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Índice
O aviso do frio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 5
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3. A verdade por detrás da fábula da «amizade entre os povos . . . . 28
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O aviso do frio
Recentemente, a imprensa tem acompanhado as reviravoltas de um caso
que fala muito sobre o que os Estados Unidos se tornaram. Em 2015, bri-
lhantes estudantes asiático-americanos reclamaram que tinham sido re-
cusados pelas mais prestigiadas universidades americanas, alegando que
certos lugares estavam reservados para negros e hispânicos. Alguns anos
mais tarde, após uma investigação, o governo federal seguiu o processo,
processando a Universidade de Yale por discriminação racial. Uma decisão
apoiada pelo Presidente Trump, que estava então envolvido numa guerra
cultural em que todos os meios eram utilizados para realçar os paradoxos
do campo progressista. Em fevereiro passado, o Presidente Biden decidiu
cancelar a ação judicial movida sob seu predecessor. Além do que diz so-
bre o novo líder americano, assim como o antigo, há algo de absurdo nos
asiático-americanos que atacam um sistema de ação afirmativa destinado
a promover indivíduos de minorias.
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história, a URSS tem sido perturbada por debates semelhantes aos que se
desenrolam hoje sobre «minorias». Foi mesmo o laboratório de uma polí-
tica de discriminação positiva a uma escala colossal, ligada à questão das
nacionalidades. Se falamos tão pouco desta política, é porque o seu fracas-
so foi engolido pelo fracasso geral da experiência soviética. Uso delibera-
damente a palavra experiência para descrever um empreendimento cujo
objetivo era transformar radicalmente o homem com base numa ideologia
de felicidade, progresso e emancipação.
Porquê contar esta história hoje? A história, para citar Nietzsche, pode ser
vista como um eterno retorno. Neste caso, o eterno retorno do pior. Não
se trata de dizer que os jovens activistas progressistas, por gosto da pureza
ideológica, querem cobrir os Estados Unidos com gulags para reeducar os
culpados (embora os ataques de auto-flagelação em que alguns professo-
res se entregam aos campi tenham um ar de déjà vu quando se pensa nos
julgamentos estalinistas ou, melhor ainda, na China de Mao...) A questão
aqui é destacar as lógicas comuns. Para ilustrar, através de um desvio his-
tórico, os efeitos de uma política de discriminação positiva instituída por
empresários culturais minoritários mas visíveis, em nome de um pensa-
mento generoso. Para mostrar como ideias semelhantes às que estão sendo
expressas hoje levaram a desastres.
Uma das lições desta história é que a promoção das identidades actua
como uma força poderosa para o dissenso, e mesmo para a desintegração
das sociedades. Uma força cujos efeitos são sentidos a longo prazo. Neste
momento, basta mencionar uma disputa para a qual terei a oportunidade
de voltar, a que existe entre a Arménia e o Azerbaijão. Este conflito terri-
torial de intensidade variável, que viveu recentemente um novo episódio
sangrento, tem a sua origem na política implementada pelos bolcheviques
nos anos 20. Um século depois, os relatos desses erros centenários ainda
estão sendo resolvidos pelas armas.
Eu conheço bem esta história. Nasci sob o camarada Stalin, no que ainda
era a União Soviética. Durante a minha juventude, a propaganda estava
em pleno andamento para mascarar o fracasso de um projeto condena-
do por suas premissas ideológicas. Uma ideologia que ainda era vivida
pelos seus promotores no modo de fé, embora já seriamente embotada.
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Hoje, esta fé está muito viva entre os defensores de um progressivismo
messiânico que combina questões raciais, sexuais e de género numa pers-
pectiva de libertação individual e colectiva, um movimento que agora é
referido como «acordado». E como nesta época tão preocupada com a
identidade, é sempre necessário dizer de onde se está falando, digamos que
nasci nos Urais em uma família ateísta judaica. Vamos acrescentar que sou
branco, de meia-idade, heterossexual (acho que agora dizemos cisgênero) e
isso vai ajudar a me situar nos olhos de algumas pessoas (acho que também
escrevemos assim).
Mas já chega de piadas. Vou parar de tocar o velho peido, mesmo que o hu-
mor seja uma arma sedutora na cara de pessoas que às vezes não o têm. Se
estes detalhes são importantes para o leitor, é apenas para dizer que eu fui
pessoalmente marcado pela história que quero contar aqui. Uma história
que começa há muito tempo, com o nascimento do estado russo...
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Cartaz soviético de 1932, lê-se:
«Trabalhadores de todos os países e colónias oprimidas erguem a bandeira de Lenin».
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1. A história da salada russa
(ou como a Rússia se tornou
um império multicultural)
Entre as memórias da minha juventude soviética, ainda tenho em mente
imagens de festividades concebidas para celebrar a diversidade dentro des-
te imenso estado que se estendeu por onze fusos horários. Bailes, Armé-
nios, Georgianos, Azeris, Quirguizes, Yakuts, Esquimós, Tajiques, Tatares...
Representantes de cada povo desfilaram com os seus trajes tradicionais, os
seus instrumentos musicais, as suas danças folclóricas. Que espectáculo
foi! A população da União era um vasto mosaico que por vezes parecia
cobrir toda a diversidade humana. Se os americanos tinham o seu caldeirão
cultural, os soviéticos também tinham o seu. Uma verdadeira salada russa,
se quiseres usar a metáfora culinária. Mas estas odes à amizade e diversi-
dade encenadas pelo Partido escondiam, como na América, uma realidade
mais escura: a de um multiculturalismo frustrado.
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a partir de um pequeno feudo em torno de Moscovo, tudo colocado sob os
auspícios de Deus (que provavelmente não pediu muito).
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Cada vez que um novo povo se encontrava na órbita do Czar, surgiram as
mesmas questões: como garantir a coerência do todo? Como manter a cal-
ma e a harmonia entre os habitantes e, sobretudo, em relação a Moscovo,
depois São Petersburgo? A resposta estava na atribuição de vários status,
mais ou menos autônomos, aos territórios conquistados, e na sedução das
elites locais. Catarina II, uma das nossas monarcas mais astutas (os porta-
-vozes de um feminismo de salão não pensam o suficiente nela quando ela-
boram as suas listas de «mulheres poderosas»), conseguiu domar a nobre-
za germânica, oferecendo-lhes posições privilegiadas na corte. Ao mesmo
tempo, ela distribuía títulos nobres aos cossacos ucranianos que estavam
sob seu controle. A unidade foi comprada com guizos e privilégios.
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ténue: um historiador como Eric Hobsbawm (um autor fascinante, embora
um marxista inveterado, ao ponto de ter querido ser enterrado a algumas
sepulturas longe do próprio Marx) mostrou até que ponto o conceito de na-
ção é o resultado de um imaginário construído. O nacionalismo, na maio-
ria dos casos, é uma questão de elites que procuram legitimar a sua tomada
do poder capitalizando sobre «o povo» (um velho refrão). Foi uma época
em que os poetas exaltaram um passado ainda mais glorioso porque mar-
cado por derrotas, em que os arqueólogos transformaram o mais modesto
túmulo no equivalente do palácio de Agamémnon, em que os linguistas
recolheram pedaços de folclore aqui e ali, confiando no espírito científico
vigente para classificar os povos como se classificariam plantas ou insetos.
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em jogo. A comparação não é razão, mas é interessante observar como se
formaram as relações entre o centro imperial e suas periferias, que foram
presas da tentação nacionalista. Pois este desenvolvimento diz muito sobre
a forma como duas concepções ainda estão em vigor, uma enfatizando a
emancipação através da especificidade, a outra através da universalidade.
O início do século XIX russo, como eu disse, foi marcado pelo desejo de
expor o maior número possível de sujeitos imperiais à cultura e à língua
russas. A palavra russa não deve ser entendida aqui num sentido étnico,
mas sim como sinónimo de universalismo. Sabemos o quanto este termo é
hoje condenado pelos nossos progressistas, na medida em que esconde um
desejo desonesto de dominação. Esta é mais ou menos a forma como os na-
cionalistas acolhem as tentativas imperiais de «trazer-lhes o Iluminismo».
Por todo o Império, as costuras estão a rachar. Nas fronteiras ocidentais,
os finlandeses e os polacos, que gozavam de uma relativa autonomia pro-
pícia ao desenvolvimento do discurso nacionalista, foram unidos no seu
protesto pelos ucranianos, os bielorrussos e os povos bálticos. No Leste,
a russificação colidiu com o jadidismo, um movimento que insistia tan-
to na modernização como no papel do Islão nos antigos reinos tártaros.
Confrontado com protestos crescentes, o Império contra-atacou. Sob o
reinado de Alexandre III, a russificação assumiu cada vez mais a forma de
uma normalização forçada, que deveria conter qualquer indício de eman-
cipação. Em certos círculos próximos ao governo, a idéia de uma Rússia
messiânica que não deveria ter medo de assumir seu domínio cultural e
religioso foi reavivada. Isto levou à adoção de medidas discriminatórias,
particularmente contra judeus e poloneses. À medida que esta política ga-
nhava força, os nacionalistas endureciam ainda mais as suas posições.
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A ideia desta visão rápida não é distribuir pontos bons e maus (bons im-
perialistas universalistas vs. maus nacionalistas estreitos). É simplesmen-
te para destacar a permanência de um fenómeno que vemos hoje em dia
no trabalho quando nos interessamos pelos debates sobre a identidade: a
dialéctica que leva cada lado a radicalizar as suas posições ao ponto de
levar o conflito ao extremo.
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Cartaz soviético de 1955, lê-se:
«Todos saúdam a inquebrantável amizade dos povos!»
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2. Ecce Homo Sovieticus
1917 marcou uma ruptura na história da Rússia, da qual o país ainda não
se recuperou totalmente. Nem o mundo, já agora. Em outubro desse ano
decisivo, o impensável aconteceu com a tomada do poder por uma minoria
violenta, cheia de ideologia, determinada a demolir a velha ordem para
estabelecer um hipotético paraíso terrestre. Uma minoria tão consciente
de ser assim, que por uma antifrase tão saborosa quanto cruel, eles se cha-
mavam bolcheviques (maioria, em russo).
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Quando o poder e a ideologia dão as mãos
Cálculo político primeiro: os anos seguintes ao golpe de Estado foram deli-
cados para os bolcheviques. Eles tiveram que enfrentar uma resistência fe-
roz, com o resultado de que o país foi mergulhado numa Guerra Civil que
mataria entre 8 e 20 milhões de pessoas. Mas por mais que pudessem ser
descritos como incompetentes, corruptos e assassinos, Lênin e sua gangue
não poderiam ser privados de ter sido brilhantes táticas, supremamente
hábeis na conquista e preservação do poder. Pois num contexto difícil para
o seu nascente estado proletário, os novos mestres do Kremlin iam jogar
conscientemente a carta das nacionalidades para salvar a sua revolução.
Mas como fazer este programa maquiavélico implacável coabitar com uma
ideologia que supostamente reconhece apenas um tipo de divisão, aque-
la que atravessa as classes? Um teórico soviético resolve esta contradição
recorrendo a uma fábula própria: tal como existe colesterol bom e mau,
é necessário, diz ele, «distinguir entre o nacionalismo da nação opressora
e o da nação oprimida, entre o nacionalismo de uma nação grande e o de
uma nação pequena». O nosso brilhante dialéctico continua a dizer, num
estilo reconhecível por todos, que para conseguir uma atitude «verdadeira-
mente proletária», «é necessário não só ter igualdade formal» mas também
«compensar, de uma forma ou de outra, pelo comportamento (...) pela des-
confiança, desconfiança e mágoas que, ao longo da história, foram geradas
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entre o povo oprimido pelo governo da nação imperialista». Este teórico
que hoje fala como defensor do pensamento descolonial é o próprio Lenine,
em 1922, num livro intitulado A Questão das Nacionalidades e Autonomia.
Para isso, começaram por remodelar o velho Império numa base étnica.
Cada nacionalidade (com algumas notáveis excepções, incluindo os ju-
deus) ganhou assim o reconhecimento oficial com base num território,
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numa língua, na sua própria cultura e em novas elites provenientes da
população local, que durante muito tempo tinha sido «oprimida» pelos
colonizadores russos. Foi nesta altura que a língua ucraniana entrou em
vigor nas instituições governantes da República da Ucrânia, tal como o
bielorrusso na Bielorússia, etc.
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Discriminação positiva, uma invenção soviética
Mas, por enquanto, não há nada que sugira tal cenário. Por enquanto, não
se trata de uma queda, mas de uma ascensão. As primeiras décadas do po-
der bolchevique foram marcadas por um vasto movimento de mobilidade
ascendente. Um observador descuidado poderia ser tentado a ver nisto os
frutos de uma política generosa de redistribuição de postos. Só que o ele-
vador social de estilo soviético nunca está longe do andaime: esta mobili-
dade é em grande parte explicada pelas purgas incessantes realizadas pelos
líderes para livrar o país de elementos «suspeitos». Muito rapidamente, os
mestres em Moscou foram obrigados a educar e treinar as massas, quanto
mais não fosse para manter o país funcionando. Especialistas qualificados
tiveram de ser criados em todo o lado, rapidamente. Milhares de «traba-
lhadores», antes dominados pelas «elites», foram oferecidas novas oportu-
nidades nas universidades, nas fábricas, no exército e em órgãos políticos
ligados ao Partido.
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Cartaz soviético de 1950, diz: «Todos saúdam a amizade inquebrantável dos povos!» 3:
«Não permitiremos semear discórdia entre os nossos povos».
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cidades. Mesmo em Moscovo, foram criados programas para acomodar
um número específico de ciganos nas fábricas. O mais surpreendente é
que estas quotas não se limitam aos burocratas encarregados de «preen-
chê-las»: elas são publicadas na imprensa local. Quando o Pravda Vostoka,
órgão oficial do Partido na Ásia Central, publicou as percentagens a respei-
tar nas universidades, deu os seguintes resultados: ‘85% mínimo de nacio-
nalidades locais (e entre elas, não menos de 10% de nativos); 20% de Batraki;
30% de kolkhozniks e bednyiaki [sharecroppers, nota do editor], etc.’.
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arrependimento e cancelamento da cultura, que creio estar intimamente
relacionada com a promoção artificial das minorias.
Para entender isso, precisamos olhar para uma categoria que ainda não foi
mencionada: os «russos étnicos» que vivem nos territórios cobertos pela
Corenizatsia. Eles têm todos os motivos para sentir que estão a ser prejudi-
cados pelo mecanismo de quotas e, como veremos, é isso que vai acontecer
no final. Para justificar a concessão de tratamento preferencial a minorias
supostamente oprimidas pela história, é necessário assumir que aqueles
que merecem tratamento preferencial serão excluídos. É aqui que entra a
noção de arrependimento, ou pelo menos o que tomou o lugar do arrepen-
dimento no contexto soviético.
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Há um mistério neste fenómeno de aceitação por parte dos «dominantes»
designados que nunca deixa de surpreender e, confesso, de me assustar.
Deixe-me ficar longe das minhas antigas terras russas por um tempo para
contemplar as estepes não menos geladas do debate político contempo-
râneo. Recentemente estive ouvindo a ensaísta francesa Caroline Fourest
falar sobre seu tempo nos campi americanos, onde ela estava dando uma
série de palestras sobre a situação na França. A conversa rapidamente se
deslocou para a questão do véu, e aqui interveio um estudante: como não-
-muçulmano, herdeiro de uma cultura opressiva, Fourest não era «legí-
timo» falar sobre o assunto. Ela se defendeu, porém, e se contradisse o
melhor que podia, num ambiente que se assemelhava ao de uma escola de
formação religiosa e não ao que se esperaria de uma universidade. No final,
os professores vieram até ela com lágrimas nos olhos para agradecer-lhe
por ter ousado dizer coisas que há muito tempo não lhes era permitido
dizer, sob pena de serem sujeitos a uma cabala que poderia até levar à ex-
pulsão. Os mecanismos de terror intelectual desdobrados pelos fanáticos
dos Acordados colocaram estes professores numa situação em que não têm
outra escolha senão ficar calados e aceitar o novo catecismo em voga. Mas
lá no fundo, eles não acreditam.
Será que Lenine, Stalin, Bukharin e os outros alguma vez acreditaram nas
calorosas declarações que fizeram, de coração, perante os líderes locais que
procuraram seduzir para melhor exercer o seu domínio sobre eles?
Cancelamento da cultura,
inseparável da promoção das minorias
Há outro ponto em que vejo conexões entre o legado soviético e o que está
acontecendo hoje na América e na Europa, e que é a reescrita da histó-
ria em nome do respeito às minorias, entre outras coisas. Um fenômeno
comumente chamado de cultura de cancelamento. Os exemplos abundam,
todos eles têm em comum o facto de me mergulharem em abismos de
perplexidade. Em algumas universidades britânicas, há uma campanha
para remover alguns dos principais pensadores do currículo com o argu-
mento de que eles são representantes de uma «ordem branca e patriarcal».
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Em França, o legado de Colbert está sendo apagado porque ele presidiu à
elaboração do Código Noir. Estamos relutantes em celebrar Napoleão pelo
papel que desempenhou no restabelecimento da escravatura nas colónias,
quando há tantas outras razões para ressentir o homem que, na Rússia,
não está longe de ser considerado o igual de Hitler! Em todos os casos,
a complexidade da história é evacuada em favor de uma leitura binária e
simplista, escandalosamente militante.
Mais uma vez, sinto-me como se estivesse a ver uma peça má que já foi
interpretada na União Soviética. Claro que, nos piores momentos de cen-
sura, a reescrita da história foi além da questão das nacionalidades. Houve
um tempo em que tudo foi apagado de acordo com as torpezas dentro do
Partido: os acontecimentos, a realidade das figuras, os líderes desonrados,
o mais pequeno indivíduo que se desviou da linha geral. Nos dias mais
negros de censura e vigilância policial, a menor declaração pode fazer de si
um suspeito, um traidor. Um transeunte, um vizinho rabugento, um mem-
bro da família que o quisesse prejudicar, poderia denunciá-lo e mandá-lo
para o Gulag durante vários anos. Mesmo comunistas convictos, militantes
sinceros que ainda acreditavam em todo o circo, tinham de agir com cau-
tela. A linha geral era tudo menos reta. As inversões do Politburo podem
ocorrer a qualquer momento, arruinando para sempre a carreira e às vezes
a vida daqueles que de repente se vêem rotulados como «desviados».
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«Pela solidariedade das mulheres do mundo!», diz este cartaz de 1973.
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se os representantes mais virulentos do novo pensamento progressista assu-
missem as alavancas do poder! Minha intuição me leva a acreditar que tudo
isso resultaria em purgas permanentes contra «símbolos de dominação»,
purgas destinadas a mascarar a ineficácia das políticas implementadas em
outros lugares. É claro que as receitas concebidas pelos bolcheviques para
corrigir os erros do passado contra as nacionalidades se revelaram prodi-
giosamente ineficazes.
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3. A verdade por detrás da fábula
da «amizade entre os povos
A tese que defendo nestas páginas pode ser afirmada da seguinte forma:
a política de nacionalidades criou as condições para um desastre a longo
prazo para a União Soviética, ao injectar as sementes da divisão étnica numa
sociedade que, em grande parte, desconhecia a sua existência. Veremos mais
tarde o quanto esta questão desempenhou um papel essencial no colapso do
país, e continua a pesar sobre os Estados que emergiram do bloco soviético.
Discriminação positiva,
uma fábrica de vítimas perpétuas
Pode-se entendê-los. Tudo no sistema de reparações foi concebido para
manter os seus beneficiários num confortável estado de atraso. Eu não
inventei o termo «atraso»: ele aparece como tal nos discursos oficiais das
hierarquias bolcheviques. Nas listas de nacionalidades elaboradas (não
sem uma condescendência, por vezes, que beira o racismo) pela burocra-
cia central, algumas foram consideradas desde o início como «atrasadas».
Não me refiro à Ucrânia ou à Bielorrússia, onde as taxas de alfabetização
eram relativamente elevadas na época, mas sim aos territórios orientais do
antigo Império Czarista. Aos olhos dos nossos demiurgo modernizadores,
este atraso cultural teve que ser remediado rapidamente, mesmo que isso
significasse que o Estado central tivesse que fornecer os meios. Para isso, foi
criado um fundo de vários milhões de rublos em meados da década de 1920.
Este fundo transformou-se muito rapidamente num frasco de compota para
28
«Todos saudem a revolução mundial de Outubro!» - um cartaz de 1933.
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as elites locais. Compreenderam imediatamente a vantagem de exagerar o
subdesenvolvimento da sua nacionalidade para poderem beneficiar de fun-
dos adicionais. Havia cenas grotescas e angustiantes em que os líderes locais
que visitavam a capital competiam uns com os outros na miséria para obter
mais subsídios dos burocratas de Moscovo que se sentiam tocados por tal
atraso. Assim, pode-se dizer que o primeiro efeito perverso do korenizatsiya
foi confinar os nacionais das periferias a um estatuto de beneficiários perpé-
tuos de assistência, primeiro a nível administrativo, depois a nível simbólico
e, finalmente, pode-se assumir, a nível psicológico.
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Mas talvez o desconforto psicológico de ser vítima seja, em alguns casos,
anulado pelos benefícios desse estatuto? Seria um erro abordar a questão
das «minorias» como uma questão de ideias puras. Há uma mistura de
idealismo e cálculo entre seus defensores, como há entre todos os seres hu-
manos. É claro que pode haver uma grande quantidade de hipocrisia por
trás disso, como no caso do fundador da Black Lives Matter que se tornou
dono de uma casa de um milhão e meio de dólares em um bairro branco em
Los Angeles. Mas a maioria dos activistas que abraçaram a causa são pro-
vavelmente sinceros. Mas isso não os impede de pensar nas suas carreiras
também. Não é segredo que a defesa dos «oprimidos», seja em termos de
etnia, sexo, peso ou condição física, serve agora como um meio de comuni-
cação e recurso material para centenas de empresários de identidade (uma
frase que me agrada particularmente porque diz que o mundo das ideias é
um mercado como qualquer outro). Mesmo que você não seja um ativista
ardente, a identidade pode ser um investimento que compensa a cada vez.
Milhares de empresas estão agora convertidas ao discurso progressivo so-
bre minorias que deveria ser tornado mais «visível». Isto não é sem as suas
dificuldades. Há alguns anos, na Austrália, foram tomadas medidas para
aumentar o número de mulheres nos corpos de bombeiros. Os sindicatos
protestaram que este era um risco de segurança, enquanto várias mulheres
bombeiras disseram que não queriam ser tratadas de forma diferente dos
seus colegas homens. Por outro lado, sendo o ser humano o que é, como
não imaginar que essa exigência seja usada como pretexto para alguns exi-
girem uma promoção, mesmo que isso signifique expulsar colegas merece-
dores da competição, se necessário, deslegitimando-os com acusações mais
ou menos fundamentadas? Para alguém como eu, que cresceu num país
onde o poder era inseparável da ideologia, isto não seria uma surpresa. É
simplesmente um sinal preocupante de que estamos a andar para trás.
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implementada pelos bolcheviques no início da década de 1920: refiro-me
aos russos que vivem nos territórios periféricos, bem como aos judeus.
Para medir esta frustração, precisamos olhar para as cartas enviadas à sua
hierarquia política por camaradas zangados. Isso foi feito pelo historiador
americano Terry Martin, uma das fontes mais úteis sobre o assunto. Em
1928, um grupo de trabalhadores escreveu ao Bureau da Ásia Central re-
clamando sobre cotas na indústria: «Em todas as repúblicas, seu alfabeto e
linguagem foram introduzidos. Daí as perguntas: Onde se encaixam os rus-
sos? Onde vão encontrar trabalho? Com a implementação da Uzbequistão,
não há dúvida de que os russos acabarão sendo substituídos pelos uzbeques.
Isto é um facto. Há um descontentamento crescente entre os empregados e
trabalhadores que foram despedidos em grande número por causa do kore-
nizatsiya. Parece que o nosso governo considera que o lugar dos russos é na
Rússia, quer queiram quer não, que por causa da korenizatsiya e da uzbeki-
zação, os russos serão forçados a fugir para a Rússia. Na boca de alguns uzbe-
ques você já pode ouvir: ‘este país é nosso, não seu’».
O grande substituto dos uzbeques! Este é o tipo de fantasia que a ação afir-
mativa incutiu naqueles que se sentiram injustamente excluídos pela polí-
tica de cotas. Esta carta não é um caso isolado. Há milhares dessas cartas de
cidadãos que são corajosos (ou inconscientes) o suficiente para questionar
o discurso oficial. É compreensível que tais comentários possam ter dei-
xado os responsáveis pela propaganda desconfortáveis, pois alegavam que
tudo estava bem no Paraíso dos Trabalhadores...
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Outra carta sóbria anotada por Terry Martin foi assinada por um trabalha-
dor de Tashkent, também no Uzbequistão. Este homem reclama que «não
consegue encontrar trabalho» porque «ele é dado à população indígena,
aos usbeques, enquanto nosso irmão europeu está morrendo na indiferen-
ça». Ele está ainda mais enfurecido por não encontrar um emprego porque
não são as suas capacidades que estão em questão, mas o seu nascimento.
Ou mais exatamente, o fato de que outros, para «chegar», simplesmente se
deram ao trabalho de nascer. Em outras palavras, nada mais ou menos que
a queixa formulada por revolucionários igualitários contra a velha aristo-
cracia hereditária... A história, concedo-vos, não diz se o nosso operário já
não tinha sentimentos de condescendência, ou mesmo uma ligeira xeno-
fobia, em relação aos seus irmãos uzbeques. Mas mesmo deixando de lado
este debate de galinha e ovo, podemos dizer o seguinte: por terem criado
um sistema de reparações que deveria trazer justiça e harmonia entre na-
cionalidades, os bolcheviques acabaram por alimentar a desconfiança, até
mesmo a hostilidade entre eles.
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reforçar a desconfiança, incentivando o uso de estereótipos. Quando asse-
guramos que todos os negros ou latinos são tratados de uma certa maneira
porque pertencem a essa categoria, não devemos nos surpreender que os
discursos que os acusam de serem «todos iguais» proliferem. Pode ser tris-
te, pode ser deplorável, mas é assim que as coisas são.
A discriminação positiva
como instrumento de purga
Outro efeito perverso para o qual eu gostaria de chamar a atenção do leitor
antes de chegarmos ao resultado trágico desta história é o risco de atri-
buição étnica quando o poder decide se voltar contra as minorias que ele
mesmo promoveu.
Nos seus primórdios, o korenizatsiya pode ter servido como uma ferra-
menta de propaganda para os estrangeiros. Ao mostrar às minorias nos
países fronteiriços - os ucranianos segregados da Polónia, os coreanos sob
domínio japonês, os uigures da China, os azeris do Irão - como os seus «ir-
mãos» eram bem tratados na nova União Soviética, o regime, ainda impul-
sionado pelo seu messianismo revolucionário, assegurou uma publicidade
barata entre certas populações.
Tudo mudou em meados dos anos 30. Stalin, cada vez mais paranóico,
começou a purgar à vontade. E quando a ascensão de Hitler escureceu o
quadro, algumas das pessoas que tinham sido testemunhas da grandeza da
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alma soviética de repente tornaram-se suspeitas. Assim, as cotas estabele-
cidas nos anos 20 foram utilizadas como base para reprimir grupos étnicos
supostamente desleais. Isso aconteceu com poloneses, alemães, coreanos
e até judeus, que foram acusados durante a Grande Guerra Patriótica de
conluio com seus «compatriotas» no exterior.
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do que entrar nesta arena selvagem, penso com pavor do mundo da minha
juventude, que a aliança entre ideologia e tecnologia em sociedades abertas
pode muito bem levar a resultados semelhantes.
Com o tempo, o mal-estar causado pela ação afirmativa uniu-se ao rio si-
lencioso das ilusões perdidas do comunismo. A partir de meados dos anos
30, os próprios dirigentes, a começar pelo primeiro deles, Estaline, que ti-
nha passado das nacionalidades ao domínio total sobre os povos da União,
puseram um travão nos discursos galvanizantes sobre a recuperação das
massas atrasadas. Foi porque a guerra com a Alemanha era ameaçadora.
Os soviéticos tiveram que ser mobilizados em torno de um projeto co-
mum. Uma ideologia divisória como o korenizatsiya dificilmente poderia
cumprir esse papel. Nem poderia o marxismo-leninismo, que negava a
realidade dos conflitos entre nações. Tudo o que restava era reabilitar o
bom e velho nacionalismo imperial russo. Foi isto que Estaline se propôs a
fazer, com a sua capacidade de propaganda. De repente, tornou-se permis-
sível, e até recomendado, invocar a glória da Rússia eterna a cada esquina.
As tropas alemãs que estavam prestes a varrer o país não foram os her-
deiros dos cavaleiros teutónicos derrotados no século XIII por Alexander
Nevsky? Não é por acaso que Eisenstein encenou a sua epopeia num filme
lançado em 1938, a pedido expresso do Kremlin.
36
Este cartaz de 1957, mostra um grupo multicultural explorando
os pontos turísticos de Moscovo.
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Yurchaq. Uma mentira oficial entre outras, a amizade entre os povos trans-
formou-se ao longo dos anos em um «mantra vazio», uma fórmula que se
repetia mecanicamente, com um sorriso nos lábios. Para além dos brilhan-
tes desfiles e das grandes declarações oficiais sobre o folclore dos povos, já
pouco restava da retórica multicultural dos anos 20 na minha juventude.
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4. Quando a panela de pressão de
identidade explode
Vladimir Putin uma vez chamou à queda da URSS «a maior catástrofe
geopolítica do século 20». Desde então, ele tem reafirmado regularmente
esta posição, acrescentando que se ele pudesse mudar a história, ele faria
tudo para evitar o colapso. Muitos comentadores (especialmente no que
costumava ser chamado de «campo ocidental») viram estas declarações
como uma expressão da nostalgia da grandeza, do imperialismo expan-
sionista que o atual morador do Kremlin mostraria para com os seus vizi-
nhos. O que quer que se pense de Putin e das suas políticas, não é preciso
ter vivido esta história de perto para negar a lucidez das suas palavras. Pela
minha parte, eu compreendo e partilho-os. A ruptura repentina, mal ne-
gociada e totalmente inesperada de uma estrutura política de setenta anos,
que, através da astúcia da ideologia, exerceu seu domínio e fascínio sobre
metade da humanidade, foi uma tragédia para milhões de pessoas. Uma
tragédia que continua a ter um efeito enquanto escrevo isto.
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A vingança das nacionalidades é um prato
melhor servido frio
A experiência de Gorbachev é frequentemente resumida em duas palavras:
glasnost (transparência) e perestroika (reconstrução). Em outras palavras,
a tentativa de liberalizar a sociedade soviética enquanto tentava controlar
essa abertura o melhor possível. Não vou entrar nos detalhes de uma po-
lítica que, pessoalmente, me foi bastante favorável na medida em que me
permitiu lançar as minhas primeiras iniciativas como empresário. Para me
ater à grande história, direi simplesmente o seguinte: no final, as coisas
acabaram por ficar fora de controlo.
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a assediar a multidão de Moscovo empoleirada na sua carruagem. O 26 de
dezembro de 1991 marcou o fim oficial da URSS, com o reconhecimento
da secessão das antigas repúblicas soviéticas nos meses anteriores. Assim, o
trabalho de Lenine acabou sendo torpedeado por burocratas durante uma
votação de registro, varrido pelas forças que ele havia pensado estar cana-
lizando em benefício de sua Revolução.
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nos arquivos dos burocratas responsáveis pela divisão da União Soviética
de acordo com critérios étnicos. Esta abordagem teve consequências de
grande alcance. A história tem mostrado com demasiada frequência que
criar povos a partir do zero, unindo grupos humanos por vezes em terre-
nos ténues, significa correr o risco de se expor mais tarde a disputas, con-
flitos e mesmo massacres, como vimos no Ruanda. Embora as querelas nas
antigas periferias soviéticas nunca tenham dado origem a tais tragédias, a
persistência de conflitos difíceis de resolver só pode alimentar, com razão
ou sem ela, a nostalgia das estruturas imperiais.
Vou mencionar aqui duas das questões mais candentes do momento. Para
não tomar uma posição. Simplesmente para ilustrar os efeitos a longo pra-
zo de uma política de atribuição de identidade decidida de forma tenden-
ciosa. No que diz respeito a Nagorno-Karabakh, a inclusão deste território,
que é principalmente povoado por arménios, na antiga República Socialis-
ta Soviética do Azerbaijão deve-se às circunstâncias históricas da coloniza-
ção russa. Já em 1987, os nacionalistas locais desencadearam uma revolta
popular para exigir a ligação deste oblast autónomo à Arménia, lançan-
do o início da «agitação» que surpreendeu Gorbachev pela sua virulência.
A desagregação da URSS só piorou as coisas, até o episódio sangrento de
2020, que não resolveu o problema. Só este exemplo poderia argumentar
contra tudo o que eu tenho tentado dizer desde o início. Aqui estamos cla-
ramente lidando com duas entidades heterogêneas que se recusam a viver
no mesmo país. Isto prova pelo menos uma coisa: que os administradores
soviéticos não criaram simplesmente identidades a partir do nada, ignoran-
do os marcadores históricos ou culturais pré-existentes. O problema aqui é
a organização político-administrativa que eles criaram, que era claramente
inadequada às realidades no terreno.
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é uma opção. O problema é que os nacionalistas ucranianos estão tão fir-
memente apegados ao seu excepcionalismo, que tem sido agitado desde
o século XIX e foi consagrado nos seus corações pelos korenizatsiya, que
é impossível fazê-los aceitar tal ponto de vista. É verdade que o lado de
língua russa, por seu lado, não ajuda necessariamente a restaurar um clima
sereno, refugiando-se atrás de soluções militares apoiadas por Moscovo...
Uma nova ilustração da ascensão a extremos que, assim que as questões
de identidade são abordadas, exclui soluções baseadas em compromissos.
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Cartaz soviético dos anos 1970-s, lê-se: «Todos saudam a URSS,
o modelo da amizade dos trabalhadores de todas as nacionalidades».
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5. Então e agora: discriminação
positiva como passaporte para
conflitos de identidade perpétuos
Aqui estamos no final desta longa jornada histórica, seguindo os passos da
política de identidade ao estilo soviético. Espero não ter perdido o leitor
que não está familiarizado com a Rússia com referências exóticas. Quanto
àqueles que estão perfeitamente familiarizados com esta história, espero
que me perdoem pelos atalhos deliberados deste texto: eles foram inspira-
dos pela necessidade de convencer.
Parece-me que há lições úteis a tirar desta história, num momento em que
existe um forte movimento ideológico entre os jovens para corrigir situa-
ções de desigualdade com base na identidade. Nos Estados Unidos, este
movimento contribuiu para polarizar a sociedade em torno da noção de
raça, ao ponto de o país estar praticamente dividido em dois. Na Europa,
ela começa a emergir como uma aliança de acadêmicos de estudos cultu-
rais, movimentos indígenas e partes perdidas da velha esquerda marxista,
determinados a atacar o velho software humanista-universalista. É picante
(ou trágico) que este movimento esteja a emergir numa época em que as
sociedades europeias, traumatizadas pelas experiências do século XX, pen-
savam que elas se faziam com a noção de raça.
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Consigo ver as críticas a vir daqui. Ao traçar um paralelo entre a experiên-
cia soviética e a discriminação positiva nas democracias ocidentais, você
está comparando o que não é comparável. Você está entrando em uma
espécie de chantagem da história que o faz negligenciar as especificida-
des do presente, como todos aqueles que falam de um retorno aos anos
30 com tremolos de indignação em suas vozes. Eu concordo. As situações
estão longe de ser idênticas. Nem a América nem a Europa vivem hoje sob
a ameaça do totalitarismo racial. Mas existem padrões, invariantes, uma
lógica específica para este tipo de pensamento que nos obriga a abordar
tudo o que tenha a ver com discriminação positiva com a máxima descon-
fiança. Porque esta política, onde quer que tenha sido implementada, tem
produzido resultados que são, na melhor das hipóteses, mistos, na pior
das hipóteses prejudiciais. Isto é algo que o economista americano Thomas
Sowell entendeu muito bem.
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Sem ir tão longe, existe esta forma de violência psicológica que consiste
em manter o outro no seu suposto estado de inferioridade. Na América,
o economista Glenn Loury, considerado «traidor ao seu acampamento»
por alguns profetas acordados por ter pele negra, atacou recentemente a
decisão do prefeito de Nova York de suspender o exame de admissão às
melhores escolas de ensino médio, alegando que os negros estão sub-re-
presentados. Isto, argumenta Loury, seria o mesmo que dizer-lhes que não
podem competir, que nunca podem medir-se até aos mais altos padrões.
O conceito que se opõe a uma tal visão das coisas, aquela que nunca dei-
xarei de defender, é a meritocracia. A justa recompensa dos mais dotados,
dos mais brilhantes, dos mais dispostos, dentro do quadro de uma socie-
dade aberta. Talvez eu tenha escolhido acreditar nisso porque essa escolha
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ética justifica o meu próprio caminho. Nietzsche disse que os homens ten-
dem a adotar as opções filosóficas que justificam sua própria biografia. Mas
a verdade é que eu já acreditava nisso quando tentava fazer o meu caminho
numa ordem decadente estabelecida por uma ideologia desvitalizada, que
continuava a avançar o melhor que podia, impulsionada por reflexos atávi-
cos, como um pato sem cabeça.
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Quando observo a França, o estado do seu debate intelectual, vejo sur-
gir a oposição entre nacionalistas identitários e uma parte da população
convertida a uma mistura de ideologia acordada e defesa dos imigrantes
oprimidos, que seriam oprimidos por causa da sua religião (o famoso is-
lamo-leftismo!). Por toda a Europa, esta é uma narrativa que está em as-
censão. Não é o único, mas o fato é que tende a conquistar as mentes. Por
enquanto, o país parece estar agarrado ao seu modelo universalista. Mas
as fendas estão a ficar maiores. Ao ouvir os políticos invocarem a defesa
da República, sente-se que ela está em perigo. É suficientemente forte para
se aguentar? Penso no que aconteceria se, amanhã, uma maioria sensível
às sirenes do diferencialismo étnico fosse consagrar na lei certas divisões
que atravessam a sociedade. Eu penso nisso e imagino um país ainda mais
dividido do que hoje. Um país onde todos se olhariam de lado, cheios de
ressentimento para com os membros de outras «comunidades», lutando
pelos últimos recursos de um Estado social falido, armando-se.
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