.
161
CALVINO, J. Commentaire de l’Evangile de Jean, 13, 32. In: Le Christ de Calvin, p. 79.
162
GISEL, P. Le Christ de Calvin, p. 79.
163
Cf. Le Commentaire de l’Evangile de Luc (CR 73, opera Calvini 45) em 24, 43: coelestis vitae novitatem. In: Le
Christ de Calvin, p. 80.
164
GISEL, P. Le Christ de Calvin, pp. 83-103.
CRISTOLOGIA E SOTERIOLOGIA 30

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requer uma forte articulação, de uma parte ligada à encarnação e uma exaltação de outra,
plenamente indicada na ascensão e no estabelecimento de Cristo à direita do Pai. A ressurreição de
Cristo confirma a estrutura essencialmente dinâmica e aberta da realidade, que vai, desde então,
antecipar e permitir uma realização de modo dinâmico do conteúdo cristológico.
Para se compreender essa dinâmica, é necessário haver uma atenção nos seguintes aspectos
que são sobremodo particular, em relação à construção cristológica:

a) A ascensão e o senhorio de Cristo – O resultado e a plena concretização da ressurreição


estão intimamente relacionados com a ascensão de Cristo. Esta referência e representação são
centrais e se encontram de uma maneira bem sublinhada, de forma que o crente deve observá-la de
modo profundo, na direção de uma realidade dita celeste ou espiritual. A realidade da glória e da
majestade de Deus. De certa maneira, o processo caminha de modo a ser observada a pessoa de
Cristo, que não pode ser tomada em sua individualidade, sem reenviar ao seu Reino de uma parte, e
ao seu Pai, de outra.165
A ascensão encontra sua equivalência no fato de estar plenamente relacionada à direita do Pai.
Este dois temas se engajam na mesma idéia teológica, que é justamente do senhorio. Significa que
em Cristo, em seu nome, soberanamente elevado, condensa-se a lei do mundo. É a lei que cristaliza o
Cristo de par com sua própria pessoa. Isto quer dizer que seu destino vai a efeito, como imagem do
que comanda em secreto, tanto de nossas identidades, quanto à do próprio mundo. Identidades
diante de Deus e justamente reveladas na figura deste Cristo feito Senhor. Uma nova vez se
configura: o vínculo entre o Cristo pré-pascal que é o lugar de revelação, e o Cristo elevado, lugar
de reconhecimento e de identidade. Estes aparecem intrinsecamente requeridos e devidamente
tratados pela cristologia.
O significado teológico de estar à direita de Deus não vem em adição à ascensão. Aparece
com pleno sentido, de onde, às vezes, há quase uma equivalência dos dois temas. Quando se procede
a leitura do Credo, percebe-se que o texto fala ainda, e segue por assim dizer, na mesma sequência,
de um “retorno de Cristo”.166 Mas, é preciso sublinhar a diferença entre o Cristo manifestado em sua
encarnação, pois a glória permanece escondida, e o Cristo a vir em sua glória. Nota-se que o tema
do “retorno”, especialmente, aparece em conjunto com o julgamento. Assim, torna-se uma nova
oportunidade de se aprofundar e de se explicar um novo valor, de que propriamente se pode falar,
com respeito à lei de Cristo feito Senhor, sobre o qual o mundo se encontra secretamente submisso.
A sequência pode ser retomada como segue: a humanidade está assumida e elevada,
secretamente, na obra encarnada do Cristo pré-pascal. Depois da Páscoa e da ascensão, ela apareceu
por sua vez revelada e glorificada no mesmo Cristo, porque o Pai e o Espírito elevaram seu Filho,
em seu corpo e em sua alma. O Filho foi feito explicitamente Senhor. Mas esta revelação em
senhorio não é visível e diretamente eficaz para os crentes que o reconheceram e o celebraram. Esse
senhorio deve ainda ser manifestado através do Cristo vindo na sua glória. 167

b) Do reino de Cristo ao reino do Pai – O modo de se refletir a verdade cristológica, coloca


em postura um vínculo essencial entre a pessoa ou a imagem que apresenta o Cristo de uma parte e o
corpo dos crentes de outra.168
Uma atenção essencial tem de ser dada sobre o vínculo estabelecido entre o Cristo elevado a
Senhor e à Igreja ou a comunidade dos crentes. Como escreveu o próprio Calvino: “O Filho de Deus

165
GISEL, P. Le Christ de Calvin, p. 84.
166
GISEL, P. Le Christ de Calvin, p. 84.
167
GISEL, P. Le Christ de Calvin, p. 85.
168
GISEL, P. Le Christ de Calvin, pp. 85-87.
CRISTOLOGIA E SOTERIOLOGIA 31

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se declara de qualquer modo imperfeito, se ele não for conjuntamente conosco”. 169 Também se lê:
“O Cristo não virá na glória de si mesmo, mas em comum com todos os seus santos”. 170 Numa outra
terminologia, atribuída ao apóstolo Paulo, de origem apocalíptica, Calvino fala da “herança” que nos
é prometida em Cristo. Isto quer dizer, uma herança coletiva que incidirá em termos de Reino. Desta
maneira, um futuro aparece também indicado e aberto.
O senhorio do Cristo pós-pascal marca e determina a “regeneração” do ser humano. Mas este
não é um estado, e sim um começo, que reclama seu complemento que se dará unicamente no Reino
da glória e da imortalidade.171 É certa a glória de Cristo, de reinar sobre seu povo. É certo também
que o seu reino é percebido desde já, porém, todo sofrimento não se encontra descartado. Por outro
lado, Cristo é dado plenamente como mediador. E, de fato, ele mesmo, aparece na distância e na
ainda não-realização. Ele é essencialmente estabelecido Senhor pelo Pai, e reconhecido no Espírito.
Sua glória deve ainda ser manifestada plenamente, quando do seu retorno. Ele cujo poder, de certa
maneira, fará integrar juntamente o mundo recebido em herança. 172
No seu retorno, Cristo remeterá tudo a seu Pai (1 Coríntios 15.24). Isto se reflete na
cristologia como uma marca antecipada do fim da obra mediadora de Cristo. Vê-se a plena
realização, propriamente escatológica, do que foi indicado e manifestado ao longo da obra do Filho.
Haverá a plena realização do que o Pai finalmente instituiu através de Cristo. 173

c) Uma humilhação no coração da exaltação? – Os estatutos de humilhação e exaltação não


são antitéticos e sucessivos.174 Antes, são dados que se lançam juntos, numa relação dialética,
mesmo num grau de um drama diferenciado e desenvolvido no tempo.
Essa dialética já tem sido enfocada ao serem tratadas as reflexões sobre o Cristo pré-pascal e o
Cristo pós-pascal, o Cristo humilhado e o Cristo feito Senhor, glorificado através da ascensão e de
seu estabelecimento à direita do Pai. Mas, mesmo considerando essa de forma relacional, pode-se
levantar uma interrogação, relevando o que se pode falar a respeito de uma exaltação escondida sob-
regime de humilhação. Pergunta-se: como tratar de uma sorte de humilhação no coração da
elevação?175
Ao comprimir os termos, a expressão vai provavelmente muito longe. Deve-se utilizar o termo
humilhação com prudência. A propósito de Cristo elevado depois da Páscoa e da Ascensão, não
haverá notadamente a questão das fragilidades e das exposições diversas ligadas à situação de
encarnação. Mas, permanecem bem no coração da exaltação pós-pascal, mesmo tomada de
acabamento na elevação à direita do Deus, dois traços de regime de humilhação. Percebem-se de
uma parte, o não reconhecimento do senhorio de Cristo fora da confissão dos crentes e o corpo que
eles constituíram em Igreja, com todo o regime de inadequação essencial que esta supõe. O mundo
subtrai ainda o senhorio de Cristo, e neste mundo mesmo a Igreja vive e participa com todas as suas
propriedades. A Igreja permanece essencialmente inscrita e participa como corpo de Cristo no
mundo.
O enfoque, nesse sentido, prende-se ao fato de que foi preciso, de uma parte, notar a
subordinação176 de Cristo ao Pai. A exaltação domina, contudo, de forma concreta, mas ela não se

169
CALVINO, J. Commentaire de l’Epître aux Ephésiens, 1,23. In: Le Christ de Calvin, p. 85.
170
CALVINO, J. Commentaire de la deuxième Epître aux Thessaloniciens, 1,10. In: Le Christ de Calvin, pp. 85-86.
171
“Huius regni initium est regeneratio: finis ac complementum, beata immortalitas”, Commentaire des Actes, 1, 3
(CR 76, “opera Calvini 48”). In: Le Christ de Calvin, p. 86.
172
GISEL, P. Le Christ de Calvin, p. 86.
173
CALVINO, J. Institutas, II, XIV, 3, II, XV, 5. In: Le Christ de Calvin, p. 86, 87.
174
GISEL, P. Le Christ de Calvin, pp. 87-90
175
GISEL, P. Le Christ de Calvin, p. 87.
176
Cf. Commentaire de la première Epître aux Corinthiens, 11, 3 (CR 77, Opera Calvini 49, 474). In: Le Christ de
Calvin, p. 88.
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compreende unívoca, e sem tensão.177 Sobre estas duas faces descobrem-se, pelo menos, as marcas
de uma não conclusão, de uma dinâmica essencialmente aberta e à realização de uma esperança ainda
por vir a ser revelada.
Em termos doutrinários, se poderá dizer que o Cristo tem plenamente realizado ou cumprido a
obra da salvação, mas a sua tarefa mediadora que é ativa, dinâmica e operadora não está concluída.
Neste sentido e efeito, o Cristo após a Páscoa e à Ascensão, permanece, para Calvino,
essencialmente “verdadeiro homem”.178
Ao considerar o estatuto da encarnação, entra de fato a forma e a função de Servidor, pois é
uma figura originária e decisivamente reportada a Deus. De onde, no coração da temática da
ressurreição e da elevação tem a direita do Pai a marca de um primado de motivo do senhorio
conferido a Cristo e de um senhorio operante em seu Reino. 179
A cruz e a ressurreição não se passam segundo um simples jogo de transposição. De modo
positivo se diz que os dois termos cruz e ressurreição, se inscrevem num processo mais largo. É na
ordem da fé que se vai focalizar o momento específico que eles podem apresentar, um e outro sem
estarem isolados. Ordem desse processo que vai além, um com o outro, e também que sua união
mesma repercute na vida da Igreja, que testemunha sobre o Ressuscitado. Para variar ainda a
expressão, pode-se dizer que no coração junto do mistério pascal se configura a marca de uma
ruptura, de uma descontinuidade ou de uma abertura, que chama a uma instância superior.
Doutrinariamente essa descontinuidade se move no sentido de que vai além, passando pela
realidade cristológica, de propriamente tratar do empreendimento acerca das realidades do
Espírito.180 Há, portanto, nestas realidades, uma reciprocidade que não se pode excluir e que se
lança numa extremidade à outra e vice-versa. A ordem do Espírito não toma a realidade da ordem
cristológica, antes ela marca outra entrada, complementar e necessária, na única questão decisiva e
permanente, esta que desvia aqui juntamente os termos em questão. A questão das relações,
primeiras e últimas, também que são diferenciadas, entre Deus e o homem. 181

d) Um Cristo fora da carne – O “Extra Calvinisticum” – Como já se tem refletido


anteriormente, acerca da temática da encarnação, o senhorio de Cristo e seu ofício de mediador não
são reduzidos. A partir de agora, seguem as diferentes partes do motivo da encarnação. 182
É preciso escutar Calvino sobre esse tema, uma vez que o propósito é refletir mesmo a sua
cristologia. Um dos textos clássicos acerca dessa matéria está na Institution II, XIII, 4 in fine, que
fala da encarnação do Filho de Deus. Mais precisamente, trata sobre sua divindade, que tem sempre
sua ação no mundo desde antes da própria encarnação. “Ora, de modo maravilhoso, do céu desceu o
Filho de Deus. Assim, entretanto, considerando que deixasse o céu de modo maravilhoso, quis sofrer
a gestação no útero da Virgem, andar pela terra e pender na cruz, para que, sempre enchesse o
mundo, assim como de início”.
Uma outra passagem de referência nos escritos de Calvino, que é consagrada à Ceia do
Senhor, como segue:

177
GISEL, P. Le Christ de Calvin, p. 88.
178
Igualmente: Commentaire de la première Epître aux Corinthiens, 15, 24: “non est absurdum neque insolitumm
Christum humanae nature respectu subientum Deo”(CR 77, Opera Calvini 49, 546). In: Le Christ de Calvin, p. 88.
179
Cf. CALVINO, J. Commentaire de l’Evangili de Jean, 20, 17. In: Le Christ de Calvin, pp. 88-89.
180
Cf. GISEL, P. Um salut inscrit en création,. In: Création e Salut. Publications des Facultés universitaires Saint-
Louis. Bruxelles, 1989, pp. 121-161; GISEL, P. La mémoire comme strusture théologique fondamentale. In: Revue de
Théologie et de Philosophie, Genève, Lousane: 125, 1993, pp. 65-76; GISEL, P. La subversion de l’Esprit. Genève:
Labor et Fides, 1993, pp. 144-153; GISEL, P. Répondre du présent entre héritages et déplacements. Paris, 2001, p.
6 (21p.).
181
CALVINO, J. Commentaire de l’Evangili de Jean, 20, 17. In: Le Christ de Calvin, pp. 89-90.
182
GISEL, P. Le Christ de Calvin, pp. 90-103.
CRISTOLOGIA E SOTERIOLOGIA 33

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Efetivamente, que a seu favor aduzem esses testemunhos: “Ninguém subiu ao céu, senão [Aquele] Que
desceu o Filho do homem, que no céu está” [Jo 3.13]; de igual modo: “O Filho, que está no seio do Pai,
Ele [o] revelou” [Jo 1.18], é da mesma obtusidade [que] desprezar a  [koinonian –
comunicação] de idiomas, que não foi outrora inventada pelos santos pais. Por certo que, quando
crucificado se diz o Senhor da glória [I Co 2.8], não entende Paulo haver [Cristo] sofrido algo de Sua
divindade, pelo contrário, porque Cristo, que, rejeitado e desprezado, sofria na carne, era o mesmo Deus
e Senhor da glória. Desta maneira, também o Filho do Homem estava no céu, porque o mesmo próprio
Cristo que, segundo a carne, habitava [como] Filho do Homem na terra [como] Deus estava no céu.
Razão porque nessa própria passagem se diz haver [Ele] descido segundo a divindade, não que a
divindade haja deixado o céu para que se abscondesse no ergástulo do corpo, mas porque, embora a
tudo enchesse, na própria humanidade de Cristo, contudo, habitava corporalmente [Cl 2.9], isto é,
segundo a natureza, e de certo modo inefável. 183

A expressão “extra calvinisticum” tem sua origem nas polêmicas interconfessionais que se
espelharam nas tomadas dos teólogos luteranos e reformados, na segunda parte do Século XVI e no
início do Século XVII.184 O termo não aparece, senão, que aproximadamente no ano de 1620, e a
disputa entre Lutero e Zwinglio, sobre a presença de Cristo na Ceia, aparece fortemente presente
como plano básico.
As citações inseridas que seguem, têm a intenção de circunscrever precisamente o miolo da
questão: a realidade de Cristo como Filho eterno de Deus fora da encarnação, pois, primeiro, sua
realidade de mediador <<antes>>, sua manifestação na carne entre os seres humanos, conforme se
tem visto no corpo desta argumentação cristológica. A não redução, em seguida, da verdade e da
realidade mesma do Filho eterno e de seu corpo humano, durante seu período de humilhação entre
os seres humanos; a recusa, enfim, de dizer que a humanidade de Cristo em sua exaltação se verá
enfeitada, como tal, da majestade de todos os atributos divinos. De maneira técnica, o Senhor
encarnado não tem jamais de haver sua existência e sua verdade <<também fora da carne>> (etiam
extra carnem).185
Sobre esses diferentes pontos, sabe-se acerca de uma teologia de herança do reformador
Lutero, que se mostra como altaneira. E muitos, tanto no século XIX como no século XX, foram
tentados a se firmar na posição que cristaliza essa teologia, na especificidade e na verdade do
cristianismo, que eles têm sido tocados por diferentes correntes do idealismo alemão, por uma
teologia do paradoxo, de forma kierkegaardiana, ou bem, pela renovação luterana do primeiro terço
desse século.186 Tem apoio notadamente sobre a famosa “comunicação de propriedades” divinas e
humanas em Cristo (communicatio idiomatum). O tema é reparável na tradição bem antes de Lutero,
mas se tem indicado que está sublinhado segundo o Reformador, de uma maneira toda feita clara e,
não sem unilateralidade.187

183
CALVINO, J. Institutas, IV, XVII, 30. In: Le Christ de Calvin, p. 90.
184
Cf. WILLIS, E. Calvin’s Catholic Christology. The Function of the socalled Extra Calvinisticum in Calvin’s
Theology, Leiden, Brill, 1966. Pode-se conferir igualmente o artigo de LINK, C. <<Die Entscheidung der Christologie
Calvins und ihre theologische Bedeutung. Das sogenannte Extra-Calvinisticum>>, Ev. Th., 1987/2, p. 97ss. In: Le
Christ de Calvin, p. 91.
185
GISEL, P. Le Christ de Calvin, p. 91.
186
Para uma defesa da posição luterana contra o “extra-calvinisticum”, particularmente afirmada, verificar ELERT,
W., “Die Morphologie des Luthertums”, vol. 1, Munich, Beck, 1931, 1952 2. In: Le Christ de Calvin, p. 92.
187
No <<Dogme christologique et ecclésiologie>>, CONGAR, Y. designa a posição clássica em matéria de
<<comunicação de propriedades>>: <<ele não se mobiliza aqui sobre uma comunicação ontológica da natureza
humana de propriedades da natureza divina (...). Para mais de uma atribuição ontológica da natureza divina de coisas
que pertencem propriamente à natureza humana (...). Esta não é entre as naturezas que existe uma comunicação ou
uma mudança ontológica de propriedades. Este é o sujeito concreto de atribuição que (...) verifica as propriedades que
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Quanto a Calvino, este não recusará essa noção em foco. 188 Mas, ele se coloca a favor
especialmente da “não confusão de substância” e centra o propósito, de modo clássico sobre a
“unidade de pessoa”, de sorte a poder manter que “alguma das duas naturezas tem retido sua
propriedade”.189 Por mais que a Divindade esteja associada e unida à humanidade, cada natureza
permanece integral em sua propriedade, e juntas, constituem um só Cristo. Mas, transferem-se
características de uma propriedade para a outra, conjunção de uma dupla natureza que subsiste em
Cristo, havendo nele uma inter-relação, mas sem perder as próprias características, tanto divinas,
quanto humanas.
Calvino exemplifica essa communicatio idiomatum conforme o que segue:

Comunicação de idiomas ou propriedades, porém, é [o] que diz Paulo: “com o Seu sangue haver Deus
para Si adquirido a Igreja” [Atos 20.28] e “crucificado [haver sido] o Senhor da glória” [I Co 2.8]. De
igual modo, [o] que diz João: “apalpada haver sido a Palavra da Vida” [I Jo 1.1]. Deus por certo que
nem tem sangue, nem sofre, nem pode ser tocado por mãos. Mas, visto Aquele Que era verdadeiro Deus
e homem, Cristo, crucificado, derramou Seu sangue por nós, [as cousas] que Lhe foram realizadas em a
natureza humana são, impropriamente, contudo, não sem razão, transferidas à divindade. Semelhante é
o exemplo onde João ensina que Deus deu Sua vida por nós [Jo 3.16]. Logo, também aí uma
propriedade da humanidade se comunica com a outra natureza. Por outro lado, quando dizia Cristo,
ainda atuar na terra, que “ninguém havia subido ao céu, a não ser o Filho do Homem, Que estava no
céu” [Jo 3.13], certamente, segundo o homem e na carne que havia vestido, não estava então no céu,
mas em vista do fato de que Ele Mesmo era Deus e homem em função a união da dupla natureza, dava
a uma [o] que era da outra.190

Essa distinção de nível de pertinência, “pessoa” de um lado, “substância”, “natureza” ou


“essência” de outro, fundamentalmente, perpassa toda a reflexão cristológica. Essa reflexão permite
dizer uma unidade de outro modo que em termos de fusão, esta que arrisca sempre de ser o caso que
resta no nível de “natureza” ou “substância”. É a maneira de afirmar uma unidade desde então
pensada de feito dinâmico.191 Essa unidade passará pela consideração de uma história diversificada,
e que se mostra operosa. Assim, este ponto se faz propriamente cristológico, no sentido de que Jesus
Cristo é contemplado como obra e desdobramento, e sua face pneumatológica, desde então, é mais
claramente requerida na sua especificidade. Isto mostra o processo inscrito tanto na natureza humana
como na natureza divina, ambas plenamente preservadas; intactas nas suas realidades e nos seus
dados próprios. Sendo deste modo, não é por nada, haver uma recusa de tudo o que poderá conduzir
a partir da communicatio idiomatum, a uma deificação192 de atributos propriamente humanos. Os
sucessores de Calvino falaram a este propósito, nas disputas evocadas, de communicatio
gratiarum.193
O “extra calvinisticum” cristaliza uma posição toda de feito tradicional, e que é útil em seu
modo de se expressar, mesmo se este não seja como tal, sobressai da verdade. Nos termos variáveis,
vê-se novamente em efeito a temática, às vezes com os paralelismos surpreendentes no vocabulário
dele mesmo, segundo uma multidão de Pais e doutores medievais. 194 Dois exemplos marcantes fazem

convém à natureza humana ou as propriedades que são aquelas da natureza humana>>, In: Das Konzil von
Chalkedon (GRILLMEIER e H. BACHT éd.), t. III, Würzburg, Echter, 1954, 1962 2, p. 250. In: Le Christ de Calvin,
p. 92.
188
Cf. CALVINO, J. Institution, II, XIV, 1 ss. In: Le Christ de Calvin, p. 92.
189
Cf. CALVINO, J. Institution, II, XIV, 1e 7. Na unidade de sua pessoa, não imaginou uma mistura confusa.
190
CALVINO, J. Institutas, II, XIV, 2.
191
GISEL, P. Le Christ de Calvin, p. 92. Cf. nota 14.
192
Cf. JUNGEL, E., “Dieu, mystère du monde” [1977], Paris, Cerf, 1983). In: Le Christ de Calvin, p. 93.
193
Cf. referências em WILLIS, E. D., op. cit., p. 10 s. In: Le Christ de Calvin, p. 93.
194
WILLIS, E. D., op. cit. In: Le Chist de Calvin, p. 94.
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coro a seguir. Sto. Tomás que escreveu na “Somme Théologique” (IIIa. Qu 5, art. 2, ad. 1), a
propósito de “Cristo é descido do céu”: “não que a natureza divina tenha cessado de ser do céu”.
Quanto a Sto. Agostinho, ele precisou bem que não é a doutrina cristã de crer que o “Deus entrado
na carne, nascido da virgem Maria”, tenha “abandonado o cuidado do governo do universo”, seja “o
tenha transferido a este pequeno corpo” (<<matéria recolhida e contraída>>). 195
A estas duas grandes referências, pode-se acrescentar também Atanásio. “Na sua “De
Incarnatione”, ele determina, em efeito, que Cristo não foi “unido a seu corpo”, nem foi “em seu
corpo de tal maneira que não esteve alhures”, e que ele não se moveu em seu corpo de tal sorte que
o governo do universo foi abandonado” ou que ele não foi mais preenchido de “sua eficácia e de sua
providência”.196 Assim, o “extra calvinisticum” é perfeitamente tradicional, constituindo mesmo o
que se pode denominar “extra catholicum” ou “extra patristicum”. 197 Quanto à posição herdada de
Lutero, se apresenta como uma “inovação”. 198
Sobre o que se tem denominado de “extra calvinisticum”, está ligado a algumas entradas
teológicas importantes.199 Essas entradas são decisivas, para a cristologia, porque aparecem no grau
do tipo de relação entre a humanidade e a divindade. Sobre essa relação a cristologia se insere em
sua reflexão de instância calvinista. É uma instância que trata sobre o lado dinâmico dessa relação,
no nível mesmo de Jesus Cristo, o primado absoluto conferido, desde então, no momento que a
dogmática tradicional tem pensado como o momento da pessoa, é que ela se projeta, com efeito,
sobre alguns pontos fundamentais a seguir:

a) Preservar a transcendência de Deus como tal, mesmo que contenha termos de controvérsia;
b) De manter intacta a humanidade, na sua consistência própria e seus traços constitutivos,
tanto da humanidade de Cristo, como em consequência também dos crentes;
c) De permitir, enfim, uma articulação real da redenção sobre a criação e suas diversas ordens
de realidades.

É fundamental atentar para a distinção que faz Calvino. Essa distinção tem dois pontos: um
“Cristo na carne” (ensarkos) e um “Cristo fora da carne” (asarkos). Tal distinção não introduz uma
dicotomia, que limitará a validade da revelação (integralmente ensarkos), e que para além, deixará
intacta outra realidade transcendente de Deus (essa que assinalará o asarkos).200 O conteúdo
principal e que é integralmente positivo, é o Cristo que se dá sem restrição, como o ponto
determinante onde a verdade é manifestada, revelada. Mas, se a distinção de Calvino não conduz a
uma dicotomia entre Deus e Cristo, nem às limitações correspondentes quanto à pertinência do tema
revelador, ela direciona de modo magnífico a se refletir sobre o lugar ou o corpo mesmo da
revelação. O que se percebe é uma sorte de dialética interna nessa reflexão. Assim, dizer que a
verdade seja decifrada no lugar real, visível e concreto de sua manifestação, não sobressai a questão
de saber o que se entende por revelação, como ela opera, nem através da norma do estatuto dessa
verdade. Esse proceder não se dará sem uma relação sobre o que se pode entender pela palavra
Deus.

195
Letra 137, 2, Ad Volusianum (Patr. Lat. Migne 33, col. 517). In: Le Christ de Calvin, p. 94.
196
Patr. Grecque Migne 25, col. 125. Cf. também edição e comentário CAMELOT, P. TH., Paris, Cerf (<<Sources
chrétiennes>> 18), 1946. In: Le Christ de Calvin, p. 94.
197
WILLIS, E. D., op. cit., p. 60 e 153. In: Le Christ de Calvin, p. 94.
198
WILLIS, E. D., op. cit., p. 5 e 23 s. In: Le Christ de Calvin, p. 94.
199
GISEL, P. Le Christ de Calvin, p. 94 s.
200
GISEL, P. Le Christ de Calvin, p. 95. Isto é o que a teologia de Calvino considera certo, e a título necessário, de
um discurso sobre o Cristo fora da carne (o extra carnem do “extra calvinisticum” justamente), mas que Calvino
ignora todo discurso teológico fora de Cristo (extra Christum), que seja a propósito de Deus ou relativo tanto ao
homem quanto à realidade.
CRISTOLOGIA E SOTERIOLOGIA 36

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Teologicamente, não existe senão que um Cristo, uma Palavra ou um Logos. Segundo Calvino,
crer é, pois inseparável de uma olhada que carrega a mais alta (sursum corda)201 realidade do
Espírito. De modo cristológico, o Reformador não falará da manifestação da verdade na carne, senão
que chamará de “poder” que a ela é vinculado. O poder de Cristo, de nos juntar a ele ou à verdade
justamente, pois ele é feito servidor ou o ministro.
A forma pela qual se fala da cristologia de Calvino, no sentido de se processar uma dialética
interna, vai de encontro àquilo que ele mesmo chama de certa cristolatria. 202 É uma dialética clara e
forte. Teologicamente, ela assinala a sua maneira, uma liberdade originária de Deus e sendo esta
ligada ao seu livre acontecer na carne. Em outros termos, ela permite se reportar a sua manifestação
encarnada a uma dinâmica, procedência e a uma genealogia, que a colocará para mais longe, em
relação ao mundo em herança, no reino do Pai. Assim, há a transcendência de Deus, mas articulada
sobre o fato mesmo da revelação em seu seio.
Afirmar um Cristo “fora da carne” (extra carnem) é dizer, com todo rigor, que ele não é senão
que redentor. Como já se tem refletido sobre a face positiva do enunciado acerca do fato da
mediação de Cristo e seu primado sobre a encarnação. Calvino alega não haver uma dicotomia entre
os discursos que tocam a ordem da criação de uma parte (discursos de notas gerais), e um discurso
relativo à verdade redentora de outra (discursos que são irremediavelmente ligados a uma
particularidade). Na verdade existe um discurso teológico, porque existe uma verdade teológica.
Entretanto, é uma verdade articulada na diferença. Mas se tem um discurso único sobre o mesmo
Deus. Um Deus criador e redentor, onde por sua vez, sobre duas faces, a verdade crística aparece
em posição central e mediadora.
Mas, se não existe lugar para dois tipos de conhecimento, dissociados, e, pois um único será
cristológico, existe e bem, necessário e irredutivelmente, duas faces da verdade manifestada na
encarnação, que se remetem uma à outra, na sua diferença mesma. O discurso calvinista sobre a
verdade do Filho “fora da carne” (extra carnem) permite em definitivo que a revelação “na carne”
nos reenvia à verdade que se esconde tanto no mais profundo da Lei, quanto no coração da criação
mesma. Ou para expressar de outra maneira: o discurso sobre a verdade do Filho “fora da carne”
permite que a revelação seja esta da verdade do homem como tal, universal. A verdade de todos, na
nossa condição humana, nas tomadas com a realidade, tanto com sua resistência, quanto com a
promessa que, em Cristo, essa resistência mesma recebe. 203
A maneira de Calvino apresentar a sua cristologia, de Cristo fora da carne, chama a
transcendência de Deus que permite como já se tem visto articular o mistério da redenção sobre a
realidade da criação. Os vínculos teológicos atestam salvaguardar a consistência de humanidade,
tanto no nível da representação cristológica, quanto provavelmente e por seguir, no nível das
realidades crentes, que se correspondem.204
Para além do contexto preciso, sobre a ubiquidade de Cristo, existem, pois, a
transubstanciação romana ou a consubstanciação luterana da Eucaristia. O propósito é instrutivo
quanto à cristologia. Mas, que entende Calvino por preservar esta distinção, entre isto que o Cristo é
em seu ser inteiro (totus) e tudo isto que o Cristo tem (totum)? Preservar o Cristo como pessoa ou
hypostase, na sua distinção das diferentes propriedades que são os seus (como pessoa ou hypostase,
o Cristo não é redutível da soma de suas propriedades), pois, em ocorrência, o corpo e a
humanidade.205

201
Cf. que GANOCZY, A. , qualifica de <<incessante>>, op. cit., p. 405. In: Le Christ de Calvin, p. 96.
202
GISEL,P. Christ de Calvin, p. 96.
203
GISEL, P. Le Christ de Calvin, p. 97.
204
CALVINO, J. “Institution”, IV, XVII, 3. In: Le Christ de Calvin, p. 97.
205
CALVINO, J. “Institution”, III, 22, 3 (MPL 192, 804). In: Le Christ de Calvin, p. 98.
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Calvino, em muito, faz destacar a humanidade e o corpo de Cristo. Mas, não os imagina
sempre, exceto quando reflete nas realidades sacramentais. Esse corpo e essa humanidade
participam, profundamente, da pessoa de Cristo. Não é por nada que Calvino os sustenta e os
registra em sua exaltação pascal e pós-pascal. São partes integrantes de sua identidade em relação a
Jesus Cristo. Fora deles, o mistério que se cristaliza e representa o Cristo perde sua realidade e sua
verdade, sua força e sua pertinência.
É com seu corpo e sua humanidade que Cristo será considerado como medida de julgamento.
Mas, ao mesmo tempo, é esta a outra face, estritamente corolária destas afirmações, falar do corpo e
da humanidade de Cristo. Não tem nem verdade nem realidade em si, ao se poder desligar esta que o
Cristo assume (a carne: assumptio carnis) de sua persona justamente. Esta forma de pensar em
Calvino é clássica. Tem o propósito de não pensar em termos de natureza ou de substância, mas de
relação do ser e de fato da pessoa. Se a humanidade e o corpo de Cristo sobressaem de sua pessoa, o
discurso de seu propósito, assim que sua verdade e sua realidade mesmas são situadas e limitadas.
Elas são essencialmente reportadas a sua pessoa específica. E, separadas de par com sua missão e
sua história de uma parte, e separadas hoje também, depois da ascensão, do mundo e dos crentes é
uma outra parte que traz prejuízo. 206
A teologia de Calvino visa a uma articulação entre humanidade e divindade, que são decisivas,
mas recusa toda absorção ou fusão.207 A sua cristologia preside em ordem diversificada e apresenta
uma instância própria. Ela tem sua consistência e sua especificidade. Deve-se dizer absolutamente
fundamental, mas se guardará de entender a realidade e a legitimidade do infinito. Mas precisamente,
a ordem da Igreja, da fé como a vida de cada um, da mesma realidade, deva aparecer outra. Tudo
nela está ligado. É a realidade do Espírito. Assim a temática denominada de “extra calvinisticum”,
indica finalmente, que não se passa diretamente da obra histórica de Cristo a sua obra da Igreja,
como se tivesse um estrito prolongamento, sob uma forma institucional ou ainda de forma
radicalmente espiritual.
A ordem que preside o Espírito é a ordem cristológica. Assim, ela apresenta a sua
especificidade, e, pois, seus limites. O recurso do Espírito é intrinsecamente aberto pela
representação cristológica de Calvino, mas não significa que exista um primado do Espírito sobre o
Cristo, como se o Cristo não tivesse, finalmente, senão que a emanação de Espírito eterno. O “extra
calvinisticum” marca um princípio de transcendência no coração mesmo da cristologia. Mas é este
mesmo princípio que preserva a carne e humanidade concreta tanto do Cristo, e por implicação
também a dos crentes ulteriores. A carne de Cristo participa de sua elevação, porque ela está
indissoluvelmente ligada a sua pessoa e a sua obra.

3.5. A Redenção
As reflexões precedentes mostraram que a encarnação é antes de tudo o lugar onde se
manifesta o Mediador de todos os tempos. Este é um ponto essencial, porque permite uma forte
articulação entre criação e redenção, que é de grande interesse teológico. Em seguida, permite-se um
desprendimento no coração da obra da redenção, que propriamente fala, tanto sobre a sua face
cristológica, quanto a sua face pneumatológica, na pessoa crente e também na Igreja.
O desprendimento em foco,208 acentua que Deus está mantido numa ordem de eminência, e
permitirá uma reflexão e um aprofundamento acerca da complexidade humana, por sua vez, em

206
Cf. CALVINO, J. Institution, IV, XVII, 12. In: GISEL, P. Le Christ de Calvin, p. 98.
207
GISEL, P. Le Christ de Calvin, p. 103.
208
Cf. GISEL, P. Le Christ de Calvin, pp. 105-130.
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termos de real ascenção, na carne, e também em termos de transformação ou de metamorfose.


Enfim, tudo isso, refletido sobre um registro que seja propriamente “espiritual”, no Espírito. 209
Os pontos a seguir, apresentam traços marcantes da cristologia de Calvino, no que concerne à
obra da redenção:

a) Obediência e contemplação – “Um Cristo obediente e contemplado”210 mostra que o


drama da encarnação não pode estar desvinculado da redenção. Esse drama está centrado na história
de Cristo entre a humanidade, isto é, inscrito em genealogia e na carne humanas.
Esse modo de refletir a cristologia, embora esteja presente no pensamento de Calvino, é algo
que é bem inerente ao cristianismo. É preciso distinguir bem as ordens, sem que haja risco de haver
uma posição contraditória. Se Calvino sublinha fortemente o primado de uma mediação para além do
tempo e do espaço, uma mediação que a encarnação primeira e antes de tudo se concretiza pela
função que é visível, e se essa mediação primeira está na ordem ligada à realidade de um amor
gratuito de Deus, de sua eterna misericórdia, podem ser considerados os méritos de Cristo e sua
obediência?
Alguns, no tempo de Calvino, viam a Jesus como ministro ou instrumento da salvação e não
como seu autor.211 Mas, é fundamental em Calvino considerar o mérito de Cristo como sendo a pura
graça de Deus. É preciso manter estes dois aspectos. Sendo assim, evoca-se a propósito de Jesus
Cristo, a predestinação, em referência a Sto. Agostinho. 212 Esta seduz a uma primeira consequência:
uma distinção das ordens justamente e uma subordinação entre o primado de Deus e a história de
Jesus Cristo.213 Em seguida, percebe-se que se precisará claramente, do favor e da bondade de Deus
e da obediência de Cristo, que são de alguma maneira, segundo a sua própria ordem.
Para Calvino, falar de um mérito de Cristo por si mesmo, será conceder autonomia e a induzir,
desde então, <<escolher Jesus Cristo>>. Assim, Calvino reclama “uma imensa perspicácia
teológica”, porque aprouve aqui em sua perspectiva, ou, pelo menos, uma perspicácia teológica mais
radical.214
Mutatis mutandis, Cristo é chamado de “Novo Adão”.215 Isto quer dizer que, Cristo é visto
como figura corporativa e recapituladora. Ou, que poderá querer significar nesse nível, em todo caso
é uma “obra” de Adão ou uma “obra” de Cristo? Será, então, desprendida da ordem da confissão, da
ordem do Espírito e da Igreja, pois tem o cunho de relevar a existência humana? Salvo de se poder
concluir que, nem Adão, nem o Cristo e nem o que nos convém, não haverá constrangimento de
reputá-los e de compreendê-los como antecedência pouco ou provavelmente causal?
Há um paralelo entre Cristo e Adão. “Como temos sido feitos pecadores pela transgressão de
um homem, também somos restituídos em justiça pela obediência de um homem” (Romanos 5, 19).
Obtêm-se pela graça de Cristo o que Deus tem prometido nas obras através da Lei, quem,
justamente, pode cumprir realmente essas obras? Em Cristo se cumprem diante de Deus, e segundo
o acréscimo que ele representa, é que se podem confessar nossas obras, estando de modo que o ser
humano não pode entender cumpridas. Mas, é somente segundo a ordem de Deus, que o ser humano
as recebe e as transforma de outra maneira cumprida, pois, que nem a pensamos e fazemos, enquanto

209
Cf. GISEL, P. La subversion de l’Esprit. Réflexion théologique sur l’accomplissemente de l’homme. Genève:
labor et Fides, 1993. 217p.
210
GISEL, P. Le Christ de Calvin, pp. 106-113.
211
CALVINO, J. Institution, II, XVII. In: Le Christ de Calvin, pp. 106-107. A questão foi levantada por um
denominador, Laelius Socin, na controvérsia do ano de 1555.
212
CALVINO, J. Institution, II, XVII. In: Le Christ de Calvin, p. 107.
213
CALVINO, J. Institution, II, XVII. In: Le Christ de Calvin, p. 107.
214
GISEL, P. Le Christ de Calvin, p. 107.
215
GISEL, P. Le Christ de Calvin, p. 108.
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elas são, realmente, inscritas na existência humana. E, essa ordem de Deus é o seu Cristo, que
através dele o ser humano pode ser novamente inserido diante do próprio Deus.
A vida em “Adão” aparece rigorosamente como pessoa não-acabada. É consequência
diretamente em face da queda, do mal e do pecado. 216 O homem não se realiza como pessoa, por
causa do pecado, que diante de Deus configura-se como o afastamento que ele apresenta em sua
dimensão. O homem vive numa situação que é justamente inscrita em pecado, no qual, contudo,
todos estão inseridos. É preciso entender, em face desse exposto, que se tem de confessar a
existência de uma genealogia em acabamento. E, sendo esse pecado, enquanto causa de não-
concretização, significa que ele está mesmo inscrito no coração da existência humana.
O que se lança em conta é um jogo que sanciona uma nova vez, o afastamento ou a distinção
das ordens. Essa distinção que se apresenta no contexto, vai permitir e articular sem contradição a
“misericórdia infinita de Deus” e “mérito de Cristo”. 217 Assim, se poderá compreender melhor a
própria redenção. O primado do amor absolutamente gracioso ou do que ele tem que nada pode vir a
esquecer, porque é Deus mesmo, revelado em Jesus Cristo. Através de Cristo, a pessoa pode ser
reputada como justa, pela fé, que repousa e encontra nele o objeto material da salvação. 218
Calvino desenvolve, à maneira clássica, esse lado real e material, no sentido de refletir sobre
Cristo, proposto como “autor” da salvação, sendo evidenciado pelo crivo de sua “obediência”, onde
se pode legitimamente falar de seus méritos. Diz-se respeito ao estatuto vicarial de Cristo, em que
ele assumiu o nosso lugar. Cristo pagou pelos nossos pecados, e a salvação nos deu pela sua justiça.
Ele se tornou maldito por nós (Gálatas 3, 13). Não é isto coisa absurda, Cristo ter que assumir o
lugar do ser humano pecador? Há uma contradição com a graça de Deus? Calvino responde que não,
pois há uma distinção das ordens justamente. 219
Refletindo teologicamente, Jesus Cristo é matéria da salvação do ser humano, de modo real,
concreta e materialmente.220 Assim, todo ser humano necessita de sua mediação. Em Cristo,
configura-se a dupla face da realidade da redenção. Ele é o instrumento, necessário segundo a ordem
humana. Nele há o cumprimento da obra da salvação, porque nele se realiza, ao mesmo tempo, a
mediação que perpassa toda a eternidade, e no coração dessa realização, faz-se presente mesmo a
imagem de Deus. Deus se engajou no coração da humanidade, agindo na eternidade de modo
trinitário.221
A ordem humana da salvação tem em efeito, seus constrangimentos. E, esta ordem se origina
da necessidade do sacrifício, órgão central do drama soteriológico, mesmo se não constitui para
Calvino, toda a extensão de sacrifício que tem sido considerado em todas as suas dimensões. 222
É preciso entender o que se quer dizer quando se trata desse sacrifício. Fala-se do homem
pecador, não de Deus em si, salvo de manifestar com justiça que Deus não ama nossas injustiças.
Que a eminência do amor de Deus tem caráter de eternidade e não pode se coadunar com as
iniquidades do homem pecador. Assim, foi preciso que Deus se revelasse em Cristo como salvador.
Portanto, a salvação do ser humano reside em Cristo, e que este é o seu autor. Cristo é verdadeira
comida, azeite, confeito, sal e sabor. Estas são imagens tomadas por Calvino, 223 em atenção à
própria realidade concreta do ser humano.

216
GISEL, P. Le Christ de Calvin, p. 108.
217
GISEL, P. Le Christ de Calvin, p. 109.
218
Cf. MIRANDA, M. F. A Salvação em Jesus Cristo, São Paulo: Loyola, 2004, apresenta a realidade da salvação em
Cristo, de modo objetivo.
219
Cf. C.R. 50, Opera Calvini, 71. In: Le Christ de Calvin, p. 109.
220
Cf. C.R. 50, Opera Calvini, 71. In: Le Christ de Calvin, p. 109.
221
GISEL, P. Le Christ de Calvin, p. 110. Santíssima Trindade. Deus é Pai, Filho e Espírito Santo.
222
Cf. CALVINO, J. Institution, II, XVI, 5, texto de 1560. In: Le Christ de Calvin, p. 110.
223
GISEL, P. Le Christ de Calvin, p. 111.
CRISTOLOGIA E SOTERIOLOGIA 40

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Deus não pode amar a iniquidade que vê no homem pecador. E, Calvino não entende de
nenhum modo, que a “diferença perpétua” entre a justiça e a iniquidade apareça banalizada ou
diminuída. Duas realidades são evidenciadas. De um lado Deus não vê ponto perdido no ser humano,
ou seja, nós permanecemos suas criaturas. Ele nos criou para a vida, e nos envia ao primado da
eternidade do seu amor. De outro lado, somos nascidos em condenação, e Deus nos remete ao ofício
de Cristo, que abole o mal que há em nós. Há uma fórmula de subordinação entre Deus e o ser
humano. O amor humano em relação a Deus somente é em função do próprio amor de Deus, que
agiu primeiro (1 João 4, 9). Esse amor foi manifestado em Cristo, pela sua morte, provando seu
amor concreto, em favor do ser humano.
Essa entrada teológica marcou o coração da Reforma: a justificação gratuita ou a recusa de
inscrever Deus e o homem nas jogadas de equivalências. 224 Jesus Cristo morreu por nós, quando
ainda éramos fracos (Romanos 5, 6). Assim, Calvino prossegue a exposição soteriológica sublinhado
o tema fundamentado na obediência de Jesus Cristo. Para o Reformador a obediência resume,
teologicamente ou pelos olhos da fé, toda a vida de Jesus, e essa sua vida aparece particularmente
apropriada enquanto se fala de sua morte que, num em certo sentido, toma-a e a recapitula ou a
cumpre.
Calvino tem também preferência de falar de Jesus Cristo como servidor em sujeição voluntária,
experimentado nas duras e ásperas coisas da existência. Subordina esse tema e o inscreve na lógica
teológica da representação.225 Essa representação se lança na relação e no lugar de se contemplar a
Cristo. Cristo tem de ser contemplado como obediente e com sua vida humana vivida
concretamente. Desta maneira, é que deve se dá uma relação verdadeira entre o homem e Deus.
Sendo assim, opera-se concretamente a salvação sem o grau de uma recompensa extrínseca, abstrata
ou metafísica, que Deus deve acordar em razão de um mérito adquirido pelo ser humano.
O sacrifício operado por Jesus Cristo marcou o grau de sua condenação, constituindo-se um
drama judicial. A sua morte foi violenta. Ele foi condenado em nosso lugar, substituindo-nos, na
ordem de uma representação. Isso quer dizer que ele morreu pela humanidade e garantiu pela sua
morte o acesso do ser humano a Deus. Logo, à salvação concreta e definitiva. Assim, pode-se
contemplar a pessoa de um pecador e malfeitor representada em Jesus Cristo; e contudo, é sabido
que Jesus Cristo assumiu a carga do pecado dos outros. Tudo isso que foi imputado, fez que o
processo criminal da humanidade diante de Deus fosse transportado para Jesus Cristo. 226

b) O mistério pascal – Esse mistério é visto em seu desdobramento, acerca de tudo o que
abarca e envolve.227 Em sentido cristão, falar de redenção é por excelência se deter na reflexão do
mistério pascal. Esse mistério envolve de modo profundo o complexo cruz-ressurreição, quando se
trata da cristologia.

224
GISEL, P. Le Christ de Calvin, p. 112.
225
GISEL, P. Le Christ de Calvin, p. 112.
226
GISEL, P. Le Christ de Calvin, p. 113. Cf. nota 5. Calvino usa um vocabulário típico da Reforma (um vocabulário
central, segundo Lutero) e controvertido confessionalmente, entre católicos e protestantes. Como segundo Lutero,
Calvino confessa uma imputação de pecado dos homens sobre o Cristo (<<ele tem sido tomado no rol dos malfeitores
[...] a fim de se cumprir a pena que devem os pecadores, e se colocar no seu lugar: pois na verdade, ele não sofreu a
morte pela justiça, mas pelo pecado>>, Institution II, 5). Em recompensa, não se pode, provavelmente, dizer que
existe, segundo Calvino, como é este o caso segundo Lutero, imediata e reciprocamente, imputação da justiça de
Cristo sobre os homens (enquanto que ele tem uma restituição em ordem da graça). Isto é o que resta globalmente,
segundo Calvino, no quadro de uma satisfação necessária de operar, sobre o plano básico de um desdobramento
temporal e humano de aliança e das realidades da criação, quadro onde a obediência de Cristo deve ser manifestada
(esta é no quadro e no nível da pessoa de Cristo que o pecado, imputado, pode ser destruído) e onde, articulado
sobre esta manifestação (globalmente tomada, deve: via a ressurreição e o Espírito), um reino estruturado, e
estruturado dinamicamente, deve vir tomar lugar e corpo: o reino de Cristo sobre os crentes.
227
GISEL, P. Le Christ de Calvin, pp. 113-124.
CRISTOLOGIA E SOTERIOLOGIA 41

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Calvino se aprofundou nas reflexões que abarcam os temas que tratam dos mistérios da cruz,
da ressurreição, da ascensão e do retorno de Cristo.228 É importante sublinhar que, teologicamente,
esses pontos estão profundamente ligados. Comentando sobre o texto de Romanos 4, 25, Calvino
escreveu a propósito do mistério pascal:

“O qual foi entregue por causa das nossas transgressões e ressuscitou por causa da nossa
justificação”.229

É-nos da maior importância, são só termos nossas mentes direcionadas para Cristo, mas também termos
um nítido quadro de como ele granjeou nossa salvação. Embora a Escritura, no que se refere à nossa
salvação, se detém só na morte de Cristo, todavia, no presente caso, o apóstolo vai além; e como propôs
apresentar um relato mais explícito da causa de nossa salvação, então alinha as duas partes dela. Ele
diz, primeiramente, que os nossos pecados foram expiados pela morte de Cristo; e, em segundo lugar,
que a nossa justiça foi adquirida através de sua ressurreição. A súmula consiste do fato de que quando
possuímos o benefício da morte e ressurreição de Cristo, a justiça é consumada em todas as suas partes.
Não há dúvida de que, ao separar a morte de Cristo de sua ressurreição, Paulo está acomodando sua
linguagem à nossa ignorância, porque, por outro lado, é verdade que a nossa justiça fora granjeada pela
obediência de Cristo demonstrada em sua morte... Entretanto, visto que Cristo fez conhecido a nós o
quanto ele realizou em sua morte, ressuscitando dos mortos, esta distinção também nos ensinará que
nossa salvação começou pelo sacrifício por meio do qual nossos pecados foram expiados, e finalmente o
mesmo foi completado por sua ressurreição. O início da justiça é a nossa reconciliação com Deus, e sua
completação é o reinado da vida quando a morte houver sido destruída. Paulo, pois, ensina que a
satisfação para os nossos pecados foi consumada na cruz, pois a destruição de nossos pecados por
Cristo era necessária a fim de que ele pudesse restaurar-nos ao favor do Pai. Isto só podia ser realizado
sofrendo ele, em nosso lugar, o castigo que não seríamos capazes de suportar. “O castigo que nos traz a
paz”, diz Isaías, “estava sobre ele” [Is 53,5]. O apóstolo diz que ele [Cristo] foi entregue antes que fosse
morto, visto que a expiação depende do beneplácito eterno de Deus, que escolheu esta forma de
reconciliação.230

A cruz de Cristo nenhum valor teria, se Cristo tivesse apenas morrido. Em cristologia não se
diz que pela morte de Cristo se pode ser ressuscitado em esperança viva, mas é pela sua ressurreição
(1 Pedro 1, 3). A cruz e a ressurreição são duas realidades que se apresentam juntas.
Teologicamente, uma é reenviada à outra.231 É um reenvio que não é linear, nem também com um
único sentido. Fundamentalmente, cruz e ressurreição constituem um mesmo mistério, complexo e
indissociável, que é o mistério pascal. Esse mistério é o sinal de uma expressão que é bastante
atual.232
É preciso para nós, como foi para Calvino, seguir o drama na sua própria ordem, sucessiva,
histórica ou econômica.233 A cruz é primeiramente aprofundada. A cruz foi o lugar onde Cristo se
tornou sujeito de maldição.234 Verifica-se, nesse sentido, o enfoque que Calvino dá em 2 Coríntios 5,
21: “Aquele que não conheceu pecado, ele o fez pecado por nós; para que, nele, fôssemos feitos
justiça de Deus”. Aqui se percebe um momento de transferência. Sobre o corpo de Cristo, a força do

228
GISEL, P. Le Christ de Calvin, p. 114.
229
BÍBLIA DE ESTUDO ALMEIDA, Romanos 4, 25. Barueri-SP: SBB, 1999.
230
CALVINO, J. Romanos. São Paulo: Parácletos, 1997, pp. 173-174.
231
Cf. GISEL, P. Vérité et Histoire, p. 320. A cruz e a ressurreição não devem ser jogadas uma contra a outra, como
termos opostos, segundo a ordem sucessiva de uma história dos fatos da salvação. Sobre este ponto cf. pp. 307-326.
232
GISEL, P. Le Christ de Calvin, p. 114. O autor afirma que esse sinal corrente na atualidade é percebido melhor no
meio católico, talvez pelo fato de haver as celebrações da morte e da ressurreição de Cristo, de forma mais evidente.
233
GISEL, P. Le Christ de Calvin, pp. 114-115.
234
Alusão a Deuteronômio 21. 22-23, que fala da maldição junto àquele que é pendurado no madeiro.
CRISTOLOGIA E SOTERIOLOGIA 42

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pecado. Não significa o pecado como tal, que tem sido abolido, tomando a própria pessoa de Cristo.
Sobre a cruz, Cristo é tomado “nessa marca visível”, da maldição. As consequências do pecado
foram evidentes em sua carne; e nela o pecado foi condenado.
Calvino não quer dizer que o Cristo tenha recebido a maldição do homem pecador, de modo a
ser abatido como se ele estivesse em lugar deste homem de forma literal, simples e extrínseca. 235
Não, ele recebeu a maldição “em sua pessoa” e, eo ipso, e a dissipou. Ele se moveu sempre num
jogo relacional, onde o homem se sustenta em primeira linha, cada um dentre todos, porque se move
justamente no jogo real e concreto da redenção. Um jogo onde a fé está engajada, principalmente. A
fé “na condenação de Cristo apreende absolvição” e “em sua maldição apreende bênção”. Assim,
sobre a cruz, Cristo “foi feito pecado”, como se tem refletido, ao mesmo tempo, feito, por nós,
redenção ou justificação.
A meditação acerca da morte de Cristo não se baseia unicamente no único feito da cruz. 236 O
tratamento da problemática da maldição indica algo que ultrapassa, de fato, o estrito momento da
cruz e da morte. Inscreve-se mesmo numa perspectiva eminentemente teológica. Essa perspectiva
tem a ver com a globalidade das relações reais, encarnadas, entre Deus e o homem. Cristo foi
inteiramente exposto à morte, ele foi tragado e subjugado por ela. Assim, se percebe a maldição da
cruz. Cristo na cruz representou a humanidade afetada pelo pecado. Através deste modo de refletir
teologia, Calvino chama ainda à realidade do sacramento batismal, que segundo o apóstolo Paulo,
somos metaforicamente, “associados” à morte de Cristo pelo batismo (Romanos 6, 3-4).237
Uma atenção teológica que Calvino concede ao sofrimento e à morte de Cristo, é a “descida
aos infernos”.238 Essa descida indica que, sobre a confissão da morte de Cristo na cruz, nós não
temos justamente nenhuma participação na sua morte física, unicamente considerada como “normal”,
feita com violência extrema. Isto é, não precisamos morrer como Cristo morreu. O processo que se
ata parece mais largo e mais complexo. A morte de Cristo é uma morte que toca profundamente a
alma humana. É uma morte espiritual que se percebe ultrapassando estritamente o “corporal”, e que
é unicamente suscetível de desdobrar a plenitude do que está em jogo. Essa morte espiritual é o
prolongamento da maldição da cruz. Esse prolongamento tornou-se concreto, particularmente na
tristeza e na agonia de Jesus, seja no Getsêmane (Lucas 9, 28-36), seja sobre a cruz. Em agonia ele
disse: “Deus meu, Deus meu por que me abandonaste?” (Mateus 27, 46). Esse momento indica que
Cristo tem sustentado o peso da vingança de Deus, tanto que ele tem sido magoado e afligido
mediante sua mão, e tem experimentado todos os sinais que Deus mostra aos pecadores. 239
Jesus Cristo passou por uma profunda angústia. Esta foi em função de se colocar na condição
de maldito. Da cólera de Deus contra o pecado, do Nome que ele chamou em sua força
insignificante. Calvino reflete sobre o que Jesus Cristo tivesse passando, em relação ao temor da
morte unicamente, e justamente pela maldição de Deus. Isso significa uma teologia fraca e
insuficiente? De certo que nenhuma fraqueza afetou a Jesus. Teologicamente, a conclusão é, em todo
ponto incontornável, “Jesus Cristo tem estado em combate mais ardente e difícil contra a morte
comum”.240
Em tudo isso, o que é importante ressaltar, é que diante da morte de cruz, Jesus se apresentou
como homem. Um ser humano como nós. Na cruz, sem proposta suave ou falsamente espitualisante,
Jesus procedeu na condição genuinamente humana. A sua obediência, embora tomada de uma
aparente sobrecarga de fraqueza, de passividade em relação à maldade imposta, foi combatente,

235
GISEL, P. Le Christ de Calvin, p. 115.
236
GISEL, P. Le Christ de Calvin, p. 115.
237
GISEL, P. Le Christ de Calvin, p. 116.
238
GISEL, P. Le Christ de Calvin, p. 116.
239
GISEL, P. Le Christ de Calvin, p. 117.
240
GISEL, P. Le Christ de Calvin, p. 117.
CRISTOLOGIA E SOTERIOLOGIA 43

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contra os poderes do mal. Cristo não é tido como uma figura passiva, à maneira de uma marionete
nas mãos de Deus, indefeso diante da morte e da maldição pela violência e necessidades externas.
Ele foi sustentado pelo Pai, pela força do Espírito Santo. Assim, nos deixou esse legado de confiança
em Deus, na realização histórica de ser humano.
Através da morte de Cristo, temos como certa, a completa realização da salvação. 241 Contudo,
a outra face que é requerida é a novidade de vida na história em face desse evento. E, essa nova
realidade, sobretudo, se manifesta na ressurreição, que é indissociável em relação à cruz. Acontece,
então, o triunfo da vida e da justiça de forma esplendorosa, mediante o estabelecimento de Jesus
Cristo como Filho de Deus. O desenvolvimento da virtude celeste do Filho de Deus é entendido
como a virtude do Espírito. Deste modo, estão em causa a nossa esperança, fé e esperança que estão
em Deus.
A mortificação relacionada à cruz e a vivificação que se mantém em função da ressurreição,
tem uma implicação profunda sobre a regeneração. Enfim, a ressurreição de Cristo, antecipa através
de sua novidade de vida, a qual designa a regeneração como sendo o arco da nossa própria
ressurreição.242
A ressurreição de Jesus Cristo tem as suas implicações essenciais:243

a) Faz que o ser humano participe da justiça que Ele nos pagou com a sua própria morte;
b) Faz-nos também ser, desde agora, revelados por seu poder a uma vida nova;
c) A ressurreição de Cristo é para nós um penhor certo de nossa bem aventurada
ressurreição.

Teologicamente, a ressurreição antecipa a ascensão. 244 Ou, nesta última, manifesta e


desenvolve um aspecto da primeira. Cristo iniciou ao ressuscitar a magnificar sua glória e virtude,
mesmo se ele verdadeiramente exaltou seu reino quando foi elevado ao Céu. Essa ressurreição se
lançou em parte sobre as oposições entre abaixamento e elevação, ordem seguida como ordem
espiritual, terra e céu. Oposições que comandam a temática da ascensão, que sublinham por sua vez
vantagens para o ser humano que Cristo deixou através de sua humanidade. A presença de seu corpo
para nós é o governo do mundo por uma virtude mais presente, mais humana.
A ascensão é classicamente vista como o senhorio de Cristo no céu e na terra, em que se acha
tomado em seu lugar e manifestado a todos, a fim de haver esperança por um mundo mais justo. 245
Realiza-se a promessa de Cristo, de estar presente conosco até à consumação dos séculos (Mateus
28.20). Ele nos vivifica mediante a vida espiritual e nos santifica por seu Espírito. Portanto, é preciso
que haja uma compreensão da obra redentora, que essa ascensão de Cristo realiza. Uma obra
redentora que compreende toda realidade criada. Cristo assumiu a nossa humanidade, com o
propósito de restaurar toda a criação. Por isso, ele ascendeu na sua própria carne, a fim de termos
esperança, de que a possessão de uma nova configuração já foi instaurada. Assim, pela fé, pela vida
de Cristo, tudo é possível, para se realizar a renovação de todas as coisas.

c) Cristo “em nosso lugar” – Jesus Cristo ocupa a reflexão que comporta a expressão bíblico-
teológica “em nosso lugar”, ao tratar do seu caráter “substitutivo” ou “vicário”. 246

241
GISEL, P. Le Christ de Calvin, p. 119.
242
GISEL, P. Le Christ de Calvin, pp. 119-120.
243
CATECISMO DE HEIDELBERG, elementos da questão 45. Cf. passagem referente à ressurreição de Jesus Cristo.
In: Le Christ de Calvin, p. 120.
244
GISEL, P. Le Christ de Calvin, p. 120.
245
GISEL, P. Le Christ de Calvin, p. 121.
246
GISEL, P. Le Christ de Calvin, pp. 121-130.
CRISTOLOGIA E SOTERIOLOGIA 44

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Jesus Cristo colocado “em nosso lugar”, é tema central da cristologia.247 Este tema parece
estar relacionado à tradição ocidental, sobretudo, à idéia de “satisfação”. 248 Dizer sobre o caráter
substitutivo de Cristo parece, em efeito, tomado de heranças. Não unicamente porque estas imagens
estiveram ligadas às representações “jurídicas” que parecem conduzir a uma concepção de Deus,
onde o amor não será verdadeiramente primeiro e último, mas também porque eles evocam um jogo
de equivalências de tipo cósmico. Assim, é preciso entender que seja rendido louvor à justiça a Deus,
em Cristo, como pode “contra-balançar” o pecado do homem, segundo um destino exterior,
considerando a ação de Deus que do homem.
Calvino não parece romper com os termos teológicos históricos que sustentam esses últimos
esquemas de representações. Deve-se primeiro considerar o espírito de um horizonte, juntamente
sobre o qual vem se grifar a compreensão da obra de Cristo como “substitutiva”. Esse horizonte está
determinado, como por uma forte distância entre Deus e o homem, e uma abertura essencial. E, a
cristologia destaca primeiro um feito de mediação originária, principalmente articulada no Deus
criador e re-criador, justamente aprumando, então, todo o ponto de uma obra de redenção, pela
encarnação que a ela está essencialmente subordinada. Assim, pode-se dizer como Calvino, que a
obra de Cristo apresenta características ou traços de uma “substituição”. Isto é o que se sustenta de
modo íntimo, em referência à obra redentora, que se prendeu ao envio de Cristo entre a humanidade
prisioneira de seu pecado, para dá-la um novo acesso a Deus.
A obra da redenção não é secundária. A redenção está subordinada à realidade mediadora e
cristalizada na história, requerida unicamente em face do pecado da humanidade. Assim, se pode
falar em termos de reconciliação, fruto da redenção pela substituição de Jesus Cristo na cruz.249
A encarnação, a vida e a morte de Cristo na carne, a exaltação deste mesmo Cristo e seu poder
no Espírito são pontos fundamantais da cristologia. E, em seguida, obra onde o binômio
salvação/pecado não figura senão que um momento, pois se move antes de tudo, de seu propósito,
de desfazer o obstáculo ou a barreira entre Deus e o homem. Deste modo, a redenção se dá como
um momento de reconciliação.
A redenção permite a realização concreta da totalidade do processo da seguinte forma:250

Primeiro ponto. A encarnação é pensada e apresentada como concedendo forma ao motivo


de “Cristo em nosso lugar”.251 A encarnação, como primeiro elemento, partilha da condição de Filho
perfeito. Jesus Cristo, que se fez irmão dos homens, significa a assunção de nossa natureza humana.
A encarnação não é, senão, uma condição externa ou formal, antes de tudo da reconciliação. Cristo
veio, antes de tudo, na nossa carne, para realizar uma obra que é primeiramente, esta mesma do ser
humano. A obra de Cristo trata mesmo da vocação do ser humano diante de Deus, em obediência
como serviço. Este termo qualifica entre outras virtudes, teológica e globalmente, a obra de uma
existência que se desenvolve. Um valor em si como submissão em contraste com a desobediência
que demanda do pecado, que é o orgulho, fazendo do homem um ser autônomo, portanto,
independente de Deus. A obediência de Cristo releva, principalmente a sua natureza humana, mesmo
se ele se realiza como “Filho de Deus”. A sua reconciliação está relacionada a uma obra

247
Tema tratado sistematicamente por BUREN, Paul van, “Christ in our Place”. The Substitutionary Character of
Calvin’s Doctrine of Reconciliation, Edimbourg, Oliver and Boyd, 1957. In: Le Christ de Calvin, p. 121.
248
Cf. ANSELMO, Santo. Por que Deus se fez homem? São Paulo: Novo Século, 2003. 171p.
249
Cf. CALVINO, J. Instituition, II, XVI, 3: In: Le Christ de Calvin, p.123. Esse vocabulário aparece sob muitas
reprises nos escritos de Calvino. Têm fortes raízes bíblicas (ver por exemplo II Cor. 5, 18 ss), e ela tem sido
particularmente tomada antes e por K. Barth, na sua Dogmatique, onde ele dá seu título na parte IV (Versöhnung),
parte justamente cristológica, o termo de redenção (Erlösung) estando desde então, reservada pela parte seguinte (não
escrita), a Quinta, que é mais deliberadamente pneumatológica e cristológica.
250
GISEL, P. Le Christ de Calvin, pp. 124 ss.
251
GISEL, P. Le Christ de Calvin, p. 124.
CRISTOLOGIA E SOTERIOLOGIA 45

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desenvolvida.252 A questão da salvação não está jamais regulada ou decidida por uma consideração
que portará sobre Deus em si ou o homem em si, sobre suas “essências” separadas, mas, em Cristo,
se acharão miraculosa e saudavelmente reunidas.253
A encarnação se apresenta como primeiro lugar, que contempla o Cristo a vir e se achar “em
nosso lugar”.254 Através dela se desenvolve uma realização concreta e tomada em termos
essencialmente humanos. Mas essa encarnação é requerida, em um sentido, por nossa situação de
sermos prisioneiros do pecado. Ela deve permitir um cumprimento que, fora dela, não é mais
possível. É neste sentido que ela se apresenta como “satisfação”: Cristo veio dar lugar e corpo a um
cumprimento “em nosso lugar”.

Segundo ponto. Desta forma, se configura a segunda faceta da “substituição” ligada à


encarnação: Cristo veio na nossa carne não simplesmente, mas bem para cumprir o que nós não
podemos cumprir por nós mesmos.255 Fora nosso pecado, consideramos a função mediadora de
Cristo, sendo necessária, não exigindo senão uma inscrição na carne e na história humanas. Assim, o
homem pode realizar sua vocação profunda, contemplando a sua imagem, misteriosamente dada por
Deus no coração da criação. Cristo é mediador porque cristaliza o ser de Deus para nós, e neste
sentido, a nossa essência, que se transforma mediante o mistério que se desenvolve na história da
redenção. É neste sentido que podemos compreender Deus como re-criador.

Terceiro ponto. Jesus Cristo carrega sobre o seu corpo o pecado dos homens. 256 Está,
portanto, no rol da teologia fundamental para Calvino, da condenação de Jesus diante de Pilatos. Ele
é propriamente julgado “em nosso lugar”. Momento essencial da representação do mistério
cristológico; condenado em lugar de Barrabás257 e crucificado entre dois malfeitores, Jesus foi
tomado como “príncipe dos malfeitores”. 258 Teologicamente, se toca aqui o centro da obra
redentora. Foi preciso que o Filho de Deus, que entrou na história humana e chamado a viver como
um de nós igualmente carregou em seu corpo os efeitos mais radicais do pecado. 259 As
consequências do pecado dos homens. Transcrito em termos teológicos, significa o julgamento de
Deus sobre o pecado, e em contraste, sua benevolência e seu projeto de amor tomado justamente.

Diante de Pilatos, Jesus foi considerado um condenado, portador do pecado da humanidade;


condenado à morte “em nosso lugar”, o foi diante de Deus. E, sendo assim, o pecado ipso facto foi
liquidado. Mas isto não será real e efetivo senão que, se o Filho carregou o pecado, visível e
publicamente, “em nosso lugar”, atesta-se assim, que Deus mesmo, em seu Filho, o condenou.
Cristo, que ao mesmo tempo era inocente, assumiu todas as consequências de toda a realidade.260

252
GISEL, P. Le Christ de Calvin, p. 124 ss.
253
GISEL, P. Le Christ de Calvin, p. 124. Calvino mostra sua preferência, não no sentido de poder afirmar
simplesmente a unidade das duas naturezas em Cristo. Ele prefere, por sua vez, contemplar a relação dinâmica e
concreta das duas naturezas, no coração da obra e da pessoa de Cristo (inscritas pois no jogo da relação Filho-Pai), e
de se concentrar sobre a dinâmica que pode se articular pelos crentes.
254
GISEL, P. Le Christ de Calvin, p. 125.
255
GISEL, P. Le Christ de Calvin, p. 125.
256
GISEL, P. Le Christ de Calvin, pp. 125 ss.
257
Cf. Le Commentaire de l’Evangile de Matthieu, 27, 15 (CR 73, Opera Calvini 45). In: Le Christ de Calvin, p.
126.
258
Commentaire de la deuxième Epître aux Corinthiens, 5, 21 (CR 78, Opera Calvini 50). In: Le Christ de Calvin, p.
126.
259
Cf. Por exemplo, Commentaire de l’Evangilie de Jean, 19, 17-18. In: Le Christ de Calvin, p. 126.
260
Calvino se distingue de certos teólogos medievais, tal como por exemplo, Santo Anselmo que não fala de um
julgamento sobre o Cristo, cf. Cur Deus homo, II, 11. Segundo Calvino se poderá ler a este propósito Commentaire de
l ‘Epître aux Romains, 8. 3. In: Le Christ de Calvin, p. 126.
CRISTOLOGIA E SOTERIOLOGIA 46

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Deus, pois, não imputou o pecado sobre o homem. Mas, permitiu a realização de um perdão ou de
uma reabilitação deste. Sublinha-se que o drama é justamente colocado em conta, sendo Deus
mesmo destruidor do poder do pecado, em face da origem única desse processo global de redenção,
que permaneceu no seu coração como causa suprema.
O Cristo que se manifestou na história da humanidade como Filho autêntico, com sua história
concreta, carregando em sua carne as consequências do pecado e condenado em nosso lugar, pode-
se falar a propósito de sacrifício. Constata-se a encarnação como obediência da parte do Filho,
inscrevendo-se na figura de servidor. Mas, a noção de sacrifício está subordinada a um
cumprimento. Inscrito num processo de cumprimento que vem mesmo de Deus, cristalizado sempre
para nós, na figura mediadora de Cristo, e que a conduz mais além, indicando o motivo substitutivo,
da nossa conformação com a imagem de Deus em Cristo. Assim, houve notadamente a questão, de
uma sorte de compensação,261 do tipo cósmico ou judiciário e que se jogou na morte de Cristo.
Ao se falar de sacrifício, não se pode esquecer a figura de Cristo como o grande Sumo
Sacerdote, e também da função que aparece de forma substitutiva. O sacerdote representa o povo
diante de Deus. Sua santificação cristaliza e antecipa um movimento de oferenda, universal e radical,
que nele se acha diante de Deus. O Sumo Sacerdote é chamado também de “intercessor” e nosso
“advogado”. Cristo foi o sacrificador e o sacrifício ao mesmo tempo, “em nosso lugar”. Entregou-se
a si mesmo pelos pecados da humanidade.262 A liquidação do pecado é uma face essencial da obra da
redentora de Cristo, mas seu poder é também de nos conformar a sua imagem. Assim, salvação quer
dizer, primeiro e antes de tudo, poder estar ligado ou unido a Cristo. A redenção está estritamente
relacionada ao mistério pascal. Através da ressurreição transborda a nossa regeneração.

3.6. Participar da graça de Cristo


A vida dos crentes no Espírito é o mesmo que participar da graça de Jesus Cristo. 263 A pessoa
e o trabalho de Cristo remetem às únicas dimensões de uma salvação que atinge a realidade e a
verdade da criação total e do homem como tal, realidades que estão em jogo. Essa salvação é
assegurada em Cristo, e o crente terá de se articular diretamente, sem outros intermediários. É uma
realidade dinâmica que se sustenta numa relação decisiva de Deus.

a) Recusa de uma contiguidade de Cristo no crente – O que significa essa expressão que se
tem como proposta de uma recusa? Antes de tudo é preciso conferir a palavra “contíguo”, do latim,
um adjetivo, que quer dizer “que está em contato”, “unido”. Contiguidade é o estado de contíguo;
proximidade, adjacência. Assim, nos debates relativos ao extra calvinisticum,264 notadamente, se tem
visto que Calvino recusou toda linha direta relacionada a qualquer <<fusão>>, da realidade de Cristo
no crente.265
Tal visão que acentua uma fusão suporá, em efeito, o que se terá de certa maneira, fixando-se
o Cristo como realidade simples, auto-suficiente; ou em outros termos, como “natureza”, enquanto é
preciso compreendê-lo como “pessoa”, por sua vez distinta e de relações, segundo uma disposição
própria. Doutrinariamente, se terá imaginado, em Cristo, um misto de duas naturezas, humana e

261
Sobre este ponto, Calvino não segue os muitos teólogos medievais, notadamente Santo Anselmo, cf. Cur Deus
homo II, 11, 14; Pierre Lombardo, Sentences III, 18, 5 ou 20. 3; nem Santo Tomás, Somme théologique, IIIa, Qu, 49,
art. 3. Verificar igualmente Qu. 46, art. 1. In: Le Christ de Calvin, p. 127.
262
Cf. GISEL, P. Le Christ de Calvin, p. 128.
263
Cf. GISEL, P. Le Christ de Calvin, pp. 151-190.
264
GISEL, P. Le Christ de Calvin, pp. 90 ss. A expressão tem sua origem nas polêmicas interconfessionais que
foram evidenciados entre teólogos luteranos e reformados, na segunda parte do séc. XVI e no início do séc. XVII. O
termo não aparece senão que no decorrer do ano de 1620 e nos anos seguintes. O contexto do debate entre Lutero e
Zwinglio sobre a presença de Cristo na Ceia, aparece como plano básico.
265
GISEL, P. Le Christ de Calvin, pp. 152-155.
CRISTOLOGIA E SOTERIOLOGIA 47

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divina, em proveito do polo divino. Mas inserir uma linha direta de Cristo no crente será também, a
de colocá-lo em segundo lugar e sem coerência profunda, imaginar uma nova e possível “mistura”,
ou seja, uma “fusão”, esta por sua vez, entre o Cristo e o crente. É isto que Calvino recusa,
manifestando-se contra a tese de Osiandro.266
A recusa de toda mistura a propósito das duas naturezas em matéria cristológica, encontra seu
corolário exato na relação atada entre a salvação dada em Cristo e o homem. 267 Essa recusa por
Calvino é em função de uma tentação monofisita no plano cristológico, montada sobre um esquema
de dependência mais estrita e mais linear no que toca as realidades humanas e crentes. Assim, o
exame da soteriologia de Calvino conduz à idéia de sublinhar de modo forte que não existe
contiguidade de Cristo no crente. Que há uma diferença que deve ser percebida claramente, no
sentido de se compreender duas ordens distintas. Duas realidades separadas, uma através de um
reenvio a Deus Pai, à sua transcendência, e por outro lado, a obra dinâmica do Espírito que se
articula. De uma parte, Cristo é via Ascensão, reportada a sua verdade escatológica. De outra, existe
nos crentes o que a reenvia, no grau de um mesmo envio e de uma mesma realidade do Espírito.
Estas duas inscrições, por sua vez, estão sobre seus próprios corpos e com suas intimidades. O
crente é essencialmente conduzido a uma verdade escatológica, em ocorrência dita em termos de
senhorio. O senhorio de Cristo que fez ascender a realidade do humano e valorizar a transcendência
de Deus.
Essas duas realidades que se configuram na ordem da salvação, embora sejam realidades
separadas, sobre o corpo e a pessoa dos crentes, e na Igreja respectivamente, são dois momentos que
se articulam.268 Acentua-se que o desenvolvimento cristológico se configura no grau de uma história,
segundo uma dinâmica mesma inserida na carne e tomada numa ordem espiritual que é remetida a
Deus. A vida do crente se desenvolve, igualmente, na sua própria carne, nas linhas de exterioridade
necessária e irredutível,269 que se tem de verificar, e que são ao mesmo tempo dois lugares e de uma
realidade do Espírito.270
Essas duas realidades se configuram como dois pólos que dão estrutura à salvação: o polo
cristológico e o polo pneumatológico. 271 Cada um desses tratos específicos é marcado por uma
profunda conexão. Um remete ao outro aquilo que lhe é peculiar, no sentido de haver uma aplicação
enquanto realidades concernentes à salvação. Essencialmente, se reportam à vida humana no
coração da realidade de uma parte, e por outra, à transcendência de Deus. É o que se denomina de
“polaridade cristológico-pneumatológica” estruturante, na sua diferença e na sua
complementaridade, na vida do crente no coração da criação.272
A participação na graça de Cristo destaca a transcendência de Deus e uma vontade de manter a
humanidade intacta em sua consistência, bem como em suas propriedades. Concede uma atenção

266
CALVINO, J. As Institutas, II, XII, 5-7, pp. 235-240. Entre outros pontos da tese de Osiandro, destacam-se estes,
segundo Calvino: Cristo se encarnaria mesmo que o homem não tivesse pecado; o homem e os anjos seriam
paradigmas para o Filho de Deus; porquanto já havia Cristo sido preconhecido na mente de Deus como homem, os
homens hão sido formados em conformidade com esse modelo; por todo o tempo em que se houvesse mantido íntegro,
Adão haveria de ter sido a imagem de si próprio, não de Cristo; a não ser que houvesse [Ele, Cristo] sido homem,
haveriam os homens de ter carecido de Cristo [como seu] Rei.
267
GISEL, P. Le Christ de Calvin, pp. 152-153.
268
GISEL, P. Le Christ de Calvin, p. 153.
269
GISEL, P. Le Christ de Calvin, p. 153.
270
GISEL, P. Le Christ de Calvin, p. 153.
271
Cf. GISEL, P. Le Christ de Calvin, os dois pólos: Un salut inscrit en création. In: Création et Salut, pp. 146-161;
La mémoire comme structure théologique fondamentale. In: Revue de théologie et de philosophie, 125, Genève,
1993, pp. 68-70; Répondre du présent entre héritages et déplacements, Paris, 200, p. 6 ss,; La subversion de
l’Esprit, Genève, Labor et Fides, 1993, p. 143 ss.
272
GISEL, P. Un salut inscrit en création, In: Création et salut, Bruxelles, Publicatiosn des Fasc. Univ. St-Louis,
1989, p. 121-141. O autor mesmo cita em Le Christ de Calvin, p. 154, essa referência.
CRISTOLOGIA E SOTERIOLOGIA 48

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voltada à articulação desta face da redenção sobre a criação e suas diversas ordens e realidades.
Entra a questão da fé, da santificação e da justificação de uma parte, considerando um reenvio à
escatologia. Por outra parte, a Igreja é tomada em suas relações de ordem civil. 273

b) A fé como operação interna do Espírito – A fé como operação interna do Espírito e o


reenvio a um objeto qualificado é o que se trata nesta parte com seu conteúdo específico. 274
A fé é a obra principal do Espírito Santo. 275 Este ponto é particularmente desenvolvido pelos
reformadores. Longe de dominar, a fé aparece antes subordinada, comandada, instituída. Ela é
passiva ou receptiva, e objeto de um trabalho interno, mesmo se a Reforma igualmente a sublinhou
como decidida e lúcida, obediente e ligada a um “conhecimento” contra a fé implícita.276 A fé é
mantida pelo Espirito Santo, a qual é bem requerida no desenvolvimento da salvação. Porque esta
tem se constituído o que se deve buscar em relação à santificação em Jesus Cristo, e não se pode
obtê-la, senão por meio do Espírito Santo. 277
Existe uma maneira significativa e típica de relacionar a fé a um objeto ou a um “conteúdo”. 278
A fé repousa na graça de Deus e visualiza-se na Palavra. Sendo assim, a fé não pode buscar outro
bem, senão o próprio Deus. A fé é uma atitude de confiança e de esperança, compreendendo toda a
sua dimensão, passando profundamente por uma adesão. A fé não pode compreender ponto de
ignorância, mas de conhecimento; o conhecimento de Deus e de sua vontade. 279 Destarte, não pode
se configurar nenhuma visão racionalizante. Conhecer a vontade de Deus não se restringe à
apreensão de certos enunciados ou de certos conteúdos doutrinais, mas supõe bem uma recepção em
si mesma, que acontece no coração da pessoa. Recebe-se no coração o verdadeiro conhecimento de
Jesus Cristo, como oferta do Pai, mediante o trabalho interno do Espírito Santo, que comunica os
bens divinos ao ser humano.

c) Trabalho contínuo do Espírito – A realidade do Espírito está presente em todos os níveis,


no coração da realidade que cerca o humano. 280 Essa realidade tem conexão com a doutrina da
criação, da cristologia, da eclesiologia e dos sacramentos. A base para essa conexão é a relação
intratrinitária, ou seja, a articulação entre as pessoas da Santíssima Trindade: o Pai, o Filho e o
Espírito Santo. Essa relação das pessoas da Trindade, faz cair por terra uma visão de “emanação”
geral,281 que não representa a consistência própria das pessoas trinitárias. Assim, o Espírito, não
será, antes de tudo, senão “força” e “virtude” em oposição de derivação e de subordinação.

273
Cf. O que é desenvolvido por Calvino na Institution chrétienne, respectivamente, em seus tomos III e IV;
enquanto que o livro II, trata da cristologia.
274
GISEL, P. Le Christ de Calvin, pp. 155-159.
275
Calvino escreveu no cap. II, pt. 35 que a fé é <<obra de Deus>>, e ela é precisa no pt. 34, em que <<o Santo
Espírito não começa unicamente a fé, mas, a aumenta gradativamente>>. A Confissão dita de Rochelle faz eco ao
segundo elemento do mesmo contexto: <<como é de Deus iniciar, também é dele concluir>> (pt. 21), In: Confessions
et catéchiemes de la foi réformée, p. 121. In: Le Christ de Calvin, p. 156.
276
CALVINO, J. Institutas, II, p. 9. Ao tratar da correta acepção da fé implícita, Calvino argumenta que esta é
imperfeita, incompleta, incipiente ou germinal. Diz ele que somos circundados de muitas nuvens de erro, e assim, não
compreendemos tudo. Somos peregrinos nesta terra, e não adquirimos aqui a perfeição. Mas, somos desafiados a
prosseguir para frente, desembaraçando-nos de tudo o que é da carne. Fé implícita é possível notar-se nos discípulos de
Cristo antes de havermos obtido a plena iluminação do Espirito Santo.
277
CALVINO, J. Institutas, III, p. 5.
278
CALVINO, J. Institutas, III, pp. 25-27. In: Le Christ de Calvin, p. 158.
279
CALVINO, J. Institutas, III, II, pt. 2. In: Le Christ de Calvin, p. 158.
280
GISEL, P., Le Christ de Calvin, p. 167-172.
281
Cf. KRUSCHE, W., Das Wirken des Heiligen Geistes nach Calvin, Göttingen, Vandenhoeck et Ruprecht, 1957, dès
la page une. In: Le Christ de Calvin, p. 167.
CRISTOLOGIA E SOTERIOLOGIA 49

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Aparece efetivamente o conteúdo de que o Espírito é força, virtude, vigor, poder, energia,
tomada em movimento ou efetuação.282 É o agir de Deus na história, no sentido de haver uma
realização que tem uma direção rumo à concretização da criação de uma forma geral. Assim, tudo o
que Deus faz é feito pelo Espírito, no Espírito e através do Espírito. Essa é a ação de Deus sob
forma pneumática.283 Mas, é fundamental perceber que, na boa cristologia, não há espaço para uma
ação do Espirito de modo autônomo. Antes, é uma ação que remete a uma cristologia, como lugar
de testemunho referenciado na Escritura e no Sacramento. E, por sua vez, também, tem reflexo na
realidade que cerca o humano.
Mediante essas premissas, denuncia-se certa forma de cristolatria e certo espiritualismo
entusiasta.284 As duas formas contêm erros gravíssimos, com reflexões negativas da teologia na
antropologia, quando se percorre o trajeto doutrinário de uma cristologia ou de uma pneumatologia
sob fluxos isolados. É preciso entender que toda ação de Deus passa pelo Espírito, ou que qualquer
ação de Deus é feito do Espírito. A ação de Deus no Espírito aparece de maneira diversificada. O
Espírito trabalha no coração dos eleitos, mas também diferentemente, no homem racional e
diferentemente ainda, na criação mesma e na sua conservação. Essa diversificação não significa
oposição, sem separação.
O lugar mais íntimo, onde se lança diretamente a fé, é o lugar onde se atesta com mais clareza
o senhorio de Cristo.285 Este é o lugar da reconfirmação da natureza referente ao Cristo encarnado
que, sob a ação do Espírito é também o Cristo elevado que envia a uma regeneração e santificação.
Jesus não agiu no Espírito em seu próprio favor, mas em favor do seu corpo, a Igreja. Tudo isto,
numa instituição e num desenvolvimento mediante os ofícios de profeta, rei e sacerdote. Assim, a
carne de Cristo fez-se matéria e lugar de nossa salvação. Através de uma história concreta e de uma
individualidade dada, uma e outra repletas de graça, num espaço de “reconhecimento” 286 vai se
configurar como realidade testemunhada. Não uma nova lei, mas a interpretação e efetuação de
modo correto, acerca de uma lei inscrita numa ordem da carne, reconhecida, celebrada como tal e
atualizada. Essa é a lei de Cristo, inscrita no coração e na realidade.
O segundo lugar da obra do Espírito é mais extenso.287 Ele não sobressai unicamente da
regeneração estritamente entendida.288 É antes visto ligado a uma antropologia geral e que culmina
numa doutrina dos dons ou dos carismas de cada um. A visão do homem, na criação original, é
essencialmente dinâmica e teleológica. A reação da natureza não é, em efeito, tomada como
qualidade intrínseca, mas como dom do Espírito. A vida de Adão “antes” da queda passou pela
Palavra e pelo sacramento,289 e reclama uma consciência e um reconhecimento de Deus.290
Essa estrutura essencial não foi destruída pelo pecado, mas o seu uso é pervertido, por causa
da cegueira e da distorção. A obra redentora atestada na Escritura pela via da obra do Espírito no
homem, é uma obra que opera uma recriação e uma renovação. É uma renovação tomada de “uma
nova criação”. Está sobre a base da obra de Cristo inscrita no crente e na própria criação. É uma
282
Cf. KRUSCHE, W., Das Wirken des Heiligen Geistes nach Calvin, Göttingen, Vandenhoeck et Ruprecht, 1957, dès
la page une. In: Le Christ de Calvin, p. 167.
283
Cf. KRUSCHE, W., Das Wirken des Heiligen Geistes nach Calvin, Göttingen, Vandenhoeck et Ruprecht, 1957, dès
la page une. In: Le Christ de Calvin, p. 168.
284
GISEL, P., Le Christ de Calvin, p. 168.
285
GISEL, P., Le Christ de Calvin, p. 169.
286
GISEL, P. Le Christ de Calvin, p. 169.
287
GISEL, P., Le Christ de Calvin, p. 169 ss.
288
GISEL, P. Le Christ de Calvin, p. 169.
289
Cf. Institution, I, VI, pt. 1; Commentaire de la Genèse, 2, 9 (a propósito da árvore da vida), retomado na Institution
IV, XIV, pt. 18. In: Le Christ de Calvin, p. 170. É interessante que Calvino se refere aos sacramentes naturais, já
estabelecidos na ordem da criação de Deus. É o “conceito amplo de sacramento”.
290
CALVIN, J., Commentaire de l’Evangile de Jean 1, 4 (in fine), Instituiton I, I, pt. 5 (início). In: Le Christ de
Calvin, p. 170.
CRISTOLOGIA E SOTERIOLOGIA 50

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obra que o crente reconhece, porque age em todos os homens, mesmo que eles não a reconheçam
como benefício de Deus.291
A questão que se deve precisar não é simplesmente a da regeneração do Espírito ou da adoção
filial. A perspectiva cristológica nesse sentido, é estritamente a de falar dos carismas e das funções
no interior da Igreja.292 Principalmente, o sacerdócio que é universal, e a eleição como resultado de
Deus é reportada não à parte de Deus, mas que se dá numa diversificação temporal e concreta dos
carismas, sem garantia e sem linha direta na salvação. Ela não é reportada ao Espírito efetuando a
regeneração, mas do Espírito de render efetivamente a obra de conservação da providência e
colocando em lugar uma ordem histórica de mediações.
A ordem do Espírito opera contra a idéia de um caos na criação, produzindo vida com
estrutura organizada e estabilizada, inspirada e vivificada em seu interior. A ação de Deus opera em
dimensões cósmicas, conserva o mundo através dos dons exteriores nos crentes.

d) Um lugar de testemunho interno do Espírito – Uma realidade em exterioridade nesta


parte é desenvolvida como lugar exclusivo de testemunho do trabalho interno do Espírito. 293 Isso
tem a ver com o eixo da teologia calvinista, que será visto em sua composição sistemática, tratando-
se da obra de Deus efetuada através do Espírito e no Espírito, numa dimensão estritamente
soteriológica. É uma obra entendida como sempre presente, tanto na regeneração do homem, quanto
na conservação da criação, envolvendo as ordens civil e eclesial.
Esse assunto é altamente instrutivo, porque corresponde à pluralidade dos aspectos da obra de
Cristo, que tem sido orientada a começar pela temática de sua mediação eterna e de sua obra
encarnatória. Essa obra se realiza de modo trinitário: ao Pai, refere-se à origem da criação, que em
sua graça eterna e ativa age em prol de uma obra saudável, obra desenvolvida cristologicamente,
numa dimensão pneumatológica. Essa ação trinitária alcança o homem penitente, justificado e
tomado em santificação. Tal pluralidade da obra do Espírito como estas do Filho e do Pai, vai de par
com a recusa de conduzir Deus a um princípio único, homogêneo, colocando o homem em
dependência direta, linear, imediata e exclusiva.
Observa-se que, se Deus não é redutível a um princípio único e se o homem não depende
unilateralmente, existe lugar para uma tomada de conta de outras instâncias, que sejam essas da
realidade como tal. Realidade relacionada com as resistências ou as promessas que podem ser
conjuntas, ou que sejam essas que representam diferentes séries de mediações que estruturam a
realidade, no plano “cósmico”, político ou eclesial (mediações ministeriais ou sacramentais). 294
As instâncias que são indicadas nesta parte se manifestam como testemunhas de confirmação,
de uma vida encarnada no coração da vida cristã. Uma encarnação que está plenamente relacionada
com um lugar de um trabalho em curso. A temática da regeneração, onde se inscreve uma operação

291
Cf. GISEL, P., Le Christ de Calvin, p. 170. Calvino se reporta aos diferentes dons ou carismas através das artes,
das ciências e da vida pública como obra do Espírito. A perspectiva ultrapassa as únicas funções ou ministérios
específicos, no sentido de englobar a vida social. As virtudes são do Espírito, que os crentes testemunham, não
somente neles, mas também em todos os homens. Sobre este assunto cf. as seguintes obras de CALVIN, J.: Sermon
sur Job 32, 8 CR 63, Opera Calvini 35, col. 23; Sermon sur Job, 12, 7ss, CR 61, Opera Calvini 33, col. 577;
Institution, II, II, pts. 15, 16; Sermon sur Job 12, 17 a 25, CR 61, Opera Calvini 33, col. 599; Sermon sur Luc, 4,
16-19, Opera Calvini 46, col. 661; Sermon sur Job, 32, 4, CR 63, Opera Calvini 35, col. 23.
292
Cf. KRUSCHE, W., sublinha com força, op. cit., p. 116, precisamente: “A relação do Espírito Santo nos meios de
conservação como nos meios de graça presentes nas estruturas análogas, porque ela se move segundo uns como
segundo os outros, de mediação”. In: Le Christ de Calvin, p. 171.
293
GISEL, P., Le Christ de Calvin, pp. 172-190.
294
GISEL, P., Le Christ de Calvin, p. 173.
CRISTOLOGIA E SOTERIOLOGIA 51

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interna do Espírito, atestará desde já essa tomada de conta de instâncias terceiras, irredutíveis, que
vêm de Deus ao homem, com sua natureza profundamente cristológica.295
O eixo teológico da teologia Calvinista é desenvolvido conforme a seguinte estrutura:
Escritura, elementos eclesiológicos, doutrina sacramental e a legitimidade da instância civil.

1. A Escritura 296- Ela é a base da teologia, como considerou a Reforma. É o seu princípio
formal. Mas, é interessante observar que a Escritura não é nada se não estiver unida ao Espírito
Santo. Palavra e Espírito não se dissociam. 297 Há uma passagem de um princípio formal para uma
realidade material. A verdade que cristaliza a Escritura e que deve ser a nossa:

Quanto, porém, à acusação que [nos] movem, de que nos apegamos demasiado à letra que mata, nisto
incorrem na pena de desprezarem a Escritura. Ora, salta à vista que Paulo está ali [II Co 3.6] a
contender com os falsos apóstolos que, na realidade, insistindo na Lei à parte de Cristo, alienavam o
povo da graça da Nova Aliança, na qual o Senhor promete que haverá de a Sua Lei gravar nas
entranhas dos fiéis e imprimi [lhes] no coração [Jr 31.33]. Morta é, portanto, a letra e a seus leitores
mata[-os] a Lei do Senhor, quando não somente se divorcia da graça de Cristo, mas ainda, não tangido
o coração, apenas soa aos ouvidos. Se, porém, é [ela], mediante o Espírito, eficazmente impressa nos
corações, se manifesta a Cristo, é palavra da vida [Fl 2.16], a converter as almas, a dar sabedoria aos
ímpios, etc. [Sl 19.7]. Ademais, ainda n[essa] mesma passagem [II Co 3.8] o Apóstolo chama sua
pregação de ministério do Espírito, significando, sem dúvida, que o Espírito Santo de tal modo Se junge
à Sua verdade que expressou nas Escrituras, que manifesta e patenteia Seu poder, então, afinal, onde se
rende à Palavra a devida reverência e dignidade. Nem a isto contradiz [o] que foi dito pouco atrás: que a
própria Palavra não nos é absolutamente certa, a não ser que seja confirmada pelo testemunho do
Espírito. Pois o Senhor ligou entre si, como que por mútuo nexo, a certeza de Sua Palavra e [a certeza
de Seu] Espírito, de sorte que a firme religião da Palavra se implante em nossa alma quando brilha o
Espírito, Que nos faz aí contemplar a face de Deus, assim, reciprocamente, abracemos ao Espírito, sem
nenhum temor de engano, quando O reconhecemos em Sua imagem, isto é, na Palavra. 298

A Escritura e o Espírito se articulam entre si. Esta premissa vai de encontro ao pensamento
anabatista que requer uma autonomia do Espírito e que ultrapassa uma inscrição da Escritura, ou por
outro lado inverso, de reduzir o Espírito ao texto. 299 Essa relação que perpassa a cristologia
calvinista é a sua pedra de toque.300 O Espírito está inscrito na textualidade, na corporeidade e da
instituição. Há uma realidade nova e criadora, como novidade de vida. A realidade do Espírito
remete a uma pessoa trinitária especificada, a um lugar diferenciado e articulada com as pessoas do
Pai e do Filho. Assim, essa articulação do Espírito/Escritura tem por sua vez a salvaguarda da
transcendência e da valorização máxima das mediações como tais.

2. A Igreja e o sacramento – Depois da Escritura, vêm a Igreja e o sacramento.301 Aqui se


deve entender também uma realidade exterior e material necessária. Uma realidade situada, concreta

295
Para esta parte do trabalho, o Livro IV da Institution chrétienne, de J. Calvin foi tomado como base para uma
reflexão sistemática.
296
Cf. MOTTU, H., “Le témoignage intérieur du Saint Esprit selon Calvin”, in: Actualité de la Réforme, Genève,
Labor et Fides, 1987, pp. 145-163. In: Le Christ de Calvin, p. 173.
297
Cf. CALVINO, J., As Institutas, Livro I, VI, VII, IX, pt. 3; Livro IV, XIV, pt. 11.
298
CALVIN, J., Institution, I, IX, pt. 3. In: Le Christ de Calvin, p. 174.
299
GISEL, P., Le Christ de Calvin, p. 174.
300
“Epître à Jacques Sadolet cardinanal” (1539), In: La vraie pieté, Genève, Labor et Fides, 1986, p. 91. In: Le Christ
de Calvin, p. 174.
301
GISEL, P., Le Christ de Calvin, pp. 176-184.
CRISTOLOGIA E SOTERIOLOGIA 52

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e que não está na livre disposição. Essa realidade aparece ligada a um trabalho interno do Espírito e
deve ser entendida no Espírito.
Deus atesta sua virtude, seu poder, através dos sinais exteriores,302 que se constituem sua
marca própria e particular a propósito da Igreja:

No livro precedente foi exposto que pela fé do Evangelho Cristo Se faz nosso e nós nos tornamos
participantes da salvação e da eterna bem-aventurança trazidas por Ele. Mas, porque nossa obtusidade
e indolência (aduzo também a fatuidade de espírito) têm necessidade de subsídios externos com os quais
a fé em nós não somente seja gerada, mas também cresça, e avance gradualmente até à meta, adicionou
Deus também estes [meios] para que à nossa fraqueza consultasse. E, para que a pregação do
Evangelho florescesse, depôs este tesouro com a Igreja: instituiu “pastores e mestres” [Ef 4.11], pela
boca dos quais ensinasse aos Seus, investiu-os de autoridade, enfim, nada omitiu que contribuísse para
o santo consenso da fé e a reta ordem. Acima de tudo, instituiu os sacramentos, que nós de experiência
sentimos serem adjutórios mais do que úteis para fomentar e firmar a fé. Ora, porque, encerrados no
ergástulo de nossa carne, ainda não havemos chegado ao grau angélico, Deus, acomodando-Se à
capacidade nossa, por Sua admirável providência, há prescrito um modo pelo qual, longe disjungidos, a
Ele nos achegássemos.303

Meio exterior é extremamente necessário,304 pois a Igreja é chamada mais claramente por
Calvino de “mãe”. Nesta perspectiva, a realidade da Igreja é vista como realidade de encarnação,
paralela, em sua ordem, da encarnação de Cristo. Ele é meio apropriado de desenvolvimento da obra
da salvação de Deus. A Igreja é instituição de Deus, e em todo caso é onde o Senhor é visto e
reconhecido como presente. Assim, para Calvino, é coisa perniciosa e mortal se distrair ou se separar
da Igreja. Ela é conhecida de Deus e fundada mediante a eleição divina.
Para que a Igreja se desenvolva, foram dados a ela os ministros, para ensinarem a correta
doutrina, reconhecendo a dialética do Espírito e da Palavra, numa dimensão de fé. Da mesma forma,
como concretização da Palavra, foram instituídos os sacramentos, para o fortalecimento da fé da
Igreja. Destarte, as marcas da Igreja se tornam bem visíveis: a Palavra pregada e a administração
correta dos sacramentos. Essa disciplina eclesiástica é meio de santificação, através dos meios
pedagógicos, estes já definidos, no coração da Igreja.
O momento sacramental da Igreja pode servir de ilustração, que se lança no coração de uma
relação da Escritura e do lugar da Igreja mantida por essa realidade. 305 Essa perspectiva se prende à
fórmula: “Um Sacramento consiste na Palavra e nos sinais exteriores.”306 O sacramento é um sinal,
um espelho onde se contempla a graça de Deus; um testemunho da graça de Deus. Os sacramentos
consolam, nutrem, confirmam e aumentam a nossa fé.
Essa estrutura visa mostrar uma realidade regida pelo Espírito, conduzindo a uma existência
em exterioridade. A base dessa existência está firmada na relação entre a cristologia e a
pneumatologia. Essa realidade ordena uma instituição de existência humana, libertada em
singularidade. Apresenta seu testemunho de um Deus que age secretamente, produzindo o
desenvolvimento da criação. Esse agir de Deus é evocado segundo uma perspectiva análoga, inscrita
na Escritura por uma parte, e noutra, as ordens das realidades da criação concretizadas pela vida

302
CALVIN, J., Commentaire de la Genèse, 2, 9. In: Le Christ de Calvin, p. 176.
303
CALVIN, J., Institution, Livro IV, I, pt. 1. In: Le Christ de Calvin, pp. 176-177. Essa parte trata da ligação do
Livro III ao Livro IV.
304
Cf. BUEHLER, P., L’Eglise réformée: une Eglise sans mystère?, Irenikon, 1988/4, pp. 485-505. In: Le Christ de
Calvin, p. 177.
305
GISEL, P., Le Christ de Calvin, p. 180.
306
CALVIN, J., Institution, IV, XIV, pt. 4. In: Le Christ de Calvin, p. 180.
CRISTOLOGIA E SOTERIOLOGIA 53

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pública ou civil. Isso significa que a vida concreta de Cristo tem de ser vivida de modo histórico,
encarnado, sob o agir do Espírito.

3. O magistrado civil – Este tema tem a ver com os “meios externos”, que comandam seus
precedentes sob a dependência do Espírito.307 “Do Magistrado Civil” ou “Da Administração Pública”
está inserido no último capítulo da Institution chrétienne, Livro IV, XX. Acha-se também em
capítulos nas Confessions de foi reformées.308
A relação do Espírito nas funções eclesiais e nas autoridades civis é análoga. De uma parte e
de outra, os ministérios se desenvolvem através dos carismas, instituídos tanto uns como outros por
Deus e animados pelo Espírito, sendo congruentes com a salvação. Na diferença que se acentua se
faz perceber duas instâncias diferentes: a civil (política) e a eclesial (religiosa). As suas diferenças
estão relacionadas com o tipo de responsabilidade, mas são dinamizadas pelo Espirito de Deus.
Essas diferenças vão mais longe, no sentido de haver instâncias que, em efeito, contém uma visão
orgânica integrada, no nível cosmológico, com repercussões antropológicas, éticas e políticas. 309 O
elemento determinante de estilo dessa existência diferente, desloca-se da forma cristológica, que se
desdobra sob uma relação estreita com a pneumatologia, com implicações na vida do crente no
mundo.
A observação que se faz acomoda o sentido de servir como contribuição para a atualidade, em
que essa reflexão seja central no debate do cristianismo e da modernidade. 310 E, quanto aos
princípios da instância civil trabalhados por Calvino têm como natureza afirmar que os magistrados
são ministros de Deus; são comissionados por Deus para servirem na instância civil. Não somente os
pastores, mas também os magistrados são “vigários de Deus”, e o cristão lhes será submisso, pois
estão investidos de autoridade.311 Neste sentido, Calvino toma para a sua reflexão a base paulina:

“Todo homem esteja sujeito às autoridades superiores; porque não há autoridade que não proceda de
Deus; e as autoridades que existem foram por ele instituídas. De modo que aquele que se opõe à
autoridade resiste à ordenação de Deus; e os que resistem trarão sobre si mesmos condenação. Porque
os magistrados não são para temor, quando se faz o bem, e sim quando se faz o mal. Queres tu não
temer a autoridade? Faze o bem e terás louvor dela, visto que a autoridade é ministro de Deus para teu
bem. Entretanto, se fizeres o mal, teme; porque não é sem motivo que ela traz a espada; pois é ministro
de Deus, vingador, para castigar o que pratica o mal.”312

Nota-se que Calvino relaciona a providência com a diversidade de formas civis e políticas,
segundo as linhas que evocam o jogo de poderes que se sucedem historicamente, afirmando que a
providência de Deus põe um limite ao orgulho. Se as autoridades políticas caírem, trairão a liberdade
do povo, do qual eles devem saber que são seus tutores pelo poder de Deus. 313 Quanto à Igreja o seu

307
GISEL, P., Le Christ de Calvin, pp. 184-190.
308
“La Confession de la foi des Eglises réformées de France” (La Rochelle) e o último capítulo (cap. 30) da
“Confession helvétique postérieure”, intitulado “Du magistrat”. Nota-se que a Confissão de fé de 1537, proposta por
Calvino e Farel de Genebra, consagra também em seu último ponto, 21, aos magistrados. In: Le Christ de Calvin, p.
185.
309
GISEL, P., “La Reforme et as reprise possible aujourd’hui”, In: Humain à l’image de Dieu, Genève, Labor et Fides,
1989, p. 191-211, em ocorrência, cf. p. 193. In: Le Christ de Calvin, p. 185.
310
GISEL, P., Le Christ de Calvin, p. 185.
311
Nos limites que marcam a dualidade de instâncias civil e religiosa.
312
BÍBLIA DE ESTUDO ALMEIDA, Romanos 13. 1-4. Barueri, SP: SBB, 1999.
313
GISEL, P., Le Christ de Calvin, pp. 187-190.
CRISTOLOGIA E SOTERIOLOGIA 54

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poder reside no poder espiritual. É diferente do poder civil, somente em relação ao exercício de
autoridade. A Igreja não porta a espada, mas a Palavra de Deus. 314
A ordem cristológica com base em Calvino, traz em si uma ação que se concretiza na história,
sob a ação do Espírito Santo. Cristologia e pneumatologia: estes são os dois pólos do
desdobramento da salvação na história, que têm uma dimensão e amplitude que alcançam o nível
cósmico, mediante duas instâncias que têm suas bases em Deus e nos carismas por ele distribuídos.
Os carismas que Deus outorga, não somente o faz à Igreja, mas também a uma instância civil.
Todos as pessoas que recebem dons, estão a serviço de Deus em favor das pessoas e do próprio
mundo. Esse resgate de valores, somente se configura em face da encarnação de Cristo Jesus, que
agiu no poder do Espírito Santo. Assim, se pode ter uma sociedade marcada por suas diferentes
ordens: política, econômica, cultural, religiosa e ética. Para que isso seja uma realidade positiva, é
preciso fugir das tentações de espiritualismo, moralismo, literalismo bíblico, profetismo unilateral,
que fazem nutrir uma piedade falsa. Não se deve esquecer um forte acento sobre a transcendência de
Deus, e da importância da pessoa e da obra de Jesus Cristo, que contribui para que o sujeito humano
seja visto como pólo próprio que acolha toda responsabilidade pessoal e responda por si ao senhorio
de Cristo, através do serviço.

4. OS TÍTULOS CRISTOLÓGICOS

4.1. O problema cristológico no cristianismo primitivo


Que lugar ocupa a Cristologia no pensamento teológico dos primeiros cristãos? Quem é Jesus
Cristo? Qual a opinião sobre Jesus Cristo, o Filho de Deus?315

4.2. O papel cristológico no pensamento teológico dos primeiros cristãos 316


Se a teologia é a ciência que trata de Deus, a cristologia tem por objetivo a pessoa e a obra de
Cristo. Geralmente se considera a cristologia como uma subdivisão da teologia (tomada em sentido
etimológico). Este costume, com frequência, tem influenciado na imagem que historiadores e
teólogos nos dão da fé dos primeiros cristãos: começam por expor suas ideias sobre Deus, e não
meniconam, a não ser em segundo lugar, sobre suas convicções cristológicas. Tal é a ordem seguida
geralmente nos antigos tratados de teologia do Novo Testamento. 317 Em consequência disso,
também se crê que a Igreja Primitiva se interessou em primeiro lugar em Deus e em segundo lugar
por Cristo.
Assim, é a ordem trinitária das confissões de fé posteriores:

DEUS CRISTO ESPÍRITO SANTO

314
Texto reproduzido na compilação “Calvin, homme d’Eglise” (1936), Genève, labor et Fides, 1971 2, p. 27 ss., aqui:
p. 45. In: Le Christ de Calvin, p. 190.
315
Articulação com base em Oscar Cullmann - Cf. MONDIN, Batista, Os Teólogos Protestantes e Ortodoxos (1709-
1980). Volume 2. Páginas 139-163. Oscar Cullmann é uma das figuras mais eminentes do protestantismo atual.
Grande estudioso da Sagrada Escritura e dos problemas da história da Igreja Primitiva. Construiu uma nova forma de
Teologia, a Teologia Bíblica. Nasceu em Strasbourg em 25 de fevereiro de 1902. A sua obra máxima sobre a vida e
obra de Jesus Cristo é Cristologia del Nuevo Testamento. Die Christologie des Neven Testaments. Versión
castellana: Carlos T. Gattiononi. Methopress Editorial y Gráfica, Buenos Aires-Argentina. 389p. Essa obra foi
publicda am português, pela primaira vez, através da Editora Líber, 2001.
316
CULLMANN, Oscar. Cristologia del Nuevo Testamento. Die Christologie des Neven Testaments. Versión
castellana: Carlos T. Gattiononi. Methopress Editorial y Gráfica, Buenos Aires-Argentina. 389p.
317
CULLMANN, Oscar. Cristologia do Nuevo Testamento, p 17 ss.
CRISTOLOGIA E SOTERIOLOGIA 55

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Mas, na realidade não é bem assim. Esta ordem dos compêndios de teologia era desconhecida
para as formas mais antigas que resumem a fé cristã. Desta divisão nasceu a opinião errônea de não
haver tido a obra de Cristo aos olhos dos cristãos primitivos nada a ver com a criação, senão com a
redenção somente. As formas mais antigas se compõem de um só artigo: O CRISTOLÓGICO.
Uma das raras confissões de Fé do Novo Testamento que mencionam a primeira vez Cristo e
Deus o Pai é 1 Coríntios 8.6 e, coisa característica, ignora a distinção entre Deus Criador e o Cristo
Redentor; todavia, fala da Criação nos dois artigos: “um só Deus, o Pai, de quem vêm todas as
coisas e por quem somos, e um só Senhor Jesus Cristo, por quem todas as coisas são, e por quem
nós também somos.” Um e outro estão, pois, na origem da Criação. Portanto, Cristo é o Mediador
da criação - Antiga forma do Novo Testamento, constante em João 1.3 e Colossenses 1.16.
Em outras confissões de fé muito antigas, onde se trata de Deus, este não aparece como
Criador, mas como “Pai de Jesus Cristo”. Apresentam-no como aquele que ressuscitou a Cristo
(Policarpo 2.1 ss.). Isso prova que o pensamento teológico dos primeiros cristãos parte de Cristo e
não de Deus. Ver 2 Coríntios 13.13. Assim se percebe que as reflexões dos primeiros cristãos têm
sua base no Evento Cristo, pois eles estiveram mais próximos dos acontecimentos.
O vínculo com o Espírito Santo nas formas antigas de fé se apresenta como funções diretas de
Cristo, por exemplo: o perdão de pecados e a ressurreição dos mortos. As confissões de fé antigas
são particularmente importantes para o conhecimento do pensamento cristão primitivo. Assim, se
pode afirmar que, a teologia cristã primitiva é quase exclusivamente uma CRISTOLOGIA.

4.3. Em que consiste o problema cristológico no Novo Testamento?


As discussões cristológicas posteriores se relacionam todas à pessoa de Cristo, à sua natureza.
A sua NATUREZA DIVINA e a sua NATUREZA HUMANA. A helenização da fé surgiu para
difundir as doutrinas gnósticas, assim como o Arianismo, o Nestorianismo, por exemplo. Por isso a
Igreja se viu obrigada a se posicionar e elaborar uma resposta concreta sobre Jesus Cristo.
O Novo Testamento não se ocupa de falar da pessoa de Cristo sem falar também de sua obra.
A pessoa de Cristo e sua obra têm ligação profunda.
O Novo Testamento elabora as seguintes perguntas: QUEM É CRISTO?
QUAL É A SUA FUNÇÃO?
Há uma diferença entre a maneira em que os primeiros cristãos por sua parte, e a Igreja antiga
por outra, de abordarem o problema cristológico. Houve um conflito que existiu de se encontrar uma
solução provisória no Concílio de Calcedônia, 318 onde Atanásio e outros defensores da Ortodoxia
trataram da natureza de Cristo para destacar seu alcance soteriológico; a maneira de se falar sobre a
salvação.
Diante da necessidade de combater os hereges, os Pais da Igreja subordinaram a concepção da
pessoa e da obra de Cristo e a questão das duas “naturezas”. Era, na realidade, um problema grego e
não um problema judaico e bíblico.
Para responder à pergunta: “QUEM É JESUS?” Os primeiros cristãos podiam recorrer a certas
idéias correntes do judaísmo e em particular à escatologia judaica.
Qual era a base para ser Jesus o Messias, o aguardado pela esperança judaica?
O PROBLEMA CRISTOLÓGICO foi formulado classicamente por Jesus mesmo em Mc 8.27-29.
“Quem vocês dizem que sou?” Eles responderam de maneira diversificada:

 Uns: João Batista


 Outros: Elias
 Ainda outros: Um dos profetas;
 “E vós outros, que dizeis que sou?”
 Pedro respondeu:
318
Cf. BETTENSON, “TUdaÉS
H. Documentos O CRISTO”
Igreja Cristã. São Paulo: Aste e Simpósio, 1998, p 101.
CRISTOLOGIA E SOTERIOLOGIA 56

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O problema existia nos mais variados grupos, tanto para os outros, quanto para os discípulos
que compartilharam da vida de Jesus.
Esses títulos conhecidos se relacionavam a certas funções, e uma obra a realizar. As respostas
tinham algo em comum: que não se limitavam a colocar Jesus em certa categoria humana, mas
buscar somente explicar o que existe de único nele. Por exemplo, quando se diz que Jesus é Mestre,
médico, parece estar a classificá-lo dentro de uma categoria humana. E as respostas colocavam Jesus
fora dessa realidade.
Jesus é designado no Novo Testamento de tantos modos, com vários títulos, entretanto, não
podendo abarcar a totalidade de sua pessoa e obra, por si somente, num aspecto particular de sua
pessoa. Todos os títulos encontram sua unidade na pessoa de Jesus.

4.4. O método elaborado por Oscar Cullmann


O ponto de partida é através dos TÍTULOS CRISTOLÓGICOS. Os evangelhos são o
testemunho da fé da Igreja Primitiva. Essa fé é utilizada como meio para melhor se compreender a
realidade histórica. Os títulos cristológicos são aplicados a Jesus. Assim, se constitui um CRITÉRIO
OBJETIVO.

4.5. Os títulos cristológicos mais importantes utilizados no Novo Testamento


1. Profeta; 2. Sumo Sacerdote; 3. Mediador; 4. Servo de Deus; 5. Cordeiro de Deus; 6.
Messias; 7. Filho de Davi; 8. Filho do Homem; 9. Juiz; 10. Santo de Deus; 11. Kyrios; 12. Salvador;
13. Rei; 14. Logos; 15. Filho de Deus; 16. Deus.
Estudar os títulos de Jesus é melhor do que iniciar um estudo abordando a discussão sobre as
suas duas naturezas, que na realidade é um problema muito mais grego. Assim, é necessário estudar
a sua vida terrena, indo até à pré-existência para depois se fazer o retorno. Desta maneira haverá
uma melhor compreensão da vida e da obra de Jesus Cristo.

4.6. Classificação dos títulos – O plano da obra cristológica de Oscar Cullmann


1. Os que caracterizam a obra terrena de Cristo: Profeta, Servo sofredor e Sumo Sacerdote;
2. Os que tratam da Obra escatológica de Cristo: Messias, Filho do Homem;
3. Os que colocam acento no presente: O Senhor (), Salvador;
4. Os que caracterizam a pré-existência de Jesus: , Filho de Deus.

Os títulos se influenciaram reciprocamente. Assim, se pode chegar a uma síntese: não há


história da salvação sem Cristologia; não há Cristologia sem história da salvação.

4.7. Os títulos cristológicos relativos à obra terrena de Jesus Cristo 319

4.7.1. JESUS O PROFETA


Profeta - No Novo Testamento, o profetismo como profissão regular e organizada já não
existia mais no judaísmo. Já quase não havia mais profetas no sentido específico israelita do termo:
homens visitados pelo Espírito Santo de Deus, que recebiam de Deus uma vocação particular,
segundo se pode verificar no Antigo Testamento.

319
CULLMANN, O. Cristologia del Nuevo Testamento. Metthopress Editorial y Gráfica. Buenos Aires – Argentina,
1965. Páginas 26-66.
CRISTOLOGIA E SOTERIOLOGIA 57

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Ao chamar Jesus de profeta não se classificava dentro de uma categoria particular profissional
determinada. Jesus não é um profeta, mas o profeta, o último profeta; aquele que devia cumprir toda
profecia no fim dos tempos.
A esperança de um profeta, encarregado com uma missão escatológica, estava bem definida e
difundida no judaísmo antigo. Assim, o título profeta é bem judaico, portanto, se diferencia de
outros títulos cristológicos, por exemplo: O Filho do Homem e o Logos. Já o profeta no mundo
helênico era conhecido como “anunciador”; “advinho”, aquele que prediz o porvir. Enquanto que o
profeta-sacerdote-egipcio se assemelhava aos autores dos apocalipses do judaísmo tardio.

A) O profeta do fim dos tempos no judaísmo


A palavra NABI, em Israel, tinha diversos sentidos. No princípio designava uma parte extática,
e por outra, o profeta profissional que dava oráculos. Corporação e vocação pessoal e direta.
O profeta devia falar ao povo. Era diferente do advinho, que se preocupava em transmitir
revelações isoladas. Um verdadeiro profeta, chamado por Deus, proferia a sua profecia que se
convertia em prédica, em mensagem. A pregação da mensagem dos verdadeiros acontecimentos.
No Novo Testamento a palavra viva do profeta foi substituída pela autoridade dos escritos dos
antigos profetas. A palavra de Joel 2.28ss aparece mais como um fenômeno escatológico. Assim, o
profetismo vai chegando a ser objeto de esperança escatológica.
JOÃO BATISTA - Depois de tanto tempo, surgiu à semelhança dos profetas antigos; à
maneira do Antigo Testamento. O que ele realizava? A esperança; o despertar escatológico do
profetismo. Que esperança? Esperava-se para o fim dos tempos um profeta único em quem se
realizaria toda a profecia anterior.
Como o Novo Testamento se orientou em relação a Jesus, relacionado à esperança da vinda
desse profeta único, definitivo? Destarte, a idéia de um profeta que resume e realiza o profetismo
inteiro, tem, sem dúvida, também outra raiz menos escatológica e mais especulativa: a idéia de que
todos os profetas têm anunciado, no fundo, é a mesma verdade divina, não devendo haver mais que
um só e mesmo profeta que se encarne em diferentes homens.
Nos escritos pseudo-clementinos, o verdadeiro profeta reaparecia sempre de novo através dos
séculos, desde Adão, trocando de nome e de forma, para manifestar-se finalmente como o Filho do
Homem.
A idéia de profeta escatológico estava ligada à idéia de reencarnação do mesmo profeta,
realizada já muitas vezes no passado. O profeta aparece no fim dos tempos. A idéia do retorno à
terra do mesmo profeta contribuiu para favorecer a certeza de que Jesus voltaria no fim do mundo.
Essa idéia influenciou a Cristologia do neotestamentária.
A esperança judaica aguardava mais particularmente o retorno escatológico de um profeta
determinado. Tem sua base em Dt 18.15. O retorno de um profeta terá semelhança com Moisés, etc.
(At 3.22; 7.37). Assim, quando se esperava o retorno de Elias, se tratava de uma crença
relativamente antiga. Os judeus aguardam o retorno do profeta Elias (Ml 4.5).
A esperança judaica se referia unicamente a um profeta. Os samaritanos, ao profeta-messias,
aquele que vem ser “O Restaurador”.
A esperança messiânica era forte na seita judaica chamada de “Comunidade da Nova Aliança”.
Outra comunidade era a dos “Essênios”, que viviam no deserto.
O mestre-profeta haveria de surgir - eis aí um paralelo com o regresso de Cristo. Tanto um
quanto o outro, trata da esperança do retorno de um profeta cuja morte estava muito distante.
A seita da Nova Aliança é quase contemporânea do Cristianismo Nascente. O profeta reúne
em si certos atributos do Messias, e mais particularmente do sacerdote.
A função do profeta: a prédica, a revelação dos últimos mistérios e o restaurador da
Revelação. Era ele um precursor do messias, originalmente. Mas, é possível que, finalmente, o
CRISTOLOGIA E SOTERIOLOGIA 58

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profeta e o messias estejam unidos numa só pessoa. Assim, se entende que o profeta do final dos
tempos prepararia o caminho a Yahvé. Prepararia a vinda do Messias. Temos em João Batista o
arauto dessa preparação, segundo os relatos neotestamentários (Mt 3.1-12; Mc 1.1-8; Lc 3.1-20).

B) O profeta do fim dos tempos segundo o Novo Testamento


João o Batista - é chamado de “Profeta”. Aparece como anunciador do final dos tempos,
identificando-se de duas maneiras: com o retorno de Elias e precursor do Messias, logo, precursor
de Deus.
Jesus tinha consciência de ser o Messias? Jesus sabia que a esperança dos últimos tempos se
realizaria; que o profeta seria perseguido; que seu papel não se limita apenas a pregar o
arrependimento, senão a sofrer; que há um vínculo com o “Servo de Yahvé”.
João Batista é o profeta com as mesmas características do profeta Elias, para converter os
corações dos pais aos filhos e os rebeldes à sabedoria dos justos, a fim de preparar ao Senhor um
povo bem disposto.
João Batista teve essa consciência profética? Ele sabia que teria de preparar o caminho do
Senhor, mas que viria um mais poderoso que ele - o Messias, Jesus, o profeta escatológico.

Conclusões sobre João Batista


Foi considerado depois de sua morte por seus discípulos como o profeta (), (como
Elias). Os discípulos de Jesus o consideravam e o próprio Jesus também.
Segundo o evangelho joanino ele não se declarou “O Profeta”, mas a “Voz” () que clama
no deserto... À semelhança dos antigos profetas. Mas, é curioso que, em João 1.21, ele rechaça ser
profeta; ele declarou também que não era o “Messias” (João 3.28).
JESUS - aparece como “O Profeta”, único, do fim dos tempos. Em Lucas 7.16: todos ficaram
sobrecarregados de terror e glorificaram a Deus dizendo: um grande profeta se levantou entre nós
(). Mateus 21.46: “Lhe tinham por profeta”. Marcos 6.4: Jesus se designa a si mesmo
como um profeta. Mateus 23.37: confirma ao mesmo tempo em que o sofrimento é a sorte dos
profetas, e, em especial, forma parte de sua função escatológica.
As passagens do Novo Testamento designam Jesus como o profeta do final dos tempos; o
profeta que retornou a terra. Daí, a confusão a respeito de Cristo: Mc 6.14 - se dizia:

 João Batista ressuscitou dos mortos


 É Ele o profeta Elias
 É como um dos profetas

São essas as opiniões a respeito de Jesus que têm sua base na crença sobre o profeta do final
dos tempos. Ele voltaria de forma milagrosa. Era uma crença popular da ressurreição que devia estar
muito estendida entre o povo na época de Jesus.
Os cristãos de procedência judaica criam em Jesus como esse profeta do final dos tempos. A
maior parte dos manuscritos traz: “Um profeta como um dos profetas”
(). Jesus seria comparado a um dos antigos profetas. Mas as
explicações populares sobre Jesus diferem da que foi dada por Pedro: “Tu és o Cristo.”
Os evangelhos sinóticos apresentam Jesus como o Profeta esperado no fim dos tempos. Será
que Jesus se considerou o Profeta escatológico? É a João Batista tal reconhecimento (Mt 11.14). Ele
não se considerou como tal profeta esperado, segundo os sinóticos. O evangelho de João conduz ao
mesmo resultado. As pessoas o reconheceram (Jo 6.14).
O anúncio de Jesus sobre seu retorno a terra tem seu fundamento na crença do retorno do
profeta de forma milagrosa. Já os sinóticos não recorrem a esse título para expressar sua fé em Jesus,
CRISTOLOGIA E SOTERIOLOGIA 59

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mas reconhecem ser ele o profeta por excelência, cuja predição está em Dt 18.15, que é a base
segura para o ensino da Igreja.

C) Jesus: “O verdadeiro Profeta” no cristianismo-judaico tardio


Uma só parte de cristãos considerava Jesus como “O Profeta” por excelência: o grupo de
judeus convertidos; a parte popular considerava Jesus como João que veio da forma veio como
Elias, mas como o Elias redivivo. É preciso examinar o que consta em alguns documentos
deuterocanônicos do Novo Testamento.
Um documento judaico-cristão, que conservou escritos pseudo-
clementinos, tratava de Jesus como  “O verdadeiro Profeta” - passando pelo
crivo do elemento especulativo e puramente gnóstico.
“Profeta” - Segundo a crença antiga, o profeta apareceria essencialmente para inaugurar o fim
dos tempos e realizar, portanto, a obra dos antigos profetas; de levar a verdade ao ponto máximo, à
perfeição anunciada por todos os profetas.
O evangelho de João, embora tenha algum parentesco com esse documento
tem acento numa grande diferença: o evangelho de João concentra uma
cristologia autenticamente bíblica, enquanto que o tem uma presença de uma
especulação tipicamente gnóstica.

Alguns pontos do 


1. O profeta do fim dos tempos apareceu primeiro na pessoa de Adão;
2. A noção de profeta associada ao Filho do Homem que, desde a Criação do mundo,
através dos séculos o verdadeiro profeta recorreu à troca de nome e de aparência; se
encarnando sempre de novo: em Enoque, Noé, Abraão, Isaque, Jacó, Moisés;
3. A missão do verdadeiro profeta é proibir os sacrifícios autorizados por Moisés.

O Evangelho dos Hebreus


1. A abolição dos sacrifícios realiza e corrige de uma vez por todas a obra de Moisés. Uma
linha direta, pois, conduz de Adão a Jesus, e esta linha é a do profeta, do qual Jesus é a
encarnação perfeita. Esta é uma curiosa teoria judaico-cristã.
2. Essa teoria aponta para o verdadeiro e falso profeta, desenvolvendo-se um dualismo
simbolizado por dublês antagônicos. Por exemplo:
 Adão: o primeiro representante da verdadeira profecia se opõe a Eva, princípio da
falsa profecia;
 Isaque: verdadeiro; Ismael, o falso;
 Jacó: verdadeiro; Esaú, o falso;
 Jesus: o verdadeiro; João Batista, o falso.
Essa posição foi desaparecendo junto com o judaico-cristianismo; não teve quase influência no
desenvolvimento dogmático do Cristianismo. Por outro lado, exerceu poderosa ação sobre outra
religião: o Islã, em que o Profeta ocupa também uma posição central.
Assim, pode perceber que a idéia do Profeta escatológico é demasiadamente estreita para
abarcar toda a Pessoa e Obra de Cristo.

320
Tradução: O Evangelho de Pedro.
CRISTOLOGIA E SOTERIOLOGIA 60

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D) Jesus o Profeta, como solução do problema cristológico do Novo Testamento


Vantagens de se estudar sobre o caráter original e único de Jesus: a sua pessoa e obra; o seu
caráter humano.
O que se esperava do Messias na concepção judaica? Ele realizaria o programa político: a luta
e a vitória contra os inimigos de Israel, a restauração de Jerusalém como capital de um reino
puramente temporal.
A função do Profeta escatológico era preparar a sua prédica e transmitir ao povo de Israel, e
ao mundo para a vinda do Reino de Deus. Isto se daria à maneira dos antigos profetas do Antigo
Testamento, de um modo mais direto: como precursor imediato da vinda do Rei. Seu chamado ao
arrependimento exige uma decisão definitiva.
O Evangelho de João dá muita importância a Cristologia do “Profeta”, que trará uma palavra
final, da última oportunidade de salvação oferecida aos homens. A sua palavra indica a iminente
chegada do Reino de Deus.
A autoridade de Jesus () é a de um profeta por excelência: “arrependei-vos, porque o
Reino de dos Céus é chegado”. Tal é o ponto de partida de sua pregação: preparar os homens para
entrarem no Reino que vem. Desta forma, o caráter escatológico de sua pregação é incontestável.

Noções cristológicas essenciais


 O Messias que aparece no fim dos tempos para preparar a vinda do Reino de Deus;
 A idéia joanina de  une a obra do profeta e sua pessoa, identificando-se: Jesus
mesmo é o Verbo;
 A idéia de Profeta está ligada a de Filho de Deus;
 A relação entre Profeta e Servo.

A pessoa e a obra de Cristo/A pessoa de profeta do fim dos tempos.


A idéia do Profeta permite compreender perfeitamente a vida terrena de Jesus. É certo que os
textos judaicos nos falam de outras atividades do profeta: deve também fazer milagres, juntar as
tribos de Israel, vencer as potências deste mundo e lutar contra o anticristo.
A obra terrena de Cristo não se limitava apenas à pregação escatológica; não encontra seu
ápice senão na remissão de pecados, e, antes de tudo, no ato que coroa sua obra redentora: SUA
MORTE EXPIATÓRIA, segundo o testemunho dos evangelhos.
Em Jesus Cristo se constata um laço entre a pessoa do profeta e do servo de Deus. O
sofrimento e a morte no sentido de uma substituição consciente e voluntária, não são
especificamente partes da função do profeta escatológico. Para o profeta, o sofrimento não é mais
que uma conseqüência de sua pregação. O profeta é o que se levanta no fim dos tempos para chamar
as pessoas ao arrependimento.
A pregação e o ensino de Jesus se prenderam inteiramente ao ato de ter consciência de que era
necessário sofrer e morrer por seu povo. Mais como Servo Sofredor do que Profeta.

4.7.2. JESUS, O SERVO SOFREDOR DE DEUS 321 (Ebed Yahvé - 


Com o título Ebed Yahvé 322 chegamos ao centro mesmo da Cristologia do Novo
Testamento.323 É essencial observar que a idéia principal que apresenta em sua base - a da
substituição - constitui o princípio mesmo da luz que qual o Novo Testamento desenvolve em toda a
história da salvação. Essa idéia da substituição encontra sua concretização na pessoa do Servo

321
CULLMANN, O. Cristologia del Nuevo Testamento. Metthopress Editorial y Gráfica. Buenos Aires – Argentina,
1965. Páginas 67-101.
322
Na língua hebraica significa “O Servo de Deus”.
323
É o centro da Cristologia por causa da substituição. Jesus deu a sua vida em resgate por muitos.
CRISTOLOGIA E SOTERIOLOGIA 61

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Sofredor de Deus. Servo de Deus é um dos títulos mais antigos relacionados à pessoa e à obra de
Jesus.

A) O “Ebed Yahvé” no judaísmo


É uma figura essencialmente judaica.324 Os textos do Antigo Testamento onde se concentra
essa figura:

 Is 42.1-4
 49.1-7
 50.4-11
 52.13-53.12

Estes textos são importantes para se compreender o significado do batismo de Jesus, e também
porque o Evangelho de Mateus contém citações de Isaias (Mt 12.18ss).
As expressões de que se serve o profeta para descrever o Ebed, são precisas e misteriosas.
Sabemos exatamente em que consiste a sua obra, mas não sabemos os detalhes da sua morte; e,
ainda mais: não se sabe quem é esse “Servo do Senhor”. O profeta não diz quando e em quê
circunstâncias aparece.
E. LOHMEYER estabeleceu uma relação entre o título de Ebed e o “Filho de Davi”, enquanto
que, A. BENTZEN trata de compreender essa figura pelas crenças relativas à sorte do profeta, e
mais particularmente ao “Moisés redivivo”.
O texto dos Atos 8.34, a propósito de Isaias 53, segue o que foi entendido hoje pelos exegetas
do Antigo Testamento. As perguntas a seguir são de extrema importância. “De quem fala o profeta?
É dele mesmo ou de algum outro?”
Podemos reduzir o problema a esta questão: o “Servo do Senhor” é um indivíduo ou uma
coletividade? Não é fácil responder a esta pergunta, pois há cânticos dedicados ao Ebed Yahvé em
passagens que parece identificar-se com Israel (Is 49.3). Para o pensamento semita a assimilação de
uma coletividade e seus representantes individuais é coisa corrente.
A história da salvação se desenvolve do começo ao fim segundo o princípio da substituição,
segundo a forma de uma redução progressiva: da criação total, se passa à humanidade; da
humanidade ao povo de Israel; do Povo de Israel ao resto; do remanescente a um só homem, Jesus.

PRINCÍPIO DA REDUÇÃO PROGRESSIVA

Criação
Humanidade
Total Israel Remanescente Jesus
Cristo

324
Nas outras religiões não há um resgatador, que tenha se oferecido pelas pessoas. Não se encontra um Deus que se
sacrifica, mas que pede sacrifícios. Daí ser uma figura especialmente judaica, segundo o ensino do Antigo Testamento.
CRISTOLOGIA E SOTERIOLOGIA 62

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Esse desenvolvimento da história da salvação é prefigurado pelo Ebed Yahvé, que é por sua
vez: “resto” e “indivíduo”.
O Ebed Yahvé é o Servo de Deus que sofre. Pelo seu sofrimento se substitui a um grande
número de homens que deveriam sofrer em seu lugar. Assim, a Aliança concluída por Deus com seu
povo é restabelecida, graças à obra substitutiva do Ebed. Ele é o mediador 325 desta aliança.
No judaísmo tardio o problema principal do Ebed é aquele da relação entre esta figura e a do
Messias. Ele restabelece as relações rotas entre Yahvé e seu povo, bem como voltar à vocação pela
eleição divina. O Servo do Senhor deve ser o “ungido” do Espírito.
No judaísmo do tempo de Jesus o Ebed Yahvé não tinha nenhuma identificação com o
Messias, porque a missão do Ebed era o sofrimento substitutivo. A idéia de um Messias sofrer era
puramente estranha.
Havia diferentes concepções no judaísmo para caracterizar a missão de um enviado especial de
Deus que havia se influenciado reciprocamente. É possível que essa idéia de um Messias sofredor
tenha surgido no seio mesmo do judaísmo. Nos salmos também se observa o sofrimento, onde
desempenha um papel muito importante. Assim, em Israel, todo sofrimento tem um caráter
substitutivo. O sofrimento do Profeta é conseqüente da sua pregação; já o do Ebed Yahvé é
conseqüente de sua missão.
O Bom Pastor dá a vida pelas ovelhas... (Jo 10.8,12,18). Os “ladrões” e “roubadores”, os
líderes dos zelotas, não têm cuidado com as ovelhas, mas Jesus é o verdadeiro Pastor. Assim, a idéia
de um Messias sofredor era estranha no judaísmo. Por isso não aceitaram a Jesus como o Messias.

B) Jesus e o “Ebed Yahvé”


Que lugar tem o sofrimento e a morte na mensagem de Jesus? Jesus considerou seu sofrimento
e sua morte como partes integrantes da missão que devia desempenhar na execução do plano divino
da salvação?
Jesus se sentia chamado a viver sua obra mais do que ensinar sobre ela. É por isso que não se
limitou a pregar o perdão de pecados por Deus, mas também a curar os enfermos, e respectivamente,
outorgar seu perdão. A sua palavra era: “teus pecados estão perdoados”.
Como Jesus podia atribuir a si mesmo esses poderes plenos ( Ele foi enviado ao
mundo para realizar precisamente essa missão. A afirmação de Jesus de que seria elevado pela morte
supõe que, para ele essa morte há de ser parte integrante de sua missão messiânica. Ele, de sua parte,
sabia que devia morrer (Mc 2.18ss). Em Lucas 13.31ss, Jesus se coloca a si mesmo na categoria
humana dos profetas: “não convém que o profeta morra fora de Jerusalém”. Ainda em Lc 12.50, a
palavra “batismo” se aplica à sua morte, assim como em Mc 10.38: “podeis ser batizados com o
batismo que devo ser batizado?” Aqui, a morte não aparece somente como o epílogo, e sim como
parte integrante da obra de Jesus.
O sinal do profeta Jonas: “não será dada a esta geração pecadora e adúltera outro sinal,
senão o do profeta Jonas”.
Há três passagens em que Jesus prediz a sua própria morte: Mc 8.31; 9.31 e 10.33. Outros
textos que têm a ver com estes: Mc 12.7; 14.8. São parábolas 326 que ilustram o sofrimento e a morte
de Jesus.

325
Cf. a função do Mediador em de João Calvino: As Institutas ou Tratado da Religião Cristã, Volume II, páginas
101-127 e 230-300. O autor afirma que Cristo é único Mediador da redenção da humanidade eleita.
326
Cf. sobre parábolas em Joaquim Jeremias: As Parábolas de Jesus, Paulinas.
CRISTOLOGIA E SOTERIOLOGIA 63

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Uma só vez encontra-se em uma palavra de Jesus a citação direta de Isaias 53: Lc 22.37.
Verificar também as palavras da Instituição da Ceia do Senhor: Mc 14.24; Mt 26.28; Lc 22.20; 1 Co
11.24. São textos que concordam sobre o ponto mais importante: o momento no qual Jesus
distribuiu o pão e o vinho, anunciando que derramará seu sangue por muitos homens.
As expressões são comuns nos quatro relatos (salvo o
manuscrito de Lucas). Todos contêm também a palavra que é aliança,327 aspecto da obra
de Jesus, segundo o Antigo Testamento, que o Ebed Yahvé deve realizar.
No momento em que Jesus tomava sua última ceia com seus discípulos, anunciava pois, o que
ele realizaria no dia seguinte, na cruz.
O título Ebed Yahvé aplicado a Jesus não estava em uso na Igreja primitiva quando os
evangelhos sinóticos foram redigidos. Os cristãos deram preferência a outros títulos, em particular
ao de CRISTO ().
Quando Jesus adquiriu a certeza de que ele realizaria a missão do Servo de Yahvé? No seu
batismo, no Jordão (Mc 1.11). É justo que no batismo Jesus adquiriu a convicção de ser quem devia
assumir o papel do Ebed. Jesus foi batizado em vista de sua morte, e que ao morrer levaria seu povo
inteiro através de um batismo. Carregar sobre si todos os pecados era sua missão. No instante do
batismo, 328 recebe Jesus ao mesmo tempo o “programa” do papel que deve desempenhar na história
da salvação.
Jesus não batizou as pessoas à semelhança de João Batista, porque para ele só havia um
batismo: a sua morte (Mc 10.38; Lc 12.50).
Para o autor do Quarto Evangelho, está fora de dúvida que a voz do Ebed era um chamado
dirigido a Jesus para assumir a misssão de Ebed Yahvé (Jo 1.29, 36).

C) Jesus: o “Ebed Yahvé” no cristianismo primitivo


Encontramos poucas passagens em que os autores dos Sinóticos estabelecem uma relação
direta entre Jesus e a figura do servo de Deus.

Escritos neotestamentários do cristianismo primitivo

Mateus
Em Mt 8.16ss - sobre as curas operadas por Jesus, se trata, sem dificuldade, de uma reflexão
feita pelo próprio evangelista, que cita a passagem de Is 53.4. O que interessa segundo o evangelista,
não é precisamente o pensamento central do capítulo de Isaias, o sofrimento substitutivo. Não é a
morte de Jesus, mas suas curas, que são consideradas como o cumprimento da profecia. As curas de
Jesus representam, em certo sentido, uma antecipação de sua morte definitiva, que há de consumar-
se por sua morte.

Marcos
No evangelho de Marcos, não encontramos nenhuma alusão do autor ao Ebed Yahvé, e nem
aos cânticos do Servo.

João
No evangelho de João se concentra uma maior importância ao Ebede Yahvé? Verificar João
2.19ss; 3.14,16. Há outros testemunhos mais diretos que provam que o autor do Quarto Evangelho

327
Essa palavra tem o mesmo significado de BERITH, na língua hebraica do Antigo Testamento, traduzida
por ALIANÇA, PACTO. Deus estabeleceu com o seu povo uma aliança eterna.
328
Batismo significa compromisso, e não uma demonstração de vida social que se deva dar a quaisquer pessoas ou
instituições.
CRISTOLOGIA E SOTERIOLOGIA 64

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não relegou a segundo plano a idéia da morte expiatória de Cristo (Jo 10.11,17). “O cordeiro de
Deus que tira o pecado do mundo”, confirma a implicação profunda da missão de Jesus como o
Ebed Yahvé, que recebeu no seu batismo. A expressão “Cordeiro de Deus” ( Jo
1.29) não se emprega corretamente no Antigo Testamento para designar o Cordeiro Pascal,
entretanto, é provável que o autor haja pensado em Jesus como o Ebed Yahvé. A noção de Ebed
Yahvé supõe também a idéia de sacrifício, e está dominada pela idéia de uma substituição voluntária.
O autor do Quarto Evangelho reconhecia a idéia do Cordeiro Pascal.

Atos dos Apóstolos


Podemos afirmar que em Atos temos a solução mais antiga do problema cristológico (At
8.26). Prova que Jesus havia sido explicitamente identificado como o Ebed Yahvé no Sec. I, e que o
próprio Jesus havia compreendido a sua missão.
Nada se sabe de preciso a respeito desta doutrina cristológica, ou mais exatamente da
“PAIDOLOGIA”. O contexto no qual os Atos dos Apóstolos colocam este antigo título nos permite
deduzir em quê meios da comunidade primitiva seu emprego pôde ser mais generalizado.

1 Pedro 2.21ss
Com insistência, cita as palavras do Livro de Isaias. A Cristologia do apóstolo Pedro estava,
provavelmente, dominada pela idéia do Ebed Yahvé.

As liturgias antigas que tratam do “Ebed Yahvé”


1 Clemente 59.3-61; Didaquê (Ver Cullmann, p. 94).

Os escritos do Apóstolo Paulo


Qual a atitude de Paulo diante da figura do Ebed Yahvé e a sua identificação com Jesus? Paulo
designa Jesus como a “Páscoa” (1 Co 5.7). Os textos de Isaias 52 citados em Romanos 10.16 e
15.21, se relacionam com a pregação missionária e propriamente com a obra do Servo de Deus.
A aplicação da idéia do Ebed Yahvé não era desconhecida para o apóstolo Paulo. Ele cita
confissões de Fé bem antigas: 1 Co 15.3; Fp 2.7; Rm 5.12ss. A cristologia do Ebed Yahvé remonta
os tempos mais antigos da Igreja e que não foi Paulo quem criou a doutrina da morte expiatória de
Cristo.329 Ele tomou como base escritos e tradições antigas. Cita em Fp 2.6-11 um antigo Salmo 330
da comunidade. Paulo utiliza elementos da Tradição Primitiva. Em Rm 5.12ss, o Apóstolo não
reproduz ali uma confissão já existente, senão que formula de maneira pessoal sua cristologia. Em Fp
2.6ss, as idéias cristológicas essenciais que remontam a Jesus mesmo, da idéia do “Filho do Homem”
e de “Servo de Deus” se encontram reunidas. O versículo 19 mostra claramente que o Apóstolo
pensou no “Servo” do Livro de Isaias: “pela obediência de um só, muitos serão feitos justos”. Em
alusão a Isaias 53.11.
A cristologia paulina se interessa muito mais pela obra que Cristo realizou, e elevado à destra
de Deus, realizou na qualidade de 331 Paulo contempla a Cristo à luz da ressurreição. Mas é
importante observar que a cruz não é um momento infeliz de uma teologia gloriosa. A ressurreição é
um segmento da mensagem da cruz e não a cruz o simples capítulo de uma dogmática da

329
Desta forma Paulo elaborou a sua cristologia, a qual pregava em todos os quadrantes do Império Romano. Uma
mensagem poderosa para salvar a todas as pessoas.
330
Por Salmo, entende-se um antigo cântico que a comunidade primitiva entoava.
331
A Igreja sempre anunciou que Jesus é o Senhor.
CRISTOLOGIA E SOTERIOLOGIA 65

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ressurreição.332 A cruz e a ressurreição estão justapostas, e sendo desta forma, a palavra evangélica
consiste em identificar o Senhor com o homem Jesus, crucificado. 333 A cruz não é o fim, ela é
também começo. A teologia da cruz é finalmente inseparável do primado acordado da Cristologia e
da estrutura que ela ordena.334
Quando se pode refletir sobre Jesus como servo, tem na teologia paulina uma importância
profunda, pois o serviço é testemunho da verdade. Tem a implicação do lugar da vocação cristã. O
serviço é a única atitude legítima do Evangelho. Isso quer dizer que a fé é ação, uma vez que o
serviço é a figura concreta encarnada que prende a reivindicação de Deus sobre o mundo. Os dons
do Espírito são inseridos como possibilidade de serviço, porque o Espírito de Deus coloca o cristão
literalmente no serviço terreno e corporal.
Os cristãos têm de servir a Deus na profanidade do cotidiano. Essa forma de refletir tem em
Jesus o qualificativo para o serviço.335 Relacionada ao serviço está a obediência irredutível em sua
singularidade, porque a vida cristã tem um destino específico. Na obediência, o cristão é o espelho
de Jesus Cristo. O Cristo foi o primeiro a ler o primeiro mandamento como uma promessa e de
manifestar sua singularidade e sua significação carregada de obediência. 336
O tema da obediência é a determinação singular do cristão. Assim, a fé é contemplada pela
teologia como obediência, e isto a define como práxis. Logo, se a fé é obediência, ela remete a um
protótipo. Jesus é por excelência o “obediente”. Assim, a noção de obediência é função da
Cristologia. Mais ainda, a inauguração de uma nova criação, se dá através da obediência, porque é
uma nova maneira de organizar a terra. 337 Essa base nasceu de Jesus Cristo o Servo de Deus.

D) A doutrina do “Ebed Yahvé” como solução do problema cristológico


A noção do Ebed Yahvé permite captar o acontecimento cristológico central de uma maneira
perfeitamente adequada ao testemunho do Novo Testamento inteiro. Não é um título produzido pela
opinião popular (como no caso do profeta), mas o próprio Jesus entendeu desta maneira em sua obra
terrena.
A morte expiatória de Jesus não é só o ato central de toda a história da salvação, mas desde a
criação aconteceria a nova criação no final dos tempos. Deste ponto de vista, a Cristologia do
“Servo” deve ser considerada como uma solução capital do problema cristológico neotestamentário:
Jesus aparece como aquele que realizou o momento decisivo, a obra determinante do desígnio de
Deus para a salvação do mundo.
A noção do Ebed Yahvé caracteriza a obra e a pessoa do Jesus histórico de uma maneira
perfeitamente concorde ao testemunho cristológico do Novo Testamento.
A obra do Ebed Yahvé, por si mesma, basta como obra terrena, que anuncia em virtude de seu
caráter decisivo as conseqüências que têm mais a ver com a obra terrenal de Jesus. Pode,
perfeitamente, aliar-se às noções que fazem ressaltar a obra do Cristo presente, futuro e pré-
existente.
A fé nas conseqüências desta obra, a fé no elevado à destra de Deus e reinando sobre
a Igreja e o mundo, se constituiu para a vida cotidiana dos cristãos e da Igreja uma importância
maior nesta obra que em si mesma todas as pessoas podem encontrar a razão para viver de fato e de
verdade.
332
GISEL, Pierre. Vérité et histoire. La théologie dans la modernité. Genève: Labor et Fides, p.315. A interpretação
entusiasta do Evangelho terá dois herdeiros: 1. O idealismo moderno, moral e religioso; 2. A domesticação eclesiástica
do kérigma. Essa é uma critica de Ernest Kässemann, colocada por Pierre Gisel.
333
Ibidem, p. 318.
334
Ibidem, p. 323.
335
GISEL, Pierre. Vérité et histoire, pp. 326-334.
336
Ibidem, pp. 334-337.
337
Ibidem, pp. 338-341.
CRISTOLOGIA E SOTERIOLOGIA 66

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Mas, a obra do Ebed Yahvé, tampouco é fundamental para abarcar toda a obra de Jesus, pois
Ele não veio apenas para nos substituir na cruz. É fundamental se proceder a um estudo também
sobre os outros títulos cristológicos, para uma melhor compreensão da pessoa e obra de Jesus de
Nazaré, no mundo marcado pelo pecado. Segue-se, portanto, o título, Jesus o Sumo Sacerdote.

4.7.3. JESUS O SUMO SACERDOTE 338 ()


A noção de Sumo Sacerdote guarda estreita relação com a de “Servo de Deus”.339 É uma
concepção cristológica mais completa que a de Profeta, ou a de Servo de Deus, por relacionar-se
exclusivamente com a obra terrena de Jesus.

A) O sumo sacerdote, figura ideal do judaísmo


O Sumo Sacerdote é uma figura essencialmente judaica. O redentor esperado pelos judeus não
tinha traços sacerdotais, não obstante encontrarem-se no judaísmo posterior, certos indícios de uma
possível relação entre o Messias-Rei e o Sumo Sacerdote.
Há certa especulação relacionada com o misterioso rei Melquisedeque, que em Gênesis
14.18ss e no Salmo 110.4 se interligam. O relato de Gênesis não nos possibilita saber mais nada
sobre Melquisedeque,340 diante de quem Abraão se humilhou.

 Gênesis 14.18ss
Há uma profunda relação entre:

MELQUISEDEQUE REI DE SALÉM

 Quem é Melquisedeque?
 Que significa: “Segundo a ordem de
Melquisedeque?”.
 Qual a sua relação com Jesus Cristo,
segundo o Novo Testamento?
MESSIAS-REI

O Salmo 110.4 diz: “Tu és sacerdote para sempre, segundo a ordem de Melquisedeque”.
Estas palavras se dirigem ao Rei a quem são atribuídas as funções sacerdotais da ordem mais
elevada. É um Salmo de entronização real, utilizado nas festas judaicas. 341
O que quer dizer “Segundo a ordem de Melquisedeque”? Significa um sacerdócio que não
perece. É eterno. Esse sacerdote é o próprio Messias. 342

338
CULLMANN, O. Cristologia del Nuevo Testamento. Metthopress Editorial y Gráfica. Buenos Aires – Argentina,
1965. Páginas 101-129.
339
É interessante observar que, o Sumo Sacerdote no AT oferecia sacrifícios pelo povo. Entretanto, no NT, Jesus é
considerado Sumo Sacerdote, porque ele é o sacrificante e o sacrifício, simultaneamente.
340
Melquisedeque é uma figura misteriosa.
341
Cf. comentário a respeito do Salmo 110, que merece atenção é o de KIDNER, D. Salmos 73-150. Introdução e
Comentário. São Paulo: Mundo Cristão, 1997. Páginas 407-412.
342
Ibidem. Página 411. Este Sacerdote nunca abusará do seu ofício, e este sacerdócio não somente é mais antigo como
também mais perfeito (conforme demonstrará o Novo Testamento) do que aquele da casa inteira de Levi.
CRISTOLOGIA E SOTERIOLOGIA 67

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No tempo de Jesus não só se interpretava já messianicamente o Salmo 110, senão que, sobre a
base de certas especulações teológicas do judaísmo, enquanto se identificava com Melquisedeque
mesmo, se não com o Messias, ao menos com outras figuras escatológicas.
A epístola escrita aos Hebreus 7343 e certas tentativas patrísticas posteriores consideram
Melquisedeque um tipo, uma prefiguração de Cristo. Supõe, com isso, haver a existência de uma
tradição judaica sobre a figura do rei escatológico.
Por outro lado, o Elias redivivo aparece sob um duplo aspecto do profeta e sacerdote do fim
dos tempos - o Rei-Sacerdote, considerado como o “homem ideal”. Filón assimila o Logos a
Melquisedeque e lhe chama de o “Sacrificador de Deus”. Os Pais da Igreja 344 falam de certas
especulações cristãs gnósticas relativas a Melquisedeque. Aludem a antigos temas judaicos fundidos
com idéias gnósticas, que se assemelham ao Sumo Sacerdote e a personagens dos próprios, e dos
últimos tempos tais como Salém, o arcanjo Miguel, o primeiro homem, Adão.
O Mestre da Justiça da seita de Qumran contém características escatológicas, e por outro lado
é sacrificador ou sacerdote. O Testamento dos Doze Patriarcas, em particular, o texto de Levi 18 se
anuncia a vinda do “novo sacrificador”, não seria outro senão o Mestre da Justiça.
Documentos como: “Os textos de Qumran, Escrito de Damasco, o Testamento dos Doze
Patriarcas, distinguem um Messias Sacerdotal e um Messias-Rei político; um Messias de Levi e um
Messias de Judá, Messias de Arão e Messias de Israel, o Messias real, estando subordinado ao
Messias sacerdotal”.345
O judaísmo conhecia um sacerdote ideal que devia consumar ao final dos tempos o sacerdócio
judaico, como único e verdadeiro sacrificador.
O Sumo Sacerdote, o verdadeiro mediador entre Deus e o seu povo, ocupava uma posição
soberanamente elevada. O judaísmo possuía na pessoa do Sumo Sacerdote um homem que já podia
satisfazer, dentro do quadro cultual, a necessidade do povo, de um contato com Deus. 346 Mas, o
sacerdote existente decepcionava as altas esperanças do povo. O povo aguardava com ansiedade um
novo tempo, onde haveria a consumação de todas as coisas. 347 Destarte, é importante perceber como
essa noção do Sumo Sacerdote foi transferida para Jesus.

B) Jesus e a concepção de sumo sacerdote


É impossível à primeira vista perceber que Jesus tenha atribuído para si funções sacerdotais,
quando se pensa na sua atitude diante do Templo. Ele disse o seguinte: “Está aqui um maior que o
Templo.” (Mt 12.6). Consta a declaração de Jesus que anunciava a destruição do Templo (Mc 14.58;
Jo 2.19). Ele mesmo se apresenta como aquele que reergue ou reconstrói o Templo (Jo 2.21). O que
Ele quer dizer com essas palavras? Jesus, na verdade, está criticando o sacerdócio judaico. A vinda
de Jesus inauguraria o fim dos tempos; o culto não podia permanecer como antes; teria de passar por
uma reforma em todos os aspectos. Por esta causa, a liderança religiosa queria a morte de Jesus (Jo
11.47ss).
Jesus critica a prática sacerdotal que não condiz com a realidade do Reino de Deus. Essa
crítica fazia parelha com a esperança de um sacerdote ideal, segundo o Salmo 110, que enfatiza o
“Sacerdote segundo a ordem de Melquisedeque”. É um competidor contra o Sumo Sacerdote.
Esse tipo de sacerdote a Igreja identificou na pessoa de Jesus, o cumprimento do Salmo 110,
constituindo-se importância capital para a Igreja Primitiva. Assim, foi de grande importância para o
343
CULLMANN dá ênfase à Epístola aos Hebreus, pois ele acha que a sua cristologia em relação ao sacerdócio de
Cristo é bem exposta, para a compreensão da obra terrena de Jesus.
344
Ambrósio, Jerônimo, Epifânio, Hipólito e outros.
345
CULLMANN, p. 105.
346
Por isso, o povo de Israel nutria um respeito pelo Sacerdote.
347
Essa esperança do povo judeu os cristãos herdaram. Os cristãos crêem em um novo tempo, onde tudo será
transformado.
CRISTOLOGIA E SOTERIOLOGIA 68

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desenvolvimento da consciência que Jesus passou a ter de si mesmo: sabia que ele era o Rei-
Sacerdote “segundo a ordem de Melquisedeque”.
Jesus cita o Salmo 110, onde fica mais clara a sua consciência. Trata-se de sua resposta ao
Sumo Sacerdote em Mc 14.62. Jesus une aqui em um só pensamento, a Daniel e ao Salmo 110:
“vereis o Filho do Homem sentado à destra do poder de Deus vindo sobre as nuvens do Céu”.
“Estar sentado a destra” está profundamente ligado a imagem do Rei-Sacerdote “segundo a ordem
de Melquisedeque”.
Jesus não era o Messias Nacional esperado pelos judeus; mas aquele que não reivindica o papel
de sumo sacerdote terreno, e sim o Filho do Homem celestial e o Sumo Sacerdote celestial. É uma
resposta paralela com a que Jesus deu a Pilatos (Jo 18.36): “o meu reino não é desate mundo”. 348
Jesus considerava sua missão como uma consumação do sacerdócio. Sobre essa relação
sacerdotal do problema cristológico, a epístola aos Hebreus encontra um ponto de contato com o
Salmo 110.

C) Jesus o sumo sacerdote segundo o cristianismo primitivo


A Epístola aos Hebreus fala do , Sumo Sacerdote, que é sem dúvida um título
cristológico atribuído a Jesus, que também o designa como o  sobre tudo como
, Filho de Deus.
O centro da Epístola aos Hebreus é o capítulo 7 e tem apoio em Gênesis 14 e no Salmo 110,
que Jesus mesmo havia citado. Logo, está fundamentado na Escritura Sagrada que Jesus é o
verdadeiro Sumo Sacerdote. Outros cristãos provam também com textos to AT que Jesus era o
Messias esperado pelos judeus. O autor da Epístola aos Hebreus se esmera em demonstrar que Jesus
consumava de forma absoluta a função de Sumo Sacerdote judaico. Se o sacerdócio para os judeus
era passageiro e imperfeito, em Cristo se anuncia o sacerdócio que superaria toda a imperfeição.

 Hebreus 7
A argumentação de Hebreus 7 encontra sua base fundamental relacionada à interpretação
tipológica do Antigo Testamento com a tradição judaica referente a Melquisedeque. O sacerdote do
antigo pacto nada tem de definitivo, de absoluto; e, ao contrário, há de ser substituído pelo
sacerdócio definitivo e absoluto do novo pacto. O elemento novo é a consumação desse sacerdócio
na pessoa de Jesus Cristo.
O sacerdócio absoluto e perfeito está prefigurado na figura misteriosa de Melquisedeque (Gn
14). Essa figura ocupou a imaginação da igreja antiga. E, a epístola aos Hebreus estabeleceu um
vínculo profundo entre Melquisedeque e Jesus Cristo, pois o antigo sacerdócio levítico foi superado.
Levi e todo o sacerdócio israelita estão subordinados a Melquisedeque. Este bendiz e recebe o
dízimo. É o sumo sacerdote por excelência. Encontra sua realização em Cristo, que é para sempre; o
verdadeiro Mediador entre Deus e os homens.
A noção de sumo sacerdote não está muito distante da noção do Ebed Yahvé. Para este último,
o caráter voluntário de seu sacrifício é ponto essencial.
Jesus é designado como Sumo Sacerdote. A idéia sacerdotal se associa automaticamente a do
Ebed. A função do sumo sacerdote é oferecer sacrifícios. Mas, Jesus mesmo é a vítima. São de um
só modo, o sacrificador e o sacrificado. Assim, se pode estabelecer uma relação direta entre Isaias
53.12 e Hebreus 9.28, de onde se diz que o Cristo foi sacrificado uma vez para sempre, a fim de

348
Pode-se entender aqui a palavra de Jesus, afirmando que o seu reino não tem nada a ver com a estrutura que execra
a vida, que segrega as pessoas pobres e injustiçadas.
CRISTOLOGIA E SOTERIOLOGIA 69

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“quitar os pecados de muitos homens”. Essa idéia do sacrifício voluntário era estranha ao
judaísmo.349
O elemento novo e valioso que entra na Cristologia graças a concepção judaica do sumo
sacerdote, é a idéia de que o Cristo, ao sacrificar-se, manifestou sua soberania sacerdotal. Jesus
exerce a função mais divina que se conhece em Israel: a de Mediador Sacerdotal. Logo, há um laço
estreito que aparece na Epístola aos Hebreus, entre a idéia do soberano sacrificador e a do Filho de
Deus.
A grande importância desta concepção cristológica é traduzida pela realidade do antigo
sacerdócio judaico, compreendido como supérfluo, pois o sangue de animais não pode mais quitar os
pecados.

A cristologia segundo Hebreus


Jesus, o Sumo Sacerdote, leva a humanidade à sua “perfeição”, fazendo-se ele mesmo
“perfeito”. Restabelece o pacto com Deus. Como o sumo sacerdote é mediador entre Deus e o
homem, o cumprimento do homem perfeito representa a coroação de sua obra. O termo
evoca a idéia de perfeição ou cumprimento.
O centro do qual se alça a figura do sumo sacerdote tem que partir desta significação litúrgica
e sagrada, para se compreender o verbo , sem que seja necessário por ele excluir toda a
idéia de perfeição moral ou chegar a dizer que este termo é “neutro desde o ponto de vista ético.”
Porque se diz que Jesus Cristo foi feito perfeito pelo Pai (Hb 2.10; 5.9; 7.28). Por outro lado, leva o
sumo sacerdote seus irmãos à perfeição (Hb 2.10ss; 10.14).
Para reconduzir os homens à perfeição deve o mesmo sumo sacerdote recorrer às diferentes
etapas da vida humana. É justo e natural, antes de tudo, pensar na fase final desta vida, na Paixão
considerada como seu “cumprimento”. Assim, Jesus é o único que mostra ao mundo o que é ser
homem sem pecado: “tentado como todos nós, em todas as coisas, mas sem pecado” (Hb 4.15).
A impecabilidade de Jesus já havia sido afirmada antes da epístola aos Hebreus, como por
exemplo, nos seguintes textos: 2 Co 5.21; 1Pe 1.19; 2.22; 3.18; Jo 7.18; 8.46; 14.30. Os sinóticos 350
também compartilham dessa idéia e atribuem a Jesus o poder de perdoar pecados.
Para o autor de Hebreus o ato de Jesus poder ser tentado, não atenta contra a sua
impecabilidade. O Sumo Sacerdote não só penetrou cabalmente na humanidade, mas também
participou em tudo o que é humano.351 Participou de nossas tentações. Por ser tentado sua
impecabilidade alcançou toda a sua significação.
Por que Jesus não sucumbiu diante da tentação? Por causa da ausência de pecado (Hb 4.15).
Por isso, podemos chegar confiadamente diante do seu trono de graça (Hb 4.16). Nesta passagem
aparece a idéia da vítima sem mancha (como em 1Pe 1.19) ou do Ebed Yahvé (como em 1 Pe 2.22).
O termo grego é = sem pecado. A declaração de Hebreus 4.15 é raramente
apreciada em sua força, em seu imenso alcance. O autor pensa somente no relato da tentação narrada
pelos sinóticos, por tratar-se de uma tentação especificamente messiânica, a qual só Jesus podia
passar. Trata-se de uma tentação geral, devida à nossa debilidade humana a quê somos expostos
todos pelo fato de sermos homens.
O Novo Testamento mostra o caráter absoluto da humanidade de Jesus. A plena participação
do Sumo Sacerdote na humanidade é afirmada em Hebreus 2.17ss. Em Hebreus 5 trata-se da

349
É possível que a idéia de um sacrifício sacerdotal voluntário para a expiação dos pecados de outros tenha surgido
no seio do judaísmo. O sacerdote Eleazar considerou sua morte um sacrifício expiatório por seus compatriotas (4 Mac.
6.29).
350
Os Sinóticos são os evangelhos: Mateus, Marcos e Lucas. Quer dizer: visto pela mesma ótica.
351
Apologia contra o Gnosticismo e o Docetismo, que serão analisados posteriormente.
CRISTOLOGIA E SOTERIOLOGIA 70

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debilidade de Jesus, e que aprendeu a obediência pelas coisas que sofreu. Observam-se as palavras:
clamor e lágrimas.
Não pode haver traços do docetismo: 352 Jesus é verdadeiro homem, e não um Deus disfarçado
de homem. Ele, em sua angústia mortal, gritou e chorou. Assim se observa a sua plena humanidade.
Jesus foi obediente para levar à conclusão a sua missão de Ebed Yahvé. Obediente até à morte.
Para a Epístola aos Hebreus, o essencial não é tanto a maneira em que Jesus foi feito como a
maneira em que foi homem. Nisto reside a sua função sacerdotal. Enfatiza as qualidades e os
atributos humanos de Jesus. Ensina que, graças a sua “humanidade” santifica a nossa “humanidade”,
tornando-a perfeita. Jesus não só realizou o antigo sacerdócio judaico, mas também eliminou todas
as imperfeições.
A obra de Jesus foi um ato definitivo e decisivo que, precisamente por ser único, traz aos
homens a salvação (Hb 9.12; 10.10). O acontecimento único, histórico e irrepetível, possui um valor
redentor decisivo e infinito. Todo o culto 353 é centrado neste acontecimento histórico. 354
Jesus é o chefe de uma nova humanidade; é o autor da salvação. Mas essa nova humanidade
não pode imitar a Cristo, pois Ele é sem pecado e nós pecadores. A relação se encontra na fé no que
Ele realizou uma vez por todas ().

Quem é Jesus Cristo segundo Hebreus?


1. Ele é o Precursor nas relações entre o Sumo Sacerdote e os crentes;
2. Ele é o autor da salvação dos homens;
3. Ele é o Primogênito dos mortos. A sua ressurreição e a nossa são análogas;
4. Ele é o Sacerdote segundo a ordem de Melquisedeque. O mesmo sentido que sacerdote
eterno. É um sacerdócio imutável. É um sacerdócio que Cristo exerce para sempre, desde a
sua ressurreição. O seu sacrifício repousa inteiramente no passado. Em que consiste o
ministério sacerdotal que Jesus Cristo realiza por nós? Ele é o nosso intercessor. Qual é a
ação de Cristo no presente? Ele intercede por nós. A intercessão de Cristo em virtude de
sua obra realizada uma vez por todas e sempre eficaz, é uma ação autenticamente
sacerdotal (Hb 13.8). Sua encarnação não foi, pois, necessariamente, tão somente para
realizar o seu sacrifício único e perfeito, senão também para poder interceder hoje em
nosso favor;
5. A epístola aos Hebreus apresenta uma linha que parte do sacerdócio de Cristo, e conduz ao
aspecto de sua obra escatológica. Em Hb 9.28 encontramos uma passagem que faz alusão
a isto. A expressão grega é  que caracteriza a sua obra escatológica. A
expressão caracteriza a sua obra presente. E  a sua obra
terrestre;
6. Hebreus é a única literatura do Novo Testamento que nos oferece uma cristologia
completa de Jesus como o Sumo Sacerdote.

Hebreus engloba os três aspectos fundamentais da ação de Jesus

352
O docetismo foi uma seita que surgiu dentre o gnosticismo. Essa palavra vem do grego dokéo, que significa
parecer. A referência primária é ao suposto corpo utilizado pelo AEON (poder angelical), ou segundo os gnósticos,
pelo LOGOS. Esse corpo é definido como uma sombra ou um fantasma, uma representação teatral, mas não um
verdadeiro corpo humano. Negava a humanidade de Jesus Cristo. A matéria era o próprio pecado, e nenhum ser
elevado, divino se envolveria com a matéria. Cristo parecia estar envolvido na matéria, mas não estava.
353
A missa católico-romana é configurada como sacrifício, em que o sacrifício de Jesus se repete. Esse modo de
refletir dentro da Cristologia, vai de encontro ao ensino protestante, em este que entende ter sido feito uma só vez, o
sacrifício de Cristo pela humanidade, segundo a Epístola aos Hebreus.
354
A relação entre a crucificação e a celebração da Eucaristia é feita “em memória de Mim”. Há a recordação do ato
realizado, em virtude do qual disse Jesus: “Eu estarei no meio de vós como o Senhor ressuscitado”.
CRISTOLOGIA E SOTERIOLOGIA 71

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1. A obra terrestre e única;


2. A obra presente do Cristo glorificado;
3. A obra do Cristo que voltará (Hb 13.8).

A epístola aos Hebreus deve ser lida juntamente com o Evangelho de João, pois ambos têm
traços do sacerdócio de Jesus Cristo. Em Jo 18.15 consta que o Discípulo Amado era conhecido do
sumo sacerdote. Em Jo 17 encontra-se a oração sacerdotal de Jesus.
Mas, é fundamental observar que, a idéia do Cristo-Sacerdote não é exclusiva da epístola aos
Hebreus, como se pode pensar, senão que está na base das afirmações cristológicas de outras
passagens do Novo Testamento, respectivamente.
Chega-se aqui ao término da primeira parte da Cristologia, conforme a linha cristológica de
Oscar Cullmann, referente aos títulos da obra terrena de Jesus. 355

4.8. Os títulos cristológicos relativos à obra futura de Jesus

4.8.1. JESUS O MESSIAS 356 ()


Este capítulo trata de um título cuja origem faz parte da esperança escatológica do judaísmo.
O termo messiânico é quase sinônimo de escatológico, e para o cristianismo primitivo tem uma
concepção que implica uma tensão entre o presente e o porvir.
Havia no seio do judaísmo a noção relativa ao fim dos tempos com uma tendência de vincular-
se ao título de Messias, mas com tendência de não existir uma concepção única e firme a seu
respeito.
Sem dúvida, a esperança de todos se firmava num Redentor, que apresentava sempre traços
nacionais judaicos. Assim, na época do Novo Testamento, certo tipo de Messias se fez
predominante: aquele que se pode chamar de o messias político, ou simplesmente o Messias judaico.
A palavra “Messias” não é um termo técnico para designar uma só concepção. Certas
concepções sobre o Redentor se formaram deliberadamente por oposição ao tipo de Messias
predominante, mas se classificavam debaixo do mesmo denominador, de “Messias”. Os primeiros
cristãos passaram a adotar o título de “Messias” para designar a Jesus.
Messias para os cristãos era o título cristológico por excelência, porque a palavra grega
 (derivada de , ungir) não é outra coisa senão a tradução da palavra hebraica
maschiach, o Ungido. Desde muito tempo os cristãos adquiriram o hábito de associar o título de
“Cristo” ao nome de Jesus. JESUS CRISTO SIGNIFICA JESUS-MESSIAS. 357
É necessário que alguns traços tirados da imagem predominante do Messias judaico e
aplicados a Jesus, fossem para os primeiros cristãos muito importantes para uma teologia particular.
Este título associado ao nome de Jesus parecia ser irônico, como também o fato de ter
concedido um nome à nova fé: em Antioquia foram os discípulos pela primeira vez chamados de
cristãos ou messiânicos (At 11.26).358

A) O Messias no judaísmo

355
CULLMANN, O. Cristologia del Nuevo Testamento. Páginas: 26-129.
356
CULLMANN, O. Cristologia del Nuevo Testamento. Buenos Aires, Argentina: Methopress Editorial y Gráfica.
Páginas: 133-160.
357
Cf. VAN GRONIGEN, G. Revelação Messiânica no Velho Testamento. São Paulo, Luz Para o Caminho, 1995.
942p. Uma obra completa em português, que aborda o pensamento dos maiores eruditos no assunto.
358
Isto é partidários ou sectários de Cristo. Ao criarem esta alcunha, os gentios de Antioquia tomaram o título de
Cristo por um nome próprio (Bíblia de Jerusalém. Nota referente ao texto bíblico).
CRISTOLOGIA E SOTERIOLOGIA 72

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O particípio mâschiah significa o “Ungido”; emprega-se neste sentido em particular para


designar o rei de Israel a quem se chama o “Ungido de Yahvé” - alusão ao rito da unção real (1 Sm
9.16; 24.7). Este título não é reservado somente ao rei, mas a todo homem de Deus encarregado de
uma missão especial. Em Êx 28.41 o sacerdote é chamado de o Ungido; em 1 Rs 19.16, Elias deve
ser ungido como profeta. Até mesmo um rei estrangeiro e pagão podia receber este título quando o
Senhor o encarregava de uma missão particular, dentro do plano divino da salvação. Por exemplo,
Ciro é chamado de “Messias”, ungido.
O rei é de caráter divino, é um enviado especial de Deus. Ele é o ungido do Senhor. Em 2 Sm
7.14, por exemplo, se chama “filho de Deus”. Na base destes apelativos se acha a idéia de ser Yahvé
o verdadeiro rei de Israel, e o rei terreno exerce uma função divina. Em 2 Sm 7.12ss, Deus havia
prometido a Davi que seu reinado duraria eternamente.
Isto não quer dizer que este Ungido apareça fora do marco terrenal. Pensa-se em uma realeza
terrena para trazer uma salvação futura (Sl 89.3ss). Trata-se de uma esperança escatológica que deve
realizar-se eternamente na esfera terrena (Jr 30.8ss; Sl 2 e 72).
Um rei político e não celestial. A esperança da vinda dos fins dos tempos de um rei da casa
de Davi haveria de cobrar suas formas mais vivas quando debaixo da dominação grega, o
nacionalismo judaico teria o seu desenvolvimento máximo. Esperava-se um rei totalmente terreno,
político e não um ser celestial que apareceria sobre a terra de forma milagrosa. O Messias seria um
soberano bélico cuja preocupação primeira teria de ter a vitória sobre todos os inimigos de Israel. O
rei futuro da casa de Davi é chamado de , que reine sobre Israel e que purifique a Jerusalém
dos pagãos, aniquilando todos os ímpios e tiranos. Estas eram as esperanças que corriam nos tempos
de Jesus entre os fariseus e seu meio.
Junto a esta esperança messiânica clássica, se encontrava a idéia de que o rei não realizaria o
reino definitivo - que o próprio Yahvé há de estabelecer - senão um de caráter provisório. Destarte,
converte-se o rei messiânico no precursor de Deus. Deus é quem vai reinar para sempre.
Correntes do pensamento judaico da época intermediária. No Apocalipse de Esdras, o
caráter político do rei messiânico aparece à plena luz. O Messias-Rei elimina os pecadores e dispensa
sua misericórdia aos bons, e estes esperam o fim dos tempos. No Apocalipse de Baruque, o rei
aniquila os inimigos de Israel e estabelece sobre a terra um estado de perfeição: a natureza é mais
fecunda, os animais perdem sua maldade, os eleitos gozam de larga vida e de saúde perfeita. No
Manuscrito de Damasco e nos textos de Qumran, o Messias saído de Arão e Israel tem traços
visíveis do Sumo Sacerdote. Pode-se encontrar a mesma associação no Testamento dos Doze
Patriarcas.

B) Jesus e o Messias
Jesus se considerou a si mesmo como o Messias?
Há de se examinar três textos dos sinóticos. Mc 14.61ss; 15.2ss; 8.27ss. Em Mc 14.61ss.
Trata-se do processo de Jesus. Caifás pergunta a Jesus: “És tu o Messias, o filho do Deus bendito?”
O Sumo Sacerdote necessita de uma resposta pronunciada por Jesus mesmo, para poder dar
substância à acusação preparada contra ele, e denunciar aos romanos como agitador político. Talvez
quisesse estabelecer um governo independente, assim o Sacerdote teria um motivo de acusação.
Qualquer resposta que Jesus desse o comprometeria.
Qual seria a sua resposta? Jesus havia respondido de uma maneira clara e sem equívocos pela
afirmativa. Mas, essa explicação não é tão segura quanto se pensa, se examinarmos os sinóticos
paralelos, bem como se nos referirmos ao original aramaico, cuja existência devemos supor, pelo
menos segundo Mateus.
Segundo o texto grego de Mc, Jesus contestou: Sem dúvida, significa SIM. Os
textos paralelos de Mt e de Lc são diferentes. Em Mt 26.64, lemos: , “tu o disseste”. Esta
CRISTOLOGIA E SOTERIOLOGIA 73

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expressão grega deveria sem dúvida significar SIM. Por outro lado, as palavras aramaicas
correspondentes HATÁ AMARTÁ - supõem que devemos admitir aqui uma correspondência literal
- não têm de nenhum modo o sentido de um SIM perfeitamente claro. O sentido é mais precisamente
este: “És tu quem o dizes, e não eu.”
O sentido das palavras aramaicas não é duvidoso, não significam SIM. Portanto, como se tem
observado, a frase agregada a estas palavras evoca uma idéia que não corresponde à imagem
corrente e oficial de Messias.
A conjunção tem um sentido de um “MAS” acentuado, é dizer, que se opõe a uma
afirmação rechaçando a outra afirmação. Pressupõe, pois, uma resposta prévia negativa. Jesus havia
assim dito: “Eu não respondo a esta pergunta, porque digo outra coisa”. E esta “outra coisa” que
segue não concerne ao Messias tal quais os judeus esperavam, senão ao Filho do Homem, com quem
Jesus se identifica.
O Filho do Homem é um ser celestial; não é um rei terreno que deva dominar sobre o mundo
depois de haver vencido seus inimigos, os inimigos de Israel. Esse título tem uma relação direta com
o de Messias, mas contrastando com a idéia judaica que envolve o sentido político.
Jesus corrige conscientemente a pergunta do Sumo Sacerdote, trocando o título de Messias
pelo do Filho do Homem. Jesus sabia que as idéias messiânicas judaicas eram essencialmente
políticas. Por isso, evita que sua missão tenha outro sentido diferente do original. 359 O rechaço ao
título de Messias significa que, de nenhuma maneira Jesus pudesse renunciar a sua pretensão
soteriológica.
O Império Romano entendia que o título Messias estava ligado ao de Rei dos Judeus. O
governador, portanto, assim associava o Messias ao Rei dos Judeus. Jesus afirma categoricamente,
que o seu reino não é deste mundo, no diálogo com Pilatos (Jo 18.33ss).
A Confissão de Pedro. Pedro disse: “Tu és o Messias” (Mc 8.29). Jesus aceita que Pedro
proclamasse o seu messiado, mas que não o proclamasse a ninguém. Destarte, começou a ensinar
que o Filho do Homem sofreria muito, que seria rechaçado pelos anciãos e pelos principais
sacerdotes e pelos escribas; que fosse morto e depois de três dias ressuscitaria.
Mas, mesmo diante da certeza de que Jesus fosse o Messias, Pedro foi usado para desviar a
direção da missão de Jesus pelo diabo, que desde o batismo tentava fazer que Cristo tomasse outra
direção, assumindo o caminho político. É importante observar que, desde o seu batismo Jesus foi
tentado a se desviar da sua missão, mas Ele tem a firme convicção de que realizaria a vontade do Pai;
teria de cumprir a sua missão e encarar o sofrimento, culminando com a morte. O seu
estabelecimento não seria através de uma dominação política, mas a salvação das pessoas.
É interessante que os sinóticos descrevem a tentação de Jesus, porque desde o seu batismo, o
diabo tentou a Jesus, para que Ele desistisse. A oferta que o diabo faz a Jesus de dar a ele o domínio
sobre todos os reinos da terra, corresponde exatamente ao que o judaísmo oficial esperava do
Messias. Destarte, não podemos ser tentados senão por aquilo que nos atrai secretamente. Jesus
combateu a tentação desde o seu batismo. Jesus conhecia o pensamento de seus discípulos, que
também queriam que Ele assumisse a função de Messias glorioso. Um exemplo é o dos filhos de
Zebedeu. É o pecado de Judas, que é o de todos os discípulos (está personificado neles).
Jesus via por trás da concepção judaica acerca do Messias a obra de Satanás. Por isso,
desenvolve-se o segredo messiânico, a proibição feita por Jesus aos discípulos, para que não
dissessem ser ele o Messias. O sentido é que não deveria haver uma interpretação deturpada da sua
missão, a ponto de ser confundida com a do Messias político. Em João 6.15 diz que o povo queria
fazê-lo rei, mas Jesus havendo reconhecido a sua intenção, retirou-se do meio deles. Assim, Jesus vai
resgatar o verdadeiro sentido de ser Filho de Davi, e que realizaria a verdadeira missão de Israel.

359
As tentações que sobrevieram à vida de Jesus, tiveram a intenção de afastá-lo de sua missão. Assim também é em
relação à vida da Igreja, que ao ser tentada pelos poderes deste mundo, tentam tirá-la do centro de sua missão.
CRISTOLOGIA E SOTERIOLOGIA 74

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C) A Comunidade Primitiva e o Messias


A fórmula “Jesus é o Messias” (Cristo) se converteu em profissão de fé na comunidade. No
evangelho de Marcos o qualificativo de Messias-Cristo atribuído a Jesus é considerado raro, mas em
Mateus e Lucas, bem como nos Atos, vai se tornar mais freqüente.
O título “Cristo” chega a ser considerado nome próprio quando o conceito judaico de Messias
está em regressão. Vai ganhar evolução no terreno das comunidades helênicas, de onde não existia
interesse messiânico no sentido original segundo o judaísmo. O título se transforma em nome
próprio, para que a Igreja pudesse falar aos judeus acerca da salvação.
Ao povo eleito deveria impor-se a idéia que o messiado se havia cumprido em Jesus: não
segundo o esquema político, mas segundo o esquema da história da salvação. O reino de Jesus é o
reino do próprio Deus.

4.8.2. JESUS, O FILHO DO HOMEM 360 (barnascha, )


Os títulos de Ebed Yahvé e do Filho do Homem são os mais importantes dentre os que já
foram estudados. Eles são aplicados à Cristologia, e remontam a Jesus mesmo. Nos sistemas oficiais
da dogmática e especialmente nas discussões dos séculos IV e V, a idéia do Logos ocupou um lugar
importante, de tal maneira que as demais concepções cristológicas foram colocadas em segundo
plano.361
Assim, não se possui uma verdadeira Cristologia do Filho do Homem. A noção de Filho do
Homem é mais ampla que qualquer outra, pois descreve toda a obra de Jesus.

A) O Filho do Homem no judaísmo


Jesus evoca uma determinada concepção difundida em certos grupos dentre o povo.
CULLMANN se limita mais profundamente dentro do judaísmo sobre o Filho do Homem, pois não
cabe uma influência pagã diretamente na Igreja Primitiva. O contato dessa figura fora do judaísmo é
de um homem celeste, e se propagou no seio de Israel, de sorte que a relação entre Jesus Filho do
Homem, e do Filho do homem pagão passa pelo judaísmo.
O que significa a expressão do ponto de vista apenas filológico? A
expressão em grego corresponde ao aramaico BAR NASCHÁ. BAR, como se sabe, é o equivalente
aramaico do hebraico BEN = filho. Encontra-se em diversos nomes próprios como, por exemplo:
Barnabas, Barsabas, Bartolomeu, etc. NASCHÁ deriva-se da mesma raiz do hebraico ISHI, que
significa homem.
BARNASCHÁ é, portanto, aquele que pertence à espécie humana, e significa simplesmente
“homem”. Deve ser traduzido em grego simplesmente por . Mas o problema não se
resolve em apenas se conhecer e analisar o termo filologicamente. Falta saber em que sentido Jesus
pode qualificar-se como “homem”, segundo o uso lingüístico judaico de seu tempo.
Na literatura judaica posterior indica que este termo geral “homem” serviu na época de
Jesus para designar um Salvador escatológico. É o título que ostentaria um mediador especial a
aparecer no fim dos tempos. É sempre interessante não perder de vista a idéia da substituição
progressiva do judaísmo.362 O substituto é o representante, e pode ser identificado com a

360
CULLMANN, O. Cristologia del Nuevo Testamento. Buenos Aires, Argentina: Methopress Editorial y Gráfica,
1965. Páginas 161-224.
361
Entendemos que CULLMANN quer se referir à influência do helenismo nas concepções cristãs posteriores acerca
de Jesus, daí o esquecimento dos títulos mais importantes que trazem um aprofundamento em seu bojo, para uma
cristologia mais aproximada.
362
CULLMANN, p. 71 e seguintes.
CRISTOLOGIA E SOTERIOLOGIA 75

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coletividade que representa. O Filho do Homem anunciado por Daniel (7.13) foi posteriormente
considerado pelos judeus como uma figura individual.
O termo em questão aparece noutros escritos apocalípticos posteriores. Assim, a literatura
judaica posterior é muito importante para a compreensão do começo do cristianismo. Nessa
literatura, a apocalíptica, não se tem em evidência como em Dn 7.13, uma personalidade que
representa o coletivo, mas uma personagem individual fazendo cair por terra o verdadeiro sentido da
expressão Filho do Homem.
O Livro de Enoque e “O Filho do Homem” - É aquele que é pronunciado pelo ancião de
Dias no começo da criação; aquele que, por conseguinte, tem sido criado antes de todas as demais
criaturas.363 No fim dos tempos virá para julgar o mundo e exercer o domínio, todavia, permanecerá
oculto.
A esperança do “Filho do Homem” parece, por conseguinte, haver sido abrigada especialmente
nos meios esotéricos do judaísmo.
A esperança do “Filho do Homem” confirma que a vida religiosa na Palestina era muita mais
rica e mais diversa sobre o que se pode fazer crer o esquema corrente que somente se limita a
distinguir entre fariseus e saduceus. O Livro de Enoque nos faz conhecer certo meio pelo qual a
esperança tem um caráter distinto daquele do judaísmo oficial. Não se espera um Messias político,
mas um ser celestial e sobrenatural: é um soberano celestial e não um rei deste mundo. O fato de que
seja chamado homem, é dizer que tenha figura humana e não deve se induzir a erro, porque sua
majestade não pode ser excessivamente retirada. Não é um ser celestial preexistente que vive nos
céus desde a origem dos tempos, antes de vir a terra no fim dos tempos? Por que esse mediador se
chama “homem”?
Há uma relação com as concepções judaicas de um “homem” que, em si mesmo, possui uma
dignidade divina particular; com efeito, a história das religiões nos ensina que existem especulações
relativas a um “primeiro homem”, protótipo divino da humanidade.
Isto não quer dizer que o judaísmo tenha simplesmente tomado esta concepção do meio
ambiente como um corpo estranho. Há também no patrimônio judaico e bíblico uma idéia que se
inclina neste sentido, e pode dar um fundamento sólido a esta concepção: a criação do homem à
imagem de Deus. Partindo daí, compreendemos o que seja justamente o “homem” (à medida que
representa a imagem fiel de Deus) e destinado a salvar a humanidade caída.
Destarte as consequências da Imago Dei no judaísmo têm a função de resgatar o homem,
conforme o primeiro homem.
O que importa para a Cristologia é a identificação do homem celestial com Adão. Está
vinculada à concepção escatológica do retorno final da idade dourada, que o primeiro homem há de
voltar no final dos tempos para salvar a humanidade.
A concepção dos apocalipses é que não aceitam uma verdadeira encarnação, pois o Filho do
Homem surge do mar, ou vem sobre as nuvens do Céu; não se encarna na humanidade pecadora,
embora segundo IV Esdras assuma atributos de Yahvé, mas em nenhuma parte se reveste de servo
sofredor.
A idéia primitiva de uma identidade entre o homem celestial e o primeiro homem buscava
constantemente penetrar no judaísmo; mas não podia conseguí-lo, porque segundo o Antigo
Testamento, Adão pecou. De acordo com o relato bíblico, o primeiro Adão foi quem despojou a
humanidade de seu caráter divino, e precisamente a causa de que se fez necessário que o homem
celestial levará os homens ao seu destino verdadeiro.
O ato de que Jesus seja chamado “segundo Adão” e não Adão simplesmente mostra já porque
era necessário distinguir entre Adão e Filho do Homem. O homem celestial é o homem tal qual Deus
o quis quando o criou a sua imagem. Por outro lado, o relato da criação está ligado à caída do
363
Enoque 48.2, 6. O Filho do Homem de Enoque não é unicamente um anjo.
CRISTOLOGIA E SOTERIOLOGIA 76

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primeiro homem, assim é impossível aos judeus introduzir pura e simplesmente em sua teologia o
homem celestial identificado com Adão. No Livro de Enoque a queda de Adão passa em silêncio.
Ensina que o diabo tentou somente a Eva e não a Adão, assim tem uma tendência para tirar a culpa
do homem. As conseqüências do pecado se descrevem a partir das relações culpáveis de anjos com
as filhas dos homens: daí vem todo o mal, toda a violência, todo o pecado e em particular toda a
idolatria.364 Um fato curioso é que o Livro de Enoque é o que mais utiliza a expressão “Filho do
Homem”.
O passo decisivo foi dado pelos judeus-cristãos-gnósticos, cujas especulações nos têm
conservado os escritos pseudo-clementinos.365 O Filho do Homem e Adão são um só e o mesmo
ser. O verdadeiro profeta se encarnou em diversas ocasiões, a primeira delas foi em Adão. Mas,
como fazer essa identificação se Adão pecou? O Livro de Enoque afirma que Adão é o princípio do
bem e Eva o princípio do mal, porque se cala sobre o pecado do homem. Já o os escritos pseudo-
clementinos afirmam que é preciso eliminar essas mentiras colocadas na Bíblia pelo Diabo, das quais,
uma das mais graves é o relato da queda de Adão, o primeiro homem. Uma vez desmascarada esta
mentira, se pode sem dificuldade, identificar Adão com Jesus, o verdadeiro Profeta.
Os judeus-cristãos afirmam que Adão foi ungido com o azeite da árvore da vida. Ele é o
sacerdote eterno que se reencarna em Jesus. Ele é o homem perfeito, o protótipo da humanidade.
A concepção grega do tempo cíclico abandonou a idéia bíblica de um tempo que se desenvolve
de maneira contínua. Segundo a doutrina bíblica, Adão se rebelou contra a vocação que havia sido
assinada por Deus; e a idade de ouro, em que concerne ao homem, existiu no começo, na intenção
de Deus; mas não foi realizada.
O método alegórico de Filon, judeu de Alexandria. Grande filósofo que resolveu o
problema levantado pela aparição da idéia do Filho do Homem no judaísmo. Em Filon encontramos
uma solução menos rigorosa e radical do problema. Ele aceita a identificação do homem celestial e
do primeiro homem; pelo que busca a uma vez afirmar esta identidade e conservar o relato bíblico da
queda.
As soluções radicais como as dos pseudo-clementinos não eram de seu agrado: não se
esforçou durante toda a sua existência, para conciliar com o AT sua filosofia de inspiração
puramente grega. Filon não procurou tirar da Bíblia as passagens que apresentam dificuldades.
Quando essas passagens o molestavam, bastava dar-lhes uma interpretação alegórica, um sentido que
se harmonizasse com suas convicções filosóficas. E conseguiu desta maneira conservar os relatos
bíblicos e torná-los inofensivos por uma espécie de “demitologização”.
Graças a este método exegético, Filon realizou a proeza de afirmar a identidade do homem
celestial e do homem primeiro, e acertar o relato da queda de Adão. Há a distinção da seguinte
maneira: o Gênesis conhecia dois personagens diferentes, que levam o mesmo nome de Adão. Em
Gênesis 1.27 e 2.7. O primeiro é celestial; o segundo é homem pecador. Duas fontes, dois homens,
um que obedece e outro que desobedece. É provável que o apóstolo Paulo tenha conhecido esse
método de Filon. No fundo tem um caráter grego; é dualista.
Filon não conhecia o conceito de encarnação, nem um retorno escatológico deste homem; para
ele não pode haver novas revelações divinas no tempo; por conseguinte, não poderia haver
desenvolvimento da revelação, e a salvação não poderia inscrever-se na história.

B) Jesus e a idéia do Filho do Homem

364
Segundo essa interpretação o mal, por conseguinte não tem sua fonte na queda do primeiro homem (CULLMANN,
pág. 171).
365
Já foram vistos alguns pontos da obra Kerigmata Petrou, que tem a Jesus por verdadeiro Profeta. Esse Livro
identifica o verdadeiro profeta com Adão.
CRISTOLOGIA E SOTERIOLOGIA 77

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Jesus se qualificou a si mesmo como Filho do Homem? Em que sentido? É uma das perguntas
tratadas mais freqüentemente na ciência do Novo Testamento.
Os evangelistas que escreveram em grego, geralmente fizeram a distinção terminológica entre
“Filho do homem”, Jesus e o “homem” em geral, já que traduziram a mesma palavra aramaica
BARNASCHÁ por  quando se trata dos homens, e por  quando se
trata de Jesus.
Jesus, talvez tenha abordado a expressão “Filho do homem” com um duplo sentido; o qual é
bem possível, já que no Livro de Daniel o termo tem uma significação coletiva e já que, em virtude
de sua própria origem, supõe a idéia de que a humanidade perfeita seria personificada no primeiro
Adão.
São numerosas as palavras sinóticas em que Jesus aparece designando-se como o “Filho do
homem” que chegam a mencioná-las todas. Mas, é preciso observar que, no cristianismo primitivo a
designação de Jesus como “Filho do Homem” não era de modo algum corrente, e sim o conceito do
Ebed Yahvé.
Há que distinguir duas categorias de palavras de Jesus: aquelas em que se atribuem o título de
“Filho do Homem” pensando em sua obra escatológica a ser realizada no porvir; e aquelas em que o
fazem pensando em sua missão terrena. Mas, se destaca o fato de que é um título de majestade.
Ao Filho do Homem que há de vir se referem às palavras sobre os “dias do Filho do Homem”
(Lc 17.22ss) e sobre o “advento do Filho do homem” (Mt 24.27 e 37ss), sobre sua vinda “na glória
de seu Pai com os santos anjos” (Mc 8.38).
A função do Filho do homem é o juízo (Mt 25.31-46).
Textos do Novo Testamento que mostram Jesus como o Juiz, o Filho do homem: 1 Ts 3.13;
Rm 3.5; 14.10; 2 Co 5.10; 1 Co 4.5; Mt 25.1-13 e 14-30; At 10.42; 2 Tm 4.8; At 17.31; 7.56. Essa
função de Juiz que se atribui a Jesus adquire particular importância no Evangelho de João, de onde
ostenta, por outra parte, a marca da concepção joanina do juízo, porém não se perde o vínculo com
a escatologia.
O marco escatológico - Havendo Jesus aparecido como um homem entre os homens e, nessa
condição, assumido o papel do Ebed Yahvé é a uma vez, o Filho do Homem que há de julgar o
mundo; a idéia do juízo recebe aí um caráter novo e profundamente diferente, enquanto se conserve
o marco escatológico. A relação entre o “Homem futuro” e o “Homem” encarnado é estreita neste
ponto, quanto possível.
Seria um erro afirmar que o ensino de Jesus concorde inteiramente com as concepções
judaicas. Muito ao contrário, sua convicção de ter inaugurado com sua pessoa o Reino de Deus,
devia necessariamente acarretar conseqüências para esta auto-aplicação da idéia de Filho do homem.
Jesus, durante a sua encarnação terrena pode designar-se como “Filho do Homem”, pois foi
descido do céu; idéia nova da encarnação do Filho do homem no seio da humanidade; um homem
entre os homens.
Jesus não especula sobre sua preexistência; nem insinua falar de sua encarnação, nem situa
paralelamente a parousia como se haveria de fazer mais tarde.
Quando Jesus aplica o título “Filho do Homem”. Aplica à sua missão terrena, expressando,
pois, sua humilhação. Em certos momentos decisivos, relaciona estreitamente o título de “Filho do
Homem” aos sofrimentos do Ebed Yahvé. A passagem clássica da Escritura é lembrada: “O Filho do
Homem não veio para ser servido, mas para servir e dar sua vida em resgate por muitos” (Mc
10.45). “É mister que o Filho do Homem, padeça muito e seja desprezado pelos anciãos, pelos
principais sacerdotes e pelos escribas e seja morto” (Mc 8.31). Nesta predição emprega o título de
“Filho do Homem” e o associa à idéia do Servo sofredor de Deus. Desta forma, Jesus tem
consciência de si mesmo e da sua missão.
CRISTOLOGIA E SOTERIOLOGIA 78

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C) Foi a cristologia do Filho do Homem representada por um meio particular no seio do


Cristianismo Primitivo?
Quais eram, pois, no cristianismo primitivo aqueles círculos que viam o título “Filho do
homem”, tão importante para Jesus, a solução do problema cristológico?
É preciso que se tenha conhecimento de duas tradições da época de Jesus, que muito
influenciaram o pensamento da época, em relação a cristologia.

AS TRADIÇÕES CRISTOLÓGICAS

TRADIÇÃO  GALILÉIA:
CRISTOLÓGICA DA

 A CRISTOLOGIA DO FILHO DO HOMEM E DO KYRIOS

TRADIÇÃO
CRISTOLÓGICA DE  JERUSALÉM:

 A CRISTOLOGIA DO MESSIAS (UMA VISÃO ESTRITAMENTE POLÍTICA)

Tinham uma origem geográfica distinta.

 A da Galiléia: a cristologia do Filho do Homem (e do Kyrios);


 A de Jerusalém: a cristologia do Messias.

Não encontramos na tradição cristã primitiva mais que uma só divergência, de onde surge uma
oposição geográfica, Galiéia-Jerusalém; a saber: nas aparições do Ressuscitado.
Há a presença de um sincretismo oriental helênico, que não existe somente fora da Palestina.
Há uma relação dos helenistas com a Cristologia do Filho do homem, a ponto de influenciar na
literatura neotestamentária, como por exemplo, o Evangelho de João.
No judaísmo, a esperança do Filho do Homem já era conservada, em certos meios esotéricos,
quase como uma doutrina secreta. Jesus deve ter entrado de uma maneira ou de outra em contato
com esses meios. Não será provável que durante a sua vida alguns de seus discípulos haviam
provindo de lá?

D) A Noção do “Filho do Homem” segundo o Apóstolo Paulo


Encontramos em Paulo a cristologia mais desenvolvida do cristianismo primitivo. O título
“Filho do homem” não aparece em seus escritos, pois nos é familiar nos evangelhos. A cristologia de
Paulo está banhada profundamente de escatologia, que ele chama o “segundo homem” o “último
Adão” (1 Co 15.45) ou o “Adão que há de vir” (Rm 5.14).
O interesse de Paulo se concentra primordialmente no homem celestial encarnado, no
“segundo Adão”. O elemento novo é que antes de tudo, o Filho do Homem se vê identificado com
um homem histórico, que viveu num momento determinado da história do mundo. Não se trata já do
CRISTOLOGIA E SOTERIOLOGIA 79

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retorno do homem celestial, ensinado por certos judeus-cristãos; nem tampouco do mito gnóstico da
descida à terra de um ser celestial disfarçado de homem.
Três passagens merecem aqui concitar especialmente nossa atenção: 1 Co 15.45ss; Rm 5.12-
21; Fp 2.5-11.

1 Coríntios 15.45
Ensina uma doutrina muito análoga a de Filon. O primeiro homem, Adão, foi feito alma
vivente; o posterior Adão, espírito vivificante. Mais espiritual. O primeiro é terreno; o segundo
homem é do céu. É provável que Paulo tenha conhecido a literatura rabínica, e por isso, tenha tido
um contato com o ensino de Filon. Mas, há uma diferença entre Paulo e Filon: no v. 46 consta o
acento diferencial, que não é o espiritual (), o primeiro (quer dizer não ser o
“posterior Adão” paulino), senão o animal, quer dizer o primeiro Adão; somente
depois vem o espiritual. É evidente que esta frase carece de sentido, a menos que Paulo pense em
uma doutrina que afirma precisamente o que ele nega.
Não há dois primeiros homens, que haviam sido criados no começo do tempo. Não há mais
que um Adão que foi o primeiro criado; e não há mais que um Adão, que foi infiel a sua missão
divina, transgrediu o mandamento de Deus. Inversamente, o homem celestial ideal, o protótipo
perfeito da humanidade, não pertence à história da criação do homem relatada em Gênesis; não é
senão mais tarde, que apareceu como homem encarnado. 366
Segundo Paulo, o homem celestial Jesus, não é idêntico a Adão, mas ao contrário, vem a
reparar a falta de Adão, quer dizer, a cumprir a missão que o primeiro homem não cumpriu. Paulo
não admite que existam dois primeiros homens, dos quais o primeiro seria o de Gn 1.27 e o segundo
de Gn 2.7.
Paulo expressa com clareza a opinião de haver aparecido o Filho do Homem pela primeira vez
na terra, na pessoa de Jesus, ao cumprir-se o tempo antes do qual na terra somente existia o Adão
pecador. Paulo apresenta o Filho do Homem como, o mediador da criação (1Co 8.6; Cl 1.15).
Romanos 5.12ss:
Nestes versículos, o Apóstolo insiste sobre toda a obra expiatória realizada pelo homem Jesus.
As noções de Filho do Homem e de Ebed Yahvé estão, pois, estreitamente vinculadas. Isto se
reveste de grande importância, porque se remonta a Jesus mesmo.

Filipenses 2.5-11
Este texto reúne três noções fundamentais: a do Filho do Homem, a do Servo de Deus e a do
Kyrios. Uns estudiosos afirmam que Paulo utilizou um hino muito antigo, um salmo aramaico-
cristão. Mas, outros afirmam que Paulo tomou esse hino do gnosticismo, adaptando-o à cristologia.
Outros, ainda afirmam que se trata de um salmo pré-paulino, cuja origem está na Síria.
Não obstante a tantas indagações, o que é mais importante é saber que a interpretação
cristológica de Paulo conflui assim com a própria consciência que tinha de Jesus mesmo.

E) O Filho do Homem em outros escritos do Novo Testamento


Nos outros escritos do Novo Testamento a palavra Filho do homem não ocorre menos que 69
vezes.
No Evangelho de João se emprega somente 12 vezes.
Nos Evangelhos Sinóticos só se recorre apenas para falar de Jesus.

366
Certamente Paulo crê também na preexistência do homem celestial. Como se pode compreender isso? O Novo
Testamento responde a esta pergunta partindo não da idéia do Filho do homem, mas do Logos, a que está vinculada: o
Evangelho de João nos diz em efeito, que o Logos estava com Deus.
CRISTOLOGIA E SOTERIOLOGIA 80

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A cristologia que esses escritos apresentam é a do Messias. Os Sinóticos quando traduzem a


palavra tanto do grego quanto do aramaico, quer dizer HOMEM ().
O livro dos Atos busca adeptos de sua cristologia no Filho do homem, segundo Estevão. Mas,
é bom recordar que também Pedro chama Jesus de “Servo de Deus”.
É preciso observar que as idéias contidas no Quarto Evangelho denotam certo parentesco com
o judaísmo esotérico, que teve uma grande participação na cristologia neotestamentária. É uma
influência do judaísmo posterior.
O Cristo joanino quando se qualifica a si mesmo como “Filho do homem”, evoca
indiscutivelmente, o homem celestial pré-existente e divino, que desceu do céu, apareceu sobre a
terra, se fez carne, habitou com a humanidade pecadora, voltou aos céus em glória.
A maneira joanina de unir o Cristo encarnado ao Cristo glorificado é muito adequada para
expressar o pensamento cristológico fundamental da vinculação do Filho do homem celestial ao
Servo de Deus.

4.9. Os títulos cristológicos relativos à obra presente de Jesus

4.9.1. JESUS O SENHOR367


Senhor  expressa o ato de haver sido o Cristo elevado à destra de Deus, e de interceder
pelos homens em sua condição de glorificado. 368
Uma realidade presente  O crente dirige suas orações a Ele, e a Igreja reconhece a sua
presença no seu culto. A Comunidade inteira, e não somente a fé individual do cristão, faz a
experiência de que Jesus vive e prossegue Sua obra. 369

A) O título de “Kyrios” nas religiões helenistas, orientais e no culto ao Imperador


O título de “Senhor” foi atribuído a Jesus por exclusiva influência do helenismo e em sua
própria esfera.
Não se pode esquecer que no campo do helenismo se empregava o termo KYRIOS
exclusivamente em relação a certas concepções religiosas. Como ocorre com seus equivalentes, em
todos os demais idiomas se utiliza no sentido geral de “dono”, “proprietário”; ou no caso vocativo
(Kyrios), como fórmula de cortesia, que não significa nada mais que nosso “Senhor”, do uso
corrente.
No Novo Testamento é algo inusitado, que só pode ser explicado pela influência do helenismo
em Paulo e Lucas, por exemplo. O recurso do título Kyrios para significar o caráter único do Senhor
divino, não pode, segundo eles, ser de origem palestina: na Palestina Jesus não havia sido chamado
de “Senhor”, senão no sentido profano e banal da expressão.
KYRIOS é sinônimo de “déspota”. Déspota contém a idéia de algo arbitrário,
enquanto que a idéia associada a corresponde a uma autoridade legítima. Somente partindo
de , e não de se pode chegar à idéia de um Senhor divino e único.
O vocábulo  é empregado como sinônimo de “deus” nas religiões helênicas orientais
do Império Romano. Nas religiões da Ásia Menor, do Egito e da Síria os deuses e as deusas como
Serapis, Osires e Isis são nomeados Kyrios e Kyria. Quando no mundo helênico se diz “o kyrios”, se
trata sempre de uma divindade.

367
CULLMANN, O. Cristologia del Nuevo Testamento. Buenos Aires, Argentina: Methopress Editorial y Gráfica.
Páginas: 225-274.
368
Percebe-se com isso, que esse título foi dado a Cristo após a sua ressurreição, porque significa a sua divindade.
369
Toda a base de vida eclesial reside no fato de Jesus ter ressuscitado dentre os mortos, pois, caso não fosse assim, vã
seria a fé da Igreja.
CRISTOLOGIA E SOTERIOLOGIA 81

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O Kyrios no Império Romano exigia um rigoroso reconhecimento de sua soberania: o


imperador. É verdade que este título imperial de Kyrios tenha primitivamente um sentido político e
judaico.
No Oriente, muito tempo antes da época romana, os soberanos eram honrados como deuses.
Os imperadores romanos herdaram esta dignidade divina. Se lhes rendia um culto porque se lhes
atribuía ascendência e natureza divinas. Originalmente, este culto era oferecido aos imperadores
romanos depois de mortos; 370 mas depois se estendeu para incluir o imperador em vida.

B) O “Kyrios” no judaísmo
A palavra grega Kyrios corresponde ao hebraico ADON, e ao aramaico MAR, “O Senhor”.
Os judeus não pronunciavam o nome de Deus: YHWH.
O emprego do termo achava-se limitado ao uso litúrgico, e havia quem perguntasse por que os
judeus tiveram a idéia de ler precisamente ADONAI, em lugar do tetragrama sagrado? O termo
encontrava ressonância aos ouvidos dos judeus de forma particular. Acostumaram-se apenas ao uso
litúrgico.
Antes de se examinar a palavra aramaica MAR, que corresponde ao grego KYRIOS, é
preciso mencionar aqui o judaísmo de língua grega, o da Diáspora. Também na tradução grega dos
LXX encontramos ao lado do uso profano da palavra KYRIOS seu emprego no sentido absoluto, de
onde chega a ser o nome de Deus e serve para traduzir ADONAI e YHVH.
Quanto ao termo MAR, interessa particularmente aos primeiros discípulos, como o próprio
Jesus, falando em aramaico. Esta era a invocação litúrgica da Comunidade: MARANATHA! A
primeira questão é saber se este termo no seu uso geral de amo, proprietário, também de seu
emprego ordinário era usado como fórmula de cortesia ou se era utilizado no sentido absoluto de
Senhor, igual a Deus, como o termo constatado para os casos de ADONAI e KYRIOS.
O termo usado para cortesia era MARI em relação com RABI.
Este vocábulo, que no princípio somente denotava as relações entre Jesus e seus discípulos
durante a sua vida terrena, pôde se chegar a KYRIOS IESOUS, que caracteriza em particular a fé
das comunidades helênicas.

C) “Kyrios Iesous” e o Cristianismo Primitivo


Jesus se autodenominou KYRIOS? E em que sentido?
Este título aplicado a Jesus só recebeu sua plena significação depois de sua morte e
glorificação.
Assim, os primeiros cristãos tiveram a experiência de proclamar que Deus fez a Jesus “Senhor
e Cristo” (Atos 2.36), que graças a sua obediência de EBED, foi “mais que elevado”, e “que Deus
lhe deu este nome de KYRIOS que é sobre todo o nome” (Filipenses 2.9).
Quando este rabbi exige do discípulo o dom de sua pessoa inteira; quando se faz o seu
verdadeiro e se constitui uma autoridade particular no sentido de obediência livre e total,
então esse termo KYRIOS adquire uma significação que sobrepassa em muito a simples forma de
cortesia, e expressa precisamente essa exigência total e absoluta. O uso de KYRIOS, SENHOR,
neste sentido, evoca automaticamente um doulos servidor.
Antes de tudo, como é que depois da morte do Cristo uma comunidade particular pôde ser
constituída? Cristo não podia ser para eles meramente o Filho do Homem que havia de vir. Devia ter
uma significação presente. Assim, no coração da fé cristã está a ressurreição de Jesus; e, quem
ousaria pretender que essa fé tenha nascido unicamente fora da Palestina? Se Jesus ressuscitou

370
Percebe-se uma influência da cultura egípcia em termos religiosos atrelados à política. Os faraós eram
mumificados, porque eram considerados divinos.
CRISTOLOGIA E SOTERIOLOGIA 82

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dentre os mortos, a morte já está vencida, e a passagem do “século presente” para o “século
vindouro” é uma realidade.
Jesus morreu, ressuscitou e voltará. Entre esses acontecimentos há de se desempenhar um
papel: sua obra não pode ser interrompida. A presença do Cristo ressuscitado era “revivida” como
uma realidade. Seu fim era precisamente fazer possível a comunhão com o Ressuscitado que havia
aparecido aos discípulos no dia da Páscoa, para participar de sua Ceia.371
Para a Igreja de Jerusalém, Jesus é o Senhor, que governa de forma invisível o seu povo; que
aparece durante o culto onde dois ou três estão reunidos em seu nome; ao mesmo tempo está à
destra de Deus e governa o mundo.
O apóstolo Paulo deve ter recebido essa fórmula da Igreja de Jerusalém (1 Co 16.22). Repete
da mesma maneira o que aquela igreja fazia.
A forma MARANATHA se encontra num contexto litúrgico. O que significa? Uma coisa é,
antes de tudo, certa: contém o termo aramaico MAR, o significado de “SENHOR”. Temos
constatado aqui, que esta palavra era empregada como forma de cortesia.
Na coleção litúrgica mais antiga, o Didaquê (10.6), terminava a oração eucarística. Ao escutar
esta invocação, pensamos, antes de tudo, em uma oração escatológica; uma oração que implora a
vinda do Senhor no fim dos tempos. Só no fim dos tempos o Senhor voltará a terra (1 Coríntios
11.23ss).
MARANATHA significa: Senhor vem! A Igreja não pedia para apressar o retorno final do
Senhor, mas pedia que ele aparecesse no meio dela, à sua mesa, como havia aparecido no Domingo
de Páscoa para consolá-la e assegurá-la de seu próximo regresso. Eles sabiam por experiência
pessoal que o Senhor podia descer a terra e por isso renovavam essa experiência cada vez que se
reuniam e oravam juntos pela vinda do Ressuscitado. Sabiam que o Senhor haveria de aparecer nesta
terra quando para a consumação de todas as coisas. 372

MARANATHA – Esta antiga oração da Igreja significa:

 SENHOR VEM, NO FIM DOS TEMPOS, PARA ESTABELECER TEU REINO! VEM AGORA,
ENQUANTO ESTAMOS AQUI REUNIDOS PARA A CEIA!

O culto cristão é, efetivamente, o culto  (João 4.23-24).373


A Igreja é vista como o centro da soberania universal de Cristo. 374 Ele é o Senhor da pequena
comunidade que representa o seu corpo na terra, e assim, exercerá sua soberania neste mundo.
Durante cada celebração da Ceia na Comunidade, ela experimentava a soberania de Cristo, o
Senhor.
Na realidade MARANATHA assinala a passagem da fé palestina à fé helenista no Cristo,
Senhor.
Sem dúvida, no terreno do helenismo, o uso pagão do termo KYRIOS, teve seu vínculo com o
culto do soberano, e primordialmente, o que por este termo os LXX tenham traduzido o nome de
Deus, contribuindo e fazendo KYRIOS o título mais corrente para designar a Cristo. Assim, o termo
KYRIOS tem sua origem na vida cúltica da Igreja.

371
Ver os textos Mateus 28.1-10; Marcos 16.1-8; Lucas 24.1-12; João 20.1-10.
372
A Igreja tinha a promessa feita pelo próprio Senhor (Mateus 28.18-20).
373
É importante refletir sobre se o Culto hoje desta natureza: espiritualmente verdadeiro.
374
Da mesma forma, é fundamental também refletir sobre a verdadeira natureza da Igreja de Cristo no presente tempo.
Tem a Igreja se projetado conforme a sua constituição, segundo a Palavra de Deus?
CRISTOLOGIA E SOTERIOLOGIA 83

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É Paulo quem ministra sua base teológica na afirmação da soberania presente de Cristo
(Romanos 10.9; Filipenses 2.9 e 1 Coríntios 12.3). Essas passagens contêm a confissão de fé em
KYRIOS IESOUS. Paulo não inventou essa forma, mas herdou da Igreja da Palestina.
Por que esse nome não pode ser sobrepujado por nenhum outro nome? Porque é o nome de
Deus mesmo, sendo KYRIOS a tradução grega de ADONAI (hebraico).
O termo KYRIOS tem relação com a obra pré-existente de Jesus. Ele é Deus.
A confissão de fé KYRIOS IESOUS adquiriu marcada importância para os cristãos fora da
Palestina durante as perseguições. O Estado Romano não podia entender que os cristãos preferissem
morrer antes que ceder.
No Apocalipse de João, que está cheio de alusões ao culto imperial, Cristo é designado em
forma expressa como , “REI DOS REIS”. Isto significa que o KYRIOS É JESUS, e
não o Imperador (Apocalipse 17.14). 375
O título de “REI” é uma variante do título KYRIOS. A Jesus se chama de “REI
DOS JUDEUS” (Mateus 2.2; 27.11, 29, 37; Marcos 15.2, 9, 12,18, 26; Lucas 23.3, 37, 38; João
18.33, 39; 19.3,14,19ss). Aparece como Rei de Israel (Mateus 27.42; Marcos 15.32; João 1.49;
12.13).
Se estabelecermos uma distinção entre e  podemos dizer que “REI”
acentua mais a soberania de Jesus sobre a sua Igreja na medida em que esta é sucessora de Israel, e
em Jesus Cristo leva a realeza de Israel à sua consumação; enquanto que KYRIOS acentua mais a
soberania de Jesus sobre o universo; sobre a criação inteira, visível e invisível.
Em que consiste exatamente a função indicada pelo título de KYRIOS, que se dá ao Cristo
glorificado?
No que concerne à idéia da “Soberania de Jesus”, há que tomar conta de todas as passagens
que declaram que Jesus “está sentado à destra de Deus” e que “todos os inimigos lhe estão sujeitos”.
Os textos são: Romanos 8.34; 1 Coríntios 15.25; Colossenses 3.1; Efésios 1.20; Hebreus 1.3; 8.1;
10.13; 1 Pedro 3.22; Atos 2.34; 5.31; 7.55; Apocalipse 3.21; Mateus 22.44; 26.64; Marcos 12.36;
14.62; 16.19; Lucas 20.42; 22.69.
Assim como a soberania tem um começo, terá também um fim. Qual será o fim? O Novo
Testamento não o menciona; mas coincidirá com um acontecimento determinado: O RETORNO DE
CRISTO. O senhorio de Cristo começou, pois, com a sua ascensão e terminará com o seu regresso.
No Apocalipse e em 1 Coríntios 15.24, o retorno de Cristo e os acontecimentos que lhe seguem
imediatamente, se apresentam como o fim da soberania de Cristo. Depois da vitória final alcançada
pelo Filho, e este “remeterá o Reino a Deus o pai”, como está escrito em 1 Coríntios 15.24.
O tempo da igreja coincide exatamente com o tempo da realeza de Cristo e o mesmo avance
sobre o século vindouro. A Igreja também tem um começo e um fim. Também, tem um ponto de
partida: a morte e a ressurreição de Cristo. Terá um fim também, por ocasião da parousia.
Cristo reina sobre a criação inteira e também sobre a pequena Igreja na terra. A importância da
Igreja para o senhorio total de Cristo é muito mais, porque desde o ponto de vista espacial ela é o
centro de onde o Cristo exerce sua realeza invisível no mundo. A Igreja é o corpo de Cristo no
mundo.
Segundo o Novo Testamento a resistência cristã contra um Estado nunca pode justificar-se
pelo mero ato de ser pagão o Estado. Uma resistência não é legítima salvo quando o Estado saindo
do seu papel se deifica a si mesmo, isto é, quando intenta franquear os limites que o Senhor
estabelece.
A diferença fundamental entre os membros do senhorio de Cristo, tomados em conjunto, e os
membros da Igreja, reside, pois, em que unicamente os membros da Igreja sabem que estão sujeitos
375
A Igreja, ao chamar Jesus de Senhor, é perseguida pelo Império Romano, pois entendia as autoridades que era um
problema político. Um outro competidor? Os judeus estavam tramando algo contra o Império?
CRISTOLOGIA E SOTERIOLOGIA 84

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ao Senhor Universal. Os membros da igreja pertencem, pois, conscientemente, ao Reino do


KYRIOS, no entanto, os demais são inconscientemente pertencentes.

D) “Kyrios Christos” e a divindade de Cristo


Quando o Antigo Testamento cita a palavra KYRIOS se refere a Deus. A tradução dos LXX
traduz o nome de YAHVE pelo de KYRIOS. Uma verificação sobre o uso do termo em uma
concordância grega mostra que, com freqüência o Novo Testamento aplica o título a Jesus com
passagens em que no Antigo Testamento esta palavra designa a Deus.
É inegável o que o Novo Testamento pressupõe sobre a divindade de Cristo; pois sempre em
relação ao senhorio que exerce desde a sua glorificação, se trata de tal função mais do que seu ser
propriamente especificado.

4.9.2. JESUS O SALVADOR (376


 A fé no Senhor glorificado permitiu conferir a Jesus o título de “SALVADOR”, que no
Antigo Testamento se atribui a Deus.
 “Sóter” foi empregado no Novo Testamento como complemento de Kyrios (Filipenses
3.20; 2 Pedro 1.11; 2.20; 3.2,18).
 As epístolas pastorais, de onde se chama mais freqüentemente a Jesus de SALVADOR, dão
espontaneamente a Jesus o título de Sóter.

A) O título “Soter” no judaísmo e no helenismo


No Antigo Testamento a Deus se chama “Salvador”. As palavras hebraicas YESHA,
MOSHIAH e YESHUAH, provém todas da mesma raiz e são traduzidas por  pelos LXX. Os
Salmos377 e os livros de Isaias378 são os que mais reiteram este título; pelo que aparece também em
outros escritos379 e se pode seguir em toda a literatura do Antigo Testamento e do judaísmo. 380
No helenismo, os deuses são todos heróis, são também chamados “salvadores”, pois libertam o
povo de toda a sorte de males físicos, enfermidades e doenças; salvam de perigos diversos. Desta
forma,   é um dos títulos correntes para designar o soberano deificado. Representa, pois,
para o culto do Imperador uma espécie de variante de Kyrios. O Soberano é SÓTER na medida em
que promove a ordem e a paz. Nos cultos de mistérios  o Sóter se reveste de outros aspectos. A
divindade salva do poder da morte e da matéria; confere a imortalidade.

B) Jesus o Salvador no Cristianismo Primitivo


Os primeiros textos cristãos que chamam a Jesus de Sóter, por tardios que sejam, não denotam
influência alguma de concepção helenista de sóter. Bultmann admite que haja uma influência bíblica e
outra helenista.381 Quase todas as passagens em que Jesus é chamado de “Salvador”, contém
exclusivamente temas cristãos.382 Durante a sua vida, não foi Jesus chamado de sóter, nem se

376
CULLMANN, O. Cristologia del Nuevo Testamento. Buenos Aires, Argentina: Methopress Editorial y Gráfica.
Páginas: 275-282.
377
Salmo 24.5; 26.1; 34.3; 61.3, 7; 64.6; 78.9.
378
Isaias 12.2; 17.10; 43.3, 11; 45.15, 21; 60.11; 63.8.
379
Ver Jeremias 14.8; Miquéias 7.7; Babacuque 3.18; 1 Samuel 10.19; Deuteronômio 32.15.
380
Ver I Macabeus 4.30; Sabedoria 16.7; Sirach 51.1; Baruque 4.22; Judite 9.11.
381
BULTMANN, R. Theologie des Neuen Testaments, 1953, p. 79. Citado por CULLMANN, O. na obra de análise.
382
Ver 1 Timóteo 1.1; 2.3; 4.10; Tito 1.3; 2.10; 3.4; e seguindo com o evangelho de Lucas, de onde o Magnificat
(Lucas 1.47) chama a Deus “Salvador” conforme o estilo do AT e de onde, por outra parte, o relato de Natividade
anuncia: “Hoje nasceu um Salvador que é Cristo, o Senhor” (Lucas 2.11).
CRISTOLOGIA E SOTERIOLOGIA 85

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chamou a si mesmo de SALVADOR. Assim, o título SÓTER pressupõe toda a obra de Jesus
realizada na terra e sancionada pela sua ressurreição/ascensão.
Jesus é o SÓTER, porque salvará o seu povo do pecado (Mateus 1.21), o que combina com o
seu próprio nome. Jesus, não significa outra coisa senão que SÓTER, salvador. O Salvador que, de
foma eficaz, significa a presença salvífica de Deus na história do ser humano, homem e mulher, com
todas as suas contingências.

JESUS É O (Salvador) POR QUE:

1. NOS SALVA DO PECADO


2. RECONCILIA-NOS COM DEUS POR SUA CRUZ
3. TORNA-NOS PARTICIPANTES DO REINO DE AMOR E PAZ

As palavras “Por Jesus Cristo nosso salvador”, remetem à obra expiatória de Cristo,
fundamento de toda “SALVAÇÃO” divina, em favor da humanidade e da redenção de toda a
criação, pois Cristo Jesus é mediador tanto da criação como da salvação. 383
Na quarta parte a seguir, serão estudados os títulos cristológicos referentes à pré-existência de
Jesus. Jesus, o Verbo divino, o próprio Deus, presente na obra da criação do mundo e do ser
humano.

4.10. Os títulos cristológicos relativos à pré-existência de Jesus 384

CONCEITOS CRISTOLÓGICOS: “LÓGOS” - FILHO DE DEUS – DEUS


A antiga confissão de fé binária de 1 Coríntios 8.6 mostra que há uma unidade de essência 385
ou de natureza entre Deus e Cristo; trata-se de uma UNIDADE DE AÇÃO, na obra da revelação.
A concepção do LOGOS, por sua própria natureza, faz remontar as coisas, a ação pré-
existente e divina de Jesus.
Diz-se do LOGOS: “No princípio era o Verbo”, e o Verbo era com Deus, era Deus. “Todas
as coisas foram feitas por Ele”. “E o Verbo de fez carne” (João 1).

4.10.1. JESUS O “LOGOS” 386


O autor do Evangelho de João faz uso deste título e mostra que é indispensável para falar da
relação entre a revelação divina na vida e na pré-existência de Jesus.
Aquele que estava no princípio com Deus é o mesmo de quem o Evangelho fala, e cuja vida
“na carne”, se constituiu o centro de toda a história da salvação e da revelação.
Aquele que é o centro da história da salvação não pode ter surgido do nada. O Evangelho de
João emprega as mesmas palavras do Primeiro Livro do Antigo Testamento.

A) O “Logos” no helenismo
Várias correntes sobre a pessoa de Jesus Cristo são citadas na história da Teologia.

383
Remeto o leitor às seguintes obras, que tratam desse assunto com bastante profundidade, escritas pelo teólogo suíço
Pierre GISEL: La création, Genève: Labor et Fides, 1987 e La subversion de l’Esprit, Genève: Labor et Fides, 1993.
384
CULLMANN, O. Cristologia del Nuevo Testamento. Metthopress Editorial y Gráfica. Buenos Aires – Argentina,
1965.
385
Essência é aquilo que constitui a natureza; substância; a existência (Ver definição do Novo Dicionário Aurélio,
1986).
386
CULLMANN, O. Cristologia del Nuevo Testamento. Metthopress Editorial y Gráfica. Buenos Aires – Argentina,
1965. Páginas 283-309.
CRISTOLOGIA E SOTERIOLOGIA 86

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Na perspectiva helenista  “O Logos se fez carne”  o Lógos é a lei suprema do mundo,


que rege o Universo, e que está presente na razão humana. De onde é uma abstração e não uma
hipóstasis.387 Em conseqüência, ao falar do Logos, o que “era desde o princípio”, esta alma
impessoal e panteísta do mundo, é o que trata o estoicismo, 388 que é muito diferente do Logos
Joanino.
No helenismo a incorporação do Logos, ou seja, a idéia de encarnação resulta absolutamente
inconcebível. É estranha ao platonismo a incorporação do Logos na história e na humanidade.
O evangelho de João apresenta não um Logos grego, mas ao contrário, a suprema revelação de
Deus em Jesus de Nazaré, dando-se uma forma inteiramente nova.
Como resultado de várias reflexões de linha grega, a cristologia chegou a uma encruzilhada, ou
seja, através de vários caminhos, de várias idéias, para se falar da pessoa de Jesus Cristo. É o que
será tratado a seguir.

A ENCRUZILHADA DA CRISTOLOGIA - AS MAIS DIVERSIFICADAS TENDÊNCIAS 389

Os debates acerca da pessoa e obra de Jesus Cristo estiveram aprofundando a Teologia a fim
de se encontrar uma postura determinante em relação ao problema cristológico. A situação da
Cristologia presente jamais poderia ter surgido antes do movimento sobre o “Jesus da História”, e
nem depois dela. O “Jesus da História” destaca-se pela reconstrução histórica da pessoa humana de
Jesus de Nazaré.
Seguem-se algumas tendências ou posturas acerca de Jesus Cristo surgidas na nossa história.
Mas, também é imprescindível concluir com o que se tornou mais concreto, objetivando a
compreensão da Cristologia.

1. Os Ebionitas
O termo grego EBIONAIOI é a transliteração do vocábulo hebraico EBIONIM, que significa
“pobres”. Esse termo era usado para indicar uma seita judaico-cristã que existiu no começo do
Cristianismo. Tertuliano achava que o temo era originado de um dos líderes da comunidade,
chamado Ebion.
Os ebionitas se opunham à interpretação paulina da fé cristã. Eles se consideravam os
ortodoxos, enquanto os paulinos eram os liberais, porque ensinavam algo novo. Eles observavam a
lei mosaica achando que a salvação seria decorrente da observância dessa lei, incluindo a circuncisão.
Os ebionitas aceitavam o caráter messiânico de Jesus, mas não aceitavam que ele tivesse sido o
Filho de Deus em qualquer sentido especial. Rejeitavam a sua divindade, conforme as inclinações do
judaísmo monoteísta. Em seu meio disputavam a questão do nascimento virginal de Jesus Cristo,
alguns contra e outros a favor. Eram legalistas, pois observavam a lei mosaica.
Suas escrituras sagradas eram o Antigo Testamento. Repudiavam os escritos de Paulo.
Usavam o Evangelho dos Hebreus.
Os ebionitas não eram unificados. Havia divisão entre eles. Três seitas ebionitas:

387
Essa palavra vem do grego upóstasis, que vem de upó, <sob> e istasthai, <ficar>. Essa palavra tem recebido várias
definições, de acordo com o uso, tornando-se uma parte importante da explicação da Trindade e da Cristologia. Esse
termo, no tocante ao Filho, a Segunda pessoa da Trindade, veio a indicar a unidade de sua natureza divina e de sua
natureza humana. Uma explicação sintética e precisa sobre essa palavra encontra-se na obra de CHAMPLIN e
BENTES. Enciclopédia de Bíblia, Teologia e Filosofia. São Paulo, 1995. Vol. 3. Pág. 125-127.
388
Escola filosófica fundada por Zenon (342-270 A. C.) Os filósofos estóicos negavam a ressurreição do corpo físico.
Para um estudo mais profundo, ver CHAMPLIN e BENTES. Enciclopédia de Bíblia, Teologia e Filosofia. São Paulo,
1995. Vol. 2.Pág. 539-541.
389
Cf. BAILLIE, D. M. Deus estava em Cristo. São Paulo, Aste, 1964. Páginas: 13-36; CHAMPLIN e BENTES.
Enciclopédia de Bíblia, Teologia e Filosofia. São Paulo, 1995.
CRISTOLOGIA E SOTERIOLOGIA 87

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 Os Nazarenos, que aceitavam o nascimento virginal de Cristo;


 Os Ebionitas Fariseus, que aceitavam a messianidade de Jesus, mas negavam o seu
nascimento virginal e odiavam as Epístolas de Paulo;
 Os Ebionitas Gnósticos ou Essênios misturavam elementos cristãos, judaicos e
gnósticos.

A tendência geral do ebionismo era a influência do judaísmo sobre o Cristianismo e a negação


da divindade de Jesus Cristo, mas não do seu caráter messiânico.

2. O docetismo
Docetismo foi uma seita que surgiu dentre o gnosticismo. Essa palavra vem do termo grego
DOKÉO, que significa “parecer”. A referência primária é ao suposto corpo utilizado pelo AEON
(poder angelical), ou segundo os gnósticos, pelo LOGOS. Esse corpo é definido como uma sombra
ou um fantasma, uma representação teatral, mas não um verdadeiro corpo humano. Negava a
humanidade de Jesus Cristo. A matéria era o próprio pecado, e nenhum ser elevado, divino se
envolveria com a matéria. Cristo parecia estar envolvido na matéria, mas não estava.
O docetismo foi atacado por Inácio e por Irineu. Tertuliano escreveu cinco tratados contra
Márcion.390 A Primeira Epístola de João atacou os falsos mestres gnósticos de maneira direta.
Segundo os docetistas, Cristo nunca se encarnara, mas tão-somente se apossara do corpo do homem
Jesus de Nazaré, por ocasião de seu batismo, para abandoná-lo por ocasião de sua crucificação.
Cristo seria um AEON inferior, e não o LOGOS controlador. A morte de Jesus não teria valor
expiatório.
A partir dos evangelhos, pode-se observar a plena humanidade de Jesus Cristo, sendo ele
divino-humano, graças à luta de concílios que envidaram esforços pela afirmação da completa
humanidade e divindade de Jesus Cristo. As mais grosseiras formas de docetismo foram logo
abandonadas, porém, nas expressões mais sutis, o perigo continuou em diversos graus, a seguir os
passos da Teologia, através dos séculos, até hoje.
Entretanto, os limites humanos do conhecimento de nosso Senhor foram levados em conta. Ele
foi um de nós. O caráter humano dos milagres de Jesus foi realizado pela onipotência de Deus, em
resposta à fé humana. Eram as obras do Messias e também do Reino de Deus. Esses milagres são
tidos como “sinais” do Reino. O caráter humano da vida moral e religiosa de nosso Senhor é o
resultado de sua dedicação ao Pai, pois a vida do Messias foi uma vida de fé e sua vitória foi a vitória
da fé.

3. O Arianismo
É o conjunto de ensinos de Ário (265-356 d.C.). Ele e seus seguidores negavam a divindade de
Jesus Cristo. Ário se fundamentou no gnosticismo. Essa atividade racionalista teve início em
Alexandria e Antioquia, sobretudo no século IV d.C.
Vejamos as suas doutrinas: 1) Deus é ímpar e não-gerado (agennetos); 2) O Logos (Cristo) é
um ser intermediário entre Deus e o homem. Ele começou antes do tempo, mas não seria eterno; 3)
O Cristo foi criado por Deus, por adoção; 4) O Cristo é inferior a Deus.
As formas de arianismo: 1) Arianismo intransigente, que afirmava ser o Filho diferente do Pai;
2) O segundo grupo proclamou em um Sínodo de Ancira (358) que o Filho é semelhante em
substância (homoiousia). Estes são os semi-arianos; 3) O terceiro grupo repelia os termos

390
Foi um influente mestre cristão que, finalmente, fundou uma escola gnóstica, que era rival do cristianismo. Não se
sabe a data do seu nascimento, mas morreu em cerca de 165 d.C. (CHAMPLIN e BENTES. Enciclopédia de Bíblia,
Teologia e Filosofia. São Paulo, 1995. Volume: 4. Páginas 119-120).
CRISTOLOGIA E SOTERIOLOGIA 88

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homoousia (da mesma substância) e homoiousia (de substância similar), como também ousia (ser,
substância, essência), simplesmente declarando que o Filho era como o Pai.

4. A Teoria de Apolinário
Apolinário era bispo de Laodicéia da Síria, nos fins do século IV d.C. (310?-390?). A sua
doutrina ensinava que em Jesus, o Logos (uma perfeita natureza divina) assumiu o corpo físico,
passando a exercer as funções ordinariamente realizadas pela mente humana. Apolinário opunha-se
ao arianismo e à união das duas naturezas divina e humana, em Jesus Cristo. Afirmava que na
encarnação, o Logos tornou-se carne, tomando o lugar da alma humana racional na pessoa de Cristo.
Ele negava, portanto, que Cristo tivesse espírito humano; ensinava que o Logos manipulava um
corpo humano. Isso nega a humanidade essencial de Cristo.

5. A Teoria de Nestor ou Nestório


Nestor foi patriarca de Constantinopla entre 428 e 431 d.C. Seu propósito era banir as heresias
da área de seu controle. Mas, ele mesmo achou-se em dificuldades para desenvolver a Cristologia.
Ele objetava os excessos surgidos com base na expressão grega THÉOTOKOS, mãe de Deus,
aplicada à virgem Maria. Ele procurou modificar a Cristologia hispostática da escola de Alexandria.
Em lugar de Mãe de Deus, ele preferia Mãe de Cristo (CHRISTOKOKOS). Isso ofendeu a piedade
de seu tempo. Ao invés de usar união hipostática das naturezas divina e humana na pessoa de Jesus
Cristo, ele propôs uma nova expressão, união prosópica, que se deriva do grego PRÓSOPON
(face). A humanidade estava na face da deidade, e, a deidade na face da humanidade. Isso sugeria
que não indicava uma autêntica unidade da natureza divina com a humana, na pessoa de Cristo.
Nestor foi atacado por Cirilo, patriarca de Alexandria, o qual o acusou de ensinar uma dupla
personalidade em Cristo. A doutrina de Nestor foi condenada no Terceiro Concílio de Éfeso em 431.
Nestor foi deposto e expulso da Igreja.

6. A Teoria de Eutiques ou Eutíquio


Era ele um chefe de um ou mais mosteiros em Constantinopla, na primeira metade do século V
d.C. Era discípulo de Cirilo de Alexandria. Tornou-se conhecido por seu apoio às idéias chamadas
de eutiquianismo. Trata-se da doutrina cristológica de que, por ocasião da encarnação, a natureza
humana de Cristo foi absorvida pela natureza divina. Ele introduziu essa idéia, entre 448 e 451 d.C.
Ele se manifestou contra o nestorianismo. O conceito teve apoio temporário do Sínodo dos Ladrões,
em Éfeso.391 A posição negava as duas naturezas de Cristo, como a sua devida humanidade. A idéia
foi considerada heresia no Concílio de Calcedônia (451 d.C.), e Eutíquio foi desligado de suas
funções.

7. Um novo radicalismo histórico


Um fator que influenciou na mudança da situação cristológica foi o novo radicalismo histórico
aplicado ao estudo histórico dos evangelhos, associado à expressão alemã FORMGESCHICHTE ou
Crítica da Forma.392 É um movimento que estuda os evangelhos historicamente, não pela análise dos
vários documentos originais, mas distinguindo as diversas “formas”, os inúmeros tipos de episódios,
parábolas, máximas, histórias maravilhosas, reminiscências homiléticas a respeito de Jesus, utilizadas
391
O Concílio dos Ladrões – Sínodo dos Ladrões. Convocado por Teodósio, em agosto de 449, d.C. Dionísio, patriarca
de Constantinopla, foi quem presidiu. Estiveram presentes cerca de 130 bispos de dioceses Orientais. Eles endossaram
o eutiquianismo que era o ensino do arquimandrita de Constantinopla, Eutíquio. Esta decisão foi anulada pelo
Concílio de Calcedônia, em 451, d.C., o qual declarou que esse Sínodo de Éfeso não devia ser reconhecido como
verdadeiramente ecumênico. O papa Leão I, de Roma apelidou de Sínodo dos “Ladrões”, por causa da decisão ali
tomada, contrária à Teologia Romana (CHAMPLIN e BENTES, Vol. 2, p.289).
392
BAILLIE, D. M. Deus estava em Cristo. São Paulo, Aste, 1964. Páginas: 26-36
CRISTOLOGIA E SOTERIOLOGIA 89

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na pregação da Igreja Primitiva e que resultaram na tradição dos evangelhos. A finalidade é avaliar a
época e o significado dos fragmentos que passaram a constituir os evangelhos.
A Crítica da Forma lança luz sobre a pergunta:

 “Como eram a pregação e a mensagem (kerygma) cristã da Igreja Primitiva?” Uma


pergunta que envolvia tudo, com o objetivo de descobrir o verdadeiro sentido do Jesus
Histórico.

8. A Cristologia sem encruzilhada


As muitas idéias surgidas no período pré-crítico e considerando também o período da Crítica
da Forma, não podem deixar a Cristologia numa encruzilhada. 393 É preciso considerar o verdadeiro
sentido da encarnação e da divindade de Jesus Cristo, a partir dos evangelhos e da sua história. Hoje,
mais do que nunca, precisa-se compreender a pessoa de Jesus e a sua obra entre os homens,
operando os sinais concretos do Reino de Deus, em fé.
O estudante de Teologia não pode titubear em relação à Cristologia, que necessita estar bem
solidificada nas mentes e corações.

B) O “logos” no judaísmo 394


Há no Novo Testamento toda uma série de passagens em que a “Palavra de Deus”, não está
personificada, e ao menos considerada como uma entidade independente; e que passa a ser objeto de
reflexão teológica, em razão da potência enorme de sua ação.
Essa reflexão se orienta primeiramente à história da criação, na qual tudo se realiza por ordem
da Palavra pronunciada por Deus: “Haja luz e houve luz”. Toda a ação criadora de Deus se efetua
por meio da Palavra; e esta Palavra é Deus, em se comunicar ao mundo.
A Palavra do Senhor faz surgir a vida do nada. DEBAR YAHVÉ.

C) A idéia do “Logos” aplicada a Jesus


A atribuição de Jesus ao título de LOGOS é fruto de uma reflexão teológica. Reflexão que,
por outra parte, pressupõe também a experiência litúrgica da soberania de Cristo.
O pensamento joanino é fundamental em afirmar: Jesus aporta não só a revelação, senão que
Ele é a REVELAÇÃO. Assim, o LOGOS joanino é o LOGOS que se encarna em Jesus. JESUS É O
LOGOS. DEUS SE FEZ CARNE.
Verdade é que o termo LOGOS, ao falar de Deus em Seu Filho, está associado com a criação
do mundo e ligado a uma definição da relação eterna entre o Filho de Deus e o Pai.
O evangelista, no prólogo, permanece fiel à promessa do pensamento do Antigo Testamento,
quando fala da Palavra de Deus.
As afirmações joaninas relativas ao LOGOS são frutos de uma reflexão profunda sobre a vida
de Jesus, considerada como a Revelação Central de Deus.
A essência do LOGOS é AÇÃO. Deus se encarnando, revela-se a si mesmo. É o profundo
movimento revelacional, que elucida a dinâmica do Criador, que na sua misericórdia, age em favor
do ser humano e de toda a sua criação. Portanto, Deus é o Deus que age. 395 Jesus é a plenitude da
glória Divina, que, com a sua vida, mostrou ao mundo e aos homens a verdadeira essência de Deus,
sendo ele o próprio Deus, segundo a Sagrada Escritura.

393
Ibidem. Páginas: 34-36
394
CULLMANN, O. Cristologia del Nuevo Testamento. Metthopress Editorial y Gráfica. Buenos Aires – Argentina,
1965. Páginas 292-360.
395
Cf. WRIGHT, G. Ernest. O Deus que Age. São Paulo: Aste, 1967.
CRISTOLOGIA E SOTERIOLOGIA 90

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4.10.2. JESUS O FILHO DE DEUS396


O título FILHO DE DEUS se caracteriza mais especialmente, e na forma única, a relação entre
o Pai e o Filho. Com justa razão, então, os teólogos da Igreja antiga também se valeram deste título
em suas discussões cristológicas.
Qual era o significado de FILHO DE DEUS na época do Novo Testamento para judeus e
pagãos?

A) O Filho de Deus no Oriente e no Helenismo


Os reis eram considerados como gerados pelos deuses. Essa crença se estendia também ao
Egito, de onde os faraós passavam a ser filhos do deus solar Rá.
Na época do Novo Testamento, também os imperadores romanos tinham esse título.
No helenismo, esse título era monopólio somente de monarcas. Mas, gentes de toda classe a
quem se atribuíam forças divinas, eram chamadas de Filho de Deus.

B) O “Filho de Deus” no judaísmo


No Antigo Testamento essa expressão é empregada de três maneiras diferentes:

 Ao povo de Israel inteiro é chamado “Filho de Deus”;


 O rei leva este título;
 Certos mensageiros especiais de Deus, como os anjos, e também o Messias, são
chamados assim.

Em todos os textos do Antigo Testamento, “Filho de Deus” expressa a idéia de haver Deus
eleito a esse povo em vista de uma missão particular, e a de dever esse povo obediência absoluta. De
ter que obedecer estritamente ao chamado de Deus.

C) Jesus e o título “Filho de Deus”


Não significa para Jesus um poder sobrenatural, mas a obediência absoluta no cumprimento de
sua missão divina.
Na tentação, Jesus estava sendo seduzido a não cumprir a sua missão de Ebed Yahvé. O diabo
queria que Jesus fosse um fazedor de milagres: “Se és Filho de Deus...”
“Filho de Deus” é uma confissão de fé que os primeiros cristãos puderam expressar a fé em
Jesus, o Filho de Deus. No evangelho de João e na epístola aos Hebreus, Filho de Deus, é uma das
concepções cristológicas fundamentais.
A versão de Mateus une a confissão de Pedro em que o Messias é o Filho de Deus (Mt 16.16).
JESUS: VERDADEIRO DEUS E VERDADEIRO HOMEM.

D) A fé do Cristianismo Primitivo em Jesus o Filho de Deus

 1 João 4.15  Confessar que Jesus é o Filho de Deus.


 Hebreus 4.14  Permanecer firmes na confissão.
 Todo o NT apresenta essa afirmação de fé em Jesus, que é a base estrutural da Igreja.

396
CULLMANN, O. Cristologia del Nuevo Testamento. Metthopress Editorial y Gráfica. Buenos Aires – Argentina,
1965.
CRISTOLOGIA E SOTERIOLOGIA 91

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4.10.3. JESUS CHAMADO DEUS (397


Deus, enfim, é aquele que se revela desde o começo (Logos); Deus é aquele que, cuja vontade
e ação são perfeitamente congruentes com as do Pai, tanto naquele que vem dele, quanto ao qual o
Pai faz vir (Filho de Deus). Jesus se apresenta como a única e verdadeira “imagem de Deus”, nos
escritos joaninos, na epístola aos Hebreus e nas cartas de Paulo, mais especificamente. Jesus leva o
nome de Kyrios, isto é, o nome de Deus, por aqueles que o chamavam diretamente DEUS.
A grande discussão da Antiguidade era saber se Jesus era Deus. Nos sinóticos, Jesus não se
designou Deus, e nem os evangelistas quiseram fazê-lo. Os testemunhos mais claros e menos
equívocos da aplicação a Jesus do nome de Deus se evidenciam no Evangelho de João e na epístola
aos Hebreus.
A confissão de Tomé é coroação de todas as confissõesJo
20.28).
Embora o apóstolo Paulo designe a Jesus como , não o faz tão abertamente como o
Quarto Evangelho e a epístola aos Hebreus Também, em Cl 2.9 está escrito: “Habita corporalmente
toda a plenitude da Divindade.”

CONCLUSÃO

Chega-se ao final do estudo da Cristologia, que compreendeu uma reflexão acerca da pessoa e
da obra de Jesus Cristo, com todas as suas orientações. Orientações que tiveram a base da teologia
reformada, sem deixar de verificar o pensamento de outros teólogos de outros segmentos da Igreja
Cristã.
Uma sólida e profunda base cristológica, não pode desprezar o plano básico da cristologia e
nem os títulos cristológicos que uma vez foram refletidos. Também uma base teológico-sistemática,
através do pólo cristológico, segundo segundo a visão reformada, de veia calvianiana e calvinista,
tornou-se indispensável. Outros pontos convergentes, respectivamente, trabalhados em paralelo por
outros teólogos, fizeram parte do corpo bibliográfico deste trabalho. Mesmo constando uma
pesquisa nos melhores teólogos, o presente trabalho não tem a pretensão de esgotar toda a reflexão
sobre o assunto.
Todo o empenho neste trabalho tem o objetivo de preparar o estudante de teologia a fim de
que tenha um perfil afinado com a o verdadiero significado da pessoa e obra de Jesus Cristo. Jesus
Cristo é a Revelação única e exclusiva do Pai, sobre quem a teologia reformada, procura apresentar
o melhor em termos de reflexão nessa área da Teologia Sistemática.

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