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Para conhecer

e refletir
Josef Stalin e Adolf Hitler marcaram a história anos de sua morte, ainda gera curiosidade e inte-
com suas atrocidades, as quais até hoje geram resse. A marca que ele deixou levará muito tempo
consequências para a humanidade. Diante disso, para ser apagada – ou talvez nunca seja –, por-
nesta publicação, apresentamos a trajetória com- que as cicatrizes foram enormes e, até hoje, não
pleta de cada um dos líderes. De um lado, temos se fecharam. O próprio povo judeu faz que as feri-
Stalin – ditador russo que marcou o século 20 como das continuem abertas, purgando sobre o plane-
um dos mais atuantes e radicais governantes que ta a vergonha do que o ser humano é capaz de
estes cem anos presenciaram. Vindo de família fazer e a certeza de que tal absurdo jamais pode-
pobre, ele mesmo confessou que se tornara mar- rá voltar a acontecer. Para conhecer melhor suas
xista por conta de sua própria condição. Aos pou- atrocidades, nas páginas a seguir, apresentamos
cos, entregou-se completamente à causa revolu- a “obra” completa deste líder e as drásticas con-
cionária. Sob a bandeira do socialismo e a causa sequências que ela trouxe para diversas nações.
de transformar as relações políticas e socioeconô- Esta edição de Grandes Líderes da História bus-
micas em seu país e até no mundo todo, ele man- ca informar, mas, acima de tudo, gerar reflexão so-
dou e desmandou nos rumos da então URSS e de bre esses terríveis acontecimentos.
boa parte do planeta, passando para a história
como um dos maiores líderes políticos que o pla- Um grande abraço,
neta já conheceu. Os editores
Por outro lado, temos Hitler, que, mesmo após 70 redacao@editoraonline.com.br

sumário HITLER .............................................................. 48


Contexto histórico................................................................. 50
Formação ideológica............................................................... 52
Primeira Guerra Mundial .................................................... 56
STALIN ...............................................................04
Infância e juventude............................................................... 06 Entre Guerras........................................................................ 60
Começo do engajamento político........................................... 10 Começo da vida política......................................................... 62
De 1905 a 1917.......................................................................14 Violência...................................................................................64
Revolução de 1917................................................................... 18 Golpe da cervejaria................................................................. 68
Nascimento da URSS . .......................................................... 24 Livro.......................................................................................... 72
Stalin versus Trotski. ........................................................... 30 Bases ideológicas. .................................................................. 75
Stalinismo . ............................................................................. 34 Simbologia............................................................................... 79
Vida privada. ............................................................................38 Holocausto.............................................................................. 82
Segunda Guerra Mundial. ......................................................40 Morte...................................................................................... 90
Morte....................................................................................... 46 Guia.......................................................................................... 93

Guia Grandes Ditadores da História 3


Era Stalin
Sob a bandeira do socialismo e a
causa de transformar as relações
políticas e socioeconômicas em
seu país e até no mundo todo,
este líder russo foi responsável
por muitas tragédias.
A seguir, conheça a história deste
ditador que marcou o século 20,
mandando e desmandando nos
rumos da então URSS e de boa
parte do planeta
4 Guia Grandes Ditadores da História
Guia Grandes Ditadores da História 5
Infância e juventude

AFP

6 Guia Grandes Ditadores da História


Primeiros passos
Nascido Iossef Vissarionovitch, só se tornou Stalin
na década de 1910. Antes disso, viveu a infância
na pequena Gori e estudou em um seminário
em Tbilissi. Ali amadureceriam o nacionalismo
georgiano e o ideário socialista
Por Lucas Pires

S
talin era descendente de uma família de servos A FAMÍLIA
e viveu uma infância pobre, entre surras do pai, Os mistérios em torno de Stalin já começam pela defi-
que gostava muito de beber, e o carinho da mãe, nição de sua data de nascimento. A maioria afirma que ele
que teve de trabalhar para suprir a ausência do nasceu em 21 de dezembro de 1879. Mas pesquisas mais
sustento que deveria ser provido pelo pai. recentes, descobertas em 1990 em documentos de arqui-
A história de Josef Stalin confunde-se rapidamen- vos paroquiais, apontam para 6 de dezembro do ano an-
te com a dos movimentos socialistas revolucionários na terior. Dúvidas à parte, é certo que o líder russo era filho
Rússia imperial. Isso porque, na juventude, ele entraria de um casal de ascendência serva da Georgia, região inde-
para os devotos da revolução contra o czar e a favor do pendente que fora conquistada em 1801 pelos czares rus-
socialismo, e só deixaria o movimento com sua morte, em sos. O pai, sapateiro, deixou sua vila próxima a Tbillissi,
1953, como chefe da União Soviética. capital do Cáucaso, conhecida por Didi-Lilo, e mudou-se
Enquanto viveu, Stalin vivenciou dois momentos an- para Gori, cidadezinha de cinco mil habitantes.
tagônicos. Primeiro, foi o império russo atrasado que Vissarion Ivanovitch Djugachvili, quando ainda era
tentava sobreviver com um sistema alternativo ao capi- jovem, por volta de 1875, conheceu a mulher que viria
talismo e ao socialismo, sistema este que deixaria 80% da a ser sua esposa e a mãe de seus filhos. Casou-se com
população na miséria. Em um segundo momento, pós- Ekaterina Ghelazde, de apenas 15 anos, com quem teve
-revolução de 1917, ele se deparou com um país socialista três filhos até 1879, sendo que nenhum deles “vingou” –
que expandiu sua economia via uma industrialização ace- morreram logo depois do nascimento. Apenas a quarta
lerada, levando-o a vencer a 2a Guerra Mundial e a cons- criança sobreviveria – Iossef Vissarionovitch Djugachvi-
truir uma bomba atômica. li, mais tarde conhecido como Josef Stalin.
Em pouco mais de 30 anos, um abismo separava es- Como a maioria do povo russo ou dos povos domi-
sas duas Rússias. E Stalin esteve em ambas – na primei- nados pelo império, que era o caso da Geórgia natal de
ra, como opositor e revolucionário; na segunda, como Stalin, a família do futuro revolucionário bolchevique era
seu maior protagonista depois da morte de Lênin. São muito pobre. O que o pai ganhava como sapateiro não
estes dois mundos, o tempo de Stalin e sua participa- dava para pagar o aluguel e alimentar os três. Daí a mãe
ção neles, que iremos abordar nessas páginas de “Gran- ter começado a lavar roupas pra fora, “para equilibrar o
des Líderes da História”. orçamento”. Alguns biógrafos colocam que a frustração

Apesar de forte, Stalin passou por problemas quando criança


que o afetariam para o resto da vida. Um deles foi a varíola,
que teve aos 7 anos e que lhe deixou marcas no rosto;
outro foi uma infecção no braço esquerdo, que, mesmo
após a recuperação, deixou o movimento prejudicado
e o membro mais curto que o direito
Guia Grandes Ditadores da História 7
de Vissarion em não ter ascendido socialmente com sua espírito de submissão infinitos da camponesa oriental.
mudança o fez gastar o pouco que ganhava com vodca, Suportava sua sorte com tenacidade, sem guardar res-
obrigando mais ainda a esposa a trabalhar. Há referências sentimento do marido. Dedicava toda a ternura ao úni-
de colegas de Stalin que lembram do pai bêbado surran- co filho vivo. Era profundamente religiosa; só encontrava
do o filho e até a mulher. Um deles disse: “Aquelas sur- consolo para as aflições na igreja. Era também analfabe-
ras terríveis e sem propósito fizeram do filho um homem ta. Só na velhice iria aprender a ler, mostrando-se, assim,
duro, acostumado a enfrentar situações violentas”. digna do filho famoso”.
Apesar de forte em saú-
de, Stalin passou por pro- A IDA PARA O

AFP
blemas quando criança que SEMINÁRIO
o afetariam para o resto da O caráter religioso da
vida. Um deles foi a varío- mãe ajudou na decisão de
la, que teve aos 7 anos e que enviar o pequeno Soso –
lhe deixou marcas no rosto; apelido pelo qual era cha-
outro foi uma infecção no mado Stalin pelos mais
braço esquerdo, que, mes- próximos, que era um di-
mo após a recuperação, dei- minutivo georgiano de Iossef
xou o movimento prejudi- (algo como nosso Zezi-
cado e o membro mais cur- nho) – para a escola ecle-
to que o direito. Sobre este siástica de Gori. Deseja-
episódio, Stalin declarou à va intimamente a mãe que
sua cunhada posteriormen- seu filho fosse um homem
te: “Não sei o que me sal- dedicado à religião, um
vou, se minha constituição sacerdote. Desde muito
robusta ou o unguento de criança, Soso frequentava
um charlatão de aldeia”. a igreja e cantava no coro.
A figura paterna viveria Daí a alegria da mãe quan-
pouco ao lado do filho, pois do, em 1894, ele ingressou
morreria, segundo alguns, no Seminário Teológico de
numa briga de rua, quan- Tiflis, com a indicação de
do o menino tinha 11 anos. “melhor aluno”. Graças ao
Em termos financeiros, não diretor da escola e a um
surtiu muita diferença no padre, Stalin recebeu uma
orçamento familiar, pois, de bolsa de estudos e assim
fato, o sustento era provido conseguiu continuar sua
pela mãe. O pai, mesmo levando a 1894
Em , Stalin formação no seminário.
família a Tbilissi para tentar a vida
numa fábrica de sapatos, não con-
no
ingressou Seminário gumas Ainda na escola em Gori, al-
características foram des-
seguiu nada além de trocar, como Teológico de Tiflis, tacadas na personalidade de Sta-
escreveu Isaac Deutscher em “Sta-
lin: Uma Biografia Política” (Civi-
indicação
com a lin, entre elas a excelente memória
e a facilidade para aprender. No
lização Brasileira, 2006), “a escra- aluno
de “melhor ”. campo físico, era ágil e forte e do-
vidão à terra pela escravidão as-
salariada”. Sua morte, em 1890,
Graças ao diretor da
minava os colegas nas brincadei-
ras. Em compensação, já teria de-
colocou apenas fim a uma relação escola e a um padre , o monstrado sua agressividade e de-
conturbada e, muitas vezes, violen-
ta entre pai, mãe e filho. Em toda rapaz recebeu bolsa
senvolveria ali um pensamento de
questionamento quanto às dife-
sua vida, pouco Stalin falaria a res- estudos
de e renças sociais – já que era o único
filho de camponeses na escola. Foi
peito do pai, e quase nada se sabe
sobre ele. conseguiu continuar em Gori também que aprendeu o
Em relação à mãe, Deutscher sua formação idioma russo, ensinado na esco-
la quase que exclusivamente, ape-
também teceu considerações:
“Ekaterina possuía a paciência e o seminarista
de sar de em casa Stalin falar o geor-

8 Guia Grandes Ditadores da História


giano. Essa “russificação” imposta pelo governo causa- tendo mesmo publicado em 1895 um poema num peri-
ria diversas confusões na Geórgia, e mesmo Stalin iria ódico chamado “Iberia”. Pegava livros de uma biblioteca
se especializar na questão quando no partido bolche- da cidade, que eram proibidos pelo seminário e, muitas
vique. A questão das minorias nacionais seria o tema vezes, acabavam confiscados pelos monges, como certa
pelo qual ficaria conhecido no círculo comunista no vez foi “Os Trabalhadores do Mar”, de Victor Hugo. Sta-
início do século 20. lin lia Hugo e, principalmente, os russos Tchekhov, Go-
O cotidiano no seminário, onde permaneceu até ser gol e Saltikov-Chtchedrin. Além destes, de fundamental
expulso em 1899, era monástico. Viviam trancados, mui- importância foram as leituras sobre biologia darwiniana,
tos empilhados em um único quarto, tendo aulas de teo- economia e sociologia.
logia e escolástica e fazendo orações, além de só poder Ao que parece, quando Stalin ingressou no seminário,
ler a literatura autorizada pela instituição. Um ex-estu- aos 15 anos, em outubro de 1894, havia no futuro ditador
dante afirmou que se sentiam como “prisioneiros que ali russo nada além de uma semente rebelde, brotada das in-
devem passar anos, mesmo sem ter culpa de nada. Todos justiças sociais vividas por ele e observadas na escola, e um
nós éramos sombrios e taciturnos. (...) a alegria juvenil sentimento patriótico georgiano. Sua discrição em relação
quase nunca se afirmava”. Mesmo assim, a oposição polí- a tais ideias quando ainda em Gori possibilitaria a ida ao
tica era cultivada pelos alunos no seminário. Dali saíram seminário, e seria ali que entraria em contato com marxis-
muitos dos homens que iriam lutar contra o regime cza- tas e com a doutrina socialista. Contraditoriamente, foi
rista nos próximos anos. num ambiente de formação religiosa que Stalin forjaria
Stalin passou a ter maior contato com a literatura, sua personalidade política de revolucionário.

A mãe do camarada Stalin


Da família de Stalin, praticamente ninguém foi capaz de ter Junto com as cartas, Ekaterina enviava doces e geleias ao filho,
influência sobre ele. De temperamento forte, seria conhecido mais que retribuía com algum dinheiro e bilhetes curtos como o citado
por sua dedicação à política e ao partido do que por suas relações acima. Apesar de ausente, Stalin rodeava a mãe dos melhores
pessoais – pais, esposas e filhos. Mesmo assim, convém dissertar cuidados. Tinha moradia, era atendida pelos mais competentes
a respeito da relação que o todo-poderoso da União Soviética, médicos e, de vez em quando, recebia a visita dos netos. Em
depois da morte de Lênin, estabeleceu desde jovem com sua mãe. compensação, numa dessas visitas, Svetlana Alliluyena, filha de
A filha de Stalin disse, certa vez, a respeito do pai e a avó o Stalin, se questionou do porquê da pobreza e da pequenez do
seguinte: “Ele era um mau filho, negligente, exatamente como quarto em que a avó morava.
era como pai e marido. Todo seu ser estava voltado para outra Na década de 1930, a saúde da mãe do camarada Stalin começou
coisa, a política e a luta, de modo que as pessoas que não estavam a definhar. Em outubro de 1935, ele, enfim, quebrou um hiato de
próximas em caráter pessoal sempre foram consideradas mais muitos anos e visitou a mãe. Passou o dia com ela e voltou para
importantes para ele do que as que eram de seu convívio pessoal”. Moscou na mesma noite. Nesse encontro, que seria o último entre
De fato, Stalin era mais voltado ao partido do que à família. eles, Ekaterina teria perguntado ao filho o que ele era realmente
Reclamações quanto à sua ausência em casa seriam corriqueiras no país. Ela tinha noção de que era importante, mas não do
entre suas duas esposas. A mãe não reclamava, pois cedo grau de hierarquia a que chegara. Stalin teria respondido a ela o
aprendera a ficar longe do filho. Primeiramente, quando foi seguinte: “Mamãe, lembra-se do nosso czar? Pois
estudar no seminário, em seguida com o envolvimento na política bem, sou mais ou menos como ele”. Quando se despediram,
e, depois, nos dez anos entre as revoluções de 1905-07 e 1917, Ekaterina teria dito: “Ainda assim, é uma pena que não
quando Stalin viveu intercalando a vida na clandestinidade e nas tenha se tornado padre”.
prisões. Nesse período, Ekaterina Georgievna Djugashvili ficou No final de maio de 1937, ela contraiu pneumonia. Poucos dias
até mesmo sem ter notícias do filho. depois, em 4 de junho, acabou morrendo. Stalin não foi a Tbilissi
Pouco se encontraram depois da primavera de 1904, quando e não esteve presente no enterro da mãe. Alguns diziam que fez
passaram juntos algumas semanas em Gori. A partir de 1922, já com isso por receio da reação popular contra o período de terror que a
grande destaque no partido e no governo, Stalin mudou sua mãe de União Soviética vivia, de perseguições e fuzilamentos sumários a
Gori para Tbilissi, a capital do Cáucaso. Ela foi instalada num antigo “traidores” e espiões. Outros apontam justamente esse cenário de
palacete da cidade, onde ocupou um pequeno compartimento. Daí preocupação com as perseguições para sua ausência. O trabalho,
em diante, passou a se comunicar com o filho mais por cartas, ditadas como ele sempre demonstrou, viria em primeiro lugar, acima
para pessoas do partido que iam da cidade para Moscou. mesmo da mãe e de sua família.
Nos arquivos soviéticos divulgados em 1990, foram encontradas Deu ordens para que a morte de Ekaterina não fosse noticiada
cartas recebidas do filho que ela guardava com todo cuidado. De pela imprensa central, mas no Cáucaso saíram fotos dela nos
1922 até sua morte, em 1937, foram 18 cartas. Algumas delas não jornais, e as autoridades georgianas reservaram três dias para
passavam de duas linhas, como a de 1o de janeiro de 1923, que dizia as despedidas. Entre as milhares de coroas de flores, um grande
assim: “Querida mamãe! Saudações! Que você possa viver dez mil arranjo com um bilhete se destacava. Os dizeres eram: “Para
anos. Mando-te um beijo. O seu Soso”. minha querida e amada mãe, de seu filho Josef Djugashvili”.

Guia Grandes Ditadores da História 9


começo do engajamento político

O encontro com o
socialismo
Em 1900, Stalin já fazia parte de grupos marxistas que
pregavam contra o regime do czar. Quatro anos depois,
conhecia Lênin, o grande inspirador revolucionário, e
participaria da Revolução de 1905, agindo na organização
de populares e em ações de boicote ao governo. Começava a
surgir uma figura de importância para o nascente bolchevismo.
A partir dali, Stalin viveria para o Partido e para a Revolução
Por Lucas Pires

A
estada no seminário, ao contrário do que desejava
Ilustração: Felipe Ajzemberg

a mãe – torná-lo um religioso – fez que Stalin co-


nhecesse a doutrina marxista. Em 1898, ingressou
numa sociedade clandestina secreta de nome Mes-
same Dassi, em que seus membros discutiam o socialismo. Os
amigos do grupo eram quase todos do próprio seminário, que
era um centro de oposição ao governo czarista.
Por que Stalin acabou aderindo ao socialismo nessa épo-
ca? Ele mesmo dá a resposta: “Tornei-me marxista por causa
da minha posição social (meu pai era operário numa fábrica
de sapatos e minha mãe era uma trabalhadora), mas também
(...) por causa da cruel intolerância e da disciplina jesuítica
que me esmagaram tão impiedosamente no seminário (...).
A atmosfera na qual vivia estava saturada de ódio contra a
opressão czarista”.
Assim, o clima da época, como ele mesmo disse, ajudou-o
a entrar para o movimento socialista e a se dedicar a dar pa-
lestras a operários das nascentes indústrias de Tbilissi. Sua
atividade socialista não fora descoberta no seminário, mas
o choque com as autoridades se tornou rotina. Um dos re-
latórios dos monges afirmava que “Djugachvili é geralmente
grosseiro e desrespeitoso com as pessoas investidas de auto-
ridade”. Certo é que, em maio de 1899, sob a alegação de “ra-
zões desconhecidas” que não o deixaram prestar os exames
finais, Stalin foi expulso do seminário. O próprio envolvido
mais tarde teria afirmado que o motivo da expulsão fora pro-
paganda marxista, mas, na época, os monges não ousaram
relatar tal razão.

SOCIALISMO CLANDESTINO
A oposição ao regime não era novidade em fins do século
Karl Marx 19, quando Stalin surgiu no cenário político russo. O regime

10 Guia Grandes Ditadores da História


do czar fazia por merecer o ódio en-
gendrado pela população e pelos que havia
“Se um
na cidade do 1o de Maio de 1900.
Conseguiu unir algumas centenas
acreditavam na revolução para der- onde
Estado se de manifestantes com bandeiras ver-
rubá-lo. Um desses grupos, os narod-
niks, pregava a rebeldia em forma de acreditava que
melhas e retratos de Karl Marx fora
da cidade, quando fez seu primeiro
atos terroristas contra autoridades, fosse
a revolução discurso público. De fato era uma
como foi o caso do assassinato do
czar Alexandre II, em 1881. Não en- desejável
não só
vitória num tempo em que qualquer
forma de desobediência era punida
fraqueceu o czarismo, mas deu desta-
que internacional ao movimento.
inevitável
como , severamente.
Mais importante ainda, e decisi-
Eric Hobsbawm, falando sobre o império
era o vo para sua vida, foi o ano de 1901.
império russo em fins do século 19,
em seu “A Era dos Impérios” (Paz e
czares
dos . Em março, ele e alguns “camaradas”
organizaram uma greve de ferroviá-
Terra, 1988) afirmou: “Se havia um Gigantesco, pesado rios com manifestação no centro
Estado onde se acreditava que a re- e ineficiente, da cidade, numa provocação dire-
volução fosse não só desejável como ta à Okhrana, a polícia política do
inevitável, era o império dos cza- econômica e czar, que respondeu com violência,
res. Gigantesco, pesado e ineficiente, deixando como saldo do evento 14
econômica e tecnologicamente atra-
tecnologicamente feridos e 15 presos. O jornal clan-
sado, com 126 milhões de habitan- atrasado , com destino “Iskra” (Faísca), que se tor-
tes (1897), 80% de camponeses e 1% nou o centro dos revolucionários
de nobreza hereditária, ele era orga- 126 milhões de com a consolidação do partido no
nizado de uma forma que todos os habitantes (1897), início do novo século, apontara em
europeus instruídos consideravam
francamente pré-histórica no fim do 80% edição seguinte o fato de que “aque-
de camponeses le dia marcou o início de um movi-
século 19: a autocracia burocrática. 1% e de nobreza mento abertamente revolucionário
(...) Como havia a consciência quase
universal da necessidade de um tipo hereditária , ele
no Cáucaso”.
Stalin preparava as manifesta-
ou outro de mudança, praticamente era organizado de ções do 1o de Maio daquele ano
todos eram obrigados a ser revolu- quando chegou a Tbilissi um en-
cionários. A única indagação era de uma forma que viado de Lênin que muito o im-
que tipo”.
No alvorecer do século 20, eram
todos os europeus pressionou – Victor Kurnatovski.
Ele seria um dos motivadores de
os marxistas que tinham maior nú- instruídos Stalin para ingressar no partido
mero de adeptos e que pareciam mais em novembro de 1901. Kurnato-
próximos de uma vitória contra a au-
consideravam vski e outros cabeças do movimen-
tocracia czarista. Sua base de pensa- francamente to foram presos antes das manifes-
mento estava montada sobre o pro- tações, e, na ocasião, a polícia des-
letariado urbano industrial, o verda-
pré-histórica no cobriu o “disfarce” do observatório.
deiro protagonista da derrubada do fim século 19
do : Desmascarado, Stalin só pôde fu-
sistema capitalista e da implantação
do socialismo. Para tanto, seguiam o autocracia
a
gir e se entregar inteiramente para
o movimento ilegal e clandesti-
ideário marxista – era preciso flores- burocrática” no. Sua vida a partir dali seria to-
cer o capitalismo na Rússia para, só talmente dedicada ao movimen-
assim, provir o socialismo. Eric Hobsbawm to e ao partido. Seu nome real se-
O movimento marxista acabou se ria deixado de lado e ele passaria
unindo em torno de um partido, o Partido Operário So- a usar codinomes e passaportes falsos. Trabalho? Ape-
cial-Democrata, fundado em 1898. Após ser expulso do nas o ligado à revolução, à causa socialista. Como es-
seminário, Stalin passou a dar aulas particulares e arru- creveu Deutscher, “a decisão de tomar este caminho era
mou um emprego no Observatório de Tbilissis, o que o um voto de pobreza informal, que, num certo sentido,
ajudou a mascarar suas atividades clandestinas de doutri- concluía o noviciado no socialismo. O ex-seminarista
nador de operários. Foi trabalhando no observatório que tornava-se membro daquela ordem ateista de cavaleiros
organizou seu primeiro grande levante: as comemorações andantes e peregrinos da revolução, para quem a vida,

Guia Grandes Ditadores da História 11


fora da sua missão, oferecia pouco ou nenhum interes- cia liberal”: brutalidade suficiente para confirmar o ódio
se ou atrativo”. dos prisioneiros ao regime e ineficiência para não evitar
Uma das primeiras ações de Stalin após o 1o de Maio a continuidade dos estudos e dos trabalhos revolucioná-
de 1901 foi montar uma gráfica clandestina e editar o rios de dentro da prisão. Ou seja, a prisão servia quase
jornal “Brdzola” (A Luta), que saiu em setembro. No se- como uma universidade, onde os presos obtinham uma
gundo número, lançado em dezembro, um ensaio não melhor formação revolucionária e mantinham contato
assinado de Stalin trazia considerações sobre a Rússia com grandes nomes do movimento.
e o cenário de descontentamento, propício à revolução. Enquanto isso, Lênin participava do Congresso dos
Uma das conclusões no artigo e em seus métodos era de Sociais-democratas Russos em julho de 1903. Previs-
que o regime czarista, com sua política de sempre levan- to para acontecer em Bruxelas, acabou transferido para
tar o chicote indistintamente para manifestantes e curio- Londres porque a polícia descobrira o evento. A reu-
sos nas ruas, estaria apenas aumentando a fileira de re- nião do congresso marcaria a divisão do partido russo
volucionários e que não seriam necessários mais que três em duas facções – a dos bolcheviques e a dos menchevi-
anos para o “espectro” surgir. Foi uma profecia certeira, ques. O desacordo começou quando Lênin propôs o pa-
pois em 1905 explodia a Revolução. rágrafo primeiro do estatuto partidário para a definição
de quem poderia ser considerado membro do partido. A
PRIMEIRA PRISÃO E O NASCIMENTO exigência dele era de que só seria do partido quem atua-
DOS BOLCHEVIQUES sse pessoalmente ou fosse de alguma organização liga-
O trabalho de Stalin e o perigo que corria em Tbi- da ao partido. A outra proposta, feita por Martov, abria
lissi fizeram que ele fosse enviado a Batum, região de in- espaço para simpatizantes e colaboradores fortuitos. Se-
dústria petrolífera, para organizar o movimento grevista. gundo Daniel Aarão Reis Filho, em “As Revoluções Rus-
Foi em Batum que passou a usar o codinome Koba, que sas e o Socialismo Soviético” (Editora UNESP, 2003),
significava “o indomável”, no lugar de Djugachvili. Elegeu para Lênin “só poderia ser considerado filiado, com di-
o comitê social-democrata da cidade, montou uma grá- reito de voto, os militantes que participassem regular-
fica clandestina e escreveu panfletos destinados aos tra- mente em organizações do partido. Lênin propunha
balhadores das indústrias do petróleo, até ser preso em uma organização de profissionais, totalmente devotada
abril de 1902. à ação política, capaz de resistir ao rigor repressivo da
Ao mesmo tempo em que Stalin adentrava de cabeça polícia política czarista, disponível, sem restrições, para
no movimento, crescia na Rússia a fama de um orador e as tarefas revolucionárias”.
teórico marxista que viria a ser o grande herói da revolu- A proposta de Martov venceu por 28 votos a 23, mas,
ção – Wladimir Lenin. Seu nome já era conhecido pela ao fim do congresso, quando da votação para a eleição
Europa Ocidental, de onde escrevia artigos a respeito do dos dirigentes do partido do jornal “Iskra”, oito votantes
marxismo na Rússia. A rigor, estava exilado desde a pri- de Martov haviam abandonado o plenário e o placar da
são, em 1898, numa das reuniões prévias da fundação do votação foi favorável aos partidários de Lênin. Este ape-
partido. Lênin seria o grande herói e inspirador de Stalin. lou para o caráter legal da votação, exigindo sua vitória,
Os dois tiveram papéis díspares nos anos que ante- mesmo sendo questionado pela minoria derrotada. Daí
cederam à Revolução de 1905. Stalin passou um ano e nasceu a origem dos nomes – bolchevique vem de “maio-
meio preso no Cáucaso até ser deportado para uma pri- ria” (bol’chinstvo), enquanto menchevique é oriundo de
são na Sibéria. Deustscher lembra que a prisão do regi- “minoria” (men’chinstvo). Ao final, a facção de Lênin saiu
me czarista era uma “mistura de brutalidade e ineficiên- de fato vitoriosa e com o comando, não sem sofrer boi-

Uma das conclusões de Stalin no artigo e em seus métodos


era de que o regime czarista, com sua política de sempre
levantar o chicote indistintamente para manifestantes e
curiosos nas ruas, estaria apenas aumentando a fileira
de revolucionários e que não seriam necessários mais que
três anos para o “espectro” surgir. Foi uma profecia certeira,
pois em 1905 explodia a Revolução

12 Guia Grandes Ditadores da História


cotes da minoria, o que fazia nascer o movimento com

AFP
uma cisão que se mostraria irredutível.
Enquanto isso, na Sibéria desde novembro de 1903,
Stalin-Koba programava sua fuga, que foi concretizada
em janeiro de 1904, com a desordem causada pela guer-
ra russo-japonesa. Um mês depois, viajando em carroças
e passando muito frio, Stalin chegou a Tbilissi, onde to-
mou conhecimento da cisão do partido, e logo se afinou
com o ideário bolchevique. Trotski afirma em sua bio-
grafia da Revolução que Stalin foi menchevique antes de
ser bolchevique, mas nada na postura dele, e mesmo sua
devoção a Lênin, indicam isso. As duas facções digladia-
vam-se entre si quando, em janeiro de 1905, explodiu a
revolução popular que inflaria todo o país. Nos dizeres
de Trotski, já na época conhecido do partido e aliado
dos mencheviques, a Revolução de 1905 foi o “ensaio ge-
ral para a Revolução de 1917”.

O ENSAIO DA REVOLUÇÃO
Conforme escreveram Dorothy e Thomas Hoobler
em “Grandes Líderes – Stalin” (Nova Cultural, 1985),
“foi a primeira confrontação séria entre o poder czarista
e o descontentamento popular provocado pelos salários
e pelas condições de trabalho nas indústrias em expan-
são, pelo peso crescente dos impostos, pela evolução da
guerra com o Japão e pela falta de direitos civis e meios
de expressão e ação política”. Lênin e Stalin em 1922
Pelo calendário russo, era 9 de janeiro quando uma
manifestação de populares – cerca de 200 mil pessoas pação política e incitavam a população a não pagar im-
– rumou para o Palácio de Inverno a fim de fazer um postos. Seu poder, por um breve período de tempo – até
pedido ao czar. Não havia armas nem queixas verbais ao a prisão de seus principais membros em novembro e de-
governante ou ao regime. Pelo contrário, carregavam car- zembro –, rivalizou com a administração oficial. O go-
tazes com ícones religiosos e retratos do czar, e cantavam verno do czar, diante da situação calamitosa, passou a
hinos de louvor ao chefe da nação. Apesar disso, Nico- querer negociar. Era ceder para não cair. Assim, em 30
lau II saiu de São Petersburgo na véspera da passeata, de outubro, no que se chamou de “Manifesto de Outu-
deixando para a ocasião a polícia cossaca. Aquele seria bro”, a Rússia era convertida em uma monarquia consti-
chamado de “o domingo sangrento”, pois a polícia, não tucional, em que a liberdade de expressão e as organiza-
obtendo sucesso na dispersão da massa, passou a atirar ções partidária e sindicais eram adotadas, e foi convoca-
sem dó nos manifestantes. Os tiros dos cossacos foram a da uma assembleia representativa, a Duma.
“ponta-de-lança” de uma revolução que, a partir dali, se O Soviete de Moscou, em dezembro, se rebelou e
espalharia por toda a Rússia através de greves, revoltas e foi sumariamente liquidado numa repressão que deixou
ações de boicote. mais de mil mortos. A partir desse momento, a Revolu-
As consequências negativas da guerra contra o Ja- ção começou a perder força na mesma medida em que
pão desde o ano anterior marcaram um dos pontos altos o regime se fortalecia baseado na força repressora. Era
de insatisfação da população. Seus efeitos seriam como hora de unir forças para resolver o que deveria ser feito.
fermento para a Revolução, tanto que, em setembro de Assim foi que, em abril de 1906, o IV Congresso do par-
1905, o governo russo firmou um acordo de paz, a fim de tido teve lugar na Finlândia, território sob domínio do
fazer voltar ao país as tropas ocupadas com a guerra para império russo. Ali se encontrariam todos os principais
combater os revolucionários. líderes da Revolução e do partido. Ali também nasceria
No final de outubro, a economia russa parou. En- a briga e a birra entre Trotski e Stalin, que culminaria no
tre os revolucionários, no mesmo outubro, foi criado o assassinato do primeiro em 1940 a mando do segundo.
Soviete de São Petersburgo, um conselho de deputados Seria nessa ocasião também que Stalin conheceria pes-
operários liderado por Leon Trotski. Queriam partici- soalmente seu líder e mentor, Wladimir Lenin.

Guia Grandes Ditadores da História 13


A
De 1905 a 1917
expectativa do encontro de Stalin com Lênin
A derrota na Revolução de foi daquelas entre fã e ídolo, mas o evento efe-
1905 abriu um período de tivo marcou Stalin por outro fator: o de ver
contra-revolução que só Lênin como um ser humano normal. Escre-
seria invertido com a veu Stalin sobre o líder bolchevique: “Esperava encontrar
uma águia-real de nosso partido, um grande homem, não
explosão da 1a Guerra apenas do ponto de vista político, como também do pon-
Mundial. Com ela, o to de vista físico. Porque, para mim, Lênin era um gigan-
czarismo assinou seu te, cheio de autoridade e força. E qual não foi o meu de-
atestado de óbito e sapontamento ao ver aquele homenzinho comum, de al-
tura média, absolutamente igual a qualquer um de nós...
possibilitou a ascensão dos Literalmente, idêntico...”.
revolucionários. Enquanto Em maio de 1907, houve novo encontro do partido,
as coisas se precipitavam, dessa vez em Londres, que serviu para Stalin conhecer
Stalin passava os dez anos Trotski. Ali nascia uma rivalidade que marcaria a histó-
entre as duas revoluções ria da Revolução Russa. Preso em novembro de 1905 e
condenado à prisão perpétua na Sibéria, Trotski conse-
preso ou fugindo da prisão guiu fugir e chegar a tempo de participar do congresso e

A gestação da gr
Por Lucas Pires
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deixar clara sua posição contrária, assim como se posi-


cionou toda a facção menchevique, a ataques de brigadas
de combate com o objetivo de expropriar bancos, trans-
porte de tesouros e tropas. O que Trotski não queria, e o
congresso ratificou, era que os socialistas fizessem uso da
violência (roubos, extorsão etc.) para angariar produtos e
dinheiro para a Revolução. O tema já tinha sido debatido
no congresso de abril de 1906, mas as resoluções toma-
das na ocasião não foram definitivas – ficaram permiti-
dos apenas ataques para tomar armas e munição.
Com a intervenção de Trotski, mesmo os bolchevi-
ques se mostraram contra a insurreição armada, isolando
Stalin e Lênin, que eram favoráveis e se abstiveram de fa-
lar e votar. Muitos biógrafos colocam que, nesse momen-
to, vendo a estrela de Trotski brilhar, bateu em Stalin a
inveja e o ressentimento, sentimentos que ele carregaria
consigo até o fim da vida.
Os ânimos revolucionários do povo arrefeceram ao
mesmo tempo em que a força do regime cresceu. Greves
foram se tornando mais raras com o passar dos anos, as-
sim como aumentava o ceticismo dos envolvidos. A Re-
volução entrou num período de perda de vitalidade que
só seria modificado por algo maior que abalasse as estru-
turas do regime. Em 1907, Lênin profetizou esse abalo:
“Começou uma era de contra-revolução; e vai durar uns

14 Guia Grandes Ditadores da História


20 anos, a não ser que o czarismo nesse meio-tempo seja minorias nacionais na Rússia e o socialismo.
abalado por uma grande guerra”. A 1a Guerra Mundial Antes disso, Stalin entrou em conflito aberto com
veio dar aos revolucionários todas as armas para a derru- Trotski quando este passou a atacar Lênin pela ruptura
bada do czarismo, mas, antes disso, é preciso conhecer o dos bolcheviques. Trotski era um menchevique e escre-
papel de Stalin e suas ações no período entre-revoluções. veu artigo defendendo a unidade partidária, e, ao mesmo
tempo, atacando Lênin e o encontro em Praga em que foi
ENTRE PRISÕES E FUGAS ratificada a cisão. Este encontro seria considerado por ele
Em 1903, Stalin se casou com uma jovem georgiana, uma “fraude e usurpação”. A resposta veio por intermédio
Ekaterina Svanidze, de quem parece, pelos relatos, ter gos- de Stalin no “Pravda” de Petersburgo, no qual o futuro di-
tado e amado muito. Um amigo do casal falou a respeito tador zombou da tentativa que considerava hipócrita de
da relação deles: “Stalin não era capaz de se sentir igual a Trotski pela unidade, e o chamou de “campeão de mus-
nenhum outro ser humano. Os dois tiveram um casamen- culatura frouxa”. Sobre o episódio, Deustscher escreveu:
to feliz porque Ekaterina via o marido como um semideus “Com toda a vulgaridade da expressão, o autor dela clara-
e porque, sendo georgiana, havia sido criada na sacrossan- mente apreendia a fraqueza de Trotski – a incapacidade
ta tradição de que as mulheres nascem para servir”. para o jogo e a manobra tática, em que Stalin se mostraria
Apesar disso, e sabendo que para a época e a região mestre consumado”.
um tipo de relação como a descrita era absolutamente Em seguida, o futuro líder russo viajou para Viena
normal, o casamento durou apenas quatro anos – Eka- a fim de escrever o referido ensaio “encomendado” por

ande Revolução
terina morreu em 1907, deixando-lhe um filho, que se- Lênin. O resultado foi um dos textos mais bem escritos
ria criado pelos avós no Cáucaso. À beira do caixão para e originais de Stalin, e o primeiro a ser assinado por ele
o enterro, Stalin teria dito: “Ela era a única criatura que com o pseudônimo pelo qual ficaria marcado na história
conseguia entender meu coração... Com ela morre uma mundial. De Koba passava a ser K. Stalin, que significa “o
parte importante da minha vida. Está tudo vazio aqui, homem de aço”. “O Marxismo e a Questão Nacional” se-
tudo absolutamente vazio... é impossível dizer o quanto”. ria aprovado por Lênin e publicado na revista de sociolo-
Depois de perder a esposa, Stalin mudou-se para gia do partido, a “Prosvechtchenie” (Ilustração). No artigo,
Baku a fim de agitar os operários da indústria de petró- seu autor defendia a unidade dos povos de diferentes na-
leo. Sua ação na cidade não durou mais de nove meses, cionalidades sob a orientação de um só partido. Ou seja, o
mas rendeu uma greve geral. Seus ativistas foram elogia- socialismo marxista estaria acima das nacionalidades.
dos por Lênin como sendo “nossos últimos ativistas capa- Ao voltar para São Petersburgo, Stalin acabaria pre-
zes de organizar uma greve de massas com objetivos polí- so, delatado por Malinovski, colega do comitê central e
ticos”. O resultado do evento foi a prisão de Koba-Stalin. deputado bolchevique no Duma. Na verdade, ele era um
Condenado a dez anos de exílio, em junho de 1909, ele infiltrado da Okhrana. Dessa vez, não teve escapatória. O
fugiria e retornaria para Baku. homem de aço foi condenado ao exílio e enviado para a
Em 1910, voltaria ser preso e enviado para a Sibéria, Sibéria, onde permaneceu até o alvorecer da Revolução
fugindo novamente em fevereiro de 1912. Nesse mesmo em fevereiro de 1917. Seria dali, sob o frio da região, ao
ano, foi eleito membro do comitê central com a ajuda de lado de companheiros políticos, lendo e pescando, que ele
Lênin e se empenhou em lançar o jornal “Pravda”, cuja veria explodir a 1a Guerra Mundial em 1914. Com a im-
primeira edição saiu com editorial dele. O ano de 1912 plantação da lei marcial, a ideia da fuga acabou abandona-
seria marcado também pela posição de total ruptura de da, pois, caso fosse preso, seu destino seria o fuzilamento.
Lênin com os mencheviques, e pela aproximação com o
grupo bolchevique radical do Cáucaso, do qual Stalin fa- A GUERRA E O FIM DO CZARISMO
zia parte. Em janeiro de 1913, Lênin enviou Stalin para Hobsbawm é um dos historiadores a reforçar o cará-
Viena a fim de escrever um ensaio sobre a questão das ter contraditório da Rússia imperial pré-revolução. Se-

Guia Grandes Ditadores da História 15


gundo ele, “a Rússia era tanto um país industrial impor- quanto à situação da guerra e à posição “derrotista” de
tante como uma economia camponesa tecnologicamen- Lênin. Outros dizem que Stalin teria defendido ardoro-
te medieval; uma nação imperial e uma semicolônia. (...) samente o ideal leninista e ficado a seu lado. E existem os
O único elemento que faltava para fazê-la explodir em que afirmam que ele não teria dado confiança ao assunto
erupções simultâneas era a guerra mundial, que a Eu- e se mantido sem opinar, sem se posicionar, esperando
ropa cada vez mais esperava e que foi incapaz de evitar”. que as coisas se precipitassem e, assim, pudesse apoiar o
A guerra explodiu e a Europa se viu dividida em dois lado do vencedor.
blocos. A Rússia entrou ao lado da França e da Sérvia, É difícil crer que Stalin não tenha desde o início
contra a Alemanha e a Áustria (Império Austro-húnga- apoiado o derrotismo revolucionário leninista. Ele fazia
ro). No início, contra os austríacos, o exército russo obte- parte do grupo mais radical bolchevique, e acreditava na
ve vitórias que ajudaram a inflar o nacionalismo do povo. Revolução acima de tudo. Dessa forma, qualquer opor-
Mas, quando passaram a guerrear contras as tropas ale- tunidade para abreviar o czarismo e implantar a Revolu-
mãs, as coisas foram vistas pela sua realidade: derrotas ção seria bem-vinda.
que deixavam clara a diferença de capacidade de guerra É bom ressaltar que a ideia de Revolução de Lênin
entre os dois países, o mesmo atraso detectado na guer- e dos bolcheviques não era a tomada do poder do pro-
ra contra o Japão em 1904-1905. “Na guerra regular en- letariado para a implantação do socialismo. Seguiam à
tre a metralhadora e a baioneta, a locomotiva e o cavalo, o risca o ideário marxista de que o socialismo só poderia
canhão e o fuzil, tendeu a predominar o melhor equipa- ser adotado após o desabrochar da burguesia e do capi-
mento”, escreveu Daniel Aarão Filho. Em seguida, o autor talismo. Na Rússia de então, o que se buscava era der-
detalha o problema do exército russo: “A Rússia tinha sol- rubar a autocracia czarista e implantar um regime libe-
dados de valor, mas faltavam-lhes armas modernas, mu- ral que pudesse, aí sim, levar ao socialismo e à ditadu-
nições, transportes, oficialidade sintonizada com as exi- ra do proletariado. A revolução na Rússia deveria servir
de estopim para “acordar” os operários europeus, estes,

Em 1907, Lênin profetizou: “Começou uma era de contra-


-revolução; e vai durar uns 20 anos, a não ser que o czarismo
nesse meio-tempo seja abalado por uma grande guerra”

gências da guerra moderna, apoiada na grande indústria”. sim, vivendo na etapa prévia ao socialismo. O próprio
Assim, a situação do regime do czar tornou-se ex- Lênin, poucos dias antes da queda do czar, se questio-
tremamente delicada, piorando com o posicionamento nava se viveria para ver o socialismo na Rússia. Hobs-
contrário à guerra e ao próprio regime por parte dos bol- bawm, em “Era dos Extremos” (Cia das Letras, 2000),
cheviques. Além disso, o caos econômico adveio, com in- aponta esse caráter global da Revolução de Outubro de
flação alta e escassez de produtos alimentícios. 1917. “Foi feita não para proporcionar liberdade e socia-
Lênin, na Suíça, recebeu a notícia da guerra com fer- lismo à Rússia, mas para trazer a revolução do proleta-
vor. “Este é o melhor presente que o czar poderia nos riado mundial. Na mente de Lênin e de seus camaradas,
dar”, teria dito. Em seguida, entrou em depressão ao ver a vitória bolchevique na Rússia era basicamente uma ba-
que os deputados socialistas alemães apoiavam a guerra. talha na campanha para alcançar a vitória do bolchevis-
Então, passou a agir contra a guerra e em favor da Re- mo numa escala global mais ampla”.
volução. Lançou o slogan de “transformar a guerra impe- Foi dentro desse cenário de incertezas, de caos políti-
rialista em guerra civil” e se declarou um “derrotista revo- co e econômico que, em 2 de março de 1917 (o calendá-
lucionário”. Tal postura, que seria adotada pelos bolche- rio russo vigente era o juliano e não o gregoriano, o que
viques, seria tratada como traição pelo czar, e a resposta dava uma defasagem de 13 dias em relação ao Ocidente;
veio em forma de prisão dos deputados socialistas que se assim, tais eventos, inclusive a abdicação do czar, ocorre-
declaravam contra a guerra. ram na Rússia em fevereiro – daí esses acontecimentos
Trotski, de Paris, também se posicionou contra a serem chamados de “Revolução de Fevereiro”), depois de
guerra, pregando “nem vitória nem derrota, mas Revo- uma greve geral que parou o país por quatro dias, o czar
lução”. Enquanto isso, Stalin continuava preso. Historia- abdicou. “Quatro dias espontâneos e sem liderança na
dores divergem quanto ao papel dele nesse período. Al- rua puseram fim a um Império”, escreveu Hobsbawm. A
guns dizem que, com as novas prisões, ele teria convivi- fragilidade do regime ficava aí evidente.
do com diversos novos companheiros que o atualizaram

16 Guia Grandes Ditadores da História


AFP

Leon Trotski

“O Marxismo e a Questão Nacional” seria


aprovado por Lênin e publicado na revista de
sociologia do partido, a “Prosvechtchenie”.
No artigo, Stalin defendia a unidade dos povos
de diferentes nacionalidades sob a orientação
de um só partido. Ou seja, o socialismo marxista
estaria acima das nacionalidades
Guia Grandes Ditadores da História 17
Revolução de 1917

Todo o poder aos


bolcheviques!

A Revolução de Fevereiro derrubou o czar, mas


manteve o poder nas mãos de revolucionários
considerados conservadores. As coisas se
precipitavam com a Rússia cada vez mais pobre e
derrotada na guerra quando, em outubro, uma nova
revolução levou o poder aos bolcheviques. Começava
ali a luta para se manter no governo e a implantação
de um regime socialista
Felipe Azjemberg

Por Lucas Pires

18 Guia Grandes Ditadores da História


C
om a abdicação do czar, um governo provi-
sório passou a controlar o país. Mas, de fato,
ele não conseguia fazer valer sua vontade sem
que tivesse o apoio do Soviete de Petersbur-
go, o Conselho dos Deputados Operários e Soldados.
Enquanto isso, o novo governo dava anistia geral a presos
para juntar homens para a guerra. Stalin foi convocado,
mas seu problema no braço não permitiu que fosse envia- Stalin, como fora sua
do. Em março, quando voltou a Petersburgo, reassumiu característica até aquele
seu cargo de editor do “Pravda” e, por quase um mês – até
a chegada de Lênin da Suíça –, dirigiu o partido. momento, trabalhava nos
A partir de abril, quando do encontro bolchevique
em Petersburgo, ficou evidente o descompasso do gru-
bastidores. Ao lado de
po com o governo provisório. A chegada de Lênin trou- Lênin e Trotski, arquitetou
xe o slogan que marcaria a luta revolucionária até ou-
tubro – “Todo o Poder aos Sovietes!”. Como já dito, a
a Revolução de Outubro
ideia bolchevique não era implantar o socialismo e a di- (novembro pelo calendário
ocidental). Com o primeiro ainda
tadura do proletariado na Rússia, mas fazer uma revolu-
ção democrático-burguesa que instigasse a Europa à Re-
volução socialista. Os bolcheviques viam a revolução na no exterior, ficou a cargo
de Stalin a ligação entre seu
Rússia como uma faísca para a Revolução mundial so-
cialista. Daí as desavenças com os mencheviques de Ke-
renski, que assumiu o governo provisório, quando estes líder e o partido, enquanto
Trotski militava no Soviete
passaram a não levar um programa revolucionário dese-
jado adiante.
A posição dos bolcheviques bateu de frente com o de Petersburgo. Em 15 de
governo quando se pronunciaram novamente a favor de
um cessar-fogo e a saída do país da guerra. O governo setembro, Stalin recebeu duas
respondeu com a organização e o ataque contra a Ale-
manha, em junho, empreitada que se mostrou suicida
cartas de Lênin que foram
e gerou descontentamento geral. Marinheiros da base apresentadas ao Comitê Central.
de Kronstadt rebelaram-se e marcharam para a capital.
O governo renunciou, mas em pouco tempo estava re-
Elas continham as seguintes
composto, só que os sovietes ocupavam maior espaço em orientações: “Os bolcheviques
sua composição. Em compensação, a reação aos bolche-
viques foi violenta – prenderam diversos de seus líde-
devem tomar o poder” e
res, inclusive o recém-convertido Trotski – e o VI Con- “Marxismo e insurreição”
gresso do partido, em fins de julho, acabou acontecendo
na clandestinidade. Lênin teve de fugir para a Finlândia,
mas, antes, se escondeu na casa de um velho amigo de
Stalin, Sergo Alliluiev, que viria a ser sogro de Stalin no
ano seguinte. O futuro ditador, que não gozava de po-
pularidade e era praticamente um anônimo do partido, rários sendo convertidas ao bolchevismo e os apoiando
ficou novamente com o papel de dirigente dos bolchevi- cada vez mais. Em setembro, deu-se o evento que seria
ques com a ausência de Lênin em Petrogrado. fatal ao governo provisório: o comandante supremo das
Forças Armadas da Rússia, Kornilov, preparou um golpe
A DECISÃO POR UMA para depor o governo e instalar-se no poder. Informados
NOVA INSURREIÇÃO que Kornilov estava a caminho de Petrogado, os homens
A ideia de uma nova revolução, embora no ar, não era do governo mandaram soltar Trotski e armaram os so-
aspirada diretamente por Lênin, pois os bolcheviques vietes para a defesa da cidade.
não eram maioria nos sovietes, e sua pregação era exa- O que estava em jogo era a própria Revolução, pois
tamente a favor do poder aos sovietes. Mas, aos poucos, o golpe de Kornilov era o início do movimento contra-
a situação convergiria a seu favor, com massas de ope- revolucionário – contra o governo e contra os bolchevi-

Guia Grandes Ditadores da História 19


terior, ficou a cargo de Stalin a ligação entre seu líder e o
partido, enquanto Trotski militava no Soviete de Peters-
burgo. Em 15 de setembro, Stalin recebeu duas cartas de
Lênin que foram apresentadas ao Comitê Central. Elas
continham as seguintes orientações: “Os bolcheviques
Na noite de 24 de outubro, devem tomar o poder” e “Marxismo e insurreição”.
quando o governo ocupou as
A ideia de insurreição de Lênin rapidamente passou
a ser discutida pelo partido. Adeptos e opositores come-
instalações da gráfica do partido çaram a dialogar a fim de chegar a um consenso. Trotski
bolchevique, uma delegação
concordou com a insurreição, mas achava que ela deve-
ria ser melhor planejada em termos políticos e militares,
de tipógrafos solicitou e que estivesse associada aos sovietes. Após a tentativa de
ao Comitê Militar Revolucionário
golpe de Kornilov, os sovietes montaram o Comitê Mili-
tar Revolucionário, que passou a ser o defensor legal da
que enviasse tropas capital. O comitê era presidido pelo próprio presidente
do soviete, no caso, Trotski. Com isso, os bolcheviques
para garantir o camuflavam a insurreição como algo legal.
funcionamento do local. “Trotski – todos os fios da insurreição estavam nas
suas mãos – conseguiu dar ao levante a aparência de uma
Dali partiu o levante. A briga operação defensiva destinada a prevenir ou, antes, a rea-
teve início na gráfica e, gir à contra-revolução, expediente tático que trouxe os
setores hesitantes da classe operária e das tropas para o
rapidamente, tomou lado dos insurretos”, escreveu Deutscher em sua biogra-
estações, ferrovias e pontos fia sobre Stalin, que não deixa de enxergar em Trotski o
grande herói da Revolução e Stalin como um aprovei-
estratégicos da cidade. tador. Essa é uma discussão que traremos mais adiante,
As tropas comandadas por
quando da briga aberta entre ambos.
Lênin retornou clandestinamente para a Rússia no
Trotski tomaram a capital dia 8 de outubro. Sua presença servia para tentar de uma
sem dar um tiro sequer vez jogar os bolcheviques na insurreição. No dia 10, em
reunião do comitê central, Kamenev e Zinoviev, altos
membros do partido, discursaram contra a insurreição:
“Diante da história, diante do proletariado internacio-
nal, diante da Revolução Russa e da classe operária rus-
sa, não temos o direito de arriscar todo o futuro, todas
ques. Em compensação, essa oposição serviu para unir as fichas no levante armado. Existem situações históricas
marxistas revolucionários e bolcheviques – enfim, toda nas quais a classe oprimida deve reconhecer que é me-
a facção socialista, o que se mostrou mortal ao gover- lhor seguir até a derrota do que desistir da luta. Será que
no, pois, nas eleições de setembro aos sovietes, depois de a classe operária russa se encontra no momento em tal
abortado o golpe, os bolcheviques emergiram com ampla situação? Não, mil vez não!!!”.
maioria. Assim, o slogan “Todo Poder aos Sovietes” de- Era Kamenev e Zinoviev que os bolcheviques pró-in-
veria ser lido como “Todo Poder aos Bolcheviques”. surreição tinham de combater, pois eles apoiaram a par-
Lênin apelou aos mencheviques de Kerenski que ticipação do partido numa conferência que definiria o
passassem o poder aos sovietes e que, caso aceitassem, que Kerenski chamou de “Pré-parlamento”. Na dita reu-
os bolcheviques fariam oposição legal e constitucional. nião, Trotski juntou seus partidários e todos abandona-
Lênin abrira a brecha para um governo realmente revo- ram o recinto aos brados de “Petersburgo corre perigo! A
lucionário dentro da legalidade, mas sua proposta foi re- Revolução corre perigo! O povo corre perigo!”.
cusada. Estava selada a decisão de uma insurreição. Era, No encontro do comitê, foi votado o caso, saindo vi-
a partir daquele momento, preparar a Revolução. toriosa a facção pró-revolucionária. A rigor, dos 12 vo-
Stalin, como fora sua característica até aquele mo- tantes, apenas Kamenev e Zinoviev foram contrários. Na
mento, trabalhava nos bastidores. Ao lado de Lênin e mesma ocasião, foi eleito um politburo para a direção fu-
Trotski, arquitetou a Revolução de Outubro (novembro tura imediata após a insurreição. Entre os sete membros,
pelo calendário ocidental). Com o primeiro ainda no ex- do politburo, constavam Lênin, Stalin, Trotski, Kame-

20 Guia Grandes Ditadores da História


nev e Zinoviev. Mesmo assim, os dois últimos ficaram Trotski. Não haviam recebido delegação, nem autori-
contra a posição de Lênin, que os acusou de “fura-greve” zação, de nenhuma instância soviética para fazê-lo. Na
e “traidores da Revolução” e pediu ao comitê a expulsão verdade, a ordem tinha vindo do comitê central do par-
de ambos do partido. Kamenev decidiu, então, renun- tido bolchevique”, escreveu ele.
ciar à sua liderança, sendo defendido por Stalin. Quan- Ao mesmo tempo, lembra o autor, a insurreição foi
do a renúncia foi aceita, o futuro ditador resolveu tam- submetida ao congresso dos sovietes no dia seguinte e
bém sair. Mas sua renúncia não foi aceita pelo comitê. foi aprovada por larga maioria. Na verdade, Daniel Aa-
Enquanto bolcheviques se preparavam para o levan- rão enxerga nos eventos de outubro de 1917 resquícios
te, o governo tentava manter sua parca autoridade, mas de golpe e de revolução. Escreve ele: “Golpe na urdidu-
a Rússia já não mais era comandada pelo Governo Pro- ra, decisão e realização da insurreição, um funesto pre-
visório. Tanto que, na noite de 24 de outubro, quando cedente. A política dos fatos consumados, empreendi-
o governo ocupou as instalações da gráfica do partido da por uma vanguarda que se arroga o direito de agir
bolchevique, uma delegação de tipógrafos solicitou ao em nome das maiorias. Revolução nos decretos, aprova-
Comitê Militar Revolucionário que enviasse tropas para dos pelos sovietes, reconhecendo e consagrando juridi-
garantir o funcionamento do local. Dali partiu o levante. camente as aspirações dos movimentos sociais, que pas-
A briga teve início na gráfica e, rapidamente, tomou esta- saram a ver imediatamente no novo governo o intérprete
ções, ferrovias e pontos estratégicos da cidade. e a garantia das reivindicações populares”.
As tropas comandadas por Trotski tomaram a ca- Mas, retomando o pensamento de Hobsbawm em
pital sem dar um tiro sequer. Hobsbawm lembra que “Era dos Extremos”, a questão que mais importava na
“mais que tomado, o poder foi colhido”, já que, diz-se, época era outra: qual grupo político, diante do caos em
mais gente se feriu nas filmagens de “Outubro”, filme de que vivia a Rússia, conseguiria chegar ao poder e, mais
Eisenstein realizado em 1927 sobre a tomada do Palá- importante, permanecer no poder? O próprio historia-
cio de Inverno, do que na tomada de fato do palácio em dor britânico responde: “Nenhum outro partido, além
1917. Deutscher escreveu: “O Governo Provisório esta- dos bolcheviques de Lênin, estava preparado para en-
va politicamente tão isolado e os sublevados gozavam de frentar essa responsabilidade sozinho – e o panfleto de
apoio tão esmagador que, com um leve empurrão, tira- Lênin sugere que nem todos os bolcheviques estavam
ram o governo de cena”. tão determinados quanto ele”. Onde estava Stalin?
Dentro do contexto da Revolução de Outubro, qual o
GOLPE OU REVOLUÇÃO? papel desempenhado por Stalin? Eis a opinião de Trotski:
A historiografia passou a estudar qual a natureza “Não que fosse covarde. Não há base para acusar Stalin
desse evento de outubro na Rússia: golpe ou revolu- de covardia. Ele simplesmente não estava politicamen-
ção? Alguns contrários aos bolcheviques afirmam ter te comprometido. O conspirador cauteloso preferiu ficar
sido um golpe de Estado. Já os “de esquerda” e a histo- neutro no momento crucial. Esperava para ver como é que
riografia que prevaleceu consideram a insurreição como a insurreição se resolveria antes de se comprometer com
de fato uma revolução. uma posição. Em caso de fracasso, poderia dizer a Lênin,
Daniel Aarão Reis Filho, em seu livro “As Revo- a mim e aos nossos partidários: ‘A culpa é toda de vocês!’
luções Russas e o Socialismo Soviético”, ajuda a cla- Deve-se reconstruir a atmosfera apaixonada daqueles dias
rear a questão. “Um golpe? Formalmente, sem dúvida. a fim de avaliar devidamente o sangue-frio do homem ou,
A insurreição desdobrou-se como uma operação mi- se quiserem, seu caráter traiçoeiro”.
litar, sem prévia autorização do governo legal, sem se- A descrição de Trotski soa um tanto exagerada e exala
quer das organizações soviéticas. A autoridade que a rancor, se pensarmos no que viria em seguida na relação
desencadeou foi o comitê militar do Soviete de Petro- entre ambos: a disputa interna após a morte de Lênin e as
grado, com anuência e sob liderança de seu presidente, manobras políticas de Stalin para expulsar Trotski e aca-

A historiografia passou a estudar qual a natureza desse evento


de outubro na Rússia: golpe ou revolução? Alguns contrários
aos bolcheviques afirmam ter sido um golpe de Estado. Já os
“de esquerda” e a historiografia que prevaleceu consideram
a insurreição como de fato uma revolução

Guia Grandes Ditadores da História 21


AFP

Stalin

22 Guia Grandes Ditadores da História


bar com suas ambições de poder na Rússia revolucionária. Em compensação, o fato de um indivíduo não pegar
Não que Trotski não tivesse motivo para tanto, mas, cer- em armas e não “aparecer” aos olhos do povo numa Re-
tamente, há em suas palavras traços de exagero, de descré- volução não é atestado de que nada ou pouco tenha fei-
dito decorrente do desprezo que sentia por Stalin quan- to. Stalin permanecia com sua característica mais mar-
do essas linhas foram escritas. Muitas colocações suas cante: a habilidade de trabalhar nos bastidores, de não
são infundadas – como veremos mais adiante quando chamar a atenção. Seria devido a essa característica que,
Trotski levantou levianamente a suspeita de Stalin ter após a morte de Lênin, os líderes que disputavam o po-
envenenado Lênin. Ao mesmo tempo, é fato que o futu- der não se preocupariam com o camarada Stalin, que
ro ditador não teve papel de destaque na Revolução, não muitos consideravam inofensivo e intelectualmente li-
saiu às ruas e nem pegou em armas. Tanto que, ao final mitado. Só que o futuro ditador daria um “nó” em to-
da Revolução e mesmo depois da guerra civil, as duas fi- dos eles, e começaria a mostrar suas garras e sua ambição
guras mais populares entre os russos e tidas como heróis sem limites de crueldade já na guerra civil que se seguiu
continuavam sendor Lênin e Trotski. à Revolução de Outubro.

Lênin, o grande herói e inspirador


Depois de Marx, nenhum outro nome ligado ao pensamento
marxista foi tão lembrado e respeitado como o de Wladimir
Lenin. Ele foi um dos pensadores e líderes políticos
revolucionários mais importantes do século 20. Isso porque
planejou a tomada do poder pelos bolcheviques na Rússia em
1917 e foi o arquiteto do estado socialista que viria a nascer com
a União Soviética. Querendo ou não, a Revolução Russa foi dos
acontecimentos mais marcantes do século 20 e criou um modelo
político-econômico que teria seu auge no período pós-Segunda
Guerra, mas se esgotaria no início da década de 1990.
Wladimir Ilich Ulyanov – que passou a usar o nome Wladimir
Lenin em 1901 – nasceu em Simbirsk, perto de Moscou, em 22 “revolucionário por profissão”. Como seus contemporâneos, foi
de abril de 1870, em uma família nobre. Orlando Figes, professor exilado na Sibéria, onde acabou se casando com a russa Nadezhda
de História especializado em Rússia da Universidade de Londres, Krupskaya, que também havia sido condenada ao exílio. É
acredita que ele adorava seu modo de vida. “Na sua juventude, era importante ressaltar que Krupskaya foi mais que a esposa ideal
orgulhoso de se poder designar como ‘filho de um nobre’. Uma vez de Lênin. Afinal, por admirar a força revolucionária do marido,
descreveu-se mesmo na polícia como ‘Vladimir Ulyanov, de nobre ela cuidava dele, mimava-o e ainda fazia os serviços de secretária,
família’”. Mesmo após a morte de seu pai, ele, os irmãos e a mãe organizando seus papéis diariamente. Esse seria um dos motivos da
continuaram vivendo confortavelmente dos arrendamentos e das briga com Stalin, às vésperas da morte de Lênin.
vendas dos terrenos. Depois do exílio na Sibéria, Lênin passou anos na Europa,
Lênin foi um excelente aluno e resolveu estudar Direito. Na escrevendo e estudando o marxismo, adaptando o ideário marxista
universidade, tomou contato com os pensadores revolucionários, a seu pensamento e à Rússia. Em Paris, conheceu uma linda
o que acabou influenciando seu próprio pensamento. Auxiliou em moça, que, por pouco, não abalou por completo seu casamento.
sua guinada revolucionária o fato de seu irmão Alexandre Ulyanov, Tratava-se de Inês Armand, filha de uma atriz com um cantor de
com 21 anos, envolver-se com o grupo terrorista Pervomartovtsi, ópera. Como prova da influência que Lênin causava na época, Inês
que empreendeu diversas tentativas de assassinar o czar Alexandre Armand, ao ler sua obra, tornou-se uma bolchevique.
III. Ele acabou condenado à morte e executado em 1887. Em 30 de agosto de 1918, Lênin foi vítima de uma tentativa de
Por causa de sua postura extremada, Lênin foi expulso da assassinato, crime que fez parte de diversos atentados contra
universidade e teve que terminar a graduação no exterior, em bolcheviques naquele ano. Foram disparados três tiros pela
1891. Então, mudou-se para São Petersburgo e tornou-se um militante Fanny Kaplan, que, anos antes, fora encarcerada pelo
regime czarista. Um dos tiros atingiu Lênin no ombro e o outro
Fotos: Divulgação/ Discovery Networks

no pulmão. Ele não morreu, mas sua saúde ficou fragilizada.


Quatro anos depois, em maio de 1922, sofreu o primeiro derrame,
que deixou o lado direito de seu corpo parcialmente paralisado.
Com isso, seu papel no governo começou a diminuir. Tanto que,
em dezembro do mesmo ano, sofreu outro derrame e deixou suas
funções. Três meses depois, ocorreu um terceiro derrame, que
o deixou praticamente sem poder falar. Lênin morreu em 24 de
janeiro de 1924. Por iniciativa de Stalin, que queria manter vivo o
culto a Lênin no país, seu corpo foi embalsamado e colocado em
Lênin
um mausoléu em Moscou.

Guia Grandes Ditadores da História 23


Em defesa da
Nascimento da URSS

Revolu
AFP

24 Guia Grandes Ditadores da História


ção
Após a isurreição de outubro,
seguiu-se uma guerra civil na
Rússia. O novo governo tinha de
lidar com a fome da população, a
contra-revolução, as regiões que
queriam sua independência e os
ataques de países ocidentais na
1a Guerra Mundial. A muito custo,
os bolcheviques venceram, e daí
nasceu o estado socialista batizado
de "União Soviética"
Por Lucas Pires

O
novo governo bolchevique, formado logo
após a Revolução de Outubro, era com-
posto por lideranças do partido. Lênin, seu
maior líder, tornou-se Presidente do Con-
selho dos Comissários do Povo (o mesmo que primei-
ro-ministro); Trotski foi nomeado Comissário do Povo
para Assuntos Internacionais, e Stalin acabou como Co-
missário do Povo para as Nacionalidades. Dos 15 inte-
grantes do governo, apenas quatro eram operários.

SALVAR A REVOLUÇÃO COM A PAZ


Uma das primeiras ações de Lênin foi negociar um
acordo de paz com a Alemanha. Segundo ele, essa era uma
condição essencial para que a Rússia pudesse começar a
pensar em si e em sua população esfomeada e miserável
em decorrência dos anos de guerra. Assim, enviou Trotski
para negociar uma paz que não fosse tão desfavorável aos
russos. Na Rússia e dentro do partido, a intenção de Lê-
nin foi discutida e muito combatida. Os que eram contra
tal resolução afirmavam ser uma traição ao socialismo in-
ternacional fechar um acordo em que a Rússia cedesse ter-
ritórios ao imperialismo alemão. Mas a questão que Lênin
colocava era outra: ceder para salvar a Revolução.
Trotski conduziu as negociações em Brest-Litovsk.
Integrantes do partido trabalhavam para uma “guerra re-
volucionária”, que, a contar pela debandada geral de sol-
dados do front quando da redistribuição de terras no
campo, seria assinar o precoce atestado de óbito da Re-
volução. Trotski “criou” a ideia de “nem guerra nem paz”.
Queria ganhar tempo para ver os resultados da guerra.
Aos poucos, Lênin foi convencendo o partido de que a
paz a qualquer preço era a única forma de salvar a Revo-
Soldados do Exército lução. Stalin ficou a seu lado e, numa reunião do comitê
Vermelho durante o central, falou sobre as alternativas diante da decisão a ser
período da guerra civil
tomada e criticou Trotski:

Guia Grandes Ditadores da História 25


Os descontentes com os bolcheviques deram início à contra-
-revolução. Social-revolucionários de esquerda, inclusive, partiram
para atentados contra Lênin e outras lideranças bolcheviques.
Aconteceram motins e movimentos de insurreição, que atingiram
o ápice com a organização de uma força contra-revolucionária –
denominada de "Exército Branco" em oposição ao Vermelho
– que teria apoio das potências ocidentais

“Ao aceitar o slogan da guerra revolucionária, caímos deranças bolcheviques. Aconteceram motins e movimen-
nas mãos do imperialismo. A posição de Trotski não é tos de insurreição, que atingiram o ápice com a organiza-
posição alguma. Não há movimento revolucionário no ção de uma força contra-revolucionária – denominada de
Ocidente, não há nenhum fato de movimento revolucio- “Exército Branco” em oposição ao Vermelho dos bolche-
nário, há só potencialidades; e, no nosso trabalho, não viques – que teria apoio das potências ocidentais.
podemos nos basear só em potencialidades. Se os ale- Depois de assinado o acordo de paz, Trotski perdeu
mães começarem a avançar, isto reforçará a contra-revo- crédito e acabou deixando seu cargo de Comissário de
lução neste país. (...) Em outubro, falamos de guerra san- Relações Exteriores. Passou a ser o novo Comissário de
ta contra o imperialismo, porque nos disseram que a pa- Guerra, posto em que alcançaria o ápice de sua popula-
lavra ‘paz’, apenas, faria surgir a Revolução no Ocidente. ridade ao criar o Exército Vermelho, que se destacaria
Não foi o que aconteceu”. na defesa da Revolução durante a guerra civil. Trotski
Quando assinado o acordo, Lênin não escondeu seu idealizou o exército com voluntários e camponeses con-
“caráter vergonhoso”, mas sabia que aquela seria a única vocados. Para as lideranças das divisões, colocou ex-ofi-
solução viável para a Rússia. Pelo tratado, o país cedia a ciais czaristas. Como não podia confiar totalmente ne-
Polônia e os territórios do Báltico e da Ucrânia à Alema- les, designou comissários políticos ligados ao partido
nha. Em compensação, com a derrota germânica e a que- para acompanhá-los. Trotski descreveria tal formulação
da da monarquia naquele mesmo ano de 1918, o exérci- como a “construção do socialismo com os tijolos retira-
to alemão desocuparia a Ucrânia. dos das ruínas da velha ordem”.
Diante da paz e dos conflitos, os social-revolucioná- Muitas lideranças do partido foram contra, e de fato
rios de esquerda, que compunham o governo ao lado dos tiveram razão, pois diversos casos de traição e deserção
bolcheviques, romperam e abandonaram o governo. Co- foram detectados. Casos como de toda uma divisão pas-
meçava ali o regime de um partido só na Rússia, que do- sar para o lado dos “brancos”. Mas a verdade era que o
minaria o país até a queda da União Soviética, no início governo revolucionário não tinha outra alternativa. Era
dos anos de 1990. A ideia inicial bolchevique não era um correr o risco ou se entregar.
governo de um único partido, muito menos a implanta- O auge da guerra civil aconteceu com o desembar-
ção um regime autoritário. Como toda Revolução, o que que de tropas ocidentais em diversos pontos da Rússia.
movia as emoções e as ações iniciais eram o bem-estar Americanos na Sibéria; ingleses pelo norte e sul, na re-
do povo e a justiça social. Fizeram a Revolução em nome gião de Baku, onde ficava a indústria do petróleo russo;
e para o povo, mas, com o desenrolar dos acontecimen- e o conflito com a Alemanha na Ucrânia. Fora isso, um
tos, as coisas mudaram de figura e quando os bolchevi- ex-general cossaco, Krasnov, liderando um grande exér-
ques perceberam, já viviam num país ditatorial. Stalin foi cito, marchava do sul rumo a Moscou. A produção de
o indivíduo que, de fato, deu o passe final para o autori- alimentos que abastecia os combatentes e a população
tarismo. Mas tudo começou com a guerra civil, que divi- vinha justamente da Sibéria, da Ucrânia e da região de
diu a Rússia até 1921. Tsaritsin. Krasnov sabiamente fechou a última via de
transporte dos alimentos para Moscou, já transformada
A CONTRA-REVOLUÇÃO na capital por iniciativa de Lênin. Era uma forma de es-
Os descontentes com os bolcheviques deram início à trangular o adversário.
contra-revolução. Social-revolucionários de esquerda, in- Foi nesse momento, de “perigo supremo”, nos dizeres
clusive, partiram para atentados contra Lênin e outras li- de Deutscher, que “quase todos os membros do gover-

26 Guia Grandes Ditadores da História


no deixaram Moscou e cor- cimento, teria dito: “A mor-

AFP
reram para os setores mais te resolve todos os proble-
vitais das linhas de frente. mas. Nenhum homem, ne-
No Kremlin, Lênin, com nhum problema”.
uns poucos especialistas, A defesa de Tsaritsin
dirigiu toda a luta em con- sairia vitoriosa apenas em
tato permanente com os outubro de 1918, quando
homens de cada setor”. Stalin fora reenviado à cida-
Assim, Lênin despa- de, agora com funções mili-
chou Trotski para Kazan, a tares. Mas a discussão sobre
fim de evitar que os contra- os louros dessa vitória, cujos
-revolucionários pudessem créditos foram requisita-
chegar a Moscou; e Stalin dos por Stalin e seus cole-
para Tsaritsin, para organi- gas, parecem ser mais justas
zar o transporte dos cere- Stalin se creditadas à Frente Sul,
ais para a capital. Segun- sob comando de generais
do os especialistas, foi em a mando de Trotski. Certo
Tsaritsin que começaria
de fato a grande rivalidade
O auge da guerra civil aconteceu é que Lênin queria evitar
o conflito entre ambos, e
entre Stalin e Trotski, por com odesembarque de acabou chamando de volta
questões de autoridade e
hierarquia. O grupo ao re-
tropas diversos
ocidentais em Stalin, dando-lhe honras
pela ação. Anos mais tar-
dor de Stalin não aceitaria Rússia:
pontos da americanos de, Tsaritsin passaria a se
a autoridade de um general
czarista designado ao co- norte
na Sibéria; ingleses pelo e chamar Stalingrado.
A defesa do país se-
mando por Trotski. Quei- no sul onde
, na região de Baku, guiu-se no decorrer de
xas de insubordinação fo-
ram frequentes por par- indústria
ficava a do petróleo
1919, quando principal-
mente forças inglesas e
te de Trotski a Lênin, que russo; e o conflito com francesas estiveram em
tentava conter o ímpeto de
Stalin. Este, por sua vez, a Alemanha na Ucrânia
território russo, e o exérci-
to branco chegou próximo
enviava uma carta pedindo a Moscou e Petersburgo.
plenos poderes militares. Havia desorganização en-
tre eles e, pouco a pouco, suas forças foram abatidas ou
STALIN MOSTRA SUAS GARRAS dispersadas pelos bolcheviques. Ao final do ano, a guer-
Segundo Simon Sebag Montefiore, em “Stalin – A ra civil estava praticamente decidida a favor de Lênin e
Corte do Czar Vermelho” (Cia das Letras, 2006), “foi ali seu grupo. Em 1920, já livres de qualquer ameaça exter-
que Stalin compreendeu a conveniência da morte como na, enfim os revolucionários puderam começar a gover-
o instrumento mais simples e eficaz”. O autor descre- nar o país.
ve dois casos na cidade que comprovam sua tese. No “O país estava simplesmente arrasado. O produto in-
primeiro, logo ao chegar a um trem blindado com 400 dustrial registrava um declínio de mais de dois terços.
guardas vermelhos, Stalin mandou fuzilar todo suspei- Na grande indústria, a perda chegava a 80%. A produção
to de ação contra-revolucionária e traição. Um segundo de petróleo, de energia elétrica e de carvão caíra em mais
caso, que só recentemente foi descoberto como ação ar- de 70%. Em relação a outros setores estratégicos para o
bitrária do ditador russo, ocorreu quando ele e seu gru- equilíbrio da economia, como ferro, aço e açúcar, uma
po, que incluía Vorochílov, prenderam alguns “especia- situação ainda mais desoladora: quase 100% de queda.
listas” designados por Trotski no Rio Volga dentro de (...) Quanto à produção agrícola, diminuição de quase
uma barcaça. Eram soldados e homens do regime czaris- metade”, escreveu Daniel Aarão Filho sobre o momento
ta que Trotski reaproveitava para os vermelhos. A barca- russo no fim da guerra civil.
ça afundou “acidentalmente” com todos eles a bordo, ao
menos foi a versão que se correu na época. Mas, poste- VITÓRIA E DESCONTENTAMENTO
riormente, em carta a Vorochílov, Stalin admitiria que É interessante relembrar que, desde outubro de
não fora acidente. Quando questionado sobre o aconte- 1917, o novo governo vinha incentivando a reforma

Guia Grandes Ditadores da História 27


agrária através da distribuição de terras para os campo-

AFP/ Roger Viollet


neses. Quem saía perdendo com isso eram os chama-
dos “kulaks”, grandes proprietários e produtores de ali-
mentos, tidos como uma burguesia rural. No início, era
preciso manter boa parte dessas fazendas em funcio-
namento para assegurar a produção, mas, com a guerra
civil, o processo de cobrança dos “kulaks” se acentuou.
O governo exigia alimentos dos camponeses em escala
cada vez maior para assegurar o abastecimento. Nessas
“cobranças”, a violência era corrente e, muitas vezes, se
transformava em pura pilhagem. Tais ações do gover-
no revolucionário acabaram gerando descontentamen-
to, que seria maior com a decisão da “militarização do
trabalho” (o uso dos soldados para ajudar em ativida-
des essenciais da economia e, posteriormente, o empre-
go de trabalhadores como soldados), a fim de incenti-
var o crescimento da indústria e o direcionamento para
a ditadura do proletariado.
Logo as ações do governo revolucionário geraram
descontentamento, e uma revolta explodiu entre os ma-
rinheiros de Kronstadt, que reivindicavam liberdade de

Por Martinho Ju-


nior
Na Revolução, a vang
Ao pensar na arte russa durante o período revolucionário da situação em que, por algum tempo, os artistas modernos tocaram
queda dos czares, a questão de uma reestruturação estética se com a ponta dos dedos a oportunidade da sua utopia: um Estado
coloca. Conforme Argan, em “Arte Moderna” (Cia das Letras, revolucionário onde a vanguarda poderia, por fim, realizar seu
1999), entre as vanguardas que foram animadas por revoluções, programa de transformação do mundo à medida do homem novo”.
a russa foi a única a “colocar explicitamente a função social da Muitos artistas russos já gozavam de certa notoriedade na Europa
arte como uma questão política”. Sob a égide dos acontecimentos, neste início do século 20, como Kandinsky, Pevsner, Gabo e
artistas foram impulsionados a manter-se em Chagall, que, no período da 1a Guerra
paralelo com a política. Mundial, retornaram à Rússia, onde
AFP

Com o entusiasmo romântico provocado pelas tiveram um papel ímpar na constituição


revoluções de 1917, vários artistas e alunos de uma “arte proletária”. Marc Chagall,
da arte de esquerda começaram a estruturar que possuía uma pintura particular que
novos meios artísticos. Em setembro de 1918, tangia o folclore judaico e temas oníricos
estabeleceram os svomas (ateliês livres), que e de fábulas, foi alvo de seus compatriotas,
procuraram atender a uma democracia do que afirmavam ser a verdadeira revolução
ensino, estruturando-se em três tipos: os cujos feita com bastante rigor e nada de fantasia.
professores eram eleitos pelos alunos, os que Entretanto, muitos teóricos afirmam a força
não possuíam professores e aqueles com mestres das fábulas na formação de uma arte que
designados previamente. se queria revolucionária e socialista, pois
A intenção desses artistas era tão transgressora a fábula seria um elemento da expressão
que o objetivo primeiro de uma nova arte era criativa do povo. Portanto, tendo alguma
de que ela fosse livre de qualquer envolvimento, Composição suprematista força popular, teria igualmente certa
quer seja político ou ideológico. Assim, deveria de Kasimir Malevich força revolucionária.
se preocupar prioritariamente com ela mesma.
É preciso constatar que o ambiente era propício a uma arte Experimentações revolucionárias
revolucionária, e de modo algum isso é o mesmo que dizer que a A interferência europeia é bem clara quando observamos a
Revolução foi o estopim para os acontecimentos vanguardistas. vanguarda na Rússia pré-revolucionária. Como dissemos, muitos
Para tanto, se retornarmos a 1913, verificaremos que Malevich já artistas já tinham uma carreira internacional, o que, de certa
executava diversas telas suprematistas, assim como Tatlin fundava forma, influenciou a arte de toda uma geração. Antes das grandes
o construtivismo (veja a seguir). É o que indica Faerna e García- guinadas vanguardistas, Malevich, por exemplo, nos primeiros anos
Bermejo em seu livro sobre Malevich (“Malevich”, Editora Globus, do século 20, esteve atrelado às propostas do Pós-impressionismo,
1995), quando dizem que a revolução russa “deu lugar a uma do Cubismo e do Futurismo (mesmo Marinetti, grande nome do

28 Guia Grandes Ditadores da História


“A morte resolve
todos os problemas.
Nenhum homem,
nenhum problema”, Stalin
expressão e dos presos políticos, além de novas eleições
para os sovietes e o fim da ditadura do proletariado, que,
na verdade, se mostrava como o início da ditadura de
um partido. No começo, os bolcheviques negociaram e
aceitaram alguns termos, mas, ao final, fizeram valer sua
vontade, esmagando a rebelião que já ganhava ares de
contra-revolução. Mais de 2.500 pessoas foram deporta-
das ou fuziladas.
A situação política e econômica começava a se esta-
bilizar quando Lênin teve um derrame cerebral. Ali co-
meçava sua derrocada e um processo de substituição do
poder, o qual Stalin manobraria a seu favor até se tornar
governante absoluto. Trotski pagaria caro pela ambição
Assinatura do acordo de
paz com a Alemanha, em do “mão-de-ferro”.
dezembro de 1917

g uarda artística russa


futurismo italiano, realizou, em 1914, palestras em Moscou para enorme torre em espiral, de ferro, com um centro de informação
um grupo de futuristas). Toda a teoria e a arte não-figurativa de que se utilizava de alta tecnologia, a partir de onde seriam
Kandinsky tiveram suas bases fincadas na Alemanha. transmitidas notícias e propagandas com telas ao ar livre. Além
O Suprematismo foi um movimento quase exclusivamente de disso, havia um outro equipamento, em conjunto à peça principal,
um único homem, Kasimir Malevich. E tratava-se de uma arte para transmitir imagens nas nuvens.
“de pura abstração geométrica”, nas palavras de Amy Dempsey em
seu livro “Estilo, Escola e Movimentos” (Cosac & Naify, 2003). A vitória do Realismo Socialista
Evidente que, em seus quadros, reduzidos à forma do quadrado, Entretanto, o apoio vindo do Estado não durou muito. Com
ele pretendia transcender o mundo regido pelas aparências. Essa a morte de Lênin em 1924, a situação mudou drasticamente.
transcendência em Malevich está intimamente ligada a um caráter De fato, as mudanças stalinistas foram taxativas, e a liberdade
religioso, católico. Lembremos que a arte russa cultivou ícones até artística acabou podada. Em 1932, todo grupo artístico isolado,
o século 19, à maneira de Bizâncio. O Estado não só era liberal em portanto livre, foi eliminado, e, em 1934, foi completamente
relação à produção dos artistas como também os apoiava. Em 1919, suprimida toda investida na pesquisa e no incentivo à arte. A
por exemplo, a série Branco sobre Branco participou da Décima partir de então, a única forma de produção artística aceitável foi
Exposição Estatal: Criação Abstrata e Suprematismo. Embora o chamado “Realismo Socialista”. Este movimento foi sancionado
tenha feito desenhos para porcelanas, joalharia e em diversos muros pelo governo, que o indicara como “estilo artístico oficial da União
da cidade, sua obra nunca foi funcionalista ou prática; ela tinha por Soviética”. Logo, todos os artistas tiveram de fazer parte do
ideal alcançar a essência do projeto, a arte pura. Sindicato dos Artistas Soviéticos, que era controlado pelo Estado;
Se o Suprematismo tinha a insistência de Malevich, o e a criação deveria ser feita de acordo com o modelo aceito. Segundo
construtivismo teve como figura central Vladimir Tátlin. Como Amy Dempsey, “o realismo socialista destinava-se a glorificar o
base, o construtivismo tinha a utilização de materiais industriais, Estado e celebrar a superioridade de uma nova sociedade sem
como o metal, a madeira e o vidro, e sua exibição se dava por meio classes que estava sendo construída pelos soviéticos”. Ou seja,
de um espaço real tridimensional, como um material escultórico. não era difícil encontrar, nas pinturas dessa época, retratos de
A utilização de materiais “reais” conjugados com um espaço mulheres e homens no trabalho ou na prática de esporte, em
“real” conferia um grande efeito revolucionário ao movimento, assembleias políticas ou em outros segmentos sociais. Sua escala
já que atuava diretamente na sociedade. O impacto, para os sempre tendeu para o monumental; a ordem era estabelecer
construtivistas, deveria ser diretamente exercido sobre a sociedade. um otimismo heróico. Dessa forma, todo o furor inicial, e a
O grande símbolo do movimento é o Monumento à Terceira possibilidade de abertura para uma arte socialista, ou mesmo livre
Internacional, feito por Tátlin, de 1919. Esta obra foi edificada de qualquer imposição, foram aos poucos suplantados por diversas
para o Congresso da Terceira Internacional Comunista e era uma medidas que atolaram as artes russas numa série puramente
espécie de síntese da arte que se quis socialista. Tratava-se de uma direcionada à propaganda política.

Guia Grandes Ditadores da História 29


Stalin versus Trotski
Cada vez mais debilitado, Lênin
acabou se afastando do
poder, ao mesmo tempo
em que Stalin estabelecia
suas garras por todo o partido,
preparando sua ascensão.
O único obstáculo era Trotski
Por Lucas Pires
AFP/ Roger Viollet

Guerr
Trotski

L
ênin foi o pai da Revolução Russa e ficou conhe- pensação, sabemos que os homens repetem erros do pas-
cido por adaptar os pensamentos de Karl Marx sado e temos muito a aprender com esta ciência.
e deixar como legado o marxismo-leninismo. A
seu lado, sempre estiveram presentes dois no- O TESTAMENTO DE LÊNIN
mes – Stalin e Trotski – que exerceram papéis díspares. Uma das coisas que definiram a posição de Stalin
A historiografia costuma colocar a relação entre como “o mal encarnado” foi o testamento de Lênin. “Sta-
Trotski e Stalin como algo ao estilo “o bem contra o mal”. lin, tendo se tornado secretário-geral”, declara o testa-
Assim, com esse antagonismo criado posteriormente, mento de Lênin, “concentrou um imenso poder em suas
não há jeito de se olhar Stalin e encontrar nele algo elo- mãos e não estou certo de que ele sempre saiba como
gioso. E costuma-se ver em Trotski o herdeiro legítimo usar esse poder com suficiente cautela”. Dez dias mais
de Lênin, aquele que daria à Revolução um caráter me- tarde, Lênin acrescentou o seguinte trecho:
nos ditatorial. A questão que se coloca é a seguinte: mes- “Stalin é muito brutal e este defeito, perfeitamente to-
mo que se estude as ideias trotskistas, nunca se saberá o lerável em nosso meio e nas relações entre nós, comunis-
que seria a URSS se Trotski superasse Stalin na direção tas, não o é mais nas funções de secretário-geral... Propo-
do partido e do país. Diante desse fato intangível, tudo o nho, então, aos camaradas, estudarem um meio de desti-
que se diga e se coloque não passa de jogo de deduções, tuir Stalin deste posto e nomear em seu lugar uma outra
que poderiam se tornar verdade se não fosse justamente pessoa que não tenha em todas as coisas sobre o camara-
essa palavra “se”. A História não é feita de “ses”. Em com- da Stalin senão a única vantagem, aquela de ser mais to-

30 Guia Grandes Ditadores da História


AFP

a de ideais
Stalin

lerante, mais leal, mais polido e mais atencioso com os ca-


maradas, de humor menos caprichoso etc., mas, em meu “Stalin é muito brutal e
entender, para nos preservar da cisão e tendo em conta o
que já escrevi anteriormente sobre as relações entre Sta- este defeito, perfeitamente
lin e Trotski, isso não é um detalhe, ou melhor, é um que
pode se tornar de importância decisiva”.
tolerável em nosso meio
Interessante recuperar o contexto daqueles dias para e nas relações entre nós,
entender o testamento. Em abril de 1922, Lênin indicou
Stalin para a secretaria-geral do partido. No mês seguin-
comunistas, não o é
te, sofreu seu primeiro derrame, que o deixou tempora- mais nas funções de
secretário-geral... Proponho,
riamente paralisado. Novo ataque em dezembro iria co-
locá-lo definitivamente “de molho”, sendo informado da
situação política por Stalin, designado pelo Politburo a então, aos camaradas,
estudar um meio de
ser o elo com Lênin, e por sua esposa, Krupskaia, que era
sua secretária.
Essa relação não poderia dar muito certo, pois os mé-
dicos pediam que Lênin não fosse incomodado, mas ele
destituir Stalin deste
era teimoso e queria saber de tudo. Logo pipocaram in- posto”, Lênin

Guia Grandes Ditadores da História 31


formações de que Stalin escondia as novidades de Lênin, tir do momento em que a rixa entre eles se tornou ex-
que mesmo assim, soube de ações nada dignificantes do plícita, passou a intermediar e a apaziguar os dois lados.
futuro ditador, como a repressão aos camponeses. O testamento só foi divulgado em maio, quatro meses
Querendo obter maiores informações a respeito do depois de sua morte, e deveria ser lido no próximo con-
X Congresso do partido, realizado em fevereiro de 1923, gresso do partido. Houve uma reunião do comitê central
Kuprskaia ligou para Stalin, que acabou sendo rude ao re- para decidir se seria divulgado ou não o conteúdo. Na
preendê-la, e isso chegou aos ouvidos de Lênin. Em 5 de ocasião, seria selado o destino de Stalin. E foi Zinoviev
março, Lênin escreveu a Stalin as seguintes linhas: “Vós e Kamenev que tomaram a defesa do futuro ditador, su-
tivestes a rudeza de convocar minha mulher ao telefone gerindo que este permanecesse no cargo, pois “os temo-
para repreendê-la. Não tenho a intenção de esquecer tão res de Lênin se mostraram infundados”. Lembraram do
cedo que isso foi feito contra mim, e é inútil sublinhar que bom serviço de Stalin e colocaram que, se a decisão fosse
eu considero que o que é feito contra minha mulher é fei- a da permanência, o testamento não deveria ser coloca-
to contra mim. Por esta razão, eu peço, examineis seria- do a público. A viúva protestou, Trotski se calou – “tinha
mente se aceitais retirar o que dissestes e apresentai vossas orgulho demais para intervir numa situação que tam-

A briga entre Stalin e Trotski teve início quando ambos se


conheceram em 1907. A partir dali, um bolchevique e o outro
menchevique, passaram por situações opostas até que Trotski se
converteu ao bolchevismo, em julho de 1917, e tornou-se um
dos heróis da Revolução. O ódio de Stalin deve ter crescido
ao ver o colega recém-chegado ganhar popularidade e a
confiança de Lênin. Boa parte do partido não gostava
de Trotski em razão de seu passado, e isso facilitaria o trabalho
de Stalin para marginalizar o adversário até sua eliminação
do partido, da URSS e da vida
desculpas ou se preferis romper as relações entre nós”. bém afetava a própria posição”, segundo Deutscher – e
Assim, as palavras de Lênin podem não condizer com os votantes ratificaram. Stalin estava a salvo.
o pensamento real dele a respeito de Stalin, pois, como
vimos, ele estava irado com o companheiro em razão da IDEIAS CONTRÁRIAS
confusão com sua esposa. Mas também é certo que ele A briga entre Stalin e Trotski teve início quando am-
estava dando rumos à Revolução que Lênin não aprova- bos se conheceram – em 1907 em congresso do partido.
ria por absoluto. Enfim, a verdade parece ser que, até a A partir dali, um bolchevique e o outro menchevique,
guerra civil, Lênin via Stalin com bons olhos, mas suas passaram por situações opostas até que Trotski se con-
ações depois disso, e quando assumiu a direção do parti- verteu ao bolchevismo, em julho de 1917, e tornou-se
do, não o agradaram totalmente. um dos heróis da Revolução. O ódio de Stalin deve ter
Ludo Martens, em “Stalin – Um Novo Olhar” (Re- crescido ao ver o colega recém-chegado ganhar popula-
nan, 2003), assume a defesa do ditador explicitamente e ridade e a confiança de Lênin. Boa parte do partido não
se coloca como um stalinista. A partir disso, já se pode gostava de Trotski em razão de seu passado, e isso facili-
duvidar de muitas de suas colocações, mas há outras que taria o trabalho de Stalin para marginalizar o adversário
temos de aproveitar. Um de seus argumentos é o de que até sua eliminação do partido, da URSS e da vida.
Trotski e seus seguidores quiseram criar em torno do A dissidência de Trotski com o Partido Comunista
testamento de Lênin um ar de que ali estava indicado veio a público quando ele publicou, em 1924, um prefá-
Trotski como seu sucessor. No entanto, nada em seu cio de seus escritos de 1917, chamado “As Lições de Ou-
texto sugere isso. tubro”. No texto, criticava a falta de estratégia revolucio-
O pai da Revolução Russa, ao contrário do que diz nária de Stalin, e dizia que a indecisão demonstrada por
seu testamento, tinha enorme estima por ambos e, a par- Kamenev e Zinoviev às vésperas da Revolução de Outu-

32 Guia Grandes Ditadores da História


bro era absurda. Estas discordâncias afastaram mais ain- dibilidade quando, posteriormente na História, as ações
da politicamente Trotski de Stalin. de Stalin foram sendo reveladas. O combate à burocra-
Eles divergiam em várias questões, mas a principal cia bolchevique arquitetada por Stalin seria, quando re-
era a de como construir o socialismo. Para Stalin, a re- velada, uma das razões para a decadência do comunismo
volução socialista deveria ser consolidada internamente soviético e de sua derrocada para o autoritarismo.
na URSS, pois o país estava internacionalmente isolado Em 3 de setembro de 1938, Trotski e seus seguido-
e sofrendo represálias comerciais. Nascia aí a tese do “so- res fundaram a IV Internacional, herdeira do legado re-
cialismo em um país só”, creditada a Stalin, mas, de fato, volucionário de todas as organizações mundiais da classe
desenvolvida por seu colega Bukharin, que seria morto na trabalhadora, para contrapor à III Internacional de Sta-
década de 1930. Para Trotski, a revolução socialista de- lin. Em uma carta aberta aos trabalhadores soviéticos,
veria ser levada para onde o capitalismo estava em crise. Trotski falou: “O objetivo da IV Internacional é recuperar
Acreditava ser inviável a construção do regime socialista a URSS na eliminação de sua burocracia parasitária”.
na URSS caso não ocorresse em outros países, afinal as Era 1940, a URSS se preparava para entrar na guer-
nações capitalistas acabariam com a URSS. Essa é a tese ra. Talvez Trotski estivesse pensando nos mesmos mol-
da chamada “revolução permanente”, segundo a qual o so- des de 1917 – incitar uma revolução quando o gover-
cialismo deveria ser construído em escala internacional. no estivesse enfraquecido pela participação numa guer-
Diante desse debate, Stalin saiu-se vitorioso. Sua per- ra. Os críticos dele colocam que estava incitando uma
sonalidade condizia mais com a necessidade da ocasião. insurreição contra o governo soviético que acabaria aju-
Sua esperteza política contrastava com certo ar de inge- dando os nazistas, o que equivaleria dizer que Trotski ia
nuidade de Trotski, que o impedia de perceber as mano- contra seu próprio país. Na verdade, durante todo seu
bras nas hierarquias do partido travadas por Stalin. Se- período pós-exílio, ele não se calou. Continuava a escre-
gundo Deutscher, “Trotski subestimava desdenhosamen- ver e a enviar panfletos para a URSS. Sua luta tornara-se
te o rival; e até os últimos dias o trataria como ‘enfadonha outra – a derrubada do stalinismo.
mediocridade’”. Quando Trotski se deu conta, a burocra- As coisas se precipitaram naquele mesmo ano de
cia do Partido Comunista estava toda controlada por se- 1940. Em 24 de maio, Trotski sobreviveu a um atenta-
guidores de Stalin e seus partidários, isolados e sem poder do a mando de Stalin. Em agosto, houve um novo ata-
de decisão. A formação do triunvirato Stalin-Kamenev- que, desta vez bem-sucedido. Um agente de nome Ra-
Zinoviev – dava maior poder a Stalin, já que os outros món Mercader conseguiu entrar disfarçado na casa de
dois eram também contrários a Trotski. Apenas alguns Trotski aplicou-lhe um golpe de picareta em seu crânio.
anos depois veriam o erro que cometeram e tentariam Era o fim que Stalin queria para seu grande rival.
uma união a Trotski, mas aí já seria tarde demais.
Trotski foi perdendo todas as suas funções no gover-
no. O culto lêninista endossado por Stalin dava muni- Stalin matou Lênin?
ção a seus opositores, que resgatavam críticas feitas por Umas das teses levantadas por Trotski e que não merece
ele no passado a Lênin, criando o retrato de um Trotski credibilidade porque foi colocada sem provas, é a de que Stalin
contrário a Lênin, contrário, portanto, à União Soviéti- teria matado Lênin. Trotski escreveu na década de 1930 que
ca. Não pôde fazer nada quando votaram pela sua expul- certa vez, quando Lênin já estava moribundo, Stalin foi fazer-
lhe uma visita. Lênin teria morrido logo em seguida.
são do partido, em 12 de novembro de 1927, quando foi
“Entretanto, numa reunião dos membros do Politburo, com
exilado na Sibéria em 31 de janeiro de 1928 e, para com- Zinoviev, Kamenev e eu, Stalin nos informou, depois que
pletar, quando foi expulso da União Soviética em 1929. o secretário saiu, que Lênin o havia chamado de repente e
lhe pedira veneno. Lênin estava perdendo a fala outra vez,
A MORTE DE TROTSKI considerava sua situação sem esperanças, previa que iria ter
Fora da URSS, permaneceu na oposição a Stalin, re- um novo derrame e não confiava nos seus médicos. Sua mente
estava perfeitamente clara e seu sofrimento era insuportável.
digindo comentários em um jornal fundado por ele. Ele
Mas será que Lênin de fato pediu veneno a Stalin? Ou terá
morou em diversos países antes de se fixar no México. sido essa história toda nada mais que uma invenção de Stalin
A partir de 1937, Trotski se dedicou a construir uma para preparar o seu álibi? Ele não tinha por que temer uma
alternativa à política dos partidos comunistas influencia- investigação, pois ninguém poderia interrogar Lênin, já tão
dos por Moscou. Escreveu livros a respeito dessa buro- doente”, escreveu Trotski.
cracia, sobre a Revolução de 1917 e mesmo sobre Stalin. A verdade é que a morte de Lênin era do interesse de Stalin,
pois se manifestava como a grande chance dele tomar o poder
Passou a atuar contra o que ele chamou de uma “nova na União Soviética. Mas, historicamente, não há provas
aristocracia”, a aristocracia bolchevique, que teria detur- desse envenenamento e a realidade aponta para um Lênin
pado os rumos da Revolução. extremamente doente e frágil desde 1922. Não teria razão para
A teoria de Trotski ganhou maiores respaldo e cre- Stalin matar um moribundo.

Guia Grandes Ditadores da História 33


stalinismo

AFP/ Roger Viollet

Stalin e Kirov

34 Guia Grandes Ditadores da História


A
partir de 1928, Stalin estava livre para pôr Foi nessa toada que Stalin anunciou o chamado “I
em prática o que alguns historiadores cha- Plano Quinquenal” no final de 1928. Tal plano determi-
mam de “Segunda Revolução”, desta vez em- nou a supressão da NEP leninista e da propriedade in-
preendida diretamente do topo do poder e dividual, além do aumento da produção, estabelecendo
por um único homem. Seria o que se chamou de “revo- como prioridade a industrialização do país, com foco na
lução feita de cima para baixo”, ou “imposta”. indústria pesada e de equipamentos. Para a agricultura,
Segundo Isaac Deutscher, essa segunda revolução “de- ficavam estabelecidos dois modelos de unidades de pro-
sembocou na rápida industrialização da Rússia; obrigou dução coletiva: sovcoses, as fazendas do Estado, onde o
mais de 100 milhões de camponeses a abandonar proprie- camponês era um trabalhador assalariado; e os colcoses,
dades pequenas e primitivas e se estabelecer em fazendas cooperativas em que o camponês recebia uma pequena
coletivas; retirou, impiedosamente, o ancestral arado de parcela de terra e, após pagar um tributo ao Estado pelo
madeira das mãos do mujique e o forçou a segurar o vo- uso das máquinas, podia vender o que produzia.
lante do trator moderno; conduziu dezenas de milhões de A intenção era de que as terras fossem estatizadas em
analfabetos à escola e fez que aprendessem a ler e a escre- 20% até 1933. Mas essa intenção não parecia ser o me-
ver; e, espiritualmente, separou a Rússia europeia da Eu- lhor para os camponeses, tanto que estes se rebelaram e,
ropa e trouxe a Rússia asiática para perto da Europa. O antes de ser removidos de suas terras, destruíram a co-
desfecho dessa revolução foi espantoso, assim como o cus- lheita e mataram o gado. “Entre 1929 e 1934, o número
to: a completa perda, por parte de toda uma geração, da li- de cabeças de gado caiu de 70,5 milhões para 33,5 mi-
berdade política e espiritual”. A questão a ser definida por lhões; o de cavalos reduziu-se de 33,5 milhões para 17,5
Stalin naquele momento respondia a dois interesses do milhões, e as perdas foram maiores ainda nos rebanhos
país que vinham desde os tempos do czar: como indus- de suínos, caprinos e ovinos. Somente em meados da dé-
trializar rapidamente a URSS e como lidar com a agricul- cada de 1950, os rebanhos voltaram a alcançar os níveis
tura, que não tinha boa produtividade. do período que antecedeu à implantação do plano”, es-
O problema agrícola já vinha sendo debatido inter- creveram Dorothy e Thomas Hoobler em “Grandes Lí-
namente pelo partido. Os bolcheviques de esquerda que- deres – Stalin”.
riam a transferência da propriedade privada para a pro- Teve início uma verdadeira guerra entre camponeses e
priedade coletiva, processo que seria feito gradualmente governo. Diversos camponeses, que não aceitavam a “obri-
e diante do consentimento dos camponeses. E, confor- gação” de se transferir para as fazendas coletivas, foram
me o sistema fosse se mostrando ágil e economicamente presos, exilados e fuzilados. Houve um excesso de violên-
saudável, os demais camponeses iriam aderindo volunta- cia contra a população que acabou gerando discussão e
riamente, até conhecer a completa coletivização. incômodo para Stalin, tanto que ele chegou a publicar no

MÃOS DE FERRO SOBRE A URSS


Sem Trotski para atrapalhar, o poder de Stalin tornou-se
soberano. Era hora de colocar em prática o “socialismo
de um só país”, que envolveria imensa industrialização
às custas do trabalho no campo através das fazendas
coletivas. Enquanto isso, o ditador passava a ver
inimigos em qualquer companheiro que se destacasse, e
acabava com todos que pudessem lhe tomar o poder.
Era o terror stalinista

Por Lucas Pires

Guia Grandes Ditadores da História 35


Diversos camponeses
sido retiradas de um discurso de seu biografado da épo-
ca. Anotou ele sobre essa posição soviética de industria-
que não aceitavam a lização a qualquer custo: “A industrialização socialista é
“obrigação” de se
a peça-chave da edificação socialista na União Soviética.
Tudo depende de seu êxito. A industrialização deve lan-
transferir para as fazendas çar as bases materiais do socialismo. Ela permitirá trans-
coletivas foram presos, formar radicalmente a agricultura à base de máquinas
e de técnicas modernas. Ela abrirá um futuro de bem-
exilados e fuzilados. Houve estar material e cultural para os trabalhadores. Ela for-
necerá os meios de uma verdadeira revolução cultural.
um excesso de violência Ela produzirá a infra-estrutura de um estado moderno e
contra a população eficaz. E somente ela poderá fornecer ao povo trabalha-
dor as armas modernas para defender sua independên-
que acabou gerando cia contra as potências imperialistas agressivas”.
discussão e incômodo Da mesma forma, Stalin falou ao país em 1931 sobre
a importância da industrialização. “Desejais que nossa Pá-
para Stalin, tanto que tria socialista seja derrotada e que ela perca sua indepen-
ele chegou a publicar dência? Nós nos retardamos em cinquenta anos sobre os
países avançados. Devemos percorrer esta distância em 10
no “Pravda” um artigo anos. Nós o faremos, ou seremos esmagados”. O I Pla-
“explicando” os fatos
no Quinquenal abrangia também outros setores da socie-
dade soviética. Foram criadas escolas profissionalizantes
e se desculpando para preparar os trabalhadores para manusear máquinas
pelo excesso de alguns
e equipamentos, programas de alfabetização foram insta-
lados e fábricas construídas nos Montes Urais. Além dis-
funcionários do partido so, teve início um processo de construção de estradas e
que estavam “embriagados
rodovias para ligar as diversas cidades russas, a fim de fa-
cilitar o transporte e a movimentação em caso de conflito
com o sucesso de com outros países. O símbolo do crescimento desse pri-
meiro plano acabou sendo a barragem do Rio Dnieper.
seu trabalho” Outro ícone foi o mineiro Stakhanov, que, no entusiasmo
nacionalista em prol do país, chegou a superar em 1.300%
sua cota de produção. Depois dele, o termo “stakhanovis-
“Pravda” um artigo “explicando” os fatos e se desculpando ta” passou a significar “operário padrão”.
pelo excesso de alguns funcionários do partido que esta- Outras construções que indicam a melhoria da con-
vam “embriagados com o sucesso de seu trabalho”. dição russa foram o metrô de Moscou, a ferrovia Mos-
O problema da coletivização foi que Stalin a empre- cou-Donets, o complexo industrial de Magnitogorsk e o
endeu também como uma forma de acabar com os ku- canal entre o Báltico e o Mar Negro.
laks, a burguesia rural que tanta dor de cabeça vinha lhe No plano político, o assassinato de Kirov em 1934
causando desde a época da Revolução. O ditador apro- mudou o modo de Stalin lidar de Stalin com os compa-
veitou para deportar milhares de kulaks para terras dis- nheiros. Primeiro-ministro, Kirov foi morto por um estu-
tantes e se apropriar de seus bens, que chegaram a 400 dante que era acusado de pertencer a um grupo que pre-
milhões de rublos. tendia eliminar diversos nomes do partido bolchevique,
Apesar de tudo isso, a coletivização acabou se conso- inclusive o de Stalin. Deu-se início ao stalinismo, período
lidando no decorrer da década de 1930. Em 1929, 4,1% que se caracterizou pelo endurecimento político do regi-
dos camponeses viviam em fazendas coletivas. No ano me, pela eliminação de toda e qualquer oposição e pela es-
seguinte, o índice chegou a 58%. Em 1938, a cifra era timulação de um verdadeiro culto ao Estado e à persona-
de 93,4%. lidade de Stalin.
Ao mesmo tempo, Stalin colocou a economia russa A morte de Kirov acabou recaindo sobre velhos par-
nos trilhos da industrialização, o que se tornou o obje- ceiros que se tornaram inimigos de Stalin – Kamenev e
tivo maior de toda a nação. Ludo Martens, em seu ufa- Zinoviev, que foram condenados a cinco e dez anos de
nismo e sua defesa à pessoa de Stalin, escreveu, na bio- trabalhos forçados, respectivamente. O receio de ser eli-
grafia sobre o líder soviético, palavras que poderiam ter minado criou em Stalin uma paranóia, uma mania de

36 Guia Grandes Ditadores da História


perseguição que o levou a implantar planos de captura e
AFP/ Roger Viollet

eliminação de “traidores do povo”.


Instaurou-se um período de perseguições, de censu-
ra e de terror. Eram as chamadas “depurações stalinistas”.
Muitos revolucionários, companheiros de Lênin da época
da Revolução, foram presos, banidos, torturados e mortos
pela repressão. Assim, grandes patriotas foram executados
como traidores da pátria. Todos aqueles que se opuseram
a Stalin em algum momento corriam risco de ser presos
e mortos. Já a historiografia pró-stalinista coloca que essa
perseguição tinha razão de existir, pois havia centenas de
infiltrados no partido a fim de miná-lo por dentro. A his-
toriografia ocidental vê nos expurgos uma forma de Stalin
se livrar de velhos companheiros contrários a seu modo de
governar e aos rumos dados por ele à Revolução. Um dos
opositores à sua administração foi o ex-amigo Bukharin,
teórico do partido que desenvolveu a ideia do socialismo
num único país.
Numa entrevista a jornalistas em Paris em 1936,
Bukharin deu a seguinte resposta quando perguntado
do porquê dos expurgos de tantos colegas da Revolução:
“Stalin se sente infeliz porque não consegue convencer
ninguém, nem a si próprio, de que é maior e mais pode-
roso do que todo mundo. Essa infelicidade talvez seja... o
último resquício de humanidade que ainda lhe resta. O
que não é humano, mas demoníaco, é que sua infelicida-
de o leve a querer vingar-se de todos... basta que alguém
Lev Kamenev
fale com mais brilho ou clareza do que eles para que seja
fuzilado! Stalin jamais permitirá que continue vivo al-
guém que o faça ver que ele próprio não é o primeiro
As contas finais dos
ou o melhor”. Poucos dias depois, antes de voltar para
a União Soviética, Bukharin comentou com um amigo:
expurgos stalinistas variam “Agora ele vai me matar”. De fato, Bukharin foi fuzilado
conforme a fonte. em 1938.
As contas finais dos expurgos stalinistas variam con-
Falou-se de sete milhões a forme a fonte. Falou-se de sete milhões a até mais de 20
milhões de mortos. Por exemplo, dos 140 membros elei-
até mais de 20 milhões tos em 1934 para o Comitê Central, apenas 15 estavam
de mortos. Por exemplo, em liberdade três anos depois. Um dos crimes mais en-
contrados no período foi o de “trotskismo”.
dos 140 membros eleitos O Exército também sofreu sérias baixas com os expur-
em 1934 para o Comitê gos. Cerca de um terço dos oficiais de alta patente foi eli-
minado, o que enfraqueceu de forma monstruosa a força
Central, apenas 15 estavam do Exército Vermelho, o que, em 1939, seria uma das ra-
em liberdade três anos zões para o pacto de não-agressão entre Stalin e Hitler.
As perseguições foram praticamente encerradas em
depois. Um dos crimes 1938, bem ao estilo de Stalin. O chefe da polícia secreta,
mais encontrados responsável prático pelo terror instaurado, Nikolai Ye-
zhov, foi substituído por Lavrenti Beria e fuzilado. Beria
no período foi diria mais tarde que “Yezhov era um rato. Ele foi respon-
o de “trotskismo”
sável pela morte de muitos inocentes. Nós o fuzilamos
por isso”. Bem stalinista a saída, culpando e exterminan-
do outros que o serviram com lealdade.

Guia Grandes Ditadores da História 37


A tragédia pessoal
VIDA PRIVADA

AFP
Stalin com sua filha Svetlana
Stalin teve uma vida pública
que superou em muito sua
experiência pessoal.
Era pouco afeito à família,
mas, apesar
disso, casou-se duas vezes
Por Lucas Pires

G
rande homem político, Stalin deixou sua Dedicado ao partido, Stalin nunca ligou para família.
mãe para estudar no seminário e sabia que Sua vida era o partido e a União Soviética, tanto que se ca-
nunca mais voltaria para casa. Casa, aliás, é sou pela segunda vez apenas em 1918, com a filha de um
o local onde menos Stalin permaneceria em grande amigo seu, Serge Alliluiev. A jovem Nadia Alli-
sua vida. Seu tempo estava destinado ao trabalho, e as- luiev tinha três anos quando Stalin conheceu a família.
sim foi quando se casou com Ekaterina Svanidze no iní- Quando voltou da prisão para São Petersburgo, vi-
cio do século. O casamento durou até que a morte levas- sitou os Alliluiev e viu uma bela morena de 17 anos.
se a jovem esposa quatro anos depois. Da relação, ficou Começava ali seu interesse que resultaria em casamen-
um filho, que seria criado pelos avós maternos e passaria to em 1918.
a morar com o pai apenas em 1921. Teria sido em sua ida para Tsaritsin, viagem na qual

38 Guia Grandes Ditadores da História


Nadia o acompanhou como secre-
taria, que se tornaram amantes. A segunda do as descrições feitas por Monte-
fiore, era normal a infidelidade na
Mais de 20 anos os separava. O ca- esposa,Nadia , cúpula do poder soviético, e casos
sal era muito apaixonado, mas isso
não se traduzia numa vida reple- erado partido
entre esposas e maridos alheios
aconteciam com regularidade.
ta de convivência. Stalin era casa- bolchevique. Stalin Mas, naquela noite, Nadia fi-
do, antes de tudo, com a revolução
e com o poder. Poucos anos depois, e ela tiveram cou irada com o flerte descarado do
marido. Talvez mais ainda ao notar
nasceu Vassili, o primeiro filho, se- uma vida que sua provocação a ele não surti-
guido de Svetlana. ra efeito. O orgulho dela estava fe-
Nadia mandava dentro de casa. marcada por rido. Ainda ressoava em sua mente
A comunicação entre eles, muitas
vezes, era feita por cartas e bilhe-
amor brigas e , talvez uma noite em que foram ao
teatro e Nadia teve um ataque his-
tes, principalmente quando ela via- culminaria
que térico de ciúmes ao ver Stalin flertar
java de férias com os filhos. Dentro com uma bailarina.
de seu mundo peculiar, Stalin ama-
no trágico Nesse cenário, de provocações
va Nadia. Podia não ser o cavalhei- suicídio da e insinuações de ambos os lados,
ro romântico de fábulas, mas nas
cartas sempre era carinhoso e amo-
mulher em 1932 Stalin propôs um brinde. Percebeu
que Nadia não levantara a taça e
roso. A relação era difícil, mas sa- atirou cascas de laranja nela. Quan-
biam se entender. Talvez o proble- do ela se virou, disse: “Ei, você!
ma maior entre eles brotara no fim dos anos 20, quando Beba um drinque!”. A resposta de Nadia foi um tan-
Nadia demonstrou interesse em fazer uma carreira pro- to rude. “Meu nome não é ‘ei’!”, e complementou man-
fissional no partido sem ser considerada a esposa do che- dando-o calar a boca. Em seguida, deixou a sala, com
fe. Queria subir por seus méritos. Em 1929, prestou exa- a amiga Polina, que a acalmou e a acompanhou até sua
me para a Academia Industrial. Seu foco era o estudo e casa. A hora que Stalin voltou para casa é um mistério,
a vida profissional, o que fez que negligenciasse a vida fa- mas tem-se notícia de que saiu beber com outros com-
miliar. Além disso, Nadia tinha problemas sérios de saú- panheiros, inclusive com a mulher de um deles. Certo
de – dores de cabeça, fadiga, angina e artrite, sem contar é que algo fez que ela se desesperasse e se lembrasse de
uma espécie de esquizofrenia que a enlouquecia de tem- um presente recebido do irmão – uma pistola femini-
pos em tempos. Essas crises abalavam o casamento e a na. Nadia sentou-se e escreveu “uma carta terrível” para
relação com Stalin. Stalin para, em seguida, acabar com sua vida.
Foi nesse contexto, entre uma relação de paixão e ciú- A manhã começou em pavor no palácio. Stalin dor-
me, que o casal se preparou para o jantar anual em come- mia de um lado do corredor enquanto, no outro, o corpo
moração ao 15o aniversário da Revolução. Era 8 de no- de sua esposa já havia sido encontrado em meio a uma
vembro de 1932. Nadia, no apartamento do casal, vestia poça de sangue. A governanta chamou outros emprega-
um vestido preto longo moderno, ao qual bordou rosas dos, que ligaram para a família de Nadia, para o padrinho
vermelhas, e resolveu fazer um penteado diferente. En- dela, a amiga que a deixara em casa e também o médico.
quanto isso, Stalin permanecia em reunião com o chefe Stalin soube em seguida e ficou arrasado. “Aquela
da polícia secreta russa. Em seguida, ao lado de Molotov criatura política ao extremo, com um desrespeito desu-
e de outros assessores, saíram para a festa. mano pelos milhões de mulheres e crianças que mor-
“Em algum momento da noite, sem que os outros riam de fome em seu país, exibiu mais humanidade nos
presentes notassem, Stalin e Nadia ficaram bravos um dias seguintes do que o faria no resto de sua vida”, es-
com o outro. O fato não era raro. Para ela, a noite come- creveu Montefiore. Stalin tomou um calmante e chora-
çou a desmoronar quando, entre brindes, danças e flertes va diante do corpo. Clamava: “Ela me aleijou. Oh, Na-
ao redor da mesa, Stalin mal notou como ela se vestira, dia, como precisamos de você, eu e as crianças!”. Chegou
ainda que fosse uma das mulheres mais jovens presen- mesmo a declarar que renunciaria ao poder, que não po-
tes”, conta Simon Montefiore em “Stalin – A corte do dia continuar vivendo daquele jeito...
Czar Vermelho”. Um sobrinho de Stalin, Leoned Redens, acreditava
Assim, irritada, Nadia seguiu para o salão e come- que esse suicídio alterara a história e tornara o Terror
çou a dançar com seu padrinho. Começou um jogo de que viria em seguida – os expurgos – inevitável. Seria
flerte entre ambos, assim como Stalin flertava com a es- a tragédia pessoal de Stalin um dos fatores da tragédia
posa de um comandante do Exército Vermelho. Segun- maior de sua nação?

Guia Grandes Ditadores da História 39


Hitler e Stalin, um j
Segunda Guerra Mundial

Winston Churchill, Franklin Roosevelt e Josef Stalin

40 Guia Grandes Ditadores da História


ogo de interesses

Divulgação/ Discovery Networks


Às vésperas de explodir a 2a Guerra
Mundial, receoso de entrar no conflito,
Stalin fechou um pacto de não-agressão
com Hitler. Mas, com o decorrer da
Guerra e a ocupação de quase toda a
Europa, o líder nazista decidiu romper o
acordo e atacar a União Soviética. Stalin
sabia que essa hora chegaria e preparou
o país para uma verdadeira batalha pela
sobrevivência. O final dessa história é
conhecido: a Alemanha perdeu a Guerra e
a URSS saiu dela como potência mundial
Por Lucas
Pires

E
m meados de 1939, a guerra na Europa esta-
va prestes a explodir e Stalin não via com bons
olhos a participação, ao menos imediata, da
União Soviética no conflito. Uma das razões
mais explícitas e apontadas pelos especialistas para sua
postura é que, para se consolidar no poder, ele pratica-
mente teria acabado com todos os grandes homens do
Exército Vermelho, o que, diante de uma guerra, o colo-
caria em desvantagem por não ter comandantes experien-
tes em ação. Assim, era preciso adiar o máximo possível a
chegada da guerra na frente russa para conseguir se pre-
parar para o inevitável. Sim, inevitável. A participação da
URSS na 2a Guerra Mundial aconteceria, cedo ou tarde,
pois a localização geográfica e os ideais russos não poupa-
riam a nação de lutar contra ou a favor de Adolf Hitler. A
favor, caso seus líderes chegassem a um acordo referente
a territórios de dominação; contra, se o líder nazista pu-
sesse em prática o pensamento ariano de superioridade
racial, que colocava os eslavos e os russos como raças in-
feriores e passíveis de escravidão e eliminação física.
Além do interesse de não guerrear sem militares ex-
perientes, havia outro motivo para Stalin procurar Hi-
tler: um ano antes, França e Inglaterra, pelo Acordo de

Guia Grandes Ditadores da História 41


Munique, concordaram em entregar para a Alemanha tante do ponto de vista geopolítico, dividia e marcava as
parte do território da então Tchecoslováquia. Na ocasião, zonas de influência no leste europeu. Na prática, de ime-
a União Soviética era aliada da Tchecoslováquia. diato, resultou na divisão da Polônia após a invasão alemã
França e Inglaterra, ignoraram a União Soviética sem na semana seguinte ao pacto. Além disso, acertou-se que a
dó, mas tinham motivos para tanto. No período entre- União Soviética não reagiria a uma agressão alemã à Polô-
-guerras (1918-1939), primeiro Lênin e Trotski e poste- nia e, em contrapartida, a Alemanha apoiaria uma invasão
riormente Stalin ajudaram a Alemanha a se armar, mes- soviética à Finlândia.
mo indo de encontro aos itens estabelecidos no Tratado O mais interessante desse pacto de não-agressão en-
de Versalhes, assinado em 1919, que diziam, entre ou- tre Alemanha e União Soviética é que ele não possuía
tras coisas, que os derrotados, estavam proibidos de ter nenhuma cláusula suspensiva para caso alguma das par-
exércitos com mais de 100 mil homens, marinha, aviação tes resolvesse atacar a outra. As segundas intenções de
militar e produzir ou comercializar equipamento béli- Hitler estavam previstas na assinatura do pacto de não-
co. Mas a União Soviética permitiu que se instalasse em agressão. E Stalin sabia disso.
seu território uma indústria bélica a serviço do exército
alemão. Com isso, as democracias europeias isolaram a A POLÔNIA E O INÍCIO DA 2A GUERRA
URSS e deixaram Stalin imaginando que o Ocidente Uma vez que o pacto Molotov-Ribbentrop havia sido
faria uma frente “antiimperialista” ao lado da Alemanha. oficializado, a Alemanha não perdeu tempo e invadiu a
Isso o encorajou – e muito – a procurar rapidamente Polônia em 1º de setembro do mesmo ano, precipitando
Hitler para um acordo bilateral de “paz”. a 2a Guerra Mundial. No dia 7 de setembro, no Kremlin,
ao lado de Molotov, Jdanov e Dimitrov, o ditador soviético
OBJETIVOS ANTAGÔNICOS teria comentado: “A guerra está sendo travada entre dois
Stalin e Hitler sempre foram líderes ideologicamente grupos de países capitalistas. Eles querem novamente di-
antagônicos. O primeiro tinha como objetivo consolidar vidir o mundo entre si, eles pretendem dominar o mundo!
a ditadura do proletariado e acabar com o capitalismo, e Nós não temos nada contra, se eles fizerem ataques arra-
o Führer desejava expandir territórios com a colonização sadores e se destruírem mutuamente. Não há mal algum
racista e reinar absoluto no mundo capitalista. que a Alemanha venha a colocar suas mãos sobre os países
Um mês antes do acordo, Stalin ainda não sabia o que capitalistas mais ricos (em especial a Inglaterra) e ali cau-
fazer. Em primeiro lugar, não tinha certeza de que Adolf sar alguns danos. Sem se dar conta, Hitler os enfraquece,
Hitler iria aceitar o pacto ou se os líderes democratas eu- pois ele solapa o sistema capitalista pela base”.
ropeus iriam lhe estender a mão. No livro “Stalin – Uma A invasão culminou na dominação completa da Po-
Biografia Política”, Isaac Deutscher afirma que “ele ainda lônia em 6 de outubro do mesmo ano. Durante a ope-
estava provavelmente disposto, em vista das incertezas, a ração, em 17 de setembro, a União Soviética, seguin-
selar um acordo com o lado que primeiro lhe estendesse do uma cláusula secreta do pacto Molotov-Ribbentrop,
a mão. Ele certamente teria integrado uma coalizão anti-
Hitler se os termos oferecidos pelas potências ocidentais
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tivessem permitido à União Soviética desempenhar um


papel que Stalin considerasse à altura do país”.

PACTO DE NÃO-AGRESSÃO
Pois bem, quem estendeu a mão a Stalin foi Hitler e
não os países ocidentais. O comunista não deixou o nazis-
ta sem reposta e aceitou a parceria. Para firmar o pacto, o
Ministro das Relações Exteriores da Alemanha, Joachim
von Ribbentrop, viajou em segredo a Moscou em agosto
de 1939. Na noite do dia 23 de agosto de 1939, estavam
presentes no Kremlin Ribbentrop, seu equivalente russo
no organograma soviético, Molotov, e o próprio Stalin.
O acordo, conhecido como pacto Molotov-Ribben-
trop, pacto Nazi-Soviético ou pacto Hitler-Stalin, na ver-
dade, transformou-se em dois. O primeiro deles, levado
ao conhecimento do público, estabelecia que os dois paí-
ses não se atacariam por um período de dez anos, nem
apoiariam um país que o fizesse. O segundo, mais impor-

42 Guia Grandes Ditadores da História


O acordo, conhecido como pacto Molotov-Ribbentrop, na
verdade, transformou-se em dois. O primeiro deles, levado ao
conhecimento do público, estabelecia que os dois países não
se atacariam por um período de dez anos, nem apoiariam um
país que o fizesse. O segundo, mais importante do ponto de vista
geopolítico, dividia e marcava as zonas de influência no leste europeu
também declarou guerra contra a Polônia, dando início ses conseguiram resistir até março de 1940, quando os
à invasão da parte leste do país, o que a cercando-o de russos forçaram a um acordo, assinado com o nome de
todos os lados. Tratado de Paz de Moscou e que dava à URSS parte do
A invasão foi um teste e uma importante lição para os território finlândes.
alemães, que testaram suas forças, assimilaram os resulta- Enquanto isso, na outra frente da batalha, Grã-Breta-
dos e corrigiram os erros. Entre outubro de 1939 e maio nha e França ainda precisavam de tempo para se prepa-
de 1940, as Forças Armadas Alemãs passaram por uma rar para uma guerra entre gigantes. Mas esse tempo era
reformulação completa. Em compensação, em 3 de se- exíguo porque Hitler invadiu Bélgica, Holanda e Luxem-
tembro, em resposta às hostilidades, França e Reino Uni- burgo na primeira metade de 1940. Em junho, o Führer
do declararam guerra contra a Alemanha. colocava a França a seus pés numa das mais vergonhosas
O objetivo inicial dos nazistas era se apoderar das pro- derrotas dos militares franceses. Com Portugal e Espa-
víncias alemãs que o Tratado de Versalhes tinha dado à nha permanecendo neutros, só faltava a grande Inglater-
Polônia depois da 1a Guerra Mundial. Mas o verdadeiro ra para o nazismo dominar praticamente toda a Europa.
alvo era muito mais sinistro e se tornou evidente quando E a Operação Leão-Marinho – a invasão da Inglater-
o exército alemão marchou para a Dinamarca e a Norue- ra – teria início já em julho, quando aviões da Força Aé-
ga. Ao mesmo tempo, o Exército Vermelho cercou a Fin- rea Alemã, a Luftwaffe, passaram a bombardear navios
lândia. Stalin temia que Hitler pudesse atacar a Rússia via no Canal da Mancha. Entre junho e outubro, as duas
Finlândia e resolveu acabar com essa possibilidade. potências travaram o maior conflito aéreo de todos os
A guerra russa na Finlândia ficou conhecida como tempos. Londres chegou a ser atingida, mas, em 12 de
Guerra de Inverno, pois aconteceu durante o duro in- outubro, Hitler percebeu que sacrificaria toda sua frota
verno báltico, quando a temperatura chegava a -40ºC. aérea para tomar a Inglaterra, um preço muito alto para
Lutando na proporção de um contra três, os finlande- quem já tinha outro plano na manga pronto a ser revela-
do – a invasão da União Soviética.

OPERAÇÃO BARBAROSSA
O confronto entre o nazismo de Hitler e o socialis-
mo de Stalin era inevitável, pois cada vez mais o mun-
do se tornava pequeno para abrigar dois regimes totali-
taristas e fortes, ainda mais sendo vizinhos. Além disso,
Adolf Hitler nunca escondeu seu anticomunismo. No
seu livro “Minha Luta” (Mein Kampf ), publicado em
1925, o Führer já falava nos planos de dominar comple-
tamente o leste europeu.
A Alemanha respeitou o pacto Molotov-Ribbentrop
por quase dois anos, até a madrugada de 22 de junho de
1941, quando o ditador alemão lançou a campo o maior
ataque aéreo-terrestre na história da guerra – a famosa
Operação Barbarossa –, que utilizou três milhões de sol-
dados, 3.500 tanques e 1.800 aviões.
Como era de seu feitio e tinha dado certo até o mo-
mento, a ideia era empreender uma blitz rápida e capaz
de liquidar a União Soviética antes da chegada do terrí-

Guia Grandes Ditadores da História 43


vel inverno russo. Programada para maio, de fato a Ope-
ração sofreu adiamento e foi remanejada para junho por-
que, às vésperas da invasão, Mussolini pediu ajuda a Hi-
“E assim, nós, nacional-socialistas, tler depois de sua atrapalhada invasão da Grécia, onde
seu fraco exército foi derrotado e ainda estava em vias de
vamos voltar nossas vistas perder a Albânia, conquistada em 1937, para os gregos.
para os países do leste. Hitler enviou ajuda e dominou quase toda a região dos
Bálcãs, atrasando o ataque à URSS, algo que se mostrou
Quando falamos hoje em novo decisivo para os rumos da guerra.
território da Europa, devemos
Formaram-se três frente de batalha: o Norte, en-
carregado de ocupar Lituânia e Letônia rumo a Lenin-
pensar principalmente na grado; o Centro, que visava um ataque frontal à capital
Rússia e nos seus Estados
Moscou; e o Sul, destinado a ocupar os vastos campos
de trigo da Ucrânia e o petróleo do Cáucaso. O avanço
vassalos limítrofes. Esse alemão foi rápido no começo. Em julho, a cidade de Sm-
lensk já havia sido conquistada e Leningrado (hoje São
colossal império no leste Petersburgo) estava em estado de sítio. Em setembro, a
está amadurecendo para cidade de Kief foi derrotada com 650 mil soldados. No
final do ano, mais de três milhões de russos tinham sido
a dissolução, e o fim do presos e um milhão deles, mortos. Os nazistas estavam
domínio judaico na Rússia será de olho no Kremlin.
Mas Churchill, no dia da invasão alemã à União So-
também o fim da Rússia como viética, fez um discurso de apoio à URSS: “O perigo rus-
Estado”, escreveu Hitler so é o nosso perigo e o perigo dos Estados Unidos, assim
como a causa de qualquer combate russo pela família e
em "Minha Luta" pela pátria é a causa dos homens e dos povos livres em
qualquer parte do globo. Aprendemos as lições ensinadas
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por essa experiência cruel. Redobremos nossos esforços e


ataquemos com a união da força, enquanto nos restarem
vida e poder”. Certamente, essa declaração era o prenún-
cio de uma aliança que iria se consolidar em breve.
Hitler esperava que Moscou fosse derrotada rapida-
mente. Entretanto, uma resistência feroz fez que os ale-
mães voltassem às planícies geladas. Stalin, que era um
lutador, permaneceu com o objetivo de reerguer o moral
do povo. A resistência russa era a luta pela própria so-
brevivência, pois a colonização do território pelos ale-
mães faria das populações russa e eslava escravos, ou
mortos. Mais do que qualquer ideal ou bandeira, os rus-
sos lutavam para sobreviver.
Stalin entregou a tarefa de defender Moscou dos ale-
mães – que já chegavam a 60 km da capital – a seu mais
competente general, Georgy Zhukov. Tão truculento e
resoluto quanto seu patrão, ele reorganizou o Exército
Vermelho e deslocou boa parte dele da frente oriental
para rechaçar os nazistas das cercanias de Moscou. Já era
dezembro, o inverno ardia em neve e frio. A união des-
ses dois elementos forçou Hitler a um recuo, salvando a
capital russa das garras alemãs. Na sequência, Zhuvov
passou à contra-ofensiva, empurrando as tropas nazistas
para mais longe, que a parti daí foi perdendo terreno. Em
janeiro de 1942, os russos já tinham forçado a Alemanha
a recuar cerca de 200 km.

44 Guia Grandes Ditadores da História


BATALHAS DECISIVAS sódio que ficaria conhecido como o Dia D, e o avanço da
No ano de 1942, no entanto, quem visitasse a Eu- frente leste com os russos.
ropa acreditaria que o continente estava nas mãos de
Adolf Hitler, pois nem as vitórias parciais na Grã-Bre- AVANÇO FINAL SOVIÉTICO
tanha (1940) e na União Soviética (1941) tinham vi- Ainda em Teerã, Stalin, reconhecido como essencial
rado o jogo em favor dos Aliados. O começo do fim na vitória contra os nazistas, conseguiu impor a Churchill
só aconteceu com a derrota alemã em El Alamein, que e Roosevelt a definição de uma nova fronteira com a Polô-
significou o fim do domínio ítalo-germânico no norte nia, além de confirmar seu direito de exigir governos ami-
da África. gos nos Estados limítrofes. Esse foi o primeiro passo para
A grande virada da guerra aconteceu porque Hitler foi impor novamente o poder soviético na região. Mas, antes,
ambicioso demais. Mesmo tendo sido detido pelos sovi- era preciso reconquistou todo o território perdido para os
éticos em Moscou e Leningrado em 1941, ele planejou nazistas. Em 1943, retomaram Kursk, na Ucrânia, e, em
uma nova batalha em 1942. “Continuaremos a luta no les- 1944, o Exército Vermelho conseguiu romper o cerco a
te. Massacraremos o colosso soviético até fazê-lo em pe- Leningrado. Em maio do mesmo ano, reconquistou a Cri-
daços”, disse o Führer. Com seu espírito megalomaníaco, meia. Outras partes importantes do Leste foram recupe-
o líder nazista quis atacar Sta- radas pelo rolo compressor sovi-
lingrado e o Cáucaso de uma só ético: Finlândia, Bulgária, Hun-
vez, dividindo suas forças. Seus gria e Prússia Oriental.
generais alertaram que seria mais O confronto entre a foice Antes de se lançar sobre
prudente tomar uma cidade por
vez, mas ele não deu ouvidos.
senhor
e o martelo do Berlim,
do taram Viena, os soviéticos conquis-
na Áustria, em 13
Do outro lado, Stalin comanda- Kremlin suástica ea de abril de 1945. Em seguida,
va seus generais para retardar ao
máximo a chegada dos nazistas a
Reich
do senhor do foram para o Oeste. Com o fra-
casso, Hitler abriu o espaço tão
Stalingrado, para que pudessem inevitável
era , pois, esperado por Stalin para a vira-
organizar a defesa. da do jogo. Mas o Führer não
O ataque a Stalingrado cada vez mais, o mundo se desistiu e ficou para defender
aconteceu em 23 de agosto de tornava pequeno Berlim até o fim, mesmo saben-
1942. A população engajou-se do que não havia saída para a
na luta ao cravar trincheiras, para abrigar dois regimes Alemanha. Em 16 de abril, os
produzir tanques nas fábricas totalitaristas fortes e , norte-americanos haviam to-
e empunhar fuzis. Mesmo as-
sim, estava complicado conter o ainda sendo
mais vizinhos
mado Nuremberg e, cindo dias
mais tarde, as tropas soviéticas
avanço do Eixo, e as tropas na- estavam nos arredores de Ber-
zistas chegaram a ocupar o cen- lim. O último ato da 2a Guerra
tro de Stalingrado. Em 16 de novembro de 1942, po- Mundial na Europa aconteceu em 30 de abril de 1945,
rém, a temperatura baixou de forma brusca e os soviéti- quando os soviéticos estavam a apenas um quarteirão
cos vieram com uma contra-ofensiva. Hitler não admitia da Chancelaria. Hitler e sua companheira Eva Brown se
a rendição àquela altura e, por isso, seu general Paulus suicidaram. Era o fim do nazismo. Era o fim da Guerra.
manteve-se na linha da batalha, rendendo-se somente Stalin era um homem inteligente que conseguiu, com
em 31 de janeiro de 1943. A vitória em Stalingrado ani- paciência, virar o jogo. Jogo esse de puro interesse dos
mou – e muito – os soviéticos a resistir em outras cida- dois lados. Hitler e Stalin nunca foram amigos, mas ape-
des. A guerra não havia terminado, mas Adolf Hitler ha- nas estiveram do mesmo lado por alguns instantes e por
via sofrido um dos golpes mais duros. não encontrar outros aliados naqueles exatos momentos.
A derrota final da Alemanha nazista estava se apro- Por isso, vieram a traição nazista e a aderência de Stalin
ximando. A invasão da Itália pelas tropas aliadas preci- aos Aliados. A vitória aliada contra o nazismo rendeu à
pitou a queda de Mussolini e do regime fascista. Com URSS mais de 20 milhões de mortes e um esforço de
os rumos que a guerra tomava – o enfraquecimento do guerra como nunca visto antes. A intensidade da indus-
Führer em várias frentes – Churchill, Stalin e Roosevelt trialização exigida forçou o país a produzir material béli-
se encontraram em Teerã (Irã) no final de novembro de co de forma constante, aquecendo a economia, e transfor-
1943 para discutir o que fariam dali em diante. As con- mando a URSS na segunda maior potência do planeta e
clusões militares estabeleceram as bases para o desem- abrindo espaço para a disputa com os Estados Unidos, o
barque das forças aliadas na Normandia (França), epi- que se consolidaria pelo nome de “Guerra Fria”.

Guia Grandes Ditadores da História 45


morte

A polarização do mundo
Ao fim da 2a Guerra Mundial, a União Soviética era
tida como grande vencedora do conflito, apesar de
sua situação precária. Stalin surgia como um líder
notável, ao lado de Roosevelt e Churchill
Por Lucas Pires

N
ada parecia mais grandioso do que a vitó- nhando do Plano Marshall – a ajuda norte-americana
ria russa sobre os nazistas. E talvez nin- para a reconstrução da Europa –, que ele via como uma
guém tenha se achado com mais direito de forma de dependência contrária a seus ideais.
se sentir responsável por ela do que Josef Diante disso, renegou qualquer forma de auxílio dos
Stalin. As comemorações e o culto à personalidade dele EUA e passou a apoiar governos pró-soviéticos no Les-
após a guerra foram de caráter esplêndido. Mesmo to- te Europeu. Assim, países como Iugoslávia, Polônia,
talmente destruída, a população mantinha sua fé e espe- Romênia, Bulgária, Tchecoslováquia e até parte da Ale-
rança não tanto na União Soviética, mas em Stalin. Se manha – chamada de Alemanha Oriental depois da di-
ele viveu seu apogeu de popularidade, foi naquele mo- visão do país em quatro áreas de influência – passaram
mento de 1945. a ter governos comunistas ou controlados por Moscou.
“A nação estava mutilada e faminta. Provavelmen- A intenção de Stalin era justamente ter parceiros nesses
te, esperava que milagres viessem da vitória e do gover- países para vender e adquirir provisões.
no. Queria ver as cidades reconstruídas e as indústrias Essa ação foi chamada por Churchill, de “cortina de
e a agricultura restabelecidas. Ansiava por mais comida, ferro”, em que o líder soviético separava a URSS e os de-
mais roupas, mais escola, mais lazer. Mas nada disso po- mais países sob seu domínio do resto do mundo. Essa
dia ser obtido rapidamente a partir dos recursos exauri- “cortina” interessava muito a Stalin, pois preservava certo
dos e desorganizados da Rússia. O sofrimento, em meio mercado para os russos e ainda impossibilitava a obten-
ao arrebatamento da vitória, se mostrava duplamente im- ção de informações de seu país por parte do mundo oci-
paciente; e Stalin não podia frustrar a nação. Para acele- dental, que acabava por saber muito pouco do governo
rar a reconstrução e melhorar o padrão de vida, devia va- soviético e de suas ações internas. Para Deutscher, “a ‘cor-
ler-se dos recursos econô- tina de ferro’ escondeu a autocracia de Stalin, seu despo-
micos de outras nações”, tismo sinistro, mitos e fraudes. Em ambas as funções, a
escreveu Deutscher. ‘cortina de ferro’ tornou-se a condição indispensável para
E foi isso que Sta- a própria existência do stalinismo”.
lin começou a fazer No campo interno, Stalin centralizava tudo em sua
quando pessoa, eclipsando os generais e militares que tiveram na
per- guerra uma explosão de popularidade, como o Marechal
cebeu Jukov. Praticamente um ano depois da vitória, imprensa
que as na- e propagandistas tinham esquecido os “heróis” da nação
ções oci- que lutaram contra os nazistas. Para se ter ideia, a co-
dentais o memoração do terceiro aniversário da tomada de Berlim
viam com des- pelo Exército Vermelho foi feita pelo “Pravda”, sem que
dém e que planos fosse mencionado o nome de Jukov.
de ajuda econômi- A população teve que manter a rigidez da vida do pe-
ca seriam formas de ríodo de guerra, com a implantação de um quarto plano
converter o comunis- quinquenal. Mulheres e crianças tinham de trabalhar, pois
mo russo em capitalis- toda uma geração de homens havia morrido em batalha.
mo. Mesmo precisan- Em 1947, a Doutrina Truman expunha a Guer-
Felipe Azjemberg

do de ajuda financeira, ra Fria com seus contornos finais. O que antes esta-
Stalin acabou desde- va no ar, ainda a ser definido, passou a ganhar entornos

46 Guia Grandes Ditadores da História


concretos. Mal uma guerra acabava e outra já se molda-

AFP
va. Desta vez, com toques nucleares, já que os EUA pos-
suíam a bomba atômica e, em 1949, os cientistas russos
a desenvolveram também. O medo de um embate nucle-
ar entre as duas superpotências tomou conta do mundo.
Cada um desses protagonistas passou a trazer para seu
bloco os demais países. Os Estados Unidos ficaram com o
mundo ocidental; a URSS transformou o Leste Europeu
em satélites de Moscou e viu a revolução comunista chegar
à China. A partir de 1950, Stalin começou a se ausentar
de Moscou e do governo, mas, em compensação, crescia o
culto à sua imagem. Ele passou a ser figura onipresente em
toda parte, desde barbearias até cinemas e teatros.
Em 1951, extremo de seu egocentrismo e megaloma- Stalin morto em 1953
nia descontrolados, mandou construir uma estátua sua,
de corpo inteiro, para ser colocada no canal Volga-Don. funcionários estranharam que ele não deixara o quarto
Editorial do “Pravda” em 1950 fazia referência aos “po- o dia todo, mas estavam receosos de bater e entrar em
deres” de Stalin. “Se você estiver com algum problema, se seus aposentos. Apenas às 22h30 resolveram entrar e ver
encontrar alguma dificuldade no trabalho, se tiver algu- o que havia acontecido. Foi aí que se depararam com Sta-
ma dúvida quanto ao que é capaz de fazer, pense nele, em lin caído ao chão de pijamas. Havia tido um derrame.
Stalin, e se sentirá novamente forte e confiante. Acaso se O estado médico dele era um segredo para todos
sentir cansado quando ainda há trabalho a ser feito, pen- desde quando tivera seu primeiro derrame em 1945.
se nele, em Stalin, e encontrará novas forças. Se você es- Ele mandara queimar seu dossiê médico. Apesar de ve-
tiver em dúvida quanto a melhor decisão a tomar, pense rem que Stalin tivera um derrame, os médicos não fo-
nele, em Stalin, e verá que é fácil decidir... ‘ ram chamados, mas, sim, os superiores do partido, com
Esse pensamento de confundir Stalin com o povo, Kruschev e Bulganin. Receosos de que a doença chegas-
com o Estado soviético, era de fato algo inerente a ele. se à imprensa, retardaram chamar uma junta médica,
Certa vez, o líder soviético brigou com seu filho Vassi- que só avaliou Stalin no dia 2 de março. A opinião de di-
li por este ter se aproveitado do seu nome. “Eu também versos médicos foi unânime. O líder vivia uma situação
sou um Stalin”, teria o dito filho. E a resposta do ditador crítica – havia tido uma hemorragia no lado esquerdo
foi a seguinte: “Você não é um Stalin e eu não sou Stalin. do cérebro, causada por pressão arterial alta e arterios-
Stalin é o poder soviético. Stalin é o que ele é nos jornais clerose – cujo fim seria a morte em questão de dias.
e nos retratos, não você, nem mesmo eu!”. No dia 5 de março, em reunião do partido, Malenkov
foi conduzido ao cargo de Presidente do Conselho de
A MORTE DE STALIN Ministros. Na ocasião, um relato médico da saúde de
Assim, cada vez mais ausente e menos aberto a pensar Stalin foi lido. Ao fim da reunião, os principais nomes
num herdeiro, Stalin adentrou o ano de 1953. Doente e do partido chegaram em tempo na casa de Stalin para
avesso a remédios, acabou falecendo no início de março. ouvir do médico, às 21h50, que o líder estava morto.
Sua morte ainda é tema de polêmica, com alguns histo- Talvez tenha sido um alívio a morte dele. A URSS
riadores questionando os fatos. Outros apontam mesmo parecia que seguiria novos rumos com a saída de cena de
que Stalin foi envenenado. Mas as evidências são todas seu maior líder e construtor da nação. Em 1956, Krushev
mesmo de que o grande líder morreu em decorrência de seria conduzido a chefe da nação e, no XX Congresso do
um derrame. Partido, faria as revelações sobre as atrocidades de Sta-
Na manhã de domingo do dia 1o de março, Stalin não lin. Era o rompimento oficial com o passado stalinista.
levantou na hora costumeira. Os empregados e demais Uma nova geração de russos chegava ao poder.

Até sua morte, em 1953, Stalin colocou a URSS em oposição


aos demais países vencedores da guerra. Sua luta contra o
capitalismo o levaria a incentivar o comunismo em diversos
países no Leste Europeu e a polarizar o mundo com os Estados Unidos

Guia Grandes Ditadores da História 47


Adolf Hitler
Confira a trajetória deste líder
que foi responsável por uma
das maiores atrocidades que a
humanidade já presenciou
e que gera consequências
até os dias atuais. Mesmo assim,
entenda o porquê de Hitler ainda
exercer tanto fascínio mesmo após
70 anos de sua morte
48 Guia Grandes Ditadores da História
Guia Grandes Ditadores da História 49
Contexto histórico

O conturbado começo
do século 20
Em uma Europa em crise, em meio a diversos
conflitos, Adolf Hitler nasceu e cresceu
Por Claudio Blanc

T
alvez não seja exagero dizer que as duas guer- Originária da Suíça, a dinastia Habsburgo estava no
ras mundiais que varreram a Europa no sécu- trono austríaco desde 1279, onde havia se mantido ha-
lo passado começaram mais de cem anos an- bilmente através de, principalmente, uniões matrimoniais
tes. Naquele continente, todo o século 19 foi com as famílias mais poderosas da Europa. No século 19,
marcado por conflitos que desenhavam a nova distribui- os Habsburgo tinham feito da Áustria o segundo maior
ção do poder. Movimentos políticos e sociais foram defla- Estado europeu, menor apenas que a Rússia. A partir de
grados pela Revolução Francesa e, numa corrente de even- 1848, porém, as coisas começaram a mudar. Naquele ano,
tos, só se estabilizariam, crise após crise, depois da Segun- no qual Karl Marx e Friedrich Engels publicaram O Ma-
da Guerra Mundial. nifesto Comunista, revoluções contra os regimes monárqui-
No começo do século passado, a crise na Europa cos se ergueram em todo o continente. O Império Austría-
Central foi detonada pela decadência do Império Aus- co também foi contagiado e afetado. Klemens Metternich

Nos primeiros anos do século 20, uma acirrada disputa por questões
territoriais entre o Império Austro-Húngaro e a Rússia acabou se
tornando tão ácida que veio a envolver a Alemanha, a França, a
Grã-Bretanha e o Império Otomano, arrastando o mundo para
uma guerra mundial. Foi nesse ambiente, em que as questões
políticas inflamavam o ar, alimentadas pelo combustível
do preconceito racial, que Adolf Hitler foi criado

tríaco, que acabou fazendo explodir a pior guerra que, (1773 – 1859), ministro das Relações Exteriores e depois
até então, a humanidade já presenciara. Em meio à crise chanceler dos Habsburgo, peça-chave na manutenção do
austríaca, foi gestado um personagem que levaria a Eu- equilíbrio do poder em toda a Europa e da supremacia
ropa mais uma vez à guerra, e que influenciaria uma das austríaca na Itália, foi afastado. Repressor do liberalismo,
civilizações mais criativas que a humanidade já conheceu viu-se obrigado a fugir para a Inglaterra, enquanto o impe-
– a germânica – a cometer atrocidades inimagináveis, até rador continuou a combater os rebeldes até 1851.
mesmo pelas sociedades mais primitivas. Esse homem, Em 1856 e 57, Francisco José e sua esposa Elizabete,
Adolf Hitler, nutria profundo descontentamento pela si- apelidada Sissi, visitaram a Lombardia, a região de Vene-
tuação política do seu país – como muitos outros austrí- za e a Hungria em “viagens de reconciliação”, após o Im-
acos – e responsabilizava o imperador Francisco José, da pério ter conseguido abafar diversas revoluções na Penín-
Casa de Habsburgo, pelos problemas da Áustria. sula Itálica. A pedido de Sissi, Francisco concedeu ampla

50 Guia Grandes Ditadores da História


anistia aos nobres revoltosos, e isso fez que ela se tornas-

AFP
se bastante popular entre seus súditos. No ano seguinte,
no entanto, a Áustria perdeu a Lombardia. Foi a primeira
de uma sucessão de derrotas. Em 1866, Bismark venceu a
Áustria na Guerra dos Sete Dias, acabando com o domí-
nio austríaco sobre a Confederação Germânica, uma alian-
ça para a defesa mútua entre 39 Estados alemães, formada
em 1815, depois do susto dado por Napoleão em toda a
Europa, possibilitando a fundação do Primeiro Reich. En-
tre as outras perdas dos Habsburgo, a sofisticada Veneza
foi para a Itália. Em 1867, cedendo às pressões (e nova-
mente influenciado pela esposa), Francisco José elevou a
Hungria à condição de reino, criando o Império Austro-
-Húngaro. A decisão abalou o prestígio do imperador, pois
os súditos austríacos ficaram profundamente insatisfeitos.
Num império formado por diferentes povos – germâ-
nicos, eslavos, italianos, judeus e outros –, os austríacos
sentiam-se superiores. Mas, naquele momento, os hún-
garos haviam conquistado um status equivalente ao de-
les. Logo, os demais Estados que formavam o Império
fariam o mesmo. O ressentimento se infiltrava nos aus-
tríacos médios, fermentando uma intolerância cada vez
maior – principalmente contra os judeus e os eslavos. Mas
a Áustria-Hungria não tinha apenas problemas internos.
No âmbito internacional, as coisas também não iam bem.
Nos primeiros anos do século 20, uma acirrada disputa
por questões territoriais entre o Império Austro-Húnga-
ro e a Rússia acabou se tornando tão ácida que veio a en-
volver a Alemanha, a França, a Grã-Bretanha e o Império
Otomano, arrastando o mundo para uma guerra mundial.
Foi nesse ambiente, em que as questões políticas inflama-
vam o ar, alimentadas pelo combustível do preconceito ra-
cial, que Adolf Hitler foi criado.

Sissi, a Imperatriz
Apesar da decadência do Império, a corte austríaca preservava
uma imagem diferente. O luxo e a riqueza da vida palaciana
dos Habsburgo eram embalados, entre outras, pela valsa O
Danúbio Azul, de Johann Strauss. Elizabete da Áustria (1837 –
1898), ou Sissi, a “imperatriz do povo”, vivia sua lenda de linda
princesa perseguida pela rainha má, no caso a Arquiduquesa
Sofia. A mãe do imperador tentava controlar o filho, mas tinha
na imperatriz um obstáculo, já que Elizabete trazia o marido
na palma da mão. Anoréxica, excêntrica, fanática por esportes –
tinha uma sala de ginástica em seus aposentos, num tempo em
que só os homens se exercitavam –, Sissi não era bem-vista pela
nobreza. Mas as fofocas do palácio apenas desviavam a atenção
do povo dos movimentos políticos, que escreviam a nova
ordem social e política da Europa. Enquanto Francisco José
se desdobrava para manter a importante posição da Áustria, a
pompa da corte, os belos edifícios de Viena, a valsa e o brilho
popular de Sissi iluminavam a fachada de um império que ruía
frente às movimentações que abalavam a Europa Central.

Guia Grandes Ditadores da História 51


Formação da ideologia

De Viena
para Munique
Com seu sonho artístico desfeito,
Adolf formou, ainda na juventude,
a ideologia nazista
Por Claudio Blanc

U
m homem intransigente que se julga predes- MÃE PROTETORA, PAI RÍGIDO
tinado. Um império que perdeu a identidade. Adolf Hitler nasceu no pequeno povoado austríaco de
Um país em colapso. Esses elementos seriam Braunau am inn, na fronteira com a Alemanha, em 20 de
inflamáveis o bastante para incendiar o mun- abril de 1889. Naquela época, o Império Austro-Húnga-
do? No caso de Adolf Hitler, a resposta é sim. A pergun- ro se esfacelava, e Adolf iria crescer vendo a glória de seu
ta que sempre paira sobre os personagens históricos cabe país ruir diante de seus olhos. Ele foi o sexto filho de Kla-
como uma luva para ele: é a História que faz o líder? Ou, ra e de Alois Hitler, mas o terceiro vivo, uma vez que três
inversamente, é o líder que faz a História? Na verdade, a dos seus irmãos tinham morrido antes de completar dois
História corrobora para o surgimento de um líder, que, por anos. Alois, o pai, era um funcionário da alfândega e esta-
sua vez, acaba por moldá-la. Ele sempre reflete as vicissitu- va sempre ausente. Mesmo assim, talvez para afirmar sua
des do momento e incorpora os anseios das pessoas do seu autoridade, era extremamente severo com os filhos, espe-
tempo e lugar. Assume a voz das multidões e as conduz pe- cialmente com o pequeno Adolf. Mas a atenção especial
las trilhas dos fatos. ao filho era manifestada na forma de tremendas surras.
Se não tivesse existido um Hitler, será que a Alemanha, Para compensar, Klara, traumatizada pela perda dos
humilhada após a Primeira Guerra, se levantaria contra o três rebentos anteriores, mimava seu caçula como se fosse
resto da Europa? Provavelmente, sim. Mas o conflito talvez a última criança do mundo. Dessa forma, a infância de Hi-
possuísse um rosto diferente. Se seria menos brutal ou me- tler se alternou entre as surras dadas pelo pai − por con-
nos fanático, nunca saberemos. Afinal, o povo alemão estava ta dos motivos mais ínfimos − e as adulações desmedidas
ao lado de Hitler, e o Führer deu voz às muitas tendências, da mãe. Esse tratamento ganhou uma dimensão extrema
às crenças e aos pensamentos que grassavam na Alemanha quando Hitler tinha 13 anos. A morte de seu irmão Ed-
depois da Primeira Guerra. mond, o único menino além de Adolf, caiu como um raio
Hitler é mais uma criação da História do que uma au- sobre a família. Era o quarto filho que a arrasada Klara per-
to-invenção. Ele refletiu como ninguém o desejo de um dia. A tristeza da mulher buscou consolo em Adolf, muito
país rico e glorioso atolado numa situação de humilha- mais do que na outra filha sobrevivente, Paula. E, se antes
ção e menos-valia. Como o próprio Winston Churchill − Klara já exagerava na licenciosidade que concedia ao caçu-
provavelmente o mais implacável inimigo de Adolf Hitler la, agora, mais que nunca, ele podia tudo. A mesma coi-
− afirmou, foi a “insensatez dos vencedores” da Primeira sa aconteceu com Alois, mas conforme sua versão pessoal.
Guerra que causou a sede de vingança e de justiça de todo Embora tivesse mais dois filhos do casamento anterior,
o povo alemão. E, para comandá-lo, ninguém melhor que Alois e Ângela, Adolf era o último herdeiro homem da
um fanático cheio de vingança, um semilouco repleto de sua união com Klara. Com a intenção de fazer que o pe-
som e de fúria capaz de lançar mão dos mais impensáveis queno atendesse às suas expectativas, Alois também dedi-
meios para levar seu povo à sonhada vitória. Mas o sonho cou mais atenção a Adolf. Só que, no seu caso, isso signi-
de Hitler acabou se transformando no pesadelo da Ale- ficava aumentar a dose de rigor – com suas consequentes
manha – e do mundo. surras. É claro que esse tratamento ambíguo acabou ge-

52 Guia Grandes Ditadores da História


A infância de Hitler
Divulgação

se alternou entre as
surras dadas pelo pai
e as adulações
desmedidas da mãe. Esse
tratamento ambíguo
acabou gerando sequelas
no caráter de Adolf, que
chegou à adolescência
desconfiando
das pessoas ao seu
redor, com poucos
amigos, afundado em
fantasias, afastado da
realidade, extremamente
frio, dado a ataques de
fúria e inquebrantavelmente
convicto de suas ações

Guia Grandes Ditadores da História 53


rando sequelas no caráter de Adolf. Ele chegou à adoles- nicos. Para manipular a mãe, fingiu-se de doente duran-
cência desconfiado das pessoas ao seu redor, com poucos te uma longa temporada, conseguindo, com isso, sair da
amigos, afundado em fantasias, afastado da realidade, ex- escola. O passo seguinte era convencer Klara a incentivar
tremamente frio, dado a ataques de fúria e inquebranta- sua vocação artística.
velmente convicto de suas ações.
A família se mudou para Linz, local que o futuro SONHO FRUSTRADO
Führer considerava sua verdadeira cidade-natal, mas a re- Adolf queria entrar na Academia de Belas Artes de
lação de Adolf com Alois continuava péssima. O jovem Viena. A mãe cedeu de imediato, mas ele tirou dois anos
tinha inclinações artísticas, mas seu pai acabou matricu- de “férias” antes de prestar os exames. Foi uma época de
lando-o num colégio orientado para a formação técni- sonhos com a glória artística. Hitler foi, realmente, algu-
ca, o Realschule. E, já aqui, Adolf começou a dar mostras mas vezes para Viena, mas para explorar a cidade. Nes-
da personalidade que abriria tan- sas ocasiões, visitou museus, fre-
tas feridas entre os povos euro- quentou teatros e, principalmen-

AFP
peus. Contrariado com a decisão te, descobriu a ópera. Foi quando
de Alois, o garoto não frequentava se identificou tremendamente
as aulas e, quando o fazia, respon- com a obra de Richard Wagner,
dia aos professores, dizendo que cheia de ecos das crenças e dos
eles não tinham nada útil para lhe valores germânicos.
ensinar. Sua relação com os cole- Foi lá, também, que Adolf co-
gas não era melhor. Acreditando meçou a tecer suas convicções po-
numa suposta superioridade pe- líticas. Ele não defendia a conti-
rante os outros, desdenhava dos nuidade do Império Austríaco
alunos. – aquela colcha de retalhos ét-
Em sua monumental biogra- nica da qual os germânicos eram
fia de Hitler, Sir Ian Kershaw cita somente uma parte. Ao contrá-
uma descrição do menino Adolf rio, apoiava apaixonadamente o
feita nessa época por um professor nacionalismo pangermanista de
do futuro idealizador do nazismo, Ritter von Schönerer. Esse teó-ri-
Eduard Huemer: “era um garoto co – que contribuiu bastante para
magro e pálido que não fazia ple- a disseminação do anti-semitis-
no uso de seu talento, que carecia mo que marcou a política centro-
de atenção e que era incapaz de se -europeia até o final da Segunda
adaptar à disciplina escolar”. Hue- Guerra – se opunha ao Estado
mer não parou por aí. Segundo austríaco e era a favor da união
ele, o jovem Hitler era “obstinado, prepotente, dogmático dos povos de origem germânica. Schönerer defendia a fu-
e fervoroso”, e recebia as críticas dos professores “com uma são da Áustria à Alemanha – exatamente o que Hitler fez
insolência mal-dissimulada”. em 12 de março de 1938 − e influenciou o futuro Führer
Uma fotografia da época confirma as palavras do pro- além do âmbito das ideias. Político respeitado em Viena,
fessor. Entre os 47 meninos que aparecem na foto cercan- seus partidários o saudavam com o braço levantado e o
do o mestre, Adolf está na posição central da fileira mais chamavam de Führer, isto é, “líder”.
elevada – destacando-se entre todos. Como se isso ainda Finalmente, em 1907, Adolf resolveu prestar o exame
não fosse o bastante para enfatizar por si só sua posição de de admissão à Academia de Belas Artes de Viena. Sem ter
líder, a arrogância na expressão do rapaz esmaga qualquer se preparado de forma alguma para a prova, Adolf se apre-
margem de dúvida. Essa fotografia não apenas é um regis- sentou para fazer o exame munido apenas do seu pedan-
tro do espírito de liderança inabalável de Hitler já naquela tismo e da sua arrogância. Tinha certeza absoluta de que
época, como acaba adquirindo ares proféticos. É, de fato, passaria. A reprovação não era uma possibilidade. Mas foi
o rosto de um menino que, quando adulto, seria capaz de o que aconteceu. Adolf ficou devastado. Estava certo, po-
abrir à força o seu caminho. rém, de que o fracasso não era seu, e, sim, culpa dos exami-
O impasse com o pai, que já havia chegado ao ódio, nadores (entre os quais havia alguns judeus), incapazes de
acabou se resolvendo com a morte de Alois, em 1903. reconhecer seu talento. Para piorar ainda mais as coisas, a
Longe de lamentar a perda, Adolf a considerou um ga- doença de Klara havia se agravado.
nho. Em 1905, aos 16 anos, abandonou os estudos téc- Duplamente frustrado, Adolf voltou de Viena e se pôs

54 Guia Grandes Ditadores da História


ao lado da mãe, cuidando dela
com uma dedicação verdadei- o tempo em que Adolf sa de sua ideologia e a nutrir
o anti-semitismo, que tanto
ramente filial. Ela era a única Hitler subsistiu em Viena, marcou seu ‘reich’ de terror.
vivendo numa condição
criatura a quem o frio Adolf O anti-semitismo era um
dedicava afeto. Em sua bio- sentimento cultivado e disse-
grafia, Sir Ian Kershaw afirma próxima da indigência, minado na Europa Central.
foi fundamental para a
que “tanto a irmã Paula como O próprio prefeito de Vie-
o doutor Bloch (o médico que na, Karl Lueger, um políti-
tratou de Klara) testemunha- consolidação do conceito co que Hitler idolatrava e de
ram a entrega (de Hitler) de- quem buscou copiar a eloqu-
votada e infatigável ao cuida- do nazismo. Na capital do ência nos discursos, declarava
do de sua mãe agonizante”. A
dedicação não evitou, porém,
Império Austro-Húngaro, uma publicamente seu ódio pelos
judeus. Numa de suas prela-
a morte de Klara, no final de cidade multirracial, cuja ções, Lueger afirmou que “fa-
1907. Foi outro golpe profun-
do no jovem. O médico, Blo-
população de judeus chegava ria um serviço ao mundo colo-
cando os judeus em um gran-
ch, registrou “nunca ter visto a 10%, e onde a opulenta de barco e afundando-o em
ninguém tão prostrado pela
dor quanto Adolf Hitler”.
aristocracia convivia com alto-mar”. De fato, os judeus,
que nunca se integraram real-
os mais esquálidos mente ao país para onde imi-
mendigos, Hitler começou
FUNDO DO POÇO graram – qualquer que fosse
O mundo do futuro este –, permanecendo fiéis aos
Führer tinha desmoronado. a misturar a argamassa de seus costumes e à sua comu-
sua ideologia e a nutrir
Para tentar reconstruí-lo, em nidade e com fama de tramar
1908, se empenhou mais uma para controlar o mundo, eram
vez em entrar na Academia o anti-semitismo, que tanto vistos como os culpados pela
de Belas Artes de Viena. No-
vamente, foi reprovado. Essa marcou seu reich de terror crise do império Habsburgo.
Em 1913, o dinheiro da
terceira frustração acabou fa- herança de Klara foi liberado
zendo que ele se isolasse cada para Hitler, que aproveitou
vez mais. Decidiu, então, permanecer em Viena, subsistin- a chance para se mudar para Munique. Na verdade, ele foi
do com uma magérrima pensão para órfãos concedida pelo para a Alemanha para fugir do serviço militar austríaco, pois
Estado, e mais um pouco de dinheiro que uma tia havia lhe não se dignaria a servir sob os Habsburgo que tanto o de-
dado. Adolf quase não trabalhava. Vez ou outra fazia bicos sagradavam. O dinheiro da herança era pouco, e Adolf teve
e ganhava algum dinheiro pintando paredes. de usá-lo com parcimônia para não cair na condição de indi-
Um companheiro seu de Linz, um estudante de músi- gência dos anos anteriores.
ca chamado Kubizek que conviveu com Hitler nesse pe- A capital da Baviera era, na época, uma cidade que pul-
ríodo, o descreveu como um jovem “dedicado ao ócio, pre- sava arte e cultura, cheia de artistas que saíam de várias par-
ocupado apenas com as reformas sociais dos bairros po- tes da Europa para ali expressar seu talento. Hitler passava
bres, idealizando alternativas políticas que amenizassem os dias nos cafés e nas cervejarias, lendo jornais que confir-
a precária situação em que o país se encontrava”. Segun- mavam suas posições extremistas. E assim ele passou o ano
do Kubizek, Hitler lia muito nessa época, e ia quase todo de 1913 e a maior parte de 1914: vagabundeando de café
dia à ópera, assistir ao seu autor favorito, Richard Wagner. em bar, esmagado pelo peso do fracasso dos seus sonhos
Mas não estava bem: “cada vez mais perdido, cada vez mais artísticos e pelo medo de ser encontrado pelas autoridades
enraivecido com o mundo”, afirmou seu conterrâneo. de seu país. Isso, porém, veio finalmente a mudar no início
Esse tempo em que Adolf Hitler subsistiu em Viena, vi- de agosto de 1914, quando a Alemanha declarou guerra à
vendo, entre 1909 e 1913, numa condição próxima da indi- Rússia e à França. O conflito iria causar uma guinada ines-
gência, foi fundamental para a consolidação do conceito do perada daquele quase indigente, desertor do exército aus-
nazismo. Na capital do Império Austro-Húngaro, uma ci- tríaco. Estava para começar o período que Hitler descreveu
dade multirracial, cuja população de judeus chegava a 10%, em sua autobiografia Mein Kampf (Minha Luta) como “o
e onde uma opulenta aristocracia convivia com os mais es- mais excelente e inesquecível de toda a minha, como a de
quálidos mendigos, Hitler começou a misturar a argamas- todo alemão, existência terrena”.

Guia Grandes Ditadores da História 55


Um
A Primeira Guerra Mundial

No começo do século 20, potências


europeias experimentaram pela
primeira vez uma batalha mundial

em
que, em breve, desembocaria em
outra Grande Guerra
Por Claudio Blanc

E
m 1914, uma época em que o nacionalismo exa-
cerbado era o leme que guiava as ações políticas
em todo o continente europeu e, principalmente,
no Império Austro-Húngaro (uma frágil união
de regiões de etnias e culturas distintas), a crise na Euro-
pa Central explodiu. A fragmentação do Império fez que
o arquiduque da Áustria, Francisco Ferdinando, sobrinho
do imperador austro-húngaro e herdeiro do trono, fosse
a Sarajevo, capital da Bósnia-Herzegovina, tentar acalmar
os ânimos dos súditos que exigiam emancipação. A Sér-
via, independente desde o início do século 19, esforçava-se
para unificar os territórios ao sul de sua fronteira: Mace-
dônia, Montenegro e Bósnia-Herzegovina. Nessa tentati-
va, acabou batendo de frente com os interesses do podero-
so Império Austro-Húngaro, cuja política expansionista, o
Drang nach Osten (a “Marcha para Oeste”), visava a chegar
até o porto de Salônica, na Grécia.
Francisco Ferdinando buscava uma via diplomática
para resolver o conflito, mas, acabou assassinado por Gavri-
lo Princip, um radical sérvio, em 28 de junho de 1914. En-
tão, o Imperador Francisco José, na época com 84 anos, fez
duras exigências à Sérvia, que as recusou ostensivamente.
A Rússia, tradicional rival da Áustria, temia que o Im-
pério Otomano – o poderoso califado turco que contro-
lava todo o mundo islâmico – anexasse a parte muçulma-
na dos Bálcãs, e apoiou a Bósnia-Herzegovina. Essa era a
chance que a Alemanha esperava para resolver suas rivali-
dades territoriais e econômicas com a França, a Grã-Bre-
tanha e a Rússia. Aliou-se à Turquia e ofereceu apoio à
Áustria, que aceitou, e, juntos, formaram a Liga dos Po-
deres Centrais. Assim, motivado pelo suporte recebido e
para evitar uma guerra civil que fragmentaria o país, no
final de julho de 1914, o Império Austro-Húngaro decla-
rou guerra à Sérvia. As outras potências europeias se lan-
çaram no conflito, e, logo, todo o continente virou palco de
operações militares.
Na frente oeste, os alemães avançaram sobre a Bélgica e
Paris em direção ao Canal da Mancha. No leste, os Poderes
Centrais foram igualmente bem-sucedidos. Já nos primei-
ros meses da Guerra, os alemães derrotaram os russos em

56 Guia Grandes Ditadores da História


continente
conflitoDivulgação/ Still Picture Branch (NNSP) do National Archives e Records Administration (NARA)

Guia Grandes Ditadores da História 57


Tannemberg e nos Lagos Masurianos. No entanto, depois maiores Estados europeus em extensão, a Áustria ficou re-
das primeiras batalhas de Ypres, o exército do imperador duzida a um território de apenas 83.850 km2. À Hungria
alemão, kaiser Guilherme II (1888 – 1918), ficou impedi- foi imposto o Tratado de Trianon, que a obrigava a ceder
do de avançar, e os Aliados não conseguiam fazê-lo recuar. a Croácia, a Eslováquia e a Rutênia à Tchecoslováquia, e a
Começou, então, a guerra de trincheiras: estacionária, la- Transilvânia à Romênia, fazendo que o país fosse reduzido
macenta, cheia de batalhas de baioneta e de uso de gás vene- a um terço do seu território de 1914.
noso, na qual doenças, como o tifo e o tétano, matavam mais O moral em todo o antigo império estava baixo. Anos
do que as balas e as bombas. Era um conflito sanguinário, lu- de luta e de sacrifícios não impediram o inevitável: a frag-
tado por soldados que acabaram se tornando românticos no mentação da colcha de retalhos étnicos, linguísticos, cul-
ideário e no imaginário da guerra. Guerreiros como o ás Ba- turais e religiosos, que uma vez tinha constituído o impé-
rão Vermelho que, depois de abater 40 aviões inimigos com rio dos Habsburgo. Quanto à Alemanha, o resultado da
seu biplano nos céus da França, foi pego e enterrado com guerra não foi menos catastrófico. Mas, diferentemente da
honras de herói pelos ingleses que o derrubaram; ou como Áustria, o país não abaixaria a cabeça. Não com alguém
os soldados que participaram de um conhecido episódio da como Adolf Hitler a instigar, nos alemães, a sede de vin-
luta nas trincheiras, em que duas tropas inimigas, uma ale- gança por toda a humilhação que sofreram com a derrota
mã e outra inglesa, de tanta convivência ali, paradas, vigian- e por conta do Tratado de Versalhes.
do uma à outra, resolveram estabelecer um cessar-fogo e se
confraternizaram, decidindo suas diferenças políticas e ideo- O CABO HITLER
lógicas numa amigável partida de futebol. Quando a Alemanha declarou guerra à Rússia, em 1º
O ano de 1915 trouxe boas-novas para a Áustria-Hun- de agosto de 1914, e à França, fazendo que a Grã-Breta-
gria. A Sérvia − até então imbatível − e Montenegro caí- nha entrasse no conflito contra ela, o povo alemão se reju-
ram no final do ano e os Aliados falharam ao tentar tirar bilou. Era a chance que o país tinha de resolver questões
a Turquia da guerra. Sérvia e Montenegro caíram no final pendentes com essas nações e de ocupar o lugar no mun-
de 1915 e só as campanhas na Itália, não se concluíam, es- do que julgava ser seu. Adolf Hitler, que havia desertado
tacionando um grande contingente de tropas austríacas. do exército austríaco e fugira para Munique, também foi
Apesar disso, 1916 foi um ano difícil. O conflito exigiu contagiado. E se ele se recusou a responder à convocação
recursos que a Áustria não conseguia gerar. O país baseava do exército dos Habsburgo, não titubeou em se alistar nas
a economia na extensão de seu território, recebendo bens forças do país que adotara.
e valores dos reinos que formavam o império. As campa- Imediatamente após o início do conflito, em 8 de agos-
nhas eram inconclusivas, principalmente na frente Sul. to, como o próprio Hitler conta em seu livro Mein Kampf,
Em 1917, as coisas começaram, finalmente, a pender
AFP

a favor dos Aliados. No Oriente Médio, o ex-arqueólogo


britânico, e então coronel, Thomas Edward Lawrence, o
Lawrence da Arábia, incitava, com sucesso, a revolta árabe
contra os turcos, seus senhores. No mesmo ano, os Estados
Unidos entraram na guerra devido aos ataques dos subma-
rinos alemães à sua frota, e enviaram uma força expedicio-
nária que desembarcou na França, comandada pelo general
Pershing, responsável por dois milhões de homens.
No decorrer do ano seguinte, a Liga dos Poderes Cen-
trais não conseguiu resistir ao avanço dos Aliados. Da-
masco caiu nas mãos dos beduínos de Lawrence da Ará-
bia e, na Europa, a França foi libertada. Em 11 de novem-
bro de 1918, a Alemanha assinou o armistício. A Liga dos
Poderes Centrais perdia a guerra.
O Império Austro-Húngaro foi esfacelado pelo tratado
de Saint-Germain, que reduziu a Áustria aos seus territó-
rios germânicos, entregando Trentino e Ístria à Itália. Ao
reino dos sérvios, croatas e eslovenos, que depois se cha-
mou Iugoslávia, cedeu a Eslovênia, a Dalmácia, a Croácia e
a Bósnia-Herzegovina. À custa de seus domínios tchecos,
surgiu um novo Estado: a Tchecoslováquia. De um dos

58 Guia Grandes Ditadores da História


ele dirigiu “à sua majestade uma petição solicitando con- ência e solitário. O cabo austríaco não mantinha qualquer
sentimento para que servisse em um regimento bávaro”. contato com familiares ou amigos. De fato, Hitler não re-
A resposta foi imediata. Segundo Hitler, “o gabinete mi- cebeu nem enviou correspondência alguma durante toda a
nisterial tinha naquela época muitos assuntos com que se guerra. Seus companheiros durante esse período também
ocupar, de modo que meu júbilo foi ainda maior, pois a enfatizaram sua propensão a fazer inflamados discursos
solicitação foi despachada favoravelmente no mesmo dia”. sobre a impossibilidade da derrota.
Hitler ficou mesmo muito satisfeito com a declaração A inevitável derrota, porém, acabou com os sonhos de
de guerra, e mais ainda com sua participação ao lado dos guerra do cabo mensageiro. Ela veio, primeiro, em nível pes-
alemães. O futuro Führer mudou da noite para o dia. A soal e, em seguida, em âmbito nacional. Num ataque bri-
apatia e o ócio deram lugar a uma dedicação fanática, difi- tânico com gás tóxico, ocorrido entre 13 e 14 de outubro
cilmente rivalizada por seus companheiros. Depois de ter de 1918, Hitler sofreu de cegueira temporária e foi enviado
seus sonhos despedaçados e enfrentado a indigência, Hi- ao hospital em Pasewalk. Pouco tempo depois, em 10 de
tler encontrou no exército alemão o sentimento de unida- novembro, quando ainda se encontrava internado, recebeu
de e a possibilidade de participação que sempre desejou. a notícia de que a Alemanha havia perdido a guerra, e de
O jovem austríaco, então com 25 anos, serviu no con- que o kaiser Guilherme II abdicara. Seu amado país adoti-
flito como mensageiro. Anos depois, foi ridicularizado por vo era, então, uma república. Adolf registrou sua decepção
seus inimigos por conta desse posto nada glorioso. No en- em Mein Kampf. “Tudo havia sido em vão. Os sacrifícios e
tanto, era uma posição que enfrentava um perigo demasia- os trabalhos; em vão o sacrifício, a fome e a sede sofridos
do. Os mensageiros levavam as ordens de um lado a outro pelo espaço de intermináveis meses; em vão as horas consa-
do front. Por conta disso, eram alvos potenciais. E Adolf gradas ao dever sobressaltado pelo temor da morte; em vão
foi abnegado no cumprimento do dever. o sacrifício da vida de dois milhões de alemães.”
Como fazia com tudo aquilo em que acreditava ver- E foi nesse hospital em Pasewalk que o cabo Hitler,
dadeiramente, dedicou-se de corpo e alma à tarefa. Pela tentando achar uma resposta que justificasse a derrota,

Motivado pelo suporte recebido e para


evitar uma guerra civil que fragmentaria o país, no final de julho
de 1914, o Império Austro-Húngaro declarou guerra à Sérvia.
As outras potências europeias se lançaram no conflito, e, logo,
todo o continente virou palco de operações militares
primeira vez na vida, sentiu-se completamente realizado e teve uma “iluminação”. Mais do que qualquer outra coisa,
reconhecido. Por duas vezes, foi condecorado com a Cruz ele buscava achar os culpados pelo fracasso. E, após certa
de Ferro. Na primeira, recebeu um emblema de segunda reflexão, decidiu que os responsáveis pela perda da guerra
classe, por colocar sua vida em perigo para proteger um tinham sido os judeus e os comunistas. “O kaiser Guilher-
comandante em meio ao fogo inimigo. Na segunda con- me foi o primeiro imperador alemão que ofereceu sua mão
decoração, foi homemageado com uma Cruz de Ferro de e amizade aos líderes do marxismo, sem pensar que os tra-
Primeira Classe – uma das medalhas mais difíceis de se paceiros carecem de honra e sem perceber que, enquanto
obter, símbolo de grande abnegação e sacrifício em defesa apertavam com uma mão a destra imperial, com a outra
da Alemanha – por ter levado uma mensagem vital, a um acariciavam o punhal”, registrou ele. Sobre os judeus, con-
posto extremamente distante do ponto de partida, sob in- cluiu que com eles “não se pode chegar a nenhum acordo”
tenso fogo de artilharia. e que “tratando-se de sujeitos de semelhante ralé, só serve
Hitler foi, indiscutivelmente, um soldado exemplar. o inflexível ‘ou isso ou aquilo’”.
Durante os quatro anos de conflito, teve apenas 90 dias Esses pensamentos conduziram Hitler a uma outra
de licença. No entanto, ao mesmo tempo em que gozava fase em sua vida, a uma saída pessoal que implicaria um
e da admiração dos seus superiores por causa do seu in- profundo envolvimento com o país que adotara. Como o
crível senso de dever, o mesmo não acontecia com o resto próprio futuro líder da Alemanha confessou anos depois,
da soldadesca. Adolf foi definido por seus companheiros foi durante sua internação em Pasewalk que decidiu se
como extravagante, sem senso de humor, com pouca paci- tornar político.

Guia Grandes Ditadores da História 59


Entre-guerras

A Alemanha após a
Primeira
Guerra
Destruído e pobre, o país não
encontrou outra saída além de
um novo embate militar
Por Claudio Blanc

O
primeiro livro, Os demonstra como as condições que os
Marcos do Desastre, A tamanha vencedores impuseram ao país leva-
da grandiosa obra em
seis volumes Memó-
humilhação ram a um novo embate militar. A ta-
manha humilhação pela qual o país
rias da Segunda Guer- pela qual o país passava ufanou os brios de seu povo,
ra Mundial (publicado no Brasil pela passava ufanou a ponto de os alemães apoiarem uma
editora Nova Fronteira), de Winston figura como Adolf Hitler, que prome-
S. Churchill, narra os acontecimentos os brios de seu tia com tanta convicção liderar a nação
na Alemanha e a ascensão do nazismo
sob o ponto de vista dos britânicos.
povo, a ponto de os rumo à conquista do seu verdadeiro
espaço no mundo.
Logo na abertura da obra, Churchill alemães apoiarem A Alemanha saiu da Primeira
conta que, respondendo ao presiden-
te Roosevelt sobre como este deveria
uma figura como Guerra “derrotada, desarmada e fa-
minta”. O país líder da agressão era
se referir à Segunda Guerra, o premiê Adolf Hitler, que considerado por todos como a causa
britânico disse de pronto: “a guerra
desnecessária”. E explica: “Nunca hou- prometia com primordial da catástrofe que a Europa
enfrentara. Só a França havia perdido
ve uma guerra mais fácil de se impe- tanta convicção 1,5 milhão de soldados para se defen-
dir do que essa que acaba de destroçar
o que havia restado do mundo após o liderar a nação der. E os problemas entre a França e
a Alemanha eram históricos. Em cerca
conflito anterior”. Churchill estava re- rumo à conquista do de cem anos, os franceses foram ataca-
almente convicto disso. No primeiro dos e quase invadidos pelos prussianos
capítulo de sua obra, apropriadamente seu verdadeiro espaço cinco vezes – em 1814, 1815, 1870,
intitulado A Insensatez dos Vencedores, no mundo 1914 e 1918. Além disso, a população
ele relata condoidamente a situação da alemã era quase três vezes maior que
Alemanha após a Primeira Guerra e a da França, o que possibilitaria uma

60 Guia Grandes Ditadores da História


tentativa futura de dominação. Assim, os temerosos fran-
ceses valeram-se de sua participação no Tratado de Versa-
lhes para evitar a esperada invasão, espremendo o inimigo
ao máximo.
À França, uniram-se a Grã-Bretanha e os Estados
Unidos, e, juntos, impuseram aos vencidos um fardo avil-
tante. A Alemanha perdeu o direito de convocar seus ci-
dadãos para o serviço militar obrigatório, e, assim, formar
uma força-reserva e ter armamentos pesados. Sua fro-
ta naval foi afundada, o exército desmantelado, e o qua-
dro de oficiais dissolvido. A força aérea militar tinha sido
proibida, assim como a construção de submarinos. O país
podia ter apenas um exército profissional de cem mil ho-
mens para manter a ordem interna. Em termos políticos,
a situação não era menos vexatória. Os americanos, anti-
patizando naturalmente com a monarquia, influenciaram
a deposição do kaiser e a fundação de uma república em
Weimar. Mas a República de Weimar, “com todos os seus
adornos e bênçãos liberais” – conforme Churchill colocou
–, era vista pelos alemães como uma imposição do inimi-
go. “Para muitos patriotas alemães, a república (de Wei-
mar) era uma afronta desde o início, uma vez que só exis-
tia porque a Alemanha fora derrotada”, colocou o histo-
riador J.M. Roberts. O arranjo político não tinha como
preservar a fidelidade ou o imaginário do povo alemão.
Para completar o caos vivido pelos alemães depois da
Primeira Guerra, a situação econômica se tornou insus-
tentável. Pela desorganização política e financeira do país,
bem como pela necessidade de pagar compensações de
guerra entre 1919 e 1923, o que levou a uma enorme im-
pressão de papel-moeda, o marco – a então moeda nacio-
nal da Alemanha – entrou em colapso. Nos estágios finais
da inflação, uma libra esterlina correspondia a 47 trilhões
de marcos. As consequências sociais, econômicas e polí-
ticas dessa inflação foram extensas, marcando profunda-
mente a década de 1920.
Com seis milhões de desempregados, a poupança da
classe média foi devastada. Isso criou uma legião de se-
guidores naturais do nacional-socialismo – a doutrina
política que começava a se esboçar como “solução” para a
catástrofe que assolava o país. Todo o capital de giro de-
sapareceu da Alemanha, o que levou à contratação de em-
préstimos em larga escala. “O sofrimento e a amargura ale-
mães marchavam juntos”, descreveu Churchill. Nesse qua-
dro desesperador, no qual os valores mais intrínsecos do
povo haviam sido esmagados, abriu-se um espaço, logo
ocupado, nas palavras do premiê britânico durante o con-
flito, por “um maníaco de índole feroz, repositório e ex-
pressão dos mais virulentos ódios que jamais corroeram o
coração humano – o cabo Hitler”.
AFP

Guia Grandes Ditadores da História 61


Começo da vida política

A descoberta de

um dom
Os primeiros passos do futuro
Führer na política mudariam a
História de forma definitiva
Por Claudio Blanc

C
om o fim da Primei-

AFP
ra Guerra, Adolf Hi-
tler continuou a fa-
zer parte do exército
alemão, ou melhor, daquilo que
havia sobrado dele, uma força de
apenas cem mil homens manti-
da somente para conservar a or-
dem interna, o Reichswehr. Em
1919, o cabo Hitler recebeu
uma ordem que mudaria dras-
ticamente sua vida – e a história
do século 20: foi designado para
assistir a aulas sobre doutrina-
ção política.
A intenção do programa era
combater a crescente influên-
cia comunista que se espalha-
va na Alemanha, especialmente
em Munique e na Baviera, onde
Hitler servia. No entanto, ele
não foi seduzido pela ideologia,
da qual já era convicto, mas pe-
las aulas de retórica que faziam
parte do curso. Foi uma desco-
berta, o reconhecimento de um
dom. Através dele, Adolf veio a
se tornar o Führer e a ser capaz
de convencer o indeciso e fana-
tizar o adepto.
De fato, Hitler se destacou

62 Guia Grandes Ditadores da História


Ele não foi seduzido pela
tanto que, como ele mesmo descreve em sua autobiogra-
fia, Mein Kampf, acabou sendo ordenado a se “incorporar
a um regimento de Munique, nominalmente na qualida- ideologia, da qual já era convicto,
mas pelas aulas de retórica que
de de instrutor”. Foi o primeiro passo de uma “brilhante”
carreira política e, também, o começo de sua ascensão. Os
discursos que fazia aos outros membros do Reichswehr, faziam parte do curso. Foi uma
durante o curso que ministrava, eram impregnados de um
anti-semitismo inflamado. Mas a ira de Adolf não se li- descoberta, o reconhecimento
mitava aos judeus. Ele se dedicava igualmente a atacar os de um dom. Através dele, Adolf
comunistas, tidos como tão culpados quanto os israelitas
pela derrota da Alemanha. veio a se tornar o Führer, capaz
O cabo Hitler aprendeu a dominar a plateia, a explo- de convencer o indeciso
rar o medo dos que ouviam e transformá-lo em raiva, a
despertar nas pessoas a emoção que bem entendesse. E o e de fanatizar o adepto
artista frustrado, finalmente, encontrou sua arte: a retóri-
ca. Era um mestre, e sabia disso. “No transcurso de meu
palavreado, reconquistei para a nação e a pátria não direi
centenas, mas milhares de camaradas”, registrou Adolf em alma ao partido – e, através deste, a si mesmo. Hitler sem-
Mein Kampf. E ele não estava sendo imodesto. O chefe da pre reconheceu o incrível domínio que ele exercia sobre os
chancelaria de Hitler, Philipp Bouhler, afirmou categoria- outros, e aquela era a oportunidade que ele buscava. Des-
mente que o nazismo “só triunfou porque Adolf Hitler es- sa vez, diferentemente de quando havia tentado ser artista,
tava no comando”, pois “ele é o movimento, uma vez que todos os vetores convergiam a seu favor.
incorpora em sua pessoa a ideia do nacional-socialismo”. Na oratória estava, sem dúvida, seu dom. Ele era ab-
solutamente consciente disso, a ponto de, em Mein Kam-
DE SOLDADO A POLÍTICO pf, dedicar um capítulo ao tema. Em “A Luta nos Primeiro
As variáveis da equação que resultaria no fenômeno Tempos: A Importância da Oratória”, o futuro líder da Ale-
Adolf Hitler foram, finalmente, relacionadas através de manha descreveu com precisão cirúrgica o fenômeno que
missão dada a ele. Em 12 de setembro de 1919, Adolf foi chamou de “sugestão da multidão”. Para aquele gênio da
enviado como observador a um comício, do qual partici- manipulação, “as reuniões de grandes multidões são neces-
paria o pequeno Partido Nacional-Socialista dos Traba- sárias, pois quando o indivíduo acometido pelo desejo de se
lhadores Alemães. alistar em um movimento, mas que teme estar só, ao assistir
Entediado, Hitler ouviu as propostas políticas dos ora- a elas, recebe ali a primeira impressão de uma numerosa co-
dores, que buscavam nada além de celebrar a paz com os munidade, que exerce um efeito revigorante e estimulante
vencedores. De repente, porém, o tédio do futuro Führer na maioria das pessoas”. Hitler sabia que “um homem que
deu lugar a um ódio inflamado quando um dos discur- chega a essas assembleias cheio de dúvidas e vacilação sai
sadores começou a defender a separação da Baviera. “Em dali intimamente fortalecido, convertendo-se em um movi-
vista de tais coisas, não me restou mais que solicitar per- mento da comunidade”, e explorava isso ao máximo.
missão para falar e comunicar àqueles cavalheiros minha Sua retórica se baseava na polêmica. Além disso, im-
opinião sobre o particular”, registrou Hitler sobre o acon- primia uma paixão nos seus discursos capaz de inflamar o
tecimento. E ele o fez com tanta fúria – ou “êxito”, nas suas mais frio dos ouvintes. Não buscava explicar o programa
palavras – que “antes de concluir o meu discurso, o orador e a doutrina do seu partido, mas, sim, explorar as emoções
havia fugido do edifício como um cachorro com o rabo da plateia. Os orgulhosos alemães tinham sido humilha-
entre as pernas”. dos na guerra e vilipendiados no tratado de paz. E era o
O discurso de Hitler foi tão inflamado que o líder do orgulho ofendido desse povo que Hitler alimentava com
Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães seu dom e sua fúria. Ele semeava ódio e, mais que isso, a
(NSDAP), Anton Dexler, viu em Hitler a pessoa que necessidade de punir os culpados, fossem eles comunis-
buscava para promover o partido. Imediatamente, apro- tas, liberais, democratas, capitalistas ou, principalmente,
ximou-se do cabo e disse, à queima-roupa, que as portas judeus – os bodes-expiatórios da frustração germânica.
do partido estariam abertas a alguém com uma oratória A força da convicção que imprimia nos seus ouvintes o
tão surpreendente quanto a dele. Hitler não respondeu de catapultou. Em 1921, apenas três anos de sua filiação, Hi-
imediato, mas, alguns dias depois, foi à sede do partido e tler se tornou presidente do NSDAP. Na verdade, mais
se afiliou. Não só isso. Ele passou a se dedicar de corpo e que isso: ele se tornou o próprio partido.

Guia Grandes Ditadores da História 63


Violência

Heil Hitler
Como a intolerância, o fanatismo e a violência
se instituíram no Partido Nacional Socialista
dos Trabalhadores Alemães
Por Claudio
Blanc

64 Guia Grandes Ditadores da História


Hitler desfilando em carro aberto, em Dilvulgação/ Discovery Networks

Nuremberg (1938)

Guia Grandes Ditadores da História 65


A
pesar da inegável projeção que Hitler conquis-
tou à frente do Partido Nacional-Socialista
dos Trabalhadores Alemães (NSDAP), no
início ele não era, nem de longe, a principal fi-
gura do movimento. Na época, não tinha sequer confiança
em si mesmo para se imaginar como o poderoso ditador,
o Führer, o líder de toda a Alemanha que viria a ser. Sua Aquele cabo do exército
missão pessoal, nos primeiros anos da década de 1920, era
ser um agitador social incumbido de abrir caminho para derrotado, ex-artista
um governante realmente capaz. Isso fica claro em alguns frustrado, indigente, pintor
dos seus discursos, como o proferido em 4 de maio de
1923. Na ocasião, Adolf afirmou taxativamente que “nos- de parede, desertor das
sa tarefa é forjar a espada” que o futuro governante usaria.
“Nossa tarefa”, declarou ele, “é dar ao ditador, quando ele
forças austríacas,
aparecer, um povo preparado para ele”. mas herói de guerra e dono
Isso, porém, mudaria por conta do próprio povo ale-
mão, que passou a ver na figura de Hitler o líder que tira-
de uma eloqüência
ria o país daquela situação tão terrível quanto humilhante. impressionante, viu-se
E foram justamente a força e a determinação de Adolf que
conquistaram os alemães. No entanto, ele não fez isso so- transformado em algo até
zinho, mas deveu sua ascensão, em grande parte, a Ernst mesmo maior que o líder
Röhm, um ex-combatente da Primeira Guerra tão fanáti-
co e perturbado quanto o próprio líder da NSDAP. absoluto do Nacional-
Röhm, homossexual assumido, com o rosto marcado Socialismo. Hitler era tido
por toda a Alemanha como
por cicatrizes de tiros e perito em táticas militares, bus-
cava um movimento no qual pudesse se destacar e con-
quistar o poder que julgava merecer. Os discursos de Hi- o próprio Partido
tler fizeram eco em suas convicções, e Röhm ingressou no
NSDAP quando o partido ainda estava no início. Imedia-
tamente, surgiu uma tremenda sinergia entre Hitler e ele.
O partido precisava de alguém como Röhm – um oficial
do exército alemão, – com contatos no alto escalão. Foi
através de Röhm que o NSDAP conseguiu armas e equi-
pamentos para formar uma força paramilitar que prote-

Ernst Röhm
AFP

Duas pessoas unidas por ideais bastante semelhantes, de visão e objetivos tão próximos a
ponto de colaborarem intimamente, mas, ao mesmo tempo, absolutamente separadas pelas
ambições pessoais, a ponto de se tornarem uma ameaça uma para a outra: assim eram Adolf
Hitler e Ernst Röhm. Enquanto o primeiro, a ponta de lança do Partido Nacional-Socialista
dos Trabalhadores Alemães (NSDAP), precisava de Röhm por conta de seus contatos no alto
escalão do Reichswehr ­– o que restou do exército alemão depois do Tratado de Versalhes – e
para formar sua imprescindível milícia, este acreditava que podia usurpar os poderes de Hitler
quando chegasse a hora. Ledo engano. Nesse ninho de cobras, foi Adolf quem usou Röhm como
quis, até que este deixou de ser necessário. Além de formar as Tropas de Assalto (SA), as quais
calavam à força os detratores do líder nazista, enquanto este vomitava a mensagem nos comícios,
Röhm apresentou a estrela do NSDAP ao general Erich von Ludendorff (1865 - 1937), um dos
mais prestigiados oficiais do Reichswehr. No entanto, não demorou para que Hitler se livrasse de
Röhm. Só que os membros da SA eram tremendamente fiéis ao seu fundador, até mesmo mais
que a Hitler. Em 1923, numa manobra política digna de serpente, o futuro Führer depôs Röhm e
nomeou Hermann Göring, um herói da Primeira Guerra tremendamente leal a ele, comandante
de sua milícia. Não bastasse isso, para que Röhm não viesse a representar qualquer ameaça,
Hitler fez que ele fosse executado sem julgamento, em 1934. Um dos pretextos usados foi o
homossexualismo de Röhm, o qual ele não temia esconder.

66 Guia Grandes Ditadores da História


gesse os líderes do partido durante os comícios. des seus discursos, Adolf afirmou que “o futuro de um
Naquela época, diversas organizações paramilitares de movimento depende do fanatismo – e até mesmo da into-
caráter ultraconservador e de extrema direita grassavam lerância – com que seus partidários o exaltam, exibindo-o
na Alemanha, surgidas devido, principalmente, ao desem- como o único rumo certo e levando-o adiante em oposi-
prego, à inflação aviltante e, fundamentalmente, em oposi- ção a ideias contrárias”.
ção à esquerda contrária à manutenção de uma Alemanha Num primeiro momento, a SA era pequena. Em
unificada. Organizações como os Stahlem, isto é, Capace- 1922, havia cerca de 800 camisas-pardas contra meio mi-
tes de Aço, a Einwohnerwehr, ou Força para a Defesa do lhão de membros da Einwohnerwehr, e, enquanto a SA
Cidadão, e a feroz Freikorps, integrada por ex-combaten- se limitava apenas a Munique e à Baviera, o Sathlem ti-
tes frustrados e sedentos de vingança pela derrota que ha- nha representações em toda a Alemanha. No entanto,
viam sofrido na Primeira Guerra, formavam-se para de- graças ao carisma de Hitler – e às péssimas condições de
fender seus ideais e confrontar aqueles que julgavam ser vida no país –, a SA, com seus estandartes e suas suásti-
os traidores da pátria. cas, cresceu em proporção geométrica.
Naquele estado de coisas, as disputas políticas eram re- O magnetismo de Adolf e a força demonstrada pela
solvidas a bala e venciam os mais fortes, mais organizados SA, calando quem quer que se opusesse à NSDAP, aca-
e melhor armados. Logo após o término da Primeira Guer- baram conquistando uma verdadeira legião de seguido-
ra, a Alemanha se viu à beira de uma guerra civil entre os res. Cada vez mais, o futuro líder da Alemanha passava a
comunistas e a extrema direita. Durante um curto perío- assumir uma atitude messiânica que incendiava um país
do, em 1919, os comunistas exerceram forte influência em sem rumo e sem esperança. Gradativamente, surgia como
Munique e em toda a Baviera. Isso levou a combates en- o grande governante que tiraria a nação do buraco. E Hi-
tre os marxistas e os Freikorps apoiados por unidades da tler, que no início da sua atividade política se via apenas
Reichswehr. A “Revolta Esparquista”, como foi chamada a como um profeta, um João Batista a preparar o caminho e
tentativa da esquerda de tomar o poder e separar a Bavie- a anunciar a vinda do grande salvador que traria a reden-
ra do resto da Alemanha, começou quando as milícias de ção do povo alemão, começou a acreditar que, de fato, ele
esquerda ocuparam os escritórios do jornal social-demo- era esse líder.

Era necessário que também a NSDAP tivesse sua própria força


paramilitar se quisesse se consolidar. E essa tarefa foi dada
a Ernst Röhm, que, em agosto de 1921, criou a Sturmabteilung, ou
Tropa de Assalto (SA). Constituída por antigos membros
dos Freikorps e da Reichswehr, a SA logo se fez notar por
sua violência quase sempre injustificada

crata Vorwäts. Depois de vários dias de combates nas ruas A partir de então, a loucura dominou o Partido Nacio-
de Munique, os Freikorps puseram um ponto final à revol- nal-Socialista dos Trabalhadores Alemães. Os membros
ta com um banho de sangue: centenas de rebeldes foram da SA passaram a realizar um juramento de fidelidade e
mortos, e vários líderes comunistas, assassinados. de lealdade não à doutrina nacional-socialista, ou à Ale-
manha, mas, sim, a Hitler. Isso ficou patente com a sauda-
SURGIMENTO DA SA ção que passou a ser usada a partir de 1926: “Heil Hitler!”,
Era necessário, portanto, que também a NSDAP ti- isto é “Salve Hitler!”. Dessa forma, aquele cabo do exérci-
vesse sua própria força paramilitar se quisesse se conso- to derrotado, ex-artista frustrado, indigente, pintor de pa-
lidar. E essa tarefa foi dada a Ernst Röhm, que, em agos- rede, desertor das forças austríacas, mas herói de guerra e
to de 1921, criou a Sturmabteilung, ou Tropa de Assalto dono de uma eloquência impressionante, viu-se transfor-
(SA). Constituída por antigos membros dos Freikorps e mado em algo até mesmo maior que o líder absoluto do
do Reichswehr, a SA logo se fez notar por sua violência Nacional-socialismo. Hitler era tido por toda a Alemanha
quase sempre injustificada. Hitler apoiava publicamente como o próprio Partido Nacional-Socialista. Faltava ape-
a atitude feroz dos “camisas pardas”, como os membros da nas tomar o poder em suas próprias mãos, o que Adolf
SA foram apelidados por conta dos seus uniformes. Num procurou fazer através de um golpe de Estado.

Guia Grandes Ditadores da História 67


Golpe da Cervejaria

AFP

68 Guia Grandes Ditadores da História


O fracasso
A tentativa de golpe de Estado, episódio
Vitorioso
que ficou conhecido como o "Putsch da
Cervejaria", foi o começo da estupenda
popularidade de Hitler e de suas ideias
Por Claudio Blanc

E
ntre todas as coincidências e ironias do destino ra, a região onde Adolf e o NSDAP atuavam, fizeram que
que levaram Adolf Hitler e o Partido Nacional- o governo de Weimar concedesse plenos poderes ao chefe
-Socialista dos Trabalhadores Alemães (NS- do alto governo da Baviera, Gustav Ritter von Kahr. Em
DAP) ao poder, possivelmente, a maior delas foi setembro, Von Kahr decretou estado de emergência e con-
um fracasso que acabou sendo revertido em vitória. O Puts- seguiu impor uma certa estabilidade na região. No entanto,
ch , ou “golpe”, da Cervejaria, nome com o qual a tentativa de ele precisou usar a força. Uma vez mais, milícias comunis-
golpe de Estado passou para a história, colocou Adolf na tas viram uma oportunidade de tomar o poder e separar a
prisão, mas, ao mesmo tempo, catapultou sua mensagem Baviera do resto do país. Assim, atacaram o comissariado de
em âmbito nacional, incendiando a Alemanha. polícia, mas foram recebidos a bala e dominados.
O estopim do movimento foi aceso em janeiro de Confiante da sua energia, Von Kahr pensou em es-
1923, quando forças francesas e belgas ocuparam uma re- tender sua ação e influência para o resto da Alemanha. E
gião ocidental da Alemanha, o Ruhr, não só para garantir ninguém melhor que Hitler, que contava com o apoio do
que o país cumprisse os pagamentos estipulados no Tra- general Erich von Ludendorff (1865 - 1937) – uma das
tado de Versalhes, mas também por medo de uma inva- principais lideranças das encolhidas forças alemãs, o Rei-
são, como, de fato, veio a acontecer no início da Segun- chswehr – e da sua própria milícia, as Tropas de Assalto
da Guerra Mundial. Logo, o barril de pólvora explodiu. (SA), para ajudá-lo a coordenar um golpe de Estado. Von
Os alemães exigiram que seus governantes tomassem ati- Kahr ofereceu ao líder da Liga de Batalha uma generosa
tude. E, como se a situação já não fosse tremendamente fatia de poder depois que o novo regime fosse imposto.
inflamável, mais lenha foi jogada na fogueira quando os Mas, apesar desse acordo inicial, Von Kahr acabou dei-
soldados franceses abriram fogo sobre operários alemães xando Adolf e a sua Liga de lado. Havia muitas disputas
que protestavam contra a invasão. Dezenas de opositores e diferentes pontos de vista envolvidos. Von Kahr era um
foram mortos e feridos. Indignados com o acontecimen- membro da aristocracia e um político experiente e habili-
to, os partidos extremistas incitaram as massas, exigindo doso. Hitler e seus seguidores eram, por sua vez, indepen-
uma atuação imediata e efetiva da titubeante República dentes demais. Além disso, Von Kahr tinha conseguido
de Weimar. A mensagem implícita que passavam em seus apoio direto em várias regiões alemãs, e não precisava mais
comícios era a de que, se o governo não tomasse providên- do futuro Führer e da SA. O que ele não esperava era que
cias, eles mesmos o fariam. A resposta governamental foi a Liga de Batalha fosse agir por conta própria.
tímida – ao menos para os extremistas. E uma crise incen-
diária se alastrou por todo o país. GOLPE NA CERVEJARIA
Uma das consequências da invasão franco-belga foi a Na noite de 8 de novembro de 1923, numa grande cer-
união dos partidos de extrema direita sob a Kampfbund, vejaria da cidade, a Bürgerbräukeller, Von Kahr proferia
ou Liga de Batalha, no qual Hitler acabou sendo escolhido um inflamado discurso antimarxista a uma plateia reple-
líder. Mas não foi só isso que aconteceu. Motins nas ruas, ta de aristocratas, dirigentes políticos, oficiais do exérci-
greves, anarquia, particularmente em Munique e na Bavie- to e outros influentes representantes da sociedade bávara,

Guia Grandes Ditadores da História 69


quando algo inesperado aconteceu.

AFP/ Roger Viollet


De repente, o salão foi invadido por
cerca de mil homens da SA. Uma me-
tralhadora pesada foi introduzida no re-
cinto e postada num ponto estratégico,
ameaçando a atônita plateia. Em segui-
da, de forma um tanto teatral, Hitler en-
trou, de pistola na mão, vestido de negro
e escoltado por dois membros da SA –
com suásticas estampadas nos unifor-
mes. Em meio ao tumulto, o líder da liga
dos partidos de extrema direita dispa-
rou sua pistola para o ar, atraindo a aten-
ção para si. Hermann Göring, o líder da
SA, tomou a palavra e aconselhou os
presentes a continuar bebendo calma-
mente sua cerveja. Von Kahr e seus alia-
dos mais próximos foram convidados a
participar de uma reunião com Hitler e
Ludendorff, que chegou à cervejaria de-
pois que a situação havia sido controla-
da, numa sala reservada.
De acordo com o ferrenho oposi-
tor do nazismo Hans Bernd Gisevius
Cavalaria armada nas ruas de Munique, em novembro de (1904 – 1974), autor da importante
1923 obra Bis zum Bitteren Ende, (“Até o Amargo Fim”), em que
retrata sua luta anti-nazista, Adolf Hitler conduziu a ne-
gociação de arma em punho. Disse que Von Kahr deveria
fazer parte do levante e “ocupar lugar designado (no novo
governo) segundo os acordos precedentes”. No entanto, a
revolução de Hitler foi improvisada. O próprio Luden-
Sem procurar se dorff não estava de acordo com a forma de agir do futu-
ro Führer – absolutamente emocional e praticamente sem
defender, nenhum planejamento.
Hitler assumiu toda a Apesar de a SA ter tomado pontos nevrálgicos de Muni-
que e alguns quartéis, sem o apoio das tropas da cidade, con-
responsabilidade pela malograda troladas por Von Kahr, a Liga de Batalha não conseguiu do-
conspiração, mas – e minar a capital da Baviera. Depois de tranquilizar a influente
plateia da cervejaria, Adolf deixou o lugar sob o comando de
aí residiu a perspicácia da Ludendorff e foi ter com suas tropas. Quando voltou, po-
sua defesa – afirmou rém, Von Kahr e seus aliados tinham debandado. Luden-
dorff os havia libertado mediante a promessa de que não in-
num de seus discursos terfeririam. Mas, longe da ameaça de Hitler, Von Kahr se
incendiários apressou em telegrafar informando o governo central sobre
o golpe – e Weimar abafou o levante imediatamente.
que tentara salvar Na manhã de 9 de novembro, numa tentativa desespe-
a Alemanha e, portanto,
rada de reverter a situação, Hitler, Ludendorff e cerca de
dois mil homens da SA saíram em marcha pelas ruas de
tinha agido como patriota, Munique. A ideia – semelhante ao que ocorrera aos “De-
e não como traidor
zoito do Forte”, os tenentes que, em 1918, tomaram o For-
te de Copacabana, no Rio de Janeiro – era de que os cida-
dãos iriam aderir à caminhada, numa demonstração que

70 Guia Grandes Ditadores da História


Uma das consequências da invasão franco-belga foi a
união dos partidos de extrema direita sob a Kampfbund, ou
Liga de Batalha, da qual Hitler acabou sendo escolhido líder. Mas
não foi só isso que aconteceu. Motins nas ruas, greves,
anarquia, particularmente em Munique e na Baviera, a região
onde Adolf e o NSDAP atuavam, fizeram que o governo de Weimar
concedesse plenos poderes ao chefe do alto governo
da Baviera, Gustav Ritter von Kahr

faria as forças do Reichswehr passar para o lado dos rebel- te julgamento e nos declarar livres de culpa e isentos do
des. Mera ilusão. Embora milhares de pessoas tivessem, poder de expiação”. O resultado foi que os juízes acaba-
de fato, acompanhado os revoltosos cantando hinos e pa- ram se curvando aos argumentos de Hitler. Sabiam que o
lavras de ordem durante o percurso, quando se aproxima- governo imposto pelo Tratado de Versalhes era mais uma
ram de uma barricada da polícia e do Reichswehr, acon- humilhação causada pelos inimigos e concordavam que a
teceu o inevitável. Sem aviso prévio, as forças governistas Liga de Batalha lutava sinceramente para conduzir a Ale-
abriram fogo. Os homens de Hitler responderam da mes- manha a uma solução melhor. Além disso, Adolf contava
ma forma, iniciando um tiroteio. O combate durou me- com a simpatia – quando não com a fidelidade – de quase
nos de um minuto, mas, quando acabou, 18 mortos – 14 todo o país. Assim, todos os envolvidos receberam penas
membros da SA e quatro policiais – jaziam no chão. O extremamente leves. Alguns foram até mesmo absolvidos.
próprio líder da SA, Hermann Göring, saíra ferido, e Hi- Em termos políticos, o Putsch da Cervejaria acarretou
tler, lançado no chão por um dos seus milicianos quando a fusão do NSDAP com as demais organizações da Liga
este recebeu o impacto de um tiro, acabou a marcha com o de Batalha num único partido, chamado de “Grande Co-
ombro deslocado. Ludendorff, por sua vez, caminhou até munidade Nacional Alemã”. A SA também se tornou in-
as posições governistas e se rendeu. dependente do partido e seu fundiu às outras milícias de
direita. Quanto a Hitler, o cabeça do golpe mal-sucedido,
DE TRAIDOR A PATRIOTA foi condenado a cinco anos de prisão, mas acabou cum-
Policiais mortos, ocupação de quartéis, tentativa de gol- prindo apenas 13 meses, numa confortável cela que mais
pe de Estado: o estrago provocado por Adolf Hitler e seus parecia um gabinete de trabalho. Lá, continuou recebendo
seguidores implicaria, quase certamente, a pena de morte. visitas de membros da elite de seu partido, além de con-
No entanto, quando o julgamento do líder dos partidos de tar com a simpatia e o apoio dos guardas, dos carcereiros e
direita começou, o genial orador acabou revertendo comple- dos outros prisioneiros.
tamente a situação e passou de acusado a acusador. Numa Ironicamente, o Putsch da Cervejaria acabou sedimen-
tacada de mestre, o futuro líder da Alemanha acabou usan- tando o sucesso de Adolf Hitler e do Nacional-Socialis-
do o julgamento para promover a si mesmo e ao seu partido. mo. O futuro Führer soube aproveitar o tempo na prisão
Sem procurar se defender, assumiu toda a responsabilidade para sistematizar o ideal nazista, escrevendo o livro que
pela malograda conspiração, mas – e aí residiu a perspicácia viria a ser a bíblia da sua ideologia, a autobiografia Mein
da sua defesa – afirmou num dos seus discursos incendiá- Kampf, ou “Minha Luta”. E como uma fênix que renasce
rios que tentava salvar a Alemanha e, portanto, tinha agido das próprias cinzas, Hitler saiu da prisão renovado e mais
como patriota e não como traidor. forte do que nunca. Provara sua coragem, sua energia e sua
Em seu livro A Estratégia de Hitler (Madras Editora, determinação ao povo alemão, que agora o apoiava qua-
São Paulo), Pablo Jiménez Cores cita um trecho da fala se que irrestritamente. Só faltava tomar o poder e guiar a
que Adolf proferiu em sua defesa: “mesmo que os juízes Alemanha rumo à “salvação” – ou aquilo que Adolf e seus
deste Estado possam empenhar-se na condenação de nos- aliados imaginavam ser a salvação do país. Como todos sa-
sas ações, a história, deusa de uma verdade maior e de uma bem, as circustâncias conduziram a Alemanha a uma nova
lei melhor, há de sorrir quando desfizer o que foi feito nes- guerra e, ainda pior, à sua ruína.

Guia Grandes Ditadores da História 71


livro

AFP

O ódio aos judeus era anterior à guerra. Também não


era exclusivo de Hitler nem dos alemães.
Na Áustria, políticos como Ritter von Schönerer – que influenciou
sobremaneira o futuro Führer durante sua juventude em Viena – já
nutriam um anti-semitismo exacerbado
72 Guia Grandes Ditadores da História
A
pesar de ser um brilhante orador e de ter cons- Áustria, políticos como Ritter von Schönerer – que in-
ciência de que “o triunfo de todos os grandes fluenciou sobremaneira o futuro Führer durante sua ju-
movimentos ocorridos no mundo foi obra de ventude em Viena – já nutriam um anti-semitismo exa-
grandes oradores, e não de grandes escritores”, cerbado. E pelo mesmo motivo. Foi ainda numa idade pre-
Adolf Hitler sabia que “a unidade e a uniformidade na de- coce que Hitler percebeu “a diferença entre os judeus e as
fesa de qualquer doutrina exigem que seus inextinguíveis demais pessoas” e o fato de eles serem “uma população que
princípios sejam formulados por escrito”. Assim, enquanto nenhuma semelhança tinha com os germânicos”. E pas-
cumpriu pena por ter articulado o Putsch (Golpe) da Cer- sou a não tolerar qualquer coisa produzida pelos israelitas,
vejaria, o futuro Führer se dedicou a escrever a obra que fosse nas artes, no cinema ou no jornalismo. O que quer
veio a ser a bíblia do nazismo, o Mein Kampf, isto é, “Mi- que viesse dos judeus estava “infectado”, segundo Adolf.
nha Luta”. O livro é mais que uma história autobiográfica Assim, não havia motivo para permitir que a raça judaica
da sua ascensão. Nele, estão os princípios do nacional-so- continuasse a se infiltrar na pátria germânica.
cialismo conforme entendidos pelo líder nazista. É uma
tese repleta de ressentimento e que veio a influenciar todo ANTIMARXISMO
o povo alemão de uma forma no mínimo assustadora. Pu- Os outros culpados pela derrota da Alemanha e pela

Minha Luta
blicado em 1925, o livro já tinha vendido mais de 1,5 mi- instabilidade que ela veio a enfrentar depois da guerra

Em Mein Kampf, o líder nazista expõe os


principais pontos de sua doutrina num
discurso tão arbitrário quanto contundente
Por Claudio Blanc

lhão de exemplares e começava a ser editado em braile em eram, no entender do líder nazista, os comunistas. Como
1933. No final da Segunda Guerra, já havia sido traduzi- no caso dos judeus, o ódio doentio contra os soviéticos fica
do para 16 idiomas e vendido mais de 10 milhões de có- bem evidenciado nas cifras aproximadas do Holocausto:
pias. E, apesar das propostas contidas no livro – inconce- entre 5,6 e 6,1 milhões de judeus e 2,5 e 4 milhões de pri-
bíveis aos olhos modernos –, a Alemanha outorgou poder sioneiros de guerra soviéticos.
ao seu autor. A seguir, uma visão dos principais pontos da Adolf Hitler havia estudado a obra de Karl Marx em
doutrina nazista de acordo com o Mein Kampf. Viena, mas seu ressentimento com relação aos comunis-
tas vinha do que ele classificava como “antipatriotismo”.
ANTI-SEMITISMO Durante a guerra, trabalhadores marxistas promoveram
Um dos pilares sobre o qual se sustentou o ideal nazis- greves que fizeram os homens nas linhas de frente pas-
ta foi o anti-semitismo. Entre os principais motivos pelos sar necessidades. Além disso, depois do fim do conflito,
quais Hitler culpava os judeus dos problemas da Alema- os seguidores da doutrina de Marx tentaram tomar o po-
nha estava o fato de estes serem partidários da república der e fragmentar a Alemanha. Eram uma ameaça à uni-
e contrários à monarquia. Muitos israelitas insistiram no dade do país.
ideal republicano quando a Alemanha ainda lutava. Eles Para fechar o circuito, o futuro Führer se opunha ao
eram, aos olhos do idealizador do nacional-socialismo, marxismo porque entendia que os judeus estavam por trás
os traidores que, com sua interferência política, levaram a desse conceito. Segundo o Mein Kampf, “a doutrina judai-
Alemanha à derrota. ca do marxismo nega o princípio aristocrático da natureza
O ódio aos judeus era, porém, anterior à guerra. Tam- e, em lugar do eterno privilégio da força e da energia, co-
bém não era exclusivo de Hitler nem dos alemães. Na loca seu peso morto em cima dos números”. Como se vê,

Guia Grandes Ditadores da História 73


cessário que existissem indivíduos de civilização inferior,
pois ninguém, sem eles, poderia substituir o instrumento
técnico sem o qual o progresso é inconcebível”, pregava o
líder nazista.

SUPER-HOMENS
Outro princípio defendido por Adolf Hitler no Mein
Kampf era a “purificação” da nação germânica. Por con-
ta disso, o Estado “declarará impróprio para a reprodução
qualquer um que esteja evidentemente enfermo ou padeça
de incapacidade hereditária”. Em suma: a autoridade nazis-
ta determinaria os aptos ou não para ter filhos, podendo
até mesmo esterilizar os indivíduos que não correspondes-
sem ao padrão determinado.

STATUS DOS GERMÂNICOS


Hitler propunha dividir a população da Alemanha (e
posteriormente da Áustria) em três classes distintas: cida-
dãos do Estado, súditos e estrangeiros. Os últimos não te-
riam qualquer direito a participar da vida cívica. Mas não
bastava ser nascido na Alemanha (nem na Áustria, depois
da anexação desse país, em 1938). Isso determinava sim-
plesmente o status de súdito, o que implicava que a pessoa
AFP

Publicado em 1925, o livro já tinha vendido mais de


1,5 milhão de exemplares em 1933, e começava a ser editado em
braile. No final da Segunda Guerra, já havia sido traduzido para 16
idiomas e vendido mais de 10 milhões de cópias
para Hitler, os judeus estavam por trás de tudo aquilo que nessa condição não podia exercer a função de funcionário
entendia como mau e ameaçador. público nem tomar parte na vida política. Para ser cida-
dão, era preciso estar completamente disponível ao Esta-
DIVISÃO DE PODER do. Tratava-se de uma conquista. Depois de ter estuda-
Adolf Hitler dizia que a estrutura administrativa de- do nas escolas governamentais, deveria-se prestar serviço
veria pressupor que o “cérebro” estivesse “acima das mul- militar. E só então, “o jovem saudável e possuidor de uma
tidões”. Os dirigentes políticos teriam conselheiros, mas a folha de serviços irrepreensível será investido com os di-
palavra final “será obra de uma só pessoa”, isto é, do próprio reitos da cidadania, e o documento que confirma isso de-
Hitler. Nada mais totalitarista, portanto, que o nazismo. verá ser considerado o mais importante de sua existência
nesta terra”.
O PRINCÍPIO DA LUTA
O futuro governante da Alemanha propôs que, para se EDUCAÇÃO
viver em paz e, ao mesmo tempo, assegurar a sobrevivência O futuro ditador propunha uma nação de homens
dos germânicos, era preciso lutar para garantir sua segu- “medianamente educados, mas saudáveis de corpo”. Por
rança. “Primeiro, devemos lutar”, escreveu ele, “depois, se- isso, as “escolas do Estado Nacional deveriam dedi-
remos o pacifismo”. Na verdade, o “pacifismo” a que se refe- car mais tempo ao exercício corporal”, especialmente ao
re é a dominação e a escravização de outros povos – como boxe. Para Hitler, “não existe esporte algum que estimu-
aconteceu de fato com os judeus. “Para que uma cultura le tanto o espírito de ataque quanto este”. Ele queria um
superior se desenvolvesse (isto é, os germânicos), foi ne- país de soldados.

74 Guia Grandes Ditadores da História


Bases ideológicas

Co-autores
Quem foram
os teóricos que
lançaram as bases
da ideologia nazista
Por Claudio Blanc
AFP

Heinrich
Himmler, Rudolf
Hess e oficiais
nazistas

E
mbora o nazismo tenha sido tou no nazismo. São teses, crenças e ten-
sistematizado, defendido e dências criadas por diferentes teóricos e
propagado por Adolf Hitler, que acabaram se tornando muito popu-
ele não estava sozinho na con- lares na Alemanha depois da Primeira
cepção das ideias do movimento. Na Guerra. Os pensadores que criaram es-
verdade, o futuro Führer amalgamou sas teorias são, portanto, co-autores do
uma série de conceitos, cuja fusão resul- ideal que veio a dominar a nação alemã (e

Guia Grandes Ditadores da História 75


a Áustria, depois da sua anexação) sob Adolf Hitler. Eles leitor da Ostara, quando vivia em Viena. A revista era car-
eram anteriores ao líder nazista e à sua teoria de mundo. regada de anti-semitismo e de ideias sobre a superioridade
Foram eles, portanto, que inspiraram o ditador, fornecen- germânica. Liebenfels publicava no periódico ideias como
do a base teórica necessária à configuração do ideal na- a de que Cristo era um iniciado ariano havia se posiciona-
zista. Visionários, ressentidos, místicos, frustrados, esses do contra as forças obscuras representadas pelos sacerdo-
pensadores conseguiram encontrar voz para suas crenças tes judeus. Para Liebenfels, os judeus eram uma raça de-
– por mais absurdas que pudessem ser – num líder faná- moníaca que pretendia destruir a pureza racial do ariano
tico e obcecado que conduziria inexoravelmente seu país através dos mais diversos meios – até mesmo a caridade.
adotivo à ruína. O autor bradava que esse movimento deveria ser impedi-
do a qualquer custo. A forma de cosneguir isso, segundo a
GUIDO VON LIST Ostara, era esterilizando os judeus e fazendo-os trabalhar
A figura do austríaco Guido von List (1848 – 1919) até a morte – literalmente.
corresponde incrivelmente ao seu caráter: excêntrico como Adolf Hitler era grande fã das ideias de Liebenfels.
sua longa barba e misterioso como os boatos que o envol- Consta que, em 1909, o futuro Führer visitou o autor para
viam. Fanático pela ascensão germânica, estava certo da comprar alguns números atrasados da Ostara. Não é à toa
superioridade ariana sobre os outros povos. Aos 14 anos, que empregou criteriosamente as recomendações do ex-
jurou que iria construir um templo a Odin (ou Wotan), -monge nos campos de concentração nazistas.
o deus nórdico da guerra, da sabedoria e, paradoxalmen-
te, da poesia, em Viena. Acabou cumprindo a promessa, KARL HAUSHOFER
erguendo, realmente, uma estátua de Odin naquela cida- Depois da Primeira Guerra Mundial, em que serviu
de. List acreditava – pior que isso, divulgava – que havia como um dos mais jovens generais do exército alemão,
uma primeira raça, os “armanos”, da qual os povos germâni- Karl Haushofer (1869 – 1945) tornou-se diretor do Ins-
cos descendiam, extremamente inteligente e desenvolvida, tituto de Geopolítica, onde desenvolveu uma tese que viria
cujas capacidades intelectuais eram mais aguçadas que as a ser nevrálgica na política expansionista nazista. Hausho-
dos outros povos. fer afirmava que o espaço geográfico tem influência decisi-
Ele pode ser considerado um dos primeiros pensado- va sobre os Estados e suas políticas. Em outras palavras, a
res da corrente místico-racista. Seu pensamento se alas- geografia determina a sociedade. Óbvio como parece, esse
trou através de Phillip Stauf, que pôs em prática as teorias conceito foi usado, porém, para defender a ideia de que o
de List na sociedade secreta que fundou, a Ordem Ger- Estado e o povo alemão haviam atingido um grau evolu-
mânica. Foi Stauf quem radicalizou o conceito de raça su- tivo superior às outras nações e etnias e, por isso, precisa-
perior, levando-o ao extremo. Para entrar na ordem, por vam ampliar suas fronteiras para poder se desenvolver de
exemplo, o candidato tinha de demonstrar sua pureza ra- acordo com seu potencial.
cial, isto é, deveria possuir sangue germânico até a tercei- Haushofer foi conselheiro dos nazistas até 1938 e in-
ra geração, sem nenhuma mistura racial. Além disso, o as- fluenciou pessoalmente Hitler a adotar uma política de
pirante tinha de deixar que medissem seu ângulo facial, expansão territorial como algo intrinsecamente ligado à
para assegurar que sua estrutura craniana era ariana. De- sobrevivência da Alemanha. Mas não era só como militar
pois de aprovado, passava por uma verdadeira lavagem e geógrafo que Haushofer se destacava. Ele afirmava ter
cerebral. Hitler buscou fazer a mesma coisa através do estudado zen budismo e sustentava ter contato com socie-
nazismo. As Escolas Adolf Hitler, a rede de ensino instituí- dades secretas tibetanas que possuíam o segredo do “su-
da em toda Alemanha após a ascensão do Führer, onde as per-homem” – uma ideia que acabou se tornando central
crianças, o futuro do Terceiro Reich, eram educadas, fun- no nazismo. Haushofer era, também, membro de uma so-
cionavam como verdadeiras máquinas de “fazer a cabeça”. ciedade secreta japonesa, a Ordem do Dragão Verde.
Ele foi apresentado a Hitler por Rudolf Hess – um
JÖRG LANZ VON LIEBENFELS dos mais ortodoxos seguidores do misticismo nazista –,
Provavelmente, Jörg Lanz von Liebenfels foi uma das e logo, se tornou mentor do futuro chanceler, chegando a
personalidades que mais influenciaram Hitler, seu nome ensinar ocultismo a Hitler e a secretariá-lo quando estava
verdadeiro era Adolf Josef Lanz e pertencera a uma or- escrevendo Mein Kampf. De acordo com Pablo Jiménez
dem monástica cristã, mas havia sido expulso por conta Cores, autor de A Estratégia de Hitler (Madras Editora,
dos seus “pensamentos impuros”. Liebenfels fundou, en- tradução de Silvia Massimini), numa das vezes em que
tão, sua própria sociedade iniciática, a Ordem do Novo Haushofer visitou Hitler na prisão, ele mostrou ao líder
Templo, e elaborou a revista Ostara, através da qual divul- um documento peculiar, o Protocolo dos Sábios do Sião.
gava sua doutrina. O jovem Hitler era um entusiasmado O texto revelava discussões mantidas durante os encon-

76 Guia Grandes Ditadores da História


tros dos 62 homens mais poderosos do Congresso Sionis-
ta Mundial com o objetivo de impor o domínio dos judeus
sobre os outros povos. Não bastasse isso tudo, Haushofer
exerceu uma influência fundamental sobre o Führer, con-
vencendo-o de que a União Soviética, e não a França, era a
grande inimiga da Alemanha. Como se sabe, a decisão de
Hitler de invadir a união Soviética foi desastrosa e lhe cus-
tou a possibilidade de vitória. No final da guerra, como era
de se esperar de um adepto da cultura samurai, Haushofer
cometeu suicídio ritual.
Visionários, ressentidos, RUDOLF HESS
místicos, frustrados, Chamado por alguns historiadores de neurótico, Ru-
esses pensadores dolf Hess foi uma das pessoas de maior confiança de Hi-
tler, exercendo sobre ele grande ascendência no começo de
conseguiram encontrar carreira. Hess estava sempre ao lado de Hitler. Foi seu se-
voz para suas crenças cretário particular, quando editou o livro Mein Kampf. De-
pois, com a chegada dos nazistas ao poder, em 1933, tor-
– por mais absurdas nou-se ajudante pessoal do Führer e, finalmente, em 1939,
que pudessem ser – num
o segundo na linha de sucessão, depois de Göring. Foi
Hess quem apresentou Karl Haushofer a Hitler, estabele-
líder fanático e cendo uma conexão que abalaria a história. Haushofer ha-
via sido professor do secretário de Hitler na Universidade
obcecado que conduziria de Munique, onde lecionava geopolítica.
inexoravelmente seu Hess era um dos mais entusiasmados seguidores da
corrente esotérica que ficou conhecida como “Misticismo
país adotivo à ruína Nazista”. Não há dúvida de que o interesse dele pelo ocul-
tismo contagiou Hitler, conduzindo-o através de um mun-
do povoado por místicos, médiuns e magos. Mas, com a as-
AFP

cendência de outras figuras sobre Hitler, Hess foi ficando


marginalizado, a ponto de realizar um dos feitos mais pa-
téticos da Segunda Guerra. Na verdade, de acordo com o
que William L. Shirer escreveu em The Rise and Fall of the
Third Reich (Ascensão e Queda do Terceiro Reich), o ter-
ceiro homem na linha de sucessão do Reich buscava obter
uma estrondosa vitória diplomática. Acabou preso.
Numa louca tentativa de selar a paz com a Grã-Breta-
nha, em maio de 1941, Hess pilotou um Messerschmitt
Bf 110 sobre a Escócia, onde saltou de pára-quedas. Ele
pretendia se encontrar com o duque de Hamilton, a quem
iria propor um armistício para que os dois países pudes-
sem, juntos, combater os soviéticos. Mas Hess não tinha
qualquer credencial para negociar. Quando soube da his-
tória, Hitler declarou que seu ajudante estava “insano”.
Seja como for, a Grã-Bretanha, certamente, não aceitaria
as condições simplórias propostas pelo ajudante de Hitler,
isto é, as de que o Reich não atacaria nenhum território do
império britânico e este não se oporia à Alemanha. A res-
posta foi a detenção de Hess como prisioneiro de guerra.
Depois do final do conflito, ele foi condenado à prisão per-
pétua pelo tribunal de Nuremberg. Morreu na prisão de
Spandau, em 1987, aos 93 anos.
Rudolf Hess
Guia Grandes Ditadores da História 77
DIETRICH ECKART

AFP
As últimas palavras de Dietrich Eckart, ao morrer em
1923, foram um conselho para os que o cercavam. “Sigam
Hitler”, disse ele. “Vocês o verão dançar, mas eu fui o com-
positor da música; dei a ele os meios para se comunicar
com eles ... Minha influência na história será maior do que
a de qualquer outro alemão”. De fato, Eckart, pleno conhe-
cedor da estratégia da oratória, foi o responsável por trei-
nar Hitler e melhorar sua natural capacidade de comuni-
cação. Mas a influência de Eckart, um jornalista, escritor
e tradutor alcoólatra e viciado em morfina, sobre o ditador
também envolveu o ocultismo. Ele havia dedicado grande
parte do seu tempo aos estudos das técnicas usadas pelos
médiuns, e procurou ensiná-las a Hitler para aumentar o
poder de persuasão do líder do nazismo.

RUDOLF STEINER
Parece incrível incluir o grande pensador austríaco Ru-
dolf Steiner (1861 –1925) entre as mentes que influen-
ciaram Hitler, mas, de fato, o futuro líder da Alemanha
chegou a nutrir uma grande admiração pelo fundador da
Antroposofia. Steiner, porém, jamais compactuaria com o
ideal nazista e suas ações.
Os conceitos de Steiner, filósofo e pedagogo, reuni-
dos na doutrina que chamou de “Antroposofia”, buscavam
atingir o verdadeiro conhecimento da natureza humana. Rudolf Steiner
Escritor e palestrante eloquente, Steiner fundou a Socie-
dade Antroposófica, o teatro Goetheanum, em homena-
gem ao grande escritor alemão Goethe (1749 – 1832), a
escola Waldorf, que até hoje continua a ser pioneira em O jovem Hitler era um
termos de pedagogia, e um instituto clínico e terapêutico. entusiasmado leitor
Hitler ficou muito impressionado com a visão de Stei-
ner. Mas, na verdade, o nazista distorceu a proposta do fi- da Ostara, quando vivia
lósofo, numa interpretação absurda. A obra de Steiner foi em Viena. A revista era
tão descontextualizada pelos nazistas que alguns chega-
ram a dizer que ele era anti-semita. Na verdade, o filósofo carregada de anti-
participava de uma liga contra o anti-semitismo. Provavel- semitismo e de ideias
mente a confusão venha de um livro publicado em 1920
pelo antroposofista Karl Heise, chamado Entente-Frei- sobre a superioridade
maurerei und Weltkrieg (Maçonaria-entente e a Primeira germânica. Liebenfels
Guerra). O livro era resultado de palestras de Steiner so-
bre história contemporânea. O texto caracterizava a Pri- publicava no
meira Guerra como “tempestade punitiva” e declarava que
o presidente americano, Wilson, e Lênin eram imbuídos
periódico idéias como a
de poderes místicos que se opunham à missão espiritu- de que Cristo era um
al da Alemanha. O livro fala também de uma conspiração
maçônica britânica contra a Alemanha e cita Guido von
iniciado ariano que
List. Foi o que bastou para alguns nazistas adotarem seu havia se posionado
argumento. No entanto, logo as diferenças entre as ideo-
logias de Steiner e de Hitler ficaram patentes. Não muito contra as forças obscuras
depois de chegar ao poder, os nazistas fecharam as esco- representadas pelos sacerdotes
las Waldorf e perseguiram os seguidores da antroposofia.
judeus
78 Guia Grandes Ditadores da História
Simbologia

Símbolos
nazistas
Envoltos em misticismo e confusas crenças,
eles ajudavam a entorpecer as massas
Por Claudio Blanc
Divulgação/ Discovery Networks

A
mente de Hitler conhecia e venerava o poder Hitler considerava o povo mera “massa de servidores”, sem
dos símbolos, tanto que Adolf lançava mão capacidade para decidir e, muito menos, governar.
desse meio para comover e incitar as massas. A maior parte do simbolismo nazista deriva da cren-
Através da linguagem simbólica, o ditador for- ça do Führer em sua missão e na da Alemanha, o que
taleceu a identidade germânica, criando um incrível elo. acabou gerando um culto, o do “misticismo nazista”. Tra-
Conforme o escritor Pablo Gimenez Cores, “os símbolos ta-se de uma subcorrente que, além do elemento político,
nazistas, antes de tudo, refletiam a mentalidade de impul- traz instâncias de ocultismo, esoterismo, cripto-história
sores do renascimento da arianidade”. Runas, cultura bra- e paranormalidade. Era uma seita difundida no alto es-
mânica e maniqueísta imprimiam no nazismo um cará- calão do partido e seguida por nomes importantes como
ter místico e mitológico. Era uma expressão exacerbada da Rudolf Hess e Heinrich Himmler. Tratava-se da justi-
busca pela glória germânica. Esses símbolos, além de inspi- ficativa mística necessária para selar o destino do povo
rar os princípios do nazismo, visavam a despertar o patrio- ariano e do Terceiro Reich – alçados à glória por, obvia-
tismo e incitar todos a fazer tudo pelo país. Tudo mesmo. mente, Adolf Hitler.

Guia Grandes Ditadores da História 79


Por essas e outras, a figura do grande ditador era re-

Ilustração: Fábio Mattos


vestida de uma importância religiosa. Ele era visto como
um semideus pelos adeptos do misticismo nazista. A sei-
ta seguia, a ariosofia, isto é, a sabedoria oculta dos aria-
nos. A temível SS, composta pelos oficiais da elite nazista,
funcionava como uma sociedade secreta, com iniciações e
transmissão de ensinamentos e símbolos. Era estruturada
nos moldes da ariosofia, tanto que seu próprio estandar-
te reflete isso. Deriva de um dos principais conhecimentos
dessa tradição: as runas.

RUNAS
Além de ter sido guerreiros ferozes e de ter ficado fa-
mosos pelos atos de barbárie, os povos nórdicos, dos quais
os alemães descendem, eram tremendamente místicos,
sempre respeitando os desígnios dos deuses. Qualquer
coincidência com o regime perpetrado por Adolf Hitler

Os símbolos, além
de inspirar os princípios
do nazismo, visavam a
despertar o patriotismo e
incitar todos a fazer tudo
pelo país. Tudo mesmo. Hitler
considerava o povo
mera “massa de servidores”,
sem capacidade para
decidir e, muito menos,
governar
não é acaso. O ditador refletia e adotava os costumes dos
antigos germânicos, e o uso das runas – às quais somen-
te os iniciados tinham acesso – foi uma marca desse revival
do arianismo. E, para conhecer os desejos e as tramas dos
imortais, nada melhor do que usar um método criado pe-
los seus ancestrais, um oráculo que os sacerdotes nórdicos
lançavam mão: as runas. Trata-se de um tipo de alfabeto,
cujas letras também são símbolos mágicos, cada uma tem
um nome significativo e um som respectivo. As runas foram
empregadas na poesia, em inscrições e como oráculo. Cada
runa é vinculada a um deus celeste, como o Sol e a Lua.
Como os nórdicos acreditavam que elas tinham pode-
res sobrenaturais, as runas eram gravadas nas armas dos
guerreiros, em pedras comemorativas e em monumen-
tos funerários. Dessa forma, elas ofereciam proteção. Mas

80 Guia Grandes Ditadores da História


as runas também
eram usadas para do
A figura ditador grande
los índios norte-americanos.
Costumava-se dizer que as
evocar a vingança revestida
era de importância pegadas do Buda eram suás-
e predizer o futuro.
Os símbolos mági- religiosa Führer . O era visto
ticas. Cobertores dos índios
navajos eram tecidos com
cos eram inscritos pelos
como um semideus adeptos suásticas e, pasme, sinagogas
em pedra, madeira
ou couro e usados misticismo
do seita nazista. A
no Norte da África e na Pa-
lestina foram decoradas com
pelos xamãs nór- seguia a
dicos em feitiços e
ariosofia , isto é, a sabedoria mosaicos de suásticas.
As mais antigas suás-
para acessar o mun- arianos temível
oculta dos .A SS, ticas conhecidas datam de
do sobrenatural. As composta pelos oficiais da
runas evocavam,
elite nazista, 2.500 ou 3.000 a.C. na Ín-
dia e na Ásia Central. No
também, os ciclos funcionava como uma sociedade norte da Europa, ela apa-
do homem. Atra-
vés delas, o rune-
secreta iniciações
, com receu no primeiro milê-
nio a.C. O nome suásti-
mal, aquele que lia e transmissão de ensinamentos e ca vem da palavra sânscri-
as runas, tinha um
sistema de autoco-
símbolos ta svastika, que significa
“bem-estar” e “boa fortuna”.
nhecimento. Esse No entanto, vários autores
oráculo é muito an- atribuem a ela diferentes
tigo. O historiador grego Heródoto, ao viajar pelo Mar significados: da imagem do deus supremo, ao símbolo
Negro, encontrou xamãs que “se enfiavam debaixo de co- solar; da representação do raio e da água, ao símbolo do
bertores, fumavam até ficar em uma espécie de transe e, en- fogo; e da união do princípio masculino e feminino. De
tão, lançavam gravetos no ar, ‘lendo’ seu significado quando fato, o significado da suástica parece variar com o tempo
caíam no chão”. Para o pesquisador Ralph Blum, autor e o lugar, as associações com outros elementos e os dife-
de O Livro de Runas, “esses gravetos eram, provavelmente, rentes objetos em que surge representada. Em uma anti-
uma forma primitiva de runas”. Mas a arte do runemal – ga lápide cristã, por exemplo, o símbolo aparece em des-
a interpretação das runas – se perdeu no tempo. Embora taque e com maiores dimensões que o crísmon – o mo-
esse conhecimento secreto fosse passado através de inicia- nograma de Cristo –, sugerindo uma importância maior.
ção pelos mestres rúnicos do passado, seus segredos não Talvez isso tenha a ver com o fato de a suástica já ter sido
foram registrados e, se foram, não chegaram até nós. usada como símbolo do coração do próprio Jesus, o que,
Os últimos runemais foram mestres islandeses que vi- neste caso, estaria representando.
veram no final da Idade Média. A sabedoria morreu com Mas como foi que um símbolo de tão bons desígnios
eles, e nada permaneceu, além das sagas, a requintada li- tornou-se sinônimo da cega barbárie de um regime intran-
teratura desenvolvida pelos bardos, ou poetas nórdicos. sigente? Segundo Steven Heller, diretor de arte do The
Hoje, embora muitos consultores espirituais usem runas, New York Times Book Review e autor de The Swastika:
seu método de leitura não tem nada a ver com aquele dos Symbol Beyond Redemption (A Suástica: Símbolo além da
runemais. Provavelmente, o grafismo rúnico mais conhe- Redenção) tudo começou em 1914, quando o Wandervo-
cido é justamente o símbolo da SS, a elite nazista. O sím- gel, um movimento juvenil alemão, a transformou em seu
bolo é baseado na runa sig, associada ao sol, à vitória e à emblema nacionalista. Em 1920, o Partido Nazista a ado-
madeira de freixo, da qual se cortavam os arcos dos guer- tou. Em Mein Kampf (Minha Luta), Hitler descreveu seu
reiros. Essa runa é uma marca notória da preocupação na- “esforço para encontrar o símbolo perfeito para o partido”,
zista em usar letras rúnicas como símbolos arianos. No foi quando teve a ideia de usar as suásticas. Mas foi o den-
entanto, o mais famoso ícone nazista, a suástica, não tem tista Friedrich Krohn quem desenhou a bandeira com a
uma origem exclusivamente ariana, mas universal. suástica no centro. “A maior contribuição de Hitler”, pensa
Heller, “foi inverter a direção da suástica” para que ela pa-
A SUÁSTICA recesse girar no sentido horário. Isso levou muitos a afir-
A suástica evoca inevitavelmente imagens de guerra, mar que Adolf era um “feiticeiro negro”, uma vez que es-
caos, destruição, Holocausto, intolerância. No entanto, ela tes costumam usar símbolos religiosos invertidos em suas
foi, durante milhares de anos, até Hitler, um símbolo de práticas mágicas. Em 1946, a exibição pública da suásti-
boa sorte, conhecido em toda a Europa, a Ásia, e até pe- ca nazista foi proibida constitucionalmente na Alemanha.

Guia Grandes Ditadores da História 81


Divulgação/ Still Picture Branch (NNSP) do National Archives and Records Administration Holocausto

Judeus civis durante a destruição do gueto de


Varsóvia, Polônia

A Solução

82 Guia Grandes Ditadores da História


Final
A
ssim que os nazistas su- A ascensão nazista prosseguia.
biram ao poder na Ale- Em 13 de março de 1938, o exérci-
manha, em 1933, Adolf to alemão tomou a Áustria, e aplicou
Hitler mostrou suas gar- leis antijudaicas. O mundo calou.
ras. Todos os direitos civis foram sus- Em 22 de abril, um decreto eliminou
pensos, os partidos políticos dissolvi- oficialmente os judeus da economia
dos, as greves proibidas e os sindica- germânica. Os alemães assumiram
tos fechados. Com plenos poderes, o seus lugares. Em 15 de junho, come-
Führer partiu para erradicar da cul- çaram as prisões. Os israelitas eram
tura, das instituições e da economia presos até mesmo por violação de
do novo Estado tudo que não era ale- leis de trânsito.
mão. E sua ira foi dirigida aos judeus. Nutrindo um antijudaísmo ab-
Os judeus e as outras minorias fo- surdo, os nazistas buscavam a todo
ram declarados inimigos do Estado. custo expulsar os judeus da Alema-
Banidos dos empregos públicos eram, nha. Procuravam, incansavelmente,
no caso dos judeus, obrigados a usar a uma solução para o “problema”. Não
estrela amarela – uma na frente e ou- havia, porém, lugar para eles. Então,

Em 13 de março de 1938, o exército alemão


tomou a Áustria, e aplicou leis antijudaicas.
O mundo calou. Em 22 de abril, um
decreto eliminou oficialmente
os judeus da economia germânica.
Os alemães assumiram seus lugares. Em 15
de junho, começaram as prisões
dos judeus. Eles eram presos até mesmo por
violação de leis de trânsito
tra nas costas – para diferenciá-los foi feita uma conferência internacio-
do restante da população. Passou nal em Evian, França, para achar um
a ser proibido empregar qualquer local para os judeus se refugiarem.
mão-de-obra judaica. E, como se isso Mas nenhum país queria assumir o
não bastasse, os judeus não puderam problema. A conferência acabou em
A insanidade, mais exercer nenhuma profissão li-
beral. Em 1935, foram proclamadas
fracasso. O resultado da perseguição
nazista foi o êxodo em massa da eli-
a crueldade e a leis racistas, as chamadas Leis de Nu- te intelectual, cultural e científica dos
política anti-semita remberg, que proibiam os judeus de judeus alemães. Até 1937, 118 mil
se casar ou manter relações com aria- haviam fugido para a Palestina, para
de Adolf Hitler nos. Quem desrespeitava estas leis as Américas do Norte e do Sul e para
chegam ao extremo era preso e levado para campos de outros países da Europa.
Por Claudio Blanc
concentração, que estavam começan- O ano de 1938 viu as coisas piora-
do a ser construídos. O primeiro de- rem para a população judaica. E mui-
les, Dachau, foi criado em 23 de abril to. Em 5 de outubro, o governo suí-
de 1933. Em 16 de julho de 1937, ço sugeriu que os passaportes dos ju-
mais um campo de concentração, deus alemães fossem marcados com
Buchewald, foi aberto. a letra J. O procedimento impedia a

Guia Grandes Ditadores da História 83


entrada deles no país. Esse foi o pre- de guerra. Assim começava um dos
lúdio de um tremendo golpe contra a piores pesadelos já vividos pela huma-
comunidade hebraica. Em 28 de ou- nidade: a Segunda Guerra Mundial.
tubro, numa ação brutal, os judeus
não-nascidos na Alemanha tiveram O HOLOCAUSTO
seus bens confiscados, foram presos O termo Holocausto, que, em gre-
e levados para a fronteira da Polônia, go, significa “uma oferenda sacrifical”,
onde os nazistas simplesmente os lar- As vítimas foram, designa, em sua forma capitalizada, a
garam. De início, a Polônia não quis tentativa de exterminação de grupos
principalmente, os considerados indesejados pelos nazis-
deixá-los entrar, obrigando-os a ficar
ao relento, em condições precárias. judeus, mas também tas alemães, durante o Terceiro Reich.
No final, o governo polonês acabou
permitindo a entrada.
comunistas, As vítimas foram, principalmente, os
judeus, mas também comunistas, ho-
Segundo alguns autores, o Holo- homossexuais, mossexuais, ciganos, deficientes mo-
causto começou, de fato, pouco de-
pois, em 9 de novembro de 1938, ciganos, deficientes tores, atrasados mentais, prisioneiros
de guerra soviéticos, membros das eli-
num infeliz episódio conhecido pelo motores, atrasados tes intelectuais polonesa, russa e de
poético nome de Kristall Nacht, “Noi-
te de Cristal”. O nome se deve ao fato mentais, prisioneiros outros grupos eslavos, ativistas políti-
cos, testemunhas de Jeová, alguns sa-
de que, quando os nazistas quebra- de guerra soviéticos, cerdotes católicos e protestantes, sin-
ram as vitrines e as janelas de residên- dicalistas, pacientes psiquiátricos e
cias e lojas judaicas, a luz da lua refle- membros das criminosos de delito comum. Todos
tia-se nos cacos de vidro, fazendo-os
parecer cristais brilhantes. E, como
elites intelectuais eles pereceram lado a lado nos cam-
pos de concentração e de extermínio.
num efeito dominó, depois dessa noi- polonesa, russa Imediatamente depois da con-
te, o caos se propagou. Foram incen- e de outros grupos quista da Polônia, os judeus foram
diadas todas as sinagogas na Alema- isolados em guetos. A vida nesses lu-
nha, oficinas de judeus, destruídas, eslavos, ativistas gares era impensável – cheia de pro-
suas lojas saqueadas, e centenas de miscuidade e incerteza. O espaço, mí-
políticos, testemunhas nimo. Na cidade polonesa de Lodz,
residências danificadas. Os prejuízos
eram de centenas de milhões de mar- de Jeová, alguns por exemplo, numa área onde cabiam
cos. Para completar a violência, todas
as crianças judias foram expulsas das
sacerdotes católicos de 20 a 30 mil pessoas, foram postas
160 mil. O resultado imediato foram,
escolas, e o governo decretou a expro- e protestantes, claro, doenças, morte e, pior, a fome.
priação compulsória das oficinas, das
indústrias e dos estabelecimentos co- sindicalistas, Não havia, praticamente, comida, e
as pessoas morriam como ratos pelos
merciais dos judeus. Passou a ser co- pacientes psiquiátricos guetos. Os cadáveres, na maior par-
e criminosos de
mum que os hebraicos fossem espan- te das vezes, eram levados para a rua
cados e até mesmo assassinados. O para ser recolhidos pelo “comando
saldo daquele infeliz 1938 terminou delito comum. Todos eles dos mortos”, um grupo especialmen-
te formado para esse fim. Os corpos
com perto de 30 mil pessoas interna-
das em campos de concentração. pereceram lado eram postos numa vala comum e co-
O Holocausto era fato. Em 30 de a lado nos campos bertos com cal virgem.
janeiro de 1939, Hitler proclamou no Os que sobreviviam eram explora-
Parlamento que, em caso de guerra, “a de concentração dos até o fim. Os alemães ordenaram
raça judaica será exterminada na Eu- e extermínio a construção de fábricas e oficinas
ropa”. Até o final daquele ano, mais onde os judeus foram obrigados a tra-
de 300 mil judeus alemães já tinham balhar em troca de ração de 200 ca-
sido expulsos do país. lorias por dia. Para viver, um ser hu-
Nesse mesmo 1939, a Alemanha mano necessita de 2.400 calorias di-
invadiu a Polônia, forçando a Grã- árias. Calcula-se que, com uma dieta
-Bretanha e a França a uma declaração dessas, uma pessoa consiga viver no

84 Guia Grandes Ditadores da História


Prisioneiros no campo
de concentração
em Sachsenhausen,
Alemanha

Os números
do Holocausto
O número exato de pessoas mortas
pelo regime nazista continua a ser
objeto de pesquisa, mas as seguintes
estimativas são consideradas
próximas da realidade:
Entre 5,6 e 6,1 milhões de judeus
(dos quais 3 – 3,5 milhões de judeus
poloneses). De 2,5 a 3,5 milhões de
poloneses não-judeus. Entre 3,5 a
6 milhões de civis eslavos. De 2,5 a
4 milhões de prisioneiros de guerra
soviéticos. De 1 a 1,5 milhões de
dissidentes políticos. 200.000 a
300.000 deficientes. 10.000 a 25.000
homossexuais. Cerca de 2.000
Testemunhas de Jeová.

Alguns corpos de
prisioneiros mortos foram
removidos por civis alemães

Guia Grandes Ditadores da História 85


máximo oito meses. Mas houve quem

Fotos: Divulgação/ Still Picture Branch (NNSP) do National Archives and Records Administration
sobrevivesse durante toda a guerra. E
o sofrimento imposto a seres huma-
nos por seus semelhantes não para-
va por aí. Nos guetos, era proibido às
mulheres engravidarem. As crianças
de até 12 anos, os idosos e os doen-
tes também eram retirados dos gue-
tos. O destino deles? A morte sumá-
ria em lugares especialmente criados
para esse fim.
A humanidade acabava de inven-
tar instalações para assassinatos em
massa: os campos de extermínio. Em
18 de maio de 1940, o campo de con-
centração de Aucshwitz foi aberto e,
em seguida, convertido em campo
de extermínio. Em 22 de junho de
1941, a Alemanha nazista invadiu a
União Soviética comunista. Simulta-
neamente, o Reich esboçou o plano
da “Solução Final”. Em dezembro de
1941, Adolf Hitler tinha, finalmente,
decidido exterminar literalmente os
judeus, as minorias e os soviéticos da
Europa. Em janeiro de 1942, durante
a Conferência de Wannsee, vários lí-
deres nazistas discutiram os detalhes
da “Solução Final da questão judaica”.
E os massacres em massa começaram
na Europa Oriental.
Os judeus realizavam as tarefas mais
Os nazistas iniciaram a depor-
tação sistemática das populações
de judeus, tanto dos guetos, quan- pesadas. Entre elas, estava a de separar
as roupas e os objetos de valor dos mortos.
to de todos os territórios ocupa-
dos, para os sete campos desig-
nados como Vernichtungslager, ou Eles também eram obrigados a jogar nos
campos de extermínio: Auschwitz,
Belzec, Chelmno, Majdanek, Maly fornos crematórios, ou em valas abertas,
Trostenets, Sobibor e Treblinka os cadáveres que outros prisioneiros
II. O Holocausto foi levado a cabo
metodicamente em, virtualmente, judeus retiravam das câmaras de gás.
cada centímetro do território ocu- Nessa tortura psicológica, eles, muitas vezes,
pado pelos nazistas. Os judeus e
outras vítimas foram perseguidos e reconheciam entre os pertences, ou
assassinados brutalmente.
Nos campos de extermínio, os
entre os corpos, parentes, filhos, amigos
aptos fisicamente eram selecionados e vizinhos. Em Treblinka,
para trabalhar nas fábricas. Os ou-
tros prisioneiros eram mortos ora em
a expectativa de vida dos internos não ia
furgões de gás, ora através de envene- além de poucas semanas
namento por monóxido de carbono.

86 Guia Grandes Ditadores da História


O LEVANTE DE TREBLINKA
Enquanto o impensável acontecia A humanidade
nos campos de extermínio, os parti-
zans judeus começaram a se organi- acabava
zar e a oferecer resistência. Em 18 de de inventar
janeiro de 1943, durante quatro dias,
a Organização de Resistência Judaica instalações para
combateu os alemães em escaramu-
ças nas ruas do gueto de Varsóvia.
assassinatos em
Em 2 de fevereiro, os nazistas re- massa:
ceberam um tremendo golpe: o sexto os campos de
exército alemão capitulou em Stalin-
grado. Começava, assim, a revirada da extermínio
guerra. Hitler já sabia que não conse-
guiria derrotar os Aliados. Entretan-
to, no mesmo dia em que Stalingrado
caiu, foi ordenado o reforço de trans- com árvores e plantas, para encobrir
portes para campos de extermínio na suas atividades macabras.
Europa ocupada. Mesmo perdendo a De acordo com testemunhas, a câ-
guerra, os nazistas exterminariam os mara de gás ostentava uma estrela de
judeus e as minorias. Davi e uma cortina, onde estava es-
No dia 13 de março, novos cre- crito: “Este é o portão pelo qual pas-
matórios começaram a funcionar em sam os justos”. Cerca de cinco a sete
Aucshwitz. No entanto, os judeus da- mil pessoas chegavam a cada com-
vam mais sinais de resistência. Em 19 boio, trazidas em vagões lacrados,
de abril, começava o levante do gueto superlotados, sem água, alimento ou
de Varsóvia. Nos campos de extermí- qualquer tipo de atendimento às ne-
nio, também houve levantes. cessidades básicas. No desembarque,
Treblinka II foi projetado para ser deparavam-se com a estrela de Davi e
Ossos ainda estavam no crematório
um campo de extermínio. Localizado ouviam um discurso de um oficial da
no campo de concentração de a quase 2 km de Treblinka I, o ane- SS explicando-lhes que haviam che-
Weimar, quando o local foi tomado xo foi construído por empresas ale- gado a um campo de trânsito. Em se-
pelas tropas norte-americanas
mãs que usavam, como mão-de-obra guida, as mulheres e as crianças eram
Depois dos assassinatos, as obtura- a custo zero, prisioneiros poloneses e separadas dos homens; os doentes
ções em ouro eram retiradas dos ca- judeus. Inaugurado em 23 de julho de eram também separados, e os mortos,
dáveres. Até os cabelos das vítimas 1942, Treblinka II abrigou a máqui- jogados em local afastado. Começava,
eram aproveitados para uso indus- na assassina que exterminou em sigilo então, o humilhante ritual de raspar
trial. As mulheres, principalmente, ti- os 265 mil judeus da capital polonesa. o cabelo e o encaminhamento para
nham suas cabeças raspadas antes de O campo era dividido em duas as câmaras de gás. Nesse momen-
entrar nas câmaras de gás, e os cabe- áreas. Uma delas incluía a platafor- to, os guardas incentivavam as pes-
los eram reciclados e aproveitados em ma dos trens, as moradias para os soas a escrever para seus familiares.
produtos como tapetes e meias. comandantes, a administração, as A correspondência seria posterior-
Além disso, os nazistas realiza- marcenarias e um espaço reservado mente enviada, reafirmando ao mun-
ram experiências pseudocientíficas para os prisioneiros recém-chegados do a impressão de que o processo de
com os judeus, usando-os como co- e seus pertences. A outra área era o transferência judaica não passava de
baias. O médico Josef Mengele, por setor de exterminação propriamen- um re-assentamento.
exemplo, ficou famoso pelo seu sa- te dito, com as câmaras de gás, as co- Treblinka era uma verdadeira “li-
dismo. Ele, que se refugiou no Bra- vas abertas e os crematórios, além dos nha de produção” da morte, eficien-
sil depois da guerra, era chamado de barracões para os prisioneiros. Cercas te, rápida, sem falhas. Aos que sobre-
“Anjo da Morte” pelos prisioneiros de separavam os dois setores, e o campo viviam às seleções para as câmaras de
Auschwitz por causa dos seus experi- era protegido por duas cercas de ara- gás, era imposta uma rotina rígida e
mentos cruéis e bizarros. me farpado; a interna era camuflada desumana de trabalhos forçados. Os

Guia Grandes Ditadores da História 87


trabalhadores de Treblinka II eram dos corpos jogados nas valas. As co- frentar os nazistas, mas, se um núme-
alemães e ucranianos, havendo en- vas coletivas eram fechadas como se ro maior delas desaparecesse do de-
tre eles, também, prisioneiros ju- jamais tivessem existido. pósito, isso poderia chamar a atenção
deus. Enquanto os dois primeiros Foi nesse contexto que o levante dos guardas. Foi combinado, então,
grupos eram responsáveis pela vigi- começou a ser planejado. O objetivo que, assim que a ação começasse, um
lância, pela brutal disciplina e pela era permitir a fuga do maior número grupo de rebelados conseguiria mais
operação das câmaras de gás, os ju- possível de prisioneiros, além de ten- armamentos. Os responsáveis pela re-
deus realizavam as tarefas mais pe- tar destruir as instalações mortíferas volta dividiram-se em vários grupos,
sadas. Entre elas, estava a de separar e eliminar tantos guardas quanto fos- cada um encarregado de uma missão
as roupas e os objetos de valor dos se possível. Os idealizadores da revol- específica. Todos tentariam envolver o
mortos. Eles também eram obriga- ta apostaram que, quando o levante maior número de judeus na luta.
dos a jogar nos fornos crematórios, eclodisse, centenas de judeus se uni- No dia seguinte, com a chegada do
ou em valas abertas, os cadáveres riam ao movimento e lutariam contra trem à plataforma de Treblinka, eclo-
que outros prisioneiros judeus re- seus carrascos. Os preparativos inclu- diu o levante. O sinal foi dado quando
tiravam das câmaras de gás. Nessa íam a obtenção de algumas armas – o prisioneiro judeu Josef Gross lançou
tortura psicológica, eles muitas ve- inicialmente, subornando guardas uma granada de mão sobre os guardas
zes, reconheciam entre os pertences, ucranianos e, posteriormente, rou- de uma das torres de vigilância. Simul-
ou entre os corpos, parentes, filhos, bando-as. Para isso, os prisioneiros taneamente à explosão, Gross atirou
amigos e vizinhos. Em Treblinka, a conseguiram, engenhosamente, as num oficial da SS, o vice-comandante
expectativa de vida dos internos não chaves do depósito de munições. do campo Kurt Hubert Franz, que es-
ia além de poucas semanas. Em julho de 1943, o comandan- capou e ordenou ao seu cão que atacas-

O Holocausto foi levado a cabo metodicamente


em, virtualmente, cada centímetro do território ocupado
pelosnazistas. Os judeus e outras vítimas foram
perseguidos e assassinados brutalmente

O campo de extermínio come- te de trabalho do campo, Carl Gustav se o prisioneiro. O esquálido Gross foi
çou a operar com três câmaras de gás, Farfi, precisou de uma cirurgia que estraçalhado. Antes mesmo que Franz
chegando em pouco tempo a seis. De acabou sendo feita pelo médico judeu pudesse perceber o que estava aconte-
julho de 1942 a abril de 1943, apro- Julian Choransky. Durante a cirurgia, cendo e dar o alarme para os guardas
ximadamente 870 mil pessoas mor- a chave do depósito de munições do ucranianos, os judeus começaram a ati-
reram no local. Em sua grande maio- campo foi roubada e copiada. Mas, rar e incendiaram algumas construções.
ria, os judeus eram friamente assas- apesar de ter sido uma figura-chave A desproporção entre as partes
sinados, poucas horas depois de sua no levante, Choransky não participou era gritante – de um lado, homens
chegada. No entanto, com a aproxi- do movimento. Mesmo tendo opera- pobremente armados, subnutridos e
mação das forças aliadas, no outo- do Farfi, o médico foi mandado às câ- psicologicamente abalados, e, do ou-
no de 1943, os alemães começaram a maras de gás logo depois da cirurgia. tro, soldados do Terceiro Reich, bem-
evacuar o campo. Berlim deu ordens Em 2 de agosto de 1943, às 15h35, -alimentados, treinados e armados.
para que Treblinka, assim como ou- começou o levante em Treblinka. A O portão principal foi derrubado por
tros locais, fosse totalmente destruí- data foi marcada para coincidir com a uma explosão. Outras atingiram as
dos. Os nazistas não queriam deixar chegada do trem que traria quatro mil torres de observação. As portas do
provas da existência ou das ativida- judeus ao campo. O plano foi coloca- depósito de armas foram arrombadas
des do local. O processo de desativa- do em prática na noite anterior, quan- pelos revoltosos, que distribuíram os
ção foi sendo percebido pelos prisio- do Eliahu Grinsbach roubou do depó- armamentos a seus companheiros.
neiros judeus, à medida que o núme- sito de armas três pistolas e dez grana- Centenas de pessoas tentaram des-
ro de transportes diários diminuía e das que seriam usadas para dar início truir a cerca e fugir, mas a maioria foi
aumentava o volume das cremações à revolta. Eram poucas armas para en- morta pelos guardas, que começaram

88 Guia Grandes Ditadores da História


a atirar para todos os lados, e pelos

Fotos: Divulgação/ Still Picture Branch (NNSP) do National Archives and Records Administration
cães que dilaceravam os fugitivos.
Às 15h46, o levante terminou.
Durou apenas 11 minutos e deixou
um saldo negro: 1.100 judeus mor-
tos. Entre os membros da SS e os
guardas ucranianos, houve 117 víti-
mas. Somente 180 prisioneiros con-
seguiram fugir. Os fugitivos foram
impiedosamente caçados pelos nazis-
tas e brutalmente assassinados quan-
do encontrados. Dezoito, porém, fo-
ram resgatados – famintos e no fim
de suas forças – por um grupo da re-
sistência judaica que havia sobrevivi-
do à revolta do gueto de Varsóvia e
que se escondera na floresta. Esses
sobreviventes acabaram sendo a me-
mória viva dos fatos ocorridos no dia
2 de agosto de 1943 em Treblinka II.
Em 6 de junho de 1944, o Dia D,
as forças aliadas invadiram a Nor-
mandia, na França, e iniciaram a li-
bertação da Europa. Em 24 de junho,
as tropas russas libertaram o campo
de extermínio de Majdanek, na Polô-
nia. No dia 23 de agosto, aconteceu
a última sessão de asfixia por gás em
Auschwitz. Dia 26, Himmler orde-
nou a destruição dos crematórios em
Auschwitz para esconder as evidên-
cias do campo de extermínio.
Em 11 de janeiro, as tropas Russas
libertaram Varsóvia, onde não encon-
traram mais judeus – todos tinham
sido deportados. Entre 17 e 26 de ja-
neiro, os soviéticos libertaram 80 mil
judeus em Budapeste. Em seguida, to-
maram Auschwitz, onde encontraram
perto de mil sobreviventes. Entre 11 e
28 de abril, as tropas americanas liber-
taram Buchenwald e Dachau. Tropas
britânicas também libertaram o cam-
po Bergen-Belsen. Com a chegada dos
soviéticos nas imediações de Berlim,
os nazistas evacuaram prisioneiros de
Sachsenhausen e Ravensbruck. A SS
perpetrou, então, o último massacre
de judeus. No dia 30, Hitler se sui-
cidou em seu bunker. Em 2 de maio,
Berlim capitulou e, em 8 de maio, a
guerra finalmente terminou.
Adolf Hitler em Paris – 23 de junho de
1940
Guia Grandes Ditadores da História 89
morte

AFP/ Roger Viollet


Adolf Hitler em
retrato oficial

90 Guia Grandes Ditadores da História


O polêmico
suicídio
O que teria acontecido
no Führerbunker
Por Claudio Blanc

O
Führerbunker, literalmente “abri- historiadores descreveram como um “esgota- De acordo com o historiador britânico,
go do líder”, era um complexo mento nervoso”. O evento marcou o momento Anthony Beevor, depois de uma modesta ceia
subterrâneo de apartamentos, es- em que, pela primeira vez, o obstinado líder na- de casamento, Adolf Hitler chamou a jovem
critórios e outras instalações lo- zista admitiu que a derrota era inevitável. secretária Traudl Junge e ditou a ela seu testa-
calizado em Berlim. Na verdade, tratava-se de Alguns de seus auxiliares haviam sugerido mento e suas últimas vontades. O Führer as-
dois bunkers conectados, construídos em níveis que ele fugisse para as montanhas da Bavária. sinou esses documentos às 4h daquela mesma
diferentes, a uma profundidade de 8,2 metros Certos pesquisadores chegam a mencionar que madrugada e se retirou para seu quarto.
debaixo dos jardins da Chancelaria do Reich. Hitler poderia ter se escondido na América do Sem nunca deixarem o bunker, Hitler e
O complexo era protegido por cerca de quatro Sul e se mesclado a alguma das diversas colô- Eva viveram como marido e mulher menos de
metros de concreto e tinha algo em torno de 30 nias alemãs existentes no Brasil, na Argentina 40 horas. No final da manhã de 30 de abril,
quartos distribuídos por dois níveis, com acesso e no Chile, como fizeram muitos líderes nazis- as forças soviéticas haviam chegado a menos
aos prédios principais da Chancelaria e uma sa- tas depois da Guerra, inclusive Josef Mengele. de 500 metros do abrigo do líder. Acuado, o
ída de emergência para o jardim. O bunker foi O inventor do Nazismo, porém, escolheu dar Führer se reuniu com o comandante encarre-
erguido em duas fases – a primeira em 1936, cabo da própria vida.
apenas três anos depois de Hitler ter chegado Com isso em mente, Hitler consultou
ao poder, e em 1943, quando já se sabia que a
Alemanha perderia a Guerra – pela construto-
Werner Haase, seu médico pessoal, que reco-
mendou a ingestão de uma cápsula de ciane-
Certos pesquisadores
ra Hochtief, uma multinacional que atua tam-
bém no Brasil. Era parte de um grande progra-
to – um veneno ironicamente também usado
nas câmeras de gás dos campos de extermínio
chegam a mencionar
ma de construções subterrâneas iniciadas em – e, ao mesmo tempo, desferimento um tiro na que Hitler poderia
1940 em Berlim. A ideia era proteger a capital própria têmpora.
alemã dos inevitáveis bombardeios. O Führer tinha um estoque de cápsulas de ter fugido para a
América do Sul e se
Os aposentos de Hitler ficavam na seção cianeto fornecidas pela SS. No entanto, quan-
mais nova – e mais profunda –, decorados do, em 28 de abril, ele descobriu que Heinrich
com móveis raros e pinturas a óleo. O ditador Himmler, comandante da SS, o havia traído e
se mudou definitivamente para lá em janei- tentava negociar a paz com os Aliados, descon- mesclado a alguma
ro de 1945, quando os Aliados pressionavam
na frente ocidental e os soviéticos, na orien-
fiou de que as cápsulas não teriam o efeito de-
sejado. E isso fez que o líder ficasse paranóico.
das diversas colônias
tal. Desde então, o Führerbunker se tornou seu Para atestar a eficácia do veneno, pediu a Ha- alemãs existentes
quartel-general, de onde governou um Tercei- ase que o desse à sua cachorra, a pastor alemã
ro Reich que se desmoronava rápida e inevita- Blondi. O animal, que, desde que lhe fora dado no Brasil, na Argentina
e no Chile, como
velmente. de presente em 1941, o acompanhava a todos
Foi no Führerbunker que Adolf Hitler e sua os lugares, serviu seu dono pela última vez.
esposa, Eva Braun, cometeram suicídio, quan-
do os soviéticos romperam as defesas de Berlim.
Haase fez o que seu paciente pediu, e Blondi
morreu. As cápsulas eram realmente eficazes. fizeram muitos
O FIM DO FÜHRER
Depois da meia-noite de 29 de abril, Hi-
tler se casou com Eva Braun, uma modelo 23
líderes nazistas depois
No final de abril de 1945, os soviéticos já
entravam em Berlim e abriam caminho numa
anos mais jovem, que ele havia conhecido em
1929 e que tinha sido sua amante desde 1931.
da Guerra, inclusive
encarniçada guerra de rua para chegar até o Apesar do longo relacionamento, o Adolf se o famigerado “Anjo
centro da cidade, onde estava a Chancelaria. recusava a casar com ela. Foi somente nos úl-
No dia 22, durante uma das conferências sobre timos instantes que mudou de ideia. A peque- da Morte”,
a situação militar que Hitler tinha com seu Es- na cerimônia civil aconteceu no escritório de
tado Maior, o Führer apresentou o que alguns mapas do Führerbunker. Josef Mengele
Guia Grandes Ditadores da História 91
Divulgação

ligência que substituiu a KGB, divulgou os lau-


dos das autopsias de Hitler e Eva juntamente
com depoimentos de testemunhas, revelando
o que aconteceu com os despojos depois que o
Exército Vermelho tomou o Führerbunker.
Os soviéticos invadiram o complexo cer-
ca de sete horas e meia após a morte de Hitler,
mas foi apenas em 2 de maio que os corpos car-
bonizados foram descobertos na cratera. Junto
deles, estavam enterrados dois cães – provavel-
mente Blondi, a pastora do Führer, e o filho-
te Wulf. A autopsia revelou o tiro na têmpora
do ditador e mostrou que sua mandíbula con-
tinha cacos de vidro. Os corpos foram enterra-
dos e exumados repetidas vezes pela SMER-
SH durante o trânsito da unidade de Berlim
para Magdeburg, onde foram enterrados per-
manentemente num túmulo sem marcas. No
mesmo local, foram enterrados os corpos de
Adolf Hitler e sua esposa, Eva Braun, cometeram suicídio quando os soviéticos Goebbels – o qual macabramente resistiu à
romperam as defesas de Berlim

Os soviéticos invadiram o complexo cerca de sete horas e meia após a


morte do Führer, mas, apenas em 2 de maio, os corpos carbonizados
do ditador e de sua esposa foram descobertos na cratera. Junto deles,
também estavam enterrados dois cães – provavelmente Blondi, a
pastora de Adolf, e o filhote Wulf

gado da defesa de Berlim, general Helmuth bos sentados lado a lado em um pequeno sofá. cremação –, de sua esposa Magda e dos seus
Weidling, que o informou que as últimas tro- Hitler tinha a têmpora direita perfurada. A seis filhos. A localização foi mantida em segre-
pas a defender a cidade ficariam sem munição seus pés, a pistola 7.65 mm que ele usou jazia do por ordens de Stalin.
até aquela noite. Weidling pediu pela segunda ao lado de uma poça de sangue. Eva não tinha Na década de 1970, a instalação onde os
vez permissão para retirar suas tropas, mas o marcas de ferimento. Apenas usara veneno. corpos jaziam, até então controlada pelos sovi-
obstinado Hitler não respondeu. Somente ho- Os dois corpos foram, então, retirados do éticos, foi devolvida para o governo da Alema-
ras depois, às 13h, ele permitiu que Weidling bunker pela saída de emergência e depositados nha Oriental. Mas, temendo que o local fosse
tentasse bater em retirada naquela noite. Foi a numa cratera aberta pela explosão de uma bomba descoberto e se tornasse um centro de culto
última ordem dada pelo chanceler alemão. no jardim da Chancelaria. Ajudado pelos guarda- por parte dos neonazistas, o diretor da KGB,
Instantes após despachar a ordem a -costas de Hitler e membros da SS, Linge enchar- Yuri Andropov, ordenou que os despojos fos-
Weindling, Hitler, duas secretárias, Eva e o cou-os om gasolina e ateou fogo. Os cadáveres sem totalmente destruídos. No dia 4 de abril,
cozinheiro particular do ditador participa- não foram completamente destruídos pelas cha- uma equipe da KGB exumou os restos de Hi-
ram da última refeição do Führer: espague- mas e, tendo recomeçado o bombardeio ao com- tler e dos outros e os cremou completamente.
te com um molho leve – afinal, o cianeto age plexo, o criado foi impedido de prosseguir com a Em seguida, as cinzas foram jogadas no Rio
mais rapidamente se a vítima estiver de estô- cremação. Os restos do Führer e de sua esposa fo- Elba, o lugar definitivo de repouso do homem
mago vazio. Em seguida, o casal se despediu ram cobertos na pequena cratera. Eram 18h. que promoveu a destruição da Alemanha e de
dos funcionários e militares, entre eles o che- grande parte da Europa.
fe da propaganda nazista, o sempre fiel Joseph RESTOS MORTAIS Mesmo após a divulgação da autópsia e do
Goebbels, que, pouco depois, também se suici- Durante décadas, o destino dos despojos destino dos restos mortais de Hitler, os boatos
daria com a esposa após matar seus seis filhos. de Hitler foi uma incógnita. Em 1969, o jor- continuaram. Em 2000, o FSB expôs um frag-
Por volta das 14h30, Adolf e Eva se reti- nalista soviético Lev Bezymensky publicou mento de crânio mantido em seus arquivos. O
raram para o estúdio. Segundo algumas teste- um livro baseado numa autopsia realizada pela pedaço de osso seria tudo que restara do corpo
munhas, às 15h30 ouviu-se um tiro vindo do SMERSH, o serviço de contra-inteligência do de Adolf. Muitos historiadores e pesquisadores
cômodo. Depois de esperar alguns minutos, o exército soviético que antecedeu a KGB. Pou- duvidam da autenticidade do fragmento.
criado pessoal de Hitler, Heinz Linge, e Mar- cos, porém, acreditaram nos dados fornecidos A dúvida sobre o destino dos despojos do
tin Bormann, chefe da Chancelaria, entraram por ele. Foi só em 1993, depois da queda do co- ditador nazista permanece. A memória de Hi-
no local. Um cheiro de amêndoas queima- munismo no leste europeu, que a verdade veio à tler, porém, continua tão viva como nunca dei-
das, típico de cianeto, emanava. Estavam am- tona. A FSB, a agência governamental de inte- xou de estar.

92 Guia Grandes Ditadores da História


saiba mais

Aprofunde-se no assunto
Por Lucas Pires e Claudio Blanc Fotos Divulgação

Um Stalin Stalin – A Corte do


Desconhecido Czar Vermelho
Zhores Medvedev e Roy Medvedev Simon Sebag Montefiore
Editora Record Cia. das Letras
Os autores tiveram acesso ao Obra monumental recém-lan-
arquivo soviético revelado em 1990 çada, que trata da personalida-
e conseguiram desvelar questões de de Stalin através de sua vida
enigmáticas da vida de Stalin e da privada e da biográfica construí-
União Soviética por ele criada, como da a partir de bilhetes dos arqui-
as elocubrações sobre sua morte, um vos soviéticos. O autor trabalha
possível herdeiro e os antecedentes concomitantemente eventos de
ao XX Congresso do Partido, em que Krushev revelou ao sua vida pessoal junto dos de
mundo um Stalin até então desconhecido. São diversos sua vida pública, focando o pe-
capítulos em que em cada um dos autores trazem à tona ríodo do auge do poder stalinis-
novas informações sobre o todo-poderoso Stalin. ta – a década de 1930 – e o que
ele chamou de sua corte – os colaboradores mais próximos
com os quais Stalin vivia e se divertia. A linguagem é aces-
L I V R O S sível e de fácil compreensão.

Stalin – Uma Stalingrado:


Biografia Política Cerco Fatal
Isaac Deutscher
Antony Beevor
Civilização Brasileira
Editora Record
Biografia escrita na década de 1960
Por meio da análise de arquivos
sob o impacto das declarações
e relatórios extra-oficiais, o autor
de Kruschev no XX Congresso do
mostra que a perda de milhares de
Partido, quando os crimes de Stalin
vidas sofrida pela URSS não se deveu
foram revelados. O autor faz uma
apenas à ação dos invasores alemães,
pesquisa longa e completa, focando
mas ao desprezo de Stalin por seu
a ascensão de Stalin no partido, a rixa com Trotski e
próprio povo, mobilizado em prol da guerra.
os anos no poder. Como o nome já diz, busca ser uma
biografia política, o que deixa de fora boa parte da vida
pessoal do biografado.

Stalin: Um Novo
Olhar
As Revoluções Russas e Ludo Martens
o Socialismo Soviético Editora Renan
Daniel Aarão Reis Filho Livro de um autor revisionista e decla-
Editora UNESP radamente stalinista, que escreveu sua
Obra apresentativa das revoluções de obra buscando derrubar os “mitos” e
1905 e 1917, passando por todo o perí- as “mentiras” em torno da aura de de-
odo comunista da Rússia, então chama- mônio que o Ocidente teria criado ao
da de União Soviética. Ótimo livro para redor de Stalin. O autor tem argumentos para quase todas
quem quer se introduzir no cenário da as ações de Stalin, mesmo as sem explicações, como os ex-
Revolução e de como o país tratou de purgos, mas o alvo maior de Martens é Trotski, a quem pinta
crescer economicamente num sistema socialista. como um derrotado ressentido e mesmo anticomunista.

Guia Grandes Ditadores da História 93


Lenin – Coração
e Mente
Tarso Genro e
Adelmo Genro Filho
Editora Expressão Popular
A partir da biografia de Lênin e da Revolução Russa, os autores
buscam apresentar uma síntese do pensamento leninista. Discorrem
didaticamente sobre as principais obras dele, tentando trazer à tona um
verdadeiro instrumento revolucionário, que é a teoria marxista-leninista.

Era dos Extremos –


O Breve Século XX
Eric Hobsbawm
Cia. das Letras
Obra monumental que faz uma análise
do que o autor chamou de “breve século
20” (teria começado com a 1a Guerra
Mundial e acabado com o fim da URSS).
Interessante notar os valores dados pelo
historiador britânico marxista, que sabe
se manter crítico quanto à experiência
soviética, mas, ao mesmo tempo, enxerga
a importância que teve a Revolução de
1917, não apenas para a Rússia como
para todo o mundo. Enfim, ótimo livro para
quem quer entender o século 20, que foi
o século em que Stalin viveu e ajudou a
moldar.

Lenin e a
Revolução Russa
Oziel Gomes
Editora Expressão Popular
Como o nome já diz, o livro aborda a figura
de Lênin e o contexto da Revolução Russa de
1917 de forma didática e linguagem simples.

O Estado e a
Revolução
Wladimir Lenin
Editora Expressão Popular
Escrito em 1917, logo após a
divulgação das “Teses”, que
subverteram a posição do A Revolução Russa
partido diante da Revolução Maurício Tragtenberg
Russa. Nega a viabilidade do Editora UNESP
controle revolucionário do Reeditado em 2007, mas originalmente de
poder pela burguesia; suscita 1988, este livro faz um estudo da experiência
o problema da transformação revolucionária da União Soviética antes de seu
do partido, do papel do fim oficial, mas ali já estava a análise das razões
proletariado na Revolução e da do fracasso – segundo o autor, a desconfiança na
tomada do poder pelas classes capacidade da classe trabalhadora e a ação não
trabalhadoras. democrática que resultou no monopólio político e
no controle do Estado.

94 Guia Grandes Ditadores da História


F I L M E S
O Encouraçado Potemkin (1925)
Serguei Eisenstein
Em 1905, marinheiros do encouraçado Potemkin se rebelam a bordo em razão
da má qualidade da comida servida. Ao mesmo tempo, acabam se unindo
aos populares revoltosos com o “domingo sangrento”. Nessa obra clássica
do cinema mudo – a obra-prima de Eisenstein –, o diretor pôs em prática sua
teoria da montagem, criando um filme poderoso em imagens e em conteúdo.
Era o cinema revolucionário soviético em seu mais alto grau. Indispensável.

Outubro (1927)
Serguei Eisenstein
Conteúdo encomendado pelo partido para as comemorações dos 10 anos da
Revolução. Ela retrata o cenário russo de outubro de 1917, com a tomada do
Palácio de Inverno pelos populares e bolcheviques. A figura de Lênin ganha
ares messiânicos e Eisenstein faz outro filme mudo, cuja potência está na
montagem e na concepção dos personagens e eventos históricos.

Guia Grandes Ditadores da História 95


L I V R O S
Hitler Ganhou
a Guerra
Walter Graziano
Editora Palíndromo

O livro traz a tese de que uma elite po-


derosa, a qual teria financiado a ascen-
são de Adolf Hitler, controla há muitos
anos os presidentes dos Estados Unidos
como marionetes e corrompe até os ali-
cerces dos partidos Republicano e De-
mocrático. A obra afirma, também, que
essa elite obscura utiliza as principais
universidades norte-americanas e seus
intelectuais, proporcionando a ilusão do
progresso científico através de um fal-
so ideologismo, e manipula os meios de
comunicação para que as massas e as
classes médias não dêem conta do que
realmente ocorre.

Hitler, vols. 1 e 2
Joachim C. Fest
Editora Nova Fronteira

A biografia em dois volumes do ditador alemão, por Joachim Fest, seu mais
renomado biógrafo, abrange o período que vai de sua ascensão, em 1933, até
a queda da Alemanha nazista, em 1945, numa obra de pesquisa extensa. No
livro, Fest mostra uma Europa apanhada pelas contradições e pelas intensas
lutas ideológicas do período entre as guerras, e faz um estudo detalhado da
personalidade de Adolf Hitler, que serviu de inspiração para o filme “A Queda!
- As últimas Horas de Hitler”, de Oliver Hirschbiegel.

No Bunker de
Hitler - Os
Últimos Dias
do Terceiro Reich
A Mente de Hitler Joachim C. Fest
Marcelo Caixeta Editora Objetiva
Editora Ciência Moderna “No Bunker de Hitler” expõe o
cotidiano do ditador naqueles
Nessa análise biográfica e psicológica dias dramáticos, mostrando os
do líder nazista e de outros ditadores, surtos de euforia irreal, seguidos
o autor busca responder as questões por momentos de depressão
“Como é que a inteligência pode ser re- profunda diante da derrota
lacionada ao sadismo e ao mal?” e “Por inevitável. O livro traz, ainda,
que algumas pessoas, como Hitler, que perfis dos principais membros
tiveram uma mãe amorosa e uma família do círculo pessoal do ditador,
estruturada, entregam-se à monstruosi- dominado pela competição e
dade do mal?”. Que fatores emocionais, pela intriga até os instantes finais
Imagens: Divulgação

cognitivos ou sociais levaram milhões de do Führer.


pessoas normais a confiar, seguir, admi-
rar e idolatrar tais gênios sangüinários?

96 Guia Grandes Ditadores da História


Eu Fui Guarda- A Alemanha de Hitler: Origens,
Costas de Hitler Interpretações, Legados
Roderick Stackelberg
Rochus Misch
Editora Imago
Editora Objetiva
“A Alemanha de Hitler” apresenta uma
Rochus Misch foi guarda-cos- história narrativa do nazismo, projetada
tas de Adolf Hitler. Durante cinco no contexto mais amplo da História alemã
anos, de 1940 a 1945, passou dia nos séculos 19 e 20. O livro proporciona
e noite ao lado do ditador nazis- uma visão acurada do período de domínio
ta. Da chancelaria em Berlim aos nazista e dos acontecimentos que levaram
aposentos privados, do ninho da águia de Berchtes- a isso, bem como propõe uma estrutura de
gaden à “Toca do Lobo” na Prússia oriental e ao QG interpretação que permite encontrar algum
ucraniano, Misch acompanhou o Führer até o fim do III sentido nesse episódio histórico. Roderick
Reich. Assistiu a momentos banais e importantes dos Stackelberg analisa como foi possível que
dirigentes nazistas e de suas companheiras, entre elas, uma cultura de tanta criatividade e tantas
Eva Braun. Agora, aos 87 anos, é o último sobrevivente realizações pudesse gerar barbarismo e
dos que conviveram com Adolf Hitler, e a última teste- destruição.
munha do que aconteceu no bunker após o suicídio do
ditador e queda do regime.
s i t e s
D V D

Hitler Historical Museum (em inglês) http://www.hitler.org/ O museu se



O Plano Secreto dedica a preservar os fatos históricos relacionados a Adolf Hitler e ao
para Matar Hitler Partido Nacional-Socialista. (em inglês)

• pode
Discovery
Em http://www.hitler.org/writings/Mein_Kampf/ o livro Mein Kampf
O documentário com mais de ser baixado na integra. (em inglês)
duas horas de duração mostra os
acontecimentos de 20 de julho de • The History Place www.historyplace.com/worldwar2/riseofhitler/ O site
contém uma abrangente biografia ilustrada em 24 capítulos.
1944, um dia que poderia ter mudado
o curso da Segunda Guerra Mundial (em inglês)
e da História. Adolf Hitler havia
transferido uma reunião com seus Adolf Hitler.ws www.adolfhitler.ws O site oferece biografia •
e arquivos com discursos, trabalhos artísticos de Hitler e informações
generais por ocasião de uma visita
de Mussolini. O Coronel Claus von gerais sobre o período. (em inglês)
Stauffenberg planejava matar o Füher
com um explosivo escondido em
sua pasta. O ditador sobreviveu e,
então, acreditava que seu destino era
salvar a Alemanha. Através do uso da
computação gráfica e de recriações
históricas fiéis, o filme reconstitui os
passos de Hitler, Roosevelt e Churchill
durante esse fatídico dia, revelando
detalhes só conhecidos por meio de
livros e documentos secretos.

Guia Grandes Ditadores da História 97


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CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

G971

Guia grandes ditadores da história : Hitler x Stalin / [Aline Ribeiro].


- 1. ed. - São Paulo : OnLine, 2015.
            il.               

ISBN 978-85-432-0968-5

1. Hitler, Adolf, 1889-1945. 2. Stalin, Josef, 1879-1953. 3.


Ditadores - Alemanha.
4. Ditadores - União Soviética. 5. Nazismo. 6. Comunismo. 7.
Totalitarismo. 8. Alemanha - Política e governo - 1933-1945. 9.
União Soviética - Política e governo - 1936-1953. I. Ribeiro, Aline.

15-24954 CDD: 943.086


  CDU: 94(43)’1933/1945’

23/07/2015     23/07/2015  
A trajetória completa dos
dois maiores ditadores
do século 20 reunidas
em um único guia.
Acompanhe a infância e os
acontecimentos polítcos
e socioeconômicos que
impulsionaram a índole
desses líderes a realizarem
grandes barbáries contra
a humanidade, que sofre
com as consequências até
os dias de hoje.

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