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Soteriologia no Brasil: A Influência do

Semipelagianismo na Teologia Cristã Brasileira


Leonardo Gomes Freire*

RESUMO
Este artigo explora as diversas cosmovisões dos brasileiros relacionadas ao caminho
da salvação, ou seja, os requisitos e etapas necessárias para que, ao final de sua existência
terrena, o ser humano alcance a vida eterna. Embora esse tema já tenha sido amplamente
debatido por teólogos e pais da igreja, a motivação para elaboração do artigo reside no fato de
que várias correntes denominacionais brasileiras têm adotado uma abordagem de salvação que
difere significativamente do contexto bíblico original. Isso resulta na descaracterização do
verdadeiro evangelho, destacando a autonomia humana em detrimento do papel de Deus na
salvação dos homens.

PALAVRAS-CHAVE
Soteriologia; Salvação; Graça; Livre-arbítrio; Natureza; Pecado Original.

INTRODUÇÃO
A principal área teológica que será abordada neste trabalho está ligada diretamente a
Soteriologia. No entanto, toda a investigação de campo foi baseada nas práticas das
denominações cristãs brasileiras desde as igrejas históricas, até as denominações recém-
instituídas.
O material didático a ser utilizado na abordagem do problema, bem como os dados
históricos, serão os livros contidos nas Escrituras, livros com conteúdo teológico, além de
trechos extraídos dos concílios da Igreja que envolvem e tratam o assunto sobre a salvação do
homem na perspectiva cristã.
* Aluno concluinte do programa de Pós-graduação Lato Sensu em Teologia Reformada pela Faculdade Sudoeste\FASU e Instituto
Reformado de São Paulo – IRSP. O autor é bacharel em Sistemas de Informação pela Unigranrio (2010), bacharel em Teologia pela FTSA
(2020), especialista em Computação em Nuvem pela PUC-Minas (2022), especialista em Aconselhamento e Psicologia Pastoral pela
Unyleya (2023) e presbítero da Igreja Presbiteriana do Brasil em Duque de Caxias, RJ.
O que motivou a investigação sobre os tipos de cosmovisões em que as igrejas
brasileiras se enquadram, foi a experiência pessoal de minha conversão ao cristianismo, pois
apesar de desde criança ouvir sobre Jesus e sobre sua morte na cruz para salvar pessoas, ter
esse entendimento como uma verdade, só foi possível, após o exame genuíno das Escrituras
em sua completude.
Apesar de viver em uma cidade em que muitas pessoas possuem suas crenças em Jesus
Cristo, a maioria das denominações possuem uma variedade de ensinos que são particulares e
específicos de cada corrente doutrinária e às vezes, aparenta estar distante dos ensinamentos
da Bíblia, que é a principal e maior fonte de informação do Cristianismo, da pessoa de Jesus e
seus ensinamentos.
Ainda que haja ensinamentos secundários, como o método de batismo, a interpretação
dos dons espirituais, os atos litúrgicos, entre outros, existem ensinos que são fundamentais e
deveriam ser observados por todas as denominações, o que aparentemente, não acontece.
DEFINIÇÃO DO PROBLEMA
A proposta do artigo é enfatizar que a maioria dos brasileiros que se intitulam cristãos,
ainda que fazendo parte de uma denominação (igreja visível) ou de religiões pseudocristãs,
desconhecem as boas novas de salvação apresentadas na bíblia, e acabam indiretamente
aderindo ao conceito teológico chamado “semipelagianismo” e em alguns casos o pensamento
“pelagiano”, conceitos nos quais defendem que o homem inicia o processo de salvação, pois é
dotado de boa vontade, negligenciando totalmente a graça divina.
Ainda que o Brasil tenha recebido por herança uma forte influência dos reformadores
e missionários europeus, a ortodoxia e a prática de estudos bíblicos vêm se perdendo, dando
lugar a discursos perigosos, recheados de mensagens egocêntricas, que já foram combatidas e
refutadas por grandes homens comprometidos com o evangelho de Cristo no passado.
Embora as Escrituras estejam totalmente traduzidas para o nosso idioma,
pouquíssimas denominações possuem a preocupação de incentivar seus adeptos ao estudo
frequente e sistemático da bíblia, o que consequentemente, os distancia de uma rotina de
leitura e estudo diário. A ausência de uma boa educação cristã leva muitas pessoas a
praticarem uma fé na pessoa de Jesus incompleta ou até mesmo adulterada, causando assim,
um desvio da verdade, gerando ilusões e também produzindo falsos cristãos. É claro que a
relação entre Jesus e o homem está diretamente ligada à vontade soberana e livre do próprio
Deus, ou seja, ainda que venhamos a praticar a leitura das Escrituras ou o uso dos
simbolismos presentes na fé cristã, temos que depender da vontade soberana de Deus para que
o relacionamento com Cristo seja efetivamente estabelecido.
Contudo, se tratando do Deus criador, verdadeiro e revelado nas Escrituras, é
impossível substituir a relação com Ele pela prática da religiosidade. É claro que isto não
significa que a religião e os símbolos de fé não sejam importantes. A ceia do Senhor, o
batismo e o envolvimento direto com o corpo de Cristo (comunhão), são resultados de um
relacionamento verdadeiro com Deus, a partir do momento em que cremos verdadeiramente
nele. Sendo assim, quando manifestamos uma prática religiosa com os simbolismos de fé,
fazemos por amor e reconhecimento, e não por regra ou obrigação.
Um outro ponto que se faz necessário destacar, é a forma na qual todo cristão deve
apresentar o seu testemunho. Conforme relatado nos evangelhos e nos demais livros das
Escrituras, Jesus em diversas ocasiões, tratou com seus discípulos a necessidade de nos
relacionarmos bem com ele e com o nosso próximo. Infelizmente nos dias atuais,
principalmente no contexto evangélico brasileiro, o conceito "igreja de Cristo" tem sido
deturpado. Muitas pessoas têm até praticado um bom testemunho dentro de suas
denominações, porém ao sair dela, as atitudes e tratativas com o próximo divergem dos
ensinamentos cristãos. Muitos adeptos fazem a separação entre santo e profano, religioso e
secular, e esquecem que, testemunhar a Cristo, é viver conforme o significado da palavra
“cristão”, ou seja, ser um “pequeno cristo”, a todo tempo, independentemente do local.
A caminhada cristã é uma vida em constante arrependimento e dependência de Deus.
Se tivermos essa consciência, creio que teremos êxito em nosso testemunho diário e uma boa
relação com nosso semelhante, não apenas no falar sobre Jesus, mas vivendo uma vida de
acordo com o cristianismo bíblico apresentado pelo Senhor e seguido pelos seus verdadeiros
discípulos, que entendiam bem que, todos os homens estão totalmente depravados e longe de
Deus, necessitando assim da graça divina para serem efetivamente reconciliados e salvos pelo
Senhor.
OBJETIVO
Para muitos brasileiros, achar uma denominação próxima de casa pode ser uma tarefa
bem simples, todavia encontrar uma igreja “próxima” da bíblia pode ser desafiador. Por este
motivo, o principal propósito da elaboração deste artigo é destacar as linhas de pensamento
soteriológicas que geralmente são apresentadas no Brasil, e que apenas uma minoria de
brasileiros verdadeiramente entendeu que somente Deus pode chamar pecadores ao
arrependimento e que sem a ação divina, o homem está totalmente perdido e afastado do
caminho da salvação, ou seja, impossibilitado de herdar a vida eterna.
O objetivo deste artigo é destacar bons argumentos no Novo Testamento, bem como
nas palavras de Jesus, dos primeiros apóstolos e discípulos da Igreja primitiva, que expressam
diretamente a ideia de que, se Deus não agir no coração do homem, ele jamais poderá herdar a
vida eterna. Além disso, a proposta do artigo, é apontar alguns discursos que possivelmente
estão fora de contexto ou ainda que aparentemente apresentam um distanciamento do texto
bíblico, mas que ainda são utilizados por igrejas e grupos que estão presentes no cenário
brasileiro atual.
1. A DEPRAVAÇÃO TOTAL E A NECESSIDADE DO NOVO NASCIMENTO
O ponto de partida para a fundamentação teórica deste artigo, será sobre a definição do
que chamamos de “pecado original”. Embora o homem tenha sido originalmente criado a
imagem e semelhança do próprio Deus, reto e sem pecado, a desobediência do primeiro
homem, afetou toda a criação, principalmente os seres humanos.
Para que seja possível discorrer sobre o assunto, se faz necessário voltarmos aos
escritos históricos e de tradição patrística, no entanto, precisamos considerar inicialmente três
perícopes:
Deus ordena que Adão não coma do fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal
- (Gênesis 2.15-17)1: “v.16 - E o Senhor Deus lhe deu esta ordem: de toda árvore do jardim
comerás livremente. v. 17 - Mas da árvore do conhecimento do bem e do mal não comerás;
porque, no dia em que dela comeres, certamente morrerás”.
O homem desobedece a ordem, recebendo de Deus a consequência de sua escolha -
(Gênesis 3.1-24): “v.6 - Vendo a mulher que a árvore era boa para se comer, agradável aos
olhos e árvore desejável para dar entendimento, tomou-lhe do fruto e comeu e deu também ao
marido, e ele comeu. v. 17 - E a Adão disse: Visto que atendeste a voz de tua mulher e
comeste da árvore que eu te ordenara não comesses, maldita é a terra por tua causa; em
fadigas obterás dela o sustento durante os dias de tua vida”.
Todos os homens recebem por herança o pecado e a morte - (Romanos 5.12-21): “v.
12 - Portanto, assim como por um só homem entrou o pecado no mundo, e pelo pecado, a
morte, assim também a morte passou a todos os homens, porque todos pecaram”.
Ao utilizar os textos mencionados, é essencial enfatizar que os eventos desde a queda
do homem até a herança do pecado de Adão imputado a todos os seres humanos devem ser
considerados como fatos históricos e reais. Adão e Eva foram criados com liberdade e uma
vontade arbitrária, sem interferência de influências externas, como sentidos ou moralidade.
No entanto, sob a influência de Satanás, eles foram tentados e desobedeceram à ordem de
Deus, resultando na queda de seu estado original de completa inocência. Como resultado, eles
se tornaram corruptos e pecadores, necessitando da intervenção divina para um novo
nascimento.
É justamente por este motivo que o próprio Jesus Cristo declara aos judeus de sua
época que ninguém poderia ir até ele sem a ação de Deus Pai - (João 6.41-59), e que um dos
motivos de sua vinda, era chamar pecadores ao arrependimento (Mateus 9.10-13), e ainda que
Jesus não tenha realizado o uso do termo “pecado original”, Jesus ensinou sobre a necessidade
de um novo nascimento (João 3.3-7).
2. O PECADO ORIGINAL E A DEPENDÊNCIA DA GRAÇA DIVINA
A natureza corrompida de Adão por meio da desobediência, foi transmitida a todos os
seres humanos, sem exceção, tornando o homem manchado pelo pecado e modificado do seu
estado de retidão. O apóstolo Paulo na epístola de Romanos descreve que a ação de Adão
reflete diretamente nos demais seres humanos criados por Deus. Ainda que ele não trate a
causa e efeito com a conceituação da palavra “pecado original”, podemos encontrar nos
primeiros pais da igreja esta explicação.
No fim do século IV, houve um grande debate em torno da relação entre a graça divina
e a liberdade humana, tal fato ficou conhecido como “A controvérsia entre Agostinho e
Pelágio”. Aurélio Agostinho, mais comumente chamado de Santo Agostinho de Hipona, foi
um dos maiores escritores e pensadores convertidos ao cristianismo que já existiu. Um
homem de grande referência para católicos e protestantes. Agostinho chegou a ser
identificado como “Doutor da Graça” por tratar de assuntos concernentes a graça de Deus e
por sistematizar doutrinas relevantes, que desde os primeiros séculos da igreja até os dias de
hoje, são consideradas como ortodoxas para muitas denominações.

1 Todas as citações bíblicas são retiradas da versão Almeida Revista e Atualizada (ARA).
É importante destacar que este grande homem não nasceu “pronto” como escritor e
orador. No início de sua juventude teve contato com práticas e crenças do paganismo romano,
e por volta de 371 d.C., estudou retórica em Cartago (atual Tunísia), onde teve acesso à
doutrina dualista do maniqueísmo, que ensinava que o mundo trata toda realidade dividida
entre dois princípios opostos: o bem e o mal. Agostinho também tornou-se hedonista,
“abraçando” por algum tempo a visão de que o prazer seria o bem supremo e a finalidade
absoluta para o seres humanos.
Apesar de entrar em “maus caminhos” durante sua trajetória de vida, sua mãe Mônica
sempre havia orado por sua conversão, e Agostinho por ser um homem questionador e por
estar sempre em busca de conhecimento e aprendizado, conheceu o bispo Ambrósio que na
época era uma referência da retórica e acabou sendo influenciado por ele. Além das
influências de Ambrósio, Agostinho passou por um momento de crise espiritual, até que ao ler
a epístola de romanos e refletir nos ensinamentos paulinos, converteu-se ao cristianismo.
Como escritor, Agostinho apresentou um crescimento progressivo em suas ideias. Ao
tratar sobre o pecado original, entendeu que Adão era o representante de toda a raça humana,
e por causa do pecado de Adão, todos os seres humanos nascem corrompidos. Neste sentido,
Agostinho ensinou que todos nós pecamos, porque já nascemos pecadores, diferente de
Pelágio, um outro personagem de grande influência daquela época, que apesar de ser muito
famoso por sua disciplina moral, ensinava que a desobediência de Adão não afetou os demais
seres humanos e que além disso, pelo poder do livre-arbítrio, o homem teria a plena
capacidade de escolher entre pecar ou não, sem o auxílio ou a intervenção de Deus, pois o
homem havia nascido “neutro” ou até mesmo com um “toque” de bondade.
Segundo Hägglund, Pelágio aparece em Roma como pregador extremamente rigoroso.
“[...] mais tarde também trabalhou no norte da África. Celéstio foi um de seus discípulos, e
algum tempo depois Julião de Eclano...”2. Para Pelágio, o homem era livre para praticar suas
ações e escolhas sem nenhuma tendência, vício ou inclinação para o pecado:
“Todo o bem e todo o mal que nos tornam dignos de louvor ou de reprovação, não
nascem conosco, mas são praticados por nós. Ao nascermos, não somos plenamente
capazes nem de um nem de outro, e somos procriados tanto sem virtude como sem
vício; e antes da ação de nossa vontade, possuímos somente o que por Deus foi
criado”.3
Apesar de não encontrar nenhuma obra de Pelágio traduzida para o idioma português,
suas ideias e pensamentos são expostos por diversas vezes nos escritos de Agostinho
conforme o exemplo acima e também por outros autores e opositores.
De acordo com Hägglund, Pelágio acreditava que, “[...] o homem tem a possibilidade
de decidir em favor do bem. Pecado, segundo Pelágio, consiste apenas de atos isolados da
vontade”.4

2 HÄGGLUND, Bengt. História da Teologia. Tradução de Mário L. Rehfeldt e Gládis Knak Rehfeldt. Porto Alegre: Concórdia,
1999, p. 111.
3 PELÁGIO apud AGOSTINHO, Santo. A graça (I): o espírito e a letra, a natureza e a graça, a graça de Cristo e o pecado original.
Tradução de Augustinho Belmonte. São Paulo: Paulus, 1998, p. 168.
4 HÄGGLUND, Bengt. História da Teologia. Tradução de Mário L. Rehfeldt e Gládis Knak Rehfeldt. Porto Alegre: Concórdia,
1999, p. 112.
Neste sentido, o pelagianismo ensina que o homem é capaz de praticar atos de
bondade, sem a necessidade de intervenção divina, e além disso, quando o homem escolhe
entre o bem ou o mal, escolhe simplesmente por que quer e por ser dotado de livre-arbítrio.
Para Agostinho, o pecado está implícito na natureza do homem, sendo assim, quando o
homem peca, ele está agindo conforme sua natureza corrompida e inclinada para o pecado.
Em sua carta aos monges de Hadrumeto, Agostinho leva ao conhecimento de seus
amigos algumas instruções e refutações acerca do “veneno” pelagiano que “condiciona aos
méritos humanos a concessão da graça de Deus, a única capaz de libertar o homem por meio
de Jesus Cristo nosso Senhor”.5
Pelágio foi acusado por heresia, principalmente por negar o pecado original herdado6,
negar que a graça de Deus é essencial para salvação 7 e também por pregar que o homem era
capaz de não pecar8, exercendo unicamente seu livre-arbítrio.
Segundo Olson, “Pelágio foi inocentado da acusação de heresia pelo sínodo de
Dióspolis na Palestina em 415, mas condenado como herege pelo bispo de Roma em 417 e
418, e pelo Concílio de Éfeso em 431. Não se sabe o ano exato de sua morte, mas,
provavelmente, foi pouco depois de 423”.9
Agostinho como opositor de Pelágio e representante ortodoxo da igreja, dedicou
alguns anos de sua vida refutando as heresias disseminadas pelos pelagianos e defendendo a
verdadeira fé cristã, esclarecendo as relações do homem com Deus e afirmando a necessidade
e dependência da graça divina para a salvação, buscando sempre o testemunho das sagradas
escrituras e dos ensinamentos apostólicos.
Em sua obra “A natureza e a graça” ao tratar sobre a criação e a desobediência do
homem, Agostinho defende que “o pecado corrompeu a natureza humana, criada por Deus
sem nenhum vício”:
A natureza do homem foi criada no princípio sem culpa e sem nenhum vício. Mas a
atual natureza, com a qual todos vêm ao mundo como descendentes de Adão, tem
agora necessidade de médico devido a não gozar de saúde. O sumo Deus é o criador
e autor de todos os bens que ela possui em sua constituição: vida, sentidos e
inteligência. O vício, no entanto, que cobre de trevas e enfraquece os bens naturais, a
ponto de necessitar de iluminação e de cura, não foi perpetrado pelo seu Criador, ao
qual não cabe culpa alguma. Sua fonte é o pecado original que foi cometido por livre
vontade do homem. Por isso, a natureza sujeita ao castigo atrai com justiça a
condenação.10

5 AGOSTINHO, Santo. A graça (II): a graça e a liberdade, a correção e a graça, a predestinação dos santos, o dom da perseverança.
Tradução de Augustinho Belmonte. São Paulo: Paulus, 1999, p. 17.

6 AGOSTINHO, Santo. A graça (I): o espírito e a letra, a natureza e a graça, a graça de Cristo e o pecado original. Tradução de
Augustinho Belmonte. São Paulo: Paulus, 1998, p. 168.
7 AGOSTINHO, Santo. A graça (I): o espírito e a letra, a natureza e a graça, a graça de Cristo e o pecado original. Tradução de
Augustinho Belmonte. São Paulo: Paulus, 1998, p. 50 e 54.

8 AGOSTINHO, Santo. A graça (I): o espírito e a letra, a natureza e a graça, a graça de Cristo e o pecado original. Tradução de
Augustinho Belmonte. São Paulo: Paulus, 1998, p. 100.

9 OLSON, Roger E. História da teologia cristã: 2000 anos de tradição e reformas. Tradução de Gordon Chown. São Paulo: Editora
Vida, 2001, p. 272.
10 AGOSTINHO, Santo. A graça (I): o espírito e a letra, a natureza e a graça, a graça de Cristo e o pecado original. Tradução de
Augustinho Belmonte. São Paulo: Paulus, 1998, p. 74.
Na citação acima, Agostinho apoia-se no texto de Paulo (Efésios 2.3-5) que diz: “entre
os quais também todos nós andamos outrora, segundo as inclinações da nossa carne, fazendo
a vontade da carne e dos pensamentos; e éramos, por natureza, filhos da ira, como também os
demais. Mas Deus, sendo rico em misericórdia, por causa do grande amor com que nos amou,
e estando nós mortos em nossos delitos, nos deu vida juntamente com Cristo, — pela graça
sois salvos”.
Os pelagianos sustentavam a crença de que, embora a graça facilitasse a busca pela
justiça e bondade, ela não seria essencial, pois o homem poderia atingir seus atos de bondade
por mérito da sua própria natureza boa e perfeita. Agostinho em resposta a esses
ensinamentos, afirmou que somente a graça pode libertar o homem do mal, e sem ela o
homem não pode fazer bem algum, seja em pensamento, desejo, amor ou por qualquer tipo de
obra. Em outro trecho de seu livro “A graça e a liberdade”, ao tratar sobre os desígnios de
Deus e a perseverança do homem em atos de bondade, Agostinho usa das palavras de Jesus ao
interceder por Pedro no evangelho de Lucas (Lucas 22.32) e conclui:
[...] e se afirmas que o perseverar ou não perseverar no bem depende do livre-
arbítrio humano, e lutas não em defesa da graça de Deus, mas contra ela,
professando que a perseverança não é dom de Deus, mas fruto da vontade do
homem, o que replicarás às palavras daquele que diz: Eu, porém, orei por ti, a fim de
que a tua fé não desfaleça? (Lc 22,32). Ou ousarás dizer que, mesmo com a súplica
de Cristo para Pedro não desfalecer na fé, esta haveria de esmorecer, se Pedro assim
tivesse querido, ou seja, se tivesse recusado perseverar até o fim? Seria o mesmo que
dizer que a vontade de Pedro poder-se-ia inclinar contrariamente ao sentido da prece
de Cristo.11
Para Agostinho, Deus seria o responsável por salvar e habilitar o homem na
perseverança do bem, por meio da graça, sendo esta um dom vindo diretamente de Deus e não
um fruto da vontade humana ou do livre-arbítrio.
Irineu de Lyon, um outro grande representante da ortodoxia cristã e importante pai da
igreja que viveu entre os anos 130 e 202 d.C, apesar de não sistematizar o conceito do pecado
original, também possuía o entendimento de que os demais seres criados por Deus, herdaram
o pecado de Adão. Em seu livro “Contra as heresias”, ao comentar sobre a justificação e o
recebimento da salvação por meio de Cristo, Irineu afirmou:
Como pela desobediência de um só homem, que foi o primeiro e modelado da terra
virgem, muitos foram constituídos pecadores e perderam a vida, assim pela
obediência de um só homem, que foi o primeiro e nasceu da Virgem, muitos foram
justificados e receberam a salvação.12
Assim como Agostinho, Irineu também aceitou o relato de Gênesis sobre a queda do
homem como um fato histórico e literal. Baseando-se nessas evidências históricas, conclui-se
que os seres humanos sendo herdeiros de Adão, caídos e depravados por natureza, foram
colocados sobre a maldição e juízo de Deus, necessitando da graça e do perdão divino, além
do novo nascimento e essencialmente, da ação de Deus para sua salvação.

11 AGOSTINHO, Santo. A graça (II): a graça e a liberdade, a correção e a graça, a predestinação dos santos, o dom da perseverança.
Tradução de Augustinho Belmonte. São Paulo: Paulus, 1999, p. 59.
12 IRINEU DE LYON. Contra as heresias: denúncia e refutação da falsa gnose. Tradução de Lourenço Costa. São Paulo: Paulus,
1995, p. 191.
Segundo Ferreira e Myatt, devido à consequência do pecado, continuamos tendo livre-
arbítrio, porém nossa liberdade é escrava do pecado:
[...] como consequência, a humanidade continua tendo livre-arbítrio (liberum
arbitrium), mas não mais liberdade (libertas) – a vontade humana não mais é dona
de si mesma. A humanidade livremente escolhe o pecado. Consequentemente, o ser
humano é incapaz de até mesmo buscar a Deus sem o socorro da graça especial. O
ponto crucial é nossa participação em Adão – somos culpados e condenados porque
participamos no pecado de Adão.13
Apesar das refutações e ensinamentos de Agostinho, Irineu e tantos outros homens que
baseavam suas ideias e ensinamentos nas Escrituras, na tentativa de “equilibrar” os ensinos e
sistematizações feitas por Agostinho com os ensinamentos de Pelágio que ainda eram
populares, a igreja católica da época aceitou alguns aspectos abordados por Agostinho, porém
adotou algumas posições intermediárias e talvez inconsistentes em relação a graça, o livre-
arbítrio e o pecado.
No início do século V em Marselha na França, surge um monge chamado João
Cassiano, um dos maiores expoentes e fundadores do monasticismo ocidental, que ao lado de
Vicente de Lérins e Fausto de Riez, defenderam uma espécie de depravação parcial,
ensinando que apesar do pecado de Adão afetar os demais seres humanos, não afetou ao ponto
do ser humano depender da graça divina para ser salvo, na verdade o homem é quem deveria
dar o “primeiro passo” no processo de salvação.
É provável que a intenção de Cassiano era preservar a responsabilidade moral do
homem sobre suas escolhas, porém ele não enfatizava a soberania de Deus e a necessidade da
graça divina, como nos escritos principais de Agostinho. De acordo com Olson, em outras
palavras, Cassiano e os outros marselheses ensinavam que:
[...] o ser humano é salvo exclusivamente por Deus mediante a graça, mas que a
salvação partia somente da iniciativa da boa vontade no coração do homem para com
Deus. Essa ideia do princípio da salvação pode ser resumida pela expressão “Deus
ajuda quem cedo madruga” ou “dê o primeiro passo em direção a Deus, ele virá ao seu
encontro”.14
Para Cassiano, ainda que a graça de Deus estivesse disponível, o homem deveria
cooperar dando um passo inicial em direção à graça de Deus como uma espécie de sinergia
prévia e necessária para a regeneração. Diferente desta posição, Agostinho entendia que
apesar do homem ser capaz de fazer suas escolhas, todas elas são influenciadas ou inclinadas
para o pecado, sendo assim, o homem não possui nenhuma capacidade de escolher a Deus ou
buscar o bem, até que Deus inicie o processo eficazmente, “liberando” o homem pecador para
crer nele.
Os ensinamentos de Cassiano ficaram conhecidos como semipelagianismo e foram
rejeitados e condenados pelo Concílio de Orange em 529 d.C., onde os bispos católicos
reafirmaram os ensinamentos de Agostinho sobre o pecado original 15, sobre a necessidade

13 FERREIRA, Franklin; MYATT, Alan. Teologia Sistemática: uma análise histórica, bíblica e apologética para o contexto atual.
São Paulo: Vida Nova, 2007, p. 428 e p. 429.
14 OLSON, Roger E. História da teologia cristã: 2000 anos de tradição e reformas. Tradução de Gordon Chown. São Paulo: Editora
Vida, 2001, p. 287.
15 MONERGISMO. O Concílio de Orange. Tradução de Felipe Sabino de Araújo Neto. Cuiabá: 2004. Disponível em
http://www.monergismo.com/textos/credos/orange.htm, cânones 1 e 2. Acesso em: 7 outubro 2023.
completa e essencial da graça de Deus para a conversão do homem 16, além de exigir a crença
de que o homem ao praticar qualquer ato de bondade, deveria atribuir o resultado desta ação
unicamente a graça de Deus e principalmente ao Espírito Santo17.
Apesar da rejeição dos ensinamentos pelagianos e semipelagianos por uma grande
parte da igreja católica antiga, estes ensinos sobreviveram e continuaram sendo praticados por
muitos sacerdotes e adeptos da fé cristã até os dias atuais. Na tentativa de preservar o conceito
de livre-arbítrio, muitos cristãos não levaram em consideração o ensinamento de que sem a
graça divina e a ação de Deus, o novo nascimento é impossível.
3. A SOTERIOLOGIA NA REFORMA PROTESTANTE
Em meio aos movimentos da reforma protestante ocorridos na Europa, a igreja
católica em resposta e oposição a estes movimentos, convocou ao final do século XVI o
Concílio de Trento, que além de ser um dos maiores concílios realizados pela igreja romana,
apresentou um parecer oficial sobre a relação entre pecado, a liberdade e o livre-arbítrio do
homem, que nos três primeiros cânones do concílio, aparentemente reiteraram a rejeição dos
conceitos pelagianos, porém nos cânones 4 e 5, da VI sessão, aparenta abandonar a
condenação de algumas ideias semipelagianas, sobre a vontade do homem, afastando-se das
posições de Agostinho. No cânone 4 da Sessão VI, o parecer declara que:
Se alguém disser que o livre arbítrio do homem, movido e excitado por Deus, em
nada coopera para se preparar e se dispor a receber a graça da justificação — posto
que ele consinta em que Deus o excite e o chame — e que ele não pode discordar,
mesmo se quiser, mas se porta como uma coisa inanimada, perfeitamente inativa e
meramente passiva — seja excomungado.18
Ora, se a vontade é movida e despertada por Deus, qual seria a necessidade de
cooperação do homem por meio do livre-arbítrio, já que segundo Agostinho, o homem é
inclinado para o mal e necessita totalmente do agir de Deus para que pratique atos de
bondade? Aparentemente a afirmação no cânone foi mal formulada, ou propositalmente
elaborada para afirmar que de alguma forma o homem em pecado, possui alguma capacidade
de cooperar na escolha do bem.
No cânone 519, temos um outro exemplo de que para os católicos romanos, o livre-
arbítrio do homem depois da queda de Adão, continua “valendo” e está limpo sem nenhuma
influência do pecado: “Se alguém disser que o livre arbítrio do homem, depois do pecado de
Adão, se perdeu, ou se extinguiu, ou que é coisa só de título, ou antes, título sem realidade, e
enfim, uma ficção introduzida na Igreja por Satanás — seja excomungado”.
Aparentemente os cânones supracitados apresentam definições ambíguas ou até
mesmo, contraditórias aos ensinos sobre o livre-arbítrio do homem e sua liberdade afetada
pelo pecado que foram apresentadas por Paulo no livro de Romanos e Agostinho em seus
escritos.
16 MONERGISMO. O Concílio de Orange. Tradução de Felipe Sabino de Araújo Neto. Cuiabá: 2004. Disponível em
http://www.monergismo.com/textos/credos/orange.htm, cânone 5. Acesso em: 7 outubro 2023.

17 MONERGISMO. O Concílio de Orange. Tradução de Felipe Sabino de Araújo Neto. Cuiabá: 2004. Disponível em
http://www.monergismo.com/textos/credos/orange.htm, cânones 6, 7 e 20. Acesso em: 7 outubro 2023.

18 MONTFORT, Associação Cultural. Concílio Ecumênico de Trento. Disponível em:


http://www.montfort.org.br/bra/documentos/concilios/trento/#sessao6, sessão VI, cân. 4. Acesso em: 6 outubro de 2023.
19 MONTFORT, Associação Cultural. Concílio Ecumênico de Trento. Disponível em:
http://www.montfort.org.br/bra/documentos/concilios/trento/#sessao6, sessão VI, cân. 5. Acesso em: 6 outubro de 2023.
Para os teólogos reformadores como o francês João Calvino e o alemão Martinho
Lutero (que inicialmente era um Monge Católico, mas depois de excomungado da igreja
romana tornou-se protestante), após a queda do homem, a vontade arbitrária para o bem seria
apenas subjetiva, mas unicamente por meio da graça divina é que o homem conseguiria
escolher Deus e praticar atos de bondade.
Em seu livro “Nascido escravo”, Lutero ao citar Paulo (Romanos 3.21-25), comenta
sobre o poder reduzido da vontade arbitrária do homem em escolher Deus:
[...] essas palavras são como raios contra a ideia do “livre-arbítrio”. Paulo faz
distinção entre a justiça conferida por Deus e a justiça que vem mediante a
observância da lei. O “livre-arbítrio” só poderia ser uma realidade se o homem
pudesse ser salvo mediante a observância da lei. Não obstante, Paulo demonstra
claramente que somos salvos sem dependermos, em absoluto, das obras da lei. Não
importa o quanto possamos imaginar um suposto “livre-arbítrio”, capaz de praticar
boas obras ou de tornar-nos bons cidadãos, Paulo continua asseverando que a justiça
dada por Deus é de natureza inteiramente diferente. É impossível que o “livre-
arbítrio” consiga resistir a assaltos de versículos como esses.20
No seu oitavo argumento do livro ao fazer menção novamente da carta de Paulo ao
Romanos, Lutero afirma que “estamos todos debaixo da condenação divina, em face da
pecaminosa desobediência de Adão. Estamos todos sujeitos a esta condenação, desde o nosso
nascimento, incluindo aqueles que são possuidores do “livre-arbítrio” - se é que pessoas assim
existem!”.21
Em seu décimo primeiro argumento do mesmo livro, Lutero enfatiza que a graça é
ofertada gratuitamente por Deus, sem qualquer merecimento ou esforço do homem. Ele diz
“A graça é gratuitamente ofertada a quem não a merece, nem é digno; não é conquistada por
qualquer esforço que o melhor e mais justo dentre os homens tenha tentado empreender”.22
João Calvino que ainda era bem jovem quando Lutero e outros reformadores já se
posicionavam em meio aquele período, teve um papel muito importante e de grande
influência na educação e teologia cristã. Por volta de 1536, Calvino escreveu diversos tratados
e sistematizações que envolviam o assunto da salvação e também manteve algumas ideias de
Agostinho. Ao tratar sobre a queda do homem e a necessidade da graça de Deus para a
conversão, Calvino afirmava que devido ao pecado de Adão, todos seus descendentes são
escravos do pecado e não podem escolher o bem sem a influência da graça.
[...] portanto, todos que descendemos de uma semente impura, nascemos
infeccionados pelo contágio do pecado. Na verdade, antes que contemplemos esta
luz da vida, à vista de Deus já estamos manchados e poluídos. Pois, “quem do
imundo tirará o puro?” Certamente, como está no livro de Jó [14.4], ninguém!23
[...] portanto, a vontade se mantém agrilhoada por essa servidão do pecado, e não
pode volver-se, muito menos aplicar-se ao bem, porque movimento desta natureza é
o princípio da conversão a Deus, que nas Escrituras toda ela se atribui à graça de
Deus.24

20 LUTERO, Martinho. Nascido escravo. São José dos Campos: Fiel, 2007, p. 26 e 27.
21 LUTERO, Martinho. Nascido escravo. São José dos Campos: Fiel, 2007, p. 31.
22 LUTERO, Martinho. Nascido escravo. São José dos Campos: Fiel, 2007, p. 33.
23 CALVINO, João. As Institutas ou Tratado da religião cristã. Edição Latina de 1559. 4 Volumes. São Paulo: Cultura Cristã, 2006,
livro II, cap. 2.5.
24 CALVINO, João. As Institutas ou Tratado da religião cristã. Edição Latina de 1559. 4 Volumes. São Paulo: Cultura Cristã, 2006,
livro II, cap. .3.5.
Além dos reformadores, certamente houveram diversos teólogos e escritores no
cristianismo que continuaram defendo que o homem por ser descendente de Adão e pecador
por “herança”, necessita da graça de Deus para agir com bondade e ser regenerado.
Jacó Armínio foi outro grande teólogo e professor de teologia na Holanda, que em
seus escritos, defendeu a necessidade da regeneração por meio da graça, em sua primeira
obra, Armínio afirmou que:

[...] em seu estado de descuido e pecado, o homem não é capaz de pensar, nem
querer, ou fazer, por si mesmo, o que é realmente bom; pois é necessário que ele
seja regenerado e renovado em seu intelecto, afeições e desejos, e em todos seus
poderes, por Deus, em Cristo, por intermédio do Santo Espírito, para que possa ser
corretamente qualificado para entender, estimar, considerar, desejar e fazer aquilo
que realmente seja bom. Quando ele é feito participante dessa regeneração ou
renovação, considero que, estando liberto do pecado, ele é capaz de pensar, de
querer e fazer aquilo que é bom, mas ainda não sem a ajuda continuada da graça
divina.25
Claramente o teólogo acreditava que o homem precisa da graça divina para fazer o que
é bom, pois somente através da graça, o homem poderá ser regenerado. Em sua segunda obra,
Armínio ao comentar sobre o livre-arbítrio defendeu que:

[...] o livre-arbítrio é incapaz de iniciar ou aperfeiçoar qualquer bem verdadeiro e


espiritual, sem graça. Para que eu não possa ser considerado, como Pelágio, como
usando de mentiras com respeito à palavra “graça”, quero dizer, com isto, aquilo que
é a graça de Cristo e que diz respeito à regeneração. Portanto, afirmo que esta graça
é simples e absolutamente necessária para o esclarecimento da mente, a devida
ordenação dos interesses e sentimentos, e a inclinação da vontade para o que é bom.
É esta graça que opera na mente, nos sentimentos e na vontade; que infunde na
mente bons pensamentos; inspira bons desejos às ações, e faz com que a vontade
coloque em ação bons pensamentos e bons desejos. Esta graça vai antes, acompanha
e segue; instiga, auxilia, opera o que queremos, e coopera, para que não queiramos
em vão. [...] esta graça inicia a salvação, promovendo-a, aperfeiçoando-a e
consumando-a. [...] confesso que a mente de um homem carnal e natural é obscura e
sombria, que os seus afetos são corruptos e desordenados, que a sua vontade é
obstinada e desobediente, e que o próprio homem está morto em pecados.26

Armínio inclusive teve uma grande preocupação em usar o nome de Pelágio para
desassociá-lo de suas ideias e posicionamentos, ele acreditava enfaticamente que a graça de
Deus é totalmente necessária para salvação e conversão do homem.

Para facilitar a análise e resumir o assunto abordado por todos os autores e teólogos
em estudo, o quadro abaixo traz a ilustração de cada posição e sistematização:

25 ARMÍNIO, Jacó. As obras de Armínio: volume 1. Tradução de Degmar Ribas. Rio de Janeiro: Casa Publicadora das Assembleias
de Deus, 2015. Título Original: The works of james arminius, vol.1, p. 231.

26 ARMÍNIO, Jacó. As obras de Armínio: volume 2. Tradução de Degmar Ribas. Rio de Janeiro: Casa Publicadora das Assembleias
de Deus, 2015. Título Original: The works of james arminius, vol. 2, p.554 e 555.
Autor ou
Personagem de Sobre o Pecado Original Sobre a Graça de Deus Sobre a Salvação
referência
Afirmou a depravação total
e a necessidade do novo A graça é ensinada, é A iniciativa da salvação é de
Jesus Cristo
nascimento. O pecado de Deus quem distribui Deus, é ele quem convence
Adão afetou os demais mediante a fé. o homem do pecado.
seres humanos.
Afirmou a depravação total
e a necessidade do novo A graça é ensinada, é A iniciativa da salvação é de
Apóstolo Paulo
nascimento. O pecado de Deus quem distribui Deus, é ele quem convence
Adão afetou os demais mediante a fé. o homem do pecado.
seres humanos.
Afirmou a depravação total
e a necessidade do novo A graça é ensinada, é A iniciativa da salvação é de
Agostinho de Hipona
nascimento. O pecado de Deus quem distribui Deus, é ele quem convence
(354-430)
Adão afetou os demais mediante a fé. o homem do pecado.
seres humanos.
A iniciativa da salvação e
A graça é negada. Não é
Negou a depravação total. dependência é totalmente do
essencial para a salvação,
Pelágio de Bretanha O pecado de Adão não homem e depende somente
mas os bons exemplos de
(350-423) afetou os demais seres dele, pois ele possui livre-
Cristo e dos santos são
humanos. arbítrio. Deus não tem
importantes.
participação na salvação.

Afirmou a Depravação A iniciativa da salvação e


parcial. O pecado de Adão dependência é da boa
A graça é ensinada,
João Cassiano afetou os demais seres vontade do homem. Deus
porém o homem é quem
(360-435) humanos, mas não ao ponto participa da Salvação,
deve busca-la.
de precisar depender de porém é o homem que deve
Deus para ser salvo. dar o primeiro passo.
Afirmou a depravação total
e a necessidade do novo A graça é ensinada, é A iniciativa da salvação é de
Martinho Lutero
nascimento. O pecado de Deus quem distribui Deus, é ele quem convence
(1483-1546)
Adão afetou os demais mediante a fé. o homem do pecado.
seres humanos.
Afirmou a depravação total
e a necessidade do novo A graça é ensinada, é A iniciativa da salvação é de
João Calvino
nascimento. O pecado de Deus quem distribui Deus, é ele quem convence
(1509-1564)
Adão afetou os demais mediante a fé. o homem do pecado.
seres humanos.
Afirmou a depravação total
e a necessidade do novo A graça é ensinada, é A iniciativa da salvação é de
Jacó Armínio
nascimento. O pecado de Deus quem distribui Deus, é ele quem convence
(1560-1609)
Adão afetou os demais mediante a fé. o homem do pecado.
seres humanos.
Fonte: o próprio autor.

4. A SOTERIOLOGIA NO CRISTIANISMO BRASILEIRO


É importante destacar que todos os ensinamentos supracitados desde a escritura, dos
pais da igreja até os ensinos dos teólogos europeus, afetaram diretamente a teologia das
religiões cristãs no Brasil. Desde a igreja católica romana, evangélicos de missão, pentecostais
e até neopentecostais. Muitas denominações protestantes vindas da Europa e da América do
Norte, adotaram e mantiveram de alguma forma, o mesmo sistema soteriológico e a mesma
crença no pecado original e na dependência da graça divina para a salvação.
No entanto, o cristianismo se tornou popular e além do grande crescimento das
denominações, muitas religiões pseudocristãs e seitas foram fundadas, e infelizmente novas
doutrinas e adaptações de interpretações bíblicas foram disseminadas, inclusive nas
denominações evangélicas e protestantes que possuíam unanimidade de um grande princípio
oriundo da reforma protestante, o Sola Scriptura (somente a escritura).
Os católicos romanos, por exemplo, apesar de não aderirem ao princípio da reforma,
logicamente por não concordar com este princípio, ao menos possuem doutrinas distintas dos
evangélicos, pois entendem que assim como a bíblia, o magistério da igreja e a tradição são
importantes e possuem autoridade e poder de interpretação em paridade com a bíblia.27
A Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias, mais conhecida como a Igreja
Mórmon, também possui de alguma forma a “desculpa” de incluir argumentos ou divergir da
escritura, pois além da bíblia, eles possuem o “Livro de Mórmon” que para a maioria dos
adeptos, é um livro tão importante e de autoridade como a escritura bíblica.28
O Kardecismo que também possui muitos adeptos no Brasil, também não precisaria
aderir ao princípio do Sola Scriptura, pois além de acreditar em sua própria autoridade como
“chave de interpretação”, tem os “espíritos superiores” como intérpretes e sistematizadores de
suas revelações e corpo doutrinário.29
Em termos estatísticos, o IBGE em seu censo demográfico de 2010, apontou que
22,4% dos brasileiros são evangélicos: 4,9% (evangélicos não determinados), 4,1%
(evangélicos de missão) e 13,4% (evangélicos pentecostais/neopentecostais).30
Considerando estes números, e algumas denominações evangélicas, foi possível
analisar o discurso e a pregação de alguns líderes religiosos do Brasil que aparentemente
ainda apresentam o mesmo discurso pelagiano e semipelagiano, enfatizando as obras humanas
e colocando o homem e seus méritos acima de Deus, negligenciando a graça na salvação.

Em uma pesquisa realizada pelas mídias sociais com diversas religiões cristãs do
31
Brasil , foi possível observar que muitas pessoas ainda atribuem a iniciativa da salvação ao
homem e algumas pessoas chegam a acreditar que Deus não tem participação na salvação. A
pesquisa foi realizada com 400 pessoas, e apresentou o seguinte resultado:

27 PETERS, Joel. Conhecendo a bíblia sagrada. Disponível em: https://www.bibliacatolica.com.br/conhecendo-a-biblia-sagrada/60/.


Tradução de Rondinelly Ribeiro. Acesso em: 11 outubro de 2023.
28 CALLISTER, Tad R. O livro de Mórmon – um livro de Deus. Disponível em: https://www.churchofjesuschrist.org/study/general-
conference/2011/10/the-book-of-mormon-a-book-from-god?lang=por. Acesso em: 9 outubro de 2023.

29 KARDEC, Allan. O evangelho segundo o espiritismo. Tradução de Salvador Gentile. São Paulo: Ide, 2008, p. 8 e 9.

30 IBGE. Censo demográfico 2010. Disponível em: https://censo2010.ibge.gov.br/apps/atlas/pdf/Pag_203_Religi


%C3%A3o_Evang_miss%C3%A3o_Evang_pentecostal_Evang_nao%20determinada_Diversidade%20cultural.pdf. Acesso em: 7 outubro de
2023.
31 FREIRE, Leonardo. Questionário sobre as religiões cristãs do Brasil. 2023. Disponível em:
https://docs.google.com/forms/d/e/1FAIpQLSfvsxedeJALKL6PG7TOtU4NFZaDPSzHNfhryrV7fk201GnxJw/viewform. Acesso em: 7
outubro 2023.
Fonte: o próprio autor.
Além da pesquisa, ao analisar algumas pregações e ensinamentos disponíveis nas
mídias sociais, é possível observar discursos “perigosos” que aparentemente induzem muitas
pessoas a acreditar que elas necessitam fazer “isto” ou “aquilo”, antes de qualquer coisa, para
serem salvas.
4.1 FORA DA IGREJA “CATÓLICA” NÃO HÁ SALVAÇÃO
No vídeo “Fora da igreja existe salvação?”, o padre católico Paulo Ricardo32 que é
muito influente no Brasil, afirma que para alguém ser salvo, é necessário fazer parte da igreja
“católica”, e neste sentido, ele faz o uso do termo “católica” como um sinônimo de “igreja
católica romana”, levando a entender que só existe a igreja romana como a igreja verdadeira
para trazer salvação ao homem e que segundo ele, as demais igrejas, principalmente as
denominações protestantes, estariam em rebeldia ou até mesmo desviadas da verdade.
Sabemos que em uma simples leitura do novo testamento, encontramos igrejas já
instituídas em diversas regiões, sem a associação com Roma ou até mesmo sem a união direta
com o estado, como por exemplo as igrejas de Jerusalém (Atos 6:7) e Antioquia (Atos 11:26).
Além disso, é necessário considerar que a igreja chamada “corpo de Cristo” não é uma
instituição denominacional exclusiva, mas um corpo “universal” de indivíduos regenerados,
cujo o cabeça do corpo é Jesus Cristo.
4.2 SEM DÍZIMO, SEM SALVAÇÃO
Em uma pregação de um líder religioso neopentecostal brasileiro muito conhecido
como missionário R. R. Soares, ao tratar sobre a relação do dízimo com a salvação, ele
afirmou aos seus ouvintes que todos os não dizimistas estariam fadados ao inferno, pois quem
efetivamente foi salvo “Deus toca e a pessoa sente a quantia. Quantos são candidatos a serem
dizimistas e não são e nunca vão ser? Porque eles recusaram a chamada de Deus”. Neste
sentido, R. R. Soares33 apresenta um discurso de aparente opressão aos seus ouvintes
chegando a dizer que “quem sente o toque e não dá o dízimo, vai dar conta a Deus. Quem
estava dando e abandonou, vai dar conta a Deus. Eu lamento, mas você não vai entrar no
reino dos céus”. Neste discurso, ele desconsidera a graça de Deus, pois enfatiza o ato de
dizimar como essencial evidência de salvação.

32 RICARDO, Padre Paulo. Fora da igreja existe salvação? 2014. Disponível em: https://youtu.be/TduVDdSNYNI?t=1720. Acesso
em: 18 outubro de 2023.
33 SOARES, Romildo Ribeiro. Missionário R. R. Soares ao vivo em portão – Curitiba, PR (27/12/2017 – 09h). 2017. Disponível
em: https://youtu.be/J4D1-wXMBIw?t=1608. Acesso em: 18 outubro de 2023.
4.3 EU NÃO FAÇO, DEUS NÃO FAZ
Um outro argumento utilizado por muitos grupos e denominações evangélicas é o
discurso do “Eu não faço, Deus não faz”. Em uma de suas pregações durante um congresso
que reuniu em torno de cinquenta mil pessoas, o conferencista e pastor pentecostal Silas
Malafaia34, ao pregar sobre o tema “questões espirituais que dependem das nossas atitudes”, o
pastor em diversos momentos da pregação, induz os seus ouvintes a declararem o jargão “Eu
faço, Deus faz. Eu não faço, Deus não faz”. Ao final de sua mensagem, ao fazer o “apelo”, ele
cita o texto de Apocalipse 3:20 que diz: “Eis que estou a porta, e bato: se alguém ouvir a
minha voz, e abrir a porta, entrarei em sua casa, e com ele cearei, e ele comigo”. Após a
citação ele faz o convite aos ouvintes declarando que “[...] a decisão é sua. Ninguém pode
decidir por você, nem Deus. Ele vai agir conforme a sua decisão. Eu faço Deus faz, eu não
faço, Deus não faz. Deus vai reagir a sua ação”.
Neste sentido, Malafaia aparenta apresentar um discurso muito próximo à ideia
semipelagiana, onde a iniciativa e dependência da salvação é do homem. Deus participa da
salvação, porém é o homem quem deve dar o primeiro passo, pois Deus reage a ação humana.
Talvez com a intenção de preservar a responsabilidade moral do homem sobre suas
escolhas, Malafaia usa enfaticamente o discurso da ação e “decisão” humana, porém ele não
parece considerar a soberania de Deus e a necessidade prévia da graça divina agindo no
homem, como nos escritos e ideias apresentadas por Jesus Cristo, Apóstolo Paulo, Agostinho,
Lutero, Calvino e Armínio.
CONCLUSÃO
Considerando todo o discurso, desde a fundamentação teórica, bem como a pesquisa e
análise realizada pelas mídias sociais e também os ensinos e discursos de alguns líderes de
influência no Brasil, foi possível concluir que a soteriologia brasileira precisa de
uniformidade. Acredito que a difusão e aderência dos cinco pilares ou dos “cinco solas”
oriundos da Reforma Protestante, seja um excelente ponto de partida para trazer coesão e
equilíbrio à mensagem de salvação pregada pela igreja brasileira, pois muitas denominações
evangélicas ainda desconhecem os conceitos da reforma que foram fundamentais para
contrapor muitos ensinamentos errôneos aplicados pelo catolicismo romano e que ainda
geram confusão teológica.
Deus já revelou sua vontade e tudo o que o ser humano precisava conhecer sobre a
salvação. Este conteúdo está apenas na Bíblia (Somente a Escritura). Cristo é e continua
sendo o único mediador diante de Deus e o “caminho exclusivo” para a salvação (Somente
Cristo). A Graça (Somente a Graça) e a Fé (Somente a Fé) são distribuídas unicamente por
Deus e são totalmente necessárias para a salvação dos seres humanos, onde sem elas, nenhum
homem por maior ou “bondoso” que seja, poderá obter por seus próprios méritos. A salvação
é pela Fé, sendo esta um dom de Deus e não do homem, que só pode ser efetuada pela obra e
redenção de Cristo e pela Graça de Deus. E, além disso, todo o processo, desde a salvação do
homem, até a consumação dos séculos, resultará na Glória de Deus (Glória somente a Deus).

34 MALAFAIA, Silas. Questões espirituais que dependem das nossas atitudes III.flv. Salvador, 2009. Disponível em:
https://youtu.be/EwzMl5DKI8Y?t=335. Acesso em: 18 outubro 2023.

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