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O Pó de Soltar Pum
Ilustrações de Per Dybvig
O novo vizinho
Cabritos enjoados
QUANDO BUMBÃO OUVIU O PAI DE LISE, o comandante, dizer que ela tinha
de ir à escola, lembrou-se de que ele também tinha. Onde quer que
ela ficasse. E, se fosse rápido, talvez conseguisse tomar café da manhã,
encontrar a mochila e, se fosse preciso, escovar os dentes e ainda
conseguir ir junto com alguém que conhecesse o caminho.
Ele passou por entre as pernas dos carregadores e entrou na casa
nova. E lá, numa caixa de papelão no corredor, viu seu trompete.
Respirou aliviado e o agarrou. Bumbão, a irmã e a mãe haviam vindo
com o primeiro caminhão de mudança na noite anterior, e sua única
preocupação era que os caras da mudança pudessem esquecer de
pegar a caixa com o trompete.
Colocou os lábios com cuidado no bocal.
“Um trompete deve ser beijado como uma mulher”, seu avô
sempre dizia. Bumbão nunca havia beijado uma mulher em toda sua
vida, pelo menos não assim, não no meio da boca. E, para dizer a
verdade, ele tinha esperança de não ter de fazer uma coisa dessas.
Soprou o ar para dentro do trompete, que berrou como um cabrito
enjoado. Poucas pessoas já ouviram cabritos enjoados, mas o som é
assim mesmo.
Ouviu baterem na parede e sabia que era a mãe, que ainda não
havia levantado.
– Ainda não, Bumbão! – gritou. – São oito horas. Nós estamos
dormindo.
Ela sempre dizia “nós”, mesmo que estivesse sozinha no quarto.
Agora “vamos para cama” e agora “vamos fazer café”. Como se papai
não tivesse ido embora, como se ela ainda o tivesse no quarto.
Guardado numa caixinha que ela de vez em quando pegava quando
Bumbão não estava lá. Um papai em miniatura que parecia o pai que
Bumbão tinha visto nas fotos. Miniatura queria dizer que algo era
muito, muito pequeno, e fazia sentido que Bumbão tivesse um pai em
miniatura, já que Bumbão era o menor menino que ele mesmo tinha
visto.
Ele desceu à cozinha e fez o café da manhã. Mesmo tendo se
mudado no dia anterior, encontrou tudo que precisava porque já
tinham se mudado tantas vezes que Bumbão sabia mais ou menos
onde a mãe ia pôr as coisas. Os pratos no armário à esquerda, os
talheres na gaveta de cima e o pão na gaveta de baixo.
Ia abocanhar um sanduíche de salame quando alguém o
arrancou da sua mão.
– Como está o anãozinho? – perguntou Eva, e enfiou os dentes
exatamente onde Bumbão havia pensado em pôr os seus. Eva era a
irmã de Bumbão. Ela tinha quinze anos e, quando não estava
entediada, estava zangada.
– Você sabia que o pit bull é o cão mais estúpido do mundo? –
perguntou Bumbão. – É tão estúpido, que, quando pega a comida do
poodle-anão, que por acaso é o cachorro mais inteligente do mundo,
não entende que foi enganado. – Cale a boca – disse Eva. Mas
Bumbão não calou a boca.
– Quando o poodle-anão sabe que o pit bull está farejando um
sanduíche de salame e que está a caminho para roubá-lo, ele costuma
passar baba de lesma-elefante no meio do sanduíche.
– Lesma-elefante? – bufou Eva com um olhar suspeito.
Infelizmente para ela, era Bumbão que lia livros e por isso sabia um
bocado daquilo que ela não sabia. Ela nunca tinha certeza se o que ele
dizia era mera bumbão-ficção ou algo de seus livros estúpidos. Agora,
por exemplo, podia ser algo daquele livro que Bumbão mais lia, um
livro velho, grosso e empoeirado do avô que se chamava ANIMAIS QUE
VOCÊ GOSTARIA QUE NÃO EXISTISSEM.
O primeiro teste do pó
NA MESMA TARDE, BUMBÃO BATEU com força à porta do porão da casa azul.
Três batidas fortes. Era o sinal combinado.
O doutor Proktor abriu a porta de uma só vez e exclamou,
carregando no erre: “Maravilha!”, assim que viu Bumbão. Depois
ergueu uma das sobrancelhas espessas, abaixou a outra e apontou:
– Quem é esta?
– É Lise – respondeu Bumbão.
– Estou vendo – disse o professor. – Ela mora bem ali no outro
lado da rua, se não estou totalmente enganado. O que quero dizer é: o
que ela está fazendo aqui? Não combinamos ontem que se trata de
um projeto altamente secreto?
– Não tão secreto, pelo visto – falou Lise. – Bumbão comentou
sobre ele hoje na escola.
– O quê? – exclamou o professor assustado. – Bumbão! É
verdade?
– É – disse Bumbão. – Um pouquinho; talvez seja.
– Você revelou… você revelou… – gritou o professor, e
estrebuchou os braços, enquanto Bumbão projetou seu maxilar
inferior para a frente e arregalou os olhos, de onde lágrimas pareciam
estar prestes a sair. Com essa expressão, que Bumbão já havia ensaiado
bastante, especialmente para situações como aquela, ele parecia um
camelo bem pequenininho, e muito triste. E, como todos sabem, é
quase impossível se zangar com um camelo triste.
O professor gemeu resignado e deixou os braços penderem.
– Está bem então, talvez não seja tão arriscado. Afinal de contas,
você é meu assistente. Tudo bem.
– Obrigado – disse Bumbão baixinho.
– Está bem, está bem – o professor o interrompeu. – Agora pode
parar de fazer essa cara de camelo. Entrem e fechem a porta.
Eles obedeceram, e o doutor Proktor correu para os tubos de
ensaio e os recipientes de vidro, onde borbulhava e fumegava algo que
lembrava o odor de peras cozidas.
Lise ficou perto da porta olhando tudo o que havia ao redor. No
parapeito da janela tinha um vaso com uma planta de pétalas brancas.
E na parede ao lado havia uma foto de uma moto com sidecar em
frente ao que ela supunha ser a Torre Eiffel. Um homem jovem e
sorridente, parecido com o professor, estava sentado na moto, e no
sidecar estava uma moça bonita, de cabelo escuro, também sorridente.
– O que está fazendo? – perguntou Bumbão ao doutor Proktor.
– Estou aperfeiçoando o produto – respondeu o professor,
mexendo em um grande tonel. – Buscando mais vigor. Uma
preparação de um tipo mais explosivo, eu diria.
O professor enfiou um dedo na mistura e o levou à boca.
– Hum. Absinto demais.
– Posso provar? – perguntou Lise, e olhou por cima da beirada do
tonel.
– Sinto muito – disse o professor.
– Sinto muito – repetiu Bumbão.
– Por que não? – perguntou Lise.
– Você por acaso é uma provadora autorizada de pó de soltar
pum? – perguntou Bumbão.
Lise pensou.
– Não que eu saiba.
– Então sugiro que deixemos a provação para mim – disse
Bumbão, levantando os suspensórios. Depois pegou uma colher e
enfiou no tonel.
– Cuidado – avisou o professor. – Comece com um quarto de
colher.
– Está bem – concordou Bumbão, e engoliu um quarto de colher
do pó.
– Vamos começar a contagem regressiva – falou o doutor Proktor
olhando para o relógio. – 7, 6, 5, 4, 3… Não, não fique atrás dele,
Lise!
O maestro Madsen e a
banda escolar de Dølgen
Bumbão pratica
matemática elementar
Infelizmente, o resto do dia não passou tão rápido. Bumbão estava tão
impaciente para chegar em casa para o Último Grande Teste do Pó que
ficava na sala de aula contando os segundos, enquanto observava a
boca da senhora Strobe se mexer. Ele não estava prestando atenção,
até que, de repente, percebeu que a senhora Strobe apontava o dedo
na sua direção, e todos os outros alunos da classe olhavam para ele. Só
então Bumbão entendeu que a senhora Strobe provavelmente havia
lhe feito uma pergunta.
– Dois mil, seiscentos e oitenta e um – respondeu Bumbão.
A senhora Strobe franziu a testa.
– Isso seria a resposta para a minha pergunta?
– Não necessariamente – disse Bumbão. – Mas são os segundos
que já se passaram desta aula. Quer dizer, agora já foram mais quatro,
então no total se passaram dois mil seiscentos e oitenta e cinco. É
matemática elementar.
– Entendo – a senhora Strobe começou –, mas Bumbão…
– Desculpe, já não é a resposta correta – disse Bumbão. – A
resposta correta agora é dois mil seiscentos e oitenta e nove.
– Parece-me que você está tentando fugir da pergunta que fiz –
falou a senhora Strobe. – Porque você ouviu o que perguntei, não foi,
Bumbão?
– Claro – disse Bumbão. – Dois mil seiscentos e noventa e dois.
– Chegue ao ponto – pediu a senhora Strobe, já com um pouco
de irritação na voz.
– O ponto é – disse Bumbão – que, como há sessenta segundos
num minuto, e quarenta minutos numa aula, não tenho tempo de
responder a sua pergunta, já que sessenta segundos vezes quarenta e
cinco são dois mil e setecentos segundos, e isso significa que o sinal
vai tocar exatamente…
Ninguém ouviu o resto do que Bumbão disse, porque, no mesmo
instante, o sino começou a tocar bem alto, com som estridente. A
senhora Strobe tentou mostrar a Bumbão um olhar severo, mas
quando ela gritou “Todos fora!” ele viu que ela não conseguia
esconder um sorriso.
O pumponauta
Bumbão é enganado,
e um pouco sobre
Juliette Margarina
A grande venda do
Pó de Soltar Pum
do Doutor Proktor
Truls e Trym não foram para a escola naquele dia. Ficaram em casa
por quatro bons motivos. Primeiro, porque aquele diabinho em
miniatura podia ter tramado outros truques. Segundo, talvez as outras
crianças da escola já estivessem sabendo dos acontecimentos, e iam se
esquecer de ter medo de Truls e Trym; em vez disso, ririam deles.
Terceiro, Truls e Trym eram apenas dois belos preguiçosos. Mas o
quarto motivo, e o mais importante, era que eles precisavam de ajuda
para tramar uma vingança. Porque ninguém era melhor em tramoia e
vingança do que o paizão, o senhor Grou. E agora o paizão gorducho
estava sentado numa poltrona gorducha na mansão gorducha,
coçando os pneuzinhos gorduchos.
– Interessante – comentou. – Quer dizer que esse professor tem
um pó que pode lançar uma pessoa direto para o espaço? E outro que
as crianças querem pagar para ter?
– É – disse Truls.
– É – disse Trym.
– Não são inventos bobos – constatou o senhor Grou, e
arreganhou os dentes de forma bastante malévola, enfiando um
pauzinho para dentro da gaiola, da qual um porquinho-da-índia
apavorado tentava escapar.
– Acho que tenho um plano, meninos. Um plano que vai fazer
todos nós ganhar dinheiro.
– Oba! – aplaudiu Truls.
– Oba! – aplaudiu Trym.
– Roubar – disse o senhor Grou.
– Maravilha! – gritou Truls.
– Como a gente começa? – perguntou Trym.
– Começamos, naturalmente… – disse o senhor Grou, enquanto
se esticou com um gemido para pegar o telefone – … ligando para a
polícia.
Capítulo 13.
Um dia perfeito?
QUANDO O PAI DE LISE CHEGOU EM CASA naquele dia, ela estava sentada
embaixo da macieira sem maçãs.
– Estou tão aliviado – rosnou o comandante, enxugando o suor
da testa. – Nós achávamos que o dia 17 de maio tivesse ido para o
espaço. Sabe, Lise, procuramos a pólvora especial da Grande e Quase
Mundialmente Famosa Salva Real durante dias. Começamos a achar
que tivessem esquecido de colocar a pólvora a bordo do navio lá em
Xangai. Mas descobrimos que foi a primeira coisa que carregaram, e
que está bem no fundo. Vai ser descarregada amanhã. Já pensou que
catástrofe sem aquela pólvora!
Só agora percebera que Lise mal prestava atenção, e que estava
sentada embaixo da árvore com a cabeça enterrada entre as mãos,
abatida e tristonha.
– Há algo errado, meu bem? – grunhiu.
– Aconteceu uma coisa terrível – falou Lise macambúzia. – O
Bumbão e o doutor Proktor foram presos. Só porque Truls e Trym
comeram um pouco de Pó de Pumponauta.
– Eu sei – disse o comandante.
– Você sabe? Como é que sabe?
– Porque a polícia pediu para colocá-los na cela mais segura de
toda a Europa do norte, com exceção da Finlândia. E lá estão.
– Quer dizer… quer dizer… – começou Lise transtornada.
– Sim – disse o pai. – Eles estão no Calabouço do Fantasma.
Depois do almoço, Lise foi para o jardim. Ela tinha de pensar. Então
se sentou na grama embaixo da macieira sem maçãs e pôs a cabeça
entre as mãos. Mas os únicos pensamentos que teve diziam que era
impossível fugir do Calabouço do Fantasma e que, com certeza,
Bumbão e o doutor Proktor estavam perdidos. Soltou um arroto de
bife à milanesa e teve vontade de chorar. Então chorou um pouco, e,
como sempre, chorar a deixava com muito sono, por isso, bocejou
também. O sol da tarde iluminou Lise, e um pássaro num galho da
macieira cantou. Mas Lise não percebeu nada disso porque já estava
dormindo. E, quando acordou, não foi com o canto de passarinho,
mas com vozes. As vozes vinham do outro lado da cerca. Alguém
estava na rua conversando.
– Olhe a porta velha do porão ali – sussurrou uma voz de adulto
que ela reconheceu. – Deve estar trancada, mas vocês dão um jeitinho,
meninos.
– Claro – disse uma voz ainda mais familiar. – É só usar um pé de
cabra e forçar a porta aberta.
– Vamos arrombar! – disse uma terceira voz que ela certamente
sabia de quem era.
– Legal!
Lise se levantou e olhou com cuidado por cima da cerca. E lá viu
as costas de três pessoas que olhavam com cuidado por cima da cerca
da casa do doutor Proktor.
– É esse o espírito, meninos – sussurrou o senhor Grou. – E,
quando estiverem dentro do porão do professor, peguem todo o Pó de
Soltar Pum e todo o Pó de Pumponauta que acharem. Entendido?
– Sim, papai – disse Truls.
– Sim, papai – disse Trym.
– E depois, meninos, podem vender o Pó de Soltar Pum para as
crianças da escola.
Eles se viraram, mas Lise foi mais rápida e se abaixou.
– E o Pó de Pumponauta, papai? – perguntou Truls.
– Ha, ha – riu o senhor Grou. – Já falei com alguém em Houston
que está muito interessado numa invenção que possa mandar pessoas
direto para o espaço sem precisar construir um foguete.
– Quem é, papai? – perguntou Trym.
– A organização norte-americana Nasa, seu imbecil – disse o
senhor Grou. – Depois de pegarem o pó, vou direto para o escritório
de patentes para tirar patente desse Pó de Pumponauta. Então vai ser
tarde demais para o babaca do professor; serei eu que vou vender o
pó. Vou ser milionário, meninos!
– Você já não é, papai?
– De certa forma sim. Mas, com mais alguns milhões, posso
comprar mais um Hummer. E uma piscina coberta. O que acham
disso?
– Sim, papai! – gritaram Truls e Trym em coro.
– Certo – disse o papai. – Então sabemos como é por aqui. Vamos
arrumar um pé de cabra, gorros e atacar amanhã à noite. Ha, ha, ha.
Lise ficou quieta ouvindo o riso do senhor Grou e os passos deles
se afastarem.
Depois se levantou de um salto e correu para dentro de casa.
– Papai, papai! – gritou.
– O que é, Lise? – resmungou o comandante, que estava deitado
no sofá, lendo o jornal.
Rapidinho, ela contou como fora acordada e ouvira o plano da
família Grou. Mas, enquanto falava, um sorriso se espalhou no rosto
do comandante.
– O que foi? – gritou Lise quando terminou. – Você não está
acreditando em mim?
– Você nunca mente, querida – falou o comandante, coçando o
queixo. – Mas não está entendendo que você sonhou isso tudo
quando estava dormindo, e que não tinha acordado? O senhor Grou
com a família arrombando a casa de um professor para roubar a
invenção dele? – O comandante riu tanto que seu corpo todo sacudia.
– Já pensou?!
Devagar a ficha caiu para Lise: se nem o próprio pai acreditava
nela, quem iria acreditar? Quem poderia ajudá-la? E a resposta estava
igualmente clara para ela: ninguém. Só ela mesma.
O sol tinha acabado de se pôr e, na noite seguinte, o Pó de Soltar
Pum do Doutor Proktor estaria nas mãos de três caras malvados. E só
ela sabia disso.
Capítulo 15.
O Calabouço
do Fantasma
A grande fuga
O sol deslizava pelo céu e seus raios iluminavam uma Oslo que já se
preparava para o dia 17 de maio, faltando apenas dois dias. As pessoas
limpavam a casa, plantavam flores nas caias das janelas, passavam a
ferro as bandeiras e os trajes nacionais, repetiam receitas de gemadas,
cantarolavam o hino nacional. E, quando o sol começou a cair sobre a
colina de Ullern, os homens no cais descarregavam as últimas caixas
do navio de Xangai.
Os raios de luz, que penetraram por entre as tábuas do cais,
refletiam nas conchas. E não apenas naquele tipo de conchas presas
entre os pilares do cais. Mas em conchas que se mexiam. Conchas
negras presas nas costas de algo que saía serpenteando do buraco
escuro de um cano de esgoto. Conchas nas costas de algo que não
tinha visto comida desde a carne dura do rato--d’água mongol de
trinta e cinco anos, dois dias antes.
A criatura deslizou pela água. Ouviu ranger as tábuas do cais. Viu
as solas de um par de botas. Comida. Era um homem carregando uma
caixa de madeira. O monstro subiu serpenteando ligeiramente uma
das pilastras do cais em direção ao sol ofuscante, levantou-se,
balançou por cima do coitado e ouviu os passos no cais pararem. O
monstro abriu a boca, o sol cintilou nas terríveis presas e se ouviu um
grito. Isso mesmo, é esse o barulho de uma boa comida…
A criatura se preparou para um belo naco. Mas o sol da tarde
estava baixo, embora ainda assim bem ofuscante, e o monstro não via
luz fazia dias. Deu uma dentada às cegas. Abocanhou algo, segurou
com os dentes e desapareceu rapidinho na água. E para dentro do
cano de esgoto. Comida! Já sentia os sucos gástricos começarem a
escorrer de glândulas do corpo inteiro, enquanto nadava para dentro
do sistema de esgoto de Oslo. E então, bem lá dentro, numa faixa de
luz que caía da pequena abertura de água de um bueiro da rua lá no
alto, parou para se deleitar. Mas… o que era aquilo? Gosto de
madeira? Cuspiu a comida. Que de comida não tinha nada. Era uma
caixa de madeira. O monstro fumegou de raiva. Que azar! Maldito!
Que droga!
Mas então ouviu alguma coisa. Um eco de um chiar lá dentro do
sistema de esgoto. Chiar de rato? Rattus norvegicus. Comida! E zás, o
monstro morto de fome sumiu na escuridão do esgoto em outra
caçada. A caixa de madeira ficou lá, boiando na água do esgoto. E na
faixa de luz do bueiro dava para ler o seguinte texto impresso na
tampa em letras vermelhas:
A vida no esgoto
BUMBÃO ESTAVA EM QUEDA LIVRE. Ele uma vez já havia tentado descer um
tobogã aquático em algum parque de diversão, mas esse agora era
outra coisa. Seu corpo descia como se fosse um torpedo para o centro
da Terra, até que uma curva o jogou para a esquerda. Depois para a
direita. E para baixo de novo. Ele se sentiu como um caubói sentado
num cavalo selvagem feito de água, e não pôde evitar: teve de
exclamar um “Ia-huu!”.
Os canos eram de tamanho adequado, com a quantidade
adequada de água para amortecer todas as quedas e curvas. Continuou
a descer e, apesar de ficar cada vez mais escuro e frio, ele se divertiu
com tudo adquirindo um brilho verde ao redor nem lembrou que
estava molhado ou com frio. E ele entendeu bem por que o rato tinha
nadado e subido até o vaso sanitário deles: aquilo era a montanha-
russa do século!
Todas as vezes que fazia uma curva, e era arremessado para uma
nova queda livre, Bumbão sentia tanta cócega na barriga que queria
que a viagem nunca acabasse. Mas é claro que tinha de haver um fim.
E havia. Bem de repente. As paredes do cano estreito sumiram, e ele
ficou deitado no ar, barriga para baixo, vendo algo preto que se
aproximava a uma velocidade monstruosa. E a coisa preta o acertou.
Ou melhor, Bumbão acertou a coisa preta. Ninguém nunca fora
testemunha de tamanha barrigada de mergulho no sistema de esgoto
de Oslo. Esguichou água marrom e papel higiênico usado para cima
das paredes. E como ardeu! Bumbão tinha a sensação de estar deitado,
barriga para baixo, numa frigideira.
E, agora que Bumbão está prestes a ser engolido, você talvez espere
que vá acontecer alguma coisa no último minuto, alguma coisa
totalmente improvável, algo que nunca aconteceria em outros lugares,
apenas nas histórias, justo no momento em que o herói está à beira de
ser lançado na perdição. Mas isso não acontecerá. O que acontecerá
em seguida é que Bumbão, dez anos e no momento fosforescente, será
engolido por uma sucuri. E isso apenas dois dias antes do esperado
dia 17 de maio.
Fui engolido por uma sucuri, pensou ele, lá de onde estava, sentado
na escuridão, no interior de um corpo de cobra que se mexia e
serpenteava, de cuja parte superior e lados gotejava um líquido.
Bumbão ainda estava dolorido depois de ter sido espremido goela
abaixo, mas esse lugar onde estava era mais espaçoso, e ele ainda
estava razoavelmente inteiro. Mas, claro, era apenas uma questão de
tempo. Porque sabia, tendo lido a página 129 de ANIMAIS QUE VOCÊ
GOSTARIA QUE NÃO EXISTISSEM, que o que gotejava eram sucos gástricos
corrosivos. E que, com o tempo, eles dissolveriam seu corpo em
elementos básicos. Como haviam feito com o coitado que era dono
do colar metálico que ele encontrara quando chegara ali à noite.
Um pouco antes de o pó fosforescente perder o efeito, conseguira
ler o nome gravado no colar. Átila. Era tudo que sobrara do coitado. O
suco gástrico já começara a queimar as solas grossas de Bumbão, e o
cheiro de borracha queimada ardia nas narinas. Sem dúvida,
enfrentaria uma morte lenta e bastante cruel. E, não restava dúvida, a
esperança de ser arremessado para fora num espirro ou soluço
diminuía a cada minuto. Sem dúvida, ele tinha de inventar alguma
coisa, e rápido.
Então Bumbão inventou alguma coisa.
Tirou do bolso o envelope com o Pó de Pumponauta.
O Escritório de Patentes
QUANDO TOCOU O SINO PARA a primeira aula, Lise ainda estava com o
uniforme da banda. Todos estavam no pátio da escola, conversando
sobre o acontecimento tão estranho daquela manhã, quando
marchavam pelo centro de Oslo. Sobre os dois integrantes da banda
que haviam desmaiado, sobre a ambulância que surgiu
imediatamente e sobre o maestro Madsen, que ficara tão transtornado
que pensaram que ele fosse desmaiar.
Lise abriu caminho para a sala de aula entre crianças que a
amolavam e puxavam, querendo saber quando podiam comprar o Pó
de Soltar Pum; dia 17 de maio já era no dia seguinte!
Ela chegou ao seu lugar no instante em que a senhora Strobe
entrou na sala, puxou os óculos até a ponta do nariz e olhou para a
única cadeira vazia.
– Lise, você está sabendo se o senhor Bumbão pretendia ficar
doente hoje?
Lise fez que não com a cabeça.
A senhora Strobe a encarou com um olhar penetrante:
– Algum problema, Lise?
Na verdade, Lise tinha vontade de responder que não, mas ela
sabia que o olhar da senhora Strobe podia atravessar o crânio de
criancinhas e chegar ao cérebro, até o lugar onde estavam seus
pensamentos. Por isso, Lise contou a verdade, nua e crua:
– Bumbão está na prisão.
Ouviu-se um som de espanto na sala, e a senhora Strobe levantou
uma sobrancelha tão alto que ela sumiu por baixo do cabelo:
– Você podia fazer a gentileza de repetir o que disse, Lise?
– Sim, senhora Strobe. Bumbão está na prisão. Para ser mais
exata, no Calabouço do Fantasma.
Então a senhora Strobe baixou as duas sobrancelhas e as
encolheu de forma a parecerem um bigode na testa:
– Você costuma ser uma moça que só fala a verdade, Lise. Mas,
aparentemente, passou tempo demais na companhia do senhor
Bumbão.
– Mas estou dizendo a verdade! – gritou Lise.
– Tolice – bufou a senhora Strobe. – Bumbão não está em prisão
nenhuma. Vamos retomar a leitura de onde paramos, na página 17.
– Na prisão! – disse Lise.
– Não! – retrucou a senhora Strobe.
– Está sim! – afirmou Lise.
– Não – disse uma voz. – Agora não está mais lá.
Todos se viraram para a porta da sala de aula. E lá estava Bumbão.
Ensopado e com o cabelo um pouco queimado nas pontas, mas de
resto exatamente como de costume.
– Tomou banho no bebedouro de novo, senhor Bumbão? –
perguntou a senhora Strobe, irônica.
– Foi apenas uma pequena luta com uma sucuri tamanho médio
no esgoto, senhora Strobe. O que resolvemos com algumas explosões.
De novo um sobressalto surpreendeu a todos na sala de aula e foi
interrompido pela já conhecida palmada na mesa.
– Chega de bobagens por hoje. Vá para seu lugar, senhor
Bumbão.
Bumbão obedeceu, mas, assim que se acomodou, inclinou-se
para Lise.
– Recebi seu recado – sussurrou. – Sinto muito por não ter
conseguido sair antes, mas tive uma estada involuntária dentro do
sistema digestivo de uma sucuri. Como está a situação?
– Truls e Trym arrombaram a casa do doutor Proktor ontem à
noite – sussurrou Lise. – E, pelo que pude ver, levaram os dois vidros
com pó.
– Ver? Você apenas olhou?
– Foi – disse Lise. – Para verificar se tudo estava indo de acordo
com o plano.
– Plano? Que plano?
– Ah, apenas um pequeno plano emergencial – disse Lise. – Não
vale a pena contar.
A confissão
Dia 17 de maio
PELA ÚLTIMA VEZ NESTA HISTÓRIA,o sol nasceu num céu sem nuvens. Já
havia brilhado por algum tempo no Japão, na Rússia e na Suécia, e
agora começava a iluminar uma pequena capital num país bem
pequeno chamado Noruega. Começou logo a iluminar o castelo
amarelo, nem grande, nem pequeno, onde mora um rei que não
manda o bastante para atrapalhar, mas que hoje está ansioso para
acenar às crianças no desfile e ouvir a Grande e Quase Mundialmente
Famosa Salva Real em sua homenagem. E, naturalmente, o sol
iluminava o forte de Akershus, os velhos canhões que apontavam para
o fiorde de Oslo e a primeira porta de muitas portas que levava para o
calabouço mais temido da cidade, o Calabouço do Fantasma.
E, justo neste instante, a porta do Calabouço do Fantasma se
abriu, e o doutor Proktor apareceu no aterro gramado, tendo de fechar
os olhos por causa do sol forte. Atrás dele vieram dois guardas.
– Maravilha! – gritaram Bumbão e Lise, que estavam esperando
por ele. Deram saltos de alegria e acenaram com bandeiras
norueguesas.
– Liberdade, sol, 17 de maio e meus assistentes – riu o doutor
Proktor enquanto os abraçava. – Esse dia poderia ficar melhor?
– Para alguns, sim – murmurou o comandante, que estava alguns
passos atrás de Lise e Bumbão, balançando nos calcanhares.
– Mas ninguém me contou por que estou sendo libertado – disse
o professor quando pôs Bumbão e Lise no chão.
– Truls e Trym confessaram tudo – falou Lise. – Que foram eles
que ameaçaram Bumbão para lhe dar o Pó de Pumponauta aquele
dia.
– E que você nunca vendeu Pó de Pumponauta para crianças –
completou Bumbão.
– E logo a polícia vai prender o senhor Grou – disse Lise. – Só
precisam terminar a corrida pela cidade primeiro.
– Minha nossa! – exclamou o professor. – Então todos os
problemas foram resolvidos!
– Todos não – disse Lise, e fez um gesto de cabeça para o
comandante. – Papai?
– Claro, claro – grunhiu o comandante, dando um passo para a
frente. Ele parecia incomodado, e talvez por isso tenha falado mais
alto e com mais firmeza na voz do que necessário: – Bem,
lamentamos muito essa estada idiota na prisão, doutor Proktor. Não
vai se repetir. A não ser que o senhor faça algo muito ilegal, claro. Por
exemplo, colocar bananas em cano de escape. Ou hastear nenéns em
poste de bandeiras. Ou…
– Vá direto ao ponto, papai – disse Lise, severa.
– Claro, claro, ao ponto – grunhiu o comandante, que já estava
vermelho até o pescoço. – Como o senhor pode ver, temos alguns
canhões antigos que ficam ali. E, como o senhor não pode ver, não
temos pólvora especial de Xangai, que precisamos para a Grande e
Quase Mundialmente Famosa Salva Real que deve ser lançada desses
canhões hoje. Nos tempos modernos, jamais aconteceu de não
lançarmos a Salva Real, e receamos que o mundo ria de nós. Pelo
menos a Europa do norte… Exceto a Finlândia, talvez… e… e…
– Papai!
– Claro, claro. A questão é…
– A questão é – interrompeu o doutor Proktor – se eu posso
ajudar vocês com a Salva Real. E a resposta, meu caro comandante e
vizinho, é: SIM!
Daí ouviram-se gritos de alegria pela segunda vez em pouco
tempo. Mas Lise e Bumbão não podiam ficar gritando de alegria
muito tempo, porque em poucos minutos tocariam na banda da
escola de Dølgen, no desfile de 17 de maio.
A cena era tão cômica que Lise não conteve uma gargalhada. Sete
guardas inclinados para a frente com seus traseiros apontando para
cima do muro do forte, para o fiorde de Oslo, enquanto o relógio da
torre da Prefeitura badalava.
Mas, depois da terceira batida, nem Lise, nem o resto dos
habitantes de Oslo e arredores ouviram mais o relógio. Porque as
batidas e a gargalhada de Lise foram abafadas por um estampido tão
alto que os tímpanos das pessoas se paralisaram e os olhos foram
pressionados em grande medida para dentro das órbitas. A explosão
seguinte mandou uma onda de ar pela rua Rozenkrantz até a avenida
Karl Johan, que fez todas as bandeiras se abrirem. O terceiro
estampido quebrou três janelas na terra de Nesodden e fez as pereiras
em Ullevål Hageby florirem de puro susto. O quarto estrondo fez uma
menina, que Lise conhecia em Sarpsborg, olhar para o céu azul e
pensar que viria trovão. O quinto não foi tão alto, na verdade soava
exatamente igual a um pum, e fez as pessoas de Oslo se olharem
surpresas. Mas o sexto inclinou um navio que ia para a Dinamarca em
direção ao fiorde, e fez uma migração de andorinhas a caminho da
Noruega mudar de ideia e retornar à África. A onda de som chegou até
o Kurfürstdamm em Berlim, onde o jato de água do bebedouro
dobrou, molhando todos os turistas em volta e fazendo as crianças
gargalharem de alegria.
O último capítulo
Tradução
GRETE SKEVIK
Nesbø, Jo
Doutor Proktor [livro eletrônico] : o pó de soltar pum / Jo Nesbo ; ilustrações de Per
Dybvig ; tradução Grete Skevik. -- São Paulo : Editora WMF Martins Fontes, 2015.
2,5 Mb ; ePUB.