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Identidades fatais

Como a ação afirmativa derrubou a URSS e ameaça o mundo de hoje

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Índice

O aviso do frio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 5

1. A história da salada russa (ou como


a Rússia se tornou um império multicultural) . . . . . . . . . . . . . . . . . 9

A pequena Rússia fez grande . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 9

Nacionalismo, as primeiras sementes da desintegração . . . . . . . . . 11

2. Ecce Homo Sovieticus . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 16

Quando o poder e a ideologia dão as mãos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 17

Como os comunistas universalistas ‘fabricaram’


os povos indígenas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 18

Discriminação positiva, uma invenção soviética . . . . . . . . . . . . . . . 20

Aqueles que discordam: por favor, arrependam-se . . . . . . . . . . . . . 22

Cancelamento da cultura, inseparável da promoção


das minorias . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 24

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3. A verdade por detrás da fábula da «amizade entre os povos . . . . 28

Discriminação positiva, uma fábrica de vítimas perpétuas . . . . . . 28

Quando a discriminação positiva semeia


a discórdia entre «irmãos» . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 31

A discriminação positiva como instrumento de purga . . . . . . . . . . 34

Auto-censura e hipocrisia no final da estrada . . . . . . . . . . . . . . . . . 35

4. Quando a panela de pressão de identidade explode . . . . . . . . . . . . 39

A vingança das nacionalidades é um prato


melhor servido frio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 40

A fragmentação sem fim . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 41

5. Então e agora: discriminação positiva como passaporte


para conflitos de identidade perpétuos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 45

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O aviso do frio
Recentemente, a imprensa tem acompanhado as reviravoltas de um caso
que fala muito sobre o que os Estados Unidos se tornaram. Em 2015, bri-
lhantes estudantes asiático-americanos reclamaram que tinham sido re-
cusados pelas mais prestigiadas universidades americanas, alegando que
certos lugares estavam reservados para negros e hispânicos. Alguns anos
mais tarde, após uma investigação, o governo federal seguiu o processo,
processando a Universidade de Yale por discriminação racial. Uma decisão
apoiada pelo Presidente Trump, que estava então envolvido numa guerra
cultural em que todos os meios eram utilizados para realçar os paradoxos
do campo progressista. Em fevereiro passado, o Presidente Biden decidiu
cancelar a ação judicial movida sob seu predecessor. Além do que diz so-
bre o novo líder americano, assim como o antigo, há algo de absurdo nos
asiático-americanos que atacam um sistema de ação afirmativa destinado
a promover indivíduos de minorias.

Mas por detrás do aparente absurdo, este episódio mostra a realidade de


uma sociedade onde as relações entre cidadãos são cada vez mais gover-
nadas pela pertença a uma identidade sobrevalorizada. Esta história está
longe de ser anedótica na medida em que a América, e em menor escala a
Europa, são hoje atravessadas por movimentos minoritários barulhentos
e determinados cujo objectivo proclamado é a emancipação de categorias
«dominadas» devido ao seu género ou raça.

Acostumámo-nos na Europa a olhar de perto para os Estados Unidos e


assumir que o que quer que venha de lá acabará por se instalar aqui. Mais
vale olhar para o Oriente, e para um passado não tão distante, para ver que
estas histórias não são nada de novo. Como o espião do frio de John Le
Carré, a Rússia tem coisas para nos contar sobre a forma como o Ocidente
se comporta.

Qualquer pessoa familiarizada com a história da União Soviética não pode


deixar de ver as semelhanças entre algumas das práticas dos chamados
movimentos progressistas e as tentativas dos líderes bolcheviques de trans-
formar a sociedade para se conformar à sua ideologia. Ao longo da sua

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história, a URSS tem sido perturbada por debates semelhantes aos que se
desenrolam hoje sobre «minorias». Foi mesmo o laboratório de uma polí-
tica de discriminação positiva a uma escala colossal, ligada à questão das
nacionalidades. Se falamos tão pouco desta política, é porque o seu fracas-
so foi engolido pelo fracasso geral da experiência soviética. Uso delibera-
damente a palavra experiência para descrever um empreendimento cujo
objetivo era transformar radicalmente o homem com base numa ideologia
de felicidade, progresso e emancipação.

Porquê contar esta história hoje? A história, para citar Nietzsche, pode ser
vista como um eterno retorno. Neste caso, o eterno retorno do pior. Não
se trata de dizer que os jovens activistas progressistas, por gosto da pureza
ideológica, querem cobrir os Estados Unidos com gulags para reeducar os
culpados (embora os ataques de auto-flagelação em que alguns professo-
res se entregam aos campi tenham um ar de déjà vu quando se pensa nos
julgamentos estalinistas ou, melhor ainda, na China de Mao...) A questão
aqui é destacar as lógicas comuns. Para ilustrar, através de um desvio his-
tórico, os efeitos de uma política de discriminação positiva instituída por
empresários culturais minoritários mas visíveis, em nome de um pensa-
mento generoso. Para mostrar como ideias semelhantes às que estão sendo
expressas hoje levaram a desastres.

Uma das lições desta história é que a promoção das identidades actua
como uma força poderosa para o dissenso, e mesmo para a desintegração
das sociedades. Uma força cujos efeitos são sentidos a longo prazo. Neste
momento, basta mencionar uma disputa para a qual terei a oportunidade
de voltar, a que existe entre a Arménia e o Azerbaijão. Este conflito terri-
torial de intensidade variável, que viveu recentemente um novo episódio
sangrento, tem a sua origem na política implementada pelos bolcheviques
nos anos 20. Um século depois, os relatos desses erros centenários ainda
estão sendo resolvidos pelas armas.

Eu conheço bem esta história. Nasci sob o camarada Stalin, no que ainda
era a União Soviética. Durante a minha juventude, a propaganda estava
em pleno andamento para mascarar o fracasso de um projeto condena-
do por suas premissas ideológicas. Uma ideologia que ainda era vivida
pelos seus promotores no modo de fé, embora já seriamente embotada.

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Hoje, esta fé está muito viva entre os defensores de um progressivismo
messiânico que combina questões raciais, sexuais e de género numa pers-
pectiva de libertação individual e colectiva, um movimento que agora é
referido como «acordado». E como nesta época tão preocupada com a
identidade, é sempre necessário dizer de onde se está falando, digamos que
nasci nos Urais em uma família ateísta judaica. Vamos acrescentar que sou
branco, de meia-idade, heterossexual (acho que agora dizemos cisgênero) e
isso vai ajudar a me situar nos olhos de algumas pessoas (acho que também
escrevemos assim).

Mas já chega de piadas. Vou parar de tocar o velho peido, mesmo que o hu-
mor seja uma arma sedutora na cara de pessoas que às vezes não o têm. Se
estes detalhes são importantes para o leitor, é apenas para dizer que eu fui
pessoalmente marcado pela história que quero contar aqui. Uma história
que começa há muito tempo, com o nascimento do estado russo...

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Cartaz soviético de 1932, lê-se:
«Trabalhadores de todos os países e colónias oprimidas erguem a bandeira de Lenin».

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1. A história da salada russa
(ou como a Rússia se tornou
um império multicultural)
Entre as memórias da minha juventude soviética, ainda tenho em mente
imagens de festividades concebidas para celebrar a diversidade dentro des-
te imenso estado que se estendeu por onze fusos horários. Bailes, Armé-
nios, Georgianos, Azeris, Quirguizes, Yakuts, Esquimós, Tajiques, Tatares...
Representantes de cada povo desfilaram com os seus trajes tradicionais, os
seus instrumentos musicais, as suas danças folclóricas. Que espectáculo
foi! A população da União era um vasto mosaico que por vezes parecia
cobrir toda a diversidade humana. Se os americanos tinham o seu caldeirão
cultural, os soviéticos também tinham o seu. Uma verdadeira salada russa,
se quiseres usar a metáfora culinária. Mas estas odes à amizade e diversi-
dade encenadas pelo Partido escondiam, como na América, uma realidade
mais escura: a de um multiculturalismo frustrado.

Eu não estaria dizendo nada se dissesse que a coabitação de pessoas de


diferentes culturas e tradições é um dos grandes desafios enfrentados pelas
sociedades contemporâneas. Se você está lendo isso, é porque você está
ciente disso. Mas talvez você desconheça como um país com o estereótipo
do homem de cabelos loiros e olhos azuis veio ocupar um território que se
estende do Cáucaso ao Círculo Ártico, das planícies da Europa Oriental
à fronteira com a China, com toda a diversidade humana que habita esse
território. Para compreender isto, precisamos de dar um rápido passeio
pela história russa. Uma história que, como veremos, traz as sementes de
muitas perguntas que continuam a ser feitas.

A pequena Rússia fez grande


A pequena Rússia vai se tornar grande, se Deus lhe der vida. Se me em-
prestam este ditado francês, é porque me parece resumir a forma como o
projecto imperial russo se desenvolveu: uma expansão territorial contínua

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a partir de um pequeno feudo em torno de Moscovo, tudo colocado sob os
auspícios de Deus (que provavelmente não pediu muito).

De facto, o Estado russo há muito que se confunde com a religião ortodo-


xa, convencido de que Moscovo é a Terceira Roma, o autêntico centro do
cristianismo, e que o Czar (palavra derivada de César) é o legítimo her-
deiro dos Imperadores romanos. Isto foi o suficiente para dar uma vocação
imperialista aos monarcas mais beligerantes! Ivan IV, conhecido como o
Terrível, certamente não era melífero. Se seu nome merece ser mencio-
nado aqui, é porque ele inaugurou o expansionismo russo moderno ao
conquistar as cidades turco-mongóis de Kazan e Astrakhan. Por que este
episódio é importante na história em que estamos interessados? Porque,
pela primeira vez, os russos foram confrontados com a questão da alteri-
dade: as novas populações subjugadas tinham uma maioria muçulmana. A
partir daí, surgiu a questão que tinha agitado as elites imperiais desde os
romanos, desde Alexandre: como assegurar a sua integração no império
nascente? Deve-se tentar convertê-los? Devem ser assimilados pela força?
Ou exterminá-los (que é exactamente o que Ivan, que não usurpou o seu
apelido, fez)? A solução escolhida para unir estas populações à coroa foi
integrar as suas elites no sistema imperial. Em troca da sua lealdade ao
Czar, os chefes tártaros receberam um papel político nos territórios con-
quistados. A maioria deles até se converteu à ortodoxia, dando origem a
algumas das mais prestigiadas famílias da aristocracia russa.

Após as conquistas de Ivan, os seus sucessores continuaram o seu trabalho,


lançando as suas tropas em três direcções: para Oeste, para os territórios
bálticos e polacos, para Sul, para o maciço do Cáucaso, e para Leste, para a
Sibéria (o Extremo Oriente russo!). Esta história fascinante, que se estende
por mais de três séculos, vê a Rússia tornar-se o que ainda hoje é: uma
potência que conta na Europa, enquanto está firmemente ancorada na Ásia.

À medida que o território sob a coroa se expandia, a diversidade dos seus


habitantes aumentava. À medida que o mundo caminhava para a moderni-
dade, a heterogeneidade dentro do Império Russo já era notável. No final
do século XVIII, a percentagem de eslavos orientais era de 84%. Esta
proporção caiu para 68% nas primeiras décadas do século XIX. Já é difícil
falar de um país dominado por pessoas loiras e de olhos azuis!

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Cada vez que um novo povo se encontrava na órbita do Czar, surgiram as
mesmas questões: como garantir a coerência do todo? Como manter a cal-
ma e a harmonia entre os habitantes e, sobretudo, em relação a Moscovo,
depois São Petersburgo? A resposta estava na atribuição de vários status,
mais ou menos autônomos, aos territórios conquistados, e na sedução das
elites locais. Catarina II, uma das nossas monarcas mais astutas (os porta-
-vozes de um feminismo de salão não pensam o suficiente nela quando ela-
boram as suas listas de «mulheres poderosas»), conseguiu domar a nobre-
za germânica, oferecendo-lhes posições privilegiadas na corte. Ao mesmo
tempo, ela distribuía títulos nobres aos cossacos ucranianos que estavam
sob seu controle. A unidade foi comprada com guizos e privilégios.

Longe de mim negar que houve cabo de guerra, protestos e revoltas: o


exemplo da Polónia, católica, corajosa e inócua, é muito revelador a este
respeito. Mas de facto, durante os primeiros séculos do Império, numa
paisagem dominada pelo feudalismo, a questão das periferias imperiais
foi reduzida principalmente a uma questão entre a coroa e as aristocracias
locais. Tudo mudou no século XIX, com a ascensão do nacionalismo, que
introduziu um novo parâmetro na equação: o povo.

Nacionalismo, as primeiras sementes


da desintegração
Eu amo os franceses, mas tenho que admitir com tristeza (e ironia) que
todas as tensões que se seguirão são em parte devidas a eles e à sua Revo-
lução! Pois esta Revolução terá sido emulada ao longo do século e até mais
além. O conjunto de 1848 é uma ilustração disso, que viu surgir a Prima-
vera do Povo, um vasto movimento revolucionário que logo se espalhou
por todo o continente.

Menciono este momento particular da história europeia porque contém


dentro dela as duas facetas do nacionalismo, um ideal político que sempre
me pareceu ambíguo. O nacionalismo é tanto um movimento entusiasta
pela liberdade e autonomia como uma visão estreita do mundo, onde cada
pessoa cultiva a sua própria especificidade. Esta especificidade é por vezes

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ténue: um historiador como Eric Hobsbawm (um autor fascinante, embora
um marxista inveterado, ao ponto de ter querido ser enterrado a algumas
sepulturas longe do próprio Marx) mostrou até que ponto o conceito de na-
ção é o resultado de um imaginário construído. O nacionalismo, na maio-
ria dos casos, é uma questão de elites que procuram legitimar a sua tomada
do poder capitalizando sobre «o povo» (um velho refrão). Foi uma época
em que os poetas exaltaram um passado ainda mais glorioso porque mar-
cado por derrotas, em que os arqueólogos transformaram o mais modesto
túmulo no equivalente do palácio de Agamémnon, em que os linguistas
recolheram pedaços de folclore aqui e ali, confiando no espírito científico
vigente para classificar os povos como se classificariam plantas ou insetos.

Mas os factos são teimosos: embora se tratasse em grande parte de uma


reinvenção, teve um efeito na forma como a diversidade era gerida dentro
dos antigos Impérios. De súbditos imperiais, os súbditos do Czar (reco-
nhecidamente ainda poucos em número) seduzidos por teses nacionalistas
descobriram subitamente que eram nacionais de uma nação que reivindi-
cava a sua diferença e o seu direito à autonomia, se não à independência.
Essas idéias eram absurdas para as elites leais ao Império, que acredita-
vam que não deveria ser feita nenhuma diferença entre seus habitantes, aos
quais era igualmente prometida educação e progresso sob a benevolente
orientação do czar iluminado. Em reacção à ascensão do nacionalismo lo-
cal, desenvolveu-se em Moscovo um nacionalismo imperialista, ansioso
por lidar com esta nova questão dentro do quadro existente, com as obses-
sões da unidade e da estabilidade.

Basicamente, o que está sendo posto em prática a partir deste período é


uma nova relação entre o centro e a periferia. Proporcionalmente, eu vejo
semelhanças com os debates atuais. Nas sociedades multiculturais do sécu-
lo XXI, indivíduos de diferentes culturas e tradições vivem juntos em torno
de um «núcleo» que pode, sem medo do politicamente correto, ser chama-
do de «maioria cultural», ou seja, os descendentes daqueles que ajudaram
a construir essas nações. Organizar relações harmoniosas entre pessoas de
diferentes origens é o desafio que enfrentam as democracias multiculturais.
Este desafio tem sido enfrentado de forma muito semelhante pelos impérios
europeus, especialmente quando os movimentos nacionalistas entraram

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em jogo. A comparação não é razão, mas é interessante observar como se
formaram as relações entre o centro imperial e suas periferias, que foram
presas da tentação nacionalista. Pois este desenvolvimento diz muito sobre
a forma como duas concepções ainda estão em vigor, uma enfatizando a
emancipação através da especificidade, a outra através da universalidade.

O início do século XIX russo, como eu disse, foi marcado pelo desejo de
expor o maior número possível de sujeitos imperiais à cultura e à língua
russas. A palavra russa não deve ser entendida aqui num sentido étnico,
mas sim como sinónimo de universalismo. Sabemos o quanto este termo é
hoje condenado pelos nossos progressistas, na medida em que esconde um
desejo desonesto de dominação. Esta é mais ou menos a forma como os na-
cionalistas acolhem as tentativas imperiais de «trazer-lhes o Iluminismo».
Por todo o Império, as costuras estão a rachar. Nas fronteiras ocidentais,
os finlandeses e os polacos, que gozavam de uma relativa autonomia pro-
pícia ao desenvolvimento do discurso nacionalista, foram unidos no seu
protesto pelos ucranianos, os bielorrussos e os povos bálticos. No Leste,
a russificação colidiu com o jadidismo, um movimento que insistia tan-
to na modernização como no papel do Islão nos antigos reinos tártaros.
Confrontado com protestos crescentes, o Império contra-atacou. Sob o
reinado de Alexandre III, a russificação assumiu cada vez mais a forma de
uma normalização forçada, que deveria conter qualquer indício de eman-
cipação. Em certos círculos próximos ao governo, a idéia de uma Rússia
messiânica que não deveria ter medo de assumir seu domínio cultural e
religioso foi reavivada. Isto levou à adoção de medidas discriminatórias,
particularmente contra judeus e poloneses. À medida que esta política ga-
nhava força, os nacionalistas endureciam ainda mais as suas posições.

Ao nacionalismo cultural dos primeiros tempos foi acrescentada a noção


de etnicidade, uma variante biológica baseada no trabalho mal digerido
de Darwin: a competição entre espécies seria enfrentada pela competição
entre os povos, vistos como entidades com traços únicos e distintivos. Isso
torna obsoleta qualquer idéia de assimilação, em favor de uma lógica de
luta permanente. E assim, ao longo do século XIX, as diferenças, mal-en-
tendidos e desconfiança cresceram entre os apoiantes de cada concepção
de «viver juntos», como então se previa.

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A ideia desta visão rápida não é distribuir pontos bons e maus (bons im-
perialistas universalistas vs. maus nacionalistas estreitos). É simplesmen-
te para destacar a permanência de um fenómeno que vemos hoje em dia
no trabalho quando nos interessamos pelos debates sobre a identidade: a
dialéctica que leva cada lado a radicalizar as suas posições ao ponto de
levar o conflito ao extremo.

A palavra dialéctica, percebo enquanto a escrevo, não teria sido negada


pelo homem que está prestes a entrar nesta história para revelar o seu ter-
rível sabor: refiro-me a Vladimir Ilitch Ulyanov, conhecido como Lenine.

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Cartaz soviético de 1955, lê-se:
«Todos saúdam a inquebrantável amizade dos povos!»

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2. Ecce Homo Sovieticus
1917 marcou uma ruptura na história da Rússia, da qual o país ainda não
se recuperou totalmente. Nem o mundo, já agora. Em outubro desse ano
decisivo, o impensável aconteceu com a tomada do poder por uma minoria
violenta, cheia de ideologia, determinada a demolir a velha ordem para
estabelecer um hipotético paraíso terrestre. Uma minoria tão consciente
de ser assim, que por uma antifrase tão saborosa quanto cruel, eles se cha-
mavam bolcheviques (maioria, em russo).

Assim que chegaram ao poder, os bolcheviques começaram a criar um


novo homem. Um homem que o escritor Alexander Zinoviev descreveu
(ironicamente) como Homo Sovieticus. Para alguém que se aproxima desta
história de longe, com imagens da Guerra Fria nos olhos, o Homo Sovieti-
cus parece um indivíduo cinzento e uniforme, cujas todas as peculiarida-
des foram derretidas na luta para ‘construir o socialismo’. Não é surpreen-
dente pensar assim quando se conhece a base da ideologia bolchevique, tal
como foi estabelecida por Lenine, com base em teorias marxistas. Todos os
homens são iguais. Esta igualdade deve ser estabelecida voluntariamente
e, sobretudo, pela força. A única divisão que conta é aquela entre os bur-
gueses e os proletários, até que essa divisão desapareça na sociedade co-
munista, um objetivo para o qual todos devem contribuir sob a orientação
firme, mas benevolente, do Partido. Isto, você pode dizer, consignará os
conceitos de identidade, raça e nação ao cemitério de idéias extintas. Isto é
o suficiente para colocar em segundo plano a disputa sobre nacionalidades
que assolou as últimas décadas do Império Russo.

Bem, de maneira nenhuma! Os novos senhores da Rússia não farão nada


para extinguir o surto de nacionalismo. Pelo contrário, vão acelerá-la, en-
dossá-la e dar-lhe força de lei na organização do país e na sociedade como
um todo. Eles se aplicarão a colar etiquetas artificiais nas costas dos cida-
dãos, dos quais o mais surpreendente, o mais grosseiramente contrário ao
pensamento marxista, é a categoria de etnia (mesmo que prefiram falar de
nacionalidade). Como sempre acontece com os bolcheviques, este tour-de-
-force deve-se a uma mistura de cálculo político e contorções intelectuais
susceptíveis de provocar um lumbago no mais flexível dos iogues.

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Quando o poder e a ideologia dão as mãos
Cálculo político primeiro: os anos seguintes ao golpe de Estado foram deli-
cados para os bolcheviques. Eles tiveram que enfrentar uma resistência fe-
roz, com o resultado de que o país foi mergulhado numa Guerra Civil que
mataria entre 8 e 20 milhões de pessoas. Mas por mais que pudessem ser
descritos como incompetentes, corruptos e assassinos, Lênin e sua gangue
não poderiam ser privados de ter sido brilhantes táticas, supremamente
hábeis na conquista e preservação do poder. Pois num contexto difícil para
o seu nascente estado proletário, os novos mestres do Kremlin iam jogar
conscientemente a carta das nacionalidades para salvar a sua revolução.

As forças rebeldes contra os bolcheviques (os famosos Brancos, que nada


têm a ver com aqueles que hoje são denunciados em todo o lado, embo-
ra...) podem estar divididas, mas um princípio os une: a sua crença numa
Rússia única e indivisível. A partir daí, os Vermelhos confiaram nos líderes
nacionalistas das regiões periféricas para estabelecer o seu domínio. Uma
vez terminada a guerra, os bolcheviques ficaram tão impressionados com
o impacto do discurso nacionalista sobre certas partes da população que
defenderam o «direito dos povos à autodeterminação». Para eles, era uma
forma de canalizar uma força cujo potencial de mobilização entre as mas-
sas adivinhava, ao mesmo tempo que enfraquecia o «chauvinismo do gran-
de poder», aquele grande espírito russo que carregava consigo a ameaça de
um retorno à velha ordem.

Mas como fazer este programa maquiavélico implacável coabitar com uma
ideologia que supostamente reconhece apenas um tipo de divisão, aque-
la que atravessa as classes? Um teórico soviético resolve esta contradição
recorrendo a uma fábula própria: tal como existe colesterol bom e mau,
é necessário, diz ele, «distinguir entre o nacionalismo da nação opressora
e o da nação oprimida, entre o nacionalismo de uma nação grande e o de
uma nação pequena». O nosso brilhante dialéctico continua a dizer, num
estilo reconhecível por todos, que para conseguir uma atitude «verdadeira-
mente proletária», «é necessário não só ter igualdade formal» mas também
«compensar, de uma forma ou de outra, pelo comportamento (...) pela des-
confiança, desconfiança e mágoas que, ao longo da história, foram geradas

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entre o povo oprimido pelo governo da nação imperialista». Este teórico
que hoje fala como defensor do pensamento descolonial é o próprio Lenine,
em 1922, num livro intitulado A Questão das Nacionalidades e Autonomia.

Assim, para justificar o destino especial que pretendia reservar para as


nacionalidades na sua futura sociedade ideal, o arquitecto da Revolução
associou o colonizador russo ao antigo mestre burguês na figura do «opres-
sor». Tal como a «culpa branca» agora promovida pelo movimento Woke,
esta culpa russa estende-se a todos os russos étnicos, independentemente
do seu estatuto social e em flagrante contradição com a teoria marxista.
Para os novos inquisidores, a figura do opressor é ainda mais conveniente,
pois pode ser dado qualquer rosto que eles queiram. Vemos isso hoje com
certos proponentes de um progressivismo tingido de ideologia descolonial.
Confesso ter dificuldade, ouvindo os mais virulentos entre eles, em saber
quem é o opressor cujos crimes eles denunciam constantemente. O estado
‘pós-colonial’? O «sistema capitalista» que é a força motriz ou o cúmplice?
Alguma pessoa ‘branca’?

Como os comunistas universalistas ‘fabricaram’


os povos indígenas
Mas vamos voltar um século atrás, a uma Rússia que agora estava pronta
para a implementação das teorias marxistas-leninistas. Uma vez estabe-
lecidos os fundamentos ideológicos para um tratamento diferenciado de
acordo com a nacionalidade, os mestres em Moscovo começaram a «corri-
gir» as desigualdades nascidas do grande imperialismo russo. Esta política
tinha um nome: korenizatsiya, que significa «indigenização». Esta é uma
revelação aterradora das palavras: ao usar um termo tão voluntarista, os
governos que afirmam agir em nome de toda a humanidade estão a as-
sumir a criação de novas categorias ligadas aos piores dos marcadores de
identidade.

Para isso, começaram por remodelar o velho Império numa base étnica.
Cada nacionalidade (com algumas notáveis excepções, incluindo os ju-
deus) ganhou assim o reconhecimento oficial com base num território,

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numa língua, na sua própria cultura e em novas elites provenientes da
população local, que durante muito tempo tinha sido «oprimida» pelos
colonizadores russos. Foi nesta altura que a língua ucraniana entrou em
vigor nas instituições governantes da República da Ucrânia, tal como o
bielorrusso na Bielorússia, etc.

A divisão do país em repúblicas socialistas soviéticas é apenas a ponta de


um empreendimento mais profundo. Distritos, conselhos de aldeia, terri-
tório, bem como a administração dos homens, tudo é reorganizado segun-
do linhas étnicas. Por exemplo, um antigo súbdito do Czar nas províncias
ocidentais encontra-se subitamente governado por um conselho de aldeia
judeu num distrito alemão na República Ucraniana.

Correndo o risco de me repetir, insisto em sublinhar a novidade absoluta


de tudo isto, tanto para a maioria das pessoas envolvidas, como em termos
de história russa. Impulsionados pelo princípio da nação imperial, os ad-
ministradores do Czar nunca procuraram fazer com que a divisão territo-
rial coincidisse com qualquer princípio nacional. Antes de 1917, as ideias
nacionalistas não tinham tomado conta da grande maioria da população.
Sem querer reescrever a história, podemos até assumir que, se a guerra
contra as potências do Eixo tivesse sido ganha pelos exércitos czaristas,
teria dado origem a um renascimento do patriotismo imperial, como acon-
teceu com a França depois de 1918, e como aconteceria mais tarde quando
Estaline foi obrigado a jogar na primavera patriótica para salvar a URSS da
invasão alemã.

Não escrevo isto por nostalgia do Império ou por gosto de especulações


históricas. Simplesmente para fazer o leitor compreender que o triunfo
das nacionalidades não era inevitável. Foram os bolcheviques que contri-
buíram para o fenômeno. Neste caso, como em outros, eles agiram como
aprendizes de feiticeiros, capitalizando as tendências minoritárias, empur-
rando centenas de milhões de pessoas para uma identidade étnica que era
muito pequena para englobar a realidade da experiência humana. De certa
forma, eles introduziram a minhoca na fruta. Pois a questão das nacio-
nalidades, exacerbada, mal digerida e negligenciada pelos sucessores de
Lenine, era desempenhar um papel essencial no colapso do comunismo e
na desintegração do espaço soviético.

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Discriminação positiva, uma invenção soviética
Mas, por enquanto, não há nada que sugira tal cenário. Por enquanto, não
se trata de uma queda, mas de uma ascensão. As primeiras décadas do po-
der bolchevique foram marcadas por um vasto movimento de mobilidade
ascendente. Um observador descuidado poderia ser tentado a ver nisto os
frutos de uma política generosa de redistribuição de postos. Só que o ele-
vador social de estilo soviético nunca está longe do andaime: esta mobili-
dade é em grande parte explicada pelas purgas incessantes realizadas pelos
líderes para livrar o país de elementos «suspeitos». Muito rapidamente, os
mestres em Moscou foram obrigados a educar e treinar as massas, quanto
mais não fosse para manter o país funcionando. Especialistas qualificados
tiveram de ser criados em todo o lado, rapidamente. Milhares de «traba-
lhadores», antes dominados pelas «elites», foram oferecidas novas oportu-
nidades nas universidades, nas fábricas, no exército e em órgãos políticos
ligados ao Partido.

É aqui que entram as consequências práticas da corenizatsia. Estabeleceu


regras e privilégios especiais para os nacionais das nacionalidades, que
agora tinham quotas na educação, no trabalho e na vida pública. Em ter-
mos concretos, a partir de 1923, foram introduzidas quotas para nacio-
nalidades na indústria e, no ano seguinte, no ensino superior. Em todo o
país, as comissões governamentais foram responsáveis por assegurar que
esta política fosse devidamente aplicada. Por um lado, estabelecem o nú-
mero de «nacionais» a serem empregados anualmente pelos organismos
estatais (uma tarefa significativa, uma vez que todos os organismos estatais
são organismos estatais). Por outro lado, eles ajudam a atingir essas metas,
identificando candidatos e orientando-os para ofertas adequadas, como as
agências de emprego para «minorias».

No Cazaquistão, por exemplo, está sendo introduzido um «sistema de


preferência para trabalhadores cazaques em todas as decisões de contra-
tação e demissão». Na Ásia Central, são oferecidas vantagens legais às
nacionalidades locais «no registo no mercado de trabalho». No Norte do
Cáucaso, planos quinquenais estão sendo desenvolvidos para trazer uma
certa proporção de Montagnards para as fábricas em Rostov e outras

20
Cartaz soviético de 1950, diz: «Todos saúdam a amizade inquebrantável dos povos!» 3:
«Não permitiremos semear discórdia entre os nossos povos».

21
cidades. Mesmo em Moscovo, foram criados programas para acomodar
um número específico de ciganos nas fábricas. O mais surpreendente é
que estas quotas não se limitam aos burocratas encarregados de «preen-
chê-las»: elas são publicadas na imprensa local. Quando o Pravda Vostoka,
órgão oficial do Partido na Ásia Central, publicou as percentagens a respei-
tar nas universidades, deu os seguintes resultados: ‘85% mínimo de nacio-
nalidades locais (e entre elas, não menos de 10% de nativos); 20% de Batraki;
30% de kolkhozniks e bednyiaki [sharecroppers, nota do editor], etc.’.

Lendo a Verdade (esse é o significado da palavra pravda, para quem não


sabe), pode-se ver até que ponto tudo está perfeitamente encriptado, cons-
cientemente planeado, com a genialidade administrativa dos regimes to-
talitários. Aqui não há espaço para o talento, a iniciativa, o surgimento de
personalidades inesperadas, em suma, a vida em seu abundante e irredutí-
vel desdobramento. O determinismo reina supremo, outro paradoxo para
um regime tão preocupado com a emancipação.

Nesse mesmo ano, 1923, durante o 12º Congresso do Partido, um líder


declarou: «No que diz respeito às culturas nacionais, somos a favor de uma
política assertiva e voluntarista. O homem que se expressou desta maneira
foi Joseph Stalin, que tinha acabado de começar a sua brilhante carreira
como burocrata como Comissário para as Nacionalidades. Assim, qua-
renta anos antes do movimento de direitos civis nos Estados Unidos, os
soviéticos reivindicavam em termos inequívocos a política de acesso ao
emprego baseada no nascimento, agora conhecida como ação afirmativa,
ou discriminação positiva.

Aqueles que discordam: por favor,


arrependam-se.
Mas esta não é a única área em que os russos estavam à frente dos ameri-
canos, quarenta anos antes do lançamento do primeiro Sputnik. Ao intro-
duzir a discriminação positiva, é como se tivessem aberto a caixa de Pan-
dora, uma caixa em que todos os males que vemos serem desencadeados
nas sociedades ocidentais de hoje estão a fervilhar. Refiro-me à política de

22
arrependimento e cancelamento da cultura, que creio estar intimamente
relacionada com a promoção artificial das minorias.

Para entender isso, precisamos olhar para uma categoria que ainda não foi
mencionada: os «russos étnicos» que vivem nos territórios cobertos pela
Corenizatsia. Eles têm todos os motivos para sentir que estão a ser prejudi-
cados pelo mecanismo de quotas e, como veremos, é isso que vai acontecer
no final. Para justificar a concessão de tratamento preferencial a minorias
supostamente oprimidas pela história, é necessário assumir que aqueles
que merecem tratamento preferencial serão excluídos. É aqui que entra a
noção de arrependimento, ou pelo menos o que tomou o lugar do arrepen-
dimento no contexto soviético.

Seguindo a passagem citada acima sobre o bom e o mau nacionalismo,


Lenin escreveu: «Nós, nacionais das grandes nações, somos culpados de
ter cometido uma quantidade imensurável de violência. Assim, o líder su-
premo apresentou a ascendência russa como um crime a ser expiado, uma
forma de fazer com que os interessados aceitassem as injustiças que estão
por vir. Alguns meses depois, Bukharin, um dos seus leais tenentes (foi mal
recompensado, executado sob as ordens de Estaline), explicou a atitude a
que os russos étnicos eram obrigados a limitar-se nestes termos: «Temos
de nos colocar numa posição de inferioridade e fazer concessões cada vez
maiores às correntes nacionalistas. (...) Só assim ganharemos a confiança
das nações outrora oprimidas.

Reconhecer a culpa de alguém pelo simples fato de ter nascido, tornando-


-a uma mancha indelével, abstendo-se de julgar o Outro por ter sofrido
através de seus antepassados, dando-lhe todo o crédito sob o pretexto de
que ele ou ela pertence ao campo dos oprimidos: todos estes são princípios
para os antigos «dominantes» que parecem ter sido decretados pelos mais
ferrenhos defensores da ideologia Acordada. Não posso deixar de pensar
aqui nas críticas feitas a um jornal como o New York Times, cujos jornalis-
tas foram considerados «demasiado brancos» para relatar o racismo sisté-
mico. O pior é que a equipe editorial do jornal veio a aceitar isso, iniciando
um processo de autoedição consciente, seja pelo desejo de agradar a nova
doxa ou porque os jornalistas vieram a acreditar nas queixas contra eles.

23
Há um mistério neste fenómeno de aceitação por parte dos «dominantes»
designados que nunca deixa de surpreender e, confesso, de me assustar.
Deixe-me ficar longe das minhas antigas terras russas por um tempo para
contemplar as estepes não menos geladas do debate político contempo-
râneo. Recentemente estive ouvindo a ensaísta francesa Caroline Fourest
falar sobre seu tempo nos campi americanos, onde ela estava dando uma
série de palestras sobre a situação na França. A conversa rapidamente se
deslocou para a questão do véu, e aqui interveio um estudante: como não-
-muçulmano, herdeiro de uma cultura opressiva, Fourest não era «legí-
timo» falar sobre o assunto. Ela se defendeu, porém, e se contradisse o
melhor que podia, num ambiente que se assemelhava ao de uma escola de
formação religiosa e não ao que se esperaria de uma universidade. No final,
os professores vieram até ela com lágrimas nos olhos para agradecer-lhe
por ter ousado dizer coisas que há muito tempo não lhes era permitido
dizer, sob pena de serem sujeitos a uma cabala que poderia até levar à ex-
pulsão. Os mecanismos de terror intelectual desdobrados pelos fanáticos
dos Acordados colocaram estes professores numa situação em que não têm
outra escolha senão ficar calados e aceitar o novo catecismo em voga. Mas
lá no fundo, eles não acreditam.

Será que Lenine, Stalin, Bukharin e os outros alguma vez acreditaram nas
calorosas declarações que fizeram, de coração, perante os líderes locais que
procuraram seduzir para melhor exercer o seu domínio sobre eles?

Cancelamento da cultura,
inseparável da promoção das minorias
Há outro ponto em que vejo conexões entre o legado soviético e o que está
acontecendo hoje na América e na Europa, e que é a reescrita da histó-
ria em nome do respeito às minorias, entre outras coisas. Um fenômeno
comumente chamado de cultura de cancelamento. Os exemplos abundam,
todos eles têm em comum o facto de me mergulharem em abismos de
perplexidade. Em algumas universidades britânicas, há uma campanha
para remover alguns dos principais pensadores do currículo com o argu-
mento de que eles são representantes de uma «ordem branca e patriarcal».

24
Em França, o legado de Colbert está sendo apagado porque ele presidiu à
elaboração do Código Noir. Estamos relutantes em celebrar Napoleão pelo
papel que desempenhou no restabelecimento da escravatura nas colónias,
quando há tantas outras razões para ressentir o homem que, na Rússia,
não está longe de ser considerado o igual de Hitler! Em todos os casos,
a complexidade da história é evacuada em favor de uma leitura binária e
simplista, escandalosamente militante.

Mais uma vez, sinto-me como se estivesse a ver uma peça má que já foi
interpretada na União Soviética. Claro que, nos piores momentos de cen-
sura, a reescrita da história foi além da questão das nacionalidades. Houve
um tempo em que tudo foi apagado de acordo com as torpezas dentro do
Partido: os acontecimentos, a realidade das figuras, os líderes desonrados,
o mais pequeno indivíduo que se desviou da linha geral. Nos dias mais
negros de censura e vigilância policial, a menor declaração pode fazer de si
um suspeito, um traidor. Um transeunte, um vizinho rabugento, um mem-
bro da família que o quisesse prejudicar, poderia denunciá-lo e mandá-lo
para o Gulag durante vários anos. Mesmo comunistas convictos, militantes
sinceros que ainda acreditavam em todo o circo, tinham de agir com cau-
tela. A linha geral era tudo menos reta. As inversões do Politburo podem
ocorrer a qualquer momento, arruinando para sempre a carreira e às vezes
a vida daqueles que de repente se vêem rotulados como «desviados».

Ao discutir este período, o aspecto de identidade do revisionismo sovié-


tico é muitas vezes negligenciado. Se um escritor genial como Pushkin e
um compositor do calibre de Tchaikovsky foram excluídos dos currículos
escolares e dos eventos oficiais no início da década de 1920, foi como re-
presentantes do «grande chauvinismo do poder». Em certo sentido, ação
afirmativa e purgas culturais são duas faces da mesma moeda, membros de
uma dialética louca na qual parece necessário reescrever o passado com o
argumento de que isso promoveria a reabilitação das vítimas e, mais ainda
(embora não possamos entender por quê), a inclusão de seus descendentes.

A diferença entre o que está acontecendo hoje nas nossas democracias e a


experiência soviética é que estas não eram exigências de minorias ativas,
mas políticas implementadas por um Estado que foi alimentado pelo seu
próprio discurso sobre nacionalidades. Tremo ao pensar no que aconteceria

25
«Pela solidariedade das mulheres do mundo!», diz este cartaz de 1973.

26
se os representantes mais virulentos do novo pensamento progressista assu-
missem as alavancas do poder! Minha intuição me leva a acreditar que tudo
isso resultaria em purgas permanentes contra «símbolos de dominação»,
purgas destinadas a mascarar a ineficácia das políticas implementadas em
outros lugares. É claro que as receitas concebidas pelos bolcheviques para
corrigir os erros do passado contra as nacionalidades se revelaram prodi-
giosamente ineficazes.

27
3. A verdade por detrás da fábula
da «amizade entre os povos
A tese que defendo nestas páginas pode ser afirmada da seguinte forma:
a política de nacionalidades criou as condições para um desastre a longo
prazo para a União Soviética, ao injectar as sementes da divisão étnica numa
sociedade que, em grande parte, desconhecia a sua existência. Veremos mais
tarde o quanto esta questão desempenhou um papel essencial no colapso do
país, e continua a pesar sobre os Estados que emergiram do bloco soviético.

Mas antes de chegarmos ao fogo de artifício final, o crepúsculo dos deuses


do marxismo-leninismo, gostaria de me deter nos efeitos deletérios da po-
lítica de reparações na sociedade durante décadas, um fenômeno que se as-
semelha a uma lenta podridão. Na verdade, estes efeitos têm sido sentidos
desde a entrada em vigor do korenizatsiya. Já na década de 1930, a política
de reparações foi desviada da sua intenção original, devido à propensão
das nacionalidades para exigir cada vez mais empregos e subsídios.

Discriminação positiva,
uma fábrica de vítimas perpétuas
Pode-se entendê-los. Tudo no sistema de reparações foi concebido para
manter os seus beneficiários num confortável estado de atraso. Eu não
inventei o termo «atraso»: ele aparece como tal nos discursos oficiais das
hierarquias bolcheviques. Nas listas de nacionalidades elaboradas (não
sem uma condescendência, por vezes, que beira o racismo) pela burocra-
cia central, algumas foram consideradas desde o início como «atrasadas».
Não me refiro à Ucrânia ou à Bielorrússia, onde as taxas de alfabetização
eram relativamente elevadas na época, mas sim aos territórios orientais do
antigo Império Czarista. Aos olhos dos nossos demiurgo modernizadores,
este atraso cultural teve que ser remediado rapidamente, mesmo que isso
significasse que o Estado central tivesse que fornecer os meios. Para isso, foi
criado um fundo de vários milhões de rublos em meados da década de 1920.
Este fundo transformou-se muito rapidamente num frasco de compota para

28
«Todos saudem a revolução mundial de Outubro!» - um cartaz de 1933.

29
as elites locais. Compreenderam imediatamente a vantagem de exagerar o
subdesenvolvimento da sua nacionalidade para poderem beneficiar de fun-
dos adicionais. Havia cenas grotescas e angustiantes em que os líderes locais
que visitavam a capital competiam uns com os outros na miséria para obter
mais subsídios dos burocratas de Moscovo que se sentiam tocados por tal
atraso. Assim, pode-se dizer que o primeiro efeito perverso do korenizatsiya
foi confinar os nacionais das periferias a um estatuto de beneficiários perpé-
tuos de assistência, primeiro a nível administrativo, depois a nível simbólico
e, finalmente, pode-se assumir, a nível psicológico.

Neste ponto, penso que é necessário esclarecer o meu pensamento sobre


o tema das chamadas «minorias». Eu não nego a existência de discrimi-
nação. Não nego as dificuldades que se podem encontrar quando se nasce
num determinado ambiente, com pais mal educados, meios financeiros li-
mitados, num ambiente onde se é obrigado a compreender todos os dias,
através de todo o tipo de bullying, que se é demasiado ou diferente. Eu
simplesmente acredito, e esta é a minha discordância fundamental com os
defensores da discriminação positiva, que existem outras formas de ultra-
passar esta situação. Formas que têm a ver com a educação, com o mérito,
com a vontade, com a recusa de ser «furado por pombos». Penso que a atri-
buição da identidade, mesmo que motivada por objectivos eminentemente
generosos, é uma coisa má para a sociedade e para os próprios indivíduos.

Para existir na mídia, agora está na moda invocar o status de vítima. Às


vezes, quando leio os jornais, tenho a impressão de que o mundo está re-
duzido a uma competição perpétua entre histórias de maudlin. Mais uma
vez, eu não nego que há dramas, traumas, dificuldades pessoais. Não posso
simplesmente aceitar que esta competição se torne uma forma de regular
as relações sociais e, pior ainda, uma aspiração para os indivíduos. Teria
que usar os insights da psicologia para saber o que é pensar de si como uma
vítima ontológica durante toda a sua vida... A minha intuição é que isso só
acentua o ciúme, a frustração e o ressentimento, paixões já sobre-represen-
tadas nas nossas democracias, a ponto de lançar milhões de eleitores nos
braços de líderes autoritários que prometem pôr fim a esta histerização das
relações sociais, capitalizando assim o mais formidável dos ressentimentos:
o da «maioria silenciosa».

30
Mas talvez o desconforto psicológico de ser vítima seja, em alguns casos,
anulado pelos benefícios desse estatuto? Seria um erro abordar a questão
das «minorias» como uma questão de ideias puras. Há uma mistura de
idealismo e cálculo entre seus defensores, como há entre todos os seres hu-
manos. É claro que pode haver uma grande quantidade de hipocrisia por
trás disso, como no caso do fundador da Black Lives Matter que se tornou
dono de uma casa de um milhão e meio de dólares em um bairro branco em
Los Angeles. Mas a maioria dos activistas que abraçaram a causa são pro-
vavelmente sinceros. Mas isso não os impede de pensar nas suas carreiras
também. Não é segredo que a defesa dos «oprimidos», seja em termos de
etnia, sexo, peso ou condição física, serve agora como um meio de comuni-
cação e recurso material para centenas de empresários de identidade (uma
frase que me agrada particularmente porque diz que o mundo das ideias é
um mercado como qualquer outro). Mesmo que você não seja um ativista
ardente, a identidade pode ser um investimento que compensa a cada vez.
Milhares de empresas estão agora convertidas ao discurso progressivo so-
bre minorias que deveria ser tornado mais «visível». Isto não é sem as suas
dificuldades. Há alguns anos, na Austrália, foram tomadas medidas para
aumentar o número de mulheres nos corpos de bombeiros. Os sindicatos
protestaram que este era um risco de segurança, enquanto várias mulheres
bombeiras disseram que não queriam ser tratadas de forma diferente dos
seus colegas homens. Por outro lado, sendo o ser humano o que é, como
não imaginar que essa exigência seja usada como pretexto para alguns exi-
girem uma promoção, mesmo que isso signifique expulsar colegas merece-
dores da competição, se necessário, deslegitimando-os com acusações mais
ou menos fundamentadas? Para alguém como eu, que cresceu num país
onde o poder era inseparável da ideologia, isto não seria uma surpresa. É
simplesmente um sinal preocupante de que estamos a andar para trás.

Quando a discriminação positiva semeia


a discórdia entre «irmãos».
Este longo desenvolvimento pode dar a impressão de que eu também desci
para a frustração e ressentimento. Garanto-vos que não é este o caso! Por
outro lado, algumas pessoas reagiram muito mal à política de reparação

31
implementada pelos bolcheviques no início da década de 1920: refiro-me
aos russos que vivem nos territórios periféricos, bem como aos judeus.

Nos territórios orientais, estes dois grupos eram simultaneamente os mais


educados e os que mais apoiavam os ideais bolcheviques, onde a maioria
dos nativos tinha sido sempre, na melhor das hipóteses, neutra. Os russos
«étnicos», ao descobrirem que tinham sido injustiçados pelos korenizat-
siya, sentiram um sentimento de decepção que podia ir até à traição, es-
pecialmente se tivessem lutado do lado dos Vermelhos durante a Guerra
Civil. No que diz respeito aos judeus, as quotas acabaram por servir exac-
tamente o objectivo oposto, ou seja, limitar o acesso de certas minorias a
posições procuradas. Uma situação que, em todas as proporções, nos leva
de volta ao protesto dos estudantes asiáticos-americanos contra as cotas
universitárias que beneficiam negros e latinos.

Para medir esta frustração, precisamos olhar para as cartas enviadas à sua
hierarquia política por camaradas zangados. Isso foi feito pelo historiador
americano Terry Martin, uma das fontes mais úteis sobre o assunto. Em
1928, um grupo de trabalhadores escreveu ao Bureau da Ásia Central re-
clamando sobre cotas na indústria: «Em todas as repúblicas, seu alfabeto e
linguagem foram introduzidos. Daí as perguntas: Onde se encaixam os rus-
sos? Onde vão encontrar trabalho? Com a implementação da Uzbequistão,
não há dúvida de que os russos acabarão sendo substituídos pelos uzbeques.
Isto é um facto. Há um descontentamento crescente entre os empregados e
trabalhadores que foram despedidos em grande número por causa do kore-
nizatsiya. Parece que o nosso governo considera que o lugar dos russos é na
Rússia, quer queiram quer não, que por causa da korenizatsiya e da uzbeki-
zação, os russos serão forçados a fugir para a Rússia. Na boca de alguns uzbe-
ques você já pode ouvir: ‘este país é nosso, não seu’».

O grande substituto dos uzbeques! Este é o tipo de fantasia que a ação afir-
mativa incutiu naqueles que se sentiram injustamente excluídos pela polí-
tica de cotas. Esta carta não é um caso isolado. Há milhares dessas cartas de
cidadãos que são corajosos (ou inconscientes) o suficiente para questionar
o discurso oficial. É compreensível que tais comentários possam ter dei-
xado os responsáveis pela propaganda desconfortáveis, pois alegavam que
tudo estava bem no Paraíso dos Trabalhadores...

32
Outra carta sóbria anotada por Terry Martin foi assinada por um trabalha-
dor de Tashkent, também no Uzbequistão. Este homem reclama que «não
consegue encontrar trabalho» porque «ele é dado à população indígena,
aos usbeques, enquanto nosso irmão europeu está morrendo na indiferen-
ça». Ele está ainda mais enfurecido por não encontrar um emprego porque
não são as suas capacidades que estão em questão, mas o seu nascimento.
Ou mais exatamente, o fato de que outros, para «chegar», simplesmente se
deram ao trabalho de nascer. Em outras palavras, nada mais ou menos que
a queixa formulada por revolucionários igualitários contra a velha aristo-
cracia hereditária... A história, concedo-vos, não diz se o nosso operário já
não tinha sentimentos de condescendência, ou mesmo uma ligeira xeno-
fobia, em relação aos seus irmãos uzbeques. Mas mesmo deixando de lado
este debate de galinha e ovo, podemos dizer o seguinte: por terem criado
um sistema de reparações que deveria trazer justiça e harmonia entre na-
cionalidades, os bolcheviques acabaram por alimentar a desconfiança, até
mesmo a hostilidade entre eles.

Aqui encontramos um padrão já esboçado acima, o do aumento do ressen-


timento entre as identidades à medida que esta questão é empurrada para
o topo da agenda política. Mais uma vez, não posso deixar de traçar um
paralelo com o que aconteceu nos Estados Unidos após a introdução da
discriminação positiva. Especialistas em cultura americana dizem que esta
série de medidas destinadas aos negros provocou uma poderosa reviravol-
ta entre os americanos brancos, que os republicanos aproveitaram para se
constituírem em campeões da maioria «injustamente desfavorecida». Um
fenómeno que Ronald Reagan e, mais trovejantemente, Donald Trump
aproveitaram, à medida que uma certa ansiedade cultural se espalhava en-
tre o eleitorado do WASP. Alguns vão ao ponto de dizer que a razão pela
qual os americanos sempre resistiram a um estado redistributivo ao estilo
europeu é que a maioria branca está relutante em deixar os frutos da par-
tilha irem para os negros. Embora as coisas sejam sem dúvida mais com-
plicadas, é verdade que políticos demagógicos jogaram com esses medos
invocando em seus discursos a rainha do bem-estar, um termo transpa-
rente para um certo eleitorado, para quem a frase evoca espontaneamente
uma mulher negra com muitos filhos vivendo de benefícios... Este é apenas
um exemplo da forma como medidas a priori generosas contribuem para

33
reforçar a desconfiança, incentivando o uso de estereótipos. Quando asse-
guramos que todos os negros ou latinos são tratados de uma certa maneira
porque pertencem a essa categoria, não devemos nos surpreender que os
discursos que os acusam de serem «todos iguais» proliferem. Pode ser tris-
te, pode ser deplorável, mas é assim que as coisas são.

Ainda assim, na URSS do Tio Joe (Stalin, Comissário para as Nacionalida-


des, não esqueçamos) como na do Tio Sam, as mesmas causas produzem
os mesmos efeitos: instaura-se um sistema rígido que cria deslocamentos
com base em critérios de nascimento, e o ressentimento entre as categorias
é reduzido à sua identidade. A diferença com Trump’s America é que os so-
viéticos não tinham o direito de falar, muito menos eleições livres. Assim,
em meu país natal, esse ressentimento permaneceu silencioso, subterrâ-
neo, e acabou irrigando toda a sociedade à medida que o governo multipli-
cou seus discursos calmantes sobre a «amizade entre os povos».

A discriminação positiva
como instrumento de purga
Outro efeito perverso para o qual eu gostaria de chamar a atenção do leitor
antes de chegarmos ao resultado trágico desta história é o risco de atri-
buição étnica quando o poder decide se voltar contra as minorias que ele
mesmo promoveu.

Nos seus primórdios, o korenizatsiya pode ter servido como uma ferra-
menta de propaganda para os estrangeiros. Ao mostrar às minorias nos
países fronteiriços - os ucranianos segregados da Polónia, os coreanos sob
domínio japonês, os uigures da China, os azeris do Irão - como os seus «ir-
mãos» eram bem tratados na nova União Soviética, o regime, ainda impul-
sionado pelo seu messianismo revolucionário, assegurou uma publicidade
barata entre certas populações.

Tudo mudou em meados dos anos 30. Stalin, cada vez mais paranóico,
começou a purgar à vontade. E quando a ascensão de Hitler escureceu o
quadro, algumas das pessoas que tinham sido testemunhas da grandeza da

34
alma soviética de repente tornaram-se suspeitas. Assim, as cotas estabele-
cidas nos anos 20 foram utilizadas como base para reprimir grupos étnicos
supostamente desleais. Isso aconteceu com poloneses, alemães, coreanos
e até judeus, que foram acusados durante a Grande Guerra Patriótica de
conluio com seus «compatriotas» no exterior.

Assim, a política de essencialização, que supostamente serve de alavanca


para a ascensão das minorias, pode ser voltada contra essas mesmas mino-
rias quando o regime decide fazê-lo. Isto dá que pensar aos meus amigos
europeus que defendem a introdução de estatísticas étnicas na vida públi-
ca, citando a necessidade de avaliar correctamente a situação dos oprimi-
dos para melhor a «corrigir». Quem sabe o que aconteceria com tal dispo-
sitivo nas mãos de um governo determinado a ajustar contas com uma ou
outra das minorias em questão?

Auto-censura e hipocrisia no final da estrada


Expliquei acima como a cultura do cancelamento, que incluía uma compo-
nente de identidade, rapidamente criou um clima de terror entre a popu-
lação. Tanto que, se você queria evitar problemas, a melhor solução era se
esconder em silêncio. Quando a população começou a entender o que era
realmente o paraíso comunista, a auto-censura tornou-se a melhor prote-
ção contra o domínio da política sobre vidas.

Às vezes tenho a impressão de estar de volta a este clima, embora numa


versão menos opressiva, quando vejo como o simples exercício da fala
pode levar a verdadeiras caçadas ao homem. A ameaça desta vez já não é
do Estado, mas da vigilância exercida no espaço público pelos Guardiões
Vigilantes do Pensamento Certo. Estou obviamente a pensar na web, que
se tornou o espaço essencial para deliberar, para o bem e para o mal. Um
espaço onde qualquer pessoa corre o risco de ver as suas palavras atacadas
em pacotes, truncadas, retiradas do contexto, quando elas não são simples-
mente inventadas através de falsificações profundas e outras tecnologias de
falsificação. Assim, quando ouço jornalistas e acadêmicos brilhantes, sin-
ceros e equilibrados declararem que preferem desistir de falar em público

35
do que entrar nesta arena selvagem, penso com pavor do mundo da minha
juventude, que a aliança entre ideologia e tecnologia em sociedades abertas
pode muito bem levar a resultados semelhantes.

A necessidade de o cidadão «pensar bem», repito, não se referia apenas


à questão das nacionalidades. Mas, como tudo o resto, foi sujeito a uma
censura implacável, de modo que os autores das cartas acima mencionadas
não devem ter tido muitas oportunidades para expressar a sua consterna-
ção na arena pública.

Com o tempo, o mal-estar causado pela ação afirmativa uniu-se ao rio si-
lencioso das ilusões perdidas do comunismo. A partir de meados dos anos
30, os próprios dirigentes, a começar pelo primeiro deles, Estaline, que ti-
nha passado das nacionalidades ao domínio total sobre os povos da União,
puseram um travão nos discursos galvanizantes sobre a recuperação das
massas atrasadas. Foi porque a guerra com a Alemanha era ameaçadora.
Os soviéticos tiveram que ser mobilizados em torno de um projeto co-
mum. Uma ideologia divisória como o korenizatsiya dificilmente poderia
cumprir esse papel. Nem poderia o marxismo-leninismo, que negava a
realidade dos conflitos entre nações. Tudo o que restava era reabilitar o
bom e velho nacionalismo imperial russo. Foi isto que Estaline se propôs a
fazer, com a sua capacidade de propaganda. De repente, tornou-se permis-
sível, e até recomendado, invocar a glória da Rússia eterna a cada esquina.
As tropas alemãs que estavam prestes a varrer o país não foram os her-
deiros dos cavaleiros teutónicos derrotados no século XIII por Alexander
Nevsky? Não é por acaso que Eisenstein encenou a sua epopeia num filme
lançado em 1938, a pedido expresso do Kremlin.

Depois da morte de Estaline, a repressão abrandou. De certa forma, as


pessoas podiam voltar a respirar. As chances de ser fisicamente elimina-
do foram agora reduzidas, embora ainda se pudesse ser simbolicamente
‘apagado’ por ter deixado passar um infeliz comentário contra o regime.
Escritores como Boris Pasternak e Joseph Brodsky pagaram o preço, tendo
suas obras censuradas, e sendo este último forçado ao exílio, o que foi me-
lhor que o Gulag. Embora o fracasso do comunismo fosse agora óbvio, a
ideologia permaneceu, mas já ninguém acreditava nela. Tinha-se tornado
uma ‘forma sem conteúdo’, para usar as palavras do antropólogo Alexei

36
Este cartaz de 1957, mostra um grupo multicultural explorando
os pontos turísticos de Moscovo.

37
Yurchaq. Uma mentira oficial entre outras, a amizade entre os povos trans-
formou-se ao longo dos anos em um «mantra vazio», uma fórmula que se
repetia mecanicamente, com um sorriso nos lábios. Para além dos brilhan-
tes desfiles e das grandes declarações oficiais sobre o folclore dos povos, já
pouco restava da retórica multicultural dos anos 20 na minha juventude.

Aqui novamente, não posso deixar de traçar um paralelo com os tempos


contemporâneos. Quando vejo o sucesso mediático em França da expres-
são «vivre ensemble», enquanto o país continua a mostrar sinais de tensão,
pergunto-me se esta fórmula não será equivalente à amizade entre os po-
vos que abalou a minha infância: um encantamento que é lançado no prato
na esperança de mascarar a triste realidade de um país onde todos parecem
estar entrincheirados atrás das paredes da sua pequena comunidade.

38
4. Quando a panela de pressão de
identidade explode
Vladimir Putin uma vez chamou à queda da URSS «a maior catástrofe
geopolítica do século 20». Desde então, ele tem reafirmado regularmente
esta posição, acrescentando que se ele pudesse mudar a história, ele faria
tudo para evitar o colapso. Muitos comentadores (especialmente no que
costumava ser chamado de «campo ocidental») viram estas declarações
como uma expressão da nostalgia da grandeza, do imperialismo expan-
sionista que o atual morador do Kremlin mostraria para com os seus vizi-
nhos. O que quer que se pense de Putin e das suas políticas, não é preciso
ter vivido esta história de perto para negar a lucidez das suas palavras. Pela
minha parte, eu compreendo e partilho-os. A ruptura repentina, mal ne-
gociada e totalmente inesperada de uma estrutura política de setenta anos,
que, através da astúcia da ideologia, exerceu seu domínio e fascínio sobre
metade da humanidade, foi uma tragédia para milhões de pessoas. Uma
tragédia que continua a ter um efeito enquanto escrevo isto.

Hoje em dia é fácil atribuir a este colapso um carácter inelutável. Algumas


pessoas afirmam tê-lo visto chegar, citando a demografia, o estado deplorá-
vel da economia e o cansaço geral de um sistema que se esgotou. A verda-
de é que as coisas poderiam ter continuado assim por muito tempo, neste
tipo de estagnação cinzenta onde o impulso revolucionário forçado pelos
bolcheviques tinha dado lugar à mentira, à hipocrisia e à incompetência
generalizada. As pessoas nostálgicas culpam Gorbachev por este fracas-
so. Diz-se que ao tentar trazer um pouco de ar fresco para a casa velha,
ele provocou a tempestade que varreu o edifício. O certo é que ele julgou
mal o poder do discurso nacionalista, que desempenhou um papel decisivo
neste descalabro. Como ele poderia? Nem todos os povos da União eram
supostos serem amigos?

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A vingança das nacionalidades é um prato
melhor servido frio
A experiência de Gorbachev é frequentemente resumida em duas palavras:
glasnost (transparência) e perestroika (reconstrução). Em outras palavras,
a tentativa de liberalizar a sociedade soviética enquanto tentava controlar
essa abertura o melhor possível. Não vou entrar nos detalhes de uma po-
lítica que, pessoalmente, me foi bastante favorável na medida em que me
permitiu lançar as minhas primeiras iniciativas como empresário. Para me
ater à grande história, direi simplesmente o seguinte: no final, as coisas
acabaram por ficar fora de controlo.

Vamos tentar resumir da melhor forma possível este punhado de anos em


que a história foi virada de cabeça para baixo. Quando Gorbachev perce-
beu em 1988 que tinha de retirar o poder absoluto do partido para alcançar
os seus objectivos, a mudança foi imediatamente interpretada como um
sinal de fraqueza do centro. Elites locais sedentas de poder nas periferias
começaram a jogar a carta separatista, seguindo os passos de uma parte
da sua população galvanizada pela perspectiva da independência. Nessa
altura, os primeiros sinais de secessão tinham surgido nas regiões bálticas,
depois no Cáucaso. O movimento se espalhou durante 1988, uma réplica
da Primavera Popular à escala da União Soviética, que também se prepa-
rava para perder o controle sobre seus países satélites (Polônia, Hungria,
Alemanha, etc.). Na Geórgia, Moldávia, Bielorrússia e Ucrânia, as pessoas
saíram às ruas aos milhares para exigir democracia e independência. Dian-
te dessas manifestações, que no caso do Cáucaso tomaram um rumo vio-
lento, Moscou reagiu com fraqueza e indecisão. O camarada Gorbachev
parece perdido, desorientado, sobrecarregado pelos acontecimentos. Nin-
guém no seu séquito parece ter previsto isto: oficialmente, a questão das
nacionalidades é considerada como tendo sido resolvida há muito tempo.
Então Gorbachev compõe, dá promessas, tenta salvar o que pode ser salvo.
Por ceder, ele favoreceu a ascensão dos reformadores que muitas vezes se
confundiam com os nacionalistas étnicos. As eleições livres, organizadas
em 1990, levaram os partidos pró-independência ao poder. Deste perío-
do confuso, restam imagens de correntes humanas em escala nacional,
de um putsch fomentado por partidários da velha ordem, de Boris Ieltsin

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a assediar a multidão de Moscovo empoleirada na sua carruagem. O 26 de
dezembro de 1991 marcou o fim oficial da URSS, com o reconhecimento
da secessão das antigas repúblicas soviéticas nos meses anteriores. Assim, o
trabalho de Lenine acabou sendo torpedeado por burocratas durante uma
votação de registro, varrido pelas forças que ele havia pensado estar cana-
lizando em benefício de sua Revolução.

No final, tudo aconteceu muito rapidamente, com a fluidez dos dominós


que colapsam, arrastando o próximo dominó para baixo com eles. Com
a independência das antigas repúblicas soviéticas, foi como se a tesoura
da história tivesse cortado um padrão cujas linhas já existiam em linhas
pontilhadas. Um analista do KGB, Nikolai Leonov, usou outra metáfora:
a de uma barra de chocolate. Um bar pronto para ser dividido ao longo
das linhas de fronteira criadas pelos próprios bolcheviques. Foi quando
as periferias começaram a exigir a sua «libertação» que a natureza con-
tingente da divisão entre as entidades da União se tornou aparente. Não
havia nenhuma razão objectiva para a Ucrânia se tornar uma república
enquanto Bashkiria estivesse integrada na República Socialista Federativa
Soviética Russa, para além das circunstâncias da Guerra Civil. Não há ne-
nhuma razão para que a pequena Estónia também deva gozar do estatuto
de republicano, ao contrário do vasto e densamente povoado Tartaristão,
à excepção das circunstâncias da anexação de 1940. A ilogicidade de tal
divisão levou a um crescente sentimento de injustiça entre grupos étnicos,
cada um dos quais desejava ser reconhecido na sua especificidade. E como
esta especificidade, em linguagem nacionalista, se traduz nas palavras in-
dependência e soberania, isso criou as condições para infindáveis disputas
territoriais. «Corrigir» os erros históricos cometidos pelos geógrafos ama-
dores bolcheviques logo se tornou o esporte preferido dos líderes naciona-
listas da região. Um desporto que, infelizmente, continua a ser praticado
com munições vivas sobre as ruínas da URSS.

A fragmentação sem fim


Ossétia, Geórgia, Armênia, Chechênia, Transnístria, Donbass: estas pala-
vras, que têm sido noticiadas nos últimos trinta anos, foram todas uma vez

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nos arquivos dos burocratas responsáveis pela divisão da União Soviética
de acordo com critérios étnicos. Esta abordagem teve consequências de
grande alcance. A história tem mostrado com demasiada frequência que
criar povos a partir do zero, unindo grupos humanos por vezes em terre-
nos ténues, significa correr o risco de se expor mais tarde a disputas, con-
flitos e mesmo massacres, como vimos no Ruanda. Embora as querelas nas
antigas periferias soviéticas nunca tenham dado origem a tais tragédias, a
persistência de conflitos difíceis de resolver só pode alimentar, com razão
ou sem ela, a nostalgia das estruturas imperiais.

Vou mencionar aqui duas das questões mais candentes do momento. Para
não tomar uma posição. Simplesmente para ilustrar os efeitos a longo pra-
zo de uma política de atribuição de identidade decidida de forma tenden-
ciosa. No que diz respeito a Nagorno-Karabakh, a inclusão deste território,
que é principalmente povoado por arménios, na antiga República Socialis-
ta Soviética do Azerbaijão deve-se às circunstâncias históricas da coloniza-
ção russa. Já em 1987, os nacionalistas locais desencadearam uma revolta
popular para exigir a ligação deste oblast autónomo à Arménia, lançan-
do o início da «agitação» que surpreendeu Gorbachev pela sua virulência.
A desagregação da URSS só piorou as coisas, até o episódio sangrento de
2020, que não resolveu o problema. Só este exemplo poderia argumentar
contra tudo o que eu tenho tentado dizer desde o início. Aqui estamos cla-
ramente lidando com duas entidades heterogêneas que se recusam a viver
no mesmo país. Isto prova pelo menos uma coisa: que os administradores
soviéticos não criaram simplesmente identidades a partir do nada, ignoran-
do os marcadores históricos ou culturais pré-existentes. O problema aqui é
a organização político-administrativa que eles criaram, que era claramente
inadequada às realidades no terreno.

No caso da Ucrânia, um Estado cujas fronteiras nunca corresponderam a


nenhuma realidade nacional, a impossibilidade de encontrar uma solução
que respeite a integridade das duas principais comunidades (ucranianos
e russos «étnicos», para ser breve) é explicada, como é frequentemente o
caso, pelo peso desmesurado das querelas do passado. Uma solução ao es-
tilo canadense ou belga seria perfeitamente viável para restaurar a calma
no país. Não é necessariamente a que estou a defender, mas digamos que

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é uma opção. O problema é que os nacionalistas ucranianos estão tão fir-
memente apegados ao seu excepcionalismo, que tem sido agitado desde
o século XIX e foi consagrado nos seus corações pelos korenizatsiya, que
é impossível fazê-los aceitar tal ponto de vista. É verdade que o lado de
língua russa, por seu lado, não ajuda necessariamente a restaurar um clima
sereno, refugiando-se atrás de soluções militares apoiadas por Moscovo...
Uma nova ilustração da ascensão a extremos que, assim que as questões
de identidade são abordadas, exclui soluções baseadas em compromissos.

Há uma tese comum sobre os conflitos que continuam a atormentar países


que outrora estiveram sob a ideologia comunista. Se esta ideologia desa-
parece, uma outra emerge, ou melhor, reemerge, como um rio subterrâneo
mal escondido sob uma laje de concreto: o nacionalismo. Esta teoria tem
sido usada para explicar os conflitos armados que se seguiram à dissolução
da URSS, como os que ensanguentaram a ex-Jugoslávia nos anos 90. Eu
contesto esta teoria, pelo menos para o caso soviético. É errado dizer que
o comunismo sufocou sentimentos hostis que estavam prontos a ressurgir
quando chegou o momento. O leitor que me fez a honra de me seguir até
agora terá compreendido, espero eu, isto: longe de atenuar as divisões ba-
seadas na identidade, a estratégia seguida pelos bolcheviques em relação às
periferias as exacerbou. A política de nacionalidades espalha o lento veneno
do essencialismo entre a população. Gerações inteiras foram expostas a ela,
cada cidadão recebeu um marcador biológico inalienável inscrito no seu
passaporte, e pior: na sua psique. Esta política acabou por tornar «natural»
para milhões de pessoas linhas de clivagem que só existiam nas mentes das
elites locais, embaladas pelos discursos nacionalistas do século XIX.

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Cartaz soviético dos anos 1970-s, lê-se: «Todos saudam a URSS,
o modelo da amizade dos trabalhadores de todas as nacionalidades».

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5. Então e agora: discriminação
positiva como passaporte para
conflitos de identidade perpétuos
Aqui estamos no final desta longa jornada histórica, seguindo os passos da
política de identidade ao estilo soviético. Espero não ter perdido o leitor
que não está familiarizado com a Rússia com referências exóticas. Quanto
àqueles que estão perfeitamente familiarizados com esta história, espero
que me perdoem pelos atalhos deliberados deste texto: eles foram inspira-
dos pela necessidade de convencer.

Parece-me que há lições úteis a tirar desta história, num momento em que
existe um forte movimento ideológico entre os jovens para corrigir situa-
ções de desigualdade com base na identidade. Nos Estados Unidos, este
movimento contribuiu para polarizar a sociedade em torno da noção de
raça, ao ponto de o país estar praticamente dividido em dois. Na Europa,
ela começa a emergir como uma aliança de acadêmicos de estudos cultu-
rais, movimentos indígenas e partes perdidas da velha esquerda marxista,
determinados a atacar o velho software humanista-universalista. É picante
(ou trágico) que este movimento esteja a emergir numa época em que as
sociedades europeias, traumatizadas pelas experiências do século XX, pen-
savam que elas se faziam com a noção de raça.

Recentemente, ouvi um dos portadores padrão da cultura Acordada na


América dizer que o perigo real aos seus olhos não era o renascimento do
direito identitário, mas o universalismo humanista. O humanismo é o ini-
migo: uma melodia já murmurada pelos chamados militantes progressis-
tas do século passado. Através do romantismo ou da ingenuidade, alguns
dos novos progressistas vêem sua luta como uma continuação das lutas
maoístas ou trotskistas dos anos 70. Eles continuam a agir e pensar com os
mesmos reflexos que os da extrema esquerda da época, apesar do colapso
do comunismo. Sobre a «questão racial» eles pensam que estão resistindo a
uma ordem iníqua, enquanto defendem soluções experimentadas por um
dos piores estados totalitários do século 20. Claro, eles nunca aceitariam
tal comparação, especialmente de um velho capitalista branco como eu!

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Consigo ver as críticas a vir daqui. Ao traçar um paralelo entre a experiên-
cia soviética e a discriminação positiva nas democracias ocidentais, você
está comparando o que não é comparável. Você está entrando em uma
espécie de chantagem da história que o faz negligenciar as especificida-
des do presente, como todos aqueles que falam de um retorno aos anos
30 com tremolos de indignação em suas vozes. Eu concordo. As situações
estão longe de ser idênticas. Nem a América nem a Europa vivem hoje sob
a ameaça do totalitarismo racial. Mas existem padrões, invariantes, uma
lógica específica para este tipo de pensamento que nos obriga a abordar
tudo o que tenha a ver com discriminação positiva com a máxima descon-
fiança. Porque esta política, onde quer que tenha sido implementada, tem
produzido resultados que são, na melhor das hipóteses, mistos, na pior
das hipóteses prejudiciais. Isto é algo que o economista americano Thomas
Sowell entendeu muito bem.

Se Sowell continua sendo um autor pouco conhecido na Europa, isso se


deve em parte ao seu pedigree acadêmico. Como ele pertence à escola de
Chicago e afirma estar em dívida com Milton Friedman, uma certa doxa de
esquerda tem sido rápida em rotulá-lo como um perigoso ultra-liberal, po-
tencialmente cúmplice nos crimes de Pinochet. É necessário ir além desta
caricatura para mergulhar no seu trabalho, sobretudo na sua crítica à acção
afirmativa. Como afro-americano, ele nunca deixou de denunciar políticas
concebidas para uma «comunidade» na qual nunca se reconheceu. Suas
críticas à ação afirmativa não se baseiam apenas na experiência americana,
mas também em trinta anos de pesquisa em países onde as preferências de
grupo foram implementadas: Índia, Indonésia, Sri Lanka, Malásia, Nigéria,
Canadá, etc. Em todos os lugares ele observou os mesmos efeitos deleté-
rios. Desânimo, que leva os alunos a fazer menos esforço, tanto entre os
«discriminados» como entre o grupo maioritário, na medida em que tudo
é decidido com antecedência. Falta de conexão ou mesmo hostilidade en-
tre estudantes de cota e outros estudantes. A violência que às vezes sancio-
na situações que são percebidas como completamente injustas. Na Índia,
por exemplo, a questão das cotas para intocáveis nas escolas médicas foi o
combustível para manifestações que custaram a vida de dezenas de pessoas
em meados da década de 1980. Ao mesmo tempo, percebeu-se que menos
de 5% dos postos reservados aos intocáveis estavam realmente ocupados...

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Sem ir tão longe, existe esta forma de violência psicológica que consiste
em manter o outro no seu suposto estado de inferioridade. Na América,
o economista Glenn Loury, considerado «traidor ao seu acampamento»
por alguns profetas acordados por ter pele negra, atacou recentemente a
decisão do prefeito de Nova York de suspender o exame de admissão às
melhores escolas de ensino médio, alegando que os negros estão sub-re-
presentados. Isto, argumenta Loury, seria o mesmo que dizer-lhes que não
podem competir, que nunca podem medir-se até aos mais altos padrões.

Ineficácia, efeitos psicológicos prejudiciais, hostilidade entre grupos e vio-


lência mais ou menos latente: A acusação de Sowell sobre as conseqüências
da discriminação positiva é inequívoca. Mas o mais perigoso, na minha opi-
nião, é a forma como estas medidas, apresentadas como transitórias, acabam
por se impor na prática e na imaginação. O que todas as situações descritas
por Sowell têm em comum é que elas foram postas em prática por um curto
período de tempo, numa lógica de «recuperação», a fim de «compensar» as
injustiças históricas, até que um hipotético ótimo igualitário entre as comu-
nidades seja alcançado. Mas isto, é claro, nunca acontece. Não menos im-
portante porque os indivíduos nascidos em certas culturas onde o trabalho
e o mérito são valorizados têm melhor desempenho em certas áreas. E como
tudo o mais que é temporário, estas políticas se enraízam com o tempo, es-
palhando o veneno do ressentimento dentro das sociedades. Isto foi o que
aprendi com a experiência soviética. Em vez de reduzir as diferenças, a discri-
minação positiva aprofunda-as e torna-as ainda mais visíveis. Promove um
clima de vitimização permanente e de rivalidade mimética. Nega a capaci-
dade dos indivíduos de escapar à sua condição de nascença. A promoção de
identidades minoritárias supostamente oprimidas equivale, em última análi-
se, à criação de sociedades estratificadas, nas quais a organização por castas
ou ordens nunca está longe. Mesmo quando aparentemente estratificadas,
estas sociedades ainda estão sujeitas a poderosos movimentos centrífugos.
Com, no pior dos casos, o separatismo e às vezes até mesmo a guerra.

O conceito que se opõe a uma tal visão das coisas, aquela que nunca dei-
xarei de defender, é a meritocracia. A justa recompensa dos mais dotados,
dos mais brilhantes, dos mais dispostos, dentro do quadro de uma socie-
dade aberta. Talvez eu tenha escolhido acreditar nisso porque essa escolha

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ética justifica o meu próprio caminho. Nietzsche disse que os homens ten-
dem a adotar as opções filosóficas que justificam sua própria biografia. Mas
a verdade é que eu já acreditava nisso quando tentava fazer o meu caminho
numa ordem decadente estabelecida por uma ideologia desvitalizada, que
continuava a avançar o melhor que podia, impulsionada por reflexos atávi-
cos, como um pato sem cabeça.

Os anos passaram. A URSS entrou em colapso. Os perigos da vida signifi-


cam que eu agora vivo em França. Mas nunca serei capaz de apagar do meu
coração a ferida que foi a explosão do mundo onde cresci. A URSS tinha
muitas falhas, para dizer o mínimo. Mas mesmo assim, as coisas poderiam
ter corrido de forma diferente. A certa altura acreditei que uma transição
pacífica poderia ter lugar no antigo Império Russo. Como muitos, eu não
tinha medido o poder do discurso de identidade. O mal que ele pode in-
cutir entre as pessoas. Hoje, vejo os mesmos padrões, os mesmos erros que
contribuíram para que este caos voltasse em força. Eu gostaria de acreditar
que a Europa, a França que tanto amo, é imune a esses discursos divisivos.
Mas às vezes tenho dúvidas e tenho medo.

Cartaz soviético de 1960-s, lê-se: «Paz! Amizade!»

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Quando observo a França, o estado do seu debate intelectual, vejo sur-
gir a oposição entre nacionalistas identitários e uma parte da população
convertida a uma mistura de ideologia acordada e defesa dos imigrantes
oprimidos, que seriam oprimidos por causa da sua religião (o famoso is-
lamo-leftismo!). Por toda a Europa, esta é uma narrativa que está em as-
censão. Não é o único, mas o fato é que tende a conquistar as mentes. Por
enquanto, o país parece estar agarrado ao seu modelo universalista. Mas
as fendas estão a ficar maiores. Ao ouvir os políticos invocarem a defesa
da República, sente-se que ela está em perigo. É suficientemente forte para
se aguentar? Penso no que aconteceria se, amanhã, uma maioria sensível
às sirenes do diferencialismo étnico fosse consagrar na lei certas divisões
que atravessam a sociedade. Eu penso nisso e imagino um país ainda mais
dividido do que hoje. Um país onde todos se olhariam de lado, cheios de
ressentimento para com os membros de outras «comunidades», lutando
pelos últimos recursos de um Estado social falido, armando-se.

A França, e para além desta Europa, conseguiu inventar um modelo polí-


tico único, preocupado com o equilíbrio entre o individual e o colectivo.
Um modelo que permite a cada um escapar aos fardos do seu nascimento
sem ser deixado à sua sorte no caso de um acidente (lamento regularmente
os excessos desta solidariedade, mas isso é outro debate). O universalismo
liberal europeu é uma coisa demasiado preciosa para ser entregue a todo
o tipo de identitários. Merece ser defendido antes que seja tarde demais. É
permanecendo firmes em certos princípios hoje que evitaremos grandes
desastres amanhã. Tire da experiência de um homo sovieticus que sobrevi-
veu ao descalabro!

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