Você está na página 1de 248

Ficha Técnica

Título: Balada de Veludo


Título original: Velvet Song
Autor: Jude Deveraux
Tradução: Pedro Branco
Revisão: Domingas Cruz
ISBN: 9789896612245

QUINTA ESSÊNCIA
uma editora do grupo Leya
Rua Cidade de Córdova, n.º 2
2610-038 Alfragide – Portugal
Tel. (+351) 21 427 22 00
Fax. (+351) 21 427 22 01

© Deveraux Inc., 1983


Publicado com o acordo de Pocket Books,
uma divisão da Simon & Schuster, Inc.
Todos os direitos reservados de acordo com a legislação em vigor.
Esta edição segue a grafia do novo acordo ortográfico.
www.quintaessencia.com.pt
www.leya.pt
índice

Capa
Ficha Técnica
PARTE I - O Sul de Inglaterra
Capítulo Um
Capítulo Dois
Capítulo Três
Capítulo Quatro
Capítulo Cinco
Capítulo Seis
Capítulo Sete
Capítulo Oito
Capítulo Nove
Capítulo Dez
Capítulo Onze
PARTE II
Capítulo Doze
Capítulo Treze
Capítulo Catorze
Capítulo Quinze
Capítulo Dezasseis
Capítulo Dezassete
Capítulo Dezoito
Capítulo Dezanove
Capítulo Vinte
Capítulo Vinte e Um
Capítulo Vinte e Dois
Capítulo Vinte e Três
Jude Deveraux

BALADA
DE
VELUDO
Tradução
Pedro Branco
PARTE I

O Sul de Inglaterra

Janeiro de 1502
Capítulo Um

O PEQUENO POVOADO DE MORETON era circundado por um muro alto de


pedra e o cinzento das pedras lançava uma longa e madrugadora sombra
sobre as muitas casas alinhadas lá dentro. Caminhos bastante desgastados
ligavam os edifícios, irradiando da posição central ocupada pela torre da
igreja e pelo alto edifício branco da Casa da Câmara. Àquela hora, à pálida
luz da manhã, alguns cães começavam a espreguiçar-se, mulheres de olhos
ensonados caminhavam lentamente na direção do poço da povoação e
quatro homens esperavam, de machado ao ombro, que os porteiros abrissem
os pesados portões de carvalho do muro de pedra.
No interior de uma das casas, uma casa estreita, de dois andares, e caiada
de branco, Alyxandria Blackett ansiava, com todos os poros do seu corpo,
ouvir o ranger dos portões. Quando o ouviu, pegou nos sapatos de pele
macia e, pé ante pé, dirigiu-se às escadas, que, infelizmente, ficavam do
outro lado do quarto do seu pai. Estava vestida há horas, acordara muito
antes do nascer do Sol, e enfiara um vestido liso de lã, um pouco grosseiro,
sobre o seu corpo franzino. E hoje, por uma vez, não olhou com
repugnância para o seu corpo. Parecia que toda a sua vida havia estado a
crescer, e a ganhar alguma altura e, acima de tudo, algumas curvas. Mas,
aos vinte anos, sabia que jamais teria peito ou ancas. Pelo menos, pensou
com um suspiro, não precisava de espartilhos. Já no quarto do pai, lançou-
lhe um breve olhar para se certificar de que estava a dormir e, enrolando a
lã da sua saia no braço, começou a descer, evitando o quarto degrau, pois
sabia que rangia muito.
Uma vez lá em baixo, não se atreveu a abrir uma janela. O som poderia
acordar o pai e ele precisava muito de descansar agora. Contornando uma
mesa coberta de papéis, tinta e um testamento inacabado que o pai estava a
redigir, dirigiu-se para a parede mais distante, olhando, enamorada, para os
dois instrumentos musicais ali pendurados. Todos os pensamentos de
autocomiseração pelo que Deus não lhe concedera fisicamente
desapareceram quando pensou na sua música. De imediato, uma nova
melodia suave e envolvente começou a surgir na sua cabeça. Era,
obviamente, uma canção de amor.
– Não te consegues decidir? – ouviu a voz do pai ao fundo das escadas.
Correu para ele instantaneamente, colocou-lhe o braço à volta da cintura e
ajudou-o a sentar-se. Mesmo na escuridão, conseguia perceber as suas
olheiras azuladas.
– Devíeis ter ficado na cama. Há tempo suficiente para fazer o trabalho
do dia sem começar antes do amanhecer.
Pegando-lhe na mão por um momento, ele sorriu na direção dos seus
belos olhos. O pai sabia bem o que a filha pensava sobre o seu pequeno
rosto frágil, com os olhos amendoados-violeta, nariz minúsculo e boca
pequena e curvada – já a tinha ouvido lamentar-se acerca do assunto vezes
suficientes –, mas, para ele, tudo nela era adorável.
– Continua – disse ele, empurrando-a suavemente. – Vê se decides que
instrumento levar e sai, antes que apareça alguém a reclamar uma canção
para a sua mais recente paixão.
– Talvez deva ficar convosco esta manhã – murmurou ela com a
preocupação por ele estampada na cara. No último ano, o pai já sofrera
dores de coração horríveis por três vezes.
– Alyx! – avisou ele. – Não me desobedeças. Pega nas tuas coisas e sai!
– Sim, meu senhor – sorriu-lhe, dirigindo-lhe o que, para ele, era um
sorriso enternecedor, com os cantos dos olhos ligeiramente elevados e a
boca a formar um perfeito arco de cupido. Então, com um rápido e bem
ensaiado movimento, ela retirou a longa cítola de cordas de aço da parede,
deixando o saltério no sítio. Virando-se, olhou de novo para o pai. – Tendes
a certeza de que ficais bem? Não tenho de sair esta manhã.
Ignorando-a, o pai entregou-lhe a caixa de estudo dela, uma secretária
portátil com pena, tinta e papel.
– Prefiro que estejas a compor música a que fiques em casa com um
velho doente. Alyx – disse ele. – Anda cá. – E, com um gesto hábil,
começou a entrançar-lhe o cabelo comprido numa trança grossa ao longo
das costas. O cabelo dela era pesado e espesso, liso, sem a mínima
ondulação, e a cor era, mesmo para o seu pai, bastante invulgar. Era quase
como se uma criança tivesse juntado todas as cores de cabelo possíveis na
cabeça muito pequena de uma jovem mulher. Havia laivos de dourado,
amarelo vivo, vermelho profundo, um vermelho-dourado, castanho, e,
jurava Alyx, até alguns cinzentos.
Quando terminou a trança, pegou na capa pendurada na parede, colocou-
lha sobre os ombros e atou-lhe o capuz sobre a cabeça.
– Não te distraias a ponto de te esqueceres de te manteres quente – disse-
lhe ele, fingindo um tom feroz, e voltou-a para si. – Agora vai e, quando
voltares, quero ouvir algo bonito.
– Darei o meu melhor – respondeu ela rindo enquanto saía de casa,
fechando a porta atrás de si.
Da casa deles, precisamente por trás do edifício da Casa da Câmarae
diretamente em frente aos portões grandes, Alyx podia ver quase toda a
cidade, enquanto as pessoas começavam a mexer-se e a preparar-se para
enfrentar o dia. Havia apenas alguns centímetros entre as casas na pequena
ruela que corria ao longo do muro. Casas de madeira e pedra, tijolo e
estuque, alinhavam-se lado a lado, desde a casa do presidente da Câmara
até às minúsculas casas dos artesãos e, tal como a do pai, dos advogados.
Uma brisa ligeira agitava o ar e as tabuletas das lojas balançavam.
– Bom dia – gritou uma mulher que varria o cascalho em frente à sua casa
para Alyx. – Estás a compor alguma coisa para a igreja hoje?
Rodando a alça, Alyx deslizou a cítola para as costas e acenou em volta à
sua vizinha.
– Sim… E não. Tudo! – E riu-se, enquanto acenava e se apressava em
direção ao portão.
Parou abruptamente quando quase chocou com uma carroça puxada por
um cavalo. Ao olhar para cima, percebeu que John Thorpe tinha
propositadamente tentado tropeçar nela.
– Eh lá, e agora, pequena Alyx, não há uma palavra amável para mim? –
E sorriu enquanto ela se desviava do velho cavalo.
– Alyx! – chamou uma voz da traseira da carroça. A senhora Burbage
estava a esvaziar penicos para dentro da cisterna1 que John transportava. –
Podes entrar por um momento? A minha filha mais nova está com o
coração despedaçado e achei que talvez uma nova canção de amor lhe faça
bem.
– Sim, e a mim também – John riu-se de cima da carroça. – Também
preciso de uma canção de amor – comentou ele, esfregando ostensivamente
as costelas onde, duas noites antes, Alyx lhe dera um beliscão feroz quando
a tinha tentado beijar.
– Para ti, John – respondeu ela, docemente –, vou escrever uma canção
tão doce como o «mel» que transportas na tua carroça. – O volume da
gargalhada dele quase abafou a sua resposta à senhora Burbage,
informando-a que a viria visitar depois da missa da noite.
Com um suspiro, Alyx começou a correr em direção ao portão. Se ficasse
mais alguns momentos, seria interpelada de novo e nunca conseguiria o seu
tempo sozinha, fora dos muros, para trabalhar na sua música.
– ’Tás atrasada, Alyx – disse o guarda do portão –, e não te esqueças da
doce música para a minha miúda doente – gritou ele, enquanto ela corria
direita aos pomares fora dos muros.
Finalmente, chegou à sua macieira favorita e, com um riso de pura
felicidade, abriu a pequena secretária e começou a preparar-se para registar
a música que ouvia na sua cabeça. Sentando-se, encostada à árvore,
posicionou a sua cítara no colo e começou a tocar a melodia que tinha
ouvido naquela manhã. Totalmente absorvida, a trabalhar a melodia e a letra
e registando no papel as notas, não se apercebeu das horas que passaram.
Quando parou para descontrair, com os ombros rígidos e os dedos doridos,
tinha escrito duas canções e começara a escrever um novo salmo para a
igreja.
Espreguiçando-se longa e exuberantemente, pôs de lado a cítola,
levantou-se e, pousando uma mão num ramo baixo e nu da macieira, olhou
através dos campos de cultivo, e para além deles, para os pastos cercados
das ovelhas do conde.
Não! Não iria permitir-se pensar no conde que tinha expulsado tantos
rendeiros das suas terras, aumentando-lhes as rendas, e, depois, cercando-as
e ocupando-as com as suas ovelhas lucrativas. «Pensa antes em algo
agradável», ordenou a si própria, virando-se para olhar noutra direção. E,
claro, que mais haveria realmente de belo na vida para além da música?
Desde criança que sempre ouvira música na sua cabeça. Enquanto o padre
recitava a missa em latim, ela ocupava a sua mente com a criação de uma
canção para o coro dos rapazes. No Festival das Colheitas, desaparecera,
concentrada em canções que só ela conseguia ouvir. O seu pai, viúvo há
anos, ficara quase louco ao tentar encontrar a sua filha perdida.
Um dia, quando tinha dez anos, fora até ao poço buscar água. Um
trovador de passagem pela povoação encontrava-se aí sentado com uma
jovem mulher, num banco, e, ao lado do poço, estava o seu alaúde,
abandonado. Alyx nunca tinha tocado antes qualquer instrumento musical,
mas tinha ouvido e visto o suficiente para saber basicamente como fazer
soar um alaúde. Em minutos, começou a dedilhar uma das centenas de
músicas que ecoavam na sua cabeça. Já ia na sua quarta canção quando
percebeu que o trovador estava ao seu lado, tendo esquecido a sua corte.
Silenciosamente, sem uma palavra entre os dois, servindo-se apenas da
linguagem da música, ele tinha-lhe mostrado como posicionar os dedos para
os acordes. A dor das cordas afiadas a cortar-lhe as suas pequenas e
delicadas pontas dos dedos não era nada comparada com a alegria de ser
capaz de ouvir a sua música fora da sua cabeça.
Três horas mais tarde, quando o pai, com um ar resignado, saiu para
procurar a filha, encontrou-a rodeada por metade dos habitantes da
povoação, todos a sussurrar que estavam a presenciar um milagre. O padre,
imaginando um cenário maravilhoso, levou-a à igreja e colocou-a à frente
do virginal. Depois de alguns minutos de tentativas, Alyx começou a tocar,
atabalhoadamente ao início, um magnificat, um hino de louvor à igreja,
pronunciando suavemente as palavras enquanto tocava.
O pai de Alyx ficou muito aliviado por a sua única filha não ser fraca de
cabeça e que, afinal, era só o facto de a ter tão ocupada com música que, às
vezes, não respondia a tudo que lhe diziam. A partir desse dia memorável, o
padre encarregou-se da aprendizagem de Alyx, dizendo que ela possuía um
dom divino e, enquanto representante de Deus, tomaria conta dela. Não
precisou de acrescentar que, enquanto advogado, o seu pai estava bem
distante da santidade de Deus e quanto menos ela se associasse a pessoas
como ele melhor.
Seguiram-se quatro anos de formação rigorosa durante a qual o padre
conseguiu o empréstimo de todos os instrumentos existentes para que Alyx
pudesse aprender a tocar. Ela tocou instrumentos de teclas, de sopro, de
cordas com e sem arco, tambores, sinos, e o enorme órgão de tubos com
que o padre chocara o povoado ao adquiri-lo para o serviço do Senhor (e
para ele e Alyx, disseram alguns).
Quando o padre teve a certeza de que ela conseguia tocar, mandou vir um
monge franciscano que a ensinou a escrever música, a registar as canções,
baladas, missas e litanias, o que quer que ela pudesse converter em música.
E porque ela andava tão ocupada a tocar instrumentos e a criar partituras,
só aos 15 anos alguém percebeu que também sabia cantar. O monge, que
estava prestes a regressar à sua abadia, uma vez que Alyx tinha aprendido
tudo o que podia ensinar-lhe, entrou uma manhã muito cedo na igreja e viu-
se envolvido por uma voz tão poderosa que podia sentir os botões do seu
manto a tremer. Quando se convenceu de que aquele som magnífico vinha
da sua pequena pupila, caiu de joelhos e começou a dar graças a Deus por
lhe ter permitido ter contacto com uma criança tão abençoada.
Alyx, quando reparou no velho monge de joelhos ao fundo da igreja,
segurando com força a sua cruz e com as lágrimas a correrem-lhe pela face,
parou imediatamente de cantar e correu para ele, esperando que não
estivesse a sentir-se mal ou, como suspeitava, que se sentisse ofendido pelo
seu canto, que ela sabia ser assustadoramente sonoro.
Depois disso, a sua voz recebeu a mesma atenção que a sua capacidade
instrumental e ela começou a dirigir grupos corais, aproveitando cada uma
das vozes do pequeno povoado murado.
Num ápice, chegou aos vinte anos de idade, ansiando todos os dias pela
idade adulta e, esperava ela desesperadamente, por sair dali. Mas
permaneceu enfezada e sem curvas, enquanto as outras raparigas da sua
idade casaram e tiveram bebés e Alyx teve de se contentar com cantar as
canções de embalar que tinha escrito para bebés.
Que direito tinha em estar descontente, pensava ela agora, encostada à
macieira? Só porque todos os rapazes a tratavam com grande respeito – à
exceção, claro, de John Thorpe, que frequentemente cheirava exatamente ao
que transportava –, não era razão para estar descontente. Quando tinha 16
anos, ainda em idade de casar e não tão velha como agora, quatro homens
tinham-na pedido em casamento, mas o padre disse que a sua música era
um sinal de que estava destinada ao serviço de Deus e não à luxúria de
algum homem e, portanto, recusou-se a aceitar qualquer casamento. Alyx,
na altura, ficou aliviada, mas quanto mais velha ficava, mais tomava
consciência da sua solidão. Ela adorava a sua música e especialmente o que
fazia para a igreja, mas, às vezes… Como há dois verões atrás, quando
bebeu quatro copos de um vinho muito forte no casamento da filha do
presidente da Câmara, pegou na cítola, subiu a uma mesa e cantou uma
música muito, muito indecente, que inventou na hora. Claro que o padre a
teria impedido, mas, uma vez que bebera mais vinho do que toda a gente e
se rebolava na relva, agarrado ao estômago e rindo à gargalhada da canção
de Alyx, certamente não estava capaz de calar alguém. Tinha sido uma
noite maravilhosa, quando conseguira conviver verdadeiramente com as
pessoas que havia conhecido toda a vida. Não foi tratada como algo
descartável e posta de parte às ordens do padre, mas antes como um pedaço
sagrado do crânio de S. Pedro na igreja, uma maravilha inspiradora, mas
longe de ser palpável.
Agora, como sempre fizera, começou a dirigir os seus pensamentos para
uma canção. Respirando profundamente, espaçando o fôlego como lhe tinha
sido ensinado, começou a cantar uma balada sobre a solidão da vida de uma
jovem em busca do seu próprio grande amor.
– E aqui estou eu, pequeno rouxinol – ouviu-se uma voz masculina atrás
de si.
Tão empenhada estava no seu canto – e, certamente, a sua voz teria
abafado o som – que não se apercebeu da aproximação dos jovens a cavalo.
Eram três, todos altos, fortes, saudáveis como só a nobreza consegue ser,
com as faces coradas por aquilo que ela imaginou ser uma noite de folia. As
suas roupas, os veludos requintados e as guarnições de pele com uma joia a
brilhar aqui e ali, eram coisas que ela só tinha visto no altar da igreja.
Atordoada, olhou para eles e nem sequer se mexeu quando o maior homem
loiro desmontou.
– Então, serva – disse ele, soltando um hálito fétido. – Não reconheces o
teu próprio senhor? Permite-me que me apresente. Pagnell, em breve, futuro
conde de Waldenham.
O nome despertou Alyx. A famosa, gananciosa e vil família Waldenham
sugara os rendeiros do povoado até ao último cêntimo. Quando não tinham
mais, foram expulsos das terras, deixados à morte e a vaguear pelo país,
mendigando o seu pão.
Alyx estava prestes a abrir a boca para dizer àquele jovem Pagnell
imundo o que pensava dele quando a agarrou, inclinando a sua boca
horrível sobre a dela, enfiando-lhe a língua e fazendo-a engasgar-se.
– Cabra! – arfou ele quando ela lhe cravou os dentes na língua. – Vou
mostrar-te quem é o teu dono. – Com um só golpe, arrancou-lhe o manto e,
instantaneamente, a sua mão estava no colarinho do vestido dela, rasgando-
o facilmente e expondo um pequeno e vulnerável ombro e a parte superior
do peito dela.
– Aproveitamos esta petinga ou não? – zombou ele por cima do ombro
para os seus amigos, que estavam a desmontar.
A referência à sua falta de dotação física acima da cintura foi o que
transformou o medo de Alyx em raiva. Embora ela pudesse ter nascido
socialmente inferior a este homem, o seu talento fizera com que nunca fosse
tratada como inferior a ninguém. Com um gesto que nenhum dos homens
esperava, Alyx içou a saia, levantou a perna e pontapeou violentamente
Pagnell diretamente entre as pernas. No instante seguinte, estava instalado o
pandemónio. Pagnell curvou-se de dor enquanto os seus companheiros
tentavam desesperadamente ouvir o que ele dizia, pois ainda estavam
demasiado embriagados para compreenderem completamente o que se
passava.
Sem saber para onde ia, ou em que direção, Alyx começou a correr. A sua
capacidade pulmonar, ganha ao longo dos muitos anos de exercícios
respiratórios, foi-lhe muito útil. Correu através dos campos frios e desertos,
tropeçando duas vezes, ao tentar segurar o seu vestido rasgado e manter a
saia afastada dos pés.
Perto da segunda vedação, junto ao odioso curral de ovelhas, ela parou e
encostou-se ao poste, com as lágrimas a correrem-lhe pelo rosto. Mas,
mesmo através delas, conseguia ver os três cavaleiros que vasculhavam a
área à sua procura.
– Por aqui! – ouviu-se uma voz, à sua esquerda. – Por aqui! – Olhando
para cima, viu um homem mais velho a cavalo, trajando tão fina e
ricamente como Pagnell. Com o olhar de um animal encurralado, começou
a fugir novamente, afastando-se deste novo homem que a perseguia.
Ele apanhou-a facilmente, cavalgando a seu lado.
– Os rapazes não querem fazer-te mal – disse ele. – Estão apenas muito
animados e beberam um pouco demais ontem à noite. Se vieres comigo,
afasto-te deles e escondo-te algures.
Alyx não estava certa de poder confiar nele. E se a entregasse àqueles
nobres lascivos e embriagados?
– Anda lá, rapariga – incitou o homem. – Não quero ver-te magoada.
Sem outro pensamento, ela pegou na mão que lhe foi estendida. Ele
puxou-a para a sela diante dele e lançou o cavalo a galope, em direção à
linha distante de árvores.
– A floresta do Rei – arfou Alyx, agarrando-se à sela pela sua vida.
Nenhum plebeu estava autorizado a entrar na floresta do Rei, e ela tinha
visto vários homens enforcados por nela terem caçado coelhos.
– Duvido que Henrique se importe desta vez – comentou o homem.
Mal entraram na floresta, ele desceu-a do cavalo.
– Agora vai e esconde-te e não saias daqui enquanto o Sol não estiver
alto. Espera até veres outros servos nas suas tarefas e, depois, regressa por
onde vieste.
Surpreendida por ter sido chamada de serva, ela que era uma mulher
livre, Alyx acenou com a cabeça e correu para o interior da floresta.
O meio-dia demorou muito tempo a chegar e, enquanto ela esperava na
floresta escura e fria, com o vestido rasgado e sem a sua capa, tomou plena
consciência do seu terror perante o que poderia ter acontecido às mãos dos
nobres. Talvez tivesse sido a formação dada pelo padre e pelo monge que a
fizera acreditar que os nobres não tinham o direito de usar o povo como
bem entendiam. Ela tinha direito à paz e à felicidade, tinha o direito de se
sentar debaixo de uma árvore e tocar a sua música, e Deus não dera a
ninguém o poder de tirar tal coisa a outra pessoa.
Passada apenas uma hora, a sua raiva mantinha-a quente. É claro que
sabia que essa raiva vinha em parte de um acontecimento do verão passado.
O padre conseguira que o coro dos rapazes e Alyx cantassem na capela
privada do conde – o pai de Pagnell. Ensaiaram durante semanas e Alyx,
sempre a tentar aperfeiçoar a música, ficara exausta de tanto ensaiar.
Quando finalmente se apresentaram, o conde, um homem gordo corrompido
pela gota, tinha dito em voz alta que gostava de mulheres com mais carne e
que o padre devia trazê-la de novo quando ela pudesse entretê-lo noutro
lado que não na igreja. E saiu antes do fim da missa.
Quando o Sol estava precisamente sobre a sua cabeça, Alyx foi
sorrateiramente até à orla da floresta e observou durante muito tempo os
campos, à procura de alguém que se assemelhasse a um nobre. Hesitante,
foi fazendo o caminho de volta ao seu pomar de macieiras – que já não era
seu, já que agora traria sempre más memórias.
Aí chegada, Alyx sofreu um choque imenso ao deparar-se com a sua
cítola desfeita em pedaços e lascas, obviamente pisada e repisada pelos
cascos dos cavalos.
De imediato, lágrimas quentes de raiva, ódio, frustração e impotência
brotaram do seu corpo, correndo-lhe livremente pelo rosto. «Como foram
capazes?», pensou, furiosa, ajoelhando-se e pegando num pedaço de
madeira. Quando o seu colo estava cheio de bocados, percebeu a inutilidade
da ação e, com todas as suas forças, começou a atirar os pedaços contra a
árvore.
Depois, já com os olhos secos e os ombros direitos, deu início ao regresso
à segurança do seu povoado, a sua raiva contida por agora, mas ainda muito
próxima da superfície.

1 No original, honey wagon, que significa, literalmente, «carroça do mel». (N. do T.)
Capítulo Dois

O GRANDE SALÃO da casa senhorial estava decorado com maravilhosas


tapeçarias penduradas, e os espaços vazios cobertos com todo o tipo de
armas. A pesada e maciça mobília estava marcada por lâminas de machado
e cortes de espada. Na grande mesa, encontravam-se sentados três jovens,
com os olhos rodeados por pronunciadas olheiras, resultado de uma recente
atividade com pouco sono e muito vinho.
– Ela chegou para ti, Pagnell – riu-se um dos homens, enchendo a sua
taça de vinho e entornando-o na manga suja. – Pontapeou-te e desapareceu
como a bruxa que é. Ouviste-a cantar. Aquilo não era uma voz humana, era
sim destinada a enfeitiçar-te e, quando chegaste ao pé dela… – calou-se e
socou a palma da sua mão, rindo-se sonoramente.
Pagnell apoiou o pé na cadeira do homem e empurrou, derrubando
ambos.
– Ela é humana – gritou. – E não merece que perca mais tempo com ela.
– Tem uns olhos bonitos – disse um dos outros homens. – E aquela voz.
Achas que, quando lho enfiasses, ela cantaria de tal maneira que
encaracolaria os teus pelos das pernas?
O primeiro homem riu, endireitando a cadeira.
– Que romântico! Eu obrigava-a a cantar-me uma canção sobre o que ela
gostaria que lhe fizesse.
– Calados, os dois – gritou Pagnell, emborcando o vinho. – Digo-vos que
era humana, nada mais.
Os outros homens não responderam e ficaram calados por um momento,
mas, quando uma criada passou pela divisão, Pagnell agarrou-a.
– No povoado, há uma rapariga que sabe cantar. Quem é ela?
A criada tentou libertar-se do aperto doloroso.
– Chama-se Alyx – murmurou ela.
– Não resistas ou magoo-te – ordenou Pagnell. – Agora, diz-me
exatamente onde vive essa Alyx dentro desse vosso malvado povoado.
Uma hora depois, a coberto da noite escura, Pagnell e os seus três
acompanhantes estavam no exterior do povoado muralhado de Moreton,
lançando ganchos afiados de aço para o topo da muralha. Depois de três
tentativas, dois ganchos ficaram presos, com as cordas atadas a eles
penduradas até ao chão. Com muito menos agilidade do que se estivessem
sóbrios, os três homens subiram as cordas até ao topo da muralha, parando
um momento enquanto recuperavam os ganchos e as cordas, e desceram
para o beco apertado atrás das casas encavalitadas umas nas outras.
Pagnell levantou o braço, fazendo sinal aos outros para que o seguissem
enquanto se dirigia para a dianteira das casas, lendo as tabuletas penduradas
nas casas silenciosas.
– Uma bruxa! – murmurou, raivosamente. – Vou mostrar-lhes o quão
mortal ela é. Essa filha de um advogado, a es-cumalha da terra.
Parou junto à casa de Alyx, esgueirando-se rapidamente para a lateral da
mesma, na direção de uma portada trancada. Aplicou um forte empurrão,
ouviu-se um breve estrondo, a portada abriu-se e ele estava lá dentro.
No andar de cima, o pai de Alyx estava deitado em silêncio, com as mãos
a apertar o peito, enquanto as dores aí apareciam de novo. Ao som da
portada a ceder, sobressaltou-se, não acreditando de imediato no que ouvia.
Não havia assaltos no povoado há anos.
Manejando rapidamente a pederneira e a estopa, acendeu uma vela e
começou a descer as escadas.
– O que é que vocês pensam que estão a fazer, bandidos? – gritou em voz
alta, enquanto Pagnell ajudava o amigo a entrar pela janela.
Foram as suas últimas palavras. Num ápice, Pagnell atravessou a sala,
agarrou o velho pelo cabelo e apunhalou-o profundamente, enquanto lhe
cortava a garganta. Sem perder tempo a olhar de novo para o corpo caído
sem vida no chão, voltou aos seus amigos na janela. Quando entraram,
começou a subir as escadas.
Alyx não conseguira adormecer após os infortúnios do dia. Cada vez que
fechava os olhos, via Pagnell, cheirava o hálito horrível e sentia a língua
dele na boca dela. Tinha conseguido, de alguma forma, esconder do pai o
que acontecera, não querendo preocupá-lo, mas, pela primeira vez na vida,
algo para além da música ocupava os seus pensamentos.
Tal era a sua preocupação que não se apercebeu logo do barulho lá em
baixo, regressando à realidade apenas quando ouviu a voz irada do pai e o
baque estranho que se seguiu.
– Ladrões! – ofegou ela, lançando para trás as cobertas de lã e ficando de
pé, nua, no quarto. Pegou de imediato no seu vestido, enfiando-o pela
cabeça abaixo. Porque quereria alguém roubá-los? Eram pobres demais
para valer a pena. O cinto de Lyon!, pensou, talvez tivessem ouvido falar
nele. Abrindo um pequeno armário na parede, levantou habilmente o fundo
falso e retirou a única coisa de valor que possuía, um cinto de ouro,
apertando-o à cintura.
Um barulho no quarto do pai assustou-a e sentiu passos na direção do seu
quarto. Pegando num banco e num pesado castiçal de ferro, posicionou-se
atrás da porta, esperando sem respirar.
A porta abriu-se lentamente nas suas dobradiças de couro e, quando Alyx
viu nitidamente uma cabeça estranha a espreitar, desferiu-lhe um golpe com
o castiçal com toda a força.
Colapsado aos seus pés estava Pagnell e, com os olhos ainda abertos por
um instante, olhou-a antes de cair, inconsciente.
A visão do nobre, na sua pequena casa, reavivou o terror daquela tarde.
Não era um assalto vulgar, e onde estava o pai? Mais passos, pesados, a
subir as escadas, fizeram-na voltar à realidade. Após um olhar desesperado,
ela sabia que a janela era a única maneira de escapar. Correndo para ela,
não pensou quão alta estava quando se pendurou e saltou.
A queda atirou-a ao chão, rebolando contra a parede, atordoada, e
deixando-a sem fôlego durante um minuto aterrador. Não havia tempo para
ficar deitada no solo a tentar recompor-se. Devagar, com uma dor nas
costelas e na perna esquerda, coxeou em direção à lateral da sua casa, onde
uma portada estava aberta.
O luar não era suficientemente forte, mas, ao lado do seu pai, num
castiçal caído, havia uma vela acesa – e foi tudo o que precisou para ver
nitidamente o grande corte na sua garganta, e a cabeça caída numa poça do
seu próprio sangue.
Confusa, Alyx abandonou a janela e começou a afastar-se da casa. Não
sentia o ar frio nos braços, nem o frio a perfurar o seu vestido de lã
grosseiramente tecido. Já não queria saber de Pagnell, do que lhe pretendia
fazer ou do que tirara ele da sua casa, porque lhe levara tudo o que tinha. O
seu pai, a única pessoa que a amara não por ser música, mas simplesmente
porque gostava dela, estava morto. O que mais lhe poderia tirar aquele
nobre além disso?
Vagueando, sem ver para onde ia, finalmente caiu, ou quase desfaleceu,
em frente da igreja, de joelhos, de mãos entrelaçadas, e começou a rezar
pela alma do pai, para que fosse recebido no Céu com a receção que
merecia.
Talvez fossem os anos de formação que Alyx recebera que a haviam
preparado para se concentrar tão firmemente, ou talvez fosse a sua dor, mas
ela nada mais ouvia além do turbilhão que a percorria, nem viu ou ouviu as
chamas crepitantes que consumiam a sua casa e cremavam o corpo sem
vida do pai. O medo constante do fogo dentro das muralhas fez sair os
habitantes das suas casas e, na aflição, não repararam na minúscula forma
de Alyx aninhada no vão da porta da igreja.
À primeira luz do dia, os portões abriram-se e lá fora esperavam seis
cavaleiros de armadura, ostentando o brasão do conde de Waldenham. Os
cascos dos enormes garanhões ecoaram pelos estreitos caminhos entre as
casas e os cavaleiros cortavam qualquer sinal ou projeção de telhado que se
atravessasse no seu caminho, brandindo as espadas com as duas mãos, à
medida que se movimentavam lenta e possessivamente através da cidade.
As mulheres agarraram nos seus filhos, afastando-os para longe dos
perigosos cavalos, segurando-os, paralisadas, enquanto olhavam para
aqueles homens enormes e formidáveis, de elmos na cabeça, que
atravessavam a pacata cidade.
Os cavaleiros fizeram uma pausa em frente às ruínas fumegantes da casa
de Blackett e o líder sacou de um pergaminho da sua sela, pregando-o num
poste carbonizado, ainda de pé. Sem levantar o elmo, olhou de cima do seu
alto cavalo para os habitantes do povoado, assustados e de olhos
arregalados. Com um gesto rápido, empunhou a lança que carregava e
espetou-a habilmente num cão, atirando o corpo instantaneamente morto
para as cinzas.
– Leiam isto e fiquem atentos – disse ele com um rosnado que ecoou
pelas paredes de pedra da cidade.
Sem se incomodar com o povo, os homens lançaram os seus cavalos em
frente e dirigiram-se à saída da cidade, com grande estrondo, saindo pelo
lado oposto, destruindo tudo à sua passagem, antes de desaparecerem pelos
portões, deixando a população atordoada atrás de si.
Passaram-se alguns momentos antes que alguém recuperasse o suficiente
para olhar para o papel pregado ao poste, e o padre, que sabia ler, deu um
passo em frente. Levou o seu tempo a ler o pergaminho e os habitantes da
cidade ficaram em silêncio enquanto esperavam. Quando, finalmente, o
padre se virou, o seu rosto estava branco, lívido.
– Alyx – começou devagar. – Alyxandria Blackett foi acusada de heresia,
feitiçaria e roubo. O conde de Waldenham diz que a rapariga se serviu da
sua voz demoníaca para seduzir o seu filho e que, quando ele tentou resistir-
lhe, ela profanou a igreja. Como ele continuou a resistir, ela espancou-o
com os seus poderes malignos e roubou-o.
Por um momento, ninguém conseguia sequer respirar. A voz de Alyx,
obra do diabo? Talvez ela fosse surpreendentemente dotada, mas certamente
tinha sido Deus a conceder-lhe o seu talento. Será que não usara a sua voz
em louvor do Senhor? Claro que algumas das canções que compusera
estavam longe de ser música sacra, talvez…
Em conjunto, olharam para cima ao verem Alyx caminhar pelo caminho
que separava a sua casa das traseiras da igreja, viram-na tropeçar
ligeiramente num pedaço de terra levantado pelos cavalos dos cavaleiros.
Confusos, e alguns com a dúvida espelhada na cara, afastaram-se para a
deixar passar. Ela ficou parada e silenciosa, a olhar para o que tinha sido a
sua casa.
– Vem, minha filha – disse rapidamente o padre, colocando-lhe o braço
sobre os ombros, enquanto quase a puxava para a casa paroquial. Uma vez
lá dentro, começou a mover-se rapidamente, atirando pão e queijo para um
saco de lona. – Alyx, tens de deixar este lugar.
– O meu pai – disse ela, calmamente.
– Eu sei, nós vimos o seu corpo dentro das chamas. Tem calma, agora, ele
já estava morto e eu direi vinte e cinco missas pela sua alma. Temos de nos
preocupar contigo agora.
Quando percebeu que ela não estava a prestar-lhe atenção, deu-lhe um
abanão rápido, fazendo com que a sua cabeça voltasse à realidade.
– Alyx! Tens de me ouvir. – Quando Alyx começou a voltar a si, falou-
lhe do aviso para a sua prisão. – Há uma recompensa por ti, viva ou morta.
– Recompensa? – sussurrou ela. – Que valor tenho eu?
– Alyx, tu tens um grande valor, mas, por algum motivo, irritaste um
conde. Não contei a ninguém sobre a recompensa, mas eles descobrirão em
breve e nem todos te protegerão. Algum rafeiro ganancioso pensará apenas
em entregar-te pela recompensa.
– Então, que o façam! Eu sou inocente e o Rei… – O riso do padre
interrompeu-a enquanto a envolvia numa capa pesada e demasiado longa.
– Serás considerada culpada e o melhor que podes esperar é seres
enforcada. Quero que vás agora e esperes por mim na orla da floresta do
Rei. Esta noite irei ter contigo e espero ter um plano que possamos utilizar.
Vai agora, Alyx, e depressa. Tenta evitar ao máximo que alguém te veja.
Irei esta noite e levar-te-ei um instrumento e mais comida. Talvez
consigamos encontrar uma maneira de uma jovem rapariga ganhar o seu
sustento.
Antes que Alyx pudesse responder ao que estava a acontecer, foi
empurrada porta fora, com o saco de comida no ombro e as mãos a puxar a
longa capa para cima. Apressou-se na direção do portão, não fazendo
qualquer tentativa para se esconder, mas, como quase todos os habitantes da
cidade ainda estavam reunidos junto às ruínas da casa de Alyx, ninguém a
viu.
Uma vez na floresta, sentou-se, exausta, vergada pela dor, a sua mente
incapaz de compreender ou acreditar nos acontecimentos das últimas horas.
Passou-se uma hora e a imagem do seu falecido pai continuava fixa diante
dos seus olhos, e ela lembrou-se da vida deles juntos, da forma como ele
cuidara dela. Finalmente, após uma noite de oração e uma manhã horrível,
começou a chorar, e a chorar, e a envolver a capa sobre a sua cabeça,
encolhendo-se toda, e acabou por dar largas à sua dor. Ao fim de um bom
bocado, os seus músculos cansados começaram a relaxar e adormeceu,
ainda a tremer, coberta pelas dobras da capa.
O Sol estava quase a pôr-se quando acordou, com os músculos a doer, a
perna esquerda doía devido ao seu salto da janela, e a cabeça latejava.
Cuidadosamente, afastou o tecido do rosto para trás, apenas para ver um
homem sentado num tronco não muito longe dela. Com um arfar assustado,
procurou uma forma de escapar.
– Não precisas de fugir de mim – disse o homem calmamente, e a sua voz
fez com que ela o reconhecesse. Era o criado de Pagnell, aquele que a
ajudara a escapar ao nobre no dia anterior.
– Vieste atrás da recompensa? – perguntou ela, com algum desprezo na
voz. – Talvez eu conte como me ajudaste antes. Não creio que o teu senhor
vá gostar disso.
Para sua surpresa, o homem riu-se.
– Não tenhas medo de mim, criança – disse ele. – O teu padre e eu
tivemos uma longa conversa enquanto dormias e temos um plano para ti. Se
estiveres disposta a ouvir, penso que podemos esconder-te suficientemente
bem para que ninguém te encontre.
Anuindo brevemente, ela olhou para ele, à espera que continuasse. À
medida que o seu plano se desenrolava, os seus olhos iam-se arregalando
numa mistura de horror, medo e algum sentimento de antecipação em
relação à perspetiva de aventura.
O servo tinha um irmão que já fora soldado do Rei, mas, como o homem
tivera a infelicidade de passar a vida toda em batalhas até uma idade
avançada, tinha sido dispensado do serviço sem meios para se sustentar.
Durante dois anos, vagueara sozinho, quase a morrer de fome, até que se
juntou a um dos bandos de fora da lei, desajustados e desempregados, que
haviam feito a sua vida numa vasta floresta, a norte da cidade de Moreton.
Por um momento, Alyx sentou-se calmamente.
– Estás a propor que me junte ao bando? – perguntou ela, incrédula. –
Como... uma fora da lei?
O criado compreendeu a sua indignação. O padre tinha elogiado
largamente as boas qualidades da rapariga.
– Sim e não – respondeu ele. – Uma jovem como tu não estaria segura
com o bando. Ainda que, agora, tenham um líder e haja uma certa dose de
bondade cristã e alguma disciplina entre eles, uma rapariga como tu não
duraria muito.
Suspirando de alívio, Alyx sorriu ligeiramente.
– Além disso – continuou ele –, ninguém hesitaria em entregar-te ao
conde pela recompensa.
– Eu sei cantar. Talvez alguém me contratasse…
Levantando a mão, ele fê-la calar-se.
– Só os nobres podem dar-se ao luxo de ter os seus próprios músicos, ou
talvez algum comerciante rico; mas, mais uma vez, uma rapariga solitária,
desprotegida...
Desalentada, os ombros de Alyx descaíram. Haveria algum lugar seguro
para ela?
Quando o criado percebeu que ela estava consciente do problema que era
escondê-la, prosseguiu rapidamente com o seu plano.
– Se te tornasses um rapaz, podias esconder-te com os fora da lei. Com o
cabelo cortado, roupas de rapaz, talvez uma ligadura sobre o teu peito,
poderia resultar. O padre diz que podes mudar a tua voz à vontade, e a tua
aparência tanto pode passar por um rapaz como por uma rapariga.
Alyx não tinha a certeza se devia rir ou chorar com esta última
observação. Era verdade que não possuía uma beleza clássica, com lábios
carnudos e grandes olhos azuis, mas gostava de pensar...
– Vá lá – riu-se o criado –, não precisas de ficar assim. Tenho a certeza de
que, quando fores mais velha, vais encher e ficar quase tão bonita como
uma senhora.
– Tenho vinte anos – disse ela, com os olhos semicerrados.
O criado pigarreou, envergonhado.
– Nesse caso, devias estar grata pela tua aparência. Agora, anda daí, pois
está a escurecer. Trouxe algumas roupas de rapaz e, quando estiveres
pronta, vamos embora. Quero estar de volta antes que deem pela minha
falta. O conde gosta de saber onde andam os seus criados.
A ideia de que o poderia estar a pôr em perigo fez com que ela se
movesse rapidamente, pegando nas roupas dobradas que ele lhe estendeu.
Ao toque do tecido, parou por um momento, antes de fugir para as árvores
para se mudar. Foram precisos apenas alguns segundos para se livrar do
vestido que usava, mas as peças de vestuário de rapaz não lhe eram
familiares. Umas meias-calças de algodão tricotadas cobriram-lhe as pernas
até à cintura, onde as amarrou bem. A seguir, uma tira de tecido e ela tentou
não dar um suspiro de desgosto quando percebeu que precisava de muito
pouca ligadura para achatar os seus seios. Depois, uma camisa de algodão,
fina e macia, e continuou com uma camisa de lã mais pesada, com mangas
largas por cima, e, por último, um gibão comprido de lã bem tecida e
robusta. O gibão chegava à curva inferior das suas nádegas e era lindamente
debruado com um cordão dourado. Nunca tinha tido uma roupa tão rica
junto à sua pele e podia sentir as feridas, irritadas pelo seu vestido de lã, a
começarem a sarar. E o conforto da roupa de rapaz!, pensava ela ao
pontapear alto com uma perna e depois com a outra.
Enfiando as botas altas até aos joelhos e atando-as de lado nos tornozelos,
pegou no cinto dourado do monte das suas roupas e escondeu-o em torno da
cintura, debaixo do gibão e da camisa de lã. Finalmente pronta, amarrou
uma faixa bordada à cintura e dirigiu-se para onde o criado do conde a
esperava.
– Ótimo! – exclamou ele, virando-a, inspecionando-a, franzindo-lhe o
sobrolho ao olhar para as pernas, que eram um pouco finas demais para um
rapaz. – Agora, para o teu cabelo. – E tirou um par de tesouras de uma bolsa
ao lado dela.
Alyx deu um passo atrás, com a mão sobre o seu cabelo comprido e liso.
Nunca tinha sido cortado na sua vida.
– Vá lá – insistiu o homem. – Está a ficar tarde. É apenas cabelo,
rapariga. Vai voltar a crescer. É melhor cortar o cabelo do que tê-lo
queimado, juntamente com a cabeça, na fogueira, como uma bruxa.
Corajosa, Alyx virou as costas para o homem e deixou-o ter acesso ao seu
cabelo. Surpreendentemente, quando o sentiu cair, a sua cabeça sentiu-se
estranhamente leve e nada desagradável.
– Olha, está a encaracolar – disse o homem, para lhe agradar e aligeirar a
terrível situação. Quando terminou, fê-la dar a volta e acenou com a cabeça,
aprovando os caracóis e a ondulação que encimavam a sua carinha marota.
Pensou para si próprio que o cabelo curto e as roupas de rapaz lhe
assentavam melhor do que o vestido feio que ela usava.
– Porquê? – perguntou ela, olhando para ele. – Trabalhas para o homem
que matou o meu pai, então porque é que me estás a ajudar?
– Tenho cuidado do rapaz. – Ela sabia que ele se referia a Pagnell – desde
que era um bebé. Sempre teve tudo o que queria e o pai ensinou-o a tomar o
que não tinha. Tenho tentado, às vezes, corrigir os seus erros. Estás pronta?
– Obviamente, não queria discutir mais o assunto.
Alyx sentou-se atrás do homem no cavalo manso e partiram, mantendo-se
na orla da floresta, em direção a norte. Durante a viagem, o criado foi-lhe
ensinando como devia agir para manter o seu segredo. Devia caminhar
como um rapaz, ombros para trás, com passos largos. Não devia chorar ou
rir de forma tola, devia praguejar, não devia tomar banho em excesso, devia
coçar-se e cuspir e não devia ter medo de trabalhar, de carregar pesos ou
torcer o nariz à sujidade e às aranhas. Continuou e continuou até que Alyx
quase adormeceu, o que lhe custou outra palestra sobre a candura das
raparigas.
Quando chegaram à beira da floresta onde os fora da lei se escondiam, ele
deu-lhe um punhal para se proteger e disse-lhe para praticar o uso do
mesmo.
Logo que penetraram na escuridão da floresta ameaçadora, o criado parou
de falar e Alyx pôde sentir a tensão percorrer o seu corpo. Percebeu que as
suas mãos, agarradas à borda da sela, tinham os nós esbranquiçados.
O piar de uma ave noturna chegou-lhes suavemente e o criado respondeu-
lhe. Mais para dentro da floresta, outro pio e a resposta foram trocados, e o
criado parou, colocando Alyx no chão e desmontando.
– Vamos esperar aqui até de manhã – disse ele, numa voz quase
sussurrante. – Eles vão querer perceber quem somos antes de nos deixarem
entrar no seu acampamento. Vem, rapaz – disse ele mais alto. – Vamos
dormir.
Alyx descobriu que não conseguia dormir, mas, em vez disso, ficou
deitada debaixo da manta que o criado lhe deu e reviu mentalmente tudo o
que tinha acontecido, que por causa do capricho de um nobre qualquer
estava aqui, sozinha, nesta floresta fria e assustadora, ao mesmo tempo que
a vida do seu querido pai tinha sido encurtada. Enquanto pensava, a raiva
começou a substituir o seu medo, bem como a sua dor. Iria ultrapassar este
problema e, um dia, de alguma forma, vingar-se-ia de Pagnell e de toda a
sua espécie.
À primeira luz do dia, encontravam-se de novo a cavalo e, lentamente,
foram-se embrenhando cada vez mais no labirinto da floresta.
Capítulo Três

APÓS UM LONGO período em que seguiram cautelosamente através do


emaranhado de árvores e vegetação rasteira, não seguindo nenhum caminho
que Alyx pudesse ver e ela começou a ouvir vozes, vozes silenciosas, na
sua maioria masculinas.
– Ouço os homens falar – sussurrou ela.
O criado olhou-a sobre o ombro, incrédulo, pois não ouvia mais nada
além do vento. Passou-se bastante tempo até que também ele ouviu as
vozes.
De repente, e surpreendentemente, o mato cerrado abriu-se e, perante
eles, estava uma pequena aldeia de tendas e abrigos grosseiros. Um homem
de cabelo grisalho, com uma antiga e profunda cicatriz que ia da têmpora,
descia pela bochecha, pescoço e desaparecia no seu colarinho, apanhou as
rédeas do cavalo.
– Não tiveste problemas, irmão? – perguntou o homem da cicatriz e,
quando o irmão acenou com a cabeça, olhou para Alyx.
– É este o rapaz?
Ela susteve a respiração enquanto era observada, temendo que ele
percebesse que era uma mulher, mas ele desvalorizou-a, não lhe dando
importância.
– Raine está à tua espera – disse o homem da cicatriz ao seu irmão. –
Deixa o rapaz com ele e eu vou contigo e podes contar-me as novidades.
Com um aceno de cabeça, o criado orientou o cavalo na direção apontada
pelo seu irmão.
– Ele não percebeu que não sou um rapaz – sussurrou Alyx, meia
satisfeita, meia insultada. – E quem é Raine?
– É o líder deste grupo de gente. Só está aqui há algumas semanas, mas
tem sido capaz de impor alguma ordem sobre os homens. Se planeias ficar
aqui, tens de lhe obedecer a todo o momento, ou ele põe-te a andar daqui
para fora.
– O rei dos fora da lei – disse ela, de um modo sonhador. – Deve ser
muito cruel. Ele não é um... um assassino, pois não? – sussurrou ela.
O criado olhou para ela, rindo das suas mudanças de humor femininas,
mas, quando reparou no seu rosto, parou e seguiu o seu olhar hipnotizado
para algo mesmo à sua frente.
Sentado num banco baixo, sem camisa, afiando a espada, estava o homem
que era inconfundivelmente o líder de qualquer grupo de homens na sua
presença. Era um homem grande, muito grande, com músculos enormes e
salientes, entroncado, com as coxas salientes nas meias-calças de malha
preta que usava. O facto de estar sem camisa, em janeiro, na floresta fria e
sem sol, era espantoso, mas mesmo de longe Alyx podia ver que estava
coberto de um fino brilho de suor.
Tinha um belo perfil: nariz fino, cabelo preto, muito preto, com o suor a
humedecer-lhe os caracóis ao longo do pescoço, olhos profundos e sérios
sob sobrancelhas negras pesadas, a boca bem definida enquanto se
concentrava na pedra de amolar e no afiar da espada.
A primeira impressão de Alyx foi que o seu coração poderia parar de
bater. Ela nunca tinha visto um homem como este, de quem o poder
emanava como se fosse o suor a brilhar no seu corpo. As pessoas diziam
frequentemente que ela tinha um poder na sua voz, e ela perguntou-se se
seria como o poder deste homem, uma aura que rodeava todo o seu enorme
e magnífico corpo.
– Fecha a boca, rapariga – riu-se o criado – ou vais entregar-te. Sua
senhoria não aceitará um rapaz a babar-se nos seus joelhos.
– Senhoria? – perguntou Alyx, como se despertasse. – Senhoria! –
sussurrou ela, e voltou a raciocinar. Não era poder que via emanar deste
homem, era a sua sensação de que todo o mundo lhe pertencia. Gerações de
homens como Pagnell tinham-se reproduzido para criar homens como
aquele à sua frente, arrogantes, orgulhosos, convictos de que todos estavam
destinados a ser seus criados pessoais, levando o que queriam, mesmo um
velho e enfermo advogado que se atravessara no seu caminho. Alyx estava
nesta floresta fria e não em casa a praticar a sua música, onde pertencia, por
causa de homens como este que se sentavam num banco e esperavam que
outros viessem ter com ele.
O homem virou-se, olhando para eles com os seus olhos azuis, olhos
sérios que pouco deixavam escapar do que viam. Como se fosse um rei num
trono, pensou Alyx, e de facto fazia com que o banco rude parecesse um
trono, esperando que os seus humildes súbditos se aproximassem. Fora,
então, por isso que tinha tido de se vestir como um rapaz! Este homem, com
os seus modos nobres e superiores, exigindo que todos lhe fizessem vénia
para que lhes pudesse colocar os seus sapatos adornados com joias sobre as
costas. Ele era o líder daquele grupo de fora da lei e assassinos, e como teria
ele obtido essa honra duvidosa? Certamente porque todos eles acreditavam
na superioridade natural da nobreza; que este homem, por causa do seu
nascimento, tinha o direito de os comandar e eles, estúpidos como os
criminosos devem ser, não questionaram a sua autoridade, apenas
perguntaram quão baixo deveriam rastejar perante sua senhoria.
– É Raine Montgomery – disse o criado, não vendo a forma como os
olhos de Alyx endureceram, uma grande mudança em relação à delicadeza
original. – O Rei declarou-o um traidor.
– E, sem dúvida, que merece bem o título – cuspiu ela, ainda observando
Raine enquanto se aproximavam do homem, a sua força parecendo puxá-los
na sua direção.
O criado olhou para ela com surpresa.
– Outrora, era um dos favoritos do rei Henrique, e comandava os homens
do Rei no território de Gales, até que Lorde Raine soube que a sua irmã
tinha sido feita prisioneira por Lorde Roger Chatworth e…
– Uma disputa entre eles – concluiu ela, estalando os dedos. – E, sem
dúvida, que muitos homens inocentes foram mortos para alimentar o gosto
por sangue desses nobres.
– Ninguém foi morto – retorquiu o homem, desnorteado com a atitude
dela. – Lorde Roger ameaçou matar a irmã de Lorde Raine, por isso Lorde
Raine retirou-se; mas o rei Henrique declarou-o traidor por usar os próprios
homens do Rei numa guerra pessoal.
– Senhores! – rosnou Alyx. – Há apenas um senhor e o rei Henrique teve
razão em declarar o homem como traidor, uma vez que ele bem o merecia
por usar os homens do nosso bom rei para a sua própria luta pessoal. Agora,
esconde-se na floresta, usando os rufiões como seus súbditos. Diz-me, ele
mata-os quando lhe apetece ou contenta-se em tê-los a servir-lhe o jantar
em bandejas de prata?
O criado riu-se, compreendendo finalmente a sua hostilidade para com
Lorde Raine. Era evidente que os únicos nobres que conhecia eram Pagnell
e o seu pai. Usando-os como modelo, ela tinha motivos para desprezar
Lorde Raine.
– Vem sentar-te – disse Raine, tomando as rédeas e olhando para o
homem cansado no cavalo.
O primeiro pensamento de Alyx foi: «Ele sabe cantar!» Qualquer homem
com uma voz tão profunda e rica tinha de ser capaz de cantar. Mas, no
instante seguinte, os seus amáveis pensamentos foram-se.
– Desce daí, rapaz, e deixa-me olhar para ti – ordenou Raine. – Pareces-
me um pouco magro. Consegues aguentar um dia de trabalho?
Alyx nunca tinha montado a cavalo antes, e o novo exercício tinha
tornado o interior das suas pernas rígido e dorido. Quando tentou balançar
do topo do cavalo com pelo menos um pouco de bravura, as suas odiosas
pernas recusaram-se a obedecer e a esquerda, ainda magoada pela sua
queda, colapsou debaixo dela.
Raine segurou-a firmemente pelo antebraço e, para desgosto de Alyx, o
seu corpo reagiu instantaneamente a este homem que representava tudo o
que ela odiava.
– Tirai a mão de cima de mim! – rosnou-lhe ela, vendo o olhar
surpreendido no seu rosto bonito antes de ter de se agarrar à sela do cavalo
para evitar cair. O estúpido cavalo esquivou-se, fazendo com que Alyx
tropeçasse novamente antes que conseguisse equilibrar-se.
– Agora, se já acabaste – disse Raine, com os seus olhos azuis acesos e
aquela voz deliciosa a correr sobre ela como mel derretido –, talvez
possamos saber mais sobre ti.
– Isto é tudo o que precisais de saber sobre mim, senhor! – guinchou ela,
pegando no punhal e apontando-lho, desprezando a sua suposição de que
ela não valia nada e ele era uma dádiva de Deus à terra.
Completamente surpreendido com a hostilidade do rapaz, Raine não
estava preparado para o pequeno punhal afiado e mal teve tempo de se
afastar antes de ser atingido, não no coração, para onde estava inicialmente
destinado, mas na parte superior do seu braço.
Atordoada com o que tinha feito, Alyx ficou parada, os seus olhos fixos
no lento gotejamento de sangue que saía do braço nu do homem. Nunca
antes na sua vida fizera mal a ninguém.
Mas não teve muito tempo para pensar no seu ato precipitado porque,
antes de começar a pedir desculpa, ou antes mesmo de poder piscar um
olho, Raine Montgomery tinha-lhe pegado no fundo das calças e no
colarinho e atirou-a a deslizar, de cara para baixo, através do chão de meia
floresta. Ela devia ter fechado a boca porque os seus dentes inferiores
agiram como uma pá, recolhendo montes de folhas, sujidade e qualquer
outra porcaria que compusesse aquele chão esponjoso.
– Esta agora, seu cavalinho selvagem! – disse Raine de onde estava, atrás
dela.
Sentada e usando ambas as mãos para retirar furiosamente punhados de
sabe-se lá o quê da sua boca, e gemendo de dor da sua perna ferida, olhou
para cima para o ver de pé ao que parecia ser uma grande distância dela.
Entre ambos havia um rasto profundo e sinuoso feito pelo corpo de Alyx. E
o que viu renovou-lhe o sentimento de raiva. Raine Montgomery, aquele
nobre vil, estava rodeado por um grupo de homens e mulheres de aspeto
duvidoso, todos a rir, mostrando os dentes negros e podres, a sufocarem
com a própria língua, claramente a troçar da sua agonia. O próprio Raine
ria-se mais do que ninguém, e a visão daquelas covinhas profundas e longas
nas suas bochechas, que enfatizavam a sua alegria, não ajudou nada a
acalmar o seu temperamento.
– Vá lá – disse uma voz ao seu lado, o homem que a tinha trazido,
ajudando-a a levantar-se. – Tem tento na língua ou ele pode rejeitar-te por
completo.
Alyx começou a falar, mas parou para retirar um pedaço de pau alojado
entre a gengiva e a bochecha, e acabou por perder a sua oportunidade.
O homem aproveitou o momento para falar com Raine, com os dedos a
apertarem o braço de Alyx, quase a gritar para ser ouvido por cima da
algazarra.
– Meu senhor, por favor, perdoai o rapaz. Ontem, um nobre matou o seu
pai e queimou a sua casa. Ele tem razões para este ódio, e temo que se
estenda a todos os homens da vossa classe.
Instantaneamente, Raine acalmou e olhou para Alyx com simpatia, o que
a fez contrair-se e desviar os olhos. Ela não queria a piedade dele.
– Quem foi o nobre que fez isso? – perguntou Raine, com a voz a denotar
preocupação.
– O filho do conde de Waldenham.
Cuspindo de puro nojo, o rosto de Raine contorceu-se por um momento,
com os lábios finos enrolados num rosnado.
– Pagnell – disse ele, com a voz cheia de desprezo. – Esse não merece o
título de homem ou de nobre. Vem comigo, rapaz, e eu ensino-te que não
somos todos moldados do mesmo barro. Preciso de um escudeiro e tu
servirás muito bem.
Em dois passos, chegou ao pé dela e colocou-lhe o braço amigavelmente
sobre os ombros.
– Não me toqueis – arfou ela, saltando para longe dele. – Não preciso da
vossa piedade nem do trabalho leve de lhe servir os vossos bolos doces. Eu
sou... um homem e consigo aguentar-me. Vou trabalhar e ganhar o meu
sustento.
– Com que então bolos doces, não é? – perguntou Raine, com uma
covinha na bochecha esquerda. – Tenho um pressentimento, rapaz – disse
ele, olhando-a de cima a baixo – de que não fazes ideia do que é trabalhar.
As tuas pernas e braços parecem os de uma rapariga.
– Como vos atreveis a insultar-me dessa maneira! – replicou ela, temendo
ser revelada a qualquer momento e procurando o punhal, mas encontrando
apenas a bainha vazia.
– Foi outro dos teus erros – afirmou Raine. – Deixaste-o cair no chão. –
Lentamente, com grande encenação, retirou a pequena faca dela da cintura
das suas calças, aquelas meias-calças apertadas e que se agarravam ao seu
corpo, com uma aplicação triangular mal presa sobre a sua masculinidade. –
Vou ensinar-te a guardar as tuas armas contigo e a não as descartar tão
levianamente. – Indolentemente, passou o seu polegar ao longo da lâmina. –
Precisa de ser afiado.
– Está suficientemente afiado para cortar o vosso couro grosso – disse ela,
confiante, sorrindo-lhe em resposta, contente por poder retribuir-lhe alguma
da sua autoconfiança.
Como se de repente se lembrasse do corte sangrento, olhou-o de relance
antes de olhar para ela.
– Vem comigo, escudeiro, para tratar da minha ferida – ordenou-lhe,
virando-lhe as costas como se esperasse que ela o seguisse.
Alyx decidiu imediatamente que não queria ficar neste acampamento à
mercê e capricho deste homem Raine, que tanto a atraía, mas, ao mesmo
tempo, a deixava tão zangada. E não gostava daquelas pessoas sujas que a
rodeavam, olhando-a gulosamente como se ela fizesse parte de uma peça de
teatro para o seu entretenimento.
Ela virou-se para o criado que a tinha trazido.
– Não quero ficar aqui. Vou arriscar noutro lugar qualquer – disse,
voltando-se para o cavalo selado.
– Também não sabes como obedecer a uma ordem – ouviu-se a voz de
Raine por trás dela, um instante antes de a sua grande mão se agarrar ao
pescoço dela. – Não deixarei que um detalhe como o teu medo de mim me
impeça de arranjar um bom escudeiro.
– Afastai-vos! – gritou Alyx quando ele a empurrou à sua frente. – Não
quero ficar aqui. Não vou ficar aqui.
– No meu entender, estás em dívida comigo por derramares algum do
meu sangue. Agora, toca a entrar aí! – exigiu ele, enquanto a empurrava
para o interior de uma grande tenda de lona.
Tentando não chorar por causa da dor na perna e das pancadas que o seu
corpo já magoado tinha sofrido, segurou-se ao poste da tenda e tentou
manter-se direita.
– Blanche! – gritou Raine para fora da aba da tenda. – Traz-me água
quente e um bocado de linho e certifica-te de que está limpo!
– Agora, rapaz – disse ele, voltando-se para ela e, por um momento,
estudando-a. – Magoaste a tua perna. Tira essas meias-calças e deixa-me
vê-la.
– Não! – ofegou ela, afastando-se dele.
Raine ficou verdadeiramente perplexo.
– É a mim que temes – e fez um pequeno sorriso – ou és modesto? Ora
bem – continuou, sentado no catre à beira da tenda –, talvez sejas tímido. Se
eu tivesse as pernas como as tuas, também teria vergonha delas. Mas não te
preocupes, rapaz, vamos pôr algum músculo no teu corpo esquelético. Ah,
sim, Blanche, põe isso ali e vai-te embora.
– Mas não queres que eu trate a tua ferida?
Alyx fazia o seu próprio escrutínio às suas pernas, pensando que não
eram assim tão más, até que viu a mulher que falara. A sua sensibilidade ao
som e especialmente às vozes fez com que ela olhasse para cima
atentamente. A sugestão de um lamento, o tom suplicante, de alguma forma
ultrapassado por um toque de insolência, percorreram-lhe a coluna
vertebral. Viu uma mulher gorda, de cabelo loiro sujo e espigado, a olhar
para Raine como se o pudesse devorar a qualquer momento.
Verdadeiramente repugnada, Alyx olhou para o lado.
– O rapaz vai tratar da ferida.
– Certamente que não o farei! – replicou Alyx, veementemente. – A
mulher que o faça, isso é trabalho da mulher e ela parece que o iria fazer. –
Sorrindo, Alyx pensou que talvez gostasse de ser um homem e de não ter de
fazer todas as tarefas ingratas de uma mulher.
Raine, num gesto rápido e inesperado, inclinou-se para a frente, agarrou a
coxa de Alyx com uma das suas grandes mãos e puxou. Quando a sua perna
saiu a voar por baixo dela, aterrou pesadamente sobre o seu já ferido
traseiro.
– Precisas tanto de boas maneiras como de músculos. Podes ir, Blanche –
disse ele, dirigindo-se à mulher, espantada. Quando ficaram sozinhos,
voltou-se para Alyx. – Durante alguns dias, vou perdoar-te, já que não tens
um passado nobre, mas, se as tuas maneiras não melhorarem em breve, vou
castigar esse teu corpo insignificante e ver se consegues aprender a
comportar-te. A água está a arrefecer, por isso trata de limpar esta ferida e
liga-a.
Relutantemente, Alyx levantou-se, esfregando as nádegas e coxeando um
pouco. Quando chegou ao pé de Raine, ele estendeu o braço, aquele grande
braço bronzeado e musculado, com sangue desde o ombro ao antebraço,
para que ela o limpasse. Enquanto ela lhe tocava com o pano quente,
apercebeu-se do quão frias as suas mãos estavam, do calor da pele dele e da
profundidade do corte. Não lhe pareceu bem que tivesse magoado alguém
daquela maneira.
– Foi a primeira vez que fizeste sangue a alguém? – perguntou Raine,
gentilmente, com o seu rosto perto do dela e a voz suave enquanto a
observava.
Ela mal assentiu com a cabeça, não querendo cruzar-se com o seu olhar,
com as lágrimas a sufocar-lhe a garganta enquanto recordava a sua vida até
há dois dias atrás.
– Como é que magoaste a perna? – perguntou ele.
Pestanejando rapidamente e evitando chorar, ela encarou-o.
– A fugir de um seu par – respondeu-lhe ela com desprezo.
– Muito bem, rapaz. – Ele sorriu e, de novo, apareceram as covinhas. –
Não deixes que alguém te meta medo. Mantém a cabeça bem levantada, não
importa o que aconteça.
Ela enxaguou o pano ensanguentado e começou a lavar-lhe o braço todo.
– Devo dizer-te os deveres de um escudeiro? – perguntou ele.
– Nunca tendo tido as vossas vantagens de ter criadagem pessoal, receio
não saber o que se deve fazer pelo seu senhor.
Raine bufou, reagindo à resposta dela.
– É suposto limpares a minha armadura, cuidar dos meus cavalos, ajudar-
me pessoalmente da maneira que puderes e… – Os seus olhos brilharam. –
Servir-me os meus bolos doces. Achas que consegues fazer tudo isso?
– Só isso? – zombou ela.
– Um verdadeiro escudeiro aprenderia o básico para se tornar um
cavaleiro, a usar uma espada, uma lança, esse tipo de coisas, bem como
escrever as cartas do seu senhor e, por vezes, entregar mensagens
importantes. Mas não espero tanto de ti, uma vez que…
Alyx interrompeu-o.
– Uma vez que não sou um seu par e vós pensais que não tenho cérebro
para aprender? O meu pai era advogado e eu sei ler e escrever melhor do
que a maioria dos vossos nobres, aposto, e posso fazê-lo em latim e francês,
bem como em inglês.
Raine avaliou o braço por um momento, cerrando o punho, fazendo os
bíceps inchar, sorrindo sempre ligeiramente e de forma alguma ofendido
pelas suas acusações. Finalmente, olhou para ela.
– Ainda és demasiado fraco para fazer muito treino pesado – comentou
ele –, e pouco tem a ver com o teu berço. Quanto à leitura e à escrita, deves
ser melhor do que eu, pois não leio mais do que os nomes da minha família.
Ótimo! – exclamou ele, enquanto se levantava. – Tens uma mão delicada
para tratar as feridas. Talvez Rosamund possa precisar da tua ajuda.
– Outra das vossas mulheres? – zombou Alyx, movendo a cabeça na
direção da aba da tenda por onde Blanche tinha estado.
– Estás com ciúmes? – perguntou e, antes que Alyx pudesse dizer que não
tinha ciúmes de nenhuma mulher, ele continuou: – Também terás a tua
quota-parte de mulheres, quando tiveres a tua primeira barba e te pusermos
um pouco de músculo. Inclinando a cabeça, e olhando para ela, disse-lhe:
– És suficientemente bonito se não ficares com cicatrizes no campo de
batalha. As mulheres gostam de caras bonitas nos seus homens.
– Como a vossa? – questionou ela inadvertidamente e quase mordendo a
língua.
– Não me posso queixar – respondeu ele, obviamente muito divertido. –
Agora, tenho algum trabalho para ti. Esta armadura precisa de ser limpa e,
depois disso, deve ser polida para evitar a ferrugem.
Rapidamente, empilhou partes da armadura de aço, frente e costas,
formando uma grande pilha, que incluía as proteções de braços e pernas. O
elmo foi colocado por cima.
Confiante e arrogantemente, Alyx estendeu os braços e, no momento
seguinte, cambaleou para trás e teria caído se Raine não a tivesse segurado
pelas costas.
– É um bocadinho pesada para um rapaz do teu tamanho.
– Do meu tamanho! – rosnou ela, tentando equilibrar-se. – Se não fôsseis
tão grande como um par de bois, a armadura não precisava de ser tão
grande.
– A tua insolência ainda te vai custar alguns hematomas, e aconselho-te a
mostrares o devido respeito pelo teu senhor.
Antes que ela pudesse responder, ele praticamente empurrou-a para fora
da tenda.
– Há um riacho para norte – disse Raine, empilhando vários panos no
fardo da armadura cheia de lama que ela carregava. – Lava-a bem e depois
trá-la de volta. E, se lhe encontrar alguma nova amolgadela, acrescentarei
cinco amolgadelas ao teu couro. Entendeste, rapaz?
Alyx mal conseguia assentir com a cabeça, pois estava mais preocupada
em permanecer de pé sob o seu fardo, perguntando-se como é que alguma
vez conseguiria andar em vez de pensar numa qualquer réplica inteligente a
Raine. Lentamente, um passo de cada vez, começou a avançar, os braços já
a doer-lhe, o pescoço a girar-lhe de lado para ver em volta da pilha alta de
aço que carregava. Quando o seu corpo já doía tanto que havia lágrimas nos
seus olhos, viu finalmente o riacho. Na margem, começou a deixar cair a
armadura aos pés, mas, lembrando-se da ameaça de Raine, apoiou-se nas
pernas, agachou-se e baixou cuidadosamente os trinta quilos de armadura
até ao chão.
Por um momento, ficou ali sentada, com os braços estendidos,
perguntando-se se alguma vez voltariam a ser como dantes. Quando os
voltou a sentir e toda a sensação era de dor, mergulhou-os, camisa e tudo,
na água fria e límpida do riacho.
Vários minutos depois, Alyz olhou novamente para o amontoado da
armadura com um grande suspiro. Ali estava a tarefa ingrata de mulher.
Qual era a diferença entre lavar a louça e lavar a armadura? Com outro
suspiro, pegou nos panos e começou a remover a crosta de lama, suor,
ferrugem e o que quer que fosse que mantinha a sujidade junta.
Uma hora depois, tinha conseguido tirar a sujidade da armadura, tendo-a
passado para si mesma. Nunca suara tanto na sua vida e cada gota fazia com
que a sujidade se agarrasse à sua pele. Então, despiu a sua túnica, usou um
pano limpo para lavar a maior parte da sujidade e colocou-a a secar numa
pedra enquanto lavava a cara e os braços.
Ao regressar à procura de um pano para se secar, alguém lho entregou.
Secando rapidamente o rosto, abriu os olhos e viu um homem
espantosamente bonito. O cabelo negro e ondulado emoldurava um rosto
perfeito, com as maçãs do rosto salientes. Olhos quentes e escuros
brilhavam sob longas e grossas pestanas. Alyx pestanejou duas vezes para
se certificar de que aquele anjo negro era real e, no seu silêncio atordoado,
não viu a espada apontada à sua barriga.
Capítulo Quatro

– QUEM ÉS TU? – perguntou aquele homem de aparência demasiado


perfeita para ser realmente um interrogatório.
Alyx, desabituada do perigo na sua vida, não reagiu totalmente à espada,
mas à música na voz deste homem. Havia sentido que Raine, com a sua voz
profunda, podia cantar se tentasse, mas tinha a certeza de que este homem
cantava.
– Eu sou o novo escudeiro de Raine – respondeu ela calmamente, usando
a voz e os seus muitos anos de treino para trazer a voz do fundo do seu
peito.
Por um momento, ele olhou para ela, intrigado, sem palavras, e muito
lentamente voltou a embainhar a espada, nunca desviando os olhos dos
dela.
– Há algo na tua voz. Alguma vez cantaste?
– Um pouco – disse ela, com os olhos a brilhar, dando a conhecer todo o
seu íntimo com essa simples afirmação.
Sem dizer mais uma palavra, ele alcançou a aljava de setas que
transportava às costas e sacou de uma flauta. Começou a tocar uma canção
simples e comum que Alyx conhecia bem. Por um momento, fechou os
olhos, deixando a música flutuar sobre ela. Os últimos dias tinham sido o
período mais longo que estivera sem música desde aquele dia, há dez anos
atrás, quando pegara no alaúde do trovador. Enquanto a música a envolvia,
os seus pulmões enchiam-se de ar e ela abriu a boca para cantar.
Ao fim de apenas quatro notas, o jovem deixou de tocar e a sua boca
abriu-se em descrença, de olhos bem abertos. Alyx sorriu, continuou a
cantar e fez-lhe sinal para que continuasse.
Com um rápido olhar de agradecimento erguido em direção ao céu e um
riso de pura alegria, o homem voltou a levar a flauta aos lábios.
Alyx seguiu a melodia durante algum tempo, mas a sua necessidade de
criar era demasiado forte para não se manifestar. Aqui estava alguém que
sabia tocar e ela perguntava-se o que mais poderia ele fazer. À procura de
algo para lhe dar mais som, viu um tronco oco bem próximo. Ainda a
cantar, nunca saltando um tempo, agarrou nas costas, no peito e na
cobertura das coxas da armadura de Raine e colocou-as perto do tronco.
Rapidamente, arranjou umas baquetas e, por um momento, parou de cantar,
tocando sons nas partes da armadura e no tronco. Quando interiorizou os
sons, começou a cantarolar alguma da música na sua cabeça.
Fascinado, o jovem observou-a e, quando ela começou a cantar, uma nova
canção desta vez, seguiu-a com a sua flauta, lentamente no início até
apanhar a melodia e o ritmo. Quando lhe acrescentou uma variação da sua
própria autoria, ela riu, ainda cantando, e seguiu-o facilmente.
Depois disso, entraram numa espécie de competição, com Alyx a seguir
um caminho e o homem a seguir outro, mas ambos alinhados, testando a
habilidade um do outro.
E, quando o homem atirou a flauta ao chão e juntou a sua voz forte e clara
à dela, foi a vez de Alyx ficar espantada por um momento, pelo menos o
suficiente para a fazer perder um tempo, o que, a avaliar pela expressão no
seu rosto, deu ao homem uma grande alegria. Agarrando as suas mãos,
ambos de joelhos e voltados um para o outro, fundiram as suas vozes,
elevando-as em direção ao céu.
Por fim, terminaram, e à sua volta havia um silêncio total e absoluto,
como se o vento e as aves tivessem parado para ouvir a sua magnífica
música. Com as mãos ainda entrelaçadas, ficaram imóveis, olhando um para
o outro com uma mistura de amor, admiração, surpresa, deleite e afinidade.
– Jocelin Laing – disse, finalmente, o belo jovem, quebrando o silêncio.
– Alyx... ander Blackett – respondeu ela, engasgando-se com o nome
masculino.
Jocelin franziu uma das suas sobrancelhas perfeitas e começou a dizer
algo, mas a voz de Raine interrompeu-o.
– Joss, vejo que conheceste o meu novo escudeiro.
Embaraçada, Alyx largou as mãos de Jocelin e tentou levantar-se, mas a
sua perna ferida falhou-lhe.
Bruscamente, Raine agarrou-lhe o braço.
– Se os dois já se divertiram, podes trazer a minha armadura de volta e
limpar-lhe a ferrugem. Joss, conseguiste caçar alguma coisa?
Com as bochechas claramente ruborizadas, Jocelin encarou Raine, o seu
corpo magro e de ombros largos parecia minúsculo ao lado da figura
enorme de Raine.
– Tenho quatro coelhos junto ao riacho.
– Coelhos! – grunhiu Raine. – Vou tentar apanhar um ou dois veados
mais tarde, mas agora, rapaz, regressemos ao acampamento e vamos dar
uma vista de olhos nessa perna. Não me serves de nada se estiveres
aleijado.
Resignada, Alyx juntou os elementos da armadura e Jocelin carregou-os
nos seus braços, juntamente com a sua túnica húmida. Ela seguiu Raine de
volta ao acampamento, perguntando-se sobre o quanto ele teria ouvido da
cantoria.
Se ouvira alguma coisa, não o comentou e, ao entrar na tenda, indicou a
Alyx que pousasse a sua armadura.
– Agora, tira essas meias-calças e vamos ver essa perna.
– A minha perna está a sarar bem – disse ela, em pé, firme onde estava.
Cerrando os olhos na sua direção, Raine aproximou-se dela.
– Mais vale perceberes agora que todos neste campo fazem a sua parte.
Não podemos dar-nos ao luxo de perder tempo a tratar de pessoas doentes.
Despe-te enquanto eu vou chamar a Rosamund – disse ele, enfiando uma
camisa e um gibão antes de sair da tenda.
Assim que se foi embora, Alyx tirou rapidamente as meias-calças
apertadas, pegou num pano e amarrou-o na cintura, cobrindo o cinto de
Lyon oculto por baixo das suas roupas, e formando uma tanga. Uma grande
parte da coxa e da anca ficaram expostas e, enquanto as olhava, pensou que
não eram feias de todo e sentiu que o facto de ser mulher seria descoberto
agora. Paciência, suspirou ela, era bom pensar que alguma parte dela, já que
não era o caso da sua cara, era tão bonita que só podia pertencer a uma
mulher.
Um som na abertura da tenda fê-la olhar para cima e ali, de perfil, estava
certamente uma das mais belas mulheres alguma vez nascidas na terra.
Pestanas tão longas que pareciam não ser verdadeiras, curvadas sobre uns
lindos olhos verdes, um nariz perfeito e boca recurvada, com os lábios
finamente moldados, esculpidos, uma beleza clássica, como qualquer
mulher sonharia ser. E atrás dela estava Raine. Não admirava que ele nunca
tivesse reparado no seu escudeiro!, pensou ela. Com mulheres como esta
por perto, porque olharia ele para alguém simples e vulgar como ela?
– Esta é Rosamund, uma curandeira – explicou Raine, e a sua voz tinha
uma suavidade agradável que fez com que Alyx olhasse para ele
maravilhada. Seria bom ouvi-lo usar essa voz quando falava com ela.
De seguida, Rosamund virou-se e um arfar involuntário escapou a Alyx,
pois todo o lado esquerdo do rosto de Rosamund estava coberto por uma
marca de nascença de um rosa profundo – a marca do diabo.
Instantaneamente, levantou a sua mão e benzeu-se na esperança de se
proteger do poder maligno, mas os seus olhos cruzaram-se com os de Raine
e as suas orbes azuis fixaram-se nela em sinal de aviso e ameaça.
– Se preferes que não te toque... – disse Rosamund com uma voz que
indicava que estava perfeitamente habituada a ser repelida.
– Não, claro que não – respondeu Alyx hesitantemente e, depois, mais
decidida: – Não há nada de errado com a minha perna, apenas o que este
grande cavalo de um homem pensa estar errado.
Com um olhar surpreendido, Rosamund olhou para cima, para Raine, mas
ele apenas bufou.
– O rapaz não tem maneiras… ainda – acrescentou ele num tom
ameaçador. Parecia satisfeito por Alyx ir tratar Rosamund com respeito e
afastou-se delas, sem olhar uma única vez para as pernas de Alyx, notou ela
com tristeza.
Gentilmente, Rosamund pegou na perna de Alyx, levantou-a, virou-a para
um lado e para o outro, não vendo sinais externos de ferimentos.
– O meu nome é Raine Montgomery – disse ele na direção delas. –
Prefiro ser tratado pelo meu nome do que ser… um qualquer animal à tua
escolha.
– E devo anteceder o vosso nome com «sua majestade» ou «vossa
senhoria» será suficiente? – Ela sabia estar a ser exageradamente
desafiadora e não fazia ideia de como seria a ira dele, mas ainda estava
zangada pela forma como ele a forçara a ficar no acampamento.
– Só Raine chega perfeitamente – disse ele, olhando-a em resposta, a
sorrir. – Acho que as regras da sociedade não são muito úteis neste lugar. E
o que é que te devo chamar?
Alyx ia começar a responder, mas Rosamund puxou-lhe a perna de tal
forma que Alyx deu um grito involuntário de dor e levantou-se
imediatamente do seu banco. Tentando controlar as lágrimas, cerrou os
dentes e disse:
– Alyxander Blackett.
– O que se passa com o rapaz? – perguntou Raine.
– Distendeu alguns dos músculos e não há nada a fazer a não ser ligá-los
e deixá-los sarar por si. Não há nenhum remédio que lhe possa dar, talvez
uma cataplasma esta noite, mas nada mais.
Raine ignorou o olhar de já-te-tinha-dito de Alyx, enquanto segurava a
aba da tenda para Rosamund e a via sair.
Em segundos, Alyx vestiu-se de novo enquanto Raine estava de costas, e
tentou colocar um tom de voz normal.
– Ela é uma mulher bonita – comentou, tentando não demonstrar o quanto
estava interessada na resposta de Raine.
– Ela acha que não é – disse ele – e, de acordo com a experiência que
tenho das mulheres, elas devem acreditar que são bonitas antes de o serem.
– E, sem dúvida, que tendes muita experiência com as mulheres.
Ele franziu uma das sobrancelhas escuras enquanto lhe sorria.
– Levanta esse teu rabo escanzelado e vamos ao trabalho.
Tentando não ficar magoada com os seus comentários demasiado pessoais
sobre o seu corpo, Alyx seguiu-o lá para fora, com as grandes pernas
calcorreando o chão a um ritmo furioso enquanto ela se apressava atrás
dele. Sem parar, ele pegou num grande pão escuro de um forno de tijolo
improvisado, abriu-o ao meio e deu um pedaço a Alyx, que olhou para o
pão com alguma consternação, pois era um bocado maior do que ela
normalmente comia num dia.
Enquanto devorava o pão pesado e sólido, Raine conduziu-a através da
aldeia de foras da lei. Todos os abrigos eram de má qualidade,
completamente temporários, e os cheiros que deles emanavam eram
horríveis. Obviamente, não existiam aqui quaisquer práticas higiénicas
como havia no seu belo povoado amuralhado.
– Não é grande coisa, pois não? – perguntou Raine, observando o seu
rosto. – O que se pode ensinar a pessoas que esvaziam os seus penicos à
frente da sua própria porta?
– Quem são estas pessoas? – perguntou ela, olhando, enojada, para as
mulheres imundas e de aspeto cansado a fazer várias tarefas domésticas
enquanto os homens se sentavam e cuspiam, de vez em quando olhando
para Raine e Alyx com soslaios insolentes. Sem se aperceber que o fazia,
aproximou-se de Raine.
– Aquele além – disse, apontando –, matou quatro mulheres. A sua voz
soou bastante repugnada. – Mantém-te longe dele. Gosta de aterrorizar
qualquer coisa mais pequena que ele. E aquele homem com a venda no olho
é o Cavaleiro Negro, o ladrão das estradas. Tornou-se tão famoso que teve
de se retirar no auge da sua carreira – acrescentou sarcasticamente.
– E aqueles? Os homens amontoados à volta do fogo?
Raine franziu ligeiramente a testa.
– Esses sofrem de melancolia. São rendeiros, expulsos pela Lei dos
Cercamentos de Terras. Não sabem nada, à exceção de colheitas e, tanto
quanto posso dizer, não querem aprender nada de novo.
– Cercamentos! – sibilou ela. – Não admira que eles vos odeiem.
– A mim? – perguntou ele, verdadeiramente espantado. – Porque me
odiariam eles?
– Vocês tomaram as quintas deles, puseram cercas à volta do que era a
sua terra e puseram as vossas ovelhas nojentas nos currais – disse ela muito
convencida, deixando-o saber que nem todos os que não eram de origem
nobre eram tão pouco instruídos como aqueles tolos.
– Eu fiz isso, não fiz? – disse ele, sem sorrir, mas com uma covinha no
rosto que revelava a sua diversão. – Julgas sempre um grupo inteiro de
pessoas pelas ações de um? Não há nenhum ladrão na tua aldeiazinha? Se
esse ladrão me roubasse os bolsos, devia eu enforcar toda a gente do
povoado, em nome da justiça?
– Não... não, acho que não – admitiu ela, relutantemente.
– Toma, come isto – disse ele, dando-lhe um ovo cozido e tirando-lhe o
que restava do seu pão e comendo-o ele próprio. – Não cresces mais se não
comeres. Agora, vamos tentar fazer algo relativamente à tua falta de
músculo.
Dito isto, conduziu-a através das árvores em direção aos sons que
escutava desde que tinha chegado. Quando chegaram a uma área grande e
desimpedida, ela parou, de olhos bem abertos, a olhar para a cena à sua
frente. Homens, muitos homens, pareciam estar a tentar matar-se uns aos
outros, aos seus cavalos ou a si próprios. Os homens investiam uns sobre os
outros com espadas, sobre bonecos empalhados com lanças ou faziam
contorções corporais usando pedras presas aos seus corpos.
– O que é isto? – murmurou ela, sem saber como reagir.
– Se querem sobreviver, os homens devem saber lutar – referiu ele, com
os olhos postos nos homens. – Vocês os dois, aí! – gritou ele tão alto que
Alyx se assustou. Em duas passadas vigorosas, aproximou-se dos dois
homens que tinham largado as espadas e se agrediam com os punhos. Raine
agarrou-os pelas costas dos farrapos que vestiam, abanando-os como cães e
separou-os. – Homens honrados não lutam com os punhos – rugiu ele. –
Enquanto estiverem sob as minhas ordens, lutarão como se fossem homens
decentes e não como a escumalha que são. Se voltarem a quebrar as regras
do meu treino, serão castigados. Agora, voltem ao treino!
Silenciosa e um pouco assustada pela ferocidade de Raine, Alyx
permaneceu em silêncio até ele voltar para junto dela. A voz do homem
variava da doçura que usava com Rosamund até a este tom aterrador.
– Agora – disse ele, na voz suave que usava para ela –, vamos ver quão
forte tu és. Deita-te e eleva o teu corpo para cima usando apenas os braços.
Alyx não fazia a mínima ideia do que ele queria dizer e, perante olhar
apático dela, Raine suspirou como se estivesse muito enfadado, tirou a
camisa e o gibão, deitou-se no chão sobre a barriga e começou a levantar o
seu corpo repetidamente com os braços. Aquilo não parecia difícil e, por
isso, Alyx assumiu a mesma posição. Na primeira tentativa, apenas o tronco
se ergueu e, na segunda tentativa, os seus braços levantaram-na até meio
caminho e depois colapsaram.
– Demasiado tempo sentado! – declarou Raine e pegou-lhe pelo fundo
das calças, puxando aquela parte mais pesada para cima. – Agora, força!
Faz alguma coisa com esses braços fracotes!
Depois disso, Alyx rolou, afastando-se dele, e sentou-se.
– Não é tão fácil como parece – disse ela, esfregando os braços a tremer.
– Fácil! – bufou ele, caindo de novo sobre o estômago. – Senta-te nas
minhas costas.
Alyx demorou alguns momentos a acreditar no que ouvira. Sentar-se
naquela grande, nua e suada extensão de pele bronzeada pelo sol?
Impacientemente, ele apontou o local e Alyx sentou-se, como se o
cavalgasse. Usando apenas uma mão, ele começou a elevar-se para cima e
para baixo e a ela em cima dele, mas a última coisa em que Alyx estava
interessado era na sua demonstração de força. Nunca tinha estado tão perto
de um homem e, certamente, nunca tinha tido um entre as pernas antes. O
suor dele começou a humedecer-lhe o interior das suas coxas, ou talvez
fosse o seu próprio suor, mas estava certamente a ficar húmida. Os
músculos dele, salientes, esforçavam-se por levantar o seu considerável
peso corporal, bem como o dela com um braço, e ondulavam ao longo do
interior das suas pernas, enviando ondas de calor através do seu corpo. As
mãos dela, tocando a sua pele quente, pareciam muito vivas, muito
sensíveis. Os seus músculos e pele faziam música, tocando o seu corpo até
este cantar uma canção que ela nunca tinha ouvido antes.
– Ora, aí está! – exclamou Raine, rolando para um lado e deitando-a por
terra. – Um dia, quando fores um homem, serás capaz de fazer isto.
Sentada, a olhar para ele em pé e para aquela sua pele encantadora, e com
o seu corpo ainda a vibrar, pensou que a última coisa que queria era ser um
homem.
Atrás de Raine, surgiu Jocelin, com os seus belos olhos a brilhar,
observando-a, e era quase como se ele soubesse o que ela estava a pensar.
Envergonhada, desviou o olhar.
– Acho que deixaste o teu escudeiro sem palavras – comentou Jocelin
para Raine. – Esqueces-te de que as pessoas da nossa classe não estão
habituadas ao teu vigor físico.
– Estás demasiado ocupado sentado a contar o teu dinheiro – disse Raine,
com toda a sinceridade. – E o que é que te fez tão feliz hoje? Não tens
trabalho suficiente para fazer?
Joss ignorou a provocação.
– Só estava com curiosidade, pronto. Estava a caminho do meu treino
com o arco.
A seguir, dirigiu-se para os alvos no extremo do longo campo.
– Vais criar raízes aí? – perguntou Raine, olhando para baixo, para Alyx.
Quando ela se levantou, ele pegou numa longa espada de um homem que
passava e entregou-lha. – Pega no punho com as duas mãos e ataca-me.
– Não quero fazer mal a ninguém – disse ela, instantaneamente. – Eu nem
queria magoar o Pagnell quando...
– E se eu fosse o Pagnell? – questionou ele, num tom malicioso. – Ataca-
me ou, então, ataco-te eu.
A dor, tão recente e tão profunda, fê-la erguer a pesada espada do pó onde
a ponta da mesma repousava e avançou para ele. Quando a lâmina estava a
um fio de cabelo da sua barriga, ele desviou-se, evitando-a. Ela investiu
novamente e outra, e outra vez, e ainda assim, não o conseguia atingir.
Começou por um lado, mudou a intensidade e tentou pelo outro lado dele,
mas não importava o que ela fizesse, não conseguia atingi-lo.
Arquejando dos seus esforços, ela parou, descansando a ponta da espada
na terra, com os braços a doer e a tremer do esforço, enquanto Raine,
sorridente e confiante, lhe sorria até ela ansiar por atacá-lo com o aço que
segurava.
– Agora, vou dar-te outra oportunidade. Ficarei completamente quieto
enquanto me atacas.
– Isso tem truque – disse ela com tal fatalismo que ele se riu
sonoramente.
– Sem truques, mas tens de levantar a espada acima da cabeça e atacar-
me imediatamente. Se conseguires, vais atingir-me.
– Não consigo magoar ninguém. Fazer alguém sangrar…
A expressão de Raine mostrava crença no seu manejo da espada.
– Pensa em todas as ovelhas, em todos os rendeiros a quem obriguei a
passar fome por causa da minha ganância. Pensa em…
Alyx levantou alegremente a espada de imediato, planeando desferi-la na
sua cabeça, mas, assim que o fez, a maldita, e nada cooperativa, espada
começou a forçar-lhe os braços para trás. Já cansados e fragilizados, os seus
braços não a conseguiram segurar e, por alguns segundos, foi um
sofrimento – e o pedaço desgraçado de aço venceu.
O sorriso no rosto de Raine enquanto ela estava ali a segurar a longa
espada, com a sua ponta plantada entre os seus calcanhares, deixou-a
furiosa.
– És o rapaz mais fraco que eu alguma vez vi. O que fizeste da tua vida?
Ela recusou-se absolutamente a responder a essa pergunta enquanto torcia
a espada para a sua frente.
– Levanta-a acima da tua cabeça, baixa-a e fá-lo repetidamente até eu
voltar. Se te vir abrandar, duplicarei o teu tempo de treino – disse ele ao
deixá-la.
Para cima e para baixo, ergueu ela repetidamente a espada, com os braços
a queixarem-se do exercício.
– Vais aprender – disse uma voz atrás dela e ela virou-se para se deparar
com o soldado da cicatriz, o irmão do homem que a tinha trazido para ali.
– O teu irmão já partiu? Queria agradecer-lhe, embora neste momento
não tenha a certeza de que isto seja melhor do que aquilo que me poderia ter
acontecido.
– Ele não precisava de agradecimentos – retorquiu o homem asperamente
–, e é melhor não parares porque Lorde Raine está a olhar para este lado.
Com os braços trémulos, Alyx retomou os exercícios e repetiu-os várias
vezes, antes de Raine regressar para lhe mostrar como segurar a espada à
altura do braço, um braço de cada vez, levantando-a e baixando-a
repetidamente.
Depois do que pareceu ser uma eternidade, ele tirou-lhe a espada e
começou a caminhar de regresso ao acampamento. Os seus braços e ombros
pareciam ter sido trucidados e Alyx seguiu-o silenciosamente.
– Comida, Blanche – pediu ele por cima do ombro, a caminho da sua
tenda.
Agradecida, Alyx sentou-se num banco enquanto Raine pegou noutro e
começou a afiar a ponta de uma longa lança. Com a cabeça encostada a um
poste da tenda, ela estava quase a dormir quando Blanche apareceu com
umas taças de barro cheias de guisado e coalhada e soro de leite, misturado
com lentilhas macias cozidas e mais do pesado pão preto, e vinho com
especiarias em canecas.
Quando Alyx levantou a sua colher de pau, os seus braços começaram a
sacudir-se espasmodicamente, protestando contra o que lhes tinha acabado
de fazer.
– És demasiado mole – grunhiu Raine, com a boca cheia. – Vai levar
meses a endurecer-te.
Silenciosamente, Alyx sabia que morreria se tivesse de aguentar uma
semana mais que fosse da tortura daquele dia. Comeu o melhor que pôde,
demasiado cansada para prestar muita atenção à comida, e estava quase a
adormecer quando Raine lhe agarrou o antebraço e a puxou para cima.
– Ainda falta muito para acabar o dia – disse ele, rindo-se obviamente do
seu esgotamento. – O acampamento precisa de comida e nós temos de a
arranjar.
– Comida? – gemeu ela. – Deixa-os morrer à fome e deixa-me dormir.
– Morrer à fome! – bufou ele. – Eles matar-se-iam uns aos outros pela
comida existente e só os mais fortes sobreviveriam. E tu – disse ele, com os
dedos a tocarem-se enquanto rodeavam o braço dela – não duravas uma
hora. Por isso, vamos caçar para te manter vivo e a eles também.
Com um puxão, ela soltou-se da sua mão. Homem estúpido, pensou ela,
não veria que ela era mulher? Sem dizer mais nada, ele saiu da tenda e ela
correu atrás dele, seguindo-o até à orla do acampamento onde os cavalos
eram guardados. Enquanto caminhava, viu as pessoas do acampamento a
descansar, digerindo a sua comida, e ninguém a trabalhar à exceção de
Raine.
– Será possível que saibas montar? – perguntou ele, sem qualquer
esperança presente na voz.
– Não – sussurrou ela.
– O que fizeste na tua vida? – voltou ele a perguntar. – Nunca conheci um
rapaz que não soubesse montar.
– E eu nunca conheci um homem que soubesse tão pouco sobre as
pessoas fora do seu próprio mundo. Passaste a tua vida num trono de ouro
sem fazer mais nada senão lutar com espadas e montar grandes cavalos?
Atirando uma pesada sela com estrutura de madeira para cima do seu
cavalo, Raine disse:
– Tens uma língua afiada, mas, se, não fôssemos nós a treinar para lutar,
quem te protegeria em caso de guerra?
– O Rei, claro – respondeu ela, de forma presunçosa.
– Henrique! – suspirou Raine, com um pé no estribo. – E quem é que
supões que protege Henrique? Quem é que ele convoca quando é atacado
senão os seus nobres? Dá-me o teu braço – disse ele e facilmente a levantou
para a sentar no dorso duro do cavalo, atrás da sua sela. Antes que ela
conseguisse dizer algo, tinham partido a uma velocidade estonteante.
Capítulo Cinco

DEPOIS DO QUE PARECIAM ter sido horas a saltar para cima e para baixo no
dorso ósseo do cavalo, e com os nós dos dedos brancos de se agarrar à
borda da sela, Raine parou abruptamente o animal e Alyx quase voou por
cima da cauda.
– Segura-te – rosnou enquanto a agarrava por onde conseguiu, a sua coxa
dorida, fazendo-a ofegar de dor. – Silêncio! – ordenou ele. – Ali, através das
árvores, estás a vê-los?
Limpando as lágrimas de dor com a manga, pôde finalmente ver uma
família de javalis a revolver o solo. Os animais pararam, olharam para cima
com os seus olhinhos mesquinhos a brilhar nos seus corpos magros e
rígidos, e cheiraram sobre as longas presas afiadas que sobressaíam das
suas bocas.
– Agarra-te a mim – gritou Raine, segundos antes de impulsionar o
cavalo para a frente e ir atrás do porco maior, com a lança apontada para
baixo.
– Segura-te ao cavalo com os joelhos – disse ele quando Alyx, de boca
aberta, susteve a respiração quando o javali carregou sobre eles. O animal
era enorme em comparação com as pernas finas do cavalo.
De repente, Raine mergulhou de lado, ficando o seu corpo paralelo ao
chão. Uma vez que Alyx se agarrava a ele, desceu com ele. Desequilibrada
e a cair, agarrou-se a Raine com todas as suas forças, enquanto ele impelia a
lança contra a espinha dorsal do furioso animal. O grito hediondo era a voz
da morte e Alyx enterrou o rosto nas costas largas de Raine.
– Larga-me! – rosnou ele, sacudindo o porco da sua lança e, depois,
retirando os dedos de Alyx do seu peito. – Quase que nos fazias cair. Agora,
segura a sela com todas as tuas forças.
Depois dessa ordem, lançou-se novamente, rasgando a floresta,
esquivando-se dos ramos das árvores por cima e dos lados, enquanto corria
atrás de outro porco. Mais dois foram abatidos de forma tão limpa como o
primeiro e, antes de parar novamente, teve de arrancar os dedos de Alyx do
seu estômago. Ela não fazia ideia de quando o tinha agarrado e estava
contente por ele não ter feito mais comentários sobre a sua cobardia.
Quando se libertou do aperto dela, desmontou, tirou algumas correias de
couro da sua sela e, após uma abordagem cautelosa aos animais, atou-lhes
as patas.
– Desmonta – disse ele, e esperou pacientemente que ela obedecesse.
As suas pernas, ainda com falta de exercício, cederam debaixo dela e teve
de se agarrar à sela para evitar a queda.
Ignorando-a, Raine atirou os porcos mortos para o dorso do seu cavalo e,
depois, dirigiu-se imediatamente para a cabeça do cavalo para o acalmar
enquanto ele se empinava, não gostando do cheiro de sangue tão perto dele.
– Traz o cavalo e segue-me – disse-lhe ele, virando-lhe as costas e
caminhando em frente.
Depois de olhar, amedrontada, para o garanhão, com as orelhas inclinadas
para trás, os olhos furiosos e suado da corrida, Alyx, em pânico, inspirou
profundamente e pegou nas rédeas. O garanhão esquivou-se e Alyx saltou,
olhando rapidamente na direção de Raine, vendo-o de relance por entre as
árvores.
– Vá lá, cavalo – sussurrou ela, aproximando-se lentamente do animal,
mas ele afastou-se dela.
Frustrada, ficou imóvel, de olhos fixos nos do cavalo, e suavemente,
começou a cantarolar em surdina, tentando notas e tempos diferentes até
sentir que o cavalo gostava bastante de uma moda muito antiga e simples. À
medida que o cavalo acalmava, ela pegou nas rédeas e a sua voz ganhou
força à medida que ganhava confiança.
Alguns minutos mais tarde, e muito orgulhosa do seu feito, chegou à
pequena clareira onde Raine esperava impacientemente com o terceiro
porco.
– Ainda bem que tenho vigias espalhados por aí – disse ele, atirando o
porco amarrado para as costas do garanhão –, caso contrário, com esse
barulho todo, qualquer pessoa num raio de um quilómetro podia ouvir-te.
Alyx ficou completamente chocada. Desde os seus dez anos de idade que
só ouvia os elogios mais profusos à sua música e, agora, era referida como
«barulho». Sem dizer nada, permitiu que Raine a puxasse para a sela à sua
frente e cavalgaram de regresso para o acampamento, com as suas costas a
baterem-lhe no peito.
Uma vez chegados, Raine desmontou, ignorando Alyx, ainda na sela,
enquanto desamarrava os porcos e os atirava para junto de uma fogueira.
Enquanto Jocelin se aproximava, Raine passou-lhe as rédeas.
– Ensina o rapaz a limpar o cavalo – disse-lhe, antes de se dirigir à sua
tenda.
Depois de um sorriso tranquilizador para Alyx, Joss conduziu o cavalo na
direção da clareira onde estavam os outros cavalos.
– Rapaz! – murmurou Alyx enquanto desmontava, agarrando-se à sela
para se apoiar. – Rapaz, faz isto; rapaz, faz aquilo. É tudo o que sabe dizer.
Quando Joss desapertou a sela, Alyx pôs-se em bicos de pés, agarrou a
sela e puxou-a, caindo imediatamente para trás e estatelando-se com a sela
pesada em cima dela.
Obviamente tentando não rir, Jocelin pegou na sela enquanto Alyx
esfregava o queixo ferido onde a sela a tinha atingido.
– Estará Raine a tornar a tua vida miserável?
– Está a tentar – disse ela, ao tirar-lhe a sela e, após três tentativas,
conseguiu colocá-la em cima de uma armação de madeira. – Oh, Joss,
suspirou ela. – Estou tão cansado. Esta manhã, ele mandou-me esfregar a
armadura dele, depois passei horas com aquela espada pesada. Agora, foi a
caça e cuidar daquela grande besta.
A este comentário, o garanhão rolou os olhos e começou a empinar-se.
Sem pensar, Alyx cantou seis notas e o animal acalmou.
Jocelin teve de controlar o seu espanto perante o uso inconsciente dela da
sua voz antes de conseguir falar.
– Raine tem muita gente a seu cargo.
– Muita gente para se armar em senhor, queres tu dizer – retorquiu ela,
seguindo o exemplo de Joss e escovando o cavalo.
– Talvez. Talvez um homem como Raine esteja tão habituado a assumir a
responsabilidade que a assume sem pensar.
– No meu caso, gostaria de menos ordens – referiu ela. – Porque manda
ele em toda a gente? Porque é que ele acredita que governa toda a gente?
Porque é que não deixa as pessoas descansar?
– Descansar! – exclamou Joss, do outro lado do cavalo. – Devias ter visto
este lugar algumas semanas antes da sua chegada. Era como as piores zonas
de Londres, pessoas a cortar a garganta umas às outras por alguns tostões, a
roubar tanto que era preciso ficar acordado toda a noite para guardar os
bens. Os rendeiros desalojados estavam à mercê de assassinos e…
– E, então, o justo Raine Montgomery colocou tudo em ordem, correto?
– Sim, é verdade.
– Alguém alguma vez pensou que ele o fez porque sentiu que era um
privilégio seu, concedido por Deus, sobre os seus súbditos?
– És ainda muito jovem para ser tão amargo, não és? – perguntou Joss.
Alyx parou de escovar o cavalo.
– Porque estás aqui? – perguntou-lhe ela. – Como é que te encaixas neste
grupo? Não és um assassino e não pareces alguém demasiado preguiçoso
para trabalhar. A única coisa que posso imaginar é que algum marido
ciumento anda atrás de ti – brincou ela.
De imediato, Jocelin atirou a escova ao chão.
– Tenho de voltar ao trabalho – disse ele, com voz dura e grave, e afastou-
se dela.
Durante um minuto, Alyx, como que atordoada, não pôde continuar.
Nunca na sua vida teria pretendido insultar Jocelin. Ele era o único com
quem ela podia falar, cantar e…
– Quando acabares isso, podes ir buscar água ao ribeiro – ouviu-se uma
voz irritante atrás dela, que interrompeu os pensamentos de Alyx.
Lentamente, e com cautela, virou-se na direção de Blanche. Apesar de
tudo o que Alyx dissera sobre a arrogância de Raine, Alyx também era
muito orgulhosa da sua origem. Esta mulher, com o seu vestido desleixado,
voz grosseira e o seu sotaque denotando pouca educação, não era
certamente da mesma classe que Alyx. Ignorando-a, Alyx voltou-se para o
cavalo.
– Rapaz! – chamou Blanche, exigente. – Ouviste o que eu disse?
– Ouvi – respondeu Alyx, baixando o tom da sua voz. – E tenho a certeza
de que metade do acampamento também ouviu.
– Achas-te demasiado bom para mim, não é? Tu com as tuas belas roupas
e com os teus bons modos. Só porque passaste hoje o dia com ele, não
significa que vás passar todos os dias com ele.
Com um sorriso desdenhoso, Alyx continuou a limpar o cavalo.
– Vai tratar da tua vida, mulher. Não tenho nada para tratar contigo.
Blanche agarrou o braço de Alyx e puxou-a.
– Até esta manhã, servi Raine, levava-lhe a comida, e agora, ele ordenou-
me que preparasse uma cama na sua tenda para ti. Que tipo de rapaz és tu?
Alyx levou um momento para compreender as insinuações de Blanche e,
quando percebeu, os seus olhos iluminaram-se, como se em chamas.
– Se soubesses alguma coisa sobre a nobreza, saberias que todos os
senhores têm escudeiros. Eu apenas cumpro os deveres de qualquer bom
escudeiro.
Blanche, obviamente tentando parecer parte da nobreza, tentou manter a
pose.
– Claro – retorquiu ela. – Eu conheço os escudeiros. Mas só para te
lembrar – disse ela, ameaçadoramente –, Raine Montgomery é meu. Eu
trato dele como o faria a sua senhora… em todos os sentidos.
Com isso, rodou sobre os calcanhares e afastou-se através das árvores.
– Senhora! – murmurou Alyx, voltando a cuidar do cavalo
afincadamente. – O que sabe uma ordinária como ela sobre ser uma
senhora?
Zangada, não se apercebeu do tempo passar até que ouviu a voz de Raine
perto dela.
– Rapaz – disse ele, fazendo-a saltar. – Tens de ser mais rápido do que
isso com um cavalo. Há muito mais trabalho para ser feito.
– Mais? – sussurrou ela. Parecia tão triste que Raine sorriu, com os olhos
a brilhar, e Alyx endireitou-se. Ela não lhe daria motivos para rir de novo
dela.
Depois de pôr de lado a escova e ter sussurrado uma última melodia ao
garanhão, Alyx seguiu Raine até ao acampamento, dirigindo-se para um
grupo de homens de aspeto pouco respeitável, amontoado à volta de uma
fogueira. Raine, com a sua postura orgulhosa e o seu nobre porte, fazia estes
homens parecerem ainda mais imundos do que eram.
– Vocês os três, ouçam – disse Raine, num rosnado baixo. – Vocês fazem
a primeira vigília.
– Eu não vou ficar lá fora nesses bosques – disse um homem, enquanto se
voltava para se afastar.
Agarrando-o com uma mão, Raine puxou o homem para trás e deu-lhe de
imediato um pontapé nas costas que o fez estatelar-se.
– Se comes, tens de trabalhar – disse ele, com uma voz ameaçadora. –
Agora, vão para os vossos postos. Eu irei mais tarde, e, se algum de vós
estiver a dormir, será a última vez que o faz.
Assumindo uma feição sinistra, Raine observou os homens enquanto
saíam do acampamento, amuados como crianças pequenas.
– Aqueles são os teus belos amigos – disse ele, baixinho, a Alyx,
enquanto se afastava.
– Eles não são meus amigos – respondeu ela, furiosa.
– Nem Pagnell é meu amigo! – retorquiu ele.
Parando, ela olhou fixamente para as suas costas largas. Era verdade, ela
sabia. Não tinha o direito de o odiar pelo que outro homem tinha feito.
– Blanche! – grunhiu Raine. – Comida!
Depois disso, Alyx seguiu-o rapidamente, porque tinha muita fome.
Dentro da tenda, Blanche colocou à frente deles javali assado, pão, queijo e
vinho quente, e Alyx atirou-se à comida com gosto.
– É assim mesmo, rapaz! – Raine riu-se, batendo-lhe nas costas, fazendo-
a engasgar-se. – Continua a comer assim e ainda vais ganhar algum
arcaboiço.
– Continuai a fazer-me trabalhar como hoje e eu morro dentro de uma
semana! – ofegou ela, tentando desalojar um pedaço de carne de porco da
garganta, ignorando a gargalhada de Raine.
Terminada a refeição, Alyx olhou, desejosa, para o estrado ao longo de
um dos lados da tenda. «Preciso de descansar», pensou ela; simplesmente
deitar-se e ficar imóvel durante algumas horas seria o paraíso na terra.
– Ainda não, rapaz – disse Raine, agarrando-lhe o braço e puxando-a para
cima. – Ainda temos trabalho antes de podermos dormir. Os vigias precisam
de ser controlados, tenho armadilhas para animais montadas e ambos
precisamos de um banho.
Isso despertou-a.
– Banho! – arfou ela. – Não, eu não.
– Quando tinha a tua idade, também tinham de me obrigar a tomar banho.
Uma vez, o meu irmão mais velho deu cabo de mim com uma escova de
cavalos.
– Alguém vos obrigou a fazer alguma coisa? – perguntou ela, incrédula.
O orgulho de Raine parecia estar em jogo.
– Na verdade, ambos os meus irmãos mais velhos o fizeram, e Gavin saiu
com um olho negro. Agora, vá lá. Temos trabalho a fazer.
Relutantemente, Alyx seguiu-o, mas, por muito que tentasse, não
conseguia ser muito enérgica nos seus passos. Como alguém meio-morto,
seguia Raine através da floresta, esbarrando ocasionalmente nas árvores,
tropeçando nas pedras, enquanto ele percorria o perímetro do campo,
certificando-se de que os vigias estavam alerta e acordados, e retirando
coelhos e lebres das suas armadilhas. No início, tentou falar com ela,
explicar-lhe o que estava a fazer, como atirar uma pedra e ver se os vigias
respondiam, mas, depois de algum tempo, estudou-a ao luar e, notando a
sua exaustão, calou-se.
Junto ao ribeiro perto do acampamento, ele disse-lhe para se sentar quieta
e esperar por ele enquanto tomava banho. Meio adormecida, reclinada na
margem, com a cabeça apoiada no braço, Alyx observou com lânguido
interesse, enquanto Raine retirava as suas roupas e entrava na água gelada.
O luar refletia como prata no seu corpo, acariciando os músculos, brincando
ao longo das suas coxas e fazendo amor com aqueles braços magníficos.
Levantando-se sobre os cotovelos, Alyx observou-o descaradamente. Toda
a sua vida tinha sido dedicada à música. Enquanto as outras raparigas
namoriscavam com os rapazes no poço do povoado, Alyx compunha um
lamento em latim, a quatro vozes. À medida que as suas amigas se
casavam, ela estava dentro da igreja a organizar um coro de rapazes. Nunca
tivera tempo para falar com rapazes, para os conhecer – na verdade, nunca
se tinha interessado por eles, estivera sempre demasiado ocupada para
sequer reparar neles.
Agora, pela primeira vez na sua vida, ao ver aquele homem nu a banhar-
se, teve as primeiras sensações de... de quê? Certamente que sabia da
existência do acasalamento, tinha até ouvido alguns dos mexericos das
mulheres recém-casadas, mas nunca tinha sentido qualquer interesse no
processo. Este homem à sua frente, erguendo-se da água como um centauro
celestial, fê-la sentir coisas que ela nunca imaginara serem possíveis.
Luxúria, pensou ela, sentando-se mais acima. Luxúria pura e simples era
o que sentia. Ela gostaria que ele lhe tocasse, a beijasse, se deitasse ao seu
lado, e gostaria muito de tocar naquela pele dele. Lembrando-se da
sensação que tinha experienciado quando se sentara nas costas dele,
começou a arrepiar-se, as suas pernas pareciam mais vivas, e até os seus pés
começaram a aquecer.
Quando ele saiu da água e veio na sua direção, ela quase ergueu os braços
para ele.
– Pareces preguiçoso – comentou Raine, enquanto se secava. – Tens a
certeza de que não queres tomar banho?
Tudo o que Alyx podia fazer era observar o movimento do pano que ele
usava para se secar, enquanto o passava pelo seu corpo, e abanava
vagamente a sua cabeça.
– Mas ficas já avisado, rapaz, se começares a cheirar tão mal que eu não
aguente dentro da tenda, eu próprio te darei banho, e não vai ser um banho
suave.
Com os olhos bem abertos, Alyx olhou para ele, quase não se notando a
sua respiração. «Ser banhada por este grande deus humano», pensou ela.
– Estás bem, rapaz? – perguntou Raine, preocupado e ajoelhando-se ao
seu lado, enquanto franzia o sobrolho à sua estranha expressão.
Rapaz!, abespinhou-se ela. Ele pensava que ela era um rapaz; e se ela se
revelasse como uma rapariga? Ele era da nobreza e ela era apenas a filha de
um pobre advogado.
– Não ficareis com frio? – perguntou ela, rolando para longe dele para se
afastar, sem olhar enquanto ele se vestia.
Quando ele terminou, seguiu-o silenciosamente de volta ao
acampamento, onde se deixou cair no seu estrado, mas não dormiu até que
Raine se instalasse na sua cama estreita. Satisfeita por fim, adormeceu.
Capítulo Seis

INCLINANDO-SE NA margem do ribeiro, Alyx observou o seu próprio reflexo.


Parecia mesmo um rapaz, pensou, repugnada. Porque não podia ela ter
nascido bonita, com características encantadoras que nunca pudessem ser
confundidas com as de um homem, não importando o que vestia? O seu
cabelo era uma massa de caracóis, de cor indefinida, mudando com cada
reflexo, os olhos amendoados e os lábios como os de uma fada não eram
como deveriam ser os de uma mulher.
Assim que as lágrimas começaram a turvar a sua visão, a voz de Jocelin
despertou-a.
– De novo a limpar a armadura? – perguntou ele.
Ela fungou e voltou à sua tarefa.
– Raine é muito exigente com ela. Hoje tive de reparar uma amolgadela.
– Pareces preocupar-te muito com as coisas dele. Estarás, talvez, a
começar a acreditar que um homem nobre pode valer alguma coisa?
– Raine teria sempre valor, independentemente do seu berço – retorquiu
ela com demasiada pressa, olhando depois para o lado, envergonhada.
Alyx estava no acampamento de Raine há já uma semana, tinha passado
quase todos os segundos na sua companhia e as suas opiniões sobre ele
haviam-se invertido completamente no decorrer da semana. Anteriormente,
ela acreditava que ele tinha tomado conta do acampamento, mas agora sabia
que os fora da lei o haviam forçado a tomar conta deles. Eram como
crianças que exigiam cuidados e, depois, agiam com rebeldia quando ele os
providenciava. Ele levantava-se antes de qualquer outro e cuidava da
segurança das pessoas e, todos os dias, já noite dentro, certificava-se de que
os vigias estavam alerta e prontos. Obrigou as pessoas a abandonarem a
ociosidade e a trabalhar para o seu próprio sustento, ou então sentar-se-ia e
esperariam que ele os sustentasse, como se fosse o seu dever.
– Sim – disse ela, calmamente. – Raine tem algum valor, embora tenha
poucos proveitos pelo que faz. Porque não abandona ele esta gente
desprezível e deixa a Inglaterra por completo? Certamente que um homem
com a sua riqueza conseguiria construir um lar decente para si próprio.
– Talvez lhe devas perguntar isso. Estás mais próximo dele.
Perto dele, pensou ela. Era aí que ela queria estar, ainda mais perto dele.
Só agora começava a habituar-se, lutando contra a sua fadiga permanente,
aguentando as sessões de treino extenuante cada manhã, mas, à medida, que
os seus músculos endureciam e ela se começava a sentir melhor, envolvia-
se mais na vida do acampamento.
Blanche ocupava uma posição destacada no acampamento, fazendo crer a
todos que partilhava a cama de Raine e que lhe podia pedir tudo o que
quisesse. Alyx tentou não pensar se Blanche alguma vez teria passado a
noite com Raine, mas gostava de acreditar que ele seria mais seletivo do
que envolver-se com uma ordinária como Blanche. E outra coisa que Alyx
conseguiu descobrir sobre Blanche: tinha pavor de Jocelin.
Jocelin, tão incrivelmente bonito, tão educado, tão atencioso, tinha as
mulheres todas do acampamento a suspirar por ele. Alyx tinha visto
mulheres usar todas as formas de sedução para o atrair para o seu lado, mas,
tanto quanto sabia, Joss nunca aceitara um convite. Ele preferia as suas
tarefas e a companhia de Alyx a qualquer outra pessoa. E, embora ele nunca
o tenha mencionado, mantinha a distância de Blanche. Quando, por acaso, a
mulher se encontrava com ele, virava sempre costas e desaparecia.
Além de Joss, a única outra pária decente era Rosamund, com a sua
beleza e a marca do diabo na sua bochecha. Rosamund mantinha a cabeça
baixa, defendendo-se do ódio e do medo das pessoas. Uma vez, Raine
encontrou alguns homens a apostar se estariam ou não a vender as suas
almas se a violassem. Vinte chicotadas a cada um foi o seu castigo para os
homens, seguido da expulsão, e Alyx sentiu uma onda de ciúmes por Raine
proteger tão afincadamente a imperfeita, mas bela, curandeira.
– Alyx! – ouviu-se um grito através das árvores que só podia pertencer a
Raine. Pelo menos agora, ele chamava-a pelo seu nome.
Usando todo o poder contido na voz, ela gritou-lhe de volta:
– Estou a trabalhar. – O homem era obcecado com o trabalho.
Aparecendo por entre as árvores, ele sorriu-lhe.
– Essa tua voz dá-me esperança de que vais engrossar, embora me pareça
que estás a ficar mais pequeno.
Com um olhar crítico, olhou para as pernas dela esticadas à sua frente.
Com um pequeno sorriso, Alyx ficou contente por ver que, pelo menos,
uma parte dela era inequivocamente feminina. As suas longas pernas e o
pequeno traseiro curvado estavam realçados pelo exercício duro da última
semana. Talvez agora, finalmente, ela fosse descoberta como uma rapariga
e, depois... o quê? Seria expulsa da tenda de Raine e ele, mais uma vez, só
teria aquela prostituta da Blanche para cuidar dele. Relutantemente, ela
bateu com uma bainha de aço nas suas próprias pernas.
– Eu vou engrossar – retorquiu ela – e, quando isso acontecer, prego-vos
ao chão com a vossa própria espada.
Um rápido olhar ascendente para Raine deu para perceber que ele parecia
estar intrigado com algo.
– Querias o Alyx para alguma coisa? – perguntou Joss, com uma voz
divertida ao interromper o silêncio.
– Sim – disse Raine, em voz baixa. – Preciso que me escreva algumas
cartas e que me leia outras. Chegou um mensageiro da minha família. Sabes
ler, não sabes?
A curiosidade fez Alyx saltar. Ela queria mesmo muito saber mais sobre a
família de Raine.
– Sim, claro – disse ela, juntando os elementos da armadura e seguindo
Raine.
Um homem, elegantemente vestido, de gibão com leopardos dourados
bordados, estava sentado fora da tenda, esperando pacientemente pelas
ordens de Raine. Com um aceno, o jovem homem foi dispensado e Alyx
interrogou-se se todos os homens de Raine lhe obedeceriam tão bem e quão
longe disso estavam os fora da lei.
Havia duas cartas para Raine, uma do seu irmão Gavin e outra da mulher
do seu irmão, Judith.
As notícias de Gavin eram más. Bronwyn, a outra cunhada de Raine,
tinha sido feita prisioneira pelo mesmo homem que aprisionara a irmã de
Raine, Mary. O marido de Bronwyn estava à espera, sentado e à espera,
receando agir com medo de que Roger Chatworth matasse a sua mulher.
– O vosso irmão Stephen – perguntou Alyx, hesitante – ama a esposa?
Raine assentiu apenas com a cabeça, os seus lábios puxados para dentro
numa linha apertada e os olhos focados no vazio.
– Mas diz aqui que ela estava na Escócia quando foi levada. Porque é que
ela estava na Escócia? Os Escoceses são pessoas grosseiras, maldosas e…
– Tento na língua! – ordenou ele. – Bronwyn é senhora de um clã na
Escócia e não há mulher melhor. Lê-me a outra carta.
Envergonhada, Alyx abriu a carta de Judith Montgomery, plenamente
consciente da forma como os olhos de Raine amoleceram quando ela
começou a ler. A carta estava cheia de orações pela segurança de Raine e de
súplicas para que ele deixasse a Inglaterra até que fosse seguro para ele
regressar. Perguntava depois se estava bem, se tinha comida e roupa quente,
o que fez Raine rir e atiçou Alyx com aqueles tons de esposa.
– Será que o marido sabe que ela se preocupa tanto com o seu cunhado? –
perguntou ela, empertigadamente.
– Não quero que fales assim da minha família – repreendeu-a ele e Alyx
baixou a cabeça, envergonhada dos seus ciúmes. Não era justo que ela
tivesse de se fazer passar por rapaz e nunca ter a oportunidade de chamar a
sua atenção. Se ela pudesse usar um vestido bonito, talvez ele reparasse
nela, mas também, e mais uma vez, ela não era certamente nenhuma beleza.
– Volta à terra e ouve-me, rapaz.
A sua voz trouxe-a de volta.
– Consegues escrever o que digo? Quero enviar cartas de volta pelo
homem do meu irmão.
Assim que se muniu de caneta, tinta e papel, Raine começou a ditar. A
carta que ia escrevendo ao seu irmão era uma carta de raiva e determinação.
Jurou ficar tão perto quanto possível das suas duas irmãs e esperaria o
tempo que fosse preciso antes de poder atingir com o seu punho a cabeça de
Chatworth.
Quanto ao Rei, referia não ter medo, uma vez que a principal fonte de
rendimento de Henrique provinha de homens que ele declarara serem
traidores. Disse a Gavin que Henrique o perdoaria assim que ele
concordasse em ceder-lhe uma boa parte das suas terras.
Raine ignorou o espanto de Alyx perante a forma insolente como se
referia ao soberano deles.
A carta para Judith era tão calorosa e amorosa como a dela tinha sido,
chegando mesmo a referir uma vez o seu novo escudeiro, que ele dizia não
ter qualquer servidão para além de o manter quente, já que muitas vezes o
cobria durante a noite. Com a cabeça baixa, Alyx ia escrevendo, não
permitindo que Raine visse as suas bochechas ruborizadas. Ela não fazia
ideia de que ele estava ciente das muitas vezes que ela, pé ante pé,
percorrera a tenda para lhe puxar a coberta de pele sobre os seus ombros
nus.
Alyx limitou-se a escrever o resto das cartas, demasiado envergonhada
para sequer ler o que tinha escrito e, quando as terminou, manteve-as
abertas, prontas para a assinatura de Raine. Ao inclinar-se na direção dela,
com o rosto perto do seu, ela inalou o cheiro do seu cabelo, aquela massa
espessa, escura e encaracolada e quis enterrar o seu rosto nela. Em vez
disso, estendeu a mão e tocou-lhe numa madeixa e viu-a encaracolar na
ponta do seu dedo.
A cabeça de Raine levantou-se como se tivesse sido queimada, o rosto
dele a centímetros do dela, com os olhos abertos enquanto olhava para ela.
Alyx sabia que a sua respiração tinha parado e que o coração lhe saltara
para a garganta. Agora ele sabia, pensou ela. «Agora, ele vai dizer que eu
sou uma rapariga, uma mulher.»
Aborrecido, Raine afastou-se dela, olhando-a como se não conseguisse
perceber o que estava a acontecer.
– Sela as cartas – disse ele, calmamente – e entrega-as ao mensageiro.
De seguida, abandonou a tenda.
Alyx deu um suspiro que fez uma das cartas voar até ao chão e as
lágrimas rapidamente lhe vieram aos olhos. «Feia», pensou ela. «É isso que
sou –, muito, muito feia. Não admira que nenhum homem tenha sequer
tentado contradizer o padre e tomar-me para esposa.» Porquê lutar por um
prémio que não vale a pena ganhar? Quem quereria uma rapariga de peito
chato, arrapazada e com uma voz barulhenta para esposa? E não era de
admirar que Raine não descortinasse para além do seu disfarce.
Com um golpe rápido com a costa da mão, limpou os olhos e voltou às
cartas diante dela. Sem dúvida que as cunhadas dele e a sua irmã eram
lindas, belas mulheres com peito…
Com outro suspiro, terminou as cartas, selou-as e levou-as ao mensageiro,
caminhando com ele até ao seu cavalo.
– Viste esta senhora Judith ou a senhora Bronwyn? – perguntou ela ao
mensageiro.
– Sim, muitas vezes.
– E serão elas, talvez, mulheres bonitas?
– Bonitas? – riu-se ele, montando o seu cavalo. – Deus devia estar
contente no dia em que criou aquelas mulheres. Lorde Raine não deixará a
Inglaterra, nem eu deixaria, se tivesse qualquer uma dessas mulheres na
minha família. Vai lá, rapaz, tenta encontrar alguém que o console – disse
ele, movendo-se na direção da tenda. – A perda de tal beleza, mesmo que
fosse por um momento, deve fazê-lo sentir-se um homem miserável.
– Consolá-lo! – murmurou Alyx enquanto voltava para a tenda, para se
deparar com um alvoroço e Raine no centro do mesmo.
– É bom para as vossas vidas que não a tenham matado – dizia ele a dois
homens, um carteirista e o outro mendigo. Ambos tinham estado de vigia
toda a manhã. – Alyx – disse ele por cima das suas cabeças. – Sela o meu
cavalo. Temos de ir.
Em passo de corrida, Alyx tinha o grande cavalo selado e pronto quando
Raine reapareceu da tenda, com um machado de batalha e uma maça na
mão. Ele montou e puxou-a para trás dele antes que ela pudesse fazer
alguma pergunta e, em segundos, galopavam pela floresta a uma velocidade
vertiginosa.
Depois de uma longa cavalgada, tão rápida quanto as árvores permitiam,
Raine parou e saltou do cavalo. Alyx deslizou para a frente na sela e teve o
seu primeiro vislumbre do que se estava a passar. Uma mulher bonita com
grandes olhos castanhos, usando um lindo vestido como Alyx nunca tinha
visto antes, estava encurralada contra uma árvore, olhando aterrorizada para
três homens do acampamento que brandiam facas e espadas para ela.
– Saiam daqui, escumalha – rosnou Raine, empurrando primeiro um
homem e, depois, o outro para o lado.
A mulher, tremendo de medo, olhou para Raine, incrédula.
– Raine – sussurrou ela, antes de fechar os olhos e começar a deslizar
pelo tronco da árvore.
Raine apanhou-a nos braços, levantou-a e aconchegou-a a ele.
– Anne – sussurrou ele. – Agora, estás a salvo. Alyx, traz um pouco de
vinho. Há um cantil na minha sela.
Algo espantada com a cena diante dela, Alyx desmontou e levou-lhe o
recipiente de couro duro, enquanto ele se sentava numa árvore caída,
segurando a mulher perto dele.
– Anne, bebe isto – disse ele, com uma voz doce e gentil, e a mulher
pestanejou e começou a beber. – Agora, Anne – disse ele quando ela estava
totalmente desperta. – Diz-me o que fazias tão dentro da floresta.
A mulher certamente não parecia ter pressa de sair do colo de Raine,
pensou Alyx, ao olhar com absoluta admiração para o vestido dela.
Era de seda vermelha, de um vermelho profundo, um tecido que ela só
tinha visto na igreja, e era bordado em toda a parte com pequenas lebres,
coelhos, veados, peixes, todo o tipo de animais. O decote quadrado era bem
rebaixado, expondo uma grande parte dos seios fartos da mulher, e sobre o
decote e na cintura tinha guarnições de ouro e joias vermelhas e cintilantes.
– Alyx! – exclamou Raine, impacientemente, entregando-lhe o cantil de
vinho. – Anne – proferiu ele com grande ternura, segurando a mulher adulta
como se fosse uma criança.
– O que estás aqui a fazer, Raine? – perguntou ela com uma voz suave.
«Não sabe cantar», pensou Alyx de imediato. Sem força na sua voz e uma
pitada de lamúria.
– O rei Henrique declarou-me traidor – respondeu Raine, com uma
covinha a aparecer.
Anne sorriu-lhe.
– Anda atrás do teu dinheiro, não anda? Mas o que fizeste para lhe dar
motivo para tomar as tuas terras?
– Roger Chatworth levou a minha irmã Mary e a nova mulher do
Stephen.
– Chatworth! – exclamou ela. – Não casou aquela mulher por quem
Gavin estava tão apaixonado com um Chatworth?
– O meu discreto irmão – disse Raine, repugnado. – A mulher é uma
galdéria da pior espécie, mas Gavin nunca percebeu isso. Pois, o meu irmão
é leal. Mesmo depois de ter casado com Judith, ainda amou Alice
Chatworth durante algum tempo.
– Mas o que tem isto a ver com a razão da tua presença aqui?
«Porque é que ela não se levanta pelo próprio pé?», pensou Alyx.
«Porque é que ela se senta tão calmamente no colo dele e fala tão
elegantemente como se estivesse no salão de algum nobre?»
– É uma longa história – disse Raine. – Fruto de um acidente, Alice
Chatworth ficou gravemente desfigurada e o pouco que havia da sua mente
desapareceu com a sua beleza. O seu cunhado cuidou dela desde que ela
enviuvou, e talvez a mulher lhe tenha envenenado a mente, porque, mais
tarde, Roger desafiou o meu irmão para uma luta e o vencedor ficaria com a
esposa que o rei Henrique tinha prometido a Stephen.
– Sim – disse Anne. – Já me lembro. Havia uma grande quantidade de
propriedades envolvidas.
– A mulher de Stephen, Bronwyn, é uma mulher rica, sim, mas Stephen
queria a mulher tanto como a terra – sorriu ele. – Mas Chatworth não
aceitava perder e aprisionou as minhas irmãs.
– Raine, que horror. Mas como é que o rei Henrique…
– Eu levava alguns dos homens do Rei para Gales e, quando soube que
Maria tinha sido raptada, regressei e fui atrás de Chatworth.
– Com o exército do Rei? – perguntou ela e, quando ele acenou com a
cabeça, ela fez uma careta. – Então, Henrique tem alguma razão para te
declarar um traidor. É por isso que estás vestido como um rendeiro e a
vaguear por estes bosques sombrios?
– Sim – respondeu ele, olhando para ela. – Estás com bom aspeto, Anne.
Há muito tempo que não…
Com isso, a mulher saltou do colo de Raine, ficando de pé diante dele,
alisando o vestido que Alyx desejava tocar.
– Não voltarás a seduzir-me, Raine Montgomery. O meu pai prometeu
encontrar-me um marido em breve e eu gostaria de me entregar o mais pura
possível, por isso não aturarei mais as tuas adoráveis palavras. – Quando se
virou, olhou para Alyx pela primeira vez. – E quem é este rapaz que olha
para nós de boca aberta?
Imediatamente, Alyx fechou a boca e afastou o olhar dos dois.
– Este é o meu escudeiro – explicou Raine, rindo alegremente das
palavras de Anne. – Posso ter de viver nesta floresta, mas tenho algumas
comodidades. Ele trabalha arduamente e sabe ler e escrever.
– Deduzo que ninguém foi capaz de enfiar esse conhecimento dentro da
tua cabeça dura – explodiu ela. – Raine! Para de olhar para mim assim. Não
vais ter sorte nenhuma comigo. Agora, tu, rapaz, tens um nome?
– Alexander Blackett.
– Blackett? – questionou ela. – Onde é que já ouvi esse nome?
«No anúncio para a minha prisão», pensou Alyx, em pânico. Porque não
mudara ela o seu apelido? Agora, esta mulher odiosa revelaria o seu
disfarce a Raine.
– É um nome bastante comum – disse Raine, em jeito de despedida. –
Alyx, volta para o acampamento e espera por mim.
– Não, rapaz! – exclamou Anne. – Raine, estou a falar a sério. Não
voltarei a ser usada por ti, e não ficarei sozinha contigo. Tens de me levar
de volta aos outros caçadores. Quando eles perceberem que estou perdida,
tentarão encontrar-me.
– Tenho vigias – respondeu ele, agarrando-a pela cintura e puxando-a
para entre as suas coxas. – Temos o tempo que quisermos a sós. Alyx,
deixa-nos a sós.
– Quero que aquele teu belo escudeiro fique – exigiu Anne, com as mãos
sobre os ombros dele, afastando-o. – Estiveste tanto tempo neste bosque
que talvez tenhas começado a preferir rapazes bonitos em vez de...
Ela não terminou a frase, pois Raine aproximou-a dele, puxando-lhe a
boca para a sua.
Alyx observou-os descaradamente. Nunca tinha visto alguém beijar outra
pessoa assim, com corpos juntos e as cabeças em movimento. Mais do que
qualquer outra coisa no mundo, Alyx desejava que fosse ela quem Raine
segurava nos seus braços.
Estava tão absorvida com a cena anterior que, quando a primeira flecha
apareceu pelo ar, aterrando a centímetros da perna de Raine, ficou parada,
sem saber o que estava a acontecer. Raine reagiu instantaneamente e, com
um só movimento, atirou Alyx e Anne para o chão da floresta.
– Andam atrás de mim – disse Raine, calmamente. Alyx, és
suficientemente pequeno para te moveres ao longo da árvore. – E apontou
com a cabeça. – Tenta chegar ao meu cavalo e vai buscar as armas.
– E vós? – arfou ela, enquanto outra flecha aterrava mesmo por cima das
suas cabeças.
– Tenho de levar Anne para um lugar seguro. Obedece-me! – ordenou ele.
Sem pensar em mais nada, Alyx começou a rastejar em frente, penetrando
na cobertura densa da floresta. Cada vez que uma seta batia atrás dela, o seu
corpo encolhia-se de medo. Com receio de se virar e ver Raine caído,
morto, lutava por avançar. Quando chegou ao fim da árvore caída, colocou-
se numa posição de agachada e começou a correr. Logo que as setas soaram
ao longe, ela foi capaz de parar e de se orientar.
O cavalo, aquele grande garanhão zangado de Raine, empinava-se
desesperadamente no sítio onde estava amarrado e um homem perto dele
tentava apanhar as rédeas. Se apanhassem o cavalo, não haveria maneira de
lutar, pois a maior parte das armas estava amarrada à sela. Maldito Raine,
pensou ela. Ele estava tão excitado com a mulher de seda que se esquecera
de tudo.
Após um momento de oração silenciosa, Alyx abriu a boca e entoou um
pouco de uma música que sabia que o cavalo gostava. Instantaneamente, ele
acalmou, as orelhas levantaram-se e, nesse momento, o homem agarrou as
rédeas, desatou-as e dominou o cavalo.
– O cavalo é tão estúpido como o seu dono – disse ela, baixinho, antes de
dar início a outra série de notas, altas, agudas e discordantes, algo que o
cavalo odiava. Foi recompensada com uma sacudidela do animal, que se
soltou dos seus captores. Quando galopou na sua direção, Alyx susteve a
respiração, por um momento, com medo do grande animal, antes de
começar de novo a cantar para o acalmar, permitindo-lhe apanhá-lo e
montá-lo.
– Agora, por favor, faz o que eu disser – sussurrou-lhe ela quando ele
virou a grande cabeça na sua direção, com as narinas abertas e de olhos bem
abertos, treinado para ajudar um homem pesado em guerra e não gostando
desta pessoa peso-pluma na sela. – Vai! – ordenou ela, na voz que usava
para controlar vinte e cinco enérgicos rapazes membros de um coro.
O cavalo disparou na direção errada e Alyx usou todas as suas forças para
puxar as rédeas e guiar o animal de volta para onde estava.
– Não, Raine! Não!
Alyx ouviu a mulher Anne gritar assim que assumiu o controlo da grande
besta e, quando irrompeu pelas árvores, lá estava Raine, com a espada
desembainhada e ensanguentada sobre um homem morto, e enfrentando
dois outros homens também com espadas; Anne escondia-se atrás da grande
figura de Raine.
– São os homens do meu pai – gritou ela. – Vieram procurar-me. Eu
disse-te que viriam. – A seguir, Anne deixou Raine para se aproximar do
homem no solo. – Ele não está morto. Podemos levá-lo de volta connosco –
disse ela, lançando um olhar furioso na direção de Raine. – Porque será que
nunca ouves ninguém? – vociferou ela. – Porque usas primeiro a espada e
só falas a seguir?
Alyx, sentindo uma grande onda de raiva a explodir dentro dela, saltou do
cavalo. Era óbvio, pela expressão facial, que Raine não se ia defender.
– O meu senhor foi atacado primeiro – disse ela, cuspindo raiva. –
Quando é disparada uma flecha contra ele, deveria ele deixar-se ficar e
perguntar quem envia a flecha antes de desembainhar a espada? Vós, minha
bela senhora, estáveis toda contente quando ele protegeu o vosso precioso e
inflado corpo com o dele, mas agora que isso vos custa cuidar de um
homem, não vos lembrais de como tentastes atrair o meu senhor para os
arbustos.
– Alyx – disse Raine por trás dela, a mão dele no seu ombro. – Lembra-
te, não é de um cavalheiro fazer...
– Cavalheiro! – gritou ela, rodopiando para o enfrentar. – Esta cabra...
Raine tapou-lhe a boca com a mão, puxou-a para ele, as costas dela
encostadas ao seu peito enquanto ela lutava para se libertar.
– Anne – disse ele calmamente, ignorando Alyx –, perdoa-me e ao rapaz
também. Ele não tem muita educação. Leva os teus homens e volta para o
riacho. Vou enviar alguém para vos guiar para fora da floresta.
– Raine – disse ela, levantando-se de junto do homem deitado. – Eu não
quis…
– Vai agora, Anne, e, se vires alguém da minha família, diz-lhes que estou
bem.
Ela anuiu com a cabeça, um homem ajudou-a a montar um cavalo atrás
dele, o homem ferido foi deitado sobre a sela, e partiram.
Quando já estavam fora de vista, Raine soltou Alyx.
– Eles tentaram matar-vos! – arfou ela, fixando-o. – E aquela mulher
atacou-vos por teres ferido o homem dela.
Raine encolheu os ombros.
– Quem entende as mulheres? Ela sempre se preocupou com o dinheiro e
com as propriedades.
– E presumo que a conheceis bem – disse Alyx, esfregando o queixo,
lembrando o toque da mão de Raine na sua boca.
– O pai dela propôs-me, uma vez, que casasse com ela.
Isso fez com que a Alyx parasse.
– E decidistes não o fazer ou ela recusou-vos?
Ele sorriu maliciosamente e mostrou as suas covinhas.
– Ela aceitou tudo o que lhe pedi, mas não lhe pedi que casasse comigo.
Ela muda de um momento para o outro. Nem sequer consegue decidir que
vestido usar todos os dias. Tenho a certeza de que ela não gostaria de ser
uma esposa fiel, e eu não gosto de bater em mulheres.
– Não gostais... – engasgou-se Alyx.
– Agora – disse ele, desencostando-se da árvore à qual se tinha encostado
–, se já terminámos com a tua educação sobre as mulheres por hoje, gostaria
de fazer algo a respeito desta minha perna.
Com isto, Alyx olhou para baixo e viu pela primeira vez a mancha escura
de sangue na meia-calça de Raine.
Capítulo Sete

–ESTAIS FERIDO – disse Alyx, num tom de voz aflito, que soava como se
quisesse dizer que ele estava morto.
– Não deve ser grave, mas talvez devêssemos tratar disto.
Correndo na sua direção, colocou o braço dela sobre a sua cintura e
inclinou-se para ele.
– Sentai-vos. Vou buscar a Rosamund e…
– Alyx – disse ele, divertido. – Não é uma ferida mortal e eu posso bem
voltar a cavalo para o acampamento. Sabes, és o pior escudeiro que alguma
vez tive.
– O pior! – arfou ela, enquanto ele se sentava pesadamente num tronco de
árvore. – Sois um ingrato…
– Porque demoraste tanto tempo com o cavalo? Estava eu a lutar pela
minha vida e ouvia-te no bosque a cantar. Tentavas entreter o inimigo?
Nunca, nunca mais ia falar com ele, decidiu ela, virando-lhe as costas e
dirigindo-se para o cavalo. Ouvi-lo rir atrás dela só a fez erguer o queixo
ainda mais alto.
Mesmo quando ele se tentou levantar com esforço, ela recusou-se a
ajudá-lo e virou-se para não o olhar.
– Alyx, tenho de montar no lado oposto e o cavalo não vai gostar. Deves
segurá-lo com firmeza. Não quero esforçar esta perna mais do que o
necessário.
Ao ouvi-lo, ela segurou a cabeça do cavalo com as mãos, olhou-o nos
olhos e começou a cantar, controlando-o com a sua voz. Raine pareceu
sentar-se no dorso do cavalo durante algum tempo antes de falar com ela e
lhe oferecer a sua mão para a ajudar a montar.
Durante todo o caminho de regresso ao acampamento, ela agarrou-se à
sela e viu o sangue de Raine escorrer-lhe pela coxa. O cavalo, ao sentir o
cheiro do sangue, começou a empinar-se e, por reflexo, Raine apertou-o
com os joelhos para controlar o animal. Alyx sentiu-o ficar tenso com a dor
que o movimento lhe causou.
– Talvez pudesses acalmá-lo com as tuas canções – sugeriu ele,
suavemente.
– Com o meu barulho, não é isso que quereis dizer? – respondeu ela,
ainda magoada com as suas palavras.
– Como queiras – respondeu ele, com dureza.
Alyx nunca tinha ouvido aquele tom antes, mas ela reconheceu-o como
uma voz que sofre com a dor. Raine dissera que a ferida não era grave, mas
não mostrava sinais de deixar de sangrar. Agora não era altura de ficar
zangada. Começou a cantar e o cavalo acalmou.
– Tenho de te mostrar aos meus irmãos – murmurou ele. – Eles não vão
acreditar nisto, a menos que vejam.
Ao aproximarem-se do acampamento, várias pessoas, sentindo que algo
estava errado, saíram para cumprimentá-los.
– Seria melhor que eles não vissem que estou ferido – disse-lhe Raine. –
Já são suficientemente difíceis de controlar e não preciso de novos
problemas agora.
Rapidamente, ela desceu do cavalo e colocou-se ao lado de Raine,
tapando com o seu corpo a visão do povo sobre a sua perna.
– Ouvimos dizer que houve uma luta – disse um homem de dentes pretos
e olhar ganancioso.
– Só na tua cabeça, velhote – gritou Alyx, surpreendendo todos com o
poder da sua voz. Visivelmente, a multidão saltou, e o cavalo de Raine
também. – Afasta-te – ordenou ela. – O animal enlouqueceu. Tivemos de
chicoteá-lo para o controlar.
Enquanto as pessoas olhavam, amedrontadas, para o grande cavalo, com
olhar assustado e sentindo o cheiro do sangue de Raine, este tirou uma
maça da sela.
– Não têm trabalho a fazer? – gritou ele. – Joss, vem à minha tenda.
Tenho trabalho para ti.
Resmungando, o povo começou a voltar para as suas fogueiras e cabanas.
Quando o cavalo estava em frente da tenda, pararam e Alyx preparou-se
para ajudar Raine a desmontar.
– Pelo amor de Deus, não me ajudes – ordenou ele através dos dentes
cerrados. – Eles vão ver-te. Vai e segura a cabeça do cavalo. Canta bem e
alto e chama a atenção para ti.
Alyx fez o que lhe foi pedido e chamou realmente muita atenção para si
própria, tanto que esteve quase meia hora a tentar fugir das pessoas que
queriam que ela cantasse canção após canção. Finalmente, vendo que já
tinha encoberto a estranha desmontagem de Raine, entrou na tenda dele.
Raine estava apoiado no seu estrado, de camisa e tanga, e Rosamund
encontrava-se ajoelhada junto à sua coxa, com uma bacia de água
ensanguentada perto dos seus joelhos.
– Aí estás tu! – rugiu Raine. – Não sabes fazer mais nada do que andar a
mostrar essa tua voz? Que os céus nos ajudem, se tiveres de ir para a guerra.
O teu inimigo pedir-te-á para cantares e tu largarás as armas todas para
atuares como um mimo. Agora, vai, Rosamund, e trata do homem que eu
feri. Jocelin, mostra-lhe o caminho. E tu, meu passarinho inútil, vê se
consegues ligar esta perna, ou talvez possas cantar até a ferida sarar.
Alyx abriu a boca para falar, mas Joss, voltado de costas para Raine, pôs
a mão no ombro dela.
– Ele está a sofrer com dores, lembra-te disso – sussurrou antes de deixar
a tenda.
Um olhar para o rosto pálido de Raine fê-la perceber a verdade da
afirmação de Jocelin.
– Não fiques a olhar para mim! Faz alguma coisa de útil – disse-lhe
Raine, rispidamente.
Ela não ia tolerar aquele tratamento. A sua raiva e hostilidade só
poderiam magoá-lo.
– Calai-vos, Raine Montgomery! – ordenou ela. – Não aceitarei mais os
vossos insultos. Ficai quieto e eu cuidarei da vossa ferida, mas não há nada
que possa fazer para mudar o facto de terdes sido ferido. Gritar comigo só
vos fará sentir pior.
Raine começou a levantar-se, mas um olhar de Alyx fê-lo deitar-se de
costas.
– Eles vão matar-se uns aos outros – disse ele, sem esperança, referindo-
se aos fora da lei no exterior da sua tenda.
– Não importa se o fizerem – disse ela, insensivelmente, mudando-se para
o lado mais distante da cama e da perna ferida de Raine. – Contam-se por
uma mão os que merecem o ar que respiram.
Ajoelhada, percorreu a coxa de Raine e levantou o pano que Rosamund
ali tinha colocado. Foi a sua primeira visão de uma ferida como aquela,
terrivelmente inflamada pela brutalidade da perfuração, o sangue ainda a
escorrer, e sentiu o estômago apertado.
– Estás a pensar deitar fora o teu jantar? – troçou Raine ao vê-la
empalidecer. – Já tive ferimentos muito piores, só que este parece ser mais
profundo.
As suas pernas, com as coxas pesadas e musculosas esticadas à sua frente,
tinham várias marcas salientes de cicatrizes. Hesitantemente, ela tocou
numa.
– Uma lâmina de machado – murmurou ele, deitado de costas; por fim, a
perda de sangue começava a drenar-lhe a força.
Tão suavemente quanto pôde, limpou a ferida e franziu o sobrolho
quando viu como estava suja, como se a flecha se tivesse limpado na carne
de Raine. Quando terminou, puxou um banco para perto da cama e
observou-o, de olhos fechados, a sua respiração pouco profunda, mas ainda
assim regular, e esperava que estivesse a dormir.
Depois de muito tempo, ele falou, de olhos fechados.
– Alyx – sussurrou ele, e ela ajoelhou-se imediatamente ao seu lado. –
Debaixo da cama está uma caixa. Vai buscá-la?
Instantaneamente, ela puxou a mala de couro e sorriu quando percebeu
que continha um alaúde.
– Sabes tocá-lo? – perguntou Raine.
Sorrindo, confiante, ela abriu a mala e retirou o alaúde, já com os dedos a
dançar na sua ansiedade de tocar as cordas. Suavemente, começou a tocar e
a cantar uma das suas próprias composições.
Só horas mais tarde se apercebeu que Raine estava a dormir, quieto e
pálido na cama, e pousou o alaúde. No silêncio, apenas se ouvia a
respiração cansada dele na tenda, e ela desejou que Rosamund voltasse.
Raine parecia pior do que antes e ela precisava de alguém que lhe dissesse
que ele ia recuperar.
Uma vista de olhos pela tenda fê-la compreender que precisavam de água,
a lateral do seu gibão estava ensopada com sangue de Raine e precisava de
ser lavada. De manhã, haveria perguntas dos fora da lei sobre a origem do
sangue.
Em silêncio, com baldes em ambas as mãos, deixou a tenda e dirigiu-se
para o rio, evitando qualquer contacto com as pessoas do acampamento.
Com um suspiro de alívio, viu Blanche envolvida num jogo de dados com
vários homens e percebeu que a mulher não deixaria o jogo para ir ver
Raine.
Já era quase escuro quando chegou à água, encheu os baldes e começou a
lavar o gibão. Para seu desgosto, a sua camisa também estava encharcada.
Após um momento de hesitação, tirou-a, juntamente com a ligadura dos
seus seios, e começou a lavar tudo, incluindo a sua própria pele e cabelo
sujos. Quase gelada, limpou-se com o pano da ligadura e cerrou os dentes
quando enfiou a camisa e as meias-calças muito frias e molhadas.
Segurando o gibão no braço, agarrou os baldes e quase correu de volta ao
acampamento.
Dentro da tenda, susteve a respiração, à escuta, ficando contente por
Raine ainda estar a dormir. Quando se livrou dos baldes, tirou rapidamente
a sua roupa molhada e vestiu uma das camisas de Raine, que lhe chegava
aos joelhos. Sabia que estava a correr um risco, mas, na verdade, não tinha
a certeza se não esperava que ele acordasse e descobrisse que ela era uma
rapariga.
Mal tinha acabado de vestir a camisa e um gemido de Raine fê-la virar.
– Mary – disse ele. – Mary, eu vou encontrar-te.
De um salto, ela estava ao lado dele. Devia estar calado para que as
pessoas do acampamento não percebessem que não estava bem. Os idiotas
suspeitavam que Raine escondia joias e ouro dentro da sua tenda, e Alyx
não tinha dúvidas de que adorariam a oportunidade para verificar.
– Mary – chamou Raine mais alto, com um dos seus grandes braços a
acenar, falhando por pouco a cabeça de Alyx.
– Raine, acordai – sussurrou ela em voz alta. – Estais a ter um pesadelo. –
Mal lhe pegou no braço e lhe tocou na pele, percebeu imediatamente que
ele estava febril. A sua pele estava quente ao toque dela.
– Não – ofegou ela e amaldiçoou Rosamund por ter deixado o
acampamento quando Raine precisava dela. Febre! O que poderia ela fazer?
Sentindo-se totalmente inútil, mergulhou um pano num dos baldes de água
e colocou-o na testa dele, mas um dos braços de Raine acertou-lhe e
mandou o pano pelo ar. Ao ritmo a que abanava os braços, iria bater num
poste da tenda e toda a lona cairia sobre as suas cabeças.
– Raine – disse ela, ferozmente. – Tendes de estar quieto. – Ela pegou-lhe
nas duas mãos com as dela e viu-se levantada do chão, caindo meio em
cima dele.
– Tenho de encontrar Mary – disse ele, muito mais alto, balbuciando as
palavras, e, enquanto se movia, levou Alyx atrás.
– Seu grande boi – sibilou ela. – Ficai quieto!
Isto pareceu afetá-lo, pois abriu os olhos e ela pôde ver o brilho febril
mesmo na tenda escura.
Por um momento, ele olhou para ela, sem a ver e, depois, os seus olhos
pareceram focar e pôs-lhe uma mão na parte de trás da cabeça dela,
puxando a boca dela para a sua.
Protestar, mesmo que Alyx tivesse pensado em tal coisa, estava fora de
questão. No momento em que os seus lábios tocaram os de Raine, tudo
ficou perdido. Ela era uma mulher de grande paixão, de grande sentimento,
e sempre tinha aplicado essa paixão à música. Ao primeiro toque de Raine,
a música explodira por todos os poros do seu corpo, anjos a cantar,
demónios a murmurar, coros a alcançar novas notas, em canções alegres e
canções tristes.
Ele virou-lhe a cabeça enquanto lhe cheirava os lábios, procurando a
doçura interior da boca dela, a sua língua tocando a ponta da dela. Não foi
preciso muito mais do que um momento para Alyx aprender a beijá-lo de
volta. Com um pé no chão, o outro balouçando no ar, o seu corpo meio em
cima dele, pôs-lhe os braços à volta da cabeça e puxou-o para mais perto, a
língua dela a mergulhar cada vez mais fundo na boca dele. Isto era o que ela
queria desde a primeira vez que o vira, não ser tratada como um rapaz, mas
como a mulher que era.
Raine reagiu com entusiasmo à agressividade dela, os seus lábios
sugaram os dela, mordendo-os, puxando-os entre os seus dentes, passando a
língua por cima da sua suave curva.
Quando a sua mão deslizou e tocou a parte superior da barriga da perna
dela, ela tomou fôlego e começou a beijar-lhe a face, com os lábios a
arrastar-se até ao seu pescoço, aquele pescoço poderoso e forte para o qual
ela olhara tantas vezes, observando com interesse como o suor gotejava por
ele.
A pele dele, tão quente, a ferver, deixou marcas a arder nas pernas dela
quando se moveu para o seu lado e começou a percorrer com ambas as
mãos as pernas dela, com os dedos a agarrar os músculos firmes das suas
coxas. Quando chegou às nádegas dela e as segurou, deu uma pequena
risada de satisfação.
– Doce rapariga – murmurou, movendo a cabeça de modo a capturar
novamente os seus lábios, e o beijo intensificou-se enquanto as suas mãos
ardentes acariciavam as pernas dela, apalpando a carne, explorando-lhe as
curvas e os contornos do seu corpo.
Mas Alyx não se contentou em ser uma participante passiva e as suas
mãos também começaram a explorá-lo, puxando-lhe a camisa para cima,
tocando-lhe a pele febril com as suas mãos ardentes e curiosas. Os pelos no
seu peito, grandes tufos ondulados, eram tão macios quanto ela tinha
imaginado, e os músculos no seu peito, também ondulados, curvados,
excitavam-na para além dos seus pensamentos mais mirabolantes.
– Raine – murmurou ela, com os lábios a seguir-lhe as suas mãos,
abominando a camisa de linho. As mãos acalmaram enquanto ele dava toda
a sua atenção ao que ela fazia com a boca. Quando a camisa não lhe
permitiu descer mais, ela moveu-se para que pudesse começar por baixo e
subir.
Os seus lábios tocaram a linha de pelos que desaparecia na sua tanga e a
respiração de Raine acelerou, as mãos ainda agarrando-lhe as coxas firmes
e duras. Enquanto os seus lábios se moviam para cima, as suas mãos
também acompanhavam o movimento ascendente, levando a camisa com
elas até chegar ao seu pescoço e, milagrosamente, o pedaço de tecido
limitador escorregou do seu corpo, expondo toda aquela pele quente e
bronzeada pelo sol à vista e ao toque de Alyx.
Raine, lento a mover-se, e mais lento ainda a perceber o que lhe estava a
acontecer, que esta ninfeta celestial estava a fazer amor com ele, retirou
facilmente e com um gesto treinado a sua camisa e, no mesmo movimento,
colocou um braço à volta da estreita cintura e puxou-a para se deitar ao seu
lado.
Foi a vez de Alyx arfar enquanto o seu corpo nu tocava a pele flamejante
de Raine e as suas mãos quentes começavam a explorar o seu corpo,
parando na sua cintura, rodeada apenas pelo cinto dourado de Lyon. Ele
parecia pensar que era natural que ela não usasse roupa, a não ser aquele
cinto dourado dos seus antepassados. Enquanto a mão se movia para cima,
em direção aos seus seios soltos, ela susteve a respiração, com medo de que
ele a rejeitasse por ser demasiado pequena para o seu gosto, mas, enquanto
as suas mãos a rodeavam e os seus lábios lhe beijavam o pescoço, ela
esqueceu-se de quaisquer deformidades imaginadas. E, quando a boca de
Raine deslizou rapidamente até ao peito dela e lhe tocou o mamilo rosado
com a língua, ela arfou e arqueou-se contra ele, as ancas a roçar
impiedosamente nas de Raine.
Um riso baixo, profundo e sensual brotou da garganta de Raine, enquanto
os seus dentes mordiam com demasiada força o mamilo, fazendo com que
ela gritasse e se afastasse dele. Raine enfiou-lhe rapidamente uma mão
debaixo da cintura e puxou-a facilmente de novo e, num só gesto, apanhou
o lóbulo da sua orelha com os dentes.
– Tu és minha, minha rica fada do bosque – disse ele entredentes, e a sua
respiração, tão quente como a sua pele, parecia entrar-lhe na orelha e viajar
diretamente até ao abismo da sua barriga.
– Não – riu-se Alyx, num tom que ninguém podia confundir com uma
resposta negativa, as mãos no estômago dele, empurrando-o. Ele deixou-a
fugir alguns centímetros, mas a sua mão voltou a puxá-la, tratando-a como
se ela fosse o cordel de um brinquedo de criança.
Presa no jogo, não gostando da sua brincadeira com ela, Alyx levou os
joelhos dela até ao peito e empurrou. Ficou satisfeita por ver que, pelo
menos, eram necessários dois braços para a segurar contra a força das suas
pernas.
Parecendo gostar da sua posição encolhida, ele segurou-a e percorreu-lhe
as costas com as mãos, bem como as pernas e as nádegas, acariciando
lentamente, deixando um rasto de calor até Alyx sentir que o seu corpo
estava tão quente como o dele, e Raine ficou novamente com uma
expressão séria, os seus lábios apoderaram-se dos dela com força e a sua
paixão subiu tanto que ela sentiu algo no ar sobre eles, além do aperto do
seu corpo contra o dela.
Impacientemente, puxou as pernas dela para baixo, de modo a ficarem
deitados de lado, virados um para o outro, e as suas mãos já não eram
suaves, mas exigentes, puxando o corpo esguio dela para o seu maior,
parecendo tentar fundir as suas peles.
Cega e com uma música magnífica a rugir na sua cabeça, Alyx tentou
aproximar-se dele, atirando-lhe uma perna por cima, enrolando-o nas suas
coxas e prendendo o pé atrás do seu joelho.
A mão de Raine desceu-lhe pelas costas, lentamente, sentindo cada
centímetro do seu corpo, até chegar ao centro do seu ser. Arfando e de olhos
bem abertos, Alyx afastou-se para trás, viu que os seus olhos estavam
fechados enquanto se concentrava em sentir. Quando o seu dedo a penetrou,
começou a tremer, assustada com aquela nova experiência, com o que lhe
estava a acontecer, com o que a sua mente e corpo estavam a sentir.
A mão dele movia-se, acariciando-lhe o interior das coxas, tocando-a
sempre de forma tão leve, fazendo com que abrisse as pernas cada vez mais,
à medida que as envolvia nas suas ancas, segurando-o com tanta força que
parecia esmagá-lo.
Quando a mão dele a deixou, ela protestou, mas a sua boca capturou a
dela e Alyx, quase em lágrimas, empurrou-se cada vez mais para perto dele.
A tanga de Raine desapareceu e, quando a masculinidade dele tocou a
feminilidade dela, ela colocou-se em cima dele. Ele segurou-lhe as costas,
penetrando-a muito lentamente, centímetro a centímetro.
Raine manteve-a quieta, penetrando-a e descansando, permitindo que as
sensações fluíssem de um corpo para o outro, até que Alyx, ansiosa,
inexperiente, começou a mover-se, brusca e ineptamente.
As mãos de Raine seguraram-lhe as nádegas e guiaram-na num
movimento fluido, lento, ritmado, levando-a facilmente e a cada movimento
cada vez mais longe no seu prazer.
Quando ela começou a mover-se mais depressa, ele acomodou-a,
empurrando-a com mais força e mais depressa, cada vez mais fundo, até
que Alyx começou a arranhar-lhe as costas e a morder-lhe o pescoço, com
todo o seu corpo a começar a contorcer-se e a revirar-se, parecendo lutar
contra ele e, ao mesmo tempo, implorar-lhe por algo.
Rodando, Raine deitou-a de costas e baixou o seu magnífico, delicioso e
glorioso peso em cima dela, pressionando-a contra a cama com tanta força
que quase a fez cair e ela agarrou-se a ele com as pernas, fixando os
tornozelos, empurrando as ancas para cima, enquanto ele se abateu para
dois penetrantes e duros impulsos – e Alyx morreu.
Música branca, quente e embriagante explodiu por toda a parte,
arrancando-lhe a pele, separando todos os pedaços dela enquanto o seu
corpo tremia e tremia até que a sua força se transformou em geleia.
Pegajosa, horrivelmente fraca, insegura do que o seu corpo tinha acabado
de fazer, e do que tinha feito para isso, agarrou-se a Raine, permitindo-se
sentir a sua pele quente e a sua respiração irregular no ouvido. Movendo um
braço e sentindo-se como se tivesse acabado de rolar por uma colina
íngreme coberta de pedras, Alyx tocou o cabelo húmido ao longo do
pescoço dele. Num movimento rápido e feroz, Raine agarrou a mão dela
enquanto rolava para o seu lado, arrastando-a consigo e agarrando-lhe a
mão com tanta força que ameaçava partir-lhe os dedos.
– Minha – sussurrou ele, levando a mão dela à boca e beijando dois dedos
antes de o sono o dominar.
Durante vários minutos, Alyx dormitou, metade a dormir, metade
acordada. O seu corpo estava exausto, mas, de alguma forma, estava mais
viva do que alguma vez estivera. Não sentia vergonha por ter acasalado
com um homem que não era seu marido, e talvez devesse, mas, naquele
momento, não havia nada na vida de que ela precisasse a não ser a perna
deste querido homem por cima dela, e aquela pegajosidade húmida a colar
mais os seus corpos juntos.
– Amo-te – sussurrou ela ao homem que dormia nos seus braços. – Sei
que nunca poderás ser meu, mas, neste momento, és. Amo-te – disse ela
novamente ao beijar uma madeixa húmida e adormeceu de novo, mais feliz
do que alguma vez tinha estado na sua vida.
Capítulo Oito

ALYX ACORDOU numa tenda iluminada pela luz matinal, e a pele de Raine a
tocar na dela estava mais quente do que na noite anterior. Adormecido,
movia-se, inquieto, rebolando, ignorando a presença de Alyx enquanto
rolava sobre ela, ameaçando partir-lhe os ossos. Empurrando-o com todas
as suas forças, ela conseguiu tirá-lo de cima dela e, rapidamente, começou a
vestir as suas roupas, molhadas nalguns sítios, secas noutros, uma vez que
tinham ficado amassadas num monte toda a noite. Ela desejava
ardentemente poder vestir um vestido e desistir da pretensão de ser um
rapaz. As roupas e os costumes masculinos davam uma grande liberdade,
mas se ela fosse um rapaz teria perdido uma noite como a que tinha tido.
Ainda mal tinha apertado o gibão quando a entrada da tenda se abriu e
Jocelin entrou, seguido de Rosamund.
– Como está ele? – perguntou Joss, observando atentamente Alyx.
Antes que ela pudesse responder, Rosamund interrompeu-os.
– Ele tem febre e temos de a fazer baixar. Vai buscar água fria enquanto
eu vou buscar as minhas ervas.
Imediatamente, Alyx agarrou nos baldes e dirigiu-se para o riacho.
Os três dias seguintes foram de tortura para Alyx. Ela e Rosamund
trabalharam continuamente para fazer descer a febre de Raine. O seu corpo
enorme foi coberto com cataplasmas e as mulheres tiveram de forçá-lo a
ingerir substâncias horríveis pela garganta abaixo. Esta operação foi sempre
acompanhada por terríveis ordens de Alyx, nas quais ela chamou tudo a
Raine, desde mendigo inútil a pavão vaidoso gigante, fazendo Rosamund rir
e, por vezes, corar. Alyx cantava-lhe constantemente, tocava alaúde
frequentemente, tudo para o acalmar e impedi-lo de se mexer
descontroladamente.
E, enquanto Raine ardia em febre, Jocelin tentou manter o comando do
campo de foras da lei, impondo o treino diário que Raine tinha começado,
tentando evitar que os degoladores se matassem uns aos outros.
– Não acredito que valham a pena – disse Joss, sentado no chão aos pés
da cama de Raine. – Porque é que ele – acenando para o homem
adormecido à sua esquerda – acha que tem de resolver os problemas deles?
– E aceitou uma tigela de guisado de Rosamund.
– Raine adota toda a gente – disse Rosamund calmamente, de cabeça
baixa, como sempre. – Ele acredita verdadeiramente que vale a pena cuidar
de nós.
– Nós? – questionou Alyx enquanto olhava para cima, desviando o olhar
de Raine. Nunca saíra do lado dele, dormira sentada num banco, com a
cabeça apoiada na borda da sua cama. – Não me considero semelhante a um
assassino.
– E tu, Rose? – perguntou Jocelin. – Que crime cometeste tu?
Rosamund não respondeu, mas quando Joss virou a cabeça, ela olhou
para ele de tal forma que Alyx arquejou sonoramente, cobrindo rapidamente
o som com um pouco de tosse. Rosamund estava apaixonada por Jocelin.
Enquanto Alyx os olhava, cada um com a sua beleza extraordinária, viu
como eram adequados um para o outro. Ela sabia porque estava Rosamund
naquele acampamento horrível, porque as pessoas acreditavam que ela tinha
a marca do diabo, mas porque é que Joss estava aqui?
Na manhã seguinte, muito cedo, a febre de Raine cedeu. Alyx estava a
dormir, com a cabeça junto ao seu braço nu, quando sentiu que ele estava
diferente. Observando-o, viu os seus olhos abertos, olhando para a tenda e,
finalmente, parando no seu rosto.
Imediatamente, o coração de Alyx começou a bater e a sua pele,
atraiçoando-a, começou a corar. Como reagiria ele ao facto de terem feito
amor?
Após um momento, ele desviou o olhar dela, não lhe dizendo nada com
os olhos.
– Quanto tempo estive doente?
– Três dias – respondeu ela, com a voz a ficar-lhe presa na garganta.
– E mantiveste a ordem no acampamento? Ou mataram-se uns aos
outros?
– Eles... eles estão bem. Jocelin empunhou a espada sobre as suas cabeças
e manteve a paz. – Quando ele não respondeu, ela suspirou. Agora, ele iria
falar deles, da sua paixão.
Em vez disso, lutou para se sentar e, quando Alyx começou a ajudá-lo,
empurrou-a como se ela não tivesse qualquer importância. Atirando o
cobertor de lã para o lado, arrancou as ligaduras da coxa e,
desinteressadamente, inspecionou a ferida na perna, pressionando-a.
– Está a sarar – aventurou-se ela. – Rosamund disse que a ferida não era
grave, à exceção da febre. Tememos pela tua vida.
Voltando-se para ela, dirigiu-lhe um olhar frio e duro, e ela quase podia
jurar que havia raiva nos seus olhos.
– Vai buscar-me comida, e muita. Preciso de retemperar as minhas forças.
Alyx não se mexeu.
– Maldito sejas! – gritou Raine, com a sua voz a abanar as paredes da
tenda. A explosão obviamente esgotou a pouca energia que ele tinha e, por
um momento, a sua mão agarrou-se à testa. – Obedece-me – disse ele
calmamente, deitado de costas. – E, rapaz… – acrescentou ele, enquanto ela
chegava à saída da tenda, com os baldes de água nas mãos. – Traz-me vinho
quente.
– Rapaz! – arfou Alyx quando saiu da tenda. – Rapaz!
– Alyx? – perguntou Joss. – Foi o Raine que eu acabei de ouvir?
Desalentada, ela assentiu com a cabeça.
– Estás bem? Porque gritava ele?
– Como é que eu vou saber porque gritava aquele grande boi? – disparou
ela. – Como pode um ser insignificante como eu saber o que pensa um
amigo do Rei?
Para sua consternação, Jocelin riu-se em voz alta e deixou-a, assobiando o
que Alyx sabia ser uma cançãozinha indecente.
– Homens! – praguejou ela, atirando os baldes para o riacho, arrastando
areia e pedras com a água e depois tendo de repetir o processo. Da segunda
vez, fez uma pausa, com lágrimas nos olhos. – Rapaz – sussurrou ela para a
água fria a correr. Significaria ela tão pouco para ele que nem se conseguia
lembrar da noite deles juntos?
Talvez ele precisasse de algumas horas para se lembrar, pensou ela ao
voltar para a tenda, parando para dizer a Blanche que Raine queria comida.
– Já sabia – disse Blanche, com uma voz doce e insinuante. – Ele já me
mandou chamar e devo dizer que Raine Montgomery não perdeu nenhuma
da sua força – afirmou ela em voz alta para toda a gente à volta ouvir,
apertando ostensivamente a parte de cima da camisa suja que usava. – Já
lhe levei a comida dele.
Com o queixo empinado, Alyx entrou na tenda, com os ombros
arrastados para baixo por causa dos pesados baldes.
– Porque demoraste tanto tempo? – perguntou Raine, com a boca cheia.
Ela rodopiou para o enfrentar.
– Tenho mais que fazer do que ir buscar a tua comida – disse ela,
enraivecida. – E parece que aquela tua prostituta pode muito bem tratar
disso.
– É justo – disse ele, respondendo-lhe à letra e atirando-se a uma perna de
porco. – Talvez devêssemos trabalhar nessa tua atitude puritana. Uma
mulher é uma mulher, uma coisa frágil e indefesa, alguém para proteger e
amar, independentemente da sua condição na vida. Se tratares uma
prostituta como uma senhora, ela será uma, e uma senhora pode tornar-se
uma prostituta. Tudo depende do homem. Lembra-te disso. Ainda estás
muito longe de ser homem, mas quando lá chegares…
– Quando isso acontecer, não vou precisar de nenhum conselho teu –
quase gritou ela antes de se virar para a saída, onde embateu em Jocelin.
Com um olhar de raiva, ela passou por ele e saiu da tenda.
Joss olhou de relance para Raine, sentou-se num banco e começou a tocar
despreocupadamente o alaúde, enquanto Raine comia silenciosamente.
Passado um momento, Joss deixou de tocar.
– Há quanto tempo sabes de Alyx? – perguntou Joss.
Apenas uma pausa na sua refeição mostrou que Raine o tinha ouvido.
– Na verdade, há algumas horas – disse calmamente. – E há quanto tempo
é que sabes?
– Desde sempre. – E riu-se da expressão de Raine. – Admirei-me por
mais ninguém ter percebido. Para mim, ela era como uma menina vestida
com as roupas do irmão. Quando lhe chamaste rapaz, nem quis acreditar
que falavas a sério.
– Quem me dera que me tivesses dito – desejou Raine com sinceridade e
com uma covinha a aparecer-lhe na bochecha. – Há dias, ela estava a
escrever uma carta para mim e eu quase a beijei. Fiquei doente durante
horas depois disso.
– Fizeste-a trabalhar mais do que qualquer outra pessoa, sabes.
– Talvez estivesse a tentar mudar as suas formas – riu Raine. – Tenho
andado fascinado pelas pernas dela há já algum tempo.
– E agora, o que planeias fazer com ela?
Empurrando a bandeja, Raine deixou-se cair de costas na cama, sentindo-
se muito fraco, muito cansado.
– Sabes quanto da história dela é verdadeira? O que lhe fez Pagnell?
– Acusou-a de o ter roubado, declarou-a bruxa e ofereceu uma
recompensa generosa pela sua cabeça.
Raine franziu o sobrolho a Joss, sentindo-se um tolo por saber tão pouco
sobre o que se passava debaixo do seu nariz.
– Como é que achas que a escória deste acampamento reagiria a uma
jovem rapariga no meio deles? Alguém cuja captura lhes traria uma
recompensa?
Joss bufou como única resposta.
– Penso que é melhor ela permanecer um rapaz – disse Raine,
pensativamente – e sob a minha proteção. Quanto menos pessoas souberem
da sua verdadeira identidade, melhor.
– Mas vais dizer à Alyx que sabes que ela é uma rapariga, não vais?
– Ah! – resmungou Raine. – Deixa que essa rabugenta sofra o que eu
sofri. Virou-me aquele lindo rabinho sempre que pôde e, esta manhã,
quando me apercebi de como me tinha feito passar por tolo, podia ter-lhe
torcido o pescoço. Não, deixa-a andar iludida um pouco mais. Ela pensa
que não me lembro… – E olhou rapidamente para Joss. – Ela pensa que eu
não sei que é mulher, deixa-a continuar assim.
Jocelin levantou-se.
– Não vais ser muito duro com ela, pois não? A menos que eu esteja
enganado, penso que ela acredita que está apaixonada por ti.
Raine sorriu de orelha a orelha.
– Ótimo. Não, não lhe farei mal, mas fá-la-ei provar um pouco do seu
próprio veneno.
Uma hora depois, quando Alyx voltou à tenda, de queixo empinado,
Raine e Jocelin estavam a jogar dados, mas nenhum dos dois parecia estar
muito interessado no jogo.
– Alyx – disse Raine, não olhando para cima sequer. – Treinaste no
acampamento hoje? Já és suficientemente esquelético para perderes o pouco
músculo que tens.
– Treinar – arfou ela, depois acalmou-se. – Por alguma razão que não
percebo agora, estava preocupado se sobrevivias ou morrias e não pensei
em modelar o meu corpo débil.
Com uma expressão de espanto e mágoa, Raine olhou para ela.
– Alyx, como podes falar comigo assim? Estás mesmo zangado por eu ter
sobrevivido? Vai-te embora, Joss, estou demasiado cansado para jogar mais.
Talvez vá eu próprio buscar algum vinho… assim que estiver
suficientemente forte – acrescentou, deitando-se de costas na cama com
uma grande demonstração de cansaço.
Joss começou a tossir, engasgando-se, antes de enfiar os dados no bolso,
revirando os olhos para Raine e deixando a tenda.
Alyx tentou manter-se distante, mas quando viu Raine cair na cama, com
um aspeto tão pálido, tão desamparado, acabou por ceder.
– Vou trazer-te vinho – suspirou ela, e, quando lho entregou, a mão dele
tremia de tal modo que teve de colocar-lhe o braço à volta dos ombros,
apoiando-o e levando-lhe o copo aos lábios… aqueles lábios que mesmo
agora a faziam respirar mais rapidamente.
– Estás cansado – disse Raine com simpatia. – E há quanto tempo é que
não tomas banho? Ninguém no mundo pode ficar tão sujo como um rapaz
da tua idade. Ah, bem – disse ele, sorrindo, encostando-se para trás. – Um
dia, quando tiveres encontrado a mulher certa, vais querer agradar-lhe.
Alguma vez te contei de quando estive num torneio fora de Paris? Havia
três mulheres que…
– Não! – gritou ela, fazendo-o pestanejar inocentemente para ela. – Não
quero ouvir as tuas histórias indecentes.
– Um escudeiro deve ter mais educação do que apenas em armas. Por
exemplo, quando tocas alaúde, as músicas que escolhes e as palavras que
cantas são mais adequadas para uma mulher. Uma mulher gosta de um
homem que é forte, seguro de si próprio, nunca gostaria de um jovem
chorão que soa mais a uma fêmea.
– Chorão! – começou ela, profundamente insultada. Ela podia não ser
bonita, mas confiava na sua música. – E o que sabes das mulheres? –
vociferou ela. – Se sabes tão pouco de mulheres como de música, és tão
ignorante como és…
– Como sou o quê? – questionou ele com interesse, apoiando-se num
cotovelo para a encarar. – Bonito? Assim tão forte? Saudável? – continuou
ele, olhando-a quase lascivamente.
– Vaidoso! – exclamou ela.
– Ah, se o teu tamanho correspondesse à força da tua voz. Alguma vez
tentaste derrubar as paredes do castelo, gritando-lhes? Talvez pudesses
atingir uma nota e um exército de cavalos do inimigo te seguisse pelas
florestas.
– Para! Para com isso! – gritou ela. – Odeio-te, seu grande, estúpido,
nobre cobarde! – De seguida, virou-se para a saída da tenda, mas Raine,
com a sua voz grave e dominadora, chamou-a de volta.
– Vai buscar a Rosamund, sim? Não me sinto nada bem.
Ela virou-se, dando um passo na sua direção, mas voltou atrás e saiu da
tenda. Lá fora, havia muitas pessoas e, obviamente, teriam ouvido a
discussão dentro da tenda. Dando o seu melhor para ignorar as pessoas que
se riam e davam socos uns aos outros, Alyx foi para o campo de treino e
passou três duras horas a praticar com um arco e flecha.
Finalmente, exausta, foi até ao riacho, tomou banho, lavou o cabelo e
comeu antes de regressar à tenda.
Estava escuro na tenda e, como não se ouvia som nenhum vindo de
Raine, assumiu que ele estava a dormir. Seria agora, pensou ela, se tivesse
coragem, que se afastaria deste acampamento e nunca mais regressaria.
Porque teria pensado ela que o que tinha sido tão especial para si fora
alguma coisa para este senhor do reino? Sem dúvida que estava habituado a
que as mulheres entrassem e saíssem da sua cama e lhes prestasse pouca
atenção. O que importava mais uma? Se ela se revelasse como a sua última
conquista, rir-se-ia ou talvez a aceitasse como uma das suas muitas
mulheres? Seria que ela e Blanche se revezariam para o entreter?
– Alyx? – perguntou Raine, sonolento. – Estiveste ausente durante muito
tempo. Comeste alguma coisa?
– Um balde cheio – disse ela, com ar desagradável – para que possa
crescer até ter o tamanho do teu cavalo.
– Alyx, não te zangues comigo. Vem sentar-te ao meu lado e canta-me
uma canção.
– Não conheço canções como as que tu gostas.
– Cá me arranjarei – disse ele, e a sua voz estava tão cansada que ela
cedeu, pegando no alaúde e tocando calmamente, cantarolando a melodia.
– Judith vai gostar de ti – murmurou ele.
– Judith? A bela esposa do teu irmão? Porque é que uma senhora como
ela se importaria com o filho de um humilde advogado? – Quase que tinha
dito «filha».
– Ela vai gostar da tua música – disse ele, com a voz pesada de sono, e
Alyx parou de tocar.
Quando teve a certeza de que ele estava a dormir, foi ter com ele,
ajoelhou-se junto à sua cama e, por um momento, observou-o, fazendo
pouco mais do que assegurar-se de que estava vivo. Finalmente, foi para a
sua própria cama dura e usou todas as suas forças para não chorar.
Pela manhã, Raine insistiu em ir para o campo de treino. Nenhum
protesto de Alyx ou Jocelin conseguiu persuadi-lo a descansar por mais um
dia. Enquanto caminhava, Alyx conseguia ver o suor na sua testa e o olhar
vazio nos seus olhos ao mesmo tempo que se forçava a mexer.
– Se morreres, que utilidade terás para nós? – perguntou Alyx na sua
direção.
– Se eu morrer, irás pessoalmente avisar a minha família? – disse ele com
tal seriedade que a sua respiração parou. Depois, surgiu-lhe uma covinha no
rosto e ela percebeu que ele a estava a provocar.
– Atirarei a tua grande carcaça para cima de um cavalo e irei ao encontro
da tua família perfeita, mas não me ajoelharei junto com as tuas irmãs para
te chorar.
– Haverá outras mulheres para além das minhas irmãs para chorarem a
minha morte. Alguma vez te falei da criada de Judith, Joan? Nunca conheci
uma mulher mais entusiasta na minha vida.
Naquela altura, Alyx virou-se de costas para as gargalhadas de Raine.
Após uma hora de treino, Alyx correu de volta à tenda para ir buscar um
pouco da bebida de ervas de Rosamund para Raine e encontrou Blanche a
mexer nas suas roupas.
– O que pensas que estás a fazer? – perguntou Alyx, fazendo Blanche
saltar culpadamente.
– Ando a ver da roupa... para lavar – disse ela, os seus olhos a moverem-
se rapidamente.
Alyx riu-se.
– Desde quando é que sabes o que é sabão? – Com um movimento
rápido, agarrou os braços de Blanche. – É melhor dizeres-me a verdade.
Sabes qual é o castigo por roubar. Seres banida.
– Eu devia ir-me embora daqui – queixou-se Blanche, tentando afastar-se
de Alyx. – Já não há nada aqui para mim. Solta-me!
Enquanto Blanche puxava, Alyx empurrou-a e Blanche foi projetada no
interior até as suas costas baterem num poste de tenda.
– Vais pagar por isto – rosnou Blanche. – Vais-te arrepender por me teres
roubado Lorde Raine.
– Eu? – perguntou Alyx, tentando disfarçar o prazer da sua voz. – E como
é que eu te roubei Raine?
– Sabes que ele já não me leva para a cama dele – disse ela, levantando-
se. – Agora que ele tem um rapaz…
– Cuidado – advertiu Alyx. – Parece-me que deves preocupar-te com a
minha raiva para contigo. O que procuravas quando eu entrei?
Blanche recusou-se a falar.
– Então, acho que vou ter de contar a Raine – ameaçou Alyx, virando-se
para sair.
– Não! – exclamou Blanche por entre lágrimas na voz. – Não tenho outro
sítio para onde ir. Por favor, não lhe digas. Não ia roubar. Nunca o fiz antes.
– Tenho um preço para não contar a Raine.
– Qual é? – perguntou Blanche, assustada.
– Fala-me de Jocelin.
– Jocelin? – perguntou Blanche, como se nunca tivesse ouvido o nome
antes.
Alyx só a olhou de relance.
– Vão notar a minha falta em breve e, se eu não souber a história quando
alguém vier procurar-me, Raine ficará a saber do teu roubo.
Imediatamente, Blanche começou a despejar a história.
– Jocelin era um trovador e todas as senhoras bem-nascidas o desejavam,
não só pela sua música mas também pela sua… – Ela hesitou. – O homem
nunca se cansava – disse ela melancolicamente, fazendo com que Alyx
acreditasse que possuía conhecimento de causa.
– Ele foi ao castelo de Chatworth, às ordens de Lady Alice.
O nome Chatworth fez com que Alyx levantasse a cabeça. Chatworth era
o homem que tinha aprisionado a irmã e a cunhada de Raine.
– Lady Alice é uma mulher má – continuou Blanche –, mas o seu marido,
Lorde Edmund, era pior. Ele gostava de bater nas mulheres e de as ver
debaterem-se enquanto as possuía. Houve uma mulher, Constance, a quem
ele bateu até ela morrer… ou, pelo menos, assim pensou. Entregou o corpo
a Joss para se desfazer dele.
– E? – encorajou Alyx. – Não me resta muito tempo.
– A mulher não estava morta e Joss escondeu-a, cuidando dela até ela
recuperar e apaixonou-se por ela.
– E isso era invulgar para um homem com os… atributos de Joss?
Blanche começou subitamente a ficar muito nervosa, a puxar uma mão
com a outra, apoiando-se num pé primeiro e depois no outro.
– Não acredito que ele alguma vez tenha amado alguém antes. Quando
Lorde Edmund descobriu que a rapariga ainda estava viva, tomou-a de novo
e atirou Jocelin para uma masmorra. E a rapariga... essa Constance...
– Sim? – incitou Alyx, impacientemente.
– Ela pensou que Joss, provavelmente, estaria morto e, por isso, suicidou-
se.
Alyx benzeu-se ao ouvir falar em tal pecado.
– Mas Joss escapou e veio para aqui – terminou Alyx.
– Mas, primeiro, matou Lorde Edmund – acrescentou Blanche
calmamente e, com isso, afastou Alyx e fugiu da tenda.
– Matou um lorde – sussurrou Alyx para si mesma. Sem dúvida de que
teria havido uma enorme recompensa pela sua cabeça e não admirava que
ele não quisesse ter nada a ver com as mulheres do acampamento. Alyx
sabia muito bem o que era amar um homem e perdê-lo.
– O que fazes aqui? – perguntou Raine, furioso, por trás dela. –
Desapareceste durante pelo menos uma hora e encontro-te aqui sozinho sem
fazer nada.
– Eu vou trabalhar – murmurou ela, virando costas.
Ele segurou-lhe o braço, mas libertou-a tão depressa como lhe tocou.
– Recebeste más notícias?
– Nenhuma que te interesse – soltou ela de repente, saindo da tenda.
Durante o resto do dia, os pensamentos de Alyx concentraram-se em
Jocelin. Joss era um homem doce, bondoso e sensível, e merecia alguém
que o amasse. Ela desejava poder ter-se apaixonado por Joss; como tudo
seria muito mais fácil. Um dia, provavelmente em breve, Raine deixaria a
floresta e voltaria para a sua rica família e ela ficaria sozinha.
Quando, sem pensar, levantou uma espada sobre a cabeça, tentando
baixá-la para a sua frente, o seu olhar apanhou um movimento no canto do
campo. Nas sombras, parada, a observar, estava Rosamund. Seguindo o seu
olhar, Alyx viu que a mulher olhava apenas para Jocelin, e que os seus
olhos ardiam de paixão e fogo e, como Alyx percebeu, de luxúria. A sua
cabeça não estava baixa e, pela primeira vez, não se via nela nenhuma
subserviência, nem arrependimento por ter nascido.
– Alyx! Seu relaxado! – gritou-lhe Raine e, com uma careta, ela voltou a
concentrar-se no seu treino.
Nessa noite, Raine, exausto, ainda muito fraco, foi para a cama para
descansar, enquanto Alyx se sentou lá fora ao ar frio da noite e comeu uma
tigela de feijão. Ao lado dela sentou-se Jocelin.
– Rasgaste a tua camisa – comentou ela. – Alguém devia coser-ta.
Antes de Alyx poder respirar, três mulheres disseram alegremente que a
coseriam.
– Não – murmurou Joss, olhando para a sua tigela. – Serve muito bem
como está.
– Dá a uma delas a tua camisa – disse Alyx, impacientemente. – Vou
buscar uma do Raine para te manteres quente. Ele tem mais do que
suficientes.
Relutantemente, Joss tirou a camisa quando Alyx se apressou a entrar na
tenda, lançou um olhar para a forma adormecida de Raine e apressou-se de
novo a sair, com uma camisa sobre o braço. Ao chegar cá fora, fez uma
pausa. Jocelin tinha-se sentado diante do fogo, com o seu corpo nu da
cintura para cima, cheio de mulheres à sua volta, de olhos sedentos
enquanto olhavam para Joss, para a sua beleza, a sua melancolia óbvia, e,
ao longe, estava Rosamund. Mas Jocelin nunca olhou para nenhuma das
mulheres.
Junto ao fogo, Alyx entregou a camisa a Joss e serviu-se de uma caneca
de cidra a ferver, soprando o líquido para o arrefecer.
De repente, um barulho mesmo ao lado do círculo de luz fez a cabeça de
todos rodar nessa direção.
Mais tarde, Alyx não se lembrava realmente de ter conscientemente
planeado o que fez. Ninguém estava a olhar, ela estava ao lado do corpo nu
de Jocelin e a segurar a cidra quente. Tudo o que pensou foi que, se Joss se
ferisse, teria de ir ter com Rosamund e, no momento seguinte, ela deitou
metade da cidra no braço de Joss.
Instantaneamente, arrependeu-se. Jocelin saltou para longe dela, a camisa
caindo-lhe do colo.
– Joss, eu… – começou ela, olhando, horrorizada, para a pele do seu
braço a ficar vermelha.
– Rosamund – alguém sussurrou. – Vão buscar a Rosamund.
Em segundos, Rosamund apareceu, colocou os seus dedos frios no braço
de Joss e levou-o para as sombras.
Alyx não se tinha apercebido, mas havia lágrimas nos seus olhos e o seu
corpo tremia com o que tinha acabado de fazer. Tinha acontecido tão
depressa e não tivera tempo para pensar.
Uma grande mão agarrou-a pela parte de trás do pescoço, paralisando-a.
– Vais seguir-me até ao riacho e, se não me seguires, dou-te já com um
chicote nas costas – rosnou-lhe Raine ao ouvido, com uma voz que mal
disfarçava a sua fúria.
A sua culpa pelo que tinha feito a Joss foi substituída por puro terror. Um
chicote nas suas costas? Engolindo em seco, seguiu Raine até à floresta
escura. Merecia um castigo, pois não tinha o direito de magoar o seu amigo.
Capítulo Nove

JUNTO AO RIACHO, Raine voltou-se para ela, com os seus lábios finos
encrespados num grunhido.
– Devia espancar-te – disse ele, ferozmente, empurrando-a uma vez,
levemente, fazendo com que se esparramasse na terra fria. – E que raio
imaginaste que Jocelin te tinha feito? – perguntou ele, com os dentes
cerrados. – Tiveste ciúmes do corte do seu gibão? Teria ele dito algo que
não te agradou? Talvez tenha tocado uma canção melhor do que tu.
Isso despertou-a.
– Ninguém é melhor do que eu – disse ela com firmeza, de queixo
espetado enquanto olhava para ele.
– Maldito sejas! – praguejou ele, agarrando-lhe a frente da camisa dela e
puxando-a para cima. – Confiei em ti. Pensei que eras um dos poucos da tua
classe com sentido de honra. Mas és como todos os outros… permitindo
que as tuas quezílias mesquinhas se sobreponham à tua honra.
Os dois formavam um casal estranho, Raine duas vezes do tamanho de
Alyx, em altura, a pairar sobre ela, mas a voz de Alyx não ficava atrás da de
ninguém.
– Honra – gritou-lhe ela de volta. – Não sabes o significado da palavra. E
Jocelin é meu amigo. Ele e eu não temos quezílias. – Ela deixou claro com
quem tinha diferendos.
– Então! A tua pequena mente perversa despejou-lhe em cima cidra a
ferver só por diversão. És como Alice Chatworth. Essa mulher adora
provocar e receber dor. Se eu soubesse que eras como ela…
De imediato, Alyx cerrou os punhos e agrediu Raine no estômago.
Enquanto ele pestanejava surpreendido, ela agarrou na sua faca da bainha a
tiracolo.
– Poupa-me a história da tua estúpida família – gritou ela, pressionando a
ponta da faca no seu estômago. – Vou explicar a Jocelin o que fiz e porque
o fiz, mas tu, seu fanfarrão, vaidoso e arrogante, não mereces nada. Julgas e
condenas sem a mínima prova.
Impacientemente, Raine tocou-lhe ao de leve no braço para lhe arrancar a
faca, mas os reflexos de Alyx tinham melhorado nas últimas semanas e os
de Raine estavam entorpecidos pela febre. A lâmina cortou-lhe as costas e o
lado da mão e fez com que ambos parassem enquanto observavam o sangue
a jorrar do corte.
– Tens sede de sangue, não tens? – perguntou Raine. – Tanto faz ser o
meu como o do meu amigo. Vou ensinar-te o que é dor. – Tentou aproximar-
se, mas ela desviou-se dele.
Foram precisas duas tentativas para a apanhar e, quando conseguiu, as
suas mãos apertaram os ombros dela, enquanto a abanava com muita força.
– Como pudeste fazer isto? – perguntou ele. – Confiei em ti. Como
pudeste trair-me?
Era difícil registar as palavras quando a sua cabeça estava prestes a saltar,
mas finalmente começou a compreender o que ele dizia. Jocelin era
responsabilidade de Raine e ele levava a sério as suas obrigações.
– Rosamund, Rosamund, Rosamund – começou ela a entoar.
Quando, finalmente, ele a ouviu, deixou de a abanar.
– Diz-me – gritou-lhe na cara.
O corpo dela estava fraco devido à força dos abanões dele.
– Rosamund está apaixonada por Jocelin e eu pensei que ela poderia
substituir Constance, mas não se eles estiverem separados.
Aquilo não fazia sentido para Raine. Os seus dedos apertaram nos ombros
dela e ela perguntou-se se, em breve, os atravessariam. Rapidamente,
explicou a história de Joss sobre Constance, omitindo o nome de
Chatworth.
O silêncio atordoado de Raine preencheu o ar.
– És um casamenteiro? – questionou ele, em voz rouca. – Feriste Jocelin
por causa de umas quantas ideias idiotas de amor?
– O que sabes tu do amor? – atirou-lhe ela, asperamente. – Sabes tão
pouco de mulheres que não reconheces uma quando a vês.
– É verdade – contra-atacou ele rapidamente. – Sou um inocente quando
se trata dos modos mentirosos e enganosos das mulheres.
– Nem todas as mulheres são mentirosas.
– Diz-me uma que não seja.
Ela estava morta por se mencionar a si própria, mas não conseguiu.
– Rosamund – deixou escapar ela. – Ela é uma pessoa boa e bondosa.
– Não quando usa tais métodos para prender um homem.
– Prender! Quem quereria apanhar um espécime tão abominável como
um homem? – Alyx parou de falar quando viu os olhos de Raine a brilhar.
– Tu sabes – murmurou ela. – Tu sabes.
Ela não perdeu muito tempo a dissecar a veracidade dos seus
pressupostos, mas levantou-se do chão e voou contra ele, com os punhos
cerrados.
– Seu…! – começou ela, enraivecida, mas Raine impediu-a. Agarrou-a,
apertando o corpo franzino contra ele e puxando a boca dela para a dele.
Avidamente, beijou-a, com uma mão na nuca e a outra mão na cintura,
levantando-a do chão.
– Lembra-te de que sou um homem debilitado – sussurrou ele. – E um
longo dia no campo de treino provoca…
Alyx mordeu-o no ombro.
– Há quanto tempo é que sabes?
– Não há tanto tempo como gostaria. Porque não me disseste logo?
Compreendo porque tiveste de te vestir como um rapaz, mas eu teria
guardado o segredo.
Ela aninhou a cara no pescoço dele, naquela pele tão macia e de sabor
doce.
– Eu não te conhecia. Oh, Raine, estás realmente, verdadeiramente, muito
debilitado?
A gargalhada de Raine soou através do seu corpo enquanto ele a afastava,
atirando-a ao ar.
– Tiveste o teu primeiro cheirinho de amor e não consegues parar, é isso?
– É como música – disse ela com ar sonhador. – A melhor música.
– Tenho a certeza que devo tomar isso como um elogio – disse ele,
começando a desabotoar o seu gibão.
Por um momento, passou pela mente de Alyx que ele não iria gostar do
seu corpo de peito liso agora, quando nenhuma febre lhe turvava os
sentidos.
– Raine – disse ela, a sua mão sobre a dele. – Eu pareço um rapaz.
Demorou algum tempo até que ele compreendesse as palavras dela.
– Não consigo deixar de pensar nessas tuas pernas e, agora, dizes que te
pareces com um rapaz? Fiz tudo o que estava ao meu alcance para fazer de
ti um homem e falhei. Mas fiz de ti uma mulher.
Sustendo a respiração, Alyx permitiu que ele a despisse e, quando ele
olhou para o seu corpo franzino com olhos fervorosos e ávidos, ela
esqueceu-se de qualquer sentimento de não ser desejável.
Com uma gargalhada, rasgou a roupa dele, arrancando tudo o que
conseguia da sua pele.
Raine baixou-a até ao chão, mantendo as suas mãos nas costas nuas dela
enquanto ela se encaixava nele. Nunca ele tinha encontrado tal entusiasmo.
– Não te estou a magoar? – murmurou ele enquanto segurava o seu
pequeno corpo.
– Apenas um pouco e só nos lugares certos. Oh, Raine, pensei que nunca
recuperarias da tua febre. – De seguida, saltou sobre ele e, depois de um
olhar de espanto, ele pôs as mãos nas suas ancas delgadas.
– Canta para mim, meu passarinho – sussurrou-lhe enquanto a levantava e
baixava, penetrando-a.
O sussurro de Alyx foi de facto musical e demorou apenas alguns
minutos a apanhar o ritmo do movimento de Raine, enquanto as suas
grandes mãos se moviam para cima até aos seus seios, aquecendo-a,
excitando-a, percorrendo-lhe todo o corpo, parando apenas de forma breve
no cinto dourado de Lyon, depois para baixo até às coxas em movimento,
enquanto ela se elevava e baixava.
As pontas dos dedos de Raine exploravam-na, acariciando-a, até que a
sua excitação aumentou e as suas mãos se firmaram nas ancas dela,
segurando-a e manipulando-a como desejava. Com um impulso violento
para cima, ejaculou enquanto Alyx tremia e tremia e caiu para a frente
sobre ele.
– Como pode uma mulher destas ter-se disfarçado de rapaz? – murmurou
ele, com as mãos emaranhadas no cabelo dela, beijando-lhe a têmpora. –
Não admira que tenhas ameaçado enlouquecer-me.
– Oh? – questionou ela, tentando esconder o seu interesse na sua resposta.
– Quando foi isso? Nunca diria que reparavas na minha existência, a não ser
como alguém para te satisfazer os teus pedidos mais mundanos.
– Talvez quando te dobraste ou quando insinuaste uma perna à frente da
minha cara ou outras coisas pouco próprias de um homem.
– Insinuar…! Eu não fiz tal coisa. E tu? Fizeste-me subir para as tuas
costas, para te montar! É assim que tratas todos os rapazes?
Ele riu-se dela.
– Os rapazes teriam ficado interessados na minha força. Tens frio?
Ela aconchegou-se em cima dele, o seu corpo tocando apenas o dele.
– Não.
– Alyx! – Raine levantou a cabeça. – Quantos anos tens? – Havia medo
na sua cara.
Ela dirigiu-lhe um olhar desdenhoso.
– Tenho vinte anos, e se esperas que eu cresça…
Rindo, ele empurrou a cabeça dela para baixo.
– Deus concedeu-te o dom da música, que mais poderias querer? Receei
que ainda fosses uma criança. Não pareces ter mais do que doze anos.
– Gostas da minha música? – perguntou ela inocentemente, tornando a
sua voz suave e sedutora.
– Não vais receber mais elogios da minha parte. Acho que já tiveste
demasiados. Quem te ensinou?
Brevemente, ela falou-lhe do padre e do monge.
– Então, é assim que se chega aos vinte ainda virgem e Pagnell…
Caluda – disse ele quando ela ia começar a falar. – Ele é um cobarde e
não te fará mal enquanto estiveres perto de mim.
– Oh, Raine! Sabia que ias dizer isso. Eu sabia! Há muitas vantagens em
ser um homem nobre. Agora, podes ir ter com o Rei e implorar-lhe perdão,
depois tu e eu iremos para tua casa. Cantarei e tocarei para ti e seremos
muito felizes.
Raine, com um movimento, empurrou-a de cima dele e começou a vestir-
se.
– Pedir o perdão do Rei – disse ele, em surdina. – E o que fiz eu para ser
perdoado? Esqueces-te de que dois membros da minha família são mantidos
prisioneiros? Esqueces-te porque estou aqui? E aqueles que estão neste
acampamento? Num momento, pregas sobre os Cercamentos de Terras e, a
seguir, exiges que os rendeiros deixem esta nova casa que encontraram.
– Raine – suplicou ela, segurando a sua camisa junto ao seu pescoço. –
Eu não quis dizer… Certamente que, se o rei Henrique ouvisse a tua versão
da história, te ajudaria. Esse homem, Chatworth, não devia ser autorizado a
ter a tua família presa.
– Henrique! – rosnou ele. – Falas dele como se fosse um deus. Ele é um
homem ganancioso. Sabes porque é que ele fez de mim um fora da lei?
Pelas minhas terras! Ele quer tirar todo o poder aos nobres e ficar com ele
para si próprio. Claro que a tua classe quer que ele o faça, pois ele faz
coisas boas por vós, mas o que acontece quando um rei mau tem o poder?
Entre os nobres, pelo menos, um mau nobre controla apenas uma pequena
área. E se Pagnell fosse rei? Desejarias seguir um homem como ele?
Apressadamente, Alyx vestiu a camisa. Nunca tinha visto Raine tão
furioso.
– Eu não estava a falar de toda a Inglaterra – explicitou ela. – Referia-me
a nós. Certamente, poderias fazer mais coisas boas pela tua família, se
estivesses com eles.
– E por isso desejas que me ajoelhe perante o Rei? – sussurrou ele. – É
isso que desejas? Desejas ver-me a rastejar, renunciando aos meus votos de
honra?
– Honra! – exclamou ela, em voz alta. – O que tem a honra a ver com
isto? Fizestes mal em usar os homens do Rei.
Por um momento, ela teve a certeza de que ele a ia atacar, mas ele deu um
passo atrás, afastando-se dela, com os olhos a brilhar.
– A honra é tudo para mim – murmurou ele, antes de voltar para o
acampamento.
Tão depressa quanto pôde, Alyx vestiu-se e correu atrás dele.
De pé, diante da tenda de Raine, estava um dos homens do seu irmão,
com uma mensagem na mão. Ela ficou contente por ver o homem. Talvez
algumas boas notícias de casa fizessem Raine esquecer a sua raiva.
Apressadamente, ela pegou na mensagem e, sem um olhar de Raine,
escapou-se para dentro da tenda. Sorrindo, abriu a mensagem, e, no
momento seguinte, os seus ombros caíram.
– O que foi? – resmungou Raine. – Está alguém doente? – Havia lágrimas
nos olhos de Alyx quando ela olhou para cima para Raine. Ao cruzarem os
olhares, os olhos dele endureceram. – O que foi? – exigiu ele.
– A tua... irmã Mary está... morta – murmurou ela.
O rosto de Raine não evidenciou nenhuma emoção, à exceção de um
pouco de branco ter aparecido nos cantos da sua boca.
– E Bronwyn?
– Fugiu de Roger Chatworth, mas ainda não foi encontrada. Os teus
irmãos estão à procura dela.
– Há mais alguma coisa?
– Não. Nada. Raine… – começou ela.
Ele afastou-a.
– Vai! Deixa-me sozinho.
Alyx começou a obedecer-lhe, mas, ao olhar para trás e vendo as suas
costas rígidas, ela sabia que não o podia deixar.
– Senta-te! – ordenou ela, e, quando ele se virou para ela, os seus olhos
eram como brasas negras do inferno. – Senta-te – disse ela, mais
calmamente – e vamos falar.
– Deixa-me! – protestou ele, mas sentou-se num banco e deixou cair a
cabeça entre as mãos.
Imediatamente, Alyx sentou-se aos seus pés, sem lhe tocar.
– Como era ela? – perguntou, baixinho. – A Mary era baixa ou gorda? Ela
ria muito? Ela aborrecia-te e aos teus irmãos? O que fazia ela quando eras
tão teimoso que só lhe apetecia dar-te com um pau na cabeça?
Ele olhou para cima, com os seus olhos escuros, zangados.
– Mary era boa, bondosa. Não tinha defeitos.
– Isso é bom – respondeu Alyx. – Ela tinha de ser uma santa para suportar
a tua teimosia e, sem dúvida, que os teus irmãos são iguais.
A mão de Raine apertou-lhe a garganta quando se aproximou dela,
fazendo o banquinho voar.
– Mary era um anjo – disse ele na cara dela, prendendo-lhe o corpo, com
as mãos a apertar.
– Vais matar-me – disse ela com uma voz resignada, ofegante. – E, ainda
assim, Mary não voltará.
Pouco depois, as suas mãos abriram-se e ele puxou-a para perto dele,
torcendo-lhe o corpo de todas as formas possíveis, enquanto os seus braços
a envolviam. Lentamente, começou a embalá-la, enquanto lhe acariciava o
cabelo.
– Fala-me do teu anjo. Fala-me dos teus irmãos. Como é Judith? E
Bronwyn?
Não foi fácil fazê-lo falar, mas, à medida que as palavras iam surgindo,
ela viu que era uma família próxima e afetuosa. Mary era a mais velha dos
cinco e adorada pelos seus irmãos mais novos. Raine falou da sua
abnegação e, recentemente, da forma como ela e Bronwyn tinham arriscado
as suas vidas para salvar o filho de um servo. Falou de Judith, de como o
seu irmão a tinha tratado mal, mas, mesmo assim, ela tinha-o amado o
suficiente para o perdoar.
Alyx, vivendo na sua pequena aldeia muralhada, nunca pensara na vida
familiar dos nobres, tinha assumido que eles viviam uma vida sem
problemas. Ao ouvir Raine, teve um vislumbre de dor e tristeza, tanto na
vida como na morte. Estava contente por não ter tido de ler em voz alta a
mensagem de Gavin para Raine. Roger Chatworth tinha violado a virginal
Mary e, aterrorizada, ela tinha-se atirado de uma janela da torre.
– Alyx – murmurou Raine. – Percebes agora porque não posso ir ter com
o Rei? Chatworth é meu. Terei a sua cabeça antes de terminarmos.
– O quê! – exclamou ela, afastando-se dele. – Estás a falar de vingança.
– Ele matou Mary.
– Não! Ele não a matou! – E desviou o olhar, amaldiçoando-se por dizer
aquilo.
Forçando-a, ele virou-lhe a cara para si.
– Não me contaste tudo o que estava na mensagem de Gavin. Como
morreu Mary?
– Ela…
Os seus dedos apertaram-lhe o maxilar e a dor fê-la soltar lágrimas.
– Diz-me! – ordenou ele.
– Ela acabou com a sua própria vida – sussurrou Alyx.
Os olhos de Raine fixaram-se nos dela.
– Ela era da Igreja e não o teria feito se não tivesse motivo. O que lhe
fizeram?
Alyx percebeu que ele tinha adivinhado, mas ele implorava que lhe
dissessem que estava errado. Não lhe podia mentir.
– Roger Chatworth... levou-a para a sua cama.
Violentamente, Raine empurrou Alyx pela tenda. Onde estava, lançou a
cabeça para trás e soltou um grito de tal desespero, tal raiva e tal ódio, que
Alyx se encolheu aos pés da cama.
Lá fora, tudo estava anormalmente silencioso, tendo mesmo o vento
parado.
Ao olhar para ele, Alyx viu que ele estava a começar a tremer, depois a
tremer violentamente, e, quando ele baixou a cabeça, viu que as convulsões
eram causadas por puro ódio.
Instantaneamente, ela levantou-se para lhe lançar os braços à volta.
– Não, Raine, não! – suplicou ela. – Não podes ir atrás de Chatworth. O
Rei...
Ele empurrou-a para se soltar dela.
– O homem ficaria contente por ter menos nobres. Tomará as terras de
Chatworth, bem como as minhas.
– Raine, por favor. – E voltou a encostar-se a ele. – Não podes ir sozinho,
e os teus irmãos andam à procura de Bronwyn. E as pessoas que estão lá
fora? Não podes deixá-los assassinarem-se uns aos outros.
– Desde quando é que te preocupas com eles?
– Desde que estou aterrorizada com a ideia de poderes ser morto –
respondeu ela, com sinceridade. – Como poderás combater Chatworth? Os
teus homens não estão aqui. Tens soldados, não tens? Será que Chatworth
tem cavaleiros?
– Centenas – disse Raine, entredentes. – Ele está sempre rodeado de
homens, sempre protegido.
– E se fosses à procura dele, será que te defrontaria de forma justa, um
para um, ou terias de passar primeiro pelos seus homens?
Raine desviou o olhar dela, mas ela pôde perceber que as suas palavras
faziam sentido. Como desejava saber mais sobre a nobreza! «Honra, pensa
em honra e, faças o que fizeres, não fales em dinheiro», avisou-se a ela
própria.
– Chatworth não é honrado – continuou ela. – Não podes lidar com ele
como com um cavaleiro. Tens de trabalhar em conjunto com os teus irmãos.
– Silenciosamente, Alyx rezou para que eles não fossem tão teimosos como
Raine. – Por favor, espera até estares mais calmo. Vamos escrever aos teus
irmãos e elaboraremos um plano juntos.
– Não tenho a certeza…
– Raine – disse ela, calmamente. – Mary está morta há dias. Talvez
Chatworth já tenha sido levado à justiça. Talvez tenha fugido para França.
Talvez…
– Estás a tentar persuadir-me. Porquê?
Ela respirou fundo.
– Acabei por te amar – sussurrou ela. – Morreria antes de ficar a assistir à
tua morte, e era isso que aconteceria se atacasses Chatworth sozinho.
– Eu não temo a morte.
Ela olhou para ele, repugnada.
– Vai, então! – gritou ela. – Vai e oferece a tua vida a Chatworth. Sem
dúvida que ele gostaria disso. Um a um, ele pode destruir a tua família. E tu
vais facilitar-lhe a vida. Vem, eu ajudo-te a armar-te. Vais usar a tua melhor
armadura. Vamos apetrechá-la com todas as armas que possuis e, quando
fores invencível, poderás cavalgar para enfrentar o exército de homens
desse Chatworth. Sim, vamos lá – disse ela, pegando na couraça da
armadura. – Mary terá o maior prazer em olhar do céu e ver o seu irmão
cortado aos pedaços. Dará à sua alma uma grande paz.
O olhar de Raine era tão frio que ela conseguia senti-lo a perfurar-lhe a
pele.
– Deixa-me – disse ele, finalmente, e ela fê-lo.
Alyx nunca tinha conhecido tanto medo como o que sentia naquele
momento. Mesmo ao ar frio fora da tenda, estava a suar profusamente.
– Alyx – ouviu-se uma voz sussurrada que pertencia a Jocelin.
Em segundos, ela estava nos seus braços, com as lágrimas a correr.
– A irmã de Raine – soluçou ela. – Mary está morta e Raine quer
enfrentar sozinho o exército do assassino.
– Shhhh – Joss acalmou-a. – Ele não é como nós. Fomos ensinados a ser
cobardes, a virar as costas e a fugir, a viver para lutar outro dia. Não há
muitos homens como Raine. Ele prefere morrer a enfrentar a desonra.
– Eu não quero que ele morra. Ele não pode morrer! Perdi toda a gente…
a minha mãe, o meu pai. Eu sei que não tenho esse direito, mas amo-o.
– Tens todo o direito. Agora, cala-te e pensa no que podes fazer para
evitar o seu suicídio. Certamente que os seus irmãos sabem que ele tem a
cabeça quente. Consegues persuadir Raine a escrever ao irmão e podes
acrescentar uma nota?
– Oh, Joss – disse ela, agarrando-lhe os braços. Perante o seu
estremecimento, ela parou. – O teu ombro onde despejei a cidra. Desculpa,
eu…
– Calma – disse ele, colocando a ponta dos dedos nos lábios dela. –
Rosamund está a cuidar de mim. É uma ferida sem importância. Agora, vai
ter com Raine, fala com ele e não percas a calma.
Silenciosamente, Alyx voltou a entrar na tenda. Raine estava sentado na
beira da cama, com a cabeça entre as mãos.
– Raine – sussurrou ela, tocando-lhe no cabelo.
Impetuosamente, ele agarrou-lhe a mão e beijou-lhe a palma.
– Sou um inútil – disse ele. – Um homem mata a minha irmã e eu não
posso fazer nada. Nada!
Ela sentou-se ao lado dele, pôs-lhe os braços à volta e descansou a cabeça
no seu braço. – Vem para a cama. É tarde. Amanhã, escrevemos a Gavin.
Talvez ele possa fazer alguma coisa.
Docilmente, Raine deixou-se levar para a cama, mas, quando Alyx se
começou a dirigir à sua própria enxerga, ele segurou-lhe o braço.
– Fica comigo.
Não havia qualquer possibilidade de ela rejeitar tal oferta. Com um
sorriso, deslizou para os braços dele.
Durante toda a noite, enquanto dormitava intermitentemente, tinha
consciência de que Raine estava acordado ao seu lado.
De manhã, havia olheiras sob os seus olhos e o seu temperamento era
irascível.
– Vinho, já te disse! – gritou ele para Alyx. – E depois vai buscar a pena e
o papel.
A carta que Raine ditou para ser enviada ao seu irmão era uma carta de
raiva e vingança. Jurava tirar a vida a Roger Chatworth e, se Gavin não o
ajudasse, iria sozinho.
Alyx acrescentou a sua própria mensagem no final, apelando a Gavin
para incutir em Raine algum bom senso e que ele estava pronto para
enfrentar sozinho todos os homens de Chatworth. Ao selar a carta,
perguntou-se o que pensaria o grande Lorde Gavin da sua presunção.
Passaram-se dois dias antes de chegar a resposta. O mensageiro, quase
morto pelo ritmo veloz que imprimira na sua cavalgada caiu praticamente
sobre Alyx. Com as mãos trémulas, ela quebrou o selo.
O rei Henrique estava furioso tanto com os Montgomery como com os
Chatworth. Aplicara uma pesada multa a Roger Chatworth e renovara a
condição de traidor de Raine. Queria ambos os nobres fora de Inglaterra e
estava a fazer o que podia para o conseguir. Estava irritado com o facto de
Raine se ter escondido em Inglaterra, e havia rumores de que Raine estaria
a criar um exército para lutar contra o Rei.
Com os olhos amedrontados, Alyx olhou para Raine.
– Não farias tal coisa, pois não? – sussurrou ela.
– O homem preocupa-se mais à medida que envelhece – disse Raine,
minimizando o assunto. – Quem conseguiria treinar escumalha como esta
para lutar?
– Isto é a prova de que deves permanecer escondido. O teu irmão diz que
o rei Henrique adoraria usar-te como exemplo do que seria feito a outros
que não acreditam que ele é o homem que detém o poder.
– Gavin preocupa-se em perder a sua terra – disse Raine, enojado. – O
meu irmão preocupa-se mais com a terra do que com a honra. Ele já
esqueceu a morte da nossa irmã.
– Ele não se esqueceu de nada! – gritou-lhe Alyx. – Ele lembra-se que
tem outras pessoas na sua família. Ficarias mais feliz se ele te enviasse para
a tua morte? Ele perdeu o seu bebé por nascer não há muito tempo, perdeu a
sua única irmã, a mulher do seu irmão está desaparecida e, agora, deveria
ele encorajar-te a dar voluntariamente a tua vida por algo tão estúpido como
a vingança?
– Pela vida da minha irmã – gritou-lhe ele de volta. – Esperas que eu
fique parado depois do que me fizeram? Haverá alguma maneira de alguém
da tua classe entender o significado de honra?
– Minha classe! – exclamou ela. – Pensas que por causa do teu berço
dourado és o único com sentimentos? Uma noite, uma pessoa da tua classe
cortou a garganta ao meu pai e queimou a minha casa. Como se isso não
bastasse, fui declarada ladra e bruxa. E tudo isto por causa da luxúria de um
homem qualquer. Agora, falas-me de vingança, perguntas-me se entendo.
Não posso sair desta floresta por recear pela minha vida.
– Alyx – começou ele.
– Não me toques! – gritou ela. – Tu e os teus modos superiores.
Ridicularizas-nos porque nos preocupamos com dinheiro, mas o que mais
temos nós? Nós arranhamos toda a nossa vida e damos uma grande parte do
nosso rendimento para vos sustentar nas vossas belas casas, para que
possam ter a liberdade de falar sobre honra e vingança. Se tivesses de te
preocupar de onde virá a tua próxima refeição, pergunto-me o quanto
falarias de honra.
– Não compreendes – disse Raine, taciturnamente.
– Eu compreendo perfeitamente e tu bem o sabes – replicou ela antes de
sair da tenda.
Capítulo Dez

PASSARAM MUITAS horas antes de Alyx se conseguir acalmar. Sentou-se


sozinha junto ao riacho. Talvez tivesse razão em odiar Raine porque ele
fazia parte da nobreza. Havia barreiras entre eles que nunca poderiam
desaparecer. Tudo aquilo em que ele acreditava era o oposto do que ela
sabia ser verdade. Toda a sua vida, ela tivera de enfrentar o trabalho, os
afazeres antes da sua música e os afazeres depois. Havia sempre a
preocupação de que não teriam comida suficiente. Se não fosse o padre,
teriam ficado sem comida muitos invernos. Por vezes, Raine queixava-se da
comida no acampamento, mas a verdade é que ela vira mais variedade e
quantidade do que alguma vez tinha tido.
Quando Pagnell matou o seu pai, Alyx tinha feito o que podia para
sobreviver. Sobrevivência! Isso não significava nada para alguém como
Raine e para os seus poderosos irmãos. Guerra, vingança, honra e aqueles
jogos infantis de se raptarem uns aos outros foram coisas que nunca tinham
feito parte da sua vida.
– Posso juntar-me a ti? – perguntou Jocelin. – Gostavas de partilhar
comigo os teus pensamentos?
Os olhos dela brilharam.
– Estava a imaginar Raine atrás de um arado. Se ele tivesse de se
preocupar com o crescimento das culturas nos seus campos, não teria tempo
para pensar em assassinar esse Chatworth. E se Chatworth conduzisse uma
junta de bois, não teria tido energia para raptar a irmã de Raine.
– Ah, tornar todos iguais – disse ele. – Um pouco como o rei Henrique
quer. Dar o poder todo a um homem e nenhum a mais ninguém.
– Pareces o Raine – acusou ela. – Pensei que estavas do meu lado.
Jocelin encostou-se a uma pedra e sorriu.
– Não estou do lado de ninguém. Conheci ambas as formas de vida e a
pobreza da classe baixa não me atrai, nem a... a decadência da classe alta. É
claro que há pessoas no meio. Acho que gostaria de ser um comerciante
rico, um comprador e vendedor de sedas, e de deixar crescer uma barriga
enorme.
– Havia mercadores ricos em Moreton, mas eles também não eram
felizes. Estavam sempre preocupados com perder o seu dinheiro.
– Um pouco como Raine está preocupado com a perda da sua honra?
Alyx sorriu-lhe, percebendo que ele estava a tentar orientar a conversa.
– O que estás a tentar dizer-me?
– Que todos nós somos diferentes, que nada é muito bom ou mau. Se
queres que Raine compreenda os teus ideais, sê paciente. Gritar com ele não
vai dar grande resultado.
Ela riu-se disso.
– Gritar-lhe, é isso? Talvez eu seja um pouco barulhenta.
Jocelin soltou um gemido exagerado.
– Tens consciência de que és tão teimosa como ele, não tens? Ambos têm
tanta certeza de que têm razão, de que o vosso caminho é o único.
Durante um momento de silêncio, Alyx pensou nisso.
– Porque é que achas que o amo, Joss? Eu sei que ele é encantador à
vista, mas e então, tu também o és. Porque haveria de amar Raine, quando
sei que não posso esperar nada desse amor? O melhor que posso esperar é
tornar-me música da família dele, para servir a sua… a sua esposa e filhos.
– Quem sabe o que nos faz amar? – questionou Joss, com um ar distante
nos olhos.
– Era quase como se tivesse conhecido Raine antes de o conhecer.
Durante todo o caminho para a floresta, só pensava no meu ódio pela
nobreza, mas assim que o vi… – riu-se ela. – Eu tentei mesmo.
– Anda, vamos voltar. Tenho a certeza de que Raine terá trabalho para
nós. E tenta lembrar-te que ele agora precisa tanto de conforto como de
palestras sobre a mula que é.
– Vou tentar – prometeu ela, pegando-lhe na mão enquanto ele a ajudava
a levantar.
Nas sombras das árvores estava uma mulher que todos pareciam ter
esquecido – Blanche. O seu rosto contorceu-se de repúdio quando viu
Jocelin pegar na mão de Alyx. Durante os últimos dias, Alyx e Raine
tinham andado a discutir um com o outro como só os amantes conseguem.
Pareciam pensar que o interior da tenda lhes dava privacidade, mas as suas
vozes eram tão altas que nem paredes de pedra as teriam abafado. As
pessoas no acampamento apostavam em quem ia ganhar as discussões,
dizendo que o rapaz conseguia aguentar-se. Aplaudiram quando Alyx disse
que a sua classe de pessoas tinha demasiado trabalho para falar de honra.
Mas houve coisas que as pessoas não ouviram, coisas que só Blanche
ouvia quando encostava o ouvido à lona da tenda: que Alyx tinha sido
declarada bruxa por causa da luxúria de algum homem, que Alyx amava
Raine e, à noite, ouviam-se os sons inconfundíveis de alguém a fazer amor.
Outrora, ela tinha tido um bom trabalho num castelo, o castelo de
Edmund Chatworth, e Jocelin tinha sido seu amante. Agora, nas raras
ocasiões em que Joss olhava para ela, os seus lábios enrolavam-se num
rosnado e os seus olhos brilhavam de ódio. Tudo por causa daquela rameira
nojenta da Constance! Constance tinha levado Joss para longe de Blanche,
para longe das mulheres em todo o lado. Jocelin, que costumava rir e cantar,
que levava três mulheres para a sua cama ao mesmo tempo e as fazia a
todas felizes, era agora como um padre celibatário. No entanto,
recentemente, ele tinha olhado para aquela Rosamund, marcada pelo diabo,
com um pouco mais do que um mero interesse.
E agora, Blanche estava a perder Raine – o belo, poderoso e rico Raine. E
para o quê? Um rapaz/rapariga magricela, de cabelo curto e peito achatado.
«Se eu usasse roupas de homem», pensou Blanche, «ninguém me
confundiria com um rapaz». Mas Alyx não tinha curvas e o seu rosto
parecia o de um elfo. Então, porque é que Raine se babava atrás dela? Ela
não era nobre, era da mesma classe que Blanche. Antes de Alyx aparecer,
Blanche era a assistente pessoal de Raine e, uma vez, oh, noite adorável!,
tinha partilhado a sua cama. Agora, não era provável que isso voltasse a
acontecer – a não ser que ela se pudesse livrar de Alyx.
Com um novo e determinado olhar no rosto, voltou para o acampamento.
*

Durante semanas, Alyx esforçou-se por evitar que Raine declarasse


guerra a Roger Chatworth. As cartas que saíam e chegavam ao castelo dos
Montgomery começaram a ser trocadas semanalmente.
Por mais de uma vez, Alyx deu graças ao Senhor por Raine não saber ler,
porque, no final das suas cartas a Gavin, acrescentava um post script com a
sua versão da verdade. Contava a Gavin como a raiva de Raine aumentava
de dia para dia, como ele se esforçava cada vez mais no campo de treino,
preparando-se para a batalha com Chatworth.
Em resposta, Gavin escreveu sobre a descoberta de Bronwyn e do seu
bebé que devia nascer em agosto. Escreveu sobre a raiva do seu irmão mais
novo pela morte da sua irmã e como Miles tinha sido enviado para junto de
parentes na ilha de Wight, na esperança de que o seu tio pudesse acalmar o
temperamento de Miles. Num tom mais leve, Gavin dissera que, agora, era
o seu tio que estava enfurecido, uma vez que a sua filha adotiva se tinha
apaixonado por Miles e jurava segui-lo até aos confins do mundo.
– Como é este teu irmão? – perguntou Alyx, curiosa.
– As mulheres gostam de Miles – era tudo o que Raine diria. Andava sem
humor por aqueles dias. Até mesmo a sua arte de fazer amor se ressentia.
Outro irmão, Stephen, escreveu da Escócia. A carta, no entender de Alyx,
era estranha, cheia de raiva contra os Ingleses, falando sobre as pobres
colheitas do ano.
– O teu irmão é escocês? – perguntou ela.
– Ele é casado com uma MacArran e tomou o nome dela.
– Ele renunciou a um bom nome inglês por causa de um escocês? – Alyx
estava incrédula.
– Bronwyn consegue que um homem faça qualquer coisa por ela – disse
Raine, sem rodeios.
Alyx mordeu a língua para impedir que lhe saísse um comentário
malicioso sobre as mulheres ricas e ociosas de que Raine sempre gostara.
Uma vez, tinha dito algo do género e fizera Raine sorrir.
– Judith – disse ele, com tal anseio que Alyx estremeceu. – Nunca na
minha vida passei um dia a trabalhar tanto como ela faz todos os dias.
– Muito cavalheiresco da tua parte – bufou Alyx, não acreditando no que
ele lhe dizia.
Foi em abril que as coisas começaram a acontecer. O acampamento de
foras da lei tinha parecido muito calmo durante todo o inverno, mas,
quando as árvores começaram a germinar, e se sentiu uma lufada de ar
fresco, começaram a lutar. Não lutavam uns contra os outros, cara a cara,
mas esgueiravam-se furtivamente e atacavam alguém.
O trabalho de Raine aumentou uma centena de vezes. Ele estava
determinado em manter a ordem no acampamento.
– Porque é que te preocupas? – Alyx atirou-se a ele. – Eles não valem o
teu tempo.
Pela primeira vez em muito tempo, viu aparecer uma das suas covinhas.
– Não se pode ensinar honra a ninguém desta classe, é isso? Só nós é que
sabemos o que é isso.
– Nós? – fungou ela. – Desde quando é que me tornei uma das tuas
senhoras vestidas de cetim? Aposto que consigo manejar uma espada tão
bem como a tua Judith consegue manejar uma agulha.
Por alguma razão, isto pareceu divertir Raine.
– Eu ganharia essa aposta – riu-se ele. – Agora, vem cá e dá-me um beijo.
Sei que és a melhor nisso.
Ela agarrou-se a ele de bom grado.
– Sou mesmo, Raine? – perguntou, seriamente. Alyx tentava viver um dia
de cada vez, mas, por vezes, pensava no futuro, em ver Raine com a sua
senhora e em si mesma nas sombras.
– Vá lá, que olhar é esse? – perguntou ele, inclinando-lhe o queixo para
cima. – Sou assim tão difícil de aturar?
– Só tenho receio, é só isso. Não vamos ficar para sempre na floresta.
– Isso é algo a que devemos dar graças – disse ele, apaixonadamente. –
Sem dúvida que a minha casa se deve ter degradado nestes últimos meses.
– Se fosses ao Rei… – começou ela, hesitante.
– Não vamos discutir – sussurrou ele contra os lábios dela. – Será
possível amar uma mulher e odiar a sua mente?
Antes que Alyx pudesse responder, ele começou a beijá-la e, depois disso,
não pensou em mais nada a não ser em sentir o corpo dele contra o seu. Eles
nunca eram muito discretos; não podiam ser. Embora Alyx ainda
continuasse a disfarçar no campo de treino, nunca o fazia muito a sério.
Sempre que percebia o olhar de Raine sobre ela, fazia tudo o que podia para
o atrair até ela. Provocava-o impiedosamente.
E, oh, que liberdade lhe dava a roupa de rapaz! Uma vez, foram caçar e,
quando estavam já a uma certa distância do acampamento, Alyx virou-se na
sela de frente para ele e desamarrou o triângulo frontal das suas meias-
calças justas. Raine, surpreendido de início, logo começou a reagir à sua
criatividade. Em segundos, também ele tinha retirado o seu e puxou-a para
cima dele.
Não tinham contado com o garanhão de Raine. O cavalo, de narinas
abertas, enlouqueceu com o cheiro do ato amoroso dos dois. Raine lutava
com o cavalo e tentava agarrar-se ao pequeno e ardente corpo de Alyx. Mas
chegou a um ponto em que já não conseguia controlar nada. Quando o seu
corpo explodiu no de Alyx, a grande besta empinou-se, fazendo com que os
olhos de Alyx se abrissem de espanto.
Raine riu-se tanto da sua expressão que esta sentiu-se insultada.
– Não, não o farei de novo – disse ele, sorrindo. – E pensar que passaste a
maior parte da tua vida dentro de uma igreja. Agora, andas – e franziu as
sobrancelhas – a montar cavalos.
Alyx tentou ignorá-lo, mas, quando se tentava virar, apercebeu-se de que
faltava a proteção frontal das suas meias-calças. Durante uma hora, teve de
suportar o riso de Raine, enquanto andavam enfiados na folhagem em busca
do pedaço de tecido.
Mas Alyx riu-se por último. A visão dela tão provocadoramente vestida
logo adoçou as palavras dele. Ela, com todo o orgulho que tinha aprendido
com ele, fê-lo cair de joelhos e implorar pelos seus favores. Claro que ela
não tinha percebido a que nível estaria a boca dele com ele de joelhos e ela
de pé. Em segundos, foi Alyx a implorar por misericórdia.
Depois de um longo e lúdico ato de amor, Raine retirou a aplicação de
pano triangular dela do seu bolso – onde tinha estado o tempo todo.
Enquanto ela lhe batia no peito com os punhos em fúria, ele beijou-a até ela
ficar sem fôlego.
– Aprende quem é que manda aqui, menina – disse ele, cheirando-lhe o
pescoço. – Agora, temos de regressar ao acampamento. Isto é, se o meu
cavalo me deixar montá-lo. Sem dúvida que ele está tão apaixonado por ti
como tu estás por ele.
Ela tentou não o fazer, mas corou furiosamente com a brincadeira dele.
Raine deu-lhe uma palmada amigável nas nádegas e levantou-a para a sela.
Gritou a rir quando o cavalo dançou em protesto enquanto Raine o
montava.
– Está a protestar do teu peso, muito provavelmente – disse ela, de forma
presunçosa.
– Tu não te queixas do meu peso, então porque protesta ele?
Alyx pensou que era melhor manter a boca fechada porque sabia que
Raine ia ganhar.
Agora, agarrada a ele, tentou não pensar no futuro, no tempo em que já
não seriam iguais.
Uma gritaria no exterior da tenda fê-los acordar sobressaltados.
– O que é desta vez? – resmungou Raine. – Outro roubo ou outra
zaragata?
Uma multidão de pessoas aproximava-se da tenda, todas elas iradas.
– Exigimos que seja encontrado o ladrão – disse o líder. – Não importa
onde escondemos as nossas coisas, acabam por ser roubadas.
Alyx foi percorrida por um sentimento de raiva.
– E que direito tens tu de fazer exigências, seu estúpido imbecil? – gritou
ela. – Desde quando é que Lorde Raine é o teu protetor? Já devias ter sido
enforcado há muito tempo.
– Alyx – advertiu Raine, apertando-lhe o ombro com tanta força que ela
quase caiu. – Ficaste de vigia? – perguntou ele ao líder da multidão. –
Escondeste os teus bens?
– Bem! – exclamou ele, olhando hostilmente na direção de Alyx. –
Alguns de nós enterrámo-los. Aqui o John tinha a sua faca debaixo da
almofada e, de manhã, ela tinha desaparecido.
– E, mesmo assim, ninguém viu esse ladrão? – perguntou Raine.
Blanche deu um passo em frente.
– Deve ser alguém pequeno, alguém leve o suficiente para se esgueirar
com tanta facilidade. – Os seus olhos fixaram-se em Alyx.
A turba virou os seus olhares malévolos para o rapaz ao lado de Raine.
– Teria de ser alguém destemido – continuou Blanche. – Alguém que
pensasse estar protegido.
Involuntariamente, Alyx deu um passo para trás, para mais perto de
Raine.
– Blanche – disse Raine, calmamente –, suspeitas de alguém? Diz-nos a
todos quem é.
– Não tenho a certeza – disse ela, adorando a forma como todos a
ouviam. – Mas tenho as ’nhas ideias.
Alyx, recuperando a sua coragem, começou a avançar, mas Raine
impediu-a.
– Vamos apanhar o ladrão – disse um dos homens – e, quando o fizermos,
ele será castigado?
Alyx ficou tão atordoada com o ódio presente no olhar do homem que
não ouviu realmente a resposta de Raine. De alguma forma, ele foi capaz de
lhes prometer as diligências necessárias e, resmungando, finalmente
acabaram por dispersar.
– Eles odeiam-me – sussurrou Alyx enquanto Raine a empurrava para a
tenda. – Porque me odeiam eles?
– Tu odeia-los, Alyx – disse Raine. – Eles sentem-no mesmo que nunca o
digas. Eles pensam que te achas superior a eles.
Alyx pensava que estava habituada à maneira franca de Raine falar, mas
não estava preparada para isto.
– Eu não os odeio.
– Eles são pessoas como tu e eu. Tivemos a vantagem de ter tido uma
família. Conheces a mulher sem a mão direita? A Maude? O pai cortou-lhe
a mão quando ela tinha três anos para que ela recebesse mais dinheiro
quando andasse a pedir. Aos dez anos, já era prostituta. São ladrões e
assassinos, mas foi a única realidade que conheceram.
Alyx sentou-se pesadamente sobre um banco.
– Nestes últimos meses, nunca falaste nisso. Porquê?
– É a tua opinião. Cada um de nós deve fazer o que tem de fazer.
– Oh, Raine – lamentou-se ela, lançando-lhe os braços ao pescoço. – És
tão bom e amável, tão nobre. Pareces amar toda a gente enquanto eu não
amo ninguém.
– Eu sou é um santo – concordou ele, solenemente. – E o meu primeiro
ato de santidade é declarar a minha armadura imunda e nomear um anjo
esquelético para a limpar.
– Outra vez? Raine, na próxima carta, posso pedir ao teu irmão um
escudeiro a sério?
– Vamos, sua criança preguiçosa – ordenou ele, apanhando as partes de
aço; mas, quando ela estava ao pé da saída da tenda, carregada até mais não,
ele deu-lhe um beijo fervoroso. – Para te lembrares de mim – sussurrou ele,
antes de a empurrar para fora.
No riacho, encontrou Jocelin, com cinco coelhos presos num cordel ao
ombro. Falaram apenas brevemente antes de Joss voltar para o
acampamento. Ele passava cada vez mais tempo com Rosamund.
Alyx tentava ao máximo esquecer o incidente dos roubos. Certamente, as
pessoas não iriam acreditar nas insinuações de Blanche.
Passaram-se dois dias aparentemente sem incidentes e, depois, houve
outro roubo e as pessoas voltaram a olhar para Alyx com desconfiança.
Blanche, pensou Alyx. A mulher tinha certamente andado ocupada nos
últimos dias.
De outra vez, quando se servia de uma tigela de guisado, alguém a
empurrou e o caldo quente queimou-lhe a mão. Parecia ser um acidente,
mas ela não tinha a certeza. Outra vez, ouviu dois homens a discutir em voz
alta sobre pessoas que pensavam ser melhores do que os outros.
No quarto dia, enquanto caminhava no campo de treino, uma espada
cortou-lhe acidentalmente o braço. No interrogatório de Raine, ninguém
parecia ter empunhado a espada e, quando ele os fez treinar uma hora extra,
eles olharam furiosamente para Alyx.
Na tenda, Raine estava calado enquanto lhe ligava a ferida.
– Diz alguma coisa – pediu ela.
– Não gosto disto. Não gosto de te ver magoada. Mantém-te mais perto
de mim. Não saias da minha vista.
Ela só assentiu com a cabeça. Talvez tivesse sido demasiado hostil para
aquelas pessoas. Talvez elas merecessem algum do seu tempo. Na verdade,
ela não sabia muito sobre as pessoas, apenas sobre música. Em Moreton,
era popular porque dava às pessoas a sua música, mas aqui eles pareciam
querer outra coisa. Ela sabia que Blanche estava a virar as pessoas contra si,
mas, se tivesse sido gentil nos últimos meses, Blanche não teria tido um
trabalho tão fácil.
Nessa noite, pediu emprestado o alaúde de Raine, sentou-se junto à
fogueira e começou a tocar. Uma a uma, as pessoas levantaram-se e foram-
se embora. Por alguma razão, isto assustou-a mais do que qualquer outra
coisa.
Durante dois dias, Alyx permaneceu perto de Raine. O povo do
acampamento tinha agora alguém a quem dirigir o seu ódio e
demonstravam-no em todas as oportunidades.
Foi na noite do segundo dia, Alyx estava apenas a alguns metros do lado
de Raine, que um homem a agarrou de repente e começou a revistá-la.
Antes ainda de Alyx poder gritar, o homem berrou de triunfo e segurou ao
alto uma faca que Alyx nunca tinha visto antes.
– O rapaz roubou-a – gritou o homem. – Temos a prova.
Instantaneamente, Raine aproximou-se de Alyx, puxando-a para trás dele.
– O que significa isto? – exigiu ele.
O homem sorriu para a multidão que se reunia à sua volta.
– O teu rapazinho de nariz empinado não pode negar isto – afirmou ele,
segurando a faca para que todos a pudessem ver. – Encontrei isto no bolso
dele. Já suspeitava há algum tempo, mas agora temos todos a certeza. – Ele
aproximou o rosto do de Alyx e o seu hálito era horrível. – Agora, não nos
vais empinar o nariz.
Numa questão de segundos, o homem estava a levantar-se do chão para
onde Raine o tinha atirado.
– Voltem ao trabalho! – ordenou Raine.
O povo, a multidão que aumentava cada vez mais, recusou-se a mover-se.
– Ele é um ladrão – disse alguém, teimosamente. – Arreiem-lhe.
– Arranquem-lhe a carne das costas e, depois, veremos o orgulho dele.
Alyx, de olhos abertos, moveu-se para trás de Raine.
– O rapaz não é um ladrão – declarou Raine, teimosamente.
– Vocês, nobres, falam de tratamento justo – gritou alguém lá de trás. –
Este rapaz rouba-nos e é-lhe permitido sair impune.
– Não! – gritaram pelo menos cinco pessoas.
Raine desembainhou a sua espada e apontou-a para elas.
– Afastem-se, todos vocês. O rapaz não é um ladrão. Agora, quem será o
primeiro a perder a sua vida por causa desta mentira?
– Vamos castigar o rapaz – gritou alguém antes de a multidão se começar
a dispersar.
Capítulo Onze

PASSOU-SE MUITO tempo até que Alyx pudesse afastar-se da proteção da


forma robusta de Raine. Os seus joelhos tremiam e ela segurava-se ao seu
braço.
– Eu não roubei a faca – conseguiu, finalmente, murmurar.
– Claro que não – respondeu Raine rapidamente, mas ela podia perceber
pela sua expressão que ele não estava a minimizar o incidente.
– O que vai acontecer agora?
– Vão continuar até conseguirem o que querem.
– E que querem eles?
– Um julgamento e a tua expulsão. Antes de vires para cá, prometi-lhes
justiça. Jurei que todos os malfeitores seriam punidos.
– Mas eu não fiz nenhum mal – disse ela, à beira do choro.
– Gostarias de te justificar perante um grupo deles? Considerar-te-iam
culpada mesmo que fosses a Virgem Santíssima.
– Mas porquê, Raine? Eu não lhes fiz nada. Ontem à noite, até tentei
cantar para eles, mas viraram-me as costas.
Ele estava sério quando olhou para ela.
– Será que a tua música foi sempre suficiente para as pessoas? Será que
nunca ninguém te pediu mais do que cantar lindamente?
Ela não tinha resposta para ele. Para ela, não houvera vida, à exceção da
sua música. Para as pessoas do seu povoado, tudo o que esperavam de Alyx
era música, e isso chegava tanto para elas como para si própria.
– Anda – disse Raine. – Temos de fazer alguns planos.
Desalentada, ela seguiu-o, de cabeça baixa, não olhando para ninguém
por quem passassem. Aquela raiva dirigida contra ela era algo
absolutamente novo.
Uma vez chegados à tenda, Raine falou calmamente.
– Amanhã, vamos deixar a floresta.
– Deixar? Nós? Não compreendo.
– As pessoas estão envenenadas contra ti, e já não é seguro ficares aqui.
Não posso proteger-te a cada minuto do dia e não posso permitir que eles te
façam mal. Amanhã de manhã, partiremos.
Alyx, tão consciente do ódio das pessoas mesmo ali para além das
paredes finas, mal conseguia ouvi-lo.
– Não te podes ir embora – murmurou ela. – O Rei encontrar-te-á.
– Maldito seja o Rei! – praguejou Raine, com raiva. – Não posso ficar
aqui e preocupar-me que, a cada dia, um deles se vire contra ti. Não podes
sair disto a cantar, Alyx. Ainda que não pareça, são mais espertos do que os
cavalos que tu encantas. Eles farão o que puderem para te magoar.
Alyx começava a ouvi-lo.
– Vais comigo?
– Claro que sim. Não posso deixar-te ir embora sozinha. Não durarias um
dia lá fora, no mundo.
As lágrimas turvaram-lhe os olhos.
– Porque iriam outras pessoas também descobrir o que sou? Que sou uma
pessoa vaidosa e arrogante que não se preocupa com ninguém a não ser
comigo própria?
– Alyx, tu és uma criança doce e preocupas-te comigo.
– Quem não conseguiria amar-te? – perguntou ela simplesmente. – Tens
mais bondade no teu dedo mindinho do que eu tenho em todo o meu corpo.
E, agora, arriscas-te a ser capturado e encarcerado para me salvar.
– Vou levar-te ao meu irmão e…
– E Gavin arriscar-se-á à ira do Rei porque esconde uma mulher
procurada por bruxaria. Porias em risco toda a tua família por mim, Raine?
Amas-me assim tanto?
– Sim.
Os olhos de Alyx voaram para os dele, viram o amor neles e, em vez de
isso lhe dar prazer, sentiu dor.
– Preciso de ficar só – sussurrou ela. – Preciso de pensar.
Raine seguiu-a até à saída da tenda e, mal ela partiu, chamou Jocelin.
Enquanto Alyx percorria a floresta escura até ao riacho, os pensamentos
misturaram-se na sua mente. Sentou-se numa pedra, a olhar para a água
escura e cintilante.
– Podes aparecer, Joss – chamou ela. – És um fraco perseguidor – disse
ela, desanimada, quando ele se sentou ao seu lado. – Foi Raine quem te
ordenou que me protegesses?
Joss permaneceu em silêncio.
– Ele agora tem de me proteger – disse ela. – Não me pode deixar sozinha
nem por minutos, com medo que alguém me castigue.
– Não fizeste nada de mal.
– Não roubei, é verdade, mas que bem tenho eu feito? Olha para Raine.
Ele poderia estar agora noutro país, a viver em conforto, mas opta por ficar
nesta floresta fria e ajudar os seus compatriotas. Ele protege-os, vê se estão
alimentados, está sempre a trabalhar para eles. E, no entanto, há uma
recompensa pela sua cabeça e tem de ficar aqui enquanto a sua família
precisa dele. A sua irmã foi violada e suicida-se, e mesmo com este
sofrimento, não para de trabalhar sequer uma hora.
– Raine é um bom homem.
– Ele é um homem perfeito – disse ela.
– Alyx – sussurrou Jocelin, com a mão no braço dela. – Raine vai
proteger-te daquelas pessoas e, quando ele não puder estar por perto, estarei
eu. O teu amor por ele ajudou-o a ultrapassar a sua dor.
Não foi surpresa para ela que Joss soubesse que era uma mulher.
– De que serve o meu amor? Eu não sou digna dele. Amanhã, ele planeia
deixar este acampamento, para cavalgar livremente para a luz do Sol de um
país onde será legitimamente perseguido pela ira do Rei. Deixará a
segurança da floresta e arriscará a prisão ou mesmo a morte para me
proteger.
Mais uma vez, Jocelin ficou em silêncio.
– Não tens nada a dizer? Não há palavras tranquilizadoras que me digam
que a vida de Raine estará segura?
– Ele ficará em grande perigo se abandonar a floresta. Raine é muito
conhecido e facilmente o reconhecerão.
Um grande suspiro escapou a Alyx.
– Como posso eu deixá-lo arriscar tanto por mim?
– Então, o que planeias fazer? – perguntou Joss com veemência.
– Vou-me embora sozinha. Não posso ficar e causar preocupação a Raine,
e ele não pode partir comigo. Por conseguinte, irei sozinha.
O riso de Joss surpreendeu-a.
– Tenho a certeza de que Raine Montgomery será tão obediente como um
cãozinho de colo. Dir-lhe-ás que planeias partir e ele dar-te-á um beijo de
despedida e desejar-te-á felicidades.
– Estou preparada para uma discussão.
– Alyx – riu Jocelin. – Raine atirar-te-á para cima do seu cavalo e levar-
te-á para fora da floresta. Podes gritar o que quiseres, mas, quando chegar a
altura, os músculos vencerão as palavras.
– Tens razão – suspirou Alyx. – Oh, Joss, que posso eu fazer? Ele não
pode arriscar a vida dele por mim.
– Ama-o – respondeu Joss. – É só isso que ele quer. Vai com ele, fica com
ele. Apoia-o em tudo.
Alyx saltou da pedra, com as mãos nas ancas, olhando fixamente para
Jocelin.
– O que devo fazer quando ele for morto por minha causa? Devo segurar-
lhe na sua mão fria e cantar uma doce canção ao Senhor? Sem dúvida que
farei uma música magnífica, e todos dirão o quanto o devo ter amado. Não!
Eu não quero mãos frias. Quero-as quentes para me amar… ou para que
ame alguém, se for o caso. Prefiro oferecer Raine a Blanche do que vê-lo
morto.
– Então, o que é que vais fazer para que ele fique aqui? – perguntou
Jocelin, calmamente.
Ela sentou-se de novo.
– Não sei. Certamente, deve haver algo que eu possa dizer. Talvez se eu
insultar a família dele.
– Raine rir-se-ia de ti.
– Verdade. Talvez se lhe dissesse que ele é um... – Ela não conseguia
pensar numa única coisa que ainda não lhe tivesse chamado. Obviamente,
os nomes não o afetariam. – Oh, Joss – disse ela, desesperada –, o que
posso fazer? Raine deve ser protegido dele próprio. Se ele deixasse a
floresta, sem dúvida que perseguiria Chatworth e, então, o Rei envolver-se-
ia na disputa e... Não posso deixar que isso aconteça! O que posso eu fazer?
Passou um longo momento antes de Jocelin falar e, quando o fez, ela mal
o ouviu.
– Deita-te comigo.
– O quê! – Alyx virou-se para ele, furiosa. – Estou aqui a falar-te na
segurança de um homem, da sua possível morte, e tu estás a tentar cortejar-
me para me deitar contigo? Se queres uma mulher, tenta uma daquelas
bruxas que se babam atrás de ti. Ou leva a Rosamund para a tua cama.
Tenho a certeza de que ela iria gostar mais do que eu.
– Alyx – riu-se ele, com a mão no braço dela. – Antes de me desfazeres
completamente, ouve-me. Se estás a falar a sério sobre a permanência de
Raine aqui, não há nada que possas dizer para o fazer ficar, mas talvez haja
algo que possas fazer. Ele não te conhece realmente muito bem, não o
suficiente para confiar em ti, ou talvez nunca nenhum homem confie numa
mulher. Se Raine te encontrasse com outro homem, não haveria nada que
pudesses dizer para que ele te aceitasse de volta. Ele deixar-te-ia ir e ficaria
aqui.
– Ele odiar-me-ia – sussurrou ela. – Ele pode ter um temperamento
violento.
– Pensei que estavas a falar a sério sobre isto. Há pouco, dizias que
preferias que Blanche ficasse com ele. – Jocelin quase se engasgou com o
nome da mulher. – Estás à espera de poder deixar Raine agora e, mais tarde,
quando ele estiver novamente nas boas graças do Rei, poder voltar para ele?
Isso só aconteceria numa canção escrita por ti. A única forma de Raine
Montgomery te deixar sair desta floresta sem ele é se os seus sentimentos
por ti forem totalmente invertidos.
– Transformar o seu amor em ódio – murmurou ela.
– Estás a imaginá-lo a ficar e a dizer-te adeus, com lágrimas nos olhos? –
perguntou Joss, sarcasticamente. – Alyx, tu ama-lo demasiado para o
magoar. Amanhã, deixa-o levar-te daqui para fora. Os seus irmãos vão
protegê-lo até o Rei perdoar Raine.
– Não! Não! Não! – gritou ela. – Ninguém o pode proteger de uma flecha.
Mesmo nesta floresta rodeada de vigias, ele foi alvejado. Partir implicaria
correr risco de morte. Como poderia eu magoá-lo mais do que matá-lo?
Alyx enterrou o rosto nas mãos.
– Mas fazê-lo odiar-me! Mudar a forma como olha para mim, de amor
para ódio… Oh, Joss, esse é um grande preço a pagar.
– Queres o amor dele ou que ele viva? Preferes cantar sobre a sua
sepultura ou saber que ele está vivo, mas nos braços de outra mulher?
– Sou nova nesta coisa de amor, mas, neste momento, a ideia de outra
mulher a tocá-lo faz-me preferir a sua morte.
Joss tentou evitar sorrir.
– É isso mesmo que queres?
– Não – disse ela, calmamente. – Quero-o vivo, mas também o quero
comigo.
– Tens de escolher.
– E achas que a única maneira de o fazer ficar é... deitar-me com outra
pessoa?
– Não consigo pensar em mais nada.
Os seus olhos arregalaram-se.
– Mas e tu, Joss? Raine ficaria muito zangado contigo.
– Atrevo-me a dizer que sim.
– O que vais fazer? A tua vida aqui iria transformar-se num inferno.
Joss clareou a garganta.
– Se quero manter-me vivo, acho que também devo partir. Não gostaria
de me sujeitar a um duelo com Raine, depois de ter feito amor com a sua
mulher.
– Oh, Joss – suspirou ela. – Eu estaria a arruinar a tua vida, além da
minha. És procurado por homicídio. E se alguém te reconhecer?
Alyx não se apercebeu da surpresa de Joss ao ouvir as suas palavras. Ele
não fazia ideia de que ela conhecia a sua história.
– Vou deixar crescer a barba e tu, como rapaz, não serás reconhecida.
Cantaremos juntos, tocaremos, e conseguiremos ganhar o nosso sustento.
Alyx pensou imediatamente em Pagnell, mas afastou-o da mente. Pela
primeira vez na sua vida, não ia pensar em si própria primeiro.
– Raine já teve tantas tragédias na sua vida. A morte da irmã ainda é tão
recente, e agora...
– Decide-te, Alyx, e tira as tuas roupas. Se não me engano, Raine vem
agora nesta direção.
– Agora? – arfou ela. – Preciso de tempo para pensar.
– Escolhe – disse ele, aproximando-se mais dela. – Morto e teu ou vivo e
de outra pessoa?
A imagem de Raine imóvel, para sempre imóvel, fê-la lançar os braços ao
pescoço de Jocelin e os seus lábios à procura dos dele.
Durante muitos anos, Jocelin tinha sido um perito em remover roupas de
mulher e era algo que não tinha esquecido. Ainda que Alyx usasse roupas
de rapaz, era surpreendente a rapidez com que os dedos habilidosos de Joss
se livraram delas. Antes que ela conseguisse respirar, estavam ambos nus da
cintura para cima, a pele de um contra a do outro.
Jocelin entrelaçou as mãos no cabelo de Alyx, puxou-lhe a cabeça para
trás e beijou-a avidamente, enquanto os olhos dela se abriam alarmados.
Não teve um segundo para pensar no beijo de Joss porque as poderosas
mãos de Raine os afastaram, fazendo ambos voar pela margem do riacho.
– Vou matar-te – disse Raine, ferozmente, fixando os seus olhos nos de
Jocelin.
Alyx, atordoada pelo voo provocado pelas mãos de Raine, enfiou
rapidamente os braços na camisa quando viu Raine a desembainhar a
espada.
– Não! – gritou ela alto o suficiente para fazer as árvores deixarem cair o
orvalho da noite. «Dá-me forças», rezou enquanto se levantava.
Colocou o seu corpo à frente do de Joss.
– Darei a minha vida por este homem – disse ela, sentidamente. Ao ver a
expressão no rosto de Raine mudar do desnorte para a dor, para a raiva, para
a frieza, sentiu-a no seu coração.
– Tenho sido um tolo? – perguntou ele, calmamente.
– Os homens são como a música – respondeu ela com a leveza que
conseguiu. – Não consigo viver numa dieta de canções de amor ou sozinha
nas sarjetas. Preciso de tudo. Preciso de variedade nos homens, assim como
nas minhas canções. Tu, ah, és uma canção de fúria, de címbalos e
tambores, enquanto Joss – pestanejou –, Joss é uma melodia de flautas e
harpas.
Por um momento, pensou que talvez Raine lhe fosse arrancar a cabeça do
corpo, mas, em vez de sentir medo, Alyx quase que o desejou. A sua alma
estava a rezar para que ele não acreditasse nela. Poderia ele acreditar
verdadeiramente que a música significava mais para ela do que ele?
– Desaparece da minha vista – murmurou ele do fundo de si mesmo. –
Deixa que... o teu amigo cuide de ti a partir de agora. Partam hoje à noite.
Não quero voltar a ver-te.
Com isto, Raine voltou-se para ir embora e Alyx deu vários passos na sua
direção antes de Joss lhe agarrar o braço.
– O que lhe podes dizer agora à exceção da verdade? – questionou ele. –
Deixa-o em paz. Quebra agora a ligação. Espera aqui e eu voltarei dentro de
pouco tempo. Tens mais algumas roupas ou outros bens?
Alyx negou com a cabeça e mal se apercebeu que Jocelin a tinha deixado
sozinha.
Não parecia haver quaisquer pensamentos a preencher-lhe a mente
enquanto esperava que ele voltasse. Raine acreditou nela, acreditou que
achava que a sua música era o mais importante de tudo. As pessoas do
acampamento achavam que ela era uma ladra e estavam ansiosas por vê-la
ser castigada. E que tinha ela feito na sua vida para que alguém confiasse
nela e acreditasse que era uma boa pessoa?
– Estás pronta? – perguntou Jocelin perto dela, e Rosamund parecia uma
sombra silenciosa atrás dele.
– Lamento ter-te causado... – começou ela.
– Já chega – cortou Joss, com firmeza. – Agora temos de olhar para o
futuro.
– Rosamund, tomarás conta dele? Assegurar-te-ás de que come? Verás se
ele não treina demasiado?
– Raine não me ouvirá como te ouve a ti – disse ela, com a voz suave,
devorando Jocelin com os olhos
– Beija-a – sussurrou Alyx. – Pelo menos, alguém deve oferecer o seu
amor e não escondê-lo. – Com isso, virou costas e, quando olhou para trás,
viu Rosamund agarrar-se ferozmente a Jocelin. Quando este regressou para
junto de Alyx, havia um olhar de surpresa no seu rosto.
– Ela ama-te – disse Alyx, sem rodeios, antes de darem início à longa
viagem para alcançar os limites exteriores da floresta.
PARTE II

Agosto de 1502
Capítulo Doze

ALYX LEVOU A mão ao fundo das costas e descansou um pouco num monte
de erva mesmo ao lado da estrada, dirigindo um pequeno sorriso de gratidão
a Joss quando este lhe entregou um copo de água fresca.
– Vamos descansar aqui esta noite – disse ele, os olhos a estudar-lhe as
feições cansadas do rosto.
– Não, temos de tocar esta noite… precisamos de dinheiro.
– E tu precisas de descansar mais! – respondeu ele energicamente e
depois sentou-se ao lado dela. – Venceste. Ganhas sempre. Tens fome?
Alyx dirigiu-lhe um olhar que o fez sorrir e ele baixou o seu, para a
grande barriga dela que se salientava na lã do seu vestido. O calor do verão
e as constantes caminhadas faziam com que Alyx se sentisse miserável.
Tinham passado pouco mais de quatro meses desde que haviam deixado o
acampamento de Raine e, durante esse tempo, mal tinham parado de andar.
No início, não fora difícil. Eram ambos fortes e saudáveis e músicos
populares. Mas ao fim de um mês na estrada, Alyx adoeceu. Vomitava tão
frequentemente que as pessoas se recusavam a viajar com eles, receando
que o rapaz tivesse alguma doença. E Alyx ficou tão fraca que mal
conseguia falar.
Ficaram numa pequena aldeia, durante uma semana, com Jocelin sentado
aos portões da povoação, a cantar por tostões. Uma vez, Alyx foi ter com
ele, levando-lhe pão e queijo, e, enquanto a observava, pensou como
mudara desde o tempo que tinha passado na floresta. Talvez fosse porque a
sua preocupação com ela aumentara ultimamente que Alyx lhe parecia ter
ficado mais amorosa, mais descontraída, mais bonita. O seu jeito juvenil
arrapazado transformara-se num andar suave, roliço e definitivamente
feminino. E, apesar de ter estado doente, ela estava a ganhar peso.
De repente, Joss foi atingido pelo que estava «errado» com Alyx: ela
carregava o filho de Raine. Quando ela chegou perto dele, já se ria e, se
estivessem sozinhos, já a teria rodopiado nos seus braços.
– Vou ser um fardo para ti – disse Alyx, mas os seus olhos brilhavam.
Antes que Joss pudesse responder, ela começou a tagarelar. – Achas que vai
parecer-se com Raine? Será errado rezar para que uma criança tenha
covinhas?
– Vamos guardar as orações e desejar ter os meios para te vestir como
uma mulher. Se viajar com um rapaz grávido, penso que não viverei muito
tempo.
– Um vestido – sorriu Alyx, pensando em algo macio e agradável que a
fizesse sentir-se novamente uma mulher.
Assim que Jocelin se libertou da sensação de que Alyx estava a morrer de
alguma doença terrível, ficou mais confiante em deixá-la viajar de castelo
em castelo. E Alyx, depois de perceber que não tinha perdido Raine, estava
muito mais bem-disposta. Falava constantemente no bebé, em como seria,
como seriam as feições de Raine numa menina e, se ela tivesse uma
menina, esperava que a criança não crescesse tanto como o seu pai. Alyx
também se riu do facto de nunca ter feito nada corretamente. Em vez de se
sentir enjoada nos primeiros três meses, sentiu-se enjoada nos segundos
três.
Joss ouvia tudo uma e outra vez. Estava muito contente por ela já não
estar calada e taciturna como estivera durante meses, depois de terem
abandonado a floresta. À noite, dormindo em enxergas no chão de uma
qualquer casa onde atuavam, ouvia-a muitas vezes chorar, mas ela não
falava na sua angústia durante o dia.
Uma vez tocaram e cantaram numa grande casa senhorial que pertencia a
um dos primos de Raine. Alyx tinha-se tornado novamente muito
silenciosa, mas ele quase conseguia sentir o esforço que ela fazia para tentar
saber alguma notícia.
Jocelin insinuara-se um pouco à esposa de Montgomery e a mulher tinha-
lhe revelado muito. Raine ainda estava na floresta e o rei Henrique, na sua
dor pela morte do filho mais velho, quase esquecera o nobre fora da lei.
Estava muito mais preocupado com o que fazer com a mulher do seu filho,
a princesa Catarina de Aragão, do que com uma contenda privada. Ignorou
os pedidos da família Montgomery para punir Roger Chatworth. Afinal,
Chatworth não tinha matado Mary Montgomery, apenas a tinha violado.
Não a tinha prejudicado de forma alguma. A culpa do suicídio pertencia
apenas à alma da rapariga.
Houve notícias de que, em julho, Judith Montgomery dera à luz um filho
e, mais tarde, em agosto, Bronwyn MacArran também tinha tido um filho.
Os primos Montgomery ainda estavam irritados com o facto de Stephen ter
adotado o nome e os costumes escoceses.
Alyx ouviu avidamente tudo o que Jocelin lhe relatou.
– É bom que eu já não esteja com ele – disse ela, calmamente, enquanto
dedilhava um alaúde. – A família dele está cheia de senhoras, enquanto eu
sou filha de um advogado. Se tivesse ficado com ele, não acredito que
pudesse ter sido dócil ou educada para com a sua senhora e ela não me teria
querido por perto, embora algumas destas senhoras que vejo sejam
mulheres de sangue frio. Talvez lhe fizesse falta um pouco mais de afeto.
Jocelin tentou mostrar-lhe que o que era diferente entre ela e as senhoras
podia ser resolvido com um vestido de seda, mas Alyx assim não o
entendia. Ele sabia que ela pensava não só em Raine, mas também no ódio
das pessoas na floresta.
À medida que a gravidez de Alyx avançava, ela ficou mais calma, mais
atenciosa, e parecia muito mais consciente do mundo do que quando ele a
conhecera. De vez em quando, não muito frequentemente, deixava
realmente de ensaiar para ajudar alguém a fazer alguma coisa. Na estrada,
viajavam sempre com um grupo, em vez de arriscarem enfrentar os ladrões
de estrada sozinhos, e Alyx, por vezes, levava algumas crianças a passear
para dar alguma paz às mães e, uma vez, partilhou a sua comida com um
mendigo desdentado e velho. Noutra ocasião, preparou uma refeição para
um homem cuja mulher estava deitada debaixo de algumas árvores, dando à
luz o seu oitavo filho.
As pessoas sorriam agradecidas e, como resultado, fizeram amigos por
onde quer que passassem. Uma vez, uma criança oferecera a Alyx um
pequeno ramo de flores silvestres e as lágrimas surgiram nos olhos dela.
– Significam muito para mim – disse ela, agarrando-as com força.
– Ela estava a agradecer-te por a teres ajudado ontem. As pessoas aqui
gostam de ti. – E Jocelin apontou para os viajantes que estavam ao seu lado.
– E não só da música – sussurrava ela.
– Como?
– Eles gostam de mim por algo para além da minha música. E eu dei-lhes
algo para além da música.
– Deste algo de ti mesma.
– Oh, sim, Joss – Alyx riu-se. – Tentei fazer coisas que eram difíceis para
mim. Cantar é muito, muito fácil.
Jocelin riu-se com ela. Era espantoso que alguém pudesse dizer que
música como a que Alyx fazia era fácil.
Agora, em agosto, quando o fardo da criança pesada tomava conta dela,
os seus passos tornaram-se cada vez mais lentos, e Joss desejava que
pudessem dar-se ao luxo de ficar no mesmo local por algum tempo.
– Estás pronto para ir? – perguntou ela, tentando levantar-se. – Chegamos
ao castelo ao anoitecer, se nos apressarmos.
– Fica aqui, Alyx – insistiu ele. – Temos comida.
– E perder a festa do noivado da senhora? Não, quando lá estivermos,
teremos muito que comer, e tudo o que temos de fazer é criar um pouco de
música divina para celebrar os encantos da herdeira. Espero que esta seja
bonita! A última era tão feia que confessei a gravidade das mentiras que
cantei ao padre.
– Alyx! – repreendeu-a Joss em tom de brincadeira. – Talvez a senhora
fosse bonita por dentro.
– Só tu pensarias tal coisa. E depois, claro, com a tua cara, podes dar-te
ao luxo de ser generoso. Vi a forma como a mãe da menina feia ameaçava
devorar-te. Ela fez-te alguma proposta depois do espetáculo?
– Fazes demasiadas perguntas.
– Joss, não podes continuar a isolar-te das pessoas e da vida. Constance
está morta.
Alyx levara muito tempo para conseguir que ele lhe falasse sobre a
mulher que, outrora, amara.
Jocelin apertou o maxilar de tal forma que Alyx percebeu que ele se
recusava a falar de si próprio. Entre eles, os problemas dela eram
propriedade comum, enquanto os dele eram apenas seus.
– Claro que nenhuma das mulheres terá sido tão encantadora quanto
Rosamund. Exceto a sua marca do diabo, claro. Essa coisa hedionda torna
difícil ver qualquer beleza. Pergunto-me se será realmente a marca de
Satanás.
Jocelin rodopiou sobre ela.
– É mais provável que seja uma marca da graça de Deus, porque ela é
uma mulher boa, amável e apaixonada.
– Apaixonada, ai sim? – provocou Alyx enquanto se afastava.
– És cruel, Alyx – sussurrou ele.
– Não, só quero que vejas que não há razão para te enterrares comigo.
Não te podes manter reprimido. Tens tanto para dar e, no entanto, ficas
isolado dentro de ti.
Quando ele olhou para ela, o seu olhar era frio.
– Raine não está aqui, então porque não encontras outra pessoa para
amar? Já vi muitos homens, desde nobres até aos rapazes do estábulo, a
dirigirem-te olhares. Ficariam contigo mesmo com a tua grande barriga.
Porque não casas com um comerciante que dará um lar ao teu filho e que
fará amor contigo todas as noites?
Depois do seu ataque, ela ficou imóvel por alguns momentos.
– Perdoa-me, Joss. Tive esperança de que Rosamund pudesse substituir
Constance, mas vejo que não é possível.
Jocelin virou as costas porque não queria que Alyx visse o seu rosto. Com
demasiada frequência, nos últimos meses, o rosto de que se lembrava à
noite era o de Rosamund e não o de Constance. Rosamund, tão silenciosa,
quase pedindo desculpa pela sua existência, era, muitas vezes, a mulher que
ele via, não como a mulher calma e gentil que conhecia, mas como a
mulher que lhe tinha dado um beijo de despedida. Pela primeira vez desde a
morte de Constance, acendera-se nele uma centelha. Não que não tivesse
havido algumas mulheres aqui e ali, mas antes de ter conhecido Constance
e, desde então, mantivera-se afastado sempre à parte das mulheres. Só
daquela vez, e fugazmente, em que tinha abraçado Rosamund, sentira uma
centelha de verdadeiro desejo, de interesse real por uma mulher.
Joss pegou na mão de Alyx e juntos começaram a caminhar na direção do
castelo que se avistava à sua frente. Era um lugar antigo, com uma torre a
desmoronar-se, e Alyx percebeu que iriam ter outro lugar improvisado para
dormir. Nos últimos meses de viagem, ela tinha aprendido muito sobre a
nobreza. Talvez o mais significativo tivesse sido que as mulheres nobres
tinham tão pouca liberdade como as mulheres em qualquer lugar. Vira
grandes senhoras com os olhos negros, resultado dos espancamentos dos
seus maridos. Vira nobres fracos e cobardes que eram tratados com
desprezo pelas suas esposas. Havia casais que se odiavam, famílias em
grande decadência e algumas baseadas no amor e respeito. Ela começara a
perceber que os nobres tinham problemas muito semelhantes aos das
pessoas da sua própria pequena cidade.
– A sonhar acordada?
– Pensava na minha casa, e na infância protegida que tive. Quase
desejava que a minha música não me tivesse separado de todos os outros.
Faz-me sentir como se eu não pertencesse a lado nenhum.
– O teu lugar é onde quiseres.
– Joss – disse ela, com seriedade. – Eu não te mereço, nem a Raine. Mas,
um dia, espero poder fazer algo digno.
– Sabias que falas cada vez mais como Raine?
– Ótimo – riu-se ela. – Espero poder criar o seu filho para ser pelo menos
metade do que ele é.
Ao aproximarem-se do velho castelo, tiveram de esperar que lhes
permitissem a entrada, uma vez que havia centenas de pessoas à sua frente.
O noivado iria juntar duas famílias poderosas e ricas, e os convidados e a
animação deviam ser sumptuosos.
Joss manteve o seu braço à volta dos ombros de Alyx enquanto a
conduzia através das multidões amontoadas.
– São vocês os cantores? – gritou uma mulher alta a Alyx.
Alyx assentiu com a cabeça, fascinada pelo cabelo escuro, apanhado por
uma fita de aço, e pela riqueza do seu vestido.
– Sigam-me.
Agradecidos, Alyx e Jocelin seguiram-na por uma estreita e sinuosa
escadaria de pedra, até uma grande sala redonda no topo da torre, onde
várias mulheres andavam de um lado para o outro, mostrando sinais de
agitação. No centro da sala encontrava-se uma jovem mulher a lamentar-se
em voz alta.
– Aqui está ela – disse uma mulher ao lado de Alyx.
Alyx olhou para cima, para um rosto angelical, cabelo louro, olhos azuis,
com um sorriso etéreo e delicado.
– Eu sou Elizabeth Chatworth.
Os olhos de Alyx arregalaram-se com o nome, mas não disse nada.
Elizabeth continuou.
– Receio que a nossa pequena quase-noiva esteja aterrorizada – disse ela,
num tom de exasperação e repugnância. – Achas que conseguirias acalmá-
la o suficiente para pudermos levá-la para baixo?
– Vou tentar.
– Se não conseguires, então terei de lhe chegar a mão à cara e ver se essa
música a acalma.
Alyx não pode evitar sorrir com as palavras desta mulher de aspeto doce.
Não correspondiam de todo ao seu rosto.
– De que é que ela tem medo? – perguntou, tentando decidir que música
tocar.
– Da vida. Dos homens. Quem sabe? Acabámos de vir ambas do
convento e pensar-se-ia que Isabella caminhava para a sua morte.
– Talvez o seu noivo...
– Ele é maleável – disse Elizabeth para terminar a conversa. Os seus
olhos caíram em Jocelin, que estava a olhar descaradamente para ela. – Sois
suficientemente bonito para não assustar a coelhinha – comentou ela. Um
grito de Isabella atraiu Elizabeth para o seu lado.
– Meu Deus – disse Alyx, sentindo-se como se tivesse acabado de
escapar a uma tempestade. – Acho que nunca conheci alguém como ela.
– E eu rezo para que não voltemos a conhecer – retorquiu Joss. – Está a
chamar-nos. Que o céu ajude o homem que ouse desobedecer a essa,
embora...
Alyx olhou para ele e viu o brilho especulativo nos seus olhos.
– Ela terá o teu escalpe, se lhe desobedeceres.
– Não seria o meu cabelo que ela me tiraria, e, maldito seja, se eu a
deixasse.
Antes que Alyx pudesse responder, Joss empurrou-a em direção à noiva
que chorava.
Demorou uma hora a acalmar a mulher e, durante todo o tempo, Elizabeth
Chatworth andou para trás e para a frente, por trás da cadeira, de vez em
quando cerrando os olhos na direção da chorosa Isabella. Uma vez abriu a
boca para dizer qualquer coisa, mas Alyx, temendo que a mulher arruinasse
o que ela e Joss tinham conseguido, cantou ainda mais alto para cobrir o
início da frase de Elizabeth.
Quando, finalmente, Isabella estava pronta para descer, todas as suas
criadas foram com ela, deixando Jocelin e Alyx sozinhos com Elizabeth
Chatworth.
– Estiveste bem – disse Elizabeth. – Tens uma voz magnífica e, a menos
que me engane no meu palpite, tiveste uma boa formação musical.
– Passei algum tempo com alguns professores – respondeu Alyx,
modestamente.
Os olhos de Elizabeth fixaram-se em Jocelin num olhar penetrante.
– Já te vi antes. Onde?
– Conheci a vossa cunhada, Alice – respondeu ele, calmamente.
Os olhos de Elizabeth endureceram.
– Sim – disse ela, com um olhar breve e insolente para cima e para baixo,
avaliando a figura de Joss. – Tu serias o tipo dela. Ou talvez qualquer
homem com o equipamento adequado lhe agrade.
Jocelin tinha uma expressão no rosto que Alyx nunca vira antes. E
desejava que ele não dissesse mais nada. Afinal, fora Joss quem matara
Edmund Chatworth, o irmão de Elizabeth.
– E como estão os vossos irmãos? – perguntou Joss, num tom de voz
desafiante.
Durante um longo momento, os olhos de Elizabeth concentraram-se nos
dele, e Alyx susteve a respiração, rezando para que Elizabeth não se
lembrasse de quem era Joss.
– O meu irmão Brian saiu de minha casa – referiu ela suavemente – e não
sabemos onde está. Há rumores de que foi preso por um dos nojentos dos
Montgomery.
A mão de Jocelin apertou brutalmente o ombro de Alyx.
– E Roger? – perguntou ele.
– Roger... mudou. Agora! – retorquiu ela, rapidamente. – Se já acabámos
de falar sobre a minha família, tenho a certeza de que precisam de vocês lá
em baixo. – Com isto desapareceu da sala.
– Nojentos! – exclamou Alyx antes de a porta se fechar. – O irmão dela
mata a irmã do meu Raine e ela ousa chamar-nos nojentos!
– Alyx, acalma-te. Não podes enfrentar uma mulher como Elizabeth
Chatworth. Comia-te viva. Não sabes que tipo de irmão tinha por perto
enquanto cresceu. Edmund era mau, vicioso, e já vi Elizabeth fazer-lhe
frente em alturas em que até Roger recuou. E ela adora o seu irmão Brian.
Se pensasse que os Montgomery o tinham levado de sua casa, ela estaria
cheia de ódio.
– Mas ela não tem esse direito! A culpa foi dos Chatworth.
– Silêncio! E vamos lá para baixo. – Joss olhou-a de olhos bem abertos. –
E nada desses teus truques de escrever canções sobre brigas. Entendeste?
Ela assentiu uma vez com a cabeça, mas não gostou de fazer tal
promessa.
*

Já pela noite dentro, a maioria dos convidados estava deitada, bêbeda, no


chão ou espalhada pelas mesas quando um criado sussurrou ao ouvido do
homem sentado no canto. Com um sorriso, o homem levantou-se e saiu
para saudar os convidados recém-chegados.
– Nem imaginas quem aqui está – disse o homem ao que desmontava.
– O quê! Nem me cumprimentas? – perguntou ele, sarcasticamente. –
Não queres saber se estou bem? Vá lá, John, estás a começar a mostrar os
dentes.
– Mantive-me sóbrio para te dizer isto. Isso deve ser suficiente.
– Verdade, isso é um grande sacrifício. – E entregou as rédeas do seu
cavalo a um criado que estava à espera. – Agora, o que é tão importante que
não pode esperar até eu próprio ter bebido um pouco de vinho?
– Ah, Pagnell, és demasiado impaciente. Lembras-te daquele passarinho
do inverno passado? Aquele que te acertou na cabeça?
Pagnell ficou tenso imediatamente, olhando de relance para John. Era
tudo o que podia fazer para evitar mexer na cicatriz feia na sua testa. Tivera
dores de cabeça desde aquela noite e, embora tivesse torturado até à morte
algumas das pessoas do seu povoado, ninguém lhe dissera onde ela estava.
Sempre que sentia alguma dor na cabeça, jurava que a veria queimada pelo
que ela lhe tinha feito.
– Onde está ela?
John soltou uma gargalhada do fundo da sua garganta.
– Lá dentro e cheia com um pirralho. Viaja com um rapaz elegante e os
dois cantam mesmo bem, como tu gostas.
– Agora? Pensei que estariam todos a dormir.
– E estão, mas sei onde o rapaz e o passarinho estão estendidos.
Pagnell ficou parado por um momento, a pensar no seu próximo passo.
Quando ele e os seus amigos treparam a muralha da cidade à procura de
Alyx, ele estava bêbedo e, por isso, tinha estragado o trabalho. Agora não
podia voltar a cometer o mesmo erro.
– Se ela gritasse – disse Pagnell –, alguém a ajudaria?
– A maior parte deles está podre de bêbeda; roncam tão alto que uma
explosão de pólvora talvez não fosse ouvida.
Pagnell olhou para as velhas paredes de pedra.
– Será que este lugar tem uma masmorra, algum lugar para guardar
prisioneiros antes de serem executados?
– Porquê esperar? Amarramo-la a uma estaca e queimamo-la mal o Sol
nasça.
– Não, algumas pessoas desaprovam isso, e, com o Rei neste estado de
melancolia, quem sabe como ele irá reagir? Vamos fazer isto legalmente.
Um primo meu preside a um tribunal não muito longe daqui. Vamos atirar
com essa rameira para a cave, depois falo com o meu primo e, quando
voltar, teremos um julgamento. Então, vê-la-emos a arder. Agora, mostra-
me onde ela está.
Alyx estava deitada num sono desconfortável, tentando o seu melhor para
posicionar o seu grande estômago, quando um sussurro horrível lhe soou no
ouvido. A voz, que ela nunca tinha esquecido e que nunca esqueceria, fez
com que a sua pele se retesasse.
– Se queres que o teu pequeno companheiro musical viva, vais ficar
calada – disse a voz.
Pressionado contra a sua garganta estava o aço afiado de uma faca. Ela
não precisava de abrir os olhos para ver o rosto de Pagnell a olhar para o
dela. Era um rosto que tinha assombrado os seus sonhos durante meses.
– Pensaste em mim, querida? – sussurrou ele, com o rosto muito, muito
perto do dela. As suas mãos desceram para acariciar o estômago duro dela.
– Deste a outra pessoa aquilo que me negaste a mim. Vais morrer por isso.
– Não – sussurrou Alyx, enquanto a faca continuava a pressionar.
– Vais em paz ou tenho de lhe enfiar uma facada no coração?
Ela sabia bem a quem ele se referia. Jocelin estava a dormir mesmo ao pé
dela, a sua respiração era regular e profunda, nunca imaginando que a sua
vida estava em perigo.
– Eu vou – conseguiu ela dizer.
Tremendo, demasiado assustada para chorar, Alyx levantou-se, com a
faca de Pagnell a arranhar e cortando-lhe uma vez a pele da garganta. Não
foi fácil fazer o seu caminho através dos corpos espalhados pelo chão. Cada
vez que tropeçava, Pagnell torcia-lhe o braço atrás das costas, quase o
arrancando da articulação.
Quando chegaram à escada escura, fria e de pedra, ele empurrou Alyx
com tanta força que ela bateu na parede e tropeçou em quatro degraus até se
equilibrar novamente. Parando por um momento, com as mãos a proteger a
barriga, ela tentou recuperar o fôlego.
– Continua – zombou Pagnell, empurrando-a novamente.
Alyx conseguiu descer até ao fundo sem cair. O quarto onde estavam era
frio e totalmente escuro, com o teto muito baixo. Barris e sacos de
provisões cobriam o chão. Rodopiou quando ouviu a porta a ranger.
Pagnell parou em frente a uma porta pesada, aberta para revelar um vazio
negro.
– Lá para dentro – rosnou ele.
– Não. – Alyx recuou, mas a divisão estava tão atafulhada que não havia
para onde fugir.
Pagnell agarrou um punhado do cabelo dela e, empurrando-a, atirou-a
para a escuridão.
Agachada num canto, rodeada pela escuridão fria, ela viu a porta fechar-
se, eliminando o último raio de luz, e ouviu a pesada fechadura de ferro a
trancar.
Capítulo Treze

AQUELA PEQUENA E horrenda divisão parecia ser a súmula de todos os


pesadelos, de todos os maus pensamentos, de cada uma das histórias
horríveis que ela já tinha ouvido. Não havia luz e, mesmo passado uma
hora, ela ainda não conseguia ver a sua mão diante do rosto. Durante muito
tempo, permaneceu aninhada no canto para onde Pagnell a atirara, com
medo de se mover.
Ainda que não conseguisse ver, podia certamente ouvir os ruídos dos
insetos nas paredes e no chão, soando alto e ameaçadores. O que a fez
finalmente mexer foi algo que passou rapidamente pelo couro macio dos
seus sapatos. Com um pequeno guincho, ela ergueu-se e, com as mãos,
tentou agarrar as pedras da parede atrás dela.
– Acalma-te, Alyx – disse ela em voz alta, e a sua voz ecoou pelas
paredes. Em breve, amanheceria e Jocelin viria à procura dela, se ainda
estivesse vivo. Não, ela não podia depender de ninguém para sair dali.
Tinha de tentar encontrar maneira de o fazer sozinha.
Cuidadosamente, de mãos estendidas como uma pessoa cega, deu um
passo em frente e quase caiu sobre um banco baixo. Ajoelhando-se, passou
as mãos por cima dele e ficou contente por ver que conseguia perceber a
sombra do mesmo. Quando terminou a sua exploração do banco, dirigiu-se
para as paredes, apalpando o caminho até à porta. A avaliar pela cedência
da porta quando a empurrava, bem que poderia ter estado a tentar mover as
paredes de pedra.
A divisão tinha cerca de um 1,5 metros quadrados, com paredes de pedra
e chão de terra, e o único mobiliário era o banco baixo. Não havia postigo
na porta e nenhuma luz entrava pela ombreira. O teto baixo permitia-lhe
explorar cada centímetro da sala. Não havia janelas, nem grades, nem
lugares frágeis em qualquer sítio. Quando terminou, a metade superior do
seu corpo estava coberta de teias de aranha e tinha lágrimas no rosto. Com
raiva, tentou sacudir as coisas pegajosas do seu rosto e das roupas, sempre a
chorar e amaldiçoando Pagnell e os homens da sua espécie.
Passadas várias horas, sentou-se no banco, içou os joelhos e baixou a
cabeça. Distraidamente, empurrou o pé do bebé para baixo de onde estava a
pontapear-lhe as costelas e, à medida que a sua criança se tornou mais ativa
e inquieta, começou a cantar-lhe. Gradualmente, a criança acalmou-se e
Alyx também.
Acima da sua cabeça, Alyx ouvia pessoas a andar e percebeu que o teto
era o chão do castelo. Algures lá em cima, Jocelin tentava encontrá-la.
Começou a imaginar formas de escapar e desejou poder acender uma
fogueira, pensando que talvez o fogo lhe abrisse uma saída. Mas, claro, o
fumo iria, provavelmente, matá-la antes de o fogo queimar a porta.
Quando a porta se abriu, o som soou muito alto na sala silenciosa e
assustou-a tanto que quase caiu do banco. A luz de velas inundou a sala e
quase a cegou.
– Aí estás tu – disse uma voz que sabia ser de Elizabeth Chatworth.
Alyx não pensou na sua condição social enquanto lançava os braços sobre
Elizabeth.
– Estou muito, muito contente por vos ver. Como é que me encontrou?
Elizabeth abraçou Alyx com apenas um braço.
– Jocelin veio avisar-me. É aquele idiota do Pagnell, não é? Esse homem
é tão perverso como todos os homens alguma vez nascidos. Agora, vem,
antes que esse burro regresse.
– Demasiado tarde – ouviu-se uma voz enrolada, meio divertida, meio
zangada, vinda da porta. – Não mudaste muito, Elizabeth, ainda dás ordens
a todos.
– E tu, Pagnell, ainda arrancas as asas às borboletas. O que é que esta te
fez? Recusou os teus avanços como qualquer mulher digna desse nome
faria?
– A tua língua é demasiado afiada, Elizabeth. Se eu tivesse tempo,
ensinava-te melhores modos.
– Tu e quantos outros homens? – cuspiu Elizabeth. – Estás a morrer de
medo de mim porque o que eu digo é verdade. Agora, sai do caminho e
deixa-nos passar. Já estamos fartas dos teus joguinhos desagradáveis. Vai
procurar outra pessoa com quem brincar. Esta criança está sob a minha
proteção.
Pagnell colocou-se à frente de Elizabeth e Alyx, não as deixando sair da
pequena cela.
– Estás a ir longe demais! – silvou Elizabeth. – Já não estás a ameaçar
uma criada indefesa. O meu irmão reclamará a tua cabeça se me fizeres
mal.
– Roger está demasiado ocupado a conspirar contra os Montgomery para
pensar em mais alguém. Ouvi dizer que ele se embebeda a toda a hora,
agora que o querido, doce e aleijado Brian foi amuar para outro lado
qualquer.
Alyx não reparou na pequena adaga que Elizabeth sacou da sua bainha
lateral, mas Pagnell viu. Com um passo ao lado, esquivou-se dela, pegou-
lhe no braço e, torcendo-o, puxou-a para ele.
– Gostaria de te sentir debaixo de mim, Elizabeth. Levas para a cama
tanto vigor como para tudo o resto?
Alyx percebeu que agora era a sua oportunidade. Na parede fora da cela,
à sua esquerda, estava um pesado molho de chaves. Com um movimento
rápido, atirou-as à cabeça de Pagnell, acertando-lhe na têmpora.
Ele largou Elizabeth, cambaleou um passo para trás e levou a mão à
cabeça, ficando a olhar fixamente para o sangue na sua mão. Quando
recuperou os sentidos, Elizabeth e Alyx já iam a meio caminho das escadas.
Pagnell puxou a saia de Elizabeth e sacudiu-a com tanta força que ela
caiu para trás, batendo-lhe com força no peito.
– Ah, minha querida Elizabeth – disse-lhe ele arrastadamente, junto à
orelha, com o braço em volta da cintura dela, e a outra mão deslizando para
o seu peito farto. – Sonhei com este momento durante muito tempo.
Alyx sabia que a atenção de Pagnell estava concentrada em Elizabeth e
podia ter escapado, mas não podia deixar Elizabeth sozinha, porque era
óbvio o que ele planeava fazer à nobre jovem mulher. Não conseguiu pensar
em mais nada senão lançar o seu peso corporal sobre ambos.
Pagnell tropeçou, recuando, mas agarrou-se a Elizabeth, enquanto Alyx
rolou para longe, com as mãos a proteger o estômago. Elizabeth viu a sua
oportunidade e enfiou o cotovelo nas costelas de Pagnell, fazendo-o grunhir
de dor. Com um movimento rápido, agarrou um pequeno barril de carvalho
e, com uma força considerável, deu com ele na cabeça de Pagnell.
As ripas de carvalho partiram-se e vinho tinto escuro escorreu-lhe pela
cara, por cima da roupa e, depois de um olhar amedrontado, Pagnell caiu
inconsciente.
– Que desperdício de bom vinho – disse Elizabeth, olhando por cima do
homem inerte para Alyx. – Não magoaste o teu bebé, pois não?
– Não, ele está suficientemente seguro.
– Obrigada – disse Elizabeth. – Podias ter fugido, mas ficaste para me
ajudar. Como posso recompensar-te?
– Com licença – ouviu-se uma voz vinda do umbral da porta.
Elas viraram-se para ver um homem alto e escuro, de espada em punho.
– Detesto interromper esta pequena reunião, mas, a menos que reanimem
o meu amigo rapidamente, matarei com prazer as duas.
Elizabeth reagiu primeiro, saltando e afastando-se do corpo de Pagnell
para o lado direito do homem escuro.
– Vai para o outro lado dele, Alyx – ordenou ela. – Ele não consegue
apanhar-nos às duas ao mesmo tempo.
De imediato, Alyx obedeceu, e o homem moveu a cabeça para um lado e
para o outro como um touro enfurecido, olhando para as duas mulheres. Um
gemido de Pagnell obrigou o homem a olhar para o seu amigo. Assim que o
fez, Alyx fez um movimento rápido na sua direção. Ele recuou na abertura
da escada, guardando a entrada.
– Maldita cabra! – amaldiçoou Pagnell, tentando clarear a sua visão. –
Vais arrepender-te disto, Elizabeth – gemeu ele. – Segura-as aí, John. Não
as deixes chegar mais perto. Nenhuma das duas é humana. A desgraça caiu
sobre os homens no dia em que a mulher foi criada.
– Não sabes o que é uma mulher – sibilou Elizabeth. – Nenhuma mulher
digna desse nome te deixaria aproximar-se dela.
Tremendo, Pagnell levantou-se e olhou, repugnado, para o seu gibão
encharcado em vinho. De repente, levantou a cabeça e começou a sorrir
para Elizabeth de uma forma desagradável.
– Ontem à noite, quando cavalgava, vi o acampamento de Miles
Montgomery. – O seu sorriso abriu-se ainda mais pela forma como
Elizabeth ficou hirta ao ouvir aquele nome. – Será que Miles gostaria de ter
uma convidada? Ouvi dizer que ele estava tão irado com a morte da irmã
que o seu irmão teve de o enviar para a ilha de Wight para o impedir de
declarar guerra aberta à família Chatworth.
– O meu irmão aniquilá-lo-ia – disse Elizabeth. – Nenhum
Montgomery…
– Poupa-me, Elizabeth, especialmente porque, pela história que ouvi,
Roger atacou Stephen Montgomery pelas costas.
Elizabeth saltou para ele, com as mãos como garras, e Pagnell agarrou-a.
– Ouvi dizer que Miles é um grande amante de mulheres e tem muitos
bastardos. Queres acrescentar um teu ao estábulo dele, minha princesinha
virginal?
– Preferia morrer – ripostou ela sentidamente.
– Talvez. Vou deixar isso para Miles. Eu próprio trataria de ti, mas,
primeiro, essa aí está em dívida comigo. – E moveu a cabeça para Alyx, que
permaneceu em silêncio, com a espada de John nas suas costas.
– E como é que me vais tirar daqui? – perguntou Elizabeth, sorrindo. –
Achas que ninguém protestará se me levares pelo salão?
Pagnell pareceu pensar nisso por um momento enquanto olhava para o
porão escuro. Com um sorriso, olhou novamente para ela.
– Achas que Miles vai gostar de fazer de César?
Surpreendida, Elizabeth não lhe deu resposta.
Pagnell torceu-lhe o braço para trás das costas.
– John, vigia essa com cuidado enquanto eu cuido de Elizabeth. A minha
cabeça dói-me demasiado para voltar a discutir com ambas.
– Vai-te doer mais do que a cabeça se me fizeres mal – avisou Elizabeth.
– Vou deixar essa preocupação para Miles. Os Montgomery estão, no seu
conjunto, demasiado acima do que valem. Gostaria de vê-los todos
derrubados e as suas terras dispersas.
– Nunca! – gritou Alyx. – Nenhuma carcaça infestada de vermes como tu
destruirá jamais um Montgomery.
O poder da voz autoritária de Alyx fez com que todos parassem e
olhassem fixamente para ela. Elizabeth parou de lutar contra Pagnell e
dirigiu um olhar intrigado sobre Alyx. O olhar de Pagnell era calculista.
John deu um empurrão a Alyx com a ponta da espada.
– Diz-se que Raine Montgomery está escondido nas florestas algures,
comandando um bando de criminosos.
– Isto precisa de ser investigado – disse Pagnell, continuando a torcer o
braço de Elizabeth. – Mas, primeiro, temos de lidar com esta.
Puxando Elizabeth com ele, pegou numa corda de cânhamo pousada
sobre uma pilha de barris de vinho e começou a atar as mãos de Elizabeth
atrás das costas.
– Pensa no que estás a fazer – disse Elizabeth. – Eu não sou uma…
– Cala-te! – ordenou Pagnell, batendo-lhe no ombro com o punho.
Quando as mãos dela estavam atadas, empurrou-a para cima dos sacos de
cereais e atou-lhe os tornozelos. Com a sua faca, cortou um pedaço de seda
vermelha do vestido dela.
– Dás-me um beijo, Elizabeth? – provocou ele, segurando a mordaça
perto dos lábios dela. – Só um, antes de Miles Montgomery ficar com
todos.
– Antes disso, vou ver-te no inferno.
– Tenho a certeza de que lá estarás comigo se nenhum homem te limar as
rebarbas dessa tua língua.
Antes que ela pudesse falar de novo, ele amarrou o pano firmemente
sobre a boca dela.
– Agora pareces quase apelativa.
– O que vais fazer com ela agora? – perguntou John. – Não podemos
propriamente levá-la assim.
De um canto mais distante da adega, Pagnell pegou num pedaço de lona
sujo e comido pelas traças e, depois de algumas sacudidelas que fizeram o
pó voar, estendeu-o aos pés de Elizabeth.
– Enrolamo-la nisto e levamo-la para fora sem ninguém a ver.
Alyx olhou para Elizabeth, agora com os olhos arregalados de medo, mas
tudo em que conseguia pensar era que Elizabeth estaria muito melhor com
Miles do que com qualquer outra pessoa.
– Estarás segura com Miles – disse ela, tentando tranquilizar Elizabeth.
Mais uma vez, todos olharam fixamente para Alyx, mas ela ignorou-os.
Elizabeth agora precisava da sua ajuda.
Rudemente, Pagnell empurrou Elizabeth para a lona imunda e enrolou-a
nela, escondendo-a completamente.
– Conseguirá ela respirar? – perguntou Alyx.
– Quem é que se importa? Se morrer, não pode contar histórias. Como
está, depois de Miles terminar com ela, nem sequer se vai lembrar de mim.
– Miles não lhe vai fazer mal – afirmou Alyx, apaixonadamente. – Ele é
bom e bondoso como o irmão dele.
Pagnell riu-se disso.
– Nunca existiu ninguém com um temperamento como o de Miles. Assim
que descobrir que ela é uma Chatworth... oh, quase que o invejo, mas não
sou um tolo como Miles. Ele não se importará com Roger Chatworth, e
quando Roger ouvir o que Miles fez à sua amada irmãzinha… O Rei terá
todas as terras Montgomery para recompensar quem fez favores ao Rei. E
eu estarei lá para receber.
– És uma vil criatura suína.
As costas da mão de Pagnell esbofetearam com força a boca de Alyx,
atordoando-a.
– Pedirei o conselho de uma vassala como tu, quando o quiser. Terá sido
Raine Montgomery quem te pôs ideias na cabeça? O homem pensa que
pode reformar toda a Inglaterra. Esconde-se na floresta e renuncia a tudo o
que é material, vomitando teorias sobre os antigos costumes de honra e
nobreza, enquanto as pessoas da tua classe engordam e ficam ricas.
Alyx limpou o sangue do canto da boca.
– Raine vale tanto como cem iguais a ti – disse ela.
– Raine, é isso? Não é «Lorde Raine»? Carregas o pirralho dele? É isso
que te faz pensar que és tão elevada e poderosa? Quando as chamas te
lamberem as pernas, veremos se o nome Montgomery é tão agradável nos
teus lábios. John! – exclamou ele, bruscamente. – Leva Elizabeth. Entrega-a
a Miles Montgomery e vê o que ele quer fazer com ela. E John – advertiu
ele –, a virgindade de Elizabeth é um facto conhecido e eu quero que ela
chegue aos pés de Miles intacta. Que toda a ira de Roger Chatworth caia
sobre as cabeças dos Montgomery e não sobre a minha. Faço-me entender?
John olhou-o insolentemente enquanto lançava o embrulho contendo
Elizabeth sobre o ombro.
– O Montgomery vai recebê-la nas melhores condições possíveis.
– Mas certifica-te de que ele está inclinado a esquecer-se que ela é uma
senhora nascida em berço de ouro. Vê se consegues dar um jeito na roupa
dela para lhe agitar o sangue.
Com um sorriso de despedida, John deixou a cave.
– O que queres de mim? – perguntou Alyx, afastando-se de Pagnell
enquanto ele se aproximava dela. – Não te fiz mal nenhum.
Ele olhou de relance para a sua grande barriga.
– Deste a outro homem o que devia ter sido meu. – E agarrou-lhe o braço,
encostando-lhe um pequeno punhal afiado às costelas. – Agora, sobe as
escadas e sai pela porta e depois para os estábulos. Se fizeres um único
som, será o teu último.
Sustendo a respiração, Alyx não teve outra opção senão obedecer-lhe.
Uma vez no grande salão, havia convidados a andar por ali, mas ninguém
prestou a mínima atenção a Pagnell e à rapariga vestida de forma modesta.
Estavam a curar as cabeças inchadas e os corpos feridos pelos sítios onde
tinham dormido, sobre bancos e mesas.
Alyx procurou Jocelin, mas não viu nenhum sinal dele. Sempre que
tentava mover a cabeça, a faca de Pagnell empurrava com mais força contra
ela até ela manter a cabeça direita. Talvez Jocelin não soubesse que ela
estava em apuros. Talvez ele estivesse com uma mulher e ainda não tivesse
descoberto que ela estava desaparecida do salão. Por muito próximos que
fossem, respeitavam a privacidade um do outro. Havia dias inteiros em que
não se viam e nenhuma pergunta era feita mais tarde.
Já na rua, Pagnell empurrou-a para os estábulos, onde gritou a um criado
para selar o seu cavalo. Antes que Alyx pudesse pensar, foi empurrada para
a sela, com Pagnell atrás dela, e partiram a um ritmo que fez tremer os
dentes de Alyx.
Já estava a anoitecer, quando finalmente pararam em frente de uma casa
alta de pedra na extremidade de uma pequena aldeia. Pagnell puxou-a do
cavalo, agarrou-lhe o braço e arrastou-a até à porta.
Um homem baixo, gordo e careca saudou-os.
– Demoraste mais tempo do que eu pensava. Agora, o que é assim tão
importante que me fez esperar por ti a esta hora da noite?
– Isto – disse Pagnell, empurrando Alyx para a divisão à sua frente. Era
uma sala grande e escura, com algumas velas sobre a extremidade de uma
mesa.
– Que me importa a mim essa criadita suja e prenhe dessa maneira?
Certamente, podias ter encontrado um naco mais saboroso do que isso para
te divertires.
– Vai para ali – ordenou Pagnell, empurrando-a em direção à mesa. – Se
disseres uma palavra, corto-te a garganta.
Demasiado cansada para responder, Alyx moveu-se e deixou-se cair no
chão desajeitadamente, diante de uma lareira vazia.
– Explica-te – disse o homem gordo a Pagnell.
– O quê, meu tio, nem boas-vindas, nem vinho?
– Se as tuas notícias forem suficientemente boas, dou-te de comer.
Pagnell sentou-se numa cadeira diante da mesa, olhando para as velas
tremeluzentes. Não era que o seu tio fosse assim tão pobre para usar um
sebo tão barato, mas, nos últimos três anos, o homem pouco tinha feito,
exceto esperar pela sua própria morte.
– Quais são os seus sentimentos em relação a Raine Montgomery? –
perguntou Pagnell suavemente, observando com interesse enquanto o rosto
do seu tio passava do branco para o vermelho e para o violeta.
– Como és capaz de pronunciar o nome desse homem na minha própria
casa? – arquejou ele. Três anos antes, num torneio, Raine tinha matado o
único filho de Robert Digges. Não importava que o seu filho andasse a
tentar matar Raine, em vez de o derrubar apenas, ou que o seu filho tivesse
já matado um homem e ferido gravemente outro nesse dia. Tinha sido a
lança de Raine que tirara a vida ao filho de Robert.
– Bem me parecia que pensáveis assim – sorriu Pagnell. – Agora, tenho
uma maneira de retribuir a façanha ao homem.
– E como é que fazes isso? O homem está escondido na floresta e nem o
próprio Rei o consegue encontrar.
– Mas o nosso bom Rei não tem o isco que eu tenho.
– Não! – gritou Alyx, levantando-se com a pouca força que lhe restava.
– Como vedes – disse Pagnell, divertido –, ela defende o homem cada vez
que respira. De quem é a criança que carregas?
Alyx dirigiu-lhe uma expressão determinada. Se não tivesse tentado
tranquilizar Elizabeth sobre os homens Montgomery, Pagnell não saberia da
sua relação com Raine, mas Elizabeth tinha-a ajudado.
– Pagnell – ordenou Robert –, conta-me a tua história toda.
Resumidamente, Pagnell contou a sua versão da história, que Alyx tinha
usado a sua voz para o seduzir. Depois, quando ele se tinha aproximado, ela
tinha desaparecido no ar. Mais tarde, fora à procura dela e ela saltara-lhe em
cima com uma força demoníaca. Mostrou ao tio a cicatriz na cabeça.
– Poderia uma coisinha assim ter deixado tal cicatriz, a menos que fosse
ajudada pelo diabo?
Robert deu uma risada fraca e bufou de escárnio.
– A mim, parece-me que ela te passou a perna.
– Ela é uma bruxa, digo-vos eu.
Robert acenou com a mão, em jeito de rejeição.
– Todas as mulheres são bruxas, em certa medida. O que tem a rapariga a
ver com Raine Montgomery?
– Creio que ela passou os últimos meses no seu acampamento e é o filho
dele que ela carrega. Se tornássemos público que pretendemos queimá-la
como bruxa, ele viria atrás dela. E, quando o fizesse, estaríamos prontos
para ele. Podíeis apanhá-lo, e poderíamos partilhar a recompensa do Rei.
– Espera um minuto, rapaz – interrompeu Robert. – Olha para ela! Queres
usar isso como isco? Raine Montgomery pode escolher as mulheres como
quiser. Não há dúvida de que as escolhas serão parcas na floresta e ela,
provavelmente, carrega o filho dele, mas porque é que ele arriscaria a sua
vida para vir atrás disto? E porque passaria ele tanto tempo à procura de
uma rapariga de peito liso, sem ancas e com uma cara chata como ela?
Pagnell dirigiu ao tio um olhar de desprezo antes de se voltar para Alyx.
– Canta! – ordenou ele.
– Não vou cantar – declarou ela, com firmeza. – Tencionas assassinar-me
de qualquer maneira, então porque devo eu obedecer-te?
– Vais morrer – disse ele no mesmo tom –, mas a questão é se arderás
antes ou depois do nascimento da criança. Se me desobedeceres, farei com
que a criança morra contigo. Agora, canta pela vida do teu filho.
Alyx obedeceu-lhe instantaneamente, com as mãos no estômago,
levantando a voz num apelo a Deus pela vida do seu filho.
Houve um longo silêncio quando ela terminou, e ambos os homens a
observaram atentamente.
Robert, esfregando os arrepios nos seus antebraços, falou primeiro.
– Montgomery virá atrás dela – disse ele, com convicção.
Pagnell sorriu de satisfação, contente por o tio ter percebido porque tinha
passado tantos meses à procura da rapariga.
– De manhã, daremos início ao julgamento e, quando ela for considerada
culpada, amarrá-la-emos a um poste. Montgomery virá buscá-la e estaremos
preparados para ele.
– Como podeis ter a certeza de que ele vai ouvir falar disto a tempo? E, se
ele vier, tendes a certeza de que o podeis apanhar?
– Atirei a nossa criança para uma cave durante algumas horas e fiz saber
ao menino bonito com quem ela estava o que planeava fazer com ela. Ele
cavalgou como uma seta e tenho a certeza de que se dirigiu para sul, em
direção à floresta onde Montgomery se esconde. E, quanto aos homens, não
terá tempo para os juntar. Portanto, estará rodeado de criminosos e ineptos.
Nenhum deles sabe montar a cavalo e muito menos empunhar uma espada.
Alyx mordeu o lábio inferior para evitar defender Raine. Seria muito
melhor que Pagnell pensasse que Raine estava indefeso; talvez, nesse caso,
Pagnell, enviasse apenas alguns homens para capturar Raine.
Em que estava ela a pensar? Raine nunca viria atrás dela, depois do que
ela lhe tinha feito. Duvidava muito que ele falasse com Jocelin. Os vigias da
floresta informavam Raine sempre que alguém se aproximava, e tudo o que
Raine tinha de fazer era barrar a entrada de Joss – o que faria certamente.
Se Jocelin tentasse entrar sorrateiramente na floresta, Raine poderia ordenar
aos vigias que o matassem. Não! Raine não faria isso, pois não? E se
Jocelin, de alguma forma, conseguisse chegar a Raine? Acreditaria Raine
em Joss? Iria ele importar-se com o que acontecera a Alyx?
– Ele virá – repetiu Pagnell. – E, quando vier, estaremos preparados para
ele.
Capítulo Catorze

ALYX OLHOU PELA janela da pequena divisão de paredes de pedra para o


pátio, em baixo, observando, simultaneamente fascinada e horrorizada, os
carpinteiros a construírem o palco para a sua incineração. Tinham passado
oito longos e aterradores dias desde que fora levada por Pagnell e, durante
esse tempo, tinha sido sujeita a um julgamento completamente encenado.
Os homens que haviam presidido ao julgamento eram alguns dos parentes
de Pagnell e ele convencera-os facilmente da sua opinião. Alyx ouviu tudo,
pois falavam dela como se não estivesse presente, e na sua cabeça ecoaram
as palavras de Raine.
Raine e ela tinham discutido tantas vezes sobre a ascensão da classe
média. Alyx sempre adorara o rei Henrique, adorava a forma como retirava
o poder aos nobres e os obrigava a pagar salários e a deixarem de ter servos.
Mas Raine dissera que o Rei estava a transformar os nobres em
comerciantes gordos e que, se a classe dominante tivesse de contar tostões,
esqueceria as suas virtudes cavalheirescas e deixaria de conhecer o
significado da honra. Ela falava da igualdade entre as pessoas, mas Raine
perguntava quem iria combater se a Inglaterra fosse atacada. Se não
houvesse uma classe de pessoas libertas dos problemas de ganhar dinheiro
para se manterem fortes e praticarem as artes da guerra, quem protegeria a
Inglaterra?
Quando Alyx se sentou durante o «julgamento», começou a ver mais
claramente o que Raine queria dizer. Os juízes não acreditaram nem por um
minuto que ela fosse uma bruxa, e Alyx maravilhou-se com isso porque as
pessoas do seu povoado acreditavam piamente em bruxas e tinham uma
multitude de maneiras de se protegerem de maldições maléficas.
Os juízes só se preocupavam em ganhar os favores do Rei e em colher as
recompensas que viriam com a sua satisfação. Pagnell disse-lhes que ela
carregava o filho de Raine Montgomery e, tal como os abutres, eles
agarraram-se a esse facto. Raine tinha sido declarado traidor e, com um
pouco mais de insistência, as suas terras poderiam ser concedidas a outra
pessoa. O rei Henrique gostava de criar os seus próprios nobres, de dar
títulos a qualquer pessoa rica o suficiente para comprar um. Os juízes
esperavam que ele lhes desse algumas das terras dos Montgomery se
entregassem Raine – ou a sua cabeça – ao Rei.
Alyx sentou-se silenciosamente durante todo o processo, enquanto
conspiravam e planeavam, riam e discutiam. No final, empurraram-na para
uma carroça e conduziram-na através da pequena cidade – da qual ela nem
sequer sabia o nome –, com um homem a caminhar à sua frente,
declarando-a bruxa.
Como se não fosse nada com ela, Alyx viu o povo benzer-se, fazer cruzes
com os dedos, virar-se de costas para que não lhes lançasse um mau-olhado,
e os mais corajosos atiravam-lhe comida e vísceras. Ela queria gritar que o
que lhe estava a ser feito nada tinha a ver com bruxaria, era tudo ganância –
a ganância de homens já ricos. Mas, ao olhar para as expressões fascinadas
e atemorizadas ao mesmo tempo das pessoas sujas e doentes, ela sabia que
não podia argumentar com elas. Não conseguiria acabar com séculos de
ignorância em poucos minutos.
Quando o passeio de carroça terminou, foi arrastada para as ruínas de um
velho castelo de pedra, ainda com uma torre de pé, e empurrada pelas
escadas acima. Muitas horas depois, foi-lhe dada uma pequena tigela de
água e Alyx lavou o fedor do seu corpo o melhor que pôde.
Mantiveram-na lá durante dias, com guardas no piso inferior e mais
alguns no telhado. À noite, o povo da cidade reunia-se à volta da torre e
cantava exorcismos para se proteger da sua maldade. Alyx limitava-se a
sentar-se no centro da pequena divisão fria e tentava ouvir a música que lhe
passava pela cabeça. Ela sabia que os juízes adiariam a sua execução para
dar tempo a Raine de chegar para a salvar. Ela rezou com todas as suas
forças pela sua segurança, suplicou a Deus que o fizesse perceber que
caminhava para uma armadilha. Os juízes e Pagnell estavam certos quando
disseram que Raine não podia ir buscar os seus próprios cavaleiros. De
facto, Pagnell tinha levado os seus próprios homens para norte, para a casa
de Raine, para prevenir que este não cavalgasse para lá primeiro.
Alyx sentou-se e pensou sobre os homens no acampamento de Raine, na
fraca qualidade de soldados dos mesmos, e como treinavam
preguiçosamente – e no quanto a odiavam.
– Por favor – rezou ela –, não deixem Raine vir sozinho. Se ele vier, que
venha com uma guarda e deixe que os homens o protejam.
Antes do nascer do nono dia, uma mulher velha, gorda e malcheirosa
apareceu com uma bata de linho branco liso para Alyx usar. Sem protestar,
calmamente, Alyx vestiu-a, deixando-a solta sobre o estômago. Durante o
processo, ela tinha implorado pela vida do seu filho, mas os homens só lhe
tinham dirigido um olhar vazio, totalmente desinteressado. Um dos juízes
disse a Pagnell para a silenciar e uma bofetada dele fez com que Alyx
refreasse a língua. Não havia nada que ela pudesse dizer para os influenciar
de alguma maneira. Decidiram que tinham de a queimar enquanto Raine
ainda tinha sentimentos por ela e a criança estivesse também em perigo.
Pagnell riu-se e declarou que seguraria Raine e o obrigaria a ver Alyx arder.
De queixo levantado, e apelando a todas as suas forças para controlar o
tremor nos joelhos, Alyx desceu as escadas à frente da mulher velha, que
carregava o seu vestido no braço – a paga por arriscar estar na mesma
divisão com a bruxa.
Um padre esperava ao fundo das escadas e, rapidamente, Alyx fez a sua
confissão, negando que era uma bruxa ou que carregava o filho do diabo.
Com um ar de incredulidade, ele abençoou-a e deixou-a seguir o caminho.
Deve ter parecido estranho, pensou Alyx, que alguém do seu tamanho
fosse escoltado por tantos homens enormes: um à frente, outro atrás, dois de
cada lado. O tilintar da armadura completa que usavam era a única coisa
que soava mais alto do que a batida do seu coração, enquanto fixava os
olhos na plataforma à sua frente. Uma estaca alta em direção ao céu e, à sua
volta, uma pilha de mato e erva seca.
A multidão estava animada enquanto observava a sua aproximação,
radiante com a guloseima especial que os esperava. Poucas bruxas eram
queimadas por aquela altura.
Enquanto Alyx subia as escadas, os guardas rodeavam-na, de costas para
ela, e simultaneamente os seus olhos fixavam-se no horizonte.
Involuntariamente, Alyx também olhou para a paisagem. A esperança e o
medo misturavam-se dentro dela. Temia pela vida de Raine se a tentasse
salvar, mas esperava não ter de morrer.
Um guarda agarrou-lhe o braço, puxou-a para a estaca e amarrou-lhe
firmemente os pulsos atrás das costas.
Alyx levantou os olhos para o céu, plenamente consciente de que esta
seria a última vez que veria o dia. A luz do nascer do Sol começava a
iluminar o dia e ela olhou através do monte de mato e para a multidão. Era
mau, muito mau, que aqueles fossem os últimos rostos que veria, que fosse
para o céu – ou para o inferno – com eles na cabeça.
Fechou os olhos e tentou imaginar Raine.
– Vamos lá com isso – ouviu-se uma voz que fez Alyx abrir os olhos. As
vozes eram vida para ela; lembrar-se-ia mais provavelmente de uma voz do
que de um rosto ou de um nome. Examinando a multidão, não viu ninguém
que conhecesse. Todos pareciam ser um lote especialmente sujo e marcado
por cicatrizes.
– Deixem-me acender o fogo – ouviu-se a voz novamente e, desta vez,
Alyx viu os olhos de Rosamund. Um arrepio percorreu-lhe a pele,
contraindo-lhe o couro cabeludo, e nasceu nela uma pequena chama de
esperança.
Os guardas, à sua volta, estavam a demorar a acender o fogo enquanto
perscrutavam o campo em redor, à procura de algum sinal de um cavaleiro e
dos seus homens.
Não sabendo se devia confiar nos seus olhos, Alyx olhou novamente para
a multidão.
– De que é que estão à espera? – questionou uma voz que Alyx conhecia
tão bem como a sua. Ali, na linha da frente, com dentes escurecidos e uma
ligadura suja e ensanguentada sobre um olho, estava Jocelin. Ao seu lado,
encontrava-se um homem que Alyx reconheceu do acampamento da
floresta, um dos que a tinha acusado de roubar. Estavam diferentes, alguns
com um aspeto ainda mais sujo do que ela se lembrava, mas todo o
acampamento da floresta estava ali, a olhar para ela com meios-sorrisos de
conspiração assim que perceberam que ela os tinha reconhecido.
Apesar disso, e de tudo o que podia fazer, as lágrimas começaram a
correr-lhe pelas faces, mas, mesmo com a visão desfocada, ela podia
perceber que Joss estava a tentar dizer-lhe alguma coisa. Demorou um
longo momento a compreender o que ele dizia.
– Este fogo devia fazer a bruxa cantar bem alto – gritou ele, e Alyx notou
exasperação na sua voz.
Sorrateiramente, ela olhou para os guardas enquanto eles franziam o
sobrolho à distância, nunca sequer observando a multidão ao pé da
plataforma.
– Já esperámos tempo suficiente – disse um dos juízes de túnica negra por
trás de Alyx. – Deixem a bruxa arder.
Um dos guardas baixou uma tocha a arder na direção do mato e, ao fazê-
lo, Alyx encheu os pulmões até não poder mais. Desespero, medo,
esperança, alegria, tudo combinado na sua voz, e a nota que emitiu era tão
forte, tão alta, que, por um momento, todos ficaram paralisados.
Jocelin foi o primeiro a mover-se. Com um grito muito semelhante ao de
Alyx, saltou para o topo da plataforma e atrás dele vieram vinte homens e
mulheres. Um assassino confesso atirou-se pelo ar ao guarda que segurava a
tocha, desviando a chama, que acabou por cair na pilha de ramos atrás de
Alyx, incendiando-a instantaneamente.
Havia seis guardas e quatro juízes na plataforma. Os juízes fugiram ao
primeiro sinal de problemas, com as vestes erguidas até aos joelhos, a
esvoaçar atrás deles.
O fumo enrolou-se à volta do corpo de Alyx, enquanto via os homens e
mulheres a lutar contra os cavaleiros revestidos de aço. Cada golpe que
atingia carne, ela sentia-o na sua própria carne. Aquelas pessoas que ela
tinha tratado tão mal arriscavam as suas vidas para a salvar.
O fumo tornava-se mais espesso, fazendo-a tossir e lacrimejar. O calor,
como o sol mais quente possível, feria-lhe as costas. Tentando ver, olhou
para as pessoas à sua volta, plenamente consciente da sua fragilidade em
comparação com os cavaleiros com as suas pesadas armaduras. A sua única
consolação era que Raine fora suficientemente sensato para não arriscar a
vida naquela luta. Pelo menos, ele tinha ficado longe, num lugar seguro.
Passou algum tempo antes de perceber que um dos cavaleiros não estava
a ser atacado pelas pessoas da floresta. Só quando ouviu o seu rugido surdo
vindo de dentro do capacete se apercebeu de que um dos seus guardas era
Raine.
– Jocelin! Liberta-a! – comandou Raine, enquanto desferia o machado de
dois gumes no ombro de um cavaleiro blindado, fazendo o homem ajoelhar.
Uma mulher saltou sobre o cavaleiro caído, arrancou-lhe o capacete,
enquanto um homem só com um olho atingiu com uma maça a cabeça do
cavaleiro atordoado.
O fumo era tão espesso que Alyx já não conseguia ver e a sua garganta
arranhava por causa da tosse. Mais lágrimas correram enquanto Joss cortava
as cordas em torno dos pulsos e lhe agarrava a mão, puxando-a para longe
do mato em chamas.
– Vem comigo – disse ele.
Ela tinha parado, a olhar para trás, para a plataforma. Raine lutava com
dois homens ao mesmo tempo, brandindo poderosamente contra eles uma
maça de picos de aço, desviando-se, movendo-se lenta mas graciosamente
dentro da pesada armadura. Atrás, o brilho da fogueira acesa refletia na
armadura dos homens, transformando-se num vermelho assustador e
ensanguentado.
– Alyx! – gritou-lhe Jocelin. – Raine ordenou-me que te levasse para um
sítio. Ele já está suficientemente zangado com os dois. Por uma vez,
obedece-lhe.
– Não o posso deixar – tentou ela dizer, mas a sua garganta ferida e
entupida fez com que emitisse apenas um ruído semelhante a um coaxar.
Joss deu-lhe um puxão forte e saíram os dois a correr. Passado muito
tempo, ela viu cavalos a aproximarem-se deles.
– Ele está atrasado! – gritou Joss, ofegante da corrida. – Vá lá, Alyx!
Pelo menos, a corrida mantivera a sua mente afastada do perigo que
Raine corria. Carregar o peso extra do seu filho por nascer fazia-a sentir-se
estranha e ela aproveitava cada bocadinho de ar.
Quando chegaram aos cavalos, Jocelin montou e puxou-a para cima atrás
dele e, para seu desgosto, afastaram-se do local onde Raine e os outros
lutavam. Alyx tentou protestar, mas, mais uma vez, a sua voz falhou-lhe. O
seu silêncio era tão pouco característico que Joss virou-se para olhar para
ela e o seu sorriso demonstrou que compreendia a sua angústia.
Cavalgaram velozmente durante duas horas e, quando finalmente
pararam, tinham chegado a um mosteiro. Alyx, exausta do medo dos
últimos dias, mal conseguia aguentar-se de pé quando Joss a ajudou a
descer.
– Ficaste mesmo sem voz? – perguntou Joss, meio divertido, meio
solidário.
Ela tentou falar novamente, mas só conseguiu emitir um grasnado que lhe
magoava a garganta.
– Talvez seja melhor assim. Raine está suficientemente zangado para nos
arrancar a língua a ambos. E, de resto, estás bem? Não te fizeram mal
enquanto estiveste em cativeiro?
Alyx abanou a cabeça.
Antes que Joss pudesse voltar a falar, um monge de tonsura e túnica
castanha abriu a pesada porta de madeira.
– Não querem entrar, meus filhos? Estamos prontos para vos receber.
Alyx tocou no braço de Jocelin e franziu o sobrolho, intrigada. O que
quisera o monge dizer com «prontos»?
– Entra. Já vais ver – disse Joss, sorrindo.
Para lá do muro, havia um pátio grande e encantador, verde e sombrio à
luz da madrugada de agosto. Havia portas em três lados do pátio, com um
espesso muro de pedra atrás delas.
– Temos algumas celas para visitantes femininas – explicou o monge,
olhando para a bata branca grosseira coberta de fuligem de Alyx. – Lorde
Raine pediu-nos que tratássemos do vosso conforto.
Momentos depois, Alyx estava numa sala espaçosa, fora do pátio, com
uma caneca de leitelho espesso para beber. Ainda ia a meio da sua bebida
quando o som do aço a tinir entrou pela porta.
– Alyxandria! – ouviu-se um grito que só podia ser de Raine.
Desabituada, Alyx abriu a boca para lhe responder da mesma maneira,
mas só conseguiu emitir um doloroso ganido. Com a mão na garganta, ela
abriu a porta.
Raine rodopiou para olhar para ela e, por um momento, os seus olhos
fixaram-se. Ele tinha olheiras e o cabelo estava molhado de suor e colado à
cabeça em caracóis pretos. As amolgadelas na sua armadura eram
numerosas. Mas o que a assustava era a fúria nos seus olhos.
– Sai cá para fora – rosnou ele num tom que não deixou margem para a
desobediência.
Quando ela se apresentou diante dele, ele agarrou-lhe os ombros, olhou
fixamente para o seu estômago e, depois, olhou-a de novo nos olhos.
– Devia espancar-te a sério por isto – disse ele.
Alyx tentou falar, mas os ferimentos da sua garganta fizeram-lhe vir as
lágrimas aos olhos.
Ele pareceu intrigado por um momento; depois, surgiu-lhe uma covinha
na bochecha.
– O fumo tirou-te a voz?
Ela assentiu com a cabeça.
– Ótimo! Essa é a melhor notícia que ouvi em meses. Quando isto tudo
acabar, tenho algumas coisas para te dizer e, por uma vez, vais ouvir. – Com
isso, agarrou-lhe o ombro e empurrou-a para um pequeno portão na parede.
No exterior, havia uma porta alta e profundamente encastrada que,
obviamente, pertencia a uma capela. Sem esperar que ela entrasse sozinha,
Raine abriu a porta e empurrou-a para dentro. Diante do altar, estava Jocelin
e um homem alto e magro que Alyx nunca tinha visto antes.
– De armadura? – perguntou o estranho, olhando curiosamente para Alyx.
– Se eu demorasse a mudar, tenho a certeza de que ela me escaparia entre
os dedos outra vez. Tens o anel, Gavin?
Os olhos de Alyx arregalaram-se ao ouvir o nome. Então, este era o irmão
mais velho de Raine, o homem a quem ela tinha escrito e suplicado para a
ajudar a controlar a raiva de Raine contra Roger Chatworth. Ao olhar para
Gavin, pensando que ele não era nada parecido com Raine fisicamente e
que este era muito mais bonito, mal se apercebeu do padre defronte deles, a
falar.
– Presta atenção, Alyx – ordenou Raine e Gavin tossiu para disfarçar uma
gargalhada.
Consternada, Alyx olhou para os homens que a rodeavam. Os olhos de
Jocelin dançavam com riso, Raine ardia de raiva mal controlada e Gavin
parecia estar divertidamente tolerante a tudo. O padre esperava
pacientemente por algo dela.
– Alyx! – admoestou Raine. – Sei que não consegues falar, mas podias
pelo menos acenar com a cabeça… a não ser, claro, que prefiras não casar
comigo. Talvez preferisses ter Jocelin... outra vez?
– Casar? – questionou ela.
– Pelo amor de Deus, Raine! Desculpe, padre – disse Gavin. – Tem
piedade dela. Passou por uma experiência traumatizante. Num minuto,
estava prestes a ser queimada na fogueira e, no seguinte, está a casar-se.
Precisa de um momento para se adaptar.
– E desde quando é que sabes tanto sobre as mulheres? – perguntou Raine
de forma hostil. – Largaste a Judith à porta poucos minutos depois de casar
com ela, e, se eu não tivesse partido a perna, ela teria ficado sozinha.
– Se não tivesses lá estado, ela poderia ter vindo ter comigo mais cedo.
Acontece que…
– Silêncio! – gritou Jocelin e, depois, recuou quando os dois irmãos
Montgomery viraram a sua ira para ele. Ele respirou fundo. – Alyx estava a
olhar para Lorde Gavin e não tenho a certeza se ela percebeu que estava a
casar com Lorde Raine. Talvez, se lhe fosse explicado, ela respondesse
corretamente às perguntas, mesmo sem voz.
Finalmente, percebendo o que se passava e com a sua habitual subtileza
elegante, Alyx arregalou os olhos e ficou de boca aberta.
– Será isso aversão à ideia? – riu-se Gavin.
Raine desviou o olhar de Alyx, obviamente sem ter a certeza do que
significava a sua expressão.
– Ela carrega o meu filho. Vai casar comigo – disse ele, sem rodeios.
Alyx não conseguia falar, mas podia sibilar-lhe por entre os dentes, e
como Raine ainda não olhava para ela, pensou noutros meios de chamar a
sua atenção. Ele não a pedira em casamento, não lhe permitira o doce prazer
de se lançar a ele e dizer-lhe que o amava, mas, em vez disso, ficara
amuado e zangado e anunciara que iria casar com ela.
– Queres que te empreste a minha espada? – perguntou Gavin, entre
gargalhadas que mal o deixavam falar. – Oh, Raine. – Bateu no ombro do
seu irmão, fazendo a armadura tilintar, mas Raine não se mexeu. – Espero
que ela te faça feliz. Judith vai gostar de ter uma cunhada que lança assim
olhares enfurecidos ao seu marido. Vai fazê-la sentir-se menos sozinha no
mundo.
Raine não se deu ao trabalho de olhar para Gavin e Alyx sentiu que havia
uma velha discussão pelo meio. Nunca na sua vida ela tinha desejado mais
o poder da sua voz do que neste momento. Ela faria Raine olhar para ela se
conseguisse falar.
– Minha senhora – disse o padre, e Alyx demorou algum tempo a
compreender que ele falava para ela. – Não cabe à igreja encorajar
casamentos indesejados. É seu desejo casar com Lorde Raine?
Alyx olhou para o perfil de Raine, furiosa por ele não querer olhar para
ela. Com dois passos, plantou-se à sua frente, mas os olhos dele
concentraram-se algures por cima da cabeça dela. Lentamente, ela pegou-
lhe na mão, segurando-a na dela. A sua mão estava cortada em vários
pontos, ensanguentada, ferida, e quando Alyx olhou para ela, sabia que ele
se tinha ferido para a salvar. Levou-a aos lábios e beijou-lhe a palma da
mão e, quando olhou para cima, os olhos dele estavam fixos nela. Por um
momento, pareceram amolecer.
– Ela vai casar comigo – disse ele, olhando de volta para o padre.
Alyx quis amaldiçoá-lo pela sua autoconfiança e por se recusar a suavizar
a sua raiva para com ela. Em silêncio, voltou para o lado dele, o casamento
foi concluído e um anel de ouro foi-lhe enfiado no dedo.
Raine não deu tempo a ninguém para a felicitar.
– Venha, Lady Alyx – disse ele, com os dedos a apertar-lhe o antebraço. –
Temos muito que discutir.
– Deixa-a em paz, Raine – disse Gavin. – Não vês que está cansada? E,
além disso, este é o dia do seu casamento. Ralha com ela noutra altura.
Raine nem sequer se deu ao trabalho de olhar para o irmão enquanto
conduzia Alyx pela capela, de volta ao pátio e para o quarto dela. No
momento em que a porta se fechou, Raine encostou-se a ela.
– Como foste capaz, Alyx? – sussurrou ele. – Como pudeste dizer que
gostavas de mim e depois fazer-me passar pelo inferno destes últimos
meses?
Era muito frustrante não poder falar. Procurou uma pena e papel, mas
lembrou-se que Raine não sabia ler.
– Imaginas como têm sido estes últimos meses? – E atirou o seu capacete
para cima da cama. – Durante anos, procurei uma mulher que pudesse amar.
Uma mulher com coragem e honra. Uma mulher que não tivesse medo de
mim ou andasse atrás de dinheiro ou terras. Uma mulher que me fizesse
pensar.
Começou a desapertar as tiras de couro que mantinham a sua armadura
fixa, atirando elemento após elemento para um monte em cima da cama.
– Primeiro, quase que me enlouqueceste com aquelas meias-calças justas
a sacudirem-se à minha frente e a olhar para mim de olhos arregalados tão
cheios de fome que me assustaste.
Com um movimento, empurrou a armadura toda para o lado e sentou-se
na beira da cama, começando a tirar as proteções das pernas. Alyx
ajoelhou-se diante dele e ajudou-o. Raine inclinou-se para trás, apoiando-se
nos cotovelos, nunca parando com o seu sermão.
– Quando descobri que eras uma mulher, tive febre e não tinha a certeza
se estava a sonhar, mas, nessa noite, tive a maior alegria de sempre. Não
havia qualquer timidez em ti, qualquer recuo, apenas exuberância, prazer
dado, prazer recebido. Mais tarde, fiquei furioso contigo por me teres
pregado uma partida tão feia, mas perdoei-te.
Ele disse isto como se fosse a pessoa mais magnânima à face da Terra,
ignorando o olhar de repugnância de Alyx quando levantou a perna para
que ela desapertasse a bainha da outra perna.
Uma pancada na porta fê-lo parar. Vários criados, melhor vestidos do que
Alyx alguma vez tinha sido, entraram na sala com uma grande banheira de
carvalho e vários baldes de água quente a largar vapor.
– Pousem-na ali – disse Raine, distraidamente.
De pé, Alyx assistiu ao cortejo com descrença. Uma banheira cheia de
água quente, trazida por criados e colocada diante deles como se fossem da
realeza. Nunca na sua vida tinha tomado um banho quente completo. Em
Moreton, tomava banho com uma bacia e, na floresta, havia o riacho
gelado.
– O que se passa, Alyx? – perguntou Raine quando ficaram novamente
sozinhos. – Parece que viste um fantasma. – Silenciosamente, ela apontou
para a banheira a largar vapor.
– Queres tomar banho primeiro? Vai lá.
Cautelosamente, Alyx ajoelhou-se junto à banheira, colocou as mãos na
água e sorriu para Raine quando ele começou a retirar o estofo de couro que
usava debaixo da sua armadura.
– Não tentes distrair-me – disse ele com demasiada doçura. – Ainda estou
a pensar em encher o teu traseiro de palmadas. Sabes como me senti depois
de te ter encontrado com Jocelin?
Ela desviou o olhar dele, lembrando-se da dor nos seus olhos naquela
noite.
– Levei anos a encontrar-te e, depois, teres-me dito que a tua… a tua
música significava mais do que eu. Fecha a boca! Disseste isso mesmo.
Sabes, Alyx, gosto bastante que não sejas capaz de falar. O meu irmão não
queria acreditar que uma coisinha como tu pudesse superar cinquenta
homens adultos com a sua voz. Quis apostar com ele, mas recusou.
– Alyx – advertiu ele –, não fiques tão ofendida. Não tens o direito de te
sentir ofendida. Não! Fui eu que passei pelo inferno nestes últimos meses.
Nunca soube onde estavas, nem com quantos homens dormias. – Nesta
altura, Alyx dirigiu-lhe um olhar negro. – Foste tu quem me fez acreditar
que te faltava virtude… esta é a forma mais amável que encontrei para o
dizer. No acampamento, conduzi as pessoas quase à loucura. Alguns deles
revoltaram-se e recusaram-se a aproximar-se do campo de treino.
Raine franziu o sobrolho por um momento pela forma como ela apontava
para ele.
– Passei lá muito tempo, se é a isso que te referes. Estava a tentar
desgastar-me para não me lembrar de ti e de Joss.
Alyx estreitou os olhos na direção dele e usou as mãos para formar um
grande monte de curvas sobre o peito.
– Oh, Blanche – disse ele, compreendendo tão facilmente que Alyx lhe
assobiou. – Merecias que a tivesse convidado para a minha cama, mas
depois de ti não quis outra mulher. Maldita sejas, Alyx! Para de parecer tão
satisfeita contigo mesma. Senti-me miserável enquanto estiveste fora.
Ela apontou para si mesma e todo o seu amor se manifestou nos seus
olhos.
Ele olhou para longe, a sua voz estava rouca quando voltou a falar.
– Quase matei Joss quando ele veio ter comigo. Recusei-me a vê-lo e os
vigias não o deixaram passar, mas ele conhece demasiado bem os caminhos
da floresta. Uma noite, eu tinha bebido um pouco demais e, quando acordei
de manhã, Joss estava sentado num banco, junto à minha cama. Demorou
algum tempo antes que me decidisse a ouvi-lo.
Alyx percebeu a subtileza das suas palavras e revirou os olhos de forma
tão exagerada que Raine a ignorou deliberadamente.
– Posso dizer-te que não ajudou nada à minha dor de cabeça ouvir dizer
que Pagnell te tinha capturado, nem que esse homem repugnante tinha
planeado montar-me uma armadilha.
Alyx, sentada ao pé da banheira, estendeu a mão e agarrou a mão de
Raine. Ele estava agora apenas de tanga. E pensar que tinha arriscado a sua
vida por ela.
– Alyx – disse Raine suavemente, ajoelhando-se diante dela. – Não
percebeste ainda que te amo? Claro que viria por ti.
Ela tentou mostrar-lhe, com as suas mãos e expressões, como se
preocupava com o facto de Pagnell o poder ter magoado.
– O quê? – disse Raine, de pé. – Pensaste que eu não sabia da armadilha?
– E sentiu-se obviamente insultado. – Pensaste que um mosquito como
Pagnell podia manobrar um Montgomery até às suas garras?
Com um gesto rápido, ele arrancou a tanga e entrou na banheira.
– No dia em que um porco como ele… Alyx, não acreditaste realmente
que Pagnell…?
Ela lançou as mãos ao céu, curvando-se diante dele com uma humildade
fingida.
– Bem, talvez te deva perdoar. Não sabes como é o homem. Se calhar,
para vocês, todos os homens nobres são parecidos.
Agora era ela quem se sentia insultada. Por «vocês», ele referia-se às
pessoas da sua classe, servos que acreditavam em bruxas e na bondade do
Rei, que pensavam que os julgamentos eram honestos e justos e outras
palermices. Ela bateu com o punho na água, salpicando a cara de Raine.
Ele agarrou-lhe o pulso.
– Vá lá, para que foi isso? Acabei de te perdoar por me teres deixado,
salvei a tua pele da fogueira e casei contigo, e tu nem grata estás.
Oh, como ela desejava mesmo muito, muito poder falar. Dir-lhe-ia num
tom de voz que lhe perfuraria os ouvidos, que o tinha deixado para o manter
a salvo da ira do Rei e que esteve quase a ser queimada porque carregava o
seu filho. Quanto a casar com ela, ele tinha-o feito, sem dúvida, por causa
do seu estúpido sentido de honra.
– Não gosto do que estás a pensar – disse ele, puxando-a para mais perto
dele. – Gavin riu-se de mim quando eu disse que ficarias grata pelo que eu
tinha feito. Ele disse ainda que as mulheres nunca reagem como é suposto,
isto é, logicamente. O que é que eu fiz agora?
Ela juntou os punhos e ameaçou dar-lhe um murro no nariz.
– Alyx, estás realmente a testar a minha paciência. Não tens sequer um
pensamento gentil para mim? Passei por um par de dias horríveis. Tive de
escalar aquela parede da torre à noite, matar o guarda no telhado e usar a
armadura dele, e tudo muito silenciosamente para que o outro homem não
me ouvisse.
Enquanto ele lhe segurava os dois pulsos, ela pôde sentir-se a derreter.
Não importava que fosse culpa dele que quase tivesse sido queimada; ele
tinha arriscado muito para a salvar.
– Não estás nem um pouco contente comigo? – murmurou ele contra os
lábios dela. – Não estás nem um pouco alegre por estares casada comigo?
Enquanto Alyx sentia o seu corpo a dissolver-se, desaparecendo sob a sua
força de vontade, não se apercebeu dele a puxá-la para a banheira. Com um
grande espalhafato, ele puxou-a para o seu colo, com a água a escorrer
sobre os lados.
– Agora, já te tenho comigo – riu-se, enquanto ela tentava sentar-se. –
Agora, vou fazer-te pagar pela tua falta de gratidão. – E riu-se de novo
enquanto Alyx tentava protestar, emitindo apenas ruídos, mas quando ele
começou a beijá-la, ela esqueceu-se de falar.
Capítulo Quinze

Alyx LANÇOU OS braços à volta do pescoço de Raine e todos os


pensamentos de raiva desapareceram. Já há muito tempo que não o via e o
seu desejo por ele era esmagador. Avidamente, puxou-o para mais perto
dela, a sua boca agarrou-se à dele, a sua língua invadiu-lhe a boca,
procurando tanto dele quanto podia alcançar.
– Alyx – sussurrou-lhe Raine para o cabelo, e havia lágrimas na sua voz.
– Vi-te quando subi a parede, sentada sozinha naquela sala da torre, a chorar
suavemente, tão pequena e tão triste. Na altura, quis matar todos os guardas,
mas sabia que não podia contar com os homens da floresta para me ajudar.
Se os meus irmãos estivessem livres, eu teria tentado, mas não quis correr o
risco de te ferir.
A cabeça dela ergueu-se com a menção aos irmãos. Elizabeth!
– O que é, Alyx? O que é que se passa?
Ela tentou dizer a palavra «Elizabeth», mas ininteligivelmente. Após
várias tentativas, conseguiu dizer «Miles».
– Conheceste o meu irmão mais novo? Não, não podes ter conhecido. Ele
tem estado na ilha de Wight. Depois que Mary… morreu, Miles quase
enlouqueceu e Gavin persuadiu-o a ir visitar o tio Simon. Ele deixou a ilha
há algumas semanas.
Raine ficou intrigado com o vigoroso abanar da cabeça de Alyx. Miles,
continuava ela a pronunciar com os lábios.
– Aconteceu alguma coisa a Miles? Ele está em perigo?
Alyx acenou que sim e, antes de acenar outra vez, Raine saltou da
banheira, com Alyx debaixo do seu braço. Apressadamente, pousou-a,
enrolou-a numa manta e vestiu a sua tanga.
– Vamos procurar Gavin e poderás escrever o que tens a dizer.
O rosto de Alyx ficou vermelho no instante em que saíram do quarto.
Levava apenas uma camisa molhada por baixo da manta, enquanto Raine ia
praticamente nu, puxando-a através do mosteiro sagrado. Encontraram
Gavin nos estábulos.
– Ainda não estás pronto para cavalgar tão cedo, pois não, meu irmão? –
provocou ele. – Certamente que a tua noiva merece alguma atenção.
Raine ignorou a provocação.
– Alyx diz que Miles está em apuros. Ela vai escrever-te o que se passou.
O rosto de Gavin ficou imediatamente sério.
– Vamos ao estudo do monge.
Gavin liderou o caminho com passos tão largos que Alyx não teria sido
capaz de acompanhar se Raine não a tivesse agarrado pelo braço e puxado
atrás dele. Era bom que ele aproveitasse este tempo enquanto ela não tinha
voz, pensou Alyx.
O monge no estudo protestou contra a presença de uma mulher, mas os
homens ignoraram-no.
– Aqui tens! – exclamou Gavin, pondo-lhe à frente papel, pena e tinta.
Ela levou vários minutos a escrever a história de Pagnell a amarrar
Elizabeth Chatworth e o seu plano para a entregar a Miles. Raine e Gavin
mantiveram-se debruçados sobre o seu ombro até que as suas palmas das
mãos começaram a suar.
– Elizabeth Chatworth – disse Gavin –, pensava que ela ainda era uma
criança.
Alyx abanou a cabeça.
– Como é que ela é? – perguntou Raine, seriamente. A expressão de Alyx
foi o suficiente para os fazer entender.
– O Rei não vai gostar disto – disse Gavin. – Ele aplicou uma pesada
multa sobre as propriedades dos Chatworth e ordenou que Roger se
afastasse de todas as terras dos Montgomery.
– Terra! – gritou Raine. – É só isso que te interessa? Chatworth raptou
Bronwyn e matou Mary. O que é preciso mais para pensares nas pessoas em
vez de terras?
– Preocupo-me mais com os meus irmãos do que com qualquer terra. O
que acontecerá se Miles violar esta rapariga Chatworth? Vai parecer que
estamos a desobedecer ao Rei, e quem é que vai sofrer então? Tu! Ele nunca
te perdoará e terás de passar a tua vida naquela floresta com aquele exército
de degoladores. E como irá o Rei castigar Miles? Tornando-o um fora da lei
também? Estou preocupado por perder dois dos meus irmãos por causa das
jogadas sujas de Pagnell.
Raine ainda olhava irritado para o seu irmão, enquanto Alyx olhava para
Gavin com um renovado respeito.
– Já passaram alguns dias – disse Raine, finalmente. – Apostava a minha
vida em como essa rapariga já não é virgem, e aposto que Miles não violou
ninguém. Talvez, se soubesse quem ela é, ele a libertasse, e tudo o que
podemos fazer é rezar para que ela não fique grávida dele.
O bufar de Gavin revelou muito.
– Vou pegar em metade dos meus homens para partir agora e tentar
encontrar Miles. Talvez eu consiga meter-lhe algum juízo na cabeça. Talvez
a rapariga se tenha apaixonado por ele e não exija a sua cabeça.
Alyx agarrou o braço de Gavin e abanou vigorosamente a cabeça.
Elizabeth Chatworth nunca se iria apaixonar por um Montgomery em
menos de quinze dias.
– Uma diabinha, será? – perguntou Gavin; depois fez uma pausa e levou a
mão de Alyx aos lábios. – Raine vai levar-te para casa e vais conhecer a
minha Judith. Lamento que o teu casamento tenha sido feito tão à pressa.
Quando tudo isto estiver resolvido, organizaremos um torneio em tua honra.
Ainda a segurar a mão dela, olhou para trás para o seu irmão.
– Estarás a salvo no castelo Montgomery durante algum tempo. Leva-a
para lá e deixa-a descansar. Também ainda não conheces o meu filho. E
compra-lhe algumas roupas.
Alyx tinha a certeza de que Raine se iria ofender com o tom de Gavin,
mas Raine estava a sorrir.
– É bom voltar a ver-te, irmão – disse ele, suavemente, de braços abertos.
Os irmãos abraçaram-se vigorosamente durante um longo momento.
– Dá cumprimentos meus a Miles e tenta mantê-lo fora de problemas –
Raine sorriu. – E, quando ele regressar, poderá conhecer a minha mulher.
Com um sorriso rápido, Gavin deixou-os.
Raine voltou-se para Alyx. A manta que a cobria tinha-se aberto e a
túnica húmida colava-se a ela.
– Agora, se bem me lembro, estávamos no início de algo quando fomos
interrompidos pelos problemas do meu irmão mais novo.
Alyx afastou-se dele, gesticulando em redor da divisão onde se
encontravam.
Com uma gargalhada, Raine levantou-a em braços e carregou-a pelo
pátio, de volta para o seu quarto. Não se importando com o monte de
pedaços da armadura suja na cama, atirou-a para o meio da mesma e, com
um simples movimento, esticou-se em cima dela.
– Vou magoar a criança? – questionou ele, mordendo-lhe o lóbulo da
orelha. O abanar de cabeça dela foi tão vigoroso que ele deu uma risada
quente e sedutora enquanto a sua mão deslizava e lhe puxava a camisa de
linho. O tecido grosseiro, mal cosido, soltou-se do seu corpo rapidamente.
Alyx nunca tinha tido muito orgulho no seu corpo, desejando sempre
mais curvas, mas agora, inchada pela criança como estava, não queria que
ele a visse à luz do dia. As suas tentativas de se cobrir foram evitadas por
Raine.
Saindo de cima dela, ele beijou-lhe a barriga e acariciou-a.
– É o meu filho que te deforma, e eu amo-o tanto como à mãe.
– Filha? – conseguiu ela dizer, magoando a sua garganta ferida.
– Só me importa a tua segurança e, se Deus quiser, a vida da criança. Eu
adoraria ter uma filha. Contigo como mãe, e Bronwyn e Judith como tias,
deixar-lhe-ia de bom grado todas as minhas propriedades. Tenho a certeza
de que ela as vai gerir melhor do que eu.
Ela tentou falar de novo, mas ele não permitiu, começando a beijar-lhe o
pescoço outra vez. Quando percebeu que ele tinha tirado a tanga, sentiu a
sua pele contra a dela e esqueceu-se das suas preocupações sobre o seu
aspeto.
Ela não fazia ideia do quanto sentira a sua falta física, do quanto
precisava da carícia das suas mãos. Ele tocou-lhe o corpo todo, passando a
ponta dos dedos duros sobre a pele dela, dos dedos dos pés à cabeça,
fazendo-a sentir-se acarinhada, amada. Mesmo agora, quando ela sentia o
tamanho do seu desejo por ela, ele levou o seu tempo, amando-a e tocando-
a.
Alyx deitou-se de costas, de olhos fechados, com os seus braços
levemente sobre o pescoço de Raine, enquanto ele passava as mãos pelo seu
corpo. Quando lhe tocou no interior das coxas, ela abriu os olhos, encontrou
os dele com o seu profundo azul-escuro penetrante que lhe provocou
arrepios na coluna vertebral. O poder daquele homem, a sua força, o seu
tamanho, tudo controlado enquanto a acariciava e a excitava terrivelmente.
Ela pressionou-se contra o seu corpo e beijou-lhe a boca avidamente,
provocando-lhe um riso profundo, enquanto ele se virava de costas e a
puxava para cima de si. A armadura que os rodeava tinia e alguns
elementos caíram ao chão.
Alyx percorreu com os dentes o pescoço de Raine, com as suas mãos a
afundar-se na massa de músculos dos seus antebraços. Glorioso!, pensou
ela, um homem tão magnífico e esplêndido – e todo dela!
O riso que lhe saiu da garganta ferida não era bonito, mas a sua
intensidade áspera era sedutora. Ela pressionou o polegar pelas costelas de
Raine com tanta força que ele lhe empurrou o braço para longe enquanto
lhe procurava a boca. Mas Alyx aplicou o polegar dela no seu outro lado e
riu-se novamente quando ele se contorceu para longe dela.
– Sua diaba! – exclamou ele, agarrando-a pelos cabelos e puxando-lhe a
cabeça para trás enquanto lhe mordia o estômago.
Arfando, Alyx moveu os pés para a frente, tentando fugir-lhe. Raine
apanhou-lhe o pé esquerdo e começou a morder cada um dos dedos do pé.
A sensação que a percorreu fê-la parar todo o movimento.
Ela manteve-se em cima dele, esticada, com os pés no seu rosto e os dele
no dela. «Este jogo pode ser jogado por dois», pensou ela, enquanto
arranhava com os dentes a base macia dos dedos dos pés de Raine. Ficou
bastante satisfeita por o sentir saltar por baixo dela, e outro pedaço de
armadura caiu, com estrondo, no chão.
Os braços de Raine, mais compridos que os dela, deslizaram pelas suas
pernas, acariciando-as e apertando-as de forma tão provocadora que, após
um momento, ela não conseguiu pensar em mais nada a não ser nas mãos
dele no seu corpo.
Alyx começou a tremer, e a sua pele parecia tão quente como quando o
fogo lhe tinha lambido as costas.
Raine agarrou-lhe as ancas e, como se não pesasse nada, pegou nela e
encaixou-a profundamente na sua masculinidade com um impulso tão
preciso que Alyx soltou um guincho frenético.
– Isto é esgrima – riu-se Raine. – Sou muito habilidoso com a espada.
Alyx inclinou-se para a frente e com as suas coxas fortes imprimiu um
ritmo que deixou Raine demasiado ocupado para voltar a falar. Ficou
quieto, o seu rosto quase com uma máscara de dor enquanto aguentava,
com todos os seus sentidos entregues ao prazer que Alyx lhe estava a
proporcionar.
Quando já não conseguia aguentar mais, rolou-a para debaixo de si e,
com dois impulsos fortes, quase violentos, terminaram juntos, tremendo,
agarrando-se como se pudessem aproximar-se ainda mais.
Passado um bom bocado, Raine levantou a cabeça e dirigiu a Alyx um
sorriso que dizia mais do que todas as palavras do mundo. Com um
grunhido de satisfação, fê-la rebolar, puxando-a para perto dele, a pele
suada de ambos a colar-se. E, juntos, adormeceram.
*

A noite começava a cair quando acordaram e Raine fez um som horrível


ao puxar um joelho afiado e duro de debaixo do fundo das suas costas.
– Como pode algo tão pequeno ser tão perigoso? – perguntou ele a uma
Alyx meia adormecida.
Dando-lhe uma palmada firme nas nádegas, afastou-se dela para se
levantar e espreguiçar-se.
– Vamos, levanta-te – ordenou ele. – Já ficámos aqui demasiado tempo.
Assim, vamos levar dois dias a chegar a casa.
Alyx não ficou agradada com o facto de ter de se mexer para montar a
cavalo e a sua expressão demonstrava-o. Ela preferia de longe ficar ali – na
cama – com Raine, por mais alguns dias.
– Alyx, não me tentes. Levanta-te já ou regressarei à floresta e enviarei
alguns dos homens de Gavin para te escoltarem até às terras dos
Montgomery.
Isso fê-la saltar na cama. Em segundos, estava fora da cama e tinha
enfiado a túnica branca rasgada por cima da cabeça.
– Coisa reles – comentou Raine, tocando o tecido. – Judith vai ajudar-te a
encontrar vestidos adequados a uma Montgomery. Será bom ver-te vestida
como deve ser, embora deva dizer que gosto do teu cabelo dessa maneira. –
E esfregou-lhe os caracóis como se ainda pensasse nela como seu
escudeiro.
Não houve tempo para mais nada antes de a empurrar porta fora e de a
lançar para a sela de um cavalo. À exceção dos mensageiros, Alyx nunca
tinha visto cavaleiros como os que acompanhavam o seu senhor. Raine só
teve de dar uma pequena ordem de comando e os homens de Gavin
saltaram para obedecer. Rapidamente, e de forma eficiente, retiraram a
armadura que Raine tinha tirado ao homem de Pagnell do quarto, enquanto
Raine se vestia com as lãs verde-escuras que usara na floresta. Um dos
cavaleiros ficou com um tal olhar de espanto que Raine se riu.
– E também fazem comichão – disse ele. – Pronta, Alyx?
Antes que ela pudesse responder, estavam de partida, galopando a um
ritmo a que ela deveria estar habituada. Não ficou surpreendida por Raine
cavalgar durante metade da noite. Mas o que a surpreendeu foi a forma
como os homens de Gavin a trataram. Perguntaram-lhe pela sua saúde, se
estava cansada. Quando pararam para comer e descansar os cavalos, alguns
dos homens presentearam-na com flores. Um homem estendeu o seu manto
para que ela se sentasse. Ninguém parecia notar que o manto revestido de
peles era de muito melhor qualidade do que a saca que ela usava.
Com surpresa e descrença nos olhos, olhou para Raine, mas viu que ele
nem reparava na forma como os homens a tratavam. Um cavaleiro pediu
permissão para tocar alaúde para ela e, enquanto três homens cantavam
juntos, Raine ergueu-lhe uma sobrancelha, pois os homens não eram muito
bons executantes. Alyx desviou o olhar, porque, para ela, os cavaleiros, tão
amáveis e tão educados, eram perfeitos.
Quando Raine a ergueu de novo para a sela do seu cavalo, disse:
– Eles estão a praticar o cavalheirismo contigo. Espero que consigas
aguentá-los.
Aguentá-los!, pensou ela, quando começaram a cavalgar. Sentia-se como
se tivesse acabado de ter um vislumbre do paraíso e, de facto, conseguia
aguentar.
À noite, ficaram numa estalagem e Alyx ficou envergonhada pela forma
como estava vestida. Não havia motivo para isso. O estalajadeiro olhou para
Raine e para os seus vinte homens, com os seus ricos verdes e dourados e
praticamente estendeu-se no chão para lhe servir de tapete. Comida como
Alyx nunca tinha visto antes foi posta diante deles em tão grande
quantidade que a fez engasgar-se.
– Achas que eles podem sentar-se contigo? – perguntou Raine.
Ela demorou um momento a perceber que ele estava a pedir permissão
para que aqueles adoráveis homens se sentassem na mesma longa mesa de
carvalho com ela. Com um grande sorriso, ela gesticulou para eles e para as
cadeiras.
Os modos à mesa dos homens eram tão educados que Alyx teve de
redobrar a cautela em relação aos seus próprios modos. Durante toda a
refeição foram-lhe oferecendo bocadinhos de carne e fruta. Um homem
descascou uma maçã, colocou uma fatia num prato e perguntou se ela a
aceitaria.
Manifestaram solidariedade pelo facto de ela ter perdido a voz, o que fez
Raine rir e dizer-lhes que estavam a perder mais do que imaginavam.
Formalmente, pediram a Lorde Raine que lhes explicasse porquê. Ele
respondeu que não iriam acreditar no que ele contasse, o que fez Alyx corar.
No seu quarto havia uma cama grande e macia, limpa e cintilante, e Alyx
aconchegou-se imediatamente debaixo da coberta leve. Em segundos, Raine
juntou-se a ela, puxando-a para si, as suas mãos acariciando-lhe a barriga,
sorrindo quando o bebé se mexeu.
– Forte – murmurou ele, quase a dormir. – Uma criança boa e forte.
De manhã, o estalajadeiro bateu à porta e entregou-lhes pão fresco e
vinho quente, juntamente com vinte rosas vermelhas dos cavaleiros de
Gavin.
– Isto é obra de Judith – comentou Raine, vestindo-se. – Estão todos meio
apaixonados por ela, e parece que conquistaste o coração deles também.
Alyx sacudiu a cabeça e indicou que só se preocupavam com ela por
causa da sua relação com ele.
Ele beijou-lhe o nariz.
– Talvez todos os homens se apaixonem por mulheres que não conseguem
falar.
Alyx agarrou numa almofada e atirou-lha, acertando-lhe na parte de trás
da cabeça.
– Isso é maneira de uma senhora se comportar? – provocou ele.
Apesar do seu feitio despreocupado, Alyx preocupou-se com estas
palavras de Raine durante todo o dia. Não era uma senhora e não sabia
como se devia comportar. Como poderia ela encontrar-se com esse modelo
de virtude, Judith Montgomery, vestida com uma saca sem forma, queimada
e cheia de fuligem?
– Alyx, o que é que se passa contigo? Isso que vejo são lágrimas? –
perguntou Raine ao seu lado.
Ela tentou sorrir e mostrar-lhe que havia algo no seu olho e que estaria
bem num instante. Depois, tentou controlar-se, mas, quando chegaram ao
castelo Montgomery, estava pronta para virar costas e fugir.
A enorme fortaleza de pedra, com séculos, era ainda mais formidável do
que ela tinha imaginado. À medida que se aproximavam dela, as antigas
paredes de pedra pareciam querer esmagá-la.
Raine conduziu-os até à entrada das traseiras, para anunciar a sua chegada
ao menor número possível de pessoas. O caminho para o portão era ladeado
de altos muros de pedra e, enquanto cavalgavam, homens saudavam
alegremente Raine. Ele parecia sentir-se tão em casa aqui que o homem que
ela conhecia começou a parecer distante. Os homens que lhe obedeciam
sem questionar, todo o vasto alcance daquele lugar, estavam mais próximos
do homem real do que o acampamento artificial de foras da lei.
Cavalgaram para um pátio e, para espanto de Alyx, havia casas, com um
aspeto confortável, com muitas janelas, dentro das muralhas. Nos poucos
castelos onde ela e Jocelin tinham cantado, as pessoas ainda viviam nas
torres, que eram tão desconfortáveis que a maioria dos castelos tinha sido
abandonada.
Mal tinham acabado de parar quando, de um pequeno jardim murado,
saiu a correr uma mulher de uma beleza de cortar a respiração, com um
vestido de cetim vermelho brilhante.
– Raine – chamou ela, correndo, de braços abertos.
«Ela não sabe cantar», pensou Alyx defensivamente, vendo o marido
saltar do cavalo e correr em direção à mulher.
– Judith – disse ele, agarrando-a, rodando-a, com os pés no ar, beijando-
lhe a boca, na opinião de Alyx, de forma demasiado exuberante.
– Minha senhora – ouviu-se uma voz à esquerda de Alyx. – Posso ajudar-
vos a descer?
Os seus olhos nunca se desviaram de Raine e da requintada Judith e
deixou-se desmontar.
– Onde está ela, Raine? – dizia Judith. – A tua mensagem era tão confusa
que mal a conseguimos entender. Devemos ter lido mal porque parecia que
o mensageiro dizia que a tua mulher estava prestes a ser queimada na
fogueira.
– É verdade, salvei-a no último momento. – A sua voz denotava um
grande orgulho. Com um braço à volta de Judith, levou-a até Alyx, a quem
abraçou brevemente. – Esta é Alyx e esta visão é a esposa do meu indigno
irmão.
Alyx assentiu uma vez com a cabeça, olhando abertamente para a sua
cunhada. Nunca tinha visto ninguém com aquele aspeto: olhos dourados,
cabelo castanho-avermelhado mal visível sob um capuz bordado com
pérolas, uma pequena figura voluptuosa.
Judith afastou-se de Raine.
– Devem estar cansados. Vem comigo e vou mandar que tragam um
banho para ela. – Pegou na mão de Alyx e começou a dirigir-se para a casa.
– Oh, Judith – chamou Raine por trás delas. – Alyx perdeu a voz por
causa do fumo.
Ao seu lado, Alyx sentiu Judith retesar-se e percebeu que era porque
Raine se tinha atrevido a casar com alguém como ela. Rapidamente,
pestanejou para tentar evitar as lágrimas.
– Estás cansada – disse Judith, simpaticamente, mas notava-se alguma
apreensão na voz.
Alyx não teve tempo para admirar a casa enquanto Judith a conduzia
pelas escadas acima, para um grande salão apainelado. A casa de Alyx, em
Moreton, podia encaixar-se no salão pelo menos quatro vezes.
Passadas pesadas nas escadas fizeram Judith virar-se. Raine parou pouco
depois da entrada da porta, a sorrir.
– É bonita, não é? – disse ele carinhosamente, olhando para Alyx. – Que
pena a voz dela ter-se sumido, mas tenho a certeza de que é apenas
temporário.
– Não graças a ti – disse Judith, indicando a Alyx uma cadeira.
– O que é que isso quer dizer? – perguntou Raine, desconcertado. – Eu
salvei-a.
Judith rodopiou para ele.
– De quê? Da armadilha de Pagnell? Ela foi usada como isco para te
atrair até ele. Raine – ela acalmou. – Acho que devias sair agora. Acho que
a tua doce mulher não quer ouvir o que tenho para te dizer.
– Doce! – bufou Raine. – E que razão tens tu para estares zangada
comigo? – Sentia-se ofendido.
– Estás a testar a minha paciência, Raine – advertiu ela. – Alyx, estás com
fome?
– Olha, Judith, se tens algo a dizer, di-lo.
– Muito bem, então vamos sair deste salão. A tua mulher precisa de
descanso.
Alyx começava a ter uma ideia do que Judith tinha a dizer. Agarrou na
mão da cunhada e, com os seus olhos, encorajou-a a continuar. Havia tantas
coisas que ela gostaria de dizer a Raine.
Judith pestanejou de compreensão e voltou a virar-se para enfrentar
Raine.
– Muito bem, vou dizer-te o que tenho a dizer. Vocês, homens, todos
vocês, os quatro irmãos, acham normal arrastar uma mulher por toda a
Inglaterra sem pensar na sua segurança ou conforto.
O queixo de Raine empinou-se.
– Ficámos numa estalagem muito confortável ontem à noite.
– Vocês o quê?! Levaste a tua mulher para um sítio público vestida
assim? Como te atreves, Raine? Como te atreves a tratar qualquer mulher
assim?
– O que era suposto fazer, comprar-lhe roupa? Talvez devesse ter
cavalgado até Londres e pedir ao Rei um pouco de seda.
– Não tentes ganhar a minha simpatia por teres sido declarado traidor. Foi
a tua própria cabeça quente Montgomery que causou todos os teus
problemas.
Aqui, Alyx aplaudiu.
Judith lançou-lhe um meio-sorriso compreensivo, enquanto Raine ficou
furioso.
– Estou a ver que não sou preciso aqui – disse Raine.
– Não vais fugir disto – afiançou Judith. – Quero que vás a correr lá para
baixo, que tires Joan do buraco, ou da cama, onde quer que ela esteja, e diz-
lhe que mande um banho para aqui. Oh, Raine, como pudeste fazer isto a
esta pobre criança? A mãe do teu bebé? Passaram dias desde a fogueira e
ela ainda está coberta de fuligem, e como deves ter cavalgado para chegares
aqui tão depressa! Agora, vai-te limpar e veste-te como deve ser.
Com o maxilar ainda saliente e recusando-se a falar, Raine deixou a sala,
batendo a porta atrás dele.
Com um suspiro, Judith olhou para trás para Alyx.
– Tens de te defender ou os homens vão aproveitar-se. Estás bem? Raine
não te fez mal com as pressas dele, pois não?
Alyx limitou-se a abanar a cabeça, olhando para Judith com admiração e
alguns traços iniciais de amor.
– Ainda bem que nós as três somos todas robustas e fortes, senão já
estaríamos mortas por esta altura.
Alyx ergueu três dedos, franzindo o sobrolho em jeito de pergunta.
– Bronwyn, a mulher de Stephen. Vais ter de a conhecer. Ela é
encantadora, absolutamente encantadora, mas Stephen arrasta-a para todo o
lado, faz com que durma no chão, enrolada num cobertor de lã. É
simplesmente horrível.
Uma pancada na porta interrompeu Judith e, segundos depois, os criados
chegaram com uma banheira e baldes de água quente.
– Devias mandar Raine fazer as coisas mais vezes – disse Judith. – É
realmente capaz de fazer as coisas rapidamente.
Alyx deu uma pequena risada e Judith sorriu também.
– Eles são bons homens. Eu não trocaria Gavin por ninguém, mas, por
vezes, é preciso levantar-lhe um pouco a voz. Um dia, superarás a
admiração que tens pelo teu marido e darás por ti a gritar-lhe de volta.
Podes não pensar assim agora, mas irás fazê-lo.
Alyx limitou-se a sorrir e deixou-se guiar para a banheira.
Capítulo Dezasseis

RAINE, ENFIADO ATÉ ao pescoço numa banheira de água quente, com os


olhos ainda a arder de raiva, olhou hostilmente para cima enquanto a porta
do seu quarto se abria. Gavin irrompeu por ali adentro.
– Miles levou a rapariga Chatworth para a Escócia e, pelo que pude
perceber, teve de a arrastar para lá enquanto ela o amaldiçoava. Raios o
partam! – exclamou ele, apaixonadamente. – Porque é que tenho tantos
problemas com os meus irmãos mais novos? Só o Stephen...
– É melhor parares – advertiu Raine. – Estou com vontade de espetar uma
espada na barriga de alguém.
– E o que aconteceu agora? – perguntou Gavin, cansado, sentado em
frente a Raine. – Tenho mais problemas do que preciso. A tua mulher disse-
te alguma coisa menos amável?
– Não foi a minha mulher. – E parou. – O que planeias fazer em relação a
Miles? Achas que ele a vai levar ao Stephen?
– Só posso esperar que sim. Sir Guy está com ele, por isso talvez lhe
consiga incutir algum juízo na cabeça.
– Tens alguma explicação para Miles dever ficar com a rapariga? Para
além do seu próprio prazer, claro? Não consigo imaginar o nosso irmão
mais novo a forçar uma mulher a fazer nada, nem consigo imaginar uma
que o rejeite. Nunca o vi ter qualquer problema com as mulheres.
– Um dos homens de Miles partiu o braço logo após Lady Elizabeth ter
sido entregue e, por isso, ficou para trás quando Miles foi para a Escócia.
Encontrei-o na estrada.
– E quais foram as más notícias dele? Não podiam ser tão más como o teu
aspeto.
– Havia quatro homens na tenda de Miles na altura. O homem de Pagnell
foi autorizado a entrar, todos os homens lhe apontaram as espadas. Ele
carregava um longo tapete nos braços. Fez uma pausa mesmo à entrada,
atirou-a para o chão, deu-lhe um empurrão com o pé e desenrolou-o.
– E então? – perguntou Raine.
– Desenrolou-o aos pés de Miles, descobrindo Elizabeth Chatworth
vestida apenas com longos centímetros de cabelo louro.
– E o que fez o nosso irmãozinho? – perguntou Raine, dividido entre rir e
rugir com a imagem que tinha imaginado.
– Pelo que descobri, todos os homens ficaram de pé e olharam,
paralisados, até que Lady Elizabeth saltou, pegou num pano de uma
enxerga e num machado que estava a um canto, e perseguiu Miles.
– Ele ficou ferido?
– Conseguiu esquivar-se aos golpes dela e ordenou aos outros homens da
tenda que a agarrassem. Quando a senhora começou a praguejar pior do que
alguém tinha ouvido antes, Sir Guy levou os homens da tenda para lá da
distância de audição.
– E sem dúvida que ronronava na manhã seguinte – comentou Raine,
sorrindo. – O nosso irmãozinho tem jeito para as mulheres.
– Não sei o que aconteceu depois disso. Uma hora mais tarde, o homem
com quem falei partiu o braço e foi mandado de volta para a casa de Miles.
– Então, como soubeste que eles foram para a Escócia? – perguntou
Raine.
– Fui ao acampamento de Miles e, como não estava lá ninguém, perguntei
a alguns dos comerciantes da zona. Miles e os seus homens partiram há
mais de uma semana e várias pessoas ouviram-nos dizer que iam para a
Escócia.
– Nenhuma pista sobre o porquê disso?
– Quem pode adivinhar o que se passa na cabeça de Miles? Eu tenho a
certeza de que ele não faria mal à rapariga, mas receio que a prenda para
castigar Chatworth.
– Miles lutaria contra um homem, muitos homens, mas não descarregaria
os seus ressentimentos numa mulher. Esse é o jogo de Chatworth – disse
Raine, de uma forma sombria. – Tenho a certeza de que ele tinha uma razão
para a levar de Inglaterra. O que planeará fazer agora?
Gavin ficou calado por um momento.
– Vou deixá-lo a Stephen e ver o que ele pode fazer com Miles. E
Bronwyn tem uma cabeça equilibrada. Talvez possa fazer algo com Miles.
Raine levantou-se e ficou de pé na banheira.
– Duvido que alguém possa incutir-lhe juízo no que diz respeito às
mulheres. Se a mulher levou mais de dez minutos para se apaixonar por ele,
seria a primeira vez que tal coisa acontecia. Talvez Miles a tenha
considerado como um desafio.
Gavin bufou.
– Sejam quais forem as suas razões, ele está a brincar com a ira do Rei. O
rei Henrique mudou desde que o seu filho mais velho morreu.
Secando-se, Raine saiu da banheira e deu um pontapé nas roupas
amontoadas aos seus pés.
– Será bom não as usar por um bocado.
– Quanto tempo achas que podes ficar?
– Três, quatro dias, no máximo. Preciso de voltar para o acampamento.
– Os teus fora da lei são assim tão importantes?
Raine pensou por um momento.
– Nem todos são criminosos e, talvez, se tivesses vivido a vida deles,
pudesses ter ideias diferentes sobre o certo e o errado.
– Roubar é errado em qualquer circunstância – afirmou Gavin,
firmemente.
– Sentar-te-ias em silêncio e deixarias Judith e o vosso novo filho morrer
à fome? Se eles tivessem fome e passasse um homem a empurrar um
carrinho de pão, mantinhas os teus altos padrões morais e deixava-lo
seguir?
– Não quero discutir contigo. Alyx sabe que planeias regressar?
– Não, ainda não. Não tenho a certeza se lhe digo ou se simplesmente me
esgueiro daqui. Se não o fizer, estou certo de que vai tentar ir comigo.
Quero-a aqui contigo e com Judith. Quero que viva como nunca viveu
antes.
Com um gesto, pegou nas suas roupas sujas, atirou-as para um canto e
alcançou o roupão de veludo preto bordado a prata em cima da cama.
– O que é isto? – perguntou Gavin, mexendo-se para retirar algo do meio
da roupa suja de Raine. Pegou num cinto de ouro.
– É o cinto de Lyon da Alyx, como ela lhe chama, mas, pela minha vida,
não consigo ver nada parecido com leão nele. Um dos guardas do
julgamento tirou-lho e eu tive um trabalhão enorme para lho tirar a ele.
Franzindo o rosto, Gavin levou o cinto para junto da janela e estudou-o à
luz do Sol.
– Parece bastante antigo. Será?
– Acho que sim. Alyx diz que tem sido passado de mãe para filha na sua
família desde que alguém se lembra.
– Leões – murmurou Gavin. – Há algo de familiar neste cinto. Desce
comigo ao salão de inverno.
Quando Raine se vestiu, seguiu o irmão até à sala apainelada. Numa das
paredes estava pendurada uma tapeçaria antiga e desbotada. Estava lá há
séculos e era tão familiar a Raine que já nem reparava nela.
– O pai alguma vez te falou desta tapeçaria? – perguntou Gavin. Quando
Raine abanou a cabeça, Gavin continuou. – Foi tecida no tempo de Eduardo
I, e o tema era a celebração do maior cavaleiro do século, um homem a
quem chamavam o Leão Negro. Vês, aqui está ele em cima do cavalo, e
esta encantadora senhora era a sua esposa. Olha para a cintura dela.
Raine olhou, algo aborrecido com a récita de Gavin sobre a história da
família, mas não viu nada de especial. Sempre fora um homem preocupado
com o hoje e agora, e não com o que se passara há séculos atrás.
Gavin dirigiu ao irmão um olhar exasperado.
– Eu vi um desenho deste cinto – apontou para a tapeçaria –, há muito
tempo atrás. O nome da esposa do Leão Negro tinha algo a ver com um
leão e, como presente de casamento, o Leão deu-lhe um cinto de um leão
com a sua leoa.
– Não pensas que o cinto de Alyx possa ser esse. Teria de ter umas
centenas de anos de idade.
– Olha para a forma como esta coisa está desgastada – disse Gavin,
segurando o cinto de Alyx ao alto. – Os elos foram soldados com ferro e o
desenho está quase a desaparecer, mas pelo que consigo perceber do fecho,
podem ser leões.
– Como teria a Alyx conseguido o cinto?
Gavin não precisava de ser lembrado das origens da sua nova cunhada.
– O Leão Negro era um homem fabulosamente rico, mas tinha um filho e
oito filhas. Deu dotes enormes a todas as suas filhas, e à sua filha mais
velha o cinto do leão para que fosse passado à sua filha mais velha.
– Não pensas que Alyx... – começou Raine.
– O filho mais velho do Leão Negro chamava-se Montgomery, e é dele
que descende toda a nossa família. Não te lembras de o pai dizer que eras
como o Leão Negro? Nós os quatro éramos altos, magros e louros,
enquanto tu sempre foste mais baixo, mais robusto.
Raine lembrou-se de todas as provocações que tinha passado quando era
criança e, por vezes, perguntara-se se seria irmão de sangue da sua irmã e
dos três irmãos. Mas ele tinha doze anos quando o seu pai morreu, e havia
muitas coisas de que não se lembrava.
– O pai disse que eras como ele. – E apontou para o enorme homem de
cabelo preto em cima do garanhão empinado, na tapeçaria.
– E achas que este cinto que Alyx tem pode ter pertencido à mulher do
homem? – Raine tirou o cinto ao seu irmão. – Ela tem muita estima por ele,
nunca o perde de vista. Sabia que lhe seria tirado no julgamento. Não mo
disse, mas, ontem à noite, devia estar a sonhar e gritou algo sobre este
pedaço de ouro.
– Sabias que o Leão Negro casou com uma mulher de uma classe social
bem mais baixa do que a dele? Não seria bem da condição de Alyx, mas,
comparados com ele, os Montgomery são tão ricos como guardas de caça.
Raine esfregou o cinto gasto entre os dedos.
– É demasiado rebuscado para ser verdade. Mas, às vezes, sinto-me como
se conhecesse Alyx há mais tempo do que apenas há alguns meses. Já estive
com mulheres mais bonitas do que ela, e certamente com mulheres que me
trataram mais respeitosamente, mas, quando olhei pela primeira vez para
ela... – Parou e riu-se. – Quando a vi pela primeira vez, julguei que era um
rapaz e pensei que, se tivesse um filho, ele se pareceria com Alyx. Havia
algo nela... Não sei como explicar. Aconteceu o mesmo contigo e com
Judith?
– Não – disse Gavin, desviando o olhar. Ele detestava qualquer lembrança
de como tinha tratado Judith imediatamente após o casamento.
– Por falar na tua mulher – continuou Raine. – Ela desancou-me quando
cheguei.
Gavin riu-se.
– E que fizeste tu? Se bem me lembro, ela normalmente bajula-te
interminavelmente.
– Disse-me que eu estava a destratar a minha mulher ao trazê-la aqui.
– Por causa do Rei? – perguntou Gavin. – Discutimos o assunto e ela
concordou que ficarias a salvo durante alguns dias. Não demorará mais até
que alguém te reconheça e passe a palavra ao Rei.
– Não, não foi isso. – Raine estava verdadeiramente surpreendido. – Foi
algo sobre não lhe comprar vestidos suficientes. Talvez ela pense que ando
com vestidos na minha sela.
– Estou verdadeiramente contente por ter chegado a tempo de me
defender – disse Judith da porta, sorrindo. De imediato, foi ter com o
marido e beijou-o. – Estás a salvo? Está tudo bem?
– Tão bem quanto possível – disse ele, abraçando-a. – E que história é
essa que ouvi sobre o facto de teres desancado o meu irmão? Espero que
não o tenhas magoado. Ele não é tão forte como eu.
– Delicado – disse Judith, docemente. – Todos os teus irmãos são tão
delicados como as flores da primavera. – Ela sorriu para cima olhando para
Raine, ambos os homens dominando a sua figura franzina. – Eu só disse
que Raine não devia ter arrastado a sua mulher pelo país enquanto ela
carrega o filho dele, estando doente devido ao fumo da fogueira e todo o
tempo pior vestida do que a criada mais humilde.
Judith ia continuar, mas virou-se porque, na entrada da porta, estava
Alyx, mas uma Alyx que ninguém tinha visto antes. Vestia um vestido de
veludo roxo-escuro e profundo, com um decote baixo e quadrado e, ao
pescoço, trazia uma pesada corrente de prata com uma grande ametista roxa
no centro. A parte de trás da sua cabeça estava coberta com um simples
capuz de pano prateado bordado com flores púrpura. Os seus olhos
violáceos irradiavam brilho.
Raine dirigiu-se para ela, ergueu-lhe a mão e beijou-a.
– Estou assoberbado com tanta beleza – disse ele com sinceridade.
– Estás diferente – sussurrou ela.
– E já falas. Já consegues cantar?
– Não a apresses, Raine – disse Judith. – Dei-lhe mel e ervas, mas acho
que ela se cura muito mais depressa se não usar a voz. O jantar está pronto.
Alguém está com fome?
Alyx ficou contente por não poder falar, porque não acreditava que não
conseguiria fazê-lo. Raine sempre parecera muito mais do que as pessoas à
sua volta, mesmo quando se vestia com as suas roupas da floresta, mas
agora, no seu preto e prata, estava assombroso. Encaixava tão bem naquela
casa magnífica, e não via nada de anormal em ter tanta gente a curvar-se
perante ele.
Quando Raine a conduziu para as mesas dispostas no Grande Salão, ela
teve de se esforçar para evitar ficar boquiaberta. A refeição que tinha visto
na estalagem tinha-lhe parecido um banquete, mas nestas mesas havia
comida suficiente para uma aldeia inteira.
– Quem são estes homens? – sussurrou ela a Raine, ao seu lado. Havia
mais de cem pessoas a comer com eles.
Raine olhou de relance, observando as pessoas, como se da perspetiva
dela se tratasse.
– São os homens de Gavin, alguns dos meus, alguns dos de Stephen.
Aqueles homens são Montgomery, primos, penso eu. Terás de pedir a Gavin
a relação exata de parentesco. – Apontou para a ponta da mesa onde eles se
sentavam. – Alguns deles são serviçais do castelo. Podes perguntar a Judith.
Tenho a certeza de que ela sabe quem são todos.
– O teu também é assim tão grande? – gemeu ela.
– Não – sorriu ele. – As minhas propriedades são pequenas em
comparação com isto. Judith é que é rica. Ela trouxe grande riqueza para a
nossa família quando casou e tem de sustentar muitas pessoas. Está sempre
a comprar e a vender e a contabilizar os cereais nos celeiros.
– Serei eu? – perguntou Alyx, assustada.
Raine demorou algum tempo a compreendê-la.
– Queres dizer que vais ter de gerir as minhas propriedades? Não vejo
porque não. Sabes ler e escrever. Isso é mais do que eu posso fazer. – Ele
desviou o olhar enquanto um dos seus primos falava com ele.
Alyx teve dificuldade em comer mais durante a refeição e, após algum
tempo, sentou-se calmamente, uma vez que eram trazidos pratos atrás de
pratos para o salão. Nunca tinha visto a maior parte daquela comida, e
novos nomes e sabores estavam a começar a combinar-se.
Passado muito tempo, Raine levantou-se e apresentou-a e as pessoas
gritaram-lhe as boas-vindas.
Judith perguntou a Alyx se ela gostaria de descansar, e dirigiram-se juntas
para o quarto de Alyx.
– Talvez seja tudo um pouco desconcertante? – perguntou Judith.
Alyx assentiu com a cabeça.
– Amanhã, há uma feira na aldeia, e vou ver se Raine te leva até lá. Vais
divertir-te e não terás tantas pessoas novas com quem lidar. Mas, agora,
porque não descansas? Gavin e Raine estão a preparar uma mensagem para
enviar a Miles, e terás horas para descansar, porque tenho a certeza de que
discutirão durante esse tempo.
Quando Alyx tirou o vestido e escorregou para debaixo das cobertas,
Judith pegou-lhe na mão.
– Não tens nada a temer de nós. Somos a tua família a partir de agora e
tudo o que fizeres terá a nossa aprovação. Sei que tudo isto – apontando
para o quarto elegante – é novo para ti, mas, em breve, aprenderás e nós
estamos aqui para te ajudar.
– Obrigada – sussurrou Alyx e adormeceu antes de Judith ter saído.
*

Nada poderia ter preparado Alyx para a feira instalada na pastagem


Montgomery. Dormira profundamente e durante muito tempo e, quando
acordara, a sua voz estava, pelo menos, meio recuperada. O som estava lá e
ela estava contente, mesmo que ainda não conseguisse atingir todos os tons.
– Achas que vou conseguir cantar outra vez?
Raine riu-se do medo na sua voz e ajudou-a a abotoar o vestido púrpura
que Judith tinha alterado para servir a Alyx.
– Tenho a certeza de que, dentro de mais alguns dias, os pássaros voarão
para a sala só para te ouvirem.
Rindo, ela rodou pelo quarto, com a saia em forma de sino a rodopiar à
sua volta.
– Não é adorável? É o vestido mais bonito da terra.
– Não – riu-se Raine, abraçando-a. – És tu que o tornas lindo. Agora, para
de rodopiar antes que deixes o meu filho tonto. Estás pronta para a feira?
A feira era como uma cidade composta por pessoas de todo o mundo.
Havia bancas de animais, barracas de chumbo e estanho de Inglaterra,
bancas de vinhos espanhóis, mercadorias alemãs, tecidos italianos, lojas de
brinquedos, jogos de luta livre, jogos de habilidade, açougueiros e
peixeiros.
– Por onde começamos? – perguntou Alyx, agarrando-se ao braço de
Raine. Estavam rodeados por seis dos cavaleiros de Gavin.
– Talvez a minha senhora esteja com fome? – perguntou um cavaleiro.
– Ou com sede?
– Gostaria, a minha senhora, de ver os malabaristas ou os acrobatas?
– Ouvi dizer que há um bom cantor mesmo por aqui.
– O cantor – disse Alyx decidida, fazendo Raine sorrir.
– Para ver com o que tens de competir? – provocou ele.
Ela sorriu-lhe, demasiado feliz para deixar que a sua provocação a
incomodasse. Após uma breve visita ao cantor, que, na opinião de Alyx,
não era mesmo nada bom, pararam numa barraca de pão de gengibre e
Raine comprou-lhe uma boneca apimentada acabada de cozer.
Comendo a sua guloseima, e olhando para um lado e para o outro, ela mal
se apercebeu quando Raine parou diante de uma banca italiana.
– O que achas disto? – perguntou Raine, segurando um pedaço de seda
violeta.
– Adorável – disse ela, distraidamente. – Oh, Raine, há um urso a fazer
truques.
– O urso do teu marido vai fazer truques se não o ouvires. – Quando ela
olhou para cima, ele continuou. – Já tive a minha parte de repreensões de
Judith. Escolhe as cores que quiseres e peço que as enviem para o castelo.
– Escolho? – perguntou ela, atordoada, olhando para toda a
sumptuosidade que tinha diante de si.
– Dê-nos tudo o que tiver em púrpura – disse Raine, rapidamente. – E
aqueles verdes. Vão ficar-te bem, Alyx. – Virou-se para o comerciante. –
Corte o suficiente de cada um para um vestido e mande tudo para o castelo.
Um dos administradores pagar-lhe-á. – De seguida, pegou no braço de Alyx
e afastaram-se.
Como uma criança, Alyx olhou para trás, com o seu doce de gengibre na
boca. Devia haver três tons de roxo, quatro de verde, em vários tipos de
tecido, que incluíam sedas, cetins, veludos, brocados e outros que Alyx não
reconhecia. Raine parou em frente do urso que atuava, mas, quando viu que
Alyx não estava a ver, puxou-a para outra banca – um peleiro.
Desta vez, não esperou que ela escolhesse e pediu um manto forrado com
pele de cordeiro e outro com leopardo da Ásia. Disse ao peleiro para se
entender com o mercador de tecidos e mandar-lhe alguns pedaços para
serem cosidos nos vestidos que tinha encomendado.
Por esta altura, Alyx começava a tomar consciência do que se passava à
sua volta. Estava a ser vestida sem sequer ser consultada sobre o que queria.
Se tivesse alguma ideia do que queria, protestaria contra a arbitrariedade de
Raine.
– Escolhes as tuas próprias roupas assim? – atreveu-se a perguntar. –
Deixas as escolhas ao critério dos comerciantes?
Ele encolheu os ombros.
– Costumo usar preto, assim não perco muito tempo. Miles é que percebe
de roupa.
– E o Stephen? Do que é que ele sabe?
– Ele mantém-me separado do Gavin e tudo o que veste são as roupas dos
escoceses, que o deixam praticamente nu.
– Parece interessante – murmurou Alyx, o que fez com que Raine a
olhasse com reprovação.
– Comporta-te. Olha para isto. Já tinhas visto isto antes?
O que Alyx via era uma mulher a trabalhar com centenas de carretéis de
madeira numa almofada pequena e inchada.
– O que é isto?
O produto acabado pareciam teias de aranha de seda branca.
– É renda, minha senhora – disse a mulher e ergueu uma gola para que
Alyx visse.
Gentilmente, Alyx tocou-lhe, quase com medo de que se desfizesse.
– Tome – disse Raine, puxando um saco de ouro de debaixo do seu gibão.
– Dê-me três desses. Escolhe um, Alyx, e daremos um a Judith e mandamos
o outro para Bronwyn.
– Oh, sim – respirou ela, contente com a ideia de um presente para Judith.
As golas de renda foram cuidadosamente colocadas numa caixa de
madeira fina e entregues a um dos cavaleiros para levar.
As horas seguintes foram as mais felizes que Alyx alguma vez tinha
vivido. Ver Raine no seu ambiente natural, vê-lo ser respeitado como
merecia, foi uma alegria para ela. No entanto, este homem era tão honrado
que era capaz de se sentar com o mendigo mais pobre e ouvir o homem.
– Estás a olhar para mim de forma estranha – disse Raine.
– Estou a pensar nas coisas boas que me aconteceram. – E desviou o olhar
dele. – Para onde estão todas aquelas pessoas a olhar?
– Vamos lá ver o que se passa.
A multidão em frente deles separou-se para deixar passar sete grandes
homens e uma pequena mulher. Dentro do círculo, estavam quatro mulheres
seminuas, as suas barrigas lisas nuas, e as pernas visíveis através de sedas
transparentes, bailando a uma música estranha. Após o choque inicial, Alyx
olhou para o marido e percebeu que ele estava completamente cativado
pelas mulheres, tal como os guardas à sua volta. E pensar que momentos
antes tinha pensado que Raine era quase um anjo do Senhor!
Com uma exclamação de repugnância que Raine nem sequer ouviu, Alyx
começou a afastar-se da multidão, deixando os homens obcecados.
– Minha senhora – disse alguém ao seu lado. – Deixai-me conduzi-la para
fora desta multidão. Sois tão pequena que temo pela vossa segurança.
Ela olhou para os olhos negros de um homem muito bem-parecido. Tinha
o cabelo louro marcado pelo sol e um nariz aquilino sobre uma boca firme.
Exibia também, uma cicatriz curva por cima do seu olho esquerdo e
olheiras.
– Não sei se… – começou ela. – O meu marido...
– Deixai que me apresente. Sou o conde de Bayham e a família do vosso
marido tem boas relações com a minha. Percorri um longo caminho para
falar com Gavin, mas, quando vi a feira, pensei que podia encontrar aqui
um dos membros da família.
Um homem corpulento que tinha bebido mais do que a conta tombou na
direção deles, e o conde estendeu uma mão, protegendo Alyx.
– Sinto que é meu dever protegê-la desta multidão. Deixai-me levá-la
daqui para fora.
Ela aceitou o braço que lhe era oferecido. Havia algo nele que parecia
triste e amável ao mesmo tempo, e confiou nele instintivamente.
– Como soubestes do meu casamento? – perguntou ela. – É tão recente e
eu não venho do mesmo meio do meu marido.
– Tenho um interesse especial no que a família Montgomery faz.
Ele levou-a para longe do barulho da feira, para um banco colocado
dentro de um pequeno arvoredo.
– Deveis estar muito cansada, uma vez que não vos sentastes toda a
manhã. E certamente a criança deve ser um fardo pesado.
Agradecida, ela sentou-se, descansando as mãos sobre a barriga, e olhou
para ele.
– De facto, tendes estado a observar-nos. Agora, o que quereis falar
comigo que torne necessário afastar-me do meu marido?
Nessa altura, o conde sorriu ligeiramente.
– Os Montgomery escolhem bem as suas mulheres, tanto pela inteligência
como pela beleza. Talvez deva voltar a apresentar-me. Sou Roger
Chatworth.
Capítulo Dezassete

ALYX, QUE SE SENTIRA tão convencida porque pensava ter adivinhado que
este homem pretendia que usasse a sua influência sobre o seu marido, de
repente sentiu-se muito assustada. Sem conseguir evitá-lo, o medo invadiu-
lhe o rosto e começou a levantar-se.
– Por favor – disse ele, suavemente. – Não pretendo fazer-vos mal. Só
quero falar-vos por um momento. – Sentou-se na ponta do banco, afastado
dela, com a cabeça baixa e as mãos apertadas uma na outra. – Ide-vos
embora. Não vos impedirei.
Alyx já tinha passado por ele quando voltou para trás.
– Se o meu marido vos vê, mata-vos.
Roger não respondeu e Alyx, franzindo o sobrolho, dizendo a si própria
que era uma tola, voltou a sentar-se.
– Porque arriscastes vir aqui? – perguntou ela.
– Eu arriscaria tudo para encontrar a minha irmã.
– Elizabeth?
Talvez tenha sido a forma como ela disse o nome, mas a cabeça de Roger
levantou-se abruptamente.
–O que sabeis dela? – As suas mãos fecharam-se em punhos.
– Pagnell, o filho do conde de Waldenham...
– Eu conheço esse monte de esterco.
Rapidamente, Alyx contou a história de como Elizabeth a ajudara e como
Pagnell tinha castigado Elizabeth.
– Miles! – exclamou Roger, de pé. Estava ricamente vestido de veludo
azul-escuro, com um gibão debruado com cetim, e as suas pernas longas e
musculosas firmemente revestidas numas meias-calças negras. Este não era
o homem que Alyx teria imaginado inimigo de alguém.
– E o que é que Miles fez com a inocente da minha irmã? – Roger exigiu,
de olhos irados.
– Não fez o que fizestes com Lady Mary – retorquiu Alyx.
– A morte da mulher pesa-me na alma, e paguei por ela com a perda do
meu irmão. Não tenciono perder também a minha irmã.
Alyx não fazia ideia do que ele estava a falar. O que tinha o irmão de
Roger a ver com a morte de Mary?
– Não sei onde Miles e Elizabeth estão. Não tenho estado bem. Talvez,
enquanto estava a descansar, Raine tenha sabido algo sobre Miles, mas eu
não sei nada.
– E Lady Judith? Acho que há poucas coisas que ela não saiba. Será que
ela vos disse alguma coisa?
– Não, nada. Porque estais livre, quando o meu marido tem de se
esconder, apesar de terdes matado Mary?
– Eu não a matei – declarou ele, com veemência. – Eu… não! Não quero
discutir o assunto, e, quanto à minha liberdade, o Rei ficou com todas as
minhas rendas dos próximos três anos. A maioria dos meus homens deixou-
me porque não lhes posso pagar. Tenho apenas uma pequena propriedade
para abrigar o que resta da minha família, que agora consiste numa cunhada
cruel. O meu irmão odeia-me e desapareceu da face da Terra e, agora, a
minha adorável e doce irmã é mantida prisioneira por um rapaz que é
famoso pelo desfloramento de mulheres. Não terei sido castigado? O vosso
marido ainda mantém as suas terras, o seu próprio administrador orienta-as
enquanto um homem de um rei dirige as minhas. Sabe o que restará dentro
de três anos? O vosso marido tem toda a sua família. Teve até tranquilidade
para se apaixonar e casar, enquanto a mim não resta ninguém… um irmão
morto, outro que me odeia, a minha irmã prisioneira. E dizeis que eu não fui
castigado? Que sou livre?
Depois deste discurso, ele parou e desviou o olhar, sem ver, para o
infinito.
– Não sei o que aconteceu a Elizabeth. Gavin foi atrás de Miles, mas
regressou imediatamente. Não falei com ele quando voltou.
– Matá-lo-ei se ele a tiver magoado.
– E que ganhareis com isso? – gritou Alyx, sentindo a dor da garganta
ferida, mas, pelo menos, a sua voz fê-lo pestanejar. – Será que algum de vós
descansará até que todos sejam mortos? Miles não levou Elizabeth; ela foi-
lhe oferecida. Ele é inocente. É sobre Pagnell que deve recair a vossa ira.
Mas estais demasiado habituado a odiar os Montgomery e a culpá-los por
todos os vossos problemas.
– O que posso eu esperar de um Montgomery? – perguntou ele,
soturnamente. – Já acreditais que eles são deuses nesta terra.
– Homem estúpido! – cuspiu ela. – Eu só quero que esta vossa guerra
acabe. Raine tem de viver numa floresta rodeado de criminosos e tudo por
vossa causa.
– Gavin é que começou isto quando brincou com a minha cunhada. Uma
mulher não era suficiente para ele. Também quis Alice.
Alyx levou as mãos à cabeça.
– Eu não sei nada disto. Deveis ir agora. Raine deve andar à minha
procura.
– Quer dizer, para me proteger?
– Tenciono proteger o meu marido de uma luta e a mim da sua ira.
– Não posso partir enquanto não souber de Elizabeth. – Alyx rangeu os
dentes. – Não sei onde está Elizabeth.
– Descobrireis e contar-me-eis?
– Garantidamente que não! – Alyx ficou surpreendida por ele ter feito a
pergunta. – Miles está com ela, e eu não farei nada que o ponha em perigo.
A boca de Roger formou uma linha grave.
– Sois uma tola por vir aqui comigo. Podia levar-vos agora e exigir a
libertação de Elizabeth enquanto fôsseis minha prisioneira.
Engolindo em seco, Alyx sabia que tinha de se atrever a sair daquela
situação e não o deixar perceber o seu medo.
– Não tendes guardas convosco. Bateríeis numa mulher grávida? Até
quando é que estareis sozinho comigo? Elizabeth ainda acredita que sois um
bom homem. Será que assim continuaria se fizésseis mais um Montgomery
prisioneiro? – Alyx conseguia perceber pelo seu rosto que estava a começar
a preocupá-lo. – Como lhe explicastes a morte de Mary?
Alyx parou por um momento, observando-o.
– Tendes de ir.
Antes que qualquer um deles pudesse reagir, Raine e os seus guardas
irromperam através das árvores. Instantaneamente, quatro espadas foram
apontadas à garganta de Roger Chatworth.
Raine agarrou Alyx, segurou-a com um braço, com a espada
desembainhada no outro.
– Este bastardo fez-te algum mal? – rosnou Raine. – Matem-no – disse
ele logo de seguida.
– Não! – gritou Alyx com todas as suas forças e fez com que os homens
parassem com sucesso. No mesmo instante colocou-se à frente de Roger. –
Ele não me fez mal nenhum. Tudo o que ele quer saber é onde está a sua
irmã.
– Na cova ao lado da minha – disse Raine, com os olhos semicerrados.
– Ela não está morta – replicou Alyx. – Raine, por favor, vamos acabar
com esta querela agora. Jura que vais providenciar para que Elizabeth seja
devolvida a Roger.
– Com que então, Roger? – Raine inspirou através dos dentes, olhando
para ela até ela dar um passo para trás, para mais perto de Roger. – Há
quanto tempo o conheces?
– Há... – começou ela, desorientada. – Raine, por favor, não estás a
perceber. Ele é um homem sozinho e não quero vê-lo morto. Ele quer a sua
irmã. Sabes onde está ela?
– Agora pedes-me que traia o meu irmão por este nojento. Será que ele te
falou dos últimos momentos de vida de Mary? – E olhou para Roger, com
um rosnado a enrolar-lhe o lábio. – Gostaste do som do seu corpo a
desfazer-se nas pedras?
Alyx começou a sentir-se mal com as imagens que Raine conjurara e
quase lhe quis entregar Roger. Mas o Rei teria outra desculpa para tomar as
terras de Raine. Ele nunca perdoaria Raine por matar um conde.
– Tens de o libertar – disse ela, calmamente. – Não podes matá-lo a
sangue frio. Vinde, Roger. Vou acompanhar-vos até ao vosso cavalo.
Sem uma palavra, Roger Chatworth caminhou à sua frente de volta à feira
onde o cavalo dele esperava. Nem Raine, nem os seus guardas o seguiram.
– Ele nunca vos perdoará – disse Roger.
– Eu não o fiz por vós. Se Raine vos matasse, o Rei nunca lhe perdoaria.
Ide agora e lembrai-vos que um Montgomery foi bom para si quando não o
merecia. Não quero que nada de mal aconteça a Miles ou a Elizabeth e farei
o que puder para que ela vos seja devolvida.
Com um olhar de incredulidade, espanto e gratidão, ele deu a volta com o
seu cavalo e cavalgou para longe das terras dos Montgomery.
Alyx parou por um momento, o seu coração palpitava desvairadamente ao
pensar em enfrentar Raine de novo. Claro que ele estaria zangado, mas,
quando lhe explicasse porque é que tinha ajudado o seu inimigo,
compreenderia. Lentamente, temendo a discussão que se aproximava,
caminhou de volta, em direção às árvores onde estava a guarda.
Demorou apenas alguns segundos para perceber que Raine não estava lá.
– Onde está ele? – perguntou ela, certa de que ele tinha ido para algum
lugar mais reservado, para a batalha privada entre os dois.
– Minha senhora – começou um dos guardas. – Lorde Raine voltou para a
floresta.
– Sim, eu sei – respondeu ela. – Onde podemos ficar sozinhos. Mas que
direção tomou ele?
Por um momento, Alyx olhou apenas para o homem e, depois de algum
tempo, percebeu o que queria ele dizer.
– Para a floresta? Referes-te ao acampamento dos fora da lei?
– Sim, minha senhora.
– Vai buscar o meu cavalo! Eu irei atrás dele. Podemos apanhá-lo.
– Não, minha senhora. Temos ordens para a levar a Lorde Gavin. Não
deve seguir Lorde Raine.
– Tenho de ir – disse ela, olhando para os homens a suplicar. – Não vês
que tive de impedir Raine de matar Chatworth? O Rei colocaria Raine no
cadafalso se matasse um conde. Tenho de explicar isto ao meu marido.
Leva-me imediatamente até ele!
– Não podemos. – O cavaleiro endureceu a expressão contra o olhar de
simpatia nos seus olhos. – As nossas ordens vêm de Lorde Raine.
– Talvez se a minha senhora falasse com Lorde Gavin – sugeriu outro
guarda.
– Sim – disse ela, ansiosa. – Vamos regressar ao castelo. Gavin saberá o
que fazer.
Uma vez a cavalo, Alyx imprimiu um ritmo que os cavaleiros tiveram
dificuldade em acompanhar. Assim que os cascos do cavalo tocaram o
pavimento do pátio, Alyx saltou e correu para a casa.
Entrou de rompante num salão vazio e dirigiu-se a outra divisão, depois
parou e gritou:
– Gavin!
Em segundos, surgiu Gavin a correr pelas escadas abaixo, com uma
expressão de incredulidade no rosto. Judith vinha logo atrás.
– Eras tu a chamar-me? – perguntou Gavin, assombrado. – Raine disse
que tinhas uma voz forte, mas...
Alyx cortou-lhe a fala.
– Raine voltou para o acampamento dos fora da lei. Tenho de ir ter com
ele. Ele odeia-me. Ele não compreende porque o fiz. Tenho de lhe explicar.
– Mais devagar – pediu Gavin. – Diz-me o que aconteceu desde o início.
Alyx tentou respirar profundamente.
– Roger Chatworth...
O nome foi suficiente para fazer explodir Gavin.
– Chatworth! Ele fez-te mal? Raine foi atrás dele? Vai buscar os meus
homens – ordenou ele a um dos homens atrás de Alyx. – Com armaduras e
armados.
– Não! – exclamou Alyx, e depois levou as mãos ao rosto. As lágrimas
estavam finalmente a começar a cair.
Judith abraçou Alyx.
– Gavin, fala com os homens enquanto eu trato de Alyx. – E conduziu
Alyx a um nicho almofadado por baixo de uma janela e pegou nas mãos
dela com as suas próprias mãos. – Agora diz-me o que aconteceu.
As lágrimas de Alyx e o seu sentimento de urgência tornaram-na quase
incoerente. Só através de um questionário cuidadoso é que Judith conseguiu
perceber o encadeamento da história.
– Eu não entendi – soluçou Alyx. – Roger não parava de me falar de
coisas que eu não percebia. Quem é Alice? Quem era o irmão dele? O que
tinha ele a ver com a morte de Mary? Raine estava tão zangado. Ele
mandou matar o Roger e tive de o impedir. Tive mesmo!
– Ainda bem que o fizeste. Agora quero que te sentes aqui tranquila
enquanto vou procurar Gavin. Vou contar-lhe a tua história e Gavin vai
poder falar calmamente com Raine.
Judith encontrou o seu marido e vinte cavaleiros no pátio, e pareciam
estar a preparar-se para a guerra.
– Gavin! O que estás a fazer?
– Vamos atrás de Chatworth.
– Chatworth? Mas e Raine? Ele acha que Alyx está do lado de Chatworth.
Tens de ir ter com Raine e fazê-lo perceber. Alyx estava a proteger Raine e
não Chatworth.
– Judith, agora não tenho tempo para resolver uma querela entre amantes.
Tenho de encontrar Miles e avisá-lo sobre Chatworth ou então encontrar
Chatworth e fazer com que não possa reunir um exército para ir atrás do
meu irmão.
– Faz com que Miles liberte Elizabeth. É isso que Chatworth quer –
afirmou Judith. – Devolve-lhe a irmã dele.
– Como ele devolveu a minha? Deitada sobre um cavalo, de cara para
baixo?
– Gavin, por favor – implorou Judith.
Ele parou um momento e puxou-a para ele.
– Raine está mais seguro na floresta. Sem dúvida Chatworth dará a
conhecer ao Rei as ameaças de Raine e isso irá atiçar a sua ira. E Alyx deve
ficar aqui de qualquer maneira, por isso até funcionou bem. Agora, Miles é
para mim uma preocupação maior. Não acredito que ele tenha maltratado a
rapariga, mas tinha esperança de que tivéssemos tempo antes de Chatworth
descobrir onde ela estava. Tenho de avisar o meu irmão e protegê-lo, se ele
precisar.
– E Alyx? Raine acha que ela o traiu.
– Não sei – disse Gavin, relevando o assunto. – Escreve-lhe e envia um
mensageiro. Talvez Raine esteja zangado, mas a raiva não lhe fará mal.
Agora tenho de ir. Cuida da Alyx enquanto eu estiver fora e alimenta o meu
filho.
Judith sorriu-lhe e ele beijou-a demoradamente.
– Tem cuidado – gritou-lhe enquanto ele e os seus homens saíam a
cavalo.
O sorriso de Judith só durou até voltar a entrar em casa e encontrar Alyx
sentada sozinha no banco da janela.
– Será que Gavin vai ao encontro de Raine? – sussurrou Alyx,
esperançosamente.
– Agora não. Talvez mais tarde ele vá. Agora tem de avisar Miles de que
Roger Chatworth sabe que um Montgomery tem Elizabeth prisioneira.
Alyx inclinou-se no encosto de pedra.
– Como pode Raine acreditar que eu o trairia? Chatworth pediu-me para
descobrir onde estava Elizabeth, mas eu recusei. Eu só queria ajudar Raine
e ajudar toda a família. Agora piorei tudo.
– Alyx – disse Judith, pegando nas mãos frias da sua cunhada. – Há
coisas que não sabes, coisas que aconteceram antes de fazeres parte da
nossa família.
– Eu soube da morte de Mary. Eu estava com Raine quando ele descobriu.
– Antes disso, houve acontecimentos...
– Relacionados com essa Alice que Roger mencionou e com o seu irmão?
– Sim. Alice Chatworth foi quem deu origem a tudo isto.
Alyx ficou surpreendida com a frieza nos olhos de Judith, com a forma
como as suas adoráveis feições haviam mudado.
– Quem é Alice? – sussurrou Alyx.
– Gavin estava apaixonado por Alice Valence – disse Judith, em voz
baixa. – Mas a mulher não quis casar com ele. Em vez disso, apanhou um
conde rico, Edmund Chatworth.
– Edmund Chatworth – disse ela. O homem que Jocelin tinha matado.
– Edmund foi morto, uma noite, por um cantor que nunca foi apanhado –
continuou Judith, desconhecendo o que Alyx sabia.
«Sempre acreditei que Alice Chatworth sabia mais sobre o que tinha
acontecido do que aquilo que contou. Como viúva, decidiu que podia dar-se
ao luxo de casar com Gavin, mas Gavin recusou-se a pôr-me de lado e a
casar com ela. Alice não aceitou muito bem a situação. – A voz de Judith
tornou-se pesada e sarcástica. – Aprisionou-me e ameaçou deitar-me óleo a
ferver na cara. Houve um confronto e o óleo deixou cicatrizes em Alice.
– Roger disse que, na sua casa, vivia apenas uma cunhada malvada.
Certamente, não deve ter feito mal a Mary por causa da cicatriz?
– Não, mais tarde, Roger esteve na Escócia e conheceu a mulher que o rei
Henrique tinha prometido a Stephen como noiva. Bronwyn era rica e valia
bem a pena lutar por ela. Roger reclamou-a para si e ele e Stephen lutaram.
Roger é um homem orgulhoso e um cavaleiro de renome, mas Stephen
venceu-o e, com raiva, Roger atacou Stephen pelas costas.
– Stephen não ficou ferido, pois não?
– Não, mas a reputação de Roger ficou destruída. As pessoas riam-se dele
por toda a Inglaterra e começaram a dizer que um «Chatworth» tinha feito
um apunhalamento pelas costas.
– E, portanto, Roger retaliou, levando Mary. Ele deve ter visto os
Montgomery como a causa das suas humilhações – deduziu Alyx.
– É verdade. Implorou a Stephen que o matasse no campo de batalha, mas
Stephen não o quis matar e Roger sentiu-se insultado. Então, Roger
manteve Mary e Bronwyn prisioneiras durante algum tempo. Não creio que
ele tivesse feito mal a Mary se não fosse por causa de Brian.
– E quem é Brian?
– O irmão mais novo de Roger, um rapaz aleijado e tímido que se
apaixonou por Mary. Quando Brian disse a Roger que planeava casar com
Mary, Roger embebedou-se e levou Mary para a cama. Já sabes o que Mary
fez a seguir. Brian devolveu-nos o corpo dela.
– E agora Miles tem Elizabeth – disse Alyx. – Raine é um fora da lei.
Roger perdeu a sua família e a sua riqueza e a vida de Miles pode estar em
perigo. Não há maneira de acabar com este ódio? E se Roger matar Miles?
O que acontecerá então? Quem será o próximo? Será que algum de nós
voltará a estar seguro? Irão os nossos filhos crescer a odiar os Chatworth?
Será que o meu filho irá lutar contra o Roger?
– Calma, Alyx – disse Judith suavemente, abraçando a cunhada. – Gavin
foi avisar Miles e ele ficará a salvo. Além disso, Bronwyn está lá com os
seus homens e, mesmo que Chatworth juntasse um exército, não seria capaz
de combater os MacArran.
– Espero que tenhas razão. E Raine ficará a salvo na floresta.
– Vamos escrever a Raine agora mesmo. Enviaremos um mensageiro esta
noite.
– Sim – disse Alyx, sentando-se direita e limpando as lágrimas. – Logo
que Raine saiba a verdade, tenho a certeza de que me perdoará.
Capítulo Dezoito

RAINE DEVOLVEU AS CARTAS de Alyx por abrir. Embora tivesse tomado


conhecimento da explicação de Judith sobre o que tinha acontecido, não fez
comentários nas mensagens verbais que enviou de volta. Agora não tinha
escudeiro e, por isso, Judith teve o cuidado de enviar apenas mensageiros
que soubessem ler.
Alyx parecia aceitar tudo o que estava a acontecer estoicamente; no
entanto, todas as manhãs, os seus olhos estavam vermelhos e o seu apetite
era quase nulo.
Quando Gavin regressou da Escócia, ficou boquiaberto quando viu Alyx,
quase só pele e osso, à exceção do estômago saliente.
– Que novidades trazes? – perguntou Judith antes de ele poder dizer
alguma coisa sobre o aspeto de Alyx.
– Encontrámos Chatworth e detivemo-lo durante algum tempo, mas
escapou-se.
– Fizeram-lhe mal? – perguntou Judith.
– Nem num cabelo tocámos! – respondeu imediatamente. – Quando ele
fugiu, fomos para a Escócia, mas ele não tinha aparecido lá. O meu palpite
é que Chatworth foi ter com o rei Henrique.
– Viste Miles?
Gavin assentiu com a cabeça, frustrado.
– Ele sempre foi teimoso, mas agora está a ir longe demais. Recusa-se a
libertar Elizabeth, e nada que alguém pudesse dizer o fazia ver a razão.
– E Elizabeth?
– Ela discute com ele constantemente. Discutiam sobre a cor do céu, mas,
por vezes, vi-a olhar para ele com algo para além de ódio. Agora, como está
Alyx?
– Raine devolve as cartas dela por abrir e eu não faço qualquer menção a
ela, embora as minhas cartas lhe implorem que a ouça. O mensageiro diz
que Raine o faz saltar as passagens que se referem a Alyx.
O rosto franzido de Gavin dizia muita coisa.
– O meu irmão perdoaria a um triplo assassino, mas, se achar que a sua
honra está manchada, não tem remorsos. Vou escrever-lhe e conto-lhe sobre
o estado de Alyx. Quando é que a criança nasce?
– Dentro de algumas semanas.
Raine também não respondeu às menções de Gavin a Alyx.
Em novembro, Alyx deu à luz uma menina grande e saudável, que sorriu
segundos após o seu nascimento e mostrou que tinha as covinhas de Raine.
– Catherine – sussurrou Alyx, antes de adormecer.
Mas, nas semanas seguintes, a criança não estava tão feliz. Catherine
chorava constantemente.
– Ela chora pelo pai – disse Alyx de forma sombria, e Judith quase a
abanou.
– Se fosse eu – disse Judith –, diria que ela tem fome.
As palavras de Judith foram proféticas porque assim que arranjaram uma
ama de leite, Catherine acalmou.
– Para que sirvo eu? – lamentava-se Alyx.
Judith abanou-a com força.
– Ouve-me! Tens de pensar na tua filha. Talvez não a possas alimentar,
mas há outras coisas que podes fazer. E, se a criança não for suficiente, eu
posso encontrar trabalho que possas fazer.
Alyx acenou com a cabeça, entorpecida, e antes de saber o que estava a
acontecer, Judith deu-lhe mais trabalho do que ela sabia que existia.
Recebeu livros para ler, colunas de números para somar, alqueires de
cereais para contar e registar. Havia armazéns para limpar, refeições para
supervisionar e centenas de pessoas para cuidar.
Alyx ficou encarregue do hospital durante duas semanas e percebeu que
era boa a animar os pacientes. Judith ficou satisfeita com a habilidade
musical da Alyx, mas não viu razão para ela passar o dia sozinha a trabalhar
na música. Compunha canções enquanto enfaixava uma perna ferida ou
enquanto cavalgava para a aldeia abaixo do castelo Montgomery.
Foi um pequeno choque para Alyx quando nem Judith nem Gavin
ficaram impressionados com o seu talento, mas lidou bem com a situação.
Também eles tinham talento, mas não perdiam tempo com ele a ponto de o
sobreporem ao trabalho.
Alyx não estava certa de quando começou a perceber o quão egoísta tinha
sido a sua vida. Tinha sido posta à parte das pessoas da sua aldeia por causa
do seu talento. Todos eram reservados com ela, tinham-na tratado como se
fosse alguém tocado pelo céu. Na sua presunção, decidira que odiava os
nobres por causa do que um homem tinha feito. Mas, na verdade, ela tinha
ciúmes. Sentira sempre que era igual a qualquer um, mas, na verdade, o que
é que alguma vez tinha dado a alguém? A sua música? Ou a sua música era
realmente para ela?
Percebeu que os homens de Gavin e os criados eram gentis com ela por
causa da sua relação com Raine, mas ela queria dar algo que não era fácil
para ela.
Montou uma escola para as muitas crianças do complexo do castelo e
começou a ensiná-las a ler e a escrever. Houve muitos dias em que quis
desistir, mas continuava e era recompensada, esporadicamente, quando uma
criança aprendia uma nova palavra.
De tarde, trabalhava com os feridos e doentes. Uma vez, a perna de um
homem foi esmagada debaixo de um barril de vinho e teve de ser amputada.
Alyx tomou-lhe a cabeça nas mãos e usou todo o seu treino e todo o seu
sentimento para o hipnotizar com a sua voz. Depois, chorou durante horas.
– Dói envolvermo-nos – disse ela a Judith. – Um dos meus meninos, uma
criança encantadora, caiu ontem da muralha e morreu nos meus braços. Não
quero amar as pessoas. A música é mais segura.
Judith abraçou-a, acalmou-a e falaram durante muito tempo. Pela manhã,
Alyx voltou para a sua escola. Mais tarde, o homem que tinha perdido a
perna perguntou por ela e havia lágrimas de gratidão no seu rosto pela ajuda
de Alyx.
Judith estava atrás de Alyx.
– Será que Deus te deu esse talento para ajudar homens que precisam de
ti ou deverias guardá-lo para as pessoas bem-vestidas na igreja?
No Natal, a mãe de Judith visitou-os. Helen Bassett não parecia ter idade
suficiente para ser mãe de ninguém. Com ela estava o seu marido, John, que
parecia tão satisfeito como qualquer homem podia estar. Juntos sorriam
para a sua filha de onze meses, que começara a dar os primeiros passos.
O filho de Judith tinha seis meses de idade, a filha de Alyx, dois meses.
Todos tentaram tornar as festividades alegres e ninguém mencionou quantos
membros da família faltavam.
– Estivemos todos juntos no ano passado – murmurou Gavin para a sua
caneca de cerveja.
Não havia notícias de Raine.
*

Em janeiro, tudo pareceu acontecer ao mesmo tempo. Roger Chatworth


tinha, de facto, ido ter com o rei Henrique, mas não fora sozinho. Por acaso,
ou por artifício, Pagnell aparecera ao mesmo tempo.
Roger contou que Miles mantinha a sua irmã prisioneira na Escócia e
Pagnell disse que tinha provas, e não apenas os vagos rumores anteriores,
de que Raine estava a treinar homens do povo para lutar como cavaleiros, e
que tentava armar um exército contra o Rei.
O rei Henrique declarara que estava farto da rixa entre os Chatworth e os
Montgomery e que queria Lady Elizabeth libertada. Se Miles não o fizesse,
seria declarado traidor e as suas terras confiscadas. Quanto a Raine, se
colocasse mais armas nas mãos daqueles fora da lei, o Rei queimaria a
floresta e a todos eles lá dentro.
Gavin enviou um mensageiro à Escócia, pedindo a Stephen que obrigasse
Miles a obedecer ao Rei. Antes de haver uma resposta, ouviu-se dizer que
Pagnell fora encontrado morto e correu o rumor de que os Montgomery
eram responsáveis. O Rei acrescentou o facto a uma longa lista de queixas.
– Ele quer o que é nosso há séculos – disse Gavin. – Outros reis tentaram
tomá-lo e falharam. Este também falhará. E retirou uma maça da parede. –
Se Stephen não consegue chamar Miles à razão, eu consigo.
No espaço de uma hora, partiu de novo para a Escócia.
– E Raine? – perguntou Alyx suavemente, enquanto segurava Catherine.
– Quem o vai avisar das ameaças do Rei?
– O rei Henrique não vai incendiar a floresta – retorquiu Judith muito
praticamente. – Não restam muito deles. Raine não marcharia realmente
sobre o Rei com o seu bando de degoladores, pois não?
– Talvez. Raine atrever-se-ia a tudo se visse alguma injustiça. Se ele
pensasse que o seu irmão estava em perigo, não há como prever o que ele
poderia fazer.
– Miles ouvirá Gavin desta vez… espero eu – disse Judith. – Roger
recuperará a sua irmã e tudo ficará resolvido.
Olharam uma para a outra durante um longo momento, nenhuma das duas
acreditando nas palavras de Judith.
– Vou ter com Raine – disse Alyx baixinho e, depois, abriu os olhos de
surpresa.
– Irá ele permitir-te que entres na floresta? Oh, Alyx, não tenho a certeza
de que devas fazer isso. Os homens Montgomery podem ficar terrivelmente
zangados.
– Será que a raiva de Gavin alguma vez te impediu de fazer o que tinhas
de fazer? Se Gavin estivesse em perigo, hesitarias em ajudá-lo da forma que
pudesses?
Judith ficou calada por um momento.
– Uma vez, liderei os homens de Gavin contra um homem que o
mantinha cativo.
– Eu só vou cavalgar para uma floresta. Tomarias conta de Catherine? Ela
é demasiado nova para a levar comigo. Lá estará frio.
– Alyx, tens a certeza?
– Talvez consiga distrair Raine. Tenho a certeza de que ele está a pensar
em tudo o que aconteceu e, sem dúvida, a considerar todo o tipo de horrores
a cometer contra Roger Chatworth. Por vezes, consigo superá-lo e forçá-lo
a ouvir-me. Ele, provavelmente, não saberá o que Gavin está a fazer para
persuadir Miles a libertar Elizabeth.
Alyx levantou-se, agarrando a sua bebé com força.
– Tenho de me preparar. Preciso de uma tenda, pois não estou a ver Raine
a partilhar a dele comigo de boa vontade.
– Talvez te perdoe no momento em que te vir – disse Judith, com os olhos
a dançar.
– Perdoar-me! – exclamou Alyx, e depois percebeu que ela a estava a
provocar. – Vou fazê-lo arrepender-se de me ter acusado de o ter traído. E
eu vou precisar de medicamentos. Devo algo a esses fora da lei que Raine
lidera. Eles ajudaram-me uma vez, mas eu nunca os ajudei. Quero
compensá-los por alguma da minha negligência e da minha arrogância.
– Quando queres partir? – perguntou Judith.
– Antes do regresso de Gavin ou podemos ter problemas. Quando é que
podemos reunir as coisas?
– Num dia, se nos apressarmos.
– Judith – disse Alyx. – És um anjo.
– Talvez só queira ver a minha família a salvo. Agora, vamos lá, temos
trabalho a fazer.
Silenciosamente, Alyx gemeu. Raine tinha dito uma vez que Judith
trabalhava o dobro de qualquer pessoa num dia. Alyx achava que, se calhar,
estava mais perto de três vezes mais. Rapidamente, entregou Catherine a
uma criada e correu atrás da sua cunhada.
Capítulo Dezanove

–NÃO GOSTO DESTE lugar – disse Joan do cavalo ao lado do de Alyx. – É


demasiado sombrio. Tendes a certeza de que Lorde Raine vive num lugar
como este?
Alyx não se deu ao trabalho de responder. Judith tinha-lhe dito que a sua
criada, Joan, seria uma mais-valia naquela aventura, que ela poderia manter
Alyx bonita o suficiente para que Raine notasse e que poderia reunir todo o
tipo de informação. Judith também a avisara de que Joan podia tornar-se
familiar demais e devia ser constantemente recordada do seu lugar.
– Olá – gritou Alyx na direção de uma árvore.
Joan olhou para ela como se tivesse endoidecido.
– É suposto a árvore responder-vos? – E acrescentou: – Minha senhora –
quando Alyx lhe deitou um olhar reprovador.
Dos ramos altos da árvore caiu aquilo, que a Joan pareceu ser um homem
divinal.
– Joss! – riu Alyx e, antes de conseguir desmontar, Jocelin tinha-a
agarrado pela cintura e puxado para os seus braços.
Por um momento, riram-se e abraçaram-se até que Alyx se afastou e
olhou para ele.
– Mudaste – disse ela calmamente. – Estás com um aspeto formidável e
vigoroso.
Joan tossiu sonoramente.
– Talvez o cavalheiro precise de vigor noutro lugar que não nas
bochechas.
– Joan! – advertiu Alyx. – Deixo-te a dormir sozinha nesta floresta, se
não te comportas.
– Terei ouvido uma voz de comando? – perguntou Joss, segurando as suas
mãos à distância dos seus braços. – Mudaste mesmo muito. Nunca vi uma
senhora tão encantadora. Vem caminhar um pouco e vamos conversar.
Quando já estavam longe de Joan e dos cavalos carregados, Joss
perguntou:
– Tens um filho?
– Uma filha com as covinhas de Raine e os meus olhos. É doce e perfeita
em todos os sentidos. Como é que ele está?
Jocelin sabia a quem ela se referia.
– Nada bem. Mas espera! Ele está bem fisicamente, mas está triste, nunca
sorri e, quando chega um mensageiro do seu irmão, fica zangado durante
dias. – Fez uma pausa. – O que aconteceu depois do vosso casamento?
Ela contou-lhe rapidamente sobre Roger Chatworth.
– Então, deixaste a tua filha e vieste ter com Raine.
– Sem dúvida que ele me vai receber de braços abertos. – Alyx fez uma
careta. – Há várias razões para eu ter regressado. Devo algo às pessoas
daqui por me terem salvo de ser queimada. Quantos... morreram?
– Três, e um quarto mais tarde.
A mão dela apertou o braço de Joss.
– A raiva do Rei contra os Montgomery e Chatworth está a aumentar
diariamente. Gavin foi à Escócia para falar com um irmão e cabe-me a mim
lidar com Raine.
– Sabias que ele não deixa nenhum mensageiro ler nada que te diga
respeito numa carta?
– Calculei que sim. Raios partam Raine e a sua honra! Se ouvisse ao
menos dez frases ficaria a saber que não sou uma traidora. O melhor que
posso esperar é distraí-lo durante algum tempo. Receio que ele possa
decidir ir atrás de Roger Chatworth sozinho, e sem dúvida que o fará se
pensar que o seu irmão mais novo está em perigo. Se o «irmãozinho» dele
não fosse um tamanho sedutor de mulheres, talvez nada disto estivesse a
acontecer. Mas os irmãos Montgomery defendem-se uns aos outros,
aconteça o que acontecer.
– Distraí-lo? – perguntou Joss, sorrindo. – Acho que vais conseguir fazer
isso. Tens ideia de como estás bonita? O violeta do teu vestido faz os teus
olhos brilhar.
– Por falar em sedutores… – brincou ela, olhando-o de cima a baixo. –
Pensei usar roupas simples, mais adequadas para a floresta, mas Judith
planeou o meu guarda-roupa, dizendo que vestidos bonitos me tornariam
mais visível para Raine. Mudei mesmo?
– Sim, completamente. Agora, quem é aquela rapariguinha apetitosa que
trouxeste contigo?
Por um momento, Alyx estudou Joss. Desde que o conhecia, nunca o vira
tão risonho e provocador.
– Como está Rosamund? – perguntou ela, hesitante.
Jocelin lançou a cabeça para trás e riu-se.
– És demasiado esperta. Está magnífica e a ficar cada vez melhor. Agora
vamos para o acampamento. Raine ficará contente por te ver, não importa o
que diga.
*

Embora Alyx pensasse que estava preparada para a sua primeira visão de
Raine, não estava. Ele tinha perdido peso e as estrias nos seus músculos
estavam salientes. Encontrava-se ao pé de uma fogueira a olhar para dois
homens que falavam com ele seriamente.
Por um momento, Alyx ficou completamente parada, observando-o,
lembrando-se de cada bocadinho dele, querendo correr para ele, lançar-se
nos seus braços, e senti-lo acolhê-la.
Mas, quando ele se virou, a sua respiração ficou presa na garganta. Teria
lidado muito bem com o ódio, mas os olhos de Raine não mostravam as
chamas quentes do ódio. Em vez disso, não havia lá nada a não ser um
frígido deserto de gelo: um azul tão frio que lhe enviava lascas de gelo
através do corpo. Não houve a mínima centelha de reconhecimento e,
especialmente, nenhuma de boas-vindas.
Sem se mexer, Alyx observou enquanto Raine lhe virava as costas e
caminhava na direção do campo de treino.
– Parece que está um bocadinho zangado, não é? – comentou Joan por
trás de Alyx. – Estes Montgomery são mesmo de luas. Alguma vez vos falei
do fosso em que Lady Judith se enfiou para salvar Lorde Gavin? Claro,
qualquer mulher no seu perfeito juízo arriscaria tudo por um homem como
Lorde Gavin. E Miles, também. No entanto, nunca fui para a cama com
Lorde Raine. Ele é satisfatório?
– Estás a ir longe demais! – irritou-se Alyx, virando-se para ela.
Joan sorriu graciosamente.
– Pelo menos, consegui que deixasses de sentir pena de vós própria.
Agora, onde quereis a tenda? Deveis decidir enquanto vou buscar alguns
homens para nos ajudar.
De seguida, afastou-se deslizando silenciosamente por entre o grupo de
pessoas que se reuniam lentamente à volta de Alyx e dos quatro cavalos
carregados.
– Dá para perceber que escapou sem se queimar muito – disse um
homem, olhando Alyx para cima e para baixo insolentemente.
– Não é possível queimar bruxas verdadeiras – comentou uma mulher.
– Vestidinho bonito – disse outra voz. – Com quem dormiu para
conseguir isso?
Alyx levantou o queixo.
– Quero agradecer a todos vós por terem ido socorrer-me quando precisei
de ajuda. Sei que não o merecia, mas estou-vos grata.
Isto pareceu acalmar a multidão por um momento.
– Ninguém a queria ajudar – disse um homem com uma cicatriz na cara. –
Foi por Lorde Raine que fomos. E agora, pelo ar dele, parece desejar que a
tivéssemos deixado arder.
A declaração provocou uma grande gargalhada geral e, abanando a
cabeça e batendo nas costas uns dos outros, voltaram para o acampamento,
deixando Alyx sozinha.
– Estais a pensar chorar? – perguntou Joan, maliciosamente, ao ouvido de
Alyx. – Eles iriam gostar disso. Vamos, vinde ver o que encontrei.
Inspirando profundamente, Alyx afastou-se do acampamento na floresta.
Esperaria ela que eles percebessem que tinha mudado? E olhou para Joan,
ladeada por quatro jovens fortes e bem-parecidos.
– Eles vão ajudar-nos a montar a tenda – disse Joan, passando os braços
por cima de dois dos homens.
Alyx teve de sorrir para Joan, que conseguia ser feliz tão facilmente.
Judith tinha dito que Joan era como um gato a escorregar de cama em cama.
Espantada, Alyx observou enquanto Joan começou a dar ordens aos jovens,
ao mesmo tempo que lhes fazia uma carícia aqui e ali. Uma vez, Joan olhou
para cima e piscou o olho a Alyx. «Rapariga insolente!», pensou Alyx,
virando-se para esconder um sorriso.
Junto aos cavalos, começou a descarregar os embrulhos que ela e Judith
tinham embalado.
– Precisais de ajuda? – perguntou um dos jovens de Joan por trás dela,
enquanto lhe tirava o embrulho das mãos.
– Obrigada – disse ela, sorrindo-lhe. – És novo no acampamento?
Ele riu-se e os seus olhos castanhos cintilaram.
– Eu estava aqui antes de Raine, e estava aqui quando éreis um rapaz.
Mudastes um pouco – brincou ele, observando-a.
– Eu não... – começou ela antes de desviar o olhar.
– Acho que nunca olhastes para nenhum de nós. Foi sempre a ele que
observastes. – E virou a cabeça na direção da tenda de Raine. – Acho que
não vos censuro, visto que ele é um nobre rico e vós sois… éreis… uma... –
E parou.
– Foi assim que pareceu? – questionou Alyx, principalmente para si
própria.
– Explicou muita coisa quando Lorde Raine nos disse que devíamos
salvá-la.
– Disse-vos, foi? – perguntou ela. – Sem dúvida que ficaram todos muito
contentes com a ideia de me salvar.
O jovem clareou a garganta e pegou no embrulho.
– Vou levar isto para o acampamento por si.
– Espera! – gritou ela. – Como te chamas?
– Thomas Carter – disse ele, sorrindo.
Pensativa, Alyx acabou de descarregar o cavalo. Ela tinha passado meses
naquele acampamento e, tanto quanto sabia, nunca vira sequer Thomas
Carter, no entanto, ele estava lá e tinha até arriscado a sua vida para a
salvar.
Franzindo o rosto, voltou para o acampamento e ficou muito contente
quando Thomas lhe sorriu.
Joan e os jovens montaram a tenda rapidamente e guardaram os pertences
dela no interior. No exterior ardia uma fogueira quente.
– Subiste na vida, não é verdade? – perguntou uma mulher do outro lado
do fogo, com os olhos fixos em Alyx. Tinha um bócio enorme no pescoço,
que a obrigava a inclinar a cabeça para um lado.
– Podemos partilhar o que temos contigo? – perguntou Alyx calmamente,
e depois virou-se para olhar furiosamente para Joan, que tinha arfado em
protesto.
A mulher abanou a cabeça, com os olhos bem abertos, e deixou-as.
– Não podeis deixar que aquela escumalha doente se aproxime de nós! –
sibilou Joan. – Gostáveis de ter uma coisa daquelas no pescoço? Só é
preciso ela sentar-se ao nosso lado e...
– Silêncio! – disse Alyx, revendo-se em Joan. – Não vou permitir que
desprezes estas pessoas. Salvaram-me a vida e, por toda a imundície e
doença que sofrem, merecem mais do que eu posso retribuir. E, quanto a ti,
vais tratá-los bem e não apenas os homens.
Joan cerrou os dentes, murmurando algo sobre Alyx trair a sua classe, e
que a cada dia ficava mais parecida com Lady Judith. Em silêncio,
desapareceu na escuridão.
«Como Lady Judith», pensou Alyx, e percebeu que nunca tinha recebido
tal elogio antes. Sorrindo, levantou-se e foi para a sua tenda. Sozinha na
pequena cama, lembrou-se das suas noites com Raine. Pelo menos, agora
estava perto dele e, pela primeira vez em meses, conseguiu dormir bem. Os
seus últimos pensamentos antes de adormecer foram para Catherine.
De manhã, Alyx acordou revigorada e sorridente. O ar puro e frio da
floresta soube-lhe bem e fê-la sentir-se até um pouco como em casa. Não
havia sinal de Joan e, por isso, Alyx vestiu-se sozinha com um vestido de lã
verde-esmeralda com uns acabamentos dourados entrançados. Uma
pequena touca na parte de trás da cabeça não era suficiente para esconder os
caracóis que lhe emolduravam o rosto. O seu cabelo estava agora mais
comprido e já não odiava a cor invulgar que fazia com que cada fio
parecesse único.
No exterior da tenda, foi saudada por uma Joan de aspeto exausto,
sentada sem se mexer, servindo-se de um cepo de árvore como banco. O seu
cabelo caía-lhe pelas costas e o ombro do vestido estava rasgado. Tinha um
hematoma no pescoço. Ela olhou para cima, para Alyx, com os olhos
brilhantes a quererem saltar das órbitas azuis.
– São homens vigorosos – disse ela, cansada, mas tão alegremente que
Alyx teve dificuldade em evitar o riso.
– Vai descansar – disse Alyx, severamente. – E, quando acordares,
falaremos da tua conduta repulsiva.
Pesadamente, Joan levantou-se e caminhou em direção à tenda.
Alyx apanhou o braço da sua aia.
– Os quatro de uma vez? – perguntou ela, com curiosidade.
Joan limitou-se a assentir com a cabeça, com as pálpebras a inclinarem-se
cansadamente enquanto entrava na tenda.
Alyx estava a pensar no assunto – quatro homens ao mesmo tempo? –
quando Raine lhe apareceu à frente, com os olhos a cintilar de raiva. Ela
engoliu duas vezes em seco.
– Bom dia – conseguiu ela dizer.
– Malditas sejam as tuas manhãs – rosnou ele, olhando-a de relance. –
Aquela rameira que trouxeste contigo esgotou quatro dos meus homens.
Não me servem de nada esta manhã. Nem sequer conseguem levantar uma
espada. Não sei porque vieste aqui, mas acho que está na altura de
regressares.
Ela sorriu-lhe docemente.
– Que acolhimento encantador, meu marido. Peço desculpa pela minha
criada, mas, como talvez te lembres, não tenho tido muita prática em lidar
com os servos. Nem todos podemos nascer no meio da nobreza. Quanto ao
porquê da minha vinda aqui, tenho uma dívida a pagar.
– Não me deves nada.
– A ti! – disse Alyx, nervosa, depois acalmou-se, forçando um sorriso. –
Talvez te deva alguma coisa, mas devo mais a estas pessoas.
– Desde quando te preocupas? – Raine olhou para ela, semicerrando os
olhos.
– Desde que arriscaram as suas vidas para me salvar – respondeu ela,
calmamente. – Gostarias de te juntar a mim e comer um pouco para quebrar
o teu jejum? Posso oferecer-te uma tarte de carnes frias.
Ele parecia querer dizer algo, mas girou sobre os calcanhares e deixou-a.
Alyx continuou a sorrir, com o coração a bater enquanto observava as
suas costas largas a afastar-se.
– Satisfeita contigo mesma? – perguntou Jocelin por trás dela.
Alyx riu-se sonoramente.
– Serei eu assim tão transparente? Raine Montgomery é um homem
arrogante, não é? Ele pensa que estou aqui apenas por causa dele.
– E não estás? – perguntou Joss.
– Eu vou enlouquecê-lo – afirmou Alyx, alegremente. – Queres comer
alguma coisa? Tens tempo para te sentares comigo e responder a algumas
perguntas?
As perguntas que Alyx fez foram sobre as pessoas do acampamento,
perguntas para as quais ela devia saber as respostas, uma vez que vivera
com elas durante meses. Mas sentia-se como uma forasteira.
– Não vai ser fácil ganhar a confiança deles – disse Jocelin. – Eles têm
muitos ressentimentos contra ti. Blanche lançou sobre ti a culpa de muitos
problemas.
– Blanche! – exclamou Alyx, sentando-se direita. As peças do puzzle
começavam a encaixar-se. – Blanche, a culpada da morte de Constance. De
que outra forma poderia ela ter sabido sobre Edmund Chatworth? Deves
odiar Blanche.
– Estou farto de odiar. – E levantou-se. – Gostarias de ver Rosamund? Se
queres ajudar as pessoas, ela pode indicar-te por onde deves começar.
Alyx não estava preparada para as mudanças de Rosamund. Os seus olhos
brilhavam tanto quando olhava para Jocelin que a mancha de nascença na
sua face quase desaparecera. Os olhos de Joss não brilhavam menos.
– Alyx gostaria de te ajudar – disse ele com uma voz suave e doce,
pegando na mão de Rosamund.
Rosamund dirigiu a Alyx um sorriso tolerante que a fez endireitar as
costas, e agradeceu aos céus pelos ensinamentos de Judith.
– Tenho a certeza de que vamos encontrar algo para fazeres – disse
Rosamund com a sua voz suave.
Foi precisa uma semana para que Rosamund percebesse que Alyx estava
a falar a sério. Durante esse tempo, Alyx trabalhou cedo e tarde e nenhum
trabalho estava abaixo dela. Lavava e ligava feridas abertas. Ajudou uma
mulher doente com varíola francesa a dar à luz e, quando o bebé cego
morreu, ela enterrou-o; ninguém mais tocaria no pobre coitado. Cantou para
uma mulher idosa que gritava incoerentemente com fantasmas que só ela
podia ver.
– Vossa senhoria está a fazer-nos um favor, aos mais desprezados – disse-
lhe um homem enquanto ela passava na escuridão a caminho da sua tenda.
– Antes tinha medo de sujar as mãos, e agora nada é suficientemente sujo
para ela. Mas não vejo Raine a curvar-se diante dela.
Na sua tenda, Alyx colocava as mãos nas têmporas. Doía-lhe a cabeça por
causa dos barulhos e dos cheiros horríveis. Os doentes permitiam que ela
lhes tocasse, mas as pessoas saudáveis ignoravam-na, exceto para a
provocarem. E, quanto a Raine, ela raramente o via.
– Viestes aqui para reconquistar Raine ou esta escumalha doente? –
perguntava Joan frequentemente.
– Raine – sussurrava Alyx, esfregando as têmporas. Agora, a tenda estava
vazia. Joan obviamente dormia noutro lugar. Alyx não estava habituada a
ter criados e estava a ser um fracasso a controlar Joan. Ao reparar que os
baldes de água estavam vazios, Alyx agarrou-os e foi até ao riacho.
Ajoelhando-se na margem, olhou-se na superfície cintilante da água,
como diamantes partidos ao luar. Um som fê-la virar-se e o seu coração
saltou-lhe à garganta quando viu Raine, o seu grande corpo – um corpo que
ela conhecia tão bem, a tapar a Lua.
– Já provaste o que querias? – perguntou ele calmamente, com uma voz
tão suave e dura como o aço. – Esperavas que, depois de ligar uma ferida
desagradável, as pessoas caíssem aos teus pés em agradecimento? Eles
julgam melhor as pessoas do que eu.
– Espero que me digas o que isso significa – respondeu ela, perplexa.
– És uma boa atriz. Uma vez, acreditei que eras... honesta, mas aprendi da
pior maneira. Espero que eles percebam mais depressa do que eu.
Alyx levantou-se, com os punhos cerrados ao seu lado.
– Poupa-me a tua autocomiseração – disse ela, entredentes. – Pobre Lorde
Raine que desceu ao ponto de se apaixonar por uma plebeia e, quando ela
fez o seu melhor para o salvar da ira do Rei, ele percebeu imediatamente
que ela tinha ultrapassado os seus limites.
O volume da sua voz elevou-se.
– Quero dizer-te uma coisa, Raine Montgomery. Não me importa se estas
pessoas me odeiam. Eu mereço-o muito bem. E, quanto à sua queda a meus
pés, não espero que o façam. Pelo menos, eles são honestos. Tu defendes-te
como uma espécie de mártir e não dás ouvidos a ninguém. Em vez disso,
preferes acreditar que foste enganado e que só tu tens sentido de honra.
– E o que é que tu, mulher, sabes sobre honra? – desdenhou ele.
– Muito pouco. Na verdade, sei muito pouco sobre qualquer coisa, exceto
sobre música. Mas, pelo menos, estou disposta a admitir que tenho falhas.
Enganei estas pessoas e estou a tentar corrigir o meu erro. Tu, meu alto
senhor, enganastes-me… e à tua filha, sobre a qual nem sequer perguntas.
– Já ouvi falar dela – disse Raine com firmeza.
Alyx soltou um som que atravessou a pele de Raine como uma rebarba de
aço.
– Que generosidade da tua parte! – disparou ela. – Raine, o grande
senhor, senhor das florestas, rei dos fora da lei, ouviu falar da sua própria
filha.
Alyx acalmou-se.
– Vim aqui para te reconquistar, mas agora não tenho a certeza se te
quero. Afasta-te de mim. Leva a tua fria honra para a cama contigo.
– Há outras mulheres dispostas a partilhar a minha cama – disse ele, com
um olhar duro.
– Têm toda a minha piedade – as palavras saíram forçadas a Alyx. –
Quanto a mim, prefiro um tipo de homem diferente, que não seja tão rígido
e frio, um que ainda esteja vivo.
Ela não viu o movimento do braço de Raine na sua direção. Ele era
sempre mais rápido, mais forte, do que ela se lembrava. Os seus dedos
fortes morderam-lhe a parte de trás da cintura e, enquanto os seus olhos se
cruzavam com os dele, ele sorriu ligeiramente, divertido, enquanto a puxava
para junto de si.
Baixando a cabeça, os seus lábios pairavam sobre os dela.
– Com que então sou frio, é? – disse ele, e a sua voz provocou-lhe
arrepios pela espinha abaixo.
Uma pequena parte do cérebro de Alyx ainda estava a funcionar.
Ele queria dar-lhe uma lição, não era?, pensou ela, enquanto se punha em
bicos de pés e lhe lançava os braços ao pescoço.
Quando os seus lábios se tocaram, os dois sustiveram a respiração com
força e afastaram-se um do outro, olhos violáceos a olhar para azul. Alyx
pestanejou uma, duas vezes, antes de a boca de Raine descer sobre a dela
com a fome de um homem moribundo. Ele endireitou-se, abraçou-a, e os
pés dela elevaram-se do chão enquanto ele agarrava a parte de trás da
cabeça dela com a sua mão forte e lhe virava a cabeça para os lados. A sua
língua invadiu a boca dela, enviando faíscas tão quentes através do seu
corpo que pareciam queimar-lhe todas as suas forças. O corpo dela ficou
flácido contra o dele, permitindo-lhe suportar todo o peso dela.
Os lábios de Raine começaram a trabalhar contra os dela, aproximando-a
dele, a mão massajando-lhe a cabeça, os seus dedos brincando com os
músculos na parte de trás do seu pescoço.
Alyx apertou o mais possível na sua tentativa de se aproximar mais. As
pernas dela movimentaram-se para cima até se aproximarem da cintura
dele. Ela virou a cabeça, tomando a iniciativa, enquanto a sua língua se
emaranhava com a dele, os seus dentes duros contra os seus lábios.
O som forte de cavaleiros a aproximar-se em muitos cavalos fez disparar
o detetor de perigo de Raine. Lentamente, cambaleando, saiu do nevoeiro
vermelho e grosseiramente, enraivecido, afastou Alyx dele.
Por um momento, a sua expressão manteve-se suave; depois, voltou a
ficar indiferente.
– Esperavas atrair-me de volta para ti? – sussurrou ele. – Usaste as
mesmas armas em Chatworth?
Alyx demorou um pouco a compreender o que ele queria dizer.
– És um tolo, Raine Montgomery – replicou ela suavemente. – Será que o
teu ódio se sobrepõe ao teu amor?
E, com isso, levantou as saias, esquecendo os baldes de água aos seus
pés, e voltou para o acampamento. Atrás dela, ouviu Raine falar com os
cavaleiros, com uma voz desnecessariamente zangada.
Capítulo Vinte

–SEJA COMO FOR – dizia Joan ao pentear os caracóis a Alyx –, as pessoas


estão menos zangadas convosco. – Não se notava qualquer tom de
felicitação na voz de Joan. – Quando ides parar de perder tempo e ides atrás
de Lorde Raine? Estamos aqui há duas semanas inteiras e ele ainda só olha
para vós. Devíeis despir-vos e ir para a cama com ele.
– Ele iria vangloriar-se demasiado – respondeu Alyx, abotoando a lã roxa
da sua manga. – Não lhe darei a satisfação da vitória assim tão facilmente.
Ele disse-me algumas coisas horríveis.
Joan riu-se.
– O que importa o que os homens dizem? Eles têm cérebro apenas para se
matarem uns aos outros. Ponde uma espada na mão de um homem e ele fica
feliz. Uma mulher tem de trabalhar para lhe ensinar que há coisas na vida
para além da guerra.
– Talvez tenhas razão. Raine preocupa-se mais com o facto de eu o ter
traído do que com a forma como a sua filha se aguenta sozinha sem a mãe.
Talvez eu deva voltar à minha Catherine e deixar Raine com o seu amuo.
– É mesmo amuo – concordou Joan. – Sabíeis que ele não dormiu com
nenhuma mulher desde que voltou da casa de Lorde Gavin?
O sorriso de Alyx começou pequeno, mas cresceu.
– Ele ama-vos, Alyx – disse Joan, suavemente.
– Então, porque não o demonstra! Porque é que ele me despreza e anda
zangado comigo? Quando estou com Rosamund, olho para cima e lá está
ele, a observar-me com o seu olhar frio. Sinto-me como se me atirasse água
gelada para o corpo.
Joan riu-se com prazer.
– Ele está a mostrar-vos que se preocupa! O que esperais que ele faça,
que peça desculpa? – Joan riu-se ainda mais com esta ideia. – Nosso Senhor
tornou as mulheres mais fortes para que pudessem suportar as fraquezas dos
homens. Dizeis que estáveis errada ao tratar as pessoas da floresta como o
fizestes, por isso admitiste-o e começastes a corrigir o vosso erro. Achais
que um homem poderia ser tão forte?
– Raine acusou-me de ser uma traidora – insistiu ela, teimosamente.
– O Rei disse que Lorde Raine é um traidor. O Rei está errado, mas será
que o admite? Não mais do que o vosso marido vir ter convosco, pedindo-
vos que o perdoeis.
– Não gosto disto – retorquiu Alyx, com o lábio inferior saliente. – Não
fiz mal nenhum a Raine. Roger Chatworth…
– Maldito Chatworth! – exclamou Joan. – O orgulho de Raine está ferido.
Ficou ao lado de outro homem em vez do seu marido. Acima de tudo, os
homens esperam lealdade cega.
– Eu sou leal, é...
Calou-se quando Jocelin, sem fôlego, irrompeu pela tenda sem aviso
prévio.
– Tens de vir – disse ele a Alyx. – Talvez possas evitar uma morte.
– De quem? – perguntou Alyx, levantando-se imediatamente e seguindo
Joss antes de ele poder responder.
– Brian Chatworth acabou de pedir autorização para entrar no
acampamento. Raine está a colocar a armadura para se encontrar com ele.
– Mas Judith disse que Brian amava Mary, que Brian lhes levou o seu
corpo.
– Talvez seja o nome Chatworth. Só por si desperta a fúria de Raine.
Jocelin içou Alyx para um cavalo e partiram rapidamente, esquivando-se
dos ramos das árvores enquanto cavalgavam. Quando finalmente pararam, a
visão à sua frente surpreendeu Alyx. Numa pequena clareira, iluminada
pelo sol vespertino, estava um homem jovem. Era pequeno, magro,
delicado mesmo. No entanto, tinha as características faciais de Roger
Chatworth. Se Alyx o tivesse visto noutro lugar, teria adivinhado que este
quase rapaz era o filho de Roger.
Alyx deixou-se escorregar do cavalo antes de Joss conseguir desmontar.
– Posso dar-vos as boas-vindas? – questionou ela, caminhando na direção
do rapaz. – Sou Alyxandria Montgomery, esposa de Lorde Raine. Conheci
o seu irmão.
Brian endireitou-se até ao máximo da sua altura.
– Não tenho irmão – disse ele com uma voz surpreendentemente
masculina. – Venho juntar-me a Lorde Raine na sua luta para vingar a morte
da sua irmã.
– Oh, meu Deus – disse Alyx, espantada. – Esperava que trouxésseis
alguma solução para esta briga.
– Todos desejamos isso – ouviu-se uma voz por cima da cabeça de Alyx.
Ela olhou para cima, mas não conseguia ver ninguém.
– Quem deseja? Não és um dos guardas de Raine.
– Oh, mas sou, e tu és mesmo a esposa de Raine?
Alyx escutou a voz, com a certeza de que nunca a tinha ouvido antes; no
entanto, havia algo que lhe era familiar. Era definitivamente uma voz cheia
de humor. Olhou de relance para Brian e Jocelin. O rosto de Brian estava
imóvel, demasiado duro para um indivíduo tão jovem, enquanto Joss
encolhia os ombros.
A sua atenção foi subitamente atraída pela chegada de Raine, montado no
seu grande e pesado cavalo de guerra, vestindo armadura completa, coberto
de aço da cabeça aos pés.
Desmontando, caminhou em direção a Brian Chatworth, e o jovem não
vacilou. Um golpe da mão de Raine teria sido o suficiente para o fazer
estatelar-se no chão.
– Tencionas esconder-te atrás das saias da minha mulher? – questionou
Raine, em voz baixa. – Ela é conhecida por proteger Chatworths.
Alyx colocou-se entre Brian e Raine.
– E entras em guerra com crianças? – gritou-lhe ela. – Não o podes ouvir?
Ou és demasiado intolerante para dar uma oportunidade ao rapaz?
Raine não chegou a responder a Alyx porque os risos vindos das árvores
o fizeram parar.
Alyx observava, de boca aberta, enquanto um homem descia para o chão.
Usava a roupa mais extraordinária que alguma vez tinha visto: uma camisa
de manga comprida, de cor amarelo suave, coberta por uma manta de tartã
azul brilhante enrolada na sua cintura de tal forma que formava uma saia e,
depois, atirado sobre o ombro, com um cinto pesado a segurá-lo no lugar.
Os seus joelhos estavam à vista e as suas pernas envoltas em pesadas meias
de lã, usando sapatos grossos nos pés.
– Stephen – sussurrou Raine, os seus olhos amoleceram.
– Sim, «memo» eu – respondeu o homem estranhamente vestido. Era alto
e magro, de cabelo louro-escuro, um homem muito bonito. – Trouxe este
rapaz até ti. Ele quer partilhar o teu exílio e gostaria de aprender contigo.
– Ele é um Chatworth – afirmou Raine, e os seus olhos endureceram
novamente.
– Sim, é um Chatworth – disse Alyx. – E não lhe vais perdoar, pois não?
Sem dúvida que vais odiar este homem por ter ousado trazê-lo aqui. Podes
ir – disse ela a Stephen. – Não vale a pena tentar argumentar com ele. Tem
um pedaço de madeira no lugar do cérebro.
Para sua surpresa, Stephen começou a rir, um riso sonoro, profundo e
alegre.
– Oh, Raine – gritou ele, batendo no ombro blindado de Raine, fazendo
tilintar o aço. – Como Gavin e eu rezámos por este momento. Portanto,
apaixonaste-te por uma mulher que briga contigo a cada momento? Gavin
escreveu-nos, contando sobre a nossa nova irmã, a coisinha doce, prestável
e simpática que ela é. – E virou-se para Alyx. – Judith disse que tinhas uma
voz forte, mas há um momento atrás quase me deitaste abaixo da árvore.
– Tu és Stephen Montgomery – disse Alyx, admirada. Parecia-se um
pouco com Gavin, mas, para além da sua roupa, o seu sotaque era estranho.
– MacArran – corrigiu Stephen, sorrindo-lhe. – Sou casado com uma
MacArran e o meu nome pertence-lhe. Agora vais dar-me um beijo ou
preferes discutir com o meu irmão?
– Oh, um beijo! – exclamou Alyx com tanto entusiasmo que Stephen riu
de novo antes de a abraçar. O beijo dele foi menos que fraternal. – Podes
ajudar-me a incutir-lhe algum bom senso? – sussurrou-lhe ela. – Ele está
obcecado com os Chatworth.
Stephen piscou-lhe o olho quando a libertou, voltando-se para Raine.
– Percorri um longo caminho, irmão. Não me ofereces um refresco?
– E quanto a ele? – Raine moveu-se, indicando Brian.
– Ele também pode vir – riu Stephen. – Pode ajudar-me a desarmar-te. E
tu, Alyx, vais juntar-te a nós?
– Se for convidada – respondeu ela, olhando diretamente para Raine.
– Eu convido-te – disse Stephen, enquanto colocava o braço sobre os
ombros de Alyx e começava a avançar. – Segue-nos, Brian – gritou por
cima do ombro.
– És sempre assim tão corajoso? – perguntou Alyx, olhando para cima
para Stephen.
O rosto de Stephen estava sério.
– Há quanto tempo é que ele está assim?
– Não sei bem a que te referes.
– Indiferente, zangado, com má cara para toda a gente. Isto não parece de
Raine.
Ela pensou um momento antes de responder.
– Ele tem estado assim desde a morte de Mary.
Stephen acenou uma vez com a cabeça.
– Raine terá levado isso muito a sério. Essa é uma das razões para ter
trazido Brian. Eles são muito parecidos. Brian odeia obcecadamente o seu
irmão. E vocês? O humor miserável do meu irmão não te assusta?
– Ele pensa que o traí.
– Sim, o Gavin e a Judith disseram-me.
A voz dela aumentou de volume.
– Ele não me ouve. Tentei explicar-lhe, mas devolveu as minhas cartas
por abrir. E também não dá ouvidos a Gavin.
Stephen apertou-lhe os ombros.
– Gavin vai sempre pensar em Raine e Miles como crianças. Raine e
Gavin não podem estar dois minutos numa sala sem discutir. Fica comigo e
vou ver se consigo fazê-lo ouvir-me.
Alyx sorriu tão radiantemente que Stephen riu.
– A minha Bronwyn vai querer o teu coração numa bandeja se continuas
a olhar para mim assim. Consegues realmente cantar tão bem como Judith
diz?
– Melhor ainda – disse Alyx com tanta confiança que Stephen riu de
novo.
Pararam em frente à tenda de Raine e Stephen murmurou algo sobre
desperdiçar dinheiro que Alyx não compreendeu. Em jeito de rapaz
amuado, Raine seguiu-os para dentro e, após um olhar malévolo lançado a
Alyx, dirigiu-se a Stephen.
– O que te fez viajar até tão longe para sul? Aqueles escoceses
expulsaram-te?
– Vim conhecer a minha nova cunhada, é claro.
– Ela preferia que fosses um Chatworth.
Stephen fez uma pausa, com o elmo de Raine na mão.
– Não posso permitir que digas tais coisas – afirmou ele, calmamente. –
Não provoques uma briga entre nós. Planeias renegar-me porque trouxe um
Chatworth para o teu acampamento?
– És meu irmão – disse Raine, sem rodeios.
– Significa que confias em mim? – Havia gargalhadas na sua voz. – Diz-
me, irmão, o que te incomodou mais, que a tua mulher tenha falado com um
Chatworth ou que se tenha atrevido a falar com qualquer homem bonito?
– Chatworth! – exclamou Raine bem alto, olhando de relance para Alyx,
que estava a analisar as suas unhas.
– Alguma vez te falei na partida que Hugh Lasco me pregou? – Stephen
ajoelhou-se para desapertar os protetores das pernas de Raine.
Enquanto Stephen começou a contar uma longa e vagamente
inacreditável história, Alyx observava Raine. Passado algum tempo,
começou a compreender o ponto de vista de Stephen. Este tinha acreditado
em todo o tipo de obscenidades sobre a sua esposa, e, como resultado da
sua desconfiança, quase a tinha perdido.
– Alyx – Stephen voltou-se para ela subitamente. – Estás apaixonada por
Roger Chatworth? Estás a pensar em deixar Raine por ele?
A ideia era tão ridícula que Alyx riu… até ver o brasido que brilhava nos
olhos de Raine.
– Roger Chatworth merece morrer pelo que fez a Mary, mas não às mãos
do meu marido. Não vale o suficiente para ver Raine enforcado pelo seu
assassinato.
Por um momento, Alyx pensou que Raine talvez estivesse a ouvi-la, mas
o momento passou quando ele se sentou na cama e começou a retirar as
almofadas de algodão que protegiam a sua pele da armadura de aço.
– As mulheres têm línguas traiçoeiras – murmurou ele.
Stephen olhou para Alyx, viu os seus olhos dispararem fogo.
– Tens a minha permissão para dar cabo dele – referiu, amigavelmente. –
Alyx, podes ir buscar-nos alguma comida? Posso morrer de fome em breve.
Assim que ficaram sozinhos, Raine voltou-se para o seu irmão.
– Porque é que vieste? Certamente, queres mais do que meter-te entre a
minha mulher e eu.
– Alguém devia – respondeu Stephen rispidamente. – O coração dela vê-
se nos seus olhos. Não a consegues perdoar? Ela não conhece os nossos
modos, e as mulheres têm ideias tão estranhas sobre honra. Ouvi dizer que
ainda não viste a tua filha. Ela é parecida contigo.
Raine recusou-se a ser persuadido.
– Porque trouxeste Chatworth?
– Pela razão que eu disse: ele quer treinar contigo. O Rei não vai gostar
que treines um nobre para lutar contra outro. E que história é essa que ouço
dizer de teres criado um exército de criminosos para derrubar o Rei?
Raine riu-se sonoramente dessa ideia.
– Quem foi o mentiroso que te disse isso?
– Pagnell de Waldenham disse isso ao rei Henrique. Não ouviste dizer?
Pensei que Alyx tinha vindo avisar-te disso. Os ouvidos do Rei estão a ser
entupidos de mentiras contra os Montgomery.
– Alyx não achou por bem avisar-me – disse Raine.
– E estou certo de que te sentaste e lhe perguntaste gentilmente porque
abandonou a sua filha e o conforto da casa de Gavin para vir viver perto de
ti, nesta floresta fria.
– Eu não preciso nem quero que interfiras na minha vida.
Stephen encolheu os ombros.
– Lembro-me de alguns pontapés que recebi quando Bronwyn e eu
tivemos problemas.
– E agora tudo é paz e amor contigo, não é? – perguntou Raine, franzindo
a sobrancelha.
Stephen pigarreou.
– Temos... ah, algumas desavenças de vez em quando, mas geralmente ela
aprende da forma mais correta.
– Gostaria de ouvir a versão de Bronwyn sobre isso – respondeu Raine,
antes de mudar de assunto. – Viste o Miles?
Stephen foi salvo de responder pelo aparecimento de Alyx com um
tabuleiro, com Joan atrás dela com um segundo tabuleiro. Stephen não quis
dizer a Raine que o seu problema com as mulheres era ligeiro em
comparação com o de Miles.
Assim que Alyx percebeu que Joan ia fazer figura de parva por causa de
Stephen, mandou a criada sair. A refeição foi incómoda, a primeira que
Raine e Alyx partilhavam desde que ela regressara à floresta.
Stephen fez quase toda a conversa, entretendo-os com histórias da
Escócia.
– E deviam ver o meu filho – gabou-se Stephen. – Tam já o levou a
montar e ele ainda não se sabe realmente sentar. Tu e eu não montámos
antes de conseguirmos andar. E como está a tua filha, Alyx?
Pela primeira vez em duas semanas, Alyx concentrou-se completamente
na sua filha.
– Ela é forte – retorquiu ela, sonhadoramente –, pequena e saudável, com
um choro ávido que também fez chorar o filho de Judith.
– Protetora do seu primo, sem dúvida – disse Stephen. – Ela tem os teus
olhos.
– Viste-a? – perguntou Alyx, levantando-se do banco. – Quando? Estava
saudável? Terá crescido alguma coisa?
– Duvido que tenha mudado muito desde que a viste, mas concordo com
o que disseste sobre a sua voz. Achas que ela será capaz de cantar? –
Voltou-se para Raine. – Ela tem aquelas covinhas que herdaste da família da
mãe.
– Tenho de ver como está o acampamento. – Raine levantou-se tão
subitamente que quase virou a comida que Alyx tinha trazido. E,
rapidamente, deixou a tenda.
– Ele volta – disse Stephen confiante, sorrindo para os olhos
lacrimejantes de Alyx.
*

Alyx tentou não pensar na raiva constante de Raine e, em vez disso, virou
as suas atenções para Brian Chatworth. Era um jovem tristonho, e os seus
olhos negros revelavam um ódio profundo e ardente; nunca sorriu nem
parecia ter prazer com nada. Alyx não conseguiu persuadi-lo a falar ou a
confiar nela sobre qualquer assunto. As suas perguntas sobre onde tinha
estado nos últimos meses, desde a morte de Mary, obtiveram silêncio como
resposta.
Alyx desistiu passado algum tempo e deixou-o com os homens no campo
de treino. Raine não olhou nem falou com o rapaz e passou a maior parte do
tempo com Stephen.
Depois de Stephen estar no acampamento há três dias, Joan veio ter com
Alyx.
– Acho que eles estão a lutar – referiu Joan, entusiasmada.
– Quem? Não é o Raine e Brian Chatworth?
A voz de Joan soou impaciente.
– Claro que não! Lorde Raine e Lorde Stephen embrenharam-se na
floresta, e um dos vigias falou em vozes alteradas vindas de lá. Estão todos
a planear ir assistir.
– Não o farão! – exclamou Alyx, empurrando a criada e saindo para o ar
fresco. – Jocelin – gritou ela quando viu o seu amigo. – Detém-nos. Deixem
o Raine sossegado. E tu – disse ela, virando-se para Joan. – Ajuda a manter
os homens no acampamento. Faz o que for preciso. Mas nada de indecente
– gritou ela por cima do ombro enquanto se apressava a caminhar.
Jocelin recorreu à ajuda de alguns ex-soldados para o ajudar, enquanto
outros dos feridos ajudavam Alyx, e Joan tinha os seus próprios meios para
obrigar os homens a obedecer-lhe. Juntos conseguiram manter as pessoas
do campo afastadas do local onde Raine e Stephen estavam a ter a sua
«discussão».
– Eles estão a acalmar-se agora – disse um vigia quando foi substituído
por outra pessoa.
Alyx afastou-se, não querendo ouvir mais nada dos factos. Raine era
muito mais pesado do que o seu irmão e, obviamente, muito mais forte.
Stephen não podia vencer uma luta entre os dois, e Alyx rezou para que
Raine se contivesse e não magoasse a sério o seu irmão franzino.
Ao pôr do Sol, Alyx levou os baldes de água até ao riacho, na esperança
de escapar às vozes alegres das pessoas do acampamento. Estavam todos
amontoados à volta das fogueiras, ouvindo os vigias atentamente.
Ficou na margem do rio, imóvel, satisfeita com o silêncio, quando um
som a fez rodopiar. Raine vinha na sua direção, caminhando pesadamente e
cansado. Talvez ela devesse ter escutado os comentários das pessoas para
poder estar preparada para a sua primeira visão dele. O lado esquerdo do
seu rosto estava inchado e a ficar roxo. Havia hematomas na sua mandíbula
e o seu olho era uma mistura extravagante de cores não naturais.
– Raine – sussurrou ela, fazendo-o olhar para cima e para longe dela
enquanto ele se ajoelhava junto à água. Alyx esqueceu-se de qualquer
recordação de raiva entre os dois, mas correu para ele, ajoelhando-se ao seu
lado. – Deixa-me ver – pediu ela.
Docilmente, ele virou a cabeça para ela e Alyx colocou-lhe dedos frios na
cara inchada. Sem uma palavra, levantou a saia, rasgou um bocado de linho
do seu saiote, mergulhou-o em água fria e limpou-lhe o rosto.
– Conta-me tudo – disse ela, quase ordenando. – Que tipo de maça é que
Stephen usou na tua cara?
Passou um longo momento antes de Raine falar.
– O seu punho.
Alyx fez uma pausa na limpeza do rosto de Raine.
– Mas um cavaleiro... – começou ela. Tinha ouvido Raine gritar uma
centena de vezes sobre quão pouco cavalheiresco, quão pouco masculino,
era lutar com as próprias mãos. Muitos homens honrados tinham morrido
em vez de perder a sua honra usando os seus punhos.
– Stephen aprendeu uns costumes estranhos na Escócia – disse Raine. –
Ele diz que há mais do que uma maneira de lutar.
– E sem dúvida que ficaste ali parado como um grande boi e o deixaste
bater-te em vez de fazer uma coisa pouco própria de um cavaleiro como
bater-lhe na cara em troca?
– Eu tentei! – disse Raine, depois encolheu os ombros e acalmou-se. –
Ele dançava como uma mulher.
– Não insultes o meu sexo. Nenhuma mulher te fez isto à cara.
– Alyx. – Ele agarrou-lhe o pulso. – Não tens nenhum sentimento por
mim? Estarás sempre do lado dos outros contra mim?
Ela tomou-lhe o rosto suavemente nas mãos, os seus olhos a procurar os
dele.
– Amo-te desde o primeiro instante em que te vi. Mesmo nessa altura,
quando tinha planeado odiar-te, senti-me atraída por ti. Tentei não te amar,
mas foi como se algum grande poder me controlasse e eu não tivesse uma
palavra a dizer sobre o que fazia. Não te dás conta de que estou sempre do
teu lado? Naquele dia, na feira, se tivesses matado Roger Chatworth, podias
ter sido enforcado. Eu fingi ter-me deitado com Jocelin para te impedir de
sair da segurança da floresta. Que mais posso eu fazer para provar a minha
lealdade e amor?
Ele afastou-se dela.
– Talvez não goste dos teus métodos. Porque é que não me podes dizer o
que pretendes fazer? Porque tens de estar sempre a brigar comigo?
– Brigar é a única forma de me ouvires – disse ela, exasperada. – Disse-te
que não podias sair da floresta quando as pessoas me acusaram de roubar,
mas não me ouvias. Disse-te para não matares Roger Chatworth, mas
ficaste ali como um touro com as veias salientes no pescoço. – A sua voz
começava a levantar-se.
– Não sei quem é que me intimida mais… se o meu irmão, se tu.
O seu tom era tão infantil, cheio de pena de si próprio, que Alyx tentou
não rir.
– Sobre o que é que tu e Stephen discutiram?
Raine esfregou o maxilar.
– Stephen sugeriu-me que talvez eu devesse considerar que não foste
desleal quando salvaste a vida miserável do Chatworth. – Raine virou-se e
olhou para ela. – Tenho estado enganado? Será que te tratei muito mal?
Ainda há amor no teu coração para mim?
Ela tocou-lhe na face.
– Amar-te-ei para sempre. Por vezes, penso que nasci para te amar.
Uma única covinha apareceu-lhe na bochecha e ela susteve a respiração
enquanto pensava que ele a ia puxar para os seus braços. Em vez disso, ele
meteu a mão no interior do gibão e remexeu no bolso.
– Talvez com isto possa comprar um sorriso ou dois – disse ele, enquanto
balançava o cinto de Lyon diante dos olhos dela.
– O meu cinto – arfou ela. – Como é que o encontraste? Pensei que estava
perdido para sempre. Oh, Raine! – E abraçou-o, começando a beijar-lhe a
cara com tanto entusiasmo que lhe causou grande dor, mas ele não se
importou.
– Tu és o melhor marido – sussurrou ela, beijando-lhe o pescoço. – Oh,
Raine, como senti a tua falta.
As bocas colaram-se, rolaram de lado, depois mudaram de direção, e num
movimento rápido aterraram na água gelada do rio, com Alyx por baixo.
– Raine! – Alyx gritou de dor quando o seu pesado corpo rolou sobre o
seu braço, pressionando-o contra uma rocha. – Estás a partir-me o braço! –
Os seus dentes já começavam a tiritar.
– Seria uma pequena paga pelo que me fizeste – disse ele, deitado na água
como se fosse um colchão de penas. – Antes de te conhecer, a minha vida
era pacífica e calma. Agora, o meu próprio irmão bate-me.
– Porque mereceste – ralhou ela. – É a única maneira de te fazer ouvir.
Agora, deixa-me levantar e deixa-me secar antes que eu congele até à
morte.
– Eu sei uma maneira de te manter quente. – E começou a beijar-lhe o
pescoço.
– Seu grande javali estúpido – gritou-lhe ela ao ouvido, obrigando-o a
afastar-se e a abanar a cabeça para acabar com o zumbido. – Tenho frio e
estou molhada, e se não me deixares levantar, faço com que todo o
acampamento venha em meu socorro.
– Achas que viriam em teu socorro ou ficariam do meu lado?
Ela empurrou-o.
– Eles não te reconheceriam com a tua grande cara roxa.
Ele riu-se e afastou-se facilmente dela.
– Estás com bom aspeto, Alyx – disse ele, com olhos brilhantes, olhando
para o vestido molhado que se colava ao corpo dela.
Alyx firmou os braços atrás de si, começou a levantar-se e percebeu que o
vestido molhado era muito pesado. Com outro risinho, Raine levantou-se,
levantou-a a ela e começou a caminhar para a parte mais escura da floresta.
– O acampamento é por ali – apontou ela.
– Alyx, alguém deveria ensinar-te que nem sempre deves dar ordens.
Talvez estejas certa de vez em quando, mas, por vezes, devias ouvir e deixar
as ordens para os homens.
– Tenho de fazer o que é correto, e se precisares de ser salvo de ti mesmo,
fá-lo-ei – disse ela arrogantemente.
– Estás a remar numa direção onde nunca estiveste antes… se é que
alguma vez tiveste uma, o que duvido. Aquele padre que te treinou devia
ter-te dado com um alaúde no traseiro de vez em quando e assim talvez
tivesses um pouco de humildade.
– Tenho tanta humildade como tu – disse ela, observando-o. – Se fizeres
palermices, devo eu ficar de lado e não levantar a voz?
– Alyx, estás a ir longe demais – advertiu ele.
– E como me castigarás por falar a verdade?
– Não de uma forma que te agrade.
– Como podes ameaçar-me depois de tudo o que fiz por ti? Eu salvei-te
de Roger Chatworth. Quase fui queimada na fogueira porque os juízes
queriam as tuas terras. Fui-me embora com Jocelin para te manter a salvo
na floresta.
Raine agarrou-a pelos ombros e levantou-lhe os pés do chão, à distância
dos seus braços. Uma metade do seu rosto estava inchado e roxa, mas a
outra metade estava vermelha de raiva.
– Foste longe demais – disse ele entredentes.
Antes de Alyx poder respirar, Raine sentou-se num coto de uma árvore,
deitou Alyx no seu colo, de cara virada para baixo, e lançou-lhe as saias
sobre a cabeça. Deu-lhe uma palmada forte e dolorosa nas nádegas.
– Não foste julgada como bruxa por minha causa – disse ele. – Tiveste a
tua querela com Pagnell antes de eu alguma vez te ter conhecido.
Alyx não teve oportunidade de responder antes de Raine lhe bater no
traseiro outra vez.
– É verdade, eu estava zangado e talvez não devesse ter ordenado que
Chatworth fosse morto, mas, como estávamos num lugar isolado, quem
teria sabido e ido contar ao Rei? Não sou tão estúpido como pareces pensar
e não teria deixado o corpo perto da propriedade do meu irmão.
Mais uma vez, a sua mão desceu.
– Não gosto de ver as minhas ordens revogadas e especialmente diante
dos meus homens. Entendido? – Mais uma vez, desferiu uma palmada.
Alyx, com lágrimas nos olhos, acenou silenciosamente com a cabeça.
– Ótimo! Agora, quanto a ti e a Jocelin, não gosto de jogos e gracinhas
em que eu sou o elemento gozado. Doeu muito ver-te com outro homem e,
mais tarde, quando descobri que tudo tinha sido um truque, como se fosse
um idiota para ser feito de parvo, podia ter-te matado. E tu arriscaste a vida
da minha filha com os teus estúpidos joguinhos.
Um golpe muito duro atingiu-a.
– Quase perdeste a minha filha na fogueira, assim como nos perigos da
estrada, enquanto tu e Jocelin vagueavam pelo país. Não quero mais nada
disso, Alyx. – Bateu-lhe de novo. – Compreendes-me? És a minha mulher e
é bom que comeces a agir como tal.
Com mais uma palmada dolorosa, empurrou-a do seu colo.
Alyx sentou-se, com uma uma expressão de dor no rosto quando o seu
traseiro bateu no chão da floresta. Havia tantas lágrimas nos seus olhos que
mal conseguia concentrar-se.
Raine levantou-se, ficando acima dela.
– Quando deixares de estar amuada – disse ele –, volta para a tenda e eu
faço amor contigo tão apaixonadamente que te esquecerás de quem és. – De
seguida, afastou-se dela.
Por um momento, Alyx ficou sentada, seguindo-o com o olhar, depois
fechou a boca e levantou-se. Nenhuma birra no mundo valia a pena perder a
loucura de fazer amor. Tão depressa quanto as suas pernas rígidas a podiam
levar, Alyx correu atrás de Raine.
Capítulo Vinte e Um

ALYX ESTAVA DEITADA de costas na cama de Raine, com uma perna nua
pendurada na beira da mesma e um sapato de couro macio preso em dois
dedos do pé, feliz. Toda ela estava imensamente feliz, desde os dedos dos
pés até às raízes do seu cabelo. Raine tinha cumprido a sua promessa.
Durante toda a noite passada, ele tinha sido insaciável, nunca a deixando
dormir, movendo-a como uma boneca de trapos. Ela esteve por cima,
depois por baixo, esticada lateralmente e ele colocou-a entre as suas pernas.
Num minuto, era doce e gentil; no seguinte, tornava-se feroz, autoritário e,
a seguir, ficava quase aborrecido, como se se tivesse esquecido de que ela
estava lá. Nessas alturas, Alyx fazia algo matreiro para chamar a sua
atenção. O seu riso sensual fazia-a perceber que a estava a manipular e que
estava longe de estar aborrecido.
O Sol nascia quando ela finalmente lhe suplicou que parasse. Ele beijou-
lhe apenas o nariz, fez um sorriso meio torto com o seu rosto espancado,
levantou-se, lavou-se, vestiu-se e abandonou a tenda. Alyx decidiu dar ao
seu corpo ferido, marcado e exausto algumas horas de sono.
Mais tarde, finalmente acordada, deixou-se ficar quieta, a cantarolar para
si própria e a recordar a noite passada.
– Parece que, finalmente, aprendestes o que fazer com um homem – disse
Joan, entrando na tenda. – Pergunto-me se todos os irmãos serão tão bons
como Lorde Miles. Parece que pensais assim. Sabíeis que estáveis a sorrir
durante o sono?
– Cala-te, mulher insolente – disse Alyx de uma forma tão amigável que
Joan apenas se riu.
– É melhor que vos levanteis. Lorde Stephen teve algumas notícias da
Escócia e vai partir muito em breve.
– Não é nada de mal, pois não? – perguntou Alyx, levantando-se
relutantemente e encolhendo-se com uma dor nas costas. Por vezes, Raine
parecia pensar que ela era um trapo da forma como a envolvia no seu corpo,
uma perna aqui, outra ali, um braço acolá. Tinha um torcicolo no pescoço e
a memória do que Raine tinha feito para magoar aquela zona fê-la sorrir.
Joan olhava para ela com um interesse não disfarçado.
– Os meus quatro homens juntos não conseguiam pôr-me nesse estado.
Será Lorde Raine realmente um amante assim?
Alyx dirigiu-lhe um olhar sério.
– Terei o teu coração numa bandeja, se continuares a olhar assim para ele.
Joan sorriu apenas.
– Há anos que tento e ele não está interessado. O que ides vestir hoje?
Alyx vestiu cuidadosamente um vestido roxo pálido, com aplicações de
pele de coelho tingidas de um roxo-escuro e voluptuoso.
– Ah – disse Stephen, quando a viu –, tamanha beleza no meio de tal
mata. – E pegou-lhe na mão e beijou-a.
Alyx pegou-lhe na mão e examinou os nós dos dedos, que estavam em
carne viva, cortados, ainda por sarar.
– Estás sujeito a perder a mão se voltas a bater no meu marido –
sussurrou ela, com paixão. Stephen pestanejou uma vez antes de se rir.
– E o meu irmão ainda se preocupa com a tua lealdade. Tens de vir
conhecer a minha Bronwyn. Ela vai gostar de ti.
– Ouvi dizer que tens novidades.
O rosto de Stephen endureceu.
– Roger Chatworth encontrou Miles e Elizabeth sozinhos e espetou uma
espada no braço de Miles. Lady Elizabeth regressou a Inglaterra com o
irmão.
– Então, talvez em breve esta briga possa terminar. Roger tem a sua irmã
a salvo. Só falta levar o Rei a perdoar Raine.
– Talvez – disse Stephen. – Agora tenho de ir para casa e ajudar o meu
clã. O meu irmão mais novo está furioso e quer cavalgar sobre Chatworth.
– Vai! – disse ela. – Detém-no.
Stephen beijou-lhe a mão novamente.
– Vou fazer o que puder, e agora sei que deixo Raine em boas mãos. Ele é
um homem teimoso.
Alyx riu-se.
– Na vossa... conversa de ontem, mencionaste, por acaso, Brian
Chatworth? Agora que o Roger feriu Miles, será que Raine se vai vingar em
Brian?
– Não, acho que não. Esta manhã, Raine e Brian falaram durante muito
tempo e acredito que Raine abriu o coração ao rapaz. Não acredito que haja
mais problemas. Na verdade, estão agora no campo de treino. Tenho de ir.
Os meus homens esperam por mim.
– Os teus homens? – perguntou Alyx, surpreendida. – Não vi ninguém.
Presumi que estavas sozinho.
Stephen pareceu satisfeito com isto.
– Há seis MacArran comigo, acampados na floresta, de vigia.
– Mas nós temos vigias. Eles deviam ter vindo para o acampamento, para
o pé das fogueiras e ter comido alguma comida quente. Vão congelar lá
fora.
Stephen deu uma enorme gargalhada com isto.
– Os ingleses são uns tipos macios. Os nossos verões não são tão quentes
como os vossos invernos. Um dia, tens de vir às Terras Altas. Douglas diz
que o teu canto fará chorar os seus irmãos.
Havia tantas perguntas que Alyx queria fazer, mas não tinha ideia por
onde começar. As suas emoções transpareceram no seu rosto.
– Tens de vir – Stephen sorriu, beijou-lhe a face e desapareceu por entre
árvores, com a pequena saia esvoaçando sobre as suas coxas.
O que se seguiu para Alyx foram três dias de relativa paz. Raine parecia
ter criado laços com o aleijado Brian e ficou impressionado com a vontade
de aprender dele.
– O ódio está a corroê-lo – disse Raine, enquanto ele e Alyx se deitavam
na cama. – Pensa que, se treinar o suficiente, será capaz de combater o seu
irmão, mas Roger é formidável. Ele aniquilaria Brian com um só golpe.
– Irmão contra irmão – sussurrou Alyx e estremeceu.
Alyx sentiu pena de Brian, que dormia afastado das pessoas do
acampamento.
– Eu não confio nele – disse Joan. – Fala muito pouco e não se relaciona
com ninguém.
– Brian foi ferido. Vai ultrapassar isso – Alyx defendeu o rapaz.
– Ele está a planear alguma coisa. Tem andado a juntar a lanugem dos
cardos e ontem pagou a um homem para enviar uma mensagem a alguém.
– A quem? – perguntou Alyx, imediatamente preocupada. Talvez Brian
fosse realmente leal ao seu irmão e planeasse levar Roger Chatworth até
Raine, ou pior, a enviar os homens do Rei.
– Não sei a quem foi.
– Temos de dizer a Raine – respondeu Alyx, agarrando o pulso da sua
criada e arrastando-a para o campo de treinos.
– Eu sei da mensagem – disse Raine quando Alyx lhe contou. – Brian
deseja saber como está a sua irmã.
– Tiveste uma resposta?
Raine espetou a espada num alvo.
– A semente do meu irmão mais novo pegou e Lady Elizabeth carrega o
seu filho.
Alyx pensou na adorável Elizabeth… e na sua língua afiada.
– Ela não vai gostar disso. Ela não vai gostar que um homem a leve para a
cama e depois a descarte.
Raine dirigiu-lhe um olhar duro.
– Pareces entender que a culpa é toda do meu irmão. Talvez essa
Elizabeth seja uma mulher traiçoeira e tenha seduzido o meu irmão. Depois,
no fim de terem feito amor, ela deixou-o. Se Chatworth feriu Miles, quer
parecer-me que Miles lutava para manter a mulher.
– Talvez, mas Miles... – E calou-se, ouvindo o som de trombetas à
distância. – O que é que se passa?
Raine virou-se para alguns ex-soldados perto dele.
– Descubram o que se passa.
Em segundos, os homens cavalgavam e entravam para a floresta. Longos
minutos depois, voltaram.
– Roger Chatworth aceita o vosso desafio, meu senhor.
– Raine! – gritou-lhe Alyx.
Depois de um olhar tranquilizador, ele ignorou-a.
– Não lhe lancei nenhum desafio. Talvez Chatworth queira dar o primeiro
passo.
– Não, meu senhor. Ele...
– Fui eu quem enviou o desafio – disse Brian Chatworth por trás deles e
todos eles se viraram. – Eu sabia que o meu irmão não responderia a um
desafio meu, por isso enviei-o em nome de Raine Montgomery.
– Podes simplesmente ir dizer-lhe o que fizeste – pediu Alyx, como se
estivesse a falar com uma criança.
Ao longe, as trombetas tocaram de novo.
– Vai agora – ordenou Alyx – e explica-lhe.
– Alyx – disse Raine, em voz baixa. – Vai para a tenda. Isto não é assunto
para mulheres.
Ela olhou para ele, ainda magoado da sova de Stephen, e o que viu
assustou-a.
– Raine, não podes estar a pensar em aceitar o desafio. Não foste tu que o
enviaste. Tens certamente mais juízo do que...
– Jocelin – ordenou Raine. – Leva Alyx daqui.
Alyx esperou pelo seu marido dentro da tenda, andando para trás e para a
frente, estalando os dedos para Joan até a criada a deixar.
Quando Raine finalmente apareceu e os olhares dos dois se cruzaram,
Alyx arfou.
– Não, Raine – disse ela, abraçando-lhe a cintura. – Não foste tu que
lançaste o desafio.
Ele afastou-a de si, com as mãos nos braços dela.
– Tens de compreender que é uma questão de honra que já vem de há
muito tempo. Quando Chatworth estiver morto, talvez então a minha
família possa voltar a viver em paz. Se eu não o matar agora, ele irá atrás de
Miles por ter engravidado a sua irmã. Ele jura que Miles a tomou à força.
– Deixa Miles lutar contra Chatworth! – gritou Alyx. – Não quero saber.
Deixa todos os teus irmãos lutarem, mas não tu.
– Alyx – disse Raine suavemente. – Percebo que és uma mulher e, mais
ainda, não foste educada com os nossos costumes de honra, mas agora devo
pedir-te que não me insultes mais. Ajuda-me a vestir.
– Ajudar-te! Honra! Como podes falar-me de tais coisas? Que me
interessa a honra quando o homem que amo pode morrer? Lutei longa e
duramente para te manter a salvo, mas agora, por causa de alguns jogos
tolos de um rapaz, tens de pagar o preço. Deixa que Brian lute contra o seu
irmão.
O pescoço de Raine começava a ficar corado.
– Brian não está à altura de Roger Chatworth. E é a família Montgomery
que tem sido insultada. Esqueces-te que a minha irmã morreu por causa do
que Chatworth lhe fez? Não luto por Brian, mas sim por Mary, por Miles e
pela paz futura.
Alyx caiu de joelhos à frente de Raine, enquanto ele se sentava na beira
da cama.
– Por favor, não vás. Se não fores morto, ficarás gravemente ferido.
– Alyx. – Ele quase lhe sorriu enquanto lhe tocava no cabelo. – Talvez
não saibas, mas as propriedades que tenho foram compradas com dinheiro
que ganhei em anos de torneios. Já passei por centenas destes desafios.
– Não – disse ela, sentidamente. – Não como este. O ódio que tu e
Chatworth têm um pelo outro não estava envolvido nesses desafios. Por
favor, Raine.
Ele levantou-se.
– Não vou ouvir mais nada. Agora, vais ajudar-me a armar-me ou tenho
de ir buscar Jocelin?
Ela também se levantou.
– Pedes-me que te ajude a preparar-te para a tua morte? Devo eu ser a
esposa obediente e murmurar palavras suaves sobre honra? Ou deverei falar
de Mary e de como ela morreu e acrescentar combustível ao teu ódio? Se
Mary estivesse viva, quereria ela que lutasses por ela? Não terá sido toda a
sua vida uma tentativa de pacificação?
– Não quero que nos separemos com palavras amargas entre nós. Isto é
algo que eu tenho de fazer.
Ela estava tão zangada que tremia.
– Se nos separarmos agora e fores responder a um desafio que não foi
lançado por ti, então será com palavras zangadas… e serão definitivas.
Os olhos dos dois fixaram-se durante muito tempo.
– Pensa muito bem no que dizes – disse Raine, em voz baixa. – Já
discutimos antes sobre este assunto.
– Raine, não consegues ver como este ódio está a cegar-te? Até Stephen
percebeu como te tinha mudado. Esquece Roger Chatworth. Vai ter com o
Rei, implora o seu perdão e deixa-nos viver, abandonando esta conversa
constante sobre a morte e morrer.
– Eu sou um cavaleiro. Jurei vingar as injustiças.
– Então, faz algo sobre os Cercamentos! – gritou ela. – Eles estão errados.
Mas acaba com esta hedionda rixa com Roger Chatworth. A irmã dele
carrega um Montgomery. Será uma nova vida para Mary. O que mais podes
querer?
Lá fora, soaram as trombetas e o som trespassou Alyx.
– Tenho de me vestir – disse Raine. – Vais ajudar-me?
– Não – disse ela calmamente. – Não posso.
– Assim seja – sussurrou ele. E com um último olhar para ela, Raine
virou-se para a sua armadura.
– Hoje, estás a escolher entre mim e Roger Chatworth – disse ela.
Ele não lhe respondeu, mas manteve-se concentrado na sua armadura.
Alyx deixou a tenda.
– Vai ter com ele, Jocelin – disse ela, uma vez fora da tenda. Virando-se
para Joan, disse: – Anda, temos de fazer as malas. Vou para casa, para a
minha filha.
Alyx queria mesmo estar fora da floresta antes de qualquer luta começar.
Claro que Raine podia ganhar, pensou ela, mas será que aguentaria ficar e
ver pedaços cortados dele? Ela tinha a certeza de que Roger Chatworth
estava tão cheio de ódio quanto Raine.
Passaram duas horas antes de ouvir os primeiros sons de aço contra aço,
que ecoavam pela floresta. Lentamente, largou o vestido que estava a
dobrar e deixou a tenda. O que quer que ele fizesse, com quem tivesse
lutado, não importando a razão, ele pertencia-lhe.
Ela estava quase a chegar à clareira onde os homens lutavam, quando
Joan a parou.
– Não olheis – disse Joan. – Chatworth é impiedoso.
Alyx olhou fixamente para a sua criada e, depois, começou a avançar.
– Joss – gritou Joan. – Detém-na.
Jocelin agarrou os braços de Alyx e segurou-a ali.
– É um massacre – disse ele, olhando-a nos olhos. – Talvez o ódio de
Roger seja maior e isso lhe tenha dado mais força. Mas seja qual for a
razão, Raine está a perder por muito.
Alyx tentou libertar-se de Joss.
– Raine é meu, tanto na morte como vivo. Solta-me!
Com um olhar para Joan, Jocelin libertou-a.
Nada poderia ter preparado Alyx para a visão à sua frente. Dois homens
lutavam a pé e a armadura de Raine estava tão coberta de sangue que os
leopardos dourados dos Montgomery praticamente não se viam. O seu
braço esquerdo parecia estar pendurado por um fio, mas ele continuou a
lutar, balançando corajosamente com o direito. Roger Chatworth parecia
estar a brincar com o homem enfraquecido e ensanguentado, enquanto
andava à sua volta, provocando-o.
– Ele está a morrer – disse Alyx. Raine sempre acreditara tanto na honra,
mas agora, morrer assim, como um animal numa jaula, à mercê dos
tormentos de Chatworth.
Começou a avançar, mas Joss apanhou-a.
– Raine! – gritou ela.
Roger Chatworth virou-se para ela, olhou-a, embora o seu rosto não
pudesse ser visto por baixo do elmo. Como se compreendesse o seu
desespero, virou-se de novo e enterrou o seu machado ao fundo das costas
de Raine.
Raine hesitou por um momento e, depois, caiu para a frente, de cara para
baixo, com Roger em silêncio sobre ele.
Imediatamente, Alyx afastou-se de Joss e correu para a frente.
Lentamente, ajoelhou-se ao lado do corpo mutilado de Raine e puxou a sua
cabeça para o colo dela. Não houve lágrimas, apenas um profundo
entorpecimento, uma sensação de que o seu sangue também se estava a
derramar no chão.
Com grande reverência, ela levantou-lhe a cabeça e retirou-lhe o elmo.
O suspiro que ela soltou ao ver a cara saída do elmo fez Roger Chatworth
voltar para trás. Após um longo momento de incredulidade, ele lançou a
cabeça para trás e soltou um grito horrível – um grito muito semelhante ao
que Raine tinha dado quando soube da morte de Mary.
– Uma vida por outra – sussurrou Brian no colo de Alyx. – Agora, Mary
pode descansar.
Com uma mão trémula, Alyx tocou a face suada de Brian, observando-o
enquanto ele dava o seu último suspiro e morreu nos braços dela.
– Deixa-o – disse Roger, enquanto se curvava e pegava no corpo do irmão
nos seus braços. – Ele agora é meu.
Alyx ficou de pé com o seu vestido encharcado de sangue e viu Roger
carregar Brian na direção dos homens e cavalos Chatworth à sua espera.
– Alyx – disse Joss ao seu lado. – Não compreendo. Porque é que
Chatworth está a levar o corpo de Raine?
O corpo dela tremia tanto que mal conseguia falar.
– Brian estava a usar a armadura de Raine e Roger matou o seu jovem
irmão.
– Mas como...? – começou Joss.
Joan pegou num bocado de lanugem de cardo, com as extremidades
encharcadas em sangue.
– Ele deve ter planeado isto durante muito tempo. Sem dúvida que usou a
lanugem para forrar a cota de malha de modo a que a armadura de Lorde
Raine lhe servisse.
Alyx virou-se para eles com os olhos arregalados.
– Onde está Raine? Ele não permitiria facilmente que Brian levasse a
armadura dele.
Levaram algum tempo a encontrar Raine, deitado, com os enchimentos de
couro vestidos, profundamente adormecido debaixo de uma árvore. Joan
riu-se quando o viu, mas Alyx não. A posição anormal do corpo de Raine
alarmou-a.
– Veneno! – Alyx gritou e correu para o marido. O calor emanado dele
mostrou que não estava morto, mas podia estar, já que não tinha dado
atenção nenhuma ao que Alyx lhe dera.
– Vai buscar Rosamund imediatamente – ordenou Jocelin a Joan.
Alyx começou a esbofetear a face de Raine quando a sua voz não o
despertou.
– Ajuda-me a pô-lo de pé.
Foi preciso toda a força de Joss e de Alyx para levantar o corpo inerte de
Raine, mas, mesmo assim, ele continuava a dormir.
Rosamund apareceu a correr e, depois de olhar rapidamente para Raine,
olhou para Joss com medo nos olhos.
– Esperava estar enganada. O meu ópio foi roubado há dois dias e eu
esperava que o ladrão soubesse como usá-lo.
– Ópio? – perguntou Alyx. – Isso não é uma droga para dormir? A minha
cunhada tomou isso.
– É bastante comum – respondeu Rosamund –, mas o que a maioria das
pessoas não sabe é que, se for tomado em excesso, a vítima poderá dormir
até à morte.
Os olhos de Alyx abriram-se em alarme.
– Não achas que Brian Chatworth deu muito a Raine, pois não?
– Um dedal é demasiado. Temos de assumir que Lorde Raine tomou
demasiado. Anda, há muito, muito trabalho a ser feito.
Foi preciso um dia inteiro para limpar o sistema de Raine. Rosamund
deu-lhe misturas de sabor horrível que o fizeram vomitar, esvaziando as
suas entranhas. E, de forma constante, os homens revezaram-se para
caminhar com ele.
– Dormir, deixem-me dormir – era tudo o que Raine murmurava, de olhos
fechados e arrastando os pés.
Alyx não permitia que ninguém parasse de caminhar com ele, nem o
deixava fugir aos líquidos que lhe eram forçados pela garganta abaixo.
Após muitas horas, ele começou a recuperar o controlo dos seus pés e
caminhou um pouco por sua própria vontade. O seu corpo estava vazio de
toda a matéria sólida e Rosamund começou a obrigá-lo a beber baldes
cheios de água, na esperança de o limpar ainda mais. Raine estava a acordar
o suficiente para protestar mais alto.
– Não me abandonaste – disse uma vez a Alyx.
– Devia, mas não te abandonei – retorquiu ela. – Bebe!
Ao meio-dia do segundo dia, Rosamund por fim deixou Raine dormir e,
finalmente, ela e Jocelin também descansaram. Cansada para lá do
imaginável, Alyx foi ter com cada uma das pessoas do campo e agradeceu-
lhes pessoalmente por a terem ajudado com Raine.
– Devíeis ir dormir também – disse-lhe uma voz rouca, e Alyx
reconheceu um dos homens que a tinha acusado de roubar. – Não queremos
salvar um de vós só para perder o outro.
Ela sorriu-lhe com tanta gratidão que ele corou e olhou para o lado. Ainda
sorridente, ela cambaleou para a tenda de Raine e adormeceu ao seu lado.
Alyx ficou com Raine por mais uma semana… até que ele a encontrou a
segurar o bebé de uma mulher e a chorar silenciosamente.
– Tens de voltar para casa de Gavin – disse-lhe Raine.
– Não te posso deixar.
Ele franziu o sobrolho.
– Já percebeste que a tua presença aqui não vai impedir o que vai
acontecer. Chatworth vai enterrar o irmão e, então, veremos o que
acontecerá. Vai para casa e vê como está a nossa filha.
– Talvez lhe faça uma visita – disse ela, com os olhos a iluminarem-se. –
Talvez só por uma semana ou assim, depois voltarei para ti.
– Acho que não posso viver muito tempo sem ti. Vai agora e diz a Joan
para fazer as tuas malas. Poderás ver a nossa Catherine dentro de três dias.
A gratidão de Alyx e a alegria de pensar em voltar a ver a sua filha
fizeram-na saltar para os braços de Raine. E os seus beijos depressa os
levaram para outro lugar. Antes que qualquer um deles se apercebesse do
que estava a acontecer, encontravam-se a rolar no chão em cima de um
tapete sarraceno e a atirar peças de roupa para todo o lado.
Alegremente, fizeram amor e Raine ficou contente por ver tanta
felicidade nos olhos da sua mulher. Mais tarde, segurou-a junto a si.
– Alyx, significou muito para mim que tivesses ficado durante a luta com
Chatworth. Quer o admitas ou não, tens um elevado sentido de honra; não a
honra em que acredito, mas a tua própria estirpe especial. No entanto,
esqueceste-a pelo teu amor por mim. Agradeço-te por isso.
Ele sorriu quando sentiu as lágrimas dela a molhar-lhe a camisa.
– Vais ver a nossa filha e, ainda assim, tudo o que recebo são lágrimas.
– Serei eu egoísta por querer tudo? Quero que vejas a nossa filha, que nós
os três fiquemos juntos.
– Irei em breve. Agora dá-me um sorriso. Queres que eu me lembre de ti
em lágrimas ou de ti e do teu sorriso travesso?
Ela sorriu e Raine beijou-a.
– Anda, vamos começar a preparar-te.
Alyx continuava a dizer a si própria que a separação duraria apenas um
mês ou assim, mas tinha uma sensação de maior permanência, como se
nunca mais voltasse ao acampamento da floresta. As pessoas pareciam
pensar a mesma coisa.
– Para a sua bebé – disse um homem, enquanto lhe entregava um
brinquedo feito de um pedaço de carvalho verde. Havia mais presentes,
todos caseiros, todos simples, e cada um deles fez nascer lágrimas nos seus
olhos.
– Ficastes acordada com a minha bebé quando ela estava doente – disse
uma mulher.
– E enterrastes a minha – disse outra.
Quando chegou a altura de partir, Raine ficou em silêncio atrás de Alyx,
com a mão no seu ombro, e irradiava o seu orgulho por ela.
– Não te afastes muito tempo – sussurrou ele, dando-lhe um último beijo
antes de a instalar no seu cavalo.
Alyx saiu a cavalgar, com a cabeça virada por cima do ombro, vendo
todas as pessoas a acenar-lhe até as árvores as esconderem.
Capítulo Vinte e Dois

DURANTE DUAS semanas inteiras, Alyx andou contente, a brincar com a sua
filha, a compor canções de embalar para o filho de Judith e para Catherine.
Enviou longas e radiantes mensagens a Raine, descrevendo as perfeições da
filha deles e pacotes de medicamentos para Rosamund. Um mensageiro
regressou com notícias do acampamento, dizendo que Blanche tinha sido
apanhada a roubar e fora banida da floresta. Alyx não sentiu qualquer
alegria com a novidade.
Após duas semanas de felicidade, ela começou a sentir saudades de Raine
e deixou o berçário das crianças à procura da sua família.
– Tinha ouvido dizer que estavas novamente connosco – brincou Gavin –,
mas não tinha a certeza. Anda e junta-te a nós. Judith está com o falcoeiro e
eu estava prestes a juntar-me a ela.
– Achas que o Rei vai gostar deste falcão, Simon? – perguntou Judith ao
velho falcoeiro grisalho.
– Sim, minha senhora. Não há melhor na terra.
Judith segurava o grande pássaro encapuzado na ponta do seu braço
enluvado, estudando o falcão e franzindo as sobrancelhas.
– Estás a planear dar um presente ao Rei? – perguntou Alyx.
– Vou tentar tudo – disse Judith com veemência. – Desde a morte de
Brian Chatworth e da gravidez de Elizabeth que o Rei despreza o nome
Montgomery.
– E agora, desde a morte da Rainha... – começou Gavin.
– A Rainha Elizabeth morreu! – exclamou Alyx em voz alta, e o falcão
agitou as suas grandes asas até que Judith o acalmou. – Desculpa – disse.
Ela não sabia nada sobre falcões e falcoaria. – Não tinha ouvido dizer que a
Rainha tinha morrido.
– O Rei perdeu o filho mais velho e a sua mulher em menos de um ano e
a família da viúva do filho ameaça levar o seu dote de volta. O homem
agora pouco mais faz além de maturar. Em tempos, poderia ter ido ter com
ele e falar-lhe.
– E o que lhe perguntarias? – questionou ela, com esperança na sua voz.
– Quero que esta rixa termine – disse Gavin. – Houve uma vida tirada aos
Montgomery e outra aos Chatworth. Talvez, se eu pudesse falar com o Rei,
conseguisse persuadi-lo a perdoar Raine.
– E Miles? – perguntou Alyx. – Ele usou entusiasticamente Elizabeth
Chatworth. Não creio que o irmão dela lhe perdoe isso.
Gavin e Judith trocaram olhares e Judith falou.
– Trocámos correspondência com Miles e, se o Rei der permissão, ele
está disposto a casar com Elizabeth.
– E claro que Roger Chatworth acolherá de braços abertos um
Montgomery na sua família – sorriu Alyx. – Então! Vais usar o presente do
falcão para persuadir o Rei. Será que ele gosta de falcoaria?
Mais uma vez, Gavin e Judith trocaram olhares.
– Alyx – começou Gavin –, temos estado à espera para falar contigo.
Sabíamos que querias passar algum tempo com Catherine, mas agora não
há mais tempo a perder.
Por alguma razão, Alyx começou a sentir uma sensação de pavor.
Absurda, claro, mas ainda assim, pequenos arrepios de frio percorreram-lhe
a espinha.
– Sobre o que queres falar comigo?
– Vamos entrar – disse Judith, entregando o falcão a Simon.
Mal o velhote entrou na falcoaria de pedra, Alyx manteve-se firme onde
estava.
– Diz-me o que devo saber – disse ela, sem rodeios.
– Gavin! – exclamou Judith. – Deixa-me dizer-lhe. Alyx, o Rei não se
importa particularmente com a falcoaria. Neste momento, ele não quer
saber de mais nada ou de ninguém, exceto uma coisa. – E fez uma pausa. –
Música – disse Judith, calmamente.
Alyx parou um momento, a olhá-la fixamente.
– Queres que vá ter com o rei de Inglaterra, que lhe cante uma canção e,
enquanto lá estiver, imploro-lhe casualmente que perdoe o meu marido e
que dê a mão de uma herdeira rica ao seu inimigo jurado? – E sorriu. –
Nunca disse que era mágica.
– Alyx, tu consegues fazê-lo – encorajou Judith. – Ninguém no país tem
uma voz ou talento como tu. Ele vai oferecer-te metade do seu reino, se
conseguires que ele se abstraia durante uma hora ou assim.
– O Rei? – cuspiu Alyx. – Que me importa o Rei? Eu adoraria tocar e
cantar para ele. A minha preocupação é Raine. Ele passou um ano a tentar
fazer-me compreender o seu sentido de honra, e agora percebo-o… pelo
menos até ao ponto de saber que ele não me agradeceria por implorar o seu
perdão perante o Rei.
– Mas se conseguisses obter o perdão de Raine… – argumentou Judith.
Alyx virou-se para Gavin.
– Se estivesses no lugar de Raine, quererias que Judith fosse por ti ao Rei
ou preferias travar as tuas próprias batalhas?
O rosto de Gavin tornou-se sério.
– Não seria fácil para mim engolir uma tal humilhação.
– Humilhação! – exclamou Judith. – Se Raine ficasse livre, poderia voltar
para casa, e nós poderíamos voltar a ser uma família.
– E o nosso conflito passaria a ser interno – disse Gavin. – Consigo
perceber o ponto de vista de Alyx. Acho que ela não devia ir contra o
marido. Travaremos as nossas próprias batalhas e vamos manter o Rei fora
disto.
Judith parecia querer responder, mas, ao olhar para Gavin e Alyx, ficou
calada.
Mas o que fez Alyx mudar de ideias foi a raiva crescente de Roger
Chatworth. Gavin enviara espiões e eles voltaram com a notícia de que
Roger desejava a morte tanto de Miles como de Raine, para vingar o seu
jovem irmão e a perda da virtude da sua irmã.
– Raine não tem homens para lutar contra Chatworth – disse Alyx. – E irá
Miles aguentar-se contra um guerreiro experiente como Roger?
– Ele tem o apoio de todas as forças Montgomery – disse Gavin,
calmamente.
– Estás a falar em guerra! – gritou ela. – Uma guerra privada que vos
levará a todos a perder as vossas terras e o Rei... – Ela parou. Tudo parecia
ter voltado ao Rei.
Com lágrimas nos olhos, Alyx fugiu da sala. Seria ela a única que poderia
evitar uma guerra privada? Uma vez, tinha dito a Jocelin que faria tudo para
manter Raine vivo, que preferia vê-lo com outra mulher do que morto. No
entanto, ele tinha ficado ferozmente zangado quando ela fez o que sentira
que tinha de fazer. Raine não queria que ela interferisse na sua vida e,
especialmente, no que ele considerava ser a sua honra.
E se ela se calasse agora, não tentasse obter um perdão do Rei e houvesse
uma guerra? Ficaria ela feliz por saber que Raine morrera com a sua honra
intacta? Ou amaldiçoar-se-ia para toda a eternidade por não ter tentado pelo
menos evitar as batalhas?
Com uma dignidade serena, Alyx levantou-se, alisou o vestido e desceu
para o salão de inverno, onde Judith e Gavin estavam sentados a jogar
damas.
– Irei ter com o Rei – disse Alyx, calmamente. – Cantarei com todas as
minhas forças e pedirei, suplicarei, implorarei, o que quer que tenha de
fazer, para que ele perdoe Raine e organize o casamento de Elizabeth e
Miles.
*

Alyx estava à porta dos aposentos do Rei e o seu corpo tremia tanto que
receava que o seu vestido caísse. O que estava ela, uma filha de um
advogado vulgar, a fazer aqui?
Um grito de dentro da câmara e um som de algo a partir fez com que ela
arquejasse. Passado um momento, um homem magro saiu da sala em bicos
de pés, com uma marca vermelha na face e uma flauta na mão.
Ele dirigiu a Alyx um olhar insolente.
– Ele está de mau humor hoje. Espero que haja mais em vós do que
aparentais.
Alyx esticou ao máximo a sua pequena altura e olhou para ele.
– Talvez seja a música que ele não ouviu hoje que o tenha posto de mau
humor.
O homem grunhiu e deixou-a em paz.
Alyx ajustou novamente o seu vestido, uma mistura maravilhosa de
veludo verde-escuro com mangas e saia debruada, tão fortemente bordada
com fio dourado que o tecido ficava rígido. O vestido tinha sido desenhado
por Judith e o bordado era um arranjo esmerado de centauros e fadas a tocar
muitos instrumentos musicais.
– Para dar sorte – tinha dito Judith.
– Entrai e aguardai – disse um homem de capa escura, apenas com a
cabeça de fora da porta. – Sua Majestade irá ouvir-vos dentro de momentos.
Alyx pegou na sua cítola, um instrumento magnífico de pau-rosa e
marfim incrustado, e seguiu o homem.
A câmara do Rei era uma grande sala revestida de painéis de carvalho,
ricamente decorados, mas não era certamente melhor do que os salões do
castelo Montgomery. Isto surpreendeu Alyx. Talvez estivesse à espera de
que os salões do Rei fossem revestidos a ouro.
Ela tomou o lugar para o qual o homem apontou e observou. O Rei estava
sentado numa cadeira com uma almofada vermelha e Alyx não teria
percebido que ele era o Rei não fosse, ocasionalmente, alguém curvar-se
diante dele. Era um homem alto, sombrio e cansado, e quando bebeu de
uma taça de prata, ela viu que ele tinha poucos dentes e que estes eram
negros. O Rei franziu o sobrolho ao cantor diante dele, e o nervosismo do
jovem era visível em cada palavra que cantava. O ar estava carregado de
tensão enquanto o músico tentava agradá-lo.
Com a grande sala a ecoar e com toda a gente tão formal, não era de
admirar que ele estivesse descontente, pensou Alyx. Nenhuma das músicas
o fez esquecer por um momento a sua tristeza. «Se fosse eu a mandar,
juntava os músicos e desafiava-os com alguma música nova. Quando eles
se estivessem a divertir, o Rei teria prazer.»
Alyx ficou sentada quieta por mais um momento. Naquele dia, havia onze
músicos a fazer uma audição para o Rei. Ultimamente, ficava sozinho nos
seus aposentos, recusando-se mesmo a assistir ao funeral da Rainha. Alyx
tivera de esperar uma semana por esta oportunidade de tocar e cantar para
ele. E iria ela tremer perante ele, como os outros estavam a fazer?
«Pensa em Raine», disse ela para si mesma. «Pensa em todos os
Montgomery.»
Alyx respirou fundo e levantou-se, fazendo uma oração silenciosa de
esperança, e depois deixou a sua voz tomar o controlo.
– Ouça lá! – disse ela em voz alta ao cantor. – Vai pôr-nos todos a chorar.
O que precisamos é de risos e não de mais lágrimas.
Alguém lhe pôs uma mão de advertência no braço, mas Alyx olhou
diretamente para o rei Henrique.
– Com a vossa permissão, Majestade. – Fez-lhe uma vénia e o Rei
devolveu-lhe um gesto desinteressado.
O coração de Alyx batia descompassadamente, por causa dos nervos.
Agora, só precisava de conseguir que os músicos cooperassem.
– Sabeis tocar cravo? – perguntou ela a um homem que lhe dirigiu um
olhar hostil.
– Espere a sua vez – sibilou ele.
– Tenho mais a perder do que vós. Talvez juntos possamos fazer alguma
magia. E inclinou a cabeça. – Ou será o vosso talento demasiado limitado?
O homem, depois de um olhar pensativo, dirigiu-se para o cravo.
Como se fossem todos os meninos de coro que ela tinha ensinado em
Moreton, começou a ordenar os homens, entregando-lhes diferentes
instrumentos que havia na sala.
Uma vez sentados ou de pé, ela rodopiou por entre eles, dando melodia
aqui e ritmo ali. Quando ia a meio, começou a cantar e dois dos músicos
foram imediatamente conquistados para o seu lado. Rindo, pegaram na
melodia e acompanharam-na.
Parecia-lhe que tudo estava a demorar tanto tempo e ela só sentiu
encorajamento quando o homem do cravo acrescentou a sua voz à dela. O
homem da harpa apanhou a melodia e mostrou o seu talento com aquelas
cordas celestiais.
Alyx tinha escolhido uma canção antiga, esperando que todos a
conhecessem, mas talvez tivesse sido a sua interpretação da mesma que os
tivesse embaraçado. O homem a quem ela tinha dado uma pandeireta
mudou para um tamborim escondido num canto sombrio e o som começou
a fazer vibrar o chão.
Finalmente, todos pareciam ter apanhado a canção e Alyx atreveu-se a
virar-se e a olhar para o Rei. O seu rosto estava impassível e silencioso, mas
os homens atrás dele pareciam espantados. Pelo menos, ela sabia agora que
o que estava a fazer não era uma ocorrência diária.
Eles repetiram três refrões da canção e Alyx iniciou-os em algo novo,
música de igreja desta vez, e, quando terminou, saltou para uma canção
popular.
Havia passado uma hora desde que ela tinha começado e acalmado os
músicos. Desta vez, ela cantava sozinha. Uma vez, há quatro anos atrás,
uma cantora viera a Moreton e os aldeões tinham dito que, finalmente, Alyx
tinha tido alguma competição à altura. Alyx, com medo de parecer mal,
ficou acordada toda a noite e compôs uma canção que seria difícil até para
ela cantar, uma canção que cobria toda a gama das suas capacidades. No dia
seguinte, cantou a canção e a visitante, uma mulher mais velha, olhara para
Alyx com lágrimas nos olhos, beijando-a em ambas as faces, dizendo-lhe
que devia dar graças todos os dias pelo dom que Deus lhe tinha concedido.
Agora, Alyx planeava cantar essa canção. Ela detestava-a desde que a
escrevera porque, na verdade, a mulher a quem pretendia humilhar tinha-a
humilhado a ela. Mas agora, ela precisava de fazer o que fosse preciso para
cair nas boas graças do Rei.
A canção mostrava as notas mais altas e mais baixas que a voz de Alyx
podia atingir, bem como a suavidade controlada e o seu volume
extraordinário. Ela ia concentrando o poder total da sua voz, lenta e
suavemente, e quando parecia não poder ir mais longe, colocava tudo numa
só nota e aguentava-a – e aguentava-a até haver lágrimas nos seus olhos e
os seus pulmões ficarem secos.
Quando terminou, fez uma vénia pronunciada e sentiu-se um silêncio
total e absoluto à sua volta, com o som da última nota de Alyx ainda a
reverberar das paredes, rodopiando sobre as pessoas como luzes azuis e
amarelas.
– Vem cá, minha filha – o Rei quebrou o silêncio. Alyx foi ter com ele e
beijou-lhe a mão, mantendo a cabeça curvada.
O Rei inclinou-se para a frente e levantou-lhe o queixo.
– Então, és a mais recente mulher Montgomery. – E sorriu com o olhar
assustado dela. – Eu tento acompanhar o que acontece no meu reino. E acho
que os homens Montgomery casam com as mulheres mais divertidas. Mas
isto... – E gesticulou para os músicos espalhados pela sala – ... isto vale um
resgate de rei.
– Fico muito contente por vos poder agradar, Vossa Majestade –
sussurrou Alyx.
Ele esboçou a primeira indicação de um sorriso.
– Fizeste mais do que isso. E agora, o que pedes em troca? Obviamente,
não deixaste a casa de Gavin sem motivo.
Alyx tentou reunir a sua coragem.
– Eu gostaria de acabar com a rixa entre os Montgomery e os Chatworth.
Proponho um laço de sangue entre eles, o casamento de Miles com Lady
Elizabeth Chatworth.
O rei Henrique franziu o sobrolho.
– Miles é um criminoso de acordo com a Lei de mil quatrocentos e
noventa e cinco. Ele raptou Lady Elizabeth.
– Não é verdade! – gritou Alyx à sua maneira habitual. – Perdoai-me,
Vossa Majestade. – E caiu de joelhos perante ele. – Miles não a raptou, mas
foi por minha causa que Lady Elizabeth sofreu.
– Tu! Vai buscar um banco – ordenou o rei Henrique e, quando Alyx
estava sentada, disse: – Agora, conta-me toda a história.
Alyx contou-lhe de Pagnell, de ele a acusar de usar a sua voz para o
seduzir, de se esconder na floresta, de se apaixonar por Raine. Ela observou
os olhos do Rei, percebeu que ele estava interessado na sua história e
continuou a contar a sua captura por Pagnell e o rapto de Elizabeth.
– Dizes que ele pretendia enrolá-la num tapete e entregá-la a Lorde
Miles? – perguntou o rei Henrique.
Ela inclinou-se para a frente.
– Por favor, Vossa Majestade, não repita isto, mas ouvi dizer que ela foi
entregue sem um farrapinho e que atacou Lorde Miles com um machado. É
claro que a história pode estar errada.
O Rei fez um som muito parecido com uma gargalhada.
– Continua com a tua história.
Alyx contou-lhe do julgamento por bruxaria, como os homens a tinham
usado para atrair Raine para o seu salvamento.
– E ele salvou-te no último momento?
– Um pouco depois do último momento. O fumo era tanto que perdi a
minha voz durante dias.
O Rei segurou-lhe na mão.
– Isso – disse ele, com grande gravidade – foi uma tragédia. E o que
aconteceu depois deste magnífico salvamento?
A voz dela mudou ao falar da filha e do seu regresso à floresta e ter
conhecido Brian Chatworth. Ela referiu a forma como Brian se tinha
vestido com a armadura de Raine e como Raine quase tinha morrido devido
ao ópio.
– Então, agora, gostarias que Lorde Miles casasse com Lady Elizabeth.
– E...
– Sim? – encorajou ele.
– Por favor, perdoai Raine – disse ela. – Ele é tão boa pessoa. Não está a
tentar juntar nenhum exército contra vós. As pessoas do acampamento são
fora da lei e desempregados. Raine apenas os treina para dar aos criminosos
algo para fazer e para evitar que os outros morram de melancolia.
– Melancolia – suspirou o Rei. – Sim, eu conheço essa doença. Mas o que
dizer de Lady Elizabeth? Estará ela disposta a casar com Lorde Miles?
– Ela é inteligente e, sem dúvida, perceberá o sentido do casamento e, se
Miles é como os seus irmãos, como poderia ela recusá-lo?
– Um dia, gostaria de aprender o segredo dos homens Montgomery e a
lealdade que conseguem inspirar. Se Lady Elizabeth estiver disposta,
permitirei o casamento, e, se não for por outra razão, que seja para dar um
nome à criança.
– E Raine?
– Para isso vais ter de trabalhar. Que me dizes a passar uma semana aqui
comigo e a cantar para mim noite e dia?
– Dedicarei a minha vida ao vosso entretenimento, se isso salvar o meu
marido – declarou Alyx, ferozmente.
– Não, não me tentes, filha, já tenho problemas suficientes. Agora, vai
cantar e eu mandarei preparar os papéis. – E acenou a um dos homens atrás
de si que, rapidamente, saiu da sala.
Alyx cantou durante o resto do dia, até a sua garganta doer. Só depois de
o Sol se ter posto há muito tempo é que o Rei adormeceu na sua cadeira.
– Ide descansar agora – disse um dos serviçais do Rei. – Lorde Gavin
espera por vós lá fora e mostrar-vos-á os vossos aposentos. Tenho a certeza
de que Sua Majestade vos chamará de manhã cedo.
Assim que Alyx viu Gavin, o cansaço abandonou-a. Rindo de orelha a
orelha, ela atirou-se para os seus braços.
– Ele concordou! Ele concordou! – grasnou ela.
Gavin segurou-a com força, rodopiando-a.
– Vamos contar a Judith e fazer algo a respeito da tua voz. Além disso,
estamos prestes a dar origem a alguns mexericos feios.
Alyx endireitou-se assim que Gavin a libertou e, formalmente,
acompanhou-o através de longos corredores arejados, com tapeçarias
profusamente coloridas penduradas, até aos aposentos para eles reservados.
Bebeu a mistura de mel que Judith lhe preparou e ficou à espera – uma
espera que demorou dias. O rei Henrique manteve Alyx constantemente ao
seu lado e, como um cão treinado, mostrou-a ao seu filho Henrique e à
viúva do falecido filho, Catarina. Alyx estava no meio dos mexericos da
corte, ouvindo que o próprio Rei planeava casar com a jovem princesa.
Gostou muito do grande e bem-parecido príncipe Henrique, com doze anos.
Se alguma vez alguém parecera ser um Rei, era ele.
Em vez da semana que o rei Henrique tinha pedido, Alyx permaneceu na
corte durante duas semanas antes dos documentos para o perdão de Raine e
uma ordem para o casamento de Miles e Elizabeth terem sido redigidos.
Tanto Gavin como Judith estavam satisfeitos por deixarem a corte, mas
Alyx estava muito preocupada por ver Raine novamente. Qual seria a sua
reação à interferência dela?
Levou dias a embalar todos os seus pertences que tinham sido precisos na
corte e mais uns dias para regressar ao castelo Montgomery. Com o coração
palpitante, Alyx desmontou e esperou, desejando que Raine lá estivesse.
Não estava, mas havia mensagens à espera deles. Roger Chatworth tinha
recusado libertar Elizabeth, mas Miles escrevera, dizendo que a encontrara.
Gavin resmungou por causa daquilo, lamentando o desrespeito do seu irmão
mais novo pela lei. Tinham-se casado não muito longe da propriedade de
Chatworth e, imediatamente após a cerimónia, Elizabeth tinha regressado
para junto do seu irmão. Isto intrigou-os, mas Miles não deu qualquer tipo
de explicação.
Passou-se uma semana e não houve notícias de Raine. No final da
segunda semana, Gavin enviou mensageiros para a floresta, mas os homens
voltaram, dizendo que não tinham sido saudados pelos vigias como
habitualmente, mas que tinham vagueado durante dois dias, não
encontrando ninguém.
No dia seguinte, Gavin e os seus homens saíram a cavalo e só voltaram
uma semana depois.
– Raine está agora nas suas próprias terras – relatou Gavin. – E levou
consigo as pessoas que estavam com ele na floresta. Deve ter cinco
rendeiros em cada campo e insiste em pagar-lhes. Ele próprio será um
mendigo dentro de três anos.
– Gavin... – começou Alyx.
Gavin tocou-lhe na face.
– Ele está zangado, mas vai ultrapassar isso.
Silenciosamente, Alyx deixou a sala, com Gavin e Judith a observá-la.
– Diz-me a verdade – exigiu Judith.
– Maldito seja aquele meu irmão! – gritou Gavin, batendo com o punho
em cima da mesa. – Raine diz que Alyx o insultou pela última vez, que já
não aguenta mais. Diz que a avisou repetidamente, mas ela não lhe dá
ouvidos, e ele sabe que ela nunca o fará.
– Talvez Stephen possa falar com ele... – começou Judith.
– Stephen tentou, mas ele não quis ouvir. Passa o tempo dele todo com
aqueles criminosos… – Gavin parou e riu-se. – E aconteceu algo mais
estranho. Alyx está sempre a queixar-se de que deve tanto àquelas pessoas
na floresta e que nunca poderá pagar-lhes. Há um cantor com o bando,
Jocelin, creio que viajou com Alyx, e este Jocelin conheceu um homem que
esteve na câmara no dia em que a Alyx atuou pela primeira vez para o Rei.
Não tenho a certeza do que aconteceu nesse dia, mas, segundo a
testemunha, Alyx foi magnífica e uma das coisas que pediu foi segurança
para as pessoas ao cuidado de Raine.
– Não me lembro de Alyx ter dito alguma coisa sobre isso.
– Acho que ela não o fez… pelo menos diretamente. Mas mencionou que,
mais tarde, contou ao Rei histórias sobre a sua vida na floresta. Ouvi dizer
que o rei Henrique, uma vez, lhe pediu para se vestir como um rapaz para
comprovar que ela o tinha realmente feito.
– Achas que Alyx contou ao rei Henrique como algumas das pessoas
tinham sido injustamente tratadas?
Gavin sorriu.
– Por vezes, Alyx é tão inocente. Com o seu passado, duvido que ela
tenha alguma ideia do poder que detém. Já houve homens que mataram para
terem a atenção do Rei durante tanto tempo, como ela o fez todos os dias.
Se ela tivesse algum inimigo, poderia tê-lo enviado para a forca.
Judith dirigiu ao seu marido um olhar especulativo.
– Ou poderia ter salvado várias centenas de pessoas. Por acaso, foram
concedidos mais perdões?
Gavin sorriu.
– Raine foi autorizado a perdoar quem entendesse que o merecia. De
acordo com Jocelin, Alyx cantou canções sobre a lealdade e honra de Raine
até que o rei Henrique estivesse pronto para o declarar um santo. Ela
orientou a história até parecer que Raine estava a fazer um favor ao Rei
quando atacou Chatworth.
– Rapariga esperta! Ela consegue tanta coisa com aquela voz dela. As
pessoas sabem que foi ela quem obteve os seus perdões?
– Este homem, Jocelin, certificou-se de que eles sabiam. Quando se trata
de cantar elogios, ele é da mesma estirpe de Alyx. Todos eles enviaram
saudações a Alyx e disseram que desejavam que estivesse bem. A maioria
deles é tão má como os escoceses de Stephen… o mundo está a perder o
respeito pelos seus melhores.
Judith riu-se.
– Temos de falar à Alyx sobre o bem que ela fez e, agora, vamos começar
a trabalhar na situação de Raine. Ele tem de perceber que Alyx não o
insultou indo ter com o Rei.
– Espero que o consigas convencer disso.
– Também rezo por isso.
Capítulo Vinte e Três

PASSOU-SE UM MÊS e não houve notícias de Raine – e toda a


correspondência enviada para ele foi ignorada. Durante as primeiras
semanas, Alyx ficou triste, mas a sua tristeza depressa se transformou em
raiva. Se o orgulho dele era mais importante do que o amor dela e a sua
filha, que assim fosse.
A sua raiva foi alimentada durante todo o verão. Viu Catherine crescer e
constatou que a menina tinha de facto herdado a robustez do seu pai.
– Não haverá hipótese de ser senhora magra e elegante – suspirou Alyx,
olhando para as pernas gorduchas de Catherine, enquanto dava os seus
primeiros passos.
– Os bebés são todos gordos – riu-se Judith, atirando o seu filho ao ar. –
Catherine parece-se mais com Raine a cada dia que passa. É pena que ele
não a possa ver. Bastava um olhar para aqueles olhos violeta e para as suas
covinhas e ele derreteria-se. Raine nunca conseguira resistir a uma criança.
As palavras de Judith assombraram Alyx durante dias e, no final do
quarto dia, tomou uma decisão.
– Vou enviar Catherine ao pai dela – anunciou Alyx, uma noite, quando
Judith estava a arrancar ervas daninhas do canteiro das rosas.
– O quê?
– Ele pode não me perdoar, mas não há razão para Catherine ser
castigada. Ela já tem quase um ano e ele nunca sequer a viu.
Judith levantou-se, limpando as mãos.
– E se Raine não a devolver? Aguentarias perder o teu marido e a tua
filha?
– Direi que a vou mandar até ao Natal, depois o Gavin vai buscá-la. Raine
honrará o acordo.
– Se ele concordar.
Alyx não respondeu. Esperava de todo o seu coração que Catherine
conquistasse o coração do seu pai, que o derretesse.
Dias depois, quando Catherine estava pronta para partir, Alyx quase
mudou de ideias, mas Judith segurou-lhe os ombros e Alyx disse adeus à
sua filha, que foi escoltada por vinte dos homens de Gavin e duas amas.
Alyx esperou sem fôlego durante as semanas seguintes. Não chegou
nenhuma mensagem de Raine, mas uma das amas escrevia regularmente,
enviando as suas cartas através de uma rede complicada organizada por
Gavin, através de Jocelin.
A ama escreveu sobre o tumulto causado pela chegada de Lady Catherine
e como a menina tinha sido corajosa. A casa de Raine, os seus homens e o
próprio Raine tinham-na assustado muito. No início, a ama pensou que
Lorde Raine ia ignorar a filha, mas uma vez, enquanto ela brincava no
jardim, Raine tinha apanhado a bola de Catherine e sentara-se por alguns
momentos num banco, a observá-la. Catherine começou a atirar a bola na
direção do pai e ele tinha brincado com ela durante uma hora.
As cartas da ama começaram a descrever cada vez mais episódios. Lorde
Raine levara Catherine a dar uma volta a cavalo. Lorde Raine deitara a sua
filha. Lorde Raine jurara que a sua filha consegue falar, que ela é a criança
mais inteligente de toda a Inglaterra.
Alyx ficou contente por ouvir as notícias, mas estava infeliz por estar tão
só. Queria desfrutar da filha com o marido.
Em meados de novembro, as cartas pararam e só no Natal é que ela teve
mais notícias. Gavin foi ter com ela e disse-lhe que Catherine tinha voltado
e esperava lá em baixo no salão de inverno.
Alyx voou pelas escadas abaixo, com lágrimas a embaciar-lhe a visão mal
viu a sua filha com um vestido elaborado de seda dourada, tranquilamente
de pé, à frente da lareira. Tinham passado meses desde que se tinham visto
e Catherine deu um passo para se afastar da mãe.
– Não te lembras de mim, querida? – sussurrou Alyx, suplicante.
A criança deu mais um passo atrás e, enquanto Alyx avançava, Catherine
virou-se e correu, agarrando-se às pernas do seu pai.
Alyx dirigiu os olhos assustados para o azul intenso de Raine.
– Eu... Eu não te vi – gaguejou ela. – Pensei que Catherine estava
sozinha.
Raine não disse uma palavra.
O coração de Alyx começou a bater aceleradamente e ameaçava sufocá-
la.
– Pareces estar bem – disse ela, com a maior calma que conseguiu reunir.
Raine dobrou-se e pegou na sua filha ao colo e, com ciúmes, Alyx
reparou na forma como Catherine se agarrou a ele.
– Queria que conhecesses a tua filha – sussurrou ela.
– Porquê? – perguntou Raine, e a sua voz, aquela voz profunda e rica que
ela conhecia tão bem, quase a fez chorar.
Mas Alyx recusou-se a chorar.
– Porquê? – sibilou ela. – Não tinhas visto a tua filha desde que nasceu e
perguntas-me porque a mandei para ti?
A sua voz, calma, grave, interrompeu-a.
– Porque a mandaste para um homem que te abandonou, que te deixou
sozinha para travar as batalhas dele?
Os olhos de Alyx arregalaram-se.
Raine acariciou o cabelo da filha.
– Ela é uma bela criança, amável e generosa como a mãe.
– Mas eu não sou... – começou Alyx, e depois parou quando Raine
começou a caminhar na sua direção. Ele passou por ela, abriu a porta e
entregou Catherine à ama que ali estava à espera.
– Podemos falar?
Silenciosamente, Alyx acenou-lhe com a cabeça.
Raine dirigiu-se para a lareira e observou as chamas por um momento.
– Acho que podia ter-te matado quando foste ter com o Rei – disse ele,
sentidamente. – Foi como se anunciasses ao mundo que Raine Montgomery
não conseguia lidar com os seus próprios problemas.
– Eu nunca quis dizer...
Ele levantou a mão para a silenciar.
– Isto não é fácil para mim, mas tenho de o dizer. Enquanto estávamos na
floresta, era fácil para mim perceber porque é que as pessoas não gostavam
de ti. Colocaste-te muito acima delas e elas ressentiram-se muito. Quando
acabaste por compreender o que estavas a fazer, decidiste começar a fazer
algo a respeito disso. Tu mudaste, Alyx. – Parou por um longo momento. –
Não é muito... confortável olhar para mim, julgar-me a mim próprio.
As suas costas largas estavam viradas para ela, de cabeça baixa, e ela
falou-lhe do coração.
– Raine – sussurrou ela. – Eu entendo. Não precisas de dizer mais nada.
– Preciso, sim! – E virou-se para a olhar de frente. – Achas que é fácil
para mim, um homem, perceber que um pedaço de criança/mulher como tu
consegue fazer algo que eu não consigo?
– O que é que eu fiz? – perguntou ela, genuinamente surpreendida.
Neste ponto, ele fez uma pausa, sorrindo, e havia muito amor nos seus
olhos.
– Talvez eu achasse que devia decidir o meu caminho porque estava a
sacrificar tudo o que tinha por alguns mendigos imundos. Talvez eu
gostasse de ser um rei dos criminosos.
– Raine. – Alyx estendeu a mão para lhe tocar na manga.
Ele pegou-lhe na mão, levantou-lhe a ponta dos dedos até aos lábios.
– Porque foste ter com o rei Henrique?
– Para lhe pedir que te perdoasse. Para o persuadir a autorizar o
casamento de Elizabeth e Miles.
– Feriste o meu orgulho, Alyx – sussurrou ele. – Queria entrar a marchar
nos aposentos do rei Henrique, de armadura prateada, e falar com o Rei, de
igual para igual. – E apareceu-lhe uma covinha na face. – Mas, em vez
disso, a minha mulher foi lá e implorou por mim. Doeu muito.
– Eu não tinha a intenção... Oh, Raine, eu imploraria a qualquer um que te
salvasse.
Ele parecia não reparar que a sua mão estava quase a esmagar a dela.
– Fui traído pelo meu orgulho. Quero... pedir-te perdão.
Alyx queria gritar que lhe perdoaria qualquer coisa, mas não era altura
para leviandades.
– No futuro, tenho a certeza de que farei outras coisas que vão ferir o teu
orgulho.
– Tenho a certeza que sim.
O queixo dela ergueu-se ligeiramente.
– E o que farás quando eu te ofender?
– Ficarei com raiva de ti. Ficarei muito, muito zangado. Vou ameaçar-te
de morte.
– Oh! – exclamou Alyx baixinho, pestanejando para evitar as lágrimas. –
Então, talvez…
– Alyx, eu quero-te a ti, e não a alguém que concorde com todas as
minhas palavras. – Raine engoliu, fazendo uma careta. – Fizeste bem em ir
ter com o Rei.
– E Roger Chatworth?
Por um momento, os olhos de Raine brilharam de fúria.
– Estavas enganada a respeito dele. Se eu o tivesse matado, Miles não...
– Se o tivesses matado, então o rei Henrique ter-te-ia matado! – Alyx
gritou com ele.
– Podia fazer desaparecer o corpo dele. Ninguém…
– Terias provavelmente sentido necessidade de confessar os teus pecados
em público – disse ela, repugnada. – Não, eu fiz o que estava certo.
Raine ia começar a dizer algo, mas parou.
– Talvez tenhas razão.
– Tenho o quê?! – exclamou Alyx, perplexa, mas depois viu a covinha de
Raine. – Estás a troçar de mim. – E empinou o queixo, determinada.
Raine, com uma gargalhada sonora, puxou-a para os seus braços e
segurou-a quando ela tentou afastar-se.
– Parece que nunca vamos concordar em tudo, mas talvez possamos
concordar em trabalhar em conjunto. Vais discutir comigo o que planeares,
antes de o fazer?
Alyx pensou no assunto por um momento.
– E se me disseres para não fazer algo? Penso que talvez deva fazer da
forma como tenho feito até aqui.
– Alyx – disse Raine num quase rosnado, depois começou a rir. – Alyx,
Alyx, Alyx. – Rindo, atirou-a ao ar, voltando a apanhá-la. – Acho que
vamos discutir sempre. Estás disposta a viver com isso?
– Não discutiríamos se, de vez em quando, pensasses antes de agir. Deves
pensar no futuro, ao menos uma vez. Se tivesses parado para pensar no que
estavas a fazer, talvez não tivesses liderado os homens do Rei contra... – E
perdeu-se porque Raine lhe estava a mordiscar o pescoço.
– Eu sou um homem de paixão – murmurou ele. – Gostavas que mudasse
isso?
Alyx inclinou a cabeça para lhe permitir melhor acesso.
– Talvez capaz de suportar a tua paixão, Raine! – Afastou-se para olhar
fixamente para ele e ficou muito séria. – Vais deixar-me outra vez? Se eu
fizer algo de que não gostes, deixar-me-ás a mim e aos nossos filhos
sozinhos?
Os olhos também ficaram sérios.
– Faço-te uma promessa, Alyxandria Montgomery, uma promessa tão
sagrada como qualquer juramento enquanto cavaleiro. Jamais voltarei a
deixar-te em estado de fúria.
Por um momento, ela observou-o, sondando-lhe o rosto e finalmente
sorriu, lançando-lhe os braços ao pescoço.
– Amo-te tanto.
– Claro que posso trancar-te no teu quarto, pôr-te sob vigilância, seja o
que for que tenha de fazer. Mas nunca mais te despacharei para o meu
irmão para que ele lide com os meus problemas.
– Problemas! – gritou ela ao ouvido dele. – Eu sou uma alegria para a tua
família. Foste tu quem lhes partiu o coração. És um grande teimoso...
Raine esfregou a sua orelha maltratada.
– Ah, a voz delicada de uma mulher, tão suave como uma manhã de
primavera, tão meiga como um...
E parou porque Alyx colou a sua boca à dele e ele esqueceu-se do que ia
dizer.

Você também pode gostar