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A deusa dos mares

The Jasmine Bride

Daphne Clair
Julia 345

O suave amor entre uma adolescente e um homem maduro

Rachel queria sonhos de amor; Damon, a realidade de uma paixão

A mulher despertava-lhe todos os sentidos, nadando e deixando seu corpo nu,


esbelto e firme, ser trazido pelas ondas espumantes, como um presente dos mares...
Damon aproximou-se dela, mas havia uma distância intransponível entre eles.
Nos seus dezessete anos, Rachel ainda experimentava a inocente inconseqüência da
juventude. Vivia uma fase deliciosa, que um homem maduro e experiente não
poderia compartilhar...

Digitalização e Revisão: m_nolasco73

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Este livro faz parte de um projeto sem fins lucrativos.


Sua distribuição é livre e sua comercialização estritamente proibida.
Copyright: Daphne Clair

Título original: The Jasmine Bride


Publicado originalmente em 1979 pela
Mills & Boon Ltd., Londres, Inglaterra

Tradução: Lúcia de Barros

Copyright para a língua portuguesa: 1986


Nova Cultural — São Paulo — Caixa Postal 2372

Esta obra foi composta na Linoart Ltda. e


impressa na Divisão Gráfica da Editora Abril S.A.

Foto da capa: Keystone


CAPÍTULO I

O dia estava perfeito e o céu azul, sem nuvens. Uma brisa suave vinha do mar,
que beijava a areia branca em ondas incessantes.
Rachel conhecia aquela praia como a palma da mão. A baía era quase
inacessível, a não ser pelo caminho estreito que levava ao pequeno chalé, equilibrado
no alto de um rochedo que se projetava sobre o mar.
Ela olhou para cima, mas não viu o carro esporte estacionado ao lado da casa.
No entanto, lembrava-se de que ele estava lá de manhã.
Damon Curtis devia ter ido à cidade, pensou. Provavelmente levaria muito
tempo para vencer os sessenta quilômetros da estrada estreita e poeirenta, que
cruzava os vales e os montes onde carneiros pastavam. No inverno, a estrada se
tornava muito perigosa, cheia de deslizamentos, às vezes se interrompendo
bruscamente numa cratera profunda criada pelas chuvas. Nessas ocasiões, as
fazendas de carneiros ficavam isoladas do resto do mundo, esperando que as
autoridades providenciassem um atalho na encosta escarpada.
Rachel tornou a olhar o céu claro. Não, nada indicava que o tempo fosse piorar.
Apesar da estrada, ele chegaria à cidade sem problemas. Tane, a deusa dos maoris,
iria protegê-lo.
Será que ele ia ficar o dia inteiro fora? Devia estar cansado do isolamento
daquele lugar e resolvera se distrair um pouco. Afinal, Damon Curtis era um escritor
famoso, acostumado ao barulho e à agitação das grandes cidades...
Rachel estendeu a vista para o mar, tão convidativo. Que pena não ter posto o
maiô! Se tivesse certeza de que ele não ia voltar logo, até que se arriscaria a nadar
sem roupa...
Andou pela orla do mar, sentindo a água lamber-lhe os pés descalços. Ah, que
vontade de mergulhar, deixando-se envolver por aquelas ondas deliciosas! Poderia
tomar um banho bem rápido antes de voltar para casa. Ninguém ficaria sabendo...
Sem pensar duas vezes, ela foi para a areia seca e num ímpeto tirou a blusa, o
jeans desbotado e a calcinha de algodão. Depois, correu para o mar e mergulhou em
suas águas revoltas.
Maravilhoso! Vencido o primeiro choque, Rachel se deliciou com o contato das
ondas. Nadou, deslizou na crista de uma onda até a praia, para depois voltar, esperar
outra e deslizar de novo. Seu corpo nu, esbelto e firme, entrava e saía da água,
mergulhando, pulando, desaparecendo para surgir outra vez.
Ficaria ali durante horas se pudesse, mas agora precisava ir embora. Com
relutância, aproveitou a última onda, até chegar à praia. Ao sentir a areia, ergueu-se
deixando a água escorrer de seu corpo. Puxou os cabelos para o lado e apertou-os
para que secassem mais depressa.
Quando levantou a cabeça... viu Damon Curtis, parado a poucos metros,
olhando-a fixamente. Num impulso, Rachel pôs as mãos diante do corpo, tentando
esconder sua nudez.
Por um longo momento, nenhum deles se mexeu. Então ele se virou e deu-lhe
as costas, sem, no entanto, sair de seu caminho.
Rachel não deixou de observá-lo, mesmo quando saiu da água e foi apanhar as
roupas. Vestiu a calcinha e a blusa, que se grudou na pele molhada, deixando seus
seios bem marcados. Colocou o jeans e fechou o zíper.
— Avise quando estiver pronta, Afrodite — disse Damon, ainda de costas.
Rachel só pensava em escapar dali. Olhou para o rochedo, mas a maré tinha
subido, tornando esse caminho inviável. Não havia outra solução. Precisaria seguir a
trilha normal, passando por ele, que continuava ali parado.
No entanto, se fosse bem rápida, ele não poderia alcançá-la... Decidida, correu
o mais depressa que pôde e seguiu caminho acima. Inutilmente, porque pouco
depois Damon a segurou pelo braço, impedindo-a de prosseguir. Rachel ainda tentou
se livrar, até reconhecer que ele era muito mais forte. Não tinha chance nenhuma.
Damon a prendia com força, parecendo disposto a não deixá-la escapar. Seus
cabelos escuros caíam em mechas teimosas sobre a testa, acentuando os traços bem
definidos. Olhos cinzentos, frios como uma manhã de inverno, a fitaram com
insistência. Ele reparou nos cabelos de Rachel, molhados e despenteados, nos olhos
verdes como esmeraldas, nos lábios entreabertos.
Embaraçada, com a respiração ainda descompassada, ela baixou o olhar.
— Puxa, depois de vestida você parece uma garotinha! — Um ar divertido
brilhou nos olhos de Damon.
— Sinto muito se ficou desapontado, sr. Curtis.
Surpreso, ele estourou numa gargalhada, inclinando a cabeça para trás. Ao
fazer isso, afrouxou a pressão das mãos, de modo que Rachel conseguiu soltar-se. Ela
não perdeu tempo. Correu para cima, mesmo sentindo que ele a seguia de perto.
— Não fuja — pediu Damon, quando conseguiu segurá-la já perto da casa. —
Vamos conversar.
— Não estou fugindo. Apenas não quero falar com você.
— Por quê? O que foi que eu lhe fiz?
— Não gosto de ser espionada.
— Espionada? Olhe aqui, mocinha, eu moro nessa casa, sabia? Posso até acusá-
la de invadir minha propriedade!
— O quê?! Ora, essa é muito boa! Você é o invasor! Tenho mais direito à casa do
que qualquer outra pessoa. Cansei de prevenir meus tios que não deviam alugá-la,
mas não me ouviram.
Damon notou que ela mal continha a raiva.
— Quem é você?
— Rachel Standen. Eu... morava aqui, com meu pai.
— Bem, então vamos entrar. Assim poderá me contar tudo. Eu nem sabia da
sua existência...
— Não quero! — Ela puxou o braço, mas Damon a deteve, entrelaçando os
dedos nos dela.
— Ei, não precisa ser tão ríspida. Qual é o problema?
— Desculpe. Na verdade, tenho que ir embora, já é tarde. Além disso, sei que
não devo ir a lugar nenhum com desconhecidos...
— Não sou nenhum monstro que come criancinhas! — Ele riu.
— Nem eu sou criança! Já tenho quase dezoito anos... Sou capaz de me cuidar.
— Ótimo. Como já passei dos trinta, acho que podemos ter uma conversa
agradável. Venha. — Damon abriu a porta e afastou-se para que ela entrasse.
Rachel ainda hesitou, mas acabou aceitando o convite. Na sala, reconheceu o
tapete que ocupava o centro do aposento, mas agora havia vários outros, de pele de
carneiro. O sofá e poltronas eram os mesmos, acrescidos de vários almofadões de
cores claras. Uma cadeira de balanço ocupava um dos cantos, perto de um abajur.
Junto da janela havia uma mesa com a máquina de escrever e várias pilhas de papel.
— Pensei que estivesse de férias — comentou Rachel.
— Escritores nunca têm férias. Se me afastarem da máquina de escrever, fico
louco. — Ele se encaminhou para a cozinha — Quer um refresco ou um refrigerante?
— Tomo um suco de laranja, se tiver. — Rachel ficou um pouco aborrecida por
ele não ter oferecido um drinque. Devia estar pensando que ela ainda era muito
criança...
Damon serviu dois copos e entregou-lhe um.
— Você também vai tomar suco? — perguntou ela, surpresa
— Não tenho nada alcoólico aqui.
— Não?
Damon riu da expressão incrédula de Rachel.
— Nem todo escritor é um alcoólatra inveterado. — Ele apontou o sofá. — Mas
sente-se, por favor.
Rachel preferiu a poltrona, evitando ficar muito perto dele.
— Então você morava aqui? — perguntou ele.
— Foi meu pai quem tornou esta casa habitável. Quando mudamos para cá,
estava quase em ruínas.
— É mesmo? Ele é arquiteto?
— Não, mas sabia fazer mil coisas... Ele já faleceu.
— Ah, sinto muito... Mas então seu pai comprou esta casa?
— Não, ele... Bem, é melhor contar desde o começo. Eu tinha quatro anos
quando papai veio trabalhar para tio Bert, o sr. Langholm. Era um serviço
temporário, mas fomos ficando. Na época, morávamos numa barraca, mas tia Anne
achava que não era adequada para uma menina e vivia insistindo para que eu fosse
morar com ela, mas papai não quis. Como esta casa estava vazia e caindo aos
pedaços, papai pediu para usá-la. Queria manter a família unida, já que éramos só
ele e eu.
— E sua mãe?
— Morreu quando eu era muito pequena. Não me lembro dela.
— Faz muito tempo que também está sem seu pai?
— Três anos. Papai sofreu um acidente horrível. O trator virou e rolou por cima
dele.
— Deve ter sido muito duro para você. Não é uma situação fácil de enfrentar,
principalmente quando se é tão jovem.
— É difícil em qualquer idade, não concorda?
— Tem razão. Perdi meus pais num acidente de carro quando tinha vinte e
cinco anos e também sofri muito. Tenho uma irmã, mas assim mesmo... O sr. e sra.
Langholm são seus tios por parte de mãe?
— Na verdade não são meus parentes, mas têm sido muito bons comigo e
sempre os chamei de tios. Os filhos deles moram fora, só Jerry é que ficou
trabalhando na fazenda. Tia Anne tomou conta de mim porque eu estava
completamente sozinha no mundo. Foi muito carinhosa mas, no princípio, eu
sempre voltava para cá, afirmando que aqui era meu lugar. Admito que agi de modo
muito infantil...
— Não é para menos. Você só tinha catorze anos! — Ele fez uma pausa. — Ainda
se ressente por ver outra pessoa invadindo sua velha casa, não é?
— Bem... sempre pensei nela como se fosse minha, embora não tenha direito
nenhum. Papai não a comprou, nem assinou contrato. Apenas pediu a tio Bert para
morar aqui e, mesmo tendo feito a reforma, não obteve direito legal sobre a
propriedade. Os donos continuam sendo os Langholm.
— Talvez exista uma maneira de acertar a situação. Já procurou um advogado?
— Não, nem quero. Fiquei aborrecida por meus tios terem alugado a casa, mas
compreendo que podem fazer dela o que quiserem. Além disso, têm cuidado de mim
durante todos esses anos e sei o que isso significa.
Apesar de ser grata pela bondade do casal, Rachel às vezes sentia-se magoada e
mal compreendida. Talvez fosse sensível demais, mas se revoltava quando sua tia
Anne lastimava o modo como seu pai a criara.
Diante das inúmeras proibições da tia, Rachel sempre afirmava: "Papai
deixaria, tenho certeza", ao que a sra. Langholm retrucava: "Agora não ia deixar,
porque você não é mais uma garotinha". De que adiantava se revoltar? O pai estava
morto e não podia mais defendê-la...
Damon Curtis colocou o copo vazio sobre a mesa de centro.
— Então você sabia que eu tinha alugado a casa. Não teve medo de ir nadar
daquele jeito?
Rachel imediatamente se pôs na defensiva.
— Você tinha saído! Seu carro não estava estacionado na porta.
— Mas eu ia voltar, certo? Você se arriscou muito.
— Não esperava que aparecesse tão depressa. Imaginei que passaria o dia todo
na cidade.
— Para quê? Fiz o que precisava, fui ao correio, comprei mantimentos e voltei.
— Foi até lá só para isso? Quando vamos, ficamos até à noite.
— Vim morar neste lugar afastado justamente para ficar longe do movimento
da cidade.
Rachel encarou-o curiosa.
— Por quê? Não gosta de viver na cidade?
— Preciso de paz para trabalhar. Tenho grandes idéias, mas preciso de
tranqüilidade para pô-las no papel. Não dava mais para ser interrompido a todo
instante por amigos, telefonemas, convites...
— Está escrevendo outro romance?
— Isso mesmo. Posso deduzir que já leu algum de meus livros?
— Sei que é um dos melhores escritores da Nova Zelândia. Houve muita
publicidade a seu respeito quando vendeu os direitos autorais de seu último livro
para a realização de um filme. No entanto, só li "Decepção Amarga".
— Gostou?
— Para ser bem sincera... não.
— Obrigado por me dizer a verdade. Quase ninguém mais tem coragem de ser
franco desse jeito.
Rachel levantou.
— Preciso ir agora, senão tia Anne pode ficar preocupada comigo.
— Espero que goste de meu novo romance. Assim que for publicado, mando-lhe
um exemplar.
— Obrigada.
Damon acompanhou-a até a porta.
— Sempre que tiver vontade de nadar, venha. Talvez eu até lhe faça companhia.
Não se incomoda, não é?
— Claro que não.
A caminho de casa, Rachel sorriu, lembrando desse último convite. Será que
Damon Curtis esperava vê-la outra vez sem maiô?

CAPÍTULO II

Rachel conseguiu entrar em sua casa sem ser vista. Foi depressa tomar banho,
depois pôs um vestido de verão e secou os cabelos antes de ir à cozinha preparar o
jantar.
Gostaria muito mais de trabalhar fora, ajudando Jerry nas tarefas da fazenda,
mas tia Anne era muito categórica a esse respeito: "Mulher é feita para os serviços
domésticos e não para enfrentar o trabalho duro e pesado que os homens fazem.
Nossa obrigação é esperá-los com uma refeição quente e gostosa". Não adiantava
lutar contra a determinação da tia. Por mais que detestasse as tarefas domésticas,
Rachel acabava se submetendo.
Com um suspiro, ela separou a carne, preparou-a, descascou as batatas e depois
foi à horta colher verduras frescas.
Pegou bastante espinafre e, enquanto o lavava, lembrou-se das ondas fortes da
praia, antes do encontro com Damon Curtis.
Afrodite, ele a tinha chamado. Uma brincadeira, naturalmente, por vê-la
emergir das águas, como contava a lenda. No entanto, assim que a viu vestida,
Damon mudou de idéia. Aborrecida, Rachel lembrou-se que ele a chamou de
"garotinha". Será que ele a julgava alguma menina boba só porque morava longe da
cidade? Com raiva, Rachel começou a cortar o espinafre, batendo a faca com força
contra a tábua.
— Tenha cuidado, Rachel. Vai acabar se cortando — Anne Langholm a
preveniu, entrando na cozinha nesse momento.
Imediatamente ela refreou o ímpeto e passou a agir com calma, para evitar que
a tia a observasse. Durante toda a noite foi amável e delicada. Serviu a sobremesa e
tirou a mesa antes que lhe pedissem. Em seu íntimo, tinha um ligeira sensação de
culpa pelo que fizera à tarde. Tia Anne certamente a reprovaria, se soubesse.
Após o jantar, a família se reuniu para ver televisão. Rachel e a tia costuravam,
enquanto os homens divertiam-se com um programa sobre esportes.
Durante um dos intervalos para comerciais, Rachel notou que Jerry a olhava de
modo estranho. Ao ser surpreendido, ele desviou o olhar e ela voltou a atenção para
o trabalho, mas momentos depois os olhares tornaram a se encontrar. Dessa vez
Jerry não se esquivou.
Uma sensação esquisita, misto de medo e excitação, cresceu dentro de Rachel,
que sentiu as faces em fogo. Era a primeira vez que reconhecia o desejo estampado
no rosto de um homem.
Concentrou-se na costura, mas suas emoções estavam confusas. Não podia
negar que gostava de ser admirada. Damon Curtis a tinha chamado de "garotinha" e,
no entanto, o que via nos olhos de Jerry desmentia essa afirmação.
Rachel olhou para cada membro daquela família que a acolhera com tanto
carinho. Gostava deles, apesar de às vezes desejar que existisse maior afinidade. Até
mesmo Jerry, seu companheiro e amigo, não a compreendia muito bem.
A princípio Jerry a tinha ignorado, talvez pela diferença de idade: ele era seis
anos mais velho. Só mais tarde os dois começaram a se aproximar. Agora ele era
como um irmão.
O que achava de Jerry? Bem... era bonito, tinha olhos azuis expressivos, o
cabelo muito claro por estar sempre exposto ao sol, o corpo bem proporcionado e
forte, e pele queimada. Fazia muito sucesso com as mulheres; as garotas viviam atrás
dele.
— Foi um jogo sensacional, hein? — comentou Jerry no fim do programa. —
Esse tenista ainda vai ser campeão.
— Tem razão, meu filho. — Bert Langholm virou-se para a esposa. — Anne, hoje
conversei com o novo inquilino.
Rachel prendeu a respiração. Damon Curtis teria dito alguma coisa sobre o
encontro na praia?
— Como ele está se arranjando? — Tia Anne não se conformava com a idéia de
um homem viver sozinho, cuidando da casa e da própria comida.
— Muito bem, pelo jeito. Ele estava de saída para a cidade. Disse que ia
comprar mantimentos.
— Que bobagem ir tão longe só para isso. Poderia ter me pedido o que lhe
faltava.
— Foi o que lhe disse, Anne, mas o rapaz é tão independente que nem me
escutou. Insistiu que não queria nos dar trabalho e que não custava nada dar um
pulo até o supermercado.
— Não é trabalho nenhum! — Anne guardou a costura. — Esse pessoal da
cidade pensa diferente da gente, não é? Amanhã dou um pulo lá e falo com ele.
— Acha que é uma boa idéia?
— Por Que não?
— Não sei se será bem-vinda, Anne. Damon Curtis é do tipo solitário e cansou
de dizer que veio para cá justamente para se livrar da vida agitada que levava. Se
quer saber minha opinião, acho que devia deixá-lo em paz.
— Pois eu penso de outro modo. — Anne continuou firme. — Damon Curtis
deve estar sem jeito de nos pedir alguma coisa, só isso. Vou até lá para lhe dizer que
não faça cerimônia, que estamos muito acostumados a ajudar vizinhos.
Rachel estava cada vez mais preocupada. Tio Bert tinha encontrado Damon
quando ele ia para a cidade, portanto antes de sua aventura na praia. Mas, e se... e se
Damon resolvesse contar tudo a tia Anne? Que horror! Precisava falar com ele, antes
que a tia fosse lá. Tinha que lhe pedir que guardasse segredo.
Agitada demais para continuar costurando, Rachel guardou seu trabalho e se
ofereceu para fazer café. Todos aceitaram.
Foi para a cozinha, mantendo-se ocupada para não pensar no problema que
tinha pela frente. Preparou o café, arrumou a bandeja e levou-a para a sala. Entregou
as xícaras aos tios e depois para Jerry, que lhe tocou os dedos por mais tempo que o
necessário.
Esse gesto, em vez de agradá-la, só aumentou sua irritação. Não agüentava
mais ficar na sala, estava muito nervosa. Queria ir para a solidão de seu quarto e
pensar.
— Vou deitar, estou cansada. Boa noite. — Rachel saiu o mais depressa que
pôde.

Fechou a porta do quarto com a estranha sensação de ter fugido de um perigo.


Tirou a roupa, pegou a camisola de cambraia que guardava sob o travesseiro e
vestiu-a. Já estava com a mão na maçaneta quando resolveu voltar e colocar o robe.
Só então foi para o corredor, na direção do banheiro.
Quando saiu, dez minutos depois, deu de cara com Jerry, ainda com a xícara na
mão.
— Gostaria de tomar mais um pouco de café — pediu ele.
Rachel ficou furiosa. Jerry podia muito bem servir-se sozinho! Porém,
acostumada há quatro anos naquela casa, onde as mulheres serviam os homens
constantemente, ela não reagiu e, sem uma palavra, pegou a xícara e foi para a
cozinha.
Jerry a seguiu, sem tirar os olhos dela. De modo casual colocou-lhe a mão no
ombro, para depois acariciar-lhe as costas.
Rachel se esquivou, serviu o café, entregou-lhe a xícara, e com um "boa noite"
seco, foi para o quarto.

Ainda não eram seis horas quando acordou. Ficou deitada mais um pouco,
esperando que os ponteiros formassem uma linha vertical. Quando levantou, vestiu
uma calça jeans, uma blusa azul-clara e saiu de casa, respirando o ar fresco da
manhã.
Andou ligeiro, procurando o abrigo das árvores, que impediam que a vissem da
casa. Depois seguiu a trilha dos carneiros que a levaria até a baía.
Esperava que Damon Curtis fosse madrugador, pois pretendia estar de volta
antes das sete, para que não percebessem sua ausência.
Logo chegou à casa dele. Bateu, mas ninguém atendeu. Insistiu com mais força,
mas nem assim ele apareceu. Experimentou a porta, e, como estava destrancada,
entrou, chamando por Damon. Só faltava ir até o quarto dele para acordá-lo, mas
isso seria demais!
Suspirou, aborrecida. Virou-se para ir embora, quando algo colorido, na praia,
despertou sua atenção. O que seria? Talvez uma toalha estendida na areia?
Olhou para o mar e viu Damon mergulhando sob uma onda alta. Rachel desceu
correndo o caminho íngreme e, quando chegou à areia, ele já saía do mar, com os
cabelos loiros colados à cabeça e a água pingando do corpo. Usava um calção
reduzido que enfatizava suas formas masculinas.
— Tal como você, Rachel, não resisti à tentação do mar — gritou ele ao avistá-
la. — O que faz por aqui tão cedo?
— Precisava falar com você sobre... aquilo. Tia Anne vem aqui hoje e...
— Por quê? — Ele apanhou a toalha e começou a enxugar-se. — O que andou
dizendo a ela?
— Nada! Por isso vim até aqui. Espero que você também não diga nada. Por
favor, poderia manter em segredo que me viu nadando sem roupa?
— Por que eu haveria de tocar no assunto?
— Pensei que você... talvez... achasse que era sua obrigação contar tudo a ela.
— É mesmo?
Damon parecia perplexo e divertido. Rachel sentiu que estava fazendo papel de
boba. Sem dúvida, ele a julgava uma garotinha ingênua que armava tempestades em
copo d'água.
— Tia Anne é muito severa e tenho certeza de que faria um escândalo se
soubesse o que aconteceu aqui.
— Ela bateria em você?
— Não, isso não...
— Então, o quê?
— Bem, ela me faria um longo sermão sobre modéstia e decência, sobre o tipo
de moça que posso vir a ser se continuar agindo dessa forma, sobre... coisas assim,
compreende? Tia Anne é muito boa, mas insiste em manter-me trancada em casa.
— Entendo. — Damon segurou a mão dela e começaram a caminhar pela praia.
— Disse a ela que me encontrou ontem?
— Não. Se dissesse, ia ter que dar muitas explicações...
— Está bem. Já sei como faremos. Quando ela vier, vou fingir que nunca vi você
antes. — Uma pausa. — Mas, afinal, se não é para tomar satisfações, por que ela vem
aqui?
— Tia Anne quer se oferecer para ajudar você no que precisar. Acha uma
bobagem você ir até a cidade sempre que faltar uma coisa ou outra.
Damon passou a mão pelos cabelos molhados, num gesto aborrecido.
— Sei que sua tia tem a melhor das intenções, mas pensei que tivesse explicado
bem que aluguei esta casa para ficar sozinho.
— Todos sabemos que prefere manter-se isolado e que recusa os convites que
lhe fazem. Porém tia Anne acha que poderia ter mudado de idéia e...
— Não sou tão volúvel assim! Sei o que quero.
— Mas... então por que me convidou para vir aqui nadar outras vezes?
Damon riu.
— Nadar com a vizinha, em frente a minha casa, não é um sacrifício assim tão
grande, não acha?
Rachel se retraiu. Ele já estaria arrependido por ter combinado nadar com ela?
Era melhor mudar de assunto.
— Agora preciso ir embora. Sei que tia Anne vai convidá-lo para jantar, mas
não vai aceitar, tenho certeza.
— Gostaria que eu fosse?
Surpresa, Rachel o encarou, sem entender o ar malicioso dos olhos dele.
— Faça como quiser, mas tia Anne ficará decepcionada se recusar. — Ela deu
uns passos para a frente. — Até qualquer dia.
— Até... — Pensativo, Damon a observou subir o caminho íngreme, até Rachel
desaparecer de sua vista.

A sra. Langholm voltou entusiasmada. Anunciou que o sr. Curtis não só a tinha
recebido muito bem, como aceitara seu convite para jantar no dia seguinte.
— Vou fazer assado de carneiro com molho de hortelã e uma terrina de legumes
— decidiu.
Não era um menu muito especial, mas Rachel sabia que ela era excelente
cozinheira e que ninguém resistia à tentação de experimentar carnes e legumes
frescos da própria fazenda.
No dia seguinte, depois de ajudar na cozinha, Rachel foi se arrumar. Ficou
parada diante do armário, sem decidir o que vestir. Queria pôr algo diferente,
sofisticado, que a fizesse parecer uma mulher adulta. Mas, por mais que olhasse, não
encontrava nada adequado.
Pegou um vestido de algodão branco, colocou-o na frente do corpo e olhou-se
no espelho. O decote fechado, rente ao pescoço, terminava com um babadinho do
mesmo bordado inglês que enfeitava a barra da saia. Não! Nada disso! Com essa
roupa ia parecer uma menininha no dia da primeira comunhão.
Voltou ao guarda-roupa para experimentar outra coisa. Não tinha muita
variedade de vestidos, mas havia de encontrar um mais parecido com o que queria.
Acabou se resolvendo por um vestido tipo camisão, de seda azul, que tia Anne
havia lhe comprado numa liquidação. Para ficar mais ousado, deixou os dois
primeiros botões abertos. Colocou um cinto largo e completou com sandálias de
salto.
Os cabelos foram outro desafio. Escovou-os até que ficassem brilhantes e
depois puxou-os para trás, prendendo-os num coque baixo. Não deixou um só fio
fora do lugar.
Mesmo que tia Anne se aborrecesse, ela decidiu pintar os olhos para deixá-los
maiores. Finalmente passou um pouco de batom rosa-claro.
Rachel foi para a sala no mesmo instante em que tocavam a campainha. Tia
Anne veio abrir a porta e, ao ver a enteada, logo recomendou:
— Feche esses botões.
Envergonhada, Rachel obedeceu sem pensar e ficou parada, enquanto Damon
entrava.
— Esta é Rachel, nossa filha adotiva — apresentou Anne.
— Muito prazer. — Damon estendeu-lhe a mão com um sorriso.
— O prazer é meu. — Rachel sentiu o calor dos dedos fortes ao mesmo tempo
em que se encantava com o tom de voz profundo, sem o menor traço de aspereza.
Anne apresentou o convidado a Jerry e logo Bert Langholm aproximou-se,
oferecendo uísque para os homens e um cálice de xerez para a esposa.
Sem pesar as conseqüências, Rachel pediu:
— Tio Bert, posso tomar um pouco também?
Ele a olhou surpreso e na mesma hora Rachel arrependeu-se. Não suportaria
ser repreendida na presença do hóspede. Preferia morrer.
— Dê um cálice para ela, Bert — interveio Anne. — Rachel já tem quase dezoito
anos e pode tomar aperitivos com a família.
Ela deu um gole rápido na bebida, sentindo o rosto arder de vergonha. Nem
ousou olhar para Damon, que conversava animadamente com a tia.
O xerez deixou-a ligeiramente zonza, mas assim mesmo ajudou a servir o
jantar. Quando chegou a sua sobremesa favorita, um pudim de kiwi verde, já estava
bem mais segura.
Damon fez várias perguntas a Bert, que contou sobre o trabalho e os problemas
de uma fazenda de carneiros. Rachel não se lembrava de o tio ter conversado tanto,
nem com tanto entusiasmo.
Quando voltaram à sala, para tomar o café, Damon começou uma prosa com
Jerry, levando-o a falar sobre seu passatempo predileto, o rugby.
As mulheres tiraram a mesa e foram para a cozinha lavar os pratos. Quando
retornaram, os três continuavam numa conversa animada.
Rachel sentou num banquinho perto do sofá, de onde podia observar Damon.
Era incrível como ele dirigia a conversa para onde queria, fazendo pai e filho
descreverem lances de jogos importantes, criticarem táticas de ataque, valorizando
alguns jogadores. Damon ouvia com atenção, mas estava claro que o controle era
seu.
Ele virou a cabeça e a viu, percebendo-lhe uma leve crítica no olhar. Sorriu,
mas ela não correspondeu. A antiga hostilidade havia voltado. Não gostava de ficar
passiva, vendo Damon manipular sua família adotiva. Ele já havia conquistado a tia
com suas maneiras amáveis e elogios sobre o jantar. Agora repetia a proeza com tio
Bert e Jerry.
Depois de algum tempo, Damon levantou e foi para junto de Rachel.
— Ainda está freqüentando a escola? — quis saber ele.
— Nunca estive na escola.
— Rachel fez seus estudos por correspondência — explicou Anne. — Acaba de
receber o diploma do colegial e já pode se matricular numa faculdade, se quiser.
— O que pretende estudar na universidade? — Damon voltou a falar com ela,
mas foi Anne quem tomou a iniciativa de responder.
— Ela ainda não se decidiu, mas achamos que seria ótimo se ficasse mais um ou
dois anos conosco, para descansar dos estudos e provas. Aí, então, se resolver ir para
a faculdade ou arranjar um emprego... tudo bem. Não sou favorável a qualquer
dessas possibilidades, porque é perda de tempo para uma mulher. No entanto,
parece que o pai dela queria...
— Papai afirmava que eu deveria ter um diploma universitário — logo
acrescentou Rachel.
— Ele tinha curso superior? — indagou Damon.
— Creio que sim.
Rachel estava pouco à vontade. Aquele escritor a observava demais, reparando
em sua maneira de ser, em suas reações... talvez para mais tarde poder usá-las num
personagem de seus livros? Damon escrevia muito bem, com clareza e objetividade,
mas era sarcástico e até cruel com os heróis e heroínas que criava.
— Mas o que você tem vontade de estudar? — insistiu ele.
— Não sei. Talvez História, ou Literatura Inglesa, quem sabe até Antropologia.
— Devia pensar melhor, Rachel — interrompeu-a tia Anne. — Não acha que o
magistério seria muito mais adequado?
— Pode ser. — Rachel tinha consciência de como a tia era contrária às idéias de
seu pai sobre educação. Compreendia também que lecionar para crianças era uma
boa profissão, mas não seu ideal.
No fundo, sabia o que tia Anne desejava. Que ela logo encontrasse o filho de
algum fazendeiro da região, com quem se casasse. Para a sra. Langholm, os únicos
objetivos de uma mulher deveriam ser casar, cuidar da casa, do marido e dos filhos.
Para isso, dizia, ninguém precisava de diploma universitário. O melhor era mudar de
assunto, já que não ia discutir diante de uma visita. A decisão sobre o que faria de
sua vida lhe pertencia e não adiantava indispor-se com outras pessoas.
— Que tal ouvirmos um pouco de música, tia Anne?
— Ótimo, mas não ponha muito alto.
Quando Rachel se ocupou com os discos, Jerry foi para junto dela. Escolheram
os melhores e, quando a música se espalhou pelo ar, o rapaz sentou-se na poltrona e
ela se ajeitou no chão, com os ombros apoiados nas pernas dele.
Mais à frente, Damon conversava com a sra. Langholm, sem tirar os olhos de
Rachel.
— Seus cabelos estão se soltando — comentou Jerry , tentando prender os fios
dourados.
Rachel levou a mão aos cabelos e seus dedos encontraram os de Jerry. Ela virou
a cabeça e sorriu. Havia ternura nos olhos dele. Bem ao contrário dos olhos
cinzentos de Damon, que de repente pareceram frios, do outro lado da sala... Mas
devia ser impressão, porque logo em seguida ele se levantou.
— Sua tia me contou que gosta de nadar na baía em frente a minha casa —
disse, quando veio despedir-se dela. — Não quero que se sinta constrangida porque
estou lá. Venha sempre que quiser.
— Obrigada. — Rachel desviou o rosto, para disfarçar. O ar travesso nos olhos
dele dizia tudo.
— Que tal amanhã? O dia será de sol, segundo as previsões.
— Quem sabe...
O sorriso de Damon se tornou mais amplo e, com um "boa noite" geral, foi
embora.

CAPÍTULO III

Durante alguns dias Rachel evitou chegar à praia. Não tinha vontade de
encontrar Damon Curtis de novo.
No domingo seguinte, porém, um belo dia de verão, ela sentou-se à sombra
frondosa de uma karaka e tentou passar para o papel a cena magnífica que se
descortinava a sua frente.
— Oi. — A voz profunda de Damon fez-se ouvir algum tempo depois. —
Desenhando?
— Um pouco. — Ela fechou o caderno depressa.
— Posso lhe fazer companhia?
— Se quiser...
Damon sentou-se ao lado dela, os ombros quase se tocando. Por um momento
ficaram em silêncio, apreciando a tarde bonita, cheia de sol e calor.
— Esta parte do país é maravilhosa — comentou Damon. — Você é muito feliz
por ter crescido aqui. É um pedaço da Nova Zelândia que permanece quase intocado
pelo homem.
— Também gosto muito da região. E você, de onde é?
— De Wellington.
— Hum... não gosto de lugares frios, onde o vento sopra constantemente.
— Aqui na baía Hawkes nunca faz frio?
— Claro que sim, mas não sempre, como em Wellington.
— Já esteve lá?
— Não. Nunca fui além de Napier.
— Napier é a maior cidade que conhece? — perguntou Damon espantado.
Rachel levantou a cabeça, pronta para desafiá-lo.
— É, e não faço questão nenhuma de conhecer outras mais desenvolvidas. A
televisão mostra tanta loucura e violência nos grandes centros que não tenho
interesse em vê-los.
— Não é tão ruim assim. — Ele sorriu. — Se você for para a universidade ou
resolver lecionar, terá de ir para uma cidade maior, não é?
— É verdade, mas... se pudesse escolher, gostaria de morar em Auckland, que
está junto do mar e é bastante quente.
— Ficaria bem lá? Feliz?
— Acho que sim, isto é, se um dia eu realmente for para algum lugar.
— Por que não? É o que quer, certo?
Rachel olhou para o horizonte, onde céu e mar se confundiam, sem fronteiras
entre seus tons de azul.
— Tem medo de ir? — insistiu Damon.
— Não.
— Então vou lhe deixar meu endereço e telefone. Faço questão que me procure,
se um dia resolver ir.
— Você mora em Auckland?
— Moro. Terei prazer em levá-la para conhecer a cidade.
— Obrigada.
Ficaram calados, ocupados com seus próprios pensamentos. Depois Damon
virou-se e segurou-lhe o queixo delicado, forçando-a a encará-lo.
— Ainda está aborrecida porque aluguei sua velha casa?
— Claro que não. — Rachel afastou a mão dele.
— Então, por que não tem vindo nadar?
— Não tive tempo.
— Seus tios a mantêm tão ocupada assim, Cinderela?
— Não sou Cinderela coisa nenhuma. Tia Anne é muito boa para mim. Não é
nem madrasta nem má, como na lenda.
— Também se pode sufocar com carinho, não sabia?
— Que estupidez! — Rachel levantou, zangada. — Que coisa horrível de se dizer!
Ela quis ir embora mas Damon já estava de pé, bloqueando seu caminho. Ele
estendeu os braços e a segurou suavemente pelos ombros.
— Não sou estúpido nem indelicado mas, se a ofendi, peço desculpas. Talvez
não acredite, mas tentei apenas ser seu amigo.
Rachel o fitou sem compreender, procurando livrar-se do contato que a
perturbava. No mesmo instante Damon mudou de atitude.
— Que tal nadarmos? Com esse sol quente, a água deve estar uma delícia.
— Não trouxe o maiô. Teria que ir até minha casa para vesti-lo. — Ela sorriu ao
notar o brilho malicioso nos olhos de Damon.
— Está bem, fico aqui esperando. Ou acha que é melhor ir com você e pedir
permissão à sra. Langholm?
Rachel afastou-se, divertida.
— Não precisa chegar a esse exagero! Volto logo. — Caminhou na direção de
sua casa, mas, depois de alguns passos, virou-se de novo. — Talvez Jerry queira vir.
Tudo bem?
Damon hesitou, mas respondeu com firmeza:
— Claro. Traga-o com você.
No entanto, Rachel nem falou com Jerry, que estava diante da televisão,
absorvido numa partida de rugby, com um copo de cerveja na mão. Parecia tão
distraído que não adiantava propor-lhe outro programa.
No quarto, ela colocou um maiô bem decotado nas costas. Embrulhou o pente
numa toalha e vestiu a saída-de-banho, curta, que deixava à mostra suas pernas
compridas e esguias. Prendeu os cabelos num rabo-de-cavalo e amarrou uma fita
para mantê-lo no lugar.
Quando chegou junto da karaka, viu Damon sentado, apoiado contra o tronco
grosso. Pensou que estivesse dormindo mas, ao se aproximar mais, reparou que ele a
observava com atenção. Damon estendeu a mão, provocando-a.
— Não vai me ajudar a levantar?
— Que preguiçoso! Por que não levanta sozinho?
Já ia dar meia-volta, quando Damon a agarrou pelo tornozelo, fazendo-a rolar
sobre o capim macio. Rachel ergueu-se nos cotovelos, mas Damon estava próximo
demais, sem deixá-la levantar.
— Agora quero ouvir de novo. Do que foi que me chamou?
— Não chamei de nada, sr. Curtis. — Ela sabia que estavam brincando, mas
sentiu algo mais por trás daquilo, alguma coisa diferente, intangível, inexplicável...
— Sr. Curtis?! Sou tão velho assim? Quantos anos imagina que tenho?
— Não sei, mas não foi você mesmo que disse que eu era só uma criança?
O ar brincalhão sumiu do rosto dele.
— É verdade, mas devia ter acrescentado que por isso mesmo é tão
encantadora. Nem sei como consigo resistir a tanta beleza. — Ele fez uma pausa. —
Isso a deixa assustada?
Rachel passou a língua nos lábios que, de repente, tinham ficado secos. Estava
consciente da proximidade dele, de sua pele morena, dos músculos fortes, dos traços
másculos de seu rosto.
— Não... Acho que não.
Damon olhou-a bem dentro dos olhos, tentando desvendar-lhe os
pensamentos. Depois sorriu e o ar jovial e despreocupado retornou à sua face.
— Você é uma feiticeira, Rachel, mas é muito jovem e não conhece seus
poderes. — Damon levantou e deu-lhe a mão para ajudá-la a se erguer. — É muito
bonita e só um morto não apreciaria suas qualidades. Mas não tenha medo de mim,
jamais tiraria proveito de sua inexperiência. Era só brincadeira. Como é, vamos
nadar agora?
Seguiram pelo caminho que levava à praia, rindo e apreciando a brisa suave, o
sol forte, o mar tão azul. Entraram na água correndo, de mãos dadas. Rachel
mergulhou numa onda forte e nadou com vigor.
Mais tarde, sentados na toalha estendida na areia, Damon observou Rachel
passar o pente nos cabelos molhados.
— Você devia estar sentada numa rocha, no meio do mar.
— Não sei cantar, por isso não me chame de sereia. — Rachel riu com gosto.
— Não sei, não... Tenho a sensação de que você foi feita para enfeitiçar os
homens, conforme diz a lenda. Além disso, nada muito bem, como se estivesse em
seu elemento natural. Não é uma característica das sereias?
— Gosto muito de estar na água. Meu pai me ensinou a nadar quando eu era
bem pequena. Ele também me ensinou a ler e foi meu único professor, até que surgiu
tia Anne e a escola por correspondência. — Deitou-se de bruços, pegou um punhado
de areia e deixou-a escapar por entre os dedos. Lágrimas de saudade saltaram de
seus olhos e ela escondeu o rosto nos braços.
Com muita suavidade, Damon a fez virar-se, para depois enxugar as lágrimas
com a ponta dos dedos.
— O que foi, Rachel?
— Não sei... Saudades de papai, eu acho. Sinto-me muito sozinha desde que ele
morreu.
— Teve uma infância feliz? Não sentia falta de companhia?
— Muito feliz. Havia algumas famílias maoris que moravam aqui perto e eu
brincava com as outras crianças. Mesmo quando tia Anne começou com as aulas por
correspondência, as crianças indígenas e eu estudávamos juntas. Mas depois elas
foram embora, em busca de trabalho. Acho que foi nessa época que comecei a ler
muito. Papai deixou muitos livros e ainda os devoro com prazer.
— O que gosta de ler?
— Praticamente tudo, mas meus prediletos são os clássicos da literatura
inglesa.
— Esse não é mais um motivo para você ir para a faculdade? Poderia se formar
em Literatura e dar aulas.
— É... Quem sabe?
— E romances? Também os lê?
— Alguns. Entre eles, o seu.
— "Decepção Amarga", lembro bem. Não gostou, não é?
Ela apenas concordou com a cabeça.
— Pode me dizer por quê?
Rachel pensou nos personagens do romance, egoístas, fingidos, que não
ligavam para os sentimentos dos outros.
— Não gostei do modo de agir de alguns deles. As pessoas que conhece também
são assim?
— Não confunda, Rachel. Os personagens que criei é que se comportam dessa
forma.
— Eles são todos produtos de sua imaginação? Não se baseia em pessoas reais?
— Ela ficou mais aliviada, mas ainda descrente que alguém pudesse inventar gente
tão ruim como aquela. — Eles não eram muito... simpáticos, não concorda?
Damon soltou uma gargalhada.
— Já sei o que se passa em sua cabecinha. Acha que, se criei personagens maus,
também devo ser como eles. Certo? — Ele deitou, colocando a cabeça entre as mãos
cruzadas. — Quando elaboro os personagens de um romance, na verdade, não sei de
onde vieram, ou se são baseados em alguém que já vi antes. Eles simplesmente
nascem. Mas, como você, há muita gente que não entende isso. Perdi uma boa amiga
porque ela sentiu-se retratada em Karina, a heroína de "Decepção Amarga".
— Karina? Ela era a expressão da maldade!
— Exatamente. Karina é o tipo da mulher fatal, que só visa a seus próprios
interesses, ao passo que essa minha amiga não era nada disso.
— Então... como é possível?
— Não sei. Talvez ela tenha se identificado com Karina porque no inconsciente
desejava ver-se como outra pessoa... As mulheres são tão complicadas! A verdade é
que ela agiu exatamente como Karina, quando me abandonou.
Levou alguns instantes para Rachel entender o que Damon estava lhe
contando. Olhou para ele e depois, rapidamente, para a areia.
— Fomos amantes — Damon respondeu à pergunta que ela não teve coragem
de fazer. — Ficou chocada? — Rachel não respondeu nem olhou para ele. — Claro
que não, porque o que lhe contei está de acordo com a idéia que faz dos escritores e
artistas em geral, não é? São todos dissolutos, bêbados...
— Você é quem está tirando as conclusões, não eu — interrompeu ela, zangada.
— Talvez tenha razão.
Ficaram em silêncio. Rachel sentia-se um pouco embaraçada, sem saber o que
dizer. Era tão jovem e inexperiente que não tinha certeza se sabia lidar com um
homem vivido e maduro como Damon. Às vezes ele falava coisas que a deixavam
desconcertada, outras vezes brincava, outras ainda parecia muito sério. Que homem
imprevisível!
— Está na hora de voltar para casa. — Ela levantou e colocou a saída.
— Voltará aqui outras vezes, não é? — Damon segurou-a até que ela acenasse
que sim.
— Amanhã?
— Talvez... — Rachel enrolou a toalha e, quando ergueu a cabeça, notou-lhe o
sorriso irônico. — Não sei se posso! Depende de tia Anne, não vou prometer nada.
— Está bem, Afrodite. Acredito em você.
Rachel começou a procurar a fita para amarrá-la nos cabelos. Será que a
perdera na água? Porém, ao se virar, encontrou Damon com ela na mão. Com um
sorriso, ela ficou de costas para que ele a ajudasse.
Os dedos longos roçaram a pele de Rachel, fazendo uma ligeira carícia em sua
nuca. Um frêmito estranho se espalhou pelo corpo dela.
— Pronto — avisou ele.
— Obrigada. — Rachel se afastou, ainda sem entender a nova emoção que a
dominava.
Foi andando a passos largos, para depois acenar em despedida. Quando chegou
ao alto do rochedo, olhou de novo para a praia. Damon havia se deitado no mesmo
lugar, os cabelos loiros contrastando com o branco da areia.
Rachel demorou um pouco, na esperança de que ele erguesse o olhar e a visse,
mas acabou desistindo. Por que a presença de Damon a perturbava tanto?, pensou, a
caminho de casa.
Sem dúvida, ele era um homem muito atraente e por isso sentia-se tão excitada.
Porém, não devia se esquecer de que ele a via apenas como uma menina.
Como tinha vontade de mostrar-lhe que estava enganado! Gostaria de obrigá-lo
a pensar nela o tempo inteiro, de fazê-lo apaixonar-se tão perdidamente que...
Ora, de que adiantava pensar desse modo? A educação que recebera do pai e de
tia Anne jamais permitiria que se atirasse nos braços de um homem somente para
provar que era possível conquistá-lo. Além disso, não ia brincar com fogo. Se Damon
sucumbisse, ainda assim não teria provado nada, pois não havia outra mulher por ali
que representasse concorrência.
No fim do verão, Damon ia sumir de vez de sua vida, retornando ao convívio de
mulheres belas e sofisticadas. Nem pensaria mais nela, mesmo que tivessem se
envolvido além daqueles encontros na praia.
E a namorada dele? Por que o tinha abandonado? Talvez ele não se desse conta,
mas a tal moça devia ser mesmo igualzinha a Karina, fria e calculista. Era a única
explicação para o fato de uma mulher ter coragem de romper um romance com um
homem tão fascinante quanto Damon Curtis...
CAPÍTULO IV

Rachel não precisou decidir quando voltar à casa de Damon, pois Anne
resolveu por ela. Dois dias depois do último encontro na praia, pediu à enteada que
levasse uns ovos frescos para o inquilino.
— Diga que nossas galinhas estão produzindo bastante e que temos muitos
sobrando. Assim ele não ficará constrangido em aceitar.
— Posso aproveitar para nadar?
— Pode, desde que não perturbe o sossego do sr. Curtis.
Rachel o avistou antes mesmo de chegar à casa. Ele estava sentado junto à
janela, datilografando o livro, parecendo completamente absorvido pelo trabalho.
Mas, quando aproximou-se mais, viu que Damon já havia reparado em sua presença,
pois ergueu a mão e pediu-lhe que esperasse.
Ela aguardou por algum tempo, até que ele levantou e abriu a porta.
— Estou incomodando?
— De jeito nenhum.
Rapidamente, Rachel entregou os ovos e deu o recado, louca para ir embora e
deixá-lo à vontade.
— Obrigado. Espere um minuto que vou pô-los na geladeira. Não quer se
sentar?
Ela preferiu ficar esperando junto à porta. Não pretendia atrapalhar o processo
de criação do novo romance.
— Pronta para nadar? — Ele apontou o rolinho de toalha que ela levava debaixo
do braço. — Vou com você, está bem?
— Mas... e o livro? Vai interrompê-lo?
— Terminei um capítulo agora mesmo. Por isso estava tão concentrado, queria
escrever as últimas linhas. Mereço um descanso, não acha?
— Você é quem sabe. Então vou para a praia e o espero lá.
Rachel desceu para a areia, tirou o short e a camiseta e prendeu os cabelos.
Quando Damon surgiu, ela admirou mais uma vez o corpo perfeito, os quadris
estreitos, os ombros largos. Sem dúvida, era um homem muito bonito.
— Vamos ver quem chega primeiro na água? — propôs ele, e correu para o mar.
Rachel teve de admitir que, apesar de viver na cidade, ele se mantinha em
forma.
Quando mergulhou, Rachel divisou, no fundo, uma forma indefinida, pálida,
com longos fios flutuando ao sabor da corrente. Levou algum tempo para perceber
que era apenas uma rocha coberta de algas. Subiu à superfície e boiou, recuperando
o fôlego.
— O que há com você, Rachel? Parece assustada. — Damon estendeu-se ao lado
dela.
— Estou mesmo. Imagine que pensei ter visto Pania lá embaixo.
Imediatamente Damon mergulhou, para voltar com um sorriso.
— Tem razão, dá mesmo para confundir, mas aqui ela estaria muito longe de
casa, não é? Napier fica a muitos quilômetros de distância.
Nadaram mais um pouco e foram se secar na areia.
— Não conheço os detalhes da lenda de Pania, Rachel. Você sabe?
— Pania era uma criatura do mar e costumava chegar até a praia, ao cair da
noite, para ver as pessoas que iam à fonte, no sopé do rochedo Hukarere.
— Ah, é verdade. Ela se apaixonou por um príncipe...
— Cacique — corrigiu ela.
— Está bem, cacique. Como se chamava?
— Karitoki. Um dia ele a viu, escondida na vegetação junto à fonte. Apaixonou-
se, levou-a para casa e a fez sua esposa. Foram muito felizes, mas todos os dias o
povo do mar a chamava, pedindo-lhe que voltasse para casa. Ela sabia que, se
concordasse, nunca mais poderia voltar a viver com o marido, a quem amava
demais.
— Mas Pania acabou indo para o fundo do mar, para ficar com a família, não é?
— Tem razão, mas somente porque Karitoki a enganou.
— É mesmo? O que aconteceu?
— Pania e Karitoki tiveram um filho, chamado Moremore. Depois disso ela
podia visitar a família diariamente, porque deixava o menino com o pai e seu povo
era obrigado a permitir sua volta. Karitoki, no entanto, estava sempre preocupado,
com medo que o garoto seguisse a mãe e assim os perderia para sempre. Foi a um
tohunga, um pajé, para lhe pedir conselhos. O tohunga disse que pusesse comida
cozida sobre o corpo da mulher e do filho, quando dormissem, porque isso os
deteria.
— Esse pedaço não é nada romântico. Não me surpreendo que não tenha dado
certo. — Damon sorriu. — E aí, o que aconteceu?
— Quando Pania acordou e descobriu o que o marido havia feito, não o
censurou, mas pegou o filho no colo e entrou no mar. Seu povo a esperava para levá-
la às profundezas do oceano. Nunca mais lhe foi permitido tornar à superfície e ver a
terra onde havia sido feliz com o marido.
— É por isso que nas manhãs claras e calmas pode-se ver Pania sob as águas, no
porto de Napier — completou Damon.
— Isso mesmo. Ela tem os braços abertos, esperando seu amado, com os
cabelos espalhados pela água.
— Sabe, Rachel, como escritor, invejo a imaginação de quem inventou essa
história, inspirado apenas por uma rocha coberta de algas e limo.
— Mas é muito bonita, não acha?
— Acho, sim, e tem um tema muito interessante sobre a mulher, dividida entre
o amor do marido e o sentimento que a mantém unida a seu povo. Não é uma ironia
que Pania tenha voltado para o mar justamente porque o marido tentou tudo, até
mesmo a traição, para mantê-la junto dele? — Damon ficou pensativo. — Posso até
usar esse assunto, um dia.
— Num de seus livros?
— Exatamente, mas primeiro preciso terminar o que estou fazendo.
— Qual é o tema deste?
— Solidão... ou auto-suficiência, depende do enfoque que se dá. A história é
sobre um homem que perde tudo e todos em quem confia. Ele precisa enfrentar a
vida completamente sozinho.
— Foi por isso que veio para cá? Para saber o que é o isolamento?
— Em parte, sim, mas não sou um eremita, como meu personagem, que compra
terra virgem, constrói uma cabana e age como se fosse um pioneiro.
— Parece muito interessante e bem diferente de "Decepção Amarga".
— Sem dúvida. Este novo romance é sobre um homem à procura de si mesmo.
— Enquanto aquele era sobre pessoas que perderam o contato consigo próprias
— completou ela.
— É um comentário muito profundo, para uma garota de sua idade.
— E o seu é condescendente demais para um homem de sua idade! — Damon
riu e ela o achou ainda mais simpático. — Você não pode ser tão velho como quer me
fazer crer.
— Tenho trinta e três anos... e você, só dezessete.
— Faço dezoito na semana que vem.
— É uma idade maravilhosa. Vai comemorar?
— Tia Anne vai preparar um jantar especial, mas só para a família. Gostaria de
vir?
— Claro, com muito prazer.
Rachel não o achou entusiasmado e teve medo de estar forçando uma situação.
— Se acha melhor não ir...
— Já aceitei o convite e agora não adianta mais querer tirar o corpo, ouviu
bem? — Damon apontou para o mar. — Sabe o nome daquela ave?
Rachel viu um enorme pássaro bater as asas, chegando bem perto da superfície
do mar e depois tornar a subir, numa curva perfeita.
— É um mergulhão. Eles fazem seus ninhos naquela ilhota.
— Impressionante, não é? Deve ter uns dois metros de envergadura —
comentou Damon.
A ave ainda voava em círculos e cada vez se aproximava mais da praia. Por um
instante pareceu imobilizar-se, antes de recolher as asas e mergulhar nas ondas.
Emergiu segundos depois, com alguma coisa brilhante pendurada no bico. Balançou
a cabeça algumas vezes e o brilho desapareceu. Depois voou para o alto, as penas
brancas contra o azul do céu.
— Ele mergulhou para pescar o jantar — comentou Damon.
— Coitado do peixinho!
— A natureza é assim mesmo.
— Eu sei. Passei a vida toda em contato com ela.
— Você é como Pania, não é? Prefere o mar, perto dele está sempre feliz...
Rachel sorriu, sem responder. Era verdade. Sempre vivera perto do mar e, se a
levassem para longe, certamente sofreria tanto quanto a lendária Pania.

Damon chegou para o jantar de aniversário trazendo um caramujo grande,


espiralado, no mais suave tom de rosa. Trouxe também um buquê de flores
silvestres, cujas pétalas delicadas tinham um colorido leve e variado.
— Não lhe comprei nada apropriado porque não fui à cidade, mas encontrei
este caramujo e achei que ia gostar. — Ele pareceu um pouco embaraçado. — Só
espero que não tenha uma dúzia deles.
— Nada disso. É muito raro se encontrar esse tipo de concha em perfeito
estado. No mínimo, têm as pontas quebradas pelo atrito com a areia. Obrigada.
Adorei sua lembrança.
Rachel colocou água e arrumou as flores no caramujo, para depois colocá-lo no
centro da mesa. Em seguida convidou todos para se sentarem.
Normalmente ela recebia um presente só da família Langholm, mas desta vez
havia outro, em separado, de Jerry. Rachel ocupou-se primeiro com o do rapaz, que
vinha acompanhado de um cartão com a estampa de grandes orquídeas roxas.
Dentro havia um verso, muito sem graça, mas que tia Anne, orgulhosa do filho, fez
questão que ela lesse em voz alta.
Rachel percebeu um ar divertido no rosto de Damon, mas ignorou-o. Ao abrir a
caixa, encontrou um par de chinelos brancos, enfeitados com rendas, fitas e lacinhos.
— Mamãe disse que precisava de chinelos — explicou Jerry. —São do tamanho
certo.
— Que bom! — Rachel percebeu que Damon mal continha o riso. — Achei
muito bonito. Obrigada. — Emocionada com a gentileza, deu um beijo no rosto de
Jerry, antes de começar a abrir o outro embrulho.
No meio do papel de seda encontrou uma toalha de mesa, creme-claro, com
rosas bordadas em diferentes matizes.
— É para seu enxoval, minha querida. — Anne segurou-lhe a mão. — Já está na
idade de começar.
— É linda, tia Anne. Muito obrigada.
— Achei que ia gostar. Esse desenho de rosas sempre agrada.
— Sem dúvida — concordou Damon, mas olhou para Rachel com ar zombeteiro.
Como ele ousava caçoar, se os presentes tinham sido dados com tanto carinho?
Ressentida, Rachel não conversou mais com ele durante a refeição.
Depois do jantar foram para a sala, e Rachel ajeitou-se num almofadão, longe
de Damon. Ele conversou um pouco com o casal, até que se levantou para ir embora.
— Acompanhe o sr. Curtis até a porta, Rachel. Hoje ele é seu convidado —
recomendou Anne.
Atravessaram o hall em silêncio e chegaram ao terraço, onde trepadeiras de
jasmim se enroscavam nas colunas altas e brancas, espalhando um perfume forte
pelo ar fresco.
— Obrigado por ter me convidado. Rachel. Foi uma noite muito agradável.
— Foi mesmo?
Damon notou a ironia.
— Está zangada comigo, não é? Por quê? Não gostou do meu presente?
— Claro que gostei. O seu foi o que mais me agradou. Só acho que não precisava
caçoar dos outros.
— Bem... fiz o possível para não demonstrar que...
— Não sei o que há de errado com meus presentes!
— Está mentindo, Rachel. Você também teve que segurar o riso enquanto lia
aquele verso cafona.
— Admito que era péssimo, mas...
— Além disso, você não é do tipo que gosta de orquídeas ou rosas, muito menos
daqueles chinelos cheios de fricotes.
— Jerry foi um amor em comprá-los para mim. É a primeira vez que me dá um
presente em separado. Pode ser que não seja uma coisa sofisticada ou elegante, mas
foi dado com carinho. Ele não tem culpa de não ser de meu agrado... Não vejo
nenhum motivo para caçoadas.
Damon a olhou muito sério.
— Pelo contrário, é até triste. Eles nunca lhe deram nada de que realmente
gostasse, não é?
Era incrível, mas esse homem que a conhecia há tão pouco tempo sabia muito
mais de suas preferências e modo de ser do que a família que a criara durante quatro
anos.
— Pobre sereia! Você não pertence a este povo da terra! — Damon a abraçou,
acariciando-lhe os cabelos sedosos.
Como era bom estar naqueles braços fortes! Sentia-se confortável, segura.
Gostaria que aquele momento durasse para sempre, mas Damon suspirou e se
afastou. Segurou-lhe o queixo para ver melhor os olhos muito verdes.
— Agora você tem dezoito anos. Acho que já está pronta para... isto.
Ele pousou os lábios sobre os dela, num beijo rápido e doce. Rachel fechou os
olhos, suspirando.
— Jamais lhe darei rosas, minha pequena sereia, somente flores silvestres e
jasmins.
Damon se afastou e Rachel sentiu-se frágil sem seu apoio. Segurou-se num
galho de jasmim e as pequenas flores brancas balançaram, emoldurando seu rosto.
— Boa noite. — Damon desceu os degraus, logo desaparecendo no caminho
escuro.
Antes de entrar, Rachel colheu um jasmim, cujo perfume parecia estar
impregnado daquele doce instante de ternura.
CAPÍTULO V

Chegou a época da tosquia. Pela janela da cozinha Rachel viu os carneiros


descerem os morros, seguindo seu guia. Os cachorros latiam, os homens a cavalo
assobiavam e gritavam, fazendo o rebanho seguir na direção dos galpões.
Por vezes um ou outro animal se desgarrava, mas os cães, atentos, faziam-nos
voltar para junto dos outros. Era uma cena bonita, os milhares de animais com o
pêlo comprido e alvo formavam uma onda descendo até a planície.
Ela teve pena dos bichinhos que tinham deixado as pastagens agradáveis, a
sombra das árvores, para se aglomerarem num espaço tão reduzido. Reconhecia,
porém, que iam sentir-se melhor sem aquele manto de lã que devia esquentá-los no
calor do verão.
— Quer untar as fôrmas para mim? — A voz de Anne fez Rachel voltar à
realidade.
Estavam na cozinha preparando carnes, tortas e bolos. Os tosquiadores
chegariam no dia seguinte e haveria muitas outras bocas para alimentar. Tia Anne
misturava amassa de trigo e já tinha alguns pães prontos para assar.
— Desculpe, estava distraída vendo o rebanho chegar.
— Agora não temos tempo para distrações. Prepare as três fôrmas, por favor.
Rapidamente Rachel aprontou e pôs no forno as fôrmas. Depois passou a mão
pela testa úmida de suor.
— Está ficando muito parecida com sua mãe, Rachel.
— Acha mesmo? Chegou a conhecê-la?
— Infelizmente ela morreu antes de vocês virem para cá, mas vi a foto em seu
quarto. Você tem as mesmas maçãs do rosto salientes, a boca pequena. Seu pai falava
nela?
— Pouco. Contou apenas que era bonita, bem-humorada e que não merecia
morrer tão cedo. Tenho a impressão de que papai sofria ao se lembrar dos bons
tempos que passou com ela. Nunca tive coragem de perguntar muita coisa.
— Ele nunca conseguiu se recuperar da perda da esposa.
— Também acho. Papai chegou a me dizer que, se não fosse por mim, ele a teria
seguido. — Rachel suspirou. — Uma vez afirmou que ela havia morrido por culpa
dele, mas não explicou o motivo de pensar assim.
— O sr. Standen era um homem muito quieto. Algum dia lhe disse o que fazia,
antes de vir para cá?
— Não... só que viajou pela Inglaterra, Itália, Grécia e outros países. Gostava de
contar como viveu em cada lugar e me deu vários livros que falavam sobre esses
países.
— Pois é. Não acha estranho que um trabalhador rural tivesse tantos livros? Seu
pai era bem-educado, culto, diferente dos outros vaqueiros. Não tenho certeza, mas
sempre tive a impressão de que ele era médico.
— Médico?! — Rachel estava espantada.
— Ele cuidava muito bem dos animais doentes e... uma vez... Lembra de Huka?
Rachel reviu na memória o menino maori, moreno e travesso, que estava
sempre se metendo em dificuldades. Vivia cheio de machucados e esfoladuras, mas
não deixava de aventurar-se pela mata ou explorar os rios, sem medo de nada.
— Lembro, sim.
— Huka foi um bebê prematuro, nasceu de sete meses. Não houve tempo para
levarmos a mãe para a cidade, porque ninguém esperava que o bebê chegasse
naquela hora. Estávamos atrapalhados, tentando fazer o parto, quando seu pai
chegou e assumiu a situação. Determinou o que cada um devia fazer e logo depois a
criança nascia sem problemas.
— Você não lhe perguntou nada, isto é, como ele sabia exatamente como
proceder?
— Claro que sim, mas ele respondeu com evasivas, dizendo que não havia muita
diferença entre animais e gente. Nunca mais tocamos no assunto, mas contei tudo ao
dr. James.
— E ele, procurou falar com papai?
— O dr. James foi até a casa de vocês, mas seu pai não quis discutir o caso.

No quarto, depois de um banho revigorante, Rachel olhou para a foto do


casamento dos pais, sobre a cômoda. O pai, tão jovem e diferente que nem lhe
parecia o mesmo, segurava a mão da noiva, uma garota pequena e graciosa, com um
brilho de felicidade no olhar. Eles teriam se amado tão intensamente que o pai havia
perdido o prazer de viver depois que a morte a levara? Ou nutria um sentimento de
culpa por acreditar que poderia tê-la salvo, se... Ele seria mesmo um médico?
Como descobrir? O pai não deixara cartas ou diários, nada que pudesse
desvendar sua vida anterior. Tudo que Rachel possuía eram os livros e a fotografia
de casamento.

Os tosquiadores chegaram, em grupos grandes, falantes e barulhentos. Anne


Langholm nem se abalou ao ver o número deles. Estava acostumada a alimentá-los
quando vinham e já tinha deixado muita coisa pronta. Daria conta, como das outras
vezes.
Rachel a ajudava constantemente, cheia de energia e disposição.
— Você é uma moça muito trabalhadeira — comentou Anne, num de seus raros
elogios. — Vai fazer algum homem muito feliz. Se estivesse aqui, seu pai teria
orgulho de você.
Rachel agradeceu, mas intimamente não concordou. O pai sempre considerara
os serviços domésticos como necessários, mas não como a única atividade na vida de
alguém. Ela pensava do mesmo jeito. Não se conformaria em acabar seus dias na
cozinha, como tia Anne.
Com a agitação e o trabalho extra da tosquia, Rachel não teve mais
oportunidade de ver Damon. Desde o aniversário, sentia-se um pouco acanhada e
sem vontade de enfrentá-lo. Além disso, quando havia uma folga, preferia ir até o
galpão e observar os tosquiadores em ação.
Numa dessas vezes, reparou num dos trabalhadores, um maori forte, que
parecia muito mais rápido que os outros. Pegava o carneiro, prendia-o entre os
joelhos e cortava a lã com movimentos longos, subindo e descendo a cortadeira
elétrica até que, num instante, havia um monte de lã a seus pés.
Ao lado dele sentava um rapaz de cabelos claros e longos, os músculos
retesados aparecendo sob a pele queimada. Ele também trabalhava rápido, sem
deixar de olhar o maori, como se competisse com o outro. Cortava a lã com
movimentos precisos, mas Rachel notou que ele fez um pequeno talho na pele do
animal, junto da orelha. Em sua pressa de produzir, ele estava machucando os
animais? Queria concorrer com o velho maori, experiente e acostumado há anos com
aquele serviço?
Nesse momento o rapaz terminou e deu um empurrão para que o carneiro
seguisse adiante. Antes de pegar outro, levantou a cabeça e a encarou.
Ele tinha os olhos muito azuis, vivos e atrevidos, que a mediram com
insolência, como se quisesse ver através da roupa. Rachel corou. Provavelmente o
rapaz tinha agido daquele jeito, querendo mostrar-se um tosquiador rápido e
eficiente, só para impressioná-la.
Sem jeito, ela foi até a mesa onde algumas mulheres separavam a lã. Deixavam
de lado a cinzenta e suja das camadas externas, e guardavam a branca e macia em
sacos grandes.
Com o canto dos olhos, observou de novo o rapaz. Ele estava inclinado sobre o
carneiro, com os cabelos caindo na testa. Quando terminou, ficou de pé, com as
pernas separadas, as mãos na cintura, vagando o olhar pejo galpão até encontrá-la.
Era um belo tipo de homem, atraente e viril. Notando que ela o olhava, o rapaz
sorriu, cheio de confiança. Imediatamente Rachel saiu dali, sem olhar para trás.

Naquela mesma tarde Rachel decidiu ir à praia. O sol estava baixo, tingindo o
céu de tons rosados. Ela passou depressa pela casa de Damon, esperando que ele
estivesse tão ocupado que nem a visse. Chegou à areia ainda morna e correu para o
mar.
Nadou bastante, deixando que a água a acalmasse, até começar a escurecer.
Quando saiu, secou-se com a toalha, vestiu o jeans, uma camisa branca e tomou o
caminho de volta.
Encontrou Damon sentado nos degraus da casa, como se a estivesse esperando.
Não sabia o que dizer, por isso apenas reduziu os passos, encarando-o.
— Boa noite, Rachel.
— Oi... Não chamei você para nadar porque pensei que estivesse ocupado. Não
quis atrapalhar.
— Não precisa arranjar desculpas. Se prefere nadar sozinha... tudo bem. Quer
um refresco? — Ele levantou e abriu a porta.
— Tenho que ir embora.
— É só um minuto. Venha.
Ela ainda hesitou.
— O que é isso? Está com medo? Aquele beijo foi apenas para comemorar seu
aniversário, sua entrada no mundo adulto. Não pretendo seduzi-la.
Rachel ficou furiosa. Damon continuava a tratá-la como criança! Deu meia-
volta, pronta para sumir, mas ele a segurou, com um sorriso.
— Venha. Prometo não brincar mais. Estou muito solitário, gostaria de
conversar um pouco.
Mesmo sem acreditar, ela entrou e se sentou no sofá enquanto ele foi buscar a
bebida. Havia um livro aberto a seu lado e, ao apanhá-lo, viu que eram as poesias de
Hone Towhare, um maori. Começou a ler.
— Gosta de poesia? — Damon lhe entregou o copo.
— Muito. Também escre... — interrompeu-se ela, muito corada.
— Escreve? O quê? Poesias?
— Rabisco alguma coisa, quando sinto vontade, mas não é nada importante.
Havia começado depois da morte do pai. Ninguém sabia, mas guardava vários
cadernos cheios de versos, escritos a lápis.
Desde pequena sentia fascinação pelas palavras e achava maravilhoso colocar
seus pensamentos em frases e versos. Só assim conseguia expressar os sentimentos
mais profundos, as emoções, o desespero, a esperança...
Damon a olhava em silêncio, mas com evidente interesse. Rachel respirou
aliviada quando ele começou a perguntar sobre a tosquia.
Conversaram bastante e já era noite quando ela foi embora. Damon fez questão
de acompanhá-la.
— Não precisa, posso ir sozinha. Conheço esse caminho como a palma de
minha mão.
— Mesmo assim, vou com você.
Ele só a deixou quando as luzes da fazenda estavam bem próximas. Ainda
acenou em despedida e se afastou.
Ao passar por entre as barracas dos tosquiadores para chegar ao terraço, uma
figura alta surgiu, assustando-a. Mas logo reconheceu os cabelos claros do rapaz que
tinha visto naquela manhã.
— Como vai? Você é a garota que observava a tosquia, não é? Como se chama?
— Rachel Standen.
— Standen? — repetiu ele pensativo. — Não é Langholm? Então não é a filha do
patrão. Trabalha aqui?
— Moro aqui. Com licença, preciso entrar.
— Se não é a filha do sr. Langholm, por que mora na casa?
— Não é de sua conta!
— Desculpe — disse ele com gentileza exagerada. — Queria apenas conhecê-la.
Meu nome é Des. Desmond William Alexander.
— Muito prazer. — Rachel apertou a mão estendida. — Boa noite. Tenho que ir.
— Vejo você amanhã. Vai ao galpão, não vai?
— Não sei. Ando muito ocupada, agora. Boa noite.
Decidida, Rachel adiantou-se, mas o rapaz não saiu da frente. Ela teve que se
desviar para seguir seu caminho.

Acordou no meio da noite por causa de um pesadelo horrível, em que Des


Alexander a puxava pelos cabelos e a levava ao galpão da tosquia. O ruído sibilante
da máquina elétrica abafava seus gritos, impedindo-a de pedir socorro.
Levantou assustada e foi até a janela. Abriu as cortinas, olhou para fora e seu
coração sossegou. Tudo estava calmo e tranqüilo, as estrelas brilhando no céu, a
brisa suave balançando as folhas das árvores. O único som eram os grilos, cantando
sem cessar.
Rachel permaneceu ali, deixando-se envolver por aquela sensação de paz, até
que uma incrível vontade de escrever a fez procurar o caderno de poemas. As
palavras iam nascendo depressa, quase sem dar-lhe tempo de registrá-las.
Aliviada, tornou a deitar. A última coisa em que pensou antes de entregar-se ao
sono foi que precisava mostrar o poema a Damon.

No dia seguinte não foi ao galpão e viu Des Alexander só de longe.


Deliberadamente ocupou-se no fogão e na pia e deixou que tia Anne servisse os
rapazes.
Também não esteve mais com Damon, embora sentisse muita vontade de que
ele lesse o que havia escrito. Mas nunca mostrara seus versos a ninguém e tinha um
pouco de medo que ele a achasse infantil ou, pior ainda, ridícula.
Finalmente encontrou coragem e foi à praia, mas Damon estava preso à
máquina e não notou sua presença. Quando a viu, apenas acenou com a mão e
continuou a trabalhar.
O romance deve estar progredindo, pensou ela, respeitando a necessidade dele
de aproveitar os momentos de inspiração.
Chegou em casa e trocou as flores do caramujo. Agora punha ramos de jasmim,
que perfumavam seu quarto. A cômoda ficara linda com o arranjo de flores. Ali
estavam as coisas que mais lhe falavam ao coração: a fotografia dos pais e o presente
de Damon.
CAPÍTULO VI

A tosquia continuava agitando a vida na fazenda. Por toda parte ouviam-se o


balido dos carneiros, o latido dos cães, o assobio dos peões, o zumbido das
cortadeiras elétricas.
Rachel manteve-se distante do galpão onde os animais perdiam sua capa de lã.
Estava sempre ocupada, servindo xícaras e mais xícaras de chá forte, que preparava
durante o dia todo. Além disso, tinha a impressão de passar horas intermináveis no
fogão, cozinhando para aquela multidão de tosquiadores. A cozinha, normalmente
aquecida, agora parecia ter-se transformado num imenso forno.
Numa de suas raras folgas, Rachel foi até o fosso onde os carneiros recém-
tosquiados mergulhavam num banho de desinfetante, para evitar piolhos e outras
pragas.
A água era marrom-escura, quase preta, e o cheiro forte de desinfetante
espalhava-se pelo ar. Também ali a agitação era grande.
Ela parou junto à grade, perto de Jerry, que empurrava os carneiros, um a um,
com uma vara, até que ficassem totalmente mergulhados na água quase repulsiva.
— Coitadinhos!
— Por que tem pena, Rachel? Não dói nada.
— Eu sei, mas eles devem ter a impressão de que vão se afogar.
— Isso é melhor do que deixar que os piolhos suguem o sangue deles, não
concorda?
— Tem razão.
Depois de banhados, os animais seguiam para um local próximo, onde eram
marcados na orelha e na cauda. Só então iam para as pastagens verdejantes, em que
permaneceriam até a próxima tosquia.
Rachel se virou. Não queria mais ver o banho dos bichinhos. Olhou para o céu e
reparou nas nuvens brancas e altas que deslizavam levadas pelo vento.
— Será que vai chover?
— Essas nuvens não são de chuva. — Jerry voltou-se para ela. — Vai ao baile, no
sábado?
— Que baile?
— O da comunidade. Já se esqueceu de que durante a tosquia sempre há um?
— É verdade. Ando tão ocupada que nem me lembrei. Gostaria muito de ir.
Você vai?
— Com certeza. Se quiser, posso levá-la.
— Aceito o convite, Jerry. Obrigada.
— Está combinado, então.
Jerry mergulhou outro carneiro e ela achou melhor sair dali. Não agüentava ver
a expressão assustada dos animaizinhos que emergiam balindo tristemente.
Estava surpresa e orgulhosa por ter sido convidada para o baile. Era bom saber
do interesse crescente de Jerry. Será que outros rapazes também se sentiriam
atraídos? Vivendo na fazenda, não tinha muitas oportunidades de conviver com
jovens de sua idade.
Qual era sua experiência com o sexo oposto? Nenhuma... ou quase isso. Fora a
algumas festas, bailes e reuniões da comunidade. Sentia-se um pouco tímida com os
rapazes, e o máximo que lhe acontecera fora um beijo roubado num canto escuro do
salão, quando o filho de um fazendeiro vizinho tinha bebido mais da conta e se
tornara ousado.
Até agora se lembrava da sensação desagradável provocada pelo cheiro da
bebida, a boca quente, a língua grossa... Daí para a frente, não se interessara mais
por beijos... até que Damon surgiu.
O toque dos lábios dele havia sido maravilhoso. Ainda se lembrava da sensação
incrível que fora ter os braços fortes ao redor do corpo... Nem por um instante
pensara em se afastar. Pelo contrário, se pudesse, teria feito aquele momento durar
para sempre.
Jerry também queria beijá-la, tinha certeza. Mas por mais atraente e bonito que
ele fosse, não pretendia encorajá-lo.

No sábado, Rachel arrumou-se com capricho. Pôs um vestido leve, azul-claro,


que tornava sua pele ainda mais bronzeada. Quando a viu, Jerry não fez
comentários, mas ela notou a admiração em seu olhar. Anne, em compensação, não
poupou elogios.
Chegaram ao salão de baile e começaram a dançar imediatamente. Mesmo
quando a música cessava, Jerry não lhe largava da mão e foi com relutância que
deixou outro rapaz substituí-lo.
Depois de algumas músicas, Rachel ficou sozinha. Vagou os olhos pelo salão,
mas não encontrou Jerry. Já ia sair atrás dele quando alguém enlaçou-a pela cintura.
Ao virar-se, viu-se frente a frente com Des Alexander.
Antes que pudesse reagir, já estava rodopiando sob o ritmo alegre e bem
marcado. Não podia ser mal-educada e deixá-lo no meio do salão, pensou. Ia dançar
só uma música e depois pediria licença.
Des Alexander estava muito bem vestido, os cabelos loiros estavam brilhantes e
macios. Seu olhar não escondia o prazer de estar com ela.
— Não vou deixar que fuja de novo, Rachel.
— Por que diz isso? Nunca evitei você.
Não era bem verdade. Ela realmente tinha deixado de ir ao galpão e, se por
acaso o encontrava, procurava nunca ficar sozinha em sua companhia.
— Não mesmo? Então por que tem medo de mim?
— Não seja bobo! Há motivos para eu temer alguma coisa?
— Sei lá, mas fique certa de que eu jamais magoaria você.
Rachel ficou quieta.
— Por que nunca mais foi ver a tosquia? Senti sua falta.
— Como é possível? Você só me viu aquela vez e estava tão ocupado com seu
serviço que não deve ter reparado em mim.
— Engano seu. Vi você e sei que também me olhou.
— Também prestei atenção em outros tosquiadores. Gosto de ver a habilidade e
rapidez com que executam seu trabalho.
— Então me diga, acha mesmo que estou entre os bons? Não vejo a hora de
ganhar a ''Tesoura de Ouro''.
Rachel ficou interessada. Sabia o quanto esse prêmio era importante e difícil de
conseguir. Os melhores tosquiadores se reuniam num campeonato e o vencedor
precisava ser excepcional.
— Espero que consiga, mas... ainda precisa praticar muito, não acha?
— Por quê?
— Notei que picou um dos carneiros. Só isso já lhe tiraria a chance de ganhar o
prêmio.
— Tem razão. Preciso diminuir a velocidade do corte e treinar até me tornar
perfeito. Gostaria que fosse me ver de novo, e depois me dizer se estou melhorando.
— Pode ser... Vamos ver.
Nesse momento Jerry voltou, e não a largou mais. A meia-noite foram para
casa. Antes de descer do carro, o rapaz a abraçou e sua boca procurou a dela, num
beijo demorado mas pouco exigente.
Quando a soltou, Rachel murmurou "boa noite" e entrou, indo depressa para o
quarto. Antes de dormir, ouviu Jerry assobiar alegremente, enquanto preparava-se
para deitar.

No último dia da tosquia, Rachel foi ao galpão. Des logo a viu e demonstrou sua
habilidade, cortando o pêlo do animal com cuidado e precisão. Retirou a lã numa só
peça, sem nem tocar a pele rosada do carneiro.
O rapaz era muito rápido, sem dúvida, e sabia cortar bem, mas não o suficiente
para obter o tão almejado prêmio. No entanto, se continuasse nesse pique, em
poucos anos seria o melhor tosquiador.
Quando ele terminou, ergueu os olhos para ela. Rachel levantou o polegar, num
sinal de aprovação. Ainda ficou por ali mais algum tempo e depois foi embora.
— Ei... que tal? O que achou? — Des a alcançou.
— Nem preciso dizer! Sabe que foi ótimo, não é?
— Obrigado. — Des não escondia seu orgulho. — Terminamos a tosquia hoje à
tarde e vamos embora amanhã cedo.
— Para onde vai agora?
— Para a fazenda dos Carter, a cinqüenta quilômetros daqui.
— Boa sorte.
— Rachel... não quer falar comigo hoje à noite?
— Vamos nos ver na hora do jantar, Des.
— Não é bem isso que quis dizer. Gostaria de me despedir de você. Está bem?
— Posso lhe dizer adeus agora mesmo.
— Não seja desconfiada, Rachel! Só quero conversar um pouco com você, sem
ser em ambiente de trabalho. Você é uma garota formidável, e com esse serviço
itinerante nunca tenho tempo de fazer amizades. Você é a primeira garota com quem
falo por mais tempo e gostaria muito que fosse minha amiga. Foi tão bom dançarmos
juntos, trocarmos idéias! Só lhe peço dez minutos para conversar. Concorda?
Rachel sentiu pena dele; parecia tão solitário...
— Está bem, mas só por dez minutos. Quando eu terminar a louça do jantar,
encontro você perto do galpão. Mais ou menos às oito horas.
Ele sorriu, satisfeito.
— Estarei lá.
Ela acenou com a cabeça e foi embora. Mais tarde arrependeu-se de ter
concordado. Mal conhecia Des e não tinha motivos para conversar a sós com ele.
Mas agora precisava manter a promessa. Na hora combinada, foi procurá-lo.
Assim que Des a viu foi ao seu encontro.
— Que bom que veio! — Ele quis segurar-lhe a mão, mas Rachel se esquivou. —
Vamos andar um pouco.
Conversaram sobre a tosquia, as ambições do rapaz, seu próximo trabalho, o
grande concurso "Tesoura de Ouro", mas a prosa não parecia natural e Rachel
acabou ficando quieta.
Ele caminhava muito perto dela, comprimindo-a contra a cerca, até que
colocou as mãos num dos postes, aprisionando-a entre os braços.
— Des... por favor — reclamou ela, empurrando-o com delicadeza, mas seu
protesto foi abafado pela boca faminta que procurava a dela com sofreguidão.
Rachel bateu os punhos fechados contra o peito dele, deu um pontapé,
tentando livrar-se, mas Des não permitia que ela se mexesse.
— Não! Não quero! — gritou ela.
— Claro que quer, boneca. Não foi para isso que veio?
— Você disse que queria falar comigo!
— Falar?! — Riu ele, pressionando o corpo contra o dela, que sentiu a madeira
áspera ferir suas costas.
— Está me machucando!
Des nem ligou. Puxou-lhe a cabeça para trás, para se apoderar de sua boca,
num beijo ainda mais violento. Desesperada, Rachel mordeu o lábio dele. Com um
gemido de dor, Des a empurrou para o lado.
Aproveitando a chance, ela escapou por baixo da cerca e uma das pontas do
arame farpado se prendeu em sua manga, arranhando-lhe o braço.
— Vagabunda! — gritou Des ainda, mas ela não se deteve. Correu o mais
depressa que pôde, louca para chegar em casa.
Embora o rapaz a seguisse, o medo dava-lhe forças e velocidade. Podia ouvir os
nomes horríveis que ele dizia, mas não se voltou. Ainda corria desesperadamente
quando alguém a segurou pelo braço. Gritou, assustada, até que reconheceu Jerry.
— O que está acontecendo? — Jerry viu que Des se aproximava. — Por que ele
está dizendo esses palavrões?
— Está tudo bem — respondeu Rachel quase sem fôlego.
— Nada disso. Esse sem-vergonha não pode xingá-la desse modo!
— Jerry... por favor! — Rachel estava cada vez mais assustada. — Não é nada,
não ligue.
— Seu braço está sangrando! Foi ele quem fez isso?
— Não! Machuquei-me no arame farpado. Vamos para casa, por favor.
— Vá você — ordenou ele muito sério, com os olhos brilhando de raiva.
— A culpa foi minha, Jerry. Ele só me beijou e eu fiz um escândalo.
— Queria ser beijada?
— Claro que não, mas...
— Para mim é o suficiente. Vá para dentro.
Des tinha se aproximado e estava parado, com as pernas abertas, os dedos no
cinto, pronto para brigar. Rachel ficou desesperada, sem saber o que fazer para
evitar um confronto.
— Ela é sua namorada? — perguntou o tosquiador.
— É, sim — respondeu Jerry sem hesitar.
— Não sabia, ela não me disse. Essa garota não presta.
As palavras mal tinham saído da boca de Des e Jerry já estava em cima dele,
com o punho estendido para lhe atingir o rosto. O tosquiador balançou com a dureza
do golpe, mas logo reagiu e atingiu as costelas de Jerry.
Rachel estava assustada demais para se mexer. Viu os dois homens lutarem,
caírem no chão num abraço estranho, para continuarem a se socar com força, o som
dos murros misturado aos grunhidos de dor.
Ela queria tapar os olhos, fugir, mas sabia que era responsável pelo que estava
acontecendo. Ficou rezando para que eles parassem com aquela loucura.
Finalmente Jerry levantou-se, com a respiração ofegante, o sangue escorrendo
de um talho na sobrancelha, os punhos ainda levantados e prontos para entrar em
ação.
Des continuou no chão. Sentou-se, segurou os joelhos com as mãos, respirou
fundo, procurando se refazer. Disse alguma coisa que ela não conseguiu entender,
mas que fez Jerry relaxar e baixar as mãos.
Rachel saiu das sombras e foi para junto de Jerry.
— Não lhe disse para ir embora?
Ela não respondeu, preocupada em ver o outro rapaz ainda no chão.
— Ele está bem?
— Vai sobreviver. Venha. — Jerry a abraçou e a levou para casa.
De longe, Rachel viu Des levantar e dirigir-se para a barraca. Ficou mais
aliviada.
— Que coisa horrível, Jerry! Não precisava ter brigado por mim.
— O que mais podia fazer? Deixar que ele continuasse a ofendê-la?
Em casa, foram direto para o banheiro, onde Jerry lavou o rosto inchado. Ela
colocou mercurocromo no corte e nos outros arranhões.
— Sinto tanto o que aconteceu! Preferia que não tivesse entrado nesse briga,
mas obrigada por... me defender.
— Por que estava lá fora, com ele?
— Fui uma tonta! Ele me pediu dez minutos para conversar e se despedir antes
de ir embora. Acreditei que se sentisse solitário e concordei.
— Que bobinha! Ele machucou você?
— Apenas me deu um beijo — ela hesitou e achou melhor explicar: — Não o
provoquei.
Jerry sorriu, sabendo que era sincera.
— Ouviu quando disse a Des que era minha namorada?
— Ouvi...
Rachel se calou. Não tinha certeza se queria ser a namorada dele. Estava
impressionada com sua atitude máscula e decidida, que lhe inspirava segurança. Mas
era o suficiente para começar um namoro?
Jerry aproximou-se, abraçou-a e beijou levemente a face corada. Num impulso,
Rachel rodeou o pescoço dele, deixando-se beijar nos lábios. No entanto, ao perceber
o desejo crescer nos olhos azuis, escapou depressa e foi refugiar-se no quarto.
Na manhã seguinte, Anne olhou longamente para Jerry, mas não fez
comentários nem perguntou onde tinha se machucado. Também não perdia a chance
de observar o comportamento do filho e de Rachel, sempre que os dois estavam
juntos.
Rachel ouviu a movimentação dos tosquiadores que partiam, mas não saiu de
casa. Não queria tornar a ver Des Alexander nem que fosse o último homem do
planeta!

CAPÍTULO VII

Mal terminou a agitação da tosquia, já era hora de pensar no Natal. Anne e


Rachel de novo tiveram que se ocupar na cozinha, preparando assados de carneiro,
bolos e especialidades da época. Mas, embora tivessem muito o que fazer, não era
nada, comparado à enorme quantidade de comida que haviam servido aos
tosquiadores.
Pela primeira vez em muitos anos, os filhos casados dos Langholm não viriam
para a ceia. Anne ficou triste, mas acabou se conformando e convidou Damon Curtis
para participar da reunião.
Ele chegou cheio de presentes. Trouxe meias e lenços para os homens e um
lindo frasco de perfume para Anne. Rachel recebeu um 1ivro de poemas do autor
maori que tinha admirado na casa dele. Na primeira folha, uma dedicatória simples:
"Para Rachel, de Damon".
Ela agradeceu e folheou o livro, lendo alguns versos ao acaso. Eram poemas
muito originais, que mostravam a maneira inusitada de o autor encarar o mundo.
Fascinada, Rachel não conseguiu parar de ler, até que Damon veio sentar-se a seu
lado.
— Gostou? — perguntou ele.
— Demais!
— Tenho vontade de ler o que você escreveu.
— Nunca mostrei a ninguém...
— Eu sou "ninguém"? Pensei que me considerasse um amigo.
— E é, mas tenho muitos amigos que também não leram nada meu.
— Entendo. Acho que me enganei, julgando que nossa amizade fosse especial.
— Não é isso, Damon. É que... meus poemas são muito... íntimos. Escrevo-os
mais para mim mesma. Não fique aborrecido comigo.
— Não tenho o direito de ficar, mas confesso que estou desapontado.
Rachel o olhou ansiosa, mas se alegrou por ver que ele sorria.
— Vou pensar mais um pouco. Talvez crie coragem de mostrar-lhe alguma
coisa, Damon.
— Ótimo. Obrigado.
Nesse momento Anne o chamou, e Damon não voltou a tocar no assunto.
A ceia foi agradável e até tia Anne excedeu-se um pouquinho no vinho. Depois
que tudo acabou e já estava em seu quarto, Rachel ficou até de madrugada lendo o
livro. Como Damon havia acertado, dando-lhe esse presente! Uma semana depois
surgiu a oportunidade de Damon ver os poemas de Rachel. Ela foi à casa dele e,
desta vez, mal bateu, a porta foi aberta.
— Não está trabalhando hoje, Damon?
— Vou revisar o que escrevi, mas não estou com um pingo de vontade de
começar já. Prefiro primeiro nadar um pouco. Ponho o calção e a encontro na praia
em dez minutos, certo?
Foram momentos deliciosos, aproveitando as ondas fortes, a água tépida. Mais
tarde deitaram-se na areia para se secarem ao sol.
Rachel estava de costas, com o olhar acompanhando os flocos de nuvens alvas
que vagavam pelo céu. Gaivotas cruzavam o mar soltando gritos estridentes. As
pohutukawas que nasciam nos rochedos junto da praia estendiam seus galhos
carregados de flores vermelhas. Quando o verão terminasse, pensou ela, as flores
cairiam no mar, tingindo-o de sangue.
As palavras se atropelaram na mente de Rachel. Observou Damon de olhos
fechados, com certeza cochilando, e resolveu se arriscar. Pegou o bloco e o lápis que
sempre carregava no bolso do jeans e começou a escrever rapidamente, conforme as
imagens lhe surgiam, inspirada pelo incessante movimento das ondas, pela
felicidade daquele momento de paz.
Já tinha escrito o poema, tornado a ler, feito correções aqui e ali, quando
percebeu que Damon a observava. Respirou fundo, fechou logo o bloco e tentou
guardá-lo, mas ele foi mais rápido. Pegou o caderninho e a encarou, muito sério.
— Posso ler, Rachel?
Ela negou com a cabeça para depois concordar. Damon baixou os olhos para o
papel, depois encarou-a, com ar surpreso. Tornou a ler, folheou o bloco inteiro,
parando em cada uma das páginas.
Rachel tinha o rosto em chamas, vendo seus segredos desvendados. Esperou
até que ele entregasse seu tesouro e guardou-o no bolso sem dizer uma palavra.
— Não quer saber minha opinião?
— Não me importo com o que os outros pensam. Fiz esses versos para mim
mesma.
— Ah, mas que ótimo! — zombou Damon. — Naturalmente espera ser
descoberta depois que morrer, quando alguém for mexer nas suas coisas, não é?
— Eles não são tão bons assim!
— Como sabe? Devia ouvir a opinião de um especialista.
— Quem? Você?
— Não sei escrever poesia, mas posso muito bem reconhecer quem possui
talento. Conheço um editor que se interessa por escritores novos e gostaria de lhe
mandar alguns de seus trabalhos para que fossem apreciados. Posso entrar em
contato com ele?
— Não sei... Acho que não.
— Por quê? Não recuse sem pensar antes.
— Não poderia publicá-los! Sabe... é como se eu estivesse expondo para o
mundo algo muito íntimo e secreto, que existe bem no fundo de meu coração. É
como... como se estivesse me despindo em público!
Damon sorriu, com os olhos cheios de ternura.
— Sei como se sente. Acho que todos os autores reagem do mesmo modo,
embora os poetas sejam mais sensíveis.
Eles se levantaram e começaram a subir o caminho que levava ao alto do
rochedo.
— Já leu a Bíblia, Rachel?
— Quase toda.
— Lembra da parábola dos talentos?
— Aquela em que o senhor estava zangado com o empregado porque ele tinha
enterrado seu talento, enquanto outros o aproveitavam para ganhar dinheiro?
— Isso mesmo. Há uma lição muito clara, aí. De que adianta ter alguma
capacidade se não for usada em benefício do coletivo?
— Mas essa regra não se aplica a mim!
— Como não? Se possui talento suficiente para fazer as outras pessoas felizes,
tem que usá-lo e partilhá-lo, e não manter essa qualidade guardada dentro de si
mesma, para seu único prazer.
— Está me fazendo parecer egoísta. Acha mesmo que meus versos podem
ajudar alguém?
— Eles me deram instantes de alegria. Isso não é bom? — Damon a segurou
pelos ombros. Confia em mim?
— Muito. — Para provar o que dizia, ela tirou o bloco do bolso e o entregou a
ele. — Posso trazer-lhe outros amanhã, se quiser. — Era como se estivesse dando
uma parte de si mesma a Damon.
— Obrigado, querida.
A expressão carinhosa ainda ressoava nos ouvidos de Rachel quando chegou
em casa. Tinha sido apenas uma palavra, mas fora suficiente para fazê-la sentir-se a
mulher mais feliz do planeta. "Querida", repetiu ela baixinho, rindo sozinha.
"Querida..."

No dia seguinte, assim que se levantou, Rachel reuniu seus cadernos e levou-os
para Damon. Não ficou com ele pois tinha muito o que fazer em casa. Tia Anne
estava em plena limpeza geral de verão e precisava ajudá-la.
Enquanto arrumava os armários, não conseguia pensar em outra coisa que não
fosse em Damon lendo seus poemas. Morria de vontade de voar para a casa dele para
saber o que achava de seus escritos, mas só à tarde encontrou um tempinho para dar
uma chegada lá.
Sentaram-se na sala, tomaram suco de laranja e, ansiosamente, ela esperou que
Damon fizesse algum comentário.
— Datilografei alguns de seus poemas e os mandei para aquele editor que
conheço.
Rachel perdeu a voz, sentindo as mãos gelarem. Damon sorriu, percebendo seu
nervosismo.
— Não tenha medo! Talvez ele ache que não vale a pena publicá-los, só isso. O
máximo que pode acontecer é você receber uma recusa.
— Mas... se ele não gostar, podemos tentar outro editor , não é?
Dessa vez Damon deu uma gargalhada.
— Pelo jeito, mudou depressa de opinião. Também sonha com a fama, hein?
— Não ligo para isso. Só queria saber se é possível ganhar a vida fazendo
versos...
— Poucos escritores conseguem, meu bem. Mas quem é bom precisa lutar para
ser reconhecido. Escrever é uma profissão árdua, que só traz êxito depois de muita
batalha.
— Nunca pensei seriamente em me dedicar à literatura. Mas agora... sinto que
gostaria muito de publicar um livro. Você acha mesmo que pode dar certo, Damon?
— O principal você tem, Rachel: talento. Alguns de seus poemas são belíssimos,
incrivelmente originais. É a partir daí que precisa começar. Escrever muito, ler
muito, burilar o estilo, melhorar... É um longo e inesgotável processo de
aprendizagem. Se estiver disposta, acabará se tornando uma escritora de verdade.
Rachel sorriu. Sim, estava disposta. Agora sabia qual o sentido que ia dar a sua
vida. Nem que levasse mil anos, ia dedicar-se inteiramente à literatura.

O calor continuava intenso e o tempo firme. Sempre que podia, Rachel ia à


praia encontrar-se com Damon para nadarem juntos. Davam longos passeios,
subiam nas rochas, descobriam a vida marinha. Para ele, acostumado à cidade, tudo
era novidade.
Ela o ensinou a procurar kina, um ouriço do mar, e a experimentar a carne
tenra e avermelhada que mais parecia geléia. Contou-lhe que, segundo os maoris,
aquela era uma iguaria digna de um rei. Também procuravam conchas, desde as
mais simples, ovais e rosadas, até as mais raras, espiraladas, com pintas escuras.
Damon a tratava com a mesma indulgência que usaria com uma irmã caçula.
Pouco a pouco Rachel foi ficando mais à vontade em sua companhia, tornando-se
espontânea e descontraída. Às vezes, no entanto, notava uma expressão diferente
nos olhos cinzentos, que a fazia corar e desviar o rosto.
Uma tarde, ela subia num dos rochedos, segurando-se nos galhos resistentes de
uma pohutukawa, quando escorregou e deslizou pela encosta até cair junto dele,
alguns metros abaixo. Rindo, tentou erguer-se, mas de repente notou o rosto de
Damon, cheio de admiração e desejo.
Não se mexeu quando ele chegou mais perto, olhando demoradamente para o
corpo bem-feito, a curva dos seios, depois os lábios, como se fosse beijá-la. Num
gesto suave, Damon tocou-lhe os cabelos dourados e o rosto.
— Você é uma feiticeira, Rachel. Às vezes fico completamente tonto ao seu lado.
— Não sou nada disso! — E ela continuou sorrindo, mas havia apreensão no
verde de seus olhos.
— Não tenha medo. Quero beijá-la, é verdade, mas sei que tudo pode mudar
entre nós depois disso. Não sou a pessoa adequada para suas primeiras experiências
de adolescente.
— Logo se vê que é escritor, Damon. Tem muita imaginação! Não pretendo ter
nenhuma experiência, como está dizendo e, além disso, não sou mais adolescente. Já
fiz dezoito anos.
— Talvez tenha razão...
Rachel ficou aborrecida. Não suportava mais aquela atitude paternalista,
aquele sorriso condescendente. Tinha vontade de gritar de raiva. Porém, se agisse
assim, só estaria provando que realmente era imatura. Portanto, manteve-se fria e
distante, como convinha a uma pessoa adulta. Damon voltou a assumir o papel de
irmão mais velho.
Naquela noite, ainda frustrada com o que ocorrera, ela aceitou o convite de
Jerry para irem até os estábulos fazer a contagem dos animais recém-chegados.
Andaram de mãos dadas e, na volta, sob a sombra protetora de uma árvore, ela se
deixou beijar e até correspondeu ao carinho. Jerry ficou exultante e a levou para casa
com o braço em sua cintura, numa evidente atitude de posse.
O fim do verão se aproximava. As primeiras chuvas ameaçaram o azul do céu, o
clamor dos trovões ecoou pelas encostas das montanhas. As flores das pohutukawas
iam caindo devagar, tingindo o mar.
Damon a procurou com boas notícias. O editor havia gostado dos poemas e
queria ver outros. Rachel concordou em mandar seus trabalhos e, com muito
cuidado, separou os que considerava melhores. Pacientemente, ficou esperando o
veredicto final. Temia o resultado e, ao mesmo tempo, desejava ardentemente ver
seu nome publicado.
Num dia cinzento, com chuvas intermitentes, ela foi até a praia. Estava
deprimida pela espera e pelo tempo feio e parecia que apenas Damon era capaz de
ajudá-la.
— O que aconteceu? Está aborrecida? — perguntou ele, assim que lhe abriu a
porta.
— Nada, mas não podia mais ficar em casa.
— Algum motivo especial?
— Não, mas precisava sair!
Damon aproximou-se, com os olhos fixos no rosto bonito.
— É tão ruim assim? — Ele apontou na direção da casa dos Langholm.
— Pelo contrário, são muito bons comigo.
— Brigou com alguém?
— Também não. Eu... Nem eu mesma consigo dizer o que sinto.
— Os alemães definem esse estado de ânimo com perfeição: dizem que são as
tempestades da adolescência.
— Por que sempre toca no assunto de minha idade? Já tenho dezoito anos,
posso votar e tomar conta de mim mesma. Não sou mais criança!
— Resolveu brigar comigo? Veio aqui para discutir?
Ela engoliu a raiva e assumiu um tom mais humilde. Reconhecia que era
inexperiente e que seus horizontes não iam além da baía Hawkes. Por isso sentia
necessidade de ouvir os conselhos de alguém em quem pudesse confiar. Tinha que se
abrir com Damon.
— Posso lhe perguntar uma coisa? — começou.
— Claro.
— Conhece muita coisa sobre... o amor?
Ele sorriu, sem desviar o olhar.
— Um pouco. Em quem está pensando?
— Em Jerry.
— Está apaixonada por ele?
— Esse é que é o problema. Na realidade, não sei. Às vezes acho que sim, mas
depois fico confusa. Tio Bert e tia Anne ficariam muito felizes se namorássemos,
mas...
— Você se sente presa numa armadilha, não é?
Era impressionante como Damon a conhecia bem!
— Pois é, sempre achei que devia conhecer melhor o mundo antes de me casar.
Gostaria de ir para a Universidade e depois me tornar uma boa profissional. Tia
Anne é contra, mas sei que papai aprovaria minhas idéias... Ah, Damon. Sinto-me
tão dividida, sem saber que rumo tomar!
— Nada impede que uma mulher se case e ao mesmo tempo siga uma carreira.
— Claro; sei muito bem disso. O problema é que... às vezes acredito que seria
mais feliz se sossegasse e me casasse com Jerry; outras, penso que seria uma
loucura. Não consigo decidir.
Damon ficou pensativo, olhando-a. Lá fora, a chuva recomeçou, forte, e o
ambiente escureceu, ficando quase na penumbra.
— Jerry foi o único rapaz que a beijou? — perguntou ele finalmente.
— Bem, acho que não. Você... também me beijou, não foi?
— Puxa! Chama aquele gesto de despedida de beijo? Tem muito o que
aprender. Ninguém mais, então?
— Um outro rapaz me deu um beijo, mas não sei se conta, porque ele estava
bêbado. Achei odioso, repugnante. Com Jerry é bem diferente.
— Não tem base nenhuma para comparação, certo? — Damon veio sentar-se ao
lado dela, no sofá. — Bobinha! Acredita que ama Jerry porque ele desperta seus
instintos sexuais e foi o primeiro rapaz a se interessar por você. Não entende que a
única coisa que tem em comum com ele é a juventude e o fato de viverem na mesma
casa? Jerry a conhece? Sabe o que sente, entende suas angústias, suas dúvidas?
— Não é sexo, é muito mais que isso! Ele gosta de mim!
— Pode ser, mas se você soubesse o que é o amor, pensaria duas vezes antes de
decidir passar o resto da vida com Jerry. Não se deixe enganar, Rachel. O sexo existe
mesmo sem amor. Tem de comparar e depois compreender o que seu coração deseja,
de verdade.
Damon chegou mais perto, acariciando-lhe os cabelos, o rosto, passando o dedo
no contorno de seus lábios. Amedrontada, prevendo o que ia acontecer, ela fechou os
olhos.
— Relaxe — murmurou ele, com a boca quase colada à dela. — Confie em mim.
Aos poucos ela foi cedendo à suavidade das carícias, ao toque leve em sua boca
que depois se tornou mais firme e sensual. Os lábios de Damon percorreram cada
pedacinho de seu rosto, tocaram com delicadeza suas pálpebras e depois se
afastaram.
Sem pensar, Rachel abraçou-o, impedindo-o de parar. Queria prolongar aquela
sensação maravilhosa, queria sentir de novo a magia daquele beijo. Ele sorriu e
apoderou-se mais uma vez da boca entreaberta, apertando-a contra o corpo.
O beijo se tornou longo e apaixonado. Ela suspirou, inclinando-se para trás,
sentindo que as mãos fortes e quentes de Damon acariciavam seus seios cobertos
pela blusa fina. Ouviu-o murmurar palavras carinhosas e abriu os olhos,
reconhecendo o desejo crescente nos olhos cinzentos e profundos. As carícias se
tornavam mais íntimas, exigentes, como se ele quase não se controlasse.
Desabotoou-lhe a blusa, beijando-lhe os seios firmes, demoradamente. Rachel
gemeu de prazer, deixando-se invadir por uma sensação de que delirava, de que o
tempo havia parado, só restando eles dois, ali, na penumbra.
— Por quem está apaixonada agora, minha linda feiticeira?
Levou alguns segundos para que ela entendesse as palavras de Damon. A
paixão a tinha feito esquecer que ele a beijava somente para provar seu próprio
ponto de vista. Damon queria demonstrar que qualquer homem poderia despertar-
lhe os instintos sexuais, tão normais, mas ainda adormecidos.
Rachel retesou os músculos e se afastou. Sentou-se na ponta do sofá, com a
respiração ofegante, os olhos ainda cheios de sonhos. Não tinha coragem de encará-
lo.
Damon tinha acertado o alvo, pensou. Provara sua teoria. Jerry jamais a tinha
feito sentir-se assim, como se flutuasse...

CAPÍTULO VIII

— Olhe para mim. — Ela não se mexeu e Damon segurou-lhe o queixo. — Não
fique tão brava, Rachel. Devia até me agradecer.
— Por quê?
— Pela lição de amor.
— Amor?! Por que não fala a palavra certa? — Damon soltou-a, um pouco
surpreso, mas Rachel continuou: — Foi uma lição, concordo, mas sobre luxúria!
Sobre o instinto sexual que existe sem o amor. Muito obrigada, por fazer-me sentir
como... um objeto, uma boneca...
— Ei, o que é isso?! — Damon levantou-se, começando a andar pela sala.
— Mas é como me sinto!
— Meu Deus, como fui idiota em beijar uma criança!
— Não sou mais criança e sabe muito bem disso! — explodiu Rachel.
— Está começando acrescer, concordo. — Com um olhar malicioso, ele fitou-lhe
a blusa ainda aberta.
— Cresci e não preciso de sua ajuda para me tornar adulta! — Com raiva, ela
abotoou a roupa e se levantou, disposta a ir embora.
— Tudo bem. Mas não se esqueça de avisar quando o processo de
amadurecimento estiver completo. Ainda tem um longo caminho para percorrer.
Aquilo já era demais! Numa fúria cega ela ergueu a mão, pronta para atingi-lo
no rosto. Damon foi mais rápido e segurou o punho fechado.
— Não tente me agredir, Rachel. Posso muito bem revidar. — Os olhos frios e
duros não deixavam dúvidas de que ele cumpriria a ameaça.
— Vou para casa. — Ela esforçou-se por esconder o tremor da voz.
— É bom mesmo.
Rachel sentiu as pernas bambas, sem forças, mas retesou os músculos e passou
por ele de cabeça erguida.
— Esqueceu o casaco — avisou Damon, colocando-o sobre os ombros dela.
Aquele pequeno gesto bastou para desarmá-la. De repente, sua única vontade
era esconder o rosto no peito de Damon e chorar até não poder mais...
— Obrigada — murmurou ela, engolindo as lágrimas. Queria agir como adulta,
sem dar outra oportunidade para que ele caçoasse dela.
Saiu para a chuva miúda sem olhar para trás. Somente depois de se afastar
bastante permitiu que as lágrimas escapassem. Seu coração transbordava de tristeza.
Damon estava certo quando dissera que depois que a beijasse nada seria igual.
Se... se pelo menos aquele fosse um beijo de amor! Era isso o que mais
machucava... saber que Damon tinha tocado seus lábios sem a menor emoção,
apenas para provar seu ponto de vista!

A chuva tornou-se mais pesada e continuou a cair durante dois dias. Tanto
Anne como Rachel permaneceram confinadas em casa, saindo apenas para alimentar
as galinhas. Os homens foram em busca dos animais perdidos e a casa parecia escura
e triste, bem de acordo com o humor de Rachel.
Quando o sol reapareceu, Bert tentou usar o trator, mas havia algo errado com
ele. Quis consertar e viu que precisava de uma peça nova. Pediu ao filho que fosse à
cidade comprá-la.
— Quer ir comigo, Rachel? — convidou Jerry.
— Boa idéia — interferiu Anne. — Quem sabe o passeio a deixa mais contente?
Pode aproveitar para comprar uns mantimentos que me faltam.
Rachel pegou a bolsa, feliz por sair de casa.
A estrada estava escorregadia com a lama que descera dos morros, e por isso
pouco falaram no caminho. Jerry se concentrava em dirigir, evitando os buracos
cobertos de água.
Logo se desincumbiram das compras e trataram de voltar. Alegre, Jerry
começou a assobiar uma canção de sucesso e Rachel sorriu. Ele nem havia percebido
como estava deprimida.
Jerry... Ele seria um bom marido. Nunca se interessaria pelos sentimentos ou
emoções secretas da esposa, é verdade, mas em compensação lhe daria uma vida
segura e confortável.
Mas... era isso que desejava? Poderia amá-lo, ou apenas aceitava o
encorajamento dos Langholm? Que confusão! Por isso tinha ido falar com Damon.
Precisava de auxílio para tomar uma decisão.
No entanto, Damon tinha usado um método drástico para provar que em seu
coração não existia amor por Jerry. Em vez de ajudá-la, havia provocado um
turbilhão de emoções e desejos que jamais sonhou existirem. E agora?
Pouco depois chegaram em casa. Enquanto Jerry guardava o carro, ela desceu
com os braços cheios de pacotes. Empurrou a porta com o pé e o barulho familiar
das chaves penduradas no chaveiro chegou claramente a seus ouvidos. Era um som
usual, mas que há meses não ouvia. Desde quando? Desde que Damon alugara a casa
do rochedo. No mesmo instante soube o que tinha acontecido.
Com movimentos automáticos ela guardou as compras. Anne Langholm entrou
na cozinha e a ajudou, indagando sobre o passeio. No meio da prosa, a tia comentou
casualmente:
— O sr. Curtis foi embora. Veio entregar as chaves enquanto você e Jerry foram
à cidade. Deixou um abraço.
Só isso? Nem um recado especial? Era assim que a considerava, apenas uma
distração de férias?
— Não cruzamos com ele na estrada.
— Esteve aqui logo depois que vocês dois saíram. Provavelmente estava alguns
quilômetros atrás.
— Sabia que Damon ia deixar a casa tão depressa?
— Ele me disse que acabou o romance e que poderia fazer a revisão final em
Auckland. Na minha opinião, ele se cansou dessa vida pacata e estava louco para
voltar à agitação da cidade.
Era isso mesmo. Não culpava Damon por sentir falta da vida urbana, onde
naturalmente devia ter amigos, diversão...
Quando terminou sua tarefa, Rachel foi para o quarto. Pegou o caramujo e o
colocou no ouvido, como seu pai tinha ensinado. Ouviu o barulho do mar, das ondas
rolando na areia. Relembrou as vezes em que esteve com Damon na praia, o calor do
sol, a suave carícia da brisa, o grito das gaivotas, as flores vermelhas das
pohutukawas. Fora ali, naquele cenário paradisíaco, que Damon se interessara por
seus poemas.
Os poemas! Onde Damon os teria deixado? Saiu correndo do quarto, apanhou
as chaves e avisou a sra. Langholm que ia à casa do rochedo.
Chegou lá num instante. Entrou, abriu gavetas e armários e não encontrou
nada. Seus poemas tinham sumido! Damon os levara! Ou... Ela tremeu ao pensar na
possibilidade. Correu para o incinerador, procurando restos de papel queimado. Não
encontrou nada. Voltou para a sala e sentou-se no sofá.
Estava mais sossegada. Damon os tinha levado, provavelmente para mostrá-los
ao editor que conhecia. Mas... e se ele os esquecesse numa gaveta e com isso a
esquecesse também?
Não! Pensava como uma boba. Devia confiar em Damon. Não foi isso que ele
disse, naquele mesmo sofá? "Confie em mim", não esquecia as palavras. Então por
que não tinha deixado um recado para ela? As idéias desencontradas a perturbavam.
Com raiva, Rachel golpeou as almofadas.
— Odeio você, Damon Curtis! Ouviu bem?
Lágrimas amargas escorreram por seu rosto, e só depois de chorar muito
sentiu-se mais calma. Agora conseguia raciocinar. Damon devia ter deixado o
endereço com Anne. Ia escrever para ele e perguntar sobre os poemas. Pronto, estava
resolvido.
Resolvido nada! Onde encontrar coragem para escrever uma carta fria e
impessoal, perguntando o que ele pretendia fazer com seu tesouro? O melhor era
concentrar-se em Jerry, procurar amá-lo, esquecer-se de que havia conhecido
Damon... A perspectiva não lhe parecia nada animadora.
Nos dias que se seguiram ela deu atenção a Jerry, e viu a felicidade brilhar nos
olhos de Anne. Seria muito bem recebida se resolvesse casar com Jerry, tinha
certeza.

Algumas semanas mais tarde, Rachel recebeu uma carta de Auckland. Era de
um editor dizendo que tinha gostado de dois de seus poemas e que pretendia
publicá-los. Que maravilha! Parecia bom demais para ser verdade. Resolveu não
contar nada à família, embora percebesse seus olhares curiosos.
Poucos dias depois o correio trouxe nova correspondência, dessa vez uma
revista, onde os poemas estavam impressos. Junto com ela, um bilhete: "Parabéns.
Damon".
— O que foi? — perguntou Anne, vendo o rosto afogueado de Rachel.
Ela entregou a revista, mal contendo a euforia.
— Meus poemas foram publicados.
— Verdade? — Anne viu o nome dela em letras de fôrma. — Parabéns. Mais
tarde, quando tiver tempo, vou lê-los.
Foi um balde de água fria. Sentiu-se ainda pior quando tio Bert e Jerry leram o
que tinha escrito e só disseram "muito bom".
— Vai receber alguma coisa por isso? — indagou, muito prático, Jerry.
— Não deve ser muito, mas creio que sim.
— Ainda bem.
Mais tarde, no quarto, Rachel leu e releu os versos. Era tão bom vê-los na
revista! Pegou o bilhete de Damon e reparou na letra firme e inclinada. Ele não a
tinha esquecido! Havia pensado nela o suficiente para se interessar por seus
trabalhos, mandara-lhe a revista e as congratulações.
Leu novamente a mensagem breve e logo amassou o papel, com o coração
amargurado e as lágrimas quentes queimando os olhos. Era só isso que Damon tinha
para lhe dizer?

Num impulso, Rachel mandou novos poemas para outro editor, mas desta vez
eles foram friamente recusados. Quando os recebeu de volta, releu-os com atenção
redobrada e percebeu como eram infantis e pouco originais. Precisava trabalhar
mais nos textos, decidiu.
Pegou o lápis, mas sua mão não se movia. As idéias não vinham e, quando
surgiam, eram tão nebulosas que não conseguia pôr em palavras aquilo que sentia.
Parou. Recomeçou de novo. Desistiu.
Durante vários dias tentou escrever, sem nada conseguir. O que teria
acontecido? Os primeiros poemas tinham sido um momento único de inspiração,
para agora cair no lugar-comum? Se fosse assim, era melhor não pensar mais em
poesia. O tempo mudou, tornando-se frio. O vento era constante e já não havia flores
nas pohutukawas. Rachel se achava intimamente vazia, deprimida, exausta.

Um dia o carteiro entregou-lhe um envelope grande, contendo a amostra de um


livro. Era a coletânea dos poemas de Rachel Standen e, para editá-los, pediam
somente sua aprovação.
Ela mal acreditava em seus olhos. Damon tinha se interessado tanto por ela que
chegara a procurar outras editoras! Por que não escrevera, contando o que tinha
feito? Olhou para o nome do editor. "Carl Watkins". Era muito conhecido. O que
devia fazer? Nada. Ia esperar até que Damon se comunicasse com ela.
Mas o tempo passou e não recebeu nenhuma notícia dele. Decidida, Rachel
escreveu para o editor, pesando bem cada palavra. Pôs o envelope no correio e não
pensou mais no assunto.

Abril terminou e o frio intenso chegou com maio. Os carneiros foram


separados, uns para serem vendidos, outros para se agruparem nas invernadas. A
chuva era uma companheira constante, transformando estradas em lamaçais,
derrubando cercas, prejudicando a vida na fazenda.
Na rápida estiada de junho havia tanto serviço atrasado, que Bert pediu a
Rachel que o ajudasse. Muito feliz, ela foi para os campos. Dirigiu o trator, ajudou a
alimentar os animais, cumprindo com alegria as tarefas árduas e quase sem fim.
Uma tarde ela chegou em casa. Passou a mão nos cabelos revoltos e tirou o
casaco e as botas antes de entrar na cozinha. Ao abrir a porta, mal acreditou. Damon
estava calmamente tomando chá, servido por Anne.
— Como vai, Rachel? — falou ele com indiferença.
— Entre e sente-se — disse Anne. — O sr. Curtis estava esperando por você.
Rachel respirou fundo, tentando acalmar-se.
— Vou trocar de roupa primeiro. Estou toda cheia de lama. — Subiu correndo
para o quarto. Precisava de tempo para se refazer da surpresa.
Por que Damon tinha vindo? Trocou a roupa, escovou os cabelos, deixando-os
cair em ondas suaves sobre os ombros, lavou o rosto, pôs um pouco de batom.
Voltou à cozinha, mas ele continuou conversando com Anne. Bert e Jerry
chegaram logo depois e o convidaram para passar a noite na fazenda. Damon
prontamente aceitou.
Rachel tornou a servir chá e bolo, sentindo-se ativa e disposta como há muito
não acontecia. Damon tinha esse poder de lhe dar alegria e vivacidade. Por quê?

CAPÍTULO IX
Na manhã seguinte, quando os homens saíram para trabalhar, Damon quis
acompanhá-los,
— Não sou fazendeiro, mas, se aceitarem mais dois braços para ajudar, estou
pronto,.
Jerry reparou no terno bem-feito, de excelente tecido, a camisa de cambraia, os
sapatos bem engraxados e acabou soltando um risinho sarcástico. Bert, porém,
depois de sugerir que Damon usasse roupas velhas para ficar mais à vontade, aceitou
o oferecimento.
— Tenho jeans, camisa e botas que devem lhe servir. — Bert foi pegá-las.
Os três só retornaram horas mais tarde. Damon tinha os cabelos despenteados,
um arranhão no braço, estava sujo de lama, mas assim mesmo parecia contente.
Depois da refeição sentaram-se na sala para conversar, Rachel ficou perto de
Jerry, tentando ignorar os olhos cinzentos fixos nela. Damon dava a impressão de
estar zangado, mas ela decidiu fingir que não havia notado. Falaram sobre os
carneiros, o tempo, a comida gostosa. Jerry levantou-se e foi ligar a televisão.
— Você se incomoda se eu levar Rachel para dar uma volta, Bert? — Damon
aproximou-se, estendendo a mão para erguê-la.
— Claro que não — respondeu Bert, surpreso.
Jerry, no entanto, não gostou. Encarou Damon com os olhos fuzilando de raiva:
— Vou com vocês — anunciou.
— Sinto muito, amigo, mas quero falar a sós com ela.
— Por quê? — Jerry parecia um galo de briga, pronto para saltar sobre seu
oponente.
— Temos assuntos particulares para discutir. Se depois ela quiser lhe contar do
que se trata, tudo bem.
— Rachel é minha namorada!
— Verdade? — Damon apertou mais a mão pequenina, falando diretamente
com ela: — Estão noivos?
— Ainda não — adiantou-se Jerry. — Mas vamos ficar. Pretendemos nos casar
— implorou com o olhar para que ela concordasse.
Rachel compreendeu que o orgulho do rapaz estava em jogo, mas assim mesmo
disse a verdade.
— Sinto muito, Jerry, mas não vou me casar com você.
Ele empalideceu e engoliu em seco, chocado demais para tomar uma atitude.
Damon aproveitou a confusão para escapar dali.
— Venha, Rachel, vamos dar nossa volta.
Ela o seguiu, preocupada com o que tinha acontecido. Sentia pena de Jerry! Ele
não merecia aquela humilhação, embora tivesse se precipitado. Na verdade, havia
dado motivos para que ele pensasse que aceitaria um pedido de casamento. No
entanto, quando a possibilidade surgiu, real e concreta, não conseguiu dizer "sim",
apesar de ser a atitude mais razoável que poderia tomar.
Andaram em silêncio e foram para a praia. Rachel procurava engolir as
lágrimas, mas acena desagradável não lhe saía da cabeça. Chegaram ao alto do
rochedo e viram as ondas batendo e espumando contra as pedras, num movimento
contínuo.
— Está chorando por causa de Jerry?
— Agi muito mal com ele. — Rachel não se conteve mais e as lágrimas
extravasaram, rolando por seu rosto.
— Prometeu que se casaria com ele?
— Não.
— Então por que Jerry achou que iria?
— Porque lhe dei razões para pensar assim.
— Dormiu com ele, mas sem pensar em casamento. Foi isso?
— Não! Nunca fomos além de uns beijos, mas eu estava decidindo que... que se
ele me quisesse para esposa, ia aceitar. Só que agora, quando ele falou, assim de
repente, não pude... não consegui...
— Se Jerry tivesse falado com você em particular, de uma maneira mais
romântica, teria aceito?
— Não sei! Era o que eu pretendia, mas agora não quero mais!
Damon afastou-se e olhou para o mar imenso, como se refletisse. Depois de um
tempo, virou-se de novo para Rachel.
— Por que recusou a oferta de Watkins?
Ela ficou aturdida com a súbita mudança de assunto.
— Que oferta, de quem?
— De Carl Watkins, o editor. Ele lhe escreveu que publicaria seus poemas. Já
esqueceu?
— Ah... sim. Não recusei; permiti que publicasse um deles.
— Por que fez isso? Se ele queria todos, deveria ter concordado.
— Há poemas de que não gosto mais, Damon.
— Mesmo? Não a entendo! Depois de todo o trabalho que tive para escolher os
melhores e levá-los para a apreciação do editor, o mínimo que esperava é que desse
sua aprovação.
— Desculpe-me por ter causado tanto transtorno. Poderia ter me contado o que
estava fazendo, não é? Cheguei a pensar que tivesse me esquecido.
Damon olhou-a bem, na semi-obscuridade da noite que se aproximava. Rachel
ficou sem jeito, mas insistiu:
— Não custava nada ter me mandado umas palavrinhas.
— Mas custou para você, não é, Rachel? Nunca me escreveu.
— Não sabia seu endereço.
— Deixei-o com a sra. Langholm. Era só pedir.
Ela não respondeu, e durante uns minutos os dois deixaram a vista vagar pelo
mar. A lua apareceu por trás das montanhas e seu brilho pálido se refletiu na água.
Eles começaram a andar, tomando o caminho de casa.
— Às vezes não consigo entendê-la, Rachel. Parecia tão entusiasmada em ver
seus trabalhos impressos, e no entanto mudou de idéia sem mais nem menos. O
maior sonho de um escritor é ver seu primeiro livro à venda! Não pensa do mesmo
modo?
— Meus poemas não são bons, Damon. Enviei alguns, novos, para outro editor,
mas ele os recusou. Não tenho talento, não posso mais escrever! — Para seu espanto,
ela o viu soltar uma gargalhada.
Que horror! Damon divertia-se às suas custas! Andou mais depressa, querendo
escapar, mas ele logo a alcançou.
— Rachel, sua doidinha, não sabe que a maioria dos escritores e poetas tem
quilos de cartas recusando seus trabalhos? É por isso que se fala com diferentes
editores.
— Mas o que fiz estava realmente péssimo! Depois que me foram devolvidos,
tornei a lê-los e eram tão ruins que os joguei fora. Tentei escrever mais, sem
resultado. De repente me senti seca, vazia! As idéias vinham, mas não podia colocá-
las no papel.
— É assim mesmo. A inspiração é instável, volúvel, difícil. Mas é só esperar que
volte.
— Tem certeza? — perguntou ela esperançosa.
— Sem dúvida. — Damon a segurou pelos ombros. — Posso dizer a Carl
Watkins que vai concordar?
— Meus poemas são realmente bons? Ou ele está apenas fazendo um favor para
você?
— Nesse ramo não se faz favor a ninguém. Ou o autor é bom ou ele precisa
procurar outra profissão. Se Carl Watkins resolveu publicar o que você escreveu, é
porque viu alguma qualidade.
— Bem... se você acha...
— Ótimo. Vou bater uma carta, você a assina e amanhã cedo a pomos no
correio. Devia se envergonhar de perder o ânimo por causa de uma recusa.
— Não foi só isso, Damon. Enquanto você estava aqui e comentava o que eu
escrevia, achei que meus versos eram significativos, mas quando os mostrei aos
Langholm... — A voz dela sumiu, num soluço disfarçado.
— Eles não gostaram?
— Disseram que sim, mas acharam meus pensamentos muito esquisitos.
— Os Langholm são ótimas pessoas, mas têm os pés plantados na terra, ao
passo que você flutua num mundo todo seu. — Damon pensou um pouco antes de
continuar. — Sua situação nesta casa vai ficar insuportável, depois do que aconteceu.
— Eu sei. Agi mal com Jerry. Se tivesse dinheiro, ou um emprego, iria embora
agora mesmo. Mas a realidade é outra e preciso aprender a conviver com ela. Não
tenho outra alternativa.
— Admiro sua coragem. Não vai ser fácil para ninguém.
— É verdade. Se tivesse pensado mais, teria deixado para explicar-lhe como me
sentia.
— Talvez fosse pior ainda. Fez bem ao falar a verdade de uma vez. O impacto foi
grande, mas o assunto está resolvido. — Damon passou-lhe o braço pelos ombros e
beijou o rosto ainda úmido de lágrimas. Por um longo momento não se mexeram.
— Senti falta de você — confessou Rachel.
Damon roçou os lábios nas faces afogueadas, para depois pousá-los na boca
trêmula, tocando-a com ternura. Continuaram andando, abraçados. Quando as luzes
da casa estavam visíveis, ele perguntou:
— Quer continuar vivendo aqui?
— Não tenho outra alternativa, Damon.
— Tem, sim. Se quiser ir embora, posso levá-la. Tenho lugar no carro, no meu
apartamento, em minha vida...
Rachel ergueu os olhos, atônita, mas tão contente que custava a acreditar no
que ouvia. Lugar na vida dele?
— Você quer dizer... que... que podemos nos casar? — Ela estourava de
felicidade.
Houve uma pausa, uma ligeira hesitação, antes que ele respondesse:
— É... Por que não?
Rachel percebeu que só agora Damon pensara nessa possibilidade. Por que era
tão ingênua? Claro que ele não havia se referido a casamento! Tinha pensado num
relacionamento temporário, sem vínculos e ela... Que idiota!
— Desculpe, Damon. Sei que não foi isso que quis dizer. — Apressou o passo,
mas ele a segurou.
— Pare de fugir, Rachel. Vou lhe mostrar como me sinto.
Damon a beijou com paixão e sensualidade, sem se preocupar com sua
inexperiência. Seguiu com a língua o contorno delicado dos lábios, até penetrar na
delícia úmida de sua boca. Apertou-a contra o corpo, descobriu a suave elevação dos
seios, acariciando-os com volúpia.
— Case-se comigo, Rachel. Diga que sim.
— Sim! Sim... sim!
Ele a beijou de novo, mas de repente se afastou.
— Não estou sendo justo com você. Tenho que lhe dar tempo para pensar. Se
amanhã cedo mudar de idéia, saberei entender.
— Tenho certeza do que sinto. Eu te amo, Damon.
— Mesmo assim, vamos esperar até amanhã para darmos a notícia na sua casa.
Se anunciarmos o casamento agora, poderemos causar outra tempestade entre os
Langholm.
Quando entraram na sala, encontraram Anne com ar preocupado. Jerry não
estava lá, mas o ambiente continuava carregado. Só tio Bert permanecia impassível.
Rachel sentou-se perto da tia e falou baixinho:
— Desculpe, não tive a intenção de ferir ninguém.
— Eu sei. Reconheço que Jerry agiu sem muito tato, mas ele não é o único
culpado.
— Também tenho culpa, admito.
— Falamos sobre isso amanhã — decidiu Anne, mostrando que certos assuntos
não podiam ser discutidos na presença de estranhos.
Rachel dormiu mal naquela noite. Ao levantar, encontrou a tia na cozinha,
preparando o café. Rapidamente começou a ajudá-la, pondo a mesa.
— Posso estar errada, mas acho que incentivou Jerry, fazendo-o crer que
gostava dele — Anne foi diretamente ao que interessava.
— Tem razão. Foi o que fiz. Sinto muito.
— Então, mesmo que tivesse ficado aborrecida por ele falar em casamento
antes de discutir o assunto com você, isso não era motivo para tratá-lo tão mal. No
entanto, já que se amam, vão fazer as pazes.
— Não gosto de Jerry dessa forma. — Rachel pesou cada palavra, para evitar
equívocos. — Achei que sim, mas somente ontem à noite compreendi que não o amo
e por isso não posso casar com ele.
Anne a olhou muito séria.
— Todos os casais enfrentam crises, minha querida. Isso é muito normal. Vocês
pareciam tão felizes juntos que não é uma briguinha à-toa que vai estragar tudo.
Jerry está apressado mas, se você tomar a iniciativa, ele vai ficar feliz em voltar às
boas.
Rachel mordeu o lábio. A situação continuava difícil. Não tinha se explicado
bem?
— Procure compreender, tia Anne, por favor. Sei que não me comportei bem
com Jerry, mas foi sem querer. Gostaria de aceitar o pedido de casamento, mas não o
amo. Vou embora daqui, hoje mesmo.
— Que bobagem, querida! Não precisa chegar a esse extremo.
— Já está tudo combinado. Vou embora com Damon.
— Você pediu que ele a levasse?
— Não... Vou me casar com ele.
Anne ficou boquiaberta.
— O quê?! Casar?! Foi por isso que ele veio?
— Não exatamente. Damon queria conversar sobre meus poemas, que vão ser
publicados. Acabamos descobrindo que nos amamos e resolvemos nos casar. —
Rachel não gostou do que disse. Dava a impressão de que a decisão tinha sido
impulsiva, sem nenhuma base sólida.
— Estou decepcionada com você, Rachel. Não tinha o direito de encorajar
Jerry, se amava outro homem. Mas foi esperta, não é? Um escritor famoso é melhor
partido do que um pequeno fazendeiro.
— Não aprova nosso casamento, sra. Langholm? — Damon estava de pé, na
porta.
— Confesso que estou chocada. Não sabia que existia algo entre vocês. Você é
tão mais velho que Rachel e...
— Sou mesmo, mas isso não é problema...
— Minha sobrinha ainda é muito jovem, sr. Curtis, e Bert e eu somos
responsáveis por ela. Não vamos permitir que Rachel vá embora assim de repente,
da noite para o dia. Ela não precisa se casar para sair daqui e fazer o que quer. Se
deseja ir para a universidade ou trabalhar, tem nossa aprovação. Deve dar mais
tempo para ela pensar. Numa decisão tão importante, a moça precisa raciocinar com
calma.
— Rachel já decidiu, sra. Langholm. De minha parte, asseguro-lhe que não sou
um sedutor e que, assim que tirar a licença, vamos nos casar.
— Então por que não se casam primeiro, para depois partirem?
— Damon... — Rachel queria dizer que não precisavam esperar nada, mas Anne
continuou:
— Tenho certeza de que depois de tudo que fizemos por ela, Rachel não vai nos
largar desse jeito. Embora tenha agido mal com meu filho, sei que é uma boa
menina.
— Tia Anne, não seria mais fácil para todos se eu fosse embora agora? Jerry iria
sentir-se melhor e...
— Claro que Jerry vai sofrer muito, mas prefiro que saia desta casa como a
esposa do sr. Curtis. Não há necessidade de fugir. Faço questão de lhe dar um
casamento bonito, embora simples.
— Não faço idéia... — Rachel ainda tentou convencer a tia, mas Damon a
interrompeu.
— Tem razão, sra. Langholm. Rachel estava ansiosa para não embaraçar Jerry e
eu, de maneira egoísta, pensei em levá-la daqui imediatamente. Preciso voltar a
Auckland ainda hoje, mas vou tratar dos papéis do casamento o mais depressa
possível. Para quando podemos marcá-lo?
Rachel ficou desorientada. Damon não podia estar falando sério. Era
impossível imaginá-lo numa igreja cheia de flores, diante do padre, dizendo o "sim"
de uma maneira super tradicional.
— Não faço nenhuma questão de ter um casamento tão pomposo, tia Anne.
Nem tenho parentes para convidar.
— Mesmo assim, minha querida, quero vê-la de branco, com vestido de noiva.
Damon virou-se para a sra. Langholm.
— Vamos marcar a data para daqui a duas semanas, está bem?
Rachel teve vontade de gritar. Não queria ficar nem mais um dia naquela casa,
quanto mais duas semanas!
— Acha mesmo que tudo isso é necessário, tia Anne? Não faço questão de
vestido, nem de festa.
— Duas semanas passam num instante — insistiu Anne. — O pessoal da cidade
vai comentar e talvez até fosse melhor marcar para daqui a um mês.
— Não! — Rachel não se conteve mais.
— Prefere que seja antes? Damon a olhou com expressão divertida, a tia com
censura.
— Prefiro, a não ser que você queira diferente, Damon.
— Claro que não. Apenas procuro não ser egoísta.
Rachel correu para ele, com os olhos brilhando de alegria, ansiando por ver-se
entre seus braços. Anne se adiantou e decidiu, com voz firme:
— Está marcado, então. O casamento será daqui a duas semanas.

CAPÍTULO X

Rachel não tornou a ver Damon até o dia do casamento. Ele telefonou todas as
noites, mas ela atendia constrangida por saber que os Langholm estavam ali perto,
ouvindo tudo.
Os telefonemas eram rápidos e Damon falava com objetividade, nunca se
comportando como um noivo apaixonado. Contou que os editores estavam contentes
por poderem publicar os poemas. Disse também que seu romance estava pronto,
necessitando apenas da revisão final, o que faria antes do casamento.
Rachel sentia-se feliz. Depois de uma conversa difícil com Jerry, haviam
chegado a um entendimento, embora ainda se evitassem. Talvez, com o tempo, ele a
perdoasse. Dois dias antes da cerimônia, o rapaz foi caçar com amigos em Urewera.
Anne levou a enteada a Napier para escolher o vestido de noiva. Depois de
muito procurar, Rachel decidiu-se por um de crepe branco, muito simples, a saia
rodada chegando aos tornozelos, as mangas compridas e justas.
Na véspera do grande dia, Damon ligou, dizendo que já estava na cidade.
— Não vem me ver? — pediu ela.
— Bem que gostaria, mas sua tia foi muito explícita. Disse que dá azar o noivo
ver a noiva antes do casamento.
— Não sou supersticiosa, Damon.
— Nem eu, mas prefiro não contrariar a sra. Langholm. É só hoje, Rachel.
Amanhã estaremos casados e faremos só o que quisermos.
— Está bem. Até amanhã, então.
— Boa noite, querida.

Rachel levantou cheia de energia. Tomou um banho demorado, escovou os


cabelos para que eles ficassem brilhantes e macios, depois prendeu-os num coque
baixo. Olhou-se no espelho. Não queria um fio fora do lugar.
Colocou o vestido branco e começou a abotoá-lo, quando tia Anne entrou, para
ajudá-la. Trazia nas mãos uma grinalda de pequenos botões de rosa que colocou na
cabeça de Rachel, como se fosse uma coroa.
— Pronto. Está linda, assim. Só não me conformo de não querer usar véu.
— Prefiro tudo que é simples, tia Anne. Apenas um arranjo na cabeça já é
suficiente.
Nesse momento ela se lembrou das palavras de Damon: "Nunca lhe darei
rosas". Num ímpeto, saiu do quarto, foi ao terraço e colheu alguns galhos de jasmim,
com flores bem abertas e perfumadas. Retirou a grinalda e espalhou as flores pelos
cabelos. Com o resto dos galhos fez um buquê que levaria nas mãos.
— Está muito bonita e singela, Rachel, mas flores naturais não agüentam muito
tempo. Logo estarão murchas.
— Vão durar até o fim da cerimônia, que não será muito demorada.
— Como quiser, minha querida. — Anne fez uma pausa, cheia de dúvidas. —
Tem certeza de que deseja mesmo se casar com Damon Curtis? Você mal o conhece...
— Tenho absoluta certeza, tia Anne.

Ao entrar na igreja, ela viu Damon no altar, a sua espera.


Quando ele lhe estendeu a mão, Rachel parou de tremer. Agora estava super
confiante. Ele era o homem de sua vida, seu primeiro e único amor. Seriam felizes.
Havia poucos convidados, só alguns amigos e vizinhos, que também
participaram do almoço oferecido pelos Langholm. Logo após a refeição, Rachel foi
trocar de roupa para a viagem. Não teriam lua-de-mel porque Damon estava
ocupado demais com o lançamento de seu livro. Iriam diretamente para Auckland.
Usando um conjunto de lã bege-claro e uma blusa de seda num tom mais
escuro, Rachel surgiu na sala, pronta para partir. Damon sorriu, admirando-a.
Deram-se as mãos e escaparam pela porta da frente, os convidados atrás deles,
jogando-lhes arroz e fazendo votos de eterna felicidade.
O carro partiu veloz e logo alcançou a estrada. Quando já tinham se afastado
bastante da baía Hawkes, Damon parou e eles desceram para se livrar dos últimos
sinais da festa.
— Ainda há muito arroz em seus cabelos, Rachel. E melhor soltá-los.
— Preciso mesmo? Levei horas para arrumá-los. — Ao mesmo tempo que falava
ela tirou os grampos e deixou que os fios sedosos caíssem em seus ombros. Damon
retirou os grãos que haviam sobrado.
— Gosto de seus cabelos soltos. Nunca deveria prendê-los.
— Achou que eu estava bonita, na igreja?
— Foi a noiva mais linda que já vi, Rachel.
Ela sorriu, contente por estar junto dele, de ser a sra. Curtis. Damon a segurou
pela cintura, apertando-a contra o peito. Suas mãos seguiram a linha das costas,
queimando a pele macia, mesmo sobre a blusa leve.
Com um suspiro, Rachel inclinou a cabeça para trás, oferecendo os lábios. Ele a
olhou por um longo instante antes de se apossar da boca entreaberta. O beijo se
prolongou, apaixonado, e ela sentiu o que era a felicidade. O futuro lhe sorria, cheio
de promessas.
Damon a apertou com mais força e ficaram ainda mais unidos. Ele mordiscou o
queixo redondo, deu um beijo leve no pescoço delicado, para depois procurar o vale
entre os seios firmes. Com vagar, abriu os botões da blusa, um a um, ouvindo-a
suspirar de prazer e emoção.
O barulho de um carro passando na estrada acabou com o momento de doce
enlevo. Rachel se retesou, assustada, afastando-se do marido, instintivamente
fechando a blusa.
Damon riu.
— Ainda não é o lugar nem a hora certa, não é, Rachel? Não importa, temos a
vida toda pela frente.
Voltaram ao carro e Rachel ainda tentava fechar a blusa. Damon segurou-lhe as
mãos trêmulas, beijou-as de leve, para depois abotoar o que faltava. Só então deu
partida no motor.
Estavam se conhecendo, pensou Rachel. Seria maravilhoso descobrir o corpo
de Damon e deixar que ele soubesse como era o seu. Precisava aprender como lhe
dar prazer, para que ele se sentisse feliz e a amasse cada vez mais.

Pararam em Napier, tomaram um refresco, andaram ao longo do Marine


Parade, com seus pinheiros enormes acompanhando a orla marítima. Viram a
estátua de Pania olhando pensativamente para o mar e leram a placa de bronze que
lembrava a determinação do povo em reconstruir a cidade depois do terremoto de
1931.
— Deve ter sido uma experiência horrível, Damon.
— É verdade, mas os habitantes foram fortes e refizeram sua cidade. Puseram
mãos à obra, com paciência e determinação e alcançaram seu objetivo. — Ele deu-lhe
um beijo no rosto. — Venha, meu bem, ainda temos um longo caminho até chegar
em casa.
Voltaram para o carro e seguiram pela Desert Road. A vista era espetacular. Os
três imponentes vulcões, Tongariro, Ngauruhoe e Ruapehu, elevavam seus cumes
cobertos de neve contra o azul profundo do céu.
Uma coluna branca de fumaça escapava do cone quase perfeito de Ngauruhoe,
mostrando que os vulcões não estavam extintos, mas apenas adormecidos. Poderia
haver uma erupção a qualquer momento.
Rachel não perdia nada. Olhava tudo com o maior interesse, encantada com a
paisagem deslumbrante.
— Sabe a história dessas montanhas? — perguntou Damon.
Ela acenou negativamente.
— Um maori, chamado Ngatoro-i-rangi, perdeu-se nessas montanhas durante
uma tempestade de neve. Quase morreu de fome e frio. Rezou com fervor, pedindo o
fogo dos deuses para se aquecer. Foi atendido e ficou tão agradecido que sacrificou
uma de suas escravas em honra dos deuses. Jogou-a na cratera de Ngauruhoe, que
ganhou esse nome por causa dela.
— Coitada! Ele salvou-se e ela acabou morrendo. Não é triste?
— Você é sensível demais, Rachel. É apenas lenda, não se esqueça.
— Só espero que os deuses tenham apreciado o sacrifício.
— Acho que sim, porque o fogo permaneceu nas montanhas, através dos
vulcões. Mas eles são imprevisíveis e perigosos, e muitas vezes põem em risco a vida
dos moradores da cidade. Um dia vou levá-la para esquiar em Ruapehu e depois
poderemos nadar no lago da cratera.
— Que coisa esquisita! Existe um lago ali?
— E não é pequeno. A água é quente e a sensação é estranha, quando se nada
rodeado pela neve.
— Seria maravilhoso, mas não sei esquiar.
— Vou ser seu professor. Aliás, posso lhe ensinar uma porção de coisas, e sei
que vai gostar.
Rachel desviou o olhar, tímida e embaraçada, imaginando as delícias que lhe
estavam reservadas. Era bom estar junto do marido, sentir o calor da mão dele sobre
a coxa. Ainda parecia um sonho...
Ao cruzarem Taupo, rodearam o lago, passando em frente das inúmeras
cabanas de pescadores e de vários hotéis, antes de irem ao centro, com suas ruas
largas e árvores grandes e copadas. A água tranqüila lambia a faixa de areia onde
crianças brincavam, construindo castelos.
Continuaram em frente até alcançarem Wairakei. Espantada, Rachel viu o vale
cheio de vapor. Damon explicou que naquele local os terremotos eram muito
freqüentes e que as famílias usavam as diversas fontes de calor para aquecerem a
água de suas casas.
— Este lugar é incrível! Parece até cena de um filme de ficção científica —
comentou Rachel.
— Tem razão. Acho que o pessoal daqui não se espantaria se visse surgir
homenzinhos com antenas na cabeça, fazendo ''blip... blip".
Os dois riram, imaginando a cena. Retomaram a estrada e alcançaram Rotorua
já quase no escuro. Uma chuva fininha e persistente os acompanhava há muito
tempo e Damon dirigia com o máximo de atenção.
Pararam no hotel, onde jantaram. Rachel estava com frio e, fora de seus
hábitos, tomou três copos de vinho com a refeição deliciosa. Ficou mais alegre e
descontraída. Aproveitou para flertar com o marido, contente por ver o brilho em
seus olhos, a malícia escondida em seu sorriso.
Voltaram para o carro. Viajaram mais algum tempo, até que Damon pegou um
cobertor no banco de trás e a cobriu, fazendo-a aconchegar-se em seu ombro.
O barulho monótono do motor, os limpadores de pára-brisa indo e vindo, as
luzes da cidade que surgiam do nada para desaparecerem em seguida, o calor
gostoso, o efeito do vinho, tudo contribuiu para que ela relaxasse e acabasse
cochilando.
Acordou com o clarão forte de Auckland. Sentou-se e olhou para fora. Viu as
lojas modernas, os prédios elevados.
— Esses edifícios são tão altos! Quem trabalha neles não tem medo dos
terremotos? — Rachel estava impressionada com os gigantes de concreto e vidro.
— Os engenheiros dizem que as novas técnicas permitem que os prédios
resistam aos abalos.
— É inacreditável!
Cruzaram avenidas, seguiram por ruas ladeadas de lindas casas com jardins
bem tratados. Damon virou numa rua sossegada e estacionou.
— Bem-vinda a seu novo lar, sra. Curtis. — Damon a beijou no rosto.
Rachel desceu, curiosa. A chuva tinha parado e a noite estava clara. Damon
tirou a bagagem do porta-malas, deu a mão à esposa e subiram os degraus do
terraço.
— Espere um pouco. Quero carregá-la para dentro. Não é esse o costume,
quando o casal entra junto pela primeira vez em casa?
Rachel sorriu e se deixou levar. As luzes do hall estavam acesas. Junto da porta,
sobre uma mesa antiga, havia um vaso de cristal, com rosas amarelas muito frescas.
— A sra. Baker, minha faxineira, caprichou dessa vez. Pedi que arrumasse tudo
para sua chegada e ela fez mais do que eu esperava. Veja, até colocou flores no vaso.
— Damon pôs Rachel no chão e foi buscar as malas.
A luz também iluminava a sala, o que intrigou Rachel. A sra. Baker a teria
deixado acesa? Que desperdício!
Entraram na sala espaçosa, decorada em tons de amarelo e marrom. Rachel
parou, estarrecida com o que viu.
Num dos sofás, ao lado da lareira, havia uma mulher jovem e sensual, usando
um negligê rosa-forte. Ela estava recostada nas almofadas, os cabelos pretos e
ondulados emoldurando o rosto bonito. Rachel notou os olhos muito azuis e as
sobrancelhas que formavam um arco perfeito.
Por um longo instante, os três permaneceram imóveis. Damon foi quem
primeiro se manifestou, soltando o ar dos pulmões num ruído abafado.
— Diabo! O que está fazendo aqui?
— Damon, querido! — A morena sorriu, os dentes muito brancos. — Esperando
você, é claro... mas parece que me tornei supérflua. — Ela fixou o olhar em Rachel,
que continuava estática. — Sinto muito, queridinha, mas Damon devia ter terminado
o caso antigo antes de se envolver num novo, não concorda?
A moça espreguiçou-se como um gato e o cetim aderiu ao corpo escultural,
mostrando que ela não usava nada por baixo.
— Isso não tem graça nenhuma, Paula — falou Damon com rispidez. — Como
entrou?
— Com a chave que você me deu, amor. Quando me pôs para fora, na semana
passada, esqueceu-se de pedi-la de volta.
— Não exagere. Não a expulsei daqui.
— Devo dizer que, educadamente, você me convidou a sair? Por que não me
explicou a situação? Eu teria compreendido.
— Então vamos deixar as coisas bem claras. Não pode ficar aqui. Arrume suas
coisas enquanto eu chamo um táxi. — Damon foi direto para o telefone.
Paula levantou-se e aproximou-se de Rachel.
— Ele é um tirano, não acha? Que tal nos apresentarmos? Sou Paula Winfield.
Damon bateu o telefone no gancho sem completar a ligação.
— Paula, pelo amor de Deus, quer calar a boca? Rachel é minha esposa!
Foi a vez dela de ficar atônita, zonza demais para retrucar. Levou alguns
segundos para recompor-se.
— É mesmo? Puxa, que surpresa! Nunca pensei que um dia fisgassem o fugidio
Damon Curtis!
— Vá arrumar suas coisas! — Exasperado, Damon voltou ao telefone e pediu
um táxi para daí a meia hora. — Onde vai ficar, Paula? — perguntou à moça, em
seguida.
— Não sei, quem sabe num albergue noturno ou no Exército de Salvação, sei lá.
— Deixe de ser ridícula!
Ele fez nova ligação e reservou um quarto num hotel da cidade.
— Vou pegar o que é meu. — Paula deu-lhe as costas e entrou no quarto.
Rachel não tinha se mexido. Continuava de pé, no mesmo lugar, como se
tivesse criado raízes. Damon chegou perto dela e a levou até o sofá, onde a fez sentar-
se. Atordoada demais, ela obedeceu sem pestanejar.
— Que coisa desagradável, Rachel. Sinto muito que tenha acontecido.
Ela não respondeu, mas olhou para Damon como se estivesse diante de um
completo desconhecido.
— Rachel, por favor... — começou a falar ele, mas foi interrompido por Paula.
— Não consigo fechar minha mala. Pode me ajudar?
Ele bufou, zangado.
— Tinha que usar esse quarto, Paula?
— Claro! Era o costume, não?
Damon sumiu no outro aposento. Rachel reparou que a moça tinha posto um
vestido de malha violeta, o que deixava seus olhos ainda mais bonitos e misteriosos.
Saltos altos punham em evidência as pernas bem torneadas, o andar gracioso como o
de um felino. Sem dúvida, Paula Winfield era uma mulher charmosa e sofisticada.
Damon voltou carregando uma valise branca. Entregou o casaco para Paula e
depois tirou umas notas do bolso.
— Isto deve dar para pagar o hotel durante alguns dias.
— Obrigada. Devolvo tudo quando estiver trabalhando outra vez.
— Não se preocupe, não é necessário.
— Mas eu insisto! O que sua noivinha vai pensar se...
— Cale a boca! — ordenou Damon com raiva. — Vou levá-la até a porta. O táxi
já deve ter chegado.
— Adeusinho. — Paula acenou para Rachel, deu dois passos para a frente,
pareceu lembrar de alguma coisa e acrescentou: — Parabéns.
Quando eles saíram, Rachel levantou-se e andou pela sala. Reparou no vitrô
grande, escondido por cortinas esvoaçantes, passou pela sala de jantar, viu a cozinha
bem montada. Evitou passar pela porta do quarto que a moça ocupara, mas abriu
outra, que ficava em frente. Evidentemente era o quarto de hóspedes, com duas
camas estreitas. Junto dele havia o banheiro, que também servia à suíte principal.
Rachel notou o bom gosto da decoração. Escolha feminina? Uma dor profunda
apertou-lhe o coração. O dia tinha começado tão bem, sentia-se tão feliz, sonhara
com momentos de deliciosa intimidade e agora...
Chegou junto da janela, olhou para fora. Não conseguiu ver nada. Estava muito
escuro, tal como sua vida. O que sentia? Ciúmes? Decepção? Desespero? Tudo junto!
Damon a chamou da sala, mas ela não respondeu. Ao descobri-la ali,
aproximou-se depressa, envolvendo-a pelos ombros. Ela se retesou, mantendo-se
distante.
— Nem sei o que dizer, Rachel.
— Prefiro mesmo que fique quieto. — Ela fez uma pausa. — Este quarto é muito
bonito. Vou dormir aqui hoje, se não se incomoda.
Damon a olhou longamente antes de responder:
— Se é o que deseja... Vou pegar sua mala.
Ele voltou logo em seguida, colocou a bagagem no chão e se adiantou, querendo
abraçá-la. Rachel recuou, assustada.
— Sei que merece uma explicação, querida.
— Não, Damon, por favor. Estou muito cansada e não quero ouvir nada.
— Está bem. Boa noite.
Damon retirou-se, fechando a porta. Ela ficou parada no meio do quarto, com o
coração pesado, a mente confusa.
Era sua noite de núpcias e ia passá-la sozinha!

Rachel nem quis colocar a camisola que tinha comprado especialmente para
essa noite. Quando a escolhera, havia pensado somente em Damon e na experiência
que iam compartilhar. Colocou outra, sem maior significado.
Deitou-se e ficou virando de um lado para o outro. Não conseguia dormir. Se,
pelo menos, tivesse trazido um livro na mala! Lendo, cansaria os olhos e poderia
cochilar. Mas quem ia se lembrar de levar um livro na lua-de-mel?
Cansada de ficar rolando na cama, acabou levantando. Abriu as gavetas da
mesinha-de-cabeceira, da cômoda, em busca de alguma coisa para ler. Não
encontrou nada.
E se escrevesse um poema? Mas... onde encontrar a inspiração? Se conseguisse
pôr suas idéias em palavras, teria apenas um libelo de revolta, de dor, de angústia.
Foi até o armário e continuou sua procura. No fundo de uma gaveta encontrou
alguns folhetos que falavam sobre vários lugares turísticos da Nova Zelândia. Ótimo,
já tinha com que ocupar a mente perturbada.
A propaganda mostrava lugares maravilhosos e românticos, praias ao luar,
hotéis de luxo. Também aquilo lhe doía na alma, porque estava sozinha.
Por que aquela mulher tinha que aparecer e estragar sua vida? Tudo teria sido
diferente se a casa estivesse vazia! Ela e Damon teriam trocado carícias, entrado no
quarto, ido para a cama...
Não! Não ia pensar nisso agora. Precisava relaxar e dormir. Na manhã seguinte
pesaria os prós e os contras e então decidiria que atitude tomar. Agora não podia.
Estava vulnerável demais para mexer na ferida recente. Tinha que dar tempo ao
tempo.
Voltou a atenção para os catálogos. Um deles mostrava a região que tinham
atravessado. Falava de Pania, mostrava os três vulcões perigosos, os pinheiros altos,
as pohutukawas em flor.
Pouco a pouco sentiu as pálpebras pesadas. As letras se embaralhavam até que,
finalmente, adormeceu.
Viu-se numa praia muito branca, mas o mar era revolto e bravio. Mãos sem
corpo, muitas mãos, a empurravam para as ondas. Ela se debatia, tentando segurar-
se na areia que escapava por entre seus dedos.
Acabou entrando na água fria e pegajosa, que a envolveu como se fossem
braços gigantescos. Procurou nadar para longe, mas as ondas fortes a
impulsionavam na direção da areia, onde novamente as mãos a faziam voltar ao mar.
Desesperada, olhou para cima. Tinha que haver uma maneira de escapar dali.
Como?
Foi então que do mar emergiu o enorme vulcão Ngauruhoe, expelindo fumaça
branca e espessa que se espalhava por todos os lados, cobrindo o mar com seu manto
alvo.
A fumaça a envolveu e ela se viu presa num redemoinho violento, que a fazia
girar, girar sem parar. Sentiu que seu corpo se elevava, saindo do mar. O que estava
acontecendo? Era sua salvação, a resposta a suas preces?
Tudo ficou nebuloso, sem contornos distintos. Não divisava mais nada, sem
saber para que lado ficava a terra. Ouvia apenas o som longínquo e melancólico do
vento. Sentiu frio e, para seu desespero, notou que estava nua. Cruzou os braços para
esconder o corpo.
Foi subindo no ar, subindo e girando, até que se viu à beira da cratera. Pôs os
pés no chão. Tinha medo! E se caísse dentro do vulcão? Não ia se mexer!
De repente, foi como se tivesse descoberto o Paraíso Perdido. A fumaça
dissipou-se e ela se viu num vale verdejante, cheio de árvores. No centro, um lago
muito azul brilhava ao sol. Flores de jasmim flutuavam no ar perfumado. Pegou
algumas flores e as colocou nos cabelos.
Respirou fundo, encantada com tanta beleza. Seu coração exultava ao se ver em
segurança, naquele lugar adorável. O drama que enfrentara no mar fazia parte do
passado. Aquelas mãos horrendas já não podiam alcançá-la.
Desceu a encosta suave até a água cristalina. Pôs os pés nela e uma sensação
agradável percorreu seu corpo. Estava morna! Acabou mergulhando, nadou bastante
e depois sentou-se numa rocha para secar-se.
Foi então que o viu, alto e atlético, embora suas feições não fossem bem
definidas. Era estranho, porque conseguia enxergar tudo a sua volta com extrema
clareza e nitidez, a não ser o rosto do rapaz, que continuava envolto pela névoa. Mas
seu coração falou mais alto. Sabia que era Damon.
Correu para ele, vibrando de alegria. Já o estava quase alcançando, quando
surgiram dezenas de moças de cabelos pretos tão longos que lhes chegavam até o pé,
e que se agarravam ao rapaz, beijando-lhe a boca, o corpo esguio, os cabelos revoltos.
Ela gritou desesperada. Damon era seu, não podiam roubá-lo! Ainda tentou
lutar pelo homem que amava, mas a fumaça que rodeava o vale tornou-se mais
densa e desceu sobre ela, até engoli-la em seu turbilhão.
Estava novamente sozinha, com frio, consciente de sua nudez e fraqueza.

Rachel acordou banhada em suor. Sentiu-se insegura e desprotegida. Foi para o


banheiro, lavou o rosto e voltou para o quarto, ainda impressionada com o sonho
mau.
As emoções do dia tinham sido fortes demais e o resultado fora esse pesadelo
horrível. Não podia mais pensar em Damon ou naquela mulher que encontraram no
sofá. Precisava descansar e se refazer, para ter forças de raciocinar com objetividade
no dia seguinte. Mas como descansar, sem dormir? E como dormir sem sonhar?
Não leria mais as propagandas. Elas falavam de lugares lindos demais e sua
imaginação ficava à solta. Precisava concentrar-se em outra coisa.
Seus poemas! Por que não? Se os falasse em voz alta, manteria o pensamento
controlado. Começou pelos mais antigos, tentando lembrar-se com precisão de como
os tinha escrito. Recitou um, outro... mais outro, até que eles se confundiram em sua
memória.
Quando os primeiros raios de sol atravessaram a veneziana e vieram pousar
nos cabelos dourados, Rachel dormia profundamente.

CAPÍTULO XI

Rachel abriu os olhos devagar, sem se lembrar direito de onde se encontrava.


Aos poucos reparou no quarto e os acontecimentos da véspera então voltaram,
dolorosos. O casamento, a viagem... e a chegada, o encontro com aquela mulher. Que
tremenda desilusão!
Tinha sido muito tonta e agira como uma adolescente inexperiente, pensou ela,
fechando de novo os olhos. A começar, por ter mencionado casamento, quando
Damon pensava apenas numa aventura sem conseqüências. Reconhecia que ele
estava atraído por ela e que talvez por isso tivesse se oferecido para tirá-la de casa,
mas... daí até o casamento, a diferença era muito grande.
Fora ingênua demais em declarar que o amava. Que bobagem! Embora Damon
a tivesse beijado, em momento algum havia dito que também estava apaixonado.
Não era um sinal evidente de que a única coisa que desejava era sexo?
Só agora ia pondo os acontecimentos em seus devidos lugares. Estava explicado
porque Damon insistiu para anunciarem o casamento só no dia seguinte. No fundo,
ele esperava que ela desistisse!
Outro indício significativo foi ele ter concordado com tia Anne em esperar duas
semanas para a cerimônia. Necessitava desses dias para se livrar da amante, antes de
levar a esposa para casa. Assim mesmo, Paula não tinha se mantido afastada.
Não sabia muita coisa sobre Damon, nem sobre seu modo de agir, preferências,
vida anterior, nada! O marido possuía uma personalidade complexa, com mil
facetas, das quais ela só conhecia umas poucas.
Estava preocupada com o futuro. Como continuar vivendo com um homem,
embora seu marido, se não o conhecia direito? Sentiu raiva de si mesma. Gostaria de
ser mais velha e vivida para enfrentar Damon em igualdade de condições.
Rachel estava tão absorta em seus pensamentos que custou a ouvir as batidas
na porta. Quando Damon entrou, trazendo uma xícara na mão, ela se sentou,
segurando as cobertas bem junto do corpo.
— Eu lhe trouxe um pouco de chá. — Ele aproximou-se da cama.
— Obrigada. — Ela manteve-se na mesma posição, sem estender a mão.
— Pode largar o lençol que não vou saltar em cima de você.
— Eu sei.
Ela pegou a xícara e as cobertas caíram para o lado, revelando-lhe o corpo
coberto pela camisola de cetim, de alças estreitas.
— Beba, enquanto está quente.
Rachel tomou um gole, sem coragem de encará-lo.
— Foi muito gentil, Damon — murmurou.
— Pretendo ser um marido amável e cheio de consideração, não sabia? — Ele
esperou que terminasse de beber e depois pôs a xícara na mesinha-de-cabeceira.
Imediatamente Rachel voltou a se cobrir, enquanto ele se sentava a seu lado.
Com muito carinho, Damon pegou-lhe a mão e a beijou de leve.
— Não... por favor...
Ele a soltou, mas insistiu para que o encarasse. Rachel observou os olhos
brilhantes e cheios de emoção, mas estava confusa demais para decidir o que fazer.
— Já sei. Quer primeiro as explicações, não é?
Ela ficou em pânico. Não era nada disso! Explicações serviriam apenas para
humilhá-la mais! Nada poderia mudar o fato de que Damon não a amava e só a
queria fisicamente, sem o menor sentimento no coração.
— Não quero ouvir você, Damon. Não estou interessada. — A raiva a dominou.
Ainda bem, assim teria mais forças do que se começasse a chorar.
— Se isso quer dizer que confia em mim, fico muito feliz. — Damon sorriu.
Seria maravilhoso se pudesse confiar sem restrições. Amava-o tanto! No
entanto, não encontrava nele uma expressão, um gesto, uma palavra que lhe desse a
tão necessitada segurança. Só via o sorriso sarcástico, o olhar malicioso, a caçoada
iminente, em lugar do sonhado amor e carinho.
Era capaz de analisar os sentimentos de Damon? Não, porque pouco tinham
convivido desde que resolveram se casar. Podia basear seu julgamento em alguns
telefonemas rápidos ou demonstrações de atração física?
— Mal o conheço, Damon. Como pode esperar que eu acredite em suas...
desculpas?
— Não vou lhe apresentar desculpas, mas fatos.
— Fatos? Então consegue arranjar um motivo para encontrarmos sua amante
aqui, em nossa noite de núpcias? — Rachel estava furiosa.
— Ex-amante, não se esqueça. Agora vai me deixar contar tudo?
— Não! — Rachel se virou, escondendo o rosto no travesseiro e tapando os
ouvidos num gesto dramático. — Vá embora! Me deixe em paz!
— Rachel... — Ele segurou-lhe os pulsos e a fez virar-se. — Como quiser. Não
vou obrigá-la a escutar o que não quer. Vamos ter um casamento bem excêntrico,
mas...
— Não teremos casamento nenhum, ponto final.
— O que quer dizer com isso?
Rachel engoliu em seco, a raiva lhe dando forças para continuar. Respondeu
com voz firme:
— Vou embora.
— Vai coisa nenhuma! Já esqueceu do que prometeu no altar? "Na alegria e na
tristeza, para amar e respeitar até que a morte nos separe.''
— Eu sei, mas nem temos um casamento de verdade.
— Como não?
— Ainda não foi consumado e por isso posso conseguir uma anulação.
— Ou... podemos torná-lo verdadeiro. — Damon chegou mais perto, ignorando
o medo nos olhos dela. Tocou-lhe os lábios muito de leve, mas o contato a fez reagir
imediatamente. Virou a cabeça, procurando escapar.
— Não quero!
— Está sempre dizendo não, minha querida. Não tem receio de se tornar
monótona? — Continuou a tocá-la na face, no pescoço, nos lábios. Num instante
estava deitado ao lado dela, seu peito pressionando os seios delicados.
Rachel tentou dar-lhe um pontapé, mas a coberta atrapalhou suas pernas.
Ainda quis resistir, mas as carícias tornaram-se mais insistentes, despertando-lhe
um desejo intenso.
Começou a corresponder, incapaz de manter-se distante. Juntou-se mais a ele,
passou a mão nas costas largas, sentiu os músculos fortes, o calor da pele morena. Já
não pensava mais, era toda emoção.
— Está gostando, não é? — perguntou ele com ironia.
Teve vontade de matá-lo. Esse homem não possuía sentimentos?
— Por que deseja saber? Para comparar com o que Paula gosta?
Os olhos cinzentos se tornaram duros como o aço e ele a beijou novamente,
agora com selvageria. Rachel reconheceu que tinha errado. O marido estava sendo
gentil e carinhoso, até que ela mencionara o nome da amante.
Era preferível que ele se tornasse brutal, porque assim teria mais forças para
repeli-lo. Era horrível saber que, com o mais leve toque, Damon podia acendê-la,
excitá-la tanto que...
Ele que ficasse zangado e durão, não tinha importância. Poderia até submetê-la
pela força, mas seria uma vitória amarga. Se deixasse que Damon a acariciasse com
ternura, acabaria se entregando e não responderia mais por seus atos. E seu
orgulho? Ele se perderia, partido em mil pedaços.
Quando o beijo terminou, Rachel passou a língua pelos lábios machucados.
Estava com a respiração curta, o corpo em fogo. Levantou a mão, disposta a apagar
com um tapa o sorriso sarcástico daquele rosto. Damon reagiu em tempo de impedi-
la.
— Pare de lutar, Rachel.
— Não! — Tentou arranhá-lo, mas Damon apertou-lhe as mãos com mais força,
até que ela gemesse de dor.
Com calma, ele abaixou a alça da camisola, expondo-lhe o seio firme, para
depois inclinar a cabeça e tocar a pele macia. Colocou o corpo sobre o dela e, apesar
da roupa, o calor do sexo dele a alcançou, fazendo-a estremecer.
Rachel quase perdeu o fôlego, assustada, desejando e temendo ao mesmo
tempo, dividida entre sensações contraditórias. Tinha a garganta seca, mas
murmurou:
— Por favor, Damon... pare!
— Não quero parar.
— Damon, por favor. Vou odiar você!
Ele levantou a cabeça.
— Que diferença faz, se vai me abandonar? — Mais uma vez ele se apossou da
boca da esposa. Estava sem paciência, exigente, fazendo-a abrir os lábios, invadindo-
a com sua respiração, a língua ativa explorando regiões sensíveis, levando-a aos
extremos do prazer.
Ela já não agüentava mais. Queria sucumbir, entregar-se, gozar as carícias
alucinantes. Mas ainda se controlou e, com o resto de suas forças, mordeu levemente
o lábio de Damon, obrigando-o a se afastar. Ele olhou-a com um misto de raiva e
admiração.
— Não faça mais isso, Damon! — Nem ela mesma poderia dizer se era uma
súplica ou uma ameaça.
— O que acontece se eu parar? Você fica?
Ela hesitou, antes de responder:
— Fico, se prometer que não vai me tocar.
— Nada feito, Rachel.
Um medo tão grande apareceu no rosto dela que Damon passou a mão nos
cabelos, num gesto de desânimo. Chegou muito perto, rosto contra rosto, para
murmurar em seu ouvido:
— Como você é criança! Não posso prometer que não vou tocá-la, porque isso
seria impossível. No entanto, tem minha palavra de que não vou violentá-la.
Estamos combinados?
Aliviada, ela concordou com a cabeça.
— Vai ficar, então? Promete?
— Prometo.
Damon sorriu e a beijou, agora com delicadeza e carinho. Rachel fechou os
olhos, deixando-o apossar-se de sua boca, mas sem corresponder. Seu corpo
permaneceu rígido e imóvel sob o dele e, quando Damon se levantou, ela cobriu o
rosto com o braço, sem querer olhá-lo.
Damon puxou-lhe o braço com ternura, obrigando-a a abrir os olhos e encará-
lo. Por que Damon tinha insistido para que ficasse? Orgulho? Ou ela representava
um desafio que ele queria vencer?
Tudo bem, aceitava a batalha. Se Damon pensava que ia vencê-la com seu
charme e sensualidade, estava muito enganado. Ela ia sair vitoriosa. Apertou os
lábios, num gesto de teimosia.
— Não faça essa cara, Rachel. Parece querer me comer vivo. Não é o fim do
mundo. Apenas tivemos nossa primeira briga de casados, só isso. — Ele pegou a
xícara e saiu do quarto, deixando a porta aberta.
Da cama, Rachel ouviu o barulho da louça e percebeu que ele estava zangado.
Não tinha importância, ela também estava. Não tinha sido uma simples briga e os
dois sabiam disso.
Rachel levantou-se, tomou banho e se vestiu. Arrumou a cama com cuidado,
esticando bem a colcha, sem deixar uma ruga no tecido pesado. Só então se deu
conta de que estava apenas adiando o momento de encarar o marido.
Já estava na sala quando Damon a chamou.
— O que gostaria de fazer hoje?
— Não sei. — Embaraçada, deu as costas a Damon, fingindo que apreciava a
paisagem pela janela.
— Vamos sair? Pensei em levá-la para conhecer a cidade.
— Está bem.
— Rachel, que tal fazer uma trégua? Vamos aproveitar o passeio, descansar... —
Depois pensaremos... nos problemas.
Em silêncio, ela concordou com um gesto de cabeça. Damon tinha razão. Só o
tempo poderia resolver o relacionamento dos dois.
Foram primeiro ao monte Éden, um vulcão extinto. Do alto, ela teve uma boa
visão de Auckland, do porto e da ilha Rangitoto, que se erguia nas águas tranqüilas.
O vento forte batia contra o rosto dela, desmanchando seus cabelos. Damon a
abraçou, fazendo-a virar-se para ver melhor alguns marcos históricos. Rachel
estremeceu e depois lançou-lhe um olhar ansioso, rezando para que ele achasse que
era por causa do ar frio. Andaram pela cratera coberta de capim e depois desceram,
de volta ao carro.
Foram para o porto, onde tomaram um barco para uma das ilhas, Takapuna.
Correram pela praia iluminada ao sol de inverno e observaram as crianças que
brincavam na areia enquanto outras, mais corajosas, entravam na água fria.
Na viagem de volta para o continente, encostaram-se no gradil do barco,
seguindo o rastro branco de espuma que ele deixava no mar azul. Várias outras
embarcações cruzavam com eles e os passageiros trocavam acenos alegres.
— Está se divertindo? — perguntou Damon.
— Muito.
Damon abraçou-a e vagou o olhar pela água. Rachel observou seu perfil, o nariz
reto, os lábios cheios, o queixo voluntarioso. Ele era seu marido e ao mesmo tempo
um estranho. Poderia, um dia, dizer que o conhecia?
Almoçaram num restaurante da rua Queen, onde os primeiros colonizadores
haviam se estabelecido. Damon pediu peixe feito na brasa com um molho especial de
ervas.
Rachel estava cada vez mais encantada com o marido. Achava incrível como ele
parecia à vontade em qualquer ambiente, fosse na fazenda dos Langholm, usando
roupa emprestada, ou naquela cidade grande. Ele sempre sabia como agir e
inspirava-lhe uma tranqüila sensação de segurança. Poderiam até ter se entendido...
se não fosse a intromissão de Paula.
Em seguida foram ao museu, rodeado por um jardim enorme e bem cuidado.
Rachel admirou a réplica de uma rua da época dos pioneiros, suas lojas, casas,
mobília e cerâmica. Depois visitaram uma casa dos índios maoris, entraram numa de
suas canoas, lindamente entalhada, viram objetos sagrados e vestimentas religiosas.
Damon era um guia excelente. Contava as lendas da região, explicava o uso de
diversos utensílios, despertando-lhe o interesse e fazendo-a sorrir muitas vezes.
De volta à rua, admiraram as vitrines de diversas lojas e entraram numa para
que Rachel comprasse um cartão postal que queria mandar aos tios. Havia de tudo
espalhado pelas várias mesas e prateleiras: conchas estranhas, pássaros empalhados,
flores secas, artigos típicos.
Ela observou tudo, encantada, e acabou encontrando uma corrente de prata
com um pendente de pedra verde. Era um trabalho simples, delicado, de rara beleza.
— Gosta desse? — quis saber Damon.
— É lindo! Veia como a pedra reflete a luz em todas as direções.
Damon pegou a jóia, examinou-a e pediu ao vendedor que a embrulhasse.
Guardou-a no bolso, sem uma palavra. De volta ao carro, ele propôs:
— Vamos jantar num restaurante pequeno, mas famoso por sua comida exótica.
Que tal?
— Gostaria muito.
— Só que precisamos primeiro passar em casa e trocar de roupa. Eles exigem
traje social.
Em casa, Rachel ficou em dúvida sobre o que usar. Não tinha nenhum vestido
chique... Será que o lugar era muito sofisticado?
— Ponha o vestido de casamento — aconselhou Damon. — Ele é bonito e
formal.
Não era bem o que ela queria, mas para que contrariá-lo? Foi para o quarto e se
arrumou, deixando os cabelos caírem naturalmente sobre os ombros. Pôs um pouco
de batom, uma sombra clarinha e estava pronta.
Damon a esperava na sala. Assim que a viu foi para junto dela, tirou o pendente
do bolso e colocou-lhe a jóia no pescoço, separando os cabelos loiros para apertar o
fecho.
— Este é seu presente de casamento.
— Obrigada, gostei demais, mas não precisava me dar nada.
— Há uma outra maneira de agradecer, mais apropriada, minha querida, mas
posso esperar até mais tarde.

O jantar foi perfeito, à luz de velas. A comida era excelente e o ambiente fino e
aconchegante. Entre um prato e outro, foram dançar na pista circular. Damon a
segurou muito perto, mas sem intimidade. Conversaram bastante e ela voltou a ver o
homem interessante que tinha conhecido no verão e que a conquistara.
Tomaram vinho, mas Rachel não abusou. Lembrava-se de que na viagem a
Auckland tinha ficado sonolenta e fazia questão de permanecer alerta.
Estavam na sobremesa quando o show começou. Uma moça bonita, usando um
vestido colorido e bem rodado, com os pés descalços, apresentou-se cantando
músicas folclóricas, enquanto outras dançavam ao som da melodia simples e
contagiante. Entusiasmada, a audiência batia palmas, acompanhando o ritmo.
Rachel também logo se juntou à alegria geral
O espetáculo terminou sob aplausos merecidos. Rachel se voltou para o marido,
com os olhos brilhantes.
— Maravilhoso!
— Fico contente que tenha gostado. Há muito mais para ver e aprender, mas
vou lhe dar tempo para se acostumar a... novas experiências.
Ela ficou embaraçada. Damon podia estar se referindo ao show, mas também a
muitas outras coisas, mais pessoais e secretas.
Dançaram outras vezes, tomaram café, conversaram, aproveitando o ambiente
agradável. Não sentiram o tempo passar e já era mais de meia-noite quando
resolveram ir embora.
Ao voltarem para casa, quase não falaram. Rachel ficou novamente tensa.
Desceu rapidamente do carro, mas teve que esperar que o marido abrisse a porta
com a chave dele. Seguiu na frente e foi direto para o quarto que ocupava mas, antes
de entrar, ainda se virou.
— Obrigada pelo dia perfeito, Damon.
Sem responder, ele a enlaçou pela cintura, puxando-a para junto de si. Rachel
ainda procurou se soltar, mas o marido a manteve firme entre os braços.
— Não vai escapar, minha querida. Vou cobrar seu agradecimento pelo
presente que lhe dei.
Damon segurou os cabelos sedosos e forçou-a a erguer a cabeça e olhar direto
em seus olhos. Depois, beijou-a com sofreguidão e urgência, esperando que ela
correspondesse.
Rachel sentiu um calor estranho surgir em seu estômago e se espalhar pelo
corpo, deixando-a mole, sem forças, ávida de paixão... Teve que se controlar para
não demonstrar o que sentia, mas não podia deixar que o marido percebesse o
quanto a excitava.
Damon a soltou de repente e ela quase perdeu o equilíbrio. Respirou aliviada e
entrou depressa no quarto, fechando a porta com a chave. Encostou-se no batente,
procurando se refazer.
Ficou muito tempo deitada, sem sono. Via a luz acesa da sala pela fresta sob a
porta. Atenta a qualquer movimento, esperou, pronta para reagir se ele ousasse
perturbá-la.
Depois de um longo tempo, concluiu que nada ia acontecer. Estava calma,
mas... por que sentia-se frustrada? Por que ansiava que ele a procurasse de novo?
Cansada, acabou dormindo.

CAPÍTULO XII

Dias mais tarde, Damon levou-a para conhecer Carl Watkins.


Rachel estava apreensiva com o encontro, imaginando o editor como uma
pessoa superior, distante, assustadora. Por isso, surpreendeu-se ao se ver diante de
um homem de meia-idade, quase careca, com um olhar bondoso e afável. Gostou
dele desde o primeiro instante e o sentimento foi recíproco.
Depois das apresentações, Carl Watkins levou-a para sentar-se na poltrona de
couro em frente de sua mesa e tratou-a com extrema gentileza.
— Seus poemas lhe fazem justiça, Rachel. São tão encantadores quanto você. —
Carl piscou os olhos pequenos e alegres. — Sabe que acabou fisgando o solteirão
mais cobiçado de Auckland?
Ela sorriu, bastante embaraçada. O editor precisava começar a conversa
mencionando justamente o casamento?
— E você, malandrão — Carl agora falava com Damon. — Manteve tudo em
segredo, não foi? Fez muito bem! Com uma noiva tão tentadora, tinha que se
precaver.
Watkins estava enganado; Damon não havia feito segredo para escondê-la de
outros homens! O editor não conhecia a vida dele? Não sabia da existência de Paula
e, provavelmente, de tantas outras?
Aquele não era o momento para pensar nisso. Afinal, era mulher de Damon e
precisava agir de acordo. Sorriu e olhou para o marido com carinho, esperando que o
editor a visse como uma esposa apaixonada.
Carl Watkins começou a falar sobre o livro de poemas. Mostrou o desenho da
capa e a prova das páginas impressas. Rachel esqueceu mágoas e ressentimentos
para mergulhar naquele mundo inteiramente novo. Parecia incrível que aquilo lhe
estivesse acontecendo. Nem acreditava que estava dando tudo certo: seu livro ia ser
publicado!
Ainda tomaram café, a conversa se prolongou, até que, finalmente, o casal
despediu-se.
Lá fora, Rachel não escondeu sua alegria. Os olhos brilhavam como se
estivessem cheios de estrelas.
— Está feliz, querida? — perguntou Damon, segurando-a pela cintura para
atravessarem a rua.
— Nem pode avaliar quanto! Acha que sou vaidosa demais?
Ele riu divertido.
— Vai sentir-se ainda melhor quando ver o livro publicado.
Entraram no parque, passando entre garotos que brincavam com uma bola, e
foram se sentar num banco no meio do gramado muito verde, de frente para um
laguinho onde pombos buscavam água para beber. Por um instante se ocuparam em
observar os pássaros.
— Vou buscar uns sanduíches. Não está com fome, Rachel? Ou prefere ir a um
restaurante?
— Não, aqui está ótimo.
Enquanto ele se afastava, Rachel reparou em seu corpo bem proporcionado, os
quadris estreitos, os ombros largos. Damon gostava dela, tinha certeza. Não era
amor mas, além da atração física, existia algo mais. O marido preocupava-se com ela,
ficava feliz em lhe proporcionar alegria. Não era muito, mas quem sabe não
significava um começo? Queria conquistar Damon, desejava ser amada por ele... Se
ao menos soubesse como agir!
Ele voltou trazendo os sanduíches, pedaços de torta de maçã e duas latas de
refrigerante. Serviu-a com gentileza e, enquanto comiam, Rachel voltou ao assunto
do livro.
— Damon, você também ficou eufórico ao saber que iam publicar seu primeiro
romance?
— Claro que sim.
Rachel lembrou que ele lhe contara que a noiva o tinha abandonado nessa
ocasião. Quantas outras mulheres tinham passado pelos braços dele, depois disso?
Provavelmente muitas... Será que também ela seria deixada de lado, quando o
interesse terminasse? Ao pensar nessa possibilidade, uma sombra desceu-lhe sobre o
rosto. De repente, a comida ficou sem sabor, uma dor lhe feriu o coração. Mas...
Damon tinha casado com ela! Isso não a tomava especial? E o marido não havia
insistido para que ficasse com ele, embora o casamento não passasse de um papel
assinado? Então... então...
Não! Mesmo casado, Damon ainda a considerava criança; continuava a tratá-la
de modo paternalista, condescendente... Era jovem e ingênua demais para que ele a
desejasse. Não tinha chance nenhuma.
— Está muito pensativa, Rachel. Quer um pedaço de torta? — ofereceu Damon,
tirando-a de seus devaneios.
— Hum? Ah... quero sim, obrigada.
Damon partiu o resto do pão em migalhas e as atirou para os pombos. Num
instante, havia dezenas deles por ali, junto de seus pés, nos braços, na cabeça.
— Parece São Francisco de Assis — comentou ela sem conter o riso.
— Gosto muito de pássaros, principalmente quando estão em liberdade. É
maravilhoso vê-los voar na amplidão do céu.
Por algum tempo distraíram-se com os pássaros. Quando o pão terminou,
Damon levantou-se.
— Vamos embora?
Ela o acompanhou. Saíram do parque, andaram pela rua Queen, até que
Damon parou diante de uma loja refinada. Pegou-a pela mão e entraram.
— Por que viemos aqui? — quis saber Rachel.
— Para você comprar umas roupas.
Foram para o elevador e só então Damon notou a expressão aborrecida da
esposa, as lágrimas umedecendo-lhe os cílios.
— O que aconteceu? — Ele a levou para um canto afastado, longe dos outros
clientes da loja.
— Sente vergonha de estar comigo, não é? Onde já se viu um grande escritor ao
lado de uma garota do interior, que nem sabe o que vestir? O que acha que eu
deveria fazer? Aconselhar-me com Paula? Ela é bastante elegante para seu gosto?
Damon não respondeu. Apenas segurou-lhe a mão com força e a levou de volta
para a rua. Andava com passos largos e Rachel tinha que se esforçar para
acompanhá-lo. Foram até o carro no mais absoluto silêncio e chegaram em casa
ainda sem trocar uma palavra.
Rachel entrou na frente e imediatamente correu para o quarto. Damon fechou a
porta e a alcançou.
— Rachel!
Ela parou, sem se virar.
— Quero ir para meu quarto.
— Se for, vou atrás. E não me responsabilizo pelo que possa acontecer.
— Não me lembro de ter prometido obediência, Damon!
— Prometeu um mundo de coisas que não cumpriu. Quer que a faça lembrar de
algumas?
Involuntariamente, ela deu uns passos para trás. Não ia deixar-se intimidar,
mas era difícil sustentar o olhar frio do marido. Damon tirou a bolsa e o casaco de
suas mãos e os atirou numa poltrona. Depois a fez sentar-se no sofá.
— Agora ouça bem. Não tenho vergonha de você ou de suas roupas. Não ligo a
mínima para o que usa e não me faz a menor diferença se está coberta de seda ou
com um saco de batatas. Pensei apenas em lhe comprar alguma coisa bonita, que
você gostasse. Era um presente, uma maneira de deixá-la feliz.
Rachel evitou olhá-lo, mas percebeu que ele se aproximava mais, inclinando-se
sobre ela.
— E nunca mais mencione o nome de Paula, entendeu bem? Por duas vezes
quis dar-lhe explicações e você recusou. Agora não vou dizer mais nada. Terá que
aprender a conviver com isso.
A pergunta, insistente e óbvia, ficou na ponta da língua, mas Rachel não a
pronunciou. Para quê? Sabia muito bem o que Paula tinha ido fazer ali.
Damon levantou-se e saiu de casa. Rachel quase o chamou, mas se controlou
em tempo. Continuou sentada por tanto tempo que perdeu a noção das horas.
Quando se deu conta, estava com cãibras nas pernas, seu corpo tremia, sentia-se
gelada até os ossos. Foi ligar o aquecimento central e ainda levou bons instantes para
sentir-se aquecida.
Já havia escurecido. Olhou para o relógio e viu que eram sete horas. Com
certeza Damon não viria jantar. Foi para a cozinha, preparou ovos mexidos e uma
salada e sentou-se à mesa, onde comeu sozinha. Lavou a louça, deixou tudo em
ordem e foi para a sala ver televisão.
Ele ia ficar fora a noite toda? Aonde teria ido? A imaginação de Rachel começou
a funcionar. Estava com Paula ou com alguma outra mulher? Cada vez mais aflita e
angustiada, sentiu a picada amarga do ciúme. Era insuportável pensar em Damon
nos braços da amante, beijando-a, acariciando-lhe o corpo...
Desesperada, esforçou-se para afastar essas imagens. Não, Damon tinha ido à
casa de algum amigo, ou talvez tratar de um negócio importante. Mas... os amigos
não iam achar estranho que ele, recém-casado, não estivesse com a esposa?
O som estridente de pneus guinchando chamou sua atenção. Fixou o olhar na
televisão onde, num filme, havia uma violenta perseguição de carros.
Hipnotizada, ela seguiu as cenas, onde um dos carros dobrava esquinas, subia
calçadas, andava sobre os trilhos do trem, sempre perseguido por outro. De repente,
numa manobra infeliz, o primeiro motorista não conseguiu dominar o volante e o
carro espatifou-se de encontro a uma vitrine. Cacos de vidro voaram para todos os
lados, o carro tombou, rodopiou, acabando de cabeça para baixo, completamente
amassado.
Rachel soltou um grito. E se Damon tivesse sofrido um acidente? Por isso
estava demorando tanto! Que horror! Podia imaginar a polícia chegando, os
enfermeiros carregando seu corpo inerte para colocá-lo na ambulância. Era bem
possível... Tinham brigado, Damon saíra com raiva, poderia ter-se distraído e... e...
Desligou a TV, com raiva. O filme não a estava distraindo, pelo contrário, só
servia para deixá-la mais preocupada. Ia tomar um banho demorado, quem sabe
assim conseguiria se acalmar.
Encheu a banheira e estendeu-se na água quente, permanecendo imersa até
relaxar. Depois vestiu a camisola longa, de cambraia azul-claro, com pequenos
franzidos de renda no decote profundo. Antes de se deitar, foi até a sala pegar um
livro. Já havia reparado na estante, onde encontrara todos os romances de Damon e
também os clássicos da literatura inglesa. Acabou escolhendo um livro do marido.
Voltou ao quarto, fechou a porta e começou a ler. A história era interessante e
logo Rachel se viu envolvida.
Pouco depois de meia-noite, ouviu a porta da frente abrir-se. Imediatamente
ela apagou a luz, pensando que era melhor fingir que estava dormindo. Mas ao se
virar, num gesto brusco, derrubou o livro e o barulho ecoou pela casa silenciosa.
No mesmo instante Damon entrou no quarto e acendeu a luz. Rachel piscou
com a súbita claridade e o viu, bonito e atraente, sem gravata, com a camisa aberta,
deixando ver o peito bronzeado. Novamente o ciúme envenenou-lhe a alma.
— Onde esteve? — perguntou ela sem pensar.
— Parece uma esposa já bem acostumada com a vida conjugal. — Damon riu,
aproximando-se da cama. — Essa camisola transparente faz parte do novo papel?
Como está sedutora! É um convite, querida?
— Não! Eu... deixei as outras na casa de tia Anne. Além disso, não esperava que
entrasse em meu quarto sem bater.
Damon sentou-se e colocou as mãos ao lado do corpo dela, impedindo-a de
fugir.
— Tenho tanto direito de estar aqui como você de perguntar onde estive. Se vai
assumir o papel de esposa e exigir minha presença, também...
— ...também tenho que cumprir meus deveres? — completou ela.
— Essa é uma maneira muito antiquada de pensar no casamento, Rachel. A
maioria das mulheres, hoje em dia, considera a vida sexual um prazer e não uma
obrigação.
— Desde que exista amor, não é?
— Já lhe disse que o amor, muitas vezes, não tem nada a ver com isso! —
Damon forçou a cabeça dela para trás e a beijou, a princípio com brutalidade, mas
depois com tanto carinho e doçura que Rachel apertava os dentes para não ceder.
Num esforço extremo, quis escapar para o lado, mas o marido a fez virar-se e
novamente se apossou da boca trêmula. Ela parou de lutar e concentrou-se em não
corresponder às carícias. Mas era inútil! Seu corpo ardia em fogo, louco para se unir
ao dele, vibrando de desejo...
— Relaxe, querida. Sou seu marido, não lute contra mim.
Rachel teve uma vontade enorme de soltar-se naqueles braços e deixar que ele
a levasse ao paraíso. Queria sucumbir, entregar-se, deixar que ele a possuísse, ser
sua esposa de verdade.
Mas não podia! Precisava pensar! Mas como, se sua mente estava confusa,
perturbada pelo toque inebriante, pelas mãos quentes que seguiam a linha de seu
corpo, procurando pontos sensíveis que lhe davam um prazer tão intenso?
Sentiu os mamilos enrijecerem pelo roçar da língua vibrante, um calor incrível
tomar conta de seus membros, de seu ventre. Não agüentava mais. Desejava Damon
como nunca havia desejado outro homem...
Chegou a erguer as mãos para apertá-lo mais junto aos seios. Queria entrelaçar
os dedos nos cabelos loiros, beijar o peito forte, sentir o gosto da pele morena. Mas a
razão falou mais alto e ela o empurrou.
Damon não ligou. Apenas mudou de posição, estendendo-se ao lado dela,
pronto para prosseguir em sua demonstração de carinho.
— Damon, por que casou-se comigo?
— Ora, sua tolinha, ainda não sabe? — Ele a cobriu com o corpo e beijou-lhe as
faces coradas; depois, apoiou a cabeça no vale entre os seios, fazendo com que ela
percebesse a rigidez de seu desejo.
— Damon, é importante! Preciso saber. Responda, por favor.
— Estou lhe mostrando. Isso não é o suficiente? — Ele beijou-a de novo, seu
corpo pressionando mais o dela.
Rachel suspirou, amargurada. Desejo, era isso que ele demonstrava. Nada mais
do que atração física! De repente, sentiu-se gelada e as sensações maravilhosas
sumiram como por encanto. Seus lábios ficaram frios e imóveis, o corpo inerte.
Damon percebeu a mudança. Devagar, ergueu a cabeça, encarando-a.
— Não está fingindo, não é? Acho que realmente odeia o que estou fazendo,
Rachel.
— É tão difícil de aceitar? — Ela estava azeda e sarcástica. — Por quê? Você se
considera o Grande Amante, O Homem Irresistível?
— Pelo jeito, não. — Damon rolou na cama e levantou-se. — Mas pelo menos
tenho encontrado mulheres mais dispostas a cooperar.
Rachel desviou os olhos, magoada. Reconhecia sua inexperiência, mas ele não
precisava atirar-lhe no rosto que outras mulheres o agradavam mais...
Tudo seria tão diferente se ele lhe desse amor! Se tivesse certeza que Damon a
amava, estaria pronta para entregar-lhe o coração e o corpo... Estaria pronta para
aprender os segredos do prazer, fazendo-o feliz. Mas desse jeito... Sentia-se como um
objeto, como qualquer uma.
Damon pegou as cobertas que tinham caído no chão e as jogou de volta na
cama.
— Não precisa se preocupar, Rachel. Não vou mais incomodar você. — Ele saiu,
batendo a porta com tanta força que o barulho soou na casa inteira.
Sozinha, Rachel enfiou a cabeça sob o travesseiro e chorou. Damon ia procurar
com outras mulheres o prazer que ela se negava a dar? Talvez, se fosse mais vivida,
seria capaz de fazer sexo, mesmo sabendo que Damon não a amava...
Não! Jamais chegaria a se rebaixar a esse ponto. A vida a dois só teria sentido
se houvesse respeito e compreensão, se marido e mulher fossem capazes de superar
os desentendimentos através do diálogo, do afeto...
Por que Damon se casara com ela? Se queria sexo, tinha amantes, todas
dispostas a lhe dar prazer. Por que precisava dela?
Por sua ingenuidade e juventude? Por ser virgem? Por representar um desafio?
Por quê?
As perguntas se atropelavam, sem que Rachel encontrasse uma resposta
sequer.

CAPÍTULO XIII
A primavera chegou, enchendo a paisagem de cores alegres. As árvores
ostentavam folhas novas, a grama adquiriu uma tonalidade verde forte e o ar perdeu
a temperatura gélida. Incrível como o tempo passava depressa, pensou Rachel, antes
de descer para o jardim e colher as primeiras margaridas.
Sentia falta da fazenda. A essa altura, os carneiros recém-nascidos ficavam no
pasto junto das mães, suas caudas minúsculas balançando alegremente. Embora
estivesse vivendo perto do mar, que tanto gostava, Rachel tinha vontade de voltar à
baía Hawkes e rever a família que a criara.
Depois de colher as flores, ela entrou na cozinha para preparar o almoço. Ia
fazer carne assada com molho de cogumelos, prato favorito de Damon. Enquanto
cuidava dos ingredientes, voltou a pensar em sua vida.
O marido era sempre muito amável e gentil, mas nunca mais a tocara, desde
aquela última noite. Partilhavam a casa, as refeições, conversavam, davam risada,
saíam juntos, mas era como se existisse uma barreira entre eles, intransponível. E
nenhum dos dois tomava a iniciativa de quebrá-la.
Por seu lado, Rachel se esforçava por não despertar críticas. Cuidava da casa
com carinho, preparava todos os pratos de que Damon mais gostava, mantinha-se
bonita e bem-arrumada. Era o mínimo que podia fazer, já que não era uma esposa de
verdade.
Damon aceitava esse tipo de convivência sem comentários. Por três ou quatro
vezes receberam amigos para jantar e ele não escondeu seu orgulho ao ouvir os
elogios dos convidados sobre a mesa bem-arrumada, a comida deliciosa, a esposa
encantadora. Mais tarde, sozinhos, ele agradeceu a cooperação de Rachel, elogiando-
a também. Um domingo, foram visitar a irmã dele, Frances.
Ela os recebeu muito bem e não pareceu notar nenhum problema entre os dois.
— Você agiu na surdina, Damon — comentou Frances. — Manteve seu namoro
em segredo e só me contou sobre Rachel depois que estavam casados!
— Não fiz segredo nem resolvi casar de repente — defendeu-se Damon. —
Conhecia Rachel há alguns meses e, quando decidimos nos casar, não havia motivos
para esperar mais nada. Não é verdade, querida? — ele se voltou para Rachel.
— É, sim. Até fiquei triste por Damon concordar em adiar o casamento por
duas semanas, quando, por mim, não teria demorado nem mais um dia. — Com o
canto dos olhos, ela notou que Damon apertava o braço da cadeira com força. Queria
dizer que as lembranças também o perturbavam...
Passaram um dia muito agradável. Rachel gostou demais da cunhada e do
marido dela. Poderiam tornar-se bons amigos, tinha certeza. Pena que precisasse
manter-se atenta, sem dar nenhuma escorregadela, para que Frances não notasse
que seu relacionamento com Damon era tão estranho.
Quando voltaram para casa, no carro, Rachel ficou espantada ao ouvir o marido
dizer:
— Obrigado.
— Pelo quê?
— Por ter fingido diante de minha irmã.
— Nossos problemas devem ficar dentro de casa, não acha?
— Tem razão. Gostou de minha família?
— Muito. Sua irmã é bem diferente de você.
— Ora, muito obrigado! — respondeu ele com ironia.
— Damon, não veja uma segunda intenção em tudo que digo! Você sempre
torce minhas palavras!
— Acha mesmo? Então entendi mal seu olhar acusador, quando contou que eu
tinha insistido em esperar semanas até o casamento? Pelo menos, foi isso que
deduzi.
— Falei a verdade, não foi?
Damon resmungou baixinho e cortou a conversa, concentrando-se na estrada.

Rachel estava fazendo compras quando viu a foto de Pauta Winfield na porta de
um teatro. Ficou chocada. Há muito tempo não pensava nela! Parou, observou o
rosto bonito e leu os cartazes.
Então Paula era atriz! Estava ali numa curta temporada, vi vendo o papel
principal numa peça de sucesso. A lotação do teatro já estava vendida para as
primeiras semanas.
Daí para a frente, várias vezes, Rachel esbarrou com notícias sobre a rival.
Folheando uma revista, encontrou uma reportagem onde um famoso diretor de
televisão afirmava que em breve levaria ao ar uma novela com a conhecida Paula
Winfield.
No jornal de domingo encontrou mais notícias. Paula era considerada a artista
de maior talento dos últimos anos. Curiosa, Rachel leu a entrevista toda. Paula
respondia às perguntas com inteligência e desenvoltura. Dava a impressão de ter
uma personalidade interessante, aliada a muito esforço e dedicação ao trabalho.
Em determinado momento a atriz ressaltava que havia voltado ao palco com
muita garra, depois de "um longo relacionamento, já terminado", e que pretendia
devotar todo seu tempo à carreira em ascensão.
Rachel parou de ler, pensativa. Ela estaria se referindo a Damon? Com certeza.
O caso havia mesmo terminado? Procurou saber a data em que a novela iria ao ar.
Não queria perdê-la por nada do mundo.

Numa segunda-feira, Damon saiu depois do jantar, como normalmente fazia.


Nunca comunicava aonde ia, nem Rachel ousava perguntar. Assim que ele fechou a
porta, ela ligou a TV. Era o grande dia. Precisava ver a atuação de sua rival.
Paula estava mais linda que nunca e viveu seu papel muito bem, personificando
uma mulher decidida e sensual que punha sua carreira, como presidente de uma
firma de propaganda, acima de todo o resto.
Rachel ficou impressionada. Apesar de sentir uma antipatia natural por Paula,
reconhecia sua capacidade. Depois de observar-lhe o desempenho, só podia bater
palmas. Ela era uma atriz fenomenal!
Desligou a televisão e foi para o quarto. Ainda leu durante algum tempo antes
de apagar a luz.
Mas não dormiu. Todas as noites era a mesma coisa. Embora cansada, só podia
conciliar o sono depois de ouvir o barulho da porta, indicando que Damon havia
chegado. Na manhã seguinte estava muito mais abatida e esgotada do que ele.
Seu décimo nono aniversário se aproximava. Damon se lembraria? Achou que
não, quando ele disse que tinham sido convidados para uma festa nessa mesma data.
— Mas primeiro vamos jantar fora, para comemorar seu aniversário. Não faz
mal se chegarmos tarde à festa.
— Que bom! Pensei que ia esquecer!
— Como poderia? — Damon sorriu, com os olhos nos lábios de Rachel.
Ela corou. Recordou os dezoito anos, quando Damon a beijara pela primeira
vez. Reviveu o contato emocionante, a noite bonita e perfumada de jasmins... Que
saudade!
No dia do aniversário Rachel preparou-se com o maior cuidado, usando um
vestido vaporoso, de musselina verde-clara para combinar com o pendente que
Damon lhe dera. A saia, levíssima, tornava sua figura ainda mais frágil e delicada. O
corpo era justo e o decote redondo delineava bem os seios pequenos. Colocou
sandálias de salto alto, deu uma última escovadela nos cabelos e olhou-se no
espelho.
— Acho que estou bonita. Espero que Damon tenha a mesma opinião.
Foi para a sala, onde o marido a esperava, muito elegante em seu smoking. Ele
saíra de manhã, muito cedo, e só agora se viam.
— Parabéns, tudo de bom para você. — Damon deu-lhe um beijo rápido no
rosto e depois lhe entregou uma caixinha embrulhada em papel de presente.
Rachel abriu o pacote, curiosa, e soltou uma exclamação ao encontrar um par
de brincos de pérolas e esmeraldas.
— É... é lindíssimo! Obrigada, Damon.
— Gostaria que os usasse hoje. — Ele aproximou-se afastando-lhe os cabelos
perfumados para colocar um dos brincos. Rachel estremeceu sob seu toque, já
desacostumada a estar tão junto dele.
Depois de colocar-lhe o outro, ele a levou até o quarto, para que se visse no
espelho.
— Gostou?
— Demais! Nunca vi uma jóia tão linda! — Num impulso, Rachel deu-lhe um
beijo no rosto.
Damon não se mexeu. Permaneceu rígido e não retribuiu a carícia. Quando a
esposa se afastou, ele apenas murmurou:
— Pérolas lhe ficam muito bem. Elas também pertencem ao mar, como você.
O jantar foi perfeito. Talvez pela comida exótica, pelo vinho, a verdade é que
não havia tensão entre os dois. Rachel estava natural, falava e se divertia como nos
velhos tempos em que Damon lhe fazia companhia na praia da baía Hawkes.
Foram para a festa e pareceu lógico que Damon pusesse a mão em seu ombro
ao apresentá-la à dona da casa e aos outros convidados.
Rachel alegrou-se ao ver Carl Watkins, um rosto conhecido e amigo no meio
daquele mar de caras novas. Já haviam se encontrado diversas vezes e uma amizade
sincera tinha nascido entre os dois.
— Não deveria lhe falar de negócios no meio de uma festa — disse Carl,
piscando os olhos, como era seu costume. — Mas já marcamos a data da publicação
de seu livro. Ele estará pronto pelo Natal.
Aquela boa notícia foi o ponto culminante de um dia delicioso. Rachel se
descontraiu ainda mais, perdeu a timidez, aproveitou o ambiente informal e até
gostou da atitude possessiva do marido, que não a largava.
No meio da conversa, ele mencionou que nesse dia comemoravam o aniversário
da esposa. Foi o suficiente para que Carl contasse à anfitriã, que no mesmo instante
começou a cantar o "Parabéns a você", acompanhada por todos os convidados.
Rachel ficou embaraçada, mas aceitou a homenagem, exultando de felicidade.
No silêncio que acompanhou o fim da canção, ouviu-se uma voz pausada e,
certamente, inconfundível:
— Desculpem-me por chegar tão tarde, amigos, mas só terminei o espetáculo
agora.
— Paula!
A anfitriã recebeu a atriz com um abraço, levando-a para a sala, onde todas as
cabeças se viraram para admirar a linda morena, que usava um vestido vermelho de
cetim, tão colante que se aderia ao corpo como uma luva.
— Quem está comemorando o aniversário?
— A mulher de Damon. Vou apresentá-la, venha. — A dona da casa levou-a
para junto do casal.
Rachel ficou imóvel, pálida como uma estátua, embora sentisse a mão de
Damon apertando a sua.
— Paula, quero lhe apresentar...
— Já nos vimos antes, não é, Rachel? Parabéns! Quantos anos está fazendo?
— Dezenove — respondeu ela, aliviada por ver que as conversas tinham
recomeçado à sua volta. Quantos ali saberiam o que havia entre Damon e a atriz?
— Só dezenove? Que gracinha! Por isso parece tão criança!
Para alívio de Rachel, um dos convidados aproximou-se de Paula e a levou para
longe. Mesmo assim sua alegria se ofuscou. Sentiu-se infantil, diminuída diante da
sofisticação fulgurante da outra mulher .
Depois do confronto com Paula, não tinha a menor esperança de que, um dia.
Damon pudesse amá-la. Não bastava esquecer o passado, fingir que não houvera
aquela intromissão em sua noite de núpcias. A situação era bem mais complicada.
Como poderia competir com alguém tão bonita, desejável e experiente, como a
famosa atriz?
— Vamos lá fora tomar um pouco de ar fresco? — propôs Damon.
Atravessaram as altas portas de venezianas e chegaram ao pátio, onde alguns
casais dançavam. Damon a enlaçou e também seguiram a música suave e romântica.
Rachel acompanhava os passos do marido, mas estava tão tensa que não
acertava o ritmo. Damon acariciou-lhe as costas rígidas, encostando o rosto no dela.
— Relaxe, Rachel. Está dura como uma pedra.
Era bom sentir o marido tão perto, dando-lhe proteção e carinho mas, por mais
que tentasse, não conseguia se soltar. Inesperadamente Damon a beijou na boca,
num carinho rápido e cheio de ternura.
Rachel fechou os olhos, deliciando-se com aquele breve instante de prazer,
mas, quando tornou a abri-los, deparou-se com Paula, de pé, encostada na porta do
terraço.
Por isso Damon a tinha beijado? Para que Paula visse? O marido devia saber
que a atriz viria à festa. Provavelmente, sua amabilidade incomum era para
demonstrar à ex-amante que seu casamento era feliz... para provocar ciúmes.
Continuaram a dançar, porém Rachel havia ficado tão perturbada que, por duas
vezes, pisou no pé do marido.
— O que há com você? — perguntou ele com impaciência.
— Estou cansada. Não podemos ir embora?
— Claro, se é o que deseja. Vamos ficar só mais um pouco, para não aborrecer a
anfitriã, está bem?
A música terminou e Damon a levou para sentar-se num banco de madeira,
junto do jardim.
— Vou buscar uma bebida, Rachel. Talvez ajude você.
Ele foi para dentro e Rachel pôs a cabeça entre as mãos, dizendo a si mesma
que não podiam continuar vivendo daquele jeito. Não era justo, para nenhum dos
dois, estar em constante tensão, pesando cada palavra, agindo sem naturalidade.
Uma voz agradável, cristalina, a fez erguer a vista.
— Quer um cigarro, Rachel? — Paula sentou-se na outra ponta do banco e
estendeu o maço.
— Obrigada, não fumo.
A atriz pegou um cigarro fino e comprido, colocou-o entre os lábios escarlate,
para acendê-lo com um isqueiro de prata, com suas iniciais gravadas.
— Como está se dando com Damon?
— Muito bem — mentiu Rachel.
— Sei que é o tipo de pergunta que não se faz a uma recém-casada, mas... você é
tão jovem, e Damon sabe ser insuportável, quando quer! — Paula soltou uma
baforada de fumaça. — Sinto muito ter estragado a primeira noite de vocês.
Rachel ficou quieta, espantada demais para se manifestar.
— Talvez não sejam as palavras certas, mas estou tentando me desculpar. Eu
me comportei muito mal naquela noite, mas sou assim mesmo, principalmente com
Damon. Ele sempre consegue me deixar furiosa. — Paula deu mais uma tragada. —
Sabe o que eu pretendia naquela ocasião, não é? Estava ali, esperando por Damon
e...
— Sei. Queria reatar com ele — respondeu Rachel com esforço.
— Isso mesmo. Tudo estava péssimo entre nós e eu não sabia de sua existência,
garota. Fiquei chocada, louca para me vingar. Não lembro de tudo que disse, mas sei
que fui sarcástica e venenosa. Sentia ódio por Damon e precisava feri-lo. Não tenho
nada contra você e não deveria incluí-la em minha vingança. Há muito tempo que
Damon não quer mais nada comigo e eu devia me manter à distância. Tentei reviver
um caso que já estava morto e enterrado. Só espero que tenha acreditado, quando
Damon lhe deu as devidas explicações.
O marido não tinha dito nada, pensou Rachel, amargurada. Mas... não lhe dera
a menor chance! Não o deixou falar, não quis saber detalhe nenhum...
— Oi, Paula. Causando problemas de novo? — Damon chegou com dois copos
de bebida nas mãos.
— Pelo contrário, estava pondo óleo nas engrenagens, procurando reparar o
mal feito. Gosto de sua esposa, ela é uma boa moça. Se quer que eu seja bem sincera,
acho que não a merece.
— Sei disso. — Damon entregou o copo a Rachel. — Beba, vai lhe fazer bem.
Ela aceitou, aliviada de poder ocupar-se com alguma coisa. Enquanto isso,
Paula se levantou.
— Dance comigo, Damon. — A atriz virou-se para Rachel. — Não se incomoda,
não é?
Sem esperar pela resposta, os dois voltaram ao pátio. Rachel continuou a
observá-los. Dançavam normalmente, até um pouco afastados, mas seus corpos
pareciam se entender, movimentando-se com graça e harmonia, como se estivessem
acostumados a estar sempre juntos.
Paula falava, com a cabeça ligeiramente inclinada para trás. A expressão de
Damon mudou, passando da dúvida para a compreensão. Ela ainda acariciou os
cabelos loiros, o rosto barbeado. Damon sorriu.
Rachel não quis ver mais nada. Cruzou o jardim e entrou no salão iluminado,
olhando desesperadamente para os lados, à procura de Carl. Ele a faria sentir-se
mais confiante.
Viu o editor numa roda de amigos e logo se juntou ao grupo. Um rapaz, de
cabelos muito pretos e bigode farto, olhou-a com profunda admiração.
— Você é a aniversariante, não é? Parabéns.
— Também pode cumprimentá-la pelo casamento recente — acrescentou Carl
Watkins. — Rachel, este é Brent Conners. Não acredite em nada do que ele diz.
Nenhuma mulher está a salvo quando ele fica por perto.
— Carl gosta de exagerar. Sou tão inocente quanto um bebê. — Brent sorriu e
seus olhos percorreram o corpo de Rachel, detendo-se nos seios que marcavam o
tecido leve.
Rachel gostou da atenção que recebia. Era um consolo, depois de ver Damon e
Paula juntos. Entrou no jogo do rapaz, interessando-se pela conversa viva e
agradável. Ficou distraída com Carl e Brent e parou de seguir Damon com os olhos.
— Faz tempo que a procuro, querida — falou o marido às suas costas — Disse
que queria ir para casa. Vamos?
— Pensei que preferisse ficar mais, mas se acha que está na hora...
— Damon tem razão — comentou Brent com malícia. — Se você fosse minha
esposa, eu também teria pressa de ir embora.
Rachel corou com a insinuação e não se opôs quando Damon a agarrou pelo
braço, dando um "boa noite" frio aos dois homens.
Já no carro, ele deu partida e saiu dirigindo a toda velocidade. Estava quieto, os
lábios apertados, as mãos crispadas no volante.
— Divertiu-se muito com Brent? — perguntou, finalmente.
— Gostei dele. É uma pessoa alegre, com uma conversa interessante. — Ela fez
uma pausa. — E você? Também se divertiu?
Para sua surpresa, a reação do marido foi inesperada. Ele inclinou a cabeça
para trás e soltou uma gargalhada.
— Sentiu ciúmes, Rachel?
— Nada! E você?
— Muito.
A resposta a deixou atônita. Damon, com ciúmes dela? Ciúme não era sinal de
amor? Então... Não! Não ia pensar que ele a amava. Era pura ilusão!
Por algum tempo ficaram em silêncio, até que Damon falou de novo.
— O que Paula lhe disse?
— Ela se desculpou pelo que aconteceu na noite em que a conheci.
— Só isso?
"Que você não liga mais para ela", Rachel gostaria de contar, mas não
acreditava na sinceridade de Paula. Afinal de contas, a moça era uma atriz, e das
melhores. Deveria estar fingindo.
— Só isso? — insistiu Damon.
— Ela também disse que é difícil conviver com você.
— É mesmo?
— Com certeza achou que eu poderia aprender com a experiência dela.
Damon resmungou e encostou o carro na guia. Desligou o motor e depois
encarou a esposa.
— Em que sentido você lucraria com o que ela sabe?
Rachel não respondeu. Damon a fuzilava com o olhar e ela sentia medo.
— Só posso pensar num aspecto em que Paula tem realmente uma experiência
valiosa. Mas podemos remediar a situação e ensinar você também. — Damon puxou-
a para mais perto, indiferente às tentativas dela para impedi-lo. Beijou-a com fúria,
forçando a língua em sua boca.
A princípio Rachel resistiu, mas o cheiro másculo do marido, seu calor, a
deixou excitada. Nunca conseguia impedir os carinhos de Damon! Ele a deixava
mole, sem forças, querendo apenas amar e ser amada. Com um suspiro, desistiu de
lutar e entregou-se à doçura daqueles lábios de fogo.
Sem pensar em mais nada, rodeou o pescoço dele com os braços, enfiando os
dedos nos cabelos loiros, como há tanto tempo sonhava fazer. Beijaram-se com
paixão, o coração de Rachel batendo num ritmo alucinado.
Nesse momento um veículo passou por eles e os faróis potentes inundaram o
carro de luz. Ela se assustou e imediatamente enrijeceu os músculos, sentando-se no
banco muito ereta, com os olhos arregalados.
Damon a soltou.
— Pensei que já estivesse convencida de que não há nada errado num marido
ao beijar a esposa, seja lá onde for, Rachel! — Com raiva, ele pôs o carro em
movimento e partiu, cantando os pneus.

CAPÍTULO XIV

— Seis meses! — exclamou Rachel, espantada.


— Talvez menos, quem sabe. Nunca fui roteirista de filmes, mas tenho a
impressão de que não se pode fixar o tempo de trabalho, pois tudo depende dos
artistas, do diretor, do número de cenas que precisam ser refeitas.
— Quando partimos?
— Vou sozinho, Rachel.
Ela sentiu o sangue fugir do rosto, deixando-a gelada.
— Mas... somos casados!
— Mesmo? — Damon jogou a carta sobre a mesa. Nela, um famoso produtor de
Hollywood o convidava para fazer o roteiro do filme, baseado em seu último livro.
— Já é difícil viver fingindo aqui, Rachel. Será muito pior num país estranho,
onde teremos que viver em hotéis. Naturalmente, vão nos pôr no mesmo quarto, não
é verdade? Como poderíamos levar nossa... farsa adiante?
Talvez fosse exatamente o que precisavam, pensou ela, sem no entanto ousar se
manifestar.
— Sinto muito privá-la de uma viagem à capital do cinema, mas temos que
resolver tudo racionalmente. Pode ser que uma separação nos ajude a encontrar
novas perspectivas.
— O que espera que eu faça nesse tempo?
— Por que não se matricula na faculdade? Se não quiser ficar aqui sozinha,
poderá ir para a casa de Frances. Tenho certeza de que ela ficaria contente com sua
companhia.
— Obrigada pela sugestão, mas vou resolver minha vida por mim mesma.
— Rachel, não torne as coisas mais difíceis do que já são. Quero ficar tranqüilo,
sabendo que está bem cuidada.
— Pode ficar. Sei tomar conta de mim mesma.
Damon passou a mão pelos cabelos, reprimindo a impaciência.
— Vou deixar uma boa quantia no banco e poderá sacar o que quiser. Não se
preocupe com dinheiro.
— Obrigada — respondeu ela com ironia.
Não adiantava mais insistir. Damon não ia ouvi-la. Estava saindo de sua vida
para sempre, concluiu Rachel, desesperada. Mas não queria viver sem Damon! Ele
era o homem de sua vida, seu marido, seu amor.
Pondo o orgulho de lado, ela chegou mais perto e tocou-lhe o braço.
— Damon, por favor, me deixe ir também. Poderíamos começar tudo de novo!
Estou pronta para partilhar com você o que quiser, desde que me leve junto!
— Ora, essa é muito boa! Agora vejo que cada mulher tem seu preço. Acabo de
descobrir o seu.

Damon partiu numa manhã cinzenta, o vento assobiando nos telhados, uma
garoa insistente desafiando capas e guarda-chuvas. Rachel não o acompanhou ao
aeroporto. Mal tinham se falado naquelas semanas; ela, muito magoada, e Damon
ocupado demais com os preparativos da viagem.
Nem mesmo a publicação de seu livro de poemas conseguiu lhe dar ânimo. A
reação dos críticos foi favorável, embora não muito entusiasmada. Damon a
cumprimentou efusivo, mas ela o recebeu tão friamente que ele também se retraiu.
Passaram o Natal com a família de Frances, mas o esforço de fingir que eram
felizes os consumiu tanto que, quando chegaram em casa e foram dormir, nem se
deram "boa noite".
Depois que Damon partiu, ela pensou o que fazer da vida. Ir para a faculdade
era uma boa idéia, pois não conseguia mais escrever, e os cuidados com a casa não a
mantinham ocupada o dia todo.
Começou a se informar sobre os diferentes cursos, sem tomar nenhuma
decisão. Um dia, leu no jornal que Paula Winfield tinha ido para os Estados Unidos,
na esperança de ingressar no cinema. Foi então que se desiludiu por completo.
Fechou a casa e tomou o ônibus para a baía Hawkes. Sua vida com Damon acabara.
Jerry havia se mudado e agora trabalhava com um dos irmãos, noutra cidade.
Felizmente, não haveria oportunidade de encontrá-lo. No entanto, outra surpresa
desagradável a esperava na casa dos Langholm. Des Alexander ocupava o lugar de
Jerry!
Quando se encontraram, o rapaz mostrou-se surpreso e Rachel se limitou a
cumprimentá-lo. Daí para a frente ela tratou de evitá-lo a todo custo.
Preferiu instalar-se na casa do rochedo. Anne não se opôs, compreendendo que
a sobrinha desejava conservar sua independência.
Os tios só não se conformavam por ela não ter acompanhado o marido a
Hollywood. Rachel precisou de muito tato e imaginação para arranjar razões
plausíveis. Ficou aliviada quando chegaram as primeiras cartas da América, pois tia
Anne não ia mais desconfiar que seu casamento não andava bem.
A princípio as cartas vinham muito freqüentes, mas depois escassearam.
Rachel as juntava e guardava, sem ler, numa gaveta da camiseira.
Matriculou-se num curso de literatura na faculdade mais próxima, aonde ia
três vezes por semana. Assim mesmo ainda tinha bastante tempo para caminhar,
nadar, aproveitar o sol e... pensar.
Com certeza Damon já havia combinado com Paula de se encontrarem em
Hollywood e por isso não quisera levá-la. Acreditava até que ele já não amava a atriz
com a mesma intensidade, mas seis meses era tempo suficiente para reavivar o
antigo romance. Era mais do que certo que os dois acabariam juntos, principalmente
convivendo naquele ambiente excitante do meio cinematográfico, onde tudo era
permitido.
Rachel analisou seu próprio comportamento com Damon e reconheceu que
havia errado. O marido tinha se esforçado em fazer o casamento dar certo, mas ela
adotara uma atitude radical. Queria dele um amor total, ou nada. E era isso que
tinha agora: nada!
Não adiantava se recriminar. O casamento estava terminado e Damon não a
queria. Já não a tinha posto de lado, para começar um novo romance com Paula?
Com o coração partido, Rachel começou a escrever um poema, depois outro,
mais um... Era o grito de tristeza e dor de uma alma apaixonada, a declaração de um
amor infinito.
Quando terminou de escrever, Rachel pôs no alto da página "Para D...", sem
coragem de assumir sua enorme paixão pelo marido. Tinha colocado todo seu amor
naqueles versos, seu coração ficara exposto.
Sentiu-se melhor. Levantou-se da mesa da cozinha para tomar um copo de
água quando ouviu baterem à porta da frente. Foi atender e, para seu espanto, viu-se
diante de Des Alexander.
— Que veio fazer aqui!
— Só uma visitinha, Rachel. Há muito tempo não a vejo.
— Estou muito ocupada. Não tem o que fazer?
— Já terminei as obrigações do dia. Os Langholm foram à cidade e me senti
muito solitário.
Rachel lembrou-se do que tinha acontecido na última vez em que conversaram
sobre solidão e ficou apreensiva.
— É uma pena, mas eu não estou solitária.
— Como não? Com seu marido tão distante, tem que estar. — Ele chegou mais
perto. — Seja boazinha, Rachel. Como eu, está sem carinhos, não é?
Des avançou, querendo abraçá-la, mas Rachel defendeu-se com unhas e dentes
até perceber que, quanto mais se debatia, mais excitado ele ficava. Precisava agir de
outro modo. Ficaria imóvel e gelada. Isso o deixaria aborrecido a ponto de ir embora.
O rapaz a arrastou para o sofá e a beijou. Rachel sentiu o estômago
embrulhado. Gostaria de mordê-lo, de lhe dar ponta-pés, mas sabia que ele se
tornaria violento. Tentou levantar-se, mas ele a segurava com força, dominando-a
completamente.
Nesse momento a porta da frente se abriu de novo. Rachel quase morreu de
susto ao ver quem surgia.
— Damon!
Des levantou, logo se recuperando do choque.
— Deve ser o sr. Curtis. Sua esposa e eu conversávamos sobre os velhos tempos.
Ela deve ter-lhe contado que fomos bons amigos no ano passado, quando saíamos
juntos.
— É mentira! — gritou Rachel.
— Mentira, boneca? Já se esqueceu daquela noite em que Jerry nos
surpreendeu perto do galpão? Foi muito estranho, sr. Curtis. Ele afirmou que
namorava Rachel e, no entanto, ela estava comigo! Sabe, se ela fosse minha esposa,
não a deixaria solta. Ela fica solitária muito depressa e...
— Cale a boca! — Damon aproximou-se com os punhos fechados. — Saia daqui
e, se chegar outra vez perto de minha mulher, não respondo por meus atos. Posso ser
muito violento, sr. Alexander.
Des olhou para Rachel, sacudiu os ombros e foi embora.
— Damon, que bom que chegou! Eu estava apavorada.
— Pois não parece. Não a vi lutando com ele.
— Eu tentei, mas só tornei as coisas piores. — Rachel ia continuar, mas viu
tantas suspeitas nos olhos cinzentos que mudou de assunto. — Como soube que eu
estava aqui?
— Quando descobri que não estava em casa, deduzi que tinha vindo para cá. O
correio me confirmou, quando me deu o endereço para onde suas cartas eram
remetidas, depois de entregues em nossa casa. Isso também me provou que recebeu
todas que lhe escrevi. — Damon estava zangado, a expressão severa.
— Recebi, sim.
— Não me respondeu nenhuma.
— Não tinha o que dizer — mentiu ela, sem contar que não as tinha lido. Para
quê? Apenas para conhecer os detalhes da viagem, as festas, o encontro com Paula ?
— Vou pegar minha mala — avisou Damon.
— Pretende ficar aqui?
— Onde mais? Devo ficar com minha esposa ou com os Langholm? Afinal.
temos dois quartos, não é?
Rachel ficou quieta. Damon saiu e voltou com a bagagem, que colocou no
quarto vago.
— Gostaria de uma xícara de café — comentou ele. — Quer também?
— Ótima idéia. Vou fazer.
— Deixe que eu mesmo preparo. Ainda me lembro de onde encontrar o bule.
— Como quiser.
Damon foi para a cozinha e ela continuou sentada no sofá. Encostou a cabeça.
Quanta coisa tinha acontecido! A invasão de Des, a chegada inesperada de Damon.
Como era bom vê-lo de novo, senti-lo perto, ouvi-lo falar!
Sua mente divagou, pensando nos bons momentos que vivera com o marido.
Ele era extraordinário, inteligente, carinhoso... e, no entanto, fora tão burra que
estragara tudo.
— Minha nossa! Os poemas! — exclamou ela assustada. Tinha deixado o
caderno aberto na mesa, quando Des chegara. Damon os teria visto?
Levantou-se num salto e foi para a cozinha. Encontrou-o inclinado sobre a
mesa, lendo. Num gesto brusco, ela tentou pegar as folhas, mas Damon a deteve.
— Para quem escreveu isso, Rachel? — Ele parecia querer matá-la com o olhar.
— Para mim mesma. Não tinha o direito de ler sem minha permissão.
— São poemas de amor, falam de uma grande paixão. Você os dedicou a D...
Quem é ele? Des?
Rachel empalideceu e Damon aproximou-se, segurando-a pelos ombros, para
depois sacudi-la com raiva.
— Responda! São para Des? Por isso não lutou? Queria ir para a cama com ele?
— Não!
— Como não? A evidência é muito clara. Encontrei-a nos braços dele sem um
protesto, os poemas mostram intensa paixão, são para D... Além disso, Des afirmou
que estava muito solitária. — Damon mudou rapidamente, passando da fúria para
um tom gelado. — Bem... agora não precisa mais se queixar. Seu marido está aqui e,
se precisa de um homem, posso satisfazê-la.
Damon a abraçou com força e segurou-lhe a cabeça para que não escapasse ao
beijo. Foi bruto e sem piedade, forçando-a a aceitar a invasão de sua boca, para
penetrar ainda mais em sua intimidade. Não parou aí. Pôs a mão sob a blusa e tocou
a pele macia com movimentos sensuais, para depois abrir os botões e se apossar dos
seios.
Trêmula, Rachel tentou se livrar dele. Esse ataque selvagem não podia vir do
marido que ela amava. Ele estava fora de si, agia como um animal. Ela se contorceu
e, num gesto desesperado, conseguiu se livrar dos braços que a mantinham cativa.
Correu para a porta, bateu-a com força, esperando atingi-lo. Seguiu pelo
caminho que levava à praia e já estava quase na areia quando olhou para trás para
ver se ele a perseguia. Não viu a raiz de uma árvore, tropeçou e caiu, batendo com a
cabeça numa pedra.

Devia ter perdido os sentidos porque, quando acordou, Damon a estava


carregando de volta para casa. Colocou-a na cama e limpou a testa suja de areia e
sangue. Havia um corte pequeno, mas profundo, que ainda sangrava.
— Vou levá-la ao médico — disse ele preocupado.
— Não foi nada, já estou bem.
— Você desmaiou e a opinião do médico é muito importante.
Damon levou-a para o carro, colocou um travesseiro no banco de trás e a fez
deitar-se. Logo chegaram ao consultório do dr. James.
Ele a examinou com cuidado e, felizmente, não encontrou nada sério.
Recomendou apenas um dia de repouso, em observação.
— Sabia que estava bem, doutor. Não era necessário incomodá-lo.
— Fizeram muito bem de ter vindo. Não se brinca com batidas na cabeça. Devia
saber disso, Rachel, já que seu pai era médico.
— Ele era? Nunca soube, na verdade.
— Seu pai não me contou, mas depois que o vi atender uma emergência, fiquei
desconfiado e fiz pesquisas. Acabei conhecendo a história toda. Sua mãe morreu
muito jovem, de uma doença rara e desconhecida. Ele ficou tão amargurado por não
poder salvá-la que abandonou a medicina.
— Sempre suspeitei disso, dr. James, mas papai jamais se abriu comigo. Se
tivesse contado, talvez eu pudesse ajudá-lo muito mais...
— Não se recrimine, minha querida. Você era só uma garotinha... e seu pai
preferiu dedicar-se inteiramente à sua felicidade.

Na volta, Rachel insistiu em sentar na frente, ao lado do marido. Damon


concordou mas, quando chegaram em casa, fez questão de carregá-la e pô-la na
cama.
— Precisa obedecer às ordens do dr. James e fazer repouso.
— Está bem, mas antes vou tomar um banho.
— Deixe a porta aberta. Se precisar de mim, é só chamar. Vou pegar sua toalha.
O que mais precisa? Uma camisola?
Damon abriu a gaveta da cômoda e ficou parado, olhando o maço de cartas que
mandara, todas sem abrir. Não disse nada, mas olhou para Rachel com raiva.
— A roupa de dormir fica na gaveta de baixo — falou ela baixinho, ignorando a
atitude do marido.
Damon pegou a camisola e a entregou.
— Precisa de mais alguma coisa?
— Não, obrigada. O resto está no banheiro.
Rachel tomou um banho demorado e depois se deitou. Damon lhe trouxe um
copo de leite e, depois de tomar, ela se virou para o lado e dormiu profundamente.
No dia seguinte estava pronta para levantar, mas Damon insistiu em que
ficasse deitada. Trouxe-lhe o café numa bandeja muito bem-arrumada, onde não
faltou nem um vasinho com margaridas. Rachel alimentou-se, leu a manhã inteira e
depois tornou a dormir.
Quando abriu os olhos, encontrou Damon a seu lado. Ele sorriu e lhe deu um
beijo na testa machucada.
— Sinto muito ter sido responsável por esse tombo.
— Não foi culpa sua. Tropecei e caí.
— Eu sei, mas se não tivesse agido como um bruto, não teria fugido.
Rachel apertou as mãos e encontrou coragem para voltar ao assunto que a
tinha perturbado tanto.
— Acredita mesmo em tudo que me disse?
— Não. Estava louco da vida com você, furioso por pensar que Des era seu
amante.
— Sei que as circunstâncias eram contra mim, mas parei de lutar porque só
estava conseguindo que Des ficasse mais ousado.
— Você o convidou a vir?
— De jeito nenhum! Odeio aquele homem! — Ela contou o que tinha havido
entre eles no ano anterior. Damon escutou, para depois comentar:
— Você era muito ingênua, não?
— Demais, mas acho que amadureci bastante, depois.
— É acho que sim.

Na hora do almoço Rachel se levantou e comeram juntos.


— Conte tudo que aconteceu em Hollywood — pediu ela.
Ele falou sobre os lugares aonde foi, as pessoas famosas que conheceu, sobre o
trabalho da filmagem, os incidentes engraçados.
Rachel o incentivava com comentários e outras perguntas. No entanto, havia
uma, crucial, que ainda não tinha feito. Reuniu suas forças, para conseguir indagar
de modo casual:
— Esteve com Paula?
— Paula? — Ele pareceu espantado.
— É. Li no jornal que ela foi para Hollywood tentar o cinema. Devem ter se
encontrado, não é verdade? Você como escritor roteirista, ela como artista famosa,
os dois neo-zelandeses, é evidente que encontraram uma oportunidade. — Não
pretendia falar de modo tão acusador, tão cheio de suspeitas, mas agora era tarde
demais.
Damon cerrou as sobrancelhas, levantou-se e deu uns passos pela cozinha.
Parou diante da janela, parecendo que ia falar, mas ficou quieto. Voltou para perto
dela e olhou-a bem fundo nos olhos.
— Devia ter lido minhas cartas, Rachel. — Sem mais nenhuma palavra, saiu da
cozinha, deixando-a sozinha.

CAPÍTULO XV

Rachel estava abalada demais para dormir. Virou de um lado para o outro,
tentou pensar em lugares bonitos, depois começou a repetir mentalmente seus
poemas mas, dessa vez, nada adiantou.
O melhor era se levantar e tomar um pouco de leite quente. Mas, se fosse até a
cozinha, corria o risco de Damon ouvi-la. Não ia facilitar. Bem, o jeito era ler.
Pegou o livro na mesinha-de-cabeceira e procurou interessar-se pela história,
mas os personagens lhe pareciam estranhos, sem personalidade definida.
Foi então que se lembrou das cartas de Damon. Ele fora tão enfático ao dizer
que devia lê-las...
Pé ante pé foi até a cômoda e pegou o maço de envelopes ainda fechados. Abriu
um a um, pela ordem de chegada. Leu a primeira carta, a seguinte, deixando as
folhas abertas sobre a cama, ansiosa demais para conhecer o conteúdo das outras.
Os primeiros raios da manhã já tingiam o céu quando ela terminou a leitura.
Tirou a camisola, colocou um robe atoalhado que lhe chegava aos joelhos e foi para a
praia. Lá, tirou o roupão e correu para o mar.
Ainda estava frio, mas ela entrou no mar assim mesmo. O choque da água foi
uma delícia, enchendo-a de vitalidade e disposição. Nadou com energia, mergulhou,
voltou à tona. Finalmente deslizou numa onda até a praia, levantou-se e andou pela
areia molhada, a caminho de casa.
O sol, já aparecendo firme no horizonte, mostrou-lhe que Damon estava ali, à
sua espera. Ela não quis se esconder, nem fugir. Ergueu a cabeça e caminhou
decidida na direção dele.
Damon pegou o robe jogado na areia e a envolveu em seu tecido macio. De
mãos dadas, sem uma palavra, foram sentar-se num monte de areia mais seca.
— Você não tem juízo, bobinha! O que o dr. James diria se soubesse que foi
nadar?
— Ele me mandou ficar em repouso por um dia. Obedeci e agora me sinto
muito bem, pronta para levar minha vida normal.
— Tem certeza?
— Absoluta.
Damon colocou os braços em volta dos ombros dela.
— Antes de vir até a praia, estive em seu quarto, para ver se ainda estava
dormindo. Encontrei as cartas espalhadas na cama.
— Estou arrependida por não ter lido antes! Não sabia que me amava!
— Como é possível? Demonstrei meu amor de todas as maneiras que conhecia.
— A não ser declarar com palavras...
— Em geral, elas significam tão pouco! Além disso, me expresso melhor por
escrito.
Rachel sorriu.
— Acontece a mesma coisa comigo. Sabia que os versos eram para você, não é?
— Tinha certeza, mas fiquei furioso porque você não quis admitir a verdade.
— Sinto tanto pelos nossos mal-entendidos, Damon. Mas tudo contribuiu para
que eu pensasse que não me amava. Paula fez questão de provar que seu caso com
ela tinha durado até nosso casamento. Fiquei sem ação quando a vi na sala em nossa
noite de núpcias.
— Agora conhece a verdade?
— Desconfio... Me corrija se estiver errada. Ela é Karina, não é? A noiva que o
abandonou porque se viu retratada em seu livro?
— Exatamente, e ela escolheu a pior hora para reaparecer, uma semana antes
de nosso casamento. Tinha brigado com o homem com quem vivia, estava sem
trabalho, sem dinheiro e resolveu me procurar. Quando lhe recusei abrigo, devia ter
sido franco e contado que ia me casar. Porém, achei-a tão deprimida que não quis
aumentar sua decepção. Não podia imaginar que ela ainda guardasse a chave de
casa, desde o tempo em que éramos noivos.
— Você a amava muito?
— Não sei. Na ocasião, eu era muito jovem e fiquei entusiasmado por estar com
uma bela mulher, que já prometia tornar-se uma atriz excelente. Mas, na verdade,
nenhum de nós dois pensava em manter um relacionamento permanente. — Damon
aninhou-a entre os braços. — Vamos deixar o passado para trás, querida. A única
coisa que importa é que nos amamos.
— Damon, ainda não ouvi você dizer o que sente por mim.
— Amo você, de todo meu coração.
Rachel sorriu feliz e passou os braços ao redor do pescoço dele.
— Também amo você. — Ela arqueou o corpo para se colar ao dele.
Beijaram-se com ternura, agora sem barreiras nem reservas. Ela se deu toda,
entregando-se ao calor do beijo apaixonado.
Sentiu que Damon lhe tirava o robe, admirando seu corpo escultural. Os seios
palpitaram sob o toque sensual e envolvente, os mamilos enrijeceram de desejo.
Damon a acariciava com meiguice, tocando seus pontos sensíveis, fazendo-a vibrar
até atingir o auge da paixão. Ela suspirou, numa doce submissão ao homem amado.
Damon cobriu-a com o corpo e ela estremeceu, na antecipação do prazer. Num
ritmo cadenciado, que lembrava o rolar das ondas, eles se conheceram, pele contra
pele, os corpos roçando, as respirações se misturando, os gemidos de satisfação
ecoando na manhã radiosa. Amaram-se com volúpia, dando e recebendo carícias, até
que chegaram juntos ao êxtase.
Ficaram imóveis, os corpos úmidos de transpiração, gozando aquele instante de
indizível felicidade. Depois, Damon rolou para o lado e acariciou o rosto jovem que
demonstrava a paz conquistada através da realização plena.
— Amo-a demais, Rachel. Todos esses anos sonhei em encontrar uma mulher
como você.
Ele ergueu-se no cotovelo e a beijou, pondo nesse contato a imensidão do
sentimento que abrigava no coração. Damon a carregou e a levou para casa. Rachel
sentiu-se leve naqueles braços poderosos, segura, amada, cheia de alegria.
— Agora vamos começar nossa verdadeira vida de casados, ocupando o mesmo
quarto, a mesma cama, vivendo realmente juntos, Rachel. Quanto tempo esperei por
isso!
— Eu sei, mas estava tão confusa, sem acreditar que você pudesse retribuir meu
amor, que não ousava me abrir. — Ela chegou bem junto do marido e perguntou
baixinho em seu ouvido: — Quando me convidou para ir para Auckland, estava
mesmo pensando em casamento?
— Quis fazê-la minha esposa desde o momento em que a vi, mas me julguei
egoísta demais, pretendendo me unir a uma garota tão jovem. Foi só quando voltei à
fazenda e a encontrei disposta a se prender a Jerry pelo resto da vida, que tomei a
decisão de levá-la comigo, fosse lá como fosse.
— Mas a idéia de casamento partiu de mim!
— Você não teria falado em se casar se não sentisse que eu queria, não é? Era
tímida demais para se arriscar em terreno desconhecido.
Damon a beijou com amor e Rachel, livre das tensões, correspondeu com a
mesma intensidade.
— Estou com fome, querida. Vamos tomar nosso café da manhã?
Juntos, eles foram para a cozinha, onde prepararam um chá com torradas,
manteiga e geléia. Depois sentaram-se para tomá-lo.
— Por que voltou de Hollywood tão de repente? — quis saber ela.
— Precisava vê-la e saber por que não respondia minhas cartas. Fiquei
desesperado, imaginando coisas horríveis que podiam ter-lhe acontecido. Não
achava possível você manter-se silenciosa depois de ler a confissão de meu amor, as
explicações sobre Paula. Abri meu coração, desnudei minha alma e não recebi uma
linha sequer!
— Foi bobagem minha, Damon, reconheço. Devia tê-las aberto, mesmo que não
tivesse intenção de responder. Porém, o medo de encontrar referências a Paula foi
mais forte que eu. Ela era um fantasma, sempre presente em minha vida. Talvez
tenha pensado como criança, não sei.
— Agora você é mulher, minha mulher! Por mim, passaria a vida inteira
mostrando o quanto a amo.
— Você tem alguma coisa mais importante para fazer? — Ela levantou-se e o
puxou na direção do quarto. — Então...
— Então vamos estrear nossa cama de casal. — Damon a abraçou, sorrindo.

FIM

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